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É certo que a partir das contribuições teóricas de Ronald Miles Dworkin e Robert
Alexy, consolidou-se o entendimento majoritário segundo o qual princípios e regras são
espécies do gênero norma jurídica1.
A partir da década de 1950, foi inaugurada uma nova fase na Ciência Jurídica, a
saber: a fase pós-positivista. Com a superação do positivismo legal2, os princípios ganham
normatividade jurídica, deixando para trás a sua mera posição subsidiária de auxiliar a
função integrativa na aplicação da lei3. Há uma aproximação entre ética e Direito. Para
tanto, contribuíram imensamente os ensinamentos de Joseph Esser, Ronald Dworkin e
Genaro Carrió.
1
Há doutrinadores de renome que defendem a tese de que a norma jurídica (gênero) divide-se em: princípio,
regra e valores (categoria normativa autônoma). O próprio Dworkin distingue princípios, regras e “fins”
como espécies do gênero norma jurídica. Para Aragon, os valores se diferenciam dos princípios, pois têm
eficácia apenas interpretativa, ao contrário dos princípios, que possuem também projeção normativa. Esta
tríade normativa seria fruto das especulações teóricas advindas da “jurisprudência dos valores” e da
“tópica”. Todavia, consideramos, nesta sucinta obra, apenas as espécies princípios e regras, deixando de
lado os valores enquanto categoria normativa autônoma, em conformidade com o escólio de J. J. Gomes
Canotilho.
Cumpre salientar, ainda, que alguns autores não compartilham a idéia de existência de diferenças relevantes
entre regras e princípios. São os adeptos da tese da conformidade, entre outros, Hernandez Marin, para
quem os princípios não passariam apenas de um “mito jurídico”.
2
O paradigma do sistema positivista foi o Código Napoleônico de 1804. Pregava-se a auto-suficiência do
código, retratando um dos valores mais preciosos do liberalismo clássico: a segurança jurídica. Com efeito,
o código regulava (ou tentava regular) de maneira precisa e detalhada as relações jurídicas, ao passo que a
Constituição, por sua própria essência, era composta de normas abstratas e abertas a opções ideológicas e
políticas. Para a Escola da Exegese, a codificação deveria impor ao julgador um apego ao texto normativo
e à interpretação literal ou gramatical.
3
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris, 1986, p.
145-156.
A ideia de princípio4, nos dizeres de Luis Diez-Picazo, deriva da linguagem da
geometria, sendo as premissas de todo um sistema, vale dizer, designa verdades primeiras.
Não é por outra razão que são “princípios”, pois estão “ao princípio”. Nos dizeres de
Carmem Lúcia Antunes Rocha, é no princípio que repousa a essência de uma ordem e
seus parâmetros fundamentais.
Num eventual conflito entre princípios e regras hão de prevalecer aqueles, eis que
possuem uma hegemonia axiológica-normativa.7 São eles que conferem fundamento
axiológico e normativo ao ordenamento jurídico, exigindo, portanto, uma maior atividade
argumentativa por parte do intérprete. Conquanto haja entendimento contrário8, nos
4
Ulpiano, desde tempos remotos, já procurava sintetizar os princípios básicos do Direito: “Honeste vivere,
alterum non laedere, suum cuique tribuere” (Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que
é seu). Apud BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito
Constitucional Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In BARROSO, Luiz
Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 29.
5
Apud. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 230.
6
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141
7
Em sentido contrário: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
8
Ensina Humberto Ávila: “Conexa a essa questão está a concepção doutrinária largamente difundida no
sentido de que descumprir um princípio é mais grave que descumprir uma regra. Em geral, o correto é o
contrário: descumprir uma regra é mais grave que descumprir um princípio. E isso porque as regras têm
uma pretensão de decidibilidade que os princípios não têm: enquanto as regras têm a pretensão de oferecer
uma solução provisória para um conflito de interesses já conhecido ou antecipável pelo Poder Legislativo,
filiamos àqueles para os quais a ofensa a um princípio é de natureza (muito) mais grave
que o desrespeito a uma regra, pois os princípios retratam as opções políticas
fundamentais ou a escolha de valores éticos e sociais fundantes do Estado Democrático e
da sociedade plural, tudo em consonância com a sempre lembrada definição de Celso
Antônio Bandeira de Mello9.
