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ATO I
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ATO II
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ATO III
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ATO IV
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ATO V
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EPÍLOGO
EXEUNT OMNES.
NOTA DA AUTORA
NOTA DE TRADUÇÃO
AGRADECIMENTOS
ATO I
PRÓLOGO
Na primeira vez em que saio da prisão em dez anos, o sol é uma esfera
branca ofuscante, em um céu cinzento, cor de água suja. Eu me esquecera
de como o mundo aqui fora era imenso. A princípio, fico paralisado pela
vastidão, como o peixinho de estimação de alguém que foi inesperadamente
jogado no oceano. Então, vejo Filippa, encostada no carro, a luz refletindo
dos óculos de estilo aviador. Eu mal consigo resistir ao impulso de correr
até ela.
Nós nos abraçamos violentamente, como irmãos, mas eu a seguro por
mais tempo do que isso. Ela é sólida e familiar, e é o primeiro contato
afetuoso com um ser humano que eu tenho em muito tempo. Eu enterro o
rosto no cabelo dela. Tem cheiro de amêndoas, e eu inspiro o mais
profundamente que consigo, pressionando a palma das mãos nas costas dela
para sentir o batimento do coração.
— Oliver.
Ela suspira e aperta minha nuca. Durante um instante turbulento, penso
que vou me debulhar em lágrimas, mas, quando eu a solto, ela está sorrindo.
Ela não parece diferente. É claro, pois ela veio me visitar a cada duas
semanas desde que me trancafiaram. Além de Colborne, ela é a única que
fez isso.
— Obrigado — digo.
— Pelo quê?
— Por estar aqui. Hoje.
— Meu pobre prisioneiro — diz ela, colocando uma mão na minha
bochecha. — Sou inocente como a ti.
O sorriso dela desaparece quando ela retrai a mão.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — pergunta.
Por um ou dois segundos, eu realmente penso no assunto. Porém, foi tudo
o que fiz desde a última visita de Colborne, e já me decidi.
— Tenho certeza, sim.
— Certo — responde ela, abrindo a porta do motorista. — Entre aí.
Eu subo no banco do carona, onde uma calça jeans masculina e uma
camiseta estão ordenadamente dobradas. Eu coloco as roupas no colo e ela
dá partida no carro.
— São do Milo?
— Ele não vai se importar. Não achei que você gostaria de aparecer nas
mesmas roupas com que foi embora.
— Não são as mesmas roupas.
— Você sabe do que eu estou falando — diz ela. — Essas não cabem.
Você parece que encorpou uns dez quilos. A maioria das pessoas perde peso
na prisão, não?
— Não se quiserem sair inteiras — respondo. — Além disso, não tem
muito o que fazer.
— Então você ficava malhando sem parar? Parece até a Meredith.
Com medo de corar, tiro minha camiseta, na esperança de que ela não
note. O olhar dela parece estar fixo na estrada, mas os óculos são
espelhados, então não consigo determinar com precisão.
— Como ela está? — pergunto, procurando pela etiqueta na outra
camiseta.
— Mal certamente não está. Nós não nos falamos muito. Nenhum de nós
se fala.
— E Alexander?
— Ainda está em Nova York — diz, o que não é uma resposta para a
pergunta que fiz. — Começou a trabalhar em uma companhia que faz umas
apresentações intensas, bem imersivas. Agora ele está fazendo Cleópatra
em um galpão cheio de areia e cobras de verdade. Bem Artaud. Eles vão
fazer A tempestade em seguida, mas acho que vai ser a última peça dele.
— Por quê?
— Bom, eles querem fazer César, mas ele se recusa a fazer de novo. Ele
acha que foi essa a peça que nos deixou fodidos da cabeça. Eu já disse que
ele está errado.
— Você acha que foi Macbeth?
— Não. — Ela para no sinal vermelho e olha para mim. — Acho que nós
todos já éramos fodidos da cabeça pra começo de conversa.
O carro ruge à vida novamente, vai da primeira marcha para a segunda.
— Não sei se isso é verdade — digo, mas nenhum de nós prossegue com
o assunto.
Nós seguimos em silêncio por um tempo, e então Filippa liga o rádio. Ela
está escutando um livro em áudio — O mar, o mar, de Iris Murdoch. Eu o li
na cadeia há alguns anos. Além de malhar e esperar passar despercebido, é
isso que um jovem estudante de Shakespeare faz na prisão. Quando cheguei
na metade da pena de dez anos, fui recompensado pelo meu bom
comportamento (no caso, por não causar estorvos) com um trabalho
arquivando livros, em vez de descascando batatas.
Porque já conheço a história, mal escuto as palavras. Pergunto a Filippa
se posso abaixar o vidro, e penduro a cabeça para fora como se fosse um
cachorro. Ela ri, mas não diz nada. O ar fresco de Illinois passa pelo meu
rosto, leve e aprazível. Eu olho para mundo através dos meus cílios,
alarmado com a claridade mesmo naquele dia nublado.
Minha mente percorre o caminho até Dellecher, e eu me pergunto se irei
reconhecer o lugar. Talvez tenham demolido o Castelo, derrubado árvores
para abrir espaço para dormitórios de verdade, e instalado uma cerca para
manter os alunos longe do lago. Talvez agora se pareça mais com uma
colônia de férias infantil: estéril e seguro. Ou talvez, como Filippa, mal
tenha mudado. Ainda consigo vê-lo, vivaz e verde e selvagem, de alguma
forma encantado, como a floresta de Oberon, ou a ilha de Próspero. Há
coisas que ninguém diz sobre os lugares mágicos — que são tão perigosos
quanto são belos. E por que Dellecher seria diferente?
Duas horas se passam, e finalmente Filippa estaciona na rua comprida e
vazia diante do Pavilhão. Ela sai primeiro, e eu a sigo devagar. O Pavilhão
está igual, mas eu olho imediatamente adiante dele, para o lago, que
resplandece sob o sol incruento. A floresta que o cerca é tão espessa e
indócil quanto me lembro, as árvores afiadas e ferozes subindo na direção
do céu.
— Você está bem? — pergunta Filippa.
Eu não saí de perto do carro.
— Estranho labirinto trilhado pelos homens.
Pânico flutua suavemente ao redor do meu coração. Por um instante,
tenho vinte e dois anos novamente, e observo a inocência escapar por entre
meus dedos, igualmente aterrorizado e ávido. Dez anos tentando explicar
Dellecher, em todo seu esplendor insensato, para homens de macacões bege
que não fizeram faculdade, ou sequer terminaram o ensino médio, me
fizeram perceber que, como estudante, eu era intencionalmente ignorante ao
fato de que Dellecher estava menos para uma instituição acadêmica e mais
para um culto. Quando cruzávamos aquelas portas pela primeira vez,
fazíamos aquilo sabendo que seríamos parte de uma religião estranha e
fanática em que tudo poderia ser perdoado desde que ofertado no altar para
as Musas. Loucura ritualística, êxtases, sacrifício humano. Nós fomos
enfeitiçados? Sofremos lavagem cerebral? Talvez.
— Oliver? — diz Filippa com mais gentileza. — Você está pronto?
Não respondo. Nunca estive pronto.
— Vamos.
Ando atrás dela. Eu me preparei para o choque de ver Dellecher
novamente — quer mudado ou não —, mas eu não estava esperando a dor
repentina no peito, como a ânsia por um antigo amor. Eu senti saudades.
Desesperadamente.
— Cadê ele? — pergunto, quando alcanço Filippa.
— Ele queria esperar no Habeas Copos, mas achei que você não deveria
voltar lá, pelo menos não ainda.
— Por quê?
— Muito do mesmo pessoal ainda trabalha lá — explica, e dá de ombros.
— Não sabia se você estaria pronto para ver todo mundo.
— Eu teria mais medo de eles não estarem prontos para me ver — digo,
porque sei que é nisso que ela está pensando de verdade.
— É — concorda ela. — Isso também.
Ela me leva pelas portas da frente — o brasão de Dellecher, com a chave
e a pena, me encarando em desaprovação, como se para dizer “Você não é
mais bem-vindo”. Eu não perguntei a Filippa quem mais sabe que eu estou
voltando. É verão, e os alunos estão de férias, mas o corpo docente muitas
vezes permanece no campus. Será que, se eu virar um corredor, vou me
deparar cara a cara com Frederick? Gwendolyn? Ou, e que Deus tenha
misericórdia da minha alma, o Reitor Holinshed?
O Pavilhão está estranhamente vazio. Nossos passos ecoam pelos
corredores largos, normalmente tão abarrotados de pessoas que qualquer
som é abafado. Olho curioso para o salão de música. Cortinas brancas estão
penduradas na janela, e a luz recai em faixas largas e pálidas nos assentos
vazios. Tem o mesmo clima assombrado de uma catedral abandonada.
O refeitório também está quase vazio. Sentado sozinho em uma das
mesas para estudantes, segurando uma xícara de café e parecendo
distintamente deslocado, está Colborne. Ele se levanta depressa e oferece
uma mão. Eu a seguro sem hesitar, estranhamente feliz em vê-lo.
EU: “Detetive.”
COLBORNE: “Não mais. Entreguei o distintivo semana passada.”
FILIPPA: “Por que mudou de ideia?”
COLBORNE: “Foi ideia da minha mulher, na maior parte. Ela diz que, se
quiser arriscar minha vida e levar tiros, ao menos eu deveria ser bem
compensado.”
FILIPPA: “Quanta consideração.”
COLBORNE: “Você ia gostar dela.”
Filippa ri, e diz:
— Provavelmente.
— E como você vai? — pergunta ele. — Ainda está pairando por aqui?
Ele olha para as mesas vazias, para o teto abobadado, como se não
tivesse muita certeza de onde está.
— Bom, nós moramos em Broadwater — diz ela.
Presumo que o “nós” se refira a ela e Milo. Eu não sabia que estavam
morando juntos. Ela é quase tão misteriosa para mim agora quanto há dez
anos, mas eu não a amo menos por isso. Eu entendo segredos guardados a
sete chaves mais do que a maioria das pessoas.
— Durante o verão, não costumamos vir muito para cá — completa ela.
Colborne assente. Eu me pergunto se ele se sente estranho perto dela. Ele
me conhece — conheceu todos nós, outrora —, mas e agora? Será que olha
para ela e vê uma suspeita? Eu o observo de perto, e espero que não precise
lembrá-lo de nosso combinado.
— Não vejo motivos pra isso mesmo — diz ele, de forma amigável.
— Só temos que decidir o que vamos fazer na temporada do ano que
vem, mas para isso não precisamos vir até aqui.
— Já tem alguma ideia?
— Estamos pensando em Noite de reis para os alunos do terceiro ano.
Nós temos dois alunos que compartilham do mesmo DNA pela primeira vez
desde… bom, desde Wren e Richard.
Há uma pausa breve e desconfortável antes que ela continue.
— E não temos ideia do que fazer com os alunos do quarto ano.
Frederick quer variar e tentar Conto de inverno, mas Gwendolyn insiste em
Otelo.
— É um bom grupo esse ano?
— Bom como sempre. Escolhemos mais mulheres do que homens pela
primeira vez.
— Ruim não é, então.
Eles compartilham um sorriso rápido, e finalmente Filippa se vira
diretamente para mim. Ela ergue as sobrancelhas de leve. É agora ou nunca.
Eu me viro para Colborne, imitando a expressão dela. Ele consulta o
relógio.
— Vamos caminhar?
— O que você preferir — respondo.
— Certo — diz ele para mim. E então, para Filippa: — Você vem?
Ela sacode a cabeça, de alguma forma sorrindo e franzindo o cenho ao
mesmo tempo.
— Não preciso — diz ela. — Eu estava lá.
Colborne estreita os olhos. Sem se deixar perturbar, ela toca no meu
braço, dizendo:
— Eu te vejo hoje à noite.
Com isso, ela sai do refeitório, e as perguntas não ditas de Colborne
pairam no ar atrás dela. Ele a observa ir embora, e então pergunta:
— O quanto ela sabe?
— Ela sabe de tudo.
Ele franze o cenho, os olhos praticamente desaparecendo sob as
sobrancelhas grossas.
— As pessoas sempre se esquecem de Filippa — acrescento. — E depois
sempre se arrependem.
Ele suspira, como se não tivesse a energia para realmente se incomodar.
Contempla o café por um instante, e então o abandona na mesa.
— Bem — diz ele. — Vá na frente.
— Para onde vamos?
— Você sabe melhor do que eu.
Fico em silêncio, pensando. Então, eu me sento. É um lugar bom como
qualquer outro.
Colborne solta um risinho, relutante.
— Quer um pouco de café?
— Eu não recusaria.
Ele desaparece para dentro da cozinha, onde tem duas cafeteiras no
canto. (Estão aqui ao menos há catorze anos. Estão sempre cheias, apesar de
eu nunca — nem mesmo como estudante — ter visto quem as enchia.) Ele
volta com uma caneca cheia e a coloca na minha frente. Vejo o leite fazer
redemoinhos quando ele se senta na mesma cadeira da qual acabou de
levantar.
— De onde quer que eu comece? — pergunto.
Ele dá de ombros.
— De onde você achar que é melhor. Sabe, Oliver, eu não quero só
descobrir o que aconteceu. Eu quero saber o como e o porquê e o quando.
Eu quero entender tudo.
Pela primeira vez em muito tempo, aquela rachadura que eu tenho em
meu âmago, a ferida escura na minha alma que está lutando para se curar há
quase uma década, pulsa. Os sentimentos antigos voltam aos poucos,
suaves. Uma amargura doce, a discórdia e a incerteza.
— Eu não contaria com isso — digo. — Já faz dez anos, e nem eu
entendi tudo.
— Então talvez ter essa conversa seja bom para nós dois.
— Talvez.
Tomo um gole do café, pensativo. É um café bom — saboroso, diferente
da gosma amarronzada que bebíamos na prisão, que apenas vagamente
lembrava café, mesmo nos dias bons. O calor ameniza a dor inchada no
meu peito, ao menos por um instante.
— Enfim — digo, quando estou pronto.
A caneca está quente nas minhas mãos, e as memórias me inundam como
drogas, afiadas, cristalinas, em um caleidoscópio.
— Era o semestre de outono de 1997. Eu não sei se você se lembra, mas,
naquele ano, o outono foi quente.
CENA 1
No ensaio geral da noite seguinte, não parei de olhar para Richard, mas, no
fim, quando ele foi longe demais, eu não era o único que estava observando
de perto.
Nós havíamos acabado de encenar o Ato II, Cena 1, que incluía a reunião
de Brutus com os conspiradores, um encontro com Portia e um encontro
com Ligarius. (Eu não fazia ideia de como James conseguia se lembrar de
todas as falas direito.) Wren e Filippa haviam saído do palco à direita, e
estavam espiando curiosamente pelas cortinas. James, Alexander e eu
saíramos pela esquerda, e esperávamos inquietos na escuridão densa das
coxias por nossa próxima entrada: três-um, a cena do assassinato.
— Quanto tempo vocês acham que eu tenho? — perguntou Alexander,
um sussurro rouco por cima do ombro.
— Para fumar? — falei. — Deve dar tempo se você for agora.
— Se eu me atrasar, deem uma enrolada.
— Como é que eu vou fazer isso?
— Finja que esqueceu uma fala, sei lá.
