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Sete
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Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Cólofon
Para minha mãe e meu pai, com amor.
Um
— Amanhã! Gadfly disse que seria amanhã! Você sabe como eles são com
relação ao tempo mortal. E se ele chegar de madrugada, exigindo que eu
trabalhe de camisola? Meu melhor vestido está rasgado, não dá para
consertar a tempo… Vou ter que usar o azul.
Enquanto eu falava, massageava óleo de linhaça nas mãos e as
esfregava violentamente com uma toalha. Em geral, não me preocupava
com limpar a tinta da minha pele, mas quase nunca trabalhava com a
realeza do povo das fadas, então não sabia que tipo de besteira trivial os
ofenderia.
— Além disso, meu amarelo de estanho está acabando, então vou
precisar ir à cidade hoje à noite… Merda. Que merda! Desculpe, Emma.
Levantei as saias, afastando-as da água que se espalhava pelo chão, e
me abaixei para pegar o balde derrubado.
— Pelo amor, Isobel, está tudo bem. March…
Minha tia abaixou os óculos, apertando os olhos.
— …não, May — continuou ela. — Você pode limpar essa bagunça
para sua irmã, por favor? O dia dela está sendo um daqueles.
— O que significa merda? — perguntou May, atenta, pulando aos meus
pés com um pano de chão.
— É a palavra para quando derrubamos um balde de água sem querer
— respondi, ciente de que ela acharia a verdade perigosamente inspiradora.
— Cadê a March?
May abriu um sorriso, mostrando os dentes que faltavam.
— Em cima do armário.
— March! Desça do armário!
— Ela está brincando lá em cima, Isobel — disse May, jogando água
por cima do meu sapato.
— Ela não vai poder brincar se estiver morta — retruquei.
Balindo de alegria, March pulou do alto do armário, derrubou uma
cadeira e saltitou pela sala. Veio na nossa direção e eu ergui as mãos para
afastá-la, mas não era comigo que ela queria se encontrar — era com May,
que se levantou a tempo para bater com a cabeça na da irmã, o que me
permitiu um respiro momentâneo enquanto cambaleavam, tontas por causa
da pancada. Suspirei. Eu e Emma estávamos tentando colocar um fim
naquela mania.
Minhas irmãs gêmeas não eram exatamente humanas. Tinham nascido
como uma dupla de cabras, até que uma fada bebeu vinho demais e as
enfeitiçou de brincadeira. O processo de adaptá-las era lento, mas me
lembrei de que ao menos era um processo. No ano anterior, elas nem
sabiam fazer xixi no lugar certo. E, a favor delas, ainda tinha o fato de que o
feitiço da transformação as deixara mais ou menos indestrutíveis: eu já vira
March sobreviver a comer um pote quebrado, sumagre-venenoso, beladona,
e várias salamandras infelizes, e não sentiu qualquer efeito nocivo. Pular de
armários talvez fosse mais arriscado para os móveis do que para March.
— Isobel, venha aqui um pouquinho — chamou minha tia,
interrompendo meus pensamentos.
Ela me encarou por cima dos óculos até que eu a obedecesse e, então,
pegou minhas mãos, limpando uma manchinha que eu não tinha notado.
— Vai dar tudo certo amanhã — disse ela com autoridade. — Tenho
certeza de que o príncipe do outono é igual a todas as outras fadas, mas,
mesmo se não for, lembre-se de que você está em segurança nesta casa.
Ela segurou minhas mãos e as apertou.
— Lembre-se do que ganhou para nós — insistiu.
Apertei as mãos dela de volta. Talvez eu estivesse merecendo essa
conversa de menininha. Tentei conter o tom queixoso da minha voz ao
responder:
— Você sabe que eu não gosto de não saber o que esperar.
— Pode até ser, mas você está mais preparada para esse tipo de coisa do
que todo o resto do reino. Nós sabemos disso e o povo das fadas também
sabe. Ontem no mercado, ouvi comentários de que, nesse ritmo, você pode
até ir parar no Poço Verde…
Puxei as mãos, chocada.
— Óbvio que não vai — corrigiu-se minha tia. — Sei que você não
escolheria isso. O que estou querendo dizer é que, se o povo das fadas
considera algum humano como indispensável, esse ser humano é você, e
isso tem muito valor. Vai dar tudo certo amanhã.
Suspirei profundamente e alisei minhas saias.
— Imagino que você esteja certa — respondi, secretamente duvidosa.
— Preciso partir agora se eu quiser voltar antes do escurecer. March e May,
não enlouqueçam Emma. Espero que esta cozinha esteja um brilho quando
eu voltar.
Olhei com ênfase para a cadeira derrubada conforme saía da cozinha.
— Pelo menos a gente não jogou merda pelo chão inteiro! — gritou
May.
····
Quando eu era criança, ir à cidade era uma aventura. Mas, hoje, só queria
que fosse rápido. Meu estômago se embrulhava mais e mais a cada pessoa
que via, pela janela, passar na rua.
— Só amarelo de estanho? — perguntou o moço atrás do balcão,
embrulhando cuidadosamente o giz num pedaço de papel.
Phineas só começara a trabalhar ali algumas semanas antes, mas já me
conhecia bem o suficiente para saber meus hábitos.
— Pensando bem, acrescenta um de verde-terra e dois de vermelhão.
Ah! E tudo que tiver de carvão, por favor.
Ao vê-lo separar meu pedido, senti o desespero do trabalho que me
aguardava à noite. Precisava moer e misturar os pigmentos, selecionar a
paleta e esticar a tela. A sessão de amanhã provavelmente se limitaria a
esboçar o príncipe, mas eu não aguentaria estar despreparada para outras
possibilidades.
Olhei de relance pela janela quando Phineas saiu de vista. Uma camada
de poeira cobria o vidro, e a localização da loja, numa esquina entre dois
prédios maiores, dava um ar sombrio, decadente e discreto. Nenhum feitiço,
nem mesmo dos mais simples, aumentava a claridade da luz, cantava
quando a porta era aberta ou mantinha os cantos da loja limpos. Era óbvio
que o povo das fadas nem olhava duas vezes para aquele lugar. Elas não
tinham interesse algum nos materiais usados para o Ofício, só queriam
saber do produto final.
Os estabelecimentos do outro lado da rua já eram outra história. As
saias de uma mulher sumiram pela porta da Firth & Maester, e eu soube,
por aquele relance, que era uma fada. Nenhuma mulher mortal poderia
pagar pelos vestidos de renda vendidos ali. E o mesmo pode ser dito sobre
compras feitas na Confeitaria ao lado, cuja placa anunciava flores de
maçapão, balas feitas de amêndoas importadas, as quais vinham do Mundo
Além sob enorme custo e perigo. Feitiços, e apenas feitiços, eram
pagamento digno do Ofício de tal calibre.
Quando Phineas se empertigou, seus olhos brilhavam de um modo que
reconheci muito bem. Não… “Reconheci” não era a palavra correta. Era um
brilho que eu temia. Ele afastou um cacho do rosto e meu coração afundou,
afundou e afundou mais um pouco. “Por favor”, pensei, “de novo, não”.
— Srta. Isobel, você se importaria de dar uma olhada em meu Ofício?
Sei que não chego aos seus pés — acrescentou correndo, esforçando-se para
manter a coragem —, mas o Mestre Hartford tem me encorajado, pois é
meu mentor, e há anos que venho praticando.
Phineas segurava uma pintura contra o peito, escondendo, receoso, a
parte da frente, como se temesse expor não a tela, mas a própria alma. Eu
conhecia muito bem o sentimento, o que não ajudava em nada no que viria
a seguir.
— Seria um prazer — respondi.
Pelo menos eu era experiente em sorrisos forçados.
Ele me entregou a tela e eu a virei, expondo uma paisagem à luz fraca
da loja. Fui inundada por alívio. Graças a deus, não era um retrato. Sei que
pareço muito arrogante, mas meu Ofício era visto com tanta estima que o
povo das fadas não contrataria mais ninguém até que eu estivesse morta e
enterrada… E até que eles reparassem que eu estava a sete palmos do chão,
o que poderia demorar mais algumas décadas. Eu temia por todo novo
retratista surgindo após minha fama. Talvez Phineas tivesse alguma chance.
— Está muito bom — falei com sinceridade, devolvendo a pintura. —
Você tem um excelente domínio de cor e composição. Continue treinando,
mas mesmo por enquanto… — hesitei. — Você pode conseguir vender seu
Ofício.
Phineas corou e pareceu crescer cinco centímetros bem na minha frente.
Meu alívio se esvaiu. Normalmente, o que vinha em seguida era a pior
parte. Eu me preparei para ouvir exatamente a pergunta que eu temia.
— Você… A senhorita acredita que poderia me indicar a algum de seus
clientes?
Voltei a olhar pela janela, onde a própria sra. Firth arrumava um vestido
na vitrine da Firth & Maester. Quando eu era mais nova, tinha certeza de
que ela era do povo das fadas. Afinal, tinha uma pele impecável, uma voz
mais melodiosa do que a de um canarinho e cachos castanhos e brilhantes
demais para serem naturais. Devia estar beirando os cinquenta anos, mas
mal parecia ter mais do que vinte. Só entendi meu erro muito depois,
quando aprendi a identificar encantos. Com o passar do tempo, me
desencantei com relação a encantos, que eram basicamente mentiras. Não
importava o quão eruditos eram enunciados, feitiços de todo tipo, tirando os
mais práticos e comuns, acabavam azedando. Aqueles cujas palavras não
eram pronunciadas de forma inteligente chegavam a arruinar vidas. Em
troca pela cintura de 55 centímetros, a sra. Firth não podia falar palavra
alguma que começasse com vogal. No outubro passado, o padeiro-chefe da
Confeitaria se atrapalhara e trocara três décadas de vida por olhos mais
azuis, deixando sua esposa viúva. Mesmo assim, com a visão do Poço
Verde flutuando ao fundo, a promessa do próprio paraíso, o fascínio pela
riqueza e pela beleza seduzia o reino Excêntrico.
Notando minha relutância, Phineas não demorou a acrescentar:
— Ninguém importante, é claro. Aquele Swallowtail parece ser um bom
tipo de fada. Eu às vezes o vejo na cidade, comprando Ofício na rua.
Sempre dizem que o povo da corte da primavera é mais bondoso ao fazer
negócios.
A verdade era que nenhuma fada era bondosa, não importava qual fosse
sua corte. Apenas fingiam ser. Só de pensar em Swallowtail próximo de
Phineas me deu ânsia de vômito. Ele não era a pior fada que eu conhecia,
nem de longe, mas brincaria com as palavras até convencer o coitado a
trocar o primogênito por menos espinhas.
— Phineas… você deve saber que, por conta do meu Ofício, passo mais
tempo na companhia do povo das fadas do que qualquer outro aqui no reino
Excêntrico.
Encontrei seu olhar do outro lado do balcão. Seu rosto murchou; sem
dúvida imaginava que eu fosse recusar, mas insisti, apesar daquela tristeza.
— Portanto, acredite em mim: se quiser negociar com eles, deve ser
cauteloso. Ser incapaz de mentir não faz deles seres honestos. Tentarão
enganá-lo o tempo todo. Se uma oferta parecer boa demais para ser
verdade, é porque é mesmo. Os termos do feitiço não podem deixar espaço
para trapaça. Espaço nenhum.
Ele ficou tão alegre que temi que meus esforços fossem em vão.
— Quer dizer que vai me recomendar?
— Talvez, mas não para Swallowtail. Não faça negócios com ele até ter
dominado as artimanhas do povo das fadas.
Mordendo minha bochecha, vi de esguelha um homem sair da Firth &
Maester: Gadfly. Óbvio que iria àquela loja para encomendar o bordado.
Apesar de eu estar quase invisível dentro da loja escura do outro lado da
rua, ele olhou precisamente na minha direção, então sorriu e acenou. Todos
na rua se viraram, inclusive o grupinho de moças que o aguardava lá fora,
ansiosos para descobrir quem tinha tamanha importância para merecer sua
atenção.
— Ele vai servir — declarei.
Deixei as moedas no balcão e pendurei a bolsa no ombro, evitando o
nível de euforia que surgia no rosto de Phineas.
— Gadfly é meu cliente mais estimado — continuei — e gosta de ser o
primeiro a descobrir novos Ofícios. Ele é sua melhor aposta.
Referia-me a mais de um sentido. A opção mais segura para Phineas era
Gadfly. Se eu não tivesse começado a trabalhar com ele quando ainda tinha
doze anos, mesmo com a ajuda de Emma, provavelmente não teria chegado
viva aos dezessete. E, mesmo assim, ainda não conseguia me livrar da
sensação de estar, com aquele favor, dando a Phineas uma faca de dois
gumes, cumprindo um desejo profundo que no final ou o destruiria ou o
decepcionaria. A culpa me empurrou até a porta sem nem me despedir, mas
fiquei paralisada ao tocar a maçaneta.
Uma pintura pendia da parede de entrada. Desbotada pelo tempo,
representava um homem sobre uma colina, cercado por árvores de cores
estranhas. Seu rosto estava escondido nas sombras, mas bradava uma
espada que brilhava intensamente, mesmo sob a luz cinzenta. Cães pálidos
subiam a colina em sua direção, suspensos no ar em meio ao salto. Senti um
calafrio. Conhecia aquela silhueta. Ele fora bastante retratado em pinturas
de mais de trezentos anos atrás, quando parara de visitar o reino Excêntrico
sem dar explicação alguma. Em todos os trabalhos remanescentes, ele
sempre estava à distância, sempre lutando contra a Caça Bravia.
Amanhã, ele estaria no meu estúdio.
Empurrando a porta, cumprimentei Gadfly com uma reverência, abaixei
a cabeça e corri em meio à horda de curiosos. Exclamações me seguiram.
Alguém chamou meu nome, talvez esperando pelo mesmo favor que
Phineas pedira. Desde que Emma tocara no assunto, eu via a verdade
estampada no rosto de todo mundo. Estavam atentos, esperando que
aceitasse o convite em resposta ao qual eu preferia morrer a considerar por
meio segundo. Nunca seria capaz de explicar a eles que, para mim, o Poço
Verde não era o paraíso, era o inferno.
····
O sol já se punha quando voltei para casa. Na trilha pelo campo de trigo,
meus passos seguiam o zumbido rítmico dos gafanhotos, e o calor estival,
intensificado pelo ângulo da luz, deixava minha nuca grudenta de suor, que
resfriava sempre que a brisa afastava meu cabelo. Os telhados tortos e
coloridos da cidade ficaram para trás até sumirem de vista, a trilha estreita
de volta para casa era escondida pelas colinas, dividida como a repartição
do cabelo de uma mulher. Se eu andasse rápido, chegaria em exatamente 32
minutos.
Era sempre verão no reino Excêntrico. Aqui as estações não mudavam
de acordo com a passagem do tempo, como acontecia no Mundo Além —
um conceito que eu mal era capaz de imaginar. Enquanto caminhava pelo
caminho imutável, as árvores estranhamente coloridas da pintura me
assombraram, como um sonho recente. Pelo que diziam, o outono era uma
época sombria em que o mundo secava, os pássaros desapareciam e as
folhas caíam dos galhos, desbotadas, como se estivessem mortas.
Certamente o que tínhamos era melhor. Mais seguro. Céus de um azul sem
fim e trigo perpetuamente dourado podiam perder a graça, mas disse a mim
mesma, e não pela primeira vez, que era besteira desejar outra coisa. Havia
dores muito piores do que o tédio — e aconteciam todas no Mundo Além.
Um cheiro podre me arrancou dos pensamentos frustrados. Aquela parte
da trilha se aproximava da beira da floresta, então, preocupada, olhei para
as sombras. Arbustos densos de espinhos e madressilvas floresciam como
uma barreira sob os galhos. Muito antigamente, na época menos amistosa
antes da proibição do ferro, fazendeiros arriscavam a vida para enfiar
pregos nas árvores mais fronteiriças, afastando maldade feérica. Ver os
pregos velhos, dobrados, torcidos e enferrujados, quase irreconhecíveis,
sempre me causava um calafrio desconfortável.
Voltando a olhar para os arbustos, não vi nada de estranho.
Provavelmente estava sendo paranoica, certeza de que se tratava de algum
esquilo morto, apodrecendo no mato. Tranquilizada, mas de forma
relutante, abri a bolsa pela quarta ou quinta vez para verificar se não tinha
esquecido nada na loja — uma mania estranha que eu tinha, já que nunca
cometia esse tipo de erro. Quando olhei para a frente de novo, alguma coisa
estava errada. Uma criatura se encontrava no ponto alto da colina à frente,
ao lado do carvalho solitário que marcava a metade do meu caminho para
casa.
Minha primeira impressão me dizia ser um veado. Seria um
tremendamente enorme, mas a forma era mais ou menos similar: quatro
patas, dois chifres. Até que a criatura se virou para me olhar e,
imediatamente, entendi que estava errada.
A estranheza logo se espalhou. A brisa desapareceu, deixando o ar
parado e quente, sufocante. Os pássaros pararam de cantar, os gafanhotos
pararam de zumbir, e até o trigo murchou no ar estagnado. O forte cheiro
podre me tomou inteiramente. Caí de joelhos, mas era tarde demais.
A criatura que não era um veado estava me encarando.
Apesar do calor, um calafrio febril percorreu minha pele, embolando
meu estômago. Eu sabia o que era essa tal criatura. Também sabia que não
sairia viva dessa. Ninguém podia correr ou se esconder de uma fera fada.
Aquela criatura nascera de um monte tumular, a união grotesca da magia
feérica e de restos humanos antigos. Algumas agiam como servos e guardas
aos mestres. Outras surgiam da terra sem precisar de um chamado. Um
monstro desse tipo matou meus pais quando eu era uma menininha, o fizera
com tanta violência que Emma não me deixara ver os corpos, e eu estava
prestes a morrer do mesmo modo. Acho que minha cabeça não era capaz de
processar as coisas direito, porque meu próximo pensamento foi que eu não
devia ter desperdiçado tanto dinheiro em pigmentos; afinal, nunca mais os
usaria.
A fera fada abaixou a cabeça e urrou pelo campo, um som profundo,
vibrante e pútrido, como se alguém tivesse soprado um berrante antigo, que
um dia fora espetacular, mas que agora estava cheio de musgo podre.
Sacudiu o corpo pesado, começando pelos chifres, e disparou colina abaixo.
Coloquei-me de pé num só pulo e corri. Não na direção de casa, que
estava a menos de um quilômetro dali, mas no sentido oposto, mais longe,
adentrando o campo. Se pudesse fazer alguma coisa de útil nos meus
últimos momentos de vida, seria tentar afastar aquele troço da minha
família.
O trigo cedeu ao redor das minhas saias levantadas. Caules quebravam
sob minhas botas e as espigas ásperas arranhavam meus braços nus. A bolsa
quicava contra minhas coxas, pesada, diminuindo minha velocidade.
Gafanhotos saltitavam para fora do caminho como se arremessados por uma
mão invisível. A princípio, só ouvi minha respiração, que estava ofegante.
Nada parecia ser verdade. Poderia estar correndo pelo campo só por
diversão, em um lindo dia sob um céu azul impecável.
Até que sombras geladas tocaram minhas costas suadas e a escuridão
me envolveu. O trigo se sacudiu como ondas num oceano tempestuoso. Um
casco bateu ao meu lado, afundando inteiramente na terra. Joguei-me para
trás, tropecei e caí, me embolando nas plantas. A fera fada se ergueu acima
de mim.
A máscara de veado orgulhoso estremeceu sobre o monstro como o
reflexo do sol na água. Nos espaços escuros entre as ilusões, via-se uma
forma esquelética de casca decomposta, amarrada por cipós que se moviam
como tendões, um rosto de caveira, chifres que não eram bem chifres, mas
sim galhos retorcidos e bem amarrados por plantas espinhentas, do
comprimento de uma pessoa. A fera fada exalava doença; quando bufou e
ergueu uma pata trêmula, pedaços de casca se soltaram, rolando pelo chão.
Dali, besouros brilhantes saíram aos montes, cobrindo minhas meias
conforme fugiam para todos os lados. Engasguei com o gosto de podridão
que se instalou no fundo da minha garganta.
A fera fada se ergueu nas patas traseiras, bloqueando o sol. Achei que a
última coisa que veria antes de morrer seria a constelação de vermes saindo
e entrando daquela barriga. Portanto, não soube como reagir quando o
monstro simplesmente desabou na minha frente, uma pilha mole e
desconexa de madeira apodrecida. Centopeias maiores que minhas mãos
rolaram pela grama. Duas mariposas gigantes saíram voando. Os
gafanhotos voltaram a zumbir imediatamente, como se nada tivesse
acontecido, mas eu continuei no chão, tremendo e encharcada de suor,
sentindo o coração sair pelos ouvidos. Com um grito de repulsa, chutei os
escombros. Fragmentos de osso se espalharam em meio à casca de árvore.
O cadáver humano que lhe dava vida havia sido destruído.
— Faz dois dias que estou seguindo essa fera, mas talvez não a
alcançasse se você não tivesse chamado sua atenção — disse uma voz
animada e calorosa. — Chama-se baronete, caso lhe interesse.
Desviei o olhar dos restos da fera fada. Um homem estava agora à
minha frente, mas na contraluz eu não conseguia distinguir suas feições, só
que era alto e magro e que embainhava uma espada.
— Chamado sua… — parei, chocada e um tanto ofendida.
Ele falava como se fosse puro lazer, como se minha vida não tivesse a
menor importância; o que, obviamente, me dizia tudo de que precisava
saber. Aquele ser parecia um homem, mas não era humano.
— Obrigada — corrigi-me, engolindo minha indignação. — O senhor
salvou minha vida.
— Salvei? Do baronete? Imagino que sim. Neste caso, o prazer foi
meu… Ah. Não sei seu nome.
Uma sensação desconfortável me chacoalhou como um trovão de
madrugada. Ele não me reconhecia, o que significava que não visitava o
reino Excêntrico com frequência, quiçá nunca. Seja lá quem fosse, seria
mais perigoso do que o povo das fadas com o qual normalmente lidava.
Além disso, como todos de sua espécie, não resistia a pedir meu verdadeiro
nome. Aguardei um instante, avaliando minha mente e meus sentidos, e
concluí, aliviada, que ele não me enfeitiçara com malícia, para que eu
falasse mais abertamente ou revelasse segredos que não queria. No reino
Excêntrico, ninguém usava o nome que lhe fora designado ao nascer. Fazer
isso seria se expor a sortilégio, por meio do qual uma fada poderia controlar
um mortal, de corpo e alma, para sempre, sem que a vítima nem soubesse
— simplesmente pelo poder daquela única palavra secreta. Era a forma
mais perversa da magia feérica, a mais temida.
— Isobel — respondi, me levantando com dificuldade para
cumprimentá-lo com uma reverência.
Se ele notou que usei um nome falso, não deixou transparecer. Passou
por cima da pilha de escombros com um passo longo e curvou-se em
profunda reverência. Então tomou minha mão nas suas, a ergueu e a beijou.
Contive uma careta. Se fosse para me tocar, preferia que tivesse me ajudado
a levantar.
— O prazer foi todo meu, Isobel.
Os lábios dele eram frios contra meus dedos. Com a cabeça abaixada,
eu só via seu cabelo desgrenhado — ondulado, sem chegar a formar cachos,
e escuro, com o mais leve toque avermelhado sob o sol. O total desarranjo
me fez lembrar de penas de falcão ou corvo, bagunçadas pelo vento forte.
Assim como Gadfly, o cheiro dele também era marcante: uma mistura de
folhas secas, noites frescas sob a lua iluminada, ferocidade, desejo. Meu
coração batia forte, aterrorizado tanto pela fera fada quanto pelo encontro
igualmente perigoso com uma fada no campo. Portanto, minha tolice terá
que ser perdoada por dizer que, de repente, queria aquele perfume como
nunca quisera nada antes. Queria com uma sede desesperada. Não queria
ele, exatamente, mas a mudança radical e misteriosa que aquilo
representava — a promessa de que, fora daqui, o mundo era diferente.
Ora, isso não daria em nada. Minha irritação voltou como se hasteasse
uma bandeira num mastro.
— Nunca um beijo na mão durou tanto tempo, senhor.
Ele se endireitou.
— Para o povo das fadas, a passagem do tempo não é algo com que nos
preocupamos — respondeu ele, com um meio-sorriso.
Parecia-me ter um ou dois anos a mais do que eu, mas, claro, sua idade
verdadeira podia ser mais de cem vezes aquilo. Ele tinha feições finas e
aristocráticas, em conflito com o cabelo desgrenhado, e uma boca
expressiva que eu imediatamente quis pintar. As sombras no canto, a dobra
leve de um dos lados, onde o sorriso se desequilibrava…
— Eu disse — repetiu ele — que a passagem do tempo não é algo com
que o povo das fadas se preocupe.
Ergui meu olhar e vi que ele me encarava, em fascínio perplexo, seu
sorriso ainda congelado no rosto. Ali estava a falha: a cor dos olhos, um
tom peculiar de ametista, contrastando com a pele marrom cujo tom
acobreado me fazia pensar no sol do entardecer iluminando folhas caídas.
Aqueles olhos me incomodaram de imediato, por um motivo além da cor
inusitada, mas, por mais que tentasse, não era capaz de identificá-lo.
— Perdoe-me. Eu sou retratista e tenho a mania de olhar para as pessoas
e me esquecer de todo o resto. Ouvi o que o senhor disse, só não tenho uma
resposta.
A fada olhou de relance para minha bolsa. Quando voltou a atenção
para mim, seu sorriso não estava mais lá.
— Claro. Imagino que, em geral, nossas vidas estejam além da
compreensão humana.
— Você sabe por que o baronete saiu da floresta e entrou no reino
Excêntrico, senhor? — perguntei, porque tive a sensação de que ele
esperava algum tipo de validação por todo o seu mistério, mas eu queria
que a conversa fosse curta e prática.
Feras fadas eram raras por aqui e sua presença era extremamente
preocupante.
— Isso eu não saberia dizer. Talvez a Caça Bravia o tenha trazido, ou
talvez só quisesse passear. Eles têm surgido com mais frequência
ultimamente e andam causando uma tremenda bagunça.
Para uma fada, “ultimamente” podia significar qualquer coisa, incluindo
a morte dos meus pais.
— É mesmo, humanos mortos costumam ser uma bagunça.
Ele arqueou as sobrancelhas milimetricamente, franzindo-as no meio, e
seu olhar se aguçou, atento. Sabia que tinha me incomodado de alguma
forma, mas, como era costumeiro entre seu povo, não compreendia o
porquê. Sua capacidade de compreender a dor de uma morte humana era tão
existente quanto à de uma raposa de sentir a dor de matar uma presa.
Eu só tinha uma certeza: não queria prolongar tempo suficiente para que
ele decidisse que a confusão o ofendia e que sua causadora merecia uma
vingança na forma de um feitiço cruel.
Abaixei a cabeça e fiz outra reverência.
— O povo de Excêntrico é grato por sua proteção. Nunca esquecerei o
que fez por mim hoje. Tenha um bom dia, senhor.
Esperei até que ele retribuísse a reverência e dei meia-volta.
— Espere — chamou ele.
Congelei.
Atrás de mim, ouvi o trigo se mexer.
— Falei alguma coisa errada. Peço que me perdoe.
