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Copyright © 2022 by Clarissa Coral

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.

JARDIM DE ESTRELAS

Design e ilustração de capa: Lunas Editorial


Revisão ortográfica: Ana Vitti
Diagramação: Clarissa Coral

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações,


lugares e situações são frutos da imaginação deste autor e usados
como ficção. Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é
mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer
meios.
Os direitos morais do autor foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
ÍNDICE
PARTE I - Jardim de Sonhos
1 - Inevitável
2 - Renegados do céu
3 - Suspiro efêmero
4 - Asas quebradas
5 - Puxão invisível
6 - Ventos cortantes
7 - Legado
8 - Entre livros e histórias
9 - Essência marcante
10 - Mil trovões
11 - Estremecedor
12 - Fitas entrelaçadas
13 - Versões perdidas
14 - Toque da presença
15 - Castelos e sonhos
16 - Marcas na parede
17 - Rastros de magia
18 - Buscas incertas
19 - Nas sombras
20 - Ônix derretida
21 - Suspeitas
22 - Tempo de espera
23 - Soar das trombetas
24 - Mundo dissolvido
25 - Máscaras
26 - Lendas sombrias
PARTE II - Jardim de Encantos
27 - Vigília
28 - Entre um oceano
29 - Vibrações
30 - Novos destinos
31 - Facas afiadas
32 - Pontos luminosos
33 - Queimação
34 - Ofuscante
35 - Timbre do céu
36 - Um reino encantado
37 - Coração no fogo
38 - Queda das estrelas
39 - Najma
40 - Poder para poder
41 - No passado
42 - Preço da magia
PARTE III - Jardim de Estrelas
43 - Promessa de sangue
44 - Retorno inóspito
45 - Fragmentos
46 - Limiar da morte
47 - Harmonia sombria
48 - Aos céus
49 - Pura essência
50 - Paralisante
51 - Atrás do véu
52 - Corrente de vingança
53 - Feitiço sombrio
54 - Noite especial
55 - Jardim de estrelas
56 - Lágrimas de prata
57 - Metamorfose
58 - Libertação
59 - Conexão das estrelas
60 - Novos acordos
Epílogo
Notas da autora & Agradecimentos
Conheça Fios de Luar: a história de Layla e Ciáran
Outras obras da autora
Sobre a autora
“E a chuva caiu
E as estrelas caíram do céu
Oh, como a noite é escura
Sempre parece que esses castelos e sonhos
Se desfazem com a luz da manhã”
- BLACKMORE’S NIGHT
Castles and Dreams
PARTE I
Jardim de Sonhos

...Ah, se ao menos pudesse ter asas como elas, se


pudesse
subir e tocar as estrelas...
1
Inevitável

COMO ESTAVA escrito no destino de todas as princesas,


haveria um dia em que a palavra “casamento” seria mencionada
como um fato inevitável. E o tal dia — nem um pouco desejado —
tinha chegado para Maressa.
— Isso é mesmo necessário, mãe?
— Já tivemos essa conversa. Não me faça repetir tudo de
novo.
— Mas...
— Maressa, por favor.
Maressa inspirou fundo, remexendo-se de forma desconfortável
no banquinho onde estava sentada, frente à grande penteadeira do
seu quarto. Sua mãe, a rainha, escovava seus cabelos com
paciência; era uma tradição matinal que as duas tinham desde que
ela era uma menininha, e que ainda se mantinha perto dos seus
vinte e um anos.
— Fique quieta, Maressa, ou acabarei puxando alguns fios sem
querer — a rainha pediu, endireitando os ombros da filha e a
colocando diante do espelho.
Com um suspiro, fitou a si mesma, encarando a palidez da face
que destacava o azul cristalino dos seus olhos e a cor clara dos
cabelos.
Ela queria que seu rosto fosse mais corado, mais cheio de vida,
semelhantes aos das damas da corte e das criadas do palácio. Mas,
mesmo com as infusões e os tônicos preparados pelos curandeiros,
a cor leitosa, quase acetinada, parecia determinada a ficar.
— Quando os pretendentes chegarão?
— Em alguns dias. — A rainha passava a escova em um
movimento ritmado e constante por entre os fios dourados do cabelo
dela. — O castelo está sendo preparado para recebê-los, assim
como a guarda está sendo redobrada. Será a primeira vez em anos
que abriremos os portões para uma quantidade significativa de
pessoas. Sua segurança é vital. Mas fique tranquila. Escolheremos o
melhor marido para você.
— Eu sei porque não posso simplesmente me apresentar para
os pretendentes e avaliá-los. — Maressa encarava a si mesma no
espelho, tentando capturar os olhos da mãe. — Mas não é justo.
Quem se casará com um deles será eu.
A rainha gesticulou para ela com a escova, o anel de safira no
dedo reluzindo à luz incipiente do amanhecer.
— Então também sabe que isso é pela sua própria segurança.
Por mais que tenhamos vivido quase duas décadas de paz, ainda há
tensão com outros reinos e com aquela raça que ainda se ressente
das leis do exílio. — Havia repúdio na voz da rainha.
Maressa suspeitava sobre qual “raça” sua mãe se referia.
E tinha noção de que aquele era um assunto proibido.
Sabia que, quando ainda era bebê, seu povo entrara em guerra
com uma raça de seres chamados erelins. Violentos e selvagens, os
erelins haviam tentado conquistar Arustar e os demais reinos ao
quebrar os acordos de paz, ceifando inúmeras vidas humanas. Foi
uma aliança entre os reinos que garantiu a vitória dos homens e a
derrota dos erelins, lançados ao exílio.
Maressa contraiu os lábios, pensativa. Bom, eram estes poucos
e gerais detalhes sobre a guerra que seus tutores tinham lhe dado.
Ninguém falava muito sobre os erelins.
Muitas pessoas ainda temiam aqueles seres misteriosos.
Ela nunca tinha visto um erelin — a tal mistura de criaturas com
feições semelhantes às dos homens, asas gigantescas, essência
assassina e instinto feroz — e suspeitava que jamais chegaria a ver
um.
Pois, se você cruzar o caminho de um erelin, o rosto dele será
a última coisa que você verá na sua vida.
Mas era curiosa e ávida por conhecimento; queria mais
informações sobre aquela raça, sobre a guerra, contudo, as próprias
leis do seu reino haviam banido tudo o que fizesse referência à
história e mitologia dos erelins.
— Sua apresentação oficial será na noite do seu aniversário. —
A voz de sua mãe a trouxe de volta para o quarto, puxando-a da
névoa espessa das velhas histórias. — E o pretendente escolhido
também será anunciado.
Uma pontinha de hesitação e ansiedade encheu o coração
dela; nunca havia pensado com tanto afinco em casamento, e agora
aquele fato estava mais perto, mais real. E ela se sentia sem controle
nenhum da situação.
— E ele será mesmo escolhido de acordo com a tradição?
— Sim. Terei gente de confiança analisando seus pretendentes.
E você assistirá a alguns torneios. Durante as próximas semanas,
até o dia do seu aniversário, o Conselho organizará várias
competições.
— Não poderei mesmo opinar? — Maressa virou, encarando a
mãe. — Queria, pelo menos, conversar um pouco com eles.
O semblante da rainha permaneceu inabalável, o rosto liso e
brilhante como uma porcelana que não era afetada pelo tempo.
— Se você souber como fazer isso sem entregar quem é e sem
estragar a tradição, terá minha permissão para conversar um pouco
com eles.
Maressa controlou a vontade de bufar e revirar os olhos. Sua
mãe sempre dizia que aquilo não eram os modos de uma princesa.
— Como vou conversar com eles, sendo que eles não podem
saber quem sou, e irão me ver de longe, assistindo a cada
competição do torneio? Isso é impossível.
— Então creio que chegamos a um impasse, certo?
A rainha ergueu a escova para continuar penteando os cabelos
da filha, mas Maressa se desvencilhou e ficou em pé.
— Não é justo. Desde que nasci, todos os meus passos são
controlados e vigiados. Não posso sair de dentro do castelo, não
posso viajar para outros reinos, não posso comparecer aos bailes e...
— Ela deu um passo à frente; de súbito, uma tontura se apoderou
dela, sorvendo a cor do seu rosto e a força de suas pernas.
— Maressa...
A rainha tentou segurá-la, a princesa se afastou, buscando
apoio em uma das colunas da cama. Levou uma mão ao coração,
sentindo-o disparado. Seu peito subia e descia sob o tecido pesado
do vestido; era como se o ar lutasse para entrar e enchê-la de vida.
— Estou bem, mãe.
— Sua saúde é frágil, Maressa. Tudo o que faço é para te
proteger e te preservar. Esta situação me agrada tão pouco quanto a
agrada, filha, mas é algo que faz parte do dever de uma princesa. Foi
assim comigo e com seu pai. E será assim com você, pois esta é a
tradição do Reino de Arustar. — A rainha juntou as mãos em frente
ao corpo. — Pedirei para Nina trazer o seu tônico matinal. Você se
sentirá melhor depois de bebê-lo.
Ela se limitou a um aceno de cabeça e se sentou na beirada da
cama quando a mãe deixou seu quarto.
Odiava aquela fraqueza que se abatia por seu corpo, que a
tomava desde o dia em que havia nascido. Sua saúde frágil era a
algema que a mantinha dentro do castelo.
Mas, naquele momento, odiava ainda mais as velhas leis do
seu reino e a tradição arcaica.
Era injusto que as leis do Reino de Arustar permitissem que
outras pessoas escolhessem seu marido. Quem ficaria casada até o
fim da vida era ela, certo? Deveria ter ao menos o direito de saber
que não estaria se casando com um príncipe ou duque idiota que
mal sabia tecer comentários sobre um tratado filosófico.
Seus pretendentes participariam de torneios, jogos e disputas,
seriam avaliados, entrevistados; aquele que se saísse melhor e se
mostrasse digno levaria o grande prêmio — a mão da princesa.
Maressa correu os dedos pelos cabelos.
Tinha que ficar sentada, usando seu melhor e mais elegante
vestido, brilhando sob joias e tiaras, com um sorriso costurado na
boca, assistindo ao torneio cercada de guardas, enquanto um bando
de homens mais velhos do que os livros da Antiga Biblioteca
decidiam quem seria o marido mais apropriado para ela.
Porque seu papel era ser o prêmio da competição.
Porque toda princesa de Arustar, ao completar vinte e um anos,
era entregue em matrimônio daquela forma.
E Maressa nem queria saber se aquilo era mais ou menos pior
do que os acordos de casamento que eram assinados em outros
reinos quando princesas como ela tinham apenas dois anos de vida.
Seu suspiro resignado e injustiçado ficou suspenso no ar
quando a porta do quarto foi novamente aberta; Nina, sua criada
pessoal, carregava uma bandeja com uma única garrafinha de vidro.
Assim que parou diante dela, a criada fez uma reverência.
— Seu tônico, Alteza.
— Obrigada. Pode deixá-lo ali. Tomo depois.
Como se já esperasse aquilo, a criada a olhou com paciência.
Nina era jovem como ela. Seus cabelos claros estavam trançados,
caindo sobre as costas do simples vestido anil que trajava.
— Alteza, a rainha me instruiu a fazê-la beber tudo agora
mesmo.
Sentindo pouca vontade de contra-argumentar com Nina,
Maressa se levantou, ainda atordoada, e esticou a mão.
Nina lhe entregou o tônico; ela destampou a garrafa e sorveu o
líquido amargo em um só gole. Era uma mistura fortificante feita
pelos melhores curandeiros de Arustar, que diminuíam suas tonturas.
— Está indisposta hoje, Alteza? — Nina indagou com gentileza,
tomando a garrafinha de suas mãos.
— Já estou acostumada com minha saúde frágil e com as
tonturas. — Maressa deu pequenos passos pelo quarto; um raio de
sol incidia através da ampla janela arcada sobre o rosto de Maressa,
banhando suas pálpebras com o dourado da alvorada. — O que me
aborrece é saber que não poderei nem ao menos conversar com
meu futuro marido, porque as estúpidas tradições do Reino de
Arustar ditam que o Conselho deverá escolher o melhor pretendente
para mim.
— Posso, após o anoitecer, trazer informações sobre os
pretendentes para você, Alteza. Dou-lhe minha palavra. — Nina abriu
mais um sorriso empático. — Como criada, não terei problema para
andar entre eles. Coletarei o máximo de informações possíveis para
te ajudar a selecionar o melhor marido.
Grata, Maressa esticou a mão para ela; como seu pai, o rei,
havia morrido durante a Guerra Erelin anos atrás, quando ela ainda
era um bebê, e sua mãe, por opção, se recolhera em um luto
perpétuo, ela não tinha mais irmãos ou irmãs. Nina, que vivia no
castelo desde criança, era quem ela tinha de mais próximo e quem,
em seu coração, considerava como uma irmã.
— Ah, quem me dera se eu pudesse...
De repente, Maressa ofegou.
Nina apertou sua mão.
— Está tudo bem, Alteza?
— Como não pensei nisso?!
— No que, Alte...
Com o coração acelerado, ela segurou a mão de Nina com
mais força e a puxou para perto do espelho. Assim que ficaram lado
a lado, um sorriso triunfante subiu nos lábios de Maressa, ao mesmo
tempo em um olhar confuso enchia as íris da criada.
— Temos a mesma altura, Nina.
— Sim, Alteza.
— E a mesma cor de cabelo.
— Os seus são mais claros do que o meu, Alteza.
— E temos praticamente a mesma idade.
Nina franziu os lábios.
— No que você está pensando, Alteza?
— Que acabei de ter uma ideia brilhante para circular no meio
dos pretendentes sem entregar que sou a princesa de Arustar. Uma
ideia que minha mãe não poderá rejeitar.
2
Renegados do céu

PARADO NO coração silencioso da floresta, ele encaixou a


flecha no arco e fechou os olhos.
A escuridão no interior das pálpebras o puxou para o âmago
dos seus sentidos. Ele sentiu a mistura do cheiro das árvores, o
deslizar sorumbático da neblina que cobria as encostas das
montanhas, a umidade gelada que penetrava no couro das roupas e
das botas.
Foi mais fundo na concentração, captando cada som, desde o
farfalhar das folhas até o deslizar do riacho mais distante; e só
respirou quando ouviu os passos inocentes que queria ouvir.
Ikaris abriu os olhos e se virou na direção exata do som; a
flecha zuniu ao ser disparada.
O último som que o cervo fez antes de tombar sobre a terra foi
um suspiro que se perdeu na névoa e na mata.
Ikaris prendeu o arco nas costas, junto à aljava, e caminhou até
a presa. Retirou a flecha, limpou-a e a guardou com as demais.
Jogando o cervo morto nos ombros, ele seguiu pela trilha
escorregadia, retornando para o lugar que era obrigado a chamar de
“casa” desde que todo seu povo havia sido isolado ali sob leis rígidas
e inquebráveis.
Para onde olhava, a névoa era uma presença constante. As
montanhas onde vivia com seu povo eram inóspitas, úmidas e frias;
mesmo durante o dia, era quase impossível receber um beijo do sol.
— Dê de comer aos mais fracos — ele falou, lançando o cervo
sobre o balcão de Darlan, o responsável pela distribuição dos
alimentos.
— Como conseguiu caçá-lo com o tempo nestas condições?
— Apenas me concentrei até ouvi-lo.
Linhas nostálgicas se espalharam pelo rosto de Darlan.
— Ah, nos tempos gloriosos, nos tempos em que os céus nos
pertenciam, os erelins costumavam...
— Os tempos gloriosos para nossa raça já se acabaram —
Ikaris o cortou com rispidez; não tinha paciência nem vontade para
ouvir velhas histórias que nada mais eram do que um eco naquelas
montanhas solitárias. — Se não morrermos de fome ou frio, já
estaremos ganhando.
Darlan se retraiu e começou a limpar o cervo.
Dando-lhe as costas, Ikaris continuou seguindo por seu
caminho, sorvendo a imagem das casas feitas de pedras
rudimentares e madeira; não havia nada de glória ou beleza ali.
Nada aqui se parece com a Cidadela Prateada.
As antigas histórias contavam que os erelins eram homens e
mulheres de aparência divina; tão belos que bastava um olhar para
diferenciá-los dos humanos comuns. Possuíam asas grandes nas
costas, cujas cores variavam entre branco, prata e dourado. Os
erelins puros se destacavam sobre os mestiços em vários aspectos;
mesmo assim, era como se toda a raça houvesse recebido um beijo
das estrelas.
Mas, assim como as montanhas sórdidas, tudo o que restara
para os que haviam sobrevivido à guerra e para os que nasciam ali
era somente uma herança rudimentar do passado.
Parou na beirada de um penhasco, deixando que seus olhos
cinzentos captassem o tremular das tochas que estavam metros
abaixo dali.
Sua mandíbula trincou.
Os exércitos das Cinco Alianças, sob comando do maldito
Reino de Arustar, permaneciam ali dia e noite, garantindo que o
exílio do seu povo enfraquecido por conta das guerras passadas
jamais acabasse.
Passos ressonaram atrás dele.
Com um movimento ágil, Ikaris sacou a faca presa ao cinto e se
virou, encostando a lâmina no pescoço
Gildor arregalou os olhos.
— Ikaris!
— Já falei para não se aproximar de mim desse jeito.
— De-Desculpa. Não consigo evitar. É meu jeito de andar.
O vento soprou mais forte. Os cabelos pretos de Ikaris
acariciaram seu rosto, obscurecendo as feições endurecidas. Ele
recolheu a faca.
— O que você quer, Gildor?
O erelin engoliu em seco, os olhos acompanhando o
movimento que Ikaris fazia para prender a faca ao cinto outra vez.
— Iohanna quer vê-lo.
Aquelas palavras bastaram para ele.
Ikaris se virou, deixando Gildor sozinho. Mudou a direção do
seu caminho, atravessando a trilha escorregadia formada entre as
pedras. Suas botas, sua agilidade e seu equilíbrio eram armas
naquele caminho hostil.
“Ah, nos tempos gloriosos, nos tempos em que os céus nos
pertenciam, os erelins costumavam...”
Quebrando suas próprias regras ao ouvir o eco da voz de
Darlan, Ikaris ergueu o rosto e olhou para o céu encoberto pela
névoa.
Não havia nada mais do que uma vista fechada.
Ali era tão úmido e tão nevoento que até mesmo as estrelas
pareciam ter se apagado para eles.
“Os renegados do céu”, como eram chamados com desdém
nos reinos para além das frias montanhas do exílio.
“As versões sobre o que levou à guerra se perderam. Fomos
nós? Foram eles?”, ele ainda se lembrava das palavras que Darlan
havia lhe dito anos atrás. “A única versão que imperou foi aquela
contada por Arustar, sobre a quebra dos acordos, cuja cláusula nos
exilou aqui nas montanhas”.
Porque alguém sempre tinha que pagar.
Uma raiva latejante pulsou em suas veias.
Um dia...
Ele soltou o ar lentamente; um chiado forte, preciso.
Um dia, todos os seus inimigos pagariam pelas desgraças e
injustiças cometidas contra seu povo.
Baixando o rosto, Ikaris se moveu pela trilha, mantendo-se
encurvado em alguns pontos, fazendo das sombras uma velha e
conhecida amiga; se algum soldado das Cinco Alianças descobrisse
o que seu povo escondia, a última centelha de esperança estaria
perdida para sempre.
Ao se aproximar de uma fissura entre as pedras, camuflada
pela vegetação, ele olhou ao redor mais uma vez, certificando-se de
que estava sozinho, e atravessou a passagem.
Água gotejava do teto e das paredes; e, quanto mais ele
andava na escuridão, mais o caminho se abria, até terminar em um
salão oval feito de pedras e calcário.
Iohanna estava ajoelhada sobre folhas e ramos que se
enrolavam em seu corpo. Aos olhos de Ikaris, eram uma só entidade.
Os antigos mestres, com a pouca magia que ainda tinham ao final da
guerra, haviam encantado o local, para que eles fossem uma fonte
de vida para Iohanna.
Pois ela era a mais antiga criatura celestial, entre os erelins,
que sobrevivera à guerra e que ainda vivia.
Iohanna tinha sido ferida de forma grave na batalha; pelo que
Ikaris sabia, com uma arma encantada. E, com os poderes limitados,
seu corpo jamais conseguira se curar por completo.
Seu povo a mantinha escondida ali; caso os exércitos ou o
Reino de Arustar descobrissem que alguém como Iohanna ainda
respirava, mas que estava completamente enfraquecida, mandariam
assassinos para destruir tudo e todos até encontrá-la.
Ele se manteve em silêncio, estranhando vê-la de joelhos, com
a cabeça ligeiramente inclinada para trás. Iohanna raramente se
levantava. Passava quase todo o tempo deitada, pois não havia força
em seus músculos.
Então, sem que esperasse, um arquejo escapou dos lábios da
rainha, um braço invisível de vento golpeou o ar, e ela caiu para trás.
Ikaris se desesperou e correu até Iohanna.
— Minha rainha — ele bradou, ajudando-a a se deitar outra
vez.
— Ikaris — ela murmurou, erguendo a mão trêmula. — Assim
como os demais que povoam essa montanha, você carrega no
sangue a mistura do céu e da terra. E, ainda assim, é o mais valente
e astuto entre o nosso povo, como um erelin da linhagem mais pura.
Ikaris meneou a cabeça; uma reverência, um agradecimento
que escondia o amargor por saber que nunca deixaria de ser um
mestiço.
— O que estava fazendo, minha rainha?
— Recebi um presságio — ela sussurrou, segurando a mão
dele. — Depois de tanto tempo, tive uma visão.
— E o que você viu?
— Eu vi o reino de Arustar, eu senti o reino de Arustar. E vi a
herdeira do trono através de um véu esvoaçante e translúcido.
Também ouvi seu nome sendo sussurrado pelo vento e pelas
estrelas, Ikaris Ashera.
Houve um agitar estranho em seu sangue ao ouvir aquilo.
— O que esta visão significa?
— Uma única coisa. Que o momento que tanto esperávamos
chegou.
O coração dele acelerou, um milhão de pensamentos e
promessas o atravessaram em uma enxurrada incontida.
— Vingança — a palavra escorreu fria de seus lábios.
— Exatamente. Tenho um trabalho para você.
— Considere-o feito.
Os lábios dela mal se moveram, mas o contato entre suas
mãos lançava para Ikaris o quanto ela agradecia a lealdade.
— Nesta visão, as estrelas me sussurraram que os portões do
castelo de Arustar serão abertos pela primeira vez desde o fim da
guerra. É nossa chance. As estrelas estão nos mostrando isso. As
estrelas, assim como nós, também desejam isso.
— E por que elas me colocaram nesta visão de vingança?
— Você deseja vingança, Ikaris Ashera?
— É o que mais anseio em meu âmago.
— As estrelas sabem disso. As estrelas enxergam você,
mesmo que nós não as enxerguemos mais. Quero que você vá até lá
e se misture aos demais. Por ser um mestiço, suas feições são
humanas — Iohanna continuou. — Use de sua inteligência para
adentrar no palácio. Quero que mate a herdeira do trono na noite do
aniversário dela.
Ikaris franziu o cenho.
— Não há como deixar as montanhas, mesmo para alguém
como eu. Os soldados são numerosos.
— É por isso que quero lhe dar isto.
A mão de Ikaris permaneceu suspensa no ar quando Iohanna a
soltou. Sentiu algo no meio de sua palma. Ao abrir os dedos, viu que
segurava duas pedras pequeninas, brilhantes como as estrelas.
Seu coração disparou.
— Isto é...
— Dois Suspiros de Áster que carrego comigo desde o fim da
Guerra Erelin.
A cabeça de Ikaris girava; pois, em suas mãos, estava uma
centelha do mais antigo poder das estrelas.
Ele não fazia ideia de como Iohanna os tinha em sua posse.
Ninguém via um Suspiro de Áster há... Centenas de anos.
— Como...?
— Saber como eles chegaram até mim não é a pergunta que
você deve fazer, Ikaris.
— Por que não os usou para se fortalecer?
— Como nossas ligações sagradas foram destruídas, eu
conseguiria me manter com a energia deles apenas por pouco
tempo. Um tempo que não seria suficiente para nenhum de nós.
Assim, guardei os Suspiros para quando as estrelas me mostrassem
que era o momento de usá-los. E a hora chegou.
Ainda de joelhos, Ikaris levou o olhar solene à rainha; a luz das
pedras banhava o cinza dos seus olhos.
— Como devo usá-los?
— Use o poder de um Suspiro para escapar das montanhas.
— E o outro?
Iohanna levou a mão ao peito.
Se Ikaris apurasse sua audição, conseguiria escutar o fraco
bater do coração dela; uma batida que perdia força a cada dia que se
passava.
— Somente nossa raça, por descender das estrelas, suporta o
poder do Suspiro de Áster. Use um para deixar este lugar, e o outro
para tirar a vida da herdeira do trono de Arustar.
Os lábios de Ikaris se contraíram.
Queria questionar o motivo de ser enviado para aquela missão,
as motivações de Iohanna; mas um mestiço como ele não tinha o
direito de questionar uma criatura pura e celestial como ela.
Como se lesse seus pensamentos, Iohanna suspirou.
— Não sei quanto tempo mais viverei. As passagens das
estações estão cobrando seu preço. A dor do meu ferimento que
jamais se cicatrizou é um lembrete constante de tudo o que
perdemos. De tudo o que perdi. — Os olhos dela tremularam; ali, nas
íris iridescentes, Ikaris captou uma dor enclausurada na alma. — É
algo que carregarei comigo até meu último suspiro. É algo que não
quero que ninguém esqueça.
— Minha rainha...
— E as estrelas, depois de tanto tempo sem me dar uma única
visão, agora brilharam e me mostraram o que devo fazer. É por isso
que quero dar uma última mensagem aos nossos inimigos, pois a
noite do aniversário da herdeira é perto da data em que nossa guerra
completa duas décadas. Quero que o sangue dela se derrame sobre
a história que todos querem apagar das memórias.
Os olhos de Ikaris se fixavam nas pedras do Suspiro de Áster;
após tanto tempo sufocado na névoa da montanha, tinha a sensação
de estar carregando o céu estrelado em suas mãos.
— Considere o trabalho feito, minha rainha.
3
Suspiro efêmero

NA NOITE seguinte, Ikaris estava pronto.


Eram poucos erelins que possuíam animais de cargas naquelas
terras montanhosas. Mas, com a ajuda de Gildor, havia conseguido
um cavalo de pelagem escura e olhos de fogo.
Não se despediu de ninguém.
Quanto menos erelins soubessem da partida e de sua missão,
mais chances de sucesso teria. Sempre havia chances de alguém
traí-lo e entregá-lo para algum soldado em troca de comida, poções
curativas ou qualquer coisa que precisasse.
Assim, após abastecer o cavalo com provisões e selá-lo, Ikaris
prendeu o arco às costas, deixou a aljava pendurada no lombo do
animal, montou-o e disparou pela trilha íngreme que formava a
descida da montanha e se abria no acampamento dos soldados.
Enxergou o brilho das tochas, o cintilar do metal das espadas.
— Quem está aí? — alguém bradou.
Com uma mão, Ikaris segurou a rédea do cavalo; com a outra,
usando as instruções de Iohanna, libertou um dos Suspiros de Áster.
Foi como uma explosão de estrelas.
Como se o céu gritasse.
Como se a lua tivesse descido e tocado a terra.
A luz irradiou por todo o acampamento, cegando os soldados
momentaneamente, ao mesmo tempo em que a energia do Suspiro
de Áster se agarrava ao cavalo.
O trotar se transformou em um galope rápido; logo, os cascos
do animal mal tocavam o chão, e eles avançavam como um borrão
veloz pelas terras baixas que circundavam as montanhas, fundidos
ao vento, ao céu e à noite como se fossem um só.
Fogo e sangue se agitaram dentro dele.
Era a primeira vez, em toda a sua vida, que experimentava uma
centelha da magia perdida e roubada do seu povo.
“Ah, nos tempos gloriosos, nos tempos em que os céus nos
pertenciam, os erelins costumavam...”
Mas Ikaris não perdeu tempo admirando a sensação poderosa.
Aquela magia era efêmera e ele não podia perder tempo.
Tinha que ir para o mais longe possível que conseguisse do
acampamento antes que o Suspiro de Áster se dissipasse. Não
haveria outra chance de escapar dos soldados e das barreiras na
fronteira. E não poderia usar a segunda pedra.
A velocidade do cavalo aumentou.
Em algum momento, soube que já estava distante demais para
ser encontrado ou capturado.
Sombras se alongavam diante dele, tremulando pelos campos
vastos que atravessava, pelas colinas desertas, pelos rios sinuosos.
O vento zumbia e cantava nos ouvidos de Ikaris.
Aquilo poderia ser o que chamavam de liberdade.
Alguém nascido como um prisioneiro condenado igual a ele
nunca saberia de verdade.
Ikaris engoliu em seco e continuou cavalgando.
Logo soube que havia atravessado a fronteira quilômetros
atrás.
Ao longe, já podia enxergar a torre mais alta do castelo real, as
pedras polidas beijadas pelo luar.
Sem reduzir o ritmo da cavalgada, Ikaris ergueu a mão e tocou
a última centelha do Suspiro de Áster que ainda pairava sobre ele.
Assim que seu dedo roçou o ponto de luz, todo o campo ao seu
redor estremeceu e fulgurou.
Foi um instante de torpor, de um mergulho em um brilho
iridescente; ele levou a mão ao peito, ofegante, como se houvesse
sido atingido pelas próprias forças do céu.
Ikaris precisou se segurar com força ao cavalo para não cair.
O que foi isso?
Ele esperou até o formigamento na pele diminuir; e então, tudo
estava normal outra vez.
Com exceção do seu coração, que batia desesperadamente,
feito o galope do mais veloz cavalo, ansiando para cobrir a estrada e
atravessar os portões fechados do castelo.
Ainda com a mão sobre o peito, Ikaris puxou o ar.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Até sentir que havia voltado a si mesmo.
Tinha uma missão para cumprir.
E não iria decepcionar Iohanna.
Se era o sangue da única herdeira de Arustar que ela queria,
pois então era o sangue da princesa que ela teria.
Iohanna ansiava por vingança.
Seu povo ansiava por vingança.
Ele mesmo ansiava por vingança.
E não decepcionaria sua rainha, seu povo e a si mesmo.
Ikaris segurou as rédeas do cavalo e o instigou; ao sopro do
vento que ergueu seus cabelos, retomou a cavalgada.
E, durante todo o caminho, ao longo do manto escuro da noite,
incapaz de desviar o olhar, ele ficou encarando uma das torres do
castelo até não poder mais vê-la.

◆◆◆

Maressa abriu os olhos abruptamente, ofegando alto ao ser


arrancada do sono como se alguém a tivesse puxado.
Por um momento efêmero, teve a impressão de que o teto do
seu quarto tinha se aberto para o céu estrelado.
— O quê...?
Ela se sentou sobre o colchão, piscando e encarando a
escuridão.
O vento soprou, balançando as cortinas do quarto; perto da
janela, ela viu um véu translúcido esvoaçando, que se misturava às
cortinas.
Atrás dele, alguém parecia observá-la.
“E nas estrelas ficará...”
Maressa ofegou.
“...Até que para a terra possa voltar”.
Piscou de novo com força, esfregou os olhos, fitou o teto, a
janela.
E não viu mais nada.
As cortinas estavam fechadas.
Não havia nenhum sopro do vento para balançá-las.
O que foi isso? Eu estava sonhando?
Atônita, com o coração disparado, com a pele formigando,
Maressa deitou a cabeça no travesseiro e comprimiu os olhos,
tentando retomar pelo sono perdido, em vão.
Incapaz de permanecer na cama, tomada por uma agitação
mais forte do que qualquer outra coisa que já havia experimentado,
Maressa empurrou as cobertas para o lado e se levantou.
Não acendeu nenhuma vela, não fez nenhum som que pudesse
acordar suas criadas.
Em pé, com a mão sobre o peito e os cabelos caindo livres
pelos ombros, ela esperou que a respiração se regulasse outra vez,
que o coração parasse de bater de forma tão frenética.
Seus olhos se voltaram para a grande janela do quarto.
Maressa andou até ela, sentando-se no parapeito, deixando
que a mão que não tocava o peito se espalmasse no vidro.
O céu cobalto, marcado por nuvens que serpenteavam ao redor
da lua, cobria todo o horizonte que podia enxergar do Reino de
Arustar.
Aos poucos, o desespero estranho em seu peito atenuou.
Suspirando, seus olhos se fecharam; e ela adormeceu ali,
embalada por imagens e sonhos de uma sombra costurada de
estrelas, que, feito um sopro feroz do vento, cavalgava em direção
ao castelo.
4
Asas quebradas

— ALTEZA? — UM toque gentil em seu ombro a despertou.


Sonolenta, Maressa abriu os olhos, recebendo o brilho
reluzente da alvorada no azul das íris. Não havia mais sombras e
estrelas. Não havia mais véus esvoaçantes ou uma figura a
observando na escuridão. Virou a cabeça ao sentir uma fisgada
incômoda no pescoço. Nina estava em pé diante dela, com os
cabelos trançados e as mãos entrelaçadas em frente ao corpo.
— Alteza, você passou a noite no parapeito da janela?
Maressa esfregou a nuca.
— Creio que sim.
— Isso não é bom para a sua saúde, Alteza. — Havia uma
preocupação sincera na voz de Nina. — Seu banho quente já está
preparado.
— Obrigada, Nina. — Ela voltou o olhar para o céu que
esmaecia e arqueou as sobrancelhas. — Você me acordou mais
cedo do que o normal.
— Porque hoje é o dia.
Os lábios de Maressa se entreabriram.
— O dia... O dia! — Ela ofegou, como se as palavras de Nina a
houvessem sacudido para que terminasse de acordar, e saltou do
parapeito da janela. — Hoje é o dia em que os pretendentes chegam
ao castelo! Hoje os portões serão abertos!
— Todos no castelo estão eufóricos. É a primeira vez que
receberemos tanta gente de fora em anos. A guarda real está se
preparando para...
O coração de Maressa acelerou em empolgação e ansiedade.
— Tenho que me preparar! Tenho que trocar essas roupas e...
Ela deu um passo rápido em direção ao quarto de banho; uma
onda de tontura e vertigem se abateu sobre seu corpo, fazendo seus
joelhos fraquejarem por um momento.
— Alteza. — As mãos de Nina a ampararam. — Trouxe o seu
tônico. Está ali. Tome-o e a ajudarei a chegar até o quarto de banho.
Frustrada demais para refutá-la, Maressa apanhou o tônico,
tomou-o e deixou que Nina segurasse seu braço e a ajudasse a se
despir e entrar na banheira. O contato da água com sua pele fez com
que um suspiro com gosto de fracasso e angústia escapassem de
sua boca.
— Quando os pretendentes descobrirem que a princesa de
Arustar é uma peça quebrada, irão desistir da competição.
— Qualquer um seria tolo se a rejeitasse.
— Será? — Ela deixou que seus dedos acariciassem a água.
— Não vou passar de um fardo para aquele que se casar comigo. Ou
pior: irão me ver como uma ponte para se alcançar o trono de
Arustar. Se eu sucumbir à doença, a coroa passaria para meu
marido.
— Não diga isso. Tenho certeza de que, um dia, os curandeiros
conseguirão desenvolver um tônico infalível. — Nina derramou uma
mistura de lavanda sobre os cabelos claros de Maressa. — Você
será completamente curada e não precisará mais se preocupar com
isso.
Batalhando contra as lágrimas que queriam encher seus olhos,
Maressa prendeu e o ar e afundou na água morna.
Era injusto que todos os anos de sua vida tivessem sido
limitados pelas condições frágeis de sua saúde. Mal podia sair do
castelo. Conhecer outros reinos para além dos limites de Arustar era
um sonho distante. Só podia viajar com os olhos, debruçada na
janela nas noites silenciosas, perdida na imensidão do céu e das
estrelas, na companhia das palavras dos livros que tanto amava ler.
Porque todos os seus passos eram vigiados e controlados.
Porque todos temiam que ela se quebrasse subitamente, feito
um passarinho com as asas destroçadas.
Mas queria acreditar que ainda tinha um pouco de controle
sobre a própria vida. Pelo menos, em relação ao casamento, ao
torneio e às tradições de Arustar. E era naquela oportunidade que
havia criado para si mesma que ela se agarraria.
Sentindo-se um pouco melhor, Maressa deixou que seu corpo
voltasse à superfície. Puxou o ar e se apoiou na borda da banheira.
— E as minhas roupas?
Nina apontou para um vestido simples pendurado no cabide.
Maressa observou a peça; era de um azul pálido, um modelo sem
grandes cortes ou enfeites, normalmente usado pelas criadas do
castelo.
— Alteza, você tem certeza disto? Quer mesmo seguir com o
plano?
Ela voltou a fitar Nina.
— Até mesmo minha mãe, a inabalável e irredutível rainha, não
conseguiu refutar meu plano, pois ele atende a todas as exigências
dela. Afinal, usei as velhas tradições a meu favor.
— Eu sei. Mas você acha que isso será seguro para nós duas?
— Minha mãe deixará guardas preparados o tempo todo.
— Espero que ninguém entregue sua identidade para os
participantes. — Com cuidado, Nina enxaguou os cabelos dela mais
uma vez.
— Graças às tradições rudimentares de Arustar, poucos
conhecem meu rosto. — Maressa revirou os olhos. — E os que
conhecem, como você, são de confiança. Além disso, minha mãe
punirá cruelmente qualquer um que saiba a verdade, venda
informações e estrague nossos planos.
— Sim, mas... Não me sinto bem em ficar parada, sem
trabalhar.
Maressa abriu um sorriso gentil para ela.
— Você estará trabalhando, mas sem executar as funções de
criada. Estará usando vestidos lindos, penteados elegantes e
acenando de longe para um bando de homens. Estará ajudando a
princesa de Arustar a escolher aquele com quem ela ficará casada
pelo resto da vida.
— Só você mesmo para criar um plano desses nessa sua
cabecinha engenhosa — Nina riu baixo. — Sabe que pode contar
comigo.
— Obrigada. E fique tranquila, Nina. Enquanto o torneio durar,
eu irei me passar por uma criada, responsável por recepcionar e
cuidar dos nossos convidados. Irei conversar, interagir e conhecer
cada um deles sem que eles saibam quem sou. E você se passará
por mim nos dias em que eu teria que assistir às competições. Você
estará escoltada e protegida.
— E quando contaremos a verdade para todos?
— Na noite do baile do meu aniversário. — Maressa se
levantou da banheira, a água escorrendo por seu corpo enquanto
Nina a envolvia com uma toalha. — Até lá, ninguém poderá saber
sobre nossa troca de papéis.

◆◆◆

Ao atravessar as enormes muralhas de alabastros que


cercavam a cidadela de Arustar, Ikaris abaixou o capuz. O sol
brilhava nas primeiras horas da manhã, e ele sabia que um forasteiro
encapuzado poderia atrair atenções indesejadas. Precisava passar
despercebido até encontrar a comitiva que seguia para os portões do
castelo.
Cavalgando em um ritmo moderado, ele cruzou as ruas de
pedra. Bandeiras com o brasão de Arustar — uma serpente dourada
— ondulavam nos muros altos. O ar carregava um leve odor de
temperos.
Avançou pelo distrito comercial e, antes que pudesse seguir em
frente, seus olhos se cravaram nas estátuas que decoravam a praça
central.
O coração de Ikaris acelerou.
As estátuas representavam o momento em que um valente
soldado de Arustar golpeava um erelin e cortava suas asas.
Um gosto amargo e raivoso se espalhou na boca dele.
Desde a derrota na guerra, muitos do seu povo haviam tido as
asas cortadas como uma punição simbólica antes de serem lançados
ao exílio. Com a quebra das ligações sagradas e o cessar da magia,
elas não se regeneravam.
E as crianças erelins que nasceram durante e depois da guerra
vinham ao mundo com as costas lisas e não conseguiam
desenvolver as asas.
— Olá! Olá!
Assim como muitos, Ikaris nascera durante a guerra, sem asas
ou qualquer sinal de que poderia desenvolvê-las, como os outros
mestiços.
— Ei! Olá!
A contragosto, Ikaris desviou a atenção das estátuas e olhou
para o lado. Um rapaz de cabelos claros, montado em um belo
alazão de pelagem amarronzada e vestindo roupas que mostravam
que ele era um jovem nobre, se aproximou.
— Olá! — ele repetiu, alargando o sorriso. — Você está indo
até os portões do castelo? Posso seguir ao seu lado? Estou um
pouco perdido.
Ikaris murmurou algo que poderia ser um cumprimento.
Esperava que aquilo mostrasse para o rapaz que ele não estava
procurando por companhia ou conversa.
— Sou o duque Willelm, das terras de Norima. Você também
está aqui para a competição pela mão da princesa?
Ikaris respondeu com um movimento de cabeça.
— Finalmente o castelo de Arustar abrirá os portões para
nobres como nós. Estou ansioso pelo torneio — Willelm prosseguiu.
— E estou ansioso para conhecer a princesa. Creio que tenho
grandes chances de vencer, com todo o respeito às suas
habilidades. Mas fui treinado pelos melhores durante toda a minha
vida.
Ah, Ikaris queria fazê-lo calar a boca.
Mas ainda estava cedo demais para criar indisposições, entrar
em conflitos e chamar atenção para si.
— Como será que a princesa é? Alta? Baixa? Magra? Morena?
Ruiva? Loira? — o tal Willelm continuou falando. — Não sabemos
nem o primeiro nome dela! Só a conhecemos pelos títulos de
“princesa de Arustar”, por causa do reino, e “princesa Sternenlicht”,
por ser o sobrenome da família real. Mas seu primeiro nome só pode
ser apresentado aos de fora quando ela completar vinte e um anos,
assim como seu rosto! As tradições daqui soam arcaicas até mesmo
para um nobre de família tradicional como eu.
Ikaris o ignorou e seguiu em frente, montado no cavalo.
Foi inevitável encarar as estátuas outra vez.
Quase podia ouvir os gritos do erelin ali representado, quase
podia sentir as asas que nunca havia tido sendo cortadas.
Ikaris segurou as rédeas com força.
A vontade de derramar o sangue dos nobres de Arustar
pulsava por suas veias, por seus ossos, por sua alma.
Mas ele não puxou o arco ou sacou a espada.
Pois havia um propósito maior que o levara até ali.
— Senhor?
Ele se voltou para o guarda que o chamava.
— Preciso que me mostre sua carta para que eu possa
autorizar sua entrada nos terrenos do castelo.
Com as feições impassíveis e uma calma fria, sem descer do
cavalo, Ikaris retirou a carta de apresentação do bolso e a estendeu
para o guarda. Ao seu lado, Willelm fez o mesmo.
Observou-o violar o lacre do papel e ler atentamente cada
palavra, como se caçasse por uma falha ou um motivo para mandá-
lo embora.
Ikaris não hesitou, não duvidou por um momento sequer.
Antes das guerras, antes do exílio, Darlan havia sido um mestre
artista que se destacava entre os erelins. E era um dos poucos em
quem Ikaris confiava. Por isso, tinha certeza absoluta de que a carta
falsa que o apresentava como um lorde e um competidor do torneio,
junto do brasão impecável desenhado pelo erelin, seriam suficientes
para garantir sua entrada no palácio real.
O guarda inspirou e expirou, devolvendo-lhe a carta.
— Seja bem-vindo à Arustar, Lorde Ashera. O senhor será
escoltado por aquela comitiva à esquerda.
Ikaris se limitou a um aceno de cabeça, guardou a carta no
bolso outra vez e guiou o cavalo para a direção apontada pelo
guarda. Não demorou para que Willelm se colocasse ao seu lado
outra vez.
— Pronto para conhecer o castelo, participar do torneio e
batalhar pela mão da princesa, Lorde Ashera?
Ele deixou que seus pensamentos vagassem até a estátua do
erelin com as asas cortadas.
Sim.
Estava pronto.
5
Puxão invisível

AO SE olhar no espelho, Maressa quase não se reconheceu


sem as joias, a tiara e os vestidos cheios de pedrarias e bordados.
E, para sua surpresa, gostou do que viu.
Havia algo na simplicidade daquele vestido azul e dos cabelos
presos em um coque pouco requintado que a fazia se sentir leve.
— Os portões serão abertos a qualquer momento, Alteza —
Nina falou, animada e empoleirada na janela do quarto. — Ah! Estão
abrindo! As comitivas estão entrando!
Maressa se virou e caminhou até Nina, debruçando-se ao lado
dela. Seu coração disparou ao ver as carruagens e cavalos que
adentravam nos domínios do castelo.
— Seu futuro marido está entre eles, Alteza.
— Por favor, Nina, me chame de Maressa. Nós crescemos
juntas. Sempre te digo que não precisa usar títulos formais comigo.
E, depois do que está fazendo por mim, não há razão para
formalidade.
Nina mordeu o lábio inferior.
— Não é correto, Al... — O olhar fulminante de Maressa a fez
limpar a garganta. — ...Maressa.
— Viu só? Nenhum raio atingiu sua cabeça.
Com um sorriso, Nina apontou para o pátio.
— Você não vai descer para começar a conhecê-los?
— Sim. — Maressa alisou a saia do vestido e puxou o ar. —
Farei isso agora mesmo. Quanto a você, desfrute dos seus dias de
descanso. Pode pegar qualquer livro da minha biblioteca. Se precisar
de alguma coisa, peça para as outras criadas. Já as deixei avisada.
Volto ao anoitecer para te contar tudo.
— Boa sorte, Maressa.
— Obrigada.
Puxando o ar mais uma vez, Maressa se virou e deixou o
quarto. Enquanto atravessava o corredor e descia a grande
escadaria, grata pelo tônico ter restaurado suas forças naquela
manhã e amenizado as tonturas, ela percebeu que era a primeira vez
que se sentia animada em muito tempo.
Não poderia evitar o casamento e as leis tradicionais de
Arustar, mas, pelo menos, tinha conseguido abrir algumas brechas
para participar dos eventos e controlar o próprio destino.
Para alguém como ela, aquilo já era uma vitória.
Ao cruzar as grandes portas que levavam para o pátio e o
jardim, Maressa precisou erguer a mão e proteger os olhos. O sol
brilhava em meio a um céu azul e sem nuvens.
Vários homens já estavam espalhados pelo pátio, se
banqueteando com a refeição preparada pelos cozinheiros para
recepcioná-los.
Maressa entrelaçou os dedos das mãos, a pulsação acelerando
mais do que gostaria enquanto um nervosismo tilintante enchia sua
boca.
Calma, garota. Você lutou por esse direito. Aproveite-o. É sua
chance.
Certo. O que deveria fazer agora?
Observou os criados. Nina tinha lhe instruído da melhor forma
possível sobre os trabalhos servis e como se portar. Alguns criados
recepcionavam os recém-chegados, alguns levavam os cavalos para
os estábulos, outros serviam água, outros carregavam as bagagens
pesadas.
E alguns lhe lançavam discretos olhares curiosos.
Bom, era óbvio que os funcionários do castelo que conheciam
seu rosto já houvessem escutado sussurros de que a princesa de
Arustar estaria entre eles durante os próximos dias. Mas confiava
que ninguém entregaria sua identidade para os homens que enchiam
o pátio.
Se havia algo que um cidadão de Arustar temia mais do que
cruzar o caminho com o caminho de um erelin, era experimentar a
fúria da rainha.
Maressa contava com aquilo para o sucesso do seu plano.
— Ei, belezinha. — Um sujeito com uma enorme papada no
pescoço, vestindo trajes nobres e sentado em uma cadeira larga,
piscou para ela. — Quer me servir um pouco de água? Ou algo a
mais? — E riu de um jeito debochado, arrancando risos dos outros
homens que estavam perto dele.
— Acho que vamos nos divertir bastante durante o torneio —
outro homem comentou para os demais. — O castelo está bem
servido.
Uma onda de apreensão passou sobre Maressa.
Será que aquele era o perfil de todos os seus pretendentes?
Será que aquele era seu destino? Será que era aquilo que a
tradição de Arustar guardava para ela? Teria que ficar presa a um
imbecil pelo resto dos seus dias?
Ela engoliu em seco e deu um passo para trás.
Seu olhar singrou para o caminho que seguia para fora do
jardim, nas imediações dos estábulos e do campo de caça.
Maressa tocou o peito; era como se algo houvesse se agarrado
ao seu coração, chamando-a.
— Ei, garota, não ouviu o que te pedi? — o homem ergueu a
taça e a agitou no ar. — Água.
Ela se forçou a encarar os pretendentes.
Calma, tentou dizer para si mesma. Eles não são os únicos
aqui.
Mas os pensamentos não a tranquilizaram.
E aquele puxão parecia mais forte, mais intenso a cada
segundo.
— Você é surda, criada? Meu amigo quer água.
E, antes que pudesse se conter, tomada por um desespero que
se sobrepunha à razão e aos bons modos, como se algo feito um
cordão invisível a puxasse para longe dali, Maressa se virou e deu às
costas para ele, andando rápido pelo caminho que a levaria para os
campos que rodeavam os estábulos.

◆◆◆

O grande pátio do castelo, ladeado por um jardim que era maior


do que qualquer coisa que Ikaris já havia visto em toda a sua vida,
estava preparado com uma grande mesa repleta de alimentos
variados.
Seu maxilar contraiu; metade daquela comida poderia fazer
com que seu povo sobrevivesse à rispidez do inverno e aos picos
congelados.
— Que bela recepção! — Willelm vibrou enquanto descia do
cavalo e entregava as rédeas do animal para um dos criados. —
Leve-o até o estábulo. Ele precisa de água e comida.
— Sim, senhor.
Inspirando fundo e controlando a raiva latejante que pulsava
sob a pele, Ikaris desmontou do cavalo e começou a assimilar o
espaço. Nos dias que antecederiam a noite do aniversário da
princesa, estudaria todo o castelo do seu inimigo. Eram informações
valiosas para os líderes de seu povo.
— Pronto para ter uma farta refeição, Lorde Ashera? — ele
perguntou, apontando para a mesa que já reunia diversos homens
da nobreza ao seu redor. — Mal posso esperar pelos jantares! E
pelos bailes! Imagino que tenham separado os melhores aposentos
do castelo para os competidores. Ei, qual é o seu primeiro nome?
Não vamos ficar nos tratando por lorde e duque o tempo todo.
Ikaris não respondeu, um pouco atônito — e irritado — com a
capacidade infinita que aquele rapaz tinha para falar sem parar.
— Deseja que eu leve seu cavalo para o estábulo, senhor? — o
criado perguntou para Ikaris, apontando para o animal.
— Eu mesmo o farei. Apenas me aponte a direção.
— Siga por aquele caminho, senhor.
Agradeceu com um gesto de cabeça e, segurando as rédeas
do cavalo, avançou pelo caminho indicado.
— Não demore, Lorde Ashera! — Willelm bradou, animado. —
Ou acabaremos com toda a comida!
Ikaris continuou andando e sequer olhou para trás.
Apenas sabia que precisava sair do meio daqueles nobres que
se borrariam caso descobrissem que ele era um erelin e que havia
conseguido escapar do cerco das montanhas.
Ou tentariam matá-lo.
A imagem da estátua do erelin com as asas cortadas voltou
com força sobre seus sentidos.
Ikaris apertou o passo, afastando-se mais do jardim e do pátio.
Era atordoante o quanto precisava se controlar para não sacar
a espada e derramar o sangue que aqueles nobres deviam ao seu
povo.
Mas parte do troco viria na noite do aniversário da herdeira.
As estrelas tinham mostrado para Iohanna o que deveria ser
feito.
E ele havia conseguido. Estava dentro do terreno do palácio.
Só precisaria manter seu disfarce e aguardar para que o
sangue derramado da princesa mostrasse que os erelins ainda se
lembravam das consequências da guerra.
Ao som dos rugidos do seu coração, Ikaris adentrou no
estábulo, ajeitou seu cavalo em uma baia, encheu o bebedouro com
água e se certificou de que havia cereais e feno o bastante para que
ele se alimentasse.
— Comporte-se, companheiro — sussurrou, acariciando a crina
do animal. — Quando tudo terminar, voltaremos para... — Ikaris
engoliu a palavra “casa” com um suspiro resignado. Algo nele, algo
em todos os erelins que ainda viviam, sabia que as montanhas
jamais seriam seu verdadeiro lar.
O cavalo o respondeu com uma leve cabeçada, como se
entendesse o vazio escuro que o habitava.
Afastando-se da baia, Ikaris deixou o estábulo e fitou o céu,
para depois observar todo o espaço ao seu redor.
Um campo aberto separava o estábulo do que ele imaginava
ser um parque de caça dos nobres.
Pensou em dar meia-volta e retornar ao pátio.
De súbito, algo zuniu em seu peito, fazendo-o erguer a mão e
sentir as batidas aceleradas do coração.
Olhou na direção da floresta que rodeava o parque de caça.
Era como se algo o puxasse, o chamasse.
Quase como se suas pernas tivessem vida própria, seguindo o
puxão que se sobrepunha aos seus sentidos, ele se permitiu
atravessar o campo, em direção à área onde as árvores se erguiam
e os pássaros cantavam.
O crepitar das folhas sob seus pés preenchia o ar misturado ao
compasso pesado de sua respiração.
Avançou mais para o meio das árvores.
O puxão invisível em seu coração diminuiu lentamente; mas, no
mesmo compasso, seus sentidos se apuraram, captando uma
presença próxima dele.
Ikaris desceu a mão para a espada e fechou os olhos,
imergindo no farfalhar da mata, até que captar a direção do som e
dos movimentos que havia detectado.
Ele se virou em um rompante, e qualquer coisa que estava
prestes a fazer se esvaiu assim que fitou o animal parado diante de
si.
— Uma raposa? — balbuciou, franzindo o cenho.
A maior raposa que já havia visto em toda a sua vida.
Seus olhos tinham um forte contraste entre a cor das íris e das
pupilas, uma mistura de dourado e preto diferente de qualquer outro
animal que já cruzara o caminho de Ikaris.
E a pelagem...
Não era apenas cinzenta.
Era como se a lua se irradiasse através dos fios espessos toda
vez que o sol se infiltrava pela copa das árvores.
O que essa raposa está fazendo aqui? Deve ter entrado pela
floresta e avançado para o campo de caça do castelo.
Guardou a espada na bainha.
Poucas coisas fascinavam Ikaris.
Mas algo naquela raposa que era hipnotizante.
Ele se viu retirando a luva de couro e estendendo a mão
enquanto se aproximava lentamente do animal para tocá-lo e
analisá-lo melhor.
— Cuidado! Ele não é tão dócil quanto parece!
A voz feminina e assustada o distraiu; foi um instante de
descuido que fez com Ikaris baixasse a guarda e olhasse para o
lado, permitindo que o animal rosnasse, avançasse e enfiasse as
presas em seu braço.
6
Ventos cortantes

TUDO ACONTECEU rápido demais para que Maressa tivesse


alguma chance de intervir.
Em um momento, estava cruzando o bosque e o campo de
caça, atraída por uma força inominável que parecia tê-la arrastado
até ali; no outro, enxergou um cavalheiro se aproximando da grande
raposa, e todos os sinos de perigo soaram em sua cabeça.
— Cuidado! Ele não é tão dócil quanto parece!
O homem foi pego de surpresa por seu aviso; e antes que
qualquer um dos dois pudesse sequer agir, o animal avançou e o
mordeu.
Ele ofegou. Ela arfou.
O animal recolheu as presas e o libertou, virando-se e
disparando para o meio da floresta, até desaparecer da vista.
— Minha nossa! — Maressa exclamou, segurando a saia do
vestido e correndo até o homem. Esticou a mão para tocar em seu
braço. — Deixe-me ver isso, senhor! Ah! Minha nossa! Está
sangrando!
Ele puxou o braço, urrando baixo de dor.
— É claro que está sangrando! — Xingamentos que Maressa
nunca tinha ouvido saíram da boca dele. Era como se fosse um outro
idioma. — Aquela besta me atacou sem motivo algum!
“Sem motivo algum?”, ela quis devolver; afinal, conhecia os
modos e o comportamento daquele animal intrigante. Só que não o
fez.
Maressa não soube como, mas conseguiu guiá-lo até uma
pedra lisa, onde o colocou sentado. Sentia seu coração bater de um
jeito insano e inexplicável contra o peito, como se fosse ela quem
tivesse sido atacada. Pegou o lenço que carregava consigo e
envolveu o braço dele, tentando conter o sangramento.
— Temos que cuidar disso.
— Não é necessário — ele pigarreou.
— Ora, é claro que é necessário! O senhor foi atacado!
— A mordida não foi profunda.
— Mesmo assim, precisamos limpá-la. Posso te ajudar.
O homem a encarou com o cinza fechado dos olhos. Seu rosto
se retorcia em uma expressão de dor que ele não conseguia
esconder.
Outra vez, o coração de Maressa acelerou ao fitá-lo.
Ele deve ser um dos competidores. Um dos meus
pretendentes.
As íris dele se estreitaram em cima dela.
— E quem é você?
— Sou... — Ela ergueu o rosto, o vento do bosque balançando
alguns fios claros que escapavam de seu coque. — Sou uma das
criadas do castelo. Fui designada para cuidar de todos os
competidores durante os dias do torneio. Deixe-me tratar do
ferimento antes que ele infeccione, duque... Príncipe... Lorde...?
— Lorde Ashera — ele praticamente rosnou o título.
— Pois bem, Lorde Ashera, peço que me deixe cumprir meu
trabalho e que me acompanhe até a ala dos curandeiros, para que
eu posso limpar e tratar corretamente esta mordida.
O ar ao redor dele vibrava, crepitava, ondulava, como se
quisesse empurrá-la para longe.
Mas Maressa não cedeu.
Com um suspiro irritado, o lorde meneou a cabeça.
Ela entendeu que aquilo era um consentimento.
— Por favor, Lorde Ashera, me acompanhe.
Sem proferir mais uma palavra, Lorde Ashera se levantou da
pedra. Maressa se virou, trilhando o caminho conhecido, até retornar
para as imediações do castelo. Conduziu-o pela entrada dos criados,
seguindo para a ala dos curandeiros.
Poderia não ser uma criada de verdade, mas, por conta de sua
saúde, estava mais familiarizada com o espaço dos curandeiros do
que qualquer outro cidadão de Arustar, fosse nobre ou plebeu.
Ele a acompanhou imerso em um irredutível silêncio, os olhos
atentos como de uma águia a cada trecho do caminho percorrido.
— Por aqui, Lorde Ashera. — Maressa abriu a porta da
pequena saleta que conhecia feito a palma de sua própria mão.
Estantes repletas de frascos, livros de herbalismo e preparos
variados se espalhavam por todos os cantos. — Sente-se ali.
O lorde puxou a cadeira e se sentou.
De soslaio, Maressa aproveitou para observá-lo melhor. Seus
cabelos, levemente encurvados nas pontas, pareciam ter sorvido as
cores mais escuras da noite, contrastando com a pele clara e os
olhos cinzas, tão afiados quanto uma adaga forjada com prata pura.
Em um movimento quase imperceptível, ele virou o rosto,
capturando seus olhares. Ela se sentiu prendendo o ar. A beleza
feroz e selvagem que o envolvia divergia da aparência dos outros
homens da corte, assim como a densidade profunda de suas íris.
— O que este animal está fazendo por aqui? — ele finalmente
perguntou, quebrando o silêncio. — Nunca vi uma raposa daquele
tamanho.
Apesar da vontade de dar um passo para trás e fugir da lâmina
daquele olhar, Maressa não rompeu o contato visual.
— Creio que a raposa goste dos bosques do castelo. Agora,
estenda o braço para que eu possa olhar melhor o seu ferimento.
— A senhorita “crê”?
Maressa tentou ser o mais cuidadosa possível enquanto
retirava o lenço que enrolara no braço de Lorde Ashera.
— Um animal desse porte não é comum em nosso reino, nem
mesmo nas florestas mais distantes. Mas, desde minhas memórias
mais antigas da infância, lembro de ver essa raposa circundando o
bosque.
— É uma fêmea com alguma ninhada por perto?
— Não é fêmea. É macho. A raposa pode ser vista nas partes
mais remotas do castelo. Minha... — Maressa quase se engasgou
nas palavras. Pelos deuses, tinha que atuar melhor para manter sua
verdadeira identidade em sigilo. — A rainha organizou algumas
expedições e enviou caçadores atrás dele. Foi aí que descobrimos
que é um macho solitário. Mas, pelo que os homens falam, ele é
veloz e selvagem. Já feriu muitos caçadores.
Um lampejo que Maressa não conseguiu ler atravessou a
tempestade cinzenta dos olhos de Lorde Ashera.
— E ninguém conseguiu caçá-lo até agora?
— Por que vocês, homens da nobreza, sempre querem caçar e
matar animais como ele?
— Eu não estava fazendo nada disso — ele grunhiu em
resposta, encarando o ferimento no braço.
Maressa controlou a vontade de revirar os olhos. Fosse uma
princesa ou uma criada, sabia que aqueles não eram modos para se
ter frente a um lorde. Mas aquele homem não a enganava, e ela não
resistiu a libertar as palavras que dançavam na ponta da sua língua.
— Raio de Luar não ataca sem motivo.
Lorde Ashera arqueou as sobrancelhas.
— A senhorita nomeou aquele animal?
— Todos os seres vivos são dignos de um nome. — Ignorando
a arrogância daquele homem, Maressa se voltou para a estante, os
olhos percorrendo as várias prateleiras em busca do preparo
cicatrizante. — Então sim. Eu o batizei de Raio de Luar por causa da
cor de seu pelo.
— E ele nunca a atacou?
— Jamais. Na verdade, nunca o vi avançando em alguém que
só estivesse caminhando por aquela área. A princesa e as criadas,
como eu, estão sempre atravessando o campo para tomar ar fresco
e nunca foram feridas. — Ao encontrar o frasco que queria, ela se
virou outra vez para o lorde. — Ele ataca apenas os caçadores que
tentam matá-lo.
— Já te disse que eu não pretendia fazer nada com ele.
Apenas queria tocá-lo e observá-lo melhor. Nunca vi uma raposa
daquele tamanho.
Os lábios dela se contraíram, oscilando entre acreditar ou não
nas palavras dele.
— Que estranho.
— Por quê?
— Pode parecer besteira, mas... — Maressa destampou o
frasco. Um cheiro de ervas frescas se espalhou pelo cômodo. —
Tenho a impressão de que Raio de Luar fareja quem quer derramar
sangue. E então ataca. Mas, se você disse que não iria feri-lo, talvez
minha teoria esteja errada. Ele deve ter estranhado sua presença.
Ela se colocou diante de Lorde Ashera, estudando suas
feições, esperando pela confissão de que ele pretendia tomar a vida
da raposa apenas para se regozijar da caçada. Contudo, o rosto dele
permaneceu enrijecido e instransponível, feito os muros mais altos
que rodeavam a cidadela.
— Que idioma era aquele que você usou enquanto praguejava?
— Maressa perguntou, tentando quebrar a tensão que cirandava no
ar. — Não o reconheci.
A boca dele se abriu ligeiramente, mas ele permaneceu
inexpressivo.
— É apenas um dialeto antigo do meu reino.
E aquilo foi tudo que ele respondeu.
Com cuidado, ela segurou o braço dele outra vez, erguendo a
manga da camisa até que o ferimento estivesse exposto.
A pele dele era quente contra seus dedos.
Ela se viu com a respiração mais descompassada, mais
inquieta.
Lorde Ashera não falou mais nada enquanto Maressa
derramava o líquido do frasco sobre a mordida, mas sentiu os
músculos dele ficarem tensos ao seu toque quando ela pressionou a
bandagem na ferida.
— Pronto. Já pode retornar ao pátio e ao banquete de boas-
vindas. Recomendo que troque a bandagem uma vez ao dia, para
evitar infecções.
Ele assentiu, fitando o curativo em silêncio. Maressa teve a
impressão de quase podia captar a voracidade da quietude
barulhenta dos pensamentos que os cercavam.
— Se precisar de algo mais, Lorde Ashera, pode me procurar.
Ela deu um passo para trás; sem que esperasse, ele ergueu a
mão e segurou seu pulso.
O coração dela disparou ante ao toque.
Maressa o encarou; ele estava tão perto que ela podia sentir o
cheiro dos seus cabelos, a pulsação do aperto de seus dedos contra
seu pulso, o calor irradiado pela pele.
— Você me disse que todos os seres vivos são dignos de um
nome — ele falou, baixo e rouco. — Qual é o seu?
A pergunta a pegou de surpresa.
Por um momento, ela pensou em dizer o nome de Nina, mas
então se lembrou de que as tradições apresentariam seu primeiro
nome apenas na noite de seu aniversário. Com exceção dos mais
próximos, todos os demais a conheciam por seu título de princesa e
pelo sobrenome de sua família.
— Maressa.
Com um gesto de cabeça que simbolizava um agradecimento,
ele fez menção de recolher a mão. Sem pensar, Maressa colocou a
outra mão sobre a dele. Os olhos do lorde desceram para onde ela o
tocava, e depois se voltaram para seu rosto.
— Também gostaria de saber seu primeiro nome, Lorde
Ashera.
O ar escapou dele lentamente, quase reflexível, quase
palpável.
— Ikaris.
— Ikaris — Maressa murmurou, experimentando o som
daquele nome que a fez pensar no vento que cortava as montanhas
e subia aos céus.
Os lábios dele se abriram, seus olhos reluziram, mas depois,
devagar, alguma outra coisa os encheu, mais fria e mais rígida do
que as nuances cinzentas que matizavam suas íris.
Ikaris se levantou, puxando a mão e desviando o olhar.
— Agradeço-a pelo tratamento.
E então, se virou, saindo da saleta e desaparecendo através da
porta, deixando Maressa sozinha com o retumbar do próprio
coração, encarando a mão que formigava como se ele ainda a
segurasse entre seus dedos.
7
Legado
Vinte anos atrás

PELA JANELA, o menino de quatro anos enxergava o fogo


que consumia toda a glória da cidadela erelin, conhecida como
Cidadela Prateada.
— Temos que ir! — Ikaris escutou seu pai repetir pela oitava
vez.
— Ainda não empacotamos todos os livros. Eles não podem
ficar para trás. Você sabe da importância contida em cada página.
— Os soldados tomaram a cidade! Depois de cinco anos de
guerra, eles finalmente conseguiram!
— Como?!
— As defesas caíram agora ao anoitecer. Algo na ligação
sagrada do nosso povo com o céu foi quebrado. Não há magia para
combater os exércitos. Estão dizendo que isso tem a ver com Astrid.
— Astrid? — sua mãe ofegou, em choque. — Mas, se Astrid
está...
Golpes foram desferidos contra a porta da casa.
Ikaris gritou, assustado, correndo até a mãe.
Ela o tomou nos braços e o colocou embaixo de um móvel
pesado.
— Não saia daí.
A porta foi escancarada com um chute pesado.
De seu esconderijo, Ikaris enxergou os soldados que invadiram
sua casa, usando uniformes com o brasão da serpente alada de
Arustar.
— Entreguem-nos os livros, erelins!
Lado a lado, seus pais sacaram as espadas.
Fogo se espalhava por todos os lados.
— Então vai ser assim? — O soldado cuspiu e fitou os demais.
— Peguem todos os livros que vocês encontrarem! Eu cuidarei
desses dois!
O soldado brandiu a espada; sangue se derramou para todos
os lados.
Ikaris quis gritar pelos pais enquanto seus corpos tombavam no
chão.
Quis empunhar a espada que mal podia suportar o peso e
avançar sobre cada soldado de Arustar.
Entre o lampejo e o fogo, algo tremulou. O menino piscou. Era
como se fosse um par de olhos que entremeava tons pretos e
dourados. Que dizia para ele não se mexer.
Aquilo veio e se foi em uma batida de coração.
Mas algo dentro dele se agarrou ao pedido.
E Ikaris se encolheu, mantendo-se escondido enquanto seus
pais e a cidade ruíam sob o poderio do exército das Cinco Alianças.

