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ISEKAI: DE OU

Aventureiros
do mundo moderno
indo parar em... Arton!
UTRO MUNDO

por Alexandre Lancaster


arte por Diego Sá
A dmito: tenho certa irritação com a
popularização do termo nipônico
isekai. Se refere a um clichê clássico da
série? E nem falamos do exemplo mais óbvio — o velho
desenho Caverna do Dragão (1983). Acho que vocês
pegaram o ponto.
fantasia — aquele no qual um ou mais Independente de qualquer opinião própria, o fato é:
personagens de nosso mundo, dos dias isekais se tornaram populares e a ideia de alguém como
nós mesmos (talvez nós mesmos, sem intermediários),
de hoje, acaba magicamente parando em
transportado para um mundo de fantasia e vivendo gran-
um mundo ou época distante. des aventuras sempre teve apelo — até me espanto da
A bem da verdade, é um recurso mais voltado à maioria dos RPGs de fantasia não trabalhar mais essa
identificação e clareza: é mais fácil nos projetarmos em possibilidade. Não há nem sinal de saturação no hori-
alguém como nós do que no habitante de um mundo zonte: no site Shosetsuka ni Naro, especializado em light
completamente desconhecido — e como o personagem novels produzidas por seus usuários (Overlord, The Rising
é um estranho em uma terra estranha, fará perguntas e of the Shield Hero e Konosuba começaram suas trajetó-
receberá explicações o tempo todo. Não é preciso assu- rias por lá), há mais de 100.000 romances isekai — e
mir informações de conhecimento comum em seu caso. o descontrole é grande a ponto de alguns concursos de
Nesse sentido, ter como protagonista um “náufrago de literatura, no Japão, vetarem o gênero. Mas não adianta:
outro mundo” é extremamente conveniente. enquanto houver procura, haverá oferta.
Então, por que não trabalhar com adolescentes
arremessados em Arton, com as lembranças e todo um
histórico em nosso mundo? Bem, estamos aqui para isso
Começando do zero
mesmo! Vamos preparar todo o terreno para sua campa- Em geral, há uma diferença concreta entre os dois
nha de pessoas comuns arrastados misteriosamente para tipos de “náufragos dimensionais” do gênero. Quando
um mundo de fantasia e… Ei, mas por que a irritação? se trata de uma criança ou adolescente, ele costuma
saber um pouco sobre várias coisas — mas nunca ser um
Porque isso me parece algo… otaku demais para especialista verdadeiro em nada. Estes conhecimentos
algo talvez tão antigo quanto a própria literatura fan- (às vezes inúteis) tendem a ganhar utilidades inusitadas
tástica: por essa definição, Um Ianque na Corte do Rei em um novo contexto: o garoto viciado em videogames
Arthur, de Mark Twain (1889), O Mágico de Oz, pode empregar um tipo de visão estratégica contra seus
de L. Frank Baum (1900) e O Leão, A Feiticeira e o inimigos que ninguém realmente poderia ter neste mundo,
Guarda-Roupa, das Crônicas de Narnia de C. S. Lewis por exemplo.
(1950) são isekais.
Isso não se aplica só aos combates: no anime My Next
Mesmo antes do termo ser cunhado, isso já existia na Life as a Villainess: All Routes Lead to Doom!, a protago-
animação e nos quadrinhos japoneses — basta lembrar do nista reencarna como uma vilã de otome games (simula-
interminável Ouke no Monshou de Chieko Hosokawa, dores de romance para meninas). Como os destinos para
(desde 1976 até hoje) ou da série noventista Anatolia Story, personagens assim são inevitavelmente trágicos, cabe a
de Chie Shinohara (1995). A primeira série a misturar ela usar seu conhecimento e estratégia para escapar do
robôs gigantes e fantasia, Aura Battler Dumbine (1984) pior… e isso em uma dinâmica completamente social,
também se aplica nessa categoria e é muito lembrada no aonde nenhum soco é dado!
Japão, embora o ocidente tenha, como lembrança mais
Quando se trata de um adulto, a coisa muda. Ele tem
forte, Guerreiras Mágicas de Rayearth (1993) e Visions of a seu favor uma vantagem tecnológica e a usa para se
Escaflowne (1996) ao falarmos dessa combinação. destacar de forma transformadora em meio à sociedade
Alguém lembra do desenho animado Shazzan, da — como o protagonista no citado livro de Mark Twain.
Hanna Barbera (1967), aonde um casal de irmãos encon- No mangá isekai Exterminator, de Hanabokuro e Keiji
tra um par de anéis e, ao encadeá-los, são jogados em Asakawa, um exterminador de pragas é jogado em um
um mundo de fantasia “das Mil e uma Noites”, em que mundo de fantasia e utiliza seus talentos para acabar com
ambos passam a ser protegidos pelo gênio que batiza a monstros e ameaças de forma pragmática e mecânica.