— E invocar a fúria de Gwendolyn? De jeito nenhum.
Wren colocou um dedo nos lábios do outro lado do palco, e James deu
uma cotovelada em Alexander.
— Pare de falar. Dá para te ouvir do outro lado.
— Qual cena é essa? — perguntou Alexander, mais baixinho.
Richard já entrara no palco — sem gravata e sem paletó — e estava
falando com um criado, um papel feito por nossos inesgotáveis alunos de
segundo ano.
— Calpúrnia — murmurei.
Como se de alguma forma eu a invocasse, Meredith apareceu entre as
duas colunas centrais, descalça e vestindo um penhoar curto de seda, os
braços cruzados.
Alexander deu um assobio baixo.
— Olha só as pernas dela. É mesmo um bom jeito de vender os
ingressos.
— Sabe — disse James —, para um cara que gosta de outros caras, você
faz muitos comentários heterossexuais.
ALEXANDER: “Eu faria uma exceção para Meredith, mas ela precisaria
estar usando esse penhoar.”
JAMES: “Você é nojento.”
ALEXANDER: “Eu sou flexível.”
EU: “Calem a boca, eu quero ouvir.”
James e Alexander se entreolharam com uma expressão que eu não
entendi e escolhi ignorar.
— O que deseja, César? Pensa em sair? — perguntou Meredith, quando
o criado foi embora. — É melhor não sair hoje.
Ela estava parada com uma mão na cintura, a expressão sombria e crítica.
A cena mudara desde a última vez que eu a vira; Meredith descia para a
Bacia e descrevia o sonho que tivera de uma forma que mais parecia uma
ameaça do que um aviso. Richard, a julgar pela expressão, não estava com
paciência de ouvir.
— Bem — disse Alexander —, eu não contaria com ele ficar em casa
depois dessa.
O criado entrou outra vez, claramente aterrorizado por sequer
compartilhar o mesmo palco com os dois.
RICHARD: “Que dizem os augúrios?”
CRIADO: “Que não saia hoje.
Tirando as entranhas de uma fera,
Não tinha coração na oferenda.”
Richard se virou para Meredith.
RICHARD: “Os deuses humilham a covardia.
César seria fera sem coração
Se ficasse em casa por medo.
Não, César não cederá.”
Ele a agarrou pelos ombros, e ela se debateu sob o aperto dele.
— É assim que estava na rubrica? — perguntei.
Nem James nem Alexander responderam.
RICHARD: “Bem sabe o perigo
Que César é mais perigoso que ele.
Somos leões de igual nascimento,
Eu, o mais velho e mais terrível…”
Meredith estremeceu e soltou um gritinho de dor. Filippa viu meu olhar
do outro lado das coxias e sacudiu a cabeça muito de leve.
— E César — berrou Richard — vai sair!
Ele jogou Meredith para longe com tanta força que ela perdeu o
equilíbrio e caiu para trás nos degraus. Ela jogou os braços para se proteger,
e fez-se um estalo surdo quando o cotovelo dela se chocou contra a
madeira. O mesmo reflexo vingativo que senti no Halloween me impeliu
para a frente — para fazer o quê, não tinha ideia —, mas Alexander agarrou
meu braço e sussurrou:
— Vá com calma, tigrão.
Meredith empurrou o cabelo para longe do rosto, se voltando para
Richard com olhos arregalados e irados. Por um segundo, o auditório ficou
em silêncio, com exceção do zumbido baixo das luzes, antes de ela dizer:
— Desculpa, mas que porra foi essa?
— Calma! — gritou Gwendolyn, dos fundos do teatro, a voz estridente e
distante.
Meredith ficou em pé e bateu no peito de Richard com as costas da mão.
— O que foi isso?
— O que foi o quê?
Ele, por alguma razão incompreensível, parecia ainda mais irado do que
ela.
— Essa não era a rubrica!
— Olha só, é um momento importante, eu me deixei levar…
— E aí você decidiu me jogar na porra da escada?
Gwendolyn vinha correndo pelo corredor principal, gritando:
— Parem! Parem com isso!
Richard agarrou o braço de Meredith e deu um puxão para perto, tão
perto que ele poderia beijá-la.
— Você vai mesmo fazer escândalo agora? — disse ele. — Eu não faria
isso.
Eu reprimi um palavrão, afastei a mão de Alexander do meu ombro e
corri para o palco, James logo atrás. Só que Camilo chegou primeiro,
pulando da primeira fileira da plateia.
— Ei! — disse ele. — Vamos apartar isso aí. Hora de se acalmar.
Ele enfiou um braço entre os dois, e tirou Meredith do alcance de
Richard.
— O que está acontecendo aqui? — exigiu Gwendolyn assim que chegou
ao palco.
— Bom, Dick resolveu improvisar na direção — disse Meredith,
empurrando Camilo para longe.
Ela fez uma careta quando a mão dele roçou no braço, e abaixou os
olhos. Uma gota de sangue escapava da manga. Minha própria raiva, vinda
de outrem — confusa e sobreposta, em parte por James, em parte por
Meredith —, rugiu em meu peito, e eu cerrei os dentes, lutando contra um
ímpeto suicida de me arremessar contra Richard e jogá-lo no fosso da
orquestra.
— Estou sangrando — disse Meredith, encarando as manchas vermelhas
na ponta dos dedos. — Seu filho da puta.
Ela se virou e jogou as cortinas para trás, ignorando Gwendolyn, que
gritava:
— Meredith, espere!
A raiva de Richard se apagou como uma lâmpada estourada, e o deixou
com expressão inquieta.
— Todos aproveitem e façam dez minutos de pausa — disse Gwendolyn
para o resto de nós. — Ah, que sejam quinze logo. Vamos fazer o intervalo
agora. Vão.
Os alunos do segundo e terceiro ano foram os primeiros a se mexer,
deixando o auditório em duplas, aos cochichos. Senti Alexander pairando
atrás de mim e respirei fundo, me preparando.
— Camilo, pode ir ver se ela está bem? — pediu Gwendolyn.
Ele assentiu e saiu do palco pelo auditório. Ela se virou para Richard.
— Vá pedir desculpas a ela — ordenou Gwendolyn — e, se fizer
qualquer coisa assim de novo, que Deus me acuda, farei Oliver aprender
todas as suas falas e você vai assistir à noite de estreia na primeira fila.
— Me desculpe.
— Não peça desculpas a mim — disse ela, mas a raiva já estava
esvaindo, virando exasperação.
Richard assentiu, quase humilde, e a observou caminhar lentamente de
volta para os fundos do teatro. Foi só depois que ele se virou que pareceu
perceber que nós cinco estávamos parados ali, fuzilando-o com o olhar.
— Ah, relaxem — disse ele. — Eu não machuquei ela de verdade. Ela só
está brava.
Ao meu lado, James cerrou os punhos com tanta força que os braços
estavam tremendo. Eu troquei meu peso de pé, agitado demais para ficar
imóvel. Alexander se inclinou para a frente, como se estivesse pronto para
se atirar entre nós dois e Richard, caso precisasse.
— Pelo amor de Deus — disse Richard, quando ninguém respondeu. —
Vocês sabem como ela gosta de um draminha.
— Richard! — ralhou Wren.
Ele pareceu culpado, mas só por um instante.
— Sério — disse ele —, preciso pedir desculpas pra todos vocês
também?
— Não, claro que não — respondeu Filippa, em uma voz calma e firme
que me distraiu do som latejante do sangue em meus ouvidos. — Por que
faria isso? Você só interrompeu o ensaio, estragou a porra da direção de
Gwendolyn, forçou Milo a apartar uma briga, possivelmente estragou um
figurino e danificou o cenário, e machucou uma amiga nossa, sendo que já
machucou outro antes. Agora Oliver talvez precise aprender todas as suas
falas e fazer o seu papel e salvar a peça quando você inevitavelmente foder
tudo de novo. E você ainda tem coragem de culpar Meredith e falar que ela
gosta de um draminha?
Os olhos azuis dela estavam gélidos como uma nevasca.
— Sabe, Rick, as pessoas não vão aguentar esse seu comportamento por
muito mais tempo — acrescentou.
Ela deu as costas para ele antes que ele tivesse tempo de responder,
desaparecendo entre as coxias. Ela dissera tudo que nós queríamos dizer, e a
tensão cedeu ligeiramente. Eu expirei; James abriu os punhos.
— Nem comece, Richard — disse Wren, quando ele abriu a boca
novamente. Ela sacudiu a cabeça, uma expressão tensa e irritada que não
era muito diferente de desdém. — Não comece.
Então, ela foi atrás de Filippa.
Richard fungou e disse a mim, James, e Alexander:
— Mais alguém?
— Não — disse Alexander. — Acho que ela já falou tudo.
Ele lançou um olhar de alerta para mim e James antes de sair pelas
coxias, revirando os bolsos e procurando por seda.
Só restamos nós três. James, Richard e eu. Pólvora, fogo e rastilho.
Richard e James se encararam por um instante, como se eu não estivesse
presente, mas nenhum deles abriu a boca. O silêncio entre eles era precário
e instável. Eu esperei, me perguntando para que lado penderia, a apreensão
fazendo com que todos os meus músculos tensionassem sob a pele. Por fim,
James ofereceu a Richard o menor dos sorrisos — o brilho de um triunfo
mesquinho — e se virou, saindo atrás de Alexander.
O olhar de Richard repousou em mim, e eu pensei que talvez me
queimasse por dentro.
— Ainda não precisa começar a aprender minhas falas — disse ele.
Então, ele me deixou no palco sozinho. Fiquei em silêncio. Imóvel. Em
minha própria consideração, inútil. Um rastilho sem fogo, sem nada para
inflamar.
CENA 4
James e eu encaramos o pôster por tanto tempo que a maioria das pessoas
que tinham ido investigar perderam o interesse e foram embora.
— Bom — disse ele —, isso definitivamente chama a atenção.
Eu ainda estava olhando para o cartaz, irritado por James não estar mais
irritado.
— Foda-se essa merda — falei. — Eu não quero ele em todas as paredes
me encarando como uma espécie de Grande Irmão durante as próximas
duas semanas.
— Ele comanda o mundo estreito / como um Colosso — observou James
—, e nós, homens mesquinhos, / andamos sob suas pernas / até nossos
túmulos sem honra.
— Foda-se essa merda aí também.
— Você está falando que nem Alexander.
— Desculpa, mas, depois de ontem noite, eu acho que as chances de
Richard arrancar minha cabeça subiram em uns cem por cento.
— Lembre-se disso da próxima vez que Meredith se atirar em cima de
você.
— Não foi bem assim — eu disse, e imediatamente desejei que não
tivesse falado nada.
— Cuidado, Oliver — disse ele, sábio, como se lesse minha mente. —
Você confia demais. Ela fez isso comigo também no primeiro ano. Ela foi
minha parceira nas aulas de voz, aquela coisa esquisita de ficar
cantarolando, lembra?
— Espera aí, ela fez o quê?
— Decidiu que me queria e presumiu que eu a queria de volta. Afinal,
não é todo mundo que quer? Quando eu disse não, ela mudou de ideia. Agiu
como se nada tivesse acontecido e partiu para Richard.
— Você está falando sério?
Ele me lançou um olhar irônico em resposta.
— Jesus amado — respondi.
Eu desviei o olhar, procurando pelo refeitório, curioso com quais outros
segredos todo mundo estava guardando. Como nos preocupávamos pouco
com a vida íntima de outras pessoas.
— Por que você nunca me contou?
— Não parecia importante.
Pensei em James enrolando uma mecha do cabelo de Wren nos dedos, e
perguntei:
— Mais alguma outra coisa que eu deveria saber, já que estamos falando
nesse assunto?
— Não. Juro.
Se ele estava escondendo alguma coisa, a expressão — tranquila,
despreocupada — não deixava transparecer nada. Talvez Alexander
estivesse certo, e James e eu fôssemos igualmente tontos.
Troquei meu peso de perna. Senti que Richard me observava, o cartaz
uma horrenda mancha vermelha na minha visão periférica. Eu me virei,
suspirei ao vê-lo, e disse:
— Acho que a boa notícia é que, depois do drama de ontem, ele vai
precisar parar de tentar quebrar seu braço no Ato III.
— Você acha?
— Você não?
James sacudiu a cabeça de uma forma triste e distraída.
— Ele é inteligente demais para isso.
— Então… o que você acha que ele vai fazer?
— Ele vai sossegar, mas só por uns dias. Vai esperar a noite de estreia.
Gwendolyn não vai correr no meio do palco e parar a peça.
O olhar dele perscrutou todos os cantos do pôster. Por um momento,
talvez tivesse se esquecido de que eu estava ali.
JAMES: “Em nome dos deuses todos, pergunto
De que carne se alimentou nosso César
Para que crescesse tanto?”
Eu fiquei em silêncio por um tempo, e finalmente respondi com uma das
minhas próprias falas, incerto de onde exatamente surgira.
EU: “Me dê a mão:
Conspire para vingar o luto,
E meus pés estarão mais longe
Do que quem já foi longe demais.”
Os olhos cinzentos de James reluziram com um brilho dourado quando
ele encontrou meu olhar.
— Está feita a barganha.
Havia algo desconhecido no sorriso dele, um contentamento voraz que
me deixou ao mesmo tempo ávido e irrequieto. Eu sorri de volta da melhor
forma que pude, e então o segui até a cozinha para pegar um copo de água.
Minha boca estava insuportavelmente seca.
CENA 6
Eu não dormi por muito tempo, e dormi como um homem em uma jangada,
as ondas oscilando sob mim — mais mareado do que bêbado. Meus olhos
se abriram antes mesmo de eu compreender que estava acordado, e eu
encarei o teto pouco familiar. Meredith estava deitada ao meu lado, uma
mão encaixada sob a bochecha, o outro braço aninhado ao peito. Uma ruga
minúscula se mostrava entre as sobrancelhas, como se a essência dos seus
sonhos a perturbasse.
O abajur na mesa de cabeceira escoava uma luz alaranjada e aguada na
cama. Eu estiquei o braço cuidadosamente para além de Meredith, mas
hesitei. Sua respiração tremulava nas costas da minha mão. Eu não
conseguia deixar de olhá-la — pela primeira vez, não porque ela era linda,
mas porque as pequenas manchas escuras no corpo dela, que em meu fervor
embriagado confundira com sombras e truques da luz, não haviam sumido.
A linha delicada do pulso dela estava marcada por minúsculas
eflorescências roxas, como botões de violeta na pele. Marcas mais antigas,
apagadas como aquarela, mostravam onde uma mão mais pesada que a
minha a tocara, onde dedos fantasmas apertaram com força demais: na
nuca, na curva do joelho. Ela estava tão machucada quanto James. Senti
náuseas, mas aquele sentimento de embrulho repousou em meu peito, em
vez de no estômago.
Arrisquei afastar uma mecha do cabelo dela da bochecha, e então apaguei
a luz. O quarto encolheu ao meu redor, a escuridão ávida invadindo. Ergui o
lençol e coloquei os pés no chão. Precisava de água, muito, para aliviar a
garganta seca e desanuviar a cabeça. Quando cheguei no meio do quarto,
vesti a cueca.
Antes de abrir a porta, pressionei o ouvido contra a madeira. Será que
Richard era louco o suficiente para esperar lá fora a noite toda até que um
de nós saísse do quarto? Quando não ouvi nada, abri uma pequena fissura.