As contradições entre regras, como visto acima, podem ser eliminadas mediante
a inserção de cláusulas de exceção. Por exemplo, determinada regra veicula a proibição
de abandonar a sala de aula antes de a campainha soar. Outra regra, contudo, estabelece
a obrigatoriedade de abandonar a sala quando soar o alarme de incêndio. Obviamente, a
segunda hipótese representa uma exceção à primeira. Logo, com a estipulação de uma
exceção, não há mais que falar em colisão entre regras (ALEXY, 2014, p. 179).
Contudo, quando a fixação de uma exceção não é possível, uma das regras em
conflito deve ser considerada inválida. O intérprete não pode considerar, numa única
hipótese de incidência concreta, simultaneamente válidas regras que possuem
consequências jurídicas diametralmente opostas. Se a regra é válida e aplicável ao caso
concreto, então sua consequência jurídica vale. Nessa situação, e somente nessa, é correto
o teorema de Dworkin segundo o qual as regras são aplicáveis conforme o critério “tudo
ou nada” (all or nothing fashion).
Cuida-se, pois, (a ponderação) de uma técnica que visa atribuir pesos a bens,
valores e interesses. Nunca demais lembrar que os valores, segundo a corrente pós-
positivista, configuram a vertente axiológica das normas, devendo ser promovidos pelos
princípios.
Nos denominados “casos fáceis” (easy cases), o intérprete funciona como mero
revelador da norma, sendo aplicada a técnica interpretativa de subsunção (fato e texto)
para a solução do caso. É o que Herbert Hart chama de “zona clara de aplicação do
direito”. Os casos que recaem na zona clara são aqueles em que as questões nominais
parecem não cobrar uma interpretação mais detalhada ou aprofundada. Na zona clara, há
uma aplicação mecânica da lei, sem uma maior especulação (SGARBI, 2006, p. 133).
Por sua vez, “casos difíceis” (hard cases), na linguagem comum, são aqueles
casos de difícil resolução ou compreensão. Porém, a partir da concepção teórica de
Dworkin, “caso difícil” é aquele em que, dadas as particularidades dos “fatos
apresentados em juízo e das disposições legislativas, não é trivial identificar a regra que
os solucione ou, mesmo, atestar que elas estejam disponíveis” (apud SGARBI, 2006, p.
155).
Em outras palavras, existe um “caso difícil” quando não for possível subsumir
claramente a questão fática apresentada a uma regra pré-estabelecida pelo órgão
competente (p.ex, Poder Legislativo).
Além dessas breves considerações, faz-se mister tecer alguns comentários sobre
a ideia de “dilema constitucional”, a partir do escólio de Lorenzo Zucca.
O dilema constitucional envolve dois elementos: a) uma eleição entre dois bens
distintos e salvaguardados por direitos fundamentais; b) a perda fundamental de um bem
protegido por um direito fundamental, independentemente da decisão judicial a ser
tomada. O dilema representa, então, uma situação mais grave que o chamado “caso
difícil” (ZUCCA, 2011, p. 11).
A maioria dos juízes insistia que não estavam avaliando a qualidade de vida das
crianças. Contudo, eles estavam, segundo Zucca (2011, p. 15), avaliando a qualidade de
vida de ambas, destacando a anormalidade e não-naturalidade da união das gêmeas.
Com efeito, apenas poucos casos são tidos como dilemas constitucionais. São
hipóteses de conflitos genuínos entre direitos fundamentais (dilemas) aqueles conflitos
totais intradireitos, isto é, quando existem pretensões simétricas que são mútua e
totalmente excludentes. Se se favorece uma das pretensões, elimina-se a outra
definitivamente. Um nítido exemplo, como já descrito, é o caso das gêmeas siamesas
Jodie e Mary, cujo conflito total intradireitos envolve o direito (antagônico) à vida de
duas pessoas.
