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JARDIM DE ESTRELAS
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Ikaris retornou para a ala dos criados, seguindo para o quarto
de Maressa, com uma ideia palpitante na cabeça. O aposento estava
vazio, mas a essência de seu perfume dançava no ar; aquele
chamado tentador para seus mais afiados sentidos.
Andou até a pequena mesinha ao lado da cama. Tentou não
olhar para o colchão, tentou não pensar no corpo pequeno de
Maressa encaixado no seu, no toque entre seus lábios, em sua
respiração fraca.
“É algo que está comigo desde sempre. E não há nada que
possa ser feito.”
Quando percebeu, seus punhos estavam cerrados.
Tinha algo de errado com ela.
Aquelas tonturas, aquela fraqueza, as vertigens constantes...
Não podiam ser apenas causadas pela tensão ou pelo trabalho
pesado do castelo.
Será que ela estava doente? Será que estava sendo
envenenada por alguma mente diabólica que usava criados para
testar e criar remédios?
Ele não sabia por que estava pensando naquilo, mas não
conseguiria fazer mais nada, nem mesmo se concentrar na criatura
encapuzada da câmara ou na missão de Iohanna, se não
descartasse uma hipótese que havia surgido naquela noite.
Voltou sua atenção para a mesinha de cabeceira.
Havia dois frascos fechados do tônico que Maressa bebera ali.
Ikaris pegou e destampou um dos frascos. Girou e cheirou o
conteúdo. Uma, duas vezes. Não sentiu nada de errado. Sorveu um
gole do líquido, deixando que a língua e o paladar reconhecessem as
ervas que compunham a mistura.
Ginkgo, efedra, calêndula, malva, eufrásia.
Era uma mistura poderosa para mal-estares de longa duração.
As ervas tinham sido colocadas em doses precisas, calculadas.
Quem preparava aquilo era um curandeiro com muitos
conhecimentos medicinais.
Ikaris deixou que o líquido continuasse circulando em sua boca,
absorvendo cada detalhe até se sentir satisfeito e engoli-lo de uma
só vez.
Por via das dúvidas, experimentou todos os frascos.
E concluiu a mesma coisa a cada gole e a cada teste.
Não havia nada de errado com o tônico. Nada de venenos,
nada de ervas perigosas. Era apenas um preparo muito bem feito
para aliviar tonturas e fraquezas.
Ninguém estava envenenando Maressa.
Ikaris guardou os frascos, dando pequenos passos pelo quarto,
até se ver debruçado na janela, encarando a noite fechada pela
chuva contínua.
O que ela tinha...
“É algo que está comigo desde sempre. E não há nada que
possa ser feito.”
A mera ideia de considerar que Maressa poderia...
Levou uma mão ao peito, bloqueando o pensamento que quase
o sufocou, um pensamento que não deveria existir, permitindo que ar
escapasse de forma lenta, dolorida e pesada de seus lábios.
Céus.
Que as estrelas que se recusavam a brilhar nas montanhas lhe
dessem forças para prosseguir até o fim.
22
Tempo de espera
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Foi o hálito quente em seu rosto que obrigou Ikaris a abrir os
olhos.
Seu coração batia rápido no peito; a respiração era um chiado
descompassado e entrecortado.
Ele piscou, grunhindo ao sentir uma corrente de dor
avassaladora se alastrar pelas suas costas. Virou de lado, e então
percebeu que não estava em sua cama, tampouco em seu quarto, e
sim em um chão duro de terra.
Seus olhos se estreitaram, assimilando o espaço.
Ele estava...
No meio do bosque do castelo?
Olhou em volta, confuso, a respiração descompassada,
entrecortada pelo farfalhar das árvores que recebiam a luz do
amanhecer.
Como vim parar aqui?
Mil e um pensamentos atravessavam a cabeça de Ikaris. Não
se lembrava de ter deixado seus aposentos no meio da noite, muito
menos de ter caminhado até o bosque.
Será que estou sofrendo de distúrbios do sono?
