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DIREITO E NORMA JURÍDICA: DOIS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

E PROBLEMÁTICOS
Plínio Pacheco Oliveira1

1. Introdução

Neste texto, buscaremos analisar aspectos de dois conceitos fundamentais na


teoria jurídica: “direito” e “norma jurídica”. A princípio, você deve ter em vista que esses
conceitos representam temas recorrentes na história das ideias jurídicas, mas não há um
consenso geral entre os juristas em relação aos significados dessas expressões. Se você seguir
uma orientação pragmática em relação à linguagem, e observar os “usos” que são dados às
expressões “direito” e “norma jurídica”, provavelmente perceberá uma pluralidade de
sentidos. A percepção pragmática da linguagem pode demonstrar que os signos linguísticos
(como a expressão “norma jurídica” ou qualquer outra), de um modo geral, não têm
significados definitivos, e são marcados, ordinariamente, pela vagueza e ambiguidade. Não é
possível conhecer, de modo definitivo, todos os casos de aplicação de uma palavra, e as
palavras e conjuntos de palavras podem apresentar ao intérprete diversas possibilidades de
interpretação.
Desse modo, inicialmente, trataremos do conceito de direito. Para investigar tal
conceito, será feito um exame sobre aspectos do “positivismo jurídico” e do
“jusnaturalismo”. Em seguida, refletiremos sobre a noção específica de “norma jurídica”.
Reconhecendo diferentes sentidos dados ao termo “norma jurídica”, analisaremos,
inicialmente, algumas características que são, no âmbito da teoria do direito, usualmente
atribuídas à norma jurídica: a bilateralidade, a coercibilidade e a exterioridade.
Posteriormente, refletiremos sobre as seguintes questões: a interpretação jurídica é uma
atividade produtiva de normas jurídicas? Existe uma diferença entre produzir e aplicar
normas jurídicas? Para tratar de tais questões, serão consideradas perspectivas teóricas (a
Escola da Exegese e a visão hermenêutica de Friedrich Müller) que oferecem abordagens
distintas a esse respeito.

1
Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre e bacharel em Direito pela Faculdade
de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco). Foi Visiting Researcher na University of Oxford
(Reino Unido) e desenvolveu estágio doutoral junto à Università di Bologna - Alma Mater Studiorum (Itália).
Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (Abrafi), a secção brasileira do
Internationale Vereinigung für Rechts und Sozialphilosophie (IVR). Advogado. Professor da Faculdade de
Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco (FACESF).
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2. Conceito de direito, jusnaturalismo e positivismo jurídico