Segue afirmando o referido doutrinador (2011, p. 17) que o conflito entre direitos
fundamentais pode ser genuíno ou espúrio. A diferença entre ambos é que os conflitos
genuínos (dilemas) implicam inconsistências normativas.
Portanto, e em resumo, há de se ressaltar, uma vez mais, que os dilemas
constitucionais não permitem uma solução argumentativa forte e convincente a favor de
certo resultado.
10
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a
construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.
44/56.
11
DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011, p. 204.
situações, transformando-o em mero apelo emocional para conquistar o auditório. Como
já ressaltou o Ministro Dias Toffoli, há certo
12
WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant. São
Paulo: Saraiva, 2013, p. 117/118.
Destarte, para uma adequada justificação teórica a partir da prática judicial,
torna-se imperioso, inicialmente, que o intérprete/aplicador imponha ao princípio da
dignidade humana um necessário caráter subsidiário em relação aos demais direitos
fundamentais, sendo a ultima ratio do poder argumentativo e da persuasão.
Essas breves considerações já são suficientes para justificar uma redução no uso
inflacionário do princípio da dignidade humana na prática judicial nacional. Porém, como
se não bastasse a “trivialização” do argumento atinente à dignidade na jurisprudência, é
possível encontrar essa mesma desvalorização em diversos documentos normativos, por
exemplo, a previsão da dignidade humana como: a) princípio da política agrícola e
fundiária na Constituição da Bahia; b) princípio da pesquisa tecnológica na Constituição
do Rio Grande do Sul; c) princípio do planejamento urbano na Constituição do Ceará; d)
13
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit, p. 21.
14
MENDES, Gilmar Ferreira. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 6, vol. 2,
jul./dez. 2013.
15
HABERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimensões da
Dignidade, ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57.
princípio para manutenção de casas-albergues para idosos, mendigos, crianças e
adolescentes abandonados na Constituição do Rio Grande do Sul16.
16
MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 88.
17
Luís Roberto Barroso utiliza a ideia de “valor comunitário” no lugar de “princípios restritivos da
liberdade”. Contudo, entendo que os princípios restritivos da liberdade individual são os valores últimos
subjacentes à concepção de comunitarismo. Portanto, concorda-se parcialmente com a definição de
Barroso, buscando apenas, quanto ao terceiro elemento, trazer a lume quais os princípios limitadores da
autonomia da vontade individual e que, portanto, fazem cumprir o “valor comunitário”. Em outras palavras,
enquanto o “valor comunitário” pode ser chamado de “valores de primeira ordem”, os “princípios restritivos
da liberdade individual” podem ser denominados de “valores de segunda ordem”.
18
SMITH, Paul. Op.cit., p. 193.
Segundo Luís Roberto Barroso,
Do mesmo modo, ante o valor inerente à vida, o BVerfG declarou ser a lei de
segurança aérea incompatível com a dignidade humana. A lei, ao autorizar que o Ministro
da Defesa ordenasse o abatimento de aeronaves sequestradas por terroristas dispostos a
utilizá-las contra algum alvo em terra, diminuía o valor das vidas dos passageiros
(inocentes) do avião. Suas vidas possuem, pois, valor intrínseco, não podendo ser
19
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 76/77.
20
COSTA NETO, João. Dignidade humana: visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, do STF e
do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 104.
comparadas ou “ponderadas” (em quantidade) com outras vidas a serem salvas em terra,
sob pena de a vida se transformar em valor meramente utilitarista.21
Ninguém pode renunciar à sua liberdade de julgar e pensar o que bem desejar.
Cada um é senhor dos seus próprios pensamentos e escolhas. A autonomia, própria do
juízo moral, é obtida pelo sujeito na medida em que ele constrói respostas sobre o que
deve fazer.
Sendo livres para agir por razões morais – e não apenas a partir de desejos
egoístas -, também somos responsáveis pelas nossas escolhas e ações. É com base na
21
Idem, p. 101.
