Você está na página 1de 20

José Henrique Zamai |  105

DEMOCRACIA E DESCONFIANÇA: UMA ANÁLISE DO


PROCEDIMENTALISMO EM JOHN HART ELY

José Henrique Zamai1

RESUMO

O presente artigo se destina a analisar a obra


“Democracia e Desconfiança’’, do jurista
norte-americano, John Hart Ely, na qual o autor
fixa os parâmetros para a atuação jurisdicional,
principalmente através do controle de
constitucionalidade, em um ambiente de
respeito ao princípio democrático. Partindo da
conceituação e demonstração de insuficiência
das teorias vigentes, Ely propõe uma alternativa
à atuação jurisdicional que importe em garantir
às minorias o devido acesso às vias políticas
representativas, como forma de corrigir
desconfianças geradas por processos legislativos
dominados por interesses particulares, evitando
que o juiz, enquanto agente estatal não eleito,
interfira diretamente nas questões políticas
substantivas.

Palavras-chave: Procedimentalismo. John Hart


Ely. Controle de Constitucionalidade.

1 Acadêmico da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: jhzamai@


gmail.com
106  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo se destina a analisar a obra fundamental do


jurista norte-americano, John Hart Ely, um dos principais expoentes
do que se convencionou chamar, na doutrina constitucionalista, de
procedimentalismo, enquanto uma corrente de pensamento pós-
positivista atenta à atuação das Cortes Constitucionais nas democracias
contemporâneas e preocupada em estabelecer qual o papel desenvolvido
pelos juízes diante de questões políticas.
Nesse sentido, parte-se de uma primeira abordagem das ideias
desenvolvidas por Ely em sua obra “Democracia e Desconfiança: uma
teoria do controle judicial de constitucionalidade” como forma de
elucidar o seu pensamento sobre a temática.
Parte-se da identificação, conceituação e diferenciação das
teorias constitucionais em voga à época do autor, traçando-se suas
principais limitações e insuficiências, diante de uma Constituição que
não se satisfaz em seus próprios termos, exigindo abertura hermenêutica.
A partir de tal embate é que Ely desenvolverá seu pensamento,
indicando uma alternativa às teorias postas, a qual considera ser adequada
tanto à necessidade de abertura interpretativa das Constituições, quanto
à necessidade de respeito ao princípio democrático.

2. INTERPRETACIONISMO E NÃO INTERPRETACIONISMO

Ely (2010) inicia sua obra apresentando uma classificação do


que acredita ser a dicotomia atual na doutrina constitucionalista norte
americana. Assim, diz da existência das correntes interpretacionista e sua
opositora, a corrente não interpretacionista.
O interpretacionismo, segundo Ely (2010, p. 03), configura-
se na corrente doutrinária que defende a atuação jurisdicional pautada
mais pelos limites textuais explícitos ou claramente implícitos da
Constituição. É, assim, a corrente que defende uma limitação do Poder
José Henrique Zamai |  107

Judiciário ao que claramente expressa o texto constitucional ou, quando


muito, àquilo que claramente deixa implícito. O autor, a fim de trazer
uma aproximação esclarecedora (muito embora conheça as limitações de
tal aproximação), estabelece que o interpretacionismo se ligaria mais a
uma ideia de positivismo jurídico, dada sua maior atenção ao que dispõe
o texto constitucional em si, mais do que àquilo que o circunda, fora do
mundo das Leis.
De outro lado, há a corrente não interpretativista. Segundo
Ely (2010, p.03), tal corrente prega que a atividade jurisdicional,
principalmente quando se manifeste acerca de questões constitucionais,
não pode se limitar ao texto expresso, mas procurar referências que
extravasem esses limites, a fim de fazer cumprir normas não claramente
deduzidas pela linguagem expressa da Constituição. No mesmo sentido,
muito embora não sem evidentes limites, a ideia do não interpretativismo
se conecta ao conceito próprio do jusnaturalismo, segundo o qual as
normas não existem em si mesmas, mas com base em valores subjacentes
e circundantes.
Neste ponto, vale fazer a anotação de que o autor não entende
haver uma correlação necessária entre a corrente interpretacionista e a
autocontenção judicial, assim como também não a entende haver entre
não interpretacionismo e ativismo judicial: para o autor, a autocontenção
(ou automoderação) e o ativismo existem, em maior e menor grau,
dentro de ambas as correntes doutrinárias, não se confundindo o seus
conceitos.
Em seguida o autor relata haver uma predileção pela teoria
interpretacionista na prática judiciária norte americana por duas principais
razões. Primeiramente, porque o interpretacionismo corresponde às
expectativas de uma concepção média que a sociedade tem do que é
o Direito e como se dá o seu funcionamento, que seja, se há direito
legislado, o juiz se atém à linguagem da lei, procurando nela as referências
expressas ou claramente implícitas para decidir os casos concretos, não
cabendo a ele dizer que o direito é bom, segundo sua interpretação dos
valores da sociedade.
108  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

