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Teatro Antropológico e Popular:

Uma Pesquisa-Caminho Experimental

Inês Bento/ João Carneiro / Letícia Pinheiro

Imagem Fonte: Diário do Pesquisador

Mestrado Teatro e Comunidade


Escola Superior de Teatro e Cinema
Novembro 2021
Teatro Antropológico e Popular: Uma Pesquisa-Caminho
Experimental

No âmbito de uma pesquisa sobre formas e manifestações em Teatro e Comunidade, no


espectro particular do Teatro Antropológico e Teatro Popular, para a Cadeira de Teatro e
Comunidade do Mestrado de Teatro e Comunidade da Escola Superior de Teatro e Cinema,
iniciámos uma busca que foi estruturada num âmbito individual, num primeiro momento, e
depois partilhada, discutida e aumentada por este grupo de estudantes, de que este trabalho-
registo se apresenta como o resultado.

Iniciámos então um caminho que nos levou a parar em vários “apeadeiros” e a olhar em
volta, com um olhar mais demorado e atento, antes de apanharmos o próximo “comboio”
rumo a uma nova esquina ou lugar. É este caminho que vos convidamos, pois, a seguir
connosco, rumo a novos lugares ou pelo menos à possibilidade de novos lugares.

O ponto inicial desta viagem leva-nos aos primórdios dos tempos das vivências humanas.
Num primeiro momento diremos que o campo de estudos do Teatro e Antropologia e as suas
derivações Populares é o campo de ação do Teatro e Comunidade mais antigo na cronologia
temporal.

Falamos de um tempo em que o Homem descobre os seus primeiros impulsos de recriação do


real, um tempo em que o homem descobre (ainda que de forma não consciente) que esse
impulso é baseado na necessidade da criação de um lugar seguro que lhe proporcione um
entendimento e tentativa de controlo da realidade e dos fenómenos envolventes, bem como
das manifestações da natureza. Estamos no domínio ancestral dos rituais ligados às culturas
agrícolas, à festa, às celebrações das estações do ano e dos ciclos vitais, aos rituais de
compreensão e controlo dos fenómenos da natureza, dos ritos de passagem, a adoração aos
deuses, a adoração a Dionísio e todo o tipo de narrativas baseadas em lutas e diálogos entre
humanos e o divino, que os Gregos tão bem trabalharam no seu Teatro. Estamos, pois, aqui
num domínio que faz ligação ao sagrado e aproxima ao divino com recurso a uma ferramenta
fundamental: a arte nas suas representações pictóricas (de que as pinturas rupestres são um
bom exemplo) e performativas, onde o Teatro, a Dança, a Música e a Narrativa se constituem
como elementos a que o homem recorre para entender o real, para o recontar e o explicar aos
seus semelhantes, num lugar seguro.

Tal como Aristóteles nos dá pistas na sua Poética, que podemos considerar o primeiro grande
tratado sobre ficção, o Homem tem necessidade na representação, na recontação e
ressignificação. O mundo é um lugar demasiado confuso e perigoso e as histórias nascem
como tentativas de uma representação/apreensão segura do real.

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Teatro Antropológico e Popular: Uma Pesquisa-Caminho
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Elencamos, pois aqui, no conceito fundamental de Homoperformer de Victor Turner, que


olha para o ser humano como um ser performativo por natureza e excelência. O ser que usa a
arte para se expressar, entender o real, recontá-lo e encontrar nele o seu lugar, em comunhão
com os seus semelhantes.

Uma vez chegados a este “apeadeiro” do universo de Victor Turner, precisamos “sair do
comboio” e demorar-nos um pouco neste lugar.

Cruzámo-nos com o feliz encontro de Victor Turner com Richard Schechner. O primeiro,
um antropólogo muito ligado às questões do Ritual, do Sagrado e da Liminaridade e o
segundo, artista com raízes em Nova Iorque, diretor do The Performance Group, grupo
fundado em 1967 e que trabalhava o Teatro Experimental, e também da East Coast Artists
(1991). Os dois, Schechner e Turner, deram vida a um novo campo de estudos: O Teatro e
Antropologia.