22
Apud STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David L. Dez teorias da natureza humana. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 6
23
Idem, p. 7
autonomia da vontade e, por conseguinte, na dignidade humana que se louva certos atos
e se recrimina outros, recompensando-os ou punindo-os.
Cada momento da vida requer uma escolha do indivíduo, razão pela qual sempre
haverá uma “angústia” em tal escolha. A angústia não é o medo de algo externo, mas a
plena consciência que a escolha a ser tomada enseja a abdicação de outras escolhas ou
opções.25
24
Idem, p. 178.
25
Idem, p. 255.
26
COSTA NETO, João. Op. cit, p. 35.
27
Idem, p. 106.
2.1.1.3 Princípios restritivos da liberdade
28
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 87/88.
comunidade, onde a identidade dos cidadãos tenha um mínimo de
substância que lhes garanta um tratamento que não seja estritamente
formal e coisificador.29
Em suma, sendo um ser social, o homem, para atingir a felicidade, deve procurar
não apenas o seu próprio bem, mas também a do grupo social a que pertence. Em verdade,
o homem não é um indivíduo em si, isto é, ninguém possui uma personalidade autônoma,
mas uma personalidade proveniente de experiências familiares, coletivas etc. Nem
mesmo o nome pelo qual o indivíduo é identificado (símbolo máximo de
individualização) tem plena autonomia, sendo composto pelos sobrenomes dos seus pais.
(...) desde cedo, sem que tenhamos consciência disso, somos colocados
em trilhos invisíveis que podem durar a vida inteira. Uns estão
condenados a uma vida difícil e outros a uma confortável. O que somos
e o que não podemos ser já foi decidido, mas não por nós. Herdamos
muitos limites e oportunidades. Temos alguma escolha, mas não
29
XIMENES, Julia Maurmann. O Supremo Tribunal Federal e a Cidadania à Luz da Influência
Comunitarista. Revista Direito GV. Jan/Jun 2010. São Paulo. 6 (1), p. 119/142.
30
Idem Ibidem.
podemos escolher qualquer caminho. Escolhemos dentro de limites que
não escolhemos (...).31
Assim, a autonomia da vontade individual não pode ser absoluta. Deve ser
compreendida dentro de um espaço comunitário, de valores mínimos compartilhados. Em
que pese a definição de “valor comunitário” proposta por Luís Roberto Barroso, tem-se
que o conceito é teoricamente insuficiente. Diz ele que os contornos da dignidade são
moldados pelas relações dos indivíduos com os outros, assim como com o mundo ao seu
redor. Mas quais são os valores ou princípios comunitários a justificar uma limitação da
autonomia individual? Como são moldadas ou a partir de que princípios são moldados os
comportamentos dos indivíduos para com os outros? Barroso traz à tona, corretamente,
porém sem maiores aprofundamentos, os princípios do dano (John Stuart Mill) e da
ofensa (Feinberg). Em verdade, deve-se indagar, em última análise, quais são os
princípios restritivos da liberdade individual e condizentes com uma convivência
harmônica em sociedade? É o que a seguir procurar-se-á demonstrar, aprofundando a
descrição teórica dos princípios do dano e da ofensa, além de acrescentar outros à
temática.
31
SOARES, Gláucio Ary D. Os trilhos da vida. Correio Braziliense. Caderno Opinião. dez./2012. p. 23.
corporal, furto, roubo, calúnia etc. Ao contrário do que pensava John Stuart Mill, o
princípio do dano ao outro não é o único propósito para o qual o poder pode ser exercido
adequadamente sobre a vontade do indivíduo. Evitar o dano ao outro ou punir o sujeito
que o pratica é o primeiro, mas não o único, propósito da lei.32
E nem todos os danos ao outro são ilegais. Portanto, não merecem ser proibidos
ou reparados. Sendo os danos legais ou moralmente justificados, não há de falar em
princípio restritivo da liberdade (p.ex, legítima defesa, lesão corporal decorrente de
consentimento voluntário em hipótese de cirurgia etc).