O corredor esticava-se vazio e escuro nas duas direções. A música e as
luzes do andar de baixo tinham sido desligadas, e o prédio inteiro causava
uma sensação esquelética, como uma casca vazia onde uma criatura
molenga invertebrada costumava viver. Eu me esgueirei ao banheiro, me
perguntando se era o único acordado. Evidentemente que não — a porta de
Alexander estava aberta; a cama, vazia. Andei rapidamente, torcendo para
não despertar ninguém. Eu sabia que algum tipo de confronto era inevitável,
mas preferia que não acontecesse antes que fosse absolutamente necessário.
Não antes que eu pudesse convencer a mim mesmo de que tudo aquilo de
fato acontecera — minha memória da festa tinha a qualidade quimérica e
translúcida de um sonho. Parte de mim queria acreditar que tinha mesmo
sido só isso.
Presumindo que um folião embriagado deixara a luz acesa, abri a porta
do banheiro sem bater. No instante que meus olhos demoraram para se
ajustar, uma figura acocorada saltou do chão.
— Jesus!
— Shh, Oliver, sou eu!
James passou a mão por trás de mim para fechar a porta. O braço dele
roçou meu estômago nu, e eu estremeci com a umidade da pele dele. Ele
deu um passo para trás, nu e encharcado. O chuveiro tamborilava
suavemente no fundo.
— O que você está fazendo?
Ele deu a descarga, e a água rodopiou para longe. Ele limpou a boca.
— Só vomitei — falou.
— Está tudo bem?
— Está. Só bebi demais. O que você está fazendo acordado?
— Precisava tomar água — eu disse, desviando os olhos.
Nós dividíamos um quarto havia três anos, e James nu não era nada que
eu nunca vira, mas eu o surpreendera, e aquilo parecia invasivo de alguma
forma.
— Você se importa se eu continuar o banho? — perguntou ele, erguendo
brevemente a mão, um gesto abortivo frouxo na direção do chuveiro. — Eu
me sinto nojento. Odeio vomitar.
— Vá em frente.
Passei por ele para chegar na pia e fiz as mãos em forma de concha para
colocar água fria na boca enquanto ele passava a perna por cima da lateral
da banheira. O chuveiro atingiu a pele dele com um sibilo, e ele puxou as
cortinas para ficarem mais fechadas.
— Então — perguntou ele em um tom descontraído até demais —, você
acabou de vir do quarto da Meredith?
— Hum. Aham.
— Você acha que isso é uma boa ideia?
— Não particularmente.
Meu reflexo estava desgrenhado e caótico. Tentando disfarçar, esfreguei
uma mancha de batom do canto da boca. Pelo espelho, eu via James
apoiado na parede, a água deslizando pelo nariz e pelo queixo.
— Pelo jeito, tá todo mundo sabendo — falei.
Joguei água no rosto, esperando que minha pele esfriasse.
— Um dos calouros veio da escada e praticamente anunciou para todos
na sala.
— Odeio calouros.
Desliguei a torneira, e fechei a tampa da privada para me sentar.
— Então. Como foi? — perguntou ele.
Ergui o olhar, a ansiedade pinicando minha pele de forma dolorida.
— Você sabe que Richard vai me matar, não sabe?
— Parece mesmo ser o plano dele.
James virou o rosto para a água, os olhos fechados. Meus braços e pernas
pareciam pesados e inúteis, como se os músculos e ossos tivessem
dissolvido, substituídos por uma massa de concreto. Passei os dedos
molhados pelo cabelo e perguntei:
— Cadê ele, aliás?
— Não sei. Desapareceu floresta adentro com uma garrafa de uísque
depois que Pip e Alexander o impediram de arrombar a porta de Meredith.
— Cristo amado.
Deixei a cabeça pender por um momento, e então me coloquei de pé
antes que me sentisse pesado demais para me mexer.
— Você vai voltar para o quarto dela? — perguntou James.
Ele estava de costas para mim, a água deslizando entre as clavículas em
duas correntes estreitas (por um instante, me deixei levar pela ideia que
talvez pudesse lavar os hematomas da pele dele como se fossem tinta).
— Eu não quero deixá-la lá, como se fosse coisa de uma noite só.
— Não é exatamente isso?
Eu não me lembrava de já ter ficado irritado com James antes. O
sentimento surgiu de forma inesperada — vulnerável e avassalador, tão
doloroso quanto uma queimadura.
— Não — falei, alto demais.
Ele olhou para trás, o cenho franzido e confuso.
— Ah, é?
— Olha, eu sei que ela não é sua pessoa favorita, mas ela não é só uma
garota aleatória.
Ele pestanejou.
— Acho que não é mesmo — disse ele, dando as costas para mim
novamente.
— James — eu falei, sem ter ideia do que eu queria dizer depois daquilo.
Ele desligou a água, uma mão se demorando na torneira. Algumas gotas
minúsculas ainda se agarravam aos cílios dele, descendo pelo rosto como se
fossem lágrimas.
— Que foi? — disse ele, com um atraso.
Eu me esforcei para pensar em palavras — senti a forma delas, mas não a
substância que deveriam carregar — até que uma mancha na bochecha dele
me distraiu.
— Eu… Você está com vômito na cara — eu disse, abrupto.
A expressão dele ficou vazia enquanto aquela frase estranha era
registrada pelo cérebro dele e, quando registrou, ele corou até a raiz dos
cabelos.
— Ah.
Repentinamente, estávamos os dois profundamente constrangidos (o que
parecia absurdo, dados os últimos cinco minutos de conversas íntimas e
nudez despojada).
— Foi mal, isso é repugnante — disse ele.
— Tudo bem. — Eu me abaixei para pegar a toalha dele do chão. —
Aqui.
Nós dois havíamos nos abaixado para pegar e, quando eu fiquei em pé
novamente, nossas cabeças quase colidiram. Eu dei um passo para trás,
imensamente consciente do meu próprio corpo e de como era desajeitado.
Ele estava com os olhos arregalados, quase alarmado. Senti meu próprio
rosto ruborizar.
Resmunguei um boa-noite, coloquei a toalha na mão dele e saí do
banheiro às pressas.
CENA 10
Duas horas depois, eu ainda não parara de tremer. Nós estávamos sentados
enfileirados, encostados na parede do corredor do terceiro andar, onde
estava mais do que quente. Eu tinha recebido um cobertor e calças jeans
secas, mas não tempo para tomar banho. Pior do que o frio que permanecia
era a sensação da água do lago, e o sangue de Richard infiltrando na minha
pele, queimando e coçando em cada centímetro do meu corpo. Filippa,
sentada desconfortavelmente perto, à minha esquerda, ergueu uma mão sem
olhar para mim, e tocou a parte anterior do meu pulso com tanta leveza que
eu mal senti. Ela, James, Alexander e Wren já tinham prestado depoimento.
Meredith estava no escritório para o dela enquanto eu esperava, em estado
de ansiedade catatônica, pelo meu.
A porta se abriu, arranhando o batente com peso, e Meredith reapareceu.
Sem sucesso, tentei chamar a atenção dela, até que ouvi Holinshed dizer:
— Senhor Marks.
Filippa soltou meu braço, deslizando a mão. Eu fiquei em pé e fui até a
porta com movimento mecânicos e quebradiços dignos do Homem de Lata.
Hesitando no batente, olhei para meus colegas mais uma vez. Estavam
todos sentados com os rostos virados, olhando todos os lugares menos eu e
os outros colegas — exceto Alexander, que me deu o menor e mais secreto
aceno. Eu baixei a cabeça e entrei na sala.
Era maior do que eu esperava, como a galeria, mas com o pé-direito
menor e menos iluminada. As janelas davam vista para a ampla entrada na
frente do Pavilhão, os portões de ferro majestosos reduzidos a barras pretas
espinhentas à distância. Eu estremeci quando a porta bateu atrás de mim.
Havia outras quatro pessoas na sala — Frederick, parado em um canto ao
lado da janela; Holinshed, apoiado na enorme escrivaninha de pés
arredondados, o queixo encolhido junto ao peito; Gwendolyn, sentada atrás
da escrivaninha com a cabeça nas mãos; e um homem mais jovem, de
ombros largos e cabelo cor de areia, vestindo uma jaqueta de aviador
marrom por cima da camisa e da gravata. Eu vira ele de relance no Castelo,
antes de nos guiarem até o Pavilhão.
— Bom dia, Oliver.
Ele estendeu a mão, que eu apertei com dedos úmidos, percebendo que
estava com uma aparência vagamente ridícula, com um cobertor comido
por traças pendurado nos ombros, como a capa de um soberano deposto.
— Esse é o Detetive Colborne — explicou Holinshed, me olhando por
cima do aro dos óculos, a expressão severa e implacável. — Ele vai fazer
algumas perguntas sobre Richard.
Gwendolyn soltou um gemido baixo e cobriu a boca.
— Tudo bem — eu disse.
Minha língua parecia uma lixa.
— Não precisa ficar nervoso — disse Colborne, e aquela mesma risada
histérica de duas horas atrás ecoou no meu cérebro. — Eu só preciso que
você me conte o que aconteceu e, se não lembrar, tudo bem dizer que não
lembra. É melhor não dar informação do que dar a informação errada.
— Certo.
— Por que não se senta? É mais fácil.
Ele gesticulou para a cadeira esperando atrás de mim. Havia outra na
frente da escrivaninha de Holinshed, me encarando, vazia.
Eu me abaixei para me sentar, me perguntando se ela sumiria antes que
eu me recostasse e me deixaria cair no chão. Naquele instante, nada parecia
fixo ou sólido, nem mesmo a mobília. Colborne se sentou à minha frente,
na outra cadeira, e puxou algo do bolso. A mão surgiu com um gravador
preto, que deixou atrás dele, na beirada da escrivaninha de Holinshed. Já
estava ligado, uma luzinha vermelha me encarando.
— Você se importa de eu gravar? — perguntou Colborne de forma
educada, mas eu sabia que não poderia recusar. — Se eu não precisar
escrever tudo, posso prestar mais atenção no que você está dizendo.
Eu assenti e arrumei o cobertor. A dignidade era irrelevante, e eu não
sabia o que fazer com as mãos.
Colborne se inclinou para a frente.
— Então, Oliver — começou ele. — Tudo bem se eu te chamar de
Oliver?
— Claro.
— E você é um aluno de teatro do quarto ano.
Não sabia se era esperado que eu respondesse, então, com um segundo de
atraso, eu disse:
— Sou.
Colborne não pareceu notar, apenas ofereceu mais uma pergunta que não
era bem uma pergunta.
— O Reitor Holinshed me disse que você é de Ohio.
— Sou — respondi novamente, com atraso.
— Você sente saudades de casa? — perguntou ele, e eu quase fiquei
aliviado.
— Não.
Eu poderia ter dito a ele que, se dependesse de mim, Dellecher era a
minha casa, mas não queria dizer mais do que o necessário.
COLBORNE: “Qual é o tamanho da sua cidade?”
EU: “Na média, acho. É maior que Broadwater.”
COLBORNE: “Você fez teatro no ensino médio?”
EU: “Fiz.”
COLBORNE: “Você gostava? Como era?”
EU: “Era ok. Não como aqui.”
COLBORNE: “Porque aqui é…?”
EU: “Melhor.”
COLBORNE: “Vocês são próximos? Vocês seis?”
Parecia um conceito estrangeiro. Nós seis. Nós sempre fomos sete.
— Como irmãos — falei, e imediatamente me arrependi, sem saber a
velocidade com que a palavra “rivalidade” poderia vir à mente.
— Você divide um quarto com James Farrow — disse Colborne, mais
baixinho. — Foi onde dormiu ontem à noite?
Eu assenti, sem confiar em mim mesmo para falar. Decidimos que James
ficaria responsável por mim. O fato de que um calouro bêbado me vira nas
escadas com Meredith não significava que precisávamos admitir o que
acontecera depois.
— E a que horas você foi dormir? — perguntou Colborne.
— Às duas? Duas e meia? Alguma coisa assim.
— Certo. Me conte o que aconteceu na festa, e seja o mais específico
possível.
Meus olhos foram de Colborne a Frederick e, por fim, a Holinshed.
Gwendolyn continuava sentada no tampo da mesa, os cabelos murchos e o
rosto cansado.
— Não há respostas erradas — acrescentou Colborne.
A voz dele tinha uma leve rouquidão, que o fazia soar mais velho do que
era.
— Certo, tá. Desculpa. — Apertei o cobertor, desejando que minhas
mãos parassem de suar. — Bom. James, Alexander e eu saímos do EBA um
pouco depois das dez e meia, e não estávamos com pressa, então
provavelmente chegamos no Castelo por volta das onze. Pegamos bebidas,
e aí nos separamos. Eu só, sei lá, fiquei andando um pouco. Alguém me
disse que Richard estava no segundo andar, bebendo sozinho.
— Tem alguma ideia do motivo de ele não estar socializando com o resto
do pessoal? — perguntou Colborne.
— Não muito — respondi. — Achei que ele desceria quando estivesse
pronto.
Ele assentiu.
— Continue.
Eu olhei para a janela, para a rua serpenteante que se afastava de
Dellecher, desaparecendo no cinza.
— Fui lá fora. Falei com Wren. Falei com James. Então houve um… uma
barulheira, acho, vinda de dentro. Então entramos para ver o que estava
acontecendo. Só eu e James estávamos lá nessa altura. Não sei aonde Wren
tinha ido.
— E vocês estavam no jardim, certo?
— Isso.
— Quando vocês entraram, o que aconteceu?
Eu me remexi na cadeira. Duas memórias diferentes lutavam por
dominância: a verdade e a versão que concordáramos em contar.
— Foi confuso — falei, sentindo um conforto efêmero na honestidade
que aquelas duas palavras continham. — A música estava alta, e todo
mundo estava falando ao mesmo tempo, mas Richard tinha batido em
alguém. Não lembro o nome dele. Colin levou o menino na enfermaria.
— Allan Boyd — disse Holinshed. — Vamos discutir isso com ele
também.
Colborne não reconheceu aquela interrupção, sua atenção fixa em mim.
— E depois?
— Meredick… quer dizer, Richard e Meredith… estavam brigando. Eu
não sei exatamente por quê.
Mais precisamente, eu não sabia o quanto Meredith tinha dito a eles
sobre a briga.
— Os outros disseram que parecia que Allan estava prestando um pouco
mais de atenção nela do que Richard achava confortável — disse Colborne.
— Talvez. Não sei. Richard estava bêbado. Quer dizer, pra lá de bêbado.
Agressivo. Ele disse umas coisas bem horríveis. Meredith ficou magoada e
subiu as escadas, para fugir de todo mundo. Eu fui atrás dela, só pra ter
certeza de que ela estava bem. Nós estávamos conversando no quarto
dela…
Alguns momentos vívidos de Meredith lampejaram no meu cérebro —
mechas de cabelo ruivo presos ao batom dela, linhas pretas sedosas no
limiar das pálpebras, a alça do vestido deslizando do ombro.
— Estávamos conversando no quarto dela, e Richard subiu e começou a
esmurrar a porta — falei, rápido demais, torcendo para que Colborne não
notasse o quanto meu rosto e minha garganta estavam ficando quentes. —
Ela não queria falar com ele, e disse exatamente isso. Ficamos do outro lado
da porta, nós estávamos com um pouco de medo de abrir. Em certa altura,
ele foi embora.
