Você está na página 1de 4

O Direito como integridade em Dworkin e a concretização dos direitos

fundamentais.

Este artigo aborda os conceitos de integridade do Direito e da única resposta correta de Dworkin e avalia
as contribuições desses conceitos para a concretização dos direitos fundamentais, base moral da
comunidade política.

A teoria de Dworkin defende que a Constituição constitui uma comunidade


fundada sobre princípios, a chamada comunidade de princípios. Uma comunidade que
se alicerça sobre o reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de todos e
cada um de seus membros. Esses princípios que constituem a base dessa comunidade
são princípios que o Direito tomou emprestado da moral, uma moral de princípios
extramente abstratos e universais. Porém, o Direito, ao recepcionar esse abstrato
conteúdo moral, empresta-lhe maior densidade e concretude, ao passo que a moral
fornece ao Direito sua legitimidade. Esse conteúdo moral incorporado ao Direito como
direitos fundamentais, submete-se ao código próprio do Direito, ou seja, funciona como
Direito, e não mais como moral (CARVALHO NETO, 2013b, p. 7).

Assim, na teoria de Dworkin, o Direito é concebido como um sistema aberto de


princípios e regras, ambos dotados de natureza normativa, cuja aplicação requer
adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto, sem
produzir injustiça, em face aos demais princípios da comunidade, momento em que o
texto normativo adquire o seu verdadeiro sentido. Eis aí a ideia da única resposta correta
e o conceito de integridade do direito concebidos por Dworkin, ou seja, o direito
interpretado levando-se em conta todos os princípios que estão na base da comunidade
política.

O conceito de integridade, na teoria de Dworkin, possui duas dimensões.


Carvalho Neto (2013b, p. 11) assim expõe os dois sentidos da integridade do Direito:

A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do ideal


da comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade em que seus membros se
reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como co-autores das leis que fizeram
para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimensão
diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional, como um processo de
aprendizado em que cada geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse
ideal. Desse segundo sentido decorre a metáfora do romance em cadeia.
Para a teoria do direito de Dworkin, a tarefa fundamental de uma comunidade
de princípios é exatamente densificar e interpretar reflexivamente esses princípios.

Nesse contexto, não se concebe possa ainda se falar em “lacunas do


ordenamento jurídico” que impeçam a concretização de direitos fundamentais, uma vez
que os princípios constitucionais, embora sejam abertos e indeterminados, são, porém,
passíveis de serem densificados nas situações concretas de aplicação, segundo a sua
adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto,
sendo exigido apenas que essa densificação seja feita levando-se em conta os demais
princípios que compõem o ordenamento jurídico.

Tal como as regras, os princípios também têm força normativa e podem servir
de base para o reconhecimento de direitos, embora esse direito não esteja totalmente
delineado e definido no texto constitucional, até porque, como sabemos, nenhum
princípio busca controlar previamente sua própria situação de aplicação.
No atual estágio do constitucionalismo, não se pode conceber que a
concretização dos direitos fundamentais fique na dependência apenas da atuação do
legislador, uma vez que, sendo os direitos fundamentais a base moral da comunidade
de princípios referida por Dworkin, a sua concretização é interesse e tarefa de todos os
cidadãos e é dever do Poder Público, aí incluídos a Administração Pública e o Judiciário.

Além disso, se havia alguma dúvida acerca da força normativa dos princípios
em nosso ordenamento jurídico, tal dúvida foi dissipada pelo Constituinte de 1988, que
estabeleceu expressamente que as normas instituidoras de direitos fundamentais tem
aplicabilidade imediata (art. 5, parágrafo 1, CF/88).

Aqui, a única exigência que se impõe é que se faça a diferenciação entre


argumentos política e argumentos de princípio (Dworkin), bem como entre discursos de
justificação e discursos de aplicação do Direito (Habermas e Günther). Scotti (2013, p.
05), ao tecer severas críticas à teoria positivista da interpretação, expõe muito bem a
diferença entre argumentos de política e argumentos de princípio:

A teoria positivista da interpretação, ao igualar em essência as tarefas legislativa e


judicial, especialmente diante de hard cases, nivela as distintas lógicas subjacentes,
causando uma profunda confusão entre argumentos, cuja distinção é cara a toda a
estrutura política das sociedades modernas: argumentos de política e argumentos de
princípio. Os primeiros se referem à persecução de objetivos e bens coletivos
considerados relevantes para o bem-estar de toda a comunidade, passíveis de
transações e compromissos, enquanto os segundos fundamentam decisões que
resguardam direitos de indivíduos ou grupos, possuindo assim um papel de garantia
contra-majoritária.
Nesse sentido, o Legislativo tem à sua disposição discursos das mais variadas
ordens: discursos éticos, discursos morais e discursos pragmáticos, ao passo que o
Executivo e Judiciário somente podem se valer legitimamente discursos jurídicos, com
seu código binário de validade (jurídico/não jurídico), de caráter deontológico.

Por certo, na concretização de direitos fundamentais, como, por exemplo, o


direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito de greve do servidor
público, dentre outros, está-se diante de um argumento de princípio, perfeitamente
possível de ser manejado seja pela Administração Pública seja pelo Poder Judiciário.

Não há que se cogitar que essa postura representaria uma violação ao princípio
da separação de poderes. Esse princípio, inicialmente, foi concebido em termos rígidos
e buscava evitar que o poder se tornasse absoluto. Ao longo da histórica do
constitucionalismo, esse princípio sofreu diversas releituras, sendo que, no Estado
Democrático de Direito, a sua releitura deve ser feita em termos dos discursos postos à
disposição de cada uma das funções estatais envolvidas (execução, legislação e
jurisdição).

Nesse sentido, apesar de muitos autores já terem apregoado a superação


desse princípio, em verdade, o Estado Democrático de Direito está a exigir apenas que
sua releitura se faça em termos argumentativos, ou seja, em termos dos discursos que
podem ser utilizados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário, a fim de que a confusão
de discursos não leve novamente à concentração de poderes em um único órgão.

No entanto, a análise de diversos casos julgados do Supremo Tribunal


Federal[1], permite afirmar que a referida Corte Constitucional faz uma leitura axiológica
da Constituição Federal, em contraposição a uma leitura deontológica, pois, não
raramente, busca solucionar o caso com a aplicação do chamado princípio da
proporcionalidade, com uso de ponderação de bens, em sede de controle concentrado
de constitucionalidade.

A contraposição entre as leituras axiológicas e deontológicas da Constituição


para a solução de conflitos entre normas, pode ser atribuída à posição doutrinária de
dois autores contemporâneos: Robert Alexy e Ronald Dworkin. O primeiro concebe os
princípios como valores e defende que a solução de eventuais conflitos entre eles deve
ser feito mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, com uso de
ponderação de bens. Já Dworkin entende que o conflito aparente entre princípios é um
conflito entre normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o
reconhecimento do caráter deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto
e considerando o direito em sua integridade.

(Azevedo (2013, p. 16) tece severas críticas ao uso do princípio da proporcionalidade para solucionar casos
de conflitos entre normas, afirmando que: Se um juiz ou tribunal adota como método essa argumentação
orientada por valores mais desejáveis que outros, ele acaba por impor seus próprios valores à sociedade,
agindo numa espécie de tutela moral, como se sua condição de julgador lhe atribuísse um papel pedagógico
sobe os cidadãos.

Porém, esse mesmo autor adverte que o Estado Democrático de Direito tem como pressuposto
a existência de uma democracia pluralista e a convivência entre diferentes formas de vida sem que seja
necessário sopesar ou estabelecer prioridades entre os diversos valores culturais existentes na sociedade,
não cabendo ao juiz substituir os valores das partes pelos seus próprios ou por aquilo que acredita a melhor
forma de bem-viver (AZEVEDO, 2013, p. 17).

Ao utilizar o princípio da proporcionalidade para solucionar os conflitos entre normas, a nossa


Corte Constitucional, ao fim e ao cabo, termina por fazer uma certa confusão entre Política e Direito, entre
argumentos de política e argumentos de princípios de princípios, entre discursos de aplicação e discursos
de justificação, o que viola o princípio da separação de poderes, agora entendido em termos discursivos, e
compromete a concretização dos direitos fundamentais, sobretudo das minorias, na medida em que pode
negar validade a determinadas culturas, religiões ou preferências sexuais que não estejam de acordo com
os valores morais colocados pelo juiz no topo de sua escala de valores.)

