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Para os muitos estranhos e incríveis atores

de teatro a quem tive a sorte de chamar de


amigos (juro que esta história não é sobre
vocês)
SUMÁRIO

ATO I
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
CENA 11
CENA 12

ATO II
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10

ATO III
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
CENA 11
CENA 12
CENA 13
CENA 14
CENA 15
CENA 16
CENA 17
CENA 18

ATO IV
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10

ATO V
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7

EPÍLOGO
EXEUNT OMNES.
NOTA DA AUTORA
NOTA DE TRADUÇÃO
AGRADECIMENTOS
ATO I

PRÓLOGO

Sentado com os pulsos algemados à mesa, penso: Sou proibido / de revelar


segredos de minha prisão, / que num breve relato que fosse /
amedrontariam tua alma. O guarda está próximo à porta, me observando,
como se estivesse esperando algo acontecer.
Joseph Colborne entra. Ele agora é um homem grisalho, de quase
cinquenta anos. É uma surpresa ver quanto envelheceu, no período de
algumas semanas — e nos últimos dez anos, ele envelheceu um pouco a
cada semana. Ele se senta à minha frente, unindo as mãos, e diz:
— Oliver.
— Joe.
— Ouvi dizer que a audiência da condicional julgou a seu favor. Meus
parabéns.
— Eu agradeceria se achasse que foi sincero.
— Você sabe que eu acho que você não pertence a este lugar.
— Nem por isso acha que sou inocente.
— Não.
Ele suspira, olhando o relógio, o mesmo que usa desde que nos
conhecemos, como se eu o entediasse.
— Então por que está aqui? — pergunto. — A mesma razão da quinzena
passada?
As sobrancelhas dele se franzem em uma única linha reta e escura.
— Ah, é claro que você usaria a palavra “quinzena”.
— Dá até para tirar o menino do teatro, et cetera e tal.
Ele sacode a cabeça, entretido e irritado ao mesmo tempo.
— E então? — pergunto.
— E então o quê?
— “A forca é a solução, mas o que ela soluciona, se não dos soluços a
razão?” — respondo, determinado a merecer a irritação dele. — Por que
está aqui? A esta altura, já deve saber que eu não vou te contar nada.
— Na verdade — diz ele —, dessa vez, acho que vou fazer você mudar
de ideia.
Eu me endireito na cadeira.
— Como?
— Vou me aposentar da polícia. Eu me vendi, peguei um trabalho de
segurança particular. Preciso pensar na educação dos meus filhos.
Por um instante, eu simplesmente o encaro. Sempre imaginei que
Colborne precisaria ser sacrificado que nem um velho cão selvagem para
deixar o gabinete do chefe de polícia.
— Como é que isso vai me persuadir? — pergunto.
— Nada do que você disser será oficial.
— Então por que se dar ao trabalho de ouvir?
Ele suspira de novo, e as linhas de expressão do seu rosto ficam mais
marcadas.
— Oliver, eu não me importo em castigar quem merece, não mais.
Alguém cumpriu a pena, e raramente temos tanta satisfação nessa linha de
trabalho. Mas eu não quero pendurar as chuteiras e desperdiçar mais dez
anos me perguntando o que realmente aconteceu dez anos atrás.
A princípio, não digo nada. Gosto da ideia, mas não confio nela. Olho
para os blocos de cimento sombrios, as minúsculas câmeras pretas que
espreitam em cada canto, o guarda com a mandíbula proeminente. Fecho os
olhos, respirando fundo, e imagino o frescor da primavera de Illinois, a
sensação de estar lá fora depois de ter sorvido o ar envelhecido da prisão
por um terço de minha vida.
Quando solto o ar, abro os olhos e vejo que Colborne está me observando
atentamente.
— Sei, não — respondo. — Vou sair daqui, de um jeito ou de outro. Não
quero arriscar precisar voltar. Parece mais seguro não cutucar a onça com
vara curta.
Ele batuca os dedos inquietos na mesa.
— Me conte uma coisa — diz. — Você alguma vez se deita na cela e
encara o teto, se perguntando como veio parar aqui, e não consegue dormir
porque não para de pensar naquele dia?
— Todas as noites — respondo sem sarcasmo. — Mas é diferente, Joe.
Para você, foi só um dia, e depois você seguiu com a vida. Para nós, foi um
dia, e então todos os dias que se seguiram depois.
Eu me inclino para a frente, apoiado nos cotovelos, para que meu rosto
fique apenas a centímetros do dele, para que ouça cada palavra quando
abaixo minha voz.
— Deve consumir você vivo, o fato de não saber. Não saber quem, não
saber como, não saber o porquê. Só que você não conhecia ele.
Ele está com uma expressão estranha e enjoada, como se eu tivesse me
tornado algo insuportavelmente feio e terrível de observar.
— Você guardou segredo esse tempo todo — diz ele. — Levaria qualquer
um à loucura. Por que fazer isso?
— Porque eu queria.
— Ainda quer?
Meu coração pesa no tórax. Segredos têm peso, como chumbo.
Eu me inclino para trás. O guarda observa tudo, impassível, como se
fôssemos dois desconhecidos conversando em outro idioma, nossa
discussão longínqua e insignificante. Penso nos outros. Era uma vez,
éramos nós. Fizemos coisas horrendas, mas também necessárias — ou ao
menos pareciam na época. Pensando naquilo, anos depois, não tenho tanta
certeza de que eram, e agora eu me pergunto: poderia eu explicar tudo para
Colborne, as pequenas reviravoltas e os caminhos tortuosos, até o êxodo
final? Examino seu rosto sereno, os olhos cinzentos marcados por rugas,
mas claros e luminosos como sempre foram.
— Tudo bem — digo. — Vou te contar uma história. Mas você precisa
entender algumas coisas.
Colborne fica imóvel.
— Estou ouvindo.
— Primeiro, eu só vou falar depois que sair daqui, e não antes. Segundo,
isso não pode voltar para me pegar, ou pegar qualquer outra pessoa.
Nenhum novo risco. E, por último, não vai ser um pedido de desculpas.
Espero uma resposta, um aceno de cabeça ou uma palavra, mas ele
apenas pisca, silencioso e estoico como uma esfinge.
— E então, Joe? — pergunto. — Você pode viver com isso?
Ele abre uma sombra fria de sorriso.
— Acho que sim.
CENA 1

A época: setembro, 1997, meu quarto e último ano no Conservatório


Clássico Dellecher. O cenário: Broadwater, Illinois, uma cidade pequena
quase sem importância. Era um outono quente até então.
Entram os personagens. Éramos sete na época, sete jovens brilhantes com
futuros extensos e preciosos diante de nós, apesar de não vermos nada além
dos livros na nossa frente. Sempre estávamos rodeados de livros e palavras
e poesia, todas as paixões vorazes do mundo encadernadas em couro e
pergaminho. (Em parte, culpo isso pelo que aconteceu.) A biblioteca do
Castelo era um salão octogonal arejado, de paredes repletas de estantes,
lotada de velhos móveis suntuosos, e mantida sempre aquecida e sonolenta
pela lareira monumental constantemente acesa, independentemente da
temperatura que fazia lá fora. O relógio da lareira marcou doze horas, e nós
acordamos, um por um, como estátuas que tomavam vida.
— É chegada a meia-noite — disse Richard.
Ele estava sentado na maior das poltronas como se fosse um trono, as
pernas compridas esticadas, os pés apoiados na grade de metal da lareira.
Três anos no papel de reis e conquistadores o tinham ensinado a sentar
daquela forma em todas as cadeiras, no palco ou fora dele.
— E às oito de amanhã imortalizados seremos.
Ele fechou o livro com um baque.
Meredith, enroscada como um gato no canto do sofá (enquanto eu me
esticava igual a um cachorro do outro lado), brincava com uma mecha do
cabelo ruivo e comprido quando perguntou:
— Aonde você vai?
RICHARD: “Exausto do trabalho, vou me deitar…”
FILIPPA: “Nos poupe.”
RICHARD: “Começo cedo amanhã e tal.”
ALEXANDER: “Ele diz, como se estivesse preocupado.”
Wren, sentada de pernas cruzadas em uma almofada próxima à lareira,
alheia às querelas dos outros, disse:
— Vocês já escolheram seus trechos? Eu não consigo decidir.
EU: “Que tal Isabella? A sua Isabella é excelente.”
MEREDITH: “Medida por medida é uma comédia, seu tonto. A audição é
para Júlio César.”
— Eu não sei por que estamos nos dando o trabalho de fazer audições —
disse Alexander, debruçado na mesa, chafurdando na escuridão nos fundos
da sala, e esticou a mão para pegar a garrafa de uísque perto do cotovelo.
Ele encheu novamente o copo, tomou um bom gole, e fez uma careta para o
restante de nós. — Eu poderia escolher os papéis dessa porcaria toda neste
instante.
— Como? — perguntei. — Eu nunca sei onde vou acabar.
— Porque você sempre é escolhido por último — disse Richard —, para
seja lá o papel que sobrar.
— Tsc, tsc — disse Meredith. — Você está sendo você mesmo, ou seu
gêmeo escroto?
— Ignore, Oliver — disse James.
Ele estava sentado sozinho no canto mais distante, relutante em desviar o
olhar do caderno. Ele sempre fora o estudante mais sério do nosso ano, o
que (provavelmente) explicava o fato de ser o melhor ator entre nós, e
(certamente) o motivo de ninguém se ressentir dele por isso.
— Pronto. — Alexander desdobrou um maço de notas de dez dólares do
bolso, e as contou na mesa. — São cinquenta dólares.
— Para quê? — perguntou Meredith. — Vai contratar um striptease?
— Por quê? Você está treinando para depois que se formar?
— Vai tomar no cu.
— Se você pedir com carinho…
— Cinquenta dólares para quê? — perguntei, interessado em interromper
aquilo.
De longe, Meredith e Alexander tinham as bocas mais sujas entre nós
sete, e tinham um orgulho perverso em conseguir vencer o outro em
xingamentos. Se deixássemos, eles continuariam a noite toda.
Alexander cutucou a pilha de notas com um dedo comprido.
— Aposto cinquenta dólares que eu adivinho o elenco todo, e não vou
errar ninguém.
Cinco de nós trocamos olhares curiosos; Wren ainda estava franzindo o
cenho para a lareira.
— Está certo, vamos ouvir — disse Filippa, com um suspirinho fraco,
como se a curiosidade a tivesse vencido.
Alexander empurrou os cachos pretos rebeldes para trás e disse:
— Bem, obviamente, Richard vai ser Júlio César.
— Porque todos nós queremos secretamente matá-lo? — perguntou
James.
Richard ergueu uma única sobrancelha escura.
— Et tu, Brutus?
— Sic semper tyrannis — respondeu James, e passou a ponta da caneta
pela própria garganta como se fosse uma adaga.
Assim sempre aos tiranos.
Alexander gesticulou de um ao outro.
— Exatamente — continuou. — James será Brutus, porque ele sempre é
o mocinho, e eu serei Cassius, porque eu sou sempre o vilão. Richard e
Wren não podem ser casados porque seria nojento, então ela vai ser Pórcia,
Meredith vai ser Calpúrnia e, Pip, você vai acabar fazendo drag mais uma
vez.
Filippa, mais difícil de encaixar no elenco do que Meredith (a femme
fatale) ou Wren (a donzela), era obrigada a se vestir de homem quando
acabavam os bons papéis femininos — uma ocorrência comum no teatro
shakespeariano.
— Alguém me mata — disse ela.
— Espera — disse eu, efetivamente provando a hipótese de Richard de
que eu era uma sobra permanente no processo de escolha de papéis —, e eu
fico como?
Alexander me examinou com os olhos estreitos, passando a língua nos
dentes.
— Provavelmente como Otávio — decidiu. — Não vão te deixar como
Marco Antônio. Sem ofensas, mas você não é muito notável. Vai ser aquele
aluno insuportável do terceiro ano. Qual é mesmo o nome dele?
FILIPPA: “Richard Segundo?”
RICHARD: “Que hilário. Não. Colin Hyland.”
— Espetacular — falei, olhando para o texto de Péricles que estava
analisando pelo que parecia ser a centésima vez.
Tendo apenas metade do talento de qualquer um deles, eu parecia
destinado a sempre servir de coadjuvante na história de outra pessoa. Vezes
demais me perguntei se a arte imitava a vida, ou se era o contrário.
ALEXANDER: “Dou cinquenta contos nesse exato elenco. Alguém quer
apostar?”
MEREDITH: “Não.”
ALEXANDER: “Por que não?”
FILIPPA: “Porque é exatamente isso que vai acontecer.”
Richard deu um risinho e saiu da cadeira.
— Podemos apenas nutrir esperanças. — Ele começou a andar na direção
da porta, e se inclinou para apertar as bochechas de James na saída. — Boa
noite, gentil príncipe…
James afastou a mão de Richard com uma batida do caderno, e então fez
um gesto teatral de desaparecer atrás dele. Meredith ecoou a risada de
Richard, acrescentando:
— Teu sangue ferve como o de qualquer valentão na Itália!
— Que a praga tome suas casas — murmurou James.
Meredith espreguiçou-se — com um gemido baixo e sugestivo — e se
levantou do sofá.
— Vem para a cama? — perguntou Richard.
— Vou. Alexander fez todo esse trabalho parecer inútil.
Ela deixou os livros esparramados na mesa de centro na frente da lareira,
a taça vazia de vinho acompanhando-os, uma lua crescente do batom
apegando-se à borda.
— Boa noite — disse ela para todos na sala. — Boa sorte.
Os dois desapareceram juntos pelo corredor.
Esfreguei os olhos, que estavam começando a arder pelo esforço de ler
por várias horas seguidas. Wren atirou o livro para trás da cabeça, e eu o
encarei onde parou ao meu lado no sofá.
WREN: “Que se dane.”
ALEXANDER: “É isso aí.”
WREN: “Eu vou só fazer a Isabella.”
FILIPPA: “Pode ir dormir.”
Wren ficou em pé lentamente, piscando para afastar o vestígio da luz das
chamas dos olhos.
— Eu provavelmente vou passar a noite em claro, recitando as falas —
disse ela.
— Quer vir fumar um? — Alexander terminara de beber o uísque (de
novo), e estava enrolando um baseado na mesa. — Pode ajudar a relaxar.
— Não, obrigada — disse ela, saindo pelo corredor. — Boa noite.
— Como quiser. — Alexander afastou a cadeira, o baseado pendurado no
canto da boca. — Oliver?
— Se eu te ajudar a fumar isso, vou acordar amanhã sem voz.
— Pip?
Ela levantou os óculos para cima da cabeça e tossiu baixinho, testando a
garganta.
— Meu Deus, você é uma péssima influência — disse ela. — Tudo bem.
Ele assentiu, já saindo da sala, as mãos enfiadas nos bolsos. Eu os
observei partir, com uma pontada de inveja, e me joguei contra um dos
braços do sofá. Eu estava me esforçando para me concentrar no texto, tão
cheio de anotações agressivas que mal era legível.
PÉRICLES: Antíoco, adeus! Mostra a sabedoria
 Que atos obscuros feitos à noite, e sem rubor,
 Na luz do dia se escondem com temor.
 Um pecado provoca a massa;
 A luxúria é do assassinato como a chama à fumaça.