Este encontro feliz, dá-se em Nova Iorque, antes de uma palestra de Clifford Geertz 1 e vai
fazer com que o Teatro de Schechner seja contagiado pela Antropologia de Turner e a
Antropologia de Turner seja influenciada pelos estudos da Performance de Schechner.

Ao ponto de Schechner ter criado o modelo do 8 deitado: Neste modelo o artista nova
iorquino apresenta-nos o sinal de Infinito como esquema visual para definir esta influência.
Diz-nos “Dramas Sociais afetam dramas estéticos e Dramas estéticos afetam dramas
sociais”. (DAWSEY, pp2) Este modelo volta depois a Turner que o enriquece, fazendo um
loop, numa espécie de sinal que poderíamos classificar de “Infinitamente Infinito”.

Outro dos pontos principais deste encontro é o ensaio “Pontos de Contacto entre o
pensamento Antropológico e Teatral”, que é o primeiro capítulo do livro “Between Theater
and Antropology” de Richard Shechner, obra que se constitui como um dos marcos dos
estudos da Performance. Nesta questão da Performance fala-se da audiência como
constitutiva do evento performático e questiona-se até que ponto a audiência, ou o público
não se constitui ele mesmo como Performer também. E daqui o interesse de Schechner por
Rituais, o que nos levou nesta pesquisa ao universo da Rua. Schechner experimentou muito o
Teatro de Rua e se pensarmos era na rua também que na ancestralidade encontrávamos a
festa, a celebração às divindades e aos fenómenos da natureza e do universo.

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Antropólogo Norte Americano (S. Francisco 1926-2006), fundador da Antropologia Hermenêutica.

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Deste modo a Rua levou-nos, nesta pesquisa, de novo à calçada Nova Iorquina. Mais
concretamente ao encontro do Bread Puppet Theater, um Teatro de Fantoches politicamente
controverso, ativo desde 1960. Este coletivo servia-se do Público e com ele criava a
performance e o seu sentido de comunidade. No final servia Pão, numa metáfora de que a
Arte é uma necessidade tão básica quanto o pão e a comida.

Uma noção que pode cruzar com as muitas manifestações performativas populares, onde
facilmente encontramos a comida associada às ações de homens e mulheres em festa. Tempo,
pois, para nos demorarmos em mais um “apeadeiro” desta nossa “viagem”: O campo das
Tradições Populares.

No vastíssimo leque de jogos tradicionais, praticados em Portugal, encontrámos um jogo


que se fazia em Trás-os-Montes e que consistia em enterrar uma galinha viva, só com a
cabeça de fora. Os jogadores deveriam ir dando com um pau na cabeça da Galinha.
Facilmente compreendemos esta prática comunitária como uma atividade que termina com os
jogadores, ou pelo menos uma família, sentados à mesa a degustar esta galinha.

Encontramos, pois, aqui a comida como gatilho para a performance, ao mesmo tempo que a
performance se manifesta também como ativadora desta necessidade básica, devolvendo-a à
comunidade.

Na verdade, na pesquisa ligada à tradição encontrámos registos muito diferenciados.

Uns, verdadeiras caixas do tempo, relatos pormenorizados de práticas artísticas e


comunitárias que certamente funcionam e irão continuar a funcionar como memória futura.
Registos únicos e de grande interesse artístico, etnográfico e antropológico. Outros registos
demonstram que a tradição não tem de ser uma coisa cristalizada no tempo, estando esta
também sujeita à transformação, condicionada pela evolução social e cultural.

Todos estes registos revelam-se, pois, da maior importância na preservação do nosso


património imaterial, e por isso também da nossa identidade coletiva.

Os Jogos Tradicionais são um ótimo exemplo de uma atividade comunitária da maior


importância. É aqui que se partilham emoções, palavrões, vitórias e derrotas. É nesta prática
que se criam amigos e é também aqui que se vêm matar as saudades.