Antes que ele pudesse encontrar uma resposta, sentiu outra
vez aquele hálito quente em sua nuca.
Segurando o ar, erguendo a guarda, Ikaris olhou para trás.
E se deparou com um par de olhos animalescos costurados de
preto e dourado.
A raposa gigante.
Raio de Luar o espreitava como se sondasse seus
pensamentos, sua alma, seu coração.
Havia algo diferente naquela criatura, que agitava até a última
gota do seu sangue.
Ignorando os riscos, sabendo que já havia sido mordido uma
vez, Ikaris estendeu uma mão sobre a cabeça dele; a pelagem que o
fazia pensar em fios prateados era tocada pelos primeiros feixes do
sol.
“Tenho a impressão de que Raio de Luar fareja quem quer
derramar sangue”, a voz de Maressa roçou em seus ouvidos. “E
então ataca”.
Mas o lobo não se moveu, não rosnou.
A mão de Ikaris acariciou a cabeça do animal.
— Quem é você?
O vento soprou, erguendo seus cabelos escuros.
Raio de Luar se afastou gentilmente, mas sem jamais deixar de
observá-lo, o olhar descendo para a outra mão que Ikaris mantinha
fechada.
Acompanhando o movimento dos olhos da raposa, ele fitou a
própria mão. Somente naquele momento percebeu que estava
segurando e guardando alguma coisa ali.
Em um compasso lento, seus dedos se abriram.
Ikaris prendeu o ar.
Feito um prelúdio da morte, ele segurava o Suspiro de Áster
que seria usado para cumprir a missão de Iohanna naquela noite.
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Como se tivesse sido puxado bruscamente, Ikaris abriu os
olhos, as imagens do sonho se estilhaçando em mil pedaços.
Olhou em volta, assimilando o espaço.
Estava no quarto da hospedaria onde seu grupo havia parado
para pernoitar. Viajavam há dias, sem parada, sem descanso,
seguindo as informações que indicavam o caminho para Rovina.
Ele teria aguentado mais alguns dias e algumas noites na
estrada, alternando com pequenas paradas para os cavalos
descansarem, mas Maressa, Willelm e Nina não tinham o mesmo
preparo e treinamento de seu corpo; assim, se instalaram na primeira
estalagem que encontraram. Uma noite inteira de sono, em uma
cama quente e confortável, além de uma boa comida, renovariam as
forças de todos.
Por questões de segurança, preferia evitar aquele tipo de
parada, mesmo que ainda não tivessem encontrado nenhum carniçal
ou sinais de estarem sendo seguidos pelo Nefastus.
Mas, por outro lado, não podia correr o risco de fazer com que
o grupo chegasse ao limite da exaustão.
Principalmente Maressa, que tinha uma saúde mais debilitada.
Ikaris empurrou as cobertas, sentando-se no colchão, os pés
tocando o chão frio.
Qualquer ideia de descanso, para ele, já havia se dissipado.
Tocou a testa.
Desde que deixara as montanhas, desde que chegara em
Arustar, desde que vira a raposa gigante, Maressa e o Nefastus... Os
sonhos estavam ficando mais intensos.
Quase vivos.
Quase palpáveis.
O que está acontecendo comigo?
Ikaris se levantou da cama, cambaleando para fora do quarto.
Subiu até o terraço da hospedaria, ansiando por ar, pela luz das
estrelas. Ao alcançar o topo, se deparou uma cena inesperada.
Em pé, no meio do terraço, sob o brilho dos infinitos pontinhos
que enchiam o céu, Maressa segurava uma faca longa e a
examinava com um olhar pensativo, tão concentrada que mal notou
sua presença. O cabelo, meio solto das presilhas, voava em torno
dela.
Diferente dos vestidos em que se acostumara a vê-la, Maressa
vestia uma camisa branca de algodão, com mangas compridas,
folgada no busto e na cintura, e uma calça de couro justa nos quadris
e nas pernas, que insinuava muito mais do que ele já tinha visto de
seu corpo e de suas curvas.