32
SMITH, Paul. Op. cit., p. 92.
33
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 96/97.
34
SMITH, Paul. Op. cit., p. 96/97.
35
Idem, p. 98.
Com efeito, deve-se distinguir o paternalismo ”forte” do “fraco”. Aquele é o
paternalismo propriamente dito, onde se busca a prevenção do dano voluntário a si. Já o
“paternalismo fraco” é a prevenção do dano involuntário a si. Este, em verdade, não é um
paternalismo, esclarece Feinberg, porque não impede alguém de fazer o que quiser; ao
contrário, impede-o de fazer o que não quer e por isso não viola sua autonomia da
vontade.36
Para o paternalismo fraco ou “não-paternalismo”, segundo Feinberg, o Estado
“tem o direito de impedir a conduta prejudicial a si apenas quando ela for involuntária,
ou quando for necessária uma intervenção temporária para estabelecer se ela é voluntária
ou não”, ou quando se presume que ela não seja voluntária.37
Assim sendo, o adulto pode escolher soberanamente uma vida não saudável,
como, por exemplo, o consumo diário e excessivo de cigarros. A decisão voluntária do
sujeito, porém, exige que ele, para decidir conscientemente, seja corretamente informado
dos males da intoxicação. Logo, a venda e compra de cigarros para adultos é permitido,
desde que veiculadas as devidas advertências. Os adultos capazes, portanto, devem ser
alertados dos malefícios do cigarro, mas não impedidos de enfrenta-los.
O “paternalismo fraco” não propõe a vedação e punição do dano involuntário a
si. Na verdade, ao impedir um dano ou perigo involuntário, trata-se de um princípio
protetor da liberdade.
E quando o adulto capaz, bem informado e de maneira voluntária consente em
ser escravizado, ferido ou morto? A lei deve proibir o dano voluntário a si?
Tomando por empréstimo os ensinamentos de Feinberg, Paul Smith esclarece
que
36
Idem, p. 100.
37
Idem ibidem.
particular, o desejo de ser morto (...) sugere uma racionalidade fraca e,
portanto, uma voluntariedade insuficiente para a permissão.38
O princípio da ofensa, para Feinberg, busca ser um meio eficaz de evitar ofensas
graves. A conduta não é moralmente errada em si, mas eventual imposição de uma
experiência sobre vítimas a contragosto é errado e deve ser vedada. São exemplos:
atividade sexual, defecação ou nudez em público; demonstração pública de pornografia;
demonstração pública de insígnias nazistas ou racistas; profanação pública de um símbolo
religioso. Há, nessa hipótese, uma tênue linha a separar a liberdade e a prevenção da
ofensa.
38
Idem, p. 102/103.
revistas, filmes, programas e sites, cujo potencial de ofensa (por
conterem nudez ou sexo, ou por questionarem, desafiarem ou
escarnecerem de crenças religiosas) não seria então um bom motivo
para a censura. Quarto, caso alguém se exponha à ofensa
voluntariamente (defensores da censura às vezes veem deliberadamente
o material que os ofende), então isso não é uma ofensa injusta, pois o
ofendido consentiu com ela.39
Como dito, o princípio limitador da ofensa, não raras vezes, entra em tensão com
a liberdade (de expressão), fruto da autonomia da vontade. Sendo essencial para a
democracia e para a própria dignidade humana, deve ser dada uma presunção de
prioridade axiológica à autonomia (liberdade). Nesse aspecto, a jurisprudência da
Suprema Corte norte-americana é rica e esclarecedora, já que a liberdade de expressão
consiste justamente na liberdade para ideias que odiamos – e não somente para ideias em
relação às quais concordamos.
39
Idem, p. 95/96.
40
Apud LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias que odiamos: uma biografia da primeira emenda à
Constituição Americana. Trad. Rosana Nucci. São Paulo: Aracati, 2011, p. 47.
não pode ser garantida meramente pelo medo da punição por infringi-
la; que é arriscado desencorajar o pensamento, a esperança e a
imaginação; que o medo gera a repressão; que a repressão gera o ódio;
que o ódio ameaça a estabilidade do governo (...) Acreditando no poder
da razão aplicado por meio da discussão pública, eles evitaram o
silêncio coagido por lei – o argumento da força em sua pior forma.
