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Copyright © 2017 by Margaret Rogerson

Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reprodução completa ou parcial em qualquer


formato.
Título original: An Enchantment of Ravens
Coordenação editorial: Thayná Santana
Tradução: Sofia Soter
Preparação: João Rodrigues
Revisão: Amanda Salimon
Capa: adaptada do projeto original de Sonia Chaghatzbanian, com ilustração de Charlie Bowater
Projeto gráfico e diagramação: Carolina Ruwer (Capítulo 1 — Conteúdo & Design Editoriais)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rogerson, Margaret
O encanto dos corvos / Margaret Rogerson ; tradução Sofia Soter. — São Paulo : Editora
Literalize, 2021.
Título original: An enchantment of ravens
ISBN 978-65-991661-3-6
1. Ficção norte-americana I. Título.
21-84327 | CDD-813
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura norte-americana 813 Aline
Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA LITERALIZE
CNPJ 35.384.865/0001-83
São Paulo/SP – Brasil
faleconosco@literalize.com.br
www.literalize.com.br
Sumário

Página de título
Créditos
Dedicatória

Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Epílogo

Agradecimentos
Sobre a autora
Cólofon
Para minha mãe e meu pai, com amor.
Um

Meu estúdio cheirava a óleo de linhaça e alfazema-brava, e uma mancha de


amarelo de estanho brilhava na tela. Eu quase acertara a cor do casaco de
seda de Gadfly.
O problema é que era difícil de persuadir Gadfly a vestir as mesmas
roupas em todas as sessões. Tinta a óleo leva dias para secar entre as
camadas, mas ele não conseguia entender por que não podia simplesmente
trocar as roupas por outras de sua preferência. Era extremamente vaidoso
até mesmo para os padrões do povo das fadas, o que se assemelhava a dizer
que um lago era inesperadamente molhado, ou que um urso era
surpreendentemente peludo. Em suma, era uma característica incongruente
numa criatura capaz de me assassinar sem nem precisar mudar o horário do
chá.
— Estou pensando em mandá-la bordar detalhes prateados nos punhos
— disse ele. — O que você acha? Dá para acrescentar, não dá?
— Dá, sim.
— E se eu escolhesse outra gravata…
Por dentro, revirei os olhos. Por fora, meu rosto doía, resultado de duas
horas e meia mantendo o mesmo sorriso educado. Grosseria não era um
erro aceitável.
— Posso alterar a gravata desde que seja aproximadamente do mesmo
tamanho, mas precisarei de mais uma sessão para finalizá-la.
— Você é mesmo maravilhosa. Muito melhor do que o retratista
anterior… aquele que estava aqui outro dia. Como ele se chama mesmo?
Sebastian Manywarts? Ah, eu não gostava dele, tinha um cheiro esquisito.
Levei um instante para entender que Gadfly se referia a Silas
Merryweather, um mestre do Ofício que morrera há mais de trezentos anos.
— Obrigada — respondi. — Que elogio bondoso.
— Como é interessante ver o Ofício mudar com o tempo.
Mal prestando atenção, ele pegou um bolinho da bandeja ao lado do
assento. Em vez de comê-lo de uma vez, encarou-o, como se fosse um
entomologista ao descobrir um besouro com a cabeça invertida.
— A gente acha que já viu o melhor dos humanos — continuou —, mas
de repente surge um novo método para pintar louças, ou esses bolinhos
fantásticos com recheio de limão.
Àquela altura eu já tinha me acostumado aos maneirismos feéricos. Não
desviei o olhar da manga esquerda, e continuei pintando o amarelo-
brilhante da seda. Entretanto, me lembro de quando o comportamento das
fadas me incomodava. Elas se moviam de forma diferente da dos humanos:
de forma graciosa, precisa, com um rigor peculiar à postura, nem mesmo
um dedinho escapava. Podiam passar horas imóveis sem piscar, e podiam se
mover com agilidade temível, aproximando-se antes que se tivesse tempo
de soltar um grito de surpresa.
Recostei-me na cadeira, segurando o pincel, e analisei o retrato em sua
totalidade. Estava quase pronto. Ali encontrava-se a imagem congelada de
Gadfly, tão imutável quanto o próprio. Não conseguia entender por que o
povo das fadas tinha tanto apreço por retratos. Supunha que tinha a ver com
vaidade e sede insaciável de se cercar de Ofício humano. Nunca refletiriam
sobre a juventude, pois era só o que conheciam, e, quando morressem, isso
se morressem, os retratos já estariam há muito carcomidos.
Gadfly aparentava ser um homem de trinta e poucos anos. Como todos
de seu povo, era alto, magro e belo. Seus olhos eram de um azul-cristalino,
lembravam o céu após a chuva que afastava o calor do verão; sua pele,
pálida e impecável como porcelana; e seu cabelo, como a prata áurea
radiante do orvalho iluminado pelo amanhecer. Sei que parece ridículo, mas
o povo das fadas exige tais comparações. Não há como descrevê-los de
outra forma. Dizem que um poeta do reino Excêntrico morreu de desespero
ao se descobrir incapaz de registrar em alegorias a beleza feérica. Acho
mais provável que tenha morrido envenenado por arsênico, mas é assim que
a história é contada.
É preciso lembrar, é claro, que isso tudo é um encanto, não se trata da
aparência verdadeira deles.
Fadas são talentosas na dissimulação, mas não podem mentir
descaradamente. Os encantos sempre têm falhas. A de Gadfly era nos dedos
— eram compridos demais para serem humanos e, às vezes, as articulações
se dobravam de forma estranha. Se alguém olhasse atentamente para
aquelas mãos, ele cruzaria os dedos, ou os cobriria com um guardanapo,
fugindo do olhar alheio como aranhas. Ele era a fada mais agradável que eu
conhecia, mais relaxado em relação às boas maneiras do que o resto, mas
nunca era recomendado encará-lo — a não ser, como eu, que tivesse um
bom motivo para tal.
Gadfly enfim comeu o bolinho. Não o vi mastigar antes de engolir.
— Estamos acabando por hoje — falei, limpando o pincel em um trapo
antes de largá-lo no pote de óleo de linhaça ao lado do cavalete. — Quer dar
uma olhada?
— E precisa perguntar? Isobel, você sabe que eu nunca recusaria a
oportunidade de admirar o seu Ofício.
Quando percebi, Gadfly já estava em pé atrás de mim, olhando por cima
de meu ombro. Ele mantinha um espaço educado entre nós, mas seu cheiro
inumano me envolveu: um perfume verdejante de folhas primaveris, a doce
fragrância das flores silvestres. Por baixo, um toque mais animal — um ser
que vagara pela floresta por milênios, cujos dedos compridos e aracnídeos
rasgariam uma garganta humana sem que a vítima interrompesse seu sorriso
cordial.
Meu coração quase saiu pela garganta. “Estou segura nesta casa”,
lembrei a mim mesma.
— Acho que gosto mesmo desta gravata, afinal — disse ele. —
Trabalho admirável, como de costume. O que devo a você mesmo?
Olhei de relance para seu elegante perfil. Uma mecha de cabelo
escapara da fita azul na nuca, como se por acidente. Eu me perguntei por
que ele escolhera esse detalhe.
— Concordamos em um feitiço para as galinhas — lembrei. — Todas
vão pôr seis bons ovos por semana, pelo resto da vida, e não podem morrer
cedo por motivo algum.
— Que simples — suspirou ele, trágico. — Você é a mais talentosa em
seu Ofício de toda nossa era. Imagine tudo que eu poderia lhe dar! Posso
fazer com que, no lugar de lágrimas, seus olhos derramem pérolas. Posso
oferecer a você um sorriso que amarre o coração dos homens, ou um
vestido que, uma vez visto, nunca será esquecido. Mas você prefere pedir
ovos.
— Eu gosto muito de ovos — respondi com firmeza.
Eu sabia bem que os feitiços que ele descrevia tomariam caminhos
estranhos e amargos, até fatais, no final. Além disso, o que eu faria com o
coração dos homens? Isso não daria uma boa omelete.
— Ah, bem, se você insiste. O feitiço começará a funcionar amanhã.
Dito isso, tenho que ir… Preciso contratar o bordado.
Levantei, fazendo a cadeira ranger, e fiz uma reverência quando ele
parou perto da porta. Em resposta, ele se curvou com elegância. Como a
maioria de seu povo, era ótimo em fingir que retribuía o cumprimento por
escolha, e não por uma compulsão rígida que, para ele, era tão necessária
quanto o ar que respirava.
— Ah! — acrescentou, endireitando-se. — Quase esqueci. A corte da
primavera anda cochichando que o príncipe do outono virá visitá-la.
Imagine só! Mal posso esperar para saber se ele será capaz de aguentar uma
sessão inteira sentado, ou se correrá atrás da Caça Bravia assim que chegar.
Não fui capaz de controlar minha reação. Olhei boquiaberta para Gadfly
até um sorriso confuso se abrir em seu rosto e ele estender uma mão pálida
na minha direção, talvez tentando determinar se eu tinha morrido de pé —
não era uma preocupação absurda, já que, para ele, humanos certamente
pareciam falecer sob as menores provocações.
— O príncipe… — Minha voz saiu rouca.
Fechei a boca e pigarreei antes de continuar:
— Tem certeza? Eu tinha a impressão de que o príncipe do outono não
visitava o reino Excêntrico. Ninguém o vê há centenas…
Faltaram-me palavras.
— Posso garantir que ele está vivinho da silva. Ora, eu o encontrei em
um baile ontem mesmo! Ou foi no mês passado? De qualquer forma, ele
deve aparecer aqui amanhã. Por favor, mande um abraço.
— Se… Será uma honra — gaguejei, mentalmente me recriminando por
conta de minha rara perda de compostura.
De repente, desesperada por ar fresco, atravessei o estúdio para abrir a
porta. Depois de me despedir de Gadfly, continuei observando o campo de
trigo estival, onde sua silhueta percorria o caminho.
Uma nuvem passou sob o sol e sua sombra cobriu minha casa. A
estação nunca mudava no reino Excêntrico, mas, quando uma folha caiu da
árvore, seguida por outra, não pude deixar de sentir a chegada de uma
transformação. Bastava saber se eu a aprovaria.
Dois

— Amanhã! Gadfly disse que seria amanhã! Você sabe como eles são com
relação ao tempo mortal. E se ele chegar de madrugada, exigindo que eu
trabalhe de camisola? Meu melhor vestido está rasgado, não dá para
consertar a tempo… Vou ter que usar o azul.
Enquanto eu falava, massageava óleo de linhaça nas mãos e as
esfregava violentamente com uma toalha. Em geral, não me preocupava
com limpar a tinta da minha pele, mas quase nunca trabalhava com a
realeza do povo das fadas, então não sabia que tipo de besteira trivial os
ofenderia.
— Além disso, meu amarelo de estanho está acabando, então vou
precisar ir à cidade hoje à noite… Merda. Que merda! Desculpe, Emma.
Levantei as saias, afastando-as da água que se espalhava pelo chão, e
me abaixei para pegar o balde derrubado.
— Pelo amor, Isobel, está tudo bem. March…
Minha tia abaixou os óculos, apertando os olhos.
— …não, May — continuou ela. — Você pode limpar essa bagunça
para sua irmã, por favor? O dia dela está sendo um daqueles.
— O que significa merda? — perguntou May, atenta, pulando aos meus
pés com um pano de chão.
— É a palavra para quando derrubamos um balde de água sem querer
— respondi, ciente de que ela acharia a verdade perigosamente inspiradora.
— Cadê a March?
May abriu um sorriso, mostrando os dentes que faltavam.
— Em cima do armário.
— March! Desça do armário!
— Ela está brincando lá em cima, Isobel — disse May, jogando água
por cima do meu sapato.
— Ela não vai poder brincar se estiver morta — retruquei.
Balindo de alegria, March pulou do alto do armário, derrubou uma
cadeira e saltitou pela sala. Veio na nossa direção e eu ergui as mãos para
afastá-la, mas não era comigo que ela queria se encontrar — era com May,
que se levantou a tempo para bater com a cabeça na da irmã, o que me
permitiu um respiro momentâneo enquanto cambaleavam, tontas por causa
da pancada. Suspirei. Eu e Emma estávamos tentando colocar um fim
naquela mania.
Minhas irmãs gêmeas não eram exatamente humanas. Tinham nascido
como uma dupla de cabras, até que uma fada bebeu vinho demais e as
enfeitiçou de brincadeira. O processo de adaptá-las era lento, mas me
lembrei de que ao menos era um processo. No ano anterior, elas nem
sabiam fazer xixi no lugar certo. E, a favor delas, ainda tinha o fato de que o
feitiço da transformação as deixara mais ou menos indestrutíveis: eu já vira
March sobreviver a comer um pote quebrado, sumagre-venenoso, beladona,
e várias salamandras infelizes, e não sentiu qualquer efeito nocivo. Pular de
armários talvez fosse mais arriscado para os móveis do que para March.
— Isobel, venha aqui um pouquinho — chamou minha tia,
interrompendo meus pensamentos.
Ela me encarou por cima dos óculos até que eu a obedecesse e, então,
pegou minhas mãos, limpando uma manchinha que eu não tinha notado.
— Vai dar tudo certo amanhã — disse ela com autoridade. — Tenho
certeza de que o príncipe do outono é igual a todas as outras fadas, mas,
mesmo se não for, lembre-se de que você está em segurança nesta casa.
Ela segurou minhas mãos e as apertou.
— Lembre-se do que ganhou para nós — insistiu.
Apertei as mãos dela de volta. Talvez eu estivesse merecendo essa
conversa de menininha. Tentei conter o tom queixoso da minha voz ao
responder:
— Você sabe que eu não gosto de não saber o que esperar.
— Pode até ser, mas você está mais preparada para esse tipo de coisa do
que todo o resto do reino. Nós sabemos disso e o povo das fadas também
sabe. Ontem no mercado, ouvi comentários de que, nesse ritmo, você pode
até ir parar no Poço Verde…
Puxei as mãos, chocada.
— Óbvio que não vai — corrigiu-se minha tia. — Sei que você não
escolheria isso. O que estou querendo dizer é que, se o povo das fadas
considera algum humano como indispensável, esse ser humano é você, e
isso tem muito valor. Vai dar tudo certo amanhã.
Suspirei profundamente e alisei minhas saias.
— Imagino que você esteja certa — respondi, secretamente duvidosa.
— Preciso partir agora se eu quiser voltar antes do escurecer. March e May,
não enlouqueçam Emma. Espero que esta cozinha esteja um brilho quando
eu voltar.
Olhei com ênfase para a cadeira derrubada conforme saía da cozinha.
— Pelo menos a gente não jogou merda pelo chão inteiro! — gritou
May.
····
Quando eu era criança, ir à cidade era uma aventura. Mas, hoje, só queria
que fosse rápido. Meu estômago se embrulhava mais e mais a cada pessoa
que via, pela janela, passar na rua.
— Só amarelo de estanho? — perguntou o moço atrás do balcão,
embrulhando cuidadosamente o giz num pedaço de papel.
Phineas só começara a trabalhar ali algumas semanas antes, mas já me
conhecia bem o suficiente para saber meus hábitos.
— Pensando bem, acrescenta um de verde-terra e dois de vermelhão.
Ah! E tudo que tiver de carvão, por favor.
Ao vê-lo separar meu pedido, senti o desespero do trabalho que me
aguardava à noite. Precisava moer e misturar os pigmentos, selecionar a
paleta e esticar a tela. A sessão de amanhã provavelmente se limitaria a
esboçar o príncipe, mas eu não aguentaria estar despreparada para outras
possibilidades.
Olhei de relance pela janela quando Phineas saiu de vista. Uma camada
de poeira cobria o vidro, e a localização da loja, numa esquina entre dois
prédios maiores, dava um ar sombrio, decadente e discreto. Nenhum feitiço,
nem mesmo dos mais simples, aumentava a claridade da luz, cantava
quando a porta era aberta ou mantinha os cantos da loja limpos. Era óbvio
que o povo das fadas nem olhava duas vezes para aquele lugar. Elas não
tinham interesse algum nos materiais usados para o Ofício, só queriam
saber do produto final.
Os estabelecimentos do outro lado da rua já eram outra história. As
saias de uma mulher sumiram pela porta da Firth & Maester, e eu soube,
por aquele relance, que era uma fada. Nenhuma mulher mortal poderia
pagar pelos vestidos de renda vendidos ali. E o mesmo pode ser dito sobre
compras feitas na Confeitaria ao lado, cuja placa anunciava flores de
maçapão, balas feitas de amêndoas importadas, as quais vinham do Mundo
Além sob enorme custo e perigo. Feitiços, e apenas feitiços, eram
pagamento digno do Ofício de tal calibre.
Quando Phineas se empertigou, seus olhos brilhavam de um modo que
reconheci muito bem. Não… “Reconheci” não era a palavra correta. Era um
brilho que eu temia. Ele afastou um cacho do rosto e meu coração afundou,
afundou e afundou mais um pouco. “Por favor”, pensei, “de novo, não”.
— Srta. Isobel, você se importaria de dar uma olhada em meu Ofício?
Sei que não chego aos seus pés — acrescentou correndo, esforçando-se para
manter a coragem —, mas o Mestre Hartford tem me encorajado, pois é
meu mentor, e há anos que venho praticando.
Phineas segurava uma pintura contra o peito, escondendo, receoso, a
parte da frente, como se temesse expor não a tela, mas a própria alma. Eu
conhecia muito bem o sentimento, o que não ajudava em nada no que viria
a seguir.
— Seria um prazer — respondi.
Pelo menos eu era experiente em sorrisos forçados.
Ele me entregou a tela e eu a virei, expondo uma paisagem à luz fraca
da loja. Fui inundada por alívio. Graças a deus, não era um retrato. Sei que
pareço muito arrogante, mas meu Ofício era visto com tanta estima que o
povo das fadas não contrataria mais ninguém até que eu estivesse morta e
enterrada… E até que eles reparassem que eu estava a sete palmos do chão,
o que poderia demorar mais algumas décadas. Eu temia por todo novo
retratista surgindo após minha fama. Talvez Phineas tivesse alguma chance.
— Está muito bom — falei com sinceridade, devolvendo a pintura. —
Você tem um excelente domínio de cor e composição. Continue treinando,
mas mesmo por enquanto… — hesitei. — Você pode conseguir vender seu
Ofício.
Phineas corou e pareceu crescer cinco centímetros bem na minha frente.
Meu alívio se esvaiu. Normalmente, o que vinha em seguida era a pior
parte. Eu me preparei para ouvir exatamente a pergunta que eu temia.
— Você… A senhorita acredita que poderia me indicar a algum de seus
clientes?
Voltei a olhar pela janela, onde a própria sra. Firth arrumava um vestido
na vitrine da Firth & Maester. Quando eu era mais nova, tinha certeza de
que ela era do povo das fadas. Afinal, tinha uma pele impecável, uma voz
mais melodiosa do que a de um canarinho e cachos castanhos e brilhantes
demais para serem naturais. Devia estar beirando os cinquenta anos, mas
mal parecia ter mais do que vinte. Só entendi meu erro muito depois,
quando aprendi a identificar encantos. Com o passar do tempo, me
desencantei com relação a encantos, que eram basicamente mentiras. Não
importava o quão eruditos eram enunciados, feitiços de todo tipo, tirando os
mais práticos e comuns, acabavam azedando. Aqueles cujas palavras não
eram pronunciadas de forma inteligente chegavam a arruinar vidas. Em
troca pela cintura de 55 centímetros, a sra. Firth não podia falar palavra
alguma que começasse com vogal. No outubro passado, o padeiro-chefe da
Confeitaria se atrapalhara e trocara três décadas de vida por olhos mais
azuis, deixando sua esposa viúva. Mesmo assim, com a visão do Poço
Verde flutuando ao fundo, a promessa do próprio paraíso, o fascínio pela
riqueza e pela beleza seduzia o reino Excêntrico.
Notando minha relutância, Phineas não demorou a acrescentar:
— Ninguém importante, é claro. Aquele Swallowtail parece ser um bom
tipo de fada. Eu às vezes o vejo na cidade, comprando Ofício na rua.
Sempre dizem que o povo da corte da primavera é mais bondoso ao fazer
negócios.
A verdade era que nenhuma fada era bondosa, não importava qual fosse
sua corte. Apenas fingiam ser. Só de pensar em Swallowtail próximo de
Phineas me deu ânsia de vômito. Ele não era a pior fada que eu conhecia,
nem de longe, mas brincaria com as palavras até convencer o coitado a
trocar o primogênito por menos espinhas.
— Phineas… você deve saber que, por conta do meu Ofício, passo mais
tempo na companhia do povo das fadas do que qualquer outro aqui no reino
Excêntrico.
Encontrei seu olhar do outro lado do balcão. Seu rosto murchou; sem
dúvida imaginava que eu fosse recusar, mas insisti, apesar daquela tristeza.
— Portanto, acredite em mim: se quiser negociar com eles, deve ser
cauteloso. Ser incapaz de mentir não faz deles seres honestos. Tentarão
enganá-lo o tempo todo. Se uma oferta parecer boa demais para ser
verdade, é porque é mesmo. Os termos do feitiço não podem deixar espaço
para trapaça. Espaço nenhum.
Ele ficou tão alegre que temi que meus esforços fossem em vão.
— Quer dizer que vai me recomendar?
— Talvez, mas não para Swallowtail. Não faça negócios com ele até ter
dominado as artimanhas do povo das fadas.
Mordendo minha bochecha, vi de esguelha um homem sair da Firth &
Maester: Gadfly. Óbvio que iria àquela loja para encomendar o bordado.
Apesar de eu estar quase invisível dentro da loja escura do outro lado da
rua, ele olhou precisamente na minha direção, então sorriu e acenou. Todos
na rua se viraram, inclusive o grupinho de moças que o aguardava lá fora,
ansiosos para descobrir quem tinha tamanha importância para merecer sua
atenção.
— Ele vai servir — declarei.
Deixei as moedas no balcão e pendurei a bolsa no ombro, evitando o
nível de euforia que surgia no rosto de Phineas.
— Gadfly é meu cliente mais estimado — continuei — e gosta de ser o
primeiro a descobrir novos Ofícios. Ele é sua melhor aposta.
Referia-me a mais de um sentido. A opção mais segura para Phineas era
Gadfly. Se eu não tivesse começado a trabalhar com ele quando ainda tinha
doze anos, mesmo com a ajuda de Emma, provavelmente não teria chegado
viva aos dezessete. E, mesmo assim, ainda não conseguia me livrar da
sensação de estar, com aquele favor, dando a Phineas uma faca de dois
gumes, cumprindo um desejo profundo que no final ou o destruiria ou o
decepcionaria. A culpa me empurrou até a porta sem nem me despedir, mas
fiquei paralisada ao tocar a maçaneta.
Uma pintura pendia da parede de entrada. Desbotada pelo tempo,
representava um homem sobre uma colina, cercado por árvores de cores
estranhas. Seu rosto estava escondido nas sombras, mas bradava uma
espada que brilhava intensamente, mesmo sob a luz cinzenta. Cães pálidos
subiam a colina em sua direção, suspensos no ar em meio ao salto. Senti um
calafrio. Conhecia aquela silhueta. Ele fora bastante retratado em pinturas
de mais de trezentos anos atrás, quando parara de visitar o reino Excêntrico
sem dar explicação alguma. Em todos os trabalhos remanescentes, ele
sempre estava à distância, sempre lutando contra a Caça Bravia.
Amanhã, ele estaria no meu estúdio.
Empurrando a porta, cumprimentei Gadfly com uma reverência, abaixei
a cabeça e corri em meio à horda de curiosos. Exclamações me seguiram.
Alguém chamou meu nome, talvez esperando pelo mesmo favor que
Phineas pedira. Desde que Emma tocara no assunto, eu via a verdade
estampada no rosto de todo mundo. Estavam atentos, esperando que
aceitasse o convite em resposta ao qual eu preferia morrer a considerar por
meio segundo. Nunca seria capaz de explicar a eles que, para mim, o Poço
Verde não era o paraíso, era o inferno.
····
O sol já se punha quando voltei para casa. Na trilha pelo campo de trigo,
meus passos seguiam o zumbido rítmico dos gafanhotos, e o calor estival,
intensificado pelo ângulo da luz, deixava minha nuca grudenta de suor, que
resfriava sempre que a brisa afastava meu cabelo. Os telhados tortos e
coloridos da cidade ficaram para trás até sumirem de vista, a trilha estreita
de volta para casa era escondida pelas colinas, dividida como a repartição
do cabelo de uma mulher. Se eu andasse rápido, chegaria em exatamente 32
minutos.
Era sempre verão no reino Excêntrico. Aqui as estações não mudavam
de acordo com a passagem do tempo, como acontecia no Mundo Além —
um conceito que eu mal era capaz de imaginar. Enquanto caminhava pelo
caminho imutável, as árvores estranhamente coloridas da pintura me
assombraram, como um sonho recente. Pelo que diziam, o outono era uma
época sombria em que o mundo secava, os pássaros desapareciam e as
folhas caíam dos galhos, desbotadas, como se estivessem mortas.
Certamente o que tínhamos era melhor. Mais seguro. Céus de um azul sem
fim e trigo perpetuamente dourado podiam perder a graça, mas disse a mim
mesma, e não pela primeira vez, que era besteira desejar outra coisa. Havia
dores muito piores do que o tédio — e aconteciam todas no Mundo Além.
Um cheiro podre me arrancou dos pensamentos frustrados. Aquela parte
da trilha se aproximava da beira da floresta, então, preocupada, olhei para
as sombras. Arbustos densos de espinhos e madressilvas floresciam como
uma barreira sob os galhos. Muito antigamente, na época menos amistosa
antes da proibição do ferro, fazendeiros arriscavam a vida para enfiar
pregos nas árvores mais fronteiriças, afastando maldade feérica. Ver os
pregos velhos, dobrados, torcidos e enferrujados, quase irreconhecíveis,
sempre me causava um calafrio desconfortável.
Voltando a olhar para os arbustos, não vi nada de estranho.
Provavelmente estava sendo paranoica, certeza de que se tratava de algum
esquilo morto, apodrecendo no mato. Tranquilizada, mas de forma
relutante, abri a bolsa pela quarta ou quinta vez para verificar se não tinha
esquecido nada na loja — uma mania estranha que eu tinha, já que nunca
cometia esse tipo de erro. Quando olhei para a frente de novo, alguma coisa
estava errada. Uma criatura se encontrava no ponto alto da colina à frente,
ao lado do carvalho solitário que marcava a metade do meu caminho para
casa.
Minha primeira impressão me dizia ser um veado. Seria um
tremendamente enorme, mas a forma era mais ou menos similar: quatro
patas, dois chifres. Até que a criatura se virou para me olhar e,
imediatamente, entendi que estava errada.
A estranheza logo se espalhou. A brisa desapareceu, deixando o ar
parado e quente, sufocante. Os pássaros pararam de cantar, os gafanhotos
pararam de zumbir, e até o trigo murchou no ar estagnado. O forte cheiro
podre me tomou inteiramente. Caí de joelhos, mas era tarde demais.
A criatura que não era um veado estava me encarando.
Apesar do calor, um calafrio febril percorreu minha pele, embolando
meu estômago. Eu sabia o que era essa tal criatura. Também sabia que não
sairia viva dessa. Ninguém podia correr ou se esconder de uma fera fada.
Aquela criatura nascera de um monte tumular, a união grotesca da magia
feérica e de restos humanos antigos. Algumas agiam como servos e guardas
aos mestres. Outras surgiam da terra sem precisar de um chamado. Um
monstro desse tipo matou meus pais quando eu era uma menininha, o fizera
com tanta violência que Emma não me deixara ver os corpos, e eu estava
prestes a morrer do mesmo modo. Acho que minha cabeça não era capaz de
processar as coisas direito, porque meu próximo pensamento foi que eu não
devia ter desperdiçado tanto dinheiro em pigmentos; afinal, nunca mais os
usaria.
A fera fada abaixou a cabeça e urrou pelo campo, um som profundo,
vibrante e pútrido, como se alguém tivesse soprado um berrante antigo, que
um dia fora espetacular, mas que agora estava cheio de musgo podre.
Sacudiu o corpo pesado, começando pelos chifres, e disparou colina abaixo.
Coloquei-me de pé num só pulo e corri. Não na direção de casa, que
estava a menos de um quilômetro dali, mas no sentido oposto, mais longe,
adentrando o campo. Se pudesse fazer alguma coisa de útil nos meus
últimos momentos de vida, seria tentar afastar aquele troço da minha
família.
O trigo cedeu ao redor das minhas saias levantadas. Caules quebravam
sob minhas botas e as espigas ásperas arranhavam meus braços nus. A bolsa
quicava contra minhas coxas, pesada, diminuindo minha velocidade.
Gafanhotos saltitavam para fora do caminho como se arremessados por uma
mão invisível. A princípio, só ouvi minha respiração, que estava ofegante.
Nada parecia ser verdade. Poderia estar correndo pelo campo só por
diversão, em um lindo dia sob um céu azul impecável.
Até que sombras geladas tocaram minhas costas suadas e a escuridão
me envolveu. O trigo se sacudiu como ondas num oceano tempestuoso. Um
casco bateu ao meu lado, afundando inteiramente na terra. Joguei-me para
trás, tropecei e caí, me embolando nas plantas. A fera fada se ergueu acima
de mim.
A máscara de veado orgulhoso estremeceu sobre o monstro como o
reflexo do sol na água. Nos espaços escuros entre as ilusões, via-se uma
forma esquelética de casca decomposta, amarrada por cipós que se moviam
como tendões, um rosto de caveira, chifres que não eram bem chifres, mas
sim galhos retorcidos e bem amarrados por plantas espinhentas, do
comprimento de uma pessoa. A fera fada exalava doença; quando bufou e
ergueu uma pata trêmula, pedaços de casca se soltaram, rolando pelo chão.
Dali, besouros brilhantes saíram aos montes, cobrindo minhas meias
conforme fugiam para todos os lados. Engasguei com o gosto de podridão
que se instalou no fundo da minha garganta.
A fera fada se ergueu nas patas traseiras, bloqueando o sol. Achei que a
última coisa que veria antes de morrer seria a constelação de vermes saindo
e entrando daquela barriga. Portanto, não soube como reagir quando o
monstro simplesmente desabou na minha frente, uma pilha mole e
desconexa de madeira apodrecida. Centopeias maiores que minhas mãos
rolaram pela grama. Duas mariposas gigantes saíram voando. Os
gafanhotos voltaram a zumbir imediatamente, como se nada tivesse
acontecido, mas eu continuei no chão, tremendo e encharcada de suor,
sentindo o coração sair pelos ouvidos. Com um grito de repulsa, chutei os
escombros. Fragmentos de osso se espalharam em meio à casca de árvore.
O cadáver humano que lhe dava vida havia sido destruído.
— Faz dois dias que estou seguindo essa fera, mas talvez não a
alcançasse se você não tivesse chamado sua atenção — disse uma voz
animada e calorosa. — Chama-se baronete, caso lhe interesse.
Desviei o olhar dos restos da fera fada. Um homem estava agora à
minha frente, mas na contraluz eu não conseguia distinguir suas feições, só
que era alto e magro e que embainhava uma espada.
— Chamado sua… — parei, chocada e um tanto ofendida.
Ele falava como se fosse puro lazer, como se minha vida não tivesse a
menor importância; o que, obviamente, me dizia tudo de que precisava
saber. Aquele ser parecia um homem, mas não era humano.
— Obrigada — corrigi-me, engolindo minha indignação. — O senhor
salvou minha vida.
— Salvei? Do baronete? Imagino que sim. Neste caso, o prazer foi
meu… Ah. Não sei seu nome.
Uma sensação desconfortável me chacoalhou como um trovão de
madrugada. Ele não me reconhecia, o que significava que não visitava o
reino Excêntrico com frequência, quiçá nunca. Seja lá quem fosse, seria
mais perigoso do que o povo das fadas com o qual normalmente lidava.
Além disso, como todos de sua espécie, não resistia a pedir meu verdadeiro
nome. Aguardei um instante, avaliando minha mente e meus sentidos, e
concluí, aliviada, que ele não me enfeitiçara com malícia, para que eu
falasse mais abertamente ou revelasse segredos que não queria. No reino
Excêntrico, ninguém usava o nome que lhe fora designado ao nascer. Fazer
isso seria se expor a sortilégio, por meio do qual uma fada poderia controlar
um mortal, de corpo e alma, para sempre, sem que a vítima nem soubesse
— simplesmente pelo poder daquela única palavra secreta. Era a forma
mais perversa da magia feérica, a mais temida.
— Isobel — respondi, me levantando com dificuldade para
cumprimentá-lo com uma reverência.
Se ele notou que usei um nome falso, não deixou transparecer. Passou
por cima da pilha de escombros com um passo longo e curvou-se em
profunda reverência. Então tomou minha mão nas suas, a ergueu e a beijou.
Contive uma careta. Se fosse para me tocar, preferia que tivesse me ajudado
a levantar.
— O prazer foi todo meu, Isobel.
Os lábios dele eram frios contra meus dedos. Com a cabeça abaixada,
eu só via seu cabelo desgrenhado — ondulado, sem chegar a formar cachos,
e escuro, com o mais leve toque avermelhado sob o sol. O total desarranjo
me fez lembrar de penas de falcão ou corvo, bagunçadas pelo vento forte.
Assim como Gadfly, o cheiro dele também era marcante: uma mistura de
folhas secas, noites frescas sob a lua iluminada, ferocidade, desejo. Meu
coração batia forte, aterrorizado tanto pela fera fada quanto pelo encontro
igualmente perigoso com uma fada no campo. Portanto, minha tolice terá
que ser perdoada por dizer que, de repente, queria aquele perfume como
nunca quisera nada antes. Queria com uma sede desesperada. Não queria
ele, exatamente, mas a mudança radical e misteriosa que aquilo
representava — a promessa de que, fora daqui, o mundo era diferente.
Ora, isso não daria em nada. Minha irritação voltou como se hasteasse
uma bandeira num mastro.
— Nunca um beijo na mão durou tanto tempo, senhor.
Ele se endireitou.
— Para o povo das fadas, a passagem do tempo não é algo com que nos
preocupamos — respondeu ele, com um meio-sorriso.
Parecia-me ter um ou dois anos a mais do que eu, mas, claro, sua idade
verdadeira podia ser mais de cem vezes aquilo. Ele tinha feições finas e
aristocráticas, em conflito com o cabelo desgrenhado, e uma boca
expressiva que eu imediatamente quis pintar. As sombras no canto, a dobra
leve de um dos lados, onde o sorriso se desequilibrava…
— Eu disse — repetiu ele — que a passagem do tempo não é algo com
que o povo das fadas se preocupe.
Ergui meu olhar e vi que ele me encarava, em fascínio perplexo, seu
sorriso ainda congelado no rosto. Ali estava a falha: a cor dos olhos, um
tom peculiar de ametista, contrastando com a pele marrom cujo tom
acobreado me fazia pensar no sol do entardecer iluminando folhas caídas.
Aqueles olhos me incomodaram de imediato, por um motivo além da cor
inusitada, mas, por mais que tentasse, não era capaz de identificá-lo.
— Perdoe-me. Eu sou retratista e tenho a mania de olhar para as pessoas
e me esquecer de todo o resto. Ouvi o que o senhor disse, só não tenho uma
resposta.
A fada olhou de relance para minha bolsa. Quando voltou a atenção
para mim, seu sorriso não estava mais lá.
— Claro. Imagino que, em geral, nossas vidas estejam além da
compreensão humana.
— Você sabe por que o baronete saiu da floresta e entrou no reino
Excêntrico, senhor? — perguntei, porque tive a sensação de que ele
esperava algum tipo de validação por todo o seu mistério, mas eu queria
que a conversa fosse curta e prática.
Feras fadas eram raras por aqui e sua presença era extremamente
preocupante.
— Isso eu não saberia dizer. Talvez a Caça Bravia o tenha trazido, ou
talvez só quisesse passear. Eles têm surgido com mais frequência
ultimamente e andam causando uma tremenda bagunça.
Para uma fada, “ultimamente” podia significar qualquer coisa, incluindo
a morte dos meus pais.
— É mesmo, humanos mortos costumam ser uma bagunça.
Ele arqueou as sobrancelhas milimetricamente, franzindo-as no meio, e
seu olhar se aguçou, atento. Sabia que tinha me incomodado de alguma
forma, mas, como era costumeiro entre seu povo, não compreendia o
porquê. Sua capacidade de compreender a dor de uma morte humana era tão
existente quanto à de uma raposa de sentir a dor de matar uma presa.
Eu só tinha uma certeza: não queria prolongar tempo suficiente para que
ele decidisse que a confusão o ofendia e que sua causadora merecia uma
vingança na forma de um feitiço cruel.
Abaixei a cabeça e fiz outra reverência.
— O povo de Excêntrico é grato por sua proteção. Nunca esquecerei o
que fez por mim hoje. Tenha um bom dia, senhor.
Esperei até que ele retribuísse a reverência e dei meia-volta.
— Espere — chamou ele.
Congelei.
Atrás de mim, ouvi o trigo se mexer.
— Falei alguma coisa errada. Peço que me perdoe.
Lentamente, olhei por cima do ombro e o encontrei retribuindo o olhar,
estranhamente inseguro. Eu não fazia ideia de como reagir. Era de
conhecimento popular que o povo das fadas às vezes se desculpava — pois
dava enorme valor aos bons modos —, mas em geral fadas seguiam um
código injusto, esperando que fossem os humanos os educados e fazendo
tudo que podiam para se esquivar de ter que reconhecer seus próprios
comportamentos inadequados. Eu estava chocada.
Por isso, respondi a única coisa que me veio à cabeça:
— Está perdoado.
— Ah, que bom.
O meio-sorriso dele ressurgiu e, no mesmo instante, ele passou de
insegurança a extrema satisfação consigo mesmo.
— Então nos vemos amanhã, Isobel.
Eu já havia começado a andar quando finalmente entendi o que ele
dissera e o que aquilo significava. Dei meia-volta de novo, mas a fada, que
não poderia ser ninguém mais ninguém menos do que o príncipe do outono,
já não estava mais ali: trigo balançava ao redor da trilha vazia e o único
sinal de vida no campo inteiro era um corvo voando em direção à floresta,
as penas brilhando avermelhadas sob a luz do sol poente.
Três

Eu ainda não fazia ideia de quando o príncipe chegaria e, como minha tia
estava na cidade a trabalho, a responsabilidade de livrar nossa cozinha de
crianças-bode era toda minha. Era mais difícil do que parecia.
— Ele disse que a gente tem nome esquisito! — gritou May, enquanto
March chorava, quieta, perto do fogão.
Nunca antes eu odiara tanto o filho do padeiro, apesar de, na verdade,
ele ser bastante bonzinho e não estar tão errado.
Eu me agachei e as segurei pelo ombro.
— Ora, quando a tia Emma e eu escolhemos os nomes, vocês eram
bodes — expliquei com calma. — Vocês já estavam acostumadas com os
nomes March e May, e nós não sabíamos se o feitiço ia durar, então
achamos melhor deixar assim mesmo.
March soluçou, chorosa. Eu precisava mudar de estratégia.
— Prestem atenção, tenho uma pergunta importante. Quais são as coisas
preferidas de vocês?
— Assustar as pessoas — disse May, depois de pensar por um instante.
March abriu a boca e apontou para dentro.
Por deus.
— São coisas esquisitas, não são?
May me olhou, desconfiada.
— Talvez…
— São esquisitas, sim, com certeza — falei, firme. — Então ser
esquisito não é tão ruim assim, né? É algo bom, como pregar sustos nas
pessoas e comer salamandras. Então, o que Harold fez foi elogiar vocês.
— Hmmm — disse May.
Ela não parecia convencida, mas pelo menos March parara de chorar.
Portanto, em nome de minha sanidade, declarei como uma vitória parcial.
— Agora, vamos lá. Vocês duas precisam brincar lá fora até nosso
convidado ir embora. Lembrem-se, não entrem no trigal.
Quando as empurrei porta afora, um desconforto deslizou no fundo do
meu peito. Se outra fera fada saísse da floresta…
Acontecimentos como o de ontem eram raríssimos, e eu não podia me
esquecer da facilidade com que o príncipe acabara com o monstro.
Certamente estávamos seguras, visto que ele estaria ali. No entanto, pensar
nisso não fez com que o desconforto passasse.
— Se os gafanhotos pararem de cantar, voltem para casa correndo —
acrescentei.
May ergueu o olhar, as sobrancelhas franzidas em desconfiança.
— Por quê?
— Porque eu mandei.
— E por que a gente não pode brincar em casa?
Eu as empurrei para fora, deixando a porta capenga da cozinha bater
atrás de nós. Aliviada, reparei que tudo lá fora parecia perfeitamente
normal. As galinhas ciscavam sozinhas por todo o quintal, as árvores
farfalhavam na brisa agitada e sombras corriam sobre as colinas. Mas
mesmo assim May continuava a me olhar. Notei que eu ainda estava tensa,
o estômago apertado como um punho, e minha expressão devia deixar
transparecer.
— Vocês sabem muito bem o motivo — respondi, ríspida, esmagando
minha culpa.
Sinceramente, eram vários os motivos. May já derrubara meus cavaletes
mais de uma vez. March tinha um apetite insaciável por azul-prussiano. O
motivo principal, entretanto, era que as fadas não gostavam da presença
delas. Minha teoria era a de que as gêmeas as constrangiam, por serem
prova visível de um erro, e uma prova acidentalmente poderosa. Eu sabia
que eram imunes a sortilégio: pois March e May eram seus nomes de
verdade. Se o povo das fadas pudesse usar esse conhecimento contra elas, já
o teria feito.
March baliu, alegre, e saiu correndo para brincar com a lenha, mas May
não desviou o olhar.
— Não se preocupe, não vamos nos machucar — disse ela, finalmente,
com seriedade.
May deu um tapinha no meu joelho antes de sair correndo atrás da irmã.
Meus olhos ardiam. Agitada, alisei minha saia e arrumei uns fios de
cabelo atrás da orelha. Não queria que elas vissem como eu estava abalada,
nem ao menos admitia aquilo para mim mesma. Quando me concentrava
em manter tudo em ordem, não precisava pensar no que acontecera com
meus pais, nem no porquê daquilo ainda me causar tanto pânico mesmo
tento acontecido doze anos antes; eu nem estivera presente, não havia visto
nem ouvido nada. Ainda assim, estava estampado em minha cara que eu
não escondia o medo tão bem. Até May era capaz de notar.
Um corvo crocitou, rouco, na árvore cuja sombra cobria o quintal.
— Chispa! — falei, sem nem olhar.
Corvos afastavam os passarinhos canoros que faziam ninho em nossos
arbustos, então, como retribuição, eu e Emma nos esforçávamos para
mantê-los longe dali.
Meu desconforto diminuiu sob o sol morno e ao ver March e May
escalarem a pilha de lenha. De longe, só era possível distingui-las pelas
manchas brancas na pele rosada; a mancha de May cobria o lado esquerdo
do rosto e parte do nariz. O cabelo cacheado e preto das duas era idêntico,
assim como o espaço entre os dentes da frente e as sobrancelhas
perigosamente diabólicas. Pareciam cupidos que tinham decidido preferir
atirar flechas de verdade. Eram horríveis. Eu as amava muitíssimo.
No entanto, não tinha como esquecer que o príncipe estava a caminho,
então a apreensão voltou em ondas incessantes às margens escuras do meu
inconsciente.
O corvo crocitou de novo.
Desta vez, eu olhei. O corvo virou a cabeça de um lado para o outro,
atento à minha expressão. Agitou as penas e pulou de galho em galho.
Quando chegou ao canto iluminado, eu não conseguia respirar. As penas
tinham um brilho avermelhado e me parecia que seus olhos eram de cores
inusitadas.
Curvei-me em uma reverência ágil e corri para dentro, dividida entre a
esperança de que o corvo não fosse o príncipe e a conclusão de que, se
fosse o caso, eu tinha acabado de cumprimentar e fugir de um pássaro. A
porta da cozinha, com suas dobradiças frouxas, bateu, bateu e bateu atrás de
mim.
Uma quarta batida soou, mas não vinha da dobradiça. Era um punho
batendo na madeira.
— Pode entrar! — respondi.
Olhei ao redor, e no mesmo instante me arrependi.
Sem pensar, peguei uma panela ao acaso e a enfiei na pia. Nem sabia se
estava suja, mas foi tudo que tive tempo de fazer antes de a porta abrir de
novo e o príncipe do outono entrar. Como a porta era feita para humanos de
tamanho normal, ele precisou abaixar a cabeça para passar.
— Boa tarde, Isobel — cumprimentou ele com uma reverência educada.
Eu nunca recebera uma visita das fadas na cozinha de casa. Era um
cômodo pequeno com paredes de pedra áspera, um chão de madeira tão
velho e gasto que cedia no meio e uma janela alta que deixava entrar um
pouco de claridade, o suficiente para destacar especialmente a pilha de
pratos sujos ao lado do armário e o triste montinho de turfa ainda ardente
em nossa lareira, que só chegava à altura do meu peito.
O príncipe, por outro lado, parecia ter acabado de sair de uma
carruagem dourada, puxada por meia dúzia de alazões brancos. Eu não me
lembrava muito bem do que ele vestira no dia anterior, mas lembraria se
fosse semelhante à roupa de hoje. O casaco de seda escura, justo ao corpo,
quase tocava o chão atrás das botas, como se fosse uma capa, e era forrado
de veludo da cor do cobre. Ao redor da cabeça, usava um círculo de cobre,
combinando, e, apesar de o cabelo rebelde parecer ter vida própria,
escondendo uma boa parte da joia, notei que era moldado como folhas
entrelaçadas e decorado com azinhavre. Prendendo a gola de sua camisa,
havia um broche na forma de corvo, sem dúvida uma relíquia de outras
eras. Na cintura, a espada do dia anterior continuava pendurada.
Ali estava ele, a meros centímetros da casca mofada de cebola que eu
não varrera de manhã.
Eu já violara as regras de etiqueta. O que diria em seguida precisava ser
educado e bem pensado. Em vez disso, soltei:
— O que acontece se vocês não puderem retribuir a reverência?
Para se distrair enquanto eu me arrumava, o príncipe encarava uma
concha com extrema atenção. Quando falei, ele voltou a me olhar. Seus
olhos confusos de ametista pareciam dizer: “Quem é você?”
— Não sei se entendi.
O chão gasto quebraria um dia. Talvez ele me fizesse o favor de quebrar
agora, para que eu pudesse desaparecer.
— No caso de alguém cumprimentar vocês com uma reverência, mas
vocês não puderem retribuir imediatamente — expliquei.
A expressão dele demonstrou entendimento, e o meio-sorriso já
conhecido ressurgiu. Ele se aproximou de mim e encontrou meu olhar,
como se me confiasse um grande segredo. Talvez fosse mesmo o caso.
— É tremendamente desconfortável — falou ele em tom de voz baixo.
— Temos que procurar quem nos cumprimentou até encontrá-lo e não
conseguimos pensar em mais nada até isso acontecer.
Ah.
— Acho que foi o que eu acabei de fazer. Me desculpe.
Ele se endireitou, imediatamente parecendo se esquecer de que eu
estava ali.
— Encontrá-la foi um prazer — falou ele em tom simpático, mas
distante, e pegou um espeto para carne. — Isso é uma arma?
Eu peguei o espeto da mão dele, com cuidado, e o abaixei.
— Não foi projetado para isso, não.
— Entendo — disse ele e, antes que eu pudesse impedi-lo, atravessou a
cozinha em três passos largos para inspecionar uma frigideira pendurada
num prego na parede. — Isso certamente é uma arma.
— Não é…
Eu nunca tivera tanta dificuldade para me expressar na presença de um
membro do povo das fadas como agora.
— Bem… — continuei. — Pode ser utilizada como arma, certamente,
mas é feita para cozinhar.
Ele se voltou na minha direção.
— Ofício para fazer comida — expliquei, porque as sobrancelhas do
príncipe estavam franzidas em uma expressão de consternação educada à
beira do pavor.
— Sim, eu sei o que é cozinhar — respondeu ele. — Fiquei
simplesmente chocado por tantas ferramentas do Ofício de cozinhar terem
também a função de armamento. Tem alguma coisa que vocês, humanos,
não usem para matar um ao outro?
— Provavelmente não — admiti.
— Que peculiar.
Ele parou de andar e contemplou o teto. Preocupada com o que ele
escolheria para comentar em seguida, pigarreei e fiz uma reverência.
Franzindo a testa, ele se voltou para mim e retribuiu.
— Normalmente, recebo clientes no estúdio, fica por ali — indiquei. —
Podemos começar? Não quero ocupá-lo mais do que o necessário.
— Sim, claro — respondeu.
No entanto, conforme andamos pelo corredor, ele continuou a olhar para
cima, até parar de repente para tocar a parede de gesso branco. Eu parei
também e o esperei, um sorriso tenso no rosto, que era meu método para
conter um grito de exasperação.
— Há um feitiço muito forte nesta casa, e também muito curioso —
comentou, finalmente.
— Sim — respondi e voltei a andar, aliviada ao ouvir o farfalhar do
casaco quando ele me seguiu. — Foi o primeiro pagamento que busquei
quando comecei a pintar retratos… Levei um ano para recebê-lo. Nenhum
membro do povo das fadas…
— Pode ferir um morador entre as paredes desta casa enquanto você
estiver viva — completou ele, murmurando. — Impressionante. Foi
Gadfly?
Assenti, resistindo à tentação de olhar por cima do ombro. Quando o
cheiro marcante do estúdio me atingiu, adotei um tom mais formal, por
costume.
— Há anos ele é um cliente muito estimado. Posso perguntar por que o
senhor acha curioso?
— Nunca vi um feitiço assim. Nem esperaria que um do tipo viesse de
Gadfly.
Com isso, foi minha vez de quase parar de repente. Com muito esforço,
me mantive em movimento, entrei no estúdio e, de forma mecânica,
comecei a arrumar o carvão que precisaria para fazer o esboço. Será que o
feitiço dera errado? Será que eu dissera alguma coisa errada para Gadfly
anos antes, deixara uma brecha acidental no nosso acordo? A possibilidade
era tão aterrorizante que minhas mãos e meus pés começaram a ficar
dormentes.
— Como príncipe, eu posso destruir quase qualquer feitiço, caso eu
queira — continuou ele, ainda olhando ao redor, para algo que eu não podia
ver. — Mas fui sincero quando disse que este feitiço é forte. Vai muito além
do meu próprio poder. Gadfly deve ter usado uma boa quantidade de
energia para um trabalho como esse, o que é muito incomum, já que nunca
nem o vi levantar de uma cadeira se não fosse realmente necessário. Ele
deve apreciar enormemente o seu Ofício. Começo a entender por que foi tão
persistente ao recomendar que eu fizesse um retrato.
Respirei fundo, me acalmando.
Uma coisa que o príncipe dissera me causou estranhamento — Gadfly
me passara a impressão de que não tivera nada a ver com aquele trabalho
—, mas eu estava tão aliviada que esqueci quase imediatamente.
— Eu não fazia ideia — respondi. — O senhor é o primeiro a dizer
isso… Ninguém nunca nem mencionou.
O príncipe continuou a perambular, a manga de seu casaco roçando em
meu braço. O estúdio parecia interessá-lo muito. Era o maior cômodo da
casa, e também o mais entulhado, apesar de nos esforçarmos muito para
mantê-lo organizado. Naquele momento, o único móvel livre era o sofá
próximo à janela. No canto à minha esquerda, uma mesinha envernizada era
ocupada por um vaso de cristal que continha duas penas de pavão, um
conjunto de louça importada, uma pilha de livros encadernados em couro e
uma gaiola vazia. As cadeiras estofadas logo ao lado estavam com um
amontoado de cortinas, tapetes e panos de todas as cores e estampas
imagináveis. O resto do cômodo seguia a mesma tendência, cada cantinho
contendo uma coleção de curiosidades, como se o estúdio fosse um museu
eclético em miniatura do Ofício humano. Minha cadeira e meu cavalete
eram discretamente posicionados bem ao centro do cômodo.
O príncipe estava perdido demais em distração para responder, portanto
continuei:
— Quando trabalhamos com humanos, nós, retratistas, costumamos
viajar para a casa dos clientes e pintá-los lá. Já que o mesmo, é claro, não
pode ser feito com o povo das fadas, aqui, neste cômodo, escolhemos
móveis e decorações e os arrumamos de acordo com sua preferência.
— Isso nos limita — murmurou o príncipe, tocando a gaiola com
delicadeza.
Ele passou os dedos pelas barras finas de metal. Lembrei-me do corvo
lá fora e desejei ter pensado em levar a gaiola para outro cômodo, mesmo
me perguntando do que exatamente ele estava falando. Nunca vira uma fada
sentir qualquer coisa além de prazer ao se cercar de decorações
espalhafatosas.
Afastando a mão, deu meia-volta. O ar pensativo se transformou em um
sorriso como a névoa da alvorada se dissolvendo sob o sol.
— O feitiço de Gadfly, quero dizer. É por isso que ninguém nunca
comentou nada. É como se estivéssemos algemados, nossos punhos
levemente presos por fios como os de teia de aranha, mas tão fortes como
aço. Nenhuma fada gosta de falar da própria fraqueza.
— O senhor é exceção?
— Ah, não, de forma alguma. Eu também não gosto.
Ele sorriu com mais vigor e uma covinha torta apareceu no canto da
boca.
— Só pouco me importo com discrição, como você já deve ter notado
— completou.
De fato, eu notara. Ele era diferente de todos que eu conhecera do povo
das fadas.
— Por ser príncipe, devo me dirigir ao senhor usando alguma forma de
tratamento especial? — perguntei, atravessando a sala para mexer nos
tecidos, em busca de um fundo que combinasse com a roupa.
— Não seguimos tais formalidades — disse ele, me olhando de relance.
— Achei que você já soubesse.
“Como?”, me perguntei. Não era como se eu convidasse membros da
realeza feérica para jantar.
— De qualquer forma, meu nome é Rook.
Não contive um sorriso. O nome significava “gralha”.
— Combina com o senhor.
Ele moveu o olhar, atento ao meu rosto, e me pareceu que seu sorriso se
tornou ainda mais familiar, íntimo de uma forma que eu não sabia ser
possível entre as fadas. Ao lado dele, notei que o topo da minha cabeça
batia na altura do seu peito. Senti-me corar.
Minha nossa! Eu precisava me concentrar no trabalho.
— Acho que este tecido combina com o senhor — falei, erguendo a
seda cor de ferrugem, bordada com detalhes em cobre.
Ele olhou para o tecido, quase impaciente. Eu sempre achava esta parte
interessante. Era difícil aprender qualquer coisa sobre o povo das fadas, mas
às vezes as escolhas estéticas serviam como janelas para a alma (se é que
fadas tinham alma — era um assunto controverso na igreja). Gadfly gostava
de entulhar os retratos de cacarecos com aparência luxuosa. Outro dos meus
clientes, Swallowtail, preferia objetos funcionais e desgastados: velas
derretidas e livros com lombadas gastas e cantos dobrados.
Rook sacudiu a cabeça, recusando a seda, e se curvou para inspecionar
uma fileira de vasos de vidro soprado. Examinou estatuetas e espelhos,
cestas repletas de frutas feitas de cera, vidrarias usadas em experimentos
químicos, penas e tinteiros, ficando estranhamente recluso em seu silêncio e
em sua concentração intrigantes. Eu nem sabia por onde começar a
imaginar no que ele estava pensando. Finalmente, voltou à gaiola e ergueu o
rosto, notando que eu o observava. E, então, trouxe de volta seu sorriso
volátil.
— Decidi que não quero nada em meu retrato — declarou, voltando ao
sofá.
Sentou-se, esticando um braço nas costas do sofá, e seu olhar astuto me
disse que ele sabia exatamente por que eu o observava.
— Se precisar encarar alguma coisa por horas a fio — continuou —,
prefiro que seja só eu.
Esforcei-me para manter minha expressão séria.
— Que generoso, senhor. Levarei muito menos tempo para concluir o
retrato se o senhor for o único elemento da pintura.
Ele se empertigou e franziu a testa, um traço de petulância tornando as
feições aristocráticas mais sombrias.
O que eu estava fazendo? Era fácil — tão fácil — o ressentimento de
uma fada se transformar numa fúria perigosa. Isso não era do meu feitio.
Tantos anos de cuidado e, em questão de minutos, eu começara a me
atrapalhar. Engolindo minhas palavras, me dirigi à cadeira, arrumei minhas
saias e escolhi meu bastão de carvão. E, então, afastei todos os outros
pensamentos.
É difícil explicar o que acontece quando pego um bastão de carvão ou
pincel. Posso afirmar que o mundo muda. Quando não estou trabalhando,
vejo as coisas de um jeito; porém, quando estou, vejo as mesmas coisas de
maneira inteiramente diferente. Rostos deixam de ser rostos, se
transformam em estruturas compostas de luz e sombra, formas, ângulos e
textura. O brilho iluminado e profundo de uma das íris quando atingida pela
luz da janela se torna extraordinariamente interessante. Anseio pela sombra
que recai na diagonal sobre a gola de meu modelo, pelas mechas finas e
mais claras em seu cabelo, ardentes como fios de ouro. Minha mente e
minha mão são possuídas. Pinto não por querer, não porque tenho talento,
mas porque é o que preciso fazer, o que me move, é o meu propósito de
vida.
Ao arranhar o papel com carvão, minhas preocupações se esvanecem.
Não notei as lascas pretas caindo, esvoaçando, sujando meu colo. Primeiro
um círculo, leve e energético, capturando a forma do rosto de Rook. Depois,
linhas vigorosas e mais largas, esboçando a rede desgrenhada de seu cabelo,
sua coroa.
Não.
Arranquei o papel do cavalete, largando-o no chão, e comecei outro
esboço. Rosto, cabelo, coroa. Sobrancelhas, escuras e arqueadas. Um meio-
sorriso torto. A silhueta larga dos ombros. Bom. Melhor. Havia agora na
sala dois Rooks, os dois me encarando. Ambos igualmente verdadeiros.
Além do cavalete, o Rook em pele e osso inclinou a cabeça. Ajeitou-se
no assento. Eu sentia que me observava, mas não me importei, perdida no
Ofício febril. No entanto, com a pequena parte da mente que reservava para
outros pensamentos, notei que ele estava ficando inquieto, e me lembrei do
que Gadfly dissera no dia anterior — que Rook não sabia ficar parado.
— Espere um pouco — disse ele, e meu carvão parou no ar.
Olhei e olhei para ele, meus olhos se ajustando ao mundo como se eu
tivesse passado tempo demais envolvida em uma ilusão de ótica. Havia algo
de incômodo na expressão de Rook. Por um momento temi que ele fosse
cancelar o retrato.
— É… — começou ele, com dificuldade, franzindo a testa. — É fixo?
O retrato? Você pode fazer uma alteração?
Suspirei aliviada, liberando todo o ar que tinha prendido. Então era só
isso.
— Posso fazer todas as alterações que quiser nesta etapa. Quando
começar a pintar, e dali até o fim, será mais difícil, mas não impossível.
Por um momento, Rook não disse nada. Apenas olhou para mim, e
então olhou para o lado, tirou o broche de corvo e o guardou no bolso.
— Excelente — falou. — É só isso.
Estaria mentindo se dissesse que não fiquei curiosa. O broche era, claro,
feito por Ofício humano, como tudo que ele vestia. Há muito tempo, Rook
era bem popular no reino Excêntrico. Até que um dia, pelo menos é o que
dizem, ele simplesmente parou de fazer visitas. O povo das fadas cobiçava
o Ofício acima de tudo. Que calamidade poderia afastar uma fada do seu
hábito? E teria isso alguma relação com o item que ele removera?
Ou talvez — e mais provável, quase certo — o broche simplesmente
estava fora de moda, ou ele cansara de usá-lo, ou havia decidido que não
combinava com a cor dos botões e queria mandar fazer um novo. Ele era
uma fada, não um garoto mortal. Eu não podia cair na armadilha da
empatia. Era o truque preferido, o mais antigo e mais perigoso de seu povo.
Mergulhei de volta ao trabalho. A silhueta dele estava ficando boa, mas
um defeito começou a me incomodar ao refinar o esboço. De alguma forma
os olhos não estavam dando certo. Limpei o carvão do papel com o pedaço
de pão úmido que eu mantinha na mesa e recomecei, mas, por mais que
tentasse, não chegavam nem perto da perfeição. Da dobra das pálpebras à
curva dos cílios, cada detalhe era exatamente fiel à imagem — mas o
conjunto não capturava sua… Ora, sua alma. Eu nunca antes encontrara
esse problema com uma fada. O que estava acontecendo comigo?
Meu carvão partiu ao meio. Uma parte rolou pelo chão e sumiu sob o
sofá. Quando estava me levantando, Rook se curvou e o pegou para mim.
Antes de voltar ao assento, deu uma olhada no meu trabalho. Achei ter
escutado um suspiro quase inaudível.
Então ele se aproximou para observar melhor.
— É assim que você me vê? — perguntou, a voz admirada e quase
silenciosa.
Eu não sabia exatamente como responder. Para mim, o defeito
inominável deformava o desenho, o tornava horroroso.
— É sua aparência, senhor — falei, finalmente. — Mas ainda precisa de
muita melhora. Antes de darmos o dia como encerrado, gostaria de
trabalhar mais um pouco.
Rook tocou a coroa, quase constrangido, ao voltar ao sofá. Ele hesitou,
mas pôs o braço onde estivera antes. Depois de uma pausa, ajustou a
posição para ficar precisamente igual a como estava.
O resto da sessão transcorreu em silêncio. Não era como a mudez rígida
que eu costumava sentir na presença do povo das fadas, mas uma quietude
mais confortável e hesitante. Lembrei-me de quando fora me sentar sob
minha árvore preferida da cidade, para ler à sombra, e encontrara outra
menina lá, fazendo o mesmo. Passamos horas juntas, após um breve
cumprimento. Quando voltei para casa, sentia que éramos amigas, mesmo
que só tivéssemos murmurado uma palavra tímida. Depois, soube que ela
partira com os pais para o Mundo Além.
Só fui notar que já era tarde quando duas cabecinhas com cabelos
cacheados apareceram atrás da janela. Rook não reparou nas gêmeas até
May grudar o rosto no vidro como uma ventosa e inflar as bochechas. Com
isso, ele se virou, mas não a tempo de vê-las fugir, deixando a janela
levemente embaçada. O sol já quase havia se posto e eu ainda não
entendera o problema dos olhos de Rook.
Um ar de decepção estampou sua testa quando falei que tínhamos
acabado.
— Posso voltar amanhã? — perguntou.
Levantei o rosto, desamarrando o avental.
— Gadfly tem uma sessão marcada para amanhã. Pode ser no outro?
— Muito bem — respondeu, irritado; mas, pelo que senti, a irritação
não era direcionada a mim.
Não sei o que me aconteceu em seguida. Quando ele abriu a porta, não
saiu imediatamente, ficou ali como se quisesse falar outra coisa, sem saber
exatamente o que era. Fui tomada pelo mesmo sentimento. Nossos olhares
se encontraram, formando uma conexão através da sala. Inspirei fundo e
ousei falar, me recriminando por dentro:
— O senhor vai voltar como corvo?
— É mais provável que sim.
— Antes de ir, posso vê-lo se transformar?
Ele não esperara tal pergunta. Várias emoções tomaram seu rosto ao
mesmo tempo: esperança, cautela, prazer. Nenhuma era exatamente
humana, mas ainda assim eu senti que tinham mais substância do que as
cópias de sentimento meia-bocas que outras fadas experimentavam como
chapéus, imitações vazias, tão reais quanto os encantos.
— Você não vai ficar assustada? — perguntou ele.
Sacudi a cabeça, negando. Nem eu nem ele desviamos o olhar.
— Não me assusto com facilidade.
Uma faísca se acendeu nos olhos de Rook. A casa foi tomada por um
farfalhar, o som do vento distante agitando folhas secas. Cresceu e cresceu
até eu sentir o ar fresco me cercar, puxar minhas roupas, carregando o
perfume bravio, ardido e intoxicante da floresta noturna e me
surpreendendo mais uma vez com aquela sede de mudança indescritível. Os
esboços de carvão descartados esvoaçaram e foram jogados ao redor da
sala. Quando o sol cruzou a linha do horizonte, por um momento a gaiola se
acendeu numa luz dourada e ofuscante, e então meu estúdio mergulhou em
sombra.
Rook pareceu ao mesmo tempo ficar mais alto, mais escuro e mais
feroz. Os olhos roxos ardiam, impetuosos, intocados pelo meio-sorriso sutil.
Um redemoinho de penas pretas se ergueu do chão e o envolveu.
Eu devo ter piscado, porque, quando me dei conta, os papéis estavam
inertes contra a parede e um corvo me observava, empoleirado sobre a
gaiola, com as asas meio abertas. O resquício da luz poente iluminou as
penas brilhantes e cintilou em seus olhos.
O vento me deixara sem ar. Eu não tinha palavras para descrever o que
vira.
— Isso foi deslumbrante — sussurrei, finalmente, e fiz uma reverência
para o corvo.
Com um toque de humor, o pássaro inclinou a cabeça antes de voar
porta afora.
Quatro

