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ANÁLISE CRÍTICA DO CONCEITO DE DIREITO: AS CONTRIBUIÇÕES E

OS LIMITES DAS TEORIAS PROPOSTAS POR AUSTIN E HART*

ANÁLISIS CRÍTICA DEL CONCEPTO DE DERECHO: EL CONTIBUTO Y


LOS LÍMITES DE LAS TEORÍAS PROPUESTAS POR AUSTIN Y HART

Magno Federici Gomes


Isabella Saldanha de Sousa

RESUMO

Ao conceber o Direito como um fenômeno social e institucionalizado, Hart (2001)


formulou uma idéia verificável em qualquer ordenamento jurídico e que se opõe à
concepção imperativista do Direito de Austin (2002). Trouxe a noção de aspecto interno
das normas jurídicas, especialmente na perspectiva dos juízes, como questão
fundamental para o processo de hermenêutica e elaboração do Direito. Instituiu,
também, a regra de reconhecimento que facultou critérios de validade das normas
jurídicas. Hart (2001) analisou, ainda, a relação entre o Direito e a linguagem,
especialmente a sua estrutura aberta que permite ao julgador lançar mão da
discricionariedade judicial para resolver problemas de lacunas normativas e de
reconhecimento. Trata-se de um trabalho teórico-documental, por fazer uma revisão de
literatura sobre o assunto. Como conclusão, se questiona se o exercício de tal poder
discricionário não implica em subjetivismo por parte do julgador que, apesar de
justificar as razões de sua decisão, interpreta ou cria a lei para o caso concreto. Assim,
acaba por dar a forma que lhe é mais conveniente, o que obsta a presunção de que o
julgador é dotado de virtudes essenciais no exercício da função jurisdicional, como
pretendia Hart (2001).

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; FENÔMENO SOCIAL E


INSTITUCIONALIZADO; REGRA DE RECONHECIMENTO; TEXTURA ABERTA
DA LINGUAGEM; SUBJETIVISMO JUDICIAL.

RESUMEN

Hart (2001) creó un concepto de Derecho según el cual él es un fenómeno social e


institucionalizado. Además, formuló una idea verificable en cualquier ordenamiento
jurídico y que se opone a la concepción imperativa de Derecho de Austin (2002). Trajo
la noción de aspecto interno de las normas jurídicas, especialmente en la perspectiva de
los jueces, como cuestión fundamental para el proceso de hermenéutica y elaboración
del Derecho. Instituyó, también, la regla de reconocimiento que facultó criterios de
validad de las normas jurídicas. Hart (2001) analizó, aún, la relación entre el Derecho y
el lenguaje, nominadamente su estructura abierta que autoriza al magistrado utilizar el
poder judicial discrecional para solucionar los problemas de omisiones legales y de

*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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reconocimiento. Se trata de un trabajo teórico-documental, ya que hace una revisión de
literatura sobre el asunto. Como conclusión, se cuestiona si el ejercicio de tal poder
discrecional no es un subjetivismo por parte del juzgador que, aunque justifique las
razones de su decisión, interpreta o crea la ley para el caso concreto. Así que acaba por
otorgar la forma que le conviene, el que obsta la presunción de que el juez detiene
virtudes esenciales al ejercicio de la función jurisdiccional, como pretendía Hart (2001).

PALAVRAS-CLAVE: DERECHO; FENÓMENO SOCIAL E


INSTITUCIONALIZADO; REGLA DE RECONOCIMIENTO; TEXTURA ABIERTA
DEL LENGUAJE; SUBJETIVISMO JUDICIAL.

1 - INTRODUÇÃO

Na tradição jusnaturalista, o Direito envolve necessariamente a moral, mas, a partir do


século XVIII, surgiram inúmeras críticas ao pensamento jusnaturalista, tendo se
destacado John Austin, como um dos mais importantes representantes do positivismo
legal na Inglaterra, primando pela separação entre o Direito e a moral. Com a obra “El
Objeto de la Jurisprudencia”, o autor (2002) se propõe a traçar as principais distinções
entre “o direito positivo (jurisprudência) e a ciência da legislação, para libertá-lo das
confusões perenes com os preceitos da religião e da moral, como ocorria no
jusnaturalismo”. Por isso, refere-se à delimitação do objeto do Direito para enfatizar o
estudo do direito positivo tal como ele é, e não como ele deveria ser, numa abordagem
avalorativa que é característica do positivismo jurídico. Sistematiza os elementos
característicos e exclusivos do direito positivo, que são constatáveis em qualquer
ordenamento jurídico, a partir de correlações entre os termos soberano, comando, dever,
sanção e hábito de obediência, tendo como pano de fundo o modelo de Estado
absolutista.

Já H. L. A. Hart (2001), com a sua obra “O Conceito de Direito”, dando seqüência ao


positivismo analítico inglês do século XIX, desenvolvido por Bentham e Austin (2002),
propõe uma teoria distinta do último autor, mas se utiliza de parte dela para descrever o
funcionamento do Direito que reputou como o adequado para qualquer ordenamento
jurídico, tendo como pano de fundo o Estado moderno. Ele também é um representante
da filosofia analítica, que prima por precisar o significado de certos termos e expressões
científicos e/ou filosóficos, com o fito de desfazer as obscuridades e pseudo-problemas
criados pela má compreensão da linguagem, elaborando concepções mais acuradas do
que as coisas designadas por aqueles termos e expressões verdadeiramente são.

Traz a noção fundamental de que o Direito é essencialmente constituído por regras e


não por hábitos de obediências às ordens editadas pelo soberano, como Austin (2002)
pretendia fazer crer, e também combate o pensamento kelseniano, na medida em que
critica a descrição do Direito como sendo puramente constituído por fatos. Para tanto,
propõe uma perspectiva interna e externa para a análise do ordenamento jurídico, que é
constituído pela conjugação de regras primárias de obrigação e secundárias de

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reconhecimento, de modificação e de julgamento. Atribui relevância à regra secundária
de reconhecimento que é a responsável pela identificação das regras válidas de um
determinado ordenamento jurídico. Hart (2001) analisa, ainda, o Direito como um
fenômeno social e institucionalizado, em que as regras de um ordenamento jurídico,
desde o seu contexto de utilização, somente podem ser validadas por um critério que é
aceito por determinados membros do grupo social, sob o ponto de vista interno.

Portanto, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar a importância da teoria


austiniana para a formulação da teoria hartiana, em relação a um conceito adequado de
Direito para todo e qualquer ordenamento jurídico, a partir do debate entre as teorias
formuladas pelos referidos autores. Pretende-se, também, demonstrar a importância da
interpretação para sanar as lacunas de reconhecimento, cuja concepção foi introduzida
por Hart (2001), por meio do estudo da textura aberta da linguagem, no plano de
aplicação das normas, que foi essencial para o posterior desenvolvimento da
hermenêutica jurídica. A textura aberta da linguagem também possibilitou adentrar no
tema da discricionariedade judicial, discutindo-se os pontos críticos traçados por
Dworkin em relação à teoria de Hart (2001). Assim, trata-se de um trabalho teórico-
documental, cujo escopo é fazer uma revisão de literatura sobre as teorias de Austin e
Hart, por meio de análise comparativa entre ambas, enfocando as suas principais
contribuições e problematizando as suas limitações, por meio de críticas positivistas e
pós-positivistas.

2 - A NOÇÃO DE LEI EM SENTIDO AMPLO E A DELIMITAÇÃO DO


OBJETO DO DIREITO, A PARTIR DO COMANDO IMPOSTO PELO
SOBERANO

Já no início da primeira das seis lições de sua principal obra (A Delimitação do Objeto
do Direito), Austin (2002) assevera que uma “regra ou lei, em seu sentido geral ou
abrangente, é determinada por um ser inteligente a outro através do estabelecimento de
padrões de conduta”, numa relação assimétrica de poder entre súditos e soberanos. E,
para delimitar de forma precisa o objeto do Direito, que se constitui pelo direito
positivo, ou seja, aquele que é “ditado pelos superiores políticos aos seus súditos
(inferiores políticos), é necessário distingui-lo de outros objetos que podem estar com
ele relacionados, por analogia ou por semelhança” e que também estão contidos na
definição ampla de lei ou regra. Em razão disso, classifica as leis em próprias e
impróprias. As primeiras podem ter origem divina (ditada por Deus aos homens) e
humana (ditadas por um homem ao seu semelhante). Essa, por sua vez, se subdivide em
leis positivas e na moralidade positiva. Já as leis impróprias originam-se do uso de
metáforas, de analogias e também constituem as denominadas leis anômalas.

