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Da mesma autora de:

Era uma vez um coração partido


A balada do felizes para nunca
Caraval
Lendário
Finale
sumário
Capa
Título
Folha de rosto
Ficha catalográfica
Sumário
Dedicatória
Mapa
PARTE IV
1 - Evangeline
2 - Evangeline
3 - Evangeline
4 - Apollo
5 - Evangeline
6 - Evangeline
7 - Evangeline
8 - Apollo
9 - Evangeline
10 - Evangeline
11 - Jacks
12 - Evangeline
13 - Apollo
14 - Evangeline
15 - Apollo
16 - Evangeline
17 - Evangeline
18 - Evangeline
19 - Apollo
20 - Evangeline
21 - Jacks
22 - Evangeline
23 - Evangeline
24 - Apollo
25 - Evangeline
26 - Jacks
27 - Evangeline
28 - Apollo
29 - Evangeline
30 - Evangeline
31 - Evangeline
32 - Apollo
33 - Evangeline
34 - Evangeline
35 - Apollo
36 - Evangeline
37 - Apollo
38 - Evangeline
39 - Evangeline
40 - Evangeline
41 - Evangeline
42
43 - Evangeline
44 - Apollo
45 - Jacks
46 - Evangeline
47 - Jacks
48 - Evangeline
49 - Evangeline
Epílogo
Agradecimentos
Para todos os que já tiveram esperança
de ter uma segunda chance.
1
Evangeline

E
vangeline Raposa sempre acreditou que, um dia,
quando menos esperasse, faria parte de um conto de
fadas. Quando era menina, sempre que um novo
carregamento de mercadorias chegava à loja de curiosidades
do pai, corria imediatamente para ver o que tinha nas caixas.
Examinava cada objeto e se perguntava: Será que vai ser este?
Seria o objeto que a faria cair dentro de uma fantasia?
Certa vez, chegou uma caixa enorme, contendo apenas uma
maçaneta. Maçaneta essa que era de um tom raro de verde, de
pedra preciosa, que reluzia na luz, feito mágica. Evangeline
ficou convencida de que, se encaixasse a maçaneta na porta
certa, quando ela se abrisse, teria acesso a um outro mundo, e
seu conto de fadas teria início.
A maçaneta, infelizmente, nunca deu acesso a nada fora do
comum. Mas Evangeline nunca perdeu a esperança de que, um
dia, quando menos esperasse, estaria em outro lugar.
Para Evangeline, ter esperança, imaginar e acreditar na
magia sempre foi tão natural quanto respirar. E, apesar disso,
de repente, respirar ficou muito difícil quando, por fim,
inesperadamente, encontrou-se em outro lugar, nos braços de
um belo jovem que dizia ser seu marido.
Marido. A palavra fez sua cabeça girar. Como? Como?
Como? Ela estava desconcertada demais para formular uma
pergunta que contivesse mais do que essa única palavra. Na
verdade, não conseguia sequer dizê-la em voz alta.
Se aquele rapaz não a estivesse segurando, Evangeline
poderia ter caído no chão. Era coisa demais para assimilar e
coisa demais para perder, tudo ao mesmo tempo.
Uma de suas últimas lembranças era de estar sentada ao
lado do pai, em seu leito de morte, em casa. Só que até essa
memória estava danificada. Parecia que a morte do pai era
parte de um retrato desbotado, mas não apenas isso – partes
dele haviam sido arrancadas de forma impiedosa. Evangeline
não conseguia se lembrar claramente dos meses que
antecederam a morte do pai nem de nada do que acontecera
depois disso. Não recordava sequer como ele contraíra a febre
que o matou.
Só sabia que, como a mãe, o pai falecera – e que falecera
havia um bom tempo.
– Sei que deve ser assustador. Imagino que você se sinta só,
mas você não está sozinha, Evangeline – declarou o
desconhecido que disse ser seu marido, abraçando-a mais
apertado.
O rapaz era alto, o tipo de rapaz alto que fazia Evangeline se
sentir pequena nos braços dele, um abraço tão apertado que
dava para sentir que o jovem também estava tremendo. Não
tinha como ela imaginar que o desconhecido estivesse tão
apavorado quanto ela, mas era visível que ele demonstrava
uma autoconfiança que não tinha.
– Você tem a mim… e não há nada que eu não faria por
você.
– Mas não me lembro de você – disse Evangeline.
Estava com uma certa relutância de se afastar do
desconhecido. Mas tudo aquilo era tão desconcertante… Ele
era desconcertante.
Uma ruga profunda se formou entre as sobrancelhas do
desconhecido quando ela se desvencilhou. Mas o rapaz
declarou, com toda a paciência, em um tom grave e
tranquilizador:
– Eu me chamo Apollo Acadian.
A jovem ficou esperando um clarão de reconhecimento ou
apenas uma faísca, por mais minúscula que fosse. Precisava de
algo conhecido, algo em que se segurar, para que não sentisse
mais uma vez que estava prestes a desfalecer, e Apollo olhava
para ela como se quisesse ser esse algo. Ninguém nunca olhara
para Evangeline com tanta intensidade.
O rapaz a fez pensar em heróis de contos de fadas. Ombros
largos, maxilar pronunciado, olhos castanho-escuros e
ardentes, trajes que indicavam o tipo de riqueza que evoca
imagens de baús do tesouro e castelos. Trajava um casaco
vermelho-escuro de gola alta, com requintados bordados em
dourado, nos punhos e nos ombros. Por baixo, usava uma
espécie de gibão – pelo menos, Evangeline achava que era
esse o nome daquela peça de roupa. Os homens de Valenda,
sua cidade natal, se vestiam de modo bem diferente.
Mas era óbvio que não estava mais em Valenda. Esse
pensamento trouxe uma nova onda de pânico, que fez palavras
saírem pela sua boca aos borbotões.
– Como cheguei aqui? Como nos conhecemos? Por que não
me lembro de você? – perguntou.
– Suas lembranças foram roubadas por alguém que estava
tentando nos separar.
Uma emoção passou pelos olhos castanhos de Apollo, como
se ele estivesse com raiva ou dor, Evangeline não sabia dizer.
Queria poder se lembrar dele. Mas, quanto mais tentava,
pior se sentia. A cabeça doía, e tinha a sensação de que seu
peito fora esvaziado, como se ela tivesse perdido mais do que
apenas suas lembranças. Por um segundo, a agonia foi tão
profunda e brutal que levou a mão ao coração, na esperança de
encontrar um buraco. Mas não havia nenhum ferimento. O
coração ainda estava lá, dava para sentir as batidas. Contudo,
por um instante devastador, Evangeline imaginou que não o
encontraria, que seu coração estava tão despedaçado quanto
ela.
E foi aí que lhe ocorreu, não um sentimento, mas um
pensamento: um pensamento agudo e fragmentado.
Ela tinha que contar algo importante para alguém.
Evangeline não conseguia se lembrar do que era, mas tinha
a sensação de que todo o seu mundo girava em torno daquela
única coisa que precisava contar. Só de pensar, seu sangue
ferveu. Tentou recordar que coisa era aquela e para quem
precisava contar – será que era para aquele tal de Apollo?
Será que essa era a razão de suas lembranças terem sido
roubadas?
– Por que alguém está tentando nos separar? – perguntou.
Poderia ter feito muitas outras perguntas. Poderia ter
perguntado de novo como foi que se conheceram e há quanto
tempo eram casados. Só que, de repente, Apollo aparentou
estar nervoso.
Lançou um olhar furtivo para trás de Evangeline e falou,
baixinho:
– É complicado.
A jovem seguiu o olhar do rapaz até a estranha porta de
madeira onde estava encostada. Em cada lado da porta havia
um anjo guerreiro de pedra, mas tinham uma aparência mais
realista do que estátuas de pedra deveriam ter. As asas estavam
abertas, salpicadas de sangue seco. Ao vê-las, sentiu mais uma
pontada no peito: teve a impressão de que o corpo ainda se
recordava, apesar de a mente ter esquecido.
– Você sabe o que aconteceu aqui? – perguntou Evangeline.
Por uma fração de segundo, Apollo ficou com uma cara
quase de culpa, mas poderia muito bem ser apenas de tristeza.
– Prometo que vou responder a todas as suas perguntas. Mas
agora precisamos sair daqui. Precisamos ir embora antes que
ele volte.
– Ele quem?
– O vilão que apagou todas as suas lembranças.
Apollo pegou na mão de Evangeline, amparando-a com
firmeza. Então rapidamente tirou a jovem daquele recinto,
com a porta e os anjos guerreiros.
A luz difusa do fim da manhã iluminava estantes de
manuscritos com fitilhos e pingentes, amarrados com fitas.
Dava a impressão de que estavam em uma biblioteca
antiquíssima. Mas, à medida que avançavam, parecia que os
livros ficavam cada vez mais novos.
O chão de pedra empoeirada deu lugar a um mármore
reluzente, o pé-direito foi ficando mais alto, a luz se tornou
mais dura, os manuscritos deram lugar a volumes
encadernados com couro. Mais uma vez, Evangeline tentou
procurar algo de conhecido naquela luz do fim da manhã. Algo
que pudesse fazê-la recordar. Seus pensamentos estavam
menos turvos, mas nada lhe era familiar.
Era mesmo outro lugar, e, pelo jeito, estava ali havia tempo
suficiente para conhecer heróis e vilões e se encontrar no meio
de uma batalha entre eles.
– Quem? – insistiu. – Quem roubou minhas lembranças?
Apollo perdeu o passo. Em seguida, começaram a andar
mais rápido do que antes.
– Prometo que vou te contar tudo, mas temos que sair
daqui…
– Por todas as deusas! – exclamou alguém.
Evangeline se virou e deu de cara com uma mulher de trajes
brancos, parada no meio das estantes de livros. A mulher –
uma espécie de bibliotecária, ela supôs – encostou a mão na
boca e cravou o olhar. Sua expressão era de assombro, olhos
arregalados e fixos, pousados em Apollo.
Outra bibliotecária apareceu no corredor. Esta soltou um
suspiro de assombro e desmaiou prontamente, derrubando uma
pilha de livros, bem na hora que a primeira bibliotecária
gritou:
– É um milagre!
Mais bibliotecários e estudiosos apareceram, todos gritando
exclamações semelhantes.
Evangeline se encolheu nos braços de Apollo, porque não
demorou para os dois ficarem cercados de gente. Primeiro
pelos bibliotecários, depois por criados e cortesãos. E, por fim,
chegaram guardas de peito largo e armaduras reluzentes, que
entraram correndo, sem dúvida atraídos pelos clamores.
O cômodo em que estavam devia ter um pé-direito de pelo
menos 13 metros. Mas, de repente, parecia pequeno e
sufocante, porque mais e mais pessoas desconhecidas foram se
aproximando do casal.
– Ele voltou…
– Ele está vivo…
– É um milagre! – repetiram todos, agora com um tom
respeitoso e lágrimas escorrendo pelo rosto.
Evangeline não sabia o que estava acontecendo. Tinha a
sensação de que estava testemunhando o tipo de coisa que
costuma acontecer em igrejas. Seria possível que tivesse se
casado com um santo?
Olhou para Apollo e tentou recordar o sobrenome dele.
“Acadian”, o rapaz dissera. Ela não conseguia se lembrar de
nem mesmo uma única história a respeito de Apollo Acadian,
mas era óbvio que essas histórias existiam. Ao conhecê-lo,
imaginou que era alguma espécie de herói, mas aquelas
pessoas olhavam para Apollo como se ele fosse ainda mais do
que isso.
– Quem é você? – sussurrou Evangeline.
Apollo aproximou a mão dela dos lábios e deu um beijo em
seus dedos que a fez estremecer.
– Sou aquele que jamais vai permitir que alguém te faça mal
novamente.
Algumas das pessoas próximas suspiraram ao ouvir essas
palavras.
Então Apollo levantou a outra mão para as pessoas que
cochichavam, em um gesto que universalmente significa
“calem-se”.
Elas silenciaram na mesma hora. Algumas até ficaram de
joelhos.
Foi estranho ver tanta gente se calar tão depressa – parecia
que nem sequer respiravam enquanto a voz de Apollo ecoava
sobre suas cabeças.
– Percebo que alguns de vocês estão com dificuldade para
acreditar no que estão vendo. Mas o que veem é real. Estou
vivo. Quando saírem daqui, contem para todo mundo que
encontrarem pela frente que o Príncipe Apollo morreu e
enfrentou o inferno para conseguir voltar.
“Príncipe.” Evangeline mal teve tempo de processar essa
palavra e tudo o que a acompanhava – porque, quase no
mesmo instante em que Apollo terminou de falar, soltou a mão
dela e tirou o gibão de veludo, depois a camisa de linho.
Várias das pessoas ali reunidas soltaram um suspiro de
assombro, incluindo Evangeline.
O peito de Apollo era perfeito, lisinho e musculoso, e, logo
acima do coração, tinha uma tatuagem vibrante – duas espadas
formando um coração, com um nome no meio: “Evangeline”.
Até aquele momento, tudo lhe parecia um delírio febril do
qual poderia ter acordado. Mas ver o próprio nome no peito de
Apollo lhe deu uma sensação de perpetuidade, coisa que não
havia sentido ao ouvir as palavras dele. Aquele rapaz não era
um desconhecido. Era alguém que a conhecia intimamente, ao
ponto de gravar o nome de Evangeline no próprio coração.
Em seguida, Apollo se virou, exibindo outra imagem que
aturdiu não apenas Evangeline, mas todos os presentes. As
belas, altivas e retas costas de Apollo estavam cobertas por
uma teia de violentas cicatrizes.
– Estas marcas são o preço que paguei para poder voltar! –
gritou ele. – Quando digo que enfrentei o inferno, estou
falando sério. Mas eu tinha que voltar. Tinha que consertar o
que foi feito de errado na minha ausência. Sei que muitos de
vocês acreditam que foi meu irmão, Tiberius, quem me matou.
Mas não foi ele.
Murmúrios chocados se espalharam entre as pessoas ali
reunidas.
– Fui envenenado por um homem que eu acreditava ser meu
amigo – vociferou Apollo. – Lorde Jacks é o homem que me
matou. Ele também roubou as lembranças da minha esposa,
Evangeline. Não descansarei enquanto Jacks não for
encontrado e pagar com a própria vida por seus crimes!
2
Evangeline

V
ozes ecoaram pelas paredes com estantes de livros
sem fim, porque a biblioteca entrou em polvorosa. Os
guardas de armadura juraram que encontrariam o
criminoso Lorde Jacks, ao passo que cortesãos de trajes
refinados e estudiosos de túnica lançaram perguntas, feito uma
saraivada de flechas.
– Há quanto tempo está vivo, Alteza?
– Como o senhor voltou do inferno, Senhor Príncipe?
– Por que Lorde Jacks roubou suas lembranças? – Esse
questionamento, vindo de um cortesão mais velho, foi dirigido
a Evangeline e pontuado por um olhar tenebroso, de olhos
espremidos.
– Já chega – interrompeu Apollo. – Eu não lhes contei a
respeito dos horrores que minha esposa teve de passar para
que ela fosse atacada com perguntas das quais não faz ideia da
resposta. Revelei essa informação porque quero que Lorde
Jacks seja encontrado, vivo ou morto. Sendo que, neste exato
momento, prefiro morto.
– Não vos decepcionaremos! – gritaram os guardas.
Mais manifestações acerca de justiça e Jacks sacudiram as
estantes da biblioteca antiquíssima e latejaram na cabeça de
Evangeline. De repente, tudo aquilo era demais. O barulho, as
perguntas, a enchente de rostos desconhecidos, aquela história
de ter escapado do inferno que Apollo tinha contado.
Não paravam de falar, mas as palavras se tornaram um
zumbido nos ouvidos da jovem.
Evangeline queria se agarrar a Apollo – o rapaz era tudo o
que ela possuía naquela nova realidade. Mas também era um
príncipe poderoso, o que lhe dava a sensação de que não era
tão dela assim, era mais de todos. Ficou com receio de
perturbá-lo fazendo mais perguntas, apesar de ter tantas. Nem
mesmo sabia quem ela era.
De onde estava, conseguia enxergar uma janela oval com
lugar para sentar, debaixo de um arco de estantes de livros. A
janela tinha vidro azul-claro e, lá fora, havia pinheiros
verdejantes da altura de torres, cobertos por uma pitoresca
camada de neve. Raramente nevava em Valenda e nunca com
tanta intensidade. Parecia que aquele mundo era um bolo, e a
neve, colheradas de um glacê branco e espesso.
Como já havia percebido, a moda ali também era diferente.
Os guardas mais pareciam cavaleiros de lendas antigas, e os
cortesãos usavam trajes formais, parecidos com os de Apollo.
Os homens trajavam gibões. As mulheres usavam elaborados
vestidos de veludo, longos, com decote ombro a ombro e
cintura baixa, enfeitada com cintos de brocado ou fios de
pérolas.
Evangeline nunca havia visto gente vestida daquela
maneira. Mas já tinha ouvido falar.
Sua mãe nascera no Magnífico Norte e havia lhe relatado
incontáveis lendas daquela terra, contos de fadas que davam a
impressão de que aquele era o lugar mais encantado do
mundo.
Infelizmente, Evangeline estava longe de se sentir
encantada naquele momento.
Apollo cruzou o olhar com o dela e deu as costas para o
grupo cada vez menor de pessoas que os cercava. Ao que tudo
indicava, alguns já tinham saído para espalhar a notícia de que
o príncipe Apollo voltara dos mortos. E por que não fariam
isso? Evangeline jamais tivera notícia de alguém que voltou
dos mortos. Essa ideia a fez se sentir muito pequena ao lado
dele.
Poucas pessoas continuavam ali, mas Apollo ignorou todas
e ficou olhando nos olhos de Evangeline.
– Você não precisa ter medo de nada.
– Não estou com medo – mentiu ela.
– Você está me olhando de um jeito diferente. – Então ele
deu um sorriso tão encantador que Evangeline ficou pensando
como não o reconhecera imediatamente.
– Você é um príncipe – balbuciou.
Apollo deu um sorriso ainda mais largo.
– Isso seria um problema?
– Não. Eu… só…
Evangeline quase falou que nunca se imaginara casada com
um príncipe.
Mas é claro que já tinha imaginado. Só que suas fantasias
não eram tão elaboradas assim. Aquela situação ia além de
qualquer sonho em tom pastel que ela já tivera com a realeza,
castelos e lugares longínquos. Mas a jovem trocaria tudo
aquilo apenas por poder se lembrar de como havia chegado ali,
de como havia se apaixonado e se casado com aquele homem
e perdido – essa era a sensação que tinha – uma parte do
próprio coração.
E foi aí que se deu conta. Nos contos de fadas, sempre há
um preço a pagar pela magia. Nada é de graça: plebeias que se
tornam princesas sempre têm um preço a pagar. E, de repente,
Evangeline pensou que as lembranças que perdera poderiam
ser o preço a pagar por tudo aquilo.
Será que dera suas lembranças, assim como parte do próprio
coração, em troca de ficar com Apollo? Será que poderia ter
sido tão tola assim?
O sorriso de Apollo se suavizou, passou de debochado a
tranquilizador. Quando falou, também foi com um tom mais
suave, como se sentisse parte do que Evangeline sentia. Ou
talvez fosse só porque a conhecia bem, mesmo que ela não o
conhecesse. Afinal de contas, o príncipe tinha o nome da
jovem tatuado na altura do coração.
– Tudo vai ficar bem – declarou, baixinho, com um tom
firme. – Sei que é muita coisa para assimilar. Odeio ter que te
deixar sozinha, mas preciso resolver algumas coisas e,
enquanto isso, meus guardas vão te acompanhar até seus
aposentos. Mas vou tentar voltar logo. Juro que não há nada
mais importante para mim do que você.
Apollo deu mais um beijo na mão de Evangeline e lhe
lançou um último olhar. Então foi embora, seguido pela guarda
pessoal.
A jovem ficou ali parada, sentindo-se imediatamente só,
explodindo de tantas perguntas para as quais não tinha
respostas. Se Apollo tinha acabado de voltar dos mortos, como
já sabia o que tinha acontecido com ela? Talvez o príncipe
estivesse equivocado ao pensar que Lorde Jacks roubara suas
lembranças. Talvez Evangeline tivesse razão ao pensar que
fora tola de tê-las trocado – o que a fez pensar que poderia
pedi-las de volta.
Essa pergunta a assombrou enquanto acompanhava os
guardas que Apollo designara para escoltá-la pelo castelo. Não
falaram muito, mas lhe contaram que o castelo do príncipe se
chamava Paço dos Lobos. Fora construído pelo primeiro rei do
Magnífico Norte, o famoso Lobric Valor, o que fez a jovem
pensar em todas as lendas do Norte que a mãe tinha lhe
contado.
Comparado ao lugar onde Evangeline havia crescido, o
Norte dava a impressão de ser absurdamente antigo; parecia
que cada uma das pedras tocadas por seus pés guardava um
segredo de tempos remotos.
Um dos corredores era cheio de portas e todas tinham
maçanetas das mais elaboradas. Uma era em forma de dragão,
outra parecia asas de fada, e então uma em formato de cabeça
de lobo, com uma linda coroa feita de flores. Eram do tipo de
maçaneta que fazia Evangeline ficar tentada a abri-las, a
suspeitar de que tinham uma certa vida própria, como aquele
sininho que ficava pendurado do lado de fora da porta da loja
de curiosidades do pai.
Sentiu uma flechada de pesar ao pensar naquilo – não só no
sininho, mas na loja, nos pais e em tudo o que havia perdido.
Foi uma avalanche estonteante, que a atingiu tão de repente
que ela só se deu conta de que havia parado de andar quando
um guarda de bigode ruivo e volumoso se aproximou e
perguntou:
– A senhora está bem, Alteza? Precisa que um de nós a leve
no colo?
– Ah, não – respondeu Evangeline, ficando mortificada na
mesma hora. – Meus pés estão funcionando perfeitamente. É
só muita coisa para assimilar. O que é este corredor?
– Esta é a ala dos Valor. A maioria das pessoas acha que
esses eram os quartos das crianças da família, mas ninguém
sabe ao certo. Estas portas estão trancadas desde que eles
morreram.
Mas você poderia nos abrir.
A voz estranha parecia ter vindo de uma das portas.
Evangeline olhou para cada um de seus acompanhantes, mas
nenhum deles dava indícios de ter ouvido. Então, fingiu que
tampouco tinha ouvido. Evangeline já estava em uma situação
difícil. Não precisava piorar as coisas dizendo que ouvia vozes
vindas de objetos inanimados.
Ainda bem que isso não se repetiu. Quando os guardas por
fim pararam diante de uma porta dupla toda ornamentada, as
maçanetas de pedras preciosas brilharam, mas não disseram
nem uma palavra. Quando se abriram, fizeram apenas um
suave vush, revelando os aposentos mais opulentos que a
jovem já vira na vida.
Era tudo tão encantador que ela teve a sensação de que
haveria harpas tocando e passarinhos cantando. Tudo era
cintilante, dourado e coberto de flores. No aposento, com pé-
direito de quase 6 metros, buquês de lírios emolduravam a
lareira que ia do chão até o teto, e ramos de estrelas-do-
pântano brancas se enroscavam nos pilares da cama. Até a
enorme banheira de cobre que Evangeline avistou no banheiro,
que ficava logo adiante, estava cheia de flores – a água
fumegante era cor de violeta, coberta de pétalas delicadas,
brancas e cor-de-rosa.
Ela foi até a banheira e mergulhou os dedos na água. Tudo
era perfeito.
Até as criadas que entraram para ajudá-la a se banhar e a se
vestir eram absolutamente lindas. E eram em número
surpreendente, quase uma dúzia. Tinham vozes suaves e mãos
leves, que a ajudaram a colocar um vestido delicado como um
sussurro.
O vestido era um modelito sem alças, de tule rosado bem
claro com mangas transparentes enfeitadas com laços pink. Os
mesmos laços contornavam o decote profundo do traje, depois
se enroscavam, formando pequenos botões de rosas que
cobriam o corpete justo na parte do peito. A saia vaporosa
fluía e esvoaçava até chegar aos dedos dos pés. Uma criada
completou o visual trançando o cabelo ouro rosê de
Evangeline, formando uma coroa, que enfeitou com um
diadema de flores douradas.
– Se me permite dizer, a senhora está linda, Alteza.
– Obrigada…
– Martine – completou a criada, para que Evangeline não
ficasse envergonhada, tentando lembrar do nome. – Também
sou natural do Império Meridiano. O príncipe achou que eu
poderia ajudá-la a se adaptar mais facilmente.
– Ao que parece, o príncipe é muito atencioso.
– Acho que, quando se trata da senhora… ele tenta pensar
em tudo.
Martine sorriu, mas o jeito levemente titubeante de sua
resposta fez Evangeline parar para pensar por um segundo,
tomada por um sentimento fugidio de que Apollo era bom
demais para ser verdade. Assim como tudo aquilo.
Quando Evangeline ficou sozinha e se olhou no espelho, viu
o reflexo de uma princesa. Aquilo era tudo o que ela poderia
querer.
Só que não se sentia uma princesa.
Sentia-se um ideal de princesa, com os devidos vestido,
príncipe e castelo, mas também se sentia sem. Tinha a
sensação de que estava apenas usando uma fantasia, que
assumira um papel que não podia simplesmente rechaçar, mas
que tampouco conseguia assumir qualquer outro. Porque tinha
a sensação de que também não era mais a pessoa que já tinha
sido, aquela garota que jamais perdia a esperança, que
acreditava em contos de fadas, amor à primeira vista e finais
felizes.
Se ainda acreditasse em tudo aquilo, seria muito mais fácil
aceitar o que estava acontecendo, seria muito mais fácil não
querer fazer tantas perguntas.
Mas algo acontecera com aquela garota – com ela. E
Evangeline não podia ignorar que se tratava de algo que ia
muito além de suas lembranças perdidas.
O coração ainda doía, como se tivesse sido partido e só
sobrassem alguns cacos. Levou a mão ao coração, como se
quisesse impedir que outros pedaços se partissem. E, mais uma
vez, foi tomada pela sensação inescapável de que, no meio de
tudo o que havia esquecido, tinha algo que era mais importante
do que todo o resto, mais importante do que tudo.
Havia algo absolutamente crucial que ela precisava contar
para alguém. Mas, por mais que tentasse, não conseguia se
lembrar do que era nem para quem precisava contar.
3
Evangeline

E
vangeline tinha apenas uma vaga consciência de que o
sol estava se pondo e a escuridão se instalava
lentamente em seus aposentos, enquanto andava de um
lado para o outro em cima dos tapetes, em um esforço
desesperado para se lembrar de qualquer coisa que fosse.
Torcia para que, quando Apollo voltasse, lhe desse mais
respostas. Mas, quando a porta de seus aposentos finalmente
se abriu, em vez do príncipe, deu de cara com um médico
idoso e dois aprendizes mais jovens.
– Sou o dr. Irvis Stillgrass – disse o mais velho dos médicos,
um homem de barba e óculos empoleirados na ponta do nariz
comprido. – Telma e Yrell são meus aprendizes. – Apontou
para os demais. – Vossa Alteza pediu para lhe fazermos
algumas perguntas e averiguar exatamente o quanto de suas
lembranças fora roubado.
– O senhor teria algum modo de trazê-las de volta? –
perguntou Evangeline.
O dr. Stillgrass, Telma e Yrell apertaram os lábios ao
mesmo tempo. Uma reação que Evangeline interpretou como
“não”. Isso não a surpreendeu, o que foi quase tão perturbador.
Ela, quase sempre, era do tipo esperançosa, mas, naquele
momento, não conseguia invocar essa esperança. Voltou a
imaginar o que teria acontecido com ela.
– Por que a senhora não se senta, princesa?
O dr. Stillgrass apontou para uma poltrona capitonê que
havia perto da lareira, e Evangeline obedeceu.
Os médicos permaneceram em pé, bloqueando a visão da
jovem, enquanto o dr. Stillgrass fazia as perguntas.
– Quantos anos a senhora tem?
– Tenho…
Evangeline precisou parar para pensar. Uma de suas últimas
memórias nítidas era de quando tinha 16 anos. O pai ainda era
vivo, e a ela recordava vagamente do sorriso dele ao abrir uma
nova caixa de mercadorias. Mas era só disso que conseguia se
lembrar.
O restante dessa lembrança era embaçado, feito uma vidraça
suja que dá a impressão de formar uma imagem, mas que não
mostra de fato o que é. Evangeline tinha certeza de que o pai
morrera alguns meses depois desta vaga lembrança, mas não
conseguia recordar de nenhum detalhe. Apenas tinha certeza,
em seu coração, de que ele havia falecido e que mais tempo se
passara desde então.
– Acredito que 17.
Telma e Yrell deram a impressão de fazer anotações quando
ela respondeu, e o dr. Stillgrass fez mais uma pergunta:
– Qual é a primeira lembrança de ter conhecido o príncipe
Apollo que lhe vem à mente?
– Hoje. – Evangeline ficou alguns segundos em silêncio. –
O senhor sabe quando foi que nos conhecemos de fato?
– Estou aqui para perguntar, não para responder – disse o dr.
Stillgrass, ríspido, e continuou fazendo perguntas: por acaso
ela se lembrava do noivado com Apollo, do casamento, da
noite em que ele morreu?
– Não.
– Não.
– Não.
Era a única resposta que Evangeline podia dar e, sempre que
ela tentava devolver as perguntas, o dr. Stillgrass se recusava a
responder.
Em algum momento do interrogatório, outro cavalheiro
entrou no recinto. Evangeline mal percebeu quando o homem
entrou, mas de repente lá estava ele, parado logo atrás de
Telma e Yrell. Usava um traje bem parecido com o dos outros
dois, uma calça preta e justa e uma túnica longa e acinturada
de couro marrom com duas tiras igualmente de couro que
prendiam diversas facas e frascos de um lado e um suporte
para um caderno do outro. O caderno estava nas mãos dele,
mas aquele médico anotava as coisas de um jeito diferente dos
demais aprendizes.
O jovem escrevia com floreios, balançando a caneta de pena
de um jeito que obrigava Evangeline a ficar olhando para ele
sem conseguir parar. Quando percebeu que ela estava
observando, o desconhecido deu uma piscadela e encostou o
dedo nos lábios, fazendo sinal para a jovem não dizer nada.
E, por algum motivo, ela não disse.
Evangeline tinha a sensação de que aquela pessoa não
deveria estar ali, apesar de estar vestida como os demais. Mas
o rapaz era o único do grupo que dava a impressão de sentir
algo por ela, em seu esforço para obter respostas. Balançava a
cabeça, incentivando, sorria para Evangeline com empatia e,
toda vez que o dr. Stillgrass dizia algo especialmente
grosseiro, revirava os olhos.
– Está confirmado que suas lembranças do último ano foram
completamente apagadas – declarou o dr. Stillgrass, de um
jeito presunçoso e deveras insensível. – Vamos relatar esse
fato para o príncipe, e um de nós três retornará todos os dias
para ver se alguma lembrança voltou.
O trio de médicos deu as costas. O dr. Stillgrass passou pelo
jovem sem nem mesmo lhe dirigir o olhar, mas Yrell e Telma
notaram sua presença.
– Doutor… – Telma começou a dizer.
Mas Yrell, que dava a impressão de estar levemente
maravilhado com a presença do intruso, puxou a manga da
túnica dela, impedindo que Telma falasse mais alguma coisa.
O trio saiu do quarto em seguida.
O jovem sem nome foi o único que permaneceu ali.
Aproximou-se de Evangeline e tirou do bolso um cartão
vermelho e retangular.
– Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, não teria
acreditado – falou, baixinho. – Lamento que tenha perdido
suas lembranças. Se um dia quiser conversar e, quem sabe,
fazer algumas perguntas, talvez eu consiga preencher algumas
lacunas para a senhora.
Então entregou o cartão para Evangeline.
Kristof Knightlinger
Atalaia Sul
Pináculos
– Que tipo de pergunta…? – Evangeline começou a
perguntar quando terminou de ler o curioso cartão.
Só que o cavalheiro já havia ido embora.
O fogo crepitou.
Evangeline acordou assustada, embora não tivesse a
intenção de ter pegado no sono. Estava encolhida na poltrona
da lareira, onde ficara, intrigada com o cartãozinho vermelho
que Kristof Knightlinger lhe dera. Ainda conseguia senti-lo em
sua mão.
Também sentia mais alguma coisa. Os braços de um homem
passando por baixo de seu corpo, pegando-a no colo com todo
o cuidado e abraçando-a contra o peito, que cheirava a
bálsamo e algo amadeirado.
Apollo.
O estômago dela embrulhou.
Não conseguia ter absoluta certeza de que era Apollo quem
a pegava no colo. Ainda estava de olhos fechados e se sentia
tentada a permanecer assim. Não sabia a explicação para esse
ímpeto de fingir nem por que o coração batia mais acelerado
ao ser carregada por ele. Apollo devia ter a resposta para, pelo
menos, algumas de suas perguntas. Mesmo assim, a jovem
sentiu um medo inesperado de perguntar para o príncipe.
Ainda não sabia ao certo se era pelo fato de ele ser um
príncipe ou pelo fato de ele ainda ser um desconhecido.
Os braços se fecharam em torno do corpo de Evangeline,
que ficou tensa. Mas, em seguida, teve a sensação repentina de
que estava começando a se lembrar de alguma coisa. Não era
muito, apenas uma vaga lembrança de que alguém a pegava no
colo e a carregava, seguida de um pensamento.
Ele a carregaria e não seria apenas por águas congelantes.
Ele a tiraria de um incêndio se fosse necessário, a arrancaria
das garras da guerra, de cidades desmoronadas e mundos
caindo aos pedaços…
Esse pensamento fez algo se libertar dentro de Evangeline e,
por um segundo, ela se sentiu segura. Mais do que segura, na
verdade. Mas não tinha as palavras certas para denominar o
sentimento com precisão. Só sabia que nunca havia sentido
aquilo antes – um nível profundo de proteção.
Lentamente, foi entreabrindo os olhos. Lá fora, a noite caíra
por completo, e dentro do quarto havia apenas a luz da lareira,
que cobria boa parte do recinto com um manto de sombras,
menos o príncipe que a carregava. A luz se grudava nele,
dourando as pontas do cabelo castanho-escuro e o maxilar
pronunciado, enquanto Apollo carregava Evangeline até a
cama.
– Desculpe – murmurou o rapaz. – Não queria te acordar,
mas fiquei com a impressão de que você não estava
confortável na poltrona.
Delicadamente, o príncipe a pousou em cima de uma colcha
de plumas. Em seguida, deu um beijinho rápido no rosto dela.
Foi tão suave que a jovem poderia nem ter sentido, caso não
estivesse prestando tanta atenção em cada movimento do
rapaz, no deslizar lento de suas mãos quentes soltando seu
corpo.
– Bons sonhos, Evangeline.
– Espere.
Ela segurou a mão do príncipe.
A surpresa tingiu seus traços por breves instantes.
– Você gostaria que eu ficasse?
“Sim” era a resposta mais provável.
Os dois eram casados.
Ele era um príncipe.
Um príncipe imponente.
Um príncipe muito atraente.
Um príncipe pelo qual Evangeline teria sacrificado muita
coisa, só para ficar com ele.
Apollo acariciou a mão de Evangeline com o polegar e
ficou esperando pacientemente que ela respondesse.
– Desculpe por eu não me lembrar de você… Estou
tentando – sussurrou ela.
– Evangeline – Apollo apertou a mão dela de leve. – A
última coisa que quero é que você sofra, e estou vendo o
quanto está sofrendo por ter esquecido tanta coisa. Mas, se
você jamais se lembrar, não será um problema. Criaremos
outras lembranças juntos.
– Mas eu quero lembrar. – E, mais do que isso, ela sentia
que precisava lembrar. Ainda sentia a necessidade premente
de contar algo absolutamente importante para alguém, mas não
conseguia recordar que algo crucial era esse nem para quem
precisava contar. – E se houver uma maneira de recuperar
minhas lembranças? – perguntou. – Talvez a gente possa fazer
um tipo de trato com o homem que as roubou.
– Não. – Apollo sacudiu a cabeça, com veemência. –
Mesmo que isso fosse possível, não valeria a pena correr o
risco. Lorde Jacks é um monstro – completou, ríspido. – Ele
me envenenou na nossa noite de núpcias e incriminou você
pelo assassinato. Enquanto eu estava morto, você quase foi
executada. Jacks não tem escrúpulos, não sente remorso. Se eu
achasse, ao menos por um segundo, que ele poderia ajudá-la,
faria o que fosse preciso para trazê-lo até você. Mas, se Lorde
Jacks um dia te encontrar, temo que jamais a verei de novo…
Apollo respirou fundo e, quando tornou a falar, foi com um
tom bem mais ameno.
– Mal consigo imaginar como deve ser difícil abrir mão
disso, mas realmente é melhor assim, Evangeline. Jacks fez
coisas atrozes e imperdoáveis, e eu realmente acredito que
você será mais feliz se tais coisas continuarem esquecidas.
4
Apollo
O falecido rei Roland Titus Acadian sempre desdenhou da
palavra “bom”. Bom era coisa de criados, plebeus e outras
pessoas que não têm personalidade. Um príncipe deveria ser
esperto, formidável, sábio, ardiloso, até cruel, caso necessário
– mas bom nunca.
O rei Roland costumava dizer ao filho Apollo:
– Se você for bom, significa que é só isso e nada mais.
Pessoas são boas porque precisam ser. Mas, como você é um
príncipe, precisa ser mais do que isso.
Quando era menino, Apollo interpretou esse conselho como
uma permissão para ser displicente com a própria vida e com
as outras pessoas. Não era cruel, mas tampouco era a
personificação de alguma das virtudes que o pai enaltecia.
Apollo sempre imaginou que teria tempo para se tornar
esperto, formidável, sábio ou ardiloso. Nunca lhe ocorreu que,
nesse meio-tempo, estava se tornando outra coisa.
O príncipe se deu conta dessa verdade alarmante assim que
acordou do estado de sono suspenso em que fora colocado por
Lorde Jacks, seu ex-amigo. Quando descobriu que todos no
Magnífico Norte acreditavam que estava morto, Apollo ficou
na expectativa de encontrar enormes coroas de flores e hordas
de carpideiras renitentes, ainda chorando por ele, mesmo que o
período de luto oficial tivesse chegado ao fim.
Em vez disso, encontrou um reino que já tinha virado a
página. No decorrer de uma quinzena, Apollo se tornara nada
mais que uma nota de rodapé, lembrado com uma única e
corriqueira palavra publicada em um tabloide.
Enquanto estivera sob o efeito da maldição do Arqueiro,
chegara às suas mãos uma edição específica do tabloide,
publicada no dia seguinte ao seu suposto assassinato. O jornal
mencionava apenas que ele tinha morrido. Uma única palavra,
“amado”, foi empregada para descrevê-lo, mas foi só isso. O
jornal não comentava seus grandes feitos nem seus atos de
bravura. E como poderia mencionar qualquer coisa, já que,
basicamente, os feitos do príncipe consistiam em posar para
retratos?
Apollo mal conseguia suportar a visão desses retratos agora,
ao andar pelo Paço dos Lobos para encontrar o sr. Kristof
Knightlinger, de O Boato Diário.
Esta era sua segunda chance, uma oportunidade de, por fim,
tornar-se mais, como o pai insistia. Depois de seu chocante
retorno dos mortos no dia anterior, o príncipe percebeu que as
pessoas olhavam para ele de um jeito diferente. Falavam mais
baixo, baixavam a cabeça com mais prontidão e o olhavam
com uma expressão maravilhada, como se ele fosse mais do
que um reles mortal.
E, apesar disso, Apollo nunca havia se sentido tão humano,
tão vulnerável nem tão infeliz.
Era tudo mentira. Ele jamais retornara dos mortos. Fora
apenas amaldiçoado, amaldiçoado de novo, e amaldiçoado
outra vez. Naquele momento, pela primeira vez em quase três
meses, não estava sob o efeito de nenhum feitiço e, mesmo
assim, se sentia amaldiçoado pelo que havia feito com
Evangeline.
Apollo achava que, assim que se libertasse da maldição do
Arqueiro, pensaria menos na jovem. A maldição havia
obrigado o príncipe a caçá-la. Sob essa influência, pensava em
Evangeline a cada segundo. A cada instante, imaginava onde
ela poderia estar e o que estaria fazendo. A imagem de seu
rosto angelical era uma constante em seus pensamentos.
Apollo só queria a jovem – e, quando a encontrou, só queria
eviscerá-la.
Agora, ainda a desejava, mas de outra maneira. Quando a
viu, não teve vontade de matá-la. Teve vontade de protegê-la.
De garantir sua segurança.
Foi por isso que Apollo apagou as lembranças de
Evangeline.
Sabia que seria melhor assim. Jacks a enganara, assim como
enganara Apollo, convencendo-o a ser seu amigo. Se
Evangeline caísse novamente no feitiço de Jacks, ele apenas a
destruiria. Mas Apollo a faria feliz. Transformaria a jovem em
uma rainha que seria amada e idolatrada. Tudo o que havia
feito a ela no passado compensaria, desde que Evangeline
jamais descobrisse.
Se um dia ela descobrisse que o príncipe roubara suas
lembranças, tudo iria desmoronar.
Só havia mais uma pessoa que sabia que Apollo roubara as
lembranças de Evangeline. Porém, se tudo corresse bem
naquele dia, o príncipe não teria mais que se preocupar com
ela. E, com relação a encontrar Jacks, Apollo tinha a esperança
de que a entrevista que daria naquela manhã pudesse ajudar.
Ele chegou à pequena sala na torre onde combinara de
encontrar o jornalista. Normalmente, preferia cenários mais
grandiosos: salões com muita luz, janelas e decorações que
impossibilitariam esquecer que Apollo era da realeza. Mas,
naquele dia, escolhera uma sala na torre, sem adornos, para
garantir que ninguém ouviria a conversa.
Kristof Knightlinger ficou de pé e fez uma reverência assim
que o príncipe pôs os pés na sala.
– Que bom vê-lo vivo e com uma aparência tão excelente,
Alteza.
– Tenho certeza de que meu retorno também ajuda muito a
vender jornais – respondeu o príncipe.
Talvez ainda estivesse um tanto ressentido por causa do
pouco estardalhaço póstumo que fizeram para ele.
É claro que o jornalista não deu indícios de ter reparado
nisso.
Kristof deu um sorriso entusiasmado. Sempre dava a
impressão de estar de bom humor. Seus dentes eram brancos
como o jabô de renda que adornava seu pescoço.
– Esta entrevista também irá ajudar. Obrigado por ter tirado
um tempo para me receber nesta manhã. Sei que meus leitores
têm muitas perguntas a respeito de o senhor ter voltado dos
mortos, de como o senhor se sentia estando morto, se
conseguia ver o que acontecia entre os vivos.
– Não responderei nenhuma dessa perguntas hoje – declarou
Apollo, com um tom categórico.
O sorriso do jornalista se desfez.
– Gostaria que a sua reportagem tratasse dos atos
desonrosos cometidos por Lorde Jacks e da suma importância
de que ele seja capturado o quanto antes.
– Alteza, não sei se o senhor está sabendo, mas eu já
comentei os delitos do lorde na edição matutina.
– Então comente de novo e faça os delitos dele parecerem
mais graves. Até que esse criminoso seja capturado, quero que
seus crimes sejam publicados todos os dias. Quero que o nome
desse homem se torne sinônimo de vileza. Não só por mim,
mas pela princesa Evangeline e por todo o Magnífico Norte.
Assim que Lorde Jacks for capturado, vou lhe conceder a
entrevista que quer, responderei a todas as suas perguntas.
Mas, até lá, peço que publique o que eu preciso que você
publique.
– Farei isso, Alteza – disse Kristof, com um sorriso
simpático.
Mas não era o mesmo sorriso de antes. Não era o seu bom
humor natural. Era um sorriso bom, que só foi dado porque
Apollo era príncipe e Kristof não podia fazer nada a não ser
sorrir.
Um sorriso que fez Apollo sentir algo muito parecido com
culpa se remoer dentro dele. Por um instante, chegou a pensar
em fazer menos exigências. Então se lembrou que o pai havia
dito para nunca ser bom.
Depois de se reunir com Kristof, Apollo quis ver como
Evangeline estava. É claro que criados lhe informavam
constantemente do estado dela. Até aquele momento, haviam
dito que a princesa estava bem, gozando de boa saúde, e que
ainda não havia recobrado nenhuma lembrança.
Apollo torcia para que Evangeline desistisse de pensar em
recuperar as próprias lembranças, depois de tê-la alertado em
relação a isso na noite anterior. Mas a Evangeline que
conhecia não era de desistir. Dera um jeito de curá-lo da
maldição do Arqueiro. O príncipe achava que, se tivesse a
oportunidade, também daria um jeito de encontrar as
lembranças que lhe faltavam. Sendo assim, Apollo planejava
não lhe dar essa oportunidade.
Já preparara tudo para garantir que a esposa ficasse
completamente ocupada naquela manhã. Gostaria que a
princesa se ocupasse dele, mas teriam oportunidade de fazer
isso depois.
Antes, Apollo tinha mais um assunto a resolver.
O Conselho das Grandes Casas.
No dia anterior, reunira-se com alguns dos integrantes do
conselho para provar que não era um impostor e que realmente
voltara dos mortos. Depois disso, houve uma longa discussão a
respeito do que fazer com o herdeiro impostor que tentara
roubar o trono de Apollo. Coisa que, contudo, revelou-se ser
completamente desnecessária, dado que o fedelho, ao que tudo
indicava, fugira em algum momento dessa discussão.
Ao que tudo indicava, o herdeiro impostor fora alertado por
duas criadas que haviam se enamorado dele.
Apollo destacou diversos guardas para prendê-lo. Mas, por
enquanto, o impostor não era a sua prioridade.
O príncipe diminuiu o passo ao se aproximar da porta que
levava à câmara onde o conselho se reunia. O recinto em
questão sempre fez Apollo pensar em um enorme cálice de
estanho. As paredes eram levemente abauladas, e o ar tinha
um toque sutil de prateado, o que conferia uma característica
afiada, de espada, a tudo. No meio do salão, havia uma mesa
de carvalho branco envelhecido que, segundo diziam, estava
ali desde a época do primeiro rei do Magnífico Norte, Lobric
Valor. Um homem enrugado, de outra era, que agora estava
por trás da cabeceira oposta da mesa.
Todos pararam de conversar no instante em que Apollo
entrou no salão. Mas era óbvio, pela expressão paralisada das
pessoas, que até aquele momento a conversa se centrara
completamente no mais novo integrante do conselho: o
famoso Lobric Valor. O príncipe, contudo, era o único que
sabia quem Lobric realmente era. Mais ninguém no conselho
sabia que aquele homem, assim como todos os demais
integrantes da família Valor, ficara trancafiado na Valorosa até
o dia anterior.
Lobric agora se apresentava como Lorde Vale. E, mesmo
assim, todos os homens e todas as mulheres sentados à mesa
do conselho ainda dirigiam sua atenção a ele. O que era bom –
facilitava muito o que Apollo precisava fazer. Mas também era
um pouco irritante ver a reação do conselho na presença do
lendário primeiro rei do Norte, sem nem sequer saber quem ele
realmente era.
– Ei-lo aqui, de volta dos mortos! – bradou Lobric.
Suas palavras foram seguidas por palmas, que se
espalharam instantaneamente, até que todos os integrantes do
conselho ficaram de pé aplaudindo enquanto o príncipe Apollo
se aproximava da mesa de carvalho branco.
Lobric deu uma piscadela transmitindo uma mensagem
bastante nítida.
“Somos aliados”, dizia o gesto. “Estamos juntos nessa.
Amigos.”
Só que o príncipe tinha uma lembrança demasiado vívida de
ter sido traído pelo seu último amigo. Se Lobric optasse por
fazer a mesma coisa, Apollo não seria páreo para o antigo rei e
sua famosa família. No momento, só podia cumprir com sua
palavra e torcer para que Lobric cumprisse com a dele
também.
– Vejo que muitos de vocês já conheceram o mais novo
integrante do conselho – declarou Apollo, intencionalmente
elaborando a frase como uma declaração e não como uma
pergunta.
Apesar de ainda não ter sido oficialmente coroado rei, tinha
mais poder do que o conselho. No Magnífico Norte, príncipes
só podem se tornar reis depois de se casar. Mas essa lei, assim
como a coroação, que estava prestes a acontecer, era
praticamente de fachada. Eventos da realeza, como coroações
e o Sarau Sem Fim, faziam o povo se afeiçoar aos príncipes e
espalhavam esperança e amor pelos reinos.
Dito isso, o Conselho das Grandes Casas não deixava de ter
seu poder. Não podiam impedir que Apollo nomeasse uma
nova Grande Casa, mas poderiam se opor e, ao fazer isso,
desenterrar verdades perigosas, e o príncipe não queria correr
o risco de que alguém descobrisse tais verdades.
A última coisa de que Apollo precisava é que o reino
descobrisse que os lendários Valor haviam voltado dos mortos
e estavam se fazendo passar pela Casa Vale.
O príncipe passara apenas umas poucas semanas morto, mas
o mundo acreditava que a família Valor morrera havia
centenas de anos.
Apollo ainda tinha dificuldade de aceitar o fato de que as
lendas que contavam a respeito da Valorosa eram verdadeiras e
que a família Valor passara todo esse tempo trancafiada lá
dentro. Odiava imaginar a confusão que se instalaria no reino
caso alguém descobrisse. E não queria nem pensar nas
perguntas que Evangeline faria se descobrisse que ela é quem
havia destrancado o Arco da Valorosa.
Pelo jeito, seu irmão, Tiberius, sempre teve razão em
relação ao que Evangeline faria.
Apollo só torcia para que Tiberius tivesse se enganado em
relação ao que iria acontecer depois que o Arco fosse aberto.
– Lorde Vale e sua família estavam presentes quando eu
voltei dos mortos – explicou Apollo, tranquilamente, já que,
em parte, isso era mesmo verdade. Honora Valor, esposa de
Lobric, curou o príncipe da maldição do Arqueiro e da
maldição espelhada. Ele se sentia muito em dívida com a
mulher, o que facilitava declarar, com toda a honestidade: –
Sem essa família, eu não estaria aqui hoje. Como recompensa,
decidi conceder o status de Grande Casa à família Vale e lhes
presentear com terras, onde poderão cuidar de outras pessoas
da mesma maneira que cuidaram de mim.
Por um instante, todos do conselho ficaram em silêncio.
Apollo percebeu que, apesar de os integrantes terem se
interessado muito por Lobric poucos instantes antes, tinham
suas dúvidas a respeito daquele homenzarrão e ficaram ainda
mais nervosos com a proclamação de Apollo.
O príncipe jamais havia dado a honra de conceder o status
de Grande Casa a nenhuma família. Seu pai tampouco havia
feito isso, nem o pai do pai dele. Era algo muito simples de se
fazer, mas, uma vez feito, era muito difícil de desfazer.
Conceder poder é algo muito mais fácil do que tomá-lo de
volta.
Apollo sentia que todos os integrantes do conselho temiam
que a promulgação tivesse tomado parte do poder deles.
Ele quase conseguia enxergar as perguntas que tinham na
ponta da língua: “O senhor acabou de voltar dos mortos. Tem
certeza de que isso é prudente? Tem planos de conceder o
status de Grande Casa a outras famílias? Como sabe que essa
casa realmente merece estar entre as Grandes – ser uma de
nós?”.
– Minha família é grata por sua generosidade, Alteza. É
uma verdadeira honra fazer parte deste conselho composto por
tantos homens e mulheres notáveis – Lobric falou com um tom
ameno, mas, ao se dirigir aos integrantes do conselho, seu
olhar foi firme e decidido. Olhou cada integrante nos olhos,
um por um, e não foram poucos os que deram a impressão de
estar segurando a respiração.
Quando menino, Apollo ouvira incontáveis histórias a
respeito daquele homem. Diziam que Lobric Valor derrubara
exércitos inteiros com um único grito de guerra e arrancara a
cabeça dos inimigos com as próprias mãos. Unificara os clãs
do Norte que guerreavam entre si para formar um reino e
construíra o Paço dos Lobos para dar de presente de
casamento à esposa, depois de tê-la roubado de outro homem.
À primeira vista, o homem que estava diante dele não dava
a impressão de ser tão ameaçador quanto as histórias faziam
crer. Apollo era mais alto e trajava roupas muito mais
refinadas. Lobric, contudo, possuía aquele mais indefinível do
qual o pai do príncipe sempre falava. Lobric encarnava tudo o
que Apollo jamais tentou ser.
O conselho não se pronunciou até Lobric terminar de
encarar cada um dos integrantes.
Lorde Byron Belaflor foi o primeiro a se pronunciar:
– Seja bem-vindo ao conselho, Lorde Vale. Espero que já
tenha tomado conhecimento de todas as questões mais
prementes do reino. Temos mais alguns assuntos importantes
que precisam ser tratados hoje.
Belaflor se virou para Apollo. Ao contrário de quase todas
as demais pessoas do castelo, que contemplavam o príncipe
com admiração desde que ele fizera seu dramático retorno dos
mortos, Byron Belaflor não olhava para Apollo com
maravilhamento ou assombro.
Havia anos que ele e Apollo não se davam, e a impressão
era de que, pelo olhar de escárnio do jovem, Byron se tornara
ainda mais detestável durante o período em que o príncipe fora
destronado. Corriam boatos de que a amante de Belaflor havia
morrido, mas Apollo não se surpreenderia se descobrisse que a
mulher havia fingido a própria morte para se livrar dele.
– Então – declarou Belaflor, bem alto. Em seguida, fez uma
pausa dramática, para garantir que todos sentados à grande
mesa estivessem olhando para ele.
A maioria dos integrantes do conselho era de pessoas mais
velhas, mas o Lorde Belaflor tinha mais ou menos a mesma
idade de Apollo. Os dois tinham sido amigos quando crianças,
até que o jovem Belaflor teve idade para compreender que
Apollo herdaria um reino inteiro, ao passo que ele estava
predestinado a herdar apenas um castelo em uma montanha
gelada e desolada. O príncipe gostaria de ter destituído o lorde
do conselho há anos. Mas, infelizmente, o castelo de Belaflor
também possuía um considerável exército particular, o qual
Apollo não queria correr o risco de ter como inimigo.
Era assim com a maioria dos integrantes do conselho. Se um
deles fosse exonerado, causaria um certo grau de inimizade,
coisa que era melhor Apollo evitar.
– Sei que o senhor falou com alguns dos demais integrantes
do conselho ontem, pedindo uma coroação rápida e urgente –
prosseguiu Belaflor. – Mas há quem, entre nós, acredite ser
imprudente prosseguir com a coroação, sendo que ainda temos
ressalvas a respeito de sua esposa.
Apollo enrijeceu.
– Que tipo de ressalvas a respeito da minha esposa?
O lorde deu um sorriso abrupto, como se o príncipe tivesse
acabado de dizer exatamente o que ele queria ouvir.
– Há quem, entre nós, não consiga deixar de se perguntar:
por que Lorde Jacks apagou as lembranças de Evangeline? O
que a princesa sabe que poderia prejudicá-lo? A menos que…
a princesa estivesse em conluio com Jacks para envenenar o
príncipe.
– Sua declaração é uma traição ao reino – interrompeu
Apollo.
– Então prove – insistiu Belaflor.
– Não preciso provar nada – declarou Apollo.
– Mas isso pode ajudar – interveio Lady Casstel. Ela era
uma das integrantes mais antigas e prudentes do conselho. E,
sendo assim, não raro, a maioria dos demais seguia suas
opiniões. – Não acredito que sua esposa seja uma assassina.
Mas os boatos que correram a respeito de Evangeline depois
que o senhor morreu foram sérios, e ela é estrangeira. A
princesa só se beneficiaria se encontrasse uma maneira de
mostrar ao povo que agora realmente faz parte desse reino e
que a lealdade dela em relação ao senhor é absoluta.
– E como a senhora propõe que eu faça isso?
– Faça-a engravidar e lhe dar um herdeiro – respondeu Lady
Casstel, sem pestanejar. – Não apenas pelo bem do reino, mas
para lhe proteger. Já que seu irmão foi destituído do título de
nobreza e, atualmente, está desaparecido…
Apollo se encolheu todo ao ouvir falar do irmão, Tiberius.
E, por um segundo, sentiu uma pontada de dor nas cicatrizes
que tinha nas costas. Uns poucos integrantes do conselho
deram a impressão de ter percebido.
Felizmente, não era nenhuma novidade Apollo ter esse tipo
de reação quando ouvia o nome do irmão. Ninguém poderia
supor que o verdadeiro motivo para as costas de Apollo
estarem cobertas de cicatrizes era Tiberius. Apenas Havelock e
uns poucos mortos-vivos tinham ciência da verdade. Havelock
levaria esse segredo para o túmulo, e o príncipe tentava não
pensar nos vampiros. Já tinha assuntos desagradáveis
suficientes para lidar, como aquele súbito pedido do conselho,
de que tivesse um herdeiro.
Entretanto, pelo jeito que Lady Casstel tocou no assunto, era
óbvio que o tema fora discutido muito antes da reunião do
conselho.
– Não há mais nenhum herdeiro direto ao trono –
prosseguiu ela. – Seria fácil demais outro impostor tomar a
coroa caso alguma outra coisa acontecesse com o senhor.
– Não vai acontecer mais nada comigo – declarou Apollo. –
Eu já derrotei a morte. Ela não irá voltar para me pegar tão
cedo.
– Mas, uma hora, voltará para lhe pegar. – Essas palavras
saíram da boca de Lobric Valor. – A morte chega para todos
nós, Alteza. Ter um herdeiro não irá apenas proteger o reino:
pode espantar a morte por mais um tempinho.
Lobric dirigiu um olhar solene a todos na mesa. Se quisesse,
aquele poderia ser o momento para revelar a todo o conselho
que Apollo não chegara a voltar dos mortos de fato, mas não
fez isso.
E, apesar de Apollo não gostar, era obrigado a admitir que
Lobric tinha razão. As chances de tentarem tomar o trono
quando existe um sucessor inequívoco é menor. Ter um
herdeiro também protegeria seu relacionamento com
Evangeline. Depois que tivesse um filho com ele, ela não iria
abandoná-lo de jeito nenhum. Mas Apollo não queria forçar a
esposa a ficar com ele dessa maneira.
– Evangeline ainda não consegue se lembrar de mim –
declarou.
– Isso realmente tem importância? Você é o príncipe –
comentou Belaflor. – Essa menina deveria saber a sorte que
tem de ser sua esposa. Sem você, ela não passaria de uma
qualquer.
Apollo olhou feio para Belaflor e, por alguns instantes,
ficou imaginando se havia algo a mais no desprezo do
conselheiro do que a suspeita de que Evangeline havia se
mancomunado com Jacks para matá-lo.
– Evangeline não é uma qualquer. É minha esposa. Tratarei
de providenciar um herdeiro assim que ela se sentir mais à
vontade comigo.
– E quanto tempo isso irá demorar? – Belaflor ergueu a voz,
nitidamente tentando arrebanhar os demais para sua causa. –
Eu estava ontem na biblioteca. Sua esposa mais parecia um
fantasma assustado, toda pálida e trêmula! Se o senhor se
importasse com este reino, se livraria dela e se casaria com
outra!
– Não vou substituir minha esposa.
Apollo levantou-se da cadeira com tanta força que balançou
os cálices de vinho que estavam em cima da mesa e derrubou
diversas uvas de suas travessas. A conversa tinha passado – e
muito – dos limites.
Também estava se enveredando para bem longe do que
realmente precisava ser tratado.
– Evangeline não está mais em discussão. O próximo que
depreciar minha esposa não dirá mais nem uma palavra nesta
mesa. Se alguém neste recinto realmente se importa com o
reino, vai parar de duvidar da lealdade de Evangeline e
começar a procurar Lorde Jacks. Enquanto ele não estiver
morto, ninguém estará a salvo.
5
Evangeline
À luz de um novo dia, tudo parecia menos um delírio febril e
borrado e mais uma janela de vitral perfeita. O quarto de
Evangeline cheirava a chá de lavanda, a docinhos
amanteigados e também tinha um aroma adocicado, de mato,
que ela não conseguiu identificar, mas a fez pensar em jardins
cuidados com esmero e requinte.
Quando se deu conta, por um lindo instante, estava
pensando: Isso é que é perfeição.
Ou deveria ser.
Os cacos dentro de Evangeline brigavam com a cena
graciosa. Uma vozinha fraca, mas firme, dentro da cabeça dela
insistia: Isso não é perfeição, isso não está certo. Mas, antes
que essa vozinha dissesse algo mais, foi abafada por uma
legião de outros ruídos mais atrevidos.
Eles começaram baixinho, do outro lado da porta do quarto
de Evangeline. Em seguida, feito uma explosão de fogos de
artifício suaves e floridos, as donas das vozes entraram em
seus aposentos.
Modistas. Três delas. Sorridentes, a cumprimentaram:
– Bom dia, Alteza!
– A senhora está com uma aparência tão descansada,
Alteza!
– Tomara que a senhora tenha dormido bem, porque seu dia
será corrido, Alteza!
As mulheres foram seguidas por um desfile de criadas
trazendo peças de tecido, rolos de fitas, cestos de adornos e
plumas, fios de pérolas e flores de seda.
– O que é tudo isso? – perguntou Evangeline.
– É para fazer o seu guarda-roupa real – responderam todas
as três, ao mesmo tempo.
– Mas eu tenho um guarda-roupa.
Evangeline olhou desconfiada para a pequena saleta cheia
de roupas que havia entre o quarto e o banheiro.
– A senhora tem um guarda-roupa para o dia a dia, sim –
respondeu a modista-chefe. Ou talvez fosse apenas a mais
falante. – Viemos tirar suas medidas para ocasiões especiais. A
senhora vai precisar de um modelito espetacular para a
coroação. E, depois, teremos o baile da coroação. E a Caçada
está para acontecer mais dia, menos dia.
– E, aí, é claro que a senhora irá formar seu próprio
conselho – completou a mais alta das modistas. – Precisará
estar muito bem-vestida em todas essas ocasiões.
– E também vai querer alguns vestidos de baile vaporosos
para usar em todos os próximos festivais da primavera e
jantares formais – disse a terceira modista.
Em seguida, as três começaram a tagarelar, comentando
como o tom de pele de Evangeline era perfeito para a
primavera e que seria encantador garantir que todos os
vestidos que a princesa usasse tivessem pelo menos um toque
de cor-de-rosa, para combinar com seu lindo cabelo.
Em meio a tudo isso, mais criadas apareceram, levando
carrinhos dourados repletos de guloseimas e petiscos, lindos
como tesouros saídos de dentro de um porta-joias. Biscoitos
em forma de castelo, tortinhas de frutas lustrosas, peras em um
turbilhão de calda dourada, tâmaras confeitadas com coroas
em miniatura, ostras no gelo com pérolas cor-de-rosa, que
brilhavam sob a luz.
– Tomara que a senhora goste de tudo – disse uma das
criadas. – Se precisar de mais alguma coisa, é só pedir. Sua
Alteza, o príncipe, quer que a senhora saiba que pode ter tudo
o que quiser.
– E, se precisar de um descanso, basta nos avisar –
completou a modista mais alta, já pondo a mão no bolso do
avental e tirando dele uma fita métrica.
Foi pouco depois disso, quando estavam tirando as medidas
dos braços de Evangeline para providenciar luvas, que ela
reparou na cicatriz. Na parte de baixo do pulso direito, fina e
branca, em forma de coração partido. Que, com toda certeza,
não estava lá antes.
Assim que terminaram de tirar as medidas, Evangeline
ergueu o pulso para examinar aquele estranho coração partido.
Passou delicadamente o dedo nele. A pele formigou quando
encostou na cicatriz.
Neste instante, teve a impressão de que a preciosa bolha que
tinha por dentro estourou. Ploc. Ploc. Ploc.
O maravilhamento que Evangeline sentira ao ver todas
aquelas guloseimas, todos os doces e belos tecidos se dissipou
quando observou aquele pequeno coração partido. Não
conseguia se lembrar dele de jeito nenhum. Mas se lembrou,
sim, da vozinha que ouvira em sua cabeça poucos instantes
antes, alertando que aquilo tudo não era a perfeição.
Evangeline continuou examinando a cicatriz, fazendo força
para se lembrar de como tinha ido parar ali, até que reparou
que a mais alta das modistas estava olhando para ela de um
jeito estranho e imediatamente tapou a cicatriz com a mão.
A modista não comentou nada a respeito da cicatriz. Mas o
jeito que olhara para aquela marca deixou Evangeline
inexplicavelmente nervosa. Então percebeu que a mulher saiu
de fininho de seus aposentos, enquanto as demais costureiras
continuaram trabalhando.
Não sabia se realmente precisava se preocupar com aquela
cicatriz ou se, quem sabe, havia apenas imaginado a reação da
mulher. Não tinha motivos para ficar alarmada, tirando aquela
vozinha dentro da própria cabeça que disse que havia algo de
errado. Mas, talvez, o que havia de errado, na verdade, fosse o
fato de estar ouvindo vozes.
Talvez pudesse ter confiado naquela vozinha se tivesse sido
jogada em um calabouço. Mas estava em um castelo saído das
histórias que a mãe contava, casada com um príncipe
encantador que voltara dos mortos e era loucamente
apaixonado por ela. Aquela vida nova não era apenas um
conto de fadas – mais parecia algo saído de uma lenda.
Enquanto tecidos e sentimentos continuavam rodopiando ao
seu redor, outra visita chegou: uma das aprendizes do médico
que viera no dia anterior. Evangeline se lembrou que o nome
dela era Telma.
Não sabia há quanto tempo Telma estava parada ali. Havia
chegado bem quando a princesa estava experimentando uma
capa de capuz cor de framboesa, feita de um veludo grosso,
que tapara seus olhos até poucos instantes.
– Só vim fazer um exame rápido, Alteza – disse a aprendiz.
– Cheguei em um momento inconveniente?
– Ah, não. Só estou ensaiando para ser um alfineteiro um
dia – respondeu Evangeline, torcendo para dar a impressão de
estar mais animada do que realmente se sentia.
– Como vão suas lembranças perdidas? – perguntou Telma.
– Recobrou alguma delas?
– Receio que não.
E ficou na dúvida se deveria ou não comentar sobre aquela
vozinha dentro de sua cabeça.
Só que a resposta de Telma a fez titubear.
– Lamento que a senhora ainda não consiga se lembrar de
nada.
Talvez fosse só uma coisa da imaginação fértil de
Evangeline, mas ela poderia jurar, pela expressão de Telma,
que a assistente não lamentava nem um pouco. Pelo contrário:
deu a impressão de ter ficado aliviada. A reação da mulher fez
Evangeline pensar no que Apollo havia lhe dito na noite
anterior: “Jacks fez coisas atrozes e imperdoáveis com você, e
eu realmente acredito que você será mais feliz se tais coisas
continuarem esquecidas”.
Até então, ela tentara não pensar nisso. Pensar demais em
suas lembranças perdidas a fazia se sentir estarrecida,
extenuada, perdida demais em seus próprios pensamentos. Ela
queria muito acreditar que, se conseguisse dar um jeito de
recobrar suas lembranças, tudo ficaria melhor.
Mas e se Apollo tivesse razão? E se recordar só piorasse as
coisas? O príncipe dera a impressão de estar realmente
preocupado com a perspectiva de Evangeline recobrar a
memória. E agora essa assistente dava a impressão de achar a
mesma coisa, como se fosse mesmo melhor esquecer tudo.
E, apesar disso, era difícil ignorar completamente o
desconforto. Talvez fosse porque, até agora, Evangeline não
tivesse nada além da palavra de Apollo.
– Telma, ouvi algo ontem à noite, e só queria saber se é
verdade ou não. Ouvi dizer que Apollo foi assassinado na
nossa noite de núpcias e que eu fui incriminada por isso.
Telma empalideceu ao ouvir a pergunta.
– Eu jamais acreditei que foi a senhora.
– Mas é verdade que outras pessoas acreditaram que fui eu?
Telma fez que sim, com um ar de pesar.
– Foi uma época terrível para todo mundo. Mas, agora que o
príncipe Apollo está de volta, tomara que tudo isso tenha
chegado ao fim.
A mulher soltou o ar lentamente e ficou com um olhar
sonhador.
– É incrível, não é? O fato de o príncipe ter voltado dos
mortos para ficar com a senhora?
Então olhou para Evangeline de um jeito tão sincero, tão
meigo, puro e maravilhado, que ela acabou se sentindo um
pouco tola por ter pensado na possibilidade de confiar naquela
vozinha paranoica que havia dentro da própria cabeça.
Quando as costureiras, a médica e as criadas por fim foram
embora, já era noite, e os aposentos de Evangeline deixaram
de ser um burburinho e se transformaram em um refúgio
silencioso, onde os únicos sinais de vida eram o fogo
crepitante e as badaladas longínquas de um relógio em uma
das torres. Era a primeira vez que ficava sozinha naquele dia.
Só que o silêncio não durou muito. Pouco depois de ter sido
deixada a sós, alguém bateu na porta do quarto.
– Posso entrar? – perguntou Apollo.
Evangeline foi logo olhando no espelho mais próximo para
ver como estava e ajeitou o cabelo, sentindo uma inquietação
inesperada. Só depois respondeu:
– Entre.
A porta se abriu sem fazer ruído, e Apollo entrou, com
passos confiantes.
Ele continuava sendo belo e continuava sendo príncipe.
Não que Evangeline esperasse que Apollo deixasse de ser
belo ou príncipe. Apenas foi, mais uma vez, dominada por
essa verdade. Pela postura do rapaz que estava em seus
aposentos, todo altivo e régio. E imaginou que Apollo sabia o
quanto era belo e qual era, exatamente, o efeito que causava
nela.
O sorriso do príncipe se abriu, porque percebeu que as
bochechas da jovem ruborizaram. Evangeline torceu para que
isso não acontecesse toda vez que o visse. Fazia apenas um dia
e meio que o conhecera; pelo menos era disso que se
lembrava.
– Fiquei sabendo que você passou o dia inteiro dentro do
quarto. Quer dar uma caminhada comigo?
Ele pronunciou a palavra “caminhada” torcendo os lábios de
um jeito que fez Evangeline pensar que os dois não iriam
apenas caminhar.
Sentiu um leve e vertiginoso frio na barriga.
Não sabia se era porque estava recobrando suas lembranças
ou se simplesmente se sentia atraída pelo príncipe.
– Sim, eu adoraria.
– Fico feliz de saber disso.
Apollo tinha com ele uma capa branca e felpuda, forrada de
pele branca como a neve. Ajudou Evangeline a vesti-la,
deixando os dedos quentes se demorarem no contorno do
pescoço da esposa quando foi tirar o cabelo dela da frente.
Pareceu algo mais intencional do que acidental. Na verdade,
Evangeline estava começando a suspeitar de que tudo que
Apollo fazia era ensaiado.
Depois que saíram dos aposentos, o príncipe fez sinal para
os guardas que estavam de prontidão. Foi um inclinar do
queixo quase imperceptível, mas deu a impressão de ter o
poder de uma ordem dada aos gritos.
Os guardas baixaram a cabeça simultaneamente e deram um
passo para trás, para que o casal conseguisse passar. Depois
foram seguindo os dois, tomando o cuidado de manter uma
distância respeitosa.
Evangeline e Apollo percorreram os primeiros corredores
do castelo em silêncio, ladeados pela luz quente irradiada de
todas as arandelas penduradas naquelas paredes antiquíssimas.
Ainda tinha muitas perguntas para o príncipe… Mas, naquele
instante, sentia apenas os nervos zumbindo dentro dela.
Talvez o destacamento de guardas, com suas armaduras de
bronze reluzente, fosse a razão que a impedia de falar.
Estavam a cerca de meio corredor para trás, mas dava para
Evangeline ouvir as botas dos homens batendo no chão de
pedra, e ela imaginou que, se falasse, eles também poderiam
ouvi-la.
Apollo pegou na mão da esposa.
Evangeline sentiu um choque.
– É para você parar de pensar nos guardas e pensar nisso.
Apollo apertou de leve os dedos de Evangeline.
Ela jamais ficara de mãos dadas com aquele rapaz, pelo
menos não que tivesse lembrança. No dia anterior, Apollo
pegara na sua mão, mas foi mais para puxá-la castelo afora.
A sensação era… gostosa. A suave pressão dos dedos de
Apollo, a sensação de que a mão dela era pequena e estava
protegida dentro da mão do príncipe. Mas isso não ajudou com
a questão de estar nervosa demais para conseguir dizer alguma
coisa. Pelo contrário: sentia-se ainda mais ansiosa do que
antes. Aquilo tudo era tão novo que não sabia direito o que
fazer. Apollo não era apenas um simples rapaz que trabalhava
em algum estábulo ou na padaria do pai. Era o governante de
um reino. Tinha o poder de segurar a vida das pessoas na
palma da mão. Mas, naquele exato momento, segurava apenas
a mão dela.
Evangeline estava prestes a perguntar mais uma vez como
os dois haviam se conhecido quando viu o cartaz pregado em
uma das portas arredondadas do castelo.

