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© Sociedade Portuguesa de Autores


e Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Título: O Terceiro Andar e Outras Peças


Autor: Jaime Rocha
Conceção gráfica: INCM
Capa: Elisabete Gomes | Silvadesigners
Revisão do texto: INCM
Tiragem: 500 exemplares
Edição: julho de 2014
ISBN: 978-972-27-2315-2
Depósito legal: 373 019/14
Edição n.º 1020045

Coedição Sociedade Portuguesa de Autores/Imprensa Nacional-Casa da Moeda

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Prefácio

O teatro com teatro ou o dramaturgo


emancipado

Na Poética de Aristóteles a poesia é imitação e a poesia


em ação é drama. Na sociedade ateniense do século v a. C. não
havia lugar para dúvidas: o teatro era o lugar privilegiado de
onde os cidadãos podiam observar os atores que cimentavam
o sentido e a pertença à polis pela reevocação dos mitos.
A realidade do texto e a do espetáculo coincidia. Ao longo dos
séculos todos os conceitos canónicos têm sido postos em causa:
o caráter mimético da literatura, a compartimentação distinta
dos géneros, a lei das três unidades, o teatro como espaço do
olhar, a capacidade identificativa do mito, o comportamento
modelar do herói, o seu poder de influenciar a cidade, a sepa­
ração entre ator e espetador. Para cada tempo o seu teatro.
Assistimos, progressivamente, à passagem do teatro para a
cidade à cidade sem teatro; do teatro na igreja ao teatro na
corte; do teatro para as elites aos teatros burguês e popular.
Lentamente, o teatro tem regressado à cidade cada vez mais
metamorfoseado por entendimentos plurais, incluindo as pro-
vocações produtivas designadas como Um Teatro Sem Teatro,
título escolhido para uma magnífica exposição apresentada no
Centro Cultural de Belém (), amostra eloquente das muitas
variáveis dos trajetos artísticos contemporâneos, em que as lin-

() Da exposição, que abriu as portas de 6 de novembro de 2007 a 17 de


fevereiro de 2008, ficou registo em livro (cf. AA.VV., Um Teatro Sem Teatro — Ca-
tálogo da Exposição Um Teatro Sem Teatro. Lisboa: Museu Coleção Berardo, Arte
Moderna e Contemporânea/Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2007).

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guagens transversais assumem uma centralidade que subverte
os limites da tradição, questionando­‑os e propondo novas ordens.
A lógica que afirma a existência e eficácia de um «teatro
sem teatro», ou seja, da possibilidade de todos os espaços se-
rem theatron e de todos os expectantes se tornarem atuantes,
admite e permite a convenção oposta, não raro julgada insufi-
ciente ou inoperante, a do «teatro com teatro». Os detratores
mais radicais chamar­‑lhe­‑ão «teatro museal». Os moderados
poderão interrogar como e se, numa sociedade que, ao longo
dos séculos, tem vindo progressivamente a expulsar o coro e o
mito, o teatro é ainda possível? E que teatro é ainda possível
num país em que a sua história tem sido marcada por uma
irregularidade quase congénita e, em geral, traçada no rasto
de histórias maiores, mais autónomas e capazes de refletirem
originalmente os sinais das mudanças e dos tempos?
Perguntas retóricas, ou ociosas, que obrigam o reconheci-
mento, a permanência e a coexistência de uma multiplicidade
de sentidos, estéticas e práticas, articulados no constante
jogo de espelhos — ou na relação dialética — que se estabe-
lece entre arte e sociedade. O nosso é o tempo no qual todos
os teatros, «com» ou «sem» ele, são possíveis. Porque, aliás,
talvez o presente seja o único tempo, por excelência, que
permite a convivência e confluência de todas as heranças,
inovações, apropriações ou reivindicações, graças à memória,
que talvez seja mais do que um lugar no cérebro, um estado
de passividade ou a faculdade de reprodução de pensamentos.
A conjugação desses elementos, permitindo atingir um estado
criativo iluminado pela consciência, poderia então dar lugar
a um autor emancipado, que não segue as modas porque
as conhece todas, não depende dos circuitos de distribuição
e circulação do objeto artístico porque a sua preocupação
maior reside no «fazer» e não no «ser visto», que limita o seu
autocentrismo porque considera o teatro uma arte coletiva,
mantendo­‑se mais generosamente aberto às soluções propostas
pelo grupo, em vez de impor surdamente sentidos fechados.
Estas aparentes divagações não são gratuitas e podem
ser aplicadas ao teatro de Jaime Rocha. Por certo, os longos

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anos dedicados ao jornalismo cultural, à experimentação e
cultivo de vários géneros literários, à exploração das poten-
cialidades de diferentes géneros teatrais, à permeabilidade às
sugestões vindas de outros criadores, ou o seu apagar­‑se para
que o texto dramático, objeto inacabado deixado ao dispor de
outros criadores que irão interagir com o mesmo tornando­‑o
em texto cénico e nele intervindo até se chegar ao espetáculo
propriamente dito. Para o dramaturgo o teatro é uma prática e
um espaço de atuação coletivo onde se tomam constantemente
opções, tentando conciliar os direitos das liberdades individuais.
Na metodologia, passa­‑se do trabalho solitário para o trabalho
solidário e de equipa; na prática, o conhecimento e a memória
do passado fornecem os instrumentos para a criação do objeto
artístico, que poderá ser discutido com argumentos fundamen-
tados na vivência e sensibilidade individuais. O dramaturgo
emancipado pratica a sua liberdade de expressão e reconhece o
mesmo direito aos criadores e fruidores com os quais se cruza
no espaço da representação ou da leitura. Como será este o caso.
Há cerca de 30 anos que Jaime Rocha escreve teatro, e fá­‑lo
tendo um pé no passado, outro no presente, e o olhar virado
para o futuro. Recupera, interpela ou revitaliza certas heranças,
que fornecem motivos e pressupostos para a interpretação do
presente, tentando­‑se vislumbrar as consequências que daí
poderão vir. Deste modo, o poeta, narrador e dramaturgo vai
bebendo a várias fontes consideradas inspiradoras para a criação
do seu «teatro com teatro», e entre as quais se contam, numa
fase inicial, certas inquietações do século xx, que vão desde o
absurdismo satírico e grotesco à análise psicológica impiedosa e
afinada, sendo estes os dois polos mais imediatamente detetáveis
na produção de estreia do autor, alicerçada nas experiências de
Strindberg, Lorca, Kafka, Artaud, Beckett, Ionesco e Arrabal, que
representam pontos de referência imprescindíveis da sua forma-
ção. Esses polos, porém, manifestam por vezes a tendência para
uma progressiva aproximação, especialmente na sua produção
intermédia. Teatro da desordem, ou da desordem metafórica,
seriam talvez definições apropriadas para esta dramaturgia, onde
se praticam diagnósticos e críticas aceradas das disfunções e

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colapsos do mundo contemporâneo. As peças consideradas a seguir,
e que integram este livro — Deuscão, O Televisor, O Construtor,
Quinze Minutos de Glória, O Terceiro Andar, Casa de Pássaros,
Transviriato e Homem Branco Homem Negro —, foram atempada
e oportunamente editadas pela Sociedade Portuguesa de Auto-
res (as primeiras duas numa edição da SPA, as remanescentes
em coedição com a D. Quixote), com exceção de Transviriato,
editada pelo comitente Trigo Limpo Teatro Acert de Tondela.
Deuscão (1985), texto de estreia no teatro por parte de Jaime
Rocha, leva o leitor para um ambiente circense, servindo­‑se
da alegoria tragicómica. As personagens são meio cães e meio
homens: a ani­malização para elas é uma condição, mas também
o traço distintivo dos seus relacionamentos. A sua organização
social é uma falsa democracia onde as várias bandeiras ideológi-
cas triunfam alternadamente sem produzir efeitos que resgatem
da animalidade. Os adultos consomem­‑se entre preconceitos,
cobardias e jogos de poder; pelo contrário, os jovens ainda
não abdicaram de um idealismo necessário apesar de ineficaz
e mantêm a esperança de uma mudança e a fé na dignidade
humana. Juntamente com esta sátira mordaz, que não deixa
saídas para homens e deuses, é editado o breve psicodrama
O Televisor (1986). Do macrocosmo de Deuscão, as tensões liga-
das às estratégias para a conquista ou para a preservação do
poder passam a dominar um microcosmo familiar composto por
um casal com um filho. A comunicação entre eles é inexistente.
As palavras estrangulam­‑se na garganta de quem tenta proferi­
‑las, pois não ultrapassam o seu emissor. O televisor aludido no
título, que a certa altura se torna no eixo à volta do qual gira
este núcleo autista, materializa a exasperação dos desequilíbrios:
ao excesso exterior de palavras e ruídos corresponde o excesso
de silêncio interior, ambos insuportáveis e letais.
Não é por acaso que O Construtor (1994), Quinze Minu-
tos de Glória (1996) e O Terceiro Andar (1997) tenham sido
reunidas no mesmo volume, editado em 1998. Estas peças,
de facto, constituem uma espécie de trilogia da aniquilação.
Os universos observados vão novamente do macro ao micro-
cosmo: o velho continente, a sociedade capitalista, o homem. Em

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O Construtor (1994, posteriormente traduzida para alemão), as
várias nações que outrora constituíam a miragem dos humildes,
desaparecem para deixar lugar a uma Europa construída com
ossos humanos e fruto de uma obra de saqueio coletivo. Quinze
Minutos de Glória (1996) alude ao mito faustiano da aspiração
à omnipotência, mas a reinvenção de um homem novo, produ-
zido pela montagem de partes dispersas e díspares, revela­‑se
destinada ao falhanço exatamente porque a presença da alma
é paradoxalmente o elemento monstruoso do ser humano. Em
O Terceiro Andar (1997, peça vencedora do Grande Prémio
de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores/Ministério
da Cultura em 1998) a procura de um funcionário exemplar,
idóneo para a conservação do sistema capitalista, exprime o
conceito de dissolução dos seres humanos e da sua reificação,
da sua transformação em meras engrenagens, permutáveis e
funcionais para a produção. O prédio em evacuação pode ser a
transposição da União Europeia, ou de outra empresa qualquer
esmagada pelo liberalismo económico, ou de qualquer outro
centro de poder que não quer largar a presa dos privilégios
adquiridos e dos lucros que daí advêm. Elemento subjacente
das três peças é a questão do poder nas suas várias nuances.
As personagens, mais do que protagonistas, parecem simples
figurantes de uma farsa grotesca, em luta pela sobrevivência
ou pela satisfação de necessidades fictícias e egoístas. O teatro,
portanto, é aqui entendido na sua função crítica, reflexiva e em-
penhada com o (e no) presente. A escrita deve assim ultrapassar
o otimismo fácil para poder denunciar a degradação do real.
Casa de Pássaros (1999, drama divulgado antes por uma
leitura dramática e a seguir levado à cena e publicado em
2001), mais intimista em relação às peças anteriores, evoca
já no título outras reminiscências, teatrais e cinematográficas,
especialmente Casa de Boneca de Ibsen e Os Pássaros de
Hitchcock. As personagens — a mãe, a filha, o namorado da
jovem, a criada — são todas prisioneiras de alguma obsessão
ou fragilidade pessoal, e pairam ameaçadoras umas sobre
as outras, como elementos catalisadores ou desencadeantes
de conflitos latentes. Nas intenções do autor, cada uma

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representa uma determinada espécie de ave: a mãe é uma
mistura de águia, ou seja de ave de rapina dominadora, e
de abutre, que se alimenta dos restos do passado; a criada
é um corvo sábio que assiste a acontecimentos já conhecidos,
personificando o destino; a rapariga é uma gaivota irascível
e instável, que escolhe a criada como mãe substituta; o rapaz
é um pintassilgo que não sabe medir a altura dos seus voos,
perdido e à mercê das predadoras, acabando por se tornar
cúmplice do jogo mistificatório engendrado pela mãe, que
projeta nele espetros do seu passado hipócrita e conformista.
A introspeção minuciosa da vivência das personagens, a investi-
gação psicológica coerente com os diálogos sabiamente alusivos
e a tensão crescente até à última cena, transmitem a Casa de
Pássaros uma inquietante intensidade dramática.
Redigida por encomenda e destinada a um grande espetá-
culo ao ar livre, a peça Transviriato (2001) reinventa a figura
de Viriato, pastor convertido em guerreiro pelas circunstân-
cias, ou seja, pela necessi­dade de oposição à invasão romana
da península ibérica. Entre história e mito, o autor opta por
uma transfiguração que estabelece laços com o presente, num
tempo em que a globalização uniformiza e ­nivela as diferenças.
Em contraste estridente e satírico com a tradição, no lugar
do herói em potência e ou exaltado nas narra­tivas lendárias,
a peça propõe «um guerreiro lusitano à forma da identidade
de um pobre país, um anti­‑herói que vai ressuscitando e so-
brevivendo, afinal como todos nós fazemos diariamente…» (),
e que tem como contraponto um duplo grotesco que escarnece
do poder, das normas e das virtudes guerreiras. Temas, estes,
sobre a qual se debruça também a produção mais recente.
Para não sermos condenados à derrota e sem direito a
resgate, como acontece com quase todos os seres solitários e
os pares perdidos ou aprisionados neste teatro, o cultivo da

() Estas palavras, do autor, foram retiradas da dedicatória ao livro que teve
a amabilidade de me oferecer.

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capacidade de lutar, amar e respeitar­‑se a si próprio, a fim
de o poder fazer também em relação ao outro, deve ser diário.
É o que se depreende mais uma vez pela dupla que surge em
Homem Branco Homem Negro (2006, vencedora do Grande
Prémio de Teatro Português 2004 instituído pela Sociedade
Portuguesa de Autores — Novo Grupo/Teatro Aberto), só que
desta vez, apesar de contemplar ainda e sempre as questões
ligadas ao poder, o conflito é de ordem cultural, racial e visa
alertar sobre os racismos que ainda sobrevivem numa sociedade
que se quer civilizada, mas que encobre a hostilidade e o ódio
pelas boas maneiras, expondo uma tolerância não raro falsa ou
reacionária, de que resulta uma ­integração frágil e provisória.
Integram a dramaturgia de Jaime Rocha duas coletâneas
editadas pela Relógio d’Água: O Jogo da Salamandra e outras
peças (A Descida para as ­ Cinzas, Detalhe à Porta do Inferno,
Seis Mulheres Sob Escuta e O Anexo) e Azzedine e outras peças
(Homens como Tu, Morcegos, O Mal de Ortov e No Ervilhal),
publicadas respetivamente em 2001 e 2009.
O Jogo da Salamandra (2001) concentra­‑se de novo no
intimismo, numa relação sentimental regida pelo calculismo
e por comportamentos patológicos. Os protagonistas são dois
vencidos: o escritor maduro, para quem não chega a frescura
e fisicalidade da mulher, e que renuncia à escrita e à vida;
a jovem jornalista, ambiciosa e desprovida de talento, que se
apossa do manuscrito dele para brilhar, nem que seja de luz
reflexa. Entre intimismo, absurdismo e crítica social, situam­
‑se Seis Mulheres Sob Escuta (1999, Prémio Eixo Atlântico de
Textos Dramáticos em 2000), A Descida para as Cinzas (2000)
e Detalhe à Porta do Inferno (2000), que contam histórias de
solidões, de frustrações e de impossibilidades, enquanto uma
atmosfera surreal e disforme caracteriza outra breve — e mais
antiga — comédia dramática, O Anexo (1995). A estranheza
das situações ou das personagens, bem como o inesperado e
o grotesco, permeiam também a outra coletânea mencionada.
Em Azzedine (2009) Jaime Rocha imagina o encontro impos-
sível entre Jean Genet, o seu filho adotivo Azzedine e as
personagens de Alta Vigilância, equacionando­‑se os sentidos

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do bem e do mal, da ordem e da transgressão, dissertando­‑se
sobre a impotência e a necessidade da arte, da luta por uma
vida e uma liberdade (im)possível. Homens como Tu (2004) é
mais uma reflexão sobre o poder e o fascínio pelo crime, quer
por parte de quem quebra a ordem estabelecida, quer por parte
de quem a pretende repor, insinuando­‑se a suspeita de que
as duas extremidades talvez se toquem. O espetáculo criado
pelo Útero foi bem expressivo do poder destruidor e invasivo
de uma violência que nada e ninguém deixa imunes. Na peça
Morcegos (2006), por outro lado, se a abordagem temática é
feita com traços ainda mais negros e alegóricos — apontando
para as ­duplas ­«exploradores» vs «explorados», a sua realização
em espetáculo pelo grupo O Bando exaltou aspetos plásticos
e rítmicos que bem poderiam reenviar para a estética do dra-
maturgo emancipado que, desapegado da sua criação, permitiu
aos outros criadores enveredar por caminhos insuspeitados.
O Mal de Ortov (2006) é a doença de mais uma personagem
disfuncional, que pretende castigar­‑se por um crime, verdadeiro
ou não, perante as luzes dos fotógrafos, que lhe irão dar,
eventualmente, alguns minutos de glória, isto é… de audiência.
Outra denúncia, em tons negros, da sociedade de massa, consta
na peça No Ervilhal (2006), onde as personagens acabam expul-
sas do seu espaço ou esmagadas pelo sistema consumista.
Encerram a produção do autor alguns títulos inéditos ()
e uma «trilogia da guerra», de que saíram os primeiros dois
textos: Agamémnon: A Herança das Sombras e Filoctetes:
A Condição do Guerreiro, ambas editadas em 2011 pela
Asso­ciação Portuguesa de Estudos Clássicos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, e a que se juntará um

() Trata­‑se das quatro peças que seguem: A Repartição (redigida e levada à cena
em 1989 por Almeno Gonçalves na Comuna), ­Depois da Noite o Quê? (redi­gida como
resposta à peça A Noite, de José Saramago, e montada em 1998 pelo Teatro de Carnide,
com ence­nação de Paulo Ferreira), O Desportivo da Sucata (peça de humor negro enco-
mendada pelo Teatro Nacional D. Maria II em 2011) e O Largo do Coveiro (encomen-
dada em 2012 por Ângela Pinto e ­Hélder Gamboa, diretores da Tenda Produções,
de Carnide, e com montagem prevista para 2013, com encenação de Jorge Fraga).

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Aquiles, em preparação. E foi este transitório ponto de che-
gada do dramaturgo que levou às considerações de abertura
deste prefácio: qual é o sentido que os mitos podem ainda
ter no nosso tempo, nas nossas vidas, no mundo e no teatro
atual? José Ribeiro Ferreira conclui o seu informado prefácio
à reescrita do texto sofocleano afirmando que «Jaime Rocha,
ao retomar o mito de Filoctetes, reelabora­‑o, dá­‑lhe conteúdos
novos; revigora valores e ideais, através das personagens,
transmite força expressiva e voz às angústias e preocupações
do homem dos nossos dias» (Ferreira in Rocha 2011: 32).
Pelo conhecimento e a interpelação do passado, encontram­‑se
novas possibilidades de interpretar e compreender o presente.
Ou, pelo menos, para tentar.
Poderá então concluir­‑se que o que permanece no mito e
no teatro que preserva a sua efabulação são questões éticas
que constantemente inquietam as consciências: qual é o lugar
do indivíduo no mundo? Será o destino de Filoctetes, aban-
donado numa ilha que se supõe deserta apesar de talvez ser
habitada, emblema de uma condição existencial? Se a condição
de guerreiro constituía a essência dessa personagem, quem é
o Filoctetes doente? E quando quem o traiu o vai buscar para
o explorar mais uma vez, como nortear as decisões a tomar?
Qual é o dever de ­ Filoctetes perante si próprio? E perante a
coletividade? Que seria de Filoctetes se negasse a sua condição
e o seu dever de guerreiro? Quem são os Filoctetes, Ulisses e
Neoptólemos nossos contemporâneos? Se é que ainda os há, o
que sobrou dos seus antepassados? Com que mitos substituímos
os mitos? Se os antigos eram falsos, qual é o grau de verdade
dos idolatrados agora? Poderão os mitos de ontem redimen-
sionar os atuais? Quais merecem a sobrevivência para além
dos tempos? Ou então, como libertar­‑se deles e da necessidade
que deles temos?...
Perguntas. Os mitos e o teatro nos impelem a formular
perguntas. Continuemos.

Sebastiana Fadda

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Referências bibliográficas

ROCHA, Jaime (1988), Deuscão seguido de O Televisor.


Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores.
— (1998), O Construtor, seguido de Quinze Minutos­ de
Glória e O Terceiro Andar. Lisboa: Sociedade ­ Portuguesa de
Autores/Publicações Dom Quixote.
— (2001a), Casa de Pássaros. Lisboa: Sociedade Portuguesa
de Autores/Publicações Dom Quixote.
— (2001b), Transviriato, Tondela: Trigo Limpo Teatro Acert.
— (2001c), O Jogo da Salamandra e outras peças (A Des-
cida para as Cinzas, Detalhe à Porta do ­Inferno, Seis Mulheres
Sob Escuta e O Anexo). Lisboa: Relógio d’Água Editores.
— (2005), Homem Branco Homem Negro, Lisboa: Sociedade
Portuguesa de Autores/Publicações Dom Quixote.
— (2009), Azzedine e outras peças (Homens como Tu,
Morcegos, O Mal de Ortov e No Ervilhal), Lisboa: Relógio
d’Água Editores.
— (2011), Filoctetes: A Condição do Guerreiro, introd. José
Ribeiro Ferreira, Coimbra, Coleção Fluir Perene, Associação
Portuguesa de Estudos Clássicos.

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O TERCEIRO ANDAR

Peça em três atos

Personagens:

Sara, empregada de limpeza


Luísa, empregada de limpeza
Teresa, encarregada de limpeza
Administrador do 7.º
Administrador do 5.º
Administrador do 3.º
Costa, tesoureiro do 5.º
Ramiro, segurança
Manuela, rececionista
1.º Carregador
2.º Carregador
Mizé, secretária do administrador do 3.º
Paquete do administrador do 3.º
Indivíduo
Dois agentes da polícia

Primeiro Ato
(Uma empresa em falência nos anos 90. A peça passa­‑se
no interior de um edifício moderno num hall largo, vazio, sujo,
com caixotes e mesas partidas a um canto. Papelões pelo chão.
Veem­‑se duas portas, uma para o interior do edifício, outra
que dá acesso às escadas de serviço. Existem dois elevadores
de serviço. Não têm portas e estão sempre em movimento lento.
Os seus compartimentos desaparecem durante alguns segundos
quando dão a volta, no cimo e em baixo, voltando à mesma po-
sição. As personagens que vão nos elevadores continuam a falar

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mesmo quando desaparecem de cena. Por vezes, os elevadores
avariam­‑se e elas ficam apenas com metade do corpo à mostra.
Duas empregadas, cada uma em seu elevador, conversam.)
Luísa — Fechou o 12.º andar, sabias?
Sara — Claro que sabia, onde pensas que eu ando metida?
Luísa — O administrador parece que nunca mais volta a
pôr cá os pés.
Sara — Ainda bem, por este andar, até ele era despedido.
Luísa — Hoje em dia ninguém escapa.
Sara — Nem os afilhados. Vai tudo para o olho da rua.
Luísa — Não sei onde isto vai parar!
Sara — Não foi nada que eu não esperasse. Parece que
estava a adivinhar!
Luísa — Ontem foi o 9.º andar, hoje é o 12.º
Sara — Por mim iam todos de uma vez.
(Entra a 3.ª empregada, com um balde e uma vassoura.)
Teresa — Este prédio está mas é assombrado!
Sara — Só faltava esta!
(Passam dois carregadores de uma firma de mudanças
com um armário. Um deles grita para o fundo das escadas.
Chama pelo patrão.)
1.º Carregador — Porra, outra vez a mesma coisa!
2.º Carregador — O que foi?
1.º Carregador — Não vês que esta merda não cabe?
2.º Carregador — Nunca mais saímos hoje daqui!
Teresa — É o que eu digo, o prédio está assombrado.
1.º Carregador — Assombrado ando eu e não parece!
(O 1.º homem grita de novo pelo patrão. Depois senta­‑se.)

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Sara — E ainda por cima estes, todos os dias.
Luísa — Só resta o 3.º andar.
Sara — Que eu saiba só vamos ficar com esse. Ainda ontem
vi o administrador e estava com cara de caso.
Luísa — Se queres que te diga, nunca o vi de outra maneira.
Sara (referindo­‑se a Teresa) — É como aquela, também
nunca a vi que não fosse a dizer que o prédio está assombrado.
Luísa — Olha, ela é que tem razão.
(Teresa começa a limpar o armário.)
1.º Carregador — O que é que a senhora está a fazer?
Teresa — Essa agora, então não vê?
1.º Carregador — Eu já não vejo é nada.
Teresa — Nunca viu uma vassoura?
1.º Carregador — Isto só a mim!
(Grita novamente para o fundo da escada onde está o
patrão. A seguir volta­‑se para Teresa.)
1.º Carregador — Deixe lá isso, é para sujar!
Teresa — Tudo o que sair deste edifício tem que ir limpo.
O senhor trata de carregar, eu trato da limpeza e tudo fica
no seu lugar. São as ordens que eu tenho.
1.º Carregador — Eu também tenho ordens para levar
isto para baixo, mas esta merda não cabe.
Teresa — Por que não foram pelas escadas? Seria muito
mais fácil.
1.º Carregador — E por onde é que nós estamos a ir
senão pelas escadas?
Teresa — Eu referia­‑me às outras escadas, às da frente.
2.º Carregador — E por que não disse logo?

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Teresa — Não sei, eu estou aqui para limpar o pó.
1.º Carregador — A senhora acha que eu estaria aqui
encravado se as outras escadas não estivessem já seladas?
Teresa — Não sei.
1.º Carregador — Se não sabe, fica a saber.
Sara — Eu logo vi que aquilo ia dar sarilho!
Luísa — Onde ela se mete, dá estrilho.
Sara — Mas os homens também são estúpidos. Se têm
aqui um elevador por que hão de ir pelas escadas, és capaz
de me explicar?
Luísa — Não sei, mas deve haver alguma razão. Em prin-
cípio os homens das mudanças sabem tudo.
Sara — Isso dizes tu que nunca mudaste de casa.
Luísa — Também é verdade, e nem penso mudar.
Sara — Então cala­‑te.
Teresa (para o 1.º carregador) — Pode estar para aí a
dizer o que lhe apetecer, mas uma coisa lhe garanto eu, o
que sair daqui não há de levar pó.
1.º Carregador — E eu estou mesmo muito preocupado
com isso! Quero é sair daqui e que não me chateiem.
Sara — Mais chateado que nós não está de certeza. Sabe
quantas éramos há seis meses, sabe? Éramos 14. E agora
sabe quantas somos, sabe? Somos 3. É verdade, apenas 3, aí
a encarregada e nós as 2.
1.º Carregador — E eu estou muito ralado com isso!
Luísa — Não está, mas devia estar.
(O 1.º carregador grita de novo para o fundo da escada
e depois encosta­‑se à parede para urinar.)

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Teresa (estupefacta) — Não acredito. Como é possível o
senhor…
1.º Carregador — O que quer que eu faça, que mije para
o bolso? Não fui eu quem fechou as retretes.
Sara — Eu também não.
Luísa — Eu muito menos.
Teresa — Fui eu, a mando do administrador.
1.º Carregador — Mas afinal quantos administradores há
cá no prédio?
Sara — Sei lá, para aí uns 500!
Luísa — Oh Sara! Olhe, que eu saiba, neste momento só
há um, o do 3.º, porque o do 7.º foi­‑se hoje de manhã embora.
Teresa — Podia, portanto, muito bem ir ao 3.º andar e
fazer lá as necessidades.
1.º Carregador — Ao 3.º fui eu há bocado. E sabe o que
me disseram? Que preenchesse um formulário.
Teresa — E o que tem?
1.º Carregador — O que tem? Então já se viu um homem
preencher um formulário para mijar! Desde quando? Só se for
neste prédio, mas no resto do país não. E olhe que eu já fiz mudan-
ças de norte a sul. Até uma vez fui a Sevilha levar umas camas.
2.º Carregador (leva as mãos à barriga) — Ó chefe, com
esta conversa eu estou com vontade.
Teresa (ameaçando­‑o com a vassoura) — Nem pense, vá
se faz favor ao 3.º andar.
(O 2.º carregador foge. As outras duas mulheres riem,
descem dos elevadores, conversam entre si sem perceber o
que dizem, sacodem os panos a uma janela e voltam a subir.
O 2.º carregador chega com um papel na mão, aflito.)
2.º C arregador  — Ó chefe, não sei preencher isto.

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1.º Carregador — Era o que faltava. Formulário, eu? Nunca
na minha vida, nem no casamento.
Teresa — Dê cá que eu preencho.
2.º Carregador — Mas tem de ser rápido que eu não
aguento mais.
Teresa — Onde estão os meus óculos? Ainda de manhã
os tinha no bolso. Não sei, ora eu pu­‑los… ali naquele prego.
Não. Já sei, estão na gaveta. (Tenta abrir a gaveta e não
consegue.) Estão aqui dentro de certeza.
2.º Carregador — Despache­‑se.
1.º Carregador — É escusado forçar, porque as gavetas
estão seladas.
Teresa — Seladas? Quem deu ordem?
1.º Carregador (inclina­‑se para as escadas) — Ó patrão,
venha cá acima que está aqui uma doida!
Teresa — As ordens que eu tenho é para não deixar sair
nada daqui sem verificar o que vai nas gavetas.
1.º Carregador — Agora é tarde, as chaves já foram para
o outro edifício.
2.º Carregador — Então e agora?
Teresa — Alguma coisa se há de arranjar.
(Passa o administrador do 7.º andar. Tenta entrar no
elevador e não consegue. Depois, dirige­‑se às escadas, mas o
armário tapa o caminho.)
Luísa — Olha, ainda cá está o senhor administrador!
Teresa — Senhor administrador, por acaso não tem uns óculos?
Administrador do 7.º — Óculos? Não uso óculos.
Teresa — Esses que tem aí no bolso.

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Administrador do 7.º — Ah, estes. Mas estes não são meus,
são do meu assistente que se esqueceu. Eu só cá vim para
me despedir da minha sala. É a última vez que venho a este
edifício. Portanto, não lhe sei responder.
2.º Carregador — Os óculos, os óculos… é só os óculos…
Administrador do 7.º — Percebo o seu problema, mas como
disse há pouco, os óculos não são meus, são do meu…
Teresa — Já sabemos, do seu assistente…
Administrador do 7.º — Exatamente, do meu assistente.
É a primeira vez que ele se esquece de um objeto pessoal.
Normalmente o esquecido sou eu, mas desta vez foi ele. Aliás,
para que precisa a senhora de uns óculos de homem?
Teresa — Para preencher o formulário daquele senhor
que está aflito.
Administrador do 7.º — Aflito?
Teresa — Sim, aflito para se servir da casa de banho do
3.º andar.
Administrador do 7.º — Ah, já ouvi falar desse sistema. Foi
uma coisa que no 7.º nunca aconteceu. Sempre toda a gente
se serviu dos lavabos sem ter que preencher papéis.
Teresa — Isso é verdade.
Administrador do 7.º — Nunca quis acreditar, mas pelos
vistos é mesmo verdade.
Teresa — Então pode ser, sempre empresta?
Administrador do 7.º — De modo nenhum. Nunca admitiria
que para satisfazer uma necessidade se tivesse que preencher
um formulário.
Teresa — Não é para si, é para aquele senhor.
Administrador do 7.º — Seja para quem for. É como se
fosse para mim.