Murmurei as últimas duas falas baixinho. Sabia de cor, sabia de cor há


meses, mas o medo de que eu esqueceria uma palavra ou frase no meio da
audição me corroía por dentro de qualquer forma. Olhei para James e disse:
— Você se pergunta se Shakespeare sabia esses discursos tão bem quanto
nós sabemos?
Ele desviou a atenção de seja lá qual verso lia, erguendo o olhar, e
respondeu:
— Constantemente.
Abri um sorriso, me sentindo um pouco vingado.
— Bem, eu desisto. Não vou conseguir fazer nada.
Ele consultou o relógio.
— É. Acho que eu também não.
Eu me ergui do sofá e segui James pelas escadas em espiral até o quarto
que dividíamos — que ficava diretamente acima da biblioteca, o mais alto
dos três quartos em uma coluna estreita de pedra comumente chamada de A
Torre. Outrora fora usada apenas como sótão, mas as teias de aranha e o
entulho tinham sido removidos para abrir mais espaço para alunos no fim
dos anos setenta. Vinte anos depois, abrigava James e eu, duas camas com
colchas azuis do Dellecher, dois velhos guarda-roupas monstruosos, e um
par de estantes desparceiradas que eram feias demais para a biblioteca.
— Você acha que vai ser como Alexander disse? — perguntei.
James tirou a camisa, bagunçando o cabelo no processo.
— Honestamente, acho previsível demais.
— E quando foi que nos surpreenderam?
— Frederick me surpreende o tempo todo — respondeu. — Mas
Gwendolyn vai dar a última palavra. Sempre dá.
— Se dependesse dela, Richard faria todos os homens e metade das
mulheres.
— E deixaria Meredith fazendo a outra metade. — Ele pressionou a
palma da mão contra os olhos. — Qual é a sua ordem de leitura amanhã?
— Vou logo depois de Richard. Filippa vem depois de mim.
— E eu sou depois dela. Meu Deus, que pena eu sinto dela.
— Pois é — respondi. — É um milagre ela não ter desistido.
James franziu o cenho, pensativo, enquanto se desvencilhava da calça
jeans.
— Bem, ela é um pouco mais resistente do que o resto de nós. Talvez
seja esse o motivo para Gwendolyn a atormentar.
— Porque ela consegue aguentar? — perguntei, descartando minhas
próprias roupas em uma pilha no chão. — Que crueldade.
Ele deu de ombros.
— É a Gwendolyn.
— Se dependesse de mim, eu colocaria tudo de ponta-cabeça — falei. —
Alexander faria o César, e Richard seria Cassius.
Ele dobrou o edredom no pé da cama.
— Eu ainda sou o Brutus? — perguntou.
— Não. — Joguei uma meia nele. — Você é o Marco Antônio. Pela
primeira vez, eu faço o papel principal.
— Você terá a chance de ser um herói trágico. Espere só pela primavera.
Eu desviei o olhar da gaveta que estava revirando.
— Frederick te contou algum segredo novo?
Ele se deitou e colocou as mãos atrás da cabeça.
— Talvez ele tenha mencionado Troilus e Créssida. Ele tem uma ideia
fantástica de fazer como se fosse a guerra dos sexos. Todos os troianos são
homens, e os gregos são mulheres.
— Que loucura.
— Por quê? A peça é tanto sobre sexo quanto sobre guerra — respondeu
ele. — Gwendolyn vai querer que Richard seja Heitor, claro, mas isso faz
com que você seja Troilus.
— Por que diabos você não seria Troilus?
Ele se ajeitou, esticando as costas.
— Posso ter mencionado que gostaria de ter um pouco mais de variedade
no currículo.
Eu o encarei, sem ter certeza se deveria me sentir ofendido.
— Não me olhe assim — disse ele, um tom leve de reprimenda na voz.
— Ele concordou que todos precisamos sair de nossas caixinhas. Estou
cansado de fazer papel de bobos apaixonados como Troilus, e tenho certeza
de que você está cansado de sempre ser um personagem secundário.
Caí na cama, de costas.
— É, você provavelmente está certo.
Por um momento, deixei meus pensamentos voarem, e então soltei uma
risadinha.
— Qual é a graça? — perguntou James, enquanto esticava a mão para
apagar a luz.
— Você vai ter que ser Créssida — falei. — Você é o único de nós que é
bonito o suficiente.
Nós ficamos lá rindo no escuro até que caímos no sono, um sono
profundo, sem ter como saber que a cortina se abriria para dar palco a um
drama de nossa própria confecção.
CENA 2

O Conservatório Clássico Dellecher ocupava uns dez hectares de terra na


parte leste de Broadwater, e os limites das duas coisas se sobrepunham com
tanta frequência que era difícil determinar onde o campus acabava e a
cidade começava. Os calouros eram alojados em um aglomerado de prédios
de tijolinhos na cidade, enquanto os alunos do segundo e terceiro ano
ficavam abarrotados no Pavilhão, e o punhado de alunos do quarto ano se
enfiavam em cantos estranhos e isolados do campus, ou eram deixados à
deriva. Nós, os estudantes de teatro do quarto ano, morávamos no lado mais
distante do lago, um lugar que tinha o nome pitoresco de Castelo (não era
bem um castelo, mas um prédio de pedra pequeno que por acaso tinha uma
torre, que originalmente continha os aposentos do caseiro).
O Pavilhão Dellecher, uma mansão de tijolos avermelhados extensa,
ficava no alto de um morro alto, com vista para a água escura e plana do
lago. O dormitório e o salão ficavam no quarto e no quinto andar; as salas
de aula e dos professores, no segundo e no terceiro, e o primeiro andar era
dividido entre um refeitório, um salão de música, uma biblioteca e o
conservatório. Uma capela se sobressaía do lado oeste da construção e, nos
anos 1960, o Edifício de Belas Artes Archibald Dellecher (geralmente
chamado apenas de EBA, por mais de um motivo) foi erguido ao leste do
Pavilhão, do outro lado de um pequeno pátio e de uma colmeia de arcos e
passarelas. O EBA era o lar do Teatro Archibald Dellecher e do salão de
ensaios, e, portanto, era onde passávamos a maior parte do tempo. Às oito
da manhã do primeiro dia de aula, tudo estava excepcionalmente silencioso.
Richard e eu saímos do Castelo juntos, apesar de a minha audição ser
apenas dali a meia hora.
— Como está se sentindo? — perguntou ele enquanto subíamos o morro
íngreme em direção ao gramado.
— Nervoso, como sempre.
A quantidade de audições que eu já tinha feito não importava; a
ansiedade nunca me deixava.
— Não precisa ficar — respondeu ele. — Você nunca é tão horrível
quanto acha que é. Só não troque tanto seu peso de perna. Você fica mais
interessante quando está parado.
Eu franzi o cenho.
— Como assim?
— Quando você esquece que está no palco e se esquece de ficar nervoso.
Você escuta de verdade os outros atores, escuta as palavras como se fosse a
primeira vez que as estivesse ouvindo. É ótimo contracenar com isso, e
incrível presenciar.
Ele sacudiu a cabeça ao ver a expressão consternada em meu rosto.
— Eu não deveria ter te contado isso — acrescentou. — Não fique
inseguro.
Ele bateu uma mão enorme no meu ombro, e eu estava tão distraído que
tropecei para a frente, a ponta dos meus dedos roçando a grama orvalhada.
A gargalhada intensa de Richard ecoou pelo ar matinal, e ele agarrou meu
braço para me ajudar a me equilibrar.
— Está vendo? — disse ele. — Deixe os pés firmes no chão, e vai ficar
tudo bem.
— Você é péssimo — respondi, mas abri um sorriso relutante.
Richard produzia aquele efeito nas pessoas.
Assim que chegamos ao EBA, ele me deu mais um tapa vigoroso nas
costas e desapareceu no salão de ensaios. Fiquei andando em círculos no
espaço da travessia, a passarela das coxias, atrás do palco do teatro,
tentando decifrar o que ele tinha dito, e recitando Péricles baixinho como se
estivesse rezando um terço de ave-marias.
As audições do primeiro semestre determinavam nossos papéis na peça
do outono. Naquele ano, seria Júlio César. As tragédias e peças históricas
eram exclusivas do quarto ano, enquanto os alunos do terceiro eram
relegados a romances e comédias; e os do segundo, ao papel de figurantes.
Aos alunos do primeiro ano era designado o trabalho nos bastidores, a
labuta da educação básica, e o questionamento do que diabos estavam
fazendo da vida. (Todo ano, os alunos cujo desempenho era considerado
insatisfatório eram eliminados do programa — às vezes, quase metade da
turma. Sobreviver até o quarto ano era prova de talento, ou de pura sorte. O
meu caso era o segundo.) As fotos das turmas dos últimos cinquenta anos
ficavam penduradas em duas fileiras ordenadas na parede da travessia. A
nossa era a última, e certamente a mais sexy, uma foto tirada para fins
publicitários da peça do ano anterior: Sonho de uma noite de verão.
Parecíamos mais jovens.
Foi ideia de Frederick fazer a peça no formato de uma festa do pijama.
Na foto, James e eu (Lisandro e Demétrio, respectivamente) estávamos de
cuecas samba-canção listradas e regatas brancas, nos encarando com ódio, e
Wren (Hérmia, de camisola curta cor-de-rosa) estava presa no meio. Filippa
posava à minha esquerda, na camisola azul longa de Helena, segurando o
travesseiro que ela e Wren usaram para brigar no Ato 3. No meio da
imagem, Alexander e Meredith estavam agarrados um no outro como
cobras — ele um sinistro e sedutor Oberon, usando um roupão de seda
justo, e ela uma Titânia voluptuosa, de renda preta sensual. Richard era o
mais estonteante, parado em meio aos outros trabalhadores grosseiros
vestindo pijamas de flanela cômicos, um enorme par de orelhas de burro
saindo do cabelo preto e volumoso. O Nick Bottom dele era agressivo,
imprevisível e inteiramente tresloucado. Ele aterrorizava as fadas,
atormentava os outros atores, apavorava inteiramente o público e — como
sempre — roubou a cena.
Nós sete sobrevivemos aos três “expurgos” anuais porque, de alguma
forma, éramos todos indispensáveis para a companhia de teatro. Ao longo
dos quatro anos, fomos transformados de uma ralé de figurantes em uma
trupe dramática pequena e meticulosamente treinada. Alguns dos nossos
trunfos teatrais eram óbvios: Richard era puro poder, um metro e noventa de
concreto esculpido, com olhos pretos afiados e uma voz profunda
eletrizante que abafava qualquer outro som na sala. Ele fazia déspotas e
tiranos e qualquer outro papel que precisasse impressionar ou amedrontar o
público. Meredith era excepcionalmente propensa para a sedução, um sonho
carnal de curvas viçosas e pele acetinada. Porém, havia algo de implacável
na sua beleza sedutora — todo mundo era obrigado a assisti-la quando ela
se mexia, não importa o que mais estivesse acontecendo, quer quisesse ver,
ou não. (Ela e Richard estavam “juntos” em todos os sentidos típicos dessa
palavra desde o semestre da primavera do nosso segundo ano.) Wren —
prima de Richard, apesar de ser impossível adivinhar o parentesco ao olhar
para os dois — era a ingênua, a mocinha comum, uma coisinha magricela
de cabelos cor de palha, e os olhos redondos de uma boneca de porcelana.
Alexander era nosso eterno vilão, magro e esguio, com longos cachos
escuros e caninos pontudos que o faziam parecer um vampiro quando
sorria.
Filippa e eu éramos mais difíceis de categorizar. Ela era alta, de pele
marrom-clara, vagamente masculina. Havia algo distante e camaleônico em
sua aparência que a tornava igualmente convincente como Horácio ou
Emília. Eu, por outro lado, era completamente ordinário de todos os jeitos
imagináveis: não era especialmente bonito, nem especialmente talentoso,
nem especialmente bom em nada, apenas bom o suficiente em tudo para
conseguir compensar as falhas que os outros deixavam passar. Eu estava
convencido de que sobrevivera ao expurgo do terceiro ano porque James
teria ficado mal-humorado e temperamental sem mim.
O destino nos dera um bom jogo no primeiro ano, quando ele e eu nos
encontramos espremidos juntos em um quartinho minúsculo no último
andar do dormitório. Quando eu abrira a porta do quarto pela primeira vez,
ele erguera os olhos da mochila que estava desarrumando, estendera a mão
e dissera:
— Aí está Sir Oliver! Tuas vindas são boas, espero.
Ele era o tipo de ator por quem todos se apaixonavam assim que entrava
no palco, e eu não era exceção. Mesmo em nossos primeiros dias em
Dellecher, eu era protetor, até possessivo, com relação a ele quando outros
amigos se aproximavam demais e ameaçavam usurpar meu lugar como o
“melhor” — um acontecimento tão raro quanto uma chuva de meteoros.
Algumas pessoas me viam no papel para o qual Gwendolyn sempre me
escolhia: o fiel amigo coadjuvante. James era tamanho herói por excelência
que aquilo não me incomodava. Era o mais bonito entre nós (Meredith o
comparara a um príncipe da Disney certa vez), mas ainda mais charmosa
era a profundidade infantil dos seus sentimentos, seja no palco ou fora dele.
Por três anos, eu desfrutei do transbordamento de sua popularidade, e o
admirei intensamente, sem nenhuma inveja, mesmo apesar de ele ser
obviamente o favorito de Frederick, da mesma forma que Richard era o
favorito de Gwendolyn. É claro que James não possuía o ego ou o
temperamento de Richard, e era querido por todos, enquanto Richard era
amado e odiado em igual ferocidade.
Era costumeiro para nós assistirmos à audição que acontecesse depois da
nossa (atuar sem ser observado era a recompensa por ser o primeiro), e eu
andei em círculos inquietos pela travessia, desejando que James pudesse
assistir à minha audição. Mesmo quando não queria sê-lo, Richard era
intimidante na plateia. Eu ouvia a voz dele vinda do salão de ensaio,
ecoando pelas paredes.
RICHARD: “Preste, pois, atenção em que nos empreita,
 Como desperta a espada adormecida.
 Em nome do Senhor, tenha cuidado.
 São dois reinos que nunca viram confronto
 Sem banho de sangue; cada gota cruel
 É lamúria, doloroso clamor
 Contra aquele cujos erros motivam espadas
 Que logo findam breve mortalidade.”
Eu já o vira declamar o mesmo discurso duas vezes antes, mas aquilo não
o tornava menos impressionante.
Precisamente às oito e meia, o salão se abriu. O rosto familiar de
Frederick, enrugado e jocoso, apareceu pela porta.
— Oliver? Estamos prontos para a sua audição.
— Ótimo.
Meu coração acelerou — uma palpitação, como asinhas de pássaro presas
entre os pulmões.
Senti-me apequenado entrando no salão de ensaios, como sempre me
sentia. Era uma sala cavernosa, com teto abobadado, pé-direito alto e
janelas compridas com vista para o terreno. Cortinas de veludo azul
compridas se abriam ao lado das janelas, as bainhas emboladas acumulando
poeira no chão de madeira. Minha voz ecoou quando eu disse:
— Bom dia, Gwendolyn.
A figura magrela de uma mulher ruiva atrás da mesa ergueu o olhar para
mim, a presença na sala desproporcionalmente gigante. O batom rosa-
choque e o lenço de estampa de caxemira na cabeça davam a ela a
aparência de uma vidente. Ela me cumprimentou com um aceno de dedos,
chacoalhando as pulseiras que usava. Richard tinha se sentado na cadeira à
esquerda da mesa, de braços cruzados, me observando com um sorriso
confortável. Eu não era feito da Substância de Protagonista e, portanto, não
servia de competição. Lancei um sorriso para ele, e depois tentei ignorá-lo.
— Oliver — disse Gwendolyn. — Que bom te ver. Perdeu peso?
— Ganhei, na verdade — respondi, meu rosto esquentando.
Quando eu tinha saído de férias no verão, ela me aconselhara a “crescer”.
Passei horas na academia todos os dias de junho, julho e agosto, na
esperança de impressioná-la.
— Hum — disse ela, o olhar baixando lentamente da minha cabeça até
meus pés, com a averiguação gélida de um traficante de escravizados em
um leilão. — Bem. Vamos começar, então?
— Claro.
Lembrando-me do conselho de Richard, espalmei os pés no chão e
resolvi não me mexer sem ter motivo.
Frederick se recostou no assento ao lado de Gwendolyn, tirou os óculos e
limpou as lentes na bainha da camisa.
— O que tem para nós hoje? — perguntou ele.
— Péricles — respondi.
Fora sugestão dele, no bimestre anterior.
Ele me cumprimentou com um aceno de cabeça rápido e conspiratório.
— Perfeito. Assim que estiver pronto, pode começar.
CENA 3