Lentamente, olhei por cima do ombro e o encontrei retribuindo o olhar,
estranhamente inseguro. Eu não fazia ideia de como reagir. Era de
conhecimento popular que o povo das fadas às vezes se desculpava — pois
dava enorme valor aos bons modos —, mas em geral fadas seguiam um
código injusto, esperando que fossem os humanos os educados e fazendo
tudo que podiam para se esquivar de ter que reconhecer seus próprios
comportamentos inadequados. Eu estava chocada.
Por isso, respondi a única coisa que me veio à cabeça:
— Está perdoado.
— Ah, que bom.
O meio-sorriso dele ressurgiu e, no mesmo instante, ele passou de
insegurança a extrema satisfação consigo mesmo.
— Então nos vemos amanhã, Isobel.
Eu já havia começado a andar quando finalmente entendi o que ele
dissera e o que aquilo significava. Dei meia-volta de novo, mas a fada, que
não poderia ser ninguém mais ninguém menos do que o príncipe do outono,
já não estava mais ali: trigo balançava ao redor da trilha vazia e o único
sinal de vida no campo inteiro era um corvo voando em direção à floresta,
as penas brilhando avermelhadas sob a luz do sol poente.
Três
Eu ainda não fazia ideia de quando o príncipe chegaria e, como minha tia
estava na cidade a trabalho, a responsabilidade de livrar nossa cozinha de
crianças-bode era toda minha. Era mais difícil do que parecia.
— Ele disse que a gente tem nome esquisito! — gritou May, enquanto
March chorava, quieta, perto do fogão.
Nunca antes eu odiara tanto o filho do padeiro, apesar de, na verdade,
ele ser bastante bonzinho e não estar tão errado.
Eu me agachei e as segurei pelo ombro.
— Ora, quando a tia Emma e eu escolhemos os nomes, vocês eram
bodes — expliquei com calma. — Vocês já estavam acostumadas com os
nomes March e May, e nós não sabíamos se o feitiço ia durar, então
achamos melhor deixar assim mesmo.
March soluçou, chorosa. Eu precisava mudar de estratégia.
— Prestem atenção, tenho uma pergunta importante. Quais são as coisas
preferidas de vocês?
— Assustar as pessoas — disse May, depois de pensar por um instante.
March abriu a boca e apontou para dentro.
Por deus.
— São coisas esquisitas, não são?
May me olhou, desconfiada.
— Talvez…
— São esquisitas, sim, com certeza — falei, firme. — Então ser
esquisito não é tão ruim assim, né? É algo bom, como pregar sustos nas
pessoas e comer salamandras. Então, o que Harold fez foi elogiar vocês.
— Hmmm — disse May.
Ela não parecia convencida, mas pelo menos March parara de chorar.
Portanto, em nome de minha sanidade, declarei como uma vitória parcial.
— Agora, vamos lá. Vocês duas precisam brincar lá fora até nosso
convidado ir embora. Lembrem-se, não entrem no trigal.
Quando as empurrei porta afora, um desconforto deslizou no fundo do
meu peito. Se outra fera fada saísse da floresta…
Acontecimentos como o de ontem eram raríssimos, e eu não podia me
esquecer da facilidade com que o príncipe acabara com o monstro.
Certamente estávamos seguras, visto que ele estaria ali. No entanto, pensar
nisso não fez com que o desconforto passasse.
— Se os gafanhotos pararem de cantar, voltem para casa correndo —
acrescentei.
May ergueu o olhar, as sobrancelhas franzidas em desconfiança.
— Por quê?
— Porque eu mandei.
— E por que a gente não pode brincar em casa?
Eu as empurrei para fora, deixando a porta capenga da cozinha bater
atrás de nós. Aliviada, reparei que tudo lá fora parecia perfeitamente
normal. As galinhas ciscavam sozinhas por todo o quintal, as árvores
farfalhavam na brisa agitada e sombras corriam sobre as colinas. Mas
mesmo assim May continuava a me olhar. Notei que eu ainda estava tensa,
o estômago apertado como um punho, e minha expressão devia deixar
transparecer.
— Vocês sabem muito bem o motivo — respondi, ríspida, esmagando
minha culpa.
Sinceramente, eram vários os motivos. May já derrubara meus cavaletes
mais de uma vez. March tinha um apetite insaciável por azul-prussiano. O
motivo principal, entretanto, era que as fadas não gostavam da presença
delas. Minha teoria era a de que as gêmeas as constrangiam, por serem
prova visível de um erro, e uma prova acidentalmente poderosa. Eu sabia
que eram imunes a sortilégio: pois March e May eram seus nomes de
verdade. Se o povo das fadas pudesse usar esse conhecimento contra elas, já
o teria feito.
March baliu, alegre, e saiu correndo para brincar com a lenha, mas May
não desviou o olhar.
— Não se preocupe, não vamos nos machucar — disse ela, finalmente,
com seriedade.
May deu um tapinha no meu joelho antes de sair correndo atrás da irmã.
Meus olhos ardiam. Agitada, alisei minha saia e arrumei uns fios de
cabelo atrás da orelha. Não queria que elas vissem como eu estava abalada,
nem ao menos admitia aquilo para mim mesma. Quando me concentrava
em manter tudo em ordem, não precisava pensar no que acontecera com
meus pais, nem no porquê daquilo ainda me causar tanto pânico mesmo
tento acontecido doze anos antes; eu nem estivera presente, não havia visto
nem ouvido nada. Ainda assim, estava estampado em minha cara que eu
não escondia o medo tão bem. Até May era capaz de notar.
Um corvo crocitou, rouco, na árvore cuja sombra cobria o quintal.
— Chispa! — falei, sem nem olhar.
Corvos afastavam os passarinhos canoros que faziam ninho em nossos
arbustos, então, como retribuição, eu e Emma nos esforçávamos para
mantê-los longe dali.
Meu desconforto diminuiu sob o sol morno e ao ver March e May
escalarem a pilha de lenha. De longe, só era possível distingui-las pelas
manchas brancas na pele rosada; a mancha de May cobria o lado esquerdo
do rosto e parte do nariz. O cabelo cacheado e preto das duas era idêntico,
assim como o espaço entre os dentes da frente e as sobrancelhas
perigosamente diabólicas. Pareciam cupidos que tinham decidido preferir
atirar flechas de verdade. Eram horríveis. Eu as amava muitíssimo.
No entanto, não tinha como esquecer que o príncipe estava a caminho,
então a apreensão voltou em ondas incessantes às margens escuras do meu
inconsciente.
O corvo crocitou de novo.
Desta vez, eu olhei. O corvo virou a cabeça de um lado para o outro,
atento à minha expressão. Agitou as penas e pulou de galho em galho.
Quando chegou ao canto iluminado, eu não conseguia respirar. As penas
tinham um brilho avermelhado e me parecia que seus olhos eram de cores
inusitadas.
Curvei-me em uma reverência ágil e corri para dentro, dividida entre a
esperança de que o corvo não fosse o príncipe e a conclusão de que, se
fosse o caso, eu tinha acabado de cumprimentar e fugir de um pássaro. A
porta da cozinha, com suas dobradiças frouxas, bateu, bateu e bateu atrás de
mim.
Uma quarta batida soou, mas não vinha da dobradiça. Era um punho
batendo na madeira.
— Pode entrar! — respondi.
Olhei ao redor, e no mesmo instante me arrependi.
Sem pensar, peguei uma panela ao acaso e a enfiei na pia. Nem sabia se
estava suja, mas foi tudo que tive tempo de fazer antes de a porta abrir de
novo e o príncipe do outono entrar. Como a porta era feita para humanos de
tamanho normal, ele precisou abaixar a cabeça para passar.
— Boa tarde, Isobel — cumprimentou ele com uma reverência educada.
Eu nunca recebera uma visita das fadas na cozinha de casa. Era um
cômodo pequeno com paredes de pedra áspera, um chão de madeira tão
velho e gasto que cedia no meio e uma janela alta que deixava entrar um
pouco de claridade, o suficiente para destacar especialmente a pilha de
pratos sujos ao lado do armário e o triste montinho de turfa ainda ardente
em nossa lareira, que só chegava à altura do meu peito.
O príncipe, por outro lado, parecia ter acabado de sair de uma
carruagem dourada, puxada por meia dúzia de alazões brancos. Eu não me
lembrava muito bem do que ele vestira no dia anterior, mas lembraria se
fosse semelhante à roupa de hoje. O casaco de seda escura, justo ao corpo,
quase tocava o chão atrás das botas, como se fosse uma capa, e era forrado
de veludo da cor do cobre. Ao redor da cabeça, usava um círculo de cobre,
combinando, e, apesar de o cabelo rebelde parecer ter vida própria,
escondendo uma boa parte da joia, notei que era moldado como folhas
entrelaçadas e decorado com azinhavre. Prendendo a gola de sua camisa,
havia um broche na forma de corvo, sem dúvida uma relíquia de outras
eras. Na cintura, a espada do dia anterior continuava pendurada.
Ali estava ele, a meros centímetros da casca mofada de cebola que eu
não varrera de manhã.
Eu já violara as regras de etiqueta. O que diria em seguida precisava ser
educado e bem pensado. Em vez disso, soltei:
— O que acontece se vocês não puderem retribuir a reverência?
Para se distrair enquanto eu me arrumava, o príncipe encarava uma
concha com extrema atenção. Quando falei, ele voltou a me olhar. Seus
olhos confusos de ametista pareciam dizer: “Quem é você?”
— Não sei se entendi.
O chão gasto quebraria um dia. Talvez ele me fizesse o favor de quebrar
agora, para que eu pudesse desaparecer.
— No caso de alguém cumprimentar vocês com uma reverência, mas
vocês não puderem retribuir imediatamente — expliquei.
A expressão dele demonstrou entendimento, e o meio-sorriso já
conhecido ressurgiu. Ele se aproximou de mim e encontrou meu olhar,
como se me confiasse um grande segredo. Talvez fosse mesmo o caso.
— É tremendamente desconfortável — falou ele em tom de voz baixo.
— Temos que procurar quem nos cumprimentou até encontrá-lo e não
conseguimos pensar em mais nada até isso acontecer.
Ah.
— Acho que foi o que eu acabei de fazer. Me desculpe.
Ele se endireitou, imediatamente parecendo se esquecer de que eu
estava ali.
— Encontrá-la foi um prazer — falou ele em tom simpático, mas
distante, e pegou um espeto para carne. — Isso é uma arma?
Eu peguei o espeto da mão dele, com cuidado, e o abaixei.
— Não foi projetado para isso, não.
— Entendo — disse ele e, antes que eu pudesse impedi-lo, atravessou a
cozinha em três passos largos para inspecionar uma frigideira pendurada
num prego na parede. — Isso certamente é uma arma.
— Não é…
Eu nunca tivera tanta dificuldade para me expressar na presença de um
membro do povo das fadas como agora.
— Bem… — continuei. — Pode ser utilizada como arma, certamente,
mas é feita para cozinhar.
Ele se voltou na minha direção.
— Ofício para fazer comida — expliquei, porque as sobrancelhas do
príncipe estavam franzidas em uma expressão de consternação educada à
beira do pavor.
— Sim, eu sei o que é cozinhar — respondeu ele. — Fiquei
simplesmente chocado por tantas ferramentas do Ofício de cozinhar terem
também a função de armamento. Tem alguma coisa que vocês, humanos,
não usem para matar um ao outro?
— Provavelmente não — admiti.
— Que peculiar.
Ele parou de andar e contemplou o teto. Preocupada com o que ele
escolheria para comentar em seguida, pigarreei e fiz uma reverência.
Franzindo a testa, ele se voltou para mim e retribuiu.
— Normalmente, recebo clientes no estúdio, fica por ali — indiquei. —
Podemos começar? Não quero ocupá-lo mais do que o necessário.
— Sim, claro — respondeu.
No entanto, conforme andamos pelo corredor, ele continuou a olhar para
cima, até parar de repente para tocar a parede de gesso branco. Eu parei
também e o esperei, um sorriso tenso no rosto, que era meu método para
conter um grito de exasperação.
— Há um feitiço muito forte nesta casa, e também muito curioso —
comentou, finalmente.
— Sim — respondi e voltei a andar, aliviada ao ouvir o farfalhar do
casaco quando ele me seguiu. — Foi o primeiro pagamento que busquei
quando comecei a pintar retratos… Levei um ano para recebê-lo. Nenhum
membro do povo das fadas…
— Pode ferir um morador entre as paredes desta casa enquanto você
estiver viva — completou ele, murmurando. — Impressionante. Foi
Gadfly?
Assenti, resistindo à tentação de olhar por cima do ombro. Quando o
cheiro marcante do estúdio me atingiu, adotei um tom mais formal, por
costume.
— Há anos ele é um cliente muito estimado. Posso perguntar por que o
senhor acha curioso?
— Nunca vi um feitiço assim. Nem esperaria que um do tipo viesse de
Gadfly.
Com isso, foi minha vez de quase parar de repente. Com muito esforço,
me mantive em movimento, entrei no estúdio e, de forma mecânica,
comecei a arrumar o carvão que precisaria para fazer o esboço. Será que o
feitiço dera errado? Será que eu dissera alguma coisa errada para Gadfly
anos antes, deixara uma brecha acidental no nosso acordo? A possibilidade
era tão aterrorizante que minhas mãos e meus pés começaram a ficar
dormentes.
— Como príncipe, eu posso destruir quase qualquer feitiço, caso eu
queira — continuou ele, ainda olhando ao redor, para algo que eu não podia
ver. — Mas fui sincero quando disse que este feitiço é forte. Vai muito além
do meu próprio poder. Gadfly deve ter usado uma boa quantidade de
energia para um trabalho como esse, o que é muito incomum, já que nunca
nem o vi levantar de uma cadeira se não fosse realmente necessário. Ele
deve apreciar enormemente o seu Ofício. Começo a entender por que foi tão
persistente ao recomendar que eu fizesse um retrato.
Respirei fundo, me acalmando.
Uma coisa que o príncipe dissera me causou estranhamento — Gadfly
me passara a impressão de que não tivera nada a ver com aquele trabalho
—, mas eu estava tão aliviada que esqueci quase imediatamente.
— Eu não fazia ideia — respondi. — O senhor é o primeiro a dizer
isso… Ninguém nunca nem mencionou.
O príncipe continuou a perambular, a manga de seu casaco roçando em
meu braço. O estúdio parecia interessá-lo muito. Era o maior cômodo da
casa, e também o mais entulhado, apesar de nos esforçarmos muito para
mantê-lo organizado. Naquele momento, o único móvel livre era o sofá
próximo à janela. No canto à minha esquerda, uma mesinha envernizada era
ocupada por um vaso de cristal que continha duas penas de pavão, um
conjunto de louça importada, uma pilha de livros encadernados em couro e
uma gaiola vazia. As cadeiras estofadas logo ao lado estavam com um
amontoado de cortinas, tapetes e panos de todas as cores e estampas
imagináveis. O resto do cômodo seguia a mesma tendência, cada cantinho
contendo uma coleção de curiosidades, como se o estúdio fosse um museu
eclético em miniatura do Ofício humano. Minha cadeira e meu cavalete
eram discretamente posicionados bem ao centro do cômodo.
O príncipe estava perdido demais em distração para responder, portanto
continuei:
— Quando trabalhamos com humanos, nós, retratistas, costumamos
viajar para a casa dos clientes e pintá-los lá. Já que o mesmo, é claro, não
pode ser feito com o povo das fadas, aqui, neste cômodo, escolhemos
móveis e decorações e os arrumamos de acordo com sua preferência.
— Isso nos limita — murmurou o príncipe, tocando a gaiola com
delicadeza.
Ele passou os dedos pelas barras finas de metal. Lembrei-me do corvo
lá fora e desejei ter pensado em levar a gaiola para outro cômodo, mesmo
me perguntando do que exatamente ele estava falando. Nunca vira uma fada
sentir qualquer coisa além de prazer ao se cercar de decorações
espalhafatosas.
Afastando a mão, deu meia-volta. O ar pensativo se transformou em um
sorriso como a névoa da alvorada se dissolvendo sob o sol.
— O feitiço de Gadfly, quero dizer. É por isso que ninguém nunca
comentou nada. É como se estivéssemos algemados, nossos punhos
levemente presos por fios como os de teia de aranha, mas tão fortes como
aço. Nenhuma fada gosta de falar da própria fraqueza.
— O senhor é exceção?
— Ah, não, de forma alguma. Eu também não gosto.
Ele sorriu com mais vigor e uma covinha torta apareceu no canto da
boca.
— Só pouco me importo com discrição, como você já deve ter notado
— completou.
De fato, eu notara. Ele era diferente de todos que eu conhecera do povo
das fadas.
— Por ser príncipe, devo me dirigir ao senhor usando alguma forma de
tratamento especial? — perguntei, atravessando a sala para mexer nos
tecidos, em busca de um fundo que combinasse com a roupa.
— Não seguimos tais formalidades — disse ele, me olhando de relance.
— Achei que você já soubesse.
“Como?”, me perguntei. Não era como se eu convidasse membros da
realeza feérica para jantar.
— De qualquer forma, meu nome é Rook.
Não contive um sorriso. O nome significava “gralha”.
— Combina com o senhor.
Ele moveu o olhar, atento ao meu rosto, e me pareceu que seu sorriso se
tornou ainda mais familiar, íntimo de uma forma que eu não sabia ser
possível entre as fadas. Ao lado dele, notei que o topo da minha cabeça
batia na altura do seu peito. Senti-me corar.
Minha nossa! Eu precisava me concentrar no trabalho.
— Acho que este tecido combina com o senhor — falei, erguendo a
seda cor de ferrugem, bordada com detalhes em cobre.
Ele olhou para o tecido, quase impaciente. Eu sempre achava esta parte
interessante. Era difícil aprender qualquer coisa sobre o povo das fadas, mas
às vezes as escolhas estéticas serviam como janelas para a alma (se é que
fadas tinham alma — era um assunto controverso na igreja). Gadfly gostava
de entulhar os retratos de cacarecos com aparência luxuosa. Outro dos meus
clientes, Swallowtail, preferia objetos funcionais e desgastados: velas
derretidas e livros com lombadas gastas e cantos dobrados.
Rook sacudiu a cabeça, recusando a seda, e se curvou para inspecionar
uma fileira de vasos de vidro soprado. Examinou estatuetas e espelhos,
cestas repletas de frutas feitas de cera, vidrarias usadas em experimentos
químicos, penas e tinteiros, ficando estranhamente recluso em seu silêncio e
em sua concentração intrigantes. Eu nem sabia por onde começar a
imaginar no que ele estava pensando. Finalmente, voltou à gaiola e ergueu o
rosto, notando que eu o observava. E, então, trouxe de volta seu sorriso
volátil.
— Decidi que não quero nada em meu retrato — declarou, voltando ao
sofá.
Sentou-se, esticando um braço nas costas do sofá, e seu olhar astuto me
disse que ele sabia exatamente por que eu o observava.
— Se precisar encarar alguma coisa por horas a fio — continuou —,
prefiro que seja só eu.
Esforcei-me para manter minha expressão séria.
— Que generoso, senhor. Levarei muito menos tempo para concluir o
retrato se o senhor for o único elemento da pintura.
Ele se empertigou e franziu a testa, um traço de petulância tornando as
feições aristocráticas mais sombrias.
O que eu estava fazendo? Era fácil — tão fácil — o ressentimento de
uma fada se transformar numa fúria perigosa. Isso não era do meu feitio.
Tantos anos de cuidado e, em questão de minutos, eu começara a me
atrapalhar. Engolindo minhas palavras, me dirigi à cadeira, arrumei minhas
saias e escolhi meu bastão de carvão. E, então, afastei todos os outros
pensamentos.
É difícil explicar o que acontece quando pego um bastão de carvão ou
pincel. Posso afirmar que o mundo muda. Quando não estou trabalhando,
vejo as coisas de um jeito; porém, quando estou, vejo as mesmas coisas de
maneira inteiramente diferente. Rostos deixam de ser rostos, se
transformam em estruturas compostas de luz e sombra, formas, ângulos e
textura. O brilho iluminado e profundo de uma das íris quando atingida pela
luz da janela se torna extraordinariamente interessante. Anseio pela sombra
que recai na diagonal sobre a gola de meu modelo, pelas mechas finas e
mais claras em seu cabelo, ardentes como fios de ouro. Minha mente e
minha mão são possuídas. Pinto não por querer, não porque tenho talento,
mas porque é o que preciso fazer, o que me move, é o meu propósito de
vida.
Ao arranhar o papel com carvão, minhas preocupações se esvanecem.
Não notei as lascas pretas caindo, esvoaçando, sujando meu colo. Primeiro
um círculo, leve e energético, capturando a forma do rosto de Rook. Depois,
linhas vigorosas e mais largas, esboçando a rede desgrenhada de seu cabelo,
sua coroa.
Não.
Arranquei o papel do cavalete, largando-o no chão, e comecei outro
esboço. Rosto, cabelo, coroa. Sobrancelhas, escuras e arqueadas. Um meio-
sorriso torto. A silhueta larga dos ombros. Bom. Melhor. Havia agora na
sala dois Rooks, os dois me encarando. Ambos igualmente verdadeiros.
Além do cavalete, o Rook em pele e osso inclinou a cabeça. Ajeitou-se
no assento. Eu sentia que me observava, mas não me importei, perdida no
Ofício febril. No entanto, com a pequena parte da mente que reservava para
outros pensamentos, notei que ele estava ficando inquieto, e me lembrei do
que Gadfly dissera no dia anterior — que Rook não sabia ficar parado.
— Espere um pouco — disse ele, e meu carvão parou no ar.
Olhei e olhei para ele, meus olhos se ajustando ao mundo como se eu
tivesse passado tempo demais envolvida em uma ilusão de ótica. Havia algo
de incômodo na expressão de Rook. Por um momento temi que ele fosse
cancelar o retrato.
— É… — começou ele, com dificuldade, franzindo a testa. — É fixo?
O retrato? Você pode fazer uma alteração?
Suspirei aliviada, liberando todo o ar que tinha prendido. Então era só
isso.
— Posso fazer todas as alterações que quiser nesta etapa. Quando
começar a pintar, e dali até o fim, será mais difícil, mas não impossível.
Por um momento, Rook não disse nada. Apenas olhou para mim, e
então olhou para o lado, tirou o broche de corvo e o guardou no bolso.
— Excelente — falou. — É só isso.
Estaria mentindo se dissesse que não fiquei curiosa. O broche era, claro,
feito por Ofício humano, como tudo que ele vestia. Há muito tempo, Rook
era bem popular no reino Excêntrico. Até que um dia, pelo menos é o que
dizem, ele simplesmente parou de fazer visitas. O povo das fadas cobiçava
o Ofício acima de tudo. Que calamidade poderia afastar uma fada do seu
hábito? E teria isso alguma relação com o item que ele removera?
Ou talvez — e mais provável, quase certo — o broche simplesmente
estava fora de moda, ou ele cansara de usá-lo, ou havia decidido que não
combinava com a cor dos botões e queria mandar fazer um novo. Ele era
uma fada, não um garoto mortal. Eu não podia cair na armadilha da
empatia. Era o truque preferido, o mais antigo e mais perigoso de seu povo.
Mergulhei de volta ao trabalho. A silhueta dele estava ficando boa, mas
um defeito começou a me incomodar ao refinar o esboço. De alguma forma
os olhos não estavam dando certo. Limpei o carvão do papel com o pedaço
de pão úmido que eu mantinha na mesa e recomecei, mas, por mais que
tentasse, não chegavam nem perto da perfeição. Da dobra das pálpebras à
curva dos cílios, cada detalhe era exatamente fiel à imagem — mas o
conjunto não capturava sua… Ora, sua alma. Eu nunca antes encontrara
esse problema com uma fada. O que estava acontecendo comigo?
Meu carvão partiu ao meio. Uma parte rolou pelo chão e sumiu sob o
sofá. Quando estava me levantando, Rook se curvou e o pegou para mim.
Antes de voltar ao assento, deu uma olhada no meu trabalho. Achei ter
escutado um suspiro quase inaudível.
Então ele se aproximou para observar melhor.
— É assim que você me vê? — perguntou, a voz admirada e quase
silenciosa.
Eu não sabia exatamente como responder. Para mim, o defeito
inominável deformava o desenho, o tornava horroroso.
— É sua aparência, senhor — falei, finalmente. — Mas ainda precisa de
muita melhora. Antes de darmos o dia como encerrado, gostaria de
trabalhar mais um pouco.
Rook tocou a coroa, quase constrangido, ao voltar ao sofá. Ele hesitou,
mas pôs o braço onde estivera antes. Depois de uma pausa, ajustou a
posição para ficar precisamente igual a como estava.
O resto da sessão transcorreu em silêncio. Não era como a mudez rígida
que eu costumava sentir na presença do povo das fadas, mas uma quietude
mais confortável e hesitante. Lembrei-me de quando fora me sentar sob
minha árvore preferida da cidade, para ler à sombra, e encontrara outra
menina lá, fazendo o mesmo. Passamos horas juntas, após um breve
cumprimento. Quando voltei para casa, sentia que éramos amigas, mesmo
que só tivéssemos murmurado uma palavra tímida. Depois, soube que ela
partira com os pais para o Mundo Além.
Só fui notar que já era tarde quando duas cabecinhas com cabelos
cacheados apareceram atrás da janela. Rook não reparou nas gêmeas até
May grudar o rosto no vidro como uma ventosa e inflar as bochechas. Com
isso, ele se virou, mas não a tempo de vê-las fugir, deixando a janela
levemente embaçada. O sol já quase havia se posto e eu ainda não
entendera o problema dos olhos de Rook.
Um ar de decepção estampou sua testa quando falei que tínhamos
acabado.
— Posso voltar amanhã? — perguntou.
Levantei o rosto, desamarrando o avental.
— Gadfly tem uma sessão marcada para amanhã. Pode ser no outro?
— Muito bem — respondeu, irritado; mas, pelo que senti, a irritação
não era direcionada a mim.
Não sei o que me aconteceu em seguida. Quando ele abriu a porta, não
saiu imediatamente, ficou ali como se quisesse falar outra coisa, sem saber
exatamente o que era. Fui tomada pelo mesmo sentimento. Nossos olhares
se encontraram, formando uma conexão através da sala. Inspirei fundo e
ousei falar, me recriminando por dentro:
— O senhor vai voltar como corvo?
— É mais provável que sim.
— Antes de ir, posso vê-lo se transformar?
Ele não esperara tal pergunta. Várias emoções tomaram seu rosto ao
mesmo tempo: esperança, cautela, prazer. Nenhuma era exatamente
humana, mas ainda assim eu senti que tinham mais substância do que as
cópias de sentimento meia-bocas que outras fadas experimentavam como
chapéus, imitações vazias, tão reais quanto os encantos.
— Você não vai ficar assustada? — perguntou ele.
Sacudi a cabeça, negando. Nem eu nem ele desviamos o olhar.
— Não me assusto com facilidade.
Uma faísca se acendeu nos olhos de Rook. A casa foi tomada por um
farfalhar, o som do vento distante agitando folhas secas. Cresceu e cresceu
até eu sentir o ar fresco me cercar, puxar minhas roupas, carregando o
perfume bravio, ardido e intoxicante da floresta noturna e me
surpreendendo mais uma vez com aquela sede de mudança indescritível. Os
esboços de carvão descartados esvoaçaram e foram jogados ao redor da
sala. Quando o sol cruzou a linha do horizonte, por um momento a gaiola se
acendeu numa luz dourada e ofuscante, e então meu estúdio mergulhou em
sombra.