Tanto as leis divinas quanto as leis humanas se enquadram no sentido amplo do termo
lei, porque estão destinadas à regulação de condutas humanas. Todavia, as primeiras,
por terem sido postas por Deus aos homens, são obedecidas por respeito, enquanto as
segundas, por terem sido impostas por homens aos seus semelhantes, são obedecidas
pela imposição de uma sanção. Exemplifica ainda o autor (2002) que, até mesmo as leis
impróprias, originadas de “de uma analogia próxima e evidente às leis humanas, que

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não são ditadas por superiores políticos, como por exemplo, as leis da moda e da
honra”, por estabelecerem regras de comportamento humano, podem ser classificadas
como leis em sentido amplo. Contudo, a obediência a essas espécies de regras sociais
decorre apenas da vontade do indivíduo de segui-las ou não, o que varia de acordo com
grau de pressão social para que a sua conduta se amolde ao que foi prescrito pela regra.
Dessa forma, elas não impõem um dever jurídico porque estão destituídas de uma
sanção e, por isso, são espécies de leis ou regras da moralidade positiva, que se
instituem a partir de “opiniões ou sentimentos de um conjunto indeterminado de pessoas
em relação à conduta humana”. Embora seja questionável esse critério de classificação,
o direito internacional, conforme Austin (2002), também é uma regra da moralidade
positiva, porque os Estados soberanos se relacionam de maneira coordenada e não
subordinada. Portanto, não pode ser estabelecido por um superior político aos súditos, o
que inviabiliza a sua caracterização como lei propriamente dita.

Para estreitar mais o conceito de direito positivo, assevera que é necessário identificar
os seus elementos fundamentais, para distingui-lo das leis impróprias, que são
estabelecidas pelo uso de uma analogia próxima e evidente às leis humanas e das leis
por metáfora, que são estabelecidas por uma analogia fraca. O que há de comum entre
elas é que todas são espécies de comando, ou seja, elas se originam da manifestação de
um desejo ou de uma ordem para que uma pessoa aja de forma comissiva ou omissiva,
estando sujeitas a um dano. Por outro lado, o comando que caracteriza as leis positivas
também é uma manifestação de um desejo ou de uma ordem determinada pelo superior
político (soberano) aos seus súditos. Entretanto, é “o modo pelo qual se exterioriza o
seu poder ou a sua intenção de infligir um mal ou um dano a quem não satisfaz o seu
desejo” é que o caracteriza como tal. Além disso, o comando, para ser considerado uma
lei positiva, deve estabelecer condutas que se referem a determinados gêneros ou
espécies e que vinculem “à totalidade da comunidade ou, ao menos à determinadas
espécies completas de seus membros”, não sendo possível a existência de leis positivas
cujos comandos sejam destinados a particulares ou a um indivíduo especificamente
considerado.

Por sua vez é claro que se uma determinada ordem foi emitida pelo soberano é porque
existe a obrigação ou o dever dos súditos de obedecê-la, pressupondo-se que há
normalmente um hábito de obediência por parte deles. Esse dever só existe a partir da
probabilidade da geração de um dano (sanção), em caso de eventual desobediência. Daí
surge uma correlação mais significativa entre o dever de obediência do comando e a
probabilidade do dano em caso de descumprimento de uma ordem. É por isso que
existem leis, denominadas de “imperfeitas que impõem deveres, mas são destituídas de
sanção e que por isso não podem ser consideradas jurídicas, tais como as leis divinas e a
moralidade positiva”. Assim, na concepção austiniana, somente pode ser considerada
jurídica, a lei ou a regra que for dotada de sanção e se revestir de um comando
estabelecido de forma genérica e abstrata pelo soberano aos súditos, numa sociedade
política e independente.

Então, se pode concluir que o critério de utilizado por Austin (2002) para delimitar a
essência do Direito, ou mais especificamente da lei positiva, é a centralidade da noção
de hábito de obediência dos súditos aos comandos fundados em ameaça ditados pelo
soberano.

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3 - A IMPROPRIEDADE DA IDENTIFICAÇÃO DO ORDENAMENTO
JURÍDICO, A PARTIR DE ORDENS GERAIS BASEADAS EM AMEAÇAS E
DO TRATAMENTO DAS NULIDADES COMO SANÇÕES

Hart (2001) destina os primeiros capítulos de sua obra “O conceito de Direito”, para
combater os equívocos cometidos por Austin (2002) ao identificar o ordenamento
jurídico a partir de hábitos de obediência dos súditos às ordens coercitivas editadas pelo
soberano. Apesar dessa noção implicar a idéia de regra como uma série de
comportamentos convergentes em determinado sentido, desde um hábito de obediência,
que se torna obrigatório em decorrência de uma ameaça, ela se mostra insuficiente para
identificar o Direito em todo e qualquer ordenamento jurídico. Hart (2001) constrói a
sua teoria a partir da desconstrução parcial da teoria de Austin (2002), identificando as
suas aporias para compreender o Direito como uma espécie de regra. Assim, dá ênfase à
sua perspectiva interna como um de seus elementos fundamentais. Não tem como
objetivo conceituar o Direito, mas definir os elementos essenciais que permitem
identificar a sua estrutura em qualquer ordenamento jurídico, utilizando-se da teoria
jurídica analítica, que o distingue da moral e da coerção.

Em razão da perplexidade dos argumentos e contra-argumentos lançados ao longo da


história em torno da definição do que é o Direito, Hart (2001) procura responder a três
questões recorrentes e concomitantes que julga essenciais para definir a sua natureza
jurídica. Primeiramente, traz a noção de obrigatoriedade da conduta humana como uma
característica “essencial do Direito e busca identificar quais são as diferenças entre o
direito e a obrigação jurídica decorrente das ordens baseadas em ameaça e como se
relaciona com estas”. A segunda questão respeita “à identificação das distinções entre a
regra jurídica e a regra moral e como elas se relacionam entre si”. “E a terceira respeita
à identificação do Direito a partir da noção de regra para definir a sua natureza jurídica”.

Assim, Hart (2001) formula várias objeções à identificação de um ordenamento jurídico


a partir de ordens gerais fundadas em ameaças, que se cingem ao conteúdo das leis, ao
seu modo de origem e ao seu campo de aplicação, que são essenciais para a definição do
que é o Direito e que não se verificam na concepção austiniana de direito positivo. Essas
constatações foram fundamentais para que Hart (2001) propusesse um modelo de
estruturação das normas jurídicas, desde a noção de regra, mais especificamente de uma
regra reconhecimento que dá validade a todas as demais regras (primárias e secundárias)
existentes em qualquer ordenamento jurídico, sem recorrer ao método tradicional de
definição do Direito por gênero e diferença específica. O referido método parece ser de
mais fácil intelecção porque:

dá uma série de palavras que pode se sempre substituída pela palavra definida, cujo
sucesso depende de condições que freqüentemente não estão preenchidas, já que uma
definição que diz que algo é membro de uma família não é útil se não se sabe precisar
de forma clara a natureza da família a qual pertence.

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A citada condição não pode ser implementada quando se trata do Direito, porque não se
sabe definir:

a qual categoria geral bem conhecida e familiar ele pertence, embora possa ser
enquadrado na família das regras de comportamento, mas esta definição também vem
causando perplexidades, porque não aumentam a compreensão sobre a sua natureza
jurídica.