Passamos o resto do dia no bar — um boteco mal iluminado, de paredes de


madeira, onde os garçons conheciam a maior parte dos alunos de Dellecher
pelo nome, aceitavam tanto identidades falsas quanto as verdadeiras, e não
pareciam achar estranho que alguns de nós tínhamos vinte e um anos havia
cerca de três anos. Os alunos do quarto ano tinham terminado as audições
ao meio-dia, mas Frederick e Gwendolyn ainda precisariam avaliar outros
quarenta e dois alunos, e — considerando as pausas para almoço e janta, e a
deliberação — a lista do elenco provavelmente só seria divulgada depois da
meia-noite. Seis de nós estávamos sentados na cabine de sempre no Habeas
Copos (a piada mais engraçada que Broadwater era capaz de fazer),
colecionando copos vazios na mesa. Todos bebíamos cerveja com exceção
de Meredith, que virava copos de refrigerante com vodca, e Alexander, que
bebia uísque puro.
Era a vez de Wren de esperar no EBA pela lista do elenco. O resto de nós
já tinha feito os próprios turnos e, se ela aparecesse de mãos vazias,
voltaríamos ao começo do rodízio. O sol já tinha se posto havia horas, mas
ainda não tínhamos acabado de dissecar as audições.
— Eu total fodi a minha — disse Meredith, pelo que deve ter sido a
décima vez. — Falei “confrontar” em vez de “comparar”, que nem uma
completa imbecil.
— No contexto do discurso, quase não faz diferença — respondeu
Alexander, cansado. — Gwendolyn provavelmente não notou, e Frederick
provavelmente não se importa.
Antes que Meredith pudesse responder, Wren irrompeu na sala,
segurando uma folha de papel na mão.
— Divulgaram! — disse ela, e todos nós pulamos, ficando em pé.
Richard a guiou até a mesa, fazendo-a sentar, e arrancou a lista da mão
dela. Ela já a vira, e se contentou em ser desviada a um canto enquanto
todos nós nos debruçamos sobre a mesa. Depois do silêncio de alguns
momentos de leitura furiosa, Alexander deu outro pulo.
— O que eu disse?!
Ele deu um tapa na lista, apontando para Wren, e gritou:
— Ó do bar, deixe que eu pague uma bebida para esta dama!
— Alexander, seu babaca absurdo, sente aí — disse Filippa, agarrando o
cotovelo dele e puxando-o de volta para a cabine. — Você não acertou tudo!
— Acertei, sim.
— Não, Oliver vai ser Otávio, mas também vai ser Casca.
— Vou?
Eu tinha parado de ler assim que vi a linha desenhada entre meu nome e
o de Otávio, e me inclinei para ler outra vez.
— Aham, e eu tenho três personagens. Decius Brutus, Lucilius e Titinius.
Ela ofereceu um sorriso estoico para mim, seu colega em status de
persona non grata.
— Por que fariam isso? — perguntou Meredith, mexendo o que restava
da vodca e sugando as últimas gotas pelo canudinho vermelho. — Tem um
monte de alunos do segundo ano disponíveis.
— Só que o pessoal do terceiro ano vai fazer A megera domada — disse
Wren. — Vão precisar de todo mundo que conseguirem.
— Colin vai ficar bem ocupado — observou James. — Olha, ele vai
fazer Marco Antônio e Trânio.
— Fizeram a mesma coisa comigo ano passado — disse Richard, como
se todos nós já não soubéssemos disso. — Nick Bottom com vocês, e o
Ator Rei com os veteranos. Eu passava oito horas por dia nos ensaios.
Às vezes, alunos do terceiro ano eram escolhidos para fazer um papel em
um elenco do quarto ano que não poderia ser confiado a alguém do
segundo. Isso significava ter aulas das oito até as três, ensaios com um
elenco até as seis e meia, e por fim ensaios com o outro até as onze.
Secretamente, eu não invejava Richard nem Colin.
— Não dessa vez — disse Alexander, com um sorrisinho maldoso. —
Você só terá ensaios durante metade da semana. Você morre no terceiro ato.
— Um brinde a isso — falou Filippa.
— Quantos doidos se valem de tal ciúme! — declarou Richard.
— Ah, cale a boca — disse Wren. — Pague mais uma rodada e talvez
nós aguentemos você por mais um tempinho.
Ele se ergueu da cadeira para seguir até o bar, dizendo:
—Troco minha celebridade por uma cerveja!
Filippa sacudiu a cabeça.
— Se ao menos fosse verdade.
CENA 4

Deixamos nossas coisas no Castelo e corremos desembestados pelas


árvores, descendo a escadaria da colina em direção ao lago. Nós rimos e
gritamos, certos de que não seríamos ouvidos, e bêbados demais para nos
importarmos caso contrário. O cais se esticava, avançando na água do
galpão de embarcações, onde uma coleção de velhas ferramentas inúteis
juntava pó e enferrujava. (Não mantinham barcos do lado sul do lago desde
que transformaram o Castelo em um alojamento para estudantes.)
Passávamos muitas noites quentes e algumas frias fumando e bebendo no
cais, balançando os pés na água.
Meredith, que de longe era quem mais estava em forma, e era muito mais
rápida do que o resto de nós, corria com o cabelo esvoaçando como se fosse
uma bandeira atrás dela, e chegou primeiro. Ela parou e esticou os braços
acima da cabeça, uma faixa pálida das costas visível acima do cós da calça.
— Doce é o luar que toca esta margem! — Ela se virou e agarrou minhas
duas mãos, porque eu estava mais próximo. — Aqui nos sentaremos para
dar ouvidos / ao som da música: a calmaria da noite / adorna a doce
harmonia.
Eu fingi protestar enquanto ela me arrastava até o fim do cais, e os outros
tropeçavam escada abaixo para se juntar a nós, um por um. Alexander
terminava a fila, arfando.
— Vamos nadar pelados! — disse Meredith, já chutando os sapatos para
longe. — Eu não nadei nenhuma vez nesse verão.
— A dama ponderada se faz generosa — avisou James —, se à lua
confia sua beleza.
— Pelo amor de Deus, James, você estraga toda a diversão.
Meredith acertou a parte de trás das minhas coxas com um dos sapatos.
— Oliver, você não entra na água comigo?
Eu não confiava nem um pouco naquele sorriso travesso, então disse:
— Da última vez que nadamos pelados, eu caí no cais completamente nu
e passei o resto da noite de bruços no sofá para Alexander tirar farpas da
minha bunda.
Os outros riram exaustivamente às minhas custas, e Richard soltou um
assovio longo.
MEREDITH: “Vamos, vem alguém nadar comigo!”
ALEXANDER: “Você não consegue ficar de roupa por vinte e quatro
horas?”
FILIPPA: “Talvez se Rick a deixasse satisfeita ela não seria uma piriguete
tão grande perto da gente.”
Mais risadas, mais assovios, e Richard lançou a Filippa um olhar de
superioridade.
— Ao meu gosto, a dama demais reclama!
Ela revirou os olhos e se sentou ao lado de Alexander, que estava
ocupado dichavando maconha em uma folha de seda.
Eu inalei e segurei o ar doce e amadeirado nos pulmões pelo máximo de
tempo que conseguia. Um verão abafado nos subúrbios de Ohio tinha me
deixado impaciente para retornar a Dellecher e ao lago. A água era preta à
noite, e azul-esverdeada que nem jade durante o dia. Uma floresta densa o
rodeava por todos os lados exceto um, a margem norte, onde as árvores
eram mais delgadas e uma praia de areia branca reluzia como poeira de
diamante sob o luar. Na margem sul, estávamos longe o suficiente das luzes
de vagalume do Pavilhão para haver pouco perigo de sermos vistos, e
menos ainda de sermos ouvidos. Naquela época, gostávamos do isolamento.
Meredith se deitou, de olhos fechados, cantarolando tranquila. James e
Wren sentaram no lado oposto do cais, olhando para a praia. Alexander
terminou de enrolar o baseado, acendeu e o entregou a Filippa.
— Dá um trago. Não temos nada amanhã — disse ele, o que não era
precisamente verdade.
Nós tínhamos o primeiro dia de aulas de verdade, e uma aula magna mais
tarde. Ainda assim, ela aceitou o baseado e puxou profundamente antes de
passá-lo para mim. (Nós todos fumávamos em ocasiões especiais, exceto
Alexander, que estava no mínimo um pouco chapado o tempo todo.)
Richard suspirou, um som de satisfação profunda que retumbou no peito
como o ronronar de um grande felino.
— Esse ano vai ser bom — disse ele. — Dá para sentir.
WREN: “Talvez seja porque você conseguiu o papel que queria?”
JAMES: “E apenas metade das falas que o resto de nós precisa decorar?”
RICHARD: “Parece justo, depois do ano passado.”
EU: “Eu te odeio.”
RICHARD: “O ódio é a forma mais sincera de adulação.”
ALEXANDER: “É a imitação, seu merdinha.”
Alguns de nós rimos, ainda agradavelmente altinhos. Nossas discussões
eram bem-humoradas, e normalmente inofensivas. Como sete irmãos,
passávamos tanto tempo juntos que tínhamos visto o melhor e o pior de
cada um, e não nos deixamos impressionar por nenhum dos opostos.
— Dá para acreditar que é o nosso último ano? — perguntou Wren,
quando a calmaria depois das risadas tinha se arrastado por tempo o
suficiente.
— Não — respondi. — Parece que foi ontem que meu pai gritou comigo
por ter desperdiçado minha vida.
Alexander bufou de rir.
— O que foi mesmo que ele disse?
— “Você vai recusar uma bolsa na Case Western para passar quatro anos
usando maquiagem e meia-calça, fazendo amor com uma garota qualquer
através da janela?”
O conceito de “faculdade de artes” já era capaz de provocar meu pai, um
homem prático e rígido, mas, no geral, era a exclusividade perigosa de
Dellecher a causa de inquietação. Por que alunos inteligentes e talentosos se
arriscariam a ser expulsos da faculdade ao final de cada ano, e se formar
sem nem mesmo um diploma tradicional para mostrar que tinham
sobrevivido? O que a maioria das pessoas que não viviam na estranha
esfera da educação em conservatório não percebiam era que um certificado
de Dellecher era que nem um dos bilhetes dourados do Willy Wonka —
uma garantia de admissão em qualquer confraria de elite artística e
filológica que sobrevivia longe da academia.
Meu pai, ainda mais convicto em sua oposição do que a maioria,
recusou-se a aceitar minha decisão de desperdiçar meus anos universitários.
Atuar já era ruim, mas uma escolha tão limitada e antiquada como
Shakespeare (em Dellecher, não fazíamos outra coisa) era
exponencialmente pior. Vulnerável, com apenas dezoito anos, eu senti pela
primeira vez o temor extraordinário de querer algo com tanto ardor e vê-lo
escapar por entre meus dedos, então me arrisquei a dizer que, se eu não
fosse para Dellecher, não iria para faculdade nenhuma. Minha mãe o
persuadira a pagar a mensalidade — depois de semanas de ultimatos e
discussões que não levavam a lugar nenhum — com base no argumento de
que minha irmã mais velha estava prestes a ser jubilada da faculdade
estadual de Ohio, e dependiam de mim para se gabar de algum filho em
festas. (O motivo de não terem mais esperanças em Leah, a mais jovem e
promissora entre nós, era um mistério.)
— Queria que minha mãe tivesse ficado furiosa assim — disse
Alexander. — Ela ainda acha que estou em uma faculdade em Indiana.
A mãe de Alexander o tinha dado para adoção quando ele era jovem, e
fazia apenas o menor dos esforços para manter contato. (Tudo que tinha
contado a ele sobre o pai era que viera de Porto Rico ou da Costa Rica —
ela não lembrava bem — e não fazia ideia de que Alexander existia.) Sua
mensalidade era paga por uma bolsa extravagante e uma certa quantia de
dinheiro deixada a ele por um avô falecido, que o incluíra na herança
apenas para irritar a própria prole degenerada.
— Meu pai só fica decepcionado por eu não ter me tornado poeta —
acrescentou James.
O sr. Farrow ensinava poesia Romântica em Berkeley, e sua esposa muito
mais jovem (escandalosamente, uma ex-aluna dele) tinha sido poeta até
sofrer um surto ao melhor estilo Plath quando James estava no ensino
fundamental. Eu os conhecera dois anos antes, ao visitá-lo na Califórnia nas
férias de verão, e minhas suspeitas de que eram pessoas interessantes,
porém pais desinteressados, foram inequivocamente confirmadas.
— Meus pais não dão a mínima — disse Meredith. — Andam muito
ocupados com botox e sonegação de impostos, e meus irmãos cuidam bem
da fortuna da família.
Os Dardenne dividiam o tempo entre Montreal e Manhattan, vendiam
relógios de pulso incrivelmente caros a celebridades e políticos, e tratavam
a única filha como uma espécie de bicho de estimação exótico, em vez de
parte da família.
Filippa, que nunca falava dos pais, não disse nada.
— É de nossa gente, mas não é gentil — disse Alexander. — Meu Deus,
nossas famílias são horríveis.
— Bem, nem todas — disse Richard.
Os pais dele e de Wren eram três atores experientes e um diretor que
viviam em Londres, fazendo aparições frequentes nos teatros da West End.
Ele deu de ombros.
— Nossos pais estão radiantes — acrescentou.
Alexander soprou fumaça e deu um peteleco no baseado.
— Que sorte a sua — disse ele, e empurrou Richard do cais.
Ele atingiu a água com um borrifo monstruoso, que fez água respingar
em todos nós. As garotas guincharam e levantaram os braços para proteger
a cabeça, e James e eu gritamos, surpresos. No instante seguinte, estávamos
todos encharcados, rindo e aplaudindo Alexander, alto demais para ouvir os
palavrões de Richard quando a cabeça finalmente irrompeu a superfície.
Nós nos demoramos perto da água por mais uma hora antes de, um por
um, começarmos a lenta subida de volta ao Castelo. Eu fui o último a restar
no cais. Eu não acreditava em Deus, mas pedi a qualquer um que estivesse
ouvindo que não deixasse a profecia de Richard nos amaldiçoar. Tudo que
eu queria era um bom ano.
CENA 5