◆◆◆

Atualmente

Em um reflexo feroz do corpo, a mão de Ikaris foi para baixo do


travesseiro, puxando a faca escondida enquanto seus olhos se
abriam abruptamente. Seu coração batia muito rápido, a boca estava
seca e o estômago revirado por conta de todos os alimentos
ingeridos.
A faca pairou na escuridão.
Levou alguns instantes para Ikaris perceber que não estava nas
montanhas, e sim em um quarto do castelo de seus inimigos, sendo
assolado pelo reverberar das lembranças que jamais poderia apagar.
Um maldito pesadelo com o passado.
Irritado, ele se levantou da cama, a respiração alta e ofegante,
a faca ainda em uma de suas mãos.
Achou que o duque Willelm, que havia sido designado como
seu companheiro de quarto durante o torneio, acordaria com o
barulho. Mas ele sequer se mexeu na cama, a boca entreaberta,
ressonando baixinho.
Ikaris andou pela escuridão, apoiando a testa na parede
gelada, deixando que o eco dos gritos desesperados de sua família
deslizasse como espectros acorrentados nas sombras.
Comprimiu o punho, querendo esmurrar a parede.
Os livros...
Havia falhas em sua memória, borrões apagados pelo medo de
uma criança que testemunhara a morte dos pais.
Mas ele se lembrava de que sua casa, na extinta cidadela
erelin, era repleta de livros antigos; volumes grossos de páginas
amareladas que haviam sido confiscados durante a guerra.
Quase podia sentir a mão de sua mãe acariciando seu rosto, o
sussurro das palavras perdidas no tempo.
“Seu pai e eu somos guardiões das histórias de nosso povo.
Posso não ser uma erelin, posso ser apenas uma humana, mas me
considero parte desta cidade desde que me casei com seu pai.
Desde que meu sangue e o dele te geraram. Um dia, você herdará
cada livro desta biblioteca. Um dia, conhecerá cada linha do legado
erelin”.
A voz dela foi como um bálsamo em sua fúria, em sua dor.
Ikaris baixou o punho, abrindo os dedos, soltando o ar.
Olhou de canto para cama onde o duque dormia, refletindo
sobre seu primeiro dia no palácio.
Após o banquete de recepção e das horas que se decorreram
das explicações de como o torneio funcionaria nos próximos dias,
todo o grupo de competidores havia sido levado para um longo,
entediante e demorado tour pelo castelo. E não tinham conhecido
nem metade da propriedade.
Seus olhos baixaram para a bandagem que cobria o braço
ferido.
Não havia visto aquela jovem criada outra vez, mas, para sua
própria irritação, se pegou procurando por ela toda vez que um
criado aparecia.
Maressa.
Apertou os olhos, empurrando a imagem dos lábios dela
murmurando seu nome para longe.
Fitou a cama.
Não sentia a mínima vontade de dormir.
E as lembranças trazidas pelo pesadelo não permitiriam que
seu corpo repousasse.
Com um gosto amargo na boca, Ikaris deixou o quarto. Não
sabia se tinha permissão para vagar pelo castelo durante as horas
mais densas da noite, mas pouco se importava.
Se Iohanna o tivesse autorizado, cumpriria a missão naquela
noite e desapareceria feito uma sombra na escuridão.
Mas as ordens dela haviam sido claras.
A visão tinha mostrado o caminho.
O desejo das estrelas era que o presságio se cumprisse na
noite do aniversário da princesa.
E ele não a desobedeceria.
Nem à sua rainha, nem as estrelas.
Só que isso não significava que ficaria parado, fingindo ser um
nobre como os outros. Muito menos quando estava dentro do
território dos inimigos que haviam tomado tudo do seu povo.
Inclusive os estimados livros de seus pais.
De súbito, uma ideia lhe ocorreu.
Se suas lembranças estivessem corretas, os soldados de
Arustar haviam confiscado toda a biblioteca de seus pais. Talvez os
volumes houvessem sido lançados no fogo. Ou talvez tivessem sido
guardados. E se estivessem ali, no castelo, em algum lugar da
biblioteca real?
Ikaris trincou o maxilar.
Se estivessem ali, daria um jeito de levá-los consigo quando
partisse.
Aquele era o legado do seu povo.
Quando Ikaris percebeu, suas pernas se moviam sozinhas,
guiando-o pelos corredores escuros e desertos do castelo. Uma
tocha ou outra tremulava na parede, rasgando as sombras e o
silêncio.
Descobriria onde a biblioteca ficava.
E tentaria descobrir se os livros da cidadela erelin estavam ali.
Com passos firmes e decididos, ele continuou avançando,
mantendo os sentidos atentos a qualquer som. A faca permanecia
em sua mão, abaixada ao lado do corpo, pronta para ser usada ao
menor sinal de perigo.
Bom, não achava que a grande raposa apareceria ali dentro.
Mas sempre havia guardas treinados para reconhecerem
erelins.
E Ikaris não poderia hesitar caso precisasse eliminá-los.
Enquanto seguia pelo corredor, em busca da biblioteca, captou
algo em sua audição apurada.
Passos.
Ele prendeu o ar e ergueu a faca.
Alguém vinha em sua direção.
Podia ver uma luz trêmula contra as paredes.
Os passos ficaram mais próximos.
Merda.
Se fosse flagrado, poderia levantar suspeitas.
E não estava disposto a estragar os planos de Iohanna.
Mas também não estava disposto a recuar. Queria ir até a
biblioteca enquanto o sol dormia.
Sua mente traçou um plano rápido.
Golpearia o soldado e o deixaria desacordado antes que ele
tivesse a chance de ver o seu rosto.
Pelos seus pais.
Feito o sopro do vento, Ikaris agiu e se moveu rápido,
avançando sobre o inimigo, pronto para derrubá-lo. Seu corpo
pressionou o corpo da outra pessoa contra a parede. Um candelabro
com três velas rolou pelo chão. Um ofego feminino e assustado
ecoou em seus ouvidos.
Ele piscou.
E, na escuridão entrecortada pelas velas caídas, seus olhos se
encontraram com o azul dos olhos da jovem criada que o ajudara
mais cedo.
8
Entre livros e histórias

MARESSA BATEU as costas na parede, espalmando as mãos


na pedra fria. Ikaris estava tão perto que ela conseguia sentir o
cheiro forte e inebriante que vinha de suas roupas, de sua pele, de
seus cabelos. O corpo dele era enorme perto do dela, fazendo com
que sua presença tomasse as sombras do corredor.
As velas caídas ainda queimavam, permitindo que o contato
entre seus olhos se sustentasse no silêncio crepitante.
— O que pensa que está fazendo? O senhor me assustou,
lorde Ashera — ela se ouviu dizendo, incapaz de encontrar forças
para empurrá-lo para longe ou repreendê-lo mais severamente.
Era como se toda a energia ao seu redor houvesse sido
concentrada nele, apenas nele.
Ikaris não respondeu, mantendo os braços apoiados acima dos
ombros dela, a respiração pesada entrando e saindo de seus
pulmões, os músculos mal se movendo.
As íris de Maressa o sondaram, em um misto perigoso de
temor e curiosidade. Era como se a dissonância sombria e
magnética da aura dele a impedisse de se mover. O rosto endurecido
de Ikaris, tão concentrado em seus olhos, era de uma beleza distinta,
ímpar, que causava batidas fortes no peito dela. E a boca firme e
rude, salientada pelo queixo quadrado...
Ikaris baixou o rosto, como se estivesse acompanhando o
caminho traçado pelos olhos dela, e então voltou a fitá-la; mesmo
com a pouca luz das velas, Maressa podia jurar que o cinza das íris
dele havia escurecido.
— Não deveria andar sozinha a esta hora da noite.
— O forasteiro aqui é o senhor, lorde Ashera — ela respondeu,
a respiração suspensa no espaço pequeno que separava seus
corpos. — Este castelo é meu lar.
A boca dele se contraiu.
— De fato.
— Poderia se afastar, Lorde Ashera?
Ikaris deu um passo para trás, abaixando-se com um gesto
elegante para apanhar o candelabro.
— Peço perdão por tê-la assustado, senhorita Maressa —
falou, a voz rígida, rouca, a mão lhe estendendo o candelabro. Duas
das três velas tinham se apagado com a queda. — Creio que estou
com os sentidos em alerta após ter sido atacado por aquela raposa
gigante.
Maressa segurou o suporte metálico, seus dedos roçando nos
dedos de Ikaris. Ela ainda mal conseguia respirar ou se mover
direito.
— Desculpas aceitas, Lorde Ashera. — Os olhos dela
desceram para o braço dele. — Como está o ferimento?
— Melhor. — Ele recolheu a mão, fitando o próprio braço antes
de se voltar para o rosto dela outra vez. Seu olhar era tão intenso
que Maressa o sentia atravessar seu penhoar e suas longas vestes
de dormir, alcançando o âmago de alma. — Por que está acordada a
uma hora dessas?
Maressa entreabriu os lábios.
Nem ela sabia o que estava fazendo ali. Poderia dizer para si
mesma que iria ao encontro de Nina, mas aquilo era uma mentira,
sendo que a vira horas atrás. Apenas tinha consciência de que
estava inquieta demais com todos os acontecimentos daquele dia —
a abertura dos portões, a chegada de seus pretendentes, o encontro
com Ikaris no bosque, a sensação que ele havia lhe causado ao
segurar sua mão e perguntar seu nome — para permanecer na
cama.
— Sou uma criada. Tenho minhas tarefas.
— Tão tarde da noite?
— O castelo está repleto de convidados. Os trabalhos
dobraram. — Ela engoliu em seco, o coração batendo forte na
garganta. — E o senhor, lorde Ashera? O que está fazendo vagando
tão tarde pelos corredores? O torneio começa amanhã. Imaginei que
o senhor estaria descansando e guardando todas as suas forças
para a competição.
Ele virou o rosto para o lado; a chama trêmula da única vela
que permanecia queimando lançava sombras em suas feições
marcantes.
— Estava procurando o caminho para a biblioteca.
— Oh, o senhor é um leitor ávido? — Um brilho animado e
surpreso encheu os olhos de Maressa.
— Leio sempre que tenho tempo. É um hábito que aprendi com
os meus pais e que não deixo morrer.
Um lorde que apreciava a leitura e que havia herdado o
costume dos pais — ah, aquela era uma informação animadora.
— Ler também é uma paixão que carrego comigo. Quais são
seus temas favoritos, Lorde Ashera?
— Textos antigos e históricos — Ikaris respondeu, e apesar do
tom sóbrio da voz, Maressa captou uma nuance diferente na
resposta, um lampejo que mostrava que aquele era um assunto
sobre o qual ele gostava de falar. — E a senhorita?
— Romances, poesias, contos de cavalaria e tratados
filosóficos.
— Que gosto variado.
Ela esboçou um sorriso sob o brilho dançante da vela.
— Uma mente alimentada jamais será uma mente escravizada.
Se o lorde concordava ou não com ela, guardou o pensamento
para si mesmo. Maressa abriu a boca, pronta para tecer mais um
comentário, mas ele se moveu primeiro, indo para mais perto dela.
Sem dizer uma só palavra, Ikaris apanhou a vela apagada do
candelabro, levando o pavio até a chama da vela central para
acendê-la. Depois, fez o mesmo com a outra vela. A luz aumentou
no corredor, fazendo com que Maressa piscasse ante ao brilho
dourado.
— Se não for atrapalhar seu trabalho noturno, senhorita
Maressa, poderia me mostrar o caminho até a biblioteca?
O pedido provocou uma agitação inesperada no sangue dela.
Muito mais inesperada e vibrante do que lhe era permitido.
Com a mão que não segurava o candelabro, Maressa
empurrou uma mecha clara do cabelo para trás da orelha e o fitou.
— Claro. Siga-me.
Lado a lado, eles caminharam em silêncio.
Maressa cruzou uma passagem arcada, seguida por Ikaris,
entrando no corredor largo e escuro, ladeado por janelas que se
estendiam para além das portas da biblioteca.
O cheiro dos livros e da madeira das prateleiras a recebeu
como um amigo íntimo.
Ela não conseguiu segurar o sorriso que sempre tomava seus
lábios quando entrava ali; a biblioteca era tão grande que parecia um
castelo particular que havia desabrochado entre aquelas paredes
antigas.
Além da parte térrea, havia dois andares superiores, cercado
por corrimões de bronze. Candelabros de ferro projetavam luz e
sombras por entre as câmaras e estantes. Mais adiante, podia ver as
mesas, cadeiras e sofás posicionados diante das lareiras de pedra.
— Aqui estamos, lorde Ashera. — Maressa girou nos
calcanhares, o penhoar se movendo ao redor do seu corpo enquanto
ela apontava para as estantes infinitas, cobertas do chão ao teto. —
Esta é a grande biblioteca do castelo e, ouso dizer, a maior de todo o
reino de Arustar.
— Consigo imaginar os motivos que encheram cada uma
dessas estantes — ele falou, tão baixo, tão densamente, que
Maressa só escutou por estar perto demais.
— A biblioteca da sua casa é tão vasta quanto essa?
— Era enorme.
— Era?
Os ombros de Ikaris retesaram. Maressa franziu o cenho,
observando-o se recolher como se uma tempestade houvesse se
fechado sobre ele.
— Eu estava pensando na casa dos meus pais — ele
murmurou, qualquer traço de leveza se esvaindo de sua voz.
— Compreendo. — Maressa esfregou o próprio braço; uma
parte dela queria que aquela estranha e insurgente tensão de
dissipasse outra vez. — Bom, há livros dos mais variados assuntos
por aqui. Se algum te chamar a atenção, pode levá-lo para seu
quarto. Mantenho sempre uma pilha gigantesca ao lado da minha
cama.
— Você tem permissão para pegar quantos livros quiser daqui?
Maressa piscou. A companhia de Ikaris estava fazendo com
que ela se esquecesse de sua própria atuação e agisse
naturalmente.
Minha nossa, tenho que prestar mais atenção no que digo. Não
posso me esquecer do papel que estou representando, ou meu
disfarce será desmontado.
— Sou uma das criadas pessoais da princesa. Ela me
autorizou.
— Hum. — Os dedos de Ikaris correram pelas lombadas dos
livros. — E o que você poderia me dizer sobre a misteriosa princesa
de Arustar?
Uma pontada de hesitação a atravessou.
— É contra as regras do torneio passar esse tipo de informação
aos competidores — ela respondeu rápido, obrigando sua voz a fluir
da forma mais natural possível. — O senhor a verá amanhã. Ela
assistirá à prova, como dita a tradição do reino.
— Sendo assim...
— Sendo assim, terá que criar sozinho suas próprias
impressões sobre a princesa.
Para seu alívio, Ikaris não insistiu nas perguntas. Maressa
apagou as velas do seu candelabro, já que a biblioteca possuía sua
própria iluminação suspensa, e o deixou sobre uma das mesas.
— Quer que eu te mostre o local, lorde Ashera?
Ele assentiu.
Andando ao lado dele, quase sorvida por sua presença
silenciosa e imponente, Maressa passou por pilhas e pilhas de livros,
alguns com capas lisas, outros com ornamentos gravados,
explicando como eram catalogados e distribuídos. As estantes eram
talhadas de madeira antiga, circundando alcovas onde os estudiosos
ficavam quando não queriam ser perturbados.
— O que há lá embaixo? — Ikaris perguntou subitamente.
Maressa virou o rosto. Ikaris estava diante da alcova cuja a
porta fechada levava para a parte subterrânea da biblioteca.
— As câmaras onde os mestres copistas trabalham. Eles
também cuidam de livros que estão se deteriorando antes de trazê-
los aqui para cima. É um trabalho bem artesanal.
Ikaris deu um passo para dentro da alcova, se aproximando da
porta pesada, engolido pela luz fraca. Maressa o observou tocar a
maçaneta e tentar abri-la.
— Está trancada.
— Não há o que fazer. Somente os mestres possuem
autorização para adentrar nesta parte subterrânea. — Nem mesmo
eu, como princesa, tenho o direito de descer para estas câmaras, ela
complementou em pensamentos.
A boca de Ikaris se contraiu; Maressa imaginou o que poderia
estar se passando pela cabeça dele. Conhecia-o há apenas um dia,
mas tudo nele parecia uma vastidão de mistérios e enigmas; uma
dissonância dos demais membros da nobreza dos outros reinos.
— Os textos antigos e históricos ficam nessa direção, lorde
Ashera — ela voltou a falar, erguendo a barra do penhoar enquanto
se voltava para as estantes. — Tem algum assunto em particular que
você gostaria de ler?
Ele ficou pensativo por um momento. Sopros de vento faziam
os candelabros pendurados no teto oscilarem e rangerem.
— Algo sobre a história do reino de Arustar. Pouco conheço
daqui.
— Certo. Fique com aquela estante ali, eu checarei esta outra.
Os olhos de Maressa se voltaram para os títulos gravados na
lombada, imaginando qual volume poderia agradar Ikaris. Uma parte
dela se agitava com a ideia de escolher a companhia com quem ele
passaria as horas mais silenciosas da noite. Mas nada parecia bom o
suficiente.
Ergueu o queixo, fitando os títulos nas prateleiras mais altas.
Talvez houvesse algo mais interessante ali. Ela puxou a escada entre
as estantes e subiu, ouvindo os degraus metálicos rangeram sob
seus pés.
Esticou o braço, tentando alcançar um livro de capa de couro.
Uma onda súbita de tontura e vertigem se apoderou dela,
roubando a concentração e o equilíbrio.
Maressa ofegou.
Seu corpo balançou e ela tentou se agarrar à borda da
prateleira; os pés falharam sobre a escada, os livros vieram sobre
ela.
Maressa fechou os olhos e protegeu o rosto com os braços, se
preparando para o impacto, mas foi surpreendida com um corpo se
chocando contra o dela com força e a jogando para o lado. A escada
cedeu, os livros da prateleira despencaram, mas o braço firme que
circundou sua cintura não permitiu que ela caísse no chão ou fosse
atingida.
Ela precisou de alguns instantes para se recompor e entender o
que havia acontecido.
Com um braço, Ikaris empurrava a escada para trás e, com o
outro, ainda a segurava.
— Maressa! — Seu nome era um estremecimento na boca
dele. — Você está bem?!
Ela ergueu os olhos, ainda atônita, e viu, pela primeira vez, o
rosto de Ikaris livre de qualquer expressão sóbria ou fechada; os
olhos ardiam, a luz suspensa iluminava seus traços, os lábios
entreabertos exalavam forte.
— Responda! — ele falou, comprimindo o maxilar de uma
forma que quase o fez ranger. — Você está bem?
Maressa abriu a boca para falar; outra onda de tontura veio,
ainda mais forte, e ela se agarrou à camisa dele para não cair.
A pressão do toque de Ikaris em sua cintura aumentou; sem
que ela esperasse, ele passou o outro braço por trás das pernas dela
e ergueu sem nenhuma dificuldade. Maressa se segurou em seu
pescoço, buscando apoio, ciente de que qualquer racionalidade
havia ficado para trás diante da sensação e do calor trêmulo que os
braços dele lhe causavam.
Ikaris andou até o sofá mais próximo, onde o fogo crepitava na
lareira, apertando-a com força contra seu peito duro. A respiração
pesada dele roçava o pescoço dela, aumentando a pressão estranha
e acolhedora que envolvia seu coração e sorvia seu ar.
Maressa só conseguiu voltar a respirar direito quando sentiu o
estofado do sofá contra suas costas.
A madeira estalou na lareira.
— O que foi que aconteceu? — A mão dele tocou seu rosto; a
sensação dos dedos quentes em sua pele fria a arrepiou. — Você
está gelada.
— Foi... — Seu lábio inferior tremeu e o coração disparou. —
Foi apenas uma vertigem. Estou bem, lorde Ashera.
Os olhos cinzentos de Ikaris subiram até o rosto dela. O arco
negro ao redor das íris diminuía à medida que a pupila crescia. Ela
podia ver a veia que saltava em seu pescoço.
— Seu rosto está pálido.
Maressa prendeu o ar diante daquele olhar intenso,
perscrutador; tão avassalador que parecia cercar todo o seu corpo,
sua alma.
— Ficarei bem. Não se preocupe.
Havia uma relutância no semblante dele. Foi só naquele
momento que Maressa percebeu que a mão de Ikaris ainda estava
encaixada em seu rosto, o calor da palma se espalhando por ela.
Ela ergueu os olhos até os dele; por entre o fogo dançante e o
tremular das sombras, o cinza das íris dele queimava, como se
houvesse se convertido na prata líquida que tingia a lua e as
estrelas.
Ikaris se inclinou sobre ela; o coração de Maressa batia alto.
Nunca havia ficado tão perto de um homem.
E então, como se algo houvesse se agarrado em seus ossos e
regelado seu sangue, Maressa se viu virando o rosto, atraída por um
movimento no meio das estantes.
— Tem alguém ali... — ela sussurrou para ele.
Ikaris virou o rosto.
A pessoa virou a cabeça na direção deles também.
Do lado de fora das janelas, o vento sibilante golpeava o jardim.
Maressa não conseguiu identificar se era um homem ou uma
mulher; a pessoa usava um manto escuro e pesado, com um capuz
puxado sobre o rosto, que escondia qualquer traço de sua
identidade.
Podia ser só algum convidado ou criado que havia perdido o
sono, como eles, mas alguma parte ancestral e primitiva de Maressa
disparou uma pulsação alarmante sob sua pele.
A pessoa encapuzada inclinou o corpo para frente, fungando,
como se os estivesse farejando.
Ikaris girou e colocou o braço diante de Maressa, formando
uma barreira protetora entre ela e a figura misteriosa.
Ela observou a mão de Ikaris descendo para a lateral do corpo,
os dedos roçando o cabo de uma faca.
O coração de Maressa rugia no peito.
A pessoa deu um passo para trás, recuando por entre as
sombras e as estantes, até desaparecer completamente da vista
deles.
— Fique aqui — Ikaris falou, desembainhando a faca. — Vou
ver o que está acontecendo.
Com um andar militar, predador, caçador, Ikaris avançou. A
lâmina de sua faca cintilava ante ao brilho dos candelabros.
Sem se conter, tomada por uma ansiedade que afogava a
tontura, Maressa se levantou e o seguiu. Ela colidiu com as costas
de Ikaris quando ele parou de andar subitamente, virando-se
agilmente para segurar o braço dela e impedir qualquer queda.
— Eu disse para você ficar perto da lareira.
— Agradeço a preocupação, lorde Ashera, mas aqui é minha
casa.
Ele rosnou algo que ela não entendeu, voltando-se para o
corredor entre as estantes onde a pessoa encapuzada tinha entrado.
Os olhos dela acompanharam o caminho dos olhos dele.
Mas não havia mais ninguém ali.
9
Essência marcante

OS DEDOS de Ikaris comprimiam o cabo da faca, o fôlego


escapava de seus lábios em um chiado lento e perigoso.
Mais uma vez, ele encarou o corredor formado pelas estantes,
procurando pela pessoa encapuzada. Só que a figurava misteriosa
não estava em lugar nenhum.
— A biblioteca possuí outra saída?
— Não — Maressa respondeu. O ombro dela roçou no braço
dele, e Ikaris quase engoliu em seco com um arrepio que subiu por
sua pele. — Há apenas a entrada principal e as janelas, mas...
— Todas as janelas estão fechadas.
— Elas são trancadas todas as noites.
Ikaris baixou a faca, voltando-a para o cinto. Não havia
conseguido olhar o rosto da pessoa. Podia ser qualquer um, vagando
pelo castelo tarde da noite, também em busca de um livro, porém...
Os lábios dele se contraíram.
Seus sentidos estavam agitados, inquietos, em um alerta
perturbador. Era uma impressão completamente diferente da que
sentira diante da raposa, mesmo depois de ser mordido.
Raio de Luar, como Maressa o nomeara, lhe despertara uma
curiosidade fascinante. Mas ali, na biblioteca, seus instintos se
esquivavam como se algo tão denso quanto as sombras quisesse
arranhá-lo.
— Vamos sair daqui — ele bradou, virando-se para a saída.
— O senhor não pegou nenhum livro...
— Não tem problema — Ikaris falou, se controlando para não
segurá-la pelo braço para tirá-la da biblioteca o mais rápido possível.
Podia lidar com qualquer adversário, com qualquer oponente,
mas Maressa parecia frágil demais.
Ela resmungou algo que ele não entendeu, mas o seguiu com o
passo apertado. Ikaris manteve sua atenção nela o tempo todo, caso
ela fosse assolada pela vertigem outra vez.
Perto da saída, Maressa apanhou o candelabro com as três
velas e eles avançaram juntos pelo corredor.
Em momento algum, Ikaris baixou a guarda.
Sua respiração era um chiado longo e duro.
— O senhor está bem, lorde Ashera?
Ele abriu a boca para responder, mas nenhum som saiu
quando Ikaris mirou por cima do ombro, apenas para encontrar
escuridão e silêncio.
— O senhor deve estar cansado. Fez uma longa viagem até
Arustar. E está muito tarde. — Maressa fitou a janela. O céu
fulgurava em milhões de estrelas brilhantes que se refletiam nas íris
dela. — Creio que não esperávamos encontrar tanta emoção ao ir
em busca de um livro.
Ikaris voltou a fitá-la.
— Vou acompanhá-la até o seu quarto.
Sob a luz das velas, um leve rubor cobriu as bochechas de
Maressa.
— Agradeço, mas não seria apropriado, lorde Ashera.
— E se você passar mal outra vez?
— Já estou melhor.
— Tem certeza?
— É uma certeza efêmera, mas é a única que posso ter.
Ikaris contraiu o maxilar, observando os olhos azuis dela à
chama bruxuleante da vela; quase prendeu a respiração ao ver ali
um lampejo de dor, algo que veio e se foi tão rápido que ele mal
conseguiu assimilar.
Mas algo que se agarrava em cada fibra que o constituía o fez
ter certeza de que aquela fala dela continha uma sentença
específica, particular, que se fechava sobre ela todos os dias, a todos
os instantes; uma sensação que Ikaris imaginou que era semelhante
a que ele experimentava nas brumas frias e sufocantes das
montanhas.
— Boa noite, lorde Ashera.
Ele ergueu o rosto, observando-a mais uma vez, o peito se
apertando, ansiando por dizer algo que não tinha som ou forma.
Tudo o que saiu de seus lábios foi um suspirar rígido.
— Boa noite, senhorita Maressa.
Com uma reverência educada, ela se despediu e se afastou.
Ikaris aguardou alguns instantes.
E, usando as habilidades que desenvolvera para sobreviver a
qualquer ataque nas montanhas, ele seguiu Maressa
silenciosamente até a ala dos criados, e só se afastou quando se
certificou de que ela estava em segurança dentro do próprio quarto.

◆◆◆

Maressa fechou a porta atrás de si, soltando o ar que não sabia


que prendia até aquele momento.
Apesar da oposição de sua mãe, ela havia convencido a rainha
a lhe preparar um quarto na ala dos criados. Seus planos seriam
comprometidos se alguém a visse entrando tarde da noite nos
aposentos da princesa.
Levou a mão ao peito, contando as batidas aceleradas do
coração.
Deveria estar morta de medo, ou ao menos assustada, por
conta do que havia acontecido na biblioteca — tanto em relação à
pessoa encapuzada quanto ao fato de quase ter caído da escada por
causa das tonturas.
Pelos deuses protetores de Arustar; deveria estar se
perguntando quem se vestia daquela forma estranha para ir à
biblioteca tão tarde da noite!
Só que seu coração não batia tão rápido por causa daquilo.
Ela depositou o candelabro na mesinha de canto e deixou que
suas costas se apoiassem contra a parede, o ar saindo trêmulo de
seus lábios.
Mesmo que Ikaris não estivesse mais ali, era como se tudo nela
ainda o sentisse; como se a presença dele a cercasse, feito os
braços fortes e quentes que ampararam sua queda e a carregaram
até o sofá.
O coração acelerou ainda mais com a lembrança, com o cheiro
dele grudado em sua pele, em suas roupas...
Minhas... Roupas...
Maressa baixou os olhos e arfou, depois apertou o penhoar
com força ao redor do corpo.
Ah, minha nossa!
Havia ficado um longo tempo na companhia de lorde Ikaris, e
somente naquele momento percebia que não estava vestida de
maneira adequada. Sim, sabia que estava com vestes de dormir
quando colidiram no corredor e quando seguiram para a biblioteca,
contudo, aquilo tinha se apagado da sua cabeça no momento em
que começaram a falar sobre livros e gostos literários. Não tinha nem
mesmo pensado em sua saúde frágil até ser abatida pela vertigem.
Olhou para si mesma.
Sua camisola não era reveladora nem indecente,
especialmente com o penhoar por cima, mas era uma camisola.
Para uma criada, aquilo já deveria ser escandaloso o bastante.
Mas, para uma princesa...
Ah, minha nossa!
Esperava que o lorde não a julgasse mal por causa daquilo.
Ikaris não havia lhe lançado nenhum olhar indecente, como os
pretendentes que a abordaram no pátio achando que ela era uma
mera criada, pronta para servi-los de boa vontade.
Mas ele a olhara.
Como se, por um momento, ela fosse tudo o que ele
enxergasse.
Maressa comprimiu as pálpebras.
No que estou pensando? Por que estou me permitindo imaginar
demais?
Fazia apenas um dia que o conhecia. Ninguém podia ter tantas
impressões sobre uma pessoa em apenas um único dia. Além disso,
ainda havia todo o torneio pela frente. Ainda havia inúmeros
pretendentes para conversar e analisar.
Maressa abriu os olhos.
As chamas das três velas oscilavam na penumbra do quarto.
Queria muito conversar com Nina e contar o que havia
acontecido. Além daquela que considerava como uma irmã de
coração, mais ninguém poderia saber do seu encontro noturno com o
lorde no corredor ou na biblioteca. Ou que ele a carregara. Ou que
ela ainda era capaz de sentir o perfume da essência marcante dele à
sua volta.
Aquilo poderia trazer complicações a ambos.
O torneio começaria no dia seguinte.
Não queria — e não permitiria — que nada atrapalhasse seus
planos de ter controle sobre a própria vida.
Afastando-se da parede, Maressa puxou o ar, botou a cabeça
no lugar, caminhou até o candelabro, apagou as velas e se deitou na
cama, sonhando com estrelas que ganhavam asas e dançavam por
toda a imensidão do céu.

◆◆◆

Ikaris bateu a porta do quarto, e só depois que o barulho ecoou


por todo o aposento foi que ele se lembrou de que o duque Willelm
dormia na outra cama.
Preparou-se para resmungar qualquer resposta; para sua
surpresa, o duque continuava imerso em um sono pesado, roncando
baixo, com um dos braços caídos ao lado do corpo.
Um problema a menos, pensou, girando nos calcanhares, o
corpo inquieto, agitado.
Com um grunhido irritado, ele arrancou a camisa e a jogou no
espaldar da cadeira. A temperatura do quarto estava baixa, mas o
perfume de Maressa havia se grudado ao tecido de tal forma que ele
teria o sono roubado se levasse aquela fragrância para a cama
consigo.
Ikaris se deitou, encarando o teto, os pensamentos galopando
alto.
Havia tido um estranho — e curioso — primeiro dia no castelo.
Tanto a enigmática e bela raposa do bosque, quanto a figura
encapuzada da biblioteca não lhe soavam como eventos comuns.
Era como se algo estivesse sussurrando nos arredores de
Arustar.
Igual nas histórias antigas do meu povo.
Aquilo era intrigante o bastante para fazê-lo querer mais
respostas.
Com os livros roubados, com a cidadela original destruída e
com quase todos os erelins puros extintos, ele conhecia apenas
fragmentos das histórias místicas que eram passadas de geração em
geração pelo seu povo.
Por isso mesmo, precisava dar um jeito de voltar à biblioteca e
investigar melhor o acervo. De preferência, sem a companhia de
uma jovem criada que o fazia se distrair de seus objetivos principais.
Lentamente, os olhos de Ikaris pesaram; e, na escuridão que o
envolveu, ele sonhou com estrelas aladas que desciam do céu para
beijar uma jovem de cabelos dourados.
10
Mil trovões

NA MANHÃ seguinte, as trombetas ressonaram ao redor da


arena.
O dia luminoso e de céu limpo raiava pelos arredores do
castelo enquanto os competidores aguardavam pelo início da
primeira prova e os expectadores se ajeitavam na arquibancada.
Ao lado do duque Willelm, que tecia inúmeros comentários
sobre tudo, Ikaris se mantinha em silêncio. Apesar de ter conseguido
adormecer na noite passada, não se sentia descansado. Seu corpo
tinha sido dominado por uma estranha combinação de cansaço e
agitação nervosa, que nada tinha a ver com as provas daquela
manhã.
Seus olhos correram pela arena.
A primeira competição consistiria em um torneio de cavalaria
chamado Justa, onde o cavaleiro tinha que derrubar o oponente com
um golpe sem cair do cavalo.
Em sua opinião, aquelas provas eram uma perda de tempo.
Tinha certeza de que o Conselho Real e a própria rainha faziam uso
de outros métodos para avaliar os pretendentes da princesa, que
oscilavam entre alianças políticas, poderio bélico e riqueza, e as
competições eram apenas uma desculpa para reunir todos ali.
Bom, as tradições de Arustar não eram um problema dele.
Bastava apenas que jogasse o jogo e aguardasse a noite do
aniversário da princesa para cumprir a missão de Iohanna.
Bastava apenas que...
Um estremecimento vibrou por todo o seu peito, e Ikaris virou o
rosto, desviando o olhar da arena e o elevando para as
arquibancadas.
Não foi difícil encontrá-la.
Havia uma luz nela que capturava o olhar dele, transformando-
o em um contemplador que procurava as primeiras estrelas
brilhantes após anos de uma visão bloqueada pela neblina.
Maressa circulava entre os expectadores, carregando uma
bandeja com várias taças. Seus cabelos densos e claros estavam
presos em um coque, mas alguns fios escapavam e dançavam ao
redor do seu rosto, se misturando ao sol que banhava todo o terreno.
Aquela jovem, bela e intrigante criada parecia estar sempre em
um lugar diferente, realizando alguma tarefa, conversando com os
pretendentes da princesa, surgindo nos cantos em que Ikaris menos
esperava, tentando entrar no único lugar onde ela não tinha
permissão de atravessar, mas que, mesmo assim, invadia sem
nenhum impedimento.
A mente dele.
O aroma adocicado dos cabelos dela ainda pairava sobre seus
sentidos, como uma tortura poderosa e envolvente. A sensação de
carregá-la nos braços, mesmo que apenas por alguns instantes
efêmeros até que fosse capaz de alcançar o sofá, ainda ardia por
sua pele. Seus olhos cintilantes, astutos e azuis pareciam estar
sempre chamando pelos seus.
E os lábios...
Ikaris levou uma mão ao peito, trincando o maxilar, aturdido
consigo mesmo, sem conseguir desviar o olhar dos movimentos
delicados de Maressa na arquibancada, quase incapaz de respirar
direito.
Os lábios dela o incomodavam. Porque eram mais perigosos do
que os inimigos ao redor das montanhas.
A necessidade de olhar aqueles lábios era magnética,
desesperadora demais para sentir por alguém que ele conhecia há
apenas um dia; e ainda maior era o seu desejo de tracejá-los com as
pontas de seus dedos, ouvindo-os dizer seu nome em um sussurro
trêmulo, para então sentir seu gosto e...
— Ela é tão linda. — Willelm suspirou ao seu lado. — É como
se o sol houvesse cedido seu brilho para criá-la.
O elogio provocou um fulgor no sangue de Ikaris que o fez
cerrar os punhos inconscientemente e chiar baixo.
De soslaio, fitou o duque.
Mas os olhos de Willelm não estavam voltados para Maressa, e
sim para a princesa de Arustar, sentada no palanque central,
rodeada de guardas.
Ao se dar conta daquilo, Ikaris amaldiçoou a própria reação.
Por todas as criaturas celestias e aladas, o que estava se
passando pela cabeça dele?
Tinha que se focar em seu verdadeiro objetivo.
— Ah, como eu gostaria de me aproximar da princesa, apenas
para segurar sua mão e elogiá-la com toda a sinceridade do meu
coração — Willelm continuou e, como se fossem melhores amigos,
apoiou o braço no ombro de Ikaris e soltou o peso do corpo. —
Imagino que ela deva ouvir elogios o dia inteiro, mas sinto que eu
morreria feliz se um cumprimento à beleza dela fossem as últimas
palavras da minha boca.
Com um leve arquear de sobrancelhas, Ikaris se permitiu, pela
primeira vez naquela manhã, encarar a princesa. Seu verdadeiro
alvo. Não podia ver tanto dela ali, mas captava a cor clara dos seus
cabelos, não tão fulgurantes quanto os de Maressa, o porte pequeno
e delicado.
Talvez estivesse imaginando coisas, mas a princesa parecia
incomodada com vestido pesado e com a presença dos guardas,
como se participar de eventos não fosse um hábito comum.
— Concorde comigo, companheiro. — Willelm alargou o sorriso
e soltou mais peso sobre o ombro de Ikaris. — A princesa não é a
criatura mais bela que você já teve o prazer de colocar os olhos?
Como um instinto, um chamado inevitável, os olhos de Ikaris
foram outra vez para cima de Maressa.
No mesmo instante em que o rosto dela se voltou para o seu.
Um raio de sol a atravessou, e Ikaris quase levou a mão ao
peito outra vez, dando um passo para frente, tirando o apoio de
Willelm e fazendo com que ele se desequilibrasse.
O duque arfou, mas não caiu ao chão.
Ikaris virou o rosto para ele; Willelm ergueu a mão.
— Fique tranquilo, lorde Ashera. Não há necessidade de se
desculpar. Estou intacto. E prontíssimo para as Justas.
Com o canto dos olhos, Ikaris procurou por Maressa outra vez,
mas ela já não olhava mais para a arena ou para ele.
Seus lábios se apertaram, um incômodo pesava nos ombros.
Precisava manter a concentração onde ela era
verdadeiramente necessária.
Ele se forçou a desviar o olhar, encarando os participantes que
escolhiam as lanças e se preparavam para o primeiro torneio.
Um dos homens já estava vestido dentro de uma armadura,
com um semblante tão fechado quanto as profundezas de um vale.
Ao seu lado, outro homem, mais baixo e careca, segurava o elmo e a
lança que ele usaria durante a Justa.
— Aquele é Sir Edimburgo, das terras sulistas — Willelm falou,
acompanhando a linha de seu olhar.
— Você o conhece? — Ikaris não conseguiu segurar a
pergunta, mesmo sabendo que aquilo poderia incentivar o duque a
estender o diálogo por horas intermináveis.
— Conheci-o ontem, durante o banquete de recepção. E
jogamos cartas à noite. Você deveria ter comparecido ao salão de
jogos. Foi divertido. Conheci boa parte dos rapazes. — Willelm
cutucou a própria cabeça. — Tenho uma excelente memória para
nomes e rostos. Pode me perguntar o que quiser sobre nossos rivais.
Apesar de também sermos rivais, senti uma grande simpatia por
você, lorde Ashera.
— Quem é aquele ao lado dele, segurando o elmo e a lança?
Willelm estreitou os olhos.
— É o cavalariço. Hakon. Não é um competidor, apenas um
criado que está acompanhando Sir Edimburgo.
— Creio que Sir Edimburgo será um dos primeiros a competir
no torneio de hoje, certo?
— Exatamente. Há uma lista fixada na entrada da arena. Você
não viu? Ele e o duque de Storn serão os primeiros combatentes. —
Willelm virou a cabeça, olhando de um lado. — Por sinal, não estou
enxergando o duque de Storn em lugar nenhum. Você está?
Ikaris nem sabia quem diabos era o duque de Storn.
Mas se limitou a um dar de ombros.
As trombetas tocaram, convocando os dois participantes para
irem até o centro da arena.
Vestindo o elmo e subindo no cavalo, Sir Edimgurgo seguiu até
lá.
Ikaris olhou para as três entradas da arena. O tal duque de
Storn não atravessou nenhuma delas.
A trombeta tocou outra vez.
O nome do duque de Storn foi chamado.
Mas ele não apareceu.
— Que estranho — Willelm comentou. — Por que o duque se
daria ao trabalho de vir até Arustar e perder o primeiro combate?
Ikaris se viu obrigado a concordar com a dúvida dele.
A trombeta tocou mais uma vez.
Um guarda foi enviado para procurar pelo duque em seus
aposentos. Um pouco depois, o homem estava de volta e se dirigiu
para o guarda que Ikaris imaginou que era o líder ali.
Sua audição apurada captou a conversa entre os dois.
— Você não o achou? Ele partiu sem avisar o castelo?
— Os pertences do duque de Storn ainda estão nos aposentos
dele, assim como sua carruagem e cavalos estão no estábulo, mas
não consigo encontrá-lo em lugar nenhum.
Os dois guardas se entreolharam, murmurando um com o
outro, e Ikaris desviou o olhar e a atenção antes que fosse notado.
Um sinal foi feito para os avaliadores da Justa.
— O duque de Storn está desclassificado por conta de sua
ausência. Que o próximo competidor se aproxime para duelar com
Sir Edimburgo! Compareça à arena, Lorde Ikaris Ashera!
Ouvir seu nome sendo convocado quase o pegou de
sobressalto.
Não imaginava que já estaria entre os próximos combatentes.
— Boa sorte! — Willelm vibrou. — Estarei torcendo pela sua
vitória, lorde Ashera!
Ele puxou o ar.
Bom, vamos acabar logo com isso.
Como não queria perder tempo com aquele torneio, Ikaris
vestiu a armadura oferecida, subiu no cavalo, apanhou a lança e se
dirigiu para seu lugar na arena.
Nunca havia participado de uma Justa antes, mas treinava
resistência e combate com seus companheiros erelins nas
montanhas, simulando torneios semelhantes sem que nenhum deles
precisasse estar montado em cavalos ou qualquer outro animal.
E um treinamento entre erelins era muito mais selvagem e feroz
do que uma Justa sem graça entre os homens da nobreza.
Enquanto cavalgava para se colocar diante de Sir Edimburgo,
seu olhar singrou uma vez mais para a arquibancada.
Maressa estava em pé no meio dos expectadores, as mãos
entrelaçadas em frente ao corpo, os cabelos dourados se
desmanchando e se soltando do coque, os lábios entreabertos como
se fosse murmurar seu nome.
E olhava em sua direção.
Com as íris ardendo em uma expectativa atordoante.
O coração dele bateu mais alto do que mil trovões.
— Combatentes, preparem-se!
Com o peito rugindo, Ikaris encarou Sir Edimburgo.
Empunhou a lança.
E avançou ao som da trombeta.
11
Estremecedor

OS OLHOS de Maressa mal conseguiram captar o momento em


que Ikaris instigou o cavalo, empunhou a lança e avançou em uma
velocidade feroz e selvagem sobre seu adversário.
Suas mãos se apertaram uma a outra.
Pelos deuses protetores de Arustar, ela queria que ele
ganhasse.
Sem qualquer racionalidade, sem qualquer imparcialidade.
Todas as forças de sua alma se agarravam ao desejo de que
lorde Ikaris Ashera fosse o vencedor da primeira prova.
Como raios que caíam contra as montanhas, os dois cavaleiros
colidiram um com o outro.
Foi rápido demais.
Algo estalou.
Maressa sequer piscou.
A lança de madeira de Sir Edimburgo foi quebrada no momento
do choque com Ikaris.
Sir Edimburgo se desequilibrou e caiu do cavalo.
Exclamações surpresas ecoaram por toda a plateia, seguidas
por aplausos e gritos vibrantes para celebrar a vitória do lorde.
Ninguém nunca havia visto um combate iniciar e terminar tão rápido.
Maressa só soltou o ar quando Ikaris ergueu a viseira do elmo
e desceu do cavalo. Diferente do que ela imaginava, ele não fez
nenhum gesto para comemorar a própria vitória; apenas entregou o
escudo para um dos membros da equipe de apoio e seguiu para a
tenda dos competidores.
O coração dela batia alto nos ouvidos, o vento fustigava os
cabelos que haviam se libertado do coque.
E, enquanto os aplausos ficavam cada vez mais eufóricos e
animados, ela recuou e passou por entre os bancos da
arquibancada, descendo pelas escadas até se ver diante da tenda.
Puxou o ar, ignorou qualquer senso de prudência e entrou.
Ikaris estava sentado sobre um caixote, encarando a própria
mão, alheio a qualquer cumprimento ou celebração.
Maressa avançou, sentindo os olhares dos demais
competidores para suas roupas e modos de criada, que a fitavam
sem pudor algum, como se ela não passasse de um mero pedaço de
carne.
— Lorde Ashera! — Maressa o chamou antes que tivesse
chance de pensar melhor ou recuar de volta para a arquibancada.
Ikaris virou o rosto, as pupilas aumentando ao vê-la.
Em um rompante, ele se colocou em pé e avançou até ela,
ainda vestido na armadura; havia um olhar ferino em seu rosto,
lançado para os homens que a encaravam.
— Você não deveria estar aqui.
— Vim apenas parabenizá-lo pela primeira vitória. Sir
Edimburgo mal teve chance contra o senhor. E... — Maressa ergueu
a mão, tocando-o no braço. — Quero desejar boa sorte nos próximos
combates.
Os olhos de Ikaris desceram para os dedos dela por alguns
instantes, antes de se voltarem para seu rosto, o cinza das íris
oscilando como a prata líquida das estrelas.
— Obrigado — foi uma resposta baixa, rouca; um tom que a
arrepiou de um jeito que nada tinha a ver com frio ou temor.
Com os lábios entreabertos, os olhos nos olhos dele, Maressa
levou a mão às fitas que ainda estavam enroscadas em seus cabelos
soltos. Pegou uma delas e a amarrou no pulso direito de Ikaris.
— Estarei torcendo por você, lorde Ashera.
Algo atravessou as íris dele outra vez.
Maressa não quis pensar ou entender.
Com uma reverência, ela se despediu e se virou, indo para fora
da tenda antes que respirar se tornasse a coisa mais difícil do
mundo.
Quando estava prestes a pisar fora da tenda, teve a impressão
de que o chão estremeceu aos seus pés.
Trovões ribombaram no céu acima da arena.
Foi um som tão intenso que Maressa se pegou olhando para
trás, notando que Ikaris, assim como os demais competidores que
estavam na tenda, tinham se levantado para ver o que estava
acontecendo.
Ela arfou, confusa, e então voltou a olhar para cima; não havia
sinais de tempestade ou de nuvens densas a caminho.

◆◆◆

O sol forte e quente caía sobre o terreno cercado e delimitado.


Era uma das grandes áreas fechadas para estudo e escavação das
terras de Arustar; uma pesquisa financiada pela rainha Sylvia e pelo
Conselho, que queria preservar, mapear e catalogar toda a extensão
e relevo do reino.
— Encontramos algo! — um dos escavadores bradou,
enxugando o suor do rosto.
O líder do grupo foi até o espaço demarcado, observando o que
seu subordinado tinha encontrado.
Era uma pedra angular, que parecia ter sido quebrada e
separada de sua forma original, e possuía uma coloração divergente
das demais rochas encontradas naquele terreno.
— Esta pedra parece ser mais resistente do que as demais — o
escavador explicou. — Até mesmo o aspecto dela é diferente.
— Faça o teste da solidez, e daí decidimos se a enviamos ou
não para o castelo, para ser estudada e analisada pelos mestres e,
posteriormente, ser datada e registrada para fins de estudo do relevo
e terreno do reino. Pedirei para um dos desenhistas fazer um esboço
da pedra e enviá-la à rainha e ao Conselho.
O escavador assentiu e soergueu a picareta no ar.
O metal pontiagudo cintilou ao ser tocado por um raio de sol.
O choque foi forte, intenso, estremecedor; a pedra não se
quebrou, a picareta se partiu ao meio.
No céu limpo e sem nuvens, trovões ribombaram.
12
Fitas entrelaçadas

— ALTEZA? ALTEZA, está me ouvindo? Maressa!


Parada em frente à janela, Maressa piscou, olhando para o
lado. Nina a encarava com um sorriso curioso nos lábios, os cabelos
ainda arrumados no penteado requintado.
— Sinto muito, Nina... Acho que devaneei.
Elas estavam nos aposentos da princesa, compartilhando
confidências e observações sobre o primeiro dia do torneio. O céu
continuava limpo e sem nuvens, mesmo depois do estranho trovão
que ressonara durante o torneio das Justas.
— Deixe-me ajudá-la a se trocar.
Maressa a fitou de soslaio. Nina caminhou até ela, os babados
da saia se abrindo a cada passo dado.
— Sou eu quem deveria te ajudar com o vestido.
— Não é meu trabalho criticar, mas, nossa, como você
consegue andar com essas roupas? — Nina riu. — Não consigo
respirar.
— Bem-vinda ao meu mundo, Nina. Bom, de qualquer forma,
você ficou linda nesse vestido. — Maressa abriu um sorriso travesso.
— Vários cavalheiros não tiraram os olhos de você durante todo o
torneio.
— São seus pretendentes, Alteza. — Nina parou diante dela,
fazendo menção de abrir os botões que subiam pelas costas de
Maressa.
— Já disse para me chamar pelo meu primeiro nome. —
Maressa se virou. — Estou bem. Ficarei com esse vestido mais um
pouco. E, sobre os cavalheiros: eles podem ser meus pretendentes,
mas muitos olhares foram dirigidos para você, Nina. Porque você é
linda.
Um leve rubor tomou as bochechas da criada. Nina arriou o
olhar, rumando para perto da janela.
Maressa contraiu os lábios.
— O que foi, Nina?
— Não importa que roupas eu vista ou como arrumem meu
cabelo... — Ela encolheu os ombros, suspirando fundo. — Ainda sou
uma criada. E estes homens da nobreza não foram educados para
desposar uma mulher como eu.
— Não diga isso! Nunca mais diga isso! — Maressa apoiou as
mãos na cintura. — Qualquer homem, nobre ou não, seria sortudo
demais em ter você como esposa!
— Mais isso não é sobre mim, Maressa, é sobre você. — Um
sorriso gentil, grato e afetuoso subiu pelos lábios de Nina. Ela puxou
o banquinho da penteadeira e se sentou. — Com licença, mas tenho
que me sentar, ou cairei com o peso desse vestido.
Maressa riu.
— Fique à vontade, Nina.
— Conte-me: algum pretendente já capturou sua atenção?
O coração traidor dela disparou na mesma hora, empurrando
sua mente na direção de um par de enigmáticos olhos cinzentos.
— Ainda é cedo demais para tecer qualquer julgamento.
Nina estreitou os olhos, sondando-a de uma forma que
Maressa se sentiu tão transparente quanto o vidro da janela.
— Como eu te conheço desde que éramos menininhas, vou
entender essa resposta como um “sim”.
— Ora, Nina! — Maressa ralhou, batendo as mãos na saia do
vestido. — Eu afirmei alguma coisa, por acaso?
— Hum... — Os lábios rosados de Nina tomaram a forma de
um bico. — Se eu tivesse que apostar minha vida, diria que o
cavalheiro em questão é aquele que derrubou Sir Edimburgo na
primeira rodada da Justa.
Maressa sentiu o rosto arder descontroladamente.
— Guarde suas opiniões para si mesma, Nina.
— Como desejar, Vossa Alteza. — Nina ergueu as mãos
cobertas por luvas de seda. Não passou despercebido, aos olhos de
Maressa, o sorriso divertido que sua criada tentava segurar. —
Pretende espionar os competidores no salão de jogos essa noite?
— Creio que não. — Ela empurrou uma mecha do cabelo para
trás da orelha, o coração ainda martelando forte no peito, preso à
imagem de um certo lorde. — Prometi para minha mãe que jantaria
com ela em seus aposentos e...
Um alvoroço no corredor cortou a fala de Maressa. Ela olhou
para Nina, que deu de ombros, sem entender o que estava
acontecendo do lado de fora do quarto.
Girando nos calcanhares, Maressa andou até a porta e a abriu.
Nina deu um passo à frente.
— Cuidado, Alteza.
A cena que testemunhou era a última coisa que ela esperava
ver.
Três guardas corriam atrás de um dos competidores do torneio,
que avançava pelo corredor com um ramalhete de flores nas mãos.
Maressa estreitou os olhos, levando apenas alguns instantes
para reconhecer o duque Willelm. Antes que ele pudesse alcançar o
quarto, foi imobilizado pelos guardas.
— O que está acontecendo aqui?! — Maressa bradou.
— Princesa! — Segurado pelos guardas, Willelm estendeu um
buquê para Nina, parada atrás de Maressa. — Aceite essas flores
como demonstração da honra que sinto por estar disputando pela
sua mão!
— Flores que foram colhidas aqui no jardim do castelo —
Maressa assoviou baixinho.
Atônita, Nina tomou o buquê em mãos.
— A-Agradeço, duque Willem, mas o senhor não pode
permanecer aqui ou conversar comigo. É contra as regras do torneio.
— Mas olhá-la de perto valeu cada risco.
Maressa se controlou e mordeu os lábios. Discretamente,
sinalizou para que os guardas escoltassem o duque Willelm para fora
do corredor.
Assim que ficaram sozinhas outra vez, Maressa voltou com
Nina para dentro do quarto, fechando a porta atrás de si.
— Fico surpresa com o tipo de cada pretendente que apareceu
nesse torneio e... O que foi, Nina? Você está bem?
Quando Nina ergueu o rosto, seus olhos cintilavam.
— Nunca ganhei flores antes.
— Eu te disse que você tinha cativado os rapazes.
— Bom, mas, de qualquer forma, essas flores são para a
princesa e...
— Não. — Maressa a cortou. — Ele as trouxe para você.
Vamos arranjar um vaso para elas agora mesmo.

◆◆◆

Ao anoitecer, Maressa seguiu para os aposentos de sua mãe. A


rainha Sylvia, envolvida por sua beleza resplandecente que sempre
fazia a princesa prender o ar e desejar ser como ela, a aguardava
pontualmente na mesa preparada para ambas.
— Acho que não estou acostumada a vê-la com roupas tão
simples.
— Sinto muito, mamãe. — Maressa baixou o olhar para o
modesto vestido cinza-lilás que caía por seu corpo. — Não quis
vestir nada mais exuberante, temendo estragar meu plano.
— Deixe-me, ao menos, ajeitar seus cabelos antes de
jantarmos.
Atendendo ao pedido de sua mãe, Maressa se sentou na
beirada da cama. A rainha apanhou a escova e começou a deslizá-la
por entre os fios do cabelo da filha.
— E o que está achando do torneio?
— Está... — Maressa mordeu o lábio inferior. — Interessante.
— Interessante? — A língua da rainha estalou. — Será que
minha filhinha está apreciando as tradições arcaicas de Arustar?
— Estou gostando de me passar por criada e circular por entre
os pretendentes, sem que eles saibam quem verdadeiramente sou. É
incrível como eles mostram as verdadeiras faces quando acham que
não estão diante de alguém da nobreza.
A escova descia e subia pelos cabelos de Maressa.
— E espero que, apesar da travessura e do seu passatempo
como criada, você esteja mantendo algumas tradições intactas.
Maressa controlou a vontade de revirar os olhos; imaginava
que sua mãe estava se referindo ao beijo — o primeiro beijo de uma
princesa de Arustar era dado no pretendente escolhido, na noite do
seu aniversário, como um gesto para selar a promessa de
casamento.
— Fique tranquila, mãe. Estes lábios continuam intocados.
— Que bom.
— Isso vai ser tudo? — Maressa suspirou. — O grande
propósito da minha vida? Encontrar um marido, firmar uma aliança e
cuidar do reino?
— Que honra maior você poderia desejar?
— Algo...
A fala de Maressa foi interrompida por uma batida na porta. Ela
observou a mãe deixar a escova em cima da cama e caminhar com
elegância até a entrada do quarto.
— Majestade. — Dois guardas a saudaram.
— Algum problema?
— Procuramos pelo duque de Storn em todo o terreno do
castelo, desde sua ausência na Justa. Não há sinais dele em lugar
algum.
— Mas os pertences do duque permanecem em seus
aposentos?
— Sim, Majestade. Assim como seus cavalos e sua carruagem.
— E não há registros de que ele tenha deixado o castelo e
retornado para suas terras em companhia de alguma comitiva?
— Não encontramos nada, Majestade.
Maressa se levantou, caminhando pelo quarto da mãe, os
ouvidos atentos às informações passada pelos guardas.
Havia escutado comentários o dia todo sobre a estranha
ausência do duque de Storn. Será que ele tinha partido? Mas, se
houvesse deixado o castelo, como faria isso sem ser visto pelos
guardas? E por que iria embora logo no primeiro dia do torneio,
deixando seus pertences para trás, após ter feito uma longa viagem
para Arustar?
— Compreendo. Mais alguma coisa?
— Os escavadores enviaram este relatório e este esboço,
Majestade.
Maressa se aproximou mais da entrada do quarto, mantendo-
se longe dos olhos da mãe e dos guardas.
— Onde encontraram essa pedra?
— Em um dos terrenos de estudo.
— Peça para que a tragam para o castelo imediatamente.
Os guardas assentiram e deixaram o aposento. Maressa não
teve tempo de voltar para seu lugar antes de ser pega em flagrante
pela mãe.
— Bisbilhotando, filhinha?
— Apenas atiçando minha curiosidade — ela confessou com
um sorriso culpado. — Sobre que pedra os guardas estavam
falando?
A rainha Sylvia estendeu o esboço para ela. Maressa arqueou
as sobrancelhas, observando o desenho de uma pedra angular.
— Eu deveria ficar impressionada com ela?
— Estamos organizando um mapeamento e estudo do relevo
do reino, para datar algumas coisas. As pedras contêm mais
histórias do que você pode imaginar. Vamos jantar?
Maressa assentiu, seguindo a mãe até a mesa.
Pensou outra vez em honra, dever e propósito. E pensou que
queria muito mais do que aquilo. Do que um casamento. Do que ser
o prêmio de um torneio. Queria algo tão vasto como o céu, tão
tempestuoso quantos os olhos de...
Ikaris.
— Maressa, venha. Onde está sua cabeça, filha?
E, enquanto sua mãe enchia as taças com o melhor vinho do
reino, ela tocou o próprio pulso e virou o rosto para a janela, lutando
para sufocar aquela vontade estranha, inquietante e avassaladora;
uma vontade que quase a fez sentir que a fita que havia amarrado no
pulso de Ikaris também havia se atado e se entrelaçado ao seu
próprio pulso em um nó inquebrável e invisível.
13
Versões perdidas

UMA DAMA recatada não deveria circular pelo salão de jogos.


Mas Maressa não queria perder a oportunidade de ver seus
pretendentes em um momento de lazer. Alguns criados costumavam
dizer que homens mostravam sua verdadeira natureza quando
estavam com cartas na mão.
Carregando uma bandeja com bebidas, ela olhou em volta,
procurando por Ikaris. Ele não estava em nenhuma mesa.
Provavelmente, deveria ser do tipo que preferia livros em vez de
jogos de azar.
E aquilo a agradava demais.
— Garotinha. — Alguém estalou o dedo. — Sirva vinho para
mim e para meus companheiros.
Maressa virou o rosto na direção da voz masculina.
O visconde Arthur, o mesmo homem que havia feito
provocações pejorativas no primeiro dia que chegara ao castelo,
chamava por ela.
Munindo-se de uma elegante compostura, Maressa encheu as
taças e andou até a mesa dele. Ao se aproximar, uma onda de
tontura a assolou, rápida e fugaz, mas que foi suficiente para fazer
com que a bandeja em suas mãos se desequilibrasse. Duas taças
viraram, derramando o líquido vermelho nas roupas do visconde.
— Olha o que você fez, sua desastrada! — ele esbravejou.
Maressa arregalou os olhos, ainda se recuperando da tontura.
— Mil perdões, senhor Arthur. Eu...
A mão dele agarrou seu pulso subitamente.
— Sou um visconde, mocinha. Alguém do seu nível deve se
dirigir a mim da forma correta. Olhe a bagunça que você fez! Como
você vai me compensar por isso? — Um brilho ardil encheu os olhos
dele. — Tenho algumas ideias.
Uma raiva, misturada com nojo, subiu por Maressa; não era a
primeira vez que ela via o visconde tratar uma criada daquela forma.
E, mesmo que estivesse disfarçada, não permitiria aquele
comportamento dentro do seu castelo.
— Solte-me, seu bastardo! Você não tem direito algum aqui.
— O que disse?! — Ele apertou seu pulso e soltou um riso
perigoso. — Modere a língua, criada, ou eu cuidarei dela para você
de um jeito que jamais se esquecerá e...
— Arthur, cuidado!
Levou uns instantes para Maressa processar o que aconteceu
depois que um dos companheiros de jogo do visconde gritou. Ikaris
partiu para cima de Arthur, jogando-o contra a mesa e o segurando
pelo pescoço.
— Se tocar nela de novo, arrancarei suas mãos — ele
vociferou, fazendo todo o salão se calar.
Arthur engasgou, xingando-o.
— O que disse? — Ikaris replicou, apertando o pescoço dele
com mais força. — Não consigo entender.
— Lorde Ashera, por favor... — Maressa levou as mãos à boca,
o coração batendo forte no peito. — Ikaris!
Ele a fitou por cima do ombro, a mão lentamente se soltando do
pescoço do visconde.
Arthur arfou e fez menção de se levantar para contra-atacar,
mas Willelm se colocou diante dele.
Os olhos do visconde ferviam.
— Saia da minha frente, Willelm.
— Não.
— Isso não é problema seu.
— Ela é a criada pessoal da minha futura esposa. — Willelm
cruzou os braços e encarou Arthur, sem se importar que o visconde
era dois palmos mais alto do que ele. — Nunca mais encoste nela,
ou meu amigo e eu lhe daremos uma bela lição.
Arthur rosnou baixo.
Ikaris ameaçou dar um passo cima dele; Maressa segurou seu
braço com mais força ainda.
— Cuide da senhorita — Willelm interviu. — Eu conversarei
com os cavalheiros e acertarei toda a situação.
Ela abriu a boca, mas Ikaris a levou para longe da mesma de
jogos, mantendo-se à sua frente como se fosse uma barreira que
impediria que Arthur e os outros homens a perturbassem. Seu peito
subia e descia de uma forma ameaçadora.
Maressa ergueu o rosto, estudando o semblante dele, os olhos
que tinham se transformado em lâminas ferozes.
Nunca tinha visto algo tão perigoso e ferino quanto aquele
olhar.
E decidiu que tirá-lo dali era a coisa mais sensata a se fazer.
— Gostaria de caminhar comigo no jardim, lorde Ashera? Sinto
que preciso de ar fresco.
Com um único gesto, ainda com os dentes cerrados e olhar
lancinante para Arthur, Ikaris assentiu e a conduziu pelo arco do
salão de jogos. Juntos, atravessaram o corredor e desceram pelas
escadas de mármore, até alcançar a imensidão verdejante do jardim.
Maressa inspirou fundo, deixando que o ar perfumado fosse um
bálsamo para sua fraqueza enquanto andava ao lado de Ikaris,
passando pelas trilhas de cascalhos e sebes altas.
Algumas damas da corte, que tinham vindo com as comitivas
dos outros reinos, ergueram o olhar e piscaram demoradamente para
Ikaris quando eles passaram por elas.
Mas Ikaris sequer as olhou.
E Maressa não soube se o alívio que sentiu por todo o peito era
uma coisa boa ou ruim.
Mesmo com o silêncio, a companhia dele amenizava o
desgosto que ela sentia por sua condição de saúde torná-la incapaz
de servir uma simples bebida. Como poderia sonhar em deixar o
castelo, conhecer os reinos distantes, encontrar um propósito mais
profundo para sua vida, mergulhar nas lutas que os homens
travavam, até mesmo empunhar uma espada ou um arco, se não
podia confiar em seu próprio corpo?
— Está tudo bem? — Ikaris perguntou, a mão pairando no ar,
como se quisesse tocá-la. — Eles te machucaram?
Foi então que ela viu que ele ainda usava a fita dela amarrada
no pulso, coberta pela manga da camisa.
Seu coração quase saiu para fora do peito.
Os dedos de Maressa formigaram, e ela precisou se controlar
para não segurar a mão dele.
— Estou apenas pensativa.
Ikaris estreitou os olhos. Suas íris ainda ardiam, mas a
respiração chiada e feroz parecia ter se atenuado.
— Não deixe que aqueles bastardos a perturbem.
— Não estou incomodada com eles. Da próxima vez,
derrubarei de propósito uma bebida quente em suas camisas.
Um raio de sol passou entre eles e, por um momento, ela
achou que os lábios sempre rígidos dele ensaiaram esboçar a dica
de um sorriso.
Ela prendeu o ar, deixando que suas mãos agitadas se
entrelaçassem uma à outra, antes que fizesse alguma coisa
inapropriada tanto para uma princesa, quanto para uma criada.
Lado a lado, continuaram caminhando pelo jardim.
— O senhor teve a oportunidade de retornar à biblioteca para
pegar algum livro sobre a história de Arustar? — ela indagou, usando
a pergunta para fazer uma investigação parcial sobre os passos do
lorde. Talvez, ele houvesse ido ao bosque tomar um pouco de ar e,
depois, à biblioteca.
— Não, não tive.
— Mais tarde, posso ajudá-lo a encontrar uma leitura que o
agrade. Conheço aquelas estantes como a palma de minha mão. Há
livros incríveis. Só não há nenhuma cópia de Castelos e Sonhos, um
romance de cavalaria que anseio ler há muitos anos. É difícil
encontrar um exemplar. O senhor já ouviu falar deste romance?
— Não.
Maressa meneou a cabeça.
— Está apreciando a estadia no castelo, lorde Ashera?
A resposta que saiu da boca dele foi um murmúrio que ela não
conseguiu definir nem como uma afirmação, tampouco como uma
negação.
— Temos muita história em Arustar, caso queira saber, já que o
senhor me parece um historiador nato. Enaltecemos o passado.
— Pude perceber pelas estátuas erguidas por toda a cidadela
real.
Ela retesou os ombros; o comentário baixo e rígido de Ikaris
pareceu esfriar o sol que aquecia as costas de Maressa.
— Está se referindo às estátuas sobre a guerra Erelin?
Ele anuiu.
Maressa se remexeu ao seu lado, desconfortável. Havia algo
naquelas estátuas que não a agradava, mesmo sabendo que a
vitória da guerra tinha significado segurança para seu povo há mais
de duas décadas.
Ela abriu a boca para transformar os pensamentos em
palavras; de repente Ikaris se virou, dando um passo firme em sua
direção. Maressa se assustou e deu um passo para trás, as costas
colidindo com um arbusto.
— A realeza de Arustar não se pergunta qual é a impressão
que pessoas que são de fora criam assim que colocam os olhos
naquelas estátuas?
— Minha m... Minha rainha diz que é um símbolo de vitória que
deve ser sempre enaltecido e jamais esquecido.
O rosto de Ikaris se transmutou em algo tão profundo quando
um corte afiado ou uma punhalada traiçoeira.
— Você a apoia?
— Não gosto das cenas que as estátuas representam, mas...
— As pálpebras dela estremeceram. Quase achou que um som
grave de agonia deixaria a boca dele. — Os erelins começaram a
guerra quando ameaçaram a liberdade e o equilíbrio dos acordos
com os humanos.
— Um povo inteiro pagou o preço por algo que ninguém tem
certeza de como começou. A Cidadela Erelin caiu na última batalha,
assim como a fonte da ligação sagrada dessa raça com a estrelas.
— O maxilar dele estava tenso, como se Ikaris estivesse segurando
palavras muito mais densas. — Hoje, eles são apenas uma sombra
do que um dia foram.
— É lamentável. — Maressa suspirou. — Mas, desde o fim da
guerra, com a formação do exército das Cinco Alianças, tanto o reino
de Arustar quanto seus aliados estão seguros.
As narinas de Ikaris ficaram dilatadas enquanto ele inspirava
fundo, e seu peito subia e descia enquanto inspirava e exalava o ar
— São o que as histórias contam.
— São o que as histórias contam — ela repetiu, tomada por um
nervosismo estranho e palpitante.
Ikaris pousou os olhos nelas, dois círculos pratas silenciosos,
que pareciam lutar para segurar o mundo ali, mas que, ainda assim,
o traíam. Embora ele se mantivesse impassível, Maressa conseguia
sentir que uma estranha tempestade se agitava dentro dele.
Algo ainda mais antigo e brutal do que a reação que ele tivera
com o visconde Arthur.
Você está me assustando, ela queria dizer.
Mas não o disse.
Porque tinha certeza que ele sabia aquilo.
Maressa ergueu o rosto e o fitou.
— Diga o que está pensando, lorde Ashera.
Ele deu um passo para trás.
— Tome cuidado com o visconde. Ele não se esquecerá do que
aconteceu no salão de jogos.
Maressa arqueou as sobrancelhas e esperou. Achou que Ikaris
fosse falar mais, argumentar mais. Ela queria que ele dissesse ou
fizesse mais alguma coisa. No entanto, Ikaris permaneceu parado.
— Isso é tudo, lorde Ashera?
— Isso é tudo — ele respondeu de uma forma fria e se virou,
afastando-se dela enquanto deixava o jardim e uma infinidade de
perguntas rondando a cabeça de Maressa.