Rook pareceu ao mesmo tempo ficar mais alto, mais escuro e mais
feroz. Os olhos roxos ardiam, impetuosos, intocados pelo meio-sorriso sutil.
Um redemoinho de penas pretas se ergueu do chão e o envolveu.
Eu devo ter piscado, porque, quando me dei conta, os papéis estavam
inertes contra a parede e um corvo me observava, empoleirado sobre a
gaiola, com as asas meio abertas. O resquício da luz poente iluminou as
penas brilhantes e cintilou em seus olhos.
O vento me deixara sem ar. Eu não tinha palavras para descrever o que
vira.
— Isso foi deslumbrante — sussurrei, finalmente, e fiz uma reverência
para o corvo.
Com um toque de humor, o pássaro inclinou a cabeça antes de voar
porta afora.
Quatro
Eu não protestei. Não gritei. Fosse lá o que ele estivesse fazendo, eu não
queria nem podia impedir.
Não parecia cansado nem desarrumado ao se ajoelhar, a manga direita
arregaçada até o cotovelo, a espada deitada contra a mão. Um cacho de
cabelo úmido grudado na testa era o único traço da nossa fuga imprudente,
do suor que antes encharcava seu pescoço e seus ombros. Com calma,
olhou para o lado e puxou a lâmina contra a palma em um corte rápido e
fundo. Sangue respingou no musgo ao chão. Era mais claro que sangue
humano, mais espesso também, como se fosse misturado com seiva de
árvore.
Quando o choque passou, entendi que Rook estava mexendo com magia
feérica. Não importava o que fosse, eu esperava que doesse. Talvez até que
o enfraquecesse de alguma forma conveniente para mim.
— Você disse que só há duas fadas tão poderosas quanto você — falei,
fazendo uma reverência para chamar a atenção dele. — Achei que estivesse
falando dos regentes das cortes da primavera e do inverno. Mas uma delas é
Hemlock?
Rook limpou a mão no musgo, se curvou em uma reverência fluida
sobre o joelho e se levantou. O corte havia sumido — mas não tinha como
saber se estava mesmo curado ou se apenas disfarçado pelo encanto. A
segunda opção me pareceria possível, uma escolha por orgulho.
— Todos temos talentos diferentes, alguns mais do que outros. Posso
mudar de forma e, como príncipe, comando o poder da minha estação.
Hemlock é conhecida por sua destreza na batalha, mas não é a senhora do
inverno. Talvez, se minha magia se exaurisse ou se eu optasse por não a
usar, eu pudesse enfrentá-la como igual no combate físico.
Ele retorceu a boca e eu me perguntei com quanta frequência Rook
desejava ser capaz de mentir.
— Então as feras fadas dela devem ser perigosas para você —
considerei, sentindo uma oportunidade de aprender mais sobre suas
fraquezas. — Talvez não sejam se atacarem uma ou duas por vez, mas ali a
matilha inteira estava lutando ao lado dela.
Ele embainhou a espada em um gesto violento e se aproximou de mim,
parando a poucos centímetros de distância. Olhou para baixo e eu senti sua
respiração no meu rosto, virado para cima. Meu coração acelerou. Ele
estava um pouco agitado, afinal.
— São perigosas para você, mortal, não para mim. Você viu como lutei
contra o baronete. Quantas vezes preciso lembrá-la de que eu sou um
príncipe?
— Eu sei! — respondi, sem sequer me mover um milímetro. — Não é
como se você deixasse eu esquecer.
Ele endireitou os ombros e arreganhou os dentes como se eu o tivesse
estapeado.
Eu me contive, resistindo à tentação de pegar meu anel.
— Só não estou entendendo nada disso. Feras fadas, o conflito entre
suas cortes e por que raios a Caça Bravia está atrás de você há séculos se
Hemlock sabe que não vai vencer. Suponho que seja complexo demais para
meu pobre cérebro de mortal.
Rook relaxou. Não registrou meu sarcasmo, o que me irritou.
— Hemlock é a Caçadora — respondeu. — Ela obedece ao chamado da
corte do inverno, que está sempre tentando espalhar o gelo pelas terras
outonais.
— O berrante — murmurei. — Ele comanda Hemlock. Ela não tem
escolha.
Ele assentiu.
— Para ela, a Caça é tudo. É seu único propósito. Ela vai caçar até o dia
de sua morte e só então vai deixar de caçar.
Vento atravessou as árvores, espalhando folhas como se fossem chuva
por toda a clareira. Pensei no rosto horrendo de Hemlock sumindo no
escuro, em como gritara para corrermos. Um calafrio me percorreu. O
frescor do ar outonal finalmente me atingindo.
Ou não era nada disso? O tremor continuou sem parar, sacudindo o chão
sob meus pés, e eu comecei a questionar se o que sentia era mesmo um
calafrio. Tropecei para trás, mas não havia como escapar do estranho
terremoto que se seguiu. De onde Rook derramara sangue, começou a
avançar uma onda de musgo salpicada de florezinhas azuis menores que a
ponta do meu mindinho, se desenrolando sobre a clareira, espumando até os
troncos… e minhas pernas. Gritando, soltei minhas botas, espalhando
pedaços de musgo e sacudindo minhas saias com vigor.
— Vire-se — disse Rook, distante, me olhando de canto de olho.
Por um momento adotara o tom antigo, como se ainda fossemos amigos
no meu estúdio, e parecia adequado corrigi-lo.
No entanto, eu me virei, incapaz de me conter. As árvores da clareira
cresciam, se esticando cada vez mais altas, seus galhos se espalhando lá em
cima. Na parte em que se encontraram no centro, enredaram-se sob o céu
reluzente da noite. Mudinhas menores surgiram do musgo entre as árvores
maiores para fechar os intervalos, brotando folhas novas e trêmulas já
resplandecentes, das cores do outono. Tudo isso aconteceu de maneira
silenciosa, exceto por alguns rangidos, grunhidos e estalos abafados da
madeira em expansão.
Foi como se eu tivesse visto a clareira envelhecer um século inteiro em
questão de segundos. No entanto, nenhuma clareira envelheceria assim por
conta própria. Estava num espaço aberto, com árvores se espalhando ao
redor e acima de mim como uma catedral. Os galhos estavam tão
entrelaçados que pareciam contrafortes voadores; nenhuma fabricação
humana seria capaz de capturar a majestade e o assombro daquela vigorosa
antessala. Olhar para cima me deixou tonta. Dos galhos ao alto, folhas
escarlates desciam flutuantes e silenciosas, cruzando feixes de luar.
Dei meia-volta.
— Seu sangue fez isso.
Rook me observava, um tumulto conflituoso de emoções passava por
seus olhos: fascínio por observar minha reação humana. Esperança de que
eu achasse sua criação bela. E, por baixo disso tudo, havia tristeza, tão viva
quanto uma ferida aberta.
Desespero tomou suas feições. Ele tentou se recompor, mas não
conseguiu. Por fim, deu meia-volta e ficou de costas para mim, o casaco
longo esvoaçando, então desembainhou alguns centímetros de espada e
fingiu inspecionar a lâmina.
— Você estará em segurança aqui — disse ele em tom solene. — A
Caça não será capaz de nos farejar em uma clareira de sorva e, mesmo que
Hemlock encontrasse o lugar por acidente, nenhuma fera fada nem
nenhuma fada viva seria capaz de romper a magia que teci.
Saber que estava contando a verdade nua e crua, sem adornos, me
deixou sem fôlego. Ele era arrogante, quase insuportável, mas, meu deus,
seu poder era inacreditável. Ainda assim, ali estava, tão confuso quanto
uma criança frente às próprias emoções, me arrastando a julgamento por
causa de uma pintura. Eu não conseguia aceitar que ainda de manhã
acreditei estar apaixonada por ele. Sacudi a cabeça. Incrível.
— Tem dez mil anos, mas parece ter cinco — murmurei, testando o
chão com os pés.
— O que você disse? — perguntou Rook, com frieza.
Óbvio que fadas tinham a audição impecável.
— Nada, não.
— Você disse alguma coisa, sim, mas certamente não me interessa —
respondeu ele, embainhando a espada de uma vez. — Agora, deite-se e
descanse. Continuaremos ao raiar do sol.
Por mais que detestasse obedecer, não valeria a pena ficar acordada por
pura teimosia. Vaguei pela clareira até encontrar um montinho no musgo
em que poderia me encostar — parecia uma tora cortada e engolida pela
terra. E me enrosquei de lado, virada para Rook, que continuou de pé, de
costas para mim. Pus o anel de volta no dedo, grata por ter pelo menos
alguma proteção, mesmo que fosse mínima. No entanto, outro problema me
encarou. Eu não fazia ideia de como ia conseguir dormir.
Emma e as gêmeas provavelmente não tinham notado minha ausência.
Notariam de manhã ao ver minha cama vazia. O que Emma faria? Ela
abrira mão de tudo para me criar. Prometera ao meu pai, em seu leito de
morte, que cuidaria de mim. Agora eu sumira no meio da noite, sem deixar
recado. A não ser que eu tivesse muita sorte e fosse muito esperta —
precisava ser honesta quanto às chances —, ela nunca saberia o que
acontecera. Ficaria esperando por mim para sempre. Era cruel demais, eu
não aguentava nem pensar.
Ela tinha galinhas enfeitiçadas para botar seis ovos por semana, lembrei.
Uma pilha de lenha magicamente aparecia na porta de casa mês sim, mês
não. Outra fada entregava um ganso gordo a cada quinzena; e,
estranhamente, devido a um acordo mal formulado, um monte de
exatamente 57 nozes se materializava sempre que um tordo cantava no
carvalho. As gêmeas dariam trabalho, mas ficaria tudo bem. Não ficaria?
A vários passos de mim, Rook finalmente sentara, elegante, com um
braço apoiado no joelho. Talvez soubesse que estava sendo observado e, por
isso, se arrumara na pose mais bonita. Não… Achava que eu estava
dormindo. Eu sabia que era o caso, porque ele tirara o broche de corvo e o
revirava entre os dedos. Atrás, as folhas escarlates continuavam a cair ao
luar, como pétalas de rosa iluminadas por um vitral prateado.
Devastada, me perguntei se Emma acharia que eu fugira com Rook de
propósito. Meras horas antes, ela provara me conhecer bem. Se fosse o
caso, saberia que, por mais que eu desconfiasse das fadas, queria rever
Rook mais do que qualquer outra coisa no mundo. Talvez ela se torturasse
com a possibilidade de que suas palavras arrependidas tinham me
encorajado a fugir. Que eu decidira que cuidar da família era mesmo um
fardo e a abandonara com as gêmeas sem nem ao menos me despedir.
Pensei, então, que minha imaginação estava conjurando cenas cada vez
mais irreais e dramáticas, mas, afundada até o pescoço em tristeza, eu era
incapaz de bloqueá-las. Pensei em Emma tomando extrato demais e tendo
um colapso. Pensei nas gêmeas revirando meu quarto em busca de pistas e
encontrando no armário os desenhos que fiz de Rook. Uma lágrima quente
escorreu pelo meu rosto. Respirei pela boca para que ele não me ouvisse
fungar com o nariz entupido. Enfim, chorei até me exaurir. Meus cílios
pesaram, minha visão se embaçou. Nem percebi quando finalmente peguei
no sono.
····
Quando acordei, tudo estava dourado. A luz que acariciava meu rosto era
dourada, e o calor também. Sentia-me suspensa em mel, ou âmbar. Uma
fragrância outonal me cercava, me envolvia, pontuada por um cheiro feroz e
masculino, mas não exatamente humano, que me reconfortava e ao mesmo
tempo pesava como ouro derretido no fundo do meu corpo, escorrendo por
um cadinho.
Além disso, alguém estava penteando meu cabelo com as mãos.
— Para com isso! — gritei, pulando de susto.
O casaco de Rook caiu dos meus ombros e eu olhei ao redor até
encontrá-lo atrás de mim, sorrindo com satisfação.
— O que você pensa que está fazendo? — perguntei.
— Tem uns gravetos presos no seu cabelo — respondeu ele, estendendo
a mão de novo.
Interceptei o braço dele com a mão que usava o anel, ou pelo menos
tentei, pois ele deu um pulo para longe, me olhando feio, antes que eu
conseguisse.
— Rook — falei, tentando manter a voz firme —, antes de eu me
levantar, você precisa prometer que nunca mais me tocará sem permissão.
— Posso tocar quem eu quiser.
— Você já parou para pensar que você poder fazer alguma coisa não
significa que deveria fazê-la?
Ele apertou os olhos.
— Não — respondeu.
— Bom, isso entra nessa categoria. — Eu vi que ele não entendera. —
Entre humanos, não é considerado educado — acrescentei, insistente.
Um músculo saltou em seu rosto, seu sorriso sumindo.
— Ora, isso não parece nem um pouco razoável. E se você estiver sendo
atacada e eu precisar tocá-la para salvar sua vida, mas não puder porque
primeiro precisaria pedir sua permissão? Deixar que você morra não seria
educado.
— Tá. Você pode me tocar nesse caso, mas em todos os outros precisa
pedir.
— E por que você acha que aceitarei suas regras mortais absurdas?
Irritado, puxou o casaco de mim e se cobriu sem nem enfiar os braços
nas mangas.
— Porque posso fazer da sua vida um inferno durante todo o caminho
até a corte do outono, e você sabe disso — respondi.
Rook saiu andando pela clareira. Senti que ele precisava dar um
chilique antes de aceitar. Como previsto, logo voltou, sua expressão
tempestuosa e a terra mudando ao seu redor. O musgo apodreceu e ficou
marrom enquanto espinheiros pontudos irromperam sob seus pés,
esticando-se como mãos até formarem um emaranhado monstruoso da
altura da minha cintura. Não esperava nada tão dramático: os espinhos eram
do comprimento dos meus dedos, tão afiados que cintilavam na luz da
manhã. Todos os meus instintos gritavam para que me levantasse e corresse
antes que me alcançassem. No entanto, sabendo que era aquela a reação que
Rook desejava, continuei sentada ali.
Os espinheiros se espalharam ao redor do meu corpo, aproximando para
perto das minhas roupas galhos retorcidos e trêmulos. Os espinhos se
esfregavam, ruidosos, em ameaça. Eu os olhei com severidade. Sabia
reconhecer um blefe. Por fim, os espinhos recuaram, com certa petulância, e
pararam de se mover. Rook estava de pé, me olhando de cima com a boca
pálida, envolto no mar de espinhos em estado de extrema ofensa, a prova
final de que eu havia vencido.
— E então? — perguntei.
— Dou-lhe minha palavra de que nunca a tocarei sem permissão, a não
ser que precise poupá-la de perigo — declarou.
Pelo menos falara no seu tom régio, sem sinal da petulância que eu
esperava.
Suspirei, aliviada.
— Obrigada, Rook.
— Não há de quê — respondeu, automaticamente, franzindo a testa.
Era como as reverências; ele precisava responder a fórmulas básicas de
educação, independente de se queria ou não. Para se recuperar da afronta,
esticou o braço para o lado em um gesto teatral. Duas das árvores
levantaram as raízes e se arrastaram para o lado, de forma apressada e
ansiosa, como uma dupla de matronas chocadas contra as quais ele
arremessara uma bola de bilhar. Os troncos dobrados formavam uma
passagem para a floresta.
— Vamos andando, então.
Ele se dirigiu à passagem. Uma raiz restante se esgueirou, solícita, para
longe do caminho.
— Não só espero que suas perninhas mortais cubram uma distância
decepcionante — continuou —, como já estamos uma hora atrasados.
“E a culpa é de quem?”, pensei.
Entretanto, quebrando os espinheiros atrás dele, que se desintegravam
ao mais delicado toque, olhei de relance para a pilha organizada de gravetos
e folhas que ele tirara do meu cabelo — e, a contragosto, sorri.
····
Passamos por bétulas finas e de casca branca, cujas folhas amarelas tiniam e
cintilavam como moedas de ouro por conta da brisa. Passamos por riachos
pedregosos serpenteando entre montinhos de musgo, a água, por causa da
neve derretida, era da cor do leite. Passamos também por freixos que
tinham perdido metade das folhas de uma só vez, todas amontoadas nas
raízes como uma anágua caída aos pés de uma moça. Um veado e uma
corça pararam para nos observar quando passamos antes de saírem
saltitando pela névoa iluminada, projetando sombras no ar como uma tela
de papel.
O primeiro marco desagradável que encontramos foi um carvalho
fendido. Tinha sido atingido por um raio muito tempo antes, e partes do
tronco estavam carbonizadas e pretas, a casca elevada e cintilante por causa
das gotas de seiva endurecida. Algumas folhas marrons ainda se agarravam
aos galhos mais baixos. Rook foi examiná-lo. Parecia deslocado entre as
bétulas, à espreita, maléfico. Uma pontada de desconforto me avisou para
ficar distante.
— É uma entrada de caminho das fadas? — perguntei, andando em
paralelo à árvore.
Ele me olhou de relance e continuou a caminhar.
— É, sim. Mas não vamos naquela direção.
— Não pode levar humanos por ela?
— Ah, podemos, sim. Só não acho que seja recomendável.
Aquilo podia querer dizer qualquer coisa. Talvez o esforço exigira
muito poder, ou talvez alertaria as fadas erradas sobre nossa presença. Ele
não parecia aberto a mais perguntas e eu não via como saber mais sobre
aquilo ia me ajudar, então não insisti.
O meio-dia chegou e se foi. O sol brilhava entre as folhas, salpicando o
chão em padrões pontilhados que eu teria achado fascinantes se não
estivesse tão preocupada com meu incômodo crescente. Minhas coxas e
nádegas doíam por conta da cavalgada do dia anterior. Estava imunda; tinha
lama nas pernas e minhas saias estavam duras de tanto carrapicho e suor de
cavalo. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que fedia horrivelmente. Além
disso, meu deus, como estava faminta.
Rook, por outro lado, estava idêntico a quando fora me buscar na noite
anterior. As botas reluziam e o casaco não era marcado por um vinco
sequer. A única coisa fora do lugar era seu cabelo, mas isso não contava,
pois era sempre assim.
Chegamos a um aterro que descia em desfiladeiro. Rook desceu
graciosamente, enquanto eu escorregava e tropeçava pelas folhas
amontoadas até finalmente considerar a possibilidade de desistir e deslizar
sentada até lá embaixo. Quando olhei para o chão, franzindo a testa, a mão
de Rook apareceu no meu campo de visão. Não queria ajuda, mas era
melhor do que me fazer de desentendida, então levei meus dedos aos dele.
Desde que eu iniciasse o gesto, parecíamos capazes de nos tocar sem
precisarmos conversar.
A pele era fresca e a mão me segurava com surpreendente leveza. Ele
me ajudou a descer e, em seguida, a subir pelo outro lado como se eu não
pesasse mais do que uma pluma. Meu estômago roncou quando chegamos
lá em cima. Para minha infelicidade, não foi um ronco normal: minhas
entranhas invocaram um rugido violento, seguido de vários gemidos longos
e arrastados.
Rook se sobressaltou, assustado. Mas acabou entendendo minha
condição e sorriu. O que era interessante — pois a maioria das fadas não
entendia o conceito de fome humana, não de verdade. Mais cedo, ele falara
como se já tivesse tentado levar humanos pelo caminho das fadas. Será que
já viajara com humanos antes?
Honestamente, eu devia ter suspeitado antes. Ele carregava tristeza
humana nos olhos, afinal, e só teria uma forma de tê-la aprendido.
— Não como nada desde o jantar de ontem — falei quando meu
estômago finalmente se calou. — Não sei se aguento ficar muito mais
tempo sem comer.
— Só ontem?
— Eu te garanto que a maioria dos seres humanos não está acostumada
a passar um dia inteiro sem comer.
Ele continuava profundamente cético, então acrescentei, inabalável:
— Estou me sentindo bem mal. Na verdade, não aguento dar nem mais
um passo. Se eu não comer logo, posso morrer.
Ele ficou praticamente de cabelos em pé. Eu quase me senti culpada.
— Fique aqui — falou, com urgência, e desapareceu.
As folhas onde estivera se revolveram em redemoinho como se levadas
pelo vento.
Olhei ao redor. Meu estômago deu um pulo e minha boca ficou seca. A
mata esparsa e musguenta me permitia ver bem longe. Não notei nenhuma
silhueta alta, nenhum corvo voando pela floresta. Rook parecia mesmo ter
ido embora.
“Corra”, pensei. No entanto, tentar obrigar meus pés a se moverem era
como ter quatro anos de novo, hesitante na beira da cama da minha mãe
depois de um pesadelo, incapaz de falar uma palavra para acordá-la. A
floresta também dormia. Quão facilmente eu chamaria sua atenção? E será
que eu estava mesmo preparada para aquele pesadelo?
No fim, eu não deveria nem me preocupar com suposições. Um baque
soou nas folhas atrás de mim e, quando me virei, encontrei Rook e, a seus
pés, uma lebre morta.
— Pronto — falou quando eu não me movi, olhando de mim para o
animal.
Eu me aproximei e peguei a lebre pela pele do pescoço. Ainda estava
quente, os olhinhos pretos e brilhantes abertos.
— Hm — falei.
— Tem alguma coisa errada?
A expressão dele se tornou resguardada.
Eu estava faminta. Dolorida. Apavorada. E mesmo assim, olhando para
Rook, imaginei um gato orgulhoso ao trazer esquilos mortos para seu dono,
só para ver o idiota de duas pernas pegar os presentes inestimáveis pelo
rabo e jogá-los no mato sem cerimônia. Antes que pudesse me conter, caí na
gargalhada.
Rook hesitou, dividido entre desconforto e raiva.
— O que foi? — perguntou.
Caí de joelhos, ofegando por ar, a lebre em meu colo.
— Pare com isso.
Rook olhou para os lados, preocupado que alguém o visse tendo
dificuldade de administrar sua humana. Eu ri ainda mais alto.
— Isobel, você precisa se controlar.
Ele podia até ter viajado com humanos, mas certamente não chegara a
comer conosco.
— Rook! — Quase solucei seu nome. — Não posso comer uma lebre
nesse estado!
— Não vejo por que não.
— É que… Ela precisa ser cozida!
Por um instante, antes de fechar a carranca como se batesse uma porta,
ele foi tomado por horror e confusão.
— Quer dizer que não pode comer nada sem primeiro usar o Ofício?
Respirei fundo, trêmula, tentando me acalmar, mas sabia que voltaria a
rir a menor provocação.
— Podemos comer frutas, sim, assim como a maioria das castanhas e
dos vegetais. Mas o resto, não.
— Como pode uma coisa dessas — disse ele, baixinho.
Só precisei daquilo; solucei, rindo. Ele se agachou e analisou meu rosto,
que naquele momento certamente não era nada atraente.
— Do que você precisa? — perguntou.
— Para começar, fogo. Suponho que uns… Uns galhos para usar de
espeto. Podemos assá-la inteira, mas também podemos cortar em
pedacinhos, que tal? Nunca preparei uma lebre fora da cozinha.
Eu podia estar recitando um feitiço que daria na mesma.
— Lenha — corrigi-me para ele. — Gravetos mais ou menos deste
tamanho — continuei, mostrando com as mãos —, além de uma vara
comprida, fina, firme e pontuda.
— Muito bem — disse ele, levantando-se. — Trarei a madeira.
— Espere aí — falei, antes que ele pudesse sumir.
Ergui a lebre. Ele pareceu tenso.
— Pode esfolar para mim? Sabe, tirar o pelo? Também precisa cortar
em pedaços. Não posso fazer nada disso sem faca.
— Como você é mortal — disse ele, com desdém, e pegou a lebre das
minhas mãos.
— Ah, e tire as tripas, por favor — acrescentei, perseverando.
Ele parou logo antes de desaparecer, os ombros duros.
— É só isso?
Uma parte diabólica de mim imaginou o quanto poderia continuar com
as exigências. Se fingisse ser necessário para meu Ofício, será que poderia
mandá-lo plantar bananeira ou dar três voltinhas enquanto preparava a
lebre? Porém, as exigências cada vez mais urgentes do meu estômago me
impediam de rir mais às custas dele.
— Por enquanto — respondi.
Menos de vinte minutos depois estávamos sentados na frente de uma
fogueira pouco fumegante, que parecera inútil até Rook, exausto de me ver
esfregar gravetos, acendeu a lenha com um simples gesto de dedos
compridos. Ele olhava impaciente para o sol enquanto eu virava uma coxa
sobre as chamas (pelo menos era o que eu achava que fosse —
aparentemente fadas não eram açougueiros cuidadosos). Gordura pingou da
carne, sibilando ao cair na madeira em brasa. Fiquei com água na boca e
tentei não pensar que, em circunstâncias melhores, eu acharia o cheiro
nojento, em vez de apetitoso. Não sabia que uma lebre poderia ter aquele
cheiro. No entanto, desde que eu continuasse queimando a carne sem
querer, provavelmente não me deixaria doente.
Rook suspirou dramaticamente pela sétima vez enquanto me esperava
acabar. Eu estava contando.
— Tente você, então, se está tão entediado — falei, oferecendo o espeto.
Ele o pegou entre o polegar e o indicador. Depois de examinar a carne,
virando-a de um lado ao outro, a abaixou ao fogo sem pensar.
Do nada, algo nele mudou. A princípio achei que ele tivesse visto
alguma coisa horrível atrás de mim na floresta, e me virei, arrepiada. Não
tinha nada ali. Mas ainda assim mantinha aquela expressão: olhos
arregalados e chocados, feições completamente paralisadas, como se tivesse
recebido a notícia da morte de alguém, ou podia ele próprio estar morrendo.
Era terrível de tal forma que eu não saberia descrever. Pintei mil rostos sem
nunca ver uma expressão como aquela.
O que estava acontecendo? Procurei resposta até entender: Ofício.
Podíamos transmutar substâncias com a facilidade com que respirávamos,
mas, para as fadas, tais criações não existiam. Era tão contrário à natureza
delas que tinha o poder de destruí-las. Para minha surpresa, até um ato tão
simples quanto assar uma lebre na fogueira parecia ser considerado Ofício
pela força que governava a espécie.
Um ou dois segundos depois, o encanto de Rook começou a descascar
como tinta velha, revelando sua verdadeira forma, mas não como eu a
lembrava. Sua pele estava ressecada e cinzenta. Os olhos, perdendo vida.
Era como se eu visse suas luzes se apagarem, uma a uma, a cada batimento
do coração.
Eu sabia que, se não fizesse alguma coisa, ele se esvairia num instante.
Eu estaria livre. Poderia fugir… Ou pelo menos tentar. No entanto,
pensei na catedral da floresta, nas folhas escarlates esvoaçando em silêncio.
No olhar que eu vira quando ele se transformara em corvo no meu estúdio.
No cheiro de mudança do ar feroz, na forma como me deixara virar seu
rosto, nos seus olhos entristecidos. Todas aquelas maravilhas se
desintegrando, sem deixar rastros no mundo.
Curvei-me por cima do fogo e arranquei o espeto de sua mão.