— Que horas foi isso?
— Não lembro, nossa. Foi tarde. Uma e meia, talvez?
— Quando Richard foi embora, você sabe para onde ele foi?
— Não — eu disse, respirando com um pouco mais de facilidade. Outro
fragmento da verdade. — Nós não saímos por um tempo.
— E quando você saiu?
— Todo mundo já tinha ido embora. Eu fui pra cama. James já estava lá,
mas não estava dormindo.
Eu tentei imaginá-lo rolando de lado para sussurrar para mim do outro
lado do quarto. Porém, tudo que via era a luz amarelada fraca do banheiro, a
água quente e o vapor distorcendo o rosto dele no reflexo do espelho.
— Ele me disse que Richard tinha ido para a floresta com uma garrafa de
uísque.
— E essa foi a última vez que ouviu falar dele?
— Até que Alexander o encontrou?
As memórias prismáticas da noite passada se desfizeram, e o gelo da
manhã me percorreu. Eu sentia a água na pele, no cabelo, sob as unhas.
— Foi — respondi.
— Certo — disse Colborne. Ele falava com uma voz gentil, da forma que
se fala com cavalos assustados e gente doida. — Agora, desculpe-me por
perguntar isso, mas eu preciso que me conte o que você viu hoje de manhã.
Eu ainda enxergava tudo. Richard suspenso à superfície da vida,
ensanguentado, ofegante — e o restante de nós simplesmente observando,
esperando o pano cair. Uma tragédia vingativa, eu queria dizer. O próprio
Shakespeare não poderia ter feito melhor.
— Eu vi Richard — eu disse. Não um cadáver de verdade, não flutuando
de verdade. — Só meio que parado lá. Só que quebrado e esmagado, como
se tudo estivesse distorcido.
— E você… — Ele pigarreou. — Você entrou na água.
Foi a primeira vez que ele hesitou.
— Isso.
Puxei o cobertor com mais força, como se aquilo pudesse de alguma
forma me descongelar, me proteger da sensação da água fria se fechando à
minha volta. Sentado no calor seco do escritório de Holinshed, eu sabia que
jamais esqueceria aquilo — como meus pulmões se encolheram tão
abruptamente que pensei que fossem romper, ofegando mais de choque do
que por precisar de oxigênio. O rosto de Richard, perto demais, branco
como os ossos. O cheiro amargo de sangue metálico. Aquela vontade insana
de gargalhar estava de volta, tão forte quanto uma ânsia de vômito, e por
um momento eletrizante eu pensei que vomitaria no tapete, aos pés de
Colborne. Eu engoli novamente, ingerindo tudo para baixo. Ele confundiu
minha onda de náusea por emoção e respeitosamente esperou que eu me
recompusesse.
Por fim, a certa altura, eu consegui dizer:
— Alguém precisava
— E ele estava morto?
Eu poderia ter dito a ele qual era a sensação de esticar a mão para tocar a
garganta de Richard e encontrar a carne gélida, aquela veia, que outrora
pulsara e inchava por raiva, finalmente achatada, finalmente imóvel. Em
vez disso, tudo que disse foi:
— Sim.
Ele me encarou com uma expressão irritadiça, deliberadamente
inexpressiva, como uma cara de blefe ruim. Antes que eu pudesse adivinhar
o que não queria que eu visse, ele piscou e se inclinou para trás.
— Bom, isso não deve ter sido fácil. Meus pêsames.
Eu assenti, sem ter certeza se eu deveria agradecê-lo, ou se oferecer
pêsames era parte do trabalho.
— Só mais uma pergunta, se puder responder.
— O que o senhor precisar.
— Me conte sobre as últimas semanas — disse ele, informal, como se
fosse apenas uma questão rotineira. — Vocês todos estavam sob muita
pressão, talvez Richard mais do que todos. Ele estava se comportando de
maneira estranha?
Outro mosaico de memórias tomou forma como um vitral, estilhaços de
cor e luminosidade. O brilho branco do luar na água no Halloween, os
hematomas azuis nos braços de James, a gota vermelha de sangue vívido
descendo da manga de seda de Meredith. Meu estômago, embrulhado e
tenso um segundo antes, repentinamente afrouxou. Meu batimento cardíaco
desacelerou.
— Não — eu disse. As palavras de Filippa ecoaram suaves em minha
cabeça. — Antes de ontem à noite, estava tudo bem.
Colborne me observava com uma proximidade curiosa.
— Acho que isso é tudo por enquanto — disse ele, depois do que pareceu
ser uma longa pausa. — Eu vou dar a você minhas informações de contato.
Se pensar em alguma outra coisa, por favor, não hesite em me contar.
— Claro — falei. — Vou fazer isso.
Porém, é claro que não faria. Não até que dez anos se passassem.
CENA 3
Alexander me seguiu como uma sombra por três lances de escada. O salão
de baile se esticava em direção aos céus, tomando desde o quarto até o
quinto andar, com um balcão comprido e um átrio de vidro reluzente que se
espichava em direção à lua.
O baile de máscaras natalino era tradicionalmente um evento espetacular,
e o que ocorreu no inverno de 1997 não foi exceção. O chão de mármore
fora polido para ficar tão brilhante que parecia que os convidados estavam
caminhando em espelhos. Figueiras de folhas caídas, que cresciam de
dentro de vasos quadrados profundos em cada um dos quatro cantos,
estavam decoradas com minúsculas luzes brancas e faixas de fita e arame
que lançavam reflexos dourados ao redor do salão. Os candelabros —
pendurados por correntes grossas, que se esticavam de parede a parede três
metros acima do balcão — faziam com que um brilho caloroso recaísse no
salão lotado. Mesas empilhadas com tigelas de ponche e travessas de
minúsculos canapés ladeavam a parede oeste, e os estudantes que já tinham
chegado se aglomeravam ao redor delas como mariposas na luz da lanterna.
Todos estavam vestidos com seus melhores trajes, apesar de os rostos
estarem bem escondidos — os garotos de máscaras bauta, as garotas de
morettas pretas menores. (Em comparação, nossas máscaras eram
devastadoramente mais elaboradas, feitas para se destacarem em meio aos
rostos anônimos e vazios.) Os alunos da orquestra haviam se reunido de um
lado do salão com os instrumentos, as partituras apoiadas em pedestais
prateados elegantes. Uma valsa aérea e encantadora ondulava sob o teto.
Assim que entramos, rostos se viraram na nossa direção. Alexander
imediatamente adentrou a multidão, uma figura alta e imponente, vestida de
preto, prateado e verde-escuro. Eu me demorei na porta, esperando os
olhares se distraírem, e comecei a caminhar devagar e discretamente pelas
bordas da sala. Procurei por vislumbres de cor, na esperança de ver James,
Filippa ou Meredith. Assim como no Halloween, não sabíamos como iria
começar. A expectativa vibrava no salão como uma corrente elétrica. Minha
mão repousava no cabo da adaga no cinto. Eu passara duas horas na terça à
tarde com Camilo, aprendendo o combate do primeiro duelo da peça. Quem
seria Teobaldo, e onde ele estava escondido? Eu estava pronto.
A orquestra recaiu em silêncio e, quase imediatamente, uma voz chamou
do balcão:
— A briga é entre os nossos senhores, e nós, seus homens.
Duas garotas — ambas alunas do terceiro ano, imaginei — estavam
inclinadas do balcão da parede leste, com máscaras prateadas simples
escondendo os olhos, os cabelos penteados para longe do rosto. Estavam
vestidas como garotos, de calças, botas e gibão.
— Tanto faz — disse a segunda. — Me farei de tirano: depois de lutar
com os homens, pegarei as donzelas e darei castigo.
— Dar castigo às donzelas?
— Sim, dar castigo às donzelas, ou elas que me darão a castidade;
entenda como quiser.
Elas forçaram uma risada maliciosa e masculina, que foi compartilhada
de maneira entusiasmada pelos que olhavam de baixo. Eu fiquei observando
e me perguntei a melhor forma de entrar na disputa. Porém, assim que
Balthasar e Abraham (também garotas do terceiro ano) entraram no salão de
baile, Gregório e Sansão jogaram as pernas por cima da parede do balcão, e
começaram a descer pela coluna mais próxima, os dedos agarrando com
firmeza as trepadeiras ao redor. Assim que tocaram o chão, uma delas
assobiou, e os dois criados de Montéquio se viraram. A mordida dos
dedões, acompanhada por mais risadas indulgentes, rapidamente se tornou
uma discussão.
GREGÓRIO: Procura briga, senhor?
ABRAÃO: Uma briga, senhor? Não, senhor.
SANSÃO: Se estiver, senhor, aqui estou. Meu senhor é nobre como o seu.
ABRAÃO: Não melhor.
SANSÃO: Melhor, sim, senhor.
ABRAÃO: Mentiroso!
Eles irromperam em um duelo de quatro espadas atrapalhado. O público
(já achatado contra as paredes do salão) observava com deleite ávido, rindo
e torcendo por seus favoritos. Eu esperei até que a briga parecesse pronta
para ser interrompida, e então corri para a frente, puxando minha própria
adaga, afastando as garotas.
— Parem já, tolos! — eu disse. — Guardem as espadas, não sabem o
que fazem.
Elas se afastaram, ofegantes, mas a próxima voz ecoou do lado oposto do
salão. Teobaldo.
— Armado para lebres indefesas? Vire-se, Benvólio, e encare sua morte.
Eu me virei. A multidão havia aberto espaço para Colin, que estava me
encarando através dos buracos de uma máscara preta e vermelha, cortada
dos dois lados para revelar as maçãs do rosto, angulosas e reptilianas, como
asas de um dragão.
EU: “Busco a paz: guarde a espada,
Ou a use para apaziguar.”
COLIN: “Armado e pregando a paz?
Ódio à palavra, a você,
Aos Montéquios e ao inferno. Toma!”
Colin me atacou, e nós nos chocamos como um par de galos de briga.
Nós cortamos e trocamos golpes até que as quatro garotas se lançaram
juntas na confusão, aos gritos zombeteiros de centenas de estudantes
mascarados que assistiam. Levei uma cotovelada no queixo e caí no chão,
pesado, de costas. Colin estava em cima de mim em um instante, mirando
na garganta, mas eu sabia que Éscalus chegaria bem a tempo para impedir
meu estrangulamento. Ele — ou melhor, ela — apareceu no topo das
escadarias do balcão, em um esplendor real de tirar o fôlego.
— Rebeldes, inimigos da paz, / que ofendem com aço seus iguais… / Não
me ouvem?
Muito pelo contrário, nós paramos o enfrentamento de imediato. Colin
me soltou, e eu rolei de joelhos, erguendo o olhar para Meredith, em um
deslumbramento silencioso. Ela parecia um príncipe tanto quanto um de
nós, garotos, teria parecido — os cabelos ruivos presos para trás em uma
trança comprida, as pernas esbeltas escondidas sob botas de couro, o rosto
protegido por uma máscara branca que reluzia como se feita de poeira
estelar. Conforme descia, arrastava na escada a capa comprida atrás de si.
MEREDITH: “Alto lá, seus homens bestiais
Que apagam o fogo da raiva
Com as fontes de veias roxas,
Dor e tortura. Larguem as espadas
De suas mãos sangrentas
E ouçam o que diz seu príncipe!”
Obedientemente, jogamos as armas no chão.
MEREDITH: “Lutas civis, do verbo nascidas,
Três vezes nossa cidade corromperam,
E fizeram os anciãos de Verona
Deixarem honrosos adornos
E pegarem armas nas mãos velhas,
Pacíficas, para seu ódio findar.”
Ela andou lentamente entre nós, a cabeça empinada. Colin deu um passo
para trás e fez uma reverência. Eu e as garotas nos abaixamos, com um
joelho no chão. Meredith olhou para baixo, para mim, e ergueu meu queixo
com uma mão enluvada.
— Se mais uma vez aqui perturbarem, / suas vidas pagarão a paz.
Ela se virou nos calcanhares, a barra da capa estalando no meu rosto.
— Por ora, afastem-se todos daqui.
As garotas e Colin se abaixaram para recuperar as armas descartadas e os
pedaços perdidos do figurino. Porém, o príncipe estava impaciente.
— Repito: afastem-se ou morram!
Nós nos espalhamos pelo centro do salão, que irrompeu em aplausos
conforme Meredith subia as escadas para o balcão novamente. Eu pairei
perto da beirada da multidão, observando os pés dela nos degraus até que
ela desapareceu, e então me virei para o convidado mais próximo — um
garoto, não sabia quem era, só que os olhos castanhos estavam visíveis o
bastante atrás da máscara — e disse:
— Onde está Romeu? — E então, para outro espectador: — Já o viu
hoje? Ao menos na briga ele não estava.
Exatamente naquele instante, Romeu surgiu de uma porta na parede leste,
vestido todo de azul e prata, a máscara gentilmente curvada ao redor das
têmporas. Ele quase parecia uma figura mística, um Ganimedes, lindamente
petrificado entre a aparência de um homem e um garoto. Eu sabia que seria
James, eu adivinhara, mas nem por isso a aparência dele me afetava menos.
— Lá vem ele — falei, para a garota mais perto de mim, em um tom de
voz mais baixo.
Aquele orgulho estranho e possessivo tomou conta de mim novamente.
Todos na sala estavam observando James — como poderiam não o fazer?
—, mas era eu quem o conhecia, de verdade, cada centímetro dele.
— Deem já licença / A tristeza o toma como doença. / Bom dia, primo!
James ergueu o olhar e olhou diretamente para mim. Ele parecia surpreso
em me ver parado ali, apesar de eu não saber que motivo tinha para isso. Eu
não era sempre sua mão direita, seu tenente? Banquo ou Benvólio ou Oliver
— fazia pouca diferença.
Nós discutimos brevemente seu amor não correspondido, uma
brincadeira surgindo em que eu bloqueava o caminho dele todas as vezes
que ele tentava ir embora, que fazia uma tentativa de evitar minhas
perguntas. Ele parecia contente de me acompanhar até que disse mais
firmemente:
— Adeus, primo.
— Espere — disse eu. — Eu vou junto. / Não me machuque me deixando
aqui.
— Estou perdido, não estou aqui. / Não sou Romeu, aquele anda por aí.
Ele se virou para ir embora, e eu dei um pulo para impedir seu caminho
mais uma vez. Meu desejo de mantê-lo ali, a certa altura, transcendera o
alinhamento entre a motivação do ator e do personagem. Eu queria que ele
permanecesse ali e, com certo desespero, estava atormentado pela ideia sem
sentido de que, se ele fosse embora, eu o perderia de forma irrecuperável.
— Com tristeza, revele seu amor — eu disse, procurando no rosto dele
por algum vislumbre de que aquele era um sentimento recíproco.
JAMES: “Ao triste doente pede testamento?
Na doença não tem cabimento.
Com tristeza, primo, amo uma dama.”
Por um instante, esqueci qual era a minha próxima fala. Nós nos
encaramos por um instante, e a multidão desapareceu ao nosso redor, como
uma sombra indistinta, um pano de fundo. Com um sobressalto, eu me
lembrei da minha fala, mas não eram exatamente as palavras certas.
— Ouça, primo: — falei, pulando alguns pedaços. — Esqueça ela.