Nas palavras do Presidente da Direcção da ADDLAP 2, Guilherme Almeida, no livro Na


Minha Rua... Jogos Tradicionais:
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Associação de Desenvolvimento Dão Lafões e Alto do Paiva

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“De um modo geral, os cidadãos têm uma atividade profissional cada vez mais sedentária e
absorvente, originando um menor contacto com a natureza, um défice de participação na
vida da comunidade, um desconhecimento das raízes, das tradições, dos usos e costumes da
sua terra e dos seus antepassados.” (…) “A grande variedade de Jogos Tradicionais aqui
retratada é uma autêntica mais-valia, permitindo, por um lado, a sua utilização como um
meio de desenvolvimento harmonioso e multicultural, e por outro como um fator facilitador
do intercâmbio entre diferentes gerações (netos, filhos, pais e avós). Possibilita, ainda, a
interação humana em diferentes ambientes, convívios, festas, atividades de lazer, desporto
ou turismo, contribuindo para uma maior sociabilidade e diminuição do sedentarismo e para
manter vivas atividades, jogos e brincadeiras herdadas e praticadas durante muitas
gerações.”

Dos Jogos Tradicionais para as Festas Populares, no nº1 Artes e Tradições de Barcelos, da
coleção Portugal – Escola e Comunidade, publicado em 1979, pela Terra Livre 3 deparamo-
nos com uma entrevista ao Sr. Cartola, realizada em 1978. Através desta conversa
conseguimos entrar na sua oficina e percebemos o processo da construção de um dos
elementos mais utilizados nas festas populares: Os Cabeçudos e os Gigantones.
Conta o Sr. Cartola: “Faz-se a armação de arame, entala-se com cartão e põe-se papel por
cima com cola. Depois dá-se um banho duma mistura de gesso e cola, para não aparecer o
papel. Depois pintam-se com uma mistura aguarrás, óleo de linhaça, secante e alvaiado.
Depois de secos, pintam-se com tintas de esmalte.”

Ao avançarmos até à página 51 somos confrontados com uma conversa que acontece em
1978 e que tem como interlocutor o Sr Manuel Bico. Este homem pertence a um grupo de
Zés-Pereira4 e narra-nos de forma pormenorizada a formação do grupo, os seus instrumentos
e características. Como particularidade não muito frequente neste tipo de documentos,
descreve-nos os cachets, pessoal e do grupo, o que nos permite realizar também uma análise
económica. Diz ele na página 52, “Nós «num» vamos p’ra festa por menos de três contos e
quinhentos por dia, comer e beber, buscar e trazer.”. E continua: “Quando comecei a
trabalhar ganhava quatro escudos por dia. Andava por estes montes com a caixa às costas e
a tocar.”

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Grupos de percussionistas, habitualmente homens, que se fazem acompanhar de caixas e bombos, numa tradição Minhota

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No nº6 Artes e Tradições de Aveiro 5, da mesma coleção, vamos encontrar uma entrevista ao
grupo Os Cardadores do Vale de Ílhavo. Aqui ficamos a par de uma prática comunitária
extremamente enraizada, disciplinada, com regras e princípios estipulados pelos próprios.
“Não brigar com ninguém, não causar estragos, «cardar» sem romper as roupas, etc.”

“Estes homens antes do 25 de Abril foram algumas vezes perseguidos pela polícia política,
mas nunca deixaram de sair no Carnaval, ainda que muitas vezes em vésperas do Entrudo
lhes fossem destruídas as máscaras.”
Para além da construção e características dos fatos, que é descrita minuciosamente, temos a
oportunidade de perceber a importância social, cultural e a forma como se processa a
rotatividade nesta comunidade tradicionalmente masculina. Na verdade, nem poderia ser de
outra forma, pois esta também era e continua a ser uma maneira dos rapazes se aproximarem
das raparigas. Podem ser vistos na internet, vários vídeos desta prática Carnavalesca6.