Sete
A primeira coisa que notei ao me ajoelhar ao lado de Rook foi que suas
roupas estavam rasgadas e sujas pela batalha, amarrotadas pela viagem. Eu
não pudera observá-las quando ele perdera o encanto à tarde, e a mudança
era chocante: em um instante, fora de príncipe a andarilho. Não me ocorrera
que usaria o encanto para alterar a aparência de suas roupas também. Ainda
mais impressionante, o enorme rasgo feito pelo Lorde Tumular na frente do
casaco estivera completamente invisível aos meus olhos.
— Quanta magia você gasta com vaidade? Misericórdia, você mal se
segurava em pé.
Com as mãos tremendo, tirei o anel, guardei-o e desabotoei o casaco de
Rook.
— Nem eu nem o Lorde Tumular nos importamos com a sua aparência,
você sabe disso — continuei.
Abri o casaco e a cabeça dele se inclinou para o lado. Sua boca estava
entreaberta. Decidi não prestar atenção nos dentes afiados expostos entre os
lábios, mas eu nem precisava pensar naquilo, porque a ferida no peito
exigia toda minha atenção e ainda mais um pouco.
Não tinha referência para fazer uma comparação, mas podia supor que,
com o encanto, o peito dele não seria tão magro, cada costela visível sob a
pele. Só gostaria de não ver tanto das costelas. Nem todo o branco entre o
sangue era da camisa rasgada.
A ferida era grande e tenebrosa, indo da clavícula esquerda às costelas
do lado direito. Um humano ferido daquela forma morreria de hemorragia.
Felizmente, não parecia estar perdendo tanto sangue, mas eu me sentiria
muito mais otimista se ele estivesse consciente e cheio de si, me
informando que o rasgo expondo ossos no peito dele era só um arranhão.
— Rook — falei, dando um tapinha na cara dele e contendo uma careta
quando os ossos pontudos do rosto cadavérico me lembraram do esqueleto
que agarrara minha perna. — Você é um príncipe, lembra? Acorde e me
faça ficar brava, por favor.
Ele virou a cabeça na direção da minha mão e gemeu.
— Vai ter que se esforçar um pouco mais — falei.
Embolei um pouco do casaco e o apertei contra o peito. Lembrando, por
fim, a noite anterior, peguei seu punho direito e virei a palma da mão. Ele
usara o encanto para esconder o corte, afinal. Mesmo assim, a pele estava se
curando com rapidez — se eu não soubesse, diria que o machucado já tinha
mais de uma semana.
Levei um susto quando notei que ele entreabrira os olhos e me
observava.
— Você continua aqui — murmurou, meio delirante.
Soltei a mão dele rapidamente.
— Onde mais eu estaria?
— Fugindo.
— Não sei se você percebeu, mas a floresta está cheia de coisas que
querem me matar. Até mesmo pedaços desmembrados tentam me matar.
Por mais que me doa admitir, é mais vantajoso eu me arriscar estando ao
seu lado.
— Talvez — murmurou e tentou se mover, mas revirou os olhos.
— Pare de ser tão misterioso. Me diga o que preciso fazer para sairmos
daqui? Rook?
Dei um tapinha no rosto dele de novo.
— Ajude-me a levantar — disse ele. — Na verdade… Primeiro, pegue
minha espada e depois…
Eu me levantei e procurei a espada. No pouco tempo em que estava
ajoelhada, a clareira havia se transformado. Os restos petrificados do Lorde
Tumular estavam quase irreconhecíveis, engolidos por uma árvore
gigantesca da qual ainda brotavam novos galhos. Folhas douradas caíam
sem parar, acumulando folhagem colorida entre a qual remexi na busca pela
arma de Rook. Finalmente a encontrei, pois o punho apareceu entre as
folhas.
Quando voltei, ele estava quase inteiramente coberto por folhas. Corri
os últimos passos, tropeçando numa raiz escondida no caminho, e o limpei
enquanto ele me olhava em silêncio — fraco demais para comentar o meu
comportamento estranho, supus. Nem eu sabia dizer exatamente por que vê-
lo sumir no chão da floresta me aterrorizava tanto. Só notara que havia um
ar fúnebre naquilo tudo. Um ar fatal, como se a terra o estivesse engolindo.
Quando acabei, ele tentou pegar a espada de minha mão, mas não tinha
forças para segurá-la. Tive que ajudá-lo a embainhá-la.
Uma pergunta doía no fundo da minha língua, presa como um anzol,
puxando para fora as palavras horríveis.
— Você está morrendo? — soltei em um tom esquisito, quase de
acusação.
Ele franziu a testa.
— É o que você quer?
— Não!
Minha veemência pareceu surpreendê-lo a tal ponto que senti
necessidade de me defender:
— Se eu quisesse que você morresse, por que teria pegado o espeto de
volta hoje à tarde?
— Para começo de conversa, foi você quem o deu para mim.
— Eu não sabia o que ia acontecer… Nem mesmo você sabia — falei,
tentando encontrar as palavras certas. — O que você está fazendo comigo
não é nada legal. Óbvio que não quero ser sua prisioneira. Mas isso é
diferente de querer que você morra.
Será que ele me entendia? O olhar distante sugeria que não. Será que se
importava um pouquinho que fosse com emoções humanas?
— Talvez você deva saber — acrescentei, bruscamente —, já que
acabou de vez, que dois dias atrás eu acreditei estar apaixonada por você.
O olhar dele ficou mais afiado, atravessando a névoa da dor para se
concentrar em meu rosto. Finalmente, ele olhou para o lado e largou o braço
no chão, um gesto fútil, como se tentasse pegar alguma coisa fora do
alcance. Parecia tão inumano. Não me satisfazia ter finalmente causado
uma reação… Eu só me sentia gelada.
— Ajude-me a levantar.
Falar era um esforço para ele. O ar sibilava ao entrar e sair do peito,
ofegando baixinho a cada inspiração. Perguntei-me se uma costela tinha
quebrado e perfurado um pulmão, um perigo que Emma me explicara certa
noite, enquanto segurava extrato, e, se fosse o caso, o que poderia ser feito.
No entanto, foi Rook quem falou primeiro:
— Precisamos voltar às terras outonais. Não tenho como me curar aqui.
Tem alguma coisa errada com o lugar… Uma corrupção que não sei
explicar.
Ele fez um intervalo, respirando.
— Com sorte — continuou —, alguma vantagem sairá disso e a Caça
terá perdido nosso rastro.
Peguei o braço estendido e o apoiei no ombro, tentando meu melhor
para levantá-lo. Ele conseguiu ficar de pé, mas só ao se apoiar com força
em mim, e quando mudou o peso soltou um ruído de angústia, quase de
choro, que fez uma pontada aguda de pena doer em meu peito.
— Não é melhor chamar outra fada?
Ele inspirou fundo e respondeu, sua voz rouca e ofegante:
— Não.
— Não é hora de ser cabeça-dura. Sua corte certamente é capaz de
ajudar.
Não falei “mais capaz” porque eu não tinha nada a oferecer. Além disso,
não me esquecera de que ele ainda não tinha respondido à outra pergunta.
Não me dissera que não estava morrendo.
— Não — repetiu.
Cerrei o maxilar e comecei a andar de volta por onde tínhamos vindo.
Rook apontou outra direção, então ajustei o caminho. Apesar de suspeitar
que fosse mais leve do que um homem humano, ele apoiava mais peso em
mim do que eu aguentava com conforto, e a vasta diferença de altura fez
com que carregá-lo fosse um esforço incômodo. Desviei o olhar do rosto
esquálido e, depois de um tempo, o sangue dele começou a encharcar meu
vestido. O cheiro não era nada parecido com sangue humano — tinha um
perfume fresco de resina, como o de uma árvore cortada a machadadas.
O dia já estava quase um breu. Não era tão fácil enxergar ali quanto era
nas terras outonais, onde as árvores coloriam a noite. A mão de Rook se
moveu no ar, um gesto torto que deixou os dedos expostos ainda mais
parecidos com insetos, e depois de um momento entendi que estava
tentando, sem sucesso, invocar uma luz.
Um calafrio de pavor percorreu meu corpo, acumulando-se em mim. E
se fôssemos atacados de novo? Ele não tinha mais poder nenhum.
— Não posso pedir ajuda a meu povo — disse ele, e as palavras
ofegantes e roucas me assustaram depois de tanto silêncio. — Mantemos
soberania não pelo amor e respeito das cortes, mas simplesmente por poder.
Se me vissem tão enfraquecido por um mero Lorde Tumular, os membros
da minha corte cogitariam se eu poderia ser substituído, e se alguém entre
eles seria o substituto adequado. Já questionaram minha aptidão como
príncipe. Não só uma, como duas vezes. Eu esperava me redimir da
segunda.
Ele parou de falar, recuperando as forças. Entendi que falava do retrato
e do meu julgamento. No entanto, qual seria a primeira?
— Uma terceira demonstração de fraqueza seria, sem dúvida, meu fim
— concluiu.
Sacudi a cabeça.
— Que crueldade.
Tudo era cruel. Ele comigo, a corte com ele.
— A nossa natureza é assim. Pode ser cruel, mas é também justa.
Ele olhou para baixo.
Cada vez menos eu conseguia enxergar na escuridão, mas nas linhas
rígidas do perfil de Rook, vi que duvidava de si mesmo. Reconheci a fúria
de quando me sequestrara pelo que era: medo. Medo de estar perdendo
poder. Medo de ter mesmo algo de errado, de não merecer a coroa, de
outros serem capazes de vê-lo.
Porque no retrato eu capturara o medo em seus olhos, claro como o dia.
— Não acho nada disso justo — falei, minha voz grave de raiva.
— Só porque você é humana, a mais estranha das criaturas —
respondeu em um tom pouco mais alto do que um sussurro. — E se eu
disser que posso mandar você de volta ao reino Excêntrico. Há poder na
morte de uma fada, o suficiente para mostrar o caminho.
— Não brinque comigo.
Lágrimas encheram meus olhos.
— Não estou brincando — sussurrou ele. — Não estou.
“Eu esperava me redimir da segunda”, ele dissera. “Não espero.”
Não falei nada depois daquilo, porque nenhuma palavra que eu tinha a
oferecer faria sentido para ele. Eu só tinha emoções humanas, sem dúvida
caóticas e enfurecidas para uma fada, semelhantes a uma revoada de
papagaios briguemos, e nenhuma capacidade de aquietá-las. Quando
finalmente falei, foi para dizer que não podia mais andar. Naquele
momento, ele mal se mantinha consciente. Tentando se soltar, escorregou
do meu ombro como um saco de grãos, a silhueta alta desmoronando.
Meu coração quase saiu para fora antes de perceber que ele já havia se
amparado com as mãos. Com um gemido, virou-se, deitando de costas.
Uma mão voltara à ferida e eu resisti à tentação de mandá-lo parar de tocá-
la, estava agindo como se fosse uma criança.
Entendi o que fazia quando ele puxou a mão e a apoiou na terra. Rook
esperou e eu senti seu olhar.
— E se eu não deixar você hoje? — perguntei.
— A oportunidade passará. A Caça sentirá seu cheiro muito rápido.
Engoli em seco, uma, duas vezes. Eu devia estar louca. Olhei para a
mão sangrenta.
— Ainda estamos nas terras estivais.
— Eu ainda sou príncipe.
Olhando para aquele rosto inumano e pontudo, deitado em descanso no
ninho emaranhado de cachos, aqueles olhos febris e decididos, pensei:
“Você é mesmo, não é?”
Levantei as dobras da saia e me sentei numa pedra.
Era resposta o bastante para Rook.
Enfiou a mão na terra, esticando os dedos compridos. Não era uma
oferenda, mas um comando, e a floresta irrompeu ao nosso redor. Raízes
largas como mesas de cozinha cresceram do chão, cobertas por espinhos
mais longos e mais afiados do que qualquer espada. Quando atingiram a
altura máxima, abriram-se em galhos, subindo mais, amarrando-se, até
fecharem-se numa fortaleza digna de contos antigos, um lugar onde dormia
uma princesa aprisionada e amaldiçoada. Ver aqueles espinhos horrendos
me deixou mais feliz do que seria capaz de descrever, e me perguntei se as
histórias seriam diferentes se fossem contadas pelas princesas.
Quando os últimos galhos fecharam a formação sob o luar, que
estilhaçavam como um espelho quebrado, Rook suspirou e parou de se
mover.
····
Acordar naquela manhã foi inteiramente diferente da manhã anterior. Os
pedacinhos de céu visíveis entre os espinheiros estavam tão nublados que
eu não sabia dizer se já tinha amanhecido ou não. Orvalho caíra sobre mim
durante a noite, encharcando minhas roupas; minha pele ficou tão gelada
que minhas mãos e meus pés tinham ficado adormecidos. No mesmo
instante senti como estava dolorida e como meu estado era repugnante. De
todo meu corpo, só meu ombro estava quente, mas de um modo
desagradável e úmido que me deu calafrios. Vi que estava coberta de musgo
na área em que o sangue de Rook sujara meu vestido, e com pressa
arranquei pedaços da sujeira.
Então virei de lado e encontrei Rook morto.
Ele estava deitado a poucos metros de mim, exatamente na mesma
posição em que o vira antes de dormir. A mão enterrada no chão, o rosto
sepulcral. Por mais impossível que parecesse, tinha ficado ainda mais
pálido durante a noite.
Andei até ele, a saia imunda esfregando minhas pernas. Por um
momento, de pé ao seu lado, só observei. Apostara tudo na sobrevivência
dele — mais do que seria sábio, fui capaz de admitir, quando uma
melancolia cinzenta me engoliu, empurrada por uma faísca leve de
esperança.
Porque eu estava errada. Ele devia estar vivo. O sangue derramado
virara musgo, mas seu corpo continuava inteiro. Se estivesse morto, não o
veria agora, não intacto, não dessa forma.
Ajoelhei e levei minha mão ao peito dele. Quando o senti subir e descer
um pouquinho sob os trapos do casaco, soltei uma risada engasgada,
abalada pelo alívio. Levei a mão à beira do casaco para afastá-lo da ferida.
A manga do meu vestido ficou presa no broche de corvo e o metal gelado
espetou meu punho. Eu me afastei. Tinha ativado um mecanismo. O pássaro
tinha um compartimento escondido.
Estaria mentindo se dissesse que o segredo revelado ali era uma
surpresa. Havia pouquíssimas explicações para o comportamento de Rook,
e aquela era a prova da mais provável: um cacho de cabelo humano loiro
guardado no compartimento, cuidadosamente amarrado por um fio azul.
Lembrei-me de como insistira em tirar o broche para o retrato. Mesmo
então ele se esforçara para se proteger, proteger a reputação, da dor
horrivelmente mortal. Rook ainda o usava, apesar do estilo antigo e do
estado desbotado do broche indicarem que tinha duzentos ou trezentos anos.
Fechei o broche suavemente, mas precisei pressioná-lo contra o peito
para prendê-lo e acho que o machuquei, porque ele abriu os olhos
arregalados. A aparência sobrenatural à luz do dia me causou um choque
desagradável. Estavam vidrados, ardendo de febre. Ele tentou se mover e
começou a ofegar.
— Eu estou me sentindo esquisito — anunciou, forçando seu olhar para
o ar vazio ao meu lado.
— Você está esquisito mesmo.
Preparei-me para tocar sua testa, que estava quente como um forno
contra meus dedos gelados.
— Eu tinha a impressão de que fadas não tinham febre — falei,
preocupada.
— O que é febre? — perguntou ele, com uma careta, o que não
melhorou meu medo.
— Acontece quando uma ferida piora. Vou tocar você bem aqui.
Apontei para as roupas e, apesar de tenso, ele assentiu. Enquanto me
esperava trabalhar, tirou a mão da terra, examinou-a e procurou alguma
coisa para limpá-la. Tive a suspeita irritante de que ele considerara meu
vestido antes de usar um pedaço de musgo como guardanapo.
Abri o casaco e meu estômago revirou. A pele ao redor da ferida estava
preta. Veias pretas saíam dela como uma teia de aranha, sumindo sob as
beiras das roupas. Quão longe chegara o veneno? Abri mais o casaco e a
camisa, desabotoando até a cintura sem me preocupar com preservar sua
modéstia. Ou minha modéstia, na verdade, pois, apesar de me educar
inteiramente sobre o assunto, nunca tinha visto um homem despido.
Rook se apoiou no cotovelo. Apesar da fraqueza, de repente pareceu
muito interessado no que eu estava fazendo. Finalmente, seu olhar
encontrou o peito. Ele gritou de nojo e arrancou as roupas das minhas mãos,
abotoou tudo de novo e se levantou com mais vigor do que eu imaginaria
possível. Analisei-o, desconfiada. De certas formas, ele melhorara muito.
No entanto, como era costumeiro com febres, podia ser a chama final antes
de o corpo desabar em cinzas.
— Você não pode fingir que não tem nada aí — falei, me levantando
com dificuldade.
— Mas é horrendo — respondeu ele, como se a objeção fosse razoável.
— Feridas purulentas são sempre horrendas.
Ignorei o olhar ofendido dele em resposta à palavra “purulenta”,
provavelmente supondo que eu o ofendera.
— Você faz alguma ideia de por que isso está acontecendo? —
perguntei.
Ele deu as costas para mim, puxou a gola com um certo medo e olhou
por baixo.
— A terra não estava… boa. O Lorde Tumular compartilhava da doença
e parece tê-la transmitido para mim. Temporariamente, óbvio.
Aquilo não me parecia nada bom.
— Rook, acho que você precisa de tratamento médico.
— E você sabe tratar meu ferimento? Não. Foi o que eu pensei.
Continuaremos o caminho até as terras outonais, que não deve demorar
agora que posso andar sozinho.
Ele evitou meu olhar ao falar. A noite anterior obviamente não foi um
de seus maiores orgulhos.
— Independente do que aconteceu com a ferida, não importará quando
eu puder me curar direito — continuou. — Portanto, é melhor partirmos
sem mais delongas.
A contragosto, admiti que, nesse caso, ele sabia mais do que eu. Rook
avançou até a beira dos espinheiros, cambaleando só de leve, e levou a mão
a um dos galhos. Eles começaram a se retorcer como minhocas, retraindo-se
até formarem uma passagem. Corri atrás dele, com uma careta para a
aspereza da saia imunda contra minhas pernas.
A floresta na qual emergimos não era tão sinistra quanto a área das
pedras entalhadas, mas ainda tinha uma aparência esquisita que não havia
notado no escuro e não sabia explicar. As folhas verdes eram lisas e
brilhantes demais, quase como se também fossem tomadas pela febre. O sol
trabalhava para queimar a névoa úmida que eu confundira com nuvens.
Durante o trajeto, fui incapaz de afastar as lembranças da noite anterior.
O cheiro de podridão imaginado atrasava meus passos. Examinando meu
corpo, encontrei uma mancha na meia esquerda, onde o cadáver agarrara
meu tornozelo. Precisei me conter para não arrancar a meia ali mesmo.
Como era costumeiro com pequenos desconfortos, não conseguia me
distrair depois de tê-la notado, enlouquecida pela forma como coçava no
calor do verão.
Pensando nisso, uma ideia me ocorreu.
— O baronete também era das terras estivais, não era? — perguntei. —
Aquele que você destruiu quando nos conhecemos. A temperatura mudou
quando ele chegou, que nem aconteceu com o Lorde Tumular. Mas nada
disso aconteceu com os cães da Caça Bravia.
Relutante, ele assentiu.
Cerrei os olhos.
— E a quantidade incomum de feras fadas soltas que você mencionou?
Todas saíram das terras estivais também?
— Ah — disse Rook. — Colocando desse jeito, é mesmo uma
coincidência estranha.
— Eu sinceramente duvido que seja coincidência!
Puxei minhas saias com os punhos fechados e apertei o passo ao lado
dele, me sentindo mais imunda e nojenta a cada minuto. Que bom. Ele
merecia.
— Quer dizer que a conexão nunca passou por sua cabeça? —
perguntei. — Você tem qualquer capacidade de pensamento analítico?
Ele olhou para a frente; altivo, como sempre.
— Claro que tenho. Eu sou um…
— É, eu sei. Você é um príncipe. Deixe para lá.
Eu tive a impressão nítida de que ele nunca ouvira falar em pensamento
analítico.
— As outras cortes têm falado disso, então? — insisti.
Ele arrancou a coroa e bagunçou o cabelo.
— Por que isso é tão importante para você? — exclamou, aborrecido.
— Por quê?
Parei abruptamente. Ele se virou quando notou que eu ficara para trás.
— Por quê? — continuei. — Porque uma fada fera das terras estivais
provavelmente matou meus pais. Porque quase me mataram duas vezes.
Porque vão matar mais humanos se ninguém descobrir o que está
acontecendo. Sabe, motivos estúpidos e mortais.
Ele hesitou. Apertei os punhos contra a infelicidade passageira na
expressão dele. Não queria que se sentisse culpado e pedisse perdão, queria
que entendesse.
— Não falamos dessas coisas — respondeu, finalmente. — Nunca.
Porque não podemos. Não podemos pensar nisso. Até essa conversa é
extremamente perigosa para nós dois.
Como bile, as palavras proibidas subiram pela minha garganta. Com um
calafrio, eu as engoli.
Rook não era responsável pelas feras fadas. Apesar de, para começo de
conversa, ser inteiramente culpado por me arrastar para a floresta, quase
morrera ao tentar me proteger na noite anterior. Isso era inegável. Ele
abaixou a cabeça e os ombros nas roupas esfarrapadas e a coroa tremeu
entre seus dedos. Respirava com dificuldade. Discutir obviamente o
cansara.
— Perdão — dissemos os dois ao mesmo tempo, em vozes idênticas de
relutância.
Um sorriso surpreso puxou os cantos da boca dele. Foi a minha vez de
evitar seu olhar. Respirei fundo, determinada a abordar mais um assunto
antes de continuarmos.
— Precisamos falar sobre o que você disse ontem à noite.
— Odeio quando dizem isso para mim. Nunca é boa coisa.
— Rook. Você não está mais me levando ao julgamento, está? Você
mudou de ideia.
Não sei que reação eu esperava. Talvez que se empertigasse e dissesse:
“Você ousa conhecer os pensamentos de um príncipe?” Certamente não era
a forma como ele olhou para o lado e mexeu, desconfortável, no broche de
corvo.
— Percebo agora que eu… eu cometi um erro — confessou. — Você
não me sabotou intencionalmente. O que você fez com seu Ofício foi…
Ele tentou encontrar palavras, incapaz de descrever o que não entendia.
— Quando fui buscá-la — continuou —, não contei meus planos para
ninguém. Não sentirão nossa falta na corte do outono. Quando estiver
curado, prometo levá-la de volta ao reino Excêntrico.
Minhas pernas ficaram bambas e eu me segurei numa árvore. Eu ia
voltar para casa. Para casa! Para Emma e as gêmeas, minha casa segura e
quentinha, o cheiro de óleo de linhaça, o trabalho do qual já sentia tanta
falta. Mesmo assim — de volta ao verão sem fim, a tudo que sempre fora
—, uma vida que se arrastava ao som do zumbido incessante de gafanhotos
no trigal. Eu abandonaria as maravilhas das terras outonais para sempre.
Meu coração subia e caía aos pulos, como um pássaro apanhando da
tempestade. Se me sentisse assim por muito tempo, eu me autodestruiria. O
que podia fazer? Como parar?
O que exatamente fizera Rook enfim entender a verdade?
Eu o estudei. Sua expressão era impassível. No entanto, a forma como
mexia no broche de corvo, seus olhos cada vez mais vidrados, piorou a
turbulência sacudindo meu humor.
— E você? — perguntei. — Sua reputação? O que fará para recuperá-
la?
Ele se acalmou e respondeu:
— Pensarei em…
De repente, parou. Mexeu o maxilar, não emitiu som algum.
— Não falemos disso — concluiu, sem jeito. — Vê aquela colina?
Quando chegarmos ao topo, estaremos de volta às terras outonais.
Apertei os olhos. A colina não me parecia diferente da floresta atrás de
nós. Enquanto pensava nisso, reparei por que Rook não fora capaz de
terminar a frase.
Era mentira.
Nove
Meu plano exigiu uma certa discussão para confirmar que Rook poderia
dizer as informações necessárias. Ensaiamos ao caminhar e ele ficou bem
satisfeito. Eu também estava mais do que satisfeita. Sentia o prazer
reluzente de quando negociava um feitiço especialmente trabalhoso, ou
esticava e emoldurava um mês de telas com antecedência. Meu mundo
voltou à ordem e eu finalmente tinha algum controle sobre o que
aconteceria a seguir. Além disso, talvez eu até pudesse consertar minha
sabotagem acidental.
— Você acha mesmo que isso pode restaurar sua reputação? —
perguntei, levantando a saia para pular as prímulas amarelas do campo.
Sempre que a brisa mudava de direção, trazia uma nova fragrância —
algumas eu identificava, mas outras eram completamente novas.
— No estado em que se encontra minha reputação atualmente, duvido
que qualquer coisa possa restaurá-la — respondeu ele, com um sorriso
torto. — Mas o retrato… sim, acredito que possa. Estou aliviado por não
estar mais do outro lado de seus estratagemas. Você é muito mais ardilosa
do que parece.
Por mais que tentasse evitar, ouvia um eco da confissão de Rook em
tudo que ele dizia depois que deixamos o poço para trás. Sabendo procurá-
la, percebia a admiração calorosa em seu tom. Apesar de o nosso humor ter
se tornado mais leve, o ar perfumado pesava de tensão. Forcei uma
gargalhada, me concentrando nos passos através das flores altas e
emaranhadas.
— Não sou ardilosa, só prática. Mas suponho que fadas não ligam
muito para praticidade.
Ele franziu a testa, tentando entender se eu o insultara.
— Olhe — falei, rápido, escondendo meu riso ao andar até uma enorme
pedra musgosa. — Esta flor é do tamanho da minha mão. O que as fazem
crescer tanto?
Assim que me abaixei e colhi a flor, uma perna vestida apareceu ao meu
lado. A calça era feita de seda rosa-cinzenta e brilhante, e outra perna igual
veio a seguir. Dei um pulo para trás e caí sentada a tempo de ver Gadfly
acabar de sair do espaço entre os dois pedaços da pedra quebrada. Era ainda
mais estranho porque — eu tinha completa certeza — ele não surgira do
outro lado. De alguma forma eu havia tropeçado na entrada de um caminho
das fadas.
— Boa tarde, Isobel — disse ele, agradável, ajeitando a gravata
impecavelmente arrumada.
Ele não pareceu nada surpreso por me encontrar no chão à sua frente,
assustada e segurando uma prímula.
Quando o choque passou, reparei que estava absurdamente feliz por vê-
lo. A saudade de casa que eu não tivera tempo de sentir nos últimos dias me
atingiu como uma carruagem desgovernada. Passara anos com ele no
estúdio e, apesar dos olhos azuis-claros não indicarem o menor sinal de
calor genuíno, seu rosto era o mais familiar que vira desde que partira de
casa.
Quase exclamei seu nome, mas me controlei no último segundo. Meus
modos tinham deteriorado horrivelmente no tempo em que passei na
companhia do Rook.
— É maravilhoso vê-lo, Gadfly — falei, me levantando para uma
reverência. — Rook o informou de nossa chegada?
Se fosse o caso, seria novidade para mim.
Ele se curvou em reverência e olhou de relance para Rook.