Assim também porque o interpretacionismo corresponde


às expectativas que tem a sociedade de um conceito de Democracia,
segundo o qual as decisões políticas (portanto, de valores da sociedade)
devem ser tomadas pelos representantes eleitos pelo voto majoritário,
o que não ocorre para os membros do Poder Judiciário. Assim, se o
legislador constituinte estabeleceu um texto constitucional, não caberia
ao Poder Judiciário questionar tal escolha feita pelo legislador, sob pena
de agir de maneira a invalidar a decisão da maioria.
Este raciocínio, verifica o autor, coloca o controle judicial de
constitucionalidade em uma tensão entre a preservação da Constituição e
as decisões políticas democráticas: se de um lado o princípio majoritário
é o que rege toda a organização do poder no Estado, como se pode
admitir que o Poder Judiciário, um poder não eleito, critique, anule e
retire do cenário jurídico as decisões políticas?
Procurando um meio termo, o autor continua seu raciocínio
no sentido de demonstrar que um governo da maioria, se ilimitado,
pode governar apenas para si próprio, esquecendo que a sociedade
compõe-se em diversidade, havendo minorias com iguais direitos
constitucionalmente assegurados, sem a devida representação política
para transformar seus anseios em lei.
A resposta que vislumbra é a de que a Constituição impõe os
limites ao governo majoritário, primeiramente, assegurando direitos de
forma indistinta a todas as pessoas, bem como assegurando os contornos
de atuação dos Poderes. O povo, composto de maioria e minorias, aceita
ser governado pela Constituição, que, em última análise, é o governo de
si por si próprio. Essa é uma das razões pelas quais o interpretacionismo
toma vantagem sobre o não interpretacionismo, que pregaria, de outra
forma, que não é a Constituição, mas os valores subjacentes a ela, aferidos
pelos juízes, que governa a sociedade e o povo. Seria admitir, portanto,
que povo seria governado pela interpretação dos juízes.
José Henrique Zamai |  109

2.1 Insuficiência da Teoria Interpretativista: a problemática dos


termos abertos.

Entretanto, continua o autor, a sedução dos argumentos da


corrente interpretacionista são falsos, porque, ainda que se baseiem
num conceito democrático mais admitido pela sociedade (critério
majoritário), muitas das vezes, por se ater àquilo que está expressamente
dito na Constituição, ou claramente implícito, prende-se aos valores
dos constituintes originários. Há, então, o governo do passado sobre
o presente e sobre o futuro: a Constituição, acaso lida expressamente,
evidencia, de fato, a voz do povo, mas talvez de um povo que já não vive
mais.
Ainda, teoriza que não se é possível a realização da interpretação
da Constituição em seus expressos termos, vez que estes se apresentam,
muitas das vezes, indicativos de valores a serem considerados e chamam
à consideração do intérprete, também, fontes exteriores à disposição
constitucional. O interpretacionista estrito não conseguiria obter, assim,
respostas satisfatórias da Constituição se realizasse tão somente uma
análise das cláusulas constitucionais expressas e de sua história legislativa
(debates legislativos).
Com a finalidade de demonstrar as limitações da corrente
interpretacionista, o autor parte da análise da Décima Quarta Emenda
à Constituição Americana. A título de exemplo, Ely demonstra tais
limitações da corrente interpretacionista partindo da Cláusula do Devido
Processo Legal2, na medida em que o texto expresso da emenda faz