◆◆◆

Ikaris deixou o castelo e só retornou nas horas mais escuras e


silenciosas da madrugada sorumbática.
Sentia-se enjoado, fatigado, culpado.
Embora defendesse seu povo com tudo o que havia dentro de
si, uma parte dele não queria ter sido tão raivosa com Maressa,
principalmente depois do que ela havia passado com o visconde.
Só que a raiva antiga e visceral o dominara.
Junto de algo a mais.
Seus olhos desceram para a fita amarrada em seu pulso.
Ele não queria aceitar que as palavras de Maressa o tinham
atingido bem no centro do peito.
Mas o que poderia fazer?
Ela não passava de uma criada do castelo, não tinha sangue
nobre, mas, ainda assim, era uma filha de Arustar.
E, como todos os filhos de Arustar, Maressa também celebrava
o fim da guerra e a derrota dos erelins, sem saber que a paz que
cobria o reino dela era equivalente ao tormento que assolava o povo
dele.
“Os erelins começaram a guerra quando ameaçaram a
liberdade e o equilíbrio dos acordos com os humanos”.
Havia inúmeras versões da origem da guerra.
Aquela era a mais popular — a contada pelos vitoriosos.
Porque aquela era a mais fácil. Porque alguém tinha que pagar.
Seu povo possuía quatro versões diferentes. E outros reinos
distantes possuíam mais três.
A verdade, talvez, tivesse se perdido nos anos.
Mas a verdade que ele havia vivido era certa e pulsante.
Ikaris era apenas uma criança quando a Cidadela Erelin caiu,
quando seus pais foram mortos diante de seus olhos. Tinha sido
jogado e criado no clima inóspito das montanhas. Vira a si mesmo e
aos semelhantes passarem fome e frio. Vira-os serem torturados por
pura diversão pelos soldados da Cinco Alianças. Vira-os terem
qualquer chance de justiça negada. Vira as asas dos antigos
sumindo e as dos novos jamais se desenvolvendo. Vira o céu se
apagar sob a cortina da neblina.
Enquanto entrava como um trovão em seu aposento, ele
repetiu para si mesmo que não se esqueceria mais daquilo. Que não
deixaria que mais nada, nem mesmo um par de olhos safiras, o
desviassem de seu verdadeiro propósito.
Estava prestes a arrancar a fita amarrada em seu pulso quando
notou que havia algo em cima de sua cama.
Era um livro.
Soltando o ar e deixando a fita no pulso, Ikaris foi até ele para
examiná-lo melhor. Era um volume grande, trabalhado em couro,
sobre a história de Arustar e dos povos vizinhos. Havia um bilhete
junto do livro.
As letras que enchiam o pequeno papel tinham sido traçadas
com carinho e delicadeza.
“Espero que a leitura o agrade”.
Ikaris grunhiu baixo.
E odiou a si mesmo, aos renegados do céu, à guerra e ao reino
de Arustar um pouco mais.
14
Toque da presença

ASSIM QUE o sol despontou no horizonte, Maressa saltou da


cama, se trocou sozinha — aquela era uma liberdade que estava
adorando —, ajeitou os cabelos e seguiu para a arena do castelo.
Estaria mentindo para si mesma se dissesse que não estava
ansiosa para ver Ikaris. A última conversa que haviam tido tinha sido,
no mínimo, estranha. Mas torcia para que qualquer impressão
inquietante houvesse ficado para trás.
Esperou vê-lo antes do início da primeira prova daquele dia,
ansiosa para saber o que ele tinha achado do livro que ela deixara
em seu quarto.
Mas Ikaris não compareceu para as provas da manhã.
E não se apresentou para as competições do início da tarde.
Aproveitando o seu papel de criada, ela conversou com todos
os competidores, tentando descobrir o paradeiro de Ikaris. Ninguém
foi capaz de lhe dar uma informação satisfatória. Nem mesmo
Willelm, que parecia ser o mais próximo do lorde.
— Não o vejo desde o desjejum — o duque falou. — Quando
acordei, lorde Ashera não estava no quarto.
Maressa comprimiu os lábios e agradeceu.
Foi até a biblioteca, ao jardim, ao salão de jogos, até mesmo no
quarto dele... Ele não estava em lugar nenhum.
Será que Ikaris a estava evitando por causa da conversa sobre
a guerra Erelin que haviam tido no dia anterior?
Não fazia sentido.
A conversa girara apenas ao redor de tópicos conhecidos por
todos.
Será que havia desistido do torneio?
Se ele tivesse desistido...
O estômago dela se contraiu.
Não queria pensar naquela hipótese.
No final da tarde, quando o céu azul se encheu de nuvens
cinzentas, e o vento do sul trouxe o prelúdio da chuva, Maressa não
sabia mais onde procurá-lo.
— Talvez lorde Ashera tenha se sentido indisposto — Nina
argumentou, mas nem mesmo o usual tom calmante dela foi
suficiente para aplacar as batidas nervosas do seu coração.
— E se alguma coisa tiver acontecido com ele?
— Tipo o quê?
— O duque de Storn continua desaparecido. — Maressa
andava de um lado para o outro no quarto, os cabelos balançando
com o vento que entrava pela janela. — Ninguém encontrou uma
pista sequer de seu paradeiro. E todos os pertences dele continuam
aqui no castelo.
— Talvez seja apenas uma coincidência...
Talvez.
Os pensamentos de Maressa foram para a noite na biblioteca,
para a pessoa encapuzada. Um arrepio subiu por sua espinha. De
repente, era como se as paredes do quarto estivessem se fechando
ao seu redor.
— Preciso dar uma volta. Preciso de ar.
Nina olhou para a janela.
— A temperatura está caindo, Maressa. Pode chover a
qualquer momento. Isso não é bom para a sua saúde.
— Não me importo.
Nina suspirou; um sinal de que sabia que seus argumentos
seriam em vão. Ela apanhou um dos xales e o ajeitou sobre os
ombros de Maressa.
— Ele vai aparecer.
Maressa não a respondeu. Agradeceu pelo xale e deixou o
quarto, seguindo sem rumo, até notar que estava no jardim, seguindo
pela trilha que a levaria para os estábulos, o parque de caça e o
bosque do castelo.
Ali, o vento era forte e úmido, e ela precisou segurar o xale com
força para que ele não voasse.
Ela atravessou o descampado que ficava entre o bosque e o
estábulo. Seus cabelos se erguiam, balançando em torno do rosto.
Olhou ao redor, notando algo sobre o gramado.
A guarda real havia treinado ali mais cedo, e algum iniciante
havia deixado uma espada de madeira para trás.
Maressa se agachou para pegá-la, deixando que os braços do
vento levassem seu xale para longe.
A arma era leve, inútil para derrubar um verdadeiro oponente,
mas suficiente para os primeiros passos de um treinamento.
Maressa moveu a espada no ar, simulando alguns golpes e
movimentos desajeitados enquanto girava nos calcanhares. Seus
passos se desequilibraram com o giro, uma pontada fraca de tontura
passou sobre ela, obrigando-a a parar de se mover e puxar o ar com
força.
Além de ter cada passo vigiado, nunca tivera permissão de
aprender a manusear uma arma, devido a maldita condição do seu
corpo.
Mesmo com a ilusão de estar ditando o próprio destino com a
farsa no torneio, tinha a impressão de que o controle escorria por
suas mãos, feito a areia fina de uma ampulheta.
Não conseguia se impor aos participantes, não conseguia nem
ao menos mantê-los no castelo. Primeiro, o duque de Storn. Agora,
Ikaris.
Maressa puxou o ar mais uma vez.
Será que nunca deixaria de ser uma coisinha frágil e inútil?
Não permitiu que as lágrimas angustiadas surdissem.
“E espero que, apesar da travessura e do seu passatempo
como criada, você esteja mantendo algumas tradições intactas”.
Maressa grunhiu ao se lembrar da conversa que tivera com a
mãe.
“Fique tranquila, mãe. Estes lábios continuam intocados”.
Até seu primeiro beijo, que só poderia ser dado na noite do seu
aniversário de vinte e um anos, era controlado pela rainha e pelo
conselho.
Um raio brilhante cortou o céu, seguido por um trovão alto.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair sobre ela.
Os pássaros abrigados nas árvores levantaram voo.
Maressa comprimiu o cabo de madeira, inclinando a cabeça
para trás, observando as aves desaparecerem livremente na
imensidão cinzenta.
Ah, se ao menos pudesse ter asas como elas, se pudesse subir
e tocar as estrelas...
Ela baixou o rosto, captando um movimento distante por entre
as árvores do bosque.
Viu um par de olhos pretos e dourados, uma pelagem que
parecia ter sido beijada pela lua.
— Raio de Luar?
A raposa a fitou, como se olhasse dentro de seus olhos, como
se lesse cada pedacinho dos sentimentos que se agarravam em seu
cerne, como se quisesse dizer algo que ela não conseguia entender;
e então se recolheu, desaparecendo no meio das árvores.
Foi um lampejo, tão fugaz quanto um relâmpago.
Maressa entreabriu os lábios, confusa, curiosa. Raio de Luar
nunca a atacara, mas... Como aquele raposo gigante conseguia
atravessar a floresta e entrar no bosque privado do castelo? Por
onde ele...
De súbito, seu corpo estremeceu, captando uma energia forte,
o toque de uma presença que se espalhava por toda sua pele
trêmula.
Maressa se virou lentamente.
Ikaris estava parado sob o vento e a chuva, os olhos pratas
voltados para ela, o manto esvoaçando em suas costas.
Seu coração bateu tão alto que o som poderia ter sido
confundido com os trovões ribombantes.
— Lorde Ashera...
Ela soltou a espada de madeira, prendendo o ar quando Ikaris
avançou na chuva e começou a andar em sua direção.
15
Castelos e sonhos

OS PASSOS de Ikaris cobriram o descampando, indo cada vez


mais para perto dela. Quando ele estava há poucos metros, seu
andar reduziu, como se estivesse ponderando, hesitando.
Ela chiou baixo.
De punhos fechados, com a chuva escorrendo por seus
cabelos, Maressa pisou duro no chão e terminou de cobrir o resto do
espaço, encarando-o de uma forma que uma dama não deveria
encarar um cavalheiro da nobreza.
Mas não se importava.
— Você... Você...!
Porque ela estava...
Furiosa.
E aliviada.
— Achei que algo tivesse acontecido com você.
Furiosa e aliviada por vê-lo ali.
— Sinto muito — Ikaris sussurrou, baixo, rouco.
Ele estava com a cabeça abaixada, os cabelos pretos caindo
para frente. O colarinho e a frente da camisa estavam ensopados,
grudando o tecido ao seu corpo, marcando a proeminência de
músculos fortes e o contorno expressivo da clavícula.
A boca dela secou, e ela quase engoliu em seco.
Uma dama não deveria se permitir olhar para um cavalheiro
daquela forma, mas era inevitável.
— Você não apareceu para nenhuma prova. Pensei... Pensei
que tivesse desistido do torneio, que tivesse partido... — ela se ouviu
dizendo, as gotas da chuva deslizando por seu rosto. — Onde esteve
o dia todo?
Ikaris ergueu o rosto. Maressa não conseguiu ler o que havia
nos olhos dele; a única coisa que sentia era de que estava olhando
para um céu fechado que lutava para se abrir.
A mão dele foi para baixo do manto. Ikaris retirou um pequeno
pacote retangular, embrulhado em papel pardo, e o entregou para
ela.
Ela piscou, surpresa, mas aceitou o presente. Maressa o
desembrulhou delicadamente, tomando cuidado com a chuva, seu
peito subindo e descendo rápido embaixo do vestido.
Ah! Minha nossa!
Quase não acreditou no que estava em suas mãos.
— O livro de romance que tento encontrar há anos... O livro
que mencionei para você ontem... — Maressa arfou, segurando o
exemplar de Castelos e Sonhos como se estivesse segurando o
tesouro mais valioso de todo o reino. Ela ergueu o rosto, buscando
de forma atônita pelos olhos de Ikaris. — Você ficou o dia todo fora
procurando por este exemplar para mim? Foi por isso que se
ausentou das provas?
Ele assentiu com um único gesto de cabeça.
O coração dela bateu ainda mais rápido junto de um trovão.
— Por quê?
— Porque... — Mas as palavras morreram na boca dele.
Maressa esticou uma das mãos, querendo tocar no rosto dele.
Ikaris a segurou suavemente pelo pulso. O contato entre suas peles
quentes, molhadas pela água fria da chuva, espalhou um choque
pelo seu corpo.
À luz de um raio, seus olhares se buscaram mais uma vez.
Ela prendeu o ar.
E teve certeza de que podia ouvir o retumbar feroz do coração
dela quando Ikaris se inclinou em sua direção e o encostou os lábios
nos seus.
Foi suave, gentil; mas, ao suspirar e fechar os olhos, Maressa
sentiu que as estrelas tinham finalmente descido do céu.
Que cada pontinho brilhante tinha encontrado seu alinhamento.
Uma mistura de calor, arrepio e leveza se espalharam por ela,
transformando a chuva em vapor, o chão em líquido, o corpo
adormecido em brasa viva.
Não havia regras, não havia tradições, não havia nada.
Apenas aquele momento.
Mesmo temendo fazer algo errado, Maressa deixou que seus
lábios se movessem sobre os dele, quase como se os acariciasse;
Ikaris deixou escapar um gemido rouco da garganta, um som que fez
o coração dela bater mais rápido e cada centímetro da sua pele se
arrepiar.
E foi como se o mundo queimasse.
Ela suspirou com mais vontade quando os braços dele a
envolveram, a saia do vestido se arrastando no chão quando ele a
puxou contra seu peito, fazendo com que suas bocas se
pressionassem em um toque ardente e desesperado.
Maressa arfou baixinho, uma mão se apoiando no ombro dele,
a outra segurando o livro, toda a razão se dissipando ao sentir os
dedos de Ikaris se afundando em seus cabelos, deslizando feito um
rastro de fogo pela nuca, o braço forte enlaçando sua cintura. As
costas dela se arquearam, e ela se segurou com mais força a ele,
querendo-o mais perto, querendo muito mais daquele beijo.
Outro trovão explodiu acima deles, inflamando o mundo ao
redor do castelo, agitando os sonhos mais secretos.
Com a respiração acelerada, a pulsação disparada, a pele
incandescente, a mão agarrada ao tecido molhado que cobria o
ombro dele, Maressa afastou o rosto, puxando o ar; se Ikaris não a
estivesse segurando pela cintura, sentia que podia cair por causa do
beijo impetuoso.
Ela ergueu os olhos, o coração batendo na garganta.
A respiração quente de Ikaris acariciava sua bochecha.
E os olhos dele...
Ela estremeceu.
Era como se cada pontinho prateado houvesse derretido,
queimando, e ansiasse por mais.
Muito mais.
Ela deveria afastá-lo. Ela deveria se afastar.
Mas...
Em um gesto mais forte do que o dever ou as regras, Maressa
inclinou a cabeça levemente para trás, entreabrindo os lábios,
semicerrando os olhos; o rosto de Ikaris veio sobre o dela, a boca
roçando na sua.
E, ao longe, todos os sinos do castelo começaram a tocar
juntos; um sinal de que algo havia acontecido.
16
Marcas na parede

O BADALAR alto e ecoante dos sinos quebrou a névoa


adocicada que envolvia Maressa.
Tudo nela estava paralisado e afetado pelo beijo.
Um beijo que não deveria ter acontecido.
Um beijo que ficaria marcado como fogo em brasa na sua pele.
Ela ainda sentia o gosto dos lábios de Ikaris nos seus, a
pressão dos braços dele ao seu redor, o arrepio da pele quente e
molhada pela chuva. Queria fechar os olhos, queria voltar para
aquele sonho, queria beijá-lo outra vez e se sentir viva e desperta,
mas os sinos não pararam.
A contragosto, sem se soltar do abraço dele, Maressa lançou
um olhar na direção do castelo.
— O que está acontecendo? — Ikaris perguntou em um
sussurro, o hálito roçando no rosto dela. A boca dele, que antes
pairava sobre a sua, não pareceu incomodada pela interrupção.
— Eu acho que...
Ela estremeceu ao sentir os lábios quentes e provocantes em
seu pescoço, traçando um caminho lento que a fez experimentar
coisas que nunca tinha sentido em toda a sua vida.
O calor daquele toque a invadiu, a magnetizou.
Tinha certeza de que cada gota de chuva iria se evaporar.
Ela apertou os olhos, incapaz de falar, de respirar.
Maressa apoiou as mãos no peito de Ikaris, sentindo seu
coração batendo furiosamente contra suas palmas, lutando para se
lembrar da forma correta de unir as palavras e formar qualquer frase
decente.
— Maressa... — A forma como seu nome saía da boca dele a
fazia sentir que o chão se dissolveria sob seus pés a qualquer
momento.
Ikaris a puxou para mais perto, a boca deslizando por seu
pescoço, subindo por seu queixo, voltando a pousar em seus lábios;
o calor que ele emanava era um manto atordoante e invisível sob os
sentidos dela.
Mas os sinos incansáveis atravessavam aquele manto.
Maressa voltou a erguer a cabeça, mordendo o lábio inferior, o
rosto queimando sob a pressão rígida do corpo dele contra o seu.
— Se todos os sinos estão tocando ao mesmo tempo... — Ela
engoliu em seco, lutando para recobrar um pouco do controle sobre
si mesmo. Era como se cada toque e cada beijo dele houvesse
roubado um pedaço seu. Um roubo que ela queria
desesperadamente que continuasse acontecendo. — Algo incomum
aconteceu no castelo. Ao certo, toda a guarda está se reunindo no
local do ocorrido.
Ikaris franziu o cenho, como se apenas agora estivesse saindo
do torpor trazido pelo beijo.
— Isso sempre acontece?
— Desde o final da guerra, os sinos nunca mais tocaram juntos.
— A voz de Maressa abaixou, abafada pela chuva. — É a primeira
vez que isso acontece... Em mais de vinte anos.
As mãos de Ikaris, grandes e quentes, apertaram a cintura
dela.
Qualquer centelha que ainda restava do beijo se foi por
completo.
Os olhos, que antes estavam escurecidos e ardentes,
pareceram se transformar sob um escudo prateado; o tom de um
perigoso caçador que se preparava para adentrar em um bosque
fechado.
— Vou até lá averiguar. É melhor você voltar para a ala dos
criados e procurar por um lugar seguro.
— Não. — Maressa ergueu o queixo, fitando os olhos dele. —
Quero ver o que está acontecendo.
— Maressa...
Os sinos continuaram batendo, mais e mais alto.
O olhar firme de Maressa não cedeu.
Ikaris grunhiu baixo, alguma reclamação em um idioma que ela
não entendia, e deu um passo para trás. Maressa apertou o livro
Castelos e Sonhos contra o peito ao vê-lo sacar uma adaga do cinto.
— Fique atrás de mim o tempo todo, está bem?
Se ela não estivesse tão nervosa por causa dos sinos e tão
atônita por causa do beijo que ainda queimava por seus lábios, teria
sorrido. Era a primeira vez que não era simplesmente deixada de
lado por conta de sua condição ou por ser mulher.
Maressa assentiu, prometendo que o seguiria e tomaria
cuidado.
Juntos, eles voltaram para dentro do castelo. O badalar
contínuo dos sinos ecoava pelas paredes, pelas câmaras, pelos
salões.
Água pingava das roupas e dos cabelos de Maressa. Teria
sentido frio ou se preocupado com a bronca que poderia levar de
Nina e da mãe se a curiosidade — e um certo resquício de temor —
não estivessem imperando com mais força sobre ela.
— Por ali.
O castelo era grande, mas não foi difícil achar o local para onde
todos os guardas — criados, convidados e membros da corte
curiosos — estavam indo.
Enquanto seguiam pelo corredor, o coração de Maressa batia
alto.
O que será que aconteceu?
No corredor seguinte, eles encontraram um grupo de guardas
armados andando de um lado para o outro, gritando ordens,
averiguando cada janela e cada passagem.
— Encontrem o responsável por isso!
— Deve estar em algum lugar do castelo!
— É impossível que algo assim tenha acontecido em nosso
turno!
Com cuidado, mantendo-se perto de Ikaris, Maressa se
aproximou do centro do conflito.
Vários olhares se voltaram para a parede.
O quê?
Os olhos dela se estreitaram.
Uma das paredes do corredor estava coberta com marcas que
ela não conseguia reconhecer. Não eram letras nem símbolos
familiares. Pareciam runas, mas Maressa não conseguia ter certeza.
Todo esse alvoroço por causa de marcas na parede?
— O que será que é isso? Será que... — ela murmurou, virando
a cabeça, as palavras esmaecendo em sua boca ao fitá-lo.
O rosto de Ikaris estava branco, como se ele tivesse acabado
de ver uma assombração.

◆◆◆

Ikaris paralisou ao encarar a parede.


Não. Não é possível.
Aquelas marcas não eram vistas há mais de vinte anos.
Desde o final da guerra, aquelas marcas existiam apenas nas
histórias contadas ao redor de uma fogueira; histórias sobre o tempo
em que uma raça alada governava o céu, a Cidadela Prateada e
criava magia com uma ligação através das estrelas.
Uma magia completamente extinta.
Uma magia que não podia mais ser conjurada nem por erelins
puros, como Iohanna, nem por erelins mestiços, como ele.
Pensou nas duas pedrinhas brilhantes que Iohanna lhe dera.
Nem mesmo um Suspiro de Áster deixava aquele rastro.
Não daquela forma.
Não com aquela energia crepitante no ar, feito um sussurro no
vento que ninguém queria ouvir, mas que era impossível de ser
ignorado.
Aquelas marcas estavam ali porque algum erelin, de alguma
forma desconhecida por Ikaris, havia conjurado magia com as
próprias mãos dentro do castelo.
17
Rastros de magia
Catorze anos atrás

UMA A uma, as flechas eram disparadas incansavelmente.


Quando elas acabavam, Ikaris deixava o arco de lado, recolhia-as e
voltava para sua posição, recomeçando a sequência de disparos
contra o alvo marcado na árvore.
Suor escorria por sua testa, o frio se infiltrava pelo couro
espesso das roupas e das botas. Mas o menino de dez anos não
permitiu que nada daquilo atrapalhasse sua concentração e o
aprimoramento dos sentidos.
Já fazia seis anos que vivia nas montanhas com os
remanescentes de seu povo, e estava cansado da dependência e
dos cuidados, enquanto o frio, a fome e o exílio viravam espectros
mais vivos a cada dia.
Passos ressonaram atrás dele. Ikaris permaneceu com o arco
empunhado.
— Dentre todos os que conheço, você é aquele que mais
treina.
— Tenho que ficar forte e hábil de alguma forma. — O maxilar
do menino se contraiu; ele disparou mais uma flecha, que zuniu e
acertou o centro do alvo. — Porque não consigo voar. Porque não
tenho magia. Porque não sou nada do que as velhas histórias
contam.
— Nenhum de nós é aquilo que um dia já foi.
Ikaris baixou o arco e a flecha.
— Não é justo.
Darlan deu um passo para perto dele, soltando um suspiro
cansado, dolorido. Ikaris sabia que, mesmo com o passar dos anos,
o erelin ainda sentia a dor por ter tido as asas cortadas. Pelo que
ouvira dos outros erelins, os ferimentos das asas cortadas jamais se
cicatrizavam por completo, pois, no passado, elas tinham o poder de
se regenerar; algo que não voltaria mais a acontecer.
E, mesmo sendo ainda um menino, não conseguia chegar à
uma conclusão do que era pior: ter perdido as asas que poderiam
levar alguém para o céu, sendo obrigado a se recordar do que jamais
poderia experimentar outra vez, ou nunca ter nascido com elas,
sendo obrigado a viver apenas com a ideia do que jamais poderia
viver.
Darlan enfrentava a primeira situação. Ele, a segunda.
E ambos pareciam sentir o mesmo amargor.
— Por que a guerra custou nossa magia e nossa habilidade de
voar, Darlan?
— O que você se lembra da Cidadela Prateada, nosso antigo
lar?
— Pouca coisa — ele murmurou com amargura. — Parece que,
desde sempre, as montanhas, o silêncio e a neblina fizeram parte da
minha vida.
— Havia uma fonte, no coração mais protegido da cidade. Sua
água era luz pura, que subia para o céu e se banhava nas estrelas.
— A fonte criada através da lágrima de um najma — ele
murmurou, mostrando que conhecia as lendas e histórias do seu
povo.
— Exatamente. Esta fonte era o que alimentava a essência de
cada erelin. Mas, durante a invasão, os exércitos humanos a
encontraram e a destruíram, levando todo o poder primordial de
nossa raça.
— A fonte foi destruída há seis anos?
— Sim.
— Mas, antes da destruição da fonte, eu já nasci sem asas. —
Ikaris apontou para as próprias costas. — Eu e muitos outros erelins
mestiços.
— Quando a guerra começou, anos antes da destruição da
fonte, antes do seu nascimento, a energia vital desta fonte foi
contaminada. Por quê? — Darlan inspirou fundo. — Ninguém sabe
ao certo. Nossa magia começou a falhar nesta época, nossas
crianças começaram a nascer sem asas. Esse foi o princípio do fim,
os sinais que antecederam a queda da cidade e a destruição total de
nossa ligação com as estrelas.
Ikaris piscou.
— E como os humanos destruíram tudo isso? Como
encontraram a fonte? Como corromperam a luz anos antes? Por que
não conseguimos revidar quando eles invadiram nosso lar? Nós
tínhamos magia. Eles não.
— As versões se perderam. — Darlan correu os dedos pelos
cabelos. — A única versão que imperou foi aquela contada por
Arustar, sobre a quebra dos acordos, cuja cláusula nos exilou aqui
nas montanhas. Mas, no fundo, ninguém sabe a verdade. Ninguém
enxerga o que se escondeu por trás das sombras dessa guerra.
— Mas o que você acha, Darlan?
O erelin coçou o queixo, o olhar perdido no tempo.
— Eu acho que os soldados da Cinco Alianças não
conseguiriam entrar sozinhos na Cidadela Prateada, e muito menos
destruírem a fonte sagrada que ligava o poder na nossa raça às
estrelas.
— Nossos inimigos tiveram ajuda?
— É uma das minhas teorias.
— Será que a tal Astrid ajudou os exércitos humanos?
— O que você disse? — Darlan voltou os olhos para ele.
Qualquer luz havia se dissipado das íris.
Ikaris terminou de guardar as flechas na aljava.
— Um pouco antes dos soldados invadirem nossa casa na
Cidadela Prateada, meus pais falaram várias coisas um para o outro
enquanto tentavam empacotar e proteger os livros. Uma fala foi
“Estão dizendo que isso tem a ver com Astrid”.
— Astrid? — Fumaça de frio dançou frente à boca de Darlan.
— Tem certeza de que você ouviu esse nome da boca dos seus
pais?
— Foi tudo muito rápido naquele dia. Eu tinha apenas quatro
anos, mas... — Ikaris tocou o próprio peito. A dor, os gritos, as
mortes dos pais e a queda da Cidadela de Prata ainda viviam ali,
latejando como uma ferida aberta. — Esse nome parece soprar em
meus sonhos, em minhas memórias. Por quê, Darlan?
Sombras pareciam ter caído sobre a face do erelin.
— Este nome é muito... Antigo.
Algo frio e estranho se agarrou nos ossos de Ikaris.
— Como assim? Quem é Astrid? Ou... O que é Astrid?
Darlan meneou a cabeça.
— Talvez você tenha entendido errado. O que mais você se
recorda daquele dia, ou até mesmo dos materiais que seus pais,
como guardiões do acervo, mantinham?
— Como te disse, quase não me lembro da Cidadela Prateada.
Quase não me lembro dos livros infinitos que enchiam a biblioteca da
minha mãe, repleto de histórias e segredos. Mas me lembro das
asas do meu pai. De vê-lo voando para o céu, às vezes com a minha
mãe em seus braços. — Os olhos de Ikaris se ergueram para o alto.
A neblina espessa impedia que ele enxergasse a imensidão acima
dele. — E me recordo da magia que ele conjurava. Nunca mais verei
isso?
O vento soprou, espiralando entre Ikaris e Darlan.
— Nossas asas foram cortadas. Da mesma forma, também não
podemos mais fazer magia, pequeno. — Darlan apoiou a mão no
ombro do menino. — Se pudéssemos, nossas marcas ficariam nos
chãos e nas pedras, como um lembrete do poder mais primitivo de
um erelin.

◆◆◆

Atualmente

Quando um erelin conjurava magia com as próprias mãos,


evocando a ligação com as estrelas, a vibração desta conexão
gerava ecos.
Estes ecos se materializam na forma de marcas, semelhantes a
runas, que se gravavam no chão e nas paredes perto do local onde a
magia tinha sido feita.
Nos tempos passados, aquilo era o símbolo do poder erelin, o
aviso de que um ser alado, beijado pelos céus, havia invocado as
estrelas e sua magia naquele lugar. Para povos antigos e devotos, o
chão marcado se tornava um local sagrado.
Mas agora...
Ikaris correu os olhos pelas marcas na parede mais uma vez.
Aquilo era visto como um símbolo de ameaça.
Principalmente porque erelins não podiam mais conjurar magia
e deixar aquelas marcas como um rastro de sua presença.
Então, ele compreendia o temor dos guardas.
Porque ele mesmo não sabia como aquilo era possível.
— Senhorita, venha conosco — um dos guardas falou,
quebrando os pensamentos de Ikaris. — A princesa pediu para que a
levássemos para os aposentos reais até que a ameaça seja
eliminada.
Virou o rosto, observando os guardas se aproximarem de
Maressa, recordando-se de que Willelm havia dito que Maressa era a
criada pessoal da princesa de Arustar.
E, por mais que a princesa fosse sua missão final, Ikaris se
sentiu grato por ela ser o motivo da proteção redobrada em cima de
Maressa.
Pois, se um erelin desconhecido estava invocando magia,
sendo que a ligação sagrada havia sido destruída na guerra, peças
faltavam naquela história. E ele não conseguia mensurar o que
poderia estar acontecendo.
Maressa falou algo para os guardas, virando o rosto no mesmo
momento em que Ikaris ergueu a cabeça e a fitou.
O gosto doce dos lábios dela, o cheiro tentador de seu
perfume, a calidez de sua pele, a pressão suave do corpo feminino
moldado ao seu...
Tudo veio sobre ele naquele instante em que seus olhares se
encontraram e se sustentaram.
Ela era mais linda do que qualquer estrela que já brilhara no
céu.
Quase perdeu o fôlego.
Quase se esqueceu do verdadeiro motivo que o levara até ali.
Mas, ao fitar a parede, as marcas, a razão gritou.
— Levem-na em segurança — disse para os guardas. — Se
precisarem de mim, posso ajudar nas buscas.
Maressa entreabriu os lábios, mas, se ela ia falar alguma coisa,
suas palavras se retesaram no ar.
Ikaris se virou, quebrando o contato visual, o manto molhado
balançando em suas costas. Apertou o passo, andou sem olhar para
trás, e só soltou o ar quando estava dentro de seus aposentos.
Graças aos céus, Willelm não estava ali.
Com o coração rugindo alto, ele virou o colchão, buscando pelo
Suspiro de Áster que mantinha escondido em uma fissura do tecido,
envolto em vários lenços.
A pedra continuava ali.
Como havia suposto, não fora ela a responsável por aquelas
marcas.
Uma mistura de alívio e apreensão o enredou.
Será que tem mesmo outro erelin aqui no castelo? Ou será que
há algo maior do que posso imaginar? Quem fez isso, quem conjurou
a magia no castelo... É aliado ou inimigo? Aliado de quem? Inimigo
de quem?
Apertou o Suspiro de Áster nas mãos, fechando os olhos.
Ele achava que aquele pedacinho de poder que carregava era
a coisa mais vibrante que suas mãos já tinham tocado... Até ter os
lábios de Maressa nos seus.
Maldição.
Não havia planejado beijá-la.
Sequer havia planejado voltar a colocar seus olhos nela.
Mas, quando vira o livro que ela deixara em sua cama na noite
passada, algo craquelou, se dissolveu e se refez em seu peito.
Talvez fosse a culpa, talvez fosse algo mais...
Mas ele deixou o castelo naquela manhã e só voltou depois
que encontrou o maldito livro que Maressa desejava ler. O plano era
entregá-lo para ela, devolver o gesto, acabar com qualquer dívida de
gratidão que pudesse pairar entre eles, e então...
O beijo aconteceu.
Mais intenso do que o fogo, mais vasto do que as estrelas.
E o que mais o atordoava, o atiçava e o enlouquecia era saber
que não tinha sido suficiente.
Que talvez nunca fosse suficiente.
Ikaris praguejou contra si mesmo.
Como perdera o controle?
Como a tomara nos braços e se deixara render pela vontade
que o consumia desde que havia escutado a voz que saíra daqueles
lábios doces e tentadores?
Maldição.
Maldição.
Aquilo não poderia se repetir, ou colocaria tudo a perder.
Com o corpo quente, irritado, ansiando por algo que não teria,
Ikaris guardou o Suspiro de Áster, trocou as roupas molhadas por um
conjunto seco e escuro, enfiou adagas e facas nas botas e nos
cintos, e esperou que a última gota de luz do entardecer fosse
sorvida.
Assim que a escuridão se alongou sobre o castelo, adensada
pelos ruídos da chuva, ele se preparou para investigar mais sobre os
rastros deixado pela magia erelin.
Abriu a porta, segurando o passo na mesma hora.
Seu coração falseou de um jeito incerto e perigoso assim que
ele ergueu o rosto.
Sob as sombras trêmulas das tochas e o tilintar da chuva, se
deparou com Maressa parada bem ali na sua frente.
18
Buscas incertas

O olhar de Ikaris, parado na porta recém-aberta do quarto,


mostrava que ele estava, no mínimo, surpreso em vê-la ali. Vestia
preto da cabeça aos pés, como se ele houvesse sido forjado pela
própria noite.
A respiração de Maressa ficou presa no peito.
Toda a presença de Ikaris parecia impregnar o ar à sua volta,
deixando-a trêmula e quente, ansiosa e nervosa.
— O que está fazendo aqui? — ele indagou em um tom
espreitador, olhando para os lados.
Por um momento, as palavras não chegaram até ela. Sabia que
estar ali, na frente da porta do aposento de um cavalheiro, não era o
comportamento ideal de uma dama, fosse princesa ou criada.
Principalmente se o cavalheiro em questão a tivesse beijado nas
horas finais do entardecer, sob o testemunho da chuva cadente.
Deveria se afastar e se desculpar — da mesma forma como
deveria tê-lo feito quando ele a beijara — mas Maressa não se sentia
como ela mesma naquela noite. Estava inquieta, aflita, perdida em
devaneios, suspiros e questionamentos; a única coisa que passara
pela sua cabeça ao sair do quarto depois que Nina adormecera era
de que precisava vê-lo. Talvez ouvir sua voz. Talvez entender por
que seu peito estava apertado de um jeito tão bom, e ao mesmo
tempo, tão dolorido.
— Eu... — Ela hesitou em dar um passo para a frente; Ikaris
continuava congelado no lugar. — Queria saber se há mais alguma
informação sobre as marcas estranhas na parede.
— Não há nada novo. É melhor você voltar para seu quarto,
para junto da princesa.
— Todos estão agitados. O que está acontecendo?
— Nada com o que você deva se preocupar. Os guardas
cuidarão de tudo. Também me ofereci para ajudá-los.
Maressa deixou que os braços caíssem ao lado do corpo.
— Posso parecer frágil e indefesa, mas odeio ficar no escuro.
Quero saber o que aquelas marcas na parede significam. Quero
saber se elas são uma ameaça à vida da princesa ou ao torneio. E
algo me diz que o senhor pode me responder o que quero saber.
Ele cruzou os braços e a encarou de forma um tanto
condescendente. Era impossível imaginar o que se passava em sua
mente.
— Por que acha isso?
— Pelo olhar em seu rosto quando viu as marcas.
Ikaris soltou um ar. Por um momento, Maressa achou que ele a
mandaria embora e voltaria para dentro do quarto. Mas então, junto
do brilho dos relâmpagos que invadia as janelas altas do corredor,
ele descruzou os braços.
— São marcas deixadas pela magia de um erelin.
Maressa arregalou os olhos e entreabriu os lábios.
— Há um erelin aqui dentro do castelo?
Quase achou que um chiado saiu do peito de Ikaris. O olhar
dele era fechado, alheio, distante.
— É o que os guardas estão acreditando. Mas, desde o fim da
guerra, os erelins não são mais capazes de usar magia. Então a
dúvida e a hesitação sobre quem está por trás daquelas marcas
pairam pelo ar.
Ela olhou para o lado, invadida por um arrepio gelado. As
sombras se alongavam no corredor, onde as chamas das tochas não
alcançavam. Ela quase podia palpar a impressão de algo silencioso
e sorumbático deslizava por entre as fissuras não iluminadas.
— E o que você sabe sobre os erelins, lorde Ashera? Eu
queria...
Quando Maressa se virou, não esperava que Ikaris já tivesse
dado mais alguns passos para a frente, com o olhar voltado para o
dela. Tampouco esperava que ele se encontrasse tão próximo,
permitindo que ela enxergasse os pontinhos brilhantes que
salpicavam em suas íris, destacados pela luz das tochas.
— Falar sobre os erelins não é algo proibido em Arustar? — A
voz dele era um sussurro tão baixo que fazia sua respiração se
entremear à dela — Uma criada do castelo, como você, poderia
arranjar problemas se fosse pega debatendo temas indesejáveis.
Os olhos de Maressa, inevitavelmente, desceram para os lábios
de Ikaris. Eram cheios, marcantes, bem contornados, com um gosto
perigoso e proibido, que agora ela conhecia.
A lembrança fez com que suas bochechas corassem.
— Sim, mas conhecimento é conhecimento. — Ela quase
engoliu em seco, lutando para desviar o olhar dos lábios dele. — E o
senhor é um historiador e conhecedor do assunto, certo?
Como se fosse um espelho de seus gestos, Ikaris baixou os
olhos, fitando os lábios dela, para então erguer o rosto outra vez.
— Pode-se dizer que sim.
O coração dela batia tão alto quanto a chuva contra as janelas.
— Pois então... Percebi que nos desentendemos ontem quando
conversamos sobre os erelins. É óbvio que temos pontos de vista
diferentes sobre o assunto. — As chamas das tochas suspensas
dançavam, causando um jogo de luz e sombra entre eles. — Sei
apenas o que as histórias da guerra contam. Não há livros ou
pergaminhos sobre a raça erelin aqui em Arustar. Pelo menos, nunca
os encontrei na biblioteca. E todos temem o assunto tanto quanto
temem um erelin. Mas gostaria de aprender mais sobre eles. Da
época antes da guerra.
— Por quê?
Porque, um dia, serei a rainha de Arustar. Governarei para os
homens, e pouco conheço do mundo além do castelo, as palavras
dançaram na ponta de sua língua. Quero saber o que existe lá fora.
Quero saber o que me espera quando a coroa for colocada em
minha cabeça, para não ser controlada pelo Conselho ou por
qualquer outro que ache que não passo de uma princesa sem
conhecimentos profundos.
Maressa contraiu os lábios.
— Porque, como te disse noites atrás, lorde Ashera, uma
mente constantemente alimentada jamais será uma mente
escravizada.
— Não é seguro falar sobre isso. — O tom dele era baixo,
severo. — Não para você, à mercê da realeza de Arustar.
Maressa precisou lutar contra si mesma para não esbravejar
que ela era parte da realeza de Arustar. Mas aquilo podia complicar
as coisas e colocar tudo a perder. Poderia deixá-la nas mãos do
Conselho, caso eles descobrissem que as regras do torneio haviam
sido violadas e que um pretendente conhecia sua verdadeira
identidade.
— Não me importo. — Ela estendeu a mão e segurou o braço
de Ikaris. — Conte-me o que sabe.
Sentiu-o se retesar sob seu toque. Ikaris balançou a cabeça, os
olhos pousando na mão dela sobre o seu braço.
— Até posso compartilhar coisas que sei, mas não imagino por
que você queira sabê-las agora. A esta hora da noite.
A observação a atingiu feito uma flecha certeira.
— Porque creio que mais ninguém me dará a resposta pela
manhã — respondeu na mesma velocidade. — E, ao olhar para o
senhor, julgo que está indo buscar pelas respostas. Deixe-me
acompanhá-lo nessa busca.
— Estar comigo, a essa hora, é um risco à sua reputação.
— Mas preciso de cada pedaço da verdade, principalmente se
houver uma chance da vida da princesa estar em risco. Ninguém
saberá disso. Será nosso segredo, lorde Ashera.
Algo semelhante a um suspiro resignado e rouco saiu do peito
dele. Maressa ergueu o rosto, examinando-o sob a luz bruxuleante.
Os lábios de Ikaris estavam entreabertos, e seu queixo rígido parecia
se inclinar para baixo, na direção do rosto dela, como se ele
estivesse lutando contra algo muito maior do que poderia enfrentar.
Ela não conseguiu se mexer, não conseguiu afastar os olhos
dos dele. Deixou que seu rosto se inclinasse levemente para cima, o
ar se tornando mais crepitante em volta deles.
Ikaris colocou a mão por cima da dela. Maressa teve que
sufocar um arquejo ante ao calor do contato.
— Não podemos fazer isso.
O coração dela acelerou.
Não sabia se ele estava se referindo à busca por pistas ou ao
tremor desesperado que chamava os lábios de um para o outro.
Qualquer uma das duas coisas era inapropriada demais.
E se sua mãe descobrisse...
Maressa contraiu os lábios.
Já estava cansada de se sentir um pássaro com asas
quebradas. De permitir que os outros ditassem o que ela deveria
fazer.
— Por favor... — Maressa sussurrou.
Ikaris comprimiu os olhos.
Naquele momento, ela teve certeza de que ele recorria a um
autocontrole perturbador.
Mas insistiu mais uma vez, olhando no fundo dos olhos deles.
— Por favor.

◆◆◆

Ele deveria ter perdido a cabeça.


Sim.
Aquela era a única explicação plausível.
Quando usara o Suspiro de Áster para escapar da montanha,
cavalgando feito uma estrela cadente, o efeito da magia da pedrinha
luminosa tinha afetado seu bom juízo e sua racionalidade.
Não conseguia pensar em outro motivo para ter permitido que
uma criada do castelo o acompanhasse em uma investigação sobre
as marcas erelins, tão tarde da noite.
No melhor dos cenários, se alguém os flagrasse, a reputação
dela seria prejudicada. E aquilo já era algo desagradável. Por mais
que não gostasse das pessoas de Arustar, não desejava que
nenhum mal caísse sobre Maressa. Sabia como a sociedade
humana era extremamente moralista com moças jovens como ela,
diferente da sociedade erelin.
No pior dos cenários, quem ou o quê tivesse conjurado a magia
e deixado as marcas na parede poderia aparecer.
Mas, ainda assim, lá estava ele.
Na companhia de Maressa.
Havia proibido a si mesmo de beijá-la ou tocá-la outra vez.
Mas, por todas as forças celestiais, como faria isso, com ela tão
perto? Com seu perfume o torturando? Com seus olhos de safira
implorando por uma liberdade que ele próprio ansiava? Com seus
cabelos brilhando à luz das tochas? Com o corpo delineado sob as
roupas, que ele descobrira que se moldava tão bem ao seu?
Ikaris grunhiu baixo.
— Está tudo bem, lorde Ashera?
Ele mesmo não entendeu o que respondeu para ela.
Aquilo era um desvio à missão de Iohanna, até mesmo um
sacrilégio ao povo erelin, ao rancor nutrido ao reino de Arustar.
Um trovão reverberou, estremecendo as estruturas do castelo.
Ikaris se agarrou ao foco que sempre o acompanhava,
imaginando que empunhava o arco e a flecha. Para o disparo ser
preciso, era necessário que se concentrasse. Qualquer coisa que
desviasse sua atenção poderia comprometer a chegada da flecha no
alvo.
Repetiu isso para si mesmo várias vezes enquanto apanhava
uma das tochas suspensas na parede, sentindo o perfume de
Maressa provocá-lo, como se o desafiasse.
Ikaris chiou.
Apertou o suporte da tocha com mais força.
Quando chegaram ao corredor, as marcas ainda estavam lá na
parede. Imaginou que os criados tinham tentado apagá-las. Mas, se
as histórias estavam corretas, nada poderia limpar aquelas marcas.
Aproximou a tocha da parede.
Seu coração batia na garganta.
Eram mesmo marcas magia erelin.
Como isso é possível, se a magia foi extinta para nosso povo?
— São runas? — Maressa perguntou, se colocando ao seu
lado. O braço dela roçou no seu, arrepiando-o da cabeça aos pés.
Maldição.
— É um idioma antigo, impronunciável. — Os olhos dele
percorreram as marcas; sua pele estava quente e irritada. — Alguns
dizem que são as palavras entoadas para realizar a magia em sua
forma mais primordial.
Com a mão livre, ele tocou as marcas.
Podia sentir algo nelas.
Era um zumbido, um fio invisível que apontava o caminho pelo
qual o suposto conjurador da magia tinha seguido.
Ikaris apertou o passo, avançando pelo corredor, deixando-se
guiar por aquelas impressões que não podia tocar, apenas sentir.
Não queria perder seu rastro. Escutava o andar rápido de Maressa
às suas costas, tentando acompanhá-lo.
— Como você sabe para onde ir, lorde Ashera?
— Apenas sei — foi tudo o que disse.
— Mas como você sabe?
Pelas criaturas celestiais, que mulher curiosa e insistente.
— Meus estudos me ensinaram que a magia erelin deixa um
rastro, além das marcas. Algo fica pairando no ar. Se nos
concentramos, conseguimos senti-lo. Qualquer pessoa, de qualquer
povo ou raça, pode sentir. Mas isso requer prática e treinamento.
— Algo que não temos aqui em Arustar... — Maressa concluiu.
— ...Por que os erelins são nossos inimigos mais antigos.
Aquelas palavras o afetaram mais do que Ikaris esperava.
“Nossos inimigos”.
Ele precisou se segurar para não levar uma mão ao peito, para
lutar contra as garras de aço que se fecharam ao redor do seu
coração.
Quando percebeu, estava parado diante da grande biblioteca.
Ikaris contraiu o maxilar. Ao fitar Maressa de soslaio, teve
certeza de que os pensamentos dela eram os mesmos que o seus.
A misteriosa pessoa encapuzada.
— É melhor você voltar para seus aposentos — disse à
Maressa.
— Não. Quero saber o que está acontecendo no castelo.
Ele controlou a vontade de revirar os olhos e praguejar diante
da teimosia dela. Nunca tinha visto uma criada tão leal à corte e ao
castelo, disposta a proteger a realeza.
Entre os nobres humanos, a atitude dela de ir atrás daquele ser
que tinha deixado as marcas na parede, de querer conhecer mais
sobre raças banidas, seria considerada tola e intrometida. Mas, entre
os erelins, seria visto como um ato de coragem e bravura.
A respiração de Ikaris vacilou.
Ela deveria ser mesmo muito próxima da princesa.
Da princesa que era seu alvo.
Da princesa cujo o sangue ele estava destinado a derramar.
Ikaris se pegou engolindo em seco.
— Se eu te mandar correr, você corre, certo?
Ela assentiu.
Tomando cuidado com os livros e as estantes, Ikaris avançou
para dentro da biblioteca com a tocha nas mãos.
Seus olhos percorreram os andares à vista; havia muitos
espaços onde alguém poderia se esconder. Os sentidos
permaneciam alerta para detectar qualquer movimento.
A chuva batia contra as janelas.
Ikaris se moveu por entre as estantes, agarrado ao rastro de
energia das marcas que pareciam puxá-lo, guiá-lo, chamá-lo.
Parou diante de uma alcova.
O último fio daquele zumbido acabava ali.
Bem na porta fechada que levava para as câmaras onde os
monges copistas trabalhavam e cuidavam de livros em estado de
deterioração, segundo o que Maressa tinha lhe contado.
— Creio que está trancada, assim como na outra noite, certo?
Ela assentiu.
O canto da boca de Ikaris se retorceu. Ele se abaixou e tirou
uma faca pequena da bota. Se Maressa estranhou aquilo, guardou o
comentário. Com cuidado, levou a ponta da lâmina à fechadura. Fez
uma pequena pressão. Nada aconteceu.
Hum...
Somente a faca não seria suficiente.
Ele virou o rosto, fitando Maressa. Esticou a mão, observando
os lábios dela se entreabrirem quando ele puxou um dos grampos
que prendiam seus cabelos, libertando as mechas douradas.
A visão quase roubou seu fôlego.
Ignorando o palpitar latejante sob a pele e as roupas, Ikaris
voltou para a fechadura, desta vez usando a ponta da faca e do
grampo em uma combinação de giros e pressão.
Ao ouvir o “clique”, soube que tinha conseguido.
A porta se abriu diante deles em um rangido agudo.
Relâmpagos iluminaram a biblioteca.
Uma brisa fria e espessa os cumprimentou, espiralando pela
escadaria em caracol que descia para as profundezas escuras.
Ikaris e Maressa se entreolharam.
Com a tocha na mão, ele desceu primeiro.
19
Nas sombras

A LUZ projetada pela tocha que Ikaris segurava iluminava os


degraus rudimentares. Erguendo a barra do vestido, Maressa desceu
a escada espiralada atrás de Ikaris. O ar era tão frio e carregado ali
que a respiração condensava em frente ao seu rosto.
Como os monges copistas aguentam trabalhar aqui embaixo?
E quem conservaria livros em deterioração em um lugar com
paredes tão úmidas?
A atmosfera adensou quando eles chegaram no degrau final.
Ikaris estendeu a mão para ela. Maressa aceitou a gentileza. Os
dedos dele envolveram os seus; foi um toque cuidadoso, mas firme,
que lançou uma corrente arrepiante por toda a sua pele.
Por entre o fogo dançante, seus olhares se encontraram.
— Notou algo estranho, lorde Ashera?
— Ainda não. O rastro desapareceu.
Ávida por conhecimento, Maressa fez uma nota mental para
aprender a mergulhar nos sentidos e captar aquele tipo de rastro no
ar também.
Talvez, quem sabe, Ikaris pudesse ensiná-la se no fim do
torneio...
Assim que seus pés tocaram o chão, a mão dele a libertou, e
uma sensação estranha de vazio a atingiu.
Engolindo em seco, Maressa enxergou uma tocha jogada na
base da escada. Apanhou-a e acendeu com a chama que fulgurava
na tocha de Ikaris. O fogo ardeu, aumentando a iluminação da
câmara.
Assim como no andar superior, ali também havia inúmeras
estantes de livros, formando um largo corredor. Todas as prateleiras
estavam cobertas do chão ao teto, com livros antigos e gastos
demais, impossibilitando que ela lesse os títulos nas lombadas.
Rolos de pergaminho estavam espalhados sobre a mesa de madeira.
Maressa se moveu com passos cuidadosos, correndo os olhos
pelas estantes. Nunca tinha visto nada daquilo nos andares
superiores. E, por mais vasta que a biblioteca real fosse, ela se
considerava uma grande conhecedora do acervo.
Escutou Ikaris arfar baixinho, como se houvesse levado um
soco no estômago. Preocupada, virou-se para ele. Ikaris estava em
pé, encarando os volumes como se houvesse sido tragado para um
lugar sombrio e denso dentro de si mesmo.
— Reconhece estes livros, lorde Ashera?
A boca dele era uma linha rija.
— São os livros saqueados da biblioteca da Cidadela Prateada.
— São livros do povo erelin? — Ela piscou, surpresa. Não
imaginava que aquele tipo de material estava no castelo. — Sobre o
que eles falam?
— Histórias, mitos, magias. — Ikaris passou a tocha pelas
estantes. Seu rosto era um arco frio de mistérios e sentimentos que
Maressa não conseguia decifrar. — Coisas que se perderam no
tempo.
Um sopro de ar gelado acariciou o rosto dela.
Maressa apoiou a tocha em uma arandela próxima e permitiu
que suas mãos deslizassem por entra as lombadas dos livros. Eles
deveriam estar ali desde o fim da guerra e da queda da cidadela
erelin. Imaginou que sua mãe e o Conselho mantivessem os livros
fora da área comum da biblioteca por abordarem assuntos proibidos
em Arustar.
— Por que eles estão aqui? — Ikaris sussurrou.
— Creio que é contra as leis do reino deixá-los à vista.
— O que quero dizer... Por que não foram queimados? Por que
foram apenas roubados e guardados aqui, mas não destruídos?
Maressa se pegou fazendo a mesma pergunta. Não sabia
como questionaria sua mãe sem entregar que havia descido até ali.
Ao acaso, escolheu um dos livros e o abriu.
Uma nuvem de poeira subiu, fazendo seu nariz coçar. Ela
precisou se controlar para não espirrar. Algo, que podia chamar de
instinto, sussurrava para que não fizesse nenhum barulho ali
embaixo.
Folheou o livro, deixando os olhos percorrerem as páginas
amareladas. Os escritos, para sua decepção, eram em um idioma
desconhecido.
— Você entende esta língua, lorde Ashera?
Mas Ikaris não lhe respondeu.
Maressa continuou virando as páginas, imaginando o que
poderia estar escrito ali. Havia inúmeras gravuras feitas com carvão,
que lhe davam uma breve ideia do conteúdo do livro.
Uma das imagens mostrava uma bela e esguia mulher, de
cabelos longos e olhos refulgentes. Poderia ser confundida com uma
mulher humana, mas a divindade que delineava seus traços, junto
das asas abertas, mostrava que ela pertencia a outra raça.
Uma erelin.
O coração de Maressa acelerou só de olhar para aquela
gravura.
Nunca vira algo tão...
Sublime.
Tinha a impressão de que, se esticasse a mão e tocasse a
folha do livro, poderia reconhecer a textura dos cabelos da mulher
erelin, das asas, ouvir o farfalhar de sua respiração.
Maressa piscou.
Mas no que estou pensando?
O barulho de algo sendo rasgado a fez olhar para o lado.
Ikaris havia aberto alguns livros na mesa, e arrancava as
páginas e as enfiando dentro do casaco.
— O que você está fazendo?! — Maressa indagou, abismada.
— Você vai arruinar os livros completamente assim!
Ele não respondeu e continuou arrancando as páginas.
— Lorde Ashera! Podemos levar alguns para cima! Ninguém
saberá!
— Você não entende! — Ele quase rugiu as palavras.
Maressa deu dois passos para trás.
A cabeça dela girou.
Qual era o problema do lorde?! Estava reunindo materiais para
a investigação? Ou estava...
As perguntas se perderam no ar quando um arrepio subiu por
suas costas, feito garras invisíveis que arranhavam a pele.
Maressa arfou.
Olhou para os lados. Não havia mais ninguém ali.
Estava prestes a se voltar para Ikaris e repreendê-lo pelas
páginas arrancadas quando a sensação estremecedora veio sobre
ela mais uma vez. Era como se algo afiado e gelado atingisse-a no
âmago.
Ela ergueu o rosto.
A mão de Ikaris congelou sobre a página que ele puxava.
Seus olhos se encontraram por entre o tremular das tochas.
— Você sentiu isso? — Maressa sussurrou para ele.
Afastando-se dos livros, Ikaris puxou a adaga; a lâmina cintilou
quando a luz do fogo a atingiu.
Os olhos dele se estreitaram na direção dela.
— Você consegue sentir? — a pergunta era um sussurro.
— Consigo. O que é isso, lorde Ashera?
— É o rastro da magia erelin. O rastro que eu estava seguindo
através das marcas e que se dissipou quando paramos na entrada
desta câmara. Mas agora ele voltou. Se até mesmo você está
conseguindo senti-lo, é por que devemos estar perto.
— Como assim, “alguém como eu”?
— Que não foi treinado para sentir. Como eu te disse lá em
cima, somente humanos, erelins e seres de outras raças que fizeram
um treinamento árduo, ao longo de anos, conseguem abrir os
sentidos para esse zumbido da magia — Ikaris explicou, avançando
para o corredor além das estantes. — Quando alguém comum como
você capta esse rastro, é porque estamos muito perto de quem ou o
quê deixou aquelas marcas na parede.
Maressa guardou o livro que segurava, apanhou a tocha outra
vez e foi atrás de Ikaris.
Ouviu um barulho e olhou por cima do ombro. O livro que tinha
guardado havia escorregado da estante e caído ao chão. Ela
pigarreou baixinho, querendo voltar para guardá-lo melhor, mas os
passos acelerados de Ikaris mostravam que ele não iria esperá-la.
Sem opção, ela largou o livro caído e seguiu Ikaris.
O corredor que eles atravessaram era longo, pavimentado com
pedras cinzas e desprovido de iluminação própria. Os únicos
barulhos eram os passos dela, deles e os sussurros crepitantes das
chamas que carregavam. Nem mesmo a chuva e os trovões que
reverberavam do lado de fora chegavam até ali.
Qual é o tamanho dessa câmara e de seus túneis? O que há
nas profundezas do castelo que é meu lar?
Conforme avançavam, a temperatura caía.
Maressa estremeceu discretamente e desejou ter trazido uma
capa consigo. Ao fitar Ikaris de soslaio, podia perceber que, por mais
que ele tentasse se manter impassível, o frio crescente e inóspito
também começava a incomodá-lo.
Sentiu a mão de Ikaris pairando em suas costas; então, o braço
dele rodeando sua cintura, trazendo-a para perto do calor de seu
corpo.
Não trocaram nenhum olhar.
Mas Maressa conseguia ouvir o palpitar furioso do coração dele
batendo no mesmo compasso do seu.
O corredor parecia não ter fim, dobrando-se e se encurvando
em mais passagens e caminhos.
A cabeça dela latejava levemente, anunciando uma dor.
Maressa comprimiu os olhos, tentando ignorar o incômodo.
Eles pararam quando o frio se tornou insuportável.
Um cheiro pútrido encheu o ar.
O estômago de Maressa se revirou.
O latejar fraco em sua cabeça se transformou em uma dor
violenta; se não fosse pelo braço de Ikaris ao redor de sua cintura,
teria perdido o equilíbrio.
No lado oposto do corredor, seus olhos captaram um
movimento.
O que é isso?!
Forçou os olhos, querendo empurrar para longe a dor que
parecia embaçar sua vista.
E então viu algo.
Uma sombra mais obscura do que a escuridão estava
encurvada no chão, fazendo um som como se estivesse se
alimentando de algo, inclinada sobre...
Maressa arfou, derrubando a tocha.
Ikaris colocou a mão em sua boca para cessar qualquer outro
som, mas já era tarde demais.
A sombra se moveu lentamente.
Era a mesma figura encapuzada que haviam visto na biblioteca
noites atrás. Seu rosto se mantinha coberto; apenas o contorno dos
lábios era visível sob a luz da tocha.
Sangue escorria daquela boca.
Maressa estremeceu.
No chão, dois corpos jaziam com o peito aberto, como se
houvessem sido rasgados com dentes e garras.
Um dos corpos pertencia ao desaparecido duque de Storn.
E o outro, do qual a figura encapuzada se alimentava, era o
corpo do visconde Arthur.
20
Ônix derretida

LEVOU APENAS uma batida de coração para o choque


paralisante subir e descer por Maressa.
O duque de Storn estava morto.
O visconde Arthur estava morto.
E o que tinha causado suas mortes...
Maressa arriscou olhar mais uma vez para a figura que parecia
ter sido forjada em sombras e terror.
Por debaixo do capuz, o que estava ali inclinou a cabeça para
trás, farejando-os, como havia feito na biblioteca, noites atrás.
Emitiu um grunhido.
E tudo aconteceu muito rápido.
Ikaris brandiu a adaga com uma mão, movendo a lâmina no ar,
a outra mão empunhando a tocha como uma arma, girando nos
calcanhares enquanto saltava sobre a figura encapuzada.
Maressa arfou, a dor aumentando em sua cabeça.
Nunca tinha visto ninguém se mover daquela forma. Como um
raio. Como uma tempestade viva. Nem mesmo os guardas e
soldados mais experientes do castelo.
A adaga de Ikaris cortou a carne de seu oponente.
O urro ecoou pela câmara.
Sob a proteção da capa e do capuz, a coisa misteriosa deu um
passo para trás, erguendo o braço por onde o sangue escorria.
Maressa piscou.
Talvez fosse a escuridão, talvez fosse o brilho parcial das
tochas...
Mas o sangue que gotejou da figura encapuzada era negro e
cintilante, feito uma pedra de ônix derretida.
Piscou outra vez.
Seja lá o que aquilo significasse, foi suficiente para alterar toda
a postura ofensiva de Ikaris.
Ele virou o rosto para ela.
O guincho da criatura ficou mais alto.
— Corra!
Maressa mal teve tempo de processar o grito dele; no instante
seguinte, Ikaris já estava ao seu lado, agarrando-a pelo braço,
puxando-a pelo corredor que levava para a câmara e para a
biblioteca subterrânea.
O coração dela batia rápido, o ar saía em golfadas
entrecortadas.
O tempo que levariam para alcançar a escadaria espiralada...
Mas Ikaris era rápido; sua força e velocidade impulsionavam
Maressa para além da escuridão densa.
Os dois avançaram pelo corredor.
Os rugidos ferozes ecoavam atrás deles.
Em um instante de insanidade, Maressa ainda arriscou olhar
por cima do ombro.
Diferente de noites atrás, a pessoa — coisa, criatura — não
estava mais andando, sequer correndo. Ela saltava, apoiando-se nas
paredes, escalando pelas pedras, emitindo sons guturais.
Por todos os deuses, o que é isso?!
A cabeça de Maressa girou, e aquele latejar pulsante em suas
têmporas ficou ainda mais forte.
Ela bateu os dentes, lutando contra a dor.
O aperto de Ikaris em seu braço se intensificou.
Eles passaram pelas estantes, pelos livros e pelas mesas,
seguindo em uma velocidade alucinante para a escadaria. A barra do
vestido atrapalhava a subida; Maressa não soube como não
tropeçou nos próprios pés enquanto era puxada por Ikaris degrau por
degrau.
Quando a passagem ficou próxima, Ikaris empurrou Maressa
para o andar térreo da biblioteca e fechou a porta pesada com uma
batida alta. O som da chuva e dos trovões retornou. Maressa o
observou colocar o próprio peso contra a porta. Podia ouvir a criatura
se chocando contra a madeira, de uma forma selvagem e insistente.
— Temos que bloquear a passagem e chamar os guardas!
Ikaris contraiu o maxilar, manuseando os ferros e trincos da
porta.
Os olhos dele correram pela biblioteca, focalizando a mobília
iluminada pelos relâmpagos.
— Pegue alguma coisa para fazer o bloqueio! — Maressa
arfou. — Eu seguro a porta!
— É perigoso e...
A coisa rugiu do outro lado, tão alto que o fez o peito dela
tremer.
— Rápido, Ikaris!
Um raio luminoso cortou o céu.
Com um grunhido, Ikaris se afastou da porta e Maressa
assumiu o lugar dele. Com o canto dos olhos, o viu correndo até os
móveis mais próximos, puxando uma das mesas.
A criatura se jogou contra a porta.
Uma. Duas. Três vezes.
Por um momento, ela cambaleou e a coisa tentou abrir a porta.
Mas Maressa impulsionou o corpo, pressionando-se contra a porta.
Se aquilo saísse das câmaras, poderia matar outras pessoas. Sua
mãe, Nina, os membros da corte, os criados, os competidores...
A mera ideia da morte de qualquer um fez com que Maressa
ofegasse e colocasse ainda mais de sua força para segurar a
criatura do outro lado.
A dor em sua cabeça havia chegado em um nível absurdo.
Mas ela lutou para não ceder e cair.
— Afasta-se! — Ikaris bradou. — No três! Um, dois, três...
Agora!
Ela o obedeceu.
Usando de uma força surpreendente para os olhos de Maressa,
Ikaris arrastou a mesa pesada até ali, empurrando-a contra a porta.
Os urros animalescos se intensificaram.
Maressa deu um passo cambaleante para trás, apoiando as
costas no peito ofegante de Ikaris.
— E agora? Isso vai ser suficiente? E se...?
Antes que ela pudesse concluir o pensamento desesperado,
algo pareceu rasgar o ar, feito uma corrente de vento que espiralava
pela biblioteca, mesmo com todas as janelas fechadas.
Maressa não entendeu.
Apenas sentiu.
E então, silêncio.
Mais nenhuma batida. Nenhum urro.
Como se a criatura houvesse desistido subitamente de sair dali
e se recolhido para a escuridão.
Ikaris falou alguma coisa. Mas ela não entendeu. As palavras
chegaram enroladas em seus ouvidos, falhas. O ar pareceu se
fechar ao seu redor. Sombras embaçaram seus olhos.
De súbito, Maressa comprimiu as têmporas.
A tontura veio sobre ela como uma onda feroz e impiedosa,
clamando suas forças e seus sentidos.
Não... De novo não... Não agora.
Mas foi inevitável reconhecer a chegada do mal-estar que a
acompanhava desde a sua primeira memória.
Suas pernas falharam; ela tentou puxar o ar, a vista embaçada.
Os braços de Ikaris ampararam e impediram sua queda.
— Maressa? Maressa?
— Eu...
Não conseguiu falar.
Aquela vertigem era muito mais intensa do que qualquer outra,
acompanhada de uma dor de cabeça tempestuosa.
Meu tônico... Preciso do meu tônico...
Ela ergueu a mão, se segurando no colarinho da camisa dele.
Com os lábios entreabertos, ofegante, atordoada, levou os olhos até
o prata refulgente das íris dele.
— Tenho que ir para o meu quarto... Agora... Preciso...
Ikaris não a deixou terminar de falar; seus braços a
envolveram, erguendo-a no colo, em uma ardência protetora e
familiar que atravessou toda a pele dela.
A passos rápidos e largos, ele saiu da biblioteca.
Para não cair, Maressa passou os braços ao redor do seu
pescoço; podia escutar o compasso feroz e selvagem do coração de
Ikaris a cada corredor atravessado.
Vozes ressonaram perto deles.
O duque Willelm vinha na direção do salão de jogos, na
companhia de Sir Edimburgo.
— Lorde Ashera... — Os olhos do duque se estreitaram, um
misto de choque e surpresa. — O que aconteceu com esta jovem
criada?! Você...
— Mande todos os guardas que encontrar para a biblioteca!
Para as câmaras! — Ikaris vociferou. — Agora!
Arregalando os olhos, Willelm assentiu.
Ikaris apertou o passo na direção da ala dos criados, deixando
o duque e o cavaleiro para trás, o calor de seus braços envolvendo
todo o corpo de Maressa, feito um manto que tentava empurrar para
longe a escuridão que queria reivindicá-la.

◆◆◆

Galgando as sombras, a criatura encapuzada saltou e deslizou


pelos túneis, insatisfeita por não ter conseguido o que desejava.
Queria mais sangue.
Queria mais carne.
Os corações do homem e da mulher que lhe flagraram
devorando o visconde tinham batido de uma forma tão deliciosa e
assustada que desejá-los se tornou irresistível.
Principalmente depois de ter tido o sangue derramado.
Já os tinha farejado na biblioteca, noites atrás, mas a
fragilidade que ainda habitava seus ossos lhe impedira de avançar.
E agora...
Estava tão perto de consegui-los...
Mas, então, escutou o chamado que atravessou o vento e a
porta que tentava derrubar, atingindo todos os seus sentidos com
uma ordem incontestável.
“Volte”.
E soube que teria que afogar seu desejo.
Estou voltando, mestre. Estou voltando.
21
Suspeitas

A CHUVA deslizava pelas janelas, projetando sombras


disformes no piso e nas paredes.
Ikaris não se importou com a possibilidade de encontrar mais
pessoas acordadas àquela hora enquanto avançava com Maressa
nos braços pela ala dos criados, seguindo para o quarto dela.
Pelas maiores obscuridades do céu; sequer se importou com a
criatura que quase os matara quando escancarou a porta do
aposento e colocou Maressa gentilmente na cama. Os cabelos
caíam como uma cortina dourada ao redor dela.
— Meu tônico...
Ele virou o rosto. A mão trêmula dela apontava para uma
pequena caixinha sobre a mesa de cabeceira, com vários vidros
cheios de uma mistura líquida.
Ikaris entregou o frasco para ela; Maressa sorveu todo o líquido
em um só gole e afundou a cabeça no travesseiro, fechando os
olhos.
Só naquele momento ele percebeu o quão alto seu coração
batia.
Nem mesmo enquanto fugia da criatura misteriosa havia ficado
tão agitado, tão... Sem fôlego.
— Você está bem?
— Vou ficar.
Aquela resposta não aplacou o tremor que crescia dentro dele.
Seguindo apenas os instintos, Ikaris se sentou na cama ao lado
dela, tocando seu rosto.
— Ikaris...
Seu nome.
Apenas seu nome.
Como um sussurro, um pedido, uma súplica.
Ela se inclinou. Quando passou o braço em volta dela,
puxando-a para si, sentiu o quanto Maressa estava gelada. Trouxe-a
para mais perto do seu peito, os dedos dela se fechando em sua
camisa.
O cheiro dela o atingiu.
Era um perfume único, uma fragrância que o impactara, que
parecia chamá-lo e desafiá-lo desde que seus olhos haviam se
encontrado com o dela na clareira, instantes depois da raposa
gigante atacá-lo.
As pálpebras de Ikaris estremeceram.
Apenas aquela vez...
Somente mais aquela vez permitiria que seus braços a
segurassem.
Porque a noite em que deveria cumprir sua missão estava
chegando. Porque Maressa era uma criada, uma filha de Arustar,
alguém que ele deveria ter mantido distante desde o primeiro
momento.
E porque algo muito mais sombrio acontecia sob as pedras
daquele castelo. Precisava racionalizar o que tinha visto, sobre os
livros descobertos, a criatura de sangue preto lustroso... Precisava
retornar para as montanhas e contar suas descobertas para Iohanna
e Darlan.
Mas agora...
Ikaris afastou uma mecha solta dos cabelos dela, os dedos
calejados roçando sua bochecha em uma carícia suave. Um suspiro
baixo escapou dos lábios de Maressa ante ao toque; um som que fez
o corpo dele esquentar e ansiar queimar todos os limites que havia
se imposto.
— Está melhor? — ele sussurrou, os olhos baixando para os
lábios entreabertos de Maressa. Os dedos dela continuaram
fechados em volta do tecido de sua camisa quando ela ergueu os
olhos para fitá-lo.
— O tônico está fazendo efeito. Posso sentir minhas forças
voltando e a tontura diminuindo.
Sob a luz das velas e dos relâmpagos que ficavam cada vez
mais distantes, Ikaris admirou o rosto dela. Embora fosse um rosto
que tivesse chamado sua atenção desde o primeiro dia em que
pisara no castelo, um rosto que se esgueirara por seus sonhos nas
últimas semanas... Algo ali agora era novo, realçado e mais brilhante
depois do beijo daquela tarde. E Maressa olhava para ele como se
estivesse pensando o mesmo, experimentando aquela agonia sem
nome que se espalhava por seu peito e vibrava no coração e, feito
uma flecha invisível, corria até o coração dela.
— O que você tem? — ele perguntou. — Quando isso
começou?
— É algo que está comigo desde sempre — ela sussurrou
baixinho. — E não há nada que possa ser feito.
As mãos de Ikaris desceram pela lateral do corpo de Maressa,
pousando na cintura, os polegares roçando a base das costelas dela.
Percebeu que ela fez um esforço para não arquear ao toque dele; e
aquilo foi suficiente para queimar a última gota de racionalidade.
Seus lábios desceram de encontro aos lábios dela; o gosto, o
calor e o cheiro de Maressa se intensificaram por todos os seus
sentidos.
Escutou-a suspirar; aquilo bastou para que Ikaris pressionasse
ainda mais a boca na dela, acariciando seus cabelos, tracejando os
quadris, as costas. Maressa ergueu as próprias mãos até o rosto
dele, arqueando o corpo, entreabrindo os lábios para ele.
Toda a pele de Ikaris queimava.
Podia saborear a inocência dela naquele beijo, a vastidão do
que ela desconhecia e desejava; e, por um momento, apenas um
momento, ele...
A audição apurada de Ikaris captou passos no corredor.
Muitos passos. Passos ritmados, treinados.
Provavelmente, membros da guarda real.
Com um grunhido que pareceu sair do fundo de sua alma,
Ikaris afastou a boca da boca dela, tirou-a de seus braços, saltando
da cama em um rompante e se afastando o máximo que conseguiu.
Não queria que nenhuma atitude sua prejudicasse Maressa ou a
reputação dela. Seu problema era com a realeza de Arustar, e não
com os criados do castelo.
Muito menos com ela.
Antes que os guardas virassem no corredor, Ikaris já estava
fora do quarto, postado ao lado da porta, completamente
recomposto.
— Boa noite, lorde Ashera.
— Boa noite. No que posso ajudá-los?
— O duque Willelm foi ao nosso encontro. A Coroa já foi
informada. A princesa deseja que sua criada pessoal vá para seus
aposentos esta noite até que as ameaças sejam eliminadas — o
guarda explicou em um tom sóbrio. — Quanto ao senhor, lorde
Ashera, peço para que nos acompanhe até a biblioteca e nos
explique o que de fato aconteceu.

◆◆◆

Depois que Maressa foi levada para o quarto da princesa, onde


Ikaris imaginou que a segurança estaria triplicada, ele foi até a
biblioteca com os guardas. Desceu pela escadaria espiralada,
notando que a câmara estava muito mais iluminada agora.
Achou que seria repreendido por ter ultrapassado uma ala
proibida, mas a preocupação da guarda real diante das mortes se
sobrepunha a um duque curioso procurando livros para ler.
Cobrindo o nariz com a mão para mitigar o odor pútrido, Ikaris
notou que os corpos do visconde Arthur e do duque de Storn tinham
sido trazidos para perto da escada.
— Descreva-nos o que viu aqui embaixo, lorde Ashera.
Ikaris contou sobre a pessoa encapuzada.
— E ele estava sobre o corpo do visconde?
— Ele estava devorando o visconde? Tem certeza?
Deu detalhes, mas não tudo o que sabia.
Porque quando sua adaga cortou a pele da criatura e o sangue
preto escorreu pelo chão...
Ele precisou se controlar para não arfar diante dos guardas.
Já tinha ouvido histórias sobre aquilo quando era garoto, em
torno da fogueira, quando seu povo passava oralmente
conhecimentos que não poderiam ser esquecidos.
Será possível?
Seria uma explicação para as marcas erelins na parede, mas...
Céus, precisava falar com Darlan.
O velho erelin detinha tantas histórias quanto os livros
roubados da Cidadela Prateada.
Livros que agora o circundavam.
Livros escondidos nas profundezas do castelo.
Livros que gritavam que Arustar não havia apenas destruído o
povo erelin; mas também feito de tudo para apagar seu legado e sua
cultura.
— Vocês não encontraram o responsável? — Ikaris perguntou,
a voz afiada feito uma navalha.
— Estamos vasculhando todo o terreno. Enquanto as buscas
acontecem, a rainha pediu para que o senhor não comente nada
sobre o ocorrido com os demais competidores.
Foi difícil não cerrar os punhos.
Foi difícil não soltar um rosnado.
Mas tudo em Ikaris permaneceu frio e impassível.
— É uma honra atender ao desejo da rainha de Arustar.
Os guardas assentiram e se afastaram.
Ikaris circulou pela câmara, o coração se contraindo, latejando,
ao ver todos aqueles livros renegados à escuridão, à umidade e ao
silêncio.
“Seu pai e eu somos guardiões das histórias de nosso povo”,
lembrou-se da voz cálida da mãe, e sentiu os olhos arderem. “Um
dia, você herdará cada livro desta biblioteca. Um dia, conhecerá
cada linha do legado erelin”.
A garganta de Ikaris ameaçou se fechar.
Puxando o ar, ele se abaixou e pegou um livro caído no chão.
Maressa deveria tê-lo derrubado durante a fuga.
Quase soltou uma exclamação de admiração ao ver a imagem
que enchia uma das páginas.
Era uma mulher erelin de cabelos longos, asas grandiosas e
olhos refulgentes. Uma erelin celestial retratada em toda a sua glória.
Iohanna.
Tudo o que havia dentro dele sabia que aquela era uma
retratação do esplendor de Iohanna, uma das celestiais mais antigas
de seu povo. Ikaris sequer conseguia conceber a idade de sua
rainha; da rainha que tinha que se manter escondida em uma
caverna, com um ferimento que não cicatrizava, com o poder
diminuindo a cada dia.
Olhou mais uma vez para o retrato.
A guerra, a destruição da Cidadela Prateada e da fonte sagrada
das estrelas jamais permitiram que Iohanna voltasse a ser como a
erelin poderosa daquela gravura.
O sangue latejou em suas veias.
Nenhum deles jamais tornaria a ser o que um dia foram.
Escutou os guardas sussurrando uns com os outros.
— Estas são as ordens da rainha?
— Sim, e devemos cumpri-las.
Os guardas não falavam com ele, mas Ikaris podia ouvi-los
graças ao ouvido sensível.
Provavelmente, aquelas mortes seriam abafadas e escondidas.
Nada poderia atrapalhar o torneio, a tradição e o aniversário da
princesa. Nenhum reino aliado ou inimigo poderia saber que uma
ameaça havia se infiltrado por entre os muros do castelo. Alianças
políticas e imagens de poder dependiam de um reinado inabalável.
Ikaris quase deixou um grunhido mórbido escapar da garganta.
Maldito reino de Arustar.
Ninguém ali se importava com a segurança dos demais.
O único propósito era manter a imagem intacta do reino que
comandava o exército da Cinco Alianças.
Porque eles não pensavam duas vezes para matar e
experimentar formas de torturas e de mortes lentas e...
Sua mente estalou.
Ikaris soltou o livro que segurava.
E, sem dizer nada para os guardas, se virou e deixou as
câmaras da biblioteca para trás.