— Nosso querido Rook por acaso se importa com tais cortesias? Não,
eu simplesmente sabia que vocês viriam. Muito pouco passa batido por
mim nas terras primaveris… Nem mesmo uma flor arrancada.
Olhei para a prímula, culpada.
— Fique com ela, por favor — insistiu ele. — Considere um presente de
boas-vindas ao meu reino.
Enquanto eu digeria as palavras curiosas, ele passou por mim e andou
em círculos ao redor de Rook, que aguentou a inspeção com o queixo
levantado e o rosto duro. Ao compará-los, senti um orgulho estranho em
constatar que Rook era vários centímetros mais alto. O seu cabelo escuro e
desgrenhado e seus olhos marcantes o diferenciavam da palidez pastel de
Gadfly como noite e dia. Apesar de ser, por muito, o mais jovem dos dois,
ele estava, em todos os sentidos, à altura de Gadfly.
— Essas roupas saíram de moda há pelo menos cinquenta anos — dizia
Gadfly. — Ninguém usa botões de cobre na corte da primavera. Se insistir
em ficar, teremos de achar…
O que ele disse depois e o que Rook respondeu se perderam de mim
quando acabei de digerir a declaração: boas-vindas ao meu reino.
Pigarreei. Gadfly me olhou.
— Gadfly, o senhor é o príncipe da primavera?
Ele sorriu.
— Sim, claro. O próprio! Certamente já mencionei esse fato?
— Não, não posso dizer que mencionou.
— Que distração a minha. Sou tão esquecido com mortais…
Simplesmente presumo que todos já saibam.
Enquanto Gadfly falava, Rook o estudava com uma expressão ilegível.
— Ora, não tema, Isobel — continuou Gadfly. — Seus modos são
irretocáveis. Sempre me senti tratado como príncipe em seu lar. Agora,
antes que eu esqueça outro detalhe, poderia me dizer por que está vagando
pela floresta, especialmente em companhia tão distinta?
— Na verdade… — falei, olhando para Rook.
Fiquei agradecida por termos planejado que seria ele quem explicaria,
pois a revelação do cargo de Gadfly me deixara sem palavras.
— Vamos conversar enquanto caminhamos — sugeriu Rook, ajeitando
o casaco e apertando o cinto da espada, com o que me parecia certa
irritação.
Eu me perguntei se ele tinha levado a sério as críticas de Gadfly. Em
seguida, Rook começou a andar pelo prado, deixando a gente para trás.
— Ele é uma figura singular, não é mesmo? — comentou Gadfly.
Como eu poderia responder àquilo sem revelar nada? Decidi-me pela
resposta mais simples que me ocorreu:
— É mesmo, senhor. Acho todas as fadas muito singulares.
— Ah, como eu gostaria que fosse verdade! Mas temo que sejamos
todas iguais — respondeu, com um sorriso tão sutil e gelado quanto a neve
que começava a derreter na primavera. — Quase todas. Agora, Rook… O
que você estava falando?
Avançando na nossa frente, Rook estava nitidamente cansado de tantas
prímulas.
— Como você bem sabe — disse ele, impaciente —, Isobel é dotada do
Ofício mais distinto do reino Excêntrico atualmente. O retrato que pintou de
mim era diferente de tudo que já vimos na corte do outono.
— Ouvi falar — respondeu Gadfly.
Precisei fazer um esforço monumental para não olhar para ele e analisar
sua reação.
— Foi um choque para todos nós, especialmente para mim. A princípio,
imaginei que fosse um ato de sabotagem, pelo qual Isobel deveria ser
julgada. Entretanto, a caminho da corte do outono, descobri que ela não
tinha intenções maliciosas. Ela simplesmente pintara uma emoção humana
em meu rosto, com enorme talento, sem entender o que tinha feito.
Isso tudo era verdade… de certa forma.
— Agora, Isobel está interessada em replicar seu novo Ofício —
acrescentou.
— Emoções humanas, Gadfly — continuei, mais confiante a cada
momento em que não cometíamos deslizes. — O senhor já provou de tudo
que o Ofício tem a oferecer: bolinhos e porcelanas, ternos de seda, livros,
espadas. Continuamos a inventar versões diferentes das mesmas coisas, mas
o que eu gostaria de experimentar é completamente novo. Eu poderia pintar
alegria verdadeira em seu rosto. Assombro em outro retrato. Risada, ou
fúria… até tristeza. Rook me informou que o seu povo acharia isso tudo
muito divertido.
— Por conta disso, eu a trouxe à corte da primavera, onde ela pode
demonstrar o trabalho primeiro para os clientes mais dedicados — concluiu
Rook, grandioso. — Se os resultados forem satisfatórios, acredito que tal
Ofício mereça uma recompensa justa. Proponho que, caso ela escolha
aceitá-lo, o pagamento de Isobel deverá ser uma visita ao Poço Verde.
Meu sorriso era radiante de inocência. Uma visita, não um gole.
— Algo inteiramente novo — murmurou Gadfly, sua voz distante.
Por um momento, pareceu muito mais velho do que a idade aparentava.
As abelhas pararam de zumbir no ar de mel, e todos os pássaros cessaram
de cantar. Prendi a respiração com o resto do mundo.
— Sim — disse ele, enfim. — Sim, acho excelente. Isobel, Rook, seria
um prazer hospedá-los. Pelo tempo que estiverem na corte da primavera,
terão tudo de que precisarem.
····
Chegamos à corte muito antes do que esperava, e quase entrei direto, sem
reparar onde estávamos. Bétulas mais largas do que a altura de um homem
cresciam ao nosso redor, chegando a alturas impressionantes. Inclinando o
pescoço, vi que os galhos eram entrelaçados de forma muito parecida com
os abrigos de Rook; voando entre eles havia passarinhos canoros e beija-
flores coloridos como joias. A única árvore que se destacava das outras era
um corniso antigo e nodoso em plena floração, elevado em um montículo
musgoso. Crescera num formato estranho e, ao tentar entender, reparei que
não era uma mera árvore, mas um trono.
Assim que cheguei àquela conclusão, a floresta ao meu redor mudou.
Gargalhadas argênteas encheram o ar, com um brilho que lembrava o vapor
escapando de uma chaleira; cadeiras estofadas, almofadas de seda e toalhas
de piquenique se espalharam pelo campo florido. Até então invisíveis,
dezenas, se não centenas, de fadas nos viam chegar, em vários estados de
repouso. Minhas pernas ficaram bambas, como se fossem líquidas, e
precisei me forçar a continuar andando. Nunca tinha visto nem uma fração
daquela quantidade de fadas de uma vez no mesmo lugar. Pior ainda: eles
não estavam nos observando. Estavam olhando para mim, só para mim: a
primeira mortal a pisar naquela corte em mais de mil anos.
Quando nos aproximamos do trono, uma menina se levantou de uma
toalha — parecia estar tomando chá, mas todas as xícaras estavam vazias —
e correu na nossa direção, o cabelo loiro e comprido esvoaçante, as muitas
camadas do vestido azul-lavanda ondeando como o mar. Quando nos
alcançou, ela me assustou ao pegar minhas duas mãos. Sua pele era fria e
impecável como porcelana. Se fosse humana, diria que tinha uns quatorze
anos.
— Ah, uma mortal! Gadfly, você nos trouxe uma mortal! — gritou em
um simulacro de deleite exultante, revelando que todos seus dentinhos
brancos eram pontudos como os de um tubarão. — Precisamos apresentá-la
sem falta a Aster, ela ficará tão alegre! Você vai beber do Poço Verde? —
perguntou, voltando a atenção para mim. — Por favor, diga que sim, por
favor! Podemos ser melhores amigas. Claro que ainda podemos ser
melhores amigas se você não beber, mas você morrerá tão rápido que mal
valerá a pena!
Gadfly tocou o ombro dela.
— Isobel, esta é minha… — hesitou, procurando a palavra. — Minha
sobrinha, Lark. Por favor, perdoe a empolgação. É a primeira vez que ela
conhece uma mortal. Garanto que ela se comportará muito bem para com
você, nossa convidada de honra.
Isso era obviamente mais dirigido a Lark do que a mim.
Fiz uma reverência meio torta, o que era difícil, pois ela ainda segurava
minhas mãos. No entanto, parecia valer, pois, para meu alívio, ela me soltou
e retribuiu. Meus dedos ardiam como se tivessem sido mergulhados em
gelo.
— É um prazer conhecê-la, Lark.
— Claro que é! — respondeu ela.
— E você já conhece Rook — continuou Gadfly, educadamente.
— Oi, Rook — disse Lark sem desviar o olhar do meu rosto. — Você
pode se transformar em lebre de novo para eu tentar pegar você?
Rook riu.
— Isso é brincadeira de criança, Lark. Agora você já é uma jovem
dama.
— Você é chato. Coitada da Isobel, deve estar de saco cheio de você.
Posso trocar as roupas dela? — perguntou para Gadfly, cujo sorriso estava
se tornando fixo.
— Daqui a pouco, querida. Por enquanto, eu e Isobel precisamos
discutir o Ofício. Por que você não senta aqui ao lado do trono e pensa nos
vestidos que gostaria que ela usasse? Lembre-se de que ela não pode usar
encanto, então o vestido precisa ser novo.
Ele inclinou a cabeça, insistente.
— Ah, tá bom! — suspirou ela, jogando-se ao lado do trono numa pilha
trágica de seda azul.
— Agora — disse Gadfly, aprumando-se com elegância na plataforma
do corniso —, o que precisaremos providenciar para que você trabalhe em
seu Ofício? Temo que não tenhamos materiais semelhantes aos que vi no
seu estúdio. Posso mandar buscarem materiais no reino Excêntrico, mas
minha corte está horrivelmente ocupada com preparações do baile de
máscaras, e a entrega pode demorar um pouco.
Resisti à vontade de olhar para as fadas ao nosso redor, nenhuma das
quais fazia qualquer coisa mais produtiva do que mordiscar biscoito.
— Deixe-me pensar, senhor.
O que eu poderia usar?
— Primeiro, precisarei de um substituto para tela ou papel — falei. —
Talvez folhas de casca de árvore, finas e de cor pálida, firmes mas
suficientemente flexíveis para esticar sem rachar. Casca de bétula pode
funcionar bem, e aqui parece ter em abundância.
Era minha imaginação ou os galhos do trono de Gadfly se mexiam?
— Além disso — continuei, incomodada em pensar que o corniso podia
ter se ofendido —, acho que posso colher pigmentos naturais sozinha. Tinha
o hábito de fazê-lo quando criança.
— Excelente — disse ele, levando um dedo aracnídeo aos lábios. —
Uma cadeira e um suporte para a casca?
— Parece ótimo, senhor.
Eu não fazia a menor ideia do que poderia usar como pincel ou lápis,
mas daria um jeito. Se necessário, usaria os dedos.
— Por causa da diferença de material — acrescentei —, os retratos não
terão a mesma aparência dos que costumo fazer, nem durarão tanto tempo.
Entretanto, se o trabalho lhe agradar, seria um prazer reproduzi-los a óleo.
Ou seja, usando meu método costumeiro — expliquei, sabendo que talvez
ele não me entendesse.
— Será que agora eu posso vesti-la? — disse Lark do chão, onde
continuava largada na mesma pilha lamentável.
Gadfly ergueu uma sobrancelha e me olhou.
— Hm — falei. — Suponho que sim. Mas eu devia…
— Você vai experimentar tudo! — exclamou Lark, sua mão gelada
fechando em meu punho como um torno.
Antes que eu pudesse reagir, estava sendo arrastada entre as fadas
risonhas, sem esperança de fuga. Olhei por cima do ombro para Rook, que
me observava partir com atenção, e me reconfortei ao pensar que ele logo
inventaria uma desculpa para eu não sufocar entre saias de seda do século
anterior.
Lark me puxou até uma das bétulas gigantescas, que tinha cipós grossos
enroscados como uma escada em espiral. Ela subiu os degraus de aparência
duvidosa sem hesitação, me arrastando junto. Subimos mais e mais, as
fadas no chão diminuindo até o tamanho de soldadinhos de chumbo.
Concluí que, se prestasse atenção aos meus passos nas raízes nodosas, não
olhasse para baixo e segurasse o tronco com a mão livre, era capaz de
resistir à vontade de vomitar na roupa de Lark. Ela tagarelou alegre o tempo
inteiro, sem parecer se importar com minha falta de resposta.
No topo, emergimos num labirinto de folhas. Lembrava um pouco os
labirintos de sebes, mas, no lugar das sebes, eram caramanchões arqueados
de galhos brancos que lembravam vime, preenchidos por folhas de um
verde-claro. O chão era um pouco elástico, mas ainda assim sólido. Eu não
me incomodaria de andar ali se não soubesse da enorme altura. Objetos de
Ofício estavam empilhados pelo caminho, subindo pelas paredes em montes
instáveis de móveis, almofadas, livros, pinturas e louças. Joias brilhavam
penduradas em pernas de cadeiras caídas; aranhas teciam teias cintilantes
entre atlas e cabideiros de bronze.
— Por aqui! — gritou Lark.
Ela me puxou com tanta força que quase deslocou meu ombro, me
arrastando por um dos corredores. Correndo atrás dela, precisei dar
pulinhos de lado para me esgueirar entre as passagens estreitas, e suspeito
ter destruído os lares de algumas aranhas no caminho.
— Eu guardo meus vestidos na Toca do Passarinho — disse ela. —
Damos nome para todos os cômodos, mesmo que não sejam bem cômodos,
porque isso é algo que mortais fazem.
— Ah, que bacana — respondi baixinho, tomada por pavor.
No fim, entretanto, apesar do nome pouco propício, a Toca do
Passarinho era mais ou menos igual ao resto do labirinto, mas na forma de
uma câmara abobadada anexa a um dos corredores, onde passarinhos
canoros se aglomeravam. Quando entramos, eles saíram voando em uma
explosão melódica. Cipós floridos protegiam a parede mais distante, como
uma cortina. Lark finalmente soltou meu braço, que estava dolorido, para se
enfiar atrás da cortina de cipós, sumindo até a cintura.
— Aqui — disse ela, jogando uma pilha de seda nos meus braços. —
Tire esse seu vestido marrom velho e sem graça e vista isso. Talvez fique
comprido porque você é baixinha, mas você pode mudar, não pode? E
depois deixar como era?
Levei um momento para entender o que ela queria dizer.
— Não faço esse tipo de Ofício, infelizmente. Sei costurar um pouco,
para remendar rasgos, coisas assim, mas não sou alfaiate.
Lark se endireitou e me encarou, confusa. Os olhos grandes, afastados e
azuis lembravam os de um pardal curioso. Se não fosse pelos dentes, eu
acharia a aparência dela muito agradável.
— Algumas fadas têm tipos diferentes de magia, não têm? — tentei. —
Magia que é única a elas, ou a poucos do seu povo, que nem o Rook, que é
capaz de mudar de forma, por exemplo.
— Sim! — exclamou ela. — Que nem o Gadfly sabe das coisas antes
que elas aconteçam.
Guardei aquela informação para o futuro.
— Ora, é o mesmo que acontece com mortais e o Ofício. Minha
especialidade é fazer imagens do rosto das pessoas. Sei fazer um pouquinho
de comida, mas não sei muito o que fazer com roupas, e nada de armas.
— E quem precisa de armas! Se eu fosse mortal, gostaria do Ofício para
fazer vestidos. Por favor, vista isso logo?
Olhei com uma careta para o tecido cor-de-rosa.
— Claro. Segure para mim enquanto me apronto?
Devolvi o vestido e me despi do meu. Por falta de onde guardá-lo, eu o
deixei no chão e tentei enfiar o vestido novo com a “ajuda” de Lark, que
envolvia uma quantidade desnecessária de cutucões e puxões. O tempo todo
pensei no anel de ferro escondido no meu bolso, e desejei ter pensado em
guardá-lo nas meias.
— Você está muito mais bonita — disse ela com seriedade quando
acabamos. — Mas rosa não é sua cor. Tire de novo!
Ela mergulhou outra vez no armário.
Eu estava me livrando do monte de tecido quando um farfalhar soou da
parede. Quando me virei, encontrei um corvo bicando os galhos. Ele virou a
cabeça de um lado para o outro, puxando e cortando folhas para abrir
caminho, nos dirigindo um olhar roxo e exigente. Fui tomada por alívio,
logo antes da lembrança incômoda de que estava vestindo só as roupas de
baixo. Apertei os braços contra o peito assim que Rook acabou de enfiar a
cabeça entre os galhos. Preso pela metade para fora da parede, ele chilreou
irritado.
Não me contive, acabei rindo. Era difícil sentir vergonha de um
passarinho.
— Tudo bem, fique quieto — falei.
Fui até ele e passei a mão ao lado das penas para afastar o resto dos
galhos. Ele voou até o chão. E, com um ar de importância, atravessou o
cômodo andando e puxou a saia do vestido de Lark.
— Pare! — disse ela. — Estou ocupada. Não vou quebrar ela, prometo.
Rook e eu nos entreolhamos. Ela dera sua palavra, querendo ou não,
mas eu me perguntei o quanto valia, considerando a pouca probabilidade de
Lark entender, exatamente, como se quebrava um mortal.
Ela deu meia-volta.
— Este aqui.
O rosto dela brilhava de satisfação.
Meu deus. Era um vestido Firth & Maester. Eu o aceitei com relutância,
como se fosse o colar de diamantes de uma rainha, e o apertei contra meu
corpo, meus joelhos bem juntos, excessivamente atenta a Rook, que estava
logo ali.
— Lark, não sei se este é ideal. Daqui a pouco eu tenho que me enfiar
na floresta, para procurar frutas, e detestaria sujar o vestido.
— Por que você se importaria com isso?
— Bem, porque aí estaria estragado. Gadfly não ficaria chateado por
precisar substituí-lo?
— Que boba. Olhe só!
Ela pegou outro vestido do meio dos cipós. Eu me encolhi
involuntariamente. Parecia ter servido de vestido de noiva muito tempo
antes, mas o tecido, que um dia tinha sido branco, estava imundo e
cinzento, destruído por buracos de traça. As fitas penduradas da cintura
estavam tão podres que uma caiu quando Lark puxou o vestido. No entanto,
assim que a roupa tocou o corpo dela, desdobrou mais cetim nevado. A
renda se restaurou como flores brotando, e as fitas se desenrolaram até o
chão, imaculadas. O vestido parecia recém-feito, sem o menor sinal de uso.
Ao ver minha expressão, Lark caiu na gargalhada, mostrando todos os
dentinhos pontudos. Em seguida, parou de rir de uma vez, como se tivesse
fechado a tampa de uma caixinha de música.
— É por isso que ele me mandou buscar um novo — explicou ela. —
Mas só podemos deixá-los exatamente igual a como eram. Não tenho como
mudar a forma, nem como acrescentar nada.
Ela me observou. E notei que estava prestes a perguntar sobre minha
capacidade de costurar de novo, então rapidamente vesti a roupa da Firth &
Maester antes que ela tivesse a oportunidade.
O vestido era feito de um lindo cetim verde-sálvia. O corpete era
bordado com passarinhos minúsculos em linha prateada, e uma fita de cetim
cor de creme marcava a cintura alta, abaixo da qual uma camada a mais de
musseline translúcida cobria a saia verde. Era cintilante e diáfano, como
uma asa de libélula. Em um dia comum, eu nunca vestiria algo tão fino sem
uma boa anágua, e o toque do tecido suave era desconhecido por minhas
pernas nuas, era sedoso e sutil como água. Não combinava nada com
minhas botinas de couro grosso, cuja ponta aparecia sob a bainha, mas
aquele era um aspecto que eu me recusava a mudar. Nunca se sabia quando
eu precisaria correr.
— Perfeito para colher frutinhas — brinquei, sem força.
— E você?
Lark perguntara aquilo para Rook, que me observava com a cabeça
inclinada. Calor tomou meu rosto e eu resisti ao impulso de cruzar os
braços de novo, apesar de não ter nada a esconder.
— Gadfly já fez você trocar aquelas roupas sem graça das terras
outonais? — insistiu ela.
Vento sacudiu a Toca do Passarinho e Rook se materializou ao nosso
lado, desgrenhado e irritado.
— Claro, foi a primeira coisa que ele ordenou. Mas essas cores não
combinam nada comigo.
— Deixe de ser chato! Preto e marrom e sei lá mais o que você vestia
não combinam com ninguém. Acho que você está muito elegante.
— Acredito que devemos concordar em discordar no que diz respeito à
moda — respondeu ele, com dignidade. — Além disso, não era marrom, era
cobre.
— Cobre! — repetiu ela, soltando mais uma gargalhada, apesar de eu
não entender a graça.
Para ser completamente sincera, Rook ficaria esplêndido até vestido só
de lençol. No entanto, as roupas anteriores combinavam bem mais com ele
— a jaqueta verde-samambaia que Gadfly arranjara para ele não combinava
com a pele mais escura nem com o cabelo, e estava um pouco apertada nos
ombros. A gravata desarrumada mostrava sinais de ter sido cutucada sem
parar; eu duvidava que durasse muito. No entanto, pensei irônica, pelo
menos estávamos combinando.
— Vocês já acabaram aqui? Recebi ordens de descer com Isobel para
apresentações quando ela estivesse vestida. Você pode ajudar a apresentá-la,
claro — acrescentou para Lark, que estava fazendo cara feia.
— Ah, tudo bem! — disse ela, pegando o braço dele.
Rook levantou o outro cotovelo para mim, eu sorri e sacudi a cabeça.
— Nunca conseguiremos atravessar aqueles corredores passeando de
braços dados. Vou acabar empalada num cabideiro.
— Pare com isso, Isobel! — gritou Lark. — A gente não vai por lá.
Por onde poderíamos ir? Certa de que estava prestes a experimentar
outra estranheza feérica que preferia evitar, aceitei o braço de Rook.
Observei a aparência delicada da minha mão contra a manga da jaqueta dele
e entendi como era possível que fadas se tornassem tão vaidosas,
pavoneando-se em roupas Firth & Maester e constantemente discutindo que
cores combinavam mais com cada fada.
Rook virou para mim, seu olhar exposto.
“Ele está mesmo apaixonado por mim”, pensei. Meu coração deu um
pulo digno de uma corça assustada. Ver o amor confessado em seus olhos
não se parecia em nada com ouvi-lo declarado. Aquele olhar faria o tempo
parar, se pudesse. Ao mesmo tempo suave e afiado, uma ternura dolorida
cercada por tristeza, prova nua e crua de um coração já partido. Ali estava
eu, no meu vestido de libélula, segurando seu braço, e ele sabia que nosso
tempo já havia quase chegado ao fim.
Mil asas se abriram dentro de mim. Corri atrás delas, tentando calá-las,
enfiá-las de volta onde não poderiam me fazer mal, mas era como estar no
meio de um turbilhão de borboletas, querendo capturá-las todas na mão.
Tomei consciência do calor da pele de Rook através da seda da jaqueta, e
também de que minha mão começara a tremer, só um pouquinho.
Ele não podia dizer nada na frente de Lark, nem precisava. Eu via
refletido em seus olhos tudo que deveria saber.
O que eu sentia? Como podia ter certeza?
Amor entre nós era impossível. Obriguei-me a confrontar o que
aconteceria se permitisse que aquele sentimento decolasse. Havia somente
duas opções: beber do Poço Verde ou nos condenar à morte. Encontrando o
olhar dele, deixei meu rosto mostrar minha decisão. Eu não podia permitir
nada daquilo. Eu era mais forte do que minhas emoções. Se vivesse mil
vidas, em nenhuma delas eu destruiria minha vida por amor, nem a de
outrem. Uma tempestade cresceu em meu peito; as borboletas foram ao
chão, trêmulas.
Inspirando fundo, Rook desviou o olhar.
De acordo com minha cabeça, eu fizera a coisa certa. Meu coração,
entretanto, se abriu num buraco oco e escuro, esvaziado pelo olhar que
Rook afastara. Eu me perguntei se minha cabeça e meu coração fariam as
pazes um dia, ou se eu mesma me amaldiçoara a reviver aquele instante por
todos os meus anos, meio certa de que tomara a única escolha possível,
meio sussurrando e se, inteiramente tomada por um arrependimento
amargo.
A Toca do Passarinho estalou. O chão estremeceu sob meus pés e os
galhos de vime das paredes começaram a se enroscar como linha num tear,
entrelaçando-se, caindo, curvando-se para fora. Por reflexo, apertei o braço
de Rook. Lark uivou de rir ao ver minha expressão. O cômodo todo se
transformou ao nosso redor, e eu fui tomada por pânico: naquele único
momento de intimidade, teríamos infringido a Boa Lei, afinal?
Doze
A fila de fadas esperando por um retrato era tão longa que se estendia pelo
caminho ladeado de árvores até o trono e seu fim estava fora do alcance da
minha visão. Não restava sinal algum do banquete da noite anterior. Por
mais que tentasse, não vi uma uva ou migalha no gramado musgoso. A
noite inteira poderia ter sido uma ilusão.
Foxglove estava sentada à minha frente, com um sorriso que sugeria
que a gola apertada da roupa a asfixiava aos pouquinhos. Eu me perguntei
como ela conseguira o tão desejado primeiro lugar da fila, mas decidi não
pensar demais naquilo.
Meu estômago revirou. Formular o plano era uma coisa; executá-lo era
outra completamente diferente. E se Foxglove visse o resultado e ficasse
furiosa, como Rook ficara? Ela não tinha motivo para tal, lembrei, pois o
contexto era completamente diferente, mas restava o fato de que, se eles se
voltassem contra mim, eu só tinha minha esperteza e um anel de ferro como
proteção, que agora era um peso duro dentro da bota bem amarrada. “E…”,
pensei. “E Rook.”
Eu sabia, com a mesma certeza infalível de que o sol nascia ao
amanhecer, que Rook me defenderia de outras fadas mesmo que isso lhe
custasse a própria vida. Não era um pensamento romântico. Era apavorante,
na verdade. Se aquilo chegasse a acontecer, eu não conseguia pensar na
possibilidade de não acabar com nós dois mortos.
Olhei de relance para onde ele se encontrava, sentado ao lado do trono
de Gadfly. Estava elegante, mas desconfortável, na cadeira estofada que
fora trazida para ele, inclinado para a frente com o cotovelo na coxa,
inquieto e desatento ao que Lark tagarelava. Ele me viu e nossos olhares se
cruzaram. Reparei, sem razão aparente, que um cacho de cabelo escuro
caíra sobre seu rosto. Rapidamente, voltei a atenção para o trabalho.
Para o retrato de Foxglove, eu escolhera alegria humana. Parecia-me
que o que passava por alegria entre fadas tinha duas variações. A primeira
era uma espécie de orgulho: o prazer frígido que uma mulher traída poderia
sentir ao saber que a amante do marido morrera ao cair da escada. A
segunda era um deleite vaidoso, egoísta e indulgente: um nobre rico
calculando que a mina de prata rendera tanto dinheiro que poderia viver só
de caviar por trezentos anos, se vivesse o suficiente para tal.
Portanto, ao pintar os traços de Foxglove usando pigmento de mirtilo
com a ponta da pena de Rook, eu atribuí a ela a alegria radiante e
transbordante de se encontrar nos braços de um amado; de ver uma pessoa
querida descendo a rua depois de meses de distância, reconhecendo a
silhueta na contraluz da manhã. Sem a perfeição marcada e reluzente da
tinta a óleo na tela, havia um toque rústico em meu trabalho, menos bonito,
menos realista, mas mais forte. Uma linha solta perto da boca de Foxglove,
a qual não pude corrigir, sugeria que ela continha um sorriso. Riso crescia
atrás dos olhos apertados. Trabalhar com os materiais imperfeitos facilitava
transmutar humanidade, a alquimista da corte transformando ouro de volta
em chumbo.