Setembro passou voando, pareceu que tinha sido um sonho. Finalizei o


retrato de Gadfly e logo arranjei outra cliente, Vervain, da corte do verão.
No entanto, a impressão que tinha era de que passava os dias com Rook, e
só com Rook.
No meio do mês, eu já havia adiado o máximo de tempo possível sem
tocar no assunto pagamento. Normalmente, meus clientes tocavam no
assunto primeiro, ansiosos para me ludibriar com as tentações mais
espinhosas, mas eu suspeitava que o príncipe passara tanto tempo sem lidar
com mortais que perdera o costume. Ter de abordar o assunto me deixou
nervosa a ponto de não saber explicar o porquê. Fingi que era a ansiedade
causada pela inversão de papéis, mas o verdadeiro motivo era que não
queria ouvir Rook me oferecer rosas cujo perfume me faria esquecer de
todas as lembranças da infância, ou diamantes que me fariam ficar
obcecada por joias para sempre, sem conseguir pensar em outra coisa, ou
travesseiros de pluma de ganso que roubariam meus sonhos. Eu sabia que
aquela parte existia dentro dele, mas era uma parte que eu não queria
conhecer. Aquele sentimento por si só era mais perigoso do que qualquer
combinação de encantamentos que ele pudesse oferecer.
Três vezes eu deixei o pincel de lado e abri a boca até, finalmente, na
quarta tentativa, ter coragem de falar. Ele desviou o olhar da xícara de chá
que estava analisando — de um modo que me pareceu bem suspeito — e
ouviu.
— Sim, é claro — disse ele, quando acabei. — De que tipo de feitiço
você gostaria?
A pergunta me chocou.
Tirei um segundo para reavaliar. Talvez ele preferisse ver mortais
cavando a própria cova. Se fosse o caso, eu precisaria ser ainda mais
cuidadosa. Pesei cada palavra na minha boca.
— Alguma coisa que me avise em caso de eu ou algum membro de
minha família estarmos em perigo.
Parei, considerando as fragilidades do pedido, e acrescentei:
— No que diz respeito ao feitiço, minha família inclui minha tia Emma
e minhas irmãs adotivas, March e May. O sinal deve ser sutil o suficiente
para não atrair atenção indesejada, mas também explícito para que eu não
deixe de notá-lo.
Ele depositou a xícara de chá na mesinha ao lado, cruzou os braços e
abriu um sorriso torto. Eu me preparei.
— Corvos — sugeriu, me pegando de surpresa mais uma vez.
Corvos? Não sabia dizer se a ideia vinha de vaidade, uma falta
deprimente de criatividade ou de ambas as coisas.
— Peço que me perdoe por ser tão direta — respondi —, mas corvos
podem ser um tanto barulhentos. Se eu estiver fugindo de… — hesitei e
mudei de direção. — Se estiver fugindo de um ladrão, por exemplo, não
creio que uma revoada de pássaros gralhando sobre meu esconderijo seria
uma vantagem.
— Ah, entendo. Neste caso, corvos educados. Vão ser obedientes.
— O senhor é estranhamente insistente. Há algo nesses corvos pelo qual
eu virei a lamentar?
Frustração endureceu minha voz. Eu não o entendia. Tinha que ter
algum golpe ali. Só Deus sabe que eu precisava que houvesse um golpe
para me lembrar do que ele era.
— Eles não vão me atormentar com o conhecimento de minha própria
morte — continuei —, ou me manter acordada a noite toda, ou voar em
bandos sempre que eu estiver prestes a bater meu mindinho na quina de
algum móvel, não é?
— Não! — exclamou Rook, começando a se levantar.
Ele se interrompeu, ajeitou a espada e se sentou novamente, parecendo
incomodado. Eu o encarei.
— Não estou tentando cometer mal algum — continuou ele, soando
igualmente frustrado. — De qualquer forma, parece que, mesmo se eu
tentasse, você não se deixaria enganar.
Minhas palavras perdidas formaram um nó na garganta. Fadas nunca
mentiam. Desviei meu olhar do dele, daqueles olhos que eu não sabia
colocar em palavras — ou na tela.
— Não, não me deixaria. Considerando suas garantias, corvos seriam…
aceitáveis.
Constrangida pelo desconforto em minha voz, apertei os punhos até as
unhas arranharem minhas palmas.
— Podemos discutir os termos amanhã — concluí.
Ele se alegrou à menção do “amanhã” e assentiu com a cabeça.
— Mal posso esperar — respondeu, animado.
Simples assim, tudo estava perdoado. Contendo um sorriso, peguei uma
espátula sem querer, antes de encontrar o pincel.
Depois que Rook se foi, não consegui me livrar da impressão de que ele
insistira nos corvos por algum motivo específico. A explicação só me
ocorreu quando estava quase acabando a arrumação do ambiente. Meu rosto
corou e uma dor de anseio tocou um acorde triste e doce dentro de mim. Era
simples, na verdade. Rook não queria que eu me esquecesse dele quando já
não estivesse mais por perto.
····
As semanas seguintes passaram num borrão. A estação não virou. E ainda
assim, ali no meu estúdio, enquanto o campo lá fora fervia sob o sol do
verão, uma mudança vital me atingiu por completo. Quando Rook não
estava comigo, ele não saía dos meus pensamentos. Durante nossas sessões,
meu coração batia como se eu tivesse acabado de correr por quilômetros.
Eu passava quase que a noite toda em claro, torturada pelo mistério
daqueles olhos impossíveis de pintar, levada à inquietude e à beira da
insanidade pelo luar se derramando pela janela, que eu jurava ser mais
luminoso do que o de qualquer outra noite que viera antes. No passado, o
despertar da primavera deve ter sido assim, pensei. Eu estava viva de uma
forma como nunca antes estivera, em um mundo que deixara de parecer
insípido e passara a crepitar promessas que me deixavam ofegante.
Ah, eu sabia que o que sentia por Rook era perigoso. Mas, sem dúvida,
o perigo tornava tudo ainda melhor. Talvez os anos solitários que passei
com um sorriso educado paralisado no rosto tivessem me desequilibrado
um pouco, e a loucura só apareceu após eu ter sentido o gosto da novidade.
Andar no fio da navalha toda vez que nos cumprimentávamos, com acenos
e reverências, sabendo que um passo em falso me jogaria num perigo
mortal, fazia o sangue em minhas veias cantar. Minha esperteza era
exultante. De todos que praticavam o Ofício no reino Excêntrico, era eu
quem melhor conhecia o povo das fadas. Como água, os dias escorriam por
meus dedos, escapando por mais que os agarrasse com vigor, me
arremessando na direção do fim inevitável de um momento que eu desejava
nunca acabar, a minha certeza de que era capaz de lidar com Rook se
firmou feito aço.
Eu poderia ter continuado com tal crença caso não tivesse descoberto o
problema com os olhos dele durante nossa última sessão.
— Gadfly me contou que, da primeira vez que você o pintou, seus pés
nem alcançavam o chão — disse Rook, o que deu início à conversa. — Ele
falou como se fosse meramente… Isobel, quantos anos você tem? Nunca
pensei em perguntar.
— Dezessete — respondi, me afastando da pintura para ver sua reação.
Durante nossas primeiras sessões, ele se mantivera rígido como
madeira, aparentemente sob a impressão de que interferiria com meu
trabalho caso movesse um fio de cabelo sequer. Depois que eu o assegurara
de que já tinha avançado o suficiente para sua postura não afetar o
andamento da tela, ele se jogava de lado no sofá para olhar pela janela
sempre que quisesse, como se perder uma nuvem ou um pássaro lhe fosse
angustiante. Mesmo assim, Rook passava a maior parte do tempo olhando
para mim. Nossa relação se tornara perigosamente casual.
A reação dele não foi bem a que eu esperava. Por um longo momento
apenas me encarou, com uma expressão que lembrava choque, ou até dor.
— Dezessete? — repetiu. — Certamente é jovem demais para ser
mestre do Ofício. E já é inteiramente adulta, não é?
Assenti. Teria sorrido se não fosse pela expressão no rosto dele.
— Sou mesmo jovem. A maioria das pessoas da minha idade não está
nesse nível. Eu comecei a pintar assim que fui capaz de segurar o pincel.
Ele sacudiu a cabeça. Seu olhar baixou para o chão. Preocupado, tocou
o bolso.
— E a sua idade? — perguntei, perplexa pelo ar de melancolia que o
tomara.
— Não sei. Não posso…
Ele olhou pela janela, tensionando um músculo do maxilar.
— O povo das fadas quase não presta atenção no passar de anos —
continuou —, de tão rápido que eles passam. Não acredito que eu seja capaz
de responder de forma que você entenderia.
Como seria aquilo? Conhecer alguém, criar um vínculo, tudo isso ao
longo de uma única tarde dourada — e descobrir que, para ela, cada minuto
era um ano. Cada segundo, uma hora. Ela morreria antes de o sol nascer no
dia seguinte. Uma dor aguda e silenciosa se retorceu no meu peito.
Foi então que vi o segredo escondido no fundo daqueles olhos. Por mais
impossível que fosse, era tristeza. Não o luto efêmero das fadas, mas
tristeza humana, desolada e infinita, um abismo escancarado na alma. Era
por isso que eu não fui capaz de identificar o defeito. Aquela emoção não
pertencia ao povo dele. Não podia pertencer.
O tempo parou. Até a poeira brilhando no ar pareceu ficar imóvel.
Eu precisava confirmar o que tinha visto. Atravessei a sala, em transe, e
levei minha mão ao rosto dele com tanta leveza que mal o toquei. Rook não
estivera prestando atenção, e fez o menor dos movimentos, quase um
tremor, antes de olhar para mim. A tristeza estava, sim, ali. Junto dela,
mágoa e confusão, de um grau que me fez questionar se ele entendia o que
sentia, ou se era tão distante para ele quanto muitos aspectos do povo das
fadas eram para nós.
— Eu a ofendi? — perguntou ele. — Perdoe-me. Não quis dar a
impressão de…
— Não, não me ofendeu — respondi, e minha voz, de alguma forma,
soou normal. — Só reparei que preciso trabalhar em mais um detalhe antes
de terminar o retrato. Pode manter a cabeça assim por alguns minutos?
Ciente de que eu estava me permitindo uma liberdade imensa, ergui
minha outra mão, levei-a a seu rosto e o virei lentamente na direção do
cavalete, no ângulo preciso para que a luz atingisse seus olhos. Ele permitiu
que eu o movesse em silêncio, sua respiração aquecendo meu punho, sem
deixar de me observar nem por um mísero segundo.
Era o último dia que passaríamos juntos. A primeira e última vez que eu
o tocaria. O conhecimento desse fato pulsava entre nós como um coração.
Com os olhares cruzados, outra verdade se tornou inconfundível. Senti
nossa conexão, palpável como um aperto de mãos ou como um toque em
meu ombro. Sabia que ele sentia o mesmo.
Tonta, dei um passo para trás e fechei com força a porta desse
sentimento antes que ele tomasse forma. Manchas escuras flutuavam nas
beiras da minha visão e um pânico gelado arrancava o ar do meu peito.
Fosse lá o que isso era, precisava acabar. Agora.
Andar no fio da navalha só era divertido até a navalha deixar de ser
metafórica.
Mortais não se importavam muito com os decretos enigmáticos da Boa
Lei, mas uma das regras valia igualmente para todos nós: fadas e humanos
eram proibidos de se apaixonarem. Sinceramente, era quase uma piada. Era
o tipo de história que inspirava músicas e tapeçarias do Ofício. Nunca
aconteceu nem nunca aconteceria, porque, apesar dos flertes e do desejo por
atenção, fadas não eram capazes de sentir nada como o amor verdadeiro.
Pelo menos, era nisso que eu acreditava. Naquele instante, comecei a
duvidar de tudo que já ouvira sobre o povo de Rook, tudo que eu observara,
as regras simples e sensatas que eu nunca nem questionara ao longo da
vida. Leis não existiam sem motivo, ou antecedentes.
E o castigo para isso? Ah, é de conhecimento popular como essas
histórias terminam. Em morte, é claro; há apenas uma exceção. Para salvar
sua vida, salvar a vida dos dois, o mortal deve beber do Poço Verde…
Entretanto, isso só acontece se o povo das fadas não os alcançar antes.
— Por favor, mantenha-se nessa posição — pedi, com frieza.
O ranger da minha cadeira soou distante. Ao erguer meu pincel, não
ousei olhar para Rook e ver sua reação à mudança no meu comportamento.
Quando o mundo me colocava para baixo, eu era sempre capaz de me
perder no trabalho. Fechava-me nesse santuário onde qualquer problema
sumia se comparado à compulsão exigente do meu Ofício. Voltei minha
concentração aos olhos de Rook, ao aroma cheio e doce da tinta a óleo, ao
rastro brilhante e sensual do pincel na textura da tela, e apenas nisso. Era
meu Ofício, meu propósito. Estávamos ali só pelo Ofício. Aquela expressão
velada só poderia ser pintada por um mestre, e eu estava determinada a
representá-la. A técnica se resumia às sombras das írises: profundas,
misteriosas e enevoadas, como a sombra projetada por um barco no fundo
de um lago límpido. Não o objeto em si, mas a forma do fantasma que foi
deixada para trás.
E, conforme trabalhava, a febre ardia em mim, o prazer do meu talento,
a consciência de que estava prestes a completar um retrato muito além de
todos os que eu pintara antes. Carregada pela força que parecia me
atravessar de dentro e de fora, esqueci-me de quem era.
A luz se foi, mas só fui reparar quando a escuridão da sala custou as
cores da tela. Emma estava em casa — fazia barulhos discretos na cozinha,
tentando não chamar atenção com sua presença ao levar as gêmeas para o
andar de cima. Meu punho doía. Mechas soltas de cabelo grudavam no suor
das têmporas. Sem aviso, fui ajeitar a forma do pincel e reparei que o
retrato estava pronto. Rook me olhava de volta, sua alma capturada em duas
dimensões.
Um berrante soou ao longe.
Rook deu um salto e cruzou a escuridão do estúdio, cada linha de seu
corpo tomada por tensão. Levou a mão à espada. Minha primeira
impressão, ainda confusa, era a de que seria outra fera fada, mas o som não
era o mesmo: alto e anasalado, o tom puro. Tive certeza quando o berrante
soou de novo, estremecendo e se aquietando.
Fui tomada por um calafrio. Apesar de raramente ser ouvido no reino
Excêntrico, ninguém esquece o chamado da Caça Bravia.
— Isobel, tenho de ir — disse Rook, embainhando a espada. — A Caça
invadiu as terras outonais.
Levantei tão rápido que derrubei a cadeira. O estrondo da queda no chão
de madeira soou como um tiro de mosquete, mas não me causou reação
alguma.
— Espere. Seu retrato está pronto.
Ele parou à porta, segurando-a entreaberta. Horrivelmente, não queria
olhar para mim. Não… não podia olhar para mim. Eu soube então, sem a
menor sombra de dúvida, que ele planejava desaparecer do mundo humano
outra vez, completa e, no que dizia respeito à minha vida mortal,
permanentemente. Nenhum de nós dois podia correr o risco de tentar o
destino. Quando ele se fosse, nunca mais nos veríamos.
— Prepare o retrato para envio à corte do outono — disse ele com uma
voz vazia. — Uma fada de nome Fern virá buscá-lo em duas semanas.
Ele hesitou. No entanto, quando o berrante soou outra vez, apenas
acrescentou:
— Um corvo para riscos incertos. Seis para perigos garantidos. Doze
para morte, se não tiver como ser evitada. O feitiço está concluído.
Curvando-se para passar pela porta, ele saiu em disparada. Simples
assim, despediu-se para sempre.
····
Agora, preciso contar sobre como sou tola. Antes daqueles tempos
cinzentos e inertes que se seguiram à partida de Rook, eu sempre rira de
histórias em que donzelas sofrem por saudade dos amados ausentes, garotos
que conheciam há uma semana e não tinham nem razão para se apaixonar.
Não sabiam que a vida valia mais do que o carinho duvidoso de um jovem
rapaz tolo? Que havia tantas coisas a se fazer no mundo que não se
resumiam apenas a seus desgostos?
Até que me aconteceu o mesmo e entendi que não era tão diferente
daquelas garotas, afinal. Ah, tudo continuava bastante patético — mas eu
me juntara a elas, reconhecendo minha humildade. Afinal, não é o absurdo
parte da humanidade? Nós não somos criaturas eternas que veem séculos
passarem ao longe. Nossos mundos são pequenos. Nossas vidas, breves. E
só podemos sangrar um pouquinho antes de cair.
Dois dias depois, fiz um inventário mental das características
desfavoráveis de Rook, preparada para me dedicar a críticas cruéis. Era
arrogante, egocêntrico e obtuso — não me merecia de forma alguma.
Entretanto, enquanto reclamava de nosso primeiro encontro, não conseguia
me esquecer da rapidez com que se desculpara, mesmo sem fazer a menor
ideia de por que devia se desculpar. Lembrava-me da expressão exata em
seu rosto. Ao fim do exercício, me sentia ainda mais no fosso.
Três dias depois, peguei a meia dúzia de esboços feitos com o bastão de
carvão, os quais eu fizera em papel-manteiga, e então os embrulhei e os
escondi no fundo do armário, decidida a só olhá-los quando não mais
ansiasse por ver o rosto dele de novo, quando a ferida já estivesse
cicatrizada. A tarde dourada acabara. Quando Rook pensasse em mim, se é
que pensaria, eu já estaria morta e enterrada.
Comia. Dormia. Saía da cama de manhã. Eu pintava, lavava louça,
cuidava das gêmeas. Todo dia nascia azul e ensolarado. Nas tardes quentes,
o zumbido dos gafanhotos se misturava em um pulsar monótono. Era
melhor assim, dizia a mim mesma, engolindo o mantra como um pedaço de
pão estragado.
Era melhor assim.
Duas semanas depois, como combinado, Fern veio e levou o retrato,
embrulhado com palha e pano numa caixa. Depois da terceira semana, eu
voltara a me sentir um pouco como antes, mas agora faltava algo em minha
vida e eu suspeitava que nunca voltaria a ser exatamente quem um dia eu
fora. Talvez aquilo fizesse parte do amadurecimento.
Certa noite, entrei na cozinha e encontrei Emma dormindo à mesa, a
mão ainda agarrada a um frasco de tintura prestes a derramar, restos de
ervas acres ainda por moer no pilão. Não era um acontecimento raro.
— Emma — sussurrei, tocando seu ombro.
Ela resmungou em resposta.
— Já está tarde. Você devia ir deitar na cama — insisti.
— Tá, eu já vou — disse ela, a voz abafada pelos braços, mas não se
moveu.
Tirei a tintura das mãos dela e a cheirei, em seguida encontrei a rolha e
tampei o frasco. Eu sabia o que descobriria se cheirasse o hálito de Emma.
— Vamos.
Passei o braço inerte por cima dos meus ombros e a levantei. Os
tornozelos dela bambearam antes de firmar os pés. Subir as escadas foi uma
experiência tão interessante quanto era esperado.
Era comum acharem que eu era filha de Emma. Normalmente quem
fazia essa suposição eram crianças, ou pessoas de outras cidades — pessoas
que em geral não sabiam o que acontecera com meus pais, ou que a médica
do reino Excêntrico, Emma, tentara salvar a vida do meu pai e falhara.
Diferente de minha mãe, ele não morrera imediatamente. De qualquer
forma, se tivesse sido assim, teria sido melhor.
Por conta disso, suponho que eu não podia sentir raiva dos vícios de
Emma, mesmo quando às vezes me tornavam responsável por ela, em vez
de o contrário. Um paciente devia ter morrido naquele dia, apesar de eu ter
aprendido a não perguntar, quando passei a entender a conexão entre esses
fatores. O que eu não conseguia esquecer era que eu era o motivo para ela
continuar no reino Excêntrico. Se não fosse por mim, pela responsabilidade
de criar a filha da irmã, a filha do homem que morrera em seus braços, ela
teria partido para o Mundo Além assim que tivesse oportunidade. Em um
lugar onde feitiços eram de praxe e as criaturas que os negociavam não
precisavam de medicina humana… Bem, sua vida ideal seria longe dali.
Emma também perdera algo, e eu não deveria esquecer.
— Você consegue tirar os sapatos? — perguntei, apoiando-a na beira da
cama.
— Tô bem — respondeu ela, com os olhos fechados, então eu mesma
tirei seus sapatos e os guardei debaixo da cama, para que não tropeçasse
neles caso se levantasse durante a noite.
Em seguida, me aproximei e dei um beijo na testa dela.
Emma entreabriu os olhos. Eram de um castanho-escuro, quase pretos,
como os meus — grandes e intensos. Tínhamos as mesmas sardas
espalhadas pela pele clara e o mesmo cabelo grosso, loiro da cor do trigo.
Antes de tudo aquilo ter acontecido, lembro que ela e minha mãe brincavam
dizendo que as mulheres da nossa família reinavam absolutamente:
passavam a aparência para as gerações seguintes sem qualquer interferência
dos homens.
— Sinto muito pelo que aconteceu com Rook — disse ela, estendendo a
mão para carinhosamente puxar uma mecha do meu cabelo idêntico.
Fiquei paralisada. Tonta, à beira de um precipício.
— Não sei do que…
— Isobel, eu não sou boba. Eu vi o que estava acontecendo.
Bile ardeu em meu estômago. Minha voz saiu fina e tensa, preparada
para uma defesa estridente.
— Por que você não disse nada?
Ela deixou a mão cair sobre a coberta.
— Porque eu não tinha nada a dizer que você já não soubesse. Confiei
em você para tomar as decisões corretas.
Atravessada por culpa face à compreensão de Emma, minha hostilidade
se esvaiu. O vazio em seu lugar era muito, muito pior.
— Além disso, eu fico preocupada com você — continuou Emma. —
Seu Ofício te mantém tão ocupada e isolada, que você ainda não teve a
oportunidade de viver… Bem, tantas experiências. Seria difícil nos
mantermos sem os feitiços, mas eu queria…
Um baque fez o teto balançar, seguido por uma gargalhada
descontrolada. A interrupção foi bem-vinda. Quanto mais Emma falava,
mais difícil era conter as lágrimas ardendo no fundo dos meus olhos.
— Ah, mas que inferno. As gêmeas.
A voz dela era rouca como lixa. Ela olhou para cima, resignada.
Eu me levantei imediatamente.
— Não se preocupe. Eu resolvo isso.
A escada velha que levava ao sótão rangeu sob meu peso. Quando entrei
no quarto das gêmeas, um cantinho apertado de teto inclinado, no qual mal
cabiam as duas camas e a cômoda, elas já tinham começado a fingir que
dormiam, tão mal que não me enganariam mesmo se parassem de abafar as
risadinhas.
— Eu sei que vocês estão aprontando alguma coisa. Desembucha.
Fui até May e fiz cócegas. Ela raramente confessava sem tortura.
— March! — gritou ela, debatendo-se sob a coberta. — A March quer
te mostrar uma coisa!
Parei as cócegas e me virei para March com as mãos na cintura,
tentando parecer séria. Considerando as bochechas infladas, ela estava
prestes a cuspir água na minha cara, ou talvez alguma coisa ainda mais
desagradável. Eu não podia mostrar fraqueza. Impaciente, bati o pé e ergui
uma sobrancelha.
— Bleeeghhh — disse ela, cuspindo um sapo vivo no edredom.
Sacudi a cabeça em resposta às gargalhadas histéricas de May.
— Bom, pelo menos você não o engoliu — comentei, pulando atrás da
criatura molhada e traumatizada, que peguei antes que tentasse escapar pela
escada. — Agora vocês se acalmem, tá bom? Emma está tendo uma noite
daquelas.
Elas não sabiam o que aquilo significava, só que era coisa séria, e que
eu daria algum jeito de recompensá-las pelo bom comportamento.
— Tá — suspirou May, jogando-se na cama e me encarando com um
olho aberto. — O que você vai fazer com o sapo?
— Levar para bem longe da boca da March.
“E torcer que se recupere dos pesadelos”, pensei, fechando a porta ao
sair.
Vaguei pela casa. O luar mudava a forma das tralhas do estúdio. Uma
Vervain inacabada sorria com frieza no cavalete, sua expressão tão distante
que poderia ser entalhada no manequim de uma pessoa que faz perucas.
Depois de Rook, trabalhar com ela foi chocante, mesmo sabendo que ela
representava um simples retorno à normalidade, fosse lá o que aquilo
significava para mim.
Andei lentamente pela cozinha e saí para a grama úmida, onde soltei o
sapo. Ele pulou para o mato, na direção da floresta. Dali, do outro lado do
campo iluminado pelo luar prateado, as copas das árvores se erguiam no
horizonte como nuvens.
Uma brisa fez o trigo farfalhar e a grama suspirar, esfriando o orvalho
sob meus pés. O vento vinha da floresta e, por um momento, imaginei sentir
um toque daquele cheiro fresco, feroz e melancólico, que era próprio de
Rook, o cheiro que pegara meu coração e não o deixava em paz. Eu sabia o
que aquilo significava. Outono.
De repente, meu peito se encheu de um anseio sem nome, uma dor
entalada no fundo da garganta como um berro engasgado. Vidas a serem
vividas me esperavam por lá, longe da segurança do meu lar e da minha
rotina restrita. O mundo inteiro me esperava. Senti-me atravessada por esse
anseio. Ah, se eu fosse do tipo que gosta de gritar…
Usei a grama para limpar as mãos sujas de sapo e dei um passo para
trás.
Um farfalhar de asas veio do velho carvalho.
Eu me virei, o cabelo agitado pela brisa, e vi um corvo na árvore. Mas
qual seria: um corvo para perigo ou um corvo que eu amava?
Antes que eu pudesse me mover, Rook estava à minha frente, me
olhando de cima. Só tive tempo de pensar: “Os dois.” Pois aquele não era o
Rook que eu conhecia. Quando as plumas se soltaram da silhueta, formando
um casaco comprido, revelaram um rosto lívido de fúria. Não havia meio-
sorriso para suavizar aquela máscara fria e dura, os olhos de ametista
ardendo em chamas.
— O que você fez? — rosnou ele.
Cinco

A pergunta desconcertante de Rook me paralisou. Em silêncio, sacudi a


cabeça. Precisava entrar em casa.
Antecipando o que eu faria em seguida, ele se aproximou, me fazendo
recuar até o muro, e me prendeu ali. Não tocou em mim, mas uma ameaça
latente irradiava dos braços ao lado dos meus ombros, das mãos fortes
agarrando a madeira ao lado do meu rosto. Quando escapar deixou de ser
uma opção, notei que não conseguia tirar meus olhos dele. A boca,
normalmente expressiva, estava comprimida em uma linha fina e pálida,
esperando por minha resposta. Eu agradeceria por qualquer mudança
naquela expressão gélida, mesmo se para pior, pois teria algum indício do
que estava passando em sua cabeça.
— Rook, eu não sei do que você está falando — respondi, minha voz
tão assustada quanto eu me sentia. — Eu não fiz nada.
Ele se empertigou. Eu tinha me esquecido de como era alto — mesmo
levantando bem a cabeça, eu quase não o via.
— Pare de se fazer de desentendida. Sei que você sabotou o retrato. Por
quê? Está trabalhando para outra fada? O que lhe deram em troca que a fez
me trair?
— Deram em troca… Do que você está falando?
Nos olhos dele, uma faísca. No entanto, se eu causei algum efeito, ele
rapidamente se desviou da dúvida.
— Você fez alguma coisa com o retrato entre a última sessão e o dia em
que o enviou para mim. Tem alguma coisa errada agora. Qualquer um
consegue perceber.
— Eu te pintei. Só isso. É só esse o meu Ofício, como pode…
“Ah.” Ah, não.
— Você fez mesmo alguma coisa — sibilou ele, dobrando os dedos
contra o muro.
— Não! Quer dizer, eu fiz, mas não foi nenhum… golpe, nem… nem
sabotagem. Eu juro. Eu te pintei exatamente como você é. Eu vi, Rook. Eu
vi tudo, por mais que você tente esconder.
Ora. Eu posso ser um prodígio artístico, mas nunca disse que era genial.
Foi só então que me ocorreu que a tristeza secreta de Rook era secreta por
um motivo. Talvez fosse secreta até para ele mesmo.
— Você viu tudo? — A voz dele se tornou mais baixa e ameaçadora.
Rook se inclinou para a frente, me prendendo. Para qualquer lado que
olhava eu só via seu corpo.
— O que você acha que viu com esses olhos de mortal, Isobel? Já viu o
esplendor da corte do verão? Ou fadas da idade da própria terra derrotadas
nas montanhas de gelo das terras invernais? Já viu gerações inteiras de seres
vivos crescerem, florescerem e morrerem tão rápido quanto um suspiro?
Você se lembra do que eu sou?
Encolhi-me contra as tábuas de madeira que arranhavam minhas costas.
— Eu posso alterar o retrato — falei, me perguntando se estava
mentindo.
Mesmo que minha vida dependesse daquilo, era inimaginável destruir
meu trabalho impecável. Era a única obra daquele tipo no mundo inteiro.
Rook soltou uma gargalhada amarga.
— O retrato foi revelado publicamente na corte do outono. Todos da
minha terra o viram.
Não soube o que pensar.
— Merda — concordei, eloquente, depois de um instante.
— Só há uma forma de recuperar minha reputação. Você vai voltar
comigo e será julgada pelo crime nas terras outonais. Hoje.
— Espere…
Rook se afastou. Atordoada pela lua que brilhava nos meus olhos, me
percebi andar atrás dele pelo quintal, na direção do trigal que chegava ao
meu ombro. Minhas pernas se moviam em gestos incongruentes, como se
estivessem sendo movidas por um manipulador de marionete. Pânico
absoluto tomou conta de mim. Por mais que lutasse contra a traição do meu
corpo, não conseguia parar de andar.
— Rook, você não pode fazer isso. Você não sabe meu nome de
verdade.
Ele nem se virou para falar. Eu me guiava pelo farfalhar de seu casaco.
— Se fosse sortilégio, você nem saberia. Você continuaria a me seguir,
tranquila, acreditando ter partido de você mesma essa decisão. E isso não
passa de um feitiço de criança. Você parece ter mesmo esquecido o que eu
sou, afinal. Só há uma fada mais poderosa do que eu, e duas são minhas
iguais.
— O Rei do Amieiro — murmurei.
Árvores balançaram à distância e Rook parou de andar. Virou o rosto de
lado, me apresentando seu perfil, mas não me olhou de fato, parecia não
querer desviar o olhar de outra coisa.
— Quando chegarmos à floresta — falou —, não pronuncie essas
palavras. Nem mesmo pense nelas.
Fui tomada por um calafrio. Tudo que eu sabia sobre o Rei do Amieiro
se resumia a ele ser o rei da corte do verão e que era quem tinha regido o
povo das fadas desde sempre. Sua influência regia grandes proporções,
prendendo o reino Excêntrico em seu verão eterno. Naquele momento,
parecia que as árvores estavam se aproximando, cochichando. Apenas
esperando que eu passasse pelos pregos tortos e enferrujados e caminhasse
sob suas copas, para que, assim, pudessem me observar e me escutar. Eu
quase havia chegado à beira do terreno. Sentia-me prestes a sair do alcance
da claridade e adentrar a escuridão eterna, onde o horror estava à espreita.
Não, não era apenas uma sensação — era a realidade.
Não podia gritar. Se Emma corresse para fora de casa, eu não fazia ideia
do que lhe aconteceria, e fiquei enjoada só de pensar nas gêmeas assistindo
a isso. No entanto, também não podia caminhar atrás dele como uma
marionete submissa até entrar na floresta sombria mais adiante.
Engolindo em seco, segurei as saias e fiz uma reverência meio torta,
pela metade, dirigida às costas dele.
Rook deu meia-volta e retribuiu, me olhando como se pudesse me matar
ali mesmo. Assim que se virou e deu mais um passo, fiz outra reverência.
Repetimos o estranho ritual quatro vezes, tornando a expressão dele cada
vez mais furiosa, até eu sentir o feitiço que controlava minhas pernas subir
pelo corpo, paralisando minha cintura como se fosse uma boneca porcelana.
Aquele plano tinha ido por água abaixo.
Mergulhamos no trigal, que farfalhava ao meu redor, arranhando e
pinicando, puxando o tecido áspero das minhas roupas. Quando olhei para
trás, não vi luzes na casa. Seria esta a última vez que veria meu lar? Minha
família? De repente senti tanto carinho pelas telhas e calhas de beira
prateada, pelo enorme carvalho antigo próximo à porta da cozinha, que
lágrimas irromperam dos meus olhos. Rook nem notou minha angústia.
Será que se importaria ao me ver chorando? Talvez. Talvez não. De
qualquer forma, não custava descobrir.
Flexionei os dedos. Que bom: meus braços ainda estavam livres.
Encontrei o bolso escondido entre as dobras largas das saias e comecei a
cutucar uma costura com a unha.
— Rook, espere — falei, enquanto outra lágrima quente escorria pelo
meu rosto e descia pelo meu colo. — Se você se importa ao menos um
pouco comigo, ou se algum dia se importou, pare por um momento e
permita que eu me recomponha.
Ele desacelerou os passos até parar de vez. Minha própria caminhada só
chegou ao fim quando eu estava bem atrás dele, exatamente como eu
esperava.
— Eu… — começou, mas não tive a oportunidade de ouvir o resto.
Peguei a mão de Rook e a apertei com força, para que o anel que eu
tirara da costura do bolso pressionasse a pele exposta. Não era um anel
qualquer, pois este foi forjado de ferro frio e puro.
Ele cambaleou ali mesmo, como se o chão tivesse se aberto sob seus
pés. Finalmente, arrancou a mão da minha e virou para trás, me cercando e
arreganhando os dentes em um rosnado feroz. Senti meu estômago revirar.
Ao longo dos anos, observando as imperfeições individuais nos encantos de
cada fada, eu compusera uma imagem do que eram por baixo daquilo. E
mesmo assim não estava preparada para o que vi.
Em sua verdadeira forma, Rook parecia uma criatura infernal, gerada
pelo coração da floresta — não era exatamente horrenda, mas horrivelmente
desumana. A vida se esvaíra da pele dourada, deixando-a cinzenta, doentia
e com aparência de sebo, com o rosto cavado, o cabelo emaranhado por
todos os lados como as sombras de um matagal. Os olhos luminosos me
lembravam dos de um falcão, penetrantes e desprovidos de misericórdia ou
sentimento. Seus dedos eram inquietantes, compridos e cheios de dobras, e
eu podia notar, pelo caimento das roupas, que por baixo delas tinha se
tornado esquelético. Mas o pior eram os dentes: por trás do lábio retraído
pareciam agulhas, afiados.
O encanto voltou quase que instantaneamente, preenchendo seu rosto,
abaixando o cabelo e trazendo cor de volta à pele desbotada, mas aquela
imagem assustadora estaria para sempre gravada em minha memória.
— Como você ousa usar ferro contra mim — disse ele, a voz áspera,
cada sílaba sufocada por agonia. — Você sabe tão bem quanto eu que ferro
é proibido no reino Excêntrico. Eu deveria matá-la aqui e agora.
Eu me esforcei para manter a voz firme, apesar de o meu coração tentar
quebrar as costelas por dentro.
— Eu sei que o seu povo é fiel à sua palavra. Você valoriza a justiça. Se
me matar por carregar ferro, não seria justo e necessário punir da mesma
forma todos aqueles culpados por esse mesmo crime?
Ele hesitou. Ainda me encarando, assentiu.
— Então, se eu morrerei, todos do reino Excêntrico devem morrer
também, até a menor das crianças. Todos nós carregamos ferro em segredo,
do momento em que somos colocados no mundo até o dia de nossa morte.
— Sua abominável…
Sob outras circunstâncias, aquela estupefação seria cômica.
— Primeiro, você me trai, e agora… — continuou. — Agora, você me
diz…
Ele hesitou, buscando as palavras. Obviamente não estava acostumado a
perder no próprio jogo. Era sabido que o povo das fadas não podia, de jeito
nenhum, matar todos os moradores do reino Excêntrico; eles prezavam
demais o Ofício para chegarem a considerar a possibilidade.
Respirei fundo, ganhando forças.
— Eu sei que não posso fugir de você. Me obrigar a andar não faz
diferença, a não ser o uso de energia que poderia ser gasto com outra coisa.
Confesso que estava blefando, mas Rook pressionou os lábios de uma
forma que sugeria que eu tinha acertado.
— Então deixe que eu ande livremente — continuei —, que eu carregue
ferro, e irei com você de livre e espontânea vontade, em corpo, se não em
espírito.
Ele deu um, dois, três passos para trás, afastando-se de mim no trigal,
antes de dar meia-volta e seguir o caminho até as árvores. Fui atrás aos
tropeços, tendo como única resposta o fato de que ele interrompera o
feitiço.
Por dentro, eu implorava pela fuga. No entanto, sabia que, se tentasse
correr agora, arriscaria minha oportunidade, talvez destruindo-a por inteiro.
Minha única opção era segui-lo pelo trigal, pelo mato, e então por dentro da
floresta que nos aguardava, onde só um punhado de seres humanos já pisara
— e da qual nenhum deles voltara.
Todos os músculos do meu corpo se retesaram na expectativa de mais
crueldade feérica, mas meus primeiros obstáculos se mostraram
surpreendente e desagradavelmente comuns. Minha respiração ofegante era
áspera aos meus ouvidos e minhas saias grudavam no suor das minhas
pernas enquanto eu tropeçava pelo mato. Carrapichos se enfiavam nas
minhas meias e eu tropeçava em raízes e pedras a cada passo dado.
Enquanto isso, era como se Rook fosse um fantasma, pois mal parecia ter
dificuldade de atravessar a vegetação. Vez e outra um galho encontrava o
ombro dele, mas logo era afastado e, quando solto, me atingia na cara —
acho que ele fazia de propósito.
— Rook.
Não houve resposta.
— Está escuro demais… O céu está sem lua. Eu não consigo ver nada.
Uma luzinha surgiu acima da mão que ele erguera. Era roxa, da cor dos
olhos de Rook e do tamanho de um punho, nebulosa e cintilante. Desceu,
flutuando, até quase tocar o chão, iluminando as beiradas das folhas de
modo fantasmagórico. Uma das minhas lembranças mais antigas era uma de
minha mãe dizendo para eu nunca seguir uma luz daquelas.
E assim seguimos em frente.
— Hm. — Eu demorara o máximo possível para trazer isso à tona. —
Eu… preciso me aliviar.
Quando não deu nenhum sinal de me ouvir, acrescentei:
— Agora.
Ele virou o rosto minimamente, o perfil delineado pela luz feérica.
— Seja rápida — respondeu.
Estando com as roupas íntimas expostas em uma floresta escura ao lado
de um príncipe, certamente não fazia parte de meus planos demorar. Ele
parecia esperar que me agachasse e fizesse xixi ali mesmo, o que
provavelmente não fazia diferença; não estávamos seguindo uma trilha.
Mesmo assim, eu queria manter algum resquício de dignidade, então abri
caminho entre as madressilvas e me instalei do outro lado do arbusto. A luz
obediente me seguiu.
Quase soltei um berro quando olhei por cima do ombro e encontrei
Rook bem atrás de mim.
— Dê meia-volta! — exclamei.
De novo o mesmo olhar confuso que vira pela primeira vez na cozinha,
mas sumiu tão rápido que eu não tinha certeza se realmente o vira.
— E por que eu faria isso? — perguntou no tom frio de um príncipe.
— Porque são coisas íntimas! Você passou o caminho todo de costas
para mim, então tenho certeza de que aguenta se virar por alguns segundos.
E não vou conseguir fazer nada se você ficar olhando.
Pelo menos isso o convenceu. No entanto, esperando ali no mato,
agachada feito uma galinha, minhas saias arregaçadas e emboladas, com o
tecido fino do casaco de Rook esbarrando no meu cabelo sempre que se
movia, minha bexiga não colaborou. Ficou ainda pior quando olhei ao redor
da floresta em busca de distração e vi um círculo de cogumelos ali perto. Os
chapéus eram da largura de pratos de jantar e o musgo entre eles era
salpicado de florezinhas brancas. Dizem os boatos que o povo das fadas
usava esse tipo de portal para viajar pelas trilhas feéricas. Só de pensar na
possibilidade de do nada outra fada aparecer bem ali, tudo em mim se
apertou com mais força.
Soou um berrante. Meu corpo todo se arrepiou em resposta à melodia
aguda e trêmula, e não me orgulho de dizer que no mesmo instante acabei
molhando as madressilvas.
Rook agarrou meu braço, me puxando para cima enquanto eu tentava
ajeitar minha roupa.
— A Caça Bravia — falou.
À minha frente, ele desembainhou a espada e me puxou para trás, pelos
arbustos, com o outro braço cruzando meu peito, como se eu fosse sua
refém.
— Não deveria ter nos encontrado aqui — continuou —, muito menos
com tal rapidez. Alguma coisa aconteceu.
Reclamar não cairia bem naquele momento, então fiquei de boca
fechada, mas arranhei o braço dele em protesto. Estava com aquele broche
de corvo de novo, bem na altura para ficar me cutucando na nuca.
— Pare com isso. Assim que os cães nos notarem, eles vão pular direto
em você. Matá-los isolados é brincadeira de criança, mas proteger uma
mortal ao mesmo tempo… Você precisa fazer tudo que eu mandar, sem
hesitar.
Assenti. Minha garganta já seca.
Uma forma fantasmagórica pulou através da moita na nossa direção,
emitindo uma leve luz própria. Não era um cão sedento, mas sim uma fera
fada. A aparência era a de um cão de caça branco, com patas compridas e
pelo longo, mas eu sabia enxergar além da superfície; o encanto falhou por
um instante tão breve que só me restou a impressão de que sob a ilusão
estava algo velho, pútrido, sombrio e entupido de cipós e folhas mortas. Em
silêncio, ele se jogou por cima das madressilvas, os olhos líquidos e suaves
cravados em mim. Senti o fedor seco e fétido antes de Rook golpeá-lo com
a espada, reduzindo a fera a uma chuva barulhenta de galhos emaranhados
com ossos humanos. Um som baixo e musical se ergueu do ser quando
morreu, quase como o suspiro de uma mulher.
Então um coro de uivos preencheu a floresta. Tremi presa nos braços de
Rook. O lamento glacial era tão solitário, tão assombrosamente triste, que
era difícil de acreditar que aquelas vozes pertenciam a feras decididas a me
matar.
Em resposta aos uivos, Rook soltou um resmungo de desdém — senti a
vibração no peito. Ele embainhou a espada e me virou de frente.
— São mais de dez criaturas que nos atingirão de uma só vez. Não
temos como lutar. Precisamos fugir.
Era óbvio que a ideia de fugir à luta o irritava.
— Eu não posso…
— É, eu sei — disse ele com um olhar ilegível. — Afaste-se.
Um vendaval sacudiu as árvores, varrendo um turbilhão atordoante de
folhas pela floresta, até cobrir Rook como uma onda. Ele sumiu e, então,
um cavalo enorme resfolegou e bateu os cascos onde Rook estivera, me
encarando com olhos pálidos e desconcertantes. Era nitidamente ele, assim
como quando se transformava em corvo. A luzinha que flutuara por cima do
meu ombro revelou um toque avermelhado na pelagem preta. A cauda e a
crina eram longas, grossas e emaranhadas. O cavalo se ajoelhou ao meu
lado, sacudindo a cabeça, impaciente.
Eu estava prestes a quebrar outra regra da vida no reino Excêntrico.
Se um cachorro desconhecido lhe seguir no caminho de casa, não pare
para olhá-lo. Se ao acordar notar um gato que não reconhece no quintal, de
olho na casa, não abra a porta. E mais importante ainda: se encontrar um
lindo corcel próximo a um lago ou à beira da floresta, nunca, mas nunca
mesmo, tente montá-lo.
Como Emma diria: “Ah, o raio que o parta”.
Tirei o anel e o guardei no bolso. Por mais que quisesse me vingar de
Rook, obrigá-lo a voltar à forma normal bem a tempo de ser devorada por
cães não me parecia muito vantajoso. Criando coragem, respirei fundo e
montei o dorso largo, embolando minhas saias na altura das coxas e
enfiando as mãos na crina.
Ergueu-se num pulo, os músculos fortes se contorcendo sob a pelagem,
e saiu a galope, devorando o caminho. Mesmo agarrada a ele como se
minha vida dependesse disso — e a realidade era que dependia mesmo —,
eu mal me mantinha firme: era jogada para cima toda vez que os cascos
batiam no chão, e caía de volta sobre o cóccix com uma força tão violenta e
dolorida que meu traseiro estava ficando dormente. Quando se virava de
lado para desviar de uma árvore, eu escorregava perigosamente. Ele
respirava entre minhas pernas como o fole de um ferreiro, e a cada
movimento dos músculos grossos eu me lembrava de estar sentada em uma
criatura pelo menos dez vezes o meu tamanho. O chão estava muito
distante.
Decidi que não gostava de andar a cavalo.
Os uivos nos seguiram, chegando cada vez mais perto. Não demorei a
enxergar formas brancas e elegantes vindo dos dois lados da floresta. Os
dois cães mais próximos aceleraram, mudando o ângulo para nos
interceptar. Uma falha entre a copa das árvores deixou entrar um feixe de
luar e, quando as feras pularam por entre a luz, o pelo fantasmagórico deu
lugar às estruturas emaciadas e à pele de casca de árvore por baixo. No
espaço que deveria ser a boca deles, sugiram mandíbulas espinhosas e, onde
deveriam estar os olhos, tinham buracos vazios.
Rook bufou com força e se lançou para a frente, devorando a distância
entre nós e os cães. Eles se viraram, arreganhando os dentes, mas era tarde
demais — ele os triturou sob os cascos.
Senti um ar presunçoso no galope, nas orelhas pressionadas contra a
cabeça e na forma como olhava para os outros cães, aqueles que agora
deixávamos para trás, como se os desafiasse. Como dizem, quanto maior o
orgulho, maior a queda. Entramos numa clareira e Rook parou
abruptamente logo antes de colidir com a figura de pé no meio do espaço
aberto, bem à nossa frente.
Eu nunca tinha visto uma fada da corte do inverno. Elas não visitavam o
reino Excêntrico. Às vezes me perguntava como seria sua aparência sem
usar Ofício humano, nem mesmo roupas. E agora eu tinha minha resposta.
O ser era extraordinariamente alto, até mais do que Rook, e não usava
encanto algum. A pele, branca como osso, se esticava contra um rosto fino
e pontudo, cercado por uma coroa flutuante de cabelo igualmente branco.
Das feições, só retive uma impressão vaga, pois os olhos chamaram e
prenderam minha atenção. Eram do verde de jade, como pedras polidas, ao
mesmo tempo inescrutáveis e magnéticos, despertos pelo interesse
luminoso e cruel como o de um gato doméstico ao ver o rato morrer. Na
mesma hora eu soube que via uma criatura tão distante da humanidade que
não seria capaz de imitar nossos modos, nem mesmo se quisesse.
Dos pés ao pescoço, a fada vestia uma armadura preta de casca de
árvore que parecia ter crescido sobre seu corpo, coberta por estrias e
espirais do tempo, deixando só a cabeça exposta. O ser fez um gesto
travado de educação, mostrando as garras amareladas e compridas ao passar
a mão pelo peito. Rook sacudiu o focinho no que eu supunha servir como
uma reverência mal-humorada.
— Ah, Rook! — exclamou a criatura, sua voz aguda lembrando os
uivos fantasmagóricos dos cães. — Não sabia que você tinha companhia!
Que interessante. O que acha que devemos fazer?
Aqueles olhos horríveis se concentraram em mim e a fada sorriu, mas,
apesar do movimento da boca, o resto do rosto se manteve igual.
Rook bateu as patas no chão e empinou o tronco, me surpreendendo.
Ele levantou a cabeça bruscamente e eu só me mantive sentada porque
abracei seu pescoço. Senti a pulsação bater contra meus braços, o suor que
encharcava o pelo sedoso.
— Não se preocupe. Por hora não farei nada.
Meu cérebro paralisado notou, então, que ela, a criatura, era mulher, ou
pelo menos dava essa impressão.
— Parece que o jogo mudou, afinal — continuou a fada. — Precisamos
simplesmente determinar novas regras. Não seria de bom tom lutar até a
morte nesta clareira, não se você for atrapalhado por uma mortal. Olá —
acrescentou, inclinando-se de lado para me enxergar melhor.
O sorriso gracioso continuava ali, imóvel, esquecido como um chapéu
largado no cabide.
— Boa noite — retruquei, ciente de que, além de Rook, minha única
proteção era ser educada.
— Sou Hemlock, da corte do inverno.
Mais silenciosos do que o voo de uma coruja, cães entraram correndo
por todos os lados da clareira. Circulavam ao redor da fada, pressionando os
focinhos estreitos contra as mãos dela.
— Desde antes da árvore mais antiga desta floresta brotar sua raiz, eu
comando a Caça Bravia — continuou ela.
Eu estava imaginando coisas? Ou ouvia mesmo os cães cochichando
entre si — um murmúrio baixo que lembrava mulheres discutindo em vozes
ansiosas e sussurradas por trás de uma porta trancada?
Engoli em seco, tentando não pensar no que estava dentro deles.
— É um prazer conhecê-la. Eu me chamo Isobel. Eu… Eu sou uma
retratista.
— Não faço a menor ideia do que isso quer dizer — respondeu
Hemlock, sorrindo. — Então, Rook…
Rook dançou de lado e berrou, um relincho de gelar o sangue.
— Ah, não seja mal-educado! Não precisamos nos comportar assim só
porque estamos em guerra. Como eu estava prestes a dizer, antes da sua
interrupção, eu acho que, para equilibrar as chances, devemos lhe dar uma
certa vantagem. Você pode correr na frente e, se meus cães alcançarem você
de novo, então posso tentar destroçá-lo de verdade. O que você acha disso?
Rook esticou a cabeça para a frente e abocanhou o ar. Em pânico,
percebi que ele queria continuar ali. Virei o rosto, me aproximando da crina,
para que Hemlock não me visse quando sussurrei:
— Vá, por favor. Talvez você seja capaz de sobreviver a isso, mas eu
não, e, sem mim, você nunca será capaz de restaurar sua reputação.
A pele nos ombros dele estremeceu, como se afastasse uma mosca.
— Essas picuinhas de corte valem tanto assim?
Ele virou a cabeça. Um de seus olhos se concentrou em mim, e foi
horrível ver a inteligência estampada neles, uma inteligência que não devia
chegar nem perto da forma animal que ele vestia.
— Por favor — sussurrei.
Rook se sacudiu como se eu o tivesse chicoteado, e deu a volta em
Hemlock e seus cães, galopando pela escuridão além.
— Corra, Rook! — gritou Hemlock atrás de nós, um clamor estridente e
quase desesperado. — Estarei no seu encalço já, já! Corra o mais rápido que
puder!
Enrosquei meus punhos na crina comprida de Rook e arrisquei olhar
para trás. A armadura de Hemlock se misturava tão bem à floresta que eu só
vi o rosto pálido e medonho diminuir até ser escondido por galhos e folhas.
O berrante da Caça Bravia soou novamente. Lembrei que eu prestara
bastante atenção em Hemlock e não a tinha visto carregando berrante
nenhum.
Rook correu como o diabo fugindo da cruz. Concentrei-me em não cair,
ignorando a vista através da qual nos atirávamos. Por um tempo, tudo que
senti foi a vibração ritmada dos cascos, o calor em brasa emanando do
lombo de cavalo e os pedaços duros e ásperos de terra raspada que batiam
nas minhas pernas. E então alguma coisa colorida voou perto do meu rosto
e ficou presa no meu pescoço. A princípio, não reconheci que aquele
bocadinho amarelo era uma folha. Quando entendi, tudo mudou.
Ergui a cabeça e fiquei sem ar. Deslumbramento tomou conta de mim,
mais claro do que o alvorecer se derramando pelo horizonte, mais
atordoante do que uma taça de champanhe espumante.
Estávamos nas terras outonais.
Por mais escuro que estivesse, a floresta reluzia. Folhas douradas
esvoaçantes ardiam como centelhas escapando de um incêndio. Um tapete
escarlate se estendia à nossa frente, caudaloso e impecável como veludo.
Erguendo-se do chão da floresta, as raízes pretas e emaranhadas respiravam
uma névoa azulada que reduzia os troncos mais distantes a silhuetas
fantasmagóricas, mas não tocava os tons fulgurantes da folhagem. Musgo
vívido salpicava os galhos como cobre desbotado. O perfume acre e
verdejante de seiva de pinheiro permeava o ar fresco, sobre o cheiro
bolorento das folhas secas. Um nó embolou minha garganta. Eu não
conseguia parar de observar cada detalhe. Eram muitos, e tudo passava
muito rápido. Nunca seria capaz de assimilar tudo — precisava absorver
cada folha, cada lasca de tronco, cada pedacinho de musgo. Segurei com
ainda mais força a crina de Rook, desesperada pelo meu cavalete, pelo meu
pincel. Endireitando as costas, deixei o vento me percorrer, encher meu
peito até explodir. E ainda não era o suficiente. Depois de dezessete anos
em um mundo onde nada mudava, senti que arrancara um suéter de lã
sufocante e sentira a brisa na pele pela primeira vez. Nunca mais me
contentaria com apenas aquilo.
Quando Rook acalmou as trotadas, a ausência do vento puxando minhas
roupas e do som e do ritmo do galope enérgico me deixou estranhamente
desolada. Estava tonta, o sangue vibrava em minhas veias. Todo som
parecia abafado depois da corrida desembestada — os cascos mal
perturbavam o chão macio da floresta; vapor escapava de suas narinas em
perfeito silêncio. Por fim, ajoelhou-se no meio de uma clareira. Desci,
escorregando, minhas pernas tão fracas que tremiam, e girei em um círculo
lento e cambaleante.
Não soava berrante à distância, o ar enevoado não era incomodado
pelos uivos caninos. Ali não zumbiam gafanhotos — só se ouvia a música
dos grilos, o chilrear líquido das rãs, o estalar das bolotas caindo dos
carvalhos. Nenhum corvo se aninhou perto de mim. O perigo se fora.
Portanto, quando acabei minha volta, congelei ao ver Rook de volta à
forma normal, de pé, empunhando a espada.
Meus pensamentos congelaram também quando ele voltou a lâmina
para si.
Seis