Ikaris mal notou que segurava a respiração.
Ela não se parecia em nada com uma princesa criada na prisão
dos muros de um castelo.
Era como se estivesse vislumbrando...
Uma guerreira.
Alguém que poderia ser sua semelhante, se a guerra não
tivesse separado seus povos e enraizado profundos sentimentos
odiosos entre reinos e raças.
Maressa ergueu a faca, como se estivesse prestes a
arremessá-la.
Ikaris deu um passo para a frente.
— O que você está fazendo?
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Maressa continuou andando pelos corredores, envolvida pela
beleza mágica de Rovina, pelo aroma das flores e frutas, do mar
distante, da fumaça adocicada das tochas que irradiavam luz por
todo o castelo.
Quando percebeu, estava diante da porta do aposento de
Ikaris.
Antes que pudesse pensar direito, antes que pudesse recuar,
Maressa ergueu a mão e bateu algumas vezes.
Seu coração acelerou descompassadamente quando Ikaris
abriu a porta e a fitou. Havia uma surpresa pulsante nos olhos dele.
— O que você está fazendo aqui?
Seus lábios se contraíram; apenas queria estar ali, onde a
pressão em seu peito diminuía.
— Posso entrar?
Ele assentiu e deu passagem para ela.
Maressa juntou as mãos em frente ao corpo. Ficar perto de
Ikaris fazia com que cada pedacinho da sua pele se agitasse, com
que o sangue corresse mais rápido, com que o coração batesse de
um jeito diferente, como se finalmente houvesse encontrado um
encaixe correto.
Deixou que seus olhos corressem pelo quarto, até pararam
sobre a mesa onde diversos papéis avulsos se espalhavam.
— São as páginas dos livros do seu povo. Você está
procurando por alguma informação específica?
— Fiquei pensando no que você falou lá no salão. Sobre a
entidade de olhos dourados e pretos. Quando vi Raio de Luar pela
primeira vez, senti uma certa familiaridade nele, algo que não
consegui explicar para mim mesmo na hora. Mas então me lembrei
daquele dia. — Os olhos de Ikaris se estreitaram, e Maressa quase
achou que poderia tocar as memórias que ele evocava. — A queda
da Cidadela Prateada. O dia em que meus pais foram mortos pelos
soldados de Arustar.
Saber que a família dele havia sangrado nas lâminas de
Arustar fazia o peito de Maressa se contrair, como se ela também
fosse culpada pelos efeitos da guerra.
Como queria que tudo tivesse sido diferente.
Como desejava que aquela guerra jamais houvesse
acontecido.
Como ansiava entender pelo verdadeiro motivo, perdido no
tempo e nas histórias, que havia levado humanos e erelins a se
enfrentarem.
— E você se recordou do quê? — perguntou, a voz rouca,
baixa.
— Quando os soldados atacaram meus pais, eu estava
escondido. Naquele momento, quis abrir mão de minha própria vida,
quis vingar a morte deles, mas então... Entre o fogo e a chama... Tive
a impressão de ver um par de olhos dourados e pretos me
encarando. Era como se eles pedissem para que eu não me
mexesse, para que eu ficasse escondido. E...
Ikaris parou de falar e deu um passo para trás, ofegante,
contraindo o rosto como se estivesse sendo acometido por uma dor
aguda.
— O que foi?
— Não é nada.
— Você está mentindo. Posso ver a dor em seus olhos.
— Foi apenas uma fisgada nas costas. Já disse que não é
nada.
— Ikaris! — O nome dele ecoou pelo quarto, calando-o.
Maressa ergueu o queixo e deu um passo para a frente. — Deixe-me
ver.
— É mesmo impossível argumentar com você.
— Como acha que consegui convencer minha mãe a me deixar
passar por criada durante o torneio de Arustar?
Ela quase jurou ver a palidez de um sorriso risonho manchando
os lábios de Ikaris enquanto ele levava os dedos aos botões da
camisa.
Seu coração bateu mais rápido.