Numa edição da Câmara Municipal da Guarda, de maio de 2008, Julgamento e Morte do


Galo do Entrudo, de António Godinho e Rui Isidro podemos observar e tomar nota de como
é possível manter uma celebração comunitária tradicional, viva e atual.
Trata-se de um espetáculo do Teatro Municipal da Guarda, que pretendeu oferecer à cidade
um Carnaval de Rua. “Para tal, utilizou-se a temática do Julgamento do Galo, que é uma
tradição de diversas localidades portuguesas, nomeadamente do concelho da Guarda,
tratando-se de um ritual expiatório dos males que acontecem às comunidades. Na adaptação
que serviu de base a esta produção, ao galo são atribuídas as culpas de tudo o que de
negativo aconteceu durante o ano, sendo a sua imolação a metáfora de uma esperança
renovada.”
Foram feitas alterações dramatúrgicas com a encomenda de um texto atual que manteve a
estrutura tradicional. Foram convidados vários grupos de música e de teatro de outras regiões
portuguesas e de Espanha. Também tomamos conhecimento “de um extenso conjunto de
técnicos, que deram o seu melhor para que a cidade pudesse sair à rua e celebrar em grande
o Carnaval. A adesão da população foi entusiástica, tendo a imprensa local referido que
assistiram a esta produção entre cinco a sete mil pessoas.”

É precisamente aqui, neste ponto, que a Rua, a Festa, a Comunhão com as pessoas e os rituais
nos levam ao encontro da ideia da máscara, ao Carnaval, à antropomorfização dos maus

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https://www.youtube.com/watch?v=xQiPbDMyZy8

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espíritos. Neste ponto encontrámo-nos com o Carnaval da Ilha Terceira, nos Açores, que não
tem características de desfile, mas encontra nas danças e no Teatro um modelo híbrido,
considerado por alguns estudiosos locais como o maior festival de Teatro Popular do mundo.

Esta ideia levou-nos também ao Caretos de Podence e aos Caretos de Torre de Dona Chama,
em Mirandela, Bragança. Neste último caso falamos de uma celebração que acontece por
ocasião da Festa de Santo Estevão, realizada em dezembro, em que homens de mascaram de
Caretos. Esta festa é antecedida por um peditório em que estes homens mascarados tocam
caixas e bombos, ensinam os mais novos a tocar, partilham carnes, bacalhau, pão e vinho,
contam histórias de anos anteriores da festa e recolhem lenha para a Fogueira de Natal.

Esta noção da fogueira é também uma ideia muito poderosa, muito ligada ao círculo, à roda,
ao ritual e à narração de histórias, de homens e mulheres, reunidos na noite, dispostos em
círculo para ouvir contar histórias e expurgar os seus males, conectando-se com o divino e
nele se tornando, como os Gregos. Uma ideia muito ligada também aos Jumbai, nas noites
guineenses em que homens e mulheres se encontravam, ao luar, à volta de uma fogueira,
neste território africano para contar histórias, com intimidade, em comunidade. A própria
etimologia da palavra Jumbai remete-nos para a festa e para o encontro: JUN – Convívio/
BAI – Ir.

Sempre que o Homem se fecha em círculo para contar histórias, liga-se aos seus antepassados
ancestrais e convoca vários elementos: a fala, a imaginação, o real invisível, a chuva, o canto,
as memórias, os gestos, as adivinhas e o sagrado.

O Homem conta histórias desde sempre para ressignificar, para olhar melhor para aquilo que
já conhece, sob uma nova perspetiva, dotando-se, deste modo, de capacidades para viver
melhor. Dizer melhor, implica ter ouvido mais. Aprender pelo exemplo demora uma vida e
causa mazelas. Os Jumbai ajudam assim a aprender a andar no mundo de uma forma mais
eficaz e menos dolorosa. Como nos diz a sabedoria popular: “Embora só quando
atravessamos a floresta aprendemos verdadeiramente, já ajuda muito ter ouvido falar da
floresta”.