Eu não protestei. Não gritei. Fosse lá o que ele estivesse fazendo, eu não
queria nem podia impedir.
Não parecia cansado nem desarrumado ao se ajoelhar, a manga direita
arregaçada até o cotovelo, a espada deitada contra a mão. Um cacho de
cabelo úmido grudado na testa era o único traço da nossa fuga imprudente,
do suor que antes encharcava seu pescoço e seus ombros. Com calma,
olhou para o lado e puxou a lâmina contra a palma em um corte rápido e
fundo. Sangue respingou no musgo ao chão. Era mais claro que sangue
humano, mais espesso também, como se fosse misturado com seiva de
árvore.
Quando o choque passou, entendi que Rook estava mexendo com magia
feérica. Não importava o que fosse, eu esperava que doesse. Talvez até que
o enfraquecesse de alguma forma conveniente para mim.
— Você disse que só há duas fadas tão poderosas quanto você — falei,
fazendo uma reverência para chamar a atenção dele. — Achei que estivesse
falando dos regentes das cortes da primavera e do inverno. Mas uma delas é
Hemlock?
Rook limpou a mão no musgo, se curvou em uma reverência fluida
sobre o joelho e se levantou. O corte havia sumido — mas não tinha como
saber se estava mesmo curado ou se apenas disfarçado pelo encanto. A
segunda opção me pareceria possível, uma escolha por orgulho.
— Todos temos talentos diferentes, alguns mais do que outros. Posso
mudar de forma e, como príncipe, comando o poder da minha estação.
Hemlock é conhecida por sua destreza na batalha, mas não é a senhora do
inverno. Talvez, se minha magia se exaurisse ou se eu optasse por não a
usar, eu pudesse enfrentá-la como igual no combate físico.
Ele retorceu a boca e eu me perguntei com quanta frequência Rook
desejava ser capaz de mentir.
— Então as feras fadas dela devem ser perigosas para você —
considerei, sentindo uma oportunidade de aprender mais sobre suas
fraquezas. — Talvez não sejam se atacarem uma ou duas por vez, mas ali a
matilha inteira estava lutando ao lado dela.
Ele embainhou a espada em um gesto violento e se aproximou de mim,
parando a poucos centímetros de distância. Olhou para baixo e eu senti sua
respiração no meu rosto, virado para cima. Meu coração acelerou. Ele
estava um pouco agitado, afinal.
— São perigosas para você, mortal, não para mim. Você viu como lutei
contra o baronete. Quantas vezes preciso lembrá-la de que eu sou um
príncipe?
— Eu sei! — respondi, sem sequer me mover um milímetro. — Não é
como se você deixasse eu esquecer.
Ele endireitou os ombros e arreganhou os dentes como se eu o tivesse
estapeado.
Eu me contive, resistindo à tentação de pegar meu anel.
— Só não estou entendendo nada disso. Feras fadas, o conflito entre
suas cortes e por que raios a Caça Bravia está atrás de você há séculos se
Hemlock sabe que não vai vencer. Suponho que seja complexo demais para
meu pobre cérebro de mortal.
Rook relaxou. Não registrou meu sarcasmo, o que me irritou.
— Hemlock é a Caçadora — respondeu. — Ela obedece ao chamado da
corte do inverno, que está sempre tentando espalhar o gelo pelas terras
outonais.
— O berrante — murmurei. — Ele comanda Hemlock. Ela não tem
escolha.
Ele assentiu.
— Para ela, a Caça é tudo. É seu único propósito. Ela vai caçar até o dia
de sua morte e só então vai deixar de caçar.
Vento atravessou as árvores, espalhando folhas como se fossem chuva
por toda a clareira. Pensei no rosto horrendo de Hemlock sumindo no
escuro, em como gritara para corrermos. Um calafrio me percorreu. O
frescor do ar outonal finalmente me atingindo.
Ou não era nada disso? O tremor continuou sem parar, sacudindo o chão
sob meus pés, e eu comecei a questionar se o que sentia era mesmo um
calafrio. Tropecei para trás, mas não havia como escapar do estranho
terremoto que se seguiu. De onde Rook derramara sangue, começou a
avançar uma onda de musgo salpicada de florezinhas azuis menores que a
ponta do meu mindinho, se desenrolando sobre a clareira, espumando até os
troncos… e minhas pernas. Gritando, soltei minhas botas, espalhando
pedaços de musgo e sacudindo minhas saias com vigor.
— Vire-se — disse Rook, distante, me olhando de canto de olho.
Por um momento adotara o tom antigo, como se ainda fossemos amigos
no meu estúdio, e parecia adequado corrigi-lo.
No entanto, eu me virei, incapaz de me conter. As árvores da clareira
cresciam, se esticando cada vez mais altas, seus galhos se espalhando lá em
cima. Na parte em que se encontraram no centro, enredaram-se sob o céu
reluzente da noite. Mudinhas menores surgiram do musgo entre as árvores
maiores para fechar os intervalos, brotando folhas novas e trêmulas já
resplandecentes, das cores do outono. Tudo isso aconteceu de maneira
silenciosa, exceto por alguns rangidos, grunhidos e estalos abafados da
madeira em expansão.
Foi como se eu tivesse visto a clareira envelhecer um século inteiro em
questão de segundos. No entanto, nenhuma clareira envelheceria assim por
conta própria. Estava num espaço aberto, com árvores se espalhando ao
redor e acima de mim como uma catedral. Os galhos estavam tão
entrelaçados que pareciam contrafortes voadores; nenhuma fabricação
humana seria capaz de capturar a majestade e o assombro daquela vigorosa
antessala. Olhar para cima me deixou tonta. Dos galhos ao alto, folhas
escarlates desciam flutuantes e silenciosas, cruzando feixes de luar.
Dei meia-volta.
— Seu sangue fez isso.
Rook me observava, um tumulto conflituoso de emoções passava por
seus olhos: fascínio por observar minha reação humana. Esperança de que
eu achasse sua criação bela. E, por baixo disso tudo, havia tristeza, tão viva
quanto uma ferida aberta.
Desespero tomou suas feições. Ele tentou se recompor, mas não
conseguiu. Por fim, deu meia-volta e ficou de costas para mim, o casaco
longo esvoaçando, então desembainhou alguns centímetros de espada e
fingiu inspecionar a lâmina.
— Você estará em segurança aqui — disse ele em tom solene. — A
Caça não será capaz de nos farejar em uma clareira de sorva e, mesmo que
Hemlock encontrasse o lugar por acidente, nenhuma fera fada nem
nenhuma fada viva seria capaz de romper a magia que teci.
Saber que estava contando a verdade nua e crua, sem adornos, me
deixou sem fôlego. Ele era arrogante, quase insuportável, mas, meu deus,
seu poder era inacreditável. Ainda assim, ali estava, tão confuso quanto
uma criança frente às próprias emoções, me arrastando a julgamento por
causa de uma pintura. Eu não conseguia aceitar que ainda de manhã
acreditei estar apaixonada por ele. Sacudi a cabeça. Incrível.
— Tem dez mil anos, mas parece ter cinco — murmurei, testando o
chão com os pés.
— O que você disse? — perguntou Rook, com frieza.
Óbvio que fadas tinham a audição impecável.
— Nada, não.
— Você disse alguma coisa, sim, mas certamente não me interessa —
respondeu ele, embainhando a espada de uma vez. — Agora, deite-se e
descanse. Continuaremos ao raiar do sol.
Por mais que detestasse obedecer, não valeria a pena ficar acordada por
pura teimosia. Vaguei pela clareira até encontrar um montinho no musgo
em que poderia me encostar — parecia uma tora cortada e engolida pela
terra. E me enrosquei de lado, virada para Rook, que continuou de pé, de
costas para mim. Pus o anel de volta no dedo, grata por ter pelo menos
alguma proteção, mesmo que fosse mínima. No entanto, outro problema me
encarou. Eu não fazia ideia de como ia conseguir dormir.
Emma e as gêmeas provavelmente não tinham notado minha ausência.
Notariam de manhã ao ver minha cama vazia. O que Emma faria? Ela
abrira mão de tudo para me criar. Prometera ao meu pai, em seu leito de
morte, que cuidaria de mim. Agora eu sumira no meio da noite, sem deixar
recado. A não ser que eu tivesse muita sorte e fosse muito esperta —
precisava ser honesta quanto às chances —, ela nunca saberia o que
acontecera. Ficaria esperando por mim para sempre. Era cruel demais, eu
não aguentava nem pensar.
Ela tinha galinhas enfeitiçadas para botar seis ovos por semana, lembrei.
Uma pilha de lenha magicamente aparecia na porta de casa mês sim, mês
não. Outra fada entregava um ganso gordo a cada quinzena; e,
estranhamente, devido a um acordo mal formulado, um monte de
exatamente 57 nozes se materializava sempre que um tordo cantava no
carvalho. As gêmeas dariam trabalho, mas ficaria tudo bem. Não ficaria?
A vários passos de mim, Rook finalmente sentara, elegante, com um
braço apoiado no joelho. Talvez soubesse que estava sendo observado e, por
isso, se arrumara na pose mais bonita. Não… Achava que eu estava
dormindo. Eu sabia que era o caso, porque ele tirara o broche de corvo e o
revirava entre os dedos. Atrás, as folhas escarlates continuavam a cair ao
luar, como pétalas de rosa iluminadas por um vitral prateado.
Devastada, me perguntei se Emma acharia que eu fugira com Rook de
propósito. Meras horas antes, ela provara me conhecer bem. Se fosse o
caso, saberia que, por mais que eu desconfiasse das fadas, queria rever
Rook mais do que qualquer outra coisa no mundo. Talvez ela se torturasse
com a possibilidade de que suas palavras arrependidas tinham me
encorajado a fugir. Que eu decidira que cuidar da família era mesmo um
fardo e a abandonara com as gêmeas sem nem ao menos me despedir.
Pensei, então, que minha imaginação estava conjurando cenas cada vez
mais irreais e dramáticas, mas, afundada até o pescoço em tristeza, eu era
incapaz de bloqueá-las. Pensei em Emma tomando extrato demais e tendo
um colapso. Pensei nas gêmeas revirando meu quarto em busca de pistas e
encontrando no armário os desenhos que fiz de Rook. Uma lágrima quente
escorreu pelo meu rosto. Respirei pela boca para que ele não me ouvisse
fungar com o nariz entupido. Enfim, chorei até me exaurir. Meus cílios
pesaram, minha visão se embaçou. Nem percebi quando finalmente peguei
no sono.
····
Quando acordei, tudo estava dourado. A luz que acariciava meu rosto era
dourada, e o calor também. Sentia-me suspensa em mel, ou âmbar. Uma
fragrância outonal me cercava, me envolvia, pontuada por um cheiro feroz e
masculino, mas não exatamente humano, que me reconfortava e ao mesmo
tempo pesava como ouro derretido no fundo do meu corpo, escorrendo por
um cadinho.
Além disso, alguém estava penteando meu cabelo com as mãos.
— Para com isso! — gritei, pulando de susto.
O casaco de Rook caiu dos meus ombros e eu olhei ao redor até
encontrá-lo atrás de mim, sorrindo com satisfação.
— O que você pensa que está fazendo? — perguntei.
— Tem uns gravetos presos no seu cabelo — respondeu ele, estendendo
a mão de novo.
Interceptei o braço dele com a mão que usava o anel, ou pelo menos
tentei, pois ele deu um pulo para longe, me olhando feio, antes que eu
conseguisse.
— Rook — falei, tentando manter a voz firme —, antes de eu me
levantar, você precisa prometer que nunca mais me tocará sem permissão.
— Posso tocar quem eu quiser.
— Você já parou para pensar que você poder fazer alguma coisa não
significa que deveria fazê-la?
Ele apertou os olhos.
— Não — respondeu.
— Bom, isso entra nessa categoria. — Eu vi que ele não entendera. —
Entre humanos, não é considerado educado — acrescentei, insistente.
Um músculo saltou em seu rosto, seu sorriso sumindo.
— Ora, isso não parece nem um pouco razoável. E se você estiver sendo
atacada e eu precisar tocá-la para salvar sua vida, mas não puder porque
primeiro precisaria pedir sua permissão? Deixar que você morra não seria
educado.
— Tá. Você pode me tocar nesse caso, mas em todos os outros precisa
pedir.
— E por que você acha que aceitarei suas regras mortais absurdas?
Irritado, puxou o casaco de mim e se cobriu sem nem enfiar os braços
nas mangas.
— Porque posso fazer da sua vida um inferno durante todo o caminho
até a corte do outono, e você sabe disso — respondi.
Rook saiu andando pela clareira. Senti que ele precisava dar um
chilique antes de aceitar. Como previsto, logo voltou, sua expressão
tempestuosa e a terra mudando ao seu redor. O musgo apodreceu e ficou
marrom enquanto espinheiros pontudos irromperam sob seus pés,
esticando-se como mãos até formarem um emaranhado monstruoso da
altura da minha cintura. Não esperava nada tão dramático: os espinhos eram
do comprimento dos meus dedos, tão afiados que cintilavam na luz da
manhã. Todos os meus instintos gritavam para que me levantasse e corresse
antes que me alcançassem. No entanto, sabendo que era aquela a reação que
Rook desejava, continuei sentada ali.
Os espinheiros se espalharam ao redor do meu corpo, aproximando para
perto das minhas roupas galhos retorcidos e trêmulos. Os espinhos se
esfregavam, ruidosos, em ameaça. Eu os olhei com severidade. Sabia
reconhecer um blefe. Por fim, os espinhos recuaram, com certa petulância, e
pararam de se mover. Rook estava de pé, me olhando de cima com a boca
pálida, envolto no mar de espinhos em estado de extrema ofensa, a prova
final de que eu havia vencido.
— E então? — perguntei.
— Dou-lhe minha palavra de que nunca a tocarei sem permissão, a não
ser que precise poupá-la de perigo — declarou.
Pelo menos falara no seu tom régio, sem sinal da petulância que eu
esperava.
Suspirei, aliviada.
— Obrigada, Rook.
— Não há de quê — respondeu, automaticamente, franzindo a testa.
Era como as reverências; ele precisava responder a fórmulas básicas de
educação, independente de se queria ou não. Para se recuperar da afronta,
esticou o braço para o lado em um gesto teatral. Duas das árvores
levantaram as raízes e se arrastaram para o lado, de forma apressada e
ansiosa, como uma dupla de matronas chocadas contra as quais ele
arremessara uma bola de bilhar. Os troncos dobrados formavam uma
passagem para a floresta.
— Vamos andando, então.
Ele se dirigiu à passagem. Uma raiz restante se esgueirou, solícita, para
longe do caminho.
— Não só espero que suas perninhas mortais cubram uma distância
decepcionante — continuou —, como já estamos uma hora atrasados.
“E a culpa é de quem?”, pensei.
Entretanto, quebrando os espinheiros atrás dele, que se desintegravam
ao mais delicado toque, olhei de relance para a pilha organizada de gravetos
e folhas que ele tirara do meu cabelo — e, a contragosto, sorri.
····
Passamos por bétulas finas e de casca branca, cujas folhas amarelas tiniam e
cintilavam como moedas de ouro por conta da brisa. Passamos por riachos
pedregosos serpenteando entre montinhos de musgo, a água, por causa da
neve derretida, era da cor do leite. Passamos também por freixos que
tinham perdido metade das folhas de uma só vez, todas amontoadas nas
raízes como uma anágua caída aos pés de uma moça. Um veado e uma
corça pararam para nos observar quando passamos antes de saírem
saltitando pela névoa iluminada, projetando sombras no ar como uma tela
de papel.
O primeiro marco desagradável que encontramos foi um carvalho
fendido. Tinha sido atingido por um raio muito tempo antes, e partes do
tronco estavam carbonizadas e pretas, a casca elevada e cintilante por causa
das gotas de seiva endurecida. Algumas folhas marrons ainda se agarravam
aos galhos mais baixos. Rook foi examiná-lo. Parecia deslocado entre as
bétulas, à espreita, maléfico. Uma pontada de desconforto me avisou para
ficar distante.
— É uma entrada de caminho das fadas? — perguntei, andando em
paralelo à árvore.
Ele me olhou de relance e continuou a caminhar.
— É, sim. Mas não vamos naquela direção.
— Não pode levar humanos por ela?
— Ah, podemos, sim. Só não acho que seja recomendável.
Aquilo podia querer dizer qualquer coisa. Talvez o esforço exigira
muito poder, ou talvez alertaria as fadas erradas sobre nossa presença. Ele
não parecia aberto a mais perguntas e eu não via como saber mais sobre
aquilo ia me ajudar, então não insisti.
O meio-dia chegou e se foi. O sol brilhava entre as folhas, salpicando o
chão em padrões pontilhados que eu teria achado fascinantes se não
estivesse tão preocupada com meu incômodo crescente. Minhas coxas e
nádegas doíam por conta da cavalgada do dia anterior. Estava imunda; tinha
lama nas pernas e minhas saias estavam duras de tanto carrapicho e suor de
cavalo. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que fedia horrivelmente. Além
disso, meu deus, como estava faminta.
Rook, por outro lado, estava idêntico a quando fora me buscar na noite
anterior. As botas reluziam e o casaco não era marcado por um vinco
sequer. A única coisa fora do lugar era seu cabelo, mas isso não contava,
pois era sempre assim.
Chegamos a um aterro que descia em desfiladeiro. Rook desceu
graciosamente, enquanto eu escorregava e tropeçava pelas folhas
amontoadas até finalmente considerar a possibilidade de desistir e deslizar
sentada até lá embaixo. Quando olhei para o chão, franzindo a testa, a mão
de Rook apareceu no meu campo de visão. Não queria ajuda, mas era
melhor do que me fazer de desentendida, então levei meus dedos aos dele.
Desde que eu iniciasse o gesto, parecíamos capazes de nos tocar sem
precisarmos conversar.
A pele era fresca e a mão me segurava com surpreendente leveza. Ele
me ajudou a descer e, em seguida, a subir pelo outro lado como se eu não
pesasse mais do que uma pluma. Meu estômago roncou quando chegamos
lá em cima. Para minha infelicidade, não foi um ronco normal: minhas
entranhas invocaram um rugido violento, seguido de vários gemidos longos
e arrastados.
Rook se sobressaltou, assustado. Mas acabou entendendo minha
condição e sorriu. O que era interessante — pois a maioria das fadas não
entendia o conceito de fome humana, não de verdade. Mais cedo, ele falara
como se já tivesse tentado levar humanos pelo caminho das fadas. Será que
já viajara com humanos antes?
Honestamente, eu devia ter suspeitado antes. Ele carregava tristeza
humana nos olhos, afinal, e só teria uma forma de tê-la aprendido.
— Não como nada desde o jantar de ontem — falei quando meu
estômago finalmente se calou. — Não sei se aguento ficar muito mais
tempo sem comer.
— Só ontem?
— Eu te garanto que a maioria dos seres humanos não está acostumada
a passar um dia inteiro sem comer.
Ele continuava profundamente cético, então acrescentei, inabalável:
— Estou me sentindo bem mal. Na verdade, não aguento dar nem mais
um passo. Se eu não comer logo, posso morrer.
Ele ficou praticamente de cabelos em pé. Eu quase me senti culpada.
— Fique aqui — falou, com urgência, e desapareceu.
As folhas onde estivera se revolveram em redemoinho como se levadas
pelo vento.
Olhei ao redor. Meu estômago deu um pulo e minha boca ficou seca. A
mata esparsa e musguenta me permitia ver bem longe. Não notei nenhuma
silhueta alta, nenhum corvo voando pela floresta. Rook parecia mesmo ter
ido embora.
“Corra”, pensei. No entanto, tentar obrigar meus pés a se moverem era
como ter quatro anos de novo, hesitante na beira da cama da minha mãe
depois de um pesadelo, incapaz de falar uma palavra para acordá-la. A
floresta também dormia. Quão facilmente eu chamaria sua atenção? E será
que eu estava mesmo preparada para aquele pesadelo?
No fim, eu não deveria nem me preocupar com suposições. Um baque
soou nas folhas atrás de mim e, quando me virei, encontrei Rook e, a seus
pés, uma lebre morta.
— Pronto — falou quando eu não me movi, olhando de mim para o
animal.
Eu me aproximei e peguei a lebre pela pele do pescoço. Ainda estava
quente, os olhinhos pretos e brilhantes abertos.
— Hm — falei.
— Tem alguma coisa errada?
A expressão dele se tornou resguardada.
Eu estava faminta. Dolorida. Apavorada. E mesmo assim, olhando para
Rook, imaginei um gato orgulhoso ao trazer esquilos mortos para seu dono,
só para ver o idiota de duas pernas pegar os presentes inestimáveis pelo
rabo e jogá-los no mato sem cerimônia. Antes que pudesse me conter, caí na
gargalhada.
Rook hesitou, dividido entre desconforto e raiva.
— O que foi? — perguntou.
Caí de joelhos, ofegando por ar, a lebre em meu colo.
— Pare com isso.
Rook olhou para os lados, preocupado que alguém o visse tendo
dificuldade de administrar sua humana. Eu ri ainda mais alto.
— Isobel, você precisa se controlar.
Ele podia até ter viajado com humanos, mas certamente não chegara a
comer conosco.
— Rook! — Quase solucei seu nome. — Não posso comer uma lebre
nesse estado!
— Não vejo por que não.
— É que… Ela precisa ser cozida!
Por um instante, antes de fechar a carranca como se batesse uma porta,
ele foi tomado por horror e confusão.
— Quer dizer que não pode comer nada sem primeiro usar o Ofício?
Respirei fundo, trêmula, tentando me acalmar, mas sabia que voltaria a
rir a menor provocação.
— Podemos comer frutas, sim, assim como a maioria das castanhas e
dos vegetais. Mas o resto, não.
— Como pode uma coisa dessas — disse ele, baixinho.
Só precisei daquilo; solucei, rindo. Ele se agachou e analisou meu rosto,
que naquele momento certamente não era nada atraente.
— Do que você precisa? — perguntou.
— Para começar, fogo. Suponho que uns… Uns galhos para usar de
espeto. Podemos assá-la inteira, mas também podemos cortar em
pedacinhos, que tal? Nunca preparei uma lebre fora da cozinha.
Eu podia estar recitando um feitiço que daria na mesma.
— Lenha — corrigi-me para ele. — Gravetos mais ou menos deste
tamanho — continuei, mostrando com as mãos —, além de uma vara
comprida, fina, firme e pontuda.
— Muito bem — disse ele, levantando-se. — Trarei a madeira.
— Espere aí — falei, antes que ele pudesse sumir.
Ergui a lebre. Ele pareceu tenso.
— Pode esfolar para mim? Sabe, tirar o pelo? Também precisa cortar
em pedaços. Não posso fazer nada disso sem faca.
— Como você é mortal — disse ele, com desdém, e pegou a lebre das
minhas mãos.
— Ah, e tire as tripas, por favor — acrescentei, perseverando.
Ele parou logo antes de desaparecer, os ombros duros.
— É só isso?
Uma parte diabólica de mim imaginou o quanto poderia continuar com
as exigências. Se fingisse ser necessário para meu Ofício, será que poderia
mandá-lo plantar bananeira ou dar três voltinhas enquanto preparava a
lebre? Porém, as exigências cada vez mais urgentes do meu estômago me
impediam de rir mais às custas dele.
— Por enquanto — respondi.
Menos de vinte minutos depois estávamos sentados na frente de uma
fogueira pouco fumegante, que parecera inútil até Rook, exausto de me ver
esfregar gravetos, acendeu a lenha com um simples gesto de dedos
compridos. Ele olhava impaciente para o sol enquanto eu virava uma coxa
sobre as chamas (pelo menos era o que eu achava que fosse —
aparentemente fadas não eram açougueiros cuidadosos). Gordura pingou da
carne, sibilando ao cair na madeira em brasa. Fiquei com água na boca e
tentei não pensar que, em circunstâncias melhores, eu acharia o cheiro
nojento, em vez de apetitoso. Não sabia que uma lebre poderia ter aquele
cheiro. No entanto, desde que eu continuasse queimando a carne sem
querer, provavelmente não me deixaria doente.
Rook suspirou dramaticamente pela sétima vez enquanto me esperava
acabar. Eu estava contando.
— Tente você, então, se está tão entediado — falei, oferecendo o espeto.
Ele o pegou entre o polegar e o indicador. Depois de examinar a carne,
virando-a de um lado ao outro, a abaixou ao fogo sem pensar.
Do nada, algo nele mudou. A princípio achei que ele tivesse visto
alguma coisa horrível atrás de mim na floresta, e me virei, arrepiada. Não
tinha nada ali. Mas ainda assim mantinha aquela expressão: olhos
arregalados e chocados, feições completamente paralisadas, como se tivesse
recebido a notícia da morte de alguém, ou podia ele próprio estar morrendo.
Era terrível de tal forma que eu não saberia descrever. Pintei mil rostos sem
nunca ver uma expressão como aquela.
O que estava acontecendo? Procurei resposta até entender: Ofício.
Podíamos transmutar substâncias com a facilidade com que respirávamos,
mas, para as fadas, tais criações não existiam. Era tão contrário à natureza
delas que tinha o poder de destruí-las. Para minha surpresa, até um ato tão
simples quanto assar uma lebre na fogueira parecia ser considerado Ofício
pela força que governava a espécie.
Um ou dois segundos depois, o encanto de Rook começou a descascar
como tinta velha, revelando sua verdadeira forma, mas não como eu a
lembrava. Sua pele estava ressecada e cinzenta. Os olhos, perdendo vida.
Era como se eu visse suas luzes se apagarem, uma a uma, a cada batimento
do coração.
Eu sabia que, se não fizesse alguma coisa, ele se esvairia num instante.
Eu estaria livre. Poderia fugir… Ou pelo menos tentar. No entanto,
pensei na catedral da floresta, nas folhas escarlates esvoaçando em silêncio.
No olhar que eu vira quando ele se transformara em corvo no meu estúdio.
No cheiro de mudança do ar feroz, na forma como me deixara virar seu
rosto, nos seus olhos entristecidos. Todas aquelas maravilhas se
desintegrando, sem deixar rastros no mundo.
Curvei-me por cima do fogo e arranquei o espeto de sua mão.
Sete

Rook gritou quando tirei o espeto de sua mão — um som agudo e


assombroso de angústia, de dor e perda, tudo ao mesmo tempo. A cor
voltou a ele, e o encanto logo em seguida, apesar de ainda estar caindo para
o lado e precisar se segurar antes de ir ao chão.
— Isobel — falou, rouco e incerto, me olhando.
Minha voz soou distante, arrastada pelo sangue pulsando em meus
ouvidos.
— Era Ofício. Cozinhar. Quando ofereci a você, eu não sabia. Não fazia
ideia.
A atenção dele voltou ao espeto que eu segurava, um pedaço de madeira
com um pedaço de carne de coelho queimando na ponta. Estávamos
igualmente incrédulos. Parecia impossível que algo tão comum pudesse lhe
ferir.
— É melhor… Temos de ir.
Ele estava tão perturbado que quase soou humano. Levantou-se aos
tropeços e virou de um lado para o outro, com dificuldade para se localizar.
— Não avançamos o suficiente, ainda falta muito… Você comeu?
Ainda está com fome?
— Posso comer enquanto ando — falei em voz baixa, surpresa por vê-lo
reduzido àquilo.
Pela educação que recebera de Emma, reconheci os sintomas de choque.
— Não vai morrer? — perguntou.
Sacudi a cabeça. Rir às custas dele já não parecia tão divertido assim.
— Que bom.
Ele levou a mão à espada, talvez em busca da solidez reconfortante. Em
seguida, bateu nos bolsos com preocupação até encontrar o broche de corvo
no peito e apertá-lo.
— Neste caso… — começou, mas se interrompeu, dando meia-volta
abruptamente, todos os músculos tensionados.
A princípio achei que ele tinha enlouquecido. Até que também escutei:
um som agudo e surreal à distância. Uivos.
— Acho que era questão de tempo até a Caça Bravia nos encontrar —
falei, razoável, de repente com a sensação profunda de que alguém deveria
se comportar de modo sensato e tranquilizador, mesmo que esse alguém,
infelizmente, fosse eu. — Parece que pelo menos estamos com uma boa
vantagem.
— Não, não era questão de tempo. Adentramos uma boa parte do meu
terreno, do meu reino. Hemlock não deveria ser capaz de nos rastrear a
tamanha distância, com tanta facilidade.
— Talvez a diferença seja minha companhia. Você deve ter notado que
eu tenho um certo, hm, fedor.
Ele mal me olhou, ignorando a oportunidade perfeita para criticar minha
mortalidade. Quanto mais tempo Rook passava assustado, mais apreensiva
eu ficava. Ele não via a Caça Bravia como uma ameaça significativa. Seria
só a experiência recente de se aproximar à morte que o fazia agir assim, ou
outra coisa… Alguma coisa que eu desconhecia?
Voltando a si, soltou o broche de corvo como se o queimasse.
— Precisamos sair das terras outonais antes do anoitecer.
Tendo dito isso, escolheu uma direção e andou.
Peguei tudo que consegui carregar da carne assada, correndo até ele
pelas folhas que cobriam meus pés.
— Espere! Sair das terras outonais? Como assim? Achei que
estivéssemos a caminho da corte do outono.
— Estamos. Só vamos mudar um pouco nossa rota.
— Posso perguntar por onde vamos, então?
— Pelo lugar onde o poder de Hemlock enfraquece, o mais distante da
corte do inverno. Será difícil, quiçá impossível, que ela nos encontre nas
terras estivais.
····
A paisagem mudou gradualmente. O sol afundou atrás das colinas,
projetando sombras retas e compridas atrás das árvores e saturando tudo na
luz castanho-avermelhada. Carvalhos, olmos e amieiros de troncos mais
grossos tomavam o lugar das bétulas e dos freixos esguios. Um ar
melancólico permeava aquela parte da floresta: as folhas eram marrons ou
de um vermelho enferrujado e opaco, e fungo salpicava as raízes e se
espalhava pelos troncos, de aspecto amarelado e carnudo. Por curiosidade,
pousei a mão sobre a casca ao lado de uma das colônias de cogumelos, mas
a casca se soltou. A madeira exposta era pálida e esponjosa, e piolhos-da-
madeira saíram correndo pelos buraquinhos.
Larguei a casca, que estourou podre no chão, e corri para alcançar
Rook, que já tinha se afastado em vários passos.
— Devemos chegar às terras estivais daqui a pouco, não? — perguntei,
para puxar assunto.
O silêncio ali pesava fisicamente. Eu não conseguia evitar a impressão
de que alguém estava à escuta, e a sensação aumentava conforme nos
mantínhamos quietos.
— Nós estamos nas terras estivais. Já faz um tempo.
— Mas as árvores…
— Não são do outono — respondeu Rook, olhos estreitos e mandíbula
dura de tensão. — Não, essas árvores estão morrendo. Ouvi… sussurros
dizendo que, em algumas áreas, as terras estivais têm estado… estranhas.
Não tive a oportunidade de ver a praga com meus próprios olhos antes.
Confesso que é pior do que eu imaginava.
— A floresta certamente pode ser curada. Eu te vi erguer uma clareira
inteira com poucas gotas de sangue.
— Aqui, só uma pessoa tem esse poder — respondeu ele, seu olhar em
mim, o aviso nas profundidades de ametista tão visível quanto uma lâmina
de aço exposto. — E ele usa o sangue vital como bem quiser.
As árvores se tornaram maiores e mais afastadas. As raízes nodosas e
inchadas no caminho me lembravam de veias adoecidas. Pedras imensas
emergiam do chão de vez em quando, mais altas do que eu e cobertas por
mantos de musgo e hera vermelho-sangue. A luz do sol do entardecer
produziu um último lampejo dourado reluzindo sobre as folhas mortas, e
sob aquela luz eu vi um rosto me encarar da pedra seguinte pela qual
passamos.
Parei. Meu sangue congelou.
Não era um rosto de verdade. Estava entalhado na pedra. No entanto, o
realismo era tamanho que meu cérebro o interpretou como vivo antes de a
lógica me alcançar. Salpicado de musgo, com uma barba de cipó, o rosto
sério era ao mesmo tempo antigo e pensativo, olhos fechados afundados em
teias de rugas. Uma coroa de chifres entrelaçados descansava na testa
impiedosa. Naquele momento, parecia que eu estava olhando para um rei
moribundo em seu leito de morte, um soberano cuja consciência cruel e
austera ruminava sobre todas as atrocidades da longa vida, sem remorso
algum. Mas, não, eu soube instantaneamente que minha impressão estava
enganada. Aquele rei não conhecia a morte. Dormia, talvez, mas não
morria. Nunca morreria.
Olhei ao redor e encontrei o mesmo rosto em toda pedra. Sem sombra
de dúvida os entalhes eram Ofício. A entrada de humanos na floresta era
proibida havia milhares de anos. Não imaginava a idade daquelas obras,
nem o que levara as pessoas daquela era esquecida a entalhar, de novo e de
novo, a aparência terrível do Rei do Amieiro.
“O Rei do Amieiro.”
As folhas, imóveis e murchas desde a nossa chegada, se agitaram na
brisa quente e abafada.
“O Rei do Amieiro”, meus pensamentos traidores sussurraram de novo,
nomeando o medo impronunciável que me atacava de todas as direções. “O
Rei do Amieiro.” Agora que começara era impossível parar.
— Isobel.
Rook saiu de um matagal, afastando os galhos de um arbusto de
espinheiro. Eu nem notara que ele tinha se afastado. Estendeu a mão para
segurar meu ombro, mas parou o gesto logo antes de tocar meu vestido.
— Temos que ir — falou. — Agora.
— Eu não queria…
O matagal chamou minha atenção e o que vi ali me calou. Além da sebe
natural de espinheiros, encontrava-se uma clareira com mais pedras
entalhadas, dispostas em círculo. No centro, um montículo se erguia do
chão. Devia ter uns cinco metros de comprimento, metade disso de largura,
e o ponto mais alto ficava acima das pedras. Um monte tumular. Mas o
perigo ao qual Rook se referia era outro.
Um farfalhar de asas ressoou pelo ar parado. Uma ave crocitou, e então
mais outra. Olhando para cima, avistei uma revoada inteira de corvos de
olhos brilhantes que se amontoava nas árvores acima de nós, observando,
esperando.
Uma dúzia de corvos para a morte. Mas o que significavam dezenas…
centenas… a mais?
— Você pensou no nome dele — disse Rook, depois de hesitar. — E
você ainda está fazendo isso.
Arrastei minha atenção de volta a ele; sabia que o pavor tomava cada
centímetro do meu rosto.
Não parecia estar com raiva. Sua expressão era neutra, uma camada de
gelo sob a qual jorravam correntezas violentas em segredo. Queria que ele
estivesse com raiva, porque aquilo era pior. Significava que o que estava
prestes a acontecer era tão horrível que ele nem podia perder tempo com
sentimentos.
— Prepare-se para cavalgar — disse ele, dando um passo para trás.
Assim como acontecera da última vez, uma rajada de vento atravessou
as árvores, carregando um redemoinho de folhas. Preparei-me para sua
forma mudar de imediato. No entanto, dessa vez o vento morreu ao se
aproximar e as folhas caíram, inúteis, pelos últimos metros, espalhadas ao
redor das botas de Rook, que fez uma careta. Empertigou-se e logo outro
vento, mais forte, rugiu nas profundezas da floresta — até esvanecer outra
vez antes de atingi-lo.
O monte tumular continuava chamando a minha atenção, prendendo
meu olhar. Todas aquelas pedras antigas, todas voltadas para o centro, como
guardas vigiando um prisioneiro. Por milênios o vigiaram, incapazes de se
distrair.
O calor estava ficando sufocante. Um cheiro fraco de podridão tomava
o ar. Um dos corvos crocitou uma única vez, a voz incômoda, áspera como
uma serra raspando metal.
— Por que você não consegue se transformar? — perguntei, sem
desviar o olhar do monte.
Na última tentativa, apesar de um brilho de desafio continuar nos olhos
de Rook, com um gesto da mão ele desistiu da transformação. Mas não
parecia nada afetado.
— O lugar não me permite fazer isso. Parece que viemos parar no lugar
de descanso final de um Lorde Tumular.
Pronto, já era. Eu que não ia esperar para me apresentar a um Lorde
Tumular, com letras maiúsculas, fosse lá o que era isso. Segurei minhas
saias, pronta para fugir. Mas, então, a forma como ele pronunciara “parece”
me fez entender tudo.
— Meu deus. É a primeira vez que você encontra um desses, não é?
— É muito raro alguém cruzar o caminho com um deles — disse ele,
relutante.
Notando minha posição, acrescentou:
— Não, não fuja. Ele já está desperto sob a terra, sabe que estamos aqui.
Não vamos conseguir escapar, isso só faria com que ele nos atacasse
quando déssemos as costas. Desta vez, ficamos e lutamos. — Ele me olhou
de novo. — Ou melhor, eu luto e você se esforça para sair do caminho —
concluiu.
Ele havia dado um fim ao baronete com um único golpe de espada.
Tinha comparado a destruição dos cães da Caça Bravia com uma
brincadeira de criança. Mas nada disso me acalmou quando uma revoada
inteira de corvos tomou as árvores, e não quando eu sabia que desta vez
Rook estivera disposto a ir embora sem nem dar um pio.
— O que exatamente é um Lorde Tumular? — perguntei.
— Neste caso, você talvez prefira ficar na ignorância.
— Acredite em mim, eu nunca prefiro.
— Já que insiste… — respondeu, a contragosto. — A maioria das feras
fadas passam a existir quando os ossos de um mortal lhe dão vida.
Eu assenti; isso eu já sabia.
— Lordes Tumulares são aberrações — continuou. — Cada um deles é
feito de um agrupamento de restos mortais, misturados na morte. São
criaturas atormentadas, furiosas e em desacordo consigo. Seu crescimento
não depende de ser alimentado. Eles surgem sozinhos, em lugares onde
mortais de épocas passadas enterraram vítimas de guerra ou peste.
Como se ouvisse a conversa, o montículo estremeceu. Terra se soltou,
caindo ao chão. Um som grotesco emanou lá de dentro: a sucção molhada
de alguma coisa úmida se desmontando sob a terra. Não fazia ideia do que
era aquilo, mas era maior que um baronete. Maior que toda a matilha de
cães.
Rook desembainhou a espada e avançou na direção do montículo,
projetando calma e confiança casuais que me pareceram tão fabricadas
quanto o encanto. Se era para mim ou para ele, não sabia dizer.
Assim que chegou à borda externa do círculo de pedras, o montículo
tremeu com força. Inchou um pedaço, depois outro, como uma larva
tentando arrebentar o casulo. Besouros de diferentes tipos jorraram da terra
em fileiras, junto com algum fluido borbulhante. O fedor de podridão
encharcada me atingiu como um soco no estômago. Impotente, me dobrei
para a frente e vomitei.
Inchando-se uma última vez, o montículo finalmente regurgitou seu
conteúdo. Uma forma torta irrompeu, duas vezes maior que Rook,
derramando pedaços de terra por todos os lados. Nenhuma ilusão era capaz
de esconder a monstruosidade. Tinha a quantidade correta de membros,
mais ou menos nos lugares esperados, mas isso era tudo que podia ser dito
em sua defesa. A carne era feita da casca de um tronco decomposto, coberta
por doenças e fungos. A cabeça, uma caverna de casca oca com dois
buracos vazios, dos quais cresciam cachos de cogumelos, balançando nos
caules compridos como se tivessem vida própria. Imediatamente, os caules
se retorceram ao mesmo tempo, apontando os cogumelos para Rook. Olhos.
Aqueles eram os olhos.
A pressão na minha cabeça cresceu. À distância, ou como se abafadas
por uma porta, vozes brigavam. Uma menininha chorava. Com impaciência,
alguém dava uma bronca. Um homem berrava em agonia, sem dizer uma
palavra. Uma convulsão sacudiu o Lorde Tumular, que quase se
desequilibrou. A estrutura lembrava a de um urso, mas as patas da frente —
os braços, pensei — eram compridas demais, fazendo com que tivesse
dificuldade para manter a postura vertical. Estava tentando voltar a ser
humano da única forma possível, percebi.
A espada de Rook reluziu, abrindo um rasgo na barriga da fera. A pele
putrefata cedeu sem esforço e ele se afastou bem a tempo de evitar um jorro
escorregadio de fungos vazando pela ferida, parando a um centímetro
preciso das botas dele.
As vozes se silenciaram e, em seguida, gritaram em uníssono. O braço
do Lorde Tumular se estendeu, batendo na estátua em frente a que Rook
estivera meio segundo antes, quebrando lascas de pedra e musgo. O
monstro atacou de novo e de novo, imprevisível e intempestivo em sua
violência enlouquecida, obrigando-o a se afastar para além do alcance. As
costas de Rook atingiram a sebe e ele começou a circular a área, com passos
leves, como se fosse um gato cercando um cão, sem medo.
O monstro cambaleou naquela direção, fazendo ataques desajeitados por
cima das pedras. Rook estava tentando afastá-lo de mim. No entanto, assim
que pensei nisso, a voz da menininha gritou, estridente, e o Lorde Tumular
parou. Em uma contração úmida e repentina, os cogumelos rolaram para
trás e me olharam. Eu me afastei aos tropeços. Ouvi o gemido e o estalo de
árvores caindo, meu olhar fixo no horror se jogando na minha direção —
tão apodrecido que pedaços do corpo se soltavam enquanto ele corria,
arrancados pela força contundente dos passos.
Rook surgiu entre nós. Com a espada, atacou uma vez e então de novo.
O braço que o Lorde Tumular erguera para me derrubar explodiu, poroso,
no chão da floresta. Besouros infestavam a cavidade restante. Sem um
membro, o peso desequilibrado puxou o monstro para trás, até colapsar
contra duas pedras entalhadas, sua pele sendo arrebentada, entortando os
monumentos.
Por um momento, achei que Rook tinha vencido. A queda deixara a fera
destruída. Muco reluzente escorria dos destroços daquela carne. Mas o
monstro se levantou com esforço, escorrendo do tronco raízes gosmentas de
fungo que formavam um novo braço. A cabeça balançou de um lado ao
outro, pingando. As vozes se consultaram em murmúrios agitados.
Rook ajustou a empunhadura da espada e voltou à batalha, esmagando
destroços com as botas. Sua lâmina reluzindo. Pedaços de madeira saíram
voando. Podia passar dias assim, quebrando pedaços do monstro sem
descanso. Se não fosse pela necessidade de me manter viva, eu suspeitava
que o Lorde Tumular não seria nada ameaçador para ele.
Algo pegou meu tornozelo.
Então olhei para baixo.
Um esqueleto humano, amarrado por tendões vegetais, tinha se soltado
do braço arrancado do Lorde Tumular. Com tremores de pesadelo,
arremessou outra mão para agarrar minha saia entre os dedos ossudos.
Cogumelos brotavam de suas costelas como tumores, forçando seu maxilar
a abrir. Ele me segurou com força, puxando-se aos poucos, cada gesto um
esforço. Mais próxima do que as outras vozes, uma mulher soluçava e
implorava.
— Não tenho como te ajudar — sussurrei, vazia e virada do avesso pelo
horror. — Não posso…
E então Rook estava ali. Agarrou o cadáver pelo crânio e o arrancou de
mim, esmagando os ossos amarronzados e frágeis como se fossem cascas
de ovos. Em seguida, olhou por cima do ombro e, sem hesitar, me pegou
pelos ombros e me empurrou para o lado. Caí nos arbustos, a queda me
deixando sem ar, bem a tempo de ver o Lorde Tumular atingi-lo. Rook foi
jogado contra o tronco de uma árvore a vários metros dali e caiu inerte no
chão, a espada deslizando na clareira.
Meu deus.
O Lorde Tumular só tinha olhos para mim. Avançou aos tropeços até eu
me encontrar na escuridão fétida de sua sombra. Corvos pulavam das
árvores, crocitando e atacando as costas da fera com bicos e garras, batendo
as asas em seu rosto, mas seu canto logo se transformou em gritos
estridentes de desespero quando as plumas se agarraram ao couro do Lorde
Tumular. Mãos esqueléticas brotaram, agarrando-os com avidez e puxando-
os para dentro. Os pássaros se debateram e atacaram, mas logo só restavam
um bico aqui, uma asa ali, em saliências aleatórias pela carne podre do
monstro. Alguns continuavam a se mexer.
O Lorde Tumular abaixou a cabeça à minha altura.
Só a cabeça já era do tamanho de uma tora, e a cavidade redonda da
boca era de largura suficiente para uma pessoa entrar. Os cogumelos se
viravam e retorciam. Uma lufada de bafo quente saiu dali, depois outra.
Sem dúvidas eu era pequena e fraca demais para representar qualquer
perigo à criatura. As vozes cochichavam entre si. A menininha riu.
Um uivo sôfrego foi arrancado do meu peito e eu enfiei os dedos
naquele rosto esponjoso. Isso me deu firmeza suficiente para me levantar e
pegar um dos olhos com a outra mão, a que usava o anel de ferro. Os
cogumelos murcharam no instante em que os toquei, encolhendo-se
cinzentos e fracos.
Todas as vozes gemeram em uníssono, vindas daquele lugar distante
que eu começara a chamar de inferno, e o Lorde Tumular deu um passo
para trás, arrastando minhas pernas pelo chão. Apertei os olhos uma última
vez, sentindo os cogumelos se desintegrarem. Só precisava ganhar um
pouquinho mais de tempo. Porque, pelo canto do olho, vi Rook se
levantando.
Uma das mãos estava dentro do casaco, segurando o peito, e a
expressão em seu rosto era aterrorizante, contorcida em dor e fúria. Ao vê-
lo cambalear, me perguntei se ele aguentaria.
Ele aguentou.
Soltei a fera e me deixei cair quando ele se aproximou aos tropeços do
rosto do Lorde Tumular, então tirou a mão sangrenta de dentro do casaco e
a enfiou com tudo na boca do monstro. Primeiro veio um estalo, o som de
madeira quebrando e estourando. O corpo do Lorde Tumular caiu duro de
lado, convulsionando. Então, galhos espinhentos da grossura do meu corpo
brotaram de cada canto daquela carne, perfurando-o centenas de vezes,
prendendo o corpo no lugar como uma estátua horrenda. Eu não tinha
certeza se ele estava morto. Nem ao menos tenho certeza de que isso
importava.
Um último galho saiu devagar do olho restante e folhas amarelas
nasceram bem diante do meu nariz.
— Rook — ofeguei. — Você conseguiu. Você…
Um barulho surdo me interrompeu. Afastando as folhas, encontrei Rook
inconsciente, estatelado no chão, e seu encanto estava se esvaindo.
Oito

A primeira coisa que notei ao me ajoelhar ao lado de Rook foi que suas
roupas estavam rasgadas e sujas pela batalha, amarrotadas pela viagem. Eu
não pudera observá-las quando ele perdera o encanto à tarde, e a mudança
era chocante: em um instante, fora de príncipe a andarilho. Não me ocorrera
que usaria o encanto para alterar a aparência de suas roupas também. Ainda
mais impressionante, o enorme rasgo feito pelo Lorde Tumular na frente do
casaco estivera completamente invisível aos meus olhos.
— Quanta magia você gasta com vaidade? Misericórdia, você mal se
segurava em pé.
Com as mãos tremendo, tirei o anel, guardei-o e desabotoei o casaco de
Rook.
— Nem eu nem o Lorde Tumular nos importamos com a sua aparência,
você sabe disso — continuei.
Abri o casaco e a cabeça dele se inclinou para o lado. Sua boca estava
entreaberta. Decidi não prestar atenção nos dentes afiados expostos entre os
lábios, mas eu nem precisava pensar naquilo, porque a ferida no peito
exigia toda minha atenção e ainda mais um pouco.
Não tinha referência para fazer uma comparação, mas podia supor que,
com o encanto, o peito dele não seria tão magro, cada costela visível sob a
pele. Só gostaria de não ver tanto das costelas. Nem todo o branco entre o
sangue era da camisa rasgada.
A ferida era grande e tenebrosa, indo da clavícula esquerda às costelas
do lado direito. Um humano ferido daquela forma morreria de hemorragia.
Felizmente, não parecia estar perdendo tanto sangue, mas eu me sentiria
muito mais otimista se ele estivesse consciente e cheio de si, me
informando que o rasgo expondo ossos no peito dele era só um arranhão.
— Rook — falei, dando um tapinha na cara dele e contendo uma careta
quando os ossos pontudos do rosto cadavérico me lembraram do esqueleto
que agarrara minha perna. — Você é um príncipe, lembra? Acorde e me
faça ficar brava, por favor.
Ele virou a cabeça na direção da minha mão e gemeu.
— Vai ter que se esforçar um pouco mais — falei.
Embolei um pouco do casaco e o apertei contra o peito. Lembrando, por
fim, a noite anterior, peguei seu punho direito e virei a palma da mão. Ele
usara o encanto para esconder o corte, afinal. Mesmo assim, a pele estava se
curando com rapidez — se eu não soubesse, diria que o machucado já tinha
mais de uma semana.
Levei um susto quando notei que ele entreabrira os olhos e me
observava.
— Você continua aqui — murmurou, meio delirante.
Soltei a mão dele rapidamente.
— Onde mais eu estaria?
— Fugindo.
— Não sei se você percebeu, mas a floresta está cheia de coisas que
querem me matar. Até mesmo pedaços desmembrados tentam me matar.
Por mais que me doa admitir, é mais vantajoso eu me arriscar estando ao
seu lado.
— Talvez — murmurou e tentou se mover, mas revirou os olhos.
— Pare de ser tão misterioso. Me diga o que preciso fazer para sairmos
daqui? Rook?
Dei um tapinha no rosto dele de novo.
— Ajude-me a levantar — disse ele. — Na verdade… Primeiro, pegue
minha espada e depois…
Eu me levantei e procurei a espada. No pouco tempo em que estava
ajoelhada, a clareira havia se transformado. Os restos petrificados do Lorde
Tumular estavam quase irreconhecíveis, engolidos por uma árvore
gigantesca da qual ainda brotavam novos galhos. Folhas douradas caíam
sem parar, acumulando folhagem colorida entre a qual remexi na busca pela
arma de Rook. Finalmente a encontrei, pois o punho apareceu entre as
folhas.
Quando voltei, ele estava quase inteiramente coberto por folhas. Corri
os últimos passos, tropeçando numa raiz escondida no caminho, e o limpei
enquanto ele me olhava em silêncio — fraco demais para comentar o meu
comportamento estranho, supus. Nem eu sabia dizer exatamente por que vê-
lo sumir no chão da floresta me aterrorizava tanto. Só notara que havia um
ar fúnebre naquilo tudo. Um ar fatal, como se a terra o estivesse engolindo.
Quando acabei, ele tentou pegar a espada de minha mão, mas não tinha
forças para segurá-la. Tive que ajudá-lo a embainhá-la.
Uma pergunta doía no fundo da minha língua, presa como um anzol,
puxando para fora as palavras horríveis.
— Você está morrendo? — soltei em um tom esquisito, quase de
acusação.
Ele franziu a testa.
— É o que você quer?
— Não!
Minha veemência pareceu surpreendê-lo a tal ponto que senti
necessidade de me defender:
— Se eu quisesse que você morresse, por que teria pegado o espeto de
volta hoje à tarde?
— Para começo de conversa, foi você quem o deu para mim.
— Eu não sabia o que ia acontecer… Nem mesmo você sabia — falei,
tentando encontrar as palavras certas. — O que você está fazendo comigo
não é nada legal. Óbvio que não quero ser sua prisioneira. Mas isso é
diferente de querer que você morra.
Será que ele me entendia? O olhar distante sugeria que não. Será que se
importava um pouquinho que fosse com emoções humanas?
— Talvez você deva saber — acrescentei, bruscamente —, já que
acabou de vez, que dois dias atrás eu acreditei estar apaixonada por você.
O olhar dele ficou mais afiado, atravessando a névoa da dor para se
concentrar em meu rosto. Finalmente, ele olhou para o lado e largou o braço
no chão, um gesto fútil, como se tentasse pegar alguma coisa fora do
alcance. Parecia tão inumano. Não me satisfazia ter finalmente causado
uma reação… Eu só me sentia gelada.
— Ajude-me a levantar.
Falar era um esforço para ele. O ar sibilava ao entrar e sair do peito,
ofegando baixinho a cada inspiração. Perguntei-me se uma costela tinha
quebrado e perfurado um pulmão, um perigo que Emma me explicara certa
noite, enquanto segurava extrato, e, se fosse o caso, o que poderia ser feito.
No entanto, foi Rook quem falou primeiro:
— Precisamos voltar às terras outonais. Não tenho como me curar aqui.
Tem alguma coisa errada com o lugar… Uma corrupção que não sei
explicar.
Ele fez um intervalo, respirando.
— Com sorte — continuou —, alguma vantagem sairá disso e a Caça
terá perdido nosso rastro.
Peguei o braço estendido e o apoiei no ombro, tentando meu melhor
para levantá-lo. Ele conseguiu ficar de pé, mas só ao se apoiar com força
em mim, e quando mudou o peso soltou um ruído de angústia, quase de
choro, que fez uma pontada aguda de pena doer em meu peito.
— Não é melhor chamar outra fada?
Ele inspirou fundo e respondeu, sua voz rouca e ofegante:
— Não.
— Não é hora de ser cabeça-dura. Sua corte certamente é capaz de
ajudar.
Não falei “mais capaz” porque eu não tinha nada a oferecer. Além disso,
não me esquecera de que ele ainda não tinha respondido à outra pergunta.
Não me dissera que não estava morrendo.
— Não — repetiu.
Cerrei o maxilar e comecei a andar de volta por onde tínhamos vindo.
Rook apontou outra direção, então ajustei o caminho. Apesar de suspeitar
que fosse mais leve do que um homem humano, ele apoiava mais peso em
mim do que eu aguentava com conforto, e a vasta diferença de altura fez
com que carregá-lo fosse um esforço incômodo. Desviei o olhar do rosto
esquálido e, depois de um tempo, o sangue dele começou a encharcar meu
vestido. O cheiro não era nada parecido com sangue humano — tinha um
perfume fresco de resina, como o de uma árvore cortada a machadadas.
O dia já estava quase um breu. Não era tão fácil enxergar ali quanto era
nas terras outonais, onde as árvores coloriam a noite. A mão de Rook se
moveu no ar, um gesto torto que deixou os dedos expostos ainda mais
parecidos com insetos, e depois de um momento entendi que estava
tentando, sem sucesso, invocar uma luz.
Um calafrio de pavor percorreu meu corpo, acumulando-se em mim. E
se fôssemos atacados de novo? Ele não tinha mais poder nenhum.
— Não posso pedir ajuda a meu povo — disse ele, e as palavras
ofegantes e roucas me assustaram depois de tanto silêncio. — Mantemos
soberania não pelo amor e respeito das cortes, mas simplesmente por poder.
Se me vissem tão enfraquecido por um mero Lorde Tumular, os membros
da minha corte cogitariam se eu poderia ser substituído, e se alguém entre
eles seria o substituto adequado. Já questionaram minha aptidão como
príncipe. Não só uma, como duas vezes. Eu esperava me redimir da
segunda.
Ele parou de falar, recuperando as forças. Entendi que falava do retrato
e do meu julgamento. No entanto, qual seria a primeira?
— Uma terceira demonstração de fraqueza seria, sem dúvida, meu fim
— concluiu.
Sacudi a cabeça.
— Que crueldade.
Tudo era cruel. Ele comigo, a corte com ele.
— A nossa natureza é assim. Pode ser cruel, mas é também justa.
Ele olhou para baixo.
Cada vez menos eu conseguia enxergar na escuridão, mas nas linhas
rígidas do perfil de Rook, vi que duvidava de si mesmo. Reconheci a fúria
de quando me sequestrara pelo que era: medo. Medo de estar perdendo
poder. Medo de ter mesmo algo de errado, de não merecer a coroa, de
outros serem capazes de vê-lo.
Porque no retrato eu capturara o medo em seus olhos, claro como o dia.
— Não acho nada disso justo — falei, minha voz grave de raiva.
— Só porque você é humana, a mais estranha das criaturas —
respondeu em um tom pouco mais alto do que um sussurro. — E se eu
disser que posso mandar você de volta ao reino Excêntrico. Há poder na
morte de uma fada, o suficiente para mostrar o caminho.
— Não brinque comigo.
Lágrimas encheram meus olhos.
— Não estou brincando — sussurrou ele. — Não estou.
“Eu esperava me redimir da segunda”, ele dissera. “Não espero.”
Não falei nada depois daquilo, porque nenhuma palavra que eu tinha a
oferecer faria sentido para ele. Eu só tinha emoções humanas, sem dúvida
caóticas e enfurecidas para uma fada, semelhantes a uma revoada de
papagaios briguemos, e nenhuma capacidade de aquietá-las. Quando
finalmente falei, foi para dizer que não podia mais andar. Naquele
momento, ele mal se mantinha consciente. Tentando se soltar, escorregou
do meu ombro como um saco de grãos, a silhueta alta desmoronando.
Meu coração quase saiu para fora antes de perceber que ele já havia se
amparado com as mãos. Com um gemido, virou-se, deitando de costas.
Uma mão voltara à ferida e eu resisti à tentação de mandá-lo parar de tocá-
la, estava agindo como se fosse uma criança.
Entendi o que fazia quando ele puxou a mão e a apoiou na terra. Rook
esperou e eu senti seu olhar.
— E se eu não deixar você hoje? — perguntei.
— A oportunidade passará. A Caça sentirá seu cheiro muito rápido.
Engoli em seco, uma, duas vezes. Eu devia estar louca. Olhei para a
mão sangrenta.
— Ainda estamos nas terras estivais.
— Eu ainda sou príncipe.
Olhando para aquele rosto inumano e pontudo, deitado em descanso no
ninho emaranhado de cachos, aqueles olhos febris e decididos, pensei:
“Você é mesmo, não é?”
Levantei as dobras da saia e me sentei numa pedra.
Era resposta o bastante para Rook.
Enfiou a mão na terra, esticando os dedos compridos. Não era uma
oferenda, mas um comando, e a floresta irrompeu ao nosso redor. Raízes
largas como mesas de cozinha cresceram do chão, cobertas por espinhos
mais longos e mais afiados do que qualquer espada. Quando atingiram a
altura máxima, abriram-se em galhos, subindo mais, amarrando-se, até
fecharem-se numa fortaleza digna de contos antigos, um lugar onde dormia
uma princesa aprisionada e amaldiçoada. Ver aqueles espinhos horrendos
me deixou mais feliz do que seria capaz de descrever, e me perguntei se as
histórias seriam diferentes se fossem contadas pelas princesas.
Quando os últimos galhos fecharam a formação sob o luar, que
estilhaçavam como um espelho quebrado, Rook suspirou e parou de se
mover.
····
Acordar naquela manhã foi inteiramente diferente da manhã anterior. Os
pedacinhos de céu visíveis entre os espinheiros estavam tão nublados que
eu não sabia dizer se já tinha amanhecido ou não. Orvalho caíra sobre mim
durante a noite, encharcando minhas roupas; minha pele ficou tão gelada
que minhas mãos e meus pés tinham ficado adormecidos. No mesmo
instante senti como estava dolorida e como meu estado era repugnante. De
todo meu corpo, só meu ombro estava quente, mas de um modo
desagradável e úmido que me deu calafrios. Vi que estava coberta de musgo
na área em que o sangue de Rook sujara meu vestido, e com pressa
arranquei pedaços da sujeira.
Então virei de lado e encontrei Rook morto.
Ele estava deitado a poucos metros de mim, exatamente na mesma
posição em que o vira antes de dormir. A mão enterrada no chão, o rosto
sepulcral. Por mais impossível que parecesse, tinha ficado ainda mais
pálido durante a noite.
Andei até ele, a saia imunda esfregando minhas pernas. Por um
momento, de pé ao seu lado, só observei. Apostara tudo na sobrevivência
dele — mais do que seria sábio, fui capaz de admitir, quando uma
melancolia cinzenta me engoliu, empurrada por uma faísca leve de
esperança.
Porque eu estava errada. Ele devia estar vivo. O sangue derramado
virara musgo, mas seu corpo continuava inteiro. Se estivesse morto, não o
veria agora, não intacto, não dessa forma.
Ajoelhei e levei minha mão ao peito dele. Quando o senti subir e descer
um pouquinho sob os trapos do casaco, soltei uma risada engasgada,
abalada pelo alívio. Levei a mão à beira do casaco para afastá-lo da ferida.
A manga do meu vestido ficou presa no broche de corvo e o metal gelado
espetou meu punho. Eu me afastei. Tinha ativado um mecanismo. O pássaro
tinha um compartimento escondido.
Estaria mentindo se dissesse que o segredo revelado ali era uma
surpresa. Havia pouquíssimas explicações para o comportamento de Rook,
e aquela era a prova da mais provável: um cacho de cabelo humano loiro
guardado no compartimento, cuidadosamente amarrado por um fio azul.
Lembrei-me de como insistira em tirar o broche para o retrato. Mesmo
então ele se esforçara para se proteger, proteger a reputação, da dor
horrivelmente mortal. Rook ainda o usava, apesar do estilo antigo e do
estado desbotado do broche indicarem que tinha duzentos ou trezentos anos.
Fechei o broche suavemente, mas precisei pressioná-lo contra o peito
para prendê-lo e acho que o machuquei, porque ele abriu os olhos
arregalados. A aparência sobrenatural à luz do dia me causou um choque
desagradável. Estavam vidrados, ardendo de febre. Ele tentou se mover e
começou a ofegar.
— Eu estou me sentindo esquisito — anunciou, forçando seu olhar para
o ar vazio ao meu lado.
— Você está esquisito mesmo.
Preparei-me para tocar sua testa, que estava quente como um forno
contra meus dedos gelados.
— Eu tinha a impressão de que fadas não tinham febre — falei,
preocupada.
— O que é febre? — perguntou ele, com uma careta, o que não
melhorou meu medo.
— Acontece quando uma ferida piora. Vou tocar você bem aqui.
Apontei para as roupas e, apesar de tenso, ele assentiu. Enquanto me
esperava trabalhar, tirou a mão da terra, examinou-a e procurou alguma
coisa para limpá-la. Tive a suspeita irritante de que ele considerara meu
vestido antes de usar um pedaço de musgo como guardanapo.
Abri o casaco e meu estômago revirou. A pele ao redor da ferida estava
preta. Veias pretas saíam dela como uma teia de aranha, sumindo sob as
beiras das roupas. Quão longe chegara o veneno? Abri mais o casaco e a
camisa, desabotoando até a cintura sem me preocupar com preservar sua
modéstia. Ou minha modéstia, na verdade, pois, apesar de me educar
inteiramente sobre o assunto, nunca tinha visto um homem despido.
Rook se apoiou no cotovelo. Apesar da fraqueza, de repente pareceu
muito interessado no que eu estava fazendo. Finalmente, seu olhar
encontrou o peito. Ele gritou de nojo e arrancou as roupas das minhas mãos,
abotoou tudo de novo e se levantou com mais vigor do que eu imaginaria
possível. Analisei-o, desconfiada. De certas formas, ele melhorara muito.
No entanto, como era costumeiro com febres, podia ser a chama final antes
de o corpo desabar em cinzas.
— Você não pode fingir que não tem nada aí — falei, me levantando
com dificuldade.
— Mas é horrendo — respondeu ele, como se a objeção fosse razoável.
— Feridas purulentas são sempre horrendas.
Ignorei o olhar ofendido dele em resposta à palavra “purulenta”,
provavelmente supondo que eu o ofendera.
— Você faz alguma ideia de por que isso está acontecendo? —
perguntei.
Ele deu as costas para mim, puxou a gola com um certo medo e olhou
por baixo.
— A terra não estava… boa. O Lorde Tumular compartilhava da doença
e parece tê-la transmitido para mim. Temporariamente, óbvio.
Aquilo não me parecia nada bom.
— Rook, acho que você precisa de tratamento médico.
— E você sabe tratar meu ferimento? Não. Foi o que eu pensei.
Continuaremos o caminho até as terras outonais, que não deve demorar
agora que posso andar sozinho.
Ele evitou meu olhar ao falar. A noite anterior obviamente não foi um
de seus maiores orgulhos.
— Independente do que aconteceu com a ferida, não importará quando
eu puder me curar direito — continuou. — Portanto, é melhor partirmos
sem mais delongas.
A contragosto, admiti que, nesse caso, ele sabia mais do que eu. Rook
avançou até a beira dos espinheiros, cambaleando só de leve, e levou a mão
a um dos galhos. Eles começaram a se retorcer como minhocas, retraindo-se
até formarem uma passagem. Corri atrás dele, com uma careta para a
aspereza da saia imunda contra minhas pernas.
A floresta na qual emergimos não era tão sinistra quanto a área das
pedras entalhadas, mas ainda tinha uma aparência esquisita que não havia
notado no escuro e não sabia explicar. As folhas verdes eram lisas e
brilhantes demais, quase como se também fossem tomadas pela febre. O sol
trabalhava para queimar a névoa úmida que eu confundira com nuvens.
Durante o trajeto, fui incapaz de afastar as lembranças da noite anterior.
O cheiro de podridão imaginado atrasava meus passos. Examinando meu
corpo, encontrei uma mancha na meia esquerda, onde o cadáver agarrara
meu tornozelo. Precisei me conter para não arrancar a meia ali mesmo.
Como era costumeiro com pequenos desconfortos, não conseguia me
distrair depois de tê-la notado, enlouquecida pela forma como coçava no
calor do verão.
Pensando nisso, uma ideia me ocorreu.
— O baronete também era das terras estivais, não era? — perguntei. —
Aquele que você destruiu quando nos conhecemos. A temperatura mudou
quando ele chegou, que nem aconteceu com o Lorde Tumular. Mas nada
disso aconteceu com os cães da Caça Bravia.
Relutante, ele assentiu.
Cerrei os olhos.
— E a quantidade incomum de feras fadas soltas que você mencionou?
Todas saíram das terras estivais também?
— Ah — disse Rook. — Colocando desse jeito, é mesmo uma
coincidência estranha.
— Eu sinceramente duvido que seja coincidência!
Puxei minhas saias com os punhos fechados e apertei o passo ao lado
dele, me sentindo mais imunda e nojenta a cada minuto. Que bom. Ele
merecia.
— Quer dizer que a conexão nunca passou por sua cabeça? —
perguntei. — Você tem qualquer capacidade de pensamento analítico?
Ele olhou para a frente; altivo, como sempre.
— Claro que tenho. Eu sou um…
— É, eu sei. Você é um príncipe. Deixe para lá.
Eu tive a impressão nítida de que ele nunca ouvira falar em pensamento
analítico.
— As outras cortes têm falado disso, então? — insisti.
Ele arrancou a coroa e bagunçou o cabelo.
— Por que isso é tão importante para você? — exclamou, aborrecido.
— Por quê?
Parei abruptamente. Ele se virou quando notou que eu ficara para trás.
— Por quê? — continuei. — Porque uma fada fera das terras estivais
provavelmente matou meus pais. Porque quase me mataram duas vezes.
Porque vão matar mais humanos se ninguém descobrir o que está
acontecendo. Sabe, motivos estúpidos e mortais.
Ele hesitou. Apertei os punhos contra a infelicidade passageira na
expressão dele. Não queria que se sentisse culpado e pedisse perdão, queria
que entendesse.
— Não falamos dessas coisas — respondeu, finalmente. — Nunca.
Porque não podemos. Não podemos pensar nisso. Até essa conversa é
extremamente perigosa para nós dois.
Como bile, as palavras proibidas subiram pela minha garganta. Com um
calafrio, eu as engoli.
Rook não era responsável pelas feras fadas. Apesar de, para começo de
conversa, ser inteiramente culpado por me arrastar para a floresta, quase
morrera ao tentar me proteger na noite anterior. Isso era inegável. Ele
abaixou a cabeça e os ombros nas roupas esfarrapadas e a coroa tremeu
entre seus dedos. Respirava com dificuldade. Discutir obviamente o
cansara.
— Perdão — dissemos os dois ao mesmo tempo, em vozes idênticas de
relutância.
Um sorriso surpreso puxou os cantos da boca dele. Foi a minha vez de
evitar seu olhar. Respirei fundo, determinada a abordar mais um assunto
antes de continuarmos.
— Precisamos falar sobre o que você disse ontem à noite.
— Odeio quando dizem isso para mim. Nunca é boa coisa.
— Rook. Você não está mais me levando ao julgamento, está? Você
mudou de ideia.
Não sei que reação eu esperava. Talvez que se empertigasse e dissesse:
“Você ousa conhecer os pensamentos de um príncipe?” Certamente não era
a forma como ele olhou para o lado e mexeu, desconfortável, no broche de
corvo.
— Percebo agora que eu… eu cometi um erro — confessou. — Você
não me sabotou intencionalmente. O que você fez com seu Ofício foi…
Ele tentou encontrar palavras, incapaz de descrever o que não entendia.
— Quando fui buscá-la — continuou —, não contei meus planos para
ninguém. Não sentirão nossa falta na corte do outono. Quando estiver
curado, prometo levá-la de volta ao reino Excêntrico.
Minhas pernas ficaram bambas e eu me segurei numa árvore. Eu ia
voltar para casa. Para casa! Para Emma e as gêmeas, minha casa segura e
quentinha, o cheiro de óleo de linhaça, o trabalho do qual já sentia tanta
falta. Mesmo assim — de volta ao verão sem fim, a tudo que sempre fora
—, uma vida que se arrastava ao som do zumbido incessante de gafanhotos
no trigal. Eu abandonaria as maravilhas das terras outonais para sempre.
Meu coração subia e caía aos pulos, como um pássaro apanhando da
tempestade. Se me sentisse assim por muito tempo, eu me autodestruiria. O
que podia fazer? Como parar?
O que exatamente fizera Rook enfim entender a verdade?
Eu o estudei. Sua expressão era impassível. No entanto, a forma como
mexia no broche de corvo, seus olhos cada vez mais vidrados, piorou a
turbulência sacudindo meu humor.
— E você? — perguntei. — Sua reputação? O que fará para recuperá-
la?
Ele se acalmou e respondeu:
— Pensarei em…
De repente, parou. Mexeu o maxilar, não emitiu som algum.
— Não falemos disso — concluiu, sem jeito. — Vê aquela colina?
Quando chegarmos ao topo, estaremos de volta às terras outonais.
Apertei os olhos. A colina não me parecia diferente da floresta atrás de
nós. Enquanto pensava nisso, reparei por que Rook não fora capaz de
terminar a frase.
Era mentira.
Nove

Quando chegamos ao topo da colina, era outono de novo.