Maressa esperou que ele desabotoasse a camisa e a tirasse,
deixando a parte de cima do corpo despida.
Ela tentou não olhar, mas foi inevitável. Nunca tinha visto um
homem daquele jeito. A luz das velas e do luar pincelava os cabelos
escuros, tracejava os músculos dos braços, o peitoral definido, o
abdômen marcado, as cicatrizes pálidas sobre a pele.
Lindo.
Ele era lindo.
Foi difícil encontrar a própria voz, a cadência do ar que tentava
sugar por entre os lábios.
— Sente-se.
Ikaris se sentou na beirada da cama. Maressa apoiou o joelho
no colchão, deslizando os dedos pelas costas largas, repletas de
cicatrizes. Podia sentir a respiração dele se acelerando. Podia sentir
sua própria respiração se acelerando.
— Não há nada aqui.
— Eu falei. Foi só uma pontada de dor.
— Quis me certificar do mesmo jeito. Assim como você se
preocupa comigo, também me preocupo com você.
Ikaris virou a cabeça; seus rostos estavam tão próximos que
Maressa sentia que compartilhavam o mesmo ar, o mesmo espaço.
— Sua preocupação não é necessária.
— É inevitável.
O cinza dos olhos de Ikaris escureceu.
Era como se um fogo invisível se irradiasse da pele dele, do
coração dele, direto para o âmago dela.
— Por que ainda fica perto de mim, Maressa? Você sabe quem
sou. Você sabe qual era a ordem que eu tinha que cumprir. Você
sabe que seu reino odeia a minha raça.
— Eu não te odeio — ela sussurrou, buscando pelos olhos
dele. — E você? Odeia a culpa da destruição do seu povo que meu
sangue carrega? Odeia quem sou?
— Jamais — ele sussurrou de volta. — Nem mesmo se todas
as estrelas do céu fossem engolidas. Eu jamais seria capaz de te
odiar.
E algo nela se soltou, se libertou.
Maressa inclinou os lábios para perto da boca dele; com um
movimento que pareceu exigir todas as suas forças, Ikaris afastou o
rosto.
— Não posso. Quero, anseio, mas não posso.
— Por quê?
— Não sou nada além de um exilado da terra, um renegado do
céu, repleto de sombras e rancor.
— Você também é um amante das palavras, leal e devoto às
memórias, e está pronto para se colocar na linha de frente para
proteger seus companheiros de viagem. É alguém capaz de se
embrenhar na mata para encontrar as ervas de um tônico. É alguém
que se priva do próprio sono e continua no posto de vigilância,
apenas para deixar Willelm dormir um pouco mais. É alguém que
busca pelo próprio caminho. — Ela o fitou por debaixo dos cílios
longos. — Eu te enxergo, Ikaris. Em todas as suas nuances e
camadas. E aceito e as quero. Porque é você.
— Maressa. — Ele tomou a mão dela, encostando o lábio em
sua palma. Aquele suave contato a fez estremecer mais do que
qualquer onda de luz e poder. — Você não sabe o que está pedindo.
— Se você não me tocar, se você não me beijar... — As mãos
dela subiram para o rosto dele; e ali, na colisão de seus olhares, ela
enxergou nele a mesma ardência que queimava nela. — ....Uma
parte de mim morrerá antes que meus inimigos me encontrem ou
que meu poder me consuma. Essa é a única verdade que sei.
Ikaris subiu as mãos para as mãos dela, afastando-as com
gentileza de seu rosto, mas não as soltou.
— A minha verdade é que fui enviado para Arustar para tirar a
vida da herdeira do trono. Sua vida. Mas creio que as estrelas me
levaram até o castelo, até você, para me fazer enxergar meu
verdadeiro destino, para dar à minha alma congelada um motivo para
lutar, arder e queimar. E hoje sei que eu sou capaz de colocar meu
coração no fogo para impedir que qualquer mal te aconteça.
Maressa puxou uma de suas mãos que ele segurava e a
deslizou pelo peito despido, marcado por músculos e cicatrizes,
pousando a palma sobre o coração trovejante dele.
