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DADOS DE ODINRIGHT

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EM BUSCA DO
CAVALEIRO
SEM CABEÇA
Raising the Horseman
Copyright © 2022 by Disney Enterprises, Inc.

Ilustração da capa original © 2022 by Disney Enterprises,


Inc.
© 2023 by Universo dos Livros

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610


de 19/02/1998.
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escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida
sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos,
mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Diretor editorial Revisão


Luis Matos Gabriele Fernandes
Rafael Bisoffi
Gerente editorial
Marcia Batista Design da capa
original
Assistentes Phil Buchanan
editoriais
Letícia Nakamura Arte da capa original
Raquel F. Abranches Corey Brickley

Tradução Arte da edição


Jacqueline Valpassos nacional
Renato Klisman
Preparação
Aline Graça

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

V252e

Valentino, Serena
Em busca do Cavaleiro Sem Cabeça
/ Serena Valentino ; tradução de Jacqueline
Valpassos. –– São Paulo : Universo dos Livros,
2023.
224 p. : il.

e-ISBN978-65-5609-361-1
Título original: Raising the
Horseman

1. Literatura infantojuvenil norte-


americana 2. Literatura fantástica
I. Título II. Valpassos, Jacqueline

23-3858 CDD 028.5


Universo dos Livros Editora Ltda.
Avenida Ordem e Progresso, 157 — 8º andar — Conj. 803
CEP 01141-030 — Barra Funda — São Paulo/SP
Telefone: (11) 3392-3336
www.universodoslivros.com.br
e-mail: editor@universodoslivros.com.br
SERENA
VALENTINO

EM BUSCA DO
CAVALEIRO
SEM CABEÇA
Dedicado ao meu amado Justin Sane. Que
nosso amor perdure além do túmulo enquanto
assombrarmos a imaginação daqueles que
lerem nossas histórias, muito depois de termos
partido deste mundo.
PRÓLOGO

SLEEPY HOLLOW

Se acreditarmos nos bons habitantes de sleepy hollow, ada


pessoa que ali vive teve pelo menos uma experiência
sobrenatural. É um lugar fantasmagórico com raízes no
passado, impregnado de tradição e superstição. É uma
cidadezinha modorrenta, que mais parece coisa sonhada
do que real, perturbada apenas pelos fantasmas e pelas
sombras que ainda a atormentam. Algo domina os que
vivem ali; enche-lhes a mente com histórias sombrias,
visões estranhas e crenças bizarras. A cidade de Sleepy
Hollow, muitos dizem, é assombrada.
Alguns são atormentados por lembranças, outros pela
tradição, e há também aqueles que insistem que são
assombrados pelos espíritos daquele lugar
fantasmagórico. Alguns contam histórias sobre terem
testemunhado aparições de soldados mortos revivendo
os últimos momentos no campo de batalha, ou sobre um
sinistro par de olhos encarando-os do buraco no tronco
de uma árvore antiga, ou sobre ouvir sussurros dançando
na brisa, acima dos ombros, enquanto caminham por
trilhas desertas na floresta. Mas o espírito que parece
dominar-lhes a mente e a imaginação é o fantasma de
um homem sem cabeça montado em um cavalo negro
espectral. O Cavaleiro Sem Cabeça.
Acredita-se que se tratava de um soldado de cavalaria
hessiano1 que perdeu a cabeça graças a um tiro de
canhão durante a Guerra Revolucionária. É uma imagem
medonha: a cabeça do pobre homem sendo arrancada
por uma bala de canhão e nunca mais sendo encontrada.
Esse espírito assombra os pesadelos das crianças de
Sleepy Hollow, apenas para retornar ao mundo de seus
sonhos anos mais tarde, quando adultos.
O corpo do hessiano foi enterrado no cemitério da
igreja, e há rumores de que seu fantasma se desloca do
local de descanso para o campo de batalha em busca da
cabeça. Mas, segundo todos os relatos, esse fantasma
não está condenado a reviver os momentos finais nem
limitado a vagar pelos mesmos caminhos repetidamente:
o Cavaleiro Sem Cabeça já foi visto montado em seu
corcel negro em veredas da floresta e estradas escuras,
usadas tanto de forma costumeira quanto raramente, e
muitas vezes na trilha quase oculta que leva à Árvore
Mais Antiga, um dos mais queridos patrimônios de Sleepy
Hollow.
Pois, sob aquela árvore, meio escondida atrás dos
galhos baixos e retorcidos, muitos moradores de Sleepy
Hollow dizem ter avistado o fantasma de Katrina Van
Tassel sussurrando para o espírito do Cavaleiro Sem
Cabeça, que alguns acreditam residir no interior do
venerável carvalho.

1 Como eram chamados os cerca de 30 mil soldados


alemães (provenientes sobretudo do Estado de Hesse-
Cassel) contratados pelos britânicos para lutarem ao seu
lado durante a Guerra de Independência dos Estados
Unidos. (N.T.)
UM

O MAIS LONGO DOS


CREPÚSCULOS

Não se engane — esta não é a história de ichabod crane. Ah,


claro, ele aparece aqui e ali na nossa história, tropeçando
nas páginas e, como sempre, bancando o tolo, mas essa
aventura pertence a Katrina Van Tassel e sua
tatatataretceteraneta, Kat Van Tassel.
A história de Kat começa quando ela tem dezoito anos,
no aniversário de duzentos anos da morte de Katrina Van
Tassel — a noite conhecida em Sleepy Hollow como O
Mais Longo dos Crepúsculos. Como muitos na
cidadezinha de Sleepy Hollow, Katrina adorava o
crepúsculo, período entre o dia e a noite pouco antes de
você estar aconchegado em casa, a salvo das aparições
que surgem das sombras tão logo a escuridão chega.
Segundo a lenda, na noite em que Katrina morreu, os
últimos vestígios do crepúsculo se estenderam até a
meia-noite, a Hora das Bruxas: quando os mortos saem
dos esconderijos e perambulam entre nós, ocasião em
que tudo é possível. Desde a morte de Katrina, o
crepúsculo nunca mais se estendeu tanto, mas o povo de
Sleepy Hollow ainda chama o aniversário da morte dela
de O Mais Longo dos Crepúsculos.
Kat Van Tassel cresceu com essas tradições e
superstições. Ouvia histórias sobre Katrina e os
fantasmas de Sleepy Hollow desde garotinha. Até onde
conseguia se lembrar, a cidade se reunia para enfeitar o
túmulo de Katrina com as flores favoritas dela no Mais
Longo dos Crepúsculos. Quando Kat tinha cinco anos,
perguntou à mãe por que todos na cidade levavam
raminhos dessas flores para casa e os penduravam
acima da porta. Para apaziguar o Cavaleiro Sem Cabeça,
a mãe respondeu. A lenda diz que o fantasma passará
reto pela casa desde que você preste a devida
homenagem ao seu mais querido amor, Katrina.
A pequena Kat havia fechado os olhos com força e
tentado não imaginar o que aconteceria se ele não
passasse reto pela casa deles, pensamento que a
assombrou até que deixou de acreditar em fantasmas.
O Mais Longo dos Crepúsculos era uma das tradições
mais reverenciadas em Sleepy Hollow, perdendo apenas
para o Baile Anual da Colheita Van Tassel, que sempre
acontecia alguns dias depois. E na noite em que a
história de Kat começa, os Van Tassel, que vinham se
preparando para o baile num intenso frenesi, fizeram
uma pausa para homenagear sua ancestral Katrina Van
Tassel. O Mais Longo dos Crepúsculos não era noite de
colher abóboras para esculpi-las, planejar cardápios,
costurar fantasias e contratar bandas. Era noite de
apagar as luzes e se sentar perto do fogo, noite de
histórias e de espiar pelas janelas na esperança de
vislumbrar o Cavaleiro Sem Cabeça. Noite em que os
membros mais velhos da família contavam sobre a
grande Katrina Van Tassel.
No entanto, as festividades não seguiram como os pais
de Kat gostariam, pois todos foram ao cemitério para
homenagear Katrina, exceto a filha. Pouco antes de o
crepúsculo terminar, Kat entrou em casa correndo da
forma habitual e causou grande comoção ao largar sua
pilha de livros com um baque alto antes de subir as
escadas rumo ao quarto.
— Kat Van Tassel, não se atreva a fugir para o quarto.
Venha cá agora mesmo! — A mãe de Kat, Trina, sempre
ficava enérgica quando se preparava para o Baile da
Colheita, e Kat esperava evitá-la naquela noite. Estava
atrasada e sabia disso. — Pelo Grande Fantasma do Vale,
Kat, você está testando minha paciência; agora, desça já
aqui! — gritou da cozinha.
— O que foi, mãe? — Kat perguntou enquanto entrava
devagarzinho na cozinha um momento depois.
— Como sempre, chegando em casa pouco antes de
escurecer — ralhou a mãe, colocando de lado uma pilha
de papéis que estivera consultando.
— Perdi a noção do tempo lendo.
A mãe de Kat abriu o forno e espiou lá dentro.
— O que tem para o jantar hoje? — Kat acrescentou,
tentando distrair a mãe do sermão que sabia estar
prestes a receber depois de chegar em casa tão tarde e
perder a celebração do Mais Longo dos Crepúsculos no
cemitério.
— Você sabe muito bem o que tem para o jantar!
Preparamos a mesma coisa todos os anos! O prato
favorito de Katrina, frango com azeitonas e alho. A
propósito: onde você estava mais cedo, enquanto
enfeitávamos o túmulo dela? Todo mundo ficou
perguntando: “Onde está Kat? Onde está a herdeira do
nome de Katrina?”.
Kat suspirou.
— Somos todas herdeiras do nome de Katrina, mãe.
A mãe de Kat fechou o forno, tirou o avental e colocou
as mãos nos quadris.
— Isso mesmo. E você é um pouco parecida com ela,
se quer saber!
Kat sentiu-se mal por não ter se reunido com a família
no cemitério para enfeitar o túmulo de Katrina, como
faziam todos os anos no fim da tarde, no Mais Longo dos
Crepúsculos. Para a mãe, essa tradição era a parte mais
importante da celebração, e Kat não comparecera. Não
foi sua intenção fazê-lo; perdera a noção do tempo
enquanto lia e agora se sentia péssima por isso.
— Desculpe, mãe, eu deveria mesmo ter ido. Há algo
que possa fazer para ajudar?
A mãe sorriu.
— Você pode pendurar os raminhos de flores do lado
de fora da porta. Estão na mesa da sala de jantar.
Kat entrou na sala de jantar, onde a mesa estava
posta. A iluminação ainda brilhava dourada lá fora,
fazendo o ambiente parecer aconchegante, como se já
reluzisse à iluminação das velas. Viu as flores
depositadas ali, unidas por uma fita roxa. Adorava o
intenso e divino aroma que exalavam, preenchendo a
sala.
Enquanto caminhava em direção à porta da frente, o
pai, Artis, irrompeu como um urso de meias, o que fez
Kat rir porque era isso que o nome dele significava —
urso.
— Kat! Está quase escuro; pendure essas flores
imediatamente! E onde está sua mãe? Tenho que falar
uma coisa com ela!
Kat riu do pai. Era um homem tão forte e troncudo, e
rude na maioria das vezes, mas ela não conseguia levá-lo
a sério só de meias. A mãe de Kat havia muito tempo
exigira que ele retirasse as botas antes de entrar em
casa se houvesse estado no campo com os empregados
— coisa obviamente desnecessária, mas que ainda assim
insistia em fazer. Os Van Tassel são gente trabalhadora,
dizia ele. Embora tivessem mais dinheiro do que
qualquer um no condado, a mãe e o pai tentavam levar a
vida de forma modesta.
— Ela está na cozinha. Onde sempre está — Kat
murmurou baixinho a última frase. Depois saiu e
pendurou as flores no gancho de ferro forjado preto que
estava lá desde que se entendia por gente. Pelo que
sabia, encontrava-se naquele lugar desde quando a
Katrina original era garotinha.
Kat permaneceu ali, olhando para as flores, imaginando
se o Cavaleiro Sem Cabeça era real. Perguntou-se o que
seria de sua vida, vivendo na propriedade da família
como todas as outras Katrinas antes dela.
Todas as mulheres da família haviam recebido o nome
da primeira Katrina Van Tassel em sua homenagem, e
todas encontraram formas de individualizá-lo um pouco.
O apelido da mãe de Kat, por exemplo, era Trina; e o da
avó, Kate. Em sua época, a Katrina original havia
decidido que a herança seria dada para a filha
primogênita de cada geração, mas elas não poderiam
ganhá-la a menos que recebessem seu prenome e
mantivessem o sobrenome Van Tassel. O que significaria
que os homens que se casassem com elas precisariam
ter a mente bastante aberta, ainda mais durante as
gerações em que tal fato era inaudito, mas, além disso,
era necessário ser um tipo especial de pessoa para se
casar com uma Katrina.
Kat odiava ter o destino já decidido. Se as gerações
anteriores de mulheres Van Tassel servissem como
referência, ela passaria o restante da vida naquela
propriedade e se casaria com um homem que
supervisionaria a fazenda, diversas colheitas e
empreendimentos. Se Kat tivesse interesse em
agricultura e na administração de uma propriedade,
então, não via por que ela própria não poderia tocar as
coisas sozinha! Mas a verdade era que Kat queria estudar
fora — sua família, no entanto, insistia que ela ficasse em
Sleepy Hollow e recebesse sua educação no Colégio
Ichabod Crane de professores que não lhe ensinavam
nada do mundo porque nunca se aventuraram fora de
Sleepy Hollow.
Kat achava ridículo que a escola secundária fosse
batizada com o nome do homem historicamente mais
odiado de Sleepy Hollow. Mas a denominação era uma
advertência sobre o que poderia acontecer àqueles que
não levavam a Lenda de Sleepy Hollow a sério. O Colégio
Crane oferecia a variedade usual de matérias
encontradas em qualquer outro colégio; no entanto,
sempre havia algum tipo de aspecto sobrenatural que
parecia eclipsar a disciplina em questão. Matemática, por
exemplo, incluía o estudo da numerologia e da
adivinhação por meio do uso de números. O currículo de
História sempre destacava lendas de dentro e fora de
Sleepy Hollow (inclusive de lugares com alta atividade
sobrenatural como Nova Orleans e São Francisco). O
motivo de as histórias de fantasmas serem consideradas
“eventos históricos” estava além da compreensão de
Kat. Ela não acreditava em fantasmas, mas seus
professores e colegas de classe não compartilhavam
desse ceticismo ou, se o faziam, não revelavam. E, como
aquele era o único estabelecimento de ensino em Sleepy
Hollow, ela teve que frequentar a escola secundária
fundada por Ichabod Crane.
Apesar de ser cética, Kat adorava uma boa história,
não importava o assunto, e fazia questão de ler o
máximo que podia. Escapulia sempre que possível,
sentava-se em seu café favorito ou sob a Árvore Mais
Antiga e lia. Lia todos os tipos de livros, contos de fadas,
mistério, histórias de fantasmas (só porque não
acreditava neles não significava que não gostasse delas),
ficção científica, romance, histórias de vampiros,
qualquer coisa em que pudesse colocar as mãos. E era
isso que eram para ela: histórias. Ficção. Assim como as
histórias com as quais ela crescera em Sleepy Hollow.
Mas sua verdadeira paixão era não ficção. Adorava ler
sobre outros países, seus monarcas, e história. Não as
lendas, mas os eventos reais que ocorreram. E tinha uma
grande coleção de livros de viagem. Adorava permanecer
horas sentada lendo sobre todos os lugares que adoraria
visitar, mas temia nunca vir a conhecer.
A vida parecia pequena para Kat, todos os dias fazendo
as mesmas coisas, vendo as mesmas pessoas,
caminhando pelos mesmos lugares, e (por mais que
adorasse isso) sentando-se sob a mesma árvore e
ouvindo as mesmas histórias de fantasmas na mesma
noite todos os anos. Os livros eram uma forma de fazer
sua vida parecer maior. Uma forma de escapar.
— Kat! O que está fazendo aí parada, sonhando
acordada como sempre? Acenda as velas e apague as
luzes. Você age como se nunca tivéssemos celebrado O
Mais Longo dos Crepúsculos — seu pai resmungou
enquanto voltava para a sala de jantar. Kat suspirou e foi
até a lareira, tirando um longo palito de fósforo da caixa.
Riscou-o na lateral dela e viu a chama ganhar vida. Foi
caminhando pela sala acendendo todas as velas e depois
apagou as luzes. Todos os anos, lembrava-se do quanto
amava aquela sala à luz de velas, o jeito como as
chamas projetavam sombras nas paredes. Às vezes,
podia jurar que via a silhueta de Katrina por entre elas.
Lembrava-se de, quando garotinha, observar a luz das
velas dançando nas paredes enquanto ouvia a família
contar a história do Mais Longo dos Crepúsculos e ter
certeza de que estavam rodeados por fantasmas. E então
ocorreu-lhe que todos em Sleepy Hollow estavam
fazendo a mesma coisa que ela e sua família naquela
noite, sentados em salas à luz de velas, admirando as
chamas e sombras dançarem e contando histórias sobre
Katrina Van Tassel, a Primeira. Sentia saudades dos dias
em que ainda acreditava em todas as antigas histórias e
se perguntava exatamente quando começara a duvidar
de que fossem reais.
— Kat, vá ajudar sua mãe a trazer o jantar para a
mesa. — O pai de Kat era um homem corpulento, com
mãos ásperas e rosto desgastado pelo tanto de tempo
que passava ao ar livre. Mas ela o considerava um
homem belo, mesmo que as linhas de expressão no rosto
dele se assemelhassem a pedra gravada e os olhos
grandes e intensos sempre parecessem um pouco sérios
demais. Ele era o parceiro perfeito para sua mãe.
Satisfeito por passar a vida cuidando da fazenda
enquanto ela dedicava os dias a cuidar da casa. Tudo era
meio antiquado para Kat, mas parecia funcionar para
seus pais. Os dois formavam um belo par: o pai com
cabelos e olhos escuros, geralmente ostentando uma
barba cheia e igualmente escura, com compleição e
altura maciças, e a mãe tão pequena, macia e redonda,
toda dourada e cor de pêssego e creme. Kat tinha
herdado a altura do pai, os olhos e cabelos escuros, e sua
tez mais escura. Era a primeira Katrina Van Tassel a não
ter cabelos louros e ficava muito feliz com isso.
Kat fez o que o pai pediu e foi até a cozinha ajudar a
mãe. Poderiam ter um cozinheiro e uma legião de criados
se assim desejassem, mas a mãe de Kat preferia fazer
quase tudo sozinha. Claro que contratava ajuda para o
Baile da Colheita e outros grandes eventos, mas a
administração diária do lar recaía inteiramente sobre os
ombros de sua mãe, com uma exceção: Maddie, que
estava com os Van Tassels desde que Kat conseguia se
lembrar. Era mais uma companhia amiga para Trina do
que qualquer outra coisa, mas ajudava a cuidar da casa,
fazendo incursões ao mercado e auxiliando a mãe de Kat
com tudo que precisasse. Maddie era uma mulher mais
velha, originalmente parte integrante da numerosa
criadagem da vovó Kate. A mãe de Kat não tivera
coragem de dispensar a mulher porque Maddie tinha sido
praticamente uma segunda mãe para ela e não quis
privá-la de salário, do qual dependia desde que ficara
viúva — e a mãe de Kat sabia que Maddie não aceitaria
dinheiro sem trabalhar por ele. Kat estava feliz por
sempre ter Maddie em casa — amava-a; de fato, era
como uma avó. Uma avó teimosa e atrevida, mas ainda
assim uma avó.
— Onde está Maddie, mãe?
A mãe de Kat lançou-lhe um olhar significativo.
— Dei a ela a noite de folga para passar com o
cavalheiro dela, é claro. Temo que possamos perder
Maddie para ele. Não consigo imaginar a vida sem ela —
confessou, afastando uma longa mecha de cabelos
dourados que havia caído sobre o rosto.
— “Cavalheiro”? Quem ainda usa tal termo hoje em
dia? — Às vezes, mãe de Kat a fazia rir. Falava como se
ainda vivessem na época de Katrina e não duzentos anos
depois.
— Kat, pare de me provocar. Você pode, por favor,
levar todos esses pratos para a mesa enquanto me
refresco? Odeio que seu pai me veja tão desarrumada. —
Kat sorriu para Trina. Achava a mãe bonita. Ela se parecia
com todas as Katrinas antes dela: loura e rechonchuda,
com pele de pêssego e bochechas rosadas. Kat se
perguntou o que a primeira Katrina acharia de seus
cabelos escuros e corpo longo e esbelto. Era muito
diferente de todas as outras Katrinas.
Kat levou os pratos para a sala de jantar, onde o pai
aguardava. Ela adorava aquela sala, com lambris escuros
trabalhados, cristaleira embutida que exibia porcelana da
época de Katrina e a enorme mesa de jantar entalhada
que era grande demais para os três. Aquela casa foi
construída para receber visitas, o que faziam com
frequência, mas aquela noite seria reservada apenas
para a família. O pai estava de pé junto à lareira,
acendendo o cachimbo. Desde que Kat era jovem,
adorava o cheiro da fumaça do cachimbo do pai e
gostava de vê-la serpentear em rolos ondulantes,
rodopiando e preenchendo a sala de jantar. A mãe
detestava e desejava que ele fumasse lá fora. A lenda da
família dizia que havia uma longa fila de homens que
fumavam junto à lareira e esposas que desaprovavam o
ato, o que fazia Kat rir, porque parecia que nada em sua
família — ou em Sleepy Hollow — havia mudado. Isso era
ilustrado de forma vívida e dolorosa toda vez que os pais
a empurravam para o casamento, e ela estava se
preparando para que eles abordassem o assunto
novamente naquela noite. Kat tinha apenas dezoito anos,
estava prestes a se formar no ensino médio, e a última
coisa que lhe passava pela cabeça era se casar. Mas as
coisas eram diferentes em Sleepy Hollow, especialmente
se você fosse uma Van Tassel. Às vezes, parecia a Kat
que o mundo girava sem ela, e de fato girava sem Sleepy
Hollow, onde o tempo parecia ter parado.
— Suponho que sua mãe esteja se arrumando? — disse
o pai, rindo.
— Sim, mas você não deveria saber disso. Deveria
pensar que num passe de mágica ela fica
impecavelmente arrumada e linda, embora tenha
cozinhado o dia todo.
O pai de Kat sorriu.
— Sua mãe está sempre linda, arrumada ou não. — Kat
ficou feliz pelos pais serem tão apaixonados e parecerem
tão contentes em seus papéis. — Onde está Blake? — O
pai consultou o relógio. — Ele não é de se atrasar.
Blake era o namorado de Kat. Ela mal conseguia se
lembrar de uma época em que Blake não estivesse
presente em sua vida. Todas as lembranças da infância o
incluíam, então parecia natural que, à medida que
crescessem, eles se apaixonassem. Ele era como a
maioria dos jovens de Sleepy Hollow: obcecado pelo
oculto e pelo sobrenatural. Andava para lá e para cá com
os Sleepy Hollow Boys tentando invocar os mortos,
realizando sessões espíritas e buscando encontrar o local
de descanso da cabeça do Cavaleiro Sem Cabeça. Claro
que isso nunca deu em nada, mas parecia que se
divertiam com provocações mútuas, pregando peças
elaboradas e tentando fazer uns aos outros acreditarem
que haviam encontrado a cabeça do soldado hessiano.
Kat se perguntava se os Sleepy Hollow Boys achavam
que aquele nome fosse original, mas quem era ela para
opinar sobre a falta de criatividade de nomes? Ela era,
afinal de contas, uma das muitas Katrina Van Tassel.
— Disse a ele que preferia passar a noite de hoje
sozinha com você e mamãe — Kat respondeu quando a
mãe entrou na sala.
— Blake não virá esta noite? Ora, isso é uma pena. — A
mãe de Kat estava sob o arco que separava a sala de
jantar da biblioteca. Havia renovado a maquiagem e o
penteado, e estava perfeita, como sempre.
— Nós não temos que passar todos os dias juntos,
mãe. — Kat ficou irritada. Sabia o que estava por vir.
— Suponho que vá haver tempo suficiente para isso
quando vocês se casarem — disse a mãe, piscando para
Kat enquanto tomava seu lugar à mesa.
— Quem disse que vou me casar, com Blake ou
qualquer outro? O pai de Kat deixou cair o garfo no prato,
produzindo um barulho alto e fazendo Trina estremecer
com o susto.
— Ai, ai, ai, não aborreça o seu pai. Odiaria que minha
porcelana pagasse o preço por sua insolência.
Kat respirou fundo. Não queria ter essa conversa
novamente.
— Não estou sendo malcriada, mãe. Estou apenas
dizendo como me sinto. Não sei se algum dia vou querer
me casar. Qual o problema disso?
O pai de Kat limpou a garganta com um grunhido
profundo. Esta geralmente era a indicação de que estava
prestes a dizer algo que achava importante e queria a
atenção de todos.
— Um problema muito sério, Kat. Você tem um legado
para conservar, tradições para transmitir e uma
responsabilidade para com esta comunidade. Você e seu
futuro marido terão o dever de administrar esta
propriedade juntos depois que sua mãe e eu deixarmos
nossas funções. Empregamos a maioria dos homens
jovens neste condado, e um bom número de mulheres
depende de nossas colheitas para fazer as conservas e
os bolos e as tortas que vendem para o povo da cidade
que nos visita.
Kat revirou os olhos.
— Você ao menos ouve a si mesmo, pai? Homens
trabalhando nos campos, mulheres cozinhando em casa?
— Seus pais pareciam estarrecidos com a pergunta.
— É assim que tem sido aqui por gerações, minha
menina. Não entendo a razão de você se esquivar de
suas obrigações. Estou ficando velho, Kat, não posso
continuar fazendo isso para sempre. Precisamos de um
homem mais jovem cuidando das coisas por aqui para
que sua mãe e eu possamos aproveitar nossos anos de
aposentadoria, de preferência brincando com netinhos no
colo.
A ideia de ter filhos, pelo menos num futuro próximo,
fez Kat estremecer. Ela amava os pais, mas odiava como
eram antiquados.
Kat se levantou do assento, caminhou até a janela e
abriu as cortinas com um movimento repentino e
enérgico.Todas as cortinas haviam sido fechadas para
proteção contra o espírito do cavaleiro hessiano, e os
pais ficaram boquiabertos.
— A última coisa em que estou pensando agora é casar
e ter filhos. E, sinceramente, estou farta desse tema,
para não falar de todas as nossas tradições e
superstições. Algum de vocês já viu o Cavaleiro Sem
Cabeça pelo menos uma vez? Vocês acreditam mesmo
nas histórias que contam no Mais Longo dos Crepúsculos
ou na Véspera de Todos os Santos?2 Digam-me. Alguém
nesta cidade acredita? É como uma alucinação coletiva.
— Katrina! Feche já essas cortinas! — Sua mãe correu
e cerrou as cortinas ela mesma.
— Meu nome é Kat! E eu não vou me casar com Blake
ou qualquer outro só porque vocês acham que eu
deveria. — Kat saiu pisando duro, subindo as escadas em
direção ao quarto.
Sua mãe suspirou pesadamente.
— Desculpe, querido. Vou subir e conversar com ela. —
Ela beijou o marido na bochecha.
— Por favor, veja se consegue lhe incutir algum juízo,
Trina. Não gosto do que vejo naquela garota
ultimamente.
— Não se preocupe com Kat. Ela tem muito da primeira
Katrina. — Pousou com ternura a mão sobre a do marido.
Mas Artis apenas franziu a testa.
— Eu sei, minha querida, e isso é o que mais me
preocupa.

Kat bateu a porta do quarto atrás de si. sentiu-se imedia-tamente


tola por fazer tanto estardalhaço. Era um comportamento
típico de adolescente, e Kat odiava ser típica.
— Kat, posso entrar?
Era Trina do outro lado da porta do quarto. A última
coisa que Kat queria fazer era conversar com a mãe, mas
sabia que se não a deixasse entrar, feriria os
sentimentos dela e só pioraria a situação.
— Entre.
Trina abriu a porta devagar, tomando cuidado para não
derrubar as muitas pilhas de livros ao lado dela. O quarto
de Kat estava apinhado de livros, montes deles por toda
parte, na escrivaninha, no chão e no assento sob a
janela.
— Kat, você tem livros demais.Você realmente deveria
guardá-los na biblioteca. Está ficando amontoado aqui —
disse a mãe, olhando ao redor do quarto e depois
sentando na poltrona perto da janela. — O que deu em
você, Kat? Você e Blake brigaram? Não entendo por que
essa sua atitude de hoje. Falando que nunca vai querer
se casar? Ele é exatamente o tipo de homem com quem
você deveria ficar feliz em estabelecer uma vida a dois.
Kat se levantou da cama, derrubando uma pilha de
livros e praguejando baixinho.
— Mas a questão é exatamente esta, mãe. Acho que
nunca vou querer me casar. Ainda mais com você, papai
e Blake me pressionando.
Os olhos da mãe de Kat se arregalaram de entusiasmo.
— Ele pediu você em casamento? Por que você não me
contou?
Kat zombou.
— Não pediu, mãe. Ele simplesmente presume que
vamos nos casar depois de nos formarmos e, para ser
sincera, isso é parte do problema.Todo mundo
simplesmente presume. Nunca viajei para fora de Sleepy
Hollow, nem uma única vez. Nem mesmo para ir à
cidade. Você e papai não querem me deixar fazer isso.
Vocês acreditam que vivemos em uma cidade
assombrada, mãe, uma cidade assombrada; seria tão
perigoso assim para mim visitar a cidade de Nova York?
Todo mundo aqui acha que temos um fantasma que corta
a cabeça das pessoas, mas vocês têm medo de me
deixar ir para a faculdade. Não faz sentido.
— Kat, você é a herdeira de um grande legado. Tem um
dever não só para com sua família, mas também para
com as pessoas desta cidade. Com a própria Lenda de
Sleepy Hollow!
— Mãe, você está agindo como se eu fosse uma
herdeira de trono ou algo assim e isso fosse o meu dever
real. Você tem alguma ideia de que século é este? Você
deveria estar me incentivando a ir para a faculdade, não
me pressionando para me casar. Eu sei que as pessoas
aqui se casam depois do ensino médio, mas não quero
ficar presa neste lugar para sempre.
A mãe de Kat se levantou e foi até o pé da cama, onde
havia um grande baú. Kat nunca o abrira — ela deveria
esperar até se casar —, porém, sua mãe o abriu naquele
instante.
— O que você está fazendo? Nós nunca abrimos isso —
admirou-se Kat.
Sua mãe estava ocupada procurando por algo e não
respondeu.
— Aqui está — disse ela finalmente, e retirou dali um
livro. — Kat, quero que você leia isso.
— Você acabou de dizer que eu tenho livros demais.
— Este é o diário da primeira Katrina. Você perdeu a
cerimônia dela esta tarde e praticamente arruinou o
jantar; o mínimo que pode fazer é ler sobre a grande
mulher de quem recebeu o nome, e, quando terminar de
ler a história dela, quero que você venha até mim e me
diga se acha que nossas tradições e histórias são… do
que você chamou mesmo? Uma alucinação coletiva.
Kat sorriu para a mãe. Kat tinha sido desagradável no
jantar e a mãe estava realmente encarando isso numa
boa. E tinha razão; era o mínimo que Kat podia fazer,
embora ainda planejasse viver a vida como bem
entendesse. Nem se deu ao trabalho de ressaltar para a
mãe que, se ela tivesse a intenção de permanecer em
Sleepy Hollow e administrar as coisas, será que não
estaria em uma posição melhor para fazê-lo com uma
educação universitária? Mas não havia como discutir com
os pais sobre esse assunto, e não queria dar falsas
esperanças para a mãe quanto a permanecer ali. Iria
embora, de um jeito ou de outro.
— Obrigada, mãe. Vou ler. — Ela colocou o livro na
cama e se levantou. — Desculpe pelo jantar. Devemos
descer? Papai está sozinho lá embaixo esperando por
nós.
— Fique você aqui e leia o diário de Katrina. Vou trazer
algo para você comer daqui a pouco. Vamos dar a você e
seu pai algum tempo para esfriarem a cabeça. — Trina
lançou-lhe uma piscadela descontraída antes de sair. A
mãe de Kat gostava de piscar; era uma característica
sua, e Kat achava isso fofo. Na verdade, havia um monte
de coisas que ela gostava na mãe. Ela começou a se
sentir mal por ter arruinado O Mais Longo dos
Crepúsculos, mesmo que achasse que tinha razão para
estar irritada e zangada com os pais.
Kat suspirou e olhou para o volume sobre a cama. Era
um livro grosso, encadernado em couro marrom. Na
capa, em letras douradas, estava escrito: katrina van tassel.
As letras douradas tinham começado a se apagar em
alguns pontos, dando a impressão de que se lia kat van
tassel, o que fez Kat sorrir, porque Katrina estava sentada
no lugar preferido de Kat, sob a Árvore Mais Antiga, no
primeiro registro que Kat leu no diário.

2 O Dia de Todos os Santos (All Saints’ Day, também


conhecido como All Hallows’ Day) é 1º de novembro.
Sendo assim, a véspera dessa data cristã, 31 de outubro,
é All Saints’ Eve, ou All Hallows’ Eve, que deu em
Halloween, celebração com raízes no antigo festival
pagão celta da colheita chamado Samhain. Não confundir
com o All Souls’ Day, celebrado em 2 de novembro, que
equivale ao nosso Dia de Finados. (N.T.)
DOIS

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

BOSQUE DE SLEEPY HOLLOW

Enquanto me sento sob a Árvore Mais Antiga, não


posso deixar de me distrair com a beleza da luz e das
sombras dançando nas páginas do meu diário. Minha
mente está em outro lugar — lá em casa, com minha
mãe, assimilando o que ela disse antes de eu sair
porta afora para fazer minha caminhada diária na
Floresta de Sleepy Hollow.

— Ora, katrina, você realmente precisa de tantos livros? Um


homem nunca quer que sua esposa seja mais inteligente
do que ele.
Katrina detestava quando a mãe dizia coisas assim. Ela
estava parada na soleira da porta, segurando uma
grande pilha de livros, ansiosa para sair de casa, não
querendo outra coisa senão que aquela conversa
chegasse ao fim. Parecia que todo dia a mãe de Katrina
trazia à tona o assunto do casamento, e ela outra vez o
fizera naquela manhã. Isso sem falar o quanto Katrina
odiava a ideia de que as mulheres devem fingir que não
são inteligentes por causa dos homens ao seu redor.
Como se de alguma forma seu amor pela leitura a
tornasse pouco atraente. Nada disso fazia sentido. Não
seria melhor ter uma parceira inteligente e instruída,
alguém com conteúdo e algo de valor para trazer para
suas conversas? A noção de que o universo de uma
mulher estava restrito à manutenção do lar, marido e
filhos era ridícula para Katrina, e nada do que ela
dissesse fazia a mãe entender seus sentimentos sobre a
questão.
— Quem disse que vou me casar com alguém, mamãe?
E não é minha culpa que Brom possa ser um tolo às
vezes. — Os braços de Katrina estavam cheios de livros,
e ela estava ansiosa para sair pela porta. Tudo o que
queria era que a mãe parasse de importuná-la para que
pudesse ler em paz.
— Ah, Katrina! Não diga essas coisas. Abraham Van
Brunt é um bom rapaz. — Katrina sempre achava
divertido quando sua mãe pronunciava o nome completo
de Brom. Sua mãe estava certa, é claro; ele era um bom
rapaz, pelo menos pelos padrões de Sleepy Hollow, e
certamente pelos padrões dos pais dela. Na verdade, era
meio que o herói da cidade, embora Katrina não
entendesse a razão disso. Claro, ele havia vencido todos
os tipos de eventos esportivos, era um excelente
caçador, carregava mais fardos de colheita do que
qualquer outro jovem que trabalhava para o pai dela e
era imbatível em contar uma história de fantasmas, um
talento que a maioria das pessoas em Sleepy Hollow
tentava aperfeiçoar. Mas um herói? Isso, ela sentia, era
um pouco exagerado.
Desde jovem, seus pais e os de Brom vinham forçando
a união dos dois, mas ela estava começando a duvidar
de que o amava da mesma forma que quando eram mais
jovens. Os dois costumavam passar os dias sob a Árvore
Mais Antiga lendo histórias juntos e conversando sobre
os personagens de seus livros preferidos. Exploravam
cemitérios antigos e riam dos nomes entalhados nas
lápides. Faziam longas caminhadas pela Sleepy Hollow
Road perigosamente perto do crepúsculo, na esperança
de que pudessem vislumbrar o Cavaleiro Sem Cabeça.
Conversavam sobre irem para a faculdade em Nova York
e conhecer o mundo. Mas, à medida que Brom ficou mais
velho, perdeu o gosto pelos livros e o espírito
aventureiro. Agora, se concentrava mais no serviço,
trabalhando para o pai dela na fazenda, e zanzando para
lá e para cá com aqueles Sleepy Hollow Boys. Parecia
satisfeito que vivessem a vida inteira na mesma
cidadezinha, assim como todo mundo em Sleepy Hollow.
Naquele momento, sentada sob a Árvore Mais Antiga,
ela finalmente tinha paz. Adorava o bosque de carvalhos,
as árvores altas e frondosas, estendendo-se umas para
as outras como amantes. Era o seu lugar sagrado, aonde
ia para pensar, ler e ser ela mesma. E, por mais que
amasse o Bosque de Sleepy Hollow, adorava ainda mais
a Árvore Mais Antiga, com os galhos retorcidos e
cobertos de musgo que a faziam se sentir protegida e
segura. Katrina tinha a sensação de que a árvore
conhecia todos os seus segredos, todos os seus medos e
todos os seus momentos mais felizes, pois escrevia sobre
tudo isso enquanto estava sentada sob a árvore.
Ela não pôde deixar de pensar na conversa que
acabara de ter com a mãe, e isso a fez sentir falta da
pessoa que Brom costumava ser e perceber a razão pela
qual ficara tão zangada com a mãe naquela manhã.
Katrina sentia que estava aprisionada a uma vida que
não era mais sua, fadada a se casar com um homem que
ela receava estar começando a desprezar. Todos davam
como certo que ela e Brom iriam se casar. Tão certo que
ninguém se preocupou em consultá-la. Muitas vezes, ela
se perguntava se acabaria trocando alianças com Brom,
imaginando como seria se casasse com ele. Sentia como
se estivesse presa em uma corrente que a estava
levando cada vez mais longe de si mesma, cada onda
distanciando-a mais de seus sonhos.
Às vezes, sonhava acordada, refletindo se as coisas
seriam diferentes entre ela e Brom depois de casados,
como ele se comportaria com ela no lar que
construíssem, sozinho, e não sob a influência de seus
pais ou dos Sleepy Hollow Boys. Talvez então ele fosse
mais parecido com o doce menino por quem ela se
apaixonara, porque havia momentos em que via um
lampejo do homem que um dia amou dentro dele,
trazendo felicidade ao seu coração, mas hoje não seria
um desses dias.
Ela avistou Brom parado na Sleepy Hollow Road como
se o tivesse atraído por simplesmente conjurar a imagem
dele na mente.
— Katrina!
Falando no diabo… Ela fechou os olhos com força,
tentando fazê-lo desaparecer, mas, infelizmente, não
possuía tal poder. Katrina abriu os olhos, protegendo-os
da luz do sol. Ele evidentemente estivera fora a noite
toda e agora retornava para casa com seu grupo de
amigos.
— Olá, Brom — ela disse sem entusiasmo, esperando
que ele continuasse andando. Não gostava de como ele
agia quando estava perto dos amigos dele,
especialmente quando tinha ficado fora a noite toda
aprontando e bebendo.
— Você não vai vir aqui me dar um beijo? — Brom a
chamou. Atrás dele, na estrada, os amigos estavam na
maior algazarra. Ela tentou agir como se não o ouvisse,
mas ele se aproximou, enquanto os amigos zombavam e
assobiavam provocando-o, porque Katrina visivelmente
não estava interessada nos avanços dele. — Vamos,
Katrina, só um beijinho? — ele pediu, tentando ser doce e
brincalhão.
— Agora não, Brom. — Katrina suspirou. — Você sabe
que meu pai o mataria se nos pegasse aos beijos.
Ele continuou andando na direção de Katrina, embora
tudo na linguagem corporal e no tom de voz da garota
irradiasse que ela queria ficar sozinha.
— Logo não teremos que nos preocupar com seu pai,
Katrina, não depois que nos casarmos — disse ele,
chutando a terra no caminho, fazendo com que se
soltasse e cobrisse os livros dela.
— Brom! Olha o que você fez! — Katrina já não
escondia que estava aborrecida, e Brom percebeu.
— Você e seus preciosos livros! — ele disse, rindo
teatralmente e olhando para seus amigos, que ainda
agiam como valentões na estrada. — O que você está
lendo, então? Uma de suas histórias românticas? Deixe-
me ver. — Ele agarrou o livro na mão dela, que por acaso
era o diário.
— Não é da sua conta, Brom! — Ela o puxou
rapidamente, surpreendendo-o com a forma como o
arrancou de suas mãos.
— Suponho que você devesse ler o máximo que puder
antes de nos casarmos — disse Brom.
— E o que exatamente você quer dizer com isso? — Ela
havia dito a si mesma mais cedo que, se mais uma
pessoa tocasse no assunto casamento, ela gritaria. Mas
ela não gritou, apenas se sentiu entorpecida e exausta.
Desejou que Brom percebesse que ela não estava
disposta a ter essa conversa e que simplesmente fosse
embora e se juntasse aos amigos broncos.
— Bem, é que você não vai ter muito tempo para isso
— disse ele erguendo a voz, exibindo-se para os amigos,
que começaram com os gritos e assobios novamente. —
Você estará muito ocupada criando nossos filhos e
cuidando da casa.
No minuto em que disse isso, ficou claro que ele soube
ter ido longe demais, porque Kat não lhe disse nada a
princípio. Em vez disso, ela dirigiu a raiva para os amigos
dele. Estava furiosa.
— Vocês aí: já chega dessas idiotices! — Katrina
repreendeu os Sleepy Hollow Boys. — E, quanto a você,
Abraham Van Brunt, quem disse que vou me casar com
você… ou com qualquer outra pessoa?
— Vamos, Katrina, não faça assim. Estamos apenas nos
divertindo um pouco. Por que você sempre tem que ser
tão séria? — Brom olhou para os pés, chutando as pedras
na estrada como uma criança repreendida. Katrina
percebeu que ele se sentiu mal por perturbá-la — mesmo
que estivesse evidente que não entendia inteiramente
por qual razão o que dissera era tão ofensivo. Mas ela
sabia que ele nunca admitiria isso na frente dos amigos.
Eles continuaram a provocá-lo, gritando repetidamente
seu nome. “Abraham! Oh, Abraham!” Ninguém o
chamava assim, exceto suas mães e Katrina, e só quando
ela estava com raiva dele.
— Por que você fez isso, Katrina? Agora eles vão me
provocar o dia todo.
Bem-feito para ele. Katrina endireitou a pilha de livros
nos braços e lançou-lhe um olhar duro, procurando
algum vestígio do menino que um dia amara tanto. Mas,
infelizmente, não teve lampejo algum. Nada naquela
conversa trouxe felicidade ao seu coração.
— Vá embora, Brom — disse ela, tentando não chorar.
— Simplesmente vá embora!
— Quer que eu a acompanhe até em casa? O
crepúsculo está próximo. — Dava para ver que Brom
estava se sentindo péssimo, e Katrina sempre sabia
quando ele estava tentando fazer as pazes com ela sem
usar palavras. Ele se oferecia para acompanhá-la até em
casa, carregar os livros ou simplesmente pegá-la pela
mão e dar-lhe um sorriso doce. Isso geralmente aquecia
seu coração por ele, não importava quão estúpido ele
houvesse sido, mas não naquele dia. Agora, ela queria
ouvir as palavras. Queria ouvir que ele estava
arrependido.
— Não, Brom. Eu gostaria de caminhar sozinha.
TRÊS

