Você está na página 1de 18

O MODO DE CONCEBER O DIREITO EM

DIVERSAS CORRENTES FILOSÓFICAS

Conforme já foi exposto, são inúmeros os fatores que contribuem para


dificultar o alcance de um conceito universal do Direito, dentre eles a
diversidade de perspectivas de enfoque a partir das quais se contempla o
fenômeno jurídico. Pois bem, essas diferentes perspectivas de concepção do
Direito deram ensejo ao estabelecimento, durante séculos, de polêmicas entre
aqueles que, de forma unilateral e reducionista, pretendem oferecer uma
concepção geral do Direito em função de algum de seus componentes.

Apesar de serem muitas as doutrinas que se ocuparam e ocupam do


tema em exame, podem elas ser reduzidas nos três grupos seguintes:

7.1. Doutrinas de orientação sociologista ou realista

Estas doutrinas circunscrevem o Direito às ações humanas tendentes à


sua criação ou aplicação. Dentre elas, pode-se citar:

a) a Escola Histórica, que concebe Direito como o espírito popular (este é sua
força criadora);

b) a Jurisprudência de Interesses, que reduz o Direito aos interesses sociais


que o inspiram a cuja garantia serve;

c) a Escola do Direito Livre, o Realismo Americano e o Escandinavo etc., que


pretendem ver como Direito apenas no caráter criador das sentenças judiciais.

Todas essas concepções - sociologistas ou realistas - têm como elemento


comum a circunstância de privilegiar a consideração do Direito eficaz, enquanto
dotado de vigência social comprovada através de sua relevância nos
comportamentos reais dos homens, que constituem o chamado "Direito Vivo"
(Ehrlich).

7.2 Positivismo Jurídico

Para esta doutrina, o Direito se identifica com as normas ou sistemas


normativos, enquanto regras postas por quem detenha o poder em uma
determinada sociedade e trata de impô-las coativamente nesse âmbito. Por
essa perspectiva, o traço caracterizador do Direito é a nota de sua validade.
Uma norma é jurídica se, e somente se, cumpre os requisitos procedimentais
previstos no próprio sistema normativo para a produção de normas.
Integram o Positivismo Jurídico, dentre outras, as Teorias do Cepticismo
e do Realismo Empírico; o Positivismo Ideológico, o Formalismo Jurídico e o
Positivismo Metodológico ou Conceitual.

Segundo o Cepticismo (já visto particularmente no item "4", retro, dada


sua íntima relação com o tema em exame), o Direito é comando arbitrário,
inteiramente relativo, privado de autoridade intrínseca. Essa concepção está
tratada aqui porque, para muitos juristas, essa tese - segundo a qual não
existem princípios morais e de justiça universalmente válidos e cognoscíveis
por meios racionais e objetivos - se identifica com o positivismo.

Enfim, pela doutrina céptica, qualquer que seja a forma que ela assuma
(concebendo que o Direito carece de fundamento intrínseco, ou que consiste
em um comando arbitrário etc.), o seu significado é sempre negativo. Os seus
partidários recusam-se a aceitar um critério universal e absoluto de justiça
superior ao fato do Direito positivo.

Não é muito diferente a concepção realista, cuja doutrina, aparentemente


oposta à céptica, desta na verdade se aproxima. O cepticismo e o realismo,
independentemente dos pressupostos de que partem, possuem o mesmo
significado. HOBBES, que se pode dizer realista, tende para uma construção
positiva, afirmando que só o Estado pode determinar o justo e o injusto, e que o
Direito começa só com o Estado. No mesmo sentido se orienta a doutrina de
KIRCHMANN, considerado uma das mais típicas expressões do realismo. Para
as doutrinas realistas, portanto, o fundamento do Direito é o sentimento do
respeito e acatamento da autoridade constituída. Não admitem esses
pensadores a existência de um ideal de justiça válido em si e por si. Por isso,
igualmente rejeitam a possibilidade de o indivíduo contrapor as suas
especulações racionalistas aos critérios da autoridade constituída.

Por sua vez, a corrente, que Alf Ross chama de "pseudopositivismo" e


que recebeu de Norberto Bobbio a denominação de "Positivismo Ideológico",
concebe o Direito como conjunto de regras impostas pelo poder que exerce o
monopólio da força de uma determinada sociedade. Esse Direito, com sua
própria existência, independentemente do valor moral de suas regras, serve
para a obtenção de certos fins desejáveis como a ordem, a paz, a certeza e,
em geral, a justiça legal.