Quando acabei, me levantei com uma reverência. Foxglove se
aproximou e pegou a folha de casca do cavalete. A corte inteira prendeu a
respiração. Ninguém falou nada, e senti uma imobilidade inabitual de
Gadfly. Apesar de só durar o tempo de um batimento cardíaco, um instante
em que Foxglove observou meu trabalho sem reagir, a pressão cresceu e
cresceu no meu peito até eu querer gritar.
— Ah, que graça! — exclamou, a voz aguda e límpida como um garfo
batendo na taça de cristal.
Ela virou o retrato pelo tempo necessário para que as fadas na fila
dessem uma olhada rápida e insatisfatória, antes de voltá-lo para si,
continuando a admirá-lo. A qualidade de seu sorriso mudara. Seu olhar
estava vazio. Enquanto a corte cochichava animadamente atrás dela, tendo-
se dissipado a tensão anterior, ela continuou paralisada ali, encarando uma
versão de si mesma que sentia alegria humana. Ninguém reparou na
estranheza além de mim.
Ninguém além de mim e Gadfly, me corrigi, e Rook, olhando de relance
para o trono. Eles também observavam Foxglove atentamente.
As palavras de Lark voltaram a meus pensamentos. Que nem o Gadfly
sabe das coisas antes que elas aconteçam.
Mais cedo, ele recusara a honra de ser o primeiro na fila para minha
demonstração. Na hora, eu não dera importância, mas agora comecei a
questionar. Será que ele esperava por algo? Algo que tinha visto?
Um movimento no canto do meu olho chamou minha atenção. Ao me
virar, vi Foxglove se afastar em passos rápidos, segurando o retrato à frente
dela como se tivesse sido encarregada de segurar um bebê, a contragosto,
pela primeira vez na vida.
Suavemente, quase imperceptível, a pena tremeu entre meus dedos.
Prendi a respiração, tentando me acalmar.
Swallowtail foi o próximo. A falha dele era no cabelo, impossivelmente
loiro e fino, como uma teia de aranha, flutuando ao redor da cabeça e
lembrando flores que parecem algodão. Ele aparentava ter uma idade entre
a de Lark e Rook, e seus olhos grandes e traços jovens combinavam com a
expressão de assombro humano. Ele saiu correndo com o retrato quando
acabei, seguindo a fila para exibi-lo a todos, especialmente àqueles que
precisariam esperar por horas.
O dia seguiu. Cada retrato era uma pedra que formaria a trilha para casa.
Perdi a conta de quantos retratos fiz, marcando-os só pelas emoções usadas:
curiosidade, surpresa, diversão, deleite. Os pigmentos iam diminuindo nas
xícaras.
O tempo todo senti Rook me observando, e evitei a tristeza, decidida.
Cada fada reagia de forma diferente ao se ver transformada. Algumas
riam como se fosse uma piada hilária. Outras estremeciam e soltavam
gargalhadas ansiosas. A maioria dessas, pelo que observei, era de aparência
mais jovem. Outras, normalmente mais velhas, ficavam paradas,
observando, como Foxglove fizera. Outras ainda iam se sentar, olhando em
silêncio para o horizonte, com expressões tão inumanas que eu nem era
capaz de imaginar o que passava pela cabeça delas. Apesar de fadas
pararem de envelhecer mais ou menos na aparência de Gadfly, me parecia
que aquelas eram as mais velhas de todas.
Passar o dia todo pintando era árduo como correr uma maratona. Meu
cotovelo direito doía da posição dobrada horas a fio. Minhas nádegas e
meus joelhos estavam dormentes por causa da posição. Meus dedos,
apertados na pena, primeiro ficaram duros, depois doloridos, e finalmente
dormentes, as articulações estremecendo em espasmos sempre que eu os
esticava. Mais que tudo, meu rosto ardia de tanto sorrir. Minha expressão
congelada devia ter se tornado horrorosa depois de um tempo, mas
nenhuma fada pareceu notar.
Depois de um tempo, muitos dos que já tinham sido pintados se
juntaram para um pouco de diversão no gramado. Fiquei aliviada por não
ser mais o único foco da atenção quando cortesãos começaram a jogar
peteca e boliche ali por perto. Uma atmosfera vivaz tomou a aglomeração.
Atrás de mim, ouvi, sem ver, Rook se ajeitar na cadeira. Meu sorriso se
tornou sincero quando imaginei o quanto devia irritá-lo ficar parado aquele
tempo todo.
— Devo dizer que não vejo sentido em continuar sentado aqui! —
exclamou ele, finalmente, e saiu para ganhar de Swallowtail no croqué.
Em seguida, ele perdeu para Foxglove no cabra-cega, mas se recuperou
e derrotou todo mundo, sem humildade, tanto no boliche quanto na peteca.
Lark se agitava atrás dele como uma borboleta curiosa enquanto Rook
ganhava toda partida que jogava.
As fadas jogavam na velocidade humana, notei, interessada. Talvez
fosse a única regra que permitia algum desafio. Em várias ocasiões, vi o
projétil plumado passar voando por um jogador a uma distância que
certamente seria alcançada com pouco esforço.
Rook deixara o casaco para trás. Sempre que virava o corpo, uns poucos
centímetros da camisa branca apareciam sob o colete apertado, acentuando
o tronco esguio. As mangas arregaçadas exibiam os antebraços musculosos,
e um leve brilho de suor desenhava seu pescoço acima do colarinho
desabotoado. Como eu o tinha visto derrotar feras fadas sem suar, reconheci
que estava se esforçando para se conter. A cada volta, cada golpe, ele
precisava se controlar para não exibir seu poder como um cavalo de guerra
desfilando empertigado nos arreios finos.
Sem aviso, calor tomou conta de mim. Na manhã de dois dias antes…
ele havia ficado suado também? Lembrei-me das mãos dele me levantando
como se eu fosse uma pena, acariciando meu tronco, me apertando contra a
árvore…
Com o rosto em chamas, acabei de contornar as linhas do cabelo da
pintura, tirei-a do cavalete e entreguei-a ao retratado. Ele saiu correndo,
rindo da expressão confusa no seu rosto pintado, e entrou numa partida de
boliche. A próxima fada se sentou, alisando a saia sobre os joelhos
desnudos e frágeis.
O calor morreu como brasa jogada na laje no inverno.
Era Aster.
— Boa tarde, Aster.
Gastei o que me restava de energia para me dirigir a ela como se não
fosse nada de mais — como se simplesmente olhá-la não me desse
calafrios.
— Você tem algo em mente ou gostaria que eu mesma escolhesse uma
emoção? — perguntei.
— Ah, você pode escolher, por favor. Tenho certeza de que poderá
escolher melhor do que eu.
Ela sorriu, desanimada. Os olhos dela… Os olhos dela eram famintos.
Retorcidas nas camadas de musselina, as mãos dela tremiam. Eu sabia o
que Aster queria, mas não sabia se podia lhe dar aquilo. Ou, ainda mais
importante, se devia.
Ela queria se ver como mortal de novo.
Mergulhei a pena de Rook. O cheiro amargo de nozes esmagadas subiu
do pote quando tracei a primeira linha em ocre-escuro. Sentia-me como se
enchendo um copo-d’água que mostraria, do outro lado das grades da
prisão, para alguém que estava morrendo de sede. Naquele momento, odiei
o Poço Verde ainda mais do que antes. Odiei que existisse e que pessoas o
desejassem. Odiei ter sentado à beira dele e não sentir a crueldade
irradiando das pedras musgosas. Como ousava ter aquela aparência, uma
coisa vil, uma coisa oca, cercada por samambaias, jacintos e passarinhos.
Será que Aster tivera alguma forma de conhecer o horror eterno com o qual
concordava? A ponta da pluma tremeu com a força da minha raiva.
Desenhei o rosto dela em traços fortes e violentos. A tinta respingava
conforme eu trabalhava, dando a impressão de que o retrato brotava na
página das partículas de escuridão. O queixo pontudo, as bochechas fundas,
os olhos enormes ganharam forma sob minha mão, em forma rústica mas
verdadeira. Mudei o ângulo do rosto dela para estar levemente erguido; seus
olhos se dirigiam diretamente a quem a olhava. Como ousa?, ardiam. Sua
boca estava fechada, mas o lábio superior estava franzido. Como ousa fazer
isso comigo? Quais são suas consequências? Ela parecia prestes a irromper
da página para exercer vingança, fechar os dedos ao redor do pescoço de
alguém. Você terá o que merece!
Assim, dei a Aster minha raiva. Raiva feia, raiva humana, a raiva que
ela merecia sentir, mas não podia, porque lhe fora arrancada para sempre.
Quando acabei, estava ofegante, e uma energia estranha corria por
minhas veias como se meu sangue tivesse sido trocado por ventos uivantes.
Quando encontrei o olhar do retrato de Aster, fui tomada por emoção. Ela
estava viva na página de uma forma que mesmo meu Ofício raramente
fazia. Era verdadeira de novo.
Eu precisava me levantar. A força do vendaval em mim exigia
movimento. Ergui-me com dificuldade da cadeira, sem sentir minhas coxas
ou nádegas, meus joelhos rangendo. Levei o retrato a Aster, que me viu
aproximando com um ar de confusão educada. A casca tremeu em minha
mão. No último momento, me lembrei de fazer uma reverência. Pela corte
toda, dezenas de silhuetas elegantes se curvaram de volta, como devido.
— Eu precisava me levantar — expliquei, rouca, e Pigarreei. — Corpos
mortais não são feitos para ficarem sentados no mesmo lugar por muito
tempo.
Murmúrios de compreensão se espalharam pela fila. Todo mundo me
observava, tentando entender minhas ações. Sim, é claro; mortais eram tão
frágeis…
Entreguei o retrato a Aster.
Ela o estudou. Uma cortina de cabelo comprido e escuro caiu sobre
parte do rosto, me impedindo de observar sua expressão. Finalmente, ela
levantou um dedo e acompanhou a tinta ainda úmida, borrando-a. Levou o
borrão pela casca inteira, até a borda, apertando com força suficiente que
temi que quebrasse o retrato em dois. Quando chegou à ponta e soltou, a
casca voltou à posição original. Ela virou o dedo manchado para olhá-lo.
— Eu me lembro — sussurrou, e inclinou o rosto de leve na minha
direção, o bastante para que eu vislumbrasse o brilho do olhar através do
cabelo.
Era como se um sino ressoasse pela clareira — um sino que só eu ouvia.
Nos olhos de Aster, raiva, humana e verdadeira, tremeluzia como fogo
bruxuleando feroz no meio da noite. Meu corpo todo se arrepiou.
Tão baixo que mal ouvi, ela disse:
— Obrigada.
A magia se quebrou. Ela se levantou, o rosto vazio, tão vazio que eu
quase me questionei se imaginara a centelha furiosa, mas sabia que eu não
poderia imaginá-la ou confundi-la. Ela andou pelo gramado com o retrato
pendurado pelos dedos frouxos, aparentemente sem a menor preocupação.
Entretanto, ao sentar-se, manteve o retrato virado para o colo, como um
segredo que estava determinada a guardar.
Eu me preparei e dei meia-volta.
— Senhor — falei para Gadfly —, meu Ofício me exauriu e meus
pigmentos estão acabando. Posso fazer um intervalo?
Ele bateu as mãos.
— É claro que pode, Isobel. Não precisa nem pedir. Você é hóspede de
nossa corte e merece todas as cortesias que eu puder oferecer.
As fadas na fila suspiraram em uníssono, sussurrando de frustração.
— Ora, ora — disse Gadfly para acalmá-los, antes de voltar a atenção
para mim. — Quer que alguém a acompanhe na floresta? Rook, talvez? —
sugeriu, sem sinal de malícia.
Olhei para o jogo de peteca e vi que Rook me observava, o peito
ofegante de cansaço, tendo esquecido a brincadeira. Uma peteca passou
voando por ele, bagunçando seu cabelo.
— Não, vou me virar bem sozinha — falei tranquilamente, ouvindo
minha própria voz como se viesse de outra pessoa, de outra esquina. —
Planejo não ir muito longe e não gostaria de dar trabalho ao príncipe por
algo tão insignificante.
Eu não tinha como saber se a pergunta de Gadfly tinha sido mesmo
inocente. Se fosse sugerir que alguém me acompanhasse, Rook era a
escolha óbvia. Entretanto, eu não conseguia conter a paranoia desesperada
de que ele sabia. Talvez tivesse visto alguma coisa… alguma coisa no
futuro…
Sorri para Gadfly e me despedi com uma reverência. Então lentamente,
de forma deliberada, peguei minhas xícaras e me afastei pelo vale, onde a
copa da árvore outonal de Rook espalhava as folhas vermelhas à distância.
Senti o olhar dele me procurar, mas não me virei para vê-lo.
Afinal, eu precisava me acostumar a deixá-lo para trás.
Quinze
Hemlock parou a poucos passos dali, as mãos abertas para os lados, como
se quisesse mostrar que não trazia armas, ou como se estivesse preparada
para nos abraçar. Considerando as garras afiadas nas pontas dos dedos
compridos e nodosos, não tentei adivinhar.
Rook a olhou de cima e a baixo e, com um gesto fluido e insolente,
puxou a espada. Ele inclinou o corpo para a minha frente. Aproveitei a
oportunidade para me abaixar, tirar o anel da minha meia e enfiá-lo no dedo
enquanto ele falava.
— Há quanto tempo você serve ao Rei do Amieiro, Hemlock? — cuspiu
ele. — Eu não sabia que a corte do inverno decaíra a esse nível. Ajoelhar-se
por cerimônia é uma coisa. Obedecer às ordens dele é bem diferente.
Mesmo com Rook entre nós, o olhar verde incômodo e luminoso de
Hemlock se fixou em meu rosto.
— Tente ser mais educado, Rook — disse ela. — Olhe ao seu redor. Eu,
Gadfly, até o príncipe do inverno… Nenhum de nós faz o que quer agora.
Um sorriso retorceu seu rosto.
— Eu mandei vocês dois fugirem, seus pombinhos tolos — insistiu ela.
— Eu avisei que viria atrás de vocês.
A espada de Rook cantou pelos ares. O movimento foi tão rápido que
não vi o golpe, nem Hemlock erguer o braço para bloqueá-lo. Ficaram
presos assim, a lâmina enfiada na armadura dela, o casaco de Rook
esvoaçando ao seu redor enquanto o vento se acalmava. O sorriso dela se
tornou mais duro. Ela firmou os pés, o braço tremendo com o esforço de
mantê-lo afastado. Rook e eu estávamos em desvantagem. Sabíamos disso,
e ela também.
Ela curvou um dedo, chamando os cortesãos.
— Sejam úteis, por favor, e capturem-nos. Limpem seus rostos antes.
As fadas saíram em bando da floresta. Antes que eu pudesse reagir, me
arrancaram de Rook. Dezenas de mãos agarraram minhas roupas, meus
braços, meu cabelo, grudentas por conta do banquete de frutas podres.
Puxavam para um lado e para o outro, como se fingissem dançar — rostos
maliciosos giravam ao meu redor como um carrossel. Ataquei com meu
anel e alguém soltou um grito de gelar os ossos.
— Ela tem ferro no dedo! — exclamou a fada cuja voz era familiar…
Foxglove. — Tirem dela! Tirem a mão inteira se for preciso!
Um braço me atingiu pelas costas, me derrubando no chão. Engolindo
ar, rouca e ofegante, puxei o braço para debaixo de mim e ergui o queixo o
bastante para ver que Rook também fora dominado. Gadfly estava de pé
atrás dele, o cotovelo apertado no pescoço de Rook, a outra mão apertando
seu punho, que não segurava mais a espada. Sem máscara, parecia tranquilo
e divertido enquanto Rook se debatia em suas mãos e arreganhava os
dentes. A diferença de altura fazia com que Rook se curvasse para trás, sem
conseguir firmar os pés, enquanto os cães de Hemlock tentavam morder as
botas que chutava.
Só tínhamos conseguido duas pequenas vitórias. Um pedaço da
armadura de casca pendia do antebraço de Hemlock e ela o segurava,
afastada. Seiva pingava, com o cheiro fresco de pinheiro no inverno; a
casca já começara a crescer de volta sobre a ferida. Foxglove estava sentada
no chão à minha frente, levando a mão ao rosto. Um rasgo inchado se
destacava onde eu a atingira, já se derretendo em pele perfeita atrás da jaula
furiosa e trêmula de seus dedos.
Eu sabia que o seu comando tinha sido sério e que as fadas não
hesitariam em obedecer. Arranquei o anel e o joguei para longe, para além
da piscina de pétalas de rosa se espalhando ao meu redor como sangue. O
ferro não me ajudaria em nada.
— Sua criatura vil e imunda — sibilou Foxglove, me forçando a ficar
de pé.
Eu não a vira se levantar. Abafei um grito quando ela deslocou um dos
meus braços — faíscas de dor ardente como um raio e formigamento
percorreram meu ombro, me tornando dormente para qualquer outra
sensação. Tropecei para a frente, empurrada por trás, quase incapaz de me
manter erguida. O diadema se entortara na minha cabeça.
— Não — disse a voz fina de Aster ali por perto. — Não a
machuquem… Não a machuquem mais do que o necessário, por favor…
O toque dela roçou meu braço antes que alguém a afastasse com um
tapa.
— Se eu quiser, eu enfio a mão na goela dela e arranco o coração —
irritou-se Foxglove. — Qual é o seu problema, Aster? Quer misericórdia
para quem desdenha da Boa Lei? Esta humana usou ferro contra mim.
A resposta de Aster pareceu vir de muito longe:
— Desculpe-me…
— E pare de olhar assim para ela — acrescentou Foxglove, com
veemência, e eu achei que ainda se dirigisse a Aster até que continuou: —
Que nojo. Tenha dignidade, morra como alguém do seu povo.
Ergui a cabeça e vi que Rook me observava, suas emoções agonizantes
nitidamente inscritas no rosto. Algumas fadas o encaravam em fascínio
enojado. Outras desviavam o olhar com uma careta, incapazes de assistir à
cena. Gadfly, por sua vez, olhou para ele, e então para mim, com um sorriso
sutil, quase pesaroso, nos cantos da boca. Lembrei-me dos seus muitos
retratos, cem versões se remexendo no brilho dos vagalumes.
— Foxglove, por mais que eu aprecie seu entusiasmo, não comecemos a
arrancar corações ainda — disse ele. — Agora que nosso baile foi
interrompido de forma tão trágica, encontro-me despreparado para o fim
das diversões desta noite.
Ele dirigiu um olhar de repressão para Hemlock, que avançara.
— Ah, eu insisto — continuou. — Ainda é minha corte, afinal, não é
mesmo? Bem, então… está resolvido. Primeiro, vamos levá-los ao Poço
Verde. Daremos a Isobel uma última oportunidade de salvar a vida do
príncipe e desfazer todo o mal que causou.
A algazarra que se seguiu engoliu meu grito. Caí nas mãos de Foxglove,
meu olhar maculado por estrelas.
— Calma, calma — disse Gadfly. — É justo. Prometo que será um
espetáculo memorável.
Enquanto Rook se contorcia contra ele, gritando de fúria incoerente,
Gadfly piscou, alegre.
O anfitrião feérico nos conduziu adiante, através da clareira, dos
matagais e dos prados, além das pedras rachadas e dos jacintos. O luar
iluminava tudo como um sonho. Minha cabeça pendia, mas às vezes eu
vislumbrava os baronetes nos acompanhando de cada lado, sombras
colossais caminhando pela floresta, horríveis em sua majestade imensa e
silenciosa. Cães pulavam entre as fadas como se caçassem com a nobreza.
As presas éramos, é claro, eu e Rook. Talvez fosse justo que o lugar onde
Rook confessara seu amor por mim fosse também o lugar onde
morreríamos.
Quando chegamos ao Poço Verde, era exatamente como eu lembrava,
mesmo no escuro. O círculo baixo de pedras musgosas me encheu do
mesmo horror atordoante de antes, mas Foxglove me empurrava de maneira
implacável para a frente quando meu corpo enrijeceu e meus passos
encurtaram, arrastando os pés com relutância brusca. Ela só parou quando
as pontas de minhas botas bateram na rocha. Ela arrancou o diadema de
mim enquanto eu me contorcia em seus braços e empurrou meu ombro por
cima da beirada. Solto das tranças, meu cabelo caiu sobre as sombras do
poço.
Gadfly levou Rook para o outro lado do poço, à minha frente. Era
sombriamente satisfatório ver que Rook acertara o nariz dele em algum
momento do curto trajeto. Sangue manchava sua boca, folhas e flores
brotavam ao seu redor onde pingara no chão.
— Isobel… — começou Rook.
Hemlock apareceu, em passos largos, chutando o mato para longe. Ela
deu uma cotovelada na barriga de Rook, que se curvou, silenciado.
Algumas fadas riram. Foi ali que eu soube que nossa morte seria muitas
coisas, mas não rápida.
Swallowtail se aproximou com um sorriso vencedor. Ele roubou a coroa
de Rook, colocou-a sobre a própria cabeça e se pavoneou, fingindo brincar
com uma raquete de peteca, para o divertimento de todos. Confiante, outra
fada se aproximou, agarrou a lapela do casaco de Rook e rasgou a roupa,
arrancando-a. O broche de corvo caiu entre as flores. Rook tropeçou. Em
seguida, pulou naquele que o atacara, mas foi jogado ao chão quando
Gadfly ergueu um pé e tranquilamente chutou suas pernas para
desequilibrá-lo.
Engasguei com um soluço. Rook se levantou com esforço, as roupas
rasgadas e o peito ofegante. Eu nunca poderia imaginá-lo tão humilhado.
— Façam o que quiserem comigo — disse ele —, mas não a obriguem a
assistir. Deixem-na partir.
Gadfly suspirou. Com um gesto paternal, limpou os galhos e as folhas
do cabelo de Rook, que não reagiu. Rook mantinha a cabeça abaixada,
escondendo o rosto. Causou-me dor o conhecimento de que, se existisse
qualquer semelhança de confiança entre fadas, era o que Rook sentira por
Gadfly.
— Temo que dois culpados sejam necessários para violar este princípio
específico da Boa Lei — disse Gadfly.
— Ela é vítima de sortilégio.
— Ah, mas continua tendo livre arbítrio. Parece que você a ama tanto
que resistiu a persuadi-la.
Desta vez, ninguém riu. Os cochichos pareciam incomodados, confusos.
— De qualquer forma — continuou Gadfly —, como nós dois sabemos,
a Boa Lei foi infringida antes de isso acontecer.
— Ande logo, Gadfly — disse Hemlock, seu sorriso parecendo colado
no rosto. — Odeio fazer o rei esperar.
— Então me mate! — rosnou Rook, virando-se para encarar Gadfly. —
Não podemos infringir a Boa Lei se algum de nós morrer. Do que importa
uma vida mortal para o Rei do Amieiro? Ela voltará para casa, casará, terá
filhos, morrerá, tudo antes que ele respire de novo. Ela não é n… —
interrompeu-se com um resfolego de dor, pego na mentira. — Ela não é
nada para ele — disse, no fim, as palavras devastadas por angústia. —
Mate-me e acabe com isso de uma vez!
— Rook, pare! — gritei.
Eu podia ser um passarinho piando, a julgar pela atenção que as fadas
me deram. Só Rook reagiu, encolhendo-se como se eu o tivesse estapeado.
— Acho que poderíamos fazer isso — disse Gadfly, com uma pausa. —
Mas não seria nada divertido, não é? Além disso, não é como se não
estivéssemos dando uma escolha a Isobel.
Sem cerimônia, ele soltou Rook, que caiu sem o apoio do corpo de
Gadfly, se segurando de joelhos no chão. Ele passou um braço pela beira do
poço e se içou para encontrar meu olhar, ofegante, mesmo que eu soubesse
que ele queria desviar; Rook precisou de todas suas forças para me encarar.
— Eu não fui forte o suficiente para protegê-la — disse ele, num
volume baixo, só para os meus ouvidos.
— Tudo bem — falei. — Tá tudo bem.
Nos entreolhamos desesperadamente. Nada estava bem.
— Agora, peço perdão por estragar o momento, mas Hemlock está
certa… estamos nos demorando aqui. Então — disse Gadfly, tirando as
luvas, uma de cada vez, e as enfiando no bolso —, Isobel, Rook está correto
quanto a uma coisa: vocês só violam a Boa Lei no estado em que se
encontram atualmente. Ou seja, ambos vivos, uma mortal e uma fada,
apaixonados. Ah — disse ele, ao ver minha expressão. — Sim, caso um de
vocês seja capaz de parar de amar o outro, teríamos que soltá-los. Vá em
frente, pode tentar se quiser.
Aqueles anos todos, como eu nunca tinha notado o monstro que era
Gadfly? Por deus, eu precisava pelo menos tentar. Apertei os olhos com
tanta força que faíscas de luz explodiram sob minhas pálpebras. Pensei em
Rook me raptando na calada da noite; na arrogância; nos surtos; em como
eu era tola por amá-lo. Imaginei Emma pondo March e May para dormir,
sozinha. Ainda assim, meu coração traidor não cedia. Eu não podia mudar o
que sentia, não mais do que podia mandar o céu chover ou exigir que o sol
nascesse ao badalar da meia-noite.
Soltei a respiração que prendia com uma mistura de suspiro e grito.
Gadfly sabia. Maldito seja, ele sabia que, para mim, não ser capaz de conter
meu próprio sentimento era o maior tormento.
— Mas tem outro jeito — insinuou a voz dele no silêncio. — Não é um
crime que duas fadas se apaixonem.
Alguém riu. Amor entre fadas: que piada.
— Você só precisa beber do Poço Verde — prosseguiu ele —, salvando
assim sua própria vida e também a de Rook. Vocês dois podem passar a
eternidade juntos.
Sacudi a cabeça.
— Não acredito em você. Talvez você me deixe viver, mas não Rook,
não por muito tempo.
— Ah… Eu estou um pouco alto, estou me sentindo generoso.
Abri os olhos a tempo de ver Gadfly empurrar Rook com a bota. Rook
parecia ter desistido inteiramente; apoiara a testa na beira de pedra do poço.
— O poder será arrancado dele, é claro — continuou Gadfly —, e
continuar como príncipe está fora de cogitação, mas… eu garantiria a vida
dele. Não há dúvida de que parte dele não ia querer viver depois disso tudo.
Ele sempre foi orgulhoso. Mas ele o faria, por você.
Eu estava tremendo tanto que meu cabelo estremecia.
— Não mesmo — sussurrei.
— Não? Mesmo? Você dá tanto valor à própria mortalidade que
condenaria não somente a si, mas também Rook, à morte? Ele tem tantos
milhares de anos ainda pela frente. E ainda dizem que meu povo que é frio.
Meu olhar caiu sobre o broche de corvo, cintilando entre os jacintos.
— Eu nunca me tornarei uma de vocês — falei. — Nunca.
Gadfly sorriu para mim, entristecido.
— E sua família?
Levantei o rosto, tremendo de fúria, além de medo. Como ousava?