2  Eis o texto da Décima Quarta Emenda: “All persons born or naturalized in the
United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States
and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which
shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall
any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of
law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws”.
Em tradução livre: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos
110  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

uso de linguagem carente de significação em si mesma: termos como


vida e liberdade pugnam por uma conceituação inexistente no texto
da emenda ou na própria Constituição. Ainda, há discussão se haveria
no texto expresso alguma indicação de que o devido processo legal
deveria ser entendido em um viés puramente procedimental (assegurar
um processo através do qual o Estado poderia privar a vida, liberdade
ou bens dos cidadãos) ou também substancial (não apenas deve haver
um procedimento para que o Estado realize, mas este deve assegurar o
próprio direito que visa restringir, não sendo, pois, a invasão fruto de
uma arbitrariedade desarrazoada).
A primeira atitude de um interpretacionista, no caso e diante de
uma cláusula aberta, seria se voltar ao histórico legislativo de formulação
da Décima Quarta Emenda e, através dos debates existentes entre os
legisladores da época, procurar entender o que significavam os termos
expressados na linguagem final passada em norma constitucional.
Ely verifica que, de fato, a intenção dos legisladores é uma fonte de
interpretação a ser considerada, mas não está sempre acessível, vez
que (i) nem todos os debates são efetivamente registrados, bem como,
(ii) pelo próprio processo de aprovação das emendas, nem sempre o
mesmo texto é aprovado pelas mesmas razões (neste ponto, verifica
que as Assembleias Legislativas estaduais ratificam o texto enviado por
motivos muitas vezes diversos daqueles que levaram à mesma redação
pelo Congresso).
As limitações a esta fonte de interpretação deixam, portanto,
o interpretacionista sem um respaldo para dar a resposta correta à
Constituição. Se ele entender que o texto é bastante em si, entenderá que
o devido processo legal somente poderá ser admitido em seu aspecto

e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver
residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou
as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua
vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual
proteção das leis”. (grifo nosso)
José Henrique Zamai |  111

procedimental, diante do que ao juiz caberia apenas verificar se o Estado


observou ao procedimento correto para relativizar o direito dos cidadãos
à vida, liberdade e propriedade.
Ainda assim, o Poder Judiciário não deixaria de realizar uma
análise “substancial” dos procedimentos devidos, caso entendesse que
determinados direitos pleiteariam um procedimento mais rigoroso,
enquanto outros um mais facilitado.
Em qualquer dos casos, se se admite um viés substancial do
devido processo legal ou apenas procedimental, o que se verifica é a
insuficiência do texto para a decisão final do intérprete, o que colocaria
em xeque os fundamentos da teoria interpretativista.
O que o autor procura deixar claro é que a abertura deliberada
da linguagem constitucional, com termos de plasticidade elevada,
demonstrou, ao longo da história legislativa e judiciária norte-americanas,
que a tese interpretacionista não tinha condições de prevalecer em seus
termos exatos e fixos, sucumbindo, por vezes, à utilização de fontes e
elementos externos à expressa linguagem da Constituição.
Esta questão, no contexto mais amplo da obra, tomará dimensão
perante o exercício do controle de constitucionalidade, vez que, sendo
este um ato do Poder Judiciário de criticar e tornar sem efeito os atos
políticos, a corrente interpretacionista estabeleceria um limite claro a tal
exercício, que seja, a própria Constituição (parâmetro fixo, inteligível
e esgotável em si mesmo). Entretanto, quando a própria Constituição
possui cláusulas abertas, não fica claro até que ponto poderia o Poder
Judiciário, no seu intento interpretativo, entender acerca de tais termos
e, com base nesta abertura, invalidar as decisões políticas.

2.2 A Insuficiência da Teoria Não-Interpretativista: a problemática


dos valores.

