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Um grave encontro

A primavera finalmente tinha encontrado a cidade de


Oath, mas nem a inundação de luz do sol derretia o gelo nos
ossos de Iris Winnow. Ela percebeu que alguém a perseguia
enquanto caminhava pelo movimento da Broad Street, atra-
vessando trilhos de bonde e paralelepípedos gastos. Resistiu
à tentação de olhar para trás, e forçou-se a enfiar as mãos
nos bolsos do sobretudo enquanto pulava uma fileira de ervas
brotando das rachaduras da calçada.
O casaco tinha meros três dias e ainda cheirava à loja
onde Iris o comprara — um toque de perfume de rosas, chá
preto de cortesia, sapatos de couro envernizado —, e os dias
andavam esquentando a ponto de ela não precisar usá-lo no
caminho de ida e volta do trabalho. Porém, ela gostava de
vestir o sobretudo e apertar o cinto, como uma armadura.
Ela sentiu um calafrio enquanto se esgueirava pela multi-
dão aglomerada na porta da padaria, na esperança da pessoa
atrás dela perdê-la de vista no tumulto de gente querendo
comprar o pão do café. Ela cogitou que fosse Forest atrás

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dela. A ideia fez ela se sentir melhor imediatamente, e, logo
depois, profundamente pior. Ele já tinha feito aquilo, em
Avalon Bluff. Na verdade, tinha passado dias atrás dela, espe-
rando o momento certo de surgir, e ela ainda ficava enjoada
só de lembrar.
Iris não resistiu mais um segundo. Olhou de relance para
trás, e o vento jogou alguns fios de cabelo em seu rosto.
Não viu nem sinal do irmão mais velho, mas ele também
não era a pessoa afetuosa e risonha de antes de se alistar no
exército de Enva. Não, a guerra deixara marcas nele, o ensi-
nara a caminhar pelas trincheiras, atirar uma arma e atraves-
sar discretamente a terra de ninguém até o território inimigo.
A guerra o ferira profundamente. E, se Forest a perseguia
naquela manhã, era porque ainda duvidava dela.
Ele ainda acreditava que ela fugiria e deixaria ele e Oath
para trás sem uma palavra de despedida sequer.
Quero que confie em mim, Forest.
Iris engoliu em seco e apertou o passo. Passou na frente do
prédio onde trabalhava antigamente, onde a Gazeta de Oath
iluminava o quinto andar, o lugar onde ela conhecera Roman
e o considerara um esnobe arrogante e elitista. O lugar onde
suas palavras tinham aparecido no jornal pela primeira vez,
onde ela tinha descoberto a emoção da reportagem.
Iris passou direto pelas portas de vidro pesado, tocando
o anel no quarto dedo da mão. Virou a esquina para uma rua
menor, atenta ao som de passos atrás dela. Contudo, o ruído
dos sinos do bonde e dos camelôs da esquina era demais, e
ela arriscou o atalho pelo beco.
Era um trajeto estranho e confuso, pelo qual a maioria
dos veículos não conseguiria transitar sem perder um retrovi-
sor. Uma rua de paralelepípedos onde ainda se sentia a magia

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ao passar por certas portas, olhar o brilho das janelas ou atra-
vessar uma sombra que nunca se esvaía, por mais forte que
fosse o brilho do sol.
Iris parou ao ver palavras pintadas em tinta vermelha in-
tensa em uma parede de tijolos brancos.
O lugar dos deuses é no túmulo.
Não era a primeira vez que ela via aquela declaração. Na
última semana, a tinha visto pintada na parede de uma cate-
dral, na porta da biblioteca. As palavras eram sempre verme-
lhas, brilhantes como sangue, e frequentemente se seguiam
de um único nome: Enva.
Fazia semanas que ninguém via a deusa. Ela não cantava
mais para inspirar as pessoas a se alistar e lutar na guerra.
Às vezes, Iris duvidava que Enva estivesse ainda na cidade,
apesar de ter quem alegasse vislumbrar a deusa vez ou ou-
tra. Quanto aos responsáveis por pintar aquela frase sinistra
pela cidade inteira… Iris só podia especular, mas parecia
ser um grupo de Oath que não queria divino vivo algum em
Cambria. Inclusive Dacre.
Com um calafrio, Iris seguiu caminho. Ela estava quase
na Tribuna Inkridden quando se permitiu olhar mais uma vez
para trás.
Havia mesmo alguém no fim da rua. Porém, a pessoa se
virou e se escondeu na sombra de um portal, e Iris não con-
seguiu discernir nem a silhueta, muito menos o rosto.
Ela suspirou, esfregando os braços arrepiados. Tinha che-
gado ao seu destino e, se fosse Forest em seu encalço, ela
conversaria com ele mais tarde, quando voltasse ao aparta-
mento. Fazia uma semana que aquela conversa assomava, os
dois hesitantes a iniciá-la.