A PROMESSA QUEBRADA

Kat baixou o diário de katrina quando ouviu a mãe entrar no


quarto. Olhou ao redor do aposento tentando se firmar
de volta no presente. Tudo estava como deveria estar, a
escrivaninha de carvalho entalhada, o toca-discos, os
pôsteres de filmes mudos e paredes cobertas de estantes
cheias de livros e vinis. Ela passara tanto tempo no
passado com Katrina que quase sentiu como se estivesse
lá, o que fez com que o quarto lhe parecesse pouco
familiar no início. A mãe de Kat preparara um prato e o
trouxera para a filha em uma bandeja de madeira.
— Está lendo o diário de Katrina, então? — ela
perguntou, encontrando um lugar na escrivaninha
desorganizada de Kat.
— Sim, é muito interessante, na verdade. Quero dizer,
todos nós conhecemos a Lenda de Sleepy Hollow, aquela
que contamos na Véspera de Todos os Santos: como
Ichabod Crane chegou à cidade, ameaçando o
relacionamento de Brom com Katrina ao cortejá-la, então
Brom se fantasiou de Cavaleiro Sem Cabeça para
assustar Ichabod e fazê-lo ir embora. Mas nunca pensei
nisso do ponto de vista de Katrina. Nunca falamos sobre
como Brom a fizera tão infeliz.
A mãe de Katrina ergueu a sobrancelha.
— O que a faz pensar que Brom estava vestido como o
Cavaleiro Sem Cabeça? Isso não faz parte da lenda.
— Bem, não era um Cavaleiro Sem Cabeça de verdade,
mãe. — Kat sorriu. — Ele não existe. Fantasmas não são
reais.
— Eu não teria tanta certeza sobre isso, Kat. — Sua
mãe foi até a janela, abrindo a cortina só um pouquinho
e espiando lá fora.
— Mãe, você acredita mesmo nele? No Cavaleiro Sem
Cabeça, quero dizer.
A mãe fechou a cortina e se virou.
— Você sabe que acredito, Kat. Prometa-me que lerá
todo o diário de Katrina e, não importa como se sinta
quando terminar de ler, que fará o que eu digo e sempre
voltará para casa antes de escurecer. — Kat nunca tinha
visto sua mãe tão séria.
— Não faço isso sempre, mãe?
— Sim, faz, minha doce menina. Agora coma seu
jantar; está esfriando. Voltarei mais tarde para recolher
os pratos. — Ela se virou para sair.
— Mãe, papai está mesmo aborrecido comigo?
— Não se preocupe com seu pai, Kat. Ele é mais
esperto do que você imagina. Ele compreende. Claro,
você poderia ter guardado seu desabafo para depois do
jantar na noite mais importante do ano, mas ele vai
superar. Nós dois amamos você, Kat. — Ela sorriu
enquanto fechava a porta do quarto de Kat. Assim era
sua mãe. Sempre sorrindo. Sempre fazendo as pessoas
se sentirem melhor. Não era de admirar que fosse tão
amada em Sleepy Hollow. Nada tinha a ver com ser a
cidadã mais proeminente da cidade. Certo, isso
provavelmente ajudava, mas ela era realmente boa e se
preocupava com a comunidade. Era uma verdadeira
Katrina. Como acontece com a maioria das pessoas que
parecem felizes o tempo todo, Kat às vezes se
perguntava se tudo não passava de uma encenação, mas
sua mãe parecia mesmo amar sua vida e as tradições de
Sleepy Hollow, que ela primorosamente preservava e
valorizava. Abraçara seu papel como Katrina, e o
desempenhava bem.
Kat suspirou. Era diferente das outras Katrinas. Sabia
disso. Deleitava-se com isso, inclusive. Mas ainda havia
uma parte sua que se perguntava se ela faria jus ao
legado delas, porque havia um lado seu que queria levá-
lo adiante. Só tinha que descobrir como poderia fazer
isso e viver a vida que desejava.
Kat foi arrancada de suas reflexões quando ouviu o
telefone apitar. Era o toque de mensagem de texto de
Blake. Ela não olhara para o telefone nem uma vez desde
que chegou em casa, e esqueceu que deveria encontrar
Blake no cemitério para a cerimônia, e mais tarde ainda
naquela noite, então, quando tirou o celular da bolsa, viu
que havia várias mensagens dele.
Blake
15:31
Kat! Cadê você?
15:33
Amor?!
15:35
Eu estou aqui, onde você está? Seus pais estão TÃO
BRAVOS!
15:45
Kat!? CADÊ VOCÊ?!
Kat
21:15
Mil desculpas! Perdi a noção do tempo
lendo na Árvore Mais Antiga
Blake
21:16
Sério, Kat!?
Kat
21:17
Desculpe
Blake
21:17
Era aquele lance da sua estúpida ancestral
de um milhão de séculos e você nem apareceu!
Qual é o seu problema ultimamente?
Kat
21:18
Eu é que pergunto: qual é o SEU problema? Por que você
foi lá se acha que Katrina é estúpida?
Blake
21:18
Pare de exagerar, estou tão cansado disso.
Todo mundo está
Kat
21:19
Quem exatamente é *todo mundo*?
Blake
21:20
TODO MUNDO, KAT! TODO MUNDO acha que
você é uma RAINHA DO DRAMA, você está
sempre ficando brava comigo sem motivo!
Todos pensam que você me trata como lixo!
Você é muito egoísta às vezes
Kat
21:27
Eu sinto muito. Por favor, não fique bravo comigo.
Eu perdi mesmo a noção do tempo
Blake
21:28
Então você vai nos encontrar no cemitério hoje à noite
ou vai dar bolo nisso também?
Kat fechou os olhos e suspirou. Dissera a Blake que iria
ao cemitério mais tarde, mas aquele programa não
estava apetecendo. Só queria ficar em casa e ler o diário
de Katrina. Parecia que todo mundo estava bravo com
ela: Blake, todos os amigos dele, o pai e, embora
estivesse sendo legal, tinha certeza que a mãe ainda
estava aborrecida com ela também. Ela realmente tinha
estragado tudo não indo à celebração do Mais Longo dos
Crepúsculos no cemitério com a família. Sentia-se
culpada por desistir dos planos com Blake, mas tudo que
queria era algum tempo para si mesma. Talvez ele
estivesse certo e ela estivesse sendo egoísta, mas Kat
tinha acabado de prometer à mãe que ficaria em casa e
leria o diário de Katrina.
Kat
21:32
Prometi à minha mãe que ficaria em casa esta noite.
Ela está muito brava por eu ter perdido
O Mais Longo dos Crepúsculos
Blake
21:33
Eu sabia que você ia dar bolo
Kat
21:34
Eu LITERALMENTE acabei de prometer para
minha mãe que não ficaria fora depois de escurecer.
Ela tem medo do Cavaleiro Sem Cabeça
Blake
21:35
Tanto faz, você é uma Katrina
Kat
21:35
O que você quer dizer?
Blake
21:37
Você nunca presta atenção na aula, não é?
O Cavaleiro Sem Cabeça estava apaixonado
pela primeira Katrina e prometeu manter
a salvo todas as Katrinas depois dela.
É por isso que todas vocês se chamam Katrina
21:38
Sua mãe precisa relaxar
Kat não se lembrava de ter aprendido isso na aula, mas
Blake provavelmente estava certo; ela geralmente se
desligava quando falavam sobre sua família. Já era ruim
o suficiente ser uma Katrina em Sleepy Hollow, mas era
ainda pior ser uma Katrina no Colégio Ichabod Crane. Era
como se ela fosse algum tipo de aberração, celebridade,
ou ambos. Sinceramente, não sabia qual dos dois. Blake
adorava, é claro, toda a atenção que recebia por estar
com a próxima “Katrina reinante”, mas toda essa
atenção deixava Kat incomodada, por isso considerava
um alívio que fosse desviada para Blake a maior parte do
tempo. A última coisa que queria fazer era ir ao cemitério
no Mais Longo dos Crepúsculos, com todos os amigos de
Blake fazendo perguntas sobre sua família e bancando
bobos tentando convencer o Cavaleiro Sem Cabeça a
aparecer, proporcionando-lhes a história de fantasma
mais irada de toda a história moderna de Sleepy Hollow.
Provavelmente, a única história que teriam. E ela se
perguntava se de qualquer forma realmente acreditavam
nele. Se conseguissem conjurá-lo, ele simplesmente não
lhes cortaria a cabeça? Não é isso que o Cavaleiro faz?
Você haveria de concordar que, se de fato acreditassem
que ele existia, teriam medo dele. Mas ela não se
incomodou em levantar essa questão para Blake — ele
apenas responderia que ela não estava falando coisa
com coisa, e talvez não estivesse. Mesmo. Não queria
mais que ele ficasse bravo com ela, por isso decidiu ir ao
cemitério mesmo não querendo.
Kat
21:40
Está bem. Quer me encontrar na minha
varanda dos fundos para irmos juntos?
Blake
21:42
Vamos nos encontrar no cemitério.
Tenho algumas coisas para fazer
Kat
21:43
Que coisas? Eu não quero ir andando sozinha
Blake
21:44
Coisas, Kat. Por que você nunca confia em mim?
Kat
21:45
Do que você está falando?
Só não quero ir andando sozinha
Blake
21:45
Não importa, você nem acredita
no Cavaleiro Sem Cabeça
Kat jogou o telefone na cama antes que mandasse uma
mensagem para ele dizendo algo de que se arrependeria.
Confiava em Blake, mas, quando ele fazia coisas assim,
ela pensava duas vezes.
QUATRO

DESPERTANDO OS MORTOS

Quando kat chegou ao cemitério de sleepy hollow, A festa já


estava a pleno vapor. Ficou encantada com a beleza do
cemitério, ainda decorado para O Mais Longo dos
Crepúsculos: espalhadas entre as lápides havia pequenas
abóboras ocas com velas acesas no interior, mas o
espetáculo mais impressionante encontrava-se no
túmulo da primeira Katrina, no mausoléu da família Van
Tassel. Estava rodeado por centenas de velas
resplandecentes e adornado com guirlandas de flores
confeccionadas com amor e admiração pelo povo de
Sleepy Hollow. O aroma de madressilva, jasmim e
lavanda era intenso. O ar estava carregado e quase
inebriante com o cheiro, e isso fez a cabeça de Kat girar.
Kat se deteve nos portões do cemitério, absorvendo
tudo antes de entrar, querendo desfrutar daquele
momento o máximo que pudesse, deslumbrada pelas
chamas bruxuleantes das velas que pareciam fantasmas
dançando. Estava feliz por estar ali para ver aquilo e
sentiu-se mal por não ter ido lá mais cedo para celebrar
O Mais Longo dos Crepúsculos. Mesmo que não
acreditasse em fantasmas ou na vida após a morte, viu-
se pedindo desculpas à primeira Katrina, desejando ter
estado lá para honrá-la no fim da tarde. Sentia que
começava a conhecê-la e, pela primeira vez, a Katrina
original parecia uma pessoa real e não apenas uma
lenda.
Conforme se aproximava lentamente de onde Blake e
os amigos dele estavam reunidos, a paz e a beleza do
cemitério iam sendo obliteradas. Odiava vê-lo tomado
pelos amigos festejando, com música no último volume e
gritos ecoando tão alto na escuridão que poderiam
despertar os mortos. Essa era uma das razões pelas
quais duvidava que realmente acreditassem nas lendas,
porque, se acreditassem, não temeriam a ira do
Cavaleiro Sem Cabeça? Enquanto estava lá, perguntou-
se o que a primeira Katrina pensaria. Os copos de
plástico vermelhos se equilibrando nas lápides, a
bagunça que o grupo já tinha feito, tudo parecia tão
desrespeitoso. Ela odiou tudo aquilo, assim como odiou
ter ido lá. E tinha a sensação de que Katrina também
odiaria. Mas, então, pensou ter visto algo: um vislumbre
de alguém, talvez uma mulher, de pé na clareira do
bosque de carvalhos, olhando para ela. A figura
estampava uma expressão tão triste no rosto que fez Kat
querer chorar. Sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo,
fazendo-a estremecer e puxar a gola do casaco em volta
do pescoço.
— É lindo aqui, não? Quero dizer, tirando toda essa
palhaçada — disse uma voz atrás dela, fazendo-a se
virar. Pensou por um momento que a mulher da clareira
estivesse agora atrás dela, mas é claro que isso era
impossível. — Oh, me desculpe, eu não queria assustá-la
— falou uma jovem de cabelos negros compridos e lisos
e grandes olhos felinos. — Sou Isadora Crow. — Kat não
pôde deixar de notar em Isadora as profundas covinhas
em forma de meia-lua quando ela sorriu, uma em cada
bochecha. Sentiu-se tola porque pensara, por um breve
momento, que Isadora fosse a mulher que vira no bosque
de carvalhos. Até mesmo Kat, que não acreditava em
fantasmas, às vezes deixava a atmosfera de Sleepy
Hollow perturbá-la. Olhou para a clareira no bosque, mas
não viu ninguém e se perguntou quem poderia ser a
mulher.
— Você viu alguém parado ali, perto dos carvalhos? —
perguntou Kat, ainda se sentindo um pouco assustada.
— Não vi ninguém. Talvez fosse um dos fantasmas de
Sleepy Hollow — disse a garota misteriosa de cabelos da
cor das asas de um corvo.
— Desculpe — disse Kat, sentindo-se boba agora por
estar tão amedrontada. — Oi, sou Kat Van Tassel. — Para
sua surpresa, Isadora ficou desconcertada ao ouvir seu
nome.
— Oh! Ouvi dizer que você estaria aqui, mas não
esperava que… Kat sabia o que ela ia dizer, embora
Isadora houvesse interrompido a si mesma.
— Você esperava uma loura peituda, certo? — Kat riu,
tentando descontrair.
— Bem, sim — respondeu Isadora, fazendo Kat rir ainda
mais.
— Pois é, todas as Katrinas antes de mim eram
pequenas deusas louras e curvilíneas. Eu sou a primeira
morena magricela. — Ela se perguntou por que estava
tendo essa conversa com alguém que mal conhecia.
Tinha visto Isadora na escola, mas elas ainda não haviam
se falado.
— Bem, acho que você é perfeita do jeito que é —
disse Isadora com um sorriso que transmitiu uma faísca
quase como um relâmpago por todo o corpo de Kat.
Isadora disse que ela era perfeita, o que deixou Kat
zonza, sem saber exatamente por que ou o que mais
dizer. Estava tentando encontrar uma forma de se
apresentar a Isadora desde que a garota chegara à
escola, mas as pessoas se comportavam tão estranho
por ela ser uma Katrina que acabou desistindo da ideia
de fazer amigos de verdade, e meio que se conformou
com os de Blake, embora realmente não gostasse deles.
Isadora prosseguiu, tirando Kat desses pensamentos. —
Minha família e eu nos mudamos para cá recentemente.
Mais cedo na celebração, fiquei sabendo que haveria
uma festa aqui hoje à noite, então, pensei em entrar de
penetra. — Ela parecia um pouco embaraçada.
— Bem, você não é penetra se for minha convidada.
Meu namorado e os amigos estão dando essa festa.
Vamos nos juntar a eles.
Isadora lançou a Kat um olhar de estranheza.
— Certo, mas esta é uma festa para sua avó, não é?
Então, é como se fosse a sua festa.
Kat riu.
— Na verdade, não. Isso é coisa do Blake. Eu preferiria
estar em casa agora, lendo.
Isadora sorriu.
— Acho que temos muito em comum, Kat Van Tassel.
Kat estreitou os olhos.
— Se você prefere ficar em casa lendo, então, o que
você está fazendo aqui? — Isadora questionou de um
jeito divertido.
— Eu poderia perguntar o mesmo de você.
Kat teve o impulso de pegar Isadora pela mão para
levá-la até a cripta da família, onde todos estavam
reunidos, mas decidiu não fazê-lo. Acabara de conhecer
aquela garota, mas já havia decidido que queria ser sua
amiga.
— Não vi você hoje no Mais Longo dos Crepúsculos —
comentou Isadora, enquanto ela e Kat se dirigiam até
onde Blake e seus amigos estavam. A música e suas
vozes estavam ficando mais altas e perturbando a paz e
a beleza do cemitério, pelo menos para Kat. Ela não
gostava de sair com grandes grupos de pessoas. Pelo
menos não aquele grupo de pessoas. Estar em grandes
grupos sempre a deixava exausta, e ela nunca sabia
sobre o que falar. Não tinha muito em comum com os
amigos de Blake, e era isso que eles eram: amigos de
Blake. Metade do tempo, sentia que apenas pegava
carona com eles, mas era uma carona que ela não
apreciava.
— Sim, eu sou uma Katrina horrível. Perdi a celebração
da minha própria tatatatatatataravó — disse ela, rindo.
— Não tenho certeza se foi a quantidade certa de
“tatás” — observou Isadora.
— Sim, em minha casa nós a chamamos de a primeira
Katrina. Se minha mãe fica realmente emotiva, ela a
chama de vovó. Eu provavelmente não teria vindo esta
noite, mas Blake queria muito que eu viesse. Por que
você não está em casa lendo?
— Para ser franca, esperava conhecer alguém. É difícil
fazer amigos em Sleepy Hollow.
Kat sabia como ela se sentia e esperava que se
tornassem amigas.
À medida que se aproximavam da cripta de Katrina,
dava para ver que havia uma linha de sal circundando-a,
o que fez Kat revirar os olhos. Blake e seus amigos
estavam de pé em um semicírculo ao redor da cripta, do
lado de fora do círculo de sal, com velas nas mãos e
entoando algo que ela não conseguia entender direito.
— Eles estão tentando conjurar a primeira Katrina? —
Isadora parecia querer dar meia-volta e ir embora, como
se estivesse com medo. Kat estava apenas irritada.
Odiava quando os Sleepy Hollow Boys faziam esse tipo
de coisa, fazendo papel de bobos com seus cantos e
encantamentos, sempre tentando envolvê-la. Haviam
encasquetado que ela era a chave para invocar os
espíritos de Sleepy Hollow, e estavam buscando fazê-la
participar dos rituais idiotas.
— Não sei — ela respondeu, balançando a cabeça. Mas
sabia que era exatamente o que estavam tentando fazer.
Mesmo que Blake discordasse, ela prestava, sim, atenção
nas aulas, e reconhecia um círculo de invocação quando
via um.
— Acha uma boa ideia? Eles colocaram sal ao redor da
cripta para que o espírito dela não possa escapar. O que
acha que estão aprontando? — perguntou Isadora,
segurando uma mecha de seus cabelos compridos e
enrolando-a nos dedos nervosamente. Kat não entendia
por que estava tão ansiosa.
— Acredita mesmo nesse tipo de coisa? — quis saber
Kat. Esperava, já que Isadora não era de Sleepy Hollow,
que ela não fosse engabelada por toda aquela baboseira
sobrenatural. Mas Isadora pareceu surpresa com a
pergunta.
— Sim, você não? Você cresceu aqui, certo? Deve ter
visto fantasmas.
— Nunca vi um fantasma. Nem unzinho — disse Kat,
imaginando se isso era mesmo verdade. Quando era
mais jovem, tinha certeza de ter visto muitos fantasmas,
assim como qualquer outra pessoa em Sleepy Hollow,
mas, à medida que foi crescendo, perguntava-se se não
havia apenas sucumbido a algum tipo de transtorno
alucinatório provocado por viver em uma cidade
obcecada pelo oculto.
— Você não parece tão segura disso — observou
Isadora.
— Acho que seria triste ser um fantasma, não acha? A
ideia de me tornar um fantasma e ficar presa aqui
mesmo depois de morta me causa muita ansiedade. —
Kat sentiu o coração disparar só de pensar nisso.
— Quem disse que você ficaria presa aqui? — disse
Isadora com uma expressão preocupada. Parecia que
estava em pânico, e Kat se perguntou se não deveriam ir
embora.
— Ei, você está bem? — Kat perguntou, mas antes que
Isadora pudesse responder, Blake as interrompeu,
chamando-as da cripta.
— Kat! Venha para cá. Estávamos esperando por você!
Precisamos da sua ajuda. Estamos prestes a conjurar a
primeira Katrina.
— Achei que você disse que não sabia o que eles
estavam fazendo — questionou Isadora, torcendo os
cabelos entre os dedos tão rápido que era difícil para Kat
se concentrar no que ela estava dizendo.
— Eu não sabia que estavam planejando isso. — Kat
sentiu-se desconfortável quando se reuniram a Blake e
os outros. Eles sempre a faziam se sentir como se fosse
uma intrusa, mas naquela noite isso parecia ainda mais
patente, provavelmente porque ela estava com Isadora.
Os Sleepy Hollow Boys não gostavam de forasteiros.
— Ah, veja o que a Kat nos trouxe; é Isadora Crow! —
disse Blake, rindo. — Qual é o problema, Crow, medinho
de fantasmas? — Os amigos de Blake o acompanharam
nas risadas. Kat odiava a obsessão dos Sleepy Hollow
Boys com o oculto. Não parecia genuíno, como se fosse
algum tipo de piada, ou uma forma de ser popular. E ela
tinha certeza de que a única razão pela qual a toleravam
era porque era uma Katrina; caso contrário, nenhum
deles provavelmente teria dado a mínima para ela.
Preferiam festejar a ler num cemitério.
— Blake, posso conversar com você, ali? — Kat não
queria falar na frente dos outros.
— Aham, que foi? Todo mundo está esperando — disse
ele, olhando para os amigos. Todos cochichavam,
provavelmente se perguntando por que ela trouxera
Isadora.
— Talvez ela não queira falar na frente de todo mundo
— sugeriu Isadora. Kat não conhecia Isadora bem, mas
ela lhe parecia alguém que tinha dificuldade em guardar
para si mesma o que sentia.
— Ah, é, Crow, acha que conhece minha namorada
melhor do que eu? — O tom mordaz de Blake fez Kat
estremecer.
Kat notou que Blake estava se tornando mais parecido
com os amigos, agindo como um babaca e tirando sarro
de pessoas que não eram como eles. Ele nem sempre
fora assim; pelo menos não achava que fosse.
Certamente não era assim quando eram mais jovens.
Agora, parecia que ele sentia desdém por quem não
fosse como ele, que não se vestisse ou agisse como ele e
seus amigos, e ainda mais por quem não era de Sleepy
Hollow. Isadora Crow era uma forasteira, e isso fazia
Blake desconfiar dela. As pessoas em Sleepy Hollow
podiam ser assim. Suas únicas experiências com pessoas
de fora de lá eram turistas, ou parentes distantes que
moravam em outros lugares, mas que eram basicamente
turistas também. Até Kat sentia que os habitantes de
Sleepy Hollow eram encarados como uma bizarrice, uma
espécie de espetáculo, como se todos de fora
esperassem que fizessem um show assustador para eles.
Contudo, era algo que tinham que suportar, já que
Sleepy Hollow dependia tanto do turismo. Mas ela não
achava que isso fosse desculpa para ele ser tão idiota
com Isadora. Ela morava ali agora, e parecia muito legal
para Kat.
— Caramba, Blake! Qual é o seu problema? — Ele não
disse nada, apenas estreitou os olhos para Isadora.
— Está tudo bem, Kat — disse Isadora. — Não se
preocupe com isso. — Isadora parecia ter receio de
deixar Kat sozinha com Blake.
— Podemos conversar a sós? — Blake pegou Kat pelo
braço em uma tentativa de conduzi-la para longe do
alcance da voz de Isadora, que não tirou os olhos deles, e
isso deixou Kat incomodada, porque temia que Isadora
ainda pudesse ouvi-los. Ela odiava discutir com Blake na
frente de outras pessoas.
— O que você está fazendo aqui com ela? — Blake
disse com os dentes cerrados. — Todo mundo acha que
ela é uma aberração!
— Eu não! Qual é o seu problema, Blake? Por que está
agindo assim?
— Estou puto porque você me deu bolo e me fez
parecer um otário esperando por você duas vezes hoje.
Você prometeu que estaria aqui a tempo de ajudar a
conjurar a primeira Katrina, mas, em vez disso, está
andando por aí na companhia da Crow?
Kat não se lembrava de ter dito que ajudaria Blake e os
amigos com a conjuração ridícula. Ele sabia que era a
última coisa que ela gostaria de fazer. Mas agora se
perguntava se havia prometido e esquecido. Por qual
outro motivo ele estaria tão zangado?
— Estamos esperando desde as dez, então começamos
sem você. Mas eu não acho que funcione a menos que
uma Katrina esteja presente para a conjuração — disse
ele, tentando levá-la de volta para seus amigos.
— Não me lembro de ter dito que faria isso, Blake. —
Sentia-se envergonhada de ter essa conversa na frente
de Isadora e dos outros, por isso tentou baixar a voz para
que pelo menos os amigos dele não ouvissem. Eles já
achavam que ela tratava Blake como lixo, e parecia que
coisas assim sempre aconteciam na frente deles. — Você
sabe que eu não gosto desse tipo de coisa.
— Oh, a Princesa Katrina está muito apavorada para
nos ajudar com nossa cerimônia? — gritou um dos
amigos de Blake, fazendo com que os outros se
juntassem ao coro.
— Isso aí, uma Katrina com medo de fantasmas?
— Por que você não cala a boca? — Os olhos de gato
de Isadora chamejaram.
— Por que não fica fora disso, Crow? — Blake rebateu.
— Blake, isso é loucura — disse Kat, tentando manter a
calma. — Você sabe que eu nunca faria algo assim; por
que disse a eles que eu faria?
Blake a encarou como se ela estivesse enlouquecendo.
— Como não se lembra? Nós conversamos sobre isso,
Kat. Eu disse que queria tentar conjurar a primeira
Katrina depois do jantar. Você concordou e disse que
estaria aqui às dez; você deve ter esquecido, como se
esqueceu de me encontrar aqui mais cedo para a
celebração do Mais Longo dos Crepúsculos. — Kat sentiu
o estômago embrulhar. Era uma sensação nauseante que
tinha sempre quando Blake a lembrava de algo que ela
esquecera por completo. Parecia que vinha se
esquecendo de um monte de coisas ultimamente.
— Não me lembro de ter tido essa conversa com você
— protestou ela, lançando a vista para Isadora e depois
de volta para Blake, ciente de como devia estar
parecendo para Isadora.
— Kat, você sabe que está sempre esquecendo as
coisas. Além disso, você é a parte mais importante do
encantamento. Não podemos fazer isso sem uma Katrina
— disse Blake, suavizando o tom.
— É verdade. Estou sempre esquecendo as coisas. —
Ela não sabia por que dissera isso. Estava tentando
proteger Blake ou a si mesma? Sabia que jamais
concordaria em fazer aquilo, mas não podia argumentar
que não era esquecida, porque era.
— Bem, eu não acho que essa cerimônia seja uma boa
ideia — disse Isadora, mexendo nervosamente na alça da
bolsa. — Parece desrespeitoso fazer isso, despertar
Katrina do repouso no aniversário de sua morte. O
Cavaleiro Sem Cabeça não vai ficar com raiva? E por que
esse sal em torno da cripta? Vocês acham que ela é
estúpida o bastante para se deixar prender por um
bando de adolescentes? O que vocês planejaram, afinal?
— Você não é tão burra quanto parece, Crow! Só
queríamos fazer algumas perguntas a ela — Blake falou.
Os amigos dele se tornaram mais barulhentos, exigindo
que Kat se juntasse a eles. “Kat, Kat, Kat, Kat!” Estavam
todos entoando seu nome, e isso fazia a cabeça de Kat
girar. Ela não conseguia pensar direito. Já estava nervosa
por esquecer que Blake lhe pedira para fazer aquilo e,
agora, com os amigos dele bancando idiotas,
simplesmente não conseguia raciocinar.
— Acho que Isadora pode estar certa; talvez isso não
seja uma boa ideia. — O coração de Kat palpitava e ela
queria chorar. Odiava esquecer as coisas e odiava ainda
mais magoar os sentimentos de Blake, mas não queria
realizar aquela cerimônia com eles. Mesmo que tivesse
prometido, mesmo que de fato houvesse se esquecido,
aquilo lhe parecia errado. Não sabia o que fazer. Não
queria fazer uma cena na frente de todos, mas também
não queria ser pressionada a fazer algo que não queria.
— Vou parecer um idiota se não nos ajudar depois de
eu prometer que você o faria. Prometi a eles uma
Katrina.
Kat suspirou.
— Está bem. Vá dizer a seus amigos que já estou indo
lá — disse ela, sentindo-se tão brava consigo mesma que
isso a fez querer chorar.
— Por favor, não chore, Kat. Você sabe que eu odeio
isso. É tão manipulador.
Isadora lançou a Blake um olhar furioso, e Kat teve
certeza de que ela ia dar um soco na cara dele por dizer
aquilo.
— Estou bem — assegurou Kat, olhando para Isadora,
depois para Blake. — Vá, que estarei lá em um segundo.
— Kat observou Blake se afastar e desejou que as
lágrimas não se derramassem. Sempre sentia uma onda
de pânico quando esquecia algo que havia prometido
fazer por ele. Isso a deixava tonta e incapaz de pensar,
como se a mente tivesse sido sequestrada.
Quando ficaram a sós, Isadora virou-se para Kat.
— É ele quem está manipulando você. Percebe isso,
certo?
— Você não o conhece — argumentou Kat, tentando
clarear a cabeça.
— Conheço o tipo dele — disse Isadora. — Por favor,
não deixe que eles a pressionem a fazer isso. — Ela
estendeu a mão para pegar a de Kat, espiando Blake e os
outros para ver se estavam olhando para elas. — Não
duvide de si mesma, Kat. Você não deveria precisar fazer
nada que não queira apenas para deixar outras pessoas
felizes. — Kat achou isso irônico porque sentiu que era
exatamente o que fizera a vida toda. Era como se a
felicidade dos outros estivesse em suas mãos. Era
sempre uma questão de escolher entre sua felicidade e a
de outra pessoa, e se perguntava quando começaria a
escolher a si mesma.
— Não que eu vá conjurá-la de verdade — garantiu Kat.
— Nada disso é real. Tudo é apenas uma brincadeira para
eles; não acho que acreditem realmente, senão teriam
medo do Cavaleiro Sem Cabeça, como você disse. —
Isadora fez um som de desdém e olhou feio na direção
de Blake. — Você fica comigo? — Kat lhe pediu, sem
saber ao certo por que o havia feito, exceto por um
sentimento inexplicável de que Isadora era sua única
amiga de verdade ali, embora tivessem acabado de se
conhecer.
Mas, claro, Isadora não era sua única amiga. Estava se
sentindo irracional e ansiosa, o que geralmente fazia Kat
ter pensamentos que não conseguia controlar, dizendo-
lhe que algo estava errado, mesmo quando tudo estava
bem. Ela ia se sentir melhor mais tarde; veria que ela e
Blake estavam bem; sabia que isso era culpa dela, só
precisava se acalmar. Agora, só precisava de alguém
com quem se sentisse confortável.
— Claro, eu fico. Desde que tenha certeza de que quer
fazer isso. — Isadora olhava em volta como se estivesse
com medo. Kat não queria fazê-la ficar se ela estivesse
tão desconfortável.
— Você está assustada?
Isadora permaneceu ali parada por um momento sem
dizer nada, os olhos alternando de Kat para Blake e os
amigos dele.
— Tenho medo — disse ela.
— Você não precisa ficar se não quiser, mas eu
prometo que nada vai acontecer. Direi algumas palavras
e literalmente nada acontecerá. Fantasmas não existem.

Kat estava com os outros, segurando a vela em frente ao


mausoléu da família Van Tassel, onde todas as Katrinas
antes
dela haviam sido enterradas. Aquela se distinguia das
outras criptas acima do solo no cemitério. Era feita para
se parecer com a casa dos Van Tassel, mas não
exatamente em escala, o que sempre deixava Kat se
sentindo desconfortável. Viu seu sobrenome entalhado
na porta em letras grossas: van tassel, e isso a fez se
sentir um pouco nauseada. O céu era de um tom escuro
de púrpura com nuvens negras, e a lua reluzia no alto,
lançando um brilho fantasmagórico sobre a estátua de
mármore branco de Katrina que se erguia diante da
cripta, conferindo-lhe a ilusão de vida. Subitamente,
ocorreu a Kat que um dia ela também seria colocada
para descansar lá, e se perguntou se as futuras Katrinas
estariam ali se lembrando dela, ou pior, tentando
conjurar seu espírito. Sentiu uma onda de pânico
percorrê-la — talvez tivesse se enganado e fantasmas
fossem reais. Mas logo afastou tal pensamento porque
era a tolice usual que lhe inundava a mente quando
estava nervosa. Olhou ao redor temerosa, sentindo como
se alguém a observasse, imaginando se seria a mulher
que viu no bosque de carvalhos. Sentia-se tensa e com a
cabeça a mil, considerando cenários que sabia não
serem lógicos.
— Kat, o que você tem? Diga as palavras. — Blake a
cutucou com o ombro. Estava parada bem em frente à
porta da cripta, com Isadora e Blake um de cada lado
seu.
Estar bem em frente à entrada da cripta era algo
enervante, e sentiu as mãos tremendo. Não tinha medo
de invocar o espírito da primeira Katrina, e sim de não
viver a vida plenamente antes de tê-la roubada assim
como fora com todas as outras, presa para sempre em
Sleepy Hollow. Sentiu como se estivesse vivendo seu
próprio pesadelo, enfrentando o que mais temia.
Encarando a porta que levava à eternidade.
— Você está bem, Kat? — Isadora estendeu a mão e a
colocou no braço dela, apertando-o. — Você não tem que
fazer isso.
— Cale a boca, Crow! Claro que ela está bem — disse
Blake. — Diga as palavras, Kat.
O coração de Kat martelava com tamanha força que
ela pensou que ia desmaiar. A porta entrava e saía de
foco e, por um momento, sentiu como se estivesse de
volta em casa, com tanto medo de ficar presa lá quanto
no mausoléu. Até os carvalhos que tanto adorava
pareciam ameaçadores naquele momento, os galhos
como mãos sinistras esperando para agarrá-la e atirá-la
em uma cova. Mas ela engoliu o medo e pronunciou as
palavras, a voz falhando.
— Katrina Van Tassel, a primeira de nosso nome, saia
de além do véu e mostre-se para nós.
Kat sentiu-se fraca; o galopar no peito era persistente,
e irradiava medo por todo o seu corpo enquanto o som
se tornava cada vez mais alto. Mas, então, percebeu que
não era apenas o coração o que ouvia: era o som de um
cavalo galopando na direção deles, os cascos martelando
o chão. Ela não foi a única a ouvir o barulho estranho;
todos entraram em pânico, alguns derrubaram as velas,
que se apagaram quando atingiram o solo. Outros se
espalharam pelo bosque, as velas balançando por entre
os galhos como pequenos pontos de luz. Kat e Isadora
eram as únicas que restavam no círculo; estavam
sozinhas agora no escuro, fechando as mãos em punho,
com medo. Ficaram paralisadas ao observarem uma
imagem se materializar na floresta iluminada por velas:
um enorme corcel negro galopando em direção a elas.
— É o Cavaleiro Sem Cabeça! — Isadora tentou tirar
Kat do caminho, mas Kat estava hipnotizada pelos sons
simultâneos do coração dela e do galope do cavalo.
Estava imóvel ali, olhando para ele, observando-o correr
em sua direção, até que, de repente, o cavaleiro parou a
cerca de três metros de onde Kat e Isadora estavam. Ela
podia sentir a respiração ardente do corcel escapando-
lhe das narinas, e os olhos dele brilhavam vermelhos à
luz das velas, conferindo-lhe aparência sobrenatural. Ele
empinou, batendo os cascos com força na trilha quando
uma rajada de vento varreu o cemitério, fazendo com
que as folhas secas se agitassem e as velas se
apagassem. Agora, estava quase escuro como breu,
exceto por uma nesga de luar espreitando por trás de
uma nuvem vermelho-sangue. Elas não conseguiam ver
se a criatura carregava um cavaleiro, embora parecesse
a Kat que poderia haver alguém montado naquele cavalo
escuro, e isso lhe provocou um intenso e familiar calafrio.
— Quem está aí? — Kat perguntou, tentando enxergar
na escuridão. Poderia jurar que havia alguém no cavalo,
mas estava escuro demais para ver. — Tem alguém aí?
— É o Cavaleiro Sem Cabeça! — Os olhos de Isadora se
arregalaram, desvairados de medo. — Ele está aqui para
se vingar! — Kat podia sentir a mão de Isadora tremer na
sua, e queria dizer algo para confortá-la, mas não
conseguia desviar o olhar do animal. Os olhos dele
flamejavam na escuridão, e Kat teve a impressão de que
o cavalo tentava lhe dizer algo. Ela não tinha noção de
como sabia disso; foi algo que apenas sentiu, enquanto o
calafrio em seu corpo fazia os dentes baterem e os
músculos se contraírem.
— Temos que nos esconder, Kat! Agora! — Isadora
puxou Kat para longe do cavalo em direção à entrada da
cripta de Katrina, seus pés escorregando no sal que
cobria o chão, mas Kat não quis entrar. Preferia se
arriscar com o corcel demoníaco.
— Eu não vou entrar aí! — ela disse, mantendo-se
firme. Desde que Kat era criança, algo naquela porta a
assustava. Preferia enfrentar o Cavaleiro Sem Cabeça em
pessoa do que entrar naquela cripta. Sentiu-se tola por
pensar assim, como se algo de seu eu passado ainda
vivesse dentro dela, onde todas as lendas, superstições e
histórias de família estavam escondidas, em um lugar
secreto no coração que tinha muito medo de acessar. —
Eu acho que ele não vai nos machucar — Kat sussurrou,
ainda tremendo com o frio que parecia penetrar todo o
seu ser. — Ele provavelmente se soltou e quer que
alguém o leve de volta para casa. — Ela sequer ouvia os
apelos desesperados de Isadora para que fossem
embora, de tão fascinada. — Você não vai nos machucar,
vai? — perguntou Kat, caminhando lentamente até o
animal, estendendo a mão enquanto o cavalo lançava
bufadas quentes no ar gelado.
— Kat, pare com isso! Volte aqui! — Isadora parecia
aterrorizada. Podia ouvir sua voz vindo de trás dela. —
Kat, por favor! É o Cavaleiro Sem Cabeça. Ele vai nos
matar — sussurrou, agora ao lado de Kat.
Kat estendeu o braço e caminhou devagar em direção
ao cavalo, a mão tremendo enquanto tentava discernir
se havia alguém montado nele. Assim que achou que
podia divisar alguém, o corcel empinou, bateu os cascos
com força na terra e partiu galopando pela trilha do
cemitério, adentrando a floresta. Na escuridão, ela teve
um rápido vislumbre da figura de uma mulher no cavalo,
os cabelos esvoaçando ao vento atrás de si. Quem era
aquela? Queria ir atrás da mulher misteriosa, mas
Isadora estava caída no solo chorando, soluçando tanto
que tossia e tentava recuperar o fôlego. Kat sentou-se ao
seu lado e a tomou nos braços.
— Sinto muito. — Abraçou Isadora com força até ela
parar de chorar. — Está tudo bem. Ele já se foi. — Kat
não tinha se dado conta de como Isadora estava
aterrorizada.
Os soluços de Isadora, por fim, diminuíram. Kat sentiu-
se péssima por ela estar tão transtornada e recriminou-
se por pedir a Isadora que ficasse, mesmo a garota
admitindo que estava com medo.
— Sinto muito, Isadora. Você está bem? Quer que eu a
acompanhe até sua casa? — Ela encarou os lindos olhos
de Isadora e percebeu como estavam tristes, como
estavam assustados. Fez menção de pegar a mão dela,
mas Isadora a afastou com rapidez.
— Você é imprudente, Kat Van Tassel! Poderia ter
matado nós duas! — Isadora estava trêmula de raiva.
— Sinto muito por você estar com tanto medo, Isadora,
mas o cavalo não ia nos machucar. — Kat enxugou as
últimas lágrimas da garota e afastou do rosto dela os
longos cabelos negros. Ela parecia exausta e frustrada.
— Kat, sei que você não acredita no Cavaleiro, ou em
fantasmas, nem em nada disso, mas você e seus amigos
estão brincando com magia perigosa, e isso é insensato,
especialmente se não sabem o que estão fazendo.
Kat sentiu uma onda de raiva atingi-la como um
choque elétrico. Estava cansada de pessoas falando com
ela como se fosse uma idiota. Estava cansada de sempre
lhe dizerem o que fazer.
— Vá pro inferno! — vociferou ela, afastando-se de
Isadora e em seguida se virando para explodir
novamente. — Como ousa me chamar de insensata?
Estou tão cansada de ouvir isso! Você nem me conhece.
— Kat partiu furiosa em direção aos portões do cemitério.
— Kat, espere, me desculpe. Não quis dizer que você
era insensata. — Mesmo com raiva, Kat podia ver que
Isadora estava sendo sincera. Esperou nos portões do
cemitério que ela a alcançasse.
— Falando em insensatez, onde estão Blake e todos os
outros bravos caçadores de fantasmas? — Kat riu.
— Não é? Ele simplesmente fugiu com os outros,
gritando como criancinhas em uma casa mal-assombrada
de parque de diversões.
— Vamos, Isadora Crow, não a culpo por estar brava
comigo, mas, por favor, deixe-me acompanhá-la até sua
casa. É o mínimo que posso fazer depois de quase matá-
la de medo — ofereceu Kat, sorrindo para ela.

Depois de voltar do cemitério, tendo levado isadora em casa Kat


olhou para o telefone e viu uma mensagem de texto de
Isadora perguntando se ela havia chegado bem em casa.
Não havia mensagens de Blake. Ela não tinha vontade de
falar com nenhum dos dois. Tudo o que queria era voltar
a ler o diário de Katrina.
Esgueirou-se de fininho para dentro de casa sem que
os pais ouvissem, vestiu o pijama, aconchegou-se na
cama e voltou ao ponto onde havia parado na história de
Katrina. Mas, antes de começar a ler, enviou a Blake e
Isadora a mesma mensagem de texto:
Já estou em casa. Boa noite.
Kat sentiu um aperto no estômago ao pensar em
Isadora e imaginou se deveria perguntar como ela
estava. Esperava que estivesse bem. As garotas não
conversaram muito durante todo o trajeto. Foi estranho e
desconfortável. Kat tinha certeza de que Isadora ainda
estava aborrecida com ela, e Kat estava zangada por
tudo. Zangada com os pais por atormentá-la sobre as
responsabilidades para com a propriedade, zangada com
Blake por ser um babaca e zangada porque vira seu
relacionamento pelos olhos de Isadora, e não gostou do
que viu. E estava envergonhada por Isadora achar que
ela era insensata, mesmo que a garota tenha dito que
não se referia a ela. O que mais poderia pensar dela
depois de ter ficado tanto tempo com alguém que a
tratava assim? Por isso, ela não dissera nada, ou quase
nada, enquanto caminhavam. Isadora ainda estava
bastante assustada com tudo o que acontecera;
sobressaltava-se a cada barulhinho enquanto seguiam
pela Sleepy Hollow Road. A última coisa de que Isadora
precisava era ouvir Kat tagarelar toda agitada, quando
provavelmente não tinha vontade alguma de ser sua
amiga, não depois de tudo o que aconteceu.
— Foi aqui que o Cavaleiro Sem Cabeça atacou Ichabod
Crane, não foi? — Isadora perguntou, olhando em volta
como se esperasse vê-lo descendo a trilha a qualquer
momento.
— Todo mundo sabe que foi Brom quem realmente
assustou Crane. O Cavaleiro não é real — Kat disse,
olhando de soslaio para Isadora, tentando determinar se
a garota estava novamente voltando a se interessar por
ela.
— Essa é uma das teorias. Mas eu pensava que a
maioria das pessoas em Sleepy Hollow achasse que foi o
Cavaleiro Sem Cabeça — disse Isadora.
Kat revirou os olhos. Ainda estava com raiva e queria
ter pelo menos uma conversa naquela noite que não
envolvesse o Cavaleiro Sem Cabeça.
— Você acha que Katrina gostava mesmo de Crane ou
estava apenas tentando deixar Brom com ciúmes, como
sugere a lenda? — perguntou Isadora.
— Sempre achei que ela gostasse dele, mas,
sinceramente, não entendo por quê. — Quando Kat ouviu
a si mesma, soube que seu tom soou áspero, mas não
conseguira se conter. Estava cheia de raiva. Não sabia
com quem estava mais aborrecida, se com Blake ou com
ela mesma, por deixá-lo convencê-la a fazer algo que
não queria, e estava com receio de estar descontando
em Isadora. Ao chegarem ao portão da garota, Kat tocou
de leve a mão dela e lançou-lhe um débil sorriso como se
pedisse desculpas. — Boa noite, então, Isadora Crow.
— Boa noite, Kat Van Tassel. Deveríamos fazer isso de
novo uma hora dessas.
As palavras pegaram Kat de surpresa e a fizeram
perceber o quanto ela gostaria de voltar a ver Isadora.
Kat fez o possível para afastar Isadora dos
pensamentos e se concentrar na leitura do diário. Sentia-
se aquecida afinal, aconchegada na cama, usando o
pijama vermelho felpudo. Só o que desejara naquele dia
era algum tempo para si mesma, e finalmente ela o
tinha: então, ia aproveitá-lo como bem entendesse, lendo
o diário da primeira Katrina como a mãe lhe pedira.
CINCO

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

ICHABOD CRANE

Não consigo conceber que aquele idiota arrogante do


Brom pense que vou me casar com ele,
especialmente depois daquele desprezível ato de
exibição. Em contrapartida, se não fosse por seu
comportamento infantil, eu poderia não ter
conhecido o sr. Crane naquele mesmo dia.

Ainda furiosa depois da discussão com brom, katrina caminhou a


ressada e zan ada ela Slee Hollow Road esbarrando
acidentalmente em alguém que vinha na direção oposta.
— Ah! — Ela deixou cair os livros pela surpresa. —
Desculpe-me — disse ela, envergonhada. Atrapalhou-se
tentando recolhê-los, mas eles continuavam
escorregando das pilhas desordenadas, deixando-a mais
agitada cada vez que os livros caíam novamente na
estrada.
— Não por isso, senhorita. Com licença — disse uma
voz que Katrina não reconheceu. Ao erguer os olhos,
estava diante de um jovem que ela nunca vira antes. Ele
trajava um terno elegante e um chapéu de cavalheiro
que ergueu ligeiramente quando se apresentou a ela.
Tinha o sorriso mais cativante e pateta que já vira, e de
repente Katrina não estava mais com raiva.
— Olá, senhorita… — ele disse, oferecendo-lhe a deixa
para se apresentar com um toque dramático. Parecia
congelado em sua pose com o chapéu erguido, como se
tivesse sido transformado em estátua por uma górgona.
— Van Tassel — apresentou-se ela, sorrindo para o
homem bonito, mas desengonçado, com orelhas
excessivamente grandes, libertando-o do feitiço da
górgona.
— Olá, srta. Van Tassel, sou Ichabod Crane — disse ele,
recolocando o chapéu na cabeça e exibindo mais uma
vez seu sorriso meio sem jeito. — É um prazer conhecê-
la. — Inclinou-se para pegar os livros dela.
— Obrigada, sr. Crane — agradeceu Katrina,
estendendo a mão para pegá-los, mas ele não os
entregou.
— Você tem um gosto maravilhoso para literatura, srta.
Van Tassel; este é particularmente um dos meus
favoritos. — Ele recolheu o Lord Byron junto com o último
dos outros livros de Katrina e apoiou a grande pilha, com
facilidade, na dobra de seu braço comprido e
desengonçado. Era tão diferente dos outros homens em
Sleepy Hollow, e diferente sobretudo de Brom.
— O que o traz a Sleepy Hollow? — ela perguntou,
sentindo-se estranha por estar encarando boquiaberta
aquele homem que parecia ter sido transportado para
Sleepy Hollow por um meio sobrenatural qualquer para
levantar seu ânimo quando ela estava se sentindo
deprimida.
— Vim de Connecticut para ser admitido como o novo
professor aqui em Sleepy Hollow. — Ele inclinou
novamente o chapéu com um floreio dramático e por
pouco Katrina não soltou uma risadinha. Ela o achava
engraçado e encantador ao mesmo tempo. E ali estava
ela, desgrenhada e provavelmente com o rosto vermelho
de raiva.
Havia algo de charmoso, mas atrapalhado, naquele
homem, com braços e pernas demasiado longos, rosto
comprido e uma inegável singularidade que parecia
desarmá-la.
— Acredito que eu tenha um trabalho árduo pela frente
como professor, srta. Van Tassel. Tenho um receio
profundo e persistente de que nem todos em Sleepy
Hollow sejam tão instruídos quanto você. A senhorita foi
educada fora de Sleepy Hollow, então? — ele perguntou,
olhando diretamente nos olhos azuis dela. Katrina gostou
daquele homem e da maneira como escolhia as palavras.
— Não, senhor. Embora tenha sido educada em casa,
por minha governanta, a leitura é minha paixão. — De
repente, ela se preocupou por estar falando demais. Sua
mãe jamais aprovaria que conversasse desse jeito com
um homem a quem não tivesse sido devidamente
apresentada sobre suas paixões ou qualquer outra coisa.
— É revigorante ver alguém em uma cidade como
Sleepy Hollow que se esforça no aprimoramento pessoal.
Estava preocupado de me ver cercado por nada além de
caipiras se debatendo e protestando contra sua
educação.
Katrina riu.
— Esse pode muito bem ser o caso, sr. Crane. O povo
de Sleepy Hollow é gente simples, e ouso dizer que você
terá um trabalhão.
— Oh, tenho meus meios de controlar garotos
desordeiros, srta. Van Tassel. — Ele baixou os olhos para
a pilha de livros de Katrina que ainda segurava.
— Ah! Perdoe-me, sr. Crane, por favor, deixe-me pegá-
los — ela disse, retomando os livros. Queria ficar e
conversar com ele um pouco mais, mas dava para ver
por sua linguagem corporal que o rapaz estava ansioso
para seguir caminho.
— Eu ia me oferecer para carregar os livros para você
até sua casa, mas parece que estamos indo em direções
opostas, e não devo me atrasar, srta. Van Tassel. —
Curvou-se para Katrina em uma nova tentativa de
reverência cavalheiresca. Ela não conseguiu conter uma
leve risadinha dessa vez, e não apenas porque o achava
engraçado, mas porque não podia deixar de se sentir um
pouquinho fascinada por aquele jovem galante.
— Espero de verdade que voltemos a nos encontrar, sr.
Crane — disse ela, sentindo-se ousada e acenando com a
mão livre enquanto continuava seu caminho. — Desejo-
lhe um bom dia!
— Já é quase noite, srta. Van Tassel — ele gritou,
apontando para o céu. — Veja, o crepúsculo logo dará
lugar à escuridão. — Ela olhou para cima e viu que Crane
estava certo, a hora dourada estava quase no fim. Seus
pais ficariam furiosos com ela se não estivesse em casa
antes do anoitecer.
— Por favor, perdoe-me por partir de forma tão
apressada, sr. Crane, não devo estar fora de casa depois
de escurecer, e você também não deveria! Seria bom
chegar ao seu destino sem demora. — Ela começou a
correr pela estrada, acrescentando num ímpeto: — Boa
noite, sr. Crane, e, por favor, tenha muito cuidado na
Sleepy Hollow Road.
— Boa noite, srta. Van Tassel — respondeu ele,
assobiando enquanto se afastava prosseguindo pela
estrada sem nenhuma preocupação.