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2.º Carregador — Posso utilizar o balde, minha senhora?
Teresa (para as outras) — Vocês duas podiam fazer al-
guma coisa.
Sara — Nós? O quê?
Luísa — Dizes bem, o quê?
Teresa — Não sei, qualquer coisa.
Administrador do 7.º — Eu desejaria sair.
Sara — Pode sair por aqui.
Administrador do 7.º — Nesse elevador? Depois de tantos
anos neste edifício seria a primeira vez que entrava nessa
armadilha. Hoje é o meu último dia na firma, descerei pelas
escadas como um comandante de um navio.
Teresa — Não me diga que nunca entrou no 3.º andar!
Administrador do 7.º — Nunca. O meu posto era no 7.º
Teresa — Então o que está a fazer aqui no 4.º andar,
pergunto eu.
Administrador do 7.º — Como deve saber, os elevadores
principais foram desativados esta manhã. Ora, tive que descer
a pé. Está­‑me a segui…
Teresa — Claro. E por que não desce o resto pela escada
principal?
Administrador do 7.º — Pelo 3.º andar não passo, prefiro
espe­rar que aqueles senhores desobstruam as escadas de serviço.
Teresa — É que ainda lá está o seu colega!
Administrador do 7.º — Colegas são as… Bom, como dizia,
não tenho a honra de conhecer esse ­senhor do 3.º Já ouvi falar
dele, mas não creio que seja tão forreta como dizem, há até
quem lhe reconheça ­ algum talento. Mas, o que é o talento?
Um prato que se serve frio, uma ostra cozida, uma assinatura
em branco ou um truque para enganar saloios. Agora, essa do

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formulário para se ir urinar constitui para mim uma surpresa.
E vou ter que mudar a minha atitude com esse senhor. Neste
prédio sempre se ­observou a mais completa democracia. Mesmo
no tempo do administrador do 12.º essa questão resolveu­‑se
com meia dúzia de reuniões. A democracia voltou após uns
quiproquós e ele foi posto na rua pelos sócios. O andar faliu,
mas a democracia espalhou­‑se ainda mais pelos outros. Vejo,
no entanto, que parou no 3.º Formulários, nunca se viu tal
coisa, nem no tempo do governo do bloco central, percebem o
que estou a dizer ou será melhor calar­‑me? Não quero de modo
algum incomodar os presentes com os meus desabafos.
Teresa — Então, os óculos nada feito.
Administrador do 7.º — Peço desculpa, mas só com o con-
sentimento do meu assistente.
(Entra a rececionista com uma mesa desmontável e um telefone.)
Manuela (com ar atarefado) — O que se passa? Alguém
me diz o que se passa? Cheguei lá abaixo e tinha a receção
fechada. Mandaram­‑me falar para o 3.º, liguei para lá e
disseram­‑me que não estava ninguém.
Teresa — É o que eu digo, falam e não está ninguém, só
podem ser fantasmas.
Manuela — Também me quer parecer, mas na minha
opinião acho que está lá gente, só que ninguém se atreve a
atravessar a porta.
Teresa — Dizem até que, ultimamente, as pessoas que
entram para lá, ou saem a rastejar ou nunca mais saem.
Administrador do 7.º — Nesse caso tem que haver um
alçapão em qualquer lado.
Manuela — Só pode ser no gabinete do administrador, os
outros têm um oleado no chão.
Administrador do 7.º — Um oleado? Nunca ouvi dizer.

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Manuela — Foi o administrador que mandou, para con-
trolar as presenças. Toda a gente tem que passar por um
tapete com tinta a fim de que as pegadas fiquem marcadas
no chão. Assim, todos os dias. Perguntem à D. Olga, que é
ela quem dá ordens.
Teresa — Acho que ela já se foi embora de vez.
Manuela — Não foi não, ainda ontem a vi. Até parece que
é ela agora quem limpa os oleados.
Administrador do 7.º — Permitam que me indigne com o
que estão a dizer. Não acredito nisso. Uma vez vi a D. Olga
e não me pareceu nada capaz de uma conduta desse género.
Sara — Um dia também a vi com um saco de plástico
cheio de bolos. Tinha vindo de um casamento. Ora quem anda
assim com os bolos, é capaz de coisas piores.
Luísa — A mim sempre me tratou bem, não tenho razão
de queixa.
Sara — E tu que tivesses razão de queixa de alguém.
(Entra o segurança Ramiro, de t­‑shirt, musculado.)
Ramiro (fala com pausas) — Alguém me chamou… senão,
eu não teria vindo, como é óbvio.
Manuela (com maus modos) — Alguém chamou o Ramiro?
(Silêncio.) Como vê, ninguém chamou o Ramiro.
Ramiro — De certeza que alguém me chamou, ou então foi
um grito de uma pessoa. Eu tenho os meus reflexos e sabem
que quando atuo, atuo mesmo.
Manuela — Alguém deu um grito que eu não tenha ouvido?
(Silêncio.) Não, ninguém gritou.
Ramiro (zangado, mas controlando­‑se) — Ou então foi um
cão que ladrou, um gato que miou, qualquer coisa a gemer.
E foi daqui.

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Administrador do 7.º — O senhor tem cartão profissional?
(Irónico.) Eu pergunto­‑lhe isto porque há cursos que ensinam
as diferenças entre um homem a gemer, uma galinha a caca-
rejar e a chuva a cair num telhado. Por exemplo… (Imita a
galinha e a chuva.) Mas o que o senhor segurança terá ouvido
foi aquele sujeito que está aflito para urinar.
Ramiro (embaraçado) — Então, porque não faz?
Teresa — Está à espera que lhe preencham o formulário.
Ramiro (para o 2.º carregador) — Não sabe ler?
2.º Carregador — Não.
Ramiro — Quem o deixou entrar?
2.º Carregador — Vim com o meu chefe.
Ramiro (para o 1.º carregador) — Consigo?
1.º Carregador — Foi.
Ramiro — E você sabe ler?
1.º Carregador — E quem é que pergunta?
Ramiro — Eu. (Ameaçador.) Sou eu que lhe estou a perguntar.
1.º Carregador (também ameaçador) — E quem é você?
Ramiro — Eu? Não basta olhar? O que é que está aqui
escrito na t­‑shirt?
1.º Carregador — Segurança do 3.º andar. Mas nós aqui
estamos no 4.º e você não manda nada.
(O 2.º carregador contorce­‑se com dores.)
Ramiro (para a rececionista) — A Manuela não avisou estes
senhores de que agora sou eu o único segurança do prédio, os
outros foram dispensados?
Manuela — Por acaso ainda não, as horas correm tão
rápidas que uma pessoa não tem tempo para tratar de tudo.
Ramiro — Então diga.

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Manuela (enfadada) — Olhem, tenho uma coisa para vos
dizer. Façam o favor de escutar porque só vou dizê­‑lo uma
vez. Não é que eu me tenha esquecido, mas às vezes escapa­
‑me a memória…
Ramiro (dá estalos com os dedos) — Não será melhor dizer
já? É que eu às vezes também perco os reflexos.
Administrador do 7.º — Não precisa dizer nada, nós já
entendemos que o senhor Ramiro é…
Ramiro — Isso tem que ser dito pela rececionista. Foram
as ordens que eu recebi do 3.º andar.
A dministrador do 7.º — Ah, o senhor agora recebe
ordens do 3.º andar! E por acaso sabe quem eu sou?
Ramiro — Não, não sei.
Administrador do 7.º — D. Manuela, diga se faz favor a
este senhor que eu sou o administrador do 7.º
Manuela — Ouça, Ramiro, o senhor que está aí à sua
frente, é o senhor administrador do 7.º Ouviu bem?
Ramiro — Ouvi perfeitamente.
Administrador do 7.º — Então agora, leve lá aquela cria-
tura e ponha­‑o a mijar, antes que eu perca a compostura.
(O segurança e o 2.º carregador saem.) As senhoras perdoem
esta linguagem.
Manuela (mete os auscultadores, vai recebendo chamadas e
desliga­‑se dos outros) — Oh senhor administrador, por amor de Deus!
Sara — Não tem qualquer importância!
Luísa — Por mim, pode dizer o que quiser!
Teresa — O senhor administrador desculpe, mas é só mais
um pouco. Assim que o armário passe, tudo volta ao normal.
Administrador do 7.º — Eu até estava com muita pressa.
Como disse, é hoje o meu último dia neste prédio. Mas agora,
de repente fiquei com o tempo todo. Nunca tinha reparado

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nestes elevadores, ou ­ melhor, tinha ouvido falar, mas nunca
pensei que traba­lhassem. Engraçado, parece que é a primeira
vez que entro neste edifício. Isto tudo por causa do segurança.
Será que eu conheço de facto o administrador do 3.º andar?
Não é um que usa cuecas de seda?
Sara — Parece que sim.
Administrador do 7.º — Quem me disse foi a minha secre-
tária, eu não ia inventar uma coisa dessas! E quem lhe disse
a ela terá sido a secretária dele. São muito amigas, ao que
julgo. Ou eram, já não sei. São ninharias que me afetam. Tudo
isto por causa do segurança. Não gosto de gente musculada,
dá­‑me vómitos.
(Entra o 2.º carregador, espavorido, a abotoar­‑se.)
2.º Carregador — Teve de ser à pressa.
Administrador do 7.º — Então, o que se passou?
2.º Carregador — Não percebi bem, havia qualquer coisa
de maligno naquilo tudo. E um cheiro… Primeiro no corredor,
uma coisa a mexer, parecia um cágado. Depois, numa porta
entreaberta, uma sombra que se movia e falava sozinha. Eu
não podia mais, tinha a bexiga a rebentar. Ouvi alguém a
chamar por uma pessoa, mas não percebi o nome. O segurança
tinha desaparecido. Então veio um eco desse corredor e já não
era de pessoa, mas de um bicho.
Teresa — Está assombrado, está assombrado, é o que eu
digo, o prédio está assombrado! Assim que os móveis descerem,
vou­‑me embora.
Luísa — Deixem o homem falar. Diga lá…
2.º Carregador — Depois entrei na retrete. A parede estava
cheia de formigas e ouvi de novo aquele grito, como se agora
viesse de dentro da pia. Mas eu não podia mais, tive que fazer
ali mesmo no chão, não conseguia acertar com a sanita. Havia
qualquer força, um vento que saía de lá e levava o mijo contra
a parede, para cima das formigas…

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Sara — Então e depois?
Administrador do 7.º — Tenham calma. (Para ele.) Sente­‑se bem?
(Sara e Luísa entram no elevador.)
1.º C arregador  — Desta vez é que foi, ficou maluco!
2.º Carregador — Saí a correr, mas deu­‑me a impressão
que o corredor já não era o mesmo, alguém tinha lá posto
umas vitrinas com peixes mortos.
Teresa — Peixes mortos?
(O 2.º carregador cala­‑se por momentos e fica a olhar para a
porta. Os outros movimentam­‑se, sem saber se hão de aproximar­
‑se dele ou afastar­‑se. O elevador para, vendo­‑se apenas me-
tade da Luísa e de Sara que vão falando e rindo baixinho.)
2.º Carregador — E o chão do corredor transformou­‑se em
vidro. Agora estou a ver melhor o que me aconteceu. Foi o
oleado, foi tudo por causa do oleado. Levantou­‑se direito a mim
como se fosse uma onda do mar e lançou uma música…
Sara — Uma música?
2.º Carregador — Uma espécie de ópera, alguém que can-
tava fininho e depois mais forte. Deu­‑me a ideia que já tinha
ouvido aquela música algures ou que já estive naquele lugar.
Porque a seguir uma cadeira mexeu­‑se sozinha, fazendo um
barulho esquisito, mas em cima dela não estava ninguém…
A dministrador do 7.º — Estou espantado com o que
acabo de ouvir. Isto faz­‑me refletir sobre o tempo em que eu
trabalhei neste edifício. Passaram­‑se aqui coisas extraordiná-
rias, sem que eu nunca desse por isso. E eu que imaginava
que controlava todos os movimentos do edifício, as saídas e
entradas. De facto, agora que ouço esta descrição, constato
que o 3.º andar tem muito mais importância do que os ou-
tros andares todos juntos. (Para a rececionista.) E os inter-
comunicadores, alguma vez funcionaram entre o 3.º e o 7.º?
Manuela — Sempre.

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Administrador do 7.º — É isso que me intriga, nunca
ninguém ter telefonado de lá para obter alguma informação.
Sara — O senhor era de outro ramo do negócio.
Luísa — De peças de automóvel.
Sara — Enquanto o 3.º andar é de vestuário.
Administrador do 7.º — Mesmo assim!
Sara — Não vejo a ligação.
Luísa — Então não vês? Peças de automóvel, peças de
vestuário. Poderia haver um equívoco. Um dia que alguém
pedisse para lhe ligarem para o andar das peças… e de re-
pente passarem­‑no para as peças de automóvel, em vez das
de vestuário.
Sara — Não seria assim tão fácil. Nenhuma telefonista pas-
saria uma chamada para um andar só por ouvir a palavra peças.
Luísa — Com o hábito, fazem dessas coisas, não percebo
por que não poderia ser.
Sara — Poder podia. O que não seria era muito provável
que isso acontecesse.
Manuela (aparte) — Que conversa esta!
Luísa — De vez em quando também me ligam para casa
e pedem para falar com o serviço de ortopedia. Ora ortopedia
em minha casa só se alguém partir uma perna, o que não é
o caso; graças a Deus, todos temos saúde.
Sara — Isso é diferente, é um engano no número. Do
que se está aqui a falar é de um engano dentro do edifício.
Alguém que ligue para encomendar uma bateria e lhe passem
para a senhora da roupa ­interior. É diferente, a pessoa fica na
linha a aguardar que a passem ao telefone certo e enquanto
espera vai ouvindo um disco de Frank Sinatra. Quando não
é o administrador aos gritos!
Luísa — Com a Olga?

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Administrador do 7.º — Repito, tudo isto é muito intrigante.
Não sei por que não me apercebi há mais tempo da confusão
que vai neste prédio. Confesso que subestimei o 3.º andar, não
fazia a mínima ideia que era dali que partiam as quebras de
tensão, as falhas de ar condicionado, as infiltrações de água.
De facto, agora reparo que aquele cheiro de que todos nós
nos fomos apercebendo ao longo do tempo e do qual ­ nenhuma
firma soube até hoje descobrir a origem, vinha afinal desse
andar. Não andará alguém a fazer um filme? Ou pessoas da
fiscalização que ali se reúnam às escondidas? (Para o 2.º car-
regador.) O senhor tem a certeza que viu aquilo que diz ter
visto? Um oleado a mexer­‑se sozinho, um cágado, um grito
que vinha de dentro da sanita?
Teresa — É o que eu digo!
Administrador do 7.º — Não acredito que esteja alguém
preso dentro dos canos. É impossível.
Sara — Já não sei de nada!
1.º Carregador — Agora é esta, um gajo dentro do esgoto.
Luísa — Não seria a primeira vez!
1.º Carregador — Ai, meu Deus! Lá tenho de ser eu a ir
dar conta dessa merda. Sempre quero ver a cara desse mos-
trengo ou lá o que é.
(Sai, decidido, em direção ao 3.º andar.)
Teresa — Nunca me quiseram acreditar, mas há muito
tempo que avisei a administração de que existem fantasmas no
3.º andar. O prédio está assombrado, pronto, está assombrado.
Sara — Credo, mulher, não pensa noutra coisa!
Luísa — Deixa­‑a lá.
Administrador do 7.º — Cada vez me convenço mais de que
é fantástico eu estar aqui neste andar e não na rua ou em
casa. Alguma coisa do destino me mandou vir aqui hoje. Por
que razão terá o meu assistente esquecido os óculos, ele que

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nunca, mas nunca, se esqueceu de nada, nem de um papel
ou de uma caneta? Ninguém me diz?
Teresa — Está a ver, isso é um indício de que existe uma
força extraterrena cá dentro.
Sara (em voz baixa) — E uma maluca.
Luísa — Cala­‑te, deixa ouvir.
Administrador do 7.º — Já não digo tanto, mas há qualquer
coisa de estranho.
Teresa — Uma coisa maligna.
Administrador do 7.º — Se assim o quiser, mas eu refiro­‑me
a coisas de gentes, tiques, sinais que de algum modo definem
um comportamento.
Teresa — Mas de certeza um comportamento doentio.
Administrador do 7.º — Digamos, uma obsessão. E não me
refiro à história dos formulários para se poder ir urinar, mas a
outras coisas. (Pausa.) Por exemplo, a estes móveis que não ca-
bem nas portas, ao oleado para marcar as entradas e as saídas.
Teresa — Então e as gavetas das secretárias que foram
seladas sem se saber o que contêm, os elevadores que foram
desativados e as empregadas da limpeza que foram despedidas?
Tudo isso são ideias de uma mente distorcida.
Administrador do 7.º — Era aí que eu queria chegar. Não
se trata de fantasmas, mas de pessoas.
Teresa — Isso é outra coisa. É que neste prédio existem
também pessoas que agem como se fossem almas do outro
mundo. Nada lhes é imputado, nem nada nunca é da sua
responsabilidade.
Administrador do 7.º — Exatamente.
Teresa — Ouviu falar daquele rapaz que fazia as estatís-
ticas dos mortos e das crianças que ficavam sem pais e eram
depois vendidas para os Estados Unidos da América?

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Sara — Olha, estão a falar daquele caso!
Luísa — Daquele do morto vivo?
Sara — Sim, do rapaz que foi despedido o ano passado.
Administrador do 7.º — Ouvi falar vagamente.
Teresa — Sabia que ele foi despedido porque se enganou
num nome e sem querer incluiu no rol dos mortos o adminis-
trador do 3.º andar?
Administrador do 7.º — Ah, já me lembro. Foi muito en-
graçado ter matado o administrador do 3.º
Teresa — Pois é, mas veio a saber­‑se que foi o próprio
administrador do 3.º andar que mandou a secretária trocar o
nome para incriminar o rapaz.
Administrador do 7.º — Esse facto desconhecia. E ficou
provado?
Teresa — Ainda está a correr nos tribunais, mas toda a
gente sabe que foi ela.
Sara — Pois foi, a safada, é um pau mandado.
Luísa — E o que queres que ela faça?
Sara — Tudo menos incriminar um colega.
Luísa — Nesse caso ela é que ia para a rua.
Sara — E que fosse.
Luísa — Para ti é tudo facilidades.
Sara — Queixasse­‑se ao sindicato, ao provedor, a qualquer
pessoa. Tudo menos isso. E sabes o que é feito do rapaz?
Luísa — Olha, não sei, nem me interessa.
Sara — Endoideceu.
Luísa — Melhor para ele.
Sara — Parva, não sabes o que dizes.

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Administrador do 7.º — E pensar que estive neste prédio
durante uma década, tantos anos quantos o governo e…
(Entra o 1.º carregador, completamente lívido e sem fala.)
Teresa — Então?
Administrador do 7.º — O homem parece mesmo muito mal.
Teresa — Senhor carregador!
2.º Carregador — Pronto, acabou­‑se!
Sara — Queres ver que há mesmo coisa!
Teresa — Eu bem sabia!
Luísa — Mas, meu Deus, o que se passa?
Administrador do 7.º — Deixem­‑no respirar, afastem­‑se,
afastem­‑se.
2.º Carregador — É o tal monstro, o oleado.
Administrador do 7.º — Será melhor chamar uma ambulância.
Teresa — Talvez o Ramiro.
1.º Carregador (mexe os braços como se se defendesse de um
agressor e depois para. Fala devagar) — É uma outra coisa ­negra,
com metade do rosto pintada de branco e a outra de vermelho
e tem uma colher em cima da cabeça de onde saem faíscas…
Luísa — Ai, meu Deus!
Teresa — Eu não dizia?
Administrador do 7.º — Deixem­‑no falar.
1.º Carregador — Primeiro perguntou­‑me como me cha-
mava, depois quis saber se eu tinha visto um sapo a saltar
no corredor. E como eu não respondi mandou alguém morder­
‑me numa perna. Mas como podia eu responder se estava
aterrorizado? A seguir disse­‑me que só poderia sair daquele
andar se comesse um saco de enguias vivas e cagasse para
dentro de uma gaveta.

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Administrador do 7.º — Nunca tal ouvi.
Teresa — E era uma pessoa?
1.º Carregador — Ao princípio pareceu­‑me, mas depois
não posso jurar. Sei que tinha uma máquina calculadora e
um braço maior do que o outro. Mas depois começaram a
aparecer ratos por cima da secretária e pelo chão e ele ria
com um riso medonho deitando a língua por cima dos papéis
e chupando­‑os como se fossem bombons.
Administrador do 7.º — Fantástico!
Teresa — E você?
1.º Carregador — E disse­‑me, ou traz a mobília de volta
ou engulo­‑o com os ratos.
Sara — Não acredito em nada disto. A mobília que ali
está nem é do 3.º
Administrador do 7.º — Pode ser por medo que lhe levem a
dele. Estas pessoas raciocinam assim, se levam aos outros tam-
bém me levam a mim. É lógico, o prédio está em desativação.
Sara — Mas não se diz que foi o administrador do 3.º que
mandou desativar?
1.º Carregador — Depois, aquela figura desfez­‑se e aquilo
que parecia um corpo transformou­‑se em banha e a seguir num
sapo e pôs­‑se a caminhar para mim e a lançar­‑me ratinhos
pelo ar. Eu olhava aquela boca e só me apetecia gritar, mas
não consegui. Qualquer coisa me apanhava a garganta.
Teresa — Fantasmas, fantasmas, são fantasmas!
(Aos poucos, todos foram ficando amedrontados. A rece-
cionista larga os telefones e dá um grito. Um rato passa perto
dela. O 2.º carregador agarra­‑o, mostra­‑o aos outros. É um
rato de corda.)
Administrador do 7.º — Cada vez mais fantástico. Um rato
de corda surgir assim sem que ninguém o tivesse mandado.

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Teresa — O prédio está assombrado.
(Alguém chama do fundo das escadas. O 1.º carre­gador
responde.)
1.º Carregador — É esta merda que não anda! Está tudo
parado, chefe. Por causa dos fantasmas do 3.º andar. É melhor
vir cá acima.
Administrador do 7.º — Mas isto tem de ter uma solução.
De facto, não podemos ficar aqui eternamente.
Sara — Temos de nos organizar.
Teresa — Talvez seja melhor irmos lá todos.
Administrador do 7.º — Exatamente, D. Teresa tem toda
a razão, aqui não fazemos nada.
(Saem devagar e dirigem­‑se para o 3.º andar.)

Segundo Ato

(Terceiro andar, uma sala grande com as paredes cobertas


por persianas. Todos os personagens do 1.º ato, exceto Manuela
e o segurança, escutam espalhados, aos pares, espreitando por
detrás das persianas, gesticulando de vez em quando: os dois
carregadores, Sara e Luísa, o administrador do 7.º e Teresa.
Uma secretária, um paquete e o segurança saem de grandes
gavetões incrustados na parede ou falam de lá vendo­‑se apenas
a cabeça e os braços.
O administrador do 3.º discute com um indivíduo de uma
firma sobre a necessidade de fabricar um funcionário novo.)
Administrador do 3.º — Como lhe dizia, os piri­lampos têm
asas como os aviões, mas não voam.
Indivíduo — Os pirilampos voam.
Administrador do 3.º — Não voam, não, como sabe que
voam? Já esteve com algum na mão?
Indivíduo — Por acaso não, mas já os vi a voar.

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Administrador do 3.º — Não. O que viu foi uma luz, nunca
os viu ao vivo.
Indivíduo — De facto…
Administrador do 3.º — Portanto, e sou eu mais uma vez
que tem razão, os pirilampos não voam, embora tenham asas.
É como as azeitonas, também não voam, espero que esteja de
acordo comigo.
Indivíduo — Claro que não voam.
Administrador do 3.º — A não ser quando caem da árvore,
descrevem um voo picado e estatelam­‑se no chão. Está­‑me a
acompanhar o raciocínio.
Indivíduo — Estou, até estou!
Administrador do 3.º — Ora bem, o que eu lhe queria
dizer era que a medicina e o direito são duas matérias sobre
as quais a nossa firma se vai debruçar. A 1.ª porque trata
do corpo enquanto matéria orgânica, a 2.ª porque trata dele
enquanto matéria ética e moral. Ou seja, temos de criar nesta
firma um funcionário que seja saudável e batalhador, robusto
e que ao mesmo tempo não saiba, nem sequer imagine, o que
é a ética e muito menos a moral. Está­‑me a seguir?
Indivíduo (tirando apontamentos) — Estou, precisamente.
Administrador do 3.º — Um funcionário diligente, cumpri-
dor, atilado, que não saiba a diferença entre o bem e o mal, e
sobretudo que não dê pelas nuances que é necessário imprimir
à firma. Um funcionário do sexo feminino que se saiba pintar,
vestir e pentear ou do sexo masculino que se saiba colocar no
seu devido lugar. Entendeu? Como os pirilampos, com asas
mas sem saber voar.
Indivíduo — Como os aviões!
A dministrador do 3.º — O senhor esteve na guerra?
Indivíduo — Não, não estive.

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Administrador do 3.º — Eu também não. É que lá os pi-
rilampos morrem depressa, como as azeitonas. Percebe o que
quero dizer?
Indivíduo — Perfeitamente. E estou de acordo consigo.
Administrador do 3.º — Por vezes penso que não me en-
tendem, ou que as minhas palavras não existem para que se
percebam. Não sei se me está a entender. É que eu há dias
estava num restaurante e pedi a conta. Só que ninguém a
apareceu. Eu insisti porque queria pagar, mas nenhum empre-
gado se encontrava ali. Fiquei esquecido, sentado em frente da
louça suja, fechado dentro do restaurante até à hora do jantar.
Indivíduo — Tendo por companhia apenas um prato de
azeitonas!
Administrador do 3.º — Exatamente. Como adivinhou?
Indivíduo — Tenho seguido o seu raciocínio desde o início
desta nossa conversa, que espero não seja a última, e notei que
havia uma relação direta entre os pirilampos e as azeitonas.
Administrador do 3.º — É precisamente esse o espírito que
deve presidir ao fabrico dos meus funcionários. Um raciocínio
rápido, límpido e leal aos meus princípios, de olhos nos olhos.
Indivíduo — Frontal.
A dministrador do 3.º — Funcionários reconhecidos.
Indivíduo — Mesmo agradecidos. Capazes até de prescindir
dos seus salários.
Administrador do 3.º — Em nome da firma e dos meus
sacrifícios. Porque como sabe, eu sou o único que despende
energia, o único que pensa, que sabe e executa.
I ndivíduo  — E sempre foi assim e há de ser assim.
Administrador do 3.º — Funcionários pobres de espírito,
patetas.
Indivíduo — Incapazes.

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Administrador do 3.º — Que tenham a noção de que sem
mim não são nada. Acha que a sua firma será capaz de criar
um par de funcionários desses para trabalhar comigo?
Indivíduo — Obviamente, esse é o nosso trabalho. Somos
como os pirilampos, sem asas e voamos. Ou melhor, não voa-
mos mas fazemos aquela rotação das azeitonas quando caem
das árvores. Está­‑me a seguir?
Administrador do 3.º — Perfeitamente, acho até que sinto-
nizamos muito bem sobre aquilo que ambos queremos.
Indivíduo — Mas há um problema.
Administrador do 3.º — Nada que não consigamos ultrapassar.
Indivíduo — É que não estamos na época dos piri­lampos
e este estudo custar­‑lhe­‑á mais caro.
Administrador do 3.º — Não tem importância, não sou eu
que pago.
Indivíduo — Já agora e para que não restem dúvidas
entre nós, não se esqueça que fomos nós que inventámos os
pirilampos.
Administrador do 3.º — Eu sei. A princípio pensei que
tinham sido os alemães, depois alguém me disse que isso era
uma história dos franceses, qualquer coisa relacionada com a
Legião Estrangeira. Mas não, foi mesmo um membro da Legião
que me disse que eram coisas de judeus. Enfim, até que vi um
prospeto da vossa firma declarando que eram os senhores os
inventores dos pirilampos. Foi por isso que os contactei.
Indivíduo — Nesse caso, assine aqui.
Administrador do 3.º — Onde?
Indivíduo — Onde está escrito assinatura.
Administrador do 3.º — Aqui?
Indivíduo — Exatamente.

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Administrador do 3.º — Pronto. E agora apelo para a vossa
eficiência, seria bom ter os funcionários já na próxima semana.
Indivíduo — Vamos fazer o que nos for possível para res-
ponder atempadamente aos seus anseios. (Despede­‑se.) Tive
muito gosto!
Administrador do 3.º — Para a semana, espero!
(Chama a secretária, que sai de um gavetão.)
Administrador do 3.º — Mizé, chegue aqui. Acompanhe
este senhor à porta e traga­‑me um café.
(A empregada não sai de cena, prepara um café.)
Administrador do 3.º — Mizé, isto que se passou aqui não
é para se saber nem tem nada a ver consigo. Você não entra
neste estilo de funcionários que vou criar para a firma.
Mizé — Por amor de Deus, senhor doutor!
Administrador do 3.º — Como reparou, eu deixei que a pater­
nidade da descoberta dos pirilampos fosse reivindicada pela
firma deles, mas toda a gente sabe que fui eu que os inventei.
Mizé — Pois, eu achei estranho o senhor doutor não dizer
nada, mas não quis interromper. Tal como o caso das azeitonas.
Como terá ele sabido que o pires de azeitonas fez companhia
ao senhor doutor durante toda aquela tarde em que o senhor
doutor ficou esquecido e fechado no restaurante?
Administrador do 3.º — Também achei muito estranho.
E fez­‑me pensar. O sujeito não me pareceu de confiança. Viu­‑se
logo que era parvo. E acreditou mesmo que os pirilampos tinham
asas quando toda a gente sabe que isso é conversa para enganar
miúdos. É que os pirilampos não existem, como eu já disse uma
vez para a televisão. A Mizé já viu alguma vez um pirilampo?
Mizé — Nunca, senhor doutor.
Administrador do 3.º — O homem não é de confiança.
(Chama Ramiro, o segurança do prédio, que sai de outro gavetão.)

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Administrador do 3.º — O senhor falou ao indivíduo que
acabou de sair sobre azeitonas ou pirilampos?
Ramiro — Não, senhor doutor.
Administrador do 3.º — E os outros seguranças já foram
despedidos, não é verdade?
Ramiro — Já, senhor doutor.
Administrador do 3.º — Então agora só somos nós no prédio.
Ramiro — Há ainda umas pessoas no 4.º andar e o admi­
nistrador do 7.º, mas a mobília encravou na escada e eles
estão presos.
Administrador do 3.º — Quem, o pacóvio do 7.º está preso
nas escadas? Essa agora é boa. E sabem que eu ainda cá estou?
Ramiro (mentindo) — Não, não sabem.
Administrador do 3.º — Não deixe entrar ninguém no 3.º
Ramiro — Nem para se servir das casas de banho?
Administrador do 3.º — Porquê as casas de banho?
Ramiro (saindo) — As outras estão todas desativadas.
(Cena com a secretária e um paquete que sai de outro
gavetão. Uma pantomima, uma dança burlesca, com um
crescendo de intensidade dramática, mas mantendo sempre
uma certa compostura. Como se representassem num tea-
tro, mas deixando­‑se levar pelo prazer dessa representação.
O administrador põe o paquete a beijar­‑lhe os pés e a secre-
tária a bater­‑lhe no rabo com um mata­‑moscas. Veste­‑se de
diabo, depois de rei, depois de papa, tira animais em plástico
de dentro de um saco e dá­‑lhes corda.
Toca o telefone. A secretária atende.)
Mizé — É o senhor secretário de Estado.
Administrador do 3.º — Diga que já saí.