James piscou rapidamente atrás da máscara, mas então ele deu um passo
para trás, distanciado, e continuou a encenação. Eu fiquei imóvel e o
observei andar em círculos: as palavras, os passos, os gestos — tudo nele
inquieto.
Um criado entrou, dando as notícias da festa de Capuleto. Nós
fofocamos, planejamos e traçamos os passos, até que finalmente um
terceiro mascarado entrou: Alexander.
Ele falou a primeira frase de onde estava sentado, na beirada da mesa que
continha a tigela de ponche, cada braço ao redor de um dos dois membros
mais próximos do público — uma das quais estava dando risadinhas,
descontrolada, atrás da máscara, enquanto a outra se encolhia para longe do
toque dele, obviamente aterrorizada.
— Não, gentil Romeu; devemos dançar.
Ele deslizou para longe da mesa com um gesto tão harmonioso que era
como se fosse líquido, e se aproximou de nós com um andar distintamente
felino. Ele me cutucou para sair do caminho, andando ao redor de James em
um círculo pequeno, parando para olhá-lo de cada ângulo intrigante. Eles
trocaram palavras e gracejos, fáceis e inconsequentes, até que James disse:
— Qual o carinho do amor? Dói demais, / é rude, finca feito espinho.
Alexander soltou uma risada que parecia um ronronado, e agarrou James
pelo gibão.
ALEXANDER: “Se o amor fere, fira o amor!
Espete de volta e triunfe.
Dê uma caixa para eu guardar o rosto:
Uma cara por outra.”
As testas deles se bateram, Alexander segurando James com tanta
firmeza que o ouvi grunhir de dor. Eu comecei a ir na direção deles, mas,
assim que me mexi, Alexander o empurrou para trás, diretamente nos meus
braços.
ALEXANDER: “De que me importa
Olhos curiosos por defeitos?
Eis aqui um rosto que corará.”
Eu ergui James novamente, dizendo:
— Bata e entre sem demora, / lá dentro é cada um por si.
ALEXANDER: “Assim perdemos o sol!”
JAMES: “Não é bem isso.”
ALEXANDER (IMPACIENTE): “Digo que o atraso
Desperdiça o dia com descaso.
Do bom senso tire o sentido,
Com os cinco não está garantido.”
JAMES: “E nossa intenção à festa é boa,
Mas não sábia.”
ALEXANDER: “Por que assim destoa?”
JAMES: “À noite sonhei.”
ALEXANDER: “E eu também.”
JAMES: “Que disse seu sonho?”
ALEXANDER:“Sonhadores mentiras têm.”
JAMES: “E sono, então se deitam a dormir.”
ALEXANDER: “Então a Rainha Mab foi te divertir!”
Dei dois passos para trás para observar aquele monólogo peculiar se
desdobrar. O Mercúcio de Alexander era provocador, desequilibrado e
quase insano. Os caninos afiados reluziam na luz quando ele sorria, a
máscara brilhando de forma travessa enquanto ele dançava ao nosso redor,
primeiro brincando com um espectador, e depois com outro. A voz e os
movimentos ficaram tanto mais sensuais quanto mais selvagens, até que ele
perdeu controle completo e deu um bote em mim. Eu cambaleei para trás,
mas não rápido o bastante — ele me agarrou pelos cabelos, dobrou meu
pescoço para trás contra o ombro dele, rosnando em meu ouvido.
ALEXANDER: “Ela é a velha que ensina
A boas donzelas a prática
Do parto e do que o antecede.
Essa é ela…!”
Eu me debati contra o aperto, mas a força dele era de ferro, pesada, em
conflito com a delicadeza de uma ponta dos dedos que traçava o bordado
em meu peito. James, que estava observando, congelado e rígido, lutou
contra a paralisia e arrancou Alexander de mim.
— Basta já, Mercúcio, pare. — Ele segurou o rosto de Alexander entre
as mãos. — É bobagem o que fala.
Os olhos distraídos de Alexander se agarraram a James, e ele falou de
modo mais lento:
ALEXANDER: “Sim, falo de sonhos,
Frutos da mente vazia
E nascidos de fantasia,
Feitos de nada além do ar,
E mais instáveis do que o vento.”
Quando foi minha vez de falar novamente, eu o fiz com cuidado, me
perguntando se Alexander ainda era verdadeiramente confiável. Nossa
conversa de antes parecia próxima demais, recente demais para ser
ignorada, como um arranhão que começava a avermelhar na pele e coçar.
EU: “Esse vento nos deixa à deriva.
Já se vai o jantar. Sem mais atraso.”
James virou o rosto para os céus, estreitando os olhos para a pirâmide de
vidro que parecia tão distante, procurando nos fragmentos de luz dos lustres
pelo brilho secreto e longínquo de uma estrela. Eu pensei na noite da festa,
quando eu e ele ficamos juntos no jardim, encarando os céus através da
abertura entrecortada entre a copa das árvores. Nosso último momento de
inocência e isolamento; aquela calmaria que precedia a ventania e os golpes
de uma tempestade.
JAMES: “É cedo demais. A intuição
Me alerta um agouro a vir
Deste evento que perseguimos.
Sinto chegar o inevitável fim
Desta vida aqui em meu peito
Por alguma força prematura.”
Ele fez uma pausa, olhando para cima com uma surpresa suave, a tristeza
como pontos azuis nos olhos dele. Então, suspirou, sorrindo, e sacudiu a
cabeça.
JAMES: “Seja quem for no controle do meu ser,
Oriente meu curso. Vamos, rapazes.”
Eu quase havia me esquecido de onde estávamos — até de quem éramos
—, mas a orquestra começou a tocar novamente, e a realidade veio em um
borrão. Outra valsa crescente preencheu o átrio e deu um sopro de vida ao
público, que havia ficado em silêncio durante a última cena. De repente, o
baile dos Capuletos estava acontecendo.
Alexander agarrou a garota mais próxima e a arrastou à força para uma
dança. Os outros atores apareceram das coxias improvisadas e fizeram a
mesma coisa, escolhendo parceiros aleatórios, incentivando os convidados a
se juntarem em pares. Logo, o salão virara um redemoinho de movimento,
surpreendentemente gracioso considerando a quantidade de casais.
Encontrei uma parceira ao meu cotovelo — indistinguível de todas as outras
garotas, exceto pelo fato de usar uma fita preta amarrada no pescoço — e
fiz uma mesura antes de começarmos a dançar. Enquanto rodopiávamos e
girávamos e trocávamos de lugares, minha atenção estava constantemente
em outro lugar. Filippa apareceu na minha visão periférica, com uma
máscara preta, prata e roxa — ela também estava vestida como um homem,
dançando com outra garota, e eu me perguntei se faria o papel de Páris. Eu
me virei e a perdi de vista mais uma vez. Procurei por James, por Meredith,
mas não consegui encontrar nenhum dos dois, qualquer que fosse.
A música persistiu (na minha opinião) por tempo demais. Quando
acabou, fiz outra mesura apressada e saí da sala, indo direto para as
escadarias do fundo do balcão. Estava silencioso ali e profundamente
escuro. Alguns casais haviam buscado aquele sigilo, e estavam sem as
máscaras, entrelaçados pelos lábios e pressionados nas paredes. A música
recomeçou, mais lenta. As luzes diminuíram e ficaram azuis, exceto por um
único círculo branco onde James estava parado, sozinho. Quando a luz o
atingiu, os dançarinos nos arredores se afastaram e recaíram em silêncio.
JAMES: “Quem é a donzela que enfeita
A mão do cavalheiro?”
O público se virou lentamente para ver quem ele estava encarando. E ali,
tênue e efêmera como um fantasma, estava Wren. Uma máscara azul e
branca emoldurava seus olhos, mas, sem dúvida nenhuma, era ela. Meus
dedos se curvaram na balaustrada; eu me inclinei o máximo que conseguia
sem cair.
JAMES: “Era amor antes disso? Falso olhar,
Pois nunca havia visto beleza maior.”
A música se elevou mais uma vez. Wren e o parceiro emprestado
lentamente se viraram no lugar e deram um adeus encenado. Os pés de
James o levaram para mais perto, os olhos fixos nela como se temesse que
ela fosse simplesmente desaparecer caso ele a perdesse de vista. Quando
estava perto o bastante, ele segurou a mão dela, e ela se virou para ver quem
a tocara.
JAMES: “Se ofendo com indigna mão
O sagrado altar da sua
Com beijo meus lábios a paz trarão
de peregrinos sob essa lua.”
Ele abaixou a cabeça e beijou a mão dela. A respiração dela soprou nos
cabelos dele quando ela falou.
WREN: “Peregrino, sua mão rejeita em tanto
se a minha toma em devoção na sua.
Sua gente faz tal com as do santo.
E palmas se beijam faça sol ou lua.”
Na metade do discurso dela, os dois começaram a se mover juntos, palma
contra palma, girando lentamente. Eles fizeram uma pausa, trocaram as
mãos, e deram passos coordenados em direção oposta.
JAMES: “Em igual, os santos lábios não têm?”
WREN: “Sim, peregrino, usados para a fé.”
JAMES: “Que lábios façam o que mãos fazem bem.
Minha reza devassa desespero é.”
WREN: “Santos não se movem, mas atendem quem ora.”
JAMES: “Recolho meu milagre em sagrada hora.”
Eles ficaram imóveis. Os dedos de James roçaram a bochecha dela; ele
virou o rosto dela levemente para cima, na direção do dele, e a beijou tão
suavemente que ela talvez nem mesmo tenha sentido.
JAMES: “Meu pecado agora é seu, então.”
WREN: “E guardo em mim o que tomei.”
JAMES: “Em ti meu pecado? Doce tentação.
Devolva-o já.”
Ele a beijou mais uma vez, dessa vez de forma mais longa, duradoura.
Minha máscara estava quente e grudenta no meu rosto, meu estômago
revirado às avessas e dolorido como uma ferida aberta. Eu me apoiei
pesadamente na balaustrada, tremendo sob o peso das verdades paralelas
que eu, até aquele instante, conseguira ignorar: James estava apaixonado
por Wren, e eu estava com ciúme — um ciúme cego e violento.
ATO IV
PRÓLOGO
Todos os alunos do quarto ano, segundo ano e do terceiro ano que foram
convidados, por favor, preparem um monólogo de dois minutos para
REI LEAR
Eu deixei Colborne ter cinco minutos de vantagem porque não queria deixar
que me visse saindo do Castelo. Guardei os produtos de limpeza sob a pia
da cozinha, vesti o casaco e as luvas, e saí pela porta dos fundos. Corri até
chegar ao EBA sem parar nem um minuto, a geada triturada sob meus pés.
Quando finalmente cheguei, meus braços e pernas estavam dormentes, os
olhos lacrimejando por causa do ar frio de fevereiro.
Eu entrei por uma porta lateral e fiquei ouvindo atentamente. Os alunos
do terceiro ano estavam no auditório, passando pelo segundo ato de Os dois
cavalheiros de Verona aos trancos e barrancos. Torcendo para que não
trombasse com ninguém vadiando nos bastidores, eu corri apressado na
escada, uma mão deslizando pelo corrimão enquanto eu descia para o porão
dois degraus por vez.
Um labirinto extenso espreitava sob o Teatro Archibald Dellecher e todos
os corredores e antessalas afluentes. Normalmente, apenas a equipe técnica
se aventurava por esse ermo de teto baixo e mal iluminado, para desenterrar
velhas peças de cenário e móveis cujas existências foram determinadas
como irrelevantes e condenadas ao estoque eterno. Eu não planejava entrar
lá, nem sequer pensara naquilo até estar no caminho do EBA, de início
apenas desesperado para escapar do Castelo. Porém, enquanto me
esgueirava entre dois ou três corredores sombrios abarrotados de descartes
teatrais, percebi meu próprio brilhantismo acidental. Ninguém nunca
conseguia encontrar nada ali embaixo, mesmo se soubesse exatamente o
que estava procurando. Logo mais, tropecei em um canto emaranhado por
teias de aranha onde uma série de armários (provavelmente arrancados da
travessia lá pelos anos 80) estava inclinada pesadamente contra a parede.
Ferrugem vazava entre as aberturas como sangue seco e envolvia as portas
abertas e afiadas. Era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
Arrastei uma mesa escangalhada para abrir caminho, e então desbravei o
mar de lixo empilhado por ali. O primeiro armário tinha um cadeado
pendurado na porta, a tranca salpicada de ferrugem como um dente cheio de
cárie. Eu o retirei, apertando o puxador com força, e xinguei tão alto quanto
ousava quando a porta se abriu e colidiu com minha canela. O armário
estava vazio, com exceção de uma caneca lascada que exibia um brasão de
Dellecher desbotado, um aro preto de café grudado no fundo. Peguei do
bolso a faixa de tecido que havia encontrado na lareira. Eu a observei na luz
baixa, e aquela mancha vermelha agourenta me encarou de volta. Eu sequer
tinha certeza de que era sangue, mas minha própria paranoia me arrastou de
volta para o dia do velório de Richard, quando encontrara Filippa sozinha
perto da lareira. Eu afastei aquele pensamento, alarmado. Não havia
fechadura nas portas da biblioteca, então poderia ter sido qualquer um de
nós. O ar no porão era gélido. Qualquer um de nós poderia ter feito o quê?
Abruptamente, cheio de náusea e impaciente para me livrar daquela coisa,
eu me inclinei e enfiei o tecido dentro da caneca. Se mais alguém o
encontrasse lá, pensariam que era só um pano rasgado — manchado de
tinta, ou de alguma outra substância inócua. Poderia até ser mesmo. Eu
ralhei comigo mesmo por me deixar levar. Alexander estava certo sobre
uma coisa: se não conseguíssemos nos manter calmos, tudo aquilo
desmoronaria. Eu bati a porta, então hesitei. Não sabia a senha do cadeado.
Eu jamais queria voltar para buscar aquilo, mas só caso precisasse, deixei o
cadeado pendurado, ainda aberto.
Arrastei a mesa de volta na frente dos armários, esperando que ninguém
mais fosse se dar ao trabalho de movê-la, que ninguém nem saberia que eu
estivera ali. Dei um passo para trás e fiquei parado, encarando aquele
pequeno aro que era a fechadura, o minúsculo espaço entre a manilha e o
estojo. Como era descomunal a angústia de decisões não tomadas.
CENA 5
Não me deixaram sair da enfermaria antes das onze da noite. Meu nariz
estava quebrado, mas não de uma forma terrível. Uma tala fora colada com
esparadrapos no dorso para mantê-lo reto e, sob ela, hematomas vermelhos
e roxos estavam se espalhando sob os olhos. Tanto Gwendolyn quanto
Frederick tinham ido me ver, perguntado o que tinha acontecido,
desculpado-se copiosamente, e então pedido que eu guardasse o ocorrido
para mim e dissesse que foi um acidente caso outros alunos perguntassem.
Eles disseram que não precisávamos de mais fofocas nem de mais
problemas. Quando finalmente consegui voltar ao Castelo, eu ainda não
decidira se estava de acordo com aquilo.
Subi as escadas imediatamente, mas não fui para a Torre. Parecia
improvável que James estivesse lá, mas eu não queria arriscar. Em vez
disso, dei uma batidinha leve na porta de Alexander. Ouvi o barulho de uma
gaveta se fechando e um momento depois ele apareceu, uma mão na
maçaneta.