O contador assemelha-se aqui à figura quase do feiticeiro, do curandeiro, aquele que tem
acesso ao conhecimento, ou ligações com o divino, ligações estas que recaem em quem ouve
e com estes são partilhadas. Encontramos, pois aqui, um paralelo interessante com as palavras

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de Amir Haddad7 na conferência que deu no Festival virtual Latitude 40º 2021, “o ator, o
performer não cavalga o cavalo. Ele é o cavalo. A entidade é que cavalga o ator”.

Esta visão do contador, despojado de adereços e cenários, mas repleto de magia e sagrado
remete-nos também para o Teatro Sagrado de Antonin Artaud8 e também de Jerzi Grotowski,
este último tendo ido beber ensinamentos ao primeiro, criou o conceito de Teatro Pobre, no
sentido de um teatro que não necessita de distrações e grandes efeitos, ou cenários. Um
Teatro cru, que leva à eliminação de tudo o que é supérfluo e passível de esconder ou
bloquear a relação e comunhão sensível e natural com o público. Entre 1959 e 1968,
Grotowski experimentou, com o seu grupo, no seu teatro Laboratório, várias práticas do
sagrado. É na arte que Grotowski vê a possibilidade de se ser um investigador espiritual, uma
vez que o terreno da arte permaneceria como um espaço não submetido a correntes religiosas
ou de fé.

Grotowski fala-nos de um teatro que tenta eliminar resistências físicas aos processos
psíquicos, levando a um completo despojar do que há de mais íntimo, humano e sensível
dentro de si. A partir daqui o ator torna-se, tal como o contador, “arquetipal”, e fascina o
público, como o contador de histórias.

Entramos, pois, aqui no pleno terreno da tradição Oral, outro dos nossos importantes
“apeadeiros”. Os nossos passos caminhados na Rua levam-nos neste ponto ao encontro dos
Contos Tradicionais Portugueses e a Performatividade de quem conta leva-nos a Ana Sofia
Paiva, atriz, contadora de histórias e investigadora do IELT9 e também da Cooperativa
Memória Imaterial. Ana Sofia Paiva é recolectora de folclore poético e narrativo,
contribuindo ativa e entusiasticamente para os 1300 momentos de narrativas performativas
que fazem parte da Cooperativa Memória Imaterial, que permitem o estudo de modos de
expressão e transmissão de conhecimento, através da Narrativa do Tempo e do Gesto. É
incontornável neste ponto mencionar os Catálogos dos Contos Tradicionais Portugueses, nos
seus volumes I e II, da autoria de Isabel Cardigos e Jorge Correia, que, servindo-se do
trabalho de recoleção de investigadores e contadores como Ana Sofia Paiva ou António
Fontinha (considerado o primeiro contador profissional de histórias em Portugal) têm feito

7
Brasil, Minas Gerais, 1937 - Ator, Encenador, Professor e Teatrólogo que pesquisou desde os anos 70 uma disposição não convencional
da cena; desconstrução da dramaturgia; utilização aberta dos espaços cênicos; e interação entre atores e espectadores.
8
Marselha, 1896 – Paris, 1948 – Poeta, ator, escritor, dramaturgo, encenador autor de Teatro e o seu Duplo, um dos principais escritos de
Teatro do Século XX, que inspirou Jerzi Grotowski e Eugénio Barba
9
Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)

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um esforço de captação da memória coletiva através da classificação e ordenação dos


milhares de Contos Tradicionais Portugueses, (organizados e classificados em contos
maravilhosos, contos mágicos, contos realistas, contos jocosos, contos de animais, entre
outros) contribuindo nestes volumes para um acervo de memória, do simbólico e do coletivo,
de acesso democrático e de valor inclassificável.

No domínio da pesquisa dos Contos Tradicionais falamos muitas vezes, não em contadores
de histórias, mas em detentores de contos. Quem conta é o detentor daquela tradição, daquele
conto, que não é contado daquela forma por mais ninguém e que reflete a dimensão cultural,
social, económica, natural e mágica da comunidade em que se insere.