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Mizé — O senhor doutor já saiu, agora só amanhã. (Pausa.)
Está bem, à hora de almoço. Com licença.
(O paquete despe­‑se e faz poses como se fosse um atleta.
Do teto caem umas argolas. O paquete exercita­‑se. A secretária
pinta­‑se e faz tenção de mostrar as ­pernas. O paquete assedia­‑a
e coça­‑se. O adminis­trador do 3.º para, olha para ela, diz­‑lhe
para levantar as saias, mas ela recusa. O paquete agarra­‑se
a ela, enamorado. A seguir o administrador do 3.º põe­‑se no
chão, de joelhos.
Toca um telefone. A secretária atende.)
Mizé — É a sua mulher, senhor doutor.
Administrador do 3.º — Já saí.
Mizé — O senhor doutor acabou de sair. (Pausa.) Disse que
ia para casa. (Pausa.) De nada, adeus, senhora doutora.
(A secretária sobe para cima da mesa e começa a cantar,
uma opereta desafinada, sem nexo. Os dois batem as palmas
em cadência e depois vão ambos mijar para dentro de um dos
gavetões. A secretária termina a cançoneta e começa a chorar.)
Administrador do 3.º — Vá, agora o paquete faz de admi-
nistrador e eu de secretária. E a Mizé faz de paquete. Não,
vamos fazer de administrador do 7.º Vá. Vou­‑me sentar, devagar
como se fosse maricas.
Mizé — Mas ele não é maricas, senhor doutor.
Administrador do 3.º — Não é? Como sabes que não é?
Mizé — Nunca ouvi dizer e também não parece que seja.
Administrador do 3.º — Essa agora, toda a gente sabe.
(Grita.) Oh, senhor segurança.
Ramiro (espreitando do gavetão) — Diga, senhor doutor.
Administrador do 3.º — Não é verdade que o administrador
do 7.º é maricas?
Ramiro — É sim, senhor doutor.

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Administrador do 3.º — Vá, vamos lá. Sento­‑me, devagar,
e digo, D. Quicas…
Mizé — Mas a secretária dele é a Marta!
Administrador do 3.º (zanga­‑se) — Que importam esses
pormenores, Mizé! Vamos lá. Digo assim: assente senhor
assessor, a macrocefalia da Europa verifica­‑se nas últimas
estatísticas através de uma transfusão financeira com vista
aos mercados do eixo norte­‑sul. E para provar o que digo aqui
estão os gráficos e uns bolinhos de coco. (Ri­‑se.) Porque a li-
nha da inflação é substantiva, ou seja, sobe de acordo com as
sondagens da agricultura. Vejamos, estes pastelinhos de nata
que tenho aqui (ri­‑se agora à gargalhada) é para passar pelas
nádegas e para que os meus funcionários os venham lamber
a seguir ao almoço…
Mizé — Já chega, senhor doutor.
Administrador do 3.º (zangado) — Mizé, pode ir­‑se embora.
O paquete fica. Quem é que manda aqui afinal? O paquete fica.
(O paquete encosta­‑se a Mizé com medo. Ela puxa por ele
e entram para os respetivos gavetões. O administrador fica só,
respira fundo.)
Administrador do 3.º — Não importa, vão­‑se todos embora,
todos. Estúpidos, pensam que me enganam. Gostariam que eu
desativasse também o 3.º andar ou desaparecesse sem deixar
rasto. Enganam­‑se. São precisos muitos para me deitar abaixo.
(Espreguiça­‑se.) Finalmente consegui. Um prédio só para mim.
Vão ver do que sou capaz! É só o telefone tocar e atende o
primeiro­‑ministro. Vou instalar aqui o meu governo. Mudo­‑me
para o 12.º, para os ver lá do alto. E todos os ministros ficarão
debaixo dos meus pés. (Faz experiências, em diversos tons.)
Mizé, diga ao senhor Ministro da Defesa para vir cá acima…
Mizé, o Ministro das Obras Públicas que venha cá acima…
Mizé, chame cá acima a Agricultura… Mizé, hoje não estou
para o Desemprego… Mizé, desmarque como o Presidente…
(Toca um telefone. A secretária abre o gavetão.)

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Mizé — Senhor doutor, está ao telefone uma voz a dizer
que fala pirilampo.
Administrador do 3.º — Ah, já sei, é código. Diga que fala
azeitona e que está tudo em ordem.
Mizé — Está, fala azeitona, está tudo em ordem. (Pausa.)
Sim, eu pergunto. Senhor doutor, pirilampo pergunta se já
possui os funcionários.
Administrador do 3.º — Responda que só os terei na pró-
xima semana.
Mizé — Azeitona diz que só chegam para a ­ semana.
(Pausa.) Muito bem, com licença.
Administrador do 3.º (de novo sozinho) — Tenho uma
semana para formar governo. Como vou fazer para estudar
todos estes dossiers?
(Tira um boneco de borracha de um dos gavetões, enche­‑o
de ar e coloca­‑o encostado à secretária.)
Administrador do 3.º — Diga­‑me lá, senhor funcionário,
qual a diferença entre um decreto­‑lei e um abaixo assinado?
(Pausa.) Não sabe. (Bate­‑lhe.) Estúpido, não sabe nada,
­tenho que ser eu a ensinar tudo. Não ganho para isto! (Tira
outro boneco e repete a operação.) Qual a diferença entre
um pirilampo e uma azeitona? Não sabe. (Bate­‑lhe.) E ­ entre
um requerimento e uma proposta? Não sabe. (Bate­‑lhe.)
(Tira mais um ou dois bonecos e repete as operações, fa-
zendo as mesmas perguntas ou outras com temas burocráticos,
como por exemplo números de decretos­‑lei e nomes de antigos
ministros e presidentes. No fim, tenta desenvencilhar­‑se dos
bonecos, mas eles não cabem nos gavetões. Procura escondê­
‑los, esvaziá­‑los, mas não consegue. Esta cena deve ser o mais
hilariante possível culminando com um momento de sufocação
entre ele e os bonecos/funcionários. Os ­bonecos passam a ­gemer
quando apertados com força. O administrador fica com medo,
foge, mas a porta está fechada. Os bonecos levantam­‑se, presos

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por cordas como se fossem marionetas e empurram­‑no contra a
parede e abafam­‑no. Ouve­‑se um telefone, abre­‑se um gavetão
e aparece a secretária. Os bonecos caem e ficam inertes ou são
puxados para o teto, ­ficando pendurados à vista do espetador.)
Mizé — Está a mulher do senhor doutor ao telefone. (Olha
para os bonecos e dá um grito.)
Administrador do 3.º (cansado) — Não é nada, Mizé, estou
apenas a ensaiar. Diga à minha mulher que eu sigo já para casa.
Mizé — Está bem, senhor doutor.
Administrador do 3.º (para os bonecos) — Estúpidos, não
vos posso dar muita confiança!

Terceiro Ato

(De novo no hall do 4.º andar, os mesmos perso­nagens do


1.º ato. Os carregadores empurram os móveis. Sara e Luísa
segredam, as duas dentro do mesmo elevador. Manuela e Teresa
escutam ao ­ telefone. O administrador do 7.º anda de um lado
para o outro e escova­‑se.)
1.º Carregador — Desisto, pronto, desisto.
Teresa — Deve ser engano, já não há mais ninguém no
prédio a não ser nós e os doidos do 3.º
Manuela — Então eu não ouvi? Era alguém a falar para
o exterior a partir do 7.º andar.
Administrador do 7.º — Temos de fazer alguma coisa. Não faz
sentido irmo­‑nos todos embora e o prédio ficar para o garanhão
do 3.º Sim, porque se eu sou maricas ele deve ser um fodilhão.
S ara  — Era o que eu dizia, isto não fica por aqui.
Luísa — Ai vai haver pancadaria, vai!
Manuela — De certeza que há ainda alguém no 7.º andar.
Estavam a falar de suspensórios.
Teresa — Então deve ser do 5.º andar!

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Manuela — Talvez, mas o cabo vinha do 7.º
Administrador do 7.º — As senhoras estão equivocadas. Eu,
como disse, fui o último a evacuar o 7.º e só depois das saídas
dos 8.º e 9.º, que saíram logo após os do 5.º e do 6.º Já que
não pode ser o do 3.º, porque esse apenas trata do fabrico de
bonecos, só pode ser alguém do 4.º andar. Tanto mais que os
do 10.º e 11.º há muito que se foram embora.
Teresa — Do 4.º não pode, porque eu mesma tranquei a
porta. Só poderia ser o do 12.º
Luísa — Esse foi­‑se ontem embora.
Administrador do 7.º — Isso agora não importa. Temos é de
decidir o que vamos fazer com o pervertido do 3.º Não podemos
deixar andar por aí um sujeito que gosta de apanhar no rabo
com um mata­‑moscas. Onde é que já se viu isso?
Teresa — É o prestígio deste prédio que está em jogo.
Sara — Um edifício cheio de bonecos, devia ser bonito!
Teresa — Isso é o sonho dele, pelos vistos! Já anos atrás,
um outro administrador tentou esse género de coisas, agora
me lembro. Foi corrido pelos trabalhadores.
Administrador do 7.º — É a minha reputação que está
em causa. Cada vez me sinto mais feliz em ter vindo aqui ao
prédio pela última vez. Foi uma voz que me avisou, qualquer
coisa de divino, «Vai lá, vai lá, meu filho! É a honra deste
país que se joga naquele prédio! Não pode ser evacuado sem
que tu o laves dos pecados!» Exatamente, uma voz que me
soprou ao ouvido. Para fazer justiça com as minhas próprias
mãos, com as nossas mãos.
Teresa — Com as nossas mãos!
Teresa — Será melhor chamar a polícia.
Administrador do 7.º — Nem pensar, a polícia só compli-
cava. Ali os senhores carregadores dão uma mãozinha e vamos
lá torcer­‑lhe o pescoço.

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Luísa — Credo, meu Deus!
Sara — Por mim, está bem, nunca gostei dele.
Luísa — Mas o homem fez algum mal?
Sara — Até fez. Sempre que eu entrava no seu gabinete
para despejar os cinzeiros, ele chamava­‑me Cármen e coçava
as virilhas, ora o meu nome é Sara e sempre foi.
Luísa — Estás a inventar. Comigo portou­‑se sempre bem,
levantava­‑se sempre do lugar e até corava, atrapalhado. Gosto
do senhor, pronto, o que queres que faça?
Sara — Deu­‑te alguma prenda pelo Natal?
Luísa — Não, mas também não estava à espera. E por
sinal, não deu a ninguém.
Sara — Estás­‑me a dar razão. Não deu a ninguém, en-
quanto os outros administradores do prédio deram.
Luísa — Olha, deixa lá que por alguma razão foram à
falência e ele não.
Sara — E esta agora deu­‑lhe para defender o ordinário.
Administrador do 7.º — Temos de unir forças para derru-
bar o impostor.
1.º Carregador — Vamos lá e trás, uma recoveirada nos cornos.
2.º Carregador — Linchamo­‑lo!
Administrador do 7.º — Não é preciso matar o sujeito, ape-
nas despejá­‑lo para bem da moral do prédio. Quem está comigo?
(Teresa, Sara e os carregadores junto ao administrador
do 7.º Luísa chega­‑se a Manuela.)
Manuela — Eu não posso abandonar os telefones en-
quanto houver uma pessoa cá dentro, porque eu sou uma
profissional.
Luísa — E eu fico aqui porque se o senhor doutor do 3.º
cometeu algum crime cabe à polícia prendê­‑lo.

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Administrador do 7.º — Muito bem, cada um escolhe o
campo que deseja. As senhoras escolheram o inimigo. Muito
bem. Fica registado que se puseram ao lado da perversão contra
a moral. Do lado dos que apanham no rabo com mata­‑moscas.
Luísa — E o senhor não ouviu dizer que era maricas?
Administrador do 7.º — Quem o disse foi o impostor do
3.º e vai pagar por isso.
Sara — Maricas é ele.
Luísa — Não tenho nada a ver com isso.
Administrador do 7.º — A senhora não percebe nada.
Eu vou­‑lhe explicar. O janota do 3.º juntou­‑se com o do 4.º e
com o do 2.º para criar uma nova empresa, percebe? Fez uma
coisa que a senhora se calhar nunca ouviu falar, fez lobbing
contra os admi­nistradores do 5.º, 6.º, 7.º e 8.º Percebeu? Sabe
o que é um lobby?
Luísa — Não sei, nem quero saber.
Sara — Então cala­‑te.
Administrador do 7.º — E depois de ter afastado os outros,
nos quais eu me incluo, mandou à fava aqueles com quem se
havia juntado. Tudo para ficar a reinar sozinho no prédio.
Entendeu agora?
Luísa — Eu só quero saber quem me vai pagar no fim
do mês!
Administrador do 7.º — Ah, assim já entendo. Essa é a
sua única preocupação.
Luísa — E chega.
Administrador do 7.º — Estamos a perder tempo, vamos,
peguem no que encontrarem que ele pode estar armado.
A violência está na ordem do dia. É preciso respeitar a moral.
Luísa (corre para as escadas de serviço e grita) — Socorro,
socorro, que vão matá­‑lo!

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Teresa — Vamos!
1.º Carregador — Vamos!
Sara — Vamos!
Todos — Vamos a ele!
(Ouve­‑se um disparo vindo do interior do prédio. Ficam
todos quietos e espantados. Aparece o administrador do 5.º
perseguido pelo tesoureiro Costa.)
Costa — Eu mato­‑te, seu malandro.
(O administrador do 5.º cai no chão e pede clemência.)
Costa — Agora é tarde, desgraçaste­‑me, mas vais pagar
por isso. Reza as tuas últimas orações. Toma!
(Dispara a arma, o administrador do 5.º morre. O tesou-
reiro corre e grita.)
Costa — Ninguém se mexa que eu venho já.
(Entra passados segundos com o administrador do 3.º preso
pelos colarinhos.)
Costa — Só falta este, já os limpei a todos.
Administrador do 3.º — Mas isto é um equívoco. Eu até nem
sou administrador, sou apenas um diretor de serviços, se houve
alguma coisa errada, a culpa deve­‑se à administração.
Costa — Eu já te dou o equívoco. Agora já não és admi-
nistrador. Mas para despedir, sim.
Administrador do 3.º — Oh senhor administrador do 7.º
faça alguma coisa, o Costa endoideceu.
Costa — Então e não era de endoidecer! Há 30 anos neste prédio!
Administrador do 7.º — Eu não tenho nada a ver com isso.
A moral acima de tudo. E o poder aos que trabalham.
Luísa — Meu Deus, como foi que isto chegou a este ponto!

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Administrador do 7.º — Então não sabe? Os pirilampos,
as azeitonas, essas teorias financeiras.
Luísa — Doida estou eu.
Sara — Isso já não é de hoje.
Administrador do 3.º — Eu explico. Tudo o que se passou
foi por causa da administração, eu apenas cumpri ordens.
Eu nunca despedi ninguém, nem a mim me competia fazê­‑lo.
Costa — E quem deu a ordem para desativar o prédio?
Administrador do 3.º — Eu só assinei, mas a ideia não
foi minha.
Costa — Senhor administrador do 7.º, uma palavra sua
sobre este assunto.
Administrador do 7.º — Os trabalhadores que decidam.
Administrador do 3.º — Mas isto não pode ser, só o tribunal
me pode condenar.
Costa — Os tribunais fecharam para férias e isto tem de
ser hoje resolvido.
Teresa — O tesoureiro que resolva.
Sara — Estou de acordo com ela.
Administrador do 7.º — Faça o que tem a fazer.
Luísa — Socorro, socorro!
(O tesoureiro obriga o administrador do 3.º a pegar na
arma que matou o administrador do 5.º e a apontá­‑la ao ca-
dáver. Dois agentes da polícia surgem à porta das escadas e
espreitam por cima da mobília.)
Um dos agentes — O senhor administrador, largue a arma
ou disparo.
(O administrador do 3.º nem tem tempo para pensar no que
lhe está a acontecer. O agente dispara e atinge o administrador

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do 3.º que fica ferido, a mexer­‑se. Salta por cima da mobília, pega
no suposto assassino e empurra­‑o para fora, pelo mesmo sítio.)
Agente — Acompanhe­‑me.
Costa — Senhor agente, o malandro matou o ­senhor admi-
nistrador do 5.º, somos todos testemunhas. Eu sou o tesoureiro
e estou às vossas ordens para o que for preciso.
A dministrador do 3.º — É um equívoco, não fui eu.
Agente — Pois, já se sabe, foi o santo padre.
Administrador do 7.º — Esse senhor é a nódoa do prédio.
Teresa — Acabaram­‑se os fantasmas.
(O outro agente pega no morto e arrasta­‑o também para
fora, por cima da mobília, deixando um rasto de sangue.)
Administrador do 7.º — Muito bem, senhor Costa, está
feita justiça. Nunca pensei que esta seria levada a cabo por
um tesoureiro.
C osta  — Eu só cá vim para isto. Recebi uma carta
em minha casa para assinar o meu próprio despedimento.
Já viu, eu estou em casa sossegado, chega uma carta registada
com aviso de receção a dizer que dispensam os meus serviços.
Administrador do 7.º — Eu também só cá vim ­porque este
era o meu último dia na firma. Como vê, eu estou aqui porque
decidi descer pelas escadas. Nunca imaginei que se passasse
tanta coisa interessante nas escadas de serviço do prédio.
Costa — Então o senhor é que é o administrador do 7.º
Administrador do 7.º — O próprio.
Costa — Mas eu matei­‑o ontem!
A dministrador do 7.º — Que eu desse por isso, não.
(Os outros sobem para o elevador, exceto o 1.º carre-
gador. O elevador para. Apenas se veem as pernas deles.)

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Costa — Essa agora, mas eu matei alguém no 7.º, uma
pessoa que disse que era o administrador.
Administrador do 7.º — Fez confusão.
Costa — Mas que eu matei uma pessoa no 7.º, isso matei!
Administrador do 7.º — Deve ter sido o meu assistente.
De facto, não o vi, apenas lhe vim buscar os óculos de que
ele se esquecera. Certamente foi ele que o senhor matou.
Normalmente, sempre que eu saía ele agia como se fosse ele
mesmo o administrador.
Costa — Então foi isso?
Administrador do 7.º — Claro que foi isso.
(Olham para os lados, o 1.º carregador junta­‑se a eles.)
Administrador do 7.º (com ar conspirativo) — Já se foram
todos embora. Apresento­‑lhe aqui o meu carregador de con-
fiança. Já podemos falar à vontade.
Costa — Foram­‑se todos embora.
Administrador do 7.º — Já podemos sair.
1.º C arregador  — Sempre pudemos, senhor doutor.
Administrador do 7.º — Vamos. Agora que o prédio está
desativado e é nosso já o podemos vender.
Costa — Empurra daí.
1.º Carregador — Tem de ser ao mesmo tempo. Agora.
Administrador do 7.º — Já está.
(O móvel sai com facilidade. O administrador do 7.º
fecha a luz.)

FIM

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O CONSTRUTOR

Peça em 11 quadros

Personagens:

Alex
Judite
Barão
Criada
Lili
Toni
Enfermeiro
Homem de Escuro
Médico
Outros

NOTA

A peça O Construtor foi selecionada, juntamente com


Rimance da Mal Maridada, de Teresa Rita Lopes, e Henri-
queta Emília da Conceição, de Mário Cláudio, para a final
do European Drama Award 94 (Prémio Europeu de Teatro),
organizado pelo Teatro Estadual de Kassel e pela editora Bernd
Bauer Verlag, de Berlim. Encontra­‑se traduzida em alemão
por Karin von Schweder­‑Schreiner.
A representação ou reprodução destas peças, no todo ou
em parte, por qualquer meio, dependem de autorização que
deverá ser solicitada à Sociedade Portuguesa de Autores, sob
pena de procedimento judicial.

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Quadro I

(Um espaço amplo onde estão desenhados edifícios, o


mapa da Europa, os Pirenéus, emissores de televisão, o mar e
aeroportos. Vê­‑se fruta pelo chão e restos de automóveis. Em
cena estão Judite e Alex e um homem com um fato escuro que
espreita e se esconde durante toda a peça.)
Alex — Onde está o meu boné?
Judite — Aí, é onde estava o meu saco.
Alex — Não pode ser, eu vi­‑o aqui há pouco. Pelo menos
foi aqui que o deixei, pendurado neste prego. Lembro­‑me bem,
estava a ouvir rádio e tirei­‑o da cabeça quando soube que o
deputado morreu. Ainda não estou doido, que eu saiba. Senão
já me teriam enviado o subsídio.
Judite — Já te disse que aí, precisamente, no lugar onde
agora existe um prego, estava o saco dos meus remédios, é só
isso que eu quero dizer.
Alex (mexe num cesto de fruta) — Então e esta laranja
também aqui estava no lugar onde dizes que tinhas os remédios?
Judite — Não confundas as coisas. Essa laranja comprei­‑a
hoje no minimercado, veio de Espanha, ninguém a pôs aí por
acaso, mas isso não tem nada a ver com o meu saco.
Alex (ouve rádio) — Lá está, mais um passo nas negocia-
ções. Eu bem dizia que sem diálogo não há guerra. Mas onde
está o meu boné? Sabes bem que eu não saio nunca sem boné.
Judite — Não sei para que te serve o boné, no fim de
contas não podes andar com a perna nesse estado.
Alex — Não posso porque ainda não recebi o subsídio, mas
assim que ele chegar, vais ver. Aliás, já marquei uma nova
operação ao joelho. E não quero outro médico, a não ser o da
firma. Nestes casos mandam vir um especialista da Alemanha.
Só eles é que podem mexer nos ferros. Eu explico­‑te…

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Judite (liga o televisor) — As tuas histórias de joelhos
comovem­‑me, de facto. Mas preferia falar antes da fruta.
Alex — O que tem a fruta?
Judite — Não sei se sabes que andam aí uns ­ homens a
atirá­‑la para a rua. Claro que não sabes, não vês televisão.
Desde que te aconteceu isso no joelho nunca mais viste televisão.
(Ouvem­‑se os lobos nas montanhas.)
Judite — Lá estão eles outra vez, os malditos!
Alex — Quem?
Judite — Os lobos, do outro lado da montanha. E estão
a vir para cá!
Alex — Mas quais lobos? Não ouço nada. Deve ser na
televisão.
Judite (atira panos e papéis para o sítio de onde vêm os
uivos) — É do lado de lá da fronteira, digo­‑te que são os lobos.
Tu não queres saber de nada.
Alex — Enquanto o subsídio não chegar, não mexo uma
palha. Eles prometeram­‑me, ou pensavas que eu me vinha
embora assim sem nada? Foi logo a seguir ao acidente, ainda
ia na ambulância e diz­‑me o enfermeiro: «Você está lixado,
acabou­‑se a boa vida». Mas qual boa vida, disse­‑lhe eu.
E ele a insistir, «está tramado, ninguém consegue trabalhar na
Alemanha depois de partir uma perna, já não é o primeiro que
eu levo para o hospital e só sai de lá com um papel assinado
para regressar a casa, ou então cortam­‑lhe a perna». E eu,
e bem que me doía o raio do joelho, respondi­‑lhe na mesma
moeda: Se fosse gozar com o seu avô! O que vale é que ele não
percebia o que eu dizia, eu percebia tudo e ele não entendia
nada. (Ouve o rádio.) Ora assim é que é, mais 17 mortos e
32 feridos. (Escreve numa folha.) Ora, mais 17 faz 443 mortos.
E mais 32 soma 5709 feridos. Eu sempre disse que sem diálogo
não há guerra, mas não me levam a sério.

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Judite (mexe no aparelho) — Sabes quando começa o outro
canal? Ah, para quê perguntar, tu nunca vês televisão!
Alex — O subsídio deve chegar hoje, pela minhas contas.
Não faz hoje anos que morreu o nosso filho?
(Um fax começa a trabalhar, chega uma mensagem. Alex
puxa­‑o com um cordel, sem sair do sítio onde está. Alguém
atira um embrulho pelo ar.)
Alex — Eu não te disse que o subsídio chegava hoje!
Judite (agarra o embrulho) — Devem ser os meus remédios,
pelo carimbo são mesmo. Em que dia estamos?
Alex (satisfeito) — Agora é que vão ver quem eu sou.
Este dinheiro em escudos é uma fortuna. Foi para isso que
eu trabalhei, ou não foi, diz lá, não foi?
Judite — Ai, meu Deus, os meus remédios!
Alex — Não faz hoje anos que morreu o nosso filho?
(Começa a ler o fax.) Não pode ser, eu conheço este nome. Não
pode ser, não pode ser. Um fax da Alemanha não pode estar
errado. Eu sei o que é a Alemanha. Eu vivi na Alemanha, eu
trabalhei na Alemanha, sei o que aquilo é. Não é possível haver
um erro destes. Eu conheço este nome, este nome, sim, o que
vem aqui a assinar este fax. Judite, lê­‑me aqui este papel, que
eu não acredito que seja assinado por quem é, não pode ser.
Judite (assustada, abre devagar o embrulho) — Mas isto
não são os meus remédios. Nunca recebi nada com este cheiro
e no entanto os selos são da Holanda.
Alex — Não seria melhor leres primeiro o fax?
Judite — Ter­‑se­‑ão os frascos partido? Não é costume,
na Holanda fazem sempre bem os embrulhos. Lembras­‑te da
minha coleção de moinhos de madeira? Vieram todos pelo
correio, sem uma única mossa. (Salta de cadeira.) Oh, o que
é isto, Alex, não acredito… uma perna!
Alex — Uma perna?

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Judite — Sim, uma perna humana.
Alex (coxeia) — Olha, lê lá o endereço. Deixa ver, tens ra-
zão, vem da Holanda e diz Judite Martim. Quem mais, além da
farmácia de Amesterdão, sabia que te chamavas Judite Martim?
Judite — E o fax, o que diz o fax, por que não o leste?
Alex — Sabes bem que eu nunca leio os faxes, é um
princípio. A mim, interessa­‑me apenas a assinatura de quem
escreve e neste caso deve haver um equívoco, não iria ficar
sem o subsídio devido a um pequeno lapso.
(O homem que entrara há pouco tem um apito. Assobia e
entra um enfermeiro acompanhado de um boletineiro.)
Enfermeiro — Senhor Alex Martim?
Alex — O próprio.
Enfermeiro — É que houve um engano, a perna pertence
ao seu vizinho, o senhor Barão de Auverney. Foi um equívoco,
peço­‑lhe que volte a embrulhar.
Judite — É o melhor!
Alex — Não embrulha nada. Isto é uma perna humana,
de mulher.
Enfermeiro — É um membro masculino, muito antigo,
que pertence ao senhor Barão. Como sabe, se não sabe devia
saber, o senhor Barão de Auverney, o seu vizinho, é o maior
especialista em pernas encontradas em minas.
(O homem de escuro apita, entra o Barão.)
Barão de Auverney — Meu caro Alex Martim, que situação
mais embaraçosa. Tudo não passa de um engano. Esta perna
nem sequer é da minha coleção, foi­‑me trazida por uma am-
bulância de Madrid. É tudo o que resta do meu sobrinho que
era diplomata naquela cidade. Foi um atentado, uma tragédia.
O seu último desejo era ser enterrado em Lisboa. Mas houve
este engano, peço perdão a sua esposa, D. Judite. A perna
não deve ficar mais de duas horas sem ser untada, pode ser
contagiosa, tenho que a levar.

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Alex — Não leva, então isto é assim, vem uma perna de um
diplomata ter a minha casa e eu não faço nada, não tomo uma
posição! Eu tenho a minha dignidade! Eu trabalhei na Alemanha
e recebi hoje mesmo um fax com o subsídio da minha reforma
antecipada. Ora lê lá, Judite. Eu tenho a minha dignidade!
(O enfermeiro tenta tirar a perna das mãos de ­ Judite,
seguido do boletineiro. O homem de escuro ­ espreita atrás de
uma cortina. Judite atira a perna a Alex.)
Judite (lê o fax) — Senhor Auvernay, o seu subsídio chega
nas próximas 48 horas. Pedimos desculpa pelo incómodo, mas
houve um lapso nos computadores…
Alex — Senhor Auvernay!
Barão — Eu mesmo.
Alex — Não é isso… o fax!
Judite — Eu bem dizia, eu sempre fui da opinião que
devíamos ter ido para a Holanda. Uma coisa destas na Ho-
landa não sucedia.
Barão — Se me é permitido…
Alex — Vamos esclarecer já este assunto. O meu subsídio,
que chegou hoje por fax, sim, o meu subsídio, no meu fax, diz
que dentro de 48 horas… Não acredito no que ouço, eu não estou
a ouvir certamente o que estou a tentar dizer, eu é que estou
a tentar explicar e não o senhor Barão. Como é que chega a
minha casa um subsídio para o senhor Barão, dirigido a mim, no
meu fax, mas que não é para mim, é para si, na minha casa…
Barão — Deixe­‑me expli…
Alex — Mas depressa porque eu tenho que sair. Judite,
onde é que puseste o meu boné? Eu tinha aqui, precisamente
neste prego, pendurado há pouco o meu boné e agora não está.
O senhor Barão é ­ capaz também de explicar à assistência o
que foi feito do meu boné?
Judite — E também por que razão eu recebi uma perna
humana, em vez dos meus remédios.

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Alex — Exatamente. Por que razão a minha ­mulher rece-
beu uma perna numa encomenda de avião, quando o que estava
à espera de receber era um pacote com remédios vindo expres-
samente de Hertogenbosch? Mas depressa, que eu vou sair.
Barão — Então, é assim…
(Entra a criada do Barão, traz um embrulho. O fax começa
a trabalhar. Ao longe ouvem­‑se explosões e raids de Migs.)
Criada (com sotaque brasileiro) — Senhor Barão, chegou
agora mesmo este embrulho para o senhor.
Barão — Está desfeito o equívoco, são os remédios da
senhora Judite Martim. Ora aqui está, vem da Holanda… os
selos, a cola, tudo certo… da Holanda.
Judite — Os meus remédios!
Alex — E já agora explique essa, como é que os remédios de
minha mulher foram parar a sua casa e a perna humana à minha?
Barão — É fácil, uma simples troca de números. O de
minha casa é o 6 e o da sua é o 9.
Alex — Não me convence. Os números poderiam estar
trocados, mas o que vem dentro dos embrulhos não coincide
com os nomes que estão escritos no exterior. O embrulho que
a minha mulher recebeu vinha de facto endereçado a ela e
trazia dentro uma perna humana de um diplomata, vinda
de Madrid, quando o que ela deveria ter recebido eram os
remédios da Holanda. E agora o senhor recebe da Holanda os
remédios da minha mulher quando o que deveria ter recebido
era a perna do seu sobrinho!
Judite — Uma perna de mulher!
Enfermeiro (tenta arrancar­‑lha da mão) — Então, não vê
que tem cabelos…
Judite — E a minha, não tem?
(Ouvem­‑se os lobos.)
Judite (atira a perna para o sítio dos uivos) — Malditos lobos!

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(Correm todos para lá. Alex pega na perna. O Barão abre o
embrulho e tira de dentro um braço. Esconde­‑o de imediato, aflito.)
Barão (para a criada) — Quem lhe entregou este embrulho?
Criada — Foi um estafeta.
Barão — Estafeta. Como era ele?
Criada — Trazia um capacete.
Barão — Na cabeça ou na mão?
Criada — Na cabeça.
Barão — Já sei.
Criada — Mas depois tirou­‑o.
Barão — Tirou­‑o?
Criada — Sim, tirou­‑o.
Barão — Tirou­‑o como?
Criada — Tirou­‑o com as mãos, da cabeça. Depois pô­‑lo
debaixo do braço esquerdo. A seguir deu­‑me o embrulho, olhou
para mim… deu­‑me este papel… olhou outra vez para mim…
e ficou à espera que o senhor Barão assinasse.
Barão — Então ele está ali fora à espera e a menina não
dizia nada!
(Correm todos e espreitam para um corredor.)
Barão — Foi­‑se embora. Já sei, era o francês. A uma hora destas!
Alex — Francês, qual francês?
Judite (arranca o embrulho das mãos do Barão) — Os
meus remédios, dê­‑me cá os meus remédios, essa agora!
Barão — Eu tenho que expli…
Judite (dá um grito) — Ai, eu não acredito, não acredito,
não, não, não.
Alex — Mas o que é que eu estou a ver… o que é que
eu estou a ver…

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Barão — É que houve um equívoco…
Alex — Uma mão! Agora que eu tinha que sair, eu não
aguento isto, Judite, o meu boné?
Judite (em choro) — Na Holanda não era assim, os meus
remédios chegavam sempre a horas.
Alex (irritado) — E o meu subsídio, o senhor Barão é capaz
de me dizer por que é que eu não recebi hoje o meu subsídio
e por que razão é que o senhor se encontra em minha casa?
Criada — O senhor Barão precisa de mim?
Barão — Prepare­‑me as seringas.
Criada — Sim, senhor Barão.
(O homem de escuro, meio escondido, atira azeitonas aos outros.)
Judite — Mosquitos, só faltavam os mosquitos.
(Começam todos a coçar­‑se e a matar mosquitos. Alex
abre uma torneira.)
Alex — Não há água, há três dias que nem corre uma
gota. E estes sacanas dos mosquitos.
Judite — Sabes bem que eu morro sem os meus remédios.
Alex — E senhor Barão, por acaso, por algum acaso mais
esquisito, não saberá por que razão a água falta há três dias?
Barão — Eu sou apenas um colecionador, senhor Alex,
posso responder­‑lhe pela perna e pelo braço. Mais do que isso…
Alex — Então, rua. Leve a perna, o braço e ponha­‑se na
rua. Ou pensa que alguma vez eu tive medo de barões?
Enfermeiro — Então, senhor Alex!
Alex (grita) — O meu boné, Judite, o meu boné!
Judite — Lobos, mosquitos. Na Holanda…
(Alguém atira um novo embrulho pelo ar. Ficam todos
suspensos. Hesitam. Ouvem­‑se sirenes, ao fundo passam ban-
deiras. Atiram­‑se depois como cães a um osso.)