O sangue de Evangeline gelou.


Debaixo da lista de crimes de Lorde Jacks, havia um retrato
– se é que podia ser chamado de retrato. A imagem era mais a
de uma sombra do que a de um homem: um rosto com dois
buracos escuros no lugar dos olhos e uma boca que não
passava de um traço.
Apollo puxou a esposa mais para perto de si.
– Não dê atenção a esses cartazes.
– Essa é mesmo a aparência de Lorde Jacks?
Evangeline sabia que Apollo o chamara de monstro, mas
não esperava aquilo.
– É apenas um desenho tosco. Ele tem uma aparência mais
humana, mas não muito.
O príncipe exalou algo muito parecido com ódio ao dizer
essas palavras.
Era o tipo de emoção que fazia Evangeline ter vontade de se
encolher e de se afastar dele. Imaginava que Apollo devia ter
seus motivos para sentir rancor. Mas, por um segundo, ela teve
o ímpeto de sair correndo. Mas talvez fosse por causa do
cartaz que retratava Jacks.
Os pensamentos de Evangeline ficaram voltando para
aquela imagem sombria, tanto que ela perdeu a noção de onde
estavam e de para onde estavam indo por alguns instantes. De
repente, quando percebeu, os dois subiam uma escadaria de
pedra estreita, em espiral, que não tinha corrimão em um dos
lados – apenas um abismo apavorante, até a base da torre. Se
ela tivesse algum bom senso, jamais teria começado a subir
aquela escada.
Espichou o pescoço, mas eram tantos os degraus que falta
subir que não conseguia ver o fim, e os degraus eram estreitos
demais para ela e Apollo subirem lado a lado.
– Aonde leva essa escada? – perguntou, insegura.
– Acho melhor ser uma surpresa – respondeu Apollo, que
estava logo atrás de Evangeline. Ela estava ouvindo os passos
do príncipe, mas ouvia apenas os passos dele e os próprios. Os
guardas provavelmente tinham ficado na base da escada, e não
demorou muito para se pegar sentindo inveja deles.
– Você não pode me dar uma pista? – perguntou. – Por
acaso lá em cima tem uma torre onde você pretende me
trancafiar?
Ela parou de ouvir o barulho dos passos de Apollo.
E, na mesma hora, teve certeza de que falara algo de errado.
– Você não é prisioneira, Evangeline. Eu jamais te
trancafiaria em lugar nenhum.
– Eu… eu sei. Só estava brincando.
E Evangeline queria acreditar que estava brincando. Não
achava de fato que Apollo iria trancafiá-la dentro de uma torre,
feito um rei cruel de contos de fadas. Só que seu coração
começara a bater de um jeito diferente. “Perigo. Perigo.
Perigo”, parecia dizer. Mas era tarde demais para dar meia-
volta.
Estavam quase no alto da escada. A alguns passos mais
adiante, enxergou outra porta, um simples retângulo sem
nenhum adorno.
– Acredito que esteja destrancada – disse Apollo.
Nervosa, Evangeline abriu o ferrolho e deu de cara com a
noite escura e uma lufada de vento gelado, que soprou o
cabelo em seu rosto.
“Por favor, não me abandone aqui”, pensou.
– Não se preocupe, estou aqui – comentou Apollo, com
ternura.
Evangeline não sabia se o príncipe havia sentido que ela
estava com medo ou se havia de fato dito aquelas palavras em
voz alta. Mas Apollo foi para atrás de Evangeline na mesma
hora, bloqueando parte do vento e oferecendo uma sólida
parede de calor para as costas dela.
À medida que seus olhos se acostumaram com a escuridão,
ela viu que a noite não estava tão escura quanto pensara –
havia a luz vinda das janelas do castelo lá embaixo,
iluminando uma mureta com ameias que cercava o alto da
torre. Mais além do castelo, o mundo estava às escuras, com
exceção das estrelas salpicadas, que formavam constelações
desconhecidas.
– Era isso que você queria que eu visse? – perguntou
Evangeline.
– Não – respondeu Apollo, baixinho. – Deve demorar só
mais alguns segundos.
No instante seguinte, os sinos de uma das torres badalaram.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
Blém.
A cada badalada, explosões de luz surgiam ao longe. Foram
poucas, de início – brasas reluzentes e distantes, que
apareciam aqui e ali, feito pedaços de estrelas caídas. Mas
logo havia mais luz do que escuridão. Um mundo de brilho,
parecia que o céu e o chão tinham mudado de lugar e, agora, a
Terra estava coberta de estrelas cintilantes.
– O que é tudo isso? – perguntou Evangeline.
– Um presente para nós. É a famosa Noite dos Fogos. Uma
antiga bênção do Norte – explicou Apollo, falando ainda mais
baixo e se aproximando, pressionando o peito quente com
mais força contra as costas dela. – Normalmente, ocorre antes
de um rei partir para a guerra. Acendem-se fogueiras por todo
o reino, e as pessoas queimam palavras de bênção. Desejos de
saúde, força, cautela e de um retorno para casa em segurança.
Quando descobri que fariam uma Noite dos Fogos hoje, em
nossa homenagem, achei que você gostaria de ver. Cada uma
dessas fogueiras acesas lá embaixo é para nós. Súditos de
todas as regiões do Magnífico Norte estão queimando palavras
de bênção pela nossa saúde e pelo nosso casamento neste
exato momento.
– Parece um conto de fadas – murmurou Evangeline.
Na mesma hora que essas palavras saíram de sua boca, não
lhe pareceram verdadeiras.
Aquilo não parecia um conto de fadas. Aquilo era um conto
de fadas. Era o seu conto de fadas.
Será que as coisas mudariam mesmo se Evangeline se
lembrasse exatamente como havia chegado ali, como havia
conhecido Apollo e como os dois haviam se apaixonado e se
casado? Ou será que ela apenas se sentiria de outra maneira?
Talvez, mesmo que recobrasse todas as lembranças,
continuasse a ficar nervosa na presença de Apollo.
Com o vento fustigando seu corpo e as fogueiras queimando
lá embaixo, Evangeline se virou devagar até olhar para o
príncipe. O seu príncipe.
– Você está olhando para o lado errado – disse Apollo.
Então sorriu, um sorriso lento e convencido.
O coração de Evangeline batia cada vez mais rápido.
“Perigo, perigo, perigo”, parecia repetir. Mas ela já não tinha
mais tanta certeza de que podia confiar em seu coração – ou,
talvez, apenas gostasse do perigo.
– Talvez eu prefira esta vista.
Então encostou a mão no rosto do príncipe – que estava um
pouco áspero – e inclinou o rosto dele.
Evangeline não sabia se estava fazendo aquilo direito: só
sentia os nervos gritarem à flor da pele quando ficou na ponta
dos pés e beijou a boca de Apollo.
– Até que enfim – ronronou o príncipe.
Em seguida, mordiscou o lábio inferior da esposa e também
a beijou.
Fogos de artifício explodiram ao longe. Evangeline ouviu as
explosões quando Apollo passou as mãos por baixo da capa
que ela usava, afastando-a e puxando-a mais para perto.
Não sabia se estavam rodopiando e se aproximando da
beirada da torre ou se era apenas sua cabeça que estava
girando. Mas sentia o vento batendo nas suas costas e sabia
que os braços do príncipe eram a única coisa que a impedia de
cair.
6
Evangeline
O mundo tinha mudado da noite para o dia e não foi apenas
porque Evangeline sentia um frio na barriga toda vez que
pensava que tinha beijado Apollo.
Parecia que a estação mudara enquanto ela estava dormindo,
e o inverno dera lugar à primavera. Quando olhou pela janela,
não viu camadas de branco, enxergou árvores verdejantes e
impetuosas, arbustos felizes, musgo e rochas reluzentes. Tudo
isso estava coberto por uma fina camada de chuva prateada,
que fazia um barulhinho constante do outro lado da janela.
Naquela manhã, enquanto chovia, outro médico apareceu
para verificar se ela havia se lembrado de algo, o que não
acontecera. Depois disso, as modistas voltaram, mas não se
demoraram muito.
Ao que tudo indicava, havia mais um compromisso na
agenda de Evangeline, mas só ficou sabendo dele quando uma
visita completamente diferente chegou.
– Olá, Alteza, sou a Madame Voss. É um prazer conhecê-la.
A mulher fez uma reverência perfeita, e a bainha de sua saia
verde-esmeralda roçou no chão de pedra. O cabelo de Madame
Voss era de um lindo tom de prata, e seu rosto alongado era
repleto de profundas linhas de expressão. Evangeline se sentiu
imediatamente confortável com ela.
– Serei sua tutora em tudo o que diz respeito à realeza. Mas
antes, vamos começar com tudo o que diz respeito a você.
Madame Voss colocou um lindo livro azul no colo de
Evangeline. As páginas tinham bordas douradas, no mesmo
tom cintilante do título do livro, escrito em letras rebuscadas.
A jovem leu em voz alta:
– A maior história de amor jamais contada: a verdadeira
história de Evangeline Raposa e do Príncipe de Copas. Versão
integral sem cortes.
A tutora soltou um suspiro de assombro e exclamou:
– Ah, que incomodação!
Em seguida, ficou batendo no tomo que estava no colo de
Evangeline até que, finalmente, o título mudou para: A maior
história de amor jamais contada: a verdadeira história de
Evangeline Raposa e do Príncipe Apollo Titus Acadian.
Versão integral, sem cortes.
– Peço desculpas por isso, Alteza. O livro acabou de ser
publicado. Era se se esperar, já que é tão novo, que fosse
imune à maldição das histórias. – Então lançou um olhar de
reprovação para o livro e completou: – Tomara que só o título
seja assim, voluntarioso.
– Por favor, não peça desculpas – comentou Evangeline.
Até aquele momento, não havia parado muito para pensar
na maldição das histórias do Norte, mas a mãe havia lhe
explicado tudo a respeito dela quando Evangeline era criança.
Todos os contos de fadas do Magnífico Norte eram
amaldiçoados. Algumas lendas não podiam ser escritas; outras,
não saíam do Norte, e muitas mudavam sempre que alguém as
contava, tornando-se cada vez menos reais a cada reconto.
Dizia-se que todas as lendas do Norte começaram como
histórias verdadeiras. E que, com o tempo, a maldição das
histórias do Norte distorceu todas as lendas até sobrarem
apenas resquícios de verdade.
– Na minha terra natal, os livros simplesmente ficam
paradinhos nas estantes – comentou Evangeline. – Acho
encantador.
Ficou olhando para a capa por mais alguns instantes. Era a
primeira vez que via as palavras de um livro mudarem diante
de seus olhos. Para Madame Voss, era um incômodo. Porém,
para Evangeline, era algo mágico. Porque era mágico mesmo.
Mas também era curioso o fato de o primeiro título
mencionar o Príncipe de Copas.
No Império Meridiano, onde Evangeline nascera, o Príncipe
de Copas era um mito – um personagem que fazia parte dos
baralhos para ler a sorte – não uma pessoa verdadeira, de carne
e osso. Então achou que “Príncipe de Copas” pudesse, talvez,
ser outro epíteto do príncipe Apollo.
Esse pensamento gerou um sobressalto incômodo em
Evangeline, que ficou se perguntando o que mais não sabia a
respeito do marido, por mais que tentasse se convencer de que
isso não fazia a menor diferença. Ela e Apollo criariam outras
lembranças, como haviam feito na noite anterior.
Mesmo pensando assim, Evangeline não conseguia se livrar
daquela sensação estranha, ainda mais depois que abriu o livro
trazido por Madame Voss.
As guardas exibiam imagens deslumbrantes, coloridas, de
Evangeline e Apollo se olhando nos olhos, com fogos de
artifício explodindo ao fundo. O príncipe fora retratado
vestindo um requintado traje real, composto por capa e uma
grande coroa de ouro decorada com grandes rubis e outras
pedras preciosas.
Por um segundo, Evangeline pensou ter visto uma terceira
pessoa na ilustração – teve a impressão de que havia um
homem observando o casal na margem de uma das guardas.
Mas, assim como o primeiro título do livro, essa imagem
apareceu e desapareceu em seguida.
Havia mais ilustrações na segunda página, e nada se mexeu.
O alto da página era decorado com desenhos do sol, da lua e
de um céu estrelado, acima das seguintes palavras:
– Isso é verdade? – perguntou Evangeline. – O príncipe
Apollo jurou mesmo jamais amar?
– É verdade! Algumas pessoas acreditavam que era só
brincadeira, mas eu não – respondeu Madame Voss. – Era um
tanto alarmante, na verdade. Temos essa tradição aqui no
Norte: um baile espetacular, chamado Sarau sem Fim.
Evangeline sabia uma coisa ou outra a respeito do Sarau
sem Fim, mas não disse nada. Ainda não lembrara nada a
respeito da primeira vez que falara com Apollo e não voltara a
perguntar sobre isso para o príncipe na noite anterior.
– Na ocasião, Apollo declarou que, uma vez que o baile
começasse, jamais terminaria, porque ele não pretendia
escolher uma noiva – prosseguiu Madame Voss. – Então ele a
conheceu. É uma pena mesmo a senhora não recordar. Foi um
verdadeiro amor à primeira vista. Eu não estava presente, é
claro. O jantar era muito exclusivo, e vocês dois se
conheceram em uma clareira reservada, protegida por um arco.
A mulher disse a palavra “arco” de um jeito diferente de
todas as demais palavras, como se fosse algo mágico e não o
que Evangeline estava imaginando.
– Suponho que arcos sejam especiais – comentou.
– Ah, sim – concordou a tutora. – Como foram construídos
pelos Valor, nosso primeiro casal real, levam para qualquer
lugar do Norte. Mas os arcos também são excelentes para
proteger coisas. O príncipe tem um arco que protege a mais
magnífica das árvores-fênix. A senhora deveria pedir que ele a
leve para esse lugar algum dia desses. Ah, espere aí. – Nesta
hora, ela olhou para o livro. – Aposto que tem uma figura aqui.
Madame Voss virou a página e, realmente, havia um retrato
deslumbrante de Apollo esparramado em um galho de uma das
mais magníficas árvores que Evangeline já vira na vida. A
impressão era de que cada folha cintilava. Metade delas eram
uma sinfonia em tons quentes de outono – amarelo, laranja e
castanho-avermelhado –, mas as demais pareciam ser de ouro
verdadeiro. Um ouro reluzente e cintilante, como o dos
tesouros dos dragões.
– Esta é a árvore-fênix – explicou a tutora. – Depois que
cresce e floresce, leva mais de mil anos para atingir a
maturidade, as folhas vão se transformando lentamente em
ouro de verdade. Entretanto, se uma folha for arrancada antes
que todas tenham se transformado, a árvore inteira pega fogo.
Puf! – completou, fazendo um gesto dramático e lançando um
olhar de censura para Evangeline.
– Não se preocupe. Eu jamais sonharia em arrancar uma
folha – garantiu a jovem.
Mas Madame Voss já havia virado a página.
Apollo apareceu de novo. Só que, desta vez, estava montado
em um cavalo branco, vestido de modo mais rústico: calças de
um tom amadeirado, camisa sem colarinho e colete de pele
com tiras de couro cruzadas, nas quais levava um arco dourado
e uma aljava de flechas nas costas.
– Foi assim que ele pediu sua mão em casamento – explicou
a tutora. – Foi na primeira noite do Sarau sem Fim, e o
príncipe estava fantasiado como personagem de uma de nossas
lendas mais queridas, A balada do Arqueiro e da Raposa.
– Conheço essa história – disse Evangeline. – É minha
favorita…
Ou ela apenas passara a vida pensando que era? Quando
disse as palavras em voz alta, não lhe pareceram tão
verdadeiras.
– Que maravilha – respondeu Madame Voss. – Tomara que
você consiga imaginar, então. O príncipe Apollo estava tão
elegante quando entrou no baile montado em um poderoso
cavalo branco. Estava vestido igualzinho ao Arqueiro…
De repente, Evangeline não conseguia ouvir mais nenhuma
palavra. A cabeça doía. O peito doía. O coração doía, tinha a
impressão de que cada batimento a alvejava, feito uma flecha
– um pensamento que também lhe doía. Ela se esforçou para
recordar por que lembrar de seu conto de fadas favorito seria o
gatilho para tanto sofrimento. Mas tudo o que encontrou foi…
Nada…
Nada…
Nada…
Quanto mais tentava se lembrar, mais o coração doía. A
sensação era parecida com a que sentira dois dias antes,
quando Apollo a encontrou encolhida no chão, naquele salão
estranho e antiquíssimo. Só que naquele momento ela não
estava sentindo vontade de chorar. Aquela dor era violenta, em
carne viva – feito um grito que morava dentro dela e ameaçava
parti-la ao meio se não o soltasse.
Mais uma vez, lembrou-se de que havia algo que precisava
contar para alguém. Só que, agora, pensar nisso era ainda mais
doloroso do que antes.
Madame Voss arregalou os olhos e perguntou:
– Alteza, a senhora está bem?
Não!, Evangeline tinha vontade de gritar. Eu me esqueci de
uma coisa de que preciso muito me lembrar.
Na noite anterior, havia se convencido de que conseguiria
simplesmente abrir mão das próprias lembranças. Mas estava
claro que tinha enganado a si mesma. Sabia que Apollo a
alertara de que recuperar a memória causaria sofrimento, mas
existem certas coisas pelas quais vale a pena sofrer, e
Evangeline acreditava que esta era uma delas.
Ela precisava se lembrar.
– Desculpe, Madame Voss – finalmente conseguiu falar. –
Estou com um pouco de dor de cabeça. Será que podemos
adiar a aula?
– É claro, Alteza. Voltarei amanhã. Aí, poderei lhe contar o
restante da história. E poderemos ter nossa primeira aula de
etiqueta real, se estiver disposta.
A tutora se despediu de Evangeline com uma reverência e
saiu do quarto calada.
Assim que a mulher foi embora, Evangeline começou a ler o
livro de novo, pensando que poderia suscitar mais algum
sentimento ou lembrança. Mas a história que o livro continha –
a história de amor dela e de Apollo – era mais a de um livro
ilustrado, um conto de fadas adocicado, sem vilão.
Evangeline sempre adorou contos com amor à primeira
vista, mas o amor à primeira vista era mencionado tantas vezes
que ela ficou meio que esperando que a história terminasse
com um anúncio do perfume Amor à Primeira Vista: “Cansada
de procurar por seu final feliz? Pare de procurar e comece a
borrifar!”.
O livro, é claro, não terminou assim. E também não
provocou nenhuma lembrança. Nem sequer de longe.
Então largou o livro e ficou andando de um lado para o
outro, na frente da lareira. Vasculhou o próprio cérebro em
busca de alguma outra história que a mãe contara, a respeito
de perda de memória, torcendo para que isso a ajudasse a
encontrar uma cura. Apesar de não ter conseguido se recordar
de nenhuma, acabou se lembrando do desconhecido com o
qual falara outro dia, que lhe dera um cartãozinho de visitas
vermelho e disse: “Se um dia quiser conversar e, quem sabe,
responder a algumas perguntas, talvez eu consiga preencher
algumas lacunas para a senhora”.
Evangeline procurou o cartãozinho vermelho. Pelo jeito,
não estava em lugar nenhum de seus aposentos. Felizmente, o
homem tinha um nome memorável.
Bem nesta hora, a jovem criada que, assim como ela, era
natural do Império Meridiano, entrou no quarto trazendo uma
bandeja com chá bem quente e biscoitos de framboesa
fresquinhos.
– Martine, você já ouviu falar do sr. Kristof Knightlinger?
– É claro! – O rosto em formato de coração de Martine se
iluminou. – Leio o que ele escreve todos os dias, sem exceção.
– Lê o que ele escreve? Como assim?
– Ele escreve no Boato Diário.
– O tabloide?
Evangeline lera o jornal naquela mesma manhã. Ainda
conseguia recordar de algumas das manchetes dramáticas:
“Onde está Lorde Jacks e quais as próximas atrocidades que
ele irá cometer? Herdeiro do trono impostor ainda foragido!
Até que ponto a Guilda dos Heróis é realmente heroica?”.
Pelo que conseguira entender, o sr. Knightlinger salpicava o
tabloide com suas opiniões pessoais. O artigo sobre Lorde
Jacks era bem parecido com o que havia escrito no dia
anterior, mas Evangeline se divertira lendo as outras
reportagens do jornalista. Os comentários do sr. Knightlinger,
especialmente sobre o herdeiro impostor, eram hilários. Ele o
retratou de tal maneira que a fez compará-lo a um filhotinho
de cachorro alvoroçado que havia roubado uma coroa só
porque era bonita, brilhosa e boa de brincar. E, depois, o sr.
Knightlinger chegou a especular que o impostor poderia ser
um vampiro!
Tudo isso criou em Evangeline a suspeita de que o sr.
Kristof Knightlinger talvez não fosse uma fonte de informação
das mais confiáveis. Mas achou que os escritos do jornalista
poderiam ter um pouco mais de variedade do que aquele livro
tão “amor à primeira vista” de Madame Voss. E, quem sabe, o
sr. Knightlinger pudesse suscitar alguma lembrança.
7
Evangeline

E
vangeline gostava de ter planos. Seu plano atual não
era lá grandes coisas – na verdade, estava mais para
uma saidinha do que para um plano. Ela nem sabia se
precisaria de um dia inteiro para visitar o sr. Knightlinger.
Mas, ainda assim, queria sair o mais cedo possível.
No dia anterior, a tutora tinha ido embora no finalzinho da
tarde. Depois de uma explosão inicial de empolgação,
Evangeline se deitara para tirar um cochilo rápido. Só que,
quando acordou, se deu conta de que já era a manhã seguinte.
A princesa ainda não conseguira encontrar o cartãozinho
vermelho do sr. Knightlinger, mas Martine havia contado que
as instalações de O Boato Diário ficavam nos pináculos, um
lugar ao qual os guardas do palácio conseguiriam levá-la sem
a menor dificuldade.
– A senhora vai adorar os pináculos! Lá tem uma porção de
lojinhas encantadoras e maçãs assadas por dragões! E a
senhora vai adorar os dragõezinhos! – exclamou Martine,
enquanto procurava um par de luvas que combinasse com o
vestido da princesa.
Evangeline escolhera um vestido violeta com decote ombro
a ombro, corpete justo com pérolas iridescentes e aplicações
de flores com detalhes em dourado, que também salpicavam
pela saia vaporosa, na altura dos quadris.
– Prontinho, Alteza.
Martine lhe entregou uma capa cor-de-rosa e um par de
luvas compridas e transparentes, em tom de violeta. As luvas
não iriam protegê-la muito do frio, mas eram bem bonitas. E
Evangeline sempre se sentia um pouquinho mais feliz quando
usava coisas bonitas.
Quatro guardas de bigodes bem aparados, todos usando
armaduras de bronze polidas e capas cor de vinho que caíam
dos ombros, estavam de prontidão do outro lado da porta.
– Olá, eu me chamo Evangeline – declarou ela,
alegremente. Em seguida, perguntou o nome dos guardas.
– Yeats.
– Brixley.
– Quillborne.
– Rookwood.
– É um prazer conhecê-los. Gostaria de visitar os pináculos
hoje. Será que um de vocês poderia providenciar o transporte?
Um breve silêncio se passou, e três dos guardas se voltaram
para aquele que havia se apresentado como Yeats. Ele
aparentava ser o mais velho dos quatro, tinha cabeça raspada e
um bigode preto muito impressionante.
– Acho que não é uma boa ideia ir aos pináculos, Alteza.
Que tal fazermos um passeio pelo Paço dos Lobos em vez
disso?
– Por que você acha que não é uma boa ideia? Minha criada
me falou que, praticamente, só tem lojinhas por lá.
– É verdade, sim. Mas o príncipe Apollo nos pediu para
garantir que a senhora permanecesse nas dependências do
castelo. É para sua segurança.
– Então você está dizendo que vocês quatro, cavalheiros tão
distintos, não têm força suficiente para garantir minha
segurança se eu sair do castelo? – alfinetou Evangeline, sem o
menor pudor.
Os guardas mais jovens reagiram exatamente como ela
esperava.
Estufaram o peito e deram a impressão de estarem prontos
para provar que ela estava enganada.
Só que Yeats se pronunciou antes que os três pudessem
dizer alguma coisa:
– Obedecemos aos desígnios do príncipe Apollo. Neste
exato momento, ele quer que a senhora fique aqui, nas
dependências do castelo, onde pode saber a sua localização,
sem correr o risco de que algo ou alguém a ataque.
A princesa poderia até ter caído na risada, caso o guarda não
estivesse com uma expressão tão séria. Yeats falou de um jeito
que deu a entender que qualquer coisa no Norte poderia tentar
matá-la.
– E quais são os lugares específicos do Paço dos Lobos a
que tenho permissão para ir?
– Todos eles. Desde que a senhora não saia daqui.
– E o príncipe Apollo está no Paço dos Lobos neste
momento?
– Sim, Alteza.
– Ótimo. Por favor, me levem até ele – disse Evangeline,
tranquilamente, torcendo para que aquilo fosse um mero mal-
entendido.
Há duas noites, Apollo havia declarado que ela não era uma
prisioneira e que jamais a trancafiaria em lugar nenhum. Na
verdade, ficara com uma expressão profundamente magoada
depois que ouvira o comentário. Era óbvio que os guardas
estavam enganados.
– Sinto muito – respondeu Yeats, com um tom plácido –,
mas o príncipe está ocupado no momento.
– Fazendo o quê? – perguntou Evangeline.
O bigode de Yeats se repuxou, de irritação.
– Não cabe a nós informar – grunhiu o guarda. – E se nós
levássemos a senhora para conhecer um dos jardins?
Evangeline deixou-se emudecer. Estava tentando ser
educada e simpática, mas era óbvio que aqueles homens não
tinham o menor respeito por ela.
Talvez, se isso tivesse ocorrido antes de ter perdido suas
lembranças, ela até poderia ter sido menos insistente. Talvez
até tivesse se empolgado com a perspectiva de simplesmente
perambular pelo castelo e pelos jardins, ter dado a impressão
de que era uma princesa fácil de agradar. Mas, naquele exato
momento, nem isso seria fácil. Precisava se lembrar. Coisa
que, pelo jeito, seria pouco provável de acontecer se ficasse
confinada na fortaleza do castelo, onde achavam que seria
melhor deixar o passado para trás.
– Por acaso meu marido lhes disse que não queria me ver?
– Não. Mas…
– Sr. Yeats – interrompeu Evangeline –, eu gostaria de ver
meu marido. E, se o senhor me disser que não me levará até
ele ou sugerir que eu passeie por outro jardim, vou concluir
que, das duas, uma: ou o senhor acredita que meu marido pode
ser substituído por flores ou que o senhor tem autoridade para
me dar ordens. O senhor acredita em alguma dessas duas
coisas, sr. Yeats?
O guarda cerrou os dentes.
Ela segurou a respiração.
Yeats por fim respondeu:
– Não, Alteza. Não penso isso.
Evangeline tentou disfarçar o alívio que sentiu, dirigiu o
olhar para os demais guardas e perguntou:
– E vocês três?
– Não, Alteza – foram logo resmungando os guardas.
– Esplêndido! Vamos ver Apollo.
Os homens nem se mexeram.
– Não vamos impedi-la de procurar pelo príncipe, mas
tampouco a levaremos até ele – declarou Yeats.
Evangeline nunca foi de falar palavrão, mas teve vontade de
soltar um bem feio naquele momento.
– Eu levarei a senhora até o príncipe – gritou um outro
guarda, que estava a poucos metros de distância.
Ela olhou de soslaio para o rapaz.
O guarda usava o mesmo uniforme dos demais, mas sua
armadura parecia estar mais arranhada, como se tivesse de fato
ido para a guerra. E o rapaz também tinha algumas cicatrizes
no rosto.
– Eu me chamo Havelock, Alteza.
O guarda ficou esperando por alguns instantes.
Na mesma hora, Evangeline teve a sensação de que o rapaz
estava torcendo para que ela o reconhecesse, o que só a deixou
ainda mais frustrada, porque não sentiu sequer uma faísca de
reconhecimento.
– Não tem problema – garantiu Havelock. Então apontou
com a cabeça para a capa que Evangeline trazia dobrada no
braço. – A senhora não vai precisar disso. O príncipe está no
salão de estar, que tem uma lareira que ocupa toda a parede.
Ninguém precisa de capa lá dentro.
Havelock não tinha mentido.
A sala de estar mais parecia o tipo de lugar onde crianças
poderiam se reunir na véspera de uma data importante para
ouvir a avó ou o avô contar histórias diante da lareira. A chuva
caía do outro lado dos janelões do recinto, que ocupavam toda
uma parede.
Quando Evangeline chegou, ficou observando a chuva que
caía aos cântaros, formando cortinas prateadas, encharcando
os pinheiros verde-escuros e batendo nas janelas com força.
Dentro do recinto, o fogo da enorme lareira crepitava à medida
que a lenha ia se partindo, disparando uma infinidade de
faíscas lépidas, fazendo uma nova onda de calor tomar conta
de todo o ambiente.
Apesar de estar com os ombros à mostra, ela se sentiu
subitamente aquecida.
Apollo estava de pé do outro lado da sala, perto da cornija,
com uma pessoa desconhecida. A pessoa era da altura do
príncipe, mas estava completamente encoberta por um capuz
escuro e por uma capa comprida e pesada.
Evangeline sentiu um leve incômodo ao recordar das
palavras de Havelock: “Ninguém precisa de capa lá dentro”. A
frase ecoara na sua cabeça assim que adentrara no recinto.
– Espero não estar interrompendo nada.
Os olhos de Apollo se iluminaram assim que ele a viu.
– Não. Você chegou bem na hora, querida.
A pessoa de capuz continuou olhando para a lareira.
A princesa tinha certeza de que provavelmente estava
infringindo algum tipo de regra ao olhar com tanta atenção
para aquele desconhecido escondido pelo capuz, mas não pôde
evitar. Não que tenha adiantado muita coisa. Só descobriu que
a pessoa encoberta pela capa era um homem, mas não muito
mais do que isso. Uma barba espessa escondia a parte de baixo
do rosto dele, e uma máscara preta tapava o restante, ou seja:
Evangeline ficou olhando apenas para um par de olhos
levemente espremidos.
Apollo estendeu a mão na direção do homem.
– Evangeline, gostaria de te apresentar Garrick da
Galhardia, líder da Guilda dos Heróis.
– É um prazer conhecê-la, Alteza.
A voz de Garrick era rouca e grave e escutá-la não bastou
para dissipar o mau pressentimento crescente de Evangeline.
Ela nunca ouvira falar de Garrick nem da Galhardia, mas
lera a respeito da Guilda dos Heróis na manhã do dia anterior.
Tentou recordar o que o tabloide dizia. Achou que o artigo
começava comentando sobre o herdeiro impostor que havia
usurpado o trono quando Apollo foi proclamado morto. Ao
que tudo indicava, o tal impostor estava mais preocupado em
dar festas e paquerar do que em governar o reino. E, sendo
assim, um grupo de guerreiros tomou para si a
responsabilidade de manter a ordem em certas regiões do
Norte. Esse grupo se autodenominava Guilda dos Heróis.
Entretanto, de acordo com o sr. Knightlinger, se os tais
guerreiros eram heróis ou mercenários se aproveitando de uma
série de circunstâncias infelizes era uma questão em aberto.
– Garrick está liderando uma operação que levará a caçada
por Lorde Jacks para além de Valorfell – explicou Apollo.
O herói estalou os dedos e deu um sorriso arrepiante para
Evangeline.
– Eu e meus homens somos excelentes caçadores. Lorde
Jacks estará morto dentro de uma quinzena. Provavelmente
antes, se a senhora estiver disposta a nos ajudar.
– E por acaso há algo que eu possa fazer para ajudá-los? –
perguntou a princesa.
Por um instante, a lembrança de estar amarrada a uma
árvore e ser usada de isca veio à tona.
– Não se assuste, querida. – Nesta hora, Apollo pegou na
mão da esposa. – Só vai doer por um instante.
– O que vai doer?
Ela puxou a mão e tropeçou na saia volumosa do vestido.
– Não há nada a temer, Evangeline.
– A menos que não goste de sangue – resmungou Garrick.
Apollo olhou feio para o homem e declarou:
– Você não está ajudando.
– O senhor tampouco, Alteza. Não quero ser grosseiro –
disse Garrick, com um tom obviamente grosseiro –, mas vai
levar uma eternidade se o senhor ficar cheio de não me toques
com ela. Fale logo da maldita cicatriz.
– Que cicatriz? – perguntou Evangeline.
Apollo apertou bem os lábios. Em seguida, dirigiu o olhar
ao pulso da esposa.
Evangeline nem precisou acompanhar o olhar do príncipe.
Assim que ele olhou através de suas luvas transparentes, a
cicatriz em forma de coração partido que tinha no pulso
começou a arder. E o coração em si começou a bater
acelerado.
Foi aí que se lembrou de que, no dia anterior, uma das
modistas havia saído de fininho do quarto depois de ver a
cicatriz, e teve a terrível sensação de que agora sabia para
onde a mulher havia ido. Saíra do quarto para falar com
Apollo.
– Lorde Jacks fez essa cicatriz no seu pulso. É a marca
registrada dele. Significa que a senhora está em dívida com
esse homem.
– Que tipo de dívida? – perguntou.
– Não sei exatamente o que é – respondeu Apollo. – Só
podemos tentar impedi-lo de cobrá-la.
O príncipe olhava para a esposa com um ar de pesar. A pele,
que normalmente era de um encantador tom de oliva, estava
um tanto cinzenta.
– Como?
– Encontrando Lorde Jacks antes que ele te encontre. Essa
cicatriz que Jacks fez em você liga você a ele, possibilitando
que ele te localize onde quer que esteja.
– Mas também pode nos ajudar a encontrar Lorde Jacks –
completou Garrick. – A mesma ligação que permite que ele
localize a senhora deve permitir que nós consigamos caçá-lo.
Para isso precisaremos do seu sangue.
Em algum ponto da sala, um pássaro grasnou, alto e de um
jeito inquietante, bem na hora em que Garrick mostrou os
dentes. “Sanguinário” foi a palavra que veio à mente dela.
Evangeline não gostava da ideia de ter uma dívida com
Jacks, mas tampouco queria dar o próprio sangue para aquele
desconhecido. Na verdade, sentiu um ímpeto poderoso de sair
correndo da sala e continuar correndo até suas pernas não
aguentarem mais. Mas tinha a impressão de que Garrick da
Galhardia era o tipo de homem que perseguiria qualquer coisa
que tentasse fugir dele.
– Posso pensar a respeito? – perguntou. – É claro que quero
que você encontre Lorde Jacks. Mas essa coisa de sangue me
deixa um tanto incomodada.
– Muito bem, então. – Garrick estalou os dedos tatuados
duas vezes. – Argos, está na hora de ir embora.
Um pássaro que parecia ser um corvo desceu voando de
uma das vigas do teto. Voou na direção de Garrick, traçando
um arco elegante com as asas de um preto-azulado.
Evangeline sentiu uma das penas roçar no seu rosto e…
– Ai! – gritou, porque o pássaro bicou seu ombro.
Duas bicadas certeiras, que deixaram duas pequenas e
reluzentes poças de sangue. Evangeline tentou estancar o
sangramento com a mão, mas Garrick foi mais rápido.
Movimentou-se quase com a mesma velocidade do pássaro e
colocou um pano em cima do ferimento, coletando
rapidamente o sangue de Evangeline.
– Me desculpe, Alteza, mas na verdade não podemos lhe dar
tempo para pensar e já pensamos pela senhora.
Garrick tirou o pano ensanguentado e se dirigiu à porta,
assoviando, com o corvo empoleirado no ombro.
Evangeline ficou furiosa, porque continuou sangrando. Não
sabia com quem estava mais irritada: com o mercenário que
acabara de agredi-la, usando para isso seu pássaro de
estimação, ou com o marido.
Há duas noites, lá na torre, Apollo tinha sido tão meigo.
Fora carinhoso, fora atencioso. Mas naquele momento,
considerando o que vira acontecer com Garrick e as instruções
que Apollo dera para os guardas, parecia que o príncipe era
uma pessoa completamente diferente. E Evangeline não o
conhecia tão bem assim para saber qual das duas versões do
príncipe era a verdadeira. Pouco antes, pensara que o que
havia acontecido com os guardas era apenas um equívoco, mas
não tinha mais tanta certeza assim.
– Você sabia que Garrick ia fazer isso? Que ia coletar meu
sangue mesmo que eu não desse permissão?
Apollo ficou mexendo o maxilar.
– Acho que você não tem noção da ameaça que Jacks
representa.
– Você tem razão. Vive dizendo que Jacks é o vilão. E,
apesar disso, acabou de permitir que um homem me agredisse,
usando seu pássaro de estimação, com o objetivo de caçar e
matar outro homem. Também ordenou que minha guarda, que
aliás é formada por homens nada simpáticos, não me deixasse
sair do castelo, apesar de ter prometido que jamais me
trancafiaria em lugar nenhum. Sendo assim, não, não tenho
noção da ameaça que Lorde Jacks representa. Mas estou
começando a encarar você como uma ameaça.
Os olhos de Apollo faiscaram.
– Você acha que eu queria fazer tudo isso?
– Acho que você é um príncipe e faz o que bem entende.
– Errado, Evangeline. – Nesta hora, a voz de Apollo ficou
embargada. – Não quero nada disso. Mas não estou tentando te
proteger apenas de Jacks. Certas pessoas que vivem neste
castelo, pessoas que fazem parte do meu conselho, acreditam
que eu não deveria confiar em você. Acreditam que você
estava mancomunada com Jacks para me assassinar. E, se
essas pessoas acreditarem que meu julgamento está abalado e
que você ainda está de conluio com ele, nem eu poderei salvar
sua vida.
– Mas Jacks roubou todas as minhas lembranças –
argumentou Evangeline. – Como alguém pode continuar
pensando que eu estava de conluio com ele?
O olhar amedrontado do príncipe voltou a se dirigir ao pulso
da jovem, aquele com a cicatriz em forma de coração partido.
– A teoria do momento é que Jacks roubou suas lembranças
para impedi-la de trair a confiança dele.
– É nisso que você acredita? – perguntou Evangeline.
Por um longo instante, Apollo ficou apenas olhando para
ela. Seu olhar não era mais amedrontado nem bravo, mas
tampouco era o olhar carinhoso, de adoração, com o qual já
tinha se acostumado. Era um olhar frio e distante e, por um
segundo, Evangeline sentiu um tremor de medo. Apollo era o
único aliado que a jovem tinha no Magnífico Norte. Sem o
príncipe, não tinha nada, nem ninguém, nem para onde ir.
– Não estou mancomunada com Jacks – declarou, por fim. –
Posso até não me lembrar de nada, mas sei que não sou esse
tipo de pessoa. Não pretendo me encontrar com ele nem trair
sua confiança nem a confiança de qualquer pessoa que viva
neste castelo. Mas, se você me tratar feito prisioneira ou feito
joguete, se permitir que mais alguém me agrida, mesmo que
seja usando um pássaro de estimação, vou me recusar a me
comportar do jeito certo. Mas não seria por não ser leal a você.
Apollo respirou fundo, e a frieza se dissipou de seu olhar.
– Eu sei, Evangeline. Eu acredito em você. Mas não é só o
que eu penso que importa.
O príncipe baixou a mão e acariciou o rosto da esposa.
Baixou o olhar, e Evangeline teve certeza de que Apollo
estava prestes a beijá-la. Poria fim àquela discussão com um
beijo – e, em parte, queria permitir que ele fizesse isso. Não
podia correr o risco de perdê-lo. Apollo era tudo o que tinha
naquela nova realidade.
Mas só porque o príncipe era tudo o que tinha não queria
dizer que Evangeline precisava deixar todo o poder nas mãos
dele.
– Ainda estou brava com você.
Apollo tirou a mão do rosto dela e lentamente acariciou o
cabelo da esposa.
– Você acha que consegue me perdoar? Desculpe pelo
sangue, desculpe pela guarda. Vou destacar outros homens
para acompanhá-la. Mas preciso que você confie em mim e
tome cuidado.
Evangeline ergueu o queixo, em uma demonstração de
insolência.
– Você quer dizer que precisa que eu fique aqui, no Paço
dos Lobos?
– Só até localizarmos Lorde Jacks.
– Mas…
Antes que desse tempo de terminar a frase, a porta do salão
de estar se escancarou e o mesmo guarda que havia levado
Evangeline até ali anunciou:
– Lorde Massacre do Arvoredo está aqui para falar com o
senhor. Diz que tem informações a respeito de Lorde Jacks.
8
Apollo

H
avelock apareceu bem na hora, mas Apollo gostaria
que o guarda não tivesse comentado que tinha
informações a respeito de Jacks. A reação de
Evangeline à possibilidade de ter notícias dele foi imediata. As
expressões da princesa sempre eram fáceis de interpretar. Há
pouco, percebera o desconforto, depois o medo, então a raiva.
E, vendo Evangeline mordendo o lábio, conseguia ver a
curiosidade dela. Evangeline era a mariposa, e Jacks
continuava sendo a chama.
– Havelock, acompanhe o Lorde Massacre do Arvoredo até
meu gabinete. Eu o encontrarei lá.
– Posso te acompanhar? – perguntou Evangeline. – Gostaria
de ouvir o que ele tem a dizer.
Apollo fingiu refletir sobre o que a esposa havia pedido.
Mas foi só para garantir que Evangeline não saísse do recinto
antes da hora e topasse com Lorde Massacre do Arvoredo no
corredor.
Quando o príncipe estava sob o efeito da maldição do
Arqueiro, e todos achavam que ele estava morto, lera em um
tabloide que Evangeline havia comparecido à festa de noivado
do Lorde Massacre do Arvoredo. Ela não esboçara reação ao
ouvir o nome dele, mas Apollo não podia correr o risco de que
a esposa encontrasse por acaso com um homem que poderia
suscitar alguma lembrança – ou que Massacre do Arvoredo lhe
dissesse algo a respeito de Jacks, já que Apollo suspeitava que
Evangeline comparecera à festa na companhia dele.
– Lamento, querida, mas acho que não seria uma boa ideia.
Recorda do que eu falei, que certas pessoas acreditam que
você está mancomunada com Jacks? Se alguma dessas pessoas
descobrisse que você estava presente em uma reunião na qual
o paradeiro dele foi revelado, poriam a culpa em você, caso
Jacks escape novamente.
Evangeline apertou os lábios. O príncipe não tinha dúvidas
de que a esposa discutiria com ele. Mas nada do que ela
dissesse tinha importância. Tudo aquilo era para protegê-la.
Acariciou o rosto da jovem e disse:
– Espero que você compreenda.
– Eu compreendo, sim, e espero que você compreenda que,
enquanto me tratar como uma prisioneira que não é digna de
confiança, vou me comportar como tal e não como sua esposa.
Ela se desvencilhou de Apollo e, sem dizer mais nem uma
palavra, deu as costas para o príncipe e saiu da sala, com o
cabelo cor-de-rosa esvoaçando atrás dela.
Apollo sentiu um ímpeto de ir atrás de Evangeline, um
resquício da maldição do Arqueiro que o fez ter vontade de
impedi-la de sair antes que chegasse à porta e de proibir que
ela fosse embora. Não fez isso. Apollo sabia que era melhor a
esposa ir embora naquele momento e que ela não teria como ir
muito longe.
Evangeline podia até ter resolvido que não queria agir como
se fosse sua esposa, mas isso não mudava o fato de que ela era
esposa de Apollo. Aquela mulher era dele. E, por bem ou por
mal, uma hora o desejaria tanto quanto ele a desejava.
Minutos depois, Apollo se reuniu com o Lorde Massacre do
Arvoredo em seu gabinete particular.
Robin Massacre do Arvoredo sempre tivera o tipo de
personalidade bem-humorada que atraía as pessoas feito um
ímã. Mas ele não estava sorrindo. Estava com olheiras, a boca
retorcida e o rosto pálido. Parecia ter envelhecido cinco anos
desde a última vez que Apollo o vira.
– Você está com uma cara ótima, meu amigo. Pelo jeito o
noivado te fez muito bem.
– E você continua sendo o melhor mentiroso de todos –
resmungou Massacre do Arvoredo. – Estou com uma cara
péssima, e o noivado acabou. Mas não estou aqui para falar
disso.
– Tem alguma pista do paradeiro de Jacks? – perguntou
Apollo.
– Não – respondeu Massacre do Arvoredo, baixinho,
aproximando-se da lareira. – Só achei que você não ia querer
que eu comentasse sobre o bracelete de Vingança Massacre do
Arvoredo.
– Você o encontrou, então?
O príncipe tentou não demonstrar muita empolgação. O
bracelete era uma lenda antiga, um conto de fadas, uma
história do tipo em que ele jamais acreditara muito. Mas,
recentemente, descobrira que certas lendas continham muito
mais verdades – e mais poder – do que havia acreditado até
então.
– Não – respondeu Massacre do Arvoredo, curto e grosso. –
Se é que existe, não está em poder de minha família. Mas
descobri outra coisa e pensei que poderia ser do seu interesse.
– Ele entregou ao príncipe um pergaminho pesado, amarrado
com um fino cordão de couro. – Tome muito cuidado com
isso. E, sob hipótese alguma, jogue as cinzas fora.
9
Evangeline

A
pesar de Evangeline ter sido proibida de sair do
castelo e por conta disso não ter conseguido visitar o
sr. Kristof Knightlinger, no dia seguinte uma edição
do tabloide escrito pelo jornalista lhe foi entregue com a
bandeja de café da manhã.
Não era isso que a princesa queria. Ainda queria fazer uma
visita em pessoa ao sr. Knightlinger e pedir que ele lhe
contasse tudo o que sabia a respeito de seu passado.
Teria até se contentado com uma visita do colunista
fofoqueiro no Paço dos Lobos. Entretanto, como o sr.
Knightlinger não respondera à carta que Evangeline escrevera
no dia anterior, se acomodou no sofá para ler o tabloide.

O
ntem, o Paço dos Lobos ficou em polvorosa com a notícia de que Garrick
da Galhardia, líder da Guilda dos Heróis, se reuniu a sós com o príncipe
Apollo. Eu, é claro, não fiquei surpreso ao saber do encontro de Apollo com o
misterioso herói na tentativa de encontrar o execrável Lorde Jacks. O que achei
surpreendente, contudo, foi a notícia de uma misteriosa saída do príncipe, poucas
horas depois, à meia-noite.
Minhas fontes seguras revelaram que Apollo foi visto saindo a cavalo do castelo
ao bater da meia-noite, na companhia de apenas um de seus guardas de confiança.

Para onde terá ido o príncipe?

Até onde sei, ele ainda não retornou ao castelo. E, sendo assim, só podemos
conjecturar. Será que decidiu caçar Lorde Jacks com as próprias mãos? Ou será que
existe outro mistério que obrigou o príncipe a se afastar do Paço dos Lobos e de sua
amada Evangeline Raposa?

Evangeline não queria ficar curiosa. Queria continuar


frustrada com Apollo – e ela estava mesmo. O ombro ainda
doía por causa das bicadas do pássaro de Garrick que
arrancaram sua pele. E o coração também doía sempre que
pensava que só de vez em quando Apollo era o príncipe meigo
que fora lá no alto do castelo. Mesmo assim, não conseguia
evitar de se perguntar aonde o marido poderia ter ido.
Enquanto se arrumava e colocava um diáfano vestido cor de
pêssego com pequenas flores rosadas, brancas e cor de violeta,
Evangeline perguntou para Martine se ela sabia alguma coisa
sobre a ausência do príncipe. Mas, assim como a própria
Evangeline, a criada ficara sabendo disso pelo tabloide.
Teria que perguntar para seus guardas pessoais, então. A
princesa amarrou as fitas que prendiam as mangas bufantes e
se preparou para uma possível batalha antes de se dirigir às
portas de seus aposentos. As portas se abriram para o corredor
externo, onde havia dois guardas diferentes, trajando
armaduras reluzentes, de prontidão.
– Olá, Alteza.
Os guardas a cumprimentaram na mesma hora, com
reverências exageradas e uma atenção intensa.
– Eu me chamo Hansel.
– E eu me chamo Victor.
Evangeline cogitou se os dois eram irmãos – tinham o
mesmo furinho no queixo, o mesmo pescoço largo e até o
mesmo bigode ruivo. Por alguns instantes, pensou que ter
bigode poderia ser uma exigência para fazer parte da guarda.
– O que podemos fazer pela senhora? – perguntou Hansel,
com um sorriso.
Por alguns instantes, a princesa se esqueceu do motivo que a
fizera abrir a porta. Os guardas eram diferentes dos do dia
anterior e, até ali, davam a impressão de serem simpáticos.
Apollo cumprira com sua palavra.
Sem dúvida, era fácil para ele trocar alguns guardas. O
príncipe provavelmente tinha milhares de homens à
disposição. E, mesmo assim, Evangeline sentiu o coração se
enternecer, bem de leve.
– Vocês sabem me dizer para onde o príncipe Apollo foi?
– Desculpe, Alteza. O príncipe não nos informou para onde
estava indo – respondeu Hansel.
– Mas temos, sim, um recado para a senhora – declarou
Victor. – Sua tutora acabou de passar por aqui e pediu para lhe
entregarmos isso.
Em seguida, o guarda entregou um pergaminho amarrado
com um cordão cor de vinho para Evangeline.
Como estava sem o lacre de cera, a missiva não era
particular. E de imediato seu coração tornou a ficar na
defensiva.
Quase não leu o bilhete da tutora – uma autêntica
prisioneira não obedeceria a ordens de bom grado. Mas, como
já tinha desfeito o laço do cordão, realizou a leitura.
Abaixo da assinatura a tutora desenhara um mapa detalhado
dos jardins do Paço dos Lobos. Em seguida, com uma letra
bem pequenininha, que Evangeline quase não reparou,
escrevera as palavras “Venha, por favor!”.
Evangeline não sabia o que a surpreendera mais naquela
mensagem: a expressão “por favor” ou o ponto de exclamação.
Talvez tenha sido a combinação de ambos. O fato é que foi
invadida pela sensação de que aquele pedido poderia ser algo
mais do que parecia à primeira vista.
Os sinos da torre bateram as 11 horas bem na hora em que
Evangeline saiu do castelo.
O céu estava com um tom cinza-aveludado, repleto de
nuvens em espiral que ameaçavam mais chuva, e exigiam que
Evangeline percorresse depressa as trilhas de pedra ladeadas
de cercas-vivas, salpicadas de flores de um roxo intenso.
Eram quatro os jardins principais do Paço dos Lobos: o
Jardim Submerso, o Jardim das Águas, o Jardim das Flores e o
Jardim Ancestral. Escondidos dentro de cada um desses
jardins, havia quatro jardins menores: o Jardim das Fadas, o
Jardim do Musgo, o Jardim Secreto e o Jardim dos Desejos.
De acordo com o mapa cuidadosamente desenhado pela
tutora, o Jardim dos Desejos, com seu Poço dos Desejos,
ficava no meio do Jardim das Flores. Ao que tudo indicava,
era um jardim murado, cercado por um fosso, e era preciso
atravessar uma ponte para chegar até ele.
Seria fácil encontrá-lo. O mapa estava muito bem-feito, e o
Jardim das Flores era uma perfeição de tão bem cuidado.
A chuva do dia anterior deixara o terreno do castelo repleto
de cores vivas, úmidas e tão intensas que Evangeline pensou
que, se encostasse em alguma das flores, as pétalas
manchariam as pontas de suas luvas. Era tão lindo que quase
desejou que não fosse. Evangeline não queria ficar enfeitiçada
por aquela beleza. Era uma sensação parecida demais à de
ficar novamente embasbacada com Apollo.
Mas foi difícil não se sentir um tantinho encantada. A
neblina prateada serpenteava pelo terreno feito mágica,
conferindo brilhos enevoados a todas as árvores e arbustos.
Era uma neblina tão linda que só percebeu que havia ficado
muito densa quando deu um passo e se deu conta de que só
conseguia enxergar as pedras da trilha a poucos metros
adiante. A neblina era tão fechada que Evangeline não
conseguia nem ver onde os guardas estavam, logo atrás dela.
Quase chamou pelos rapazes, para saber se ainda estavam lhe
acompanhando. Mas mudou de ideia.
Evangeline, na verdade, não queria que os guardas a
acompanhassem e… uma ideia extraordinária lhe ocorreu.
Talvez o plano da tutora, desde o início, incluísse despistar
os guardas. Madame Voss poderia querer se encontrar com
Evangeline a sós. Como a mulher era uma especialista em tudo
que dizia respeito ao Paço dos Lobos e à realeza, já devia estar
contando com a possibilidade de o jardim ficar escondido pela
neblina. A tutora talvez tivesse planejado aquele encontro para
contar à princesa algo que não queria que ninguém mais
ouvisse.
Talvez fosse pedir demais querer que o tal algo a ajudasse a
encontrar suas lembranças perdidas. Mas, mesmo assim,
quando se deu conta, já havia apressado o passo.
– A senhora pode ir mais devagar, princesa? – gritou
Hansel. Ou talvez tenha sido Victor. Evangeline não
conseguia distinguir qual deles estava berrando, só que os dois
guardas chamavam por ela.
– Acho que nos perdemos da senhora! – gritou um dos dois.
O que Evangeline fez foi andar ainda mais rápido, saindo da
trilha para que suas botas não fizessem barulho e os guardas
não conseguissem acompanhá-la com facilidade. O chão sob
seus pés estava úmido e macio. Pétalas caídas foram se
grudando na barra da capa e nas pontas das botas.
Blém-blóm!
Ao longe, o relógio da torre bateu 11h30.
Evangeline ficou com medo de chegar atrasada, mas aí
avistou a ponte que levava ao Jardim dos Desejos, que era
murado. Ela o atravessou rapidamente, deixando uma trilha de
lama e flores que possibilitaria que os guardas não tivessem
dificuldade para encontrá-la quando ali chegassem. Mas, com
sorte, teria pelo menos alguns momentos a sós com Madame
Voss.
A neblina se dissipou de leve quando chegou ao outro lado
da ponte, revelando uma porta arredondada salpicada pelo
tempo. Evangeline teve a impressão de que a porta um dia fora
de um tom reluzente de bronze, mas que a cor desbotara com o
passar do tempo, feito uma lembrança que, um dia,
desapareceria por completo.
A maçaneta tinha uma pátina verde que a fez se lembrar de
uma história que havia lido sobre uma peça como aquela que
sentia as mãos de todos que a tocavam e dizia que tipo de
coração a pessoa tinha. Era assim que a maçaneta sabia quem
devia ou não deixar entrar.
A princesa não se lembrava quem a maçaneta protegia, mas
sabia que alguém com maldade no coração conseguira enganá-
la, removendo o próprio coração. Esqueceu o que acontecia
depois disso, mas não queria perder tempo tentando lembrar.
Precisava entrar no jardim antes que os guardas a alcançassem.
Quando entrou no jardim, a neblina se enroscou nas suas
botas. Ao contrário de tudo o mais nas dependências reais,
aquele espaço quadrado era indomado, cheio de flores rebeldes
e trepadeiras embriagadas que se enroscavam nas abundantes
árvores do jardim, pendurando-se nos galhos feito serpentinas
que decoram uma festa. A trilha estava completamente coberta
por um musgo verde-azulado e se esparramava diante dela
feito um tapete, levando ao pequeno poço que, sabe-se lá
como, permanecia intocado por todas aquelas plantas que há
muito não eram podadas.
O poço era branco e tinha um arco de pedras com uma
corda amarrada, de onde pendia um balde dourado. Gotas de
chuva começaram a cair novamente enquanto Evangeline se
dirigia ao poço.
Ela olhou em volta, procurando a tutora. Dirigiu o olhar às
árvores que a cercavam, depois para aquela estranha porta,
mas não viu nem ouviu ninguém. O jardim estava em silêncio,
tirando o ruído cada vez mais alto da chuva. O que havia
começado como um chuvisco se transformava rapidamente em
uma tempestade.
Evangeline se encolheu debaixo do capuz da capa e torceu
para que a tutora chegasse logo. Foi então que se recordou da
parte final do bilhete.
“É claro que tentarei chegar na hora. Mas, se eu me
atrasar, não pense duas vezes: peça ao poço para realizar um
de seus desejos.”
A primeira coisa que lhe veio à mente foi pedir para a tutora
chegar logo. Mas seria desperdiçar um desejo com algo tolo.
Também chegou a pensar que Madame Voss poderia não ter
falado isso no sentido literal.
Talvez quisesse que Evangeline encontrasse alguma coisa
no poço. Olhou com mais atenção, procurando por uma pista.
Parecia haver algo gravado nos tijolos.
Só conseguiu ler as palavras “Instruções para pedir que
desejos se realizem”, mas as demais palavras estavam tão
apagadas que ela precisou chegar mais perto…
Duas mãos a empurraram pelas costas.
Evangeline gritou e tentou se agarrar à borda. Mas o
empurrão foi forte, e a pegou de surpresa.
Ela foi para a frente, feito uma pedra, e caiu…
10
Evangeline

E
vangeline já ouvira incontáveis histórias de garotas
que caíam em fendas do tempo ou em rachaduras na
superfície da Terra, e isso sempre lhe parecera algo
mágico. Imaginava os corpos plainando feito folhas, suaves,
graciosas e, de certo modo, lindas, caindo lentamente, caindo,
caindo, caindo…
Sua própria queda não foi assim. Ela foi arremessada com
força. O ar foi expulso dos pulmões quando o corpo bateu na
água gelada e continuou afundando. A capa e as botas mais
pareciam tijolos, puxando-a cada vez mais para o fundo.
Ela não sabia nadar. Conseguia boiar, mas mal e mal.
Com movimentos frenéticos, se livrou da capa – era muito
mais fácil bater as pernas sem ela. As botas ainda a puxavam
para o fundo, mas teve medo de se afogar se tentasse
desamarrá-las. Precisou de todas as suas forças só para chegar
à superfície da água. Ainda bem que encontrou um pedaço de
madeira à deriva, que pegou para usar como boia e continuar
flutuando.
– Socorro! – gritou, ofegante. – Estou aqui embaixo!
Lá de cima chegou o som dos pássaros grasnando, lufadas
de vento soprando e o incessante barulho da chuva batendo no
poço, mas não ouviu um passo sequer.
– Tem alguém aí em cima?
Entre um grito e outro, tentou desamarrar o vestido. O
pedaço de madeira a ajudava a flutuar, mas bem pouco.
Era um pouco mais fácil bater as pernas só de combinação,
mas estava tão frio, tão congelante. As pernas começaram a
perder a força e não sabia se, não as batesse, o pedaço de
madeira aguentaria o peso de seu corpo.
– Estou aqui embaixo! – gritou, mais alto. Só que, sabe-se lá
como, sua voz saiu mais fraca. – Socorro…
Estava ficando cada vez mais difícil gritar. As pernas batiam
cada vez mais fracas.
Evangeline não deveria jamais ter despistado os guardas.
Também não deveria ter se aproximado do poço, mas não
tinha como imaginar que alguém iria empurrá-la. Quem faria
uma coisa dessas?
Ela não tinha visto ninguém, mas imaginava, vagamente,
que o agressor poderia ser uma das pessoas sobre as quais
Apollo tentara alertá-la.
Usando o que restava de suas forças para bater as pernas e
se aproximar da lateral do poço, tentou se agarrar a uma pedra
e subir, mas a pedra era muito escorregadia, e seus dedos
estavam dormentes. Caiu com tudo de volta na água gelada.
– Evangeline! – gritou alguém. A impressão era a de que a
voz era masculina e desconhecida. – Evangeline!
– Estou… aqui… embaixo… – tentou gritar, mas sua voz
saiu em um sussurro.
O desconhecido soltou um palavrão.
A princesa tentou olhar para cima, para fora do poço. Mas
caíra longe, e as paredes eram altas demais – só conseguiu
enxergar o balde dourado, descendo em sua direção.
– Agarre-se no balde – ordenou a voz.
Era o tipo de voz a que Evangeline teria obedecido mesmo
que sua vida não dependesse disso. Não era gentil, mas
emanava um grande poder e era afiada feito a ponta de uma
flecha.
Enroscou as mãos congeladas em volta do balde. Era mais
difícil do que deveria ser. Seus dedos estavam tão gelados que
mal conseguiam segurar aquele objeto.
– Não solte! – comandou a voz.
Evangeline tremia com violência, mas obedeceu. Fechou os
olhos, agarrada ao balde, enquanto o desconhecido puxava a
corda. Ele foi tirando o corpo dela da água, puxando para
cima, para cima, para cima, até o alto. A combinação molhada
estava toda grudada em sua pele. E aí ela sentiu dois braços –
braços poderosos, firmes – enlaçando sua cintura.
– Pode soltar o balde.
Ele a puxou de um jeito um tanto brusco, mas conseguiu
tirá-la do poço.
Evangeline não parava de tremer, mas o homem que a
resgatou a segurava com a força de uma promessa que tinha a
intenção de cumprir. Os braços dele envolveram sua cintura,
trazendo-a para perto do peito. Tão próximo que ela sentiu o
coração dele. Batendo forte. Batendo forte. Batendo forte.
Evangeline sentiu uma estranha – e provavelmente delirante
– necessidade de tranquilizá-lo:
– Estou bem.
O homem deu risada, um som um tanto rouco, entrecortado.
– Se isso é estar bem, eu odiaria ver sua definição de meio
morta.
– Só estou com frio.
Evangeline tremeu de novo, encostada no homem, e
espichou o pescoço para ver o rosto dele. O cabelo molhado
tapava os olhos dela, e a chuva turvava sua visão. Mas, quando
por fim conseguiu ver de relance o homem que a resgatara, o
mundo de repente ficou mais iluminado.
Ele era lindo. Sobre-humano. Um anjo guerreiro de olhos
azuis, cabelo dourado e um rosto que fez Evangeline pensar
que escrever poemas deveria ser seu novo hobby. Quase
parecia que aquele homem brilhava. E a fez pensar que ele
poderia ter razão, que talvez realmente estivesse meio morta e
aquele era o anjo que a levaria para o céu.
– Não vou te levar para o céu – resmungou o desconhecido,
puxando-a um pouco mais para longe do poço. O coração dele
ainda batia forte, encostado em Evangeline.
E aí o mundo da jovem começou a girar. A chuva a
fustigava, rodopiando feito um ciclone, borrando o jardim e
aquele anjo dourado, até que, quando ela se deu conta, estava
em outro lugar: estava dentro de uma lembrança, no que
aparentava ser um corredor iluminado por uma luz suave, de
velas.
Ele a abraçou com tanta força que chegou a doer, mas
ela não se importou com essa dor. Deixaria que ele a
esmagasse, que ele a quebrasse, desde que jamais a soltasse.
Era isso que queria e se recusava a acreditar que ele não
queria a mesma coisa.
Conseguia sentir o coração dele batendo forte contra seu
peito enquanto ele a carregava para o quarto ao lado. Que
estava uma bagunça. Tinha maçãs e caroços por toda a mesa.
Os lençóis da cama estavam emaranhados. O fogo queimava
outras coisas além de lenha.
A lembrança era tão vívida e real que Evangeline quase
sentiu o calor do fogo.
Até que, de forma tão súbita quanto fora arremessada para
dentro dessa lembrança, foi arrancada dela pela sensação do
chão duro e molhado sob seus pés, seguido pelo som de vozes
roucas.
– O que aconteceu aqui?
– Quem fez isso?
Os rostos empapados de chuva de dois guardas
desconhecidos pairavam acima dela. Pingava água do bigode
deles.
A princesa tentou olhar mais adiante dos guardas,
procurando algum sinal do anjo de cabelos dourados que a
tirara do poço, mas não havia mais ninguém ali.
Nem todos os cobertores nem todas as lareiras do Paço dos
Lobos conseguiriam dissipar os tremores de Evangeline. O frio
havia se infiltrado em seus ossos e veias.
Quando chegou ao quarto, carregada, as criadas a ajudaram
a tirar a combinação encharcada. Debateram em seguida se
deviam ou não dar um banho quente nela, mas Evangeline
tremia só de pensar em ser submersa na água novamente.
Optou por vestir um robe fofinho e por ficar na cama.
Mas naquele momento, deitada e tremendo, achou que a
decisão poderia ter sido um erro.
– O médico já vai chegar – disse Martine. – E já pediram
para Apollo voltar ao castelo.
A princesa se encolheu ainda mais debaixo das cobertas.
Quase falou que não queria ver Apollo, mas não sabia ao certo
se isso era ou não verdade. Ao que tudo indicava, o marido
realmente tinha razão quando dizia que ela corria perigo ali.
Evangeline não contou para ninguém que fora empurrada
para dentro do poço. Mentiu que havia caído. Essa mentira a
fez se sentir absurdamente tola. Vira a expressão dos guardas
que a haviam resgatado – franziram o cenho e se entreolharam,
deixando claro que ambos pensaram “Quem é idiota ao ponto
de cair dentro de um poço?”.
“Uma idiota que não quer dar mais uma desculpa para o
marido roubar um pouco mais de sua liberdade”, pensou
Evangeline enquanto falava, batendo os dentes, e tentando dar
continuidade à farsa.
Não que fizesse alguma diferença. Os guardas fizeram
questão de levá-la de volta para o castelo no colo, e a princesa
se deu conta de que, de todo modo, não haviam acreditado de
fato naquela história de que havia caído no poço. Perguntaram
demasiadas vezes se ela não tinha visto ninguém. Se ainda
tinha o bilhete mandado pela tutora. E se sabia onde estavam
seus guardas pessoais, Victor e Hansel.
Evangeline se sentiu tola ao perceber que havia sido crédula
demais. Mas talvez o problema não fosse ter sido crédula, mas
ter acreditado e confiado nas pessoas erradas. Deveria ter
acreditado em Apollo, que avisou que ela corria perigo.
O dr. Stillgrass apareceu e receitou chá quente e cobertores.
Só que, quando Evangeline tomou o primeiro gole de chá,
sentiu um gosto… estranho. Pensou que poderia conter algum
tipo de sedativo e esvaziou a xícara em um vaso de plantas
assim que ficou sozinha.
Não queria ficar sedada. Já estava se sentindo exausta. E,
quando ficou completamente sozinha, foi impossível dormir.
Cada ruído a fazia pular de susto. Cada crepitar da lareira e
estalar do chão a fazia se sentir tensa e encolhida, feito aquele
palhaço que fica preso a uma caixa por uma mola, só
esperando para pular. Poderia jurar que, quando fechava os
olhos, dava para ouvir o próprio coração batendo com força.
Uma lufada de vento frio soprou no quarto, e ela se
encolheu ainda mais debaixo dos cobertores.
Talvez não tivesse sido uma boa ideia dispensar as criadas.
O chão estalou de novo. Evangeline tentou ignorar.
Em seguida, em vez de um estalo, ouviu passos, ruidosos e
confiantes. Só então abriu os olhos.
Apollo estava parado ao lado da cama. A capa de veludo
que usava estava encharcada, o cabelo castanho-escuro
revolvido pelo vento, as bochechas avermelhadas, e os olhos
castanhos vidrados de preocupação.
– Sei que você não deve querer me ver neste exato
momento, mas eu precisava me certificar de que você está
bem.
O príncipe estava com cara de quem queria acariciá-la. Mas
acabou passando a mão no próprio cabelo.
Evangeline se sentou na cama com cuidado. Segurou a barra
da colcha com força. E percebeu que também queria acariciá-
lo. Queria um abraço. Queria um pouco de colo e sabia que, se
pedisse, Apollo daria ambos a ela.
Tentou se lembrar da razão pela qual não podia pedir. Mas
seu raciocínio lhe pareceu raso. Era difícil ficar brava com
Apollo quando, ao que tudo indicava, a proteção que o
príncipe dissera que ela precisava era necessária.
Timidamente, Evangeline esticou a mão e a encostou nas
pontas dos dedos de Apollo. Que estavam frios – não gelados,
mas quase: aparentemente ele tinha ido direto vê-la no quarto
assim que pisara no palácio. Evangeline havia se recusado a
confiar em Apollo no dia anterior. Mas isso não o impedira de
ir ao encontro dela naquele momento que ela tanto precisava.
– Fico feliz que você tenha vindo.
– Jamais deixarei de vir. Mesmo quando você não quiser
que eu venha.
O príncipe deu um passo, aproximando-se mais da cama, e
entrelaçou os dedos nos da princesa. Estava tremendo um
pouco, do mesmo jeito como tremia na manhã em que
encontrou Evangeline, depois que as lembranças dela foram
roubadas.
Ela ergueu os olhos e deu um sorriso para tranquilizá-lo.
Mas, em vez de enxergar Apollo, imaginou o anjo guerreiro
que vira no poço, o lindo guarda de cabelos dourados, cujos
braços a seguraram feito barras de aço. Foi um mero relance –
mas sentiu as bochechas ficarem coradas.
Apollo deu um sorriso, obviamente achando que era por
causa dele.
– Isso quer dizer que fui perdoado por ontem?
Evangeline fez que sim. E, ainda meio delirante, deve ter
dito alguma coisa, porque o príncipe sorriu ainda mais e
respondeu:
– Sempre vou te proteger, Evangeline. Eu estava falando
sério quando retornei dos mortos: nunca mais vou te soltar.
11
Jacks