Conforme observou Herbert Hart (um dos mais importantes juristas do século
passado), poucas questões relativas à sociedade têm sido feitas com tanta persistência e
respondidas de maneiras tão diferentes quanto a questão “o que é o direito?”. Contudo, no
lugar da pergunta “o que é o direito?”, sugerimos que você se questione o seguinte: “como é
usada a palavra direito?”. Seguindo essa orientação pragmática, talvez você observe de um
modo mais nítido a seguinte circunstância: a palavra “direito” é usada em diferentes sentidos
para identificar realidades muito diferentes entre si, realidades que muitas vezes apresentam
mais diferenças do que semelhanças. O que há em comum, por exemplo, entre o direito no
Brasil atual e as ordens jurídicas nas antigas civilizações da Mesopotâmia? Você pode,
certamente, identificar elementos semelhantes. Contudo, ao lado das semelhanças, existem
muitos fatores (econômicos, religiosos, culturais, etc.) que tornam as vivências jurídicas muito
diferentes entre si. Podemos dizer que a compreensão mais precisa em relação ao direito deve
ter em vista a experiência singular, o contexto histórico específico. Nesse sentido, toda teoria
geral do direito (ou simplesmente “teoria do direito”) é limitada, já que qualquer
generalização implica a desconsideração de aspectos singulares que podem ser relevantes para
o entendimento acerca do direito. Assim, é cabível entender que todo conceito de direito é
limitado. Ou o conceito de direito é tão amplo que não é capaz de revelar as singularidades
das diversas manifestações que são chamadas de “direito”, ou é restrito de um modo tal que é
suficiente para retratar bem um ordenamento jurídico específico – como o brasileiro –, mas é
inadequado para retratar genericamente as muitas manifestações consideradas como “direito”.
No livro “O Conceito de Direito” (um dos livros mais influentes da teoria do
direito no século XX), Hart não apresenta uma definição de direito. E justifica essa sua
postura indicando que nada suficientemente conciso para ser reconhecido como uma definição
poderia dar uma resposta satisfatória à pergunta “o que é o direito?”. Para ilustrar como o
direito pode ser visto de diferentes maneiras – o que acaba provocando divergências no uso da
expressão “direito” –, podemos examinar diferentes caracterizações que são dadas ao direito
por visões jusnaturalistas e teorias juspositivistas. Inicialmente, analisemos alguns aspectos
do jusnaturalismo. É importante que você perceba que não há “um” jusnaturalismo, mas
muitos jusnaturalismos. Sob o rótulo de “jusnaturalismo”, são identificadas teorias muito
diferentes entre si, mas que sustentam, igualmente, uma perspectiva fundamental: além do
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direito criado pela sociedade, existem regras jurídicas justas que independem da vontade
humana e dos atos sociais, e que são, nesse sentido, “naturais”. Efetivamente, a tradição
jusnaturalista é amplíssima, e envolve uma grande quantidade de autores situados em
contextos históricos muito distintos. Ante tal horizonte teórico heterogêneo composto pelo
jusnaturalismo, você pode visualizar divergências em relação à fonte do direito natural e aos
conteúdos éticos que expressam o direito natural. Dessa maneira, por exemplo, São Tomás de
Aquino, no decorrer do século XIII, sustentou o entendimento de que o direito natural
emanava da razão divina, enquanto Grócio (um expoente do jusnaturalismo racionalista no
século XVII) firmou o entendimento de que a fonte do direito natural é a natureza humana
racional – e não diretamente a razão divina. No que se refere à divergência quanto ao
conteúdo do direito natural, você pode observar, por exemplo, que há autores jusnaturalistas
que defendem, tal como John Locke (um dos principais filósofos da modernidade), que a
propriedade privada é um direito natural. Porém, como bem percebeu Hans Kelsen (um dos
juristas mais importantes do século XX), há autores jusnaturalistas que divergem de tal
entendimento, e argumentam que o direito natural é a propriedade coletiva dos bens, e não a
propriedade privada (vista, desse modo, como ofensa ao direito natural da propriedade
coletiva).
Por outro lado, apresenta-se o “positivismo jurídico”. De acordo com o que foi
apontado por Hart, a observação do termo “juspositivismo” a partir do seu uso demonstra uma
pluralidade de sentidos e de critérios para a sua definição. Dessa maneira, se você buscar na
doutrina o conceito de “positivismo jurídico”, provavelmente achará alguma divergência entre
os teóricos. Porém, entre os usos dados à expressão “positivismo jurídico”, é cabível destacar
um sentido específico (em virtude da sua importância histórica e da sua proeminência nos
debates contemporâneos acerca do positivismo jurídico) segundo o qual o juspositivismo é
um conjunto heterogêneo de teorias que são caracterizadas por duas posturas fundamentais:
1) “a tese social”, para a qual o direito é uma construção social, e só é admitido
caráter jurídico no direito positivo (“posto” socialmente). Desse modo, não existe o “direito
natural”, não há direito que foi estabelecido independentemente da vontade ou conduta
humana. Todo direito é um produto da sociedade;
2) não há vínculo necessário entre o direito e qualquer conteúdo ético –
compreensão referida como a “tese da separação”. Dessa maneira, entende-se que qualquer
conteúdo ético pode ser jurídico. Tenha em foco que a “validade jurídica é a qualidade de
pertencer ao ordenamento jurídico”, e indica que o enunciado normativo foi criado de
acordo com as normas superiores do sistema jurídico. Para o positivismo jurídico, a validade
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jurídica não implica um conteúdo justo, dotado de conformidade com a moral. Admite-se,
assim, que as normas jurídicas podem não ter vínculos morais, e que não são os conteúdos
éticos que delimitam o conceito de direito. O positivismo jurídico sustenta o argumento de
que há uma diferença fundamental entre o reconhecimento da “existência do direito” e o
reconhecimento da “existência da justiça” – o problema da validade e o problema da justiça
não se identificam. De acordo com o que foi observado por Hans Kelsen, o direito positivo
não vale pelo fato de ser justo, e vale mesmo que seja injusto. Desse modo, admite-se que as
normas jurídicas podem refletir quaisquer faces do bem e do mal, e não que a positivação do
direito encerra a questão da justiça.
Portanto, podemos concluir que as diversas formas de entender o direito
provocam divergências relativas ao conceito de direito. Concordamos com Hart no que se
refere ao caráter limitado das definições de direito. As diversas experiências identificadas pelo
nome “direito” não podem ser plenamente retratadas nos limites de um conceito.