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Alex (fugindo com o embrulho) — Alto! Estou ou não estou
em minha casa? Eu tenho a minha dignidade. Sou português,
estive na Alemanha e tenho um fax. Tenho portanto a minha
dignidade. E também esta navalha. E corto aquele que se
aproximar deste sítio onde estou. E vou até subir para este
banco e agora que estou mais alto que todos vocês eu digo
que esta casa é minha e tudo o que aqui está dentro foi pago
com o meu dinheiro. Não devo nada a ninguém… E agora,
calmamente, vou abrir este embrulho e verificar se o subsídio
que me mandam está correto.
Judite — Devem ser os meus remédios.
Alex — Sempre que recebo embrulhos do estrangeiro sinto
que estou vivo. Em Frankfurt recebia­‑os de manhã, por volta
das 11. Era um sul­‑americano que distribuía o correio nos es-
critórios, para todas as secções do armazém. Era um momento
de grande felicidade. Ia à casa de banho, com calma, abria os
pacotes, normalmente vinham cheios de queijos de ovelha, dos
mais pequenos, bem aconchegados. Outras vezes eram figos,
nozes e até quadradinhos de marmelada. Comia logo dois ou
três. Vinham embrulhados num pano e cobertos por um jornal.
Ia comendo e lendo as notícias, já velhas, mas era como se
fossem daquele dia: a morte do barbeiro, as bodas de ouro dos
velhos merceeiros, o fedor da ribeira, a nova ponte, o chafariz
que secou. Uma vez estava escrito que iam inaugurar uma
agência bancária num prédio com uma fachada verde. O povo
rejeitou. Ou tinha a fachada vermelha ou ninguém punha lá
dinheiro. Houve discussão e veio outra agência.
(Ouve­‑se uma sirene. Os outros escondem­‑se. Alex continua
a falar como se nada tivesse ouvido.)
… E depois apareceu também um café com um toldo ver-
melho. E mais ninguém construiu casas a não ser que fossem
vermelhas. Até o padre mandou pintar a capela de encarnado,
porque o povo não entrava. Então vieram as eleições e a terra
ficou toda azul, as ruas, os candeeiros, os telhados, os mastros
das bandeiras, porque eram as cores do rei e toda a gente séria
tem um rei para amar. Como eu. Para mim a monarquia é

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sinónimo de democracia. É assim na Inglaterra, na Holanda,
em Espanha, em todo o lado onde existem reis. No armazém,
eu dizia para os gajos: Os melhores reis do mundo foram os
de Portugal. Porquê? perguntavam eles. Porque tiveram as
rainhas mais lindas do universo, mais bonitas mesmo do que
as da Índia. E eles riam­‑se, não acreditavam. E eu falava
na rainha Santa Isabel, na D. Leonor, na Inês de Castro e
no D. Sebastião e eles calavam­‑se a ouvir­‑me, horas e horas,
eu a contar a História toda de Portugal desde o Viriato.
O armazém até fechava para me escutar. Uma vez nas greves,
em vez de discutirem, ficaram a ouvir a História de Portugal,
o D. Nuno Álvares Pereira, o D. Dinis. Qual é o único rei
do mundo que construiu sozinho um pinhal com as mãos?
E eles todos, os árabes, os turcos, os italianos: foi o D. Dinis.
E quem é que se entregou aos mouros? E eles: foi o D. Fernando.
E por aí fora, a História toda de Portugal até aos nossos dias…
Depois ficava a meditar na casa de banho, com os figos nas mãos
e a chorar, a pensar no meu filho. Judite, não faz hoje anos
que morreu o nosso filho? Até que vieram as eleições e toda a
gente da terra votou no rei, era o que dizia o jornal que embru-
lhava os queijos. Uma vez trazia uns artigos sobre laticínios…
(Alex olha para os lados, não vê ninguém, corre devagar
para o rádio e comenta em voz baixa.)
… Mais 29 faz 830 mortos e mais 204 feridos faz… 8974.
Assim mesmo, não lhes dar o flanco. Pois… Isso é que é falar.
Estão a brincar com o povo… Claro que é um país pequeno,
e depois? A Dinamarca também não é um país pequeno? Não
há condições? Arranjem­‑nas… Não é para isso que estão lá?…
Qual lutas intestinas, são os americanos e os franceses…
Qual partidos nem meios partidos… mais 14 mortos faz 844
e 50 feridos faz 4… 7 e 5… 12 e vai 1… dá 9024 feridos…
negociações, pois claro, senão não há guerra que aguente… Em
Oslo?… Para mim tanto faz, eu não vou lá… Só se receber o
subsídio! É verdade, o subsídio… o subsídio… (Abre o embrulho.)
Onde raio está o meu boné? Eu sempre disse que a Alemanha
é que era um país como deve ser, tudo sempre a horas, não

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falta nada, mas ela sempre a puxar para a Holanda… Eu
quero lá saber da Holanda! Eram as vacas, dizia ela. Queria
ir para lá por causa das vacas, das vacas e dos moinhos… Eu
quero lá saber das vacas! (Tira um jornal do bolso e lança­‑o
para o chão.) Nem a uma notícia teve direito… Judite, não é
hoje que faz anos que o nosso filho morreu? Ao menos que o
jornal falasse, dava­‑me esse contentamento, mas não… Mais
17 mortos dá 861 e 40 feridos faz 9064.

Quadro II

(Alex e Judite de novo sozinhos. Chega a sobrinha com


duas crianças, uma branca e uma preta.)
Judite — A minha sobrinha!
Lili — Julguei que não conseguia chegar.
Judite — Esperava­‑te ontem.
Lili — Não receberam o meu fax?
Judite — Alex, chegou ontem algum fax da Lili?
Lili — Olá, tio!
Alex — Para quem, para mim ou para o Barão?
Lili — O Barão?
Judite — Não ligues, enquanto não fizer a operação ao
joelho, ninguém o consegue aturar.
Lili — Mas ouvi dizer que a seguradora tinha mandado
o Doutor Kruss para operar.
Judite — Trouxeste os meus remédios?
Lili — Que remédios, tia?
Judite — Os remédios que eu te pedi para trazeres da Holanda!
Lili — Mas eu há dois anos que vivo no Luxemburgo.
Judite — Não recebeste um fax a pedir­‑te os remédios?
Lili — Mas eu não tenho fax.

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Judite — Alex, então os faxes que tu mandavas à Lili?
Alex — Os faxes… os faxes… Eu quero é o meu subsídio.
Judite — Todos os dias ele te mandava um fax.
Lili — Mas eu não tenho fax.
Judite — Nesse caso não me trouxeste os remédios!
Alex — Ela nunca me respondeu. Todos os dias lhe mandei
faxes e nunca obtive resposta. De quem são estas crianças?
Lili — São minhas.
Alex — Tuas? Afinal sempre tens crianças?
Lili — Sim, minhas.
Alex — As duas?
Lili — As duas.
Alex — Aquela também?
Lili — Aquela também.
Alex — A preta?
Lili — A preta.
Alex — Está bem.
Judite — Mas porquê preta, Lili?
Lili — Foi as que apanhei.
Alex — Espera aí… Apanhaste?
Lili — Pronto, as crianças são minhas, mas não fui eu
que as fiz, pronto, são adotadas, não têm nem mãe nem pai…
Alex — Encontraste­‑as, assim, como hei de dizer, no lixo.
Lili — Ora, tio! O que é feito do primo?
Alex — O meu filho saiu, não deve voltar. E, aliás, eu
tenho também de sair. Onde é que o meu boné foi parar?
Judite — O teu primo casou, foi para África.

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Alex — Isso mesmo, partiu para África, não recebeste um
fax com a notícia?
Lili — Mas eu não tenho fax, já disse.
Alex — Pois foi, eu avisei­‑te para a Holanda da sua ida,
do casamento, de tudo, mas tu nunca respondeste.
Lili — Eu não vivo na Holanda há dois anos, como podia eu saber?
Alex — Podias ter telefonado.
Lili — E onde está o telefone? Os tios não têm telefone.
Judite — Foi desde que o teu tio fez aquilo na perna,
cortámos o telefone. Mas isso foi depois de o teu primo ter
saído, antes tínhamos um telefone vermelho com teclas, tal
como o teclado daquele fax. Mas o teu tio cortou­‑o.
L ili  — Então e não se lhe pode mandar um fax?
Alex — Ninguém mexe no fax até vir o meu subsídio,
porque eu recebo um subsídio, não preciso de esmolas. Mas
que fazem estas crianças em minha casa?
Judite — Porquê uma criança preta, Lili? E a outra, não
parece portuguesa.
Lili — Deixem­‑nas dormir. Também eu estou cansada, a
viagem demorou o dobro do tempo.
Alex — E não há um homem no meio disso?
Lili — Vou fazer um chá. Têm bolachas?
Judite — Um homem faz sempre falta quando há crianças.
Era o teu primo que dizia.
Alex — Eu não me vou embora sem encontrar o raio do boné.
Judite — Ontem chegou uma encomenda, mas o teu tio
não a mostrou a ninguém. Tudo o que vem da Alemanha, ele
esconde. Na outra semana vieram uns frascos de salsichas,
eram para nós, mas foram entregá­‑las ao Barão.
Lili — É a segunda vez que falam no Barão.

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J udite  — Soubemos mais tarde, pelo fax. Felizmente
estavam fora de prazo. Não sei se te disse que abriram um
minimercado ali na rua.
Alex — O filho já devia cá estar.
Lili — Hoje?
Judite — Avisou que vinha passar umas férias cá em
casa, mas o teu tio respondeu­‑lhe que só depois de receber
o subsídio.
Lili — Da Alemanha?
Alex — Conto recebê­‑lo dentro de duas horas, pelas minhas
contas. Já no mês passado foi assim. À hora que eu marquei
no cronómetro, ele chegou.
Lili — Se for como no Luxemburgo, nem daqui a três dias!
Alex — Eu estou a falar da Alemanha, não estou?
Lili — O tio não sabe o que se passa…
Alex — O que se passa é que eles me pagam um subsí­dio
e por isso eu não tenho que andar a pedir esmola.
Lili — E o dinheiro que estava no banco?
Alex — Pergunta à tua tia.
Judite — Foi todo para os meus remédios da Holanda.
Lili — E o dinheiro que eu enviei todos os meses em
nome das crianças?
Alex — Julgas que eu alguma vez acreditei que os filhos
fossem teus?
Judite — Era a minha saúde que estava em causa.
Alex — Se o meu filho aqui estivesse, nada disto acontecia,
só ele sabe arranjar o fax. Há mais de seis meses que está
avariado, recebe os do Barão, mas ninguém sabe para onde vão
os meus. É a primeira vez que isso me acontece com os alemães.

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Lili — Vou beber o chá, não quero falar mais, pronto,
preciso de pensar. Se o primo voltasse ­ depressa, quem iria
para África era eu.
Judite — Deixaste de vez o Luxemburgo?
Lili — Para sempre.
Alex — Podias ir para a Alemanha.
Lili — Onde é que vocês têm a cabeça, não veem televisão?
Judite — O teu tio desde que tem aquilo no joelho nem
olha para o aparelho.
Lili — Está toda a gente a vir­‑se embora, pronto, não
há trabalho. É por toda a Europa. Queriam pôr­‑me a fazer
a rua, porque era estrangeira. Chamaram­‑me à esquadra e
perguntaram­‑me por que tinha eu uma criança preta em casa.
Pronto, que queriam que eu dissesse? Que a tinha lavado com
graxa! Ameaçaram­‑me, nunca mais me deixaram em paz. Não
a queriam na escola. A outra estava bem, é do Leste, mas
estava bem, agora a africana, não. Pronto, quiseram queimar­
‑me a casa. Fugi, que mais podia eu fazer?
Alex — Isso na Alemanha não acontecia e eu sei o que
estou a dizer.
Lili — Luxemburgo, Alemanha, não quero saber disso.
Que pena o primo não estar aqui!
Judite — Saiu, mas deve estar a chegar com os meus
remédios.
Alex — Quando vier o meu subsídio tudo fica resolvido.
Lili — Vou dormir. Se pudesse esquecer tudo e voltar
atrás, nunca tinha saído desta terra. Não sei, pronto, agora
tenho aquelas duas crianças para tratar.
(Lili, ao deitar­‑se, descobre um embrulho. Abre­‑o e vê uma
caveira. Fica em pânico.)
Lili — O que é isto?
Alex — O quê?

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Lili — Isto!
Alex — Deve ser do Barão. Se é um osso, é do Barão!
Judite — Não são os meus remédios?
Lili — Não, é uma caveira, meu Deus!
Alex — Judite, não é hoje que o nosso filho faz anos?
Judite — Sabes bem que o nosso filho morreu, por que
insistes nessa mentira?
Alex — Eu? Quem disse que ele tinha ido para África,
fui eu ou foste tu?
Judite — Eu apenas disse que ele tinha saído para me ir
buscar os remédios…
Alex — Eu é que vou sair. Foi aqui neste prego que eu deixei
o boné e agora a tua tia julga que neste sítio tinha o saco. Ora o
teu primo quando chegou de França vinha numa jarra com cinzas.
Judite — Eu não disse que era o nosso filho.
Alex — Então quem era?
(Ouvem­‑se os lobos.)
Judite — Malditos lobos!
Alex — Não ouço nada.
Judite — Lá estão eles outra vez…

Quadro III
(Em casa do Barão. Um escritório com livros, estatuetas e
objetos científicos. Uma secretária e uma cadeira enormes, com
uma escada por onde sobe e desce constantemente. Tem um chicote
na mão. Alex entra com um saco pesado às costas, cheio de ossos.)
Alex — Foi tudo o que consegui.
Barão — A sua conduta foi execrável, falar­‑me nesse tom
em sua casa foi uma afronta.
Alex — Assim ninguém desconfia.

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Barão — Mas não é necessário. Nunca se esqueça de
quem eu sou.
Alex — São 30 kg de ossos.
Barão — As ordens que eu tenho é de fornecer rapidamente
800 kg de ossos para a fronteira.
Alex — Mas para isso são precisos muitos mais dias.
Barão — Tenho 48 horas para enviar a encomenda e ainda
só juntei 85 quilos de ossos. É preciso pôr toda a gente a mexer,
ir aos cemitérios, às traseiras dos escritórios, ao Parlamento,
aos balneários públicos, a todo o lado onde haja ossos. Não se
pode construir um país sem ossos. Como os consegue não sei,
nem estou disposto a instaurar nenhum inquérito, contanto
que me tragam a quantidade estipulada. Veja aqui esta fatura.
Trezentos ossos de diversos tamanhos e feitios. E o carimbo,
veja o carimbo, não lhe diz nada?
Alex — Nada.
Barão — Ainda bem, o que é preciso é respondermos com
eficiência a este pedido, pois está em causa o futuro do país.
Alex — A Alemanha, em causa?
Barão — Estou a referir­‑me à Europa. Nunca ouviu falar
da Europa?
Alex — Já.
Barão — Ainda bem, É para lá que estamos a preparar a
encomenda. Até agora, só me chegou a perna de um diplomata,
a mão de um polícia e o crânio de um engenheiro e todos gente
que eu conhecia. Estou à espera dos esqueletos de dois parentes
da Grécia. Penso que compreende o que quero dizer.
Alex — Não.
Barão — Se chegarem por encomenda a sua casa, já sabe
do que se trata, de dois esqueletos. Mas escusa de avisar a
Judite, aliás ela não necessita de saber nada do que se passa
nestes edifícios, sobretudo do nosso negócio de ossos.

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Alex — Pois sim, mas quando recebo o meu subsídio?
É a primeira vez que me falham.
Barão — Estou a tratar disso. É um processo cada vez mais
difícil. Houve um engano no seu número de código e andam à
procura de quem o terá recebido por si. Demorará algum tempo,
mas tem é que se preocupar com a recolha dos ossos.
(Entra a criada com uma seringa e espeta­‑a no braço do Barão.)
Barão — Hoje pode servir também ao senhor Martim.
Alex — E o Doutor Kruss? Ficou de vir há três dias. O meu
joelho está cada vez mais inchado e corro o risco de não poder andar.
Barão (estremece e brande o chicote) — Sem ossos não há
subsídio, pensei que tivesse compreendido que agora estamos
na Europa.
Alex — Então e a Alemanha?
Barão — Proíbo­‑o de falar nesse nome. A Alemanha já não
existe. Aliás, esse país nunca existiu, foi uma invenção do Leste.
Alex — Mas eu trabalhei lá!
Barão — Aconselho­‑o a medir as palavras e a estar consciente
de que daqui para o futuro todos os papéis serão alterados, carim-
bos, selos, certidões, tudo. É para isso que são necessários ossos.
Alex — O senhor Barão desculpe, mas como vou comer
sem o subsídio?
Barão — Não é problema meu.
Alex — Eu acho que a Judite desconfia. Dantes não ouvia
os lobos e neste momento é a toda a hora. E eu já não sei se eles
existem na realidade ou se são uma invenção da cabeça dela.
Barão — O importante é que o negócio continue, com lobos
ou sem lobos. E agora desapareça!
A lex  — E se lhe propuser um outro negócio, acha
que poderia acelerar o processo relativo ao meu subsídio?
Barão — É de ossos?

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Alex — Trata­‑se de crianças.
Barão — Fale baixo. Como disse? De crianças?
Alex — De duas crianças.
Barão — De esqueletos ou de crianças vivas?
Alex — Vivas. Mas por enquanto não posso dizer mais nada.
Barão — Sendo assim, vivas… Talvez eu possa fazer com
que se implemente o envio com urgência do seu subsídio.
Alex — Obrigado, senhor Barão!

Quadro IV

(A criada anuncia a chegada de Judite com um embrulho.


Alex foge. O Barão torna­‑se melodramático.)
Judite — Senhor Barão, temos que ser rápidos, o meu
marido adormeceu.
Barão — Que temos hoje?
Judite — Uma caveira. Consegui descobrir onde a minha
sobrinha a escondera.
Barão — Mas que boa servidora!
Judite — Posso ver o meu filho?
Barão — Tenha paciência, cara Judite, estas coisas levam
o seu tempo. Os seus remédios já chegaram?
Judite — Ainda não, senhor Barão.
Barão — Mas eu telegrafei a pedir os seus remédios com
urgência.
Judite — Posso ver então o meu filho?
Barão — Não sabe os riscos que eu corro cada vez que
mando vir o seu filho, nem as humilhações por que passo
para mover essas influências. Tudo isso, tudo por uma mãe
que ama o seu filho.

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Judite (suplicante) — Posso vê­‑lo?
Barão — E o que combinámos?
Judite — Ela chegou e eu já lhe falei no senhor Barão.
Barão — E veio bonita?
Judite — Como sempre.
Barão — Lembra­‑se de mim?
Judite — Não lhe disse quem era, apenas um senhor
Barão amigo da família.
Barão — Então não se recorda de nada. Ainda bem. Era
ainda uma menina.
Judite — Posso vê­‑lo?
Barão (zangado) — Preciso de estar com Lili o mais rápido
possível, é um dever, é imprescindível para a construção deste
país. Desde quando uma jovem mulher regressada da Holanda
se pavoneia por aí sem vir ao meu gabinete?
Judite — Do Luxemburgo, senhor Barão.
Barão — Não me interrompa. O Luxemburgo não existe.
Trata­‑se da Europa e quando eu falo da Europa, à minha
frente ninguém tem o direito de citar o Luxemburgo. Nem
sequer a Holanda. A Holanda também não existe.
Judite — Senhor Barão…
Barão — Quando digo que quero a Lili para mim, é por
isso, porque a Europa precisa de jovens mulheres, precisa de
carne fresca. Por que pensa que elas vêm ao meu gabinete?
Porque é aqui no meio destes livros e destes utensílios que a
Europa está a ser construída.
(Do teto desce uma jaula pequena com o filho de Judite.
Esta corre para ele e pendura­‑se nas grades.)
Barão (discursa e cospe de vez em quando) — As pessoas
são curiosas, pensam que os países são uma coisa fundamental
para a existência. A terra, o que é a terra? Alguém é capaz de

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me apontar um país, um único que seja, onde não se processe
um negócio de ossos? Quantos mortos passam diariamente por
um ecrã… 20… 70… 150, talvez 300. E desse número quantos
desejariam na realidade morrer? 5… 6… talvez uma dúzia.
Digo, na realidade…
(Entra a criada com outra seringa e espeta­‑a no braço
do Barão.)
… porque alguns deles seriam capazes de dar a vida
por uma causa justa, para defender a mãe, um filho ou um
irmão. E desses quantos não teriam deixado dedos e mãos pelo
caminho, quantos não seriam loucos, surdos, coxos, quantos
não estariam apodrecendo em prisões e nos hospitais! Dizem
que eu sou um barão lunático por ter a visão global de uma
Europa para todos os cidadãos. Lunático seria se não os obri-
gasse a passar pelo meu gabinete, se não os testasse. Porque
um verdadeiro político tem de saber com que cidadãos é que
conta. O que mais me irrita é a incompetência. Não é o roubo,
nem o crime, nem o suicídio. É a incompetência…
(O Barão faz um sinal à criada e fica a resmungar a um
canto. Judite chora. A criada entrega a seringa a Judite e esta
espeta­‑a devagar no corpo do filho, que dá um grito rouco de
animal. A jaula sobe levando Judite e a criada agarradas.
As duas descem logo a seguir por cordas.)
Barão (com o chicote, para a criada) — Quantas vezes te-
nho que avisar que ela não deve acompanhar o filho ao telhado.
Criada — Está tudo controlado, senhor Barão.
Barão — Tem a certeza de que ninguém os viu no telhado?
Criada — Ninguém.
Barão — É preciso tornar a repetir­‑lhe que estou a cons-
truir a Europa e que ninguém pode ser visto no meu telhado.
Tudo pode ir por água abaixo por sua causa.
Criada — Mas eu sou brasileira, senhor Barão, e o senhor
sempre me disse que não fazia mal sentar­‑me no telhado,
porque se via que eu não pertenço à Europa.

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Barão — Já falou de mais, desapareça.
Judite — A culpa é minha, senhor Barão.
Barão — Minha cara Judite, eu aprecio o cuidado que tem
com o seu filho. Mas ele agora pertence a uma outra versão dos
acontecimentos. Nada se passa como a senhora vê na televisão.
O mundo está diferente. Os filhos já não pertencem aos pais,
pertencem à causa, fazem parte da Europa. É por isso que
passam pelo meu gabinete. Veja aqui este papel, repare na
fotografia. É o seu filho. Não vê o carimbo? E a assinatura?
Sou eu que assino a chegada dos jovens à Europa. Sou eu
que lhes vejo os dentes, as axilas, os testículos. Não é que
eu goste, porque tenho o meu projeto próprio para a Europa,
mas incumbiram­‑me de o fazer. Note bem, Judite, são poucos
os que voltam. E porquê o seu filho? Porque ele nasceu neste
prédio, porque os meus vizinhos têm mais direitos do que os
outros. E a Lili também terá esse direito, porque é a sobrinha
dos meus vizinhos.
Judite (esgotada) — Os meus remédios quando vêm, se-
nhor Barão?
Barão — Eu vou tratar disso. Não pode é dizer nada ao
senhor Alex sob pena de comprometer o nosso compromisso.
Judite — Deixo­‑lhe a caveira, mas sem os meus remédios
sabe que morro, nem forças tenho para roubar mais ossos.
Barão — Não pense nisso, traga­‑me mas é a sua sobrinha
e terá os seus remédios.
Judite — Obrigado, senhor Barão.

Quadro V

(Em casa de Alex. Lili brinca com as crianças.)


Alex — Chegaste tarde!
Judite — Fui à farmácia, podia ter havido um engano.
Alex — Na farmácia?

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Judite — Podiam ter enviado para lá o embrulho, como
se trata de remédios…
Lili — Eu posso ir lá mais logo.
Alex — Talvez seja melhor, antes que a tua tia morra para
aí! Se eu pudesse, mas não me convém sair sem o boné.
Lili — Eu vou.
Judite — Que idade têm os meninos?
Lili — Quatro anos.
Alex — Parecem mais velhos.
Judite — Estão muito crescidos.
Lili — Eu já vos tinha dito a idade deles!
Judite — Não ouvi.
Alex — Sempre com a televisão acesa, como é possível
ouvires o que quer que seja?
Judite — A ti, dispenso.
Alex — Sim, mas com a tua sobrinha é diferente. Podes
ir, Lili, eu tomo conta das crianças.
Lili — Não é necessário, eles passam o tempo a dormir.
Assim que viro costas, adormecem.
Judite — Já tinha reparado que elas não são como as
outras, nunca as ouvi chorar.
Alex — Então não ouviste, ontem, quando um delas caiu
da cama?
Judite — Isso eram os lobos. Tu sempre confundiste o choro
das crianças com o uivar dos lobos. Já quando era do nosso
filho, fazias o mesmo, levantavas­‑te para disparar sobre os
lobos. E no entanto era o nosso filho que chorava com pesadelos.
Lili — Estes não têm pesadelos, graças a Deus!
Alex — E não foi uma noite nem duas. Não passava uma
que não lhe mandasse chumbo para o lombo. Quero lá saber

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dos lobos. Por mim, matavam­‑se todos os animais ao cimo da
terra, queria lá saber! É só confusão. Na fábrica…
Judite — Lá está outra vez com a fábrica. Se o médico viesse
e lhe cortasse o joelho, já não tinha tempo para aquelas histórias!
Lili — Ai, tia!
Alex — … Um dia apareceu um urso, tinha fugido de um
circo. Escondeu­‑se nas máquinas, pensava que eram jaulas.
Ninguém se quis aproximar, isso é que foi. Que venha o portu-
guês! — gritou o administrador. Foi num instante, o urso olhava
para mim encostado à máquina, ele de um lado e eu do outro.
Estendia­‑lhe a mão e ele esticava uma pata a ver se me agar-
rava, depois o pescoço, para me comer. Estivemos assim, nesta
luta, e eu a olhar para o botão, era só um gesto e a guilhotina
cortava­‑o em dois. Mas ele seguia­‑me com os olhos, o malandro,
E eu então fingi­‑me ­bêbado, a cabeça a andar à roda, as mãos
na cabeça. O desgraçado ficou quieto, não percebeu, e eu então,
num repetente, zás. Toquei no botão e apanhei­‑o. Ficou em
bocados. O sangue parecia tinta. Era tanta que foram precisos
mais de 30 baldes. Que era tarefa de eletricista, disseram os
outros, mas eu disse­‑lhe logo: Em Portugal é assim que se
faz a História, ou se ganha ou se morre, não há meias tintas!
Toda a gente se calou.
Judite — Já está?
Alex — O que foi?
Lili — Não vão discutir, pois não?
Alex — Se não fosse as crianças estarem a dormir…
Judite — Vai lá, filha, antes que a farmácia feche.
Alex — Sim, vai.
Lili — Está bem. Olhem pelos meus meninos!
(Alex ouve rádio e resmunga. Judite mexe no aparelho.
Os dois, separadamente, observam de perto as crianças e voltam
para o local onde estavam. Falam baixo, com alguma cumplicidade
com o público, mas de modo a que não se ouçam um ao outro.)

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Alex — Oram vejam estes dois pombinhos. Devem pesar
bem 30 kg, talvez até 50. Quietos, não acordem, que é o vosso
tio. O Barão vai ficar contente. Mas ele não pense que vai
ser de borla. Ou o meu subsídio chega ou ele nem lhes toca.
Tão certo como eu chamar­‑me Alex. Nem parecem pessoas,
coitados. Deixa ver… (Pica­‑os com uma agulha.) Nem um ai!
A carne hoje em dia… Querem ver que… (Tira um sapato a
um deles e morde­‑lhe o calcanhar.) Nada!
Judite — Não me convenço, um preto e um branco! Qual
deles pesará mais? (Pega no preto.) Talvez este! Que dirá o
Barão? É a primeira vez que lhe vou apresentar ossos desta
cor. Ele agora é que vai ver se posso ou não ver o meu filho!
Devem pesar mais de 70 kg. (Ausculta­‑os, mete­‑lhes uma mão
dentro da roupa.) Nada, parece que não existem. Onde terá a
Lili encontrado estas crianças?
Alex — Não posso perder tempo. Tenho de falar com o
Barão antes que a Lili chegue. Não vai acreditar!
Judite — Se fossem mesmo filhos dela, não seria capaz,
mas assim, sabe­‑se lá onde os foi encontrar! Nalguma lixeira.
Era capaz disso. Ela nunca foi muito direita. Se o Barão lá
estivesse agora, tratava já do assunto. Não, ela pode chegar.
Alex — Não os posso levar assim, preciso de me concentrar.
Ainda bem que aquela não larga a televisão, se desse por isso
não sei o que podia acontecer!
Judite — Bendito o homem que inventou os rádios, senão
aquele doido ainda fazia uma asneira se soubesse que vou
vender as crianças ao Barão. Talvez seja melhor esperar que
o médico lhe corte a perna!
Alex — Se os remédios não chegarem ela vai desta para
melhor! Então posso negociar à vontade com o Barão. Não me
vai negar o subsídio quando vir estes dois rebentos tão tenrinhos!
Judite — O pior é a Lili, quando chegar ao pé da cama
e reparar que as crianças não estão lá! Digo­‑lhe que fugiram
para os pais, ou melhor, que os pais apareceram e os levaram,

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pois, que veio um casal do Luxemburgo e perguntou por duas
crianças, uma preta e uma branca, e então eu não pude fazer
outra coisa senão entregar­‑lhas.
Alex — À Lili, digo­‑lhe que veio cá um senhor da polícia
holandesa com um advogado buscar as crianças. Quem me diz
a mim que as crianças não são roubadas!
(Os dois cruzam­‑se e ficam atrapalhados.)
Alex — O meu boné devia estar aqui…
Judite — Parece­‑me ter visto um lobo…
Alex — Precisava de sair…
Judite — A farmácia já deve ter fechado…
Alex — Ah, o que dizes?
Judite — O aparelho… passou­‑se qualquer coisa com o
novo canal!
Alex — Pensava que estavas a falar do fax, não faz mal,
daqui a pouco o subsídio deve chegar…
J udite  — Está bem, vou­‑me sentar, estou cansada.
Alex — Lá fora deve estar calor, talvez seja melhor fechar
aquela janela!
Judite — As crianças, estão a dormir?
Alex — Sim, estão.
Judite — Coitadinhas, vieram de tão longe!

Quadro VI

(Em casa do Barão. Encontro com Lili.)


Barão — Finalmente!
Lili — Finalmente!
Barão — Demoraste a chegar!
Lili — Oh, Barão!