J
acks sempre se considerou mais sádico do que
masoquista. Gostava de infligir dor, não de sofrê-la. E,
apesar disso, não tinha forças para abandonar as sombras
do quarto de Evangeline.
Não era uma obsessão.
Uma única visita não era uma obsessão.
O Príncipe de Copas só precisava se certificar de que ela
ainda estava viva. De que não estava sangrando. Em perigo.
Infeliz. Com frio. Ela estava fora de perigo na própria cama.
Estaria ainda mais fora de perigo quando Jacks fosse embora.
Mas o Arcano era egoísta demais para ir embora já naquele
momento.
Encostou-se no pilar da cama e ficou velando o sono de
Evangeline. Nunca compreendera por que alguém velaria o
sono de outra pessoa… até que a conheceu.
Castor fazia isso. Dizia que o ajudava a controlar seus
ímpetos.
Em Jacks, o efeito era contrário.
Na lareira, restavam as brasas do fogo, que já se apagavam.
Ele chegou a pensar em atear fogo ao quarto, só para ter uma
desculpa para pegá-la no colo e tirá-la dali, salvando a vida da
jovem pela última vez, antes de abandoná-la para sempre.
É claro que não estaria salvando a vida de Evangeline de
fato se ele fosse o responsável por colocar sua vida em perigo,
dando início ao incêndio.
– Acorde, princesa.
O Príncipe de Copas atirou um colete de couro no corpo
adormecido de Evangeline.
Ela entreabriu os olhos cansados, esfregou-os em seguida e
jogou a peça de roupa para o lado. Ainda não havia enxergado
Jacks nitidamente. No passado, não teria sido necessário
enxergá-lo. Reconheceria a voz do Arcano ou sentiria sua
presença antes mesmo de ele dizer alguma coisa, e Jacks veria
a reação do corpo de Evangeline. As bochechas teriam ficado
avermelhadas ou, então, ela estremeceria e depois fingido que
a causa era uma corrente de ar. E que não era por causa dele.
Seria melhor para Evangeline não lembrar da existência
dele. Mas Jacks era tão cretino que odiava o fato de ela ter se
esquecido.
Mesmo que o responsável por aquele esquecimento fosse
ele.
“Este não é um erro pequeno, custará para consertar. Se
fizer isso, o Tempo irá tomar algo igualmente valioso de
você”, alertara Honora.
Jacks achou que o Tempo roubaria algo dele. Não pensou
que roubaria de Evangeline.
As lembranças perdidas lhe pareceram um preço irrelevante
a pagar, comparado à vida dela. Mas, apesar de Evangeline
estar viva novamente, Jacks jamais esqueceria de tê-la visto
morrer, de ter sentido o corpo de Evangeline ficar sem vida em
seus braços. Isso o fez se dar conta do quanto ela realmente era
frágil. Pensou que ela ficaria mais segura no castelo, com
Apollo – e ficaria mesmo, depois que Jacks conseguisse o que
precisava. Assim que conseguisse, o Arcano iria abandoná-la
de uma vez por todas.
– Dá para você ir mais rápido? – falou, com seu sotaque
arrastado, atirando mais uma peça de roupa em cima dela. –
Não estou muito a fim de esperar o dia todo.
Evangeline jogou a blusa que Jacks acabara de atirar nela
para o lado e tentou fazer careta enquanto resmungava:
– Ainda está escuro.
– Por isso mesmo.
O Príncipe de Copas atirou as peças que faltavam.
– Dá para você parar?!
– Dá para você se vestir?
Evangeline se livrou de todas as peças que tapavam seu
rosto. Jacks ficou observando a expressão confusa da jovem,
cujos olhos estavam com dificuldade para se acostumar à
escuridão. Parecia que ainda estava meio dormindo, com
aqueles olhos espremidos e cansados. E Jacks não conseguia
tirar os olhos dela.
Desde a primeira vez que a vira, na própria igreja, o
Príncipe de Copas teve vontade de observá-la. Teve vontade
de saber qual era o som de sua voz, qual era a sensação de
tocar na pele dela. O Arcano a seguiu, ouviu suas preces –
odiou suas preces. Foram das preces mais horrorosas que já
ouvira na vida. E, contudo, mesmo depois daquelas preces
terríveis, não conseguira dar as costas e ir embora. Queria tirar
um pedaço dela. Guardá-la para si. Usá-la mais tarde.
Pelo menos, foi disso que tentou se convencer.
Ela não passava de uma chave.
Um ser humano.
Não era uma obsessão.
Não era dele.
Jacks levou uma maçã preta até a boca e deu uma mordida
bem grande.
Nhac.
Evangeline pulou de susto ao ouvir o ruído e se agarrou aos
lençóis.
– Não sabia que você tinha medo de maçãs.
– Não tenho medo de maçãs. Não seja ridículo.
Mas ela estava mentindo. Jacks estava vendo a pulsação
acelerada, fazendo a veia do pescoço saltar. Havia assustado
Evangeline, e isso era bom. Ela precisava ter medo dele.
Mas, pelo jeito, Evangeline continuava sem senso de
autopreservação. Já completamente acordada, não chamou os
guardas nem assumiu uma postura defensiva. Pelo contrário:
arregalou os olhos. E, por um segundo, chegou a ser doloroso
perceber o tanto que ela havia esquecido, porque olhou para o
Arcano como se ele não pudesse lhe fazer mal.
– É você – murmurou Evangeline. – Você salvou minha
vida.
– Se quer me agradecer, ande logo e se troque.
Ela se encolheu de leve ao ouvir o tom ríspido da voz de
Jacks. O Príncipe de Copas sabia que estava, como sempre,
sendo cretino. Mas, quando tudo aquilo terminasse, causaria
mais sofrimento a Evangeline caso fosse gentil.
– Por que você está aqui? – perguntou ela.
– Você precisa aprender a se defender da próxima pessoa
que tentar te matar – respondeu Jacks, curto e grosso.
Evangeline ficou olhando para o Arcano com um ar de
ceticismo.
– Você é instrutor?
O Arcano se afastou do pilar da cama antes que desse tempo
de Evangeline vê-lo mais de perto.
– Vou te dar cinco minutos. E aí, mesmo que você não tenha
se trocado, vamos começar.
– Espere aí! – berrou Evangeline. – Qual é o seu nome?
Você sabe, Raposinha.
Jacks não projetou seus pensamentos alto suficiente para
que ela ouvisse.
Ele apenas se apresentou com o nome que havia planejado.
Sabia que Evangeline não se recordaria e precisava ter certeza
de que ele mesmo não se esqueceria.
– Pode me chamar de Arqueiro.
12
Evangeline

E
vangeline encontrou o Arqueiro no corredor, encostado
na parede de pedra, com os braços firmemente
cruzados em cima do tórax, como se não estivesse se
sentindo muito à vontade de ter que ficar esperando. O rapaz
apertou os dentes quando ela saiu de seus aposentos.
Algo dentro de Evangeline também se apertou, bem em
volta do peito. A sensação era parecida com a de uma facada,
aguda e incômoda. E teve a impressão de que foi ainda mais
intensa quando os olhos do Arqueiro a mediram de cima
abaixo, ficando mais escuros ao observá-la.
Evangeline vestira as roupas que o Arqueiro lhe dera. Mas,
se estivesse mais desperta, não teria feito isso. A volumosa
saia branca, na verdade, era a peça mais prática de todas, e as
demais não eram nem um pouco práticas. A blusa de um tom
claro de rosa era muito transparente, o colete de couro era
muito justo e deu a sensação de ser ainda mais justo quando os
olhos do Arqueiro se demoraram sobre ele.
Nesta hora, a princesa pensou que acompanhar aquele
guarda poderia não ser uma boa ideia.
Só de ficar parada perto dele já tinha a sensação de ter
tomado uma decisão equivocada.
Sim, aquele rapaz salvara sua vida. Mas não passava mais a
impressão de ser um salvador. Seus traços eram tão marcados
que quase pareciam sobre-humanos, lembrando um objeto
afiado. Evangeline teve a sensação de que poderia cortar o
dedo caso roçasse sem querer no maxilar dele.
Os trajes do rapaz lhe pareceram um tanto displicentes
demais para alguém que fazia parte da guarda real. Usava
botas de cano alto surradas, calça de couro justa, de cintura
bem baixa, e duas tiras de couro amarradas na cintura, cheia de
facas. A camisa era larga, os botões do colarinho estavam
abertos, e as mangas, dobradas até acima dos cotovelos,
deixavam à mostra braços esguios e fortes. Evangeline ainda
se lembrava da sensação poderosa de ter aqueles braços ao
redor de seu corpo, apertando-a com força, de como foi bom
sentir aquele abraço. E, por um segundo palpitante, teve ciúme
das outras pessoas que aquele rapaz poderia vir a abraçar um
dia.
Definitivamente, não tinha sido uma boa ideia.
E… onde estavam seus outros guardas pessoais?
– Suspeitaram de algum perigo – disse o Arqueiro, ao notar
que o olhar de Evangeline vasculhava todos os cantos do
corredor mal iluminado. – Foram investigar.
– Que tipo de perigo?
O Arqueiro sacudiu um dos ombros.
– Para mim, pareceu mais um gato miando alto, mas sua
guarda pessoal, pelo jeito, teve outra opinião.
Então ele ergueu um dos cantos dos lábios bem devagar,
quase esboçando um sorriso. Por um segundo, seu rosto inteiro
se transformou. O rapaz já era belo, mas com aquele meio
sorriso ficava tão lindo que quase chegava a incomodar.
Evangeline não queria achá-lo lindo, longe disso. Tinha a
sensação de que o rapaz estava debochando dela ou que aquele
sorriso era parte de alguma piada interna da qual não estava a
par.
A jovem fez uma careta, e o Arqueiro reagiu com um
sorriso largo. O que foi pior. Ele tinha covinhas. Covinhas que
eram quase uma injustiça. Covinhas deveriam dar um ar de
meiguice, mas Evangeline tinha a sensação de que aquele
guarda era tudo, menos meigo.
Ela se questionou pela última vez se seria ou não prudente
acompanhá-lo. Mas então resolveu deixar a resposta em
aberto. Porque, a bem da verdade, queria acompanhá-lo.
Talvez ainda estivesse delirando, em decorrência de ter caído
no poço ou por não ter dormido direito. Ou, quem sabe, algo
além de seu coração também tivesse se partido durante o
período do qual não conseguia se lembrar.
– A gente se conhece? – perguntou a princesa. – Por acaso
eu já te vi por aí?
– Não. Não costumo brincar com coisas que se quebram
com facilidade – respondeu o rapaz.
Em seguida, descruzou os braços e se afastou da parede.
O Arqueiro se movimentava pelo castelo feito um ladrão,
com passos elegantes e rápidos, avançando pelos corredores e
virando nos cantos. Ficava difícil acompanhá-lo usando aquela
saia ridiculamente volumosa que o guarda havia atirado em
cima de Evangeline.
– Se apresse, princesa.
– Aonde estamos indo? – perguntou ela, quando conseguiu
alcançá-lo ao pé de uma escadaria.
A princesa estava levemente sem ar, ao passo que o guarda
quase dava a impressão de estar entediado. E abriu, de um
jeito indolente, uma porta que levava para a área externa do
castelo.
Evangeline abraçou o próprio peito porque uma lufada de ar
gélido a atingiu em cheio.
– Está um gelo lá fora.
O Arqueiro deu um sorriso irônico.
– Você não pode se dar ao luxo de escolher o melhor clima
quando tem alguém querendo te atacar.
– É por isso que você me deu roupas tão inapropriadas?
Ele só respondeu dando mais um frustrante sorrisinho
irônico e começou a percorrer a trilha que levava à escuridão.
O ar provou estar ainda mais gelado quando Evangeline saiu
do castelo e foi atrás do guarda. Faltava pelo menos uma hora
para o sol raiar. A noite estava escura como um vidro de
nanquim, e a única iluminação vinha dos postes de luz
intermitentes que acompanhavam a trilha do jardim, revelando
grandes poças d’água, em ambos os lados.
O Arqueiro havia levado a princesa para o Jardim das
Águas.
Evangeline conseguia ouvir as fontes borbulhantes e as
quedas d’água se precipitando ao longe. Imaginou que,
durante o dia, deveriam ser fantásticas. Mas, naquele exato
momento, durante a parte mais escura e fria da noite, ficou
pensando no que sentiria caso caísse naquelas águas. Duvidava
que tivessem a mesma profundidade do poço em que quase
morrera, no dia anterior. Por um segundo, contudo, não
conseguiu se mexer.
– Venha logo, princesa – gritou o Arqueiro.
Ele estava muito mais adiante, e Evangeline não conseguia
enxergá-lo. Seu nervosismo aumentou com a lembrança do
que havia acontecido da última vez que despistara um guarda.
Só conseguia ouvir o som de passos rápidos.
Depois de um segundo de ansiedade, seguiu o ruído, e ele a
levou até uma ponte suspensa precária. O tipo de ponte que
Evangeline teria adorado quando era criança, feita de madeira
velha e corda e, provavelmente, uma boa dose de imprudência,
porque dava a impressão de ser absurdamente instável. Se
tivesse uma moeda no bolso, a teria atirado no rio que corria lá
embaixo e feito uma oração em pensamento, pedindo por uma
travessia segura.
Estava ouvindo a água batendo nas rochas. Mas não
conseguia ouvir os passos do Arqueiro.
– Arqueiro? – chamou.
Ninguém respondeu.
Será que o guarda havia se perdido de Evangeline de
propósito? Ela não queria acreditar nisso. Sabia que
acompanhá-lo era uma péssima ideia e, contudo, bem lá no
fundo, torcia para que fosse uma ótima ideia.
Talvez estivesse na hora de voltar para o castelo.
Evangeline se virou, e a ponte sacolejou sob seus pés. Em
seguida, braços gelados enlaçaram sua cintura e prenderam
seus braços nas laterais do corpo.
– Não grite – sussurrou o Arqueiro, no ouvido dela –, ou
vou te atirar da ponte.
– Você não teria coragem – retrucou Evangeline, ofegante.
– Quer me testar, princesa? Porque eu teria coragem de
fazer muito mais do que isso.
Com toda a facilidade, ele a arrastou até a lateral da ponte e
a inclinou para frente, por cima do precário corrimão de corda,
até o cabelo dela ficar balançando acima da água que fluía lá
embaixo. Evangeline teve a sensação de que, mesmo se não
gritasse, aquele rapaz ainda teria coragem de atirá-la da ponte,
só para vê-la cair.
– Por acaso você perdeu a razão? – perguntou a princesa.
E ficou se debatendo.
Ele deu uma risada disfarçada.
– Você terá que se esforçar mais do que isso.
– Achei que você ia me ensinar o que fazer!
O Arqueiro, que estava atrás de Evangeline, inclinou-se
para a frente, até ficar com os lábios nos ouvidos dela. Ela teve
a impressão de que os dentes do rapaz mordiscaram sua orelha
enquanto falava:
– Primeiro quero ver se você sabe alguma coisa.
O coração de Evangeline bateu mais rápido. Era óbvio que
aquele homem estava fora de si.
Evangeline tentou dar uma cabeçada na cabeça dele.
O guarda se afastou com agilidade e comentou:
– Fácil de se esquivar.
A princesa pisou firme, tentando acertar o pé do Arqueiro,
mas só conseguiu balançar aquela ponte precária.
– Estou começando a achar que você não quer escapar.
Desta vez, com toda a certeza, o rapaz mordeu a orelha dela,
com dentes afiados, que arranharam a pele dela. Evangeline
ficou se perguntando se aquele instrutor gostava de machucar
todo mundo ou se era só com ela. Alguma coisa naquilo estava
começando a parecer pessoal. Só que o mordiscar em sua
orelha a deixou mais perturbada do que dolorida.
– Você quer que eu te jogue da ponte? – provocou o
Arqueiro.
– Claro que não! – berrou Evangeline.
– Então por que não está lutando comigo? – perguntou, com
um tom que parecia bravo.
– Estou me esforçando ao máximo.
– Mas eu não estou! Você precisa se esforçar mais. Me dê
um chute.
Evangeline cerrou os dentes e deu um chute para trás.
Tentou acertar no meio das pernas do homem, mas só
conseguiu fazer farfalhar a parte de trás da saia ridícula que
estava usando.
– Mandou bem, princesa.
– Você está debochando de mim?
– Desta vez, não. Pelo menos você me obrigou a ajustar
minha postura. Depois de um chute desses, a maioria dos
agressores juntará mais as pernas. E isso vai te permitir mudar
de posição. Dê um passo para fora com a perna direita –
ordenou o guarda. – Depois, coloque sua perna esquerda atrás
de mim.
– E o que vou conseguir com isso?
– Apenas faça. Só vou te soltar quando você merecer.
O Arqueiro apertou mais os braços gelados bem na hora em
que uma gota de chuva caiu, seguida por outra e mais uma.
Em poucos segundos, a fina blusa que a princesa estava
usando ficou empapada. E a do rapaz também. Evangeline
conseguia senti-la grudada nas costas, nas partes que o colete
não cobria, porque o guarda continuou apertando seus braços,
até quase doer.
Evangeline por fim fez o que o Arqueiro pediu. Deu um
passo para a direita com uma das pernas, depois colocou a
outra atrás dele. O guarda tinha razão. A princesa mudou de
posição, mas isso só deixou os dois ainda mais enroscados.
– Agora me segure – ordenou o Arqueiro.
– Você está prendendo meus braços!
– Mas suas mãos estão livres.
E estavam, mas Evangeline continuava hesitando em pegar
no guarda.
– Segure – repetiu ele. – Depois me levante com o quadril e
me derrube.
O Arqueiro a segurou com mais força, passando um dos
braços em volta das costelas da princesa com firmeza, e o
outro logo abaixo da cintura, quase no quadril. Em seguida,
afastou os dedos de um jeito que deu a impressão de que só
queria encostar nela, não a prender. Mais parecia que sua
intenção era abraçá-la naquela ponte, no escuro, onde os dois
estavam a sós com a chuva e a sensação de que somente as
batidas do coração, aceleradas em demasia, os separavam.
Então Evangeline agarrou as pernas do guarda, que estava
todo molhado e escorregadio. Os dedos da princesa
escorregaram no couro dos trajes dele, e a ponte balançou.
Ela perdeu o equilíbrio. A tábua que havia debaixo dela
havia sumido.
– Não… – gritou.
O Arqueiro se moveu incrivelmente rápido. E fez as vezes
de escudo, virando o corpo dela à medida que caíam. Quando
aterrissaram, sem acertar a tábua quebrada por pouco, foram as
costas dele que bateram na ponte, fazendo um ruído alto.
Evangeline o ouviu resmungar de dor, como se o ar tivesse
sido expulso de seus pulmões, mas ele não a soltou. Pelo
contrário: a apertou ainda mais.
Dava para ela sentir a respiração ofegante do guarda em seu
pescoço, já que os dois ficaram deitados ali, em cima daquela
ponte quebrada. A blusa havia subido em meio à luta, e os
dedos do Arqueiro agora estavam encostando na pele da
barriga da princesa.
A chuva ficou mais forte. Cada centímetro da pele dela
estava encharcado. Mas Evangeline só conseguia sentir as
pontas dos dedos do rapaz, que foram descendo lentamente,
em direção ao cós da saia.
– E é agora que você se livra do agressor – disse ele,
baixinho.
– Mas eu não quero – disse ela, mas as palavras saíram de
sua boca do jeito errado, ofegantes. E, apesar de todo aquele
frio e de toda aquela umidade, Evangeline sentiu um calor que
ia das bochechas até a pele à mostra debaixo das mãos do
Arqueiro. – Quer dizer, só preciso recuperar o fôlego.
Ele a censurou estalando a língua.
– Você não pode se dar ao luxo de recuperar o fôlego. Se
parar de lutar, sairá perdendo.
Na mesma hora, ele pôs a mão gelada na garganta da
princesa, que sentiu a ponta afiada de uma faca encostar no
seu pescoço.
Evangeline ficou bem quietinha, ou pelo menos tentou. Era
surpreendentemente difícil não se mexer tendo uma faca no
pescoço e uma mão encostando na sua barriga com tanta
intimidade.
– Você é maluco?
– Sem dúvida.
O Arqueiro movimentou a adaga bem devagar, passando-a
com cuidado por cima da jugular de Evangeline. Não furou a
pele da princesa, mas o efeito foi desconcertante mesmo
assim.
– Nunca acredite que você está fora de perigo – censurou
ele.
A faca percorreu, em linha reta, o trajeto que ia do vão da
garganta, passando pelo peito de Evangeline, até chegar aos
cordões do colete.
Ela parou de respirar. A ponta da faca ficou pairando logo
debaixo dos cordões. Bastaria um puxão para cortá-los.
Não.
A princesa não sabia ao certo se foi o guarda quem pensou
nessa palavra ou se foi ela. Quase parecia que a voz do
Arqueiro estava dentro da sua cabeça.
Em seguida, com um único e impossível movimento, o
rapaz a fez ficar de pé e a soltou com a mesma rapidez.
Evangeline cambaleou para trás, com as pernas bambas.
O Arqueiro ficou diante dela, todo encharcado. A água
pingava do cabelo dourado, escorria pelo rosto branco, mas ele
nem sequer tremia. Apenas segurava, estático, a faca que
acabara de colocar no pescoço de Evangeline. Os nós dos
dedos estavam brancos, mas poderia ser só por causa do frio.
– Tentaremos de novo em outra ocasião.
– E se eu não quiser tentar de novo em outra ocasião? –
retrucou ela, ofegante.
Ele soltou um sorriso irônico, uma expressão que dava a
entender que achava graça no fato de ela pensar que tinha
escolha.
– Se é isso que você quer, terá que se esforçar mais para se
livrar de mim quando eu for ao seu quarto. Até lá, carregue
isso com você. Aonde quer que for.
O Arqueiro atirou a adaga para Evangeline.
A arma se virou no ar, ficando com o cabo, e não a ponta,
para a frente. Pedras preciosas brilharam na luz e, de súbito,
Evangeline teve uma visão com aquela adaga, na qual a arma
não estava no ar, mas em um chão escuro. E não era apenas
uma visão, era uma lembrança.
Tantas pedras estavam faltando, mas, apesar disso, o cabo
da faca brilhava sob a luz das tochas, pulsando, em tons de
azul e roxo, a cor do sangue antes de ser derramado.
A lembrança foi rápida.
Enquanto se dissipava, Evangeline ficou olhando para a faca
que estava em sua mão. Definitivamente, era o mesmo punhal.
Tinha as mesmas pedras preciosas azuis e roxas, e até o espaço
vazio das pedras que faltavam era o mesmo.
Não sabia se a arma sempre fora daquele guarda ou se
chegara a ser dela um dia. Mas tinha certeza de uma coisa: o
Arqueiro havia mentido quando dissera que não a conhecia.
Teve vontade de perguntar a razão e teve vontade de
perguntar a respeito da faca.
Só que, mais uma vez, ele havia sumido.
13
Apollo

A
pollo estava parado na frente da lareira de seu
gabinete, com as mãos cruzadas nas costas, o queixo
erguido, os olhos baixos. Era uma pose que fazia com
frequência, para ser retratado, como no quadro que,
atualmente, ficava pendurado em cima da lareira. É claro que,
no retrato, o príncipe era mais novo. Fora pintado antes de ele
conhecer Evangeline, antes de ter morrido e visto a si mesmo
sendo substituído por um impostor apenas uma semana depois.
E o impostor não tinha nada de impressionante.
O príncipe sabia que ainda era jovem. Vivera apenas vinte
anos – vinte anos tranquilos, o que dificultava ter uma vida
que servisse de inspiração para bardos e menestréis. Apollo
gostava de pensar que, se tivesse vivido um pouco mais antes
de sua suposta morte, seu legado não teria sido descartado com
tanta rapidez. Continuava, contudo, decepcionado consigo
mesmo por ter desperdiçado tanto tempo.
Voltar dos mortos lhe dera um certo ímpeto de construir um
legado que não fosse esquecido com tanta facilidade. Mas o
príncipe sabia que só isso não bastava para forjar o futuro que
desejava, para garantir que ninguém mais tornasse a
amaldiçoá-lo nem se aproveitasse dele de alguma outra
maneira para fazer mal a Evangeline.
Precisava fazer mais do que isso.
Desenrolou o pergaminho que o Lorde Massacre do
Arvoredo lhe dera havia dois dias. Como já acontecera, o
objeto pegou fogo, não ao ponto de queimar seus dedos, mas o
suficiente para destruir o papel e reduzi-lo a cinzas. Começou
com as palavras da parte de baixo do pergaminho: elas sempre
pegavam fogo antes que desse tempo de lê-las. Só que Apollo
já havia lido boa parte da história. Sabia exatamente o que
tinha que fazer.
Antes disso, precisava se certificar de que Evangeline não
corria perigo.
Bateram à sua porta exatamente na hora combinada.
Apollo respirou fundo, preparando-se para o que – assim
receava –, teria que fazer.
– Pode entrar – falou, apertando os lábios para baixo. A
porta do gabinete se abriu, e Havelock entrou.
O guarda reparou imediatamente no papel em chamas que
havia na mão do príncipe e nas cinzas que estavam no chão.
– Interrompi alguma coisa?
– Nada de importante.
Apollo deixou o pergaminho em chamas cair no chão.
Como todas as histórias do Norte, ela estava contaminada pela
maldição das histórias. Aquela história específica ateava fogo
a si mesma toda vez que era aberta.
O papel queimaria até ser reduzido a um monte de cinzas.
Depois, voltaria a ser o que era – algo bem parecido com o que
Apollo estava fazendo com a própria vida e com a vida de
Evangeline.
– Quais são as novas informações que você tem a respeito
do ataque sofrido pela princesa Evangeline? – perguntou.
O guarda fez uma reverência e respirou fundo,
constrangido.
– A tutora continua alegando inocência. Madame Voss jura
que jamais enviou um bilhete para a princesa, tentando atraí-la
até o poço. Alega que os guardas estão mentindo.
Apollo passou a mão na cabeça e perguntou:
– E o que Victor e Hansel dizem?
– Eles insistem na história que contaram. Dizem que chegou
uma carta da tutora e que se perderam de Evangeline por causa
da neblina, quando ela tentou encontrar Madame Voss. Juram
que não participaram de tramoia nenhuma.
O príncipe fez uma careta.
– Você acha que estão dizendo a verdade?
– Ambos me pareceram sinceros, Alteza. Mas é difícil dizer.
A tutora também me pareceu sincera.
Apollo soltou um suspiro e olhou para o chão: o
pergaminho havia quase terminado de queimar.
– Victor, Hansel e a tutora, provavelmente, estão
mancomunados – declarou.
Teve vontade de retirar as palavras assim que elas saíram de
sua boca.
Só que agora era tarde demais. Era tarde demais desde o
instante em que pedira para Victor e Hansel entregarem o falso
bilhete da tutora para Evangeline, que fingissem tê-la perdido
de vista nos jardins e que depois a empurrassem para dentro do
poço. Mas a esposa não lhe dera escolha. Recusara-se a
acreditar que estava em perigo. Apollo foi obrigado a mostrar
para a princesa que ela estava errada.
Não tinha a intenção de que a lição fosse tão traumática.
Esperava que os guardas que patrulhavam o jardim a
encontrassem antes. O que foi um erro, mas ele não queria
envolver mais pessoas em seus planos além do necessário.
– Continue torturando a tutora: tenho a sensação de que
existe a possibilidade de ela confessar. Ainda mais se você
disser que matou Victor e Hansel.
Havelock empalideceu.
Apollo lhe deu um tapinha no ombro e, mais uma vez, ficou
tentado a mudar o rumo das coisas. A dizer para Havelock
simplesmente deixar Victor e Hansel na prisão. Odiava ter que
perdê-los. Tinham provado quão valorosos eram de modo
admirável. Mas não tinha como saber ao certo quanto tempo
duraria a lealdade dos dois. E era só o que lhe faltava
começarem a espalhar boatos de que ele é quem havia
orquestrado a última tentativa de tirar a vida de Evangeline.
– Sei que Victor e Hansel são seus amigos, mas eles traíram
a confiança da princesa. Precisamos fazer isso, para que sirva
de exemplo.
Havelock fez que sim, com uma expressão pesarosa, e
respondeu:
– Garanto que isso será feito hoje à noite.
Apollo sentiu uma pontada, algo muito parecido com culpa.
Odiava ter que fazer aquilo, odiava que as coisas tivessem
chegado àquele ponto, odiava o fato de Evangeline não confiar
nele te tal forma que o obrigara a tomar uma atitude tão
drástica. Mas estava fazendo o que era preciso.
Estava protegendo a esposa de todos, inclusive de si mesma.
14
Evangeline
O Arqueiro não era nenhum anjo, nenhum salvador. Era
desvairado, provavelmente perigoso. E, apesar disso, ao
que tudo indicava, consistia na maior esperança que
Evangeline tinha de recobrar suas lembranças.
Ela olhou novamente para a adaga que o Arqueiro havia lhe
dado. O pouco que se recordava daquela faca não ajudava com
muitas pistas de qual poderia ser o próximo passo. Era mais
como uma migalha de pão do que um bom pedaço de
lembrança, mas todo mundo que ama contos de fadas sabe que
sempre vale a pena seguir rastros de migalhas de pão.
E Evangeline pretendia seguir aquele rastro aonde quer que
ele a levasse.
Se tivesse sido um fato isolado, uma lembrança apenas, ela
poderia ser ignorada, encarada como mera coincidência.
Mas a princesa já vira o Arqueiro duas vezes e, em ambas, o
rapaz suscitara lembranças vívidas, o que alimentou a
esperança de Evangeline.
Depois de acordar antes de o sol raiar e passar as horas mais
escuras do dia lutando com o Arqueiro na chuva, Evangeline
deveria ter voltado para a cama, exausta.
Mas estava acontecendo o contrário: ela se sentia exultante.
Tinha a sensação de que havia encontrado um pedacinho de
seu antigo ser. E era um de seus pedacinhos preferidos. Era a
parte de si mesma que adorava ter esperança. Havia se
esquecido de que a esperança deixa as cores mais vívidas e os
sentimentos mais intensos, que muda os pensamentos, tira o
foco do que não é para se concentrar no que é possível.
As lembranças dela não haviam se perdido para sempre,
estavam apenas perdidas e, naquele momento, Evangeline
tinha absoluta esperança de que as encontraria.
Como o Arqueiro já suscitara duas lembranças, fazia sentido
ter esperança de que, quando o visse novamente, ele
despertasse mais algumas. E, caso isso não acontecesse, pelo
menos ela iria obrigá-lo a contar como os dois haviam se
conhecido.
Só que, desta vez, não iria esperar para que ele fosse ao seu
encontro.
Evangeline pretendia pedir para fazer um passeio pelo Paço
dos Lobos – um passeio que incluiria os alojamentos dos
guardas e soldados. Sabia que o Arqueiro havia dito que
teriam mais uma aula no futuro, mas não queria esperar até
esse tal futuro acontecer. Queria encontrá-lo novamente
naquele mesmo dia.
– Desculpe, Alteza – murmurou Martine. – Antes de a
senhora sair, talvez queira dar uma olhada nisso. Chegou
enquanto conversava com o aprendiz do médico.
A criada lhe entregou um bilhete cor de creme, com o
brasão de Apollo no lacre de cera que ela abriu imediatamente
para ler.
– É melhor começarmos a arrumar a senhora para o jantar
agora mesmo! – exclamou Martine, sem tentar disfarçar o fato
de que lera o bilhete pelas costas da princesa.
– Preciso mesmo começar a me arrumar para o jantar neste
exato momento? – Ainda era pouco antes do meio-dia, ela
ainda teria pelo menos algumas horas para procurar pelo
Arqueiro. – É só um jantar.
– Nada é só um jantar dentro de um castelo – respondeu a
criada. – Quando um príncipe diz “jantar”, na verdade quer
dizer “banquete”. Todos estarão presentes. Todos os cortesãos,
todos os nobres, todas as Grandes Casas, todos os guardas…
– Todos os guardas? – perguntou Evangeline, pensando
imediatamente no Arqueiro.
Se o rapaz comparecesse ao jantar, não teria que procurar
por ele naquele momento. E, se aquele jantar fosse a grande
reunião de pessoas que Martine dera a entender que seria, com
certeza seria fácil sair de fininho para conversar em particular
com ele.
15
Apollo

A
pollo deveria ter escolhido outro local para o jantar.
O Pátio dos Pilares era um dos ambientes mais
impressio- nantes do Paço dos Lobos, com seu pé-
direito de 10 metros e teto de vidro abobadado, que permitia
uma excelente vista das estrelas. Oito pilares enormes
formavam um círculo no centro do local. Esses pilares eram
esculpidos à imagem e semelhança dos Santos Esquecidos.
Apollo achava que eram muito mais espetaculares do que as
esculturas dos integrantes da família Valor que ficavam na
baía, porque ainda conservavam as respectivas cabeças. E
também foram esculpidas em blocos da raríssima pedra da
estrela, que brilhava à noite, conferindo uma atmosfera de
outro mundo ao pátio – e o príncipe estava torcendo para que
Evangeline ficasse encantada com essa atmosfera.
Mas estava arrependido da escolha.
Deveria ter pensado mais na segurança.
Os pilares eram impressionantes, mas também obstruíam a
visão do pátio como um todo e das portas que permitiam a
entrada das pessoas. Havia guardas a postos, claro, alertas a
qualquer sinal da presença de Jacks. Mas, lá pelo fim da noite,
metade dos guardas estariam tão bêbados quanto os
convidados. Era sempre assim que essas coisas funcionavam.
O príncipe nunca fora muito rígido com os guardas durante
jantares festivos. Normalmente, o maior perigo dessas
ocasiões era os brindes se prolongarem demais. Permitir que
os guardas se embebedassem era um jeito fácil de conquistar a
lealdade deles. Apollo não queria correr o risco de perder nem
um pingo dessa lealdade – ainda mais depois de ter sido
obrigado a perder Victor e Hansel. Teria apenas que dar um
jeito de manter a esposa perto dele a noite toda.
O príncipe sentiu a presença de Evangeline assim que ela
pôs os pés no pátio. Um arrepio na pele, agradável e, ao
mesmo tempo, incômodo, como aquela atração que antes
sentia por ela. Era um resquício dos efeitos da maldição do
Arqueiro. Só que, enquanto Apollo estava sob o efeito da
maldição, essa atração era muito mais forte – parecia que
havia um fogo queimando sua pele e que só poderia ser
apagado por Evangeline.
O príncipe virou para trás, procurando pela esposa. E,
quando ela entrou no recinto, tudo o mais ficou fora de foco.
As mesas repletas de comida, todos aqueles convidados em
seus melhores trajes, os pilares e as enormes velas que a
cercavam: tudo ficou borrado por um instante, feito uma
aquarela desbotada pela chuva.
Em meio a tudo isso, Evangeline brilhava. Graciosa, linda e
inocente.
Assim que a festa voltou a ficar nítida, o príncipe percebeu
que todos os olhares também haviam se voltado para a
princesa. Apollo não podia ficar muito tempo observando
como os demais convidados olhavam para ela. Alguns desses
olhares eram de mera curiosidade, outros o colocaram em
alerta, e uns poucos o deixaram com vontade de cortar
algumas gargantas.
Tentou não ficar muito bravo – a esposa era a mulher mais
linda do recinto. Não podia recriminar as pessoas por olharem
para Evangeline daquela maneira.
Mas queria deixar bem claro que a princesa lhe pertencia.
Evangeline não percebeu a aproximação de Apollo.
Deslocava-se em silêncio pelo recinto, com os olhos
arregalados, voltados para cima, encantada pelos pilares
cintilantes.
Estava com o cabelo preso e usava um vestido bem
decotado, com alcinhas finas. O príncipe pensou que poderia
arrebentá-las com um simples estalar dos dedos. Se tudo desse
certo naquela noite, talvez ela permitisse que o marido fizesse
isso mais tarde.
Apollo chegou por trás de Evangeline sem fazer barulho.
– Você está tão linda – sussurrou.
Em seguida, já que a jovem lhe pertencia e ele podia fazer
isso, deu um beijo delicado e demorado na nuca da esposa.
Sentiu a pele da princesa se aquecer em contato com seus
lábios. Mas, logo em seguida, ela ficou tensa.
Apollo torceu para não ter suscitado alguma lembrança.
Bem devagar, pôs a mão na cintura de Evangeline e ficou ao
lado dela.
– Eu te assustei?
– Nem um pouco – respondeu Evangeline. Mas com um
tom estranhamente agudo. – Eu só não esperava ver tanta
gente.
O olhar dela não parava de percorrer o recinto.
Apollo não saberia dizer ao certo se a esposa estava apenas
nervosa ou se procurava por alguém. Não deveria estar
procurando alguma pessoa específica, já que não se lembrava
de ninguém… Ou, pelo menos, não deveria lembrar.
Ao longe, o menestrel começou a cantar. Suas canções
falavam de Apollo, o Grande, e de Jacks, o Abominado, que
Logo Será Finado.
– Um monstro vivendo entre os homens, um pecado mortal
ambulante. Seus filhos ele irá massacrar, sua esposa irá roubar.
Se deixar Jacks se aproximar, sua vida ele arruinará.
As pessoas que estavam perto do menestrel balançavam o
corpo no ritmo da canção, mas Evangeline estava com um ar
visivelmente incomodado. Tinha parado de vasculhar o recinto
com os olhos, e Apollo começou a duvidar que a esposa
estivesse nervosa apenas por que havia muita gente ali.
O príncipe nunca teve a impressão de que a princesa era
tímida, mas se lembrou de que ficara nervosa no dia do
casamento.
– Eu gostaria que o jantar de hoje fosse mais íntimo, mas a
corte inteira queria estar presente, e é importante que saibam
que estamos bem e felizes. – Nesta hora, Apollo tirou a mão
das costas de Evangeline e entrelaçou os dedos nos dela. –
Não se preocupe, é só ficar perto de mim.
Em seguida, começaram a cumprimentar os convidados, um
por um, e o príncipe não permitiu que Evangeline saísse do
seu lado.
Apollo sempre odiou essa parte. Mas, pelo jeito, Evangeline
foi se soltando à medida que as pessoas a cumprimentavam,
dando sorrisos e abraços, elogiando-a por tudo, do tom de voz
aos cachos ouro rosê de seu cabelo, passando pela vivacidade
de seu rosto.
O príncipe gostaria que as conversas fossem um pouco mais
interessantes, mas pensou que poderia ser pior. Foi durante
uma dessas conversas sobre o cabelo dela que Apollo se
afastou só por um minuto, para buscar um cálice de vinho.
Esse tipo de coisa fica bem melhor com uma bebida na mão.
Contudo, ao que tudo indicava, havia escolhido a hora errada
para se afastar da esposa.
Quando voltou para o lado de Evangeline, ela estava corada,
dando risada de algo que Lorde Byron Belaflor havia dito. O
integrante do conselho soltou mais um gracejo, ela tornou a rir
e deu o maior sorriso que Apollo a vira dar em toda aquela
noite.
Cretino.
Na reunião do conselho, Belaflor praticamente tinha pedido
a cabeça de Evangeline. Agora estava tentando seduzi-la.
– Ao que tudo indica, não posso dar as costas nem por um
instante – alfinetou o príncipe, roubando discretamente a mão
de Evangeline e puxando-a mais para perto de si.
– Não precisa se sentir ameaçado, Alteza. Não tenho
nenhum desejo de roubar sua esposa. Estava apenas contando
histórias de nossa infância. Achei que ela poderia querer se
divertir um pouco depois da semana que teve. – Nesta hora,
Belaflor pôs a mão no coração e voltou a se dirigir a
Evangeline: – Também queria dizer que fiquei sabendo da
queda que a senhora sofreu ontem, Alteza. Fico muito feliz por
ter sido encontrada a tempo e com o fato de os guardas que
puseram sua vida em perigo terem sido sacrificados, feito
cachorros, coisa que são.
– Sacrifi… cados? – repetiu Evangeline.
Os resquícios de riso desapareceram de sua expressão, e
seus olhos ternos se arregalaram, alarmados.
Apollo poderia matar Belaflor bem ali.
– Pensei que os guardas seriam apenas interrogados –
insistiu Evangeline, virando-se para o marido.
– Não há motivo para preocupação, minha querida –
declarou Apollo, dando um sorriso e torcendo para que a
expressão a tranquilizasse. – Acho que nosso amigo Lorde
Belaflor tem se informado pelos tabloides. A única coisa que
foi sacrificada esta noite é o animal que comeremos no jantar.
Agora, com sua licença…
O príncipe puxou Evangeline mais para perto de si e
conduziu a esposa para bem longe do maquiavélico Lorde
Belaflor.
Mas, pelo jeito, o estrago já estava feito. O brilho que
Apollo vira nos olhos de Evangeline havia se apagado, e os
dedos da mão que ele segurava estavam gelados.
Apollo imediatamente parou um criado que passava com a
bandeja cheia de cálices de vinho prateados.
– Tome, querida – disse, pegando um cálice da bandeja e o
entregando para Evangeline. – Acho que está na hora de
fazermos um brinde, você não acha?
– Amigos! – declarou Apollo, bem alto, chamando a
atenção de todos os presentes. – Receio que minha corte tenha
se esquecido de como deve se comportar em uma
comemoração. Boa parte das conversas que ouvi hoje foram
elogios insípidos e boatos enfadonhos. Sendo assim, ergamos
nossas taças para brindar a glória de eu ter voltado dos mortos
e a magia do verdadeiro amor!
16
Evangeline

E
ra o tipo de jantar que Evangeline imaginava quando
era criança e a mãe lhe contava contos de fadas: um
lindo salão de baile, repleto de pessoas encantadoras,
vestidas com roupas estonteantes. E, agora, ela era uma dessas
pessoas. Mais que isso: trajava um vestido cintilante e estava
de braço dado com um príncipe – quer dizer, até Apollo erguer
o cálice para propor um brinde.
Ele ficou com a taça de vinho erguida bem acima da cabeça
enquanto as pessoas se reuniam e também erguiam seus
respectivos cálices.
Evangeline fez a mesma coisa. Não tinha, contudo, muita
vontade de beber depois de receber a notícia de que Hansel e
Victor estavam mortos. Os dois guardas lhe pareceram tão
gentis e era muito difícil acreditar que tivessem alguma coisa a
ver com aquele atentado contra a vida dela. Aquele era um dos
problemas de ter lacunas em sua memória: ficava difícil
acreditar em certas coisas.
A princesa tentou olhar disfarçadamente ao redor, à procura
do Arqueiro naquele pátio repleto de guardas e cortesãos.
Poderia jurar que, há pouco, Apollo havia percebido que ela
estava procurando alguém e que tinha ficado um pouco
chateado, quase com ciúme.
Evangeline aproveitou que o príncipe estava concentrado no
brinde que ia propor para mais uma vez vasculhar o recinto
com os olhos. O pátio estava praticamente do mesmo jeito de
quando chegara: pilares reluzentes e convidados finamente
trajados.
Ninguém parecido com o Arqueiro. Enquanto isso, Apollo
bradou:
– Que todos os presentes em busca do verdadeiro amor
possam encontrá-lo e que todos os que tentarem atrapalhar
essa busca sejam amaldiçoados!
Todos os convidados fizeram tim-tim e deram vivas com
Apollo.
– Um brinde ao amor e às maldições!
Evangeline levou o cálice aos lábios. Mas não teve coragem
de beber. Compreendia que fizessem um brinde ao amor, mas
não às maldições. O fato de ninguém mais estranhar isso era
perturbador. O aroma inebriante do vinho foi tomando conta
do pátio à medida que os convidados bebiam tudo o que havia
nas taças e ficavam com os lábios manchados.
E, apenas por um segundo, um pensamento fugidio veio à
cabeça de Evangeline: se aquilo era um final feliz, não tinha
mais tanta certeza de que queria um final feliz.
– Muito inteligente de sua parte não beber depois de um
brinde como esse – declarou uma voz melodiosa.
Evangeline deu as costas para Apollo, disfarçadamente,
tentando localizar de onde aquela voz viera.
Se, há poucos instantes, já achava que seu mundo era
estranho, agora, então, estava prestes a se tornar ainda mais
peculiar.
A garota que surgiu ao lado dela parecia mesmo uma
princesa- fada saída de um conto de fadas, do tipo em que as
pessoas brindam a coisas como honra e bravura, e não fazem
brindes displicentes a maldições. Tinha rosto em forma de
coração, olhos alegres em tom de verde-garrafa e cabelo
cintilante, em tom de violeta.
Como suas próprias mechas eram ouro rosê, Evangeline
estava acostumada a ser a única pessoa de qualquer recinto a
ter um cabelo fora do comum. Meio que esperava sentir uma
leve pontada de inveja – mas, quando a outra garota sorriu, seu
sorriso foi tão inacreditavelmente meigo que, em vez de sentir
inveja, sentiu uma espécie de identificação.
– Você sabia – ponderou a garota do cabelo violeta – que
existe uma antiga lenda do Norte segundo a qual não são
necessários feitiços mágicos para lançar uma maldição em
alguém? Acredita-se que, quando o Norte surgiu, era tão
repleto de magia que, às vezes, bastava pronunciar a palavra
“maldição” para que o feitiço surtisse efeito… contanto que a
pessoa que ouvisse essa palavra acreditasse no que estava
sendo dito.
– Você acredita que foi isso que aconteceu hoje? –
perguntou Evangeline.
A garota tomou um gole do cálice e soltou um sorriso
felino.
– Acredito que, felizmente, a magia morreu há muito tempo.
Mas também acredito que tudo é possível. – Então deu uma
piscadela e completou: – Aliás, eu me chamo Aurora Vale e é
um prazer conhecê-la, Alteza.
Em seguida, fez uma reverência perfeita e sussurrou:
– Agora está na hora de a senhora ser apresentada para meus
pais.
O clima no salão mudou, enquanto as outras duas pessoas se
aproximavam. Há poucos instantes, tudo se resumia a vivas,
tilintar de cálices e aroma azedinho de vinho de ameixa. Mas,
com a aproximação do pai e da mãe de Aurora, tudo ficou
estranhamente silencioso. As taças pararam de tilintar, os
passos cessaram, as pessoas deixaram de conversar e ficaram
olhando para o casal, com ar de curiosidade.
Evangeline também ficou curiosa. Assim como a filha,
aquele casal a fez pensar em outra era, na qual o sangue era
derramado com mais frequência do que o vinho e até a mais
frágil das pessoas era obrigada a ser durona para sobreviver.
A mãe de Aurora se movimentava de um jeito diferente de
todas as demais. Em vez de se esforçar ao máximo para
chamar a atenção, brilhar e exibir suas joias – coisa que nem
seria possível, porque não estava usando joia alguma –, a
mulher deslizava em meio aos presentes feito uma flecha no
meio da noite, graciosa e certeira. Evangeline ficou com a
impressão de que ela estava acostumada a atravessar campos
de batalha, e não salões de baile.
O que Aurora tinha de linda, o pai tinha de rústico. Os
ombros eram largos; a barba, cheia, e a cicatriz do lado direito
do rosto dele parecia tão brutal que Evangeline não sabia
como o homem sobrevivera ao ferimento que a produziu.
A princesa ficou só observando o homem pôr a mão – uma
mão que mais parecia uma pata de urso – no ombro de Apollo
e dizer:
– Muito obrigado pelo convite, Alteza.
– Não tem de quê – respondeu o príncipe. Em seguida, deu
um sorriso largo, mas que também pareceu um tanto tenso,
como se também tivesse sentido o poder do casal e ficado
nervoso com isso. – Evangeline, permita-me apresentar Lorde
e Lady Vale e sua filha, Aurora. Mas acho que Aurora já se
apresentou.
– Prazer em conhecê-los – disse Evangeline.
– O prazer é todo nosso – declarou Lady Vale e na
sequência deu um abraço, na princesa. A mulher era bem
menor do que o marido, mas seu abraço foi inesperadamente
feroz e muito afetuoso. – Seu amado príncipe me disse coisas
tão maravilhosas a seu respeito que quase tenho a sensação de
que já a conheço.
Pode até ter sido uma ilusão de ótica causada pela luz
cintilante das velas do salão, mas Evangeline teve a impressão
de que os olhos da mulher se encheram de lágrimas quando se
afastou dela.
A princesa teve vontade de perguntar se Lady Vale estava
bem.
Só que Apollo – que ainda dava a impressão de estar um
pouco constrangido na presença daquela família –, se
pronunciou antes que Evangeline pudesse dizer alguma coisa.
– A família Vale veio dos recônditos do Norte e se mudou
para Valorfell. Estão bravamente tomando para si a enorme
tarefa de reconstruir o Arvoredo da Alegria.
“Conheço esse nome”, Evangeline quase comentou. Mas
não conhecia, não de fato. Só não lhe era estranho. Talvez
tivesse ouvido alguém comentar sobre o lugar naquela mesma
noite. Ou talvez estivesse se lembrando…
– O que é Arvoredo da Alegria? – perguntou.
– O Arvoredo da Alegria engloba todas as terras que
pertenciam a uma das Grandes Casas que deixaram de existir.
Compreende uma floresta, um vilarejo e uma quinta que foi
destruída por um incêndio, há centenas de anos – explicou
Apollo.
A imagem de uma casa destruída, da qual só restava uma
escadaria em brasas, passou rapidamente pela cabeça de
Evangeline. Devia ser, provavelmente, apenas uma tentativa
de imaginá-la. Mas, por um segundo, conjecturou que poderia
de fato ser uma lembrança. Talvez fosse por isso que o
príncipe parecia nervoso na presença daquela família – porque
estavam reconstruindo um lugar que, de alguma forma, estava
ligado às lembranças perdidas da esposa.
– Como a mansão pegou fogo? – insistiu ela.
– Ninguém sabe ao certo – respondeu Apollo. – Boa parte
da história se perdeu no tempo e por causa da maldição das
histórias.
– Mas não se perdeu completamente – declarou Aurora,
alegremente. – Contudo, posso imaginar por que essa história
não é contada com muita frequência. É bastante trágica.
– Então, quem sabe, você tampouco deva contá-la –
comentou Lorde Vale.
– Mas a princesa perguntou – protestou Aurora.
Tanto o Lorde quanto Lady Vale lançaram olhares para a
filha que beiravam a censura, como se não quisessem fazer
escândalo, mas também não desejassem ter aquela conversa
específica.
– Perguntei, sim – interveio Evangeline.
Ela não queria que Aurora ficasse em maus lençóis por sua
causa. Mas também estava louca para saber mais. Para ver se
aquela história poderia ajudá-la a se lembrar de alguma coisa.
– Não se trata de uma história para ser contada em uma
festa – declarou Lady Vale, que agora dava a impressão de
estar visivelmente incomodada.
– Mesmo assim, gostaria de ouvi-la – respondeu
Evangeline. – Conheço muito menos da história do Norte do
que eu gostaria de conhecer.
– Bem, então, permita-me lhe dar uma aula – falou Aurora.
Tanto o pai quanto a mãe de Aurora deram a impressão de
terem ficado nervosos, mas isso a não deteve.
– Vingança Massacre do Arvoredo, da Casa Massacre do
Arvoredo, estava noivo da mais bela jovem que existia em
todo o Norte. Só que ela não o amava. Seus pais não
permitiram que ela terminasse o noivado, mas a garota se
recusou a se casar com alguém que não amava. No dia do
casamento, fugiu. É claro que Vingança não poderia permitir
que ela o abandonasse: ele tinha um nome a zelar. Então,
quando Vingança ouviu o boato de que a bela garota amava o
filho único do Lorde Arvoredo da Alegria, Vingança destroçou
a Quinta do Arvoredo da Alegria, o Vilarejo do Arvoredo da
Alegria e a Floresta do Arvoredo da Alegria, fazendo jus ao
seu terrível nome.
Aurora terminou de contar a história alegremente, do jeito
que outra pessoa poderia terminar um brinde, só que não havia
mais um sorriso em seu rosto.
Parada na frente da filha, Lady Vale ficou extremamente
pálida, e o rosto de Lorde Vale ficou com um tom furioso de
vermelho.
O pai de Evangeline jamais olhara para a filha do jeito que
Lorde Vale olhou para Aurora naquele instante. É claro que
Evangeline tampouco olhara para o pai do modo impertinente
que Aurora olhava para o lorde naquele instante. Isso fez
Evangeline pensar que talvez tivesse se enganado ao pensar
que aquela família poderia estar ligada às suas lembranças
perdidas. A tensão entre os pais e a filha poderia ser o motivo
para Apollo ficar tão constrangido. Ao que tudo indicava, foi
só isso que a história trouxe à tona. Não suscitou uma imagem
fugidia nem nada mais.
– Espero que a reconstrução que faremos em Arvoredo da
Alegria ajude a restaurar um pouco do que foi perdido –
anunciou Lorde Vale, em uma clara tentativa de mudar de
assunto.
Desta vez, Aurora não deu indícios de achar ruim. Pelo
jeito, já havia dito tudo o que queria dizer sobre o assunto.
– E eu espero que você e seu príncipe possam comparecer
ao festival da reconstrução que estamos planejando. Estou tão
empolgada para te conhecer melhor. – Aurora, então, deu um
abraço em Evangeline e sussurrou. – Tenho a sensação de que
vamos ser grandes amigas e… ai! – Ela se afastou piscando os
olhos, como se estivesse com dor.
– Que foi? – perguntou Evangeline.
– Não sabia que você andava por aí carregando uma adaga.
Aurora inclinou a cabeça, indicando a faca com cabo de
pedras preciosas que Evangeline ganhara do Arqueiro e levava
presa ao cinto.
Uma ruga de preocupação se formou na testa de Apollo, e o
príncipe ficou com um olhar soturno, coisa que não costumava
fazer.
– Onde você arranjou isso? – perguntou ele.
Evangeline tapou o cabo da adaga com a mão, para protegê-
la.
– Encontrei nos jardins – mentiu.
E se arrependeu imediatamente de ter dito isso – Evangeline
nunca foi de mentir –, mas não conseguia criar coragem para
parar.
Apollo ficou olhando para a faca com ar desconfiado. O
mesmo olhar que havia lançado quando percebera que ela
estava procurando alguém no salão. Mas, desta vez, o ciúme
era inconfundível. O príncipe espremeu os olhos, uma veia
ficou pulsando em sua testa, e Evangeline ficou feliz por não
ter falado a verdade, que outro rapaz lhe dera a arma. Mesmo
assim, teve medo de que Apollo tomasse sua faca.
Rapidamente inventou uma história um tanto ridícula, de
que havia encontrado a faca no poço, segundos antes de ter
sido tirada de lá.
– Tenho a sensação de que é um talismã. Mas desculpe por
tê-la machucado, Aurora.
– Não foi nada. Na verdade, agora que você explicou que é
um talismã, fico feliz que esteja com ela. Mas é melhor tomar
mais cuidado com as suas armas. Sei que é seu talismã, mas,
com tantos guardas por aqui, será que você realmente precisa
dela?
– Ela tem razão – declarou Apollo. – Eu…
– Hãn-hãn.
Alguém pigarreou bem alto atrás deles. Evangeline sentiu
um alívio imediato. Tinha quase certeza de que Apollo já ia
tomar a adaga dela.
Agora, os olhos do príncipe estavam cravados em um
guarda parado perto do grupinho formado por eles.
– Vossas Altezas, lamento interromper, mas preciso falar
com o príncipe a respeito de um assunto da máxima urgência.
– E não poderia aguardar mais um minuto? – Apollo se
dirigiu ao guarda, olhando feio.
O rapaz empalideceu visivelmente.
– Pode acreditar, Alteza. Se não fosse importante, eu não
teria interrompido.
Em seguida, o guarda se inclinou e disse algo ao pé do
ouvido de Apollo, algo que fez o príncipe empalidecer.
– Mil perdões, mas receio que precisem de mim em outro
recinto. – Então olhou para Evangeline e falou: – Odeio ter
que te abandonar… mas vou te procurar assim que acabar.
Antes que desse tempo de perguntar para onde o marido
estava indo, o príncipe Apollo deu as costas e foi embora.
17
Evangeline

E
vangeline não tomou um gole de vinho sequer, mas ao
que tudo indicava ela foi a única que se absteve de
beber. A farra do jantar continuou depois que Apollo
foi embora. Não demorou muito para que os cortesãos não
fossem os únicos a beber: diversos guardas também estavam
se embebedando.
Não havia nenhum relógio de parede no Pátio dos Pilares,
mas ela pôde inferir, pelo movimento da lua no céu, que já
havia se passado um certo tempo desde que o príncipe saíra do
recinto, tempo suficiente para que ela concluísse que, seja lá
qual fosse o assunto que havia obrigado o marido a se retirar,
era algo importante.
Evangeline chegou a pensar, por breves instantes, que Lorde
Jacks poderia ter sido localizado. Mas supôs que Apollo teria
ficado feliz com a notícia, e ele não parecia nada contente
quando se retirou da festa. Não, com certeza tinha sido alguma
outra coisa.
Mesmo depois de servirem o terceiro prato do jantar, ela
ainda se perguntava o que teria acontecido. Até que alguém
sentado lá pela metade da mesa propôs outro brinde. Os
habitantes do Norte, ao que tudo indicava, gostavam muito de
brindar. Aquele brinde em especial foi em homenagem ao
arqueiro que abatera as aves do banquete. E, de súbito,
Evangeline recordou. Arqueiro.
Suas entranhas deram uma rápida cambalhota. Ela olhou ao
redor do pátio mais uma vez, torcendo para que ele estivesse
na festa. Mas ainda não havia nem sinal do Arqueiro.
Bom, Evangeline nunca havia se considerado uma pessoa
imprudente. Certas pessoas poderiam argumentar contra essa
ideia. Mas ela responderia a esses argumentos dizendo que era
apenas uma pessoa esperançosa, que se concentrava no que
poderia ser, ao contrário dos críticos, que tinham medo do que
poderia dar errado.
A princesa sabia – ainda mais depois dos acontecimentos
recentes relacionados a um poço – que sair de fininho do jantar
para procurar o Arqueiro sem estar acompanhada de sua
guarda pessoal poderia representar um certo perigo. Mas
também achava que, já que Apollo se ausentara e tantas
pessoas estavam distraídas, aquele talvez fosse o momento
perfeito para tentar reencontrar o Arqueiro e, com sorte,
recobrar suas lembranças.
Ponderou o que poderia fazer para desviar a atenção e sair
de fininho. A primeira coisa em que pensou foi puxar a toalha
de mesa, para derrubar as travessas de comida. Imaginou que
poderia derramar vinho. E aí começaram a fazer outro brinde,
e ela se deu conta de que aquela seria uma bela chance de
escapar.
Era Lorde Vale quem ia propor o brinde. Na verdade, ele
estava se saindo fantasticamente bem, explicando vivamente
seu desejo de reconstruir Arvoredo da Alegria, em uma
tentativa de reunir as pessoas em torno de sua causa. Até
Evangeline mal conseguia desviar a atenção do lorde.
Lorde Vale se levantou, atraindo todos os olhares, e ergueu a
taça bem acima da cabeça avantajada.
– Esta reconstrução será para o bem do Norte como um
todo! – declarou, com um tom retumbante. – Vamos
reconstruir para banir os fantasmas do passado que ousarem
continuar nos assombrando. Porque somos do Norte! Não
temos medo dos mitos e das lendas! Somos os mitos e as
lendas!
O salão irrompeu em gritos:
– Somos as lendas!
– Quem irá se juntar a mim nessa reconstrução? – gritou
Lorde Vale.
– Pode contar comigo!
– Minha Casa estará presente!
O salão entrou em polvorosa, em uma cacofonia de vozes
inflamadas. Homens, mulheres e até guardas, por todo o pátio,
ergueram as taças e deram vivas.
– Podemos começar logo depois da Caçada! – berrou Lorde
Vale.
Evangeline escolheu este exato momento para se retirar de
fininho e escapulir pela porta mais próxima. Concentrou-se
mais em andar rápido do que em não fazer barulho. O
burburinho do pátio era tão alto que daria para abafar os
estrondos de uma guerra.
E foi por isso que demorou alguns minutos para ouvir os
passos que ecoavam atrás dela.
Pegou a adaga que o Arqueiro havia lhe dado e se virou.
– Sou eu. – Aurora Vale ergueu as mãos, para se defender. –
Desculpe, não tive a intenção de assustar você. Quando te vi
saindo, pensei que poderia sair também. Às vezes, os brindes
que meu pai propõe duram dias. Eu me lembro de um
casamento em especial, em que ele ficou brindando do raiar do
sol até o sol se pôr.
– E ninguém fez nada para ele parar?
Aurora deu risada.
– Ninguém tenta fazer meu pai parar. Até acho que o brinde
desta noite não vai demorar tanto, já que, pelo jeito, ele já
convenceu boa parte da festa a aderir à sua causa. Mas é
melhor irmos antes que alguém perceba. – Aurora saiu em
disparada, esvoaçando o cabelo violeta. – Aonde você vai?
Tem um amante secreto? Ou, quem sabe, vai visitar sua bruxa
particular, que lê a sorte?
– Ah, não – Evangeline respondeu de imediato. – Não tenho
amante nenhum nem conheço bruxa alguma. Só estava
planejando voltar para o meu quarto.
– Puxa, que decepção. – Aurora soltou um suspiro. – Ainda
assim, suponho que acompanhá-la até lá seja melhor do que
ficar ouvindo meu pai brindar.
Dito isso, Aurora deu o braço para Evangeline.
Quando a conhecera um pouco antes, Evangeline
simpatizara com ela. Mas agora tinha a sensação de que havia
algo de errado naquele comportamento. Ou talvez só achasse
isso porque Aurora estava arruinando seus os planos de
encontrar o Arqueiro.
– Obrigada por se dispor a ir comigo – respondeu, com toda
a cautela. – Mas, na verdade, prefiro voltar sozinha.
Aurora lançou um olhar dúbio e, em seguida, sorriu
efusivamente.
– Então você tem mesmo um amante secreto?
– Não – repetiu a princesa, calmamente. – Sou casada.
Aurora torceu os lábios.
– Isso não costuma impedir a maioria das pessoas. Não tem
mesmo um guarda ou um belo cavalariço que chamou sua
atenção?
– Apollo é tudo para mim – disse Evangeline, com um tom
firme.
Só que, no instante em que disse isso, pensou
imediatamente no Arqueiro. Imaginou o rapaz parado lá na
ponte, na chuva, com a camisa grudada no peito, sem tirar os
olhos dela. Mas não queria que aquele guarda fosse seu
amante. O rapaz era imprudente, mal-educado e havia
mentido, pois dissera que não a conhecia. Evangeline só queria
encontrá-lo porque, talvez, pudesse suscitar alguma outra
lembrança.
Mas, pelo jeito, isso não aconteceria naquela noite.
Passos começaram a ecoar pelo corredor. Aurora detivera
Evangeline tempo suficiente para que os guardas percebessem
sua ausência e a alcançassem.
A decepção fez Evangeline se sentir cansada. Enquanto os
guardas a acompanhavam até seus aposentos, não parou de
olhar disfarçadamente para trás, procurando pelo Arqueiro.
Não sabia se achava que o rapaz poderia aparecer a qualquer
momento ou se apenas queria tanto que ele surgisse que
achava que poderia atraí-lo com a força do pensamento.
Imaginou que daria de cara com o Arqueiro no corredor e
que recuperaria todas as suas lembranças em uma única e
súbita onda, fazendo tudo naquele seu mundo de pernas para o
ar fazer sentido.
Mas, pesarosamente, depois de um trajeto sem maiores
incidentes, chegou ao quarto, e, quando deu por si, estava se
arrumando para dormir e pensando em palavras como
“infelizmente”.
Não sabia exatamente quando se deitara nem por quanto
tempo ficara na cama. Estava em um estado entre a vigília e o
sono quando ouviu o chão estalar ao seu lado. Não lhe
pareceram os passos confiantes de Apollo. Parecia alguém
entrando de fininho. Evangeline ousou imaginar que era o
Arqueiro e abriu os olhos…
Um vulto enorme pairava acima dela.
Não é o Arqueiro nem Apollo.
A princesa tentou gritar.
Mas o agressor foi mais rápido. No tempo em que
Evangeline levou para abrir a boca, ele já tinha subido na
cama e tapado a boca da jovem com a mão grande e enluvada,
prendendo a princesa com o peso do corpo.
O homem fedia a suor e a cavalo. Não conseguia ver o rosto
dele – o agressor usava uma máscara que deixava à mostra
apenas um par de olhos sem expressão.
Evangeline fez mais uma tentativa de gritar. Tentou morder
a mão do homem. O Arqueiro não havia ensinado a ela o que
fazer naquela posição. Mas meio que estava ouvindo as
palavras que ele havia dito naquela manhã. “Se você parar de
lutar, vai morrer.”
Ela deu um chute, mirando bem no meio das pernas do
agressor.
– É melhor não se mexer – disse o matador de aluguel que,
em seguida, brandiu uma faca do tamanho do antebraço da
princesa.
Socorro! Socorro! Socorro!
Evangeline gritou em pensamento, debatendo-se
freneticamente para tentar derrubá-lo.
O homem baixou a faca e afastou a parte de cima da
camisola da jovem. Ela sentiu a ponta afiada da faca traçar
uma linha dolorosa logo abaixo da clavícula.
– Você só pode estar de brincadeira comigo – urrou o
Arqueiro.
Evangeline não havia percebido que ele entrara no quarto.
Mas, do nada, ali estava ele: dourado, cintilante e,
provavelmente, a coisa mais linda que ela já vira na vida. O
Arqueiro foi implacável e agarrou o matador de aluguel pelo
pescoço, arrancou o homem de cima da cama e o encurralou
contra um dos pilares. Ficou segurando o matador de aluguel
no ar, que balançava as pernas em vão, feito as de um boneco.
Evangeline se levantou da cama, meio trôpega, e falou:
– Tentei lutar contra ele.
O sangue lhe escorria do peito, e ela apertou o robe com as
mãos trêmulas.
O Arqueiro espremeu os olhos ao ver o sangue, e
Evangeline poderia jurar que os olhos dele brilharam,
passando de azuis para um tom de prata derretida. O rapaz
tornou a olhar para o matador de aluguel e urrou.
O ruído que saiu de seus lábios foi absolutamente
animalesco. O Arqueiro arrancou a máscara do homem, pegou
uma faca e encostou a lâmina no olho esquerdo do matador.
– Quem te contratou para fazer mal a ela?
O matador empalideceu, mas cerrou os dentes.
– Vou perguntar de novo, só mais uma vez, e aí você vai
perder esse olho. E estou quase torcendo para você não
responder, porque eu adoraria arrancar seu olho. Quem te
contratou para matá-la?
– Foi uma contratação anônima – disparou o matador.
– Azar o seu. – O Arqueiro baixou a faca.
– Juro que não sei – falou depressa. – Só me pediram para
que fosse uma morte lenta, dolorosa e sangrenta.
Evangeline ficou com o corpo inteiro dormente. Alguém
querer que ela morresse era uma coisa. Mas saber que essa
pessoa queria torturá-la era outra, completamente diferente.
– Essa pessoa te deu alguma razão? – perguntou a princesa.
O agressor apertou bem os lábios.
– Não seja mal-educado. A princesa fez uma pergunta. – O
Arqueiro ergueu mais o homem e o sacudiu com força pelo
pescoço, até que ele virou a cabeça para o lado. – Responda.
– Não sei de nada. Só me pediram para machucar bastante a
senhora.
Nesta hora, as narinas do Arqueiro dilataram.
– Você tem sorte de eu ser um homem mais bondoso do que
a pessoa que te contratou. – Então inclinou a cabeça, com seus
cabelos dourados, e ficou com uma expressão quase pensativa.
– Vai doer, mas logo passa.
Dito isso, pegou a faca e cravou no coração do homem.
18
Evangeline
O matador de aluguel caiu no chão, com uma pancada seca.
Ele se debateu, convulsionando – Evangeline não sabia
quais eram as palavras corretas para descrever o que estava
acontecendo, só percebeu que o homem não tinha morrido.
Tudo aquilo era um tanto apavorante, mas não poderia dizer
que lamentava. Ainda conseguia sentir o próprio sangue
manchando o robe que segurava na altura do peito. E era um
robe tão lindo, azul-hortênsia, forrado com uma delicada renda
cor de creme que ficava cada vez mais escura por causa do
sangue que se acumulava.
O agressor soltou alguns ruídos gorgolejantes que mais
pareciam maldições.
– Você está desperdiçando suas últimas palavras – disse o
Arqueiro. – E eu já fui amaldiçoado.
Ele se abaixou e torceu a faca no peito do matador de
aluguel. Quando puxou a arma para retirá-la, o sangue do
homem jorrou na capa escura do Arqueiro e na camisa clara
que ele usava por baixo. Mas o rapaz não deu indícios de se
importar com isso.
Passou por cima do cadáver e se aproximou da cama pela
beirada, olhando feio para Evangeline.
– Por que sempre tem alguém tentando te matar? – O
Arqueiro perguntou isso com uma voz grave, que beirava algo
letal. – Você precisa tomar mais cuidado.
– E de onde você tirou que a culpa disso é minha?
– Você não tem senso de autopreservação. – O homem deu
mais um passo, furioso. – Se alguém colocasse uma etiqueta
com os dizeres “veneno” em um frasco, você beberia dele. Na
sua cabeça, alertas são convites. Pelo jeito, não consegue se
afastar de nada que pode te fazer mal.
Nem de mim.
Evangeline poderia jurar ter ouvido essas duas últimas
palavras dentro da própria cabeça, bem na hora em que o
Arqueiro deu mais um passo na sua direção – ficando tão perto
que praticamente conseguia sentir a fúria ardente que emanava
do rapaz.
Precisava se afastar, chamar os guardas, mandá-lo embora.
O coração dela batia a uma velocidade absurda.
Mas, quando deu por si, estava dizendo:
– Você não veio aqui para me fazer mal.
– Você não sabe disso. – Nesta hora, um músculo do
maxilar do Arqueiro estremeceu. – Hoje de manhã, eu quase te
atirei de cima da ponte.
– E você acabou de matar um homem para salvar minha
vida.
– Talvez eu simplesmente goste de matar pessoas.
Arqueiro limpou o sangue da faca nos lençóis, mas não
parou de encarar Evangeline com um olhar ardente. Ainda
estava com um ar furioso, de fera. As mãos estavam
vermelhas, sujas de sangue, sangue que também estava
presente nos olhos injetados dele. Apesar de tudo isso, a
princesa jamais havia desejado alguém com tanta intensidade.
Provavelmente tinha perdido a razão em algum momento da
noite, porque queria que aquele rapaz se aproximasse. Queria
sentir as mãos do Arqueiro tocando seu corpo. Queria que a
abraçasse, prendesse, ensinasse a lutar. Qualquer coisa, desde
que os dois se tocassem.
Tentou se convencer de que era só por causa do medo, da
excitação, do sangue que corria em suas veias. Já ia passar.
Mas o lado de Evangeline fora de controle não queria que essa
sensação passasse.
Antes que desse tempo de mudar de ideia, pegou na mão do
Arqueiro.
E sentiu uma descarga elétrica. Assim que encostou os
dedos nos dele, o mundo começou a girar. O quarto se
transformou em um caleidoscópio feito de noite e de faíscas.
De repente, Evangeline estava em outro lugar.
Estava dentro de outra lembrança.
Era um lugar escuro, úmido, e por um segundo, ficou sem
conseguir respirar.
O impacto na água gelada foi tão forte quanto seria se
tivesse caído em terra. Ela se debateu, por instinto, mas
alguém a segurou bem apertado. Os braços dele foram
inflexíveis e a puxaram para cima, através das ondas que
arrebentavam. A água salgada entrou serpenteando no nariz
dela, e o frio preencheu suas veias. Estava tossindo e
cuspindo, mal conseguindo puxar o ar enquanto ele nadava
até a praia, com ela a reboque.
O homem a abraçava bem junto de si e a carregou mar
afora como se sua própria vida dependesse disso – não a dela.
“Não vou deixar que você morra.”
Uma única gota d’água pingou dos cílios dele nos lábios
dela.
Era leve como uma gota de chuva, mas o olhar dele
continha a força de uma tempestade.
Deveria estar escuro demais para ver a expressão dele, mas
a lua crescente reluzia com mais força a cada segundo,
destacando os contornos do rosto dele, que olhava para ela
cheio de intensidade.
O mundo inteiro de Evangeline ficou de pernas para o ar,
porque reconheceu que aquele rosto era o rosto do Arqueiro.
O mar revolto, de repente, parecia calmo em comparação
ao coração da jovem, que batia forte. Ou talvez fosse o
coração dele.
O peito do Arqueiro arfava, as roupas estavam ensopadas, o
cabelo, bagunçado, caído no rosto. Apesar disso, naquele
momento, a garota teve certeza de que ele a carregaria e não
seria apenas por águas congelantes. Ele a tiraria de um
incêndio se fosse necessário, a arrastaria, a arrancaria das
garras da guerra, de cidades desmoronadas e mundos caindo
aos pedaços.
A cabeça de Evangeline ficou girando quando a lembrança
chegou ao fim. Há poucos dias, tivera um vislumbre da parte
final dessa lembrança e pensara que a pessoa que a carregava
era Apollo.
Tinha se enganado. Era o Arqueiro.
Aquele dia, no poço, não tinha sido a primeira vez que os
dois haviam se encontrado. Ela também duvidava de que
aquela lembrança fosse da primeira vez em que os dois haviam
se encontrado. O Arqueiro a abraçava com uma intensidade
excessiva.
Quando os sentidos de Evangeline retornaram ao presente, a
primeira coisa em que a princesa reparou foi que o Arqueiro
tinha se afastado para o outro lado do quarto. Estava parado
perto da porta e não olhava para ela do mesmo jeito que olhara
naquela lembrança, como se fosse capaz de atravessar um
incêndio para salvar a vida de Evangeline. A mão que a
princesa tinha segurado estava cerrada na lateral do corpo, e
ele olhava para ela com cara de quem só queria ir embora.
E Evangeline só queria que o Arqueiro ficasse.
Tinha tantas perguntas, e não eram apenas sobre a nova
lembrança. Pensou na reação que tivera quando Madame Voss
comentara sobre A balada do Arqueiro e da Raposa. Achava
que a história havia despertado suas lembranças. Mas, agora,
sabia que tinha sido por causa daquele nome. Arqueiro.
Era ele.
– Eu vou avisar os guardas, pedir que limpem essa bagunça
e guardem segredo. Mas, caso alguém pergunte, diga que foi
você quem matou o homem que tentou te ferir.
O Arqueiro deu as costas para ir embora.
– Espere! – gritou Evangeline. – Não vá embora!
O Arqueiro não parou.
Já havia saído do quarto.
Evangeline não quis nem saber e foi atrás dele.
19
Apollo