◆◆◆
Ikaris retornou para a ala dos criados, seguindo para o quarto
de Maressa, com uma ideia palpitante na cabeça. O aposento estava
vazio, mas a essência de seu perfume dançava no ar; aquele
chamado tentador para seus mais afiados sentidos.
Andou até a pequena mesinha ao lado da cama. Tentou não
olhar para o colchão, tentou não pensar no corpo pequeno de
Maressa encaixado no seu, no toque entre seus lábios, em sua
respiração fraca.
“É algo que está comigo desde sempre. E não há nada que
possa ser feito.”
Quando percebeu, seus punhos estavam cerrados.
Tinha algo de errado com ela.
Aquelas tonturas, aquela fraqueza, as vertigens constantes...
Não podiam ser apenas causadas pela tensão ou pelo trabalho
pesado do castelo.
Será que ela estava doente? Será que estava sendo
envenenada por alguma mente diabólica que usava criados para
testar e criar remédios?
Ele não sabia por que estava pensando naquilo, mas não
conseguiria fazer mais nada, nem mesmo se concentrar na criatura
encapuzada da câmara ou na missão de Iohanna, se não
descartasse uma hipótese que havia surgido naquela noite.
Voltou sua atenção para a mesinha de cabeceira.
Havia dois frascos fechados do tônico que Maressa bebera ali.
Ikaris pegou e destampou um dos frascos. Girou e cheirou o
conteúdo. Uma, duas vezes. Não sentiu nada de errado. Sorveu um
gole do líquido, deixando que a língua e o paladar reconhecessem as
ervas que compunham a mistura.
Ginkgo, efedra, calêndula, malva, eufrásia.
Era uma mistura poderosa para mal-estares de longa duração.
As ervas tinham sido colocadas em doses precisas, calculadas.
Quem preparava aquilo era um curandeiro com muitos
conhecimentos medicinais.
Ikaris deixou que o líquido continuasse circulando em sua boca,
absorvendo cada detalhe até se sentir satisfeito e engoli-lo de uma
só vez.
Por via das dúvidas, experimentou todos os frascos.
E concluiu a mesma coisa a cada gole e a cada teste.
Não havia nada de errado com o tônico. Nada de venenos,
nada de ervas perigosas. Era apenas um preparo muito bem feito
para aliviar tonturas e fraquezas.
Ninguém estava envenenando Maressa.
Ikaris guardou os frascos, dando pequenos passos pelo quarto,
até se ver debruçado na janela, encarando a noite fechada pela
chuva contínua.
O que ela tinha...
“É algo que está comigo desde sempre. E não há nada que
possa ser feito.”
A mera ideia de considerar que Maressa poderia...
Levou uma mão ao peito, bloqueando o pensamento que quase
o sufocou, um pensamento que não deveria existir, permitindo que ar
escapasse de forma lenta, dolorida e pesada de seus lábios.
Céus.
Que as estrelas que se recusavam a brilhar nas montanhas lhe
dessem forças para prosseguir até o fim.
22
Tempo de espera

— ISSO NÃO é justo, mãe. Você prometeu que me deixaria


fazer as coisas do meu jeito se elas não atrapalhassem as tradições
do reino.
— A situação mudou, Maressa — a rainha Sylvia decretou,
irredutível. — Além de nossos guardas não terem encontrado o
responsável pelas mortes do duque e do visconde, não posso ignorar
o quanto você se colocou em risco e ameaçou sua própria
reputação. Uma dama, principalmente uma princesa, jamais deveria
andar com um cavalheiro tão tarde da noite, sem alguém para
acompanhá-los, em uma área proibida do castelo.
— Lorde Ashera não sabe que sou uma princesa.
— Nem mesmo uma criada se prestaria a tal comportamento.
— A rainha passou os olhos de Maressa para Nina. — Não é
verdade, Nina?
A garota, com as mãos entrelaçadas em frente ao corpo,
baixou os olhos e assentiu.
— Sim, Majestade.
Maressa mordeu a parte interna da bochecha para se conter.
Nina, assim como qualquer outro criado do castelo, jamais iria
se opor à rainha. Aquela nem era uma pergunta justa.
— Minha decisão está tomada , Maressa — ela
continuou, o tom de uma rainha se opondo a qualquer flexibilidade
de uma mãe. — Até o baile do seu aniversário, você não assistirá a
mais nenhuma prova do torneio, tampouco circulará entre os
pretendentes como se fosse uma criada.
— Mas...
— Isto não é só uma punição pelo seu comportamento. É uma
medida drástica para a sua segurança.
— Mas...
— Quem matou o duque e o visconde ainda está por aí. — A
luz brilhante da manhã, após a noite tempestuosa, iluminava os
cabelos da rainha. — Os guardas fizeram inúmeras patrulhas e
continuarão realizando investigações em segredo. Cada ponto do
castelo e dos arredores está sendo vigiado ao máximo. O torneio
continuará apenas para não prejudicar a imagem de Arustar para os
reinos aliados. Mesmo assim, não quero arriscá-la. Será assim.
Entendeu?
Maressa abriu a boca para argumentar com a mãe; Nina tocou-
a de leve no braço. Ela puxou o ar e, contra a sua vontade, assentiu.
— Entendi, mãe.
— Nina, como você se passou pela minha filha, por medidas de
segurança, você também ficará longe da vista dos demais até a noite
do aniversário da Maressa.
— Sim, Majestade.
A rainha as fitou mais uma vez; um olhar que cintilava que não
aceitaria que suas ordens fossem desobedecidas.
As duas garotas a reverenciaram e, quando a rainha deixou o
quarto, os braços de Maressa caíram ao lado do corpo.
— Não acredito que terei que esperar até o meu aniversário!
— Você sabe que sua mãe está certa.
— Eu sei, mas... — Ela bufou, balançando os cabelos. — Odeio
esperar e me sentir presa enquanto as coisas acontecem lá fora.
— Podemos pedir para outras criadas trazerem informações
sobre os seus pretendentes e sobre como eles estão se saindo no
torneio.
Maressa se sentou na beirada da cama e apoiou o queixo nas
mãos.
— Não preciso saber mais nada sobre ninguém. Eu só...
Um sorriso de canto subiu na boca de Nina.
— Queria passar mais tempo na companhia de um certo lorde
antes que ele descubra que você é a verdadeira princesa?
Maressa afundou o rosto nas mãos.
— Ah, Nina, não sei o que está acontecendo comigo! Fico
pensando o que ele achará quando descobrir a verdade. Se vai rir,
se surpreender ou se enraivecer pela mentira. É como se meu
coração fosse sair pela boca a qualquer momento. Por que tenho
que me sentir assim?
— Há sentimentos que não podemos controlar. — Gentilmente,
Nina se sentou ao seu lado e segurou suas mãos. — E já que
teremos que ficar por aqui, por que não me conta o que aprontou nos
últimos dias? Como você conseguiu se aproximar do lorde Ashera?
— Foram os livros que nos aproximaram.
— Como assim?
Maressa se virou, apanhando o livro Castelos e Sonhos que
guardava como se fosse o tesouro mais precioso de Arustar.
— Ele me deu este livro.
— Por quê? O que aconteceu para ele te dar um presente, sem
saber quem você é?
A pele de Maressa esquentou.
— Bom... Bom...
Nina apontou para o rosto dela e sorriu, travessa.
— Por que suas bochechas estão vermelhas?
— Bom... — Maressa apertou o livro contra o peito, segurando
um risinho constrangido que só serviu para fazer seu coração bater
mais rápido. — Se eu te contar uma coisa, você promete guardar
segredo?

◆◆◆

Nos dias que se seguiram depois das marcas nas paredes e


das descobertas nos corpos, Ikaris permaneceu com seus sentidos
em alerta no grau mais elevado que conseguiu.
Não detectou outro rastro de magia.
Não se deparou com mais nenhuma criatura encapuzada
andando pelas sombras e devorando homens.
Não conseguiu retornar para a câmara e para os livros erelins,
pois os guardas ficavam postados na entrada da alcova dia e noite.
E, para o desespero que ele não queria admitir que sentia, não
voltou mais a ver Maressa.
Durante uma tarde, com os nervos à flor da pele, Ikaris acabou
pensando alto demais.
— Se ela tiver sido punida porque entramos na câmara dos
livros sem autorização...
Bem ao lado de Willelm.
— Fui até a cozinha ontem à noite e fiz perguntas sobre a sua
garota — o duque informou. — E, antes que você diga algo,
companheiro, tenho notado sua inquietude e relacionei os fatos.
Ikaris se controlou para não grunhir uma resposta e mandar o
duque cuidar da própria vida. Porque, no fundo, queria respostas.
Virou o rosto para Willelm.
Os olhos do duque brilhavam, ansiosos pelo que Ikaris falaria a
respeito de seus feitos.
Ele inspirou fundo.
— E o que você descobriu?
— As cozinheiras me disseram que ela está bem, apenas tem
estado ocupada demais com a princesa, minha futura esposa — ele
acrescentou com um sorriso que mostrava toda a linha branca de
seus dentes. — Afinal, o baile de aniversário ocorrerá amanhã à
noite.
O baile de aniversário.
Aquela informação agitou seu sangue, trincou seus ossos.
— Enfim, foi isso que descobri. — Willelm deu dois tapinhas
amigáveis no ombro dele. — Não precisa me agradecer.
Os olhos de Ikaris correram pelo salão, passando pelos
homens que jogavam carteados, para alguns rostos cujos nomes ele
gravara, como Sir Edimburgo e seu cavalariço Hakon, e outros
homens da nobreza. Todos aguardavam pelo baile e pelo anúncio do
campeão com ansiedade.
Sabia o que aquilo significava.
O momento de cumprir a profecia mostrada pelas estrelas e a
missão de Iohanna estava chegando.
Seus lábios se contraíram, duros, amargos.
Talvez aquele distanciamento forçado de Maressa fosse
necessário, mesmo sentindo que o ar não entrava direito em seus
pulmões por tê-la longe de sua vista.
Porque, quando os sinos soassem na noite seguinte, tudo
mudaria.
Ele apenas esperava que aquela inquietude hesitante o
deixasse de uma vez por todas antes do baile.
23
Soar das trombetas

ELE ESTAVA andando pelas ruínas da Cidadela Prateada.


Não sabia como havia chegado ali, mas reconhecia as
construções de seus povos, o suspiro dos tempos de glória.
Ele baixou os olhos. Havia uma adaga em sua mão. Sangue
vermelho e espesso revestia a lâmina.
Seu rosto se contraiu.
Havia apunhalado alguém?
De súbito, o céu começou a brilhar.
Pontinhos luminosos desceram sobre as ruínas da Cidadela
Prateada; eram pequenas estrelas que beijavam a destruição.
Uma delas caiu bem na sua frente.
Ele precisou proteger o rosto para a luz não ferir seus olhos.
A estrela se transformou em uma figura dourada e flamejante;
tão brilhante que ele não conseguia ver seu rosto, apenas as asas
iridescentes que brotavam das costas, abertas e largas.
Um suspiro maravilhado deixou seus lábios.
Nunca estivera tão perto de algo tão belo e puro.
Por entre a luz dourada, uma mão delicada foi estendida na sua
direção; uma oferta, um convite.
Ele tentou segurá-la.
O sangue gotejou da ponta da adaga.
E o mundo foi engolido em sombras e fogo.

◆◆◆
Foi o hálito quente em seu rosto que obrigou Ikaris a abrir os
olhos.
Seu coração batia rápido no peito; a respiração era um chiado
descompassado e entrecortado.
Ele piscou, grunhindo ao sentir uma corrente de dor
avassaladora se alastrar pelas suas costas. Virou de lado, e então
percebeu que não estava em sua cama, tampouco em seu quarto, e
sim em um chão duro de terra.
Seus olhos se estreitaram, assimilando o espaço.
Ele estava...
No meio do bosque do castelo?
Olhou em volta, confuso, a respiração descompassada,
entrecortada pelo farfalhar das árvores que recebiam a luz do
amanhecer.
Como vim parar aqui?
Mil e um pensamentos atravessavam a cabeça de Ikaris. Não
se lembrava de ter deixado seus aposentos no meio da noite, muito
menos de ter caminhado até o bosque.
Será que estou sofrendo de distúrbios do sono?
Antes que ele pudesse encontrar uma resposta, sentiu outra
vez aquele hálito quente em sua nuca.
Segurando o ar, erguendo a guarda, Ikaris olhou para trás.
E se deparou com um par de olhos animalescos costurados de
preto e dourado.
A raposa gigante.
Raio de Luar o espreitava como se sondasse seus
pensamentos, sua alma, seu coração.
Havia algo diferente naquela criatura, que agitava até a última
gota do seu sangue.
Ignorando os riscos, sabendo que já havia sido mordido uma
vez, Ikaris estendeu uma mão sobre a cabeça dele; a pelagem que o
fazia pensar em fios prateados era tocada pelos primeiros feixes do
sol.
“Tenho a impressão de que Raio de Luar fareja quem quer
derramar sangue”, a voz de Maressa roçou em seus ouvidos. “E
então ataca”.
Mas o lobo não se moveu, não rosnou.
A mão de Ikaris acariciou a cabeça do animal.
— Quem é você?
O vento soprou, erguendo seus cabelos escuros.
Raio de Luar se afastou gentilmente, mas sem jamais deixar de
observá-lo, o olhar descendo para a outra mão que Ikaris mantinha
fechada.
Acompanhando o movimento dos olhos da raposa, ele fitou a
própria mão. Somente naquele momento percebeu que estava
segurando e guardando alguma coisa ali.
Em um compasso lento, seus dedos se abriram.
Ikaris prendeu o ar.
Feito um prelúdio da morte, ele segurava o Suspiro de Áster
que seria usado para cumprir a missão de Iohanna naquela noite.

◆◆◆

Envolvida por metros de seda, pó de arroz, pérolas, diamantes


e todo o tipo de enfeite brilhante, Maressa tentava diminuir a
inquietação que se apossava de seu coração.
Mal vira o dia passar.
Assim que as criadas terminaram de arrumá-la, a noite reinava
outra vez no céu, e o baile mais esperado do ano acontecia no
castelo.
— Estou nervosa — ela confessou para Nina, enquanto
aguardava seu momento de entrar no salão.
— Andei fazendo umas perguntas por aí. Os guardas
patrulharam o castelo dia e noite — Nina sussurrou baixo, olhando
em volta para se certificar de que ninguém estava ouvindo a
conversa. — Não encontraram o responsável pelas mortes do duque
e do visconde. Ao certo, ele já fugiu e nem está mais em Arustar. Se
a rainha achasse que algo poderia te ameaçar, o baile seria
cancelado. E há guardas por todos os cantos.
Maressa entrelaçou as mãos em frente ao corpo.
— Não é com isso que estou preocupada.
— Você está linda. — Nina ergueu a mão, ajeitando uns fios
que haviam se soltado do penteado. — Todos os olhos estarão
voltados para você assim que você entrar no salão de baile.
— Eu sei, mas... Até o pôr do sol de hoje, tudo pareceu uma
brincadeira, uma travessura... Agora... Agora é real.
Nina abriu um sorriso gentil.
— Ele vai adorá-la do mesmo jeito, Maressa.
Ikaris.
Maressa puxou o ar e quis se agarrar com todas as forças nas
palavras de Nina. Mas, desde que acordara naquele dia, uma
impressão estranha se agarrava em seu coração.
Ikaris.
Ah, e como queria ter conversado com Ikaris antes da noite do
baile. Ao menos, queria tê-lo visto mais uma vez, tocado seus lábios
mais uma vez, antes que seu destino fosse traçado pelas mãos de
outros, como havia acontecido com cada princesa nascida em
Arustar.
Ikaris.
Ela levou uma mão ao peito, fechando os olhos.
Era como se o nome dele vibrasse e estremecesse por toda a
sua pele, até chegar ao âmago de sua alma.
— Está na hora, Alteza — um guarda informou.
Maressa assentiu e abriu os olhos.
Com a ajuda de Nina, ela se aproximou do alto da escada, o
vestido farfalhando em ondas brilhantes aos seus pés.
— Vai dar tudo certo.
— Obrigada.
Maressa soltou a mão de Nina, endireitou os ombros, esperou
que as trombetas tocassem e seguiu em frente.

◆◆◆

Centenas de velas e arranjos florais decoravam o grande salão


de baile do castelo. Segurando uma bebida que ainda não havia
provado, Ikaris tentava afastar aquele borrão inquieto que se remexia
em seu âmago.
Era como se algo estivesse errado.
Nele.
Dentro dele.
Em tudo ao redor dele.
Sentia-se assim desde que despertara no bosque, com o gosto
do sonho pairando em sua boca, com os olhos do lobo cravados em
seu rosto.
— Estou ansioso — Willelm falou, sorvendo um gole do líquido
em sua taça cristalina. — E você?
— Curioso — foi tudo o que Ikaris conseguiu responder,
correndo os olhos por todos os nobres bem-vestidos que
aguardavam pelo grande momento da noite. Os alfaiates do castelo
haviam sido enviados para tirar as medidas de todos os
competidores dias atrás; e agora, lá estava ele com os demais
nobres, enfiados em roupas elegantes e requintadas.
Em um palanque, uma orquestra tocava músicas agradáveis.
Criados circulavam entre os nobres, servindo bebidas e petiscos.
Ikaris fitava cada um deles, buscando pelo rosto de Maressa, mas
não havia sinais de que ela estava trabalhando naquela noite.
Maressa.
O nome dela estremecia em seus lábios.
Maressa.
Aceitara a distância de não vê-la pelos corredores do castelo
nos últimos dias, desde o aparecimento e desaparecimento da
misteriosa criatura encapuzada, como uma forma de retomar o foco
de sua verdadeira missão e obrigação para com seu povo.
Mas...
Maressa.
Quando percebia, estava olhando para os cantos, buscando
por um inconfundível par de olhos safiras, desejando provar mais
uma vez o sabor proibido dos lábios marcados nos seus.
— Curioso? — Willelm arqueou as sobrancelhas. — O que te
deixa curioso, lorde Ashera?
Ikaris se voltou para o duque.
— Ainda acho esta tradição de Arustar estranha. Sabe, vários
homens disputando a mão da princesa e ela tendo que aceitar o
vencedor.
Willelm deu de ombros.
Ikaris não complementou a fala, não acrescentou que, entre o
povo erelin, aquelas práticas não existiam. Não havia casamentos
arranjados ou contratos para forjar alianças. Todas as uniões eram
feitas única e exclusivamente por amor e pelo desejo dos dois
envolvidos de estarem juntos.
Como alguém poderia fazer votos eternos a outro sem amor?
Era algo inconcebível para ele.
— Bom, tradições são tradições. Espero que a princesa goste
do meu presente. — Willelm tocou o bolso do paletó. — Já dei flores
para ela, mas a tradição pede para que cada pretendente traga um
presente na noite do aniversário. Você preparou algo para ela?
Ikaris se limitou a um aceno de cabeça.
Havia colocado o Suspiro de Áster em um colar, feito um
pingente brilhante. Na hora que a pedra tocasse o corpo da
princesa...
Seu coração se contraiu.
Ikaris levou a mão ao peito.
Era apenas uma missão. Uma maldita missão. Uma pequena
vingança, perto de tudo o que havia sido feito para o seu povo.
“É por isso que quero dar uma última mensagem aos nossos
inimigos”, a voz de Iohanna o alcançou, “pois a noite do aniversário
da herdeira é perto da data em que nossa guerra completa duas
décadas”.
Mas, então, por que ele não parava de olhar para a porta? Por
que não conseguia aplacar o desejo de deixar o salão, o castelo,
Arustar, e voltar para as montanhas de mãos vazias e cabeça baixa?
“Quero que o sangue dela se derrame sobre a história que
todos querem apagar das memórias”.
Por que a ordem de Iohanna batalhava e conflitava com alguma
coisa forte e desobediente dentro dele?
Devia lealdade à Iohanna.
Ao seu povo massacrado.
Às asas cortadas dos erelins.
Ao ódio visceral que todos eles nutriam pelo exército das Cinco
Alianças e pelo Reino de Arustar.
Mas...
Sentiu a mão de Willelm em seu ombro.
— Você está bem, lorde Ashera?
Ikaris não teve tempo de responder.
Em uníssono, as trombetas soaram.
Todas as cabeças se viraram para uma só direção.
E, no alto da escada, a princesa de Arustar surgiu.
24
Mundo dissolvido

SEUS OLHOS foram inundados pelas velas brilhantes que


iluminavam o grande salão de baile.
Erguendo o queixo e segurando a saia do vestido, Maressa
iniciou a descida. Seus lábios carregavam um sorriso enigmático,
como fora ensinada desde cedo a sorrir. Em algum lugar, a música
tocava para homenagear sua entrada, mas ela mal a ouvia; o
coração rugia tão forte e estridente no peito que ela achou que todos
poderiam escutar.
Maressa puxou o ar, escondendo a respiração descompassada.
Uma leve tontura ameaçava tomá-la; ela não sabia se aquela
fraqueza era uma provocação da sua maldita doença ou um reflexo
do nervosismo do que a esperava naquela noite.
Aguente, garota. Não vá fraquejar agora. Você é a princesa.
Você é a herdeira do trono. Você controla seu destino.
Sem mexer a cabeça, seu olhar se moveu por entre os
convidados.
E então Maressa o viu.
E foi capturada pelo cinza tempestuoso daquelas íris.
Seu coração bateu mais alto, mais ansioso.
A força que ameaçava deixá-la se restaurou.
Um sorriso mais certeiro tomou seus lábios.
Pois tudo o que ela conseguia focar, tudo o que ela conseguia
ver, enquanto descia para o coração do salão, eram os olhos dele.
◆◆◆

A bebida quase caiu da mão de Ikaris quando ele viu Maressa


no topo da escada, levantando a saia com uma elegância nobre
enquanto descia degrau por degrau, recebendo todos os olhares e
suspiros.
O vestido dela, branco e sofisticado, acentuava sua beleza. Os
bordados, com milhares de inúmeros cristais, sorviam e refletiam as
luzes dos candelabros, como se Maressa estivesse vestindo o
próprio céu estrelado. Ikaris quase cambaleou, e ele não era alguém
que perdia o equilíbrio. Seus cabelos dourados estavam presos no
alto da cabeça, entrelaçados com fios de pérolas, deixando brincos
brilhantes à mostra.
— O que está acontecendo? — Willelm balbuciou, confuso
como os demais participantes do torneio. — Onde está a princesa?
O mundo se desfez ao redor de Ikaris com uma única
percepção.
Ela é a princesa de Arustar. Maressa é a princesa.
Um milhão de pensamentos o atingiram.
Fazer perguntas.
Confrontá-la.
Cair de joelhos.
Não.
Fugir.
Desaparecer.
Não é possível.
Deixar o salão sem olhar para trás.
Mas os pés de Ikaris não se moviam. Ele não conseguia fazer
nada a não ser observá-la, admirá-la, sorvê-la, o coração batendo
tão alto que abafava o som da orquestra.
Tudo o que conseguia fazer era olhá-la, receber em suas íris o
brilho hipnotizante que se espalhava pelas safiras dos olhos dela.
Quando Maressa chegou no último degrau, ainda mais bela e
mais brilhante para Ikaris, os aplausos encheram o salão.
Ele soltou o ar que não sabia que estava prendendo.
“Os portões do castelo de Arustar serão abertos pela primeira
vez em muito tempo, para comemorar uma antiga tradição do reino
que fez nossa raça sucumbir”.
— Mas esta não é a princesa... — As palavras se enrolavam de
forma confusa e baixa na boca de Willelm. — Esta é a criada da
princesa, não é? Onde está a minha princesa? Aquela para quem
entreguei as flores?
A cabeça de Ikaris girava.
“Use de sua inteligência para adentrar no palácio. Quero que
mate a herdeira do trono na noite do aniversário dela”.
De outra porta, a rainha Sylvia surgiu.
Todos os convidados se curvaram para reverenciá-la enquanto
ela adentrava no salão e andava até Maressa, a cauda longa do
vestido azul se arrastando pelo chão.
“É por isso que quero dar uma última mensagem aos nossos
inimigos”
A rainha tomou a mão de Maressa, que a reverenciou com
respeito.
— Boa noite! — De mãos dadas com Maressa, a rainha Sylvia
se voltou para os convidados. — Quero agradecer a todos que
participaram do torneio e que estão aqui hoje para celebrar o
aniversário de vinte e um anos da minha filha Maressa, a princesa e
herdeira de Arustar.
Mais aplausos irromperam dos convidados.
“Pois a noite do aniversário da herdeira é perto da data em que
nossa guerra completa duas décadas”.
Ikaris sentiu Willelm cotovelá-lo, mas ele se viu incapaz de
erguer as mãos e aplaudir junto com os demais.
Era como se todo o ar houvesse sido roubado dele.
Era como se seu coração se recusasse a bater.
Era como se a desgraça experimentada por sua raça ainda não
tivesse sido agonia suficiente para ele.
“Quero que o sangue dela se derrame sobre a história que
todos querem apagar das memórias”.
— Sei que muitos de vocês devem estar se perguntando o que
aconteceu nestes últimos dias — a rainha continuou. — Minha filha
queria conhecê-los sem revelar a verdadeira identidade. Aquela que
vocês viram nos eventos nestas últimas semanas é uma de nossas
mais leais criadas.
Os olhares da rainha e de Maressa se voltaram para o outro
lado do salão, onde a garota que Ikaris acreditava que era a princesa
— que era o alvo de Iohanna — estava parada em pé, escoltada por
guardas.
Willelm balançou a cabeça, atônito.
— Aquela. Aquela é a minha princesa.
Mais algumas homenagens e agradecimentos foram feitos.
Ikaris sequer os ouviu.
A sensação era de que o chão tinha se dissolvido aos seus
pés, e que a única coisa que o mantinha firme, que o segurava feito
um fio frágil e trêmulo, eram os olhos de Maressa presos aos seus.
— Como dita a tradição, minha filha dançará agora com cada
um de seus pretendentes e receberá o presente que vocês
trouxeram para ela — a rainha anunciou em um tom solene. — Ao
final da última valsa, eu também entregarei um presente para ela.
Que a festa continue!

◆◆◆

Por entre a escuridão e as passagens úmidas, a criatura se


movia com uma velocidade sobrenatural.
Minhas forças estão completamente restauradas, mestre.
Ainda sentia fome, mas o sangue e a carne do qual havia se
alimentado nos últimos dias, junto da magia do mestre, faziam com
que todo seu corpo despertasse, acentuando sentidos adormecidos
há anos.
E agora posso sentir com mais clareza.
Arfava com violência, com um objetivo certeiro.
Sua capa caiu e ficou para trás.
Mestre, tem mais um erelin dentro do castelo.
Pulou, saltou, rosnou alto enquanto a pele das costas se
rasgava, furando a carne e o tecido.
Mestre, tenho que agir. Ou nossos planos serão destruídos.

◆◆◆

Pelo que pareceu durar uma eternidade, Maressa dançou com


cavalheiros, duques, marqueses e viscondes. Aceitou seus
presentes, agradeceu-os como uma princesa deveria fazer. Mas
nada daquilo despertou-a por dentro, nada agitou seu sangue, nada
cintilou em seus olhos.
— Duque Willelm, aproxime-se da princesa.
Como já havia feito inúmeras vezes, Maressa se virou para o
cavalheiro seguinte, aceitou sua mão e se deixou ser conduzida para
o centro do salão. A dança começou. Apesar dos modos, o duque
tinha graciosidade nos passos, mas parecia tão desconfortável
quanto ela.
— Perdoe-me pela pergunta, Alteza... Mas qual é o nome dela?
Levou alguns instantes para Maressa entender.
— Nina.
Willelm moveu os lábios, e Maressa teve certeza de que ele
experimentava o som sussurrado do nome de Nina.
Ao final da música, o duque Willelm deu um passo para trás e a
cumprimentou com uma reverência. O presente dele foi entregue
para Maressa; era um bracelete de ouro com pequenos pingentes de
flores, algo que a fez pensar em Nina, e não em si mesma.
— Muito obrigada pelo presente, duque Willelm.
Os convidados se preparam para a próxima dança.
— Lorde Ikaris Ashera, aproxime-se da princesa.
O coração de Maressa quase saiu para fora do peito.
Pois, naquele momento, enquanto virava-se para ele, com o
vestido abrindo e brilhando ao seu redor, nada mais importava.
Como se medisse cada passo, Ikaris caminhou até ela.
Naquele instante, ele não parecia um lorde, um nobre. Era
como se... Maressa contraiu os lábios. Não conseguia achar uma
palavra adequada, mas a presença pulsante dele a cercava, a
hipnotizava, roubava cada resvalar do seu fôlego e cada batida em
seu peito.
Ikaris parou diante dela, cumprimentando-a como os demais.
Mas seus olhos, em momento algum, deixaram os olhos dela.
Com o coração apertado, Maressa sentiu uma leve pontada de
desespero por não entender o que se escondia nas linhas do rosto
dele.
Ikaris estendeu a mão.
— Dança comigo, Alteza?
A orquestra ainda estava tocando? O baile ainda acontecia?
Ela piscou, entreabrindo os lábios para sorver o ar com
discrição.
O mundo tinha encolhido, derretido no brilho dourado das
velas, se refeito na luz cinzenta dos olhos dele.
Com uma reverência, Maressa aceitou a mão de Ikaris e deixou
que ele a conduzisse para o centro do salão.
25
Máscaras

SEGURANDO A mão delicada de Maressa, Ikaris a conduziu


para o meio do salão, rodeados pelos convidados que aguardavam o
início da próxima dança.
Ele deveria ter perdido a razão com o choque.
Deveria ter enlouquecido por ainda estar ali.
Posicionaram-se um de frente para o outro. As primeiras notas
da valsa já suspiravam por entre os instrumentos da orquestra.
Quando os olhos de Maressa encontraram os dele, safiras
brilhantes sob as velas, Ikaris se esqueceu da missão, do exílio, do
castelo dos inimigos que se erguia ao seu redor. As marcas na
parede e a estranha criatura encapuzada se dissiparam de sua
mente.
Havia apenas o toque da mão dela na sua, a música e a
princesa vestida de luz e estrelas.
Ikaris deslizou a outra mão ao redor da cintura de Maressa,
sentindo-a estremecer discretamente com o contato, enquanto
apoiava uma das mãos sobre o braço dele. O perfume dela, o calor
dela, a presença dela... Tudo o atingia com uma força estarrecedora
e única.
A música se iniciou.
Maressa ergueu o rosto quando eles começaram a se mover;
primeiro, em passos lentos, de acordo com o ritmo tocado,
acompanhando a cadência da valsa que se desenvolvia.
O coração dele era uma tempestade viva.
Com o canto dos olhos, Ikaris captava a rainha sentada em um
palanque mais alto, com um embrulho no colo — o presente que ela
daria à filha quando todas as danças terminassem.
O presente que ela daria à Maressa.
Porque Maressa era a filha e herdeira da rainha.
— Então, você não é uma criada do castelo — ele murmurou, o
semblante sério, guiando Maressa pela música. — Você é a
verdadeira princesa de Arustar.
A respiração dela ficou irregular, mas Ikaris não conseguia tirar
os olhos dela, não conseguia parar de dançar, não conseguia dar um
fim àquela insanidade que consumia cada centelha do seu corpo.
Maressa assentiu.
— Foi um plano que criei para poder me aproximar de vocês.
— Por quê?
— Para poder conhecê-los melhor, livre de títulos e
julgamentos. — A voz dela era uma nota cheia de suspiros sob o
compasso da melodia. — Mas, mesmo com essa máscara, sempre
fui eu mesma. Alguém que ama livros e que deseja aventuras.
A música adensou, se intensificou; Ikaris levou Maressa através
da melodia, o vestido dela se abrindo a cada giro, cintilando, como
se as pedrinhas brilhantes fossem soltar faíscas luminosas a
qualquer momento.
— Não suspeitei de nada.
— Você não foi o único.
Nenhum dos dois sorria, nenhum dos dois desviava o olhar,
envolvidos por algo mais forte do que a vontade, a agonia e o dever.
— Willelm ficou bem surpreso.
— Acho que ele gostou mesmo da Nina.
A cada giro, a cada movimento, a cada passo, lampejos
explodiam atrás dos olhos de Ikaris; cenas e memórias das últimas
semanas no castelo, dos momentos ao lado de Maressa, do conflito
crescente em seu coração.
Uma princesa.
Não.
Ela era muito mais do que uma princesa, do que uma herdeira.
Já ele...
O braço de Ikaris pressionou ainda mais a cintura dela, como
se Maressa pudesse se dissolver a qualquer instante, os pés se
movendo no ritmo da valsa.
— Devo dizer que você realmente me enganou, princesa. E
isso é algo que poucos conseguiram.
Ela ergueu o rosto, Ikaris a girou; a saia do vestido brilhou sob
as luzes infinitas dos candelabros.
— Está chateado comigo, lorde Ashera?
Ikaris puxou Maressa para perto. O corpo dela roçou no seu, as
respirações se entremearam, o ar crepitou. Todo o resto ao redor
deles não passava de um borrão.
— Nem mesmo se eu quisesse — ele sussurrou.
Nem mesmo se eu quisesse.
A mão dela se apertou ao redor da sua.
Ikaris precisou se controlar para não levar os nós dos dedos
aos seus lábios e beijá-los.
Podia escutar as batidas do coração dela; ou aquele som
selvagem e furioso vinha do rugido do próprio peito?
Com as notas finais, a valsa se encerrou.
As mãos dela se soltaram das dele.
Ikaris quase a segurou e a puxou de volta para si.
Maressa deu um passo para trás, fazendo uma reverência em
agradecimento à dança; Ikaris, em um gesto automático, a imitou. Ao
abaixar a cabeça, fitou o chão, os próprios pés, o furacão que o
engolia.
“Quero que o sangue dela se derrame sobre a história que
todos querem apagar das memórias”.
Sentiu as mãos se fecharem em punhos rígidos.
Iohanna... Não posso... Não consigo.
— Minha nossa! — ela suspirou, maravilhada. — Que lindo!
Levou apenas alguns segundos para Ikaris se recompor e se
virar na direção de Maressa.
Não.
Os batimentos aceleraram.
Não.
Um dos membros da corte carregava a caixinha de veludo
aberta, mostrando um colar com um pingente luminoso.
Não.
O presente. O maldito presente.
Não.
O mundo pulsou e gritou ao redor dele quando os dedos dela
se inclinaram na direção do Suspiro de Áster.
— Não! Maressa, se afaste!
Maressa o fitou, confusa.
Ele ergueu o braço, batendo a mão na caixinha de veludo; a
pedrinha brilhante voou no ar, e para o choque de Ikaris, explodiu
entre eles em uma chuva de milhares de estrelas.
Os convidados arquejaram, surpresos.
No mesmo instante em que as portas do salão foram
escancaradas.
Um grunhido assustador ecoou pelo ambiente.
— Ikaris Ashera não é um lorde! Ele é um erelin!
26
Lendas sombrias

MARESSA NÃO teve tempo de processar tudo o que


aconteceu.
Em um instante, estava prestes a tocar o belo pingente do colar
que Ikaris lhe dera de presente; no outro, o lorde gritava e batia na
caixinha de veludo, lançando a pedra para o alto.
Uma pedrinha que explodiu e lançou feixes brilhantes no ar,
como se o céu houvesse derramado suas estrelas no salão de baile.
Aquilo arrancou exclamações dos convidados.
As portas do salão se abriram em um rompante.
Hakon, o cavalariço de Sir Edimburgo, surgiu da abertura. Ele
arfava, o rosto molhado de suor, os cabelos desgrenhados, as
roupas rasgadas.
— Ikaris Ashera não é um lorde! Ele é um erelin!
Um coro de exclamações cadenciou o ambiente outra vez.
Hakon ofegava e apontava para Ikaris.
Atônita, Maressa girou, o vestido se abrindo em seu redor como
um arco branco e reluzente.
Por entre o brilho da pedra que girava e explodia no ar,
Maressa buscou pelos olhos de Ikaris.
Isso é verdade?!
Ela não moveu os lábios, não deu voz à pergunta.
Mas o semblante dele confirmou aquilo que ela mais temia.
O coração dela falseou no peito.
— Maressa, eu...
Ela deu um passo para trás, erguendo as mãos.
Seus dedos tocaram os pontos brilhantes que a pedra soltava.
Maressa arfou e foi empurrada para trás; a sensação foi como
ser beijada por um fogo intenso que não queimava.
Os olhos de Ikaris dobraram de tamanho, e ele avançou sobre
ela, segurando seu braço e impedindo sua queda.
Antes que pudesse falar ou fazer qualquer coisa, ou até mesmo
empurrar um dos maiores inimigos do reino de Arustar que estava
ali, bem na sua frente, algo aconteceu com Hakon.
O cavalariço rosnou; um som bestial, nada humano.
O resto de suas roupas caiu ao chão.
E, diante dos olhos de todos, ele se transformou; a pele clara
se tornou cinzenta, os olhos se avermelharam, os ossos estalaram,
como se estivessem se amplificando.
Os guardas armados com lanças e espadas avançaram contra
ele; foram derrubados com um só golpe.
Maressa arquejou, incapaz de acreditar no que seus olhos
viam.
Das costas de Hakon — do que é que fosse Hakon — asas
negras brotaram e se abriram.
E a criatura os farejou.
Da mesma forma que a figura encapuzada da biblioteca tinha
feito.

◆◆◆

Ikaris não teve tempo para se chocar com a revelação da sua


identidade, tampouco entender o comportamento do Suspiro de
Áster, que girava no ar e continuava explodindo faíscas brilhantes
para todos os lados.
Ele se jogou sobre Maressa, protegendo-a com o próprio corpo
quando Hakon se transformou por completo, abrindo asas enormes e
negras, semelhantes às asas de um morcego.
Gritos encheram o salão.
A criatura alçou voo; atrás dela, criaturas menores voavam e a
seguiam, carregando cheiro e sede de sangue.
Sem soltar Maressa, ele arriscou olhar para cima.
Não é possível.
Mas suas suspeitas estavam certas.
Desde que derramara o sangue negro e lustroso da figura
encapuzada, ele havia suspeitado de sua natureza.
Apenas se recusara a acreditar.
A criatura era um Nefastus.
Algo que ele achava que só existia nas mais sombrias lendas
erelins.
E estava mergulhando na direção da rainha para atacá-la.

◆◆◆

Hakon, o calado e meticuloso cavalariço de Sir Edimburgo, era


a figura encapuzada da biblioteca.
A conclusão atordoante golpeou Maressa.
E, pela expressão de Sir Edimburgo, que mantinha as costas
coladas contra a parede e os olhos arregalados, ele estava tão
surpreso e aterrorizado com a transformação quanto qualquer outra
pessoa naquele salão.
Maressa arfou.
E se desesperou quando aquilo abriu as asas, se ergueu em
um rompante e voou na direção de sua mãe.
— Não! — Ela se soltou dos braços de Ikaris, tomada por um
terror avassalador. — Não!
— Maressa, fique aqui! Aquilo é um Nefastus! E há muitos
carniçais com ele! — Ikaris bradou, as mãos se fechando ao redor
dos braços dela. — São perigosos demais! Tanto o Nefastus quanto
os carniçais devoram carne humana e animal!
Mas ela pouco se importou com as palavras dele.
— Me solte!
Maressa empurrou Ikaris com toda a força que possuía em si;
ele tentou segurá-la, mas a onda de pessoas que corriam de um lado
para o outro acabou os separando.
Ela não olhou para trás.
Acima de sua cabeça, uma camada fina e brilhante pairava no
ar.
Maressa esticou a mão, lutando para chegar até a rainha.
— Mãe!
A rainha se levantou, os olhos arregalados; no mesmo instante,
a criatura alada avançou sobre Sylvia, derrubando os guardas que a
protegiam e prendendo-a em suas garras.
O mundo estremeceu e desacelerou para Maressa.
— Mãe!
— Maressa! — sua mãe gritou, estendendo a mão ao ser tirada
bruscamente do chão.
O embrulho que a rainha segurava caiu de suas mãos, rolando
aos pés de Maressa enquanto ela era levada para cima, aprisionada
nas garras da criatura alada.
O tecido se abriu, revelando uma pedra angular.
A cabeça de Maressa girou no meio do caos e da confusão.
É a pedra que os arqueólogos encontraram? Este o presente
que ela ia me dar?
Arfando, Maressa agarrou a pedra e continuou correndo. Com
um impulso, o Nefastus se chocou contra a janela mais alta. Cacos
afiados choveram sobre ela. Da abertura feita na janela, o vento
soprava.
— Maressa! — Nina gritou, correndo até ela.
Quando Maressa virou o rosto, já era tarde demais.
— Nina, cuidado!
Foi muito rápido.
As criaturas que Ikaris chamara de “carniçais” vieram sobre
elas.
Nina e Maressa se agarraram.
Não havia para onde fugir.
Só tinha uma coisa que podiam fazer.
As duas se entreolharam em um acordo mudo e desesperado.
E, juntas, saltaram através da janela.

◆◆◆

Ikaris caiu, rolou e se levantou com habilidade quando o salão


estremeceu e o Nefastus capturou a rainha, estourando o vidro da
janela e alçando voo para o céu.
Os pequenos carniçais continuavam ali, projetando-se como
morcegos bestiais sobre os membros da nobreza e os criados.
Mas, toda vez que tentavam atacar alguém, eles falhavam.
Ikaris piscou.
E então viu.
Era como se a magia remanescente do Suspiro de Áster
estivesse formando um véu protetor sobre o salão.
Algo que estremecia e que, aos poucos, se apagava, conforme
os carniçais investiam contra o escudo translúcido.
Como isso é possível?!
Nunca tinha visto nada como aquilo.
E não havia tempo para entender.
A situação estava completamente fora do controle.
Tenho pouco tempo. Tenho que pensar em algo.
Atônito, Ikaris viu o momento em que o Nefastus estourou a
janela e desapareceu com a rainha, seguido do momento em que
Maressa e Nina foram atacadas por uma nuvem de carniçais e
pularam pela janela para se salvarem.
— Maressa!
Ele nunca tinha sentido tanto medo em toda a sua vida.
— Maressa!
— Aquelas coisas foram atrás delas! — Willelm arquejou.
Ikaris trincou a mandíbula.
Não conseguia entender o que estava acontecendo ali.
Mas não deixaria que nada machucasse Maressa.
Ikaris sacou as adagas escondidas nas roupas; Willelm brandiu
um florete.
E, juntos, eles dispararam para fora do salão.

◆◆◆

De mãos dadas com Nina, apertando a pedra angular contra o


peito, Maressa corria pelo jardim do castelo, buscando proteção das
criaturas selvagens que tentavam morder e rasgar suas carnes.
Sentia dor por todo o corpo por causa da queda.
Mas o instinto de sobrevivência gritava mais alto.
Implorava para que ela não parasse de correr.
Os olhos dela se mantinham no alto, lutando para não perder a
besta alada que antes era Hakon, e que agora subia para o céu
noturno, levando a rainha como prisioneira de suas garras.
— Mãe! Mãe!
Maressa praguejou contra o próprio vestido. Era uma batalha
árdua correr e não tropeçar na barra. Se Nina não estivesse lhe
oferecendo apoio, já teria caído.
— Mãe!
Lágrimas ardiam em seus olhos.
Já não conseguia mais enxergar o Nefastus e sua mãe,
misturados às cores sombrias do céu.
Não. Não. Não.
— Maressa! Eles voltaram!
O grito de Nina a arrancou do torpor.
Vários carniçais cruzavam o jardim, voando na direção delas.
Maressa arfou.
— Nina, use o que conseguir pegar para afastá-los!
Elas apanharam os galhos que encontraram pelo caminho e os
atiraram na direção dos carniçais.
Mas, quanto mais os atacavam, mais ferozes eles ficavam.
— Maressa, cuidado!
Ela se virou, os cabelos se soltando do penteado.
Um carniçal mergulhou em sua direção, com os dentes prontos
para se cravarem em seu pescoço.
Houve um guincho, um zumbido no ar.
Uma adaga veloz e brilhante cortou o jardim, atingindo o
carniçal em cheio.
A criatura despencou e caiu ao chão.
Com o coração descompassado, Maressa ergueu os olhos,
vendo Ikaris e Willelm correndo na direção delas.
Atrás deles, mais carniçais vinham.
— Para os estábulos!
Diante da ordem de Ikaris, Maressa e Nina se viraram e
correram para os estábulos. Willelm e Ikaris se mantinham na
retaguarda dela, atacando e golpeando os carniçais que os
sobrevoavam com as presas à mostra.
— Willelm, sele um cavalo! Selarei o outro! — Ikaris respirava
rápido. Maressa percebeu que aquela era a primeira vez que o via
daquele jeito; livre de amarras, de máscaras, de qualquer simulação.
— Garotas, preparem-se para subir quando eu mandar!
Notou que Ikaris prendeu, na lateral do animal, um alforje que
parecia carregado de coisas, como se ele já o tivesse deixado
preparado muito antes daquela confusão começar.
— Rápido!
— Minha mãe! — Maressa segurava a pedra angular uma mão;
com a outra, apontava para o castelo. — As outras pessoas...!
— Não podemos voltar! — Ikaris bradou. — Seremos
devorados pelos carniçais e nada mais importará! A proteção
concedida pelo Suspiro de Áster está se esgotando.
— Ou vamos morrer aqui mesmo! — Willelm arfou, apontando
para o alto. — Tem mais deles vindo aí!
Maressa virou o rosto; Ikaris fez o mesmo.
Arquejou.
Ao longe, uma nuvem preta se movia velozmente pela noite,
em direção ao estábulo.
Ikaris praguejou algo em um idioma que ela não conhecia.
Mas que foi suficiente para Maressa entender que eles não
teriam forças para lutar contra tudo aquilo.
Sem que esperasse, as mãos de Ikaris se firmaram na cintura
dela; Maressa ofegou quando ele a levantou com uma facilidade
assustadora e a colocou sobre a cela do cavalo. Em um piscar de
olhos, ele também estava montado no animal, atrás dela, passando
as mãos pelas laterais de seu corpo para segurar as rédeas.
Willelm subiu no outro cavalo, estendendo a mão para Nina e a
ajudando a se sentar sobre a cela.
A nuvem de carniçais estava cada vez mais próxima.
Maressa virou o rosto, os cabelos roçando no queixo de Ikaris.
— Não posso abandonar minha mãe.
— Eu sei. Mas você não conseguirá fazer nada por ela se for
atacada pelos carniçais.
Ela engoliu em seco.
Ikaris podia ser o inimigo, podia ser um erelin, podia ter se
infiltrado no castelo por motivos que ela ainda não conhecia, podia
ser aquele que seu povo mais temia.
Mas, naquele momento, ela sabia que ele tinha razão.
— Segure-se. — O pedido sussurrado por Ikaris causou um
arrepio pela pele de Maressa; ela podia sentir a respiração dele em
seus cabelos, em sua nuca.
Mesmo hesitando, Maressa assentiu e o obedeceu.
E, com um único e preciso movimento, Ikaris incitou o cavalo,
assim como Willelm; juntos, os quatro dispararam para fora do
estábulo, cruzando os portões do castelo, avançando para os braços
escuros e enigmáticos da noite.
PARTE II
Jardim de Encantos

...O mais perto que chegara das fantasias e dos encantos


fora através dos livros que mais amava e de um beijo que a
levara até as estrelas...
27
Vigília

À MEDIDA que a noite avançava, Maressa foi perdendo a


noção do espaço. Não conhecia quase nada para além dos muros do
castelo, e não sabia dizer em que lugar do reino estava, ou se
sequer estava em Arustar.
Cavalgava em um silêncio exausto com Ikaris, ao lado do
cavalo de Willelm e Nina. Sentia que a adrenalina, o ataque e a fuga
do castelo começavam a cobrar um preço de todos.
Pelo menos, haviam despistado os carniçais.
Tentando não se concentrar nos braços de Ikaris, que
passavam pelas laterais do seu corpo para segurar as rédeas do
cavalo, ou para o peitoral forte dele onde suas costas vez ou outra
roçavam, Maressa deixava o olhar correr pelas estradas e trilhas,
pelo céu infinito e forrado de estrelas.
Ainda não conseguia acreditar em tudo o que tinha acontecido.
Para onde aquela criatura levou minha mãe?
Continuaram cavalgando, seguindo por uma trilha que os levou
para a floresta, até alcançarem uma clareira.
— Estou ouvindo barulho de água — Ikaris falou, quebrando o
silêncio exaustivo. — Deve haver um riacho logo após a clareira.
Maressa franziu o cenho. Não conseguia ouvir nada; algo que
só a fez imaginar o quão apurados eram os sentidos dele.
Porque Ikaris é um erelin.
Aquela revelação ainda era um choque.
Sabia que o erelins viviam exilados nas montanhas, mas...
Ikaris, de alguma forma, estava ali.
E a presença dele, o calor dele, pairando e roçando em suas
costas enquanto cavalgavam, não a deixavam raciocinar direito.
— Passaremos a noite aqui. Os animais estão cansados, assim
como nós. — Ikaris avisou, descendo do cavalo, aliviando por alguns
instantes aquele contato que roubava o ar dela. — Willelm e eu nos
revezaremos em turnos de vigilância.
Pelo canto dos olhos, Maressa captou o semblante estupefato
que lampejou pelo rosto do duque. Ao certo, criado na nobreza,
Willelm nunca estivera em uma situação como aquela. Mas, ao
lançar um olhar para Nina, o duque endireitou os ombros e
desmontou do cavalo.
— Será uma honra assumir tal nobre tarefa, lorde Ashera.
Deixe-me ajuda-la a descer, senhorita. — E estendeu a mão para
Nina.
Os olhos de Nina aumentaram, surpresos com o gesto. Se
Maressa não estivesse tão aflita, teria sorrido ao observar a cena.
Nina não estava acostumada com aqueles gestos por parte de um
cavalheiro. E não havia ninguém que os merecesse tanto quanto sua
querida amiga.
A mão de Nina pousou sobre a Willelm.
Maressa desviou o olhar, sentindo que estava se intrometendo
em um momento que não era seu. Estava prestes a descer do cavalo
quando viu que Ikaris a fitava e estendia a mão, oferecendo apoio.
Ela prendeu o ar.
Acima deles, o céu estrelado parecia girar e fulgurar,
derramando sua luz através das folhagens das árvores.
Maressa esticou mão. O toque foi suave e firme ao aceitar as
mãos dele. Ikaris a ajudou a descer do cavalo; mesmo após os pés
de Maressa tocarem a relva baixa, nenhum dos dois se afastou.
— Tenho muitas perguntas para te fazer. — Ela ergueu o
queixo e o fitou. — Não ache que escapará delas.
O canto da boca de Ikaris se contraiu.
— Pelo que já te conheço, sei que tentar escapar seria um
desperdício de energia da minha parte.
Mesmo contra sua vontade, as bochechas dela coraram.
Os olhos de Ikaris desceram para o embrulho que ela
segurava.
— O que é isso?
— Algo que minha mãe queria me dar antes de... — Maressa
tentou, mas não conseguiu impedir que seu lábio inferior tremesse.
— Encontrarei o rastro do Nefastus.
Os olhos dela, marejados, foram até os dele.
Algo pulsou na garganta de Ikaris, e ele se virou, desprendendo
o alforje preso à sela do cavalo.
— Sentem-se, senhoritas. — Willelm gesticulou para as rochas
que se espalhavam pela clareira. — Pegarei lenha e montarei uma
fogueira para nos aquecermos.
Mesmo contra sua vontade, Maressa se sentou em um rocha
ao lado de Nina. Queria ir atrás de sua mãe, mas sabia que ninguém
ali conseguiria fazer nada sem descanso e planejamento.
— Vocês estão feridas? — Ikaris perguntou, a voz baixa e
sóbria. — Vi o momento em que saltaram pela janela para se
salvarem.
Maressa olhou para si mesma, negando ao não encontrar
nenhum ferimento grave. Apenas arranhões e pele dolorida que
certamente ficaria marcada com hematomas.
Nina grunhiu baixo, erguendo a barra do vestido.
Havia um corte em seu tornozelo.
— Precisamos limpá-lo — Maressa bradou. — Precisamos de
água.
Em um piscar de olhos, Ikaris retirou um cantil de dentro do
alforje e o entregou para ela. A proximidade dele ainda era vibração
tão atordoante quanto os acontecimentos do baile.
— Pode deixar que eu cuido disso, Alteza.
— De jeito nenhum, Nina. Você sempre cuidou de mim. É
minha vez agora. E me chame pelo meu nome. Somos amigas.
Um sorriso de gratidão encheu os lábios de Nina.
Maressa lavou o corte da perna dela, agradecendo pelo
ferimento não ser profundo. Willelm surgiu ao seu lado, lhe
entregando um lenço que ela usou para envolver o corte.
— Pronto. Terminei.
— Obrigada, Maressa.
Ela sorriu cansada, inspirou fundo e encarou o céu. Horas
atrás, estava no seu baile de aniversário, participando da tradição
mais antiga do seu reino, esperando para que o desejo do seu
coração...
Bloqueou o pensamento, mas se pegou olhando para Ikaris de
relance, no mesmo instante em que ele a fitava.
Aquela colisão silenciosa fez todo o ar crepitar.
Ela foi a primeira a virar o rosto.
Ainda segurava nos braços a pedra angular que sua mãe iria
lhe dar de presente. Tocou a superfície lisa, deixando que
interrogações pairassem por sua cabeça. Por que sua mãe lhe
presentearia com aquilo no seu aniversário? Uma pedra encontrada
pelos arqueólogos do reino, que seria usada para registro do relevo e
terreno de Arustar?
Esgotada, deixou o ar escapar de seus pulmões.
— Não sei como encontrarei minha mãe. Não sei nem para
onde ir depois do que aconteceu no castelo.
— Podemos ir até as minhas terras, mas são muitos dias de
viagem. Sem provisões, será complicado. — Willelm reuniu a lenha
em uma pequena pilha. — Já aviso que todos vocês serão bem
recebidos, independentemente das circunstâncias, e... Ai! A lenha
prensou meu dedo. Acho que não tenho muita experiência com
fogueiras.
Nina se aproximou e se abaixou ao lado dele.
— Deixe-me ajudá-lo.
— Você está ferida, senhorita.
— Maressa cuidou do machucado. Estou bem.
Enquanto Willelm e Nina trabalhavam na fogueira, Maressa se
voltou para Ikaris outra vez. Ele estava sentado sobre uma rocha,
avaliando o conteúdo do alforje, calculando o quanto as provisões
durariam.
Um desespero por algo inominável cresceu dentro dela.
— Você disse que aquilo era um Nefastus... O que é isso?
Sua voz pareceu atingi-lo feito um golpe invisível, inesperado,
como se pudesse levar a corrente inóspita e quente que ardia no
coração dela direto para o coração dele.
O vento soprou e ergueu os cabelos de Ikaris quando ele a
fitou.
— Um erelin corrompido. Alguém de minha raça que provou
sangue e carne humana em troca de poder.
Da mesma forma, a voz dele fez cada pedacinho da pele dela
estremecer; não em medo, não em temor, mas em algo diferente e
caótico.
— Você soube disto desde que o vimos pela primeira vez?
— Não. Só senti apenas algo ruim na presença dele. Como
se...
— Como se tudo na presença emitisse um alerta perturbador.
— Sim. Foi exatamente isso que senti. Tivemos a mesma
sensação?
Por um momento, seus olhares se encontraram e se
sustentaram, atravessados pelo farfalhar das árvores e pelo suspiro
da noite.
Maressa quase se viu inclinando o corpo para a frente,
impelida, puxada por algo mais forte do que a razão. Mas retesou os
ombros a tempo. E Ikaris empurrou o rosto para trás.
— Minhas suspeitas nasceram quando derramei o sangue
escuro da criatura, lá nas câmaras da biblioteca. Mas não tive
certeza absoluta. — Ikaris olhou para o lado, como se esperasse que
algo denso deslizasse através das sombras das árvores. — Sempre
achei que fossem apenas um mito para assustar as crianças erelins
e forçá-las a se comportar. Esta noite foi a primeira vez que vi um.
Ela engoliu em seco, estremecendo com a lembrança de Hakon
se transformando e capturando sua mãe.
— Você teve alguma coisa a ver com esse Nefastus ou com
aquelas marcas erelins que apareceram na parede do castelo?
— Não. Como eu te disse, não sabia que um Nefastus era real.
— As palavras dele eram baixas, doloridas. — Também não conjurei
a magia. Meu povo perdeu os dons desde que a Cidadela Prateada
caiu e a fonte que ligava nosso poder às estrelas foi destruído.
Ela levou uma mão ao peito; mesmo com tudo o que havia
acontecido naquela noite, com o ataque no castelo, com o rapto da
mãe, com a revelação da identidade de Ikaris, com a fúria que
deveria sentir — e que estava sentindo — uma parte do seu coração
se curvou à dor dele, como se ela lhe pertencesse.
O fogo crepitou no meio da clareira, junto de uma
comemoração baixinha de Nina e Willelm por terem conseguido
acendê-lo.
Maressa puxou o ar e comprimiu os olhos. Por mais que o
mundo tivesse desabado, precisava fazer de tudo para se recompor,
para obter mais informações e recuperar sua mãe.
— Por que o Nefastus levou a minha mãe?
— Não faço ideia.
— Para onde ele a levou?
— Não faço ideia.
— Por que ele estava no castelo?
— Não faço ideia.
O fundo da cabeça de Maressa latejava.
— Por que você estava no castelo, misturado aos demais,
sendo que odeia meu reino e meu povo?
Ikaris ergueu o rosto.
Uma dor aguda, sincera e constrangedora, que ele tentava
segurar atrás das muralhas dos seus olhos, mas que escapava pelas
fissuras, fez Maressa prender o ar.
— Será que não consegue imaginar o motivo para alguém da
minha raça chegar tão perto da realeza?
Sim, ela conseguia.
E aquilo gritava e se rasgava por dentro dela.
— Quero ouvir da sua boca.
— Não me faça dizer em voz alta algo que me assombrará pelo
resto dos meus dias.
Seu coração batia tão alto que se sobrepunha aos sons da
floresta.
Mas o olhar de Maressa não cedeu até que ele soltasse o ar.
— Tudo mudou. Optei por rejeitar minha missão de forma
definitiva, e esse é um problema meu, apenas meu, que enfrentarei
quando retornar para o meu povo. Garantirei que você e sua amiga
cheguem a salvo nas terras de Willelm. — O maxilar dele se
contraiu. — E sumirei da sua vida.
Tomada por uma raiva crescente, Maressa ficou em pé e o
encarou, os punhos cerrados ao lado do corpo.
— Você não tinha esse direito. Não deveria ter se aproximado
e...
Ela deu mais um passo para a frente, as saias do vestido
farfalhando, a respiração ofegante; e então, a desagradável e familiar
onda de tontura veio sobre seu corpo, tragando suas forças.
Em um piscar de olhos, Nina estava atrás dela, os braços a
amparando e a conduzindo para perto do fogo.
— Você está pálida, Maressa. E gelada.
O ar falhou.
— Estou bem.
— Não, não está. Te conheço. Você precisa do seu tratamento.
— A voz de Nina tremia. — Só que não temos o tônico aqui. O que
faremos?
— Sei quais ervas fazem parte da composição do tônico. —
Ikaris enfiou a adaga no cinto outra vez. — Irei procurá-las agora
mesmo.
Ainda trêmula e atordoada, com a visão parcialmente
embaçada, Maressa entreabriu os lábios, querendo perguntar como
ele sabia qual era a receita do tônico; mas Ikaris se virou, e feito um
borrão de sombras, avançou para dentro da floresta.
Ela não soube quanto tempo se passou, por quanto Nina a
manteve perto do fogo, enquanto Willelm fazia a vigília.
Até mesmo chegou a pensar que Ikaris os havia deixado ali na
clareira e retornado para junto de seu povo; um pensamento que a
sufocou mais do que a vertigem e a tontura.
Mas, em algum momento, os arbustos se agitaram, e Ikaris
retornou com um cantil cheio de água e uma porção de ervas nas
mãos. Macerou-as em silêncio, misturou-as ao líquido e colocou o
cantil perto dos lábios dela; Maressa sentia a respiração dele
resvalando na linha do seu pescoço.
— Não tenho noção da quantidade exata e do preparo correto,
mas espero que a mistura de traga algum alívio. Segure o cantil.
Apesar da fraqueza, Maressa hesitou.
— Sei que mereço sua desconfiança até os últimos dias da
minha vida, mas aqui não há nada além de ervas e água. — E, para
confirmar o que dizia, ele sorveu um gole da bebida e o engoliu.
O peito dela se apequenou, ao invés de se aliviar.
Odiava tudo aquilo.
Sua doença. As tradições de Arustar. O ódio gerado pela
guerra.
A maldita hora em que decidira se disfarçar de criada e se
aproximar de seus pretendentes, sem imaginar que um deles estava
disfarçado também.
Com os dedos trêmulos, ela segurou o cantil.
A bebida desceu por sua garganta, espalhando um alívio
refrescante pelo corpo. Não era o mesmo efeito potente e poderoso
do tônico, mas foi suficiente para afastar a parte mais intensa do mal-
estar.
Olhando-o por debaixo dos cílios longos, Maressa devolveu o
cantil, os dedos roçando nos dedos de Ikaris.
— Obrigada.
— Farei o primeiro turno da vigília — Ikaris falou; ela o viu
engolindo em seco enquanto se virava, e imaginou no que ele estaria
pensando.
— Combinado. Me acorde para trocarmos de lugar. — Willelm
se ajeitou na grama e imediatamente caiu no sono.
Maressa se deitou perto do fogo, junto de Nina. Não tinha nada
para se cobrir, e tremeu quando a pele tocou o chão frio.
— Tente descansar ao máximo — Ikaris falou, assumindo o
posto de vigília. — Se você não se sentir bem, preparo outra mistura
de ervas.
Ela assentiu e não disse nada, exausta até os ossos, fatigada
com tudo o que havia acontecido e com o mal estar; apenas fechou
os olhos, mas não por completo, para poder continuar olhando para
ele.
Ikaris estava sentado, manuseando a adaga, o olhar perdido no
céu, o peito subindo e descendo embaixo da camisa. Ele se
mantinha à distância e, ao mesmo tempo, perto o bastante para
protegê-los de qualquer inimigo; tão perto que, se ela esticasse o
braço, poderia tocá-lo.
Com o calor do fogo a acariciando, respirando o ar pincelado
pelas estrelas, prometendo para si mesma que recuperaria as forças,
encontraria a mãe e todas as respostas para suas perguntas
infinitas, Maressa fechou os olhos, levando a imagem de Ikaris para
junto de seus sonhos.
28
Entre um oceano

ELE ATRAVESSOU o túnel, alcançando uma enorme câmara,


com paredes de granito, chão de terra batida, e cheiro de carne e
sangue.
A boca do Nefastus salivou.
Havia uma cela no outro lado do salão.
Encolheu as asas, deixando as presas à mostra.
O Nefastus se arrastou pelo chão, esticando a mão para dentro
da cela; queria tocar a carne aprisionada ali, queria sentir seu sabor,
queria beber seu sangue.
— Não tenha pressa — a voz soou branda, fria. — Haverá
muito tempo para você se alimentar. Primeiro, temos que cuidar de
algo.
— A princesa. A pedra — grunhiu, sedento, faminto. — Mestre,
não consegui capturar a princesa. A luz forte do Suspiro de Áster me
cegou. Maldito erelin. Era como se um milhão de estrelas me
cegassem.
— Não se preocupe. — Os passos ecoaram pelo chão. — Nós
iremos encontrá-la. Ela não conseguirá ir tão longe sozinha.

◆◆◆

A carícia de um raio de sol acordou Ikaris.