Katrina sentiu uma pontada de culpa a caminho de casa. Desejou


não ter se apressado daquele jeito, e sentiu que
realmente
deveria ter advertido o sr. Crane sobre o Cavaleiro Sem
Cabeça. Ele era novo na cidade e provavelmente não
conhecia a história. Odiaria se o pobre sr. Crane topasse
com o Cavaleiro. Não conseguia parar de pensar nele
sendo aterrorizado na Sleepy Hollow Road, enquanto
imagens da cabeça dele rolando pelo chão tomavam sua
mente. Mal conseguia respirar quando finalmente chegou
em casa, largando os livros na porta da frente com um
baque alto.
— Katrina! — Regina, a mãe de Katrina, estava parada
no vestíbulo perto da entrada em arco da sala de jantar.
— Recolha imediatamente esses livros, suba e vista-se
para o jantar! Seu pai estará em casa a qualquer
momento — disse ela. — Vejo que você só voltou bem
perto de escurecer, como de costume, e coberta de
poeira. Não sei o que você fica fazendo fora o dia todo,
Katrina. Simplesmente não sei. — Regina balançou a
cabeça.
— Sinto muito, mamãe, mas não foi minha culpa.
Encontrei o novo professor na estrada. Seu nome é sr.
Crane. Parece que acabou de chegar à cidade — disse
Katrina, dirigindo-se para a escada.
— Professor, é? — A mãe de Katrina parecia intrigada.
— De onde ele é? — perguntou, endireitando o avental e
ajeitando os cabelos, como se esse novo homem da
cidade fosse adentrar a casa e surpreendê-la
desarrumada para receber visitas.
— Connecticut, mamãe! Ele parece tão viajado, bem-
educado e instruído. — Katrina sorriu ao se lembrar da
conversa com o sr. Crane. Foi revigorante falar com
alguém que não a considerava infantil por ler.
— Bem, espero mesmo que ele seja bem-educado,
Katrina, já que será o professor! — observou a mãe,
ainda preocupada com a aparência.
— Ele não só é bem-educado, mamãe, como também
eloquente. Há algo diferente nele. — Sua mente retornou
de maneira sonhadora para o encontro com o sr. Crane,
esperando que ele não tivesse acabado mal na Sleepy
Hollow Road. Sentiu-se tola por partir rápido como havia
feito, mas temia que a família ficasse zangada com ela
caso voltasse para casa depois do anoitecer, e ainda
mais por falar com um homem desconhecido.
Naquele momento, seu pai, Baltus, entrou pela porta
da frente parecendo se divertir com alguma coisa que
mal podia esperar para compartilhar com elas.
— Boa noite, minhas lindas! Acabei de conhecer um
jovem muito esquisito na estrada, um sujeito
desengonçado com cara de espantalho, as roupas
dependuradas nele como se fosse um esqueleto vivo! Sr.
Crow, acredito ser esse o nome dele. — Ele relanceou a
vista pela pilha de livros de Katrina perto da porta. —
Katrina, por que você leva tantos livros nas caminhadas?
Parece até que é você quem será o próximo professor, e
não o sr. Crow.
— Sr. Crane, querido. O nome dele é sr. Crane. Você
sabia que teríamos um novo professor na cidade? — ela
perguntou, apontando para as botas sujas do marido, seu
gentil lembrete de que ele deveria tirá-las. Baltus riu
enquanto as chutava dos pés, sem perceber que uma
delas havia sujado de lama os livros de Katrina.
— Claro que sabia, querida, mas não achei que valesse
a pena mencionar, e agora que pus os olhos no pobre e
macilento rapaz, estou ainda mais convencido de que
não há lugar para ele em Sleepy Hollow.
— Papai! Você colocou as botas imundas nos meus
livros!
— Tudo bem, acalme-se, Katrina — ralhou a mãe. — Se
você não os deixasse no chão, isso não aconteceria. E,
Baltus, guarde as botas. Já que vocês dois decidiram
chegar logo antes do jantar sem tempo para ficarem
apresentáveis, por que não se lavam rapidamente e
depois me encontram na sala de jantar antes que a
comida esfrie, e terminamos essa conversa durante o
jantar? — Regina encarou o marido com um olhar de
repreensão, provavelmente aborrecida por não ter lhe
contado sobre o professor. Não acontecia muito em
Sleepy Hollow, e notícias como aquela não eram o tipo
de coisa que se esquecesse de contar à esposa.
Baltus suspirou comicamente enquanto observava
Regina partir meio atordoada para a cozinha.
— Sua mãe está dando chilique por causa desse novo
professor? Que o Grande Fantasma do Vale nos ajude.
Amanhã, a essa hora, imagino que todas as donas de
casa em Sleepy Hollow já o tenham convidado para
jantar — disse ele, rindo consigo mesmo.
Katrina e o pai rapidamente se lavaram e foram direto
para a sala de jantar, como Regina solicitara. Se havia
uma coisa que não se fazia na casa dos Van Tassel era
atrasar-se para essa refeição. A mesa da sala de jantar
estava bem servida com um frango assado recheado
com azeitonas, alho e cebolinha ao lado de uma tigela
grande de batatas com alecrim e outra com cenouras na
manteiga temperadas com endro, e, claro, havia
bastante pão recém-assado, que Baltus costumava
comer em grandes quantidades.
A mãe de Katrina colocou uma grande jarra de vinho
temperado na frente de Baltus, à cabeceira da mesa, e
depois se sentou na outra extremidade. Katrina, de modo
habitual, sentou-se à direita da mãe, de frente para as
tortas de abóbora no aparador, percebendo que o Baile
Anual da Colheita estava quase chegando. Logo a mãe
estaria realmente dando chiliques, preparando-se para o
baile. Katrina e o pai teriam de tomar cuidado para não
testar a paciência dela como fizeram essa noite, caso
contrário, Regina desencadearia a ira da colheita, como o
pai chamava.
Katrina não conseguia se lembrar de uma ocasião em
que a mãe não tivesse preparado uma bela refeição. A
sala de jantar estava adorável. Regina acendera velas e
colocara flores nos tons do outono no centro da grande
mesa de madeira, coberta com uma toalha vermelha que
combinava com as cortinas de veludo.
— Vamos lá, comam, o jantar está esfriando — disse
Regina, fazendo Baltus rir outra vez. Katrina adorava o
som da risada do pai; era tão gutural e rouca, e quase
zombeteira.
— Seus jantares nunca esfriam, Regina. Você domina o
feitiço das donas de casa para manter tudo bem quente,
não importa quanto tempo leve para Katrina e eu
chegarmos à mesa. — Ele piscou para Katrina e a esposa.
— Ah, pare com isso, Baltus! Sabe que não mexo com
essas coisas. — Regina se serviu de um pouco do vinho
temperado da jarra que Baltus acabara de lhe entregar.
— Então, você conheceu nosso sr. Crow, pelo jeito —
disse Baltus, empilhando grandes porções de batatinhas
douradas no prato.
— Não, querido, foi Katrina quem conheceu o senhor
Crane, na Sleepy Hollow Road, enquanto ele estava indo
para a cidade.
Baltus ergueu a sobrancelha para Katrina.
— E o que achou dele, minha filha? Seu pomo de adão
bulboso a distraiu, como fez comigo? — ele perguntou,
agora empilhando cenouras no prato. O pai de Katrina
era um homem corpulento, com mais de um metro e
oitenta de altura e uma estatura maciça resultante do
trabalho na fazenda, e seu apetite era enorme.
— Eu o achei muito intrigante, papai. Parece que vai
ser um ótimo professor — observou ela, servindo-se de
um pouco de frango assado, certificando-se de colocar
porções extras de azeitonas e alho, que eram suas partes
favoritas do prato.
— Bem, cá entre nós, não vejo por que contratarmos
um professor. A maioria das famílias precisa que os filhos
trabalhem em suas fazendas; eles não podem mandá-los
para a escola, especialmente na época da colheita. —
Baltus açoitava o pão repetidamente com a faca
enquanto espalhava manteiga em grandes quantidades,
e Katrina imaginou que fosse o rosto do sr. Crane que ele
via ao fazê-lo. Dava para ver que ele já havia decidido
não gostar do rapaz, e quando o pai não gostava de
alguém, geralmente não mudava de ideia. Pelo menos,
estava levando o professor na brincadeira.
— E quanto às meninas, papai? Elas podem ser
poupadas? Ou precisam ficar em casa e ajudar as mães?
— questionou Katrina, sentindo-se irritada com o pai.
— Você sabe muito bem que a maioria das meninas é
mantida em casa para ajudar as famílias, mas você
recebeu uma excelente educação, Katrina; não tem
motivos para reclamar. — Ele sorveu um gole do vinho
temperado, que espirrou um pouco na barba.
— Mas não foi uma educação de verdade, foi, papai?
Foi de uma governanta. Eu teria gostado de ir para uma
escola adequada. Ainda gostaria. — Ela lançou um olhar
para a mãe esperando o que ela diria. Aquele sempre
fora um assunto delicado entre Katrina e a família, e por
mais que odiasse mudar o clima alegre à mesa, essa
questão lhe era muito cara.
— Já discutimos isso, Katrina — disse Regina. — Nós
não vamos deixá-la ir para a escola, e ponto-final.
Era um assunto que Katrina levantava com frequência,
mas nunca conseguia convencer os pais a ceder. Queria
desesperadamente frequentar a escola, mas nada do que
dizia parecia convencer os pais a permitir que fosse.
Então, de repente, os olhos de Regina brilharam, como
costumava acontecer quando tinha uma ideia brilhante.
— No entanto, se quiser que contratemos o sr. Crane
para ensiná-la algumas disciplinas adicionais, talvez algo
possa ser arranjado. Em todo caso, adoraria receber esse
jovem para jantar — disse Regina, sorrindo para a filha.
Katrina sabia que a mãe estava tentando
contemporizar por se posicionar tão firmemente contra
ela ir para a escola. E, embora isso não representasse
uma vitória, pelo menos, teria oportunidade de conversar
com alguém que valorizasse a instrução, com quem
tivesse algo em comum.
— Oh, mamãe, é verdade? Está falando sério? Que
noite você vai convidá-lo? O que você acha que eu
deveria vestir? Oh, e preciso encontrar o meu Voltaire,
acho que o sr. Crane o apreciaria. Parece ser o tipo de
homem que entenderia o senso de humor dele.
Baltus estreitou os olhos para a filha enquanto ela
falava efusivamente.
— E, mamãe, quanto tempo falta para terminar aquele
vestido novo que está costurando para mim? Você acha
que eu poderia usá-lo quando ele vier jantar? — Os olhos
de Katrina estavam cheios de animação.
Mas essa foi a gota d’água para Baltus. Ele finalmente
perdeu a paciência e jogou o pão amanteigado no prato.
— Agora, escute aqui, ninguém disse que íamos
receber esse tolo presunçoso para jantar! Ele tem uma
aparência desagradável, Regina. Não gosto dele. Sobre o
que conversaríamos? Gosto de relaxar com minha família
depois de um longo dia de trabalho, não de ficar
entretendo convidados com quem não tenho intenção de
fazer amizade. — A mãe de Katrina baixou a taça de
vinho na mesa com um baque de frustração.
— É claro que vamos recebê-lo para jantar, Baltus.
Onde já se viu os Van Tassel não abrirem a casa e serem
hospitaleiros? E, sim, Katrina, o vestido estará pronto a
tempo. Agora, vocês dois, acalmem-se e comam.
Katrina lançou à mãe um sorriso radiante, porque sabia
que o assunto estava encerrado. Quando Regina falava,
estava falado.
— Oh, obrigada, mamãe — ela disse, deixando
imediatamente a cadeira e correndo para dar um beijo
na mãe. — Posso, por favor, levantar-me da mesa?
Queria encontrar aquele livro e relê-lo antes de ver o sr.
Crane. Quero ter algo para conversarmos na próxima vez
que o vir — ela disse, fazendo a mãe sorrir e balançar a
cabeça.
— Vá em frente, então, Katrina — respondeu, rindo
enquanto Katrina corria escada acima.
— Não me agrada ver Katrina de cabeça virada,
Regina. Não me agrada nem um pouco. Ela está
prometida a Brom.
— Não se preocupe, Baltus. Este jovem é uma fantasia
passageira, e, se não for e eles se encaixarem bem,
então, você terá que se acostumar com a ideia.
O pai de Katrina se afastou da mesa, levantou-se e foi
até a lareira.
— Baltus, não fume esse cachimbo dentro de casa! Se
vai fumar, então faça isso na varanda.
— Vou fumar na minha própria casa, se eu quiser,
Regina! — respondeu mal-humorado.
— Não brigue comigo, Baltus, só porque você está com
raiva de Katrina. Sei que você gosta de Brom, mas
qualquer um pode ver que eles estão se afastando. Ela
não é como as outras garotas em Sleepy Hollow, querido,
e se ela ficaria mais feliz com alguém como esse sr.
Crane, então, quem somos nós para ficar no caminho
dela?
Katrina, que ouvia do corrimão no andar de cima, ficou
surpresa.
— Então, vai casá-la com o primeiro idiota
desengonçado que entrar valsando na cidade? Nós
somos os pais dela! Sinto muito, Regina, mas não
podemos ter alguém como o sr. Crow administrando esta
fazenda! Brom é o homem ideal para Katrina! Eu sei
disso, e você também sabe! Todos nós sabemos desde
que eles eram pequenos! — A mãe de Katrina riu e deu
tapinhas no braço de Baltus.
— O nome dele é sr. Crane, querido. E estamos nos
antecipando, não acha? Mas digamos apenas
hipoteticamente que Katrina se case com esse professor:
quem garante que eles não possam contratar alguém
para supervisionar a fazenda?
Baltus, que ficava mais vermelho a cada instante,
acendeu o cachimbo com um olhar que desafiava a
esposa a dizer algo contra isso.
— Não sei, Regina. Simplesmente não sei — disse,
soprando a fumaça em grandes baforadas brancas.
— Eu sei que você gosta de Brom, querido. E, quem
sabe, talvez essa paixonite pelo sr. Crane assuste Brom e
o faça se tornar o pretendente que Katrina merece. Ou
pode fazer nossa filha perceber que Brom é a pessoa
certa para ela. Vamos apenas ver como as coisas se
desenrolam. Mas, enquanto isso, você sabe que vamos
recebê-lo para jantar. — Ela voltou a lhe dar tapinhas no
braço enorme com sua mãozinha minúscula.
— Está bem, querida — concedeu ele. — E eu vou
terminar de fumar na varanda — completou, parecendo
derrotado.
— Obrigada, querido — disse ela, dando-lhe um beijo
suave na bochecha.
— Nunca se sabe, talvez esse sr. Crow não corresponda
às expectativas dela — observou Baltus.
— O nome dele é sr. Crane, querido. E eu não contaria
com isso.
Katrina se levantou do degrau de onde estivera,
escondida, escutando na escada. Satisfeita por ter
vencido essa discussão familiar, foi procurar seu Voltaire.
SEIS

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

ENTRE, SR. CROW

A mãe de katrina estava ocupada na cozinha preparando a refei ão


da noite uando a filha veio correndo como se estivesse
sendo perseguida pelo próprio diabo.
— Mamãe! Olhe o meu vestido! Bem aqui — disse ela,
girando em pânico para lhe mostrar uma prega nas
costas da peça. — Eu não posso usá-lo assim; o que vou
fazer? — Regina e Madeline, a mulher que de vez em
quando ajudava a mãe de Katrina na cozinha, ergueram
os olhos do que estavam fazendo e franziram a testa.
— Venha aqui para que eu possa dar uma olhada
melhor — disse Regina, inspecionando as costas do
vestido de Katrina. — Ah, está tudo bem, Katrina. Use
sua faixa vermelha na cintura; esconderá essa prega e
ficará linda com o vestido. Volte para cima e coloque-a;
depois, venha aqui para que eu possa lhe garantir que o
problema está resolvido — instruiu ela, virando-se para
continuar a abrir com o rolo a massa para tampar as
tortas que estava assando, enquanto Katrina corria de
volta para o andar de cima.
— Parece que a srta. Katrina está obcecada pelo novo
professor. As coisas azedaram entre ela e Brom? —
perguntou Madeline, enquanto continuava a abrir o outro
pedaço de massa.
— Ah, eu não sei. Acho que é apenas um fascínio
inocente. Ele é novidade, conhece o mundo, você sabe
como é. Nós raramente temos uma pessoa nova na
cidade, se é que já tivemos algum dia — disse Regina.
De seu quarto no alto da escada, Katrina conseguia
ouvir a mãe e Madeline conversando. Era por isso que,
vez por outra, deixava a porta aberta, para, quando
precisasse, poder escutar escondida.
— Pelo que ouvi, não houve uma noite em que o sr.
Crane teve que se virar sozinho para comer. Tem sido
convidado para todos os lares de Sleepy Hollow e
empanturrado por todas as donas de casa do condado.
Suponho que elas só queiram dar uma boa olhada nele
para analisar se seria um bom partido para suas filhas e,
ao que tudo indica, parece que o sr. Crane não se
importa — contou Madeline, rindo. Não havia uma única
coisa que acontecesse em Sleepy Hollow que Madeline
não soubesse. — Os Van Irving disseram que o sr. Crane
tem um apetite extremamente voraz, o que me
surpreende, já que é um homem tão magro. A sra. Van
Irving disse que ele repetiu duas vezes e ainda sobrou
espaço para duas fatias de torta, acabando recheado
como um ganso de Natal! — ela disse, fazendo a mãe de
Katrina rir.
Katrina meneava a cabeça enquanto as ouvia, mas
começou a se preocupar. A última coisa que queria era
Madeline espalhando pela cidade que ela estava
interessada no sr. Crane. Não queria ferir os sentimentos
de Brom, ainda mais porque não compreendia o que
sentia. Era exatamente como a mãe dissera. Estava
animada para conhecer alguém novo e diferente, e não
havia mal algum que tivessem muito em comum.
— Bem, talvez ele esteja aceitando todos esses
convites porque ama comer, e não porque esteja
buscando a melhor opção de noiva — comentou Regina,
rindo.
Qualquer que fosse o motivo, Crane aceitara o convite
para jantar aquela noite, e Katrina sabia que a mãe não
estava disposta a deixar o convidado para o jantar
desejoso de repetir os pratos e não poder fazê-lo. Havia
preparado rosbife, além de frango assado recheado com
azeitonas e alho, costeletas de porco com ervas, suas
habituais batatas douradas e cenouras na manteiga,
assim como couve-de-bruxelas com bacon, feijão-verde
com lascas de amêndoas e alguns pães extras. Sem
mencionar três diferentes sabores de torta: abóbora,
maçã e cereja. Parecia que a mãe estava decidida a
também mandar Ichabod para casa totalmente
empanturrado. Alguns meses depois, Regina contou à
filha o que aconteceu em seguida, porque quando
Katrina ouviu a batida na porta, entrou em pânico e
fechou com um estrondo a porta do quarto com medo de
que Crane a visse antes que estivesse pronta.
A mãe de Katrina contou a história de modo cômico.
Parece que no momento em que Regina terminou de
beliscar as bordas das tortas e estava prestes a colocá-
las no forno, ouviu a batida na porta. Como o convidado
demoraria pelo menos mais uma hora, presumiu que
fosse um vizinho. Tirou o avental, enxugando as mãos
nele enquanto se dirigia para a porta, e encontrou na
soleira um homem alto e desengonçado, com um buquê
de flores silvestres na mão esquerda.
— Bem, olá, você deve ser o sr. Crow… perdoe-me,
quero dizer o sr. Crane. Sou a sra. Van Tassel; por favor,
não quer entrar? — ela disse, espiando o imponente
relógio de pêndulo do pequeno vestíbulo para se
certificar de que não havia perdido a noção do tempo. O
sr. Crane chegara extremamente cedo, e isso era algo
que a mãe de Katrina não tolerava.
— Boa noite, sra. Van Tassel, muito prazer em conhecê-
la finalmente — cumprimentou o jovem esguio em seu
terno preto demasiado largo. — Vejo agora de onde
Katrina herdou a impressionante beleza. — Crane
adentrou o vestíbulo e olhou ao redor, visivelmente
cativado pelo tamanho da casa dos Van Tassel.
— Faria-me o favor de me acompanhar até a
biblioteca? Receio que o sr. Van Tassel ainda não tenha
chegado e Katrina ainda esteja lá em cima. Posso lhe
oferecer um pouco de xerez, enquanto espera? — ela
disse, gesticulando para a biblioteca.
Era um aposento encantador com móveis de madeira
escura belamente entalhados. O mais notável eram as
estantes que cobriam as paredes e haviam sido
esculpidas para parecerem gigantescos carvalhos
retorcidos, com os numerosos livros aninhados em seus
troncos e galhos. A lareira era igualmente imponente
devido à enormidade de tamanho e, em comparação, o
par de aconchegantes poltronas que ficavam em ambos
os lados, de frente para ela, pareciam pequenas. Do
outro lado da sala, à janela, havia um pequeno recanto
para leitura, com almofadas bordadas para maior
conforto e, próximo dele, uma grande vitrine com vários
tesouros da sra. Van Tassel e lembranças de família.
— Obrigado, sra. Van Tassel. Receio ter chegado muito
cedo. — A mãe de Katrina comentou mais tarde que dava
para ver que o sr. Crane ficara encantado com a sala,
embora não o houvesse externado. Ela tinha muito
carinho por aquele aposento e adorava o fato de que fora
o próprio avô quem esculpira as estantes de livros.
— Nem um pouco, sr. Crane. Por favor, acomode-se
aqui perto do fogo. O xerez e os cálices estão na cornija;
por favor, sirva-se enquanto eu vou ver como está
Katrina — ela disse, saindo da biblioteca.
Katrina sabia que pontualidade era uma virtude que a
mãe admirava, e acreditava que chegar cedo demais era
tão rude quanto chegar tarde. Entretanto, ela disse à
filha que tinha certeza de que Crane devia estar tão
empolgado com aquela noite quanto Katrina e
dificilmente poderia culpá-lo por isso, e tinha a sensação
de que ele estava lá por algo mais do que apenas seus
famosos dotes culinários.
Felizmente, a mãe de Katrina já estava vestida para o
jantar e terminara a maior parte dos preparativos para a
refeição antes que ele batesse à porta. Se tivesse
chegado um pouco mais cedo, Katrina sabia que a mãe
ficaria muito zangada, e não era assim que queria
começar a noite.
Regina admitiria mais tarde a Katrina que achava haver
de fato um quê de espantalho no jovem e que as roupas
dependuravam-se dele de forma quase cômica.
Questionava o que a filha vira nele. Talvez fosse o
intelecto que a deixara tão intrigada.Tinha que admitir
que Brom não compartilhava do amor de Katrina pela
leitura e se perguntou se havia muito assunto para os
dois conversarem.
Ela rapidamente subiu a escada e bateu na porta do
quarto de Katrina, adentrando-o quando a ouviu dizer
“Entre” do outro lado. A jovem estava parada diante do
espelho, verificando se a faixa cobria a prega como
Regina esperava. A mãe não pôde deixar de torcer a cara
para o estado do quarto de Katrina, em completa
desordem devido ao nervosismo enquanto se arrumava
naquela noite. Mas isso não explicava os livros
espalhados por toda parte que olhava, ou a mesa coberta
de pilhas de escritos dela, ou as manchas de tinta
respingada pela madeira nobre. Kat ficou grata pela mãe
não comentar sobre a condição do aposento e, em vez
disso, dedicar atenção ao seu vestido, porque Katrina
ainda não estava convencida de que o problema fora
superado.
— Minha nossa, Katrina, você está linda. E essa faixa
cobre perfeitamente a prega — Regina disse, fazendo um
ajuste final e endireitando a faixa.
— Obrigada, mãe. Você fez um belo trabalho no meu
vestido. — Era um veludo vermelho-escuro, e a faixa de
cetim vermelho-claro amarrada na cintura acrescentava
um toque especial.
— Aqui, Katrina, vamos afastar um pouco os cabelos do
seu rosto — disse Regina, tirando a escova da
penteadeira da filha.
— Obrigada, mãe. Você não acha que Madeline vai
fofocar sobre termos convidado o sr. Crane para jantar?
— ela disse, olhando-se no espelho enquanto a mãe
cuidava de seus cabelos.
— Eu não me preocuparia com isso, querida.Todos no
condado receberam o sr. Crane para jantar; por que
também não deveríamos? — ela ponderou, amarrando o
laço que prendia os cabelos de Katrina para trás. —
Pronto, você está perfeita, minha querida.
Katrina abraçou a mãe, beijando-a nas duas
bochechas.
— Obrigada, mamãe, por me fazer este vestido e por
receber o sr. Crane para o jantar. Eu sei que papai não
aprova.
— Ah, não se preocupe com o seu pai, Katrina. Deixe-o
comigo. Por que não descemos para que eu possa
verificar o jantar? Você encontrará o sr. Crane na
biblioteca, sentado ao lado da lareira. Se ele ainda não se
serviu de um cálice de xerez, por favor, ofereça-lhe um
pouco, e estarei com vocês em breve.
— Estou mesmo apresentável, mamãe?
Regina voltou a rir, esperando que o sr. Crane estivesse
lá para mais do que uma boa refeição.
— Você está adorável; só precisa de mais um toque
final — disse ela, pegando o medalhão de ouro de Katrina
na penteadeira e prendendo-o no pescoço da filha. —
Pronto, agora você está perfeita; vá lá para baixo e faça
sala para o seu sr. Crane até que seu pai volte para casa.
Agora, vamos descer. Não sei ao certo como seu pai
reagiria ao chegar e encontrar o temido “sr. Crow”
rondando a biblioteca sem vigilância.
— Mamãe! Ele não é meu sr. Crane! — O rosto de
Katrina adquiriu um tom muito parecido com o da faixa
vermelha do vestido. Regina agarrou as duas mãos da
filha e a beijou na bochecha.
— Acalme-se, querida. É só um jantar. — Katrina
retribuiu o beijo e desceu a escada saltitando. Regina riu
do fato de Katrina ainda ser uma menina em alguns
aspectos, embora fosse uma jovem de dezoito anos. Mais
tarde, a mãe de Katrina lhe revelou que havia
concordado com essa ideia do sr. Crane porque sabia
que, se desencorajasse o interesse de Katrina por ele,
isso só a faria ficar mais apaixonada, mas Regina estava
aos poucos começando a entender o que a filha via no
estranho jovem, e seu coração se alegrou ao vê-la tão
feliz. Além do mais, ela odiava a ideia de Katrina deixar
Sleepy Hollow, e se a única maneira de mantê-la em casa
era fazê-la se estabelecer com alguém como o sr. Crane,
então, que assim fosse. Estava quase grata por esse
professor excêntrico ter chegado ao vilarejo; tinha cada
vez mais medo de que Katrina partisse para a cidade em
busca de um companheiro que compartilhasse dos
interesses dela. Dessa forma, ela e Katrina conseguiriam
o que desejavam. Ela e Baltus teriam apenas que se
acostumar com a ideia de um tipo de genro muito
diferente do que imaginavam, caso isso acabasse se
revelando algo mais sério do que uma simples fantasia
passageira. O sr. Crane não poderia ser mais diferente de
Brom, e Regina teve que se perguntar se não era por isso
que Katrina estava tão encantada com ele. Sempre
deram como certo que a filha e Brom se casariam, e
Regina sentiu que havia uma parte dela esperando que
isso ainda acontecesse. Tinha dificuldade em imaginar
Katrina dispensando Brom por um jovem que acabara de
conhecer, mas supôs que teriam de esperar para ver o
que aconteceria.
Regina dirigiu-se com rapidez ao vestíbulo depois de
verificar o jantar, esperando que pudesse interceptar
Baltus antes que ele encontrasse o sr. Crane e Katrina na
biblioteca. Sabia que ele não aprovava Crane e temia
que, se ele fosse rude com o rapaz, isso só faria Katrina
desejá-lo ainda mais. Achou que a coisa mais inteligente
que Baltus poderia fazer seria ter uma boa e longa
conversa com Brom, de homem para homem, e dar-lhe
alguns conselhos sobre como fazer Katrina mais feliz.
Porque era isso que Regina queria, a felicidade da filha,
não importava com quem a garota decidisse se casar.
SETE

O ABÓBORA FLAMEJANTE

Kat ergueu os olhos do diário de katrina e notou que já


adentrara a madrugada. Estava lendo desde que chegara
em casa do cemitério. Mal podia esperar para ver o que
aconteceria a seguir, mas estava exausta demais para
continuar. Baltus e Regina a fizeram rir; eles a
lembravam dos próprios pais. Havia muitas coisas na
vida de Katrina que lembravam a sua própria. As
coincidências eram de fato incríveis. Talvez fosse porque
estava muito cansada, combinado com tudo o que
acontecera mais cedo naquela noite no cemitério, mas
tinha a estranha sensação de que vivia a vida de Katrina
e não a sua. Ela as viu em trajetórias semelhantes, e isso
a assustou.
Perguntou-se se estava muito tarde para mandar uma
mensagem para Isadora. Pegou o telefone e viu que a
menina havia lhe respondido à meia-noite. Blake não
tinha enviado mensagem. Ela não se importou; ainda
estava com raiva dele e, de qualquer forma, não sabia o
que queria lhe dizer. Até onde ele sabia, ela e Isadora
estavam mortas no cemitério com a cabeça decepada,
vítimas do Cavaleiro Sem Cabeça. Kat leu a mensagem
de texto de Isadora.

Isadora
0:00
É a Hora das Bruxas, e está tudo bem.
Kat desejou que Isadora não estivesse tão
impressionada com toda aquela bobagem de Sleepy
Hollow, mas, por algum motivo, isso não a incomodava,
pelo menos não muito. Ela não era como os Sleepy
Hollow Boys, ou como a garotada nas aulas — parecia
genuinamente interessada no sobrenatural, e não estava
apenas tentando ser descolada. Isadora foi a primeira
pessoa que conheceu com a qual imaginou poder ter
uma amizade que não fazia parte do círculo de Blake, e a
sensação de ter uma amiga só dela era inebriante.
Kat
2:00
Você está acordada?
Isadora
2:01
Assistindo a um filme. O que você está fazendo?
Kat
2:02
Estava lendo o diário de Katrina
Isadora
2:03
VOCÊ TEM O DIÁRIO DELA? Que loucura!
Kat
2:04
Minha mãe me deu. Eu não
esperava que fosse tão interessante
Isadora
2:05
E é mesmo como a lenda? Ela realmente escreveu sobre
Ichabod Crane ou o Cavaleiro Sem Cabeça?
Kat
2:06
Ainda não cheguei nesse ponto. Ela acabou de conhecer
Ichabod, e ele está indo jantar na casa dela pela
primeira vez. O pai dela o odeia! Hahaha. Eu quero ler
como foi o tal jantar, mas estou muito cansada
Isadora
2:07
Claro que está, foi uma noite insana.
Eu adoraria ler também, se não for muito esquisito
Kat
2:09
Não é esquisito. O que é esquisito é o quanto
minha vida se parece com a de Katrina
2:10
Você acabou não dizendo que filme está assistindo
Isadora
2:10
À meia-luz. É um filme antigo de Ingrid Bergman
Kat
2:11
Oh! Ela é a mãe da Isabella Rossellini, certo?
Acho que soube disso isso quando estava lendo sobre
David Lynch. Você gosta dos filmes dele?
Isadora
2:13
Gosto! Ele é um dos meus cineastas preferidos.
Você é literalmente a única pessoa em Sleepy
Hollow que conheci que curte o trabalho dele!
Mas, também, acabei de me mudar para cá lol
Kat
2:14
É, não tem muitas pessoas em nossa escola
que gostam de coisas assim. Quer se encontrar
para um café ou algo do tipo amanhã? Eu
posso te contar o que li no diário até agora
Isadora
2:15
Demorou! Onde nos encontramos?
Kat
2:16
Você sabe onde fica o Abóbora Flamejante?
Isadora
2:17
Não, mas consigo descobrir. Que horas?
Isadora
2:19
Perfeito! Vejo você lá então!
Kat
2:18
Que tal ao meio-dia?
Kat ficou feliz por parecer que Isadora não estava mais
brava com ela, mas ainda se sentia mal por tudo o que
acontecera naquela noite e por como a tratara enquanto
caminhavam para casa. Ela pediria desculpas no dia
seguinte. Sentia como se tivesse passado a vida toda
pedindo desculpas — para os pais, para Blake e agora
para Isadora. Sentia como se estivesse sempre
magoando sem querer as pessoas; se perguntou se Blake
estava certo e talvez ela realmente fosse uma pessoa
egoísta.

No dia seguinte, kat decidiu ir andando até o café para se


encontrar com Isadora. Ao passar pelo imponente e
venerável relógio da cidade, adornado com um
espantalho de aparência sinistra que parecia estar
sorrindo para ela, isso a fez rir. A cidade estava se
preparando para o Festival de Outono, e as decorações
abundavam. Ela achava a cidade linda do jeito que era; e
que não precisava de todas aquelas decorações; já havia
uma atmosfera assustadora sem todos aqueles
fantasmas pendurados, legiões de abóboras iluminadas
e, claro, a figura do Cavaleiro Sem Cabeça montado em
seu cavalo na ponte coberta para que os turistas
pudessem parar e tirar uma selfie ao lado. Na visão de
Kat, esse era um vilarejo de contradições: por um lado, o
povo tratava sua história com uma reverência que
beirava o delírio e, por outro, a exploravam para agradar
pessoas que vinham de cidades maiores para o festival.
Por mais que odiasse os conceitos antiquados das
pessoas que viviam lá, admirava como Sleepy Hollow
estava belamente preservada. Adorava as antigas
construções de pedra e tijolo, mas acima de tudo
adorava as folhas laranja-queimado e avermelhadas que
dominavam a paisagem nessa época do ano.
Quando chegou ao café, lançou um sorriso de desdém
para a grande placa de madeira que pendia acima da
porta. Era uma enorme abóbora flamejante que parecia
estar sendo arremessada acima da entrada. Ficava
exasperada com o fato de que tudo em Sleepy Hollow
tinha, bem, temática de Sleepy Hollow, mas suspeitava
que Isadora fosse gostar daquele café. Era um dos
lugares preferidos de Kat.
Um sino de bronze ressoou quando abriu a porta, e ela
examinou o salão para ver se a garota estava lá. Ficou
ligeiramente desapontada quando não a viu e
preocupou-se com a possibilidade de Isadora ter mudado
de ideia. Na noite anterior, ela deveria ter mandado uma
mensagem pedindo desculpas.
Não conseguia decidir se deveria pedir algo antes de
pegar uma mesa ou esperar que Isadora chegasse — se
é que ela ia mesmo aparecer. O café estava vazio, exceto
pela barista, Raven,3 que em nada se parecia com o que
o nome dela sugeria. Parecia mais uma Katrina do que a
própria Kat, com cabelos louros claros, pele de pêssego e
creme, e personalidade amistosa e esfuziante.
Corrigindo: ela era amistosa e esfuziante com todos,
exceto Kat. Por alguma razão, Raven não aparentava
gostar muito dela. Isso não incomodava Kat; estava
acostumada com pessoas tratando-a de forma estranha.
Fazia parte de ser uma Katrina. Gente da sua idade ou
adorava Katrinas ou as odiava. Sua mãe dizia que era
inveja, mas Kat não entendia: inveja de quê? Daria
qualquer coisa para se livrar do legado que a prendia a
Sleepy Hollow.
Kat decidiu que reivindicaria seu lugar favorito, um
canto aconchegante perto da lareira de pedra adornada
com abóboras iluminadas de cerâmica e morcegos de
borracha pendendo do alto. Sentou-se na antiga poltrona
de couro marrom em frente a um antiquado sofá de
veludo vermelho. Entre os dois havia uma mesinha
redonda de madeira.
A maioria dos lugares em Sleepy Hollow era assim,
cheia de antiguidades e perpetuamente decorada para o
Halloween, mesmo quando não era época do festival.
Mas ela adorava aquele café com tapetes vintage
carmesim, lambris de madeira escura e até as
decorações kitsch de Halloween. O que mais amava,
entretanto, eram os pôsteres de filmes de terror antigos
pendurados nas paredes, resquício de quando o café era
um cinema.Tinha carinho especial pelos pôsteres de
filmes mudos. Em seu canto, havia pôsteres emoldurados
de O fantasma da ópera, Metrópolis e A Bela e a Fera de
Jean Cocteau; este último, claro, não era mudo, mas um
dos filmes de que mais gostava. Tratava-se de um de
seus lugares preferidos para se sentar e ler, afora a
Árvore Mais Antiga. Adorava ir ali com Blake; ficavam
sentados por horas apenas conversando, mas
ultimamente ele só estava interessado em sair com os
outros Sleepy Hollow Boys, caçar fantasmas, ou o que
quer que estivessem aprontando. Ele não queria mais
ouvir sobre os filmes favoritos dela, as histórias que ela
queria escrever, e se recusava a falar com Kat sobre o
quanto ela queria ir para a faculdade. Talvez estivessem
juntos por tanto tempo que não havia mais assunto para
conversarem.
Enquanto olhava para o pôster de A Bela e a Fera,
refletiu sobre quantas vezes havia assistido ao filme.
Sentia-se como Bela, permanentemente presa num
universo antiquado e melancólico com uma fera. O fim
costumava animá-la; Bela enxergou o homem sob a
aparência amaldiçoada da Fera, estendeu a mão,
encontrou a bela alma dele e a resgatou para todos
verem. Já com Blake, ela achava cada vez mais difícil ter
aquele vislumbre da pessoa que amou tanto: o doce
menino que a protegeu, que participava de aventuras
com ela no Bosque de Sleepy Hollow, ou sentava-se
tranquilamente ao seu lado enquanto liam os livros
preferidos. Ela às vezes se perguntava por que ainda
estavam juntos tendo tão pouco em comum. Tentara
conversar com Blake sobre isso, mas ele desconversava
alegando que Kat havia mudado, que não sabia mais
como ser feliz, e ela se perguntava se ele tinha razão.
Kat não estava feliz. Talvez, se estivesse, Blake também
estaria, e as coisas voltariam a ser como eram.
Nesse momento, Kat ouviu o sino de bronze soar,
ergueu a vista e viu que era Isadora. Os longos cabelos
negros dela derramavam-se até os ombros, e ela usava
uma antiga combinação preta como vestido, por baixo de
camadas de peças compostas de um longo suéter de
renda, um casaco de veludo vintage com botões
prateados e um cachecol cinza e preto comprido, além
de botas pretas de cano alto que lhe chegavam à altura
do joelho. Trazia uma grande bolsa preta pendurada no
ombro e o celular na mão. Parou, tirou fotos dos
morcegos pendurados no teto e, então, deslizou o
telefone para dentro da bolsa. Quando levantou os olhos,
viu Kat, que sorriu para ela.
— Oi! Estou tão feliz por você ter me mandado
mensagem ontem à noite! — disse ela, enquanto
caminhava até onde Kat estava sentada. Kat não
conseguia parar de sorrir para Isadora.
— Estava preocupada que você estivesse aborrecida
comigo por causa de tudo o que aconteceu no cemitério
— explicou Kat. A luz do fogo destacava as manchas
douradas nos olhos castanhos de Isadora, e eles
pareciam assustadoramente belos; de repente, Kat sentiu
o rosto ficar quente, como se estivesse corando.
— Para ser sincera, eu é que estava com receio de que
você estivesse aborrecida comigo — confessou Isadora,
enquanto tirava o casaco e o apoiava sobre o encosto do
sofá de veludo vermelho, colocava a bolsa ao lado dela e
se sentava. — Espero não ter piorado as coisas. Eu sei
que você não precisa de mim para defendê-la, mas não
pude evitar. Os amigos de Blake estavam sendo
horríveis.
— Eu não estava aborrecida com você. Estou
aborrecida comigo mesma e com Blake. Desculpe se
descontei em você e concordei com o plano idiota de
conjurar Katrina. Não sabia que isso ia assustá-la tanto.
— Não se preocupe com isso. Já pediu café? O que tem
de bom aqui? — ela perguntou, procurando a carteira na
bolsa. Kat achou que Isadora parecia um pouco nervosa.
— Todo mundo bota fé no pumpkin spice latte, mas sou
o tipo de garota mais chegada num cappuccino. E, a
propósito, não estou aborrecida por você ter me
defendido. Achei até maneiro, na verdade — disse Kat.
Desejou estar sentada no sofá com Isadora.
— A espuma é grossa ou eles deixam tudo leitoso
como um café com leite? E estou feliz que você não
esteja com raiva de mim. Tenho a tendência de dizer o
que sinto mesmo quando não é apropriado — confessou
ela, encontrando a carteira. Tinha o formato de um livro
em que se lia Feitiços mágicos na lombada.
— Adorei sua carteira — Kat observou, tirando a dela
própria da bolsa. — Olhe! — Ela mostrou que tinha uma
quase igual, mas na dela estava escrito Histórias de
aventuras e trazia a imagem de um balão de ar quente.
Ambas riram, e Kat percebeu que agora também estava
tomada de nervosismo.
— Isso é fantástico! Então, a espuma é grossa? —
Isadora se levantou, a carteira na mão; parecia querer
um motivo para se levantar da mesa. Kat não entendia
por que as duas estavam tão nervosas.
— Ah, desculpe, sim. Não os bebo se não for assim. —
Kat notou que Raven as observava do balcão.
— Legal. Qual tamanho você quer? Peço no balcão? —
Tudo o que fazia era permanecer de pé ali, uma coisa
perfeitamente normal de se fazer, mas Kat adorava olhar
para ela. Parecia tão relaxada, tão segura de si mesma.
— Sim, mas eu ia pagar o seu — disse Kat, pegando a
bolsa.
— Não seja boba; já volto — disse Isadora, piscando os
belos olhos escuros.
Kat não entendia por que se sentia tão estranha; talvez
fosse porque tinha a sensação de que Isadora era
autêntica e não se furtava a manifestar opiniões,
enquanto Kat às vezes se sentia tímida demais para
compartilhar como se sentia (a menos que estivesse
discutindo com os pais). Qualquer que fosse a razão,
queria superar isso. Gostava de Isadora e queria
conhecê-la melhor; a última coisa que desejava fazer era
deixá-la se sentindo desconfortável por ser uma
completa esquisitona. Para se distrair, sacou o diário da
bolsa e começou a lê-lo. Viu uma sombra passar sobre
ela enquanto lia e pensou que Isadora já estava de volta.
Ergueu a vista e não viu ninguém ali. Não havia mais
ninguém no café, mas podia jurar que alguém estava
bem na frente dela. Sentiu um calafrio, embora estivesse
sentada bastante perto do fogo. O mesmo calafrio que
sentira no cemitério, mas não tão avassalador. Examinou
o salão, sentindo como se alguém a estivesse
observando e não pôde deixar de ter um pouco de medo.
— Ei, está tudo bem? Parece que viu um fantasma —
disse Isadora, sentando-se novamente no sofá. Kat
queria dizer que se sentia como se tivesse visto um, não
mais do que um brevíssimo vislumbre, mas sabia que
estava apenas agitada depois de tudo o que ocorrera no
cemitério. Isso sempre acontecia quando estava
estressada, todas as suas velhas ansiedades e medos
voltavam a se manifestar. Disse a si mesma que não
passava de uma ilusão de ótica. Fantasmas não existem.
— Raven disse que vai trazer nossas bebidas quando
terminar de prepará-las.
— Ela deve gostar de você, geralmente ela apenas
grita meu nome o mais alto que pode quando termina de
fazer o café, mesmo que só eu esteja aqui. Ela
literalmente é legal com todo mundo, menos comigo —
disse, rindo.
Isadora sorriu de um jeito atrevido.
— Ela provavelmente tem uma quedinha por você.
Isso nunca ocorrera a Kat.
— Ah, não sei. Acha mesmo? — perguntou Kat,
sentindo-se ainda mais nervosa e querendo mudar de
assunto. — Ela provavelmente tem uma quedinha por
você — rebateu, estudando Isadora. — Isso é um
cachecol do Poe? — O cachecol de Isadora trazia a
imagem de um corvo com excertos de “O corvo”, de
Edgar Allan Poe, impressos nele.
— É sim! Não me diga que você tem um também, mas
com frases de Jane Austen — disse ela, rindo. (O fato é
que Kat tinha mesmo, e quase o usou porque era um dia
frio, mas não queria que Isadora pensasse que ela era
bobinha.) — Não acho que Raven tenha uma queda por
mim; provavelmente, apenas gosta do meu cachecol.
Estava me contando que curte muito o Poe.
— Você já viu aquele vídeo de Vincent Price lendo “O
corvo”? É incrível — perguntou Kat, mudando mais uma
vez de assunto.
— Ai, meu Deus, eu amo esse vídeo! Vejo todos os
anos antes do Halloween. Amo o Vincent Price.
— Eu também! Eu também sempre escuto a gravação
de rádio original de A guerra dos mundos de Orson
Welles logo antes do Halloween — confessou Kat,
sorrindo. Ela nunca tinha conhecido alguém de sua idade
que adorasse esse tipo de coisa. Apesar do entusiasmo
dos Sleepy Hollow Boys por todas as coisas assustadoras,
não sabiam nada sobre terror clássico.
— Isso, porque foi ao ar pela primeira vez na noite
anterior ao Halloween! — acrescentou Isadora enquanto
Raven se aproximava com os cafés.
— Aqui está, senhoritas — disse ela, aparentando estar
mal-humorada. As duas garotas agradeceram e olharam
uma para a outra como se dissessem O que foi isso?,
enquanto ela se afastava.
— Acho que ela está com ciúmes — disse Isadora,
tomando um gole, os olhos de gato brilhando
alegremente.
— Como assim? — Kat não entendia por que aquela
garota a fazia se sentir tão nervosa.
— Deixe para lá. Conte-me o que você leu no diário de
Katrina até agora.
— Logo antes de você voltar, estava lendo sobre
Ichabod bisbilhotando a casa de Katrina, observando
quão rica sua família era. Muito revelador, não acha? —
disse Kat, rindo, mas Isadora não riu com ela. — Não
avancei muito nesse capítulo, só passei os olhos, mas
parece que o pai de Katrina levou Brom para o jantar.
— Mal posso esperar para ver o que sai disso — disse
Isadora, sorrindo, mas parecia distraída.
— Está tudo bem mesmo? Tem certeza de que não está
aborrecida comigo ainda pela noite passada?
— Não estou. É que eu preciso conversar com você
sobre uma coisa, e você não vai gostar…
— Eu sei, você odeia Blake e os amigos dele; estavam
se comportando feito uns idiotas na noite passada.
Podem ser muito esquisitos com pessoas de fora, você
sabe, pessoas que não são de Sleepy Hollow. Eles vão
superar isso.
— Espero que sim. — Mas Kat podia ver que isso ainda
a estava incomodando, ou pelo menos algo estava, mas
Isadora mudou de assunto. — Então, o que mais você leu
até agora? — ela perguntou, torcendo os pés para tirar
os sapatos e, em seguida, dobrando as pernas em cima
do sofá.
— Nada interessante ainda, apenas como Katrina e
Ichabod se conheceram. Os pais dela estão realmente
dispostos a fazê-la se casar com Brom, mas ela não está
interessada nisso, e o pai odeia Ichabod. A mãe dela
parece mais legal quanto a tudo, até mesmo
incentivando o interesse em Crane, acho que
principalmente porque ela tem medo de que Katrina
rompa com Brom e queira deixar Sleepy Hollow.
— Ichabod é tão esquisito quanto parece na lenda? —
quis saber Isadora, ainda distraída. Era visível que tinha
outra coisa a preocupando, mas Kat não queria
importuná-la. Isso era algo que Kat vinha tentando
melhorar. Não raro, podia dizer quando alguma coisa
incomodava alguém, ou quando uma pessoa não estava
sendo sincera, e odiava que mentissem para ela.
Descobriu que, na maioria das vezes, quando perguntava
a alguém qual era o problema, essa pessoa dizia “nada”,
e então ela sentia que a pessoa estava mentindo quando
na verdade o que queria dizer era que não desejava falar
no assunto. Ela e Blake brigavam por causa disso o
tempo todo. Kat sempre sabia quando o garoto estava
escondendo algo dela, e ele mentia não importava
quantas vezes ela perguntasse, até que a garota
acabava se sentindo maluca. Não queria dar a Isadora
motivo para mentir, mesmo que fosse uma mentira
inofensiva.
— Crane é um tanto esquisito. Parece superpomposo
para mim, como se estivesse sempre fingindo —
comentou Kat, rindo. — Mas também é muito engraçado,
sempre saudando com o chapéu, cheio de cumprimentos
afetados e declarações solenes, mas acho que as
pessoas eram assim naquela época.
— Eu me pergunto: por que Katrina gostava tanto dele?
— questionou Isadora, aparentando imaginar o Ichabod
Crane que Kat acabara de descrever.
— Porque ele era novo na cidade e totalmente
diferente de todos que ela conhecia. Os dois tinham
muito em comum — explicou ela, sentindo as bochechas
esquentarem de novo. — Ela não conhecia mais ninguém
que amasse as mesmas coisas que ela. — Kat olhou para
o diário, perguntando-se se Isadora percebera que ela
estava falando tanto sobre elas duas quanto sobre
Katrina e Ichabod.
— Meio que como nós duas. — Isadora sempre falava
com autoridade. Kat nunca tinha ouvido a própria voz
soar tão sumida, como se não estivesse segura de si
mesma.
— Quase exatamente como nós — corrigiu Kat,
erguendo a vista de novo para encontrar os olhos de
Isadora. Kat ficou desconcertada com o quanto gostava
daquela garota, e tinha certeza de que o sentimento de
Isadora era recíproco. Mas o que isso significava? Estava
apenas animada por ter uma nova amiga, ou era algo
mais?
— Quer se sentar no sofá comigo para lermos juntas o
que vem a seguir? — Isadora perguntou, tirando a bolsa
para lhe dar lugar. E Kat soube no momento em que se
sentou ao lado dela que gostava daquela garota mais do
que como apenas uma amiga.