A
s botas de Apollo ficariam imprestáveis. Era tanto
sangue. Sangue que manchava os tapetes, as paredes
e, agora, as botas do príncipe. Não que ele estivesse
de fato bravo por causa das botas. Poderia conseguir outras
com a maior facilidade – não ligava para seus calçados, não de
verdade. O que realmente o incomodava era saber que a
esposa andava por aí levando uma adaga que, um dia,
pertencera a Jacks.
Apollo adoraria ter saído e caçado o cretino naquela mesma
noite. Mas tinha que dar um jeito naquela confusão.
– Você comentou que uma pessoa sobreviveu? – perguntou.
– Sim, Alteza – respondeu o guarda especialmente
designado para aquela situação específica.
– Eu gostaria de falar em particular com essa pessoa.
O príncipe saiu para o corredor pisando firme, passando por
mais sangue ao se movimentar. Já vira mortes em outras
ocasiões, mas nunca nada tão horripilante como aquilo.
Mais adiante, no corredor, ouviu outro guarda vomitando
em um vaso.
Apollo deu graças por não ter tido tempo de comer antes de
chegar ali, porque teria feito a mesma coisa.
No andar de cima, o clima era lúgubre. Mas, pelo menos, o
ar não tinha o cheiro acobreado de sangue.
O aroma era de velas feitas de cera de abelha. A luz suave
projetava um brilho no papel florido que revestia as paredes.
Também havia diversas aquarelas emolduradas e desenhos
feitos a lápis. Alguém na família era o artista, porque nenhuma
das primeiras obras era boa. Mas, à medida que o príncipe
percorria o corredor, os trabalhos iam ficando cada vez
melhores. Alguns dos desenhos pareciam ser retratos fiéis de
integrantes da família, os mesmos que agora estavam estirados
e mortos no chão do andar de baixo.
O guarda parou diante da porta do quarto onde deveria estar
a única pessoa que havia sobrevivido ao massacre.
– Vou entrar sozinho – declarou Apollo.
– Mas, Alteza…
– É uma ordem. Esta vítima já sofreu tormentos demais
nesta noite. Não quero que tenha a sensação de que está sendo
interrogado.
O guarda obedeceu e deu um passo para o lado.
Apollo entrou no quarto mal iluminado e fechou a porta.
Um menino, que aparentava ter cerca de 14 anos, estava
sentado, todo encolhido, na grande cama que lembrava um
trenó, segurando os próprios joelhos e se balançando para a
frente e para trás. Era magrelo, mais por estar passando por
uma fase de crescimento do que por falta do que comer.
A família Sucesso era uma das Grandes Casas. Mesmo
tendo perdido metade de sua riqueza, sempre teriam mais do
que o suficiente para comer.
E aquele era o motivo para Apollo ter sido chamado às
pressas naquela noite. Os integrantes de uma família
pertencente às Grandes Casas tinham sido massacrados em
uma única noite, coisa rara de acontecer. A notícia se
espalharia e, quando isso acontecesse, a Coroa precisava
controlar o que seria dito.
Das duas, uma: ou esse tipo de notícia enfraqueceria ainda
mais o reino de Apollo ou o fortaleceria.
– Oi – disse o príncipe, sentando-se timidamente na beirada
da cama.
O garoto se encolheu ainda mais.
– Não estou aqui para te fazer mal.
– Não faz diferença – retrucou o garoto, com a voz
embargada. – Nada poderia me fazer mais mal do que isso.
– Não – concordou Apollo. – Nunca vi nada tão pavoroso, e
é por isso que estou aqui. Quero te garantir que quem quer que
tenha cometido essa atrocidade será capturado, para que isso
nunca mais aconteça.
– O senhor não tem como capturar quem fez isso –
murmurou o menino, balançando-se para frente e para trás. –
Ele não é humano.
– Por que você diz isso?
O menino ergueu o rosto. O pavor da sua expressão era tão
intenso que ele mais parecia um esqueleto com pele pintada
por cima.
– Ele se movimentava tão rápido. Eu estava aqui em cima
quando ouvi o primeiro grito. Foi da minha irmã. Que sempre
foi tão dramática… Ignorei, de início. Depois ouvi outro grito,
depois mais um.
O menino tapou as duas orelhas com as mãos, como se
ainda estivesse ouvindo os gritos.
– Eu sabia que era algo ruim… maligno. Corri lá para baixo.
Mas, assim que vi todo o sangue, me escondi no armário.
– Você viu quem fez isso antes de se esconder?
O garoto fez que não, trêmulo.
– Ele tinha uma aparência de fera – respondeu.
– Era parecido com Lorde Jacks?
– Não.
– Tem certeza? – perguntou Apollo.
O príncipe não acreditava de fato que aquilo fora obra de
Lorde Jacks. Só havia um tipo de criatura capaz de causar
tamanha destruição. Mas queria que o menino dissesse que
havia sido Jacks. Isso tornaria tudo muito mais fácil.
– Não foi ele. Eu o teria reconhecido. Lorde Jacks era amigo
da minha avó, antes de ela morrer. Esse homem… acho que
nem era um homem…
O menino espalmou as mãos, tapou os olhos e chorou em
silêncio.
Apollo, que sempre foi de ficar constrangido ao ver alguém
chorar, levantou da cama e fez uma rápida inspeção no quarto.
Viu uma mesa perto da janela, com um cavalete do lado. Ao
que tudo indicava, o menino era o artista da família. Encostada
no cavalete, havia uma aquarela por terminar, que era até bem-
feita. Em cima da mesa, havia mais desenhos, esboços e
cadernos. Pelo jeito, o menino gostava mais de pintar animais
e pessoas. Só que também havia o desenho de uma maçã.
Apollo odiava maçãs.
Só de avistar a fruta sua raiva veio à tona. Ele tirou os olhos
do desenho de maçã e os dirigiu ao sangue que sujava suas
botas, depois ao menino que ainda chorava, sentado em cima
da cama.
Só que não havia nada que o príncipe pudesse fazer pelo
menino nem a respeito daquele sangue. Mas todas aquelas
pinturas, todos aqueles desenhos e aquela maçã fizeram
Apollo se dar conta de que havia algo que poderia fazer em
relação a Jacks.
– Você é muito talentoso – disse, dirigindo-se ao garoto. –
Achei suas gravuras bem boas.
– Muito obrigado – respondeu o menino, fungando.
– Você acha que poderia desenhar uma coisa para mim?
O príncipe pegou um caderno e um lápis e entregou para o
garoto.
– O senhor quer que eu desenhe agora?
– Sim. A arte, teoricamente, é uma boa terapia para a alma.
Apollo explicou para o menino o que gostaria que ele
desenhasse.
O menino respondeu com um olhar intrigado, mas nem
tentou discutir com o príncipe. A maioria das pessoas não
costumava tentar discutir com Apollo, mas teria sido melhor
para o menino se tivesse feito isso.
Sendo assim, o garoto começou a esboçar o desenho,
debruçado sobre o caderno, traçando, sombreando e fazendo o
que os artistas fazem, com movimentos febris. Quando
terminou, arrancou a página com todo o cuidado e entregou
para Apollo.
– Ótimo – disse o príncipe. – Ficou muito bom mesmo,
rapaz.
– Obrigado.
– Está se sentindo melhor agora?
– Não muito – murmurou o menino.
Apollo pôs a mão no ombro dele e sussurrou:
– Meus sinceros pêsames. Logo, logo, você não sentirá mais
nenhuma dor.
Em seguida, Apollo pegou a faca e cravou no coração do
menino.
O garoto ficou com uma expressão de choque e de dor por
alguns instantes, então caiu de costas na cama, morto como o
restante da família.
O príncipe sentiu um instante de tristeza. Não era um
monstro de verdade. Só fez o que precisava ser feito. Um
menino crédulo e medroso como aquele não duraria muito no
mundo: de qualquer modo, toda a família dele estava morta. E
Apollo faria questão de que o sacrifício daquele garoto fosse
bem aproveitado.
Fechou as mãos do menino em volta da adaga, fazendo
parecer que a morte fora autoinfligida, para quem quer que
viesse a encontrá-lo. Em seguida, depois de dar uma rápida
olhada no espelho para se certificar de que a camisa não estava
suja de sangue, Apollo foi para o corredor e fechou a porta do
quarto rapidamente, antes que o guarda de prontidão pudesse
ver o interior do recinto.
– Como foi, Alteza? – perguntou o guarda.
O príncipe sacudiu a cabeça, com um ar pesaroso.
– Que tragédia. O menino se sente culpado por ter
sobrevivido. Receio que jamais será o mesmo. Mas fez um
desenho do homem que assassinou a família dele.
Apollo entregou o desenho para o guarda e completou:
– Mande fazer novos cartazes de “procura-se” e falando
desse massacre. E mande colocar este retrato de Lorde Jacks.
20
Evangeline

E
vangeline saiu porta afora bem na hora em que dois
guardas invadiram seu quarto. A princesa desviou dos
homens, acreditando que fossem atrás dela. Mas ela
era a única que estava correndo. Corria atrás do Arqueiro,
batendo os pés descalços no chão de pedra duro e gelado.
– Espere aí… pare! – gritou.
Ele não podia ter ido muito longe. Evangeline ouvia o
barulho de suas botas vindo do corredor. A princesa percorreu
um corredor atrás do outro, ouvindo os passos do Arqueiro ao
longe. Mas, toda vez que virava em outro corredor, ele não
estava mais ali. Ela só via os retratos de Apollo, que tinham
uma expressão bem mais acusadora do que ela se recordava.
Os olhos pintados do príncipe ficaram observando a
princesa percorrer, às pressas, um corredor particularmente
estreito. Como algumas das velas que o iluminavam estavam
apagadas, também era mais escuro do que os outros. Até que
Evangeline deparou com outro retrato do marido. Teve a
impressão de que a chama das velas nas arandelas que
ladeavam a pintura, refletida na moldura dourada, era bem
forte, parecia que queria compensar as luzes que faltavam.
Ao que tudo indicava, aquele era mais um retrato de Apollo
esparramado nos galhos da mágica árvore-fênix. Só que era
difícil saber ao certo. O retrato fora cortado bem no meio.
O Arqueiro estava parado ao lado da pintura dilacerada,
com a capa jogada para trás dos ombros, os braços cruzados
em cima do peito, olhando de esguelha para o retrato
desfigurado.
– Acho que este é o meu preferido.
Evangeline não viu uma faca na mão dele, mas o olhar dele
era um tanto afiado, feito uma lâmina. Se existisse alguém
capaz de cortar só com o olhar, esse alguém seria o Arqueiro.
– Você que fez isso? – perguntou Evangeline.
– Não teria sido muito gentil de minha parte.
A princesa pousou os olhos na camisa dele, manchada de
sangue.
– E você se descreveria como uma pessoa gentil?
– Nem de longe. Mas acho que você já sabe disso.
O Arqueiro se afastou da parede e se aproximou de
Evangeline. Como o corredor era bem estreito, não precisou
andar muito. Bastaram dois passos, e lá estava ele, tão perto
que fez tudo cheirar a maçã, o que fez a jovem tontear de
súbito.
Na manhã anterior, quando a princesa encontrara o Arqueiro
no corredor que levava aos seus aposentos, teve a impressão
de que havia tomado uma decisão equivocada só de ficar perto
dele. Mas isso não tirou a vontade que sentira de segui-lo.
Chegou a pensar que estava delirando por não ter conseguido
dormir. Mas, naquele momento, não estava delirando. Não
estava fora de si. Era simplesmente por causa dele.
Ficar tão perto do Arqueiro lhe dava a sensação de que não
ia conseguir respirar, parecia que o sangue era feito de bolhas
de champanhe e que todas estavam subindo à sua cabeça.
– O que você é meu? – perguntou.
O Arqueiro a olhou bem nos olhos e respondeu:
– Nada.
Mas Evangeline ficou com a impressão de que era mais do
que nada porque o Arqueiro baixou a mão e segurou a faixa
que mantinha o robe da princesa fechado. Ficou segurando,
como se não conseguisse decidir se queria soltar a faixa ou
puxar a jovem mais para perto de si.
– Por que você está mentindo? – perguntou a princesa.
– Pensei que já tínhamos chegado ao consenso de que não
sou uma pessoa muito gentil.
O Arqueiro, então, deu um puxão na faixa, com força
suficiente para soltar o nó.
Evangeline foi logo tirando a faixa das mãos dele e
fechando mais o robe.
Ele riu baixinho e falou:
– Por acaso estou te deixando nervosa?
Disse isso como se torcesse para que estivesse. Ou, quem
sabe, estava apenas tentando impedi-la de fazer perguntas.
Evangeline tinha dificuldade de pensar com clareza com o
Arqueiro tão perto dela, mal se lembrava por que saíra
corredor afora perseguindo aquele guarda. O Arqueiro tinha
alguma coisa que a fazia desejar apenas ficar ali, com ele.
Ela sabia que isso era errado. Estava com Apollo.
“Não só que estou com Apollo”, pensou, recordando-se,
“sou casada com ele”.
O príncipe era seu marido.
O Arqueiro não podia ser nada dela. Ele mesmo acabara de
dizer que não era nada dela. Mas ela achava que ele era um
grande mentiroso.
– Diga apenas uma verdade – insistiu Evangeline.
Em seus pensamentos, ela prometeu que depois disso se
afastaria do Arqueiro e daqueles sentimentos.
– Sei que a gente já se conhecia quando você me tirou do
poço. Você já foi da minha guarda?
Ele ficou remexendo o maxilar.
Por um instante, Evangeline pensou que o Arqueiro não ia
responder.
Então ele sacudiu a cabeça e falou:
– Não. Geralmente, me dou melhor causando estrago do que
protegendo.
Em seguida, olhou para baixo, para a mancha de sangue na
parte da frente do robe da princesa.
Desde que sofrera o ferimento, Evangeline não havia olhado
com a devida atenção para o corte que derramara todo aquele
sangue. Era superficial ao ponto de já ter fechado. Não
precisaria levar pontos. Mas o sangue que ficou para trás dava
uma impressão horrorosa – ela também deveria estar
horrorosa.
– Você jamais conseguiria ficar horrorosa – disse o
Arqueiro, baixinho.
Evangeline ergueu os olhos novamente. Por um segundo, o
rapaz quase lhe pareceu tímido e inacreditavelmente jovem,
pouco mais velho do que ela. Cachos do cabelo loiro lhe
caíram nos olhos, porque foi, lentamente, se abaixando e
chegando mais perto.
A princesa não saberia dizer se o Arqueiro estava tentando
não a assustar ou se, quem sabe, ele é quem estava assustado.
Deu a impressão de estar nervoso – coisa que não era
característica dele – quando encostou a mão no rosto de
Evangeline. Segurou entre os dedos uma mecha cor-de-rosa
que havia se soltado e pôs atrás da orelha dela, bem devagar. O
gesto foi tão delicado que os dedos mal roçaram sua pele. Mas,
pela cara dele, o Arqueiro bem que gostaria que isso
acontecesse.
Uma espécie diferente de dor fazia os dentes dele cerrarem
e a veia do pescoço saltar enquanto ficava ali, olhando-a nos
olhos. Dava a impressão de que, em vez de prender a atenção
de Evangeline, queria prender seu corpo, apertá-la contra si,
como fizera nas lembranças que ela tivera.
Casada.
Casada.
Casada.
Evangeline se obrigou a lembrar.
Era casada com Apollo. Não era nada do Arqueiro.
– É melhor eu ir – disse ela. – Meus guardas… devem estar
prestes a soar o alarme. Estou surpresa por não estarmos
ouvindo os sinos tocarem neste exato momento – balbuciou,
torcendo para encontrar mais palavras para dizer, para ter um
motivo para continuar ali, apesar de saber que precisava ir
embora.
Imaginou que devia ter mais momentos com ele, coisas que
havia esquecido. Mas estava sentindo um certo medo do que
poderia se lembrar, de que se lembrar de mais coisas poderia
significar que sentiria mais do que já estava sentindo.
Já era difícil ficar parada ali na frente do Arqueiro, sem
tocá-lo, de um jeito que quase parecia mais íntimo do que se o
tocasse. Ficou com a impressão de que o rapaz precisava de
todas as suas forças para não esticar o braço e roçar os dedos
nos dela. Como se um único toque pudesse causar uma
explosão de faíscas ou apagar todas as velas acesas naquele
corredor.
Evangeline ficou esperando o Arqueiro se afastar.
Mas ele não se mexeu.
Por um segundo, ela também não. Não conseguia se livrar
da sensação de que, se o abandonasse naquele momento, se lhe
desse as costas, nunca mais o veria novamente.
Sentira um frio na barriga quando beijara Apollo, mas tinha
a sensação de que, se beijasse o Arqueiro, a terra se abriria sob
seus pés.
“Casada”, obrigou-se a lembrar, mais uma vez.
E, desta vez, finalmente deu as costas para ir embora.
Assim que se mexeu, Evangeline teve a sensação de que
tinha acabado de cometer um erro. Mas não fazia ideia se
errara ao se aproximar demais do Arqueiro ou ao dar as costas
e ir embora.
A princesa tentou não pensar no Arqueiro enquanto voltava,
praticamente correndo, aos seus aposentos. Olhou para trás
apenas duas vezes. E não o viu em nenhuma das duas.
Quando tornou a entrar no quarto, percebeu que todas as
evidências do crime haviam sumido.
Isso, na verdade, foi um pouco inquietante. Talvez até fosse
mais do que apenas um pouco inquietante. Mas, depois dos
acontecimentos daquela noite, Evangeline não conseguia sentir
mais do que já estava sentindo. Nem de fazer perguntas
inconvenientes a respeito do quanto tudo aquilo era estranho.
Os guardas estavam de prontidão na porta do quarto. Mas,
quando ela chegou, nem sequer perguntaram aonde tinha ido
ou quem era o homem que estava morto no chão. Um homem
que, obviamente, tinham visto, porque tinham levado o
cadáver embora.
Quando Evangeline entrou no quarto, parecia que nada de
criminoso jamais havia transcorrido ali.
A cama estava novamente coberta com uma colcha macia,
imaculada como a neve. Não havia nenhuma mancha à vista,
nem no chão, onde haviam colocado um tapete novo, branco e
dourado. Tudo estava impecável, puro e limpo – tirando
Evangeline.
O Arqueiro havia dito “Eu vou avisar os guardas, pedir que
limpem essa bagunça e guardem segredo”. Mas o recinto
estava tão limpo e silencioso que chegava a ser
impressionante. Das duas, uma: ou os guardas tinham uma
lealdade excepcional pelo Arqueiro ou…
Na verdade, ela não tinha palavras para colocar depois do
“ou”. Agora que estava de volta aos próprios aposentos, sentia
mais o choque que deveria ter sentido há pouco.
O cabelo ouro rosê estava uma bagunça; os olhos,
arregalados demais, como se congelados em um estado de
susto, e tinha sangue espalhado pela camisola e pelo rosto.
Estava um caco.
Com as mãos trêmulas, limpou o sangue do corpo e trocou a
camisola por uma limpa, cor-de-rosa. Tentou não pensar no
Arqueiro. Aquele rapaz não era dela para ficar pensando nele,
mas não teve jeito: a lembrança do Arqueiro, parado no
corredor, dando a impressão, ainda que por um segundo, de ser
tímido, de quase estar com medo, de quase ser dela, não saía
da cabeça de Evangeline.
Blém. Blém. Blém.
O relógio da torre bateu 3 horas da manhã.
O som a assustou de tal forma que a obrigou a voltar para o
presente. Fechou os olhos, tentou se livrar das lembranças
relacionadas ao Arqueiro e voltou para o quarto principal – só
que levou mais um susto, porque deu de cara com Apollo.
Parecia que o príncipe havia atravessado a porta para entrar
no quarto. Estava com um olhar abatido, a camisa amarrotada
e as botas sujas de sangue. O sangue só estava nas botas dele,
mas era tanto que o couro cor de areia ficara empapado,
deixando o calçado quase inteiro vermelho.
Morte. Pelo jeito, estava por todos os lados aquela noite.
– Você está bem? – perguntou Evangeline. E na mesma hora
foi ao encontro do marido. – O que aconteceu?
Apollo passou a mão trêmula no cabelo e fechou os olhos,
como se lembrar do que havia acontecido fosse simplesmente
coisa demais para suportar.
– Prefiro não falar disso.
Ele abriu os olhos, que estavam injetados, e o maxilar tinha
uma camada de barba por fazer, coisa que Evangeline nunca
tinha visto. Apollo sempre estava imaculado. O príncipe
perfeito dos contos de fadas. Mas parecia que algo havia
mudado nas poucas horas desde que o vira pela última vez.
Ela estava exaurida. Achava que não seria capaz de sentir
mais emoções. Mas devia gostar mais de Apollo do que
imaginava. Não sabia o que havia acontecido, mas queria
tentar fazê-lo se sentir melhor.
– Posso fazer alguma coisa por você? – perguntou.
O príncipe ficou com cara de quem ia dizer “não”. Então
baixou os olhos, dirigindo-os à boca da esposa e deixando-os
ali, como se ele pudesse pensar em alguma coisa.
O coração de Evangeline batia forte, nervoso.
Apollo não se mexeu logo de cara, como se soubesse que
não era esse tipo de ajuda que ela havia oferecido. Mas, talvez,
bem lá no fundo, fosse. Talvez fosse disso que ambos
precisassem.
Ele precisava de consolo, e ela precisava de entendimento.
Apollo se aproximou.
O corpo de Evangeline estremeceu. Não sabia por que
aquilo parecia tão errado: deveria parecer tão certo. Era para
ser fácil se aninhar no marido, pôr as mãos no peito dele, já
que os braços de Apollo enlaçaram sua cintura.
Os dedos do príncipe estavam tremendo, o que a fez se
sentir um pouco melhor. Como se, talvez, ficar nervosa fosse
normal.
O primeiro roçar dos lábios do príncipe nos dela foi
delicado, assim como o deslizar da palma das mãos dele, que
foram um pouco mais para baixo. Como Evangeline estava
usando apenas uma camisola fininha, sentiu muito mais as
carícias do marido do que havia sentido na outra vez em que
os dois se beijaram.
Não demorou para ficar um pouco perdida no gosto da
língua de Apollo e na pressão do corpo do príncipe contra o
seu, porque os dois foram para trás juntos e caíram na cama. E
aí o mundo dela se inclinou para o lado e começou a girar,
mergulhando-a em outro beijo, de outra época.
Evangeline conseguia sentir um vento nas costas e a pressão
do corpo de Apollo contra seu peito.
O coração de Evangeline se transformou em um tambor,
que foi batendo cada vez mais alto e rápido à medida que
Apollo pressionava o corpo contra o dela. Havia camadas de
roupa entre os dois, mas ela era capaz de sentir o calor que
emanava do corpo do príncipe. Jamais sentira tamanho calor.
Era quase quente demais, ávido demais. Apollo ardia feito
uma fogueira que consome em vez de esquentar. E, ainda
assim, pelo menos em parte, Evangeline queria ser
carbonizada ou, pelo menos, chamuscada pelo príncipe.
Ela pôs as duas mãos em volta do pescoço de Apollo. A
boca do príncipe se afastou dos lábios dela e foi até seu
pescoço, dando um beijo depois do outro, descendo por…
Uma mão gelada apertou o ombro de Evangeline e a
arrancou dos braços do príncipe. “Acho que está na hora de
ir embora.”
O Arqueiro puxou Evangeline até a escada do camarote
com uma agilidade sobrenatural. Em um instante, ela só
conseguia sentir Apollo e, no seguinte, estava presa debaixo
do braço rígido do Arqueiro, pressionada contra a lateral do
corpo gelado dele, que a foi puxando escada abaixo…
Arqueiro.
Apollo parou de beijá-la de repente e perguntou:
– O que você disse?
De repente, Evangeline ficou com um nó na garganta. Será
que ela dissera “Arqueiro” em voz alta?
– Acho que me lembrei de alguma coisa – disparou ela.
E é claro que, na mesma hora, arrependeu-se do que dissera.
Não podia contar para o marido que uma lembrança
relacionada ao Arqueiro viera à tona. Poderia, talvez, contar a
primeira parte, a do beijo. Mas, aí, o príncipe provavelmente
perguntaria por que havia dito “Arqueiro”, e Evangeline não
queria comentar que o Arqueiro a havia arrancado dos braços
de Apollo depois desse beijo.
Entretanto, ficou com uma súbita e intensa curiosidade para
saber o motivo de o Arqueiro ter feito aquilo. E como poderia
ter feito? Apollo era um príncipe. Mas não tinha tempo para
ficar conjecturando as razões de tudo aquilo – ainda mais que
Apollo estava olhando para ela como se a esposa o tivesse
traído.
Um ciúme bem mais contundente do que aquele que, há
pouco, Evangeline vira arder nos olhos do marido. Estava
sentindo esse ciúme nas mãos de Apollo, que cerrou as mãos
na parte de trás da camisola dela.
Ficou tentando encontrar algo para dizer. Qualquer coisa
que fizesse Apollo olhar para ela de outro jeito. Então
recordou da história de noivado que Madame Voss havia lhe
contado. Podia falar que era disso que havia se lembrado.
– Lembrei de um acontecimento com você. Da noite em que
você me pediu em casamento. Estávamos em um baile, e você
estava fantasiado de Arqueiro, daquele conto de fadas antigo,
A balada do Arqueiro e da Raposa.
Enquanto falava, uma imagem surgiu na cabeça de
Evangeline, e poderia muito bem ser outra lembrança.
Apollo se ajoelhou.
Evangeline, de repente, esqueceu como se respirava.
Apollo não podia estar fazendo o que a jovem achava que
ele estava fazendo. Evangeline nem queria pensar no que
pensava que o príncipe estava fazendo – muito menos depois
de ter passado por boba havia tão pouco tempo.
Só que todas aquelas pessoas deviam estar pensando a
mesma coisa que ela estava tentando não pensar. Os sussurros
começaram de novo, e os grupos ao redor dos dois estavam
crescendo, encurralando Evangeline e Apollo em um círculo
de vestidos de baile, gibões de seda e expressões de choque.
O príncipe segurou as mãos da jovem com suas mãos
quentes. “Eu quero você, Evangeline Raposa. Quero escrever
palavras para você nas paredes do Paço dos Lobos e gravar
seu nome em meu coração com espadas. Quero que você seja
minha esposa, minha princesa e minha rainha. Case comigo,
Evangeline, e permita que eu te dê tudo.”
Apollo beijou a mão de Evangeline de novo. E, desta vez,
quando olhou para ela, foi como se o restante do baile não
existisse.
Ninguém jamais olhara para Evangeline daquela maneira.
Só conseguia enxergar o desejo, a esperança e a pontada de
medo que a expressão de Apollo transmitia.
E, mesmo assim, a expressão do príncipe não tinha nem
metade do poder que o olhar que o Arqueiro lançara na
lembrança anterior, como se estivesse disposto a arrancá-la das
garras da guerra, de cidades desmoronadas e mundos caindo
aos pedaços. Evangeline viu tudo novamente, como ele olhava
para ela no instante em que uma única gota d’água pingou dos
cílios do Arqueiro e foi parar nos lábios dela.
Mas aquilo era coisa do passado.
No presente, Evangeline era casada com Apollo. Os
sentimentos que podia ter nutrido pelo Arqueiro não tinham
importância. Se era possível esquecer as lembranças de um
ano inteiro, também havia a possibilidade de esquecer esses
sentimentos. Só que o problema é que ela não tinha certeza de
que queria esquecer. Ainda não, pelo menos. Não enquanto
não ficasse sabendo de toda a história.
Sabia que era errado se apegar a isso. Mas, naquela noite,
também havia percebido que, na verdade, sabia muito pouco a
respeito do marido. Não sabia que Apollo era ciumento e que
gostava de propor brindes a maldições. Não sabia por que as
botas dele estavam sujas de sangue naquele exato momento.
E, depois de lhe contar que tinha recobrado a lembrança do
pedido de casamento, esperava que o príncipe fizesse uma cara
feliz. Só que não havia como negar que Apollo estava com
uma expressão alarmada.
21
Jacks

J
acks já vira o suficiente.
Se ficasse naquela sacada por mais tempo, se
continuasse olhando, mataria Apollo. Ou, no mínimo,
daria um jeito definitivo de impossibilitar que o príncipe
encostasse em Evangeline novamente.
O Príncipe de Copas se obrigou a lembrar que ela estaria em
segurança se ficasse com Apollo. Seria princesa e teria tudo o
que sempre quis.
Mas não era para ela querer beijar o príncipe. E o Arcano
estava sendo injusto ao odiá-la um pouco por isso. Mas sentir
esse ódio era a única coisa que o faria ir embora. E Jacks
realmente precisava se afastar.
Evangeline estava em segurança. Era isso que importava.
Se o Príncipe de Copas continuasse ali, se entrasse no
quarto intempestivamente e empregasse seus poderes para
obrigar Apollo a ficar assistindo enquanto dizia a Evangeline
que ela não era nada para ele… Que ela era tudo. Que havia
voltado no tempo para que ela continuasse viva e que faria
tudo isso de novo… Se Jacks a fizesse recordar de que era ele
quem Evangeline deveria ter vontade de beijar, a princesa não
estaria mais em segurança. Não estaria sequer viva.
Para Evangeline ter algum tipo de futuro, Jacks não podia
fazer parte desse futuro.
Sem fazer ruído, pulou da sacada. As botas não fizeram
barulho quando aterrissou na escuridão do pátio. Só que
deveria ter calculado melhor o tempo. Ouviu os dois guardas
que faziam ronda se aproximando.
Normalmente, o Arcano teria empregado suas habilidades
para controlar as emoções dos guardas, para que dessem meia-
volta. Mas estava um pouco exaurido, porque já tinha
controlado vários guardas naquela noite. Também conseguia
ouvir a conversa deles, e as palavras “sangue” e “massacre”
chamaram a sua atenção.
Quando os guardas chegaram mais perto, Jacks se
aproximou das paredes de pedra do Paço dos Lobos e se
escondeu nas sombras. O mais alto deles disse:
– Quixton foi lá e disse que seria impossível uma única
pessoa ter matado tanta gente. Disse que parecia obra de um
demônio. – O guarda parou alguns instantes de falar e
estremeceu. – Não tenho nenhum pingo de amor pela família
da Casa Sucesso, mas ninguém merece ter a garganta
dilacerada e o coração arrancado.
O Príncipe de Copas não concordava com a última
afirmação. Mas estava mais preocupado com o fato de aquele
guarda ter empregado a palavra “demônio” do que com o fato
de um integrante da guarda real ter um coração tão mole que
chegava a ser irracional.
Demônios não existem.
Mas Jacks conhecia, sim, uma criatura que os seres
humanos costumavam confundir com um, ainda mais no
Norte, onde a maldição das histórias tornava quase impossível
que as lendas a respeito de vampiros se disseminassem como
deveriam. Quando essas lendas eram transmitidas, a maldição
impedia que os humanos sentissem um medo que fosse
racional. Sendo assim, sempre que um ser humano ficava
realmente amedrontado, costumava chamar os vampiros de
demônios.
E o Arcano temia saber exatamente de qual demônio
sedento de sangue aqueles guardas estavam falando. Castor.
Originalmente, a família Valor lançara a maldição das
histórias para proteger o filho, Castor, assim que ele se
transformara em vampiro. A maldição deveria afetar apenas as
histórias de vampiros. Mas a maldição tinha sido lançada por
pavor, e as maldições que se originam do medo sempre
distorcem ou se tornam muito mais terríveis do que se
pretendia.
Jacks conjecturou que a família Valor poderia tentar reverter
a maldição, agora que havia voltado. Seria interessante ver se
Honora e Lobric optariam por reestruturar o Norte ou se
simplesmente viveriam uma vida pacata depois de reconstruir
a Quinta do Arvoredo da Alegria.
Jacks ainda não os visitara. Vira quase todos os integrantes
da família Valor depois que o arco tinha sido aberto. Mas
estava meio morto na ocasião, graças ao apetite de Castor.
Desde então, só vira Aurora. Sabia que ela não o denunciaria
para Apollo nem para seus soldados. Mas não tinha tanta
certeza em relação aos pais de Aurora, Lobric e Honora.
Em primeiro lugar, havia a questão da honra, coisa que os
dois possuíam. Em segundo, havia Apollo, que lhes concedera
o status de Grande Casa, empregando um novo sobrenome, e
lhes dera de presente a Floresta do Arvoredo da Alegria, a
Quinta do Arvoredo da Alegria e o Vilarejo do Arvoredo da
Alegria.
Esse presente, que consistia na floresta, na quinta e no
vilarejo, não era lá grandes coisas na opinião do Arcano. A
história desses locais era tão feia quanto os locais em si. A
maioria das pessoas simplesmente dizia que eram
amaldiçoados ou assombrados. Nem Jacks gostava de passar
por aquelas terras.
O Príncipe de Copas tornou a pensar no “demônio”
assassino que os guardas mencionaram. Em seguida, imaginou
esse mesmo “demônio” assassino dilacerando a garganta de
Evangeline e a matando – mais uma vez.
Jacks montou no cavalo e se dirigiu, a toda velocidade, para
o Arvoredo da Alegria.
Ao se aproximar da floresta, percebeu a mudança na região.
Era possível ouvir a vida pulsando em ambos os lados da
trilha. Coelhos, sapos, pássaros, cervos e árvores começando a
se proliferar novamente.
A família Valor podia até ter voltado há poucos dias, mas
não eram a família Valor por acaso. Não era por acaso que,
mesmo quando depois de mortos há muito tempo, as lendas a
respeito deles sobreviveram e aumentaram, transformando-os
em seres que, às vezes, quase se assemelhavam a deuses.
Jacks sabia que não eram deuses.
Os Valor podiam sangrar e morrer como todo mundo, mas
não viviam como todo mundo. Não se contentariam apenas
com sobreviver. O Príncipe de Copas duvidava de que seriam
capazes disso. Antes de terem sido trancafiados na Valorosa,
implantaram um reino que se estendia por meio continente.
Jacks não sabia o que fariam agora que estavam livres, mas
não tinha dúvidas de que a família Valor causaria mais uma
mudança indelével no mundo.
O Arcano desceu do cavalo e amarrou o animal a um poste
logo na entrada do vilarejo do Arvoredo da Alegria. A família
Valor ainda não recomeçara a reconstruir a quinta. Estavam
primeiro se dedicando ao vilarejo. Jacks imaginou que
estariam hospedados em algum lugar das vizinhanças e,
portanto, era mais provável que Castor estivesse por perto e
não em sua antiga cripta, que ficava em Valorfell.
Assim como a floresta, o vilarejo do Arvoredo da Alegria
estava voltando à vida. Quando Jacks entrou na praça, havia
um cheiro de madeira recém-cortada no ar. Era uma praça
muito antiga, construída em volta de um grande poço e que,
muito tempo atrás, era rodeada de estabelecimentos comerciais
– nos quais trabalhavam um ferreiro, um boticário, um
padeiro, um açougueiro e um produtor de velas – e pela
feirinha diária de alimentos.
Por um segundo, Jacks recordou da época em que saía
escondido à noite para encontrar os amigos no telhado da
botica. Deitavam-se ali, olhavam as estrelas e se vangloriavam
de tudo o que fariam um dia, como se os dias de sua vida
estivessem garantidos e não fossem finitos.
Olhou para cima, não porque esperasse encontrar Castor no
telhado da botica naquele momento, mas tampouco ficou
surpreso por vê-lo ali.
Uma das desvantagens de ser imortal é a propensão de ficar
preso ao passado, à época anterior à imortalidade, a ter parado
de envelhecer. Independentemente de quantos dias o Príncipe
de Copas vivesse, os dias em que fora humano sempre seriam
mais nítidos e nunca iriam se dissipar com o passar do tempo.
Outra desvantagem de ser imortal é que essas lembranças sem
fim assombram e sempre dão a ilusão de que a humanidade é
muito mais vibrante do que a imortalidade. Isso fazia Jacks ter
ódio dos humanos de vez em quando, mas ele imaginou que
faria Castor ter vontade de voltar a ser humano.
– Você vai descer ou vou ter que atear fogo na botica? –
gritou Jacks.
– Essa ameaça funcionaria melhor se você realmente
estivesse com uma tocha na mão – respondeu Castor.
No instante seguinte, ele pousou no chão com toda a
facilidade e, como quem não quer nada, apoiou o cotovelo na
parede da antiga botica, que estava caindo aos pedaços. Sem o
elmo e tendo a família de volta, ficava menos parecido com
Caos, o resignado vampiro de elmo que não conseguia se
alimentar, e mais parecido com Castor, o nobre príncipe que
não tinha uma preocupação sequer na vida.
Por um segundo, Jacks sentiu uma pontada de inveja.
– O que te deixou tão de mau humor? – perguntou Castor. –
Por acaso você estava observando Evangeline de novo?
– Não estou aqui por causa dela – retrucou o Príncipe de
Copas.
– Bom, com certeza está irritado por causa dela.
Jacks fez uma careta e respondeu:
– E você está em um bom humor irritante para alguém que
acabou de massacrar uma família inteira.
A expressão de Castor se anuviou imediatamente. Ficou
com um olhar faiscante, que parecia muito mais de ameaça do
que de fome.
Se o Príncipe de Copas tivesse mais consideração pela
própria vida, poderia ter ficado amedrontado. Mas o Arcano
não andava sentindo muita coisa ultimamente – tirando o que
sentia por Evangeline, sentimento que, naquele exato
momento, estava se esforçando ao máximo para evitar.
Qualquer coisa que o ajudasse a parar de pensar nela seria
agradável – exceto, talvez, aquilo. Como Castor era a amizade
mais antiga de Jacks, o Arcano não queria odiá-lo. Mas, só de
olhar para ele, ainda via os dentes de Castor afundando na
garganta de Evangeline e arrancando a vida dela.
O vampiro nem fazia ideia de que essa versão da história
dos dois existia. Não era muito justo recriminá-lo por isso.
Mas fazia muito tempo que Jacks não dava a mínima se estava
sendo justo ou não.
– Se você veio até aqui para me dar um sermão, não estou a
fim de ouvir – declarou Castor.
– Então vou resumir. Você precisa se controlar. Senão, seus
pais vão acabar descobrindo e, desta vez, em vez de colocarem
um elmo em você, vão simplesmente te colocar em uma cova.
Castor ficou mexendo o maxilar e disse:
– Eles não fariam isso.
– Eles continuam sendo humanos, Castor. Humanos fazem
um monte de besteira quando estão com medo.
Jacks fizera. E a pior parte foi achar que estava agindo
certo. Quando Castor morreu, por exemplo.
Foi ele quem pediu que Honora, a mãe de Castor, trouxesse
o filho de volta dos mortos.
Castor e Lyric eram os melhores amigos de Jacks, eram
praticamente seus irmãos. Lyric havia acabado de morrer, e
Jacks não podia perder Castor também.
Não tinha considerado qual seria o custo para que o amigo
voltasse a viver. Não imaginou quanto sangue seria
derramado. Não deixar Castor sozinho foi um dos motivos
para Jacks ter se permitido sofrer a transformação que fez dele
um Arcano. E, depois disso, espalhou o boato de que Castor
era Caos, e que Caos era um Arcano, para que o mundo não
descobrisse que o vampiro era o último integrante que restava
da família Valor.
– Só estou tentando cuidar de você – declarou o Príncipe de
Copas. – Por fim você se livrou do elmo e tem sua família de
volta. Não quero que destrua essa oportunidade.
Castor deu uma risada debochada.
– Não sou eu quem está prestes a destruir a própria vida.
– O que você quer dizer com isso?
– Falei com minha irmã. Aurora me contou o que você quer
e o que está disposto a dar em troca.
– Sua irmã… – Jacks deixou a frase no ar. Até ele sabia que
era melhor não insultar a irmã gêmea de um vampiro que tinha
dificuldade de se controlar. Mas era tentador. Sentiu que os
punhos se fecharam, mas não era Castor quem o Príncipe de
Copas realmente queria socar. – Sei o que estou fazendo.
O vampiro olhou feio para ele.
– Se algum dia Evangeline recobrar suas lembranças, nunca
vai te perdoar por isso.
– Pelo menos, ela estará viva para me odiar.
22
Evangeline
-A Caçada…
– …a Caçada.
– …a Caçada…
Normalmente, Evangeline não ficava ouvindo a conversa de
seus guardas. Mas essas duas palavras não paravam de passar
por debaixo da porta de seu quarto, parecia que essa caçada
em si tinha mais poder do que outras, mais corriqueiras. Já
ouvira menções ao evento, mas pensara que neste caso
estavam apenas comentando a caçada por Lorde Jacks. Agora,
não tinha mais tanta certeza a que se referiam.
Teria perguntado para Martine, mas a criada havia dado uma
saidinha para levar a bandeja do almoço de volta para a
cozinha. Depois de tudo o que havia acontecido na noite
anterior, a princesa passou metade do dia dormindo.
Bebericando o chá quase frio de estrela-do-pântano, pegou a
mais recente edição do tabloide, torcendo para conseguir
encontrar respostas no jornal. E encontrou – só que não foi
uma resposta para as perguntas que tinha a respeito da Caçada.
assem o ferrolho nas portas! Não viajem sozinhos! Tenham cautela! Ninguém está
fora de perigo! Ontem à noite, Lorde Jacks cometeu mais um crime

P hediondo. Nas primeiras horas da noite, chacinou, com requintes de


crueldade, toda a família da Casa Sucesso – que fabrica a tão amada
Sensacional Água Saborizada Sucesso. Um dos guardas com os quais falei disse
que nunca havia visto tanto sangue na vida.

Um único integrante da família sobreviveu à chacina, o jovem Edgar Sucesso.


Infelizmente, a dor de ter perdido toda a família foi demais para o pobre Edgar. O
rapaz pôs fim à própria vida pouco depois da chacina. Edgar, contudo, nos deixou
um retrato falado do assassino, que publicamos na edição matutina do jornal.

Apelo a qualquer um que tenha visto Lorde Jacks para, por favor,
avisar imediatamente a Ordem dos Soldados Reais. Nenhuma pista é irrelevante.
Esse assassino sem coração precisa ser detido antes que consiga matar novamente.

Evangeline virou a página. Desta vez, o desenho impresso


não era borrado. Na página recém-impressa, em preto e
branco, havia um retrato do Arqueiro. Com um sorriso de
quem não está nem aí, jogando uma maçã para cima. Não
parecia ser nem um pouco assassino – parecia ser tudo o que
Evangeline, em segredo, desejava.
– Não – sussurrou Evangeline.
Não. Não. Não. Não.
– Não pode ser – declarou, deixando as palavras saírem de
sua boca de um modo mais frenético.
Aquilo só podia ser um engano.
Talvez o Arqueiro fosse apenas parecido com Lorde Jacks.
Ou, quem sabe, aquele retrato estivesse errado. O Arqueiro
não podia ser Lorde Jacks. Era um guarda. Salvara a vida dela.
Duas vezes.
– Alteza – disse Martine, quando voltou para o quarto –, a
senhora está um pouco pálida.
– Estou bem. Acabei de ver algo no jornal que me deixou
alarmada. – Então levantou a página para Martine conseguir
enxergar. – Este é mesmo o rosto de Lorde Jacks?
– É ele, Alteza. Agora entendo por que a senhora ficou
assim, sem cor. Esse homem é simplesmente pavoroso, não é?
Mas a voz da criada saiu feito um suspiro, e Evangeline
poderia jurar que viu coraçõezinhos nos olhos de Martine
quando ela olhou para o retrato em preto e branco – que era
qualquer coisa, menos pavoroso.
Jacks tinha cara daquele final feliz que, por poucos
milímetros, está fora do alcance, e Martine estava obviamente
enfeitiçada por ele. Assim como Evangeline estivera, só que a
princesa receava que os sentimentos que nutria por aquele
rapaz eram bem mais profundos do que um simples feitiço.
Mesmo naquele momento sentia coisas só de olhar para
aquele retrato.
Não queria acreditar. Evangeline continuava querendo
pensar que o jornal havia entendido tudo errado. O Arqueiro –
ou melhor: Lorde Jacks – estivera com ela na noite anterior.
Só que não passara a noite inteira com ela. Ela só o tinha
visto depois que saíra da festa, quando fora atacada na noite
anterior. Mas…
Evangeline tentou inventar outra desculpa. Obrigou-se a
recordar que o Arqueiro – Jacks – havia salvado sua vida,
então não podia ser um assassino. Entretanto, na noite anterior,
praticamente havia se confessado para ela.
“Talvez eu simplesmente goste de matar pessoas”, havia
dito. E, em vez de ficar horrorizada com isso, Evangeline se
sentiu… Na verdade, não conseguia saber como havia se
sentido na noite anterior. Agora, só se sentia enjoada, tola,
burra e estava absolutamente furiosa consigo mesma.
Deveria ter adivinhado. Deveria ter ligado os pontos: o
Arqueiro estava presente nas lembranças que Apollo queria
que ela esquecesse. O príncipe havia alertado. “Jacks fez
coisas atrozes e imperdoáveis com você, e realmente acredito
que você será mais feliz se tais coisas continuarem
esquecidas.”
E ele tinha razão, porque Evangeline estava se sentindo
péssima.
Continuava não querendo que o Arqueiro fosse o vilão. Não
queria que o guarda fosse Jacks. E, definitivamente, não queria
ter sentimentos por ele.
As bochechas da princesa ficaram coradas, devido a uma
sensação bem parecida com vergonha.
Martine olhou para ela com um ar preocupado. Evangeline
só queria sorrir, queimar aquele jornal e fingir que nada
daquilo havia acontecido. Mas, mesmo que conseguisse fingir
que não sentia nada – coisa de que duvidava, já que sentir era
com ela mesma –, não podia fingir que Jacks não havia
assassinado todas aquelas pessoas na noite anterior.
Precisava contar para Apollo que havia visto Jacks no Paço
dos Lobos, fazendo-se passar por um guarda que atendia pelo
nome de Arqueiro.
Pegou o primeiro vestido que viu pela frente – um modelito
longo, com corpete de veludo verde-musgo, decote em
coração e alcinhas enfeitadas com flores cor-de-rosa bem
clarinho, na mesma cor da saia longa e vaporosa.
Martine pegou para ela um par de sapatinhos da mesma cor,
e Evangeline os calçou de imediato. Em seguida, se dirigiu à
porta, antes que perdesse a coragem. Não queria pensar que
perderia a coragem, mas precisava agir rápido.
Jacks precisava ser detido antes que matasse mais pessoas
inocentes, e a princesa torcia para que confessar que havia
estado com ele pudesse ajudar a capturá-lo. Se o lorde andava
entrando e saindo do castelo sem ser notado, era óbvio que
contava com a ajuda de pessoas leais a ele – os guardas que
acompanhavam Evangeline na noite anterior, por exemplo. A
menos que também fossem ingênuos, como a própria princesa.
Ela respirou fundo, abriu a porta dos aposentos e se dirigiu
ao corredor comprido.
Os guardas que ali estavam na madrugada anterior não
estavam mais. No lugar deles, Joff e Hale, os mesmos
soldados que encontraram Evangeline no poço, estavam de
prontidão do outro lado da porta, com suas armaduras de
bronze reluzente e sorrisos simpáticos. Como todos os demais
guardas, tinham bigode – mais uma coisa que o Arqueiro não
possuía.
– Bom dia, Alteza – disseram, em uníssono.
– Bom dia, Joff. Bom dia, Hale. Vocês poderiam, por favor,
me levar até Apollo? Preciso falar com o príncipe agora
mesmo.
– Receio que ele já tenha saído para a Caçada – respondeu
Joff.
– Então me levem até a Caçada – insistiu Evangeline.
Metade do dia já havia transcorrido, e ela sentia que os
minutos escoavam rapidamente enquanto ficava ali, parada no
corredor. Poderia ter dito para os guardas que tinha notícias de
Lorde Jacks – certamente dariam ouvidos a isso. Mas não
sabia em quem podia confiar naquele castelo. Imaginou que
diversos guardas deveriam ser leais a Jacks. Caso contrário, o
lorde não teria conseguido entrar e sair do Paço dos Lobos sem
ser notado.
Hale franziu o cenho e falou:
– Alteza…
– Não me diga que vocês não têm permissão para me
acompanhar para fora do castelo.
– Ah, não. Não desperdiçaríamos uma oportunidade de ir à
Caçada.
Hale disse a palavra “Caçada” com um misto de reverência
e empolgação. E, apesar de Evangeline ter a sensação de que
não podia mesmo perder mais tempo, aproveitou para
perguntar:
– O que é essa tal de Caçada?
Os rostos quadrados de Hale e Joff se iluminaram ao mesmo
tempo.
– Apenas o acontecimento mais emocionante do ano! –
respondeu Joff.
– Todo mundo espera ansioso por ela – completou Hale.
Evangeline não tinha irmãos. Mas, se tivesse, imaginou que
seriam um tanto parecidos com Joff e Hale. Os dois rapazes
estavam tão animados que terminavam as frases um do outro e
repetiam o que o outro dizia, tentando explicar as maravilhas
da Caçada.
– É uma tradição quase tão antiga quanto o próprio Norte –
explicou Hale.
– Foi instituída há séculos pela família Valor – completou
Joff. – De acordo com a história, uma das filhas do casal, a
belíssima…
– Todas elas eram belíssimas – interrompeu Hale.
– Bem, a mais bela – prosseguiu Joff. – Ela possuía um
unicórnio de estimação, sabe? E, uma vez por ano, depois da
primeira chuva da primavera, soltavam esse unicórnio na
Floresta Amaldiçoada e todos tentavam caçá-lo.
– E isso, supostamente, era divertido? – perguntou
Evangeline.
– Não se preocupe, não estavam tentando matá-lo –
explicou Hale. – Matar um unicórnio dá um azar terrível. E
esses animais são muito mais úteis se estiverem vivos.
Joff balançou a cabeça e completou:
– E quem conseguisse pegar o unicórnio ganhava o direito
de ter um meio desejo realizado.
– O que é um meio desejo?
Os dois homens deram de ombros.
– Ninguém sabe ao certo – admitiu Joff.
– Não existem mais unicórnios – completou Hale. – Mas,
agora, todos os anos, alguém se prontifica a se fantasiar de
unicórnio para a Caçada. Teve um ano que Joff quase fez isso!
Joff balançou a cabeça, com um ar orgulhoso.
– Eu teria feito isso, mas aí aquele pateta do Quixton se
adiantou.
– Podem me dizer – falou Evangeline, torcendo para que
seu tom fosse educado, já que era óbvio que aqueles homens
tinham a Caçada em alta conta – por que alguém se
prontificaria a fazer isso?
– Quem interpreta o unicórnio e consegue passar as duas
noites e os três dias do evento sem ser caçado é nomeado
cavaleiro, com direito a escudeiro e um monte de ouro –
explicou Hale.
– E se for pego? – indagou a princesa.
– Bom… – respondeu Joff, um pouco menos entusiasmado.
– Quem se fantasia de unicórnio costuma levar uma bela surra
quando é capturado. E a pessoa que o capturou é quem leva o
título… caso precise… e também tem direito a um monte de
ouro e a um escudeiro.
– Então… as pessoas adoram a Caçada por causa dos
prêmios?
– E também porque fazem uma grande festa depois –
respondeu Hale.
– E – completou Joff – é a única ocasião no ano em que
todos têm permissão para entrar na Floresta Amaldiçoada.
Evangeline nunca ouvira falar da Floresta Amaldiçoada.
– E as pessoas querem entrar nessa floresta? – perguntou.
– Ah, sim. A Floresta Amaldiçoada tem um tipo especial de
maldição. Mas é melhor a senhora pôr sapatos mais resistentes
e vestir uma ou duas capas antes de sairmos – aconselhou
Hale. – Sempre chove no caminho, e era isso que eu estava
tentando explicar para a senhora desde o começo.
23
Evangeline

E
m priscas eras, a Floresta Amaldiçoada, supostamente,
não era nem um pouco amaldiçoada. Diziam que havia
sido a mais linda floresta do Magnífico Norte. O tipo
de floresta onde nascem os melhores trechos dos contos de
fadas, habitada por simpáticos elementais que sempre se
dispunham a ajudar viajantes perdidos a encontrar o rumo e
viajantes feridos a encontrar auxílio. Essa floresta era repleta
de flores que produziam luz à noite e de pássaros que emitiam
um canto tão melodioso que mesmo o dono do mais
endurecido dos corações chorava ao ouvi-lo.
Acreditava-se que a Floresta Amaldiçoada era a floresta
preferida da família Valor – e diziam que os Valor eram a
família preferida da floresta.
Sendo assim, quando todos os Valor foram decapitados, a
floresta ficou em luto pela amada família. Um luto tão
profundo que ela se transformou em uma coisa completamente
diferente. Uma coisa amaldiçoada que, por sua vez,
amaldiçoava todos que ousavam entrar ali.
Há quem diga que essa maldição foi a maneira que a
floresta encontrou de tentar obrigar outras pessoas a amá-la do
mesmo modo que a família Valor a amava – porque a maldição
dessa floresta é de um tipo peculiar. De início nem parecia
uma maldição, parecia mais uma maravilha. Até que mais e
mais pessoas do Norte adentraram nela e jamais saíram.
E, então, de um jeito bem típico do Norte, foi resolvido que
todos os caminhos que levavam à Floresta Amaldiçoada
também deveriam ser amaldiçoados, para que as pessoas do
Norte parassem de desaparecer lá dentro.
Infelizmente, não havia consenso em relação à melhor
maneira de enfeitiçar as estradas. E, sendo assim, diversos
feitiços mal-ajambrados foram lançados, todos ao mesmo
tempo.
Evangeline não estava a par dessa história. Mas, assim que
chegou à trilha que escolhera tomar na companhia dos
guardas, viu indícios de tais feitiços. Começou com um
chuvisco que, de início, não era tão forte assim. Então a chuva
foi ficando mais pesada à medida que avançavam. De repente,
sopraram lufadas de vento e caíram pancadas de chuva que
atingiram a jovem pela lateral do corpo e em diagonal.
Não demorou para a princesa ficar encharcada. Evangeline
não sabia ao certo qual era a extensão daquela trilha, mas teve
a impressão de que já fazia uma eternidade que aquela chuva a
fustigava. Ficou tão tentada a dar meia-volta. Mas precisava
contar para Apollo que Jacks andava entrando no castelo para
vê-la sem que ninguém notasse.
A única arma à disposição dela era a adaga com cabo de
pedras preciosas que o lorde lhe dera. Estava presa ao discreto
cinto de veludo verde que marcava a cintura do vestido, e
Evangeline tentou se convencer de que, se avistasse o
Arqueiro novamente, não pensaria duas vezes antes de usar a
faca. E, apesar disso, um lado seu temia não ser capaz de
apunhalar o lorde de fato. E, além disso, tinha um outro lado
seu, mais deturpado, que tinha medo de nunca mais tornar a
vê-lo. O estômago da jovem ficou embrulhado só de lembrar
que havia dado as costas para Jacks na noite anterior e que o
Arqueiro não fora atrás dela.
Evangeline sabia que Jacks era um inimigo. Mas, em parte,
ainda se sentia enfeitiçada pelo que o Arqueiro representava.
Sozinha, jamais conseguiria derrotá-lo. Precisava de Apollo,
do exército do príncipe e de todo o aparato que ele pudesse ter
– e ter que se arrastar por uma estrada, sob a chuva, era um
preço pequeno a pagar por isso.
– Apenas continue em frente – disse Joff.
O vento soprou a capa do guarda, que se enrolou no rosto
dele, e salpicou as botas de lama.
A princesa era grata àqueles homens por não terem
permitido que ela saísse do castelo só de sapatilhas, que teriam
ficado presas na lama, como pelo jeito já acontecera a tantos
outros calçados: algumas partes da estrada não eram
pavimentadas com pedras, mas com sapatos. E ainda havia
carruagens viradas, enfileiradas pelo caminho – e todas davam
a impressão de serem muito antigas. Ao que tudo indicava,
agora a maioria das pessoas do Norte conhecia os feitiços que
impediam qualquer meio de transporte, com exceção dos pés
da própria pessoa, de entrar na Floresta Amaldiçoada.
– Estamos quase chegando – avisou Hale.
Enquanto o guarda falava, uma tabuleta brotou na lateral da
estrada.