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Eventualmente isso gera desconfiança e atritos: seus atos
industrializados, metódicos, frios e altamente eficientes
Rolagens de atributos
tendem a desvalorizar os heróis com espadas na mão… Antes de tudo, atributos de um personagem isekai são
gerados com uma rolagem de 5d4 menos o menor, em
Dentro desse contexto, seria tentador criar classes
vez do normal (4d6 menos o menor). Os resultados mé-
contemporâneas para os protagonistas e seguir as
dios serão relativamente mais baixos, o que faz sentido,
regras normais, com sua evolução sendo interrompida
já que estamos falando de pessoas comuns. Também não
para a inclusão de uma nova classe. Mas seria algo
teremos valores iniciais 17 ou 18, que são mais adequa-
desnecessariamente complicado para um personagem
dos a heróis, de qualquer maneira. Porém, pelo outro
como este, especialmente quando isso faria da maior
lado, teremos chances mais baixas de valores muito ruins,
parte de suas capacidades inútil em um mundo de nível
como 3 (impossível), 4, 5 ou 6. Isso também faz sentido
tecnológico medieval. Por outro lado, esse desamparo
para pessoas vindas do nosso mundo.
inicial pode se tornar um trunfo muito interessante para
um personagem.
Um garoto hacker transportado para Arton se veria Nível zero
sem computadores, mas seus talentos “fora de seu tempo” Essa mudança é ainda mais drástica. Personagens
poderiam fazer dele um especialista em quebrar códigos isekai começam sem uma classe de personagem. As
matemáticos, por exemplo. únicas habilidades que eles possuem são aquelas forne-
Para construir personagens isekai em Tormenta20, va- cidas pela raça (humano) e pela origem (construa uma
mos realizar algumas mudanças na construção de ficha. coerente; precisa ser aprovada pelo mestre).

Visions of Scaflowne

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Os pontos de vida, pontos de mana, perícias iniciais Investigação (Sab): os métodos de seguir pistas e in-
e proficiências de um personagem nível zero são defi- vestigar casos misteriosos podem fazer a diferença nesse
nidos pelo seu tipo de criatura. Humanos são do tipo mundo!
humanoide, o que significa que começam com 2 PV (+ Luta (For ou Des): isso pode ser um diferencial
mod. Con), 1 PM, 2 perícias e nenhuma proficiência. imenso para se ser respeitado em terra estranha — “que
Dureza, não? Mas lembre-se de que você ainda tem os técnicas de combate são essas? Isso é tamuraniano?” —
dois benefícios por ser humano (duas perícias, ou uma especialmente se pensarmos que muitos jovens e adultos
perícia e um poder) e os dois benefícios de origem. frequentam academias de combate em nosso mundo…
A vida de um isekai é dura, mas possui pelo menos Matemática (Int): pode não parecer, mas esse é o
uma vantagem. Todo isekai possui um terceiro benefício tipo de conhecimento mais útil do que se imagina em um
de origem que diz respeito especificamente ao fato dele mundo com magia…
vir do mundo moderno. Esse terceiro benefício reflete o
fato de isekais serem figuras transformadoras do mundo Música (Int): isso pode ser interessante: qual será
ao serem mudados de contexto. Esse benefício pode in- a reação de um Artoniano à… guitarra elétrica? Basta
clusive ser algo normalmente fraco ou inútil na Terra, mas apenas encontrar uma forma de fazê-la funcionar!
terá efeito concreto em Arton — ou qualquer que seja o Medicina (Sab): em um mundo aonde as pessoas de-
mundo de fantasia no qual ele for parar. pendem de magia para tudo, talvez seja uma vantagem
A seguir está uma lista de perícias que podem ser este imensa saber como fazê-lo sem precisar dela…
benefício. O jogador ou o mestre podem inventar outros! Pontaria (Des): alguém pratica em ambiente espor-
Atletismo (For): isso se aplica ao atleta escolar, mas tivo o uso de armas como, digamos, o arco e flecha ou
por outro lado pode ser apenas fruto das aulas de edu- o tiro… e agora encontrou um contexto perfeito para
cação física… usá-los!