Oito da manhã era cedo demais para aguentar Gwendolyn.


Nós estávamos sentados em um círculo desconjuntado, de pernas
cruzadas como crianças, bocejando e segurando canecas de café do
refeitório. O Estúdio Cinco — o antro de Gwendolyn, ornamentado com
tapeçarias coloridas e abarrotado de velas aromáticas — ficava no segundo
andar do Pavilhão. Não havia móveis, apenas uma generosa coleção de
almofadas no chão, o que apenas aumentava a tentação de dar uma
espreguiçada e tirar um cochilo.
Gwendolyn chegou às oito e quinze, como de costume (“elegantemente
atrasada”, sempre dizia), envolta em um xale estrelado, anéis de ouro tão
grossos quanto soqueiras adornando os dedos. Ela era mais luminosa do que
o amanhecer pálido lá fora, e quase doía olhar para ela.
— Bom dia, meus queridos — cacarejou.
Alexander grunhiu um cumprimento, mas ninguém mais respondeu. Ela
parou, em pé diante de nós, as mãos nos quadris ossudos.
— Bem, isso é uma vergonha. É o primeiro dia de aula. Vocês deveriam
estar com os olhinhos brilhando de empolgação.
Nós a encaramos até que ela ergueu as mãos no ar e disse:
— De pé! Vamos!
A meia hora seguinte foi dedicada a uma série de posições doloridas de
ioga. Considerando que já tinha passado dos sessenta anos, a flexibilidade
de Gwendolyn chegava a ser perturbadora. Quando o ponteiro dos minutos
se arrastou na direção do nove, ela se endireitou da postura do Rei Pombo
com um suspiro eufórico que deve ter deixado mais alguém desconfortável
além de mim.
— Não estão melhores? — perguntou ela.
Alexander grunhiu novamente.
— Tenho certeza de que sentiram saudades minhas durante as férias —
continuou ela —, mas teremos tempo para conversar melhor depois da aula
magna, então eu gostaria de ir direto ao ponto e dizer que as coisas vão
funcionar de um jeito um pouco diferente esse ano.
Pela primeira vez, a turma (além de Alexander) demonstrou sinais de
vida. Nós nos mexemos, endireitando a postura, e começamos a escutar de
verdade.
— Até agora, vocês se mantiveram em uma zona de conforto — disse
Gwendolyn. — E eu sinto que o mínimo que posso fazer é avisá-los de que
esses dias acabaram.
Olhei de soslaio para James, que franziu o cenho. Eu não conseguia
determinar se era a personalidade dramática de sempre, ou se ela estava
falando mesmo a verdade a respeito das mudanças.
— Vocês já me conhecem — disse ela. — Sabem como eu trabalho.
Frederick pode passar o dia tentando bajulá-los e encorajá-los, mas eu tenho
pulso firme. Eu os guiei e empurrei, mas… — Ela ergueu um dedo. —
Nunca longe demais.
Eu não concordava inteiramente. Os métodos de ensino de Gwendolyn
eram impiedosos, e não era anormal que alunos deixassem suas aulas aos
prantos. (Os atores são como ostras, ela explicara quando alguém exigira
uma justificativa para tal brutalidade emocional. Era preciso estourar suas
cascas e quebrá-las ao meio para encontrar a pérola preciosa lá dentro.) Ela
continuou:
— Este é o último ano de vocês, e vou forçá-los o máximo que puder. Eu
sei do que são capazes, e ai de mim se não arrancar isso de vocês antes de
finalmente saírem desse lugar.
Compartilhei outro olhar preocupado, dessa vez com Filippa.
Gwendolyn ajustou o xale, alisou o cabelo, e disse:
— Bem, agora, quem pode me dizer qual é o nosso maior obstáculo para
uma boa atuação?
— Medo — disse Wren.
Era um dos muitos mantras de Gwendolyn: no palco, é preciso ser
destemido.
— Sim. Medo do quê?
— Vulnerabilidade — respondeu Richard.
— Precisamente — concordou Gwendolyn. — Nós sempre interpretamos
apenas metade de um personagem. O resto é nós, e temos medo de mostrar
às pessoas quem verdadeiramente somos. Temos medo de parecer tolos se
revelarmos a totalidade das nossas emoções. Porém, no mundo de
Shakespeare, a paixão é irresistível, e não vergonhosa. Portanto...!
Ela bateu palmas, e o som do estalo fez metade do grupo se sobressaltar.
— Nós baniremos o medo, começando hoje. Não é possível fazer um
bom trabalho se estiver se escondendo, então vamos colocar toda essa
feiura para fora. Quem será o primeiro?
Ficamos em silêncio, surpresos, por alguns segundos antes de Meredith
dizer:
— Eu posso ir.
— Perfeito — disse Gwendolyn. — De pé.
Olhei para Meredith, inquieto, conforme ela se levantava. Ela parou no
meio do pequeno círculo, mudando o peso entre os pés até encontrar um
equilíbrio, ajeitando uma mecha de cabelo atrás das orelhas — seu método
habitual de concentração. Todos nós tínhamos um método, mas poucos
conseguiam fazer com que parecesse tão corriqueiro.
— Meredith — disse Gwendolyn, sorrindo para ela. — Nossa cobaia.
Respire fundo.
Meredith oscilou no lugar, como se soprada por uma brisa, e fechou os
olhos, os lábios entreabertos. Era estranhamente relaxante observar aquilo
(e, ao mesmo tempo, estranhamente sensual).
— Pronto — disse Gwendolyn. — Está pronta?
Meredith assentiu e abriu os olhos.
— Ótimo. Vamos começar com algo fácil. Qual é sua maior qualidade
como atriz?
Meredith, que era normalmente tão confiante, hesitou.
GWENDOLYN: “Sua maior força.”
MEREDITH: “Penso que…”
GWENDOLYN: “Sem pensar nada. Qual é a sua maior força?”
MEREDITH: “Eu acho…”
GWENDOLYN: “Não quero ouvir o que você acha, quero ouvir o que você
sabe. Não me importo se parecer metida, só quero saber no que você é boa,
e, como atriz, você precisa me dizer o que é. Qual é sua maior força?”
— Eu sou corporal! — disse Meredith. — Sinto tudo com todo o meu
corpo, e não tenho medo de usá-lo.
— Não tem medo de usá-lo, mas tem medo de dizer o que realmente
quer!
Gwendolyn estava praticamente gritando. Olhei de uma para a outra,
alarmado pela velocidade com que as coisas haviam progredido.
— Você está hesitando porque estamos todos aqui sentados, olhando para
sua cara — disse Gwendolyn. — Agora, bote para fora. Vai.
A elegância descomplicada de Meredith desaparecera. Em vez disso, ela
estava parada com as pernas travadas, os braços rígidos ao lado do corpo.
— Eu tenho um corpo ótimo — disse ela. — Porque eu me esforço pra
caralho. Eu amo ter essa aparência e amo que olhem para mim. E isso me
faz ter uma presença magnética.
— Você está certa, faz mesmo. — Gwendolyn sorriu para ela como o
gato do País das Maravilhas. — Você é uma garota linda. Parece um
comentário escroto, mas sabe o quê? É verdade. Mais importante do que
isso, é sincero. — Ela apontou um dedo para Meredith. — Isso foi sincero.
Ótimo.
Filippa e Alexander estavam inquietos, evitando o olhar de Meredith.
Richard olhava para ela como se quisesse arrancar as roupas dela ali
mesmo, e eu não fazia ideia de para onde olhar. Ela assentiu e fez menção
de voltar a se sentar, mas Gwendolyn disse:
— Nós não acabamos.
Meredith congelou.
— Estabelecemos seus pontos fortes. Agora quero ouvir sobre suas
fraquezas. Do que você tem medo?
Meredith fuzilou Gwendolyn com o olhar, e, para minha surpresa, a
professora não interrompeu o silêncio. O resto de nós se contorceu no chão,
olhando de relance para Meredith com uma mistura de pena, admiração e
vergonha alheia.
— Todos nós temos fraquezas, Meredith — disse Gwendolyn. — Até
mesmo você. A coisa mais forte que pode fazer é admiti-las. Estamos
esperando.
No silêncio excruciante que se seguiu, Meredith ficou completamente
imóvel, os olhos ardentes de um verde ácido. Ela estava tão exposta que
olhar para ela parecia uma invasão, uma violação, e eu lutei contra o
impulso de gritar para que ela dissesse alguma coisa logo, porra.
— Eu tenho medo — disse ela, depois do que pareceu um ano, falando
muito lentamente — de ser mais bonita do que talentosa ou inteligente, e de
que, por causa disso, nunca ninguém me leve a sério. Como atriz e como
pessoa.
Fez-se outro silêncio mortal. Forcei meu olhar para baixo, examinando os
outros. Wren estava sentada com uma mão na boca. A expressão de Richard
era mais suave do que eu jamais vira antes. Filippa parecia levemente
enjoada; Alexander estava tentando conter um sorriso nervoso. À minha
direita, James olhou para Meredith com um interesse aguçado e avaliativo,
como se ela fosse uma estátua, uma escultura, algo criado mil anos antes à
semelhança de uma divindade pagã. Seu desvendar era bruto, hipnotizante,
e cheio de dignidade.
De uma forma estranha e desorientada, eu entendi que era exatamente o
que Gwendolyn queria.
Ela sustentou o olhar de Meredith por tanto tempo que era como se o
relógio houvesse parado. Enfim, suspirou profundamente e disse:
— Bom. Sente-se. Pronto.
Meredith dobrou os joelhos mecanicamente, e ela se sentou no meio do
círculo, a coluna reta e rígida como uma placa de trânsito.
— Certo — disse Gwendolyn. — Vamos conversar.
CENA 6