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Iris entrou pela porta de madeira, e suas botas fizeram
barulho no piso de azulejos em preto e branco do saguão.
Ela desceu a escada, sentindo a temperatura mudar sob as
lâmpadas que zumbiam de leve no teto. Mais um motivo para
usar o sobretudo o ano todo.
A Tribuna Inkridden era sediada no subsolo de um edifí-
cio antigo, onde parecia ser outono eterno, com suas mesas
de carvalho empilhadas de papel, o teto percorrido por veias de
canos de cobre, as paredes de tijolo exposto cheias de fissu-
ras, e as luminárias de latão nas mesas delineando a dança
de fumaça de cigarro e das teclas reluzentes das máquinas de
escrever. Era um lugar sombrio, mas aconchegante, e Iris sol-
tou um suspiro suave ao entrar.
Attie já estava sentada à mesa que compartilhavam,
olhando distraída para a máquina. Segurava uma xícara las-
cada de chá com as duas mãos finas de pele marrom e franzia
o cenho pesado, perdida em um devaneio profundo.
Iris tirou o casaco e o pendurou nas costas da cadeira.
Ainda usava as botinas de amarrar que tinha recebido na li-
nha de frente, muito mais confortáveis do que os sapatos de
salto que usava antigamente na Gazeta. As botas não combi-
navam com a saia quadriculada e a blusa branca que vestira,
mas Helena Hammond não parecia se incomodar com a rou-
pa, desde que Iris escrevesse boas matérias para o jornal.
— Bom dia — cumprimentou Attie.
— Bom dia — ecoou Iris, ao sentar. — O tempo está
bonito hoje.
— Então vai cair uma tempestade antes da gente ir embo-
ra — retrucou Attie, sarcástica, e tomou um gole de chá. —
Teve notícias? — sussurrou em seguida, com a voz mais suave.

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Iris sabia do que Attie falava. Estava perguntando por
Roman. Se Iris tinha arranjado alguma notícia do paradeiro
e da situação dele.
— Não — respondeu Iris, com um aperto na garganta.
Ela tinha enviado inúmeros telegramas desde a chegada
em Oath. Tiros no escuro, contatos com estações de trem
que ainda funcionavam apesar da proximidade com a linha
de frente da guerra.

ALERTA DE DESAPARECIMENTO PONTO ROMAN C KITT PONTO CABELO

PRETO OLHOS AZUIS CORRESPONDENTE DE GUERRA PONTO VISTO

EM AVALON BLUFF PONTO FALAR COM I WINNOW VIA TELÉGRAFO DE

OATH PONTO

Iris ainda não tinha recebido resposta, mas, também, o


que esperava? Não faltavam soldados e civis desaparecidos
ultimamente; então, ela se distraiu ajeitando a máquina de
escrever, que não era a dela, e sim uma máquina que estava
sobrando na Tribuna. Era um instrumento velho; a barra de
espaço tinha desbotado de tantos toques, e algumas teclas
gostavam de emperrar, criando vários erros. Iris ainda estava
tentando se acostumar, com saudade da máquina mágica que
tinha ganhado da avó. A máquina de escrever que a conec-
tara a Roman. A Terceira Alouette.
Iris encaixou uma folha de papel nova, mas pensou na
própria máquina, se perguntando onde estaria. A última vez
que a vira fora no quarto da pousada de Marisol. E, apesar da
hospedagem milagrosamente ter sobrevivido ao bombardeio,
não dava para saber o que Dacre e seu exército fizera com a
cidade depois de invadi-la. Talvez a Terceira Alouette ainda
estivesse lá, no antigo quarto de Iris, intocada e coberta por