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Barão — Trouxeste o material?
Lili — Sim.
Barão — Quantos?
Lili — Dois.
Barão — Só?
Lili — Mas é um de cada cor!
Barão — E quanto pesam?
Lili — 100 kg.
Barão — Ótimo.
Lili — Oh, Barão!
Barão (abraçam­‑se) — Minha couve! Como posso eu viver
sem esse teu cheiro?
Lili — E ele, como está?
Barão — Bem, como sempre doidinho por ti!
Lili — Quero vê­‑lo.
Barão — Minha couve, sabes bem que nada te posso negar,
mas as ordens são para que ele não seja visto com ninguém.
Nem podia ser de outra maneira.
Lili — Não quero saber dessa história da Europa, já a sei
de cor. Tudo o que eu quero é ver o meu primo.
Barão — Então, Lili, já te esqueceste que eu sempre te
tratei bem…
Lili — Já esqueci.
Barão — Tu és a única a quem tudo é permitido.
Lili — Como é? É o mesmo de sempre?
Barão — Lili!
Lili — Não adianta. Se é o mesmo, vamos a isso!
(Entra a criada com uma bandeja enorme coberta de
objetos de tortura.)

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Criada — O senhor Barão chamou?
Barão — Venha cá.
Criada — Sim, senhor Barão.
Barão — Já conhece a menina Lili?
Criada (despeitada) — Já ouvi falar.
Barão — Ouviu falar?
Criada — A D. Judite falou­‑me.
Barão — O que é que ela lhe disse?
Criada — Que a menina Lili estava no Luxemburgo e que
tinha casado com um professor universitário.
Barão — Ela disse­‑lhe isso?
Criada — Disse.
Barão — E que mais?
Criada — Mais nada.
Barão (ameaçador) — E que mais?
Criada — Não posso dizer.
Barão (batendo­‑lhe com um ferro) — Diga…
Criada — Que era uma mulher da rua, uma desavergonhada…
Barão — E mais… mais…
Criada — Uma megera, uma ordinária…
Barão (excitado) — E mais… diga mais…
Criada — Que era uma puta.
Barão — E outras coisas… mais…
(A criada espeta uma agulha no braço do Barão. Lili espeta­
‑se a ela mesma e pega depois num chicote e numa turquês
em brasa. O primo vai descendo lentamente dentro da jaula.)
Barão — E que mais… diga… diga…
Criada — Uma puta!

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Lili (começa a bater­‑lhe) — Sim, puta!
Barão — Sim, Lili, e o que fazias?
Lili — Estava a construir a Europa!
Barão — Sim, a Europa… a Europa!
Criada (bate­‑lhe também) — A Europa! Estava no Lu-
xemburgo, a construir a Europa, e depois na Holanda, eu
sei lá onde ela esteve, mas sempre na Europa, na Europa, a
Europa, a Europ…
(Lili corre para o primo. A criada continua a bater­‑lhe
até se cansar.)
Lili — Meu amor!

Quadro VII

(Em casa de Alex e Judite. Entra o médico e sai após


tratar Alex.)
Médico — Nunca pensei chegar tão cedo. O trabalho aumentou
nas últimas semanas e a minha capacidade de reação tem limites.
Alex — A culpa não foi minha, enviei o fax com tempo…
Médico — Claro, ninguém o acusa de nada. Mas esse fax
só me foi entregue dois dias depois de ter chegado. Foi recebido
num outro serviço, para doentes renais, e não conseguiram de
imediato localizar a sua ficha de papel. Faltou a luz nesse
dia e todos os ficheiros dos computadores desapareceram.
O técnico estava ausente… Mas o que interessa é que estou
aqui para o tratar!
Judite — Em boa hora chegou, porque o meu marido está
à beira da loucura.
Médico — Vamos lá então! Dispa­‑se.
Judite — Não sei se o senhor doutor conhece a Holanda,
mas no que respeita à medicina, é do melhor.
Médico — Não conheço.

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Judite (despeja um saco de remédios) — Doutor Veil,
gostava que me desse uma opinião sobre os medicamentos
que ando a tomar.
Médico — Se eu souber! Mas o meu nome não é Veil, é
Vail, e tem um W. Deite­‑se.
Judite — Tenho aqui um que nunca tomei… Ainda está
no prazo… chama­‑se… O nome está riscado, foi ele de certeza,
desde que o joelho inchou deu­‑lhe para me rasgar as caixas
dos remédios e riscar tudo com um lápis.
Médico — Vire­‑se. Não precisa tirar as calças.
Alex — Mas, doutor Weii, o joelho…
Médico — Eu sei por que estou aqui, não necessita dizer­
‑me, vire­‑se e fique em tronco nu.
Judite — Este, por exemplo, o Octofene, para os brônquios…
Médico (espeta uma agulha no braço de Alex) — A minha
especialidade são as doenças infecciosas, a Leptospirose. Já
ouviu falar da Leptospirose?
Judite — E este, a Farmorubicina…
Alex (adormece) — Doutor Weil, o joe…
Médico — O seu marido alguma vez trabalhou nos esgotos?
Judite — Que eu saiba não.
Médico (serra­‑lhe o braço) — O que me informaram é que
ele andou numa mina nos arredores de ­ Dusseldorf e que terá
sido contaminado pela Leptospira Icterohemorrágica, como
sabe, um parasita dos ratos.
Judite — O senhor doutor deve saber, mas do que ele
se queixava era do joelho e foi isso que explicou no fax.
Médico — No relatório que me entregaram falavam de
um cotovelo. A partir de agora ele não deve tomar banho em
águas duvidosas.

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Judite — E este, o Syraprim? Será que me vão enviar o
Syraprim da Holanda?
Médico — Talvez, mas tenha atenção, porque o Syraprim
possui Tn­‑metoprin, que é um produto contraindicado em
doentes de insuficiência renal grave.
Judite (agarra no braço de Alex e esconde­‑o) — Era mesmo
preciso cortar­‑lhe o braço, senhor doutor?
M édico  — Era a indicação que eu tinha da Europa.
Judite — Quando ele acordar, o que lhe digo?
Médico (sai) — Que eu vou voltar! Tape­‑o bem, não pode
perder calor, por causa da hemorragia.
(Ouvem­‑se os lobos e estrondos de granadas. Judite atira
com os remédios. Entra Lili.)
Judite — Não aguento mais isto, vou morrer.
Lili — Não havia nada na farmácia. Cruzei­‑me com um
senhor, ia a rir­‑se sozinho.
Judite — Deve ser o médico, cortou o braço ao teu tio,
em vez da perna.
Lili — E agora?
Alex (acorda) — Já está? O médico?
Judite — Foi­‑se embora.
Alex — E a perna, tratou­‑me a perna?
Judite — Não sei, estava a ver televisão. Essas coisas de
hospitais metem­‑me nervos…
Lili — Então e agora?
Alex — Agora o quê?
Lili — O braço?
Alex — Qual braço?
Lili — O do tio.

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Alex (apercebe­‑se de que não tem braço, começa a gritar
e a bater no fax, depois fica a um canto a gemer) — Eu logo
vi, este médico não era alemão. Quando olhei para a agulha
pressenti o pior, não pensei que o efeito fosse tão rápido.
Judite — Ele disse que voltava.
Alex — Voltava? Para quê?
Judite — Não sei, disse que era melhor cortar o braço
antes que fosse contaminado pela perna. Parece que é um
estudo que andavam a fazer!
Alex — Ele disse isso?
Judite — Não, mas eu vi logo. Aconteceu o mesmo na
Holanda…
Alex — Pareceu­‑me francês, mas não quis perguntar. Não
podia imaginar que isto me iria acontecer.
Lili — E o braço onde está?
Judite — Levou­‑o ele.
Lili — Os meus meninos portaram­‑se bem?
Judite — Quando viram o doutor esconderam­‑se, de resto
nunca se mexeram.
Lili — Muito bem.
Alex — Tenho que fazer alguma coisa. Judite, é preciso
fazermos qualquer coisa.
Judite — Já te disse que não mexo uma palha enquanto
os meus remédios não vierem…
Alex — Não podemos deixar entrar esse francês cá em casa.
Judite — Pela fala pareceu­‑me alemão.
Alex — Não, nunca um médico alemão faria uma coisa
destas, eu estive lá, eu vi.
Judite — Nunca me disseste que trabalhaste nos esgotos!
Alex — Ele disse­‑te isso, o velhaco!

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Judite — Em Dusseldorf.
Alex — Eu nunca estive em Dusseldorf, sempre trabalhei
em Munique, sabes muito bem disso.
Judite — Disse que tinhas Espigarrágica ou uma coisa
parecida que é transmitida pelos ratos da Europa.
Alex — Pelos ratos, eu!
(Entra o Barão, acompanhado do enfermeiro, da criada
e do médico.)
Barão — Senhor Alex, as minhas sentidas desculpas em
nome do Doutor Weil.
Alex — Só podia ser o Barão!
Barão — Houve realmente um equívoco na correspondência
trocada comigo e com a Europa.
Alex — Só podia ser um equívoco!
Barão — É que eu escrevi Alex, pensando que deduzis-
sem que eu me referia ao meu cunhado Alexandre de Vigny,
o advogado que vive por baixo de nós. Como sabe, o braço
gangrenou, após a explosão…
Alex — Eu bem disse que o médico não era alemão.
Barão — De facto, o Doutor Weil tem um nome alemão,
mas é francês.
Médico — Penitencio­‑me por este engano.
Barão — Mas já que o temos cá, eu pedi autorização, a qual
me foi concedida, para lhe tratar da perna. Como deve calcular,
não é possível enviarem dois médicos para o mesmo efeito.
Alex — Mas eu estou à espera do meu médico de família,
o meu médico de Munique.
Barão (faz um sinal para o enfermeiro. A criada tem a ban-
deja cheia de tesouras e serrotes) — O Doutor Weil tratará de si.
Alex — Eu quero o meu médico alemão.

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Barão — Compreenda, caro Alex, que este tem um nome
alemão e isso é suficiente na Europa.
(Tenta fugir. O enfermeiro e o médico agarram­‑no e
amarram­‑no à cama. Lili tapa os olhos das crianças. A criada
ri­‑se, eufórica.)
Médico — Podemos começar?
Barão — Façam o favor.
Judite — Senhor Barão…
Barão — Os seus remédios chegam amanhã. O meu fax já
funciona e fui há pouco avisado de que tudo estava esclarecido.
(Em voz baixa para Judite, enquanto os outros cortam a perna
de Alex.) Não é a sua sobrinha que está ali?
Judite — É verdade, a Lili.
Barão — E o que combinámos, está a andar?
Judite — Tenho ali o braço para lhe dar.
Barão — Preciso dele ainda hoje.
Judite — Lili, não vês quem está aqui?
Lili — Diga, tia.
Judite — Não te lembras do senhor Barão?
Médico (inicia a operação) — Puxem! Você, poise isso e
venha ajudar o enfermeiro.
Lili (envergonhada) — O senhor Barão! Foi há muito
tempo, eu era pequenina e não me lembro, só uma vaga ideia.
Barão — Como cresceu a sua sobrinha!
Criada — Não conseguimos, tem de serrar mais um pouco.
Judite — Já lá vão tantos anos!
Barão — Há de ir visitar­‑me um dia destes, dava­‑me
imenso prazer! São as suas criancinhas, presumo!
Lili — Sim, duas.

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Barão — Estão muito desenvolvidas!
Judite — Agora come­‑se melhor na Holanda. O senhor
Barão sabe que…
Enfermeiro — Já está.
Judite (para o médico) — Aquilo da Aspirorrágica, senhor
Doutor Veil, era então para o cunhado do senhor Barão!
M édico  — Exatamente, Leptospira ícterohemorrágica.
Referia­‑me ao senhor Alexandre de Vigny, nada a ver portanto
com o seu marido. Mas o meu nome é Vail, com um W.
Judite — Quer dizer que ele nunca trabalhou nos esgotos
de Dusseldorf!
Médico — Exatamente, houve um engano.
Judite — Bem me parecia.
Barão — Está tudo esclarecido.
Criada (passa junto a Lili com ar de provocação) — Po-
demos ir embora, senhor Barão?
Barão — Vá e prepare o jantar para o Doutor Weil.
Judite — E que digo eu ao meu marido quando ele acordar?
Médico — Diga­‑lhe que foi um irritante equívoco e que
não volta a acontecer, já telefonei para a Central.
Judite — Bem, nesse caso…
Barão (sai com os outros) — Os meus cumprimentos!
Lili — Coitado do tio!
Judite — Que havemos nós de fazer!
Alex (acorda) — Então, que é feito deles?
Judite — Deles, quem?
Alex — Do Barão, do médico?
Judite — Foram­‑se embora.
Alex — E a minha perna?

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Judite — Levaram­‑na.
Alex — A minha perna, esta do joelho! (Repara que lhe cor-
taram a outra. Fica calado, em pânico, mas sem conseguir falar.)
Lili — Coitado do tio!
J udite  — Ninguém sabe para o que está guardado!
Lili — Tia, passa­‑se qualquer coisa, o tio não está bem.
Judite — Que será? Devem ter­‑se enganado, é o costume!
Pois, cortaram­‑lhe a perna que estava boa!
Lili — E agora?
Judite — Não vês, é para não contaminar!

Quadro VIII

(Nas escadas entre dois andares, o do Barão e o de Alex.


Judite e Lili conspiram e subornam a criada do Barão. Alex
e o Barão dormem cada um em sua casa, à vista do público.
As crianças estão sentadas na cama.)
Judite — O teu tio é como se estivesse morto, não conta.
O que importa agora é tratarmos do teu casamento com o
senhor Barão. Por isso, sempre que estiveres na sua presença
não abras a boca. Deixa­‑o falar, abana a cabeça e sorri.
O resto fica por minha conta.
Lili — Está bem, tia.
Criada — Tenho mais que fazer!
Judite — Já podemos? E o senhor Barão?
Criada — Dorme que nem um santo!
Lili — E se ele acorda?
C riada  — Têm uma hora, 60 minutos em ponto. Vá,
entrem.
Judite — Que bela casa, o senhor Barão sempre teve bom
gosto. Faltou­‑lhe talvez uma mulher.

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Lili — E se ele acorda?
Judite — O teu tio não pode sequer imaginar que eu te
trouxe aqui para veres o que vais ver. Promete que não lhe
dirás nada.
Lili — Mas o que é, tia?
Criada — Estejam à vontade, que ele não acorda, dei­‑lhe
uma dose maior.
Judite — Uma surpresa.
Lili — Não me agrada!
Judite — Ali, pega nessa corda e deixa­‑a correr. Não digas
nada, como se fosses cega e muda. (A jaula com o filho desce
do teto.) Senta­‑te e escuta. Vê se o conheces, mas não digas
nada. E repara na voz.
Lili — Primo!
Judite — Cala­‑te.
Toni — Mãe, estás aí?
Judite — Meu filho, sou eu, a tua mãe! Estás a ver, Lili,
ele está longe e só eu o posso ouvir porque sou sua mãe.
É o teu primo.
Toni (fala como se estivesse longe, mas sem gritar) — Posso
falar ou o Barão está a ouvir?
Judite — Fala, filho, fala.
Toni — O meu pai como está?
Judite — Enlouqueceu!
Toni — Meu Deus!
Judite — Cortaram­‑lhe a perna errada e um braço por engano.
Toni — Coitado! E eu que não posso fazer nada, enquanto
a Europa não estiver construída!
Judite — Diz, filho, tens comido bem? Como estás, diz!

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Toni — Não há peixe nem pão, só carne humana e sangue.
E a Lili, como está ela?
Judite — Está no Luxemburgo, filho, tem perguntado por
ti. (Para Lili.) Não digas nada, eu depois explico­‑te.
Lili — O que é, tia? Estou a ver o primo, mas não o ouço.
Judite — Ah, é verdade, só eu é que posso, porque sou
sua mãe.
Toni — O pai está aí?
Judite — E a farda é bonita?
Toni — Não temos farda, apenas um capacete de cor e
umas blue jeans. Ainda tenho que ficar mais um ano nesta
terra. Há dias morreu o Vítor com uma bala no pescoço, avisa
os pais dele. Do grupo que veio, só eu estou vivo.
Judite — Não te esqueças de trazer os remédios que te
pedi. Da outra vez foi como se nada te tivesse pedido, apare-
ceste com a cabeça ligada e só falavas no relógio que tinhas
roubado. Agora vê lá!
Toni — Não aguento mais isto, quando regressar quero
casar­‑me. Abrir uma loja e casar­‑me.
Judite (para Lili) — Vês, eu não te disse?
Toni — Comprar um automóvel, muitas toalhas, uns óculos.
E depois faço a casa.
Judite — O teu pai anda sempre a dizer que tu estoiras
o dinheiro com vinho e mulheres. Está doido.
Toni — Quando isto estiver construído, ponho­‑me aí no rio
a pescar, de manhã a noite, com os filhos e a mulher. Ainda
existem as oliveiras ao pé de casa?
Judite — O teu pai só diz, ele já morreu, ficou em África,
mas eu não acredito. É mentira, não é, meu filho?
Toni — Inscrevo­‑me nos bombeiros, compro uma bicicleta.
Ainda há água no rio ou já secou?

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Judite — Meu filho, tens uma casa à tua espera.
Toni — E a Lili, deu notícias?
Judite — Está no Luxemburgo.
Toni — Aí, dentro da gaveta do meu quarto, está um
retrato de uma corista e um calendário. Lembras­‑te? Era a
Palmira, a filha do leiteiro que entrou para o circo. Ainda é viva?
Judite — Essa, já morreu há muito!
Toni — E o Frederico que fugiu da tropa?
Judite — Esse, já se foi.
Toni — Lembras­‑te do velho João?
Judite (para Lili) — A partir de agora só vai fazer per-
guntas. Vai ver se o teu tio está a dormir e depois vai à
farmácia comprar pensos para lhe fazer os curativos. Leva o
tempo que quiseres!
Toni — E o maluquinho que atirava azeitonas ao padre?
Judite — Vai.
(Lili sai. Judite faz um sinal para a criada e dá­‑lhe di-
nheiro. A criada dirige­‑se para a casa de Alex, espreita, espera
que Lili desapareça e vai buscar as duas crianças.)
Toni (muda de voz) — Mãe, já foram?
Judite — Sim, podes falar.
T oni  — Eu tenho de arranjar uma saída para isto!
Judite — Já tratei de tudo. Mandei raptar as duas crianças.
Toni — Quais crianças, não quero miúdos metidos nisto,
já chega os que vi cair à minha frente.
Judite — São as crianças da Lili.
Toni — Ainda por cima, mas ninguém me disse que ela
tinha filhos.
Judite — Não são dela, foi ela que os trouxe mas não são dela.

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Toni — Então de quem são?
Judite — Não sei, mas que importa. É preciso que saias
daí o mais depressa possível, antes que o teu pai morra.
Toni — Cortaram­‑lhe a perna?
Judite — Foi a perna errada.
Toni — Quem foi o filho da puta?
Judite — Um francês.
Toni — Eu logo vi.
Judite — Mas já pediram desculpa.
Toni — De certeza, são coisas desse merda do Barão!
Judite — O Barão é a única pessoa que me pode ajudar.
Já fez o pedido para tu saíres.
Toni — A mãe ainda acredita no Barão?
Judite — Em quem mais posso eu confiar?
Toni — O pai sabe que estás aqui?
Judite — Não e ainda bem, se não estragava tudo, sabes
como ele é. Era capaz de matar o Barão. (Tira um braço de
um cesto.) Vês este braço, é do teu pai, para dar ao Barão.
Prometi­‑lhe e ele disse que intercedia por ti.
Toni — O cabrão, manda cortar um braço do pai, por
minha causa!
Judite — O teu pai está velho, pode muito bem prescindir
de um braço para te salvar.
Toni — Mas por que não foi ele a decidir?
Judite — Porque não acredita que estejas vivo, continua
a pensar que morreste na guerra de África.
Toni — Tenho que sair daqui, não aguento mais isto.
Judite — Deixa só o Barão acordar que eu trato disso,
mas ele não nos pode ver juntos.

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Toni — Mostra­‑me o braço.
Judite — Está aqui, podes tocar.
Toni — O meu querido pai. É o braço dele…
Judite — É o que te tenho estado a dizer.
Toni — Quando isto tudo acabar, eu mato esse Barão.
Judite — Não foi ele que cortou, foi um médico.
Toni — Mato os dois, vais ver. Não aguento! E a Lili?
(Entra a criada com as crianças.)
Criada — Toca a andar.
Judite — Cumprimentem o primo.
Toni — São elas?
Judite — São, mas não falam, nunca falaram.
Criada — São esquisitas, parecem de borracha.
Judite — Tens que ir, filho.
Criada — O Barão deve estar a acordar.
Judite — Ouviste? Tens que ir.
Toni — Não posso se não puxarem a corda.
Judite — Ela puxa, adeus, meu filho. Dá cá o braço do
teu pai, antes que o senhor Barão acorde.
Toni — Não aguento mais isto, eu mato essa gente toda!
(O Barão acorda e dirige­‑se para uma balança em cima da qual
está um caixote cheio de ossos. A criada fica sentada, sem mexer.)
Barão — Ah, já cá está!
Judite — Vim assim que soube.
Barão — Que soube o quê?
Judite — Que estava a selar a encomenda para a Europa.
Barão — Claro, estava só à espera disso. Dê cá.

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Judite (entrega­‑lhe o braço de Alex) — Ainda está quente,
mas o sangue já coalhou.
Barão — Ótimo, assim a encomenda vai completa. 830 kg,
nunca fizemos tanto num só dia!
Judite — Como vê, faço o meu melhor.
Barão — E Lili, sempre lhe falou daquilo?
Judite — Está tudo combinado, não vê ali ao canto?
Barão — As criancinhas, olha as criancinhas!
Judite — Tal como combinámos. As criancinhas em troca
do meu filho.
Barão — Não é tão fácil assim, houve um problema, uma
nova lei que saiu há dias e que proíbe o celibato a todos os
membros do poder.
Judite — Mas que tem isso a ver…
Barão — É que eu não só sou membro do poder mas
também um influente negociante de ossos da Europa. Não
sei se já lhe tinha dito que tirei, em tempos, um curso de
Economia, pensando já na altura que uma coisa deste género
viria a acontecer. E o senhor Alex, como está? Deve estar
mal, claro. Mas como estava a dizer, é preciso precavermo­
‑nos contra todas as eventualidades que ocorrem nos tempos
modernos. Imaginaria, cara Judite, que o seu marido iria ficar
tão cedo sem um braço e sem uma perna? Claro que não. Se
fosse apenas sem um dedo, num acidente de trabalho ou coisa
assim, se bem que em Munique isso seja raro!
Judite — Senhor Barão, falemos das crianças.
Barão — Não, primeiro temos que marcar o casamento.
Como ia dizendo, em tempos fui enfermeiro, na tropa. Era
uma especialidade muito concorrida. Todos os dias cortava
uma perna a um soldado, às vezes as duas. Está a ver aquele
serrote ali pendurado? Já cortou mais de 4000 pernas. É uma
relíquia, nunca me hei de desfazer dele. Alguns dentes estão
tortos, mas não importa. O que é necessário saber é o sítio, o

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local exato onde se deve cortar. Abaixo do joelho, acima dele,
junto ao pé, no meio da coxa. Tudo isso se aprende no exército.
Hoje em dia, penso que se passa o mesmo com o seu filho,
não há militar que não saiba cortar uma perna, a frio, numa
garagem improvisada ou numa floresta. Tem é que se dar um
golpe na cabeça do ferido… assim, com a mão fechada… para
ele ficar inconsciente. Quando acorda não há nada a fazer.
Muitos guardam a perna à cintura como se fosse um coelho!
Judite — Senhor Barão, o meu filho…
Barão — 830 kg, finalmente espero que me seja dado
o valor, uma promoção. Mas para isso preciso de me casar.
Sempre falou com a Lili?
Judite — Está tudo combinado, já tenho as crianças, agora
quero o meu filho.
Barão (irritado) — Só depois do casamento, já lhe disse.
Judite — O senhor Barão prometeu­‑me o meu filho em
troca das crianças.
Barão — Mas isso foi antes desta nova lei do celibato, agora
tudo muda. E os seus remédios, já não quer os seus remédios?
Devem estar a chegar, recebi há pouco um fax da Holanda.
Judite (num tom seco) — O meu filho e os remédios.
Barão — Vamos a ver se nos entendemos. A senhora quer
o seu filho?
Judite — Quero.
Barão — Então temos que cumprir a lei.
Judite — Qual lei?
Barão — A do celibato, D. Judite, a do celibato. Eu… ouça
bem… eu… eu… o Barão… preciso de casar. Entenda isto, pre-
ciso de casar. E com quem? Com a Lili, percebe agora, com a Lili.
Judite — Pronto, está bem. Casa com a Lili, já está tudo
combinado.
Barão — Quando é que combinou?

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Judite — Ontem.
Barão — E por que não disse isso antes?
Judite — Cada coisa por sua vez, eu estava a falar das crian-
ças e o senhor Barão do casamento, não nos entendíamos. Agora
está tudo esclarecido. O senhor Barão quer casar com a Lili,
está no seu direito. Eu quero o meu filho, estou no meu direito.
Barão — Quanto a esse assunto, aguardo que me chegue a
ordem superior. Eu não sou militar e por isso não posso assinar.
Judite — Mas é um executivo. Ou não é?
Barão — Sou, claro que sou. Mas civil.
Judite — Sem o meu consentimento, a minha sobrinha não casa.
Portanto cabe ao senhor Barão decidir. Ou o meu filho me é devol-
vido ou a sua lei não se cumpre e o senhor Barão não é promovido.
Barão — E os remédios, não contam? Já se esqueceu que
sem os remédios a senhora só tem mais três dias de vida?
Judite — Trata­‑se do meu filho. Os remédios vêm a seguir.
(De costas para o Barão.) Pensa que eu estou doida.
Barão — Senhora Judite, eu não devia dizer­‑lhe isto, mas
esta lei deu­‑me volta à cabeça. O seu filho é apenas um corpo.
Judite — E do que estamos nós a falar, senão de um
corpo? Julgava que o meu filho era um automóvel, ou um fax?
O meu filho é um corpo.
Barão — Não é isso, D. Judite. É que ele não tem vida.
Judite — Isso é o que o meu marido diz, não o que o senhor
Barão está a tentar insinuar. Eu vi­‑o, eu estive com ele e não quero
mais conversas. E agora vou­‑me embora, deixo­‑lhe as crianças e
passo por cá amanhã buscar o meu filho, senão não há casamento.
Barão — E as crianças?
Judite — Ficam. Está tudo combinado.
Barão — Obrigado.
Judite (sai) — Passe bem!

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Criada — Finalmente.
Barão — Ouviste tudo.
Criada (dá uma injeção no braço do Barão) — Tudo. Mas
não se esqueça que ele é meu.
Barão — Como me ia esquecer duma coisa dessas?
Criada — Às vezes o Barão faz­‑se de esquecido. E ia
estragando tudo quando disse à senhora Judite que ele era
apenas o corpo do filho e não o próprio filho. A sobrinha dela
pensa que o primo está perdido por ela. Coitadas!
Barão — Foi um momento de fraqueza, esta lei do celibato
transtornou­‑me o comportamento. Se não envio a certidão,
corro o risco de ser despedido. Ainda gostas dele?
Criada — É tudo o que mais quero. E está em causa a
minha liberdade. Assim que ele sair fugimos para o Brasil.
Barão — Ele está a acabar o tempo, dentro de 24 horas
soltam­‑no. Agora só falta ter a Lili nos meus braços, o sonho
de toda a minha vida.
Criada — Dela trato eu.
Barão — Não tens olhos senão para o Toni.
Criada — E é já.
(Puxa a corda e faz descer a jaula. Toni e a criada conversam
e beijam­‑se O Barão pega nas crianças e põe­‑nas em cima de uma
mesa. Mexe­‑lhes nos membros como se brincasse com bonecos.)
B arão  — Sempre gostei de crianças, desde pequeno.
De todas as cores, de todos os sexos e nacionalidades, crian-
ças em geral. É uma carne tenra a que não resisto, um gosto
característico a leite e a urina que me apaziguam. Gosto da-
quela textura, dos bracinhos, das pernitas, tal como nas rãs,
ora se esticando ora se encolhendo, conforme a disposição e o
medo. E os coraçõezinhos, olha como batem, parecem pombos
escondidos dentro de uma árvore…
(Entra o enfermeiro e ajuda o Barão.)

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… Vamos agora ver as línguas, mostrem lá!… Já têm
dentinhos e amígdalas grandinhas… façam ah, ah… muito bem.
O pior é a fala, demoram muitos anos antes que aprendam
a dizer uma frase completa. Esse é o mal das crianças, não
dizem nada, só gritam, e se se lhes dá um estalo desatam
aos berros. (Bate­‑lhes.) Mas estas não, não respondem, são
muito bem comportadas. Noutros tempos eram tiranos, hoje
não, apanham e calam­‑se.
Enfermeiro — É verdade, senhor Barão!
Barão — Até tenho pena de as meter na encomenda para
a Europa. Quanto pesarão? Talvez 60 kg ao todo, sem roupa.
(Despem­‑nas e atiram­‑nas para cima da balança.) Exato, 60 kg.
Este é outro problema, pesam pouco, não dão rendimento.
E depois têm os ossos curtos. Quanto medirá esta pernita? Aí
uns 20 cm, não mais. Não percebo, na Suécia elas nascem maio-
res, talvez devido ao frio, mas no Luxemburgo são raquíticas.
Enfermeiro — Eu também não!
Barão — Recorda­‑se o que combinámos?
Enfermeiro — Recordo.
Barão — Então diga.
Enfermeiro — Dispo a bata e faço de notário.
Barão — E o bigode?
Enfermeiro — Tiro o bigode do bolso e colo­‑o no beiço.
Barão — Bem. Como estava a dizer, a não ser que as
crianças não sejam realmente crianças, mas apenas bonecos com
ossos, como os salpicões que se compram na Áustria. Tenho que
certificar­‑me se não fui enganado, é a primeira vez que tenho na
minha presença crianças luxemburguesas. Se tivessem vindo de
Itália cobertas de torrão ou de Espanha barradas de caramelo, eu
não desconfiaria, mas assim, amanteigadas e cobertas de iogurte,
tenho dúvidas. (Espeta­‑as com uma faca.) Não têm sangue. Que
crianças mais estranhas que hoje em dia se fazem!

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Enfermeiro — Melhor assim, não espalharemos sangue
pelo chão, como de costume.
Barão — Talvez até nem seja necessário cortá­‑las a machado.
Enfermeiro — Pois não.
Barão — Bastará desmembrá­‑las. E terei força para isso?
Pergunto por perguntar, serão estes braços capazes de des-
membrar uma criança, tão esburacados que estão de tanto
veneno? Maldito seja o poder que se instalou no meu corpo.
Quem será capaz de julgar o sofrimento dos outros? E quem
me atirará a primeira pedra por estar a fornecer ossos para
construir a Europa? Ninguém. (Começa a cortar as crianças
com um machado.) Serão crianças, serão bonecos, que importa,
desde que tenham ossos! Alguém tem que cumprir esta missão.
Se pensam que me arrependo disto tudo, estão enganados.
O que me interessa é ter Lili nos braços o mais depressa
possível. Com ela junto a mim, a Europa ficará construída e
nada mais importa. Que contam mais ou menos duas crianças,
se apenas faltam 60 kg para terminar a encomenda? Não sou
eu que decido, apenas cumpro o que me mandam! Sempre foi
assim, por que não continuar a sê­‑lo? E quem sou eu para
modificar o mundo? Eu apenas estou incumbido de gerir este
prédio, mais nada. Se não fosse a lei do celibato, tudo estaria
já terminado, mas ainda bem, porque é Lili que eu amo e com
ela vou casar. Percebeu?
(Entra Lili, pensando que a tia ainda ali está.)
Lili — A minha tia?
B arão  — Já se foi embora mas deixou tudo tratado.
Lili — Oh, ainda bem.
Barão — Já está aí o senhor Notário.
Lili — Que bom, eu sempre disse que o Barão era um
homem de palavra. E o meu primo onde está?
Barão — O seu primo?
Lili — Pois, a minha tia não lhe disse que íamos casar?