O detentor do conto, quando o conta, passa -o, como uma avó passa uma receita a uma neta,
como um segredo de família que se conta. O detentor escolhe bem a pessoa a quem vai
passar. Nada é feito de forma leviana nesta passagem, ou arriscaríamos até dizer, neste Rito
de Passagem. Poderíamos aqui facilmente imaginar o seguinte diálogo, por exemplo, de uma
avó para uma neta: “Passo-to a ti que o teu irmão não tem interesse nenhum e tu tens mais
juízo”. Quando o detentor passa o conto, ele está a passar um tesouro.

O que Isabel Cardigos e Jorge Correia fizeram foi, através de um método de recolha quase
arqueológico (ligado à Antropologia) compilar estes contos tradicionais portugueses, e suas
versões, que sem este trabalho se acabariam por perder nas gerações.

A Tradição Oral é recolhida na Rua e devolvida à Rua pelos muitos contadores de


histórias em vários festivais da área, como o Passa a Palavra em Serpa, o Palavras
Andarilhas, o Sete Falares na Galiza.

Neste contexto compete-nos também falar de um excelente exemplo de Arte Comunitária,


que engloba a narração oral, entre outras artes, representado pelo festival de música
portuguesa – Bons Sons na Aldeia de Cem Soldos, em Tomar. Um festival feito na Aldeia,
para a Aldeia (embora a ele cheguem pessoas de todo o país) e com a Aldeia. Ao contrário
dos festivais de música mainstream, não temos uma produtora de espetáculos a organizar o
festival. Temos aqui uma associação local, feita de gente da comunidade local, que tem a
missão de colocar o festival em pé. Um festival espelho da comunidade, embora faça pontes
com o exterior. Nele além de bandas portuguesas, temos Teatro, Jogos tradicionais e
Narração de histórias.

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Continuando a trilhar os caminhos da Rua, paramos agora na esquina do Teatro do


Vestido, da Joana Craveiro e o seu Teatro de reivindicação do espaço público, que não sendo
propriamente Teatro de Rua, no seu sentido puro e duro, temos aqui uma importante
dimensão de comunidade, de participação e de sentido de espaço comunitário, bem como de
democracia. Na Rua encontramos também o Joana Grupo de Teatro, um coletivo de teatro
para a infância que se assume como teatro de rua, que vai beber influências e referências ao
Bread Puppet Theatre, já anteriormente mencionado e ao Odin Teatret de Eugénio Barba.

Tempo, pois, para nos demorarmos um pouco nesta esquina, ou não estivéssemos a falar
de outra das Grandes referências da Antropologia Teatral e do fundador da International
School of Theater, em 1979. Barba, autor da lendária obra “A Canoa de Papel”, estudou “o
comportamento cénico pré-expressivo que se encontra na base de géneros teatrais, tradições
pessoais e coletivas. (…) Em uma situação de representação organizada, a presença física e
mental do ator modela-se segundo princípios diferentes dos da vida cotidiana.
A utilização extra cotidiana do corpo-mente é aquilo a que se chama “técnica”. (BARBA,
1994. p.23).

Barba fala do trabalho do ator em três níveis de organização, que referenciam um conteúdo
individual do ator e sua inter-relação com a sociedade, com a tradição cênica e com técnicas
transculturais que constituem o campo pré-expressivo. “A personalidade e sensibilidade do
ator, a tradição cénica e o contexto histórico-cultural através dos quais se manifesta a
personalidade do ator e por fim um terceiro nível em que a utilização do corpo-mente de
acordo com técnicas extra quotidianas baseadas em princípios que retornam transculturais.
Estes princípios que retornam constituem o que a Antropologia Teatral define como campo
de pré expressividade” (BARBA, 1994. p. 24-25)

Quer em Barba, quer nos contadores de historias, quer em Grotowisky ou em Artaud


encontramos esta dimensão extra quotidiana e transformadora do Teatro, que permite ao ator
transformar-se em outros, com relação intrínseca com a dimensão do sagrado e a
aproximação do humano ao divino e a sua encarnação. Aproximamo-nos do SE Mágico de
que Brecht nos falava e da dimensão ritualista que encontrámos no inicio deste trabalho, tão
bem estudada por Victor Turner.