3 “Corvo” em inglês. (N.T.)


OITO

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

O CONV IDADO INESPERADO PARA O JANTAR

Dirigi-me, nervosa, até a biblioteca e encontrei


Ichabod parado perto da vitrine de mamãe,
admirando os enfeites ali abrigados. “Boa noite, sr.
Crane”, eu disse, pensando como ele parecia
elegante em seu terno preto e imaginando o que
aquela noite traria.

— Boa noite, srta. van tassel. tive o prazer de jantar em muitas


residências desde que cheguei a Sleepy Hollow, mas
nenhuma tão formidável quanto esta. Atrevo-me a dizer
que sua família é a mais rica do condado — comentou
ele, olhando para as requintadas estatuetas, caixas de
rapé de prata e castiçais na vitrine.
— Não faço ideia — disse Katrina, sabendo muito bem
que de fato eram. Não se comentava sobre essas coisas,
e ela ficou chocada que o sr. Crane falasse sobre isso em
voz alta.
— Perdoe-me por minha vulgaridade, srta. Van Tassel.
Sei que não se devem mencionar tais coisas. — Ela
observou enquanto ele passava a mão pelos galhos de
carvalho esculpidos na escrivaninha de madeira
finamente trabalhada perto do recanto de leitura. Katrina
não dava o devido valor àquele aposento; crescera
tirando livros daquelas prateleiras e sentando-se no
banco da janela para ler por horas a fio ou apenas
fitando o intrincado trabalho em madeira, a mente
vagando por florestas escuras com carvalhos que
estavam vivos e guardavam os próprios segredos. Nunca
tinha pensado em como deveria ser ver aquele aposento
pela primeira vez.
— Não precisa se desculpar, sr. Crane. Meu bisavô fez
todos esses entalhes. — Katrina não sabia por que, mas
de repente se sentiu nervosa. Durante toda a semana,
Ichabod esteve distante. Claro, ela o conhecera na
estrada, e eles tiveram uma conversa esplêndida, mas
passara mais tempo pensando nele do que de fato na
companhia dele enquanto aguardava por aquela noite.
Havia criado a própria versão de quem ele era e se
perguntou de quem gostaria mais, se do verdadeiro sr.
Crane ou daquele que havia imaginado.
— Por favor, queira chamar-me de Ichabod — ele disse,
com um floreio exagerado que fez parecer que fizera
uma mesura com um chapéu invisível. Katrina soltou
uma risadinha. Essa era uma das coisas que achava
encantadoras nele, embora tivesse certeza de que o pai
a detestaria. Ele odiava quando alguém “bancava o
exibido”, como dizia, mas sentia que esse aspecto da
personalidade do sr. Crane lhe era natural e achava isso
revigorante.
— Nunca conheci um homem igual a você, Ichabod —
confessou ela, virando-se rapidamente para ver quem
entrava na sala. Era Brom, e ele abriu caminho como um
grande touro, ainda sujo de trabalhar nos campos o dia
todo. Estava acompanhado pela mãe de Katrina, que
tinha uma expressão horrorizada no rosto, e não apenas
porque ele havia deixado um rastro de lama nos tapetes
finos.
— Katrina, olha quem seu pai trouxe para o jantar —
disse ela, parecendo bastante incomodada. Katrina podia
dizer pela expressão no rosto da mãe que Regina estava
tão surpresa quanto ela por ver Brom. Isso vai ser um
desastre, pensou. — Muito bem, Brom, você sabe que
não deve entrar na minha biblioteca com botas sujas.
Suba as escadas e lave-se antes do jantar. — Regina
estava com as mãos nos quadris, mas os olhos de Brom
estavam fixos em Crane. — Venha agora, chispe daqui. E
diga a Baltus para lhe emprestar uma de suas belas
camisas. Lamento que ele não tenha lhe contado que
estávamos arrumados para o jantar esta noite.
— Bem, se espera que eu volte parecendo esse dândi,
ficará desapontada — disse Brom, a figura corpulenta à
porta, sem tirar os olhos de Crane.
— Bem, acho que o sr. Crane está bonito — disse
Katrina, lançando a Brom um olhar de reprovação.
Odiava que ele já estivesse arruinando a noite. A ideia de
alguém não ser de Sleepy Hollow ou agir de forma
diferente ser de alguma maneira desculpa para tratá-lo
assim era incompreensível para Katrina. Sabia que já
teria bastante trabalho com o pai, mas agora também
tinha que lidar com Brom, estava para lá de aborrecida e
desejou que eles pudessem simplesmente cancelar o
jantar.
— Quando Baltus me contou que você estava
alvoroçada por causa desse professor presunçoso, acho
que ele não estava brincando. — Brom lançou a Crane
um olhar furioso. A noção de que “forasteiros” deveriam
ser motivo de desconfiança era estranha a Katrina. A
jovem achava pessoas que não eram de Sleepy Hollow
interessantes e ficou feliz que ela e a mãe pensassem da
mesma forma, porque estava claro que Regina também
estava ficando frustrada com o comportamento de Brom.
Katrina teve que admitir, no entanto, que era provável
que a antipatia de Brom pelo sr. Crane fosse mais
profunda do que o simples fato de ele ser novo na
cidade.
— Agora, chega disso, Brom! — Regina interveio,
apontando para a porta e conduzindo-o para fora da sala.
— Por favor, perdoe Brom, sr. Crane, e, por favor, não
dê ouvidos ao que ele disse sobre o meu pai. Estou certa
de que ele não disse tais coisas. — Tinha certeza de que
seu rosto estava tão escarlate quanto a faixa do vestido.
E sabia que o pai provavelmente havia dito aquelas
coisas. Katrina estava mortificada. Crane tentou ignorar
aquilo como se não se incomodasse, mas a risada dele
foi irônica.
— Conheci minha cota de nossos vizinhos, srta. Van
Tassel, e embora eu tenha achado as mulheres muito
agradáveis, descobri que os homens são, como podemos
dizer, um pouco arredios — disse ele, rindo novamente,
dando um gole no xerez e, em seguida, erguendo o cálice
contra a luz para poder admirar o adorável cristal
lapidado.
— Sinto muito, sr. Crane. Estou um pouco
envergonhada, devo dizer — Katrina comentou, ainda
com as bochechas vermelhas.
— Não me ofendo com os comentários deles, cara
senhorita; eu os encaro como um elogio. É compreensível
que se sintam intimidados pelo meu intelecto e minha
vivência. Não tem do que se desculpar, doce Katrina.
Espero poder chamá-la de Katrina? — ele perguntou,
pegando a mão dela e beijando-a ousadamente justo
quando Regina ia entrando na biblioteca.
— Katrina, sr. Crane, o jantar está pronto, por favor,
juntem-se a nós na sala de jantar. Agora! — acrescentou
ela secamente.
— Posso acompanhá-la até a sala de jantar, estimada
dama? — Crane estendeu o braço para Katrina, mas
Regina não permitiu.
— Ah, isso não será necessário, sr. Crane. O senhor
primeiro — disse Regina, conduzindo-o adiante e para
fora da sala à frente delas para que pudesse conversar
com Katrina sozinha em voz baixa.
— Onde você estava com a cabeça para deixar um
jovem que você mal conhece beijar sua mão assim? Meu
Deus, Katrina, você tem sorte que fui eu quem entrou e
não seu pai.
Katrina não sabia o que dizer. Também não sabia onde
estava com a cabeça. Havia algo em Crane que a
deixava completamente sem chão.
— Desculpe, mamãe, juro que ele estava sendo um
cavalheiro. O sr. Crane estava me assegurando de que eu
não precisava pedir desculpas pela grosseria de Brom.
Regina balançou a cabeça.
— Não sei o que seu pai estava pensando ao convidar
Brom. Bem, eu sei, mas não ligue. Vamos tentar tirar o
melhor proveito da noite. Oh, meu Deus, estou ouvindo o
seu sr. Crane lá na sala de jantar falando com seu pai e
Brom. É melhor nos apressarmos e ajudarmos o pobre
coitado. — Regina acelerou o passo, e Katrina a seguiu
com agilidade.
Katrina sussurrou:
— Ele não é meu sr. Crane! — Mas quando Katrina e a
mãe entraram na sala de jantar, descobriram que
Ichabod até que estava se saindo bem, mesmo que
parecesse ter sido apanhado entre dois touros que
decidiam qual estriparia primeiro o pobre homem com os
chifres.
— Quer dizer que você é o sr. Crow, o novo professor;
então, está aqui para ensinar nossos meninos de Sleepy
Hollow a escrever e ler? — inquiriu Baltus, parado em seu
lugar habitual perto da lareira, prestes a acender o
cachimbo.
— Sim, sr. Van Tassel, eu disse isso quando nos
encontramos na Sleepy Hollow Road — respondeu Crane
com um sorriso.
Baltus acendeu o cachimbo com um fósforo e depois
entregou o fósforo a Brom, que estava tirando o
cachimbo do bolso do paletó. Eles mais pareciam
suportes de livros, flanqueando cada lado da lareira,
duas versões do mesmo homem, um jovem e outro de
meia-idade. Não havia ocorrido a Katrina até aquele
momento o quanto Brom parecia com seu pai, tanto na
aparência quanto na personalidade.
— Aqui está, meu garoto — disse o homem corpulento.
— Obrigado, Baltus — agradeceu Brom, parecendo
muito à vontade na casa dos Van Tassel. — E quanto a
você, Crane? Quer se juntar a nós para fumar antes do
jantar?
Crane gesticulou com a mão como se estivesse
afastando um incômodo.
— Não, não, senhor. Não me atrevo a ofender as damas
enchendo esta adorável sala de jantar com mais fumaça
do que o necessário. — Ele sorriu para Regina, e Katrina
teve certeza de que ele estava tentando compensar o
erro de beijar sua mão.
— Sim, vão fumar lá fora, vocês dois — disse Regina,
lançando a ambos olhares de reprovação. — Vou mandar
Katrina buscá-los quando o jantar estiver na mesa.
— Venha, sra. Van Tassel, deixe-me ajudá-la. — Crane a
escoltou até a cozinha, deixando Katrina sozinha com o
pai e Brom, dando a ela a chance de esclarecer as coisas
com eles.
— O que está fazendo aqui, Brom? E, papai, por favor,
pare de chamá-lo de senhor Crow, você sabe muito bem
que o nome dele é Crane! Agora, ou vocês dois começam
a se comportar ou podem ficar do lado de fora na
varanda enquanto os civilizados jantam em paz. — Desde
quando você fala assim, Katrina? — disse Brom.
— Depois de uma noite com esse idiota magricela, está
falando como ele? Você não é assim! — Na verdade,
Katrina estava sendo exatamente ela, mas de alguma
forma havia perdido essa parte de si mesma nos últimos
anos, e passar tempo com um artífice das palavras como
Crane a fez se lembrar.
— Você não sabe como eu sou, Abraham Von Brunt! —
disse Katrina, fechando a porta da frente atrás dos dois
com um grande estrondo. Já estava cheia de ambos.
Ela mal sabia o que fazer. Estava lívida. Não podia
acreditar que o pai convidara Brom para jantar. Às vezes,
imaginava se seu pai não teria preferido ter um filho,
porque ele sempre parecia ficar mais feliz na companhia
de Brom. Dava para ouvir os dois rindo do outro lado da
porta, e ela se perguntou o que era tão engraçado. Ficou
parada ali por um tempo se recompondo antes de se
dirigir até a cozinha para ajudar a mãe e Ichabod, mas,
antes de chegar, os dois saíram de lá com a refeição da
noite, cada um equilibrando vários pratos e tigelas.
— Ichabod, querido, por favor, coloque isso na mesa
enquanto falo com Katrina — Regina disse, prosseguindo,
uma vez que ele estava no corredor e fora do alcance da
voz. — Seu sr. Crane é um rapaz muito ajuizado, lidando
calmamente com seu pai e Brom desse jeito e segurando
as pontas. Gosto muito desse jovem. — Ela sorriu para a
filha e acrescentou: — Há mais algumas coisas no balcão
que não conseguimos trazer, querida; você poderia, por
favor, pegá-las e levá-las para a sala de jantar?
— Claro, mamãe. Papai e Brom ainda estão lá fora,
fumando. E ele não é meu sr. Crane. Ainda não. — Regina
suspirou. Katrina estava feliz pela mãe ter aprovado
Ichabod. Estava preocupada que ela pudesse guardar
ressentimento dele por causa do beijo, mas parecia que
ela havia se esquecido disso completamente, e toda a
sua ira estava direcionada a Brom e o marido.
— Vou avisá-los de que o jantar está quase servido,
mas não antes que você tenha um momento para
conversar com o seu sr. Crane — disse ela com uma
piscadela. Katrina não podia acreditar que a mãe
estivesse sendo tão atrevida e tão aberta a respeito de
Ichabod. Ou talvez fosse porque estava zangada com o
pai por trazer Brom para o jantar e essa fosse a maneira
de a mãe alfinetá-lo. Ela não sabia dizer, mas não
esperava isso. Esperava que a mãe criticasse
severamente o sr. Crane por receio de que ela rejeitasse
Brom, mas, por sua vez, Katrina e Brom não estavam
oficialmente noivos. Sempre se presumiu que fossem se
casar, e Katrina achava que isso fosse uma das coisas
que mais a irritavam, a suposição de todos de que se
casaria com ele sem se preocuparem com o que ela
queria. Parecia um acordo tácito, e Brom achou que não
precisava mais se esforçar. Era tão revigorante receber a
atenção do sr. Crane, que parecia decidido a tentar
conquistá-la…
Bem… ela pensou antes de entrar na sala de jantar,
esta deve ser uma noite interessante.
NOVE

O FANTASMA NO CAFÉ

Kat e isadora fizeram uma pausa na leitura, a mesa agora tomada


por xícaras de café, e as duas sentadas juntas no sofá de
veludo antigo, sob o olhar de aprovação de Bela e sua
Fera, que pareciam encará-las de cima da lareira. Já
estavam lendo havia algum tempo, fazendo pequenas
pausas apenas para pegarem café com a mal-humorada
Raven, que parecia ficar cada vez mais irritada quanto
mais tempo as garotas permaneciam lá.
— Ela não pode estar brava porque estamos ocupando
espaço; não tem mais ninguém aqui — observou Isadora,
sorrindo.
— Pois é! Todas aquelas gorjetas no pote de biscoitos
de morcego dela são nossas. — Kat tentou não gargalhar;
não queria magoar os sentimentos de Raven, mesmo que
ela as estivesse olhando com cara feia do outro lado do
salão.
— Bem, nós duas sabemos por que ela está realmente
brava. Ela gosta de você e está frustrada por você estar
aqui comigo.
Kat balançou a cabeça.
— Isso não faz o menor sentido. Ela sempre se
comportou de forma muito estranha perto de mim.
Isadora parecia uma esfinge, a guardiã dos segredos e
da sabedoria, enquanto terminava a última xícara.
— É por isso que acho que ela gosta de você, tolinha.
Falando de pessoas que agem de forma estranha, sabe
de uma coisa? Crane não parece tão terrível para mim. E
fiquei surpresa pela mãe de Katrina gostar tanto dele.
— Mas ele não parece bastante convencido? Como se
ele fosse melhor do que todos os outros?
— Talvez seja assim que Crane age quando está
nervoso. Baltus e Brom estavam sendo uns babacas
completos — comentou Isadora.
— Isso é verdade. Brom é o pior. Suponho que entre os
dois eu fosse escolher Ichabod também.
— Credo! Todo mundo sabe que Brom era a melhor
escolha entre os dois. — Kat e Isadora ergueram a vista e
viram Blake com uma mulher atrás dele. Kat estava com
os olhos cansados de ler, por isso não conseguiu
distinguir quem era a mulher, mas dava para ver que ela
não parecia feliz. Estava embaçada, como uma antiga
fotografia fora de foco. Kat piscou algumas vezes
tentando clarear a visão, e a mulher desapareceu.
— Onde está aquela mulher que estava com você? —
Kat enroscou os braços ao redor de si. Sentira o mesmo
calafrio de quando pensou ter visto alguém se aproximar
para conversar com ela no momento em que Isadora
pedia o café delas mais cedo. Aquilo estava indo longe
demais, ver aquela mulher em todos os lugares. Kat
começava a ficar preocupada. Um calafrio horrível se
espalhara por todo o seu corpo. Talvez Blake tivesse
razão e ela estivesse perdendo a cabeça, esquecendo as
coisas, vendo aquela mulher na noite anterior e hoje no
café. Ela não era assim.
— Que mulher? — Ele se virou, em pânico e confuso,
mas recuperou a compostura quase tão rapidamente
quanto a perdera. Era raro Blake perder a tranquilidade,
por isso a reação surpreendeu Kat. — Para alguém que
não acredita em fantasmas, você com certeza parece se
assustar com eles, Kat — disse Blake.
— Olha só quem fala, correndo para fora do cemitério
ontem à noite, fugindo de um cavalo! O que você teria
feito se fosse mesmo um fantasma? — Kat sentiu-se mal
por dizer isso na frente de Isadora, já que o cavalo a
assustara também. Mas não pôde evitar, ainda estava
com raiva de Blake, embora isso não parecesse
incomodar Isadora nem um pouco.
— É, pensei que os Sleepy Hollow Boys fossem
corajosos caçadores de fantasmas — observou Isadora,
rindo, mas então parou abruptamente para perguntar: —
Cara, o que aconteceu com seu rosto? — Kat não havia
reparado que o rosto de Blake estava arranhado e
machucado, como se ele tivesse brigado ou algo assim.
— Cala a boca, Crow, ninguém estava falando com
você!
Kat apenas balançou a cabeça. Ele estava sendo tão
infantil com Isadora quanto Brom havia sido com
Ichabod, e ela achava isso ridículo.
— Você obviamente não ficou sabendo o que
aconteceu ontem à noite — ele disse para Kat. — Você
nem perguntou se estou bem. Quero dizer, olhe para o
meu rosto.
Kat odiava quando ele ficava assim, mas, francamente,
Blake andava assim sempre nos últimos tempos, e ela
havia chegado ao limite, ainda mais depois da noite
anterior. Era o fim, não aguentava mais; só não sabia
como contar a ele. Em vez disso, perguntou:
— O que aconteceu com o seu rosto?
Ele apenas deu de ombros.
— Como se eu fosse lhe dizer na frente da Crow. O que
vocês duas estão fazendo parecendo tão íntimas, afinal?
— Kat percebeu que Blake não ia contar o que tinha
acontecido enquanto Isadora estivesse lá, e não havia
sentido em perguntar outra vez. No passado, teria
perguntado, mas não tinha mais energia para lidar com
ele. Estava cansada. Houve um tempo em que algo
assim a impediria de ficar com raiva dele e seu foco
mudaria para ter certeza de que ele estava bem, e ela
quase se sentiu culpada por estar tão farta desse tipo de
teatrinho que nem ao menos se importava com o que
acontecera. Blake estava vivo e agindo como o idiota de
sempre. Ele estava bem.
— Estávamos lendo o diário de Katrina. — Kat se
afastou de Isadora, sentindo-se subitamente incomodada
e um pouco culpada.
— Por que vocês fariam isso? — ele questionou
desdenhosamente. — Por que ler um diário antigo
qualquer? Parece um tédio. — Parecia um pouco nervoso,
o que surpreendeu Kat; ele sempre agia como se nada o
perturbasse, a menos, é claro, que estivesse zangado
com Kat, mas ainda assim ele geralmente mantinha uma
disposição de ânimo tranquila. Era algo a respeito dele
que ela odiava, na verdade. Kat às vezes o chamava de
Vulcano ou sr. Spock, porque Blake raramente mostrava
as emoções, se é que mostrava. Era como um distintivo
de honra para ele, algo de que se orgulhava. Quando
eram mais jovens, ela admirava que ele estivesse
sempre calmo, não importava o que acontecesse, mas
agora parecia que ele afirmava arrogantemente essa
atitude para ela, como se fosse superior e ela, um caos
emocional. Blake agia como se fosse o homem forte que
devia manter a cabeça no lugar pelos dois, quando na
maioria das vezes ela estava reagindo a algo que ele
havia feito e a deixara emotiva. Então, naqueles últimos
tempos, Kat se viu sem compartilhar com ele como se
sentia, sem lhe dizer quando ele magoava seus
sentimentos, ou quando ela estava triste ou preocupada
com o futuro dela em Sleepy Hollow, por medo de como
ele reagiria. Era solitário, porém melhor do que Blake
menosprezá-la por simplesmente reagir à forma como
ele a tratava.
— Ei, Crow, posso falar com minha namorada sozinho
por um minuto? — Kat olhou para ele e se pegou
pensando: Não serei sua namorada por muito tempo.
— Blake, não seja rude. Estou aqui com Isadora; você
não pode simplesmente mandá-la embora. — Ela não
queria que Isadora partisse e não achava que aquele
fosse o lugar para romper o namoro com Blake.
— Não, está tudo bem. Eu tenho que voltar para casa
mesmo. — Isadora juntou suas coisas na bolsa e recolheu
as xícaras de café vazias.
— Tem certeza? — Kat não estava pronta para dizer
adeus.
— Totalmente. Me mande uma mensagem mais tarde
— ela disse com um sorriso triste enquanto se dirigia ao
balcão, deixando as xícaras vazias com Raven.
— Então, você e Crow são, tipo, amigas agora? —
perguntou Blake sentando-se ao lado de Kat.
— Somos. Pelo menos, acho que sim — ela respondeu,
vendo o rosto dele mais claramente agora que ele estava
sentado ao seu lado no sofá. — O que aconteceu com o
seu rosto? Você brigou com alguém?
— Não, não briguei com ninguém. Aquele cavalo me
perseguiu, Kat, e havia alguém montando nele. Ele me
jogou para fora da estrada e eu caí em uma ravina. Achei
que ele fosse me matar.
— Tem certeza de que você não caiu quando estava
correndo? — Kat estava certa de que ele mentia, mas
então se lembrou de também ter visto alguém no cavalo,
uma mulher loura.
— Não, Kat, eu vi alguém. Isso me apavorou. — Kat
normalmente percebia quando Blake mentia, mas dessa
vez não sabia o que pensar. — Você entende o que isso
significa, Kat. O Cavaleiro Sem Cabeça é real. Ele é
mesmo real. Ele tentou me matar.
Kat se afastou dele.
— Você está mentindo — exclamou ela, o que o fez
estremecer. Ele parecia incomodado, encarando o diário
de forma estranha, quase como se estivesse com medo
dele.
— Por que não acredita em mim?
— Para ser sincera, porque você está sempre
mentindo, Blake. Acho que você está apenas tentando
me enganar para eu não ficar com raiva de você pela
forma como me tratou ontem à noite.
— Tudo isso é por causa daquela bruxa da Crow, não é?
O que ela tem falado sobre mim?
— Isso não tem nada a ver com Isadora. Por que você
não gosta dela, afinal? — Kat perguntou, colocando o
diário de volta na bolsa. Blake ainda olhava para ele.
— Ela é uma aberração. Está sempre falando sobre
coisas estranhas na aula, como todas aquelas referências
e filmes antigos. Ninguém além dos professores sabe do
que ela está falando. — Isso fez Kat rir.
— Então, ela é como eu — disse, olhando-o
diretamente nos olhos.
— Um pouco, sim, e ela está sempre agindo como se
fosse melhor do que todos, se exibindo para os
professores. — Blake estava encarando a bolsa dela
enquanto falava, quase como se estivesse vigiando para
ver se o diário ia saltar para fora por conta própria.
— Qual é o problema, Blake? Você está olhando para
minha bolsa desde que coloquei o diário de Katrina
dentro dela.
Ele olhou para Kat como se ela tivesse enlouquecido.
— Do que está falando? Eu não me importo com o
diário de Katrina.
— Tanto faz. — Ela colocou a bolsa no colo. Queria uma
barreira entre eles; tinha a estranha sensação de que
precisava de algo para protegê-la. Sentia-se presa ali
conversando com ele. Queria ir para casa.
— Quem deveria estar zangado com a noite passada
sou eu — continuou Blake. — Você me fez parecer muito
estúpido na frente dos meus amigos.
Kat zombou.
— Fiz você parecer estúpido? Você tentou me fazer
pensar que eu havia concordado em ajudar você e seus
amigos idiotas a conjurar Katrina, quando sabe que eu
nunca faria algo assim.
— Eu estava zangado, Kat. Você está sempre fazendo
coisas assim, me rejeitando, esquecendo quando fizemos
planos, e agora age como se nem se importasse que eu
tenha sido atacado pelo Cavaleiro Sem Cabeça. Isso me
faz achar que você não quer mais ficar comigo.
— Acho que não quero.
Kat não podia acreditar que dissera isso em voz alta. Já
vinha sentindo que deveriam terminar havia um bom
tempo, mas não tinha coragem de encarar isso.
— Por quê? — Ele parecia realmente magoado e
confuso, talvez até à beira das lágrimas. Ela só o tinha
visto chorar uma vez antes, quando tentara terminar o
namoro no passado, mas ele a convenceu a desistir. Não
ia deixá-lo fazer isso dessa vez. Não ia ouvi-lo dizer que
era ela que não sabia ser feliz, que tudo era culpa dela. E
não ia acreditar que Blake agora ia mudar porque ele
sempre disse que mudaria e nunca mudou. Dessa vez,
Kat estava realmente dando um basta. Já estava cheia
daquilo.
Queria dizer que era porque na maioria das vezes ele a
ignorava. Fazia se sentir estúpida e menosprezada.
Duvidar de si mesma e questionar sua sanidade. Queria
lhe contar sobre todas as vezes em que o pegou
mentindo, mas não se dera ao trabalho de dizer nada
porque sabia que ele negaria. Em vez disso, concentrou-
se em algo que sabia que ele não podia negar. Algo que
ele não podia distorcer ou usar contra ela.
— Não temos nada em comum, e nunca fazemos as
coisas que eu gosto de fazer. — O argumento soou fraco
para ela própria assim que saiu de sua boca, mas isso
também era parte do problema.
— Passamos a nossa infância fazendo as coisas que
você gostava, Kat.
— Achei que você também gostava de fazer aquelas
coisas.
— Eu gostava; aí, eu cresci.
— Quer saber de uma coisa, não quero nem falar com
você. Vá lá farrear com os Sleepy Hollow Boys porque
todos nós sabemos que eles não são nada infantis. — Ela
apanhou a bolsa, passou feito um foguete por Raven e
bateu a porta atrás de si. O sino de bronze ressoou tão
alto que ela teve certeza de que tinha acabado de
acordar todos os fantasmas de Sleepy Hollow.
DEZ

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

A LENDA DE SLEEPY HOLLOW

Depois do fatídico jantar com minha família, Brom e


o sr. Crane, a reunião se deslocou para o solário, que
servia como nossa sala de estar. Acomodamo-nos em
poltronas ao redor da grande lareira de pedra, que
ocupava a maior parte da única parede do aposento
que não era inteiramente composta de painéis de
vidro.
Lá fora, dava para ver as silhuetas recortadas das
árvores no bosque de carvalhos. Havia uma nova
friagem na atmosfera que significava que a Véspera
de Todos os Santos estava se aproximando, e minha
imaginação despertou com imagens de fantasmas
esvoaçando por entre os carvalhos.

A mãe de katrina trouxe chocolate quente com conhaque e


tortinhas abertas de abóbora para a sobremesa e, pela
primeira vez naquela noite Katrina estava se sentindo
completamente à vontade sentada na penumbra,
observando o fogo tremeluzir e crepitar. Ela imaginou
mais noites como aquela na companhia de Ichabod. Mal
podia esperar para ver toda a propriedade brilhando com
abóboras iluminadas. Sonhava acordada em dançar com
ele no Baile da Colheita e depois beijá-lo sob o céu
noturno salpicado de estrelas.
— No que você está pensando, Katrina? — perguntou
Crane, que estava sentado corajosamente ao lado dela
no sofá de dois lugares, deixando Brom amuado na
cadeira de balanço de madeira ao lado da lareira em
frente a eles. Ele se balançava em uma sucessão de
impulsos curtos e violentos, indicando a Katrina que, por
dentro, estava furioso. O jantar fora como ela esperava.
Seu pai e Brom provocaram Ichabod, e ele se esquivou
dos ataques como um exímio espadachim, ou melhor,
como um artífice das palavras, dando um baile nos dois,
divertindo Katrina e sua mãe.
— Eu estava pensando no nosso Baile da Colheita de
Outono na Véspera de Todos os Santos — ela disse
animadamente, imaginando dançar com Crane no
bosque de carvalhos entre as luzes cintilantes das
lanternas.
— Katrina, é melhor você decidir que fantasia gostaria
de vestir este ano para dar tempo de eu costurá-la —
disse a mãe de Katrina. Ela e Baltus estavam em seus
lugares favoritos, também de frente para a lareira, onde
Regina havia depositado o bule de chocolate quente ao
lado do fogo para mantê-lo aquecido.
— Ah. É um baile de máscaras, então? — quis saber
Crane, tentando manter o olhar fixo em Regina, pois cada
vez que fazia contato visual direto com Katrina, Baltus o
fulminava com os olhos.
— Sim, é uma das nossas tradições favoritas —
explicou Regina, despejando mais chocolate quente na
xícara de Baltus. — É o evento mais aguardado do ano,
atrevo-me a dizer.
— Não é um baile de máscaras, seu imbecil! — Brom
exclamou tão alto que Baltus se sobressaltou, fazendo-o
cuspir o chocolate quente. Regina revirou os olhos para
Brom enquanto entregava um guardanapo para o
marido, rindo um pouco consigo mesma e voltando a se
sentar.
— Certamente soa como um baile de máscaras para
mim — afirmou Crane com uma expressão de confusão
no rosto.
— Bem, não vou usar um traje de gala e máscara! O
que acha que eu sou, uma mulherzinha? Nós usamos
fantasias: fantasmas, ghouls, lobisomens e bruxas. Nós
nos vestimos como quase qualquer coisa, exceto, é claro,
o Cavaleiro Sem Cabeça. Mas não é um baile de
máscaras! — Seu tom era de escárnio. Esse era
exatamente o tipo de coisa que mais irritava Katrina em
Brom, falar como se ele fosse a autoridade em um
assunto quando, na verdade, sabia muito pouco.
— Foi isso que Ichabod quis dizer, bobalhão. É isso que
significa baile de máscaras, usar disfarces, fantasias —
disse Katrina, balançando a cabeça. Em todas as
tentativas de Brom de fazer Ichabod se sentir estúpido
ou deslocado naquela noite, ele próprio só conseguiu
parecer tolo e ignorante.
A cada palavra proferida, Brom despertava mais
intensamente o interesse de Katrina por Ichabod. Claro,
Brom era um homem forte e bonito — quase todas as
mulheres de Sleepy Hollow ficariam felizes em tê-lo como
marido e criar sua prole de filhos barulhentos. Era a
personificação de perfeição de Sleepy Hollow, um
homem trabalhador e dedicado, muito parecido com o
pai de Katrina. Parecido quase que demais com ele. Só
que o pai dela amava e respeitava Regina. Dava-lhe o
devido valor, e parecia que eles tinham coisas em
comum e compartilhavam interesses. O pai nunca
tratava a mãe com superioridade ou menosprezava as
paixões dela e, embora alguns dos ideais de Baltus
fossem antiquados, isso era de se esperar de alguém de
sua geração. Brom, por sua vez, não tinha outra desculpa
senão a falta de imaginação.
— Além disso, Brom, qualquer um pode usar um traje
de gala ou um disfarce; não só mulheres. Não seja tão
obtuso o tempo todo. — Ela e Brom estavam se
distanciando havia algum tempo, mas suas diferenças e
quão pouco tinham em comum ficavam ainda mais
evidentes na companhia do sr. Crane.
— É verdade, Brom. Vestir-se diferente do próprio
gênero é muito mais antigo do que a maioria imagina.
Veja Mary Read, a grande pirata, por exemplo. Ela se
vestia como um homem — exemplificou Crane,
rapidamente desviando seu olhar de Brom para Katrina.
Ela ficou impressionada por ele conhecer Mary Read. Ela
era obcecada por mulheres piratas e não tinha com
quem conversar sobre elas, até aquela noite.
— Ah! Li sobre ela — disse Katrina. — Ela é tão
interessante! Você sabia que às vezes ela atendia pelo
nome de Mark Read, e havia rumores de que navegava
muito perto daqui? Alguns acham que enterrou parte de
seu tesouro em Sleepy Hollow Hills, mas duvido que seja
verdade. Por que um pirata enterraria o tesouro onde
qualquer um pudesse encontrá-lo?
Katrina adorava que Ichabod parecesse genuinamente
interessado no que ela estava falando.
— Ah! Tive uma esplêndida ideia. Talvez eu me vista
como ela para o baile! — Katrina exclamou animada.
Estava tão feliz por haver alguém com quem
compartilhar essas coisas, alguém que realmente
prestasse atenção. E justo quando Ichabod estava
prestes a responder, Baltus pigarreou. Todos olharam em
sua direção. Ele não parecia satisfeito. Katrina não sabia
se era porque estavam falando sobre piratas notórios ou
se era porque o plano de convidar Brom para jantar só
conseguira tornar Crane mais atraente. Seja lá o que for
que Baltus pensava, o fato era que estava bastante mal-
humorado. Ele tomou o último gole do chocolate quente
e bocejou enfaticamente. Katrina sabia o que isso
significava. Era hora de dizer adeus ao sr. Crane.
— Está ficando muito tarde; talvez eu devesse mandar
uma carruagem levar o sr. Crow de volta à cidade. Não
gostaria que ele fosse apavorado pelo Cavaleiro Sem
Cabeça sozinho na Sleepy Hollow Road — disse Baltus
com uma piscadela para Brom.
Katrina estremeceu. Esperava que o pai e Brom
houvessem desistido das implacáveis provocações ao sr.
Crane.
— Ah, Baltus, não fale assim — Regina o repreendeu.
Mas os dois homens pareceram se deliciar quando os
olhos de Crane se arregalaram de espanto, talvez até de
medo. Embora Regina permanecesse calma e educada
na superfície, Katrina podia dizer que ela estava
chegando ao seu limite, e sabia pela expressão no rosto
da mãe que o pai ia levar uma bronca mais tarde. E Brom
certamente ouviria poucas e boas sobre o
comportamento dele na próxima vez que ela o visse.
— Eu estava querendo perguntar: quem exatamente é
esse Cavaleiro Sem Cabeça de quem todos falam?
Suponho que seja algum tipo de aparição, já que Brom o
mencionou nesse contexto, mas me pergunto: por que
ninguém se veste como ele para o Baile da Colheita? —
Crane indagou.
Brom e Baltus explodiram em gargalhadas.
— Isso simplesmente está fora de cogitação, senhor!
Vestir-se como o Cavaleiro Sem Cabeça seria um insulto
à sua memória. — Baltus lançou a Crane um olhar de
desaprovação, o que levou Katrina a zombar de si para
si.
— De acordo com a lenda, vestir-se como o espectro
hessiano invoca o seu espírito, e ele certamente vai se
vingar de qualquer um que ousar assumir seu disfarce —
disse Brom, recostando-se na cadeira, visivelmente feliz
por recuperar a vantagem sobre Crane. Kat podia ver que
ele estava à vontade, contando histórias de fantasmas
com Baltus e alfinetando Crane, e ela não gostou nem
um pouco disso.
— Mas quem exatamente é esse temido sujeito? —
Crane se inclinou para frente como se estivesse
esperando por uma história fantástica e quisesse ouvir
atentamente.
— A pergunta correta é: quem foi esse temido sujeito?
Já que ele está morto! — A voz de Brom soou retumbante
e dramática, zombando sem dó de Crane. A expressão
em seu rosto mostrava que ele achava haver finalmente
sobrepujado aquele homem que tinha baixado em Sleepy
Hollow com o único propósito de roubar sua Katrina, mas
Crane não se abalou.
— Bem, suponho que sim, bom senhor, já que ele não
está mais de posse de sua cabeça, e me referi a ele
como uma aparição, mas talvez devesse ter usado a
palavra fantasma para que você pudesse entender
melhor o significado — disse Crane, fazendo Regina e
Katrina rirem.
Crane era inteligente demais para a tolice insípida de
Brom, e Katrina estava feliz pelo fato de a mãe parecer
tirar a mesma conclusão.
— O Cavaleiro Sem Cabeça não é motivo de riso, sr.
Crow! — Brom protestou, olhando ao redor da sala
teatralmente, como se temesse que o Cavaleiro Sem
Cabeça estivesse à espreita em um canto, ouvindo-os
das sombras. Katrina podia ver que aquela conversa
estava deixando Ichabod nervoso, pois agora ele estava
examinando cada canto escuro em busca do fantasma
sem cabeça. Estava surpresa que um homem de seu
intelecto fosse tão supersticioso, mas, também, ele
estava ouvindo aquelas histórias pela primeira vez.
— Isso mesmo, jovem professor — Baltus juntou-se a
Brom. — Faria bem em guardar seus gracejos para você,
porque o Cavaleiro Sem Cabeça pode aparecer a
qualquer momento… Especialmente na estrada que liga
o cemitério ao campo de batalha, pois é onde se acredita
que ele perdeu a cabeça devido a um infeliz encontro
com uma bala de canhão perdida. Embora tenha sido
visto pelos moradores de nossa cidade nos lugares mais
surpreendentes e quando menos se espera.
Com medo, Crane agarrou a mão de Katrina sem
pensar, e isso a deixou nervosa, temendo que o pai
pudesse ver.
— Ah, parem com isso, vocês dois! Vão assustar o
pobre Ichabod — disse Katrina, soltando rapidamente a
mão de Crane antes que o pai notasse.
— Asseguro-lhe que não estou nem um pouco
assustado, srta. Katrina. Nem por um momento acredito
que esse Cavaleiro Espectral seja real. Não passa de um
despautério, parvoíce — afirmou Crane, mas Katrina
percebeu que ele estava amedrontado.
— É verdade, eu lhe garanto! E, se você encontrar o
terrível monstro na Sleepy Hollow Road, corra para a
ponte coberta, porque somente quando você chegar ao
outro lado dela estará seguro. — Brom fez um gesto com
os braços, lançando sombras sinistras nas paredes que
fizeram Ichabod estremecer. Isso fez os dois grandes
touros rirem novamente.
— E com que objetivo essa aberração cavalga em
Sleepy Hollow, vocês podem me dizer, senhores?
Brom e Baltus não poderiam estar mais satisfeitos por
terem conseguido deixar Crane tão perturbado.
— Ele está procurando a cabeça, é claro — respondeu
Baltus.
— E o que esse Cavaleiro Sem Cabeça faria se eu ou
qualquer outra pessoa cruzasse o seu caminho? — Crane
perguntou com naturalidade, como se realmente não
estivesse assustado, mas Katrina podia sentir a perna
dele quicando de nervosismo ao seu lado.
— Ele cortaria sua cabeça no ato! — disse Brom,
imitando com a mão um movimento violento de degola.
Crane riu nervosamente e olhou para o relógio.
Pela primeira vez, Baltus e Brom pareciam estar se
divertindo naquela noite, enquanto o sr. Crane se
remexia desconfortavelmente no assento.
— Você faz bem em verificar a hora, jovem Crow,
porque dizem que o Cavaleiro Espectral é mais poderoso
na Hora das Bruxas, e ela está se aproximando
rapidamente — declarou Baltus, o tom de voz grave e
ameaçador, mas os olhos brilhando de alegria.
Então, de repente, houve um estrondo alto contra uma
das janelas. Todos pularam, e o pobre Crane parecia
lívido de terror.
— O que em nome do céu foi isso? — perguntou
Regina, levantando-se para ver o que poderia ter
acontecido.
— Fique aí, Regina. Brom e eu vamos ver — disse
Baltus. — A menos que você queira vir conosco para
ajudar a investigar, sr. Crow — acrescentou com um
sorriso malicioso.
— Vou ficar aqui e proteger as senhoras — disse Crane,
nervoso. Seus olhos se moveram apreensivamente ao
redor da sala. Katrina estava furiosa com o pai e Brom
por transformarem uma noite perfeitamente deliciosa em
um caos com a provocação descarada.
Baltus e Brom riam com vontade enquanto saíam por
um dos conjuntos de portas francesas e desapareciam na
escuridão.
— O que foi isso, Baltus? O que há lá fora? — Regina
perguntou, pegando o xale do encosto da cadeira e
enrolando-o em torno de si bem apertado para se
proteger do frio que entrava pelas portas abertas.
— Só uma coruja, Regina. Deve ter batido na janela,
coitada — disse Baltus enquanto voltava para dentro,
seguido de perto por Brom. Katrina sentiu que tanto
Brom quanto o pai estavam se divertindo demais à custa
do sr. Crane, mas receava que se corresse em defesa
dele com muita frequência, ficaria ainda mais difícil para
ele impor respeito aos dois.
— É um mau agouro um pássaro morrer na soleira —
observou Brom. — E em sua primeira visita a esta casa,
Crow. Não acho que isso seja um bom presságio para
você.
— Sandice! — retrucou Crane, a voz falhando quando
ele se levantou rapidamente do assento, remexendo-se
inquieto. — E meu nome é Crane! — acrescentou,
visivelmente agitado: — Sr. Ichabod Crane!
Katrina temia pelo sr. Crane. Brom e o pai dela o
haviam assustado por completo. Tudo tinha saído do
controle antes que ela percebesse que o sr. Crane estava
realmente assustado, mas como poderia não estar? Não
fora criado em Sleepy Hollow e não crescera ouvindo
histórias de fantasmas ao redor do fogo. Era a primeira
vez que ele ouvia essas histórias, então não era de
admirar que o pobre sujeito estivesse apavorado. Ela
decidiu que precisava fazer algo para ajudá-lo a evitar tal
humilhação.
— Parem com essa bobagem. O sr. Crane é um
professor respeitado e não é suscetível às superstições
bobas de vocês — disse Katrina, levantando-se para se
juntar a ele.
— Certamente que não! — disse Crane, espiando pela
janela nervosamente, sem dúvida à procura do Cavaleiro
Sem Cabeça. — De repente, ocorreu-me que é muito
tarde, e eu tenho um dia duro de trabalho amanhã —
acrescentou, a voz trêmula de óbvio nervosismo. Isso
deu nova munição a Brom e Baltus, que se puseram a rir
dele outra vez.
— Quão cansativo pode ser o seu trabalho? —
perguntou Brom.
— Já chega — Regina disse severamente, dando a
Brom e Baltus um olhar de reprovação. Katrina ficou feliz
pela mãe intervir. — Crane está certo. Já é muito tarde, e
acredito que é hora de encerrarmos a noite. Brom, você
faria a gentileza de acordar o cavalariço e pedir-lhe para
trazer uma carruagem para o sr. Crane quando for selar
Washington? — Regina parecia irritada com o marido e
Brom.
— Vim a pé para cá, sra. Regina, e não tenho medo de
encontrar espíritos no caminho para casa — disse Brom.
— Mas ficarei feliz em acordar o cavalariço. O pobre sr.
Crow aqui, que Deus o proteja, deveria voltar de
carruagem para casa. Ele parece mais pálido do que um
fantasma! — Brom soltou uma risada cruel.
Crane olhou de Baltus para Brom e Regina, e então
finalmente seu olhar pousou em Katrina, que o
observava atentamente. Ela odiava vê-lo tão nervoso. Ele
engoliu em seco de modo audível, o pomo de adão
subindo e descendo, e disse:
— Isso não será necessário, sra. Van Tassel. Garanto
que estarei bem em voltar para casa a pé e apto para
contar como foi na próxima vez que nos encontrarmos. —
Crane fez uma cara corajosa, mas Katrina não estava
convencida. Não queria que ele voltasse para casa
sozinho pela Sleepy Hollow Road, não depois de ser
provocado tão impiedosamente por seu pai e Brom.
— Acho que você deveria aceitar a carruagem,
Ichabod. Ninguém caminha pela Sleepy Hollow Road
durante a Hora das Bruxas, nem mesmo Brom; ele está
apenas se exibindo. — Katrina o pegou pelo braço. —
Venha, vou lhe mostrar onde penduramos seu casaco e
seu chapéu — disse ela, olhando feio para Brom e o pai.
Assim que chegaram ao vestíbulo, Katrina virou-se
abruptamente para Crane, assustando-o.
— Não há necessidade de bancar o forte para mim,
Ichabod. Brom é um tolo e está com ciúmes porque sabe
que eu gosto de você — ela revelou e então se conteve,
parando antes que dissesse mais. — Sinto muito, sr.
Crane; estou mortificada. Nunca deveria ter dito isso. É
apenas… — Sentia as bochechas queimarem de
vergonha, mas Crane a cortou.
— Não precisa dizer mais nada, minha querida Katrina.
Estou igualmente apaixonado e aliviado por ouvir que
você sente o mesmo. E, por favor, pela última vez, me
chame de Ichabod — ele disse, beijando-lhe a mão e
olhando-a nos olhos. Katrina não havia notado como os
olhos de Ichabod eram marcantes — como os de um
gato, castanho-escuros com cílios longos e grossos.
Nesse momento, Regina entrou na sala e os dois se
separaram.
— Foi tão encantador recebê-lo para o jantar, sr. Crane,
mas receio que não tenhamos chegado a discutir os
detalhes de tê-lo como tutor de nossa Katrina — ela
disse, acrescentando com um pouco de atrevimento —,
embora eu imagine que você não se importaria de voltar
aqui, digamos, nesta segunda-feira, depois que a aula
terminar, antes de Baltus chegar em casa?
Os olhos de Crane se arregalaram.
— Isso seria muito agradável, sra. Van Tassel —
respondeu ele com um sorriso pateta que fez o coração
de Katrina se alegrar. Estava completamente desarmada
por aquele homem. Embora ele fosse capaz de falar com
autoridade sobre quase qualquer assunto e parecesse
muito autoconfiante, ela adorava que houvesse um lado
dele excêntrico e encantador.
— Por favor, pode me chamar de Regina — ela disse, os
olhos brilhando com aprovação.
— Obrigado, sra. Regina — disse Crane com um beijo
casto na mão dela, fazendo a mãe de Katrina corar.
Katrina tinha quase certeza de que nunca antes havia
visto a mãe corar, mas o sr. Crane, apesar de toda a
patetice, tinha um jeito de enfeitiçar as damas.