Para o positivismo ideológico, o Direito positivo, tão-só pelo fato de ser


positivo, isto é, a emanação da vontade dominante, é justo; ou seja, o critério
para julgar a justiça ou injustiça das leis coincide perfeitamente com o que se
adota para julgar sua validade ou invalidade. Pretende esse positivismo que os
juízes assumam uma posição moralmente neutra e que se limitem a decidir
segundo o direito vigente.

Já em consonância com o "Formalismo Jurídico", o Direito está


composto exclusiva ou predominantemente por preceitos legislativos, ou seja,
por normas promulgadas explícita e deliberadamente por órgãos centralizados,
e não, por exemplo, por normas consuetudinárias ou jurisprudenciais.
Pressupõe tal corrente que a ordem jurídica é um sistema autosuficiente para
prover a solução unívoca para qualquer caso concebível. Assim, o Direito
consistiria somente em leis.

Finalmente, o "Positivismo Metodológico" ou "Conceitual". Trata-se aqui


do tipo de positivismo defendido por autores como Bentham, Austin, Hart,
Ross, Kelsen, Bobbio e outros, de acordo com o qual o conceito de Direito não
deve caracterizar-se segundo propriedades valorativas, mas sim tomando em
conta propriedades descritivas.

Para citar exemplos, veja-se Austin, Hart (ambos considerados por


alguns como fundadores da moderna Teoria Geral do Direito inglesa) e Kelsen.
Para todos eles, o Direito se reduz a ordens (normas). John Austin concebe o
Direito em normas baseadas em ameaça, normas jurídicas consistentes em
ordens (comands) emanadas do soberano; e Hart, posteriormente, adere ao
seu positivismo, mas não admite a redução regras de toda sorte a um só tipo
(as emanadas do soberano). Para Hart, o sistema que formam as regras
jurídicas é identificado sobre a base de certos usos ou práticas sociais. Kelsen,
por outro lado, vê a norma como um juízo hipotético que expressa o enlace
específico (imputação) de uma situação de fato condicionante com uma
conseqüência condicionada.

7.3. Teorias Jusnaturalistas

Os que são desta vertente polarizam sua visão do Direito


nos valores que o fundamentam ou o legitimam e a cuja consecução se deve
encaminhar. O valor da justiça (entendido em um sentido amplo que, a teor das
tendências doutrinais ou das circunstâncias, expressará as exigências
do ethos social, do bem comum ou dos direitos humanos) constitui, para essa
corrente, o norte de toda regra jurídica e o parâmetro para aferir sua correção.

Dentro dessa corrente se inserem várias vertentes: a Teoria do


Teologismo, o Jusnaturalismo Racionalista, a Teoria do Historicismo (também
conhecida como Realismo Empírico) e a Teoria da Natureza das Coisas.

A Teoria do Teologismo procurou encontrar o fundamento intrínseco do


Direito por via diferente: recorreu à idéia da divindade, da qual derivariam
imediatamente os princípios do bom e do justo, que deviam ser aceitos
mediante a Revelação. O fundamento do Direito teria, portanto, caráter sagrado
e, por isso, estaria subtraído a quaisquer controvérsias. O Direito seria, enfim, o
Direito revelado. Por tal concepção, na sua versão originária, o próprio Estado
teria uma autoridade derivada do querer divino e, por isso, também possuiria
COMO ENFRENTAR O PROBLEMA RELATIVO
À DIFICULDADE DE CONCEITUAR O DIREITO

O próprio Herbert Hart, em livro totalmente dedicado ao tema ora


debatido - aliás, intitulado especialmente de "O Conceito de Direito" -, num
certo trecho afirma o seguinte:

"Em vários pontos deste livro encontrará o leitor discussões de casos de


fronteira em que os teorizadores do direito sentiram dúvidas na aplicação da
expressão ‘direito’ ou ‘sistema jurídico’, mas a resolução sugerida para tais
dúvidas, que também encontrará aqui, constitui apenas uma preocupação
secundária do livro. Porque o seu objetivo não é fornecer uma definição do
direito, no sentido de uma regra por referência à qual pode ser testada a
correção do uso da palavra; é antes de fazer avançar a teoria jurídica,
facultando uma análise melhorada da estrutura definitiva de um sistema jurídico
interno e fornecendo uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças
entre o direito, a coerção e a moral, enquanto tipos de fenômenos sociais. O
conjunto de elementos identificados no decurso da discussão crítica dos
próximos três capítulos e descritos em detalhe nos capítulos V e VI serve este
propósito através de formas que são demonstradas no resto do livro. É por esta
razão que são tratados como os elementos centrais no conceito de direito e de
primeira importância na sua dilucidação." (Destaques inexistentes no original).

