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Coralidade - Parte I

A coralidade se mostra dos recursos mais utilizados na


dramaturgia contemporânea, nosso objeto de estudo. O texto abaixo,
em duas partes, é a tradução feita por Mônica dos Santos de um
artigo publicado no livro Nouveaux territoires du dialogue, cuja
referência encontra-se no final do post.

"Há termos que se tornaram indispensáveis à crítica e que os


dicionários de retórica ainda ignoram: a coralidade é um deles. No
espaço de vinte anos, esta noção exposta primeiramente por Jean-
Pierre Sarrazac em L’avenir du drame, em 1981, é pouco a pouco
imposta como uma ferramenta de análise indispensável de textos
dramáticos, assim como de muitos espetáculos contemporâneos; ao
ponto de uma rica edição de Altenatives théâtrales de março de 2003
ter sido consagrada a este tema [I]: sua leitura permite mensurar a
amplitude de problemas abordados por esta noção e as contradições
que ela coloca. Tentar circundar seu conteúdo ou delimitar seu campo
de aplicação impõe certamente cruzar muitos domínios de
conhecimento e diferentes abordagens teóricas e técnicas, o que é a
fonte principal das dificuldades e da riqueza de seu emprego. Deste
modo, é possível, para abordar a coralidade, associar história das
artes do espetáculo e retórica do drama contemporâneo, e até
mesmo questionar o futuro pós-dramático do drama: interessa-nos
então a literatura dramática e o lugar do texto na paisagem teatral
contemporânea. Mas recorrer à noção de coralidade pode também
servir para qualificar e explorar estéticas híbridas, próximas da
instalação, que não se apóiam mais que sumariamente sobre textos
([Bob] Wilson, [François] Tanguy, [Romeo] Castellucci). Enfim,
pensar o teatro sob o ângulo da coralidade convida a explorar a
ligação entre literatura e filosofia pelo viés da questão comunitária.
Outras pistas podem ser relacionadas aos três domínios esboçados a
seguir. Citamos a questão retórica, ainda pouco explorada, da
liricização [II] do drama pela função do coro; sociológica, do tropismo
ritual, ou cerimonialista, que se observa nas cenas contemporâneas
(notadamente desde [Jean] Genet), enfim, filosófica, dos vínculos do
drama e da história: a coralidade nasce onde o coro não é suficiente,
por diversas razões ainda não determinadas (fim das utopias e das
ideologias, dissolução da comunidade nas comunidades) e instala-se
nas cenas ocidentais de modo permanente. É inevitável que a
coralidade, transformada na mais nova peça chave do xadrez crítico
do drama contemporâneo, tenha os contornos de seu campo de
aplicação difíceis de delimitar. Aparece então o risco de uma profusão
asfixiante e a necessidade de fixar seus conteúdos: a mínima,
entende-se por coralidade esta disposição particular das vozes que
não dá destaque nem ao diálogo, nem ao monólogo; que requerendo
uma pluralidade (um mínimo de duas vozes), contorna os princípios
do dialogismo, sobretudo reciprocidade e fluidez dos encadeamentos,
em benefício de uma retórica da dispersão (atomização, parataxe
(III), explosão) ou do entrelaçamento de diferentes cantos que se
respondem musicalmente (étoilement [IV], sobreposição, ecos, todos
efeitos da polifonia). O termo é útil em pontuar uma maneira, que
varia segundo cada autor, de suprimir as falhas do diálogo: evocar a
coralidade de um dispositivo, é sobretudo encará-lo sob o ângulo da
difração das palavras e das vozes num conjunto refratário a toda
totalização estilística, estética ou simbólica. Neste sentido, a
coralidade é o inverso do coro. Ela postula a discordância, quando o
coro - ao menos como o entendiam os gregos - carrega sempre, de
modo mais ou menos explícito, o traço de um idealismo do uníssono.