A friagem do ar era de arrepiar até os ossos quando todos


estavam na varanda da frente da casa dos Van Tassel
despedindo-se de Brom e Ichabod. O bosque de
carvalhos estava escuro naquela noite em que a lua se
escondia atrás de nuvens escuras, e Katrina sentiu uma
onda de pânico se espalhar por ela ao imaginar Ichabod
percorrendo o bosque e depois a Sleepy Hollow Road
sozinho.
— Boa noite, meu garoto! — Baltus gritou para Brom,
que já estava adentrando o bosque. Brom se virou e
acenou, com um largo sorriso no rosto.
— Boa noite, Baltus! Até amanhã cedo! — Brom
caminhava de costas enquanto acenava e acrescentou:
— E boa noite, minhas queridas Katrina e sra. Regina. —
Ele soprou um beijo para Katrina, o que fez tanto ela
quanto a mãe se encolherem de constrangimento.
Ichabod ainda estava parado no caminho de terra que
levava ao bosque de carvalhos, arrastando os pés e
remexendo-se nervosamente.
— Adeus, família Van Tassel. Vocês são bons e gentis
anfitriões. Estou realmente honrado por ter sido
convidado para sua linda casa. Katrina, minhas boas
lembranças desta noite me sustentarão até que eu tenha
a sorte de estar em sua excelente companhia mais uma
vez — ele disse antes de iniciar o caminho que o levaria
à Sleepy Hollow Road.
— Boa noite, Ichabod. Também estou ansiosa para vê-
lo novamente. — Katrina não se atreveu a falar mais do
que isso com o pai ali ao seu lado. Sua vontade era
correr para Ichabod e implorar que ele pegasse a
carruagem. E em um lugar ainda mais secreto do
coração, sua vontade era beijá-lo. Um medo profundo e
penetrante foi crescendo dentro dela, ao ver o pobre
Ichabod olhando por cima do ombro, hesitando antes de
partir para o escuro bosque de carvalhos. Os Van Tassel
tremiam de frio na varanda enquanto Crane lentamente
descia o caminho, seguindo Brom, que estava cerca de
seis metros à frente. E, quando estavam prestes a se
virar e voltar para dentro da casa, escutaram a voz de
Brom ressoando ao longe.
— cuidado com o cavaleiro sem cabeça! — ele berrou, e
Katrina pôde ouvir Brom rindo enquanto desaparecia na
escuridão.
— Podemos preparar uma carruagem para você,
Ichabod — Katrina gritou.
Mas Baltus respondeu por ele.
— Você não precisa de uma carruagem, precisa, Crow?
Não um jovem robusto como você. — Baltus lançou a
Katrina um olhar zombeteiro. — Apenas certifique-se de
não sair da estrada, e se você ouvir o barulho de cascos
de cavalo atrás de você, corra como o vento para a ponte
coberta!
O pobre sr. Crane parecia aterrorizado. Então, Baltus
pegou Katrina e Regina pelo braço para levá-las de volta
para dentro.
— Vamos, minhas queridas, está muito frio e tarde. O
sr. Crow vai ficar bem — ele disse, com um brilho
travesso nos olhos, fazendo tanto Katrina quanto Regina
ficar de cara feia para ele.
— Katrina, vá para dentro, quero ter uma conversa com
o seu pai — disse Regina, dando a Baltus um olhar
furioso, e Katrina se sentiu feliz por ter a mãe do seu
lado.
Enquanto seguia pela sleepy hollow road, brom se sentia
bastante animado.
— Crane é intolerável! Não há como Katrina o escolher
em vez de mim! — ele falou sozinho enquanto voltava
para casa.
A Sleepy Hollow Road era ladeada por um dossel de
carvalhos que quase encobria o céu noturno. Brom
desejou ter pedido um lampião para iluminar o caminho,
mas não queria parecer fraco ou assustado, embora logo
estivesse grato por ter chegado a um trecho iluminado
pelo luar. Pensou que Katrina fosse achar lindo caminhar
por aquela trilha, com a lua espreitando por entre os
galhos. Sentia falta de seus passeios na floresta, falando
sobre os livros que ela lia e todos os lugares para onde
ela queria viajar, mas quando eram mais jovens, ele
achava que era apenas isso. Sonhos. Não percebeu que
Katrina, quando ficasse mais velha, ia querer sair de
Sleepy Hollow, e querer deixá-lo. Nunca ia admitir, mas
ficara magoado com o desejo dela de partir, magoado
por ela ter parado de compartilhar os pensamentos e
sentimentos com ele. Desde que teve que ir trabalhar
para Baltus na fazenda, percebeu que ela se fechara
para ele, mas lhe faltavam palavras para dizer como se
sentia. Não tinha tempo para ler como antes; precisava
trabalhar e, portanto, não tinha nada de excitante para
compartilhar com ela no fim do dia. Mas ele guardou isso
para si mesmo e deixou o ressentimento fermentar. Não
sabia como melhorar as coisas com ela. Sentia-se preso
em seus novos padrões, circulando sobre eles
repetidamente, esperando alcançar o centro outra vez —
pois isso é o que Katrina era para ele, seu centro, seu
coração, e se eles pudessem encontrar o caminho de
volta, as coisas voltariam a ser como eram. Mas ele
sentia como se estivesse perdido em um labirinto,
tentando encontrá-la, e começava a perceber que talvez
fosse a si mesmo que procurava.
Enquanto caminhava pela Sleepy Hollow Road, sentiu
um estranho calafrio que o percorreu até o âmago,
fazendo os ossos doerem e o coração disparar. Espiou
através do dossel de carvalhos que balançava na brisa,
revelando nuvens escuras e ameaçadoras. Abotoou o
casaco, levantando a gola para se proteger do vento frio,
e andou mais rápido, sentindo-se subitamente nervoso.
Sentia como se alguém o estivesse seguindo. Achou-se
um tolo, mas não pôde deixar de olhar para trás e
engasgou de pavor quando avistou olhos brilhantes no
oco de uma árvore.
— É só uma coruja, seu idiota! — disse em voz alta. —
Você está agindo como o pobre sr. Crow. — Ele riu
consigo mesmo, imaginando como Ichabod estava se
saindo em sua jornada. — Aquele covarde provavelmente
está em cima de uma árvore como um gato assustado!
— disse, uivando com uma risada tão alta que assustou a
coruja, a qual levantou voo. Observou enquanto a coruja
se elevava por uma clareira entre os ramos, brilhando
em branco com a luz da lua.
O vento aumentou, fazendo com que galhos de árvores
e folhas secas caíssem e se agitassem ao longo do
caminho, e a cada passo ele ouvia um estalo sob os pés.
Estranhamente, parecia que havia outro par de sapatos
seguindo atrás dele, e o ruído de trituração soava como
ossos quebrando. Crec crec crec. Rapidamente se virou e
não viu ninguém, mas toda vez que dava um passo,
ouvia outro atrás dele e o som nauseante de ossos sendo
esmagados sob os pés. Acelerou o ritmo, as folhas
agitadas no caminho girando em torno dele e lançando
poeira em seus olhos. Enquanto os esfregava, ouviu o
toque da torre do relógio de Sleepy Hollow, que lhe
provocou a terrível sensação de estômago embrulhado.
O relógio soou doze vezes.
Meia-noite. A Hora das Bruxas. Permanceu parado no
caminho por alguns momentos após o último toque,
prestando muita atenção para ver se ouvia alguém vindo
pela trilha e, então, escutou o som ensurdecedor de
cascos de cavalo galopando em sua direção. Entrou em
pânico, mas viu que estava perto da Árvore Mais Antiga e
decidiu que ali era um lugar seguro para se esconder.
Correu até o carvalho gigante e se ocultou dentro do oco
do tronco o melhor que pôde. Enquanto estava
agachado, tremendo de frio e medo, podia ouvir as
batidas do coração pulsando cada vez mais rápido,
combinando com o som implacável dos cascos batendo
no caminho, vindo em sua direção. Não ousou olhar para
fora do oco da árvore com medo de que o cavaleiro o
visse. O som de batimento cardíaco era ensurdecedor, e
ele percebeu que não era apenas o seu próprio
batimento que ouvia; outro vinha de dentro da árvore,
pulsando a cada golpe. Recuou, horrorizado, e quando
deu um passo para trás, notou que, no chão da floresta,
havia algo brilhando ao luar. Parecia espesso e quase
preto, e, quando se abaixou para tocá-lo, sentiu-o quente
e pegajoso entre os dedos. Deslocou-se para uma nesga
de luar que penetrava por entre os galhos para que
pudesse ver o que era o líquido quente e grosso e, para
seu horror, percebeu que era sangue. Vinha do oco da
Árvore Mais Antiga, formando uma poça aos seus pés.
Ele cambaleou para trás, horrorizado, batendo em um
galho baixo que prendeu em seu casaco.
— Grande Fantasma do Vale! — ele gritou, pensando
que alguém ou alguma coisa o tinha agarrado pelo
colarinho, pois, de fato, o galho parecia uma garra
esquelética, e ele podia jurar que a árvore estava viva,
encantada por algum fantasma ou demônio
desconhecido que assombrava o caminho. Berrou de
puro terror, girando e se debatendo, tentando se libertar
do galho da árvore, e então viu o próprio demônio
espectral: o Cavaleiro Sem Cabeça.
Era mais horrível do que Brom jamais imaginara. O que
mais o aterrorizava era quão real aquele demônio
parecia, montado no brutal cavalo. A aparência dele era
tal qual dizia a lenda, vestindo o uniforme hessiano e
uma longa capa preta que ondulava atrás dele enquanto
avançava em sua direção. O coração de Brom batia tão
violentamente dentro do peito que ele tinha certeza de
que morreria de um ataque cardíaco antes mesmo que o
soldado hessiano sem cabeça o alcançasse. Por fim,
Brom conseguiu se libertar do galho, rasgando o casaco
e caindo na poça de sangue. Estava deitado de bruços e
olhou para cima a tempo de ver um cavalo preto
empinando e depois batendo os cascos no chão a apenas
alguns centímetros de seu rosto. Brom rolou para o lado,
para fora do caminho, pôs-se de pé e disparou o mais
rápido que pôde, sem ousar olhar para trás, correndo
sem parar, com o implacável bater de cascos atrás dele.
Só quando chegou em casa percebeu que o Cavaleiro
Sem Cabeça já não estava em seu encalço.
ONZE

O CORAÇÃO
CORRESPONDIDO

Kat fechou o diário de katrina e respirou fundo. mais uma vez,


sentiu como se estivesse no lugar errado ou na hora
errada depois que parou de ler e percebeu que estava de
volta ao seu quarto. O diário de Katrina tinha descrições
tão vívidas que Kat sentia como se fosse transportada e
vivenciasse tudo o que acontecia com ela. Seu coração
estava acelerado, e ela precisava contar para Isadora o
que havia lido.
Kat
17:17
Caramba! Acho que o Cavaleiro
Sem Cabeça pode ser real
Isadora
17:18
O quê?! Sério? O que aconteceu?
Kat
17:19
Foi algo que li no diário de Katrina. Quer se
encontrar comigo na Árvore Mais Antiga amanhã?
Só mesmo mostrando a você, está meio que me
apavorando
Isadora
17:20
Fechou! Que horas?
Isadora
17:22
Perfeito! Vejo você lá! ♥
Kat
17:21
Meio-dia?
Kat ficou surpresa por Isadora incluir um coração no
fim da mensagem de texto. Isso a deixou tonta e nervosa
ao mesmo tempo. Pensou se deveria enviar um de volta
ou não, e ficou ali sentada refletindo sobre a questão,
perguntando-se por que hesitava. Andara pensando em
como Isadora havia enfrentado Blake e os amigos dele, e
como era a primeira vez em um bom tempo que se
sentia completamente confortável com alguém, e
concluiu que um emoji de coração não era impróprio.
Você está sendo boba, pensou. Ela enviou o coração
primeiro. Então, respirou fundo e pressionou “enviar”.
Kat
17:27
EBA! Vejo você lá! ♥
Kat continuou sentada por um momento apenas
olhando para o telefone. Sentia um calafrio na barriga,
algo que as pessoas em Sleepy Hollow diziam em vez de
“frio na barriga”. Perguntou-se se deveria ter enviado o
coração, no fim das contas. Talvez Isadora nem tivesse
percebido, mas continuou olhando para o celular
esperando que a garota respondesse, e ela nem tinha
certeza do que queria que ela dissesse. Mas então o
telefone apitou e a resposta de Isadora alegrou seu
coração.
Isadora
17:31
♥!!!
Kat sorriu. Fazia tanto tempo desde que alguém a
deixara tão feliz com uma simples mensagem de texto…
Desde que ela e Blake eram jovens e estavam juntos que
ela não gostava tanto da companhia de alguém. O
estômago de Kat se revirava. Tudo em seu mundo estava
mudando, mas, pela primeira vez, sentia que poderia
mandar na própria vida. Sentia como se estivesse se
permitindo ver Blake claramente, e não apenas porque
vê-lo através dos olhos de Isadora no cemitério, naquela
noite, fora tão surreal. Nem se sentira ela mesma quando
tudo estava acontecendo. Era como se estivesse olhando
para si própria de longe, imaginando quem era e como
deixara as coisas com Blake chegarem a tal ponto. Mas
tinha sido algo gradual, desenrolando lentamente ao
longo dos anos. Eles estavam juntos havia tanto tempo, e
ela supôs que tinha se acostumado com sua infelicidade.
Tornara-se familiar. Blake diria que ela preferia ser infeliz,
mas ela começava a sentir, ao ler o diário de Katrina, que
estava despertando aos poucos de um sonho horrível,
percebendo que não era assim que queria passar o
restante da vida.
Era enervante ler a história de Katrina e perceber as
similaridades com a própria vida. Ambas estavam sendo
pressionadas pela família a se casar com alguém que não
tinham certeza que amavam, e as duas levaram muito
tempo para encontrar a coragem para romper com
homens que as tratavam mal. Ela tinha tentado terminar
com Blake no passado, muitas vezes, mas ele sempre
encontrava uma forma de fazê-la pensar que era
culpada, como se fosse ela a incapaz de ser feliz. Como
se houvesse algo de errado com ela. Naquele momento,
talvez pela primeira vez, percebera que havia algo
errado com Blake, e não com ela. Sabia que, se sua
amizade com Isadora fosse dar em alguma coisa, Blake
acharia que ela havia terminado com ele por causa dela,
mas isso não era verdade. Ficou ali sentada pensando em
tudo que lera no diário de Katrina e se perguntou como
era possível que tivessem tanto em comum. Ambas
cresceram e permaneceram com os namorados de
infância apenas para descobrir mais tarde que haviam
amadurecido mais do que eles, e ficaram fascinadas por
alguém que não era de Sleepy Hollow. De repente, Kat
ficou ainda mais animada e nervosa para ler o restante
do diário de Katrina a fim de ver como as coisas
realmente correram com Ichabod. É claro que ela
conhecia a história que todos contavam na Véspera de
Todos os Santos, mas estava ansiosa para, pela primeira
vez, ler o lado de Katrina da história.
E estava mais ansiosa do que nunca para ver Isadora
no dia seguinte, porque não fora apenas o diário que
abrira seus olhos.

Na manhã seguinte, kat desceu à cozinha para pegar uma caneca


de café. Não havia percebido que Maddie estava no
interior da despensa, e, quando a mulher saiu de lá, Kat
se assustou, derramando café por todo o balcão e no
chão.
— Você está nervosa esta manhã. Achou que eu fosse
um fantasma? — Maddie disse com seu habitual sorriso
travesso e ajudou Kat a limpar o café derramado.
— Desculpe, Maddie. Ah, ei, teve uma boa noite com
seu cavalheiro? — Kat se lembrou da mãe dizendo que
ela havia passado O Mais Longo dos Crepúsculos num
encontro romântico e se perguntou que tipo de cara seria
ele. Maddie era uma presença constante na casa desde
que Kat se entendia por gente. Era uma mulher mais
velha, com cabelos grisalhos e olhos vivos e brilhantes
que pareciam estar sempre sorrindo, a menos que
estivesse irritada. Kat gostou da ideia de Maddie ter
alguém especial. Ela havia enviuvado no começo do
casamento e Kat achava que Maddie fosse passar o
restante de sua vida sozinha. Odiava a ideia de Maddie
retornar para uma casa vazia todas as noites.
— Tive, para falar a verdade. Foi uma noite esplêndida.
— Maddie sorria de orelha a orelha enquanto apanhava
um saco de farinha da despensa. — Mas devo dizer que o
assunto do jantar foi quase inteiramente você —
acrescentou ela, colocando a farinha no grande balcão
de madeira onde ela e a mãe de Kat preparavam as
massas. Era aquela época do ano novamente, quando
Maddie e Regina passavam todo o tempo cozinhando e
se preparando para o Baile da Colheita. Em breve, todas
as superfícies disponíveis da cozinha estariam cobertas
de pães e bolos, e ainda assim elas ficariam com receio
de não terem assado comida o suficiente. Kat se
perguntou por que alguém passaria a noite falando sobre
ela, especialmente em um encontro.
— Ficaram conversando sobre mim? Por quê?
— Todos conjecturamos por que você não estava na
cerimônia do Mais Longo dos Crepúsculos; você é a
Katrina reinante, afinal de contas — ela disse com uma
piscadela. Maddie e a mãe de Katrina gostavam de
piscar. Era uma coisa típica delas.
— Se existe alguém que é a Katrina reinante, é a
mamãe — corrigiu Kat, rindo de Maddie. Ela era um tipo
estranho de mulher, às vezes misteriosa, e sempre
engraçada. Kat a adorava.
— Bem, só fico feliz que você tenha chegado em casa
em segurança. Sua mãe me contou o que aconteceu, é
claro. Ficou novamente fora até tarde lendo livros. Eu
juro, cada dia que passa você fica mais parecida com a
primeira Katrina. Sabe, ela adorava ler. Queria ser
escritora. — Maddie pegou ovos e leite na geladeira
grande e antiquada. — Continuo dizendo à sua mãe para
substituir essas relíquias, mas ela insiste em manter esta
geladeira e fogão velhos. Se fosse por ela, ainda
teríamos um fogão a lenha e um armário refrigerado aqui
— disse ela, quebrando um ovo em uma tigela amarela.
Kat pensou que Maddie tinha razão. Sua mãe adorava
preservar a história dos Van Tassel de todas as formas.
Perguntou-se o que a mãe pensaria quando dissesse que
terminou com Blake. Não estava pronta para ter essa
conversa com ela. Não queria ouvir sobre como
esperavam que ela e Blake se casassem e
administrassem a propriedade juntos. Estava farta
daquele papo.
— Eu não sabia que Katrina queria ser escritora —
comentou Kat, servindo-se de uma caneca de café.
— Há muita coisa que a maioria das pessoas não sabe
sobre ela, mas suponho que tudo isso vá mudar agora
que você está lendo o diário dela. Eu disse à sua mãe há
muito tempo para dá-lo a você. Estou feliz que ela
finalmente tenha feito isso — disse, misturando os ovos e
o leite na farinha.
— Também estou, Maddie. E ela é uma escritora muito
boa. Escreve de forma bastante descritiva. Consigo
visualizar tudo o que ela conta. É como se passasse um
pequeno filme na minha cabeça quando leio o diário
dela. — Kat se inclinou sobre o balcão, bebendo o café.
Adorava conversar com Maddie. Geralmente faziam isso
enquanto Maddie preparava tortas.
— Imagino que um dia você vá anunciar que está indo
para Nova York se tornar escritora — disse ela,
polvilhando a mesa de madeira com farinha.
Kat não contara a ninguém que era esse o seu plano.
— O que a faz pensar isso, Maddie? — ela perguntou,
estreitando os olhos para a mulher mais velha.
— Vamos apenas dizer que a Maddie sabe das coisas —
afirmou a mulher. Sua risada rouca soou como galhos
agitados pelo vento.
— E se eu de fato decidir que quero me mudar e me
tornar uma escritora? Como você acha que minha mãe
reagiria? — indagou Kat, espiando Maddie pelo canto de
olho.
— Isso partiria o coração dela, é claro — ela respondeu
—, mas você tem que fazer o que é bom para você, Kat.
Embora Katrina tenha escolhido o próprio caminho, ela se
arrepende de não ter perseguido alguns de seus sonhos.
Kat estreitou os olhos para Maddie.
— Você fala como se ela ainda estivesse viva — disse
Kat, observando Maddie esticar a massa para as tortas.
— Ela ainda está muito viva no coração e na mente de
todos em Sleepy Hollow — Maddie explicou, com uma
expressão estranhamente séria no rosto.
— Não está dizendo que ela é um dos fantasmas que
assombram Sleepy Hollow, está?
— É exatamente o que estou dizendo, Kat. Costumo
conversar com ela debaixo da Árvore Mais Antiga. — Ela
separou uma porção da massa da torta com um grande
cortador de metal em formato de abóbora, como se o
que acabara de dizer fosse a coisa mais normal do
mundo. Era assim em Sleepy Hollow. Kat estava cercada
por pessoas que não apenas acreditavam em fantasmas,
mas achavam que conversavam com eles, e começava a
se perguntar no que ela própria acreditava. Ainda mais
depois de ler o que Katrina escrevera sobre o encontro
de Brom com o Cavaleiro Sem Cabeça, e agora com
aquela mulher misteriosa seguindo-a.
— Maddie, você sabe que eu te amo, mas você
realmente espera que eu acredite que conversa com o
fantasma de Katrina? Eu passo muito tempo na Árvore
Mais Antiga e nunca a vi lá.
A risada crepitante de Maddie ressoou.
— Eu sei, minha querida. Ela sempre fala sobre suas
visitas à árvore favorita dela. Katrina adora a sua
companhia.
As palavras de Maddie provocaram um calafrio em Kat.
A ideia da primeira Katrina assombrando a Árvore Mais
Antiga a deixou em pânico. Mais jovem, Kat vivia com
medo quase constante de fantasmas, e foi só quando
parou de acreditar neles que sua ansiedade cessou.
Agora que estava insegura, sentia o pânico crescendo
dentro dela novamente. Era por isso que precisava falar
com Isadora. Embora acreditasse em espíritos, Isadora
parecia mais sensata a respeito do sobrenatural do que a
maioria das pessoas em Sleepy Hollow. Talvez porque
não fosse da cidade.
Kat verificou o telefone; eram quase onze horas.Tinha
perdido a noção do tempo conversando com Maddie e
quase esquecera que encontraria Isadora ao meio-dia.
Nesse momento, a mãe de Kat entrou na cozinha.
Queria falar com ela, dizer-lhe como estava feliz por ela
ter lhe dado o diário de Katrina, mas temia que se
começasse a conversar sobre isso nunca ia parar, e ela
não queria entrar no assunto de Blake. Ficaria presa lá
para sempre se dissesse que tinham terminado. Havia
tantas coisas passando por sua cabeça, muitas das quais
não compreendia, então queria aguardar até que tivesse
resolvido tudo.
— Bom dia, mãe. Sinto muito sair correndo desse jeito,
mas tenho que me arrumar. Vou me encontrar com uma
nova amiga daqui a mais ou menos uma hora — disse
ela, servindo-se de outra caneca de café, com um sorriso
de desculpas para a mãe.
— Que amiga é essa? — a mãe quis saber. — Conheço
todos os seus amigos.
— O nome dela é Isadora Crow. É nova na cidade —
respondeu, tentando ir embora margeando a cozinha.
Mas a expressão no rosto da mãe a deteve. Ela parecia
ter visto, bem, um fantasma.
— Você disse Isadora Crow? — Trina colocou a mão no
coração e olhou para Maddie.
— Disse. Por que estão fazendo essas caras?
— Nada, querida, eu só… — Ela parou e se recompôs.
— Uma recém-chegada a Sleepy Hollow! Não recebemos
muita gente de fora e acho que estou apenas sendo
cautelosa quanto a você passar tempo com alguém que
não conheci. — Ainda carregava aquela expressão de
preocupação no rosto, mas tentava escondê-la.
— Ela é muito legal, mãe; acho que você vai gostar
dela. — Kat olhou da mãe para Maddie, perguntando-se o
que não estavam contando, porque obviamente algo não
pronunciado estava rolando entre elas. — O que está
acontecendo com vocês duas? — perguntou, franzindo a
testa.
— Nada, Kat — a mãe respondeu, atrapalhando-se com
uma bandeja de pequenas formas de torta, fazendo-as
tilintar. — Crow, que nome interessante esse. De onde
vem?
— Sabe como é, não conversamos sobre a ascendência
dela na primeira vez que nos encontramos — disse Kat.
— É sério, o que está acontecendo? Vocês duas estão
agindo como malucas.
— Não está acontecendo nada. Só não confio em
recém-chegados a esta cidade. Não passam de
caçadores de fantasmas e turistas, interessados apenas
em uma coisa. Não tenho certeza se estou tranquila com
você passando tempo com ela.
— Tem alguma coisa acontecendo! Vocês duas estão
surtando, e isso não faz sentido. Isadora é incrível, e eu
gosto mesmo dela, e a menos que me contem qual é o
problema de vocês, vou continuar saindo com ela.
— Isso me parece muito familiar, Kat. Quão adiantada
está sua leitura do diário de Katrina?
— O que isso tem a ver com o que quer que seja? —
perguntou Kat, mas ela tinha certeza de que sabia
exatamente o que a mãe queria dizer. Só queria ouvi-la
verbalizar aquilo; sua vida começava a se parecer
assustadoramente com a de Katrina. — Mãe, você e
Maddie podem parar de agir estranho por um minuto e
se acalmarem? Ela é uma nova amiga, e eu realmente
gosto dela. Tipo, pra caramba.
— Tudo bem, mas quero conhecer essa Isadora Crow.
Diga a ela que a aguardamos para o jantar esta noite.
DOZE

A ÁRVORE MAIS ANTIGA

Kat seguia com rapidez pela sleepy hollow road. o caminho


estava coberto de folhas de outono que iam sendo
esmagadas com um rangido sob seus pés,
transformando-se em poeira vermelha, laranja e
amarela. Não pôde deixar de se lembrar de ter lido sobre
Brom percorrendo o mesmo caminho, e sentiu, igual a
ele, como se ouvisse o som de ossos sendo triturados.
Cada passo provocava-lhe um arrepio pelo corpo. Embora
fosse conhecido na lenda familiar que Brom era um
pouco brincalhão e encrenqueiro, ela não conseguia
imaginá-lo inventando uma história sobre o Cavaleiro
Sem Cabeça, muito menos dizendo a Katrina o quanto
isso o assustara. Ele não parecia o tipo de homem que
admitiria de bom grado ter sentido medo. Essa foi
apenas uma das formas pelas quais Kat percebeu que
seu mundo estava mudando. Não conseguia encontrar
uma razão lógica para Brom ser desonesto sobre o
encontro com o Cavaleiro Sem Cabeça, o que significava
que talvez, apenas talvez, ele pudesse ser real. E isso a
fez se perguntar se Blake dissera a verdade sobre o que
aconteceu com ele.
E, então, antes que percebesse, estava na Árvore Mais
Antiga.
Ao se aproximar, Kat viu Isadora sentada sob o
majestoso carvalho, exatamente onde Kat costumava se
sentar. Isadora não olhava em sua direção; tirava fotos
de galhos retorcidos com o celular. Katrina quase podia
ver as imagens em sua mente; imaginou que fossem
totalmente em preto e branco como os filmes antigos
que ela tanto amava. Ficou parada lá por um momento
apenas observando Isadora fotografar. Adorava olhar
para ela. Adorava os cabelos pretos compridos e lisos, os
olhos grandes e intensos que às vezes pareciam um
pouco tristes, e os cílios longos e grossos. Tentou
recordar o nome da atriz antiga que tinha cílios assim
naturalmente. Então, lembrou que era Elizabeth Taylor.
Mas Isadora parecia mais uma atriz de cinema mudo. As
feições dela tinham qualidade fantasmagórica, ou talvez
fossem apenas antiquadas. Isadora não parecia
pertencer ao presente, era mais como uma imagem
espectral do passado ainda cheia de vida e
personalidade. Mas o que Kat mais amou naquele
momento foi observar a forma como Isadora olhava para
a árvore e contemplava a luz. Foi tão íntimo e pessoal,
que ela quase sentiu que não deveria estar lá, mas, ao
mesmo tempo, ficou bastante feliz por estar. Nesse
momento, Isadora deve ter pressentido Kat parada ali,
porque ergueu os olhos do telefone e sorriu.
— Desculpe! Não estava espionando de um jeito
sinistro nem nada. Não quis sobressaltá-la nem
interrompê-la enquanto tirava as fotos — disse Kat,
sentindo-se um pouco envergonhada.
— Está tudo bem. Venha se sentar ao meu lado, quero
lhe mostrar algo que encontrei. — Isadora estendeu a
mão. Kat não tinha certeza se Isadora queria que ela lhe
segurasse a mão, mas decidiu fazê-lo assim mesmo e
sentiu o estômago revirar quando a garota não a soltou
depois que ela se sentou. Ficaram sentadas juntas
debaixo da árvore de mãos dadas, e Kat não poderia
estar mais feliz.
— Ah, viu, posso ver as fotos que você estava tirando?
— Claro. — Isadora entregou a ela o celular. Blake
nunca a deixaria olhar seu telefone. Ele não o largava
fora de vista e agia como se Kat fosse ciumenta e
possessiva se perguntasse para quem ele estava
enviando mensagens de texto. Passar um tempo na
companhia de Isadora parecia mais fácil. Kat nunca
tivera uma melhor amiga, e não tinha certeza se era
assim que as melhores amigas se sentiam uma com a
outra. Na escola, via garotas de mãos dadas e sendo
muito íntimas umas das outras, mas eram apenas
amigas. Aquilo parecia outra coisa, ou pelo menos ela
achava que sim. Parecia algo completamente diferente, e
isso a empolgava e assustava. Eu realmente gosto dela.
As fotos que Isadora havia tirado eram exatamente
como ela imaginava: cruas, lindas e em preto e branco.
Uma delas a lembrou de algo que lera no diário de
Katrina.
— São tão belas, Isadora! — elogiou ela, mostrando-lhe
a que despertara a lembrança. — Vê aqui como essas
folhas escuras parecem sangue? — perguntou, sentindo-
se no mesmo instante estranha ao dizer isso. — Quero
dizer, talvez você não pense assim, mas…
— Sei de qual está falando; pensei a mesma coisa —
ela disse, sorrindo para Kat.
— O que foi? Por que você está sorrindo assim? —
questionou Kat.
— Amo de verdade o jeito como sua mente funciona,
Kat Van Tassel — declarou, fazendo Kat corar. — Estou
muito feliz que tenha me mandado mensagem —
pontuou Isadora com um sorriso. Os cantos de seus olhos
se enrugaram de uma forma que Kat achou cativante. De
repente, ela sentiu vontade de beijar os cantos dos olhos
e as profundas covinhas assimétricas que Isadora tinha
em cada uma das bochechas, o que a fez se sentir
ruborizada e nervosa. E, então, entendeu por que a mãe
e Maddie estavam tão assustadas. Sabiam que ela tinha
sentimentos por Isadora. Maddie e a mãe de Kat não se
interessavam por feitiçaria, mas de fato pareciam ter
algum poder sobrenatural para saber o que estava
acontecendo com ela, às vezes antes mesmo que a
própria Kat soubesse.
De repente, tudo o que queria fazer era fugir. Estava
com medo de seus sentimentos, com medo das
experiências paralelas que compartilhava com a primeira
Katrina, e com medo porque sua mãe e Maddie estavam
muito preocupadas. Mas antes que pudesse inventar
uma desculpa para ir embora, foi pega pelos olhos de
Isadora brilhando na luz do sol peneirada pela copa da
árvore. Ponderou se deveria contar para Isadora sobre o
término com Blake. Não tinha notícias dele desde que o
deixara no café, o que a surpreendeu. Quando tentou
terminar o namoro no passado, ele a perseguiu até ela
concordar em conversarem de novo.
Kat ainda estava um pouco nervosa, mas algo a
mantinha sentada ali com Isadora. Gostava de estar na
companhia dela e da sensação de sua mão na dela.
Achava que estava animada para compartilhar o que
havia lido no diário de Katrina, mas percebeu que
também queria um motivo para ver Isadora. Então, o
pânico a inundou outra vez. Rapidamente soltou a mão
de Isadora e se levantou.
— Desculpe. Talvez isso tenha sido uma má ideia — ela
disse, olhando ao redor como se estivesse com medo de
que alguém estivesse lá, observando-as. Vinha se
sentindo assim desde que começara a ver a dama loura,
e isso a enervava.
— Ai, meu Deus, sinto muito. Estou deixando você
desconfortável. Achei que talvez você estivesse atraída
por mim; acho que estava errada. E é horrível da minha
parte fazer isso enquanto você está com outra pessoa.
Sinto muito — disse Isadora, levantando-se para
encontrar o olhar de Kat e pegando-a pelas duas mãos.
Lá estava, a verdadeira razão pela qual Kat estava
nervosa. Não sabia até aquele momento como Isadora se
sentia em relação a ela e, agora que sabia, não estava
mais nervosa. Sabia exatamente por que estava ali. Ela
sentia o mesmo.
— Você não está errada. E terminei com Blake ontem
no café depois que você saiu — disse Kat, corando e
baixando o olhar novamente, esforçando-se para não
beijar Isadora, porque era tudo o que ela queria fazer
naquele momento.
— O que aconteceu? O que ele fez?
Kat não queria falar sobre isso; não tinha certeza se
queria que Isadora soubesse todas as razões pelas quais
terminara com Blake, porque havia muito mais do que
aquilo que aconteceu no café, ou mesmo no cemitério.
— Tudo bem se você não quiser falar sobre isso.
Kat suspirou de alívio, mas não se sentir pressionada
apenas a fez querer se abrir.
— É só que me sinto tão envergonhada por tê-lo
deixado me tratar assim por tanto tempo e sem perceber
o quanto ele me fez duvidar de mim mesma. Não tenho
certeza se quero contar tudo o que aconteceu, quero que
você saiba quem eu sou, ou melhor, quem eu quero ser
agora que não estou mais com ele.
Isadora segurou o rosto de Kat nas mãos.
— Não tem nada do que se envergonhar, Kat Van
Tassel; nada, está me ouvindo? Ele é quem deveria se
envergonhar de como mentiu e manipulou você. — Mas
então Isadora pareceu estar distraída, como se algo a
estivesse incomodando. Seus olhos estavam cheios de
medo e do que Kat pensava parecer remorso.
— O que há de errado? O que foi que eu disse? Acha
mesmo que sou uma idiota por ficar com Blake por tanto
tempo, não é? Porque eu sinceramente não a culparia se
você o fizesse.
Isadora balançou a cabeça.
— Você não é uma idiota, Kat. Nunca pense isso. Você
pode me dizer qualquer coisa, juro — disse, franzindo a
testa.
— Não estou acostumada a compartilhar como me
sinto. Blake sempre usava isso contra mim mais tarde ou
encontrava uma forma de fazer eu me sentir instável e
tal. Não sei, é difícil de explicar. Tudo o que ele fazia era
tão sutil e tão astuto que era difícil desmascará-lo.
Sempre encontrava um jeito de me fazer pensar que eu
estava apenas sendo paranoica, histérica ou algo assim,
enquanto se escondia atrás de sua versão distorcida de
lógica e estoicismo.
Isadora suspirou.
— Ele estava manipulando você. Percebi que era isso
que ele estava fazendo no cemitério; por isso fiquei tão
chateada. Sinto muito. — Os olhos de Isadora
começaram a lacrimejar, e ela parecia ter o coração
partido.
— O que há de errado? Por que você está chorando? O
que eu fiz?
— Você não fez nada, Kat. Por favor, pare de pensar
que tudo é culpa sua. Foi algo que fiz e não sei como
consertar. — Isadora caiu em prantos, soluçando na
curva do pescoço de Kat.
— Quer me contar sobre isso? Não precisa, se não
quiser — disse ela, afastando-se para enxugar as
lágrimas de Isadora com a manga do suéter. — Parece
que estou deixando todo mundo chateado hoje. Quando
eu disse à minha mãe e sua amiga Maddie que eu ia
encontrar você hoje, elas ficaram totalmente
apavoradas. Maddie disse que a minha história e a de
Katrina eram muito parecidas. Achei que estava apenas
falando sobre como Katrina e eu nos apaixonamos por
pessoas novas na cidade, mas agora me pergunto se há
mais do que isso.
Isadora colocou as mãos no rosto, esfregando acima
dos olhos como se estivesse com dor de cabeça e depois
afastou os cabelos do rosto.
— Tenho certeza que sim; na verdade, eu sei que há —
ela disse, mas então elas ouviram um barulho que as
assustou. — Espere, você ouviu isso? — O barulho soava
como folhas sendo esmagadas sob pés, como se alguém
estivesse tentando se aproximar delas. Ambas pararam o
que estavam fazendo, tentando ficar o mais quietas
possível.
— Shh, acho que tem alguém ali — Kat sussurrou, logo
antes de ouvirem o estalo alto de um galho e alguém ou
alguma coisa se afastando rapidamente. Elas correram
na direção do barulho, mas não encontraram ninguém lá.
O que viram, no entanto, foi ainda mais perturbador.
Logo além das árvores, havia um círculo de velas
apagadas em torno de um trecho elevado de grama. No
topo do monte havia uma pedra grande e lisa. Alguém
havia usado pólvora negra e giz para cobri-la com
símbolos rabiscados às pressas.
— O que é isso? — Kat se ajoelhou, uma sensação ruim
arrepiando sua nuca.
— Acho que é um túmulo — disse Isadora, ajoelhando-
se ao lado de Kat. — Mas não há nome.
— Como nunca vi essa lápide?
— Podia estar encoberta. Parece que alguém afastou
todas aquelas folhas e galhos. — Isadora pegou o celular
e tirou fotos. — Vou pesquisar o que esses símbolos
significam. Parecem sinais cabalísticos para feitiço de
invocação, mas não tenho certeza — disse ela, tirando
fotos de todos os ângulos. — Eu me pergunto quem está
enterrado aqui, e por que alguém ia querer invocá-lo?
Acho estranho não haver nome na lápide.
— Ah, não sei — disse Kat. — Aposto que sei o que
houve. Os Sleepy Hollow Boys provavelmente realizaram
um de seus rituais estúpidos aqui. Nem sabem o que
estão fazendo na metade do tempo. Tenho certeza de
que não é nada para se preocupar. — Kat se levantou, de
repente se lembrando do motivo pelo qual elas haviam
se encontrado. — Acho que estou deixando as coisas me
afetarem. Ler o diário de Katrina realmente me assustou
ontem à noite.
— Mas você ouviu o mesmo barulho que eu? Quem
estava lá? Estavam nos observando? — Isadora olhava
em torno do vale, examinando-o em busca de qualquer
coisa que parecesse errada.
— A cera da vela está dura. Não acho que alguém
estivesse por aqui agora. O barulho provavelmente deve
ter sido apenas um animal — disse Kat. — Vamos, você
tem que ler sobre a noite em que Brom foi atacado pelo
Cavaleiro. É realmente assustador. — Ela pegou a mão de
Isadora e a levou de volta para a Árvore Mais Antiga: o
exato local onde Brom teve o encontro com o Cavaleiro
Sem Cabeça. — Está vendo isso? — ela falou, apontando
para o oco da árvore. — Brom disse para Katrina que viu
sangue jorrando daqui pouco antes de o Cavaleiro Sem
Cabeça aparecer.
— Então, acha que era mesmo o Cavaleiro Sem
Cabeça? — Isadora ainda parecia perturbada ou nervosa,
mas Kat não sabia como trazer à tona o que elas falavam
antes de se distrair com o que quer que os Sleepy Hollow
Boys estivessem fazendo no vale. Não queria pressioná-
la.
— Não tenho certeza. Quer dizer, não consigo imaginar
que Brom diria a Katrina que foi atacado pelo Cavaleiro
Sem Cabeça se não tivesse sido. A lenda da família o
pinta como um homem orgulhoso — ponderou Kat.
As meninas se sentaram perto do oco da árvore, dessa
vez um pouco mais perto para que pudessem ler juntas.
Kat se distraiu com a sensação da perna de Isadora ao
lado da sua. Queria erguer a vista para ela novamente,
um motivo qualquer para olhar em seus olhos, mas não
se atreveu. Em vez disso, manteve os olhos na página,
mas não pôde deixar de sentir que Isadora estava a
observando.
— Parei de ler logo antes do famigerado Baile da
Colheita, então só precisamos voltar atrás para que você
leia sobre o que aconteceu com Brom — Kat disse, ainda
com os olhos no diário.
— O Baile da Colheita foi a noite em que o Cavaleiro
Sem Cabeça assustou Ichabod? — perguntou Isadora,
parecendo estar nervosa de novo.
— Isso é o que a lenda local conta, mas eu presumi que
na verdade foi Brom, porque ele estava com ciúmes que
Katrina gostasse tanto de Ichabod. Sempre me perguntei
como Katrina se sentia sobre Ichabod fugir daquele jeito
— disse Kat. — Acabei de me lembrar de uma coisa.
Baltus chamava Ichabod de sr. Crow em vez de sr. Crane.
E seu sobrenome é Crow. Estou me perguntando se é por
isso que minha mãe surtou por você e eu sermos amigas.
Como se nossa amizade a estivesse lembrando de
Katrina e Ichabod. Ela insistiu que você fosse jantar lá em
casa hoje à noite para que pudesse conhecê-la.
O sorriso de Isadora parecia tenso, como se quisesse
dizer alguma coisa, mas estivesse com muito medo.
— O que você disse para sua mãe sobre mim?
— Só que gosto de verdade de você, e acho que ela
também vai gostar. — Kat podia ver que ainda havia algo
que Isadora queria lhe dizer, mas entendia como era
difícil para ela compartilhar coisas que a deixavam
vulnerável, e não queria pressioná-la se ela ainda não
estivesse pronta. Mas, pela primeira vez, sentia-se
completamente segura com alguém e esperava que
Isadora sentisse o mesmo e confiasse nela com o que
quer que fosse que a deixara tão perturbada. Então,
decidiu compartilhar outra coisa com ela, algo que não
falara a ninguém.
— Nunca contei isso a ninguém, mas eu realmente
quero ser escritora. Tenho procurado faculdades em
lugares como Nova York e São Francisco, embora minha
mãe não queira que eu vá.
Isadora sorriu.
— Então, você deveria! O que a impede? — ela
perguntou, apertando a mão de Kat.
— Não sei. Acho que meus pais, suas expectativas e,
claro, Blake. E, antes de conhecer você, realmente não
havia motivo para ficar.
— Nunca deixe ninguém ficar no caminho do que você
quer fazer, Kat. Sabe para onde quer ir? Quero me formar
em cinema e fotografia, e tenho certeza de que existem
faculdades com bons programas para literatura e
cinema. Quem sabe não acabamos na mesma faculdade?
— disse Isadora, fazendo o coração de Kat se alegrar. A
ideia de irem para a faculdade juntas lhe causou uma
emoção que ela não esperava. Essa conversa teria sido
completamente diferente se estivesse com Blake. Ele
sempre descartava as coisas pelas quais Kat sentia
paixão e a fazia se sentir uma tola por não querer ficar
em Sleepy Hollow, onde já tinha um futuro planejado
para ela. Um futuro que a fazia se sentir presa e acabaria
drenando toda a sua vida. E então onde acabaria? Na
cripta da família Van Tassel com todas as outras Katrinas.
— No que você está pensando? — perguntou Isadora.
— Em nada específico, estou apenas feliz que
tenhamos nos conhecido, Isadora Crow, só isso — disse
Kat, sorrindo.
— Estou feliz também.
— Então, tudo bem para você ir jantar na minha casa
hoje à noite? Minha mãe basicamente decidiu que você
vai — disse Kat, rindo.
— Bem, se já está decidido, acho que vou — respondeu
Isadora, nervosa.
— Ah, e a amiga da minha mãe, Maddie, estará lá.
Você pode se sentir como se estivesse sendo
interrogada, entre minha mãe, Maddie e, claro, meu pai,
mas ele é um doce — disse Kat, ambas rindo agora.
— Posso lidar com isso.
— Tenho certeza que pode — disse Kat, pensando que,
se havia alguém que poderia lidar com sua família, esse
alguém era Isadora. — Acho que você vai gostar de
Maddie. Ela é um pouco estranha, mas essa é uma das
razões pelas quais eu a amo tanto. Como ela me disse
hoje, vê Katrina o tempo todo e conversa com ela e tal.
— Ela conversa com o fantasma de Katrina? Que
sinistro — disse Isadora, olhando em volta como se
estivesse um pouco assustada.
— Você está bem? Toda vez que menciono a primeira
Katrina ou o Cavaleiro Sem Cabeça, você parece um
pouco assustada. É por causa do que eu lhe disse sobre
esta árvore? Podemos ler o diário na minha casa, se
quiser. Não quero que você sinta medo.
— Não, estou bem. Sempre imaginei que os fantasmas
fossem mais como impressões, como velhas fotografias
desbotadas, vestígios que sobraram. Como se eu nunca
tivesse pensado neles como pessoas reais que podem
pensar, sentir e falar, mas agora estou começando a me
questionar. Isso faz sentido? — perguntou Isadora.
— Faz todo o sentido. Sim, odeio a ideia de espíritos
andando por aí com todas as lembranças de sua vida,
apenas, tipo, presos aqui para sempre. Há algo
realmente triste e horrível nisso. Como o Cavaleiro Sem
Cabeça: ele está preso em um loop noturno, procurando
a cabeça. Isso parece uma existência terrível. Lembro-me
de pensar nisso quando era pequena e, então, comecei a
entender todas essas histórias, e me senti tão mal por
ele; acho que foi por isso que duvidei que fosse real,
porque não queria acreditar que todos os fantasmas aqui
eram infelizes. Odeio pensar no fantasma de Katrina
preso, especialmente porque ela já se sentia presa em
Sleepy Hollow quando estava viva. — Kat notou que
lágrimas estavam se formando nos olhos de Isadora
enquanto ela falava. — Oh, ei, o que há de errado? —
perguntou, enxugando uma das lágrimas de Isadora.
— Você tem uma mente bonita, Kat, só isso. — O rosto
de Isadora estampava uma profunda expressão de
tristeza.
— Tem certeza? — Kat perguntou, buscando o olhar de
Isadora. As lágrimas ainda molhavam-lhe os cílios,
fazendo os olhos brilharem. Parecia que Isadora tinha
mais a dizer, mas estava com muito medo. — Sério, o
que foi? — perguntou Kat. Isadora parecia estar em outro
lugar, arrebatada por uma lembrança.
— Acho que só estava me perguntando se é por isso
que você não acredita em fantasmas. Não fez sentido
para mim no começo, mas acho que a razão pela qual
você não acredita é porque tem medo de ficar presa em
Sleepy Hollow para sempre.
Kat sentiu o estômago revirar.
— Isso me aterroriza, para ser sincera; é meu pior
pesadelo. Mas é mais do que isso: a ideia de fantasmas
nos rodeando, espreitando em cada canto, se
escondendo atrás de cada árvore, nos seguindo aonde
quer que vamos realmente me assusta. Quando estava
crescendo, não conseguia dormir na maioria das noites
porque tinha medo deles. Não contei a ninguém além de
Blake e meus pais sobre isso, mas na época em que era
garotinha, estava convencida de que o fantasma de uma
dama me assombrava. Ela me seguia em todos os
lugares que eu ia. Sempre estava comigo, sempre. Eu a
via por todo lado. E acho que ela pode estar me
assombrando de novo.
— Que loucura, quem é ela? O que seus pais fizeram?
— Minha mãe disse que eu não deveria ter medo, mas
sempre tive muito. O estranho era que, quando Blake e
eu éramos pequenos, eu não tinha medo dela; era como
nossa amiga, sempre lá, como se estivesse nos
protegendo, mas à medida que crescemos, ele disse que
não conseguia mais vê-la, e eu pensei que ele estava
fingindo que ela não estava lá, porque parecia que ele de
fato a via. Eu tinha quase certeza de que os vi
conversando na Árvore Mais Antiga muitas vezes quando
achava que eu não estava olhando, mas ele sempre
negava. Passado um tempo, ele disse que ela nunca
esteve lá, nunca existiu. Disse que estava apenas
fazendo de conta que era real, como brincadeira de
criança, e que ele deixara isso para trás.
Isadora estreitou os olhos.
— Como ela era?
Kat pensou um pouco e percebeu que não se lembrava.
Era tão estranho que não conseguisse se lembrar da
aparência da dama. Tudo o que recordava eram os
cabelos louros dela.
— Sinceramente, não me lembro. É estranho porque eu
a vi todos os dias por tanto tempo, e agora nem consigo
visualizar o rosto dela em minha mente. Perguntei a
Blake, mas ele disse que não sabia, porque nunca a viu.
— Ele é tão idiota. Acho que você não tinha medo de
fantasmas, Kat. Acho que você estava com medo de
estar enlouquecendo.
Kat estava com a velha sensação de ansiedade que
tinha quando acreditava em fantasmas, e que ela tanto
odiava; era como uma névoa escura e pesada que a fazia
se sentir cansada e sozinha, mas, pela primeira vez,
sentia que tinha alguém com quem podia conversar
sobre isso.
— É uma loucura, mas acho que a vi algumas vezes
recentemente, no café e no cemitério, e, de verdade, isso
está me assustando. E se for a mesma dama? — A mão
de Kat tremia.
— Eu sei que tudo vai ficar bem. Você é uma das
mulheres mais fortes que conheço, Kat Van Tassel —
declarou Isadora, fazendo Kat sorrir.
— O que a faz dizer isso? Acabamos de nos conhecer. E
não acho que eu seja particularmente forte.
— Ah, você é. É mais corajosa do que imagina. Foi
preciso muita coragem para terminar com Blake e se
abrir comigo depois de tudo que passou com ele. Tenho a
sensação de que você fará grandes coisas, Kat.
Kat queria ser todas essas coisas. Queria ser corajosa e
forte, mas não se sentia assim havia muito tempo. Não
estava acostumada a ter uma pessoa amiga que fosse
tão aberta com seus sentimentos. Alguém que
simplesmente dizia o que lhe passava na cabeça. Fazia
muito tempo desde que Kat se sentia confortável falando
sobre si mesma e segura fazendo isso. Ela não sabia
mais o que dizer. Queria tanto ser a pessoa que Isadora
pensava que fosse, e não queria dizer nada que
estragasse a ilusão.
— Devemos ler o diário de Katrina? O jantar é às seis.
Acho que temos algum tempo antes de sairmos.
— Temos muito tempo — confirmou Isadora,
verificando a hora no telefone.
— Maravilha. Vamos colocar você em dia sobre o que
aconteceu até o ponto em que parei e podemos ler pelo
menos tudo que leva ao Baile da Colheita. Dei uma
olhada em algumas partes esta manhã, mas não queria ir
muito adiante antes que pudéssemos ler juntas.
— Estou muito feliz que você queira compartilhar isso
comigo — disse Isadora.
Naquele momento, Kat estava feliz como não se sentia
havia muito tempo, mas não conseguia afastar a
sensação de que alguém as observava. Então, procurou
dentro de si mesma e tentou reunir aquela coragem que
Isadora enxergou dentro dela enquanto as duas liam o
diário de Katrina juntas. Embora Kat tivesse que se
perguntar se alguém ou alguma coisa estava lá com elas
lendo por cima de seus ombros.
TREZE

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

CORTEJANDO KATRINA VAN TASSEL

Apesar do sol quente infiltrando-se pelos galhos de


carvalho lá no alto, sinto o frio do outono no coração.
A luz é diferente nesta época do ano, dourada e
laranja-queimado, como se a cor da paisagem se
refletisse no céu, lançando seu brilho mágico. Eu só
queria que ela me mantivesse aquecida. Acho que o
calafrio no coração é a triste constatação de que não
vou me casar com Brom. Tenho protestado contra
esse casamento há tanto tempo que acho que me
esqueci por que amei Brom muitos anos atrás.