Reconhecendo as tiranias ocasionais das maiorias governantes, eles
emendaram a Constituição para que as liberdades de expressão e de
reunião fossem garantidas.
41
Idem, p. 52/53.
42
Idem, p. 109.
Em que pese as dificuldades teóricas de definição da ideia de justiça social,
tomar-se-á como parâmetro a sistemática e influente concepção delineada por John
Rawls.
Partindo de um “consenso sobreposto”, Rawls defende que a comunidade deve
buscar melhorar a vida de grupos menos favorecidos, o que justifica a imposição de leis
sobre salários mínimos, higiene, saúde e segurança no trabalho. A justiça social, aqui,
justificaria a restrição à liberdade de contrato entre empregador e empregado. Deve
existir, de igual modo, uma igualdade política entre os cidadãos, sendo que os ricos não
podem comprar influência política.
É fácil constatar por que a idéia de uma prioridade absoluta do coletivo sobre o
individual (ou do público sobre o privado) é incompatível com o Estado
democrático de direito. Tributária do segundo imperativo categórico kantiano,
que considera cada pessoa como um fim em si mesmo, a noção de dignidade
humana não se compadece com a instrumentalização das individualidades em
proveito de um suposto `organismo superior´. Como instrumento da proteção e
promoção dos direitos do homem, o Estado é que deve ser sempre o instrumento
da emancipação moral e material dos indivíduos, condição de sua autonomia nas
esferas pública e privada.
Em suma, os bens e direitos (do povo) são confiados ao administrador público para,
como o próprio nome já diz, “administrar”, “gerenciar”, nunca para dispor. Exerce uma
atividade no interesse de outrem. Logo, não há liberdade para o administrador. Este tem
unicamente o dever de guarda, conservação e aprimoramento, pois a atividade
administrativa é um munus publico, um encargo.
Isso não significa, contudo, que a conduta do agente público tem que estar expressa
e detalhadamente prevista em lei. A conduta deve estar amparada em lei. É o que
acontece, por exemplo, com os atos discricionários, nos quais o administrador realiza um
juízo de conveniência e oportunidade na decisão a ser tomada. Por ser materialmente
impossível prever todos os casos, além do caráter geral e abstrato da própria lei, ainda
subsistirão inúmeras situações em que a Administração terá de se valer da
discricionariedade para atender à finalidade pública.
Ademais, ensina Alejandro Nieto (1994, p. 293) que “não vulnera a legalidade, o
emprego de fórmulas amplas, sempre que sua concretização seja razoavelmente factível
em virtude de critérios lógicos, técnicos ou de experiência que permitam prever, com
suficiente segurança, a conduta visada”
Não podemos confundir, ainda, princípio da legalidade com o da reserva de lei. Este
último impõe que determinado assunto somente poderá ser tratado por meio de uma certa
espécie legislativa. Por exemplo, a relação de emprego protegida contra despedida
arbitrária ou sem justa causa é matéria reserva à lei complementar.
O princípio da legalidade, ainda, deve ser visto, atualmente, em seu sentido amplo,
a partir da fase pós-positivista em que vivemos. O ato administrativo não deve apenas
obediência à lei, mas antes e sobretudo ao texto da Constituição. Assim, perfeitamente
possível a análise de compatibilidade do ato administrativo com princípios tais como
razoabilidade, proporcionalidade, eficiência etc.
Por derradeiro, o estado de sítio, que também significa uma tentativa constitucional
de combater ameaças urgentes às instituições democráticas e ao próprio Estado, permite
a instauração de uma legalidade extraordinária, por determinado tempo e de âmbito
nacional, objetivando preservar ou restaurar a normalidade constitucional, perturbada por
uma agressão armada estrangeira, declaração de guerra, ineficácia do estado de defesa
etc.