Então, seria de se concluir que a corrente não interpretativista


é suficiente à interpretação Constitucional? O autor também responde
negativamente a esta pergunta e para tanto passa à análise de uma
112  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

relação de valores, procurando identificar quais são aqueles dotados


de fundamentalidade e, portanto, capazes de autorizar que o Poder
Judiciário, não eleito, realize a cassação dos atos decisórios políticos.
Dentre os valores que analisa, estão, os valores próprios do juiz,
o direito natural, os princípios neutros, a razão, a tradição, o consenso e
o progresso. Um a um o autor demonstra suas limitações como meios
de interpretação da Constituição.
Quanto aos valores fundamentais do juiz, em que pese a
consideração de que, enquanto membro da sociedade, expresse seu
valores, nada garante que haja uma necessária correspondência entre
tais expectativas, decidindo o juiz, por vezes, segundo uma concepção
demasiado pessoal, o que poderia desembocar em exercício arbitrário de
poder, sem qualquer limitação e responsabilidade direta.
Quanto ao direito natural, Ely verifica que é incapaz de se
sustentar sozinho, já que a negativa e segurança de um direito natural
são capazes de se originar do mesmo direito natural. Um exemplo é o
da escravidão, que foi defendida como o direito natural de alguns povos
sobre outros e, de outro lado, combatida sob a alegação do direito natural
das pessoas à liberdade.
Os princípios neutros se demonstram na adoção, pelo juiz, de
uma série de princípios que transcendem o caso em análise, devendo ser
aplicados de maneira semelhante aos casos semelhantes: o juiz, assim,
deverá agir sempre com base nos mesmos princípios. O problema de tais
princípio, teoriza Ely, é que os juízes que decidem segundo os princípios
neutros não precisam mais do que tais princípios para legitimarem sua
decisão, cercando sua atividade de uma objetivação incapaz de oferecer
conteúdo substantivo às cláusulas abertas da Constituição, daí porque
falíveis em seus próprios termos.
Quanto à razão, verifica o autor que nem sempre o juízo moral
da sociedade (este presumivelmente detectável pelo juiz) é um juízo moral
bom, segundo a razão. Nem mesmo entre os especialista em filosofia
moral seria possível se detectar um consenso sobre uma virtude moral
correta: atos idênticos poderão gerar valores morais contraditórios.
José Henrique Zamai |  113

Assim, também, nem sempre o juiz é imparcial ao interpretar: há o


risco deste se valer dos valores morais de sua classe social, segundo seu
posicionamento político, segundo suas crenças religiosas etc. O próprio
sistema representativo afasta a existência de juízes na posição de reis-
filósofos, já que a decisão política, tomada pelos eleitos, não poderá ser
substituída pela decisão judicial de poucos juízes, não eleitos, sob os
auspícios da razão, havendo sério perigo de que se torne a imposição de
valores de uma classe bastante definida sobre outras.
Quanto à tradição, Ely verifica que são óbvias suas limitações,
podendo servir a objetivos distintos e, mesmo, contraditórios, pela sua
amplitude. Não há uma segurança de qual a tradição correta, de que
povo, lugar ou época. Novamente voltando à questão da escravidão,
pontua Ely, que há, de um lado, uma tradição igualitária que permeou
todo o movimento de Independência; contrapondo-se, de outro lado,
a uma tradição escravagista, de segregação, que, muito embora não
assumida, ainda existe. Assim, não se é possível dizer que exista uma
tradição americana capaz de proteger as minorias raciais do poder
decisivo da maioria, se o critério a ser utilizado é a tradição. Também,
decidir com base na tradição é aceitar que uma maioria social do passado
governe a sociedade do presente, o que se contrapõe à lógica do sistema
representativo democrático.
O consenso é a noção que tem a sociedade de valores
amplamente partilhados, servindo, portanto, para se interpretar as
cláusulas abertas da Constituição porque (i) poderão ser descobertos
(não são incompletos) e (ii) correspondem a um ideal democrático, na
medida que o consenso, na Corte, se traduz em uma consulta ao povo. Ely,
entretanto, discorda de ambas as características normalmente atribuídas
ao consenso, diante do fato de que pode ser, na realidade, a dominação
de um grupo pelo outro. Assim também, quando o juiz realiza qualquer
técnica para depurar o consenso social, está, na realidade, moldando o
consenso o que seja mais imediato e mais geral, podendo sua conclusão
autorizar qualquer tipo de prática. Não por outro motivo é que o Poder
Legislativo (e não os tribunais) é que seriam mais aptos para conhecer
114  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