— Caralho, Oliver — disse ele. — Pip me contou o que aconteceu, mas
não achei que estaria ruim assim.
Os olhos dele estavam avermelhados, a boca seca e rachada. Ele não
estava assim tão melhor do que eu.
— Não quero falar disso.
— Justo. — Ele fungou, limpando o nariz na manga. — Posso ajudar?
— Minha cabeça está doendo pra cacete e eu prefiro não sentir nada que
está acima do meu pescoço.
Ele abriu a porta para me deixar passar.
— O médico é por aqui.
Eu não frequentava muito o quarto de Alexander, e sempre era
surpreendido pela escuridão. Em algum dia nas semanas anteriores, ele
colocara uma tapeçaria para cobrir a janela. A cama estava enterrada sob
uma pilha de livros, que ele juntou nos braços e jogou na escrivaninha
atulhada. Seda amassada, fósforos quebrados e roupas sujas estavam
esparramados pelo chão. Ele gesticulou para a cama, e eu me deixei cair no
colchão, grato, minha cabeça latejando com força entre as têmporas.
— Posso perguntar o que aconteceu? — disse ele, enquanto vasculhava a
primeira gaveta da escrivaninha. — Não vou fazer você falar sobre isso. Só
quero saber se, da próxima vez que eu vir James, preciso empurrar ele pra
dentro do lago.
Incerto quanto àquele comentário ser simplesmente o senso de humor
mórbido de Alexander ou uma ameaça mais deliberada, eu me remexi na
cama, atribuí aquilo à paranoia que subsistia e decidi ignorar.
— Você tem visto ele ultimamente? — perguntei. — Sinto que ele nunca
está por aqui.
— Ele entra e sai. Você saberia mais do que eu.
— Ele geralmente chega depois que já fui dormir e, quando me levanto,
já saiu.
Alexander sacudiu um pouquinho de maconha de dentro de um tubinho
de filme fotográfico, e o amassou em uma seda.
— Se quer saber, acho que ele está entrando um pouco demais no papel.
Seguindo o Método, sabe? Não sabe mais onde ele acaba e onde Edmund
começa.
— Isso não pode ser boa coisa.
Ele olhou para mim e para meu nariz arrebentado.
— Claramente — falou.
Ele fez uma careta, como se tivesse acabado de morder a língua.
— Te deram uns analgésicos para isso? — perguntou.
Tirei um frasco de pequenos comprimidos brancos do bolso.
— Lindo — disse ele. — Me vê dois desses.
Eu os entreguei. Ele amassou os comprimidos com o tubinho e polvilhou
o pó na maconha na seda. Então, ele abriu a gaveta de novo e pegou um
frasco misterioso. Ele tirou a tampa e despejou um pouco na mão. Outro pó
branco, ainda mais fino, que acrescentou ao baseado sem me dizer o que
era. Eu não perguntei.
— O que aconteceu, afinal? — perguntou ele, começando a enrolar. —
Vocês estavam fazendo a cinco-três, e ele te deu um murro do nada?
— Basicamente.
— Puta que pariu. Por quê?
— Acredite em mim, eu adoraria saber.
Ele lambeu a parte que sobrava do papel e a grudou com a ponta de um
dedo. Torceu a ponta em um redemoinho minúsculo e me entregou o
baseado.
— Pronto — disse ele. — Fume esse aí de uma vez e você não vai sentir
nada por uma semana inteira.
— Maravilha.
Eu me pus de pé, me agarrando ao encosto da cadeira. Minha cabeça
estava latejando.
— Está tudo bem?
— Vai ficar em alguns minutos.
Ele não pareceu convencido.
— Tem certeza?
— Aham — falei. — Vou ficar bem.
Eu tateei até a porta como se estivesse cego, as mãos indo de um pedaço
de mobília ao outro até chegarem a parede.
— Oliver — disse ele, enquanto eu abria a porta para ir embora.
— Que foi?
Ele me jogou um isqueiro quando me virei, e então apontou para o
próprio nariz, oferecendo um sorriso triste. Estiquei a mão para o rosto.
Havia uma mancha fresca de sangue no meu lábio superior.
Por via de regra, não fumávamos dentro do Castelo. Eu saí pela porta
lateral e fiquei na frente do prédio com o baseado, o beque, seja lá o que
fosse, espremido bem entre os lábios. Inalei como Alexander me ensinara
dois anos antes, tragando o ar profundamente até os pulmões. Estava frio,
mesmo para fevereiro, e minha respiração e a fumaça saíram da boca unidas
em uma única espiral comprida. O meu nariz parecia congestionado por
sinusite, pesado e espesso, como se estivesse entupido de argila. Eu me
perguntei quando os hematomas sumiriam e se meu nariz já teria voltado ao
normal dali a três semanas.
Me recostei na parede e tentei não pensar em mais nada, certo de que iria
à loucura se o fizesse. A floresta estava ao mesmo tempo silenciosa e
repleta de ruídos pequenos — o piar distante de uma coruja, o farfalhar seco
das folhas, uma brisa se esgueirando entre a copa das árvores. De alguma
forma, e muito lentamente, o meu cérebro se desconectou do restante de
mim. Ainda sentia dor, ainda estava me contorcendo sob o aperto da
indecisão, mas havia algo entre mim, meus pensamentos, meus sentimentos
e tudo o mais — uma névoa fina, um pano de fundo iluminado, silhuetas de
marionetes se movendo tênues do outro lado. Se foi o frio ou o baseado de
Alexander eu não soube dizer, mas, pouco a pouco, fiquei entorpecido.
A porta se abriu, e então se fechou. Olhei sem nenhuma expectativa ou
curiosidade. Era Meredith. Ela hesitou, parada na varanda por um instante,
e então desceu as escadas. Não me mexi. Ela tirou o baseado da minha
boca, jogou-o no chão, e me beijou antes que eu pudesse falar. Uma
palpitação entorpecida de dor subiu pelo nariz até meu cérebro. A mão dela
estava quente na lateral do meu rosto, a boca era magnética. Ela pegou a
minha mão, como fizera tantas semanas antes, e me levou de volta para
dentro.
CENA 7
A ida do primeiro andar até a Torre leva uma década. Eu subo devagar,
como um homem a caminho da forca, e Colborne segue atrás, hesitante. O
aroma do lugar — madeira velha, livros antigos, sob uma camada fina de pó
— é tão familiar que entorpece os outros sentidos, apesar de eu nunca ter
notado isso há dez anos, quando morava aqui. A porta está entreaberta,
como se um de nós, aos vinte e poucos, a tivesse esquecido assim, na pressa
de correr para o teatro, o Estúdio Cinco, o Habeas Copos, seja lá onde. Por
um instante, eu me pergunto se James está esperando do outro lado.
A porta se abre silenciosamente quando eu a empurro — não enferrujou
da mesma forma que eu. O quarto vazio me encara quando passo pelo
batente, preparado para a dor da memória me atingir como um relâmpago.
No entanto, há apenas um tênue sussurro, um suspiro como a mais leve
brisa do outro lado do vidro da janela. Eu me aventuro quarto adentro.
Alunos ainda moram por aqui, ou ao menos é o que parece. As camadas
de poeira nas estantes vazias só são de algumas semanas, e não de anos. As
camas estão sem lençóis, nuas e esqueléticas. A minha. A de James. Eu
estico a mão para tocar em um dos pilares do dossel, a madeira espiralada
lisa como vidro. Solto uma respiração que sequer notei que segurava. O
quarto é só um quarto.
A janela entre meu guarda-roupa e a cama de James — estreita, como
uma seteira — espreita o lago. Se esticar o pescoço, vejo o fim do cais,
saliente na água esmeralda do verão. Eu me pergunto (pela primeira vez,
estranhamente) se eu teria assistido a tudo acontecer daqui, caso não
passasse a noite da festa de César no andar de baixo, no quarto de
Meredith. Escuro demais, eu digo a mim mesmo. Eu não teria visto coisa
alguma.
— Esse era o seu quarto?
Atrás de mim, Colborne está olhando para o teto, o ponto central distante
onde todos os pilares convergem, onde os raios se encontram em uma roda.
— Seu e de Farrow — completa.
— Isso. James e eu.
O olhar de Colborne desce lentamente para encontrar meu rosto. Ele
sacode a cabeça.
— Vocês dois. Eu nunca entendi.
— Nós também não. Era mais fácil não entender.
Ele parece ter dificuldade de encontrar as palavras por um instante.
— O que vocês eram? — pergunta ele, por fim.
Parece grosseiro, mas é só uma exasperação com sua própria inabilidade
de formular a pergunta de forma melhor.
— Éramos muitas coisas. Amigos, irmãos, parceiros de crime.
A expressão dele fica sombria, mas eu ignoro e continuo:
— James era tudo o que eu queria desesperadamente ser e nunca poderia
me tornar: talentoso, inteligente, viajado. Filho único de uma família que
prezava arte acima de lógica, e paixão acima de paz e tranquilidade. Eu me
agarrei nele como um carrapicho desde o dia em que nos conhecemos, na
esperança de que o brilhantismo dele de alguma forma passasse um pouco
para mim.
— E ele? — pergunta Colborne. — Qual era o interesse dele por você?
— É assim tão difícil acreditar que alguém pode só gostar de mim, Joe?
— Claro que não. Já te falei mais de uma vez que eu gosto de você,
completamente a despeito de mim mesmo.
— É — disse, seco —, e isso nunca deixa de me fazer sentir acolhido.
Ele abre um sorriso irônico.
— Você não precisa responder, mas não vou retirar a pergunta.
— Pois bem. É puramente especulação, claro, mas acho que James
gostava de mim pelas razões opostas às quais eu gostava dele. Todo mundo
me falava que eu era “legal”, mas o que queriam dizer era “ingênuo”. Eu
era ingênuo e impressionável e incrivelmente normal. Mas eu era esperto o
bastante para conseguir acompanhá-lo e, portanto, ele me deixava.
Colborne lança um olhar estranho e avaliativo para mim.
— E era só isso?
— Claro que não — eu digo. — Nós fomos inseparáveis durante quatro
anos. Não é algo que se possa explicar em poucos minutos.
Ele franze o cenho, enfiando a mão nos bolsos. Meu olhar
automaticamente desce para o quadril, à procura do brilho dourado do
distintivo, antes de eu me lembrar de que ele mudou de emprego. Olho para
o rosto dele de novo. Ele não envelheceu, na verdade — é mais como se
tivesse desbotado, como um velho cão.
— Sabe o que eu acho que era? — pergunta ele.
Ergo as sobrancelhas, intrigado. As pessoas quase sempre queriam uma
explicação do meu relacionamento com James — o que parecia
inerentemente injusto, esperando que metade de uma equação pudesse
explicar o todo —, mas nunca ninguém ofereceu seu próprio diagnóstico.
— Acho que ele estava enamorado de você porque você estava
igualmente enamorado dele.
(“Enamorado.” Noto que essa é a palavra que ele escolheu usar. Não me
parece inteiramente certa, mas também não está inteiramente errada.)
— É possível — digo. — Eu nunca perguntei. Ele era meu amigo. Muito
mais do que isso, na verdade. Era o suficiente. Eu não precisava saber o
porquê.
Nós ficamos parados, encarando um ao outro em um silêncio que é
desconcertante apenas para ele. Há outra pergunta que ele está ansiando por
fazer, mas não fará. Ele chega o mais próximo que consegue, devagar,
talvez esperando que eu me prontifique para terminar aquele pensamento
em nome dele.
— Quando você diz “mais do que amigos”…
Eu espero.
— Sim?
Ele abandona a tentativa.
— Acho que não importa, mas não deixo de me perguntar.
Eu ofereço um sorriso, desinteressado o bastante para que ele
provavelmente continue a se perguntar — ao menos sobre essa questão —
por mais bastante tempo. Se ele tivesse a audácia de perguntar, eu teria
respondido. Meu fascínio por James (está aí a palavra, “enamorado” não faz
jus) transcendia qualquer noção de gênero. Colborne — um homem
comum, casado e feliz, pai de dois filhos, não muito diferente de meu
próprio pai em alguns aspectos — não me parece o tipo de homem que
compreenderia isso. Nenhum homem parece capaz, talvez, até que ele
mesmo experimente isso, e a negação deixe de ser plausível.
O que éramos, então? Em dez anos, ainda não encontrei uma palavra
adequada que pudesse descrever nosso relacionamento.
CENA 1
Corri pela floresta até o EBA da mesma forma que fizera algumas semanas
antes, segurando um pedaço de tecido no punho. Corri com o gancho de
barco ao meu lado como uma lança, os pés amassando e revolvendo a terra.
Quando avistei o prédio, percebi o meu erro — eu me esquecera da hora.
As pessoas já estavam se enfileirando lá fora para ver a peça, convidados
com roupas de sair, conversando e rindo, com o programa em mãos. Eu me
agachei e espreitei ao redor do sopé do morro, com a cabeça abaixada.
A porta lateral que levava à escadaria se abriu com um baque. Eu a
segurei quando tentou bater em mim e deixei fechar com mais suavidade, e
então desci as escadas até o porão com tanta rapidez que quase caí. O suor
se acumulava no rosto enquanto eu atravessava aquela maré de mobília
empilhada. Depois de três minutos angustiantes, encontrei a sala onde
estavam os armários, o cadeado aberto me encarando como um único olho
de ciclope. Arrastei a mesa para o lado, retirei o cadeado, e escancarei a
porta. A caneca estava ali, intocada, com aquele pedaço culposo de tecido
enfiado ali como um guardanapo amassado. Enfiei o gancho do barco ao
lado, bati a porta, e chutei até que ela se fechasse, sem me importar com o
barulho que fazia. A tranca rangeu conforme deslizou de volta pelo aro, e
eu coloquei a corrente de volta no lugar sem hesitar. Cambaleei para trás,
encarando o feito, e corri escada acima novamente, o pânico subindo da
sola dos pés ao topo da cabeça como um arroubo quente e delirante.
Passei em disparada por dois corredores nos bastidores, o murmúrio e
ruído do público atravessando as paredes. Na travessia, dois alunos do
segundo ano passaram apressados por mim para chegar às coxias,
apontando e sussurrando conforme eu marchava. Escancarei a porta do
camarim, e todo mundo ergueu o olhar de súbito.
— Porra, onde você estava? — exigiu Alexander.
— Desculpe! — falei. — Eu só… Eu explico depois. Cadê meu figurino?
— Bom, o Timothy está usando, caralho, porque a gente não sabia onde
você estava!
Eu me virei no lugar e encontrei Timothy (um aluno do segundo ano que
normalmente interpretava o criado traiçoeiro do Duque de Albany), em pé,
esverdeado de náusea, segurando o texto em mãos.
— Puta merda, me desculpa — falei. — Tim, me dá isso.
— Graças a Deus — respondeu ele. — Graças a Deus, cacete, eu estava
tentando aprender as falas…
— Me desculpa, aconteceu uma coisa …
Vesti as roupas rápido conforme ele as tirava, lutando com as botas, o
cinto da espada, o casaco. As conversas do público que saíam dos alto-
falantes estalaram e por fim cessaram. Um pequeno arfar ondulou do
público, e eu sabia que as luzes estavam acesas no palácio sidéreo de Lear.
KENT: “Pensei que o Rei era mais comovido pelo Duque de Albany do
que Cornwall.”