3. Características da norma jurídica e distinção entre direito e moral

Uma das questões mais persistentes na busca de conceituar o direito é a seguinte:


“o que é uma norma jurídica”? Contudo, as respostas a esse respeito são muito variadas, e as
diferentes definições de “norma jurídica” implicam, por vezes, um dissenso em relação ao
conceito de direito. No entanto, ante um amplo cenário teórico marcado pela ausência de
acordo quanto ao conceito de norma jurídica, não pretendemos analisar as múltiplas visões
que existem a respeito desse conceito, nem apresentaremos uma “única” definição correta de
norma jurídica (pois o juízo de que uma definição é “correta” representa algo relativo,
dependente do contexto social em que o termo é usado). Buscaremos investigar algumas
características que, na história das ideias jurídicas, tiveram destaque no conjunto das
tentativas de conceituar a norma jurídica: a bilateralidade, a coercibilidade e a exterioridade.
Contudo, antes de desenvolver tal investigação, já indicamos uma leitura complementar que
você poderá realizar acerca dessas características:
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011.
Capítulos XLII (Exterioridade, Coercibilidade e Heteronomia – da página 653 até a 663),
XLIII (Análise do Problema da Exterioridade do Direito – da página 664 até a 671) e XLIV
(Coercitividade e Coercibilidade – da página 672 até a 684);
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3.1. A bilateralidade da norma jurídica

Podemos fazer o seguinte questionamento: as normas jurídicas regulam qual tipo


de conduta? Buscando responder essa questão, você pode perceber que as normas jurídicas
tratam da conduta humana. Contudo, para apresentar uma resposta mais precisa ante tal
questionamento, podemos fazer outras perguntas:
1) o direito trata apenas da conduta humana?
2) o direito regula qual tipo de conduta humana?
Em relação à primeira pergunta, podemos argumentar que, no cenário atual da
Teoria do Direito, prevalece o entendimento de que o direito regula apenas a conduta (ação ou
omissão) humana. Todavia, em diferentes contextos sociais, já foi firmado o entendimento de
que o direito não regula apenas a conduta humana, e incide sobre o comportamento de outros
seres – como outros animais e seres inanimados. Nesse sentido, por exemplo, Hans Kelsen
(um dos mais importantes juristas do século passado) indicou, na sua “Teoria Pura do
Direito”, que, em Atenas, na antiguidade, era possível mover um processo contra uma pedra
ou uma lança que, presumivelmente, tivessem sido usadas como instrumentos para a prática
de um homicídio. O mesmo autor também cita que, na Idade Média, existiram tribunais na
Europa perante os quais era possível mover processos contra animais que não pertencem à
espécie humana – contra um touro que tivesse provocado a morte de um ser humano, por
exemplo. Esses exemplos mencionados por Kelsen – os quais podem figurar como absurdos
diante de determinados contextos culturais – são analisados por ele como expressões de uma
mentalidade “animista” segundo a qual os seres não humanos são providos de consciência e,
portanto, devem ser regulados pelo direito. No cenário recente das ideias jurídicas, há uma
série de debates que dão espaço ao entendimento de que seres não humanos devem ser
protegidos pelo direito não apenas como “objetos” de interesse humano. Nesse sentido, há a
defesa de que seres não humanos tenham a possibilidade de figurar como titulares de direitos,
mas não como titulares de deveres (pois isso exigiria um grau de consciência que os seres não
humanos presumivelmente não apresentam). Assim, a Constituição do Equador dispõe que a
natureza (Madre Tierra, Pacha Mama) é sujeito de direitos, e que os seus direitos devem ser
protegidos pela sociedade (se você quiser saber mais a esse respeito, recomendo a leitura do
texto que pode ser encontrado no seguinte link:
http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterP
ortalInternacionalFoco&idConteudo=195972). Contudo, você deve ter em vista que o
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entendimento que prevalece ante o ordenamento jurídico brasileiro é ainda ligado a uma visão
antropocêntrica segundo a qual apenas os seres humanos têm personalidade jurídica
(possibilidade de adquirir direitos e contrair deveres).
Por outro lado, podemos examinar a segunda pergunta sugerida: o direito regula
qual tipo de conduta humana? Nesse ponto, é firmado o entendimento de que as normas
jurídicas regulam a conduta humana interpessoal. O direito é uma forma de controle social, e
regula a conduta humana na medida em que ela é projetada no plano da intersubjetividade, na
esfera de interesses de outros seres humanos. Desse modo, sob o entendimento de que as
normas jurídicas regulam relações entre pessoas, a bilateralidade é apresentada como uma
característica das normas jurídicas. O termo “bilateralidade” decorre da percepção de que as
condutas juridicamente relevantes envolvem uma relação entre duas ou mais pessoas. Nesse
sentido, podemos argumentar que as normas jurídicas tratam da conduta humana na medida
em que se referem ao “outro” – e a “alteridade” (termo usado como sinônimo de
bilateralidade) também é apresentada como uma característica do direito. É cabível dizer,
entretanto, que a bilateralidade não é uma característica exclusiva do direito. Diversos
fenômenos normativos, como a moral e as regras de jogos, por exemplo, apresentam também
a bilateralidade.