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cinzas. Talvez um dos soldados de Dacre a tivesse roubado
para usá-la em correspondências nefastas, ou talvez a tivesse
despedaçado em estilhaços reluzentes na rua.
— Tudo bem aí, menina? — a voz de Helena Hammond
interrompeu o momento de repente, e Iris ergueu o olhar,
vendo a chefe parada perto da mesa. — Está meio pálida.
— Tudo, sim, estava só… pensando — respondeu Iris,
com um sorriso tímido. — Perdão.
— Não precisa se desculpar. Não quis interromper sua
contemplação, mas tenho uma carta para você.
Um sorriso atravessou a expressão severa de Helena
quando ela tirou do bolso da calça um envelope amarrotado.
— É de alguém que você vai gostar de ler — acrescentou.
Iris arrancou a carta da mão de Helena, sem conseguir
esconder a avidez. Tinha de ser notícia de Roman, e sua bar-
riga se contorceu de esperança e pavor enquanto ela rasgava
o envelope. Primeiro, Iris se surpreendeu com o tamanho do
texto — longo demais para ser um telegrama —, então suspi-
rou, com a respiração trêmula enquanto lia.

Queridíssima Iris,

Nem consigo começar a descrever o alívio que

senti (e ainda sinto!) ao saber que você voltou em

segurança para Oath! Attie certamente já contou o

que aconteceu em Avalon Bluff naquele dia terrível,

mas esperamos no caminhão por você e Roman por

todo o tempo possível. Mesmo assim, senti que meu

coração ia parar quando partimos sem vocês dois,

e pude apenas rezar para estarem em segurança e

para conseguirmos nos reunir.

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Helena escreveu para mim e contou que Roman

ainda não foi encontrado. Eu sinto muito, minha

amiga querida. Queria poder fazer algo para ali-

viar a preocupação que você sente. Saiba que você

será sempre bem-vinda aqui, na casa da minha

irmã, em River Down. A viagem de Oath para cá dura

apenas um dia, e há lugar para você e para Attie,

caso desejem visitar.

Até lá, meu coração está com você. Saudades!

Da sua amiga,

Marisol

Iris piscou para conter as lágrimas e guardou a carta no


envelope. Fazia apenas duas semanas da última vez que Iris
vira Marisol. Duas semanas desde que estavam todos jun-
tos na pousada. Duas semanas desde que ela se casara com
Roman C. Kitt no jardim.
Uma quinzena não era muito tempo; Iris ainda tinha he-
matomas desbotados e machucados nos joelhos e nos braços,
de quando rastejara por escombros e nuvens de gás. Ainda
ouvia o estrondo da explosão das bombas, sentia a terra tre-
mer sob seus pés. Ainda sentia o sopro de Roman em seu
cabelo ao abraçá-la, como se nada nunca fosse separá-los.
Duas semanas eram um piscar de olhos — podia ter sido
ontem, pelas feridas internas ainda expostas de Iris —, mas
ali em Oath, cercada por gente que vivia como de costume,
como se uma guerra furiosa não fosse travada ao oeste…
aqueles dias em Avalon Bluff pareciam apenas um sonho.
Ou pareciam ter acontecido anos antes, como se a memória
de Iris retomasse aqueles momentos tantas vezes que tinham
virado sépia, pelo tempo e pelo uso.

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— Marisol está bem, parece? — perguntou Helena.
Iris fez que sim e prendeu o envelope debaixo de um
livro na mesa.
— Está. Convidou a mim e a Attie para visitá-la na casa
da irmã.
— Devemos ir em breve — disse Attie.
Claro, pensou Iris. Attie já estivera em River Down. Ela
levara Marisol (com uma gatinha manhosa chamada Lilás)
para cumprir a promessa feita a Keegan. E Keegan, capitã no
exército de Enva, era outra pessoa que preocupava Iris. Ela
não sabia se a esposa de Marisol tinha sobrevivido à batalha
em Avalon Bluff.
Iris estava prestes a responder quando o silêncio pesou
sobre o escritório. Uma das lâmpadas piscou, como se em
alerta, e o ritmo regular das máquinas de escrever foi dimi-
nuindo até parecer que o coração da Tribuna tinha parado
de bater, suspenso na calada. Helena franziu a testa e se vi-
rou para a porta, e Iris acompanhou seu olhar, fixado no ho-
mem parado sob o batente de tijolos.
Ele era alto e magro, de terno azul-marinho completo,
com um lenço vermelho dobrado no bolso. Era difícil adivi-
nhar sua idade, mas o rosto pálido tinha a marca das rugas.
Um bigode se via acima da boca torcida, e os olhinhos bri-
lhavam como obsidiana na luz fraca. Sob o chapéu-coco, o
cabelo grisalho tinha sido penteado para trás com pomada.
Iris demorou para reconhecê-lo. Cogitou que fosse ele
a segui-la pela manhã, até ver que estava acompanhado por
dois seguranças que o esperavam no corredor, com braços
grossos cruzados para trás.
— Chanceler Verlice — disse Helena, cautelosa. — O
que traz o senhor à Tribuna Inkridden.