e transformar em lei um consenso, na teoria democrática: estão mais


perto da sociedade e mais aptos a captar o consenso, num contexto mais
abrangente e considerando, se não definitivamente, as divergências ao
consenso.
Para Ely, controlar uma decisão tomada pela maioria legislativa
só tem sentido quando em garantia dos direitos de uma minoria não
representada. E, neste caso, não vale o consenso como argumento, pois
seria retirar fundamento da opinião da maioria acerca de um anseio
próprio da minoria: seria proteger a minoria das maiorias, através de
uma consulta às próprias maiorias.
O último valor, o progresso, tem limitações evidentes, tanto
porque os juízes não são qualificados para preverem o futuro da opinião
popular, ao menos não mais do que o Poder Legislativo, caso em que não
estaria autorizada a corte a invalidar a decisão política, por entender que
a sociedade entenderá a questão que de forma diversa no futuro, quanto
porque não se pode conceber a ideia de o passado controla o presente,
também não se é possível aceitar que o futuro controle o presente.
Um terceiro problema, verifica Ely, é o de que as “profecias”
judiciais de progresso inevitavelmente tenderiam a se cumprir, não
porque vislumbraram o futuro, mas porque o moldaram desde o presente,
através da opinião pública. Neste último caso, estaria a se admitir que a
Corte não é neutra em sua decisão, mas apenas cria campo para que seus
conceitos valorativos frutifiquem.

3. A CORTE COMO ÁRBITRO DO JOGO DEMOCRÁTICO

Se ambas as teorias, interpretativista e não interpretativista,


são insuficientes para guiar a atuação jurisdicional em um contexto
democrático, então, como resolver a questão do controle de
constitucionalidade, através da qual necessariamente o Poder Judiciário
invalida um ato nascido da expressão democrática? Como pode ser dar
conteúdo às disposições abertas da Constituição, sem que com isso a
José Henrique Zamai |  115

Corte imponha uma série de valores que entende correta, deturpando


o sistema representativo ao suprimir a decisão política? A resposta do
autor compõe as bases do procedimentalismo.
Segundo Ely (2010, p. 115-117), a Corte deve agir como
árbitro do jogo democrático. Deve se colocar a uma distância segura da
imposição de valores da sociedade a fim de verificar a quem interessa a
decisão política tomada. Se esta está a beneficiar apenas a maioria que
lhe deu causa, deve agir, no âmbito interpretativo que lhe cabe, de forma
a corrigir a representação política e favorecer, de igual maneira, também
aqueles que não foram adequadamente representados no processo
político.
O autor verifica, através da análise do texto original da
Constituição e de suas sequentes emendas, que o constituinte preferiu
deixar de lado a adoção de um valor substancial específico a ser
imposto na sociedade. De outro lado, tenta definir os procedimentos, os
mecanismos através dos quais o poder estatal será realizado. Através de
tais mecanismo, ao menos em tese, o autor acredita que seja possível que
os diversos valores que compõe a sociedade sejam ouvidos e ponderados
para a decisão política final. Decisões substantivas, com maior destaque
para a manutenção da escravidão, não puderam suportar a existência de
um processo que aceitasse a participação dos abolicionistas e, portanto,
foi extirpado da Constituição.
Assim, Ely conclui que a Constituição, em seus termos possui
prescrição de um processo legítimo de exercício de poder e não uma
ideologia dominante, um valor substantivo perpétuo.
Com isso, entende o autor que o Poder Judiciário não deve
atuar de forma a captar e traduzir valores que entenda convencionais
na sociedade. Antes, deverá se dirigir ao procedimento legítimo previsto
na Constituição a fim de garantir que os mecanismos de representação
estejam efetivamente sendo cumpridos. O trecho a seguir congrega toda
a teoria em um único parágrafo:

A linha de decisão judicial constitucional que aqui


recomendo é análoga ao que seria, nos assuntos
116  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

econômicos, uma orientação “antitruste”, entendida


como oposta a uma orientação “regulamentadora” – em
vez de ditar resultados substantivos, ela intervém apenas
quando o “mercado”, neste caso o mercado político, está
funcionando mal de modo sistêmico. (também é cabível
uma analogia com um árbitro de futebol: o juiz deve
intervir somente quando um time obtém uma vantagem
injusta, não quando o time “errado” faz gol). Não é justo
dizer que o governo está “funcionando mal” só porque
às vezes ele gera resultados com os quais discordamos,
por mais forte que seja nossa discordância (e afirmar
que ele obtém resultados de que “o povo” discorda – ou
d e que discordaria, “se compreendesse” – na maioria
das vezes é pouco mais que uma projeção delirante).
Numa democracia representativa, as determinações de
valor devem ser feitas pelos representantes eleitos; e, se
a maioria realmente desaprová-los, poderá destituí-los
através do voto. O mau funcionamento ocorre quando
o processo não merece nossa confiança, quando (1) os
incluídos estão obstruindo os canais de mudança política
para assegurar que continuem sendo incluídos e os
excluídos permaneçam onde estão, ou (2) quando, embora
a ninguém se neguem explicitamente a voz e o voto, os
representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente
põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera
hostilidade ou à recusa preconceituosa em reconhecer
uma comunhão de interesses – e, portanto, negam a essa
minoria a proteção que o sistema representativo fornece
a outros grupos. (ELY, 2010, p. 136-137)

Neste sentido, o Poder Judiciário deve estar especialmente


atento a alguns direitos fundamentais para o desbloqueio dos canais de
mudança, principalmente, do direito à liberdade de expressão, como uma
forma de se assegurar, indistintamente, a possibilidade de manifestação
pública de ideias, interesses e exigências: em síntese, uma garantia
fundamental para o funcionamento do processo democrático.
Assim, o Poder Judiciário deve entender que a liberdade de
expressão importa na eliminação de restrições aos indivíduos para a
José Henrique Zamai |  117

livre manifestação, encontrando barreira apenas quando efetivamente


necessário para que o Estado implemente um interesse seu. A análise
deve perpassar os casos limítrofes, em que se analise se o interesse que
deseja o Estado implementar, de fato, justifique limitações à liberdade
de expressão. Ao Poder Judiciário cumpriria a tarefa, vez que o Estado,
por querer implementar um interesse, muitas das vezes entende
absolutamente necessária a limitação: é necessário um afastamento
político, a fim de que um direito e uma restrição sejam adequadamente
sopesados.
O que Ely quer demonstrar é que o direito constitucional à
livre manifestação não é ilimitado, muito embora pareça ser, cumprindo
ao Poder Judiciário realizar sobre os atos praticados sob sua égide
(ou tentando limitá-lo) o controle de constitucionalidade a fim de,
verdadeiramente, desbloquear os canais de mudança política. É dizer:
ao Poder Judiciário cumpre verificar se o direito à livre manifestação
está sendo assegurado como forma de dar voz àqueles que, durante o
processo político, não puderam ser ouvidos.
O Poder Judiciário deve assumir para a efetiva representação
da minoria. Garantir a livre expressão e dar direito de voto e voz
para todos, de maneira indistinta, é apenas uma forma de colocar os
sujeitos sociais em pé de efetiva igualdade para que possam eleger seus
representantes. Garantido esse ponto comum de partida, Ely verifica
que a maioria mantém, ainda, a capacidade de se articular e fazer valer
para todos apenas o seu interesse, diante do que seria necessário que se
facilitasse não apenas o acesso da minoria ao Poder, mas a sua efetiva
representação.
O autor, assim, passa a realizar uma análise da teoria da
classificação suspeita. Para o autor, o ato impugnado deve ser analisado
sob dois aspectos: (i) primeiramente, se o ato impugnado está de acordo
com as metas fixadas pelo Estado para a garantia de um direito (ou por
que se limita sua distribuição) – o que denominada de compatibilidade
perfeita -; e (ii) se tal meta do Estado é plausível – o que denomina de
relevância substancial. Assim, um ato poderá, à primeira vista, parecer
118  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