A chuva ficou mais forte quando Evangeline passou pela


placa, fazendo as mechas do cabelo que haviam se soltado do
penteado grudarem em seu rosto. Ela mal conseguiu enxergar
outra tabuleta, poucos instantes depois:

A chuva ficou ainda mais furiosa e foi caindo aos cântaros


até que Evangeline se aproximou de uma última tabuleta, em
que estava escrito:
A madeira da placa era cor-de-rosa; as letras, douradas, e a
tabuleta em si era uma coisa das mais curiosas. Assim que
Evangeline se aproximou dela e leu a mensagem – o que
aconteceu tudo ao mesmo tempo – a chuva parou de cair, de
repente. A princesa ainda ouvia as gotas batendo forte no
chão. Mas, quando se virou para trás e olhou para estrada que
acabara de percorrer, teve a impressão de que estava seca, feito
um vale em um dia quente de verão.
– Não chove dentro da Floresta Amaldiçoada – explicou
Joff. – Esse é o segundo motivo para todos os caminhos que
levam e saem dela serem enfeitiçados. Se alguém se perder, a
chuva é a única maneira de a pessoa ter certeza de que saiu da
floresta.
– Então agora estamos dentro da floresta? – perguntou
Evangeline, olhando para as tendas ao redor.
Depois de percorrer aquela estrada difícil para chegar ali e
de ter visto todas aquelas tabuletas de alerta, ela esperava algo
um pouco mais sinistro. Imaginara sombras, teias de aranha e
muitas criaturas rastejantes. Mas só viu um céu crepuscular,
com o sol prestes a ser pôr sobre um vilarejo de tendas de seda
coloridas, decoradas com bandeiras alusivas ao festival –
assim como muitos homens e mulheres, todos trajados para
viver uma aventura. E cavalos, também, diversos cães e
muitos falcões empoleirados no ombro dos donos.
Evangeline tentou enxergar além do acampamento,
procurando por árvores ou algumas folhas. Mas, depois das
tendas, só viu um borrão enevoado de cores, que a fez pensar
no final de um arco-íris.
– Estamos no limbo – declarou Hale.
– A senhora vai saber quando estiver na floresta –
completou Joff.
– Evangeline! Quer dizer, Alteza! – gritou Aurora Vale, que
se aproximou deles saltitando, balançando os cachos cor de
violeta perfeitos.
Todas as demais pessoas nos acampamentos próximos
davam a impressão de estarem desmazeladas por causa da
chuva, mas Aurora tinha o frescor de uma flor. As botas cinza-
claro amarradas até a altura dos joelhos estavam impecáveis,
assim como o vestido curto encouraçado e a aljava cheia de
flechas com pontas de prata que levava presa às costas.
Hale endireitou a postura ao vê-la, e Joff alisou o cabelo
bagunçado.
– Eu não sabia que você viria para a Caçada! – comentou
Aurora, toda empolgada. – Pode entrar na equipe que formei
com minha irmã, Vesper.
– Obrigada, mas só vim até aqui para falar com Apollo.
– A senhora pode entrar na equipe dessa senhorita
encantadora depois que encontrar o príncipe – sugeriu Joff.
– Tenho certeza de que o príncipe não irá se importar – foi
logo dizendo Hale.
A princesa não sabia se era uma boa ideia aceitar. Mas
tampouco sabia se os guardas estavam pensando direito.
Mesmo antes de terem ficado embasbacados com a aparição
da encantadora Aurora, já tinham assumido uma expressão
cheia do desejo por aventura quando viram todas aquelas
tendas tremulantes e as armas afiadas.
– Ah, por favor, peça, sim, para seu querido príncipe lhe dar
permissão de participar! Vamos nos divertir tanto juntas…
Aurora olhou para Evangeline com uma expressão que
lembrava a de um filhotinho que estava louco para que lhe
deixassem sair para brincar lá fora. É claro que filhotinhos não
costumam carregar flechas nas costas, muito menos com a
intenção de atirar em outros filhotinhos.
– Vou pensar – respondeu a princesa. – Mas antes preciso
encontrar Apollo.
– Eu posso levar vocês até ele – prontificou-se Aurora. –
Ele está logo ali. O acampamento do príncipe fica depois
daquele conjunto de tendas que pertence à Casa Casstel.
Ela apontou para cima, onde havia uma pequena
concentração de tendas listradas de azul-claro e prata e
inúmeros homens e mulheres bem altos, todos vestidos com as
mesmas cores das barracas.
– Receio que a dama esteja enganada – disse outra voz, que
Evangeline não reconheceu, pelo menos, não imediatamente.
Mas, assim que se virou, deu de cara com o simpático rosto de
Lorde Byron Belaflor.
Ele sorria com amabilidade, da mesma forma como sorrira
para ela na noite anterior, durante o banquete, quando se
conheceram e o lorde brindou a princesa com todo tipo de
histórias engraçadas a respeito de Apollo. Não lamentava revê-
lo, mas aquele não era o melhor momento para isso.
– Não ouvi o senhor se aproximar, milorde.
Não foi nenhuma surpresa o fato de Aurora Vale estar
chamando a atenção de todos e de Lorde Byron Belaflor ter
dado a impressão de que escolhera um traje que o faria passar
despercebido.
Naquele dia, o lorde estava de calça marrom, colete de
couro e camisa bege, com as mangas arregaçadas até os
cotovelos. Ao contrário de Aurora, Lorde Belaflor não
carregava flechas presas às costas. Tinha apenas uma pequena
adaga presa ao cinto e uma faca na altura do quadril.
– Pensei que nossa amizade permitiria que a senhora me
chamasse de Byron. E perdão pelo susto, Alteza. Acabo de
falar com Apollo. Ele estava conversando com a Guilda dos
Heróis logo ali, bem do lado de onde realmente fica o
acampamento do príncipe.
Byron apontou na direção oposta à que Aurora havia
sugerido, depois de uma fileira de barraquinhas de comida,
onde Evangeline avistou um vale de tendas verde-escuras,
rodeadas por um grupo de homens e mulheres. Todos, pelo
jeito, ou tinham um cão de estimação ou uma ave de rapina.
– Isso é impossível – retrucou Aurora, que ficou corada de
repente. – O príncipe e o acampamento real ficam na direção
contrária. Acabei de passar por lá, há poucos minutos, antes de
vir para cá e encontrar a princesa Evangeline.
– Alteza – declarou Byron, calmamente –, desculpe se estou
ofendendo sua amiga, mas receio que ela esteja confusa ou
mentindo. O príncipe não está na direção que ela aponta.
– Não estou…
Tã-tã-tã-tã! Cornetas ecoaram ao longe, interrompendo o
protesto de Aurora. No instante seguinte, um arauto que estava
ali perto, vestido com as cores reais, gritou:
– Atenção! Atenção! A Caçada terá início, oficialmente, em
dez minutos. Faltam dez minutos para a Caçada começar!
Evangeline estava ficando sem tempo.
– Bom, parece que todos nós precisamos nos preparar –
declarou Aurora, como se aquela discussão jamais tivesse
ocorrido.
Na mesma hora, Joff e Hale foram atrás dela, de queixo
erguido e postura ereta. Os dois, provavelmente, entrariam em
um vulcão atrás de Aurora, caso ela pedisse.
Byron não estava hipnotizado, como os guardas. Lançou um
rápido olhar de súplica para Evangeline e disse, baixinho:
– A senhora estará cometendo um erro se for com ela.
A princesa deu uma rápida olhada pelas tendas mais
próximas, na esperança de poder perguntar para alguém que
passasse se a pessoa havia visto o príncipe. Mas todos estavam
indo na direção contrária, para os limites enevoados da
Floresta Amaldiçoada, e Apollo deveria estar fazendo a
mesma coisa. Evangeline precisava decidir se queria contar
para ele a respeito de Jacks antes que o marido entrasse na
floresta e a Caçada começasse.
– Imagino que um de vocês dois deve ter se enganado –
disse Evangeline, com um tom meigo.
Só que, na verdade, não acreditava nisso. Um dos dois
estava mentindo.
Ambos ficaram com uma expressão ofendida.
Aurora tinha parado de se afastar. Estava com cara de quem
queria jurar que era uma pessoa de virtude, que jamais
mentiria. Mas só apertou os lábios e lançou um olhar venenoso
para Byron. Olhar esse que fez o rosto da jovem passar de
lindo para feio em um instante.
Evangeline não confiava nela. Alguma coisa em Aurora não
se encaixava. Começou a suspeitar dela quando Aurora
chamara a atenção para a faca que o Arqueiro havia lhe dado
e, depois, a interceptou no corredor, acusando-a de ter um
caso.
Também não sabia se confiava em Byron. Depois de tudo o
que havia acontecido nos últimos dias, a princesa via todas as
pessoas com uma certa desconfiança. Só que o jovem lorde
tampouco lhe dera motivos para não confiar nele.
– Joff, por que você não acompanha Aurora? – sugeriu
Evangeline. – Se encontrar o príncipe, diga que estou
procurando por ele e para só entrar na Caçada depois de falar
comigo. É importante. Hale e eu vamos para o outro lado, com
Lorde Belaflor.
Hale fez uma cara desalentada por ter que sair do lado de
Aurora.
– Tenho certeza de que a veremos novamente – disse
Evangeline, enquanto iam atrás de Byron, em direção às
barraquinhas de comida. Aliás, na verdade, pareciam servir
muito mais cerveja do que comida.
Tochas iluminavam as pessoas que se demoravam em volta
das barraquinhas. Evangeline ficou observando um grupinho
bater as taças e brindar:
– À Caçada!
– Boa sorte, meus amigos! – disse Byron, com um aceno.
Todos os homens e todas as mulheres levantaram as taças e
brindaram de novo.
– Cinco minutos! – gritou um arauto, ao longe. – Faltam
cinco minutos para a Caçada começar!
Este arauto estava mais distante do que o anterior.
Evangeline nem mesmo o avistou. Só ouviu a voz dele, mais
fraca, uma voz que logo se dissipou completamente.
As tendas pelas quais estavam passando – que, pelo que
entendera, pertenciam à Guilda dos Heróis – estavam bem
silenciosas. Ao que tudo indicava, eles já haviam se dirigido à
floresta. Só restava uma fraca espiral de fumaça, vinda de uma
fogueira que acabara de ser apagada. As conversas, os risos e o
afiar das espadas haviam cessado.
Evangeline torceu para que não fosse tarde demais. Não
queria ter que procurar por Apollo no interior da Floresta
Amaldiçoada em si, muito menos naquele horário, com o sol
já se pondo.
– Estamos chegando? – perguntou.
– É logo ali adiante – respondeu Byron, com um tom
confiante.
Mas, à medida que o céu escurecia e a névoa aproximava
seus tentáculos, a impressão era de que estavam se
aproximando dos limites da Floresta Amaldiçoada e não de um
acampamento. Evangeline ficou com medo de ter se enganado
com a decisão de acompanhar Byron. Afastou-se do lorde e se
aproximou de Hale.
– É melhor ficar perto de mim – disse Belaflor.
O lorde agarrou a princesa pelo pulso e a puxou para perto
de si. A neblina estava mais densa. Não eram mais meros
tentáculos, mas uma névoa fechada que chegava à altura dos
joelhos. Além disso, o fato de Byron estar segurando seu pulso
deixava Evangeline mais nervosa.
– Por favor, me solte – falou.
Ela tentou se desvencilhar, mas Byron a segurou com mais
força.
– Lorde Belaflor – disse Hale, com a mão pairando sobre o
cabo da espada. – A princesa Evangeline pediu para que o
senhor a solte.
Os lábios de Byron esboçaram um sorriso. Foi um daqueles
momentos que passam devagar e rápido, tudo ao mesmo
tempo. O sorriso do lorde foi se esboçando lentamente, mas
ele pegou a faca tão rápido que Evangeline só percebeu
quando a arma riscou o ar e se afundou na garganta de Hale.
O guarda caiu no chão, o sangue jorrava de seu pescoço.
– Não! Hale! – gritou a princesa. – Hale!
Byron a silenciou de imediato. Tapou seus lábios com a mão
e passou o outro braço pela cintura dela, bem apertado.
– Está na hora de você pagar pelo que fez com Petra.
– Quem é Petra? – Evangeline tentou dizer, mas as palavras
saíram abafadas.
Ela se debateu, mas o lorde só a segurou com mais força e a
arrastou pelo chão lamacento. Agora não havia mais tendas, só
a neblina densa e os dois – a sós.
Evangeline tentou chutá-lo, desvencilhar-se dele – fez tudo
o que o Arqueiro havia lhe ensinado –, mas seus pés mal
encostavam no chão. Só as pontas dos dedos roçavam na terra.
Não tinha como tomar um impulso.
Mas tinha, contudo, uma mão livre, com a qual daria para
alcançar a adaga presa ao cinto. Imaginou que só teria uma
chance de usá-la, uma chance de salvar a própria vida.
Pegou a adaga e desferiu um golpe para cima, que cortou o
pulso de Byron.
– Sua vaca!
– Essa foi pelo Hale! – berrou Evangeline, quando as mãos
de Byron a soltaram.
E saiu correndo.
24
Apollo

A
pollo não era um assassino – não matava ninguém, a
menos que fosse estritamente necessário.
Mas ficou tentado a pegar a espada e cortar a
barriga de Joff. Não havia mais ninguém na tenda com o
príncipe e, em um dia como aquele, seria fácil se livrar do
corpo, simplesmente abandonando-o na Floresta Amaldiçoada.
Acidentes sempre acontecem durante a Caçada.
Só que Apollo precisava de explicações, não de mais
derramamento de sangue. Lançou um olhar gélido para o
soldado e perguntou:
– Cadê minha esposa?
– Está com Lorde Belaflor, Alteza.
– Por que, céus, você permitiria que ela o acompanhasse?
– Foi uma ordem dela, Alteza. A princesa Evangeline não
sabia onde ficava seu acampamento. Por isso ordenou que nos
separássemos.
– Sua obrigação é ficar ao lado dela – interrompeu Apollo. –
Independentemente do que minha esposa queira ou deixe de
querer.
– Eu sei, Alteza – Joff disse isso de cabeça baixa. – Perdoe a
minha falha.
– Saia já daqui – disparou o príncipe –, antes que eu te
estraçalhe com minha espada.
– Só mais uma coisinha, Alteza. – Nesta hora, uma gota de
suor escorreu pela testa de Joff. – A princesa pediu para lhe
dizer que o senhor deve esperar e falar com ela antes de se
juntar à Caçada.
– E ela disse a razão?
O guarda fez que não e respondeu:
– Não, mas me pareceu muito determinada.
– Minha esposa sempre é determinada.
– Alteza! – gritou uma voz ofegante e estridente, de criança
pequena, que entrou correndo na tenda.
– Parado aí, nanico! – berrou outro guarda, mas a criança foi
mais rápida.
– A princesa está em perigo! – disse. – Acabei de ver um
homem tentando matá-la. E agora Sua Alteza está correndo na
direção da Floresta Amaldiçoada!
25
Evangeline

E
vangeline disparou em meio à neblina. Achou que
estava voltando por onde tinha vindo, que estava se
dirigindo às tendas pertencentes à Guilda dos Heróis.
Só que não viu tenda nenhuma, apenas uma neblina sem fim e
uma noite infinita.
Poderia dar meia-volta, mas ainda dava para ouvir Byron
gritando e xingando. As injúrias eram tantas que a fizeram
imaginar o que aquele homem pensava que ela havia feito e
quem era Petra.
Só quando já estava distante o suficiente da voz de Byron
resolveu diminuir o ritmo e assim conseguir recuperar o fôlego
e secar as lágrimas.
Pobre Hale. O guarda não merecia morrer daquele jeito, não
merecia morrer de jeito nenhum.
A princesa sabia que não era culpa dela – não foi
Evangeline quem cortou a garganta do guarda com aquela faca
–, mas se sentia culpada. Havia tantas pessoas tentando matá-
la, não conseguia imaginar o que tinha feito para causar tanta
fúria.
Será que era só porque havia se casado com um príncipe –
ou será que era por causa de algum outro acontecimento do
seu passado, algo que tinha esquecido?
Foi ficando cada vez mais difícil respirar à medida que
corria e se embrenhava na neblina escura. Odiava o fato de
não saber a razão de tudo aquilo e odiava o medo de que,
talvez, jamais ficaria sabendo.
A lama sujava as botas da princesa, bem como a bainha da
capa de veludo verde, até que o chão ficou mais duro.
Evangeline cambaleou por alguns instantes quando a estrada
em que pisava mudou abruptamente – agora era de
paralelepípedos.
E então, como se alguém tivesse aberto uma cortina, a
neblina sumiu, assim como o breu da noite. Desapareceu
completamente, revelando uma rua cheia de lojinhas coloridas,
que pareciam balas dentro de um vidro. Todas tinham toldos
listrados alegres, sininhos cintilantes e portas pintadas com
todas as cores do arco-íris.
Evangeline ficou arrepiada ao passar pelas fachadas das
lojas, com suas vitrines vistosas. Sabia que não podia parar –
não deveria parar. Ainda estava correndo para salvar a própria
pele e precisava encontrar Apollo e lhe contar a respeito de
Jacks.
Mas aquela não era apenas uma rua bonita. Ela conhecia
aquela rua. Conhecia o poste de luz torto no final dela, o
motivo para ter o doce aroma de biscoitos recém-assados. E
sabia que, na metade da rua, entre o Éden dos Doces da Dulce
e as Delícias Assadas da Mabel encontraria o lugar no mundo
que amava mais do que qualquer outro, a loja do pai:
Maximilian’s Curiosidades, Caprichos & Esquisitices.
Sentiu um aperto doloroso no peito quando chegou à porta
da frente. De repente, nada mais importava, só aquilo.
A loja estava diferente do que ela recordava. Como as
demais fachadas, parecia ser mais recente, mais reluzente,
mais nova. A pintura era de um tom de verde tão brilhante que
parecia estar úmida. O vidro da vitrine estava tão límpido que
mais parecia não haver vidro nenhum – Evangeline imaginou
que poderia simplesmente esticar o braço através da vitrine e
pegar um dos objetos curiosos que saíam da cartola roxa
tombada para o lado. Ela pensava que jamais veria uma cartola
como aquela de novo, assim como a loja.
Era de se acreditar que tudo aquilo não passava de uma
ilusão. Não poderia, de jeito nenhum, depois daquela corrida
em meio a neblina, ter chegado a Valenda, sua terra natal – não
sabia nem como voltar para Valenda saindo do Norte, mas
tinha quase certeza de que era preciso ir de barco.
E, apesar disso, quando Evangeline esticou a mão, sentiu a
porta – palpável, de madeira e aquecida pelo sol – sob seus
dedos. Era real. Tudo aquilo era real. Também sentia o aroma
dos biscoitos, vindo da padaria que ficava na mesma rua. E aí
ouviu uma voz ao longe:
– Olha a limonada! Limonada fresquinha!
O chamado foi seguido por uma lufada de bolhas de sabão,
mais para o fim da rua, e por um instante da mais perfeita
euforia.
Ao passar pelo pelo limite da Floresta Amaldiçoada,
Evangeline vira uma tabuleta com os dizeres “O melhor dia da
sua vida lhe dá boas-vindas!”.
Na hora, ela achou que as palavras eram frívolas. Mas,
considerando onde ela estava naquele momento, tudo indicava
que era exatamente onde (ou quando) ela estava.
Aquele dia específico ocorrera na véspera de seu aniversário
de 12 anos.
Evangeline sempre teve um caso de amor com a
expectativa. Um de seus passatempos preferidos era sonhar e
imaginar. O que poderia ser? O que poderia acontecer? E se
isso ou aquilo? Ela adorava, especificamente, a onda de
expectativa que antecedia ocasiões especiais, e os pais sempre
faziam de seus aniversários um dia megaespecial.
No aniversário de 9 anos, quando acordou, viu que todas as
árvores do jardim da mãe estavam com os galhos repletos de
pirulitos amarrados com fitas de bolinhas. Também havia
chicletinhos bem no miolo das flores e pedaços enormes de
cristais de açúcar colorido entre as folhas da grama. Parecia
que as pedras do jardim tinham se transformado em bala da
noite para o dia.
– Não foi a gente quem fez isso – dissera o pai.
– Não mesmo – concordou a mãe. – Com certeza foi magia.
Evangeline sabia que não era magia – ou sabia mais ou
menos. Os pais tinham um jeito de fazer as coisas que sempre
deixava transparecer um tantinho de fantasia, fazendo-a ficar
em dúvida, achando que poderia muito bem ser magia, sim.
Então, naquele dia, na véspera de seu aniversário de 12
anos, estava toda esperançosa, ansiosa pela magia que os pais
fariam para ela naquele ano.
Evangeline acreditava piamente que a mãe e o pai haviam
planejado algo magnífico. Mal podia esperar e, apesar disso,
era a espera que tornava aquele dia tão maravilhoso.
Estava prestes a explodir de tanta expectativa. E sua emoção
contagiava as pessoas que entravam na loja de curiosidades do
pai, fazendo os lábios de todos os fregueses esboçarem um
sorriso, os risos tomarem conta do ambiente da loja. Mesmo
que não fizessem ideia do porquê estavam rindo. A felicidade
era simplesmente contagiante.
E talvez houvesse uma pitadinha de magia no ar, porque,
por casualidade, a confeiteira da rua testou fazer uma receita
nova de biscoitos de vitral e resolveu levá-los até a loja de
curiosidades. Queria saber o que as pessoas achavam dos
biscoitos e, naquela tarde, era óbvio que não havia melhor
lugar para fazer isso do que na loja do pai de Evangeline.
Os biscoitos, claro, eram deliciosos, e ficaram ainda
melhores depois que o carrinho de limonada parou na frente da
loja. Era todo amarelo e branco e tinha um mecanismo
misterioso por baixo, que soltava um fluxo constante de bolhas
de sabão em formato de coração.
Já vira carrinhos de limonada, mas nunca um carrinho igual
àquele. Oferecia quatro sabores que, de acordo com a tabuleta,
mudavam dia sim, dia não. As opções daquele dia eram:
Limonada de blueberry
Limonada de lavanda com gelo de mel
Limonada de morango amassado com folhas de manjericão
E o sabor mais delicioso de todos:
Limonada-Chantili!
Esta última levava creme de leite, limão e açúcar, e era
finalizada com uma colherada de creme de baunilha cintilante
por cima.
Evangeline queria saborear a bebida, mas também queria
que o pai e a mãe a provassem, já que ambos cometeram o
erro de só pedir a limonada de blueberry.
Ela ainda se recordava de ter ficado sentada nos degraus da
frente da loja, no meio dos dois, sentindo-se a menina mais
sortuda da face da Terra.
Evangeline não sabia como era possível ter voltado no
tempo até aquele dia, mas não precisava que fosse possível.
Queria tanto aquilo – estar de volta à loja, estar com os pais,
estar em segurança –, que estava disposta a acreditar na
impossibilidade de toda aquela situação.
Uma sombra se movimentou dentro da loja. Evangeline a
viu através da vitrine e, apesar de ser apenas uma sombra,
sabia a quem ela pertencia.
– Papai! – gritou, já entrando na loja de curiosidades. O
aroma do ambiente era igualzinho ao que ela recordava: uma
mistura de cheiro da madeira das caixas que estavam sempre
entrando e saindo, e do perfume de violeta que a mãe
costumava usar.
Suas botas ressoaram ao bater no chão xadrez enquanto ela
entrava e chamava:
– Papai!
– Querida – disse a mãe, bem alto –, não venha até aqui!
As pernas de Evangeline bambearam ao ouvir a voz da mãe.
Fazia tanto tempo que não escutava aquele som. Não
importava o que ela estava dizendo, nenhuma força terrena a
impediria de seguir aquela voz.
Correu para os fundos da loja, onde ficava uma porta
disfarçada de guarda-roupa que dava no depósito. Mas os pais
não estavam ali. Encontrou apenas caixas abertas, um
expositor por arrumar e pilhas de outras bugigangas, às quais
Evangeline não deu nenhuma atenção. Se sua memória não
estivesse falhando, naquele dia específico ela encontraria os
pais no sótão, enchendo balões para o dia seguinte.
A escada ficava na parte de trás do cômodo. Mas, assim que
se aproximou dela, a voz do pai ecoou, vinda lá de cima:
– Não suba aqui, docinho!
– Só preciso ver vocês por um segundo!
E subiu rapidamente a escada, com o coração se enchendo
de esperança e de medo de que, se não fosse depressa, poderia
ser jogada de volta ao presente e talvez nunca tornasse a ver o
pai e a mãe.
Quando sentiu a maçaneta sob seus dedos, palpável e real,
quase gritou. A porta se escancarou, revelando um recinto
repleto de balões de aniversário. Cor de lavanda, arroxeados,
brancos, dourados… todos balançando seus barbantes
encaracolados cor-de-rosa. Eram os mesmos balões que
ganhara de aniversário naquele ano. Só que, como tudo o mais
naquele momento, eram mais coloridos, balançavam mais e
havia bem mais balões do que ela recordava.
– Querida, você não deveria estar aqui – disse a mãe.
– Você está estragando a surpresa – completou o pai. A voz
dele era clara e parecia vir de perto, mas Evangeline não
conseguia vê-lo, nem a mãe, no meio de todos aqueles balões.
– Mamãe! Papai! Por favor, apareçam.
Quando Evangeline afastou os balões, a sensação foi de
sonho que havia virado pesadelo. Quando colocava um balão
para o lado, outros dois apareciam no lugar.
– Mamãe! Papai!
Começou a estourar os balões entre um grito e outro, mas
sempre apareciam mais balões.
– Docinho, o que você está fazendo aqui em cima? –
perguntou o pai.
Agora, tinha a impressão de que a voz dele vinha do pé da
escada.
Sabia que era uma ilusão, assim como aquele recinto
terrível.
Mas o problema da esperança é que ela também torna tudo
tão maravilhoso… Quando uma pitada de esperança ganha
vida, fica difícil matá-la. E, uma vez que Evangeline ouvira a
voz dos pais, tinha esperança de que, se corresse bem
depressa, também poderia ver o rosto dos dois.
Ela quase tropeçou nas próprias saias ao descer correndo as
escadas e voltou às pressas para o depósito, onde ficavam as
caixas de curiosidades sem fim. Assim como acontecera com
os balões, havia muito mais caixas do que Evangeline
recordava. Um labirinto sem fim. E, vinda de pouco mais
adiante, conseguia ouvir a voz da mãe dizendo:
– Querida, cadê você?
Desta vez, a voz delicada da mãe deixou Evangeline com
um nó na garganta. Estava tão próxima, mas teve a sensação
de que não passaria disso. Próxima, mas nunca ao seu lado.
– Desculpe – disse uma outra voz.
A jovem levou um susto e olhou para o lado. Só que o rapaz
que acabara de falar não tinha um rosto feito para se olhar. Um
único vislumbre bastou para ela ficar sem ar. O rapaz tinha um
rosto inacreditavelmente belo, e os olhos mais verdes que
Evangeline já vira na vida, olhos tão verdes que pensou que
poderia já tê-los visto antes.
– Por que você está pedindo desculpas? – perguntou ela. –
Por acaso foi você quem fez isso comigo?
Os lábios do Belo Desconhecido ficaram com uma
expressão pesarosa.
– Receio que eu não tenha tamanho poder. É assim que a
Floresta Amaldiçoada faz você cair na armadilha. Mostra
apenas o suficiente para você querer procurar, mas jamais
permite que você encontre o que quer.
– Querida, cadê você? – repetiu a mãe.
Evangeline olhou para o ponto de onde vinha a voz.
Acreditava que o Belo Desconhecido tinha razão. De certo
modo, desde o início, tivera receio de que aquilo tudo era
milagroso demais para ser verdade. As pessoas caem em
buracos e em poços, não no melhor dia de suas vidas. E,
apesar disso, ela só queria correr no meio daquelas caixas e ir
atrás do som da voz da mãe. Só queria um último vislumbre,
um último minuto, um último abraço.
O Belo Desconhecido não dava indícios de que tentaria
impedi-la caso Evangeline tornasse a correr atrás da mãe.
Estava tão parado que bem poderia ser um dos objetos
inanimados tirados das caixas.
Não piscou, não se mexeu, não moveu um dedo sequer.
Estava usando uma roupa que lembrava a de um soldado
trajando uma couraça requintada, mas o traje não era parecido
com nenhuma das couraças que Evangeline vira naquele dia.
E, apesar de estar de couraça, tudo indicava que não portava
arma alguma, e, como não tinha bigode, não poderia ser um
dos guardas de Apollo.
– Você também é uma armadilha da floresta? – perguntou
ela. – Por acaso está aqui para fazer alguma espécie de trato?
Vai deixar que eu veja meus pais se eu lhe der um ano da
minha vida em troca?
– Você faria um trato desses?
Evangeline considerou essa possibilidade. De alguma
forma, estar tão perto dos pais naquele quase-lugar em que se
encontrava fazia a dor da solidão que sentia no peito ser mais
forte do que o normal. Ficou tentada a abrir mão de um ano da
própria vida só por um abraço, só para estar nos braços de
pessoas que amava e que também a amavam, pessoas que –
disso a princesa não tinha dúvidas –, só queriam o seu bem.
Queria esquecer por um instante que tinha apenas um marido
misterioso e pessoas que não paravam de tentar matá-la, sem
contar que a única pessoa pela qual sentia uma atração
inexplicável era o mais perigoso assassino de todos.
Um ano não lhe parecia um preço tão caro a pagar para
fugir de tudo aquilo. Mas os pais odiariam se a filha fizesse
isso.
– Não. Não quero fazer esse trato – murmurou Evangeline.
– Que bom – disse o Belo Desconhecido. – E não, não sou
mais uma armadilha. Estou na minha própria armadilha.
O rapaz deu um passo à frente bem devagar,
movimentando-se com uma dose surpreendente de
graciosidade para alguém tão alto e com um porte tão
poderoso.
– A Floresta Amaldiçoada leva todo mundo até um ponto
que replica o melhor dia da vida de cada pessoa. Então mostra
apenas o suficiente desse dia para a pessoa querer procurar
mais.
– Então você está em um dia diferente do meu? – perguntou
Evangeline.
O Belo Desconhecido fez que sim.
– A floresta muda o cenário, mas não consegue impedir que
uma pessoa que está dentro dela veja as demais. Foi assim que
eu te encontrei.
– Por que você iria querer me encontrar? Quem é você?
– Você me conhecia pelo nome de Caos. Sou seu amigo.
O jeito como ele disse a palavra “amigo” foi um pouco
estranho, como se não tivesse cem por cento de certeza.
Se Evangeline não tivesse acabado de ver um de seus
guardas ser assassinado por alguém que, em seguida, tentou
matá-la, não teria dado atenção a isso. Não queria acreditar
que seu azar era tanto ao ponto de aquele tal de Caos também
tentar matá-la.
Mas não estava disposta a correr esse risco.
Pegou a adaga que levava presa ao cinto.
Caos, de imediato, ergueu as mãos.
– Você não está correndo perigo. Estou aqui porque um
amigo nosso precisa de ajuda… da sua ajuda. Ele está prestes
a tomar uma péssima decisão, e você precisa fazê-lo mudar de
opinião antes que seja tarde demais para salvar a vida dele.
Não estou aqui para lhe fazer mal, Evangeline.
– Então por que você não se afasta dela, caramba – urrou o
Arqueiro.
Evangeline não o ouvira se aproximar. Simplesmente se
virou e, do nada, o Arqueiro – Jacks – estava lá. Ficou mais
fácil perceber que o Arqueiro e Jacks eram a mesma pessoa
enquanto o observava desviar habilmente das caixas enquanto
encarava Caos com um olhar assassino.
– Não quero você perto dela. Jamais.
Jacks puxou a espada e, antes que desse tempo de Caos
dizer alguma coisa, cravou a lâmina bem no peito dele.
26
Jacks

J
acks caiu e bateu as costas no chão, porque Evangeline
foi para cima dele.
– Seu monstro! – gritou, soltando palavrões.
Até então, o Príncipe de Copas jamais havia ouvido
Evangeline soltar palavrões de verdade. Ela não era muito boa
nisso, mas estava se esforçando, furiosa.
Quando os dois caíram no chão, ela se esborrachou em cima
do peito do Arcano com uma força que só podia ter expulsado
todo o ar de seus pulmões. Mas isso não a impediu de berrar:
– Por que você fez isso? Não pode simplesmente sair por aí
matando gente!
Evangeline continuou a se debater em cima de Jacks. Ficou
com os joelhos nas laterais da cintura do Arcano e não parava
de estapeá-lo. O Príncipe de Copas não saberia dizer se estava
tentando bater nele ou esfaqueá-lo – e suspeitava que
Evangeline, tampouco, sabia o que estava tentando fazer.
Se o objetivo era esse, estava segurando a faca com a ponta
virada para o lado errado enquanto não parava de socar o peito
do Arcano. Se aquele fosse algum outro dia, Jacks poderia ter
se contentado com o simples fato de Evangeline ao menos
estar tentando se proteger. Mas, como sempre, ela não fazia
ideia do perigo que realmente estava correndo.
Jacks segurou os pulsos dela com as mãos enluvadas e
esticou os braços dela acima da cabeça, antes que a princesa
acabasse cortando a garganta dele sem querer.
– Ele não está morto de fato – grunhiu o Arcano. – O
verdadeiro monstro, o que eu acabei de atingir, voltará a viver.
E, quando isso acontecer, precisamos estar longe daqui.
– Nós coisa nenhuma. Eu sei quem você é! – Evangeline
conseguiu soltar as mãos, se afastou e apontou a adaga
diretamente para o coração do Príncipe de Copas. Desta vez, a
ponta da faca estava virada para o lado certo. As mãos
tremiam, mas o tom ainda era de fúria e de mágoa. – Vi seu
retrato nos tabloides… e também vi a reportagem sobre todas
aquelas pessoas que você assassinou ontem à noite!
– Eu não assassinei ninguém ontem à noite.
– Você matou uma pessoa bem na minha frente!
– Isso não conta como assassinato. Ele estava tentando te
matar.
Evangeline fez uma careta. Sabia que Jacks tinha razão.
Mas não mudou a adaga de posição. Continuou apontando a
arma para o coração dele. O Príncipe de Copas conseguia ver,
pelo olhar da jovem, que ela acreditava que estaria agindo
certo se pusesse fim à vida dele. E não estava completamente
enganada.
– Eu mereço isso – admitiu o Arcano. – Provavelmente,
mereço coisa ainda pior. Mas hoje não é o dia de me matar.
Estou me esforçando muito, muito mesmo, para que você
continue viva.
Jacks segurou os braços de Evangeline de novo, deu um
giro, e a prendeu embaixo do próprio corpo. Tentou ser
delicado, tentou não a machucar. Mas precisava que ela
compreendesse antes de soltá-la.
– Sim, sou um assassino. Gosto de fazer as pessoas
sofrerem. Gosto de sangue. Gosto de dor. Sou um monstro.
Mas, quer você se lembre, quer não, sou o seu monstro,
Evangeline.
Ela ficou sem ar.
O Príncipe de Copas poderia jurar que, por um segundo, o
olhar dela não era de raiva nem de medo. O pescoço da
princesa ficou vermelho, e as bochechas coraram… de um
jeito diferente. Jacks não conseguia saber se Evangeline estava
se lembrando de alguma coisa ou não.
Mas era egoísta o suficiente para torcer que estivesse.
Chegou a pensar na possibilidade de mantê-la presa
embaixo do próprio corpo até que recordasse. Sabia que era
uma péssima ideia, mas queria que ela se lembrasse dele.
Queria que, uma única vez, Evangeline olhasse para ele e o
reconhecesse como antes.
Era cruel da parte dele querer que a jovem tornasse a desejá-
lo. Se ela se lembrasse, apenas sofreria mais.
Jacks ainda era assombrado pela última vez que a vira,
quando ainda tinha as próprias lembranças. Na entrada da
Valorosa. Horas antes, sentira Evangeline morrer em seus
braços.
Ela não fazia ideia do que havia acontecido nem
desconfiava que o Arcano já havia usado as pedras para voltar
o tempo por causa dela.
Evangeline estava tentando demovê-lo de usar as pedras
com o objetivo de voltar a ficar com Donatella. Pedira que
Jacks ficasse com ela.
Mesmo depois de tudo, ela ainda o desejava.
O Príncipe de Copas teve tanta vontade de dizer para ela
que mal se lembrava que cara Donatella tinha, que o rosto dela
era o único que ele via quando fechava os olhos, que iria com
Evangeline para qualquer lugar… se pudesse.
Mas não podia vê-la morrer de novo. Sua primeira raposa
havia acreditado nele e morrera, assim como Evangeline
morreria. A história dos dois tinha um único final, que não era
feliz. A esperança que sentia podia até ser poderosa, mas não
era mágica. Não bastava.
Era melhor magoá-la, era melhor partir o coração de
Evangeline, fazer tudo o que fosse necessário para mantê-la
viva e bem longe dele.
Isso não havia mudado.
Mas, naquele dia, Jacks não estava conseguindo soltá-la
nem abrir mão dela. Queria mantê-la presa ao chão, debaixo
do próprio corpo. Teria ateado fogo ao mundo e deixado tudo
queimar só para ficar segurando Evangeline daquele jeito.
Olhou para o lado. Castor estava imóvel. O peito não mexia,
os olhos estavam abertos e congelados. Parecia mesmo morto.
Mas não demoraria muito para voltar à vida.
Jacks precisava tirá-la dali.
Ela ainda estava debaixo dele, o rosto corado, a respiração
pesada. O Príncipe de Copas percebia que Evangeline ainda
não sabia direito se ia ou não confiar nele, mas não podia mais
perder tempo.
Levantou-se em um pulo. Em seguida, segurou a mão dela,
a fez ficar de pé, e pegou a corda que levava presa ao cinto.
– O que você acha que está fazendo? – perguntou.
Mas o Arcano não lhe deu oportunidade de se soltar. Puxou
Evangeline mais para perto de si e amarrou o corpo dela ao
próprio corpo, pela cintura.
27
Evangeline

E
vangeline não viu de onde apareceu aquela corda. De
repente, a corda brotou nas mãos hábeis de Jacks,
como se ele sempre andasse por aí com uma, na
eventualidade de precisar amarrar alguma garota.
– Como posso ter sido apaixonada por você?
Foi uma pergunta ríspida, mas a princesa estava exausta.
Uma hora, estava deitada no chão, embaixo de Jacks. E, no
instante seguinte, os dois estavam amarrados, a pele de um
roçando na do outro, e era uma sensação diferente daquela que
havia sentido quando uma camada de roupas separava os dois.
Evangeline imaginou que Jacks estava sentindo o pulsar do
coração dela, acelerado, em contato com ele.
Puxou as cordas que os amarravam. Só que as cordas não se
soltaram: florzinhas começaram a crescer nelas, minúsculos
botões cor-de-rosa e brancos, com ramos verde-esmeralda que
se enroscaram nos braços dos dois, apertando ainda mais um
contra o outro.
– O que você está fazendo? – indagou Jacks.
– Achei que era você quem estava fazendo isso!
– E você acha que eu nos amarraria com flores? – Ele fez
uma careta de leve, porque um botão cor-de-rosa desabrochou.
– Deve ser coisa deste lugar – resmungou.
Foi aí que Evangeline reparou que não estavam mais nos
fundos da loja de curiosidades.
A confusão de caixas havia sumido, e a loja se transformara
em uma encantadora choupana – ou será que aquele lugar tão
peculiar era uma estalagem? O saguão bem iluminado em que
estavam parecia um tanto grande para pertencer a uma
choupana para uma só família. Havia pelo menos quatro
andares de quartos acima dos dois, e todas as portas tinham
entalhes curiosos, retratando coisas como coelhos de coroa,
corações dentro de redomas de vidro e sereias com colares de
conchas.
Na mesma hora a princesa se sentiu uma tola, por não ter
reparado imediatamente, por só ter olhos para Jacks.
Bem na sua frente, havia uma porta arredondada e, ao lado
dela, um relógio que era uma maravilha de tão inusitado. Era
pintado com cores vivas, tinha pêndulos de pedras preciosas
cintilantes e, em vez de números marcando as horas, o relógio
tinha nomes de comidas e bebidas. Coisas como “raviólis com
carne”, “caldeirada de peixe”, “cozido misterioso”, “chá com
torradas”, “mingau”, “cerveja preta”, “cerveja”, “hidromel”,
“vinho”, “sidra”, “torta de mel”, “pavê de amora” e “bolo
floresta negra”.
– Seja bem-vinda à Grota – disse Jacks, baixinho.
Evangeline deu as costas para ele. Ou, pelo menos, tentou.
Afastar-se de Jacks não era exatamente possível, com aquela
corda de flores prendendo os braços dos dois.
– Você não pode simplesmente amarrar as pessoas e arrastá-
las para onde bem entender.
– Não precisaria fazer isso se você simplesmente se
lembrasse – ele falou baixinho, mas um baixinho perigoso, que
tornava as palavras um tanto ríspidas.
Evangeline se obrigou a não dar bola. Só que se sentiu
compelida a discutir.
– Você não acha que estou tentando me lembrar?
– Obviamente, não está se esforçando o suficiente –
retrucou Jacks, friamente. – Você quer mesmo recuperar suas
lembranças?
– Não tenho feito outra coisa a não ser tentar me lembrar de
tudo!
– Se acredita nisso, das duas, uma: ou está mentindo para si
mesma ou se esqueceu como tentar de verdade. – Os olhos de
Jacks ardiam quando cruzou o olhar com o de Evangeline: era
um fogo de raiva. Mas ela também viu que havia mágoa. Ela
aparecia na forma de fios de prata se movimentando pelo azul
dos olhos do rapaz feito rachaduras. – Eu já te vi tentar. Vi
você querer algo mais do que qualquer coisa neste mundo. Vi
o que você estava disposta a fazer. Até onde estava disposta a
ir. Você agora não está chegando nem perto disso.
Jacks cerrou os dentes e ficou encarando Evangeline. Estava
com uma expressão brava e exasperada. Levantou o braço,
como se quisesse passar a mão livre no próprio cabelo, mas
segurou a nuca de Evangeline e encostou a própria testa na
dela.
A pele de Jacks estava gelada, mas esse contato fez
Evangeline sentir calor no corpo todo. A mão que segurava a
nuca dela se embrenhou por seu cabelo, e o corpo inteiro da
princesa amoleceu. O rapaz a segurou perto de si e ficou
fazendo cafuné, com movimentos suaves e firmes.
Aquilo era muito errado, desejar o homem que a havia
amarrado junto dele e fizera incontáveis outras coisas
inenarráveis. Mas Evangeline só conseguia pensar que queria
que Jacks fizesse ainda mais.
Ele era igual à fruta encantada venenosa – bastava uma
mordida para a pessoa não conseguir mais achar graça no
gosto de nada. Só que ela não tinha mordido Jacks, nem iria
morder. Não poderia haver mordida nenhuma. Ficou sem
entender por que estava pensando em mordidas.
Tentou se desvencilhar, mas Jacks a segurou firme e
enroscou seu cabelo na mão fechada sem desencostar a testa
da sua.
– Por favor, Raposinha, lembre-se.
Esse apelido surtiu algum efeito em Evangeline.
Raposinha.
Raposinha.
Raposinha.
Uma palavra tão simples. Só a sensação era de que não era
nada simples. Tinha a sensação de estar caindo. Tinha a
sensação de ter esperança. Tinha a sensação de que aquela era
a palavra mais importante do mundo. A palavra fez o sangue
ferver e a cabeça girar, até que, mais uma vez, só existiam
Evangeline e Jacks. Nada mais existia, a não ser a pressão
exercida pela testa gelada dele, a sensação da mão forte do
rapaz enroscada no seu cabelo e o olhar de súplica,
desamparado, naqueles olhos azuis de relâmpago.
A combinação de tudo isso embaralhou as entranhas de
Evangeline como se fossem cartas, até que todos os
sentimentos que ela havia tentado expulsar tornaram a ficar no
alto do baralho.
Queria confiar em Jacks. Queria acreditar no que ele
dissera, que o Belo Desconhecido que ele acabara de matar
não estava realmente morto. Queria pensar que as histórias que
haviam lhe contado, de que Jacks era um assassino, não
passavam de mentiras.
Queria ficar com ele.
Não tinha a menor importância o fato de Jacks ter dito, há
poucos instantes, que gostava de sangue, de ferir e de dor.
Essas coisas estavam na parte de baixo do baralho. E
Evangeline não queria embaralhar as cartas de novo.
Poderia ter encontrado motivos para justificar o que estava
acontecendo, motivos que iam além de simplesmente ter
ouvido um apelido.
Só que não queria justificar os próprios sentimentos, queria
apenas ver até onde eles a levariam. Não queria mais se
desvencilhar, pelo contrário: queria trilhar aquele caminho
sinistro para o qual Jacks estava prestes a empurrá-la, fosse
qual fosse. E isso tinha algum significado. Talvez significasse
que Evangeline era uma tola. Ou talvez significasse que o
coração dela se lembrava de coisas que a cabeça não
recordava.
Mais uma vez, tentou se lembrar do restante. Fechou os
olhos e ficou repetindo aquele apelido em silêncio, como se
fosse uma prece.
Raposinha.
Raposinha.
Raposinha.
Só de pensar em Jacks pronunciando aquela palavra, o
coração da princesa batia descompassado, mas o apelido não
trouxe as lembranças dela de volta.
Quando abriu os olhos, os olhos sobre-humanos de Jacks
ainda a encaravam. E percebeu algo muito parecido com
esperança naquele olhar.
– Desculpe – disse, baixinho. – Não consigo me lembrar.
A luz se esvaiu do olhar de Jacks, e ele imediatamente tirou
os dedos do cabelo de Evangeline, endireitando a postura e se
afastando. Apenas os pulsos ainda se tocavam, assim como os
braços, que estavam presos pelos ramos.
Jacks não tentou cortar os ramos que se enroscavam pelos
braços dos dois e, estranhamente, Evangeline ficou feliz com
isso. Podia até não ter se lembrado. Mas, ao que tudo indicava,
o coração realmente se lembrava daquele rapaz, porque a
princesa sentiu que se despedaçara de leve quando Jacks
olhara para ela com um olhar gélido, feito sombras na floresta.
O relógio incomum que havia no saguão bateu “cozido
misterioso”, e o cadáver do Belo Desconhecido, que estava no
chão, se mexeu. Evangeline viu o peito do homem estremecer,
algo que não era bem uma respiração. Mas, definitivamente,
era um movimento.
– Precisamos sair daqui – declarou Jacks, curto e grosso.
Puxou a corda florida que o amarrava a Evangeline, e algumas
pétalas de cores delicadas se desprenderam das flores.
– Aonde estamos indo? – perguntou ela. – E como
chegamos aqui?
– Estamos aqui porque eu nos amarrei – respondeu Jacks. –
Se a pele de duas pessoas se encosta, ambos são levados para a
ilusão da pessoa que tem o ímpeto mais forte. Do contrário,
poderíamos nos perder um do outro. Já que estamos presos em
ilusões diferentes, você poderia encontrar uma parede no
mesmo local onde eu encontraria uma porta.
– Então este é o melhor dia da sua vida? – perguntou
Evangeline.
Gostaria de ter se dado conta disso antes ou de ter mais
tempo para inspecionar aquela estalagem curiosa, para ver o
que Jacks gostava tanto ali.
Mas era óbvio que o rapaz não queria se demorar naquele
local. Nem chegou a responder à pergunta.
Evangeline não ouviu nenhuma voz chamando por Jacks,
mas pensou que estar ali poderia fazê-lo sofrer, assim como
estar tão perto da lembrança dos pais dela a fizera sofrer. Que
o rapaz também poderia se sentir atraído por algo que queria,
mas não podia ter.
Jacks abriu a porta para sair da Grota, como se estivesse
louco para ir embora dali. Mas Evangeline percebeu um leve
brilho de dor nos olhos dele, como se também lhe doesse ir
embora.
Quando saíram, o rapaz correu por uma das trilhas mais
alegres que a princesa já vira na vida.
Beija-flores voejavam, pássaros cantavam e dragõezinhos
azuis minúsculos cochilavam em cima de cogumelos
vermelhos de bolinhas brancas. As papoulas que ladeavam a
trilha que levava para longe da estalagem eram enormes.
Chegavam à cintura de Evangeline, tinham pétalas vermelho-
escuras que pareciam de veludo e o perfume mais doce de
todos.
Quando chegaram ao fim da trilha de paralelepípedos, o ar
perdeu o aroma adocicado de flores e se tornou úmido, com
cheiro de limo. Ainda dava para ver a trilha, mas era feita
apenas de terra e ladeada por árvores enormes, que fizeram o
mundo iluminado pelo sol ficar na penumbra e gelado.
A princesa conseguia ouvir um riacho correndo ao longe –
assim como o som de vozes e o bater dos cascos de cavalos.
Vai ver que estavam perto da Caçada. Ou seja: Apollo
também poderia estar por perto.
Com tudo o que acontecera, se esquecera do príncipe.
Perguntou-se se o marido estava participando da Caçada ou se
Joff lhe dera o recado, pedindo que esperasse para falar com
ela antes de se juntar à competição. Evangeline torceu muito
para que Apollo tivesse recebido o recado e estivesse
esperando por ela fora da Floresta Amaldiçoada. Não queria
nem imaginar o que aconteceria se a visse daquele jeito,
amarrada a Jacks.
– Aonde, precisamente, estamos indo? – perguntou.
– Primeiro precisamos sair desta maldita floresta antes que
mais alguém tente te matar.
– Por falar nisso, teve outra pessoa que tentou me matar há
pouco, antes de eu entrar neste lugar.
Jacks lhe lançou um olhar sinistro.
– Como pode todo dia ter alguém tentando te matar?
– Bem que eu gostaria de saber. Se eu soubesse, poderia
tentar impedir.
O rapaz ficou com uma expressão de dúvida.
– Quem foi desta vez? Você conseguiu ver quem era?
– Foi o Lorde Byron Belaflor. Você conhece?
– De vista. Mimado, rico, praticamente inútil.
– Por acaso sabe por que ele quer que eu morra? Byron
comentou algo sobre uma tal de Petra…
Jacks se encolheu todo. Foi rápido, quase imperceptível,
tanto que Evangeline achou que poderia ter imaginado.
Quando o rapaz tornou a falar, foi com um tom quase de
tédio.
– Petra era uma bruxa desprezível que foi amante de
Belaflor. Ela morreu faz pouco tempo, mas você não teve nada
a ver com isso.
– Então por que Byron quer me matar?
– Não faço a menor ideia. – O tom de Jacks era levemente
irritado. – À esta altura, apenas suponho que todo mundo quer
que você morra.
– Incluindo você?
– Não – respondeu ele, sem um segundo sequer de
hesitação. – Mas isso não quer dizer que você não corre perigo
comigo.
Jacks, então, encarou Evangeline nos olhos, pela primeira
vez desde que encostara a testa na dela e suplicara para que ela
se lembrasse. O rapaz tinha os olhos mais azuis e brilhantes
que já vira na vida. Mas, parados ali, dentro da floresta, os
olhos dele pareciam mais claros do que antes, um tom
fantasmagórico de azul que a fez pensar em luz de velas
prestes a se apagar.
– Não acredito que você vai me ferir – disse a princesa.
A cor dos olhos de Jacks ficou mais opaca.
Você vai mudar de opinião logo, logo.
Ela ouviu essas palavras dentro da própria cabeça, mas a
voz parecia igualzinha à de Jacks. E, por um segundo, sentiu
um frio terrível na barriga. Um pássaro grasnou no céu, um
som bem alto e estridente.
Evangeline olhou para cima.
Uma criatura alada escura e bem conhecida voava em
círculos acima dos dois.
O coração da princesa parou de bater por um instante,
porque a imagem dessa mesmíssima criatura bicando seu
ombro lhe veio à mente.
– Ah, não!
– Que foi?
– Aquele pássaro – sussurrou Evangeline. – Pertence ao
líder da Guilda dos Heróis. Eles estão te caçando.
Com a mão livre, Jacks tirou uma faca da bainha presa à
perna.
– Não! – a princesa segurou a mão dele.
Jacks a olhou, zangado.
– Não venha me dizer agora que não posso matar pássaros.
– É um animal de estimação e não deveria pagar pelos
crimes do dono.
O rapaz olhou para ela com cara de quem achava que ela
havia dito algo completamente sem sentido. Mas guardou a
faca.
– Vamos apenas torcer para que esse pássaro de estimação
esteja vivendo o melhor dia de sua vida, cheio de coelhos bem
gordinhos, e não esteja prestando atenção em nós.
– Obrigada.
– Não acho que eu realmente tenha feito um favor a você.
– Mas era isso que eu queria.
Jacks fez uma expressão de quem queria dizer mais alguma
coisa a respeito dos quereres de Evangeline. Mas apenas
seguiu arrastando-a floresta afora, pelo pulso.
Ela não saberia dizer por quanto tempo ficaram andando
depois disso. Mas, uma hora, aquela floresta vívida se
transformou em neblina. As flores e os galhos que amarravam
os dois sumiram, desaparecendo aos poucos, feito um sonho
que só pode ter vida na luz do sol.
Evangeline ainda conseguia enxergar Jacks e sentir o pulso
dele encostado no dela. Os dois agora estavam amarrados com
uma corda comum, e o mundo ao redor deles escurecia. O céu
era um misto de cinza, cor de carvão e nuvens de tempestade
prestes a eclodir.
A sensação da primeira gota de chuva foi de surpresa.
Depois disso, começou a chover mais, em linhas prateadas e
incessantes, que borraram as estrelas e o breu da noite.
Evangeline ergueu o capuz da capa de veludo verde, mas a
chuva já havia empapado seu cabelo.
– Por acaso isso quer dizer que saímos oficialmente da
Floresta Amaldiçoada?
– Sim.
– Mas onde foram parar todas aquelas tendas da Caçada?
– Estamos do outro lado da floresta – respondeu Jacks, sem
parar de andar, porque a chuva continuava a cair a cântaros.
Mais uma vez, a princesa perdeu a noção do tempo,
enquanto se arrastavam pela chuva. Quando conseguiram sair
da floresta estava escuro, e ainda não tinha clareado. Jacks era
puro silêncio, e ela estava um tanto faminta.
Não conseguia se lembrar qual fora a última vez que comera
ou bebera alguma coisa. Isso não teve muita importância
quando estava no interior da Floresta Amaldiçoada. Mas agora
seu o estômago roncava, as pernas estavam cansadas, e a
jovem tinha a impressão de que valeria a pena dar uma
mordida em qualquer pedra ou bolota.
Estava começando a sentir os efeitos de ter ficado o dia
inteiro sem comer nem beber. Pelo menos… ela achava que
havia se passado um dia. Não sabia ao certo quanto tempo
havia se passado desde que se embrenhara na floresta.
Só sabia que era noite de novo, estava com a boca seca e
tinha a impressão de que as pernas cederiam sob o peso do
próprio corpo. Jacks caminhava no ritmo de Evangeline, mas
ela começou a achar que estava retardando o avanço do rapaz.
A capa encharcada vazava em sua pele gelada.
– Estamos quase chegando – anunciou Jacks.
A água da chuva pingava das pontas do cabelo dourado do
rapaz e escorria pelo rosto, percorrendo o pescoço até chegar
ao gibão. Ao contrário de Evangeline, Jacks não estava
coberto por um capuz nem por uma capa, apenas pela chuva –
que, como tudo o mais, ficava bem nele.
Jacks olhou de esguelha para Evangeline e declarou:
– Você não deveria ficar me olhando desse jeito.
– Como devo ficar te olhando, então?
– Você não deveria ficar me olhando de jeito nenhum.
Depois dessa, virou a cara, abruptamente.
Evangeline sentiu uma pontada de algo bem parecido com
mágoa. Jacks havia amarrado seu corpo ao dele, salvara sua
vida e agora estava dizendo para não olhar para ele.
– O que estamos fazendo, Jacks?
– Precisamos sair desta chuva.
Assim que o rapaz disse isso, a estalagem surgiu ao longe,
feito uma ilustração de um livro pop-up. Um livro pop-up
chuvoso. Mas Evangeline não ligava, desde que o local fosse
aquecido, e ela pudesse comer alguma coisa. As botas estavam
encharcadas; a capa, empapada de chuva, grudada no corpo –
até a corda que a mantinha amarrada a Jacks estava pingando.
E, à medida que iam se aproximando, ela viu que, mesmo
debaixo daquela chuva torrencial, a estalagem dava a
impressão de ser quente e aconchegante.
A construção era toda de tijolinhos vermelhos cintilantes,
com floreiras transbordantes, repletas de flores felpudas, com
folhas que lembravam uma cabeça de raposa, salpicadas por
grandes gotas de chuva. Da chaminé, no telhado coberto de
musgo, saíam nuvens cinzentas, lançando uma fumaça meio
amadeirada no ar úmido. A tabuleta na frente da estalagem era
sacudida pelo vento.
Estalagem Tijolos do Passado no Fim da Floresta: para
Viajantes Perdidos e Aventureiros.
Debaixo desta tabuleta, havia outra, onde estava escrita a
palavra “disponibilidade”.
E, pendurada embaixo desta tabuleta, havia outra ainda
menor, onde estava escrito “uma cama”.
28
Apollo

A
pollo jamais havia participado da Caçada.
“É uma ótima maneira de acabar assassinado”, o pai
sempre dizia. “Esteja lá quando derem início, dê um
grito de guerra bem motivante e caia fora correndo.”
O príncipe sempre fizera apenas isso. Nunca se aventurara
além do perímetro do acampamento real nem adentrara na
Floresta Amaldiçoada.
A única coisa que o faria entrar na Floresta Amaldiçoada
era Evangeline. Quando o garotinho apareceu em sua tenda e
contou que alguém havia tentado matá-la, Apollo teve vontade
de se embrenhar na floresta para salvar a vida dela.
Então se deu conta de que aquela era a oportunidade que
tanto esperava. O momento que poderia garantir que sempre
seria capaz de cuidar de Evangeline.
– Alteza – chamou um dos guardas. A abertura da tenda foi
afastada de leve, e o guarda entrou. – Lorde e Lady Vale
querem falar com o senhor.
– Peça para os dois entrarem – respondeu o príncipe.
O guarda afastou mais a abertura da tenda, e Honora e
Lobric entraram.
O ar ficou parado quando os dois pisaram dentro da tenda.
As chamas da fogueira ficaram mais baixas, parecia que a
tenda havia respirado fundo e segurado o ar em seguida.
Lobric não se dava ao trabalho de usar casaco. Trajava
apenas uma camisa velha e artesanal, de colarinho amarrado,
calças pretas pesadas e botas de couro gastas. Os trajes da
esposa eram igualmente simples. Isso deveria dar a ambos a
aparência de plebeus, mas uma certa autoridade de nobre ainda
pairava sobre os dois. Antes de os guardas fecharem a tenda,
Apollo reparou que observavam o casal com um ar muito
próximo da reverência, apesar de não saberem quem Lobric e
Honora realmente eram.
– Sentem-se, por favor.
O príncipe apontou para o banco que havia na frente de uma
mesinha baixa repleta de velas e sentou-se em uma cadeira
mais para o lado. Como pretendia passar vários dias ali,
Apollo fez questão de que a tenda tivesse o máximo de
conforto possível. Travesseiros, cobertores, cadeiras… tinha
até uma banheira no canto.
– Obrigado por terem vindo. Que bom vê-los de novo,
Majestades. Mas eu gostaria que fosse sob circunstâncias
melhores. Tenho certeza de que vocês já sabem que minha
esposa desapareceu.
– Minha família fará tudo o que puder para ajudar –
declarou Lobric.
– Que bom ouvir isso, porque acredito que vocês podem ter
acesso à única coisa da qual preciso.
Apollo pegou o pergaminho que o Lorde Robin Massacre
do Arvoredo lhe dera e abriu com todo o cuidado. Na mesma
hora, a parte de baixo começou a pegar fogo, como sempre
ocorria. Lentamente, as chamas foram consumindo as
palavras, linha por linha.
Quando o Lorde Massacre do Arvoredo lhe entregara o
pergaminho, o príncipe só conseguiu lê-lo na oitava tentativa.
E, mesmo assim, não conseguiu ler as últimas linhas – que
sempre queimavam rápido demais. Mas lera o suficiente para
saber que jamais deveria ter perdido tempo procurando o
bracelete de Vingança Massacre do Arvoredo. Era atrás da
história do pergaminho que deveria ter ido, desde o início.
– Vocês sabem o que é isso? – perguntou para o casal Valor,
enquanto o pergaminho continuava a queimar diante deles.
– Não – respondeu Lobric. – E você deveria saber que não
gosto de teatrinhos. Se você tem um pedido a fazer,
desembuche.
– Não é teatrinho – disse Apollo, como quem pede
desculpas. – É apenas um efeito da maldição das histórias. –
Ele se esforçou para não falar com um tom condescendente.
Para aquilo dar certo, o antigo rei não poderia encará-lo como
uma ameaça. – Este pergaminho contém uma lenda há muito
perdida, que conta a respeito de uma árvore da qual existe
apenas um único exemplar. A Árvore das Almas.
O príncipe ficou em silêncio para tentar interpretar a
expressão de Lobric, mas o estoico ex-rei não esboçou reação.
Nem a esposa. Mas, como o pergaminho não citava o nome de
Honora, talvez ela não soubesse nada a respeito.
– Eu nunca tinha ouvido falar dessa árvore, até o dia em que
um amigo me entregou o pergaminho. De acordo com o texto,
corre sangue nos galhos da Árvore das Almas, e quem tiver a
esperteza de encontrá-la e a bravura de beber seu sangue
deixará de ser humano e será imortal.
– É bem parecido com o mito – comentou Lobric.
– Disso você entende – declarou Apollo. – O pergaminho
também fala que você foi a única pessoa que conseguiu
cultivar essa árvore.
– E fui – confirmou Lobric, calmamente. – E também fui
tolo de tê-la plantado, para começo de conversa. A Árvore das
Almas é maligna.
– Às vezes, o mal é necessário.
Por fim, durante um segundo, a expressão impassível do
antigo rei se anuviou. Os lábios se retorceram. Apollo sentiu
um breve lampejo de triunfo.
Lobric, então, ficou de pé e olhou para o príncipe com ar de
superioridade, como se Apollo não passasse de uma mera
criança.
– O mal nunca é necessário. O que existe são as péssimas
decisões, e receio que você esteja prestes a tomar uma delas,
menino.
O príncipe ficou mordido ao ouvir a palavra “menino”. Mas
conseguiu não deixar que isso transparecesse em sua voz:
– Evangeline é uma jovem inocente, e Lorde Jacks é um
imortal que tem amigos imortais. Jamais conseguirei derrotá-
lo e salvar a vida da minha esposa enquanto eu for meramente
humano.
Lobric soltou uma risada debochada.
– Fiquei sabendo que sua esposa foi sequestrada pelo Lorde
Belaflor, não por Lorde Jacks.
– Pode até ser verdade, mas ouça bem o que eu digo: à esta
altura, Jacks deve estar com ela.
– Então você deveria parar de perder tempo nessa tenda
luxuosa, sair daqui, agir como um verdadeiro líder e procurar
por ela – alfinetou Honora.
Apollo ficou deveras perplexo e levemente ultrajado. Ficara
mordido com as palavras ditas por Lobric, mas o que Honora
disse o fez sentir vergonha.
– Minha esposa tem razão – declarou Lobric. – Vá procurar
sua querida princesa. E, se dá valor à própria vida, esqueça a
Árvore das Almas.
29
Evangeline

E
vangeline ficou torcendo para que a Estalagem Tijolos
do Passado fosse um lugar quente. Absurdamente
quente. Torcia para que os quartos fossem pequenos e
aconchegantes, para que as lareiras estivessem acesas e para
encontrar cobertas – pilhas de cobertas. Imaginou cobertas de
patchwork em cima de bancos, cobertas espalhadas pelo chão,
cobertas cobrindo as escadarias.
Foi aí que se deu conta de que, talvez, pudesse estar
delirando um pouco. E, desta vez, não era por causa de Jacks.
Já se acostumara à sensação de ter o pulso dele amarrado ao
seu. Entretanto, à medida que se aproximavam da estalagem,
sentiu que a pulsação do rapaz começou a ficar acelerada.
– Não tire o capuz sob hipótese alguma.
Ainda chovia a cântaros quando Jacks puxou o capuz da
capa da princesa para baixo, praticamente tapando os olhos
dela.
– Mal consigo enxergar. – Evangeline levantou um pouco o
capuz, para não ficar completamente vendada. – E você? Não
está nem de capa.
– Não preciso de capa.
– Podem reconhecer você com a mesma facilidade que me
reconheceriam. E você ainda está com uma mulher amarrada
ao seu corpo.
– Tenho plena consciência disso – resmungou o rapaz. – É
só você fazer tudo o que eu fizer e concordar com tudo o que
eu disser.
Antes que desse tempo de Evangeline fazer mais alguma
pergunta, ele abriu a porta.
A estalagem não era revestida de cobertas, como Evangeline
imaginara, mas era pitoresca e convidativa, pelo menos até
onde ela conseguia ver.
Vigas de madeira com lampiões de vidro pendurados, um
diferente do outro, cruzavam o teto – pareciam estrelinhas
perdidas iluminando as escadarias que ficavam nas laterais do
salão. Entre elas, havia um corredor, que levava a uma taverna
silenciosa, iluminada pelo brilho difuso dos lampiões. Devia
ser muito tarde, porque os únicos fregueses da taverna eram
um casal conversando baixinho enquanto bebia canecas de
cerveja já pela metade e um gato branco peludo, que bebia
leite de um pires em cima de um dos cantos do balcão.
– Em que posso ajudá-los? – perguntou a taverneira.
– Precisamos de um quarto para passar a noite. – Nesta
hora, Jacks ergueu os pulsos amarrados dos dois, escondendo
o rosto de Evangeline. – Acredito que temos reserva. Escrevi
no início da semana, pedindo um quarto para mim e para
minha esposa.
Esposa.
Essa palavra suscitou uma horda de sentimentos, uma
vibração no peito de Evangeline, e a fez virar a cabeça. Tinha
gostado de ouvir o rapaz dizer a palavra “esposa”, mais do que
deveria. Só que ele também falou que havia mandado uma
carta para a estalagem no início da semana.
Jacks havia planejado aquilo – e os planos de Jacks nunca
acabam bem.
Evangeline não conseguia se lembrar por que achava isso.
Tentou se lembrar de algumas coisas que Jacks havia
planejado no passado. Mas só conseguia recordar de que a
pulsação dele ficara acelerada lá fora, há poucos instantes, e
que, antes disso, havia dito que Evangeline não deveria ficar
olhando para ele. E, agora, a princesa estava com um
pressentimento terrível e súbito em relação àquele plano.
– Preparada, meu amor? Ou quer que eu te carregue no
colo? – perguntou Jacks.
Evangeline só ouviu a palavra “amor”. Tentou se convencer
de que o rapaz estava fingindo, desempenhando um papel na
farsa que havia inventado, seja lá qual fosse. Mas ficou um
tanto sem ar quando ele cortou a corda que prendia os pulsos
dos dois e, em seguida, a pegou no colo, com a maior
facilidade.
O coração da princesa bateu mais forte enquanto Jacks subia
a escada. Adorava a sensação de estar nos braços dele, mas
não conseguia se livrar da impressão de que alguma outra
coisa – que não adorava – estava acontecendo.
– Jacks, o que você está planejando? – sussurrou. – Por que
você me trouxe para cá? Por que estamos fingindo que somos
casados?
– Você faz muitas perguntas.
– Só porque você faz muitas coisas questionáveis.
Ele a ignorou. Chegando ao primeiro andar da estalagem, lá
pela metade do corredor, havia uma porta entreaberta. A luz
difusa das velas vazava por baixo da porta, iluminando a
entrada. Jacks passou pela porta, e o que havia do outro lado
não parecia ser nem um pouco sinistro.
O quarto era um sonho campestre. Tudo era verde, dourado
e cor-de-rosa.
Lampiões de vidro verde-esmeralda bruxuleavam,
pendurados dos dois lados da cama, que tinha uma cabeceira
entalhada, parecendo uma árvore florida. A colcha era de um
tom claro de verde-floresta e estava coberta de pétalas rosa-
claro. Também havia pétalas espalhadas pelo chão de madeira
e na cornija da lareira, onde alguns troncos queimavam
silenciosamente, lançando um brilho suave por todo o quarto.
Evangeline sentiu o peito de Jacks se movimentar, porque
ele respirou fundo. O coração do rapaz tornara a bater mais
rápido. E, agora, o dela também batia acelerado. Mas ela
receava que fosse por um motivo diferente do de Jacks.
Teve a impressão de que o tempo passou mais devagar
enquanto ele a carregou até a cama. O ar estava quente, por
causa da lareira, e tinha um cheiro adocicado, por causa de
todas aquelas pétalas de flores. Tudo tinha uma aparência
perfeita, de sonho – menos Jacks.
Ele não olhava para Evangeline. Na verdade, a impressão
era de que ele olhava para tudo, menos para ela, quando a
colocou em cima da cama, com todo o cuidado.
Em seguida, pôs a mão nas tiras que prendiam facas nas
suas pernas.
– O que você está fazendo? – Evangeline se ajoelhou na
cama quando Jacks pegou um pequeno frasco de estanho, no
qual ela não havia reparado até então. – O que é isso? –
perguntou, nervosa.
O rapaz ficou mexendo o maxilar, bem devagar.
– Eu menti. Eu gostaria, sim, que a gente pudesse ter um
final diferente. – Então tirou a rolha do frasco. – Adeus,
Evangeline.
– Por que você está dizendo adeus?
A princesa entrou em pânico, porque Jacks começou a virar
o frasco em cima dela.
Não fazia ideia de qual era o conteúdo daquele frasco.
Ainda não acreditava que o rapaz fosse lhe fazer mal. Mas não
tinha dúvidas de que ele a abandonaria.
Será que estava planejando fazê-la dormir? Será que havia
alguma poção sonífera dentro daquela ampola?
A princesa saiu da cama, foi para cima do rapaz e derrubou
o frasco da mão dele. A ampola saiu voando.
– Não! – Jacks tentou se mexer. Mas, pela primeira vez, não
foi rápido o suficiente.
Um pó dourado e cintilante se derramou do frasco, feito um
feitiço, e se espalhou por todo o quarto. Evangeline conseguia
sentir suas bochechas, seus cílios, seus lábios, sendo
polvilhados.
Ela se esforçou para não ingerir o pó. Mas, seja lá o que
fosse aquilo, a afetou pelo simples contato. O quarto estava
girando tanto que dava a impressão de que o mundo fazia um
barulhinho agradável, e o pó dourado brilhava ao redor dos
dois. Jacks, pelo jeito, era o que mais brilhava. Na verdade,
parecia que ele nascera para brilhar. O cabelo, as maçãs do
rosto, a boca emburrada… tudo estava lindamente dourado e
brilhando.
Parecia que ele também estava sendo afetado por aquele pó.
Evangeline ficou olhando Jacks sacudir o cabelo para tentar
se livrar daquela cintilância, mas as mechas ainda estavam
úmidas, e o pó dourado era teimoso. Um segundo depois,
desistiu de sacudir o cabelo e tentou fazer cara feia, mas só
conseguiu fazer uma expressão petulante. A impressão era
que, de repente, tudo o que Jacks tinha de mais pronunciado
havia se suavizado, e ele estava levemente atordoado.
– Você é um perigo – resmungou o rapaz, enquanto as
partículas douradas rodopiavam ao seu redor. – O frasco
poderia estar cheio de veneno!
– Você teria me envenenado?
– Já fiquei tentado a fazer isso, em mais de uma ocasião…
Jacks dirigiu o olhar para os lábios de Evangeline e foi ali
que seus olhos se fixaram. E ficaram mais escuros quando ele
fez isso.
A princesa sentiu um calor na pele e começou a pensar que
ela e Jacks tinham definições bem diferentes de “veneno”.
Algo cutucou seus pensamentos, em segundo plano. A boca
cruel de Jacks. Os lábios dela. Morte e beijos e casais de
estrelas fadados ao fracasso.
A princesa teve a sensação de que esses pensamentos eram
cacos de uma lembrança. Tentou se agarrar a eles, tentou se
lembrar. Se, ao menos, conseguisse se lembrar, talvez pudesse
convencer Jacks a ficar. Mas tudo estava muito enevoado
dentro de sua cabeça, por causa daquele pó dourado.
O calor no quarto estava cada vez mais intenso. Evangeline
queria fechar os olhos e deitar na cama, até tudo parar de
rodopiar. Mas teve medo de que, se fechasse os olhos, Jacks
teria ido embora quando tornasse a abri-los. Para sempre,
desta vez.
Ele acabara de lhe dar adeus. Disse que gostaria que a
história dos dois tivesse um final diferente, como se já
tivessem chegado à última página.
Só que Evangeline queria mais páginas.
Jacks virou a cara e lhe deu as costas para ir embora, mas
Evangeline segurou o pulso dele com as duas mãos.
– Não vou deixar você ir embora. Você falou que é o meu
monstro. Se é meu, por que me trouxe até aqui e agora vai
embora? Nada disso faz sentido.
Jacks cerrou os dentes e declarou:
– O fato de eu ser seu não significa que você seja minha.
Ele até podia ainda estar sob efeito do pó dourado e
cintilante, mas Evangeline não tinha como saber. Todos os
traços pronunciados do rapaz estavam de volta, e Jacks ficou
parado ali, de cabelo molhado e olhos ardentes. Olhos que
tinham um brilho sobrenatural, quase febril.
Não posso ficar com você. Não fomos feitos um para o
outro.
Jacks se afastou…
Mas Evangeline o segurou com força. Tentou resistir ao
sono que tomava conta dela e declarou:
– Não acredito em você, Jacks. Posso até não me lembrar de
tudo a seu respeito. Mas eu te conheço. Sei que te conheço. E
não acredito que não haja nada que você possa fazer.
– Não posso fazer isso – retrucou ele, com um tom ríspido.
Assim, de tão perto, Evangeline conseguia ver que os olhos
de Jacks tinham uma borda de um vermelho lustroso. Que era
muito parecido com… sangue?
Ele fechou os olhos, como se não quisesse que ela visse a
mancha, mas fazer isso só lhe deu um ar ainda mais perdido.
Perto e muito distante, tudo ao mesmo tempo.
Evangeline ouviu uma gota d’água pingar no chão. Achou
que poderia ser uma lágrima, mas era água da chuva pingando
do gibão de Jacks.
O fogo da lareira e o pó dourado haviam neutralizado boa
parte do frio, mas as roupas dos dois continuavam
completamente encharcadas.
Timidamente, Evangeline pôs a mão no primeiro botão do
gibão de Jacks.
Ele abriu os olhos de repente e perguntou:
– O que você acha que está fazendo?
– Suas roupas estão molhadas – sussurrou, já abrindo, bem
devagar, o primeiro botão, que fez um cléc baixinho. Foi um
ruído fraco, mas, sabe-se lá como, tomou conta do ambiente.
Lá fora, a chuva batia forte na janela fina, sacudindo o
vidro. Mesmo assim, Evangeline ouviu o ruído de cada botão
sendo aberto, um por um.
– Essa é uma péssima ideia – murmurou Jacks.
– Achei que você gostava de péssimas ideias.
– Só quando são minhas.
Ele nem se mexeu quando Evangeline passou os dedos na
casa do último botão com todo o cuidado. Por um segundo,
não havia chuva, não havia respiração. Havia apenas os dois.
Cuidadosamente, Evangeline afastou o tecido do gibão de
Jacks.
E aí sentiu a mão dele envolvendo seu pulso.
– Minha vez – disse Jacks, meio rouco.
Quando o rapaz pôs a mão no laço que prendia a capa de
Evangeline, a jovem poderia jurar que estava sentindo a voz de
Jacks roçando na pele dela.
As mãos sem luvas de Jacks estavam quentes, por causa do
pó dourado. Evangeline conseguia sentir as pontas ardentes
dos dedos dele, que desfizeram, delicadamente, o nó que
prendia a capa no pescoço. Os dedos mal roçaram na pele dela,
mas, de repente, Evangeline pegou fogo, porque Jacks tirou a
capa dos ombros dela.
Evangeline estava de vestido por baixo da capa, mas
poderia muito bem não estar com nada, pelo jeito como Jacks
olhava para ela. Não queria respirar. Não queria se mexer, de
medo que o rapaz parasse por ali, que ele a deixasse com
aquele vestido molhado, que jamais tentasse abrir os laços que
ficavam na altura dos seus seios.
Jacks respirou fundo, ofegante, colocou as mãos na cintura
de Evangeline e a levou, com toda a delicadeza, até a cama,
ajeitando seu corpo até ela ficar totalmente deitada em cima da
colcha. Evangeline conseguia sentir as pétalas de flores
grudando em sua pele úmida, e Jacks pairando em cima dela,
posicionando um joelho ao lado de cada uma das suas pernas.
O rapaz baixou o olhar.
Evangeline sentiu um frio na barriga, porque Jacks segurou
as alças do vestido e foi deslizando lentamente, até caírem dos
ombros. E ficou ainda mais zonza quando ele pôs as mãos no
corpete de veludo do vestido. Abriu os colchetes escondidos
que fechavam a peça e baixou o corpete até os quadris,
deixando a jovem apenas com a combinação de seda. Era para
ela respirar com mais facilidade sem o corpete. Mas aconteceu
o contrário, esqueceu de como se fazia isso.
O que era respirar? O que eram palavras? Evangeline só
sabia que as mãos de Jacks, quentes e curiosas, apalpavam seu
corpo, subindo dos quadris até a cintura. Pode ter suspirado
quando roçaram nos seios. As mãos de Jacks eram tão quentes
que a princesa conseguia senti-las através da combinação.
Depois, conseguia senti-las na pele, porque ele pôs a mão
debaixo da combinação e a colocou bem em cima do coração
de Evangeline.
O quarto rodopiou mais rápido e, desta vez, não tinha nada a
ver com o pó dourado.
A única magia naquele quarto era a da carícia, das batidas
do coração e de Jacks. E, por um instante, foi perfeito.
Evangeline tinha a impressão de que Jacks era dela e que ela
era de Jacks.
Não queria se mexer. Não queria falar nada, com medo de
quebrar aquele encantamento que afetava a ambos naquele
momento. Mas também queria acariciá-lo, queria chegar mais
perto. Se aquele fosse todo o tempo que teria para ficar com
Jacks, se ele iria embora pela manhã, ela queria mais.
Pôs as mãos nos ombros do rapaz e falou:
– É minha vez de novo.
E então fez pressão no corpo dele, obrigando-o a deitar, a
permitir que o acariciasse, como fizera quando abrira os
botões do gibão – que Jacks ainda não havia tirado.
Evangeline pôs as mãos debaixo do tecido úmido, prestes a
tirar o gibão de Jacks. E foi aí que sentiu. Os dedos roçaram
em um pedaço de papel.
Ele murmurou alguma coisa muito parecida com “não”.
Ou, talvez, a princesa só tenha ouvido essa palavra ser
pronunciada dentro da própria cabeça.
Os olhos de Jacks estavam fechados, polvilhados com uma
perfeita camada dourada. E, de repente, ele ficou imóvel,
tirando o subir e descer do peito.
Finalmente cedera ao feitiço sonífero do pó dourado.
Evangeline ainda estava com a mão por dentro do gibão,
encostando no papel. Seria por isso que, há pouco, Jacks a
impedira de tocar nele?
Sentiu-se um pouco culpada ao puxar a beirada do papel,
mas a culpa estava longe de ser suficiente para impedi-la de
tirar o papel do gibão. A folha estava milagrosamente seca,
mas parecia um tanto gasta, como se fosse algo que Jacks
havia dobrado e desdobrado para reler inúmeras vezes. E, na
mesma hora, Evangeline reconheceu aquela letra desbotada.
Era a sua própria letra.