Depois de interrogar Meredith sobre suas inseguranças por uma hora (e


havia mais do que eu poderia algum dia supor), Gwendolyn nos dispensou,
com a promessa de que todo mundo seria submetido ao mesmo
interrogatório rigoroso ao longo das duas semanas seguintes.
Na subida para o terceiro andar, no contrafluxo dos alunos de segundo
ano de artes que desciam agitados para o conservatório, James me alcançou
na escada.
— Aquilo foi cruel — falei, baixinho.
Meredith andava alguns passos à nossa frente, Richard a abraçando pelos
ombros, apesar de ela nem parecer notar. Ela se impelia para a frente de
forma determinada, evitando contato visual direto com qualquer um.
— Bom — sussurrou James —, é a Gwendolyn.
— Nunca achei que fosse dizer isso, mas estou animado para passar duas
horas trancado na galeria.
Enquanto Gwendolyn lecionava os elementos mais viscerais da atuação
— voz e corpo, o coração à frente da mente —, Frederick ensinava as
particularidades íntimas do texto de Shakespeare, desde a métrica até a
história da idade moderna. Por ser reservado e estudioso, eu preferia as
aulas de Frederick às de Gwendolyn, mas era alérgico ao giz que ele usava
na lousa, e passava a maior parte do tempo na galeria espirrando.
— Vamos logo — disse James, baixinho —, antes que Meredick roubem
a nossa mesa.
(Filippa havia inventado aquele termo em particular ao final do segundo
ano letivo, quando Meredith e Richard, apelidado de Dick, estavam no
princípio de sua paixão e no auge da insuportabilidade.) Meredith ainda
estava distraída quando passamos por eles nas escadas. Seja lá o que
Richard dissera para tranquilizá-la, não tinha funcionado.
Frederick preferia conduzir as aulas do quarto ano na galeria, em vez de
na sala de aula que era forçado a usar para os alunos do segundo e terceiro
ano, que eram mais numerosos. A galeria era uma sala estreita de pé-direito
alto, que outrora se esticara por todo o comprimento do terceiro andar, mas
tinha sido repartida sem cerimônias em salas menores e estúdios quando
abriram a escola. A Galeria Longa se tornou a Galeria Curta, que mal tinha
seis metros de um lado ao outro, as paredes forradas de livros e pontuadas
por retratos de primos Dellecher há muito mortos e sua prole. Uma
namoradeira e um sofá baixo ficavam frente a frente sob o teto elaborado de
gesso esculpido, enquanto uma mesinha redonda e duas cadeiras brilhavam
sob a luz da janela de vidro recortado em losangos no lado sul da sala.
Todas as vezes que tomávamos chá com Frederick (o que fazíamos duas
vezes ao mês como alunos do terceiro ano, e diariamente durante as aulas
no quarto ano), James e eu andávamos direto para a mesa. Era a mais
distante do nefasto pó de giz, e oferecia uma vista reluzente do lago e da
floresta que o rodeava, o telhado cônico da Torre empoleirado acima das
árvores como se fosse um chapéu de aniversário preto.
Frederick já estava presente quando chegamos, puxando a lousa de
rodinhas de um estranho armário que ficava em um espaço irregular,
encaixado entre uma estante e o busto de Homero sem nariz no canto da
sala. Eu espirrei.
— Bom dia, Frederick — disse James.
Ele desviou o olhar do quadro.
— James — disse. — Oliver. É adorável ter vocês dois de volta. Estão
contentes com o elenco?
— Com certeza — disse James, mas havia um tom de melancolia na voz
dele que me intrigava.
Quem ficaria decepcionado com o papel de Brutus? Só então me lembrei
do comentário feito duas noites antes, sobre querer mais variedade no
currículo.
— Quando é o primeiro ensaio? — perguntou ele.
— Domingo — disse Frederick, com uma piscadela. — Pensamos em
deixar uma semana para vocês se acostumarem a estar de volta.
Devido à moradia sem supervisão no Castelo, e à predileção infame por
hedonismo, era geralmente esperado que os estudantes de teatro do quarto
ano organizassem algum tipo de festa de boas-vindas no começo do ano.
Nós planejávamos a nossa para acontecer na sexta. Frederick, Gwendolyn e
provavelmente até o reitor Holinshed sabiam disso, mas educadamente
fingiam que não.
Richard e Meredith finalmente entraram do corredor, e eu e James nos
apressamos para jogar nossas coisas na mesa. Eu espirrei de novo, limpei o
nariz em um guardanapo do chá, e espiei pela janela. O gramado estava
encharcado pela luz do sol, a superfície do lago ondulando gentilmente sob
a brisa. Richard e Meredith se sentaram no sofá menor, deixando o outro
para Alexander e Filippa dividirem. Ninguém mais se dava ao trabalho de
deixar um espaço para Wren, que (de um jeito encantador, como uma
criança empolgada para ouvir histórias) preferia se sentar no chão.
Frederick serviu o chá no aparador, e a sala cheirava, como sempre, a giz,
limão e chá preto do Ceilão. Quando terminou de encher oito xícaras —
beber chá na aula de Frederick era obrigatório; ele encorajava o uso de mel,
mas leite e açúcar eram material de contrabando —, ele se virou e disse:
— Bem-vindos de volta.
Ele sorriu para nós, parecendo um Papai Noel literário.
— Eu gostei muito das suas audições ontem, e estou ansioso para
trabalhar com vocês novamente esse semestre.
Ele entregou a primeira xícara a Meredith, que a entregou para Richard,
que entregou para James, e assim foi até chegar nas mãos de Wren.
— Quarto ano. O ano da tragédia — disse Frederick, grandioso, quando a
bandeja de chá estava vazia, e todo mundo estava com pires e xícara.
(Beber chá em uma caneca, como éramos sempre lembrados, era
equivalente a beber vinho chique de um copo descartável.)
— Eu irei me abster de dizer a vocês para levar as tragédias mais a sério
do que as comédias. Na verdade, pode ser argumentado que a comédia
precisa ser inteiramente séria para os personagens, ou acaba não sendo
engraçada para o público. Porém, essa é uma conversa para outra hora.
Ele pegou a própria xícara da bandeja, bebericando delicadamente, e a
depositou no pires novamente. Frederick nunca tivera uma escrivaninha ou
um atril, e preferia andar em círculos na frente da lousa enquanto lecionava.
— Este ano, nós nos devotaremos às tragédias de Shakespeare. O que
acreditam que essa linha de estudos abrange?
Eu espirrei como em resposta para a pergunta, e houve uma breve pausa
antes de começarmos a sugerir tópicos.
ALEXANDER: “Origens.”
FILIPPA: “Estrutura.”
WREN: “Imaginário.”
MEREDITH: “Conflitos, interno e externo.”
EU: “O destino versus o poder de agência dos personagens.”
JAMES: “O herói trágico.”
RICHARD: “O vilão trágico.”
Frederick ergueu a mão para impedir o falatório.
— Ótimo. Sim — disse ele. — Tudo isso. Nós iremos, é claro, explorar
todas essas peças, até mesmo Troilus e Créssida e as outras chamadas
comédias sombrias, mas naturalmente começaremos por Júlio César. Uma
pergunta: por que César não é uma peça histórica?
James foi o primeiro a responder, com sua avidez acadêmica
característica:
— As peças históricas são restritas à história britânica.
— De fato — disse Frederick, e voltou a caminhar.
Eu funguei, mexi no meu chá, e me recostei na cadeira para ouvir.
— A maior parte das tragédias inclui algum elemento de história —
continuou ele —, mas o que escolhemos chamar de “peça histórica”, como
James colocou, são na verdade peças históricas britânicas, e todas possuem
o nome de monarcas ingleses. E o que mais? O que faz de César,
principalmente, uma tragédia?
Meus colegas trocaram olhares curiosos, relutantes em oferecer uma
primeira hipótese e arriscar um erro.
— Bem — me aventurei, quando ninguém mais falou, minha voz
nasalada pelo nariz entupido —, ao final da peça, a maior parte dos
personagens principais está morta, mas Roma ainda está de pé.
Eu pausei, tendo dificuldades para articular a ideia.
— Acho que é mais sobre as pessoas do que é sobre a política. É
definitivamente política, mas se comparar a, sei lá, o ciclo de Henrique VI,
em que todo mundo está só lutando pelo trono, César é mais pessoal. É
sobre os personagens e quem eles são, e não somente sobre quem está no
poder.
Eu dei de ombros, sem ter certeza se conseguira articular qualquer coisa
do que queria dizer.
— Sim, acho que Oliver está no caminho certo — disse Frederick. —
Permita-me outra pergunta. O que é mais importante: que César seja
assassinado, ou que ele seja assassinado por seus amigos íntimos?
Não era o tipo de pergunta que precisava de resposta, então ninguém
respondeu. Frederick estava me observando, percebi, com o carinho
orgulhoso e paternal que normalmente resguardava para James — que me
deu um sorriso leve e encorajador quando olhei para ele do outro lado da
mesa.
— É aí — disse Frederick — que está a tragédia.
Ele olhou para todos nós, as mãos cruzadas atrás das costas, o sol do
meio-dia refletindo nos óculos.
— Então. Vamos começar?
Ele se virou para a lousa, pegou um pedaço de giz da bandeja, e começou
a escrever.
— Ato 1, Cena 1. Uma rua. Nós começamos com os tribunos, e plebeus.
O que os senhores supõem que seja significativo nisso? O sapateiro trava
um duelo de sagacidade com Flavius e Marullus, e adiante no
interrogatório, apresentam o nosso epônimo herói-tirano…
Nós reviramos as mochilas para pegar cadernos e canetas e, enquanto
Frederick falava, nós anotávamos quase todas as palavras. O sol esquentava
minhas costas, e o aroma agridoce do chá preto flutuava até meu rosto. Eu
lançava olhares furtivos para meus colegas conforme eles escreviam e
escutavam e ocasionalmente faziam perguntas, assolado pela sorte que eu
tinha por estar entre eles.
CENA 7

A aula magna era tradicionalmente feita no salão de música estampado em


ouro no dia 9 de setembro, aniversário de Leopold Dellecher. (Ele se
mudara de Chicago para o Norte, e construíra a casa em meados de 1850.
Só depois de meio século é que foi transformada em uma escola, quando a
manutenção se provou custosa demais para a família Dellecher, que
diminuía rapidamente.) Se de alguma forma o velho Leopold pudesse ter
evitado a morte, ele estaria comemorando cento e oitenta e sete anos. Um
bolo enorme com esse exato número de velas estava esperando no salão de
baile do andar de cima, onde seria cortado e distribuído a estudantes e
funcionários depois do discurso de boas-vindas do Reitor Holinshed.
Nós nos sentamos do lado esquerdo do corredor, no meio de uma fileira
comprida preenchida por alunos do segundo e do terceiro ano. Os alunos de
teatro, sempre os mais barulhentos e com mais tendência a rir, sentavam-se
atrás dos alunos de música instrumental e do coral (que no geral não se
misturavam, aparentemente determinados a perpetuar o estereótipo que
eram os mais complacentes e inacessíveis entre as setes graduações
oferecidas em Dellecher). Os bailarinos (uma revoada de criaturas
subnutridas que se assemelhavam a cisnes) sentavam-se atrás de nós. Do
lado oposto do corredor ficavam os alunos de artes plásticas (facilmente
identificáveis pelos cortes de cabelo pouco ortodoxos e pelas roupas
perpetuamente manchadas de tinta e gesso), os de linguística (que falavam
quase exclusivamente em grego e latim entre si, e às vezes também com as
outras pessoas), e os de filosofia (de longe os mais estranhos, mas também
os mais divertidos, propensos a tratar todas as conversas como um
experimento social, soltando palavras como “hilozoísmo” e
“compossibilidade” como se fossem tão fáceis de compreender quanto um
“bom-dia”). O corpo docente ficava disposto em uma longa fileira de
cadeiras no palco. Frederick e Gwendolyn estavam empoleirados um ao
lado do outro como um velho casal, conversando baixinho com os vizinhos.
A aula magna era uma das raras ocasiões em que nós todos nos uníamos,
um oceano de pessoas, no que conhecíamos como “azul Dellecher”, porque
ninguém queria chamar a cor de “pavão”. As cores da escola não eram
obrigatórias, é claro, mas quase todo mundo usava o mesmo suéter azul,
com o brasão bordado no lado esquerdo do peito. Uma versão maior do
brasão da família estampava um estandarte atrás do púlpito — uma cruz de
Santo André branca em um campo azul, uma chave dourada comprida e
uma pena preta afiada cruzadas como espadas na frente. Sob o brasão
estava o lema da escola: per aspera ad astra. Eu ouvira uma variedade de
traduções, mas a de que eu mais gostava era: através dos espinhos, a
caminho das estrelas.
Como sempre, era uma das primeiras coisas que Holinshed dizia durante
a aula magna.
— Boa noite a todos. Per aspera ad astra.
Ele aparecera no palco, vindo das sombras das coxias, um holofote
iluminando o rosto e fazendo com que o resto de nós se calasse.
— Mais um ano começa. Para os calouros entre vocês, devo
simplesmente dar as boas-vindas, e dizer que estamos encantados em tê-los
como alunos. Para os alunos do segundo, terceiro e quarto ano, bem-vindos
de volta, e meus parabéns.
Holinshed era um homem estranho — alto porém curvado, pacato porém
contundente. Ele tinha um nariz grande em forma de gancho, cabelo ruivo
ralo e óculos quadrados pequenos de lente tão grossa que aumentavam os
olhos três vezes mais que o tamanho natural.
— Se você está sentado nesta sala hoje — disse —, isso significa que foi
aceito na estimada família Dellecher. Aqui, você fará muitos amigos, e
talvez alguns inimigos. Não deixem que esta última possibilidade os
amedronte. Se não fizer alguns inimigos na vida, é porque viveu uma vida
segura demais. E isso é algo que desejo desencorajar.
Ele fez uma pausa, demorando-se nas palavras por um instante.
— Ele pirou — murmurou Alexander.
— Bom, ele precisa reciclar os discursos ao menos uma vez a cada
quatro anos — respondi. — Não dá para culpá-lo.
— Em Dellecher, eu os encorajo a viver uma vida ousada — continuou
Holinshed. — Criem arte, cometam erros e não tenham arrependimentos.
Vocês vieram a Dellecher porque valorizam alguma coisa além do dinheiro,
além da convenção, além do tipo de educação que pode ser avaliada por
meio de uma escala numérica. Eu não hesito em dizer a vocês que são
extraordinários. No entanto… — A expressão dele ficou sombria. —
Nossas expectativas estão ajustadas para corresponderem a seu enorme
potencial. Esperamos que vocês sejam dedicados. Esperamos que sejam
determinados. Esperamos que nos deslumbrem. E não gostamos de
decepção.
As palavras dele ecoaram pelo salão e pairaram no ar como um vapor
odorífico; invisível, porém impossível de ignorar. Ele deixou aquele
silêncio anormal se estender por tempo demais, e então, abrupto, se inclinou
para longe do púlpito e disse:
— Alguns de vocês se juntaram a nós ao fim de uma era e, quando forem
embora, estarão entrando não apenas em uma nova década e em um novo
século, mas em um novo milênio. Nós planejamos prepará-los para isso
com a nossa maior capacidade. O futuro é grande e bárbaro e cheio de
potencial, mas é igualmente precário. Aproveitem todas as oportunidades
que chegam até vocês e se apeguem a elas, antes que sejam levadas
novamente pela maré.
O olhar dele repousou inequivocamente em nós, os sete alunos de teatro
do último ano.
— Uma maré assola assuntos humanos / e seu percurso leva à fortuna
— recitou. — Estamos agora em deriva a mar aberto / no aguardo da
favorável correnteza / que não nos permita perder a esperteza. Senhoras e
senhores, não desperdicem um único momento.
Holinshed sorriu, sonhador, e olhou para o relógio.
— Falando em desperdício, há um bolo enorme no andar de cima que
precisa ser devorado. Boa noite.
E ele desapareceu do palco antes que o público pudesse sequer começar a
aplaudir.
CENA 8