Ciência (Int): o personagem possui conhecimentos Video Games (Des): aparenta ser inútil em um pri-
científicos. Essa perícia pode substituir Conhecimento, meiro momento, mas quem assiste animes isekai vê que
Ofício e outras perícias de acordo com o mestre. muitas vezes é o conhecimento tático e estratégico basea-
do neles quem garante a sobrevivência e ascensão dos
Computação (Int): potencialmente inútil, mas... Tal- personagens.
vez o personagem encontre o que para os artonianos
é um artefato exótico que ninguém entende e consiga Além do mais, você pode conceber uma habilidade
operá-lo para fins incríveis. Ora, se personagens fizeram interessante e própria entre os benefícios de sua origem:
a viagem, porque uma máquina não poderia fazê-la? uma garota cujo maior talento era jogar queimada nas
quadras do colégio e que tenha trazido uma bola de
Conhecimento Geral (Int): talvez esse amontoado couro pode ter uma arma muito inesperada a seu favor
de pequenas informações, meras curiosidades em seu neste novo mundo… mesmo que soe exagerado demais.
mundo, possam ser fundamentais.
Quando um isekai vence sua primeira aventura, ele
Cozinhar (Sab): seus pratos exóticos (para o padrão escolhe uma classe e sobe para o primeiro nível dela.
desse mundo) podem ser um sucesso… ou um desastre Quando isso acontece, você ganha o “resto” dos seus
para o gosto dos artonianos. benefícios. Por exemplo, se virar um guerreiro ganha
Dançar (Des): isso era legal para se divertir, mas 18 pontos de vida (os 20 PV habituais de um guerreiro
aqui funciona da mesma forma? menos os 2 que você já possui). O mesmo acontece com
Dirigir (Des): aparentemente, inútil em um mundo os PM e as perícias.
sem carros, mas veja “Computação”, acima. Dependendo da idade do personagem, pode ser in-
Engenharia (Int): um personagem com conhecimen- teressante acrescentar as modificações do artigo Força,
tos de engenharia (mecânica, elétrica, química, civil…) Jovem! (na seção Caverna do Saber da DB 153). Neste
pode ser capaz de criar engenhocas exóticas — pelo caso, uma criança terá direito a um benefício vindo de
menos para o padrão artoniano! nosso mundo e um adolescente, dois.

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“Eu tenho horror a baratas!” Valentina é uma garota gótica fatalista e na hora H,
o grupo precisa atravessar uma ponte horripilantemente
O ideal neste nível zero é explorar um momento ini- insegura sobre um rio coberto de monstros aquáticos
cial de desnorteamento e permitir a seus personagens devoradores de humanos. Ela precisa de um teste de
encontrar um item ou arma conveniente para ajudá-los a Vontade para não começar a gritar: “não adianta,
se manter vivos. No entanto, muito da graça desse tipo a ponte vai ceder e cairemos naquele rio e seremos
de personagens é o fato deles trazerem consigo falhas destruídos por aquelas criaturas! Morreremos esqueci-
e neuroses relativamente inofensivas em um mundo de dos, sem tumbas, deixando nossos ossos no fundo do
nível tecnológico mais alto e com certa segurança — oceano! Nossos pais jamais saberão de nosso destino e
mas potencialmente problemáticas e, dependendo das colocarão um retrato na sala, para onde todos olharão
circunstâncias, até letais em um mundo de fantasia! na sala de jantar, e…”
Nosso grupo de jogo tem cinco personagens: Enzo, O moral de vocês vai pelo ralo! Agora todos farão
Tiago, Cauã, Igor e Valentina. Eles nem se conheciam testes de vontade — caso contrário a Destreza de todos
direito — circulavam nos corredores do mesmo colégio, — necessária para essa tarefa — será afetada por essa
nada além disso — mas agora precisam sobreviver desde desgraçada urubuzenta.
que foram parar nesse mundo maluco. Tem ideia agora de como essa pequena tabela pode
Cauã, apesar de bancar o machão, tem medo de ser mortal para um jogador ou seus companheiros?
barata e de outras coisas nojentas. Então,
quando está em uma masmorra, se depara 3d10 Problema 3d10 Problema
com… as tais outras coisas nojentas, só que 03 Role duas vezes 17 Falta de confiança
com dois metros de altura! O que ele faz? 04 Negação (role de novo*) 18 Nervosismo
Entra em pânico, podendo sair dali correndo 05 Inconveniente 19 Destruidor de reputação
e deixar os colegas para trás? Fica travado 06 Nojentinho (“eu não vou 20 RPGista entusiasmado
incapaz de uma ação? Começar a chorar? me sujar aí!”) demais
Por isso sugerimos ao seu personagem 07 Glutão (penalidade após 21 Fobia (escolha seu tipo
rolar 3D10 na tabela mais abaixo. Esses pro- comer)
blemas poderão (e deverão!) ser usados pelo 08 Paranóico (“Estão 22 Laço inconveniente (“Mas e
mestre contra você em jogo! Mesmo os mais tramando contra nós!”) a Uni?”)
inofensivos terão consequências complicadas: 09 Miopia/hipermetropia** 23 Tagarela
um “RPGista entusiasmado”, por exemplo, 10 Problematizador de clichês 24 Cabeça vazia, oficina do
tende a dar tudo como certo de acordo com coisa-ruim…
os eventos típicos na mesa. Isso pode baixar 11 Tosse compulsiva 25 Mentiroso Compulsivo
a guarda de todo mundo, afrouxando a aten- 12 Aparência Repelente 26 Ganancioso (“pegar essa
ção dos personagens (penalidades?), tendo jóia é uma boa”)
consequências… desastrosas. 13 Dorminhoco 27 Babão (o sexo que lhe atrai
vira sua cabeça)
De resto, a ideia é que os jogadores não
possam fugir a isso: os problemas se dividem 14 Distraído (redutor em 28 Asssustadiço (grita por
Vontade) qualquer surpresa)
entre aqueles fora do seu controle (o mestre
15 Fatalista (acaba com o 29 Intolerância alimentar ou
pode exigir um teste difícil do atributo corres-
moral do grupo) alergia
pondente) e aqueles dependentes de gatilhos
16 Sonâmbulo 30 Nada de errado, ufa!
colocados pelo mestre. Nesse caso, se o
jogador não encampá-los quando o gatilho *Você nega para si mesmo ter — ou finge não ter — um problema
determinado por uma segunda rolagem.
vier, será penalizado em experiência — e
especialmente nos primeiros níveis, isso pode **Role 1d. Par: Míope. Ímpar: Hipermétrope. Se esse resultado vier após
ser uma perda imensa… um 4 na tabela, você se nega a usar óculos, e encarará as consequências.