Dei uma volta. Bétulas balançavam na brisa suave por toda a floresta,
pintada de tons amenos de branco e dourado. Dei um passo para trás, e mais
outro, mas as terras estivais não reapareceram.
— Isso não faz nenhum sentido — falei.
Rook não me ouviu. Encostara-se na primeira árvore outonal que vimos
e continuava ali, de pé, como um espantalho de casaco rasgado. Seus olhos
estavam fechados e o alívio no seu rosto era profundo. Fiquei feliz de vê-lo
assim, porque, depois da última conversa, a febre parecia ter esvaído sua
força. Ele mal conseguira subir a colina.
Esperei pelo menos uma hora enquanto se recuperava. Sentei e tentei
deitar, mas as folhas faziam cócegas no meu pescoço e eu era incapaz de
relaxar estando numa posição tão vulnerável. Meus medos, receios, desejos
e questionamentos se embolavam na cabeça, e o peso das minhas roupas
imundas e ásperas, assim como meu próprio cheiro, iam me enlouquecer
agora que não tinha nada com que me distrair. Toda vez que olhava para
Rook, ele parecia não ter feito o menor dos movimentos.
Por fim, cheguei mais perto.
— Estou ouvindo água corrente — falei. — Vou procurá-la. Estou com
sede e preciso me limpar.
Não esperei que fosse responder, mas ele entreabriu os olhos e me fitou
como se estivesse em transe. Contive um calafrio. Não era como ser vista
por uma pessoa. Seu olhar era despido de consciência, como se a floresta,
não ele, me encarasse. Mas então ele piscou e aquela impressão se foi.
— Siga-me. Estamos mais seguros aqui do que nas terras estivais, mas
você não deve andar desacompanhada.
Ele me observou.
— Você está mesmo imunda — acrescentou, como se tivesse acabado
de reparar.
— Obrigada. Estou em boa companhia.
A indignação não o impediu de responder, inevitavelmente:
— Não há de quê.
Depois de cuspir as palavras relutantes, pavoneou-se o caminho inteiro
até o riacho e ajoelhou-se na beira musgosa, observando o próprio reflexo.
Avistei um canto de madressilvas que podia usar para privacidade — queria
lavar minhas roupas e deixá-las secar um pouco antes de me vestir. Um
banho não ajudaria muito no conforto se meu vestido continuasse duro
como tela tratada por lama e suor de cavalo.
— Eu estive sem encanto esse tempo todo — disse Rook, atrás de mim.
A voz dele era questionadora. Ao dar meia-volta, eu o vi encarar a água,
chocado.
— Pois é — falei, sem saber o que mais dizer. — Desde que o Lorde
Tumular te feriu. Ou, não… um pouco depois… quando você o derrotou e
desmaiou.
— Você esteve me olhando esse tempo todo!
— É — concordei.
Confusa, continuei:
— Não tinha como não olhar.
A expressão dele endureceu.
— Pare neste instante — falou, com frieza.
Fiquei mais um instante ali — por perplexidade, não por resistência. E,
então, o olhar que me dirigiu era tão arrepiante que sumi atrás dos arbustos
correndo.
— Não me olhe também — gritei para ele. — Banho é particular. Que
nem fazer xixi.
Ele não respondeu. Bom, era isso. Olhei ao redor, tirei os sapatos, me
despi do vestido e das roupas de baixo e entrei, tremendo, no riacho. Já
havia me banhado em águas mais frias no poço de casa, mas aquela água
era especialmente incômoda e não perdi tempo enquanto lavava o cabelo e
fazia o melhor para esfregar a sujeira com as unhas. Mergulhei as roupas
comigo e as sacudi na água, fazendo uma careta para a mancha de terra e
pelo de cavalo que soltaram no riacho límpido. Folhas flutuavam pela
superfície, misturando-se às ondas que eu criava. Eram de cores tão
maravilhosas que considerei guardar uma — aqui, uma folha amanteigada
quase da cor exata do amarelo de estanho e, ali, uma folha de um laranja-
vibrante salpicada com verde —, mas notei que não seria capaz de escolher
uma só lembrança, nem mesmo uma dúzia, e descartei a ideia com uma
pontada de tristeza.
Quando acabei, saí do riacho e estiquei meu vestido e minhas meias por
cima das madressilvas, onde poderiam pegar um pouco de brisa. Com mais
constrangimento, pendurei minhas roupas íntimas nos galhos mais baixos.
E, então, cruzei os braços com força contra o peito e me encostei contra os
arbustos, mais exposta do que já estivera na vida toda. Esperei. Não vinha
som algum da direção de Rook. Preocupações começaram a bater à porta
dos fundos da minha mente, uma torrente sem fim de visitas indevidas. E se
ele tivesse desmaiado? Ou sumido, me deixando para trás? Pior ainda, e se
a Caça Bravia nos encontrasse enquanto eu estava nua?
Eu me sentiria muito melhor se pudesse dar uma olhada. Seria muito
ousado? Por algum tempo, não arrisquei dar as costas à floresta. Hesitei,
indecisa, pisando nas folhas com os pés descalços, meu cabelo pingando
para todo lado. Finalmente, criei coragem para me agachar bem perto do
chão e olhar por entre os arbustos de madressilva.
Os galhos tinham alguns espaços, do tamanho de moedas, que me
permitiam ver o outro lado quase inteiro. Rook estava sentado em uma
pedra lisa, perto o suficiente para nos falarmos, mas mais longe do que eu o
deixara, numa curva do riacho. Tinha tirado a camisa, apesar de ainda estar
de calças, e deixara o casaco dobrado no chão ao seu lado. Estava
aproveitando para se banhar também.
De certa forma, a trivialidade daquilo me surpreendeu. Claro que fadas
precisavam se lavar de vez em quando. No entanto, Rook o fazia de forma
tão comum, pegando a água nas mãos em concha e se esfregando, sem
demonstrar velocidade ou eficiência especiais que eu pudesse ver. Talvez
seria diferente se ele não estivesse ferido. Não conseguia imaginar outra
fada, como Gadfly, fazendo nada parecido com aquilo.
Sentindo-me como um duende pentelho da floresta, agachada e nua,
com o cabelo grudado nos ombros e no peito, mudei de lugar para olhar por
um ângulo melhor.
A ferida estava horrenda, mas melhor do que antes. As veias escuras
tinham desbotado e diminuído, e as beiras do corte pareciam se fechar.
Porém, suspeitei que ficariam marcas, porque ele tinha outras cicatrizes:
uma comprida no antebraço, outra que cruzava o ombro esquerdo. O gosto
dele por batalhas não fora exagerado por Gadfly, ou usado para exibir Rook
aos meus olhos. Será que o encanto esconderia aquelas cicatrizes, ou as
deixaria à mostra?
Muito mais importante: por que eu estava me perguntando aquilo?
Esperava ficar incomodada com sua aparência seminua, mas, quanto
mais observava, mais ele me parecia ser apenas estranho, em vez de
monstruoso. Em algum momento minha mente parara de tentar vê-lo como
humano e o aceitara como era de verdade. Havia algo de inegavelmente
bonito no seu corpo esguio e seu rosto angular. Seus olhos ainda me
pareciam cruéis, mas também pensativos. A excitação que eu sentia quando
ele me olhava era tão atraente quanto perigosa, como se um lince ou um
lobo de repente cruzasse meu olhar no crepúsculo da floresta.
Aquilo era a última coisa em que eu deveria estar pensando. Pronto.
Hora de parar de espiar.
Quando eu me mexi, no entanto, um galho quebrou sob meu pé. Rook
parou o que estava fazendo e olhou por cima do ombro, me enxergando
diretamente pelos buraquinhos entre as folhas. Pulei de pé, tonta, meu
coração batendo forte, abafado no meu peito.
Minhas roupas não estavam secas, mas as tirei das madressilvas mesmo
assim, encarando o frio grudento das minhas roupas íntimas e meias úmidas
e também a aspereza pesada do vestido quando o puxei para baixo. Mal
acabara de amarrar os sapatos quando os passos de Rook se aproximaram, e
sabia que ele fizera barulho de propósito, por mim.
— Acompanhe-me — foi tudo que disse, me oferecendo a mão com o
rosto virado.
····
Mal nos falamos pelo resto do dia. Se Rook de fato tivesse me visto
espiando, não deu indicação alguma para além do silêncio. Ainda estava me
acostumando àquele lado dele. O príncipe sorridente e indolente que havia
conhecido no estúdio também existia, mas era só parte de Rook, a parte que
eu agora suspeitava que ele preferia mostrar ao mundo.
Tentei puxar assunto uma ou duas vezes, mas recebi apenas respostas
monossilábicas, o que me fez desistir da ideia. O ritmo dele também era
calculado: andava na velocidade que me permitia segui-lo, mas não o
alcançar. Até a luz do dia acabar, eu havia decorado cada rasgo da bainha
do casaco que se arrastava pelo chão.
Ontem eu provavelmente teria torrado a paciência dele até que me
dissesse se gostava ou não de mim. No entanto, naquele momento eu não
ousava. Rook não era mais meu captor. Estava me levando para casa. Além
disso, eu suspeitava que fazer isso era imensamente custoso para ele, em
uma escala que ia além da minha compreensão mortal.
O abrigo que construiu para nós naquela noite era diferente tanto da
catedral de sorveira quanto da fortaleza de espinhos. Freixos amarelos
esguios e salgueiros-chorões brotaram do sangue dele, seus galhos se
arrastando ao chão. A brisa suspirava pelos ramos. Não eram árvores
perfeitas e elegantes: algumas cresciam tortas ou nodosas, ou abrigavam
cachos de cogumelos nas raízes. Mas não estavam doentes como as das
terras estivais. Simplesmente tinham defeitos e pareciam competir
cuidadosamente pela minha atenção, solitárias e temendo rejeição.
Sem pensar, andei até uma e toquei sua casca, olhando pelo buraco no
tronco. As sombras eram profundas demais para que eu enxergasse lá
dentro. Quando me virei, Rook me encarava, paralisado no meio do gesto
de tirar o casaco. Era a primeira vez que me olhava abertamente desde o
riacho.
— Esse é o tipo de coisa que eu mais gosto de pintar — expliquei. —
Detalhes, texturas…
Vi que o perdia.
— Temas perfeitos geram trabalhos menos interessantes — concluí.
Lentamente, ele terminou de tirar o casaco.
— Então imagino que você não goste de pintar fadas — comentou,
reservado.
— Rook — falei, sorrindo, com mais carinho do que planejava. — Você
não pode sair dizendo que é perfeito, sabia?
Ele tencionou os ombros. Eu atingira um ponto sensível. Com a
expressão fechada, ofereceu a mim o casaco. Tinha tirado o broche de
corvo.
— O frio não vai me incomodar. Sei que está estragado, mas deve
mantê-la aquecida.
Logo de cara o motivo daquela frieza se revelou. Peguei o casaco.
Compaixão me atravessou como um dardo — uma dor profunda e aguda.
Sem mandar meus pés andarem, me encontrei próxima o suficiente para
precisar levantar a cabeça para ver seu rosto. Ele tentou desviar, mas toquei
seu ombro. Maravilhosamente, ele parou. Era mais alto do que eu por uma
cabeça e meia, e a floresta irrompia para obedecer ao seu poder, mas com
aquele toque eu o afetara como se o algemasse com ferro.
— Não me incomoda te ver sem o encanto — falei. — Você não é
desagradável aos olhos.
“Você não está estragado”, completei em pensamento.
Ele se inclinou, levando o rosto para perto do meu. Um calafrio me
percorreu, arrepiando minha nuca e meus braços. O olhar inumano de
ametista passava por meus traços como se lesse uma carta, então ele soltou
um suspiro suave e amargurado e se afastou.
— E ainda assim você teme a mim.
Empurrei o ombro dele. Não tinha força para movê-lo, mas Rook deu
um passo para trás. Meu rosto estava corado.
— Isso é porque você está sendo assustador de propósito!
Ele me desequilibrara e eu estava tomada pela necessidade repentina e
defensiva de retribuir.
— Eu te vi no riacho, sabe. E… E não desviei o olhar.
Meu deus, o que estava dizendo?
— Se eu estivesse com medo, ou com nojo, não teria continuado —
concluí, levantando o queixo, apesar de saber que o gesto tinha um efeito
muito diferente de quando vinha da minha forma diminuta.
Ele me encarou.
— Nossas formas verdadeiras são repugnantes para mortais — falou,
finalmente, como se eu tivesse acabado de declarar que a lua era feita de
queijo.
— Não é como se tivéssemos a oportunidade de vê-las com frequência.
“Repugnante” é um tanto exagerado. Quantos mortais já te viram sem
encanto?
Lentamente, ele sacudiu a cabeça. Interpretei a resposta: ninguém, além
de mim. Nem a moça que lhe dera o broche de corvo? Ah, Rook!
— Bom… — falei, sem ter mais palavras. — É isso, suponho —
concluí, constrangida. — Obrigada pelo casaco.
Ele inclinou a cabeça e andou para longe, lembrando um gato que se
retirava para proteger a dignidade ferida debaixo de uma poltrona. Ainda
corada o suficiente para que meu rosto vermelho quase iluminasse a
clareira, encontrei um pedaço macio de musgo, limpei os galhos e as folhas,
e me enrosquei para dormir.
····
Naquela noite, dormi.
Primeiro, tive a sensação vaga de que algo tentava infiltrar nosso abrigo.
Os galhos estalavam de um lado, depois de outro, conforme o peso corria
sobre as árvores. Entre os cílios, vi Rook dormindo a alguns passos dali.
Estava largado, inteiramente inerte, uma mão espalmada no chão. Lembrei-
me do transe de quando entramos nas terras outonais e me ocorreu que, se
estivesse se curando, talvez não acordasse com a facilidade costumeira.
Cansaço embaçou minha vista. Exaustão cobria minha mente como
águas escuras e mornas, me puxando de volta para o fundo.
Quando voltei à consciência, uma figura estava empoleirada no
salgueiro acima de Rook. Era alta e magra, agarrada aos galhos como um
grilo, os joelhos dobrados puxados para além das orelhas. O cabelo sem cor
flutuava. O rosto branco estava inclinado para a frente, falando com ele,
mesmo sabendo que Rook dormia.
Não, era ela que falava com ele. Hemlock.
— Só resta você agora, Rook — disse.
O tom dela era agradável, mas a entonação tinha um toque sibilante e
incômodo, como a chuva que batia na janela durante uma tempestade.
— Só a corte do outono segue intocada — continuou ela —, e olhe para
você! Está ocupado demais, brandindo a espada por aí e colecionando
mortais de estimação, para notar.
Respondendo a um som que eu não detectava, ela se calou
abruptamente, tensa, e olhou por acima do ombro para o nada.
Silenciosamente, observou a escuridão por um bom tempo antes de se
voltar.
— Estou proibida de tocar nesse assunto, mas você não consegue me
ouvir, não é mesmo? Então vou contar uma coisa a você: eu não respondo
mais ao berrante do inverno.
Os olhos de jade eram tão frios quanto joias polidas.
— A neve derrete nos picos mais altos e a Caça tem um novo mestre —
continuou. — Por mais que eu tente, não posso brincar com isso agora.
Mais uma vez, ela parou e olhou por cima do ombro.
— Na verdade, queria lhe fazer uma pergunta: o que devemos fazer
quando seguir a Boa Lei não é justo? É uma pergunta horrível, não é?
Ela agora falava em sussurros. Um fascínio luminoso tomara seus olhos,
que pareciam engolir o rosto.
— Rook — prosseguiu, abaixando ainda mais a voz —, você já se
perguntou como seria ser algo diferente do que somos?
Juro que não fiz som algum. No entanto, Hemlock de repente se virou
para mim com os olhos reluzentes de gato e abriu um sorriso feroz.
Afundei lá, lá no fundo, lá no escuro. Era só um sonho. Dormi.
····
Rook se mexera durante a noite. Quando pisquei de novo contra a luz da
manhã, encontrei-o virado para mim, tão perto que eu poderia tocá-lo, mas
ainda adormecido. O encanto tinha voltado. Por mais que tivesse me
acostumado à aparência sem encanto, eu o conhecia melhor assim, e fiquei
feliz por vê-lo restaurado. Meu olhar percorreu suas sobrancelhas,
levemente arqueadas até dormindo, seus cílios compridos, suas maçãs do
rosto aristocráticas e sua boca expressiva. Saúde, ou pelo menos a ilusão,
brilhava na pele marrom-dourada, e o cabelo desgrenhado rodeava a
cabeça. Notei uma dobra na bochecha onde aparecia a covinha do sorriso.
Ele inspirou, entre um bocejo abafado e um suspiro, e franziu as
sobrancelhas em pensamento antes de abrir os olhos. Inicialmente
sonolento, seu rosto mostrou a compreensão crescente ao me olhar, seguida
por aceitação de onde estava e com quem. Por algum tempo, ficamos ali
deitados, olhando um para o outro, escutando a brisa que suspirava por
entre as árvores, sempre seguida pelo farfalhar de folhas caídas.
— Posso tocá-la? — perguntou.
Naquele momento, não existia nada além da clareira, além de nós, como
se flutuássemos num mar límpido e imóvel, sem terra à vista. Logo nos
despediríamos. Não havia mal em me permitir aquilo, uma vez que fosse.
Portanto, assenti.
Com a ponta do dedo, percorreu a curva do meu maxilar. Seu toque era
tão leve que eu mal o sentia. Sua mão esbarrou na gola do casaco, que eu
puxara até o pescoço, e o ar fresco do outono entrou aos poucos no meu
casulo quentinho. Ele acariciou a borda da minha orelha, subindo até a
testa. Seu dedo parou perto do meu cabelo.
Morta de vergonha, notei que uma espinha aparecera ali durante a noite.
— Rook! Não toque nisso.
— Por que não? — perguntou, afastando o dedo e olhando para minha
testa. — Não estava aí ontem.
— Não se deve cutucar as espinhas das pessoas. É constrangedor. É… É
que nem quando olhei sua ferida, suponho.
— Seu rosto não está purulento. Nem horrendo.
— Obrigada. Isso foi gentil.
Ele franziu a testa em resposta à minha risada. Altivo, falou:
— Você muda todos os dias, Isobel. Você é linda.
Eu não mentia para mim mesma sobre minha aparência. Não era feia,
nem bonita; ocupava um espaço irrelevante bem no meio. No entanto, Rook
não podia mentir. Apesar do tom irritante, estava sendo sincero. Não era
muito difícil imaginar que fadas viam humanos de forma diferente como
nos víamos. Um calafrio estremeceu no meu peito, mesmo enquanto eu me
determinava a não levar aquilo a sério. Era ele o vaidoso. Eu precisava tirar
minha cabeça das nuvens.
Rook levou a mão ao meu cabelo e o espalhou no musgo, penteando
com os dedos as mechas até que reluzissem, o mais liso e macio que
poderiam ser. Parecia impossível que alguém que vivera centenas de anos e
caçava feras fadas por esporte achasse aquilo divertido, mas sua expressão
era de fascínio. Olhei para as árvores, de repente um pouco assustada com o
quanto eu gostava daquela atenção. Quanto tempo passara? Certamente não
podíamos perder tempo daquela maneira. Ansiedades sombrias invadiam as
beiras dos meus pensamentos, algumas nem um pouco desagradáveis, mas
me surpreendia como temer a Caça Bravia, considerar a possibilidade de
voltar para casa em segurança e sentir medo de ser atacada por mais feras
fadas não eram nem comparáveis a tremer de antecipação só de me
perguntar o que Rook e eu poderíamos fazer se continuássemos assim. O
mundo inteiro e suas inúmeras possibilidades se encolheram, resumidos à
carícia de seus dedos toda vez que tocavam minha pele: toda sua beleza,
todo seu horror. Será que todas as garotas se sentiam assim na primeira vez
que permitiam a um garoto que as tocasse? Não que eu me sentisse
humilhada por isso, mas — até as de dezessete anos?
Ele tocou minha nuca com o nó dos dedos. Bom, estava decidido.
— Precisamos ir andando — declarei, me sentando.
O ar fresco me atingiu como um choque quando deixei cair o casaco.
Rook, no entanto, não se moveu; ele me encarou, indolente, ali do chão,
com um olhar que dizia explicitamente que não queria ir a lugar nenhum,
muito obrigado.
— Levante.
Cutuquei ele com o sapato, esperando que não sentisse quão forçada era
minha compostura.
— Vamos — insisti. — Não podemos passar a manhã largados e
preguiçosos.
Ele permitiu que meu cutucão o virasse de costas.
— Mas eu estou machucado — reclamou. — O processo de cura ainda
não terminou.
— Você me parece estar muito bem. Mas, se insistir que está com dor,
eu serei obrigada a olhar sua ferida, sem encanto. Talvez a inflamação tenha
voltado.
Ele estreitou os olhos. Finalmente, esticou a mão. Sem pensar, eu a
aceitei, para ajudá-lo a ficar em pé. No entanto, assim que o toquei, ele
segurou meus dedos e me puxou, até que caí no peito dele com um baque.
O casaco esvoaçou em seguida, caindo bem sobre nossas pernas. Rook
abriu um sorriso charmoso. Eu o olhei com raiva.
— Vou te atacar com ferro!
— Se é isso que você precisar fazer… — disse ele, fingindo sofrimento.
— Vou mesmo!
— É, eu sei.
Tomei consciência de que o peito dele era muito sólido e de que eu
estava sentada com as pernas ao redor daquela cintura estreita. Nossa
respiração ofegante nos balançou um contra o outro de leve. Calor pesou
em mim de novo, descendo cada vez mais.
Não o ataquei com ferro.
Em vez disso, me inclinei e o beijei.
Dez

“Que decisão estúpida”, pensei. “Enlouqueci completamente e preciso parar


agora.”
Então Rook fez um barulho e entreabriu os lábios sob os meus, e temo
que, por algum tempo, parei de ouvir meu cérebro por completo.
Eu me perdi na pressão hipnótica do ir e vir, na sensação estranha e
inebriante de juntar minha boca à dele. Senti a palma de Rook descer pelas
minhas costas e, com um gesto gracioso e poderoso, ele me pegou no colo.
Automaticamente, apertei minhas pernas ao redor da cintura dele e passei
meus braços ao redor do pescoço, chocada com a altura em que ele me
levantara. Era quase como cavalgá-lo de novo — e só de pensar fiquei
vermelha que nem uma tulipa. Ele deu alguns passos para cruzar a clareira e
pressionou minhas costas contra a casca áspera de uma árvore. Aquele
toque bastou para me arrastar de volta à realidade, pelo menos em parte.
Apesar de Emma ter tomado o cuidado para me educar nos detalhes
daquele tipo de coisa (ou talvez porque ela tivesse me educado,
francamente), uma onda de nervosismo se opôs ao desejo no fundo do meu
ventre. Notando como eu ficara rígida, Rook se afastou um pouco. Ele
esperou, respirando suavemente contra meu rosto. A boca estava corada,
quase machucada. Eu imaginei como estaria minha aparência, mas,
lembrando a espinha, imediatamente me arrependi.
— Hm — falei. — Eu nunca… Quer dizer…
Perdi a coragem completamente.
— Seus dentes ainda estão afiados, tecnicamente? — perguntei, por fim.
— Porque eles não parecem nada afiados. Não entendo como funciona.
Ele estava ofegante; o olhar, desfocado. Franziu um pouco a testa,
voltando a si para processar minha tagarelice ansiosa.
— Nunca estudei as propriedades do encanto. Só sei que não é como
mudar de forma, mas vai além de uma mera ilusão. Eu não vou machucá-la.
Ele reparou em minha relutância. Seus ombros enrijeceram.
— Se preferir não… — falou, mas eu me aproximei e o calei com outro
beijo.
O movimento foi rápido demais e acabamos trombando os narizes, o
que doeu um pouco, mas ele não pareceu se importar. Meu coração ainda
martelava como o de um coelhinho assustado. Por reflexo, apertei com mais
força os dedos no cabelo dele e, de novo, ele fez aquele barulho, que me
deixou internamente tensa como a corda de um arco. Flexionei contra ele
sem querer, e ouvi e senti o movimento da palma com que se apoiava na
árvore ao lado do meu rosto.
Fascinada, eu o estudei. Ele retribuiu meu olhar. Experimentei puxar o
cabelo dele de novo. Rook deixou a cabeça pender um pouco para o lado,
no sentido da minha mão. Entendi o que significava: se eu quisesse, ele me
daria controle completo. Uma onda de desejo puro e completo me deixou
sem ar e, ironicamente, forçou algum bom senso no meu cérebro.
— Não podemos fazer isso! — exclamei. — Vamos parar. Agora. Ah,
caramba.
Soltei as pernas e segurei os ombros dele para descer. Ele entendeu
antes que eu levasse um tombo, e me ajudou a voltar ao chão. Seu rosto
empalidecera, e sua expressão estava perturbada.
— Infringimos a Boa Lei? — perguntei. — Isso conta como infração?
— Não — respondeu ele, rouco. — A não ser que… — hesitou e
sacudiu a cabeça. — Não — repetiu, com a voz mais firme, e pigarreou. —
Se fadas e mortais infringissem a Boa Lei sempre que… é… nos
beijássemos, basta dizer que não sobrariam muitas fadas.
— Sexo realmente pode transformar pessoas em imbecis — falei,
chocada por ter cometido outro erro humano básico ao qual sempre me
acreditara imune. — Rook, não podemos fazer isso de novo. Não vou
hesitar em usar o ferro da próxima vez. Não estou blefando.
Lívido, ele foi buscar o casaco do chão.
— Que bom — falou, e pareceu sincero.
Ajeitei meu vestido, apertei o cadarço do sapato e puxei uma meia
amassada por cima do joelho, desejando ter mais o que fazer para me
ocupar e não precisar olhar para ele. O que eu fizera ia tão contra meus
costumes que mal dava para acreditar. A magia das terras outonais estava
me afetando de alguma forma, talvez? Não conseguia me livrar da
impressão de que alguma coisa sombria se arrastava nos arredores das
minhas lembranças recentes — uma experiência incômoda de que me
esquecera, como um pesadelo. Assim que pensei naquilo, uma das angústias
que me assombrara a manhã toda ganhou forma.
— Hemlock! — falei.
Rook deu meia-volta, brandindo a espada.
— Não, não aqui. Pelo menos não agora. Acho que a vi ontem à noite,
ou talvez tenha sido um sonho.
Eu já tinha começado a duvidar de mim mesma. A imagem de Hemlock
empoleirada nos galhos era intangível, quanto mais eu a segurava mais
rápido fugia.
— Não tenho certeza — continuei. — Se fosse verdade, eu não teria
simplesmente dado as costas e voltado a dormir.
Ele examinou meu rosto com cuidado. Parte da camisa tinha se soltado
da calça e eu contive o impulso de mandá-lo arrumá-la.
— Você não é dada a fantasias — disse ele; pelo menos isso ele sabia.
— Fadas podem aprofundar o sono dos mortais, se quisermos, para circular
por perto discretamente. É comum que mortais interpretem essas visitas
como sonhos. Mas isso significaria que…
— Ela já nos encontrou — concluí, lentamente, as palavras pesadas de
apreensão.
Com um arco aberto, ele girou a espada, cortando fora as tampas de
alguns cogumelos. Continuou de pé, de costas para mim, apoiado na
espada, esforçando-se para não expressar sua derrota. Finalmente entendi
por que as ações de Hemlock causavam um efeito tão pessoal. Rook já
estava inseguro quanto a ser um príncipe adequado, e a facilidade com que
o rastreara nas próprias terras era outro ponto contra ele.
No entanto, eu testemunhara o poder de Rook em primeira mão e não
podia acreditar que era simples assim.
— Ela tentou contar alguma coisa a você — falei, catando detalhes,
frustrada por lembrar tão pouco de útil. — Acho que viera te dar um aviso.
Disse que só restava você agora e que ela não responde mais ao berrante do
inverno. Alguma dessas declarações faz sentido para você?
— Não, mas as duas soam péssimas.
Ele embainhou a espada.
— Isobel, eu…
O intervalo se estendeu num silêncio agonizante. Quando voltou a falar,
era visível que cada confissão lhe era custosa.
— Eu não estava mentindo, é claro, quando falei que não me recuperei
inteiramente. Eu estava contando com despistar a Caça Bravia por vários
dias, pelo menos. Se formos atacados no caminho de volta, quando formos
atacados, temo não ser capaz de protegê-la.
Mordi meu lábio e olhei para baixo. O calor entre nós se dissolvera, um
fogo ardente transformado em cinzas úmidas.
— Deve ter outra opção.
— Voltar às terras estivais seria fútil, se não perigoso. As terras
invernais nem valem consideração, assim como… — hesitou. — Assim
como a minha própria corte, se levarmos em consideração os
acontecimentos recentes. Entretanto, Hemlock não ousaria nos abordar se
fôssemos direto à corte da primavera. Podemos passar algumas noites por lá
e voltar ao reino Excêntrico por um caminho mais seguro.
Nenhum ser humano visitava uma corte feérica e saía vivo. Ou, pelo
menos, nenhum que o fizera continuara humano. Eu era mestre do Ofício,
acompanhada por um príncipe, mas precisava me perguntar se eu era
mesmo um caso especial, ou se todo mortal se iludia e acreditava ser
exceção à regra.
Respirei fundo, trêmula.
— Tenho muitos clientes na corte da primavera.
Rook assentiu, inclinando a cabeça.
— E, se qualquer coisa acontecer comigo, Gadfly honraria seu desejo de
voltar para casa. Disso tenho certeza.
— E quando eu voltar ao reino Excêntrico…
— Nunca mais nos veremos, por bem ou por mal.
Uma dor que não tinha nada de físico apertou meu peito. O que
aconteceria com Rook quando nos despedíssemos? Eu o imaginei voltando
à corte do outono, atravessando um corredor comprido e escuro, sentando
num trono sob milhares de olhares, todos procurando um sinal do erro
humano no seu rosto, o erro que meu retrato expusera. Quanto tempo
levaria até cometer um novo erro e seu povo arreganhar os dentes, pular
nele como lobos sobre um veado ferido. Quanto tempo aguentaria? Eu sabia
que ele não cederia com facilidade. Nem rapidez.
No entanto, eu não tinha como ajudá-lo. Seria bom lembrar que o único
destino sobre o qual eu tinha qualquer controle era o meu. Com frio por fora
e dor por dentro, assenti.
— Então vamos — disse ele, passando por mim com o rosto virado.
····
Um dia reluzente de outono nos recebeu para além da clareira. Andamos
por horas a fio sem sinal da Caça Bravia, sem encontrar nada mais perigoso
do que as bolotas que às vezes caíam das árvores no caminho. Cercada pela
beleza tranquila da floresta, o sol esquentando as costas, era difícil de me
manter pessimista. Até os passos de Rook se tornavam mais leves quanto
mais viajávamos sem empecilho.
— Por que você está sorrindo? — perguntei, me inclinando em outra
tentativa fútil de limpar meus dedos melados das maçãs que encontramos
para almoçar, e observando-o com desconfiança.
— Acabei de lembrar que a corte da primavera organiza um baile nesta
época. Se não tivermos perdido, talvez possamos participar.
— Claro, parece a escolha perfeita enquanto fugimos do perigo mortal
— falei.
— Está combinado então, nós vamos — concluiu ele, satisfeito.
Ri, nem um pouco surpresa.
— Fadas são impossíveis.
— Que irregular, vindo de uma humana que nem pode comer lebre crua.
Correndo atrás dele, tentando acompanhar os passos largos, decidi não
bater boca sobre a lebre. Estava começando a entender que o Ofício era tão
enigmático para fadas que dava na mesma se eu tivesse me recusado a
comer carne que não fosse banhada em lágrimas de viúva sob a lua nova.
Entender que minha própria magia era mais misteriosa para fadas do que a
delas para mim era uma experiência peculiar. Sentia-me como uma
feiticeira com indisposições delicadas e arcanas, em vez de uma artista e
pessoa perfeitamente comum.
Passamos por um esquilo sobre uma pedra musgosa. Virei para olhar de
novo, mas tanto a pedra quanto o esquilo tinham sumido. Olhando ao redor
da floresta, notei que, apesar de ser composta do mesmo tipo de árvore pela
qual nós passamos antes, não eram as mesmas árvores, não exatamente.
Virei para a frente e para trás de novo. Isso — o freixo do galho comprido
tinha sumido. Forçando o olhar, achei enxergá-lo a mais ou menos meio
quilômetro de distância. Com todas as folhas no meio do caminho, era
difícil de ter certeza.
Lembrei-me das lendas antigas e hesitei.
— Você não está manipulando o tempo, está? — perguntei.
Ele me olhou com altivez sobre o ombro, o que significava que estava
confuso com a pergunta e não queria admitir.
— Quando eu chegar ao reino Excêntrico, não vou descobrir que todo
mundo que conheço morreu um século antes, ou que de repente me
transformei numa velha? Porque, se for o caso, você precisa consertar —
falei com firmeza, tentando conter meu medo crescente. — Acabei de notar
como estamos viajando. Cada poucos passos devem equivaler a uns quinze
ou mais minutos de caminhada.
— Não, as terras outonais estão simplesmente obedecendo a mim e nos
acelerando. Quer dizer que não tinha reparado até agora?
Franzi a testa. Não tinha reparado mesmo.
— Dou minha palavra de que o tempo passou normalmente desde que
entramos na floresta — continuou ele. — Você está pensando em um
sortilégio, uma brincadeira horrível contra humanos. Que é, claro, o motivo
para fazerem esse tipo de coisa.
— É melhor você nunca ter feito isso com ninguém — adverti.
— Não fiz! — disse ele, insistente. — Eu sempre achei um tanto
exaustivo — acrescentou, estragando o efeito da negação. — Tudo que eles
fazem depois é vazar um monte e voltar para a floresta para gritar.
Sacudi a cabeça. Meu deus, que desastre.
Continuamos andando. Em um instante eu estava admirando sorveiras
flamejantes, e no outro pisava numa floresta diferente. Tudo era verde. Não
o verde rico e fervilhante do verão, mas verde-claro, verde-rendado, verde-
dourado e delicado, todos os verdes cobrindo árvores em camadas, como
glacê e seda. Flores silvestres se espalhavam ao redor dos meus pés,
chegando aos meus joelhos. Uma abelha zumbiu tranquila perto do meu
rosto.
Uma gargalhada de deleite brotou em meu peito. Estávamos nas terras
primaveris!
— Podemos parar um pouco? — gritei, pois Rook não tinha
desacelerado e já estava quase do outro lado daquela clareira. — Só se for
seguro. Isso é maravilhoso. Quero tentar pintar esse cenário quando chegar
em casa.
Ele parou, me olhando furtivamente.
— É quase tão lindo quanto as terras outonais — acrescentei em voz
alta, para proteger seu orgulho.
Isso pareceu acalmá-lo.
— Tem um lugar para sentar bem aqui.
Ele passou por baixo de uns galhos. Quando o alcancei, estava sentado
na beira de uma pedra quase toda coberta de musgo. Jacintos e samambaias
com aparência de plumagem brotavam ao redor. Eu me sentei do lado
oposto, de costas para ele, pois, devido aos acontecimentos da manhã, a
distância parecia importante, e considerei tirar os sapatos.
Foi então que vi o poço e me esqueci completamente de mexer os dedos
nas samambaias. O poço era pequeno e velho, sua aparência era
inteiramente genérica. Olhei por muito tempo.
Rook falou baixo:
— Eu trouxe você ao Poço Verde.
Dei um pulo como se tivesse acabado de sentar em um leito de carvão
em brasa. Um ruído lamacento tomou meus ouvidos e meu olhar escureceu.
Desesperada para fugir, cambaleei até uma árvore na qual me encostei,
suando frio e estremecendo. Nunca desmaiara antes, mas a sensação de
estar à beira de um desmaio era inconfundível.
Rook voltou a falar, a cabeça inclinada, sem olhar para mim por cima do
ombro. Meu movimento abrupto o confundira; acho que não vira minha
reação extrema.
— Nada acontecerá a não ser que você beba dele. Mas entendo que a
oportunidade de beber do Poço Verde é o maior desejo de muitos humanos.
Deslizei até o chão e me sentei, desconfortável, nas raízes nodosas e
salientes, flores silvestres pinicando minhas pernas. Ele estava certo. Entre
os mortais que sumiam na floresta, a maioria procurava o Poço Verde,
esperando encontrá-lo por conta própria apesar do risco intransponível.
Mestres do Ofício trabalhavam por anos na busca por aquele fim específico.
Talvez um só humano a cada cem anos recebesse tal honra. Era desejada
mais do que qualquer feitiço, do que qualquer quantidade de ouro reluzente.
De tudo que havia na terra, o Poço era o que eu mais temia.
— Passou por minha cabeça — continuou ele — que seria uma
alternativa ideal nas suas circunstâncias. Você não precisaria da minha
proteção, nem temeria os perigos da floresta. Poderia ir e vir livremente nas
terras outonais… e qualquer outra corte feérica — acrescentou rapidamente.
— Além disso, claro, viveria para sempre.
De alguma forma, encontrei minha voz.
— Não posso.
Ele olhou para mim e, absorvendo minha expressão, começou a se
levantar.
— Isobel! Você adoeceu?
Sacudi a cabeça.
Uma hesitação.
— Está morrendo de fome? — perguntou, nervoso.
Fechei os olhos com força, engolindo uma risada dolorida.
— Não. É o Poço Verde. Rook, você precisa entender uma coisa sobre
mim. Meu Ofício não é só uma atividade que eu pratico. Meu Ofício é
quem eu sou. Se eu bebesse, me perderia e perderia tudo que me é
importante. Sei que é difícil de entender, porque você nunca foi mortal, mas
o vazio que vislumbrei no seu povo me apavora mais do que a morte. Eu
não consideraria o Poço Verde nem como último recurso. Prefiro ser
destroçada pela Caça Bravia a me tornar uma fada.
Rook voltou a sentar, absorvendo minhas palavras. Esperava ofendê-lo,
mas só parecia um pouco tonto, como se tivesse levado uma pancada na
cabeça. Talvez o esforço para entender o que eu dissera o perturbasse. Na
perspectiva dele, afinal, emoções humanas não eram uma benção — eram
tortura e maldição. Quem não gostaria de se livrar daquilo?
Depois de muito hesitar, ele assentiu de leve.
— Muito bem, então. Não pedirei de novo. Agora, no entanto,
precisamos discutir outra questão antes de continuarmos o caminho para a
corte da primavera. É um assunto de enorme importância.
— Continue, por favor — falei.
O pavor gelado que me agarrara derreteu aos poucos, deixando para trás
um tremor fraco. Ver o Poço Verde e recusá-lo em voz alta o tornara menos
ameaçador. Eu o encarara e saíra sã e salva.
As samambaias farfalharam. Levantei o olhar e vi Rook andar em
círculos pela clareira.
— Fadas não levam humanos à floresta à toa. Na verdade, você será a
primeira mortal a visitar a corte da primavera em mais de mil anos. Para
evitar suspeita, precisamos inventar uma explicação para estarmos viajando
juntos. Mas…
— Não pode ser mentira, senão você não poderá falar a respeito.
Ele me olhou de relance e assentiu, rápido.
— Sempre ouvi dizer que as melhores mentiras são as mais próximas da
verdade. Ao nos ver juntos, qual vai ser a primeira coisa a passar pela
cabeça deles?
— Que nos apaixonamos — disse ele, em tom inteiramente neutro.
— E não seria sua primeira vez.
Ele congelou.
— Vi o que você guarda no broche de corvo… — continuei. — Foi sem
querer, quando você estava inconsciente. Perdão, Rook. Não vou me meter,
mas é relevante para nossa situação. Naturalmente, chegariam a conclusões,
por mais absurdas…
Observei a imobilidade dele. O medo ressoou em mim como o eco de
um gongo. Minha pele se arrepiou em calafrios.
— Você está apaixonado por mim? — perguntei de uma vez.
Um silêncio horrível se seguiu. Rook não se virou.
— Por favor, diga alguma coisa.
Ele se voltou na minha direção.
— É mesmo tão horrível assim? Você fala como se fosse a pior coisa
que conseguiria imaginar. Não é como se eu tivesse feito isso de propósito.
De algum jeito, eu até passei a gostar das suas… suas perguntas irritantes, e
das suas pernas curtas, e das suas tentativas acidentais de me matar.
Eu recuei.
— Essa é a pior declaração de amor da história!
— Que sorte — disse ele, amargo —, que sorte a sua, que sorte a nossa,
você se sentir assim. Não vamos infringir a Boa Lei tão cedo.
Desviei o olhar da pura angústia nos olhos dele.
— O amor precisa ser recíproco, afinal — concluiu Rook.
— Que bom — falei, olhando para minhas mãos.
— É, que bom! — disse ele, continuando a andar em círculos. — Você
deixou bem claro o que acha das fadas. Agora pare de me causar
sentimentos — mandou, como se fosse simples assim. — Preciso pensar.
Meu rosto ficou quente e frio ao mesmo tempo. As palavras dele
ecoaram em minha cabeça. Não era assim que eu imaginava um romance,
se me acontecesse um dia. Meu deus, como estávamos perto do desastre. Se
nossos sentimentos tivessem se sobreposto…
Teria feito diferença? Eu não tinha tanta certeza de que o que sentira por
Rook no estúdio era amor. À época, parecia. Nunca havia sentido nada
assim antes. No entanto, eu mal conhecia Rook, apesar de, na paixão febril,
ter a impressão de que fazia anos que nos abríamos um para o outro. Seria
mesmo possível amar alguém assim, quando ele era só uma ilusão
agradável? Se eu soubesse que me sequestraria por causa de um retrato,
ouso dizer que teria mudado de ideia.
E, ainda assim, eu sentia alguma coisa por ele. O que era aquela alguma
coisa? Cutuquei minhas emoções como um nó apertado e não cheguei mais
perto da resposta. Estava fascinada pelo que ele representava: o vento
desejoso do outono, a promessa do fim ao verão eterno? Só queria que
minha vida mudasse, ou queria que mudasse com ele?
Francamente, para começo de conversa, eu não fazia a menor ideia de
como as pessoas sabiam se estavam mesmo apaixonadas. Havia um fio que
puxavam do nó e dizia “Sim, estou apaixonada, eis a prova!”, ou estaria
sempre embolado nesse emaranhado desgraçado de se, mas e talvez?
Ah, que bagunça. Enfiei o rosto nas minhas saias e gemi. Só tinha
certeza de uma coisa: se nem eu mesma conseguia me entender, não seria a
Boa Lei que entenderia por mim.
A sombra de Rook caiu sobre meu cabelo solto.
— Seu comportamento está me distraindo demais — anunciou. —
Preciso ter uma ideia logo, ou ficaremos presos a noite toda aqui.
Minha resposta saiu abafada pelo tecido.
— Não importa o que seja, deve ter a ver com Ofício. É a única coisa
com que podemos contar para distraí-los de fato.
Só então me veio à cabeça que Rook nem saberia por onde começar,
pois não fazia a menor ideia do que o Ofício envolvia. Olhei para ele entre
minhas mechas de cabelo e o vi acima de mim, previsivelmente frustrado,
um músculo latejando na bochecha enquanto apertava o maxilar.
Isso significava que eu deveria encontrar a solução — o que, sem
dúvida, seria muito melhor para nós dois, no fim. Mentalmente, organizei
nossos problemas como amostras de tinta: minha presença na floresta, a
companhia de Rook e até o dilema do retrato, pois a notícia talvez já tivesse
chegado à corte da primavera. Como se misturasse uma nova cor, comecei a
ver que poderia sair dali algo não só satisfatório, mas talvez até
extraordinário.
— Ouça — falei, levantando o rosto. — Tenho uma ideia.
Onze

Meu plano exigiu uma certa discussão para confirmar que Rook poderia
dizer as informações necessárias. Ensaiamos ao caminhar e ele ficou bem
satisfeito. Eu também estava mais do que satisfeita. Sentia o prazer
reluzente de quando negociava um feitiço especialmente trabalhoso, ou
esticava e emoldurava um mês de telas com antecedência. Meu mundo
voltou à ordem e eu finalmente tinha algum controle sobre o que
aconteceria a seguir. Além disso, talvez eu até pudesse consertar minha
sabotagem acidental.
— Você acha mesmo que isso pode restaurar sua reputação? —
perguntei, levantando a saia para pular as prímulas amarelas do campo.
Sempre que a brisa mudava de direção, trazia uma nova fragrância —
algumas eu identificava, mas outras eram completamente novas.
— No estado em que se encontra minha reputação atualmente, duvido
que qualquer coisa possa restaurá-la — respondeu ele, com um sorriso
torto. — Mas o retrato… sim, acredito que possa. Estou aliviado por não
estar mais do outro lado de seus estratagemas. Você é muito mais ardilosa
do que parece.
Por mais que tentasse evitar, ouvia um eco da confissão de Rook em
tudo que ele dizia depois que deixamos o poço para trás. Sabendo procurá-
la, percebia a admiração calorosa em seu tom. Apesar de o nosso humor ter
se tornado mais leve, o ar perfumado pesava de tensão. Forcei uma
gargalhada, me concentrando nos passos através das flores altas e
emaranhadas.
— Não sou ardilosa, só prática. Mas suponho que fadas não ligam
muito para praticidade.
Ele franziu a testa, tentando entender se eu o insultara.
— Olhe — falei, rápido, escondendo meu riso ao andar até uma enorme
pedra musgosa. — Esta flor é do tamanho da minha mão. O que as fazem
crescer tanto?
Assim que me abaixei e colhi a flor, uma perna vestida apareceu ao meu
lado. A calça era feita de seda rosa-cinzenta e brilhante, e outra perna igual
veio a seguir. Dei um pulo para trás e caí sentada a tempo de ver Gadfly
acabar de sair do espaço entre os dois pedaços da pedra quebrada. Era ainda
mais estranho porque — eu tinha completa certeza — ele não surgira do
outro lado. De alguma forma eu havia tropeçado na entrada de um caminho
das fadas.
— Boa tarde, Isobel — disse ele, agradável, ajeitando a gravata
impecavelmente arrumada.
Ele não pareceu nada surpreso por me encontrar no chão à sua frente,
assustada e segurando uma prímula.
Quando o choque passou, reparei que estava absurdamente feliz por vê-
lo. A saudade de casa que eu não tivera tempo de sentir nos últimos dias me
atingiu como uma carruagem desgovernada. Passara anos com ele no
estúdio e, apesar dos olhos azuis-claros não indicarem o menor sinal de
calor genuíno, seu rosto era o mais familiar que vira desde que partira de
casa.
Quase exclamei seu nome, mas me controlei no último segundo. Meus
modos tinham deteriorado horrivelmente no tempo em que passei na
companhia do Rook.
— É maravilhoso vê-lo, Gadfly — falei, me levantando para uma
reverência. — Rook o informou de nossa chegada?
Se fosse o caso, seria novidade para mim.
Ele se curvou em reverência e olhou de relance para Rook.
— Nosso querido Rook por acaso se importa com tais cortesias? Não,
eu simplesmente sabia que vocês viriam. Muito pouco passa batido por
mim nas terras primaveris… Nem mesmo uma flor arrancada.
Olhei para a prímula, culpada.
— Fique com ela, por favor — insistiu ele. — Considere um presente de
boas-vindas ao meu reino.
Enquanto eu digeria as palavras curiosas, ele passou por mim e andou
em círculos ao redor de Rook, que aguentou a inspeção com o queixo
levantado e o rosto duro. Ao compará-los, senti um orgulho estranho em
constatar que Rook era vários centímetros mais alto. O seu cabelo escuro e
desgrenhado e seus olhos marcantes o diferenciavam da palidez pastel de
Gadfly como noite e dia. Apesar de ser, por muito, o mais jovem dos dois,
ele estava, em todos os sentidos, à altura de Gadfly.
— Essas roupas saíram de moda há pelo menos cinquenta anos — dizia
Gadfly. — Ninguém usa botões de cobre na corte da primavera. Se insistir
em ficar, teremos de achar…
O que ele disse depois e o que Rook respondeu se perderam de mim
quando acabei de digerir a declaração: boas-vindas ao meu reino.
Pigarreei. Gadfly me olhou.
— Gadfly, o senhor é o príncipe da primavera?
Ele sorriu.
— Sim, claro. O próprio! Certamente já mencionei esse fato?
— Não, não posso dizer que mencionou.
— Que distração a minha. Sou tão esquecido com mortais…
Simplesmente presumo que todos já saibam.
Enquanto Gadfly falava, Rook o estudava com uma expressão ilegível.
— Ora, não tema, Isobel — continuou Gadfly. — Seus modos são
irretocáveis. Sempre me senti tratado como príncipe em seu lar. Agora,
antes que eu esqueça outro detalhe, poderia me dizer por que está vagando
pela floresta, especialmente em companhia tão distinta?
— Na verdade… — falei, olhando para Rook.
Fiquei agradecida por termos planejado que seria ele quem explicaria,
pois a revelação do cargo de Gadfly me deixara sem palavras.
— Vamos conversar enquanto caminhamos — sugeriu Rook, ajeitando
o casaco e apertando o cinto da espada, com o que me parecia certa
irritação.
Eu me perguntei se ele tinha levado a sério as críticas de Gadfly. Em
seguida, Rook começou a andar pelo prado, deixando a gente para trás.
— Ele é uma figura singular, não é mesmo? — comentou Gadfly.
Como eu poderia responder àquilo sem revelar nada? Decidi-me pela
resposta mais simples que me ocorreu:
— É mesmo, senhor. Acho todas as fadas muito singulares.
— Ah, como eu gostaria que fosse verdade! Mas temo que sejamos
todas iguais — respondeu, com um sorriso tão sutil e gelado quanto a neve
que começava a derreter na primavera. — Quase todas. Agora, Rook… O
que você estava falando?
Avançando na nossa frente, Rook estava nitidamente cansado de tantas
prímulas.
— Como você bem sabe — disse ele, impaciente —, Isobel é dotada do
Ofício mais distinto do reino Excêntrico atualmente. O retrato que pintou de
mim era diferente de tudo que já vimos na corte do outono.
— Ouvi falar — respondeu Gadfly.
Precisei fazer um esforço monumental para não olhar para ele e analisar
sua reação.
— Foi um choque para todos nós, especialmente para mim. A princípio,
imaginei que fosse um ato de sabotagem, pelo qual Isobel deveria ser
julgada. Entretanto, a caminho da corte do outono, descobri que ela não
tinha intenções maliciosas. Ela simplesmente pintara uma emoção humana
em meu rosto, com enorme talento, sem entender o que tinha feito.
Isso tudo era verdade… de certa forma.
— Agora, Isobel está interessada em replicar seu novo Ofício —
acrescentou.
— Emoções humanas, Gadfly — continuei, mais confiante a cada
momento em que não cometíamos deslizes. — O senhor já provou de tudo
que o Ofício tem a oferecer: bolinhos e porcelanas, ternos de seda, livros,
espadas. Continuamos a inventar versões diferentes das mesmas coisas, mas
o que eu gostaria de experimentar é completamente novo. Eu poderia pintar
alegria verdadeira em seu rosto. Assombro em outro retrato. Risada, ou
fúria… até tristeza. Rook me informou que o seu povo acharia isso tudo
muito divertido.
— Por conta disso, eu a trouxe à corte da primavera, onde ela pode
demonstrar o trabalho primeiro para os clientes mais dedicados — concluiu
Rook, grandioso. — Se os resultados forem satisfatórios, acredito que tal
Ofício mereça uma recompensa justa. Proponho que, caso ela escolha
aceitá-lo, o pagamento de Isobel deverá ser uma visita ao Poço Verde.
Meu sorriso era radiante de inocência. Uma visita, não um gole.
— Algo inteiramente novo — murmurou Gadfly, sua voz distante.
Por um momento, pareceu muito mais velho do que a idade aparentava.
As abelhas pararam de zumbir no ar de mel, e todos os pássaros cessaram
de cantar. Prendi a respiração com o resto do mundo.
— Sim — disse ele, enfim. — Sim, acho excelente. Isobel, Rook, seria
um prazer hospedá-los. Pelo tempo que estiverem na corte da primavera,
terão tudo de que precisarem.
····
Chegamos à corte muito antes do que esperava, e quase entrei direto, sem
reparar onde estávamos. Bétulas mais largas do que a altura de um homem
cresciam ao nosso redor, chegando a alturas impressionantes. Inclinando o
pescoço, vi que os galhos eram entrelaçados de forma muito parecida com
os abrigos de Rook; voando entre eles havia passarinhos canoros e beija-
flores coloridos como joias. A única árvore que se destacava das outras era
um corniso antigo e nodoso em plena floração, elevado em um montículo
musgoso. Crescera num formato estranho e, ao tentar entender, reparei que
não era uma mera árvore, mas um trono.
Assim que cheguei àquela conclusão, a floresta ao meu redor mudou.
Gargalhadas argênteas encheram o ar, com um brilho que lembrava o vapor
escapando de uma chaleira; cadeiras estofadas, almofadas de seda e toalhas
de piquenique se espalharam pelo campo florido. Até então invisíveis,
dezenas, se não centenas, de fadas nos viam chegar, em vários estados de
repouso. Minhas pernas ficaram bambas, como se fossem líquidas, e
precisei me forçar a continuar andando. Nunca tinha visto nem uma fração
daquela quantidade de fadas de uma vez no mesmo lugar. Pior ainda: eles
não estavam nos observando. Estavam olhando para mim, só para mim: a
primeira mortal a pisar naquela corte em mais de mil anos.
Quando nos aproximamos do trono, uma menina se levantou de uma
toalha — parecia estar tomando chá, mas todas as xícaras estavam vazias —
e correu na nossa direção, o cabelo loiro e comprido esvoaçante, as muitas
camadas do vestido azul-lavanda ondeando como o mar. Quando nos
alcançou, ela me assustou ao pegar minhas duas mãos. Sua pele era fria e
impecável como porcelana. Se fosse humana, diria que tinha uns quatorze
anos.
— Ah, uma mortal! Gadfly, você nos trouxe uma mortal! — gritou em
um simulacro de deleite exultante, revelando que todos seus dentinhos
brancos eram pontudos como os de um tubarão. — Precisamos apresentá-la
sem falta a Aster, ela ficará tão alegre! Você vai beber do Poço Verde? —
perguntou, voltando a atenção para mim. — Por favor, diga que sim, por
favor! Podemos ser melhores amigas. Claro que ainda podemos ser
melhores amigas se você não beber, mas você morrerá tão rápido que mal
valerá a pena!
Gadfly tocou o ombro dela.
— Isobel, esta é minha… — hesitou, procurando a palavra. — Minha
sobrinha, Lark. Por favor, perdoe a empolgação. É a primeira vez que ela
conhece uma mortal. Garanto que ela se comportará muito bem para com
você, nossa convidada de honra.
Isso era obviamente mais dirigido a Lark do que a mim.
Fiz uma reverência meio torta, o que era difícil, pois ela ainda segurava
minhas mãos. No entanto, parecia valer, pois, para meu alívio, ela me soltou
e retribuiu. Meus dedos ardiam como se tivessem sido mergulhados em
gelo.
— É um prazer conhecê-la, Lark.
— Claro que é! — respondeu ela.
— E você já conhece Rook — continuou Gadfly, educadamente.
— Oi, Rook — disse Lark sem desviar o olhar do meu rosto. — Você
pode se transformar em lebre de novo para eu tentar pegar você?
Rook riu.
— Isso é brincadeira de criança, Lark. Agora você já é uma jovem
dama.
— Você é chato. Coitada da Isobel, deve estar de saco cheio de você.
Posso trocar as roupas dela? — perguntou para Gadfly, cujo sorriso estava
se tornando fixo.
— Daqui a pouco, querida. Por enquanto, eu e Isobel precisamos
discutir o Ofício. Por que você não senta aqui ao lado do trono e pensa nos
vestidos que gostaria que ela usasse? Lembre-se de que ela não pode usar
encanto, então o vestido precisa ser novo.
Ele inclinou a cabeça, insistente.
— Ah, tá bom! — suspirou ela, jogando-se ao lado do trono numa pilha
trágica de seda azul.
— Agora — disse Gadfly, aprumando-se com elegância na plataforma
do corniso —, o que precisaremos providenciar para que você trabalhe em
seu Ofício? Temo que não tenhamos materiais semelhantes aos que vi no
seu estúdio. Posso mandar buscarem materiais no reino Excêntrico, mas
minha corte está horrivelmente ocupada com preparações do baile de
máscaras, e a entrega pode demorar um pouco.
Resisti à vontade de olhar para as fadas ao nosso redor, nenhuma das
quais fazia qualquer coisa mais produtiva do que mordiscar biscoito.
— Deixe-me pensar, senhor.
O que eu poderia usar?
— Primeiro, precisarei de um substituto para tela ou papel — falei. —
Talvez folhas de casca de árvore, finas e de cor pálida, firmes mas
suficientemente flexíveis para esticar sem rachar. Casca de bétula pode
funcionar bem, e aqui parece ter em abundância.
Era minha imaginação ou os galhos do trono de Gadfly se mexiam?
— Além disso — continuei, incomodada em pensar que o corniso podia
ter se ofendido —, acho que posso colher pigmentos naturais sozinha. Tinha
o hábito de fazê-lo quando criança.
— Excelente — disse ele, levando um dedo aracnídeo aos lábios. —
Uma cadeira e um suporte para a casca?
— Parece ótimo, senhor.
Eu não fazia a menor ideia do que poderia usar como pincel ou lápis,
mas daria um jeito. Se necessário, usaria os dedos.
— Por causa da diferença de material — acrescentei —, os retratos não
terão a mesma aparência dos que costumo fazer, nem durarão tanto tempo.
Entretanto, se o trabalho lhe agradar, seria um prazer reproduzi-los a óleo.
Ou seja, usando meu método costumeiro — expliquei, sabendo que talvez
ele não me entendesse.
— Será que agora eu posso vesti-la? — disse Lark do chão, onde
continuava largada na mesma pilha lamentável.
Gadfly ergueu uma sobrancelha e me olhou.
— Hm — falei. — Suponho que sim. Mas eu devia…
— Você vai experimentar tudo! — exclamou Lark, sua mão gelada
fechando em meu punho como um torno.
Antes que eu pudesse reagir, estava sendo arrastada entre as fadas
risonhas, sem esperança de fuga. Olhei por cima do ombro para Rook, que
me observava partir com atenção, e me reconfortei ao pensar que ele logo
inventaria uma desculpa para eu não sufocar entre saias de seda do século
anterior.
Lark me puxou até uma das bétulas gigantescas, que tinha cipós grossos
enroscados como uma escada em espiral. Ela subiu os degraus de aparência
duvidosa sem hesitação, me arrastando junto. Subimos mais e mais, as
fadas no chão diminuindo até o tamanho de soldadinhos de chumbo.
Concluí que, se prestasse atenção aos meus passos nas raízes nodosas, não
olhasse para baixo e segurasse o tronco com a mão livre, era capaz de
resistir à vontade de vomitar na roupa de Lark. Ela tagarelou alegre o tempo
inteiro, sem parecer se importar com minha falta de resposta.
No topo, emergimos num labirinto de folhas. Lembrava um pouco os
labirintos de sebes, mas, no lugar das sebes, eram caramanchões arqueados
de galhos brancos que lembravam vime, preenchidos por folhas de um
verde-claro. O chão era um pouco elástico, mas ainda assim sólido. Eu não
me incomodaria de andar ali se não soubesse da enorme altura. Objetos de
Ofício estavam empilhados pelo caminho, subindo pelas paredes em montes
instáveis de móveis, almofadas, livros, pinturas e louças. Joias brilhavam
penduradas em pernas de cadeiras caídas; aranhas teciam teias cintilantes
entre atlas e cabideiros de bronze.
— Por aqui! — gritou Lark.
Ela me puxou com tanta força que quase deslocou meu ombro, me
arrastando por um dos corredores. Correndo atrás dela, precisei dar
pulinhos de lado para me esgueirar entre as passagens estreitas, e suspeito
ter destruído os lares de algumas aranhas no caminho.
— Eu guardo meus vestidos na Toca do Passarinho — disse ela. —
Damos nome para todos os cômodos, mesmo que não sejam bem cômodos,
porque isso é algo que mortais fazem.
— Ah, que bacana — respondi baixinho, tomada por pavor.
No fim, entretanto, apesar do nome pouco propício, a Toca do
Passarinho era mais ou menos igual ao resto do labirinto, mas na forma de
uma câmara abobadada anexa a um dos corredores, onde passarinhos
canoros se aglomeravam. Quando entramos, eles saíram voando em uma
explosão melódica. Cipós floridos protegiam a parede mais distante, como
uma cortina. Lark finalmente soltou meu braço, que estava dolorido, para se
enfiar atrás da cortina de cipós, sumindo até a cintura.
— Aqui — disse ela, jogando uma pilha de seda nos meus braços. —
Tire esse seu vestido marrom velho e sem graça e vista isso. Talvez fique
comprido porque você é baixinha, mas você pode mudar, não pode? E
depois deixar como era?
Levei um momento para entender o que ela queria dizer.
— Não faço esse tipo de Ofício, infelizmente. Sei costurar um pouco,
para remendar rasgos, coisas assim, mas não sou alfaiate.
Lark se endireitou e me encarou, confusa. Os olhos grandes, afastados e
azuis lembravam os de um pardal curioso. Se não fosse pelos dentes, eu
acharia a aparência dela muito agradável.
— Algumas fadas têm tipos diferentes de magia, não têm? — tentei. —
Magia que é única a elas, ou a poucos do seu povo, que nem o Rook, que é
capaz de mudar de forma, por exemplo.
— Sim! — exclamou ela. — Que nem o Gadfly sabe das coisas antes
que elas aconteçam.
Guardei aquela informação para o futuro.
— Ora, é o mesmo que acontece com mortais e o Ofício. Minha
especialidade é fazer imagens do rosto das pessoas. Sei fazer um pouquinho
de comida, mas não sei muito o que fazer com roupas, e nada de armas.
— E quem precisa de armas! Se eu fosse mortal, gostaria do Ofício para
fazer vestidos. Por favor, vista isso logo?
Olhei com uma careta para o tecido cor-de-rosa.
— Claro. Segure para mim enquanto me apronto?
Devolvi o vestido e me despi do meu. Por falta de onde guardá-lo, eu o
deixei no chão e tentei enfiar o vestido novo com a “ajuda” de Lark, que
envolvia uma quantidade desnecessária de cutucões e puxões. O tempo todo
pensei no anel de ferro escondido no meu bolso, e desejei ter pensado em
guardá-lo nas meias.
— Você está muito mais bonita — disse ela com seriedade quando
acabamos. — Mas rosa não é sua cor. Tire de novo!
Ela mergulhou outra vez no armário.
Eu estava me livrando do monte de tecido quando um farfalhar soou da
parede. Quando me virei, encontrei um corvo bicando os galhos. Ele virou a
cabeça de um lado para o outro, puxando e cortando folhas para abrir
caminho, nos dirigindo um olhar roxo e exigente. Fui tomada por alívio,
logo antes da lembrança incômoda de que estava vestindo só as roupas de
baixo. Apertei os braços contra o peito assim que Rook acabou de enfiar a
cabeça entre os galhos. Preso pela metade para fora da parede, ele chilreou
irritado.
Não me contive, acabei rindo. Era difícil sentir vergonha de um
passarinho.
— Tudo bem, fique quieto — falei.
Fui até ele e passei a mão ao lado das penas para afastar o resto dos
galhos. Ele voou até o chão. E, com um ar de importância, atravessou o
cômodo andando e puxou a saia do vestido de Lark.
— Pare! — disse ela. — Estou ocupada. Não vou quebrar ela, prometo.
Rook e eu nos entreolhamos. Ela dera sua palavra, querendo ou não,
mas eu me perguntei o quanto valia, considerando a pouca probabilidade de
Lark entender, exatamente, como se quebrava um mortal.
Ela deu meia-volta.
— Este aqui.
O rosto dela brilhava de satisfação.
Meu deus. Era um vestido Firth & Maester. Eu o aceitei com relutância,
como se fosse o colar de diamantes de uma rainha, e o apertei contra meu
corpo, meus joelhos bem juntos, excessivamente atenta a Rook, que estava
logo ali.
— Lark, não sei se este é ideal. Daqui a pouco eu tenho que me enfiar
na floresta, para procurar frutas, e detestaria sujar o vestido.
— Por que você se importaria com isso?
— Bem, porque aí estaria estragado. Gadfly não ficaria chateado por
precisar substituí-lo?
— Que boba. Olhe só!
Ela pegou outro vestido do meio dos cipós. Eu me encolhi
involuntariamente. Parecia ter servido de vestido de noiva muito tempo
antes, mas o tecido, que um dia tinha sido branco, estava imundo e
cinzento, destruído por buracos de traça. As fitas penduradas da cintura
estavam tão podres que uma caiu quando Lark puxou o vestido. No entanto,
assim que a roupa tocou o corpo dela, desdobrou mais cetim nevado. A
renda se restaurou como flores brotando, e as fitas se desenrolaram até o
chão, imaculadas. O vestido parecia recém-feito, sem o menor sinal de uso.
Ao ver minha expressão, Lark caiu na gargalhada, mostrando todos os
dentinhos pontudos. Em seguida, parou de rir de uma vez, como se tivesse
fechado a tampa de uma caixinha de música.
— É por isso que ele me mandou buscar um novo — explicou ela. —
Mas só podemos deixá-los exatamente igual a como eram. Não tenho como
mudar a forma, nem como acrescentar nada.
Ela me observou. E notei que estava prestes a perguntar sobre minha
capacidade de costurar de novo, então rapidamente vesti a roupa da Firth &
Maester antes que ela tivesse a oportunidade.
O vestido era feito de um lindo cetim verde-sálvia. O corpete era
bordado com passarinhos minúsculos em linha prateada, e uma fita de cetim
cor de creme marcava a cintura alta, abaixo da qual uma camada a mais de
musseline translúcida cobria a saia verde. Era cintilante e diáfano, como
uma asa de libélula. Em um dia comum, eu nunca vestiria algo tão fino sem
uma boa anágua, e o toque do tecido suave era desconhecido por minhas
pernas nuas, era sedoso e sutil como água. Não combinava nada com
minhas botinas de couro grosso, cuja ponta aparecia sob a bainha, mas
aquele era um aspecto que eu me recusava a mudar. Nunca se sabia quando
eu precisaria correr.
— Perfeito para colher frutinhas — brinquei, sem força.
— E você?
Lark perguntara aquilo para Rook, que me observava com a cabeça
inclinada. Calor tomou meu rosto e eu resisti ao impulso de cruzar os
braços de novo, apesar de não ter nada a esconder.
— Gadfly já fez você trocar aquelas roupas sem graça das terras
outonais? — insistiu ela.
Vento sacudiu a Toca do Passarinho e Rook se materializou ao nosso
lado, desgrenhado e irritado.
— Claro, foi a primeira coisa que ele ordenou. Mas essas cores não
combinam nada comigo.
— Deixe de ser chato! Preto e marrom e sei lá mais o que você vestia
não combinam com ninguém. Acho que você está muito elegante.
— Acredito que devemos concordar em discordar no que diz respeito à
moda — respondeu ele, com dignidade. — Além disso, não era marrom, era
cobre.
— Cobre! — repetiu ela, soltando mais uma gargalhada, apesar de eu
não entender a graça.
Para ser completamente sincera, Rook ficaria esplêndido até vestido só
de lençol. No entanto, as roupas anteriores combinavam bem mais com ele
— a jaqueta verde-samambaia que Gadfly arranjara para ele não combinava
com a pele mais escura nem com o cabelo, e estava um pouco apertada nos
ombros. A gravata desarrumada mostrava sinais de ter sido cutucada sem
parar; eu duvidava que durasse muito. No entanto, pensei irônica, pelo
menos estávamos combinando.
— Vocês já acabaram aqui? Recebi ordens de descer com Isobel para
apresentações quando ela estivesse vestida. Você pode ajudar a apresentá-la,
claro — acrescentou para Lark, que estava fazendo cara feia.
— Ah, tudo bem! — disse ela, pegando o braço dele.
Rook levantou o outro cotovelo para mim, eu sorri e sacudi a cabeça.
— Nunca conseguiremos atravessar aqueles corredores passeando de
braços dados. Vou acabar empalada num cabideiro.
— Pare com isso, Isobel! — gritou Lark. — A gente não vai por lá.
Por onde poderíamos ir? Certa de que estava prestes a experimentar
outra estranheza feérica que preferia evitar, aceitei o braço de Rook.
Observei a aparência delicada da minha mão contra a manga da jaqueta dele
e entendi como era possível que fadas se tornassem tão vaidosas,
pavoneando-se em roupas Firth & Maester e constantemente discutindo que
cores combinavam mais com cada fada.
Rook virou para mim, seu olhar exposto.
“Ele está mesmo apaixonado por mim”, pensei. Meu coração deu um
pulo digno de uma corça assustada. Ver o amor confessado em seus olhos
não se parecia em nada com ouvi-lo declarado. Aquele olhar faria o tempo
parar, se pudesse. Ao mesmo tempo suave e afiado, uma ternura dolorida
cercada por tristeza, prova nua e crua de um coração já partido. Ali estava
eu, no meu vestido de libélula, segurando seu braço, e ele sabia que nosso
tempo já havia quase chegado ao fim.
Mil asas se abriram dentro de mim. Corri atrás delas, tentando calá-las,
enfiá-las de volta onde não poderiam me fazer mal, mas era como estar no
meio de um turbilhão de borboletas, querendo capturá-las todas na mão.
Tomei consciência do calor da pele de Rook através da seda da jaqueta, e
também de que minha mão começara a tremer, só um pouquinho.
Ele não podia dizer nada na frente de Lark, nem precisava. Eu via
refletido em seus olhos tudo que deveria saber.
O que eu sentia? Como podia ter certeza?
Amor entre nós era impossível. Obriguei-me a confrontar o que
aconteceria se permitisse que aquele sentimento decolasse. Havia somente
duas opções: beber do Poço Verde ou nos condenar à morte. Encontrando o
olhar dele, deixei meu rosto mostrar minha decisão. Eu não podia permitir
nada daquilo. Eu era mais forte do que minhas emoções. Se vivesse mil
vidas, em nenhuma delas eu destruiria minha vida por amor, nem a de
outrem. Uma tempestade cresceu em meu peito; as borboletas foram ao
chão, trêmulas.
Inspirando fundo, Rook desviou o olhar.
De acordo com minha cabeça, eu fizera a coisa certa. Meu coração,
entretanto, se abriu num buraco oco e escuro, esvaziado pelo olhar que
Rook afastara. Eu me perguntei se minha cabeça e meu coração fariam as
pazes um dia, ou se eu mesma me amaldiçoara a reviver aquele instante por
todos os meus anos, meio certa de que tomara a única escolha possível,
meio sussurrando e se, inteiramente tomada por um arrependimento
amargo.
A Toca do Passarinho estalou. O chão estremeceu sob meus pés e os
galhos de vime das paredes começaram a se enroscar como linha num tear,
entrelaçando-se, caindo, curvando-se para fora. Por reflexo, apertei o braço
de Rook. Lark uivou de rir ao ver minha expressão. O cômodo todo se
transformou ao nosso redor, e eu fui tomada por pânico: naquele único
momento de intimidade, teríamos infringido a Boa Lei, afinal?
Doze