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E já que estamos de volta a Turner, e por isso ao território pleno da Antropologia, não
podemos deixar de mencionar outras referências deste precioso olhar antropológico sobre o
Ritual e a Performance, no campo do Agir, do Atuar e do Exibir, como é o caso de Paula
Godinho, antropóloga, docente e investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, especializada em estudos que cruzam a Antropologia com a
Performance. Uma das suas áreas de estudo está dedicada ao Caretos de Podence. Neste
caminho encontramos também Teresa Fradique, investigadora desta área ligada à rede
CRIA10, Maria José Fazenda, docente na Escola Superior de Dança e Ricardo Seiça Salgado,
Antropólogo e Performer, também ligado à rede CRIA.

Tratam-se todos de investigadores com ensaios valiosos publicados na área da Antropologia e


Performance e com a preocupação central de explorar a liminaridade entre Teatro/Artes e
ações Performativas e Antropologia de que Schechner nos falava no início deste caminho,
que convosco partilhámos, e que nos leva à bifurcação deste caminho que percorremos – a
questão aberta, pelo formulada pelo próprio Schechner e que julgamos refletir e espelhar
muito bem este encontro de áreas: “Um corpo de diretor de Teatro, uma Máscara de
Antropólogo. Ou será o Inverso?”

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Centro em Rede de Investigação em Antropologia

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Bibliografia

BARBA, Eugénio – A Canoa de Papel: Tratado sobre Antropologia Teatral. Editora


Hucitec, São Paulo, 1994

BARBA, Eugénio (e Savarese, Nicola) – A Arte Secreta do Ator. Coleção Biblioteca


Teatral. Editora É Realizações, 2012

CARDIGOS, Isabel (e Correia, Jorge) – Catálogo dos Contos Tradicionais Portugueses


Vol I e II. Edições Afrontamento

CENTRO DE Estágio de Educação Visual da Escola Preparatória de Barcelos – Artes e


Tradições de Barcelos. Coleção Portugal Escola e Comunidade, Edições Terra Livre, 1979

CORDEIRO, Patrícia - Entre o Mistério e o Teatro Popular: A festa de Santo Estevão,


dos Rapazes e dos Caretos em Torre de Dona Chama, Revista Memória Rural, número 3,
pp 352-363, 2020

DAWSEY, Cowart John - Shechner, Teatro e Antropologia. Disponível em:


http://200.144.182.143/napedra/wp-content/uploads/2013/02/111104-Schechner-teatro-e-
antropologia.pdf

DUARTE, Luís Fagundes – O Carnaval da Ilha Terceira, Comunicação & Cultura, nº 10,
2010, pp87-100

FIGUEIREDO, Susana Pinto de – O Teatro de Rua em Portugal: das festas cíclicas às


propostas pós-modernas - aspetos teóricos, históricos, estéticos e socioeducativos. 2018

FORMANDOS Curso Técnicos de Animação Turística – Na Minha Rua… Jogos


Tradicionais. ADDLAP, Associação de Desenvolvimento Dão Lafões e Alto Paiva

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Teatro Antropológico e Popular: Uma Pesquisa-Caminho
Experimental

GODINHO, António (e Rui Isidro) – Julgamento e Morte do Galo do Entrudo. Coleção o


Fio da Memória, Câmara Municipal da Guarda, 2008

GODINHO, Paula. Agir, Atuar, Exibir. Coleção Cultura e Sociedade, nº12, 100 Luz editora,
2014

GROTOWSKI, Jerzy – Em Busca de Um Teatro Pobre. 4ª edição, 1992, Civilização


Brasileira

SCHECHNER, Richard. Pontos de Contacto entre o Pensamento Antropológico e


Teatral. Cadernos de campo, São Paulo, n20, p.1-360, 2011

TURNER, Victor – The Antropology of Performance. 1987.1988, New York, PAJ


Publications

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