Evangeline releu rapidamente essas palavras, torcendo para


que a lembrança de tê-las escrito viesse à tona. Mas nada
aconteceu. Abriu a carta, com cuidado para não a rasgar, já
que o papel era tão fino e gasto.
Devia ser algo importante, já que Jacks andava por aí com
isso no bolso e relera inúmeras vezes.
A folha estava toda escrita com a letra dela – mas não era
uma carta para Jacks, era uma carta para a própria Evangeline.
Uma carta que havia escrito para si mesma.
Por que Jacks andaria com aquilo no bolso?
Como na primeira dobra da carta, no restante da página a
letra estava tão desbotada que ela quase não conseguiu ler.
Pode ter sido por causa da magia da carta, do fato de a
Evangeline do passado ter pedido a si mesma para se lembrar,
repetidas vezes, como se soubesse que, um dia, esqueceria.
Ou pode ter sido outro tipo de magia que se avolumou
dentro de Evangeline, já que ficou imaginando por que Jacks
andaria por aí com aquela carta no bolso. Não era uma carta de
amor. Muito pelo contrário, na verdade. E, mesmo assim, ele a
relera inúmeras vezes. Carregara no bolso, perto do coração.
As palavras de Evangeline – ou melhor: as palavras da pessoa
que Evangeline fora um dia. E ela queria voltar a ser essa
pessoa. Ela queria se lembrar!
E, por fim… aconteceu.
Ela se lembrou.
30
Evangeline

A
s lembranças começaram feito chuva: foram caindo
lentamente em cima de Evangeline e borrando tudo
ao redor, à medida que ia recordando de ter escrito
aquela carta para si mesma. Foi a primeira coisa da qual se
lembrou. Estava sentada em seus aposentos reais, prestes a cair
em um choro de raiva, mas também estava de coração partido.
Não reconhecera essa emoção na ocasião, mas a Evangeline de
hoje reconheceu na mesma hora esse sentimento.
Era a mesma dor no coração que sentia desde que perdera
suas lembranças. Achava que iria embora quando essas
lembranças voltassem à tona, mas tinha a impressão de que
aquela mágoa crescia à medida que suas recordações
deixavam de ser um chuvisco enevoado e se tornavam um
temporal constante.
Recobrou as lembranças relacionadas a Jacks. Lembrou-se
de quando foi à igreja dele, de vê-lo pela primeira vez e de tê-
lo achado terrível. Depois, deu-se conta de quem ele era – de
que o rapaz que vira, na verdade, era o mítico Príncipe de
Copas. E de que, logo em seguida, continuou achando que
Jacks era uma péssima pessoa.
A cada encontro com Jacks, Evangeline achava que o
Arcano havia ficava um pouco pior. Estava sempre comendo
maçãs e debochando dela e, mesmo quando a acudia do
perigo, era um desgraçado. Lembrou-se da noite em que foi
envenenada pelas lágrimas de LaLa. Que Jacks a abraçara com
apego, como se ela fosse uma mágoa. Ficou com o corpo
rígido e tenso, como se não quisesse muito que Evangeline
estivesse ali. E, apesar disso, abraçou-a firmemente pela
cintura, como se não tivesse intenção de soltá-la, nunca mais.
Na ocasião, Evangeline continuou achando que Jacks era
uma péssima pessoa. Mas, à medida que revivia aquela noite,
algo dentro dela mudou. Isso aconteceu de novo quando
reviveu a noite seguinte, que passou com ele na cripta.
De repente, compreendeu por que pensar em Jacks a fazia
pensar em morder.
E havia outras lembranças relacionadas a mordidas também
– a vontade de afundar os dentes no Arcano quando foi
infectada com veneno de vampiro e, depois, a sensação de
realmente ter mordido o ombro dele, quando sentira uma dor
excruciante, a noite em que Evangeline matou Petra.
Lembrou-se de tudo isso em uma retrospectiva-relâmpago.
Recordou que tanto ela quanto Petra eram chaves profetizadas
que podiam abrir o Arco da Valorosa. E que Evangeline estava
tentando encontrar as quatro pedras do arco para fazer isso, e
Petra tentara matá-la para impedir que conseguisse.
Evangeline matou Petra em legítima defesa. Jacks a
encontrou logo em seguida, banhada em sangue. Então, a
levou para a Grota, onde por fim admitiu para si mesma que
era perdidamente apaixonada pelo Príncipe de Copas.
Estava apaixonada por ele havia um bom tempo. Não sabia
se essa parte era uma lembrança ou apenas um pensamento
que andava tendo ultimamente.
Tinha a sensação de que as lembranças não eram tanto do
seu passado, mas da história dos dois. A história de
Evangeline e de Jacks. E era uma linda história, sua nova
história preferida. Odiava o fato de tê-la esquecido. Odiava o
fato de tê-la perdido e de Apollo ter tentado reescrevê-la, ter
lhe dito que Jacks é quem era o vilão.
Entretanto, justiça seja feita: do ponto de vista de Apollo,
Jacks era mesmo. Havia lançado um feitiço de amor no
príncipe, depois o colocou em um estado de sono encantado.
Não foi o Príncipe de Copas quem lançou a maldição
espelhada nem a maldição do Arqueiro em Apollo, mas
Evangeline pensou que o marido poderia não estar a par disso.
Apesar de estar recobrando a memória, ainda havia diversas
coisas que não sabia. Continuava sem saber o que estava
trancafiado dentro da Valorosa.
Ninguém conseguira lhe contar, por causa da maldição das
histórias. Mas Evangeline percebera que tinha parado de se
importar com o que havia dentro da Valorosa assim que ficou
sabendo que Jacks não queria abri-la de fato: queria apenas
usar as pedras do Arco da Valorosa para voltar no tempo, para
ficar com a pessoa que fez seu coração voltar a bater.
Donatella.
Evangeline teve a sensação de que se lembrar desta parte
era reviver tudo aquilo.
O coração da princesa se despedaçou quando ela se lembrou
de Jacks falando “Quero apagar cada instante que eu e você
passamos juntos, cada palavra que você me disse e cada vez
que encostei em você. Porque, se não fizer isso, vou te matar,
assim como matei a Raposa”.
Ela tentou argumentar: “Não sou aquela raposa!”.
Mas Jacks tinha absoluta convicção de que não haveria um
final feliz para os dois. E contou para Evangeline que era o
Arqueiro.
E ela teve uma súbita certeza de que foi por isso que seu
coração se partiu na primeira vez que Madame Voss comentou
sobre A balada do Arqueiro e da Raposa. Não por causa do
nome “Arqueiro”, mas porque era a história de Jacks, e
Evangeline sabia como terminava. Sabia que Jacks havia
matado a Raposa; e ele acreditava que, um dia, mataria
Evangeline também.
Acreditava naquilo com uma convicção tão inabalável que
pretendia voltar no tempo para tentar seduzir uma pessoa que
nem amava e queria fazer isso de um modo que Evangeline e
ele jamais tivessem se conhecido, efetivamente apagando as
lembranças dela e a história dos dois.
Evangeline se lembrou de ter ficado magoada e furiosa e de
ter brigado com Jacks por causa disso, depois de abrir o Arco
da Valorosa. E de ter implorado para o Arcano ficar com ela,
mas o Príncipe de Copas preferiu abrir mão dos dois. Ele
falou: “Só quero que você vá embora”.
E foi isso que Evangeline fez. Foi embora.
Mas ir embora era complicado. Bem lá no fundo,
Evangeline sabia que o Arcano gostava dela. Acreditava que
Jacks queria ficar com ela. Mas também sabia que Jacks tinha
tanto medo de matá-la que jamais optaria por ficar com ela. O
Príncipe de Copas acreditava que já havia encontrado seu
verdadeiro amor e que esse amor não era Evangeline.
Só que ela jamais havia dito para o Arcano que o amava.
Jacks ficaria com medo, assim como Evangeline também
ficara. Ela havia dito que gostaria que a história dos dois
tivesse um final diferente, mas deveria ter dito o quanto o
amava. O amor é a magia mais poderosa do mundo.
Mas o amor decepcionou Evangeline naquela noite. Ele não
foi sufuciente.
Ela ainda era apaixonada por Jacks e, contudo, tanto a
Evangeline do passado quanto a do presente tinham a sensação
de tê-lo perdido.
A Evangeline do passado pareceu ser tão ingênua aos olhos
da Evangeline do presente quando se recordou de ter corrido
atrás de Jacks, acreditando que, se tivesse a chance de dizer
que o amava, consertaria tudo.
Era óbvio que não tinha consertado nada.
E, apesar de tudo, havia um lado da Evangeline do presente
que tinha inveja da crença natural na esperança e na magia do
amor que sua antiga versão possuía.
Ela ainda conseguia sentir esperança, mas não era mais a
mesma coisa, desde aquela noite. Pensando nisso, Evangeline
concluiu que talvez essa mudança fosse consequência de ter
perdido Jacks naquela noite, apesar de ter fé, de ter esperança
e de ter determinação.
Quando voltou correndo para a sala do Arco da Valorosa,
para dizer que o amava, Jacks não estava mais lá.
Evangeline achou que o Príncipe de Copas ainda não havia
voltado no tempo, porque ainda conseguia se lembrar de Jacks.
E também conseguia ver todas as quatro pedras mágicas do
Arco da Valorosa.
Mas nem sinal de Jacks: só viu o sangue dele, manchando
as asas dos anjos de pedra que guardavam o Arco da Valorosa.
E aí Apollo apareceu. Ela pensou que o príncipe iria
permitir que ela fosse embora. Tudo o que Evangeline fazia
causava sofrimento a Apollo. Ele ficaria muito melhor sem
Evangeline, mas não permitiria que a esposa fosse embora.
Na verdade, Evangeline nunca foi de acreditar no destino.
Mas, por um segundo, foi difícil acreditar no amor, porque ela
se lembrou que o próprio marido arrancara suas lembranças.
Apollo ficou fazendo cafuné em Evangeline enquanto
roubava todas as lembranças, uma por uma. A garota tentou
detê-lo. Debateu-se, implorou e chorou.
Mas o príncipe ficou só dizendo, calmamente: “Logo vai
melhorar”.
– Cretino!
Evangeline teve vontade de bater em Apollo, de machucá-
lo. Mas, quando acordou daquele estado de sonho em que fora
mergulhada pelas próprias lembranças, só conseguiu bater no
colchão.
Então se deu conta de que estava de volta ao presente. À
cama verde-floresta em que Jacks a deitara na noite anterior.
Só que não havia nenhum Jacks ali.
Evangeline sentia a ausência do Príncipe de Copas do
mesmo modo que sentia a presença dele antes de perder suas
lembranças. Era uma sensação de frio e arrepio na pele, no
corpo todo, que a deixava congelada e com medo.
Ela tentou se convencer a não entrar em pânico.
Mas ainda estava abalada por ter mergulhado no próprio
passado e presente. Não apenas se lembrou de Apollo
roubando suas lembranças, tinha sentido tudo. Agora entendia
por que o coração batera, dizendo “perigo, perigo, perigo”,
logo na primeira noite, quando o príncipe a levou para o topo
do castelo. Na ocasião, Evangeline não deu ouvidos àquele
sinal. Muito pelo contrário: beijou Apollo.
Será que era por isso que Jacks resolvera abandoná-la? Será
que pensava que ela estava apaixonada pelo marido?
Pensar nisso fez Evangeline se sentir tão mal que ela teve
dificuldade para levantar da cama. Mas precisava encontrar
Jacks. Precisava explicar que havia se lembrado de tudo. E
tinha que dizer para o Arcano que o amava.
Ao refletir sobre as ações de Jacks, teve a impressão de que
a maioria queria dizer que ele também a amava. Jacks sempre
voltava, sempre protegia Evangeline. Mas também sempre a
abandonava.
Toda nervosa, ela pegou o vestido largado no chão. Foi aí
que viu um objeto no próprio braço.
Em volta do pulso direito havia um bracelete largo, de
vidro. Frio e transparente, feito um cristal. Quando tentou
puxá-lo, o bracelete não saiu do lugar.
À primeira vista, não tinha nenhum tipo de fecho e era justo
demais para Evangeline conseguir tirar passando por cima da
mão. Era como se tivesse sido soldado direto no pulso dela, de
alguma maneira.
O que Jacks fez?
Porque Evangeline sabia que aquilo era obra de Jacks. Só
podia ser isso. O Arcano havia planejado levá-la até ali e fazê-
la dormir com aquele pó dourado. Deve ter sido para conseguir
colocar o bracelete nela. Mas por quê?
Evangeline examinou aquele misterioso objeto de vidro. À
primeira vista, parecia ser liso. Mas, olhando bem, viu que era
gravado com delicadas flores de cerejeira, que davam a volta
no bracelete, como se fossem flores saindo da árvore.
Tentou recordar se já ouvira alguma lenda em que
aparecesse um bracelete como aquele, mas não conseguiu se
lembrar de nada. E, com ou sem bracelete, precisava sair dali.
Tinha que encontrar Jacks antes que Apollo a encontrasse.
Àquela altura, o príncipe com certeza ficara sabendo que ela
estava desaparecida e, provavelmente, havia mandado metade
de seu exército à procura dela.
Evangeline pôs o vestido às pressas. Pegou a capa, jogou
em volta dos ombros, cobriu o cabelo com o capuz e se dirigiu
à porta. Não tinha prestado muita atenção quando entrou ali, já
que estava mais concentrada no fato de estar envolvida pelos
braços de Jacks.
Reparou que a porta até que era bem bonita. Não era um
simples retângulo, tinha uma ponta na parte de cima. Era de
um tom de verde levemente desbotado, com uma linda pátina
dourada. A maçaneta também talvez fosse um tanto linda, mas
Evangeline não conseguia vê-la por causa das manchas de
sangue. Um sangue vermelho-escuro, com partículas douradas
e cintilantes, cobria toda a maçaneta.
De repente, voltou para a noite em que abrira o Arco da
Valorosa, quando encontrara o sangue de Jacks espalhado por
todas as pedras.
– Não, não, não… Isso não pode estar acontecendo de novo.
O fato de Evangeline ter se lembrado de tudo com tanta
clareza quase piorava a situação. Saber que aquilo já
acontecera antes. Saber que Jacks optara por mandá-la embora
de sua vida e depois sumira, sem que ela tivesse conseguido
dizer que o amava. Saber que o amor havia perdido, não
vencido.
As mãos de Evangeline tremiam quando ela girou a
maçaneta ensanguentada. E, depois, tremeram ainda mais.
Havia mais sangue do lado de fora do quarto, esparramado
pelo chão do corredor.
– Jacks! – gritou, desesperada. – Jacks…
A princesa se calou de repente, porque se lembrou de que
Jacks era um foragido. Queria encontrá-lo com urgência, mas
não queria alertar mais ninguém de que ele poderia estar por
perto.
Sem dizer mais nem uma palavra, desceu correndo a escada.
Agora que parara de gritar, conseguia ouvir a chuva batendo
nas paredes lá fora, mas tudo o mais estava mergulhado em
um silêncio muito estranho para uma estalagem onde havia
uma taverna. Um silêncio incômodo. Um silêncio exagerado.
O último passo que deu para descer a escada fez um ruído
que mais parecia um trovão. Evangeline sabia que algo havia
acontecido mesmo antes de encontrar os cadáveres.
Eram três. Três corpos sem vida, imóveis. A princesa os viu
antes de sua visão ficar turva, com bordas borradas e milhares
de pontinhos pretos no meio.
De pernas bambas, agarrou-se no corrimão para não cair.
Um ruído inaudível escapou de sua garganta. Um grito – uma
maldição. Não sabia que palavras haviam saído de sua boca
nem por quanto tempo ficou parada ali.
Em um estado letárgico, Evangeline se obrigou a verificar
se havia algum sinal de vida. Aproximou-se primeiro da
taverneira, que estava deitada tão perto da porta que dava a
impressão de ter tentado fugir antes de ter a garganta
dilacerada. Os outros dois cadáveres estavam perto da lareira,
e ela achou que ambos haviam sido pegos de surpresa.
Parecia que um animal selvagem atacara aquelas pessoas,
mas Evangeline sabia que não havia sido isso, agora que
recobrara todas as suas lembranças.
Aquilo era obra de um vampiro.
Talvez ela tenha sido poupada por causa de Jacks – mas, se
tinha sido isso mesmo, onde o Arcano estava? Por que havia
sangue dele no quarto? E o corpo do Príncipe de Copas não
estava ali com os demais. A cabeça de Evangeline rodopiava,
com um milhão de perguntas, enquanto ela saía, cambaleando,
da taverna. Será que Jacks estava ferido? Morto? Será que fora
mordido?
Evangeline jurou que voltaria ali para cobrir os cadáveres
com lençóis e panos. Mas, antes, precisava encontrar Jacks,
urgentemente.
Lá fora, a chuva ainda caía sem cessar, aos borbotões. Só
conseguia enxergar poucos metros mais adiante, mas pensou
ter ouvido alguém se aproximar.
Um pássaro conhecido grasnou, e Evangeline ficou
petrificada na mesma hora.
Um segundo depois, um vulto começou a se aproximar dela
em meio à chuva. Um vulto que, definitivamente, não era de
Jacks.
Garrick, da Guilda dos Heróis, estava quase escondido pela
capa e pelo capuz que usava. Mas ela o reconheceu, por causa
daquele pássaro terrível, empoleirado em seu ombro.
Evangeline começou a andar para trás, tentando voltar para
a estalagem. Mas a trilha estava escorregadia. Seu pé deslizou.
– Está tudo bem, princesa. Não estou aqui para lhe fazer
mal. – Garrick, então, a segurou pelo braço, como se quisesse
impedir que caísse. – Vim aqui para salvar sua vida.
– Não preciso que ninguém me salve. – Evangeline tentou
se desvencilhar de Garrick. Mas o homem a segurava com
ferocidade, como se não se importasse de machucá-la: os
dedos apertaram tanto que deixaram marcas. – Senhor, me
solte.
– A senhora está toda molhada – resmungou ele. – Precisa
voltar lá para dentro.
Ela deu um passo. Mas aí se lembrou de que não era apenas
Evangeline Raposa, era a Princesa Evangeline Raposa.
– Você precisa me soltar agora – ordenou. – Ordeno que
você me solte.
O herói soltou um palavrão entredentes e falou mais alguma
coisa, que soou como “realeza inútil”.
– Desculpe, princesa, mas a senhora virá comigo e com os
meus homens.
Garrick estalou os dedos duas vezes, e outros vultos se
aproximaram em meio à chuva constante. Havia, pelo menos,
meia dúzia de homens, todos encobertos por capas iguais às de
Garrick. Mesmo assim, Evangeline não teve nenhuma
dificuldade para perceber que todos eram maiores do que ela.
Não poderia se livrar da situação lutando com aqueles
homens. Mas talvez conseguisse convencê-los a permitir que
fosse embora.
– Você não está entendendo. – Nesta hora, a princesa fincou
os pés no chão enlameado. – Dentro da estalagem não é um
local seguro. Vá ver com seus próprios olhos. Mas, por favor,
não me leve junto. Não consigo voltar para aquele lugar.
– Não se preocupe – respondeu Garrick. – Não existe local
mais seguro do que na nossa companhia.
– Então por que tenho a sensação de que sou sua
prisioneira? – protestou.
O homem soltou um suspiro, debaixo do capuz.
– Tudo bem, a senhora é nossa prisioneira. Mas isso não
quer dizer que eu não vou garantir sua segurança.
Evangeline continuou discutindo, mas Garrick a levou para
dentro da estalagem com toda a facilidade, seguido por seu
bando de “heróis”.
O ar tinha um cheiro fétido, metálico, de sangue, e fedia a
morte.
A taverneira ainda estava deitada no chão, congelada, na
mesma posição horripilante em que Evangeline a encontrara.
Os dedos de Garrick pressionaram o braço da princesa com
mais força. Foi o único indício de que ele talvez tivesse se
abalado com aqueles cadáveres.
O homem tirou o capuz. Era a primeira vez que Evangeline
o via sem máscara. Tinha um rosto belo, mas abrutalhado,
completamente desprovido de emoção.
E, em seguida, já estava dando ordens, aos gritos:
– Leif, Corvo, Thomas: vocês três vão lá para cima,
verificar os quartos. Ver mais quantas pessoas estão mortas.
De imediato os homens subiram as escadas, como se
marchassem, sacudindo a madeira, enquanto Garrick se dirigia
a Evangeline:
– A senhora viu quem fez isso, Alteza?
– Se quiser que eu responda às suas perguntas, terá que me
soltar.
– Não precisamos dela. Deve ter sido Lorde Jacks – disse
um dos homens de Garrick que continuava no térreo.
– Não – respondeu a princesa, na mesma hora, olhando feio
para o homem. – Não foi Jacks.
– Minha esposa está, obviamente, atordoada – disse uma
voz que, na mesma hora, fez a pele de Evangeline ficar toda
arrepiada.
Apollo estava ali. Ela estava escutando os passos do
príncipe vindo na direção dela. E então sentiu a mão dele roçar
na base da sua coluna.
Evangeline virou para o lado e deu um tapa bem forte no
rosto de Apollo. O ruído que sua mão fez ao bater no rosto do
príncipe ecoou pela estalagem – um ruído alto, de ossos se
partindo, satisfatório.
“Seu verme, principezinho detestável convencido e
covarde”, pensou, ao ver a pele de Apollo ficar com um tom
inflamado de vermelho.
Evangeline não disse para Apollo que sabia de tudo o que
ele havia feito. Não disse que sabia quem o príncipe realmente
era e que jamais seria dele. Teve vontade de dizer. Mas não era
tola a esse ponto. Ainda mais que Apollo estava cercado de
guardas e heróis, que poderiam subjugá-la facilmente, caso
começasse a brigar com o príncipe como se deve.
– Ai, Apollo! – exclamou, em vez de brigar. – Você me
assustou.
O príncipe massageou o próprio rosto.
– Não sabia que você era capaz de bater tão forte, minha
querida.
Disse essas palavras em tom de brincadeira, mas Evangeline
poderia jurar que o marido espremeu os olhos. Tentou se
convencer de que Apollo não teria como saber que ela havia
recobrado suas lembranças.
E foi aí que Evangeline se deu conta de que o príncipe
jamais poderia descobrir.
Ela precisava continuar fingindo e não só porque os guardas
e heróis mercenários de Apollo estavam ali. Se o príncipe
ficasse sabendo que Evangeline recuperara a memória poderia
simplesmente roubá-las de novo. Por fim ela entendera por
que o príncipe enviara médicos para verificar seu estado de
saúde todos os dias. Queria se certificar de que, se alguma
parte do passado da esposa começasse a vir à tona, poderia
simplesmente apagá-lo.
Apollo era terrível. Evangeline sabia que ele era terrível,
mas a magnitude da farsa elaborada pelo marido a foi
atingindo com uma força crescente. Ela queria bater na cara do
príncipe de novo, de gritar, berrar e descarregar sua raiva –
muita raiva – nele, mas precisava tomar mais cuidado.
E tinha que começar a fazer isso imediatamente.
Tentou se diminuir. Garrick, finalmente, havia soltado seu
braço, quando Apollo apareceu. Evangeline cruzou os braços
em cima do peito e baixou a cabeça, como se estivesse abalada
e assustada, coisa que deveria estar. Mas era tão difícil sentir
isso com toda aquela raiva pulsando dentro dela.
Foi ainda mais difícil falar bem baixinho:
– Eu também não sabia que conseguia bater tão forte. Mas
tudo isso é tão perturbador. Os cadáveres, o sangue. E por
acaso você ficou sabendo que o Lorde Belaflor matou Hale e
tentou me assassinar?
– Ouvi dizer.
Apollo abraçou Evangeline, mas o abraço foi apertado
demais. Sufocante de tão apertado.
– Está tudo bem, agora estou aqui – disse.
Evangeline disse a si mesma: Continue fingindo. Apenas
continue fingindo. Precisava abraçar o marido também e agir
como se estivesse aliviada, mas não sabia se conseguiria. Já
era bem difícil respirar normalmente com o corpo de Apollo
tão junto do seu.
Até que por fim o príncipe a soltou, mas continuou agarrado
nela. Passou o braço nos seus ombros com força, mantendo-a
perto de si. Evangeline ficou achando que o marido estava
sentindo que ela queria fugir. Tentou relaxar, mas as próximas
palavras que Apollo disse tornaram isso impossível.
– Vou tirar Evangeline daqui – declarou, dirigindo-se a
Garrick. – Você precisa encontrar Jacks antes que ele mate de
novo.
– Não foi Jacks quem fez isso – protestou Evangeline.
O príncipe ficou tenso no instante em que ela disse “Jacks”.
Evangeline pôde sentir o braço do príncipe ficando rígido em
volta de seus ombros.
Mas ela não retiraria o que disse. Tudo bem fingir que não
tinha recuperado suas lembranças e podia aguentar um abraço,
mas não ia permitir que Apollo culpasse Jacks por assassinatos
que ele não havia cometido. De novo, não. E muito menos
quando havia outro assassino à solta.
– Isso foi obra de um vampiro.
Apollo lançou um olhar breve e inquietante para
Evangeline, um olhar que parecia perguntar “E o que você
entende de vampiros?”. Em seguida, deu risada. Foi uma
risadinha baixa, mas suficiente para fazer as bochechas da
princesa ferverem, quando ele falou:
– Minha esposa, obviamente, está confusa, depois de tudo o
que passou.
– Consigo pensar com toda a clareza – protestou
Evangeline, calmamente. – Vi um vampiro na Floresta
Amaldiçoada.
O que era verdade. Não se dera conta na ocasião. Mas,
agora que recobrara as lembranças, mais coisas se
encaixavam. O Belo Desconhecido que vira na Floresta
Amaldiçoada era Caos. O rapaz havia lhe dito isso quando se
encontraram, mas Evangeline não lembrava quem ele era, por
isso não ligara os pontos de que ele era um vampiro e que, até
recentemente, usava um elmo que o impedia de se alimentar.
Agora entendia por que Jacks havia imobilizado o Belo
Desconhecido com tanta rapidez. Estava protegendo
Evangeline. Sempre estava protegendo Evangeline.
E Evangeline precisava protegê-lo.
– Sei que parece loucura – disse. – Mas tenho certeza de que
foi isso que vi. Vi um vampiro e ele não era nem um pouco
parecido com Lorde Jacks.
Repetiu um último “Jacks” só para ver Apollo se encolher
todo. Mas, desta vez, ele não se encolheu. Lentamente, seus
lábios foram esboçando um sorriso que fez Evangeline pensar
em alguém colocando uma máscara.
– Tudo bem, minha querida, acredito em você.
– Acredita mesmo?
– Claro. Só fiquei surpreso. Não é muito comum as pessoas
falarem em vampiros. Perdoe meu ceticismo inicial.
Apollo massageou os ombros de Evangeline e tornou a
olhar para Garrick.
– Lorde Jacks continua sendo a prioridade. Mas diga para
seus homens também procurarem por Lucien, o herdeiro
impostor. Alerte que ele é um vampiro e entrou em uma onda
de matança.
Evangeline segurou o ímpeto de esboçar reação. Tentou,
com todo o cuidado, fazer uma cara de paisagem, inocente,
seja lá que cara deveria fazer. Precisava fazer cara de garotinha
sem nenhuma lembrança e não de uma mulher que acabara de
ouvir o marido mentiroso e enganador acusar seu primeiro
amor de assassinato.
– Esse tal herdeiro – disse, baixinho, torcendo para que seu
tom fosse de mera curiosidade. – Como ele é? Ouvi dizer que
é jovem e extremamente belo.
Apollo fez uma careta ao ouvir a palavra “belo”, mas
Evangeline continuou falando, como se não tivesse percebido.
– Todas as minhas criadas falaram que ele era devastador de
tão atraente. Mas o vampiro que fez isso, o vampiro que eu vi
na floresta – nesta hora, ela estremeceu –, era velho e
monstruoso.
Evangeline sentiu uma pontada de culpa por ter contado
essa mentira. Mas sabia que, se tentasse descrever Caos,
Apollo provavelmente iria distorcer suas palavras, para que
ainda parecesse que estava falando de Luc, já que ambos os
vampiros eram jovens, tinham cabelo escuro e eram belos.
– Evangeline, minha querida – disse Apollo. – Os vampiros
ficam diferentes depois que se alimentam. Sei que você acha
que o vampiro que fez isso era um monstro velho, mas
vampiros são muito raros. Tenho certeza de que, se foi mesmo
um vampiro que você viu, foi o herdeiro impostor. A menos
que você não tenha certeza de que era um vampiro…
Cretino. Assassino. Monstro.
Evangeline tinha vontade de gritar um “eu te odeio” bem
alto. Mas contar para Apollo como estava se sentindo naquele
exato momento não ajudaria Luc nem Jacks. Em vez disso,
falou a única coisa que teve coragem de dizer:
– Tenho certeza de que era um vampiro.
E torceu, desesperada, para que Luc estivesse em algum
lugar seguro, bem longe dali.
31
Evangeline

E
vangeline só precisava sobreviver àquele trajeto de
carruagem.
Era só um trajeto de carruagem.
O último trajeto de carruagem.
Assim que chegasse ao Paço dos Lobos, fugiria usando as
passagens secretas sobre as quais Apollo havia lhe contado
antes de os dois se casarem. Agora que havia recobrado suas
lembranças, recordava das passagens. Só precisava esperar até
escurecer, quando o castelo inteiro dormiria. Aí iria embora e
tentaria encontrar Jacks.
Não, ela se corrigiu, não tentaria. Encontraria Jacks. Não
tinha a menor importância o fato de não fazer ideia do
paradeiro dele, de por que a abandonara nem por que colocara
aquele bracelete de vidro em seu pulso.
Evangeline queria examinar o bracelete de novo. Devia ser
importante, já que Jacks se dera ao trabalho de colocá-lo nela.
Provavelmente era mágico. Mas, até aquele momento, o
bracelete não tinha feito nada de espetacular – ou melhor: não
havia feito nada de nada.
A princesa manteve o bracelete escondido por baixo da capa
enquanto a carruagem se dirigia ao Paço dos Lobos. Mas ela
começou a achar que estavam tomando outro rumo.
Evangeline não sabia muita coisa a respeito da geografia do
Norte. Mas sabia que o Paço dos Lobos ficava ao sul. E podia
dizer, pela direção da luz do sol acima de toda a vegetação do
Norte, que a carruagem seguia em direção ao oeste, em
direção a um lugar que ela não conhecia.
Viu apenas campos verdejantes e árvores repletas de folhas
novas.
Quando deu por si, estava se agarrando ao assento de veludo
vermelho, esperando que a estrada fizesse uma curva voltando
para o sul. Mas o caminho continuou reto, feito um caule de
trigo.
Até aquele momento, a princesa ficou tentando olhar pela
janela e não para Apollo. Não sabia se conseguiria olhar para
ele por muito tempo sem deixar que seus verdadeiros
sentimentos transparecessem. E também não queria vê-lo. Já
era doloroso demais ficar ali, sentada, tão perto do homem que
arrancara suas lembranças e reescrevera sua história. Não
queria olhar para a cara de Apollo. Mas, por fim, se virou.
O príncipe estava sentado bem na frente de Evangeline.
Estava com os dedos unidos, o queixo apoiado nas mãos e a
olhava com o mesmo afinco que ela dedicara para não olhar
para ele.
Um arrepio percorreu a espinha de Evangeline, ao pensar
que Apollo poderia ter passado aquele tempo todo olhando
para ela daquele jeito. Como se soubesse que ela guardava um
segredo.
– Está tudo bem, querida? Você me parece um pouco
nervosa.
– Só estava tentando descobrir para onde vamos. Pensei que
o Paço dos Lobos ficava ao sul.
– E fica. Vamos nos hospedar em outro lugar por um tempo.
“Um tempo” poderia muito bem ser “uma eternidade”, no
que dependesse da sensação que Evangeline teve ao ouvir
essas palavras. Ela sabia como fugir do Paço dos Lobos, mas
seria muito mais difícil fugir de outro lugar.
– E onde fica esse outro lugar? – perguntou.
– Bem aqui.
Apollo apontou pela janela, com um gesto afetado, quando a
carruagem passou por uma tabuleta excessivamente simpática,
enfeitada com uma fita verde alegre, onde estava escrito:

Assim que Evangeline viu a tabuleta, suas lembranças


entraram em colisão com a realidade. Lembrou-se de ter
passado por aquele vilarejo e pela floresta adjacente a cavalo,
com Jacks. O lugar era a própria definição de desolado, sem
esperança, sem vida e sem cor. Mas, agora, pulsava de vida.
De dentro da carruagem, a princesa olhou para a praça
principal. Viu sopradores de vidro, ferreiros, homens com
machados, mulheres com martelos, todos trabalhando debaixo
de fios coloridos de bandeirolas, lampiões e fitas, enfeitando
os estabelecimentos em processo de reforma.
Mesmo com a porta da carruagem fechada, Evangeline
ouvia a melodia de pássaros cantando, crianças dando risada e
pessoas trabalhando duro.
– Agora que a Caçada chegou ao fim – explicou Apollo – a
família Vale vai organizar um festival para incentivar as
pessoas a ajudá-los a reconstruir a Quinta do Arvoredo da
Alegria e o vilarejo adjacente. Era deste evento que estavam
falando na noite do banquete. Prometeram dar terras, casas e
emprego para todos que ajudarem. É uma antiga tradição
contar com o apoio das demais Grandes Casas, que armam
barraquinhas e patrocinam jantares e bailes todas as noites.
Enquanto o príncipe falava, a carruagem se afastou da praça
e não demorou para ficarem diante de um círculo de tendas
reais, cor de vinho tinto. A atmosfera ali não era tão alegre
quanto a do vilarejo. Tinha muito mais soldados do que
bandeirolas.
Evangeline ficou tensa ao ver todos aqueles soldados. Eram
tantos que perdeu a conta, pareciam formigas infestando um
piquenique. Como temia, seria muito mais difícil escapulir dali
sem ser notada. Mas daria um jeito.
Os guardas se afastaram, abrindo espaço para a carruagem
chegar ao centro das tendas reais, onde havia soldados
duelando e carne sendo assada em fogos de chão.
– Mais parece que seus guardas estão se preparando para
uma batalha e não para um festival – comentou Evangeline.
– É isso que os soldados fazem – respondeu Apollo,
friamente.
A carruagem parou diante da tenda que era o equivalente a
um castelo. Tinha detalhes dourados e torres nas duas laterais,
ambas exibindo bandeiras com o brasão real de Apollo.
Todos os guardas fizeram reverência para o príncipe quando
ele saiu da carruagem seguido de Evangeline. Imediatamente
Apollo entrelaçou os dedos nos dela, mas ela poderia jurar que
o príncipe apertou sua mão com mais força do que de costume.
Evangeline respirou, mas não fundo, e tentou se lembrar de
que só precisava desempenhar seu papel, fingir que nada havia
mudado. Desde que Apollo não suspeitasse que recuperara
suas lembranças, ela conseguiria fugir.
– Princesa Evangeline! – exclamou uma voz melodiosa.
E, segundos depois, Aurora Vale apareceu, atravessando
com passos elegantes a fileira de guardas. Estava usando uma
coroa feita de flores no cabelo violeta. O diadema era
composto por botões de rosas, ranúnculos e estrelas-do-
pântano brancas, deixando um rastro de pétalas por onde ela
passava.
Evangeline poderia jurar que mais pássaros apareceram
naquele momento, só para poder cantar para Aurora.
– Fico tão feliz de ver que você está bem! Passei os dois
últimos dias tão preocupada – declarou, com um tom de
ternura. – Mas eu sabia que o seu querido príncipe iria trazê-la
de volta. E até fiz isso para você, para te entregar quando isso
acontecesse.
Ela presenteou Evangeline com uma coroa feita de flores
igual à que estava usando.
– Obrigada – disse a princesa, apesar de ainda não confiar
em Aurora.
Consultou suas lembranças recém-recobradas, para saber se
tinha conhecido Aurora no passado. Mas só encontrou outra
lembrança da Grota. Da primeira manhã que passou ali, bem
ao lado do relógio que batia as refeições, gravados na madeira,
avistou dois nomes:

Será que era por isso que Evangeline não gostava de Aurora
Vale? Porque a garota tinha o mesmo nome de uma pessoa que
morrera há muito tempo e, um dia, nutrira sentimentos por
Jacks?
– Todas as festividades terão início amanhã – Aurora
continuou tagarelando alegremente. – E será muito divertido
contar com a sua presença. Teremos todo tipo de barraquinhas,
gostosuras e coisas bonitas. Você pretende participar do
festival, não é mesmo? Todos os meus irmãos querem
trabalhar, mas eu sou péssima no quesito reforma e
construção.
– Na verdade, acho que será muito divertido ajudar na
reconstrução – disse Evangeline.
Apollo deu risada.
O som dessa risada deixou Evangeline toda arrepiada. A
princesa tentou se convencer a não brigar com ele, a não fazer
nada que deixasse Apollo desconfiado. Mas não pôde resistir a
se virar para o príncipe e perguntar:
– Você não acha que eu poderia ajudar na reconstrução?
– Eu só acho que você seria mais útil em outras coisas,
minha querida.
– Como o quê? – interveio Aurora. – Acho que ajudar na
reconstrução deve ser pavoroso, mas não foi para isso que
todos nós viemos até aqui? Você teme que sua esposa seja tão
frágil e delicada que, se pegar em um martelo, vai se
machucar?
O príncipe cerrou os dentes e retrucou:
– Não falei que minha esposa é frágil e delicada.
– Então, talvez não deva tratá-la como se fosse nem dar
risada dos desejos dela – alfinetou Aurora.
Apollo ficou com um olhar sinistro.
Os guardas ao redor dos três ficaram tensos, parecendo
estátuas. Até os pássaros pararam de cantar.
Evangeline abriu a boca para dizer alguma coisa – qualquer
coisa. Aurora não fazia ideia do quanto Apollo podia ser cruel
e, como ela acabara de defendê-la, teve vontade de protegê-la.
Mas, para sua surpresa, o príncipe conteve aquele olhar e
baixou a cabeça.
– Você tem toda a razão, srta. Vale. Eu não deveria ter dado
risada da minha esposa.
– Não, não deveria mesmo – censurou Aurora.
E foi a coisa mais estranha do mundo. Poucos segundos
antes, Evangeline teve medo dela, mas agora sentia que o
poder mudara de mãos.
Apollo estava com cara de quem tinha medo de Aurora.
A princesa poderia até achar que estava vendo coisas. Mas
Evangeline poderia jurar que, quando Aurora foi embora –
depois de ter declarado que trabalharia na reconstrução com
ela –, passou, disfarçadamente, um bilhete para Apollo.
Isso aconteceu quando o príncipe deu um beijo na mão dela
para se despedir. Evangeline avistou o papel enrolado por
apenas um segundo. Depois, achou que ele escondera o bilhete
dentro da manga. Porque, quando a princesa tornou a olhar, o
minúsculo pergaminho havia sumido.
32
Apollo

Q
uando Apollo conheceu Aurora Valor, pensou que ela
era um anjo. Aurora era linda, e ele se sentiu mais um
fantasma do que um príncipe.
Naquela noite, o príncipe tinha acabado de ser enjaulado em
cima de uma cama, no covil subterrâneo de um vampiro.
Evangeline havia trancafiado Apollo na jaula depois que ele a
beijou, perdeu o controle em seguida e quase a matou.
Quando a esposa foi embora, deixando Apollo ali, preso
naquela jaula, o príncipe achou que os vampiros iriam matá-lo
e quase teve vontade de morrer. Era um homem amaldiçoado,
amaldiçoado de verdade – não do jeito que as pessoas dizem
que são amaldiçoadas quando apenas são azaradas.
Uma única maldição, e Apollo poderia realmente ter ficado
feliz com isso. Príncipes amaldiçoados uma única vez podem
se tornar lendas, só que Apollo fora amaldiçoado três vezes e
quase assassinado outras tantas – uma delas, pelo próprio
irmão.
Estava disposto a permitir que os vampiros sugassem todo o
seu sangue, desde que fosse rápido. Mas aí uma mulher entrou
no quarto. O príncipe não sabia o nome dela, não naquele
exato momento, de todo modo. Só fechou os olhos e ficou
esperando que ela o mordesse. Só que aquela mulher não era
um vampiro. Aquela mulher era Honora Valor e, de algum
modo, curou Apollo da maldição do Arqueiro e da maldição
espelhada. Mas foi uma daquelas situações em que o remédio,
no primeiro momento, causa uma sensação quase tão ruim
quanto suas aflições.
Os métodos de cura deixaram Apollo subitamente sem
nenhum tipo de amarra. A conexão que tinha com Evangeline
fora cortada, e o príncipe a queria de volta. Não queria ser
amaldiçoado, mas queria a princesa: o desejo não tinha ido
embora junto com as maldições.
Pelo contrário: ele a desejava ainda mais. Agora que não se
sentia mais compelido a feri-la, a caçá-la, poderia, finalmente,
tê-la para si.
Mas sabia que isso não seria tão simples. Não seria nada
simples.
Por quase toda sua vida, Apollo sempre teve o que queria.
Sendo príncipe, mal dava tempo de desejar alguma coisa.
Estava acostumado a pegar e a ganhar. Mas, pela primeira vez,
Apollo temia a possibilidade de não ter o que queria.
Tentara matar Evangeline. Havia flechado e estrangulado a
esposa. Os hematomas causados por suas mãos ainda deviam
estar no pescoço dela.
Torcia para que ela o perdoasse. Ele estava amaldiçoado.
Não teve como evitar. É claro que Evangeline compreenderia.
Mas e se a princesa jamais esquecesse do que ele havia feito?
E se, toda vez que tentasse beijá-la, a lembrança de que
Apollo havia tentado matá-la viesse à tona?
E ainda havia a questão de Lorde Jacks. O ex-amigo de
Apollo.
O príncipe jamais havia competido com outro homem.
Quem competiria com um príncipe que seria rei? Mas, quando
Apollo tentou matar Evangeline, viu o modo como ela olhou
para Jacks quando ele entrou correndo no quarto para salvá-la.
Como se ele fosse seu salvador, seu herói.
Algo havia mudado entre os dois.
E Apollo não sabia o que fazer a respeito disso.
Antes de ir embora, Honora ergueu as grades da jaula. O
príncipe estava livre para ir aonde bem entendesse. Só que não
conseguiu se mexer. Estava nervoso demais e tinha medo de
sair daquele quarto.
E foi aí que Aurora apareceu perto da porta, feito um anjo.
Ela não era apenas linda, era etérea, e tinha uma voz meiga
que disse todas as palavras que Apollo queria ouvir.
– Um homem tão lindo quanto você jamais deveria ficar
com uma expressão tão triste –, disse Aurora na ocasião.
E ela sabia de coisas que aconteceram com ele, não só o fato
de ele ser príncipe – coisa que todo mundo sabia. Sabia da
maldição do Arqueiro, que o obrigara a caçar a própria esposa.
– Posso te ajudar a consertar as coisas – prometera Aurora.
Em seguida, lhe ofereceu um elixir. — Se beber essa poção,
terá, por um curto período, o poder de apagar todas as
lembranças dela. Você pode recomeçar do zero. Pode remover
todas as lembranças que quiser e reescrever uma nova história.
Apollo deveria ter feito mais perguntas.
Mas não queria saber das respostas. Bebeu o elixir e se
arrependeu na mesma hora.
Como pôde considerar a possibilidade de apagar as
lembranças de Evangeline? Não queria fazer aquilo. Esperou o
poder perder o efeito. Mesmo naquele estado sem eira nem
beira, Apollo sabia que seria uma agressão imperdoável.
Só que aí saiu da cela e deu de cara com Evangeline, que
olhava para ele com um ar de despedida. Disse que gostaria
que Jacks não exercesse tamanho controle sobre ela e, depois,
disse para Apollo que sentia muito.
Evangeline estava escolhendo ficar com Jacks.
Evangeline estava fazendo a escolha errada.
Evangeline fora enganada, assim como Apollo, quando
achou que Jacks era seu amigo.
O príncipe precisava detê-la. Precisava salvá-la.
Não queria que Evangeline sofresse. Tentou fazer aquilo
causando o mínimo de dor. Ficou abraçando a esposa enquanto
ela chorava e prometeu, em pensamento, que os dois criariam
outras lembranças juntos. Lembranças lindas, extraordinárias.
E prometeu que jamais tornaria a fazer algo semelhante com
Evangeline.
E também achou que não voltaria a ver o anjo. Muito menos
que ela, por acaso, fosse Aurora Valor.
Como todo mundo do Norte, Apollo achava que a família
Valor estava morta. Quando Honora Valor o curou, o príncipe
não sabia quem era aquela mulher.
Foi só mais tarde, depois de ter roubado as lembranças de
Evangeline e fugido para a Valorosa, que Apollo viu todos os
integrantes da família Valor e começou a entender a magnitude
do que havia acontecido.
Os Valor não tinham sido decapitados, como as histórias
contavam. A família inteira estava viva e permanecera em um
estado de sono suspenso por centenas de anos. Eles é que eram
o verdadeiro tesouro escondido atrás do Arco da Valorosa.
Lobric e Honora garantiram para Apollo que não estavam
ali para roubar seu reino ou sua coroa. Mas quando viu a filha
deles, Aurora, o príncipe só conseguiu ouvir, na verdade, o
sangue correndo para os seus ouvidos.
Aurora piscou, como se tudo aquilo não passasse de uma
grande brincadeira, e Apollo ficou estático, parado no lugar
feito uma criança.
– Tudo o que queremos agora é um lugar para viver
tranquilamente – disse Lobric. – Ninguém precisa saber que
voltamos.
Se Apollo estivesse em pleno poder de seus sentidos,
poderia, imediatamente, ter dito algo do tipo “concordo
plenamente” e depois ter despachado a família para algum dos
cantos mais recônditos do Norte, onde ninguém jamais
tornaria a vê-los.
Mas aquela era a família Valor, o príncipe estava
embasbacado de vê-los com vida, e a filha do casal sabia qual
era o segredo mais terrível dele.
Os lindos olhos de Aurora se fixaram em Apollo:
– E se você simplesmente nos der o status de Grande Casa?
Podemos adotar outro sobrenome. Vale, por exemplo.
Apollo ficou esperando Lobric objetar. Grandes Casas não
são tranquilas. Mas, ao que tudo indicava, o homem, na
verdade, não queria viver tranquilamente.
– Acho que poderia dar certo. O que você me diz, meu
amor? – perguntou Lobric, olhando para a esposa, que
concordou.
– Desde que nossa verdadeira identidade seja mantida em
segredo – respondeu Honora. – Não quero repetir o passado.
Ao lado da mãe, Aurora deu um sorriso, como se já
estivesse tudo certo. E aí os demais filhos do casal, que eram
todos impressionantes, começaram a balançar a cabeça e a
sorrir.
Como Apollo poderia dizer não?
Ouviu a própria voz falando:
– Ótimo. Posso presenteá-los com algumas terras. Uma
quinta, um vilarejo, uma floresta. Precisam ser reconstruídas.
Mas, depois que eu conceder à família de vocês o status de
Grande Casa, todas as demais vão se unir para ajudá-los. Só
preciso de um tempinho.
– Não demore muito – interveio Aurora, com um tom
meigo.
E, assim que ela piscou novamente, o príncipe teve certeza
de que acabara de fazer um trato com um demônio, não com
um anjo.
O coração de Apollo batera forte ao sentir que Aurora lhe
passava, disfarçadamente, um bilhete. O príncipe havia
escondido o pergaminho dentro da manga o mais rápido que
conseguiu, mas ficava enjoado só de saber que aquele bilhete
estava ali.
A última exigência de Aurora foi pedir para ser apresentada
a Evangeline.
– Não faça essa cara tão preocupada, Alteza – dissera ela,
toda meiga. – Só quero ser amiga da princesa. Fiquei
trancafiada por muito tempo, e todas as minhas amigas
morreram.
Apollo não acreditou muito que Aurora só queria ser amiga
de Evangeline, mas sabia que não conseguiria recusar o
pedido. Também sabia que seria incapaz de recusar qualquer
pedido que ela lhe fizesse naquele dia. Será que ele
conseguiria ignorar o bilhete dela por alguns instantes?
Precisava passar um tempo a sós com a esposa.
Apollo ficou observando Evangeline com toda a atenção
quando os dois entraram na tenda. Alguém havia estendido
tapetes cor de vinho bordados de ouro no chão e acendido
velas de cera de abelha ao lado das almofadas e peles que
fariam as vezes de cama. Ao lado dessas almofadas, havia uma
mesa baixa, repleta de frutas, queijos e cálices de vinho.
E, apesar de tudo isso, Evangeline ficou parada logo depois
da abertura da tenda. Não pegou comida da mesa, não se atirou
nas almofadas nem sequer tentou tirar a capa empapada de
chuva.
– Onde você vai ficar? – perguntou ela.
– Vamos ficar na mesma tenda – respondeu Apollo,
baixinho, posicionando-se atrás da esposa. – Assim posso te
proteger. – E enlaçou a cintura de Evangeline com os braços.
Ela ficou rígida quando as mãos do príncipe encostaram
nela.
Isso foi só por um segundo. Evangeline ficou tensa e, em
seguida, deu a impressão de se derreter toda nos braços de
Apollo.
O príncipe afastou o cabelo dela para o lado e a beijou no
pescoço.
Mais uma vez, a esposa ficou tensa. Desta vez, não relaxou.
Apollo precisava soltá-la. Ela estava com medo. O príncipe
percebera algo parecido lá na estalagem, onde a encontrara,
mas só teve certeza naquele momento. Ficou com os lábios
pairando no pescoço da princesa, tão perto que conseguia
sentir a pulsação acelerada sob os seus lábios. Em seguida,
ouviu Evangeline respirar fundo.
Apollo soube mais uma vez que deveria soltá-la, mas não
conseguiu. A pulsação acelerada da jovem disparou algo
dentro do príncipe, um ímpeto de segurá-la em seus braços, de
abraçá-la até que ela não quisesse mais escapar.
– Achei que tínhamos deixado de lado essa bobagem de
você não agir como minha esposa.
Apertou os braços em volta dela e…
Doeu! A dor foi súbita, intensa, tão forte que Apollo não
conseguiu mais abraçá-la. Dobrou o tronco. A visão ficou
turva e cheia de pontinhos.
Parecia que alguém havia cravado uma faca em brasa em
suas costelas e depois girado. Mas, com a mesma rapidez que
sentiu aquela pontada aguda de dor, deixou de sentir.
Quando Apollo conseguiu enxergar de novo, Evangeline
estava olhando para ele com uma expressão de pavor
diferente.
– Você está bem, Apollo? O que aconteceu? – perguntou,
com as duas mãos no coração.
Foi aí que o príncipe reparou no bracelete. Era feito de
vidro. Talvez por isso Apollo não reparara nele antes. Poderia
até nem ter reparado, caso a joia não tivesse um brilho fraco,
iluminando palavras em uma língua que ele não conseguiu
decifrar, mas tinha o receio de que sabia o que aquelas
palavras significavam. O que aquele bracelete realmente era.
Teve vontade de perguntar onde Evangeline o encontrara,
como se tornara seu, por que o usava e se sabia o que aquele
bracelete fazia. Mas supôs que ela não fazia ideia do que era e
não queria chamar a atenção para aquele objeto. Também
torceu para estar enganado.
Porque, se Apollo tivesse razão – se aquele fosse o bracelete
de proteção perdido de Vingança Massacre do Arvoredo –,
significava que o príncipe estivera prestes a machucar a
esposa.
Apollo precisava dar um jeito de se controlar.
– Estou bem – disse ele e se afastou lentamente da princesa.
– Só acabei de me lembrar de algo importante que preciso
resolver.
– O quê? – perguntou Evangeline.
– Assuntos chatos de príncipe. Não se preocupe. Volto logo.
Poderia ter tentado dar um beijo de despedida nela, mas não
confiava em si mesmo. E tinha mesmo um assunto que
precisava resolver.
Assim que saiu da tenda, Apollo tirou da manga o bilhete
que Aurora Valor lhe dera.

Em vez de assinar o próprio nome, Aurora desenhara um


lobo com uma coroa feita de flores.
O príncipe queimou o bilhete na primeira fogueira que viu
pela frente.
Apollo chegou à encruzilhada antes da hora. Queria resolver
aquele assunto com Aurora o mais rápido possível.
Fora até ali a cavalo e se surpreendeu ao ver como a
Floresta de Arvoredo da Alegria já havia mudado. Musgo
cobria as pedras. Folhas novas cresciam nas árvores. Apollo
até ouviu os ruídos de seres vivos – cervos, pássaros e grilos.
A Floresta do Arvoredo da Alegria renascera desde que a
família Valor havia voltado. Não parecia mais aquele lugar
assombrado, do qual o príncipe tinha medo quando era criança
– e, apesar disso, Apollo jamais vira o próprio cavalo ficar tão
agitado. Depois que ele amarrou o animal a uma árvore que
ficava no limite entre a Floresta do Arvoredo da Alegria e a
estrada úmida que levava à Floresta Amaldiçoada, o cavalo
bateu os cascos e relinchou. O príncipe tentou dar uma maçã a
ele, mas o cavalo derrubou a fruta de sua mão.
Pensou que o animal poderia estar irritado porque estavam
muito próximos da estrada encantada que levava à Floresta
Amaldiçoada. Ou talvez fosse porque Aurora Valor havia
chegado.
Aurora, claro, continuava parecendo um anjo e se
aproximou de Apollo montada em um cavalo que, sob a luz do
luar, dava a impressão de possuir um brilho prateado.
– Não faça essa cara de mau humor. Não é nada atraente –
censurou, antes de descer do cavalo. – E, quer acredite, quer
não, príncipe, estou aqui para te ajudar.
– Como da última vez que você me ajudou?
– Evangeline é sua, não é?
– Por ora – resmungou Apollo. – Começo a temer que
algumas lembranças de minha esposa possam estar voltando
aos poucos.
Aurora terminou de amarrar o cavalo a uma árvore. Ao
contrário da montaria de Apollo, o cavalo dela parecia estar
absolutamente feliz.
– Por que você diz isso?
– Ela está estranha. Você ainda tem aquele elixir das
memórias? – perguntou Apollo.
E se odiou por ter perguntado.
Aurora deu uma risada debochada e se aproximou,
arrastando as longas saias prateadas no chão da floresta.
– Você acha que foi fácil conseguir aquela poção?
– Você é da família Valor.
– Sim. Mas nossa magia não é ilimitada. Você, por acaso,
pensa que eu ando por aí carregando frascos de magia?
– Carregava, naquele dia.
Aurora apertou os lábios por breves instantes.
– Você quer continuar a fazer perguntas bobas, príncipe? Ou
gostaria de se tornar o tipo de homem cuja esposa jamais terá a
audácia de abandonar?
33
Evangeline

D
epois que Apollo a deixou a sós na tenda, Evangeline
examinou o bracelete de vidro que tinha em volta do
pulso. Era mágico. Supunha que era, mas só soube o
que aquela joia podia fazer depois que viu Apollo se encolher
todo de dor.
Aproximou o vidro da luz das velas. Vira palavras curiosas
se acenderem no bracelete quando o príncipe estava todo
encolhido. Mas não estava conseguindo fazer aquelas letras
reaparecerem: só conseguia ver as florzinhas de cerejeira
gravadas no vidro.
Evangeline ficou imaginando que alguém poderia ter
encantado o bracelete com um feitiço específico contra Apollo
– poderia ser por isso que aquelas palavras estranhas haviam
aparecido, minutos atrás, quando o príncipe a abraçara contra a
sua vontade. A princesa tinha a impressão de que aquele seria,
precisamente, o tipo de encantamento que Jacks lançaria em
um objeto.
O que não compreendia era o porquê. Se o Príncipe de
Copas não queria que ela ficasse com Apollo, por que a havia
abandonado com o príncipe?
“Por que Jacks não me levou com ele?”, perguntou-se
Evangeline. Mas já sabia a resposta.
“Eu e você não nascemos para ficar juntos. Desculpe
acabar com seu conto de fadas, Raposinha. Mas baladas não
têm final feliz, e nós dois também não teremos.
Todas as garotas que beijei morreram. Menos uma. E você
não é essa garota.
Quero apagar cada instante que eu e você passamos
juntos… Porque, se não fizer isso, vou te matar, assim como
matei a Raposa.”
Jacks já havia lhe explicado todos os motivos que tinha para
abandoná-la.
E o último motivo que Evangeline recordou a fez parar para
pensar. O Príncipe de Copas queria que ela encontrasse todas
as pedras do Arco da Valorosa. Não para conseguir abrir a
Valorosa, mas para poder usá-las para voltar no tempo e ficar
com Donatella, a única garota que beijou e não matou. Mas
Jacks não fez isso. Se tivesse feito, Evangeline não teria se
reencontrado com o Arcano: ele estaria com Donatella, em
Valenda, naquele exato momento.
O que havia acontecido, então? As pedras do arco eram
quatro. Cada uma tinha um poder mágico diferente. Mas,
quando as quatro eram combinadas, tinham o poder de voltar
no tempo. Mas só podiam ser usadas uma única vez para essa
finalidade.
Será que Jacks havia mudado de ideia e não queria mais
voltar no tempo? Será que estava esperando para usar as
pedras? Ou será que as pedras já haviam sido usadas?
Antes de Evangeline recuperar suas lembranças, Caos lhe
dissera: “Estou aqui porque um amigo nosso precisa de
ajuda… da sua ajuda. Ele está prestes a tomar uma péssima
decisão, e você precisa fazê-lo mudar de opinião antes que seja
tarde demais para salvar a vida dele”.
Óbvio que Caos estava falando de Jacks. Mas qual seria
essa péssima decisão?
Evangeline estava de coração partido e apavorada quando
ficou sabendo que Jacks queria voltar no tempo e mudar o
passado, para que os dois jamais tivessem se conhecido. Mas
tinha a impressão de que não era bem isso que o Príncipe de
Copas iria fazer – tinha a impressão de que era outra coisa.
Provavelmente, algo pior.
Precisava sair daquela tenda e encontrá-lo.
Chegou a considerar a possibilidade de atear fogo na tenda e
fugir em meio à confusão. Mas incêndios podem sair do
controle com a maior facilidade, e ela não queria que alguém
se ferisse.
A menos que esse alguém fosse Apollo. Queria, sim, feri-lo.
– Espero que você reconheça o trabalho que me deu para
conseguir entrar nessa tenda – disse uma voz
maravilhosamente conhecida, logo após a entrada da tenda de
Evangeline ter se fechado.
Nem ouvira a tenda se abrir, mas alguém deveria ter feito
isso. Uma garota vestida como um guarda estava parada no
meio da tenda, com as mãos na cintura, examinando aquele
local luxuoso e fazendo uma careta sarcástica com os lábios,
que estavam pintados com um gloss cintilante.
– LaLa! – exclamou Evangeline, alto demais. Mas não
conseguia conter a empolgação de ver a amiga. – O que você
está fazendo aqui vestida de guarda?
– Tentei te visitar muitas vezes, mas não permitiram. Davam
a desculpa de que você estava extenuada demais para ver
amigas, que bobagem. Aí, tive que improvisar uma fantasia.
LaLa rodopiou e, ao fazer isso, a saia abaixo do joelho se
ergueu só o suficiente para revelar que, por baixo daquele
tecido sem graça, cor de vinho, havia uma anágua de
lantejoulas cintilantes que brilhavam feito uma fogueira. Ela
também tinha colocado manguinhas bufantes no casaco cor de
bronze e um cinto da mesma cor, que estava amarrado nas
costas, com um laço.
LaLa era muitas coisas. Em primeiro lugar, Evangeline a via
como uma amiga. Sendo assim, às vezes ficava fácil esquecer
que ela também era um Arcano imortal, como Jacks.
LaLa era a Noiva Abandonada.
Certa vez, confessara para Evangeline que os Arcanos estão
sempre lutando contra o ímpeto de ser o que foram criados
para ser. LaLa tinha o ímpeto de tentar encontrar o amor.
Queria isso mais do que tudo, mesmo sabendo que jamais
duraria para sempre. Porque os amores de LaLa sempre
acabavam com ela sozinha em algum altar, chorando lágrimas
envenenadas. Porque, independentemente de quantos amores
encontrasse, o amor que ela queria era o seu primeiro amor –
um metamorfo que virava dragão e fora trancafiado na
Valorosa.
Para lidar com seus ímpetos de encontrar o amor, a Noiva
Abandonada costurava. Costurava muito. E costurava muito
bem.
– Sei que não é exatamente o mesmo uniforme – disse,
rodopiando a saia mais uma vez –, mas acho que o meu ficou
melhor.
– Adorei – disse Evangeline. – E adorei ainda mais ver
você.
Como recobrara a memória há menos de um dia, a princesa
não tivera tempo de sentir saudade da amiga como deveria.
Mas, agora que LaLa estava ali, Evangeline percebia que a
saudade sempre estivera presente, fazia parte daquele vazio
que sentia e só agora começava a ser preenchido. Abraçou a
amiga com tanta força que até poderia ter ficado com receio de
machucá-la, caso LaLa não fosse um Arcano.
– Cadê seu dragão? – perguntou.
Naquele momento, Evangeline se deu conta de que, apesar
de já recordar do momento em que abriu o Arco da Valorosa,
ainda não sabia exatamente o que havia lá dentro, tirando o
metamorfo de LaLa. Também não sabia se a amiga havia
reencontrado seu dragão ou não.
– Ah, ele está por aí – respondeu a Noiva Abandonada, de
forma evasiva, afastando-se de Evangeline. – Tenho certeza de
que você em breve irá conhecê-lo – completou. Mas disse isso
sem muita convicção, o que não era nem um pouco de seu
feitio.
LaLa podia até ser um Arcano e, portanto, suas emoções
não eram lá muito humanas. Mas Evangeline sabia que a
amiga, um dia, havia amado o metamorfo, amado ao ponto de
ter lançado a maldição do Arqueiro em Apollo, na esperança
equivocada de que, dessa maneira, poderia garantir que
Evangeline abrisse o Arco da Valorosa.
Na época, a princesa ficou bem magoada. Mas, assim como
LaLa, também já havia tomado péssimas decisões por causa
do amor.
– Está tudo bem? – Evangeline pegou na mão da amiga. –
Você está precisando conversar?
– Tudo bem, sério. É só que… – LaLa interrompeu a frase
para dar um suspiro. – O mundo mudou muito desde que Dane
foi trancafiado. E, pelo jeito, eu também mudei. Mas está tudo
bem. De verdade. Como é mesmo aquele ditado sobre o amor?
Sabe aquele, que fala de açúcar, fogo e o preço do desejo?
Evangeline fez que não.
– Acho que nunca ouvi.
– Bom, talvez esse ditado não seja lá grandes coisas. Bom,
não me entenda mal, amiga, estou feliz de você estar me
perguntando tudo isso. Mas estou perplexa. Pensei que você
tinha perdido todas as suas lembranças…
– E perdi – disse Evangeline, baixinho. – Acabei de
recobrá-las.
Então contou para a amiga, por alto, que havia sido Apollo
quem as roubara. Que tentou convencê-la de que Jacks era o
vilão e poderia ter conseguido, caso o Príncipe de Copas não
tivesse voltado diversas vezes para salvar a vida dela.
Evangeline contou para LaLa de todas as visitas que Jacks lhe
fizera e que seu coração se lembrava dele mesmo quando a
cabeça não lembrava. Até que, por fim, encontrou a carta que
escrevera para si mesma, que o Arcano levava sempre consigo,
perto do coração.
– Que coisa mais fofa e surpreendente – comentou LaLa.
– Também achei. Assim que li, finalmente consegui
lembrar. Isso foi ontem à noite… ou talvez tenha sido hoje
cedo. Estou meio perdida em relação ao tempo.
Evangeline deu um sorriso, mas foi um sorriso tímido.
Estava tão aliviada de ver a amiga. Só queria se jogar naquelas
almofadas da tenda e ficar conversando, sobre nada e sobre
tudo. Mas não tinha tempo para isso.
Muito menos se quisesse encontrar Jacks e tentar impedi-lo
de fazer aquilo que Caos havia alertado, seja lá o que fosse.
– Eu não queria vir para cá com Apollo. Mas, quando
acordei, Jacks tinha ido embora e, aí, Apollo apareceu, com
seus heróis, seus guardas e suas mentiras.
– Cretino – resmungou LaLa. – Sei que os príncipes são o
pior tipo de homem, mas eu tinha esperanças de que ser
amaldiçoado pudesse ter feito bem a Apollo.
– Eu acho que, do jeito dele, Apollo pensa que está fazendo
o bem.
– Mas você odeia o príncipe mesmo assim, certo?
– Claro! Eu não o suporto. Não consigo olhar para ele nem
ouvir o som da voz dele. Quero sair daqui antes que Apollo
volte, para nunca mais ter que vê-lo.
– Então vamos fazer isso. Apesar de que eu adoraria esperar
Apollo voltar, só para poder cravar uma faca no coração dele e
depois cozinhá-lo na fogueira. Mas suponho que eu possa
fazer isso outro dia – brincou LaLa. – Então, qual é o nosso
plano de fuga? – Nesta hora, os olhos da Noiva Abandonada
brilharam, e ela bateu palmas. – Faz tempo que não participo
de um duelo de espadas. Esse seria um plano bem divertido.
– Tragicamente, não sei usar uma espada – declarou
Evangeline.
– E aquelas aulas de autodefesa que você me contou? Jacks
te ensinou alguma coisa ou foi só uma desculpa para pôr as
mãos em você?
LaLa subiu e desceu as sobrancelhas, bem rápido.
Evangeline sentiu um calor no rosto.
– Ele me ensinou algumas coisas… mas, basicamente, teve
mais abraço.
– Foi o que eu pensei.
LaLa deu um sorriso, mas Evangeline pôde perceber que era
um daqueles sorrisos do tipo tentando-parecer-feliz-para-a-
amiga.
Só que, como LaLa era um Arcano, esse sorriso dava a
impressão de ser um tantinho mais perigoso. Era um sorriso
que também dava a entender: “Se ele te machucar, é só me
avisar que eu vou machucá-lo ainda mais, com o maior
prazer”.
Isso fez Evangeline recordar da última conversa que teve
com LaLa. Antes de perder suas lembranças, a amiga veio lhe
visitar para alertá-la a respeito do Príncipe de Copas.
“Enquanto estiver com Jacks, você corre perigo”, dissera ela.
– Você ainda acha que Jacks vai me fazer mal? – perguntou
Evangeline.
O sorriso forçado de LaLa se desfez.
– Jacks faz mal a todo mundo. Não é o mesmo desde o dia
em que meu irmão e Castor morreram e tudo no Norte foi por
água abaixo.
Por uma fração de segundo, parecia que LaLa não era um
Arcano. Ela não dava a impressão de ser cruel nem poderosa
nem que poderia matar alguém só porque essa pessoa a fizera
chorar. Simplesmente dava a impressão de ser uma pessoa que
precisava de uma amiga, tanto quanto Evangeline.
Além de ser um Arcano, LaLa também era um dos
primeiros integrantes da família Arvoredo da Alegria. O irmão
sobre o qual acabara de comentar era Lyric Arvoredo da
Alegria, que fora um dos melhores amigos de Jacks, assim
como o príncipe Castor Valor. Os dois morreram no mesmo
dia e, apesar de não ter sido culpa de Jacks, Evangeline sabia
que ele se culpava por não ter conseguido salvar a vida de
Castor.
– Se existe algo que pode causar uma mudança em Jacks,
acho que esse algo pode ser os sentimentos que ele tem por
você – declarou LaLa, por fim. – Mas, mesmo assim, você
precisa tomar cuidado. Porque até os sentimentos de Jacks são
perigosos.
– Eu sei.
– Sabe mesmo?
A Noiva Abandonada olhou para a princesa com uma
expressão séria, de preocupação, nos olhos vívidos.
Existem três regras a respeito dos Arcanos que Evangeline
aprendera quando era criança. A mais importante dessas regras
é jamais se apaixonar por um Arcano.
Ela sabia dessa regra, mas não pensava nela fazia um
tempo, e não tinha certeza de que a compreendera
corretamente.
Porém, agora, fazia todo o sentido, mas de um jeito
diferente. Há pouco, quando recobrou suas lembranças, mas
perdeu Jacks, começou a temer que, talvez, ele tivesse razão e
que os dois não haviam nascido para ficar juntos.
Se eles realmente tivessem sido feitos um para o outro,
aquilo tudo não deveria ser mais fácil? Não deveria ter havido
menos derramamento de sangue, menos desilusão e menos
gente tentando separá-los? O amor já não deveria ter vencido?
Vai ver que o motivo para existir a regra de não se
apaixonar por Arcanos não era porque amar um Arcano jamais
daria certo, mas porque era muito mais difícil. Quase
impossível.
Tudo o que LaLa mais queria era amar. E, mesmo assim, era
ela que não parava de abandonar os noivos no altar. Mesmo
agora, depois de ter finalmente reencontrado seu metamorfo, a
Noiva Abandonada dava a impressão de que não tinha certeza
se queria ou não ficar com ele.
Evangeline ouvira falar que os Arcanos não conseguem
amar do mesmo modo que os seres humanos amam. Imaginou
que isso queria dizer que os Arcanos não conseguem sentir
essa emoção. Mas pensara que também queria dizer que os
Arcanos não acreditavam no amor da mesma maneira que os
seres humanos. Talvez acreditassem que amar humanos era
algo fadado ao fracasso e, por isso, agiam de modo a causar
esse fracasso.
– Não vou desistir de Jacks – declarou Evangeline.
LaLa apertou os lábios por alguns instantes e disse:
– Que coisa mais humana de se dizer.
– Não sei se isso foi um elogio ou um insulto.
– Acho que foi um pouco dos dois. – LaLa, então, deu mais
um sorriso sem convicção. – Sei que você gosta de agir do
jeito certo, mas o correto nem sempre vence com seres da
nossa espécie. Acho que, em parte, foi por isso que Jacks se
tornou um Arcano. Sempre tentou agir corretamente quando
era humano, mas não fazia diferença, e as pessoas que ele mais
amava acabaram morrendo do mesmo jeito.
LaLa parou de falar, fez uma careta e prosseguiu:
– Quero te apoiar. Eu realmente amo causas perdidas e
péssimas ideias. Mas temo que, se você tentar salvar a vida de
Jacks, também vai morrer. Sei que você recuperou suas
lembranças. Mas, caso precise que alguém te relembre, Jacks é
um ser sobrenatural que vai te matar, caso você o beije um dia.
– Ou – sugeriu Evangeline – eu poderia beijar Jacks, e
assim ele poderia finalmente saber que não vai me matar.
– Não, não, não! – disse LaLa, furiosa. – Esse é o pior plano
do mundo.
– Mas e se não for? Sei que as histórias dizem que o beijo
de Jacks é fatal, a não ser para o único e verdadeiro amor dele.
E sei que, supostamente, Jacks já beijou esse único amor. Mas
também sei que as histórias daqui mentem e distorcem a
verdade, então isso pode ser mentira. Eu sou o verdadeiro
amor de Jacks. Acredito nisso com a mesma certeza que
acredito que a água enche os oceanos e a manhã se segue à
noite. Acredito nisso com todo o meu coração e com toda a
minha alma. E tem que haver alguma espécie de magia nisso.
– Acho que não é assim que a magia funciona. – Neste
momento, LaLa olhou para Evangeline com uma expressão
triste. – Acreditar em alguma coisa não a torna realidade.
– Mas e se o motivo para eu acreditar seja porque é a
verdade? Sei que todas as histórias dizem o contrário, mas
meu coração continua me dizendo que a história de Jacks não
chegou ao fim.
A Noiva Abandonada continuou de cenho franzido e ficou
mexendo em um dos botões do casaco.
– A história de Jacks pode até não ter chegado ao fim, mas
isso não significa que terá um final feliz. Conheço Jacks a vida
toda. Ele sabe muito bem como conseguir o que quer. Mas
acho que não quer um final feliz. Se quisesse, poderia ter. Mas
existe um motivo para não ter.
– Então, que bom que ele tem a mim.
LaLa fez cara de quem queria continuar discutindo.
– Sei que pareço ingênua – insistiu Evangeline. – Sei que a
fé que tenho no amor parece tola. Também sei que isso pode
não bastar. Mas não estou agindo porque acredito que vou
vencer. Na verdade, tenho um pouco de medo de perder. Não
acho mais que o amor é uma garantia de vitória ou de um final
feliz. Mas acho que é um motivo para lutar por essas coisas.
Sei que minha tentativa de salvar Jacks pode terminar em uma
explosão tremenda, mas prefiro pegar fogo com ele do que
ficar olhando Jacks arder em chamas.
Depois dessa, LaLa sorriu.
– Essa deve ser a pior declaração de amor que eu já ouvi na
vida, mas acredito, sim, que a sua paixão merece um brinde. –
Então pegou dois cálices de vinho da mesa e entregou um
deles para Evangeline. – Aos corações tolos e ao fogo! Que
você e Jacks só queimem de paixão e de desejo.
34
Evangeline