Por outro lado, afirma Bandeira de Mello (2008, p. 114) que o princípio da
impessoalidade “se traduz na ideia de que a Administração tem que tratar a todos os
administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem
perseguições são toleráveis”. A impessoalidade, portanto, para o citado autor,
configuraria o próprio princípio da isonomia ou igualdade.
A impessoalidade, destarte, também nos traz a ideia de que o ato administrativo não
é realizado pelo agente público enquanto pessoa natural, mas pelo órgão ou entidade
pública em nome da qual atuou. A pessoa natural apenas exterioriza a manifestação de
vontade do Estado.
De igual modo, é vedada a promoção pessoal de agentes públicos com obras, atos,
programas, serviços e campanhas públicas. Nos termos do art. 37, §1º, da CF/88, como
regra decorrente do próprio princípio da impessoalidade, o dever de publicidade dos atos
e programas dos órgãos públicos deve ocorrer de maneira desvinculada da pessoas dos
gestores públicos, impedindo, pois, que constem nomes, símbolos ou imagens que
representem promoção pessoal de qualquer autoridade público, tendo como objeto o
caráter educativo e de orientação social.
Nesse sentido, já asseverou o STF que:
O STF (RE 160.381/SP) já teve a oportunidade de dizer que “o agente público não
só tem que ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a
mulher de César”. E a respeito de concurso público, asseverou o STJ (RSTJ 121/01) que
“publicado o edital, lei do concurso, e identificadas as provas, a alteração da média, ainda
que para diminuir a exigência mínima, fere os princípios da moralidade e da
impessoalidade que devem presidir a edição dos atos administrativos”.
Convém ressaltar que, sendo imoral, o ato é, desde logo e de per si, ilegítimo, pois
ofensivo ao princípio da legalidade ampla ou da juridicidade. Já decidiu o TJSP que “o
controle jurisdicional se restringe ao exame da legalidade do ato administrativo; mas
por legalidade ou legitimidade se entende não só a conformação do ato com a lei, como
também a moral administrativa e com o interesse coletivo”.
No mais, oportuno traçar algumas breves considerações sobre a distinção entre
moralidade e probidade administrativa.
Todo ato administrativo, via de regra, deve ser publicado. Contudo, o princípio da
publicidade, como todo e qualquer princípio, não é absoluto, admitindo algumas exceções
de status igualmente constitucionais, a saber: a) inviolabidade da intimidade, da vida
priva, da honra e da imagem (art 5º, X); b) imprescindibilidade de sigilo por motivo de
segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII); e, c) restrição da publicidade dos
atos processuais por motivo de defesa da intimidade ou se o interesse social assim exigir
(art. 5º, LX).
Nunca assaz ressaltar que a função da lei é, por excelência, discriminar. O Estatuto
da Criança e do Adolescente, por exemplo, traz normas de proteção para pessoas em
desenvolvimento, que merecem cuidados no âmbito cultural, social, recreativo etc. O
Código de Defesa do Consumidor também traz normas protetivas para aquele indivíduo
que se enquadre na definição de consumidor, tendo em vista sua condição de
hipossuficiência e vulnerabilidade diante de fornecedores.
Foi editada, inclusive, a Súmula 683 do STF, que diz: “O limite de idade para a
inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição,
quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido”.
Inexistiria ofensa ao princípio da isonomia.
Assim, para que seja constitucional a limitação de idade para ingresso no serviço
público, faz-se mister que tal limitação esteja prevista em lei, além de ser compatível com
as atribuições do cargo público a ser ocupado.
Por outro lado, o STF (ADI 1.691/DF) declarou inconstitucional a fixação de limite
de idade para o cargo de Auditor-Fiscal do Tesouro Nacional, por inexistir razoabilidade
no ato. Do mesmo modo, o STF entendeu que se
Ademais, é possível exigir altura mínima para provimento de cargo público, sem
que haja ofensa ao princípio da igualdade. Tal exigência, assim como o limite de idade,
deve estar prevista em lei, além de ser compatível com as funções a serem exercidas.