Demorou uma semana até alguma coisa interessante acontecer. Depois da


aula de Frederick (onde a discussão sobre a linha tênue entre
homossocialidade e homoerotismo na infame “cena da tenda” fez com que
todos nós oscilássemos entre diversão e constrangimento), descemos as
escadas juntos, reclamando de fome. O refeitório — que outrora fora o
grande salão de jantar da família Dellecher — estava lotado ao meio-dia,
mas nossa mesa de sempre estava vazia, à nossa espera.
— Estou com fome pra caralho — declarou Alexander, atacando o prato
antes que o resto de nós pudesse se sentar. — Beber toda aquela porcaria de
chá me faz passar mal.
— Talvez isso não acontecesse se você tomasse café da manhã —
respondeu Filippa, observando com nojo ele enfiar purê de batata na boca.
Richard chegou atrasado, com um envelope já aberto em mãos.
— Chegou o correio — disse ele, e se sentou na cabeceira, entre
Meredith e Wren.
— Para todos nós? — perguntei.
— Imagino que sim — disse ele, sem erguer o olhar.
— Eu vou — disse, e alguns murmuraram um agradecimento quando me
levantei.
Nossas caixas de correio ficavam ao fim do refeitório, e eu encontrei meu
nome primeiro na parede de escaninhos de madeira. O de Filippa ficava
mais perto do meu, e depois o de James, e o do resto ia se espalhando pelos
confins do alfabeto. Envelopes quadrados idênticos aguardavam em cada
escaninho, com nossos nomes escritos na caligrafia minúscula e elegante de
Frederick. Eu os levei de volta para a mesa e os distribuí.
— O que é? — perguntou Wren.
— Sei lá — respondi. — Não podem ser os discursos do trabalho do
meio do semestre já, né?
— Não — disse Meredith, já rasgando o dela. — É Macbeth.
O restante imediatamente parou de falar e rasgou os próprios envelopes.
Algumas apresentações tradicionais aconteciam todos os anos em
Dellecher. Enquanto o tempo ainda estava quente, a turma de artes plásticas
recriava o quadro Noite estrelada, de Van Gogh, usando giz na calçada. Em
dezembro, os alunos de linguística faziam uma leitura do poema “A véspera
de Natal” em latim. Os de filosofia reconstruíam o navio de Teseu todo ano
em janeiro, e faziam um simpósio em março, enquanto os alunos de música
apresentavam Don Giovanni no dia dos namorados, e os alunos de dança
faziam um espetáculo de A sagração da primavera, de Stravinsky, em abril.
Os alunos de teatro faziam cenas de Macbeth no Halloween, e de Romeu e
Julieta no baile de máscaras, no Natal. Já que os alunos do primeiro,
segundo e terceiro ano mal participavam, eu não fazia ideia de como os
papéis eram escolhidos.
Rompi o selo no meu envelope e tirei um cartão que continha mais sete
linhas da minúscula letra de Frederick:

Por favor, esteja na trilha


às quinze para meia-noite no Halloween.
Venha preparado para o Ato I, Cena 3, e Ato IV, Cena 1.

Você fará o papel de BANQUO.

Compareça à sala de figurino às 12h30


no dia 18 de outubro para fazer os ajustes.
Não converse sobre isso com seus colegas.

Eu encarei o papel, me perguntando se havia algum tipo de erro


administrativo. Olhei mais uma vez para o envelope, mas Oliver estava
escrito de forma inconfundível. Ergui o olhar para James, para ver se ele
notara algo fora do comum, mas seu rosto estava impassível. Eu esperava
que ele fosse ser o Banquo, em contraparte com o Macbeth de Richard.
— Bom — disse Alexander, parecendo vagamente confuso. — Imagino
que não devamos conversar sobre isso.
— Não — confirmou Richard. — É tradição. O baile de máscaras do
Natal funciona da mesma forma: não devemos saber quem fará qual papel
antes da apresentação.
Eu havia momentaneamente esquecido que ele fizera o papel de Teobaldo
no ano passado.
Eu estava com dificuldade de ler as expressões das garotas. Filippa não
parecia surpresa. Wren parecia animada. Meredith, um pouco desconfiada.
— Nós não ensaiamos nada? — perguntou Alexander.
— Não — disse Richard de novo. — Você vai receber um roteiro com as
sugestões do diretor na caixa de correio amanhã. Depois você aprende as
suas falas e comparece no dia. Com licença.
Ele afastou a cadeira e deixou a mesa sem mais nenhuma palavra. Wren e
Meredith trocaram um olhar perplexo.
MEREDITH: “O que aconteceu?”
WREN: “Ele estava bem até meia hora atrás.”
MEREDITH: “Você quer ir, ou eu vou?”
WREN: “Fique à vontade.”
Meredith deixou a mesa com um suspiro, largando seu escondidinho pela
metade. Alexander, que terminara o próprio prato, teve os bons modos de
esperar o total de três segundos antes de dizer:
— Você acha que ela vai voltar para pegar o resto?
James empurrou o prato na direção dele.
— Pode comer, seu bruto.
Olhei para trás. No canto perto das cafeteiras, Meredith alcançara
Richard e o escutava com a testa franzida. Ela tocou no braço dele e disse
algo, mas ele se desvencilhou e deixou o refeitório, a confusão cobrindo
seus olhos como uma sombra. Ela o observou ir embora, e voltou para nos
dizer que ele estava com uma enxaqueca e que voltaria para o Castelo.
Aparentemente alheia ao fato de que seu prato sumira, ela se sentou de
novo.
Conforme o almoço se arrastava, eu comi e escutei os outros
conversarem, lamentando a quantidade de falas que precisariam decorar
para César antes de começarem os ensaios sem termos a peça em mãos, dali
a uma semana. O envelope parecia pesado no meu colo. Observei James do
outro lado da mesa. Ele também estava quieto, sem ouvir direito a conversa.
Olhei dele para Meredith, e dali para a cadeira vazia de Richard, e não
consegui conter a sensação de que o equilíbrio de poder de alguma forma
havia mudado.
CENA 9

As aulas de combate eram feitas depois do almoço no salão de ensaios. Nós


arrastamos os tatames azuis maltratados do armário, espalhando-os pelo
chão, e começamos a nos alongar sem convicção, esperando por Camilo.
Camilo — um jovem chileno cuja barba escura e brinco dourado o faziam
parecer um pirata — era nosso coreógrafo de lutas, preparador físico e
técnico de movimento. As aulas de movimento do segundo e terceiro ano
eram dedicadas a dança, artes circenses, imitação de animais e toda a
ginástica básica de que um ator pode precisar. O primeiro semestre do
quarto ano era dedicado a combate corpo a corpo, e o segundo, a esgrima.
Camilo chegou exatamente à uma hora e, porque era uma segunda feira,
nos fez formar uma fila para que fôssemos pesados.
— Você ganhou dois quilos desde o começo do semestre — disse ele
quando subi na balança.
Ele estava feliz com meu progresso durante as férias, mesmo que
Gwendolyn não estivesse.
— Está seguindo o treino que eu te dei? — perguntou.
— Estou — respondi, o que era quase verdade.
Era para eu correr, puxar ferro, comer bem e não beber muito. Por
unanimidade, nós ignorávamos essa política dele de consumo responsável
de álcool.
— Bom. Continue com os pesos, mas não se mate. — Ele se inclinou
para mais perto, como se estivesse contando um segredo. — Tudo bem se
Richard quiser parecer o Hulk, mas você francamente não tem o
metabolismo para isso. Capriche nas proteínas e vai continuar esguio e
bonito.
— Ótimo.
Eu desci da balança e deixei Alexander — que era mais alto do que eu,
mas sempre magro demais, porque não parava de fumar e não conseguia
acordar na hora do café da manhã — subir em meu lugar. Encarei meu
reflexo na fileira de espelhos da parede oposta às janelas. Eu estava em
forma, mas queria ganhar um pouco mais de peso, um pouco mais de
músculo. Eu me alonguei e olhei para James, que era o menor entre nós,
meninos — passava pouco de um metro e setenta e cinco, e era magro, mas
não magricela. Havia algo de felino na aparência dele, uma espécie de
agilidade primordial. (Quando treinamos imitação de animais, Camilo o
tinha designado como o leopardo. Ele passara um mês rondando nosso
quarto no escuro até estar suficientemente absorto no papel para pular em
cima de mim enquanto eu dormia. Eu tinha passado meia hora esperando
meu coração desacelerar enquanto o reassegurava de que, sim, meu grito de
pavor fora inteiramente genuíno.)
— Richard não vem hoje? — perguntou Camilo quando Alexander
desceu da balança.
— Ele não está se sentindo bem — disse Meredith. — Enxaqueca.
— Que pena — disse Camilo. — Bem, vamos continuar sem ele.
Ele ficou parado olhando para nós seis, sentados feito patinhos em uma
fileira organizada na beira dos tatames.
— O que terminamos semana passada?
FILIPPA: “Tapas.”
CAMILO: “Isso. Me lembre das regras.”
WREN: “Não fique perto demais. Faça contato visual com seu parceiro.
Vire o corpo para esconder a mão que faz o barulho.”
CAMILO: “E?”
JAMES: “Sempre use a mão aberta e espalmada.”
CAMILO: “E?”
MEREDITH: “Precisa ser convincente.”
CAMILO: “Como?”
EU: “Efeitos sonoros são essenciais.”
— Perfeito — disse Camilo. — Acho que estamos prontos para tentar
algo com um pouco mais de força. Por que não aprendemos um tapa com as
costas da mão?
Ele pigarreou, estalando os nós dos dedos.
— Vamos lá. Dá para usar o punho ou a mão espalmada, depende do
efeito que você quer. É diferente de um tapa direto, porque você nunca deve
cruzar o corpo.
— Como assim? — perguntou Meredith.
— James, pode vir aqui? — disse Camilo.
— Claro.
James se levantou e deixou que Camilo o posicionasse para que ficassem
cara a cara. Camilo estendeu o braço para que a ponta do dedo médio
estivesse a apenas um centímetro da ponta do nariz de James.
— Para dar um tapa, você precisa mover a sua mão através da linha do
meio do corpo da pessoa.
Ele mexeu a mão, cruzando o rosto de James em câmera lenta, sem tocar
nele. James virou a cabeça na mesma direção do movimento.
— Com as costas da mão, você não faz isso. Em vez disso, minha mão
vai diretamente contra a lateral dele.
Camilo mexeu o punho direito verticalmente, seguindo do quadril
esquerdo até o topo da cabeça de James.
— Estão vendo? É uma linha comprida. Você não deve nunca cruzar o
rosto de uma pessoa fazendo isso, porque pode acabar arrancando a cara de
alguém. É só esse o truque. Vamos tentar na velocidade normal? James,
você fica responsável pelo efeito sonoro.
— Certo.
Os olhares dele se encontraram, e James assentiu para Camilo. O braço
de Camilo relampejou entre o espaço entre eles, e fez-se um estalo audível
quando James bateu na própria perna e se afastou com uma guinada. Foi tão
rápido que era impossível dizer se houvera contato.
— Excelente — disse Camillo. — Vamos falar sobre quando ou por que
usar esse tipo de golpe. Alguém?
Filippa foi a primeira a responder. (Na aula de Camilo, era o que
normalmente acontecia.)
— Já que não está cruzando o corpo, você pode ficar mais próximo.
Ela inclinou a cabeça, olhando de Camilo para James como se estivesse
voltando a memória e repassando o golpe.
— O que faz com que seja quase íntimo, e especialmente chocante,
precisamente por ser tão íntimo — acrescentou.
Camilo assentiu.
— É impressionante como o teatro, particularmente em Shakespeare,
pode nos deixar insensíveis ao espetáculo da violência, mas não é só um
truque de palco. Quando Macbeth tem a cabeça decapitada, ou Lavínia tem
a língua decepada, ou os conspiradores banham as mãos no sangue de
César, deveria afetar todo mundo, seja a vítima, o agressor, ou apenas um
espectador. Já viram uma briga de verdade? É feia. É brutal. Mais
importante do que isso, é cheia de emoções. No palco, precisamos ter
controle para não machucar outros atores, mas a violência precisa vir de um
sentimento violento, senão o público não vai acreditar.
Ele olhou para cada um de nós antes que finalmente se demorasse em
mim. Um sorriso brilhou sob seu bigode.
— Oliver, quer se juntar a nós?
— Tudo bem.
Eu me coloquei de pé e fiquei no lugar de Camilo, na frente de James.
— Agora — disse Camilo, colocando uma mão em um de nossos
ombros. — Vocês são célebres amigos íntimos, não são?
Nós dois demos sorrisos tortos um para o outro.
— James, você vai tentar dar um tapa com as costas da mão em Oliver.
Não fale em voz alta, mas quero que você pense em uma coisa que ele
poderia fazer para que você queira bater nele. E não mexa um músculo até
sentir esse impulso.
O sorriso de James desapareceu, e ele me observou com um olhar íntimo
e confuso, as sobrancelhas apertadas acima do nariz.
— Oliver, quero que você faça o oposto — disse Camilo. — Imagine que
você provocou esse ataque e, quando acontecer, deixe que a sensação te
atinja, mesmo que o golpe não te acerte.
Eu pisquei, sem palavras.
— Quando estiverem prontos — disse ele, e deu um passo para trás. —
Tudo no seu tempo.
Nós ficamos parados ali, imóveis, encarando um ao outro. Os olhos de
James eram de um cinza-claro penetrante, mas, assim tão perto dele, eu
enxergava um aro dourado ao redor de cada pupila. Algo estava se
mexendo, trabalhando na mente dele — acompanhado por um aperto no
canto das mandíbulas, uma contração do lábio inferior. James nunca ficara
bravo comigo, que eu soubesse. Hipnotizado pela estranheza daquilo, eu
esqueci completamente meu próprio papel no exercício, e simplesmente
observei a pressão aumentar, os ombros se erguendo, os punhos cerrados
firmes ao seu lado. Ele fez um gesto com a cabeça, rápido e imperceptível.
Eu sabia o que estava vindo, mas algum tipo de reflexo contraditório me fez
me inclinar para a frente, na direção dele. A mão dele cortou na direção da
minha cabeça, mas eu não reagi, não fiz o barulho ou a virada, só me
encolhi quando algo afiado atingiu minha bochecha.
Fez-se um silêncio estranho e imóvel na sala. James franziu o cenho para
mim, o feitiço da animosidade rompido.
— Oliver? Você não… ah!
Ele pegou meu queixo com os dedos e virou meu rosto, roçando a
bochecha. Sangue.
— Meu Deus, desculpa — falou.
Eu agarrei o cotovelo dele para me equilibrar.
— Não, está tudo bem. Foi muito feio?
Camilo tirou James do caminho.
— Deixa eu ver — disse Camilo. — Não, foi só um arranhão, foi com o
canto do relógio. Você está bem?
— Estou — falei. — Não sei o que aconteceu, eu só viajei e acabei me
inclinando na direção do tapa.
Dei de ombros, desconcertado, repentinamente consciente de que o
professor e outros quatro alunos cujas existências eu esquecera totalmente
estavam me encarando.
— É minha culpa — insisti. — Eu não estava pronto.
James, que não tinha sido esquecido — como poderia ser? —, estava
parado, me encarando com uma preocupação tão intensa que eu quase ri.
— Sério — falei. — Eu estou bem.
Só que, quando voltei a me sentar, eu quase cambaleei, atordoado como
se ele tivesse me batido de verdade.
CENA 10