D
epois do brinde, as amigas talvez tenham bebido um
pouco mais de vinho do que deveriam.
Evangeline não tinha o costume de beber. E, apesar
de todas as palavras corajosas que havia dito para LaLa, estava
bem apavorada, achando que Jacks poderia abandoná-la
mesmo depois que ela dissesse que o amava.
Ela já havia sido transformada em pedra, envenenada,
flechada, açoitada por causa da magia de uma maldição e
quase assassinada mais de meia dúzia de vezes. Mas nada
disso lhe dava tanto medo quanto pensar que o Príncipe de
Copas poderia resolver que não queria retribuir seu amor.
Evangeline sabia que LaLa tinha razão, que Jacks sempre
conseguia o que queria. Quando se resolvia, não havia como
fazê-lo mudar de ideia. A única coisa que faria Jacks ficar com
Evangeline era o próprio Jacks.
– Está em dúvida? – perguntou LaLa.
– Não. Na verdade, tenho um plano de fuga.
Há pouco, enquanto a Noiva Abandonada mexia nos botões
do casaco, uma ideia que não envolvia espadas nem fogo nem
nada relacionado a enfrentamentos lhe veio à mente.
– Pode dar certo – disse LaLa. E ficou batendo os dedos no
queixo, pensativa, depois de ouvir a proposta de Evangeline. –
Você poderia sair pouco antes da troca dos guardas, quando
aqueles que estão saindo do serviço estarão cansados. Eu
poderia fugir pouco depois da chegada dos novos guardas.
Eles não terão nem ideia de que eu entrei aqui sem permissão.
Também estarão tão embasbacados com minha beleza que não
vão me questionar.
A cabeça da princesa girava de leve. Realmente bebera
vinho demais. Estava tudo meio enevoado ao vestir as roupas
de LaLa e a amiga escarafunchou os baús até achar um vestido
cintilante com decote ombro a ombro que ficou encantador
nela.
Depois disso, LaLa se deu ao trabalho de esconder o cabelo
de Evangeline com um quepe. Escureceu as pontas com um
pouco do vinho que havia na mesa, só o suficiente para mudar
a aparência da amiga à primeira vista.
– Se os guardas olharem muito, vão te reconhecer – advertiu
LaLa. – Então tente ser rápida… mas não rápida ao ponto de
levantar suspeitas.
– Acho que não estou em condições de ser rápida ao ponto
de levantar suspeitas nem se eu quisesse.
Mas tampouco podia se demorar muito mais tempo por ali.
A troca da guarda seria em breve. Se quisesse escapulir, aquele
era o momento.
– Vou estar logo atrás de você – garantiu LaLa. – E não se
esqueça disso.
A Noiva Abandonada, então, entregou para a princesa um
mapa que fizera da Floresta do Arvoredo da Alegria – que
consistia, basicamente, em um monte de triângulos
representando as árvores, com uma linha que os atravessava e
levava a um círculo chamado de “a fonte cintilante”. O plano
era as duas se encontrarem ali para, juntas, procurarem por
Jacks.
– Obrigada por fazer isso comigo – declarou Evangeline.
– Que sentido faz ter amigas se elas não apoiam suas
péssimas decisões? – LaLa lhe deu um último abraço, bem
quando o sino tocou. – É melhor você ir.
Evangeline saiu correndo da tenda no instante em que a
guarda estava mudando. Um dos homens deu a impressão de
olhar de relance para ela, mas o céu noturno deve ter ajudado a
acobertá-la. As tochas espalhadas por todos os cantos
lançavam plumas de fumaça na escuridão, deixando tudo com
uma aparência levemente etérea. Isso deu a Evangeline a
sensação de que estava se esgueirando pelas páginas
queimadas de um livro de histórias. Uma história da qual
estava louca para sair.
A hora do jantar se aproximava quando ela atravessou o
acampamento real. O clima era levemente embriagado, de
comemoração e de sedução. Parte da alegria do festival de
reconstrução do Arvoredo da Alegria finalmente havia se
infiltrado no acampamento real.
À primeira vista, a impressão era de que homens e mulheres
de outros acampamentos tinham se reunido para confraternizar
com os guardas reais, o que era bom para Evangeline. Apesar
disso, ela segurou a respiração, nervosa, até chegar ao final das
tendas.
Por causa do vinho, ela estava sentindo um certo calor por
dentro, mas começou a ficar nervosa de novo e se escondeu
atrás de uma pilha de lenha que estava um pouquinho afastada
da trilha, para evitar que os soldados que vigiavam a entrada
do acampamento a vissem.
Tomou o cuidado de não fazer barulho, apesar das canções,
risos e fogueiras crepitantes que ecoavam na noite. Os ruídos
foram cessando à medida que adentrava a Floresta do
Arvoredo da Alegria. E não demorou para Evangeline ouvir
apenas o barulho dos próprios passos pisando nas folhas, o
coaxar grave dos sapos e, de quando em quando, o uivar de
um lobo, que disparava um coro de outros uivos, ao longe.
Ela levantou o lampião para olhar o mapa com o caminho
até a fonte cintilante que a amiga havia desenhado.
No começo achou que o caminho traçado no mapa era uma
estrada de verdade. Mas não viu nenhuma estrada na floresta.
Das duas, uma: ou não vira a tal estrada ou o caminho traçado
por LaLa era apenas a rota que Evangeline deveria seguir, não
uma estrada de fato.
Enquanto tentava memorizar o caminho, a floresta foi
ficando bem silenciosa – estranhamente silenciosa. O farfalhar
dos esquilos sumira, assim como os ruídos dos cervos e dos
dragões-bebê. A princesa não conseguia ouvir nada, a não ser
o ruído muito alto de um galho se partindo.
Deu um pulo de susto.
E aí Jacks apareceu.
Estava vivo.
Não estava ferido.
Evangeline não conseguiu avistar nem um arranhão sequer
no belo rosto do Arcano. Teve a sensação de que podia voltar a
respirar normalmente. Até aquele momento, não se dera conta
do quanto realmente estava preocupada.
– Por acaso te assustei, meu bem?
– Não… quer dizer, sim… não muito – respondeu a
princesa, toda afobada, mas não saberia dizer exatamente por
quê. Estava prestes a sair à procura do Príncipe de Copas, e
agora ele estava ali. Bem coisa de Jacks.
O Arcano ficou jogando uma maçã bem branca para cima
enquanto se movimentava pela floresta, como uma sombra se
movimentaria no pôr do sol. De forma lenta e rápida, tudo ao
mesmo tempo. Há poucos instantes, Jacks estava a vários
metros de distância de Evangeline, mas agora estava bem na
frente dela, olhando com seus olhos azuis e límpidos que
brilhavam no escuro.
– Eu me lembro – sussurrou.
– Ah, agora se lembra?
O Príncipe de Copas deu um sorriso e, como tudo o mais,
era um sorriso bem coisa de Jacks. Com um dos cantos mais
para cima, dando a impressão de ser tanto cruel quanto
brincalhão, tudo ao mesmo tempo. E a fez lembrar,
vagamente, da primeira vez que o vira, quando pensou que ele
parecia metade jovem nobre entediado, metade semideus
malvado.
– Diga, meu bem, do que exatamente você se lembra?
As pontas dos dedos gelados do Arcano encostaram na base
do pescoço da princesa.
A pulsação dela acelerou. Bem de leve e, mesmo assim, foi
o que bastou para apagar parte do calor que Evangeline sentia
por dentro, porque o Príncipe de Copas tirou os dedos do vão
da garganta e os colocou na linha do maxilar.
Isso, também, era bem coisa de Jacks.
E apesar disso… o coração de Evangeline batia “errado,
errado, errado”, e agora ela estava pensando que o Arcano a
chamara de “meu bem” duas vezes. Não de “Raposinha” nem
de “Evangeline”.
Só que o problema de querer algo que a gente não pode ter
ou não deveria ter é que, no instante em que isso parece
possível, toda a razão se esvai. A razão e o querer só se dão
bem quando a razão incentiva a pessoa a conseguir o que quer.
Toda razão que se opõe a esse querer se torna um inimigo. Um
lado distante de Evangeline alertou que Jacks estava agindo de
modo estranho e que ela não gostava quando o Arcano a
chamava de “meu bem”. Mas o lado de Evangeline que queria
ser amado por Jacks tentou ignorar esse instinto.
– Eu me lembro de tudo – respondeu. – Lembrei de tudo, do
momento em que nos conhecemos, lá na sua igreja, até aquela
noite, no Arco da Valorosa. Desculpe por ter demorado tanto.
– Não tem problema – disse Jacks, fazendo pouco-caso,
ainda dando aquele sorriso torto.
Em seguida, soltou a maçã que estava na sua mão. A fruta
caiu no chão com uma pancada seca.
– Evangeline. Afaste-se dele – ordenou uma voz rouca,
vinda do meio das árvores. Era vagamente conhecida, mas a
princesa só conseguiu saber de quem era quando Caos se
aproximou, com toda a cautela. – Jacks é um perigo neste
exato momento.
– Sempre sou um perigo – retrucou Jacks. Em seguida,
dando um sorriso irônico para o amigo de longa data,
completou: – Bancar o herói não combina com você, Castor.
– Pelo menos, eu não desisto só porque fracassei.
– Não estou desistindo de nada – declarou o Príncipe de
Copas, com seu sotaque arrastado. – Estou dando o que a
garota quer.
Então, deslizou os dedos do maxilar até o queixo de
Evangeline. Por um instante, ela teve a impressão de que o
tempo passava mais devagar, porque Jacks levantou o queixo
dela delicadamente, de um jeito que só a fez pensar em uma
coisa: beijar.
Evangeline ficou subitamente sóbria.
– Não é isso que você quer? – sussurrou Jacks.
“Sim”, ela teve vontade de dizer. Mas, novamente, aquela
vozinha racional disse que aquilo era errado. O Príncipe de
Copas deveria provocá-la, seduzi-la, tocar nela, mas jamais
tentar beijá-la. Ele acreditava que os dois não podiam se beijar.
Acreditava em amores fadados ao fracasso e em infelizes para
sempre.
E Evangeline ainda queria provar que ele estava errado.
Era para ela ter se sentido subitamente apavorada quando o
Arcano se aproximou. Mas não teve forças para se afastar e
Jacks aproximava os lábios dos…
Na mesma hora, o Príncipe de Copas se dobrou de dor e
soltou palavrões bem alto, palavras que Evangeline nunca
ouvira ninguém pronunciar. O rosto dele se contorceu, ficando
branco-osso, enquanto Jacks abraçava as próprias costelas e
caía de joelhos, soltando um gemido.
– O que está acontecendo?
A princesa se abaixou para ajudá-lo. E foi aí que reparou
que as palavras do bracelete em volta do seu pulso haviam
começado a brilhar de novo.
– Desculpe por isso. – Os braços quentes de Caos a
enlaçaram e quase a queimaram quando ele a pegou no colo. –
Precisamos ir embora antes que Jacks tente te matar de novo.
35
Apollo

A
urora espalhou pétalas de flores por onde passava.
Jogava pétalas diante de si mesma como se fosse
alguma deusa-fada da floresta. E o caminho que
levava à Floresta Amaldiçoada a tratava como se realmente
fosse.
Sempre chovia nas estradas que levam à Floresta
Amaldiçoada – menos por onde Aurora Valor andava. Assim
que atirava suas pétalas e dava um passo, a chuva parava de
cair. Apollo só sentiu uma brisa sutil ao andar do lado dela em
uma trilha pavimentada de sapatos, com carruagens viradas em
ambos os lados, algumas das quais ainda com as rodas
girando.
– Você não me falou o que isso irá custar nem para onde
estamos indo – argumentou o príncipe.
– Estou te levando até a Árvore das Almas.
– Seu pai…
– É muito teimoso – interrompeu Aurora. – Sabe de muitas
coisas, mas não sabe de tudo.
Algo se revirou dentro de Apollo – uma sensação que era
um indício de que, das duas, uma: ou tinha comido cordeiro
estragado ou aquela era uma ideia muito ruim. Sabia que não
devia confiar em Aurora. Ela não era, nem de longe, aquela
meiguice toda que aparentava, tirando sem parar pétalas de
flores do casaco prateado e atirando pelo caminho.
Entretanto, como ele poderia dar as costas para aquilo? Uma
chance de ser imortal.
– Só peço uma coisinha em troca – disse Aurora, tão baixo
que o príncipe quase não ouviu.
Imediatamente, Apollo ficou tenso.
– O que você quer?
Aurora se virou para o príncipe bem devagar e, pela
primeira vez, não havia nada de meigo em sua expressão;
parecia lupina à luz do luar. Os dentes brancos cintilaram
quando disse:
– Quero que você pare com essa bobagem de tentar matar
Jacks. Depois desta noite, você vai inocentá-lo de todos os
crimes, e Jacks não será mais procurado nem caçado.
– Não posso fazer isso.
– Então não posso te mostrar onde fica a Árvore das Almas.
– Aurora parou de caminhar, bem na hora em que a trilha
chegou ao fim, e os dois estavam no limbo enevoado que
levava à Floresta Amaldiçoada. – Você pode ser imortal ou
optar por caçar Jacks. E eu duvido que, algum dia, conseguirá
matá-lo. Não enquanto for humano. Você mandou um reino
inteiro atrás dele e o que foi que conseguiu? Talvez, quando
for imortal, tenha alguma chance. Mas não quero que você a
use. E é por isso que, neste exato momento, você fará um
juramento de sangue, pela sua vida, de que jamais fará mal a
Jacks.
Os ombros de Apollo ficaram rígidos.
– Por que você quer salvar a vida de Jacks?
– Isso não é da sua conta.
– É, já que você está me pedindo para não o matar. – O
príncipe, então, a encarou e perguntou: – Por acaso ele
também te enfeitiçou?
Aurora ficou mordida.
– Ninguém me enfeitiça. Sou da família Valor – declarou.
Em seguida, olhou para Apollo com uma soberba digna de
uma princesa.
E era exatamente por isso que ele nunca gostou de
princesas. Assim como Aurora, tinham uma boa aparência por
fora, mas muitas eram podres por dentro…
– Se está com medo de que Jacks reconquiste Evangeline ou
a roube de você, não precisa. Já cuidei disso.
– Como?
– Não precisa se preocupar. Eu guardo meus segredos,
assim como guardarei segredo de tudo o que transcorreu entre
nós. Então, o que vai ser, príncipe?
Apollo sabia que não podia dar as costas para aquilo. O pai
sempre lhe dissera para ser mais e não existia nada mais mais
do que ser imortal. Pensou que até poderia continuar
discutindo com Aurora a respeito de Jacks, mas duvidava que
fosse vencer a discussão. Apesar do que ela havia dito, era
óbvio que tinha sido enfeitiçada por Lorde Jacks, assim como
havia enfeitiçado Evangeline.
– Depois que você me levar até a árvore, aí faço o
juramento de sangue. Mas antes, não.
Aurora espremeu os olhos.
– Eu te dou a minha palavra – garantiu Apollo. – Se eu
estiver mentindo, pode contar para todos no reino que roubei
as lembranças de minha esposa.
– Então que seja assim – respondeu Aurora. E, ainda
jogando pétalas ao chão, adentrou no limbo com o príncipe.
– Por que você continua fazendo isso? Não está chovendo
aqui.
– Faço porque a floresta gosta.
Ela atirou mais uma porção de pétalas e, quando fez isso, o
chão brilhou, tornando o limbo mais iluminado.
– É para lá que nós vamos? Para a Floresta Amaldiçoada?
– Não se pudermos evitar. Podemos chegar à Árvore das
Almas se nos embrenharmos pelo outro lado da floresta. Mas
deve haver um arco antigo por aqui, com poderes para nos
levar até a Árvore das Almas mais rápido. – Uma ruga se
formou na testa de Aurora, que procurava alguma coisa
naquele trecho de terra enevoado. Por fim, ela soltou um
gritinho: – Achei!
Apollo não viu nada, a não ser um trecho de neblina que
parecia mais escuro do que o restante.
Aurora atirou mais pétalas. Desta vez, bem alto no ar. E,
quando as pétalas atingiram a neblina, ficaram grudadas nela.
Por breves instantes, as pétalas formaram o contorno de um
arco e, em seguida, deram a impressão de derreter e se
espalhar, até que o arco deixou de ser apenas um contorno e se
transformou em uma construção de verdade, feita de mármore
branco e reluzente.
Quando criança, o príncipe ouvira histórias de que havia
arcos escondidos pelo Norte, mas esta era a primeira vez que
via um deles.
Quase perguntou para Aurora como ela sabia que o arco
estava ali. Mas então se recordou de que, para começo de
conversa, tinha sido a família Valor que mandara construir
todos eles.
Sendo o monarca no trono do Norte, Apollo possuía um ou
dois arcos particulares. Um deles o príncipe usava para
impressionar os convidados que compareciam ao Sarau sem
Fim. O outro protegia uma árvore-fênix muito antiga, e, na
verdade, era um pouco parecido com o arco que estava diante
dele, porque ambos eram cobertos por curiosos símbolos
mágicos.
Aurora mordeu o lábio ao examinar os símbolos. Aí, ficou
batendo a unha na palma da mão, até sangrar. E espalhou o
sangue na lateral do arco.
– Bom arco, por favor, abra. Deixe-nos entrar e nos leve até
a Árvore das Almas – disse ela.
No instante seguinte, uma porta apareceu, do mesmo tom
reluzente de branco. A porta se abriu, revelando algo que
parecia um túnel, mas estava escuro demais para enxergar.
Aurora pegou um fósforo de dentro da capa, riscou na
parede e jogou no chão. Assim que o fósforo caiu, uma linha
de chamas se espalhou por uma das paredes, formando um
rastro de fogo. Ela repetiu o processo no outro lado, e os dois
rastros de fogo deixaram o interior da caverna claro como o
dia.
Aurora adentrou, toda graciosa, cantarolando e andando
calmamente no meio das duas fileiras de chamas. Estava
quente lá dentro e foi ficando ainda mais quente conforme
percorriam o caminho, até que o túnel se expandiu, formando
uma enorme caverna de granito branco cintilante que tinha a
mesma borda de fogo do túnel.
Apollo não conseguia enxergar o céu, mas a caverna de
alguma forma se abria, porque, logo adiante, um raio perfeito
de luar iluminava a árvore mais colossal que o príncipe já vira
na vida.
Parecia, entretanto, que “árvore” não era bem a palavra
certa. Árvores não deveriam ter um coração pulsante.
O tronco vermelho-sangue daquele colosso dava a
impressão de pulsar. Bater. Apollo poderia jurar que ouviu os
batimentos dela quando se aproximou. Tum… Tum… Tum…
E aqueles entalhes no tronco? Por acaso eram rostos
humanos?
O príncipe pensou ter visto olhos apavorados e bocas
retorcidas congeladas na madeira, como se houvesse pessoas
presas dentro da árvore, mas era meio difícil ter certeza de que
não era uma ilusão de ótica causada pela luz bruxuleante das
chamas.
A Árvore das Almas era salpicada de folhas pontudas, de
um vermelho-queimado, e repleta de galhos no mesmo tom de
vermelho-sangue do tronco. Alguns dos galhos se erguiam em
direção ao céu, e outros cresciam para a frente e para baixo,
em direção ao chão.
Quando Apollo leu a respeito daquela árvore pela primeira
vez, no pergaminho que Lorde Massacre do Arvoredo lhe
dera, achou que seria parecida com a árvore-fênix que ele
possuía. Encantada e mágica. Imaginou que seria um lugar
perfeito para posar para retratos – não que o príncipe ainda
fizesse esse tipo de coisa.
– Que feia – resmungou.
Aurora lhe lançou um olhar de censura.
– Cuidado com o que diz.
– É só uma árvore – retrucou Apollo.
Mas aí ouviu o coração da árvore bater novamente. Tum.
Tum. Tum.
O pulsar tinha se acelerado, um bater afoito, faminto,
trazendo à lembrança o aviso de Lobric: “E também fui tolo de
tê-la plantado, para começo de conversa. A Árvore das Almas
é maligna”.
A árvore, com certeza, não causou boa impressão em
Apollo.
– Não me diga que agora está com medo – falou Aurora,
com um tom debochado.
Mas o príncipe reparou que, apesar de ter se aproximado da
árvore, Aurora não ousou encostar nela.
– Você também pretende beber dela? – perguntou.
De acordo com o pergaminho que Lorde Massacre do
Arvoredo lhe dera, Apollo só precisaria abrir uma fenda em
um dos galhos para que o sangue jorrasse da árvore. Depois,
tinha que beber o sangue direto do galho partido e conquistaria
a imortalidade.
Não ficaria mais doente nem envelheceria: continuaria
jovem, forte e saudável para sempre. Ainda poderia morrer,
caso alguém tentasse matá-lo, mas não morreria de causas
naturais e, de acordo com o pergaminho, a mesma magia que o
manteria jovem também tornaria mais difícil assassiná-lo.
Tornar-se imortal parecia ser simples, mas o pergaminho
também revelara que cultivar uma dessas árvores não era
tarefa fácil. Depois que Lobric Valor ganhou de presente a
raríssima semente dessa árvore e a plantou, o antigo rei teve
que dar o próprio sangue para ela – todas as manhãs e todas as
noites, durante um ano inteiro. Se deixasse de dar uma das
refeições, a árvore murcharia e acabaria morrendo.
– Vou esperar mais uns anos – respondeu Aurora. – Já é
bem difícil ser mulher. Não quero passar a eternidade como
uma mulher jovem.
– Pelo menos você ainda tem um pouco de bom senso, mas
não o bastante para eu querer te chamar de “filha” neste exato
momento – berrou uma voz bem alta, vinda do túnel atrás dos
dois.
Segundos depois, Lobric Valor entrou pisando firme na
caverna, ladeado, ao que tudo indicava, por dois de seus filhos.
Assim como todos os demais integrantes da família Valor, os
filhos do antigo rei aparentavam ser um pouco mais do que
humanos.
Aurora se encolheu de leve quando os viu.
– E o senhor, pai, está com a mesma cara ranzinza de
sempre.
Lobric lançou um olhar fulminante para a filha, depois se
virou para os filhos e ordenou:
– Levem sua irmã de volta para o acampamento. Eu e sua
mãe lidaremos com ela lá.
Antes mesmo de os filhos terem ido embora, Lobric foi em
direção a Apollo.
O príncipe pôs a mão na espada.
– Nem se dê ao trabalho – disse o antigo rei. – Não vim aqui
para te matar, menino. Você tem sido bom com a minha
família, por isso vou te alertar mais uma vez a respeito dessa
árvore. O único motivo para esta árvore continuar aqui é que
não posso derrubá-la. Se esta árvore morrer, eu morro. E, antes
que você tenha alguma de suas ideias, eu sou o único que pode
derrubá-la.
– Eu jamais…
– Não minta – interrompeu Lobric. – O fato de você estar
aqui significa que está disposto a fazer muita coisa. Mas será
que sabe o que está fazendo? Ou simplesmente caiu na
conversa da minha filha desmiolada?
Apollo chegou a pensar em contar para o antigo rei que a
filha dele estava mais para gênio do crime e que o
chantageava, mas não acreditava que isso ajudaria em alguma
coisa.
– Quer saber por que eu neguei quando você me pediu para
ter acesso a essa árvore? – prosseguiu Lobric. – Quer saber o
quanto custa beber o sangue da Árvore das Almas? Sempre há
um preço a pagar pela magia e, para ter vida eterna, outra vida
precisa ser sacrificada. Neste caso, você perderá a vida da
pessoa que mais ama. É por isso que me deram a semente para
plantar essa árvore.
Lobric espichou o pescoço para examinar a árvore, com um
ar de amargura.
– Quando eu era jovem, era um tanto tolo, como você. Certa
vez, ao visitar um reino vizinho, salvei a vida da princesa. O
nome dela era Serena. Era bonita, e eu fui um pouco mais
simpático do que deveria ter sido. Antes de eu ir embora do
reino, Serena me deu a semente desta árvore de presente.
Disse que era uma forma de agradecer por eu ter salvado a
vida dela, e eu acreditei. Eu me julgava merecedor da
imortalidade e não me passou pela cabeça perguntar para um
dos meus conselheiros de confiança o que a árvore realmente
era antes de lhe dar meu sangue a ela todos os dias. Só depois
que a árvore atingiu a fase adulta, pouco antes de eu estar
prestes a, finalmente, beber de seu sangue, que fiquei sabendo
que a princesa Serena, na verdade, me deu a semente na
esperança de que eu a plantasse e que minha esposa morresse
assim que eu bebesse de seus galhos. Depois que salvei a vida
de Serena, a princesa achou que estava apaixonada por mim.
Mas sabia que eu jamais ficaria com ela, a menos que Honora
morresse. Mas prefiro morrer do que fazer mal à minha
esposa.
– Eu também – declarou Apollo.
Tudo o que estava fazendo era para protegê-la.
– Espero que esteja falando sério – declarou Lobric, com
um tom grave. – Não chegue perto desta árvore de novo. Caso
contrário, será a última coisa que fará na vida.
36
Evangeline
-O que… não… como? Não!
Evangeline estava ofegante e não conseguia concatenar as
palavras direito. Queria dizer que Jacks não havia tentado
matá-la e que jamais lhe faria mal. Mas temia que essas
palavras não fossem verdadeiras e que, se as dissesse em alto e
bom som, seriam ainda menos verdadeiras.
Se fosse verdade que o Príncipe de Copas jamais lhe faria
mal, isso não deveria ser algo que ela precisaria dizer.
Evangeline pressionou os olhos com a mão, na esperança de
deter as lágrimas que ameaçavam cair.
Caos soltou um ruído cansado, que ficou entre um grunhir e
um pigarrear. A princesa imaginou que o vampiro poderia
estar tentando pensar em uma maneira de consolá-la ou em
alguma desculpa para ir embora, agora que já a havia levado
para bem longe de Jacks.
Quando Evangeline tirou as mãos dos olhos, teve a
impressão de que Caos estava absolutamente constrangido. O
vampiro, que usava uma capa preta e curta e um traje de couro
cinza-fumaça, estava todo rígido, encostado em uma árvore do
outro lado da fonte cintilante.
Ela não se recordava de ter pedido para o vampiro levá-la
até a fonte cintilante, mas devia ter pedido. O lugar onde
estavam era isolado e lindo, com águas iluminadas que
lançavam um brilho em tons de verde e azul nas árvores ao
redor. As rochas ao redor do lago brilhavam naquela luz
enfeitiçante.
Tudo parecia ter sido tocado por uma espécie etérea de
magia, menos Caos. A magia que o tocava dava a impressão
de ser de outra espécie.
A luz da água era forte o bastante para Evangeline enxergar
as pontas das presas do vampiro. Elas pareciam maiores e mais
reluzentes do que a água, já que a luz do luar refletia nas
pontas afiadas.
– Por acaso você pretende me morder? – perguntou.
– Acabei de salvar sua vida – respondeu ele, mas as
palavras saíram com um certo rosnado. – Não vou te ferir.
– Tenho a sensação de que é isso que as pessoas sempre
dizem antes de ferir alguém.
– Então você deveria agradecer a sorte de que eu,
tecnicamente, não sou uma pessoa.
Nesta hora, os cantos dos lábios de Caos se ergueram de
leve.
Evangeline achou que o vampiro estava tentando sorrir, mas
era um sorriso que dava a impressão de ser mais ávido do que
tranquilizador.
– O que aconteceu com Jacks?
– Acho que você já sabe.
Caos inclinou a cabeça, indicando o bracelete de vidro que
estava no pulso de Evangeline.
A joia não estava brilhando, mas havia brilhado poucos
minutos antes, quando Jacks tentou beijá-la, assim como se
acendera quando Apollo a machucou.
A princesa começou a ouvir um zumbido na cabeça. Ou
talvez o zumbido estivesse lá aquele tempo todo, um alerta
para impedir que Evangeline pensasse demais no que acabara
de acontecer com Jacks e que o Arcano poderia ter tentado
matá-la.
– Este bracelete possui uma magia muito antiga – explicou
Caos. – Era para ser um presente de casamento de Vingança
Massacre do Arvoredo para minha irmã gêmea.
– Não sabia que você tinha uma irmã.
– Tenho. Acho que vocês duas, na verdade, são amigas. Mas
duvido que continue amiga dela quando eu terminar de contar
esta história. Você conhece minha irmã pelo nome de Aurora
Vale. Mas o nome verdadeiro dela é Aurora Valor.
De repente, o chão de musgo em volta da fonte, onde
Evangeline pisava, lhe pareceu movediço.
– Por acaso você acabou de dizer “Valor”?
O vampiro fez que sim, enquanto os pensamentos da
princesa rodopiavam, tentando acompanhar a história. Ao
longo do dia anterior, ela havia se lembrado de tanta coisa e
passado por tanta coisa, que ficava difícil absorver tudo aquilo.
Mas conhecia a família Valor. Estudara sobre eles quando
procurava pelas pedras do Arco da Valorosa. Só que não havia
se dado conta de que Caos também era da família.
Evangeline se sentiu uma tola no mesmo instante. Jacks o
chamara de “Castor”, e Castor Valor fora amigo íntimo de
Jacks. Era para estar morto, como todos os demais integrantes
da família Valor – mas, obviamente, não era o caso.
E, se Aurora era irmã de Castor, os pais deveriam ser Lobric
e Honora Valor. Não tinha como Evangeline saber que o
primeiro rei e a primeira rainha do Norte haviam voltado dos
mortos depois de centenas de anos. Mas tinha a sensação de
que deveria ter conseguido ligar os pontos de alguma maneira.
Nunca confiou em Aurora, mas achava apenas que ela
compartilhava do mesmo nome da falecida Aurora Valor.
Nunca imaginou que se tratava da mesma pessoa.
– Percebo que você tem muitas perguntas – comentou Caos.
– Não tenho nada além de perguntas. A sua família voltou
dos mortos? Ou estava apenas se fingindo de morta? Por onde
andaram todos esses anos? Por que voltar agora?
– Sei que vai ser difícil, mas sugiro que você segure suas
perguntas até eu terminar de contar a história, caso Jacks nos
encontre.
O vampiro não lhe deu tempo para argumentar e
acrescentou na sequência:
– Acho que Jacks já te contou que minha irmã foi noiva de
Vingança Massacre do Arvoredo.
Evangeline fez que sim e Caos prosseguiu.
– Vingança achava que Aurora não passava de uma linda
princesa, incapaz de cuidar de si mesma. Mandou fazer um
bracelete de proteção para ela: um bracelete que refreava
qualquer um que tivesse a intenção de lhe fazer mal. O
bracelete tinha uma única artimanha: uma vez colocado, não
podia ser retirado. Sabendo disso, minha irmã se recusou a
usá-lo. Além disso, não precisava de nenhum amuleto de
proteção ou, pelo menos, era isso que pensava. Mas ficou com
o bracelete. Não sei o que pretendia fazer com ele. Mas,
enquanto ficou trancafiado na Valorosa, esse bracelete se
tornou uma lenda.
– Espere aí – interrompeu Evangeline. – A sua irmã estava
dentro da Valorosa?
– Toda a minha família estava dentro da Valorosa, presa em
um estado de sono suspenso. Por que você acha que eu queria
tanto abri-la?
– Achei que era por causa do elmo.
Antes de Evangeline abrir a Valorosa, Caos usava um elmo
amaldiçoado que o impedia de se alimentar. Mas, agora que
ela parara para pensar, fazia todo o sentido Caos também ter
um motivo mais profundo para querer abrir o arco. Talvez ele
fosse o monstro que certas pessoas acreditavam estar dentro da
Valorosa. Só que não era Caos quem estava trancafiado, era a
sua família.
– Depois da noite que você abriu o Arco da Valorosa, Jacks
ficou meio enlouquecido. Não parava de falar que você tinha
morrido. Que precisava salvar sua vida. Não levei a sério. –
Caos parou de falar alguns instantes, passou a mão no cabelo e
resmungou: – Eu dei uma mordida nele, sem querer, e achei
que era só efeito da perda de sangue. Então, dois dias depois,
descobri que Jacks havia feito um trato com minha irmã em
troca do bracelete. Ele queria a joia para colocar em você, para
que ninguém, nunca mais, pudesse te fazer mal.
– Ele anda obcecado com isso – comentou Evangeline.
Evangeline se recordava de o Príncipe de Copas ter atitudes
protetoras em relação a ela no passado. Mas, ultimamente,
parecia que o Arcano estava obcecado. Ou estivera.
Obviamente, algo havia mudado desde a última vez que tinha
estado com Jacks, na estalagem. Caos disse que o bracelete de
proteção funciona com base nas intenções da pessoa e deteve
Jacks quando ele tinha a intenção de beijá-la.
– O que Jacks deu em troca desse bracelete?
– Tentei impedi-lo – respondeu Caos. – Falei para ele não
fazer isso, mas Jacks não me deu ouvidos.
– O que ele deu em troca do bracelete? – insistiu
Evangeline, desta vez com mais firmeza.
Caos olhou para ela, mas não nos olhos.
A jovem se obrigou a recordar que não se deve olhar um
vampiro nos olhos, porque eles interpretam isso como um
convite para morder a pessoa que está olhando. Mas, naquela
situação, teve a impressão de que não era isso. Agora, Caos
parecia estar mais triste do que faminto.
– Jacks deu o próprio coração em troca do bracelete.
– O próprio coração? – repetiu Evangeline. – Que tipo de
coração? É alguma espécie de objeto mágico? Uma bugiganga
qualquer? Não pode ter sido o coração de verdade, com
certeza.
– Todo mundo tem dois corações – explicou Caos. – Um
deles é o coração que bate e mantém a pessoa com vida. E o
outro, o segundo coração, é aquele que não bate, mas se parte.
É o coração que ama, e que com isso dá todo o sentido para a
existência. Era esse coração que minha irmã queria.
– E por que Aurora iria querer isso? – perguntou
Evangeline, mas temia já saber a resposta e que tivesse alguma
coisa a ver com os dois nomes que vira gravados nas paredes
da Grota.

Nomes gravados na parede havia centenas de anos. Para


Aurora, a sensação devia ser de que se passaram poucos anos,
talvez só alguns meses, já que ficara todo esse tempo presa
dentro da Valorosa, em um estado suspenso.
– Aurora é apaixonada por Jacks.
– Eu sempre suspeitei. Aurora nunca admitiu, mas imagino
que seja só porque Jacks jamais demonstrou algum interesse
por ela. Lyric Arvoredo da Alegria é que a amava, e sempre
achei que minha irmã estava com ele só para ter uma desculpa
para ficar perto de Jacks, que nunca sequer lhe dirigiu o olhar.
– Se Aurora realmente quisesse desfazer o noivado com
Vingança para se casar com Lyric, nosso pai teria ficado
chateado, mas teria permitido. Ele não é um tirano. Só que
Aurora gostava de ser objeto de desejo. Gostava de receber
atenção tanto de Lyric quanto de Vingança, e acho que tinha a
esperança de que isso deixaria Jacks com ciúme. Claro que
tudo deu errado. Acho que nunca ocorreu a Aurora que, depois
de terminar com Vingança, ele iria atrás de Lyric e destruiria
tudo o que havia no Arvoredo da Alegria. Mas esse é
justamente o problema da minha irmã: nunca pensa nas
consequências, e sei que não está pensando nelas agora.
– Você sabe o que Aurora pretende fazer com o coração de
Jacks? Vai lançar um feitiço de amor nele? – Evangeline deu
esse palpite em voz alta. Mas sabia, por experiência própria,
que não era preciso ter o coração de alguém para fazer isso. E
que feitiços de amor também podem ser quebrados.
– Tenho a sensação de que ela pretende fazer algo mais
permanente – respondeu Caos, com um tom pesaroso.
– Tipo o quê? Dar um coração novinho em folha para
Jacks?
– Não sei. Mas imagino que, quando Aurora fizer o que
pretende fazer, Jacks será dela.
Evangeline teve vontade de vomitar e de andar de um lado
para outro ou, talvez, andar de um lado para outro e vomitar.
Não conseguia suportar a ideia de Jacks ficando com Aurora e
não conseguia imaginar que ele fosse querer isso.
Como Jacks podia ter feito uma coisa dessas? Como podia
ter entregado o próprio coração? Como podia desistir de
Evangeline daquele jeito? Entretanto, ela duvidava muito que
o Príncipe de Copas visse as coisas dessa maneira.
Provavelmente ele acreditava que sacrificar o próprio coração
para protegê-la era um ato de bondade e nobreza.
Infelizmente, não foi isso que ele fez de fato. Jacks podia
até achar que abrira mão do próprio coração para salvar a vida
de Evangeline, mas ela receava que o Arcano havia feito isso
para poder desistir dela com mais facilidade.
Tinha que haver um modo de mudar aquilo. De consertar.
De impedir que Aurora mudasse para sempre os sentimentos
do coração de Jacks ou lhe desse outro coração, novinho em
folha. Quem Jacks seria caso isso acontecesse?
– Como nós podemos pegar o coração dele de volta?
– Nós não, só você pode. Receio não poder te ajudar.
– Por que não?
– Eu até ajudaria, mas acredito que minha irmã escondeu o
coração no único lugar em que não posso entrar. Acho que está
escondido na Grota.
– Evangeline! – A voz cantarolante de LaLa ecoou pelas
árvores ao redor dos dois. – Espero que você não tenha
esperado mui… – A voz de LaLa foi interrompida
abruptamente quando ela saiu do meio das árvores e avistou
Caos do outro lado da fonte cintilante.
– O que você está fazendo aqui? – perguntou ela, com os
lábios retorcidos de desgosto.
– Acabei de salvar a vida da sua amiga – respondeu Caos,
ríspido.
Teria sido apenas coisa da imaginação de Evangeline ou o
vampiro realmente estufou o peito? Até aquele momento, a
princesa ainda pensava nele como Caos. Mas agora o vampiro
estava com uma postura mais ereta, com a capa jogada para
trás de um dos ombros, de um jeito altivo, e ela conseguia vê-
lo como Castor Valor, o jovem e convencido príncipe do
Magnífico Norte.
– Bom, agora eu estou aqui. Então… – disse LaLa,
apontando para a floresta.
– Por acaso você está me dispensando? – perguntou Castor.
– Estou tentando – respondeu LaLa, que era a mais baixa
dos três, e mesmo assim, olhou para Castor de um jeito que
deu a impressão de que era mais alta do que ele. – Você não
tem que beber sangue de virgem ou algo do tipo?
– Sangue de virgem? – Castor deu um daqueles sorrisos
arrasadores de vampiro e passou a mão no cabelo, de um jeito
descontraído. – Que histórias você andou lendo a meu
respeito?
– Eu não leio histórias a seu respeito – LaLa bufou, mas
Evangeline poderia jurar que as bochechas da amiga ficaram
mais coradas.
– Então é uma mera coincidência você ter acabado de citar
uma dessas histórias?
– Sei que você bebe sangue.
O olhar de Castor ficou ardente. “Eu gostaria de beber o seu
sangue”, parecia dizer.
E, de repente, tudo parecia estar mais acalorado do que
devia. LaLa dava a impressão de não gostar de Castor, mas
Evangeline desconfiou de que o vampiro tinha uma opinião
bem diferente a respeito da amiga.
– Acho que estamos fugindo do assunto – interveio, antes
que desse tempo de o vampiro dar uma mordida em LaLa. –
Jacks precisa de ajuda.
LaLa imediatamente parou de olhar para Castor.
Evangeline explicou rapidamente para ela o que o vampiro
havia lhe contado sobre Aurora e o coração de Jacks.
– Não acredito que eu achava que Jacks era o mais
inteligente de todos nós. – Mais uma vez, LaLa olhou feio para
Castor e perguntou: – Por que você não o impediu?
– Eu tentei.
– Pff. Óbvio que você não se esforçou.
– Não é culpa de Castor – disse Evangeline, mas ninguém
prestou atenção nela.
– Por acaso você já conseguiu impedir Jacks de alguma
coisa? – perguntou Castor.
LaLa ergueu o queixo com uma expressão imperiosa.
– Eu já apunhalei Jacks com uma faquinha de manteiga.
– Eu me lembro do fiasco da faquinha de manteiga –
comentou Evangeline. – Causou uma grande confusão. E, por
falar em confusão, o que vamos fazer em relação ao coração
de Jacks?
– Eu voto por sequestrar Aurora e torturar a megera até ela
nos contar onde o coração está – sugeriu LaLa.
– Não vou permitir que você torture a minha irmã –
interrompeu Castor.
– A sua irmã é um monstro!
As narinas de Castor se dilataram.
– Somos todos monstros.
Com um grunhido, ele se afastou da árvore em que estava
encostado.
Por um instante, Evangeline achou que o vampiro iria
atravessar para o lado da fonte em que elas estavam e afundar
os dentes em LaLa. A tensão havia voltado, era visível no
maxilar e nos ombros dele. E aí, lentamente, Castor deu um
passo para trás.
– Não estou pedindo para você perdoar minha irmã pelo que
ela causou à sua família – disse, baixinho. – Mas não precisa
machucá-la. Aurora ficou trancafiada na Valorosa por centenas
de anos: já pagou pelo crime que cometeu. Se quer que ela
sofra, é só encontrar o coração e devolver para Jacks. Será
tortura suficiente.
Castor deu as costas para ir embora.
– Aonde você pensa que está indo? – gritou LaLa.
– O sol já vai raiar. Preciso ir embora, mas já falei para
Evangeline para onde ela tem que ir.
E, com essas palavras, Caos desapareceu em meio à noite.
37
Apollo

N
ão havia ninguém na tenda.
Evangeline havia sumido.
À primeira vista, parecia ter ocorrido uma luta. Tudo estava
de pernas para o ar – baús com as roupas reviradas. Almofadas
rasgadas. A mesinha estava virada por cima de uma poça de
vinho derramado e de comida espalhada. Frutinhos do bosque
espalhados pelo chão, pisoteados, ao lado de pedaços de carne
sujos de terra.
– Guardas! – berrou Apollo, chamando os dois soldados que
estavam de prontidão do lado de fora.
Ficou óbvio, no instante em que os guardas olharam para
dentro da tenda, que não ouviram confusão nenhuma. Não
houve luta, não houve sequestro – bem como o príncipe temia.
Evangeline tinha ido embora de livre e espontânea vontade
– e deixara aquela cena para despistá-lo.
O que só poderia significar uma coisa.
Ela se lembrou.
– Quero que encontrem minha esposa. Tragam-na de volta,
não importa o que tenham de fazer.
38
Evangeline
-E upróprias
continuo preferindo torturar Aurora com minhas
mãos – declarou LaLa, enquanto caminhava, ao
lado de Evangeline, pela trilha que levaria as duas até a Grota.
O sol estava começando a raiar lentamente, lançando a luz
quente da manhã em todas as gotículas de orvalho que
molhavam a grama dos dois lados da trilha.
– Acho que eu também gostaria de torturar aquelazinha –
comentou Evangeline. Mas foi mais para dizer alguma coisa
que a fizesse parar de pensar no fato de que Jacks estava sem
coração e que, quando o recobrasse, poderia não ser o mesmo
coração.
A amiga conseguiu distraí-la, sugerindo tocar fogo no
cabelo de Aurora, arrancar as unhas da garota e outras coisas
que Evangeline não tinha nem coragem de repetir.
– Eu só quero beijar o Jacks – disse a princesa, baixinho. –
E… não quero morrer.
Até a noite anterior, Evangeline jamais acreditara de fato
que Jacks a mataria. Na noite que passaram juntos na cripta
ficou com medo de que ele a mordesse e a transformasse em
vampiro, mas jamais teve medo de morrer pelos lábios do
Arcano.
Até aquele momento.
Foi aí que LaLa se virou para ela, com um sorriso
especialmente gentil.
– Espero que, algum dia, você consiga, sim, beijar Jacks na
frente de Aurora. Essa seria a melhor das torturas.
– Mas achei que você acreditava que beijar Jacks me
mataria…
A Noiva Abandonada deu de ombros.
– O que posso dizer? A vingança me dá esperança.
Poucos metros depois, chegaram à tabuleta onde estava
escrito “Bem-vindo à Grota!”.
Um dragãozinho tirava um cochilo em cima da placa,
roncando e soltando faíscas minúsculas e adoráveis.
Com um susto, Evangeline recordou da noite que passara ali
com o Príncipe de Copas.
Em seguida, recordou que a Floresta Amaldiçoada levara
Jacks de volta à Grota.
Poderia o melhor dia da vida de Jacks ser o dia em que ele
ficou ali com Evangeline? Tinha a sensação de que seria pedir
demais. Mas, só de pensar nisso, parte da luz que havia dentro
de Evangeline se reacendeu. Talvez o Príncipe de Copas
realmente não quisesse um final feliz, mas ela se negava a
acreditar que o Arcano não a desejava. Contudo, sabe-se lá o
que Jacks iria querer depois que Aurora mudasse os
sentimentos dele ou trocasse seu coração por um novo.
– Estamos perto – disse LaLa. – Se bem me lembro, Aurora
tinha um covil maligno escondido na base de uma das árvores.
Sempre vinha passar férias na Grota com a família. Eu me
recordo de ter tentado brincar com ela nos primeiros anos, mas
Aurora sempre queria correr atrás dos meninos.
A Noiva Abandonada guiava a princesa. As amigas saíram
da trilha e adentraram uma floresta repleta de árvores e de
cogumelos de chapéus aveludados, que chegavam na altura
dos joelhos e das pernas das duas. Viram mais dragões
adormecidos em cima de outros cogumelos, espalhando pelo
ar faíscas de uma luz dourada. Depois os cogumelos rarearam
e, por diversos metros, o chão era só de terra – sem
cogumelos, sem grama, sem um único galhinho quebrado.
Apenas um grande círculo de terra intocada ao redor de uma
árvore onde estava gravado, bem no meio, a figura de um lobo
usando uma coroa feita de flores.
– Eu deveria ter trazido um machado – comentou LaLa,
parando na frente da árvore.
– Acho que consigo abrir usando meu sangue.
– Sim, mas seria muito mais divertido acabar com esse
brasão dela a machadadas.
– Podemos voltar, depois que encontrarmos o coração de
Jacks.
Evangeline pegou a adaga que o Arcano havia lhe dado e,
por um segundo, sentiu uma pontada de algo muito parecido
com remorso. Sabia que não tinha culpa de ter perdido as
próprias lembranças. Mas gostaria de ter chegado antes.
Gostaria de ter lembrado de Jacks quando ele lhe dera aquela
faca.
Agora, pensando em retrospecto, era óbvio que o Príncipe
de Copas ficara magoado com o fato de Evangeline ter
esquecido dele. Se ela tivesse se lembrado antes, talvez tivesse
impedido tudo aquilo.
Evangeline cortou o dedo com a adaga, espalhou várias
gotas de sangue na árvore e desejou que ela se abrisse com a
força do pensamento. Depois de vários e longos instantes, uma
porta apareceu no tronco. E, do outro lado dessa porta, havia
uma escada que descia. Branca, cheia de flores esculpidas.
Devia ser encantada porque, no primeiro passo, começou a
brilhar.
– Onde Aurora conseguiu a magia para fazer tudo isso? –
perguntou.
– Não faço ideia – respondeu LaLa. – Acredita-se que todos
os filhos da família Valor possuíam magia, mas ninguém
nunca soube dizer qual era, de fato, a magia de Aurora.
Evangeline contou vinte degraus até ela e LaLa chegarem
ao pé da escada. Assim como os degraus, o chão daquele
recinto brilhava, iluminando as paredes repletas de estantes.
De um lado, parecia haver praticamente só livros – livros
bonitos, encapados em cores suaves – lilás, rosa, dourado e
creme – todos amarrados com lacinhos caprichados.
A princesa mal olhou para eles e se virou para o outro lado,
que estava repleto de frascos e vidros. Alguns eram abaulados,
outros finos, lacrados com cera derretida ou tampas de vidro
cintilante. E continham todo tipo de coisa. Evangeline viu
flores secas, aranhas mortas, dedos – argh –, poções cor de
pedra preciosa, um frasco que brilhava feito luz de estrelas.
Mas não havia nada parecido com um coração, nem batendo
nem parado.
Foi passando os olhos por aquela infinidade de frascos até
avistar um vidro cheio de um líquido cor de vinho, que brilhou
quando ela lhe dirigiu o olhar. Pegou o frasco. Presa à tampa
de vidro, havia uma fita com uma pequena etiqueta escrita à
mão: “Sangue de dragão”.
Evangeline se encolheu toda. Não gostava nem um pouco
da ideia de existir sangue engarrafado, mas lhe parecia
especialmente cruel tirar sangue de dragõezinhos.
Colocou o vidro de sangue de volta na prateleira e pegou
um lindo frasco cheio de partículas cintilantes, que se
encolheram assim que ela encostou no vidro, indo todas parar
no fundo do frasco, formando um amontoado cinzento. O
vidro estava sem rótulo, mas Evangeline achou que não se
tratava do segundo coração de Jacks.
Reconheceria o coração de Jacks – ela conhecia o coração
de Jacks. O coração do Arcano tinha ferimentos como o dela,
mas era forte, não se encolheria nem se esconderia de
Evangeline. Bateria mais rápido, mais forte, no mesmo ritmo
que o dela.
A jovem fechou os olhos, estendeu a mão na direção das
prateleiras e deixou que os dedos roçassem na lisura do vidro
dos frascos.
“Por favor, bata. Por favor, bata”, ficou repetindo em
pensamento, encostando em frasco após frasco.
Nada. Nada. Nada. Só vidro frio e mais vidro frio e…
Seus dedos tocaram em algo que não era um frasco nem era
de vidro. A sensação era de couro roçando na pele. Evangeline
abriu os olhos e deu de cara com um livro encadernado em
couro branco, com letras douradas gravadas na lombada.
– Pensando bem… – conjecturou. – Seria possível Aurora
ter cortado o miolo de algum desses livros e colocado o
coração dentro?
– Suponho que tudo seja possível – respondeu LaLa, que
logo começou a puxar os livros das prateleiras. Desamarrou os
laços, sacudiu, virou de cabeça para baixo, para ver se alguma
coisa caía – Evangeline ouviu algumas chaves baterem no
chão. Em seguida, viu uma peruca castanha e comprida cair de
um dos tomos, que LaLa atirou no chão sem o menor cuidado.
– Não é a mesma coisa que dar umas machadadas na porta,
mas até que é bom – declarou a Noiva Abandonada, jogando
mais um livro no chão, por trás do ombro.
Evangeline foi mais cuidadosa quando tirou o volume
encadernado de couro branco da estante. A capa não continha
nenhuma palavra, só mais um desenho de uma cabeça de lobo
usando coroa.
Ela não sabia se o coração de Jacks estava escondido dentro
daquele livro, mas era óbvio que havia algo dentro dele. Sentiu
mais alguma coisa quando tentou abri-lo, mas as páginas se
recusaram a se mexer. Magia.
A princesa furou o dedo e passou o próprio sangue nas
páginas do livro enquanto dizia “Por favor, abra”.
O livro obedeceu imediatamente.
As palavras “Livro de feitiços de Aurora” estavam escritas
com capricho na primeira página.
– O que você encontrou aí? – perguntou LaLa, pouco antes
de atirar mais um livro no chão.
– É o livro de feitiços da Aurora.
Evangeline virou a página, torcendo para encontrar um
índice. Mas, pelo jeito, aquele livro estava mais para um
diário.
O primeiro registro continha a data, seguida pela seguinte
frase: “Hoje tentei fazer meu primeiro feitiço”.
– Acho que você não vai encontrar o coração de Jacks aí
dentro – disse LaLa.
– Eu sei, mas talvez encontre o feitiço que Aurora pretende
usar para mudar os sentimentos do coração de Jacks ou lhe dar
um novo.
– Ou, quem sabe, a gente consiga encontrar um feitiço para
lançar nela – sugeriu a Noiva Abandonada, toda empolgada.
Evangeline continuou virando as páginas. A sensação que
teve, ao encostar no papel, foi de que era velho e frágil. Ela
examinou cuidadosamente todos os registros, um por um.
Aurora era determinada, isso a princesa tinha que
reconhecer. A maioria dos primeiros feitiços que fez deu
errado, mas isso não a deteve. Continuou testando feitiços com
afinco, até começar a ter sucesso.

– É claro que não – resmungou LaLa, que estava lendo por


cima do ombro da amiga.
Evangeline sentiu um breve friozinho na barriga, algo bem
parecido com felicidade. Mas a sensação logo se dissipou,
depois de mais alguns registros.
– Não é tarde demais para torturá-la – declarou LaLa.
– Eu nunca confiei nela – resmungou Evangeline. – Mas
ainda é difícil de acreditar que ela seja tão terrível.
Apesar de Aurora não ter escrito o que havia feito,
Evangeline achou que sabia o que era.
Jacks havia lhe contado a história de como se tornara o
Arqueiro de A balada do Arqueiro e da Raposa. Que fora
contratado para caçar uma raposa, mas descobriu que a raposa,
na verdade, era uma jovem – uma garota pela qual começou a
se apaixonar. Jacks contou isso para os homens que o
contrataram, na certeza de que haviam se enganado quando
pediram que ele caçasse a raposa. Mas, em vez de rescindir o
contrato com Jacks, lançaram um feitiço nele que o obrigava a
não apenas caçar, mas matar a garota-raposa. Jacks resistiu ao
feitiço e não flechou sua amada – mas, depois, a beijou, e ela
morreu.
– Você acha que isso quer dizer que Aurora lançou as duas
maldições em Jacks: a maldição do Arqueiro e a maldição que
torna o beijo dele letal?
– Vindo dela, não duvido – respondeu LaLa. – Aurora
roubou o coração de Jacks. Acho que isso entra na categoria
“se não posso ficar com ele, ninguém mais pode”.
39
Evangeline
A impressão era a de que mais bandeirolas alusivas ao
festival haviam se proliferado da noite para o dia. Alegres
bandeirolas triangulares, de todo tipo de tecido e cor – pêssego
listrado, verde-menta, azul-ovo-de-pintarroxo-salpicado, rosa-
pôr-do-sol e roxo de bolinhas, todas tremulando alegremente
na brisa suave – se alastravam por todo o Vilarejo de Arvoredo
da Alegria, que estava em polvorosa.
O sol amarelo brilhante estava a pino, desimpedido das
nuvens, apesar de haver uma certa umidade no ar que deixou
Evangeline com a sensação de que poderia chover mesmo na
ausência das nuvens. Ela imaginou o céu se abrindo, como se
alguém o estivesse cortando com uma faca.
Discretamente, endireitou a peruca que roubara do covil de
Aurora – aquela, castanha, que caíra de dentro de um dos
livros. Evangeline torcia para que a peruca ajudasse a passar
despercebida em meio aos habitantes do vilarejo, evitando que
os guardas a reconhecessem enquanto ela e LaLa procuravam
por Aurora. O plano era encontrar a ex-princesa entre as
pessoas que estavam ali para participar do festival e segui-la,
na esperança de que ela levasse as duas até o lugar em que
havia guardado o coração de Jacks.
No dia anterior, Aurora comentara que se interessava por
todas as barraquinhas, gostosuras e coisas bonitas do festival
do Arvoredo da Alegria. Pensando bem, Evangeline se
lembrou que Aurora estava toda feliz, usando uma coroa feita
de flores e um sorriso radiante. Em retrospecto, Evangeline
concluiu que, na verdade, toda aquela alegria era pelo fato de
Aurora ter, por fim, conseguido roubar o coração de Jacks.
Evangeline procurou Aurora no meio da multidão, passando
pelos vendedores de serras e martelos, de frutas silvestres e
cerveja, e pelas intermináveis bancas de quinquilharias. Ao
redor das barraquinhas, crianças davam risadas e soltavam
gritinhos, correndo e girando seus cata-ventos de papel. A
felicidade se alastrava pelo ar feito pólen. Estava por todos os
cantos, tocando tudo, menos Evangeline. Ela só conseguia
sentir um aperto no peito, uma sensação de que seu tempo
estava acabando.
Já se passara um dia desde que Aurora roubara o coração de
Jacks.
E se fosse tarde demais? E se o motivo para não
encontrarem Aurora fosse porque ela estava em algum lugar
com Jacks e já havia substituído o coração do Arcano? E se…
– Está vendo a princesa maligna em algum lugar? –
perguntou LaLa.
Evangeline fez que não. Viu pessoas regateando,
conversando, ajudando na reconstrução do local. Mas não viu
nenhuma garota de cabelo violeta.
– Maçãs assadas por dragões, venham comprar maçãs
assadas por dragões! – gritava um vendedor ambulante,
arrastando um carrinho vermelho tom de doce, que dava a
impressão de ter sido pintado com todo o capricho. As
palavras “Maçãs Assadas por Dragões” estavam escritas com
uma letra rebuscada e, em volta delas, havia delicados
desenhos de maçãzinhas e silhuetas de dragões adoráveis.
O vendedor foi reduzindo a velocidade do carrinho, até
parar na frente de LaLa.
– Não temos interesse, obrigada – disse a Noiva
Abandonada.
– Mas alguém comprou uma maçã para a jovem senhorita.
O vendedor, um rapaz com um rosto simpático e franco,
sorriu. Mas foi um sorriso meio estranho, feito um sorrisinho
que uma criança teria desenhado no quadro de um grande
mestre da pintura.
Com os dedos trêmulos, o vendedor entregou para
Evangeline um pergaminho pequeno, amarrado com uma fita
branca de organza.
– Pediram que eu lhe entregasse isso primeiro.
Evangeline desenrolou o pergaminho, toda nervosa.

O bilhete não tinha assinatura nem rubrica. Mas, na mesma


hora, ela teve certeza de quem o havia enviado. Jacks.
A princesa se virou para o vendedor de maçãs. Se o Príncipe
de Copas havia ordenado que Evangeline não procurasse por
ele, é porque estava pensando nela. Ainda havia esperança.
– Quando lhe deram isso? – perguntou Evangeline.
O rapaz não respondeu. Nem olhou para ela. Parecia que ele
estava em uma espécie de transe. Virou um saco de açúcar na
tampa de seu precioso carrinho de maçãs e em seguida se
dirigiu aos dragõezinhos. Eram três. Um marrom, um verde,
um cor de pêssego.
– Está na hora – ordenou, baixinho.
Os dragões choramingaram.
– Obedeçam logo – murmurou, ainda ignorando Evangeline.
Devia estar sob a influência do Príncipe de Copas.
Evangeline levou um susto ao se dar conta disso. Já vira Jacks
controlando as pessoas em outras ocasiões. Mas, no passado,
sempre fizera isso para protegê-la.
Tinha uma sensação horrível de que esse não era o caso
agora, porque viu o vendedor secar uma lágrima bem na hora
que os dragões soltaram faíscas de fogo, queimando o açúcar.
Em segundos, o carrinho inteiro estava pegando fogo, coberto
de chamas brancas e cor de laranja. O vendedor ficou parado,
imóvel, do lado do carrinho, como se estivesse preso ao chão.
– Precisamos de água! – gritou Evangeline, dirigindo-se a
LaLa e virada para o poço que ficava no meio da praça.
– Não! – respondeu a Noiva Abandonada, já pegando a
amiga pelo braço. – Precisamos ir embora.
Ela arrastou Evangeline para longe do vendedor e da praça
bem na hora que os guardas reais repararam no carrinho em
chamas e o público do festival começou a correr e a levar
baldes d’água.
O rapaz chorava. Os dragõezinhos choravam.
O fogo se extinguira, mas o carrinho estava destruído,
reduzido a pedaços de madeira chamuscada, em brasa.
– Não acredito que Jacks faria uma coisa dessas –
murmurou Evangeline, enquanto LaLa a empurrava ainda
mais para longe da multidão. – Isso me parece, simplesmente,
uma crueldade desnecessária.
– Jacks é desnecessariamente cruel – retrucou LaLa. – Fazia
esse tipo de coisa o tempo todo. Você não conhece esse Jacks
porque ele sempre foi diferente quando estava com você.
Nesta hora, a Noiva Abandonada falou mais baixo e, por
mais que não tenha dito com todas as letras, Evangeline teve a
sensação de que a amiga estava pensando que aquela versão de
Jacks não existia mais.
– Você acha que Aurora já mudou os sentimentos de Jacks
ou deu um coração novo para ele?
LaLa mordeu o lábio, mas não respondeu, coisa que, para
Evangeline, era muito parecida com um “sim”.
O sol batia com força no rosto das amigas quando chegaram
aos limites do vilarejo. Era aquela parte do dia em que não há
sombras. Tudo é claro e iluminado. Era para ser fácil avistar
Aurora no meio de uma multidão como aquela, em que a
maioria das pessoas usava roupas rústicas e tinha cabelo de cor
normal.
– Não a vejo – disse Evangeline.
Um lado dela temia ter chegado tarde demais. Temia que
Aurora já tivesse mudado os sentimentos de Jacks ou lhe dado
um coração novo. Mas não podia desistir do Príncipe de Copas
e sabia que, se o Arcano ainda fosse o Jacks dela, não
desistiria de Evangeline caso ela perdesse o próprio coração.
– Acho que já sei. – LaLa apontou para um ponto depois do
vilarejo, para uma trilha de pétalas de flores rosa-claro que
levava à Floresta do Arvoredo da Alegria. Em seguida, revirou
os olhos. – Quando Aurora era mais nova, queria que as
pessoas pensassem que ela deixava um rastro de flores por
onde passava. Por isso, sempre carregava consigo pétalas de
flores e as jogava no chão conforme se movimentava. Aposto
que, se seguirmos aquele rastro, vamos encontrar o coração de
Jacks.
O rastro de pétalas de flores cor-de-rosa salpicava as pedras,
a grama e até alguns dragões adormecidos, e obrigou LaLa e
Evangeline a se enveredarem por um caminho tortuoso que
levou as duas para as sombras da Floresta do Arvoredo da
Alegria. Seguir aquelas pétalas fez a princesa recordar de uma
lenda da qual não conseguia lembrar direito, mas tinha quase
certeza de que não acabava bem.
Evangeline queria ter esperança de que a sua própria lenda
fosse diferente. Acreditava que todas as histórias têm a
possibilidade de infinitos fins e se esforçou muito para se
apegar a essa crença toda vez que respirou e a cada passo que
deu na vida.
Até que o rastro de pétalas chegou ao fim.
Terminou na base de uma árvore. Onde havia uma raposa.
Que era branca e de um marrom-avermelhado, com um
deslumbrante rabo peludo. Só que o rabo não se mexia, nem a
raposa: estava estirada na base da árvore, com uma flecha
dourada atravessada no coração.
– Ah, não!
Evangeline caiu de joelhos e verificou se o coração da
raposa ainda estava batendo. Mas encontrou apenas um bilhete
preso na flecha.