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— É particular — respondeu o chanceler. — Podemos
dar uma palavrinha?
— Claro. Venha por aqui.
Helena passou por entre as mesas a caminho de sua sala.
Iris observou o chanceler Verlice que ia atrás dela, pas-
sando o olhar pelos redatores e colunistas no caminho. Pare-
cia até que olhava através deles, ou que procurava alguém, e o
coração dela parou quando ele encontrou seu olhar do outro
lado da sala.
Seus olhos inescrutáveis fitaram os dela por um momen-
to demorado antes de se voltarem para Attie. Ele finalmente
chegou à sala de Helena e, sem escolha, abaixou o olhar e
entrou. Helena fechou a porta; os dois seguranças ficaram
de sentinela no corredor, impedindo qualquer ida ou vinda.
Devagar, a Tribuna Inkridden retomou o burburinho de
atividade. Redatores voltaram a riscar pilhas de papel com
suas canetas-tinteiro vermelhas, colunistas continuaram a
datilografar, e assistentes voltaram a correr do aparador de
chá ao telefone, carregando xícaras fumegantes e recados ra-
biscados de uma mesa a outra.
— O que você acha que aconteceu? — cochichou Attie,
esticando a cabeça para ver a porta da sala de Helena.
Iris controlou um calafrio. Ela voltou a vestir o sobretudo
e apertou bem o cinto.
— Não sei — respondeu em um cochicho. — Mas coisa
boa não é.
Dez minutos depois, a porta da sala se abriu.
Iris manteve a atenção no papel e nas palavras que gra-
vava ali, entrando no ritmo da máquina, mas via o chanceler
pelo canto do olho. Ele atravessou a sala com calma, e ela
sentiu seu olhar outra vez, como se avaliasse ela e Attie.

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Iris rangeu os dentes, abaixando o queixo para o cabelo
cair e cobrir o rosto, protegendo-a do olhar do chanceler como
um escudo.
Sentiu alívio quando Verlice e os dois guardas sumiram
escada acima, mas a nuvem pungente de sua água de colônia
continuava como névoa no ar. Iris estava prestes a se levantar
para se servir de chá, na esperança de limpar aquele gosto
desagradável da boca, quando Helena acenou para ela.
— Iris, Attie. Preciso falar com vocês.
Attie parou de datilografar e se levantou sem dizer uma
palavra, como se estivesse esperando aquilo. Porém, ela mor-
deu o lábio, e Iris viu que a amiga estava tão ansiosa quanto
ela. O que o chanceler fora dizer ali provavelmente tinha a
ver com elas. Iris seguiu atrás de Attie até a sala de Helena.
— Sentem-se, por favor — disse Helena, se instalando
atrás da mesa.
Iris fechou a porta e sentou no sofá de couro gasto, bem
à esquerda de Attie. Ela resistiu à vontade de estalar os dedos
e esperou Helena quebrar o silêncio.
— Vocês fazem alguma ideia do motivo da visita do chan-
celer? — Helena perguntou finalmente, com a voz estranha-
mente fria e calma, como a água sob uma camada de gelo.
Attie olhou de soslaio para Iris. Ela chegara à mesma
conclusão. Iris percebeu no olhar. A irritação, a preocupação,
o brilho da raiva.
— Ele não gostou dos nossos artigos — disse Iris. — O
que publicamos sobre Clover Hill e Avalon Bluff serem eva-
cuadas, bombardeadas e atacadas com gás.
Helena pegou um cigarro, suspirou e o jogou na pilha de
papel.