Katrina e brom sentaram-se embaixo da árvore mais antiga como


faziam quando jovens. Katrina experimentou uma
profunda tristeza no coração sentada diante dele. Pela
primeira vez em anos, sentia-se à vontade e conectada a
ele. Enquanto Brom compartilhava o encontro com o
Cavaleiro Sem Cabeça em detalhes vívidos, ela
conseguia ver os eventos se desenrolando na mente e
podia perceber que ele ainda estava tomado de uma
sensação de pavor e terror. As mãos de Brom tremiam ao
descrever o corcel demoníaco do Cavaleiro Espectral
quase esmagando-lhe o crânio. Ela nunca o vira tão
assustado, ou tão vulnerável.
— Katrina, por favor, não conte a ninguém sobre isso,
em especial para o seu pai. E, pelo amor de Deus, não
conte a Ichabod.
Katrina queria mencionar a ironia, ele sendo atacado
pelo Cavaleiro Sem Cabeça após ter provocado Ichabod
de maneira tão impiedosa, mas não conseguiu fazer
outra coisa além de ouvi-lo e tranquilizá-lo.
— Não direi uma palavra, Brom, prometo. — Queria
pegar a mão dele na sua, apenas para acalmar-lhe os
nervos e impedir que tremesse. Sentiu o coração
amolecer ao vê-lo tão vulnerável e se perguntou se essa
mudança nele ia durar. — Estou feliz que você esteja
bem — disse ela, sentindo-se triste com o estado das
coisas entre eles. Ela o amara tanto e, embora sentisse o
coração se abrir para Brom naquela tarde, não pôde
deixar de se lembrar de como ele a vinha tratando mal
ultimamente.
— Sei que você não está feliz comigo, Katrina. Mas,
para ser sincero, não entendo o que fiz de errado — disse
ele com uma expressão profundamente triste no rosto.
— Desculpe, Brom. Eu o amo, mas não quero me casar
com você. Já não quero há muito tempo. Não desejamos
as mesmas coisas.
— Você quer Ichabod, é o que está dizendo! — ele
acusou e, como se o tivesse conjurado ao pronunciar seu
nome, virou-se e viu o rival parado na estrada. — Falando
no espantalho. — Brom revirou os olhos, e ali estava ele
de novo, o Brom que ela não conseguia amar com todo o
coração.
— Lamento que as coisas tenham sido assim para nós,
Brom. Lamento verdadeiramente. Espero que um dia
você encontre alguém que o ame sem reservas — ela
disse, enquanto a voz alegre de Crane exclamava da
estrada.
— Katrina, minha querida! — Ele segurava uma pilha
de livros em uma mão e inclinava o chapéu com a outra
em seu habitual floreio elegante, curvando-se
profundamente. Brom abanou a cabeça e sorriu.
— Como consegue suportá-lo, Katrina? — questionou
ele, levantando-se e espanando as folhas secas que se
prenderam em suas calças. Katrina percebeu que Brom
se sentia desconfortável e não queria que Ichabod o
visse naquele estado. Ele ainda usava as mesmas roupas
da noite anterior, cobertas de terra, e parecia não ter
pregado os olhos.
— Você está bem aí, meu bom homem? — disse Crane
enquanto se aproximava.
— Estou bem, Crow. Estava de saída.
— Tenho certeza de que você ficará feliz em saber que
não tive encontros mortais com o Cavaleiro Sem Cabeça
na noite passada, se bem que eu suponha que minha
cabeça ainda presa ao meu pescoço seja uma prova
disso — disse Crane, rindo. — Embora, a julgar por sua
aparência, eu me pergunte como você se saiu na Sleepy
Hollow Road. — Ele olhou Brom de cima a baixo.
— Adeus, Katrina. Espero que seja feliz com sua
escolha — disse Brom, dando meia-volta e saindo
rapidamente, sem dirigir uma palavra a Crane.
— Adeus, Brom. — Katrina sabia que havia partido o
coração dele e sentiu como se ele tivesse levado um
pedacinho do seu próprio consigo. Manteve os olhos em
Brom enquanto ele caminhava lentamente pela Sleepy
Hollow Road, imaginando o que seria da vida dele agora
que não estavam mais juntos. Muito do futuro dele
estava ligado a Katrina e sua família. Ela sentiu que não
só havia partido-lhe o coração, mas também destruíra o
futuro dele.
— Ele parece estar em um estado lamentável — disse
Crane com um sorriso inusitadamente perverso no rosto.
— Seja gentil, Ichabod, ele está passando por um
momento difícil agora — respondeu Katrina, observando
Brom e aquele pedacinho de seu coração desaparecerem
na estrada.
— Eu diria que está percebendo o que perdeu. — Ele
beijou a mão dela. — Sua beleza é tão fascinante que
quase esqueci meu propósito em me aventurar aqui,
minha querida Katrina. Tome, trouxe isso para você. —
Ele lhe entregou um livro, mas ela não o olhou; os olhos
continuavam na estrada, embora Brom não estivesse
mais à vista. — Katrina?
Ela piscou algumas vezes e voltou a se concentrar em
Crane.
— Sinto muito, obrigada, Ichabod. — Ela não podia
deixar de ficar preocupada com Brom.
— Por favor, não me diga que você ainda tem
sentimentos por aquele imbecil, Katrina. Ele é um tolo e
um valentão e não merece você — disse Crane,
parecendo um pouco mal-humorado.
— Claro que ainda tenho sentimentos por ele, Ichabod.
Somos próximos desde a infância; sentimentos assim não
desaparecem da noite para o dia — respondeu ela,
surpreendendo-se.
— Então, você ainda está apaixonada por ele? — ele
perguntou, afastando-se dela, quase recuando, as feições
divertidas e encantadoras agora parecendo desajeitadas
e endurecidas.
— Eu o amo, mas não tanto quanto antes. Meu coração
não pertence mais a ele. — Ela se sentiu triste em
admitir, mas isso pareceu deixar Ichabod à vontade.
— Então, será minha missão conquistar seu coração,
querida Katrina — disse ele, estendendo o braço. — Seria
um grande prazer se você me permitisse acompanhá-la
até em casa.
Depois daquele dia, a árvore mais antiga tornou-se o ponto de
encontro especial dos dois. Ficavam horas sentados sob a
proteção daqueles galhos, conversando sobre seus
sonhos e planos para o futuro. Era onde Katrina
compartilhava todas as coisas com Ichabod que nunca
havia podido com Brom — como queria
desesperadamente deixar Sleepy Hollow, como pretendia
viajar pelo mundo e o desejo mais secreto que não havia
revelado a mais ninguém.
— Sabe o que eu queria mesmo, Ichabod? — ela
perguntou em uma preguiçosa tarde de outono.
— Passar sua vida comigo — ele disse, tirando
cuidadosamente uma pequena folha vermelha dos
cabelos dourados de Katrina. — Porque isso é o que eu
mais desejo. — E de repente ela ficou muito feliz por ter
um homem que a encorajava e a respeitava por quem
ela era e, o mais importante, nunca tentara forçá-la a
viver uma vida que ela não queria.
— Você é tão doce, Ichabod — disse ela, olhando para
a folhinha que ele colocara na mão dela. Era tão pequena
e delicada, uma folha em miniatura de formato perfeito.
Ela abriu o livro de poemas de Byron que estavam lendo
e a colocou entre as páginas. — Eu ia dizer que o que
mais queria é me tornar escritora. — Ao dizer isso,
esperava que ele não a achasse tola.
— Acho que é uma excelente ideia, Katrina. Acredito
que você seria uma escritora cativante. Tem alguma
história em mente? — perguntou, embora Katrina não
pudesse deixar de notar que Ichabod parecia um pouco
magoado por seu maior desejo não ser casar-se com ele.
— Acho que quero narrar as histórias e lendas de
fantasmas de Sleepy Hollow, especialmente o Cavaleiro
Sem Cabeça. — Sentiu-se nervosa e emocionada por
finalmente revelar isso a alguém.
— E suponho que você vá chamá-las de As aventuras
de Ichabod Crane — disse ele, rindo. Katrina piscou de
perplexidade e balançou a cabeça.
— Não. O que quer dizer? Por que eu as chamaria
assim?
Ele lhe lançou um olhar de completa estranheza, como
se ela devesse saber exatamente do que ele estava
falando.
— Katrina, minha querida cabecinha de vento, você
deve ter esquecido, mas eu lhe disse que estava
planejando escrever sobre minhas experiências aqui em
Sleepy Hollow. Um jovem professor chegando a uma
nova cidade, descobrindo os segredos do Cavaleiro Sem
Cabeça.
Ela vasculhou a memória, tentando recordar aquela
conversa. Não se lembrava de ele ter dito alguma vez tal
coisa.
— Acho que você não me contou sobre isso, Ichabod. E,
só para constar, embora admita que costumo esquecer
as coisas, não gosto particularmente de ser chamada de
“cabecinha de vento”.
Crane franziu a testa.
— Oh, minha querida, eu não quis ofender. Você sabe
que acho você a mulher mais inteligente de Sleepy
Hollow. Mas deve se lembrar da nossa conversa, foi na
mesma noite em que sua mãe fez torta de nozes, pudim
de pão de chocolate e tortinhas abertas de abóbora para
a sobremesa. Você se lembra, nós nos sentamos na
varanda dos fundos olhando as estrelas depois do jantar.
Katrina suspirou.
— Eu me lembro daquela noite, mas não me recordo de
você ter mencionado que queria escrever essa história.
— Bem, isso fere meus sentimentos, Katrina. Tudo
sobre o que falamos arde intensamente em minha alma
como uma faísca de luz que nunca se apaga — ele disse,
fazendo-a se sentir mal. — Eu me pergunto quantas
coisas mais você esqueceu, minha amada, quando eu
cuidadosamente cataloguei todas as conversas que
tivemos, como o mais zeloso dos bibliotecários. Ora, até
me lembro do seu conto de fadas preferido, aquele sobre
a bruxa que se alimenta dos ossos das crianças e voa por
aí no almofariz e no pilão. Foi isso que me deu a ideia de
contar a história do Cavaleiro Sem Cabeça, você deve se
lembrar. Eu disse que estava surpreso que você gostasse
tanto de uma história tão mórbida, e você disse que
cresceu com histórias como as do Cavaleiro Sem Cabeça,
e eu falei que adoraria colocar a história dele no papel
com minha confiável pena.
— Sinto muito, Ichabod — disse ela, sentindo-se muito
confusa.
— Não se preocupe, meu amor. Tenho certeza de que
você vai pensar em uma história própria. — Ele deu
tapinhas na cabeça dela. — Venha, minha doce
cabecinha de vento. O crepúsculo se aproxima, e sua
família ficará zangada conosco se nos atrasarmos para o
jantar.
CATORZE

O FANTASMA NA ÁRVORE

O céu estava começando a ficar dourado, com faixas de nuvens


vermelhas lançando um brilho outonal na Árvore Mais
Antiga. As folhas dançaram como se estivessem agitadas
quando Kat fechou com força o diário de Katrina e o
jogou, assustando Isadora.
— Qual é o problema, Kat?
— Era tão óbvio que Crane estava mentindo — disse
Kat, levantando-se e andando de um lado para o outro.
— Quero dizer, qual é! Todas aquelas coisas sobre ele
falar que ia escrever sobre o Cavaleiro Sem Cabeça.
Katrina não se esqueceu, e acho que ela sabia disso; só
não queria admitir que ele estava sendo um babaca. E
chamá-la de “cabecinha de vento”? Que diabos foi
aquilo?
Isadora estreitou os olhos.
— Desculpe, deve ser difícil ler isso depois de tudo que
Blake fez com você — ela comentou, pegando a mão de
Kat.
— Você quer dizer todas as coisas que eu deixei Blake
fazer comigo? — corrigiu Kat, ainda com raiva.
— Não foi isso que eu quis dizer, Kat. Mesmo.
— Tudo isso é muito estranho, certo? Quero dizer, você
não acha? É como se eu estivesse vivendo a vida de
Katrina.
Isadora balançou a cabeça.
— Não tenho certeza se é assim tão simples.
— Eu me pergunto, no entanto — Kat continuou,
sentindo-se perdida em suas emoções. Sentia muitas
coisas ao mesmo tempo para ser capaz de se concentrar.
Tanta coisa tinha acontecido em apenas poucos dias.
Enxergava sua vida nitidamente pela primeira vez em
muito tempo, mas estava com medo de que ainda não
tivesse controle sobre ela, como se estivesse vivendo a
vida de Katrina, e isso a assustava. Estaria apenas
entrando em outro relacionamento porque era com isso
que estava acostumada? A única coisa que sabia com
certeza era que estava feliz por ser com Isadora.
Geralmente, achava-se muito sozinha quando estava
sobrecarregada de emoções, mas, por algum motivo,
sentia que estava segura com Isadora. — Vamos lá, ou
vamos nos atrasar para o jantar. — Ela pegou Isadora
pela mão. — Espere, esquecemos o diário de Katrina. —
Inclinou-se para pegar o diário na base da árvore e, ao se
levantar, pensou ter ouvido alguma coisa.
— Ouviu isso? — Kat ficou imóvel, tentando
permanecer o mais quieta possível para poder escutar. —
Shhh, não se mexa. — Aproximou o ouvido da árvore,
mas no momento em que o fez, afastou-se cambaleando,
aterrorizada. — Ai, meu Deus! Isso é um batimento
cardíaco? — Por instinto, puxou Isadora para longe da
árvore.
— É a mesma coisa que Brom ouviu na noite em que
viu o Cavaleiro Sem Cabeça — disse Isadora, a voz se
elevando. — Temos de ir, agora! — Isadora parecia que ia
desmaiar. Kat a pegou pela mão para firmá-la.
— Shhh, espere! — disse Kat. — Acho que ouço uma
voz lá dentro. — Inclinou-se para mais perto, tentando
trazer Isadora consigo, mas a garota não se mexeu,
estava com muito medo. — Venha aqui, escute, não acho
que ele vai nos machucar.
— O que quer dizer com “ele”? Quem não vai nos
machucar? — Mas antes que Kat pudesse responder, da
árvore começou a escorrer um fluido vermelho vivo,
espesso e viscoso; estava vazando do buraco e se
acumulando na base. Nada daquilo parecia real. Kat
achou que fosse desmaiar também. Ambas recuaram,
horrorizadas. Kat sentiu como se, de alguma forma,
tivessem entrado nas páginas do diário de Katrina. O
sangue inundou o chão da floresta, cobrindo as folhas e
se acumulando a seus pés.
— Espere, olhe, há algo ali — disse Kat, apontando
para um objeto brilhante na poça de sangue a poucos
centímetros de seu pé. Abaixou-se e o apanhou,
limpando-o em sua saia longa.
— Não toque nisso, Kat. Por favor, venha!
— Olhe, é um medalhão. — A mão de Kat começou a
tremer quando virou o objeto oval e dourado com
dobradiças. Lá, gravadas no verso, estavam as iniciais de
Katrina; as suas iniciais. — Acho que pertencia a Katrina.
— Ela apenas ficou parada ali, enojada com o sangue que
ainda estava grudado nele e cobria suas mãos.
— Fique calma. Eu não vou machucá-la. — A voz partiu
de dentro da árvore. Era grave, sonora e de alguma
forma reconfortante.
— Mas que droga é essa? — indagou, deixando cair o
medalhão. Ela o observou enquanto afundava, sumindo
de vista na poça de sangue.
— Você está totalmente segura comigo. Anos atrás,
prometi a Katrina, a primeira com tal nome, que eu
sempre protegeria suas homônimas, e assim o farei. Vá
para casa e continue lendo. Sei que Katrina quer que
você saiba a verdade.
— Onde está Katrina? Por que ela mesma não me conta
isso?
— Porque ele não vai deixar, mas você precisa saber a
verdade, e ela não quer que você tenha medo.
— Quem não vai deixar? Que verdade? Quem é você?
— ela perguntou, sentindo como se o mundo estivesse se
movendo sob seus pés. Sentiu-se tonta e enjoada, e não
conseguia se concentrar direito. Sua visão estava se
estreitando e ela foi tomada por uma dor no fundo dos
olhos. Temia que fosse desmaiar.
— Você deve ir embora, Kat, antes que ele chegue.
— Antes de quem chegar? O Cavaleiro Sem Cabeça? —
ela perguntou, estendendo a mão para Isadora a fim de
se equilibrar. Viu luzes coloridas intermitentes e
irregulares em sua visão periférica. Estava tão
desorientada que caiu no chão, sem se importar de estar
sentada perto da poça de sangue que se alastrava.
— Kat, você está bem? — Isadora sentou-se ao lado
dela, olhando-a nos olhos. — Kat? Qual é o problema?
— Nenhuma de vocês deve temer o Cavaleiro. Agora,
por favor, vão embora daqui e acabem de ler a história
de Katrina; ela quer que vocês duas saibam como
termina — disse a cavernosa voz na árvore. O batimento
cardíaco ficou mais alto, e o sangue começou a jorrar ao
redor delas, encharcando suas roupas. Kat sentiu como
se estivesse se afogando no medo, imobilizada, a cabeça
estourando de dor.
— Kat! Você está bem? — Kat podia ouvir Isadora
chamando desesperadamente por ela, mas estava
paralisada pela Árvore Mais Antiga. Não entendia por que
estava tão aterrorizada; sentiu que havia algo, ou
alguém, preso lá dentro, e isso fez seu coração ribombar
como um trovão, seu batimento cardíaco emparelhando
com o que vinha do interior da árvore.
— Como sabemos que você está dizendo a verdade? —
perguntou Kat.
— Abra o medalhão.
Uma mão em forma de garra saiu de dentro do buraco,
pingando sangue, o medalhão pendurado em uma
corrente pendendo de um dos dedos.
— Pegue-o. Era de Katrina. Ela me deu muitos anos
atrás, mas acho que agora deve pertencer a você.
Kat estendeu a mão e apanhou o medalhão, mas sua
cabeça latejava tão rápido e tão forte quanto seu
batimento cardíaco.
Ela colocou as mãos na cabeça para tentar parar a dor
lancinante enquanto Isadora a abraçava com força,
tentando confortá-la.
— Mas quem é você? — ela perguntou, estendendo a
mão para baixo a fim de abrir o medalhão e ver o retrato
de Katrina ali dentro.
— Eu não sou ninguém. Agora vá e leia nossa história.
Você me despertou e pôs coisas em movimento que
talvez não possamos controlar. Parta agora, antes que
ele a machuque. Acho que ele está bem próximo.
Então, elas souberam a quem a voz se referia. Blake
estava parado na estrada, imobilizado pelo choque
enquanto encarava Kat e Isadora de pé sob a Árvore Mais
Antiga, ambas cobertas de sangue.
QUINZE

O SEGREDO DE ISADORA
CROW

I sadora e blake receberam ordem de se sentar à mesa da cozinha


para permanecerem sob o olhar atento de Maddie
enquanto Trina cuidava de Kat no andar de cima, no
quarto.
— O que, pelo Fantasma de Sleepy Hollow, aconteceu
lá fora? — A mãe de Kat estava transtornada.
— Mãe, não consigo pensar direito agora. Por favor,
acalme-se. — A dor de cabeça de Kat começava a
diminuir, mas ela ainda se sentia tonta e enjoada.
— Me acalmar? Você está me dizendo para me acalmar
quando me aparece coberta de sangue?
Kat colocou a mão sobre os olhos para protegê-los da
luz do quarto.
— Mãe, podemos falar sobre isso mais tarde? Prometo
que vou lhe contar tudo.
— Claro. Descanse. Desculpe, voltarei para ver como
você está — disse Trina, apagando a luz e saindo do
quarto.
Kat sabia que Blake e Isadora estavam lá embaixo na
cozinha conversando com Maddie. Odiava a ideia de ter
sido daquele jeito que a mãe vira Isadora pela primeira
vez, e não gostou que ela estivesse lá sozinha com Trina,
Maddie e Blake. Kat levantou-se e abriu ligeiramente a
porta do quarto para ouvi-los conversando.
— Kat está bem, sra. Van Tassel? Posso ir vê-la? —
Dava para Kat perceber o medo na voz de Isadora.
— Não, não pode, Isadora Crow, ela está descansando.
E sim, ela vai ficar bem. Está tendo uma enxaqueca que
provavelmente foi desencadeada pelo que aconteceu no
vale. O que ela precisa agora é de silêncio. — Trina
serviu-se de uma xícara de chá. Sentou-se à mesa ao
lado de Blake, em frente a Isadora. — Agora, me conte o
que aconteceu. — Kat podia imaginar a mãe estreitando
os olhos para Isadora por sobre a xícara de chá enquanto
tomava um gole.
— É, Crow, o que aconteceu? Por que você está coberta
de sangue? — Blake parecia zangado, e Kat estava
preocupada por Isadora estar lá embaixo sozinha sendo
interrogada por eles, mas mal conseguia ficar de pé e
teve que usar o batente da porta para se firmar.
— Estávamos lendo o diário de Katrina quando, de
repente, a Árvore Mais Antiga começou a jorrar sangue e
a falar conosco.
— Como era a voz? Era de mulher? — perguntou
Maddie.
— Não, era a voz de um homem. Dizia: “Ele está
vindo”. Acho que tentava nos avisar que Blake estava
vindo, e a voz na árvore estava com medo de que ele nos
machucasse.
— Você não acredita nisso, não é? Por que eu faria
qualquer coisa para machucar Kat?
— Sério, Blake? Então, que negócio foi aquele na outra
noite? Se exibindo para seus amigos, pressionando Kat
no cemitério para conjurar Katrina e depois fugindo
quando aquele cavalo apareceu?
— Que cavalo? Isso é verdade, Blake? — perguntou a
mãe de Kat.
Alguém havia derrubado uma xícara de chá. Kat a
ouviu se espatifar no chão.
— Pelo Fantasma de Sleepy Hollow! Vocês não fizeram
isso. Onde aquela garota estava com a cabeça,
desonrando sua ancestral tentando invocar o espírito de
Katrina na noite de descanso dela? — horrorizou-se
Maddie.
— Ela não queria fazer isso! Blake a forçou a ir ao
cemitério e a enganou para que fizesse a cerimônia,
embora ela não quisesse. Não foi culpa dela.
— E que papel você teve nisso tudo, Isadora Crow? —
perguntou Maddie.
— Tentei convencê-la a desistir. Estava com medo do
que poderia acontecer.
— Penso que deveria estar mesmo, mocinha! — disse
Maddie de modo tão ríspido que fez Kat estremecer.
Nunca tinha ouvido Maddie soar tão zangada antes.
Desejou de todo coração estar lá embaixo com Isadora,
mas parecia que ela estava aguentando as pontas.
— Sim, srta. Crow, percebemos claramente. Sabemos
quem você é. Você e sua família acharam que mudar o
nome para Crow funcionaria? Todos nós sabíamos quem
vocês eram no momento em que se mudaram para a
cidade.
Houve um longo silêncio, durante o qual Kat os
imaginou olhando para Isadora.
— Eu não sou como ele, sabem — disse ela, olhando
para o diário ensanguentado diante de si sobre a mesa.
— Então, por que esconder de Kat quem você é?
— O que está acontecendo? Quem é ela? — perguntou
Blake, mas nenhuma das mulheres respondeu.
— Eu estava com medo. — Isadora manteve os olhos
fixos no diário, enquanto Trina, Maddie e Blake a
encaravam.
— E aqui está você, como seu distante tio-avô,
tentando arruinar a vida de outra Katrina — disse Trina,
batendo com o punho na mesa. — Bem, eu não vou
aceitar, você me entende? Não vou deixar você entrar
valsando em Sleepy Hollow e causar destruição em nossa
vida! Katrina tem uma responsabilidade e um destino
aqui em Sleepy Hollow, e não quero que você fique no
caminho dela.
Isadora ergueu os olhos e encontrou o olhar de Trina.
— Lamento dizer isso, mas, se tem alguém que está no
caminho dela, esse alguém é você. Você percebe o
quanto ela quer ir para a faculdade? Kat quer ser
escritora, sra. Van Tassel, mas não quer decepcioná-la,
embora tenha pavor de ficar presa nesta cidade para
sempre. Você entende como o medo dela de ficar presa
aqui é profundo? Ela negou a existência do sobrenatural
porque está aterrorizada com a ideia de morrer aqui e se
tornar um dos fantasmas de Sleepy Hollow!
— Você está falando bobagem; Kat nunca mencionou
querer se tornar escritora e não acredita em nossa
história porque está sendo do contra. Ela é uma
adolescente; isso é o que todos vocês fazem! — disse
Trina, mas Maddie assumiu a conversa.
— Eu acho que a srta. Crane está certa, Trina. Katrina
já me disse isso durante nossas conversas sob a Árvore
Mais Antiga.
Blake finalmente se manifestou depois de ficar sentado
ali, parecendo estar tentando desvendar o maior dos
mistérios.
— Então, Isadora é uma Crane? — ele perguntou num
rompante, assustando todas as senhoras na mesa.
— Sim, querido, tente acompanhar — disse Maddie,
balançando a cabeça e revirando os olhos.
— Você é uma Crane! Oh, Kat vai adorar isso! — ele
falou sarcasticamente, recostando-se na cadeira e rindo.
— Eu disse a ela que você era uma aberração. Você
percebe que ela nunca vai perdoá-la por mentir? Nunca
— assegurou ele, com um sorriso sinistro no rosto.
— Não duvido que você tenha razão. Tenho a sensação
de que Kat já teve mentiras o suficiente para uma vida
inteira depois de estar em um relacionamento com você.
Sinceramente, não a culparia se ela nunca mais falasse
com nenhum de nós dois — disse Isadora, agora com
lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Você está certa, Isadora Crane.
Era Kat, parada na porta da cozinha.
— Eu não quero falar com nenhum de vocês dois
novamente. — Ela se virou para sair, mas decidiu que
tinha mais a dizer: — E, vocês dois, cuidado com o
Cavaleiro Sem Cabeça.
DEZESSEIS

COLÉGIO ICHABOD CRANE

Atensão na escola estava alta na quarta-feira, e kat dava graças


aos céus pelas férias de outono estarem prestes a
começar. O Colégio Crane era diferente de outras
escolas. Seus recessos sazonais coincidiam com as várias
colheitas, sendo a mais importante em Sleepy Hollow a
Colheita de Outono, que a cidade celebrava com o
festival e o baile na Véspera de Todos os Santos. Essa era
a época do ano favorita de Kat, porque as férias
prolongadas de outono implicavam que eles não
voltavam às aulas por muito tempo antes de novo
intervalo, o da colheita de inverno. O que significava que
não tinham longas férias de verão como as escolas
tradicionais para compensar o cronograma leve durante
o outono e o inverno, mas o verão não era a estação
favorita de Kat, de qualquer forma.
Havia esquecido por completo que tinha exames finais
naquela semana. Provavelmente, teria que fazer alguns
em segunda chamada, já que a mãe e o pai insistiram
que ela ficasse em casa segunda e terça para se
recuperar dos eventos do fim de semana. Fora um alívio,
porque ela não estava pronta para encarar todo mundo
na escola, especialmente Blake e Isadora. Sentada na
extremidade da cama, não pôde deixar de sentir que
estava vivendo a vida de Katrina. Havia algum tipo de
maldição Van Tassel? Ou a leitura do diário colocara
esses eventos em movimento? E quem era aquela
mulher que a estava assombrando? Tinha tantas
perguntas, e nenhum tempo para pensar nelas. Precisava
se aprontar para as aulas.
Pegou o celular para verificar a agenda no aplicativo da
escola. Enquanto a agenda escolar carregava, uma
animação mostrava o Cavaleiro Sem Cabeça atirando sua
cabeça de abóbora flamejante em uma representação
desengonçada de Ichabod Crane.
— Isso tudo é uma piada para eles — ela murmurou,
meneando a cabeça. — Minha vida é uma piada. Fui
enganada por uma Crane assim como Katrina.
Parecia uma eternidade desde que tinha ido à escola
pela última vez. Tanta coisa havia acontecido no período
de um fim de semana que era difícil para Kat entender
que sua vida virara completamente de cabeça para baixo
no espaço de alguns dias. Nos dois dias de aula que
ficara em casa, todos na escola tiveram tempo de falar
sobre o acontecido no cemitério e seu término com
Blake.
— Tem certeza de que está a fim de ir para a escola? —
O pai de Kat havia perguntado mais cedo, naquela
manhã. Ele ficara em casa sem trabalhar nos dois
primeiros dias daquela semana, muito preocupado com
Kat. Havia trabalhado longas horas durante a colheita do
outono e, quando chegou em casa no domingo à noite e
soube do que acontecera, ficou fora de si de raiva e
preocupação. — Odeio ver você assim, Kat. Não entendo
por que não nos contou antes o que estava acontecendo
com Blake. Minha vontade é esmagar a cabeça daquele
garoto como uma abóbora. Disse a ele que não tem
permissão para entrar nesta casa nunca mais. — Kat
agarrou a mão do pai; sentiu-se amada
incondicionalmente e apoiada, e foi um sentimento
mágico.
— Acho que não contei a você porque não entendia
direito o que ele estava fazendo, pelo menos não no
começo — ela explicou, percebendo que era muito mais
complicado do que isso.
— Parece que você está tentando nos dizer isso há
muito tempo, Kat, e eu me sinto horrível por não ter
prestado atenção. — Kat teve vontade de chorar ao ver o
pai tão vulnerável e arrependido.
— Oh, pai, eu te amo tanto, mas não é sua culpa.
O pai de Kat a abraçou com força.
— Blake enganou todos nós; eu me sinto um idiota por
não ver quem ele realmente era.
Kat sorriu. Sentia-se do mesmo jeito.
— Entretanto, ele era bom nisso, bancar o santinho
para você e mamãe — disse ela, lembrando quão
atencioso e doce ele era na companhia deles.
— Quer dizer que acabou tudo entre vocês, então, e
você não vai deixá-lo convencê-la a voltarem?
Kat entendeu por que ele perguntara isso. Contara tudo
aos pais. As palavras jorraram copiosamente de sua
boca, e ela transbordou de emoção quando enfim
começou a desabafar; era como se não pudesse parar
depois que começou. Percebeu que eles estavam
perplexos e confusos, mas, sobretudo, sentiu que
acreditavam nela, e isso era o que mais importava.
— Não, pai. Não vou deixar ele me convencer a nada
nunca mais — ela respondeu com lágrimas rolando pelo
rosto.
— E quanto a Isadora? Como você se sente sobre ela
agora? Acha que vai lhe dar outra chance? — Ela ficou
surpresa por ele perguntar isso.
— Ela mentiu para mim, pai. Como posso confiar nela
outra vez?
O pai de Kat juntou as mãos e descansou-as no queixo,
como costumava fazer quando tentava encontrar as
palavras certas.
— Ela estava com medo, Kat. Veja como sua mãe e
Maddie reagiram quando descobriram que vocês duas se
tornaram amigas. Claro que ela mentiu sobre quem ela
realmente era: aqui é Sleepy Hollow, pelo amor de Deus;
todo mundo odeia os Crane. Mas me parece que ela tem
sido uma boa amiga, talvez até mais do que uma amiga,
não é? — ele perguntou com um sorriso largo que fez o
coração de Kat saltar de alegria.
— Como você sabia que eu tenho sentimentos por ela?
— Kat, eu conheço você. Vi como você fica quando fala
sobre ela, e sua mãe e Maddie também perceberam; foi
por isso que elas estavam tão preocupadas. Mas, Kat,
odiaria que virasse as costas para alguém que parece
realmente se importar com você, só porque está com
medo. — Seu pai tinha razão; ela estava com medo.
— Então, você acha que posso confiar nela?
O pai sorriu.
— Só há uma forma de descobrir, minha doce menina.
Kat se debulhou em lágrimas por muitas razões, mas
acima de tudo porque o pai estava sendo tão incrível.
— Eu te amo, pai — disse ela, olhando para o relógio e
percebendo que ia se atrasar. — É melhor eu me
aprontar para a escola.
Seu pai lhe deu outro abraço.
— Também te amo, minha menina. Mande uma
mensagem para mim ou para sua mãe se quiser voltar
para casa mais cedo. — Ele lhe deu um sorriso radiante e
um de seus abraços de urso antes de sair do quarto. Kat
não conseguia acreditar que acabara de ter aquela
conversa com o pai; isso a pegou totalmente de
surpresa. A vida parecia tão surreal nos últimos dias, e
ela ainda estava tentando entender sua nova realidade.
Quando abriu o armário naquela manhã para tirar o
uniforme do colégio, uma sensação de pavor se
apoderou dela. Depois de tudo o que acontecera, voltar
às aulas parecia assustador, e o colégio parecia ainda
mais cômico do que nunca. Até os uniformes eram
risíveis, todos pretos com gravatas laranja e emblemas
de abóboras flamejantes nos cardigãs.
Nunca fizera sentido para Kat que o colégio ostentasse
o nome do homem mais ridicularizado e insultado na
história de Sleepy Hollow, porém, uma vez que Ichabod
Crane o fundara e Sleepy Hollow prezava tanto sua
história, eles o batizaram com esse nome: como uma
advertência para aqueles que não levavam a sério a
Lenda de Sleepy Hollow. Kat sempre encarara isso tudo
como uma espécie de piada, considerando que os alunos
não pareciam acreditar para valer na história, e ela não
sentia que a educação que recebia em Sleepy Hollow a
estava preparando adequadamente para a faculdade.
Agora, Kat odiava o colégio mais do que nunca e temia
a ideia de encontrar Isadora ou Blake, ou qualquer outro,
na verdade. Não se importava particularmente com a
maioria das pessoas com quem estudava, em especial os
amigos de Blake. Eles nunca haviam sido de fato seus
amigos, e Kat sempre achara que a única razão pela qual
saíam com ela era por ser namorada de Blake. Agora que
isso não era mais verdade, não tinham nenhum motivo
para falar com Kat, o que estava bem para ela. Era
estranho, mas se sentia menos sozinha agora do que
quando estava com Blake. Embora desejasse que as
coisas tivessem sido diferentes com Isadora. Não se dera
conta do quanto queria alguém em sua vida que amasse
as mesmas coisas que ela até conhecer Isadora naquela
noite nos portões do cemitério. Kat repassou na mente
todas as conversas que tiveram repetidamente, e ela
sabia os momentos exatos em que Isadora quis contar a
verdade, e como ela sofria com isso, mas Kat não
conseguia confiar nela. Estava com medo de passar de
um manipulador para outra. E havia uma parte dela que
sempre sentira ser muito cedo para se envolver com
outra pessoa. Queria tempo para se conhecer
novamente, para se tornar uma pessoa que ela
apreciasse e respeitasse. Queria ser dona de seu nariz, e
não apenas a namorada de alguém. Não queria entrar
em outro relacionamento só porque tinha medo de ficar
sozinha.
Kat por fim conseguiu carregar a agenda no aplicativo
e conferiu que não havia provas naquele dia, mas
perdera o exame de Eventos Históricos, e o diretor Toad
havia enviado um e-mail solicitando que ela fosse ao
gabinete dele no dia em que voltasse para a escola.
Assim que Kat chegou ao colégio, dirigiu-se para o
gabinete do diretor e viu um grupo de alunos reunidos
em torno de um armário, todos eles com os celulares,
presumivelmente tirando fotos do que havia dentro dele.
Suspirou enquanto passava por eles, pelos jardins, e
subia os largos degraus de mármore que levavam ao
enorme edifício neogrego com colunas caneladas. A
entrada era ladeada por duas estátuas de ferro negro em
tamanho natural: à esquerda estava o Cavaleiro Sem
Cabeça, e à direita Ichabod Crane, chapéu na mão
enquanto fugia do sinistro cavaleiro e seu corcel
demoníaco.
Ao entrar no prédio, ficou impressionada com a enorme
fonte no centro do salão, uma estátua da primeira
Katrina sob a Árvore Mais Antiga. A luz que vinha da
enorme cúpula de vidro no alto brilhava na ondulante
cascata, fazendo a estátua parecer viva. Havia passado
por aquela fonte diariamente nos últimos três anos e
nunca apreciara seu significado. Kat ficou ali olhando
para a estátua de Katrina e, pela primeira vez, sentiu
como se realmente a conhecesse e de fato carregasse
algo dela dentro de si. Enquanto se recuperava, só
conseguia pensar em como era estranho que parecesse
viver uma vida paralela à da antepassada.
Kat finalmente se livrou dos devaneios e foi até o
gabinete do diretor. O assistente dele sempre lembrava a
Kat um texugo, com o nariz comprido e pontudo, e
pequenos óculos quadrados. Ele usava o mesmo terno de
tweed verde todos os dias, com um cachecol vermelho e
dourado para se proteger das frias correntes de ar do
grande prédio.
— Bom dia, sr. Angus. O diretor Toad quer me ver? —
ela perguntou, fazendo o inquieto homem pular de susto.
— Sim, sim, claro, srta. Van Tassel, o diretor está
esperando por você. Pode entrar — ele disse, da maneira
nervosa usual. Kat sempre achou o diretor bastante
jovial, por isso perguntou-se por que o assistente dele
estava sempre tão assustadiço e ansioso. Não podia
imaginar que o diretor Toad fosse um chefe exigente ou
duro com o pobre sujeito; na verdade, estava sempre
fora em várias viagens. No entanto, o sr. Angus vivia em
constante estado de agitação.
— Obrigada, sr. Angus — ela agradeceu enquanto abria
a grande porta de madeira.
— Bem, olá, Katrina — disse o diretor quando ela
adentrou o gabinete. Ele sempre usava o nome dela, e
não o apelido, o que geralmente a irritava, mas isso não
acontecera agora. Naquele dia, ela se sentia como uma
Katrina. — Lamento saber que você não andou bem, mas
espero que se encontre recuperada e apta para fazer as
provas finais de outono. — Ele empurrou um grande pote
de vidro na direção dela, cheio de balas duras
embrulhadas em celofane. — Pegue uma, pegue uma!
Você terá uma tarde bem agitada com dois exames de
segunda chamada! — informou.
— Só vi um na programação, diretor Toad4 — ela disse,
olhando para a estátua de bronze de um sapo na mesa,
que parecia estar ansioso por uma das balas que o
diretor acabara de lhe oferecer.
— Talvez eu tenha me enganado, querida. Deixe-me
verificar — afirmou, digitando no computador. — Ah, sim,
entendo, sim, vamos lá, você perdeu o exame escrito de
Eventos Históricos ontem, por isso sugiro que aproveite
os períodos livres para fazer o exame escrito e se
preparar para o exame oral no fim do dia. — Ele lhe deu
um sorriso largo que fez seus olhos parecerem grandes e
parecidos com os de um sapo.
— Obrigada, diretor Toad, embora eu me pergunte por
que não combinei isso com o professor Cyril. — Ela
desejou não ter voltado para a escola. A última coisa que
queria fazer era ficar diante da turma na sala de aula
depois de tudo o que aconteceu. A ideia disso fazia seu
coração disparar, e ela começava a sentir a ameaça de
outra enxaqueca e se perguntou se não deveria mandar
uma mensagem para o pai para que fosse buscá-la.
— Katrina, querida, é o seu celular que está tocando?
Você sabe que eu peço a todos os alunos que silenciem
os telefones antes de entrarem no meu gabinete. — Kat
sequer notara o barulho dos alertas. Nem se deu ao
trabalho de olhar para a tela antes de desligar a
campainha.
— Desculpe — disse ela, olhando para o sapo de
bronze, que estava de olho nas balas.
— Por favor, pegue uma bala ao sair, querida. Sei que
você tem muito que fazer hoje — ele ofereceu,
levantando-se para dispensá-la. — Boa sorte nos
exames, Katrina. Sei o quanto você gostaria de deixar a
primeira Katrina orgulhosa — acrescentou enquanto ela
saía pela porta.
Sentia-se exausta, com o coração partido e sem ânimo.
A última coisa que queria era fazer os exames, mas foi
até a biblioteca, onde costumava passar os períodos
livres.
A biblioteca era seu lugar favorito na escola. Era
silenciosa e repleta do cheiro de livros antigos. Ela pegou
alguns da estante e encontrou uma cadeira
aconchegante em um canto perto de uma janela com luz
do sol para mantê-la aquecida. Havia esquecido de como
fazia frio no prédio principal, ou não teria deixado a capa
da escola em casa, o que muitas vezes fazia porque a
achava ridícula e antiquada. Mas isso era Sleepy Hollow
— ridícula e antiquada.
Revisou as anotações das aulas anteriores de Eventos
Históricos e encontrou algumas ideias que registrara
sobre o que queria escrever para o exame. Nenhuma
delas parecia interessante agora. O professor Cyril
sugerira que os alunos escolhessem o próprio tema,
apenas especificando que deveria ser sobre Sleepy
Hollow. Foi aí que lhe ocorreu: escreveria sobre a noite
em que Ichabod Crane foi expulso da cidade após o Baile
da Colheita, mas contaria a história do ponto de vista de
Katrina. Por isso, pegou o diário, que havia guardado na
mochila, animada para ler o restante da história. E então
sentiu uma pontada de tristeza por Isadora não estar lá
para ler com ela.
— O que disse sobre mim para todos os seus amigos
estúpidos? — Kat ergueu os olhos do diário e viu Isadora
parada ao lado dela. Os olhos de Isadora estavam
inchados e vermelhos, e o delineador, borrado.
— Não sei do que está falando. Não tenho amigos —
respondeu ela.
— Bem, você contou a alguém. — Isadora mal
conseguia falar de tanto chorar.
— Contei a alguém o quê? — perguntou Kat. Isadora
apenas a encarou enquanto lhe entregava o telefone,
aberto em uma foto de seu armário.
— Sinto muito, eu não sabia. Estava no escritório do
diretor. Juro que não contei nada a ninguém — disse Kat,
enquanto Isadora enxugava as lágrimas na manga do
suéter, borrando ainda mais o delineador.
— Então você disse algo para Blake. Quero dizer, por
que eles escreveriam isso no meu armário? É assim que
as pessoas se sentem aqui? — Ela puxou as mangas do
cardigã, tentando torná-las mais compridas para que
cobrissem as mãos. Parecia que tentava se tornar o
menor possível para que pudesse desaparecer.
— Juro que não disse nada para Blake. Ele é a última
pessoa com quem falaria sobre meus sentimentos por
você.
— Ainda tem sentimentos por mim?
— Sim, mas você mentiu para mim. Nunca me senti
assim por ninguém, mas antes que eu pudesse descobrir
o que é isso, descobri que você mentiu sobre quem
era.Você ficou sem dizer uma palavra quando eu lhe
contei sobre todas as coisas horríveis que Blake fez
comigo, como ele mentiu e me manipulou. Pela primeira
vez, senti-me segura para compartilhar meus
sentimentos com uma pessoa, e então descubro que ela
nem é quem eu pensava que fosse.
Isadora cruzou os braços sobre o peito, parecendo
precisar de proteção contra as palavras de Kat.
— Desculpe, eu menti. Sinto muito. Queria lhe dizer,
queria de verdade, em especial naquele dia na árvore.
Gosto tanto de você, Kat, não queria que nada
estragasse isso, mas acho que estraguei tudo assim
mesmo. — Ela se afastou antes que Kat pudesse dizer
mais alguma coisa.
Kat queria ir atrás dela, e quase o fez. Queria mais do
que tudo. Queria dizer que sentia muito por alguém ter
escrito aquelas coisas horríveis no armário dela, queria
dizer que entendia por que estava com medo, queria
dizer todas as coisas, mas era o que sempre fazia.
Cuidava de pessoas que feriam seus sentimentos. Fez
isso por anos com Blake e não faria de novo. Pensou em
quando Isadora desmoronou na Árvore Mais Antiga, e
teve certeza de que ela ia lhe contar a verdade naquele
dia, antes de ouvirem o barulho no buraco do tronco. Viu
todas as outras vezes em que Isadora tentara lhe contar
a verdade, faiscando vivamente nas lembranças. E,
naquele momento, ela se perguntou se poderia encontrar
uma forma de realmente confiar em Isadora. E então se
lembrou do que o pai dissera: Odiaria que virasse as
costas para alguém que parece realmente se importar
com você, só porque você está com medo.
Mas ela estava com medo. Por isso, em vez de ir atrás
de Isadora, abriu o diário de Katrina.