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Sword Art Online

O cara com aparência repelente pode gerar uma rea- uma abordagem sandbox para, através de suas esco-
ção negativa de alguém (em uma taverna, por exemplo, lhas, definir quais serão as classes por eles escolhidas
iniciando um potencial quebra-quebra); o problematiza- no futuro. Por exemplo…
dor de clichês (ao contestar um elemento do cenário com Igor sempre teve fobia de altura desde um trote com
a lógica do NOSSO mundo, onde este não se aplica a os colegas. De repente ele encontra uma pedra mágica e
ninguém) pode justamente atrair para o grupo o ódio do ela o faz… levitar. Isso o deixa em pânico, mas também
próprio segmento ao qual ele via como vítima; o óculos é muito útil para o grupo, já que os carrega também — e
pode cair do rosto durante um combate (e reze para ele não só ele é capaz de fazer isso. Para facilitar a vida, ele
quebrar. Por outro lado isso pode servir de desculpa para encaixa a pedra em um cajado. Assim, quando conse-
uma jornada longa até, por exemplo, a cidade flutuante gue reunir seus 10XP, ele decide se tornar um arcanista
de Vectora, aonde eles podem reparar seus óculos)… de Nível 1. Mas ainda entra em pânico quando aciona a
magia de levitação e geralmente, como “piloto”, a hora

Evoluindo seus personagens


da descida é desastrosa…
Quem irá garantir isso são armas ou itens mágicos
Um dos mais importantes aspectos desse nível zero escolhidos pelo caminho. Seus personagens ainda NÃO
é justamente o processo que os levará a escolher uma são guerreiros, arcanistas ou clérigos por causa disso.
classe — com 10 XP, eles chegarão ao nível 1. Eles Eles apenas tem um instrumento útil para mantê-los vivos
não têm perspectivas ou planos, só querem sobreviver enquanto não alcançam um domínio completo — e com
— e de repente, precisam encontrar algum recurso útil ele, chegarão ao primeiro nível da classe mais adequada
nesse sentido, ajudando-o a contornar suas limitações. às suas necessidades. Aqui precisamos pegar um pouco
Talvez seja interessante mergulhar os jogadores em no pé do mestre: a intenção não é matar os personagens,