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— Não gostou mesmo. Eu sabia que não gostaria, mas
publiquei mesmo assim.
— Bom, mas ele não precisa gostar, né? — disse Attie,
levantando a mão, frustrada. — Porque eu e Iris escrevemos
a verdade.
— Não é assim que ele vê a situação.
O cabelo castanho-arruivado de Helena caía sem vida na
testa. Sob seus olhos, manchas arroxeadas e fracas indicavam
que não tinha dormido. As sardas se destacavam na pele
pálida, assim como a cicatriz que tinha no rosto.
— Como ele vê, então? — perguntou Iris, girando a
aliança no dedo.
— Como propaganda política e incitação ao medo. Ele
acha que estou tentando lucrar em cima das manchetes.
— Que besteira! — exclamou Attie. — Iris e eu fomos
testemunhas do ataque. Estamos trabalhando como repórteres.
Se o chanceler vê problema nisso, é porque obviamente é
simpatizante de Dacre.
— Eu sei — disse Helena, suave. — Acredite, moça. Eu
sei bem. Vocês escreveram a verdade. Escreveram sua expe-
riência, com coragem e honestidade, bem como eu precisava
que escrevessem. E, sim, o chanceler parece estar atado a
Dacre, disposto a dançar sob a coreografia do deus. Isso me
leva à questão seguinte: Verlice acha que estou tentando
causar encrenca, fazer as pessoas entrarem em pânico e se
enfurecerem. Ele nos culpa pelo vandalismo de o lugar dos
deuses é no túmulo, frase que foi, inclusive, pintada em letras
garrafais na entrada da casa dele hoje cedo.
Iris flexionou a mão. Ela se lembrava de ver a frase de
efeito destemida na caminhada matinal.

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— As pessoas têm direito às próprias opiniões e crenças
nas divindades, quer as idolatrem ou não. Não podemos con-
trolar isso.
— Foi exatamente o que eu disse a Verlice — respondeu
Helena. — Ele discorda.
— O que isso muda aqui, então? Quer que a gente pare
de escrever sobre a guerra? Que a gente finja que os deuses
não existem?
— Claro que não — respondeu Helena, bufando, mas
sua ousadia diminuiu conforme prosseguia. — E não que-
ro pedir isso de vocês, porque vocês passaram por mais do
que qualquer um aqui pode imaginar. E acabaram de voltar.
Mas, se Dacre estiver avançando ao leste com a força que
vocês viram na linha de frente… precisamos saber, espe-
cialmente se nosso querido chanceler estiver mancomuna-
do com ele. Precisamos saber quanto tempo temos antes do
deus chegar a Oath, e o que podemos fazer para nos preparar.
O coração de Iris acelerou. Ela se sentia vazia desde a
volta para Oath. Dormia, mas não sonhava. Engolia, mas não
sentia gosto. Escrevia três frases e apagava duas, como se
não soubesse como avançar.
— Precisa que voltemos à linha de frente— declarou,
sem fôlego.
Helena franziu as sobrancelhas.
— Sim, Iris. Mas não será exatamente como antes, já que
Marisol não está mais em Avalon Bluff.
— Como, então? — perguntou Attie.
— Ainda estou resolvendo os detalhes, e não tenho o que
dizer por enquanto.
Helena passou a mão pelo cabelo, deixando-o com ar ain-
da mais murcho e bagunçado do que antes.

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— E não quero respostas agora — prosseguiu. — Na
verdade, quero que vocês duas tirem o resto do dia de fol-
ga. Quero que pensem mesmo nisso e no que significa para
vocês, em vez de me darem a resposta que supõem que eu
quero ouvir. Entenderam?
Iris assentiu, imediatamente pensando em Forest. O ir-
mão não desejaria que ela partisse, e o pavor a fez engasgar
só de imaginar dar a notícia para ele.
Ela olhou de relance para Attie, sem saber o que a amiga
faria.
Porque a verdade era que Attie tinha cinco irmãos mais
novos e pais que a amavam. Tinha se matriculado em au-
las de prestígio na Universidade de Oath. Tinha muitos fios
que a amarravam ali, enquanto Iris tinha apenas um. Porém,
Attie também era musicista e escondia o violino no porão,
desafiando a lei do chanceler que obrigava a entrega de qual-
quer instrumento de corda. Tinha dado a um velho professor
ranzinza uma assinatura da Tribuna Inkridden, porque um
dia ele acreditara que a escrita dela não tinha futuro algum.
Attie nunca fora o tipo de pessoa que deixaria gente como o
chanceler Verlice ou professores caretas darem a palavra final.
E, Iris estava aprendendo rápido, ela também não era.