— Certamente seria reconfortante para sua tia Emma e suas irmãzinhas,
March e May, se elas pudessem encontrar você novamente — insistiu ele.
— Imagine o quanto poderia ajudá-las como fada!
— Não fale da minha família.
— Ah, mas é preciso. Você está mesmo disposta a deixá-las sem palavra
alguma de resolução, sem um corpo para enterrarem? Sua pobre tia é tão
solitária. Sua memória a assombraria para sempre. Ela se culparia por tudo
que acontecera. Acredite… eu sei.
— Você está me atormentando de propósito. Emma nunca… Ela não…
“Ela não ia querer que eu escolhesse isso.” Caí nos braços de Foxglove,
olhando novamente para o brilho frio do broche de corvo no chão, quase ao
meu alcance. Gadfly planejara cada momento excruciante deste teatro
horroroso. Sabia que eu nunca beberia do Poço Verde, não importava o que
dissesse, e que minha tortura seria o melhor espetáculo. Ele suspendia meu
destino como a pomba engaiolada de um mágico, pronto para soltar as
grades em mim e esmagá-lo a qualquer momento. Ainda assim… ainda
assim… a escolha era minha, só minha. Gadfly podia ver todas as trilhas da
floresta, todas as ramificações possíveis… mas e as impossíveis? O que
aconteceria se eu saísse da trilha e me enfiasse às cegas na floresta bravia,
num lugar aonde suas visões nunca o levaram?
Eu achava saber por que Foxglove arrancara a tiara das minhas tranças.
Esperei estar certa, porque estava prestes a fazer a maior aposta da minha
vida e não gostava de surpresas.
— Eu vou beber — sussurrei.
Os dedos de Foxglove soltaram meus punhos, fosse para me permitir
movimento ou por puro choque, não me importava. Caí de joelhos e tateei
pelo chão, me atrapalhando por conta da dor e do desespero, até passar o
cotovelo por cima da borda de pedra do poço, me arranhando na superfície
áspera. Soltei um grito baixinho quando o toque sacudiu meu ombro
deslocado. Gadfly me observava, inteiramente imóvel, os olhos apertados.
O quanto eu já me afastara do caminho dele? Concordar em beber era a
última coisa que eu faria. Afinal, eu ainda não o fizera.
Estiquei a mão com menos feridas para dentro do poço, fechando os
dedos. A água era como qualquer outra, mas só de saber o que era me
atingiu como choques gelados, e minha respiração estremecia ao erguer o
gole cintilante, refletindo a lua em fragmentos quebrados. Finalmente, e de
forma abrupta, parei. Meu braço ficara… parado. Meus dedos estavam
apertados com força, mas a água ainda escorria, a poça no centro da minha
palma diminuindo.
Será que só tocar a água já era o suficiente para começar a
transformação?
Rook disse meu nome.
Ergui meu olhar apavorado e o vi atento, tenso como se preparado para
pular. Vi a angústia de sua indecisão. Ele não queria que eu fizesse aquela
escolha, sabendo que, para mim, as consequências seriam piores do que a
morte. Ele também não queria que eu morresse. Não havia nada que ele
pudesse dizer sem me trair de alguma forma. No mesmo momento, entendi
o que acontecera comigo.
— Solte-me — falei, gentilmente. — Confie em mim.
Rook baixou a cabeça. A paralisia do sortilégio se foi. Apertei os dentes
e ergui a água em minha mão até conseguir soprar sua superfície.
Foi então que olhei diretamente para Gadfly. Virei a mão, deixando a
água pingar de volta no poço. Levantei o outro braço, apesar do meu ombro
berrar de agonia, apesar de eu mal sentir o objeto de metal apertado em meu
punho, imundo de terra e grama.
Como Gadfly dissera, eu estava prestes a descobrir se o Ofício tinha o
poder de destruir as fadas de forma que nunca imaginara. Até agora.
— Vai para o inferno — falei, arremessando o broche de corvo no Poço
Verde.
Dezenove
As fadas que nos cercavam deram um passo para trás. Meus joelhos
cederam, mas Rook me segurou pelo cotovelo antes que eu caísse e passou
o braço dele pelo meu. Eu me perguntava por que ninguém tentava impedi-
lo, até que vi seu rosto. Não o vira daquele jeito desde a noite em que me
confrontara por causa do retrato. Ele ardia, feroz e incandescente, de algum
modo menos humano do que nunca, mesmo com a volta do encanto,
projetando que, se alguém se aproximasse, ele os derrubaria no mesmo
instante. Uma vantagem daqueles costumes feéricos horríveis, supunha:
força era tudo e, sem o ferro, Rook era a fada mais poderosa ali. Mais do
que isso: ele não tinha nada a perder. Até Hemlock parecia assustada.
— Sua mão — falei.
— Vai sangrar bastante, imagino — respondeu ele, soando satisfeito. —
Você consegue andar? Preciso que fique por perto.
Certo, o plano. O plano de Rook era arrancar o próprio dedo e,
aparentemente, desafiar o Rei do Amieiro a um duelo até a morte. O que
poderia dar errado?
Apertei os olhos, buscando em mim mesma, avaliando minhas forças.
— Acho que sim. Por pouco tempo.
— Então vamos.
Juntos, descemos, meu vestido deixando um rastro de pétalas nos
degraus desiguais. Quando chegamos lá embaixo, olhei para trás. O
carvalho rachado de onde tínhamos emergido crescia suspenso em um
balcão, as raízes escuras emaranhadas na plataforma, seus galhos
parcialmente enfiados na parede. Não vi porta, nem arco, nem entrada. A
sede do poder do Rei do Amieiro só era acessível pelos caminhos das fadas.
Avançamos de braços dados. A passagem reta que percorria o centro do
ambiente era ladeada por pilares altos da mesma rocha brilhante e
translúcida das paredes e dos balcões. O peso estagnado do ar e a ausência
do menor indício de céu me alertaram à possibilidade de que, apesar da luz,
estivéssemos no subsolo. Ao passar pelo primeiro pilar, vi um padrão de
casca de madeira na superfície e constatei que não eram estalagmites nem
entalhes, mas árvores petrificadas, preservadas por tanto tempo sob a terra
que tinham se transformado em cristais. Respirei fundo e me apoiei em
Rook, consciente da idade inimaginável da câmara e do peso claustrofóbico
que a esmagava.
O fim do corredor se perdia numa névoa de luz ofuscante, impossível de
olhar diretamente. O Rei do Amieiro poderia estar sentado, nos observando.
Ou talvez nem tivesse chegado. Eu não sabia dizer.
O som se espalhava longe ali. Lembrava uma catedral entre os cânticos
do coral, quando todos se sentavam, cochichavam, se ajeitavam e reviravam
as páginas do hinário, enchendo o teto abobadado com o ruído semelhante a
centenas de pássaros farfalhando as asas. As solas duras de Rook ecoavam.
Eu até ouvia as pétalas enfeitiçadas caindo do meu vestido, sussurrando
sedosas no chão refletor. Palavras e frases soltas se sobressaíam do zumbido
de vozes, às vezes indistintas, às vezes tão nítidas que poderiam ter sido
gritadas em meu ouvido.
— Rook — disse um barítono, e levei um momento aterrorizado para
entender que era um espectador falando com o companheiro em um balcão,
não se dirigindo diretamente a Rook.
— Você… — murmurou outra voz.
— Beijou — seguiu-se uma voz afiada e sibilante.
— Isobel! — gritou a voz de uma menina, e meu coração galopou em
minhas costelas como um cavalo assustado.
— Não preste atenção neles — disse Rook, olhando para a frente. —
Finja que somos só nós dois, andando juntos. Eles são só o vento.
Era quase possível, com minha visão embaçada como estava.
— Eu nunca soube que o vento tinha tanto apetite por fofoca.
— Vocês, mortais, e suas percepções limitadas.
Apesar de ele não virar o rosto, senti seu olhar se desviar. Um sorrisinho
tocou o canto de sua boca.
— Veja só — disse ele.
“Até mesmo agora ele se exibe”, pensei, mas não neguei que uma faísca
de empolgação energizou minhas veias e interrompeu minha respiração,
antecipando fosse lá o que ele estivesse prestes a fazer. Tranquilamente,
ainda sorrindo, ergueu a mão ferida e abriu o punho que fechara com os
dedos restantes. Pinga, pinga, pinga. O sangue espalhou um rastro no chão.
Alguém ofegou. Outro gritou de medo. Sapatos bateram e deslizaram, fadas
se debatendo contra as grades para ver melhor. Uma mulher agarrou os
cachos compridos de outra e a puxou para trás, abrindo caminho. No breve
intervalo, vislumbrei uma cabeça loira-prateada se esgueirando, a cor um
contraste marcante em meio aos tons castanhos e acaju profundos da corte
do verão. “Gadfly?” Não, não podia…
O pilar mais próximo explodiu numa cascata de estilhaços cintilantes de
cristal. Em seguida o próximo, e o próximo, o caminho inteiro até o fim.
Galhos vivos se desenrolaram das cascas destroçadas, flamejando com
folhas escarlates. Raízes irromperam do chão, rachando a pedra num
terremoto violento, fazendo frestas ziguezaguearem em toda direção,
chegando aos cantos e correndo afiadas pelas paredes. Gritos soaram
quando nacos de alvenaria tombaram de um balcão, desmoronando numa
avalanche de pedra lascada, abafando o tilintar do cristal. Resíduos
preencheram o ar, cintilando como diamante.
Tropecei no chão quebrado, mas Rook me segurou, me ajudando a pular
uma raiz ainda crescente, que se retorcia e esticava, rastejando como
minhoca pelo chão, esparramando fios. Ele não cedeu com a mão ferida.
Não podia arcar com isso.
Incessantes e inabaláveis, suas árvores de outono pressionaram o teto e
cresceram. A folhagem transformou a luz ofuscante nos tons coloridos de
um vitral. Pela primeira vez, eu vi o que nos aguardava à frente.
O Rei do Amieiro, sentado com o corpo inclinado para a frente em um
trono elevado à altura das plataformas mais altas, enroscado na parede por
cipós como um coração apanhado na teia de artérias. O rosto, a barba, as
vestes, o trono e até os cipós eram do mesmo tom pálido e poeirento de
cinza, tão inerte como mármore, como se ele tivesse se tornado parte da
própria sala. A expressão adormecida me causou um terror que não pude
explicar. De certa forma, eu sabia que ele tinha mais vida do que
demonstrava. Senti sua consciência lenta se voltar para nós, com a certeza
do feixe de um farol circulando no escuro. Ah, eu não queria vê-lo acordar.
Rook apertou meu braço e em seu próximo passo hesitou um segundo
antes da bota atingir o chão. Ele também sentira. Diferente de mim, ele não
podia demonstrar medo — fraqueza. Olhando de relance para o rosto dele,
encontrei seus olhos concentrados no Rei do Amieiro em antecipação
orgulhosa, levemente desdenhosa, como se fosse simplesmente alguém de
quem o príncipe planejava vencer no jogo de peteca. A confiança,
entretanto, era fingida. Minutos antes eu o vira cair, devastado e clamando,
contra o Poço Verde. Eu já o vira segurando as pontas de quem era vezes o
suficiente para reconhecer a situação imediatamente.
Desejei que, pelo menos uma vez, eu pudesse dizer que o amava sem
amaldiçoar nós dois.
O saguão se aquietara. Fadas olhavam para cima como crianças, vendo
as folhas de outono caírem. Os destroços já tinham se suavizado sob uma
coberta de folhagem, como se o colapso já tivesse muitos anos. No silêncio,
hera amarela se enredava pelos balcões e subia em espiral pelos troncos de
árvores, e meu vestido farfalhou contra as pernas no vento fresco da noite.
Os galhos de Rook serpenteavam cada vez mais perto da forma imóvel do
Rei do Amieiro, florescendo em vermelho.
Um dos dedos do rei tremeu.
Pó caiu de sua coroa de chifres, a princípio um fio fino, até se tornar
uma cascata quando ele ergueu o rosto. Estávamos perto o suficiente para
ver a textura poeirenta se agarrando à barba. Ele piscou, revelando olhos
sem cor e opacos que vagavam como os de um velho.
— Por que me acordam? — disse ele em um sussurro seco.
Apesar de baixas, as palavras queixosas varreram o saguão e se
espalharam aos quatro cantos como um sopro de folhas mortas. Calor se
seguiu, e também um cheiro podre. Suor encharcou a palma das minhas
mãos.
— Eu estava sonhando… sonhando com uvas maduras, um pôr do sol
refletido na água… Só queria…
Confuso, ele olhou para os cipós crescidos ao redor dele, aprisionando-o
no próprio trono.
— Estou aqui para desafiá-lo, Rei do Amieiro — soaram as palavras
ecoantes de Rook. — Seu verão eterno foi corrompido. Todos conseguem
ver isso. Feras fadas sem mestre vagam pela floresta e suas próprias terras
apodrecem enquanto o senhor dorme. Hoje, ainda — acrescentou mais alto,
virando o corpo para os balcões, a mão ferida ainda erguida, musgo
escorrendo em espirais pela manga —, uma mortal destruiu o Poço Verde.
Gritos se seguiram ao pronunciamento.
— Não!
— É verdade?
— O Poço Verde!
— O que faremos agora para que os mortais nos venerem?
Brigas começaram nos balcões. Algumas fadas caíram de joelhos,
agarrando a grade em atitudes exageradas de desolação. Todas se calaram
com apenas um gesto do Rei do Amieiro, que fez um arco de poeira flutuar.
— Não. O que você diz é… impossível. O Poço Verde é eterno.
De alguma forma, encontrei minha voz.
— Fadas não mentem — lembrei o rei, dividida entre meu medo e uma
pena curiosa dele. — O poço não existe mais.
Ele estreitou os olhos. Mais poeira desmoronou da teia de rugas ao
redor deles, revelando trechos de pele fina e seca. Ele me olhou. O calor
aumentou. Cada pedacinho de pele que tocava meu vestido coçava
horrivelmente e gafanhotos fantasmas cantavam com a pressão que crescia
em minha cabeça. Era aquilo que eu representava para ele, não importava o
que eu fizesse: um inseto zunindo ao pé do trono. Ele planejava me matar
pela pura força da atenção. Teria conseguido se o sortilégio de Rook não o
impedisse.
No momento em que notou que eu era imune à magia e o porquê,
choque e incerteza faiscaram no fundo de seus olhos enevoados.
— Ela ainda tem livre arbítrio.
Rook mostrou os dentes num sorriso que não sorria, tão ensandecido
que eu me esqueci de respirar.
— Sim. Agora desça e lute, se puder.
Um suspiro. Então, a sala do trono estourou.
Corvos revoaram de todas as direções, grasnando e adensando o ar a
ponto de sufocar o saguão na escuridão da madrugada. O voo era um trovão
ensurdecedor, abafando o rugido de protesto do Rei do Amieiro, engolindo
todos os gritos surpresos das fadas. Um ataque ardido atingiu meu rosto.
Tossi fragmentos de pena que esvoaçavam como pó, só o calor do braço de
Rook me confirmava que ele ainda estava ali. Entre as asas farfalhantes,
vislumbrei pedacinhos do caos ao meu redor. Uma mulher no balcão se
agarrava à própria cabeça onde um corvo se debatia, embolado no chapéu
elaborado. Outra caiu, bicada por dezenas de pássaros de uma vez. Fadas
inundavam as escadas, tentando sem sucesso escapar da invasão; brigas
irrompendo entre elas, pisando nos sapatos e vestidos umas das outras. Uma
menina loira — “Lark?” — sorriu ao chutar a canela de um homem e se
voltou para mim, em busca de aprovação.
Sangue de fada fluiu. A fragrância de flores flox encheu o ar de doçura
enjoativa e eu me esforcei para manter o equilíbrio no mundo que girava
num turbilhão de penas.
Uma forma imensa surgiu da escuridão. A galhada rasgava caminho
entre os corvos, espalhando corpos quebrados pelo chão. Rook girou para
me proteger dos cascos do baronete. Ao mesmo tempo, um par de mãos
frias agarrou meus braços e me puxou para longe, me apertando contra a
árvore mais próxima.
— Pare de se sacudir — disse Lark no meu ouvido. — Alguns de nós
viemos ajudar.
Segurei o punho de Lark com força.
— Rook não tem espada!
— Espada? — disse ela, sorrindo. — Por que ele precisaria de uma
espada?
No fim, não precisava mesmo. Rook se esquivou e rodopiou sob o
baronete como um bailarino, empurrando a mão esquerda para cima, no
peito do monstro. O baronete congelou e tremeu inteiro. Heras outonais
irromperam primeiro do nariz, depois da boca, depois dos olhos,
espalhando-se rapidamente pelo corpo até que parecesse uma escultura
gigante em arbustos. Rook puxou a mão de volta, já esmagando o crânio
antigo e marrom para jogá-lo fora. Fazendo o casaco esvoaçar,
tranquilamente evitou a cachoeira de casca que caiu. Ele olhou para mim e
para Lark, avaliando a situação. Os corvos agora revoavam ao redor de nós
três, em círculo, formando uma parede preta e opaca pontilhada por olhos
cintilantes, como se estivéssemos no olho de um furacão. Rook estava de
costas quando outro baronete os atravessou.
Eu gritei em aviso, mas ele já tinha sentido. Com um gesto fluido, caiu
de joelhos e bateu a palma no chão, encontrando o redemoinho de penas
que já subia para engoli-lo. A galhada do baronete assobiou no ar vazio,
sem acertar o enorme corvo de olhos roxos que voara. Rook sumiu no
ciclone, um pássaro indistinguível dos muitos. Finalmente, separou-se perto
do teto, apontando para baixo, patas curvas estendidas, mirando o baronete
como um falcão descendo sobre a presa. Outra vez, desapareceu. Procurei
algum sinal de aonde ele fora, mas não precisei esperar muito. O baronete
cambaleou primeiro para um lado, depois para o outro, os cascos oscilantes
esmagando os fragmentos podres de seu companheiro, e caiu com um
estrondo de sacudir a terra, desintegrando em uma cascata de vegetação que
se derramou pelo chão.
Rook saiu dos escombros na forma humana, espanando as mangas do
casaco.
— Ele cortou mesmo o dedo fora? — perguntou Lark, sua voz contendo
uma nota de deleite mórbido. — Ele cortou, não cortou? Nunca ouvi falar
de ninguém fazer isso antes. É permanente, sabe? O encanto não vai
esconder e o poder não durará tanto tempo.
Engoli em seco.
— Ele… Ele conseguirá lutar contra o Rei do Amieiro?
O som do berrante sacudiu a terra e vibrou pelos meus sapatos. O tempo
parou. Ou pelo menos foi a impressão, até que Rook deu um passo para trás
e eu levantei lentamente uma das minhas mãos trêmulas só para confirmar
que era possível. Os corvos que nos cercavam pararam suspensos no ar, em
meio ao voo, sem piscar. Nem uma pena se moveu. O berrante soou de
novo. Os corvos se fraturaram como vidro frágil e caíram em estilhaços,
uma catarata de obsidiana se derramando aos nossos pés.
O Rei do Amieiro estava de pé na plataforma. Os cipós tinham
escorregado do corpo dele; ainda se arrastavam para longe pelo trono. Ele
desceu um passo. Outro. Cada impacto derrubava poeira de seu corpo e,
conforme descia, livrou-se do peso de séculos, como se o manto de anos
deslizasse de seus ombros. Uma capa esmeralda se revelou centímetro a
centímetro, bordada em ouro, escuro e antigo. A barba espessa e grisalha
estava trançada em partes como a de um rei guerreiro secular, decorada por
grampos de ouro, e um anel timbrado cintilava em seu dedo. Sobrancelhas
pesadas escondiam seus olhos, revelando somente o nariz severo e o traço
impiedoso da boca do qual me lembrei nos entalhes das terras estivais.
Onde estava a falha em seu encanto? Não havia nenhuma.
Ao nosso redor, fadas pararam de lutar no meio do ato, tomando as
poses estranhas e variadas de atores em pantomima. Eu fiquei vagamente
surpresa ao notar quantas não só estavam lutando contra corvos, mas
também entre si. Quer fosse porque estavam do nosso lado, ou porque a
violência em reação a pés pisados era contagiante, não pude adivinhar.
Estavam congeladas, agachadas, garras nos pescoços das outras, enquanto
caules floridos e musgos criados pelo sangue derramado cresciam sobre
elas.
Rook não se mexeu. Suas costas estavam eretas. Seu rosto, ilegível.
Com o coração na garganta, arrisquei um olhar para Lark, sem gostar de
como o mundo perdeu foco quando me virei — não era hora de desmaiar
como uma donzela de historinhas infantis. Ela também estava paralisada,
encarando o Rei do Amieiro com olhos arregalados e vagos, como se
hipnotizada.
O rei desceu mais um passo, assomando-se no canto de minha visão, e
foi então que entendi. O tamanho. A falha dele era o tamanho. Ele era muito
maior que as outras fadas, de proporções inumanas, uma cabeça mais alto
do que Rook.
Finalmente, Lark me respondeu.
— Não — disse com dificuldade, a palavra quase inaudível, arrancada
do peito por puro esforço, passando entre seus lábios como um suspiro. —
Ninguém consegue.
— Eu agora lembro por que me sentei em meu trono e não me levantei
por uma era.
A voz do Rei do Amieiro rugiu sobre a câmara como o trovão fervendo
no horizonte. O ar se tornou pesado, estalando de poder latente, até os pelos
do meu braço se arrepiarem com um calafrio.
— Cansei das briguinhas de vocês — continuou ele. — Suas vidinhas
minúsculas me exauriram. Vinho… bordado… ninharias… por quê? Vocês
arrancariam os olhos do vizinho com as unhas por um punhado de pó.
Ainda assim, pó está ao redor de todos. O mundo é feito de pó e ao pó
sempre retorna. Não há mais nada.
Eu só podia estar enganada quanto ao medo que vi em seus olhos.
Aquele ser não conhecia medo. Ele não sentia nada, pensei, me forçando a
levantar o queixo. Manchas pretas flutuavam à minha frente como
mosquitos.
— Agora a Boa Lei foi violada e vocês fracassaram em fazer valer a
punição justa. Por que motivo este… e esta… ainda vivem? Não importa o
que a mortal fizer. Eu não desejo ver o rosto de nenhum deles.
Tinha quase chegado ao pé da escada. Engoli o gosto amargo de ozônio,
tentei me agarrar à conexão com Rook e, no silêncio compartilhado, berrei.
Ele cambaleou como se um tapete tivesse sido puxado de sob suas
botas. Finalmente, sacudiu a cabeça e, para meu pavor, abriu um sorriso
torto para o Rei do Amieiro. O sorriso era feroz demais para ser
considerado charmoso.
— Que coincidência fortuita — declarou Rook. — Confesso que
nenhum de nós dois queria ver a sua cara, também. Considerando as
circunstâncias, acho melhor nos retirarmos.
Ele cruzou os braços no peito e se curvou em uma reverência.
— Tenha um bom dia — despediu-se.
A reverência obrigatória do Rei do Amieiro em resposta interrompeu
sua expressão sombria.
— Rápido, venha — disse Rook, virando-se e estendendo a mão
saudável.
Uma onda de folhas o atingiu quando Lark me ergueu, me pôs nas
costas do cavalo galopante e puxou meus braços ao redor do pescoço do
animal. Arrancamos em um salto de sacudir os ossos. Músculos fortes se
tensionavam sob minha bochecha. Rostos passavam voando, boquiabertos
de surpresa, se esquivando das lascas de pedra arremessadas pelos cascos
pesados. Elas ardiam em minhas pernas, pontadas geladas de pressão sem
dor. Eu me perguntei se sangrava.
Subimos com estrondo as escadas, os ombros de Rook chacoalhando ao
cobrir os degraus pequenos demais. A cortina de água espelhada ficou cada
vez mais perto, refletindo a investida em prata ondulante, e minha própria
expressão lívida agarrada ao cavalo. Ele ia atravessá-la num salto. Eu me
preparei como pude.
— Era este o seu plano? Ah, Rook — murmurei, semiconsciente, na
crina áspera e quente, pois o que ele fazia era a última coisa que esperariam.
— Você está fugindo à luta.
Vinte e um
— Traga vermelhão. Anil, por favor. May, sei que você está de mal comigo,
mas ainda consegue carregar coisas, né? Emma, você me faz o favor de
encontrar um apoio para o meu braço? Rook, isso não é uma paleta de tinta,
é uma travessa. Ah, deixa para lá, pode trazer. Vai servir.
Meu estúdio se transformara num turbilhão de atividade. Eu caíra no
segundo em que tentara me levantar, então estava instalada no sofá, me
apoiando em meia dúzia de almofadas, enquanto todo mundo me servia, o
que seria gostoso se não fossem todas tarefas que eu preferia fazer sozinha.
Para crédito deles, ninguém tentou me convencer a mudar meu plano
completamente insano. Emma e Rook tinham visto o brilho em meu olhar,
se entreolhado em comunhão repentina e saído à procura de pincéis.
Eu nunca trabalhara assim antes. Para começo de conversa, não tinha
tempo de esboçar. A luz da manhã já corria pela sala, iluminando o vidro de
óleo de linhaça e desenhando um triângulo cor-de-rosa no papel de parede.
Decidi não olhar por cima do ombro, porque se começasse não ia conseguir
parar, mas Emma estava de olho na janela e logo abafou um grito e
derrubou uma almofada.
— O que você viu? — perguntei.
— Nada — disse ela, correndo para enfiar a almofada sob meu
cotovelo. — Só me assustei de nervosismo.
Era uma mentira deslavada. Emma era capaz de misturar produtos
químicos fatais ao lado de alguém batendo pratos.
May olhou, na ponta dos pés.
— Tem alguma coisa correndo pelo campo — anunciou, numa voz que
queria soar casual, e virou-se com um gesto de desprezo exagerado para
mostrar que não tinha medo, mesmo que eu a visse tremer do outro lado da
sala. — Aposto que é o Rei do Amieiro que veio te matar e te comer porque
você é uma idiota.
Emma se levantou, abraçando outra almofada.
— May, você não pode falar assim com sua irmã!
— Mas é a verdade! — insistiu May.
— O Rei do Amieiro ainda não chegou — disse Rook, me
tranquilizando. — É só um cão, que não será capaz de entrar na sua casa,
assim como quaisquer outras feras e fadas que se aproximarem.
Controlei minha respiração, me obrigando a relaxar. O pincel deixara
marcas lívidas nos meus dedos apertados.
— Por quê? — perguntei em voz baixa, esperando que minha família
não ouvisse. — O feitiço não proíbe ninguém de entrar.
Os olhos dele brilharam.
— Porque eu não vou deixar.
Ele olhou mais uma vez pela janela e se virou para o corredor.
— Rook — falei, interrompendo-o. — Obrigada. Tome cuidado.
O agradecimento não era só pelo que ele estava prestes a fazer. Era por
confiar em mim, acreditar em mim. Deixar a adaga de lado não fora fácil
para ele.