Piscou enquanto abria os olhos, percebendo que Willelm não o
chamara no meio da noite para que eles trocassem o turno de vigília
mais uma vez.
Tentou não praguejar ao olhar para o lado.
O duque havia adormecido em cima da pedra; provavelmente
enquanto vigiava o grupo.
Ao perceber que um calor confortável e diferente da luz do sol
roçava sua pele, Ikaris virou a cabeça. Maressa estava ao seu lado,
os olhos fechados e a respiração suave. Suas mãos tinham se
entrelaçados às mãos dela em cima da grama, dedos calejados e
grandes envolvendo dedos delicados e pequenos.
Arfando, com o coração acelerado, ele puxou a mão depressa,
se levantando em um pulo. Como aquilo tinha acontecido? Em que
momento ele adormecera e segurara a mão dela? Ou a mão de
Maressa o tinha alcançado? Não, ela não teria feito isso.
Depois que as máscaras tinham caído na noite anterior, um
oceano fora colocado entre eles, um abismo ainda mais profundo do
que o vale que separava os erelins do povo de Arustar.
Ele havia perdido todo e qualquer direito de tocá-la.
Naquele momento, Maressa deveria estar o odiando, o
temendo.
A ideia foi quase insuportável. Ikaris deu alguns passos para
trás, tomando cuidado para não acordar nem a ela, nem à Nina, nem
ao duque. A mão dele ainda parecia queimar, em oposição ao frio
dolorido que subia pelos ossos.
Ikaris apanhou o alforje, checando as poucas provisões que
carregava consigo. Aquilo não era suficiente para quatro pessoas.
Pois nunca tinha imaginado que acabaria viajando com um grupo.
Tinha deixado o alforje e o cavalo preparados para partir do
castelo. Uma parte sua queria ter deixado Arustar antes do baile,
antes de colocar os olhos na princesa, antes de ter a chance de
executar o pedido de Iohanna.
Por quê?
Nem ele mesmo sabia, mas tinha sido depois do sonho, depois
de acordar junto da raposa gigante. Apenas sentia que era o melhor
a ser feito — não derramar uma gota de sangue, ignorar o presságio
das estrelas e simplesmente desaparecer como se nunca tivesse
existido.
Contudo, outra parte sua, mais forte, mais incontrolável, queria
ver Maressa uma última vez. E foi até o baile com a esperança de
enxergar os olhos de safira antes de deixar Arustar.
E então, o mundo desmoronou sobre todos.
E lá estava ele agora.
Poderia ter partido nas sombras da noite, poderia ter
desaparecido junto com toda a dor que causara.
Mas...
Maressa murmurou baixinho, ainda adormecida, e se virou,
seus cabelos claros caindo sobre o rosto, a palma da mão curvada
para cima, como se estivesse procurando pela mão dele.
Ele não partiria até garantir que ela estivesse segura.
Não sabia o que o Nefastus e os carniçais queriam. Eles
haviam levado a rainha. Será que voltariam atrás da princesa?
Seus dedos se fecharam com força ao redor do alforje.
Buscando um lugar para se sentar, onde o perfume de Maressa
não se agarrasse aos seus sentidos, ele tirou de dentro do alforje as
páginas que conseguira pegar dos livros erelins.
Ikaris inspirou e expirou fundo, baixando os olhos, tentando ler
e reter as informações, observando as gravuras, os símbolos.
“O aspecto de um najma é variável e mutável. Em determinado
momento, um najma pode ser uma multidão de olhos fixos sobre o
mundo; em outro, um par de olhos reluzentes que guiam um único
indivíduo”.
— Najma.
Fazia tempo que não ouvia aquele termo, uma menção aos
seres ligados à origem dos erelins.
O que Darlan acharia daquelas poucas páginas recuperadas?
O pensamento o levou em suspiros ácidos até seu povo.
Havia dito que retornaria para as montanhas...
Mas, no fundo, como poderia voltar para lá, encarar Iohanna
em seu leito crescente de morte e dizer que fora incapaz de cumprir
a missão? Que, mesmo se tudo fosse diferente, se jamais tivesse
conhecido Maressa antes da noite do aniversário dela, algo nele
seria incapaz de ir até o fim para transformar em realidade a visão de
Iohanna?
Porque Iohanna enxergaria a verdade em seus olhos.
Porque Iohanna saberia qual tinha sido a escolha de seu
coração.
Ele não era alguém que hesitava.
Porém, desde que deixara as montanhas, desde que fora
guiado pelo Suspiro de Áster, desde que pisara em Arustar, desde
que olhara dentro dos olhos dourados e pretos de uma raposa
tingida de luar, desde que ouvira um chamado ardente de um
coração que chamava pelo seu, tudo tinha se dissolvido em seu
âmago.
E se reerguido de uma forma nova e desconhecida.
— O que é isso?
Ikaris se virou e viu Maressa sentada sobre o chão, ao lado das
cinzas da fogueira. Seus cabelos longos e soltos voavam ao redor do
rosto como se os fios houvessem sorvido a luz da manhã. O coração
dele saltou, sentindo um puxão forte no peito.
— Páginas das histórias erelins — ele respondeu, a voz rouca.
— São aquelas que você arrancou dos livros antes do Nefastus
aparecer na câmara da biblioteca?
Ele assentiu. Maressa se mexeu, o vestido do baile, agora sujo
de terra e grama, se abrindo ao seu redor.
— Agora entendo porque você as arrancou daquele jeito... —
ela sussurrou. — É porque os livros pertencem ao seu povo. Imagino
que foram tomados pelo meu reino na época da guerra.
— Assim como muitas outras coisas.
O vento soprou entre eles.
Ikaris não queria que sua voz tivesse soado ríspida, amarga;
mas aquela dor era antiga demais, atravessava gerações demais.
— Seu povo odeia meu reino. E meu reino... — Maressa baixou
os olhos, os cabelos caindo pelos ombros. — Odeia e teme seu
povo. Isso será tudo o que todos nós seremos uns para os outros?
Ele deixou as folhas de lado, voltando seu olhar para Maressa.
— Eu não te odeio.
Viu-a engolir em seco, e desejou, quase sem fôlego, afastar
aquela sombra que pairava sobre ela. Uma sombra que ele levara
até Arustar.
— Você não sabia quem eu era quando me conheceu.
— Criada ou não, princesa ou não, eu sabia que você era uma
filha de Arustar. E não te odiei em nenhum instante sequer. Jamais
seria capaz. Nem mesmo quando você desceu aquelas escadas,
vestida de luz e estrelas.
O peito de Ikaris subia e descia velozmente, desesperado, em
uma agonia jamais experimentada. A faísca de um instante
emudecido crepitou entre eles. Maressa mordeu os lábios, refreando
a ardência desoladora que queimava o contorno dos seus olhos.
— Não sei se posso... — mas ela não conseguiu terminar de
falar.
— Talvez minhas palavras sejam apenas um sopro falso do
vento para você, talvez você ache que elas são apenas uma
armadilha, uma desculpa para reconquistar uma confiança perdida, e
não lhe tiro o direito de duvidar... Mas, no fundo do meu coração,
antes de você ou qualquer outra garota descer por aquelas escadas,
antes de eu olhar para a princesa de Arustar... Algo em mim já queria
recuar. Algo em mim gritava para não ir até o fim com a missão que
me foi dada. — Ikaris ergueu o rosto. A brisa da manhã balançava os
fios escuros do seu cabelo. — Porque eu sentia que havia algo
errado, muito maior do que o desejo de vingança da minha rainha
contra o seu reino ou da visão que as estrelas mostraram para ela. É
como se...
— Como se...?
— ...Se eu tivesse ido até o seu reino achando que minha
missão era uma, quando, na verdade, foi tudo uma artimanha do
destino para me colocar frente ao meu verdadeiro propósito.
— E qual seria este verdadeiro propósito?
— Encontrar a resposta para o impossível. — Ikaris trincou a
mandíbula. — As marcas de magia na parede, a própria aparição do
Nefastus... Nada disso faz sentido. Nada disso é possível. Porque
toda a magia erelin se foi. Mas, se eu vi tudo isso com os meus
próprios olhos, é porque alguma coisa se perdeu no tempo, nas
histórias, nos anos.
Maressa assentiu sem dizer nada.
Ikaris contraiu os lábios. Ele era alguém que apreciava o
silêncio.
Mas, naquele momento, qualquer ruído era bem-vindo.
— E seu mal-estar? — se ouviu perguntando para ela.
Maressa levou uma mão ao peito, o ar escapando lentamente
de seus lábios entreabertos.
— Estou me sentindo bem. Obrigada mais uma vez pelo tônico
que você preparou. Eu... Isso que eu tenho... Não sei quanto
tempo...
Ela não terminou de falar, mas Ikaris leu o temor das palavras
silenciosas. Pois aquele temor agora também fazia parte dele.
Maressa baixou o rosto, a expressão melancólica. O sol raiava
através das nuvens, iluminando seus cabelos. Ikaris cerrou as mãos
firmemente, as unhas machucando a pele, não permitindo que os
dedos se erguessem e tocassem os fios que ele sabia que eram
macios e suaves.
— Maressa. — A voz sonolenta de Nina pairou entre eles. —
Tem alguma coisa acontecendo com a sua pedra angular. Acho...
Acho que tem uns riscos brilhantes aparecendo nela.
29
Vibrações

AO OLHAR por cima do ombro, Maressa fitou a estranha pedra


angular que havia deixado ao seu lado enquanto dormia.
Nina tinha razão.
Alguma coisa estava acontecendo com ela.
Maressa se inclinou, não se importava que o vestido se
arruinasse ainda mais por ser arrastado no chão, e pegou a pedra.
Alguns riscos brilhavam em sua superfície.
— Isso é magia? — Ela buscou pelos olhos de Ikaris.
Ikaris contraiu o maxilar.
— Parece, mas não tenho certeza.
Nina esticou a mão, querendo tocar na pedra, mas, ao mesmo
tempo, hesitando.
— A rainha não te falou nada sobre ela?
— Eu vi apenas um esboço dela. — As memórias fluíram por
sua mente, levando-a para noites atrás. — Os arqueólogos a
encontraram. O reino de Arustar tem um projeto de catalogação e
avaliação das nossas terras. Na cabeça da minha mãe, uma pedra
pode contar muitas histórias sobre um lugar.
Willelm, que havia acabado de acordar, olhou para eles e
assoviou.
— Mas então, por que ela ia te dar a pedra de aniversário?
Para você se conectar mais com a história do reino? Para não se
esquecer de onde veio, mesmo depois que se casasse?
A cabeça de Maressa girou.
Não fazia ideia.
Ela ergueu a pedra, deixando que os feixes da luz do sol
incindissem na superfície lisa. Conforme a movia, os riscos
apareciam e desapareciam, como se não tivessem força para se
revelarem por completo
— São iguais às marcas erelins que apareceram na parede do
castelo? — ela perguntou para Ikaris.
Ele meneou a cabeça.
— Não. São diferentes. Não são as marcas do meu povo.
— Então não é um artefato erelin? Não é mágico?
— Deixe-me ver mais de perto. Posso?
Ela assentiu.
Com cuidado, Ikaris tomou a pedra. Segurou-a em uma das
mãos e fechou os olhos, colocando a palma acima do objeto.
Maressa contraiu os lábios.
— Pensei que você não pudesse fazer magia.
— Não estou fazendo magia. Estou usando meus sentidos. —
Os olhos de Ikaris permaneciam fechados, os dedos pairando sobre
a pedra angular. — Há uma vibração nessa pedra, uma energia
mística. Não sei de qual natureza é, mas não me parece erelin.
— Como podemos fazer para descobrir mais sobre ela?
— Precisaríamos de alguém que entenda de magia para nos
ajudar. — Ikaris devolveu a pedra para Maressa. — Um praticante
nato. Alguém que não seja um erelin.
Nina piscou e tocou a própria bochecha.
— Tipo um feiticeiro?
— Feiticeiros existem? — Maressa se virou para ela, surpresa.
— Ouvi dizer que vivem em terras mais distantes. — Nina
meneou a cabeça. — Não sei até que ponto é lenda e até que ponto
é verdade.
— Há histórias sobre as formas de se invocar um feiticeiro —
Ikaris complementou. — Mas são conhecimentos perdidos. Teríamos
que encontrar um feiticeiro pessoalmente, em carne e osso, sem
precisar invocá-lo, já que não sabemos fazer isso. A questão é como
achar um.
Maressa inspirou fundo, imaginando quantos mistérios e
maravilhas havia em todas aquelas terras que desconhecia. O mais
perto que chegara das fantasias e dos encantos fora através dos
livros que mais amava e de um beijo que a levara até as estrelas.
A lembrança fez com que suas bochechas purpureassem.
Ela precisou encarar a pedra com muita vontade para não
procurar por um enigmático e profundo par de olhos cinzentos.
— Minha mãe estava com essa pedra na noite do meu
aniversário. Acho que era o presente que ela ia me dar. Talvez seja o
único elo que me restou para encontrá-la. Se soubéssemos onde
achar um feiticeiro para desvendar quais mistérios e magia cercam a
pedra...
Willelm limpou a garganta.
Todos os olhares se voltaram para ele.
— Bom, muitos viajantes passam pelas minhas terras. E eu
sempre estou conversando com eles. Sabe, gosto de conversar.
Minha mãe diz que nasci falando aos quatro ventos. Desde moleque
sou bem sociável e interativo. É bom para conhecer novas pessoas e
descobrir informações inimagináveis e...
— Willelm! — as vozes de Ikaris e Maressa se misturaram,
enquanto Nina dava um risinho baixo.
— Enfim... — O duque ajeitou a postura e estufou o peito. —
Alguns viajantes falam sobre um reino governado por uma rainha
filha da lua e um feiticeiro, onde muitas criaturas místicas coexistem
em harmonia. Talvez possamos encontrar ajuda por lá.
Fagulhas de esperança arderam dentro de Maressa.
— E qual reino é esse?
— Rovina.
30
Novos destinos

A MENTE de Maressa correu pela informação dada por Willelm,


mas não se recordou de ter lido ou ouvido falar sobre o reino de
Rovina.
Um reino governado por uma rainha filha da lua e um feiticeiro.
Era como se ele tivesse saído da página de um livro.
— Onde este reino fica?
O duque puxou o ar e estufou o peito.
— Bom... Não faço ideia.
Maressa piscou.
— Nem da direção que devemos seguir?
Os ombros do duque caíram.
— Não.
— Mas será que a distância é muito grande?
— Pelo pouco que sei de geografia, imagino que Rovina fique
muito longe daqui. Muito mais longe do que as minhas terras. E
imagino que nosso destino não é mais minha casa, e sim Rovina,
certo?
— Vou para lá em busca de um feiticeiro que possa me ajudar
a desvendar os segredos dessa pedra. — Maressa olhou da pedra
para os rostos de Willelm, Ikaris e Nina. — Sei que conheço pouco
do mundo, mas também sei que não posso obrigar nenhum de vocês
a me acompanhar até Rovina, pois a rainha é minha mãe, mas...
A mão de Ikaris, quente e firme, se apoiou no ombro dela. Foi
um toque que Maressa não esperava, mas que arrepiou toda a sua
pele e disparou o coração.
— Eu irei te acompanhar. Você não irá sozinha para Rovina.
Os olhos dela buscaram pelos dele, o contato da pele com a
pele incinerando cada pedacinho da sua alma.
— Obrigada.
— Sei que, depois de tudo, minha companhia não é o que mais
lhe agradará, porém sei me mover pelas trilhas e identificar ameaças
e...
— Eu quero que você vá — Maressa o cortou, as palavras se
despejando da sua boca, passando por cima de qualquer lógica ou
razão. — Eu... Agradecerei demais pela companhia.
Ela se viu incapaz de ler a expressão dele; mas achou que era
a primeira vez, desde todo o caos instaurado no baile, que alguns
pontinhos um pouco mais luminosos ameaçavam pincelar o cinza de
suas íris.
— Também vou com você. — Nina deu um passo à frente. —
Estamos juntas nisso.
— Que tipo de cavalheiro honrado eu seria se deixasse duas
damas e um amigo viajarem sozinhos? — Willelm estufou o peito
outra vez, orgulhoso de si mesmo. — Eu os acompanharei.
Apesar de toda a confusão que girava dentro dela, os lábios de
Maressa se curvaram em um sorriso.
— Agradeço a todos vocês. O que precisaremos fazer para
chegar até lá, além de descobrirmos por qual estrada seguir?
— Comida. — A boca de Willelm parecia salivar. — Temos que
comer alguma coisa. Não lembro a última vez que coloquei algo na
boca, além da bebida do baile.
— Teremos que nos hospedar em algum lugar durante o
caminho. A viagem envolverá a compra de provisões, armas e
roupas mais apropriadas — O olhar de Ikaris caiu no vestido de festa
que Maressa vestia. — Temos que chamar o mínimo de atenção
possível.
Nina cruzou os braços, pensativa.
— Mas vamos precisar de dinheiro para tudo isso.
Maressa ergueu as mãos, tirando os brincos que ainda
adornavam sua orelha, e os entregou para Ikaris.
— Penhore-os para mim, por favor. E use o dinheiro para a
nossa viagem até Rovina.
— Tem certeza?
— Minha mãe e o bem-estar de todos vocês vale muito mais do
que algumas joias.
A outra mão de Ikaris se fechou em torno dos brincos, os olhos
cravados nos dela.
— Farei isso assim que chegarmos na próxima cidade.
Ela não soube por que, mas olhá-lo e ouvi-lo naquele momento
fez seu coração disparar de um jeito completamente diferente das
últimas horas.
A sensação a pegou de surpresa.
De repente, a mão dele que ainda estava em seu ombro
pareceu muito mais quente, muito mais presente.
Maressa entreabriu os lábios, dando um passo para trás, os
pés se enroscando na barra do vestido.
— Cuidado! — Nina a segurou pelo braço, impedindo que os
pés dele se embolassem ainda mais no vestido.
— Sei que tenho que comprar roupas menos extravagantes,
mas não sei como chegarei e andarei na próxima cidade com esse
vestido de baile! — Maressa bufou, batendo as mãos nas pedrinhas
brilhantes. — É quase impossível se mexer em tantas camadas de
tecido.
— Posso cuidar disso.
Foi tudo o que ela ouviu Ikaris dizer.
E, de repente, ela estava sentada outra vez sobre a rocha, com
ele agachado à sua frente, a adaga em uma mão, os dedos
analisando a barra do vestido.
E lá estavam as mãos dele outra vez.
Tocando-a novamente.
Maressa não sabia se respirava ou se engolia em seco.
Com um movimento preciso, Ikaris manuseou a adaga,
cortando parte do tecido, puxando algumas camadas, a saia ficando
mais leve, a mão encaixada na sua panturrilha.
O rosto de Maressa ardia.
Willelm arregalou os olhos, aturdido.
— Lorde Ashera, isso foi muito... Você precisará se casar com
a moça depois de fazer algo assim à reputação dela!
Ikaris guardou a adaga no cinto, entreabrindo os lábios
enquanto encarava o duque com uma expressão ilegível.
Maressa ergueu a mão e ficou em pé, lutando para afastar
qualquer vermelhidão que queria subir por seu rosto.
— Willelm, agradeço, mas está tudo bem. Consigo andar com
mais facilidade agora. E não há ninguém por perto.
Sua resposta calou o duque, mas não pareceu satisfazê-lo.
Se a tensão não estivesse tão ácida e palpável por conta da
jornada incerta que viria pela frente, Maressa teria trocado um risinho
constrangido com Nina por conta da situação.
Mas seus olhos baixaram outra vez para a pedra angular.
Vou descobrir seus segredos. E vou encontrar minha mãe.
31
Facas afiadas

ELE ESTAVA novamente na Cidadela Prateada.


Mas, diferente das outras vezes, a cada passo dado, ele podia
vislumbrar a destruição, aspirar o cheiro do fogo e da fumaça, das
poças escarlates que tingiam o chão.
De repente, ele se viu no meio de um salão. O teto havia sido
destruído. O vento urrava. Lâminas retiniam ao se chocarem uma
com a outra.
Viu o momento em que uma erelin recebeu um golpe brutal.
Iohanna.
Uma das mais antigas e puras erelin de sua raça havia sido
golpeada e caíra ao chão, ofegando e rastejando, tentando alcançar
o inimigo vestido em uma armadura cravejada de rubis.
— Devolva! — Iohanna arfou, esticando a mão ensanguentada
para cima. — Devolva!
O inimigo com o rosto coberto pelo elmo se aproximou.
Ele gritou e correu para defendê-la.
Mas seus pés não se moveram.
— Não!
A espada inimiga desceu sobre a erelin.
— Não!
E o mundo estremeceu e vacilou; e as sombras e o sangue
engoliram toda a Cidadela Prateada.

◆◆◆
Como se tivesse sido puxado bruscamente, Ikaris abriu os
olhos, as imagens do sonho se estilhaçando em mil pedaços.
Olhou em volta, assimilando o espaço.
Estava no quarto da hospedaria onde seu grupo havia parado
para pernoitar. Viajavam há dias, sem parada, sem descanso,
seguindo as informações que indicavam o caminho para Rovina.
Ele teria aguentado mais alguns dias e algumas noites na
estrada, alternando com pequenas paradas para os cavalos
descansarem, mas Maressa, Willelm e Nina não tinham o mesmo
preparo e treinamento de seu corpo; assim, se instalaram na primeira
estalagem que encontraram. Uma noite inteira de sono, em uma
cama quente e confortável, além de uma boa comida, renovariam as
forças de todos.
Por questões de segurança, preferia evitar aquele tipo de
parada, mesmo que ainda não tivessem encontrado nenhum carniçal
ou sinais de estarem sendo seguidos pelo Nefastus.
Mas, por outro lado, não podia correr o risco de fazer com que
o grupo chegasse ao limite da exaustão.
Principalmente Maressa, que tinha uma saúde mais debilitada.
Ikaris empurrou as cobertas, sentando-se no colchão, os pés
tocando o chão frio.
Qualquer ideia de descanso, para ele, já havia se dissipado.
Tocou a testa.
Desde que deixara as montanhas, desde que chegara em
Arustar, desde que vira a raposa gigante, Maressa e o Nefastus... Os
sonhos estavam ficando mais intensos.
Quase vivos.
Quase palpáveis.
O que está acontecendo comigo?
Ikaris se levantou da cama, cambaleando para fora do quarto.
Subiu até o terraço da hospedaria, ansiando por ar, pela luz das
estrelas. Ao alcançar o topo, se deparou uma cena inesperada.
Em pé, no meio do terraço, sob o brilho dos infinitos pontinhos
que enchiam o céu, Maressa segurava uma faca longa e a
examinava com um olhar pensativo, tão concentrada que mal notou
sua presença. O cabelo, meio solto das presilhas, voava em torno
dela.
Diferente dos vestidos em que se acostumara a vê-la, Maressa
vestia uma camisa branca de algodão, com mangas compridas,
folgada no busto e na cintura, e uma calça de couro justa nos quadris
e nas pernas, que insinuava muito mais do que ele já tinha visto de
seu corpo e de suas curvas.
Ikaris mal notou que segurava a respiração.
Ela não se parecia em nada com uma princesa criada na prisão
dos muros de um castelo.
Era como se estivesse vislumbrando...
Uma guerreira.
Alguém que poderia ser sua semelhante, se a guerra não
tivesse separado seus povos e enraizado profundos sentimentos
odiosos entre reinos e raças.
Maressa ergueu a faca, como se estivesse prestes a
arremessá-la.
Ikaris deu um passo para a frente.
— O que você está fazendo?

◆◆◆

A voz de Ikaris a pegou de surpresa.


Maressa se virou, abaixando a faca com um olhar constrangido.
— Perdi o sono. Estava andando pela hospedaria quando vi
algumas facas deixadas na mesa do restaurante, e... — Ela mordeu
o lábio. — Não gosto de me sentir indefesa. Até Nina parece ter mais
habilidades do que eu, que não consigo nem arremessar uma faca
direito.
— Você nunca recebeu nenhum tipo de treinamento?
— Minha mãe nunca me permitiu, por causa da minha saúde.
— Maressa encolheu os ombros. — No fundo, ela não está errada.
As poucas vezes que tentei treinar no castelo, perdi o ar e quase
desmaiei. Mas, nestes últimos dias, tenho me sentido um pouquinho
melhor. Daí pensei em subir até aqui e praticar alguma coisa, mas
sou um desastre.
Para mostrar o que dizia, ela atirou a faca, que passou longe do
alvo marcado na parede.
— Como vou encontrar minha mãe, se não consigo nem
mesmo me defender, ou defender quem está comigo? Acho que isso
não é para mim.
Ikaris se aproximou ainda mais, apanhando a faca jogada, o
olhar a perscrutando como se sondasse seu coração, sua alma.
— Entre o meu povo, as mulheres treinam de igual para igual
com os homens, tanto as puras quanto as mestiças.
— Como essa mistura aconteceu?
— Com casamentos e contatos entre os diferentes povos e
culturas. — Ikaris inclinou a cabeça; o cheiro dele a invadiu, a
envolveu, intensificado pelo vento que o soprava em sua direção. —
Há mais mulheres erelins mestiças do que puras. A mesma coisa
acontece com os homens.
— Por quê?
Ele estendeu a faca para ela. Maressa a pegou.
— Creio que é algo inevitável diante do tempo. Minha raça se
misturou e desposou humanos por muitos séculos, misturando as
linhagens, dissolvendo a pureza do sangue celestial erelin. Eu sou
um mestiço.
Saber que os erelins, antes da guerra, casavam com humanos
como ela, fez com que o coração de Maressa se agitasse mais do
que deveria.
— Há muita distinção entre vocês por causa dessa mistura?
— Isso nunca foi visto como algo prejudicial pelo meu povo,
embora haja diferenças na aparência dos puros e dos mestiços. Há
mais homens erelins puros do que mulheres erelins puras, que,
antigamente, antes da quebra das ligações sagradas, viviam muito
mais do que os homens, possuíam asas enormes e resplandecentes,
e eram detentoras de uma beleza divina. Na verdade, as próprias
erelins puras são raras demais.
Maressa arqueou as sobrancelhas.
— Como assim?
— Os filhos de um casal de erelins puros, muitas vezes, são do
sexo masculino. Quase não se nasce mulheres.
— E sem mulheres erelins puras, a raça de vocês tende a ficar
cada vez mais misturada com os humanos.
— Sim. E essa ideia fez com que, no passado, muito tempo
antes de eu nascer, os membros mais conservadores do meu povo
tomassem medidas drásticas para preservar a pureza da raça. E as
mulheres erelins puras passaram a ser muito... — Os lábios de Ikaris
se contraíram, como se estivesse procurando por uma palavra
apropriada. — Cobiçadas.
A mão de Maressa se apertou com mais força em torno da
faca.
— Cobiçadas?
— Por mais que pareça, nem tudo é belo entre a minha raça.
Foram tempos sombrios. Neste passado distante que citei, as
mulheres erelins puras eram aprisionadas e acorrentadas pelos
homens puros do meu povo, e usadas para gerar crianças ainda
mais puras.
— Mesmo contra a vontade delas?
— Mesmo contra a vontade delas. Correntes encantadas eram
colocadas entre suas asas, rasgando a carne, para evitar que
fugissem e também drenassem os poderes. São nas asas dos
erelins que a magia se concentra.
Uma sensação de náusea subiu pela garganta de Maressa.
— Então... No passado... Elas eram escravas. Escravas
parideiras.
Ikaris assentiu com pesar. Maressa estremeceu.
Ela se sentia uma prisioneira dentro do próprio castelo, mas
imaginar o que aquelas mulheres erelins tinham sofrido no passado
por conta da pureza do sangue... Seu estômago se revirou.
— Infelizmente, o passado não pode ser mudado, apenas
lembrado para não ser repetido. — Ikaris se moveu, os olhos atentos
a observando. — Endireite sua postura.
— Assim?
— Não. Mais ereta.
Sem que Maressa esperasse, Ikaris a pegou pelos ombros,
virando-a de modo que ela ficasse de costas para ele. Ikaris colocou
os braços em volta dela, endireitando-a.
Um calafrio — que nada tinha a ver com o frio da noite — subiu
por sua espinha.
A mão dele se apoiou gentilmente na dela, o contato entre as
peles crepitando o ar ao redor de Maressa enquanto ele
demonstrava como segurar uma faca pontiaguda.
— Vi que você fez uma marca na parede. Aquele é o seu alvo?
— Sim. O alvo que errei miseravelmente diversas vezes.
— Porque você só arremessou.
— E o objetivo não é este? Arremessar e acertar?
— Sim e não. Postura e precisão são essenciais para acertar
um alvo. — O hálito de Ikaris roçava na nuca dela, balançando os
fios dourados dos cabelos. — Mas, para fazer um arremesso
perfeito, você precisa mergulhar dentro dos seus sentidos.
Ela assentiu, mas não tinha certeza de estava ouvindo direito.
— E como... — Pelos deuses de Arustar, a voz dela saiu baixa,
rouca, quase falha. — Como eu faço isso?
— Feche os olhos. Guie-se pela minha voz.
Maressa o obedeceu. Ikaris murmurou algumas instruções,
feito um mantra que a conduzia lentamente, reduzindo os sons ao
seu redor.
— Deixe que sua mente alcance um perfeito estado de
concentração. Deixe-a unir sua vontade com a vontade do mundo.
A mão de Ikaris continuava sobre a dela, um pouco menos
firme.
Maressa permaneceu com os olhos fechados, ouvindo-o, os
dedos sentindo o cabo da faca e o calor da pele dele como se
fossem um só.
Não se concentre na arma ou no alvo. Concentre-se no
caminho.
Mesmo com as pálpebras cerradas, sua visão se encheu de
pequenas manchas luminosas, cálidas.
Para o guerreiro, o arremesso é tão natural quanto à
respiração.
Já não sabia se a voz que ouvia era de Ikaris ou era um som
dentro de si mesma.
É algo que está em você, que faz parte do mundo, assim como
o vento, a chuva, as montanhas, a terra e a neve.
E ali, atrás dos seus olhos fechados, algo vinha em sua
direção, de cima, de baixo, dos lados.
Algo nela ficou leve, flutuante.
O vento e as árvores se calaram.
Mais leve, mais morno, mais leve, mais quente.
Aquilo a tomou, a circundou; era uma sensação nova, diferente.
Ela abriu os olhos em um rompante, envolvida por aquele calor,
e atirou a faca sem pensar duas vezes.
A lâmina zuniu no ar, girando com perfeição, a ponta da faca se
cravando bem no centro da marca na parede.
Maressa ofegou, levando as mãos à boca.
— Pelos deuses! Eu consegui! É assim que funciona?!
Mas Ikaris não respondeu.
Ela se virou.
Ikaris estava com os lábios entreabertos, as íris tomadas por
uma surpresa genuína, como se ela tivesse feito muito mais do que
ele esperava.
Mas ela não quis entender ou perguntar; sua alegria e euforia
eram tão grandes que Maressa se viu vibrando, atirando os braços
ao redor do pescoço dele e o abraçando.
— Obrigada! Obrigada por me mostrar algo que ninguém nunca
se dispôs a me ensinar!
Foi um gesto rápido, inocente; mas ela conseguiu sentir o
coração dele, selvagem e galopante, batendo contra o seu peito; o
cheiro de seus cabelos e suas roupas a enlaçando com força.
Ela deu um passo para trás, constrangida com sua própria
impulsividade. Abriu a boca para se desculpar. E então, seus olhos
caíram para o pulso dele, onde a manga da camisa tinha subido um
pouco.
Tudo o que ia dizer para se justificar se evaporou.
Maressa arfou baixinho, subindo o olhar até o rosto de Ikaris.
— Você ainda está usando a fita que amarrei em seu pulso.
— Eu jamais a tirei.
E ele puxou Maressa, trazendo-a de encontro ao seu corpo.
32
Pontos luminosos

A COLISÃO do corpo suave e delicado de Maressa contra o


seu corpo fez com que o mundo se apagasse ao redor de Ikaris.
Só ela importava.
Somente aqueles olhos azuis, aqueles cabelos dourados e
aqueles lábios bem desenhados cintilavam como as estrelas no céu.
Ele ergueu a mão, tocando o rosto dela, a pele macia e quente
contra sua palma calejada.
Nunca vira ninguém mergulhar tão rápido e tão profundo em
um estado de concentração e imersão dos sentidos, seguido de um
arremesso preciso e perfeito.
E também tinha sentido algo para o qual não haviam palavras
suficientes para descrever.
Mas estava ali.
Nela, nele, no ar, no chão, no vento, nas estrelas.
Ou talvez fosse apenas a insanidade do seu coração.
Um desejo louco para justificar o que queria fazer.
Ele nunca saberia.
Ikaris deslizou o polegar pela bochecha dela, todo seu corpo se
arrepiando e esquentando ao ouvi-la suspirar baixinho.
Como alguém podia ser tão perfeita, tão certa?
Sua mão se encaixou no rosto de Maressa; e, desesperado
para acabar com as fronteiras entre seus mundos, ele abaixou a
cabeça, deixando que seus lábios aliviassem a falta que sentiam dos
lábios dela.

◆◆◆

O choque do contato inicial foi grande e, por um momento,


Maressa não se mexeu. Mas, no segundo seguinte, toda sua mente
foi preenchida por uma névoa adocicada, e ela se permitiu sentir a
pressão dos lábios dele nos dela. Era uma sensação intensa,
impetuosa, ainda mais ardente do que a energia que a dominara
instantes antes de sua mão arremessar a faca.
Ela ergueu os braços, envolvendo o pescoço de Ikaris,
deixando que seu corpo se moldasse às formas dele. A boca de
Ikaris era ávida na sua, exigente, exploradora, e seu toque parecia
estar por toda parte, por toda sua pele, queimando em seu âmago.
Os braços dele a rodearam, envolvendo-a com calor e desejo,
pressionando-a contra o seu peito; a sensação era de que o tecido
de sua camisa iria se dissolver sob o toque dele a qualquer
momento.
Ao longe, no fundo de sua cabeça, algo soou, tilintou, feito um
aviso no vento, mas ela se forçou a empurrá-lo para longe.
Tudo o que queria era que aquele beijo jamais acabasse e...
Maressa arfou quando Ikaris a virou de súbito, empurrando-a
para perto da porta do terraço. A boca dele deixou a dela, mas as
mãos permaneceram em sua cintura.
Ainda ofegante, ela ergueu o rosto.
Os olhos de Ikaris tinham se estreitado, atentos e vigilantes.
— O que foi?
— Meus sentidos captaram alguma energia mística por perto.
Não exatamente aqui no terraço ou na hospedaria, mas... — Ikaris
virou o rosto, os olhos encarando a escuridão das construções ao
redor de onde estavam. — Veio e se foi muito rápido.
Maressa piscou, surpresa
— Também senti uma coisa. Foi no fundo da minha cabeça.
Como... Como um aviso para ficar atenta.
Ele deu um passo para trás, as mãos descendo para as laterais
do corpo, sacando duas adagas.
— Deve ser porque seus sentidos ainda estão em alerta,
devido à imersão e ao treinamento. Vou averiguar o que é.
— Ikaris...
— Pode não ser nada. — A voz dele era baixa, analítica. —
Como estamos chegando perto de Rovina, que, segundo as
informações, é uma terra mais mística, certamente há mais criaturas
mágicas por perto, que deixam uma vibração no ar e que são
captadas pelos nossos instintos, quando entramos em um estado
fundo de concentração.
— Mas pode ser perigoso também.
— Voltarei assim que me certificar de que não há nenhuma
ameaça por perto. Vá para o quarto e tranque a porta. Se achar
melhor, fique com a Nina e acorde Willelm.
Maressa deu um passo à frente, a mão fechada sobre o peito.
— Deixe-me ir com você.
Os cabelos escuros de Ikaris caíam sobre a testa e os olhos
dele.
— Não há nada além de perigo para quem fica ao meu lado.
Maressa piscou, entreabrindo os lábios, vagueando entre o
significado mais implícito e profundo daquelas palavras.
Ikaris se afastou, saltando do telhado com as adagas nas
mãos, feito uma sombra mergulhando nos braços das sombras mais
escuras.
Ela precisou de alguns instantes para assimilar tudo o que tinha
acontecido. Virou-se, apanhou a faca que tinha usado para treinar e
deixou o terraço, descendo para os quartos da hospedaria, o gosto
do beijo formigando em seus lábios.
A contragosto, Maressa fechou e trancou a porta do quarto, se
sentou no chão perto da lareira e abraçou os joelhos.
O calor do fogo a confortou.
Seu coração sentia que Ikaris voltaria, e que voltaria bem.
Deixou a faca de lado, fitando seu reflexo na lâmina.
Àquela altura, com o peso de um reino e de uma guerra no
peito, ela já compreendia qual tinha sido a missão de Ikaris e o
motivo que levara o erelin a se infiltrar no castelo.
Desde que deixaram Arustar, ele tinha dito mais de uma vez,
com toda a convicção e sinceridade que Maressa achava que podia
existir em alguém, que não cumpriria a missão. Que já havia
desistido daquilo antes mesmo do mundo desmoronar sobre eles.
Antes mesmo de saber quem verdadeiramente ela era.
“Mas, no fundo do meu coração, antes de você ou qualquer
outra garota descer por aquelas escadas, antes de eu olhar para a
princesa de Arustar... Algo em mim já queria recuar”.
Uma parte dela acreditava em redenção e remissão.
Outra parte ainda era hesitante e cautelosa.
Pois sabia que toda ação possuía uma reação.
“Não há nada além de perigo para quem fica ao meu lado”.
Ele se mostrava verdadeiramente arrependido, mostrava que
não iria cumprir aquela missão, mas... E o povo dele? E se
enviassem alguém atrás de Ikaris, para puni-lo por não ter cumprido
as ordens de seus superiores?
E se o movimento que ele viu tivesse sido o de um erelin?
E se o eliminassem?
O coração de Maressa se comprimiu, aflito e preocupado.
Ela não sabia como as coisas funcionavam entre os erelins,
mas, pelo que testemunhara no castelo ao longo dos anos, os
homens da Guarda Real que desertavam ou desobedeciam sempre
recebiam algum tipo de punição, de acordo com a gravidade do
delito.
“Não há nada além de perigo para quem fica ao meu lado”.
Tocou os lábios com as pontas dos dedos.
Já não sabia mais o que era certo e o que era errado.
Maressa suspirou baixinho.
Como queria ser capaz de fazer muito mais do que podia; pela
sua mãe, por Nina, por Willelm, por Ikaris, por seu povo e até mesmo
pelo condenado povo erelin.
Deixou os olhos vagarem até a janela, onde podia ver um risco
do céu iluminado pelas estrelas.
Me ajudem a proteger, e não apenas ser protegida.
Sob o manto cobalto da noite e as lágrimas que embaçavam
seus olhos, os infinitos pontos luminosos pareceram brilhar.
Maressa desviou o olhar da janela e se voltou para a lareira.
Ficou ali, fitando as chamas, inalando o suave aroma da turfa,
tentando alinhar todas as mudanças que sua vida tinha sofrido nos
últimos dias: o baile, a verdade sobre Ikaris, o Nefastus, o rapto de
sua mãe, a fuga do castelo, a misteriosa pedra angular, a viagem
para Rovina, o inesperado beijo no telhado... Era muita coisa para
pensar ao mesmo tempo. Se ela fosse se entregar ao desespero,
acabaria sentindo pena de si mesma.
E se havia um sentimento que não gostava, este era a pena.
Assim, ela enxugou as lágrimas que não caíram, se levantou
com a faca na mão, marcou um ponto na parede, endireitou a
postura, repassou todos os ensinamentos rápidos de Ikaris e se
preparou.
Passou o resto da noite treinando arremessos.
E só parou para se deitar quando ouviu passos familiares no
corredor, acompanhados do som da porta do quarto da frente se
abrindo e se fechando.

◆◆◆

O Nefastus voava baixo, usando as sombras como


camuflagem.
Buscava por ramos de Salmísia no meio da mata.
Não eram fáceis de encontrar, mas uma criatura como ele, que
um dia havia sido um erelin, podia sentir a energia delas quando
havia alguma por perto. Continham uma essência de poder. Nada
grandioso, mas suficiente para encantamentos de curta duração. E,
toda vez que eram arrancadas da terra, emitiam uma vibração no ar,
uma ondulação que podia ser captada por aqueles que tinham os
sentidos mais apurados.
Por isso mesmo, precisava ser rápido.
Mestre, vou levar as Salmísias para você. E suas forças serão
restauradas para preparar o feitiço.
33
Queimação

ASSIM QUE o dia irrompeu, o grupo fez um pequeno desjejum,


pegou os cavalos no estábulo e retomou a estrada.
Maressa notou que Nina e Willelm haviam tido uma boa noite
de sono, diferente dela e de Ikaris.
Ela o fitou, esperando que Ikaris dissesse se havia rastreado e
descoberto o que tinha deixado seus sentidos em alertas na noite
passada. Quando os olhos dele pousaram nos dela, seus lábios
firmes se contraíram.
— Não encontrei nada. Foi uma ondulação efêmera de energia,
que veio e se foi, desaparecendo por completo.
— Por que não me acordou? — Willelm perguntou. — Eu
poderia ter te ajudado na caçada.
— Tudo aconteceu rápido demais.
Aquilo foi tudo o que Ikaris falou durante o restante do caminho,
enquanto adentravam em uma floresta de mata fechada, com o chão
coberto de musgos.
O beijo da noite anterior não foi mais mencionado.
Bom, não iriam discutir sobre aquilo no meio dos outros
companheiros de viagem que nada tinham a ver com a história.
Mas...
“Não há nada além de perigo para quem fica ao meu lado”.
Uma mistura de cansaço e revolta ameaçavam crescer dentro
dela; ora, por que ele a beijara então?! Por que a ensinara a
arremessar a adaga?!
Concentre-se em chegar em Rovina, ordenou. Concentre-se
em encontrar um feiticeiro, descobrir o que há na pedra angular e
encontrar sua mãe.
Pararam diante de um declive íngreme. Maressa escutou um
ronco, um movimento de um grande volume de água.
— Tem certeza que é por aqui?
— Todas as trilhas levam para esse caminho.
Com cuidado, eles desceram pela ribanceira, guiando os
cavalos pelas rédeas. Um rio largo ocupava do terreno à frente,
serpenteando em um fluxo veloz e volumoso. Do outro lado, havia
árvores imensas, de aparência ancestral e sagrada.
— O caminho acaba aqui? — Nina perguntou. — Não estou
vendo mais nenhuma trilha.
Maressa enxergou uma pequena jangada ali, velha e
aparentemente frágil, com as bordas desgastadas. Achou que a
embarcação não aguentaria nem ao menos uma pessoa.
Em cada lado da margem do rio, havia varas fincadas na terra.
Uma corda se amarrava de ponta a ponta. A ideia de atravessar
aquelas águas com as próprias pernas, usando apenas a corda para
se segurar, e torcendo para que ela não arrebentasse no meio da
travessia, era assustadora.
Olhou para os lados.
— E agora? Por qual caminho?
Ikaris e Willelm pararam para checar o mapa que tinham
comprado em uma das cidades pelas quais passaram.
— Tudo indica que temos que seguir pelo outro lado do rio.
Mas não vejo uma ponte ou uma porção de terra para contornarmos
a água.
Maressa fechou os olhos por um momento, sentindo o princípio
de uma vertigem, pontinhos cintilando na sua vista.
Um uivo cortou o ar.
Ela se virou, procurando pela origem do som.
O uivo ecoou outra vez.
Ela já havia escutado lobos uivarem algumas vezes nas
redondezas do castelo. O que ouvia agora não parecia o uivo de um
lobo.
Nina estreitou os olhos.
— Este som...
— Coiotes selvagens! — Willelm bradou. — Participei de várias
caçadas para reconhecer o som de um coiote dessa espécie.
Os cavalos relincharam juntos, escapando das rédeas e
subindo pela ribanceira, desaparecendo no meio da mata.
— Não! E agora?!
De soslaio, Maressa viu Ikaris semicerrar os olhos, e imaginou
que ele estaria mergulhando nos próprios sentidos para se
concentrar apenas no som dos coiotes.
— O bando nos alcançará em dois ou três minutos.
— Podemos lutar com eles — Willelm se ofereceu, a mão
pousando na lâmina afiada presa ao cinto. — Sou um bom caçador.
Mas o maxilar de Ikaris estava trincado.
— São muitos.
— O que vamos fazer?! — Nina pestanejou. — Não temos para
onde ir e essa velha embarcação parece que vai se partir ao meio
assim que um de nós pisar dentro dela!
— Temos que ir andando pelo rio! Vamos atravessar de
margem à margem! Segurem-se na corda! — Ikaris bradou. — Vou
na frente!
Maressa queria gritar que aquilo era loucura.
Mas os uivos dos coiotes estavam cada vez mais próximos. Ela
não era uma caçadora e pouco conhecia das florestas, mas o som
indicava que era um bando grande que vinha na direção deles.
Ikaris foi o primeiro a entrar no rio, agarrando a corda e
iniciando a travessia. Vê-lo adentrar no meio daquelas águas
bufantes e violentas fez o coração de Maressa disparar.
Ela empurrou o princípio do mal-estar para longe, segurou-se
na corda, entrou no rio e começou a seguir Ikaris.
A correnteza era selvagem. Maressa ouvia a respiração forte
de Ikaris, via seu esforço; os músculos dos braços tensionavam,
puxando a corda para que ela não se arrebentasse e o grupo
chegasse a salvo do outro lado.
A água respingava em seu rosto e era difícil manter os olhos
abertos.
Nina e Willelm vinham logo atrás dela; Maressa não conseguia
saber se eles estavam bem. Se olhasse para trás, tinha a sensação
de que iria se desequilibrar e ser levada pela correnteza.
O mal-estar se acentuou.
Sua vista turvava. A margem estava cada vez mais próxima,
mas parecia apenas um borrão à sua frente.
Seu peito chiava, como se ardesse.
Queimasse.
Diferente de qualquer outro mal-estar que já tinha sentido.
Aguente, garota, sussurrou para si mesma, agarrando a corda
com mais força. Aguente mais um pouco.
Ikaris saltou primeiro para a margem, esticando a mão e
ajudando cada um deles a alcançar o solo firme. Ao segurá-lo,
Maressa impulsionou o corpo para a frente com as forças que ainda
lhe restavam e se deixou ser tirada da água.
Suas pernas estavam bambas. O chão que revestia a margem
era coberto por pedrinhas brancas, redondas e lisas, que pareciam
pequenas pérolas brilhantes. Faziam barulho sob seus pés.
— Nunca vi pedras assim perto de um rio — Willelm comentou,
encharcado até a altura da cintura.
Maressa observou Ikaris soltar sua mão e se agachar, tocando
algumas das pedrinhas.
— São diferentes. Como se pertencessem a uma terra
encantada.
— Rovina? — Nina arriscou.
— Devemos estar cada vez mais próximos do reino.
Willelm sacudiu os braços e as pernas.
— Tomara que eles tenham roupas secas para nos emprestar.
— Eu...
Como se tivesse sido golpeado por uma onda quente e
invisível, Maressa caiu de joelhos no chão, as duas mãos
pressionando o peito.
— Maressa! — Ikaris arquejou, vindo até ela.
— Tem algo errado... Comigo...
— É o seu mal-estar?!
Ela abriu a boca, mas não conseguiu responder.
Ikaris se virou para Nina.
— Onde está o tônico dela?
— No alforje.
— Pegue-o!
Um grunhido de dor escapou dos lábios de Maressa.
— Nina! — Ikaris bradou. — O tônico!
— Não, não, não! — Aflita, ofegante, Nina vasculhou dentro do
alforje que levava pendurado no ombro. — O tônico acabou há
alguns dias. Não fizemos mais, porque ela não estava precisando.
Achei que... Achei que ainda havia mais uma ou duas doses.
Alguém praguejou algo que ela não entendeu.
— Maressa! Maressa! Olhe para mim! — Ikaris segurou os dois
pulsos dela. — É o seu mal-estar? Ele está voltando? Em qual grau
ele está?
Ofegando, lutando por um pouco de ar, Maressa ergueu a
cabeça, buscando pelas íris dele.
— Algo... Algo está queimando.
Ikaris estreitou os olhos, as sobrancelhas franzidas.
— Queimando...?
Ela não conseguiu encontrar palavras para explicar o que
sentia.
Um rugido alto e potente ecoou do meio das árvores, que eram
empurradas para os lados, dando espaço para a criatura que se
aproximava.
Alguém arquejou alto.
Era uma criatura de quase três metros de altura, com nariz e
orelhas enormes, de aspecto grotesco e feroz.
Algo que Maressa tinha visto apenas nas gravuras dos livros
que lia.
Um troll.
Que estava pronto para atacá-los.
34
Ofuscante

AS PASSADAS do troll eram pesadas, selvagens.


A cada movimento, a sensação era de que a terra tremia.
O coração de Maressa acelerou, a queimação em seu âmago
cresceu.
Com uma agilidade impressionante, Ikaris já tinha sacado as
adagas e se colocado em posição de ataque.
— Procurem um abrigo!
Maressa fincou os dedos no chão.
“Sua saúde é frágil”.
Ela queria lutar. Queria correr para o lado de Ikaris.
Mas suas pernas mal a sustentavam.
“Quando os pretendentes descobrirem que a princesa de
Arustar é uma peça quebrada, irão desistir da competição”.
— Nina! Willelm! — Ikaris gritou. — Peguem a Maressa e a
levem para a floresta! Vão para o mais longe que conseguirem! Eu
farei de tudo para atrasar essa criatura!
No mesmo instante, Maressa sentiu Nina segurando seu braço,
colocando-a em pé.
— Você está quente! — Nina arquejou ao tocá-la. — Muito
quente! É como se estivesse...
Maressa comprimiu os olhos.
Queimando.
O ar, a terra, o céu, a água; era como se tudo estivesse
queimando junto com ela.
“E não te odiei em nenhum instante sequer. Jamais seria
capaz. Nem mesmo quando você desceu aquelas escadas, vestida
de luz e estrelas.”
Willelm se colocou ao lado de Ikaris, empunhando uma lâmina.
— Vá com elas!
— Não! Lutarei com você!
O troll urrava, cada vez mais perto.
— Você não vai conseguir!
— Não vou te deixar para trás com essa coisa!
Segurando-se em Nina, Maressa tragava o ar com força, o
peito se contraindo, queimando sem parar.
“É algo que está comigo desde sempre. E não há nada que
possa ser feito”.
— Não podemos deixá-los, Nina. Não... Não podemos...
— Mas o que faremos? Não temos como combater o troll.
O lábio inferior de Maressa tremeu; atrás dos seus olhos, ela
enxergou as memórias girando em uma cadência sem fim, seus anos
no palácio, suas limitações, as noites olhando para as estrelas e
desejando ser muito mais do que era.
“Como vou encontrar minha mãe, se não consigo nem mesmo
me defender, ou defender quem está comigo?”
— Vamos! — Nina a puxava, se esforçando para manter o
equilíbrio por elas duas. — Temos que avançar para o meio da
floresta! Temos que procurar um abrigo seguro!
Alguém gritou.
“Para o guerreiro, o arremesso é tão natural quanto à
respiração”.
Maressa ofegou quando Ikaris foi golpeado pelo troll e rolou
pelo chão, as costas para cima, o rosto para baixo.
“É algo que está em você, que faz parte do mundo, assim como
o vento, a chuva, as montanhas, a terra e a neve”.
O troll avançou na direção de Ikaris outra vez.
“Não há nada além de perigo para quem fica ao meu lado”.
A ardência em seu peito aumentou, ferveu, queimou.
Ela se soltou do braço de Nina.
— Maressa! Maressa, não!
E correu sem olhar para trás, cambaleando, arfando, a vista se
embaçando com centenas de pontinhos brilhantes.
“Me ajudem a proteger, e não apenas ser protegida”.
Sem pensar em mais nada, com a sensação de que o coração
estava em chamas, ela se atirou em cima de Ikaris.
— Ikaris!
Quando seu corpo caiu sobre o dele, foi como se a parte mais
secreta e profunda de sua alma se rompesse.
E tudo ao redor dela explodiu em uma luz branca e ofuscante.
35
Timbre do céu

HAVIA LUZ por todos os lados.


Ao seu redor, nela, em seu coração.
A luz se irradiava em ondas, golpeando tudo o que estava por
perto, se espalhando por suas veias, ardendo em sua pele,
queimando o coração.
Mais e mais fundo, sem controle, ela afundou naquele fogo.
O mundo se transformou.
Maressa sentia seu corpo se levantando, os pés firmes no
chão, os cabelos esvoaçando ao redor do seu rosto.
Não conseguia enxergar mais nada.
Era como se o céu e a terra houvessem se fundido e se
tornado uma só entidade, um só lugar, uma só vastidão.
Era como se ela estivesse no meio de um jardim de estrelas.
E aquilo queimava, a puxava, tentava dominá-la e colocá-la de
joelhos. Aquilo a queria. Aquilo queria todo o controle. E ela
queimava. E ela não conseguia pedir ajuda.
Alguém segurou seus braços, alguém chamou o seu nome.
Mas o toque estava cada vez mais distante. O chamado estava
cada vez mais distante.
E ela era puxada para trás, para cima, para o alto, para baixo.
“Estou aqui”, uma voz diferente de tudo o que já ouvira a
alcançou em meio ao turbilhão de fogo e luz.
Era poderosa, ecoante; como se carregasse o céu em seu
timbre.
Maressa arquejou.
“Escute-me. Eu posso te ajudar”.
Entre a luz incandescente e ardente, um par de olhos pretos e
dourados a fitava.

◆◆◆

Ikaris não teve tempo de assimilar tudo o que aconteceu na


vastidão daqueles segundos.
Em um primeiro momento, avançava contra o troll e era
golpeado, caindo e rolando pelo chão, a criatura vindo sobre ele.
No segundo seguinte, ouvia Maressa gritar seu nome, sentia o
corpo dela se jogando sobre suas costas.
E depois, aquela luz.
Aquele brilho branco e ofuscante.
Uma luz que parecia um milhão de estrelas fundidas irrompeu
de Maressa, chocando-se contra o céu, contra a terra, contra as
árvores.
O brilho irradiou, passando por ele, por Nina, por Willelm, indo
na direção do troll feito uma flecha certeira.
A criatura urrou ao ser atingida.
Ikaris não acreditou no que seus olhos testemunharam.
O troll se dissolveu, se transformando em cinzas que foram
levadas pela corrente furiosa do vento.
Ele sentiu Maressa se erguendo e tentou segurá-la.
Mas ela já estava em pé.
Brilhando, queimando, os cabelos claros esvoaçando como se
fossem feitos de fios de ouro.
Só que os olhos dela estavam distantes, tragados para longe.
E a luz aumentava, a consumia.
Lutando contra o poder que se irradiava dela, Ikaris avançou
para o coração daquela energia, segurando os braços de Maressa,
sacudindo-a, pedindo para que ela voltasse.
A pele dela ardia.
E um medo terrível se apoderou do coração dele.
Porque podia sentir que algo estava errado.
— Maressa. Maressa. Volte. Me escute. Maressa!
Maressa foi arrancada de seus braços com a força daquele
poder que parecia puxá-la cada vez mais. Ikaris apertou a mão dela,
arfando, batendo os dentes, recusando-se a permitir que o contato
entre suas peles fosse quebrado, queimado.
Nina e Willelm caíram para trás, encarando boquiabertos a
princesa.
— Maressa! — Ikaris gritou, tão alto que achou que todos os
reinos poderiam ter escutado.
Mas Maressa não pareceu ouvi-lo.
Aquela luz a envolvia cada vez mais, tomava o azul dos seus
olhos, transformando as íris em algo tão brilhante quanto uma lua
cheia.
Ele gritou o nome de Maressa outra vez, no mesmo instante em
que suas mãos se soltaram e a onda de poder o empurrou para trás.
Ikaris desabou de joelhos no chão.
Ele arfou.
Seus sentidos captaram algo junto daquela luz poderosa.
Alguém, algo, que ele não podia ver.
Apenas sentir.

◆◆◆

Aquele ser não tinha forma.


Ele era e não a luz.
Ele estava e não estava ali.
Somente a cor dourada e negra de seus olhos podia ser
vislumbrada em meio ao brilho cada vez mais intenso.
E algo em Maressa sabia.
Algo nela o reconhecia.
Raio de Luar.
Era a raposa gigante que, naquele momento, não se parecia
com uma raposa, não se parecia com nada.
Mas que estava ali.
Chamando-a.
Feito um cordão que a segurava e a impedia de continuar
afundando naquilo que queimava dentro de si mesma.
Não sabia como aquilo era possível.
Mas também não sabia porque seu corpo e sua alma
queimavam.
“Volte. Você é capaz de voltar. Volte ou será consumida por
aquilo que ficou encarcerado dentro você por vinte e um anos”.
Maressa queria gritar que não conseguia fazer aquilo.
Que não sabia fazer aquilo.
“Você sabe”.
— Maressa!
Seu nome foi um rugido, uma súplica.
Ikaris.
A voz dele ecoou por dentro dela conforme Ikaris se colocava
no caminho daquela luz incandescente, o rosto se tornando nítido, a
mão se esticando para alcançá-la a qualquer custo.
Seu coração em chamas acelerou.
E ela se lembrou das palavras de Ikaris.
“Deixe que sua mente alcance um perfeito estado de
concentração. Deixe-a unir sua vontade com a vontade do mundo”.
Mesmo ardendo, mesmo queimando, Maressa fechou os olhos.
“Não se concentre na arma ou no alvo. Concentre-se no
caminho”.
E ela o fez.
E, ao abrir os olhos, Maressa disparou pelo caminho formado
por aquela luz, pelas infinitas estrelas que brilhavam ao seu redor,
cada vez mais perto de Ikaris, os dedos se esticando para os dedos
dele.
E quando suas mãos se tocaram...
O tempo voltou a correr, rápido e implacável.
A presença de Raio de Luar se dissipou.
Maressa só conseguiu assimilar aquela ardência se atenuando,
voltando para dentro dela; e então cambaleou, caindo nos braços de
Ikaris, segurando sua mão, a vista lentamente se embaçando.
Teve impressão de ouvir cavalos galopando, relinchando.
Ela murmurou baixinho o nome de Ikaris, a mão dele se
encaixou em seu rosto.
“E nas estrelas está... Até que para a terra possa voltar”.
Viu o momento em que as árvores se abriram, em que duas
pessoas surgiram montadas em cavalos alazões; um homem de
cabelos escuros, capa esvoaçante e olhos cor de ônix, e uma mulher
de densos cabelos negros, vestido azul e uma coroa reluzente na
cabeça.
Maressa suspirou, atônita, maravilhada.
No mesmo instante em que seus sentidos a deixaram.
E o mundo escureceu.
36
Um reino encantado

AS ESTRELAS dançavam ao seu redor.


Pareciam cantar e sussurrar umas para as outras; palavras e
melodias que deslizavam por sua pele, aquecendo as bordas do seu
coração.
“E nas estrelas está... Até que para a terra possa voltar”.
Havia um véu esvoaçante no meio delas. Atrás do véu,
conseguia enxergar uma silhueta. Alguém estava ali. Alguém
esperava por ela.
Esticou a mão; e quando seus dedos tocaram o véu, uma
claridade intensa se espalhou por todos os lados.

◆◆◆

Os olhos de Maressa se abriram lentamente.


Uma pontada de dor fisgou sua nuca, e ela precisou de alguns
instantes para despertar por completo.
Onde estou? Que lugar é esse?
Estava deitada em uma cama de dossel elegante. O tecido
translúcido esvoaçava ao redor da madeira; um véu tão fino quanto o
do sonho, que parecia que se dissolveria entre seus dedos se ela o
tocasse.
Maressa olhou em volta, tentando se lembrar do que havia
acontecido. As cenas eram um emaranhado confuso em sua mente.
Lembrava-se do troll, de Ikaris caído no chão, do ímpeto que a levou
a se jogar sobre ele; e então, uma luz mais ardente do que o fogo a
cegou.
A sensação era de que tinha se queimado de dentro para fora.
Ela levou uma mão ao peito, procurando por queimaduras. Mas
sua pele estava intacta. Não havia um único arranhão em seu corpo.
A recordação de uma voz a roçou.
“Volte. Você é capaz de voltar. Volte ou será consumida por
aquilo que ficou encarcerado dentro você por vinte e um anos”.
Raio de Luar tinha aparecido para ela?
O coração acelerou subitamente.
Onde Ikaris, Nina e Willelm estão? Será que...
Seus pensamentos foram cortados quando ela ouviu um
suspiro baixinho. Virou o rosto, procurando pela origem do som.
Notou que, atrás de um biombo, um par de olhos infantis a fitava.
Assim que a sua presença foi notada, a criança se escondeu.
— Oi — Maressa arriscou falar, sentando-se com cuidado na
cama para não causar nenhuma fisgada de dor em seu corpo.
— Oi — ela respondeu, saindo de trás do biombo. — Eu não
estava te espionando, só estava...
— Cuidando de mim?
A menina sorriu e assentiu. Ela trajava um vestido turquesa,
com detalhes rendados, que acentuavam a cor azul e cristalina dos
seus olhos, assim como o tom leitoso da pele. Os cabelos, tão
escuros quanto uma pedra de ônix, caíam compridos por suas
costas.
— Meu nome é Maressa, e o seu?
— Elora. Você é uma princesa?
— Sou sim.
— Eu também! — Um sorriso entusiasmado se abriu nos lábios
da pequena Elora. — Mas você é bem mais alta do que eu.
— Um dia você vai ficar alta também.
— Será que eu vou conseguir alcançar a lua?
— Talvez.
A garota silenciou, tocando o queixinho marcado, como se
estivesse analisando a possibilidade de alcançar a lua. Maressa
aproveitou aqueles instantes para assimilar as poucas informações
obtidas. Se Elora era uma princesa, então ela estava em um castelo.
Com cuidado, se levantou da cama. Seus pés descalços
tocaram o chão frio. Foi só naquele momento que Maressa percebeu
que estava usando roupas limpas e perfumadas; um vestido lilás
leve, que deslizava como água pelo seu corpo.
Ela andou até a janela e a apoiou as mãos no parapeito. A
noite, marcada pelas nuvens felpudas que serpenteavam por entre a
lua cheia e o céu cobalto, refletia o brilho das construções que se
estendiam até onde a vista de Maressa conseguia alcançar.
Ao longe, a terra se abria em colinas e florestas cintilantes.
Mais perto, talvez nas imediações do terreno do castelo, jardins,
fontes, lagos e escadarias de prata eram ladeados por flores e
lanternas luminosas.
Que lindo!
Elora se debruçou no parapeito ao seu lado, apontando para o
jardim, contando histórias sobre como brincava com seu pai ali.
Maressa observou pontinhos brilhantes voando no ar, entrando
pela janela e se enroscando nos cabelos escuros da princesa. Ao
olhar melhor, os pontos brilhantes eram pequenas criaturas, belas e
delicadas, que possuíam asas iridescentes.
— Aí! — Elora riu, um risinho infantil e cristalino. — Faz
cócegas.
— O quê...
— São fadinhas!
Maressa piscou, maravilhada. Estendeu a mão, tocando com
cuidado a pequena fada que brincava com os cabelos de Elora. As
asas brilhantes e delicadas tremeluziram ao seu toque.
— Não sabia que fadas existiam.
— Minha mamãe sempre fala que Rovina é o reino dos homens
e o reino das fadas. — Elora ergueu o queixo, parecendo orgulhosa
de si mesma por se lembrar de cada palavra. — Um reino que, uma
vez, foi divido em dois. E que agora é um só.
Rovina.
Havia conseguido chegar no Reino de Rovina.
“Alguns viajantes falam sobre um reino governado por uma
rainha filha da lua e um feiticeiro, onde muitas criaturas místicas
coexistem em harmonia”.
Seus pensamentos galopantes voltaram para Ikaris, Nina e
Willelm. Onde eles estariam? Será que estavam bem? Será que
tinham se ferido no ataque do troll? E a pedra angular que usaria
para encontrar sua mãe? Será que alguém havia trazido a pedra
angular ou ela tinha se perdido no meio da confusão?
Por que não consigo me lembrar de tudo o que aconteceu?!
— Vou avisar minha mãe e meu pai que você acordou!
E, com as fadinhas ainda enroscadas em seus cabelos, Elora
disparou pela porta do quarto e desapareceu.
Com o coração inquieto, preocupado, Maressa também decidiu
que iria procurar por respostas. Saiu do quarto, atravessando um
largo corredor de pedra polida, decorado com flores e velas.
Não precisou andar muito, sequer precisou pensar para qual
direção seguir; era como se seu coração soubesse.
E então ela o viu.
Ikaris estava parado no meio do corredor, vestido de preto e
prata, os olhos voltados para o céu.
Ela deu um passo para a frente.
Entreabriu os lábios, mas não precisou dizer nada.
Como se a tivesse sentido, Ikaris virou o rosto.
Maressa sentiu o coração acelerar, sentiu a força daquele
puxão que a chamava para ele desde o primeiro momento em que se
viram.
E não ofereceu resistência àquela força.
Como se suas pernas houvessem adquirido vida própria, ela
atravessou o corredor enquanto Ikaris também vinha em sua direção;
eles colidiram no meio do caminho, sob um arco banhado pela luz do
luar.
Maressa jogou os braços em volta dele, e uma exclamação foi
abafada em sua garganta quando Ikaris retribuiu o abraço e a
ergueu, girando com ela em seus braços, a saia do vestido se
abrindo ao seu redor. Antes que seus pés tocassem o chão, os lábios
dele tomaram os seus, e ela teve a certeza de que estava sendo
carregada pelas estrelas.
As mãos de Ikaris subiram por seus braços, se encaixando em
seu rosto, buscando pela luz dos seus olhos.
— Você está bem? Está ferida? Está com alguma dor? Por um
momento, por um efêmero momento, achei que...
Gentilmente, aquecida e envolvida pelo toque protetor, Maressa
ergueu as mãos, encaixando os dedos nos dedos dele.
— Estou bem. E você? Nina? Willelm?
— Todos estão bem.
O peso de uma montanha se dissipou do peito dela.
— Ikaris, o que aconteceu na floresta?
— Você não se lembra de nada?
— Só de alguns fragmentos. Tudo ainda está confuso. O que
aconteceu lá?
Sem soltar as mãos dela, Ikaris abaixou os braços. O arco
poente dos seus olhos cinzentos havia se adensado; as íris eram
raiadas pelo luar alto e cintilante.
— Você, Maressa — ele sussurrou. — Você aconteceu.
Ela franziu o cenho e contraiu os lábios, o coração acelerando
de uma forma descompassada.
A pergunta que se formava em sua boca se perdeu quando um
membro da Guarda Real, que não parecia ser completamente
humano, se aproximou. Seu uniforme elegante reluzia ao luar.
— Senhor. Milady. — Ele os reverenciou com um gesto polido.
— Os senhores, junto com seus outros dois companheiros, estão
sendo aguardados no salão principal. A rainha de Rovina deseja vê-
los.
37
Coração no fogo

AO LADO de Ikaris, Nina e Willelm, Maressa ajeitou a postura,


ergueu o queixo e se preparou quando as portas altas do salão se
abriram. A pedra angular, que havia sido recuperada por Nina no
meio do confronto com o troll, estava agora em suas mãos.
Tranças enfeitadas com cordas e pedras preciosas pendiam do
teto, brincando com as luzes e com as cores que pincelavam o salão,
se estendendo até os três largos degraus de mármore que subiam
para um altar. Ali, sentados em cadeiras de veludo, um homem e
uma mulher os aguardavam.
O homem, de beleza enigmática, trajava roupas pretas e
elegantes, que se harmonizavam com os cabelos escuros e
ondulados. Tinha olhos da cor de uma pedra ônix e um queixo bem
marcado, que fez Maressa se lembrar no mesmo instante da
pequena princesa Elora.
A mulher ao lado dele parecia sorver o luar em seus traços.
Tinha pele clara, cabelos densos e negros adornados por uma coroa
refulgente, e trajava um vestido azul escuro trabalhado com
pedrarias brilhantes.
Um suspiro fascinado escapou dos lábios de Maressa; era
como se a rainha estivesse vestindo o próprio céu noturno.
— Sejam bem-vindos. — A mulher os saudou, a coroa
irradiando uma luz transcendental sobre seus cabelos. — Eu, Layla
MacQuoid-De’Ath, rainha de Rovina, e meu marido, o feiticeiro
Ciáran De’Ath, os recebemos com afeição no coração do nosso
amado reino.
Os quatro reverenciaram os monarcas.
Layla ergueu a mão, sinalizando que o gesto era
desnecessário.
— Esperam que tenham tido um bom descanso.
— Agradecemos a hospitalidade — Willelm tomou a palavra,
surpreendendo Maressa com sua polidez e educação. Mesmo sendo
um homem falante, agitado e espontâneo, a classe permanecia nos
modos do duque. — Foi muita gentileza nos receberem em seu
castelo.
— Vocês vieram de muito longe. — Os olhos azuis e cristalinos
de Layla pousaram em Maressa. — O que desejam de Rovina?
Maressa deu um passo para a frente e ergueu a pedra angular.
A brisa suave que entrava pelas janelas altas balançava os fios
dourados dos seus cabelos.
— Minha mãe, a rainha de Arustar, foi raptada durante um
ataque em nosso castelo. Ela deixou essa pedra para trás.
Acreditamos que seja um artifício mágico e que talvez possa nos
ajudar a encontrá-la, mas precisamos do auxílio de um feiticeiro.
Em silêncio, Ciáran se levantou da cadeira de veludo e desceu
os três degraus de mármore. Tomou a pedra angula das mãos de
Maressa e a apoiou em um pedestal, onde a luz da lua descia em um
feixe brilhante.
— E quanto a você, princesa Maressa? — a rainha perguntou
enquanto o marido examinava a pedra. — Pude sentir a onda de
energia que você irradiou na floresta. Foi assim que Ciáran e eu
conseguimos encontrar vocês. Qual é a natureza da sua magia?
Maressa trocou um rápido olhar com Ikaris antes de se voltar
para a rainha de Rovina.
— Não sei, Majestade. Foi a primeira vez que algo assim
aconteceu.
Um leve arquear de sobrancelhas se marcou no rosto de Layla.
A rainha ficou em pé, o vestido azul escuro se abrindo ao seu
redor.
Maressa observou o cuidado e o carinho com que Ciáran se
afastou do pedestal e segurou a mão de Layla para ajudá-la a descer
os poucos degraus. Naqueles instantes efêmeros, sob o brilho do
luar, os olhos do feiticeiro se encontraram com os da esposa, e
Maressa quase prendeu o ar com o amor único e poderoso que
enxergou ali.
Com a cauda do vestido arrastando pelo chão, Layla se
colocou diante de Maressa. O colar com um pingente de meia lua,
que decorava o pescoço da rainha, cintilava toda vez que era
acariciado pela luz.
— Posso tocá-la, princesa Maressa?
— Sim, Majestade.
Com cuidado, Layla segurou sua mão e fechou os olhos.
Em um primeiro momento, nada aconteceu.
Então algo estalou. E ela sentiu.
Foi como a luz de mil estrelas, foi como um fogo que caía do
céu e não queimava. Era um pulsar escondido em sua alma, que
lutava e gritava para sair e brilhar.
— Consigo sentir. É tão forte e tão quente. — Layla abriu os
olhos, mas não soltou as mãos dela. — Algo bloqueava seu poder.
Ele sempre esteve aí. Mas só agora conseguiu se irradiar.
O coração de Maressa bateu de uma forma alta e selvagem no
peito.
— Como.... Como isso é possível?
— Você conseguiu identificar a natureza da magia dela? —
Ciáran perguntou, se colocando atrás da esposa.
— Não. É diferente de tudo o que já vi. Não é magia de fada.
— Posso? — Ciáran perguntou, estendendo a mão para ela.
Maressa assentiu e o deixou segurar a mão que Layla soltou. O
toque do rei feiticeiro era cuidadoso e analítico.
— Não há traços de magia de feitiçaria também. Mas o que
está dentro de você... É como se eu sentisse algo antigo e ancestral.
Mais velho do que a terra e o céu. Mais velho do que fadas, erelins e
feiticeiros.
Um braço de vento serpenteou pelo salão, agitando as chamas
das velas nos candelabros.
— É perigoso para ela? — Ikaris perguntou, a presença do
calor do corpo dele pairando atrás de Maressa, irradiando uma aura
protetora.
Ciáran ergueu os olhos e o fitou.
— Qualquer falta de controle sobre uma magia recém
despertada é um risco. Esta energia poderia tê-la consumido na
floresta. — Ele se voltou para Maressa. — Como você conseguiu
puxá-la para dentro de novo?
— Tive ajuda. Da minha raposa.
— Raposa?
— Uma raposa macho. Ele não estava na forma animal, mas
sei que era ele. Raio de Luar — Maressa recolheu as mãos. Ikaris
estava tão perto que ela tinha que se mover com cuidado para não
colidir as costas com o peito dele. — Era como se ele fosse uma
presença sem corpo. Tudo o que eu conseguia ver eram seus olhos
pretos e dourados no meio da luz.
— Olhos pretos e dourados de uma entidade sem forma? —
Ikaris murmurou, tão baixo, tão para si mesmo, que Maressa só o
escutou por conta da proximidade que estavam um do outro.
Ela olhou por cima do ombro, mas Ikaris havia virado o rosto,
fitando um dos arcos da janela, o semblante tragado para longe,
como se estivesse sendo carregado por memórias antigas.
— E a pedra angular da princesa? — Willelm quebrou o
silêncio. — Há algo nela, Majestade?
Layla meneou a cabeça, tocando a pedra angular.
— Sim, há algo nela. Mas meu marido é melhor do que eu para
identificar o que se esconde sob sua superfície.
— Me deem até a amanhã à noite para me preparar — Ciáran
falou; seus olhos ônix pareciam absorver a luz das velas. — Assim
que a lua estiver alta, farei um feitiço de averiguação.

◆◆◆

Após se alimentarem em uma mesa farta com pães, frutas,


queijos, tâmaras e peixes assados, o pequeno grupo foi convidado
pelo rei e pela rainha a pernoitar no castelo.
Como não sentia sono, já que havia dormido o dia todo,
Maressa decidiu se aventurar pelos corredores, curiosa para ver com
os próprios olhos mais sobre aquele reino encantado.
Andou até os jardins internos do castelo. A lua e as estrelas
que se revelavam através da abóbada cristalina do teto beijavam a
relva verde. Das inúmeras cascatas, suave como uma brisa, ela
podia ouvir o som lírico e melódico de um instrumento musical.
Maressa continuou andando, mas parou ao ouvir vozes baixas
e risinhos. Mantendo-se atrás de uma coluna, viu Nina e Willelm
sentados na borda da fonte. O duque contava alguma coisa de forma
espalhafatosa, abrindo os braços, batendo várias vezes na água que
jorrava da cascata, molhando a si mesmo e à Nina, que ria com
doçura a todo momento.
Uma ternura avassaladora encheu seu coração.
Maressa sorriu para si mesma e deu alguns passos para trás,
tentando não chamar a atenção e se afastando do jeito mais
silencioso possível.

◆◆◆

— E o senhor conseguiu caçá-lo?


— Foi difícil, ganhei uns arranhões, mas consegui — Willelm se
vangloriou, batendo as mãos na água outra vez. — E não precisa me
chamar de senhor, Nina.
Os olhos dela caíram.
— Mas eu sou só uma criada. E o senhor... Você... É um nobre.
— Você é muito mais do que uma criada para mim.
— As outras pessoas...
— Não me importo com o que as outras pessoas pensam. Elas
não mandam em meu coração.
Nina suspirou.
— Você me conheceu quando eu estava me passando pela
Maressa. Me viu com joias e vestidos bonitos. Mas, na verdade, sou
assim. Sou isso que você está vendo.
Gentilmente, Willelm segurou as mãos dela.
— Para mim, você é uma princesa. Minha princesa.
E, sob a luz do luar e o farfalhar da água, ele inclinou a cabeça
e deixou que seus lábios se encontrassem no primeiro e mais doce
beijo de toda a vida de Nina.