O chão de vime desceu cascateando, começando na ponta dos meus pés.


Suportes finos de bétula subiram do chão para encontrar os degraus em
formação, criando arcos elegantes acima e abaixo, os galhos se abrindo em
leque como corrimãos.
Em meros segundos eu me encontrava no alto de uma escada larga e
longa, mais imponente do que a de qualquer palácio, que descia por mais de
cinco andares. Lá embaixo, uma multidão de fadas aguardava, disposta ao
redor de um semicírculo de grama ao qual supus que estávamos prestes a
descer. Gadfly estava ajoelhado no meio, o cabelo brilhando como prata sob
o sol. Eu o vi se erguer, olhar a ponta do dedo indicador e levá-lo
discretamente aos lábios, lambendo o resto de sangue. Ele fizera aquilo
tudo, ao que parecia, com pouco mais de uma gota.
Meu coração disparou. Apesar de o meu pior medo não ter se
concretizado, eu ganhara muito material para substituí-lo. Havia ainda mais
fadas aglomeradas ali do que mais cedo e, por mais majestoso que Rook
estivesse ao meu lado, era eu quem elas tinham vindo ver. Estavam todas
vestidas à perfeição em tons delicados de rosa, verde, azul e amarelo, como
um jardim primaveril, resplandecentes em bordados de prata e botões de
madrepérola, usando joias que cintilavam tanto quanto seus olhos imortais.
Eu sabia que andaria horas entre elas sem encontrar uma só unha lascada ou
um fio de cabelo fora do lugar. Também sabia que todas ali podiam me
matar com a mesma facilidade e tranquilidade com que largariam uma
xícara de chá.
Gadfly inclinou a cabeça para nós.
Um pé atrás do outro. Era só isso. Ainda assim, a descida parecia se
estender por minutos, não segundos, e a aglomeração aguardava em silêncio
absoluto, interrompido apenas pelo tecido do meu vestido sussurrando ao
deslizar pelos degraus. Quanto mais nos aproximávamos, menos natural me
pareciam aquelas fadas. A perfeição que só me incomodava um pouco na
presença de uma ou duas crescia até se tornar pânico ao ser confrontada por
tantas, como se fosse observada por um exército de bonecas vivas.
Assim que meu pé tocou a grama, um tilintar delicado de riso, suspiros
e conversa sussurrada se espalhou em ondas pelas fadas. Assim, começaram
as apresentações.
Quando Gadfly se virou, as fadas da frente se agitaram. Uma mulher de
olhos esverdeados impressionantes saiu vitoriosa da disputa. Ela ajustou o
chapéu com um sorriso régio ao avançar, dando a mão a Gadfly. Usava um
vestido lilás com gola alta de renda que estrangulava seu pescoço fino, e a
falha do encanto, maçãs do rosto excessivamente angulares, era mais sutil
do que a da maioria. Como muitas outras fadas presentes, ela tinha a pele
clara — uma característica comum da corte da primavera, enquanto as
cortes do outono e do inverno tendiam a peles mais escuras, como a de
Rook, indo de tons quentes e amarelados até os marrons mais escuros e
profundos.
— Isobel, quero apresentá-la a Foxglove — disse Gadfly.
Eu fiz uma reverência completa.
— Foxglove — continuou ele —, esta é Isobel, que você já conhece por
reputação.
Foxglove retribuiu a reverência.
Eu também a conhecia por reputação. Era ela a fada que roubara as
vogais da sra. Firth. Eu sempre me considerara sortuda por ela nunca me ter
contratado.
— Estou lívida com a sua visita — disse ela, aproximando-se tanto que
senti a respiração dela no pescoço; o aroma era doce e floral, sobre a base
de alguma especiaria forte e venenosa. — Acompanho seu trabalho desde
que começou a aparecer nas cortes. Adoraria fazer um retrato enquanto
você estiver aqui.
Meu rosto já doía de sorrir e o suplício mal tinha começado.
— Obrigada. Seria um prazer.
— Você é um amor — respondeu ela, seus olhos famintos.
Fadas se aproximavam em um fluxo incessante. Meus joelhos logo
começaram a doer e cortesias me atordoaram. O tempo todo, fiquei ao lado
de Rook como se não nos conhecêssemos, sem nunca trocarmos olhares.
Muitas das fadas que cumprimentei eram clientes, como Swallowtail, que
começou uma conversa em voz altíssima sobre um retrato que fizera
comigo, enquanto o resto da fila olhava com inveja. Todas as fadas ali
presentes conheciam o meu Ofício.
Conforme a tarde se arrastava, eu ia ficando impaciente. Precisava de
tempo para colher materiais antes do anoitecer. Ainda mais importante,
precisava mandar notícias da minha situação para Emma — por escrito —
agora que era finalmente possível. Notícias dadas verbalmente por um
mensageiro das fadas, se Gadfly pudesse liberar algum da hora do chá, só a
deixaria perturbada até o dia seguinte, tentando entender se eu estava morta
ou ferida e se eles tinham dado um jeito de enganar no fraseado.
Portanto, estava distraída, pensando em como escapar a tempo, quando
Gadfly chamou outra fada e a apresentou como Aster.
— Acho que você ficará especialmente feliz de conhecer nossa Aster —
disse ele, com uma dose extra de entusiasmo. — Ela também já foi mortal,
como você, e bebeu do Poço Verde. Quando mesmo isso aconteceu, Aster?
— Já deve fazer alguns séculos, mas parece que foi ontem — respondeu
ela, a voz suave e fina como galhos de salgueiro na brisa.
Concentrei minha atenção imediatamente. Se não soubesse, não seria
capaz de diferenciar Aster do resto. Ela talvez fosse um pouco menos alta,
mas por pouco. O cabelo preto e ondulado até a cintura estava trançado com
flores. Sua pele pálida fazia um contraste marcante, que acentuava a falha
do encanto: era excepcionalmente magra. As clavículas e costelas se
sobressaíam do peito acima do decote do vestido, e os ombros pareciam
frágeis como os ossos de um passarinho. Ela me observou atentamente, os
olhos castanhos quase tão escuros quanto os meus.
Nos cumprimentamos com reverências.
— É um prazer conhecê-la, Aster. Espero também poder beber do Poço
Verde um dia. — A habilidade de mentir nunca me parecera tão útil ou
necessária quanto agora. — O que você acha de ser uma fada?
Ela abriu um sorriso rápido que não se espalhou pelo resto do rosto.
— É ótimo, sabe. Temos tão poucas preocupações… Eu mal me
preocupo agora. Eu me lembro de adoecer, ou de sentir dor, e isso agora
acontece numa frequência tão… menor.
O sorriso dela sumiu, mas voltou.
— Que maravilha. — Eu estava ciente de que todos me observavam,
então me esforcei para não mudar de expressão. — A floresta é tão linda,
comparada com o reino Excêntrico.
— É — disse ela. — Ah, é mesmo.
— Você era uma mestre do Ofício? — perguntei.
O sorriso fraco iluminou seu rosto como uma faísca no aço.
— Eu era! É preciso ser para beber do poço, é claro. Vejamos, eu era…
— hesitou, horrivelmente. — Sabe que eu esqueci o nome? Ha ha! Que
estranho!
Um calafrio me percorreu, como se milhares de pequenos insetos
pinicassem minha pele da cabeça aos dedos do pé. Torci, desesperada, para
que as fadas não vissem como estava arrepiada.
— Talvez você possa descrever o que fazia — sugeri. — Assim
encontrarei o nome.
— Bem, eu fazia palavras. Fazia palavras para livros, aqueles que
contam histórias que não são de verdade. Não é engraçado? Eu mesma fazia
aquilo!
— Você era escritora — falei.
As pupilas dela engoliram os olhos. Por um instante tive a aterrorizante
impressão de que estava prestes a me atacar e rasgar minha garganta. Então
eu a vi apertar o punho com tanta força, segurando o tecido do vestido, que
os dedos empalideceram, parecendo prestes a quebrar.
— Isso mesmo. Eu era escritora. Ha ha! Escritora! Que boba que eu
sou… É fácil esquecer. Todos esquecemos coisas de vez em quando.
— Claro que sim — mantive minha voz firme com esforço. — Posso
perguntar a você se também teve o prazer de visitar a corte da primavera
antes de beber do poço?
— Ah, não — disse ela. — Teria sido esplêndido. Só vim depois,
quando já estava transformada.
Quantas fadas Aster conhecera antes de tomar a decisão? Quanto
entendia das consequências da escolha? Eu não podia continuar as
perguntas sem atrair suspeitas. Entretanto, me pareceu que ela talvez não
soubesse o que a esperava, na verdade, assim como o resto do reino
Excêntrico.
— Entendo — respondi. — Foi um prazer conhecê-la, Aster.
— Fico muito feliz por termos conversado. Espero que você siga o meu
caminho. Seria um prazer tê-la aqui na corte da primavera, um prazer —
disse ela, apertando e soltando os dedos. — Talvez possamos conversar de
novo antes do seu retorno ao reino Excêntrico, para que você me lembre
daquela palavra de novo. Ah, chega a ser engraçado como sou avoada.
Meu sorriso parecia entalhado no rosto quando ela se afastou. Rook se
moveu ao meu lado, mas não ousei olhá-lo. Estava congelada até o fundo
dos ossos. Os uivos invernais dos cães da Caça Bravia ecoaram em meus
ouvidos de novo e vi o rosto branco e feroz de Hemlock desaparecendo na
escuridão. Pensei na fome devorando os sorrisos frios e educados de toda
fada que já pintara. Como podíamos ter chegado a admirar as fadas — a
querer ser como elas?
— Gadfly — disse Rook, alegre —, acredito que Isobel já tenha se
cansado demais por hoje. Você sabe como os mortais são, mal conseguem
ficar em pé uma ou duas horas sem desmaiar de exaustão. Se quisermos
qualquer esperança de ver o Ofício dela amanhã, ela precisará de energia
para… Bem, para seja lá o que ela precise fazer à noite.
Ouvi, sem ver, aquele seu meio-sorriso charmoso.
— Minha nossa. Não podemos interferir com o Ofício! — disse Gadfly,
antes de elevar a voz. — Senhoras e senhores da corte, precisaremos
esperar. Vamos nos reencontrar no jantar.
Exclamações de tristeza me cercaram. Seguiram-se conversas
cochichadas. Atordoada, aceitei o braço que Rook ofereceu e permiti que
me afastasse do pé da escada. Lark correu atrás da gente, despedindo-se das
amigas, que nos observavam com carrancas invejosas, o que Lark parecia
achar extremamente divertido.
— Agora você é toda nossa — disse ela, pegando meu outro braço.
Rook fez uma careta, tentando conter a frustração. Ele não podia falar
livremente na presença de Lark — mas a companhia dela era uma bênção
pelo mesmo motivo. Não podíamos ser vistos sozinhos com frequência,
senão atrairíamos suspeita.
Assenti para ele, esperando que comunicasse tudo que queria saber. Eu
estava bem. Grata pela intervenção. Entretanto, Rook não pareceu mais
feliz.
Lark balançou nossos braços para a frente e para trás.
— Você está muito calada, Isobel! Deve estar mesmo exausta. Como é
isso?
— Como é o quê?
— Ficar exausta, é óbvio.
Mesmo depois de anos na companhia delas, fadas ainda podiam me
surpreender.
— Dá vontade de sentar, suponho, ou dormir. Qualquer coisa que não
exija se mover ou pensar.
— Então é que nem beber muito vinho — disse Lark, entendendo.
Ergui as sobrancelhas, pensando que, se Gadfly fosse humano, alguém
precisaria ter uma conversinha com ele.
— Isso, mas sem a parte boa. E, hm, muito da parte ruim também —
acrescentei, lembrando minha primeira e última experiência com o
conhaque festivo de Emma.
Lark gargalhou bem no meu ouvido.
— Isso não faz nenhum sentido — disse ela ao se recuperar. — O que
faremos agora? Por favor, não durma, seria muito chato.
— Não, eu gostaria de começar a colher material para meus pigmentos.
Vocês me ajudariam? — perguntei, olhando de relance para Rook. — Ou é
uma tarefa indigna de um príncipe?
Finalmente, ele sorriu — um sorriso sincero, com covinha e tudo.
— Normalmente eu diria que é o caso, mas não posso perder a
oportunidade de manchar essas roupas horríveis do Gadfly. Pode ser que
Lark não se importe, mas ele, sim. Diga o que devemos encontrar e
estaremos a seu dispor.
Eles me levaram um pouco além do que eu começara a identificar como
a sala do trono da corte da primavera, até um lugar que parecia mais uma
floresta comum, e me sentaram num toco de árvore. Lá, descrevi tudo de
que precisava. Mirtilos, amoras, framboesas, morangos, qualquer frutinha
que encontrassem. Cebolas silvestres e casca de macieira para o amarelo;
cascas de nozes para o marrom. Para o preto, poderia usar fuligem.
— Mas para que servem os ovos? — perguntou Rook, indignado, me
olhando de cima.
— Preciso de alguma coisa para unir os pigmentos em tinta.
Tipicamente se usa olho de linhaça ou de alfazema-brava, mas gema de ovo
é uma opção mais fácil.
Ao ver a expressão dele, acrescentei:
— Minha nossa, só não pegue ovos de corvo. Ah, e escolha ovos
frescos, não quero correr o risco de ter filhotinhos saindo deles.
— Eu os como por você — garantiu Lark, o próprio retrato de uma
jovem dama recatada.
— Você se daria bem com minhas… Deixe para lá.
Deus, como eu podia me divertir ali enquanto minha família me
esperava em casa, achando que eu estava morta, ou pior? Rook me olhou de
relance, mas, felizmente, Lark não reparou em nada.
— Vamos ver quem pega tudo primeiro! — gritou ela, e sumiu.
As folhas de um arbusto tremeram como se algo tivesse passado por
elas em enorme velocidade.
— Isobel — disse Rook baixinho —, quando você falou com Aster…
A voz de Lark interrompeu de longe:
— Corre!
Ele hesitou, dividido. Olhei ao redor para confirmar que estávamos
sozinhos e segurei a mão dele. No mesmo instante, ele olhou para nossos
dedos entrelaçados como se contivessem os segredos do universo.
— Vá lá — falei. — Fui eu quem inventou o plano, lembra? Sua ajuda
cairia muito bem agora.
Seu rosto mostrou conflito, mas Lark o chamou de novo e ele não se
demorou.
····
À noite, as fadas se agruparam para observar as preparações do meu Ofício.
Nos instalamos na mesma clareira para não ser preciso ficar indo e vindo, e
logo a corte chegou, cada vez mais lordes e damas aparecendo do nada e me
assustando quando eu dava as costas. Fascinados, me observaram amassar
frutinhas e cascas de nozes e de árvores numa pedra lisa, antes de raspá-las
e guardá-las numa coleção de potes e xícaras de porcelana que Lark
trouxera do labirinto. Quebrei os ovinhos de passarinho, coei a clara com os
dedos e misturei a gema e os pigmentos com a ajuda de um galho. Uma
fogueira estalava e bruxuleava ali perto, produzindo a madeira queimada de
que eu precisava para a fuligem.
Pigmentos eram caros. Antes de ganhar a clientela feérica, eu só usava
carvão e as cores que podia produzir sozinha. Então, ao trabalhar, meus
experimentos infantis voltaram à memória. Amoras produziam o vermelho
mais vivo e profundo. Os frutos do sabugueiro secavam com um tom de
ocre. Misturadas à casca de noz, as amoras também criavam um marrom-
médio agradável, com subtons arroxeados de vinho. Já os mirtilos
frequentemente ficavam cor-de-rosa e, ao longo do dia, escureciam e se
tornavam profundamente azuis. Talvez ironicamente, verde era a cor mais
difícil de conseguir na natureza — eu precisaria experimentar com o
amarelo preparado da casca da cebola e da macieira e ver no que davam
quando misturados com os azuis.
Estava tão absorta que, por certo tempo, esqueci que havia uma plateia,
concentrada no puro êxtase das cores. O sol descia e descia, pintando de
dourado todos os meus utensílios improvisados e iluminando meu cabelo.
Finalmente, acabei de esmagar a madeira queimada da fogueira.
— Acho que acabei — falei querendo me dirigir a Rook e Lark, mas
descobri que fora ouvida por uma multidão de fadas aglomeradas ao meu
redor.
— Que maravilha — declarou Gadfly, como se eu fosse uma alquimista
real transformando chumbo em ouro, enquanto eu o olhava de baixo, meus
dedos sujos de ovo.
Ele me ofereceu um quadrado de casca de bétula e eu limpei as mãos na
terra antes de aceitar.
— Obrigada — falei. — Parece que funcionará bem. Eu poderia pedir
um favor a você?
Gadfly inclinou a cabeça.
— Eu falei a você que teria tudo de que precisasse.
— Se eu escrever uma carta para minha família no reino Excêntrico, ela
poderia ser entregue? Mesmo que seja por pássaro, se puder ser arranjado.
O mais rápido possível seria ideal — acrescentei correndo, ciente de que
corria o risco de chegar à porta das ruínas abandonadas da casa cem anos
mais tarde.
— Certamente. Dou a minha palavra de que sua carta chegará à sua casa
até o nascer do sol daqui a dois dias.
— E minha tia Emma a receberá? — insisti, sentindo outra ponta solta.
Ele me deu um sorriso compreensivo.
— Você nunca foi de esquecer detalhes. Prometo que será entregue nas
mãos de Emma. Agora, confesso que nunca tive a sorte de observar o
Ofício da escrita!
Dito isso, sentou-se ao meu lado, de pernas cruzadas, para assistir.
— Ah. Hm, fico feliz em demostrar — respondi, tentando ignorar a
atenção.
Ele olhou para a casca em minha mão como se eu estivesse prestes a
abanar as mãos e transformá-la num pombo. Fui pegar o pote de fuligem,
mas parei, notando um problema.
— Não tenho com o que escrever — falei para mim mesma,
procurando.
Vento remexeu meu cabelo e Rook pulou no tronco ao meu lado na
forma de corvo, girando a cabeça para ajeitar as penas do rabo. Quando eu
estava prestes a espantá-lo, ele pegou a pena mais longa e a arrancou do
corpo. Com solenidade cortês, ele a entregou para mim. Estava morna e a
ponta translúcida da raque continha uma gota do sangue âmbar.
Virei a pena entre os dedos, tocando a borda sedosa, para ganhar tempo.
Eu não sabia por que me sentira tão tocada pelo gesto. Era uma entre as
muitas penas e Rook poderia crescer uma nova no mesmo instante. Quando
não podia mais enrolar, pigarreei e passei a ponta no chão para limpá-la.
Talvez isso tenha sido um erro.
No mesmo instante a grama inchou e um broto surgiu das flores
silvestres, crescendo rapidamente em uma jovem árvore, desenrolando
galhos como uma peça de cenário. Folhas escarlates vívidas irromperam,
gloriosas. A folhagem se espalhou pela clareira primaveril de forma
triunfante, um pouco arrogante, no que me parecia a cara de Rook.
— Cuidado! — exclamou Gadfly. — Nada de deixar minha corte
cafona, Rook. Que horror.
Rook abriu as asas e soltou uma série de crocitos beligerantes. Escondi
um sorriso.
— Obrigada — sussurrei para ele, segurando a haste da pena com a
ponta dos dedos.
Gadfly se esqueceu da ofensa logo que comecei a rabiscar minha carta
com fuligem. Fadas não podiam escrever, mas certamente sabiam ler, então
eu precisava tomar cuidado com o que revelava.
Queridas Emma, March e May, escrevi. Estou bem e em segurança.
Dói-me pensar na angústia que meu desaparecimento deve ter causado. A
verdade é que estou em uma aventura — eu sabia que Emma entenderia o
que eu queria dizer com “aventura” — inesperada e não tive a
oportunidade de escrever a vocês até agora. No momento, estou
demonstrando meu Ofício na corte da primavera. Fui trazida por Rook, o
príncipe do outono, que me levou bem subitamente. Espero reencontrá-las
em breve. Com amor, Isobel.
Emma teria mais perguntas do que respostas, mas o quadradinho de
casca não tinha mais espaço, então teria de servir. Esperei que secasse e
entreguei para Gadfly.
Ele aproximou a carta do rosto para examiná-la com um vago fascínio.
— Uma ação tão simples — disse, finalmente —, mas você sabia que,
se uma fada tentasse fazer o que você fez, ela se desfaria em pó?
— Eu… Eu ouvi dizer.
O olhar pálido de Gadfly se dirigiu a mim.
— Não se engane, é um valor barato a se pagar pelo poder, a beleza e a
imortalidade. Entretanto nos faz pensar, não é? Por que desejamos, acima
de tudo, o que tem o maior poder de nos destruir?
Fui tomada por um calafrio. Eu nunca vira Gadfly filosofar sobre
assuntos mais profundos do que doce de limão. Resisti à tentação de olhar
para Rook, me perguntando se ele sentia o mesmo desconforto.
— O Ofício em si não fere — comentei. — Vocês vestem e comem
coisas feitas pelo Ofício todo dia, sem consequências.
— Ah, mas ainda assim — disse ele, forçando um sorrisinho. —
Algumas consequências acontecem invisíveis aos olhos. Um dia talvez você
descubra que o Ofício tem o poder de destruir meu povo de formas nunca
antes imaginadas. Que deprimente, não é? Peço que me desculpe por isso.
Ele piscou para mim, bateu palmas e se levantou.
Só então reparei que minha carta se fora, desaparecendo das mãos dele
rápido demais para que eu visse. Ele prometera, lembrei, me sacudindo para
me livrar do estranhamento daquela conversa. Emma receberia a carta, a
leria em breve e, ainda sim, temeria por mim, mas pelo menos não acharia
que eu estava morta.
— Quem gostaria de ajudar Isobel a levar os materiais do Ofício até o
trono? — perguntou Gadfly, como se organizasse um grupo escolar.
Fui imediatamente cercada por um enxame de fadas falantes que
pegavam os potes e os examinavam. Primeiro temi que estragassem algum
pigmento, mas logo me tranquilizei ao ver que tocavam os recipientes como
se fossem taças enfeitiçadas, prestes a explodir ou a transformá-los em
pedra caso os derrubassem. Rook, aparentemente, já ajudara o bastante,
porque quando me levantei ele revoou ao redor dos meus ombros. Quando
dei permissão para se empoleirar ali, ele se instalou e observou todo mundo
com o bico empinado.
Andamos de volta em uma procissão digna de tapeçaria — eu na frente,
usando um vestido diáfano, um príncipe na forma de animal empoleirado
no meu ombro e um cortejo de fadas acompanhando atrás. O sol poente
acendia tudo e até os insetos fugindo das flores pareciam partículas de ouro
suspensas no ar.
Quando chegamos à sala do trono, ficou nítido que trabalho fora
conduzido em minha ausência. Uma mesa comprida estava armada na trilha
ladeada por bétulas que levava ao trono, coberta por tecido branco e
decorada no centro por um trilho de mesa bordado que deveria ter uns
quinze metros. A seda prateada e verde-clara combinava com o estofado
das cadeiras e com as pinturas dos pratos de porcelana. A comida,
entretanto, era ainda mais impressionante: montes brilhantes de uvas,
ameixas e cerejas, pilhas de doces açucarados, ganso e perdiz assados ainda
quentes do espeto.
— Quem fez isso? — murmurei para Rook. — Vocês se revezam no
papel de criados ou os esquilos e as lebres vêm correndo da mata para
arrumar tudo?
Ele reagiu à minha brincadeira virando de lado e batendo com o rabo no
meu nariz.
A mesa era tão impressionante que não notei a singela adição até chegar
mais perto. Uma cadeira de estofo bordado fora instalada a poucos passos
do trono, em frente a um cavalete. O cavalete era decorativo, para expor
obras, e não para pintá-las, mas serviria. Achei a quantidade de casca de
bétula que Gadfly arranjara para mim muito mais preocupante. A pilha era
mais alta do que a própria cadeira, revelando suas expectativas.
— Temo que só acabemos de jantar tarde da noite — disse Gadfly ao
meu lado. — Talvez você possa nos agraciar com seu Ofício amanhã de
manhã?
Dito isso, puxou a cadeira na cabeceira da mesa.
Treze

Eu queria muito poder recusar a honraria, mas seria falta de educação e


todos os olhares cintilantes recaíam sobre mim. Com uma reverência, fui
me sentar, e então Rook saiu voando do meu ombro e se transformou ao
meu lado a tempo de empurrar minha cadeira. Gadfly sorriu e deu espaço
para ele, mas me perguntei se fora mesmo uma decisão sábia da parte de
Rook.
As fadas avançaram para seus lugares. Lark estava à minha esquerda e
Rook, à minha direita. Gadfly foi para o lado oposto da mesa e sentou na
outra cabeceira, bem à minha frente, quase escondido pelas iguarias
amontoadas ao longo da distância. Com um farfalhar de seda e musselina,
todos se sentaram.
O banquete que se seguiu foi estranhamente fascinante. Em vez de usar
talheres, as fadas simplesmente pegavam o que queriam com os próprios
dedos. As formas eram tão lindas e os movimentos, tão delicados, que a
prática não me causou repulsa. Não havia criados circulando as mesas — se
uma fada queria um prato fora de alcance, ou se levantava para se servir, ou
pedia para passarem de mão em mão, correndo o risco de alguém comer no
caminho. Garrafas de vinho foram servidas e todos enchemos uma taça.
Meus gostos não eram refinados, mas no primeiro gole soube que aquela
safra valia o peso em prata. Vinho era uma das poucas coisas que não
produzíamos no reino Excêntrico; era importado do Mundo Além a enorme
custo e risco.
Escolhi pedaços de fruta e pão como as fadas, mas na hora de comer o
ganso, coberto de mel e especiarias, peguei meu garfo e minha faca.
Quando cortei a carne, senti que estava sendo observada. Assim que ergui o
olhar, vi que várias fadas tinham segurado os talheres, observando
atentamente meu exemplo, enquanto outros examinavam os utensílios com
curiosidade. Era óbvio que a maioria nunca tinha comido usando talheres.
Por que, então, arrumavam a mesa assim?
“Porque é como os humanos fazem”, pensei, com uma pontada de
incômodo.
A conversa começou sobre meu Ofício e então fluiu para outros
trabalhos humanos. As fadas discutiam roupas e espadas. Evitei uma
quantidade de perguntas absurdas e precisei explicar novamente que ser
mestre de um Ofício não me dava automaticamente conhecimento de
outros. Conforme o banquete avançava, minha esperança de entreouvir um
pouquinho de informação útil sobre as outras cortes, as terras estivais e
fadas feras corrompidas desmoronou sob a avalanche de papo furado.
O céu escureceu e vagalumes apareceram em tamanho volume que
iluminavam as árvores como se fossem estrelas. Algumas fadas invocaram
luzes etéreas de tons diferentes que flutuavam sobre a mesa. Quando senti
frio, Rook rapidamente me ofereceu sua jaqueta emprestada — parecendo
muito feliz de se ver livre dela. Se as cores combinavam ou não era outra
coisa, mas o corte do colete justo de Gadfly certamente vestia bem o corpo
dele, e precisei me esforçar para não o encarar. A gravata se fora havia
muito tempo, deixando o colarinho aberto no alto.
Com o tempo, um padrão estranho se revelou. Uma fada sorridente
passava um docinho pela mesa na minha direção e Rook o interceptava
antes que chegasse a mim. Na quinta ou sexta vez, até precisou se esticar
sobre a mesa, por cima de um monte de uvas do tamanho de uma roda, para
pegá-lo da mão de Lark. Ao voltar ao assento, ele me olhou, incomodado,
apoiando a mão no braço da cadeira. Naquele momento, já havia tomado
um porre de vinho e eu achei que ele estava começando a dar sinal, uma
observação que me tornou igualmente consciente de minha própria
condição. A presença de tantas fadas era, sendo sincera, mais fácil de
aguentar depois de algumas taças.
Eu me aproximei dele, tentando ignorar as luzes balançando quando me
mexia, e murmurei:
— São enfeitiçados? Envenenados?
— Não exatamente — respondeu ele, desconfortável.
— O que foi, então?
Nossos olhares se encontraram.
— Seria melhor você não saber — disse ele, com uma cara tão sofrida
que não insisti.
Entretanto, Rook não tinha como impedir todos os doces, e então
finalmente descobri o motivo. Lark veio correndo com a mão cheia de
tortinhas, comeu uma e me ofereceu outra. Quando a toquei, ela mudou. O
doce murchou e se cobriu de uma camada de mofo cinzento. O recheio,
qualquer que fosse, escorreu em uma gosma preta impossível de identificar,
fedendo a podridão. Pior ainda, o docinho velho se remexeu na minha mão;
estava cheio de vermes. Joguei a tortinha na mesa, errando a mira no meu
prato, e me afastei correndo, num estrondo de cristal e prataria, empurrando
a cadeira para trás com as pernas.
Imediatamente, a magia da noite se quebrou. Todas as fadas me
olharam, de uma ponta da mesa à outra, e, apesar de eu saber que era só
minha imaginação, seus olhos pareciam felinos, sem encanto nas luzes
vacilantes. Os olhos de Gadfly eram tão claros que queimavam como uma
vela atrás de quartzo. Minha respiração ficou ofegante. Finalmente, Lark,
me olhando estupefata, soltou uma gargalhada alta e pegou o doce
estragado da mesa. Assim que o tocou, não estava mais podre — um pouco
amassado, mas de resto estava igual a antes. Ela o enfiou na boca.
Risadinhas alegres correram a mesa e a tensão do ar se evaporou.
Lentamente, sentei de novo. Olhei para o prato para confirmar que não
tinha imaginado aquilo tudo, que não tinham pregado uma peça cruel. Não
sei dizer se senti mais alívio ou nojo ao ver os vermes ainda se contorcendo
na porcelana.
Um músculo se moveu no rosto de Rook. Ele trocou nossos pratos,
aproximando-se a ponto de o cabelo dele tocar meu braço erguido. Em
seguida, tirou um lenço do bolso da frente da jaqueta que me emprestara e o
ofereceu para mim em silêncio. Limpei meus dedos, mas meu estômago não
estava embrulhado por causa de mofo ou vermes. Eu já tocara mofo muitas
vezes antes e tocaria muitas outras vezes ainda. Já mexera em comida
estragada. Além disso, é claro, vira March comer todo tipo de coisa.
Não, o que me enjoava era saber que estava cercada de pessoas vazias
vestindo roupas carcomidas, alimentando-se de docinhos podres e falando
de assuntos inconsequentes com sorrisos fixos nos rostos falsos. Como seria
aquele banquete sem encanto? Imaginei uvas frescas reluzindo ao lado de
um prato de torta marrom e enlameada, repleta de larvas. Fluidos coalhados
jorrando de uma garrafa e bebidos sem reclamação. O vinho amargou nas
minhas entranhas, como se também tivesse se tornado azedado e podre.
Minha náusea crescente ameaçou transbordar. Engoli em seco várias
vezes, saliva enchendo minha boca.
— Eu não sabia que fadas podiam projetar encantos — falei para Rook,
desesperada por explicação e distração. — Lark só mudou o vestido ao
tocá-lo.
— É um talento incomum. A ilusão não é tão completa quanto um
encanto, e é desfeita se tocada por um mortal. Foxglove é quem a mantém
agora, se não estou enganado.
Foxglove olhou para nós, ouvindo seu nome mesmo na voz baixa de
Rook. Ela sorriu.
— A ilusão afeta o… — hesitei. — O gosto? Para vocês?
— Ah — disse Rook. — Não. Mas, em geral, nos importamos mais com
a aparência.
Pelo menos ele tinha o bom senso de parecer envergonhado.
— É a principal discordância entre a corte do inverno e o resto do povo
das fadas, por sinal — continuou, impulsivo. — Eles acreditam que, ao nos
cercar de coisas humanas, isso tudo, até usar encantos, estamos
desvirtuando nossa verdadeira natureza.
— Ah, que vidas tristes devem levar — disse Gadfly, atrás de nós. —
Eu adoro ser desvirtuado. Na verdade, acho que é essa minha verdadeira
natureza.
Eu só não pulei de susto porque o vinho afetou meu reflexo. Tinha
certeza de que, no segundo anterior, Gadfly ainda estava do outro lado da
mesa. Olhei por cima do ombro, desconforto latejando na minha cabeça.
Rook e eu não estávamos nos comportando de forma íntima demais,
estávamos?
— Obrigada por sua hospitalidade, Gadfly — falei, o primeiro
comentário educado que me ocorreu. — O banquete está uma delícia.
Os dedos aracnídeos dele tocaram o espaldar da minha cadeira.
— Mas não totalmente, não é? Isobel, é uma pena que tenha encontrado
um dos nossos pratos menos… imaculados. Achei que Rook fosse capaz de
cuidar de você.
Ao meu lado, Rook franziu a testa. Fui tomada por um impulso
inexplicável de defendê-lo.
— Ele se saiu tão bem quanto qualquer um — respondi, mas soou mais
insistente do que eu planejava. — Falo com honestidade, é uma sorte ser
cuidada por um príncipe.
— Sim, é claro — disse Gadfly, olhando entre nós dois.
Merda. Abri meu sorriso mais educado e superficial, me recusando a
oferecer qualquer outro indício. Só queria que ele acreditasse que eu estava
emocionada pela atenção de um belo príncipe feérico, nada mais. Não que
houvesse algo além disso. Os sentimentos de Rook precisavam ser
escondidos, não os meus.
— Devo admitir, senhor — continuei —, que o incidente me causou
certo mal-estar. Para acordar cedo e começar meu Ofício numa hora
razoável da manhã, acredito que deva me retirar em breve.
— Faz bastante sentido — disse Gadfly, tamborilando um ritmo
marcado com os dedos na cadeira, mais perto do meu rosto do que seria
confortável. — Lark, você poderia, por favor, levar Isobel ao quarto dela?
Nosso melhor, é claro.
Rook pareceu prestes a protestar, ou talvez fosse se oferecer para me
acompanhar, então, sob a mesa, bati com meu joelho no dele como aviso.
Eu não tinha dúvida de que ele daria um jeito de subir, mas precisava ser
mais discreto do que me acompanhar na frente da corte inteira.
Lark se levantou, cambaleante, e se insinuou sob meu braço.
— Eu tenho taaaaaaantas camisolas — disse, me arrastando para as
escadas da árvore.
— Quero ir também! — exclamou uma amiga dela, que me fora
apresentada como Nettle.
Lark virou para trás e arreganhou os dentes. Nettle voltou a sentar. Lark
sorriu alegremente e segurou meu braço com mais força.
Quando chegamos à base da árvore e começamos a subir, as luzes do
banquete atrás de nós brilhavam como uma cidade. Dando voltas pelos
cipós atrás de Lark, que estava igualmente instável, temi pela minha vida
quase tanto quanto no encontro com o Lorde Tumular. De alguma forma,
conseguimos chegar ao topo ilesas. A luz das estrelas que penetrava as
folhas do labirinto era suficiente para enxergar, e os corredores cintilavam
como uma mina de diamantes, de tantos vagalumes.
— Você se incomodaria se eu fosse buscar meus pertences na Toca do
Passarinho? — perguntei.
O anel estivera em meus pensamentos a noite toda e, após a conclusão
tensa do banquete, não poderia deixá-lo para trás.
— Não sei por que você se importa com aquele vestido sem graça, mas
é lá que guardo todas as minhas camisolas, então vamos de qualquer jeito. É
melhor você não usar aquela roupa para dormir!
— Não vou — prometi.
No entanto, ficaria perto do ferro.
Estimei experimentar quase uma dúzia de camisolas de seda, todas mais
finas que uma anágua e praticamente transparentes, mas não me incomodei
— o sinal definitivo de que eu tinha extrapolado na bebida. Lark se decidiu
por uma camisola verde, determinando que aquela seria minha cor oficial.
Sobrava tecido sob meu peito e tinha uma quantidade de fitas questionável
para dormir, a não ser que a dona precisasse ser amarrada na rede por causa
do vento. Por outro lado, era espetacular. Eu queria ter um espelho para
poder me ver. Não, eu queria ver o rosto de Rook ao me ver assim, quão
diferente seria do olhar dele para meu vestido de libélula. Afastei o
pensamento imediatamente, meu rosto queimando, mas, por mais que
tentasse ignorar, o brilho efervescente da ideia não me abandonou.
Finalmente, Lark permitiu que eu recuperasse meus pertences e me
levou pelo labirinto cintilante até outro cômodo. Parei abruptamente na
porta.
O quarto continha uma cama de dossel e dezenas de Gadflys me
encaravam dali. Alguns polidos, algum empoeirados, alguns um tanto tortos
na parede, os retratos quase cobriam o quarto inteiro, representando Gadfly
em estilos diferentes ao longo dos séculos. Eram presos à parede por cipós e
folhas, parecendo ter parcialmente crescido dali. Alguns eram trabalhos
meus — talvez uns oito. Eu não via a maioria havia anos, e fique chocada
ao encontrá-los, como se reconhecesse amigos antigos em meio a uma
multidão. Na luz tremeluzente dos vagalumes, os olhos deles pareciam se
mexer.
— Certamente não posso dormir no quarto de Gadfly — falei.
Não pude resistir. Lark me empurrou para dentro.
— Óbvio que pode! Gadfly só dorme uma vez ao mês, durante a lua
nova. O único outro motivo pelo qual vem aqui é para admirar os retratos.
Como esse é o seu Ofício, será um prazer para ele que você fique aqui.
Aquilo até que fazia sentido na lógica bizarra das fadas, e Gadfly sem
dúvida achava um enorme privilégio passar uma noite restauradora sob o
olhar de seus muitos rostos. Do banquete, ergueu-se uma gargalhada e Lark
hesitou, entristecida.
— Se quiser descer, não me incomodarei — falei. — Não serei boa
companhia depois de deitar para dormir.
Ela apertou minha mão.
— Ah, tem certeza? Certeza absoluta? Não consigo nem pensar em
deixá-la sozinha aqui no alto.
Sorri.
— Não me sentirei sozinha. Consigo ouvir todo mundo lá embaixo e
estou tão cansada que cairei no sono assim que eu fechar os olhos.
— Você é maravilhosa — disse Lark, apertando minha mão no peito
dela. — Sabia que seríamos melhores amigas. Nos vemos amanhã, Isobel!
Ela me soltou e saiu correndo do quarto.
Estremeci, enfiando as mãos debaixo do braço para esquentá-las. Então
deixei minhas roupas sobre as cobertas, me sentei, desamarrei as botas e
deitei sob a coberta sofisticada de pena de ganso e os lençóis macios. Por
um tempo, fiquei de olho na porta. Como Lark não apareceu, estiquei a mão
para remexer no bolso do vestido. Prendi a respiração, tateando pelas
dobras, imaginando o que aconteceria se uma fada descobrisse o ferro. Mas
meus dedos logo tocaram o objeto reconfortante e eu me revirei sob as
cobertas para, no escuro, enfiá-lo na minha meia.
Conversas e risadas subiam da festa, quase humanas e agradáveis.
Entretanto, eu não conseguia dormir, não podia dormir. Ao meu redor, o
sorriso de Gadfly se mexeu sutilmente no brilho trêmulo dos vagalumes. Na
periferia do meu olhar, a luz oscilante dava a impressão de que seus olhos
se mexiam, ou até mesmo piscavam. Eu me sentia observada, sem ter o
luxo da certeza de que era uma simples sensação. Ocorreu-me, então, que
eu não tinha olhado debaixo da cama — uma ideia infantil —, mas não era
difícil de imaginar uma fada deitada ali no escuro, dedos aracnídeos
entrelaçados no peito como um cadáver, sorrindo sozinha em preparação
para dar um pulo e me surpreender…
Desejando que fosse seguro usar o anel, apertei meus punhos com tanta
força que afundei as unhas na palma das mãos.
Uma hora pareceu passar; podia ser menos. Um baque alto ressoou no
corredor.
— Maldito bule! — exclamou Rook, aborrecido.
Simples assim, meu medo foi embora. Meu peito se sacudiu de rir ao
pensar em Rook tropeçando, bêbado e ofendido, pelos corredores lotados
do labirinto, atacado por bules desequilibrados.
— Rook — sussurrei, confiando que ele escutaria —, está tudo bem aí?
Um silêncio constrangido. Em seguida, com frieza:
— Não faço ideia de por que motivo não estaria tudo bem.
— Verdade — falei. — Você matou um Lorde Tumular, não deve ter
medo de bules.
Ele entrou no quarto, lutando com o colete verde de Gadfly. Quando
conseguiu tirá-lo, Rook o jogou no chão como se fosse lixo. Em seguida,
avançou e, com um gesto suave, enfiou-se na cama ao meu lado, de frente
para mim, sob as cobertas, com a vaidade ousada e exibida de um gato
sentado num livro aberto.
Eu me apoiei no cotovelo. Minha pele ficou arrepiada com a sensação
da perna dobrada dele, quase encostando na minha — eu sentia o calor do
corpo dele no espaço estreito entre lençóis. Lembrando o que vestia e o que
pensara mais cedo, puxei o lençol para mais perto.
— O que você pensa que está fazendo? — perguntei. — Você não pode
dormir aqui.
— Posso, sim. Na verdade, preciso. Não posso permitir que nada
aconteça a você, então é melhor ficar por perto.
— Você poderia se oferecer para dormir no chão, como um cavalheiro.
Ele pareceu horrorizado pela sugestão.
— Nem tenho certeza de que você está em estado de me proteger —
continuei, sentindo que era causa perdida. — Você acabou de quase ser
assassinado por um bule.
— Isobel — disse Rook, me olhando com seriedade. — Escute, Isobel.
O bule é irrelevante. Posso derrotar qualquer um, a qualquer hora.
— Ah, é mesmo? É verdade?
— É — respondeu ele.
Eu me debati com o carinho exasperado que sentia. Por mais que ele
fosse irritante, achei horrivelmente difícil de conter um sorriso.
— Então você deve estar caindo de bêbado.
— Não estou. Posso ter bebido muito vinho, mas, afinal, eu sou da
nobreza. Eu sou o príncipe do outono. Portanto, estou só um tiquinho
bêbado.
Dito isso, ele fechou os olhos.
— Você não pode dormir aqui. Não pode mesmo, sério, é…
As folhas do quarto estremeceram, pois alguém corria até ali.
— Ah, não — resmunguei. — Rápido, se esconda debaixo da cama, ou
se transforme…
Vento levantou as cobertas e um turbilhão macio e escorregadio de
penas acariciou meus braços. Quando acabou, Rook estava indignado, em
forma de corvo, entre as cobertas bagunçadas, asas tortas, como se seu
corpo tivesse se transformado automaticamente sob minha sugestão sem
que ele concordasse. Antes que pudesse mudar de ideia, eu o enfiei debaixo
da coberta e o apertei contra minha barriga.
Assim que fiz isso, Lark olhou pela porta. Encarou-me por um momento
enquanto eu fingia dormir, riu e foi embora correndo de novo.
— Não — falei, quando Rook começou a se debater. — Se quiser ficar,
precisa ser sutil.
Ele chutou as patas e mordiscou meus dedos, tentando se soltar para se
transformar de novo. Entendi que medidas drásticas seriam necessárias.
— Que passarinho lindo você é — murmurei.
Aos poucos, ele parou de se debater. Senti que inclinava a cabeça.
— Que belo passarinho — repeti, com a voz exageradamente doce. —
É o passarinho mais lindo; é, sim.
Acariciei as costas e Rook fez um barulhinho alegre no peito. Logo o
silêncio presunçoso indicou que ele ficaria muito feliz ali, desde que eu
continuasse a elogiá-lo.
Eu sabia que não estava realmente segura, mas a presença de Rook,
naquele momento, foi um conforto inegável. A exaustão do dia me cobriu
como lã pesada. O coração de Rook batia contra meus dedos sob as penas
macias e meus olhos afundaram, fechados, enquanto eu murmurava termos
carinhosos ao príncipe mimado enroscado sobre a minha barriga, aquecida
pelo ninho de cobertas.
Pisca, pisca, pisca, fizeram os olhos de Gadfly acima de mim. Uma
centena deles nos observaram com sorrisos indecifráveis conforme
pegávamos no sono.
Quatorze