inconstitucional, mas o Estado poderá fornecer razões pelas quais


acredita ser adequado às metas que deseja alcançar, diante do que deverá
ser mantido. Em uma segunda análise, deve se analisar se a própria
meta é plausível, sob pena de ser, ela mesma e o ato que nela se apoia,
inconstitucionais.
Para Ely, o que a Corte deve controlar, em uma análise
constitucional, é se o Poder Legislativo está atuando de maneira
abrangente ou limitada: se está, ou não, sendo assegurado que as minorias
sejam ouvidas e seja levada em conta sua opinião para a decisão política
final. O controle, portanto, é de representação e não de mérito: deve-se
assegurar que a representatividade da minoria foi garantida, antes de se
questionar as razões que levaram o legislador a tomar tal decisão.
Em conclusão, John Hart Ely propõe uma teoria da decisão
judicial em sede de controle de constitucionalidade segundo a qual a
Corte deve atuar apenas de modo a verificar se a participação dos diversos
atores sociais está sendo assegurada no processo legislativo – daí porque
Ely é classificado pela doutrina como um autor procedimentalista –,
não devendo invadir o mérito substantivo das decisões políticas. Deve,
antes, agir como um árbitro – que se coloca a uma distância igual de
ambas as partes e assegura que em seu jogo sejam cumpridas as regras
democráticas-, do que como um torcedor, que a todo custo quer ver
realizado os valores que entende por bons.
Isso não importa em dizer que o processo legislativo tem um
valor maior do que o conteúdo legislativo que veicula. Se assim fosse,
seria possível se argumentar que, respeitado o processo legislativo,
não haveria qualquer maneira da Corte controlar a constitucionalidade
de uma lei que, patentemente, mostra-se preconceituosa (cita, como
exemplo, a confirmação de constitucionalidade do holocausto).
Ely discorda que sua teoria possa ser lida de tal maneira.
Para ele, se uma lei, em sua substância, é preconceituosa, merece ser
impugnada perante o Poder Judiciário, já que o preconceito revela o
fato de que, em algum momento, o processo legislativo pecou por dar
mais voz a um grupo (a maioria) do que a outro (as minorias). Assim, o
José Henrique Zamai |  119

Poder Judiciário, ao controlar as questões de participação, pode chegar


à questão central que deu origem ao mérito da decisão e, atuando como
árbitro, anular a lei sem incorrer em uma intrusão indevida na atividade
legislativa ou mesmo impondo valores que entenda melhores ou mais
dignos de tutela.
O Poder Judiciário, assim, atua quando os poderes
representativos, pelo seu modo de ser, tornam-se suspeitos isto é, quando
não atuam em prol de todos ou limitem a participação social, o que retira
da decisão política final a confiança necessária para ser cumprida.

4. CONCLUSÃO

Em conclusão, verifica-se que o procedimentalismo de Ely,


enquanto teoria da decisão judicial para o controle de constitucionalidade,
determina que o Poder Judiciário deve atuar apenas quando os poderes
representativos, pelo seu modo de ser, tornam-se suspeitos, assegurando,
com isso, que todos tenham acesso aos meios políticos e, através do jogo
democrático, tenham assegurados seus interesses. De outro lado, deve o
Poder Judiciário se abster de atuar quando o processo político assegure
participação, o que dá à decisão política final a confiança necessária para
ser cumprida.
Poderá se dizer que a teoria de Ely, de forma mais rasa, aproxima-
se de alguma forma não autêntica de interpretacionismo, quando se afasta
da busca de valores externos à Constituição. Isto é, apenas em parte,
verdade. A teoria de Ely, de fato, retira da Constituição o valor máximo
que compõe sua própria existência: deve se assegurar a participação
dos diversos grupos sociais na tomada das decisões políticas – tanto
é assim que a maior parte da emendas constitucionais do século XX
tiveram como objeto expandir o direito de voto a categorias sociais
anteriormente excluídas. Entretanto, não é possível se concluir que a
Constituição possua, expressamente, todos os valores de que suas
cláusulas abertas necessitam.
120  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