◆◆◆
Maressa continuou andando pelos corredores, envolvida pela
beleza mágica de Rovina, pelo aroma das flores e frutas, do mar
distante, da fumaça adocicada das tochas que irradiavam luz por
todo o castelo.
Quando percebeu, estava diante da porta do aposento de
Ikaris.
Antes que pudesse pensar direito, antes que pudesse recuar,
Maressa ergueu a mão e bateu algumas vezes.
Seu coração acelerou descompassadamente quando Ikaris
abriu a porta e a fitou. Havia uma surpresa pulsante nos olhos dele.
— O que você está fazendo aqui?
Seus lábios se contraíram; apenas queria estar ali, onde a
pressão em seu peito diminuía.
— Posso entrar?
Ele assentiu e deu passagem para ela.
Maressa juntou as mãos em frente ao corpo. Ficar perto de
Ikaris fazia com que cada pedacinho da sua pele se agitasse, com
que o sangue corresse mais rápido, com que o coração batesse de
um jeito diferente, como se finalmente houvesse encontrado um
encaixe correto.
Deixou que seus olhos corressem pelo quarto, até pararam
sobre a mesa onde diversos papéis avulsos se espalhavam.
— São as páginas dos livros do seu povo. Você está
procurando por alguma informação específica?
— Fiquei pensando no que você falou lá no salão. Sobre a
entidade de olhos dourados e pretos. Quando vi Raio de Luar pela
primeira vez, senti uma certa familiaridade nele, algo que não
consegui explicar para mim mesmo na hora. Mas então me lembrei
daquele dia. — Os olhos de Ikaris se estreitaram, e Maressa quase
achou que poderia tocar as memórias que ele evocava. — A queda
da Cidadela Prateada. O dia em que meus pais foram mortos pelos
soldados de Arustar.
Saber que a família dele havia sangrado nas lâminas de
Arustar fazia o peito de Maressa se contrair, como se ela também
fosse culpada pelos efeitos da guerra.
Como queria que tudo tivesse sido diferente.
Como desejava que aquela guerra jamais houvesse
acontecido.
Como ansiava entender pelo verdadeiro motivo, perdido no
tempo e nas histórias, que havia levado humanos e erelins a se
enfrentarem.
— E você se recordou do quê? — perguntou, a voz rouca,
baixa.
— Quando os soldados atacaram meus pais, eu estava
escondido. Naquele momento, quis abrir mão de minha própria vida,
quis vingar a morte deles, mas então... Entre o fogo e a chama... Tive
a impressão de ver um par de olhos dourados e pretos me
encarando. Era como se eles pedissem para que eu não me
mexesse, para que eu ficasse escondido. E...
Ikaris parou de falar e deu um passo para trás, ofegante,
contraindo o rosto como se estivesse sendo acometido por uma dor
aguda.
— O que foi?
— Não é nada.
— Você está mentindo. Posso ver a dor em seus olhos.
— Foi apenas uma fisgada nas costas. Já disse que não é
nada.
— Ikaris! — O nome dele ecoou pelo quarto, calando-o.
Maressa ergueu o queixo e deu um passo para a frente. — Deixe-me
ver.
— É mesmo impossível argumentar com você.
— Como acha que consegui convencer minha mãe a me deixar
passar por criada durante o torneio de Arustar?
Ela quase jurou ver a palidez de um sorriso risonho manchando
os lábios de Ikaris enquanto ele levava os dedos aos botões da
camisa.
Seu coração bateu mais rápido.
Maressa esperou que ele desabotoasse a camisa e a tirasse,
deixando a parte de cima do corpo despida.
Ela tentou não olhar, mas foi inevitável. Nunca tinha visto um
homem daquele jeito. A luz das velas e do luar pincelava os cabelos
escuros, tracejava os músculos dos braços, o peitoral definido, o
abdômen marcado, as cicatrizes pálidas sobre a pele.
Lindo.
Ele era lindo.
Foi difícil encontrar a própria voz, a cadência do ar que tentava
sugar por entre os lábios.
— Sente-se.
Ikaris se sentou na beirada da cama. Maressa apoiou o joelho
no colchão, deslizando os dedos pelas costas largas, repletas de
cicatrizes. Podia sentir a respiração dele se acelerando. Podia sentir
sua própria respiração se acelerando.
— Não há nada aqui.
— Eu falei. Foi só uma pontada de dor.
— Quis me certificar do mesmo jeito. Assim como você se
preocupa comigo, também me preocupo com você.
Ikaris virou a cabeça; seus rostos estavam tão próximos que
Maressa sentia que compartilhavam o mesmo ar, o mesmo espaço.
— Sua preocupação não é necessária.
— É inevitável.
O cinza dos olhos de Ikaris escureceu.
Era como se um fogo invisível se irradiasse da pele dele, do
coração dele, direto para o âmago dela.
— Por que ainda fica perto de mim, Maressa? Você sabe quem
sou. Você sabe qual era a ordem que eu tinha que cumprir. Você
sabe que seu reino odeia a minha raça.
— Eu não te odeio — ela sussurrou, buscando pelos olhos
dele. — E você? Odeia a culpa da destruição do seu povo que meu
sangue carrega? Odeia quem sou?
— Jamais — ele sussurrou de volta. — Nem mesmo se todas
as estrelas do céu fossem engolidas. Eu jamais seria capaz de te
odiar.
E algo nela se soltou, se libertou.
Maressa inclinou os lábios para perto da boca dele; com um
movimento que pareceu exigir todas as suas forças, Ikaris afastou o
rosto.
— Não posso. Quero, anseio, mas não posso.
— Por quê?
— Não sou nada além de um exilado da terra, um renegado do
céu, repleto de sombras e rancor.
— Você também é um amante das palavras, leal e devoto às
memórias, e está pronto para se colocar na linha de frente para
proteger seus companheiros de viagem. É alguém capaz de se
embrenhar na mata para encontrar as ervas de um tônico. É alguém
que se priva do próprio sono e continua no posto de vigilância,
apenas para deixar Willelm dormir um pouco mais. É alguém que
busca pelo próprio caminho. — Ela o fitou por debaixo dos cílios
longos. — Eu te enxergo, Ikaris. Em todas as suas nuances e
camadas. E aceito e as quero. Porque é você.
— Maressa. — Ele tomou a mão dela, encostando o lábio em
sua palma. Aquele suave contato a fez estremecer mais do que
qualquer onda de luz e poder. — Você não sabe o que está pedindo.
— Se você não me tocar, se você não me beijar... — As mãos
dela subiram para o rosto dele; e ali, na colisão de seus olhares, ela
enxergou nele a mesma ardência que queimava nela. — ....Uma
parte de mim morrerá antes que meus inimigos me encontrem ou
que meu poder me consuma. Essa é a única verdade que sei.
Ikaris subiu as mãos para as mãos dela, afastando-as com
gentileza de seu rosto, mas não as soltou.
— A minha verdade é que fui enviado para Arustar para tirar a
vida da herdeira do trono. Sua vida. Mas creio que as estrelas me
levaram até o castelo, até você, para me fazer enxergar meu
verdadeiro destino, para dar à minha alma congelada um motivo para
lutar, arder e queimar. E hoje sei que eu sou capaz de colocar meu
coração no fogo para impedir que qualquer mal te aconteça.
Maressa puxou uma de suas mãos que ele segurava e a
deslizou pelo peito despido, marcado por músculos e cicatrizes,
pousando a palma sobre o coração trovejante dele.
— Não quero que coloque seu coração no fogo ou que se
sacrifique por mim. Quero que me beije. — Ela inclinou a cabeça, os
olhos banhados pelo luar. — Apenas me beije. Apenas me mostre
que sente o mesmo.
38
Queda das estrelas

POR UM momento, ela achou que Ikaris se desvencilharia e a


deixaria ali sozinha.
Mas então os olhos dele encontraram os seus, a respiração
entrecortada, o rosto tingido pela luz do luar.
E, quando ele a beijou, soube que nada mais seria o mesmo.
O gosto da boca de Ikaris a invadiu, e ela se sentiu preenchida
por seu sabor, pelo ar que ele exalava enquanto roçava os dentes
com leveza contra seu lábio inferior.
— Você se transformou na minha perdição assim que coloquei
meus olhos em você — ele falou, rouco, baixo, arrepiando toda a sua
pele. — Você já era a minha perdição antes mesmo que te
conhecesse.
Maressa se contorceu entre os braços dele, deixando suas
mãos descerem pelo peito desnudo, pela pele ardente. Ouviu-o
rosnar baixo contra sua orelha; um som que a estremeceu dos pés a
cabeça, fazendo-a ansiar por algo que nem sabia o nome.
As mãos de Ikaris se afundaram em seus cabelos, depois por
baixo deles, procurando por qualquer centímetro de pele que não
estivesse protegido pelo tecido do vestido.
Os toques a cegavam; um brilho que ofuscava os olhos, a pele,
o coração, a alma.
— Isso... Nós... Você é uma princesa...
— Já não sei mais quem sou — ela sussurrou de volta, a mão
subindo pelas cicatrizes das costas dele. — A única certeza que
tenho agora é aqui é onde quero estar.
As alças do vestido escorregaram pelos ombros de Maressa,
revelando a pele que foi banhada pelo luar. Ikaris se inclinou,
beijando cada centímetro desnudo com uma lentidão tão provocante
que ela achou que queimaria ao toque dos lábios dele.
Estremeceu.
Ninguém nunca a tocara daquele jeito.
Deslizando os lábios em seu pescoço, sentiu a respiração de
Ikaris ficando hesitante.
— Se estiver com medo, se não quiser mais... Posso parar no
momento que você quiser.
— Continue... — ela sussurrou, rouca, os olhos semicerrados, a
cabeça inclinada para trás. — Apenas continue.
— Não haverá volta se formos em frente.
— Desde o primeiro momento... Desde muito antes... Nunca
houve volta para nós.
Teve impressão de escutá-lo gemer de alívio.
Ikaris a puxou sobre o colchão, trazendo-a para mais um beijo,
deixando que as pernas dela se encaixassem ao redor de seu quadril
enquanto os dedos soltavam lentamente cada fita do vestido.
A cada tremor, a cada suspiro, a cada ofego; tudo o que sentia
se intensificava, ardia.
O vestido terminou de deslizar por sua pele, até chegar ao
chão.
Por instinto, Maressa ergueu a mão, tentando se cobrir, mas
Ikaris a segurou, depositando um beijo leve em seu pulso, os olhos
nos dela.
— Poderia passar o resto da minha vida te admirando.
Ofegante, Maressa franziu o cenho.
— Não quero que fique só me admirando.
E Ikaris riu.
Riu.
Com leveza.
Com doçura.
Era a primeira vez que ela escutava aquele som saindo da
boca dele. Era a primeira vez que via um sorriso genuíno marcando
seus lábios.
E aquela visão, junto ao fulgor que queimava seu coração, fez
Maressa se mover para a frente e beijá-lo, os seios desnudos
roçando no peito dele. Ikaris gemeu e rosnou em sua boca. A boca
dele desceu por seu pescoço, alcançando cada um de seus seios, o
vão entre eles, para subir outra vez, em um beijo ainda mais
abrasador.
— Eu quero... — ela sussurrou. — Eu preciso...
— Eu sei — ele sussurrou de volta. — Eu também.
Os olhos de Ikaris queimavam de desejo enquanto a deitava no
colchão e se livrava de suas últimas peças de roupa. Maressa teve
apenas um instante para admirá-lo à luz do luar antes que ele
estivesse com o corpo sobre o dela, a boca e as mãos parecendo
dominar toda a sua pele.
Ela ergueu os braços, envolvendo seu pescoço,
correspondendo cada beijo que recebia com o mesmo anseio. O
corpo de Ikaris estava quente como o seu, e embora ele tivesse os
músculos rijos e fortes, calejados e marcados por cicatrizes, a pele
era macia quando deslizava sobre a sua.
Maressa suspirou e estremeceu ao sentir a mão dele subindo
por seu tornozelo, acariciando seu joelho, os dedos resvalando por
sua coxa.
— E se eu fizer alguma coisa errada?
Ele afastou o rosto apenas o suficiente para olhá-la.
— Nada em você é errado.
— Mas...
Ele a silenciou com um beijo antes de voltar a admirá-la.
O peito dela subia e descia; tudo o que conseguia ver era a
prata ardente do olhar dele onde ela se refletia.
Tudo nele a chamava.
Tudo nele a impelia.
Era uma força tão poderosa que nada poderia levá-la para
longe.
Deitado sobre ela, Ikaris afastou uma das mechas douradas
que caía sobre os olhos de Maressa.
— Por muito tempo, olhei para o céu em busca das estrelas
que não conseguia enxergar. Hoje, tenho aqui a mais bela e brilhante
de todas.
Maressa segurou o rosto dele entre suas mãos, sentindo o
coração bater tão alto quanto as ondas que estouravam contra os
rochedos do castelo de Rovina.
— Me beije — pediu, uma súplica, um anseio. — Me faça sua.
Tomando os seus lábios com um desejo incontido, a pele
quente como o fogo, Ikaris se moveu com cuidado para dentro dela.
Foi como se o mundo inteiro ardesse em chamas que queimariam
para sempre. Maressa mordeu de leve o ombro dele quando ele
afundou um pouco mais, reivindicando cada pedacinho dela, da
mesma forma como ela o reivindicava.
— Está doendo?
Ela negou com a cabeça, incapaz de falar.
E, quando a hesitação inicial passou, quando o desconforto se
foi, quando ela começou a se mover junto com ele, os dedos de
Ikaris agarraram as mechas longas e claras, erguendo o queixo dela,
ávido por cada suspiro que seus lábios soltavam, os olhos cravados
nos seus, os corações batendo juntos como se fossem tempestades
vivas que anunciavam as estrelas que caíam do céu.
39
Najma

DEITADA NA cama, sob a luz do luar, Maressa repousava a


cabeça no peito de Ikaris. O coração dele batia no mesmo ritmo do
seu, como se fossem um só, regidos pela mesma harmonia e
melodia. Seus pés estavam entrelaçados aos dele; a mão de Ikaris
acariciava os cabelos soltos dela de forma lenta e cuidadosa.
Ela suspirou, deixando os olhos se fecharem
momentaneamente.
Nada do que havia lido ou escutado ao longo dos anos a
prepara para algo como aquilo.
Tão intenso.
Tão pulsante.
Tão brilhante.
Capaz de fazer seu coração de desintegrar, se desmanchar e
se reerguer, repleto de luz e calor.
— Você está sentindo isso? — ela sussurrou para ele,
apoiando a palma sobre o coração dele. — Tão forte como eu estou
sentindo?
Ele assentiu, o braço a rodeando, a mão descendo por suas
costas nuas, as íris ardendo ao se encontrarem com as dela.
O rosto dela, já incandescente, ficou ainda mais vermelho.
Ikaris inclinou a cabeça, beijando os lábios dela de leve. Ao
afastar o rosto, Maressa viu os olhos dele a analisando com
curiosidade.
— O que foi?
— Também posso sentir no nosso beijo que você quer me
perguntar algo.
Ela piscou, surpresa, as bochechas ruborizadas.
— Como isso é possível?
— Acho que algumas coisas não podem ser explicadas. — Ele
tomou as mãos dela e as beijou. — Apenas sentidas. E estou certo,
não estou? Você quer me perguntar algo.
— Bom, eu não queria atrapalhar nosso momento com minhas
perguntas infinitas e minha curiosidade sedenta, mas... — Ela
mordeu o lábio, segurando um sorriso intrigado. — Você me disse
que, quando os soldados de Arustar atacaram sua casa e seus pais,
você viu um par de olhos pretos e dourados em meio às chamas. Da
mesma forma que vi quando minha magia se libertou.
— Sim. Foi exatamente isso que aconteceu. E estes olhos...
— São os olhos da raposa gigante que sempre esteve nos
arredores do castelo, desde que eu era uma garotinha — ela
continuou. — São os olhos de Raio de Luar. Não sei como isso é
possível, mas tenho certeza absoluta de que é ele. Mas como uma
raposa pode fazer isso?
— É porque acho que ele não é uma raposa de verdade.
Maressa ergueu o rosto e se virou, apoiando as mãos no peito
de Ikaris, os cabelos caindo sobre seus ombros despidos.
— E o que Raio de Luar seria?
— Um najma.
Os olhos de Maressa se estreitaram. Ela caçou pelo termo na
biblioteca de sua mente, mas não o encontrou.
— O que é um najma?
Através do arco da janela, a visão do céu enluarado foi
encoberta pelas nuvens sopradas pelo vento.
Por um momento, uma penumbra caiu no quarto.
Mas Maressa não se mexeu, concentrada na luz cinzenta que
iluminava os olhos de Ikaris.
— Há várias histórias sobre a origem desses seres. Para o meu
povo, foram os najmas que sopraram ventos fortes no céu e derem
luz às estrelas. Algumas lendas falam que houve um sopro tão forte,
que fez com que um dos najmas derrubasse uma lágrima prateada.
Essa lágrima caiu em uma terra erma e se ramificou, criando uma
cidade prateada.
— A Cidadela Prateada — Maressa murmurou. — O antigo lar
do seu povo. As terras que meu reino...
A mão de Ikaris acariciou o rosto de Maressa; os olhos dela se
fecharam, enlevados pelo toque cálido e protetor.
— No lugar onde esta lágrima caiu, em que se enraizou o
coração da Cidadela Prateada, uma fonte surgiu. A água desta fonte
era luz pura, que subia para o céu e se banhava nas estrelas,
alimentando a essência de cada erelin, transformando meu povo,
ascendendo-o aos céus. — Enquanto falava, a voz de Ikaris era
tomada por uma nostalgia marcante; Maressa podia tatear a
saudade que ele sentia do lar e da família. — Em resumo, seria
graças aos najmas que os erelins ganharam asas e conseguiram
conjurar magia através da ligação das estrelas.
Ela entreabriu os lábios, maravilhada com a história. Havia
tanto do mundo para além dos muros de Arustar que desconhecia,
tanta coisa que não sabia e que tinha sede de aprender.
— E por que você acha que os olhos que apareceram para nós
são os olhos de um najma?
Ikaris se remexeu na cama, esticando o braço para a mesinha
de cabeceira próxima à cama. Maressa o observou apanhar as
páginas que arrancara dos livros escondidos na biblioteca
subterrânea de Arustar.
— Durante nossa jornada até Rovina, li e reli todas essas
páginas inúmeras vezes, em busca de qualquer informação sobre
meu povo, sobre algo que poderia justificar a existência do Nefastus
e o motivo das marcas erelins que vimos nas paredes do castelo de
Arustar. Só que tudo está muito solto, pois, no meu desespero de
salvar a história do meu povo, não consegui arrancar as folhas em
sequência. Mas então encontrei isso.
Maressa inclinou a cabeça, observando o desenho e o escrito
que enchiam toda a folha.
— Não consigo entender.
— É porque o texto está escrito em um idioma antigo. Um
dialeto erelin. “O aspecto de um najma é variável e mutável” — Ikaris
leu para ela. — “Em determinado momento, um najma pode ser uma
multidão de olhos fixos sobre o mundo; em outro, um par de olhos
reluzentes que guiam um único indivíduo”.
Maressa piscou.
— Foi o que aconteceu comigo e com você.
— “Também podem se materializar como pequenos pontos
luminosos, rodeados de aura fosforescente” — ele continuou lendo
—, “e podem, ainda, parecer criaturas sem formas, ou combinações
de formas humanas com animais”.
— Então...
— Raio de Luar pode ser um najma que assumiu a forma de
raposa para aparecer para nós.
— Mas você disse que seu povo perdeu toda a ligação com a
magia durante a guerra...
— Os najmas não são erelins. — Ikaris deixou as folhas
arrancadas do livro de lado. — Eles são o sopro de luz das estrelas,
a essência dos elementos que criaram o mundo, a manifestação do
divino e do místico. Em essência, são a própria força das estrelas.
Só que eles raramente aparecem em nosso mundo.
A cabeça dela girava com as informações novas.
— Se Raio de Luar for mesmo um najma, por que ele apareceu
para nós? Por que surgiu para você, quando ainda era um menino, e
por que me ajudou a encontrar o caminho de volta entre a ardência
da minha magia?
— Estas perguntas também estão rodando pela minha cabeça.
Não conheço tanto da mitologia do meu povo quanto eu gostaria. Fui
tirado da Cidadela Prateada quando ainda era um garoto, e meus
pais, os guardiões das grandes bibliotecas e das histórias erelins,
foram mortos.
Maressa suspirou; era como se a dor dele fosse dela também.
— Não há mais nada nestas páginas?
— Não. — A boca dele se comprimiu em uma linha fina e
rígida. — Eu precisaria do restante dos livros, mas retornar para
Arustar é perigoso demais. Não sabemos se os carniçais ainda estão
por lá ou o que aconteceu com o Nefastus.
— Ou com a minha mãe. — A voz de Maressa tremeu.
A mera ideia de não conseguir encontrar a mãe antes que
fosse tarde demais... Ela estremeceu e sufocou o desespero que
ansiava encher seu peito. Precisava ser forte. Precisava se manter
em pé.
— Como poderíamos descobrir mais?
— Talvez os mais antigos do meu povo ainda guardem essas
histórias na memória. Alguém como Darlan saberia. Mas não há uma
forma segura de retornar para as montanhas. Qualquer um que
tentasse seria capturado pelos soldados da Cinco Alianças.
Maressa tocou o próprio queixo.
— E se eu me apresentasse para eles como a princesa de
Arustar?
Os ombros de Ikaris se retesaram.
— Os riscos seriam altos. Além disso, a nobreza de Arustar não
é bem-vinda nas montanhas. — A voz dele se agravou, séria e
protetora. — Eu jamais te levaria para lá. Se Iohanna soubesse...
— Quem é Iohanna?
Ikaris inspirou fundo, o peito descendo e subindo lentamente.
— Uma das mais antigas mulheres do meu povo. Uma erelin
pura.
“Há mais homens erelins puros do que mulheres erelins puras,
que, antigamente, antes da quebra das ligações sagradas, viviam
muito mais do que os homens, possuíam asas enormes e
resplandecentes, e eram detentoras de uma beleza divina”.
Recordando-se das palavras de Ikaris, ela o fitou.
— E foi esta Iohanna que te mandou atrás de mim?
Ele fez um aceno positivo e dolorido com a cabeça.
— As montanhas são perigosas demais para você.
— Se você for sozinho e tentar passar pelo exército, os
soldados podem te capturar ou... Ou pior! — Ela engoliu em seco. —
Se eu estiver com você, se Nina e Willelm nos acompanharem,
talvez...
— Retornar para as montanhas é algo que farei se não houver
mais alternativas. É um risco alto para se correr.
Maressa silenciou, pensativa.
— Deve haver um jeito de descobrirmos mais sobre os najmas.
— Talvez. Mas, de qualquer forma, a ideia de Raio de Luar ser
um najma é apenas uma teoria minha. Agora...
As mãos de Ikaris a seguraram pela cintura; Maressa arfou
quando ele a virou e a deitou no colchão, vindo com o corpo por cima
do seu.
O vento soprou outra vez, empurrando as nuvens para longe,
deixando que o luar derramasse sua luz prateada dentro do quarto.
— Agora o quê? — ela perguntou, entreabrindo os lábios, um
calor provocante se espalhando por toda a sua pele.
Um brilho perigoso ardeu nos olhos dele.
No instante seguinte, os lábios de Ikaris tomaram os seus, e
tudo o que Maressa fez foi retribuir cada beijo, cada toque, deixando
que tudo o que existia nela queimasse no calor dos braços dele.
40
Poder para poder

— O QUE você está fazendo?


A voz gentil e feminina pegou Maressa de sobressalto. Ela se
virou, observando a rainha de Rovina caminhar em sua direção.
— Majestade — disse, curvando-se em respeito.
Layla fez um sinal para que ela se endireitasse. Maressa a
obedeceu, encaixando uma mão sobre a outra.
— Você estava tentando conjurar sua magia? — a rainha
perguntou.
— Sim. Ela me ajudou na floresta, mas quase me matou. Quero
controlá-la. Ainda preciso encontrar e resgatar minha mãe. E acho
que ela pode me ajudar, mas... — Maressa fitou os próprios dedos.
— Eu não quero ser consumida no processo.
— Já estive no seu lugar. Minha magia também despertou de
forma descontrolada.
A curiosidade serpenteou pelo peito de Maressa.
— E como você conseguiu controlá-la?
— Muito treino. Muita paciência. Meu marido me ajudou
durante todo o processo. Posso te ensinar o que sei, enquanto você
estiver aqui em Rovina. Posso te passar alguns ensinamentos agora
mesmo.
Os olhos de Maressa dobraram de tamanho.
— Seria uma honra, Majestade.
As horas seguintes passaram sem que Maressa se desse conta
da transformação do sol no céu. Descobriu que Layla era uma
instrutura calma e paciente, enquanto ela era uma aluna mais
ansiosa e afoita.
— Com o tempo e com a prática, você vai melhorar.
— Fui criada como princesa e protegida a minha vida inteira.
Fui preparada para me casar com um nobre e usar a aliança para
manter meu povo protegido. Mas será que isso é tudo? — Os olhos
de Maressa se voltaram para uma das grandes janelas. — Sempre
olhei para o céu e acreditei que havia muito mais para mim. Um
propósito. E esta certeza parece mais forte agora, com essa magia
despertada queimando dentro de mim. Só não sei se ela é uma
benção ou uma maldição.
— Não há magia boa ou ruim. Há apenas o caminho para qual
você a leva. A magia é parte de você — Layla explicou, segurando a
mão dela como um fio condutor. — Você a controla, e não o
contrário.
Deixando-se ser instruída por Layla, Maressa mergulhou
lentamente no cerne daquela fagulha, que queimava como uma
tocha fraca em seu peito. Tocou a fonte com gentileza, permitindo
que ela ardesse um pouco mais, e um pouco mais, e um pouco mais.
Fios de luz crepitaram ao seu redor, alguns descontrolados,
alguns mais brilhantes; mas o poder de Layla os segurou.
— Ainda não consigo acreditar que posso conjurar magia. Que
ela sempre esteve aqui comigo. Por que só despertou agora?
Layla lhe deu um sorriso costurado de mistérios e doçura.
— Talvez você esteja mais próxima do seu propósito do que
imagina.

◆◆◆

Maressa sempre achara que a biblioteca do castelo de Arustar


era a maior que existia. Mas suas crenças se desmontaram quando
ela pisou na biblioteca de Rovina. Eram tantas estantes e tantos
livros que nem mesmo uma vida seria suficiente para conhecer todo
o acervo.
— O que é mesmo que estamos procurando? Como é aquele
nome diferente? — Nina perguntou, caminhando ao seu lado, a saia
do vestido azul balançando de um lado para o outro.
— Qualquer coisa a respeito dos najma.
— Najma — Nina repetiu. — Certo. E lorde Ikaris acha que
Raio de Luar pode ser uma dessas coisas... Um najma?
— Foi o que ele me falou ontem à noite.
A menção à noite anterior foi suficiente para ruborizar as
bochechas de Maressa. Cada toque, cada beijo, cada suspiro, cada
entrelaçamento do seu corpo e do seu coração ao dele... Tudo
estava marcado nela feito uma magia poderosa que jamais poderia
ser apagada.
— Notei que você não voltou para o quarto ontem.
As lanternas de vidro penduradas no teto oscilavam e rangiam.
Maressa parou de andar e olhou para Nina.
Não precisou de muito mais do que um olhar para que sua
única amiga entendesse o que havia acontecido.
— Sei que, como sou uma princesa e herdeira do trono de
Arustar, meu comportamento não foi apropriado, ainda mais por ele
ser um erelin e inimigo do meu povo, mas...
— Lorde Ikaris mexe com você desde o primeiro instante em
que se viram — Nina comentou com gentileza.
Ela suspirou e fechou os olhos, apoiando-se em uma das
estantes. Levou uma mão ao peito, sentindo o pulsar do próprio
coração.
— É mais forte do que qualquer outra coisa que já senti. É
como se um fio invisível ligasse minha alma à alma dele. Como se
cada escolha, cada passo dado em nossa vida, nos levou um para o
outro. — Mais um suspiro escapou dos lábios dela. — Você deve
estar achando que enlouqueci. Que perdi a razão ao colocar o
coração acima do dever.
— Então eu também perdi a razão.
Maressa estreitou os olhos, analisando com curiosidade o
semblante de Nina, que ficava cada vez mais ruborizado.
— Como assim? Isso tem algo a ver com o duque Willelm?
— Ah, bem... — O rosto de Nina queimou ainda mais. —
Nossa, acho que já está na hora de irmos até o salão para nos
encontrarmos com o rei feiticeiro, não é? Não podemos nos atrasar.
Maressa se virou, rindo e seguindo Nina por entre as estantes.
— O sol ainda não se pôs! Não estamos atrasadas e temos
tempo para conversar e pesquisar sobre os najmas! Volte aqui e me
conte melhor essa história, Nina!

◆◆◆

Sentado em um parapeito, banhado pelo sol que logo daria


lugar para a noite, Ikaris folheava um dos livros que pegara na
biblioteca real, com a permissão de Layla e Ciáran.
Tentava se concentrar na leitura e na pesquisa; algo que não
estava sendo fácil, pois o cheiro, o toque e o gosto de Maressa se
espalhavam por todo o seu corpo, provocando-o e o lembrando de
que a tivera em seus braços na noite passada.
De que a queria em seus braços pelo resto dos seus dias.
Uma princesa de Arustar. Um erelin exilado nas montanhas.
Parecia até mesmo o começo de uma trágica canção de amor.
E aquela hipótese fazia seu coração latejar.
— Sobre o que você está lendo?
Ikaris ergueu o rosto, notando que Willelm havia se
aproximado. Estava tão imerso nos próprios pensamentos, nas
lembranças do seu corpo sobre o de Maressa, que mal notara a
presença do duque.
— Bloqueadores de magia. — Ele fechou o livro. — A magia de
Maressa sempre esteve com ela, mas só despertou agora. A rainha
Layla mencionou que algo bloqueava esse poder. A doença e a
fraqueza dela certamente estão ligadas a esse bloqueio. Tentei
procurar em livros o que poderia ser, mas não encontrei nada.
— Será que não era aquele tônico?
— Eu o provei enquanto estava no castelo, achando que
alguém envenenava Maressa. Não havia nada no tônico além de
ervas curativas.
— Então o bloqueador não é o tônico.
— Não. E você não faz ideia do que pode ser.
— É por isso que estou fazendo pesquisas desde a hora que
acordei.
— Certo. Não quero te atrapalhar. Vou deixá-lo com seus
estudos. — Willelm se virou. — Nos encontramos mais tarde no
salão.
Ikaris soltou o ar.
— Willelm.
O duque parou de andar e olhou para trás.
Ikaris desceu do parapeito e fitou o duque. O sol poente
brilhava sobre as pedras do castelo.
— Não tive a oportunidade de agradecê-lo por ter se oferecido
para lutar contra o troll ao meu lado.
— Não sou um homem que foge de uma batalha.
— E também não é alguém que se incomoda por eu ser quem
eu sou.
— Por que eu me incomodaria com a raça de um amigo?
Algo se embolou na garganta de Ikaris. Ele não era alguém que
se considerava sentimental, mas, desde que embarcara naquela
jornada com uma princesa que carregava segredos até de si mesma,
com uma jovem criada com uma lealdade que seria admirada pelos
erelins e com um duque falante que estava sempre disposto a se
colocar na linha de frente pelos outros, vinha sentindo um
estremecimento diferente no peito.
Algo que jamais sentira na névoa fechada das montanhas,
entre seu povo e seus semelhantes.
Algo que só tinha sentido quando era criança, quando vivia na
Cidadela Prateada, repleto de sentido e pertencimento.
— Se um dia precisar de alguma coisa, Willelm, não hesite em
pedir.
Um sorriso subiu na boca do duque enquanto o horizonte
longínquo engolia o sol.
— Cuide bem da princesa. Nina a estima demais. É só o que
peço.

◆◆◆

Ao anoitecer, após o jantar, Maressa e Nina seguiram juntas


para o salão principal, onde o rei e a rainha de Rovina, junto de Ikaris
e Willelm, aguardavam por elas.
Assim que atravessou as portas largas e abertas, os olhos de
Maressa, feito um chamado magnético, procuraram por Ikaris.
E encontraram os olhos dele virados em sua direção.
Ela quase sentiu o fôlego faltar, quase levou uma mão ao peito,
sentindo as pernas bambearem e o coração disparar.
A pele ardia, o sangue latejava; foi difícil demais não correr até
ele e se jogar em seus braços.
E, pelo olhar dele, podia ver que Ikaris sentia o mesmo.
Lutando contra o próprio desejo do coração, ela se virou para
Ciáran e Layla, que trajavam com elegância e soberania as cores da
noite e do luar, e os cumprimentou com uma reverência formal.
— Agradeço mais uma vez, Majestades, por me ajudarem com
os segredos da pedra angular. Espero que eu consiga obter uma
pista que mostre para onde o Nefastus levou minha mãe.
Layla sorriu e estendeu a mão para Ciáran. O feiticeiro tomou a
mão da rainha e, juntos, eles caminharam na direção do altar e da
pedra colocada sobre ele.
— Todos os preparativos foram feitos. Darei início ao feitiço de
averiguação — Ciáran informou, a voz sóbria e formal. — Formem
um círculo ao redor do altar e da pedra angular.
Maressa, Ikaris, Nina e Willelm obedeceram.
Layla se colocou ao lado do marido e fechou os olhos, tocando
o pingente de meia lua de seu colar.
Ciáran levantou um braço; uma espiral de vento dançou dentro
do salão, erguendo seus cabelos e apagando todas as velas.
— Dentro deste círculo, clamo pela magia das minhas
ancestrais. Circe, Aradia, Trívia, as Três Maiores, escutem seu filho.
De poder para poder, de sangue para sangue, aceitem esta
comunhão.
Chamas fracas arderam, desenhando um círculo maior ao
redor do círculo que eles formavam.
Maressa arregalou os olhos quando a pedra começou a vibrar,
enchendo-se de riscos luminosos.
— Pelo fogo, ar, terra e água, que os mistérios da magia se
revelem! Que o segredo escondido se mostre!
As chamas aumentaram, formando pilastras incandescentes.
Maressa fechou os olhos.
A força do vento aumentou, fustigando suas roupas, seus
cabelos.
“De poder para poder, de sangue para sangue, aceitem esta
comunhão”.
Foi como ser capturada por um redemoinho, como ser
carregada pelo vento e pela luz.
“Pelo fogo, ar, terra e água, que os mistérios da magia se
revelem! Que o segredo escondido se mostre!”.
Maressa arfou alto quando a sensação flutuante passou.
Sua respiração ecoou; um som espiralado que se perdeu no
infinito.
— Vocês também sentiram isso?
Assim como sua respiração, a pergunta ressonou, ondulou,
como se não alcançasse nada além de um amplo vácuo.
Lentamente, Maressa abriu os olhos.
“E nas estrelas está... Até que para a terra possa voltar”.
Arquejou de novo; desta vez, mais alto, um som assustado,
confuso, perdido.
Ela não estava mais no salão do castelo de Rovina.
Estava em um lugar aberto, descampado e desconhecido.
E, perto dela, havia duas mulheres de asas refulgentes e
beleza esplendorosa, acorrentadas pelos pés e pelas mãos.
41
No passado

HAVIA UMA lua brilhante no alto; a única fonte de iluminação


que se ramificava pelo descampado infinito.
Maressa girou nos calcanhares, o vestido se abrindo ao seu
redor, procurando por Ikaris e pelos demais.
Onde estou? Como vim parar aqui?
Tudo o que se lembrava era da magia de Ciáran, da pedra
levitando, da sensação de ser capturada pelo vento.
Ao abrir os olhos, todos tinham desaparecido.
Tentando não render ao nervosismo, Maressa observou o
espaço ao seu redor, pousando os olhos nas únicas duas mulheres
que também estavam ali.
As asas abertas em suas costas...
Eram duas mulheres erelins.
Seus braços e pernas, acorrentados com ferro, estavam
cobertos por cicatrizes antigas e recentes.
Ela engoliu em seco, levando uma mão ao peito, lembrando-se
do que Ikaris tinha lhe contado sobre os costumes antigos dos povos
erelins com as mulheres puras de sua raça.
“Foram tempos sombrios. Neste passado distante que citei, as
mulheres erelins puras eram aprisionadas e acorrentadas pelos
homens puros do meu povo, e usadas para gerar crianças ainda
mais puras.”
Franziu o cenho.
Será que estaria, de alguma forma, vislumbrando algo do
passado?
Será que a magia contida na pedra angular estava tentando lhe
mostrar ou lhe contar alguma coisa?
Era uma hipótese que fazia sentido.
Uma das erelins levantou a cabeça.
Maressa entreabriu os olhos ao reconhecê-la.
Era a erelin de cabelos longos, da cor do sol, e olhos cintilantes
que havia visto em um dos livros guardados na câmara de Arustar.
Maressa deu um passo para perto dela.
— Quem é você?
Sua pergunta ecoou no ar e se perdeu no precipício.
Nenhuma das duas mulheres aladas parecia notar sua
presença ali; era como se ela fosse expectadora de uma cena
passada, protegida atrás de uma cortina etérea do tempo.
De um véu.
Maressa piscou.
Ela estava atrás de um véu.
Como nos meus sonhos mais recentes.
Estaria vendo as memórias de alguém?
Há que ano aquele vislumbre pertencia?
Pelo que Ikaris tinha falado, o costume arcaico de aprisionar
mulheres erelins tinha sido extinto há mais de um século.
Então, se isso for mesmo real, esta cena que estou vendo
aconteceu há muito tempo, muito antes da guerra entre os erelins e o
povo de Arustar.
Por que a magia da pedra a levara até ali?
Por que estava mostrando algo tão antigo, tão distante?
Correntes farfalharam, quebrando os pensamentos de
Maressa.
Ela olhou para as duas mulheres aprisionadas.
— Iohanna. Iohanna. Está me ouvindo?
O coração de Maressa acelerou.
A erelin que vira no livro era Iohanna.
A mesma erelin que mandara Ikaris atrás dela em Arustar.
A erelin que, atualmente, vivia no exílio das montanhas.
Se esta é Iohanna, então estou mesmo vislumbrando uma cena
do passado, algo que aconteceu muito, muito antes da grande guerra
erelin.
Controlando a respiração ofegante, como se elas pudessem
ouvi-la, Maressa se aproximou um pouco mais.
A outra erelin, que chamou pelo nome de Iohanna, também era
bela. Mas suas asas fosforescentes estavam abaixadas; os olhos
eram abismos frios na face marcada por cicatrizes. Os cabelos, prata
como o luar, pareciam frios como o gelo.
— Iohanna. Ouvi gritos em uma das celas na noite passada.
— Cortaram as asas de uma de nossas irmãs. Porque ela não
consegue conceber filhos.
— Você também não consegue, Iohanna. Você é estéril. Isso
significa que será a próxima. — O rosto da erelin de cabelos
prateados se contorceu. — Por que cortam nossas asas? Para nos
renegar os céus? Para nos deixarem ainda mais submissas?
A boca de Iohanna se contraiu, como se ela estivesse
ponderando responder a pergunta ou não.
— A magia das mulheres da nossa raça se concentra
fortemente em nossas asas. Dizem que há criaturas inferiores... Que
se alimentam delas para aumentarem seu poder. Que dão o que for
preciso em troca de asas de mulheres erelins puras.
Maressa levou as mãos à boca, horrorizada. Achou que a erelin
dos cabelos prateados também partilharia do mesmo assombro. Mas
a frieza amarga dos seus olhos apenas se recolheu, profunda e
reflexiva.
— Alguém de nosso povo também pode se alimentar das asas
de uma erelin pura e aumentar seu próprio poder?
Choque bruto encheu o rosto de Iohanna.
— Que pergunta é esta, minha irmã?
— Pela sua expressão, acredito que isso pode acontecer.
— Pode... Mas um erelin que se alimenta das asas de outra
erelin se torna uma criatura nefasta... Muito mais nefasta do que os
erelins que provam carne humana. Você não deveria nem falar em
algo assim. Não deveria olhar para nossas irmãs, que também são
prisioneiras, e enxergar apenas o poder em suas asas, como nossos
captores fazem.
A erelin riu; um riso frio, perigoso.
— Olhe para nós! Escravas parideiras de homens arcaicos. A
verdade é que eles nos temem. Somos poderosas, somos divinas,
mas não o suficiente para derrubá-los.
— Este mal há de acabar. Sinto que ele está no fim. — Os
olhos de Iohanna brilhavam na certeza daquelas palavras. — Sinto
no ar, nas estrelas, no luar e no vento. Seremos livres outra vez.
— Se eu me livrasse dessas correntes, se eu tivesse mais
poder...
— Acalme seu coração. Os guardas podem te ouvir.
As correntes dos braços da erelin se agitaram ainda mais.
— Que ouçam! Não me importo!
— Isso não diz respeito apenas a nós, e sim a todas nossas
irmãs que também estão aprisionadas — Iohanna a cortou. — Para
nosso povo viver em paz, precisamos acabar com este costume
maldito. As gerações mais jovens já se opõem ao aprisionamento de
mulheres como nós.
— E, ainda assim, aqui estamos, acorrentadas e escravizadas
— grunhiu. — Os homens de nosso povo deveriam se curvar a nós.
Todas as raças deveriam sucumbir aos nossos pés. Todos devem
pagar pelo que fizeram a nós.
— Sua raiva e seu ódio também fazem morada em mim. Mas,
pela segurança de nossas irmãs, me escute.
Um arrepio subiu pela espinha de Maressa.
Também experimentava aquela raiva, aquela injustiça, como se
fosse ela própria que estivesse aprisionada ali, com correntes
grossas sufocando sua liberdade e seu desejo de alcançar o céu.
A língua da erelin dos cabelos prateados estalou.
— Como você se mantém tão calma, Iohanna, sendo que é tão
prisioneira quanto eu? O que você sabe que eu não sei? As estrelas
te mostraram alguma coisa? Algum presságio?
Iohanna soltou o ar lentamente.
Olhou para os lados, se certificando de que ninguém as vigiava
naquele momento, e estendeu a palma da mão fechada para a irmã.
Seus dedos se abriram em um movimento lento demais aos olhos de
Maressa, revelando uma pequena pedra tão brilhante quanto uma
estrela.
Tanto Maressa quanto a outra erelin arfaram baixinho.
Era uma pedra semelhante a que Ikaris colocara no colar que
daria para ela na noite do baile do seu aniversário.
— Um Suspiro de Áster — a erelin dos cabelos prateados
passou a ponta da língua pelos lábios. — Tão antigo, tão belo, tão
poderoso, tão raro. Como você o conseguiu?
— Isto não importa. — Iohanna fechou a mão, cessando o
brilho do Suspiro de Áster. — Mas usarei o poder dele para nos
libertar. Um levante ocorrerá em breve. Nosso povo, homens e
mulheres, principalmente os mestiços, estão se organizando para
derrubar aqueles que ainda controlam esse costume macabro de
aprisionar mulheres puras como nós. Teremos o poder deste Suspiro
de Áster a nosso favor. Libertaremos nossas irmãs. Seremos livres
outra vez, Astrid.
Um braço forte de vento se ergueu.
“E nas estrelas está... Até que para a terra possa voltar”.
Maressa ergueu o braço para proteger os olhos.
Astrid.
Astrid.
Astrid.
A cena se quebrou em fragmentos e, enquanto sua visão
desbotava e as erelins desapareciam, Maressa foi puxada para
longe, até regressar ao salão do castelo de Rovina.
O impacto a fez ofegar e cambalear.
Ikaris se moveu com agilidade, amparando-a em seus braços.
Ao se segurar nele, ela buscou pelos seus olhos:
— Quem é Astrid?
42
Preço da magia

— ASTRID? — IKARIS repetiu, os olhos passando pelo rosto


dela em busca de qualquer sinal de ferimento. — Onde você escutou
esse nome?
— Na visão. — Maressa contraiu os lábios, virando o rosto e
fitando Nina, Willelm, Layla e Ciáran, para então se voltar para Ikaris.
— Nenhum de vocês teve essa visão? Com as duas erelins?
Para o desespero e confusão de Maressa, todos negaram.
— Quando conjurei o feitiço de averiguação, tudo o que senti e,
creio, o que todos sentiram, foi a ondulação da magia enclausurada
dentro da pedra — Ciáran explicou. — O que você viu?
Com o máximo de detalhes possíveis, Maressa narrou sua
visão.
Ao buscar pelos olhos de Ikaris, notou como o semblante dele
havia se convertido em um arco poente e fechado.
— Você viu Iohanna?
— A erelin chamada Astrid se referiu a ela como “Iohanna”. E
ela se parecia muito com a gravura de um livro que vi em Arustar.
— Eu me lembro deste livro. E sim, aquela era uma
representação de Iohanna em sua forma mais gloriosa. — Os
ombros de Ikaris estavam rígidos como seu maxilar. — E se você a
viu como uma escrava, então esta visão é de muito, muito tempo
atrás.
— Aconteceu bem antes da guerra erelin com os humanos,
certo?
— Sim. Escravizar e aprisionar as erelins puras foi um costume
antigo que se perdeu.
— Ainda bem — Nina murmurou, e Maressa concordou com
ela.
— Por causa de um levante com grande participação dos
erelins mestiços — Maressa buscou pelos detalhes na memória. —
Iohanna estava falando sobre isso com Astrid. E ela tinha um Suspiro
de Áster.
— Hã... — Willelm ergueu a mão. — Estou um pouco perdido
aqui. Quem é Iohanna? Quem é Astrid? O que é um Suspiro de
Áster?
As nuvens se moviam do lado de fora, criando um jogo com a
luz do luar que se derramava dentro do salão.
— Um Suspiro de Áster é um fragmento do mais antigo poder
das estrelas. Ninguém sabe exatamente como consegui-los, mas a
rainha dos erelins os possue. Foi como consegui deixar as
montanhas e cavalgar até o Reino de Arustar. Iohanna é uma das
erelins mais antigas e puras que ainda vive entre meu povo. Ela foi
gravemente ferida na guerra. Já era para estar morta, mas, por conta
de seu sangue, suas forças ainda resistem. Mas não sabemos por
quanto tempo. — O rosto de Ikaris se contraiu. — Já Astrid... Eu não
tenho certeza. Se for quem estou pensando, ouvi esse nome apenas
duas vezes em toda a minha vida.
— Quando?
— Quando meus pais foram assassinados durante a guerra.
Lembro-me das palavras do meu pai: “As defesas caíram agora ao
anoitecer. Algo na ligação sagrada do nosso povo com o céu foi
quebrado. Não há magia para combater os exércitos. Estão dizendo
que isso tem a ver com Astrid”. É algo que jamais serei capaz de
esquecer.
Os tendões de Maressa vibravam.
Não sabia por que, mas era como se algo sorumbático
estivesse se espreitando, tentando alcançar a todos com garras
afiadas através das lacunas do invisível.
— E quando foi a segunda vez?
— Quando conversei com Darlan, um velho erelin que
participou da guerra, contando sobre o nome que saiu da boca do
meu pai antes dos soldados de Arustar invadirem nossa casa. Tudo
o que Darlan me disse foi “este nome é muito antigo”. Quando
perguntei quem era Astrid, ele só me respondeu que eu deveria ter
entendido errado. E não falou mais nada.
O vento espiralou do lado de fora, empurrando mais nuvens
para a frente da lua.
Um breu denso engoliu o salão.
Com um estalar de dedos, Ciáran fez com que todas as velas
se acendessem nos candelabros.
— Mas por que você viu algo referente ao passado do meu
povo — Os olhos de Ikaris, iluminados pelas chamas trêmulas, se
voltaram para Maressa —, e eu não consegui ver nada?
A rainha Layla deu um passo à frente.
— Posso?
— Claro.
Layla ergueu as mãos e tocou as têmporas de Maressa. Uma
sensação cálida veio junto ao toque.
— Sou capaz de ver o futuro, um dom que herdei de minha
mãe. Mas jamais consegui abrir o véu do passado por conta própria.
— Ela é uma contempladora do passado? — Ciáran perguntou.
— Não. Foi a centelha da magia que a puxou para trás, através
dos véus do tempo. — Layla recolheu as mãos, os olhos avaliando
Maressa. — Algo te liga a esta pedra. Algo só seu, que mais nenhum
de nós detém.
Maressa voltou o olhar para a pedra. Sentiu o vento sussurrar
ao seu redor, como se sussurrasse um segredo que apenas ela
podia escutar.
“E nas estrelas está... Até que para a terra possa voltar”.
Ikaris se aproximou, circundando Maressa com sua presença.
— Tem a ver com a enigmática magia recém-despertada dela?
— É provável que sim.
O coração de Maressa martelava no peito. Quanto mais
buscava por respostas, mais perguntas encontrava. E nada parecia
deixá-la mais perto de rastrear o Nefastus que capturara e levara sua
mãe.
E se ela não conseguisse rastreá-lo? E se não chegasse a
tempo?
A ideia de sua mãe sendo devorada pela criatura a fez ofegar.
— Maressa. — Nina tocou em seu braço. — Você consegue ver
mais alguma coisa na pedra? Consegue obter mais alguma
resposta?
— Posso tentar
Maressa se aproximou da pedra angular, esticando a mão. Ao
tocá-la, não sentiu nenhuma energia diferente, nenhuma vibração.
— Nada. É como se ela tivesse se calado.
— De fato — Ciáran falou. Maressa não tinha notado que o rei
feiticeiro havia se colocado ao seu lado e também examinava a
pedra. — Ela silenciou e as vibrações desapareceram.
— Precisamos de respostas. — Maressa se virou, os cabelos
balançando em suas costas. — E se voltássemos para a biblioteca
subterrânea de Arustar? Para os livros erelins?
— Não dá para saber se aquelas criaturas destruíram o castelo
— Willelm estremeceu, referindo-se aos carniçais.
— Ele tem razão — Ikaris concordou.
O rosto do duque se iluminou e ele segurou a mão de Nina.
— Escutou só? Ele disse que eu tenho razão.
— Escutei sim — Nina cochichou com um sorriso.
— Além disso, o que buscamos pode não estar nas páginas de
um livro — Ikaris complementou. — Pode existir apenas nas
memórias mais antigas do meu povo. É provável que Darlan saiba
mais do que me contou.
Levou apenas alguns instantes para Maressa entender o que
se passava na cabeça dele.
— Você disse que só retornaria para as montanhas se não
houvesse mais alternativas.
— E não há. Pode haver informações sobre Astrid nos livros
confiscados pelos soldados de Arustar, mas quanto tempo
levaríamos até encontrar? Isso se a biblioteca não tiver sido
destruída pelos carniçais, como Willelm sugeriu. E sempre há o risco
de não haver nada nos livros. Ainda mais se for sobre uma erelin
que, pelo jeito, meu povo não gosta de falar.
Maressa cruzou os braços e o encarou.
— Certo. Irei com você.
O rosto de Ikaris se retraiu.
— Nem pensar. É perigoso demais para você.
— Também é perigoso para você — ela devolveu. — Você traiu
seu povo e o pedido de Iohanna.
— Eu posso lidar com o meu povo.
— Mas a pedra mostrou a visão para mim. Só para mim. Posso
não entender muitas coisas do mundo, mas sei que faço parte disto.
E você não vai me fazer mudar de ideia. Ou vamos juntos, ou
ninguém vai.
Ikaris bufou, grunhindo algo que ela não entendeu, mas que a
fez ter certeza de que ele havia entendido seu posicionamento e
compreendido que ela não cederia.
— Nós vamos com vocês — Nina e Willelm bradaram juntos.
Mais uma vez, um grunhido de derrota saiu da boca de Ikaris.
— Tudo bem. Mas já lhes aviso: será uma jornada muito longa
até as montanhas. E, quando chegarmos perto delas, teremos que
passar pelo exército das Cinco Alianças. Não será fácil.
Ciáran abriu a mão; faíscas de poder crepitaram em sua palma.
— Talvez haja uma forma de encurtar o caminho e desviá-los
dos soldados. Posso transportá-los para este lugar com minha
magia, mas haverá um preço de acordo com a lei dos feiticeiros e a
lei do equilíbrio, pois, para cada desejo, há um pagamento.
— Pagaremos o que for necessário — Maressa falou. — Joias?
Terras? Posso te dar qualquer coisa do tesouro de Arustar.
Os olhos do feiticeiro foram para os olhos de Ikaris.
— O preço é equivalente ao pedido. Esta é a regra mais antiga
do meu povo. E você deverá pagá-lo, Ikaris Ashera.
Para surpresa de Maressa, o rosto de Ikaris permaneceu
inalterável.
— O que você quer para nos mandar para as montanhas?
— Aquilo que restou do legado que você mais ama.
Ela arqueou as sobrancelhas, sem entender o pedido de
Ciáran. Mantendo-se em silêncio, Ikaris deu meia-volta e deixou o
salão. Antes que Maressa pudesse segui-lo ou compreender o que
estava acontecendo, ele já estava de volta, carregando várias folhas
envelhecidas nas mãos.
Maressa arregalou os olhos.
As páginas dos livros do povo erelin. As páginas que ele
desesperadamente lutou para recuperar.
— Aqui está o pagamento, feiticeiro.
— Desejam se preparar? — Layla perguntou.
— Não há tempo a perder — Ikaris bradou. — Quanto mais
demoramos, menores são as chances para a mãe de Maressa.
Mande-nos para a montanha agora mesmo.
— Assim será feito.
O feiticeiro tomou as páginas dos livros das mãos de Ikaris.
Com um suspiro do vento e um estremecimento das chamas de
todas as velas, as folhas se queimaram, até se reduzirem às cinzas.
Maressa observou a veia saltar na garganta de Ikaris, a forma
como o ar entrou dolorido pelos pulmões dele, e imaginou o que
estaria se passando por sua cabeça. Será que ele estaria se
lembrando do legado dos pais, que haviam morrido defendendo os
livros da Cidadela Prateada? Será que ver as páginas queimadas o
fazia pensar em tudo o que tinha perdido?
Talvez fosse um pouco de cada coisa.
E muito mais também.
— Está feito. Farei o feitiço de transporte agora mesmo.
— Espere um momento, por favor — Maressa o interrompeu
com educação. — Se as coisas derem errado por lá, você seria
capaz de nos ajudar? De fazer outro feitiço para nos tirar das
montanhas?
— Sim. Basta me invocarem, e daí faremos um novo acordo de
feitiçaria e um novo pagamento.
— E como te invocamos?
Com um sorriso costurado de segredos e intimidade, Ciáran
fitou a esposa. Os lábios de Layla se curvaram em sorriso doce; a
coroa da rainha cintilou quando a mão dela acariciou o rosto de
Ciáran.
— Acendam uma vela. E chamem pelo nome dele três vezes.
— E eu irei até vocês. — Ciáran segurou a mão dela,
depositando um beijo nos nós dos dedos. — Agora, agrupem-se.
Obedecendo o feiticeiro, Ikaris, Nina e Willelm se colocaram
lado a lado. Maressa pegou a pedra angular e se juntou ao grupo.
Sentia o coração batendo na garganta, o sangue correndo rápido nas
veias.
— Ikaris...
— Estou bem — ele sussurrou de volta. — A história do meu
povo e o legado dos meus pais não será recuperado só com
algumas páginas.
— Mesmo assim... Eram suas.
— E se abrir mão delas significa que estaremos mais perto de
entender os mistérios por trás da guerra, da magia perdida do meu
povo, dos segredos do seu poder e do aparecimento do Nefastus no
castelo, então o faço de bom grado.
Maressa segurou o ar.
Uma emoção tremeluziu nos olhos dela ao fitá-lo.
Ciáran deu um passo à frente e ergueu as mãos, abrindo um
círculo de magia e fechando os olhos.
— Dentro deste círculo, clamo pela magia das minhas
ancestrais. Circe, Aradia, Trívia, as Três Maiores, escutem seu filho.
De poder para poder, de sangue para sangue, aceitem esta
comunhão. Pelo fogo, ar, terra e água, que aqueles que aqui
pagaram sejam levados para onde a névoa e a escuridão se
encontram!
A onda de poder ergueu os cabelos do feiticeiro.
Um raio de luz desceu pela claraboia do teto e os atingiu. A
corrente de poder irradiou como uma flecha pelo braço de Maressa.
O ar agitou ao redor deles, adensando-se ao vento, à luz e aos
sons.
Ela sentiu o braço de Ikaris enlaçando sua cintura; e, enquanto
uma de suas mãos segurava a pedra angular, a outra se segurou ao
braço de Nina, que se apoiava em Willelm.
— Que seus corações encontrem o que buscam — Layla
desejou; a luz da magia intensificava o azul de seus olhos e o brilho
das pedrarias do vestido. — Rogo para que cheguem em segurança
aos seus destinos.
Maressa abriu a boca para agradecê-la; a magia os envolveu
feito um redemoinho, arrancando-os do chão, puxando-os para
longe, até a luz se tornar ofuscante, os sons, ensurdecedores, e o
vento, tão cortante quanto lâminas afiadas.
PARTE III
Jardim de Estrelas

...Pois eram nas noites mais escuras que as mais


brilhantes das estrelas se revelavam...
43
Promessa de sangue
Cem anos atrás

FOI DURANTE a noite que o levante que mudaria para sempre


as leis e as visões do povo erelin começou.
Os tambores de ossos batucavam por toda a Cidadela
Prateada conforme os grupos mestiços, em uma aliança inabalável e
poderosa, avançavam para os fortes dos erelins conservadores e
derrubavam os portões.
Com o poder do Suspiro de Áster, uma a uma, as erelins puras
escravizadas e acorrentadas eram libertadas, juntando-se à luta ao
lado dos demais combatentes.
Iohanna bradava, dando ordens e liderando o levante.
Os algozes tentavam resistir, mas estavam em desvantagem.
Junto das irmãs e dos erelins mestiços, Astrid atacava os
erelins da cúpula conservadora, que ainda defendiam e aprisionavam
mulheres puras como ela.
— Pela liberdade!
— Pelo fim da escravidão!
Aqueles eram os gritos das suas irmãs.
Astrid não gritava ou bradava com elas.
Sua espada zumbia e cantava no ar.
Para cada um dos seus captores e algozes que caíam e
sangravam, uma satisfação a mais enchia seu coração.
Em cada finalização de um golpe, ela cortava as asas dos
inimigos.
Suas irmãs libertadas lutavam ao seu lado, clamando por
justiça, enaltecendo o nome de Iohanna como a líder daquele
levante, como aquela que quebrara as correntes e que traria uma
nova era para os erelins.
Uma era mais igualitária.
Uma era sem escravidão.
Sim, Astrid também queria justiça.
Pela prisão. Pelo seu corpo usado. Pelo encarceramento da
sua magia.
Mas havia também ali, em cada morte causada por suas mãos,
uma sensação de poder única. Era ela quem pisava agora. Era ela
quem subjugava. Era ela quem controlava o destino dos outros. Não
havia nada mais glorioso do que aquilo.
E tinha certeza de que Iohanna não sentia o que ela sentia.
Porque Iohanna jamais seria capaz de aceitar que elas
poderiam fazer o mundo se curvar às suas vontades. Ora, sua irmã
era até mesmo incapaz de gerar uma criança!
— Não deixem ninguém fugir!
Astrid olhou por cima do ombro, os cabelos prateados
despontando, soltos, pelas camadas da armadura que vestia, das
asas que se abriam e fechavam a cada golpe.
Viu um pequeno grupo dos seus algozes tentando fugir.
Sinalizando para suas irmãs que estavam mais próximas, ela
os seguiu, parando em um salão circular com as paredes repletas de
gravuras.
A batalha foi feroz e violenta.
Ah, o cheiro do sangue era inebriante para ela.
Ainda mais o cheiro do sangue que sua espada derramava.
Será que era por isso que aqueles homens tinham aprisionado
a ela e às suas irmãs? Pelo prazer de ter alguém subjugado por sua
vontade, à mercê de seus desejos, costurado às suas leis e
pensamentos?
O corpo de Astrid ardeu, a boca salivou enquanto ela enfiava a
espada no peito de mais um erelin e cortava suas asas para finalizar
o golpe.
Talvez uma parte escura e perigosa sua conseguisse entendê-
los.
Porque a sensação era viciante.
Ao final do confronto, apenas Astrid e suas irmãs permaneciam
em pé. Ela correu os olhos pelas paredes do salão circular, olhando
com atenção para as gravuras gloriosas que enchiam as paredes.
Uma de suas irmãs parou ao seu lado.
— São as representações das muitas formas dos najmas.
Astrid esticou a mão, tocando uma das gravuras.
O simples vislumbre de imaginar todo o poder que os najmas
carregavam fez o corpo dela estremecer. Erelins puras como ela já
eram divinas e raras; mesmo assim, tinham sido escravizadas e
subjugadas pelos homens do seu povo. Homens que agora
sangravam no chão.
Deixou o ar escapar lentamente dos seus lábios.
O que aconteceria se ela fosse tão poderosa quanto um
najma?
Nada nem ninguém ousaria dominá-la.
Não apenas os erelins, mas todos os outros povos e raças
cairiam aos seus pés.
Ela seria a dona das chaves das correntes, e não a criatura
usada e acorrentada.
— Tão fascinante... Tão enigmático... Uma lágrima de um
desses seres primordiais concedeu o poder das estrelas ao nosso
povo.
No chão, os erelins abatidos grunhiam e se contorciam de dor.
Nenhum som que eles emitiam chegava até os ouvidos de Astrid.
Porque a única coisa que ela escutava era a batida livre do seu
coração. Depois de anos de encarceramento e escravidão, era só
aquilo que ela queria ouvir.
— Há quem devore nossas asas, irmãs, para obter uma gota
deste poder. O que aconteceria com alguém que devorasse um
najma?
O ar ondulou, frio e carregado.
Mas, dentro de Astrid, o sangue fervia.
— Qualquer um desses pensamentos é um sacrilégio — sua
irmã bradou. — Um horror que não deve sequer ser transformado em
palavras.
— Nós somos milagres ou horrores — ela disse tranquilamente,
a espada banhada de sangue gotejando no chão, os olhos cravados
nas gravuras dos najmas. — É tudo uma questão de perspectiva.
Notou que suas irmãs se entreolharam diante de suas palavras.
Astrid pouco se importou com o que pensariam. Todas se
agarravam aos preceitos de Iohanna.
Ela soltou um riso baixo. Iohanna acreditava na igualdade, na
liberdade, em um mundo melhor e pacífico, definido por regras e
limites.
Ah, sua irmã estava errada.
Os limites existiam para serem destruídos e atravessados.
Qualquer um que tivesse a chance de ter um pouco mais de
poder, engoliria o mundo e se transformaria no próprio milagre.
A ideia de que outra pessoa poderia se erguer e aprisioná-la
outra vez era um desespero visceral em seu peito. Apesar da sede
de sangue, da sede de justiça e de vingança, imaginar que alguém
mais forte do que ela pudesse existir e pisoteá-la era inaceitável.
Astrid fitou seu reflexo na lâmina ensanguentada.
E ela jamais seria escravizada outra vez.
Dominaria. Conquistaria. Ascenderia.
E, para que isso acontecesse, ela precisava ser a mais
poderosa.
Não importava qual fosse o preço que tivesse que pagar.
— Astrid, temos que ir e nos juntar aos demais. Ainda há
resistentes.
Ignorando o pedido de sua irmã, Astrid ergueu uma das mãos,
vislumbrando e sentindo a luz das estrelas, e alcançou sua magia
encarcerada por anos. Com um movimento dos dedos, fez com que
todas as portas do salão se fechassem.
— O que você está fazendo?!
— Astrid?!
Como se fosse um raio impiedoso, Astrid soergueu a espada e
avançou para cima de suas irmãs. O anseio de jamais ser derrubada
foi o canto que a fez derrubar cada uma das erelins. Nem mesmo os
gritos e as súplicas a fizeram parar.
Cortou, golpeou, degolou sem piedade.
— Astrid!
Elas imploravam, assustadas, confusas.
Astrid jamais imploraria outra vez.
Nem que isso significasse destruir as irmãs que tinham sido
aprisionadas com ela e que experimentavam novamente a liberdade.
Uma liberdade que ela, agora, estava tirando delas.
Para que jamais tivesse sua liberdade roubada outra vez.
Girou a espada, cortando as asas de cada uma delas.
Quando a última de suas irmãs caiu, Astrid ergueu o rosto,
limpou o sangue das irmãs que havia respingado em sua pele e
sorriu para as gravuras dos najmas.
— Uma de suas lágrimas caiu na terra e nos fez tocar as
estrelas. Mas eu ainda subirei ao céu, acima de qualquer estrela,
sobre as alturas das nuvens, e me sentarei no trono mais luminoso,
com cada um de vocês aos meus pés.
E, com a promessa queimando em seu coração, ela se banhou
no sangue das irmãs enquanto devorava suas asas e seus poderes.
44
Retorno inóspito

“E NAS estrelas ficará, até que para a terra possa voltar”.