A fila de fadas esperando por um retrato era tão longa que se estendia pelo
caminho ladeado de árvores até o trono e seu fim estava fora do alcance da
minha visão. Não restava sinal algum do banquete da noite anterior. Por
mais que tentasse, não vi uma uva ou migalha no gramado musgoso. A
noite inteira poderia ter sido uma ilusão.
Foxglove estava sentada à minha frente, com um sorriso que sugeria
que a gola apertada da roupa a asfixiava aos pouquinhos. Eu me perguntei
como ela conseguira o tão desejado primeiro lugar da fila, mas decidi não
pensar demais naquilo.
Meu estômago revirou. Formular o plano era uma coisa; executá-lo era
outra completamente diferente. E se Foxglove visse o resultado e ficasse
furiosa, como Rook ficara? Ela não tinha motivo para tal, lembrei, pois o
contexto era completamente diferente, mas restava o fato de que, se eles se
voltassem contra mim, eu só tinha minha esperteza e um anel de ferro como
proteção, que agora era um peso duro dentro da bota bem amarrada. “E…”,
pensei. “E Rook.”
Eu sabia, com a mesma certeza infalível de que o sol nascia ao
amanhecer, que Rook me defenderia de outras fadas mesmo que isso lhe
custasse a própria vida. Não era um pensamento romântico. Era apavorante,
na verdade. Se aquilo chegasse a acontecer, eu não conseguia pensar na
possibilidade de não acabar com nós dois mortos.
Olhei de relance para onde ele se encontrava, sentado ao lado do trono
de Gadfly. Estava elegante, mas desconfortável, na cadeira estofada que
fora trazida para ele, inclinado para a frente com o cotovelo na coxa,
inquieto e desatento ao que Lark tagarelava. Ele me viu e nossos olhares se
cruzaram. Reparei, sem razão aparente, que um cacho de cabelo escuro
caíra sobre seu rosto. Rapidamente, voltei a atenção para o trabalho.
Para o retrato de Foxglove, eu escolhera alegria humana. Parecia-me
que o que passava por alegria entre fadas tinha duas variações. A primeira
era uma espécie de orgulho: o prazer frígido que uma mulher traída poderia
sentir ao saber que a amante do marido morrera ao cair da escada. A
segunda era um deleite vaidoso, egoísta e indulgente: um nobre rico
calculando que a mina de prata rendera tanto dinheiro que poderia viver só
de caviar por trezentos anos, se vivesse o suficiente para tal.
Portanto, ao pintar os traços de Foxglove usando pigmento de mirtilo
com a ponta da pena de Rook, eu atribuí a ela a alegria radiante e
transbordante de se encontrar nos braços de um amado; de ver uma pessoa
querida descendo a rua depois de meses de distância, reconhecendo a
silhueta na contraluz da manhã. Sem a perfeição marcada e reluzente da
tinta a óleo na tela, havia um toque rústico em meu trabalho, menos bonito,
menos realista, mas mais forte. Uma linha solta perto da boca de Foxglove,
a qual não pude corrigir, sugeria que ela continha um sorriso. Riso crescia
atrás dos olhos apertados. Trabalhar com os materiais imperfeitos facilitava
transmutar humanidade, a alquimista da corte transformando ouro de volta
em chumbo.
Quando acabei, me levantei com uma reverência. Foxglove se
aproximou e pegou a folha de casca do cavalete. A corte inteira prendeu a
respiração. Ninguém falou nada, e senti uma imobilidade inabitual de
Gadfly. Apesar de só durar o tempo de um batimento cardíaco, um instante
em que Foxglove observou meu trabalho sem reagir, a pressão cresceu e
cresceu no meu peito até eu querer gritar.
— Ah, que graça! — exclamou, a voz aguda e límpida como um garfo
batendo na taça de cristal.
Ela virou o retrato pelo tempo necessário para que as fadas na fila
dessem uma olhada rápida e insatisfatória, antes de voltá-lo para si,
continuando a admirá-lo. A qualidade de seu sorriso mudara. Seu olhar
estava vazio. Enquanto a corte cochichava animadamente atrás dela, tendo-
se dissipado a tensão anterior, ela continuou paralisada ali, encarando uma
versão de si mesma que sentia alegria humana. Ninguém reparou na
estranheza além de mim.
Ninguém além de mim e Gadfly, me corrigi, e Rook, olhando de relance
para o trono. Eles também observavam Foxglove atentamente.
As palavras de Lark voltaram a meus pensamentos. Que nem o Gadfly
sabe das coisas antes que elas aconteçam.
Mais cedo, ele recusara a honra de ser o primeiro na fila para minha
demonstração. Na hora, eu não dera importância, mas agora comecei a
questionar. Será que ele esperava por algo? Algo que tinha visto?
Um movimento no canto do meu olho chamou minha atenção. Ao me
virar, vi Foxglove se afastar em passos rápidos, segurando o retrato à frente
dela como se tivesse sido encarregada de segurar um bebê, a contragosto,
pela primeira vez na vida.
Suavemente, quase imperceptível, a pena tremeu entre meus dedos.
Prendi a respiração, tentando me acalmar.
Swallowtail foi o próximo. A falha dele era no cabelo, impossivelmente
loiro e fino, como uma teia de aranha, flutuando ao redor da cabeça e
lembrando flores que parecem algodão. Ele aparentava ter uma idade entre
a de Lark e Rook, e seus olhos grandes e traços jovens combinavam com a
expressão de assombro humano. Ele saiu correndo com o retrato quando
acabei, seguindo a fila para exibi-lo a todos, especialmente àqueles que
precisariam esperar por horas.
O dia seguiu. Cada retrato era uma pedra que formaria a trilha para casa.
Perdi a conta de quantos retratos fiz, marcando-os só pelas emoções usadas:
curiosidade, surpresa, diversão, deleite. Os pigmentos iam diminuindo nas
xícaras.
O tempo todo senti Rook me observando, e evitei a tristeza, decidida.
Cada fada reagia de forma diferente ao se ver transformada. Algumas
riam como se fosse uma piada hilária. Outras estremeciam e soltavam
gargalhadas ansiosas. A maioria dessas, pelo que observei, era de aparência
mais jovem. Outras, normalmente mais velhas, ficavam paradas,
observando, como Foxglove fizera. Outras ainda iam se sentar, olhando em
silêncio para o horizonte, com expressões tão inumanas que eu nem era
capaz de imaginar o que passava pela cabeça delas. Apesar de fadas
pararem de envelhecer mais ou menos na aparência de Gadfly, me parecia
que aquelas eram as mais velhas de todas.
Passar o dia todo pintando era árduo como correr uma maratona. Meu
cotovelo direito doía da posição dobrada horas a fio. Minhas nádegas e
meus joelhos estavam dormentes por causa da posição. Meus dedos,
apertados na pena, primeiro ficaram duros, depois doloridos, e finalmente
dormentes, as articulações estremecendo em espasmos sempre que eu os
esticava. Mais que tudo, meu rosto ardia de tanto sorrir. Minha expressão
congelada devia ter se tornado horrorosa depois de um tempo, mas
nenhuma fada pareceu notar.
Depois de um tempo, muitos dos que já tinham sido pintados se
juntaram para um pouco de diversão no gramado. Fiquei aliviada por não
ser mais o único foco da atenção quando cortesãos começaram a jogar
peteca e boliche ali por perto. Uma atmosfera vivaz tomou a aglomeração.
Atrás de mim, ouvi, sem ver, Rook se ajeitar na cadeira. Meu sorriso se
tornou sincero quando imaginei o quanto devia irritá-lo ficar parado aquele
tempo todo.
— Devo dizer que não vejo sentido em continuar sentado aqui! —
exclamou ele, finalmente, e saiu para ganhar de Swallowtail no croqué.
Em seguida, ele perdeu para Foxglove no cabra-cega, mas se recuperou
e derrotou todo mundo, sem humildade, tanto no boliche quanto na peteca.
Lark se agitava atrás dele como uma borboleta curiosa enquanto Rook
ganhava toda partida que jogava.
As fadas jogavam na velocidade humana, notei, interessada. Talvez
fosse a única regra que permitia algum desafio. Em várias ocasiões, vi o
projétil plumado passar voando por um jogador a uma distância que
certamente seria alcançada com pouco esforço.
Rook deixara o casaco para trás. Sempre que virava o corpo, uns poucos
centímetros da camisa branca apareciam sob o colete apertado, acentuando
o tronco esguio. As mangas arregaçadas exibiam os antebraços musculosos,
e um leve brilho de suor desenhava seu pescoço acima do colarinho
desabotoado. Como eu o tinha visto derrotar feras fadas sem suar, reconheci
que estava se esforçando para se conter. A cada volta, cada golpe, ele
precisava se controlar para não exibir seu poder como um cavalo de guerra
desfilando empertigado nos arreios finos.
Sem aviso, calor tomou conta de mim. Na manhã de dois dias antes…
ele havia ficado suado também? Lembrei-me das mãos dele me levantando
como se eu fosse uma pena, acariciando meu tronco, me apertando contra a
árvore…
Com o rosto em chamas, acabei de contornar as linhas do cabelo da
pintura, tirei-a do cavalete e entreguei-a ao retratado. Ele saiu correndo,
rindo da expressão confusa no seu rosto pintado, e entrou numa partida de
boliche. A próxima fada se sentou, alisando a saia sobre os joelhos
desnudos e frágeis.
O calor morreu como brasa jogada na laje no inverno.
Era Aster.
— Boa tarde, Aster.
Gastei o que me restava de energia para me dirigir a ela como se não
fosse nada de mais — como se simplesmente olhá-la não me desse
calafrios.
— Você tem algo em mente ou gostaria que eu mesma escolhesse uma
emoção? — perguntei.
— Ah, você pode escolher, por favor. Tenho certeza de que poderá
escolher melhor do que eu.
Ela sorriu, desanimada. Os olhos dela… Os olhos dela eram famintos.
Retorcidas nas camadas de musselina, as mãos dela tremiam. Eu sabia o
que Aster queria, mas não sabia se podia lhe dar aquilo. Ou, ainda mais
importante, se devia.
Ela queria se ver como mortal de novo.
Mergulhei a pena de Rook. O cheiro amargo de nozes esmagadas subiu
do pote quando tracei a primeira linha em ocre-escuro. Sentia-me como se
enchendo um copo-d’água que mostraria, do outro lado das grades da
prisão, para alguém que estava morrendo de sede. Naquele momento, odiei
o Poço Verde ainda mais do que antes. Odiei que existisse e que pessoas o
desejassem. Odiei ter sentado à beira dele e não sentir a crueldade
irradiando das pedras musgosas. Como ousava ter aquela aparência, uma
coisa vil, uma coisa oca, cercada por samambaias, jacintos e passarinhos.
Será que Aster tivera alguma forma de conhecer o horror eterno com o qual
concordava? A ponta da pluma tremeu com a força da minha raiva.
Desenhei o rosto dela em traços fortes e violentos. A tinta respingava
conforme eu trabalhava, dando a impressão de que o retrato brotava na
página das partículas de escuridão. O queixo pontudo, as bochechas fundas,
os olhos enormes ganharam forma sob minha mão, em forma rústica mas
verdadeira. Mudei o ângulo do rosto dela para estar levemente erguido; seus
olhos se dirigiam diretamente a quem a olhava. Como ousa?, ardiam. Sua
boca estava fechada, mas o lábio superior estava franzido. Como ousa fazer
isso comigo? Quais são suas consequências? Ela parecia prestes a irromper
da página para exercer vingança, fechar os dedos ao redor do pescoço de
alguém. Você terá o que merece!
Assim, dei a Aster minha raiva. Raiva feia, raiva humana, a raiva que
ela merecia sentir, mas não podia, porque lhe fora arrancada para sempre.
Quando acabei, estava ofegante, e uma energia estranha corria por
minhas veias como se meu sangue tivesse sido trocado por ventos uivantes.
Quando encontrei o olhar do retrato de Aster, fui tomada por emoção. Ela
estava viva na página de uma forma que mesmo meu Ofício raramente
fazia. Era verdadeira de novo.
Eu precisava me levantar. A força do vendaval em mim exigia
movimento. Ergui-me com dificuldade da cadeira, sem sentir minhas coxas
ou nádegas, meus joelhos rangendo. Levei o retrato a Aster, que me viu
aproximando com um ar de confusão educada. A casca tremeu em minha
mão. No último momento, me lembrei de fazer uma reverência. Pela corte
toda, dezenas de silhuetas elegantes se curvaram de volta, como devido.
— Eu precisava me levantar — expliquei, rouca, e Pigarreei. — Corpos
mortais não são feitos para ficarem sentados no mesmo lugar por muito
tempo.
Murmúrios de compreensão se espalharam pela fila. Todo mundo me
observava, tentando entender minhas ações. Sim, é claro; mortais eram tão
frágeis…
Entreguei o retrato a Aster.
Ela o estudou. Uma cortina de cabelo comprido e escuro caiu sobre
parte do rosto, me impedindo de observar sua expressão. Finalmente, ela
levantou um dedo e acompanhou a tinta ainda úmida, borrando-a. Levou o
borrão pela casca inteira, até a borda, apertando com força suficiente que
temi que quebrasse o retrato em dois. Quando chegou à ponta e soltou, a
casca voltou à posição original. Ela virou o dedo manchado para olhá-lo.
— Eu me lembro — sussurrou, e inclinou o rosto de leve na minha
direção, o bastante para que eu vislumbrasse o brilho do olhar através do
cabelo.
Era como se um sino ressoasse pela clareira — um sino que só eu ouvia.
Nos olhos de Aster, raiva, humana e verdadeira, tremeluzia como fogo
bruxuleando feroz no meio da noite. Meu corpo todo se arrepiou.
Tão baixo que mal ouvi, ela disse:
— Obrigada.
A magia se quebrou. Ela se levantou, o rosto vazio, tão vazio que eu
quase me questionei se imaginara a centelha furiosa, mas sabia que eu não
poderia imaginá-la ou confundi-la. Ela andou pelo gramado com o retrato
pendurado pelos dedos frouxos, aparentemente sem a menor preocupação.
Entretanto, ao sentar-se, manteve o retrato virado para o colo, como um
segredo que estava determinada a guardar.
Eu me preparei e dei meia-volta.
— Senhor — falei para Gadfly —, meu Ofício me exauriu e meus
pigmentos estão acabando. Posso fazer um intervalo?
Ele bateu as mãos.
— É claro que pode, Isobel. Não precisa nem pedir. Você é hóspede de
nossa corte e merece todas as cortesias que eu puder oferecer.
As fadas na fila suspiraram em uníssono, sussurrando de frustração.
— Ora, ora — disse Gadfly para acalmá-los, antes de voltar a atenção
para mim. — Quer que alguém a acompanhe na floresta? Rook, talvez? —
sugeriu, sem sinal de malícia.
Olhei para o jogo de peteca e vi que Rook me observava, o peito
ofegante de cansaço, tendo esquecido a brincadeira. Uma peteca passou
voando por ele, bagunçando seu cabelo.
— Não, vou me virar bem sozinha — falei tranquilamente, ouvindo
minha própria voz como se viesse de outra pessoa, de outra esquina. —
Planejo não ir muito longe e não gostaria de dar trabalho ao príncipe por
algo tão insignificante.
Eu não tinha como saber se a pergunta de Gadfly tinha sido mesmo
inocente. Se fosse sugerir que alguém me acompanhasse, Rook era a
escolha óbvia. Entretanto, eu não conseguia conter a paranoia desesperada
de que ele sabia. Talvez tivesse visto alguma coisa… alguma coisa no
futuro…
Sorri para Gadfly e me despedi com uma reverência. Então lentamente,
de forma deliberada, peguei minhas xícaras e me afastei pelo vale, onde a
copa da árvore outonal de Rook espalhava as folhas vermelhas à distância.
Senti o olhar dele me procurar, mas não me virei para vê-lo.
Afinal, eu precisava me acostumar a deixá-lo para trás.
Quinze

Enquanto caminhava pela mata, me tranquilizei de que Rook se sairia bem.


Ele provavelmente já estava insuportavelmente lânguido depois de ganhar
de todo mundo na peteca pela décima vez. Por que ele precisava ser tão
absurda e estupidamente transparente? Dava na mesma que ter Estou
apaixonado por Isobel! escrito na testa.
Com um grito de frustração, arranquei minha bota das gavinhas
emaranhadas de uma videira. Até a folhagem delicada e primaveril parecia
menos amigável. Permeado por nuvens, o céu azul brilhava, tão inofensivo
quanto o sorriso de Gadfly, e esquilos pulavam pelos galhos acima de mim,
soltando chuvas de pétalas brancas. No entanto, se tinha aprendido qualquer
coisa entre as fadas, era a não confiar nas aparências.
Saí do mato mais cerrado e me sentei no mesmo tronco da tarde
anterior. Uma brisa sacudiu as folhas da árvore de Rook e algumas
desceram esvoaçantes, se espalhando pelo meu colo. Peguei uma e toquei
suas bordas. A cor se destacava naquele ambiente, assim como Rook.
As coisas não estavam saindo como esperava. Eu não deveria ter me
deixado levar por Aster. Não havia como negar que ela sentira raiva de
verdade, raiva humana, por mais impossível que fosse. Não só isso — meus
retratos tinham afetado algumas outras fadas também. Eu as pintava havia
anos e nunca vira tais reações ao meu Ofício. Foxglove sentira alguma
coisa, eu tinha certeza. Talvez fosse uma emoção. Ou talvez tenha
vislumbrado o que significava não sentir, confrontando o vazio da própria
existência, o vácuo de nunca ter sentido alegria. Eu não sabia bem qual
possibilidade era mais preocupante — ou mais perigosa.
Minha única certeza era de que eu não podia fracassar. Não era só
minha vida que estava em jogo.
Reparei que tinha rasgado a folha toda, deixando só as veias fibrosas.
Joguei os pedaços para longe e pus o rosto nas mãos. Meus olhos ardiam.
Meu peito doía. Mesmo que o plano corresse perfeitamente bem e eu
estivesse me angustiando por nada, encarava um futuro que não tinha mais
certeza de ser capaz de aguentar.
— Queria que você estivesse aqui, Emma — murmurei, querendo o
abraço de minha tia mais do que tudo naquele instante.
Ela saberia o que dizer, me tranquilizaria, diria que eu não era uma
pessoa horrível por parte de mim não querer voltar para casa. Talvez até me
convencesse de que eu poderia viver bem, mesmo depois de enterrar meu
coração nas terras outonais e deixá-las para trás para sempre.
— Quem é Emma? — perguntou uma voz alegre, bem ao lado do meu
ouvido.
Minha alma foi para o céu e voltou para a Terra.
— Lark! Não sabia que você estava aqui.
Ela estava empoleirada na beira do tronco, como um pássaro, sorrindo,
as mãos carregadas com uma pilha de mirtilos recém-colhidos. Ao ver meu
rosto, o sorriso dela sumiu.
— Você está vazando!
— É, eu estava chorando.
Ao vê-la erguer as sobrancelhas, acrescentei:
— É o que mortais fazem quando estamos tristes. Estou com saudades
da minha tia, Emma.
— Bem, por favor, pare. Trouxe alguns mirtilos, porque Gadfly disse
que você estava ficando sem ingredientes do Ofício. Aqui.
Ela soltou os mirtilos no meu colo, na cesta que as saias formavam entre
minhas pernas. No último instante pegou alguns de volta e os enfiou na
boca.
Eu me senti estranhamente emocionada.
— Obrigada, Lark. Foi uma ótima ideia.
— É, eu sei. Eu tenho muitas ideias, mas ninguém repara; e todo mundo
me trata como se eu fosse a criatura mais bobinha da corte da primavera.
— Eu não faço isso, não é? — perguntei, preocupada.
— Não. É por isso que gosto tanto de você! — exclamou, pulando de
pé. — Vem, vamos achar mais frutinhas.
Com uma risada engasgada, peguei um dos mirtilos do colo e o pus na
boca. O gosto azedo e maduro adocicou minha língua.
Um corvo de olhos pretos pousou no galho mais alto da árvore de Rook.
Lark sorriu, mostrando todos os dentes pontudos e manchados de roxo.
Antes mesmo de o mundo girar num caleidoscópio colorido, eu sabia
que não devia ter comido o mirtilo — não devia ter pensado em comê-lo.
Fui jogada para baixo como se um buraco se abrisse no chão sob meus pés.
O céu se distanciou, cada vez menor, cercado por uma escuridão quente,
macia e embolada que primeiro agarrei ao cair, até reconhecer, inteiramente
apavorada, que eram minhas roupas.
Eu me debati, sufocada por tecido por todo lado. Meu corpo não
funcionava como devia. Meu rosto, meus membros, até meus ossos tinham
tomado uma formação desconhecida que me fez ser percorrida por calafrios
de terror. No esforço de entender o que estava acontecendo, dois apêndices
compridos se viraram na parte de trás da minha cabeça. Por algum motivo,
funguei, e meu nariz flexível se sacudiu em resposta. Meu coração batia tão
rápido que a princípio não identifiquei a sensação — parecia uma vespa
presa no meu peito, zumbindo sem parar.
Chutei minhas roupas e saltitei pela grama que batia no meu ombro,
meu olhar ofuscado pelo sol, finalmente entendendo minha transformação.
A fruta enfeitiçada de Lark tinha me transformado em lebre.
O gritinho agudo dela ecoou atrás de mim, perfurando minhas orelhas
sensíveis. De forma ainda mais impossível, meu coração acelerou mais e
mais. Achei que meu peito fosse explodir enquanto corria para um
espinheiro que me assomava, mais alto do que o campanário mais alto do
reino Excêntrico, mais largo que uma casa. A floresta crescera a um
tamanho tão esmagador que era quase impossível de olhar. Eu precisava
chegar a um canto escuro, seguro e fechado, imediatamente.
— Corra, corra, corra! — riu Lark. — Eu vou pegar você, Isobel!
Lembrei-me do que ela dissera para Rook no dia anterior, minha
memória se desenrolando, apavorada. “Você pode se transformar em lebre
de novo para eu tentar pegar você?” Pensei em como Rook a ignorava, pois
só prestava atenção em mim.
Escorreguei para baixo do arbusto, jogando terra e folhas do tamanho de
travessas. Meu pelo deslizou tranquilamente sob galhos a meros
centímetros do chão. Voei para a frente, ciente de que Lark teria me visto
desaparecer sob o arbusto e, pelo som das gargalhadas, já estava me
seguindo.
Ali! Um buraco! Ao me aproximar da toca cavada nas raízes do
espinheiro, entretanto, me encolhi de medo do cheiro forte que emanava das
profundezas. Meus instintos gritaram “Perigo!”. De alguma forma, sabia
que a coisa que morava naquele buraco me comeria na primeira
oportunidade.
— Ah, como você é rápida! Acho que a perdi!
Pelo espaço entre as folhas, vi os pés gigantescos de Lark andarem até o
arbusto ao lado do meu. Ela se curvou e olhou por baixo, o cabelo dourado
uma cascada ondulante e cintilante, do tamanho de uma tapeçaria real.
Obviamente era uma brincadeira para ela. Não queria me machucar.
Pelo que dissera, era uma brincadeira comum com Rook. Entretanto, se me
pegasse, entenderia que eu era uma lebre mortal, não uma fada na forma de
coelho? Será que os dedos dela cercariam minhas costelinhas e apertariam
um pouco forte demais? Estremeci, lembrando que fadas comiam lebre
crua.
Será que ela estava mesmo chateada comigo por roubar a atenção de
Rook?
Antes que eu pudesse pensar demais, ela virou a cabeça para olhar
diretamente em minha direção.
— Achei você!
Ela arreganhou os dentes manchados de novo e avançou, curvada para a
frente, estendendo os braços, os dedos curvados em garras ávidas. Dei uma
volta e saí voando, mirando um arbusto de madressilvas. Não era tão denso
quanto eu gostaria, mas escapei dela ao pular atrás de uma tora caída e
coberta por samambaias cheias em espiral. Não contive um olhar para elas
ao passar. Talvez, se escapasse, pudesse voltar e comer algumas mais
tarde…
— Isobel, Isobel! — cantarolou Lark, doce. — Aonde você foi, Isobel?
Você sabe que vou encontrá-la. Eu a ouço! Eu sinto seu cheiro!
O chão tremeu e enormes estrondos soaram atrás de mim quando ela se
enfiou nas madressilvas.
— Você é só uma lebre bobinha!
“Uma lebre bobinha! Uma lebre bobinha!” As palavras ricochetearam
entre meus ouvidos, perdendo o sentido quando todo o meu ser se retraiu a
um instinto animal: sobreviver. Eu vivia para correr. Luz esmeralda e
sombras das folhas voavam por mim, meu corpo se apertando e esticando
com a tensão de uma flecha a cada passo. Eu desviava de pedras e raízes no
caminho. Se pulasse para um lado, então para o outro, a fera enorme atrás
de mim se confundiria e ficaria para trás.
No topo de uma pedra, paralisei e olhei para trás. O esforço de captar ar
suficiente causava espasmos no meu nariz, aberto e vermelho. Calor
evaporou das minhas orelhas. Quem me perseguia havia parado e olhava
sob uma tora. Com força, ela virou a tora com os apêndices superiores.
Mesmo à distância, ouvi a casca macia se esfarelando, folhas tenras se
rasgando e sendo arrancadas. Uma das minhas orelhas virou por vontade
própria para escutar melhor. Então minha perseguidora se empertigou.
“Perigo!” Pulei da pedra e corri pela clareira. Um dos tocos me pareceu
conhecido: tinha tecido por cima, xícaras ao lado. Ver aquilo me perturbou,
da mesma forma como me perturbaria a sombra de um falcão passando pela
grama.
Então, de um ângulo que eu não esperava, desceu um predador.
“Não! Não! Não!”
Eu fui pega!
Chutei e me retorci, gritando, mostrando os dentes. Mãos gigantescas
tinham me agarrado e agora me levantavam. O sol piscou em meus olhos —
o mundo voava estonteante —, e as mãos me seguravam com firmeza
demais para fugir. Bati os pés contra o peito da criatura, mas ele me apertou
tão perto que eu não podia mover as pernas, e levantou parte das roupas
para meu rosto entrar.
Escuridão fechada. Barulhos abafados. Parei de me debater, pensando
que talvez o perigo acabara. No silêncio repentino, só meu coração
continuava a galope. O som enchia meus ouvidos e sacudia meu corpo em
pulsos rápidos e rítmicos.
— Lark — disse a criatura.
Ele não gritou. Senti que ele não precisava. A voz era como um vento
cruel, arrancando tudo em seu caminho.
— O que você fez? — perguntou.
Uma voz petulante respondeu:
— Você não brinca mais comigo, Rook! Ninguém presta atenção em
mim, só ela! E você a está guardando só para si! Não é justo!
Nariz tremendo, me enfiei mais fundo nas roupas do meu captor. Aquela
voz gritava “Perigo!”. O cheiro da criatura que me segurava, um cheiro
fresco de folha, um cheiro de ar noturno, era seguro.
— Sua tolinha. Você já parou para pensar no que aconteceria se ela
escapasse de você? Olhe.
Uma das mãos quentes deixou minhas costas. Tremi.
— Ela já esqueceu o que é — continuou ele. — Teria vivido o resto dos
poucos anos como uma lebre comum.
Um pé bateu com força.
— Eu não a perderia! Eu cuido das minhas coisas! Rook, por que você
está assim? Você está sendo horrível, hor-rí-vel. Vou contar para o Gadfly
como você é horrível.
— Conte o que quiser para Gadfly — disse meu captor —, mas acho
que ele não vai gostar de saber como você tratou a convidada dele.
— Ótimo! — a voz soou incerta. — Vou agorinha mesmo!
— Faça isso — disse meu captor, com frieza.
Passos se afastaram pela grama. Com as orelhas apertadas contra as
costas, eu não ouvia bem o suficiente para determinar que a predadora se
fora com certeza. Mesmo assim, não estava com medo. Confiava que meu
captor não me exporia até que o perigo passasse.
Ele me tirou da escuridão e me ergueu à altura do rosto. Eu o observei,
calmamente, com os pés de trás pendurados. Não detectei mais ninguém na
clareira, nenhuma sombra de falcão, nenhum cheiro de raposa.
— Isobel, você me reconhece? — perguntou ele.
Uma sombra cobrira seu rosto, seu cheiro ganhara um toque amargo.
Ele estava com raiva. Mesmo assim, ainda pensei: “Segurança.”
Remexi o nariz.
Ele suspirou e me abraçou contra o peito de novo.
— Vou transformar você de volta. Tente não se debater, pois não tenho
muita prática com este tipo de magia. Quer dizer — acrescentou
rapidamente —, sou perfeitamente capaz de fazê-la, pois tenho certeza de
que você notou que sou excelente com feitiços, mas seria melhor se você
ficasse quieta. Então, por favor, tente.
Obediente, fiquei parada nos braços dele, remexendo o nariz.
Primeiro, nada aconteceu. Então, logo quando achei que seria uma boa
ideia tirar uma soneca, o mundo virou do avesso e ao contrário e me jogou
de volta como se eu tivesse passado alguns segundos como o pião de uma
criança. Tudo encolheu. Meu corpo ficou pesado, carnudo e lento. Pisquei
atordoada, tentando me orientar. Folhas vermelhas esvoaçaram pela clareira
e as árvores balançaram no resto de vento. Quando a última lufada soprou, a
árvore de outono estava nua, só galhos, sem folha alguma.
Eu não estava tocando o chão. Meus pés estavam pendurados no ar e
braços quentes seguravam meus ombros e a parte de dentro dos meus
joelhos. Rook. Era Rook que me segurava.
E eu estava nua.
Antes que achasse minha voz e pedisse a ele para me pôr no chão, Rook
me largou como se eu fosse carvão em brasa. Caí entre as flores com um
baque, sem dignidade. Horrorizada, apertei minhas pernas, me encolhendo
com os braços apertados contra o peito, e o encarei. Ele estava tão chocado
quanto eu.
— Por que você me… — comecei.
No mesmo instante, ele falou correndo:
— Você não estava mais em perigo então eu não podia mais tocá-la!
Está tudo bem?
— Não.
Eu fora transformada em lebre!
— Mas vai ficar tudo bem — acrescentei. — Obrigada por me resgatar.
Não podia ter me posto no chão um pouco antes?
Ele desviou o olhar.
— Eu me distraí — respondeu, com dignidade.
Ah… é.
Ele começou a tirar o casaco, mas eu o interrompi.
— Vou vestir minha roupa. Só… não olhe.
Eu me levantei e andei até o tronco, consciente de que ultimamente
estava passando muito tempo me esgueirando pelada na floresta. Corando
até o pescoço, vesti as minhas roupas de baixo, a seleção Firth & Maester
do dia e, finalmente, minhas meias, botas e o anel escondido, enquanto
Rook me esperava, encarando com determinação um ponto imaginário do
outro lado.
— Vão notar sua ausência na corte? — perguntei, querendo diminuir a
tensão, ou pelo menos levá-la a um assunto mais importante.
— Sem dúvida — falou, com uma pausa. — Isobel…
Ajeitei minhas saias. O chão de repente me pareceu muito interessante.
— Sim, foi extremamente idiota da minha parte comer o que Lark me
ofereceu. Eu também não devia ter saído sozinha, mas estou com medo de
que a corte, especialmente Gadfly, crie suspeitas se passarmos mais tempo
juntos.
A folha que eu rasgara tinha caído em uma das xícaras.
— E eu precisava me afastar um pouco — continuei. — Você também
notou, não é? O que estava acontecendo lá?
Quando ergui o olhar, a expressão de Rook me disse que ele teria
trazido o assunto à tona se eu não o fizesse.
— Notei. Seu Ofício está nos afetando. Isobel, eu nunca antes vi nada
assim.
— Se eu continuar a demonstrar, acha que estaremos em perigo?
— Como eu disse, isso é… novidade. Meu povo anseia pelo seu
trabalho, ainda mais pela diferença que você impõe nas obras.
Honestamente, não posso dizer que acredito que não há risco, mas acho que
a corte desconfiaria mais se você parasse agora, quando todos esperam que
continue. Se, talvez, ficarmos por mais um dia e partirmos após o baile de
máscaras da noite de amanhã…
Fez-se um intervalo longo, em que não nos olhamos. Nossa aliança
progredira muito além da sobrevivência mútua; nós dois queríamos mais
tempo juntos, por motivos nada práticos. Não adiantava fingir, mas ainda
assim não o dissemos.
— Mas estou quase curado — continuou ele, decisivo, obrigando-se a
completar. — Se quiser partir hoje, ou mesmo agora, podemos.
Fechei os olhos com força, me xingando pela minha tolice.
— Depois da noite de amanhã, então.
O suspiro de alívio dele não foi sutil. Sorri com o canto da boca, mas
outra coisa chamou minha atenção.
— Seu broche sumiu! Não está no bolso, está? Deve ter caído quando
você me soltou.
Ele bateu no peito em surpresa e se abaixou para procurar entre as
flores. Não era a busca tranquila de alguém que perdera um relógio de bolso
ou um lenço. Rook varria o chão com os olhos arregalados de desespero,
uma angústia que só seria inspirada pela perda de um tesouro inestimável e
insubstituível. Quando o encontrou, apertou-o com força. Levou o dedo à
abertura escondida. Então se interrompeu, lembrando que eu estava
presente, e o devolveu ao bolso.
Meu peito doeu por ele. Era doloroso ver Rook assim por algo tão
pequeno. Ele se importava mais com aquele broche do que a maioria das
pessoas se importava com tudo que possuía.
— Quem foi ela? — perguntei.
De joelhos, ele parou de se mover.
— Eu… Me desculpe. Você não precisa responder. Acho que só queria
saber se… como vocês escaparam da Boa Lei.
Achei que ele pudesse sentir raiva. No entanto, me olhou como se eu
tivesse arrancado o coração de seu peito. Os olhos se tornaram opacos, de
vergonha e desespero. Ele então guardou o broche no bolso.
— Eu me apaixonei por ela, mas nunca infringimos a Boa Lei — disse
ele.
— Como isso é possível?
Desejei não ter perguntado. Era horrível ver aquela tristeza.
— Ela não me amava.
Silêncio reinou no campo. Depois de um tempo, um esquilo começou a
roer uma noz na árvore.
Hesitante, ele continuou:
— Ela… Ela gostava de mim, mas sabia que não podia ir além.
Decidimos que seria melhor se nunca mais nos víssemos. Ela me deu o
broche como presente de despedida. Parei de visitar o reino Excêntrico e,
então, passou mais tempo do que eu imaginava.
Ele olhou para o chão.
— Quando voltei — prosseguiu —, descobri que os bisnetos dela
viviam na cidade e que ela morrera muito antes, de velhice. Até seu retrato,
nunca mais voltei.
Ele respirou fundo.
— Eu sei que é… errado eu me importar tanto com o broche —
concluiu. — Não sei explicar. É…
— Não é errado — respondi, minha voz tão baixa que eu mal me ouvi.
— Rook, não é. É só humano.
Ele abaixou a cabeça.
— O que aconteceu comigo?
Eu não aguentei. Andei até ele e o abracei. Rook era tão alto que me
achei ineficiente; meus braços cercavam sua cintura, como se eu fosse uma
criança. Depois de um momento tenso, ele desabou sob o meu toque, como
se a dor o destruísse a ponto de não conseguir se sustentar sozinho.
— Você não é fraco — falei, sabendo que ninguém nunca dissera aquilo
em todos seus séculos de vida. — A capacidade de sentir é uma força, não
uma fraqueza.
— Não para nós — disse ele. — Nunca para nós.
Não havia o que dizer. Minhas palavras de conforto eram vãs. Eu não
podia falar nada para reconfortá-lo, na verdade. Porque ali, na floresta, a
humanidade dele representaria sua morte. Talvez não agora, talvez não por
centenas de anos, mas no fim, de qualquer jeito, ele enfrentaria o
assassinato pelas mãos de seu povo. Eu me forcei contra as lágrimas
ardendo em meus olhos e o nó duro e dolorido sufocando minha garganta.
Parecia horrível e inimaginavelmente injusto deixá-lo ali para morrer
sozinho. A injustiça soprou em mim como uma tempestade, derrubando
tudo.
Ele se afastou. Eu devia ter perdido a noção do tempo, pois longe de seu
toque eu senti frio.
— Foi arrogante de minha parte supor que eu poderia protegê-la de
qualquer mal nas mãos de meu povo — disse ele, a voz oca. — Eu mal
cheguei a tempo de salvá-la.
— Não foi sua culpa.
Ele sacudiu a cabeça.
— Se algo assim acontecer de novo amanhã, não importará de quem é a
culpa. Você pode acabar morta.
Ainda assim, ali estava eu, decidindo ficar mais uma noite mesmo
estando ciente do perigo. Vinte e quatro horas não eram nada. Mesmo
assim, eram tudo. Eu poderia viver mais amanhã do que em todos os outros
anos da minha vida. Quanto eu estava disposta a me arriscar por isso? O
meu antigo eu, que escondera os esboços de Rook no fundo do armário,
nunca faria essa pergunta. Era o problema de quem eu fora, pelo que
começava a entender. Ela aceitara que se comportar corretamente
significava não ser feliz, pois era como o mundo funcionava. Ela não pedia
o suficiente — nem da vida, nem de si.
— Há algum feitiço de proteção que pode usar em mim? — perguntei.
— Até nos despedirmos.
Ele fechou a cara. Falou com cuidado:
— Só há um modo de proteger um mortal de magia feérica. Nenhuma
outra fada seria capaz de enfeitiçá-la ou influenciá-la enquanto durasse, mas
vai além de um mero feitiço. Para que funcione, você precisaria me dizer
seu nome verdadeiro.
Rasp, rasp, rasp, fez o esquilo, um som áspero e repetitivo.
— Você está falando de sortilégio.
— Estou. Entenderei caso você não permita. No entanto, se me pedisse,
eu só o usaria para protegê-la. Nunca manipularia seus pensamentos.
— Se o fizesse, eu não teria como saber.
Ele assentiu com a cabeça.
— Você precisaria confiar em mim. Eu lhe dou a minha palavra.
Se fosse qualquer outra fada, eu analisaria suas palavras em busca de
truques — da mentira de como planejava me ferir, retorcida em verdade. No
entanto, e deus me acuda, eu não o fiz. Eu acreditei nele. Fechei os olhos e
respirei fundo no escuro, voltando meu julgamento para dentro. Guardar
meu nome em segredo era um dos meus princípios mais firmes. Confiar
numa fada ela loucura.
Eu estava exausta daquilo. Talvez fosse hora de parar com segredos e
enlouquecer um pouco.
Desta vez, meu peito e minha cabeça gritaram a mesma verdade.
Abri os olhos e encontrei Rook me observando, o olhar sombreado pelo
cabelo que emoldurava seu rosto. Ele apertou os lábios. Lendo minha
expressão, assentiu de leve.
— Pensaremos em outra solução…
— Sim — falei.
Ele ofegou.
— Como?
— Eu confio em você.
Uma convicção feroz me carregou como a luz da manhã, queimando
toda dúvida.
— Eu te conheço. Eu confio na sua palavra. Mas — acrescentei — se eu
começar a te elogiar demais enquanto estiver sob sortilégio, vou desconfiar.
Ele não pareceu entender totalmente minha resposta. Acho que nem
minha piada boba fez sentido. Ele dobrou um joelho, trazendo o rosto à
altura do meu.
— Isobel, antes que você se decida com certeza, você deve saber que
isso me libertaria. Eu voltaria a poder tocá-la mesmo quando você não
estiver em perigo.
— Que bom. Não quero que você me derrube de novo.
Ele soltou uma gargalhada surpresa, perigosamente próxima de um
soluço choroso. Seu olhar dizia que eu era o maior mistério da vida.
— Vocês, mortais, são terrivelmente estranhos — disse ele, tenso.
— Vindo de você, estou começando a suspeitar que é um elogio. Tem
mais alguém por perto?
Ele sacudiu a cabeça. Não desviou o olhar do meu rosto, mas eu
acreditava que ele não precisava olhar para saber.
— Então fique parado — falei.
Há magia nos nomes. O meu só fora dito em voz alta uma única vez na
história do mundo. Eu era a única pessoa viva a sabê-lo. O som e a forma
nunca me abandonariam, mesmo que, supostamente, eu não devesse
lembrar — minha mãe o sussurrara em meu ouvido logo que nasci, um
bebezinho ainda vermelho e enrugado do útero. Foi assim que aconteceu.
Eu me inclinei. Levei minha boca tão perto da orelha de Rook que quando
falei numa voz mais silenciosa que um sussurro, mais silenciosa que o
farfalhar das asas de uma mariposa, o ar quente mexeu em seu cabelo.
Assim, dei a ele meu nome verdadeiro.
Dezesseis

No dia seguinte, a corte zunia com expectativas do baile de máscaras, que


começaria ao entardecer. Quando as sombras começaram a se esticar, eu
não só tinha pintado retratos de quase todas as fadas da corte da primavera,
como ouvira descrições detalhadas do que cada um vestiria, quem roubara
de quem ideias de tendência da moda, e várias sugestões profundamente
preocupantes de vingança indumentária.
Quanto mais retratos eu finalizava sem ter problemas, mais relaxada
ficava. Quando cheguei à última fada da fila, estava preparada para
acreditar, com certa cautela, que meu plano tinha dado certo. Mais
retratados tiveram reações peculiares às pinturas, parando para encarar os
rostos ou passando o resto da tarde distraídos, mas, felizmente, ninguém
pareceu reparar — pela primeira vez, a ignorância total que tinham sobre
emoções humanas foi uma vantagem. Eu fiquei intrigada ao constatar que,
como no dia anterior, um padrão nítido havia se desenvolvido: eram sempre
as fadas mais antigas que mais se afetavam pelo meu Ofício.
Do sortilégio, não senti nada. Minha falta de percepção era o elemento
mais perturbador. Cutuquei o fundo da minha mente, como faria com um
dente mole, mas não detectei o menor indício. Às vezes, até duvidava que
Rook não o tivesse feito corretamente. Entretanto, ele estava seguro de que
tinha funcionado, e a clareira mudara depois que eu dissera meu nome, em
uma espécie de suspiro, como se todas as árvores, folhas e flores tivessem
expirado juntas.
Era sortilégio, afinal de contas. Se eu pudesse senti-lo, alguma coisa
estaria errada.
····
Contive um gemido quando me levantei, esperando que minhas pernas se
recuperassem a tempo de dançar. Meu último retratado era de uma fada alta
e de aparência severa chamada Hellebore, que recebeu seu retrato com uma
reverência divertida. Ele o examinou ao se afastar. Logo, apertou a manga
da camisa contra a boca, contendo uma gargalhada. Ele riu de novo. Em
seguida, tropeçou. Finalmente, encostou-se numa árvore, em um ataque de
riso, ofegante. Aquele riso não era controlado, era inumano — chegava à
beira da histeria.
Eu o desenhara às gargalhadas.
Sentindo calafrios, me ajoelhei para arrumar minha área de trabalho,
inutilmente organizando as xícaras e o que restara das folhas de casca.
Hellebore se afastara o suficiente para que, com sorte, ninguém reparasse e
fizesse a conexão.
E então vi Foxglove. Ela interrompera o jogo de boliche na grama,
observando-o com suspeita atenta. Quando a gargalhada o dominou e ele
caiu ao chão, agarrando a barriga, ela se virou de repente para me encarar,
os ombros rígidos e as narinas abertas.
— Isobel — disse Gadfly, do trono.
Eu me preparei e ergui a cabeça. Ele não sorria; sua expressão era séria,
mas suave, agradável. Pronto. Meu último retrato, e tudo mais fora por água
abaixo.
— Acredito que Lark queira falar com você — prosseguiu ele,
simplesmente.
Uma xícara escorregou da minha mão trêmula, batendo nas outras com
um tilintar.
Lark se aproximou aos passinhos de onde estivera ao lado de Gadfly,
meio escondida pelos galhos floridos do trono. O rosto dela estava
impassível quando fez uma reverência profunda. Em seguida, para minha
surpresa, ela se debulhou em lágrimas.
— De… Desculpe-me por ter lhe transformado numa lebre, Isobel —
gaguejou, ofegando.
Gotas enormes e sofridas pingavam pelas bochechas e pelo queixo de
Lark. Ela fungou com força. Inquieta, me perguntei se ela estava me
imitando, o único exemplo de choro que já testemunhara. Não era uma
imitação lisonjeira.
— Eu só… Eu só queria alguém para brincar comigo — completou ela.
Hellebore ainda ria? Foxglove ainda me observava? Alguém mais
notara? Não podia arriscar olhar. Com esforço, forcei minha atenção a se
manter unicamente em Lark. Apesar do que ela fizera, eu senti pena.
— Eu te perdoo, Lark.
— Ainda podemos ser amigas? — perguntou ela, lamentosa.
— Claro que sim. Mas, por favor, não pregue mais peças em mim —
acrescentei pelo bem das aparências.
— Ah, que bom!
A bagunça de lágrimas sumiu no mesmo instante, sem deixar traço de
umidade ou vermelhidão no rosto de porcelana. Porque, óbvio, ela não tinha
se desculpado por quase me ferir, ou por me assustar. Ela provavelmente só
se arrependia de me transformar em lebre porque fora pega no ato e punida.
— Vamos, então — disse ela. — O baile já vai começar e você precisa
de uma fantasia. Já escolhi uma. Você vai adorar. É…
Alguém afastou a mão que ela estendera com um tapa. A princípio,
achei que fosse Rook. Entretanto, era Foxglove ao nosso lado, com seu
sorriso frígido e sufocado. A expressão de Lark se esvaziou. Ela levou a
mão rapidamente ao peito, mas não antes que eu vislumbrasse um corte
longo e fino, como o arranhão de uma garra afiada de animal, sumindo do
dorso dos dedos.
— Acho que você já passou muito tempo na companhia de nossa
querida Isobel. Não concorda, querida? — perguntou Foxglove, seu sorriso
se derretendo sem convicção ao se voltar para mim. — Lark é tão jovem.
Ela é bem-intencionada, mas não é a melhor companhia para uma moça
mortal. Eu, por outro lado, já tratei com humanos muitas vezes. Tenho
também um armário extenso, repleto de vestidos acumulados na minha
longuíssima vida — insistiu, olhando de relance para Lark, saboreando os
frutos de seu ataque certeiro. — Acompanhe-me.
Meu estômago se revirou só de pensar em ficar sozinha com Foxglove.
Eu estaria mais segura trancada num quarto com um tigre esfomeado. O que
ela diria se eu recusasse na frente da corte inteira?
— Não — interrompeu Nettle, avançando. — Por que você não vem
comigo? Só recentemente comecei a visitar o reino Excêntrico, mas meus
feitiços já estão na boca do povo.
Com uma rapidez tão feroz que quase perdi, o rosto de Foxglove se
contorceu em uma careta horrível.
Mais fadas se juntaram. Eu logo me encontrava em meio a uma
multidão barulhenta e voraz, mulheres imortais brigando pelo privilégio de
me emprestar uma máscara e um vestido, como crianças ávidas discutindo
sobre um brinquedo que prefeririam quebrar a dividir com os coleguinhas.
Procurei Rook, mas, quando o vislumbrei entre os corpos de duas fadas, ele
já tinha se afastado e estava do outro lado da clareira. Gadfly andava ao
lado dele com uma mão paternal em suas costas, a outra sacudindo uma
gravata no ar.
Tínhamos arranjado o sortilégio para situações como aquela. Eu estava
imune a qualquer magia feérica que não viesse de Rook e, se qualquer um
tentasse me ferir fisicamente, ele o sentiria. Entretanto, frente à pressão
claustrofóbica de tantas fadas me agarrando ao mesmo tempo, eu não
conseguia sufocar o pânico com lógica.
Por que só agora aquilo acontecia? Lark me monopolizara sem
competição no meu primeiro dia na corte. Olhei para ela, mas já não estava
mais ali. Diferente de Rook, não a encontrei.
Fiquei sem fôlego. Eu sabia o motivo: Lark mostrara fraqueza. Como
predadores, as fadas a viram tropeçar e aproveitaram para atacar. Agora a
questão era quem tomaria seu lugar.
Lá no alto, entre as fadas curvadas sobre mim, um galho balançou
quando algo pousou na copa. Vislumbrei um rastro de preto-brilhante antes
de as cabeças se fecharem de novo. Seriam as penas de um corvo ou era
simplesmente o brilho das granadas vermelho-sangue que decoravam o
cabelo de Foxglove? Eu não enxergava. Eu não escutava. Não estava
respirando o suficiente — o perfume feroz e animal era sufocante. Tonta,
tensionei os músculos para sair correndo, escapar do peso apertado de
cheiro, barulho e toque indevido, quaisquer que fossem as consequências.
— Parem — disse uma voz suave e fina.
Quase ninguém a notou. Quem falara estava na beira do grupo, mãos
apertadas em punho na lateral do corpo.
— Aster — ofeguei.
Eu me estiquei na direção dela, mas não consegui ir muito longe, pois
eram muitos os dedos me segurando, os corpos me esmagando.
Ela reparou e fez um rápido sinal com a cabeça.
— Parem — repetiu, virando-se. — Deixem Isobel em paz, todos vocês.
Serei eu a prepará-la para o baile. Serei eu a prepará-la para o baile!
A voz dela ressoou como um tiro. Todas as cabeças se viraram e se
calaram. Por um segundo, só um segundo, uma brasa de verdadeira raiva
queimou em seus olhos. Acho que só eu era capaz de reconhecê-la. Mesmo
que as fadas não soubessem nomear o que viram, ainda assim foram
afetadas. Todas se encolheram, incertas.
Puxando minhas mãos das duas fadas que me seguravam, consegui
fazer uma reverência sem jeito.
— Por que acha que deve ser você, Aster? — perguntei, minha voz
áspera, seca e desesperada, esperando que não pudessem sentir meu medo.
— Por favor, diga-me.
Ela ergueu o queixo.
— Eu bebi do Poço Verde. Nenhuma de vocês pode dizer o mesmo.
Hoje, o privilégio é meu.
E então ela estendeu uma mão frágil.
Meus dedos ávidos encontraram os dela. Por algum motivo, me assustei
por não haver nada de humano em sua mão de aço. Ela me puxou para
longe da multidão, para a escada. As outras fadas suspiraram,
decepcionadas.
— Ah, querida. Talvez na próxima…
— Seria um prazer…
— Admiro tanto o seu trabalho…
Contive um tremor em resposta aos lamentos ronronados enquanto me
afastava aos tropeços, a respiração das fadas acariciando meu rosto como
plumas.
Aster me conduziu escada acima em silêncio. Conforme andávamos, eu
contava. Um corvo, nos observando em silêncio do corrimão. Um segundo
entre as flores do trono de corniso. Um terceiro esvoaçou pela clareira,
líquido como sombra, e um quarto e um quinto pularam alegremente em um
galho. Nenhum deles deu sinal de se dispersar. Se tivesse um sexto…
A mão de Aster puxou meu punho e eu não podia continuar ali, exposta,
no alto da escada. Juntas, entramos no labirinto. Talvez fosse minha
imaginação, mas a curva desconhecida que ela escolheu me pareceu mais
estranha, mais feroz, a bagunça menos amigável. Não reconheci o cavalo de
pau no canto, sua tinta lascada e desbotada pelo tempo. Pisei em alguma
coisa e só a mão firme de Aster me impediu de torcer o tornozelo. Era uma
estatueta entalhada de pássaro, parcialmente envolta pelo chão. Passamos
por um sino de igreja gigante, coberto de casca de árvore, saindo da parede
num ângulo inclinado. Mais à frente, uma mão de boneca brotava do teto de
folhas. As coleções de Ofício deviam ter ficado tanto tempo intocadas ali
que o labirinto começara a envolvê-las, onde ficariam para toda a
eternidade, esquecidas.
Finalmente, Aster me puxou por outra esquina e parou. Ela olhou para o
caminho por onde tínhamos vindo, em um estado de alerta silencioso de
quem escutava.
— Não fomos seguidas — murmurou baixinho.
— Devo agradecê-la por vir ao meu… — falei.
Ela se virou, olhos arregalados.
— Não me agradeça!
Cada sílaba do sussurro áspero me atingiu como um tapa na cara.
Chocada, fiquei imóvel.
Com a mão trêmula, ajeitou o cabelo para trás da orelha. Um sorriso
puxou o canto de sua boca. Ela deu outra olhada para trás.
— Venha — disse, como se nada tivesse acontecido, e me puxou para
dentro do quarto. — Preciso prepará-la para o baile de máscaras.
Com os pensamentos a mil, pavor abrindo um buraco obscuro no fundo
do meu estômago, levei um momento para entender onde entrara. Estava
numa câmara inteiramente forrada de livros. Livros empilhados subiam
pelas paredes como tijolos, revestiam o chão como paralelepípedos. Títulos
dourados piscavam de lombadas gastas. Um cheiro mofado de couro e
papel amarelado enchia o quarto.
— Você colecionou isso tudo? — sussurrei. — Já leu todos?
Aster hesitou. A mão livre se agitou, inútil, e tocou um livro. Ela passou
o dedo pela lombada, mas não chegou a puxá-la da parede.
— São Ofício — falou, baixinho. — As palavras… Elas nem sempre
fazem sentido, mas preciso delas mesmo assim, entende. É como se
procurasse por algo. Sempre acho que, quando tiver mais um, bastará…
Ela se calou.
— Mas nunca basta — falei.
Ela não pareceu me ouvir.
— Siga-me. Não podemos demorar.
Aster soltou sua mão de mim. E, olhando várias vezes por cima do
ombro, eu a segui ao próximo cômodo. O sol devia ter passado para trás das
árvores, porque escuridão caíra sobre o labirinto, deixando seus conteúdos
vagos na sombra. Meu coração quase saiu pela boca quando confundi os
objetos enfileirados atrás da porta com fadas em expectativa rígida, nos
aguardando. No entanto, eram só manequins arranjados em duas fileiras
compridas nas paredes, os rostos de madeira sem expressão. Aster me
trouxera ao armário. Com um gesto dela, uma luzinha âmbar surgiu acima
de nós, flutuando até o teto. Um espelho de pé do lado oposto do cômodo
refletia sua iluminação, passando pelas minhas feições incertas enquanto eu
olhava ao meu redor.
— Nós duas temos tamanhos parecidos — disse ela. — A maioria deve
servir em você, eu suponho. Você tem alguma preferência por verde?
— Não. Não tenho preferência nenhuma, na verdade. Deve ser estranho
dizer isso como artista, mas não tenho o hábito de me pintar.
Fiz um intervalo, me lembrando do retrato dela.
— Por que não escolhe por mim? — perguntei.
Aster tensionou os ombros. Ela passou a mão pela cauda diáfana do
vestido mais próximo, distraidamente avaliando sua textura, e a soltou, sem
interesse.
— Você fica linda de verde, mas é uma cor primaveril. Quando beber do
poço, acho que você não pertencerá à nossa corte.
Passei pela outra fileira, tocando seda e renda, sem nunca desviar o
olhar de Aster.
— Por que diz isso? — perguntei.
— Ah, não sei. Uma sensação qualquer.
Mantive meu tom leve.
— Posso te perguntar… por que você me salvou lá embaixo? Posso
estar enganada, mas, nestes últimos minutos, tive a impressão de que havia
motivo. Que talvez você quisesse me contar alguma coisa.
Ela hesitou, a mão paralisada no ar entre dois vestidos. Eu estava certa.
Uma nota profunda de pavor ressoou dentro de mim. Algo estava prestes a
dar horrivelmente errado.
— Ele sabe — disse ela.
— Sobre meu Ofício?
Um olhar de relance, rápido e sombrio.
— Ele sabe que vocês infringiram a Boa Lei.
“Não”, pensei. Então: “Sim.”
Porque, de repente, ficou óbvio para mim que eu estava apaixonada por
Rook e que acontecera como as coisas mais tranquilas, perfeitas e
absurdamente naturais acontecem: sem que eu nem notasse. Tínhamos nos
encontrado numa clareira e eu confiara nele o bastante para dizer meu
nome. Virei aquele pensamento estranho e maravilhoso mentalmente. Eu
amava Rook. Eu o amava. Era a melhor coisa que eu já sentira. A pior coisa
que eu já fizera.
Eu nos condenara à morte.
Nada mudou ao meu redor, apesar de eu sentir que devesse existir prova
tangível de que tudo estava prestes a acabar. Eu não caí de joelhos, nem
gritei. Só continuei ali, de pé, respirando, como de costume, tentando
entender o escopo do que acontecia, meus pensamentos calmos e racionais.
Quem era “ele”? Gadfly? Só podia ser. Ele provavelmente esperava
aquilo muito antes. Apesar de nossa história, talvez tivesse até se divertido
ao ver minha tolice mortal se desenrolar. Pensar naquilo deu novo sentido à
forma como Lark, Foxglove, Nettle e as outras tinham brigado por mim —
brigado pelo direito de escolher o último vestido que eu usaria.
Com a rapidez de um bote de serpente, Aster deu uma volta e segurou
meus braços. Seus dedos ossudos apertaram minha pele como garras. Seus
olhos brilhavam.
— É por isso que você precisa fugir do baile. Depois de sua entrada,
assim que Gadfly der as costas, você precisa correr para o Poço Verde e
beber antes que ele a pegue. É necessário. Eu vou ajudá-la.
Eu podia estar só imaginando, mas, quando Aster me agarrou, achei
sentir um toque de susto que não era meu, uma sensação fantasmagórica e
distante me percorrendo como ondulações na superfície de um lago.
“Rook?”, perguntei em pensamento, mas não tive resposta.
— Isobel — disse Aster.
— Não — respondi, sacudindo a cabeça em negação. — Não, não
posso. A história que eu e Rook contamos para a corte… era mentira.
Nunca beberei do Poço.
— Você precisa beber.
— Se pudesse voltar no tempo, fazer tudo de novo, você escolheria a
mesma coisa?
A luz sumiu dos olhos dela. Suas mãos me soltaram e ela se virou.
— Eu posso mostrar a você um caminho para sair da corte sem que seja
notada — falou ela. — Mas, aonde quer que você vá, eles vão encontrá-la.
Emma. As gêmeas. Teriam recebido minha carta de manhã, sem saber
que eu morreria à noite. Sacudi a cabeça, de novo e de novo.
— Não posso pedir que você se arrisque em meu nome à toa.
Uma névoa fria me dominou. Só havia uma coisa a fazer, uma coisa a
tentar.
— Irei ao baile — falei. — Preciso de um momento a sós com Rook.
Aster não disse nada. Ela achou que eu já estava morta e talvez
estivesse certa. Avançou pelo cômodo, parando em frente a um dos últimos
vestidos.
— Este — falou, tirando-o do manequim.
Eu nunca vira um vestido daqueles. Rosas de um vermelho profundo
eram bordadas em renda por cima da camada interna de tecido, que era na
tonalidade da minha pele, falsamente transparente. As flores se agrupavam
no corpete e se espalhavam descendo pela saia esvoaçante, afastando-se
como se carregadas pelo vento. Do outro lado, o vestido não tinha adornos,
dando a ilusão de um decote profundo nas costas. Um dia, talvez tivesse me
deixado sem fôlego. No entanto, não havia mais nenhuma beleza ou prazer
no mundo que pudesse me afastar da compreensão desoladora do que me
esperava.
Mecanicamente, tirei minhas roupas. Entrei no vestido, quase
tropeçando, meu corpo desajeitado e lento por causa do medo. Enquanto me
agachava para puxar o tecido ao redor dos tornozelos, demorei o suficiente
para tocar minha meia, quando me lembrei da presença do anel. Uma defesa
risível, mas era melhor do que nada.
Eu me levantei.
— Ah — suspirou Aster.
Ela me pegou pelos ombros e me guiou ao espelho.
Quando me movi, o corpete de renda se manteve rígido e justo, mas a
saia ondulou ao meu redor em voltas quase impossíveis, formas que
lembravam a pintura famosa de uma moça se afogando no lago ao
anoitecer, afundando em sombras, seu vestido se erguendo, leve, atrás dela.
Aproximando-me da figura refletida no espelho, quase não me reconheci.
Vestira Firth & Maester desde que chegara, mas nunca vira minha aparência
refletida num espelho. O escarlate vivo do vestido acentuava minha pele
clara e enfatizava meus olhos escuros a um grau impressionante. Eu parecia
menos assustada do que esperava. Meus olhos olhavam, olhavam e
olhavam, como poços engolindo luz, em um rosto tão vazio quanto o do
manequim que vestira a roupa antes de mim.
— Joias — disse Aster, baixinho. — E uma máscara. Sei que tenho uma
máscara que combina, só preciso encontrar…
Ela se afastou. Uma fechadura tilintou, seguida pelo som de um baú
rangendo. Enquanto esperava, minhas mãos se ergueram por vontade
própria para soltar meu cabelo e pentear o emaranhado. Indiferente, me vi
trançá-lo de volta num coque embaraçado, que segurei até Aster me
oferecer um grampo para prendê-lo. Eu tinha uma vaga noção de que, se
mantivesse a compostura, se as fadas não sentissem meu medo logo de cara,
poderia ganhar mais tempo. Só precisava de um momento com Rook.
Os dedos pálidos de Aster se abaixaram, apoiando uma tiara delicada
sobre minhas tranças. Era uma peça circular e delicada de filigrana de ouro,
decorada com folhinhas. Passei o olhar pelo meu reflexo, enxergando-o de
uma forma diferente. Cores do outono. Um diadema combinando com a
coroa de Rook. Ela estava sendo gentil da única forma que conhecia, eu
supunha. Queria me dar dignidade em meus momentos finais, diferente de
Foxglove ou das outras, que eu suspeitava que teriam me atormentado
como gatos fariam com um ratinho machucado, orgulhosas do
conhecimento, antes de me entregar ao baile. Talvez, até minha insistência,
Aster planejasse me proteger da informação, me permitir um fim rápido e
misericordioso.
Ao meu lado no espelho, havia um toque de tristeza em sua expressão
distante, trêmula e retraída, um brilho de luar no fundo de um poço muito,
muito profundo. Na cintura, segurava a haste de uma meia-máscara. Uma
máscara de rosas para combinar com o vestido, um buquê florescente sem
expressão, com buracos no coração das flores para os olhos.
— Você parece uma rainha entre mortais — disse ela. — Será a pessoa
mais bela do baile.
Tentei invocar um sorriso triste, mas não consegui. Provavelmente
nunca mais sorriria.
— A humana mais bela? Não posso de jeito nenhum me comparar a
Foxglove.
— Não. Você supera a todos nós — disse ela, pálida e frágil ao meu
lado. — Você é como uma rosa viva entre flores de cera. Podemos durar
para sempre, mas você floresce com mais cores e tem o perfume mais doce,
e pode tirar sangue com seus espinhos.
Cuidadosamente, peguei a máscara das mãos dela.
— Entendo como você um dia foi escritora.
Aster desviou o olhar.
Ergui a máscara para meu rosto, escondendo minha expressão. Olhando
para mim mesma, só pensei em uma coisa. Sabia que Aster também
pensava nisso. Eu podia parecer uma rainha, mas meu vestido era uma
mortalha. Ela me fizera bela para me dirigir à morte.
Dezessete