Tal como Hart, muitos outros autores escreveram livros ou dedicaram


capítulos de obras suas ao tema "Conceito de Direito" (ou quid ius?), mas,
como ele, não se debruçaram na luta desvairada por encontrar uma definição
única que abranja toda e qualquer manifestação do fenômeno jurídico. Significa
essa postura uma manifestação de que já é tranqüila a compreensão de que o
fenômeno do Direito não pode ser sintetizado em um conceito reduzido, válido
para todos os tempos, para todos os lugares e para todas as manifestações de
tal fenômeno.

Indagar um conceito de Direito implicará, sempre, em buscar


compreender muitas questões às quais o tema inarredavelmente conduz e
verificar a relação que elas guardam entre si. Quando muito, se poderá
identificar e reduzir as inúmeras questões recorrentes a um mínimo dentre elas
(às de incidência mais freqüente), em direção às quais o exame do tema
sempre conduz, a fim de que se possa estudá-las particularmente. Estudar tais
questões passa a ser o mesmo que estudar o conceito de Direito.

O mesmo Hart, por exemplo, sustenta que "a especulação sobre a


natureza do direito tem uma história longa e complicada; todavia, vista em
retrospectiva, é nítido que se centrou quase continuamente sobre alguns
pontos principais (...)", que são, segundo o referido autor, "aspectos do direito
que parecem naturalmente dar origem a incompreensões em todos os tempos,
de tal forma que a confusão e uma necessidade conseqüente de maior clareza
acerca deles podem coexistir mesmo nos homens avisados, dotados de firme
maestria e conhecimento do direito."
Em outro trecho, o mesmo autor aponta três das principais questões que,
sempre surgindo juntas, aparecem com se fossem um autêntico pedido
de definição do Direito:

1ª) Como difere o direito de ordens baseadas em ameaças?

2ª) Como difere a obrigação jurídica da obrigação moral e como está


relacionada com esta?

3ª) O que são regras e em que medida é o direito uma questão de regras?

Portanto, perseguir um conceito de Direito equivale exatamente a


procurar resposta para questões como essas, referidas por Hart.

Logo, a postura recomendável diante de um conceito tão variável como o


de Direito, parece que é aquela sugerida por muitos autores, e bem expressada
por Santiago Nino(20), de aceitar que há certas razões de peso em favor de
várias das posições adotadas a respeito da definição de "direito" e que eleger
alguma destas posições não implica tomar partido por uma questão filosófica
profunda, mas sim por uma mera questão verbal.

Uma controvérsia sobre o significado que tem ou que se deve dar a certa
palavra não representa - uma vez identificada como tal - nenhum obstáculo
para o progresso das idéias. Mesmo que as partes não se ponham de acordo,
elas podem entender-se perfeitamente se procurarem distinguir
cuidadosamente o significado diferente que pretendem dar à palavra
mencionada e se procurarem traduzir da linguagem da sua corrente, para a
linguagem da outra corrente, o significado daquilo a que se referem.

Desse modo, ao se pretender reportar ao Direito como lei, o melhor é


que se use a locução Direito Positivo; ao referir-se ao Direito como Revelação,
convém expressar Direito Natural de Origem Divina; desejando mencionar o
Direito no seu sentido de faculdade, o ideal é que se use a
locução Direito Subjetivo; e assim por diante.

CONCLUSÃO

Direito, portanto, é tudo o que defende cada uma das correntes da


Filosofia do Direito antes referidas, mas, certamente se lhe aplicam outras
infindáveis definições, tantas quantas forem as perspectivas a partir das quais
se lhe examine. Por isso, não se pode rechaçar - ou apoiar - completamente
nenhuma posição. Em tais circunstâncias, até mesmo a atitude céptica deve
ser encarada como um modo de "conceituar"o Direito.

A constatação acima, de modo algum impedirá o avanço dos estudos do


Direito, ao revés, o fomentará, pois, é da própria natureza humana não se
acomodar diante de respostas inacabadas frente a assuntos tão palpitantes
como o Direito.