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Barão — Pois é por isso que o senhor Notário está aqui,
para nos casar.
Lili — Para nos casar, pois diz bem, para nos casar.
Barão — Tão claro como a água, para nos casar… a mim e a si!
Lili — A nós?
Barão — Sim, a nós.
Lili — Então, e o meu primo?
Barão — O Toni, basta olhar para ali e já vê de quem o
seu primo gosta!
Lili — A criada?
Barão — Ela mesmo.
Lili — Não é possível, a criada. Então por isso o meu
tio afirma a pés juntos que o meu primo morreu na guerra!
Para me esconder a verdade. Anda é metido com a criada.
Que ingénua que estou a ser no meio disto tudo!
Barão — Lili, eu amo­‑a. Sempre a amei.
Lili — Não me confunda. E as crianças que eu trouxe do
Luxemburgo de propósito para recuperar o meu primo? Não
era essa a nossa combinação?
Barão — Ao princípio, sim, mas houve uma troca de fa-
xes. Eu enviei­‑lhe um para a Holanda pensando que a Lili
estava em Eindhoven, mas afinal tudo estava a ser tratado
no Luxemburgo. Quando a Lili se meteu no comboio é que
eu soube que as duas crianças vinham consigo em vez de
seguirem diretamente para a Alemanha. Agora não importa,
eu amo­‑a e isso é que conta!
Barão (abraça­‑a) — Lili, minha couve!
Lili — Oh, Barão!

Quadro IX
(A criada com Alex na casa deste. De vez em quando
ouvem explosões ao longe e os uivos dos lobos.)

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Alex — Esteja à vontade, não está ninguém.
Criada — O meu patrão não pode saber, nem a D. Judite.
Alex — Fique descansada.
Criada — É acerca do seu braço e da sua perna. Tudo foi combi-
nado entre o Barão e a sua mulher. Em troca de trazer o vosso filho
para Portugal, ela ofereceu­‑se para contratar um médico francês.
Alex — O meu filho? Mas que loucura vem a ser esta?
Criada — O seu filho está vivo, o Barão fechou­‑o numa
cela na cave do prédio. Anda é a gozar consigo.
Alex — Não pode ser, ele morreu em África.
Criada — Não morreu nada, pode perguntar à sua mulher.
Mas o que eu lhe vinha pedir é que me ajudasse a cumprir
uma promessa que fiz ao Barão.
Alex — Eu nunca gostei daquele médico! Que ele não me
ponha mais os pés aqui em casa!
Criada — É precisamente por causa disso. O médico vai
vir a sua casa para lhe cortar a outra perna…
Alex (pega numa espingarda) — Ele que venha!
Criada — O que eu lhe proponho é que se vingue.
Alex — Que me vingue de quem?
Criada — Da D. Judite.
Alex — Mas o que é que ela fez?
Criada — Não ouviu o que lhe disse quando aqui cheguei?
Foi ela que combinou com o Barão, cortarem­‑lhe os membros.
Tenho que lhe explicar tudo. O ­ senhor Barão trabalha para a
Europa e anda a juntar ossos para enviar para lá, entende?
E foi por isso que raptou o seu filho quando ele chegou de África,
para fazer chantagem com a D. Judite. Está agora a perceber?
Alex — Começo a perceber. Já ouvi falar dessa história
dos ossos, mas nunca acreditei que fosse verdade.

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Criada — Pois é.
Alex — E foi então aquela desavergonhada que mandou
o médico cortar­‑me a perna errada e um braço! Eu lhe digo!
Criada — Entende, temos que nos vingar. O Barão disse­‑me
que eu só podia regressar ao Brasil se lhe entregasse um braço
e uma perna, por isso, está a ver, temos que nos vingar.
Alex — Deixe comigo. Não era hoje que chegavam os
remédios? Foi o que ela me disse.
Criada — É verdade, já devem ter chegado.
Alex — Sim, vá lá ver e traga uma seringa.
Criada (sai) — É só um instante.
Alex — Isso mesmo, ah, ah, pensam que brincam comigo!
Então foi isso. Como iria adivinhar? Logo vi que um médico
alemão nunca se podia enganar nesta matéria…
Criada (entra) — Aqui estão.
Alex — Agora espete a seringa nos remédios. Depressa,
antes que ela chegue. Eu vou à porta ouvir. Já ouço passos,
depressa, despeje uma seringada que eu fico a prender a porta.
Judite (grita do lado de fora) — Alex, Alex, não consigo
abrir porta.
Criada — Já está.
Alex (abre a porta) — Então, o que se passa?
Judite — Maldita porta, há anos que está assim e nunca
mais a mandas arranjar! Mas que faz a menina aqui?
Alex — Os teus remédios, mulher! Chegaram os teus
remédios!
Judite — Não posso crer.
Criada — É verdade, foram entregar hoje a casa do senhor Barão.

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Judite — Eu sempre disse que o senhor Barão era um
homem de palavra. Mas dê­‑me, dê­‑me os remédios que eu
tomo já vários, para compensar os atrasos.
Alex — Fazes bem.
Judite — Os meus remédios!
Alex — Toma mais, toma, que te faz bem!
Judite — Obrigado. (Adormece.) Obrigado.
Alex — E o meu subsídio, já se sabe alguma coisa?
Criada — Eu não devia dizer­‑lhe isto, mas confio no senhor.
O subsídio já chegou há muito tempo. É o Barão que fica com ele.
Alex — O malvado! E eu aqui a enviar faxes todos os
dias. Na Alemanha devem pensar que eu sou doido.
Criada — Já dorme.
Alex (despe­‑se) — Ajude­‑me a despir.
Criada — Oh senhor Alex.
Alex — O que é que foi? Não quer ir para o Brasil? Vá,
agora temos que despi­‑la a ela e vestir­‑lhe a minha roupa.
Criada — Despir a senhora?
Alex — E tem que ser depressa, então não me disse que
vinha aí o médico?
Criada — Acha que o médico não desconfia?
Alex — Deixe isso comigo. Passe­‑me aquela cabeleira.
E agora pinte­‑me.
Criada — Oh senhor Alex!
Alex — Deixe­‑se disso. (Irónico.) Então é o Barão que me
fica com o subsídio?
C riada (fingindo­‑se enojada) — Assim já está bom.
Alex — Ponha­‑lhe uma touca na cabeça.
Criada — Eu não devia ter­‑me metido nisto.

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Alex — Fez muito bem em dizer­‑me.
(Ouve­‑se uma campainha. Alex vai abrir a porta.)
Alex — É ele, o filho da puta do francês.
Criada — E agora?
Alex — Oh, é o senhor doutor! Faça favor.
Médico — D. Judite, como está?
Alex — Menos mal, agora com os meus remediozinhos
passo melhor.
Médico — Ainda bem. Então o senhor Barão falou consigo.
Ah, pelo que vejo está tudo tratado, o senhor Alex já está
inconsciente. Calcule que o enfermeiro faltou­‑me. Dizem que
fugiu com uma mulher para o Luxemburgo. Andam sempre
a inventar coisas. Vamos então a isto.
Alex — Eu não me importo, senhor doutor, posso muito
bem fazer de enfermeiro, ou de enfermeira, como quiser.
Médico — Como?
Alex — De enfermeira, ali como a criada do senhor Barão.
Quando é preciso também faz de enfermeira ou de enfermeiro,
como quiser, mas vamos a isto, é que podem chegar as crianças.
Médico — É melhor, as meninas agarram nos pés para
eu serrar e depois passamos ao braço. Mas, agora reparo.
Um momento, eu fui indicado para cortar uma pessoa que só
possui um braço e uma perna. Há aqui um engano, é melhor
verificar nos papéis.
Alex — Deve ser confusão sua, isso foi no 4.º andar, com
o senhor Alexandre, o meu irmão, as casas são parecidas.
M édico  — Deve ter sido isso, mas mesmo assim…
Alex (empurra o corpo de Judite) — Olhe, temos que nos
despachar, ele está a acordar.
Médico — É melhor serrar, eu depois verifico se houve
engano.

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Alex — A perna já está.
Criada — Só falta o braço.
Médico — Corte a D. Judite enquanto eu ponho o penso.
Alex — A menina agarre com força.
Criada — Assim?
Alex — Sim.
Médico — Cuidado!
Alex — Já está.
Médico — Não percebo por que é que o enfermeiro havia
de escolher o Luxemburgo com tantos países que existem!
Alex — Talvez porque tem lá algum parente.
Criada — A mim palpita­‑me outra coisa.
Alex — O quê?
Criada — Uma mulher.
Alex — Que mulher?
Criada (ao ouvido) — A Lili.
Alex — Mas ela não ia casar com o Barão? Foi a minha
mulher que me disse.
Médico — Como?
Alex — Estava a dizer à menina que a mulher do meu
irmão me tinha dito… mas ela está a acordar…
Médico — São espasmos, não tem importância.
Alex — E quando acordar, que lhe digo?
Médico (sai) — Que eu vou voltar! Tape­‑o bem, não pode
perder calor, por causa da hemorragia.
Alex — Sim, senhor doutor! (Fecha a porta.) E vá para
a puta que o pariu!
Criada — E agora?

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(Tocam à porta.)
Alex — Outra vez?
Criada — Deve ser o médico. Terá ouvido o que o senhor disse?
Alex — Vá abrir.
(Entra Lili e o enfermeiro, apressados. Alex e Judite ficam
com um ar de espanto.)
Lili — Oh minha tia, esta tudo resolvido, vamos fugir, an-
tes que o senhor Barão nos mate. Soltou os cães e anda atrás
de nós. Adeus tia. E o tio? Ah, está ali, coitado, cortaram­‑lhe
outra vez as pernas. Diga­‑lhe que eu mando um fax a contar
o que aconteceu e não se preocupem. Já não aguento mais este
país! (Vai para sair mas hesita como se tivesse apercebido da
troca.) Há qualquer coisa… Sou eu que já estou a ficar doida!
A chave, onde meti a chave? Também para que quero eu a
chave se nunca mais vou voltar? Vamos, fujamos daqui!

Quadro X

(Em casa do Barão. Este tenta suicidar­‑se de ­ diversas


maneiras. Com uma guilhotina, com a forca, numa cadeira
elétrica. Mas falha sempre e desiste.)
Barão — Não nasci para morrer. Sou diferente, pertenço à
Europa, uso collants e como carne. Queijo não gosto, nem de
maçãs, mas pertenço a essa raça superior que decide e faz as
leis. Estive a perder tempo tentando suprimir­‑me. Sei que não
sou Barão, mas para todos os efeitos sou­‑o. Passo por Barão e
isso chega para sê­‑lo. Mas matar­‑me por uma ninharia, nunca!
Foi um momento de desespero, como é costume nos homens que
defendem como eu uma prática desportiva saudável dentro dos
ginásios. Há semanas que eu devia ter aniquilado definitivamente
estes vermes. Alex e Judite não passam de vermes. São eles os
­culpados deste atraso em relação à economia japonesa. Tantas
vezes que eu tenho dito isto. Digo e repito e volto a dizer, mas
não me ouvem. Depois pedem­‑me ossos como se não houvesse
outra coisa neste país para lhes enviar. Azeite, por exemplo,

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não percebo qual a razão por que não me encomendam azeite.
Ou tomate. Mas enfim, eu cumpro ordens, que pode um Barão
fazer mais que não o faça eu já? E matar­‑me porquê? Porque Lili
fugiu com um enfermeiro? Sentir­‑se atraiçoado é próprio dos ple-
beus, não de mim, que nasci para estar no poder, para mandar.
Que seria da Europa se não fossem os ossos que envio para lá?
Tenho esse privilégio, é a mim que recorrem. Assim foi durante
as guerras de África, assim tinha sido na Índia e em Timor.
O que mudou no mundo para eu deixar de ser quem sou? Nada,
absolutamente nada. São uns vermes, uns vermes é que eles são!
(Entra Alex com uma pistola.)
Alex — Onde estás, desgraçado?
Barão — Que vem a ser isto?
Alex — Então eras tu!
Barão — Eu estava precisamente a dizer que não nasci
para morrer, não precisa ameaçar­‑me.
Alex — Não nasceste para morrer? Então para que foi?
(Atira­‑lhe com uma garrafa.) Para que foi?
Barão — Vivo porque cumpro ordens, mais nada. Porque
sou Barão!
Alex — E o meu subsídio, também vive para cumprir
ordens? Quero aqui já o meu subsídio ou disparo.
Barão — Qual subsídio? Não tenho nada a ver com isso.
Alex (atira­‑lhe com outro objeto) — Ah não, ah não! Então
quem tem?
Barão — A criada certamente, eu não.
Alex — Pois engana­‑se porque foi precisamente a criada
que confessou que eras tu, desgraçado, que me roubavas.
Barão — Não admito que me trate assim!
Alex — Pois então toma! (A pistola não dispara.) Desta
vez não disparou, mas para a próxima vai direitinho à testa.

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Barão — A criada é que ficou com o seu dinheiro. E sabe
para quê?
Alex — Não desvie a conversa.
Barão — Para fugir com o seu filho.
A lex  — Não pronuncie sequer o nome do meu filho,
deixe­‑o estar no mato, que morreu a defender a pátria.
Barão — Isso pensa o senhor!
Alex — Não te metas na minha vida!
Barão (puxa a jaula até meio. Lá dentro estão Toni e a
criada) — Está a vê­‑los? Vão a caminho do Brasil.
Alex — Não acredito.
Barão — Não era você que dizia que o seu filho estava
para chegar?
Alex — Sim, mas isso era uma maneira de dizer!
Barão — Pois é a verdade. Lá vai ele com a criada para
o Brasil. E não é para a Europa, é para o Brasil.
Alex — E a culpa é sua.
Barão — Minha?
Alex — Com a história dos ossos, dos braços, das pernas…
quem foi que convenceu a minha mulher a mandar vir um
médico francês? Quem foi? Esteja quieto ou eu disparo!
Barão — Senhor Alex, tenha calma, já lhe expliquei que
foi um equívoco. Pensei que tudo estivesse já esclarecido.
Alex — Aqui quem esclarece sou eu. E é já. (Dispara mas
a pistola encrava­‑se.) Ainda não foi desta, mas à próxima é
de vez, rebento­‑lhe os miolos!
Barão — O senhor Alex ainda não percebeu que eu não
nasci para morrer. Então agora que acabei de enviar a última
encomenda e a Europa está construída, veja se percebe que
quem manda neste prédio sou eu. Ouviu? Sou eu. Pode disparar
à vontade que as suas balas não me acertam.

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(Alex não consegue disparar e atira com a pistola ao
Barão. Lutam os dois. O Barão afasta­‑se.)
Barão — Não luto com aleijados. Se você tivesse os qua-
tro membros ainda podia dar­‑me a esse luxo, mas assim não
posso perder tempo. Faça o favor de sair que eu tenho mais
que fazer.
Alex — Eu apanho­‑te um dia, podes crer!
Barão — Não se canse, o melhor é ver se a sua esposa
já está em casa.
Alex (sai) — E a essa criada também! Não me conhece,
pensa que me enganou.
Barão (pega na pistola) — Uns vermes, são todos uns
vermes! Eu sou diferente, os meus atos são irreversíveis, por-
que eu sou alguém. Não sou Barão, mas sou o construtor da
Europa. Sou alguém! (Aponta a pistola para a nuca.) E não
é uma pistoleca qualquer que me amedronta. Eu não nasci
para morrer, ouviram, sou o construtor da Europa! Que me
importa a Lili ter fugido com o enfermeiro ou a criada para
o Brasil? Ninharias! São todos uns vermes!
(A pistola dispara e o Barão cai.)

Quadro XI

(Judite e Alex em casa.)


Judite — Eu mato esse médico francês! Deixar­‑me neste
estado…
Alex — É bem feito. Não querias acreditar! Se fosse o
alemão isso não acontecia.
Judite — E tu cala­‑te.
Alex — Que foi isto? Não ouviste um tiro?
Judite — Devem ter sido os lobos, os malditos.
Alex — E foi aqui no prédio.

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Judite — Nunca pensei que Lili pudesse fazer uma coisa
daquelas!
Alex — Sempre te disse que aquela história das crianças não
estava contada como deve ser. Sempre desconfiei de uma pessoa que
anda com crianças dos outros atrás. Mas tu não quiseste acreditar!
(Ouvem­‑se rebentamentos.)
Judite — Olha, o barulho vem de lá outra vez.
Alex — Mas o que eu ouvi foi um tiro de pistola, aqui
no prédio, não tem nada a ver com essas guerras da Europa.
Judite — Agora podemos viver o resto da vida descansados.
Já tenho os meus remédios, tu recebeste o subsídio…
Alex — Eu?
Judite — Não me mintas. Foi a criada do senhor Barão
que me disse.
Alex — Como pode ela ter dito uma coisa dessas se foi
ela mesma que o recebeu sem dizer nada a ninguém? Foi o
Barão que me jurou a pés juntos. Foi ela e já vai a caminho
do Brasil com o meu dinheiro.
Judite — Que história é essa? O senhor Barão assegurou­
‑me que a criada tirou umas férias para casar e tu vens agora
com essa mentira!
Alex — Ah, é mentira! Então a traição do teu filho tam-
bém é mentira.
Judite (zangada) — Não te admito que trates assim o
meu filho.
Alex — Traidor, sim. Em vez de lutar para construir a
Europa prefere andar atrás das criadas.
Judite — O que estás para aí a dizer?
Alex — Eu sei muito bem o que digo, tu é que andas cega.
Não percebes nada do que se passa à tua volta.

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Judite — Deixa o filho em paz, que morreu a cumprir o
seu dever.
Alex — Morreu, pensas tu!
Judite — Quem é que andava sempre a gritar que ele
tinha morrido, quem era? Eras tu.
A lex  — Não entendes nada. Nem sabes como acor-
daste com um braço e uma perna a menos, quanto mais…
Judite — Isso pensas tu.
Alex — Está bem, ficamos assim.
Judite (levanta­‑se irritada) — Foi um sacrifício que eu fiz
pelo nosso filho, percebes, enquanto tu te lamentavas por causa
desse joelho inchado, sem nada fazer por ele. És um homem,
um reles, não podes entender o que sente uma mãe.
Alex — Então quem foi que te cortou o braço, quem foi?
Judite — Foi tudo combinado com o senhor Barão. Que
sabes tu da Europa?
Alex — Mais do que tu imaginas.
Judite — Um aleijado, é o que sempre foste.
Alex — Está bem, ficamos por aqui. Se eu descobrisse
onde está o meu boné saía já porta fora.
Judite — É sempre o boné, o boné! Metes nojo.
Alex —  Não quero discutir.
Judite — Todas essas coisas metem­‑me nojo, o teu fax, o
teu joelho, o teu subsídio, o teu rádio, toda essa trampa em
que tu tocas. Mete­‑me nojo, faz­‑me vomitar. Tu é que foste o
culpado. Quiseste a todo o custo que o teu filho fosse para a
Europa. E para quê? Para morrer.
Alex — Já não regulavas bem, agora sem um braço e uma
perna perdeste mesmo o tino.
Judite — E tu, pensas que não és tão louco como os ou-
tros, achas­‑te melhor.

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Alex — Eu sou diferente de vocês todos, basta dizer que
estive na Alemanha enquanto os da tua laia não passaram
da Holanda e do Luxemburgo.
Judite (tira um machado de uma gaveta) — Os da laia
da tua família, não da minha. E sabes como faziam os meus
antepassados a malvados como tu? (Parte o fax.) É assim,
olha, assim, assim!
Alex (com uma faca) — Queres arruinar­‑me a vida. Como
vou agora receber o meu subsídio?
Judite — Quero lá saber do teu subsídio para alguma
coisa. Tu é que mataste o nosso filho e vais pagar…
Alex — Tu é que o mataste, não fui eu, com essa obsessão
pelos aviões. Eu sempre disse que ele devia ter ido para a
Marinha, mas tu não, eram os aviões, os aviões.
Judite — O senhor Barão prometeu­‑me que ele ficava na
Torre de Controlo, nunca havia de voar.
Alex — O Barão, o Barão… tu é que és a culpada.
Judite — Malvado!
(Lutam, insultam­‑se, ficam a sangrar, esgotados. Ouvem­
‑se os lobos.)
Judite — Sempre eles, os malditos! Não posso mais com
este inferno!
Alex (arrastando­‑se para o rádio) — Perdi­‑lhes a conta. Já
devem ter morrido milhares. Se calhar já não há ninguém vivo.
As negociações certamente acabaram. E feridos? Agora também
não interessa, a luz vai faltar e o prédio vai ficar às escuras.
Judite — Terá acabado a guerra?
Alex — O problema são os feridos. Não há sangue nem
soro só comprimidos para dormir. Judite, onde puseste os
comprimidos?
Judite — Estão aí no cabide junto do boné, num saco de
plástico.

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Alex — Ali não estão.
Judite — Não pode ser, eu vi­‑os há pouco tempo, pelo
menos foi aí que os deixei, dentro do saco de plástico.
Alex — Ali no prego?
Judite — Sim.
Alex — Por que não disseste há mais tempo?
Judite — Eu disse, mas tu nunca queres ouvir o que eu digo!
(Entra um grupo de operacionais com macas, comandados pelo
homem de escuro. Carregam Alex e Judite, que continuam a discutir.)
Homem de Escuro — O vosso tempo chegou o fim. A casa
precisa de ser desinfetada para um casal que está a chegar
da Europa.
Alex — A culpa é tua!
Judite — Nunca fizeste nada na vida a não ser preocupares­
‑te com o joelho.
Alex — Tu e os teus remédios!
Judite — A culpa foi tua e desse fax…
Alex — O meu subsídio já deve ter chegado…
(Enquanto saem, um pacote cai no meio da casa vindo da zona
dos rebentamentos. A luz incide sobre ele e apaga­‑se lentamente.)

FIM

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QUINZE MINUTOS DE GLÓRIA

Comédia dramática

Peça em três atos


Personagens:

Eleutério, o alquimista
Paiva, o taberneiro
Celestino, o vizinho de Paiva
Agripino, o assistente de Eleutério
Ofélia, a serva
João, criatura masculina
Três vendedores/clientes
Teófilo, ex­‑padre
Bóris, diretor de programas da TV

NOTA
As citações do 2.º ato foram extraídas de «A história do
Doutor João Fausto,/o mui afamado mágico e necromante»,
edição Reclam 1975, Estugarda, citadas no livro «Fausto na
literatura europeia», edição Apáginastantas, 1984, organizada
por João Barrento.
Os versos declamados por Eleutério no 3.º ato foram ex-
traídos de «Fausto» de Fernando Pessoa (quadro viii, p. 67),
edição Relógio d’Água, 1994.

Primeiro Ato

(Uma antiga taberna transformada em snack­‑bar. Eleu-


tério está vestido com um fato inteiro, com colete e relógio de
bolso. Tem uma pasta. A sala, pequena, tem as cadeiras já
em cima das mesas para fechar. Eleutério e Paiva conversam.

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A televisão está acesa e passa um vídeo com um cientista a
explicar o processo de clonagem.)
Eleutério (com um copo de brandy na mão) — Uma coisa é
certa, só existe uma pessoa no mundo capaz de saborear o mal.
E essa pessoa pode muito bem ser um de nós. Pode até ser o senhor!
Paiva — Eu?
Eleutério — E por que não? O problema é que não sabemos
quem é. Pode andar perto de nós, mirar­‑nos, cruzar­‑se connosco,
cumprimentar­‑nos e nós, inocentes, nem damos por isso.
Paiva — Essa teoria é um bocado esquisita, ó senhor
Eleutério.
Eleutério — Esquisita! Ora essa!
Paiva — Para mim, é um castigo que caiu sobre a terra.
O mal anda aí e ninguém sabe de onde vem e quando vem. Por
exemplo, no ano passado, não sei se está recordado, eu gabei­‑me
que foi um ano bom, um ano de seca e bebeu­‑se muito. Todos
os dias despejava mais de seis barris de cerveja. E logo nesse
outono aconteceu aquele raio que me deitou o telhado abaixo.
Eleutério — Acasos.
Paiva — Talvez sejam, mas foi a mim que me calhou
e não ao vizinho, que é velho e não tem nada a perder.
Eleutério — Eu sempre tive respeito às trovoadas secas.
Paiva — Eu que o diga!
Eleutério — É verdade, esse seu vizinho ainda é vivo?
Paiva — Não há meio de morrer!
Eleutério — É que eu estava a precisar de alugar um
escritório, uma coisa espaçosa. Já não sei para onde me virar
naquela espelunca.
Paiva — Quer dizer que o negócio está bom.
Eleutério — Nem por isso, tem morrido pouca gente.
Aliás, ainda não lhe disse mas vou mudar de ramo. Passo
para as antiguidades.

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Paiva — Então e os mortos?
Eleutério — O meu cunhado que fique com eles. Agora
quero é cuidar dos vivos.
Paiva — Ora bem.
Eleutério — E você devia fazer o mesmo, deixar­‑se de ser
criado desta gente, vender a loja e regressar a casa.
Paiva — Daqui só depois de morto. Vou direitinho para
debaixo da terra.
Eleutério — Lá estamos nós sempre a falar de mortos.
Parece que não sabemos falar de outra coisa. Um dia conheci um
comerciante que não gastava um tostão em nada, nem tabaco,
nem café, nem futebol, nada. A única coisa de que gostava
era de selos. ­ Colecionou tantos selos que a casa enchia­‑se de
compradores. Tinha uma espingarda de dois canos. Uma vez
disparou sem querer. Estilhaçou a vitrina toda onde estavam
os selos. Nem um se aproveitou. No dia a seguir enforcou­‑se.
Valeu a pena? Claro que não.
Paiva — Mas enquanto viveu fez o gosto ao dedo.
Eleutério — Disso não tenho a certeza. Nunca o vi rir.
Paiva — Deixe lá, que o senhor também! Para rir é um castigo!
Eleutério — Mas em contrapartida não coleciono selos.
Paiva — Nem eu espero ter tanto empenho numa coisa
que me enforque por ela!
Eleutério — O senhor Paiva já viu quantas pessoas mor-
rem por dia sem oferecer um órgão a um hospital? E depois,
o Estado é obrigado a roubá­‑los!
Paiva — Agora não estou a segui­‑lo.
Eleutério — Sem serem dadores! Ainda por cima escre­vem
numa folha que não dão o coração, os olhos, os rins…
Paiva — Essa agora!
Eleutério — É um pavor. Morrem inteiros, levam as partes
todas do corpo para a cova. E para quê? Para serem devorados

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pelos bichos. Não era muito melhor deixarem escrito: «Ofereço
a minha espinal medula ao centro de saúde» ou «Lego ao
hospital o meu braço, um pulmão…» seja o que for!
Paiva (aproxima­‑se, limpa a mesa e deixa outro copo com
brandy) — O senhor Eleutério não está a falar a sério.
Eleutério — E o velho quando é que patina?
Paiva — Qual velho?
Eleutério — O seu vizinho.
Paiva — Deixe lá o homem sossegado.
Eleutério — É que eu preciso urgentemente dessa casa.
Preciso de espaço, de espaço, muito espaço. Quero receber os
clientes condignamente. O senhor Paiva ainda não percebeu,
mas eu vou montar um consultório. (Levanta­‑se e vai exem-
plificando.) Aqui fico eu sentado, numa secretária larga, num
cadeirão de cabedal e dois telefones. À frente da secretária fica
uma cadeira para o cliente, um cesto de papéis e um escarrador.
Nos lados ponho prateleiras cheias de livros encadernados e
uma cadeira de dentista. Na sala de espera coloco vídeos e na
casa de banho música. (Entusiasma­‑se.) Imagine, senhor Paiva.
Uma pessoa toca a campainha da porta, eu abro­‑a automati-
camente e através de um altifalante peço para aguardar na
sala de espera. Ligo um vídeo e passado algum tempo aviso
para o cliente entrar. Logo de imediato pergunto se é para
vender as pernas, os braços, um órgão interno ou os olhos.
De acordo com a resposta, acendo uma luz de cor e ponho
uma música. O cliente tem que sentir o máximo de conforto.
(Paiva está sentado, estupefacto.) Se for um braço peço ao meu
assistente para trazer comprimidos e uma serra elétrica. Se
for uma perna, para me trazer uma seringa e um machado.
O cliente também pode já trazer de casa a parte do corpo que
quiser, sairá mais barato. Agora, ninguém, mas ninguém me
venderá nenhum bocado sem se explicar bem, sem me contar
tintim por tintim por que razão o faz. Seja homem ou mulher,
seja velho ou novo. Percebe por que eu tenho urgência que o
seu vizinho morra. Sim, porque eu não o posso pôr na rua.

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Paiva (tentando compreender) — Vamos a ver se nos en-
tendemos, senhor Eleutério, o senhor só bebeu dois brandies…
Eleutério — Eu já esperava que me dissesse isso. Hoje
em dia não se pode inovar, tem que se estar agarrado ao
passado, é isso?
Paiva — O senhor está para aí a falar em bocados de corpo,
vísceras ou coisa que o valha e quer que eu entenda direito.
Eleutério (muito sério, com um tom levemente ameaça-
dor) — Vou­‑lhe dizer uma coisa, senhor Paiva, eu gosto muito
de si, há vários anos que entro nesta casa, já bebi centenas
de brandies e fumei milhares de cigarros, mas meta na sua
cabeça que os tempos são outros e que não podemos ficar para
trás. Ainda não percebeu que os americanos estão a fabricar
seres vivos em série. Ainda não percebeu que daqui a meia
dúzia de anos são eles que nos vêm dar ordens, quem sabe
cortar­‑nos os colhões para os levar para Nova Iorque. Diga
lá, diga! Ainda não percebeu que a nossa raça está perdida e
que sem colhões não há prazer que se salve, ou o senhor já
não sabe o que é isso…
Paiva (aflito) — Oh, senhor Eleutério, não acha…
Eleutério — De certeza que não sabe. Ainda não percebeu
que esses seres vão ser mais inteligentes do que nós, vão andar
com maquinetas dentro do cérebro e vão ser todos iguais, iguai-
zinhos, como gémeos. Tão iguaizinhos que faz arrepiar qualquer
um. E você está a pôr em dúvida o que estou aqui a preconizar.
Eu a tentar salvar a raça humana e você a querer que ela seja
dominada por essas coisas. Ou seja, quer voltar à escravatura.
Paiva — Eu? Nem sequer falei.
Eleutério — É por isso que o seu vizinho tem que mor-
rer depressa, se possível já hoje. O meu consultório não pode
esperar. E é você mesmo que o vai matar.
Paiva (amedrontado) — Eu?
Eleutério — Sim, você. Não tenha medo, está tudo combi-
nado com as autoridades. É preciso termos sentido de Estado

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numa altura destas. O velho já não adianta nem atrasa.
As autoridades sabem disso e consideram urgente que eu ocupe
desde já a casa dele para montar o consultório. É que todos os
dias fabricam 5000 clones nos EUA, 3000 em Chicago, 1000
em Boston e 1000 em Washington. As autoridades sabem disso
e encarregaram­‑me de falar consigo. (Tira um papel do bolso.)
Aqui está o documento.
Paiva — Qual documento?
Eleutério — A prova de que prestou um serviço ao governo.
Paiva — Não quero isso. Mas porquê eu?
Eleutério — Já lhe disse. Porque é seu vizinho, conhece­‑o,
é fácil lá ir e estrangulá­‑lo.
Paiva (em pânico) — Estrangulá­‑lo! Mas o senhor está
doido! E do brandy, de certeza!
(Eleutério puxa de uma pistola. Paiva tenta fugir.)
Eleutério (decidido) — Quieto. Para ou desfaço­‑te os miolos.
Paiva — Oh senhor Eleutério, não faça isso.
Eleutério — Nem mais uma palavra. O quarto do velho
fica do outro lado dessa parede. É só atirá­‑la abaixo, dirigir­‑se
a ele e afogá­‑lo com a almofada.
Paiva — Mas como vou eu atirar aquela parede abaixo?
(Eleutério tira um machado da pasta e entrega­‑lho, sempre
com a pistola apontada.)
Eleutério — Não custa nada. Começa.
Paiva — Mas que fiz eu…
Eleutério — Começa, porra. (Parte uma cadeira com
violência.) Já.
(Paiva inicia o trabalho. Tira algumas garrafas que estão
numa prateleira e coloca­‑as em cima do balcão, devagar.)
Eleutério — Mexe­‑te, que eu não tenho muito tempo a perder.
(Enquanto Paira vai destruindo a parede. Eleutério bebe.)