3.2. Norma jurídica e coercibilidade

Como outra característica dos enunciados normativos jurídicos, há a


coercibilidade. Para examinar essa característica, podemos refletir sobre o conceito de sanção.
Com efeito, “qualquer garantia para que haja o cumprimento de um enunciado normativo”
pode ser vista como sanção. As sanções podem se expressar sob a forma de vantagens ou de
desvantagens, sob a forma de consequências positivas ou negativas. Assim, as sanções
premiais representam convites para que haja cumprimento da norma, e pode ser oferecido, por
exemplo, um desconto para aqueles que pagam regularmente um determinado tributo. Por
outro lado, as sanções punitivas buscam garantir a conformidade aos preceitos normativos por
meio da possível imposição de consequências negativas em caso de descumprimento do
enunciado normativo. Entretanto, você deve perceber que não apenas a ordem jurídica
apresenta sanções. É questionável se existe algum sistema de controle social que não
apresente sanções. Entre outras expressões da ética, podemos observar na moral a existência
de sanções que visam a garantir o cumprimento dos preceitos normativos. Considere, por
exemplo, o enunciado normativo moral que dispõe que “as pessoas não devem mentir”. Se
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você mentir, e, portanto, descumprir tal determinação moral, é possível que você sofra
consequências negativas que podem advir da mentira – como o desprezo dos seus colegas ou
da sua família. Nesse caso, o desprezo dirigido ao mentiroso serviria como uma sanção para o
enunciado normativo moral. Porém, a coercibilidade – a possibilidade de imposição da força,
da violência física (ou seja, imposição de uma sanção punitiva) para que haja o cumprimento
de um enunciado normativo – é uma característica típica do direito, e representa um elemento
que serve para distinguir o direito das outras ordens sociais. Portanto, você pode considerar
que as diversas expressões da ética (como o direito, a moral e a etiqueta) apresentam sanções,
mas a coercibilidade é uma nota distintiva do direito.
Deve-se ressaltar, todavia, que a característica marcante do direito não é a efetiva
imposição da força, da coação, mas sim a “possibilidade” de coação. Com efeito, o
cumprimento das disposições normativas jurídicas é, ordinariamente, garantido pela
“possível” coação, mas nem sempre a coação é “concretizada”. Nesse sentido, se o preceito
normativo é respeitado, não deve haver coação. Assim, por exemplo, o Código Penal
brasileiro estabelece que o homicídio é um crime que deve ser punido com uma pena privativa
de liberdade. Porém, se você não praticar tal delito, não deverá ser imposta sobre você uma
sanção punitiva que visa a garantir a proteção à vida. Portanto, você deve ter em vista que o
direito é marcado pela coercibilidade (a qualidade do que “pode trazer coação”), e não pela
coercitividade (qualidade do que “efetivamente traz a coação no momento atual”).
Ademais, você também deve ter em mente que nem todo enunciado normativo jurídico é
coercível. Assim, por exemplo, não haverá punição para os deputados estaduais que
desrespeitarem a Constituição Federal ao aprovarem uma lei que trata de uma matéria de
competência exclusiva do legislador federal. Nesse caso, não são coercíveis os enunciados
normativos da Constituição Federal que regulam as competências legislativas. Todavia, a lei
estadual será inválida, inconstitucional.