Quando Aster e eu voltamos à escada de Gadfly, a sala do trono tinha sido


transformada. Guirlandas de teia de aranha davam voltas entre os galhos,
orvalho cintilando no luar. Flores noturnas estremeciam em cada ramo,
acesas por luzinhas que piscavam entre elas como velas litúrgicas e
banhavam a clareira num brilho etéreo sob o qual nada parecia exatamente
verdadeiro. Nem as mesas carregadas de vinho, doces e frutas, nem as
revoadas musicais de passarinhos que desciam e subiam de volta para as
copas. Muito menos as fadas, que tinham saído diretamente de um livro
infantil. Luar reluzia nas joias em seus cabelos e flamejava nos bordados
prateados dos casacos e vestidos. Elas dançavam em pares sem música, uma
valsa estranha e silenciosa sendo tecida e desenrolada ao redor da clareira
abaixo, vinhetas vislumbradas pelos buracos da minha máscara. Todas sem
rosto, como eu: pássaros e flores, raposas e cervos, sorrisos mais nítidos que
a luz de velas na curva das taças de cristal.
Estavam todas vestidas nas cores pálidas da corte da primavera, exceto
por mim — e por Rook. Eu o encontrei imediatamente, ao pé da escada, ao
lado de Gadfly. Naquela noite ele era o perfeito príncipe do outono, usando
um casaco longo da cor do vinho, bordado com fios de ouro. A coroa
reluzia entre os cachos emaranhados e uma máscara de corvo cobria metade
de seu rosto. Lendo sua expressão tranquila, seu sorriso e sua postura
relaxada, notando que sua mão não se aproximava da espada, me ocorreu,
com horror, que ele não fazia a mínima ideia; Gadfly não contara. Eu o
amava e ele não sabia.
A constatação pesou meus pés como correntes. Cada passo exigia
esforço, mesmo com a mão de Aster sustentando meu cotovelo.
Ninguém nos notou até estarmos na metade da descida. Então, o baile
inteiro parou. Fez-se silêncio na clareira. Todos nos observavam, em
expectativa. Parei, tentando criar coragem para prosseguir. Era assim que
Rook se sentia? Sempre em guarda, sempre tentando esconder qualquer
sinal de fraqueza que o exporia a fadas dando o bote em meros segundos?
Sem a máscara, eu estaria destruída.
Uma pétala de rosa caiu no degrau ao lado do meu pé, seguida por
outra. Mal contendo um calafrio, olhei por cima do ombro para ver de onde
vinham. Pétalas de rosa percorriam o caminho atrás de mim até o alto das
escadas, escarlates contra a bétula branca, mas não vi responsáveis por sua
presença.
— O vestido é enfeitiçado — sussurrou Aster, aproximando-se. —
Pétalas aparecerão onde você pisar. Mas não são de verdade… Veja.
Uma brisa soprou, espalhando as pétalas, que sumiram como sombras
ao se mover. Era cativante e horrível. Meu caminho pelo baile seria
marcado como um animal ferido deixando rastros de sangue na neve. Uma
comparação apropriada, no fim das contas.
Por fim, eu me forcei a continuar. Bem escondidas sob a bainha fluida e
larga do vestido, minhas botas tocaram o chão. Gadfly pegou minha mão e
a beijou, enquanto, ao seu lado, Rook tentava cuidadosamente não reagir.
Pela primeira vez fiquei grata por sua ignorância. Se soubesse, teria erguido
a espada contra Gadfly ali mesmo e tudo acabaria antes de termos qualquer
chance.
— Que prazer imenso é fazer nosso primeiro baile de máscaras com a
presença de uma convidada mortal — disse Gadfly, e ouvi o sorriso em sua
voz, apesar das plumas nevadas da máscara de cisne cobrirem o rosto quase
inteiro, revelando só pedaços do maxilar. — E que vestido intrigante Aster
escolheu. Ora, você e Rook estão um par e tanto! Claro, seria uma pena se
ele a monopolizasse a noite toda. Devo insistir na primeira dança.
Meu estômago se revirou de vertigem, como se ainda estivesse
descendo e pisasse em falso no último degrau. Forcei um sorriso, apertando
os dentes. Gadfly continuou a falar, mas não ouvi uma palavra, esperando
que meus acenos educados com a cabeça bastassem. Rook estava agitado,
impaciente. Com tantos olhares sobre nós, temi não ter oportunidade de nos
falarmos sozinhos.
Talvez houvesse alguma forma de avisá-lo antes que Gadfly me levasse
embora. Brevemente, fechei os olhos com força. Conjurei a sensação de
mãos frias cercando minha garganta como garras, apertando, sufocando a
vida em meu corpo. Tontura. Terror. Morte. O tempo todo, não deixei o
sorriso sumir de meu rosto. Esperava que, para Gadfly, só desse a impressão
de ter abaixado os olhos com modéstia em resposta a um elogio exagerado.
Provavelmente parecia que eu estava com dor de barriga.
Quando levantei o olhar, vi que Rook me observava. Tinha funcionado.
Emoldurados pelas plumas pretas da máscara, seus olhos me penetraram
com choque e preocupação. Eu vi sua expressão mudar. Primeiro, confusão,
vendo que não havia nada de errado comigo, seguida de uma lenta
compreensão. Ele correu as mãos pela frente do casaco, garantindo para
todos que seu olhar peculiar era só porque temia ter esquecido alguma
coisa. Bateu no cinto e na espada. Não, no fim das contas não esquecera a
espada. Ali estava! Sorrindo, ajustou a bainha contra sua perna. Minha
nossa, que ator horrível — o que eu esperava de alguém que não podia
mentir? —, mas pelo menos o significado estava claro. Mensagem recebida.
Ele ficaria atento.
— …e foi assim que acabei com o vagão inteiro de nabo e o sr.
Thoresby foi obrigado a devolver meu segundo melhor colete. Mas já basta
de história — dizia Gadfly, inteiramente distraído, ou pelo menos fingindo,
admirando sua própria abotoadura. — Eu seria capaz de falar de mim
mesmo para sempre, não é? Vamos dar uma volta. A noite não fica mais
jovem, afinal, e parece que todos estão nos aguardando.
Como se oferecesse meu pescoço para a guilhotina, estendi minha mão.
Não tinha escolha. Ele pegou meu braço, galante, e me acompanhou ao
centro da clareira. As outras fadas se mantiveram a uma distância
respeitável, tendo parado a valsa em preparação para a entrada do príncipe.
Ele pousou a mão livre em minha cintura e, finalmente, precisei abaixar a
máscara para pousar minha própria em seu ombro. Habilmente, me
embalou nas idas e vindas do movimento e todos voltaram a dançar juntos.
Os cortesãos nos cercavam em um fluxo gracioso inumano, sussurros de
musselina e seda de passagem, mas, fora isso, silêncio.
— Você está muito elegante esta noite, Gadfly — falei, sem ânimo.
— Sim, eu sei — respondeu ele. — Mas não posso negar que é
maravilhoso ouvir a confirmação de minhas suspeitas.
Entre os buracos da máscara de cisne, ao redor de seus olhos,
apareceram ruguinhas que eu nunca vira em casa, no meu estúdio. Talvez
não existissem antes: uma ilusão hábil, como aquela mecha que ele deixara
escapar da fita naquele dia fatídico em que eu soubera do pedido de Rook,
ou poderia ser os anos que passara como meu cliente sem nunca mencionar
para ninguém que era o príncipe da primavera. A máscara era amarrada por
uma fita azul-clara, então ele podia observar meu rosto sem que eu visse
nada do dele.
— Soube que você e Aster conversaram sobre o Poço Verde —
continuou ele.
Com a boca seca e o estômago emaranhado, procurei um jeito de
enrolar, manter minha inocência quanto ao meu destino, negar o
envolvimento de Aster.
— Não precisa mentir para mim, Isobel. Eu tenho um talento bastante
especial, mesmo entre meu povo. Mas você já sabe disso, não sabe?
Pronto. Não adiantava mais fingir.
— Lark me contou — falei, o ritmo sussurrado da valsa se tornando
mais distante quando o sangue começou a rugir em meus ouvidos.
— Precisamente. Nada disso estava fixo, é claro. O futuro nunca está. É
como uma floresta, entende, com milhares e milhares de trilhas que a
percorrem, ramificando-se em direções diferentes. Algumas coisas podem
mudar até o último instante. Ontem, eu não tinha certeza se viveríamos esta
versão ou a versão em que você escolheria não contar seu nome para Rook
e voltaria para casa ilesa. E, devido ao fato de que eu estaria dançando em
outro lugar com Nettle, não aqui, com você, um rouxinol de passagem
estragaria minha lapela ao se aliviar lá de cima. Foi por isso que vesti o
terno de que menos gosto e ainda encomendei biscoitinhos especiais de
limão, por via das dúvidas — explicou, com um suspiro de pena. —
Infelizmente, nunca chegaremos a comer os biscoitinhos de limão. Mas
pelo menos Swallowtail estragará aquele casaco amarelo horrendo que está
usando.
Um pássaro cantarolou tranquilamente pela clareira. Entre os pares que
dançavam, um jovem soltou um grito consternado.
— Há quanto tempo você sabe? — perguntei, minha voz palpitando de
horror e raiva, emaranhados em um nó sufocante. — Há quanto tempo
espera por isso?
Ele me olhou. “Você consegue melhor do que isso”, dizia o olhar.
— Eu não estava esperando por nada. Viajei com você o tempo inteiro,
iluminando seu caminho, garantindo que você selecionasse a trilha
necessária entre as centenas de possibilidades. Em retrospecto, você não
acha peculiar que eu tenha sido seu primeiro cliente, ou que Rook tenha
feito um retrato com você depois de séculos escondido?
— Seu canalha ordinário — dissemos juntos, Gadfly falando friamente
comigo em contraponto.
Ele sacudiu a cabeça, decepcionado, mas sem surpresa, e falou:
— Essa foi óbvia.
Achei que ia vomitar.
Desajeitadamente, como se alguém se aproximasse em uma sala escura,
uma onda quente de tranquilidade esbarrou em mim. Era inegavelmente
Rook. Estava testando a conexão entre nós, ciente de que havia algo de
errado e fazendo o que podia para me acalmar. Ele não sabia, pensei. Não
sabia que eu o condenara à morte. Precisaria contar aquilo a ele em breve.
Engoli em seco, afastando a presença dele como pude, e, antes que a
sensação sumisse, recebi uma última pontada de surpresa triste dele, como
se eu tivesse batido a porta em sua cara sem aviso.
— Você é vazio — falei, engasgada — e cruel.
— Ah. Sim, tenho que concordar. Você gostaria de saber o maior
segredo das fadas?
Quando não respondi, ele continuou:
— A gente prefere fingir que não é o caso, mas, na verdade, nós nunca
fomos os imortais. Podemos viver o bastante para ver o mundo mudar, mas
nunca somos quem provoca a mudança. Quando finalmente chegamos ao
fim, estamos solitários, sem amor, e não deixamos nada para trás, nem
mesmo nosso nome entalhado numa pedra. E ainda assim… Mortais, pelo
trabalho, pelo Ofício, são lembrados para sempre.
Ele nos rodopiou pela multidão graciosamente, sem errar um passo.
— Ah — continuou —, você não pode imaginar o poder que seu povo
tem sobre nós. O quanto os invejamos. Há mais vida na sua unha do dedo
mindinho do que em toda a minha corte.
Seria mesmo só aquilo? Seria esse o motivo para fadas condenarem as
emoções mortais — porque as poucas das fadas que as sentiam só serviam
para lembrar o resto do que não podiam ter? Assim, o amor, a experiência
que invejavam mais amargamente, se tornava a ofensa mais fatal.
— É esse o motivo de ter feito tudo isso? — sussurrei. — Inveja?
— Sua opinião de mim é tão baixa que chega a me ofender, Isobel —
respondeu Gadfly, sem soar nem um pouco ofendido; na verdade, soando
como se as opiniões alheias fossem tão irrelevantes que nem as reconhecia
ao ouvi-las. — Não, meu jogo é mais longo, mais no fundo da floresta, mais
distante da trilha. Agora vou parar de ocupá-la. O tempo urge e tenho
certeza de que você preferiria dançar com Rook.
Ele nos esgueirou por entre os outros pares, nos levando aonde Rook se
destacava, obrigado a dançar com Foxglove. Gadfly manteve seu ar de
expectativa, mas eu não tinha mais nada a dizer.
— Não tema — disse ele em resposta ao meu silêncio. — Esta história
será desagradável enquanto durar, mas acabará logo, logo.
Quando tirou a luva de seda de meu ombro, aproximou a máscara de
meu ouvido.
— Lembre-se: por mais que eu me intrometa, no final só importa a sua
escolha — concluiu. — Olá, Foxglove! Rook! Posso roubar esta dança?
Pétalas de rosa se espalharam ao nosso redor ao trocarmos de parceiro,
desaparecendo com um fantasma de fragrância perfumada. Se eu
sobrevivesse àquilo, pensei, nunca mais gostaria de sentir o cheiro de rosas.
— Eu senti… — começou Rook, mas eu o interrompi com um gesto
abrupto de cabeça.
Eu queria esperar até que Gadfly e Foxglove se afastassem para falar.
Entretanto, conforme passavam os segundos, me vi incapaz de pronunciar
as palavras. Não sabia como dizê-las. Eram vastas e horríveis, não cabiam
em minha língua.
Rodopiamos e rodopiamos. Luzes cintilavam no cabelo de Rook e no
bordado dourado do casaco. Cortesãos nos cercavam, girando, sem nunca
nos tocar, como flores flutuando na superfície do lago. Uma máscara de
lobo virou para me olhar na passagem; senti inúmeros olhares sobre nós,
esperando pelo primeiro indício do clímax da caça. Duas presas, uma alerta,
a outra ingênua, prestes a serem arrancadas do arbusto para seu fim
sangrento.
— Isobel? O que foi?
— Preciso pedir a você para me fazer um favor — falei.
— Qualquer coisa — respondeu ele, rapidamente.
Eu me forcei a não desviar o olhar.
— Você precisa usar o sortilégio para mudar o que sinto.
Rook quase tropeçou.
— Como assim?
Ali perto, Foxglove inclinou a cabeça, sua risada reluzente tinindo no
baile.
— Quero dizer que…
— Não. Não diga.
Rook me olhou como se estivesse naufragado e eu fosse um navio que
ele via partir mar afora, cada vez mais distante.
Um odor enjoativo de podridão chegou ao meu nariz.
— Rook, sinto muito — falei. — Eu te amo.
Nossa próxima volta nos aproximou das mesas. Uma fada levou uma
pera aos lábios, mas a fruta escureceu em sua mão, escorrendo pegajosa
entre seus dedos, inchada de vermes. Com uma expressão de puro deleite,
ela a comeu mesmo assim, suco e polpa escorrendo pelo queixo. Em todas
as travessas, as frutas apodreceram. Putrefação imunda transbordava das
louças, encharcava as toalhas e gotejava até o chão.
— Desde quando? — perguntou ele, mal movendo os lábios.
A parte inferior do rosto dele também lembrava uma máscara, cinzenta
contra os cachos escuros e a gola alta.
Um passarinho mergulhou rasgando uma borboleta com o bico. Girando
e girando, os foliões ficaram cada vez mais pálidos e febris sob o brilho
multicolorido das luzes. Máscaras animalescas rosnavam. Máscaras floridas
nos encaravam, inescrutáveis. As fadas rodopiavam, atordoantes, com
abandono delirante, sem brincar de humanidade, uma paródia de festa
mortal em um baile de máscaras de pesadelo.
— Ontem. Mas eu não sabia até… — disse, incapaz de falar daquilo. —
Por favor. Nosso tempo está acabando.
— Não posso.
Um corvo crocitou acima de nós.
— É preciso!
Ele soltou minha cintura para puxar a ponta da fita que segurava sua
máscara. Ela caiu no chão, perdida entre a dança.
— Eu dei minha palavra — disse ele, desnudado.
Andamos para a frente. Para trás. Giramos. Senti o gosto de vinho
envenenado nas minhas palavras.
— Então acabou.
— Isobel — disse Rook e então parou de dançar, só nós dois imóveis.
— Nunca conheci alguém mais frustrante, mais corajoso, nem mais belo.
Eu a amo.
Engasguei com um soluço. Na ponta dos pés, cobri o intervalo entre nós
e o beijei; eu o beijei com ferocidade, com violência, em meio à cacofonia
de uivos zombeteiros e gritos escandalizados que se erguia das fadas ao
redor. Era aquilo que esperavam.
Um sussurro de ruído. De repente, estávamos sozinhos, os cortesões
desapareceram como fantasmas na noite. Não — ainda estavam lá:
vislumbrei as formas grotescas de máscaras nos observando dos arbustos,
das árvores, de todas as sombras, seus donos escondidos agachados em
antecipação rígida, como louva-a-deus prontos para o bote.
Não estávamos inteiramente sós. Uma silhueta esguia com cabelo
branco, vestindo armadura preta, estava de pé perto de uma das mesas, de
costas para nós. Eu não a vira chegar; talvez já estivesse ali havia algum
tempo. Ela pegou um doce estragado, o examinou e o jogou para longe,
enojada.
O berrante soou pela floresta. Eu o senti na terra, reverberando pelos
meus ossos. Dois novos sons responderam ao chamado, mas esses berros
graves vinham de chifres. Na escuridão enevoada entre as árvores, uma
dupla de formas imensas se moveu. Eram tão altas, coroadas de galhos, que
eu poderia confundi-las com carvalhos gigantes se elas não tivessem se
mexido, se revelando como baronetes enormes, ambos pelo menos metade
do tamanho do que Rook matou no dia em que nos conhecemos. Cães
saltaram da mata como se fugissem deles, chamas pálidas na noite,
fervendo sinuosamente ao redor das pernas de Hemlock, virando a mesa
para pedir sua atenção, inteiramente ignorados. Vapor saía das línguas
escarlates penduradas.
O berrante soou novamente. Só então ela se virou.
Com o movimento, foi como se puxasse um pano que cobria a sala do
trono. O ar estremeceu, as bétulas murcharam, cinzentas, cascas se
soltaram, repletas de tocas de besouro. O musgo do chão se atrofiou em um
tom amarelo-esverdeado doentio, e as flores se encolheram no calor úmido
que se ergueu da terra, o fedor da podridão da vegetação decomposta. A
corrupção da corte do verão alcançara as terras primaveris — ou estivera ali
desde o princípio.
— Estou aqui para garantir o cumprimento da Boa Lei! — gritou
Hemlock, sua voz alta e límpida.
O que ela disse em seguida fez as árvores rangerem e sussurrarem e
todos os corvos saírem voando numa nuvem nervosa e silenciosa:
— Por ordem de nosso soberano, o Rei do Amieiro.
Dezoito

Hemlock parou a poucos passos dali, as mãos abertas para os lados, como
se quisesse mostrar que não trazia armas, ou como se estivesse preparada
para nos abraçar. Considerando as garras afiadas nas pontas dos dedos
compridos e nodosos, não tentei adivinhar.
Rook a olhou de cima e a baixo e, com um gesto fluido e insolente,
puxou a espada. Ele inclinou o corpo para a minha frente. Aproveitei a
oportunidade para me abaixar, tirar o anel da minha meia e enfiá-lo no dedo
enquanto ele falava.
— Há quanto tempo você serve ao Rei do Amieiro, Hemlock? — cuspiu
ele. — Eu não sabia que a corte do inverno decaíra a esse nível. Ajoelhar-se
por cerimônia é uma coisa. Obedecer às ordens dele é bem diferente.
Mesmo com Rook entre nós, o olhar verde incômodo e luminoso de
Hemlock se fixou em meu rosto.
— Tente ser mais educado, Rook — disse ela. — Olhe ao seu redor. Eu,
Gadfly, até o príncipe do inverno… Nenhum de nós faz o que quer agora.
Um sorriso retorceu seu rosto.
— Eu mandei vocês dois fugirem, seus pombinhos tolos — insistiu ela.
— Eu avisei que viria atrás de vocês.
A espada de Rook cantou pelos ares. O movimento foi tão rápido que
não vi o golpe, nem Hemlock erguer o braço para bloqueá-lo. Ficaram
presos assim, a lâmina enfiada na armadura dela, o casaco de Rook
esvoaçando ao seu redor enquanto o vento se acalmava. O sorriso dela se
tornou mais duro. Ela firmou os pés, o braço tremendo com o esforço de
mantê-lo afastado. Rook e eu estávamos em desvantagem. Sabíamos disso,
e ela também.
Ela curvou um dedo, chamando os cortesãos.
— Sejam úteis, por favor, e capturem-nos. Limpem seus rostos antes.
As fadas saíram em bando da floresta. Antes que eu pudesse reagir, me
arrancaram de Rook. Dezenas de mãos agarraram minhas roupas, meus
braços, meu cabelo, grudentas por conta do banquete de frutas podres.
Puxavam para um lado e para o outro, como se fingissem dançar — rostos
maliciosos giravam ao meu redor como um carrossel. Ataquei com meu
anel e alguém soltou um grito de gelar os ossos.
— Ela tem ferro no dedo! — exclamou a fada cuja voz era familiar…
Foxglove. — Tirem dela! Tirem a mão inteira se for preciso!
Um braço me atingiu pelas costas, me derrubando no chão. Engolindo
ar, rouca e ofegante, puxei o braço para debaixo de mim e ergui o queixo o
bastante para ver que Rook também fora dominado. Gadfly estava de pé
atrás dele, o cotovelo apertado no pescoço de Rook, a outra mão apertando
seu punho, que não segurava mais a espada. Sem máscara, parecia tranquilo
e divertido enquanto Rook se debatia em suas mãos e arreganhava os
dentes. A diferença de altura fazia com que Rook se curvasse para trás, sem
conseguir firmar os pés, enquanto os cães de Hemlock tentavam morder as
botas que chutava.
Só tínhamos conseguido duas pequenas vitórias. Um pedaço da
armadura de casca pendia do antebraço de Hemlock e ela o segurava,
afastada. Seiva pingava, com o cheiro fresco de pinheiro no inverno; a
casca já começara a crescer de volta sobre a ferida. Foxglove estava sentada
no chão à minha frente, levando a mão ao rosto. Um rasgo inchado se
destacava onde eu a atingira, já se derretendo em pele perfeita atrás da jaula
furiosa e trêmula de seus dedos.
Eu sabia que o seu comando tinha sido sério e que as fadas não
hesitariam em obedecer. Arranquei o anel e o joguei para longe, para além
da piscina de pétalas de rosa se espalhando ao meu redor como sangue. O
ferro não me ajudaria em nada.
— Sua criatura vil e imunda — sibilou Foxglove, me forçando a ficar
de pé.
Eu não a vira se levantar. Abafei um grito quando ela deslocou um dos
meus braços — faíscas de dor ardente como um raio e formigamento
percorreram meu ombro, me tornando dormente para qualquer outra
sensação. Tropecei para a frente, empurrada por trás, quase incapaz de me
manter erguida. O diadema se entortara na minha cabeça.
— Não — disse a voz fina de Aster ali por perto. — Não a
machuquem… Não a machuquem mais do que o necessário, por favor…
O toque dela roçou meu braço antes que alguém a afastasse com um
tapa.
— Se eu quiser, eu enfio a mão na goela dela e arranco o coração —
irritou-se Foxglove. — Qual é o seu problema, Aster? Quer misericórdia
para quem desdenha da Boa Lei? Esta humana usou ferro contra mim.
A resposta de Aster pareceu vir de muito longe:
— Desculpe-me…
— E pare de olhar assim para ela — acrescentou Foxglove, com
veemência, e eu achei que ainda se dirigisse a Aster até que continuou: —
Que nojo. Tenha dignidade, morra como alguém do seu povo.
Ergui a cabeça e vi que Rook me observava, suas emoções agonizantes
nitidamente inscritas no rosto. Algumas fadas o encaravam em fascínio
enojado. Outras desviavam o olhar com uma careta, incapazes de assistir à
cena. Gadfly, por sua vez, olhou para ele, e então para mim, com um sorriso
sutil, quase pesaroso, nos cantos da boca. Lembrei-me dos seus muitos
retratos, cem versões se remexendo no brilho dos vagalumes.
— Foxglove, por mais que eu aprecie seu entusiasmo, não comecemos a
arrancar corações ainda — disse ele. — Agora que nosso baile foi
interrompido de forma tão trágica, encontro-me despreparado para o fim
das diversões desta noite.
Ele dirigiu um olhar de repressão para Hemlock, que avançara.
— Ah, eu insisto — continuou. — Ainda é minha corte, afinal, não é
mesmo? Bem, então… está resolvido. Primeiro, vamos levá-los ao Poço
Verde. Daremos a Isobel uma última oportunidade de salvar a vida do
príncipe e desfazer todo o mal que causou.
A algazarra que se seguiu engoliu meu grito. Caí nas mãos de Foxglove,
meu olhar maculado por estrelas.
— Calma, calma — disse Gadfly. — É justo. Prometo que será um
espetáculo memorável.
Enquanto Rook se contorcia contra ele, gritando de fúria incoerente,
Gadfly piscou, alegre.
O anfitrião feérico nos conduziu adiante, através da clareira, dos
matagais e dos prados, além das pedras rachadas e dos jacintos. O luar
iluminava tudo como um sonho. Minha cabeça pendia, mas às vezes eu
vislumbrava os baronetes nos acompanhando de cada lado, sombras
colossais caminhando pela floresta, horríveis em sua majestade imensa e
silenciosa. Cães pulavam entre as fadas como se caçassem com a nobreza.
As presas éramos, é claro, eu e Rook. Talvez fosse justo que o lugar onde
Rook confessara seu amor por mim fosse também o lugar onde
morreríamos.
Quando chegamos ao Poço Verde, era exatamente como eu lembrava,
mesmo no escuro. O círculo baixo de pedras musgosas me encheu do
mesmo horror atordoante de antes, mas Foxglove me empurrava de maneira
implacável para a frente quando meu corpo enrijeceu e meus passos
encurtaram, arrastando os pés com relutância brusca. Ela só parou quando
as pontas de minhas botas bateram na rocha. Ela arrancou o diadema de
mim enquanto eu me contorcia em seus braços e empurrou meu ombro por
cima da beirada. Solto das tranças, meu cabelo caiu sobre as sombras do
poço.
Gadfly levou Rook para o outro lado do poço, à minha frente. Era
sombriamente satisfatório ver que Rook acertara o nariz dele em algum
momento do curto trajeto. Sangue manchava sua boca, folhas e flores
brotavam ao seu redor onde pingara no chão.
— Isobel… — começou Rook.
Hemlock apareceu, em passos largos, chutando o mato para longe. Ela
deu uma cotovelada na barriga de Rook, que se curvou, silenciado.
Algumas fadas riram. Foi ali que eu soube que nossa morte seria muitas
coisas, mas não rápida.
Swallowtail se aproximou com um sorriso vencedor. Ele roubou a coroa
de Rook, colocou-a sobre a própria cabeça e se pavoneou, fingindo brincar
com uma raquete de peteca, para o divertimento de todos. Confiante, outra
fada se aproximou, agarrou a lapela do casaco de Rook e rasgou a roupa,
arrancando-a. O broche de corvo caiu entre as flores. Rook tropeçou. Em
seguida, pulou naquele que o atacara, mas foi jogado ao chão quando
Gadfly ergueu um pé e tranquilamente chutou suas pernas para
desequilibrá-lo.
Engasguei com um soluço. Rook se levantou com esforço, as roupas
rasgadas e o peito ofegante. Eu nunca poderia imaginá-lo tão humilhado.
— Façam o que quiserem comigo — disse ele —, mas não a obriguem a
assistir. Deixem-na partir.
Gadfly suspirou. Com um gesto paternal, limpou os galhos e as folhas
do cabelo de Rook, que não reagiu. Rook mantinha a cabeça abaixada,
escondendo o rosto. Causou-me dor o conhecimento de que, se existisse
qualquer semelhança de confiança entre fadas, era o que Rook sentira por
Gadfly.
— Temo que dois culpados sejam necessários para violar este princípio
específico da Boa Lei — disse Gadfly.
— Ela é vítima de sortilégio.
— Ah, mas continua tendo livre arbítrio. Parece que você a ama tanto
que resistiu a persuadi-la.
Desta vez, ninguém riu. Os cochichos pareciam incomodados, confusos.
— De qualquer forma — continuou Gadfly —, como nós dois sabemos,
a Boa Lei foi infringida antes de isso acontecer.
— Ande logo, Gadfly — disse Hemlock, seu sorriso parecendo colado
no rosto. — Odeio fazer o rei esperar.
— Então me mate! — rosnou Rook, virando-se para encarar Gadfly. —
Não podemos infringir a Boa Lei se algum de nós morrer. Do que importa
uma vida mortal para o Rei do Amieiro? Ela voltará para casa, casará, terá
filhos, morrerá, tudo antes que ele respire de novo. Ela não é n… —
interrompeu-se com um resfolego de dor, pego na mentira. — Ela não é
nada para ele — disse, no fim, as palavras devastadas por angústia. —
Mate-me e acabe com isso de uma vez!
— Rook, pare! — gritei.
Eu podia ser um passarinho piando, a julgar pela atenção que as fadas
me deram. Só Rook reagiu, encolhendo-se como se eu o tivesse estapeado.
— Acho que poderíamos fazer isso — disse Gadfly, com uma pausa. —
Mas não seria nada divertido, não é? Além disso, não é como se não
estivéssemos dando uma escolha a Isobel.
Sem cerimônia, ele soltou Rook, que caiu sem o apoio do corpo de
Gadfly, se segurando de joelhos no chão. Ele passou um braço pela beira do
poço e se içou para encontrar meu olhar, ofegante, mesmo que eu soubesse
que ele queria desviar; Rook precisou de todas suas forças para me encarar.
— Eu não fui forte o suficiente para protegê-la — disse ele, num
volume baixo, só para os meus ouvidos.
— Tudo bem — falei. — Tá tudo bem.
Nos entreolhamos desesperadamente. Nada estava bem.
— Agora, peço perdão por estragar o momento, mas Hemlock está
certa… estamos nos demorando aqui. Então — disse Gadfly, tirando as
luvas, uma de cada vez, e as enfiando no bolso —, Isobel, Rook está correto
quanto a uma coisa: vocês só violam a Boa Lei no estado em que se
encontram atualmente. Ou seja, ambos vivos, uma mortal e uma fada,
apaixonados. Ah — disse ele, ao ver minha expressão. — Sim, caso um de
vocês seja capaz de parar de amar o outro, teríamos que soltá-los. Vá em
frente, pode tentar se quiser.
Aqueles anos todos, como eu nunca tinha notado o monstro que era
Gadfly? Por deus, eu precisava pelo menos tentar. Apertei os olhos com
tanta força que faíscas de luz explodiram sob minhas pálpebras. Pensei em
Rook me raptando na calada da noite; na arrogância; nos surtos; em como
eu era tola por amá-lo. Imaginei Emma pondo March e May para dormir,
sozinha. Ainda assim, meu coração traidor não cedia. Eu não podia mudar o
que sentia, não mais do que podia mandar o céu chover ou exigir que o sol
nascesse ao badalar da meia-noite.
Soltei a respiração que prendia com uma mistura de suspiro e grito.
Gadfly sabia. Maldito seja, ele sabia que, para mim, não ser capaz de conter
meu próprio sentimento era o maior tormento.
— Mas tem outro jeito — insinuou a voz dele no silêncio. — Não é um
crime que duas fadas se apaixonem.
Alguém riu. Amor entre fadas: que piada.
— Você só precisa beber do Poço Verde — prosseguiu ele —, salvando
assim sua própria vida e também a de Rook. Vocês dois podem passar a
eternidade juntos.
Sacudi a cabeça.
— Não acredito em você. Talvez você me deixe viver, mas não Rook,
não por muito tempo.
— Ah… Eu estou um pouco alto, estou me sentindo generoso.
Abri os olhos a tempo de ver Gadfly empurrar Rook com a bota. Rook
parecia ter desistido inteiramente; apoiara a testa na beira de pedra do poço.
— O poder será arrancado dele, é claro — continuou Gadfly —, e
continuar como príncipe está fora de cogitação, mas… eu garantiria a vida
dele. Não há dúvida de que parte dele não ia querer viver depois disso tudo.
Ele sempre foi orgulhoso. Mas ele o faria, por você.
Eu estava tremendo tanto que meu cabelo estremecia.
— Não mesmo — sussurrei.
— Não? Mesmo? Você dá tanto valor à própria mortalidade que
condenaria não somente a si, mas também Rook, à morte? Ele tem tantos
milhares de anos ainda pela frente. E ainda dizem que meu povo que é frio.
Meu olhar caiu sobre o broche de corvo, cintilando entre os jacintos.
— Eu nunca me tornarei uma de vocês — falei. — Nunca.
Gadfly sorriu para mim, entristecido.
— E sua família?
Levantei o rosto, tremendo de fúria, além de medo. Como ousava?
— Certamente seria reconfortante para sua tia Emma e suas irmãzinhas,
March e May, se elas pudessem encontrar você novamente — insistiu ele.
— Imagine o quanto poderia ajudá-las como fada!
— Não fale da minha família.
— Ah, mas é preciso. Você está mesmo disposta a deixá-las sem palavra
alguma de resolução, sem um corpo para enterrarem? Sua pobre tia é tão
solitária. Sua memória a assombraria para sempre. Ela se culparia por tudo
que acontecera. Acredite… eu sei.
— Você está me atormentando de propósito. Emma nunca… Ela não…
“Ela não ia querer que eu escolhesse isso.” Caí nos braços de Foxglove,
olhando novamente para o brilho frio do broche de corvo no chão, quase ao
meu alcance. Gadfly planejara cada momento excruciante deste teatro
horroroso. Sabia que eu nunca beberia do Poço Verde, não importava o que
dissesse, e que minha tortura seria o melhor espetáculo. Ele suspendia meu
destino como a pomba engaiolada de um mágico, pronto para soltar as
grades em mim e esmagá-lo a qualquer momento. Ainda assim… ainda
assim… a escolha era minha, só minha. Gadfly podia ver todas as trilhas da
floresta, todas as ramificações possíveis… mas e as impossíveis? O que
aconteceria se eu saísse da trilha e me enfiasse às cegas na floresta bravia,
num lugar aonde suas visões nunca o levaram?
Eu achava saber por que Foxglove arrancara a tiara das minhas tranças.
Esperei estar certa, porque estava prestes a fazer a maior aposta da minha
vida e não gostava de surpresas.
— Eu vou beber — sussurrei.
Os dedos de Foxglove soltaram meus punhos, fosse para me permitir
movimento ou por puro choque, não me importava. Caí de joelhos e tateei
pelo chão, me atrapalhando por conta da dor e do desespero, até passar o
cotovelo por cima da borda de pedra do poço, me arranhando na superfície
áspera. Soltei um grito baixinho quando o toque sacudiu meu ombro
deslocado. Gadfly me observava, inteiramente imóvel, os olhos apertados.
O quanto eu já me afastara do caminho dele? Concordar em beber era a
última coisa que eu faria. Afinal, eu ainda não o fizera.
Estiquei a mão com menos feridas para dentro do poço, fechando os
dedos. A água era como qualquer outra, mas só de saber o que era me
atingiu como choques gelados, e minha respiração estremecia ao erguer o
gole cintilante, refletindo a lua em fragmentos quebrados. Finalmente, e de
forma abrupta, parei. Meu braço ficara… parado. Meus dedos estavam
apertados com força, mas a água ainda escorria, a poça no centro da minha
palma diminuindo.
Será que só tocar a água já era o suficiente para começar a
transformação?
Rook disse meu nome.
Ergui meu olhar apavorado e o vi atento, tenso como se preparado para
pular. Vi a angústia de sua indecisão. Ele não queria que eu fizesse aquela
escolha, sabendo que, para mim, as consequências seriam piores do que a
morte. Ele também não queria que eu morresse. Não havia nada que ele
pudesse dizer sem me trair de alguma forma. No mesmo momento, entendi
o que acontecera comigo.
— Solte-me — falei, gentilmente. — Confie em mim.
Rook baixou a cabeça. A paralisia do sortilégio se foi. Apertei os dentes
e ergui a água em minha mão até conseguir soprar sua superfície.
Foi então que olhei diretamente para Gadfly. Virei a mão, deixando a
água pingar de volta no poço. Levantei o outro braço, apesar do meu ombro
berrar de agonia, apesar de eu mal sentir o objeto de metal apertado em meu
punho, imundo de terra e grama.
Como Gadfly dissera, eu estava prestes a descobrir se o Ofício tinha o
poder de destruir as fadas de forma que nunca imaginara. Até agora.
— Vai para o inferno — falei, arremessando o broche de corvo no Poço
Verde.
Dezenove

Ouviu-se um suspiro coletivo, um som de choque estranho no silêncio do


prado, como uma revoada de pássaros se erguendo de uma vez. Várias fadas
se jogaram na direção do poço, esticando as mãos. Entretanto, apesar da
velocidade sobrenatural, nenhuma foi ágil o suficiente para pegar o broche
de corvo antes que caísse, girando e brilhando, nas profundezas turvas do
poço.
Um tremor chacoalhou o chão. De forma instintiva, as fadas ali
presentes começaram a se afastar, exceto Gadfly, que nem se moveu. Ficou
parado, assistindo. Parecia terrivelmente velho e estranho, como se fosse
uma estátua de si mesmo. Talvez estivesse repassando tudo o que dissera
para mim na clareira, trazendo a memória do momento em que me contara
que Ofício talvez destruísse o Poço Verde.
As pedras oscilaram e se soltaram, caindo uma a uma para dentro. A
cada fileira que desmoronava, mais pedras brotavam para tomar seu lugar,
jorrando da terra em uma fonte infinita. A percussão de pedras tombadas
abafava qualquer outro ruído, e pó de cal se ergueu como fumaça. Rook
chegou ao meu lado e nos afastamos aos tropeços quando a clareira se
sacudiu, jogando todos ao chão. Senti, mais do que vi, a última irrupção de
pedras. Uma rocha do tamanho de uma roda de carroça passou rolando,
deixando um rastro de folhas esmagadas e mudinhas tortas para trás.
Quando o ar clareou, restara um amontado de pedras no lugar do Poço
Verde, ruínas que já pareciam ter milhares de anos. Independentemente do
que acontecesse conosco em seguida, eu senti a satisfação orgulhosa de
saber que aquela coisa odiosa estava destruída, que nenhum mortal seria
atormentado por ela depois de mim. Ninguém nunca mais enfrentaria o
destino de Aster.
O lugar onde Gadfly se encontrara fora enterrado sob destroços
suficientes para esmagar um homem mais de dez vezes. Ele se fora.
Foxglove foi a primeira a reagir.
— Ela destruiu o Poço Verde! — uivou, engatinhando até nós.
Rook a atingiu no rosto com o braço, jogando-a para longe. A cabeça
dela atingiu as pedras com um baque úmido e oco. Musgo brotou das
pedras, cobrindo-as parcialmente, seguido por um tumulto de flores
silvestres roxas irrompendo das rachaduras. Do corpo de Foxglove, não
restava nada. Estava morta. Eu tinha assistido à morte de uma fada.
As outras fadas se jogaram sobre nós. Desta vez, foi Hemlock quem me
agarrou e me puxou de pé. Foram precisas quatro fadas para dominar Rook;
ele jogou todas para longe até conseguirem contê-lo juntas, segurando os
braços em harmonia desconfiada, olhando de relance para os restos de
Foxglove por cima do ombro.
Entre as exclamações de horror e os gemidos sem palavras, alguém riu.
Com os sentidos avariados pela dor, levei um momento para identificar a
fonte. Aster estava deitada no chão, passando a mão no musgo à sua frente,
como se a sentisse de novo pela primeira vez depois de anos de prisão.
Lágrimas escorriam por seu rosto e ela ria e ria, delirante. Eu a encarei sem
entender até que reparei no que tinha mudado. Ela voltara a ser humana.
— Que esperteza a sua, mortal — disse Hemlock em meu ouvido.
A boca dela estava tão próxima que eu ouvi os lábios se afastarem para
falar. O fôlego dela acariciou meu rosto, frio como geada. Tinha o cheiro
mais apavorante de todas as fadas que encontrara: fui tomada por uma visão
de pinheiros congelados sem fim, montanhas assomando à distância com
cumes nevados, lobos pulando pelo vento com sangue fresco encharcando a
mandíbula. A casca áspera da armadura arranhou minhas costas.
— Ou talvez não seja esperteza alguma. Às vezes é difícil saber. Fique
parada.
Esperava que ela me matasse ali mesmo. Não me preparei para que ela
segurasse meu braço deslocado e o enfiasse de volta no lugar com uma
torção brusca. A surpresa foi tanta que nem gritei. A dor do meu ombro se
tornou menos aguda.
— Pronto. Não aguento o barulho do choro humano. Vamos! Parem de
gemer. Levantem-se.
Ao chamado de Hemlock, as árvores que cercavam a clareira se
debateram, estalaram e estremeceram. Um baronete avançou, curvando a
cabeça para soltar os chifres dos galhos. O encanto escorreu dele em lascas
soltas. Em um instante, era um belo cervo de proporções majestosas; no
seguinte, um tumor monstruoso da floresta coberto de insetos e seus olhos
eram nós escuros chorando riachos de podridão. Quando se virou e me
olhou, senti outra coisa, antiga e implacável, enxergando por ele.
— Esta mortal nos arranjou uma audiência com o Rei do Amieiro —
concluiu Hemlock.
Ela me fez dar meia-volta antes que eu processasse as palavras, me
encaminhando de volta por onde tínhamos vindo. As fadas se levantaram e
nos seguiram, segurando as roupas desgrenhadas, com os olhos arregalados.
Deixaram Aster para trás como se tivessem esquecido que ela existia.
A princípio, eu não fazia ideia de aonde Hemlock planejava nos levar,
até ver a pedra rachada ao longe. Rook pulou ali perto, colocando-se de pé.
Ele se livrara de dois dos captores e fizera metade do caminho até nós antes
de ser apanhado de novo. Uma das fadas levou uma cotovelada na barriga
em resposta. Rook se debateu entre eles, cuspindo terra.
— Não nos leve por aí — disse para Hemlock. — Você sabe que
mortais não devem andar pelo caminho das fadas.
Ela abriu um sorriso perigoso para ele.
— Propõe que façamos o rei esperar?
— A Caçadora sempre se esforçou por mortes limpas. Mortes justas.
O sorriso congelou.
— Ela se esforçava — respondeu ela, tão baixo que mal ouvi.
Sem nem mais uma palavra, voltou a me arrastar. Os outros puxaram
Rook, que resistia, para levantar.
— Isobel — ofegou ele.
Eu não conseguia me girar o bastante nos braços de Hemlock para olhá-
lo.
— O que vai acontecer? — perguntei.
— Não sei dizer. Alguns mortais adoecem, outros enlouquecem. Não
fique pensando nas coisas que enxergar. Fique de olhos fechados, se puder.
A maioria das fadas chegou à pedra antes de nós. Elas se enfiaram na
rachadura da rocha e simplesmente não saíram do outro lado. Procurei
algum sinal do que me acometeria, mas não vi nada além de uma pedra
perfeitamente comum.
— Façam o favor de ficar de olho nele — disse Hemlock para os
captores de Rook, por cima do ombro. — Ele ainda é um príncipe, com
poder de príncipe, e eu ficarei bem chateada se ele tentar alguma coisa no
caminho. Coloquem isso nele.
Ela jogou um lenço amarrotado para Swallowtail, que gritou e quase o
largou.
— É ferro!
De fato, brilhando frio no lenço bordado com a monograma de Gadfly
estava meu próprio anel.
— Ah, chega de frescura. Não precisa encostar. Só enfie nele,
rapidinho.
— Mas…
Hemlock deu um sorriso mais largo. Swallowtail pegou a mão
dominante de Rook com agilidade e enfiou o anel em seu dedo mindinho, o
único em que cabia. Rook se preparou, erguendo o queixo em desafio. A
princípio, não reagiu. Ficou encarando Hemlock, orgulhoso apesar do braço
dobrado atrás das costas e do encanto que se desfazia, cavando as feições
do rosto, emaranhando o cabelo em nós ferozes e bravios. Mais uma vez eu
tinha me acostumado com a aparência falsa e senti um choque visceral.
Assim que eu começara a esperar que ele talvez aguentasse o toque do
ferro, um músculo tremeu em seu rosto. Rook cambaleou, caindo para a
frente, trôpego. Um gemido saiu de sua garganta, um som fundo, áspero,
quase animalesco.
Eu não aguentava vê-lo em tal agonia. Joguei-me na direção dele, mas
Hemlock usou meu próprio impulso para me girar e me empurrar com força
na fenda da pedra.
Eu não tive tempo de fechar os olhos.
A primeira coisa que vi, olhando para cima, foram as estrelas. Havia
estrelas demais. Cata-ventos de luz, queimando frios e vastos, em espirais
sem fim do vácuo preto. Quanto mais olhava, mais sentia que nunca antes
estivera realmente ciente do céu noturno, nem possuíra uma compreensão
adequada de minha insignificância face a sua enormidade. O vão entre as
estrelas não era tão vazio quanto parecia, mas preenchido com ainda mais
estrelas, e cada vão ali também tinha mais e mais, e…
— Não olhe.
As palavras soaram roucas e doloridas ao meu lado, um som tão vil que
a princípio não reconheci que vinha de Rook. Emergi como se arrastada do
mar que me afogava, e tateei às cegas na direção da voz até que ele pegasse
minha mão. Abaixei o olhar do céu terrível e infinito, mas não pude
obedecê-lo. Não pude deixar de olhar o que vi em seguida.
Uma estrada se estendia à nossa frente e atrás de nós. As fadas
saltitavam em fila, silhuetas pálidas piscando como chamas sepulcrais, uma
procissão de fantasmas. A floresta se erguia dos dois lados da trilha, mas
não era a mesma que existia no mundo em que estávamos antes. As árvores
eram largas como casas. Raízes irrompiam do chão em tal altura que eu não
seria capaz de escalá-las, nem se tentasse. A luminosidade branca das fadas
jogava sombras flutuantes nas cascas.
Enquanto avançava aos tropeços, anos passavam voando ao meu redor.
Cogumelos brotavam da terra, murchavam e caíam. Outros cresciam no
lugar. Folhas preenchiam as copas e caíam, brotos novos já se remexendo e
crescendo em seu lugar. Musgo se espalhava pelo chão como a espuma do
mar, avançando e retrocedendo em ondas de diferentes tons de verde. Um
filhote abriu caminho timidamente do mato, foi vítima de um estranho
espasmo e caiu morto, já um cervo com o focinho acinzentado e galhada
inteira. Quando o alcancei, seu esqueleto já estava parcialmente absorvido
pelo chão, camadas de folhas podres que estremeciam ao consumi-lo, como
vermes famintos.
Quantos anos tinham se passado ali? Vinte? Trinta? Fui tomada por
medo. Virei-me para minha mão na de Rook, esperando ver minha pele
enrugada, com manchas da idade. Entretanto, estava igual. Não? A luz era
tão estranha, não dava para confiar em nada que via…
— Pense que é como uma ilusão — disse Rook, com dificuldade. —
Quando sairmos daqui, só terão passado segundos. Você não mudará. Pelo
menos não de forma física.
A mão dele brilhava na luz fantasmagórica. Quase achei ter visto o
desenho da minha através dela, e o anel parecia formar uma sombra no
dedo. Levantei meu olhar…
— Não — ofegou ele.
… para o rosto de Rook. Sua expressão era horrível, contorcida em
agonia. Sombras translúcidas cercavam seus olhos e escureciam as
bochechas cavadas. Só ao reparar que conseguia enxergar vagamente os
dentes pontudos dentro da boca fechada me ocorreu que a luz vinha de
dentro dele, queimando seus ossos. Ele mal parecia consigo. Era como um
ressuscitado que se arrastara para fora da terra, agarrado à vida por mera
fome desesperada.
— Meu anel está te matando? — perguntei.
Muito de leve, ele negou com a cabeça. Até aquele gesto mínimo lhe era
custoso. Não estava morrendo, talvez, mas estava sentindo uma dor
inimaginável.
— Não gostaria que você me visse assim.
— Ainda não tenho medo de você — sussurrei, e finalmente fechei os
olhos.
— Que mortal peculiar você encontrou — disse Hemlock, sua voz me
atingindo como um vento uivante e gelado. — Que pena. Gosto mais
quando sentem medo. Ficam tão rosados, tão pequenos. Combina melhor.
Não saberia dizer quanto tempo durou o trajeto. Mesmo sem enxergar,
sentia o que acontecia ao meu redor. Galhos farfalhavam e estalavam como
se as árvores estivessem vivas. Raízes se remexiam pela terra sob meus pés.
Cogumelos, folhas, musgo e brotos floresciam e morriam com barulhos
úmidos e esmagados, como ao mexer um pote de pudim coagulado. A
risada cruel de alguma fada às vezes dominava a cacofonia, mas, ao longo
do tempo, a floresta ficou cada vez mais barulhenta, até eu temer que meus
ouvidos explodissem. Tornei-me ciente de barulhos mais estranhos: um
gemido baixo e trêmulo emanando das profundezas da própria terra. Um
tinido cristalino que eu sabia vir das estrelas.
Quase perdi a noção de quem eu era — me tornei um animal cego,
tropeçando sem sentir, intimidada pela enormidade implacável e eterna do
universo que me esmagava.
Até que, de repente, tudo parou.
Só as mãos de Hemlock sob meus braços foram capazes de me manter
de pé. Minhas pálpebras estremeceram, luz dourada piscando entre meus
cílios. Um rugido abafado me atingiu. Era o som de centenas, talvez
milhares, de vozes falando de uma vez, mas, comparado com a sinfonia da
passagem do tempo, era quieto e distante, abafado por camadas de algodão.
Eu não consegui me importar com o que acontecia. A terra girava tão
rápido que, para as estrelas, eu já tinha morrido. Não importava se eu
sobrevivesse àquele dia, ao próximo, ao mês seguinte. Minha vida era mais
trivial do que a de uma mera folha na floresta. Uma tarde dourada, lembrei,
sorrindo, sem pensar na minha aparência.
Minha cabeça pesou. Por uma fresta entre as pálpebras, registrei que
estávamos numa plataforma, a uns poucos metros do chão. Raízes nodosas
se enroscavam ao redor dos meus pés, escurecidas por um fogo antigo ou
por um raio e reluzentes por conta das gotas de seiva dura. As raízes
desciam, formando uma escada espiralada desigual, até um saguão brilhante
e lotado que nos aguardava lá embaixo, inundado pelo que parecia a luz
solar ofuscante da tarde, mas não podia ser, já que era noite. Rook falara em
segundos e eu acreditava. Um pensamento confuso me ocorreu: a luz era
refletida por espelhos. Espelhos enormes se erguiam atrás dos balcões
lotados de fadas, que nos cercavam em andares como um enorme teatro, ou
um tribunal… Não, não eram espelhos — eram lençóis de água
cascateando, perfeitamente lisos, refletindo a sala em um infinito dourado e
reluzente.
Tentei me concentrar na silhueta abaixada ao meu redor. Ele dizia
alguma coisa, mas não consegui entender o sentido. Agarrando-me à
memória de nós dois havia muito tempo, forcei palavras emboladas pelos
lábios.
— É por isso… não recomendável.
— Sim. Você lembra! Volte, Isobel. Volte para mim.
— Ah, Rook, deixe ela em paz. Não importa se ela enlouqueceu ou
não… Se enlouquecer, é melhor ficar assim. Sou eu quem preciso segurá-la,
afinal.
— Isobel — repetiu ele, pressionando a boca contra a minha.
Foi um beijo corrido, os lábios secos em um toque duro e casto contra
os meus, mas foi como inspirar ar fresco depois de horas sufocando sob a
terra. Pisquei rápido, o borrão dos arredores entrando em foco. Náusea
queimou garganta acima e cada joia, pilar e luz cintilante emanava um halo
atordoante, mas me lembrei de que tinha motivos para viver, afinal. Se eu
fosse morrer, o faria lembrando quanto amava Rook, Emma, March e May,
cujas vidas efêmeras eram terrivelmente importantes, e que se danassem as
verdades dos caminhos das fadas.
Todas as fadas da plateia nos encaravam, boquiabertas. A maioria se
agarrava às grades, virando a cabeça como se estivessem assistindo a uma
peça em que um ator irrompera das portas dos fundos, fugindo do roteiro.
Tendo testemunhado o nojo de Foxglove à demonstração anterior, e também
sido testemunha íntima das profundezas da vergonha de Rook, eu sabia que
me beijar em frente à corte do verão inteira era uma das coisas mais
corajosas que ele já fizera.
— Eu acho horrivelmente exaustivo, sabe, que você nunca aceite meus
bons conselhos — disse Hemlock, acima e atrás de mim.
Eu não dei ouvidos. Olhei para Rook que me olhava de volta, dobrado
ao meio pelas fadas que o restringiam. Quase ri quando me ocorreu que
estávamos na mesma altura e que eu estava quase totalmente ereta.
Ele estava ofegante, arreganhando os dentes, e seu fôlego fez esvoaçar
as mechas soltas de cabelo caindo na frente do rosto.
— Eu fiz uma promessa a você da última vez que nos encontramos nas
terras estivais. Ainda planejo cumpri-la.
— Quer dizer que você tem um plano? — perguntei, sem me sentir nada
bem, o que explicava por que eu achava graça nisso. — E, se tiver, é
arrogante, equivocado e provável que resulte em nossas mortes de qualquer
jeito.
— Claro — respondeu ele, com um rápido meio-sorriso enquanto
recuperava o fôlego. — Temo que não tenhamos tempo para você pensar
numa ideia melhor. Caso contrário, eu esperaria.
— Tudo bem, prossiga. Sei o quanto você ama se aparecer.
A expressão dele se tornou mais sóbria.
— Impossivelmente, parece que eu a amo muito mais.
Ele hesitou, juntando forças. Finalmente, fez um gesto repentino e ágil e
seu encanto voltou de uma vez. Antes que eu entendesse o que estava
acontecendo, ele se livrara dos captores, se empertigara e gritara em uma
voz que ecoou por cada canto do saguão:
— Eu desafio o Rei do Amieiro! Eu o desafio por soberania sobre as
quatro cortes!
Seu dedo decepado, ainda usando meu anel, jazia enroscado entre as
raízes do carvalho rachado.
Vinte

As fadas que nos cercavam deram um passo para trás. Meus joelhos
cederam, mas Rook me segurou pelo cotovelo antes que eu caísse e passou
o braço dele pelo meu. Eu me perguntava por que ninguém tentava impedi-
lo, até que vi seu rosto. Não o vira daquele jeito desde a noite em que me
confrontara por causa do retrato. Ele ardia, feroz e incandescente, de algum
modo menos humano do que nunca, mesmo com a volta do encanto,
projetando que, se alguém se aproximasse, ele os derrubaria no mesmo
instante. Uma vantagem daqueles costumes feéricos horríveis, supunha:
força era tudo e, sem o ferro, Rook era a fada mais poderosa ali. Mais do
que isso: ele não tinha nada a perder. Até Hemlock parecia assustada.
— Sua mão — falei.
— Vai sangrar bastante, imagino — respondeu ele, soando satisfeito. —
Você consegue andar? Preciso que fique por perto.
Certo, o plano. O plano de Rook era arrancar o próprio dedo e,
aparentemente, desafiar o Rei do Amieiro a um duelo até a morte. O que
poderia dar errado?
Apertei os olhos, buscando em mim mesma, avaliando minhas forças.
— Acho que sim. Por pouco tempo.
— Então vamos.
Juntos, descemos, meu vestido deixando um rastro de pétalas nos
degraus desiguais. Quando chegamos lá embaixo, olhei para trás. O
carvalho rachado de onde tínhamos emergido crescia suspenso em um
balcão, as raízes escuras emaranhadas na plataforma, seus galhos
parcialmente enfiados na parede. Não vi porta, nem arco, nem entrada. A
sede do poder do Rei do Amieiro só era acessível pelos caminhos das fadas.
Avançamos de braços dados. A passagem reta que percorria o centro do
ambiente era ladeada por pilares altos da mesma rocha brilhante e
translúcida das paredes e dos balcões. O peso estagnado do ar e a ausência
do menor indício de céu me alertaram à possibilidade de que, apesar da luz,
estivéssemos no subsolo. Ao passar pelo primeiro pilar, vi um padrão de
casca de madeira na superfície e constatei que não eram estalagmites nem
entalhes, mas árvores petrificadas, preservadas por tanto tempo sob a terra
que tinham se transformado em cristais. Respirei fundo e me apoiei em
Rook, consciente da idade inimaginável da câmara e do peso claustrofóbico
que a esmagava.
O fim do corredor se perdia numa névoa de luz ofuscante, impossível de
olhar diretamente. O Rei do Amieiro poderia estar sentado, nos observando.
Ou talvez nem tivesse chegado. Eu não sabia dizer.
O som se espalhava longe ali. Lembrava uma catedral entre os cânticos
do coral, quando todos se sentavam, cochichavam, se ajeitavam e reviravam
as páginas do hinário, enchendo o teto abobadado com o ruído semelhante a
centenas de pássaros farfalhando as asas. As solas duras de Rook ecoavam.
Eu até ouvia as pétalas enfeitiçadas caindo do meu vestido, sussurrando
sedosas no chão refletor. Palavras e frases soltas se sobressaíam do zumbido
de vozes, às vezes indistintas, às vezes tão nítidas que poderiam ter sido
gritadas em meu ouvido.
— Rook — disse um barítono, e levei um momento aterrorizado para
entender que era um espectador falando com o companheiro em um balcão,
não se dirigindo diretamente a Rook.
— Você… — murmurou outra voz.
— Beijou — seguiu-se uma voz afiada e sibilante.
— Isobel! — gritou a voz de uma menina, e meu coração galopou em
minhas costelas como um cavalo assustado.
— Não preste atenção neles — disse Rook, olhando para a frente. —
Finja que somos só nós dois, andando juntos. Eles são só o vento.
Era quase possível, com minha visão embaçada como estava.
— Eu nunca soube que o vento tinha tanto apetite por fofoca.
— Vocês, mortais, e suas percepções limitadas.
Apesar de ele não virar o rosto, senti seu olhar se desviar. Um sorrisinho
tocou o canto de sua boca.
— Veja só — disse ele.
“Até mesmo agora ele se exibe”, pensei, mas não neguei que uma faísca
de empolgação energizou minhas veias e interrompeu minha respiração,
antecipando fosse lá o que ele estivesse prestes a fazer. Tranquilamente,
ainda sorrindo, ergueu a mão ferida e abriu o punho que fechara com os
dedos restantes. Pinga, pinga, pinga. O sangue espalhou um rastro no chão.
Alguém ofegou. Outro gritou de medo. Sapatos bateram e deslizaram, fadas
se debatendo contra as grades para ver melhor. Uma mulher agarrou os
cachos compridos de outra e a puxou para trás, abrindo caminho. No breve
intervalo, vislumbrei uma cabeça loira-prateada se esgueirando, a cor um
contraste marcante em meio aos tons castanhos e acaju profundos da corte
do verão. “Gadfly?” Não, não podia…
O pilar mais próximo explodiu numa cascata de estilhaços cintilantes de
cristal. Em seguida o próximo, e o próximo, o caminho inteiro até o fim.
Galhos vivos se desenrolaram das cascas destroçadas, flamejando com
folhas escarlates. Raízes irromperam do chão, rachando a pedra num
terremoto violento, fazendo frestas ziguezaguearem em toda direção,
chegando aos cantos e correndo afiadas pelas paredes. Gritos soaram
quando nacos de alvenaria tombaram de um balcão, desmoronando numa
avalanche de pedra lascada, abafando o tilintar do cristal. Resíduos
preencheram o ar, cintilando como diamante.
Tropecei no chão quebrado, mas Rook me segurou, me ajudando a pular
uma raiz ainda crescente, que se retorcia e esticava, rastejando como
minhoca pelo chão, esparramando fios. Ele não cedeu com a mão ferida.
Não podia arcar com isso.
Incessantes e inabaláveis, suas árvores de outono pressionaram o teto e
cresceram. A folhagem transformou a luz ofuscante nos tons coloridos de
um vitral. Pela primeira vez, eu vi o que nos aguardava à frente.
O Rei do Amieiro, sentado com o corpo inclinado para a frente em um
trono elevado à altura das plataformas mais altas, enroscado na parede por
cipós como um coração apanhado na teia de artérias. O rosto, a barba, as
vestes, o trono e até os cipós eram do mesmo tom pálido e poeirento de
cinza, tão inerte como mármore, como se ele tivesse se tornado parte da
própria sala. A expressão adormecida me causou um terror que não pude
explicar. De certa forma, eu sabia que ele tinha mais vida do que
demonstrava. Senti sua consciência lenta se voltar para nós, com a certeza
do feixe de um farol circulando no escuro. Ah, eu não queria vê-lo acordar.
Rook apertou meu braço e em seu próximo passo hesitou um segundo
antes da bota atingir o chão. Ele também sentira. Diferente de mim, ele não
podia demonstrar medo — fraqueza. Olhando de relance para o rosto dele,
encontrei seus olhos concentrados no Rei do Amieiro em antecipação
orgulhosa, levemente desdenhosa, como se fosse simplesmente alguém de
quem o príncipe planejava vencer no jogo de peteca. A confiança,
entretanto, era fingida. Minutos antes eu o vira cair, devastado e clamando,
contra o Poço Verde. Eu já o vira segurando as pontas de quem era vezes o
suficiente para reconhecer a situação imediatamente.
Desejei que, pelo menos uma vez, eu pudesse dizer que o amava sem
amaldiçoar nós dois.
O saguão se aquietara. Fadas olhavam para cima como crianças, vendo
as folhas de outono caírem. Os destroços já tinham se suavizado sob uma
coberta de folhagem, como se o colapso já tivesse muitos anos. No silêncio,
hera amarela se enredava pelos balcões e subia em espiral pelos troncos de
árvores, e meu vestido farfalhou contra as pernas no vento fresco da noite.
Os galhos de Rook serpenteavam cada vez mais perto da forma imóvel do
Rei do Amieiro, florescendo em vermelho.
Um dos dedos do rei tremeu.
Pó caiu de sua coroa de chifres, a princípio um fio fino, até se tornar
uma cascata quando ele ergueu o rosto. Estávamos perto o suficiente para
ver a textura poeirenta se agarrando à barba. Ele piscou, revelando olhos
sem cor e opacos que vagavam como os de um velho.
— Por que me acordam? — disse ele em um sussurro seco.
Apesar de baixas, as palavras queixosas varreram o saguão e se
espalharam aos quatro cantos como um sopro de folhas mortas. Calor se
seguiu, e também um cheiro podre. Suor encharcou a palma das minhas
mãos.
— Eu estava sonhando… sonhando com uvas maduras, um pôr do sol
refletido na água… Só queria…
Confuso, ele olhou para os cipós crescidos ao redor dele, aprisionando-o
no próprio trono.
— Estou aqui para desafiá-lo, Rei do Amieiro — soaram as palavras
ecoantes de Rook. — Seu verão eterno foi corrompido. Todos conseguem
ver isso. Feras fadas sem mestre vagam pela floresta e suas próprias terras
apodrecem enquanto o senhor dorme. Hoje, ainda — acrescentou mais alto,
virando o corpo para os balcões, a mão ferida ainda erguida, musgo
escorrendo em espirais pela manga —, uma mortal destruiu o Poço Verde.
Gritos se seguiram ao pronunciamento.
— Não!
— É verdade?
— O Poço Verde!
— O que faremos agora para que os mortais nos venerem?
Brigas começaram nos balcões. Algumas fadas caíram de joelhos,
agarrando a grade em atitudes exageradas de desolação. Todas se calaram
com apenas um gesto do Rei do Amieiro, que fez um arco de poeira flutuar.
— Não. O que você diz é… impossível. O Poço Verde é eterno.
De alguma forma, encontrei minha voz.
— Fadas não mentem — lembrei o rei, dividida entre meu medo e uma
pena curiosa dele. — O poço não existe mais.
Ele estreitou os olhos. Mais poeira desmoronou da teia de rugas ao
redor deles, revelando trechos de pele fina e seca. Ele me olhou. O calor
aumentou. Cada pedacinho de pele que tocava meu vestido coçava
horrivelmente e gafanhotos fantasmas cantavam com a pressão que crescia
em minha cabeça. Era aquilo que eu representava para ele, não importava o
que eu fizesse: um inseto zunindo ao pé do trono. Ele planejava me matar
pela pura força da atenção. Teria conseguido se o sortilégio de Rook não o
impedisse.
No momento em que notou que eu era imune à magia e o porquê,
choque e incerteza faiscaram no fundo de seus olhos enevoados.
— Ela ainda tem livre arbítrio.
Rook mostrou os dentes num sorriso que não sorria, tão ensandecido
que eu me esqueci de respirar.
— Sim. Agora desça e lute, se puder.
Um suspiro. Então, a sala do trono estourou.
Corvos revoaram de todas as direções, grasnando e adensando o ar a
ponto de sufocar o saguão na escuridão da madrugada. O voo era um trovão
ensurdecedor, abafando o rugido de protesto do Rei do Amieiro, engolindo
todos os gritos surpresos das fadas. Um ataque ardido atingiu meu rosto.
Tossi fragmentos de pena que esvoaçavam como pó, só o calor do braço de
Rook me confirmava que ele ainda estava ali. Entre as asas farfalhantes,
vislumbrei pedacinhos do caos ao meu redor. Uma mulher no balcão se
agarrava à própria cabeça onde um corvo se debatia, embolado no chapéu
elaborado. Outra caiu, bicada por dezenas de pássaros de uma vez. Fadas
inundavam as escadas, tentando sem sucesso escapar da invasão; brigas
irrompendo entre elas, pisando nos sapatos e vestidos umas das outras. Uma
menina loira — “Lark?” — sorriu ao chutar a canela de um homem e se
voltou para mim, em busca de aprovação.
Sangue de fada fluiu. A fragrância de flores flox encheu o ar de doçura
enjoativa e eu me esforcei para manter o equilíbrio no mundo que girava
num turbilhão de penas.
Uma forma imensa surgiu da escuridão. A galhada rasgava caminho
entre os corvos, espalhando corpos quebrados pelo chão. Rook girou para
me proteger dos cascos do baronete. Ao mesmo tempo, um par de mãos
frias agarrou meus braços e me puxou para longe, me apertando contra a
árvore mais próxima.
— Pare de se sacudir — disse Lark no meu ouvido. — Alguns de nós
viemos ajudar.
Segurei o punho de Lark com força.
— Rook não tem espada!
— Espada? — disse ela, sorrindo. — Por que ele precisaria de uma
espada?
No fim, não precisava mesmo. Rook se esquivou e rodopiou sob o
baronete como um bailarino, empurrando a mão esquerda para cima, no
peito do monstro. O baronete congelou e tremeu inteiro. Heras outonais
irromperam primeiro do nariz, depois da boca, depois dos olhos,
espalhando-se rapidamente pelo corpo até que parecesse uma escultura
gigante em arbustos. Rook puxou a mão de volta, já esmagando o crânio
antigo e marrom para jogá-lo fora. Fazendo o casaco esvoaçar,
tranquilamente evitou a cachoeira de casca que caiu. Ele olhou para mim e
para Lark, avaliando a situação. Os corvos agora revoavam ao redor de nós
três, em círculo, formando uma parede preta e opaca pontilhada por olhos
cintilantes, como se estivéssemos no olho de um furacão. Rook estava de
costas quando outro baronete os atravessou.
Eu gritei em aviso, mas ele já tinha sentido. Com um gesto fluido, caiu
de joelhos e bateu a palma no chão, encontrando o redemoinho de penas
que já subia para engoli-lo. A galhada do baronete assobiou no ar vazio,
sem acertar o enorme corvo de olhos roxos que voara. Rook sumiu no
ciclone, um pássaro indistinguível dos muitos. Finalmente, separou-se perto
do teto, apontando para baixo, patas curvas estendidas, mirando o baronete
como um falcão descendo sobre a presa. Outra vez, desapareceu. Procurei
algum sinal de aonde ele fora, mas não precisei esperar muito. O baronete
cambaleou primeiro para um lado, depois para o outro, os cascos oscilantes
esmagando os fragmentos podres de seu companheiro, e caiu com um
estrondo de sacudir a terra, desintegrando em uma cascata de vegetação que
se derramou pelo chão.
Rook saiu dos escombros na forma humana, espanando as mangas do
casaco.
— Ele cortou mesmo o dedo fora? — perguntou Lark, sua voz contendo
uma nota de deleite mórbido. — Ele cortou, não cortou? Nunca ouvi falar
de ninguém fazer isso antes. É permanente, sabe? O encanto não vai
esconder e o poder não durará tanto tempo.
Engoli em seco.
— Ele… Ele conseguirá lutar contra o Rei do Amieiro?
O som do berrante sacudiu a terra e vibrou pelos meus sapatos. O tempo
parou. Ou pelo menos foi a impressão, até que Rook deu um passo para trás
e eu levantei lentamente uma das minhas mãos trêmulas só para confirmar
que era possível. Os corvos que nos cercavam pararam suspensos no ar, em
meio ao voo, sem piscar. Nem uma pena se moveu. O berrante soou de
novo. Os corvos se fraturaram como vidro frágil e caíram em estilhaços,
uma catarata de obsidiana se derramando aos nossos pés.
O Rei do Amieiro estava de pé na plataforma. Os cipós tinham
escorregado do corpo dele; ainda se arrastavam para longe pelo trono. Ele
desceu um passo. Outro. Cada impacto derrubava poeira de seu corpo e,
conforme descia, livrou-se do peso de séculos, como se o manto de anos
deslizasse de seus ombros. Uma capa esmeralda se revelou centímetro a
centímetro, bordada em ouro, escuro e antigo. A barba espessa e grisalha
estava trançada em partes como a de um rei guerreiro secular, decorada por
grampos de ouro, e um anel timbrado cintilava em seu dedo. Sobrancelhas
pesadas escondiam seus olhos, revelando somente o nariz severo e o traço
impiedoso da boca do qual me lembrei nos entalhes das terras estivais.
Onde estava a falha em seu encanto? Não havia nenhuma.
Ao nosso redor, fadas pararam de lutar no meio do ato, tomando as
poses estranhas e variadas de atores em pantomima. Eu fiquei vagamente
surpresa ao notar quantas não só estavam lutando contra corvos, mas
também entre si. Quer fosse porque estavam do nosso lado, ou porque a
violência em reação a pés pisados era contagiante, não pude adivinhar.
Estavam congeladas, agachadas, garras nos pescoços das outras, enquanto
caules floridos e musgos criados pelo sangue derramado cresciam sobre
elas.
Rook não se mexeu. Suas costas estavam eretas. Seu rosto, ilegível.
Com o coração na garganta, arrisquei um olhar para Lark, sem gostar de
como o mundo perdeu foco quando me virei — não era hora de desmaiar
como uma donzela de historinhas infantis. Ela também estava paralisada,
encarando o Rei do Amieiro com olhos arregalados e vagos, como se
hipnotizada.
O rei desceu mais um passo, assomando-se no canto de minha visão, e
foi então que entendi. O tamanho. A falha dele era o tamanho. Ele era muito
maior que as outras fadas, de proporções inumanas, uma cabeça mais alto
do que Rook.
Finalmente, Lark me respondeu.
— Não — disse com dificuldade, a palavra quase inaudível, arrancada
do peito por puro esforço, passando entre seus lábios como um suspiro. —
Ninguém consegue.
— Eu agora lembro por que me sentei em meu trono e não me levantei
por uma era.
A voz do Rei do Amieiro rugiu sobre a câmara como o trovão fervendo
no horizonte. O ar se tornou pesado, estalando de poder latente, até os pelos
do meu braço se arrepiarem com um calafrio.
— Cansei das briguinhas de vocês — continuou ele. — Suas vidinhas
minúsculas me exauriram. Vinho… bordado… ninharias… por quê? Vocês
arrancariam os olhos do vizinho com as unhas por um punhado de pó.
Ainda assim, pó está ao redor de todos. O mundo é feito de pó e ao pó
sempre retorna. Não há mais nada.
Eu só podia estar enganada quanto ao medo que vi em seus olhos.
Aquele ser não conhecia medo. Ele não sentia nada, pensei, me forçando a
levantar o queixo. Manchas pretas flutuavam à minha frente como
mosquitos.
— Agora a Boa Lei foi violada e vocês fracassaram em fazer valer a
punição justa. Por que motivo este… e esta… ainda vivem? Não importa o
que a mortal fizer. Eu não desejo ver o rosto de nenhum deles.
Tinha quase chegado ao pé da escada. Engoli o gosto amargo de ozônio,
tentei me agarrar à conexão com Rook e, no silêncio compartilhado, berrei.
Ele cambaleou como se um tapete tivesse sido puxado de sob suas
botas. Finalmente, sacudiu a cabeça e, para meu pavor, abriu um sorriso
torto para o Rei do Amieiro. O sorriso era feroz demais para ser
considerado charmoso.
— Que coincidência fortuita — declarou Rook. — Confesso que
nenhum de nós dois queria ver a sua cara, também. Considerando as
circunstâncias, acho melhor nos retirarmos.
Ele cruzou os braços no peito e se curvou em uma reverência.
— Tenha um bom dia — despediu-se.
A reverência obrigatória do Rei do Amieiro em resposta interrompeu
sua expressão sombria.
— Rápido, venha — disse Rook, virando-se e estendendo a mão
saudável.
Uma onda de folhas o atingiu quando Lark me ergueu, me pôs nas
costas do cavalo galopante e puxou meus braços ao redor do pescoço do
animal. Arrancamos em um salto de sacudir os ossos. Músculos fortes se
tensionavam sob minha bochecha. Rostos passavam voando, boquiabertos
de surpresa, se esquivando das lascas de pedra arremessadas pelos cascos
pesados. Elas ardiam em minhas pernas, pontadas geladas de pressão sem
dor. Eu me perguntei se sangrava.
Subimos com estrondo as escadas, os ombros de Rook chacoalhando ao
cobrir os degraus pequenos demais. A cortina de água espelhada ficou cada
vez mais perto, refletindo a investida em prata ondulante, e minha própria
expressão lívida agarrada ao cavalo. Ele ia atravessá-la num salto. Eu me
preparei como pude.
— Era este o seu plano? Ah, Rook — murmurei, semiconsciente, na
crina áspera e quente, pois o que ele fazia era a última coisa que esperariam.
— Você está fugindo à luta.
Vinte e um