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Eleutério — Basta um buraco, o suficiente para passares
para o outro lado.
Paiva — Oh, senhor Eleutério…
Eleutério — Uma passagem apenas, não é preciso que o pré-
dio venha abaixo. Já deve estar bom. (Empurra­‑o.) Experimenta.
(Paiva mete a cabeça e um braço. Ouve­‑se um grito rouco
vindo do lado de lá da parede.)
Celestino — Que é isto?
Paiva — Ó ti Celestino, desculpe, mas está aqui o senhor
Eleutério com uma pistola apontada.
Eleutério — Não fales no meu nome.
Paiva — Está aqui…
Celestino — És tu, Paiva, mas o que é que deu?
Paiva — Ó ti Celestino, o que quer que eu faça?
Eleutério — Chega de conversa.
Paiva — Não vê que eu não consigo? Nem para um lado
nem para o outro.
(Eleutério puxa­‑o para fora.)
Celestino — Ah, malandro, agora percebo, queres roubar­
‑me. És tu que andas a fazer aqueles barulhos com uma broca.
Paiva — Qual broca, nem meio broca, eu estou é fodido
com isto tudo, é o que é. Ai que me estou a aleijar!
Celestino (aos gritos) — Acudam, acudam! A tua sorte é
eu não poder levantar­‑me da cama.
(Paiva liberta­‑se e cai. Eleutério espreita.)
Eleutério — O velho está entrevado, ainda bem. Vá,
levanta­‑te, toca a trabalhar. Não quiseste a bem! Eu disse­‑te
que estava tudo arranjado com as autoridades, mas não acre-
ditaste. Mostrei­‑te o documento, não acreditaste.
Paiva — Mas não vê que o velho está entrevado, coitado?

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Eleutério — Já vi, já vi. Melhor para ele, escusa de se defender.
Paiva — Não consigo.
Eleutério (parte outra cadeira e uma garrafa) — Rápido,
senão morres tu também. Isso está previsto pelas autoridades,
fica sabendo, mas eu não gostaria de chegar a esse ponto.
Paiva — Ó ti Celestino, ouviu o que o senhor Eleutério disse?
Celestino — Cabrões, é o que vocês são. Que mundo este!
Paiva — Não me chame isso, porque eu estou aqui a partir
isto contra minha vontade.
Eleutério — Mexe­‑te, não lhe ligues.
Paiva — E foram as autoridades que mandaram, eu não
tenho nada a ver com esta comédia.
Eleutério — Foi o governo que mandou despejá­‑lo, diz­
‑lhe isso.
Paiva — Está aqui o senhor Eleutério a dizer que foi o
governo que mandou despejá­‑lo.
Eleutério — Não menciones o meu nome.
Celestino — Eu te dou o governo! Cabrões!
Eleutério — Experimenta agora, já deves caber.
(Paiva entra para o outro lado. O velho grita «Maldito
sejas, cabrão taberneiro!» e cala­‑se de seguida. Eleutério rasga
o documento e sai sorrateiramente com risinhos. Paiva aparece,
extenuado, senta­‑se numa das mesas, poisa o machado. A sala
vai ficando na penumbra. Paiva chora em silêncio, estende
uma das mãos, levanta o machado.)
Paiva (com voz rouca) — Maldito, maldito, maldito! Como
cheguei eu a isto, meu Deus? (O machado corta­‑lhe a mão.)
Maldito seja eu e este mundo!

Segundo Ato
(Um consultório que funciona também como laboratório.
Uma secretária, um cadeirão, uma cadeira, um banco corrido

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onde se sentam os clientes, uma parte com uma instalação tipo
bloco operatório, duas pessoas penduradas em ganchos. Eleutério
está sentado. É alternadamente frio, ardiloso, convencido, pater-
nalista, irónico. O assistente, um jovem médico recém­‑formado,
limpa uma cama da instalação. É alternadamente calmo, fogoso,
tímido e decidido. A conversa entre eles é sempre caracterizada
em dois registos. Enquanto um é paternalista o outro é tímido,
enquanto um é ardiloso o outro é fogoso…)
Eleutério — Pode mandar entrar.
Primeiro cliente (jovem, 23 anos, estudante, coxeia) — Boa tarde.
Eleutério — Sente­‑se. Não, ande um pouco naquela dire-
ção. É isso, coxeia. Porquê?
Primeiro cliente — Faltam­‑me dois dedos no pé, então
não se lembra?
Eleutério — Ah, agora me lembro! Mas foram só dois dedos!
Primeiro cliente — Foi o que me quis comprar!
Eleutério — E agora, quer vender o resto?
Primeiro cliente — Não, o que me traz cá é o coração.
Eleutério — Quer desfazer­‑se do coração…
Primeiro cliente — Exatamente.

Eleutério — Por acaso não preferia desfazer­‑se do fígado?


Primeiro cliente — Não, o coração é que é.
Eleutério — É que eu tenho ali dois sujeitos à espera
de fígados.
Primeiro cliente — Isso não sei, o que me interessa é o coração.
Eleutério — E porquê o coração? Como deve saber, não
compro nada sem saber as razões.
Primeiro cliente — É que não me serve para nada, cansa­
‑me. Se corro, se subo umas escadas, se vejo televisão, fico
cansado, esgotado mesmo. E depois, por qualquer razão que
não sei explicar, emociono­‑me, chego mesmo a chorar.

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Eleutério — Isso é que eu acho estranho na sua idade!
Primeiro cliente — E se choro há sempre alguém que me critica.
Eleutério — Quem?
Primeiro cliente — O meu pai, a minha mãe, os meus
amigos, sei lá quem mais!
Eleutério — É só por isso?
Primeiro cliente — É.

Eleutério — Tem a certeza?
Primeiro cliente — E também porque ela deixou­‑me, foi
para França.
Eleutério — Quem?
Primeiro cliente — A Mafalda.
Eleutério — A sua mulher.
Primeiro cliente — A minha namorada.
Eleutério — Fugiu?
Primeiro cliente — Disse que não queria viver com um coxo.
Eleutério — Mas por que não lhe disse que ia vender os dedos?
P rimeiro cliente  — Queria fazer­‑lhe uma surpresa.
Comprei­‑lhe um leitor de CD portátil. Era uma coisa de que
ela não se cansava de falar. Queria um leitor, um leitor, para
ir para o jardim ouvir música, para andar nos autocarros a
ouvir, para levar para a praia, para mostrar aos amigos na
universidade. Só falava nisso. E eu não queria perdê­‑la.
Eleutério — Ela chegou a ameaçá­‑lo que o deixava?
Primeiro cliente — Deu a entender. Já não tinha pai,
vivia com a avó.
Eleutério — E a mãe?
Primeiro cliente — Fugiu para Espanha com um engenheiro.
Eleutério — Então é essa a razão?

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Primeiro cliente — Exatamente.

Eleutério — Tem a certeza de que é mesmo o coração


que quer vender.
Primeiro cliente — O facto é que preciso de um compu-
tador. Como vou ocupar as noites sem jogos? E eu não quero
ficar atrás. Tenho direito aos meus próprios jogos, ao meu
próprio computador. É disso que eu preciso e não do coração.
Pode pôr aqui qualquer trapo no lugar dele. Eu só preciso de
estar sentado a jogar, nada mais.
Eleutério (trocando gestos cúmplices com o assistente) —
O senhor é um homem de sorte. De sorte e de coragem.
É jovem, tem à sua frente um futuro risonho. Veio na altura
certa. Nós estávamos mesmo a precisar de um coração da sua
idade. Temos um pedido muito importante de um deputado.
Não se importa que o seu coração vá para um deputado?
Primeiro cliente — É­‑me indiferente.
Eleutério — Nem que fosse mesmo um político, um in-
vestigador ou um empresário?
Primeiro cliente — Pode até ser uma mulher!
Eleutério (passeia pela sala) — Uma mulher! Engraçado,
nunca tinha pensado nisso… mas vendo bem, se foi possível criar
uma mulher da costela de um homem, por que não de um coração…
Primeiro cliente — Isso depois o senhor vê, eu quero saber
é quanto vou receber.
Eleutério — Não tem de protestar, vai receber o preço
do computador, é só entregar­‑me a fatura. Vou­‑lhe dar um
cheque, mas preciso de um sinal.
Primeiro cliente — Dinheiro não tenho.
E leutério  — Nem é de dinheiro que eu necessito.
Basta um dedo, uma orelha, qualquer coisa que sirva.
Primeiro cliente — Então, um dedo!

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(O assistente leva o cliente para a zona operatória, corta­
‑lhe o dedo, enquanto Eleutério consulta livros e se mostra
contente. A seguir encaminha­‑o para a saída.)
Eleutério (fala sozinho) — Já é um começo. Podia ser pior.
Um dedo. Que dedo será? É bom começar a construí­‑los pelos
pés, de baixo para cima. Criá­‑los inteiros e grandes. E convém
ficar com um stock. Podem ser precisos uns ajustes. Além disso
há o problema das rejeições. Tenho que fazer uma obra perfeita!
O coração ficará para ela. Ah, como me começo a sentir bem.
Por que não descobri mais cedo este sentimento…
Assistente (aproximando­‑se) — Já está, quer que mande
entrar outro?
Eleutério — Diga­‑me uma coisa, Agripino, o que é para
si o prazer?
Assistente — Para mim? O prazer, para mim, é comer
quando tenho fome, passear, pescar no rio…
Eleutério — Não é disso que eu estou a falar.
Assistente — Estar com uma mulher!
Eleutério — Estou a falar no prazer, o prazer, não desses
desejos supérfluos. Estou a perguntar­‑lhe o que é que lhe dá,
de facto, assim uma grande satisfação. Qualquer coisa, como
construir um poço, deitar fogo a uma cidade, rebentar com
uma barragem, entende o que eu quero dizer?
Assistente — Sim, uma coisa mais abstrata?
Eleutério — Abstrata é uma forma de dizer. Uma cidade a arder
não é lá bem uma abstração. Como sabe, o fogo queima e cheira…
Assistente — Talvez como matar alguém ou apenas tor-
turar, será a isso que se está a referir?
Eleutério — Pois, uma coisa mais desse género. Imagine
que você gostaria de ter asas e levantar voo até ao céu. Não
gostaria que todo o mundo soubesse?
Assistente — Gostava, claro.

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Eleutério — E isso não lhe dava uma grande satisfação, ser
o único homem com asas e ainda por cima ir pelo céu dentro?
Assistente — Sim, mas tento não pensar nisso, por agora.
Até ao fim do estágio apenas estou interessado naquilo que é
possível alcançar. Por exemplo, um rato. Quando o opero e lhe
abro a barriga com um estilete, o sangue e as tripas saltam e eu
não enjoo, nem vomito. Mas quando o espalmo com uma pá ou o
esborracho com um pé, sou acometido de uns vómitos terríveis.
Eleutério — Ainda bem que me diz isso. O mesmo se
passará quando o faz com pessoas, presumo. Quando as corta,
o que é que sente?
Assistente — Nada, é uma tarefa científica.
Eleutério — E não lhe passa nada pela cabeça, não lhe
estremece o corpo, não sente um aperto no coração quando
abre o peito a uma pessoa e vê aqueles órgãos todos a mexer.
Assistente — Tento concentrar­‑me no que estou a fazer…
Eleutério — Mas não sente um prazer lá muito dentro,
no seu íntimo, como se estivesse de posse de uma vítima e
pudesse utilizá­‑la a seu belo prazer.
Assistente — Não, nada. Nesse momento, perco os senti-
mentos fico neutro e aplico o que aprendi no hospital.
Eleutério — Não sente culpa, portanto, mesmo quando o
doente morre nas suas mãos?
Assistente — Não.
Eleutério — Muito bem, pode considerar o seu estágio
acabado a partir de agora passa a meu assistente permanente,
com salário e tudo.
Assistente — E sobre aquilo de poder voar, de ter asas?
Eleutério — Ah, então sempre lhe interessa! Temos tempo.
Primeiro vamos construir o nosso homem, dar­‑lhe forma, um
gigante Já sabe as regras, já leu o contrato… (Estende­‑lhe um
documento.) Só falta assiná­‑lo.
Assistente — Já o li. De facto…

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Eleutério — É um contrato por três anos. Se depois desse
tempo não tivermos atingido os objetivos, é livre de o renovar.
Mas se assinar terá que jurar fidelidade aos meus princípios.
Assistente — E da sua parte, mantém­‑se essa promessa
de me dar esse dom de voar?
Eleutério — Claro. Nunca ouviu falar de Simão Mago?
Assistente — Não.
Eleutério — E de Cipriano?
Assistente — Não.
Eleutério — Não faz mal. Pois esse Simão Mago estava
um dia na presença de Nero. Sabe quem foi Nero!
Assistente — Sim, esse sei, destruiu uma cidade pelo fogo.
Eleutério — Isso, Roma. Ora, esse Simão Mago que se
tinha feito batizar para comprar aos apóstolos o dom de pos-
suir o Espírito Santo, insinuou­‑se perante Nero dizendo que
não era nenhum feiticeiro e que era capaz de se elevar no ar
como um pássaro­‑anjo. E assim fez. Atirou­‑se para o ar, mas
estatelou­‑se. Não contava com a presença de Pedro, o apóstolo,
que invocando Cristo, afugentou o demónio. O pobre do ­Simão
morreu logo ali. Claro que consigo não se passará desse modo.
Nem você é Simão, nem eu sou Pedro.
Assistente — E poderei ir até ao céu?
Eleutério — Confie em mim. Assine.
Assistente — Mesmo assim acho pouco. E se no céu não
existe nada?
Eleutério — Essa agora, no céu! Não me vai obrigar a
uma conversa académica, já não estou propriamente em idade
de discutir sobre a existência de Deus pelos cafés.
Assistente — De acordo. Mas não posso assinar de ânimo
leve, preciso de garantias.

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Eleutério — Gosto de si, sabe, faz­‑me lembrar os meus
tempos de estudante. Sabe qual era a única garantia que
tínhamos? Isto em medicina, claro…
Assistente — Não, não sei.
Eleutério — Quem o dizia era o reitor, coitado, julgava­‑se
Paracelso em pessoa! Ele dizia que podia faltar­‑nos tudo na
medicina, dinheiro, máquinas, soro, hospitais, sangue, menos
uma coisa: mortos para podermos trabalhar.
Assistente — Não deixa de ter a sua razão, mas pensando
melhor, antes de voar queria que me desse alguém, não do céu
ou do inferno, mas alguém vivo que me seja dedicado, obediente,
alguém que eu possa comandar. E foi o senhor que estudou
alquimia, não eu, eu apenas fiz os meus estudos de medicina.
Eleutério — Ah, agora percebo, um escravo! Por que não
disse logo, tinha já feito uma cláusula especial no contrato.
Alguém que paire a seu lado, invisível, e que apareça sempre
que estale os dedos…
Assistente — Como se fosse um espírito, mas também pessoa,
alguém a quem eu possa fazer tudo o que me venha à cabeça.
Eleutério — Não será pedir de mais?
Assistente — Alguém que eu possa matar, mas não morra
nunca enquanto eu for vivo.
Eleutério — Uma mulher!
Assistente — Não interessa. Alguém de cuja alma eu me
possa apropriar.
Eleutério — Não será melhor pedir a eternidade, que
fique jovem para sempre ao lado desse espírito.
Assistente — Não sei se quero viver para sempre!
Eleutério — E se em vez disso lhe oferecesse um cargo
no governo, uma assessoria que fosse, um lugar de deputado?
Ou então 30 mulheres, as mulheres mais belas do mundo.
Estão ao meu alcance, basta falar com as autoridades, já lhe
devem ter dito isso.

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Assistente — Mas eu não quero 30 mulheres, quero um
servo, alguém a quem eu diga: segura­‑me as asas, apaga o
fogo, acende a fogueira, tapa­‑me a Lua. Coisas que me vierem
à cabeça no outono ou quando me dirigir para o Sol, que me
taça sombra e as queimaduras seja ele a sofrê­‑las.
Eleutério — Mas a imortalidade! Por que não me pede a
imortalidade, se está nas minhas mãos dar­‑lha?…
Assistente — Isso sei eu que não é possível, já Fausto o
tentou e não conseguiu.
Eleutério — Acho estranha essa resposta. Foi o seu reitor
que lhe disse, presumo. Falar­‑me de Fausto quando não conhece
Simão Mago… Bom, adiante. Não será essa maneira infantil
de pensar que me leva a abdicar do contrato. Eu dou­‑lhe um
servo, com uma condição…
Assistente — Diga.
Eleutério — A fidelidade em troca de um servo.
Assistente — De um servo que seja um espírito. E da
capacidade de o domesticar.
Eleutério — Vejo que sabe o que quer e gabo­‑lhe o gosto.
E quer dar­‑lhe um nome?
Assistente — Margarida.
Eleutério — Ah, percebo, mas não quer antes um homem,
chamado por exemplo, por exemplo, Cipriano, ou uma mulher
chamada Justina!
Assistente — Ou é uma mulher e chama­‑se Margarida ou
um homem com o nome de Fausto.
Eleutério — Mas isso não pode ser, ninguém iria acreditar!
E além disso seria motivo da mais despudorada chacota. Já se
viu, Fausto! Fausto no século xx, rodeado de eletrodomésticos,
muito bem instalado num apartamento, sentado calmamente
com Margarida a olharem para um ecrã e a fazerem zapping
durante toda a noite! Nem pensar!

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Assistente — Não precisa ser irónico. O cliente que acabou
de sair não vendeu o coração para comprar um computador?
Eleutério — Desculpe esta minha boa disposição, mas se
não fosse um caso muito sério eu contava esta conversa ao
meu antigo reitor.
Assistente — Se não pode ser Fausto, então que seja
Cipriano e ficamos entendidos.
Eleutério — Eu propunha que ela se chamasse Maria,
Helena ou Ofélia, assim ninguém iria suspeitar de nada, é
menos óbvio. Mas atenção, o que eu lhe prometi foi apenas
um servo, não dois. Deixei­‑me levar pela sua conversa.
Assistente — Então, que seja Ofélia.
Eleutério — Está feito, assine aqui, e jure.
Assistente — Juro.
Eleutério (faz uns gestos para o ar e para os lados,
aparece lentamente Ofélia) — Veja bem, já está. Agora repare
(O assistente fica deslumbrado.) no seu corpo, no vestido…
Assistente (analisa­‑a, toca­‑a) — O cabelo longo e dourado,
«os olhos negros, uma boquinha com lábios de cereja, a cabe-
cinha redonda, o colo de cisne branco, as faces como botões
de rosa» (1), como é bela!
Eleutério — Um corpo, como dizia o meu antigo reitor, «na ver-
dade esbelto, sob um sumptuoso vestido cor de púrpura escura» (2).
Assistente — Fico satisfeito.
(Ofélia afasta­‑se na direção do bloco operatório, acaricia as
campânulas, mexe nos bisturis. Eleutério e Agripino observam.
Ofélia desaparece.)
Assistente (repete) — Fico satisfeito.
Eleutério — Muito bem. Vamos ao trabalho. (Junto às
duas figuras penduradas.) Pegue desse lado. Serre por aqui,
pela virilha.

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Assistente — Mas estes não estavam à espera para uma
transplantação do fígado?
Eleutério — Acabou­‑se o tempo. Não apareceu ninguém a
vender fígados. De qualquer modo estão mortos! Agora a perna
esquerda do outro, pelo mesmo sítio. Traga para aqui. Como
vê, já não falta tudo. Mande entrar o próximo cliente.
S egundo cliente (uma mulher de meia­‑idade, cabelo
oxigenado) — Boa tarde!
Eleutério — Sente­‑se. Este é o meu assistente, o Doutor
Agripino. Então diga.
Segundo cliente — Não é fácil o que vou dizer, mas matei
o meu marido.
Eleutério — Continue, continue.
Segundo cliente — Matei­‑o.

Eleutério — Descontraia­‑se, temos tempo.


Segundo cliente (chora um pouco) — Matei­‑o de vez.
Eleutério — Mas isso é uma coisa normal.
Segundo cliente — O senhor doutor acha?
E leutério  — Normalíssimo. E de certeza com razão!
Segundo cliente — Não aguentei mais, todos os dias lhe
dizia que queria uma televisão com ecrã ­ gigante: Teodoro,
olha que eu quero um ecrã gigante, já te disse, um ecrã igual
ao que têm os Nunes. E ele nada, nem sequer me respondia.
E eu obrigada a ver televisão naquelas miniaturas. Estás cega
ou quê?, dizia­‑me ele, se estás cega, melhor, para não pores os
olhos onde não és chamada. Já viu uma coisa assim? Então,
não me contive, peguei numa tesoura e espetei­‑lha no pescoço.
Eleutério — E ele?
Segundo cliente — Ele, lá está na sala, morto.
Eleutério — Percebo. E quer vendê­‑lo todo?
Segundo cliente — Não, só os braços.

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Eleutério — Mas isso não chega para comprar um ecrã
gigante. Os braços é o que vale menos. Precisamos de mais
qualquer coisa, de um pulmão, de um rim.
Segundo cliente — Se eu lhe vender as vísceras todas,
quanto me paga?
Eleutério — Ora isso é muito dinheiro, mas não tem
problema, dinheiro é o que eu tenho de sobra. Passo­‑lhe um
cheque e tudo.
S egundo cliente  — E dá para comprar um carro?
Eleutério — Um carro e muito mais coisas, um micro­
‑ondas, um jogo de copos de cristal, até um jarrão chinês.
E se me der uma parte da cabeça, as orelhas, o nariz, poderá
comprar até uma moto de água.
Segundo cliente — Como a dos Nunes?
Eleutério — Exatamente. Ou melhor ainda!
Segundo cliente — Aceito.

Eleutério — Quando podemos ir lá buscar o corpo?


Segundo cliente — Agora mesmo, se vos der jeito.
Eleutério — O meu assistente encarrega­‑se disso. Agripino,
acompanhe esta senhora a casa e traga­‑me o marido. (Sozinho,
endireitando os primeiros pedaços do ser que vai fabricar e
falando para essa coisa.) Está a ser mais rápido do que eu
imaginava. Em breve serás gente. Se fosses um diabo, ser­‑me­
‑ia fácil criar­‑te. Mas tu vais ser de carne como os homens. E
esta será a grande tarefa da minha vida: criar um ser humano.
Depois de tantas tentativas falhadas… Fabricar Mal, o homem
perfeito. Parece que estou a ver­‑te, esmagando todos os que se
te atravessarem ao caminho, destruindo edifícios, tomando conta
dos laboratórios, assenhoreando­‑te aos poucos do mundo. E com
a ajuda do palerma do Agripino. Como se fosse possível um ra-
pazola levantar voo até ao céu assim sem mais nem menos. Eu
sim, levar­‑te­‑ei lá, ao meu colo se for preciso, depois de queimar
as florestas. Eles, lá, conhecem­‑me. Misturar­‑nos­‑emos com o
fumo e subiremos, subiremos. Tu também terás a tua Ofélia.

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Chamar­‑se­‑á Helena e conquistaremos o universo. Essa será
a minha grande satisfação. Chegar lá e comandar os homens.
Eles conhecem­‑me, não há problema. (Examina o futuro ser.)
Porque eu sei onde está o Mal e se faço isto é porque quero
ser feliz. Não tenho eu o direito de ser feliz como toda a gente?
De roubar, de matar, de violar? Que me importam os bens
terrenos? É verdade que já tenho casa, carro, mulher, filhos,
eletrodomésticos, poder, influência e o meu lobby é o mais forte
que está no mercado, nada me falta a não ser uma pequena
coisa. Sabes o que é? Não sabes. Como poderás saber se ainda
não está fabricado? Mas eu digo­‑te: a felicidade. Isso mesmo, a
felicidade. Eu mereço­‑a. Não estou eu a ajudar a serem felizes
os outros, comprando­‑lhes órgãos? (Pausa.) Mas enfim, temos
que nos apressar e destruir tudo à nossa volta, começar do
princípio, não podemos permitir que alguém construa seres
mais inteligentes dos que os que existem hoje nas cidades. E
quem nos diz que não estarão a fabricar seres com três orelhas,
parecidos com ratos ou tartarugas? (De novo junto da quase
criatura.) Trata­‑se aqui tão­‑só de criar um homem novo, de
dominar. Não parece grande coisa, é um desejo velho como o
mundo, mas eu vou fazê­‑lo de outro modo. Aliás eu já estou a
fazê­‑lo de outro modo. Olha para as pessoas, olha para a vida
das pessoas. Alguma vez alguém imaginou, alguém imaginou
ver uma mulher vender o corpo do marido para comprar um
ecrã gigante ou um jovem vender o coração para adquirir um
computador! (Para o público.) E os que arrancam o couro cabe-
ludo, que vendem as tíbias e os olhos, algum de nós imaginou
que fosse possível? Ou dar sangue, simplesmente, abrir as veias
e vender um litro de sangue para comprar uma pizza? (Cospe
para o chão.) Metem­‑me nojo!
(Entra Agripino com um corpo, ajudado por Ofélia, pousam­
‑no numa marquesa.)
Agripino — Pousa­‑o aí. É pesado, o homem. Ora aqui está!
Eleutério — Bom trabalho.
Agripino — É todo nosso!
Eleutério — Temos que começar de imediato a prepará­‑lo.

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(Batem à porta.)
Agripino — Ofélia, vai ver quem é.
Eleutério — Diga­‑lhe que entre, deve ser um cliente, não
pode ser outra pessoa!
Agripino — A polícia! Podem ter dado pela falta do corpo!
Eleutério — As autoridades estão ao corrente, ou pensa
que eu ando a brincar com a vida dos outros?
Ofélia — É um cliente, pede para falar consigo. Diz que
se chama Paiva.
Eleutério — O Paiva. O taberneiro! Mas mande­‑o entrar!
Paiva (acabrunhado) — Com licença.
E leutério  — Este mundo está cheio de surpresas!
É mesmo o Paiva!
Paiva — Eu mesmo.
Eleutério — Mas onde se meteu você este tempo todo?
Paiva — Estive preso.
Eleutério — Não é possível! Mas eu combinei com as
autoridades…
Paiva — Agora não importa, o que lá vai, lá vai.
Eleutério — Que não haja ressentimentos entre nós.
Paiva — De que vale agora falar nisso? Eu vim cá por
outras razões.
(Eleutério faz sinal a Agripino para que comece a prepa-
rar o corpo.)
Eleutério — Decidiu então vir até cá…
Paiva — Foi. Eles deixam­‑me sair aos fins de semana, para
mim tudo bem, fico no albergue. Como deve calcular perdi a
taberna, fiquei sem nada. Também já não me servia. Depois
de ter matado o velho fiquei sem vontade para nada.
Eleutério — O que lhe aconteceu à mão?

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Paiva — Foi um acidente.
Eleutério — De trabalho?
Paiva — Não importa.
Eleutério — Na prisão?
Paiva — Não. Que interessa isso agora? Na prisão fiz bons
amigos, sinto­‑me lá bem, trabalho na carpintaria.
Eleutério — Com uma só mão?
Paiva — É para matar o tempo. Eu devia ter sido carpin-
teiro. O meu avô sempre disse que o futuro estava bom era
para os carpinteiros, mas o meu pai não quis, achava que se
devia estabelecer e não andar às ordens de ninguém…
Eleutério — E eu que sempre pensei que taberneiro era a
sua vocação! Como vê, este é o meu consultório. Tal e qual como
lhe tinha dito, a secretária, o cadeirão, os telefones, a cadeira
para o cliente, o cesto dos papéis, o escarrador, as prateleiras
com os livros, tudo como imaginei… A cadeira de dentista…
Paiva — Não, a minha vocação era a tropa, os fuzileiros,
o meu pai é que não deixou. Gostava de ir naqueles barcos
de borracha e atracar nas praias com a cara suja de carvão.
Eleutério — O Paiva deve pensar que eu sou um homem
feliz. Está a ver ali a cadeira? Foi uma cadeira destas que eu
sempre quis ter. E no entanto não sou feliz, faço­‑me entender?
Como lhe hei de explicar…
Paiva — Na prisão há lá uns fuzileiros que estiveram na
guerra, em África. Não, digo mal, estão lá uns filhos desses
fuzileiros que dizem que em África cortavam as cabeças e
rebentavam a barriga às ­ mulheres grávidas. Eu não acredito,
mas eles dizem que é verdade. E jogavam à bola com os bebés.
Eleutério — Bem, vou apresentar­‑lhe o meu assistente.
Talvez ele consiga explicar­‑lhe. Doutor Agripino, explique aqui
ao senhor Paiva a razão pela qual não é possível ser feliz…
Diga­‑lhe, diga­‑lhe!

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Paiva — Eu não acredito, não estou a ver os portugueses
a fazer isso, não tinham coragem.
Agripino — Não entendo o que ele está a dizer!
Paiva — Um que anda sempre comigo, o Octávio, disse­
‑me que o pai era dos comandos e só às mãos dele morreram
35 pretos. Cortou­‑lhes o pescoço, amarrou­‑os a uma árvore
e queimou­‑lhes os tomates, com as mulheres deles a ver.
E depois jogava à bola com a cabeça deles.
Eleutério (afasta­‑se) — Com licença.
Paiva — O Octávio trabalha comigo na carpintaria.
Agripino — Quem é o Octávio?
Paiva — Faltam­‑lhe dois dedos que foram juntos com a
serradura. Nunca mais ninguém os viu. O capelão disse que
foi um castigo por causa do pai dele ter andado a esventrar as
mulheres em África. E aconselhou­‑me a não falar destas coisas
em frente dos outros presos. Que é para meu bem, diz ele.
Agripino — Capelão, qual capelão?
Paiva — Mas eu gosto é de falar disto. Eu e o Octávio não
falamos de outra coisa. Uma vez diz que o pai dele meteu uma
granada na boca de um preto e que a seguir se entreteve a
disparar com uma pressão de ar contra a patilha. Desta vez
acho que era o pelotão todo a disparar. Era uma aposta. Quem
conseguisse rebentar a granada ganhava a mulher e as filhas…
Eleutério (aproxima­‑se) — Então, explicou­‑lhe?
Agripino — Não consegui, ele não se cala! E fala de um
tal Octávio…
Paiva — Mas eu não acredito que os portugueses…
Eleutério — Vamos então a saber, senhor Paiva, o que o
levou a procurar­‑me?
Paiva — Eu até já disse ao capelão…
Eleutério (bate na secretária) — Paiva! Acorde, Paiva!
Que conversa é essa! O que o trouxe cá?

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Paiva (pausa, olha para os lados, sorri levemente) — Bem,
nesse caso, digo­‑lhe, eu vim cá para vender os olhos.
Eleutério — Os olhos!
Paiva — Não quer?
Eleutério — Claro que quero. Os olhos! É que fiquei
surpreendido, confesso.
Paiva — Para que me servem os olhos?
Eleutério — Não sei.
Paiva — Não consigo suportar a imagem do velho, de
olhos esbugalhados, a ver o machado no ar. E eu parado,
hesitante. Mato­‑o, não o mato. E aqueles olhos a fulminarem­‑me.
O desgraçado nem se mexeu, borrou­‑se todo, tal foi o medo.
E mesmo assim eu esmaguei­‑lhe a cabeça com o machado, em
cheio na testa. Os olhos dele saltaram e continuaram a olhar
para mim. Não consigo aguentar.
Eleutério — Pense bem, Paiva.
Paiva — Já pensei. Além disso tenho o direito de vender os
olhos. São meus e é o que me resta. Para que quero eu os olhos?
Eleutério — Sim, pensando bem, para que queremos nós
os olhos? Mas como sabe, eu só compro sabendo o modo como
o cliente vai empregar o dinheiro. Para um carro, para uma
mobília de estilo, para uma piscina…
Paiva — É para dar aos presos. É para o Octávio, ele
quer um vídeo na cela. E para o capelão que me pediu um
telefone portátil.
Eleutério — Não me diga que eles sabem que veio ao
meu consultório.
Paiva — Toda a gente sabe, mas pensam que sou eu que
estou a inventar histórias. Não acreditam. O capelão até me
disse, vai meu filho, vai, distrai­‑te que Deus não te abandonará.
Eleutério — Ora aí está uma verdade!
Paiva (levanta­‑se) — É que não consigo suportar a imagem
do velho a morrer. Já tentei, mas não consigo.