3.3. Norma jurídica, exterioridade e interioridade

Além da bilateralidade e da coercibilidade, a exterioridade é apontada como uma


característica das normas jurídicas. Christian Thomasius, na passagem entre século XVII e o
século XVIII, foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática acerca das diferenças entre
o direito e a moral, e considerou que o direito e a moral regulam diferentes esferas da conduta
humana. Segundo esse autor, caberia ao direito regular a conduta externa, enquanto a moral
regularia a conduta interior (se você quiser saber mais a respeito de Thomasius, recomendo a
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leitura do texto que pode ser encontrado no seguinte link:


http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/407). Desse modo, as normas jurídicas
teriam uma incidência restrita ao âmbito da “exterioridade”. Todavia, você deve perceber
que é problemática a afirmação de que apenas a conduta externa é relevante para o direito. Do
ponto de vista jurídico, é importante saber, por exemplo, se um crime foi consumado sob a
intenção deliberada de praticar o delito, ou se a prática do crime foi culposa, e ocorreu como
um resultado de uma falta de cuidado. Há, nesse caso, relevância jurídica da conduta interna,
e a fixação da pena não poderá desconsiderar a dimensão interior da ação ou da omissão.
Todavia, a conduta interna só pode ser juridicamente relevante na medida em que ela for
projetada na conduta externa. É juridicamente irrelevante a conduta que é plenamente
represada na dimensão da consciência, e não apresenta qualquer projeção na conduta (ação ou
omissão) exterior. Desse modo, por exemplo, é irrelevante para o direito se um indivíduo
deseja matar outro indivíduo, mas não projeta esse desejo na sua conduta exterior. Para que tal
desejo assuma uma relevância jurídica, é necessária a sua projeção exterior (sob a forma de
ameaça, homicídio ou tentativa de homicídio, por exemplo). Por outro lado, também é
problemática a afirmação de que a moral cuida apenas da conduta interna do ser humano.
Observe, por exemplo, os seguintes enunciados normativos morais:
a) as pessoas não devem mentir;
b) as pessoas devem ser honestas;
c) as pessoas devem ser corajosas.
Ao considerar tais enunciados, você poderá perceber que tais prescrições não são
restritas à regulação da conduta interna, e incidem também sobre a conduta externa. Para que
você não minta, seja honesto e corajoso, deverá assumir determinados comportamentos
exteriores que são condizentes com esses imperativos morais. Portanto, podemos concluir que
a conduta externa e a conduta interna são relevantes tanto para a moral quanto para o direito.

4. A interpretação jurídica e a (in)distinção entre as atividades de produzir


e aplicar o direito

Após tratar das noções de bilateralidade, coercibilidade e exterioridade, podemos


fazer os seguintes questionamentos:
a) A interpretação jurídica é uma atividade produtiva de normas jurídicas?
b) Existe uma diferença entre produzir e aplicar normas jurídicas?
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Efetivamente, você pode encontrar diferentes respostas que foram dadas a essas
perguntas no decurso da história das ideias jurídicas. Passaremos, então, a examinar algumas
posturas teóricas que apresentam abordagens diferentes em relação a esses questionamentos.

4.1. Liberalismo clássico, separação dos poderes e Escola da Exegese

O liberalismo surgiu como um conjunto de ideias que atendiam a anseios políticos


e sociais da burguesia europeia, se desdobrando, entre outras características, como proposta
de afirmação de liberdade individual diante do Estado e de enquadramento da atividade estatal
em normas jurídicas. Na maioria dos países da Europa continental, o liberalismo passou a ter
grande expressão no século XIX, o que já ocorria na Inglaterra desde o século XVII. Em tal
horizonte histórico do século XIX, no qual foi marcante a influência da experiência
revolucionária francesa e floresceu o liberalismo e a sua forma de Estado (o Estado liberal),
teve grande prestígio a doutrina da separação dos poderes. Na obra de Montesquieu (um dos
mais importantes pensadores do liberalismo político), essa doutrina ganhou os seus contornos
mais célebres, e foi estabelecida sobre a compreensão de que existência da liberdade só é
possível quando não houver reunião dos poderes do Estado (legislativo, executivo e
judiciário) em uma mesma pessoa ou mesmo órgão. Desse modo, tenha em vista que o
princípio da separação dos poderes foi erguido, em seus moldes clássicos, sobre a ideia da
separação entre a criação e a aplicação do direito. A atividade de criar o direito foi entendida
como algo pertinente à competência do Poder Legislativo, cabendo ao Judiciário e ao
Executivo as outras funções do poder político, que deveriam ser exercidas nos limites da lei.
Desse modo, você deve perceber que a distinção entre as atividades de produzir e aplicar o
direito representa uma ideia que foi posta a serviço do valor da segurança jurídica, do ideal da
previsibilidade da atuação estatal.
Entretanto, o positivismo jurídico surgiu, na passagem dos séculos XVIII e XIX,
diante do contexto histórico de ascensão do liberalismo na Europa, e acolheu o ideal liberal de
previsibilidade da ação estatal. Você deve considerar que a fase inicial do juspositivismo foi
marcada pela ideia da separação dos poderes traçada sobre uma perspectiva legalista, segundo
a qual o legislador tem o monopólio da criação do direito. Neste sentido, a Escola da Exegese
(que abriu caminhos do positivismo jurídico nascente e dominou o pensamento jurídico
francês no século XIX) teve como traço fundamental a ideia de que o direito positivo se
identifica por completo com a lei, e dispôs que o Judiciário tem apenas o papel de descobrir,
elucidar o sentido exato e verdadeiro da lei – havendo, sob tal entendimento, uma rígida
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separação entre as atividades de produzir (vista como exclusiva do legislador) e de aplicar o