Dessa forma, para Austin (2002), o Direito tem origem no soberano e se constitui por
uma ordem dirigida aos súditos, para que façam ou se abstenham de fazer algo, cujo
descumprimento implica uma sanção. Todavia, essa definição pode ser representada
tanto pela situação de um ladrão que ordena a vítima que lhe entregue a bolsa (uma
ordem baseada em ameaça), quanto pela situação de um agente de trânsito que multa
algum veículo por excesso de velocidade (cumprimento de um dever legal). A partir
dessa comparação, se conclui que o critério utilizado por Austin (2002) para definir o
Direito já está equivocado.

Hart (2001) pondera que Austin (2002) não vislumbrou a distinção entre as expressões
comando, ordem fundada em ameaça e lei positiva, que é o objeto do Direito que
pretende identificar e definir. Todas essas expressões são espécies de imperativos, em
que “um desejo é formulado com a intenção de que a pessoa interpelada se deva
conformar com o desejo expresso”. Por sua vez, o vocábulo comando encerra a idéia de
obediência por respeito a uma autoridade, característica que o distingue de uma ordem
fundada em ameaça e o aproxima do Direito. Todavia, a noção de comando se afasta da
lei positiva e de uma ordem fundada em ameaça, porque deixa de impor uma sanção,
que é a motivação direta para a obediência dessas últimas espécies de imperativos. A
equiparação de comandos a ordens fundadas em ameaça, na teoria austiniana, é até
aceitável, apesar de não ser a mais adequada, segundo Hart (2001), porque ela é menos
obscura para definir o Direito, do que explicitar os elementos da noção de autoridade.

Embora admita que a idéia da imposição de um mal possa estar ligada à noção de
comando, ainda que excepcionalmente, Hart (2001) destaca que é problemático
asseverar que a definição do Direito implica necessariamente a idéia de comando. Isso
porque há uma distinção entre as expressões ordenar e dar uma ordem, que é relevante
para afastar a idéia de ordens, baseadas em ameaças, da concepção correta acerca do
Direito. No Estado absolutista, o soberano ao ordenar aos súditos, de forma direta e
individualizada, que ajam de maneira comissiva ou omissiva, ameaça aplicar uma
sanção em caso de descumprimento, ao passo que o legislador, ao promulgar uma lei no
Estado moderno, dá uma ordem aos seus destinatários de forma indireta e generalizada,
“fundada apenas na idéia de hierarquia e de autoridade” e não na idéia de comando.

Austin (2002), ao definir o Direito a partir da noção de comando, assumiu a teoria


imperativista da norma jurídica, que:

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está estritamente vinculada à concepção legalista-estatal e determina a lei como a única
expressão do poder normativo do Estado, de forma que somente as normas postas por
ele são jurídicas, porque são as únicas que são respeitadas graças à coação.

Uma das críticas à adoção da concepção em questão, é que ela é reducionista porque
circunscreve o fenômeno normativo à realidade empírica observável apenas no Estado
absolutista, o que a torna inaplicável de forma genérica a todo e qualquer ordenamento
jurídico. Bobbio (1995), também rechaça essa teoria, asseverando que “basta o
abandono desta perspectiva (legalista-estatal) para que ela não mais exista”. Hart (2001)
combate tão fortemente essa teoria que dedica o capítulo IV, da obra ora estudada,
apenas para demonstrar que “toda concepção de um soberano supremo e independente,
habitualmente obedecido, é enganadora, visto pouco haver qualquer sistema jurídico
real que lhe corresponda”. Destaca-se que, para Austin (2002), somente se pode falar
em sociedade a partir de uma estrutura assimétrica de poder (súdito/soberano), sob
conseqüência de restar instalada a anarquia, o que significa realmente que somente
nesse modelo se pode falar em Direito.

No início de sua obra, Hart (2001) adverte que o Direito geralmente é definido por
regras e tal noção dificilmente é colocada em dúvida, sendo que, até mesmo na teoria
austiniana, ela se verifica quando se fala em lei ou regra imperativa representada por um
comando. Isso se deve à exigência de um comportamento convergente em determinado
sentido, sob conseqüência de seu desvio ser sancionado. Ao se dizer que uma regra
existe, significa que a maior parte das pessoas geralmente a obedece, ou seja, há uma
regularidade de comportamento nesse sentido. Essa característica pode ser observada
numa regra social e numa regra jurídica, de modo que esse atributo não pode ser
considerado como o fator determinante da exigibilidade de uma regra jurídica. Em
conformidade com Hart (2001), no conceito austiniano de direito positivo, há
comportamentos regulados cujo fundamento é o hábito de obediência da maioria dos
súditos, ainda que seja por temor à sanção. Mesmo assim, a noção de hábito de
obediência é insuficiente para caracterizar as regras jurídicas.

As regras jurídicas estabelecem padrões de conduta que são criados pelo órgão
legislativo competente, cujos desvios são previstos e sancionados. Já nas regras sociais,
não há previsibilidade de uma sanção (propriamente dita), mas os desvios de conduta
são passíveis de repreensão. Enquanto num hábito de obediência, sequer os desvios são
passíveis de repreensão. Apenas nas regras sociais e jurídicas, verifica-se um sentimento
de ter que obedecer a uma determinada regra e a existência de uma crítica (própria ou de
terceiros), pelo desvio da conduta prevista. Contrariamente, a diferença entre ambas está
em que “na regra social há um comportamento regular, enquanto na regra jurídica há
um comportamento regulado”. A previsibilidade da regra e da sanção não pode ser vista
como um fator essencial que impele alguém a obedecer a uma regra jurídica, pois existe
uma distinção entre “estar obrigado a obedecer” e “sentir-se obrigado a obedecer”, que é
fundamental para determinar a exigibilidade de uma regra jurídica. A função da regra
jurídica é essencialmente a de incutir nos destinatários normativos o sentimento de
adotá-la como um guia de conduta para a convivência social. Daí pondera Hart (2001)
que a previsibilidade contida na regra não é relevante para cumprir suas finalidades, mas
sim o é a existência do estatuto legal, posto que se trata de direcionador justificado da
conduta pretendida. Esse “sentimento assumido de obrigação que viabiliza a reflexão

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crítica diante dos desvios de conduta”, é fundamental para determinar a natureza
jurídica de uma regra ou lei. Essa perspectiva foi denominada, por Hart (2001), de
interna, porque “não se limita a anotar e a predizer o comportamento conforme as regras
(aspecto externo), mas se utiliza delas como padrões para a apreciação do
comportamento próprio e dos outros”. A crítica se justifica na medida em que os
destinatários normativos reconhecem que as regras jurídicas estatuem um padrão de
conduta correto, ou devido, e que a sanção é uma medida necessária para conscientizar
os dissidentes de que eles devem acatar tais padrões de conduta para harmonizar a
convivência social.

Desse modo, a imposição de uma sanção pelo descumprimento da conduta prescrita


pela regra jurídica não pode ser vista apenas como a “previsibilidade de uma reação ao
desvio”. A mencionada perspectiva pode até existir sob o ponto de vista externo, ou
seja, de alguém que, na condição de observador externo, apenas analisa o
funcionamento de um determinado ordenamento jurídico para descrever o que é o
Direito. Entretanto, esse ponto de vista é análogo ao da identificação do Direito feita por
Austin (2002), ao definir uma lei ou regra positiva a partir de um hábito de obediência
ao comando ditado pelo soberano e, portanto, é irrelevante na metodologia proposta por
Hart (2001), para definir o Direito. Frisa-se que, até mesmo Austin (2002), reconhece
que não há um critério rigoroso para se determinar o grau e a freqüência da obediência
necessária para que se forme um hábito. Quando se fala em regras jurídicas existentes
numa sociedade, pressupõe-se que há uma maioria que as obedece e também uma
minoria dissidente que não reconhece nelas um padrão para a sua conduta.