Nosso primeiro ensaio sem o apoio do texto não foi bom.


Também era nosso primeiro ensaio naquele espaço. O Teatro Archibald
Dellecher tinha capacidade de receber quinhentas pessoas, e era decorado
com toda a modéstia de uma ópera barroca. Os assentos eram estofados
com o mesmo veludo azul que as cortinas principais, e o candelabro era tão
formidável que algumas pessoas que se sentavam no balcão passavam mais
tempo o admirando do que assistindo à peça que tinham comparecido para
ver. Com mais seis semanas de ensaios pela frente, nada das plataformas ou
do cenário tinha sido construído, mas já estava tudo demarcado com fita no
palco. Era como ficar em pé em um quebra-cabeça gigante.
Eu já sabia minhas falas de Casca, mas não passara tanto tempo
decorando Otávio, já que ele só entrava mais tarde no Ato IV. Eu estava de
cócoras em um assento na terceira fileira, relendo furiosamente meus
discursos enquanto Alexander e James se atrapalhavam com o que nós
começáramos a chamar de Cena da Tenda, que naquela altura era em parte
uma disputa de estratégia militar, em parte uma discussão de amantes.
JAMES: “Deveria eu assim ter respondido a Cassius?
   Quando a ambição de Marcus Brutus for tanta
   A negar isso a seus companheiros
   Que os deuses lancem-lhe raios
   E acabem com o sujeito!”
ALEXANDER: “Não neguei nada a ti!”
JAMES: “Negou!”
ALEXANDER: “Não neguei. Ele foi apenas o tolo que
      Trouxe a resposta. Brutus partiu meu coração.
      As falhas de outro amigo devem ser relevadas,
      Mas as minhas ele revela em mais do que são.”
Eles se encararam por tanto tempo que eu olhei na direção da mesa que
continha as falas antes de James piscar e dizer:
— A fala.
Senti uma pontada de constrangimento cheio de empatia. Richard,
esperando nas coxias para entrar como o fantasma de César, trocou o peso
de perna, cruzando os braços com força.
— “Só as direcionadas a mim” — disse Gwendolyn dos fundos do
teatro.
Pela ênfase exagerada na métrica, dava para notar que ela estava ficando
cansada dos atrasos.
JAMES: “Só as direcionadas a mim.”
ALEXANDER: “Não me ama mais.”
JAMES: “Não seus defeitos.”
ALEXANDER: “Um amigo seria cego a eles.”
JAMES: “Nem o bajulador, ainda que fosse
   grande como o Olimpo!”
ALEXANDER: “Venham, Antônio e pequeno Otávio,
   Vinguem-se de Cassius,
   Pois Cassius está cansado deste mundo… Qual é a fala?”
GWENDOLYN: “Odiado por quem o ama…”
ALEXANDER: “Odiado por quem o ama; desafiado pelo irmão;
      Tratado como servil; seus defeitos observados
      Anotados… Droga. A fala?”
GWENDOLYN: “… decorado, relatados…”
ALEXANDER: “Tá, desculpa. Decorados, relatados,
      E jogados na minha cara! Dos olhos
      Escorre meu triste espírito.”
Alexander ergueu uma adaga imaginária (ainda não tínhamos os objetos
da cena) e esticou a gola da camiseta.
— Eis minha adaga — exclamou ele — e meu peito nu; com meu
coração / que vale bem menos… Não, espera… mais que ouro. É isso? Puta
merda. Qual é a fala?
Ele olhou na direção da mesa, mas, antes que Gwendolyn pudesse dizer o
texto para ele, Richard surgiu sob as luzes de serviço, saindo da coxia
esquerda.
— Licença — disse ele, a voz profunda ecoando pelo auditório vazio. —
Vamos passar a noite inteira nessa cena? Eles claramente não sabem as
falas.
No silêncio que se seguiu, encarei James, boquiaberto, com medo de me
virar. Ele e Alexander fuzilavam Richard com o olhar como se ele tivesse
dito algo obsceno, enquanto Meredith estava paralisada, sentada no chão do
corredor, uma perna esticada para alongar uma câimbra no joelho. Wren e
Filippa esticaram o pescoço para olhar pela escuridão por cima do meu
ombro. Arrisquei olhar para trás. Gwendolyn estava de pé; Frederick,
sentado ao lado dela com as mãos entrelaçadas, franzindo o cenho para o
chão.
— Richard, basta — disse Gwendolyn em tom afiado. — Aproveite para
tirar cinco minutos, e só volte depois que já estiver calmo.
A princípio, Richard não reagiu, como se não houvesse compreendido, e
então abruptamente deu meia-volta e foi embora pelas coxias sem dizer
uma palavra.
Gwendolyn olhou para James e Alexander.
— Vocês dois também aproveitem para tirar uns cinco minutos, olhar as
falas, e voltem prontos para o trabalho. Na verdade, todo mundo pode fazer
uma pausa. Podem ir.
Quando ninguém se mexeu, ela sacudiu as mãos para nos espantar do
auditório, como se fôssemos galinhas intrusas. Eu enrolei até James passar
por mim, e então o segui pela saída da garagem. Alexander já estava lá,
acendendo um baseado.
— Que filho da puta — disse ele. — Ele só tem metade das falas que a
gente tem, e ainda tem a audácia de interromper o primeiro ensaio sem o
texto? Ele que se foda.
Ele se sentou, puxou um trago com força, e passou o baseado para James,
que puxou um trago curto e o devolveu.
— Você não está errado — disse ele enquanto expirava, uma nuvem de
fumaça branca saindo da boca. — Mas ele também não está.
Alexander estava pronto para um motim.
— Bom, vai se foder você também.
— Não fique emburrado. Nós deveríamos saber nossas falas. Richard só
puxou nossa orelha.
— É — eu falei —, mas ele foi bem cuzão.
Um canto da boca de James estremeceu, ameaçando um sorriso.
— Verdade.
A porta se abriu e Filippa apareceu, os braços cruzados para se proteger
do sereno.
— Oi. Vocês estão bem?
Alexander puxou mais um longo trago e deixou a boca aberta, a fumaça
saindo em um fluxo comprido e preguiçoso.
— Está sendo uma noite longa — disse James, monótono.
— Para vocês se sentirem melhor, saibam que a Meredith acabou de dar
o maior esporro nele.
— Por quê? — perguntei.
— Por ser escroto — disse ela, como se fosse óbvio. — Não é só porque
ela está transando com ele que é incapaz de ver quando ele está sendo um
merdinha.
JAMES: “Estou confuso. Ele é escroto ou é um merdinha?”
FILIPPA: “Para ser sincera, acho que Richard é os dois.”
EU: “Ao menos ele vai ficar na seca por um tempo.”
ALEXANDER: “É. Que ótimo. Aí, sim, que vai cooperar ainda mais.”
— Na verdade, ele pediu desculpas — disse Filippa. — Ao menos para
Meredith. Disse que foi infantil e que já estava arrependido.
— Sério? — perguntou Alexander, a fumaça enrolando ao redor da
cabeça dele, como se estivesse prestes a entrar em combustão. — Então ele
não só é um escroto merdinha cuzão filho da puta, como também já pediu
desculpas?
Ele jogou o baseado no concreto e o amassou com o calcanhar.
— Ah, que perfeito, agora a gente nem pode ficar puto — falou. —
Sério. Ele que se foda.
Ele terminou de pulverizar o baseado e ergueu os olhos para o restante de
nós. Estávamos em um círculo frouxo ao redor dele, a boca apertada
firmemente, nos esforçando para ficar sérios.
— Que foi?
Filippa encontrou meu olhar, e nós dois desatamos a rir.
CENA 11