4 Em inglês, “sapo”. (N.T.)


DEZESSETE

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

O ERRO DE CÁLCULO DO SR. CROW

Pelo que ouvi minha mãe contar, meu pai, Baltus,


vivia com medo de passar um tempo sozinho com
Ichabod Crane, especialmente porque ele e eu nos
tornamos tão inseparáveis. Ichabod vinha se juntar a
nós para jantar quase todas as noites e passava os
dias livres comigo, totalmente atencioso com todos
os meus desejos, até que finalmente, para horror de
meu pai, ele criou coragem para pedir minha mão
em casamento. E muito depois daquela noite fatídica,
quando meu pai e eu estávamos conversando
sozinhos, contou-me como se sentia e exatamente
como tudo aconteceu.

Embora o desengonçado sr. crane não fosse a primeira escolha


de Baltus como marido para a filha, podia perceber que
Katrina estava mais feliz do que jamais a vira. Por isso,
não pôde deixar de ficar nervoso quando se viu na sala
de jantar, finda a refeição, sozinho com o temido sr.
Crane, enquanto Katrina e Regina preparavam a
sobremesa na cozinha.
— Aceita um cálice de porto, Crow? — Baltus ofereceu,
tirando a rolha da garrafa e servindo a si próprio.
— Ficaria encantado em participar de uma libação com
você, bom senhor — disse ele, fazendo Baltus revirar os
olhos. Era exatamente o tipo de coisa que ele odiava em
Ichabod: não ser capaz de dar uma resposta sem firulas.
Embora Baltus fosse um homem simples, isso não
deveria ser confundido com pouca inteligência, e ele
tinha quase certeza de que Crane havia cometido esse
erro. Na verdade, isso não fazia diferença para Baltus.
Não se importava com o que um professor pretensioso
pensava dele, mas se importava com o que Crane
pensava de sua filha e, pelo que constava, o rapaz
parecia respeitar e valorizar a mente de Katrina tanto
quanto a beleza. Naquela noite mesmo, estivera
discorrendo com orgulho sobre a escritora cativante que
ela poderia ser. E, embora Baltus estivesse satisfeito pela
filha estar tão feliz, sentia saudade do tempo em que ele
e Regina pensavam que Katrina se casaria com Brom,
outra pessoa que ele tinha certeza que Crane
subestimava.
Baltus odiava ver Brom em estado tão lamentável. Não
tinha mais o jeito jovial de sempre desde a noite em que
ele e Baltus tanto perturbaram Ichabod sobre o Cavaleiro
Sem Cabeça. Alguma coisa em Brom mudara depois
daquela noite e, por mais que Baltus pressionasse, o
rapaz não dizia uma palavra. Quando perguntou a
Katrina, tudo o que ela disse foi que estava tudo acabado
entre eles, obrigando-o a supor que o jovem estivesse
apenas desiludido, embora os instintos de Baltus
dissessem que havia mais elementos naquela história.
Desejava que as coisas não tivessem progredido tão
rápido com Crane e Katrina, caso contrário, Baltus
poderia ter ajudado a filha e Brom a voltarem a se
entender. Se ao menos Katrina pudesse perceber o
quanto ele havia mudado, pois tinha certeza de que
Katrina ainda se importava com Brom, e poderia ter
havido uma chance para eles se Crane não houvesse
entrado em cena como um espantalho sobre pernas de
pau.
Baltus sentia falta de Brom no jantar; sentia falta das
conversas, de discutir os planos para o futuro e, mais
especialmente, da companhia dele. Viu-se lamentando
pela vida que havia planejado para eles como uma
família, e, no coração, sabia que Brom se sentia da
mesma forma.
— Parece que há algo que o está incomodando, sr. Van
Tassel — comentou Crane, tentando quebrar a tensão na
sala.
— De fato, há, sr. Crow — disse ele, sabendo muito
bem que o estava chamando pelo nome errado. Era um
de seus raros prazeres em meio ao sacrifício de suportar
tantas noites na companhia de um homem de quem não
gostava, quando preferia estar no pub com Brom rindo e
se divertindo.
— Talvez então minha pergunta o tire do humor
sombrio e taciturno — disse Crane, pegando a garrafa e
servindo-se de um cálice de porto. — Embora eu ache
que preciso de um pouco de coragem antes de pular do
penhasco metafórico, você poderia dizer. — Crane
engoliu de um só trago todo o cálice de vinho do Porto e
serviu-se de outro.
— Duvido que isso seja algo que eu diria — zombou
Baltus, e Crane riu.
— Atrevo-me a dizer que você está certo, bom homem
— disse Crane, sem perceber que Baltus entendia o
comentário em toda a sua extensão. — Sr. Van Tassel,
posso ter a coragem de pedir a mão de sua encantadora
filha em casamento? — ele perguntou, apertando a mão
no peito como um ator de teatro dramático, e Baltus fez
o que pôde para não cair na gargalhada diante daquele
homem ridículo.
— Não sei, Crow; só você pode responder isso — Baltus
disse, obviamente pegando Crane desprevenido.
— Acredito realmente que sim, bom senhor. Assumo o
maior risco porque sei que você não me aprova. — Ele
apertou o peito ainda mais dramaticamente, amassando
as lapelas do casaco.
— Você está certo, sr. Crow, tenho minhas dúvidas
sobre você. Eu me pergunto o que será do legado de
Katrina e temo pelo futuro de Sleepy Hollow caso você
não consiga administrar a fazenda e a propriedade. A
maioria das pessoas neste condado está a meu serviço
ou conta com nossas colheitas para sua renda. Sei que
Katrina quer viajar pelo mundo e, embora eu esteja feliz
por ela estar apaixonada por alguém que encoraja seus
sonhos, esperava que ela se casasse com um homem
que pudesse construir uma vida feliz para ela aqui, onde
é mais necessária. — Baltus ficou surpreso por estar se
abrindo tanto com aquele homem, mas parecia que
Crane logo seria seu genro e ele precisava conhecer a
responsabilidade que vinha junto com o casamento
naquela família.
— Mas é exatamente isso que pretendo fazer, sr. Van
Tassel. É claro que encorajo o que fará Katrina mais feliz,
mas as mulheres jovens, como você sabe, são
inconstantes, por isso não tenho dúvidas de que ela
perceberá a sabedoria de permanecer em Sleepy Hollow,
especialmente depois que nos casarmos e ela se
estabelecer no papel de esposa e mãe.
Baltus estreitou os olhos, imaginando com o que
aquele jovem estava brincando.
— Quer me dizer que não tem intenção de viajar pelo
mundo com a minha Katrina, que tudo isso é mentira
para conquistar o coração dela? — questionou ele,
começando a ficar com raiva.
— Não, de jeito nenhum. Sempre encorajarei o que a
fizer mais feliz, caro homem — disse Crane. Baltus teve
que admitir que uma parte sua se sentia melhor sabendo
que Crane poderia acabar encorajando-a a ficar, embora
algo sobre isso ainda deixasse sua mente pouco à
vontade.
— A escolha é de Katrina, é claro — Baltus afirmou —, e
vou apoiar o que a fizer mais feliz, mas, Crane, certifique-
se de que suas intenções sejam claras. Não faça
promessas à minha filha que você não pretenda cumprir.
Não seja falso com ela de forma alguma. — Ele ouviu
Regina e Katrina vindo pelo corredor.
— Obrigado, sr. Van Tassel. Garanto-lhe que tenho as
melhores intenções para com sua filha — afirmou Crane,
acrescentando depois com um pouco mais de seu talento
dramático habitual: — Agora, prepare-se, bom senhor,
para uma celebração adicional na véspera do Baile da
Colheita, porque é quando pretendo dar a conhecer
minhas intenções à nossa querida Katrina.
Baltus franziu a testa, mas tentou corrigir a expressão
quando Katrina e a mãe entraram na sala com bandejas
de sobremesa e café. Respirou fundo enquanto olhava
para a filha, percebendo que ela logo se tornaria uma
mulher casada, e ele sabia que as coisas nunca mais
seriam as mesmas.
DEZOITO

O FANTASMA DE SLEEPY
HOLLOW

Kat parou de ler o diário. seu próprio pai e o de katrina eram


muito parecidos. Continuou ouvindo as palavras do pai
repetidamente, mexendo com suas emoções. Desejou
mais do que nunca ter ido atrás de Isadora e se sentiu
terrível por não consolá-la. Estava com tanto medo de
passar de um relacionamento ruim para outro, de uma
pessoa que mentira para outra. Então, sentiu uma mão
no ombro. Pensou que fosse Isadora, e isso a fez sorrir,
mas quando ergueu os olhos, não havia ninguém lá.
— Você pode confiar nela, Kat, e confiar na voz da
árvore. Minha história diz respeito a vocês duas.
Kat se levantou, derrubando a cadeira, fazendo um
barulhão.
— Katrina? — Ela girou em círculos procurando por ela,
mas não viu ninguém, mesmo que sentisse o familiar
calafrio e novamente tivesse a sensação de ser
observada, e não eram apenas os outros alunos na
biblioteca lançando-lhe olhares de estranheza e
cochichando por trás das mãos. Esquadrinhou a sala
procurando por ela; sabia que estava lá em algum lugar,
e então a viu parada sob a porta em arco da biblioteca,
transparente e brilhante como uma fotografia
superexposta à luz do sol que entrava pela claraboia
abobadada acima.
— Venha comigo, Kat. Ela está na nossa árvore. Vá até
ela antes que seja tarde demais — disse o fantasma. Kat
não podia vê-la nitidamente, mas tinha uma sensação
muito real de que era Katrina. A mulher fantasmagórica
foi embora, deixando Kat a enfiar as coisas
apressadamente na bolsa. Quando saiu da biblioteca,
avistou a mulher alguns metros adiante, caminhando
silenciosamente em direção ao Bosque de Sleepy Hollow.
Quando chegaram à Árvore Mais Antiga, Kat se
lembrou de como se sentiu na primeira vez que viu
Isadora sentada ali embaixo daqueles galhos, e como ela
não queria outra coisa senão beijá-la naquele dia, mas
estava com medo — com medo de se perder novamente
em outro relacionamento, e com medo de se machucar,
embora algo lhe dissesse que podia confiar em Isadora.
— Ela mentiu para mim, Katrina. Como você sabe que
posso confiar nela? — Kat desejou poder ver Katrina
claramente; ela era um brilho difuso indistinto, mas o
que estava claro era sua voz melodiosa e reconfortante.
— Confie no coração, Kat. Seu coração lhe disse o que
precisava ouvir quando você estava com Blake e você
não prestou atenção. Você não o escutará de novo agora
que encontrou alguém que realmente se importa com
você?
Mas, antes que pudesse responder, a imagem de
Katrina se dissipou como se fosse fumaça, dançando
para longe na brisa que varreu o vale.
Isadora se levantou ao ver Kat vindo pela estrada.
Parecia triste e com o coração partido, angustiada por
seu arrependimento. Havia tanta coisa que Kat queria lhe
dizer, mas quando viu o rosto de Isadora, os olhos tão
inchados de tanto chorar, sabia que o que precisava
fazer era ouvir, ouvir Isadora e o próprio coração.
— Desculpe por ter mentido para você, Kat. Eu sei que
deveria ter lhe contado no momento em que nos
conhecemos, mas fiquei com medo de que você não
quisesse ser minha amiga porque sou uma Crane. Queria
tanto lhe contar, especialmente depois que começamos
a ler o diário de Katrina, e nos tornamos… mais
próximas. Não queria perder… o que quer que isso seja.
Tentei tantas vezes lhe contar, simplesmente não
consegui. — Isadora enterrou o rosto nas mãos,
soluçando.
— Eu sei, eu sei, você tentou me contar, acredito em
você — disse Kat, envolvendo Isadora com os braços
enquanto ela chorava em seu peito.
— Sinto muito por ter te magoado. Você vai encontrar
uma forma de confiar em mim novamente? — O rosto de
Isadora estava coberto de lágrimas, e seu coração doía
de arrependimento.
— Acho que posso confiar em você — disse Kat,
enxugando as lágrimas de Isadora com a manga do
suéter.
— Você acha que pode me perdoar?
— Acredito que já tenha feito isso — afirmou ela
enquanto segurava com ternura o rosto de Isadora nas
mãos e a beijava. O beijo foi lindo, perfeito e mágico.
Puro êxtase.
— Então, agora você gosta de garotas? Isso é nojento.
— Elas não haviam notado Blake, que se aproximara e se
postara bem atrás delas. As duas garotas ficaram
paradas, incapazes de responder. — Você viu o que
escreveram em seus armários? O segredinho sórdido já
foi descoberto — disse ele, mostrando-lhes uma foto no
telefone. Kat não disse nada, embora quisesse gritar com
ele, falar sobre todas as formas com que ele a fez se
sentir diminuída, estúpida e louca, mas não podia. Era
como uma tempestade perigosa se formando dentro
dela, e receava deixá-la sair por medo de não poder
controlá-la.
— Você não tem nada a dizer em sua defesa, então?
Você não nega? — Ele caminhou em direção a elas. Kat
se sentiu presa numa armadilha, e então se deu conta
que estivera presa ao lado dele desde que podia se
lembrar. Presa em suas mentiras e presa em uma versão
de si mesma que ela odiava. — Você obviamente não se
importa com o que todos pensam de você, ou como me
fez parecer — Blake continuou se aproximando cada vez
mais. — Quer saber, eu sempre soube. Era óbvio. Eu
sabia que você não gostava de caras; é por isso que me
tratava como lixo. Todo esse tempo você realmente
queria estar com uma garota. E soube no momento em
que você conheceu Isadora que gostou dela. Dava para
ver a maneira repugnante como você a olhava.
— Cala essa boca, Blake! — vociferou Isadora,
avançando sobre ele, mas Kat a puxou para trás.
— O que o faz pensar que eu não gosto de garotos? —
perguntou Kat, pegando a mão de Isadora. — Por que
não posso gostar das duas coisas? Isso não tem a ver
com não gostar de caras; tem a ver com não gostar de
você!
— Imagino que agora você vai me largar, por ela, uma
Crane! Perceba que está cometendo o mesmo erro da
primeira Katrina, e veja como aquilo terminou — disse
ele, pegando o diário de Katrina, sacudindo-o
violentamente. — Sei que Katrina tem contado mentiras
sobre mim desde que éramos mais jovens; sei que ela
está por trás de tudo isso. Está empurrando você para
Isadora. Sempre me odiou. Sempre me advertiu para não
magoá-la.
Kat não respondeu; recuperou o diário arrancando-o de
sua mão, pegando-o desprevenido.Tentava assimilar tudo
aquilo.Tivera indícios da verdade nos últimos dias, mas
agora tudo se encaixava para ela.
— O fantasma da dama de cabelos louros, aquela que
nos seguia pra lá e pra cá… era Katrina.
— Achei que você não acreditasse em fantasmas —
disse ele, deixando a expressão passiva e inocente,
fingindo que estava confuso. Kat o ignorou. Percebia tudo
agora, a razão pela qual ele mentira para ela todo esse
tempo.
— Você fingiu que ela não existia porque não queria
que eu acreditasse nela. Estava com medo que ela visse
quem você realmente é.
— Por que eu pediria para você conjurar o fantasma
dela no cemitério se a temesse? — ele questionou,
começando a ficar novamente na defensiva.
— Porque você sabia que ela estaria aprisionada;
certificou-se disso jogando sal na entrada da cripta. O
que você pretendia fazer, bani-la? — Isadora pegou Kat
pela mão e se afastou dele.
— Por que eu faria isso? — ele perguntou.
— Por que você fez o que fez? Talvez quisesse que me
sentisse solitária, ou que me sentisse estúpida, me
menosprezasse, me fizesse duvidar de mim mesma.
Como se eu estivesse enlouquecendo, ou talvez você
tenha feito isso apenas para ver se poderia me
manipular? Fique à vontade para escolher, Blake;
qualquer uma das opções pode ser a resposta — Kat
disse, sentindo o peso da verdade em suas palavras
libertando-se do coração, e notou pela primeira vez que
podia respirar.
— Isso não é verdade, Kat. Eu te amo! Tenho tentado
protegê-la! Você não vê que é ela quem está mentindo
para você? — Ele apontou para Isadora. — Ela e Katrina.
Isso é culpa delas — acusou, desmoronando e chorando.
— Eu te amo mais do que tudo neste mundo; você só
torna isso tão difícil porque não importa o que eu faça,
não acredita em mim. É como se não quisesse ser feliz.
Ambas as meninas fizeram uma careta de desdém.
— Ah, isso é repulsivo — Isadora interrompeu. —
Vamos, Kat. Vamos embora.
— Você acha que Kat vai ser feliz com você, Crow? Ela
não pode ser feliz com ninguém!
Kat tinha ouvido Blake falar isso tantas vezes, e
realmente acreditara nele, mas não dessa vez.
— Não, Blake, eu apenas não consigo ser feliz com
você! Adeus. — E, pela primeira vez, não teve que se
convencer a sentir que tudo ficaria bem, porque sabia
que ficaria.
Estava um passo mais próxima de gostar de si mesma
novamente.

Kat e isadora estavam sentadas na varanda da frente da casa de


Kat. Havia pilhas de abóboras, grandes rolos de tule,
redes pretas, pilhas de esqueletos de plástico e todo tipo
de decoração aguardando por alguém para trazê-los à
vida. Com tudo acontecendo, Kat tinha esquecido que o
Halloween estava quase chegando. Maddie, a mãe e a
equipe extra que Regina contratara para a temporada
estavam compensando o tempo perdido se preparando
para o Baile da Colheita.
— Você foi incrível agora há pouco, tudo que disse para
Blake. Foi espetacular — disse Isadora.
Kat pegou a mão de Isadora e a pressionou apenas.
Isadora não sabia o que dizer. Só estava contente por Kat
finalmente ter falado umas verdades para Blake.
— Eu deveria ficar? Parece que as coisas estão caóticas
por aqui, e acho que sua mãe não gosta de mim.
— Acho que ela e Maddie estão começando a aceitar a
ideia — Kat disse quando a mãe saiu para a varanda com
canecas de chocolate quente.
— Olá, meninas. Vocês podem beber isso aqui no frio,
ou entrar — ofereceu Trina, sorrindo para as duas. —
Adoraria me sentar e conversar com vocês, senhoritas,
mas tenho muito o que fazer com os preparativos para o
baile — explicou ela, entregando-lhes as canecas.
— Deixe-me ajudá-la, sra. Van Tassel — ofereceu
Isadora.
— Não, querida, faça companhia a Kat aqui. Vocês duas
passaram por tanta coisa, quero que relaxem — disse
ela, colocando a mão no ombro de Isadora.
— Obrigada, sra. Van Tassel — Isadora respondeu com
voz fraca, ainda se sentindo um pouco envergonhada
perto da mãe de Kat.
— Por favor, pode me chamar de Trina. E não fiquem
aqui fora muito tempo; está esfriando. Além disso, logo a
equipe começará a decorar esta varanda e vocês vão
atrapalhá-los. Por que as duas não vão para a biblioteca?
Lá não atrapalharão, e mais tarde eu levarei algo para
comerem — ela disse, enquanto entrava.
— O que foi isso? — Isadora parecia surpresa que a
mãe de Kat estivesse sendo tão legal. Tivera certeza de
que nunca mais seria bem-vinda na casa dos Van Tassel.
— Passamos muito tempo conversando nos últimos
dias — contou Kat, dando um beijo rápido em Isadora.
— E eles estão de boa comigo? Quero dizer, não
apenas por eu ser uma Crane, mas por nós. Quero dizer,
tudo bem com… o que quer que seja isso. — Ela parecia
tão nervosa que Kat a beijou ali mesmo na varanda.
— Sim, eles estão totalmente tranquilos com isso —
respondeu ela, rindo. — Meus pais não são como Blake e
os amigos dele. E, só para constar, estou ansiosa para
descobrir o que é isso — acrescentou Kat, dando-lhe
outro beijo rápido.
— Vamos ler lá dentro. Sua mãe estava certa; está
esfriando — disse Isadora, pondo-se de pé e estendendo
a mão para Kat pegá-la enquanto se levantava.
— É uma boa ideia. Katrina está ansiosa para que
terminemos de ler o diário.
— O que quer dizer? — Isadora largou a mão de Kat e
seus olhos se arregalaram.
— Eu não tive a chance de lhe contar porque Blake
apareceu. Ela veio até mim na biblioteca e me lembrou
que queria que nós duas o lêssemos. Foi ela quem me
levou até onde você estava. Falou que eu podia confiar
em você — disse Kat, pegando a mão de Isadora de
volta.
— Você pode confiar em mim, Kat Van Tassel; juro. —
As encantadoras covinhas de Isadora se mostraram
rapidamente em seu rosto, fazendo Kat querer beijá-las.
E Kat sabia no fundo do coração que podia confiar nela.
Não havia dúvida; finalmente sentia que conduzia o
próprio destino, mesmo que a primeira Katrina estivesse
lhe mostrando o caminho.
DEZENOVE

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

O BAILE DA COLHEITA

Eu aguardava o Baile da Colheita com a maior das


expectativas, minha imaginação evocando uma noite
mágica e romântica. Mas o que aconteceu naquela
noite excedeu meus devaneios mais loucos,
mudando o curso da minha vida de uma forma que
eu nunca poderia imaginar.

O baile da colheita de outono dos van tassel era o evento mais


aguardado em Sleepy Hollow. Todos no condado
compareciam, mesmo que fosse apenas para saborear
uma fatia da famosa torta de abóbora de Regina, tomar
uma rápida caneca de sidra de maçã temperada ou ficar
até altas horas dançando no salão principal e depois se
retirar para o solário a fim de contar histórias de
fantasmas. Era um evento espetacular, organizado por
Regina e a equipe que ela contratava no condado vizinho
para ajudar na decoração, na preparação da comida, nas
carruagens extras e nas várias outras necessidades, para
que ninguém em Sleepy Hollow precisasse trabalhar na
noite do baile.
O povo de Sleepy Hollow obtinha a maior parte da
renda anual na colheita do outono e no festival que se
seguia, realizado nas últimas duas semanas de outubro.
Como na maioria dos anos, o festival era um tremendo
sucesso para todos na cidade, e eles estavam ansiosos
para celebrar outra colheita e outro festival frutíferos.
Sleepy Hollow era famosa pelas abóboras de diferentes
variedades: abóboras brancas de conto de fadas, assim
chamadas porque lembravam a carruagem da Cinderela;
abóboras do tipo moranga que pareciam ter sido
cultivadas em um jardim mágico secreto; uma variedade
doce para assar e cozinhar; e, claro, abóboras laranja de
quase todos os tamanhos, para esculpir.
Pessoas de toda parte afluíam a Sleepy Hollow para
escolher abóboras, empilhando-as em carrinhos para
levar para casa e fazer lanternas. Os turistas também
desfrutavam das diversas barracas com geleias
artesanais, tortas de abóbora, tortinhas abertas, maçãs
carameladas, bolinhas de pipoca e os famosos cookies de
Regina. Além dos deliciosos produtos caseiros, as outras
atrações que os visitantes mais pareciam apreciar eram
as visitas guiadas em charretes, onde os condutores os
regalavam com as histórias de fantasmas mais famosas
de Sleepy Hollow, levando-os a suspiros de prazer e às
vezes acessos de pânico. A cidade dava duro para o
festival, e o Baile da Colheita era o jeito deles de
comemorar e relaxar quando o festival terminava.
Regina planejara o baile nos mínimos detalhes e se
certificou de que fosse executado perfeitamente e sem
imprevistos. Havia providenciado carruagens abertas
para trazer convidados em intervalos regulares do portão
da estrada principal através do bosque de carvalhos,
coberto de teias de aranha que dançavam na brisa como
fantasmas e brilhavam ao luar, como se tivessem as
próprias histórias para compartilhar. No centro do bosque
de carvalhos havia um caminho de terra ladeado por
lanternas de abóbora reluzentes retratando todo tipo de
expressão, e Katrina imaginou que estivessem ouvindo
atentamente as histórias dos fantasmas, extasiadas
pelos contos.
Quando os convidados da festa desciam das
carruagens, seguiam por um caminho iluminado por
lanternas presas aos galhos, guiando o trajeto para um
cemitério de mentirinha com lápides gravadas com os
nomes dos fundadores de Sleepy Hollow e seus
residentes mais famosos. Katrina adorava ver, de sua
sacada, todos deixarem as carruagens, contemplar o
sorriso no rosto deles quando se deparavam com as
decorações, e as crianças disparando com gritos de
alegria para correr e brincar no cemitério.
Depois de atravessar o cemitério, os convidados eram
recebidos por um caldeirão borbulhante sobre uma
fogueira cercada por um grupo de mulheres vestidas de
bruxas cantando com um pequeno grupo de músicos
vestidos como esqueletos e tocando uma música
fúnebre. Sua mãe planejava tudo isso sozinha, de alguma
forma conseguindo tornar cada ano diferente do anterior
e especial à sua maneira, e Katrina se perguntou quem
continuaria essa tradição se ela decidisse seguir o desejo
de viajar pelo mundo. Sentiu uma pontada no coração ao
pensar em deixar tudo aquilo para trás, e embora tenha
se revoltado contra o destino por tanto tempo, aquilo era
o futuro que havia imaginado, e de repente sentiu-se
triste por ter que desistir disso para seguir os próprios
sonhos.
Enquanto estava na varanda, Katrina ficou maravilhada
com as decorações daquele ano. A mãe adornara as
grades da varanda com rede preta, e em cada poste
havia lanternas de abóbora brilhantes com expressões
surpreendentes no rosto. As varandas do segundo e
terceiro andares estavam enfeitadas com morcegos
pretos esvoaçantes feitos de gaze, com botões dourados
para os olhos que brilhavam à luz fraca dos lampiões que
iluminavam as varandas.
No interior, a casa dos Van Tassel também fora
lindamente decorada com mais redes pretas e laranja ao
longo das grades e patamares da escada, guirlandas
feitas de feixes de flores e folhas de outono, cabaças
decorativas e feixes de milho colorido.
A casa estava inteiramente iluminada à luz de velas,
tanto nos candelabros quanto nas lanternas de abóbora
colocadas artisticamente ao redor da propriedade. Mas a
principal característica eram as mesas repletas de
comida — uma variedade que ia de salgada a doce, e da
qual os convidados podiam se servir à vontade. Regina
tinha o dom de lembrar os favoritos de todos e fazia
questão de nunca deixar os convidados voltarem para
casa decepcionados ou de estômago vazio. Havia
preparado sua habitual seleção de pratos salgados de
rosbife, frango assado, cenouras na manteiga, tortas de
carne, carne de porco assada e batatas com alecrim, mas
sua exibição favorita e mais artística era a mesa de
doces, com maçãs do amor ou com coberturas doces
variadas espetadas em palitos, coloridas bolas de pipoca,
fantasmas de marshmallow cobertos de chocolate,
cupcakes de chocolate amargo recheados com geleia de
cereja e com cobertura de cream cheese, tortinhas
abertas de abóbora e, claro, as deliciosas tortas.
Katrina deixou o quarto e parou no patamar do
primeiro andar, que tinha vista para o vestíbulo. Ficou
impressionada não apenas com o trabalho notável que a
mãe e a equipe realizaram, mas também com a
magnífica variedade de fantasias usadas pelos
convidados da festa. A maioria das mulheres usava
vestidos volumosos apertados na cintura e máscaras
extravagantes e assustadoras, enquanto outras vestiam
trajes mais elaborados em que claramente haviam
trabalhado o ano todo. A sra. Irving confeccionara um par
de asas de morcego que ela usava com um vestido preto
de contas, e artisticamente arrumara os cabelos em dois
coques para parecerem orelhas de morcego, e o sr. Irving
usava uma fantasia de lobo muito realista, cuja
característica mais impressionante eram os olhos
vermelhos brilhantes. Ela soube imediatamente que ele
estava vestido como um Muckle Black Tyke, cão espectral
preto dos contos de fadas e mitos escoceses. Ela sabia
disso porque o sr. Irving falava deles quase que
constantemente e aproveitava todas as oportunidades
para compartilhar seu conhecimento com quem quisesse
ouvir.
Katrina decidira se fantasiar como Mary Read, a pirata
que vestia roupas de homem, embora tenha tomado
algumas liberdades com seu traje, pedindo à mãe que
fizesse sua sobrecasaca de pirata um pouco mais
parecida com um vestido, que ela usava com calças
masculinas e botas pretas que pareciam adequadas para
um pirata. Sua mãe até conseguiu encontrar umas
fivelas de botas douradas de aparência bastante
elegante para adicionar um toque de estilo à roupa.
Katrina também usava um garboso chapéu de pirata
repleto de plumas vermelhas e um largo cinturão de
couro com uma grande fivela dourada que dava volume
à sobrecasaca de pirata. Ela ficou feliz com sua fantasia e
mal podia esperar para ver o que os convidados
achariam dela.
Enquanto Katrina observava os convidados que
chegavam, viu Brom adentrar o vestíbulo com o pai dela.
Nenhum dos dois estava fantasiado, mas ambos
pareciam bastante elegantes em suas melhores roupas
de domingo, geralmente reservadas para ocasiões
especiais. Ela tinha esquecido como Brom podia ser
bonito quando não estava com as roupas de trabalho e
coberto de sujeira por estar nos campos o dia todo. De
repente, começou a se sentir culpada por como
conduzira as coisas com Brom, voltando suas afeições
para Crane tão rapidamente, e não explicando de fato a
Brom como se sentia. Mas vinha desencantada com ele
havia tanto tempo que lhe parecera o próximo passo
lógico, e ela temia que houvesse sido um choque para
Brom quando ela finalmente terminou as coisas entre
eles.
Nas semanas que antecederam o baile, ela não havia
visto Brom, exceto de passagem na Sleepy Hollow Road,
ou enquanto estavam se preparando para o festival. Não
lhe pareceu certo não falar com ele, não contar o que
estava acontecendo em sua vida, não compartilhar os
novos livros que ela havia lido, nem as ideias de histórias
que ela estava imaginando, ou até mesmo não rir com
ele das pilhas de tortas cambaleando em cada superfície
da cozinha.
— Katrina, querida, você está fantástica! — exclamou
uma voz atrás dela. Era sua mãe, que parou ao lado dela
no patamar.
— Obrigada, mamãe. Você também, mas acha que
alguém saberá quem você é? — ela perguntou, surpresa
com a fantasia da mãe. Regina estava vestida como
Maria Antonieta, com uma peruca gigante empoada,
maquiagem da corte francesa, bijuterias e um vestido
primorosamente elaborado. A mãe de fato caprichara.
Katrina achou a escolha do traje dela divertida,
considerando que Regina era muito amada por todos na
comunidade. Embora eles tivessem acabado de ler sobre
o que estava acontecendo na França e Katrina
imaginasse que fora isso que inspirara a ideia de Regina
para seu traje, sabia que nem todos em Sleepy Hollow
seguiam as notícias do mundo tão de perto quanto ela.
Por sua vez, a maioria das pessoas provavelmente não
saberia de quem ela própria estava fantasiada, e seria
metade da diversão da noite compartilhar o que sabia
sobre mulheres piratas com quem quisesse ouvir.
— O que você está fazendo aqui, Katrina? Por que não
desceu e se juntou à festa? — perguntou a mãe.
— Estou só apreciando a entrada de todos, e estava
pensando em Brom. Sinto-me um pouco culpada pela
forma como lidei com as coisas — disse ela, observando
Brom e seu pai conversando enquanto bebiam sidra
temperada, sem dúvida, com uísque.
— Brom agiu como um tolo, Katrina. Eu também sinto
pena dele, sinceramente, e você sabe que eu o amo
como um filho, mas você merece um homem que vá
tratá-la bem, alguém que aprecie quão única e especial
você é e a encoraje a fazer as coisas que você ama,
mesmo que isso signifique deixar Sleepy Hollow para
viajar pelo mundo — sua mãe disse, começando a
chorar, mas se contendo.
— De verdade, mamãe? Está falando sério? Porque não
há nada que eu amaria mais. Ichabod me prometeu que
faremos isso, mas eu estava com tanto medo de como
isso faria você e papai se sentirem! — disse Katrina.
— Quero o que a faz mais feliz, Katrina, e se esse
homem a fizer feliz e lhe proporcionar a vida que
prometeu, então celebrarei seu casamento com um
coração satisfeito quando o dia chegar. Eu a tenho visto
mais feliz do que jamais pensei que você pudesse ser, e
se este homem é o motivo, então, não posso em sã
consciência ficar no seu caminho. Vamos descobrir o que
fazer com a fazenda e a propriedade no momento certo.
Mas primeiro vamos nos concentrar no casamento.
— Casamento? Quem disse que vamos nos casar?
Ichabod pediu minha mão ao papai? — Katrina sentiu
como se sua vida a estivesse levando, como se estivesse
sendo arrastada.
— Sim, minha querida. Presumi que você soubesse que
ele a pediu em casamento ao seu pai depois do jantar na
outra noite. Lamento ter arruinado a surpresa dele. Meu
Deus, tenho sido uma péssima mãe nas últimas
semanas, tão consumida pelo festival e pelo baile,
quando seu namoro deveria ter sido meu foco. Mas você
é tão inteligente, Katrina, tão sensata. Você sempre
soube o que queria desde pequena, então nunca precisei
me preocupar com você; sempre sei que fará as escolhas
certas. Mas isso não é desculpa. No momento em que
seu pai me contou que Ichabod pediu sua mão, eu
deveria ter ido até você para ver como você se sentia —
disse ela, pegando a mão de Katrina.
— Não seja boba, mamãe. Eu te amo. Você sempre foi
uma boa mãe, ainda mais ultimamente. — Ela beijou a
bochecha da mãe, tomando cuidado para não estragar
sua bela maquiagem. — Significa muito para mim o
quanto você tem me apoiado, para ser sincera é
realmente surpreendente.
— Quero o que a faz mais feliz, minha doce menina.
Vamos descer e participar da festa? Vejo que seu pai não
está fantasiado, mas ele parece bem bonito, você não
acha? — ela disse, sorrindo.
— Ele está muito bonito, mamãe, e de certa forma está
fantasiado, já que raramente se arruma — disse ela com
uma risada.
Enquanto Katrina e Regina desciam a escada, viram
Ichabod entrar pela porta da frente. Assim como o pai de
Katrina e Brom, não estava fantasiado, mas escolhera um
traje de muito agradável aspecto. Ichabod geralmente se
apresentava com extrema elegância, mesmo que as
roupas parecessem um pouco grandes demais para ele
na maioria das vezes, mas naquela noite estava
especialmente galante em vários tons de verde, mesmo
que aparentasse estar um pouco mais nervoso do que o
normal.
— Não se surpreenda se ele a pedir em casamento
esta noite, Katrina. Seu pai comentou que esse era o
plano dele. — Ela recuou com a reação de Katrina. —
Você não parece satisfeita, no entanto. Achei que você
ficaria feliz.
— Estou satisfeita, acho. Só queria que Ichabod tivesse
me perguntado primeiro. Eu odeio sentir que toda a
minha vida está sendo decidida por homens. — Katrina
tentou banir a sensação avassaladora de pavor que a
invadia. Como a mãe, pensou que tal momento a faria
feliz, mas aquela sensação familiar de ser conduzida por
outros estava começando a fazê-la se sentir presa.
Desejou que ao menos uma vez pudesse dirigir sua
própria vida.
— Entendo como você se sente, minha querida. Senti o
mesmo quando meu pai e o seu falaram sobre nosso
noivado antes de o seu pai me pedir em casamento, mas
é assim que se faz. Eu não acho que Ichabod estava
tentando agir pelas suas costas — disse Regina. — Quem
sabe, talvez ele tenha algo romântico planejado para
esta noite. Uma coisa é certa, ele a ama. — Ela pegou a
mão de Katrina. — Agora vamos descer e cumprimentar
nossos convidados, certo? — ela disse, e beijou Katrina
na bochecha.
Katrina pensou que talvez mãe tivesse razão. Romper
com Brom e esse namoro com Ichabod foram escolhas
dela. Viveria a vida que sempre quis com Ichabod, então
não conseguia entender por que estava se sentindo tão
incomodada.
A festa estava a todo vapor quando Katrina e Regina
desceram. Havia uma banda no salão duplo tocando uma
música animada. Casais felizes de todas as idades
dançavam o reel,5 enquanto outros convidados
conversavam em grupos observando os dançarinos.
Havia música alegre em cada ala da casa, e em todos os
lugares que Katrina olhava via rostos felizes. A festa da
mãe era um sucesso.
Os convidados circulavam pela sala com pratos de
comida empilhados, e as crianças pulavam atrás de
maçãs na varanda da frente e brincavam de pega-pega
no cemitério faz de conta. Katrina adorava observar as
bruxinhas, fantasmas e esqueletos correndo e se
perguntava quem estaria ali para continuar essas
tradições se ela e Ichabod estivessem viajando. Então,
algo notável aconteceu: Brom se juntou às crianças no
cemitério. Ele estendeu os braços como uma grande fera
rosnando e rugindo, e rindo enquanto as crianças fugiam
dele gritando. Aquele era o Brom do qual Katrina sentia
falta, o homem que ela amara e, por um brevíssimo
momento, ela se viu no futuro com Brom, rindo de seus
filhos enquanto eles corriam pelo cemitério.
O que será da fazenda e da propriedade e, o mais
importante, dessa boa gente e de nossa amada cidade se
eu for embora?, pensou, olhando para os vizinhos,
pessoas que ela amava e com as quais crescera,
enchendo a casa da família com tanta alegria. E
percebeu o que estava lhe causando tanta apreensão.
Seus pais haviam falado de seu dever para com a
propriedade e o povo de Sleepy Hollow por tanto tempo
que isso, de certa forma, virara uma noção abstrata, mas
naquela noite ela sentira o peso de tal compromisso, a
realidade, e não tinha certeza se era capaz de
desapontar todo mundo. Katrina sentia como se seu
coração estivesse sendo puxado em duas direções
diferentes.
— Boa noite, minha rainha pirata. — Era Ichabod,
pegando sua mão e beijando-a. Ela sorriu até perceber
que Brom estava observando de longe, fazendo com que
o sentimento de culpa a invadisse novamente. — O que a
está incomodando, minha doce Katrina? — ele
perguntou, seus olhos se movendo na direção de Brom,
que retornava para a festa, deixando as crianças no
cemitério. — Ele tem perturbado você? Devo falar com
ele? — ele acrescentou.
— Não, Ichabod, não há necessidade de espezinhar o
pobre homem que já está combalido.
— Você não tem mais sentimentos por ele, então? —
ele perguntou.
— Não mais do que alguém teria por um amigo de
infância, ou mesmo um irmão. — Mas ela não tinha
certeza se isso era verdade. — Nunca escondi de você
meus sentimentos por Brom. Estava apaixonada por ele,
mas nos tornamos pessoas completamente diferentes à
medida que crescíamos. — Ela notou Brom indo até eles
e, para sua surpresa, ficou nervosa, imaginando o que
ele pensaria de sua fantasia.
— Olá, Katrina, você está linda. Está fantasiada como
aquela mulher pirata que você mencionou quando
jantamos aqui pela última vez?
— Sim, estou surpresa que você tenha se lembrado —
disse ela, fazendo Brom rir.
— Fiz questão de ler sobre ela depois daquela noite e
descobri que há muito mais mulheres piratas do que eu
esperava. Anne Bonny, por exemplo, é uma mulher
interessante. Você sabia que ela e Mary estavam no
mesmo navio?
— Eu não sabia que você era um leitor tão ávido, Brom
— disse Crane —, ou que essas coisas despertavam sua
curiosidade. — Crane não parecia convencido de que
Brom estivesse sendo sincero, mas Katrina não gostou
desse lado de Crane, esforçando-se daquela maneira
para tentar desmascará-lo.
— Bem, tenho tido muito mais tempo livre depois do
trabalho ultimamente — disse ele, mexendo com o
coração de Katrina.
— Brom sempre teve um grande amor por boas
histórias desde que éramos jovens. — Não havia ocorrido
a Katrina que Brom tinha menos tempo para ler e outras
coisas de que gostavam depois que começara a trabalhar
para o pai dela, que o estava treinando para assumir a
fazenda quando ele e Katrina se casassem, e a jovem de
repente se sentiu egoísta por não levar isso em
consideração e ter sido injusta com ele. — Você parece
muito mudado para mim, Brom, desde a noite em que…
— Ela se deteve porque não queria mencionar seu
encontro com o Cavaleiro Sem Cabeça. Era um assunto
delicado para Brom, e ela prometeu que não contaria a
ninguém. A última coisa que Brom queria era que Katrina
mencionasse isso na frente de Ichabod. E ela se
perguntou se o encontro de Brom com o Cavaleiro Sem
Cabeça teria lhe ensinado uma lição; ele parecia mais
humilde e muito menos implicante com Ichabod desde o
ocorrido, muito mais parecido com o Brom que ela um
dia amara.
— Tive muito tempo para pensar sobre as coisas —
disse ele, e depois rapidamente mudou de assunto. —
Como sempre, sua mãe se superou. Tudo parece
magnífico. Especialmente as decorações; as que estão
nos campos são tão arrepiantes! Fiquei surpreso ao ver
que confeccionou algumas para se parecerem com
nossos fantasmas mais famosos. Um fantasma feminino
estava me espiando por trás de um carvalho no bosque
quando eu estava a caminho do portão principal, e eu
poderia jurar que ela falava comigo!
Katrina não sabia do que ele estava falando. Eles
tinham apenas envolvido os galhos das árvores com gaze
para se parecerem com fantasmas.
— Que estranho, mamãe não me disse que estava
planejando algo tão elaborado. Eu me pergunto: como
ela poderia ter realizado uma coisa desse porte? —
admirou-se ela, olhando pela janela, tentando ver algo do
que Brom estava falando.
— É bem sabido que os mortos caminham sobre a terra
na Véspera de Todos os Santos, ou assim as lendas nos
fazem acreditar — disse Ichabod, finalmente encontrando
uma forma de interromper a conversa. — Imagino que
tais aparições sejam ainda mais prevalentes em Sleepy
Hollow, sendo esta uma cidade tão assombrada. Vocês
sabiam que a tradição de se vestir com fantasias nesta
noite foi criada para que os vivos possam se misturar
com os mortos?
Isso pareceu realmente perturbar Brom, que agora
também olhava pela janela com apreensão.
— Sim, Ichabod, nós sabemos. — Katrina percebeu que
estava sendo um pouco dura com ele porque se sentia
em conflito, e ele a estava irritando; por isso, decidiu que
precisava clarear a cabeça por um momento.
— Vou ver se minha mãe precisa de ajuda. Devo trazer
aos senhores algumas tortinhas de abóbora e chocolate
quente com conhaque quando voltar?
— Isso seria adorável, minha doce Katrina — respondeu
Crane, fazendo questão de tocá-la com ternura no braço,
mas Brom não percebeu. Ele ainda estava olhando pela
janela. Katrina não sabia dizer se Brom conseguia de fato
ver alguma coisa lá fora nas árvores ou se estava perdido
em seus pensamentos. Ela odiava a ideia de ele ainda
estar sendo atormentado pelas lembranças daquela noite
aterrorizante com o Cavaleiro Sem Cabeça, mas tinha a
sensação de que aquilo ainda o assombrava.
— Acho que Brom precisa de um pouco de conhaque
extra no chocolate dele, minha querida. Parece um pouco
assustado com o fantasma que viu no bosque de
carvalhos — disse Ichabod com uma expressão bastante
presunçosa no rosto. Katrina não gostava desse lado de
Crane, mas compreendia a razão de tal atitude. Afinal,
Brom o havia provocado impiedosamente no passado.
— Ora, Ichabod, tenho certeza de que, se você fosse
aterrorizado pelo Cavaleiro Sem Cabeça na Sleepy Hollow
Road, também ficaria apavorado se visse um fantasma.
Pare de provocá-lo — ela disse com um olhar
ligeiramente severo para Crane. Então, percebendo seu
erro, rapidamente acrescentou: — Vamos nos encontrar
na sala de estar quando eu voltar? — Ela se sentiu
péssima, embora tivesse certeza de que Brom não os
tinha escutado, ainda distraído por algo do lado de fora
ou que persistia em sua lembrança. — Eu não deveria ter
dito isso, Ichabod. Por favor, não mencione isso para
Brom — acrescentou ela baixinho. — Estou contando com
que você seja um cavalheiro.
Katrina lamentou o deslize e a decisão de deixá-los
sozinhos enquanto percorria a festa procurando por sua
mãe. Parecia que todos ainda estavam se divertindo
muito, dançando e disputando jogos de salão e cantando
junto com a banda.
Como na maioria dos anos, os hóspedes mais velhos
retornaram para casa antes que ficasse muito tarde,
retirando-se para irem cedo para cama, com exceção dos
Irving. Ela riu quando viu o sr. Irving, em sua fantasia de
lobo com uma venda nos olhos, girar em círculos e em
seguida tatear o ar, cercado pelos outros participantes do
jogo, rindo. Embora os Van Tassel tivessem colocado
carruagens à disposição para garantir que todos os seus
convidados chegassem em segurança em casa na
madrugada, os mais velhos da comunidade se sentiam
mais à vontade abrigados na segurança das próprias
casas antes que a torre do relógio badalasse meia-noite,
a Hora das Bruxas, na Véspera de Todos os Santos.
Enquanto procurava por sua mãe, feliz por ver todos se
divertindo, Katrina nunca saberia com certeza a conversa
exata que Brom e Ichabod tiveram depois que ela os
deixou sozinhos. Todos em Sleepy Hollow pareciam ter
uma versão diferente do que aconteceu. Katrina, é claro,
tinha as próprias teorias, que mais tarde foram
confirmadas ao conversar com Brom. Mas parece que
depois que Katrina os deixou sozinhos no vestíbulo,
Ichabod e Brom finalmente se dirigiram meio sem jeito
para a sala de estar, onde Baltus estava sentado na
poltrona preferida junto à lareira.
— Ah, Baltus! Vejo que garantiu seu lugar favorito para
as histórias de fantasmas. Já está na hora? — perguntou
Brom, parecendo feliz por ver um rosto amigável. Baltus
ergueu os olhos e pareceu desapontado ao ver que Crane
estava ali também.
— Onde está Katrina? Saiu para ajudar a mãe? — ele
perguntou.
— De fato, foi isso mesmo, senhor — disse Crane. —
Embora eu suponha que depois desta noite eu vá chamá-
lo de papai. — Crane não se preocupou em esconder o
prazer de deixar escapar na frente de Brom que ia propor
casamento a Katrina naquela noite. O fogo da lareira
crepitava, maior e mais potente do que o normal a fim de
manter aquecida a sala, que estava à mercê dos
elementos naquela noite. Com as portas francesas
abertas, eles tinham uma vista ainda mais espetacular
do bosque de carvalhos e dos fantasminhas e diabinhos
que ainda brincavam de pega-pega no cemitério. Brom
podia ver que alguns dos pais estavam recolhendo seus
filhos, sob protesto, é claro, porque eles também
estavam ansiosos para chegar em casa antes da Hora
das Bruxas, embora ainda tivessem um bom par de
horas até lá. Brom sempre tivera o privilégio de ficar até
tarde em ocasiões como aquela, sendo parte da família,
embora não tivesse certeza de como se encaixaria na
vida dos Van Tassel agora que não se casaria mais com
Katrina.
— Ora, Crane, não há necessidade de esfregar isso na
cara de Brom — censurou-o Baltus.
— Tudo bem, Baltus — disse Brom. — Venceu o melhor
homem. Parece que o Crane aqui será capaz de
proporcionar a Katrina a vida que ela realmente quer. —
Ele caminhou até as portas francesas abertas que davam
para o bosque de carvalhos. Parecia estar se
perguntando que presenças fantasmagóricas
espreitavam por entre as sombras escuras.
Naquele momento, Regina enfiou a cabeça pela
entrada da sala de estar.
— Baltus, querido, o sr. Irving está sendo empurrado
para uma carruagem por sua sra. Irving. Ela acha que ele
já teve diversão suficiente para uma noite, mas ele se
recusa a partir até se despedir. Prometo que você pode
voltar para o conforto da poltrona em breve — ela
comentou, rindo. — E, senhores, Katrina logo estará de
volta com algo para vocês saborearem. Lamento tê-la
mantido ocupada por tanto tempo — disse ela, antes de
deixar Crane e Brom sozinhos. No momento em que o
fez, Crane começou a atacar Brom.
— Você realmente acha que está enganando alguém
com toda essa conversa sobre piratas e leitura? Você é
ainda mais tolo do que eu pensei que fosse — disse
Crane, aproximando-se por trás de Brom com um tom de
provocação na voz. Brom não se virou; seguia olhando
atentamente para algo no bosque de carvalhos. Alguma
coisa capturara sua atenção.
— Fique quieto uma vez na vida, Crane! Olhe, está
vendo aquilo? — ele disse, apertando os olhos para
enxergar melhor.
— Não pode me enganar, Brom. Eu sei que você não
viu de fato o Cavaleiro Sem Cabeça naquela noite, e não
está vendo nada agora, você está apenas tentando me
assustar e fazer Katrina sentir pena de você, mas não vai
funcionar.
Brom virou a cabeça no ato, agarrou Crane pelo
colarinho e o puxou para mais perto.
— Veja! Bem ali! — ele disse, apontando para um
cavalo preto excepcionalmente grande correndo pelo
centro do bosque de carvalhos. A pelagem reluzia à luz
das velas, como se estivesse coberta por um brilho preto
oleoso. — É o Cavaleiro Sem Cabeça! — exclamou ele, a
mão tremendo como quando contou a Katrina sobre seu
encontro.
— Tire as mãos de mim, senhor! — Crane disse,
recuando para longe de Brom, cambaleando.
Não demorou muito e um grupo de homens se reuniu
no perímetro do bosque, conversando entre si,
possivelmente se perguntando de onde o viera o cavalo.
Um dos homens correu em direção ao estábulo
enquanto outros ficaram à margem, vigiando o animal, e
mais outro juntou as crianças que brincavam no
cemitério e as conduziu para dentro.
— Parece que a situação está sob controle.
Provavelmente, trata-se apenas de um cavalo que
escapou dos estábulos — disse Crane, finalmente
recuperando o equilíbrio. — Brom, afaste-se da janela e
sente-se. Sua inquietação é desconcertante. — Brom
virou-se para responder e ficou surpreso ao ver Crane
sentado na poltrona de Baltus perto do fogo.
— É bom você se levantar antes que Baltus retorne —
avisou ele, aproximando-se e tomando seu lugar habitual
na cadeira de balanço de madeira.
— Só estou experimentando o tamanho — disse Crane,
inclinando-se para trás com as mãos na nuca, as pernas
esticadas em sua maneira desengonçada, parecendo
mais arrogante do que Brom jamais vira, o que era um
feito e tanto, já que Crane parecia insistir em não ser
outra coisa senão arrogante.
— Ao que parece, não imagino que você vá passar
muito tempo perto da lareira, não com todas as viagens
que você e Katrina planejaram — comentou Brom,
tentando acalmar os nervos e utilizando todo o seu
controle para não acertar um soco bem na cara de
Crane.
— Você é realmente idiota, não é? Você acha mesmo
que eu pretendo viajar pelo mundo quando tenho aqui
tudo que possa precisar?
Brom não deveria ter ficado surpreso com a resposta
de Crane, mas descobriu que estava.
— Não entendo. Você prometeu a Katrina que viajariam
juntos.
Até a risada de Crane conseguiu soar arrogante e
insultuosa.
— Katrina é uma garota jovem e tola que não sabe o
que é melhor para ela. Assim que nos casarmos, ela
tomará seu lugar de direito ao meu lado e serviremos
como pilares da comunidade. — Crane agora estava
sorrindo, transbordando de vaidade e orgulho.
Brom passara as últimas semanas lamentando o
tratamento dado a Katrina — repassando na cabeça suas
conversas, recriminando-se por suas próprias palavras —
e seu coração se partiu porque sabia que não havia nada
que pudesse fazer para reconquistar a mulher que
amava. Mas ouvindo Crane falar daquela maneira,
realmente entendia agora por que Katrina ficara tão
desencantada com ele. Escutar as próprias palavras
vindo de um ser tão desprezível e presunçoso como
Crane o fez perceber como ele próprio soara para
Katrina. Enojado com Crane e consigo mesmo, levantou-
se do assento perto da lareira e voltou para a janela, a
fim de ver se os homens haviam capturado o cavalo.
Crane não a merecia, no fim das contas, e faria tudo o
que pudesse para garantir que ela não se casasse com
ele.
— Gostaria de ter feito as coisas de forma diferente
com Katrina. Parei de ouvir o que ela realmente queria.
Se ela me desse outra chance, eu lhe daria a vida que
desejava; eu a amo a esse ponto — disse ele, olhando
pela janela para os homens que vasculhavam o bosque
de carvalhos com tochas, sem sinal algum do cavalo.
Podia ouvir Crane rindo dele da poltrona de Baltus e isso
provocou ondas de raiva e arrependimento por seu
corpo. — Se Katrina me aceitar de volta, deixarei Sleepy
Hollow, se é isso que ela quer. Eu voluntária e
alegremente desistiria da fazenda e de todo o dinheiro
decorrente se pudesse tê-la de volta, e passaria o
restante dos meus dias fazendo o que pudesse para fazê-
la feliz — declarou Brom.
— Não seja tolo. Katrina nunca mais vai amá-lo, não
dessa forma. Não há nada que você possa fazer para
reconquistá-la — afirmou Crane, rindo ainda mais, com
uma expressão sarcástica no rosto.
— Não se trata de reconquistá-la, Crane.Trata-se de
protegê-la de você!
— Protegê-la de mim? O que você tem a oferecer a ela,
Brom? Acha mesmo que ela gostaria de ficar com você,
quando tem a mim? Você não a merece, um homem que
foi estúpido demais para perceber a coisa boa que tinha
enquanto a teve — tripudiou Crane, rindo ainda mais
alto.
Mas Brom não estava ouvindo. Estava distraído com o
que acontecia no bosque de carvalhos. Enquanto os
homens retornavam, tendo desistido de encontrar o
cavalo, viu o garanhão negro surgir novamente — e
galopava na direção deles. Mas, dessa vez, uma silhueta
escura estava montada no corcel com uma longa espada
erguida no ar.
— Pelo Grande Fantasma do Vale, cuidado! — Brom
gritou pelas portas francesas abertas, mas antes que os
homens se virassem, o cavalo e o cavaleiro
desapareceram. — Céus! Você viu aquilo, Crane? Era o
Cavaleiro Sem Cabeça! — As mãos de Brom tremiam e o
terror percorreu todo o seu corpo, fazendo-o querer fugir.
— Ah, pare com isso, Brom; você está com a boca
aberta, o que o faz parecer ainda mais tolo do que o
normal — disse Crane, com um sorriso de escárnio.
— Não, é verdade, homem. Eu o vi. — Ele caminhou
até Crane e postou-se na frente dele, de costas para o
fogo. — Eu sei o que pensa de mim, mas não sou um
mentiroso. E sei que fui um tolo por não valorizar a
mulher maravilhosa que tive em Katrina, mas não perdi a
cabeça; sei o que vi! — ele afirmou, tentando fazer Crane
acompanhá-lo de volta à janela.
— Não vou cair no seu truque, Brom. Sei o que está
fazendo. Está tentando me assustar para reconquistar o
coração de Katrina, mas isso não vai funcionar. Você
perdeu sua chance com ela, Brom. Você perdeu tudo.
— Sempre me arrependerei de perder o afeto de
Katrina; o fantasma do nosso amor vai me assombrar até
o último dos meus dias — confessou Brom, tentando
conter as lágrimas. — Mas é um fantasma mais sinistro
que me preocupa neste momento.
— Você perdeu algo muito mais precioso do que o amor
de Katrina. Perdeu tudo o que o acompanha, a fazenda, a
propriedade e o dinheiro dela — disse Crane com uma
expressão maliciosa no rosto. — Ocorreu-lhe que tudo o
que você tinha que fazer era fingir que adora as mesmas
coisas que ela, encorajar seus sonhos ridículos de se
tornar escritora, fingir que queria viajar pelo mundo e,
uma vez casados, guiá-la na direção que você quisesse?
— acrescentou, com um olhar tão cruel que contorceu
seu rosto, mostrando a Brom quem Crane realmente era.
— Você é vil, Crane. Repreensível e cruel, e farei tudo o
que estiver ao meu alcance para garantir que Katrina
jamais se case com você — disse Brom, agora
assomando sobre Crane, que ainda estava sentado na
poltrona de Baltus. — Levante-se, Crane — ordenou
Brom, agarrando-o pelo colarinho. — Acho que é hora de
conversarmos com Baltus e contar-lhe o que você tem
tramado. — Ele puxou Crane, forçando-o a ficar de pé, os
braços e pernas de Crane balançando como um
espantalho ao vento.
— Tire as mãos de mim, seu tolo! — protestou Crane,
desferindo um golpe desajeitado em Brom e errando.
— Eu não vou lutar com você, embora Deus seja
testemunha de que você merece uma surra. — Brom
recuou, mas Crane ergueu os punhos em posição de luta,
a cabeça abanando de um lado para o outro e agitando
os braços descontroladamente, acertando por mera sorte
um golpe em cheio na cara de Brom. Os dois ouviram um
horrível estalo que só podia ser a fratura de seu nariz, e
então o sangue escorreu por seu rosto. Quando Brom
revidou o golpe e derrubou Ichabod no chão, um grupo
de pessoas se aproximou deles para ver do que se
tratava a comoção.
— Estão vendo o que esse bruto fez comigo? Com
ciúmes do meu relacionamento com Katrina, ele me deu
um soco sem ser provocado. Ele é uma fera e deveria ser
sacrificado — disse Crane, enxugando o sangue da boca
com um sorriso desdenhoso enquanto Baltus e os outros
homens arrastavam Brom para o corredor, onde Katrina
estava parada, chocada com o que acabara de ver.