Hart (2001) também identifica outros problemas que a tese do hábito de obediência não
consegue solucionar, quais sejam, “a continuidade da autoridade de criação do direito e
a persistência das leis, em caso de sucessão do soberano”. Quando um soberano é
sucedido por outro, exige-se um lapso de tempo até que se crie um hábito geral de
obediência em relação às suas ordens e, nesse período, não há como pressupor que o
sucessor será obedecido porque o seu antecessor o era. Além disso, um hábito de
obediência “não pode conferir direitos ou autoridade a quem quer que seja”.

No Estado absolutista, não há regra que confira a alguém o direito de suceder o


soberano anterior e obrigue os súditos a obedecer às suas ordens, motivo pelo qual elas
não podem ser caracterizadas como normas jurídicas, de acordo com a teoria austiniana.
O que deveria ocorrer, supõe Hart (2001), é “uma prática social geral mais complexa e
que não se constitui em um mero hábito de obediência”, que justifica essa aceitação por
parte dos súditos, para que os poderes do soberano anterior sejam transferidos para
outrem, viabilizando-se a continuidade da autoridade de criação do direito. Daí exsurge
a noção do ponto de vista interno, ou seja, da aceitação por parte dos súditos de tal
prática social, que permite a sucessão de um soberano por outro. Na verdade, isso
retrata a noção de uma regra que é exigível, concepção que não encontra correspondente
no modelo austiniano. Assim, se pode concluir que a concepção de austiniana de Direito
é falha porque, nessa hipótese, não se exige um hábito de obediência aos comandos ou
ordens fundadas em ameaça, para dizer que o direito de sucessão de um soberano por
outro existe, mas sim da concepção de uma regra que prevê a continuidade da
autoridade legislativa.

Desde um governo soberano, estabelece-se um determinado ordenamento jurídico e,


sendo ele sucedido por outrem, as leis anteriormente existentes devem continuar

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vigendo “porque não se pode limitar a perspectiva delas ao tempo de vida de seus
criadores, já que é necessário que elas sobrevivam a eles e àqueles que as obedecem”.
Para que isso ocorra:

a noção de hábito de obediência ao legislador atual não é suficiente para explicar a


persistência das ordens de legisladores passados e futuros. Aqui também se exige a
noção de uma regra que confira autoridade às ordens destes legisladores sucessivos.

Se tal regra não fosse sequer pressuposta por alguma prática social complexa, o
ordenamento jurídico deixaria de existir quando ocorresse a sucessão de um soberano
por outro. A explicação dada por Austin (2002) é que, se o soberano atual opta por
manter as ordens vigentes no ordenamento jurídico anterior, ele o faz de forma tácita,
sem interferir em sua aplicação. Justifica Austin (2002), a partir de Hobbes, que “o
legislador não é aquele por cuja autoridade as leis foram feitas primeiramente, mas
aquele por cuja autoridade elas continuam agora a serem leis”. Contudo, o fundamento
dessa justificativa é falho porque, embora tenha havido um reconhecimento tácito pelo
soberano atual das ordens editadas pelo soberano anterior, para o mesmo ordenamento
jurídico, admite-se a coexistência de soberanos distintos dos quais as ordens fundadas
em ameaça foram emanadas. Daí não se pode utilizar da noção de um soberano único e
determinado para identificar a origem do Direito, como pretende fazer crer Austin
(2002). Novamente, a solução apontada por Hart (2001) é reconhecer a necessidade da
imposição de uma regra “fundamental, correntemente aceita, que especifica uma
categoria de pessoas, cuja palavra deve constituir um padrão de comportamento para a
sociedade, isto é, que tem o direito de legislar”, de tal forma que abranja atos
legislativos passados, presentes e futuros.

Para a criação de tais regras (que prevejam a continuidade da autoridade legislativa e


que confiram o direito de legislar), não é necessária apenas “uma aquiescência dos
cidadãos comuns da sociedade, através de práticas sociais complexas, mas exige-se a
opinião de autoridades como legisladores e os Tribunais”, como exemplifica Hart
(2001). Assim, torna-se necessária a passagem de uma sociedade extremamente
simples, na qual existem apenas normas primárias, que estabelecem obrigações, tal
como a existente no Estado absolutista, para uma sociedade complexa, na qual além
daquelas existam normas secundárias, que atribuam poderes públicos ou privados, como
as existentes no Estado Moderno. Somente dessa maneira, será possível a instituição de
“regras ou normas de modificação, que se destinam a instituir, em sentido amplo, os
órgãos criadores de normas, que tem por função regular o processo de criação,
eliminação e transformação das regras primárias”.

Frisa-se que, somente a partir da criação de tais órgãos legislativos, é que se pôde
concluir pela existência de uma obrigação jurídica. Tal obrigação exige, além do
aspecto interno, já explicitado anteriormente, a pressão social para que a conduta dos
indivíduos se adeqüe à norma, evitando-se discussões sobre os desvios
comportamentais, sobre o grau de relevância da norma, para que o seu acatamento
repercuta na harmonização social, e sobre a sobreposição do sentimento de obrigação de
obediência à norma aos desejos de transgredi-la.

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Outra objeção identificada por Hart (2001), em relação à aplicação das leis, é que o
legislador está limitado juridicamente às normas que elabora, ao passo que o poder do
soberano não pode sofrer qualquer limitação jurídica, porque restaria descaracterizado e
não poderia se falar numa sociedade politicamente independente. A equiparação do
soberano ao legislador já se mostra inadequada, porque ele necessariamente deve estar
sujeito às regras que criou, inclusive as normas do procedimento legislativo. Segundo
Austin (2002), o soberano, no exercício de sua função oficial, não pode ao mesmo
tempo criar a lei e estar vinculado a ela, porque a idéia de superioridade política do
soberano cairia por terra. Distinguir essas duas funções somente seria possível se fosse
criado um órgão legislativo que atribuísse ao legislador a função de criar normas e o
impusesse a obrigação de cumpri-las, na condição de sujeito privado. Assim, também
não se pode conceber que o soberano tenha direitos jurídicos frente aos seus súditos,
pois do contrário, ele estaria vinculado a uma ordem emitida por outro soberano, o que,
conforme Austin (2002), seria um absurdo. Justifica-se essa afirmativa já que numa
sociedade politicamente independente somente pode existir um único soberano. E,
certamente, a existência de mais de um soberano inviabilizará a persistência de sua
teoria. Todavia, não se vislumbrou que essa ausência de delimitação deve ocorrer no
plano político e não no plano jurídico (pois a limitação jurídica do órgão legislativo é
uma característica essencial dos Estados modernos), o que torna as suas ponderações
deficientes. Mas o fundamental, diz Hart (2001), é perceber que tais questões não são
determinantes para definir o Direito e, portanto, devem ser deixadas de lado.

Com referência ao conteúdo das leis, Hart (2001) diverge de Austin (2002) quando ele
identifica o ordenamento jurídico a partir de uma estrutura em que a norma jurídica é
constituída por uma ordem fundada em ameaças, por aplicação de uma forte analogia à
lei penal (espécie de norma jurídica dotada de um comando e uma sanção), para aferir,
de forma inequívoca, a juridicidade de uma regra num ordenamento jurídico. Segundo
Hart (2001), na complexidade dos Estados Modernos, essa concepção é “enganadora,
porque desconsidera a diversidade das leis existentes”, de maneira que o direito
internacional e os costumes, por exemplo, equivocadamente deixam de ser considerados
como leis propriamente ditas, porque não se originaram de uma fonte determinada, qual
seja, o soberano. Bobbio (1995) destaca que essa:

é uma das numerosas doutrinas que nega a juridicidade do ordenamento internacional e


possui o mérito de ser fundada em critérios claros e rigorosos: uma vez admitida a
definição austiniana do direito positivo, não resta senão negar caráter jurídico às normas
internacionais.