GLOUCESTER: “E tal nos pareceu; mas agora, na divisão do reino, não se
considera mais qual Duque tem maior apreço, pois as partes foram pesadas
tão precisamente que nada um ganha sobre o outro.”
KENT: “Esse não é seu filho, senhor?”
Olhei para Alexander, que estava de joelhos, amarrando os cadarços das
minhas botas enquanto eu me atrapalhava com os botões do casaco.
— James já está no palco? — perguntei.
— Óbvio.
Ele puxou os cadarços com tanta força que eu quase me desequilibrei.
— Fique parado, seu desgraçado — mandou.
— E Meredith?
Peguei o lenço do pescoço.
— Nas coxias, presumo.
— Então ela está aqui — falei.
Ele ficou em pé e começou a encaixar o meu cinto no passante.
— Por que não estaria?
— Não sei.
Meus dedos estavam atrapalhados, instáveis, sem conseguir formar o nó
familiar.
— Ela passou a noite fora — expliquei.
— Se preocupe com isso depois. Agora não é a hora.
Ele apertou o meu cinto com força demais e agarrou as luvas do balcão.
Eu olhei no espelho. Meu cabelo estava desgrenhado, e o suor brilhava nas
bochechas.
— Você está com uma aparência horrível — disse ele. — Está doente?
— Estou doente de tanto pensar — respondi, antes que pudesse me
impedir.
— Oliver, mas que…
— Deixa para lá — falei. — Preciso ir.
Saí na travessia antes que ele pudesse falar mais uma vez. A porta se
fechou pesadamente atrás de mim, e eu esperei com a mão na maçaneta,
forçando-me a ficar parado pela concentração enorme da qual eu
necessitava, naquele momento, apenas para respirar. Fechei os olhos, a
mente esvaziada de tudo que não fosse o ato de inspirar e expirar, até que a
última fala da primeira cena me trouxe de volta à vida. A voz de Meredith,
baixa e resoluta, ecoou:
— Algo devemos fazer.
Cambaleei pela fileira de cabos, naquele escuro impiedoso dos
bastidores, até que meus olhos se ajustaram ao brilho suave do abajur no
canto da concentração. O assistente me viu, e sibilou no fone com
microfone que usava:
— Som? Estamos com um Edgar. Não, o original. Um pouco
descabelado, mas está pronto.
Ele cobriu o microfone com a mão, murmurando:
— A Gwendolyn vai comer o seu cu, amigo.
Então, ele voltou a atenção para o palco novamente. Por um breve
momento, eu me perguntei o que ele diria se eu contasse que, naquele
momento, Gwendolyn era a menor das minhas preocupações.
No palco, James estava parado, a cabeça abaixada em deferência ao pai.
GLOUCESTER: “Vimos o melhor do nosso tempo. Maquinações, vazio,
traição, e todas as desordens de ruína nos seguirão ao túmulo. Encontre o
vilão, Edmund…”
A boca de James estremeceu, e eu me lembrei da repetição aflitiva da
noite anterior. Gloucester terminou o discurso e passou pelo chão estrelado
até a coxia oposta.
— Eis — disse James assim que ele desapareceu — a grande tolice do
mundo: quando doentes em fortuna (muitas vezes dívida de nossas próprias
ações), entregamos a culpa de nossos desastres ao sol, à lua, às estrelas…
como se fôssemos vilões pelo acaso; tolos por compulsão celestial; ladrões,
pilantras e traidores por predominância terrena; bêbados, mentirosos e
adúlteros por obediência forçada à influência planetária; e como se a
culpa de tudo mais em que somos vis fosse de tentação divina!
Ele olhou aos céus, cerrando o punho, que sacudiu para as estrelas. Uma
risada brotou de seus lábios, ecoando nos meus ouvidos, audaciosa e
incontida.
— Como é admirável o desvio da podridão humana de atribuir aos
astros sua disposição perversa!
Ele ergueu um dedo, apontando para uma única constelação em meio a
centenas, e continuou a falar de forma pensativa.
— Meu pai se acasalou com a minha mãe sob o rabo do Dragão, e nasci
sob a Ursa Maior. Em consequência, sou grosseiro e depravado.
Ele riu mais uma vez, mas dessa vez era uma risada amarga. Troquei o
peso de pé no lugar, todos os cabelos na nuca arrepiados.
— Ainda seria o que sou, mesmo que a mais pura das estrelas no céu
brilhasse no meu bastardamento. Edgar…
Ele hesitou, fosse por incerteza da minha presença ou por outra
inquietação maior. Não saberia dizer. Surgi em meio ao nosso mundo
estrelado com um passo cauteloso.
— Diga-me, irmão Edmund? — perguntei, pela segunda vez em menos
de dezoito horas. — Qual séria reflexão entretém?
Nós passamos tranquilamente pela mesma conversa que tivéramos na
noite anterior em pedaços decepados, pouco a pouco. O rosto de James
poderia ser uma máscara. Ele dizia as falas tão tranquilamente quanto
sempre o fizera, alheio à incredulidade, ao medo e à fúria que ameaçavam
me dilacerar cada vez que eu o olhava. Minhas palavras saíram ríspidas e
severas quando eu disse:
— Algum vilão me trapaceou!
— É o que temo — respondeu ele, lentamente, mas, ao continuar, voltou
a deslizar naquela mesma fala arrastada e sedosa.
Esqueci qual era a rubrica, e fiquei parado, imóvel, minhas respostas
mecânicas e monótonas.
Quando ele terminou novamente, eu disse, brusco:
— Em breve terei notícias suas?
— Estou a seu serviço nesse assunto — disse ele.
Era minha vez de partir, mas eu não o fiz. Esperei tempo demais, tempo o
suficiente para que ele fosse forçado a olhar além de Edgar, e me ver em
vez disso. O reconhecimento passou nos olhos dele e, com isso, uma faísca
de medo. Eu me virei para ir embora e, enquanto eu andava na direção das
coxias, eu o ouvi falar de novo, um pouco mais baixo.
JAMES: “… um nobre irmão,
Cuja natureza abomina o mal,
Que de nada suspeita,
E a tola honestidade em mim confia.”
De repente, aquela bravata parecia falsa. Ele sabia o que eu sabia. Por
enquanto, era o suficiente. A peça seguiria, aos tropeços.
CENA 5
Esperei por dez cenas, ou cerca disso, no camarim até que James
aparecesse. Ele nunca apareceu, mas eu sabia que não deveria procurar nas
coxias. O tipo de confronto que estávamos destinados a ter não poderia ser
confinado às vielas e passarelas dos bastidores. O intervalo seria minha
melhor chance de encontrá-lo antes que fugisse. Enquanto a última cena do
Ato III se aproximava do clímax violento, eu saí da cadeira, vestindo uma
jaqueta sobre o torso despido. Os trapos de louco me faziam sentir nu e
vulnerável.
A travessia estava vazia, as luzes brilhando com um tom amarelado
outonal. Eu estava esticando a mão para a porta dos bastidores quando
Meredith surgiu do outro lado do corredor. Eu não pusera os olhos nela em
toda aquela noite e, por um instante, fiquei congelado no lugar. Ela parecia
uma princesa grega, drapeada em chiffon e voil azul-claro, um aro de ouro
circulando a testa, os cachos caindo soltos pelas costas. Eu me virei e andei
diretamente até ela, incerto de quando a encontraria novamente, ou o que o
resto da noite traria. O som dos meus passos fez ela erguer o olhar, e uma
expressão de surpresa passou pelo rosto antes de eu alcançá-la e beijá-la, da
forma mais profunda que eu ousava.
— Por que isso agora? — perguntou ela, quando me afastei.
Ela sabia que era linda. Eu não precisava dizer isso.
— Sabe, você me assusta de verdade — falei, segurando o tecido do
vestido para mantê-la ali comigo.
— Como assim?
— Não sei, é como se eu olhasse para você e de repente os sonetos
fizessem sentido. Os bons, pelo menos.
Seja lá o que qualquer um de nós esperava que eu falasse, não era aquilo.
Ela enrubesceu, e uma pequena pontada de prazer me percorreu —
improvável, inexplicável, considerando todas as outras circunstâncias
daquela noite. Porém, foi extinguida como a chama de uma vela, soprada da
existência pelo ar da dúvida.
— Onde você estava ontem à noite? — perguntei.
Ela desviou o olhar.
— Eu só… precisava ir a um lugar.
— Não entendo.
— Eu vou te contar — disse ela, traçando o osso da minha clavícula com
um dedo, distraída. — Hoje à noite. Depois.
— Está bem.
Eu não conseguiria deixar de me perguntar se haveria tempo para depois.
Qual era o significado daquele “depois”.
— Depois — concordei mesmo assim.
— Preciso ir.
Ela afastou meu cabelo da testa, um gesto afetuoso da parte dela, que me
era familiar e perpetuamente aguardado. Porém, minhas apreensões e
desassossegos fizeram meus joelhos tremerem.
— Meredith — eu disse, enquanto ela seguia na direção do camarim
feminino.
Ela parou na porta.
— Aquele outro dia, na aula… — Eu não queria dizer em voz alta, mas
não conseguia me impedir. — Não beije James daquele jeito de novo.
Ela me encarou, uma incompreensão vazia no rosto por um momento, e
então o olhar dela endureceu.
— De quem você está com ciúmes? — perguntou ela. — Dele ou de
mim?
Ela emitiu um ruído baixo de asco, e desapareceu pela porta antes que eu
pudesse responder. Minha garganta se apertou. O que eu tinha intenção de
fazer? Protegê-la, avisá-la do perigo ou o quê? Bati a mão aberta na parede,
e o impacto ressoou, dolorido.
Aquilo precisaria esperar. O Ato III estava acabando, e eu ouvia Colin
arfar pelos alto-falantes.
COLIN: “Fui ferido. Siga-me, senhora.
Expulsem o cego vilão! Atirem-no
Na imundice. Regan, sangro aqui.
Antes da minha hora. Dê-me o braço.”
Esperei pela porta do lado esquerdo, as costas achatadas contra a parede.
As luzes se apagaram e o público aplaudiu, primeiro fraco, e então com um
fervor maior, aturdido pela imagem dantesca dos olhos arrancados de
Gloucester. Os alunos do segundo ano se espalharam pelas coxias e
passaram apressados sem me ver. Então, Colin, e depois Filippa. Por fim,
James.
Eu o agarrei pelo cotovelo, e o levei para longe dos camarins.
— Oliver! O que você está fazendo?
— Precisamos conversar.
— Agora? — disse ele. — Me solte, está me machucando.
— Estou?
Eu segurava o braço dele com um pulso firme e brutal — era maior do
que ele e, pela primeira vez, eu queria que nós dois tivéssemos uma
consciência profunda daquele fato.
Abri a porta do corredor com um empurrão, puxando-o atrás de mim.
Meu primeiro pensamento fora o local de carga e descarga, mas Alexander
e alguns dos alunos do segundo e terceiro ano teriam saído para fumar.
Considerei o porão, mas não queria ficar encurralado lá embaixo. James fez
duas ou três perguntas — todas variações do mesmo tema; para onde
estávamos indo? —, mas eu ignorei todas e ele recaiu em silêncio, o pulso
acelerando sob meus dedos.
O gramado atrás do Pavilhão era vasto e reto, o último lugar aberto antes
que o chão se inclinasse para baixo na direção das árvores. O céu
verdadeiro era enorme acima de nossa cabeça, fazendo os espelhos e as
luzes do palco parecerem ridículas — a tentativa fútil do homem de imitar a
arte de Deus. Quando estávamos longe o bastante do EBA para que eu me
tranquilizasse de que não seríamos vistos no escuro, e muito menos
ouvidos, soltei o braço de James e o empurrei para longe de mim. Ele
tropeçou, recuperando o equilíbrio, e olhou nervoso para a queda íngreme
do morro atrás dele.
— Oliver, estamos no meio de uma apresentação — disse ele. — O que
você quer?
— Eu encontrei o gancho.
De repente, desejei que o vento uivante da noite passada voltasse. A
imobilidade do mundo sob o domo escuro do céu era sufocante,
insuportável.
— Eu encontrei o gancho enfiado dentro do seu colchão — eu disse.
O rosto dele ficou pálido como ossos sob a luz crua da lua.
— Eu posso explicar.
— Pode mesmo? — perguntei. — Porque eu preciso abrir o Ato IV, então
você tem uns quinze minutos para me convencer de que isso não é nada do
que eu estou achando.
— Oliver… — disse ele, desviando o rosto.
— Me diga que você não fez isso.
Arrisquei dar um passo para a frente, temendo erguer a voz acima de um
sussurro.
— Me diga que você não matou Richard — insisti.
Ele fechou os olhos, engolindo em seco, e disse:
— Não era minha intenção.
Um punho de aço se fechou em meu peito, tirando todo o ar dos pulmões.
Meu sangue ficou gelado, arrastando-se pelas veias como morfina.
— Meu Deus, James, não.
Minha voz falhou. Rachou ao meio. Ficou sem som nenhum.
— Eu juro, não era minha intenção… você precisa entender — disse ele,
andando desesperado na minha direção.
Dei três passos para trás, cambaleando, onde ele não poderia me alcançar.
— Foi um acidente, exatamente como dissemos… foi um acidente,
Oliver, por favor!
— Não! Não chegue mais perto — eu disse, forçando as palavras quando
sequer havia ar para elas. — Fique longe. Me conte o que aconteceu.
O mundo pareceu parar no eixo, como um pião equilibrado
precariamente na ponta. As estrelas brilhavam, cruéis, estilhaços de vidro
espalhados pelo céu. Cada nervo em meu corpo entrara em um curto-
circuito, encolhendo-se do toque do ar frio de março. James era ainda mais
frio, esculpido do gelo, não era meu amigo, sequer era humano.
— Depois que você subiu para o quarto com Meredith, aconteceu uma
coisa com Richard — disse ele. — Foi como no Halloween, mas pior. Ele
saiu agitado do Castelo com um… ódio incontrolável. Você deveria ter
visto. Era como ver a explosão de uma estrela.
Ele sacudiu a cabeça, lentamente, o terror e a reverência indistinguíveis
na expressão.
— Wren e eu estávamos sentados na mesa. Não fazíamos ideia do que
estava acontecendo, mas então ele apareceu, com aquele olhar no rosto que
dizia que esmagaria qualquer coisa que entrasse em seu caminho. Ele estava
indo na direção da floresta, para fazer sabe-se lá o quê, e Wren tentou
impedir.
Ele fraquejou, fechando os olhos com força, como se a lembrança fosse
próxima demais, ardida demais, uma dor excruciante.
— Meu Deus, Oliver. Ele a agarrou, e eu juro que pensei que ele fosse
parti-la ao meio, mas ele a jogou na grama, a arremessou pelo jardim. E
então ele saiu batendo os pés até as árvores, e deixou ela lá, soluçando. Foi
horrível. Tentei acalmá-la como pude, e Pip e eu a colocamos na cama. Só
que ela não parava de chorar, e ficava dizendo “vá atrás dele, ele vai se
machucar”. Então eu fui.
Abri a boca, incrédulo, mas ele não me deu a chance de dizer uma
palavra.
— Você não precisa me dizer o tamanho dessa idiotice — disse ele. —
Eu sei. Eu sabia na época. Mesmo assim, eu fui.
— E você o encontrou.