Por fim, “só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato
a cargo público” (Súmula 686/STF). O exame psicotécnico contribui para projetar a
personalidade do candidato, auxiliando na aferição meritória do candidato. Ainda que
previsto em lei, a avaliação psicotécnica deve possuir critérios objetivos e possibilitar o
conhecimento pelo candidato dos motivos que levaram à sua reprovação, para fins de
impugnação administrativa ou judicial.
Por fim, asseverou o STF (AI 442.918-AgR) que “a administração pode anular seus
próprios atos, quando eivados de ilegalidade (Súm. 473), não podendo ser invocado o
princípio da isonomia com o pretexto de se obter benefício ilegalmente concedido a outros
servidores.”
a) adequação;
b) necessidade; e,
Derivado do princípio do devido processo legal, a ampla defesa está prevista no art.
5º, LV, da CF/88 (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurado o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”).
Diógenes Gasparini (2000, p. 783) assevera que a ampla defesa consiste no direito
de o acusador ser ouvido, “de dar, a viva voz, sua versão aos fatos e de justificar sua
atitude, seu comportamento”. A parte deve ter assegurado o direito de se defender, ainda
que não use o prazo que lhe é concedido.
c) direito de ver seus argumentos levados em consideração pelo julgador, que deverá
decidir mediante fundamentação racional, acolhendo ou rejeitando as razões
apresentadas.
Ademais, vale lembrar que este princípio não se aplica única e exclusivamente nas
relações entre indivíduo e Estado, em sede de processos administrativos ou judiciais
(aplicação vertical dos direitos fundamentais), mas também nas relações entre
particulares (aplicação horizontal), conforme já decidiu o STF (RE 158.215-4): “Na
hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-
se a observância do devido processo legal, viabilizando o exercício amplo da defesa”.
Por outro lado, o STF (MS 22.791/MS) já teve a oportunidade de decidir que não
se exige a observância de tal direito durante a sindicância administrativa, por ser mera
medida preparatória, e não de procedimento acusatório. Igual posicionamento vem sendo
adotado pelo STF (Inq 1.070) no tocante aos elementos colhidos em auditoria do Tribunal
de Contas para fins de denúncia.
O STF, com base nesse princípio, editou a Súmula Vinculante n. 03, cujo texto
garante: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o
contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação
de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade
do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”.
Em que pese a doutrina entender que a motivação deva ser prévia e contemporânea
à prática do ato administrativo, sob pena de invalidação, o STJ decidiu, estranhamente,
que, embora o ato de remoção do servidor público por interesse da Administração deva
ser motivado, é possível que o vício de ausência de motivação seja corrigido em momento
posterior à edição dos atos administrativos impugnados. Assim, se a autoridade removeu
o servidor público sem motivação, mas ela, ao prestar as informações no mandado de
segurança, trouxe aos autos os motivos que justificaram a remoção, o vício que existia foi
corrigido (AgRg no RMS 40.427/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em
03/09/2013).
De qualquer forma, ainda que haja inadimplência, o corte de serviço não pode
ocorrer quando causar um prejuízo irreparável, como, p.ex., a prestação de serviços de
energia elétrica a hospitais públicos, repartições públicas etc.
De mais a mais, prevalece no STJ o entendimento de que o corte no fornecimento
de serviços públicos (agua, energia etc) deve se referir a débitos atuais, e não pretéritos.
O corte ou interrupção do serviço, portanto, é ilegítimo quando se tratar de débitos
passados, uma vez que a interrupção pressupõe o inadimplemento de conta regular,
relativo ao mês de consumo. Em relação aos débitos pretéritos, cabe a devida ação judicial
de cobrança, se for o caso.
Nada impede, ainda, que essa ilegalidade seja corrigida também pelo
Poder Judiciário.
Porém, tal presunção é relativa (juris tantum), ou seja, admite prova em contrário.
O ônus probatório cabe a quem aponta a ilegitimidade, ou seja, ao administrado/cidadão.