O critério pode até ser claro e rigoroso, mas não deixa de ser questionável, já que,
segundo Hart (2001), a conjugação de regras de várias espécies é um fenômeno
característico do Direito. Frisa-se que, até mesmo os costumes, enquanto “regras de
conduta que os governados obedecem espontaneamente, ou seja, sem a necessidade de
seguir uma lei imposta por um superior político”, não se constituem em comandos e,
por isso, não são exigíveis juridicamente. Enquanto tal, o costume tem o status de
norma da moralidade positiva e só pode adquirir o status de norma jurídica, quando o
juiz, que é um funcionário inferior e subordinado às ordens do Estado, o transforma em

7086
uma norma jurídica, dotada de sanção, acatando-o em suas decisões judiciais. A outra
forma de aceitação do costume seria por manifestação tácita de vontade do soberano, ao
silenciar sobre a sua aplicação pelos súditos.

Ao se analisar a teoria imperativista, adotada por Austin (2002), percebe-se que ele
classifica como leis positivas ou propriamente ditas aquelas que:

são criadas direta ou indiretamente por monarcas ou corpos soberanos em sua condição
de superiores políticos, por homens que se encontram em estado de sujeição em sua
condição de superiores políticos subordinados ou por súditos em sua condição de
pessoas privadas em exercício de seus direitos legais.

Sustenta que “todo direito jurídico é criado por uma lei positiva e corresponde a um
dever relativo imposto por essa lei e que recai sobre uma pessoa ou pessoas distintas
daquelas em que reside o direito”. Nessa acepção, deixa-se de priorizar a faculdade que
a lei confere a uma determinada pessoa, ou grupo de pessoas, para o exercício de um
certo direito jurídico (subjetivo). Ademais, enfatiza-se o correlato dever de obediência
que existe em contrapartida ao exercício desse direito, para fazer uma analogia, dessas
situações de vantagens do sujeito frente à norma jurídica, a comandos fundados em
ameaça, ainda “que a condição de superioridade política do soberano, seja expressa de
forma indireta ou mediata”. Sob esse ponto, o autor (2002) tentar justificar a
persistência de sua teoria frisando que:

a idéia de que um sujeito é titular de um direito através do uso da força ou de um poder


próprio é falsa e representa um completo absurdo, porque o que ocorre é exatamente o
contrário, já que a titularidade deste direito é adquirida pelo uso da força ou pelo poder
de outro sujeito, qual seja, o autor da lei pela qual o direito é conferido.

É claro que não se pode desconsiderar que, tanto as normas que conferem poderes
jurídicos (públicos ou privados), quanto as leis, que impõem deveres, constituem regras
porque prescrevem padrões de conduta sujeitos à critica e que podem, indiretamente,
estabelecer deveres a outros sujeitos que não estejam determinados de forma direta pela
norma. Para alguns, tal assertiva significa que ambas podem ser enquadradas como
ordens coercitivas enquanto, para outros, não.

Os adeptos da teoria menos extremista alegam que o Direito somente se torna


obrigatório a partir da imposição de uma sanção. Além disso, como a infringência às
normas jurídicas que estatuem poderes não é passível de ser sancionada, no sentido
próprio do termo, as nulidades de tais atos foram equiparadas às sanções aplicadas no
direito penal. Essa equiparação é até possível, mas não nesses termos. As regras que
conferem poderes podem ser vistas como ordens dirigidas para que se adote um
comportamento em determinado sentido e a nulidade pode ser analisada como o

7087
fundamento que impele alguém a adequar o seu comportamento à regra, assim como a
sanção. Todavia, é só esse aspecto que as assemelha, porque “no direito penal a conduta
que a regra proíbe está separada da sanção que é dirigida ao seu desencorajamento,
enquanto a previsão da nulidade é parte integrante das normas que atribuem poderes”.
Isto é, a retirada da nulidade da norma não é possível, sob pena dela deixar de existir. A
aplicação da sanção decorre da prática de ato ilícito, ao passo que, a nulidade aplicada à
violação de uma regra atributiva de competência, não decorre de um ato ilícito, mas
somente da inobservância de determinados requisitos exigidos pela lei para lhe conferir
validade. Aqui se ampliou demasiadamente o significado de sanção, para abranger as
nulidades, como uma tentativa de Austin (2002) que justificasse a persistência de sua
teoria, baseada em ordens fundadas em ameaças para identificar o Direito.

A teoria contrária, numa perspectiva mais moderada, exclui as normas que:

conferem poderes aos particulares da categoria de ordens fundadas em ameaças para


qualificá-las como fragmentos incompletos de regras coercitivas, negando-lhes
juridicidade, em oposição às normas propriamente ditas. Elas são reformuladas como
cláusulas condicionantes das ordens condicionais baseadas em ameaças ou regras que
impõem deveres.

Vale dizer que somente se forem cumpridas as exigências impostas pela lei é que se
reputará valida a celebração de um negócio jurídico, por exemplo. Kelsen (1991)
também vislumbrou uma concepção distinta de normas incompletas (destituídas de
sanção), ao sustentar que elas se relacionam de modo indireto com as normas
completas, já que somente elas necessariamente precisam ser sancionadoras. Essa
pretensão de homogeneização do ordenamento jurídico é causadora de perplexidades,
porque representa as tentativas desesperadas de Austin (2002) em justificar a sua teoria,
mediante distorções de formas jurídicas como distintas espécies normativas que
funcionam num sistema jurídico, obscurecendo as várias técnicas possíveis de controle
social, além da aplicação da sanção.

4 - O FUNDAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO: A REGRA DE


RECONHECIMENTO QUE FACULTA CRITÉRIOS PARA A
IDENTIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS VÁLIDAS

Num sistema jurídico simples, tal como o que foi identificado por Austin (2002) no
modelo de Estado absolutista, é possível imaginar que o direito exista sem concorrência
das funções legislativa, executiva e judiciária. Em tais sociedades, verifica-se somente a
existência de regras primárias que estatuem condutas por uma autoridade que não é
oficial, embora as ações sejam pautadas como um guia para que o comportamento se
amolde às regras estabelecidas, havendo uma dissidência de comportamento
considerável que está sujeita à aplicação de uma sanção. Nesse tipo de sociedade

7088
simples, as regras estão dispostas de forma assistemática e não podem constituir um
sistema jurídico, porque não é possível identificar uma autoridade criadora do direito
que possa definir se uma regra, que vem sendo geralmente obedecida, pertence ao
ordenamento jurídico e que é a extensão de sua aplicação em um caso concreto. Essa
carência de certeza em relação às regras primárias só pode ser solucionada mediante a
instituição de uma regra secundária, que estabeleça um critério para definir se uma regra
primária pertence ou não a uma determinada ordem jurídica. A articulação das regras
primárias, que prescrevem condutas comissivas ou omissivas para os indivíduos, e das
regras secundárias, “que determinam como as regras primárias podem ser criadas,
eliminadas e alteradas”, é o que constitui um ordenamento jurídico.

Ao se prever apenas a existência de obrigações no ordenamento jurídico, dá-se maior


relevância ao seu aspecto externo, ou seja, ao ponto de vista de um observador que
descreve o direito existente num determinado sistema normativo, mas que não acata os
critérios utilizados para a validação dessas regras. Segundo Austin (2002), essa
perspectiva é suficiente para definir o Direito, mas o mesmo não ocorre em sistemas
jurídicos complexos. Neles, exige-se a instituição de uma regra secundária de
reconhecimento que permita identificar quais são as normas primárias válidas de um
determinado ordenamento jurídico, em conformidade com Hart (2001). Pressupõe-se
que tal regra seja aceita pelos “cidadãos particulares como pelas autoridades que
dispõem de critérios dotados de autoridade para identificar as regras primárias de
obrigação”.

Os critérios que a regra de reconhecimento disponibiliza para identificar o direito, e


reputá-lo como válido, variam de acordo com as suas fontes existentes em cada
ordenamento jurídico. Para definir a regra de reconhecimento, é preciso identificar o
funcionamento de um determinado sistema normativo, porque, somente a partir da
observação de quais regras são aplicadas na prática, é que será possível identificar qual
é o Direito reputado como válido pelos critérios em questão. Nos sistemas do Civil Law,
normalmente, as disposições de uma constituição escrita funcionam como critérios
supremos para identificar uma regra (primária ou secundária) como válida, porque a
regra de reconhecimento “indica quais as disposições contidas na constituição que
constituem o direito, embora ela não possa ser identificada como a própria
constituição”.