Diante de tais circunstâncias, parece bem pertinente citar agora, à guisa


de conclusão, um tipo diferente de resposta - certamente apenas mais uma
entre tantas, porém, bem mais "universal" - à pergunta "quid ius(?)", proposta
por Dworkin. Este jusfilósofo é inglês e, obviamente, examina sobretudo o
sistema jurídico desse povo, porém, sua resposta à pergunta sobre o que é o
Direito aplica-se, perfeitamente, também a povos que adotem quaisquer
sistemas jurídicos. Eis a resposta:

"O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios,


cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de
comportmentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes
sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não
pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente
em ribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser
onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos
tribunais. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no
mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão
responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua
sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova
circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é
reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da
natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo
pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última
palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é
construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima
da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a
boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma
expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por
nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o
direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a
comunidade que pretendemos ter.
caráter sagrado.

Cuidadosamente, para não se debater contra a fé religiosa, o espírito


crítico tratou logo de distinguir da Religião tanto a Filosofia como a Ciência, a
fim de lhes assegurar a independência. O mesmo se deu no terreno da
Filosofia do Direito, sendo dignas de destaque as palavras de GRÓCIO, na sua
obra De iure belli ac pacis, de 1625, afirmando que "O Direito natural existiria
ainda que Deus não existisse". É claro que Grócio fez tal afirmação depois de
uma prévia reprovação explícita do ateísmo, de molde a evidenciar que não se
propunha a combater a fé religiosa, mas tão-só dar ao Direito fundamento
exclusivamente racional, independente das premissas teológicas. Grócio visava
a construir um sistema de Direito internacional de normas aplicáveis aos
diversos Estados e não fazia sentido basear esse Direito na religião, que, na
sua época, era motivo de lutas e discórdias especialmente entre católicos e
protestantes.

O Jusnaturalismo Racionalista se originou no movimento iluminista e se


estendeu pela Europa nos séculos XVII e XVIII, tendo sido exposto por filósofos
como SPINOZA, PUFENDORF, WOLFF e KANT. De acordo com esta
concepção, o Direito natural não deriva dos mandatos de Deus, mas sim da
natureza ou estrutura da razão humana. Os juristas do racionalismo
formularam detalhados sistemas de Direito natural, cujas normas básicas, das
quais se inferiam logicamente as restantes, constituiam supostos axiomas
autoevidentes para a razão humana, comparáveis aos axiomas dos sistemas
matemáticos. Os pressupostos e métodos dessa corrente influíram na
configuração da chamada "dogmática jurídica", que é a modalidade da ciência
do Direito que prevalece nos países de tradição continental européia.

A Teoria do Historicismo se distingue em três correntes: a política, dos


filósofos da restauração (De Bonald, De Maistre, Haller e outros);
a filosófica (Schelling a Hegel); e a jurídica, que ficou conhecida como Escola
Histórica, representada por Savigny, Puchta, Hugo e outros. O historicismo
encara o fundamento do Direito na sua qualidade de fato ou processo coletivo,
como produto da vida social.

Por fim, de acordo com a Teoria da Natureza das Coisas, que foi
defendida por RADBRUCH, DIETZE, MAIHOFER, WELZEL e outros, certos aspectos da realidade
possuem força normativa e constituem uma fonte de Direito à qual deve adequar-se o Direito positivo. Trata-se
de uma reação mais recente contra o positivismo, para um retorno ao jusnaturalismo. Gustavo Radbruch
propõe a "natureza das coisas" como fundamento da "progressiva transformação de uma relação vital em uma
relação jurídica, e de uma relação jurídica em uma instituição jurídica." Esta instituição jurídica que deriva não
do Direito positivo, mas sim dos fatos da natureza, dos costumes, tradições ou usos ou das relações vitais, é
uma espécie de "tipo ideal" que se obtém "mediante a tipificação e a idealização da individualidade da relação
vital que se considera." Esta "natureza das coisas" não é diretamente uma fonte do Direito, mas sim "atenua" a
tensão entre o ser e o dever ser, estabelece um limite ao legislador enquanto este não pode obrigar a ninguém
a algo de cumprimento impossível além de cumprir um importente papel supletório nos casos de lacunas da
regulação jurídica.

Você também pode gostar