Entretanto, do ponto de vista do desenrolar do tempo, a


coralidade interpreta dentro do tecido dramático um papel próximo
daquele que outrora tivera o coro do teatro. Ela produz diversos
efeitos sobre a temporalidade dramática: retardando o desenrolar do
diálogo como veículo da ação, ela impõe uma modalidade temporal
suspensiva por excelência, mesmo se variações de ordem diversas
podem neste aspecto ser observadas. A noção é então
particularmente empregada desde o oximoro [v] “drama estático” de
[Maurice] Maeterlinck. Se ela se aplica de maneira eficaz às formas
dramáticas modernas desde que o drama entrou em crise, ela é
dificilmente dissociável da estética do fragmento e das diferentes
modelizações da forma aberta: redução, isto é, o desaparecimento da
tríade exposição-conflito-desfecho em benefício de uma retórica da
disseminação, da microestrutura ou da composição em quadros. O
terreno expressionista é particularmente propício às florescências
corais. Mas parece difícil assinalar o ato do nascimento da coralidade
na história das formas dramáticas: tratar-se-ia, de preferência, de
uma tendência, cada vez mais apoiada historicamente, de fazer variar
o diálogo em todos os tipos de figuras que se assemelham ao
étoilement ([Maurice] Maeterlinck, Les aveugles), à dispersão
aleatória ([Philippe] Minyana, Les Guerriers), à serialização ([Valère]
Novarina), a uma disposição em escala das vozes ([Michel] Vinaver)."

Notas:

I. “Choralités”, Alternatives théâtrales, nº76-77, Bruxelles, 1° e 2°


trimestres de 2003.

II NT. Apesar do termo no francês ser lirisation optamos por


empregar liricização do verbo liricar que é o mais próximo que existe
em português.

III. NT. Segundo o dicionário Houaiss: “Sequência de frases


justapostas sem conjunção coordenativa”.
IV. NT. Termo ainda em tradução. Possível sentido de
"estrelamento": extensão de uma forma central em raios que
lembram uma estrela, ou simplesmente, em forma de estrela.

V. NT. Segundo Houaiss: Figura em que se combinam palavras de


sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no
contexto, reforçam a expressão (por exemplo, obscura claridade,
música silenciosa)

MÉGEVAND, Martin. Choralité. In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org)


Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p.
36-40. (tradução de Mônica dos Santos)

Coralidade - Parte II

"Podendo funcionar como princípio único de composição, a


coralidade dramática permite associar forma lírica e conteúdo épico;
deste modo, a noção é particularmente utilizada para a análise de um
teatro visando menos narrar do que expor os limites do ser no todo e
propondo fazer um ato de memória a partir das feridas da História e
desmoronamentos do laço social ([Peter] Weiss, L’Instruction;
[Michel] Vinaver, 11 septembre 2001; Groupov, Rwanda 94). As três
obras corais aqui assinaladas apresentam todas uma ligação estreita
com a música.

A recente aparição da noção do discurso crítico assinala mais


uma evolução das formas dramáticas do que uma modificação do
olhar dos especialistas sobre as obras. Contudo, aparece inevitável
hoje encarar o texto dramático numa relação com as estéticas que
lhe são vizinhas. O recurso à noção de coralidade, transversal por
definição, permite convocar, ao lado das obras dramáticas, objetos
estéticos com destaque para a música, dança, artes plásticas e
reconsiderar, por exemplo, o propósito brechtiano sobre o papel do
distanciamento que tem a música de um espetáculo. Em suma, a
coralidade toma partido da dispersão das estéticas e do apagamento
das fronteiras entre as artes.

A coralidade, encarada como um campo do qual ainda é preciso


medir os desvios e variações, permite explorar as diferentes
modalidades estéticas das novas formas teatrais de dividir uma voz e,
transitivamente, questionar o ser conjunto. Assim como propõe
Christophe Triau no artigo da revista citada anteriormente [I], é
pertinente encarar a coralidade não somente sob uma espécie de
burburinho de vozes anônimas, mas também como um processo
dialético, ou colocar em tensão, de duas forças contrárias, patentes
no jogo cênico, assim como na profundidade do “personagem” coral:
seria assim coral uma tendência de composição, própria do jogo
dramático ou da escrita, que consiste ora em singularizar a
individualidade, ora em fundi-la no coletivo. Vê-se que o paradigma
temporal é central na abordagem da coralidade.

No entanto, coloca-se a questão de saber se, no momento em


que os paradigmas formais forem comodamente abolidos, melhor que
evocar “a” coralidade não seria preferível singularizar uma coralidade
de [Valère] Novarina, diferente da de [Michel] Vinaver e sem relação
com a de [Didier-Georges] Gabily, tanto a paisagem do drama
contemporâneo é semeada por irredutíveis formas corais."
Nota:

I. Christophe Triau, “Choralités diffractées: la communauté en creux”.


in Alternatives théâtrales, nº 76-77, op. cit., p. 5-11

MÉGEVAND, Martin. Choralité. In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org)


Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p.
36-40. (tradução de Mônica dos Santos)

Papel fere pedra - http://papelferepedra.blogspot.com/

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