Para não incorrer nesse mesmo erro, é necessário ter em mente a teoria de
Dworkin, a qual defende que o conflito aparente entre princípios é um conflito entre
normas jurídicas e, como tal, deve ser resolvido mediante o reconhecimento do caráter
deontológico dos princípios, tendo em vista o caso concreto e considerando o direito em
sua integridade, como já mencionado acima.

Assim, quando o caso envolver a concretização de direitos fundamentais, tanto


o Poder Judiciário quanto o Poder Executivo podem legitimamente se valer dos
chamados argumentos de princípio ou discursos de aplicação para reconhecer o direito
fundamental reivindicado, ainda que esse direito não esteja totalmente delineado e
definido, seja no texto constitucional seja na legislação infraconstitucional, sem que isso
configure violação ao princípio da separação de poderes. .

Na solução do caso veiculado no MI 708/DF[4](direito de greve do servidor


público), por exemplo, o Poder Judiciário poderia legitimamente se valer da
argumentação acima exposta para reconhecer o direito de greve aos servidores
públicos, porquanto, por se tratar de um direito fundamental, cuja força normativa é
reconhecida pela própria Constituição Federal, o reconhecimento desse direito estaria
no âmbito da aplicação do direito e não no âmbito da legislação, portanto, um argumento
de princípio e não um argumento de política.

Em conclusão, os conceitos de integridade do Direito e da única resposta


correta de Dworkin levam à afirmação de que, no atual estágio do constitucionalismo,
não se concebe possa ainda se falar em “lacunas do ordenamento jurídico” que
impeçam a concretização de direitos fundamentais, uma vez que os princípios
constitucionais, embora sejam abertos e indeterminados, são, porém, passíveis de
serem densificados nas situações concretas de aplicação, segundo a sua
adequabilidade à unicidade e irrepetibilidade das características do caso concreto,
sendo apenas exigido que o direito seja interpretado levando-se em conta todos os
princípios que estão na base da comunidade política. E a tarefa de concretização dos
direitos fundamentais, base moral da comunidade de princípios, não é incumbência
apenas do Poder Legislativo, mas também do Poder Judiciário e do Poder Executivo.

REFERÊNCIAS:

AZEVEDO, Damião Alves de. Ao encontro dos princípios: crítica à proporcionalidade como solução aos
casos de conflito aparente de normas jurídicas. 2008.

CARVALHO NETO, Menelick de. Público e Privado na Perspectiva Constitucional Contemporânea.

____________. Lutas por reconhecimento e a cláusula de abertura da Constituição.

__________. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. In:


CATTONI, Marcelo (Coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 25-44.

DWORKIN, Ronald. As ambições do direito para si próprio. Traduzido por Emílio Peluso Neder Meyer e
Alonso Reis Siqueira Freire. 1984.

HABERMAS, Jürgem. FATICIDADE E VALIDADE: Uma introdução à teoria discursiva do Direito e do Estado
Democrático de Direito. 2003. Tradução: Menelick de Carvalho Netto..

SCOTTI, Guilherme. Teorias jurídicas positivistas.

STF, ADI 855 MC/PR-Paraná, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ
de 01-10-1993, p. 71.

STF, ADC 9/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de
23-04-1993, p. 06.

STF, MI 708/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25/10/2007, Tribunal Pleno, DJE
de 30-10-2008, p. 207.

NOTAS

[1]Apenas a título de exemplo, cite-se o julgamento da ADI 855 MC/PR-Paraná, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, ocorrido em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ de 01-10-1993, p. 71 e o julgamento da ADC 9/DF- Distrito Federal,
Rel. Min. Ellen Gracie, ocorrido em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de 23-04-1993, p. 06. [2]STF, ADI 855 MC/PR-Paraná,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 01/07/1993, Tribunal Pleno, DJ de 01-10-1993, p. 71.[3]STF, ADC 9/DF-
Distrito Federal, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 13/12/2001, Tribunal Pleno, DJ de 23-04-1993, p. 06.[4]STF, MI
708/DF- Distrito Federal, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25/10/2007, Tribunal Pleno, DJE de 30-10-2008, p.
207.

Autor: Jose Domingos Rodrigues Lopes, Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Pós-Graduado em
Direito Público pela Universidade de Brasília - UnB. Procurador Federal (PGF/AGU) atuante no STJ e STF. In: jus.com.br

Você também pode gostar