Assentiu com firmeza antes de partir. A porta da cozinha bateu ao fundo
atrás dele. Afastando meus medos angustiantes à força, me concentrei na
tela, perdendo-me na tinta cintilante deslizando pela textura da superfície,
no roçar silencioso dos pelos secos do pincel quando chegava ao final de
um traço. O fundo ia de hematite-escura nos cantos a ouro-luminoso no
centro, onde destacaria o retratado em uma coroa de luz. Tudo dependia
daquele retrato. Precisava ser o meu melhor trabalho, feito numa só manhã,
no meu método menos polido — úmido sobre úmido — já que eu não tinha
tempo de esperar secar. Meus olhos ardiam do esforço de mantê-los abertos
e meu pincel parecia pesar dez quilos. Mesmo assim, traço a traço, a pintura
ganhava vida.
Pouco depois, eu me afundara no trabalho a ponto de não reparar em
nada que acontecia ao meu redor. O mundo se resumia ao meu Ofício.
Como um mapa da terra de velhos marinheiros, não existia nada além das
beiras da minha tela. Até um estalido estrondoso soar lá fora, sacudindo os
vidros na mesa ao lado do cavalete e me arremessando de cabeça na luz, no
som e no clamor da vida real.
Virei a cabeça, piscando estupefata, e encontrei Emma e as gêmeas
grudadas nas janelas. Emma estava à janela sul, do outro lado da sala; eu
não havia notado que March e May tinham subido no sofá, uma de cada
lado.
— Ele o rasgou ao meio! — exclamou May, alegre.
March pulava sem parar de joelhos.
Olhei de relance por cima do ombro. Um emaranhado de cipós
espinhentos gigantes e retorcidos cercava nossa casa, mais altos e grossos
que o carvalho, mergulhando nosso quintal em sombra profunda. Enquanto
eu observava, um dos cipós agarrou uma forma branca — um cão — e a
arremessou de volta ao trigal, tão longe que eu não vi onde foi parar. Os
destroços de uma fera fada muito maior estavam espalhados pelo nosso
galinheiro sem grama, o que explicava o terremoto. Procurei Rook entre o
caos. Da última vez que criara espinheiros de tamanho semelhante, ele fora
gravemente ferido pelo Lorde Tumular. Quanto teria que se ferir para um
feito inconsequente daqueles? Não o encontrei em lugar nenhum. Eu não só
suspeitava, como sabia com certeza, que ele era motivado por um impulso
suicida persuasivo. Um tremor percorreu meus ombros e meus braços,
tornando-se um leve calafrio que tomou meu corpo inteiro. Minha pele
parecia repuxada e ruídos ecoavam em minha cabeça, expulsando qualquer
outro pensamento.
March baliu animadamente quando outro cão saiu voando pelo campo.
As reações das gêmeas pelo menos me garantiam que, se saíssemos dessa
ilesos, não seria difícil convencê-las a gostar de Rook.
“A gente não devia impedi-las de ver isso?”, perguntei para Emma, com
um olhar meio apavorado.
Emma me olhou com igual assombro, querendo dizer: “Ah, acredite, eu
tentei.”
Um barulho soou lá fora, meio rangido, meio gemido. Voltei a atenção
para a janela. Os espinhos estavam ficando paralisados de baixo para cima,
as gavinhas espetadas ziguezagueando em ângulos agudos, endurecendo e
formando um matagal denso, de aparência impenetrável. Vertigem revirou
meu estômago. Abandonei meu esforço de procurar pelo campo e voltei
minha atenção para dentro, me concentrando no vínculo do sortilégio entre
nós. Se alguma coisa acontecesse com Rook, eu certamente sentiria sua
reação. O espinheiro não estava morto, só imóvel. Fosse lá o que estava
acontecendo lá fora, ele fizera de propósito — não?
A porta da cozinha foi aberta com um baque e botas pesadas soaram no
corredor, os passos largos de Rook inconfundíveis. Apertei os olhos por um
instante, sentindo a tontura de alívio que me tomou. Entretanto, não tive a
oportunidade de aproveitar.
— Ele está vindo — disse Rook, assim que entrou na sala. — Temos
pouco tempo.
O peito dele ofegava como um fole e o cabelo estava tão desgrenhado
que parecia ter enfrentado um furacão. Uma das mangas estava arregaçada,
com um pano de prato da cozinha mal amarrado no antebraço. Tentei não
considerar as implicações daquilo — ele nunca antes precisara estancar
feridas. Talvez só não quisesse que o sangue fizesse bagunça ali dentro.
Emma e eu nos entreolhamos, sombriamente.
— Pode levar as gêmeas para o porão? — perguntei.
Talvez fosse a última vez que nos veríamos vivas. Saber daquilo fez
com que sustentar seu olhar fosse como encarar o sol. Ela jurara me criar e
me manter em segurança, mas estava prestes a me perder para a mesma
força que já estilhaçara nossas vidas outra vez. De repente, eu soube, com
horrível nitidez, que, se me perdesse, ela não sabia se teria forças para se
recuperar de novo. Naquele momento, duas Emmas se sobrepunham: a que
me criara e a que ela escondia de mim, uma Emma que eu mal conhecia.
Uma Emma que eu talvez nunca tivesse a oportunidade de conhecer com o
tempo.
O momento passou.
— Vocês ouviram sua irmã — disse Emma, enérgica, apesar de soar
exausta.
Ela se aproximou e pegou March no colo. May escorregou do sofá,
contida. As duas gêmeas me olharam, incertas. Eu não podia chorar de
novo. Não ali.
— Eu amo vocês e vou pôr um fim nisso daqui antes do almoço —
declarei, na minha melhor voz de perfeccionista ocupada. — May, sei que
você não me odeia — interrompi quando May abriu a boca, sabendo que, se
eu a deixasse falar, não seria capaz de conter as lágrimas. — Agora corram.
Antes de partirem, Emma deu um beijo no alto da minha cabeça.
Apertei o maxilar, levantei o rosto para o teto e esperei até ouvir os passos
subindo a escada para deixar minhas lágrimas caírem. Fungando com
determinação, sequei meus olhos nos punhos, enfiei o pincel num
redemoinho de vermelhão e amarelo de estanho e voltei a trabalhar. Só
restavam as pinceladas finais. Um punhado de defeitos me olhava da tela —
um trecho de sombra que precisava de mais reflexo arroxeado, um canto da
coroa que merecia mais luz para dar dimensão —, mas não tinha tempo de
consertar tudo. A parte mais importante, lembrei a mim mesma, estava
pronta.
Houve um farfalhar de tecido quando Rook veio até o meu lado.
Absorvendo o que eu criara, uma imobilidade profunda o tomou. Aquela
reação me dizia tudo que eu precisava saber. Hesitei e abaixei o pincel.
Confiança cresceu em mim com a calma segura da maré, preenchendo cada
caverna de dúvida.
Meu Ofício era verdadeiro.
Um berrante soou, sacudindo as janelas nas molduras, grave e sonoro
com um tom de desprezo. A luz do sol penetrou a sala quando cristais se
despedaçaram lá fora — os espinhos tinham caído nas mãos do Rei do
Amieiro. Embalada por uma certeza eufórica tão intoxicante quanto vinho,
olhei para Rook e sorri.
Ele desviou o olhar do retrato, assustado. Em algum momento, o
encanto se esvaíra dele. Seu cabelo caía em nós embolados ao redor dos
planos inquietantes do rosto. Ele me analisou com olhos inumanos, olhos
cruéis que não eram feitos para mostrar bondade, carinho ou amor, mas
ainda expressavam nitidamente que eu me comportava de forma estranha,
mesmo para um mortal, especialmente para mim.
— Você ficou sem magia — falei baixinho, tocando o punho dele.
Sangue da cor do âmbar encharcara o curativo improvisado.
Ele se encolheu, sua expressão se fechando. Ergueu a mão e olhou de
um lado e de outro, observando os dedos compridos, aracnídeos e nodosos
como se os vir os perturbasse no mesmo nível em que perturbaria um
mortal.
— O sortilégio usa minha força — disse ele. — Não tenho mais como
protegê-la.
— Você não vai mais precisar fazer isso — respondi.
Um tremor chacoalhou o chão. Apesar de eu não ter sentido outro
movimento, a casa inteira gemeu como se vários centímetros da estrutura
tivessem sido levantados por força bruta. Quando assentou com um baque
grave, as tábuas sacudiram e pó de cal caiu do teto. Rook olhou ao redor,
vendo alguma coisa que eu não via. Não precisei perguntar. O feitiço da
minha casa fora rompido. O Rei do Amieiro fora ali com uma intenção,
afinal: nos matar. Ele não ia perder tempo.
Afastei as almofadas e fiquei em pé. Meus joelhos cederam pela terceira
vez em 24 horas e Rook me segurou de novo, me sustentando como se eu
não pesasse nada. Estendi a mão para o retrato.
— Isobel — disse ele.
Interrompi meu gesto.
— Não sou muito bom com… declarações — continuou, depois de
hesitar.
Em seguida, hesitou ainda mais, olhando para mim, absorvendo o que
via, parecendo esquecer o que tinha em mente.
— Eu sei — tranquilizei, com carinho. — Acho que você insultou
minhas pernas curtas da primeira vez, entre outras coisas.
Ele se empertigou um pouco.
— Em minha defesa, elas são muito curtas e eu não posso mentir.
— E com isso você quer dizer que me ama, mesmo com pernas curtas?
— Sim. E… não. Isobel, eu a amo inteiramente. Eu a amo eternamente.
Eu a amo tanto que me assusto. Temo não poder viver sem você. Eu veria
seu rosto toda manhã ao acordar por dez mil anos e ainda ansiaria pela
manhã seguinte como se fosse a primeira vez.
— Acho que pesamos a mão na crítica — suspirei. — Foi uma
declaração e tanto.
Agarrei a gola dele e o puxei para um beijo, mesmo com aquela
aparência monstruosa, ignorando o som abafado de protesto que não durou
muito nos lábios dele. Seus dentes eram pontudos, mas ele me beijou com
tanta ternura e cuidado que não importou. Uma flor brotou em mim, um
broto doce e raro ansiando por luz, vento e toque. Em outro mundo, poderia
ser nosso último beijo. Neste mundo, eu não permitiria que fosse.
Nos afastamos quando uma sombra cruzou a janela. Relutante, Rook me
soltou e eu avancei, cambaleando em pernas fracas como as de um gamo
recém-nascido. Segurei o retrato como escudo e me virei.
Alguma coisa acontecia na minha porta. Manchas escuras e brilhantes
se espalhavam como tinta derramada numa página, ou a chama de uma vela
escurecendo o papel. Só quando o cheiro doce e podre me atingiu, e mofo
branco cobriu a superfície, foi que eu entendi que a porta estava se
decompondo. Pendeu das dobradiças, a madeira retorcida. As tábuas se
descascaram em lascas, desintegrando-se em montinhos esponjosos ao cair.
A maçaneta de latão foi ao chão com um estrondo e rolou para o lado.
Assim, o Rei do Amieiro entrou, curvando-se pela cintura e virando os
ombros largos de lado para caber na entrada agora vazia. A luz o eclipsava
por trás, transformando-o numa silhueta preta, brilhante demais para ver.
Calor invadiu o ambiente.
Eu havia recebido muitas fadas ali, mas nunca uma como aquela.
Quando ele se empertigou, o sol de outra era acendeu o fogo de sua barba e
reluziu em seu manto esmeralda, atingindo-o em tal ângulo e intensidade
que não era responsabilidade das janelas. Ele era de uma época que não era
a nossa, e o peso daquilo o envolvia como uma capa. Ciente de que eu era
tão pequena à frente dele como seria quando criança, avancei um passo. Ele
não olhou para mim. Era como se nem me visse. Sob as sobrancelhas
grossas, seu olhar vasculhou uma eternidade de anos, em busca do presente,
de uma hora e um dia menos significantes para ele do que uma partícula de
poeira suspensa entre milhares incontáveis no ar.
Minha confiança vacilou. Meu plano tinha um defeito: só funcionaria se
ele olhasse para baixo. Portanto, pigarreei para falar.
— Nós o veneramos um dia, não é, Sua Majestade? Vi suas estátuas na
floresta. Foram entalhadas por mãos humanas.
Ele inclinou a cabeça como se ouvisse o canto de um passarinho
distante.
— Nunca ouvi uma história ou li um livro em que não fosse verão no
reino Excêntrico — continuei. — Antes de nos punir, será que Sua
Majestade poderia me contar há quanto tempo está no poder?
A voz dele rangeu como madeira viva.
— Eu estou no poder há eras. Fui rei antes de mortais fazerem o mundo.
Primeiro, fui admirado. Depois, temido. Agora, sou esquecido. Estranho.
Não lembro se estou dormindo ou acordado, ou qual é a diferença entre as
duas coisas.
Seu olhar desceu, tornando-se afiado de compreensão, e meus músculos
travaram, resistindo ao impulso de fugir como uma lebre de um falcão em
investida.
— Um dia — continuou ele —, vim punir uma menina mortal chamada
Isobel e um príncipe chamado Rook por violarem a Boa Lei.
— Sim — respondi, minha garganta seca como osso. — E esse dia é
hoje, Sua Majestade. Mas, antes, preparei um presente, assim como mortais
o fizeram antes de mim.
Eu levantei o retrato. Seu olhar caiu nele e se demorou. Meu coração
estremeceu. Ele estudou meu trabalho sem reconhecimento, como se não
significasse nada para ele — daria na mesma se eu lhe mostrasse um retrato
de Rook ou Gadfly, ou mesmo uma tela em branco. Finalmente, ele soltou
um suspiro longo e lento, como o último fôlego de um homem moribundo,
que encheu meu estúdio como vento. A luz solar sobrenatural dourando
seus ombros sumiu atrás das nuvens, deixando suas feições em sombra. Ele
voltou a ser o velho da sala do trono. Poeira ainda se prendia em sua pele.
Revelada pela sombra, uma teia de aranha pendia entre duas pontas da
coroa de chifres.
— O que é isso? — perguntou em uma voz baixa e rouca.
— É o senhor, Sua Majestade.
Ele se olhou. Viu seu rosto como não era, mas era: um soberano que se
sentara no trono por inúmeros milênios, mas que sentira cada perda, grande
e pequena, e suportara cada fardo de sua vida interminável. Um ser que um
dia amara, e talvez até tivesse sido amado. Sua boca tremeu. Uma lágrima
desenhou um rastro brilhante na poeira de seu rosto.
— O senhor disse que sonhou, Sua Majestade. Disse que tinha um
desejo. O que era?
Ajustei meu punho atrás da tela. Metal, aquecido por meu corpo, se
apertou contra minha palma.
Ele contorceu o rosto.
— Como ousa… Como ousa me mostrar isso?
Suas palavras cresceram em volume até uivar, rouco, como uma
tempestade arrancando árvores. As paredes tremeram e galhos bateram
contra a casa, lá fora.
— Eu não sonho — continuou ele. — Eu não me importo com
ninharias, com esse pó que chamam de Ofício.
Ele ergueu a mão, pronto para me atacar. Entretanto, não conseguiu
desviar os olhos do retrato.
“Agora.” Eu me joguei para a frente. O Rei do Amieiro não viu ameaça
em uma menina mortal se jogar contra ele, armada de tela e tinta molhada.
O que ele não viu foi seu fim. Com a força de todo o meu peso, a adaga de
ferro atravessou a pintura, a carne entre suas costelas e, enfim, seu coração.
Com um pulo, voltei aos braços de Rook quando o Rei do Amieiro caiu
de joelhos. O retrato se rasgou e foi ao chão — o melhor trabalho da minha
vida estava largado numa pilha de moldura retorcida, tecido esgarçado e
tinta manchada no chão. Meu sangue pulsava como um martelo batendo em
uma bigorna, imaginando que ele puxaria a adaga do peito e se ergueria,
ileso. Entretanto, só levou a mão à tinta amarela no manto, como se o
surpreendesse mais do que o próprio sangue. Seu encanto começou a se
descamar e eu soltei um barulho esganiçado frente ao que ele revelou.
A altura do Rei do Amieiro se manteve, mas ele era esquálido e lívido
como um cadáver, suas roupas devoradas por traças envolviam o corpo
encolhido como os restos de um grande homem corroído por doença. Seus
olhos estavam afundados em buracos escuros e sua pele sem cor tinha uma
qualidade fina e esgarçada como gaze podre. A coroa de galhadas se tornou
preta e desbotada, horrivelmente lascada onde pedaços tinham quebrado
com o tempo, a beira enfiada na carne da testa. Um fedor enjoativo
emanava dele. Quando caiu, um besouro saiu correndo de sua orelha e
sumiu na barba.
Ele moveu os lábios.
— Estou com medo — sussurrou em tom de assombro maravilhado. —
Eu sinto…
Seus olhos pesaram e se fecharam. Musgo saiu espumando do tapete
para engoli-lo. “Ele vai estragar o chão”, pensei, estranhamente prática.
“Devíamos tirar o corpo daqui.” No instante em que a ideia me ocorreu,
Rook nos puxou para longe, me protegendo com as costas e os braços. O
mundo sacolejou. Uma raiz da grossura de um barriu brotou do chão
embaixo de mim, quebrando as tábuas como um machado. Flores se
espalharam pelo tapete, pelo cavalete e pelo sofá, por mim e por Rook,
explodindo como uma onda na parede. Vidro se estilhaçou. Galhos
arranharam o teto. Pregos rangeram, cedendo sob a força, até a casa se
debater num estrondo destrutivo, telhas soltas caindo ao nosso redor como
granizo. Luz entrou pela devastação, ofuscante.
Pareceu ser o fim. Rook deitou em cima de mim por um instante a mais
antes de olhar por cima do ombro, soltando pedaços de gesso do cabelo,
antes de se afastar, rolando. Ele me ajudou a me levantar entre as ruínas do
estúdio. Agora era mais uma floresta do que um cômodo: um amieiro
colossal crescera no centro, rompendo metade do telhado e derrubando a
parede ao sul. Pontinhos de luz cintilavam no chão coberto de musgo,
folhas e flores que não davam sinal dos móveis por baixo, exceto por
crescimentos em formatos peculiares aqui e ali. Tínhamos vencido, mas no
momento me senti inteiramente atordoada. Era estranho estar no meio do
estúdio, olhando através do trigal para além dos restos murchos da barreira
de espinhos de Rook. À distância, silhuetas fugiam para a floresta — mais
rápidas do que qualquer humano, algumas correndo de quatro.
Uma lufada de vento nos atingiu. Rook deu um passo para trás, uma
telha raspando o chão sob a bota. Ele cambaleou e caiu. Fui tomada por
pânico. Imaginei uma lasca de madeira empalando suas costas enquanto ele
me protegia com o corpo. Caí ao chão ao lado dele, segurando seus braços e
me perguntando se ele sobreviveria a uma ferida grave sem magia.
Entretanto, Rook parecia mais chocado do que ferido e, conforme eu
percorria seu corpo com as mãos, procurando algum sinal de dano, o
encanto o invadiu de volta. Ele segurou minha mão.
— Olhe — disse, mas foi a expressão em seu rosto que me fez virar.
Vento soprou no campo, dobrando o trigo em ondas reluzentes. Ao se
espalhar, as cores mudaram. As folhas das árvores se tornaram douradas,
escarlate e laranja-flamejante. Em pouco tempo, a transformação acendeu a
floresta inteira. Até o horizonte, o único verde que restava era o dos
gramados às beiras dos campos e um punhado de pinheiros altos e solitários
atravessando as copas das árvores. Ri alto ao pensar na confusão dos
moradores do reino Excêntrico: a sra. Firth saindo correndo da loja,
chocada; Phineas encarando a pintura pendurada atrás da porta. Uma só
folha vermelha caiu do carvalho da cozinha.
— Que silêncio — comentei, fascinada.
A brisa fez meu vestido farfalhar, o frescor doce pelo qual tanto ansiava
arrepiando meus braços. Passarinhos cantavam calmamente nas árvores.
Das beiras da floresta, grilos cricrilavam uma melodia líquida. Os
gafanhotos todos tinham se calado.
Uma silhueta solitária se distinguiu dos destroços do quintal,
fastidiosamente abrindo caminho entre os espinheiros espalhados pelo chão.
O cabelo loiro brilhava em luzes prateadas sob o sol e ele tinha trocado de
roupa desde que o vira pela última vez: vestia um colete azul-esverdeado e
uma gravata impecável e bem amarrada.
Meu estômago se revirou. Eu ainda tinha uma adaga de ferro enterrada
no estúdio.
Gadfly nos chamou usando um tom de voz calmo e agradável.
— E assim termina a era do verão e o outono chega ao reino Excêntrico.
Lamento que a primavera esteja tão distante, mas é assim que o mundo
funciona, e confio que um dia as estações mudarão novamente. Boa tarde,
Rook. Isobel.
Ele parou a vários passos de nós e fez uma reverência.
Franzindo a testa, Rook retribuiu o cumprimento. Eu não era presa por
obrigação alguma, então só o olhei com cara feia.
— Que recepção calorosa. Eu só queria parabenizá-los por um trabalho
bem feito — disse Gadfly, seu olhar se dirigindo só a mim, e sorriu, um
sorriso caloroso e cortês que enrugou seus olhos sem revelar nada. — Você
tomou todas as decisões corretas. Que esplêndido. Que singular. No
momento em que derrotou o Rei do Amieiro, destruiu todos os decretos
criados por ele. Você e Rook são livres para viver como bem entenderem,
sem o peso da Boa Lei. As cortes feéricas nunca mais serão as mesmas.
Eu encontrei minha voz.
— Mas você… Você queria…
O que ele queria? Abruptamente, tudo se encaixou.
Antes de minha primeira barganha com ele tantos anos antes, talvez até
antes do meu nascimento, ele já começara a se planejar. Protegera minha
casa com um feitiço poderoso para ganhar minha confiança e garantir que
nada acontecesse comigo antes de o plano entrar nos eixos. Marcara o
retrato de Rook. Nos levara ao Poço Verde. Trouxera a adaga de ferro, que
nunca fora para Rook, mas para o Rei do Amieiro. Pior: soubera
exatamente o que dizer para torná-lo meu inimigo amargo, para me fazer
correr pela floresta, para longe do caminho predestinado, para o objetivo
impossível de destruir o Rei do Amieiro. Choque e fúria me atingiram em
igual medida. Minha voz endureceu, engasgada de emoção.
— Não gosto de ser usada como um peão no seu joguinho, senhor.
Ele me olhou por um tempo, em silêncio.
— Ah, mas você nunca foi um peão. Desde o começo você sempre foi a
rainha.
Respirei fundo. A inflexão dele era carregada de um sentido escondido
que eu não tinha paciência de decifrar.
— E você é um traidor, e nunca esquecerei a dor que sofremos por sua
vontade, independente da forma como tudo terminou.
— Dito, se me permite, como uma verdadeira monarca.
Ele sorriu de novo. Uma sombra passou por seu rosto e, dessa vez, seus
olhos não se enrugaram. O quarto dos retratos voltou à minha mente de
repente. Todos aqueles séculos pacientes de construção da coleção — não
porque desejava retratos, mas porque esperava por mim, pelo meu Ofício,
uma aranha no centro de uma teia vasta que tecera por centenas de anos,
sozinho.
— Acredito que seja para o melhor — continuou ele, me observando
atentamente. — Confiar em uma fada já é tolice o bastante para a vida toda.
É sempre melhor que mortais lembrem o que somos, e que sempre servimos
somente a nós mesmos.
— Gadfly — disse Rook num tom que sugeria que o príncipe da
primavera estava passando dos limites.
— Só mais uma coisa, por favor — disse Gadfly, espanando poeira
invisível da manga e levantando as sobrancelhas para Rook. — Você está
ciente, suponho, de que ainda não foi nomeado rei? Há uma certa medida
que deve…
— Sim, eu sei! — interrompeu Rook, irritado.
Eu o olhei de relance, curiosa, e descobri que ele fugia ao meu olhar
com nervosismo. Ele pareceu aliviado quando passos hesitantes soaram
pela casa, libertando-o do fardo de explicar essa “certa medida” para mim, e
naquele momento fiquei feliz em esquecer tudo.
— Emma! — chamei. — Estamos seguros! Estamos no… estúdio.
— Estou vendo — disse Emma com calma, abrindo caminho pela casa
enquanto segurava a mão das gêmeas. — Tem buracos nas paredes. March,
não sei o que você pegou, mas não coma.
— Tarde demais — disse May.
Emma sacudiu a cabeça. Ela olhou o estúdio e o quintal e então notou
Gadfly, estreitando os olhos desconfiados.
— Eu quero saber quem vai arrumar essa bagunça?
— Ah, que pena — disse Gadfly. — Temo que eu precise ir embora.
Epílogo
Enrolei o curativo com cuidado na mão ferida de Rook, feliz de ver que,
daquela vez, ele não escondeu uma careta. Duas semanas depois, seu dedo
já estava praticamente curado. Estávamos sentados à minha cozinha, a mesa
sob o brilho vacilante da luz feérica que ele criara, ainda reluzente após as
duas dúzias de feitiços que fizera aquele dia como pagamento para os
operários que reconstruíam meu estúdio. Não me passara despercebido que
ele não mencionara voltar à floresta, nem falara de tomar o posto de rei,
então, no momento em que ele começou a se remexer inquieto na cadeira,
eu tinha uma ideia razoável do que iria dizer.
— Um dia eu mencionei como funciona a sucessão no meu povo —
disse ele. — Como um príncipe é substituído pelo outro. Ou, pelo menos,
como funcionava… A lei pode ser diferente, agora.
— Sim, e é horrível — falei, insistente. — Matando uns aos outros e…
Ah.
Rook não se preparara para que eu entendesse sozinha. Ele empalideceu
e continuou, rápido:
— Então, tecnicamente, como foi você quem derrotou o Rei do
Amieiro, você agora é… Bom… Você é a rainha das cortes feéricas. E eu…
Eu me apiedei dele, que estava ficando bem verde.
— Rook, seria um prazer casar com você e te tornar rei. Mas, primeiro,
tenho uma exigência. É da mais suma importância.
Eu não sabia se ele estava mais aliviado ou mais assustado.
— O que é, meu amor?
— Quero outra declaração, por favor.
— Isobel.
Ele se ajoelhou e beijou minha mão, me olhando em devoção.
— Meu amor por você é maior do que todas as estrelas no céu — disse
ele. — Eu a amo mais do que Lark ama vestidos.
Minha gargalhada chegou a me assustar.
— Eu a amo mais do que Gadfly ama se olhar no espelho — continuou
ele.
— Ah, isso certamente não!
Nossa gargalhada foi carregada pelo quintal escuro, para além do
galinheiro cheio de galinhas adormecidas, para além das folhas vermelhas
do carvalho e do trigo outonal sussurrando no campo, em parte cortado por
conta da colheita. O vento bravio levou nossas vozes até a floresta, onde
grilos cantavam uma nova melodia para a lua crescente. Em algum lugar,
fadas faziam banquetes. Outras dançavam no meio de um baile. Outras,
ainda, traçavam as bordas de um pedaço de casca de bétula, encarando seus
retratos em contemplação silenciosa. Uma mulher magra e mortal guardava
seus livros, ajudada por uma menina de dentes afiados e um homem bem-
vestido de cabelo loiro-platinado. Independentemente do que estavam
fazendo, todos na floresta esperavam, ansiosos, o gosto do outono, o cheiro
da mudança, as primeiras notícias de um rei e uma rainha diferentes de tudo
que o mundo já vira.
Não viveríamos felizes para sempre, porque não acredito nessas
besteiras, mas nós dois tínhamos aventuras longas e ousadas à nossa frente,
e muito a esperar, finalmente.
Agradecimentos