Eu já conseguia ver a cena se desdobrando. Uma discussão. Uma
ameaça. Um empurrão. Algo além.
— Não a princípio — disse ele. — Cambaleei na escuridão como um
idiota, chamando o nome dele. Então, tive a ideia de que ele talvez tivesse
descido até o cais.
Ele deu de ombros, e o gesto era tão patético e impotente que senti o nó
em meu peito afrouxar, só um pouco.
— Desci o morro, mas não o vi. Cheguei até o galpão de embarcações, só
para ter certeza de que ele não tinha feito alguma estupidez, como pular na
água, e, quando me virei para voltar para casa, ele estava lá. Ele estava me
seguindo aquele tempo todo na floresta, como se fosse uma brincadeira
doentia.
Ele estava falando mais rápido naquela altura, todas as palavras que
prendera por meses saindo como uma enchente, todas de uma vez.
— E eu disse: “Aí está você. Vamos voltar, sua prima está devastada”. E
ele disse, bom, você pode adivinhar o que ele disse, que foi “Você não
precisa se preocupar com a minha prima”. Então eu falei: “Ótimo. Está todo
mundo chateado. Vamos voltar e resolver isso”. E ele me lançou aquele
olhar de novo… Meu Deus, Oliver, há semanas que sonho com isso. Era
como se todo o ódio do mundo estivesse condensado ali. Alguém já olhou
para você dessa forma?
Por um instante, aquele mesmo medo estupefato pareceu dominá-lo, mas
então ele sacudiu a cabeça e continuou:
— E foi aí que começou. Os empurrões. As… provocações.
A voz dele ficou esganiçada, em um tom nervoso e agudo, e ele esfregou
os braços, batendo um pé no chão como se não conseguisse esquentar o
próprio corpo.
— E ele não parava. Era que nem no Halloween, tudo de novo. Vamos,
vamos brincar. Eu não mordi a isca, e só ficou pior. Por que você não
revida? Por que não suja suas mãos? Vamos brincar, pequeno príncipe,
vamos brincar. Era só isso para ele, mas eu estava com tanto medo, e eu
tentei, eu disse mais uma vez, por que você só não volta para o Castelo para
conversarmos com a Wren? Vamos falar com Meredith, consertar tudo. E
ele só disse… ele disse…
Ele parou, o rosto corado de um tom escarlate, como se as palavras
fossem tão vis que ele não conseguisse repeti-las.
— James, o que foi que ele disse?
Ele ergueu o olhar subitamente, a cabeça inclinada para trás, a boca uma
linha fina e cruel, os olhos sombrios e impenetráveis. Ele parecia Richard;
até mesmo soava como ele quando falou:
— “Por que você e Oliver não admitem logo que são duas bichas, e
deixam minhas meninas em paz?”
Eu o encarei, a garganta apertada, um suor frio de pavor se esparramando
lentamente pelos braços e pernas.
— Então eu falei — continuou James, com a própria voz —: “não sei
quem te disse isso, mas você não é dono de Meredith, e certamente não é o
dono da Wren. Pode beber até morrer se quiser. Eu estou indo embora”. Só
que ele não me deixou.
— Como assim?
— Ele queria brigar. Não ia me deixar ir embora sem brigar. Tentei
passar por ele, mas ele me agarrou, me jogou na porta do galpão. Não é
uma porta sólida, de tão velha, e eu meio que fui arremessado lá para
dentro, caí no meio de todas aquelas coisas empilhadas lá. E ele veio me
atacar de novo, aí eu só peguei a coisa que estava mais próxima, e era o
gancho.
Ele parou, pressionando a mão nos olhos, como se quisesse apagar aquela
lembrança. Os lábios dele tremiam. O corpo todo tremia.
— E depois?
Eu não queria perguntar, não queria saber, não queria ouvir mais
nenhuma palavra.
— Ele riu — James disse, fraco.
Eu quase escutei o som, a risada perigosa e profunda de Richard,
ecoando na escuridão.
— Ele riu, e disse, vá em frente, bonitinho, pequeno príncipe, eu duvido.
E ele me empurrou de novo. Me empurrou até o fim do cais, dizendo “eu
duvido, eu duvido, você não vai fazer isso”. E eu olhei para trás, e a água
estava bem ali, e tudo que eu conseguia pensar era no Halloween, e quem
iria impedir ele de me afogar dessa vez? E ele não calava a boca,
continuava repetindo que eu não faria nada, duvido, duvido, duvido, e eu…
A mão dele deslizou para cobrir a boca, os olhos arregalados em espanto,
como se apenas naquele momento ele percebesse o que fizera.
— Eu não tinha intenção — disse ele, com um gemido suave, escondido
pela mão. — Eu não queria. Só que eu estava tão assustado e com tanta
raiva.
Eu conseguia ver tudo conforme acontecia. Um golpe bruto, sem
planejamento. O impacto doloroso, sobressaltado. A surpresa com o
respingo de sangue quente no rosto. Richard despencando em câmera lenta
no lago. Um ruído mórbido ao cair na água, seguido de um silêncio mais
mórbido ainda.
— Oliver, eu achei que ele estava morto — disse James, tão baixinho que
eu mal o ouvi. — Eu juro, achei que ele já tinha morrido. E eu não sabia o
que fazer, então eu só… corri. Acho que perdi a cabeça por um segundo.
Corri de volta para as árvores, e acho que teria corrido a noite toda se não
tivesse trombado com Filippa.
Eu me senti entorpecido, congelado, paralisado pelo choque.
— Você fez o quê?
Ele assentiu, distraído, como se não conseguisse se recordar como o resto
tinha acontecido.
— Acho que ela ficou preocupada que eu não tinha voltado ainda e veio
procurar por mim, e eu esbarrei nela. Foi um milagre eu não ter machucado
Filippa, ainda estava com a porra do gancho na mão… não sei o que me fez
levar aquilo embora.
— Ela sabia — falei, o fato travando e repetindo no meu cérebro. — Ela
sabia?
— Ela estava tão calma, quase como se esperasse aquilo. Nem fez
perguntas, na verdade só me levou para dentro e subiu as escadas comigo,
de alguma forma. Eu estava tremendo tanto que ela precisou me ajudar a
me despir, mas, assim que me deixou no banheiro, ela foi queimar todas as
coisas que tinham sangue, e eu só comecei a vomitar e não consegui parar
até…
Ele recaiu em um silêncio abrupto e fez um gesto estranho na minha
direção, como se eu devesse terminar a frase.
— Meu Deus — falei. — Eu.
Meio dormindo, meio despido. Ele. O coração pulsando, abaixado no
chão.
— Você não me contou.
Eu não percebi até que saísse da minha boca, que aquele único fato na
verdade era pior do que todo o resto.
— Por que você não me contou? — insisti.
— Eu não queria que você soubesse — respondeu ele.
Ele deu outro passo na minha direção, e dessa vez eu não andei para trás.
— Filippa eu não sei, talvez ela seja louca, nada a perturba… mas você?
Oliver, você…
A voz dele falhou e, naquela ausência, ele gesticulou para mim
novamente, mas era um pensamento que eu não poderia terminar por ele.
— O que tem eu, James? Não estou entendendo.
Ele deixou que a mão caísse ao lado e deu de ombros daquele mesmo
jeito, sem esperanças e desamparado.
— Eu nunca queria que você me olhasse como está me olhando agora.
E talvez houvesse algum tipo de terror na minha expressão, mas não pela
razão que ele estava pensando. Eu olhei para ele, sob o luar frio, frágil e
pequeno e assustado, e as mil perguntas que haviam me rodeado,
atropelando tudo, cada vez que eu olhava para ele desde o Natal se
derreteram, fundiram-se e encolheram, até que só sobrou uma.
— Oliver?
— Sim — falei, aquela única palavra aceitando tudo de uma única vez.
Não sabia bem quando ele tinha começado a chorar, mas as lágrimas
brilhavam nas bochechas dele. Ele me encarou, descrente e confuso.
— Está tudo bem — eu disse, tanto para ele quanto para mim.
Eu olhei para trás, na direção do EBA, e me acalmou de alguma forma
ouvir Hamlet mais uma vez em minha mente: Estar preparado é essencial.
— Vai ficar tudo bem — eu disse, mesmo que nunca tivesse sentido
menos certeza de qualquer coisa. — Vamos dar um jeito, mas agora
precisamos voltar.
Eu não fazia ideia do que um “jeito” poderia significar, ou como ele
supunha que deveria interpretar aquilo.
— Precisamos voltar e agir como se nada estivesse errado. Precisamos
sobreviver a essa noite, e depois nos preocupamos com isso. Tudo bem?
Alívio… ou esperança… ou alguma outra coisa… finalmente iluminou o
rosto dele.
— Você…
— Sim — respondi, a única resposta possível para qualquer que fosse a
pergunta que ele quisesse saber. — Vamos.
Eu me virei na direção do EBA. Ele segurou meu braço.
— Oliver — disse ele, um ponto de interrogação pendurado ao final do
meu nome.
— Está tudo bem — repeti. — Depois. Vamos dar um jeito.
Ele assentiu, os olhos voltados para baixo, e eu senti os dedos dele
apertarem meu braço com mais firmeza.
— Vamos — falei.
Ele me seguiu na corrida de volta para o teatro. Nós entramos pela porta
lateral e nos separamos: eu fui para as coxias, e ele seguiu pelo outro lado,
para o banheiro, para limpar qualquer indício de aflição do rosto. Naquele
breve momento, eu me perguntei se “bem” ainda poderia ser possível, ou ao
menos alcançável. Porém, é assim que as tragédias como a nossa e Rei Lear
partem corações — ao fazer todos acreditarem que os finais ainda podem
ser felizes, até o último minuto.
CENA 6
OLIVER
Abro com dedos trêmulos. Dez linhas de verso estão rabiscadas no meio
da página. Ainda é a letra de James, mas mais pontiaguda, como se tivesse
sido escrita às pressas, com uma caneta que já quase não tinha mais tinta.
Reconheço o texto — um monólogo desconjuntado como um mosaico,
remendado de uma cena no começo de Péricles.
Leio aquilo três vezes, me perguntando por que ele deixaria uma
passagem tão estranha e obscura para mim — até lembrar que não ouço
aquelas palavras desde que ele as cantou para mim, enquanto estávamos
deitados, bêbados, em alguma praia de Del Norte, como se ele houvesse
sido trazido pela maré para ficar ao meu lado. Estou profundamente
consciente da minha própria necessidade desesperada de encontrar uma
mensagem em meio àquela loucura e, conforme ela toma forma, tenho uma
suspeita, e temo ter esperanças. Porém, a implicação do texto e o pequeno
papel que tem em nossa história são impossíveis de ignorar, cruciais demais
para um estudioso tão meticuloso quanto James desconsiderar seu
significado.
Quando não consigo mais suportar um instante sequer de inércia, corro
pelas escadas até o escritório, minha cabeça preenchida pelo que teriam
sido as últimas palavras de Péricles, caso ele não tivesse decidido pedir por
ajuda.
O computador na mesa volta à vida quando toco no mouse e, depois de
um minuto interminável, abro o navegador da internet, procurando por
todos os registros que consigo encontrar da morte de James Farrow no
inverno desolador de 2004. Devoro cinco, seis, dez artigos antigos, e todos
dizem a mesma coisa. Ele se afogou no último dia de dezembro e, apesar
das autoridades locais terem perscrutado a água gelada durante dias e por
quilômetros, o corpo dele nunca foi encontrado.
EXEUNT OMNES.
NOTA DA AUTORA
Romeu/ 1. If I profane with my unworthiest hand (A) 1. Se ofendo com indigna mão (A)
James 2. This holy shrine, the gentle fine is this: (B) 2. O sagrado altar da sua (B)
3. My lips, two blushing pilgrims, ready stand 3. Com beijo meus lábios a paz trarão (A)
(A) 4. de peregrinos sob essa lua. (B)
4. To smooth that rough touch with a tender kiss.
(B)
5. Good pilgrim, you do wrong your hand too 5. Peregrino, sua mão rejeita em tanto (C)
much, (C) 6. se a minha toma em devoção na sua. (D)
Julieta/ 6. Which mannerly devotion shows in this; (D) 7. Sua gente faz tal com as do santo (C)
Wren 7. For saints have hands that pilgrims’ hands do 8. E palmas se beijam faça sol ou lua. (D)
touch, (C)
8. And palm to palm is holy palmers’ kiss. (D)
Romeu/ 9 Have not saints lips, and holy palmers too? (E) 9 Em igual, os santos lábios não têm? (E)
James
Julieta/ 10 Ay, pilgrim, lips that they must use in prayer. 10 Sim, peregrino, usados para a fé. (F)
Wren (F)
11 O, then, dear saint, let lips do what hands do; 11 Que lábios façam o que mãos fazem bem
Romeu/ (E) (E)
James 12 They pray, grant thou, lest faith turn to 12 Minha reza devassa desespero é. (F)
despair. (F)
Julieta/ 13 Saints do not move, though grant for prayers’ 13 Santos não se movem, mas atendem
Wren sake. (G) quem ora. (G)
Romeu/ 14 Then move not, while my prayer’s effect I 14 Recolho meu milagre em sagrada hora.
James take. (G) (G)
LAURA POHL
e CARLOS CÉSAR DA SILVA
AGRADECIMENTOS
Estou em dívida com Arielle Datz, que arriscou muito em uma jovem
escritora, fazendo-a descer de vários parapeitos perigosos, e caminhou com
ela durante todo o processo de publicação com paciência infalível e
entusiasmo incansável. Agradeço a Christine Kopprasch, que riu das
minhas piores piadas e, com um instinto formidável e grande percepção
sobre a arte de contar histórias, usou sua mágica para dar um jeito na
bagunça que era o manuscrito original. A todos na Flatiron Books, cuja
dedicação, criatividade e amor por velhos livros são incrivelmente
inspiradores. A Chris Parris-Lamb, cuja orientação foi indispensável, e sem
a qual o livro nunca passaria do estágio de mandar cartas para agentes. Aos
meus colegas mestrandos no King’s College, que confirmaram minha
convicção de que, sim, algumas pessoas são de fato tão obcecadas que
conversam inteiramente por citações de Shakespeare. A Margaret, por
escutar todas as minhas reclamações. Às minhas primeiras leitoras
(Madison, Crissy e Sophie), que foram todas subornadas por vinho, e
ofereceram opiniões inestimáveis em troca. A meus amigos em Chapel Hill
(Bailey, Cary e a família Simpson), cuja boa-vontade nunca diminuiu,
mesmo diante da minha ansiedade artística devastadora. Aos professores e
diretores (Natalie Dekle, Brooke Linefsky, Greg Kable, Ray Rooley, Jeff
Cornell e Farah Karim-Cooper), que encorajaram e incentivaram meu
fascínio por Shakespeare. À minha avó, que encorajou meu amor por
literatura desde uma tenra idade e me deixou beber todo o chá e a maior
parte do álcool dela enquanto eu trabalhava neste manuscrito no canto de
sua biblioteca. E a meus pais, que me levaram e buscaram de inúmeros
ensaios, assistiram a uma porção de peças verdadeiramente horrendas,
leram uma pilha de igualmente horrendos primeiros rascunhos e nunca
condenaram minhas paixões pouco práticas. Humildemente, agradeço a
todos.
As doceiras
Pernambuco, Carla
9788504018608
317 páginas