direito. Com efeito, a Escola da Exegese sustentou a ideia da completude do ordenamento
jurídico sob o entendimento de que as leis oferecem respostas para todos os problemas que
forem apresentados aos aplicadores do direito. Perceba que a jurisdição, sob tal compreensão,
é concebida como uma atividade que não deve envolver as escolhas do julgador, mas apenas
as escolhas do legislador. Caberia ao juiz, desse modo, conhecer e aplicar as escolhas éticas
que o legislador firmou na lei. Assim, a aplicação do direto é considerada como uma atividade
estritamente lógica que é realizada sob a forma de subsunção dos fatos às normas (como
silogismo judicial). Sob tal visão, não cabe qualquer produção normativa na interpretação, que
é vista como uma atividade restrita à apreensão do sentido da norma prévia.

4.2. A distinção entre “texto de norma” e “norma”

Você deve perceber, contudo, que a interpretação é hoje realçada como uma
atividade que se desdobra sobre o que é incerto, tendo a função de apresentar um
entendimento sobre o que pode ser visto de diversas maneiras, sem que a variedade de
perspectivas represente falhas dos intérpretes. Com efeito, abordagens como a de Hart e a de
Kelsen abriram caminhos para além da separação entre a criação e a aplicação do direito.
Kelsen compreendeu que as palavras e as sequências de palavras têm uma pluralidade de
significações, e que o julgador se encontra diante de várias significações possíveis em relação
à “norma”. Os textos normativos, assim, são percebidos como “molduras” que comportam
várias possibilidades interpretativas. Dessa maneira, entre as várias significações possíveis (as
que podem ser inscritas na moldura interpretativa), não há uma que possa ser identificada
como a única correta. No entanto, tenha em vista que, para Kelsen, é juridicamente correta
qualquer interpretação cabível nos limites do enunciado normativo, e cabe ao intérprete
aplicador do direito escolher algum caminho interpretativo entre outros possíveis. Por sua vez,
Hart compreendeu que a linguagem dotada de autoridade em que a regra é expressa pode
guiar apenas de modo incerto, e que o aplicador do direito realiza, ordinariamente, escolhas
interpretativas ante um conjunto de diversas interpretações possíveis.
Nesse sentido de reconhecer que a interpretação é uma atividade produtiva de
normas jurídicas, Friedrich Müller (jurista alemão contemporâneo que integra a chamada
Jurisprudência Hermenêutica) fez uma separação entre “texto” e “norma”. Esse autor
entendeu que os textos normativos são “significantes” e as normas são “significados” que
surgem apenas como resultado da interpretação. Dessa maneira, os textos legais são
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considerados somente como “pré-formas legislatórias” da norma jurídica, que está por ser
produzida no decurso temporal da decisão. A ideia fundamental no argumento de Müller é de
que as palavras (significantes) não têm significados intrínsecos, e que um mesmo texto
normativo pode ser interpretado de diferentes modos. A norma, assim, seria o sentido
atribuído ao enunciado normativo, e um mesmo texto normativo é capaz de dar lugar a
diferentes normas. Dessa maneira, por exemplo, um texto normativo que prescreve o “respeito
à igualdade” pode ser entendido de diferentes maneiras, e sua concretização, na prática
interpretativa, pode dar lugar a diferentes normas.

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