5 Dança típica da Escócia. (N.T.)


VINTE

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

CUIDADO COM O CAVALEIRO SEM CABEÇA

Parei, abismada, enquanto observava meu pai


apartar a briga entre Brom e Ichabod, as canecas e
os pratos de sobremesa quebrados aos meus pés.
Fiquei de coração partido e enojada com o que
acabava de presenciar, e me perguntei se Ichabod
sabia que eu havia escutado cada palavra insidiosa
que ele acabara de proferir contra Brom.

Katrina correu furiosa para o quarto, arrancando o chapéu e o


cinto — a fantasia da qual estava tão orgulhosa — e
atirando-os para o outro lado do cômodo. Andava de um
lado para o outro, tentando descobrir o que fazer a
seguir. Estava irada. Escancarou as portas da varanda e
foi até a sacada, vendo dali que a festa estava se
encerrando agora, e o último dos convidados mais jovens
retornava para casa. Não havia dúvida de que a briga de
Brom e Ichabod azedara o clima de comemoração.
Permaneceu ali, observando todos partirem,
despedindo-se e entrando nas carruagens. Então, Brom
surgiu, atravessando furiosamente a porta da frente para
o lado de fora, pisando forte e gritando com Crane.
Katrina escondeu-se atrás de uma das decorações de
morcego para que não a vissem enquanto ela os
observava.
— Guarde minhas palavras, Crane, você nunca vai se
casar com Katrina! — Ela jamais tinha visto Brom tão
zangado. Seu pai saiu e lhe disse algo que ela não
conseguiu entender, mas logo ficou claro. — Estou com
muita raiva, Baltus. Conversaremos amanhã! E não, eu
não preciso de uma maldita carruagem! — ele gritou,
caminhando decidido para a escuridão.
Depois de um momento, Crane saiu, seguido pela mãe
de Katrina.
— Mas eu não compreendo. O que aconteceu? —
perguntou Regina.
— Ele disse algumas coisas muito ofensivas sobre a
nossa Katrina — respondeu Crane, ajeitando
exageradamente seu traje, que ficara amassado durante
a briga de socos com Brom.
— Isso não parece ser do feitio de Brom — duvidou
Baltus, encarando Crane.
— Eu lhe asseguro, bom senhor, que foi exatamente
isso que aconteceu. Acho que ele está ressentido porque
Katrina me escolheu em vez dele. Eu só queria que seu
comportamento brutal não tivesse frustrado meus planos
de propor casamento a Katrina esta noite — disse Crane.
— Não se preocupe, querido. Tenho certeza de que
haverá outra oportunidade — disse Regina, mas Katrina
podia perceber que os pais não pareciam convencidos de
que Ichabod estava contando toda a história. — Lamento
que Katrina não esteja aqui para se despedir, mas ela
ficou muito aborrecida com o que aconteceu entre você e
Brom. Vou subir e conversar com ela. Tenho certeza que
tudo vai dar certo.
— Ela ouviu o que nós… o que Brom disse? —
perguntou Crane.
— Acredito que não — respondeu Baltus, ainda
encarando Crane, desconfiado. — Acho que ela entrou
quando eu estava separando a briga entre vocês, mas é
claro que não posso ter certeza.
Regina colocou a mão no ombro de Crane.
— Tudo bem, meu querido, deixe-me chamar uma
carruagem para você — disse ela, olhando para ver se
havia uma disponível.
— Acho que todas as carruagens estão em uso, Regina
— interveio Baltus. — Além disso, acredito que o sr. Crow
chegou aqui a cavalo, não? E um jovem corajoso como o
Ichabod aqui não precisa de uma carruagem agora,
precisa? — Baltus sorriu para Crane como um gato de
olho em um canário. Isso proporcionou a Katrina uma
pequena satisfação. Dava para ver que o pai sabia que
Crane não era inocente e estava gostando de se divertir
com ele.
— De fato… Eu… eu não preciso — ele gaguejou,
olhando para a sacada de Katrina. Ela tinha certeza de
que ele a vira, mas se moveu mais para as sombras, para
ficar fora de vista.
— Eu mesmo vou buscar seu cavalo. É o cavalo de
arado, não é? — perguntou Baltus, rindo sozinho a
caminho do estábulo.
Katrina viu o pai se afastar e a mãe se despedir.
— Boa noite, então, Ichabod — disse Regina. — Se me
der licença, devo ir verificar se há algum convidado
remanescente que precisa ser despertado e enviado para
sua cama. — Ela voltou para dentro, deixando Crane
sozinho na escuridão agourenta.
— Aqui está, Crane. Boa cavalgada para casa — disse
Baltus com um sorriso irônico, entregando as rédeas do
cavalo ao desengonçado sujeito.
Katrina pôde reparar que, antes de montar no cavalo,
Crane teve a sensação de que alguém o observava. Era
um formigamento que indicava que algo não estava
certo, e então ele a viu. Katrina estava agora totalmente
à vista na varanda, encarando-o em silêncio. Olharam
um para o outro por um momento, mas algo chamou a
atenção de Katrina à distância. Crane virou-se
rapidamente para ver o que ela olhava com tamanha
intensidade, mas não viu nada lá. E, na sequência, a
expressão no rosto de Katrina o apavorou.
— Cuidado com o Cavaleiro Sem Cabeça — ela
aconselhou; depois se virou e voltou para o seu quarto.
VINTE E UM

O DIÁRIO DE KATRINA VAN


TASSEL

AS DESVENTURAS DE ICHABOD CRANE

Estava bem na Hora das Bruxas quando Ichabod


seguiu o caminho para casa. O céu ia ficando cada
vez mais escuro à medida que, uma por uma, as
estrelas apagavam sua luz. Nuvens retorcidas
obscureciam a lua e o professor nunca se sentira tão
melancólico, tão absolutamente sozinho, e, quanto
mais se aproximava do vale, mais acabrunhado
ficava.

Crane havia cometido um erro terrível. nunca deveria ter se


gabado para Brom como fizera e estava com muito medo
de que Katrina tivesse ouvido o que disse. Ele não podia
ter certeza, é claro, mas pela expressão no rosto de
Katrina, estava quase certo de que ela ouvira. E, se por
acaso Katrina não tivesse escutado ela mesma a
conversa com Brom, tinha certeza de que saberia sobre o
diálogo pela manhã, assim como Baltus.
Cuidado com o Cavaleiro Sem Cabeça. Nunca palavras
lhe transmitiram tamanho terror, fazendo seu corpo
inteiro tremer e congelando-o de pavor.
Montado em seu cavalo de arado e assobiando para si
mesmo para acalmar os nervos, Crane atravessou a
Sleepy Hollow Road sob um dossel ameaçador de árvores
que mais pareciam ter mãos nodosas de bruxa do que
galhos. Ele se amaldiçoou enquanto o cavalo avançava
lentamente, sem saber ao certo do que tinha mais medo:
se do Cavaleiro Sem Cabeça, ou de perder a mão de
Katrina e a vida extravagante que vislumbrara para si
mesmo, que tal casamento proporcionaria.
A lua espiava através dos galhos esqueléticos, para
logo ser envolvida por nuvens que pareciam mãos
ameaçadoras, sufocando toda a luz do céu e
mergulhando-o na escuridão. Uma rajada de vento fez
com que as folhas de outono rodopiassem em torno dele
enquanto uma coruja piava ao longe, seguida de perto
pelo uivo de um lobo. De repente, Crane viu um
fantasma lamuriante agitando-se no vento, o que fez seu
sangue gelar, porém logo descobriu que fora apenas a
imaginação fértil: quando as nuvens deslizaram no céu, o
luar revelou que o fantasma aterrorizante não passava
de uma árvore oca.
E, mesmo que estivesse se sobressaltando com cada
sombra e temendo ver o Cavaleiro Sem Cabeça em cada
curva do trajeto, a imagem mais assustadora daquela
noite foi o olhar fulminante de Katrina encarando-o do
alto da varanda.Todos os seus planos estavam agora
arruinados, e se perguntou o que o amanhã lhe
reservava se ele realmente sobrevivesse àquela noite.
Especulou se Brom de fato encontrara o Cavaleiro Sem
Cabeça naquele terrível caminho ou se estava
simplesmente tentando assustá-lo para que deixasse a
cidade, mas não conseguiu vencer o medo do hessiano
sem cabeça enquanto atravessava uma pequena ponte
sobre um lago. Da água negra, sapos coaxantes
pareciam repetir seu nome, cantando em harmonia com
o vento nos juncos, enchendo a própria atmosfera de
pavor. Parecia a Ichabod que todas as criaturas da Hora
das Bruxas haviam saído da toca para entoar o canto
fúnebre, incluindo um bando de corvos que levaram a
canção estridente para o céu, revelando a localização de
Crane ao demônio hessiano.
Aí, ele ouviu: o som de um cavalo a galope se
aproximando, fazendo-lhe o coração disparar,
descobrindo logo depois que era apenas o som de
salgueiros agitados violentamente ao vento e batendo
em um carvalho oco. Ficou parado lá, rindo de si mesmo
por estar com tanto medo, e então sua risada foi
acompanhada por uma gargalhada medonha e
sobrenatural, que zombava dele.
Era o Cavaleiro Sem Cabeça!
Estava bem à sua frente na estrada, sinistro e
horripilante, fazendo todo seu corpo ser tomado pelo
pânico. Ichabod estremeceu quando fixou os olhos no
corcel demoníaco, empinado enquanto o Cavaleiro Sem
Cabeça erguia alto a espada, a capa tremulando ao
vento sobrenatural quando correu na direção de Ichabod
para atacá-lo.
Ichabod incitou seu cavalo o melhor que pôde, e o
Cavaleiro Sem Cabeça os perseguiu pela floresta. A
respiração do cavalo demoníaco era quente em seu
pescoço, e ele podia sentir o cavaleiro cortar o ar
incontáveis vezes, a espada errando o pescoço de
Ichabod por meros centímetros, fazendo-lhe o sangue
gelar. Podia sentir o zunir da lâmina como um vento
violento. Ichabod estava tão tomado de terror que não
percebeu que se lançava em direção à queda acentuada
de um penhasco, até que ele e o cavalo estivessem
escorregando ravina abaixo, chegando a um riacho.
Chocou-se contra uma árvore e ficou ali parado,
atordoado e piscando, na água escura. Então, uma figura
se ergueu acima dele; o Cavaleiro Sem Cabeça dera a
volta e o interceptara no caminho.
Naquele momento, Crane teve certeza que ia morrer.
Então, por trás do cavaleiro fantasmagórico, à distância,
avistou a ponte coberta. As palavras de Brom ecoaram
em sua mente: Somente quando você chegar ao outro
lado da ponte coberta estará seguro. Afundou os
calcanhares no pobre cavalo, persuadindo-o a correr o
mais rápido que podia. Golpeou-o de novo e de novo,
enquanto disparavam pela ponte, não ousando olhar
para trás até que finalmente alcançaram o outro lado.
Seu cavalo o derrubou, deixando-o atordoado enquanto
corria para a floresta, abandonando Crane sozinho na
estrada, sem fôlego e zonzo. Quando ergueu a vista,
ainda tonto da queda, viu o Cavaleiro Sem Cabeça do
outro lado da ponte, observando-o. Teve uma sensação
estranha. Aquilo o lembrou do modo como Katrina o
encarara da sacada. A última coisa que viu foi uma
lanterna de abóbora em chamas vindo em sua direção.
Na manhã seguinte, os únicos vestígios que restaram
da aventura foram uma abóbora amassada e o chapéu
de Ichabod.
Ichabod Crane nunca mais foi visto em Sleepy Hollow.
VINTE E DOIS

UMA VERDADEIRA KATRINA

Kat e isadora estavam na biblioteca aconchegadas no recanto de


leitura da janela e perceberam que tinham perdido a
noção do tempo lendo o diário de Katrina, quando
ergueram as vistas e viram que estava escuro lá fora. Kat
olhou para o celular, que estava sobre a mesa que a mãe
havia arrumado com sanduíches e café para ela e
Isadora, e que ainda permaneciam lá, intocados.
— O que foi? O que há de errado? — perguntou
Isadora.
— Perdi o exame. Deveria fazer a segunda chamada
hoje e me esqueci por completo. — Ela bateu o telefone
de volta, sentindo-se decepcionada consigo mesma.
— Tenho certeza de que o diretor Toad vai deixá-la
fazer a segunda chamada, especialmente com tudo que
está acontecendo.
Isadora provavelmente estava certa, mas não era
típico de Kat esquecer algo tão importante.
— Espero que sim — disse Kat, desviando o olhar.
— O que mais a está incomodando? Blake ou um dos
amigos dele enviou uma mensagem ou algo assim?
— É só que… como Katrina soube o que aconteceu, se
Crane simplesmente desapareceu? Quem contou a ela o
que ocorreu com ele naquela noite? Parece que há mais
coisa nessa história — disse Kat.
— Não sei, será que o Cavaleiro Sem Cabeça contou a
ela? — Isadora se perguntou. — Há partes do diário em
que Katrina escreve sobre coisas que outras pessoas lhe
contaram.
Kat sentiu como se estivessem deixando passar
alguma coisa; parecia estranho que o diário acabasse ali.
— Talvez minha mãe saiba onde estão os outros diários
de Katrina. Quero saber se o Cavaleiro disse a ela que foi
ele quem afugentou Ichabod. E quero saber o que
aconteceu com ele.
— Bem, eu sei o que aconteceu com ele. Foi parar em
uma cidade próxima, casou-se e teve uma penca de
filhos. A lenda da família diz que ele sempre jurou que foi
o Cavaleiro Sem Cabeça que o perseguiu pelo vale. O
que é estranho, porém, é que ele não foi enterrado lá.
Não sabemos onde está o túmulo do tio Ichabod.
De repente, a sala pareceu mudar, como se tudo saísse
de foco por um breve momento. Kat e Isadora sentiram
um nó no estômago, como se descessem num elevador
rápido demais.
— Não foi o Cavaleiro que assustou Ichabod — disse
uma voz. — Fui eu.
Ambas as garotas se viraram para a voz, tentando
entender o que estava acontecendo.
Ali, diante delas, estava Katrina, pujante de vida. Era
uma mulher pequena e curvilínea, com longos cabelos
louros presos em um coque, os grandes e vivos olhos
brilhando para elas enquanto sorria. E era exatamente
como Kat a imaginava. Mas ela não a tinha simplesmente
imaginado, tinha? Lembrava-se dela. Era a mulher de sua
infância, a mulher que andara vendo nos últimos dias.
Kat pensou que ela parecia ter saído das páginas de um
conto de fadas e, então, riu, percebendo que era isso
mesmo, exceto que não de um conto de fadas, mas de
uma história de fantasma.
— Katrina? Era você o tempo todo? — perguntou Kat,
levantando-se do recanto de leitura.
— De fato, minha doce menina — disse a mulher
espectral. — Sinto muito por tê-la assustado nos últimos
dias. Só estava tentando proteger você, mas Blake tinha
outros planos.
Kat estava em choque porque estava falando de
verdade com Katrina e tentava assimilar aquilo tudo.
Tinha muitas perguntas.
— Como assustou Ichabod?
— Não foi um espectro fantasmagórico. Fui eu.
— Então, o Cavaleiro Sem Cabeça não é real? Você
assustou Brom também? — Isadora perguntou, juntando-
se a Kat e Katrina.
— O Cavaleiro Sem Cabeça é real. Foi ele quem foi
atrás de Brom, mas fui eu quem expulsou Ichabod de
Sleepy Hollow. Estava com tanta raiva depois de ouvir
tudo o que Ichabod disse naquela noite que, quando dei
por mim, estava pegando uma capa e jogando-a por
cima do que restara da minha fantasia. Apanhei uma das
lanternas de abóbora e montei no cavalo do meu pai.
Acho que nem pensei no que estava fazendo, só queria
que Crane pagasse pelo que ele fizera comigo.
— Bem, foi brilhante! Todos esses anos quase todo
mundo achou que havia sido realmente o Cavaleiro Sem
Cabeça, e o tempo todo foi você — disse Isadora.
Ambas as meninas estavam em choque. Não podiam
acreditar que Katrina estivesse realmente lá depois de
terem lido sobre ela por tanto tempo.
— Obrigada, Isadora Crane. Tenho muito a dizer a você
— Katrina falou, deslocando-se, fazendo com que a sala
se movesse novamente, como se por um momento elas
estivessem em outro lugar. — Mas, primeiro, devo dar
uma boa olhada na minha xará. — Ela se aproximou de
Kat e sorriu para ela. — Olhe só para você, minha
pequena Katrina. Tão forte e corajosa. Tão inteligente e
independente. Estou feliz por você estar finalmente livre
de seus medos e dúvidas.
— Mas tenho tantas dúvidas persistentes! Quero muito
viver de acordo com o seu legado, mas também quero
viver uma vida que seja minha. Tenho tanto medo de
desapontá-la…
— E você tem medo de acabar como eu. Vejo em seu
coração e escutei seus medos ao pé da Árvore Mais
Antiga. Eles soaram muito parecidos com os meus. Mas,
por favor, saiba: estou aqui porque quero estar, porque
escolhi ficar aqui com Brom. No momento em que o ouvi
dizer a Ichabod que ele estaria disposto a deixar Sleepy
Hollow para trás e viajar pelo mundo comigo, soube que
não queria nada mais do que permanecer aqui com ele,
porque então eu tinha o que sempre quis, uma escolha. E
eu sabia no fundo do meu coração que se Brom e eu
tivéssemos partido, Sleepy Hollow não seria o que é hoje.
Seria um lugar vazio, deixado apenas com seus
fantasmas e ninguém para compartilhar histórias — disse
ela, parecendo se perder novamente em pensamentos,
como se estivesse em dois lugares ao mesmo tempo,
vagando entre eles.
— Então, não tenho a responsabilidade de ficar? —
perguntou Kat, sentindo aquele velho pânico de que
ficaria presa em Sleepy Hollow para sempre.
— Você não ficará presa aqui para sempre, minha
querida. Quero que você vá para a faculdade, para viver
a vida que você sempre quis e, quem sabe, talvez seu
novo caminho a traga de volta aqui e você vá me visitar
na Árvore Mais Antiga para me contar suas aventuras.
Mas saiba que não importa o que faça, ficarei orgulhosa
de você, porque é uma verdadeira Katrina. — Kat ficou
impressionada com as palavras dela, uma verdadeira
Katrina. Sentiu-as profundamente no coração e não
queria nada mais do que abraçar Katrina, mas ela se
deslocou outra vez, como se estivesse em outro lugar,
entrando e saindo de vista.
— Você é muito parecida com Ichabod, Isadora — disse
Katrina, finalmente voltando para elas outra vez, com o
rosto sereno e os olhos refletindo tristeza.
— Não sou nem um pouco como meu tio Ichabod. —
Isadora agarrou a mão de Kat, e Kat a apertou tentando
lhe dar coragem. — Juro a você, juro a vocês duas, não
há nada de Ichabod dentro de mim.
— Você me entendeu errado, minha querida, eu vejo as
virtudes dele que mais amei e apreciei dentro de você;
não é de admirar que minha xará a estime tanto. Posso
ver em seu coração, Isadora Crane, e sei que você não
vai magoar Kat, ou então não estaria aqui agora. — E Kat
sabia o que ela queria dizer: se Isadora tivesse a
intenção de magoá-la, Katrina e o Cavaleiro Sem Cabeça
a teriam expulsado da cidade. Era um pensamento ao
mesmo tempo reconfortante e assustador.
— Sinto muito por não estar sempre lá para protegê-la,
Kat. Blake foi astuto, encontrou maneiras de me manter
longe de você, mas prometo que nunca mais vou deixar
isso acontecer. Há tanta coisa que eu quero lhe dizer,
tanta coisa que você precisa saber, mas estou ficando
sem tempo. Blake fez algo horrível, algo que não sei se
pode ser desfeito. Você viu a evidência disso no vale, a
velha lápide que não estava marcada. Ele fez isso depois
que você terminou com ele, Kat. Estava desesperado, ele
me culpou e queria que eu sofresse, mas foi longe
demais e deixou algo mau entrar no coração dele.
Prometa-me que, se o pior acontecer, você encontrará
meus outros diários. Há mais nessa história. — Nesse
momento, Katrina começou a gritar. Era o mais
aterrorizante dos sons, gritava tão alto que as janelas
chacoalhavam, e fez as duas taparem os ouvidos de dor.
A sala se moveu mais intensamente dessa vez; flashes
fantasmagóricos do bosque de carvalhos entravam e
saíam de foco, fazendo Kat se sentir como se estivesse
na biblioteca e no bosque ao mesmo tempo.
— O que está acontecendo? O que há de errado? — Kat
não sabia como ajudar Katrina. Não suportava vê-la em
tamanha agonia. Katrina caiu no chão, soltando um
soluço a cada onda de dor que lhe sobrevinha, fazendo
seu corpo convulsionar violentamente, enviando ondas
de choque pela sala, fazendo-a tremer com força.
— O que está acontecendo? Quem está fazendo isso
com você? — perguntou Isadora. Ambas as meninas
estavam debruçadas sobre ela, tentando descobrir como
ajudar.
— É Blake! — ela disse, contorcendo-se no chão,
enquanto cortes profundos surgiam em seu corpo. Kat e
Isadora saltaram para trás, horrorizadas. Ferimentos
profundos e horríveis estavam aparecendo nos braços,
nas pernas e no rosto.
— O que você quer dizer com “é Blake”? Como ele está
fazendo isso? — Kat e Isadora tremiam de medo e
impotência enquanto Katrina se contorcia de dor.
— Ele me prendeu, e também o Cavaleiro Sem Cabeça,
dentro da Árvore Mais Antiga!
— Mas eu não entendo… você está aqui! — disse Kat.
— Estou em todos os lugares. Estou na Árvore Mais
Antiga e com você. Eu sou parte de Sleepy Hollow como
a cidade é parte de mim.
Katrina de repente ficou rígida; uivou de dor quando
seu corpo se esticou, alcançando o teto alto, os braços
crescendo em forma de galhos retorcidos de carvalho, as
pernas se transformando no tronco oco. As raízes do
tronco cravaram no chão, e os galhos penetraram as
paredes, estantes e teto, quebrando as janelas. Mais
cortes horríveis apareceram em violenta sucessão,
acompanhados por uma explosão de sangue. Os gritos
de Katrina machucavam os ouvidos das garotas, e antes
que elas percebessem o que estava acontecendo, não
estavam mais na biblioteca de Kat, e sim no vale, não
muito longe da Árvore Mais Antiga.
— Como chegamos aqui? O que aconteceu? — As duas
garotas olharam ao redor, confusas, e sentiram que iam
desmaiar. Estavam desorientadas e sem equilíbrio, e
nauseadas com o que aconteceu com Katrina.
— Receio ter trazido vocês aqui comigo, minhas
meninas. Eu não pretendia, mas isso me esgotou. Não
tenho forças para escapar do carvalho; por favor, ajude-
nos ou Blake vai banir nossos espíritos para a escuridão e
eu nunca mais as verei de novo.
A voz de Katrina era como um sussurro ao vento, mas
Kat e Isadora sabiam que ela estava presa dentro do
carvalho com o Cavaleiro Sem Cabeça. Eles estavam à
mercê de Blake.
Elas podiam ver Blake cortando a árvore. A cada golpe
do machado, as duas ouviam os gritos guturais de
Katrina e do Cavaleiro Sem Cabeça vindos de dentro do
venerável carvalho, o sangue espirrando tão
violentamente que fazia Blake cambalear para trás. Ele
estava em tal estado de loucura que toda vez que o
sangue o derrubava longe, levantava-se e atacava a
árvore de novo.
— Como podemos ajudá-los? Não sei o que fazer. — Kat
olhou para Isadora, esperando que ela tivesse a resposta.
— Eu também não. Ele está completamente fora de si.
Como vamos detê-lo? — Elas o ouviram berrando à
distância, gritando com Katrina enquanto desferia outro
golpe na árvore.
— Isso é culpa sua, envenenando Kat contra mim! Tudo
estava bem até que ela começou a ler seu diário! — Ele
golpeou a árvore várias vezes, não mais sendo afetado
pelo sangue que jorrava nele.
As garotas assistiam aterrorizadas enquanto Blake
oscilava em um estado de frenesi e delírio. Queriam fazer
algo para ajudar, mas tinham medo de serem apanhadas
por sua loucura — ele parecia possuído. Viram
horrorizadas quando o rosto e o corpo de Blake se
contorceram, a expressão passando de raiva para medo.
— Você acha que eu sou um tolo, Katrina? É claro que
eu sabia que foi você quem me expulsou de Sleepy
Hollow!
— Algo não está certo. Blake é um canalha
manipulador, mas não é um psicopata. — O rosto de
Isadora se transformou, uma expressão de puro terror o
tomou. — Você acha que ele está possuído? Ele está
agindo como se fosse duas pessoas diferentes.
— Possuído? Por quem? — Kat perguntou, mas então a
resposta lhe ocorreu. — Oh, meu Deus, Ichabod! Katrina
disse que tinha a ver com a lápide que encontramos;
poderia ser o túmulo de Ichabod?
— O que devemos fazer? Ele tem um machado. — Kat
podia ver que Isadora estava horrorizada, congelada de
medo.
— Temos que fazer alguma coisa — afirmou Kat, mas
Isadora estava paralisada observando Blake.
— Esse é meu tio? Ele o está obrigando a fazer isso?
Blake estava possuído por Ichabod o tempo todo? Estava
se vingando de você porque é a herdeira do nome de
Katrina?
— Não, Isadora, Blake era manipulador e corrupto
antes de Ichabod invadi-lo. Blake escolheu o próprio
caminho e pagou o preço invocando o espírito de seu tio
para alcançar seu objetivo. Você vai ajudar Katrina a
derrotá-lo, a derrotar os dois? Você vai ficar ao lado dela
contra seu próprio sangue para nos salvar?
— Claro que vou! O que temos que fazer? — Isadora
agarrou a mão de Kat. — Como vamos detê-los?
— Segure firme na mão de Kat e lhe dê força enquanto
ela pronuncia as palavras.
— Que palavras? — perguntou Kat. — Você conhece as
palavras? Você sabe mais sobre essas coisas do que eu.
O que eu devo falar? — Kat olhou para Isadora,
esperando que ela tivesse a resposta. Não sabia o que
dizer e não sabia se tinha o poder de detê-los. — Você
tem que me ajudar — Kat disse, sentindo-se
desesperada.
Isadora pegou a mão de Kat, olhou em seus olhos e
disse:
— Você conhece as palavras, Kat, elas estão dentro de
você.
— Diga as palavras, Kat! Seja corajosa. Salve-nos —
pediu Katrina, a voz tão alta que encheu a floresta e fez
com que as folhas caíssem sobre elas enquanto as
árvores cresciam ao seu redor, os galhos se esticando
para se juntarem, mergulhando o vale na escuridão.
— Que palavras? O que eu digo? — Kat gritou nas
trevas, com medo de que Blake a ouvisse, mas estava
desesperada enquanto o via cortar a árvore e o sangue
jorrava, enquanto ele berrava suas infames loucuras, ao
mesmo tempo que todos os carvalhos do vale cresciam a
alturas ciclópicas, as raízes explodindo da terra, fazendo
o chão tremer e os galhos se chocarem. As meninas
gritaram. Kat olhou para Isadora. — Eu preciso de você.
Não sei o que dizer.
Isadora apertou a mão de Kat.
— Estou bem aqui, Kat, mas você não precisa de mim.
Você consegue fazer isso.
Foi então que Blake as notou. Kat pôde sentir o olhar
dele cravar no seu. Ele ergueu o machado e avançou.
Parecia monstruoso, coberto de sangue, enquanto
disparava na direção delas.
Kat pensara que havia se libertado dele, mas viu que
tinha que enfrentar outro medo antes que pudesse
realmente se livrar daquele monstro, então, disse as
palavras:
— Eu invoco os fantasmas de Sleepy Hollow em nome
de Katrina Van Tassel para libertar seu espírito e se
vingar daqueles que desejam nos fazer mal!
A floresta se encheu instantaneamente de fantasmas
de todos os tipos, velhos e jovens, alguns cujo rosto Kat
recordava e outros que haviam morrido muito antes dela
ou da primeira Katrina nascer. Invadiram a floresta como
um enxame, deixando uma espessa fuligem preta em
seu rastro enquanto rodeavam a Árvore Mais Antiga,
removendo o sal que a cercava e depois espalhando a
fuligem por toda a floresta e na cidade de Sleepy Hollow,
envolvendo-a em escuridão e desespero. Foi uma visão
aterrorizante, ver as trevas tomarem conta de tudo. A
única luz era a dos espíritos brilhando na escuridão como
estrelas espiando através do manto negro da noite. Mas
nada foi tão aterrorizante quanto o Cavaleiro Sem
Cabeça e Katrina Van Tassel montados na besta
espectral, irrompendo do oco da árvore, finalmente livres
da miserável maldição que os enlaçara. O cavaleiro
agarrou Blake com seu forte braço e galopou para a
escuridão, tirando Blake da vida de Kat para sempre.
Blake nunca mais foi visto em Sleepy Hollow.
EPÍLOGO

AS AVENTURAS DE KAT VAN


TASSEL

Já se passaram muitos anos desde tais aterrorizantes acon-


tecimentos e até hoje a rimeira Katrina e o Cavaleiro Sem
Cabeça não me dizem o que aconteceu com o espírito de
Blake ou Ichabod Crane naquela noite.
— Eles não vão incomodar você nem Isadora nunca
mais. — Isso foi tudo o que o Cavaleiro Sem Cabeça disse
sobre Blake quando voltou para a Árvore Mais Antiga, ao
pé da qual deixara a mim e Isadora naquela noite
horrível. Claro que eu queria saber a verdade, queria
saber o que aconteceu com ele, mas deixei isso para lá.
Pelo menos por enquanto.
— Obrigada por nos salvar — eu disse, sentindo-me
estranhamente conectada àquele homem. Um morto
sem cabeça. Era uma conexão que não apenas
perduraria, mas se fortaleceria ao longo da minha vida.
Mas isso é outra história.
— Você nos salvou, Kat Van Tassel, invocando os
espíritos deste lugar e enfrentando seus medos.
Obrigado por me despertar, como Katrina fez tantos anos
atrás.
— O que quer dizer? Como despertei você?
— Você se sentou ao lado da minha árvore escrevendo
sobre seus sonhos e desejos, seu desejo de uma vida
diferente, e chorou quando teve o coração partido, assim
como Katrina fez antes de você. Como não despertar?
Quis proteger você, assim como tentei proteger Katrina.
Era meu plano tirar Ichabod de Sleepy Hollow naquela
noite, assustá-lo como fiz com Brom, mas quando vi
Katrina naquele cavalo, vestida como eu, percebi quão
forte e corajosa ela era, soube que não precisava da
minha ajuda; me apaixonei por ela naquela noite e jurei
que protegeria todas que compartilhassem seu nome.
— Katrina sabia que você era real? Você chegou a se
mostrar para ela?
— Assim que soube que ela estava segura, meu
espírito voltou para o carvalho, mas ela sabia que eu era
real. Minha querida Katrina vinha a mim todos os dias e
falava comigo em nossa árvore; ela me contava sobre
sua vida, as histórias que havia escrito e como Brom a
fazia feliz. Você é uma mulher corajosa, Kat, assim como
Katrina. Sei que ela está orgulhosa de você, e, quando
ela estiver forte o suficiente, virá até você e lhe falará
isso pessoalmente, e talvez compartilhe o restante de
sua história. Mas, por enquanto, ela e os outros
fantasmas deste lugar estão trabalhando para restaurar
Sleepy Hollow, removendo a fuligem causada pela
perseguição a Blake e ao espírito de Ichabod Crane. E
agora devo ir ajudá-los.
Pude sentir a mão de Isadora tremendo na minha
enquanto o Cavaleiro falava, e a apertei, tentando
acalmá-la.
— Não tenha medo, Isadora Crane. Como eu disse,
você não tem nada a temer de mim.
Enquanto ele montava no cavalo, um vento
sobrenatural soprou através do vale, fazendo com que as
folhas de outono girassem em torno dele enquanto o
animal empinava contra o céu laranja de outono. E, sem
outra palavra ou aviso, o Cavaleiro Sem Cabeça disparou
pela Sleepy Hollow Road, o vento no encalço, varrendo o
restante da fuligem que fora deixada no rastro do
enxame fantasmagórico.
Enquanto Isadora e eu caminhávamos pelo vale, muito
atrás dele, constatamos que Sleepy Hollow estava como
o Cavaleiro havia descrito, restaurada. E esperando por
nós no bosque de carvalhos estavam meus pais, que nos
pegaram nos braços e nos abraçaram repetidas vezes,
aliviados por estarmos ilesas.
— Pelo Fantasma de Sleepy Hollow! Ainda bem que
vocês estão sãs e salvas. Nós estávamos indo procurá-las
— disse minha mãe, enquanto meu pai nos inspecionava
em busca de ferimentos entre seus abraços de urso
gigante.
— Estamos bem, pai. Você está nos abraçando com
muita força — eu falei, fazendo todos rirem.
Depois daquela noite, após voltarmos para casa e
contarmos aos meus pais o que acontecera, a vida ficou
diferente em nosso lar e muito diferente em Sleepy
Hollow. Pelo menos por um tempo.
Demorou um bocado até vermos Katrina e o Cavaleiro
Sem Cabeça novamente, ou qualquer um dos fantasmas
de Sleepy Hollow. Mas eles voltaram. Estavam, como
dissera o Cavaleiro, descansando depois daquela
aventura exaustiva.
Quanto a mim e Isadora, nossa história estava apenas
começando. Assim que os fantasmas retornaram,
revelaram novos mistérios e segredos a serem
descobertos, em meio aos preparativos para nossa
formatura no que veio a se chamar depois Colégio
Katrina Van Tassel. E, justo quando estávamos nos
preparando para novas aventuras longe de nossa
cidadezinha, ficou evidente que havia mais na Lenda de
Sleepy Hollow do que poderíamos imaginar, mas isso é
história para outra hora.
FIM
AGRADECIMENTOS

Provavelmente, não teria escrito este livro se não fosse por


Anne Rice. Ela me encorajou e inspirou a me tornar
escritora — a não ter medo de errar, quebrar regras ou
criar uma voz única que fosse minha. Mostrou-me quão
poderoso poderia ser processar minha dor através da
escrita, sem a qual não tenho certeza se teria
sobrevivido à perda de minha irmã.
A disponibilidade, gentileza e generosidade de Anne
com os leitores foi meu modelo e norte no trato com os
meus próprios, adoráveis e incríveis.
E era uma franca aliada da comunidade lgbtqiap+, o
que, para mim, uma jovem bissexual, significou muito ao
ler seus livros pela primeira vez. Enche meu coração de
alegria que alguém que tanto admirei fosse não só uma
escritora brilhante, como também uma bela pessoa.
Ela fará muita falta.

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