Nossa fuga da corte do verão passou num borrão. Só o choque da água


escorrendo do meu cabelo e pingando nas minhas costas me manteve
sensata o suficiente para me agarrar à crina de Rook. Meus pensamentos
entravam e saíam do estupor em lapsos, minha mente se esforçando para se
manter à tona.
Em algum momento, lá no começo da fuga, a voz fria de Hemlock nos
perseguiu por uma passagem escura ladeada por pinheiros meio mortos. Eu
me encolhi frente às formas inclinadas, cujos galhos baixos e nus se
curvavam para dentro sobre o leito do riacho como se quisessem me
arrancar da cernelha de Rook.
— Ah, volte aqui! — gritou ela. — Podíamos tentar derrubá-lo juntos,
você e eu. Ainda podemos. Ele está atrás de você, sabe? Pense na batalha
que seria!
O berrante soou então, oco e imponente na noite. Cães uivaram à
distância. O perfume ardido de resina de pinheiro subiu dos galhos
esmagados pelos cascos de Rook e seu ritmo incessante não hesitou.
— Por favor! — gritou Hemlock. — Eu o decepcionei. Ele os jogou
contra mim. Por favor… por favor… por favor…
Os gritos dela sumiram comigo no escuro.
····
A próxima vez que retomei consciência foi em frente à minha casa, onde
Emma segurava uma panela com as mãos firmes e pálidas, parada à porta,
prestes a atacar a cabeça de Rook.
— Não me interessa quem você é, nem por que está aqui! — gritou. —
Largue ela agora e suma daqui.
— Senhora, eu…
— Quer saber quantas vezes eu já enfiei os intestinos de um homem de
volta ao corpo? Fada ou não, tenho certeza de que dou conta do processo
inverso.
Tentei falar, mas minha garganta estava tão seca que fechou. Só
consegui emitir um barulho engasgado.
— Isobel! — exclamaram Rook e Emma ao mesmo tempo.
Tossi, saliva inundando minha boca na onda de náusea que se seguiu.
— Tudo bem. Não bata nele. Ele… — outra tosse do fundo das
entranhas. — Ele está me ajudando.
Franzindo os lábios sombriamente, Emma abaixou a panela.
— Traga-a para dentro e deite-a no sofá. Depois se explique, por favor,
começando pelo motivo para você ter virado um cavalo.
As paredes balançavam loucamente enquanto Rook me carregava pela
cozinha e pelo corredor até meu estúdio, o ar fragrante de óleo de linhaça,
as formas da decoração conhecidas mesmo no escuro. Lar. Eu estava em
casa. Uma dor cresceu e cresceu no meu peito. Eu não esperara estar ali de
novo — achei que morreria sem voltar. Quando ele me deitou no sofá, as
lágrimas quentes escorreram. Eu tinha muitas outras coisas mais
importantes a dizer, mas meu alívio miserável sequestrou meu cérebro.
— Emma — foi tudo que saiu, em um gemido esganiçado.
Ela empurrou Rook e ele teve o bom senso de se afastar e esperar na
ponta do sofá como uma criança que levou bronca. Ela passou o braço entre
minhas costas e as almofadas, me puxando num abraço. Eu me segurei, sem
força, chorando de soluçar em seu ombro.
— Ah, Bell, onde estão suas roupas? Por que seu vestido está soltando
pétalas para todo lado? Você está machucada? Te machucaram?
— Estou bem — chorei contra sua camisola, não porque era verdade,
mas porque eu queria que fosse.
Finalmente, meu choro diminuiu, resumido a soluços e engasgos
roucos, e ela me deitou de novo. Eu fiquei grata por não enxergar a mancha
molhada enorme que eu deixara no ombro dela no escuro.
— Vou buscar água e uma lamparina. Você — acrescentou, fixando o
olhar em Rook —, comporte-se.
— Hm, sim, senhora — disse ele.
No momento em que Emma saiu do cômodo, ele apareceu na minha
frente como uma flecha, segurando meus dedos úmidos em sua mão. Ele
sibilou de dor e afastou a mão esquerda, procurando um lenço para disfarçar
o deslize. Toquei seu rosto e ele parou, o brilho em seus olhos atento aos
meus nas sombras. Eu me maravilhei com o calor de sua pele, o que
significava que eu devia estar mesmo com muito frio.
— Isobel, você está bem? — perguntou ele. — De verdade?
Considerei a pergunta. Apesar de estar deitada, inerte, todo músculo em
meu corpo pulava de exaustão. Meu coração me ninava devagar, minha
orelha raspando um shuff, shuff, shuff ritmado nas almofadas, como se eu
tivesse me queimado, restando só uma casca, leve e frágil como papel.
— Não sei. E você? — sussurrei.
Ele começou a assentir e parou, incapaz de completar o movimento.
Que besteira nossa fazer essa pergunta, sabendo que nenhum de nós dois
nunca mais ficaria bem. Ainda assim, tive a estranha sensação, envolta
naquele casulo de escuridão e cansaço, descansando no tecido bordado e
rígido quase desconfortável do meu sofá, que nada que nos acontecera era
verdade. As terras outonais, o Lorde Tumular, a corte da primavera, o Rei
do Amieiro — tudo impossível, vívido como um delírio febril, contrário à
realidade sólida de casa.
— Você prometeu me trazer de volta — falei.
— Se eu o tivesse feito antes… Eu…
Ainda segurando seu rosto, passei meu polegar por seus lábios e ele se
calou.
— Não se culpe — falei. — Foi nossa escolha tomada em conjunto.
Mas não podemos ficar aqui. O Rei do Amieiro está a caminho, não está?
Emma e as gêmeas estão em perigo. Se qualquer coisa acontecesse com
elas… Precisamos ir embora o mais rápido possível.
— Isobel! — gritou Emma à porta, a lamparina que segurava
iluminando seu choque, tanto com minhas palavras quanto com a posição
em que nos encontrou. — Você não vai sair desta casa de novo, aconteça o
que acontecer. Está me ouvindo?
Ela se aproximou de Rook. A aparência ofegante e desgrenhada à luz da
lamparina a fez hesitar. Emma apertou os olhos. Suspeitava o mesmo que
eu suspeitaria até recentemente, que o único motivo para uma fada se
apresentar assim era para nos iludir. Certamente, nunca lhe ocorreria que ele
estava conservando tudo que podia da magia.
— Explique-se — disse ela, dura. — Quero ouvir todos os mínimos
detalhes.
Para minha surpresa, ele se levantou, endireitou os ombros e explicou.
Ele pulou alguns pedaços, pelo que fui secretamente grata, mas não deixou
nada importante de fora. Meu transe onírico diminuiu conforme ele falava.
A cada palavra, lembranças voltavam com clareza nítida, rasgando buracos
no véu insubstancial que me separava dos horrores da noite. O rosto de
Emma ficou cada vez mais lívido, até que se sentou, com uma expressão de
pedra.
Humilhação percorreu meu corpo em ondas de calor e frio, lutando
contra um nó apertado de desafio em meu peito. Pensar em ver julgamento
— ou, pior, decepção — no rosto dela quando olhasse para mim me fazia
querer me esconder e nunca mais enfrentar o mundo. Eu não tinha como
provar que o amor que Rook e eu nutríamos um pelo outro era verdadeiro,
nem que merecíamos cada pedacinho desesperado e imprudente daquilo, e
eu já estava cansada, tão cansada, de carregar seu peso como fracasso.
Como crime.
Os minutos em que esperei pela reação de Emma foram os mais longos
da minha vida. Ela ouviu, sem interromper. Quando Rook se aproximou do
fim, o olhar dela desceu para a mão esquerda dele, e uma ruga apareceu em
sua testa. Ela nunca vira uma fada ferida. Ele se remexeu sob o escrutínio, o
único sinal de nervosismo que demonstrara desde o início da história.
Apesar de ser um príncipe entre as fadas, naquele momento parecia
terrivelmente jovem, não tão diferente de um pretendente humano
conhecendo a família de uma moça pela primeira vez.
Normalmente, entretanto, pretendentes não davam a notícia da morte
iminente deles e de suas amadas.
— E foi por isso que cheguei como cavalo — concluiu —, e por que
precisamos partir logo.
Emma se voltou para mim. Eu me preparei, acreditando que esperava o
pior, mas não estava pronta. Não aguentei a devastação tensa e pálida. Nada
de julgamento, nada de decepção, e o fato de que ela não me culpava por
nada daquilo era a parte mais difícil de todas.
— E o feitiço de proteção na casa? — perguntou.
— Ele é o Rei do Amieiro, Emma — falei. — Me desculpe. Eu sinto
muito.
Ela olhou para Rook.
Ele inclinou a cabeça.
— Temo que Isobel esteja certa. Nada será capaz de impedir o Rei do
Amieiro.
Por alguns segundos, nenhum de nós falou. Emma esfregou as mãos
para cima e para baixo na coxa como se massageasse uma câimbra. A
expressão dela revelava pouco, mas o gesto tenso e repetitivo era típico do
desespero sem rumo, que eu também sentia — uma aceleração enjoativa,
um deslize corrido, como se alguém me jogasse da carroça pela beira de
uma colina. Não havia volta. Só havia a queda, o baque inevitável lá
embaixo.
— Rook, obrigada por trazê-la para casa — disse ela, finalmente. —
Isobel, quero que você saiba que estou orgulhosa de você. Não vá ainda, por
favor. Vocês têm aonde ir daqui?
Rook e eu nos entreolhamos.
— Podemos nos dirigir ao Mundo Além — disse ele, tomando cuidado
com as palavras.
Era uma gentileza para com Emma, só isso. Nunca chegaríamos tão
longe.
Passos furtivos soaram da escada. Em seguida, dois pares de pés
descalços desceram correndo.
Meu deus. As gêmeas deviam ter ouvido tudo. Provavelmente estavam
espiando desde que eu chegara com Rook. Meu estômago apertou quando
vi seus olhos arregalados surgindo pelo canto do corredor. March hesitou na
porta, torcendo a camisola comprida de linho contra as pernas. May estava
segurando um objeto quadrado debaixo do braço. As duas estavam
apavoradas, vendo que eu estava deitada no sofá, meio morta, usando um
vestido de baile enfeitiçado.
May foi a primeira a se recuperar. Fazendo cara feia, marchou até Rook
e empurrou a coisa que carregava para ele. Em seguida, pigarreou,
comandando a atenção total da sala.
— Um desconhecido esquisito nos deu isso quando estávamos
brincando lá fora.
— É o quê? — exclamou Emma, pulando de pé.
— Ele nos mandou esconder e não abrir, porque é um presente para
você e Isobel. Tentamos abrir mesmo assim — continuou May, estreitando
os olhos —, mas a tampa está emperrada.
Era uma caixa fina mais ou menos do comprimento de um antebraço
masculino, como as caixas em que se guardariam fitas de chapéu, mas eu
sabia bem que não eram fitas que ela continha, mesmo se ignorasse a forma
como Rook a segurava, como se pudesse explodir a qualquer instante.
Minhas entranhas se reviraram.
May me olhou de relance, fingindo indiferença. Em seguida, juntou
coragem e declarou:
— Eu te odeio.
— May…
Ela apertou as mãos em punho.
— Não peça desculpas, porque não vou mudar de ideia! — interrompeu.
Eu sabia que não era sincero. Ela estava confusa, assustada e traída, e
sentir raiva de mim era seu único modo de controlar a situação. Mas isso
não impediu meu coração de afundar ao chão quando ela deu meia-volta e
foi batendo os pés para a cozinha. March me olhou, arisca, e correu atrás da
irmã. Emma nos olhou longamente, cansada — o sentido era óbvio:
“fiquem aí!” —, antes de ir atrás das gêmeas.
O tempo todo, Rook manteve a expressão de perplexidade chocada,
como um gato que observava o móvel preferido ser mudado de lugar sem
sua permissão.
A confusão dele foi a última gota. Eu não tinha energia para traduzir
nossa humanidade para ele. Pesar destroçou minhas últimas defesas como
um aríete. Soltei um soluço engasgado, tão cansada que não sabia se meus
olhos estavam doendo e ardendo por exaustão ou lágrimas.
Rook se sentou na ponta do sofá. Ele hesitou, então tirou o casaco e me
cobriu. Era quente e tinha o cheiro dele. Emocionada por sua gentileza,
comecei a chorar com força. Ele se afastou, assustado, obviamente achando
que tinha piorado a situação.
— Hm — disse ele, dando um tapinha na parte mais próxima de mim
que alcançava, meu pé. — Desculpe-me por… isso. Pode parar de chorar
agora — acrescentou, com um toque de desespero e uma nota de comando
principesco.
Não adiantou. Ali mesmo, uma ideia aleatória renovou minha angústia.
— Ah, eu destruí seu broche de corvo! — solucei. — Me desculpe.
— Ora, eu acho que descobri que não preciso mais dele.
Porque ele me amava. Cobri o rosto com as mãos.
— Isobel, parece que eu… É melhor que eu saia?
— Não, não é você — minha voz embaçada vergonhosamente por
lágrimas, abafada pelos meus dedos. — É só que… eu estou sendo muito
humana agora, tá? Espera uns dez segundos.
Eu inspirei profundamente, tremendo, e contei até dez. Quando cheguei
ao fim, tinha parado de chorar. Quase. Depois de uma expiração sôfrega,
esfreguei o rosto na manga da minha roupa, o que acabou sendo uma má
ideia; a renda arranhou meus olhos inchados como uma lixa. Esticando o
braço, pedi ajuda a Rook para me levantar um pouco e me sentar no canto
do sofá, porque não sabia se conseguiria fazer isso sozinha, e fingi
determinada que não estava com o rosto todo vermelho e o nariz
escorrendo.
Era o suficiente.
— Prontinho. Agora, vamos abrir a caixa.
Ele apertou os dedos nas bordas da caixa. O acabamento brilhava à luz
da lamparina. Um presente, dissera May. Meu melhor palpite era que seria
uma espécie de piada cruel, uma pegadinha por termos violado a Boa Lei.
Só que não fazia muito sentido, não é? Não se pregava peças em pessoas
supostamente mortas. Ninguém esperava nossa sobrevivência, muito
menos… a volta para minha casa. Exceto por…
“Gadfly.”
Um calafrio subiu pelas minhas pernas, pelos meus braços, até minha
cabeça.
Eu não sabia o que estava acontecendo ali. De repente tive certeza de
que, como era costumeiro entre coisas que eu desconhecia, eu não ia gostar
nada de saber. A sala se encolheu, distante, os cacarecos conhecidos se
misturando numa bagunça sombria.
Rook passou a mão pelo fecho trancado. Eu me obriguei a não desviar o
olhar do dedinho cortado. Ele já usara o encanto para dar a aparência de
estar curado e, pelo seu orgulho, eu não ia discutir o assunto. A ferida devia
ter doído horrivelmente, mas, exceto pelo barulho que fizera mais cedo, não
deixava nada transparecer.
Ele estalou os dedos e a tampa se abriu. Lá dentro, sobre uma almofada
de veludo preto, encontrava-se uma adaga recém-forjada. A ponta cintilava,
afiada como uma agulha.
Mesmo sem precisar, perguntei:
— É ferro?
— É.
Fosse pelo sortilégio ou por termos ficado íntimos, eu sabia que
tínhamos pensado na mesma coisa ao mesmo tempo. Gadfly, acima de nós
no Poço Verde, descrevendo os termos de nossa violação e os meios
limitados para escaparmos da punição. Rook, implorando para pôr um fim à
vida dele e poupar a minha. Ele brincava conosco mesmo então.
Sem dizer nada, Rook me passou a caixa. Como não a aceitei, ele a
deixou na almofada ao meu lado. Nossos olhares se encontraram. Uma
discussão se travou em silêncio furioso entre nós. Quando inspirou fundo
para acabar com o impasse, eu sacudi a cabeça, enfaticamente.
— Não — falei. — Pare.
Ele pulou do assento e se ajoelhou no chão à minha frente. Pegou a
adaga da caixa e a voltou para si mesmo. A arma tremeu tanto em suas
mãos que ele logo a soltaria, e eu senti um conforto mórbido ao saber que
ele não ia conseguir usá-la sem ajuda. Entretanto, quando seu encanto se
esvaiu, eu não estava preparada para vê-lo. Sua pele estava horrivelmente
pálida; os olhos estranhos e grandes demais estavam na sombra de dor e
exaustão. Suor deixara riscos na sujeira em seu rosto.
— Escute — disse ele, rouco. — Nós dois não precisamos morrer hoje.
Isobel, você não pode violar a Boa Lei sozinha. Se as fadas sentirem que eu
não…
Arranquei a adaga dele. Sem ideia do que fazer em seguida, levantei a
almofada onde estava sentada, enfiei a faca ali e me sentei em cima.
— Pare de ser melodramático! Eu não vou te matar no meu estúdio!
Ele me encarou, chocado.
— Você acabou de sentar na adaga?
— Sim — falei, revoltada.
— Mas não tem outro jeito.
Meu olhar deve ter se tornado bastante feroz, porque ele se afastou um
pouquinho.
— Você já considerou o que seria isso para mim? Viver depois de te
assassinar? Imagine se fosse o contrário!
Ele fez uma pausa, com aparência doente.
— Exatamente!
— Não… Sim… Você está certa. Eu não devia ter pedido isso a você.
Ele virou o olhar para o corredor. Emma. Um torno esmagou meu
pulmão, deixando-me sem ar. Se Rook pedisse a Emma, ela certamente o
mataria para me poupar, assim como teria matado a fera fada para salvar a
irmã, se tivesse tido a força. Ela não deixaria mais um membro de sua
família morrer por causa das fadas.
Meu sangue rugia nos ouvidos. Eu não sentia as almofadas do sofá, nem
as lágrimas secando no rosto. Nas historinhas, moças bebiam veneno e
pulavam de torres altas ao saber da morte do seu respectivo príncipe. Eu
não era uma delas. Eu ainda queria viver e, na verdade, vivera dezessete
anos perfeitamente funcionais antes de conhecer Rook. Eu tinha uma
família que me amava e precisava de mim. Não podia pedir à Emma nem às
gêmeas para sofrerem a dor da minha perda. Se fosse a única escolha… Se
fosse o necessário… Mas eu não aguentaria; me doía só de pensar nele
morto, uma dor vasta e vazia que eu não podia encarar, por medo de me
afogar.
Os dedos dele acariciaram uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
— Não seria como a morte de um humano — disse ele. — Você já viu.
Não deixarei corpo. Só uma árvore, talvez. Maior do que aquele
carvalhinho absurdo perto da cozinha.
Não resisti. Engasguei numa gargalhada.
— Que exibido.
— Sim — disse ele, com um sorrisinho. — Sempre.
Eu me retorci e puxei a adaga de debaixo das almofadas. Fechei os
olhos, apertando a lâmina com tanta força que quase me cortei. Imaginei
uma versão de mim mesma, talvez um ou dois anos depois, subindo a colina
até chegar em casa. Ainda de luto, mas nada como um dia após o outro. Na
minha mente, March e May saíam correndo pela porta da cozinha para
abraçar minhas pernas — não, minha cintura, pois certamente estariam mais
altas. Uma árvore majestosa soltava folhas que pintavam um lado do
telhado de vermelho o ano inteiro, demonstrando um desprezo arrogante
pelo estado das calhas. Nuvens voavam pelo céu azul. Calor fervia.
Gafanhotos cantavam em um coro atordoante e incessante.
Eu me encolhi de repulsa. Não. Não aceitaria aquele mundo, um mundo
em que perdíamos e o Rei do Amieiro vencia, um mundo em que nada
nunca mudava e a prova disso me cercava todo dia.
Minha palma ardeu. Pisquei e a adaga entrou em foco, prateada contra
meu vestido vermelho, luz cintilando na superfície como água. Pela
primeira vez, entendi de verdade o que me fora dado e o que poderia fazer.
Ou, melhor, o que faria. Porque, ao entender, tomei uma decisão.
A adaga mataria uma fada.
Só não a fada que Gadfly imaginara.
Vinte e dois

— Traga vermelhão. Anil, por favor. May, sei que você está de mal comigo,
mas ainda consegue carregar coisas, né? Emma, você me faz o favor de
encontrar um apoio para o meu braço? Rook, isso não é uma paleta de tinta,
é uma travessa. Ah, deixa para lá, pode trazer. Vai servir.
Meu estúdio se transformara num turbilhão de atividade. Eu caíra no
segundo em que tentara me levantar, então estava instalada no sofá, me
apoiando em meia dúzia de almofadas, enquanto todo mundo me servia, o
que seria gostoso se não fossem todas tarefas que eu preferia fazer sozinha.
Para crédito deles, ninguém tentou me convencer a mudar meu plano
completamente insano. Emma e Rook tinham visto o brilho em meu olhar,
se entreolhado em comunhão repentina e saído à procura de pincéis.
Eu nunca trabalhara assim antes. Para começo de conversa, não tinha
tempo de esboçar. A luz da manhã já corria pela sala, iluminando o vidro de
óleo de linhaça e desenhando um triângulo cor-de-rosa no papel de parede.
Decidi não olhar por cima do ombro, porque se começasse não ia conseguir
parar, mas Emma estava de olho na janela e logo abafou um grito e
derrubou uma almofada.
— O que você viu? — perguntei.
— Nada — disse ela, correndo para enfiar a almofada sob meu
cotovelo. — Só me assustei de nervosismo.
Era uma mentira deslavada. Emma era capaz de misturar produtos
químicos fatais ao lado de alguém batendo pratos.
May olhou, na ponta dos pés.
— Tem alguma coisa correndo pelo campo — anunciou, numa voz que
queria soar casual, e virou-se com um gesto de desprezo exagerado para
mostrar que não tinha medo, mesmo que eu a visse tremer do outro lado da
sala. — Aposto que é o Rei do Amieiro que veio te matar e te comer porque
você é uma idiota.
Emma se levantou, abraçando outra almofada.
— May, você não pode falar assim com sua irmã!
— Mas é a verdade! — insistiu May.
— O Rei do Amieiro ainda não chegou — disse Rook, me
tranquilizando. — É só um cão, que não será capaz de entrar na sua casa,
assim como quaisquer outras feras e fadas que se aproximarem.
Controlei minha respiração, me obrigando a relaxar. O pincel deixara
marcas lívidas nos meus dedos apertados.
— Por quê? — perguntei em voz baixa, esperando que minha família
não ouvisse. — O feitiço não proíbe ninguém de entrar.
Os olhos dele brilharam.
— Porque eu não vou deixar.
Ele olhou mais uma vez pela janela e se virou para o corredor.
— Rook — falei, interrompendo-o. — Obrigada. Tome cuidado.
O agradecimento não era só pelo que ele estava prestes a fazer. Era por
confiar em mim, acreditar em mim. Deixar a adaga de lado não fora fácil
para ele.
Assentiu com firmeza antes de partir. A porta da cozinha bateu ao fundo
atrás dele. Afastando meus medos angustiantes à força, me concentrei na
tela, perdendo-me na tinta cintilante deslizando pela textura da superfície,
no roçar silencioso dos pelos secos do pincel quando chegava ao final de
um traço. O fundo ia de hematite-escura nos cantos a ouro-luminoso no
centro, onde destacaria o retratado em uma coroa de luz. Tudo dependia
daquele retrato. Precisava ser o meu melhor trabalho, feito numa só manhã,
no meu método menos polido — úmido sobre úmido — já que eu não tinha
tempo de esperar secar. Meus olhos ardiam do esforço de mantê-los abertos
e meu pincel parecia pesar dez quilos. Mesmo assim, traço a traço, a pintura
ganhava vida.
Pouco depois, eu me afundara no trabalho a ponto de não reparar em
nada que acontecia ao meu redor. O mundo se resumia ao meu Ofício.
Como um mapa da terra de velhos marinheiros, não existia nada além das
beiras da minha tela. Até um estalido estrondoso soar lá fora, sacudindo os
vidros na mesa ao lado do cavalete e me arremessando de cabeça na luz, no
som e no clamor da vida real.
Virei a cabeça, piscando estupefata, e encontrei Emma e as gêmeas
grudadas nas janelas. Emma estava à janela sul, do outro lado da sala; eu
não havia notado que March e May tinham subido no sofá, uma de cada
lado.
— Ele o rasgou ao meio! — exclamou May, alegre.
March pulava sem parar de joelhos.
Olhei de relance por cima do ombro. Um emaranhado de cipós
espinhentos gigantes e retorcidos cercava nossa casa, mais altos e grossos
que o carvalho, mergulhando nosso quintal em sombra profunda. Enquanto
eu observava, um dos cipós agarrou uma forma branca — um cão — e a
arremessou de volta ao trigal, tão longe que eu não vi onde foi parar. Os
destroços de uma fera fada muito maior estavam espalhados pelo nosso
galinheiro sem grama, o que explicava o terremoto. Procurei Rook entre o
caos. Da última vez que criara espinheiros de tamanho semelhante, ele fora
gravemente ferido pelo Lorde Tumular. Quanto teria que se ferir para um
feito inconsequente daqueles? Não o encontrei em lugar nenhum. Eu não só
suspeitava, como sabia com certeza, que ele era motivado por um impulso
suicida persuasivo. Um tremor percorreu meus ombros e meus braços,
tornando-se um leve calafrio que tomou meu corpo inteiro. Minha pele
parecia repuxada e ruídos ecoavam em minha cabeça, expulsando qualquer
outro pensamento.
March baliu animadamente quando outro cão saiu voando pelo campo.
As reações das gêmeas pelo menos me garantiam que, se saíssemos dessa
ilesos, não seria difícil convencê-las a gostar de Rook.
“A gente não devia impedi-las de ver isso?”, perguntei para Emma, com
um olhar meio apavorado.
Emma me olhou com igual assombro, querendo dizer: “Ah, acredite, eu
tentei.”
Um barulho soou lá fora, meio rangido, meio gemido. Voltei a atenção
para a janela. Os espinhos estavam ficando paralisados de baixo para cima,
as gavinhas espetadas ziguezagueando em ângulos agudos, endurecendo e
formando um matagal denso, de aparência impenetrável. Vertigem revirou
meu estômago. Abandonei meu esforço de procurar pelo campo e voltei
minha atenção para dentro, me concentrando no vínculo do sortilégio entre
nós. Se alguma coisa acontecesse com Rook, eu certamente sentiria sua
reação. O espinheiro não estava morto, só imóvel. Fosse lá o que estava
acontecendo lá fora, ele fizera de propósito — não?
A porta da cozinha foi aberta com um baque e botas pesadas soaram no
corredor, os passos largos de Rook inconfundíveis. Apertei os olhos por um
instante, sentindo a tontura de alívio que me tomou. Entretanto, não tive a
oportunidade de aproveitar.
— Ele está vindo — disse Rook, assim que entrou na sala. — Temos
pouco tempo.
O peito dele ofegava como um fole e o cabelo estava tão desgrenhado
que parecia ter enfrentado um furacão. Uma das mangas estava arregaçada,
com um pano de prato da cozinha mal amarrado no antebraço. Tentei não
considerar as implicações daquilo — ele nunca antes precisara estancar
feridas. Talvez só não quisesse que o sangue fizesse bagunça ali dentro.
Emma e eu nos entreolhamos, sombriamente.
— Pode levar as gêmeas para o porão? — perguntei.
Talvez fosse a última vez que nos veríamos vivas. Saber daquilo fez
com que sustentar seu olhar fosse como encarar o sol. Ela jurara me criar e
me manter em segurança, mas estava prestes a me perder para a mesma
força que já estilhaçara nossas vidas outra vez. De repente, eu soube, com
horrível nitidez, que, se me perdesse, ela não sabia se teria forças para se
recuperar de novo. Naquele momento, duas Emmas se sobrepunham: a que
me criara e a que ela escondia de mim, uma Emma que eu mal conhecia.
Uma Emma que eu talvez nunca tivesse a oportunidade de conhecer com o
tempo.
O momento passou.
— Vocês ouviram sua irmã — disse Emma, enérgica, apesar de soar
exausta.
Ela se aproximou e pegou March no colo. May escorregou do sofá,
contida. As duas gêmeas me olharam, incertas. Eu não podia chorar de
novo. Não ali.
— Eu amo vocês e vou pôr um fim nisso daqui antes do almoço —
declarei, na minha melhor voz de perfeccionista ocupada. — May, sei que
você não me odeia — interrompi quando May abriu a boca, sabendo que, se
eu a deixasse falar, não seria capaz de conter as lágrimas. — Agora corram.
Antes de partirem, Emma deu um beijo no alto da minha cabeça.
Apertei o maxilar, levantei o rosto para o teto e esperei até ouvir os passos
subindo a escada para deixar minhas lágrimas caírem. Fungando com
determinação, sequei meus olhos nos punhos, enfiei o pincel num
redemoinho de vermelhão e amarelo de estanho e voltei a trabalhar. Só
restavam as pinceladas finais. Um punhado de defeitos me olhava da tela —
um trecho de sombra que precisava de mais reflexo arroxeado, um canto da
coroa que merecia mais luz para dar dimensão —, mas não tinha tempo de
consertar tudo. A parte mais importante, lembrei a mim mesma, estava
pronta.
Houve um farfalhar de tecido quando Rook veio até o meu lado.
Absorvendo o que eu criara, uma imobilidade profunda o tomou. Aquela
reação me dizia tudo que eu precisava saber. Hesitei e abaixei o pincel.
Confiança cresceu em mim com a calma segura da maré, preenchendo cada
caverna de dúvida.
Meu Ofício era verdadeiro.
Um berrante soou, sacudindo as janelas nas molduras, grave e sonoro
com um tom de desprezo. A luz do sol penetrou a sala quando cristais se
despedaçaram lá fora — os espinhos tinham caído nas mãos do Rei do
Amieiro. Embalada por uma certeza eufórica tão intoxicante quanto vinho,
olhei para Rook e sorri.
Ele desviou o olhar do retrato, assustado. Em algum momento, o
encanto se esvaíra dele. Seu cabelo caía em nós embolados ao redor dos
planos inquietantes do rosto. Ele me analisou com olhos inumanos, olhos
cruéis que não eram feitos para mostrar bondade, carinho ou amor, mas
ainda expressavam nitidamente que eu me comportava de forma estranha,
mesmo para um mortal, especialmente para mim.
— Você ficou sem magia — falei baixinho, tocando o punho dele.
Sangue da cor do âmbar encharcara o curativo improvisado.
Ele se encolheu, sua expressão se fechando. Ergueu a mão e olhou de
um lado e de outro, observando os dedos compridos, aracnídeos e nodosos
como se os vir os perturbasse no mesmo nível em que perturbaria um
mortal.
— O sortilégio usa minha força — disse ele. — Não tenho mais como
protegê-la.
— Você não vai mais precisar fazer isso — respondi.
Um tremor chacoalhou o chão. Apesar de eu não ter sentido outro
movimento, a casa inteira gemeu como se vários centímetros da estrutura
tivessem sido levantados por força bruta. Quando assentou com um baque
grave, as tábuas sacudiram e pó de cal caiu do teto. Rook olhou ao redor,
vendo alguma coisa que eu não via. Não precisei perguntar. O feitiço da
minha casa fora rompido. O Rei do Amieiro fora ali com uma intenção,
afinal: nos matar. Ele não ia perder tempo.
Afastei as almofadas e fiquei em pé. Meus joelhos cederam pela terceira
vez em 24 horas e Rook me segurou de novo, me sustentando como se eu
não pesasse nada. Estendi a mão para o retrato.
— Isobel — disse ele.
Interrompi meu gesto.
— Não sou muito bom com… declarações — continuou, depois de
hesitar.
Em seguida, hesitou ainda mais, olhando para mim, absorvendo o que
via, parecendo esquecer o que tinha em mente.
— Eu sei — tranquilizei, com carinho. — Acho que você insultou
minhas pernas curtas da primeira vez, entre outras coisas.
Ele se empertigou um pouco.
— Em minha defesa, elas são muito curtas e eu não posso mentir.
— E com isso você quer dizer que me ama, mesmo com pernas curtas?
— Sim. E… não. Isobel, eu a amo inteiramente. Eu a amo eternamente.
Eu a amo tanto que me assusto. Temo não poder viver sem você. Eu veria
seu rosto toda manhã ao acordar por dez mil anos e ainda ansiaria pela
manhã seguinte como se fosse a primeira vez.
— Acho que pesamos a mão na crítica — suspirei. — Foi uma
declaração e tanto.
Agarrei a gola dele e o puxei para um beijo, mesmo com aquela
aparência monstruosa, ignorando o som abafado de protesto que não durou
muito nos lábios dele. Seus dentes eram pontudos, mas ele me beijou com
tanta ternura e cuidado que não importou. Uma flor brotou em mim, um
broto doce e raro ansiando por luz, vento e toque. Em outro mundo, poderia
ser nosso último beijo. Neste mundo, eu não permitiria que fosse.
Nos afastamos quando uma sombra cruzou a janela. Relutante, Rook me
soltou e eu avancei, cambaleando em pernas fracas como as de um gamo
recém-nascido. Segurei o retrato como escudo e me virei.
Alguma coisa acontecia na minha porta. Manchas escuras e brilhantes
se espalhavam como tinta derramada numa página, ou a chama de uma vela
escurecendo o papel. Só quando o cheiro doce e podre me atingiu, e mofo
branco cobriu a superfície, foi que eu entendi que a porta estava se
decompondo. Pendeu das dobradiças, a madeira retorcida. As tábuas se
descascaram em lascas, desintegrando-se em montinhos esponjosos ao cair.
A maçaneta de latão foi ao chão com um estrondo e rolou para o lado.
Assim, o Rei do Amieiro entrou, curvando-se pela cintura e virando os
ombros largos de lado para caber na entrada agora vazia. A luz o eclipsava
por trás, transformando-o numa silhueta preta, brilhante demais para ver.
Calor invadiu o ambiente.
Eu havia recebido muitas fadas ali, mas nunca uma como aquela.
Quando ele se empertigou, o sol de outra era acendeu o fogo de sua barba e
reluziu em seu manto esmeralda, atingindo-o em tal ângulo e intensidade
que não era responsabilidade das janelas. Ele era de uma época que não era
a nossa, e o peso daquilo o envolvia como uma capa. Ciente de que eu era
tão pequena à frente dele como seria quando criança, avancei um passo. Ele
não olhou para mim. Era como se nem me visse. Sob as sobrancelhas
grossas, seu olhar vasculhou uma eternidade de anos, em busca do presente,
de uma hora e um dia menos significantes para ele do que uma partícula de
poeira suspensa entre milhares incontáveis no ar.
Minha confiança vacilou. Meu plano tinha um defeito: só funcionaria se
ele olhasse para baixo. Portanto, pigarreei para falar.
— Nós o veneramos um dia, não é, Sua Majestade? Vi suas estátuas na
floresta. Foram entalhadas por mãos humanas.
Ele inclinou a cabeça como se ouvisse o canto de um passarinho
distante.
— Nunca ouvi uma história ou li um livro em que não fosse verão no
reino Excêntrico — continuei. — Antes de nos punir, será que Sua
Majestade poderia me contar há quanto tempo está no poder?
A voz dele rangeu como madeira viva.
— Eu estou no poder há eras. Fui rei antes de mortais fazerem o mundo.
Primeiro, fui admirado. Depois, temido. Agora, sou esquecido. Estranho.
Não lembro se estou dormindo ou acordado, ou qual é a diferença entre as
duas coisas.
Seu olhar desceu, tornando-se afiado de compreensão, e meus músculos
travaram, resistindo ao impulso de fugir como uma lebre de um falcão em
investida.
— Um dia — continuou ele —, vim punir uma menina mortal chamada
Isobel e um príncipe chamado Rook por violarem a Boa Lei.
— Sim — respondi, minha garganta seca como osso. — E esse dia é
hoje, Sua Majestade. Mas, antes, preparei um presente, assim como mortais
o fizeram antes de mim.
Eu levantei o retrato. Seu olhar caiu nele e se demorou. Meu coração
estremeceu. Ele estudou meu trabalho sem reconhecimento, como se não
significasse nada para ele — daria na mesma se eu lhe mostrasse um retrato
de Rook ou Gadfly, ou mesmo uma tela em branco. Finalmente, ele soltou
um suspiro longo e lento, como o último fôlego de um homem moribundo,
que encheu meu estúdio como vento. A luz solar sobrenatural dourando
seus ombros sumiu atrás das nuvens, deixando suas feições em sombra. Ele
voltou a ser o velho da sala do trono. Poeira ainda se prendia em sua pele.
Revelada pela sombra, uma teia de aranha pendia entre duas pontas da
coroa de chifres.
— O que é isso? — perguntou em uma voz baixa e rouca.
— É o senhor, Sua Majestade.
Ele se olhou. Viu seu rosto como não era, mas era: um soberano que se
sentara no trono por inúmeros milênios, mas que sentira cada perda, grande
e pequena, e suportara cada fardo de sua vida interminável. Um ser que um
dia amara, e talvez até tivesse sido amado. Sua boca tremeu. Uma lágrima
desenhou um rastro brilhante na poeira de seu rosto.
— O senhor disse que sonhou, Sua Majestade. Disse que tinha um
desejo. O que era?
Ajustei meu punho atrás da tela. Metal, aquecido por meu corpo, se
apertou contra minha palma.
Ele contorceu o rosto.
— Como ousa… Como ousa me mostrar isso?
Suas palavras cresceram em volume até uivar, rouco, como uma
tempestade arrancando árvores. As paredes tremeram e galhos bateram
contra a casa, lá fora.
— Eu não sonho — continuou ele. — Eu não me importo com
ninharias, com esse pó que chamam de Ofício.
Ele ergueu a mão, pronto para me atacar. Entretanto, não conseguiu
desviar os olhos do retrato.
“Agora.” Eu me joguei para a frente. O Rei do Amieiro não viu ameaça
em uma menina mortal se jogar contra ele, armada de tela e tinta molhada.
O que ele não viu foi seu fim. Com a força de todo o meu peso, a adaga de
ferro atravessou a pintura, a carne entre suas costelas e, enfim, seu coração.
Com um pulo, voltei aos braços de Rook quando o Rei do Amieiro caiu
de joelhos. O retrato se rasgou e foi ao chão — o melhor trabalho da minha
vida estava largado numa pilha de moldura retorcida, tecido esgarçado e
tinta manchada no chão. Meu sangue pulsava como um martelo batendo em
uma bigorna, imaginando que ele puxaria a adaga do peito e se ergueria,
ileso. Entretanto, só levou a mão à tinta amarela no manto, como se o
surpreendesse mais do que o próprio sangue. Seu encanto começou a se
descamar e eu soltei um barulho esganiçado frente ao que ele revelou.
A altura do Rei do Amieiro se manteve, mas ele era esquálido e lívido
como um cadáver, suas roupas devoradas por traças envolviam o corpo
encolhido como os restos de um grande homem corroído por doença. Seus
olhos estavam afundados em buracos escuros e sua pele sem cor tinha uma
qualidade fina e esgarçada como gaze podre. A coroa de galhadas se tornou
preta e desbotada, horrivelmente lascada onde pedaços tinham quebrado
com o tempo, a beira enfiada na carne da testa. Um fedor enjoativo
emanava dele. Quando caiu, um besouro saiu correndo de sua orelha e
sumiu na barba.
Ele moveu os lábios.
— Estou com medo — sussurrou em tom de assombro maravilhado. —
Eu sinto…
Seus olhos pesaram e se fecharam. Musgo saiu espumando do tapete
para engoli-lo. “Ele vai estragar o chão”, pensei, estranhamente prática.
“Devíamos tirar o corpo daqui.” No instante em que a ideia me ocorreu,
Rook nos puxou para longe, me protegendo com as costas e os braços. O
mundo sacolejou. Uma raiz da grossura de um barriu brotou do chão
embaixo de mim, quebrando as tábuas como um machado. Flores se
espalharam pelo tapete, pelo cavalete e pelo sofá, por mim e por Rook,
explodindo como uma onda na parede. Vidro se estilhaçou. Galhos
arranharam o teto. Pregos rangeram, cedendo sob a força, até a casa se
debater num estrondo destrutivo, telhas soltas caindo ao nosso redor como
granizo. Luz entrou pela devastação, ofuscante.
Pareceu ser o fim. Rook deitou em cima de mim por um instante a mais
antes de olhar por cima do ombro, soltando pedaços de gesso do cabelo,
antes de se afastar, rolando. Ele me ajudou a me levantar entre as ruínas do
estúdio. Agora era mais uma floresta do que um cômodo: um amieiro
colossal crescera no centro, rompendo metade do telhado e derrubando a
parede ao sul. Pontinhos de luz cintilavam no chão coberto de musgo,
folhas e flores que não davam sinal dos móveis por baixo, exceto por
crescimentos em formatos peculiares aqui e ali. Tínhamos vencido, mas no
momento me senti inteiramente atordoada. Era estranho estar no meio do
estúdio, olhando através do trigal para além dos restos murchos da barreira
de espinhos de Rook. À distância, silhuetas fugiam para a floresta — mais
rápidas do que qualquer humano, algumas correndo de quatro.
Uma lufada de vento nos atingiu. Rook deu um passo para trás, uma
telha raspando o chão sob a bota. Ele cambaleou e caiu. Fui tomada por
pânico. Imaginei uma lasca de madeira empalando suas costas enquanto ele
me protegia com o corpo. Caí ao chão ao lado dele, segurando seus braços e
me perguntando se ele sobreviveria a uma ferida grave sem magia.
Entretanto, Rook parecia mais chocado do que ferido e, conforme eu
percorria seu corpo com as mãos, procurando algum sinal de dano, o
encanto o invadiu de volta. Ele segurou minha mão.
— Olhe — disse, mas foi a expressão em seu rosto que me fez virar.
Vento soprou no campo, dobrando o trigo em ondas reluzentes. Ao se
espalhar, as cores mudaram. As folhas das árvores se tornaram douradas,
escarlate e laranja-flamejante. Em pouco tempo, a transformação acendeu a
floresta inteira. Até o horizonte, o único verde que restava era o dos
gramados às beiras dos campos e um punhado de pinheiros altos e solitários
atravessando as copas das árvores. Ri alto ao pensar na confusão dos
moradores do reino Excêntrico: a sra. Firth saindo correndo da loja,
chocada; Phineas encarando a pintura pendurada atrás da porta. Uma só
folha vermelha caiu do carvalho da cozinha.
— Que silêncio — comentei, fascinada.
A brisa fez meu vestido farfalhar, o frescor doce pelo qual tanto ansiava
arrepiando meus braços. Passarinhos cantavam calmamente nas árvores.
Das beiras da floresta, grilos cricrilavam uma melodia líquida. Os
gafanhotos todos tinham se calado.
Uma silhueta solitária se distinguiu dos destroços do quintal,
fastidiosamente abrindo caminho entre os espinheiros espalhados pelo chão.
O cabelo loiro brilhava em luzes prateadas sob o sol e ele tinha trocado de
roupa desde que o vira pela última vez: vestia um colete azul-esverdeado e
uma gravata impecável e bem amarrada.
Meu estômago se revirou. Eu ainda tinha uma adaga de ferro enterrada
no estúdio.
Gadfly nos chamou usando um tom de voz calmo e agradável.
— E assim termina a era do verão e o outono chega ao reino Excêntrico.
Lamento que a primavera esteja tão distante, mas é assim que o mundo
funciona, e confio que um dia as estações mudarão novamente. Boa tarde,
Rook. Isobel.
Ele parou a vários passos de nós e fez uma reverência.
Franzindo a testa, Rook retribuiu o cumprimento. Eu não era presa por
obrigação alguma, então só o olhei com cara feia.
— Que recepção calorosa. Eu só queria parabenizá-los por um trabalho
bem feito — disse Gadfly, seu olhar se dirigindo só a mim, e sorriu, um
sorriso caloroso e cortês que enrugou seus olhos sem revelar nada. — Você
tomou todas as decisões corretas. Que esplêndido. Que singular. No
momento em que derrotou o Rei do Amieiro, destruiu todos os decretos
criados por ele. Você e Rook são livres para viver como bem entenderem,
sem o peso da Boa Lei. As cortes feéricas nunca mais serão as mesmas.
Eu encontrei minha voz.
— Mas você… Você queria…
O que ele queria? Abruptamente, tudo se encaixou.
Antes de minha primeira barganha com ele tantos anos antes, talvez até
antes do meu nascimento, ele já começara a se planejar. Protegera minha
casa com um feitiço poderoso para ganhar minha confiança e garantir que
nada acontecesse comigo antes de o plano entrar nos eixos. Marcara o
retrato de Rook. Nos levara ao Poço Verde. Trouxera a adaga de ferro, que
nunca fora para Rook, mas para o Rei do Amieiro. Pior: soubera
exatamente o que dizer para torná-lo meu inimigo amargo, para me fazer
correr pela floresta, para longe do caminho predestinado, para o objetivo
impossível de destruir o Rei do Amieiro. Choque e fúria me atingiram em
igual medida. Minha voz endureceu, engasgada de emoção.
— Não gosto de ser usada como um peão no seu joguinho, senhor.
Ele me olhou por um tempo, em silêncio.
— Ah, mas você nunca foi um peão. Desde o começo você sempre foi a
rainha.
Respirei fundo. A inflexão dele era carregada de um sentido escondido
que eu não tinha paciência de decifrar.
— E você é um traidor, e nunca esquecerei a dor que sofremos por sua
vontade, independente da forma como tudo terminou.
— Dito, se me permite, como uma verdadeira monarca.
Ele sorriu de novo. Uma sombra passou por seu rosto e, dessa vez, seus
olhos não se enrugaram. O quarto dos retratos voltou à minha mente de
repente. Todos aqueles séculos pacientes de construção da coleção — não
porque desejava retratos, mas porque esperava por mim, pelo meu Ofício,
uma aranha no centro de uma teia vasta que tecera por centenas de anos,
sozinho.
— Acredito que seja para o melhor — continuou ele, me observando
atentamente. — Confiar em uma fada já é tolice o bastante para a vida toda.
É sempre melhor que mortais lembrem o que somos, e que sempre servimos
somente a nós mesmos.
— Gadfly — disse Rook num tom que sugeria que o príncipe da
primavera estava passando dos limites.
— Só mais uma coisa, por favor — disse Gadfly, espanando poeira
invisível da manga e levantando as sobrancelhas para Rook. — Você está
ciente, suponho, de que ainda não foi nomeado rei? Há uma certa medida
que deve…
— Sim, eu sei! — interrompeu Rook, irritado.
Eu o olhei de relance, curiosa, e descobri que ele fugia ao meu olhar
com nervosismo. Ele pareceu aliviado quando passos hesitantes soaram
pela casa, libertando-o do fardo de explicar essa “certa medida” para mim, e
naquele momento fiquei feliz em esquecer tudo.
— Emma! — chamei. — Estamos seguros! Estamos no… estúdio.
— Estou vendo — disse Emma com calma, abrindo caminho pela casa
enquanto segurava a mão das gêmeas. — Tem buracos nas paredes. March,
não sei o que você pegou, mas não coma.
— Tarde demais — disse May.
Emma sacudiu a cabeça. Ela olhou o estúdio e o quintal e então notou
Gadfly, estreitando os olhos desconfiados.
— Eu quero saber quem vai arrumar essa bagunça?
— Ah, que pena — disse Gadfly. — Temo que eu precise ir embora.
Epílogo

Enrolei o curativo com cuidado na mão ferida de Rook, feliz de ver que,
daquela vez, ele não escondeu uma careta. Duas semanas depois, seu dedo
já estava praticamente curado. Estávamos sentados à minha cozinha, a mesa
sob o brilho vacilante da luz feérica que ele criara, ainda reluzente após as
duas dúzias de feitiços que fizera aquele dia como pagamento para os
operários que reconstruíam meu estúdio. Não me passara despercebido que
ele não mencionara voltar à floresta, nem falara de tomar o posto de rei,
então, no momento em que ele começou a se remexer inquieto na cadeira,
eu tinha uma ideia razoável do que iria dizer.
— Um dia eu mencionei como funciona a sucessão no meu povo —
disse ele. — Como um príncipe é substituído pelo outro. Ou, pelo menos,
como funcionava… A lei pode ser diferente, agora.
— Sim, e é horrível — falei, insistente. — Matando uns aos outros e…
Ah.
Rook não se preparara para que eu entendesse sozinha. Ele empalideceu
e continuou, rápido:
— Então, tecnicamente, como foi você quem derrotou o Rei do
Amieiro, você agora é… Bom… Você é a rainha das cortes feéricas. E eu…
Eu me apiedei dele, que estava ficando bem verde.
— Rook, seria um prazer casar com você e te tornar rei. Mas, primeiro,
tenho uma exigência. É da mais suma importância.
Eu não sabia se ele estava mais aliviado ou mais assustado.
— O que é, meu amor?
— Quero outra declaração, por favor.
— Isobel.
Ele se ajoelhou e beijou minha mão, me olhando em devoção.
— Meu amor por você é maior do que todas as estrelas no céu — disse
ele. — Eu a amo mais do que Lark ama vestidos.
Minha gargalhada chegou a me assustar.
— Eu a amo mais do que Gadfly ama se olhar no espelho — continuou
ele.
— Ah, isso certamente não!
Nossa gargalhada foi carregada pelo quintal escuro, para além do
galinheiro cheio de galinhas adormecidas, para além das folhas vermelhas
do carvalho e do trigo outonal sussurrando no campo, em parte cortado por
conta da colheita. O vento bravio levou nossas vozes até a floresta, onde
grilos cantavam uma nova melodia para a lua crescente. Em algum lugar,
fadas faziam banquetes. Outras dançavam no meio de um baile. Outras,
ainda, traçavam as bordas de um pedaço de casca de bétula, encarando seus
retratos em contemplação silenciosa. Uma mulher magra e mortal guardava
seus livros, ajudada por uma menina de dentes afiados e um homem bem-
vestido de cabelo loiro-platinado. Independentemente do que estavam
fazendo, todos na floresta esperavam, ansiosos, o gosto do outono, o cheiro
da mudança, as primeiras notícias de um rei e uma rainha diferentes de tudo
que o mundo já vira.
Não viveríamos felizes para sempre, porque não acredito nessas
besteiras, mas nós dois tínhamos aventuras longas e ousadas à nossa frente,
e muito a esperar, finalmente.
Agradecimentos

Eu não teria coragem de tentar ser publicada se minha família não


acreditasse em mim. Obrigada, mãe e pai, pelo encorajamento e apoio
inabaláveis. Vocês confiaram em mim quando tanto do mundo duvidou da
validade de meus sonhos — eu, inclusive — e eu não teria feito nada disso
sem vocês. Por sinal, eu amo vocês mais do que o infinito.
Sara Megibow, minha agente, é uma super-heroína. Não imagino o que
teria sido esta jornada sem ela, em grande parte porque não existiria.
Gratidão não basta — Sara, você merece um anel de oito mil dólares
incrustado com dezenas de ovinhos Fabergé, além de uma ilha particular.
Estou trabalhando para isso acontecer.
Minha editora, Karen Wojtyla, não só é ótima para trabalhar, como
entende minha escrita em um nível que constantemente me surpreende e
deleita. Karen, é um privilégio trabalhar com você, mesmo que tenha me
mandado tirar todos os bolsos dos vestidos Firth & Maester de Isobel (você
estava certíssima, como sempre). Obrigada por acreditar neste livro.
Também gostaria de agradecer todo mundo da Simon & Schuster, em
especial a Annie Nybo, Bridget Madsen, Sonia Chaghatzbanian, Elizabeth
Blake-Linn e Barbara Perris, por toda a ajuda e o trabalho.
Obrigada ao meu irmão, Jon Rogerson, e também a Kate Frasca, por
garantir que eu tivesse onde morar, me alimentar e comprar as calças de
moletom mais confortáveis do mundo.
Eu não seria quem sou sem minhas amigas Rachel Boughton e Jessica
Stoops. Vocês têm minha gratidão eterna por nunca estarem a mais de uma
mensagem de distância, por me conhecerem como ninguém e por
aguentarem uma escrita sinceramente questionável ao longo dos anos. Não
mereço vocês. Escrevam seus livros.
Kristi Rudie, obrigada por me arrastar para maratonas de televisão fora
de casa. Ajudou mais do que você é capaz de saber.
Obrigada à comunidade Swanky Seventeens, que me deu um apoio
imensurável na jornada até a publicação e me conectou com minhas amigas
Katherine Arden e Heather Fawcett. Vocês duas são fontes infinitas de
inspiração e encorajamento. Que muitas correntes de e-mail muito, muito
longas nos esperem.
Nicole Stamper, Liz Fiacco, Jessica Kernan, Jamie Brinkman, Katy
Kania, Desiree Wilson — obrigada por serem minhas parceiras de crime.
Jessica Cluess, pelo conselho, mesmo eu sendo uma fã delirante.
Allison, por chamar este livro de “úmido”. Você entende.
Finalmente, um enorme agradecimento a Charlie Bowater, que fez um
trabalho absolutamente incrível de dar vida à capa.
Sobre a autora

Margaret Rogerson é uma autora best-seller do The New York Times e


bacharel em antropologia cultural pela Universidade de Miami. Quando não
está lendo ou escrevendo, gosta de desenhar, jogar, fazer pudins e assistir a
mais documentários do que o socialmente aceitável (pelo menos segundo
algumas pessoas). Ela mora perto de Cincinnati, Ohio, ao lado de um jardim
cheio de beija-flores e rosas.
Este livro foi impresso pela Gráfica Paym
no papel Lux Cream 60g/m². As fontes
utilizadas são Mussica e Sabon LT Std.
São Paulo. Primavera de 2021.
eBook: Hyperion | Versão: 1.0.0
Tipologia: Adobe Garamond Pro e Berthold Garamond

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