Não se pode indagar acerca da validade ou invalidade da regra de reconhecimento


porque ela é aceita e empregada no funcionamento do ordenamento jurídico, embora “a
sua existência se manifeste na maneira como as regras concretas, são identificadas, tanto
pelos Tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares ou seus consultores”.
Para Hart (2001), só aqueles são dotados de uma autoridade especial para identificar o
direito e reputá-lo como válido, porque, ao utilizarem da regra de reconhecimento para
verificar se uma determinada regra é válida ou não, precisam aceitá-la enquanto “um
padrão de conduta e de crítica”.

O supracitado aspecto foi denominado de interno e é fundamental para identificar as


regras concretas de um sistema jurídico, porque somente esse grupo determinado de
pessoas tem autoridade para enunciar que a regra de um certo ordenamento jurídico
estatui uma conduta específica. E somente se pode propor tal enunciado porque “a regra
passou por todos os testes facultados pela regra de reconhecimento, e, portanto pode ser
considerada como uma regra do sistema”.

7089
Destaca-se que a regra de reconhecimento tem um caráter dúplice, pois:

do ponto de vista interno ela é um padrão aceito de identificação das regras que
compõem o sistema jurídico feita pelos juízes e funcionários e do ponto de vista externo
ela é um fato, porque se traduz na prática de identificação do direito pelos Tribunais e
outros funcionários do sistema, a qual é aceita pela generalidade dos cidadãos.

É necessária a conjugação de tais perspectivas para asseverar que um sistema jurídico


existe, já que, na lição de Hart (2001), essa é a maneira “mais frutuosa de encarar um
sistema jurídico, porque há uma aceitação das regras como um padrão comum e crítico
de comportamento para o grupo”. Quando isso acontece, há uma congruência dos
comportamentos públicos e privados em relação às normas reconhecidas como válidas,
refletindo o funcionamento normal do ordenamento jurídico. É importante salientar o
aspecto interno da aceitação da regra de reconhecimento pelos Tribunais, e seus
funcionários, como um padrão correto de conduta na identificação do direito válido, a
partir de um juízo crítico e autocrítico como condição necessária para a existência do
sistema jurídico. Assim, exige-se uma crítica por parte daqueles juízes, ou Tribunais,
que não aceitam a regra de reconhecimento como um padrão devido para identificar os
critérios de validade das normas jurídicas, sob conseqüência de restar instalado o caos
no ordenamento jurídico, pela existência de decisões judiciais conflitantes. Excetuam-se
da referida afirmativa as decisões proferidas em controle de constitucionalidade
repressivo, que declaram a inconstitucionalidade de leis.

Ao se fazer uma análise mais aprofundada do ponto de vista interno, constata-se que ele
reflete “uma adesão valorativa ao direito vigente por parte daqueles que são leais à
ordem estabelecida”, contrariando um dos preceitos do positivismo clássico, qual seja, a
separação absoluta entre o Direito e a moral. A aceitação da regra de reconhecimento
pelas autoridades pode predicar a formulação de um juízo axiológico, possibilitando que
padrões morais e valores substantivos possam ser utilizados como critérios para
identificar qual é o direito válido. Por isso, não se pode negar que o ponto de vista
interno guarda uma conexão mínima com a moral, tanto que Hart (2001) pondera sobre
a existência de um conteúdo mínimo do direito natural a que as regras jurídicas devem
observar, sob conseqüência de serem inócuas. Nesse sentido:

sem um tal conteúdo, o direito e a moral não podiam apoiar o desenvolvimento do


próprio mínimo da sobrevivência que os homens têm, ao associar-se uns com o outros e
tampouco teriam uma razão para obedecerem voluntariamente a quaisquer regras, o que
por sua vez, acarretaria a impossibilidade de coerção daqueles que não aceitam as regras
do sistema.

Embora o direito natural seja passível de inúmeras críticas, não se pode “dele olvidar
porque ele viabiliza um diálogo com as possíveis limitações de natureza que devem

7090
nortear a feitura das regras jurídicas, extraindo delas possibilidades de se pensar a
liberdade e o Direito sem apego a teses metafísicas”. Ao adotar essa concepção, Hart
(2001) não deixa de ser um positivista, já que continua afirmando a separabilidade entre
o Direito e a moral, mas reconhece que a conexão entre ambos é contingente, podendo
ser considerado um positivista moderado.

Em relação ao aspecto externo, a regra de reconhecimento vem sendo freqüentemente


equiparada à norma fundamental proposta por Kelsen (1991), como critério último de
validação das regras jurídicas pertencentes a um sistema normativo. A regra de
reconhecimento pode ser testificada empiricamente, porque ela foi instituída como uma
prática social que permite aferir a sua própria existência por meio da aplicação das
normas reconhecidas como válidas pelos Tribunais. Já a norma fundamental é
pressuposta porque não admite questionamentos em relação ao fundamento de sua
própria validade, cuja origem é transcendental. Assim, elas apenas se assemelham
porque fornecem o critério último de validade das normas jurídicas.

Quando a regra de reconhecimento é aceita do ponto de vista interno, ao menos pelos


juízes (singulares e colegiados) e seus auxiliares, pode-se constatar que, em relação à
sua aceitação e à sua utilização no sistema jurídico, ela é pressuposta. E se a validade de
uma regra é “aferida a partir de sua recondução à regra de reconhecimento, acaba-se por
reduzi-la à faticidade daquilo que é aceito e assumido na práxis institucional ou não”.
Nesse aspecto, a teoria de Hart (2001) se assemelha ao realismo jurídico defendido por
Alf Ross, para quem a determinação do direito vigente é uma questão de fato e está
vinculada “ao modo como o direito é aplicado pelos Tribunais, identificando-se quais
são os fatores decisivos para que uma determinada regra seja aplicada ou não em um
caso concreto”.

Há ainda outra objeção mais severa em relação à regra de reconhecimento, qual seja, a
de que ela não contém todos os critérios de validade que permitam identificar as regras
do ordenamento jurídico, já que seria impossível, num sistema normativo complexo,
que ela abrangesse todos esses critérios, em razão de sua variabilidade e de sua
constante alteração por procedimentos legislativos. Se a regra de reconhecimento não
comporta todos os critérios que determinam a validade das normas jurídicas, é possível
que surja um caso concreto que não esteja regulado por tais regras que passaram pelo
teste de pedigree da regra de reconhecimento. Haverá então uma lacuna normativa, ou
seja, uma falta de solução para um caso particular. Conforme Barzotto (1999), se a regra
de reconhecimento é falha, não pode ser utilizada como critério para identificar o direito
válido de um determinado ordenamento jurídico. Joseph Raz também reconhece que
regra de reconhecimento falha nesse sentido, porém garante que, para resolver o
problema das lacunas normativas, quando um sistema proíbe o non liquet, é necessária a
instituição de uma regra de precedente judicial, que permita ao magistrado criar um
direito novo para o caso concreto. Assim:

essa regra de precedente pode ser estabelecida, por outra norma, que tem a sua validade
reconhecida pela regra de reconhecimento ou pode ser verificada na prática dos
Tribunais, hipótese em que se institui pela práxis uma regra de discrição judicial, que
orienta a atuação judicial na escolha das regras para suprir tais lacunas, ao lado da regra
de reconhecimento.

7091
Em crítica à Dworkin, Hart (2001) assevera que nos hard cases o juiz deve criar e
aplicar o direito novo para o caso concreto, mas que a sua:

atuação discricionária não pode ser exercida como se ele fosse um legislador, porque a
criação deste direito novo envolve vários constrangimentos, já que ele não pode
introduzir reformas de larga escala ou criar novos códigos, e que ele deve ter certas
razões gerais para justificar a sua decisão, agindo como um legislador consciencioso,
explicitando as suas próprias crenças e valores nas razoes de decidir, estando tais
poderes limitados nestes aspectos.