Maressa tentou entender o que aquele sussurro que tanto a
perseguia queria dizer. Mas a sensação de estar sendo girada em
um círculo furioso, luminoso, não a deixava falar ou enxergar nada.
Quanto tempo aquele feitiço de transporte durava?
Não conseguia encontrar nenhum apoio, nenhum chão sólido;
apenas sentia o braço protetor de Ikaris em volta de sua cintura,
captava a proximidade de Nina e Willelm, como presenças certas no
meio da luz densa ofuscante.
E então, de alguma forma, seus pés encontraram um apoio.
Foi recebida pela escuridão e pela quietude.
Esfregando o rosto enquanto tentava recuperar o fôlego,
Maressa assimilou lentamente o espaço ao seu redor.
Um terreno rochoso, um frio de doer os ossos, um céu fechado,
que impossibilitava saber se era dia ou se era noite, uma neblina
sem fim.
— As montanhas — Ikaris sussurrou. — O feiticeiro nos
mandou para um ponto remoto.
Ainda atordoada por causa do feitiço, Maressa o fitou. Sabia
que Ikaris estava armado até os dentes, com um semblante
inescrutável e uma postura que indicava que estava pronto para
qualquer combate. O que ele estaria sentindo por estar de volta ao
local do exílio de seu povo?
Abriu a boca, mas outra pergunta saiu dos seus lábios.
— E isso é bom ou ruim?
— É inteligente. Nem os soldados, nem os demais do meu
povo, notaram nossa chegada.
Maressa olhou para Nina e Willelm, que também pareciam
estar se recuperando da “aterrissagem” abrupta.
— Venham por aqui. Não podemos perder tempo. — Ikaris
subiu um monte rochoso em direção à floresta fechada, envolta em
névoa e umidade. — E não façam barulho.
— Todos os erelins possuem uma audição como a sua? —
Willelm perguntou, batendo os dentes de frio.
— Para a sorte de vocês, não. Mas não é bom arriscarmos.
Nem sempre consigo detectá-los. Há erelins em meu povo que são
tão silenciosos quanto fantasmas de contos antigos. — Ikaris fitou a
trilha longa. — Temos que chegar à casa de Darlan antes que
alguém nos veja.
Nem mesmo as roupas quentes de Rovina eram suficientes
para barrar o frio inóspito das montanhas. Maressa achava que
congelaria enquanto caminhava por entre as árvores cobertas de
musgo e a névoa densa.
O povo de Ikaris tem vivido nesse lugar há mais de vinte anos.
Ela estremeceu e cruzou os braços, tentando aplacar o frio.
Culpados ou não dos motivos da guerra que se perderam ao longo
da história, este destino foi terrível demais.
Sem asas.
Sem magia.
Sem um vislumbre do céu límpido.
Maressa conseguia entender ainda mais porque os erelins
odiavam o reinado de Arustar.
Ela parou para observar a vista da encosta abaixo, os
pequeninos pontos luminosos que brilhavam ao longe. Imaginou que
eram as tochas e as fogueiras do acampamento do exército das
Cinco Alianças, que ficavam ali dia e noite para impedir que os
erelins fugissem.
— Não fique exposta. — A mão de Ikaris a segurou; Maressa
se arrepiou quando ele a puxou de encontro ao peito, envolvendo
sua cintura com um dos braços e jogando parte da capa que vestia
por cima dos ombros dela. — Há inimigos por todos os lados.
— Acha que Darlan nos receberá? — ela perguntou. Sabia que
estava entrando em um território que odiava a nobreza de Arustar,
que odiava pessoas como Willelm e Nina; mas seu maior temor era a
consciência de que Ikaris estava retornando como um traidor.
E se os erelins tivessem as mesmas leis para julgar uma
traição...
— Ele vai me ouvir, se eu pedir. Mas temos que encontrar
Darlan antes que qualquer outro de meu povo saiba que estamos
aqui. Se Darlan interceder ao nosso favor, estaremos um pouco mais
seguros.
Um pouco?, a pergunta pulsou pelos lábios dela. Mas e se ele
decidir que não vai nos ajudar?
— Daí invocaremos o feiticeiro — Ikaris sussurrou, seu hálito
quente roçando pela bochecha dela. — Pagarei qualquer coisa para
te tirar em segurança daqui.
— Eu também. — Maressa segurou a mão dele. — Por você,
por Nina, por Willelm... Pagarei qualquer coisa. Mas quero primeiro
saber se temos uma chance de descobrir mais sobre o passado. E
isso só poderemos saber se formos ao encontro desse Darlan,
certo?
Envolvendo a mão gelada dela entre seus dedos, Ikaris baixou
o rosto e depositou um beijo ali; um toque suave, gentil, que fez o
sangue dela arder e espantar o frio do corpo.
— Vamos. A trilha é longa. Usaremos atalhos.
Embrenhando-se no meio da mata, Maressa, Nina e Willelm
seguiram Ikaris. Todos faziam o possível para manter o silêncio. Mal
respiravam.
Maressa não soube por quanto tempo andaram.
Um barulho, feito um graveto quebrando ao ser pisoteado,
ecoou por entre a quietude do grupo.
Ela olhou para Nina e Willelm; os dois negaram, com um gesto
de cabeça, terem sidos os responsáveis pelo som.
Ikaris ergueu a cabeça.
Ela imitou o movimento dele.
— Cuidado!
Mas o aviso de Ikaris veio tarde demais.
Foi tão rápido, feito um galopar do vento, que Maressa mal
conseguiu processar o que aconteceu.
De cima das árvores, vários homens e mulheres vestidos com
couro e capa saltaram, formando um círculo ao redor deles.
Empunhavam lanças e espadas. Ela prendeu o ar ao admirá-los.
Tinham a mesma beleza pulsante e brutal de Ikaris. Nos olhos, uma
ardência feroz e selvagem.
Imaginou como seria se todos eles tivessem asas como as
erelins da lembrança que contemplara em Rovina.
Ikaris se moveu, a capa esvoaçando no ar, colocando-se de
forma protetora diante dela, de Nina e de Willelm.
— Ikaris — um deles bradou, empunhando uma lança pontuda
ao mesmo tempo em que os farejava. — Aquele que desapareceu há
muitas luas, e que agora retorna na companhia de nossos inimigos.
— Deixem-nos seguir em frente — Ikaris pediu. O vento uivante
erguia seus cabelos escuros. — Preciso falar com Darlan.
— Para admitir a traição?
— Para confessar que abandonou a missão de Iohanna? —
outra erelin bradou, girando a espada no ar. — Porque todos nós já
sabemos a verdade. E basta apenas um olhar para saber que esta
que te acompanha é a princesa de Arustar. Você a trouxe até aqui
para gritar sua traição ou para cumprir a missão na frente da nossa
rainha?
Mantendo uma postura predatória, Ikaris os fitou, colocando-se
ainda mais à frente de Maressa.
— Como ousa protegê-la? Como ousa se colocar como um
escudo para os filhos de Arustar?
— As coisas mudaram. Não há tempo para explicações. — A
fala dele era um sibilo frio, arrepiante e ameaçador. — Preciso falar
com Darlan o mais rápido possível.
A barreira formada pelos erelins pareceu aumentar.
— Você poderá passar.
— Mas eles não.
— Sangue por sangue.
Com um movimento ágil, Ikaris sacou as adagas. As lâminas
cintilavam em meio ao beijo frio da névoa.
— Ousará se virar contra seu próprio povo para proteger
aqueles que nos exilaram aqui?
— Eles não são meus inimigos. E não quero lutar com vocês —
Ikaris rosnou. — Mas sangrarei por eles, se assim for preciso.
A tensão se ramificou entre os erelins.
Maressa levou as mãos ao peito.
Se aquele rancor se aflorasse, se qualquer um dos erelins se
lançasse sobre eles e uma batalha feroz e sangrenta começasse...
Eles não teriam nenhuma chance de se explicarem.
De decifrar os enigmas do passado para curar o presente.
A mente de Maressa estalou.
Só havia uma coisa que poderia fazer.
Uma coisa que dispensaria palavras e mostraria que tanto ela,
quanto Ikaris, Nina e Willelm, estavam ali para conciliação, para
diminuir as fronteiras, e não aumentá-las.
Para mostrar que havia algo em comum entre todos eles.
— Maressa — ele rosnou, usando o próprio corpo para cercá-la
e protegê-la. — O que pensa que está fazendo?!
Os olhos dela se voltaram para os dele.
Palavras não foram necessárias.
Era como se Ikaris pudesse ouvir o que batia em seu coração.
Engolindo em seco, em um voto de confiança, ele recuou.
Maressa se virou para os outros erelins.
As lanças afiadas reluziam em sua direção, mas não teve
medo.
Ela se lembrou das instruções de Layla — do pouco, mas
valioso, conhecimento e treinamento que a rainha de Rovina tinha
lhe passado.
Maressa acalmou a respiração, imaginando fios de luz se
estendendo para dentro dela, deslizando com calma até o âmago de
sua magia.
Alguém chamou pelo seu nome; ela não teve certeza se foi um
de seus companheiros ou uma voz que vinha de dentro.
E se agarrou ao chamado.
Luz das estrelas desceu sobre ela, veio ao seu encontro, saiu
dela.
Os erelins ofegaram e deram um passo para trás.
O brilho incandescente se irradiou pela floresta.
Maressa arfou, sentindo a pele esquentar, o poder querendo se
descontrolar, o sangue dando sinais de que iria queimar outra vez.
“A magia é parte de você”, Layla tinha lhe dito enquanto a
instruía. “Você a controla, e não o contrário”.
Apertou os olhos, indo mais para o fundo de si mesma, onde
aquela luz queimava e latejava.
Desde que nascera, todos os seus passos tinham sido
controlados.
Por sua saúde frágil, por seu título, por ser quem era.
Cada roupa que vestia, cada lugar que não podia visitar, cada
pergunta que não obtinha resposta, cada passo que deveria dar; até
mesmo a escolha de quem seria seu marido havia ficado nas mãos
de outras pessoas.
Mas isso termina aqui.
Nada mais iria controlá-la.
Nem mesmo sua magia.
Maressa se agarrou à luz, absorvendo seu calor, abrandando
as chamas, convertendo-as à sua vontade.
Em algum lugar daquela vastidão dentro de si mesma, ela
ouviu, sentiu e tocou Ikaris.
“Para o meu povo, foram os najmas que sopraram ventos fortes
no céu e derem luz às estrelas”.
Suas mãos se abriram, liberando fios da magia, um aglomerado
luminoso, que rasgou a névoa e a escuridão, até que a luz do seu
poder invocasse Raio de Luar.
Um dos erelins baixou a lança e fitou a criatura.
— Isso... Isso é...
— Um najma? — outro balbuciou.
— Um dos seres que concedeu a magia ao nosso povo.
— É uma ilusão. Uma feitiçaria para nos enganar.
— Não, não me parece uma ilusão.
— Não é possível.
— A luz pura das estrelas.
— Mas esta luz não é tocada por ninguém há muito tempo.
Os murmúrios assustados, confusos e deslumbrados eram uma
melodia em meio à névoa e à luz.
Maressa deixou que seus olhos se abrissem.
Raio de Luar a cercou, poderoso e brilhante, os olhos pretos e
dourados fitando cada erelin.
— Como eu disse — Ikaris deu um passo à frente, colocando-
se ao lado dela e de Raio de Luar —, as coisas mudaram. Vi marcas
de magia erelins com meus próprios olhos, vi um Nefastus se
transformando, vi na princesa um poder que nem mesmo um
feiticeiro conseguiu identificar a origem, e vi um najma se
materializando para protegê-la. Como vocês estão vendo agora.
A espada na mão da erelin vacilou.
— Não é possível. As marcas erelins, o Nefastus... Sem a
ligação da fonte sagrada com as estrelas, isso não é possível.
O semblante de Ikaris não cedeu.
— É por isso que estou aqui. Há lacunas em nosso passado,
na história do nosso povo e do povo de Arustar. Por isso, vou pedir
mais uma vez: nos deixem passar e nos levem até Darlan.
45
Fragmentos

— NÃO ACHEI que fosse te ver outra vez, Ikaris. Somente um


tolo voltaria para este lugar inóspito e nevoento depois de ter
colocado as mãos em um Suspiro de Áster e ter conseguido fugir.
Ikaris fitou Darlan. O velho erelin não trazia nenhuma
expressão acusatória, apenas singelas linhas de curiosidade.
— Também não achei que retornaria para as montanhas. Tinha
certeza de que seria morto em Arustar. Mas tudo mudou. — Ele
estendeu o braço, segurando a mão de Maressa junto à sua. — O
que vi, o que descobri... Cada pedaço moldou meu caminho e me
trouxe de volta para cá com uma certeza irredutível.
— Qual?
— De que podemos preencher as lacunas do passado e
restaurar a glória do nosso povo.
Fez-se um silêncio crepuscular em meio ao pequeno cômodo
que formava a casa de pedras gastas de Darlan.
Ikaris se remexeu, inquieto. Sentia as pontadas de dores nas
costas voltando, mas mantinha qualquer traço de dor afastado do
rosto. Não queria preocupar Maressa, Nina ou Willelm. Não quando
os trouxera para aquele lugar sombrio e carregado, onde suas vidas
poderiam estar em risco.
Raio de Luar havia desaparecido após ser conjurado por
Maressa, mas sua presença imponente e luminosa, assim como a
magia da princesa, fora suficiente para fazer os erelins os levarem
até Darlan.
E não imaginava o que estava passando na cabeça do velho
erelin.
— Conte-me tudo, Ikaris.
E ele o fez, dando todos os detalhes das suas últimas semanas
longe das montanhas, de cada descoberta e vislumbre que
testemunhara.
Ao final do relato, Ikaris ergueu o rosto e encarou o erelin.
— Eu te contei tudo o que sabia. Agora peço que faça o
mesmo. Quem era Astrid, Darlan? Por que nosso povo não fala dela,
mas, ao mesmo tempo, tudo parece convergir para ela, ao ponto das
visões levarem Maressa até fragmentos do seu passado?
O fogo estalou na lareira, junto de um suspiro longo de Darlan.
— Astrid. — O nome deslizou como um sibilar arrepiante dos
lábios dele. — Ela era uma erelin pura que, assim como outras
mulheres de nosso povo, foi escravizada pelos homens que queriam
manter a pureza da raça e evitar que mestiços fossem gerados.
“Tenho consciência do crime e da violência que foi cometido
contra nossas mulheres. É uma mácula na história do nosso povo.
Algo que jamais poderá ser repetido. Ninguém tem o direito de se
impor sobre a liberdade do outro, de acorrentá-lo e subjugá-lo às
suas vontades.
“Mas foi isto que aconteceu. A prisão e a escravidão mexem
com a cabeça de qualquer um. Durante o levante organizado por
Iohanna e por erelins mestiços, para libertar todas as escravas, foi
que nosso povo percebeu o monstro que havia criado.
“Sedenta por vingança, e temendo que qualquer um voltasse a
aprisioná-la, Astrid se rendeu ao lado mais selvagem de um erelin.
Para impedir que alguém a dominasse, ela decidiu que seria a mais
poderosa de todos. E, no meio do levante, emboscou suas próprias
irmãs, que tinham sido presas e libertadas com elas, e as matou e
devorou suas asas”.
— A magia das mulheres erelins se concentra fortemente nas
asas. — Maressa murmurou. — Foi o que Iohanna disse para Astrid
na visão que tive. Ela falou que havia criaturas inferiores que se
alimentavam das asas para aumentarem seu poder.
Darlan assentiu.
— Ninguém imaginou que Astrid usaria essa informação para
se virar contra suas próprias irmãs. Ela aumentou seu poder e sua
magia depois de um banho de sangue brutal. Quando Iohanna
percebeu, muitas erelins puras já tinham sido assassinadas pelas
mãos de Astrid, que se tornou um dos seres mais temidos e
poderosos que qualquer um já viu.
“Astrid exibia seu poder, impondo terror e dominação para
todas as raças. Ela podia mudar de forma, tinha uma magia violenta
e ninguém era capaz de combatê-la.
“Com o tempo, outros erelins se juntaram a ela. Eles não
conseguiram devorar asas de outras erelins puras, por serem mais
fracos, mas provaram carne humana, atravessando uma linha
sombria que tremeluzia na magia da nossa raça, e se transformaram.
— Em Nefastus — Ikaris ponderou. — Enquanto erelins se
transformavam em Nefastus, Astrid se converteu em algo ainda mais
poderoso?
— Mais poderoso e obscuro — Darlan continuou. — A sede por
poder dela era aterradora. Não havia quem conseguisse derrubá-la.
Até que, em uma noite desprovida de estrelas, Iohanna e um grupo
de erelins a emboscou. Não se pode dizer que Iohanna a derrotou,
pois Astrid era forte demais, mas ela conseguiu segurá-la por alguns
instantes. E foi o que bastou para os conjuradores de magia do
nosso povo.
“O maior temor de Astrid se concretizou. Ela foi presa com
correntes encantadas e colocada dentro de uma caixa de ferro,
enterrada abaixo da terra e do mar, onde, com o passar das
décadas, se converteu apenas em um fantasma na história do nosso
povo”.
O vento uivava através das frestas da janela.
— Astrid morreu? — Ikaris inspirou e expirou lentamente.
— Alguns dizem que sim. Mas quer saber o que eu penso? —
A respiração de Darlan era um chiado denso. — Ela tinha poder o
bastante para se manter viva embaixo da terra e do mar.
— No dia em que nossa cidade caiu, há vinte anos, meus pais
disseram o nome dela. Esta memória está gravada em mim. Eu te
contei isso, Darlan, anos depois, quando já estávamos aqui no exílio.
Darlan levou as mãos em frente à boca, inclinando o corpo.
— Quando você me contou isso... Foi a primeira vez, em muito
tempo, que escutei o nome de Astrid outra vez. Desde seu
aprisionamento e esquecimento, mais ninguém falava sobre ela.
— E foi ela que vi nas minhas visões — Maressa murmurou. —
Astrid e Iohanna, quando ainda eram escravas.
Darlan virou o rosto para Maressa.
— E o que te mostrou as visões do passado, princesa?
Maressa se inclinou, retirando a pedra angular que estava
escondida dentro de um dos alforjes.
— A magia contida nesta pedra — ela a estendeu para Darlan.
— E, por algum motivo, as visões só foram mostradas para mim
durante o feitiço. Foi por isso que pedi para Ikaris me trazer com ele
até aqui.
Em um rompante, Darlan arregalou os olhos e pulou para trás.
— Pelas estrelas — ele ofegou, baixo e trêmulo.
Maressa piscou, confusa, olhando para Ikaris, Nina e Willelm.
Ikaris tomou a dianteira, colocando-se à frente dos amigos.
— Darlan? Está tudo bem?
O velho erelin deu um passo para trás, até as costas se
chocarem contra as pedras frias da parede.
— Não é possível. Meus olhos estão me enganando.
— Darlan — Ikaris andou lentamente para perto dele; nunca
tinha visto o erelin agir daquela forma e temia que ele pudesse fazer
algo irracional e atacar Maressa e seus companheiros.
Darlan engoliu em seco, tocando a própria garganta.
— Esta pedra... Esta cor, esta textura... Pode parecer comum
aos olhos humanos, mas eu me lembro. Ah, como eu me lembro.
— Do que você se lembra, Darlan? — Ikaris bateu os dentes,
tomando cuidado para não perder a paciência. O sangue bombeava
em seus ouvidos, ansioso e confuso.
— Da fonte sagrada da Cidadela Prateada.
A cabeça de Ikaris girou.
“Havia uma fonte, no coração mais protegido da cidade. Sua
água era luz pura, que subia para o céu e se banhava nas estrelas.
Esta fonte era o que alimentava a essência de cada erelin. Mas,
durante a invasão, os exércitos humanos a encontraram e a
destruíram, levando todo o poder primordial de nossa raça”.
Ele deu um passo para mais perto de Darlan.
— Está me dizendo quê...
— Acho que esta pedra pode ser um fragmento da fonte que foi
destruída na guerra.
Os olhos de Ikaris se estreitaram. A imagem de Hakon
metamorfoseando no salão do castelo de Arustar queimava em sua
mente.
— Era isso o que Nefastus estava procurando? Foi por isso que
levou a rainha? A pedra caiu das mãos dela quando ele a capturou e
alçou voo para fora do castelo.
— Talvez. Ele pode ter sido atraído pela pedra. — Darlan voltou
o rosto para o fogo. — A presença dela no castelo justificaria o
aparecimento de marcas de magia erelin nas paredes. Justificaria até
mesmo a presença do najma que vocês chamam de Raio de Luar.
— Isso é bom para o povo erelin, não é? — Willelm perguntou,
os dedos da mão brincando distraidamente com os cabelos longos
de Nina. — Se parte da fonte está aqui, vocês podem voltar a ser o
que eram. Podem construir a fonte de novo a partir deste fragmento,
não podem?
— Não é tão simples. Não basta tocar na pedra para recuperar
a magia. — Darlan correu os dedos pelos cabelos esbranquiçados.
— Assim como também não basta reconstruir a fonte com este
fragmento para recuperarmos nossa glória.
— Mas...
— A pedra, assim como a fonte em sua totalidade, é apenas
uma ponte com a estrelas. Ela não é o poder em si, embora esteja
banhada nele. Foi a lágrima de um najma que elevou nosso povo
aos céus e nos deu asas e poder. Essa lágrima feita de luz pura, que
encheu a fonte e que tocava as estrelas, era a verdadeira conexão
da magia do nosso povo.
— Uma conexão que foi quebrada durante o período da guerra
entre humanos e erelins, certo? — Nina perguntou.
Darlan assentiu.
— Exatamente. Durante os anos da guerra, essa luz pura foi
contaminada por algo misterioso. Perdemos nosso poder e nossa
capacidade de voar. Ficamos enfraquecidos. Foi questão de tempo
até o exército de Arustar invadir a Cidadela Prateada e destruir a
fonte por inteiro, assim como a cidade. Tivemos que nos render.
Ikaris piscou.
— Mas agora temos esta pedra. Temos resquícios desta magia.
— Uma pedra que foi parar em Arustar — Maressa
complementou. — Foi encontrada em uma escavação pelos
arqueólogos da Corte. A Cidadela Prateada ficava perto do meu
reino?
— Não — Willelm respondeu pelos demais. — Sou um
estudioso da cartografia. Arustar e a extinta Cidadela Prateada são
locais distantes um do outro.
— Dizem que, quando a fonte foi destruída, ela explodiu. Uma
explosão jamais vista antes. Forte, poderosa, brutal.
Ikaris fitou o erelin mais velho.
— Que poderia ter espalhado fragmentos por vários reinos?
— Sim, embora antigos escritos relatem que quase toda a fonte
se dissolveu na explosão.
— “Quase toda fonte” — Maressa ponderou, fitando a pedra
angular. — Alguns fragmentos permaneceram, soterrados na terra,
escondidos do mundo...
— Até agora — Ikaris complementou.
Darlan tremia.
Ikaris nunca tinha visto aquele erelin tremer.
— Não sei o que te dizer, Ikaris. Não sei nem mesmo o que
pensar. Como te disse, achei que toda a fonte houvesse sido
reduzida ao pó durante a guerra de vinte anos atrás. E agora... —
Darlan comprimiu os olhos. — Eu teria que estudar cada detalhe
desta pedra, analisá-la, testá-la, ver se há uma forma de recuperar a
dádiva que os najmas nos deram nos primórdios do tempo. De
recuperar aquela luz pura e erguer a fonte outra vez, a partir deste
pequeno fragmento.
— Então faça. Faça o que for preciso para salvar nosso povo.

◆◆◆

— Esta é a sua casa? — Maressa perguntou enquanto Ikaris


abria uma porta de madeira envelhecida.
Uma espiral de vento frio e fumaça circundou ao redor deles.
— Nunca consegui chamar este lugar de casa. — Ikaris deixou
seus olhos percorrerem o cômodo escuro, agachando-se em frente à
lareira e atiçando o fogo. — Em nenhum segundo dos anos em que
vivi aqui. Meu verdadeiro lar está nas minhas memórias, nas
construções prateadas de uma cidade que ruiu.
— E, agora, um fragmento do que pode ter sido a fonte do
coração da sua cidade estava em Arustar. Algo que certamente
despertou o poder obscuro do Nefastus. E algo que está mostrando
as memórias do seu povo para mim. Não consigo entender.
Ikaris inspirou fundo.
— Já desisti de tentar entender algumas coisas.
Maressa se virou para ele, os cabelos dourados brilhando sob o
fogo dançante da lareira.
— Mas deve haver uma explicação. Sinto que sempre tive um
propósito pulsante dentro de mim. E parece que estou cada vez mais
perto de tocar este propósito, este chamado... “E nas estrelas ficará,
até que para a terra possa voltar”. O que significa tudo isso?
Ele se ergueu, caminhando até ela.
Ali, percebeu que jamais se cansaria de contemplar a luz de
seus olhos, a beleza das íris que lhe faziam pensar em preciosas
pedras de safira.
— Significa que eu estava destinado a te encontrar. Que as
estrelas me levaram até você. Que me mostraram que meu coração
endurecido e amargo ainda podia ser capaz de amar. — Ikaris
esticou a mão, acariciando o rosto dela, os dedos descendo para o
pescoço de Maressa, deslizando para baixo, logo acima do coração.
— Eu te amo.
Um ruído baixo escapou dela.
O tempo se tornou um arco infinito quando ele envolveu
Maressa em seus braços, com o gosto doce e quente dos lábios dela
nos seus; Ikaris a ergueu e a deitou em sua cama, deixando sua
boca e suas mãos correrem por ela, soltando os laços do vestido, até
ter toda a pele dela, iluminada pelo tremular do fogo, revelada para
os seus olhos.
Em movimentos refletidos, os dedos dela corriam pelos botões
de sua camisa, ajudando-o a se livrar das últimas peças de roupa,
atiçando nele um desejo atordoante e selvagem.
A mão delicada de Maressa subiu até o seu pescoço, os olhos
buscando pelos seus.
— Eu também — ela sussurrou. — Eu também te amo, Ikaris.
A boca dele encontrou a dela em um beijo incandescente; e
com um movimento, Ikaris se afundou nela, pele contra pele, coração
contra coração, deixando que o calor que entregava para Maressa
fosse correspondido com um reflexo ondulante ainda mais forte, mais
profundo e mais brilhante do que qualquer estrela.

◆◆◆

Ao retumbar de um trovão distante, de um ressonar que


sempre ecoava pelos picos das montanhas, Ikaris abriu os olhos.
Sentia o coração disparado, a respiração ofegante, junto de
pontadas lancinantes nas costas.
Por que aquela dor ficava indo e voltando?
Grunhindo com o incômodo, ele se virou na cama, desajeitado
e irritado, procurando por Maressa.
E encontrou apenas frio e vazio no colchão.
Porque Maressa tinha desaparecido.
46
Limiar da morte

— FINALMENTE — COM um suspiro, recolheu seu poder.


Sentia que estava enfraquecendo. Quanto mais usava sua energia,
sem ser capaz de restaurá-la naquelas últimas semanas, como
sempre fizera, mais percebia que suas forças oscilavam. Nem
mesmo os ramos de Salmísia eram suficientes.
O Nefastus serpenteou aos seus pés; cheirava à carne e
sangue.
— Encontrou a princesa, mestre? Encontrou a pedra?
— Sim.
— E eu vou poder me alimentar dos ossinhos dela, mestre?
Poderei provar sua carne e seu sangue?
— Tenha calma, Hakon.
O Nefastus bufou, desgostoso com a resposta, lançando um
olhar para a cela com os prisioneiros.
— A carne deles já não está mais tão saborosa.
— Traga-me a princesa e a pedra, e poderá se alimentar dos
humanos e erelins que desejar.
A boca do Nefastus salivou.
Abrindo uma pequena caixa, deixou que suas mãos pegassem
um amuleto com um círculo de cristal pendurado no cordão e o
colocou ao redor do pescoço do Nefastus.
— Quando houver uma chance para você pegar a princesa e a
pedra, quebre este cristal.
— O que há dentro dele, mestre?
— Um sopro da minha magia, que extraí com os ramos de
Salmísia que você coletou para mim nesses últimos tempos. Usei
tudo de mim para forjá-lo, é por isso que enfraqueci. Isto irá te dar
uma vantagem. Mas você só terá uma chance e não poderá falhar.
— E onde está a princesa, mestre? — ele tocou o cristal. —
Perdemos seu rastro desde que ela e os companheiros de viagem se
aproximaram das terras de Rovina. Onde ela está? Onde ela está?
Seus lábios se apertaram em uma linha perigosa.
— No único lugar onde as estrelas se recusam a brilhar.

E nas estrelas ficará...


...Até que para a terra...
...Possa voltar...
Outra vez, aquela voz sussurrou as palavras que a
assombravam.
Não era Raio de Luar, não era nenhuma centelha da sua
magia.
Mas a voz estava ali.
Uma profunda e nostálgica voz feminina, sábia, familiar e
antiga, que a aguardava em algum lugar de sua memória.
Como se a guiasse para fora da prisão e da ilusão onde tinha
vivido naqueles últimos vinte e um anos.
“Sinto que sempre tive um propósito pulsante dentro de mim”.
Maressa não soube quando deixou a cama de Ikaris, quando
vestiu as roupas, quando saiu da casa, quando andou pela névoa e
pela escuridão.
Apenas sabia que tinha que ir.
“E parece que estou cada vez mais perto de tocar este
propósito, este chamado...”
Porque aquilo era mais forte do que sua mente e sua vontade.
Ela continuou andando, os cabelos dourados flutuando ao redor
do rosto, os pés descalços trilhando pelo caminho íngreme e escuro,
até se aproximar de uma passagem entre as pedras, camuflada pela
vegetação.
Não havia estrelas no céu, mas conseguia senti-las.
Elas estavam guiando, trilhando, como um chamado, um
presságio.
Atravessou a abertura, sendo recebida pela escuridão
oscilante, caminhando em direção ao salão oval feito de pedras e
calcário.
O corpo de Maressa estremeceu.
Sobre folhas e ramos, como se fosse uma só entidade com os
elementos da natureza, uma erelin estava deitada.
As lágrimas inexplicáveis encheram os olhos de Maressa.
De repente, era como se estivesse caminhando através do
tempo, dos segredos da magia, de um palpitar certeiro do coração,
do silêncio que reverberava e que a puxava.
A infinidade daqueles sentimentos foi poderosa,
estremecedora.
E ela nem sabia de onde aquilo vinha.
Mas estava ali.
Tão forte quanto o chamado que levara seu coração para
Ikaris.
Só tinha visto a erelin na gravura de um livro e no lampejo do
testemunho remoto de uma visão.
E, ainda assim, era como se a tivesse conhecido por toda a sua
vida.
“E nas estrelas ficará, até que para a terra possa voltar”
Maressa levou uma mão ao peito.
Sua magia podia sentir a erelin, ouvir o palpitar fraco de seu
coração, a respiração cada vez mais inexistente.
Iohanna.
Iohanna.
A morte a espreitava, cada vez mais próxima, cada vez mais
certa.
Maressa caminhou até a erelin; os olhos dela estavam
fechados; seu rosto, pálido e plácido.
Nós duas estivemos flertando com o limiar da morte nos últimos
anos. Nós duas tivemos que aceitar a escravidão e o
encarceramento de nossos corpos enfraquecidos.
Não teve certeza se aquele pensamento foi seu.
Não teve certeza se aquele pensamento foi de Iohanna.
Mas ele espiralou entre elas, como labaredas dançantes nas
sombras.
Porque éramos incapazes de alcançar as estrelas.
Maressa alcançou seu interior, em direção ao poder ardente
que quase a tinha matado, e se curvou sobre Iohanna, encaixando
as mãos no rosto frio e quase sem vida da erelin.
Mas agora elas estão aqui. Nós estamos aqui.
E, com um tremular, ela libertou sua magia, lançando-a como
uma manta cálida sobre Iohanna.
A luz inundou a gruta.
Não havia espaço ou tempo para perguntar o que estava
fazendo.
Apenas sabia que tinha que fazer.
“E parece que estou cada vez mais perto de tocar este
propósito, este chamado...”
Em meio ao brilho incandescente, que parecia formar um véu
ao seu redor, Maressa enxergou os olhos pretos e dourados de Raio
de Luar; sua presença foi um sussurro, um farfalhar, feito uma estrela
guia que mostrava que ali estava o destino dela.
E nas estrelas ficará...
...Até que para a terra...
...Possa voltar...
Quando a luz suspirou e se esvaneceu, Raio de Luar
desapareceu.
Maressa ofegou e deu um passo cambaleante para trás, como
se tivesse despertado de um transe, de um sonambulismo.
Seus olhos caíram para Iohanna, que permanecia adormecida,
alheia ao que tinha acontecido.
Fitou as próprias mãos.
O que foi isso? O que eu fiz? O que aconteceu?
Ouviu alguém entrando na gruta.
— Maressa! — Ikaris correu até ela, segurando seus braços, os
olhos tomados por um temor avassalador. — O que você está
fazendo aqui?! Como veio parar aqui?!
Ela abriu a boca para responder que não fazia ideia; e então,
do lado de fora da gruta, gritos de alerta irromperam.
— Carniçais! Estamos sendo atacados por carniçais!
47
Harmonia sombria

MARESSA FOI a primeira a se afastar do leito onde Iohanna


ainda estava adormecida e correr até a saída da gruta. Ikaris a
segurou, impedindo que ela ficasse completamente exposta.
Mas, dali, já conseguia ter uma visão do que estava
acontecendo.
Era como se um véu de escuridão, movendo-se em alta
velocidade, perfurasse a neblina, cada vez mais próximo das
montanhas.
— São carniçais? — Maressa ofegou. — Iguais aos que
atacaram o palácio na noite do meu aniversário?
Ikaris assentiu.
— Se eles estão aqui, Hakon, o Nefastus, também deve estar.
— A pedra! Eles devem estar atrás da pedra! — Maressa se
desesperou. — Ela ainda está com Darlan!
Ikaris praguejou no idioma erelin.
Para Maressa, aquele era um sinal de que eles estavam com
sérios problemas.
Mas não recuaria.
Desta vez, lutaria ao lado de todos.
Ao longe, alguém gritava que os carniçais estavam chegando.
Maressa se virou e correu para fora da gruta.
— Vou afastá-los!
— Maressa.
— Confie em mim.
Ikaris engoliu em seco e assentiu, sem baixar as adagas,
mantendo-se como um escudo protetor ao redor dela.
Ela deu um passo à frente e se colocou em um espaço aberto.
Tentou repetir o que havia feito na gruta, na floresta, durante o
curto treinamento com Layla. Mergulhou dentro de si mesma,
caçando pela luz, pela magia; mas tudo o que encontrou foi uma
fagulha fraca.
Tentou de novo. E de novo. E de novo.
Nada aconteceu.
Suas pernas tremeram.
— Por que não consigo usar meu poder?
Ikaris rosnou baixo, e Maressa percebeu que ele estava
avaliando todo o espaço irregular em torno delas, procurando uma
forma de tirá-la dali.
— O que aconteceu na caverna, Maressa? Por que você
estava lá com Iohanna?
— Eu... Eu não sei. Foi como um transe. Eu estava consciente,
e ao mesmo tempo não estava. — O coração dela retumbava alto;
mesmo com a névoa e a escuridão, podia ver o movimento dos
carniçais, cada vez mais velozes, cada vez mais próximos. — Era
como se eu tivesse procurado por esse lugar durante toda minha
vida. Um propósito. Como se aquela voz que ficasse me seguindo
fosse a voz das estrelas que me queriam aqui.
Ikaris agarrou seu braço; quando Maressa percebeu, eles
estavam correndo, seguindo de volta para o vilarejo dos erelins.
— E, então, usei minha magia. Nela. Foi algo mais forte do que
a minha vontade ou a minha consciência. A luz dentro de mim... —
Ela tropeçou, com Ikaris agarrado ao seu braço, mas não parou de
correr e arfar. — Foi como se eu tivesse derramado até minha última
gota de magia dentro dela e... Ah! Pelos deuses! Será que eu perdi
meu poder?!
— Creio que não. Mas você deve tê-lo usado até o limite. Todas
as suas forças estão drenadas no momento. — O maxilar de Ikaris
estava enrijecido; o fôlego dele permanecia inalterável enquanto
corria. — Não sou o maior entendedor das leis da magia, mas ela se
esgota quando usada ao máximo. Por isso que, em Rovina, o
feiticeiro precisou se preparar para fazer o feitiço de averiguação.
Maressa arregalou os olhos.
— Quanto tempo vai levar para o meu poder voltar ao normal?!
— Não sei. Mas temos que ir até a casa de Darlan e pegar a
pedra, antes que os carniçais e o Nefastus a encontrem.
Ela assentiu.
E, junto dele, correu na direção do pesadelo vivo que cortava e
reverberava no céu.

◆◆◆

As criaturas voavam com determinação e rapidez, mergulhando


sobre os erelins sem nenhuma piedade.
Willelm sacou a espada, colocando-se na linha de frente para
proteger um pequeno grupo de crianças erelins. Nina estava junto
com as crianças, tentando acalmá-las, fazendo dos braços um
escudo.
O duque arfou e golpeou um carniçal.
Se aquelas criaturas passassem por ele, chegariam em Nina.
E aquilo ele não poderia permitir.
— Voltem para as profundezas de onde vieram! — ele urrou,
golpeando mais um carniçal, e mais um, e mais um.
— Cuidado!
O grito de Nina fez seus ossos estremecerem.
Pela esquerda, onde sua guarda estava baixa, o Nefastus em
sua força mais sombria avançou em sua direção. Willelm virou,
girando a espada, a lâmina passando a centímetros da criatura
bestial, refletindo o brilho do cristal que o Nefastus carregava em um
amuleto ao redor do pescoço.
O Nefastus urrou, e com um movimento veloz, agarrou uma
das crianças erelins e alçou voo com elas.
— Não!
Seus olhos se encontram com os de Nina.
— Vá! Eu cuido das crianças!
Willelm assentiu, soergueu a espada e correu atrás do Nefastus
e da criança.
◆◆◆

Quando Maressa e Ikaris chegaram no centro do vilarejo, as


casas queimavam e os gritos ecoavam pela noite.
Era uma visão atordoante.
E ele não fazia ideia se os soldados das Cinco Alianças, muito
abaixo das montanhas, imaginavam o inferno que estava
acontecendo ali.
— Por aqui!
Ao mesmo tempo em que mantinha Maressa sob sua proteção,
Ikaris se movia rápido, trocando as adagas por uma aljava de flechas
e por um arco que encontrou em uma das cabanas.
Ele atirou as primeiras flechas, vendo os carniçais
despencarem do céu. Outros erelins, armados como ele, também
atiravam.
— Busque abrigo, Maressa! Irei até Darlan!
— Não! Estou aqui para proteger, e não para ser protegida!
Os dentes de Ikaris apareceram quando ele grunhiu, mas não
teve tempo de dizer nada. Agilmente, girou nos calcanhares,
disparando as flechas em uma harmonia sombria, uma canção de
morte que conhecia bem.
Um carniçal grunhiu alto e mergulhou sobre ele.
Antes que Ikaris pudesse derrubá-lo, a criatura caiu aos seus
pés, atingida por uma adaga bem no centro do peito.
Ofegante, ele olhou para o lado. Maressa havia encontrado
várias facas e adagas, e as atirava contra os carniçais, repetindo os
movimentos que ele tinha ensinado para ela no telhado da
hospedaria.
Ikaris arfou.
Não podia ver as estrelas, mas era como se elas estivessem
ali.
Mesmo sem a magia, mesmo sem nenhuma gota de poder,
com pouco treinamento, ela continuava lutando com o que tinha em
mãos.
Para proteger o povo dele.
O coração de Ikaris teria se enchido de uma ternura
avassaladora e de uma admiração ardente por aquela mulher se ele
não estivesse tão ocupado atirando flechas contra os carniçais.
Ainda assim, aquela imagem ficaria gravada dentro dele.
Sua princesa guerreira.
Sua garota que tinha passado anos guardada dentro de um
palácio, com a determinação e a coragem queimando nela, sem
jamais terem permissão para sair.
Ikaris a amaria até o último dia de sua existência.
Dispararia suas flechas pensando nela e em sua bravura.
E assim o fez.
Até todas as flechas da aljava acabarem.
Sacou as adagas, golpeando as criaturas que tentavam mordê-
lo enquanto ele e Maressa abriam caminho até a casa de Darlan.
— Estamos perto!
Um grito familiar fez o rosto de Ikaris se virar.
Com os olhos arregalados, ele viu Willelm lutando contra o
Nefastus para libertar uma criança erelin na beira do penhasco.
Seu coração disparou.
“Ela é a criada pessoal da minha futura esposa. Nunca mais
encoste nela, ou meu amigo e eu lhe daremos uma bela lição”.
O duque não teria nenhuma chance contra aquela criatura
mortal. Mesmo assim, ele golpeava do jeito que conseguia, até as
garras do Nefastus se abrirem e libertarem a criança.
“Que tipo de cavalheiro honrado eu seria se deixasse duas
damas e um amigo viajarem sozinhos?”.
Urrando de ódio, o Nefastus avançou sobre Willelm.
“Por que eu me incomodaria com a raça de um amigo?”.
O mundo explodiu dentro dele.
Ikaris não pensou ou cogitou.
Feito uma tempestade viva, um milhão de trovões e
relâmpagos, ele correu até o penhasco, usando o próprio corpo para
proteger Willelm e empurrá-lo para o lado.
— Não encoste no meu amigo!
Suas adagas cantaram no ar, atingindo o Nefastus.
A criatura urrou; o cristal que pendia do seu pescoço balançava
de um lado para o outro.
Ikaris sentiu o momento em que as garras o capturaram.
Ele girou o corpo, tentando se libertar; o Nefastus urrou outra
vez, Ikaris o segurou, querendo mantê-lo o mais longe possível de
Willelm.
Foi tudo muito rápido.
Algo o atingiu, fazendo Ikaris experimentar uma dor colossal.
O Nefastus se ergueu, abrindo as asas e subindo para o alto,
as patas grandes e grossas atingindo o peito de Ikaris.
O impacto o empurrou para trás, até ele não sentir mais o chão
sob os pés, até perceber que estava caindo enquanto o Nefastus ia
cada vez mais para o alto.
E tudo o que Ikaris escutou foi a risada bestial e satisfeita da
criatura que o atingira enquanto seu corpo era arremessado da borda
do penhasco, à mercê de uma queda infinita, sem ter onde se
segurar ou se apoiar, em direção aos braços da escuridão.
48
Aos céus

O MUNDO se prolongou, se calou e desacelerou no instante em


que o Nefastus golpeou Ikaris; no instante em que ele perdeu o
equilíbrio e caiu do penhasco, desaparecendo nas sombras e na
névoa.
Maressa arfou e correu, esquecendo-se de tudo, da batalha
sangrenta que acontecia no ar e na terra.
Mais e mais profundamente, ela disparou para dentro de si
mesma, procurando por qualquer luz, por qualquer centelha que
pudesse queimar aquela agonia.
— Maressa!
— Volte!
— Maressa!
Seu coração rugia, seu sangue queimava.
Mas ela continuou correndo na direção do penhasco,
implorando para que qualquer magia, qualquer ser, qualquer poder
nela, acima dela, salvasse Ikaris.
No céu, os carniçais eram uma massa sombria e amorfa.
Ofegou, levando uma mão ao peito.
Maressa sabia que tinha chegado ao limite do poder, sabia que
havia dado tudo de si na caverna de Iohanna.
Ikaris. Ikaris. Ikaris.
Ela olhou para baixo, para a escuridão infinita.
A pressão se acumulou em sua mente e em suas veias.
E ela caiu de joelhos no chão, gritando de dor e desespero.
Suas lágrimas rolaram pelo rosto e caíram no chão.
Atrás dela, acima dela; o vento se ergueu, feito uma
tempestade feroz e incontrolável, que soprou a neblina, empurrou a
névoa, até que não houvesse mais nada entre as montanhas e os
céus.
Até que o céu estrelado estivesse brilhando sobre todos eles.

◆◆◆

O vento passava por ele, gritando em seus ouvidos,


acompanhando-o na queda, em direção aos braços da escuridão.
Uma dor insana crepitava por seus ossos, contorcendo-o
enquanto ele despencava, enquanto seu corpo ganhava velocidade,
cada vez mais perto das profundezas, das pedras pontiagudas.
Ikaris pensou ter visto o rosto dos pais na névoa.
“Seu pai e eu somos guardiões das histórias de nosso povo.
Um dia, você herdará cada livro desta biblioteca. Um dia, conhecerá
cada linha do legado erelin”.
Não, ele não tinha conseguido.
Havia falhado com seus pais e com seus povos.
“Ah, nos tempos gloriosos, nos tempos em que os céus nos
pertenciam, os erelins costumavam...”.
Seu corpo caía, precipitando-se para o destino inevitável.
A dor ficava cada vez mais forte, mais pulsante nas costas.
“Os tempos gloriosos para nossa raça já se acabaram”.
Foi então que ouviu um grito, uma voz que ardeu e acelerou
todo o seu coração. O mesmo grito, a mesma voz, o mesmo
desespero de Maressa quando ela tinha se atirado sobre ele para
protegê-lo do troll.
Podia sentir o toque dela em suas costas.
Podia sentir a pele dela roçando em sua pele.
Foi tão forte, tão poderoso, que era impossível que ela não
estivesse ali com ele, queimando-o, segurando-o, chamando-o.
Seus olhos se abriram.
E ele viu.
“A pedra, assim como a fonte em sua totalidade, é apenas uma
ponte com a estrelas”.
As estrelas que se revelavam acima das montanhas.
As estrelas que jamais haviam brilhado ali.
“Ela não é o poder em si, embora esteja banhada nele”.
Jamais achou que as veria ali.
Naquele lugar esquecido e renegado à escuridão.
“A lágrima de um najma elevou nosso povo aos céus e nos deu
asas e poder”.
Ikaris esticou a mão para o alto.
Queria alcançar as estrelas.
Tocá-las.
Ver mais de perto aquele brilho único que também enchia os
olhos de Maressa.
“Essa lágrima feita de luz pura, que encheu a fonte e que
tocava as estrelas, era a verdadeira conexão da magia do nosso
povo”.
Um choque feroz subiu por suas costas.
O rugido que ele soltou não foi de dor.
Mas de desafio.
De libertação.
“A minha verdade é que fui enviado para Arustar para tirar a
vida da herdeira do trono. Sua vida”.
Sentiu a camisa se rasgar, as costas se abrirem.
“Mas creio que as estrelas me levaram até o castelo, até você,
para me fazer enxergar meu verdadeiro destino, para dar à minha
alma congelada um motivo para lutar, arder e queimar”.
Ikaris investiu para cima com um impulso do próprio corpo,
lutando contra as forças que o puxavam para baixo, buscando pelas
estrelas, por Maressa.
Podia ouvi-la. Podia senti-la.
Ela estava ali.
Esperando por ele.
Chamando por ele.
“E hoje sei que eu sou capaz de colocar meu coração no fogo
para impedir que qualquer mal te aconteça”.
Seu coração respondeu ao chamado.
Queimou.
E ele se deixou queimar.
Luz dardejou ao redor dele, dentro dele, em seu sangue,
expandindo-se para o infinito.
“Por muito tempo, olhei para o céu em busca das estrelas que
não conseguia enxergar. Hoje, tenho aqui a mais bela e brilhante de
todas”.
Ikaris experimentou a liberdade em sua mais pura essência.
Relâmpagos coroaram os picos altos, as montanhas estalaram.
Então, o vento se curvou a ele.
E quando grandes asas rasgaram sua pele, abrindo-se e
batendo vorazmente, Ikaris disparou para cima, na direção do céu,
das estrelas; na direção de Maressa.
49
Pura essência

ATRÁS DE Maressa, a batalha dos erelins com os carniçais e o


Nefastus prosseguia em um retinir de espada contra espada, em
uma canção voraz de flechas disparadas.
As estrelas derramavam sua luz pela terra e pelas rochas
íngremes, capturando olhares atônitos e exclamações admiradas.
— As estrelas nunca brilharam sobre estas montanhas.
— Desde que nosso povo foi exilado aqui, tudo o que víamos
do céu era uma massa escura encoberta pela neblina.
— As estrelas estão olhando para nós outra vez.
Mas Maressa mal os ouvia, sequer tinha forças para procurar
um abrigo e se proteger dos carniçais.
Seus olhos caíam para o abismo escuro, para as trevas que
haviam engolido Ikaris e um pedaço de seu coração.
Ela levou a mão ao peito outra vez.
Um arquejo sôfrego escapou de sua garganta.
Ikaris havia se sacrificado para salvar Willelm, para proteger
seu amigo, da mesma forma que faria por ela e por Nina.
“E hoje sei que eu sou capaz de colocar meu coração no fogo
para impedir que qualquer mal te aconteça”.
— Não quero que coloque seu coração no fogo ou que se
sacrifique por mim — repetiu entre as lágrimas o que havia dito para
ele noites atrás. — Quero que volte para mim. Por favor, volte para
mim.
E então, ela escutou o barulho.
Não soube se foi um som da fúria da batalha, dos gritos erelins,
do chão que era banhado pela luz das estrelas.
Mas era forte e poderoso.
Como mil trovões.
Como se a terra estivesse libertando uma tempestade
aprisionada.
Teve a impressão de que as montanhas tremeram, de que o
vento mudou o seu curso.
E, das profundezas do abismo, algo subiu em alta velocidade,
rasgando a escuridão, erguendo-se ao céu.
Maressa ofegou.
Ikaris.
Ela ficou em pé, os cabelos esvoaçando ao redor do rosto,
maravilhada com o que seus olhos testemunhavam.
Ikaris estava voando.
Subindo.
Voltando para ela.
E, quanto mais alto ele ia, quanto mais impulso tomava, quando
mais se fundia ao céu estrelado, mais Maressa podia vê-lo.
Eram asas enormes, lindas, forjada com o manto da noite e o
suspiro das estrelas, que batiam de forma estrondosa e elegante
conforme Ikaris voava até ela, feito a ferocidade da tempestade.
Ikaris era a própria fúria do céu.
A liberdade, a vastidão, a beleza e selvageria.
Urros surpresos dos outros erelins começaram a ecoar por
todos os lados; até mesmo os carniçais pareciam ter recuado por
alguns instantes, atordoados com a imponência de um erelin em sua
forma mais pura.
Tudo o que sentiu foi um alívio desesperador.
Maressa correu para os braços de Ikaris quando ele pousou; ao
ser abraçada por ele, as grandes asas a envolveram, deixando-os
ainda mais próximos um do outro.
Com as lágrimas ainda escorrendo pelo rosto, ela ergueu a
mão e tocou o rosto dele.
— Achei que tivesse te perdido.
— Meu coração é seu e queima por você. — Ikaris segurou a
mão dela, conduzindo-a para o peito. As batidas fortes e selvagens
pulsavam contra a sua palma. — Ele escutou seu chamado. E ele
me ergueu e me trouxe de volta para você.
Incapaz de conter as lágrimas deslizantes, Maressa ergueu a
mão, acariciando as linhas entrelaçadas e desenhadas nas asas
recém-nascidas dele. Eram lindas. Firmes como as montanhas, leves
como o vento. Deixou a ponta de seus dedos acariciá-las,
experimentando sua textura, seu vigor.
As imensas asas de Ikaris farfalharam ao seu toque.
— Como isso é possível?
— Foi você.
Maressa franziu o cenho e entreabriu os lábios. No céu, as
estrelas fulguravam, contornando a borda das asas dele.
— Eu devia ter percebido. — Havia um sorriso carregado de
uma emoção pulsante na boca de Ikaris. — As dores nas minhas
costas, o nascimento das minhas asas... Tudo começou quando você
libertou sua magia e se atirou em cima de mim, deixando seu poder
reverberante me envolver. Até mesmo meus sonhos ficaram mais
lúcidos, mostrando-me o passado, desde que coloquei meus olhos
em você pela primeira vez.
Atônita, Maressa o fitou.
As asas de Ikaris a puxaram para mais perto, protegendo-a da
batalha que ainda acontecia no céu e na terra com os carniçais,
enlaçando-a em um sussurro de calor e pertencimento.
— E suas lágrimas... — O polegar de Ikaris deslizou pela
bochecha dela, acompanhando a trilha úmida que descia até o
queixo e que havia caído sobre a terra. — Elas expulsaram a névoa
densa e revelaram o céu estrelado para o meu povo outra vez.
O ar estremeceu na garganta de Maressa.
— O que você está tentando me dizer, Ikaris?
— Sua magia, quem você é, as respostas que temos tentado
encontrar desde que o seu poder se libertou, a conexão que Raio de
Luar estabeleceu com você... — A tempestade cinzenta dos olhos
dele brilhava em um arco de admiração, espanto e emoção. — Não
sei como isso é possível. Mas, desde que te conheci, descobri que o
impossível e o improvável nos entrelaçam.
O coração dela acelerou; um arquejo escapou de seus lábios
quando seu olhar mergulhou no infinito luminoso das íris de Ikaris.
Quando ela finalmente entendeu.
— Maressa... Você é uma najma.
50
Paralisante

O AZUL dos olhos de Maressa foi tomado por lampejos atônitos.


Ikaris jamais se cansaria de olhar para aquele par de pedras de
safira, para aquelas cores tão limpas quanto o mais belo céu da
primavera.
— Uma najma? — a pergunta saiu em um arquejo dos lábios
de Maressa. — Eu sou uma najma?
Ikaris também estava perplexo com a descoberta.
Mas, enquanto olhava para ela, enquanto a envolvia com suas
asas — asas que haviam respondido ao poder dela, assim como as
estrelas que cintilavam no céu — todas as suas certezas se
solidificaram.
Uma criatura pura, uma descendente, uma mestiça; não
importava como, Maressa carregava o sangue mais puro e primordial
das estrelas.
— Fogo!
Os gritos ficaram mais altos.
O casulo formado pelas asas de Ikaris se abriu.
As perguntas teriam que ficar para depois.
— Pegue a pedra e vamos sair daqui! — Ikaris bradou.
— E os outros?!
— Vou te levar para um lugar seguro primeiro, e depois voltarei
para buscar os outros.
Os olhos de Maressa se arregalaram; Ikaris podia sentir nela a
vontade de lutar, de ficar em pé e se juntar à batalha.
— Você tem sangue najma nas veias. A pedra angular é um
fragmento da antiga fonte sagrada dos erelins. É arriscado demais
deixar vocês no meio da batalha. Vamos encontrar um lugar seguro.
Vamos entender seu poder. E vamos achar sua mãe.
— E salvar seu povo. — A mão dela pousou sobre a dele.
Os dedos de Ikaris se fecharam ao redor dos dela.
Se houvesse tempo, a teria beijado.
Com tudo o que tinha em sua alma.
— Vá! Não deixarei que eles te alcancem!
Maressa assentiu e correu, enquanto Ikaris tomava um novo
impulso com as asas e lutava com os carniçais, oferecendo
cobertura para que ela conseguisse chegar até a casa de Darlan.
Em algum momento, Willelm surgiu do meio das pessoas,
empunhando um arco erelin enquanto Nina puxava as crianças para
longe do calor da batalha e as colocava em um abrigo seguro.
— Não sabia que meu amigo era um pombo! — Willelm
pestanejou assim que Ikaris pousou ao seu lado.
— Não sabia que meu amigo era comida de Nefastus! — ele
devolveu no mesmo tom.
— Minha piada foi melhor! Você tem que se aperfeiçoar, amigo.
E, mesmo entre os brados, o retinir das lâminas e a ferocidade
da batalha, sorrisos mancharam os lábios dos dois.
Asas encouraçadas e imensas bateram no ar; então gritos
agudos vieram em sua direção.
Ikaris tomou um impulso e voou, encarando o Nefastus que
vinha até eles na companhia de dúzias de carniçais.
O choque entre seus corpos e armas foi como a terra se
partindo.
Seus dentes apareceram quando ele grunhiu.
O Nefastus girou e subiu, camuflando-se entre as sombras.
— Ikaris!
Ele olhou para baixo, vendo Maressa correndo pelo campo de
batalha, segurando e protegendo a pedra angular como se fosse sua
própria vida.
Na mesma hora, os carniçais mudaram o curso do voo e
avançaram sobre ela; Ikaris foi mais rápido e, com um mergulho no
ar, atingiu um a um, até que Maressa tivesse uma passagem segura
para chegar até ele.
Antes que pudesse pegá-la no colo para voar com ela para
longe das montanhas, o Nefastus ressurgiu, voando tão velozmente
que as garras quase os atingiram.
Maressa arfou, usando o braço para proteger o rosto.
— Ele não vai nos deixar sair daqui!
— Fique atrás de mim! — Ikaris gritou, voando até ela e
voltando a fincar os pés no chão. — Está na hora de derrubar esse
infeliz!
Abrindo as asas para transformá-las em um escudo diante de
Maressa, Ikaris empunhou o arco e puxou uma flecha.
O Nefastus tomou mais impulso para o alto.
Ikaris preparou a flecha.
No instante em que o disparo foi feito e acertou uma das
pernas da criatura, o Nefastus arrancou o amuleto de cristal que ele
trazia ao redor do pescoço e o deixou cair.
O cristal atingiu o chão, banhado pelas gotas do sangue negro
do ferimento do Nefastus, partindo-se em mil pedaços.
Dos estilhaços, uma fumaça densa se espalhou rapidamente,
tomando todo o campo de batalha.
Um cheiro de Salmísia queimada encheu as narinas de Ikaris
De súbito, todos os erelins e carniçais se calaram. As lâminas
foram silenciadas. Ninguém se movia. Ninguém emitia um som
sequer.
O que está acontecendo aqui?!
Ikaris tentou abrir a boca para grunhir.
Não conseguiu.
Tentou mover o braço para pegar outra flecha.
Nenhum membro do seu corpo respondeu à ordem.
Porque estou consciente, mas completamente paralisado?!
Seus globos oculares eram as únicas coisas que se mexiam
um pouco; com o canto da visão periférica, viu que Maressa também
estava congelada no lugar, feito a rocha que segurava nas mãos.
Tanto os erelins quanto os carniçais que se digladiavam pareciam
estar imobilizados como eles.
Sobrevoando o céu como um borrão voraz, o Nefastus soltou
uma risada pérfida e satisfeita.
A fumaça se espalhou ainda mais; com ela, havia uma voz
deslizante, como uma serpente que ziguezagueava até a sua presa.
“Somente eu subirei ao céu, acima de qualquer nuvem e
estrela”.
Os instintos de Ikaris não demoraram para reconhecer o que
estava acontecendo ali.
O que havia saído de dentro do cristal quebrado era uma
fumaça paralisante, conjurada com magia sombria e sacrifício de
sangue.
Merda. Merda. Merda.
O Nefastus não poderia ter conjurado aquele feitiço.
O que significava que ele estava trabalhando para alguém mais
poderoso. Para alguém cuja a presença sorumbática espiralava no
meio da fumaça como um espectro translúcido.
“Rápido, Hakon”, a voz soprava junto ao vento, soturna e
nebulosa. “O efeito do feitiço e da Salmísia se dissipará logo”.
E viu para onde o olhar do Nefastus se concentrou.
A compreensão estremeceu no fundo da mente de Ikaris.
E nunca tinha sentido tanto pavor em toda a sua vida.
Todo o seu interior se revolveu, se agitou, como um furacão
sobre o mar, mas nenhum músculo, nenhum osso, nenhum membro
do seu corpo se moveu. Nem mesmo um som escapou de sua boca.
Nem mesmo suas asas recém-nascidas se mexeram.
Com a perna ainda sangrando por causa do ferimento da
flecha, e imune aos efeitos da fumaça, o Nefastus abriu as asas e
deu um mergulho fundo, abrindo as garras compridas e capturando
Maressa e a pedra.
Se Ikaris não estivesse paralisado pelo feitiço, teria gritado e
estraçalhado aquela criatura que um dia fora um erelin.
Ele tentou se mover. Tentou andar.
Por favor. Por favor. Por favor.
Suor frio escorria por toda a sua testa, por todo o seu rosto.
Não posso perdê-la. Não posso deixar que ele a leve.
Queria esticar a mão.
Queria gritar o nome de Maressa.
Por todas as estrelas que brilham no céu.
Mas não conseguiu gritar.
Não conseguiu dar um passo sequer.
A tempestade estourava apenas dentro dele, incapaz de
encontrar um caminho para fora e arrebentar tudo o que estava ao
seu redor.
E com o mais profundo dos desesperos crescendo dentro do
seu peito, ele testemunhou o momento em que o Nefastus se ergueu
outra vez e subiu para os céus, desaparecendo com Maressa entre
suas garras.
51
Atrás do véu
Cem anos atrás
Algumas noites antes do levante e da ascensão de Astrid

Deitada no chão frio da cela, Iohanna tentava achar uma


posição confortável, mas as correntes encantadas machucavam
cada centímetro do seu corpo e de suas asas.
Astrid tinha sido levada para as câmaras onde as atrocidades
eram cometidas com ela e com todas as suas irmãs, para que a
“pureza” da raça erelin fosse preservada.
Iohanna desceu a mão para o próprio ventre.
Havia descoberto que era estéril.
E uma erelin pura e estéril não tinha serventia alguma para a
cúpula.
Tinha medo por si mesma, mas também temia pelas suas
irmãs. Nunca mais veriam a vastidão do céu? Nunca mais voariam
ao lado das estrelas?
Uma lágrima trêmula deslizou por seu rosto magro e abatido.
No mesmo instante, teve impressão de que uma mão invisível e
morna acariciou sua bochecha, limpando o rastro da lágrima.
Iohanna virou o rosto.
Não podia ver nada, mas conseguia sentir a carícia do toque.
Era aquela presença protetora.
A mesma presença que sentia desde que era uma menininha
erelin.
Iohanna se ergueu, o ar entrando e saindo dos pulmões em um
farfalhar trêmulo, olhando para o canto da cela, onde as sombras
eram mais densas.
Piscou lentamente.
Ali, fitando-a em meio ao breu, havia um par de olhos pretos e
dourados.
Seu coração acelerou em reconhecimento, seu corpo ferido foi
envolvido por uma ondulação quente e protetora.
Sim.
Sabia que era os mesmos olhos que, às vezes, ela sentia sobre
si.
— Aproxime-se — pediu.
Não sentia medo.
A energia que aquela presença emanava era certa, feito
alguém que encontrava lar e refúgio para se proteger de uma
tempestade.
Os olhos não se aproximaram.
Mas algo cintilou na escuridão ao ser depositado no chão.
Tomando cuidado para não fazer barulho com as correntes,
Iohanna se arrastou até aquela pequenina fonte de luz.
Com os lábios entreabertos, ela esticou a mão para o ponto
brilhante em meio às sombras. Teve que se controlar para não ofegar
alto ao perceber que estava segurando em um suas mãos um raro
Suspiro de Áster.
— Como...?
Ela ergueu o rosto, mas os olhos pretos e dourados já estavam
recuando.
— Espere.
Mas os olhos não esperaram.
E ela estava outra vez sozinha na cela.
Segurando um fragmento poderoso de magia nas mãos.
Um fragmento que ela usaria para libertar a si mesma e às
suas irmãs, e iniciar uma nova era para toda a raça erelin.

◆◆◆

Atualmente

Ikaris não soube por quanto tempo o efeito da fumaça


paralisante da Salmísia durou. Foi como se uma eternidade
houvesse se passado até que ele conseguisse mexer um músculo
outra vez.
E, quando conseguiu, um rugido alto e poderoso saiu de seu
peito, de seu coração, estremecendo suas asas, ecoando pelas
montanhas.
Maressa tinha sido levada diante dos seus olhos.
Sua companheira, sua amiga, sua amante, sua luz, sua estrela.
O Nefastus a prendera em suas garras e a levara no meio da
batalha, após usar um golpe de magia obscura.
Ikaris o encontraria.
Ikaris mataria aquela criatura.
E mataria quem estivesse por trás do feitiço paralisante.
— Soldados! — alguém gritou. — Soldados de Arustar!
Ele virou o rosto. Atraídos pela batalha que tinha acontecido, os
soldados haviam subido a montanha, armados até os dentes.
Quando colocaram os olhos em suas asas, Ikaris soube que
uma nova luta estava prestes a começar.
Com um rugido, junto de seu povo, avançou para cima deles.
Golpeou, cortou, derrubou.
E, pela primeira vez desde que havia perdido os pais de forma
brutal, ele chorou.
Ikaris enterrou a adaga profundamente no pescoço de um
soldado, determinado a derrubar cada homem que tentasse impedi-
lo de voar e recuperar Maressa.
Só que mais e mais soldados de Arustar chegavam.
— Vá atrás dela! Voe! — Willelm bradou, manejando a espada
assim que recuperou os movimentos do corpo. — Nós seguraremos
os soldados! Eu lhe darei cobertura, Ikaris!
Ele não fazia ideia de onde o Nefastus teria ido com Maressa,
mas procuraria por sua princesa por todos os continentes, voaria
pelo céu, sobre o mar e sobre a terra, mas a encontraria.
— Matem o erelin alado! Matem agora!
Ikaris encarou o general do exército.
E então, foi como se as estrelas tivessem descido do céu e
irradiado todo seu brilho sobre as montanhas.
Ikaris levou alguns instantes para se acostumar ao brilho
intenso.
Eram ondas de luz e poder.
Ondas que derrubaram os soldados de Arustar, até que não
houvesse mais nenhum em pé, até que não estivessem mais
respirando.
Os carniçais que ainda voavam e atacavam os erelins também
foram atingidos, derrubados e transformados em pó.
Ao virar o rosto, ele percebeu que aquela magia poderosa não
vinha do céu, e sim de uma pessoa.
De uma mulher.
As asas de Iohanna eram uma luz viva, que brilhava e irradiava
em tons brancos e dourados, com suspiros de cobalto, rubi e
ametista.
Tudo nela estremecia e irradiava.
Como se a prisão e a dormência do corpo ferido por mais de
vinte anos finalmente tivessem se dissipado e libertado sua alma.
Ela deixou seu poder se expandir e ondular, protegendo seu
povo, impedindo que mais soldados de Arustar se aproximassem.
Assim que a vitória foi conquistada, as ondas de luz se
recolheram, regressando para Iohanna.
Ikaris caiu de joelhos diante da sua rainha.
Da rainha dos erelins.
Em reverência, todos os erelins se ajoelharam também.
Iohanna caminhou por entre seu povo, parando diante de Ikaris.
Não havia mais nenhum ferimento ou cicatriz em seu corpo. A cor
opaca dos olhos retornava, enchendo as íris de um esplendor capaz
de roubar o ar dos humanos e dos povos de outras raças.
Ikaris ergueu os olhos e a fitou; Iohanna resplandecia, feito as
estrelas do céu. Brilhava da mesma forma como Maressa brilhava.
Detinha uma beleza assombrosa e poderosa; algo que somente uma
mulher erelin pura e ancestral detinha.
— Eu não cumpri a missão que me foi dada, minha rainha. —
De joelhos diante dela, Ikaris apoiou a mão direita no próprio peito.
— Mas suplico para que me deixe partir. Para que me deixe resgatar
aquela a quem meu coração pertence. Aquela que te devolveu seu
poder.
Os lábios de Iohanna se curvaram para cima, mas ela não
sorria.
O vento soprava, balançando os cabelos de todos.
— A princesa de Arustar é uma najma, uma descendente dos
najmas, alguém que carrega sangue de najma nas veias. A
descoberta é recente, por isso ainda não tenho todas as respostas —
ele continuou. — Mas foi a magia dela que a colocou em pé, minha
rainha. Assim como os antigos najmas criaram as estrelas e deram o
poder dos céus ao nosso povo, Maressa me deu asas e lhe devolveu
sua glória e magia. Mas ela foi levada.
— Pelas forças de Astrid — Iohanna sibilou, tão baixo quanto
um ciciar do vento.
O nome ecoou pelas montanhas como um veneno deslizante.
— Então Astrid ainda vive, minha rainha? — Darlan perguntou,
ajoelhado e curvado frente à Iohanna.
— O poder sombrio, que ela conquistou ao trair, matar e
devorar as asas de nossas irmãs, deu-lhe uma sobrevida. E Astrid se
manteve escondida este tempo todo. Aguardando. Planejando. — Ao
beijo do vento, os cabelos dourados de Iohanna esvoaçavam. — Ela
sempre esteve perto demais, ocultada em seu próprio eco de magia
que ainda existia mesmo após a quebra das ligações sagradas. E só
agora consigo senti-la. Enxergá-la.
— Pode me punir pela traição, minha rainha, só me diga onde
Astrid está. — Ikaris tomou fôlego e ergueu o queixo. — Deixe-me
resgatar Maressa primeiro. Deixe-me salvá-la como ela a salvou.
Deixe-me lutar com Astrid em seu nome.
Fez-se silêncio por toda a montanha.
Ikaris não recuou ou demonstrou medo quando sua rainha
ergueu a mão e roçou os dedos por sua bochecha; o toque dela era
leve, morno.
— Não haverá punição, Ikaris Ashera. Pois você entendeu o
que meu coração cegado pelo ódio não foi capaz de compreender.
— O que está dizendo, minha rainha?
— Os presságios que recebi em meu leito de morte, os
sussurros que eu via, os sonhos que eu tinha quando tudo o que me
segurava em vida era um fio frágil e trêmulo... Eu via Arustar, eu
sentia Arustar. E via a princesa também, através de um véu
esvoaçante e translúcido, em um jardim de estrelas infinitas. —
Iohanna ergueu a mão, como se estivesse vendo aquele sonho outra
vez. — E o ódio que carrego por aquele reino me fez interpretar os
presságios erroneamente. O ódio me cegou de uma forma que não
pude enxergar a verdade. Não me deixou acreditar na esperança
que ainda ardia em uma parte do meu coração. E, assim, me fez te
mandar atrás da princesa pelo motivo errado.
O coração de Ikaris disparou.
Por causa daquelas visões, ele havia sido enviado para tirar a
vida de Maressa em um ato de vingança pelo seu povo.
E sua rainha estava lhe dizendo que havia interpretado o sonho
de forma errada?
Mas as estrelas haviam sussurrado o nome dele para ela na
visão...
Antes que a questionasse, sentiu a resposta da rainha no ar.
— Você sempre fez parte disso. As estrelas quiseram que eu te
escolhesse. Mas te enviar para Arustar nunca foi para cumprir uma
vingança, para cobrar sangue com sangue. Eu errei. — A voz de
Iohanna soava como uma mistura de luar e estrelas. — Os
presságios, as visões e as estrelas queriam que eu te mandasse até
lá para recuperar o que foi perdido. Para recuperar o que eu achei
que tivesse perdido há muito tempo.
Ele piscou, contemplando o rosto de Iohanna. O opacidade e a
fraqueza tinham deixado suas íris, devolvendo-lhe a cor forte e
pulsante.
Eram azuis, como duas pedras de safira.
Como os olhos de Maressa.
Atônito, Ikaris entreabriu os lábios.
— Sua magia, minha rainha?
— Não. Algo mais puro. Uma parte do meu próprio coração.
Que Astrid tirou de mim uma vez. E que não tirará de novo.
Sentindo-se contagiado pelo poder de Iohanna, Ikaris deixou
que suas asas se abrissem, ondas escuras que abraçavam a luz das
estrelas e do luar. Sabia que não havia tempo para explicações.
Tinha que agir antes que fosse tarde demais.
— Para onde Maressa foi levada?
— Para o lugar onde, uma vez, nosso poder e glória residiram.
Ikaris prendeu a respiração.
Para as ruínas da antiga Cidadela Prateada.

◆◆◆
Quando o efeito da fumaça paralisante se dissipou de seu
corpo, Maressa já não sabia mais onde estava.
Presa entre as garras do Nefastus, incapaz de se soltar e com
a magia ainda fraca nas veias, ela não teve escolhas. Deixou que a
criatura voasse sobre o que parecia ser as ruínas de uma antiga
cidade, enquanto pensava em um plano para fugir.
Talvez conseguisse encontrar sua mãe. Talvez o Nefastus a
estivesse levando para o mesmo lugar em que levara sua mãe.
Poderia salvá-la e fugiriam juntas. E então encontraria Ikaris.
Ao pensar nele, seu coração se desesperou.
Implorava aos céus e às estrelas que ele estivesse bem. Que
os efeitos da fumaça paralisante não lhe fizessem mal.
O Nefastus continou voando; em algum momento, Maressa
sentiu que a criatura começava a descer. Por entre as brumas,
escombros e ruínas do que parecia ter sido uma cidade começaram
a encher seus olhos.
O coração dela bateu mais rápido.
Ao correr os olhos pelas ruínas, sua mente volitou para as
descrições feitas por Ikaris e Darlan.
Estou na antiga Cidadela Erelin?
Maressa exclamou de dor ao ser atirada bruscamente no chão.
Esfregou os braços, as pernas, percebendo que as garras do
Nefastus haviam aberto cortes em sua pele.
Arfando, salivando, o Nefastus se debatia.
— A pedra e a princesa, mestre.
— Obrigada, Hakon.
A voz familiar fez com que Maressa se arrepiasse e se
esquecesse dos ferimentos.
O mundo parou durante uma batida de coração.
Ela olhou para o lado, para a mulher parada diante do
Nefastus.
— Mãe?
A rainha Sylvia, trajada em um longo vestido prateado, cuja
cauda arrastava no chão, andou até ela e tocou em seu queixo,
fazendo com que os olhos de Maressa encarassem os seus.
— Posso ter adotado esta pele para mim — ela disse, correndo
os olhos pelo próprio corpo. — Posso ter assumido a identidade da
verdadeira Sylvia durante todo este tempo após matá-la. Posso ter te
criado por vinte e um anos. Posso ter te chamado de filha desde que
você era apenas um bebê insuportável. Mas foi tudo por um só
propósito.
Maressa piscou, confusa e temerosa.
— Sobre o que você está falando, mãe?
Um sorriso perverso subiu pela boca da rainha. Maressa arfou.
As cores do cabelo de sua mãe começaram a mudar, transmutando-
se dos tons alourados para tons pratas e frios.
— Eu não sou, nunca fui e jamais serei sua mãe.
52
Corrente de vingança
Cem anos atrás

— Vocês não podem fazer isso comigo!


O urro de Astrid ecoou por todo o penhasco, reverberando até
alcançar as ondas que se arrebentavam contra as pedras e a
encosta.
Humilhada e forçada a ficar de joelhos, ela tentava invocar sua
magia, mas as correntes encantadas que prendiam seus braços e
seus tornozelos calavam a reverberação furiosa do seu poder.
— Tudo o que fiz foi para impedir que alguém nos subjugasse
outra vez!
— Não, Astrid. — A voz firme de Iohanna eram como as
trovoadas que fendiam o ar. — Tudo o que você fez foi em nome de
sua sede insana de poder.
— E faria tudo outra vez. Com ainda mais fúria.
Astrid riu; um riso amargo, sombrio.
O vento fustigava os cabelos dourados de Iohanna, beijava as
penas de suas asas iridescentes.
— E agora estamos aqui.
— E agora estamos aqui — ela grunhiu. — Mas, no fundo de
suas almas, vocês sabem que estou certa. Assim como meus
seguidores, acreditam que devemos estar acima das estrelas, dos
najmas. Assim como eu, querem pisar, em vez de serem pisoteados.
Quem subjugar, em vez de serem subjugados. Eu apenas tive
coragem o bastante para dar voz e vida a esse desejo.
Nenhum dos erelins que a circundavam esboçou uma reação
sequer.
Iohanna desceu a mão até o cabo de sua espada.
— Isto é por todas as nossas irmãs cujas vidas você tomou,
Astrid. Não posso matá-la, você é forte demais para qualquer um de
nós, mas posso puni-la. Contê-la.
A espada de Iohanna desceu em um movimento voraz.
O grito que deixou a garganta de Astrid foi um rosnado de dor e
ódio.
Ela sentiu o sangue escorrendo pelas costas e pelas correntes;
ela escutou o momento em que suas asas majestosas foram
cortadas de sua pele e caíram no chão.
Astrid jogou a cabeça para trás, uivando como um animal.
Eram nas asas que quase todo seu poder se concentrava.
E agora sentia a maior parte de sua magia a deixando.
— Saiba que fazer isto destrói meu coração, Astrid.
Astrid virou o rosto, encarando os olhos de Iohanna. A dor, feito
os riscos que os relâmpagos deixavam no céu, faiscava nos olhos
tão bravios e azuis de sua irmã.
E aquele olhar provocou uma tempestade ainda mais violenta
dentro de Astrid.
Foi incapaz de se mover ou de lutar enquanto os erelins
pegavam seus braços e a colocavam dentro de uma caixa de ferro.
Foi incapaz de batalhar contra a prisão, de conter o sangramento.
Mas, em nenhum momento, até seu total encarceramento,
quebrou o contato visual com a irmã. Em nenhum momento, deixou
que a promessa silenciosa se partisse.
Uma promessa de que aquele não seria seu fim.
Uma promessa de que Iohanna pagaria mil vezes mais.