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como acontece em alguns RPGs com nível zero. A ideia quando não há uma morte trágica, o personagem não
aqui é estabelecer um processo de transição mais natu- costuma sentir muita vontade de voltar: em How NOT To
ral para esses personagens, de forma lógica com suas Summon A Demon Lord, o protagonista é um jogador de
capacidades pregressas (vocês realmente não querem videogame solitário com várias ansiedades sociais (e um
receber suas classes aleatoriamente como se estivessem rancor por casais, descontados através de seu personagem
na abertura de Caverna do Dragão, querem?). em um MMO). Mas ele é convocado por uma magia e se
Ah, sim: os personagens podem se livrar de seus pro- torna o seu personagem em um mundo real de fantasia
blemas e isso faz parte da sua evolução. Isso pode e deve — Lorde Diablo, arrogante, poderoso e desejado por
ser feito narrativamente, mas eles só poderão fazê-lo ao mulheres… mas, por dentro, ainda o mesmo jogador inse-
guro! Sentiram a mudança de status em ambos os casos?
custo de pontos necessário para sua subida do nível aon-
de estão — e não antes do quinto nível. Isso quer dizer Para um RPG de fantasia medieval, em que as po-
que um personagem sonâmbulo precisará escolher entre tencialidades tendem a ser abertas, talvez essa seja a
se livrar de seu sonambulismo e sua subida ao próximo melhor solução. Mas, pessoalmente, vejo a abordagem
nível, precisando reunir todo esse XP de novo. Ninguém ocidental — como a vemos em um Caverna do Dragão
disse que superar os próprios problemas seria fácil… — mais interessante.
Os personagens ganham um foco principal (voltar para

De um mundo para outro casa), têm saudades dos entes queridos (talvez passem
a valorizá-los), têm inseguranças e pouco se interessam
Um elemento muito presente na maioria dos isekai em ser os maiores deste mundo em geral (não por acaso,
atuais, é o fato dos personagens morrerem em nosso no desenho citado, várias pistas indicavam que quando
mundo, cortando consigo todos os laços com suas anti- eles voltassem, retornariam para suas vidas normais na
gas vidas e renascendo em um mundo de fantasia, sem exata noite em que partiram — os pais nem perceberiam
culpas, sem dramas, sem necessidade de retorno a seus a sua ausência). Mas em compensação, aprendem a
antigos lares (para este mundo, eles morreram — e apa- superar suas deficiências, ganham em companheirismo
rentemente poucos irão sentir sua falta). Como a morte e encontram amizade verdadeira (lembrem-se das vezes
mais óbvia no gênero é o atropelamento por caminhões, em que todos sacrificam sua chance de voltar para casa
este já virou um personagem-meme — digitem “Truck porque UM seria deixado para trás). Por outro lado, os
-Kun” no google e divirtam-se. laços formados nesse mundo adicionam uma camada de
incerteza interessante — um personagem se apaixona
Isso é apenas um recurso narrativo para remover
por um lindo elfo e é correspondido. Vale a pena renun-
qualquer empecilho que os faça querer voltar para casa
ciar a isso para retornar ao lar?
(o engajamento por identificação já foi feito de qualquer
forma), mas cá entre nós: há algo sociologicamente preo- E por outro lado, vale a pena abraçar a chance sa-
cupante por trás da popularidade desse recurso. bendo que, a qualquer momento, você pode ser puxado
de volta para seu mundo?
Isso acontece porque o sistema de trabalho japo-
nês é particularmente opressor — e quanto maiores as “Ah, mas o legal é chegar ao nível épico”… quem os
pressões, maior a necessidade de entretenimento. Não impede, ora bolas? A campanha só termina quando o
quero entrar em um tratado sobre o assunto e aqui não é mestre os jogadores decidirem!
lugar para isso… mas reparem no perfil, nos animes, das Talvez a reta final se dê no vigésimo nível, aonde os
vítimas transformadas em heróis: muitas vezes são pes- personagens mergulham em sua jornada definitiva para
soas deslocadas, para quem suas pequenas habilidades retornar ao seu mundo! Ao chegarem de volta, nada será
particulares de nada serviam à sociedade “séria”. mais como era — vocês não serão os mesmos de sua par-
No citado My Next Life as a Villainess, a protagonista tida — mas terá valido a pena. Vocês terão personagens
passava seu tempo solitária com seus otome games em um para serem lembrados.
quarto escuro — para ressuscitar como uma bonita nobre E voltar para a vida com histórias para serem contadas
e passar a ser disputada por um monte de garotos. Mesmo não é o que todos fazemos após o fim de cada sessão?

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