Por isso, e como forma de evitar a tomada de decisões


substantivas pelo Poder Judiciário (em um âmbito de tomada de decisões
democráticas), é que Ely defende, segundo a necessidade expressa de
representação, que deve ser assegurado ao Poder Legislativo a liderança
das discussões de valores, intervindo o Poder Judiciário apenas para
garantir que todos os valores a ele sejam levados para consideração.
Apenas através de tal arranjo assegura-se que todos tenham
acesso aos canais de mudança política – garantindo, com isso, que as
decisões políticas finais não sejam guiadas pelas maiorias contra as
minorias – sem que, com isso, o Poder Judiciário, não eleito, acabe por
substituir a vontade popular, derrogando o princípio democrático (até
mesmo de um ponto de vista substancial) pela vontade unipessoal do
juiz.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas. O Princípio da Separação dos


Poderes e Direitos Fundamentais Sociais: a necessidade de releitura sob
a ótica de um Estado Social de Direito. Revista de Direito Constitucional
e Internacional, vol. 77, p. 185. RT: Out/ 2011.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional


Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

_________, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no


Direito Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro:


Ediouro, 1997.
José Henrique Zamai |  121

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São


Paulo: Malheiros, 2011.

_________, Paulo. Jurisdição Constitucional e Legitimidade (algumas


observações sobre o Brasil). Disponível em: [http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=s0103-40142004000200007&script=sci_arttext]. Acesso
em: 07.11.2017.

BOTELHO, Marcos César. A Legitimidade da Jurisdição


Constitucional no Pensamento de Jürgen Habermas. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.

BRANCO, Paulo G.G.; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito


Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e
Argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.

ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle


judicial de constitucionalidade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição (1787).


Constitution of the United States. Washington D.C.: Senado, 2017.
Disponível em: [https://www.senate.gov/civics/constitution_item/
constitution.htm]. Acesso em: 10.11.2017.

FELLET, André L.F. (Org.); PAULA, Daniel G. de (Org.); NOVELINO,


Marcelo (Org.). As Novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador:
JusPODIVM, 2013.

_________, André L.F. (Org.); NOVELINO, Marcelo (Org.).


Constitucionalismo e Democracia. Salvador: JusPODIVM, 2013.
122  | In Verbis, Natal, V. 43, n. 1, jan./jun. 2018. p. 105-123.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.


6. ed. Salvador: JusPodivm, 2014.

_________, Bernardo Gonçalves (Org). Interpretação Constitucional:


Reflexões sobre (a nova) Hermenêutica. Salvador: JusPodivm, 2010.

FIGUEIREDO, Eduardo H. L. (Coord.); MONACO, Gustavo


F. C. (Coord.); MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Coord.).
Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

PEIXOTO, Geovane. Direitos fundamentais, Hermenêutica e


Jurisdição Constitucional. Salvador: JusPodivm, 2013.

SILVA, Geocarlos A. C. Democracia e Ativismo Judicial. Revista de


Direito Privado, vol. 46, p. 43. RT: Abr/ 2011.

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Curso de Hermenêutica Jurídica


Contemporânea: do positivismo clássico ao pós-positivismo
jurídico. Curitiba: Juruá, 2014.

SOARES, Hector C. Políticas Públicas e Controle de


Constitucionalidade: aproximações entre a ciência jurídica e a
ciência política. Revista Debates, Porto Alegre, v.6, n.2, p. 151-172,
maio-ago, 2012.

STRECK, Lenio L. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma


exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999.

_________, Lenio L. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica


e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
José Henrique Zamai |  123

DEMOCRACY AND DISTRUST: AN ANALYSIS OF JOHN


HART ELY’S PROCEDIMENTALISM

ABSTRACT

The article aims to analyse the work “Democracy


and Distrust”, by the american jurist John Hart
Ely, in which he sets the main parameters for the
jurisdictional action, mainly through the judicial
review, in an legal environment of respect to
the democratic principle. Ely proposes an
alternative to jurisdictional action that assists
minorities in their access to the politics, as a
way of correcting the representative distrust
generated by legislative processes dominated by
particular interests, thus preventing the judge,
as an unelected state agent, to directly interfere
in substantive policy issues.

Keywords: Procedimentalism. John Hart Ely.


Judicial Review.

Você também pode gostar