Nuvens escuras enchiam o céu quando Iris chegou ao par-


que na margem do rio. Ela tinha se despedido de Attie no
café da esquina, onde as duas tinham tomado um café da
manhã atrasado juntas antes de seguir o conselho de Helena.
Attie queria andar de novo pelo pátio da universidade antes
de voltar para a casa dos pais, e Iris queria visitar o parque
que ela e Forest frequentavam quando pequenos.

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Iris parou em uma pedra coberta de musgo, sentindo o
peso da maleta da máquina de escrever. Olhou para a corren-
teza rasa.
Salgueiros e bétulas cresciam, tortas, ao longo das mar-
gens sinuosas, e o ar tinha um gosto doce e úmido. Era estra-
nha a sensação de distância da cidade naquele lugar, onde os
sinos dos bondes, os estouros dos veículos e as muitas vozes
pareciam se aquietar. Por um momento, Iris imaginou-se a
quilômetros de Oath, aninhada no interior idílico, e se aga-
chou para recolher algumas pedras do rio, sentindo o choque
frio da água nos dedos.
Anos antes, Forest tinha encontrado um caracol entre as
pedras, que dera de presente para Iris. Morgie, ela o batizara,
e o levara com orgulho para casa, adotado como bicho de
estimação.
Ela sorriu, mas a lembrança era afiada e cortou seus pul-
mões como vidro.
Se me vir demais, acabará cansado de minhas tristes his-
tórias sobre caracóis, tinha datilografado um dia para Roman.
Impossível, ele tinha respondido.
Iris deixou as pedras caírem e as viu afundar no rio, res-
pingando água. Um trovão roncou no céu enquanto o vento
farfalhava as árvores. As primeiras gotas de chuva caíram nos
ombros de Iris, escorrendo pelo sobretudo como lágrimas.
Ela começou a caminhar mais rápido para casa, a chuva
caindo com vontade. Quando chegou ao prédio, estava de
cabelo encharcado, mas, felizmente, a maleta da máquina
de escrever era à prova d’água. Normalmente, não levava o
instrumento para casa depois do trabalho, mas tinha perce-
bido que não gostava de se ver sem máquina de escrever. Só
para o caso da inspiração atingi-la de madrugada.

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Iris subiu com pressa a escada externa que levava ao se-
gundo andar, as botas ressoando nos degraus de aço, mas
parou abruptamente ao ver que a porta do apartamento es-
tava entreaberta. Quando ela saíra pela manhã, Forest ainda
estava em casa, sentado no sofá, polindo os sapatos velhos.
Ele parecia relutante em sair do apartamento, e Iris se pergun-
tava se ele temia que alguém o reconhecesse e acreditasse
que tinha desertado. A verdade era muito mais complicada,
mas a maior parte do povo de Oath não entendia o que estava
acontecendo na guerra.
— Forest? — chamou Iris, se aproximando da porta que
empurrou mais um pouco, e escutou ranger nas dobradiças.
— Forest, você está aí?
Não houve resposta, mas Iris viu a luz acesa, quente e
nebulosa, lá dentro. Tinha alguém na casa dela. Um calafrio
a percorreu.
— Forest? — chamou de novo.
Não houve resposta, apenas um sopro de fumaça almis-
carada e o som de movimento.
Iris entrou pela porta.
Um homem alto e mais velho, de jaqueta de couro fino
sobre o terno escuro, se encontrava de pé em sua sala, a pou-
cos metros dela. Era um homem que ela nunca vira, mas
reconheceu assim que encontrou seu olhar, e o calafrio só fez
aumentar, transformando o sangue dela em gelo.
Ele tragou o charuto uma última vez, como se preparado
para brigar, o tabaco enrolado ainda em brasa quando o abaixou.
— Olá, srta. Winnow — disse o homem, com a voz grave.
— Onde está meu filho?

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