Segundo o referido autor (2001), não se trata de uma decisão arbitrária, antidemocrática
ou injusta, como critica Dworkin, porque nesses casos se recorre na maioria das vezes
“à analogia, de forma a assegurar que o direito criado, embora seja novo, esteja em
conformidade com os princípios ou razões subjacentes, tendo como fundamento o
direito pré-existente”. Hart (2001) supõe que “o juiz, no uso desta discricionariedade,
seja dotado de virtudes essenciais, quais sejam, a imparcialidade e a neutralidade ao
examinar as alternativas considerando os interesses de todos os que serão afetados e a
preocupação com a colocação de um princípio geral aceitável como base racional de sua
decisão”. E, como existe uma gama desses princípios, não se pode aceitar a tese de
Dworkin de que há apenas uma única resposta correta para solução dos hard cases.

Por sua vez, Dworkin entende que a regra de reconhecimento somente admite a aferição
de regras válidas, e não de princípios, que certamente seriam o instrumental adequado
para a solução das lacunas normativas, evitando a discricionariedade em sentido forte e
que a criação de direito novo seja aplicado a fatos pretéritos. Hart (2001) rebate tal
crítica afirmando que para a identificação de princípios implícitos ou subjacentes no
ordenamento jurídico “é preciso de algo muito semelhante à regra de reconhecimento,
que possibilite identificar as fontes do direito de forma autorizada” e que a crítica de
Dworkin é injustificável.

Na tentativa de solucionar os hard cases, Dworkin criou o juiz Hércules, que com sua
capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas:

analisa quais são os princípios e soluções alcançados dentro do amplo sistema de


normas e dentre as possibilidades que se mostram aceitáveis para um determinado caso,
deverá optar por aquela leitura interpretativa que melhor satisfaça ao ideal de
integridade, visando descobrir o direito, reconstruindo-o e não revelando-o.

Ao se adotar esse procedimento, o juiz Hércules garantiria a construção racional de suas


decisões. Todavia, tal concepção também vem sendo criticada, na medida em que “ele

7092
não é capaz de definir o Direito, mas tão só fornecer as respostas, que num certo
momento, lhe parecem as melhores”. A presença da racionalidade nas resoluções do juiz
Hércules, “ao considerar as decisões passadas como parte do romance em cadeia que
deve interpretar e continuar, de acordo com as suas opiniões sobre o melhor
desenvolvimento a ser conferido à história em questão” é questionável, na medida em
que o julgador não justifica a opção pelo princípio que reputou como relevante para a
solução do caso concreto. Assim, não há como se aferir essa suposta racionalidade,
sendo impossível evitar que o julgador incorra em discricionariedade ao decidir, já que
ele não ele é capaz de se desvincular do subjetivismo que o seu exercício pressupõe.
Essa versão solipsista somente pode ser superada com a adoção de uma teoria discursiva
no âmbito da aplicação do direito, pois “permite a reconstrução do direito vigente por
intermédio da razão comunicativa aplicada ao procedimento que pode ser considerado
democrático porque viabiliza o debate de pretensões de validade para obter o consenso
entre os seus participantes”.

5 - A TEXTURA ABERTA DA LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO DO


DIREITO: A CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA HARTIANA

Hart (2001) propôs uma análise relevante da relação entre o Direito e a linguagem,
influenciado por Friedrich Waismann e Wittigestain, para identificar e resolver alguns
problemas acerca da interpretação jurídica. Os conceitos empíricos carecem de uma
definição exaustiva em relação aos seus possíveis significados, gerando dúvidas acerca
de sua aplicabilidade ou não em um determinado contexto. “Trata-se de um limite
inerente à própria natureza da linguagem, quanto à orientação que a linguagem geral
pode oferecer”, que se verifica em relação aos precedentes judiciais e à legislação. No
que toca à legislação de um sistema jurídico, tal defeito dá origem à lacunas de
reconhecimento que surgem “quando não se pode resolver um caso particular porque
não se sabe em qual predicado factual ele deve ser inserido”. Frisa-se que essas
hipóteses não versam sobre lacunas normativas por incompletude do sistema jurídico,
isto é, por ausência de norma para a resolução do caso concreto, e tampouco sobre as
lacunas de conhecimento, “em que não se sabe se um caso particular deve ser inserido
dentro de uma norma geral por falta de conhecimento acerca dos fatos relevantes do
caso”.

Hart (2001) leciona que existem casos fáceis em que a subsunção da norma jurídica ao
caso concreto é praticamente mecânica e que não se faz necessária a interpretação do
termo geral da regra para que ela se aplique ao caso concreto. O positivismo jurídico
tradicional defende que, para a resolução de um caso claro, há apenas uma única
interpretação possível, assumindo a teoria formalista da interpretação, em que se revela
o sentido do texto legal, que é pré-existente à aplicação da norma.

Geralmente, toda regra tem um núcleo de certeza que viabiliza que a maioria dos casos
concretos possam se subsumir a ela. Excepcionalmente, a mesma regra pode apresentar
uma zona de penumbra ou dúvida. Hart (2001) assevera que tais hipóteses representam
os casos difíceis em que não se sabe se o termo geral da regra é aplicável ou não ao caso
concreto, em razão da “natureza da linguagem que é sempre potencialmente vaga ou da

7093
textura aberta da linguagem”. “A linguagem geral da regra somente delimita o caso
simples e não pode ser aplicada a uma combinação de circunstâncias em que surge
indeterminada”. Primeiramente, deve o intérprete verificar se esse caso “se assemelha
de forma suficiente e por motivos relevantes ao caso simples” ou paradigmáticos,
optando pela sua aplicação ao caso concreto. Pode ocorrer que essa opção seja
formalista, “disfarçando e minimizando a necessidade de tal escolha, fixando-se sempre
o significado da regra, de tal forma que os seus termos gerais tenham sempre o mesmo
significado”, independentemente das circunstâncias indeterminadas do caso concreto.
Todavia, ainda em conformidade com Struchiner (2000), se o intérprete decidir que a
regra do caso simples não pode ser aplicada ao caso concreto, haverá a necessidade de
interpretação para que a norma se torne menos vaga ou imprecisa, através do uso da
discricionariedade judicial, em razão da textura aberta da linguagem dos termos gerais
da norma positivada. A exacerbação dessa concepção leva à adoção da teoria cética da
interpretação, porque se considera que o direito consiste apenas em decisões tomadas
pelos Tribunais que têm a função de interpretar a lei vigente.

De acordo com Hart (2001), nessas hipóteses, há apenas casos complexos em que não
se pode exigir uma única resposta correta, exatamente porque esse processo
interpretativo pode gerar inúmeras respostas para solucionar o caso concreto. Ao buscar
uma concepção intermediária entre as teorias formalista e cética da interpretação, Hart
(2001) defende uma parcial indeterminação que é própria da linguagem, em razão do
problema da textura aberta, na qual os termos gerais das normas jurídicas podem ser
vagos e imprecisos, de forma que os casos difíceis existem, embora excepcionalmente,
ao lado dos casos fáceis. A função do Direito, segundo Hart (2001), é de conciliar as
necessidades sociais, permitindo sempre a segurança jurídica que decorre da
previsibilidade dos acontecimentos futuros, a partir da aplicação das regras vigentes que
devem primar pela clareza e pela ausência de ambigüidade em seu sentido. Contudo,
esse desiderato somente pode ser parcialmente cumprido, diante da indeterminação da
linguagem em razão de sua textura aberta, cabendo ao julgador solucionar os casos
concretos, que somente poderão ser resolvidos, quando alguma lacuna de
reconhecimento surgir. Nesse ponto, houve alguns avanços em relação ao positivismo
tradicional, porque o juiz não é mais considerado como aquele que apenas subsume o
fato ao direito positivado, num processo autômato e também não se pressupõe a
completude do ordenamento jurídico.