— Não quero que coloque seu coração no fogo ou que se
sacrifique por mim. Quero que me beije. — Ela inclinou a cabeça, os
olhos banhados pelo luar. — Apenas me beije. Apenas me mostre
que sente o mesmo.
38
Queda das estrelas
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Atualmente
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Quando o efeito da fumaça paralisante se dissipou de seu
corpo, Maressa já não sabia mais onde estava.
Presa entre as garras do Nefastus, incapaz de se soltar e com
a magia ainda fraca nas veias, ela não teve escolhas. Deixou que a
criatura voasse sobre o que parecia ser as ruínas de uma antiga
cidade, enquanto pensava em um plano para fugir.
Talvez conseguisse encontrar sua mãe. Talvez o Nefastus a
estivesse levando para o mesmo lugar em que levara sua mãe.
Poderia salvá-la e fugiriam juntas. E então encontraria Ikaris.
Ao pensar nele, seu coração se desesperou.
Implorava aos céus e às estrelas que ele estivesse bem. Que
os efeitos da fumaça paralisante não lhe fizessem mal.
O Nefastus continou voando; em algum momento, Maressa
sentiu que a criatura começava a descer. Por entre as brumas,
escombros e ruínas do que parecia ter sido uma cidade começaram
a encher seus olhos.
O coração dela bateu mais rápido.
Ao correr os olhos pelas ruínas, sua mente volitou para as
descrições feitas por Ikaris e Darlan.
Estou na antiga Cidadela Erelin?
Maressa exclamou de dor ao ser atirada bruscamente no chão.
Esfregou os braços, as pernas, percebendo que as garras do
Nefastus haviam aberto cortes em sua pele.
Arfando, salivando, o Nefastus se debatia.
— A pedra e a princesa, mestre.
— Obrigada, Hakon.
A voz familiar fez com que Maressa se arrepiasse e se
esquecesse dos ferimentos.
O mundo parou durante uma batida de coração.
Ela olhou para o lado, para a mulher parada diante do
Nefastus.
— Mãe?
A rainha Sylvia, trajada em um longo vestido prateado, cuja
cauda arrastava no chão, andou até ela e tocou em seu queixo,
fazendo com que os olhos de Maressa encarassem os seus.
— Posso ter adotado esta pele para mim — ela disse, correndo
os olhos pelo próprio corpo. — Posso ter assumido a identidade da
verdadeira Sylvia durante todo este tempo após matá-la. Posso ter te
criado por vinte e um anos. Posso ter te chamado de filha desde que
você era apenas um bebê insuportável. Mas foi tudo por um só
propósito.
Maressa piscou, confusa e temerosa.
— Sobre o que você está falando, mãe?
Um sorriso perverso subiu pela boca da rainha. Maressa arfou.
As cores do cabelo de sua mãe começaram a mudar, transmutando-
se dos tons alourados para tons pratas e frios.
— Eu não sou, nunca fui e jamais serei sua mãe.
52
Corrente de vingança
Cem anos atrás
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Todas as noites, ela se encontrava com o najma no jardim de
estrelas. Nos braços dele, descobriu um amor que jamais imaginou
que sentiria. E, foi em uma noite estrelada, deitada sobre a campina,
que sentiu a mão dele descer para seu ventre.
— Você está carregando uma criança.
Iohanna piscou e balançou a cabeça.
— Não posso ter filhos. Fui escrava parideira por décadas, e
mesmo com meu corpo tomado e usado diversas vezes por meus
captores, jamais fui capaz de conceber uma criança erelin. Nem
mesmo depois que fui libertada consegui ter filhos. Este é um desejo
gritante do meu coração que jamais será realizado.
— E, ainda assim, ela está crescendo dentro de você.
Erguendo o corpo, com os cabelos dourados caindo sobre os
ombros nus, Iohanna ofegou baixo. Os olhos do najma não mentiam.
Não para ela. Nunca para ela.