– Nossa, como estou odiando Jacks neste exato momento –


declarou Evangeline.
– Pelo menos, ele não matou uma pessoa – disse LaLa.
– Mas fará isso em breve. É isso que este bilhete quer dizer.
Primeiro, o Arcano destruiu o carrinho. Depois, matou
aquela raposa. Na próxima, vai matar um ser humano.
– Por acaso isso significa que você quer desistir? –
perguntou LaLa.
– Não. Vou salvar a vida dele.
– Não é mais possível salvá-lo – ecoou uma voz vinda de
dentro da árvore. No instante seguinte, o tronco estalou, uma
porta oculta se entreabriu, e Aurora Valor saiu por ela.
O cabelo violeta estava todo bagunçado; o rosto, pálido,
com um grande hematoma se formando nas têmporas.
– Se veio até aqui para pegar o coração de Jacks, não vai
encontrar. Você chegou tarde demais.
40
Evangeline

A
s saias iridescentes de Aurora Valor esvoaçaram,
formando um círculo perfeito, quando ela desabou no
chão, em um amontoado elegante. Mechas do cabelo
violeta caíram na testa, que não tinha sequer uma ruga fina de
preocupação. A expressão quase parecia serena. Aurora fez
Evangeline se lembrar de uma donzela em perigo, esperando
pacientemente pelo príncipe.
Mas, observando com mais atenção, o semblante de Aurora
mais parecia uma fachada do que um reflexo dos verdadeiros
sentimentos que tinha.
Os lindos olhos ficaram com uma expressão dura, e a voz
melodiosa tinha um acorde amargurado quando ela olhou para
Evangeline e perguntou:
– O que foi que você fez? Por que Jacks se apaixonou por
você?
– Bom, ela não é uma lambisgoia como você – respondeu
LaLa.
Aurora se encolheu toda. Outra camada de sua expressão
fingida rachou quando ela retorceu os lábios, fazendo uma
careta.
– Onde está Jacks? – indagou Evangeline. – E o que você
fez com o coração dele?
Aurora deu risada.
– Você acha que Jacks fez isso por minha causa? – Aurora
pegou o rabo da raposa morta e ficou sacudindo para a frente e
para trás, batendo com ele no chão, sem a menor consideração,
enquanto a pobre raposa continuava estirada no chão, com os
olhos vazios. – Por mais que eu goste do simbolismo, não tive
nada a ver com isso.
– Não acredito. Sei que foi você quem amaldiçoou Jacks –
declarou Evangeline. – Achei seu antigo livro de feitiços. Foi
por sua causa que ele matou a primeira garota que amou, a que
se transformava em raposa.
– Sim, mas não tenho nada a ver com isto. – Nesta hora,
Aurora soltou o rabo da raposa morta. – Jacks fez isso porque
quis, por você.
O tom de Aurora ficou azedo, transmitindo algo muito
parecido com ciúme, e deu a impressão de que desejava o
sofrimento de Jacks tanto quanto o amor dele.
– Foi você quem roubou o coração dele – argumentou
Evangeline.
– Eu não roubei! Jacks me deu de livre e espontânea
vontade. Mas não está mais comigo.
– Como assim, não está mais com você? – perguntou LaLa,
com um tom de ceticismo.
Aurora jogou a cabeça para trás, até encostar na árvore, em
mais uma pose dramática.
– Jacks veio falar comigo há pouco. Exigiu o coração de
volta. Como eu não quis devolver, ele me nocauteou. –
Apontou para o hematoma que tinha na têmpora, que ficava
cada vez maior. – Quando eu acordei, Jacks havia sumido. E o
coração também.
– Isso não faz o menor sentido – disse Evangeline. – Se
Jacks pegou o coração de volta há pouco, por que faria tudo
isso? – Ela apontou para a raposa morta.
Aurora deu risada.
– Você acha que Jacks pegou o coração porque o queria de
volta?
Ela deu mais uma risada, mais alegre e mais alta.
– Acho que a gente deveria ir embora daqui – murmurou
LaLa.
– Também acho – disse Aurora, ainda dando risada. –
Depois que Jacks terminar de destruir o próprio coração, vai
voltar e vai matar, e não será apenas uma raposa selvagem.
Aurora tornou a sacudir o rabo da raposa. Para a frente e
para trás, para a frente e para trás, e Evangeline sentiu o
sangue ferver e correr mais rápido, zumbindo nos seus
ouvidos.
LaLa pode até ter dito alguma coisa, mas não conseguiu
ouvir direito, porque as palavras de Aurora não paravam de se
repetir dentro da sua cabeça: “Depois que Jacks terminar de
destruir o próprio coração”.
Queria acreditar que Aurora estava apenas sendo malvada e
tentava atormentá-la. Queria afirmar que Jacks não destruiria o
próprio coração, mas também jamais havia pensado que o
Arcano daria o coração em troca de alguma coisa. Uma das
coisas que Evangeline amava em Jacks era a determinação, a
motivação, a busca incansável pelas coisas que mais queria. E
ela não queria acreditar que Jacks queria não sentir nada. Que
ele não estivesse nem aí para o próprio coração. Que abriria
mão do amor, de tudo, completamente.
Evangeline queria gritar e soltar palavrões. E um lado dela
queria apenas cair de joelhos no chão e chorar.
Jacks era o Príncipe de Copas – passara quase a vida toda
procurando pelo amor. E, agora que Evangeline aparecera…
ele estava desistindo?
– Para onde ele foi? – perguntou para Aurora. – E o que
posso fazer para impedir?
– Você não pode fazer nada. – Aurora soltou um suspiro e
inclinou a cabeça para o lado, cansada, como se ela fosse a
mais prejudicada com tudo aquilo. – Eu já falei que você
chegou tarde demais.
– Então só me diga para onde ele foi!
Aurora revirou os olhos e respondeu:
– Não foi bem uma preocupação dele me contar quais eram
exatamente seus planos antes de bater na minha cabeça.
– Eu sei aonde ele foi – murmurou LaLa. – Só tem uma
maneira de destruir o segundo coração de alguém.
– Como? – perguntou Evangeline.
LaLa engoliu em seco e olhou para a amiga com ar de
culpa.
– Desculpe, amiga.
– Por que você está pedindo desculpas?
– Porque, se não fosse por mim, Jacks agora não teria para
onde ir. O coração que as pessoas usam para sentir é algo
poderoso e só pode ser destruído com fogo. Mas não qualquer
fogo.
– Como você sabe disso? – perguntou Evangeline.
A Noiva Abandonada continuou com uma expressão
sofrida.
– Quando Dane foi trancafiado na Valorosa, quis destruir
meu coração.
– Você quis destruir seu coração por causa de Dane? –
perguntou Aurora, dando uma risadinha debochada.
LaLa olhou feio para Aurora. Por um segundo, Evangeline
reparou que a amiga estava reconsiderando a possibilidade de
torturá-la.
– Você pode bater nela depois que me contar como acha que
Jacks vai destruir o próprio coração – declarou Evangeline.
– A única maneira de destruir o segundo coração de alguém
é queimá-lo no fogo de uma árvore-fênix real.
– Você plantou uma árvore-fênix? Por acaso é burra? –
Aurora ficou de pé e parecia sinceramente assustada. As
bochechas estavam tomadas por uma coloração furiosa. Pelo
jeito até aquele momento não acreditava que Jacks conseguiria
destruir o próprio coração e estava brincando com Evangeline,
provocando só por diversão.
– Onde você plantou a árvore? – perguntou Aurora.
– Até parece que vou te dizer – respondeu LaLa.
Aurora, então, se dirigiu a Evangeline:
– Você sabe onde fica?
A princesa teve um pressentimento de que sabia, mas não
estava disposta a revelar o local para Aurora. Vira a árvore na
primeira noite que passara no Magnífico Norte.
Tinha sido na véspera do Sarau sem Fim. Apollo estava
esparramado nos galhos de uma árvore-fênix, posando para
um retrato. Na verdade, ela reparou naquela árvore espetacular
antes de reparar no príncipe.
Sua mãe havia lhe contado sobre o mito da árvore-fênix, e
Madame Voss, a ex-tutora, também. As folhas da árvore-fênix
levam mais de mil anos para transmutar-se em ouro – ouro de
verdade. Mas, se alguém arrancar uma folha antes que todas
tenham se transmutado, a árvore inteira pega fogo.
Talvez fosse isso que Jacks pretendia fazer. Arrancar uma
folha de ouro, fazer a árvore pegar fogo e atirar o próprio
coração nas chamas. E Evangeline não tinha nenhuma dúvida
de que o Príncipe de Copas faria isso. A menos que ela o
detivesse.
– Não quero que Jacks destrua o próprio coração – declarou
Aurora. – Se me contar onde plantou a árvore, posso mostrar
para você como chegar lá usando um arco.
– Não quero sua ajuda – disse a princesa. – E jamais
confiaria em você.
Evangeline também tinha esperanças de que não fosse
precisar da ajuda de Aurora. Tinha quase certeza de que sabia
onde LaLa havia plantado a árvore-fênix – só precisava chegar
lá antes de Jacks.
– LaLa, onde fica o arco mais próximo? – perguntou.
Evangeline estava certa de que convenceria o arco a levá-la
até a clareira onde ficava a árvore, se a amiga soubesse dizer
onde ficava o arco. O sangue da princesa abria qualquer porta,
e os arcos, especificamente, sempre atenderam aos seus
pedidos.
– Vou com você – respondeu LaLa.
– Obrigada – disse Evangeline. – Mas acho que, desta vez,
preciso ir sozinha. Se eu realmente quiser salvar a vida de
Jacks, não vai ser pela força.
– Então como você vai salvar a vida dele? – perguntou
Aurora.
– Com amor.
Aurora caiu na risada. E o som de seu riso estava ficando
cada vez mais feio.
Evangeline sentiu um calor no rosto, mas tentou não ficar
envergonhada.
– O amor não é motivo de riso.
– Hoje é. Sabe por que, Evangeline? É que mesmo se você
conseguir salvar o coração de Jacks, não bastará para salvar a
sua própria vida. Se um dia vocês se beijarem, você vai
morrer. Não faz diferença se o seu amor é o amor mais
verdadeiro de que o mundo já teve notícia.
Evangeline se lembrou que Aurora era uma mentirosa: até
aquele momento, ela só tinha encenado uma farsa. Mas agora
parecia estar falando a verdade, pois exibia uma expressão de
triunfo perturbadora.
– Quando eu me dei conta de que Jacks jamais mataria a
garota- raposa, lancei outro feitiço nele – explicou Aurora. –
Mas a maldição das histórias distorceu a verdade. O
verdadeiro amor de Jacks não é a pessoa que será imune ao
beijo dele e fará o coração voltar a bater. Apenas uma garota
que jamais amará Jacks sobreviverá a esse beijo. O seu amor
pode até, talvez, salvar o coração dele. Mas, ao receber o
beijo, será apenas mais uma raposa que foi assassinada por
Jacks.
41
Evangeline

E
ncontrar o arco foi fácil.
A impressão foi de que levou apenas alguns minutos.
Evangeline pensou que o verdadeiro trajeto de onde Aurora
estava até o arco, escondido nos limites da Floresta
Amaldiçoada, não podia ser tão rápido. É mais provável que
LaLa e ela tivessem levado quase uma hora para encontrá-lo.
Mas a sensação era de que o tempo estava passando mais
depressa. O sangue de Evangeline corria em um ritmo
absurdamente rápido. Mesmo parada, ela percebeu que estava
respirando com uma dificuldade lastimável.
Ela se sentiu aliviada quando entrou na clareira: Jacks ainda
não havia chegado.
Evangeline estava a sós com a árvore-fênix e o sol, que se
punha lentamente.
Quando estivera naquela clareira pela primeira vez, havia
músicos tocando harpas e alaúdes, cortesãos trajando suas
vestes mais finas, uma mesa enorme repleta de comida e
promessas de desejos que se tornariam realidade pairando no
ar.
Porém, naquele momento, o único ruído era o farfalhar
nervoso das folhas, à medida que Evangeline se aproximava
da árvore reluzente. Dava para ouvir as folhas tremerem e se
sacudirem, como se, de alguma forma, sentissem que sua hora
estava quase chegando.
Da última vez que estivera ali, as folhas que ainda não
haviam se transmutado tinham tons de vermelho, laranja e
bronze. Agora eram esverdeadas, feito esmeraldas e relva
orvalhada.
Ela viu os veios de uma folha trêmula se transmutar de
verde em ouro, rapidamente. Depois ficou observando o ouro
começar a se espalhar com rapidez por toda a superfície da
folha, como se assim fosse impedir aquilo que temia estar por
vir. E, apesar disso, a menos que as demais folhas fizessem o
mesmo, a transmutação daquela folha específica não bastaria
para protegê-la do que Jacks tentaria fazer em breve.
Evangeline respirou fundo para acalmar a si mesma e à
árvore temerosa.
Também estava com medo. Tinha a sensação de que não
deveria estar. Tinha a sensação de que sua fé no amor deveria
ser inabalável.
Mas ela estava bastante abalada.
Cada leve suspiro da brisa tensionava seus ombros. O
movimento mais silencioso das folhas a fazia soltar um suspiro
de assombro.
Na noite em que abriu o Arco da Valorosa, foi tomada pela
sensação de que aquilo era inevitável. Soube que nascera para
abrir aquele arco. Sentiu que cada acontecimento de sua vida a
levara até aquele momento.
Agora estava vivendo os instantes seguintes desse algo
inevitável, e podia sentir isso também. Aquele momento, em
vez de ser algo gravado em pedra, lhe parecia uma espécie de
tapeçaria frágil, que poderia se desfazer caso alguém puxasse
um único fio – ou uma única folha.
A clareira transbordava de uma expectativa que explodia na
pele dela feito faíscas de um fósforo, dando a sensação de que
tudo poderia acontecer. Evangeline já tinha gostado dessa
sensação. Mas naquele momento a expectativa só a deixava
nervosa, como aquela folhinha que acabara de se transmutar
de verde para ouro.
Evangeline também havia mudado desde a primeira vez que
entrara naquela clareira, na primeira noite que passara no
Magnífico Norte, quando acreditava que se casar com um
príncipe seria a realização de todos seus sonhos. Em
retrospecto, seus sonhos pareciam tão impossíveis, e a jovem
se sentia tão corajosa por acreditar neles… Agora tinha se
dado conta de que aqueles nunca foram seus sonhos, não de
fato. Eram sonhos que emprestara de histórias, sonhos aos
quais se apegara porque seus próprios sonhos ainda estavam
por ser imaginados.
Naquela primeira noite Evangeline jamais sonharia em ter
um futuro com Jacks. Podia até se sentir atraída por ele, mas
não era o Arcano quem deveria desejar.
O Príncipe de Copas era perigoso. Não vinha com
promessas de um final feliz. Pelo contrário: garantia
exatamente o oposto. Não acreditava que heróis têm direito a
finais felizes. Desde o início, Evangeline sentiu que amar
Jacks era um amor fadado ao fracasso. Mas descobrira que o
amor é mais do que um sentimento. E que não precisa ser a
opção livre de perigos, porque o amor também é mais
poderoso do que o medo. É o ápice da esperança. É mais forte
do que maldições.
E mesmo assim…
Temia que seu amor não bastasse.
As últimas palavras ditas por Aurora ainda a assombravam.
“Não faz diferença se o seu amor é o amor mais verdadeiro
de que o mundo já teve notícia. A maldição das histórias
distorceu a verdade. O verdadeiro amor de Jacks não é a
pessoa que será imune ao beijo dele. Apenas uma garota que
jamais amará Jacks sobreviverá a esse beijo.”
Evangeline não gostava de pensar em Jacks ficando com
outras garotas. Não gostava de imaginá-lo gostando de outras,
beijando outras ou matando outras. Na primeira vez que o viu,
imaginou que o Arcano tampouco pensava muito em outras
pessoas. A versão desleixada e desrespeitosa de Jacks que viu
na igreja do Príncipe de Copas não lhe pareceu capaz de gostar
de ninguém.
Mas, agora, quando imaginava Jacks no dia que o
conhecera, Evangeline não pensava na primeira conversa
terrível que tiveram. Ela o via sentado nos fundos da própria
igreja, rasgando as próprias roupas, de cabeça baixa, como se
estivesse de luto ou fazendo algum ato de penitência.
O Príncipe de Copas estava de coração partido. Não no
mesmo sentido que a maioria das pessoas pensa, de que
alguém teria partido seu coração. O coração de Jacks fora
partido incontáveis vezes, até que perdeu a capacidade de ter
esperança, de se importar com os outros e de amar.
As histórias sempre davam a entender que as meninas que
Jacks beijara até então não o amavam de verdade. Que tinham
sido apenas pessoas que ele havia testado e descartado, feito
roupas que não servem mais.
Só que agora Evangeline achava que o Príncipe de Copas
não tinha sido tão insensível quando começou a distribuir seus
beijos por aí, que ele talvez tenha se importado com algumas
daquelas garotas antes de beijá-las. Depois imaginou que
algumas delas talvez tivessem amado Jacks de verdade. Que
tinham acreditado, assim como a própria Evangeline
acreditara, que seu amor bastaria para salvar a vida do Arcano
e quebrar a maldição. Mas nunca bastou.
Não era para menos que Jacks achava que os sentimentos de
Evangeline não bastariam. E talvez não bastassem. Mas isso
não queria dizer que o Arcano não tinha salvação. Talvez não
fosse apenas o amor dela que o salvaria. Talvez o amor dele
também fosse necessário.
A princesa dirigiu o olhar para a folha de ouro que acabara
de se transmutar e ficou observando-a roçar em outra, ainda
verde, como se implorasse para que a companheira também se
transmutasse. Porque, a menos que a árvore inteira fosse de
ouro, pegaria fogo. Assim como Evangeline e Jacks, se ela
fosse a única a acreditar no poder do amor.
O ar crepitou, algo que a fez pensar em faíscas minúsculas.
E aí ela sentiu que seu pulso pinicava, no contorno da cicatriz
de coração partido.
Jacks tinha chegado.
Evangeline virou para trás. E foi quase igual à primeira vez
que viu o Príncipe de Copas naquela clareira.
Jacks estava tão altivo naquela noite, tão frio que a neblina
se enroscava em suas botas quando ele caminhava.
Ela se lembrou de que, na ocasião, tentou se segurar e não
se virar. Não olhar para trás. E, quando decidiu olhar para o
Príncipe de Copas, fez força para só olhar de relance, só por
um segundo.
Mas não foi possível. Jacks era a lua e ela era a maré que a
força extraordinária do Arcano controlava. Essa parte não
havia mudado.
Com todo o seu coração, Evangeline ainda queria que Jacks
fosse dela.
Só que aquele Jacks não era dela.
Havia algo nas mãos brancas do Arcano, um frasco que ele
jogava para cima, como se fosse uma de suas maçãs. Só que
não era uma maçã. Era o próprio coração.
O coração de Evangeline se partiu de leve ao vê-lo jogar o
coração para cima de modo tão descuidado, como se fosse um
pedaço de fruta que iria jogar fora, e não algo tão precioso e
belo que chegava a ser impossível de descrever.
O coração de Jacks se assemelhava a raios de sol pouco
antes de se derreterem no horizonte. O frasco emitia tantas
cores, tantos tons de dourado, mas também lançava faíscas de
uma luz iridescente que ultrapassava o vidro, dando a
impressão de que o dourado pulsava.
O Príncipe de Copas, por sua vez, estava com uma
expressão absolutamente inabalável.
– Você não deveria estar aqui.
– Nem você! – gritou Evangeline.
Ela não tinha a intenção de gritar. Seu plano não era gritar
com Jacks. Seu plano era dizer o quanto o amava. Mas vê-lo
tratando o próprio coração de uma maneira tão temerária e
negligente a fez berrar.
– O que você está fazendo?
– Acho que você já sabe a resposta, meu bem. Só não gosta
muito dela.
O Príncipe de Copas jogou o frasco para cima, ainda mais
alto.
Evangeline não pensou – apenas deu um pulo para frente, de
braços abertos, e tentou pegar o coração. Os dedos encostaram
no frasco, mas Jacks a segurou primeiro.
O Arcano pôs a mão na base da garganta da jovem. Segurou
com força suficiente para mantê-la onde estava, para impedir
que ela pegasse o coração que estava dentro do frasco. Mas
não a machucou. Os dedos não deixaram marcas.
Das duas, uma: ou ele estava sendo cauteloso por causa do
bracelete de proteção que ela usava no pulso ou… não queria
feri-la porque a proximidade do próprio coração fazia o
Arcano ter sentimentos.
A luz dentro do frasco pulsou mais forte, como se estivesse
tentando se libertar. E Jacks não estava mais com uma
expressão completamente inabalada. Os olhos azuis eram
quase animalescos, de tanto que brilhavam, parecia que ele
tentava resistir aos sentimentos que ameaçavam voltar.
– É melhor você ir embora – falou, com os dentes cerrados.
– Por quê? Porque você vai queimar seu coração e, depois
que fizer isso, acha que vai me ferir? Você já está me ferindo,
Jacks.
Ela esticou o braço – não para pegar o frasco, mas para
acariciá-lo.
O maxilar de Jacks mais parecia uma rocha, dura e
implacável, sob seus dedos. O Arcano cerrou ainda mais os
dentes e sacudiu a cabeça para se desvencilhar da mão dela.
– Se eu tentar te ferir, o bracelete vai me impedir – disse ele,
ríspido.
– Não estou falando de um ferimento físico.
Meu coração… está doendo.
E doía mesmo. Evangeline jamais havia se sentido tão
próxima e tão distante de alguém, tudo ao mesmo tempo. A
mão gelada e rígida de Jacks continuava segurando sua
garganta, os olhos estavam fixos nos dela. Mas era um olhar
que dava a entender que aquela era a última vez que o Príncipe
de Copas encostaria em Evangeline, a vez definitiva.
Aquilo era tudo que haveria entre os dois.
Jacks não estava desistindo. Jacks já havia desistido.
– Como posso te fazer entender – vociferou o Arcano –, que
nossa história não termina bem. Nossa história simplesmente
termina.
– Como você pode saber disso se nem tentou?
– Tentar? – Nesta hora Jacks deu uma risada, e o som de seu
riso foi pavoroso. – Isso não é coisa que se tenta, Evangeline.
O riso morreu nos lábios do Príncipe de Copas, e o fogo que
havia em seus olhos se apagou. Por um segundo, Jacks não
parecia um Arcano nem um humano, parecia um fantasma,
uma concha que fora esvaziada e jogada no mar demasiadas
vezes. Evangeline voltou a pensar que o coração de Jacks fora
partido incontáveis vezes, tantas que não tinha mais
capacidade de ter esperança, só de ter medo.
– Isso é algo que só tem uma chance de dar certo ou errado.
E, se der errado, não tem como tentar de novo. Não tem mais
nada.
O silêncio se instalou na distância que os separava. Nem
sequer uma folha da árvore teve coragem de farfalhar.
E aí Jacks falou, tão baixo que Evangeline quase não ouviu:
– Você estava lá, você viu o que o bracelete fez comigo
quando tentei te beijar.
O Príncipe de Copas ficou com um olhar que parecia de
vergonha. Evangeline não sabia que tal coisa era possível, mas
o Arcano lhe pareceu ainda mais frágil do que antes. Como se
bastasse encostar nele para quebrá-lo, como se a palavra
errada pudesse fazê-lo quebrar em mil pedaços.
– Não chegaremos mais perto do que isso – declarou o
Arcano.
Em seguida, acariciou o pescoço de Evangeline, e ela teve
certeza de que, em um instante, o Arcano iria acabar com tudo.
Iria soltá-la, arrancar uma folha e jogar o próprio coração no
fogo.
Ela estava apavorada, com medo de se mexer, petrificada,
sem querer falar, com medo de dizer algo errado. As mãos
tremiam, e tinha a sensação de que o peito estava oco, como se
tivesse um buraco, e que a esperança estava se esvaindo dela,
sumindo e indo parar no mesmo lugar que roubara toda a
esperança de Jacks.
Mas Evangeline sabia onde aquilo iria parar e se recusou a
ir para tal lugar.
– Eu te amo, Jacks.
O Arcano fechou os olhos quando ela pronunciou a palavra
“amo”.
A esperança de Evangeline cresceu. Teve vontade de pedir
para Jacks olhar para ela, mas só importava o fato de o
Príncipe de Copas não a ter soltado.
– Sempre me perguntei se o destino existia mesmo – disse
ela, baixinho. – Tinha medo de que a existência do destino
significasse que eu não teria escolhas de verdade. E aí, em
segredo, eu torcia para que o destino existisse e que eu e você
fôssemos predestinados. Que, por algum milagre do destino,
eu fosse seu verdadeiro amor. Mas agora não me importo se o
destino existe ou não, porque não preciso que o destino decida
por mim. Não preciso dele para tomar essa decisão. Tomei
minha decisão, Jacks. Escolhi você. Sempre escolherei você,
até o fim dos tempos. E vou lutar contra o destino e contra
qualquer um que tente nos separar… incluindo você. Você é a
minha opção. Você é meu amor. Você é meu. E você não será o
meu fim, Jacks.
– Acho que já sou. – Ele abriu os olhos e deles pingaram
lágrimas vermelhas. – Me deixa fazer o que preciso fazer,
Evangeline.
– Diga que você não vai atear fogo ao seu coração que eu te
deixo em paz.
– Não me peça isso.
– Então não me peça para eu te deixar em paz!
Os olhos de Jacks choraram mais lágrimas de sangue, mas a
mão continuou segurando firme o frasco.
– Sou despedaçado. Gosto de coisas despedaçadas. Às
vezes, tenho vontade de te despedaçar.
– Então me despedace, Jacks.
Os dedos do Príncipe de Copas ficaram tensos em volta do
pescoço de Evangeline.
– Pela primeira vez na vida, quero agir do jeito certo. Não
posso fazer isso. Não posso ver você morrer de novo.
A expressão “de novo” arranhou Evangeline, como se fosse
um espinho.
– O que você quer dizer com “de novo”?
– Você morreu, Evangeline. – Jacks a puxou mais para perto
de si, até ela sentir o subir e descer descompassado do peito
dele. Então disse, com uma voz rouca: – Eu te abracei
enquanto isso acontecia.
– Jacks… não sei do que você está falando. Eu nunca morri.
– Morreu, sim. Na noite em que abriu a Valorosa. Na
primeira vez que você fez isso, não entrei com você.
O Arcano ficou em silêncio por um instante, depois
Evangeline o ouviu pensar: “Eu não consegui dizer adeus”.
– Só você e Caos estavam lá – sussurrou Jacks. – Assim que
se livrou do elmo, ele te matou. Tentei impedi-lo… tentei
salvar sua vida… mas…
O Príncipe de Copas abriu a boca e fechou em seguida,
como se mal conseguisse pronunciar aquelas palavras.
– Não consegui. Quando cheguei, ele já tinha te mordido e
já tinha bebido tanto sangue… Você morreu assim que eu te
abracei. A única coisa que eu pude fazer foi usar as pedras
para voltar no tempo. Fui avisado de que isso me custaria
alguma coisa. Mas achei que custaria a mim mesmo. Não
imaginava que custaria algo seu.
“Me desculpe”, pensou o Arcano.
– Você não precisa pedir desculpas, Jacks.
– A culpa é minha – murmurou ele, com os dentes cerrados.
– Não, não é. Não perdi minhas lembranças porque você
voltou no tempo. Perdi porque Apollo as roubou de mim.
Por um segundo, Jacks ficou com uma expressão assassina.
Em seguida, com a mesma rapidez, desdenhou das palavras de
Evangeline.
– Não importa. O que importa é o fato de você ter morrido.
E, se você morrer de novo, não terei como te trazer de volta.
– Então você prefere viver sem mim?
– Prefiro que você viva.
– Estou viva, Jacks, e não vou morrer tão cedo.
Evangeline fechou os olhos e então o beijou.
Foi um beijo que mais parecia uma prece, silencioso, quase
uma súplica, feita de lábios trêmulos e dedos nervosos. A
sensação era de tatear no escuro, torcendo para encontrar uma
luz.
Os lábios de Jacks tinham um gosto levemente adocicado e
metálico, de maçã e lágrimas de sangue, e ele sussurrou, com
os lábios encostados nos de Evangeline:
– Você não devia ter feito isso, Raposinha.
– Agora é tarde demais.
Ela passou os braços em volta do pescoço do Arcano, puxou
o Príncipe de Copas mais para perto de si e entreabriu os
lábios. Bem devagar, a pontinha da língua de Jacks foi
entrando.
Foi um beijo mais delicado do que Evangeline teria
imaginado. Menos sonho febril e mais segredo, algo perigoso
e sussurrado que poderia escapar caso Jacks não tomasse
cuidado. E foi cauteloso quando pôs as mãos no casaco dela.
Com delicados movimentos dos dedos, o Arcano foi abrindo
os botões, um por um.
Quando o Príncipe de Copas tirou o casaco dela e o jogou
no chão, as pernas de Evangeline se esqueceram de como
funcionavam, e os pulmões se esqueceram de como se
respirava.
Até aquele momento, estivera enganada. Sua vida não fora
repleta de momentos que a levaram até o Arco da Valorosa.
Cada momento de tudo o que já vivera a levara até aquele
lugar. Precisara de toda a dor de ter o coração partido, todo o
quase-amor e o amor errado para saber que aquele amor era o
verdadeiro amor.
Um vidro se espatifou. Jacks havia soltado o frasco – e,
assim que fez isso, o beijo ganhou vida nova. A sensação era
de estrelas se chocando e de mundos chegando ao fim. Tudo
era estonteante e rodopiava. O Arcano beijou Evangeline com
mais intensidade. Ela apertou o Arcano com mais força,
pressionando os dedos em sua nuca, depois fazendo cafuné no
cabelo sedoso dele.
Evangeline queria nunca mais parar de beijar Jacks. Mas
estava começando a sentir uma tontura. Estava de olhos
fechados. E via estrelas.
– Raposinha… – O tom de pânico de Jacks interrompeu o
beijo.
“Estou bem”, disse ela, ou tentou dizer. Evangeline não
conseguia falar direito. A cabeça girava rápido demais. As
estrelas também brilhavam. Pequenas constelações, debaixo de
suas pálpebras.
As pernas ficaram bambas.
– Não! – gritou o Príncipe de Copas.
E aí Evangeline sentiu os braços de Jacks a pegando no
colo, porque ela estava caindo. Tentou ficar de pé, tentou se
mexer, mas a cabeça não parava de girar.
– Não! – berrou o Arcano. – De novo não!
Jacks se ajoelhou no chão com Evangeline nos braços. Ela
estava sentindo o peito do Príncipe de Copas tremendo
enquanto ele a abraçava.
Jacks. Evangeline pensou no nome dele. Ainda não
conseguia falar direito, mas conseguia abrir os olhos. As
estrelas tinham ido embora e, agora, o mundo voltava a ficar
nítido, lentamente. Primeiro o céu, todo em tons de índigo e
violeta. Depois, viu a árvore, toda reluzente e dourada.
Depois, viu Jacks.
Que parecia angélico e angustiado. O belo rosto estava sem
cor. Rastros de sangue caíam dos olhos e escorriam pelo rosto
pálido.
– Não chore, meu amor. – Ela secou as lágrimas do Arcano
delicadamente, com os dedos. – Estou bem.
Em seguida, deu um sorriso tímido.
Os olhos de Jacks se arregalaram e ficaram azuis como o
céu limpo depois de uma tempestade.
– Como isso é… – Ele deixou a frase no ar.
Era algo um tanto cativante de se ver. Jacks entreabriu,
delicadamente, os lábios amuados e deu a impressão de que
havia esquecido de como se fala.
– Eu já te falei. Você é o amor da minha vida. Você é meu,
Jacks da Grota. E você não será o meu fim.
– Mas você estava morrendo.
– Não – disse ela, um tanto envergonhada. – Eu só esqueci
de respirar.
42

E
ra uma vez um instante em que não havia nada além de
beijos e tudo era perfeito. E, depois, ainda mais beijos.
43
Evangeline
A sensação era de que toda a mágoa, toda a dor, todo o medo
e todo o pavor que Evangeline sentira quase valeram a
pena, só para ver o jeito que Jacks olhava para ela quando o
primeiro beijo dos dois chegou ao fim.
Ela achava que conhecia todos os olhares do Arcano. Já o
vira com olhar de deboche, de provocação, de raiva, de medo.
Mas nunca o vira com tamanho maravilhamento refletido em
seus olhos azuis. Eles brilhavam, enquanto as folhas da árvore-
fênix farfalhavam, fazendo um ruído que a fez pensar em
alguém soltando o ar, lentamente.
Em algum momento, os dois tinham se aproximado da
árvore. Agora Jacks estava com as costas apoiadas no tronco, e
Evangeline se apoiava em Jacks. O céu assumira as cores do
crepúsculo, mas as folhas douradas e cintilantes da árvore
iluminavam o Arcano. Até aquele momento, não se recordava
de ter visto as folhas brilhando, mas a luz era suficiente para
que enxergasse um cacho de cabelo dourado caído na testa do
Príncipe de Copas, que estava com os lábios retorcidos, em
uma expressão de pesar, e a segurava no colo, apertando um
pouco mais.
– Você está com cara de quem está pensando em algo de que
eu não vou gostar – disse ela.
Jacks ficou acariciando o rosto dela bem devagar.
– Te amo – disse, simplesmente.
Então a expressão do Arcano se transformou abruptamente,
ficando séria.
– Nunca vou te perder de vista.
– Você diz isso como se fosse uma ameaça.
O Príncipe de Copas continuou a olhar para Evangeline com
um ar solene.
– Não só agora, mas para sempre, Raposinha.
– Gosto de ouvir “para sempre”.
Ela sorriu com os lábios encostados nos dedos de Jacks e
esticou o braço para acariciar o rosto do Arcano, porque agora
ele também estava sorrindo.
E a amava.
Ele a amava.
Ele a amava.
Ele a amava.
Ele a amava tanto que reescrevera a própria história. Tinha
aberto mão do que acreditava ser sua única chance de amar. E,
agora, tinha finalmente quebrado o feitiço do qual pensou que
jamais se livraria.
Evangeline queria rodopiar ao redor da clareira e cantar a
todo volume, para que o mundo inteiro ouvisse, mas ainda não
queria ficar longe dos braços de Jacks. Ainda não. Talvez
nunca.
Ela segurou um dos dedos do Príncipe de Copas e passou
por cima de uma das covinhas do Arcano.
– Sabe – confessou –, sempre adorei suas covinhas.
– Eu sei. – Jacks deu um sorrisinho malicioso. – Ficou
muito óbvio que você se apaixonou por mim à primeira
vista…
– Não foi amor à primeira vista. – Ela bufou. – Só falei que
adorei suas covinhas desde a primeira vez que te vi. – Ela tirou
a mão do rosto de Jacks. – Eu nem gostei de você. Te achei
uma péssima pessoa.
– E mesmo assim… – nesta hora, o Príncipe de Copas
tornou a segurar a mão de Evangeline e a passou em volta do
próprio pescoço – …você não parava de olhar pra mim.
– Bom… – Evangeline passou a outra mão em volta do
pescoço de Jacks e, em seguida, tornou a acariciar o cabelo
dele. Adorava mesmo o cabelo do Arcano. – Posso até não ter
gostado de você, mas sempre te achei bonito demais.
Evangeline puxou delicadamente o pescoço de Jacks até ele
baixar a cabeça e encostar os lábios nos dela.
Por um instante, tudo voltou a ser perfeito.
Jacks tinha o próprio coração. Evangeline tinha Jacks. Os
dois estavam apaixonados. Isso era tudo que ela queria. Esse
era o final feliz.
Mas o problema com finais felizes é que são mais uma ideia
do que uma realidade. Um sonho que continua a existir depois
que o contador terminou de narrar a história. Mas histórias
verdadeiras nunca chegam ao fim. E, ao que tudo indicava, a
história de Evangeline e Jacks ainda não havia terminado.
As folhas verdes e douradas da árvore-fênix começaram a
farfalhar de novo. A se movimentar de modo frenético,
fazendo mais barulho do que quando a jovem tinha chegado à
clareira – parecia que a árvore inteira estava tremendo.
Sacudindo. Assustada.
Em seguida, vieram as palmas.
Três palmas bem altas, seguidas por uma voz amargurada.
– Que espetáculo mais comovente!
Evangeline se afastou dos lábios de Jacks e viu Apollo
parado a poucos metros de distância, com uma postura altiva,
a cabeça bem erguida.
O príncipe deu um sorriso largo e parou de bater palmas.
– Vocês dois sabem dar um show e tanto. Isso foi romântico
e autodestrutivo. Só ficou faltando o grand finale. – O sorriso
de Apollo ficou ainda mais largo. Aquele sorriso faria
Evangeline ter pavor de sorrisos de príncipe para sempre. –
Mas acho que posso ajudar com isso.
Ele esticou a mão na direção da árvore-fênix e arrancou
uma folha dourada.
Ouviu-se um estalo.
Uma faísca.
– Corra, Evangeline! – gritou Jacks.
Ele a empurrou para longe do seu colo bem na hora em que
a árvore ardeu em chamas. Era uma luz cegante. Branca e
nítida. Devorou a linda árvore em questão de segundos. O
tronco, os galhos, as folhas… tudo ardia em chamas.
Evangeline correu o mais rápido que pôde.
Obrigou-se a não olhar para trás.
Mas onde estava Jacks? Por que o Arcano não corria com
ela?
A fumaça se adensava, o calor das chamas aumentava. Ela
parou só por um segundo. Parou para olhar.
– Jacks! – Era tanta fumaça. – Jacks! – Evangeline começou
a voltar correndo para a árvore.
– Ah, não vai, não!
Os braços de Apollo enlaçaram sua cintura, vindos por trás,
rápidos e com uma força excessiva.
– Não! – gritou Evangeline. Tentou se desvencilhar, mas
Apollo era tão maior do que ela. – Jacks…
– Pare de resistir! – O príncipe a ergueu de forma truculenta
e a pôs em cima do ombro, segurando as pernas dela com o
braço forte, deixando-a de cabeça para baixo. – Estou tentando
salvar sua vida, Evangeline!
– Não! Você que fez isso!
Evangeline batia nas costas do príncipe com os punhos
cerrados e chutava o peito dele.
– Jacks! – gritou mais uma vez.
Por breves instantes, parou de bater em Apollo e ergueu a
cabeça para ver se o Príncipe de Copas surgia em meio às
chamas, se viera atrás dela.
Mas tudo o que viu foram fumaça e chamas.
44
Apollo

E
vangeline continuou gritando e batendo em Apollo
com os punhos cerrados, com tanta força que talvez
estivesse deixando hematomas. Mas o príncipe mal
sentia os socos.
Mais uma vez, Evangeline havia escolhido Jacks.
Mais uma vez, Evangeline havia feito a escolha errada.
O príncipe tinha tentado salvar a vida dela. Tinha tentado
protegê-la, mas não bastou. Finalmente tinha entendido. O
feitiço que Jacks lançara na jovem não seria quebrado por um
mero ser humano. Era uma pena Apollo não poder ser humano
e também salvar a vida de Evangeline.
Não demorou muito para o príncipe voltar até o arco que o
levara à clareira onde ficava a árvore-fênix. Não vira Jacks
vindo atrás dos dois em meio às chamas, mas não lhe restava
um pingo de otimismo que lhe possibilitasse ter esperança de
que isso queria dizer que o lorde estava morto.
Mas, se estivesse vivo, não faria muita diferença. Apollo
achava que Jacks não conseguiria usar o arco sozinho. Não
conseguiria roubar Evangeline dele, não desta vez.
A dor atravessou o corpo do príncipe quando ele pensou
isso.
Ele bem que gostaria de poder arrancar aquele maldito
bracelete de proteção do pulso dela.
Porém, desta vez, já esperava pela dor. E estava acostumado
a sentir dor: sentira uma dor constante quando estava sob
efeito da maldição do Arqueiro. Só que aquela dor era muito
pior.
Apollo tropeçou e quase deixou Evangeline cair no chão
quando passou pelo arco.
– Me solte! – gritou ela. – Por favor! Por favor, tenho que
voltar… Se tem alguma afeição por mim, me solte!
O príncipe a largou no chão. Evangeline tentou se afastar,
arrastando-se. Mas Apollo era maior e mais forte. Segurou a
jovem pelo tornozelo e puxou com tanta força que ela caiu de
barriga no chão. A dor que o atravessou desta vez foi quase
cegante. Mas bastou um único puxão para fazê-la cair. Em
seguida, Apollo sentou-se em cima de Evangeline,
imobilizando-a, e pegou as algemas que levava presas no
cinto.
– Não!
– Relaxe, querida.
O príncipe algemou os braços de Evangeline atrás das
costas.
– Não faça isso! – gritou ela. E ficou se debatendo,
chutando loucamente, com as duas pernas.
Conseguiu acertá-lo no ombro uma vez. Mas aí Apollo
conseguiu segurá-la e prender as pernas dela, atando outro par
de algemas nos tornozelos.
Quando terminou de fazer isso, se afastou dela
imediatamente. A dor que ele sentia era quase insuportável.
Apollo inclinou o tronco para a frente e vomitou na lateral do
túnel por onde tinha vindo com Evangeline.
Pensou em largá-la ali. Não sabia quanta dor mais poderia
suportar. E não sabia nem se precisava que Evangeline
estivesse com ele.
Mas ainda a amava. Olhou para ela, algemada no chão,
chorando, o cabelo rosa grudado no rosto. Ela havia traído a
confiança dele e partido seu coração. Mas, já que Evangeline
tinha só mais alguns minutos de vida naquele plano terrestre,
Apollo queria que os dois ficassem juntos.
– Não se preocupe, amada, tudo isso vai terminar logo, logo
– sussurrou.
Então ele pegou Evangeline no colo e a carregou nos
braços.
45
Jacks

J
acks só conseguia enxergar fumaça. Densa e cinzenta,
que ardia em seus olhos e na sua garganta. Mas precisava
encontrar Evangeline.
– Jacks! Socorro! Jacks!
Conseguia ouvir a voz dela ao longe. Fraca e apavorada.
Jamais a ouvira falar com um tom tão indefeso.
Nem parecia a voz dela, depois dos primeiros gritos.
De início, a voz de Evangeline mais parecia a própria
fumaça – o Príncipe de Copas a ouviu vinda de todos os lados.
Gritando o nome dele, chamando por ele. Só que, depois,
independentemente de para onde se dirigisse, o Arcano tinha a
impressão de que Evangeline estava mais longe.
– Jacks!
– Estou chegando, Raposinha!
O suor escorria pelo pescoço do Príncipe de Copas enquanto
ele corria em meio à fumaça.
– Jacks… aqui…
Ela parou de falar, porque teve um acesso de tosse.
Mas parecia estar mais perto.
Jacks correu atrás do som das tossidas de Evangeline,
distanciando-se da árvore em chamas, distanciando-se da
fumaça.
O ar ainda estava pesado por causa da fuligem suja. Mas
conseguia enxergar de novo em meio a toda aquela sujeira,
toda aquela fuligem, em meio a todas aquelas cinzas. Na
clareira, viu o contorno de uma árvore que não havia pegado
fogo. Um carvalho comum, onde uma garota de cabelo violeta
aguardava, encostada no tronco, com uma das mãos na cintura
do vestido iridescente e a outra em cima da boca, fingindo que
tossia.
Era Aurora.
Não era Evangeline.
– Suponho que eu não seja quem você estava esperando ver
– disse Aurora, toda meiga.
Jacks odiou ouvir o som da voz dela. Nunca havia gostado.
Sentiu vontade de poder arrancar aquela voz e atirar nas
chamas da árvore-fênix, que queimava atrás dele.
– Onde ela está? – vociferou Jacks.
Aurora fez beicinho e respondeu:
– Por que você acha que eu sei onde ela está?
O Arcano cerrou e abriu os punhos lentamente. Estava
tentando tratá-la bem, porque era irmã gêmea de Castor. Mas
quantas vezes já havia feito isso? Desculpar o comportamento
de Aurora por causa de quem ela era? Tentado se convencer de
que ela não era perigosa porque tinha algo que ele queria?
Sabia que não tinha sido Aurora quem ateara fogo à árvore-
fênix, mas ela acabara de atraí-lo até ali, fingindo ser
Evangeline, para impedi-lo de encontrá-la. E, mesmo que
Aurora soubesse onde Evangeline estava ou deixava de estar, o
Príncipe de Copas tinha vontade de feri-la com gravidade.
– Vou te dar mais uma chance. – Nesta hora, o Arcano
esticou o braço e segurou Aurora pela garganta. – Cadê
Evangeline?
Aurora apertou os lábios.
– Você quer morrer? – Jacks apertou de leve o pescoço dela.
– É isso que você quer, Aurora? Porque estou por um fio.
– Você não vai me matar. Até onde sei, estrangular não faz
muito seu estilo. Você teria que me beijar, e acho que a sua
preciosa Evangeline não iria gostar muito disso.
– Sempre posso abrir uma exceção. – O Príncipe de Copas
pressionou um pouco mais a garganta de Aurora. – Fale logo
onde ela está.
Aurora fungou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas
Jacks pensou que aquelas lágrimas eram tão verdadeiras
quanto a tosse dela.
– Me diga por que você escolheu Evangeline. Estou
tentando entender. Não consigo compreender a sua fascinação
por ela, nem quando me esforço. Evangeline é mais bonita do
que eu? É por isso?
– Você é mesmo tão superficial assim?
– Sou.
– E ainda não sabe por que eu não te amo.
Aurora se encolheu toda e, desta vez, quando uma lágrima
caiu, parecia verdadeira.
– Você nunca vai conseguir salvar a vida de Evangeline,
Jacks da Grota. Apollo a levou para a Árvore das Almas.
46
Evangeline

E
vangeline se debateu com todas as suas forças para
tentar se livrar das algemas de metal com as quais
Apollo a prendera. Tentou esfregar a pele até sair
sangue. Se conseguisse arrancar uma única gota de sangue,
conseguiria convencer as algemas a se abrirem. Poderia voltar
para o local onde Jacks estava.
Temia, contudo, que Jacks não fosse a única pessoa com a
qual precisava se preocupar.
Apollo usara um arco para transportá-la até um local
desconhecido para ela. Uma enorme caverna iluminada por
faixas de fogo vermelho- alaranjado na altura do chão, um
lugar que a fez pensar em um antro de vampiros, repleto de
sangue e de uma magia cruel e punitiva.
Ele a carregara no colo por alguns minutos. Mas, como
Evangeline continuava a se debater, tornou a colocá-la em
cima do ombro e a carregá-la como se ela fosse um saco de
batatas. E, nessa posição, era difícil para ela ter noção de onde
estava.
Conseguia ver que ali havia uma espécie de árvore. A maior
árvore que já vira na vida, uma coisa enorme e pavorosa, com
galhos selvagens e rostos distorcidos entalhados no tronco e…
um coração? Era isso que ela sentia bater?
Tum. Tum. Tum.
Definitivamente, era um coração pulsante. Evangeline
sentiu a pulsação vinda da terra quando Apollo a colocou no
chão, diante daquela árvore horripilante, como se ela fosse um
sacrifício humano.
– Apollo, por favor, não faça isso! – Ela sacudiu os braços
desesperadamente, tentando se livrar das algemas que
prendiam seus pulsos. – Por favor, me solte! – implorou. –
Eu…
Ela tentou dizer que sentia muito. Sabia que teria sido a
coisa mais inteligente a dizer naquele momento. Mas não tinha
por que pedir desculpas por ter beijado Jacks.
Ela cerrou os dentes e olhou feio para o príncipe.
– Será que o seu orgulho está tão ferido ao ponto de você
me matar só por causa de um beijo?
– Não é isso que estou fazendo. – Apollo ficou mexendo o
maxilar, com suor escorrendo pela testa. – Eu queria que a
gente ficasse juntos para sempre, queria que o legado do meu
reino também fosse o seu legado. Eu ia fazer de você uma
rainha.
– E, já que isso não vai acontecer, vai me matar?
– Você não entende… Não quero te matar. Se houvesse
alguma alternativa, eu não te mataria. Mas não há. Não posso
garantir a sua segurança sendo um mero ser humano. Mas não
posso ter você e ser mais do que isso. – O príncipe, então,
ficou de joelhos e acariciou o rosto da jovem. – Esta é a
decisão mais difícil que eu já tomei. Você é o amor da minha
vida, Evangeline, e vou sentir imensamente a sua falta.
Em seguida, Apollo se inclinou e beijou os lábios de
Evangeline.
47
Jacks

J
acks achou que não poderia testemunhar nada pior do que
ver Evangeline morrer em seus braços. Mas aquilo
chegava perto. Ela estava no chão, algemada diante de
uma árvore, e o cretino que havia roubado as lembranças dela
estava perto de beijá-la na boca.
– Tire suas mãos dela, seu crápula!
O Príncipe de Copas atravessou a caverna correndo e deu
um soco na cara de Apollo. E outro em seguida, depois mais
um. Socou a cara do príncipe até parar de sentir o próprio
punho, que quebrava os ossos de Apollo. Quando o sangue
jorrou do nariz do príncipe, o Arcano sentiu o jato no próprio
rosto.
Seria mais fácil simplesmente cortar a garganta daquele
cretino. Mas, antes disso, Jacks precisava fazê-lo sofrer.
– Eu vou te matar pelo que fez com ela!
O Arcano deu mais uma saraivada de socos na cara do
príncipe.
– Alguém faça esse homem parar! – gritou alguém.
Passos rápidos ecoaram pela caverna.
Jacks sentiu que alguém o segurava. Mãos grandes e
enluvadas puxaram seus braços. Tentou se desvencilhar, tentou
usar os próprios poderes para deter aquelas mãos. Mas, das
duas, uma: ou ele estava completamente exaurido ou aqueles
guardas, sabe-se lá como, eram mais do que humanos.
– Me soltem!
Jacks ficou se debatendo, porque os guardas o seguravam
firmemente pelos braços e começaram a arrastá-lo dali.
Então viu que não eram guardas. Ele conhecia aqueles
homens. Eram parecidos com Dane e Lysander Valor, os
irmãos mais velhos de Castor.
– Me soltem! Isso não é assunto de vocês.
Dane, o mais cabeça-dura dos irmãos de Castor, pode ter
resmungado alguma coisa, mas o Príncipe de Copas não
conseguiu ouvir, por causa do próprio sangue, que zumbia em
seus ouvidos, e por causa dos gritos de Evangeline, que
continuava imobilizada, no chão.
– Por que vocês não estão socorrendo Evangeline em vez de
me segurar? – berrou Jacks.
E foi aí que ele viu Lobric.
Era a primeira vez que o Arcano via o antigo rei do Norte
desde aquela noite, na Valorosa. Dava a impressão de estar
trajado para uma batalha, com facas presas nos braços, espadas
nas laterais do corpo, outra arma nas costas.
E estava conversando com Apollo. Jacks ficou esperando
que Lobric atacasse o canalha com uma de suas facas e depois
pegasse Evangeline no colo. Mas, pelo jeito, todo mundo
naquela caverna havia perdido a cabeça. Em vez de esfaquear
o príncipe, Lobric deu um tapinha no ombro dele e lhe
entregou um lenço. Depois se aproximou de Jacks e dos filhos,
pisando firme, sem nem sequer dirigir o olhar para Evangeline.
– Qual é o seu problema? – vociferou o Príncipe de Copas.
Lobric olhou para ele com um ar pesaroso e passou a mão
na barba.
– Lamento, filho. Mas não posso permitir que você se
aproxime dela.
– Você não pode me impedir – urrou Jacks.
Tentou se desvencilhar de Dane e Lysander, mas todos na
família Valor eram muito mais fortes do que deveriam ser.
– É a esposa dele – disse Lobric, como se isso, de alguma
maneira, justificasse aquela situação.
– Apollo vai oferecê-la em sacrifício para uma árvore! –
gritou Jacks.
O príncipe parecia meio morto. O rosto estava
ensanguentado e quase irreconhecível, por causa da surra que
Jacks lhe dera, mas ainda conseguia se manter de pé. Apollo
levantou a espada.
E Lobric continuava sem fazer nada. Jacks nem sempre
gostou de Lobric Valor, mas o respeitava. Sabia que o antigo
rei acreditava em honra, em justiça e em todas as coisas que
mencionava quando propunha seus brindes.
– É por que sou um foragido? – gritou o Arcano, dirigindo-
se a Lobric. – Essas histórias não são verdadeiras. Eu não
apaguei as lembranças de Evangeline: Apollo é quem fez isso!
– Nada disso tem importância para mim – grunhiu Lobric. –
Estou fazendo o que é certo.
– Não é, não, e você sabe disso – berrou o Príncipe de
Copas.
Deitada no chão, Evangeline ainda se debatia e chorava. O
rosto estava marcado pelas lágrimas quando ela ergueu a
cabeça e olhou Jacks nos olhos. Os olhos de Evangeline
brilhavam. Mesmo naquela situação, estava tão linda. Não
disse nada, mas o Arcano ouviu o que ela pensou: Vai ficar
tudo bem.
Só que não estava tudo bem.
Nada ficaria bem novamente se Jacks a perdesse agora.
48
Evangeline

E
vangeline ainda se debatia, tentando se livrar das
algemas que prendiam seus pulsos. Só precisava de
uma única gota de sangue. Tinha que salvar a própria
pele e a de Jacks – se não saísse viva daquela situação, não
queria nem pensar no que iria acontecer com ele.
A história dos dois não podia terminar daquele jeito.
Evangeline se lembrava de que o Príncipe de Copas havia
dito que heróis não têm direito a finais felizes. Mas isso não
queria dizer que os heróis deveriam entregar os finais felizes
de bandeja para os vilões.
Apollo dava a impressão de mal conseguir ficar de pé,
depois da surra que levara de Jacks. O nariz do príncipe estava
quebrado e sangrava. Um dos olhos se fechara de tão inchado.
Ainda assim, tinha força para brandir a espada bem acima da
cabeça.
A lâmina brilhou na luz do luar.
O chão começou a pulsar mais rápido. Pedrinhas minúsculas
se ergueram e bateram no rosto de Evangeline, porque o bater
perturbador do coração da árvore estava mais forte do que
antes. Tu-tum. Tu-tum. Tu-tum.
Ela segurou a respiração. Se Apollo a atingisse com a
espada, mas não a matasse, poderia usar o sangue para se
livrar das algemas.
– Raposinha! – Jacks sacudiu os braços para se livrar dos
homens que o seguravam, gritou e xingou todos os que
estavam ali na caverna. – Raposinha, me desculpe. – A voz
torturada do Arcano ecoou pelos céus.
Ao ouvir o som desamparado da voz de Jacks, Evangeline
poderia ter caído no choro, caso já não estivesse chorando. Ela
queria dizer para o Arcano que não precisava pedir desculpas,
queria repetir que tudo ficaria bem. Mas, para o caso de que
não ficasse, gritou:
– Te amo, Jacks!
– Cala a boca – berrou Apollo. Em seguida, golpeou com a
espada. A lâmina zuniu pelos ares.
Mas não a atingiu. Apollo cortou um dos galhos carmesins
da árvore, fazendo com que sangue jorrasse da madeira.
Evangeline jamais havia visto nada tão aterrador. Meio que
ficou esperando a árvore gritar, mas não foi isso que
aconteceu. Muito pelo contrário: ela ficou com a impressão de
que a planta ganhava mais vida à medida que o sangue
escorria. O tronco ficou mais vermelho, como se a pele
estivesse corada, e se espichou, como se estivesse se
preparando para alguma coisa.
– Adeus, meu amor – disse Apollo.
Em seguida, encostou os lábios no galho que sangrava.
Era uma coisa horrível de se ver. O sangue manchou os
lábios e o queixo do príncipe, que bebeu sem parar. Engasgou-
se de leve e cuspiu, mas terminou de beber com um sorriso
escarlate, de dentes vermelhos e lábios ensanguentados.
Tirando isso, ele estava perfeito.
Deveria ter ficado horrível. Mas havia mudado. Apollo
brilhava, do mesmo jeito que Jacks brilhava de vez em
quando. O nariz não estava mais quebrado. Os olhos não
estavam mais inchados. Os olhos do príncipe eram dourados,
cintilantes como as estrelas que brilhavam no céu.
– Me sinto um deus – declarou ele, dando risada.
O chão pulsava cada vez mais rápido e cada vez mais forte.
A força da pulsação sacudiu Evangeline, que foi rolando por
diversos metros, afastando-se da árvore e sujando o rosto de
terra.
Quando ela tornou a olhar para cima, Apollo tinha perdido o
equilíbrio. Recuperou rapidamente, mas perdeu de novo
quando tentou se afastar da árvore. Evangeline ficou vendo a
pele brilhante de Apollo ficar cinzenta, e seu belo rosto se
contorcer, quando tentou dar mais um passo.
– O que está acontecendo? – perguntou o príncipe. Então
fez uma careta de dor e olhou para Lobric, com um ar de
acusação.
– Eu avisei – disse o antigo rei. – Eu te disse que, se você
desse algum valor à sua vida, deveria esquecer dessa árvore.
De repente, Apollo caiu de joelhos e se segurou no chão
com uma mão, como se tentasse se equilibrar.
– Você me disse que a árvore roubaria a vida da pessoa que
eu mais amo.
– Sim – respondeu Lobric. – Está roubando a sua vida.
O chão vibrou com mais força. Mais pedras e mais terra
voaram pelos ares. Raízes compridas, que pareciam dedos,
brotaram do chão e se esticaram na direção do príncipe.
– Pare! – gritou Apollo.
Galhos da árvore se precipitaram, feito as grades de uma
jaula.
– Não! Isso está errado: não era para você tirar minha vida.
Evangeline o observou golpear freneticamente com a
espada. Ele deu mais um golpe, um dos galhos prendeu a
espada, e lágrimas escorreram pelo rosto de Apollo. A árvore
lançou a espada para longe. A arma pousou, com um ruído
alto, ao lado de Evangeline.
Os rostos presos no tronco da árvore se retorceram. Os
lábios se retorceram. Os olhos se arregalaram quando os
galhos da árvore se enroscaram em Apollo e começaram a
arrastá-lo em direção ao tronco.
Apollo tentou arrancá-los com as mãos e gritou:
– Era para você ficar com ela, não comigo!
Evangeline jamais testemunhara algo tão pavoroso. Viu o
tronco se abrir como se fosse uma boca, pronta para devorar o
príncipe.
Apollo soltou um ruído apavorado, algo entre um
choramingo de criança e um urro animalesco.
Ela fechou os olhos, mas não tinha como evitar ouvir os
gritos.
– Não! – berrou o príncipe. – Por favor, não…
Suas últimas palavras não foram ouvidas.
Silêncio.
Por todos os lados.
Um silêncio absoluto tomou conta da caverna. Tão absoluto
quanto os gritos de Apollo, que ecoavam há poucos instantes.
Não se ouviam mais urros.
Nem gritos.
Nem galhos que se espichavam.
Nem batidas de coração.
Com todo o cuidado, Evangeline abriu os olhos. A Árvore
das Almas estava exatamente no mesmo lugar. Só que, agora,
havia mais um rosto horrorizado preso dentro do tronco.
49
Evangeline
A história poderia ter terminado ali, com o vilão sendo
derrotado e o casal cheio de júbilo prestes a partir para um
duvidoso final feliz.
Infelizmente, a luta não cessara porque Apollo ficaria preso
dentro de uma árvore por toda a eternidade. Jacks ainda estava
furioso. E, sendo assim, quando os filhos de Lobric Valor
finalmente o soltaram, mais socos foram trocados e mais
maldições violentas foram proferidas. As palavras ecoaram
pela caverna iluminada pelo luar enquanto punhos cerrados
bateram em rostos e roupas foram rasgadas.
Evangeline gritou para que parassem depois do primeiro
soco. Mas logo ficou óbvio que ninguém estava lhe dando
ouvidos e que aquela luta não demoraria a tomar grandes
proporções caso ela não desse um jeito de pôr fim naquilo.
A espada descartada de Apollo não estava muito longe.
Depois de se arrastar no chão de pedregulhos, ela conseguiu
cortar o próprio dedo na lâmina e empregar o sangue para se
libertar das algemas.
– Chega! – gritou, correndo em direção à briga dos homens,
Os dois filhos de Lobric estavam lutando com Jacks, de
nariz ensanguentado e causando uma terrível confusão. O
antigo rei do Norte era o único que havia se afastado da briga.
Dava a impressão de estar inspecionando a árvore – ou, talvez,
conversando com ela. Evangeline apenas olhou para Lobric de
esguelha, então pulou no meio dos três homens que brigavam
e berrou:
– Parem com essa bobagem, agora mesmo!
Jacks foi o primeiro a parar, seguido de um dos filhos de
Lobric. O outro, o mais corpulento dos dois, deu um último
soco no estômago do Príncipe de Copas – como se não
conseguisse se segurar. Mas Evangeline teve a sensação de
que o rapaz era apenas do tipo que precisava dar o último
soco.
Jacks se encolheu todo de dor, soltando um grunhido.
Evangeline correu para o lado do Arcano.
– Você está bem?
– Estou ótimo. – Então passou o braço nos ombros dela, em
um gesto protetor, e endireitou a postura. – Mato os dois
depois.
– Até parece – disse o mais corpulento dos irmãos Valor,
aquele que dera o último soco em Jacks.
Em seguida, tirou a camisa cinza-escura para estancar o
sangue do nariz.
– Este é Dane – grunhiu o Príncipe de Copas.
Evangeline levou um instante para ligar o nome à pessoa.
“Dane”. LaLa falara esse nome algumas vezes. Dane era o
metamorfo da amiga. Ela jamais havia tentado imaginar como
ele era, mas achava que não teria imaginado aquele
brutamontes que tinha acabado de dar o último soco.
O outro irmão, que tinha uma pele bem dourada que até
chegava a brilhar, lhe pareceu um pouco mais simpático.
– Não foi nada pessoal, Jacks. A gente apenas fez o que
nosso pai pediu.
O Arcano apertou os ombros de Evangeline e olhou feio
para Lobric, que acabara de se aproximar dos três.
– Não dava para você ter arranjado um jeito mais fácil de se
livrar do príncipe? – perguntou Jacks. – Tipo, quem sabe,
enfiar uma espada na barriga dele ou cortar a cabeça?
Todos os três integrantes da família Valor se encolheram ao
ouvir falar de cortar cabeças.
O Príncipe de Copas esboçou um sorriso.
Os integrantes da família Valor não tiveram a cabeça
cortada de fato, é claro. Mas, àquela altura, já deveriam
conhecer a história e, muito provavelmente, deveriam ter visto
as estátuas decapitadas de si mesmos no porto de Valorfell.
– Sinto por tê-la colocado nessa situação – disse Lobric,
dirigindo-se a Evangeline.
Estava com uma expressão arrependida, mas algo em suas
palavras, no jeito que dissera “tê-la colocado nessa situação”,
fez com que ela desconfiasse que as desculpas do antigo rei do
Norte não eram sinceras.
Evangeline teve a impressão de que Lobric acreditava que
havia agido corretamente e que suas ações eram mais
importantes do que o sofrimento e o pavor que lhe causaram.
Em seguida, ele explicou a história daquela árvore pavorosa,
contou como a havia plantado sem saber o que era e que
Apollo descobrira sua existência e perguntado como poderia
usá-la. O antigo rei contou para Evangeline e para o Príncipe
de Copas que havia alertado o príncipe duas vezes. Evangeline
acreditou nisso, mas não acreditou que Lobric Valor tinha um
pingo de pesar pelo fato de o príncipe não ter dado ouvidos
aos seus conselhos.
– Você pretende retomar o reino? – perguntou Jacks.
Lobric deu risada.
– Não é uma questão de retomar: o Norte sempre foi meu. –
Então começou a assoviar e se dirigiu à saída da caverna. –
Vamos, meus filhos – disse, virando a cabeça para trás. –
Precisamos encontrar a irmã de vocês.
Os irmãos se entreolharam de um jeito que deixou
Evangeline com a impressão de que os rapazes não queriam
acompanhar o pai em mais uma missão. Ela até podia
concordar com eles, porque tampouco estava a fim de
encontrar Aurora.
– O que você acha que eles farão com Aurora? – perguntou,
depois que os três foram embora.
– Acho que jamais a encontrarão – respondeu Jacks. –
Aqueles rapazes não querem sair à caça da irmã. Vão desistir
em menos de dois dias. E Lobric é orgulhoso demais para
permitir que alguém de fora da família saiba que a filha é um
monstro.
“Assim como Castor”, pensou Evangeline. Mas não queria
dizer isso em voz alta: na verdade, gostava muito de Castor. E
não queria falar mais da família Valor, por mais que tivesse
certeza de que ainda ouviria falar deles. Evangeline pensou
que, agora que Apollo se fora, seu título de princesa não
significava mais muita coisa. Mas, se Lobric quisesse o reino,
podia ficar com ele. Desde que ela pudesse ficar com Jacks.
O Príncipe de Copas riu baixinho ao lado de Evangeline, e
ela teve a impressão de que o Arcano ouvira seus
pensamentos.
Evangeline se virou para Jacks. Um hematoma roxo-
azulado crescia no olho esquerdo dele, o lábio estava cortado.
As roupas estavam rasgadas. Os botões da camisa haviam sido
arrancados. A manga esquerda se rasgara na altura do ombro e
estava pendurada.
E, mesmo assim, ele estava lindo como sempre.
Na verdade, a fazia lembrar da primeira vez que o vira, na
igreja do Príncipe de Copas, sentado lá no fundo, rasgando as
próprias roupas. Mas agora o Arcano estava sorrindo.
Evangeline ficou só observando os lábios de Jacks esboçarem
um sorriso presunçoso enquanto os dois se dirigiam à saída da
caverna.
– Aonde vamos? – perguntou ela.
Uma covinha apareceu bem debaixo de um corte no rosto de
Jacks.
– Podemos ir aonde você quiser, Raposinha.
Epílogo

A
famigerada maldição das histórias do Magnífico
Norte ficou observando os amantes amaldiçoados –
que não eram mais amaldiçoados – saírem daquela
caverna antiquíssima.
A maldição ficou aliviada de ver que, por fim, estavam indo
embora. Nunca gostou daquela caverna – era um cenário tão
sinistro – e simplesmente tinha aversão daquela maldita árvore
que ali vivia. A maldição ateava fogo em qualquer história que
mencionasse a árvore amaldiçoada, na tentativa de alertar os
mortais e convencê-los a se manterem longe dela, mas os seres
humanos podem ser criaturas tão tolas…
A maldição ficou feliz de ver que aquela garota humana e
seu garoto, que não era exatamente humano, tiveram a
inteligência de se afastar da árvore.
A maldição supôs que, agora, o casal estaria a caminho de
alguma espécie de final feliz. Normalmente, a essa altura teria
parado de olhar.
Finais felizes são reconhecidamente chatos. Não dão
histórias muito boas e, sendo assim, a maldição das histórias
não consegue fazer muita coisa, a menos que esteja a fim de
virar esses finais jubilosos de pernas para o ar. E a maldição
não queria fazer isso naquele momento. Mas queria, sim,
encontrar a resposta para uma pergunta específica, que ainda
não fora respondida.
E, sendo assim, a maldição das histórias ficou observando o
garoto, que não era exatamente humano e estava ferido, com o
braço em volta dos ombros da garota que, um dia, trouxera de
volta dos mortos.
A maldição realmente torcia para que os dois encontrassem
um final feliz. Não tinha cem por cento de certeza de que o
garoto que não era exatamente humano merecia isso. Mas,
com certeza, a garota de cabelo ouro rosê merecia.
A garota olhava para o garoto que não era exatamente
humano com ar de adoração, apesar dos hematomas, dos
cortes e do sangue espalhado no corpo dele.
– Ainda tenho uma pergunta – disse a garota.
Se a maldição das histórias fosse capaz de respirar, poderia
ter segurado a respiração naquele momento.
E viu o garoto que não era exatamente humano erguer a
sobrancelha, ofendido, e retrucar:
– Só uma?
– Não… na verdade, tenho muitas.
Ela mordeu o lábio com seus dentes brancos.
Algo mudou no olhar do garoto que não era exatamente
humano: dava a impressão de que também queria morder os
lábios dela.
– Você pode me perguntar tudo o que quiser, Raposinha.
– Sensacional! – Os lábios dela esboçaram um sorriso terno.
– Conte qual é a das maçãs.
– Próxima pergunta.
– Você disse que eu poderia perguntar tudo o que eu
quisesse.
O garoto que não era exatamente humano ficou com um
olhar de deboche, seus olhos brilhavam com pequenas
partículas de prata.
– Eu não falei que ia responder.
Ela curvou os lábios.
O garoto que não era exatamente humano passou o dedo no
lábio inferior dela.
– Não tem importância – falou, baixinho. – Não preciso
mais das maçãs.
A garota piscou, surpresa.
O garoto que não era exatamente humano se aproximou…
E a maldição das histórias parou de olhar. Estava na hora de
deixar aqueles dois em paz e permitir que tivessem seu final
feliz.
Outras histórias estavam nascendo no Magnífico Norte.
Agradecimentos

E
u sempre fico nervosa quando escrevo agradecimentos.
Tenho medo de não conseguir transmitir o quanto sou
grata a todas as pessoas incríveis que fazem parte da
minha vida. Este livro foi particularmente difícil de escrever, e
eu não teria mesmo conseguido sozinha.
Em primeiro lugar, quero agradecer a Deus, porque tenho a
sensação de que, sinceramente, foi um milagre eu ter
terminado de escrever este livro.
Sarah Barley, você faz parte do milagre que me ajudou a
terminá-lo – e você é simplesmente maravilhosa. Muito, muito
obrigada por todos os telefonemas, pelas sugestões de edição e
pelo incentivo de que eu tanto precisava. Eu não teria
sobrevivido a este livro sem você.
Sou tão grata pelo fato de meus livros terem uma editora
incrível nos Estados Unidos, a Macmillan, e serei eternamente
grata a todas as pessoas fantásticas que trabalham lá e à
incrível equipe da Flatiron Books. Obrigada, Bob Miller,
Megan Lynch, Malati Chavali, Nancy Trypuc, Maris Tasaka,
Cat Kenney, Marlena Bitter, Sydney Jeon, Donna Noetzel,
Frances Sayers, Emily Walters, Keith Hayes, Kelly Gatesman,
Louis Grilli, Erin Gordon e a todas as equipes da Macmillan
Áudio, Macmillan Bibliotecas e Macmillan Vendas.
Eu me sinto tão abençoada de também ter uma editora
maravilhosa no Reino Unido, a Hodder & Stoughton.
Kimberley Atkins, é um sonho trabalhar com você – obrigada
por ter aparecido para fazer uma leitura quando era tão
absurdamente necessário e por todas as suas brilhantes
intervenções.
Esses livros não seriam os mesmos sem os incríveis artistas
que fizeram capas, mapas e capas alternativas para toda a
trilogia. Muito, muito obrigada, Lydia Blagden, Erin
Fitzsimmons, Virginia Allyn e Sally Pham.
Obrigada, Rebecca Solar, por ter dado vida a esses
personagens de uma maneira tão extraordinária com a sua
espetacular locução no audiolivro.
Este livro teria sido um desastre se eu não tivesse minhas
amigas – sou muito grata pelo incentivo, pelo amor, pelas
perguntas e por terem me avisado sempre que fiz escolhas
erradas ao longo desta história. Obrigada, Stacey Lee, Kristin
Dwyer, Isabel Ibañez, Anissa de Gomery, Jenny Lundquist,
Kristen Williams, Brandy Ruscica, J. Elle e Kerri Maniscalco.
E um agradecimento especial e enorme para Mary E. Pearson,
que foi a primeira pessoa a ler este livro – sou especialmente
grata pelos conselhos que recebi dela.
Um enorme agradecimento para minha maravilhosa agente,
Jenny Bent, e para todos da agência Bent. Sou tão grata pelos
incansáveis esforços que todos vocês fizeram por mim.
Agora estou com lágrimas nos olhos de pensar em como
posso dizer “obrigada” para minha família. Este último ano foi
tão absurdamente difícil, e nem tenho palavras para agradecer
à minha família pelo amor, pela ajuda e por serem
simplesmente tão maravilhosos. Obrigada, mãe, pai, Allison e
Matt – não tenho palavras para dizer o quanto amo vocês.
Por fim, obrigada, leitores. Neste último ano, fiquei
absolutamente admirada com o amor que esta trilogia recebeu.
Sou grata pelas fotos, pelos vídeos e por todas as palavras
gentis de todos vocês. É tão frequente eu receber mensagens
que começam com “Duvido que um dia você vá ver essa
mensagem” – mas eu vejo, sim! Não consigo responder a
todos individualmente, mas quero que saibam que eu as vejo e
sou muito grata a todos vocês!

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