◆◆◆

Vinte e cinco anos atrás

Ela já não se lembrava mais da luz.


Ela já não se lembrava mais do tempo.
Entre as correntes e o confinamento, fechada em uma caixa e
sobrevivendo com os fios restantes do seu poder, o mundo se
converteu em um borrão confuso, manchado pelo ódio e pela
promessa de vingança cultivados em seu coração.
Por isso, quando um feixe de luz roçou em seus olhos, Astrid
achou que estava delirando, que a magia preservada finalmente
estava a deixando e a entregando para os braços da derrota e da
morte.
Mas, então, mais luz surgiu.
A sensação foi como ser arrancada da escuridão, como voar
outra vez até alcançar as estrelas.
Seus olhos, acostumados com o breu e com as sombras,
demoraram para assimilar o que estava acontecendo.
Alguém a tirava da prisão da caixa.
Alguém a carregava.
A pouca magia presente em suas veias reconhecia seus
seguidores.
— Quanto... — Sua voz rouca, fraca, falha, saiu em um eco
empoeirado da boca seca. — Quanto tempo...
— Já faz setenta e cinco anos.
Setenta e cinco anos.
Se ela estivesse mais forte, teria convulsionado de raiva e ódio.
Iohanna e os malditos erelins haviam lhe encarcerado por
setenta e cinco anos.
— Astrid, nossa soberana, nossa rainha, nossa estrela. Longos
anos passamos te procurando, mas a busca acabou. Você está a
salvo. E voltará a brilhar e reinar.

◆◆◆

Durante o dia e a noite, Astrid gritava e agonizava de dor.


Os ferimentos deixados pelo corte das suas asas jamais se
curavam por completo.
Os Nefastus e seus antigos seguidores cuidaram dela,
alimentaram-na com ramos de Salmísia, até que uma parte de suas
forças fosse restaurada.
Mas, ainda assim, não era suficiente.
Ainda assim, odiava a fraqueza que sentia e enxergava em si
mesma.
Se algum inimigo a encontrasse, ela seria subjugada,
acorrentada, escravizada, aprisionada, lançada ao esquecimento.
E aquilo era algo que não permitiria.
Precisava aumentar sua magia. Precisava de mais poder.
Precisava...
— Tenho que fazer o que fiz há um século atrás, para chegar
onde cheguei.
— Devorar as asas de uma erelin pura?
— De todas as que ainda estiverem em pé.
— Os erelins estão fortalecidos. Mas há muitos mestiços. Será
difícil adentrar nos domínios e capturar as mulheres puras, soberana
Astrid.
Ela se virou, unindo as mãos em frente ao corpo, o vento
balançando os fios longos e pratas de seus cabelos.
Olhou para o céu, para as estrelas que brilhavam como se
rissem dela.
Astrid encarou os pontos cintilantes, sussurrando uma
promessa de que ainda se sentaria acima de cada um deles.
— Deixem este detalhe comigo. Garantirei uma forma de
contaminar o poder do meu povo para que mais ninguém tenha a
benção dos najmas.

◆◆◆

Enquanto se recuperava, ela havia estudado os segredos das


magias sombrias.
No auge do seu poder, sempre tinha sido capaz de mudar de
forma e assumir peles e máscaras diferentes. Agora, enfraquecida,
ainda conseguia fazer pequenas mudanças em si mesma. Mas, para
o plano que tinha em mente para derrubar seu povo, precisava de
uma transformação longa e duradoura.
Assim, Astrid estudou e se preparou. E, com a ajuda de seus
seguidores mais leais e mais ágeis, foi até o Reino de Arustar e se
infiltrou no castelo.
Escolheu uma noite tempestuosa.
As lanternas que balançavam ao vento da tempestade e a
dança trêmula das tochas nos corredores foram as únicas
testemunhas de sua entrada.
Feito a sombra e o sussurro, usando os fios da sua magia,
Astrid adentrou no aposento real. Com o trovão ressonante, sua
entrada não foi ouvida.
A rainha dormia tranquilamente e sozinha. O rei, segundo seus
espiões, saíra em uma longa viagem política para outro reino.
Sua adaga deslizou para fora da bainha em um sibilo cheio de
promessas.
Um relâmpago iluminou o quarto.
Os olhos da rainha Sylvia de Arustar se abriram no momento
em que Astrid ergueu a adaga sobre o coração dela.
O sorriso de Astrid foi costurado pelo retumbar de um trovão.
E, com um golpe, acertou e arrancou o coração da rainha.
Enquanto Sylvia agonizava e sangrava, Astrid se deleitou com
seu coração, murmurando o encantamento que lhe daria a aparência
da rainha e o comando de todo o reino de Arustar.

◆◆◆

Vinte e um anos atrás

A guerra entre os erelins e os humanos já durava quatro anos.


Não foi difícil iniciá-la.
Os humanos sempre mantiveram uma paz fria em relação aos
erelins, sempre os temeram, sempre desconfiaram. Astrid apenas
manipulou esse medo, fazendo com que seus seguidores
espalhassem caos e terror, como um sinal de que os erelins estavam
quebrando os acordos de paz entre as raças.
Foi questão de tempo até a guerra entre os povos começar. Foi
questão de tempo até unir vários exércitos em nome de Arustar para
atacar e enfraquecer os erelins, ao mesmo tempo em que enviava
Nefastus e carniçais disfarçados para contaminar a fonte sagrada da
Cidadela Prateada.
Sim.
Quatro longos anos.
E, ainda assim, não importava quanto tempo passasse, as
cicatrizes em suas costas pulsavam como se ainda fossem capazes
de sentir o corte nas asas, o golpe que ceifara seu caminho até as
estrelas, que rompera a conexão bruta entre seu corpo e a magia.
Astrid ergueu a mão; um poder fraco crepitava entre seus
dedos.
Ela rosnou, encarando o reflexo no espelho; estava tão
habituada a usar a imagem da rainha Sylvia de Arustar que já havia
se esquecido de seu próprio rosto. E, quanto mais tempo passava
sustentando aquela ilusão, mais ela gastava a pouca magia que
ainda possuía. Nem mesmo a Salmísia seria suficiente.
Se não encontrasse logo uma solução para restaurar seu poder
e elevá-lo ao máximo, sua máscara cairia. Os líderes de seu povo a
encontrariam e a prenderiam outra vez. E ela não voltaria a ser uma
escrava ou uma prisioneira.
Contudo, estava ficando sem ideias.
O propósito da guerra criada não estava alcançando seus
objetivos.
Quase não havia mais mulheres erelins puras entre seu povo.
Aquilo era um detalhe para o qual não havia se preparado.
Durante o longo período de seu encarceramento, sua raça
havia se misturado aos humanos. Seus soldados só encontravam
mestiços. E as crianças que agora nasciam não detinham asas, já
que a guerra contaminara parte da luz sagrada da fonte da Cidadela
Prateada.
— Rainha Sylvia.
Em um gesto pouco afetado, ela olhou por cima do ombro,
assimilando a aproximação de um dos Nefastus.
— Pode usar meu verdadeiro nome. Não há ninguém por perto.
Ele se curvou outra vez, levando o punho fechado ao peito em
um gesto de respeito e reverência.
— Soberana Astrid.
— Conte-me as novidades.
— Acabo de retornar da Cidadela Prateada. Os exércitos da
Cinco Alianças estão cada vez mais próximos da fronteira. A
resistência do povo erelin está por um fio.
— Eles ainda estão de pé porque a fonte do poder com as
estrelas ainda emite luz, mesmo fraca e contaminada. Se a fonte for
destruída de uma vez por todas, todo o poder dos erelins será
extinguido. — Astrid ergueu a mão e fitou os dedos longos. — Mas
isto é algo que poderia me afetar também. Não posso dar este golpe
enquanto não tiver uma garantia de que encontrarei outra fonte de
poder.
— É por isso que vim até aqui, soberana. Há uma chance de
você obter poder e destruir a magia e a ligação das estrelas do seu
povo. — Um tom eufórico serpenteava pela voz do Nefastus. — Eu a
vi.
— Quem?
— Sua irmã. Iohanna. Ela está com uma criança. Um bebê
recém-nascido.
Astrid se voltou para o espião, arqueando as sobrancelhas.
— Minha irmã nunca foi capaz de gerar filhos, nem mesmo na
época em que éramos escravas parideiras. Como isso é possível?
— Há um detalhe mais intrigante do que isso.
— Mais intrigante do que a forma como minha irmã gerou esse
bebê?
O Nefastus anuiu.
— Não é um bebê erelin. É uma criança najma. Dá para sentir
e cheirar seu poder de longe.
Os lábios de Astrid se curvaram em um sorriso arisco, insano.
Aquelas palavras a levaram para a noite de seu
encarceramento, para a tempestade violenta que ainda fervia em seu
sangue, para a promessa da vingança acorrentada no cárcere de um
olhar.
— Uma criança najma vivendo em nossas terras? Isso muda
tudo. Esqueçam as erelins puras. Convoquem os exércitos e
organizem uma invasão à Cidadela Prateada. Hoje, a cidade erelin
cairá. — Por um momento, sua magia crepitou, fazendo os fios falsos
e claros do cabelo reluzirem em seu tom prata original. — E tragam
minha armadura. Quero ver este bebê com meus próprios olhos.
53
Feitiço sombrio

ELE NÃO pararia enquanto não a recuperasse.


Voaria até os confins da terra.
E, quando atingisse a exaustação, voaria ainda mais.
Contou à Iohanna sobre o feiticeiro de Rovina, sobre a
possibilidade de invocá-lo para que fossem levados mais rápido até
Maressa.
— Astrid fareja magia como um abutre fareja carniça. Se ela
captar a magia do feiticeiro, poderá desaparecer com a princesa.
Com a minha filha. Não podemos correr esse risco.
A contragosto, Ikaris concordou com ela.
Então, eles deixaram as montanhas e voaram.
Não conversaram, não questionaram, não trocaram mais
nenhum olhar enquanto o caminho desenhado pelas estrelas os
levava para as ruínas da Cidadela Prateada.
Ikaris não perdeu tempo perguntando como Maressa era filha
de Iohanna e como fora levada por Astrid. Tinha entendido que
Iohanna passara os últimos vinte e um anos achando que sua filha
havia sido morta durante a queda da Cidadela, e aquilo alimentou
sua raiva contra Arustar e contra a rainha — que ela nunca suspeitou
que era Astrid disfarçada.
Também não perguntou como Maressa era uma najma, já que
tinha nascido de uma erelin pura e estéril.
Ele não gastou um fôlego a mais do que deveria.
Voando ao lado de Iohanna, sobre mares violentos e escuros,
passando por florestas ancestrais e silenciosas, entrecortadas por
montanhas congeladas, Ikaris não parou por um segundo sequer.
Porque todos os seus pensamentos estavam direcionados à
Maressa.
E, lançando sua alma ao vento, seu coração ao céu, abrindo as
asas que sua princesa najma havia lhe dado, Ikaris entregou o
pedido às estrelas.
Espere por mim. Estou indo até você.

◆◆◆

O vento ciciou pelos cabelos de Maressa, como se a beijasse e


sussurrasse um segredo em seus ouvidos.
“Espere por mim. Estou indo até você”.
Quase podia jurar que escutava a voz de Ikaris, carregada
naquele sopro, levado até o âmago do seu coração.
Não sabia se aquilo era uma ilusão, um delírio causado pelo
mesmo encantamento que fazia com que seus olhos enxergassem a
transformação da mulher à sua frente.
Da mulher que chamava de mãe.
Da mulher que amava com todas as suas forças.
Porque, bem diante de seus olhos, os cabelos claros da rainha
Sylvia se transformavam em fios prateados, que se harmonizavam à
frieza perturbadora das íris.
Astrid.
Se Maressa não estivesse de joelhos, teria caído no chão.
— O que você fez com a minha mãe?
— Com aquela que você achava que era sua mãe? — Um
sibilar, feito uma serpente que deslizava pela terra, saiu da boca
dela. — A rainha Sylvia de Arustar foi morta por minhas mãos
quando você ainda nem existia. Quem te criou sob o nome dela fui
eu. Fingi para o rei, com um pequeno encantamento, que estava
grávida e, até a morte, ele acreditou que você era a princesa e
herdeira de Arustar.
Não.
Aquilo não podia ser verdade.
Fitou Astrid mais uma vez.
Um tremor se encolheu em torno dos seus ossos.
Porque tudo fez sentido.
Maressa não soube onde encontrou forças para fazer com que
sua voz saísse de sua garganta.
— Você sempre soube quem eu era... Você sempre soube
sobre os meus poderes... Sempre soube que eles estavam
bloqueados... E o tônico...
— O tônico nunca foi o bloqueador dos seus poderes ou o
causador da sua “doença misteriosa”. Quem sempre te deixou fraca
e frágil... — Um sorriso perverso subiu pelos lábios de Astrid; ela
esticou a mão, tocando e erguendo o queixo de Maressa. — Fui eu.
Se alguém a tivesse empurrado de um penhasco, Maressa
tinha certeza de que a queda não seria impactante quanto o golpe
carregado por aquelas palavras.
Atônita, fitou Astrid.
Com os olhos lacrimejados, tentou vislumbrar a erelin terrível
das histórias contadas por Darlan.
Mas tudo o que enxergava era a mulher que a tinha criado por
vinte e um anos. A mulher a quem chamara de mãe desde que
aprendera a falar.
E aquilo era o mais agonizante de tudo.
— Cada vez que eu penteava seus cabelos, cada vez que eu
fazia um carinho em seu rosto, cada vez que eu beijava sua
bochecha... Meu feitiço absorvia a magia do seu sangue.
Uma lágrima trêmula deslizou pelo rosto de Maressa.
— Minha doença...
— Você nunca foi doente, filhinha. — A palavra foi dita com
uma ironia tão ácida que Maressa teve a sensação de que mil
espadas eram enfiadas em seu coração. — Suas tonturas eram
causadas por mim, toda vez que eu tomava um pouco do seu poder
para mim. E o tônico apenas restaurava sua energia, para que eu
pudesse absorvê-la depois outra vez.
O mundo pulsou e se encolheu ao redor dela.
Era por isso que seu poder tinha aflorado fortemente naquelas
últimas semanas. Era por isso que a fraqueza tinha desaparecido.
Era por isso que não precisara mais beber o tônico.
Porque Astrid era o bloqueio da sua magia.
Porque Astrid era como um vampiro dos livros de terror que lia.
E, longe dela, longe da mulher que se dizia ser sua mãe, sua
magia parou de ser roubada, cresceu e se libertou.
Maressa entreabriu os lábios, sugando o ar com força.
Como alguém podia ser tão...
Tão...
Cruel?
— Você me condenou por vinte e um anos. Me encarcerou no
palácio como um pássaro enjaulado. Me fez acreditar que minha vida
estava por um fio. Me impediu de viver plenamente. De aprender, de
correr, de conhecer outros reinos, de conviver com outras pessoas.
Me impediu... — Maressa ergueu uma das mãos; as lágrimas
grossas borravam sua visão. — De ser quem eu nasci para ser.
Não havia uma linha de remorso no rosto de Astrid.
— Sem dramas, filhinha... Eu fui escrava por décadas. E fiquei
aprisionada em uma caixa de ferro por setenta e cinco anos. Você
cresceu em um palácio, cercada de luxos.
Seu coração vacilou dentro do peito.
Sim, ela tinha crescido dentro de um castelo, com guardas,
riquezas e criados à sua disposição.
Mas com um vazio inexplicável a perseguindo.
Sempre esperando, sonhando, desejando...
Seu olhar se elevou para o céu.
...Ansiando pelas estrelas.
— Você não tinha esse direito.
— Ainda não entendeu? — Astrid deu um passo para mais
perto dela, o vestido farfalhando conforme se movia. — Ninguém
pode me dizer o que devo ou não devo fazer. E esta na hora de
terminarmos o que deveria ter acontecido na sua festa de
aniversário, filhinha.
Ela odiou aquela palavra.
Odiou Astrid com todas as suas forças.
Em um movimento rápido, Maressa se ergueu e saltou,
deixando que a luz das estrelas a banhasse, invocando sua magia
para atacar a erelin à sua frente.
Ágil como uma víbora, Astrid se moveu e a agarrou pelo
pescoço com força o bastante para deixá-la sem ar.
— Sempre rebelde. Sempre desobediente.
O lábio de Maressa se retraiu dos dentes. Mesmo naqueles
poucos instantes, sob a sensação do toque frio e sufocante, Maressa
sentiu a magia de seu sangue sendo sugada pelo encantamento
sombrio de Astrid.
A sensação foi pior do que qualquer tontura que há havia
sentido.
Foi como se o mundo estivesse prestes a se dissolver.
Foi como se as estrelas se apagassem lentamente.
Ela experimentou um frio inóspito, uma fraqueza que poderia
ter esfarelado seus ossos, uma corrente que puxava sua alma e a
debilitava.
As pálpebras de Maressa estremeceram.
A mão de Astrid se afrouxou ao redor do pescoço dela, mas
sem deixar de segurá-la por completo; Maressa inspirou
profundamente, procurando dentro de si pela força e pela magia das
estrelas. Mas o pouco que tinha conseguido restaurar desde que fora
levada das montanhas tinha sido absorvido por Astrid.
— Não pense que isso acabará rápido. Quero tudo o que há
em você. E quero todos como você — ela ronronou, seu hálito
acariciando a bochecha esquerda de Maressa. — Era para isso ter
acontecido durante seu baile de aniversário. Mas a presença do
erelin alertou Hakon. E toda a confusão que se seguiu depois que o
Suspiro de Áster reagiu à sua presença, à presença de uma najma,
fez com que Hakon agisse instintivamente e me levasse para longe,
temendo que o erelin estivesse ali para me matar.
Ikaris.
Será que Ikaris imaginava que, ao ser enviado em uma missão
para matá-la e ter desistido de tudo durante o baile, havia salvado-a
de um destino ainda pior?
— Eu não esperava que a pedra fosse cair das minhas mãos
durante a fuga. E ficar longe de você, minha querida criança najma,
fez com que meus poderes diminuíssem. Mas agora nos
encontramos de novo. E vamos terminar o que começamos no baile.
Puxando o ar, Maressa buscou pelos olhos ásperos de Astrid.
O que você quer dizer com isso?!
Como se lesse seus pensamentos, a erelin sorriu.
— Você logo descobrirá. — Sem soltá-la, Astrid fitou o
Nefastus. — A pedra, Hakon.
Maressa piscou.
Viu o Nefastus trazer a pedra que um dia havia sido parte da
fonte erelin e colocá-la aos pés de Astrid.
— Maressa, querida, você deve estar se perguntando porque
nunca a devorei como fiz com minhas irmãs. Porque deixei vivê-la
por tanto tempo e a criei como minha filha.
— Porque você é um monstro.
— Resposta errada. Você viveu até agora porque eu não tinha
tudo o que precisava para alcançar as estrelas. — Os olhos de Astrid
foram até a pedra angular. — Durante vinte e um anos, busquei por
qualquer resquício da antiga fonte de poder da Cidadela Erelin. E só
a encontrei recentemente, durante uma das expedições de
escavação financiadas pelo reino de Arustar. Com ela e com seu
poder, agora tudo é possível. Só preciso que você faça sua parte.
Você me entregará os najmas e os erelins.
Maressa bateu os dentes; a mão de Astrid continuava ao redor
do seu pescoço.
— Não farei nada para te ajudar.
— Sim, você o fará. E nem se dará conta disso.
Asas fantasmagóricas, feita de sombras e fumaça, cresceram
nas costas de Astrid.
Maressa não conseguiu escapar quando foi envolvida por elas,
tragada para longe, para a direção de uma voz baixa e ecoante.
Filhinha. Filhinha.
54
Noite especial

— FILHINHA. FILHINHA. Acorde, ou você vai se atrasar para


o baile do seu aniversário.
Sonolenta, Maressa abriu os olhos. Havia adormecido na
cadeira do seu quarto, com o livro Castelos e Sonhos aberto em seu
colo. Ergueu o rosto, vendo sua mãe, a rainha Sylvia, parada em pé
em frente a ela.
Ela entreabriu os lábios, ligeiramente confusa.
— O que está acontecendo?
— Seu baile, filhinha. Os pretendentes já estão te esperando.
Ainda bem que Nina já te deixou pronta.
Maressa colocou o livro na mesinha ao lado, ficando em pé. As
saias longas e volumosas do seu vestido vermelho farfalharam
quando ela andou e se colocou diante do espelho. Linhas encheram
sua testa.
— Meu vestido não era branco, cheio de pedras brilhantes?
— Sempre foi vermelho. — A rainha se aproximou, tocando a
testa dela. — Você não está febril. Está se sentindo bem, filhinha?
Maressa assentiu, olhando ao redor do quarto. Por que tinha a
sensação de que algo ali não estava encaixado da forma correta?
— Venha. Você não pode se atrasar.
Sua mãe a pegou pela mão.
O toque espalhou um arrepio por toda a sua pele.
Foi tão gelado, tão afiado, como uma pontada no fundo da
cabeça, que ela arfou alto.
— Maressa, onde estão seus modos? Erga o queixo e caminhe
com elegância ao meu lado.
Confusa, Maressa moveu a cabeça. Estava na entrada do
salão de baile, de mãos dadas com a mãe. Era o momento de sua
chegada triunfal. A música que tocava ali era para ela. Somente para
ela.
A rainha sorriu e apertou sua mão com mais força.
— Gostou?
— Muito, mãe.
A alegria no salão era contagiante.
Aos poucos, a inquietação dela foi se esvanecendo.
Aquela era uma noite especial. Uma noite que seria lembrada
por todos em Arustar, principalmente por ela — era a noite em que
seu futuro marido seria escolhido.
Enquanto atravessava o salão de mãos dadas com a rainha,
Maressa deixou os olhos correrem por entre os convidados que as
reverenciavam.
Príncipes, duques, cavaleiros e condes de vários reinos se
faziam presentes. Pareciam animados depois das semanas de
torneios e competições, tão ansiosos quanto ela para saber quem o
Conselho Real escolheria para desposá-la.
Ela inspirou fundo, olhando com mais atenção para todos os
homens do salão, sentindo algo estranho no peito, um vazio que
fazia as batidas do seu coração falharem.
Estava faltando algo...
Alguém...
Olhos cinzentos. Olhos da cor da tempestade.
Seus passos foram se reduzindo aos poucos.
Onde ele está?
Outra vez, sentiu uma fisgada na cabeça.
Ele quem? Em quem estou pensando?
— Maressa, o que você está fazendo? — a rainha sussurrou,
mantendo o semblante impassível. — Continue andando comigo.
Seu pai está ali, te esperando para te tirar para a primeira dança.
Os lábios dela se contraíram.
Meu pai?
Seu pai não tinha morrido durante a guerra erelin, quando ela
era apenas um bebê?
Maressa piscou demoradamente, tocando a própria bochecha.
Céus, no que estou pensando? Acho que fiquei nervosa demais
com o baile.
Seus olhos se voltaram para a frente. O rei de Arustar trajava
roupas finas e belas, que acentuavam seus traços e a cor
acastanhada dos cabelos.
Uma emoção única pulsou pelo coração de Maressa.
— Minha filha, minha princesa — ele a cumprimentou,
estendendo a mão para ela.
— Meu pai. — Maressa aceitou o convite, e deixou que o rei a
levasse para o meio do salão.
A orquestra iniciou uma valsa tradicional de Arustar.
O rei a tomou nos braços, girando-a com elegância, os cabelos
dela brilhando ao beijo das centenas de velas que decoravam o
espaço.
— Você cresceu. Tornou-se uma linda mulher.
Maressa lhe deu um sorriso gentil, deixando o pai conduzi-la
pela valsa, ao mesmo tempo que experimentava uma sensação
estranha. Por que não conseguia se lembrar de sua infância ao lado
do pai?
Ao final da valsa, seu pai a guiou de volta para junto da rainha.
Em nenhum momento, ele soltou sua mão. E a rainha tomou sua
outra mão entre os dedos frios e longos dela.
— Você sabe que hoje é uma noite muito importante, não
sabe?
— Sim, mamãe. É a noite em que meu marido será escolhido.
— Tem mais uma coisa. Seu pai e eu queremos te dar um
presente. Queremos te dar sua cura, sua liberdade. Você poderá ser
livre. Poderá viajar para todos os reinos. Nunca mais sentirá tontura.
Os olhos de Maressa dobraram de tamanho.
— Mas isto é possível?
— É claro que é. Há algo muito especial em você, filhinha.
Ela arfou, maravilhada.
— O que eu tenho que fazer?
— É muito simples. — A rainha depositou o fragmento de uma
pedra em cima do altar. — Coloque suas mãos aqui. E faça o que eu
mandar.
Afoita com a ideia da liberdade, da cura, Maressa assentiu.
— Sim, mamãe.
Uma corrente de vento passou por ela, erguendo seus cabelos,
estremecendo as chamas das velas.
Maressa virou o rosto.
O coração acelerou.
Uma grande raposa, de pelos beijados pelo luar, abriu caminho
no meio dos convidados. Olhos pretos e dourados a encararam
firmemente.
O vento passou por ela, feito uma canção perdida no tempo.
E nas estrelas ficará...
...Até que para a terra...
...Possa voltar...
De súbito, Maressa soltou as mãos do rei e da rainha e se
virou, seguindo o animal pelo salão.
— Maressa. Maressa. Maressa.
Era sua mãe.
Ela quase olhou para trás e voltou para terminar de fazer o que
seus pais tinham lhe pedido.
Mas os olhos da raposa eram ainda mais magnéticos.
Maressa deu um passo para a frente.
E mais um. E mais um.
Até que vários pontinhos cintilantes começaram a brilhar diante
de seus olhos.
Quando viu, estava no meio de um jardim.
De um jardim de estrelas.
55
Jardim de estrelas
Vinte e um anos atrás

A GUERRA entre os erelins e os humanos já durava quatro anos.


Iohanna se afastou do acampamento do exército erelin e das
linhas de batalha. Precisava de um momento para si mesma. E,
naquela noite, os confrontos estavam distantes, quase inexistentes.
Mas ela sabia que era só uma questão de tempo até tudo
recomeçar.
Ninguém sabia ao certo como a guerra tinha começado. Os
humanos alegavam que os erelins haviam rompido os acordos de
paz. Não houvera tempo para negociação ou compreensão;
soldados vieram de todos os reinos, e logo o sangue começou a ser
derramado.
Iohanna via seu povo morrendo dia após dia.
E o que mais a assustava era a contaminação da fonte sagrada
que ligava a magia dos erelins às estrelas. Como os humanos
haviam conseguido fazer aquilo? A fonte ainda estava de pé, mas
parte de sua luz fora manchada. As crianças erelins agora nasciam
sem asas. E o poder do seu povo falhava mais a cada dia.
Caminhando sem rumo, Iohanna parou no meio de um campo
amplo e aberto. Acima de sua cabeça, as estrelas forravam o céu.
Não sabia mais o que fazer.
Não sabia como poderia cuidar de seu povo.
Pisando na relva macia, Iohanna inclinou a cabeça para trás e
fechou os olhos.
“Por favor”, implorou ao céu, às estrelas, ao pulsar retumbante
do seu coração. “Me ajudem a proteger o meu povo. Me deem forças
para lutar por aqueles que amo”
O vento soprou, manso e perfumado, ciciando por entre os fios
dourados dos seus cabelos, como um bálsamo sobre seus temores.
Ela sentiu uma gota de orvalho acariciando seu rosto, um suspiro
trêmulo, terno e protetor.
Com o coração mais leve, ela abriu os olhos.
Iohanna arfou.
O campo ao seu redor havia se transformado em um jardim
refulgente.
Era como se as estrelas houvessem descido do céu.
Era como se ela estivesse no meio de um jardim de estrelas.
“O que está acontecendo?”
As estrelas refletiam mil cores ao luar, emoldurando o campo
com seu cintilar, compondo um jardim com sua luz e seu brilho.
Iohanna girou, fascinada.
E então, por entre as árvores e as estrelas, viu um animal
ganhando forma. Seus pelos, beijados pelo luar, eram uma harmonia
de luz e beleza.
A primeira coisa em que ela reparou foram seus olhos.
Pretos e dourados.
Olhos que ela já tinha visto muitas vezes ao longo de sua vida.
Os mesmos olhos que haviam lhe presenteado com um Suspiro
de Áster e permitido que ela salvasse suas irmãs.
Conforme o animal se aproximava, sua forma ia mudando outra
vez; ele foi ficando mais alto, mais forte, até se materializar como um
homem diante dela. Ele vestia uma túnica branca, tinha traços fortes
e belos.
Mas os olhos ainda eram os mesmos.
— Eu sou...
— Eu sei quem você é — Iohanna murmurou, maravilhada e
perplexa. — Você tem cuidado de mim minha vida inteira. Senti sua
presença o tempo inteiro.
— Como?
— Sua sombra. Seus olhos. — Ela virou a cabeça, observando-
o se mover com elegância por entre as estrelas. — Desde que
minhas asas ainda eram pequenas, e ao longo dos anos seguintes,
nos momentos mais sombrios da minha escravidão até o momento
mais glorioso da minha coroação... Não importa aonde, sua sombra
e seus olhos sempre estão junto a mim.
Os lábios dele se arquearam em um sorriso secreto.
O coração de Iohanna deu um pulo no peito.
Ele era ainda mais belo ali, revelado em toda a sua totalidade.
— Você é um najma?
Ele assentiu. A luz irradiada pelas estrelas fazia com que seus
cabelos brilhassem como se fossem fios tecidos por raios de luar.
— E por que só se mostrou agora para mim?
Ele esticou a mão, os dedos brincando com as estrelas
dançantes.
— De uma maneira inexplicável, de uma forma inconfessável,
com a ambivalência da minha alma e a fatalidade do destino, me vi
ansiando por seu povo, contemplando, desejando lhes dar muito
mais do que uma gota de luz e lágrima.
— E você me deu. Você me salvou. A mim. Às minhas irmãs.
A mão dele se encaixou no rosto dela; para surpresa de
Iohanna, seu toque era cálido, suave como um raio de luar.
Com um movimento sutil, o najma levou a outra mão para o
próprio peito. Sua túnica esvoaçava, revelando três pedras brilhantes
cravadas na pele. Havia um quarto espaço remanescente.
Iohanna piscou. Eram Suspiros de Áster. Lendários, raros e
poderosos.
— O Suspiro de Áster que você me deu... Era uma parte de
você?
— Basta que me peça. Basta que deseje... E eu te darei o que
quiser.
— Meu coração sempre ansiou e esperou por você, mesmo
quando minha mente ainda não sabia. Mas minha alma sempre te
sentiu. Em cada momento da minha vida. Nos dias brilhantes e nas
noites longas. Eu te quero, se você me quiser também.

◆◆◆
Todas as noites, ela se encontrava com o najma no jardim de
estrelas. Nos braços dele, descobriu um amor que jamais imaginou
que sentiria. E, foi em uma noite estrelada, deitada sobre a campina,
que sentiu a mão dele descer para seu ventre.
— Você está carregando uma criança.
Iohanna piscou e balançou a cabeça.
— Não posso ter filhos. Fui escrava parideira por décadas, e
mesmo com meu corpo tomado e usado diversas vezes por meus
captores, jamais fui capaz de conceber uma criança erelin. Nem
mesmo depois que fui libertada consegui ter filhos. Este é um desejo
gritante do meu coração que jamais será realizado.
— E, ainda assim, ela está crescendo dentro de você.
Erguendo o corpo, com os cabelos dourados caindo sobre os
ombros nus, Iohanna ofegou baixo. Os olhos do najma não mentiam.
Não para ela. Nunca para ela.
— Sempre ansiei por um filho. — As mãos dela pousaram
sobre a barriga. — Pelas estrelas, posso senti-la. Apesar de todos os
horrores que vi e vivi, ainda posso ser capaz de amá-la com todo
meu coração.
— Ela não será como você. Mesmo que nasça de você, o
sangue que ela carregará será mais antigo e ancestral do que aquele
que corre nas veias do seu povo.
— Ela estará aqui. Como um raio de luz na mais densa
escuridão. — Iohanna olhou para baixo da colina, para a cidade que
ardia dia e noite. — Só temo pela guerra. Por ela nascer em meio ao
caos.
O najma levou a mão ao próprio peito, retirando os últimos três
Suspiros de Áster cravados na pele e os entregou para Iohanna.
— Por quê?
— Você precisará deles. O tempo, a morte, a vida... São arcos
entrelaçados para alguém como eu. Posso ver o que já se foi e o que
ainda virá. O destino não é um caminho reto, mas suas nuances
serpenteiam ao redor de similaridades. São imutáveis.
A mão de Iohanna se fechou ao redor dos três Suspiros de
Áster. Ela buscou pelos olhos dele, a mistura preta e dourada que
havia visto tantas vezes ao longo dos anos.
— Você também estará aqui? Você também ficará? Comigo e
com nossa filha?
— Sim e não.
— Como assim?
— Sem os Suspiros de Áster, não poderei caminhar nesta
forma que estou agora. Não terei magia pura. Mas estarei aqui.
Vigiando-a, protegendo-a. Você e aos seus.
Seus olhos aumentaram. Podia sentir as lágrimas surgindo.
— Então pegue os Suspiros de volta.
— Você precisará deles mais do que eu. A guerra ficará pior.
As pálpebras de Iohanna estremeceram, as lágrimas
deslizaram.
— Por que eu? Por que abrir mão de tudo por mim?
Os lábios dele roçaram nos dela.
— Porque eu sempre estive entre as estrelas. Mas elas só
brilharam de verdade quando meus olhos encontraram os seus.
Quando meu coração encontrou sua verdadeira razão para bater.
Seu propósito. Seu desejo.
E, quando ele a beijou, Iohanna fechou os olhos, deixando que
as estrelas queimassem e ardessem ao seu redor.

◆◆◆

Meses depois

— Os soldados de Arustar derrubaram as últimas barreiras,


minha rainha. A Cidadela Prateada não resistirá muito mais. Venha,
rainha! Temos que protegê-la!
Vestindo sua armadura, com a filha pequena nos braços,
Iohanna se permitiu ser escoltada pelos soldados erelins. Lutaria ao
lado deles, se fosse preciso. Mas, em primeiro lugar, protegeria sua
menininha de olhos com de safira e cabelos dourados.
— E a fonte sagrada? — Iohanna perguntou, apertando a flha
contra o peito.
— Toda a luz está quase que completamente comprometida,
minha rainha. Nossas asas e nossas magias não respondem mais ao
chamado dos céus.
— Mesmo assim, vamos até lá. Há uma passagem
subterrânea. Podemos tirar as mulheres e as crianças da cidade.
Temos chance de levar os livros conosco?
— Os batedores informaram que a Grande Biblioteca foi
saqueada pelos soldados de Arustar e está em chamas. Os
guardiões Ashera estão mortos. Parece que o filho deles conseguiu
escapar, mas ninguém tem certeza de nada.
Ouvir aquilo causou uma compressão terrível em seu coração.
Ela continuou correndo, cercada por seus soldados, segurando
a filha em um braço e a espada no outro no momento em que os
soldados de Arustar começaram a aparecer em seu caminho.
Iohanna não foi capaz de impedir o ataque. A força dos
inimigos caiu impiedosa sobre os erelins e ela; foi brutal, selvagem,
poderoso demais para meros humanos.
O corpo de Iohanna foi atirado para longe; ela rolou no chão,
usando os braços e as asas para proteger a filha.
À sua volta, os erelins caíam e morriam.
Ferida, ofegando, ela viu quando os soldados de Arustar
abriram caminho para aquele que parecia liderá-los.
A primeira coisa que viu foi uma armadura de rubi.
Tão vermelha e tão brilhante quanto o escarlate da morte.
Iohanna moveu a mão. Por conta da luz contaminada, sua
magia estava fraca.
Antes que pudesse revidar, sua filha foi arrancada de seus
braços.
— Devolva! — Iohanna arfou, esticando a mão ensanguentada
para cima, tomada por um desespero inominável. — Devolva!
O inimigo com o rosto coberto pelo elmo se aproximou.
— Devolva minha filha.
A espada inimiga desceu sobre Iohanna.
Sentiu o momento em que a lâmina atravessou seu corpo, sua
carne, seus ossos.
Ela foi golpeada de novo e de novo, até ser chutada e jogada
para longe.
Com a vista turvada, viu a pessoa que vestia a armadura de
rubi e portava o símbolo de Arustar se aproximar da fonte sagrada,
carregando sua filha nos braços.
Não...
Não deixaria que o exército de Arustar tomasse a fonte
sagrada. Não permitiria que eles desvendassem o mistério da luz
das estrelas. Não aceitaria que eles usassem o sangue de sua filha
para manipular qualquer magia.
Arfando e agonizando de dor, ela se arrastou pelo chão.
Viu o instante em que uma espada foi brandida.
Ouviu o choro agonizado do bebê.
Entre uma falha e outra de sua consciência, ela vislumbrou os
olhos pretos e dourados de seu protetor e amante.
E entendeu o que teria que fazer.
Com um grito de ódio, com a alma arrancada do peito, Iohanna
atirou um dos Suspiro de Áster que sempre carregava consigo no
centro da fonte sagrada.
Naqueles segundos que duraram o tempo de uma batida de
coração, ela teve impressão de ouvir uma voz, uma canção, uma
promessa de amor antes dos olhos pretos e dourados
desapareceram.

“E nas estrelas ficará...


...Até que para a terra...
...Possa voltar...”

E tudo se transformou em um borrão caótico e confuso quando


luz e pedras explodiram para todos os lados.

◆◆◆

— Levem a rainha!
— Ela está ferida demais!
— Temos que salvá-la!
Atordoada, Iohanna entreabriu os olhos. As vozes ao seu
entorno eram confusas, distorcidas.
— A fonte foi completamente destruída.
— Não há uma pedra, um só fragmento dela em canto algum.
— Quem fez isso? Os soldados de Arustar?
— Toda nossa magia se foi. A Cidadela Prateada caiu. É
questão de tempo até nossa rendição. Temos que proteger nossa
rainha.
— Onde está... — Iohanna arfou baixo. — Onde está... Minha
filha...
Alguém segurava um manto nos braços. Um manto cheio de
sangue. Aos pés do erelin, havia pequenos ossinhos partidos.
— Sinto muito, minha rainha.
Lágrimas agudas escorreram pelos olhos de Iohanna.
Ao longe, sentia a presença do najma para quem entregara o
coração. Sentia a dor que ele também experimentava.
Iohanna comprimiu os olhos enquanto a dor e a inconsciência
voltavam para reivindicá-la outra vez.
Não importava quanto tempo levasse. Não importava o que
precisasse fazer.
O Reino de Arustar pagaria por ter derramado o sangue de sua
filha.
56
Lágrimas de prata

CERCADA POR milhares de estrelas, Maressa não percebeu


quando todos os convidados desapareceram e a luz das velas se
esvaneceu.
Ela caminhou pelo jardim, encantada com o brilho puro e
ancestral, seguindo a trilha que a raposa gigante fazia à sua frente.
Raio de Luar.
Sim, aquele era o nome dele.
Como tinha se esquecido?
Aos poucos, o andar do animal se reduziu. Entre as estrelas,
flutuando acima do chão, um véu caía do alto.
Raio de Luar se moveu, indo para trás do véu.
Maressa parou, fitando o tecido translúcido que esvoaçava no
meio do jardim. Havia alguém atrás dele, além de Raio de Luar. Mas
a luz das estrelas impedia que ela enxergasse a pessoa que estava
do outro lado. Podia ver apenas o vislumbre de uma silhueta
feminina, de longos cabelos caindo ao redor do corpo.
O véu... O véu que comecei a ver em meus sonhos...
Os dedos de Maressa se ergueram timidamente no ar.
A mulher atrás do véu... Sua voz... Seu chamado...
Quem estava ali atrás? Quem a chamava?
Se ela continuasse andando, se ela continuasse seguindo por
aquela trilha invisível desenhada pelas batidas do seu coração,
talvez...
— Filhinha. Filhinha.
O corpo de Maressa balançou.
Ela olhou para trás.
De braços dados com o rei de Arustar, a rainha Sylvia estendeu
a mão para ela.
— Venha, filhinha. Venha.
Ela deu um passo hesitante para a frente, afastando-se do
jardim de estrelas e do véu translúcido.
— Isso. Venha, filhinha. Seu lugar é aqui comigo. Com seu pai.
“Seu lugar é onde você pode sentir, voar e enxergar as
estrelas, e não nesta gaiola de ilusão onde viveu por vinte e um
anos”.
Maressa parou de andar e piscou, olhando para os lados,
buscando por aquela voz carregada pelo vento.
“Você, eu, nós... Não somos perfeitos, mas o que temos é real”.
— Ikaris? — ela murmurou, dando um passo hesitante para o
lado.
“As estrelas me levaram até você”.
Maressa girou nos calcanhares, o vestido se abrindo ao seu
redor, as estrelas cintilantes flutuando como se fossem um milhão de
vagalumes.
“Para que eu pudesse te trazer de volta para a casa. Para nós.
Para sua verdadeira família”.
— Maressa — a rainha sibilou, ainda com a mão estendida. —
Volte. Seu pai, seu reino e eu precisamos de você”.
“Não dê ouvidos a ela. Nós precisamos que você lute conosco.
Que você seja quem você verdadeiramente é”.
Maressa encarou a rainha e deu um passo para trás.
Lágrimas deslizaram por seu rosto.
Lágrimas de prata que pingavam no chão e faziam com que as
estrelas infinitas brilhassem ainda mais.
“Liberte-se, Maressa”.
Ela inclinou a cabeça, fitando o teto do salão.
Esticou a mão para o alto; as estrelas formaram uma espiral
dançante ao redor dos seus dedos e subiram feito uma flecha
disparada, atingindo o teto majestoso.
A estrutura estremeceu, explodiu; revelando o céu refulgente.
Os olhos de Maressa se arregalaram.
As estrelas que a circundavam foram beijadas pelas estrelas
que pontilhavam o cobalto infinito do céu.
“Liberte-se, Maressa”.
— Filhinha! Filhinha!
Mas a voz da rainha Sylvia ficava cada vez mais distante,
transformando-se no eco da voz de Astrid.
“Liberte-se de uma vez por todas”.
Como se correntes tivessem se partido dentro dela, Maressa se
virou bruscamente, voltando para o coração do jardim de estrelas,
correndo na direção do véu translúcido que balançava suavemente.
A mulher ainda estava atrás do véu.
E agora havia um homem ali com ela.
Maressa arfou, deixando as lágrimas deslizarem por seu rosto
sem parar, tilintando no chão, alimentando as estrelas, a luz, a magia
que dançava e cantava em seu sangue.
Ela ergueu a mão, tocando tecido fino e translúcido.
O véu caiu.
Atrás dele, estavam Iohanna e a forma humana de Raio de
Luar.
As mãos de ambos se estenderam em sua direção.
“Estamos aqui, Maressa. Sempre estivemos aqui”.
— Maressa! — Astrid urrou. — Me obedeça! Se você não
voltar, jamais será livre!
“Nossa filha. Nossa estrela”.
Ofegando, ela olhou para as mãos de Iohanna e Raio de Luar;
então virou a cabeça, fitando Astrid do outro lado do salão.
— Não. Estou indo para a casa. Para minha verdadeira casa.
Para onde verdadeiramente serei livre.
O grito de ódio de Astrid ecoou por todos os lados,
estremecendo as estrelas, erguendo rajadas furiosas de vento.
Com os cabelos flutuando ao redor do rosto, o vento cortando
seu corpo, Maressa se virou e segurou as mãos de Iohanna e Raio
de Luar.
E nas estrelas ficará...
...Até que para a terra...
...Possa voltar...
Suas últimas lágrimas de prata caíram.
E o jardim de estrelas explodiu em luz e calor.
57
Metamorfose

IKARIS VOAVA ao lado de Iohanna, tentando furar o bloqueio


do Nefastus, gritando e falando com Maressa, que estava presa
entre as asas de Astrid, envolvida em uma ilusão enquanto a erelin
drenava seus poderes.
“Seu lugar é onde você pode sentir, voar e enxergar as
estrelas, e não nesta gaiola de ilusão onde viveu por vinte e um
anos”.
— Ela usará a magia najma de Maressa para restaurar a fonte
sagrada através do fragmento da pedra — Iohanna falou, brandindo
a espada. — Se Maressa fizer isso, Astrid devorará todo o poder
contido na fonte, todo o poder najma das estrelas... E ficará
invencível.
— Ela ia fazer isso no baile do castelo, diante de todos.
— Astrid sempre amou um espetáculo. Sempre amou exibir seu
poder. Para ser ainda mais temida.
Ikaris rosnou, a espada se chocando à espada do Nefastus.
“Não dê ouvidos a ela. Nós precisamos que você lute conosco.
Que você seja quem você verdadeiramente é”.
Aquilo era algo que ele não permitiria.
Sem saber, já havia impedido Astrid uma vez, na noite do baile
de aniversário de Maressa.
E agora a impediria de novo.
— Liberte-se, Maressa!
Sua voz ecoava pelas ruínas, sendo direcionada para o casulo
sombrio e para a mulher que amava.
— Liberte-se de uma vez por todas.
Foi então que algo aconteceu.
Ikaris sentiu o momento em que a terra e o céu estremeceram,
o momento em que toda a Cidadela Prateada se curvou para aquele
tremeluzir das estrelas e da luz.
Escutou o grito de Astrid.
E, do casulo de sombras e fumaça formado pelas asas da
erelin, Maressa irrompeu.
58
Libertação

POR ENTRE as sombras, sua luz fulgurou como uma flecha


voraz e certeira, dissipando a escuridão.
Com um arquejo de libertação, Maressa se soltou da prisão
sombria.
E se ergueu para as estrelas.
Asas douradas e flamejantes se abriram em suas costas.
A onda de poder lançou Astrid para trás.
— Não. — A erelin arfou. — Não é possível.
Luz das estrelas corria por suas veias, renovando sua magia,
seu poder, sua força.
Seus olhos colidiram com os olhos de Iohanna.
Eram azuis como duas pedras de safira.
Iguais ao seus.
Mãe.
Maressa ergueu a mão, materializando uma espada de luz
estelar.
E, junto de Iohanna, partiu para cima de Astrid.

◆◆◆

O Nefastus abriu as asas e saltou sobre Ikaris, as mandíbulas


revelando fileiras de dentes afiados.
Ikaris tomou um impulso e levantou voo; uma altura suficiente
apenas para evitar que sua garganta fosse atingida pelas presas da
criatura.
— Astrid irá derrotar vocês... E eu me banharei em seu sangue,
erelin. E nos ossos da sua princesa.
Ikaris driblou para a esquerda, deslizando a espada para cima
quando o Nefastus avançou. Mas a lâmina não o cortou como ele
planejava. A criatura rugiu, girando, e atacou novamente. Ele bateu
os dentes e ergueu a espada outra vez.
Arfava.
— Sim. Sim. Vamos devorar vocês.
A terra tremeu sob os pés de Ikaris.
Por um instante, ele achou que fosse um reflexo da luta de
Maressa e Iohanna contra Astrid.
Mas então percebeu que ele havia feito aquilo.
Arfando, Ikaris ergueu e fitou a própria mão.
As lágrimas de Maressa não tinham devolvido apenas suas
asas.
E se...?
Uma ideia ousada e arriscada tomou sua mente.
Nunca havia feito aquilo.
Mas tinha escutado inúmeras histórias de sua mãe, se
lembrava de vários ensinamentos do seu pai.
Sussurros tão distantes que agora ganhavam força em sua
memória.
Mergulhando para dentro do que havia em si, Ikaris buscou por
cada lembrança, por cada desejo, por cada gota de história e legado.
Fogo ardente correu por seu sangue.
“Um dia, você herdará cada livro desta biblioteca. Um dia,
conhecerá cada linha do legado erelin”.
Seus dedos crisparam.
O som causou um estranhamento no Nefastus.
Não havia nada além de uma promessa feroz e tempestuosa
nos olhos de Ikaris.
Com um movimento rápido e preciso, ele virou o braço,
apoiando a mão espalmada no chão.
Relâmpagos fulguraram em meio às estrelas.
Marcas da magia erelin se formaram aos pés de Ikaris.
Um raio de luz caiu do céu, abrindo um círculo ao redor do
Nefastus. A criatura chiou. Mas não conseguiu fugir. Ao redor do
círculo, mais raios caíam, formando uma prisão para o Nefastus.
Ikaris ergueu a espada.
Caminhou na direção do Nefastus, as asas abertas.
Algo como terror atravessou o rosto da criatura conforme Ikaris
se aproximava, os olhos iluminados pelos raios dançantes.
Não disse nada.
E deixou que sua espada cortasse o Nefastus ao meio,
espirrando sangue negro e viscoso para todos os lados.

◆◆◆

Os raios invocados por Ikaris lampejaram pelas ruínas.


Maressa se banhou naquela luz, no poder dele, e deixou que
sua magia cantasse para aquela energia brutal e antiga. Brandindo a
espada, golpeou Astrid, que usou a própria lâmina para bloquear o
ataque.
Iohanna voou sobre elas, desferindo um novo ataque.
Astrid girou, ágil e perigosa como uma serpente.
Maressa abriu as asas recém-nascidas e se ergueu do chão,
evitando o momento em que a lâmina inimiga passou zunindo perto
de seu rosto.
Mas, como não estava acostumada a elas, não foi capaz de
desviar de uma das asas obscuras de Astrid, que a atingiu por trás e
a arremessou para longe.
Escutou o rosnado furioso de Iohanna.
Os raios de Ikaris continuavam caindo sem parar.
Com as mãos apoiadas no chão, as asas trêmulas, Maressa
lutou para recobrar os movimentos dos corpos.
Ergueu o rosto.
E tudo aconteceu rápido demais.
De alguma forma, Astrid se moveu com uma agilidade
assustadora, golpeando Iohanna.
Iohanna arfou e caiu de joelhos no chão.
Astrid ergueu a espada.
— Não!
O grito de Maressa ecoou pelas ruínas da Cidadela.
Um sorriso ainda mais perigoso se ergueu pelos lábios de
Astrid.
E, sem piedade, ela atravessou toda a espada pelo peito de
Iohanna.
Foi como se todo o mundo desacelerasse, como se fosse
tragado por um redemoinho de sombras e pesadelos.
A risada de Astrid era um riso amargo, sorumbático.
Maressa fechou as mãos ao redor do cabo da espada e ficou
em pé. Seus cabelos flutuavam ao redor do rosto, as asas
estremeciam e soltavam faíscas douradas.
— Vamos terminar isso, filhinha.
Astrid puxou a espada enfiada no peito de Iohanna; quando a
lâmina foi retirada por completo, o ar tremeu, soprou e mudou seu
curso.
O corpo golpeado de Iohanna começou a se desfazer.
Maressa arfou.
E Iohanna surgiu gloriosa atrás de Astrid.
Ela se assustou; a presença e o poder de Iohanna a jogaram
no chão.
Os olhos de Astrid foram para o chão onde tinha deixado
Iohanna ajoelhada e ferida. Não havia mais nada ali.
— Era uma ilusão? Como você fez isso?
Luz e estrelas cintilavam ao redor de Iohanna.
— Esta sou eu. Esta é quem sempre fui. E jamais precisei me
virar contra as minhas irmãs, como você fez.
— Não é possível. — Astrid arfou e se rastejou no chão.
— Você me feriu, mas minha filha me devolveu meu poder. —
As asas de Iohanna irradiavam uma luz pulsante; dali, Maressa via
os olhos semicerrados de Astrid. — E você vai pagar por ter tirado
minha menina de mim e me enganado por vinte e um anos.
A magia de Iohanna irrompeu e crepitou.
Astrid mal teve tempo de erguer os braços e invocar seu poder
antes de Iohanna alcançá-la.
Maressa a cercou por trás, criando uma barreira de luz e
estrelas que impediu que Astrid encontrasse uma rota de fuga.
Luz ofuscante explodiu em todas as direções, ondulando pelas
ruínas, pelo chão, pelo céu, por tudo o que um dia havia sido a
antiga Cidadela dos Erelins.
Foi uma luz tão forte que Maressa achou que o brilho poderia
cegar qualquer mortal.
Mas ela não fechou os olhos.
Apenas libertou tudo o que havia em seu âmago.
Tudo o que fora aprisionado e roubado por vinte e um anos.
Até toda a luz se dissipar.
E ela ainda estar em pé.
Sangue salpicava o rosto do Iohanna conforme suas asas
farfalhavam com a fúria do vento.
E, em suas mãos, pendia a cabeça decapitada de Astrid.
Mãe e filha se entreolharam.
Maressa deu um passo à frente e tocou o rosto morto de Astrid.
Deixou a magia farfalhar por seus dedos, feito um suspiro final
e resignado, enquanto o que restava de Astrid se transformava em
pó.
59
Conexão das estrelas

O SILÊNCIO nunca tinha trazido tanta paz para Maressa.


Quando tudo o que havia de Astrid foi sorvido e levado pelo
vento, ela se permitiu soltar o ar, dobrar as asas e cair de joelhos no
chão, as lágrimas vertendo livremente por seu rosto.
As mentiras e manipulações de Astrid, a “doença” que
acreditara ter por todos aqueles anos, a verdade sobre sua origem...
Tudo a atingiu com uma força desoladora.
E ela se permitiu extravasar aquele turbilhão que girava dentro
de si.
Sentiu a aproximação de Ikaris.
Não precisava virar a cabeça para saber que era ele.
Seu coração, sua pele, sua alma; cada pedacinho que a
compunham o reconheciam.
Ikaris a tomou nos braços, envolvendo-a em um abraço forte e
protetor, asas dele formando um abrigo cálido para o corpo e para as
asas dela.
— Acabou, meu amor. Finalmente acabou.
Ela deixou a cabeça encostada em seu peito por um tempo que
pareceu interminável e eterno.
E então, ergueu o rosto, buscando pelo cinza de suas íris.
— Não — sussurrou. — Ainda não acabou. Falta uma coisa.
Ikaris franziu o cenho, abrindo as asas para que ela se
movesse.
Maressa tocou em seu rosto e o beijou de leve nos lábios,
deixando que as lágrimas continuassem deslizando por suas
bochechas.
“Os najmas são o sopro de luz das estrelas, a essência dos
elementos que criaram o mundo, a manifestação do divino e do
místico.
Ela se virou, caminhando até Iohanna.
A rainha dos erelins — sua mãe — segurava nas mãos a pedra
angular de Astrid.
Em silêncio, Maressa a pediu, e Iohanna a entregou.
“Em essência, são a própria força das estrelas.”
Maressa tomou o fragmento da pedra angular em mãos e a
levou até o coração da Cidadela Prateada.
“Para o meu povo, foram os najmas que sopraram ventos fortes
no céu e derem luz às estrelas”.
Depositou-a com cuidado onde, um dia, a fonte dada pelos
najmas havia jorrado luz das estrelas para o céu.
“Algumas lendas falam que houve um sopro tão forte, que fez
com que um dos najmas derrubasse uma lágrima prateada”.
E libertou a própria magia.
“Essa lágrima caiu em na terra e se ramificou, criando uma
cidade prateada.”
Foi como se o céu cantasse para ela.
“No lugar onde esta lágrima caiu, em que se enraizou o
coração da Cidadela Prateada, uma fonte surgiu.”
Escutou um suspiro, um vento gentil.
“A água desta fonte era luz pura, que subia para o céu e se
banhava nas estrelas, alimentando a essência de cada erelin,
transformando-os, ascendendo-os aos céus.”
Tudo em volta cintilou e brilhou quando ela conjurou um jardim
de estrelas que se espalhava para todos os lados, transformando as
ruínas em um tapete de pontos flamejantes.
Uma aura prata e dourada irradiou de Maressa.
A magia fluiu e ondulou em torno do fragmento da pedra, na
forma de espirais prateadas.
“Graças aos najmas, os erelins ganharam asas e conseguiram
conjurar magia através da ligação das estrelas”.
— E nas estrelas ficará — Maressa murmurou, fitando o céu. —
Até que para a terra possa voltar.
Um feixe luminoso irrompeu para o alto.
E, do pequeno fragmento de pedra, outros foram surgindo,
desabrochando, dando forma a uma fonte nova, cuja superfície
prateada refletia todas as estrelas do céu.
Assim que a fonte estava em pé, Maressa caminhou até ela e
tocou em seu centro.
— E nas estrelas ficará... Até que para a terra possa voltar.
Uma água diferente de tudo o que já tinha visto jorrou
livremente.
Uma água feita de luz pura.
Uma luz que, há vinte e um anos, tinha sido contaminada pelos
seguidores de Astrid e devolvida para as estrelas quando Iohanna
atirara o Suspiro de Áster na fonte sagrada.
Uma luz que agora era devolvida para a terra.
Para o povo que recebera sua dádiva no passado.
Maressa fechou os olhos, levando a mão ao próprio coração.
A conexão do povo erelin com as estrelas estava restaurada.
Eles poderiam voltar a ser o que um dia tinham sido.
Escutou Ikaris arquejar e cair de joelhos, os olhos embargados
fitando a luz que subia da fonte para tocar o céu.
Voltou-se para ele.
Mas viu outra figura se movendo por entre os pontos brilhantes
invocados por sua magia.
Ela reconheceu um par de olhos pretos e dourados no meio
das estrelas que desciam do céu para beijar a fonte.
Seu coração foi tomado por uma ternura avassaladora.
Sem pressa, Maressa andou até a raposa e acariciou sua
cabeça.
— Obrigada por cuidar de mim. Aceite o que te dou... Pai.
Os olhos dele encontraram os seus.
E ela sorriu.
Fios brilhantes se soltaram dos dedos de Maressa, envolvendo
o animal em um véu translúcido, feito de magia e estrelas.
E, quando a luz esvaneceu, quando o véu caiu, não era mais
uma raposa que estava ali.
E sim um homem.
De olhos pretos e dourados.
A mão daquele que chamara de Raio de Luar se encaixou em
seu rosto; um toque cálido, surpreso, amoroso.
Um par de asas farfalhou perto deles.
Maressa viu sua mãe se aproximando, os olhos lacrimejados,
os lábios entreabertos.
— Iohanna — ele sussurrou, a voz rouca, mas embargada.
A rainha dos erelins soluçou.
Com o rosto tomado por uma emoção única, Raio de Luar
andou até ela e a tomou nos braços, erguendo-a como se não
acreditasse que aquilo era mesmo real. E, quando os pés de Iohanna
tocaram o solo, os lábios deles se encontraram em um beijo que foi
ofuscado pela luz das estrelas.
60
Novos acordos

— ALTEZA, EU só preciso ajeitar esse fio do seu cabelo que...


— Nina, já falei para me chamar só de Maressa. — Ela riu,
usando os dedos para prender a mecha que tinha escapado do
penteado. — E você não é minha criada. É uma duquesa. E é minha
amiga.
— Como amiga, tenho que garantir que você esteja perfeita.
— Já está tudo ótimo, Nina. Vai lá com seu marido, que está te
olhando com aquele olhar abobalhado e apaixonado.
Nina virou o rosto, sorrindo encantada para Willem. Sentado
junto dos convidados que participariam da cerimônia solene, o duque
retribuiu ao sorriso dela.
Maressa se sentiu inundada por um carinho especial.
Seus amigos mereciam toda a felicidade do mundo.
Assim que Nina a deixou, ela passou as mãos pelo vestido,
puxou o ar e se olhou no espelho. As asas estavam ocultadas, mas
ela sempre podia invocá-las com magia.
— Você está perfeita. Uma verdadeira governante.
— Será que o povo me enxergará assim?
— Seriam tolos se não enxergassem.
Maressa olhou por cima do ombro. Iohanna trajava um elegante
vestido branco, feito com uma abertura nas costas para manter as
asas livres, e uma coroa brilhante na cabeça.
— Você também está perfeita.
Iohanna estendeu a mão, acariciando o cabelo dela.
— Nem acredito que você está aqui. Na minha frente. Uma
mulher linda e independente. Eu apenas lamento por não ter te visto
crescer.
— Eu também. Mas agora teremos todo o tempo do mundo
— Com certeza. — Iohanna se inclinou e beijou a testa dela. —
Você, seu pai e eu. Nada nem ninguém nos separará outra vez.
Lutando contra as lágrimas que encheram seus olhos, Maressa
se colocou ao lado da mãe e subiu ao púlpito, onde ambas eram
aguardadas por pessoas de todos os reinos humanos e dos povos
erelins.
Foi Maressa quem tomou a palavra.
— Agradecemos à presença de todos vocês neste dia tão
importante. Após muitas reuniões com o Conselho dos Povos e os
Conselhos dos Reinos, as decisões foram tomadas.
Houve um momento de silêncio e expectativa entre todos.
Maressa deu um passo à frente, a cauda longa do vestido prata
e dourado deslizando como água pelo chão.
— O primeiro decreto instaurado é o fim do exílio do povo erelin
nas montanhas e a destruição de todas as estátuas da guerra.
Aplausos irromperam dos erelins que tinham comparecido para
a celebração histórica.
Como um chamado magnético, os olhos dela buscaram os de
Ikaris.
Ele sorriu.
Um sorriso puro, cintilante e verdadeiro.
O coração de Maressa se encheu da certeza de que estava
fazendo a coisa certa. Sabia que as máculas deixadas pela
manipulação de Astrid durante todos aqueles anos ainda existiriam,
mas lutaria dia após dia para dar um recomeço a todos.
Só que, para ser capaz de consertar os erros de Astrid,
precisaria que o povo a aceitasse.
Ela inspirou fundo e ergueu o queixo.
— Assim, o segundo ponto debatido no Conselho foi sobre
minha legitimidade e direito ao trono de Arustar. Há vários rumores
sobre minha origem e sobre a identidade daquela que governou
Arustar nestas últimas duas décadas.
Protestos pipocaram no meio da multidão.
— Maressa é nossa princesa!
— Ela sempre será de Arustar!
— Queremos Maressa como nossa rainha!
Ela ergueu a mão, pedindo calma e silêncio.
— Apesar de alguns questionamentos e muito debate, o
Conselho chegou a um consenso.
Maressa quase podia sentir cada pessoa ali prendendo o ar,
aguardando pelo desfecho do discurso.
— Não há dúvidas de que fui criada desde o berço como
princesa, educada para conhecer cada palmo desta terra e de todos
que aqui vivem. Sempre estudei, sempre li e sempre me preparei.
Durante toda minha vida, acreditei que eu tinha um propósito.
Procurei por este propósito e o encontrei. — Maressa ergueu o rosto,
confiante e determinada. — Sei que fui feita para isso. Para unir
aquilo que Astrid quebrou. Para nos unir. Para trazer a magia das
estrelas e dos tempos de paz para os povos humanos e erelins.
Os primeiros urros de comemoração surgiram no meio da
multidão.
— Assim, como segundo decreto do Conselho, eu, Maressa
Sternenlicht, herdeira dos najmas e dos erelins, princesa de Arustar,
com o sangue das estrelas nas veias, governarei esse reino e o povo
que conheço e que sempre me acolheu assim que a data da
coroação for marcada.
Os gritos eufóricos de seu povo levaram embora as últimas
hesitações que ainda raspavam em sua alma.
Maressa correu os olhos por todos. Sorriu para Layla e Ciáran,
cumprimentando-os com um aceno de cabeça. Durante as muitas
reuniões que haviam acontecido naqueles últimos tempos, o Reino
de Rovina dera seu voto e apoio para que ela governasse Arustar.
— A rainha Iohanna dos erelins governará a Cidadela
Prateada, que está sendo reconstruída. Aqui e agora, selamos uma
aliança entre os povos e uma nova era para todos nós. Uma era de
união e parceria. Erelins serão bem-vindos em todos os reinos
humanos.
— E humanos serão bem-vindos na Cidadela Prateada —
Iohanna complementou.
Um dos representantes do Conselho dos Povos se aproximou,
entregando uma pena para cada uma. Ao mesmo tempo, Maressa e
Iohanna se inclinaram sobre a mesa dourada e assinaram os
acordos.
Em meio aos aplausos de todos aqueles que estavam ali para
testemunhar aquele momento, ela se voltou para a mãe e libertou
sua magia, deixando que suas asas brilhassem e resplandecessem
por todo o salão.
— Faremos isso juntas, mãe.
— Juntas, minha estrela.
Maressa sorriu e estendeu a mão para Iohanna; elas
entrelaçaram os dedos e ergueram as mãos, selando a paz entre o
Reino de Arustar e a Cidadela Prateada.
Uma paz que Maressa faria durar tanto quanto as estrelas no
céu.
Epílogo

MARESSA ESTAVA atravessando a grande biblioteca quando


escutou um farfalhar de asas.
Olhou para a janela e sorriu; toda vez que seus olhos
encontravam Ikaris, algo dentro de seu coração pulsava, latejava,
ansiando e gritando pelo coração dele.
— Tem alguma recomendação literária para me fazer,
majestade?
— Hum... — Maressa comprimiu os lábios, fingindo estar
pensativa. — Há um exemplar único e raro de Castelos e Sonhos
aqui na biblioteca. Ele é muito especial.
— É mesmo? Por quê?
— Porque, segundo as histórias, um guerreiro erelin atravessou
reinos para encontrá-lo, e o deu de presente para uma princesa.
— Que história interessante.
— Há muitas histórias interessantes nesta biblioteca — ela
falou, sustentando a brincadeira, apontando para as estantes. —
Aqui, há livros contando sobre todos os reinos e povos. Há muitos
livros sobre o povo erelin também, que foram recuperados após a
assinatura dos novos acordos. Mas nem todos estão aqui. Muitos
foram enviados de volta para a Cidadela Prateada. Há um belo
guardião de livros e memórias lá que...
A mão de Ikaris envolveu a sua; ele a puxou, tomando os lábios
de Maressa em um beijo doce, profundo. O braço dele passou ao
redor de sua cintura, e ela arfou baixo ao ouvir o bater das asas e
sentir seus pés serem tirados do chão.
Quando Maressa abriu os olhos, ela estava voando.
Deixou que seus braços envolvessem o pescoço de Ikaris
enquanto ele disparava para a noite estrelada, para o tapete de
pontos cintilantes que beijava os reinos humanos, a cidade erelin e a
grande fonte sagrada, para a magia que havia ficado guardada no
céu e que agora banhava a terra.
— É tão lindo — ela murmurou, maravilhada.
— É o único lugar onde posso fazer este pedido.
— Pedido? — Um sorrisinho subiu pelo canto da boca dela,
junto de um arquejo cheio de expectativa.
— Já que velhas tradições foram banidas, sei que uma certa
princesa, agora rainha, é livre para escolher o céu que ela quiser. —
Os olhos de Ikaris se cravaram nos dela. — E eu gostaria de saber
se ela quer fazer parte do meu céu brilhante. De hoje, e até o último
dia da minha vida. Quer casar comigo, Maressa?
A mais pura emoção banhou o peito dela.
— Sim. Sim. Mil vezes sim. — Maressa sussurrou, beijando-o
em resposta. — É o que meu coração mais deseja. Desde o primeiro
momento em que te vi. Eu sempre soube que seria você. Aceito me
casar com você, Ikaris Ashera.
Quando seus lábios se separaram, Ikaris continuou subindo, as
estrelas queimando forte, e quando o olhar dele buscou pelo de
Maressa outra vez, nenhuma palavra foi necessária.
Lentamente, os braços dele a soltaram enquanto ela conjurava
as próprias asas, planando suavemente ao seu lado, se ajeitando à
sensação e ao ritmo daquela liberdade pura.
Eles se entreolharam e sorriram.
E então, estavam voando juntos, lado a lado, livres, sem
destino, as mãos se roçando, as asas se acariciando, sempre perto
um do outro, atravessando o céu e a vastidão infinita, como se
estivessem dançando no meio em um jardim de estrelas.

Fim
Notas da autora &
Agradecimentos
Como todas as minhas outras fantasias, escrever “Jardim de
Estrelas” foi uma experiência mágica e, ao mesmo tempo, muito
trabalhosa. Cada detalhe, cada ponta, cada virada de enredo... Tudo
foi planejado e revisado várias vezes, até que eu alcançasse o
resultado que tanto queria.

E agora, ao chegar aqui com a história de Maressa e Ikaris, sinto


orgulho e satisfação pelo que escrevi.

Os personagens Layla e Ciáran, que apareceram no segundo


arco desta história, são os protagonistas de outro livro que escrevi,
chamado “Fios de Luar”. Deixo aqui o convite para quem quiser
conhecer a história deles também.

É muito gratificante compartilhar mais uma história com vocês, e


agradeço a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus
pais, minha irmã, meu marido, meus avós, toda a minha família,
meus leitores maravilhosos do Wattpad e da Amazon. Muito obrigada
mesmo pela confiança e pelo carinho depositado em cada leitura.
Vocês são incríveis.

Só tenho a agradecer a todos vocês, que já estão me


acompanhando. Muito obrigada mesmo pela confiança no meu
trabalho. Vocês são incríveis! ♥
Um beijão para todos!
Conheça Fios de Luar: a história
de Layla e Ciáran
CLIQUE AQUI PARA LER FIOS DE LUAR
Nas sombras do reino de Rovina, misteriosas criaturas despertam
ao anoitecer, atacando aldeões e fazendas.

No desespero de cessar as mortes, e desobedecendo as leis de


seu pai, a princesa Layla MacQuoid sela um perigoso acordo com o
enigmático feiticeiro Ciáran De'Ath. Em troca da proteção do seu
povo, ela deve partir com ele como sua noiva.

Assim, entre feitiços e mistérios que cercam o coração do


feiticeiro, Layla mergulha nos segredos de um mundo oculto, onde os
véus da magia, do amor e da morte podem estar mais entrelaçados
ao seu passado do que ela imagina.
Outras obras da autora
SAGA ELLK
Ellk
Crisântemo Kell
Sonara
Epifania

TRILOGIA KAPWA
Nuvens de Metal e Estrelas
Noite de Cobras e Sonhos
Nações de Pedras e Deuses

LIVROS ÚNICOS

Ponto Cruz

Aliança de Fogo

Delta

Sensorial

Rosa Negra

Fios de Luar

A Rebelião do Oceano

Feitiço da Noite

Código Nísis

Paraíso Profano

Pecado Sagrado

Paixão Pagã
Perdição Sublime

Promessa Perversa
Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada
pela escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade
e tentativa de escrever o primeiro romance aos treze.

Quando não está negociando preços de traduções com os


clientes ou viajando nos livros que lê, busca se aventurar nos
mundos fictícios que cria. Viciada em café, ama um bom mistério e
enigmas complexos. Sempre confia que o troco está certo, pois a
única coisa que sabe contar de cabeça são histórias.

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