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Eleutério — Percebo, eu também teria dificuldade!
Paiva (puxa de uma navalha) — Não consigo, o velho
persegue­‑me com os olhos pendurados até à boca. Não consigo.
Eleutério — Então, senhor Paiva, isso passa…
Paiva — Vai mesmo passar e já!
(Tenta furar os olhos com a navalha, mas Eleutério não
permite. O assistente corre, chama Ofélia e os três amarram­‑no.)
Eleutério — Temos de ser rápidos. Os olhos devem ser
arrancados enquanto está vivo.
Agripino — Ofélia, tapa­‑lhe a boca. Depressa, passa­‑me
a tesoura.
(Paiva dá dois gritos. Batem à porta com força. Ofélia
vai espreitar e fica a guardar a porta.)
Ofélia — Um cliente.
Eleutério — Que espere, é só um momento.
(Eleutério e Agripino colocam os olhos na criatura que
estão a construir, escondem o corpo de Paiva.)
Eleutério — Mande entrar.
Terceiro cliente (bem vestido, mas com a barba por fazer
e o cabelo desgrenhado) — O meu nome é Cipriano.
Eleutério — Ora e é um nome ótimo!
Terceiro cliente — Cipriano como o meu avô.
Eleutério — Muito bem.
Terceiro cliente — Já o meu bisavô era Cipriano e dizem
que o pai dele também o era.
Eleutério — Sim, senhor. Então diga lá!
Terceiro cliente — Eu preferia chamar­‑me Simão, como o
meu tio, mas o meu pai não quis, dizia que Simão era nome
de cabresto. Mas não importa, fiquei Cipriano e aqui estou.
Eleutério — Ora bom, está aqui e…

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Terceiro cliente — Peço­‑lhe sobretudo uma coisa.
Eleutério — O quê? Diga.
Terceiro cliente — Que não me aponte luzes para a cara.
Eleutério — De acordo.
Terceiro cliente — Nem luzes nem espelhos. Não me
quero olhar nem ver as coisas à claridade.
Eleutério — Você é que manda.
Terceiro cliente — Vim aqui para falarmos num assunto,
não para ver objetos.
Eleutério — Como queira!
Terceiro cliente — Dá­‑se o caso de que eu ­desejo adquirir
uma moto. Uma máquina com mais de 36 velocidades…
Eleutério — Continue.
Terceiro cliente — Quero viajar, ir à Alemanha e à Roménia.
Eleutério — E acho que faz muito bem!
Terceiro cliente — Quero conhecer o mundo!
Eleutério — Eu estou aqui para o ajudar.
Terceiro cliente — Estudei informática, se quer saber, era o
que havia. Mas hoje isso não me diz nada. Como vê, não sou uma
pessoa qualquer! E digo­‑lhe mais, ninguém me bate ao Tetris!
Eleutério — Acredito.
Terceiro cliente — Mas essas vitórias também já não me
dizem nada. Não quero saber da Internet. A minha vida a partir de
agora vai ser essa moto. Vou viver em cima dela, comer em cima
dela, dormir ao seu lado. Tal como o meu tio Simão. É doido por
motos. Tem umas 50 na garagem. Mas não possui nenhuma com
mais de 36 velocidades. É por isso que eu quero vender os pés.
Eleutério — Os pés!
Terceiro cliente — Exato.

Eleutério — Nunca me passaria isso pela cabeça depois


de o ter ouvido falar de motos!

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Terceiro cliente — É toda automática, eu já a vi, bastam­
‑me as mãos.
Eleutério — E para andar, para a meter na garagem, enfim…
Terceiro cliente — Andarei sempre em cima dela, nunca
a largarei.
Eleutério — E quando estiver parado?
Terceiro cliente (faz o pino) — Eu tenho equilíbrio, senhor
doutor, não vê que eu tenho equilíbrio!
Eleutério — Bem, está bem! Não tinha pensado nisso.
Nós os médicos às vezes subestimamos os doentes. Claro que
o senhor Cipriano não é um doente, mas um vendedor. Mesmo
assim, reconheço que às vezes…
Terceiro cliente (com frieza) — Os pés, doutor, os pés!
É isso que eu quero vender, ou ainda não percebeu?
Eleutério — Pronto, pronto, fico­‑lhe com os pés, é só passar
o cheque. E quer deixá­‑los já ou vem cá trazer?
Terceiro cliente — Posso deixá­‑los já!
Eleutério (passa o cheque) — Muito bem, não se fala mais
nisso, faça favor, tem aqui o cheque. Passe para ali.
Terceiro cliente — Não preciso, dou­‑lhos mesmo aqui.
(Desenrosca os pés, entrega as próteses a Eleutério que
fica mudo a ver Cipriano desaparecer, arrastando o corpo
pelo chão. Agripino e Ofélia aproximam­‑se e ficam os três a
contemplar as próteses.)
Eleutério — O mundo não deixa de me surpreender.
(Segue em direção à figura, envolvem­‑na, ficam na sombra.)

Terceiro Ato
(A criatura está pronta fisicamente, mas falta­‑lhe ainda a
alma. Cada parte do corpo está vestida com um tecido diferente,
os braços, as pernas, o tronco. Tem um capacete/coroa na cabeça.
É um misto de executivo, de punk, de polícia e de guerrilheiro. Eleu-
tério, Agripino e Ofélia rodeiam a criatura e ensinam­‑na a andar.)

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Eleutério (entusiasmado) — Uma maravilha, uma autên-
tica maravilha!
Agripino — De facto, nunca esperei que conseguíssemos
criar um homem novo.
Eleutério — O senhor é jovem, Agripino. As democracias
demoram tempo a consolidar­‑se. Veja, eu nasci na monarquia,
vivi na república e vou acabar os meus dias numa democracia.
Agripino — Eu nunca vivi em democracia, se quer saber.
Eleutério — Essa agora!
Agripino — Nunca saí daquele hospital. Nasci lá e lá fiquei.
Vivi sempre num anexo, nas traseiras.
Eleutério — Pois claro, esquecia­‑me que os seus pais são
enfermeiros. Está explicado, pronto, percebi o seu raciocínio.
Mas mesmo assim, entende que este momento é o mais im-
portante das nossas vidas. Criámos um homem novo.
Agripino — Estamos a criar um homem novo, será melhor
dizer. Para isso servem as democracias de que o senhor fala.
Eleutério — Eu falo por falar. Vou confessar­‑lhe uma
coisa. Eu gosto das palavras, gosto de construir frases com
elas, frases que ponham as pessoas de boca aberta. Frases
nunca antes ditas. Coisas assim, quer ouvir:
(Declama) «Concordar não posso
Em que alguém mais do que eu tenha sentido
O mistério completo do universo.
Completo e profundo.
E assim estou, pensando mais que todos,
E assim sem alegria. A verdade
Achei­‑a, não a achando; conhecia­‑a
Reconhecendo­‑a sempre incognoscível,
Mas pensei­‑a sentindo­‑a… Tenho orgulho
De ter chegado aqui onde ninguém
Nem nas asas do doido pensamento
Nem nas asas da louca fantasia
Chegou! E aqui me quedo consolado

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Nesta perene desolação.»
Gostou, diga lá, gostou.
Agripino — Não percebi inteiramente, mas gostei. Não
entendo, porém, o que isso tem a ver com o homem novo.
Eleutério — Nada, nada, apenas, como lhe disse, gosto de
juntar palavras e dizê­‑las alto como se estivesse num teatro.
Agripino — Sim, tudo bem, mas temos um problema.
Eleutério — Que problema?
Agripino — Falta­‑lhe a alma.
Eleutério — Eu sei, isso preocupa­‑me, mas tudo se há de
resolver, confie em mim.
Agripino (andando com a criatura apoiada nos ombros e
com a ajuda de Ofélia) — Olhe para ele, daqui a nada está a
andar sozinho, mas não fala, não sente e, no entanto, não se
trata de um robô, é uma pessoa. Diferente de nós, mas uma
pessoa para todos os efeitos.
(Batem à porta. Ofélia vai abrir. Aparece um homem magro
vestido de preto. Eleutério manda­‑o entrar, solícito.)
Eleutério — Sente­‑se, por favor. Devo tratá­‑lo por…
Teófilo — Por Teófilo.
Eleutério — Teófilo! Muito bem. Ora senhor Teófilo, muito
bem… Então… Vamos falar sobre…
Teófilo — Quero que saiba, desde já, que fui padre du-
rante alguns anos, mas já não sou, desisti. Melhor dizendo,
expulsaram­‑me da ordem e depois desisti.
Eleutério — Não é costume acontecerem essas coisas na Igreja!
Teófilo — Foi de facto um caso pouco usual no seio dos
padres, mas deu­‑se.
Eleutério — Não sei o que dizer.
Teófilo — Não faz mal. Quero também dizer­‑lhe que se
fala de si na diocese. Comenta­‑se que é um charlatão, um
mago, um protestante, outros dizem que é uma personificação

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do diabo. Há mesmo quem diga que rouba cadáveres à noite
no cemitério, para os desmembrar.
Eleutério — E vampiro, não dizem que sou um vampiro
e que chupo o sangue das virgens?
Teófilo — Não, isso não dizem. Mas há lá um sacer-
dote que jura tê­‑lo visto a beber sangue numa missa negra.
Eleutério — Oh, meu amigo, se eu quisesse beber sangue
não me faltariam clientes que o quisessem vender, mas não
gosto, enjoa­‑me. Nós os cientistas passamos uma vida inteira a
ouvir calúnias dessa natureza. Depois, a História se encarrega
de nos dar o valor. O tempo é o meu único juiz!
Teófilo — Mas vamos ao que interessa.
Eleutério — Acho muito bem.
Teófilo — Como lhe disse, eu fui padre. Sou, portanto,
um ex­‑padre.
Eleutério — Exatamente.
Teófilo — Depois de muitos anos de reflexão, decidi que que-
ria sair do anonimato. Não por ser padre ou por estar de mal com
os padres. Por mim, apenas por mim, como pessoa. Não se esqueça
de que existem padres que são conhecidos do grande público.
Eleutério — Até conheço alguns.
Teófilo — Pronto. Há meses, mostrei o desejo, ao bispo, de
querer ir à televisão. Foi um desejo incontrolável, uma luz que
me apareceu numa noite de verão e uma voz que me segredou:
tens que sair do anonimato, tens que sair, é preciso que apareças
no ecrã, é aí que está a felicidade, a televisão é Deus.
Eleutério — Assim mesmo, tão explícito?
Teófilo — Assim mesmo, esta frase que se repetiu como
se fosse um eco. A televisão é Deus.
Eleutério — Que insólito!
Teófilo — Não suportei, tive que me confessar ao bispo.
Mas ele perguntou se eu não estava a delirar. É evidente que

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não estava. Pois se eu vira a luz e ouvira a voz e nesse momento
estava acordado a ler a Bíblia, como poderia estar a delirar?
Eleutério — Sabe como são os bispos, esses privilégios,
ouvir vozes, ver luzes, esses contactos com Deus, os bispos
não gostam muito de abdicar da sua exclusividade.
Teófilo — Eu disse­‑lhe: tenho que ir à televisão, o meu
rosto tem que sair do anonimato, foi Deus que me indicou. Mas
o bispo aconselhou­‑me recolhimento e muitas orações. Ora bem
vê, eu a querer sair do anonimato e o bispo a aconselhar­‑me
recolhimento, há aqui uma contradição.
Eleutério — Totalmente de acordo.
Teófilo — Então comecei a fazer diligências, falei para lá,
escrevi cartas, meti algumas cunhas a antigos colegas do semi-
nário que hoje são funcionários da TV, mas nada. A resposta
era sempre que eu iria baixar as audiências e que tudo o que
eu propus como programa já tinha sido proposto por centenas
de candidatos. Desde shows a palestras, de vídeos sobre mos-
teiros e gastronomia celestial, desde concursos e entrevistas,
nada interessou, nem milagres. Nada era novidade e a lista
de ofertas dava para uma década. Cheguei a oferecer­‑me para
aparecer nu. Nada, nada. Que um padre nu não fazia aumentar
as audiências, seguramente. Por isso vim cá.
Eleutério — E fez muito bem.
Teófilo — Eu quero mesmo ir à televisão, é essa a minha
última vontade.
Eleutério — Mas isso arranja­‑se. A minha relação com
a televisão é de unha com carne, basta um telefonema. Se
tivesse vindo cá há mais tempo, já hoje era uma figura pública,
cumprimentada na rua, no café, no mercado.
Teófilo — É isso que eu quero, refleti durante muitos
meses e cheguei a essa conclusão. Quinze minutos na televisão
e é a glória! Mais do que milhares de horas a rezar.
Eleutério — Claro, mas responda à minha curiosidade…
O que iria dizer quando estivesse em frente das câmaras?

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Teófilo — Pois aí é que está. Esse é o meu segredo.
Eleutério — Bom, se é um segredo isso é mais caro e
leva­‑me a exigir­‑lhe a disponibilidade total para lhe comprar
o que preciso do seu corpo.
Teófilo — O que for preciso, desde que me ponha 15 minu­
tos na televisão!
Eleutério — E está disposto a vender qualquer coisa do
seu corpo sem questionar?
Teófilo — É só pedir.
Eleutério — Sem sequer pestanejar.
Teófilo — Não estou aqui para outra coisa. Desde que
não doa muito!
Eleutério — É evidente que não dói. Isto aqui não é a
Inquisição. Então, está mesmo disposto a assinar e a vender
sem saber o que lhe vou pedir?
Teófilo — Acho que estamos a perder tempo de mais. Ou
me consegue levar à televisão ou não. Decida­‑se.
Eleutério — Assine aqui. (Faz um sinal para Agripino,
que se aproxima com Ofélia e a criatura.) Agripino, tire a
alma a este senhor!
Teófilo — A alma?
Eleutério — Exatamente, a alma.
Teófilo — Mas quem é esta criatura?
Eleutério — É o Homem Novo.
Teófilo — Nunca vi tal coisa.
Eleutério — Criado por mim e pelo meu assistente. Mas
diga­‑me, quando quer aparecer na televisão?
Teófilo — Já amanhã, se for possível.
(Agripino embrulha a cabeça de Teófilo com um pano
branco e liga­‑a à do Homem Novo. Ofélia faz uns curtos passos
de dança. Teófilo sai depois cabisbaixo.)

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Agripino — Precisamos de lhe dar um nome.
Eleutério — Pode ser João, não importa. O principal é
que ele cumpra aquilo para que foi criado.
Agripino — Trazer a paz ao mundo.
Eleutério — Qual paz, Agripino, qual paz! Ele vai é con-
quistar o mundo, endireitá­‑lo, que é do que o mundo precisa!
Isso mesmo, ele vai endireitar o mundo. E vai fazê­‑lo para nós!
Agripino — Então, depois, quando o mundo for nosso, eu
posso voar para o céu e levar comigo a Ofélia!
Eleutério — Pode mesmo ir direito ao Sol, porque o João,
com o poder que lhe demos, não vai deixar que as suas asas
se queimem. Você, Agripino, fica com o céu, com as estrelas
e os planetas e eu governo os bens da terra. Como vê, acabou
por fazer um bom negócio. Você, que se diz democrata, fica
com o céu e pode receber toda a gente. Eu, já que me chamam
feiticeiro, aldrabão, vampiro e tudo o mais, fico com a terra e
com quem eu quiser que nela habite.
(João mexe­‑se e articula os primeiros sons. De início
impercetíveis, vão­‑se tornando claros aos poucos. Ofélia foge
assustada para junto de Agripino.)
Eleutério (eufórico) — Olhem para o nosso Homem Novo,
saído destas mãos.
Agripino — Confesso que é uma obra­‑prima.
João — Nunca acreditei naquele bispo. Sempre a querer
transmitir a missa pela televisão. Só para aparecer nos ecrãs,
a beber o vinho e a entregar as hóstias.
Eleutério — João, o nosso João. Senta­‑te, meu filho, temos
muito que caminhar juntos.
João — Televisão, televisão, não pensava noutra coisa!
Eleutério — Deixa lá isso agora, são águas passadas.
O Teófilo que resolva!

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João — Eu disse­‑lhe um dia: recuso­‑me a fazer homilias
para a televisão lá atrás, ou fico à boca de cena ou nada feito.
Nesse caso, mantenho­‑me na sacristia.
Agripino — Há aqui qualquer coisa que não está a dar certo!
Eleutério — Que importa isso agora, quando o mundo
espera por nós? Pensa nos milhões de pessoas que estão à
espera do Homem Novo.
João — Qual homem novo?
Eleutério — De ti, meu filho, és tu o Homem Novo.
João — Seja o que for, tenho que ir à televisão. Senão a
minha vida não faz sentido.
Eleutério — Mas temos muito tempo para isso. ­ Depois
de conquistarmos o mundo, a televisão é toda nossa e então
poderás aparecer durante 24 horas por dia.
João — Não quero, apenas preciso de 15 minutos, 15 mi-
nutos de glória.
(João persegue Ofélia que, apavorada, não oferece resistência.)
Agripino — Houve aqui um erro, não estava previsto que
o Homem Novo viesse com estas obsessões.
Eleutério — Pois foi, deixei­‑me levar pela conversa do Teófilo.
Agripino — É o segredo. Ele não lhe falou sobre o que
iria dizer à televisão?
Eleutério — Foi isso, temos de descobrir se ele tem al-
gum plano.
Agripino — Nunca se compra uma alma sem saber o que
lá vai dentro.
Eleutério — Agora é tarde, não vale a pena estarmos a
chorar sobre o mal feito. E não se esqueça de que continua a
ser apenas meu assistente. Dispenso críticas.
João (abraçado a Ofélia) — Se sou o Homem Novo, esta
é a minha primeira mulher.

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Agripino — Ouviu o que ele disse?
Eleutério — Ouvi.
Agripino — Significa que não possui apenas a alma do Teófilo.
Eleutério — Teófilo era padre e não me parecia tão in-
clinado para estas coisas!
João — E depois de te ter, vou aparecer na televisão.
(Para Eleutério.) Não é, pai?
Eleutério — Claro, meu filho.
João — Vou ter direito aos meus 15 minutos de glória.
Eleutério (para Agripino) — Temos que lhe tirar aquela
ideia. Imagine que ele vai dizer disparates na televisão. Mas
que raio de ideia fixa!
Agripino — Só existe uma solução.
Eleutério — Qual?
Agripino — Tirar­‑lhe esta alma e meter­‑lhe outra.
Eleutério — Isso não me grada. E além disso não temos
muito tempo. Se a Ofélia o pudesse convencer.
Agripino — Podemos tentar.
(João brinca com o corpo de Ofélia, levanta­‑o como se fosse um
brinquedo. Ela tenta fugir, mas ele lança­‑lhe uma corda. Ofélia cai
e fica como morta. Agripino corre a ajudá­‑la, mas ela não responde.)
Agripino — Está morta.
Eleutério — Calma, Agripino, calma. Está apenas desmaiada.
Agripino (desesperado) — Está morta, está morta. (Para
João.) Foi ele, o sacana do padre.
(Agripino vai buscar uma seringa e procura espetá­‑la em João.)
Agripino — O Homem Novo, o Homem Novo, eu lhe dou
o Homem Novo!
Eleutério — O que é isso, Agripino? Endoideceu?

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Agripino — É a alma do padre, não vê? Esse Teó­filo não
me pareceu boa rês. E eu que não me quis meter no assunto.
Via­‑se logo, com aquela história da televisão, do bispo, dos
15 minutos de glória!
Eleutério — Calma, nada está perdido. E, além disso,
Ofélia está apenas atordoada. Confie em mim, está tudo com-
binado com as autoridades.
Agripino — Quais autoridades, temos é que lhe mudar a alma.
Eleutério (ameaçador) — Agripino, não esqueça que me
deve fidelidade.
Agripino — Mas a morte de Ofélia não estava no contrato.
Eleutério — Porra, já lhe disse que a Ofélia está apenas
a dormir. Quer ver? (Dá um estalo no rosto de Ofélia que se
mexe e geme.) Viu? Está ou não viva?
Agripino — Está bem, mas há qualquer coisa de errado no
João. A primeira coisa que disse quando lhe demos vida foi falar
na televisão. Mas o que tem a televisão a ver com isto?
Eleutério — Temos que falar com ele. (Chama a criatura.)
João, chega aqui. Senta­‑te.
João — Estou bem de pé.
Eleutério — Meu filho, essa história da televisão…
João — São apenas 15 minutos de glória.
Eleutério — Mas para quê? O que queres tu ir lá fazer?
João — É segredo.
Eleutério — Mas se é segredo, não te deixam lá ir!
João — Terei que falar com o administrador ou com o
diretor de informação, seja com quem for, mas tenho que lá ir.
Eleutério — E prometes­‑me que depois disso vamos con-
quistar o mundo.
João — Prometo.
A gripino (para Eleutério) — Eu não acredito nele.

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Eleutério — Agripino, cale­‑se.
Agripino — Eu estou a avisar.
Eleutério — Ouça, de uma vez por todas, ainda quer voar
para o Sol ou deseja que o ponha na rua?
Agripino — Pronto, estava apenas a avisar!
Eleutério — Estou a ficar farto dos seus avisos.
João — Quinze minutos de glória!
Eleutério — Agripino, vá depressa à televisão e diga ao
diretor de programas que quero falar com ele.
Agripino — E a Ofélia?
Eleutério — Não se preocupe, eu tomo conta dela. Vá, vá,
rápido. (Para a criatura.) Ouve, filho, vais ter de arranjar uma
proposta única, uma coisa que ninguém ainda tenha pensado.
João — Eu sei. O que vou dizer a esse senhor de certeza
que ainda ninguém pensou.
Eleutério — Olha que não é fácil, a televisão já dá tudo,
pessoas a vomitar, a injetar­‑se, a fazer de macacos, a mijar, a
cagar, a morrer aos poucos. Já há sangue quanto baste e rezas e
promessas e seitas, tudo, polícias a bater e loucos a disparar para
os carros, casas a cair e políticos a falar… Que podes tu propor?
João — Uma coisa simples, mas que esse senhor vai aceitar
sem qualquer objeção. Vai ver.
Eleutério — Confecionar comida ao vivo, fazer surf, andar de
bicicleta, caçar coelhos, chamar nomes às pessoas… O quê? Diz­‑me.
João — Nada disso, uma ação de risco, de último grau,
sem fazer mal a quem quer que seja. Se for uma coisa que
não faça mal a ninguém, vai ver que ele aceita.
Eleutério — Pôr uma bomba, matar o locutor, aconselhar
um livro, apresentar um filme… Oh, meu filho, está tudo feito,
tudo, já não há surpresas.
João — O que lhe vou dizer de certeza que ninguém
ainda propôs.

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(Entram Agripino e o diretor de programas da televisão.)
Eleutério — Meu caro Bóris!
Bóris — Ora viva, Eleutério, há um ror de tempo que
não nos vemos!
Eleutério — Desde o estágio na polícia.
Bóris — Depois fui para as sondagens.
Eleutério — Eu sei, eu sei, essa história das audiências.
Bóris — Uma chatice!
Eleutério — Acredito. Mas mandei­‑te chamar por causa
do meu filho. Este rapagão!
Bóris — Muitos parabéns, não sabia que tinhas um filho!
Eleutério — Pois, o meu rapaz deseja ir à tele­visão, meteu­‑se­
‑lhe aquela ideia na cabeça e eu queria ver se é possível dar um jeito…
Bóris — Neste momento vai ser difícil, a programação
está feita.
Eleutério — Paga­‑se o que for preciso.
Bóris — Não se trata disso, o problema é de outra ordem.
João — Quinze minutos de glória!
Bóris — São as audiências, elas é que mandam.
Agripino — Eu não lhe disse que isto não ia dar certo?
Eleutério — Agripino, não se meta. Desculpa, Bóris. Mas não há
problema. O meu João tem uma coisa inédita a propor­‑lhe, não é, filho?
Bóris — Sabe que hoje em dia já nada faz subir as audiências!
João — Pois eu faço.
Eleutério — Ouviu?
Bóris — Enfim, se uma mulher der à luz um gato, se
uma codorniz conseguir engolir uma máquina de lavar ou se
um polícia confessar um crime, claro que isso fará aumentar
as audiências. Agora, penso que o seu João nenhuma destas
coisas será capaz de executar.

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Eleutério — Bóris, ainda não olhaste bem para ele. Não notas
qualquer coisa de diferente, uma luminosidade no seu semblante?
Bóris — Não, tenho pena, mas não. Sabes, pelo estúdio
passa todo o tipo de pessoas, altos, baixos, cegos, coxos e
marrecos, espertos, inteligentes e burros e o meu tempo é
curto para fazer juízos de valor. As audiências é que mandam,
Eleutério, as audiências. E sabes o que são as audiências?
É o povo, meu velho, o povo!
Agripino — Exatamente como eu previ.
João — Quinze minutos de glória!
Eleutério — Ouve, Bóris, o povo que se foda. Eu estou a
falar do meu filho.
Bóris — Eu sei.
Eleutério — Não, não sabes.
Bóris — Não precisas de te zangar!
Eleutério — Ouve, Bóris, olha bem para o João.
Bóris — Estou a olhar, não faço outra coisa.
Eleutério — E sabes o que estás a ver? É o ­ Homem
Novo, meu velho, o Homem Novo! Ele é que vai fazer subir
as audiências, porra!
Bóris (suspira) — Bem, sou todo ouvidos. Quem me dera
surpreender­‑me!
Eleutério — Vá, filho, surpreende­‑o!
João (pega num facalhão) — Muito simples, vou cortar­
‑me todo ao vivo, a começar pelos pés até chegar ao pescoço,
durante 15 minutos, e vou encher um bidão de sangue que
depois vai ser oferecido aos hospitais civis!
Eleutério — Como? O quê?
Agripino — Eu não disse?
Bóris — Um suicídio na televisão ao vivo? Mas, meus senho­
res, disso tenho eu pedidos aos milhares! Isso até faz baixar
as audiências, por amor de Deus! Pensava que se tratava de
outra coisa, de puxar a Lua cá para baixo com uma cana de
pesca ou de pendurar um comboio de mercadorias no nariz!

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Eleutério — Como? João, que disparate é esse de quereres
suicidar­‑te?
Agripino — É a alma do padre, eu não disse, esse Teófilo
era um suicida!
Eleutério — Não pode ser, não pode ser. Eu não iria criar
um Homem Novo para se suicidar de seguida! Maldita televisão!
Agripino — Qual televisão? A culpa é do padre.
João — Quinze minutos de glória.
Bóris — Agora é que não estou a perceber nada.
Eleutério — João, filho, não me podes fazer uma partida
destas. Eu não te criei para isto!
(João aproxima­‑se de Bóris, levanta­‑o pela garganta.)
João — Ou 15 minutos de glória ou morres já aqui.
Eleutério — João, larga­‑o, não faças isso.
Agripino — Isso, isso, leva­‑o para os estúdios e mata­‑o ao vivo,
para fazer subir as audiências. Diga­‑me, senhor Bóris, já alguma
televisão deu ao vivo o assassínio de um diretor de programas?
Bóris (meio sufocado) — Não.
Agripino — E isso não fará subir as audiências? Ora diga lá!
Bóris — Eu não permitirei que isso aconteça, só por cima
do meu cadáver.
João — Quinze minutos de glória!
Eleutério (senta­‑se na secretária, esgotado) — João, faz o
que tens a fazer.
João (grita) — Eu sou o Homem Novo! (Espeta o facalhão
no ventre de Bóris.) Eu sou o Homem Novo.
(Arrasta o corpo de Bóris para um canto e vagueia pelo
laboratório, praguejando entre dentes.)
João (volta a gritar) — O Homem Novo! Glória ao Homem Novo!
Eleutério — Isto deu errado.

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Agripino — Foi a alma do padre, nunca devíamos ter­‑lhe
posto a alma do padre.
Eleutério — E que podia eu fazer, onde iria encontrar
um assassino?
Agripino — Devíamos ter comprado a alma ao taberneiro,
ao Paiva.
Eleutério — Agora é tarde. Temos que pensar numa
alternativa.
Agripino — Temos que mudar­‑lhe a alma.
Eleutério — Não pode ser, para isso era preciso matá­‑lo.
Agripino — E então?
Eleutério — Você está a parecer­‑se mais comigo do que
consigo. Como posso eu matar o meu próprio filho?
Agripino — E a conquista do mundo? E a minha viagem
para o Sol com Ofélia?
Eleutério — Agripino, você é um trouxa, não aprendeu
nada naquele hospital.
Agripino — O que quer dizer com isso?
Eleutério — Não vê que Ofélia não existe, é um monte de tra-
pos, um demónio com forma de mulher, um súcubo ao meu serviço?
Agripino — Não acredito. (Corre para Ofélia e levanta um
vestido vazio, chama por ela.) Ofélia! Ofélia! (Fica a chorar
agarrado ao vestido.)
João — Quinze minutos de glória! Eu tenho direito aos
meus 15 minutos de glória.
Agripino (levanta­‑se e corre para João com uma seringa) — A
culpa é tua, seu monstro, e da alma desse padre. Já vais ver!
Eleutério (defendendo o filho) — Não, Agripino, a culpa
é minha, é esta coisa que está dentro de mim, esta vontade
de fazer mal. Mata­‑me antes a mim.

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Agripino — Não posso, mestre, não quero acabar com o
contrato. O meu objetivo é voar para o céu, para as estrelas.
E conto consigo.
Eleutério — Eu não posso matar o meu filho.
Agripino — Temos é que fabricar outra criatura. Com outra
alma. Por alguma razão nos metemos nisto!
Eleutério — Mas essa razão perdeu­‑se. O mal continua
dentro de mim e não consegui passá­‑lo para a cabeça do João.
Percebi agora que nenhuma criatura me pode ajudar. Tenho
de conquistar o mundo sozinho e não sei como fazê­‑lo. É uma
maldição à qual ninguém consegue pôr termo.
Agripino — Depende da alma que comprarmos. Deixe­‑me
escolhê­‑la. Tudo se arranjará. Confie em mim.
Eleutério — Não sei se tenho forças, o dia está a nascer
e temos que nos esconder.
Agripino — Continuaremos amanhã.
Eleutério — Não vale a pena, Agripino, já lhe disse. Esta coisa
está em mim, eu sei disso, só que não consigo saboreá­‑la, não con-
sigo sentir o prazer de tê­‑la. Eu gosto do mal, Agripino, eu devia ser
feliz como ­Bóris. Mas não sou. E agora não posso contar com o João!
Agripino — Ele que faça o que quiser, nós vamos construir
outra criatura e desta vez eu é que compro a alma. Foi tudo
por causa do padre e da televisão.
Eleutério — Eu não posso matar o meu filho, Agripino,
veja se percebe!
Agripino — Mas eu posso.
Eleutério (agarrado a Agripino) — Não.
(João começa a desmembrar­‑se. Agripino é içado por
uma corda e desaparece. Eleutério pega nos pedaços do filho,
espalhados pelo chão, e cai de joelhos abraçado a eles. Ofélia
surge e envolve­‑o com o seu véu.)

FIM

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índice

PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
O TERCEIRO ANDAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
O CONSTRUTOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
QUINZE MINUTOS DE GLÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

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