— Sempre ansiei por um filho. — As mãos dela pousaram
sobre a barriga. — Pelas estrelas, posso senti-la. Apesar de todos os
horrores que vi e vivi, ainda posso ser capaz de amá-la com todo
meu coração.
— Ela não será como você. Mesmo que nasça de você, o
sangue que ela carregará será mais antigo e ancestral do que aquele
que corre nas veias do seu povo.
— Ela estará aqui. Como um raio de luz na mais densa
escuridão. — Iohanna olhou para baixo da colina, para a cidade que
ardia dia e noite. — Só temo pela guerra. Por ela nascer em meio ao
caos.
O najma levou a mão ao próprio peito, retirando os últimos três
Suspiros de Áster cravados na pele e os entregou para Iohanna.
— Por quê?
— Você precisará deles. O tempo, a morte, a vida... São arcos
entrelaçados para alguém como eu. Posso ver o que já se foi e o que
ainda virá. O destino não é um caminho reto, mas suas nuances
serpenteiam ao redor de similaridades. São imutáveis.
A mão de Iohanna se fechou ao redor dos três Suspiros de
Áster. Ela buscou pelos olhos dele, a mistura preta e dourada que
havia visto tantas vezes ao longo dos anos.
— Você também estará aqui? Você também ficará? Comigo e
com nossa filha?
— Sim e não.
— Como assim?
— Sem os Suspiros de Áster, não poderei caminhar nesta
forma que estou agora. Não terei magia pura. Mas estarei aqui.
Vigiando-a, protegendo-a. Você e aos seus.
Seus olhos aumentaram. Podia sentir as lágrimas surgindo.
— Então pegue os Suspiros de volta.
— Você precisará deles mais do que eu. A guerra ficará pior.
As pálpebras de Iohanna estremeceram, as lágrimas
deslizaram.
— Por que eu? Por que abrir mão de tudo por mim?
Os lábios dele roçaram nos dela.
— Porque eu sempre estive entre as estrelas. Mas elas só
brilharam de verdade quando meus olhos encontraram os seus.
Quando meu coração encontrou sua verdadeira razão para bater.
Seu propósito. Seu desejo.
E, quando ele a beijou, Iohanna fechou os olhos, deixando que
as estrelas queimassem e ardessem ao seu redor.
◆◆◆
Meses depois
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— Levem a rainha!
— Ela está ferida demais!
— Temos que salvá-la!
Atordoada, Iohanna entreabriu os olhos. As vozes ao seu
entorno eram confusas, distorcidas.
— A fonte foi completamente destruída.
— Não há uma pedra, um só fragmento dela em canto algum.
— Quem fez isso? Os soldados de Arustar?
— Toda nossa magia se foi. A Cidadela Prateada caiu. É
questão de tempo até nossa rendição. Temos que proteger nossa
rainha.
— Onde está... — Iohanna arfou baixo. — Onde está... Minha
filha...
Alguém segurava um manto nos braços. Um manto cheio de
sangue. Aos pés do erelin, havia pequenos ossinhos partidos.
— Sinto muito, minha rainha.
Lágrimas agudas escorreram pelos olhos de Iohanna.
Ao longe, sentia a presença do najma para quem entregara o
coração. Sentia a dor que ele também experimentava.
Iohanna comprimiu os olhos enquanto a dor e a inconsciência
voltavam para reivindicá-la outra vez.
Não importava quanto tempo levasse. Não importava o que
precisasse fazer.
O Reino de Arustar pagaria por ter derramado o sangue de sua
filha.
56
Lágrimas de prata
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Fim
Notas da autora &
Agradecimentos
Como todas as minhas outras fantasias, escrever “Jardim de
Estrelas” foi uma experiência mágica e, ao mesmo tempo, muito
trabalhosa. Cada detalhe, cada ponta, cada virada de enredo... Tudo
foi planejado e revisado várias vezes, até que eu alcançasse o
resultado que tanto queria.
TRILOGIA KAPWA
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Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada
pela escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade
e tentativa de escrever o primeiro romance aos treze.
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