Embora Hart (2001) não reconheça, a estrutura aberta da linguagem autoriza a adoção
de uma discricionariedade judicial que é exercida de forma arbitrária, porque o único
intérprete da lei é o julgador, que por estar contaminado pelo subjetivismo, imprime à
norma jurídica a interpretação que lhe é conveniente, como adverte Habermas (1997).
Como o único intérprete legítimo das normas jurídicas é próprio o magistrado, basta que
na sentença ele fundamente a sua opção por uma determinada interpretação ou pela
aplicação de certa norma para que ela seja considerada legítima e seja acatada por seus
destinatários. A legitimidade está intrínseca nas normas jurídicas válidas aos casos
fáceis, já que basta ao julgador utilizá-las para a justificação das razões de decidir. Nas
hipóteses de lacunas de reconhecimento e normativas a legitimidade está pressuposta
naquelas virtudes essenciais atribuídas a todo magistrado, a que Hart (2001) se refere. O
problema da discricionariedade judicial em Hart (2001) é que ele não explicitou como
se pode delimitar a atividade decisória, já que a fundamentação da sentença, ainda que
se utilize de uma argumentação racional, por si só, não é suficiente para afastar o
subjetivismo do julgador no ato de aplicação da lei. Trata-se de uma espécie de ativismo

7094
judicial que vem causado entrave à legitimidade das decisões judiciais nas democracias
contemporâneas.

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Hart vislumbrou a insuficiência da concepção de Direito adotada por Austin ao


identificar o ordenamento jurídico a partir ordens gerais exaradas por um soberano e
fundadas em ameaças, porque se trata de uma teoria reducionista que somente é
aplicável ao ordenamento jurídico existente no Estado Absolutista. Assim, trata-se de
uma concepção mais voltada para a descrição do fenômeno político, daquele modelo de
Estado, do que uma teoria adequada para descrever o fenômeno do Direito a partir de
um sistema de regras próprio e independente. Embora seja passível de críticas, a teoria
imperativista fundamentou um dos pilares da teoria juspositivista, qual seja, o de que o
Direito é dotado de validade desde sua imposição coercitiva pelo Estado.

Hart propôs, então, a delimitação do conceito de Direito a partir da análise de sua


estrutura complexa, já que é composta essencialmente por regras primárias e
secundárias, diferenciando-a da estrutura da moral e das ordens fundadas em ameaça,
com o fito de obter um conceito que revelou a essência do Direito e que foi
compreensível por seus operadores, sob uma perspectiva interna. Uma interpretação
precipitada da acepção de Direito em Hart poderia levar à conclusão de que, sendo um
complexo de regras primárias e secundárias, ele se esgotaria num catálogo fechado de
normas que está apartado da influência das variáveis da realidade que compõem o
fenômeno jurídico, especialmente da moral. Em razão disso, Dworkin acusou Hart de
adotar uma concepção formal, normativista e atemporal do Direito, cuja perspectiva de
análise não considera as inúmeras variáveis a que está sujeito em razão da
complexidade da realidade social, sob o fundamento de que há uma separação nítida
entre o Direito e a moral. Todavia, Dworkin esqueceu-se de que Hart não defendeu a
separabilidade absoluta entre tais esferas, porque o aspecto interno da aceitação da regra
de reconhecimento por parte dos juízes e Tribunais, que operam a normatividade
jurídica, exige uma adesão valorativa ao Direito vigente. Trata-se de uma tentativa de
Hart em imprimir ao Direito positivado um conteúdo mínimo de Direito natural, o que
evidencia que esse autor pode ser considerado um positivista moderado, distinguindo-se
dos positivistas clássicos, como Kelsen.

Portanto, Dworkin se mostrou cético em relação às teorias que defendem a delimitação


do conceito de Direito desde um conjunto de regras estabelecidas a priori, exatamente
porque elas ignoram o caráter prescritivo que as normas jurídicas deveriam ter, já que,
para ele, é a própria moral que fundamenta o Direito. Nessa perspectiva, pode-se
concluir que, embora as teorias dos referidos autores tenham pressupostos
completamente distintos, há um ponto de convergência entre ambas, isto é, uma
vinculação mínima entre o Direito e a moral, ainda que, para Hart, essa possibilidade
seja contingente. Não se pode negar que Hart ultrapassou o paradigma positivista
clássico ao afirmar que a regra de reconhecimento pode incorporar princípios morais ou
princípios substantivos como critério de validação do Direito, o que permitiu a sua

7095
qualificação como um neopositivista e não como um positivista meramente factual,
como assevera Dworkin.

Outro ponto de divergência entre Hart e Dworkin, que é de fundamental relevância para
o debate contemporâneo, é a questão da interpretação do Direito nas decisões judiciais
que resolvam os casos difíceis, já que há possibilidade de haver discricionarieade
judicial, que é aceita por aquele e rechaçada por este. Hart constata que, nas hipóteses
difíceis, há o problema da textura aberta da linguagem, em que, não sendo o termo geral
da regra, é aplicável ao caso concreto ante a necessidade de interpretação para que a
norma se torne menos vaga ou imprecisa. Isso ocorre por meio da discricionariedade
judicial, da qual resulta a possibilidade de várias respostas possíveis para a resolução do
caso concreto.

Para o referido teórico, não há qualquer problema em se adotar a discricionariedade


judicial, seja para solucionar as lacunas de reconhecimento ou para resolver as omissões
normativas, pois se pressupõe que o julgador pode optar pela interpretação mais
adequada ao caso concreto, criando um Direito novo, mas de forma conscienciosa e
virtuosa, não atuando como se fosse um legislador positivo. Dworkin contestou o
posicionamento de Hart, porque não admitiu a adoção da discricionariedade judicial
para a resolução das lacunas de reconhecimento e também das omissões normativas, já
que o próprio ordenamento jurídico dispõe de princípios que trazem um balizamento
para a resolução dos casos difíceis, sem que o juiz necessite criar um Direito novo. Por
isso, defendeu que a discricionariedade judicial, em sentido forte, é incompatível com
um Estado Democrático de Direito. Contudo, Dworkin também não ficou isento de
críticas em relação à possibilidade de sua teoria estar pautada na discricionariedade
judicial, já que pressupôs que as decisões tomadas pelo juiz Hércules são dotadas de
uma racionalidade tal que pode optar por uma interpretação mais adequada ao caso
concreto, desde que satisfaça o ideal de integridade. É exatamente nessa possibilidade
de escolha, marcada pelo subjetivismo do julgador, que reside a discricionariedade
judicial. Em razão disso, essa proposta de hermenêutica construtivista do Direito vem
sendo combatida, já que não há como os destinatários normativos exercerem um
controle sobre a suposta racionalidade de tais decisões, motivo pelo qual ela não é a
teoria a mais adequada ao Estado Democrático de Direito, porque falta ao juiz Hércules
a adoção dos pressupostos do discurso, segundo Habermas.

Na pós-modernidade e na sociedade, cada vez mais marcada pelo pluralismo e sem


possibilidade de consenso acerca de crenças e valores, a mediação não será atingida por
uma vinculação exclusiva a valorações morais, sendo necessário se recorrer ao Direito
positivo. Por isso, na atualidade, o pensamento de Habermas ganha relevância, já que
ele propõe que o Direito seja um médium lingüístico entre os valores fragmentários e a
implementação discursiva da normatividade jurídica, permitindo-se o alcance do
consenso de forma democrática. Todavia, para se chegar a tal resultado, é necessário
fazer um resgate teórico de autores clássicos do Direito, como Austin e, em certa
medida, Hart. Eles inovaram ao trazer a idéia de positivismo inclusivo e da textura
aberta da linguagem que permitiu a discricionariedade judicial, para, posteriormente,
adentrar no debate contemporâneo ente Hart e Dworkin, considerando-se as
contribuições e as limitações teóricas para a construção de um conhecimento crítico
sobre o conceito de Direito.

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7 - REFERÊNCIAS

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Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.

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