A passagem do tempo varia como quem a vive. Conosco, andou a passos


lentos, depois trotou e por último galopou outubro adentro. (Nunca parou
por completo, até a manhã do dia 22 de novembro, e parece, ao menos para
mim, que não se moveu desde então.)
Nós havia muito termináramos de catalogar nossos pontos fortes e fracos.
Alexander foi depois de Meredith e declarou com muito orgulho sua
habilidade de assustar pessoas, mas confessou o medo de ser o vilão na
própria vida. Wren apresentou uma faca de dois gumes: ela tinha contato
íntimo com suas emoções, porém, como resultado, era sensível demais para
um ambiente de competição artística como aquele. Richard nos disse o que
já sabíamos — que ele era infalivelmente confiante, mas era difícil
trabalhar com seu ego. Filippa fez a própria declaração sem nenhum traço
de constrangimento: ela era versátil, mas, por não possuir um “tipo”, ficaria
presa em papéis secundários durante toda a sua vida. James — falando
lentamente, perdido em pensamentos, como se nem sequer visse o resto de
nós — explicou que entrava em uma imersão completa em todos os
personagens que fazia, mas às vezes não conseguia deixá-los para trás e
aprender a ser ele mesmo novamente. Quando chegou a minha vez,
estávamos tão entorpecidos para as inseguranças uns dos outros que eu
declarar que era a pessoa menos talentosa do ano não pareceu surpreender
ninguém. Eu não consegui pensar em nenhum ponto forte, e admiti isso,
mas James me interrompeu para dizer:
— Oliver, você faz com que todas as cenas em que atua sejam focadas
nas outras pessoas que estão nela. Você é a pessoa mais legal e o ator mais
generoso aqui, o que, de qualquer forma, é provavelmente mais importante
do que ter talento.
Imediatamente, eu calei a boca, certo de que ele era o único que pensava
aquilo. Estranhamente, ninguém discordou.
No dia 16 de outubro, tomamos nossos lugares de sempre na galeria. Lá
fora, um dia perfeito de outono iluminava as árvores em volta do lago como
se estivessem em chamas. Aquela ardência de cores — laranja-queimado,
amarelo-sulfuroso, vermelho-sangue — reluzia de ponta-cabeça na
superfície da água. James espiou pela janela, olhando para trás.
— Aparentemente, Gwendolyn está fazendo o pessoal das artes plásticas
produzir sangue artificial para esparramar por toda a praia — disse.
— Que divertido.
Ele sacudiu a cabeça, a boca com um canto virado para cima, e deslizou
para se sentar na cadeira em frente à minha. Eu empurrei uma xícara com
pires na direção dele, e o observei erguer a xícara aos lábios, ainda sorrindo.
Os outros entraram do corredor, fazendo uma algazarra, e o feitiço da
tranquilidade preguiçosa desvaneceu no ar como fumaça.
Oficialmente, nós deixáramos para trás as aulas sobre Júlio César e
passáramos para Macbeth, mas as palavras familiares de César
precipitavam-se de prontidão em nossos lábios e, com elas, vinha um tipo
de tensão carregada. Semanas de ensaios difíceis e da manipulação
psicológica de Gwendolyn fizeram com que a neutralidade fosse
impossível. Naquele dia, o que começara com uma discussão simples da
estrutura trágica rapidamente evoluiu para uma disputa.
— Não, não foi isso que eu disse — falou Alexander, no meio da aula,
impacientemente empurrando o cabelo para longe do rosto. — O que eu
disse é que a estrutura trágica está óbvia em Macbeth, e faz César parecer
uma novelona.
MEREDITH: “Do que você tá falando, caramba?”
FREDERICK: “Os modos, Meredith, por favor.”
Wren se endireitou no chão, depositando a xícara no pires encaixado
entre os joelhos.
— Não — disse ela. — Eu entendi.
RICHARD: “Então explica para o resto de nós, que tal?”
WREN: “Macbeth é o molde perfeito de um herói trágico.”
FILIPPA: “Defeito mortal: ambição.”
EU: [espirro]
— E Lady Macbeth é o molde perfeito de uma vilã trágica —
acrescentou James, olhando de Wren para Filippa, requisitando sua
concordância. — Diferente de Macbeth, ela não tem sequer um escrúpulo
quanto a assassinar Duncan, o que abre o caminho para todos os outros
assassinatos que cometem.
— Então qual é a diferença? — perguntou Meredith. — É o mesmo que
em César. Brutus e Cassius assassinam César, e isso os leva ao desastre.
— Mas eles não são os vilões, certo? — questionou Wren. — Talvez
Cassius, mas Brutus faz o que faz porque acredita no bem maior de Roma.
— Não por ter faltado com amor a César, mas porque amei mais a Roma
— recitou James.
Richard emitiu um barulho impaciente, dizendo:
— Onde é que quer chegar, Wren?
— No mesmo lugar que eu — disse Alexander, inclinando-se para a
frente até ficar empoleirado no canto mais extremo do sofá, as pernas
compridas dobradas para que os joelhos quase encostassem no torso. —
César não é o mesmo tipo de tragédia que Macbeth.
MEREDITH: “Então qual é o tipo?”
ALEXANDER: “Porra, e eu lá sei?”
FREDERICK: “Alexander!”
ALEXANDER: “Foi mal.”
— Acho que vocês estão complicando demais — disse Richard. — César
e Macbeth têm a mesma premissa. Herói trágico: César. Vilão trágico:
Cassius. Intermediário qualquer coisa: Brutus. Acho que poderia equiparar
ele com Banquo.
— Espera aí — falei. — E o que faz de Banquo…
Só que James interrompeu:
— Você acha que César é o herói trágico?
Richard deu de ombros.
— Quem mais seria?
Filippa apontou para James.
— Hum, dã.
— Precisa ser Brutus — disse Alexander. — Marco Antônio deixa isso
mais claro impossível no cinco-cinco. Essa é sua deixa, Oliver, o que ele
diz?
EU: “Este foi o mais nobre entre os romanos,
 Os que conspiraram, [espirro] menos ele,
 O fizeram por inveja ao grande César;
 Só ele, tomado pela honestidade
 E pelo bem comum, juntou-se a eles.”
— Não — insistiu Richard. — Brutus não pode ser o herói trágico.
James pareceu afrontado.
— E por que não, meu Deus?
Richard quase riu ao ver a expressão no rosto dele.
— Porque ele tem tipo catorze defeitos mortais! — respondeu ele. — O
herói supostamente só tem um.
— O de César é a ambição, igual a Macbeth — falou Meredith. — É
simples: o único defeito mortal de Brutus é que ele é burro o bastante para
dar ouvidos a Cassius.
— Como é que César é o herói? — perguntou Wren, olhando de um para
o outro. — Ele morre no Ato III.
— Sim, mas a peça tem o nome dele, não tem? — disse Richard, as
palavras e a respiração saindo entrepostas em um ímpeto exasperado. — É
assim que acontece em todas as outras tragédias.
— É sério isso? — disse Filippa, a voz entediada. — Você vai basear seu
argumento no título da peça?
— Ainda estou esperando para ouvir quais são esses catorze defeitos —
disse Alexander.
— Eu não falei que são precisamente catorze — disse Richard,
impaciente. — Eu estou dizendo que seria impossível isolar um que o leva a
seu fim.
— Não poderíamos argumentar que o defeito mortal de Brutus é seu
amor imensurável por Roma? — perguntei, olhando do outro lado da mesa
para James, que observava Richard com os olhos estreitos.
Frederick estava parado na frente da lousa, os lábios franzidos, escutando
tudo.
— Não — disse Richard —, porque além disso tem seu orgulho, sua
presunção, sua vaidade…
— Todas essas são essencialmente a mesma coisa e, de todas as pessoas,
você deveria saber disso — interrompeu a voz de James, e o resto de nós
ficou abalado demais para falar.
— Como assim? — perguntou Richard.
James apertou a mandíbula, e eu sabia que ele não quisera dizer aquilo
em voz alta.
— Você me escutou.
— Escutei, sim, porra — falou Richard, e o gelo cortante de sua voz fez
com que todos os cabelos na minha nuca arrepiassem. — Eu estou te dando
uma chance de mudar de ideia sobre o que disse.
— Cavalheiros.
Eu quase tinha esquecido que Frederick estava lá. A voz dele era baixa,
leve, e, por um momento, eu me perguntei se o choque daquilo o teria feito
desmaiar.
— Basta.
Richard, que estava inclinado para a frente como se quisesse saltar do
sofá e se atirar para cima de James, se recostou novamente contra as
almofadas. Uma das mãos de Meredith repousou no joelho dele.
James desviou o olhar.
— Desculpa, Richard. Eu não deveria ter dito isso.
A princípio, o rosto de Richard estava impassível, até que a raiva sumiu e
o deixou abatido.
— Acho que eu mereci — disse ele. — Nunca pedi desculpas de verdade
por meu pequeno surto no dia do ensaio. As pazes, James?
— Sim, claro — disse James, erguendo o olhar, abaixando levemente os
ombros em sinal de alívio. — As pazes.
Depois de uma pausa levemente constrangedora, durante a qual troquei
olhares perplexos com Filippa e Alexander, Meredith disse:
— Isso aconteceu mesmo? Pelo amor de Deus, é só uma peça.
— Bem — suspirou Frederick, tirando os óculos e polindo-os na bainha
da camisa. — Duelos foram travados por muito menos.
Richard ergueu uma sobrancelha para James.
— Espadas atrás do refeitório ao amanhecer?
JAMES: “Só se Oliver aceitar ser meu padrinho.”
EU: “Ainda que tenha esperança de viver, estou preparado para morrer.”
RICHARD: “Muito bem, Meredith pode ser a minha.”
ALEXANDER: “Nossa, valeu pelo voto de confiança, Rick.”
Richard riu, tudo aparentemente perdoado. Voltamos ao debate e
procedemos com cortesia, mas eu continuei a observar James pelo canto
dos olhos. Sempre houvera pequenas rivalidades entre nós, mas nunca com
uma demonstração tão aberta de hostilidade. Com um gole de chá, convenci
a mim mesmo de que todos estávamos exagerando. Atores são voláteis por
natureza — criaturas alquímicas compostas de elementos inflamáveis,
emoção, ego e inveja. Se aquecê-los, misturá-los, às vezes se encontra ouro.
Às vezes, desastre.
CENA 12

O Halloween se aproximou como um tigre na noite, com um ronco suave de


advertência. Durante toda a segunda metade de outubro, os céus estavam
arroxeados e tempestuosos, e Gwendolyn nos cumprimentava todas as
manhãs dizendo:
— Que tempo escocês tenebroso!
Conforme o dia agourento se aproximava, era impossível reprimir um
zumbido de empolgação crescente entre os alunos. Na manhã do dia 31,
sussurros nos seguiam pelo refeitório quando fomos tomar café. O que
aconteceria na praia castigada pelo vento naquela noite? Todos queriam
saber. Nós estávamos inquietos demais para nos concentrar nas aulas, e
Camilo nos dispensou mais cedo, com a instrução: “vão preparar seus
feitiços”. De volta ao Castelo, evitamos uns aos outros, insulados nos
cantos, murmurando nossas próprias falas, como internos de um hospício.
Quando se aproximou a meia-noite, caminhamos, um a um, pelo bosque.
A noite estava sinistramente quente, e eu tinha dificuldade de seguir a
trilha tortuosa da floresta na escuridão, macia como veludo. Raízes
invisíveis se esticavam para agarrar meus calcanhares, e uma vez perdi o
equilíbrio e caí no chão, o aroma úmido da tempestade que viria
preenchendo meu nariz. Eu me espanei e prossegui com mais cuidado, meu
coração batendo rápido e raso, como o de um coelhinho nervoso.
Quando cheguei à ponta da trilha, por um momento temi estar atrasado.
Meu figurino (calças, botas, camisa e um casaco militar de estilo
culturalmente ambíguo) não incluía um relógio. Eu pairei no limiar das
árvores, olhando para o monte na direção do Pavilhão. Luzes tênues
brilhavam em três ou quatro janelas, e imaginei que alguns alunos,
cautelosos demais para desbravar a praia, espiavam tímidos dali. Um galho
se quebrou nas sombras e eu me virei.
— Tem alguém aí?
— Oliver?
Era a voz de James.
— Sou eu — falei. — Cadê você?
Ele surgiu entre dois pinheiros escuros, o rosto um oval pálido na
penumbra. Estava vestido da mesma forma que eu, mas com dragonas
prateadas brilhando nos ombros.
— Eu estava com esperança de que você fosse meu Banquo — disse ele.
— Suponho que devo meus parabéns, ó Thane de Todas as Coisas.
Com minhas suspeitas confirmadas, senti uma pontinha de orgulho. Ao
mesmo tempo, algo premonitório se agitou, uma apreensão indistinta. Não
era à toa que Richard não ficara feliz quando designaram nossos papéis.
Meia-noite: o eco baixo do relógio da capela ondulou através da noite
estática, e James agarrou meu braço com força.
— Os sinos me chamam — disse ele, as palavras leves e sem fôlego de
excitação. — Não atenda, Duncan, tal chamado que pode ser celestial ou
malfadado!
Ele soltou meu braço e desapareceu entre as sombras da vegetação. Eu o
segui, mas não de perto, com medo de tropeçar de novo e arrastar nós dois
para o chão.
O cinturão de árvores entre o Pavilhão e a margem norte era denso,
porém estreito, e logo uma luz bruxuleante laranja começou a se filtrar
pelos galhos. James — e eu conseguia vê-lo claramente naquela hora, ou ao
menos sua silhueta — parou, e eu andei pé ante pé atrás dele. Centenas de
pessoas estavam aglomeradas na praia, algumas sentadas em fileiras
apertadas de bancos, outras em espaços comprimidos no chão, as silhuetas
escuras contra o ardor ofuscante da fogueira. Um murmúrio de trovão
alisava a quebra das ondas na margem e o crepitar das chamas. Sussurros
empolgados erguiam-se dos espectadores conforme o céu, um presságio
dobrado parecendo uma pintura a óleo em violeta, brilhava branco com
raios. Então, a praia ficou em silêncio novamente, até que uma voz
estridente gritou:
— Olhem!
Uma figura escura sólida estava se aproximando pela água, um domo
arredondado comprido, como a corcova do monstro do Lago Ness.
— O que é isso? — sussurrei.
— São as Bruxas — disse James lentamente, a luz do fogo refletida
como faíscas escarlates em seus olhos.
Conforme a forma monstruosa se aproximava, lentamente entrou em
foco, o suficiente para eu perceber que era uma canoa emborcada. A julgar
pela altura do casco na água, haveria apenas o espaço suficiente para um
bolsão de ar embaixo. O barco deslizou até as águas rasas e, por um
instante, a superfície do lago ficou lisa como vidro. Então, fez-se uma onda,
um estremecimento, e três figuras surgiram. O público arfou, o som
escapando. As garotas de início pareciam menos bruxas do que fantasmas, o
cabelo liso e molhado cobrindo o rosto, os vestidos brancos diáfanos
derretendo dos membros, flutuando em espirais atrás delas. Conforme se
ergueram da água, as pontas dos dedos pingavam, e o tecido estava tão
grudado nos corpos que pude perceber quem era quem, apesar dos rostos
abaixados. À esquerda, estava Filippa, as pernas longas e o quadril estreito
inconfundíveis. À direita, Wren, menor e mais magra do que as outras duas.
No meio, Meredith, as curvas ousadas e perigosas sob o vestido branco
translúcido. Sangue correu aos meus ouvidos. Por um momento, James e eu
nos esquecemos um do outro.
Meredith ergueu o queixo só o suficiente para que o cabelo deslizasse
para longe do rosto.
— Quando iremos nos rever? — perguntou ela, a voz baixa e aveludada
no ar ameno. — No próximo raio ou quando chover?
— Ao fim de algazarra tamanha — respondeu Wren, maliciosa. — Com
a batalha perdida e ganha.
A voz de Filippa, rouca e ousada:
— Será antes de o sol se pôr.
Um tambor ressoou de algum lugar oculto nas árvores, e o público
estremeceu, deliciado. Filippa se virou na direção do som, na direção da
trilha onde James e eu estávamos escondidos nas sombras.
— Tambor, tambor! A chegada de Macbeth é o furor.
Meredith ergueu as mãos do lado do corpo, e as outras duas deram um
passo à frente para unirem as mãos.
TODAS: “Três irmãs, de mãos dadas estamos,
   Por terra e mar viajamos,
   Para cima e para baixo,
   Três vezes cá, três vezes lá,
   E mais três, nove então dá.”
Elas se juntaram em um triângulo e abriram as mãos, erguendo-as ao céu.
— O encanto está começando! — disse Meredith.
James segurou a respiração de repente, como se tivesse esquecido de
respirar antes, e saiu na direção da luz.
— Nunca vi dia tão lindo e ruim — disse ele, e todas as cabeças se
viraram na nossa direção.
Eu andava atrás dele, muito perto, sem medo de tropeçar.
— Quanto falta até Forres? — falei, e então parei de imediato.
As três garotas estavam lado a lado, nos encarando.
— Quem são essas, / de vestes sofridas e selvagens, / que parecem ser de
outro mundo / mas na terra estão?
Nós descemos mais devagar. Mil olhares nos seguiram, quinhentos pares
de pulmões segurando a respiração.
EU: “Estão vivas? Ou as questiono
 Em vão? Parecem me entender…”
JAMES: “Se tiverem fala, respondam.”
Meredith se afundou no chão à nossa frente, agachada.
— Salve Macbeth; salve, ó salve, Thane de Glamis!
Wren se ajoelhou ao lado dela.
— Salve Macbeth; salve, ó salve, Thane de Cawdor!
Filippa não se mexeu, mas disse, em sua voz límpida:
— Salve Macbeth; que um dia há de ser rei!
James estremeceu, dando um passo para trás. Eu o peguei pelos ombros,
dizendo:
— Senhor, por que parece assustado e com medo / do som de coisas tão
belas?
Ele olhou para o lado e eu o soltei, relutante. Depois de um momento de
hesitação, segui adiante dele, desci o último degrau da escada cheia de areia
para ficar em pé entre as bruxas.
EU: “Falem a verdade,
 São fantasia ou realmente
 O que aparentam ser? Meu nobre parceiro
 Saúdam com graça, e boas novas
 De nobreza e de realeza
 Que o impressionam. Mas a mim não falam.
 Busquem, se puderem, nas sementes
 do tempo e vejam quais darão frutos.
 Revelem-me os segredos, eu que não imploro
 Nem temo seus favores ou seu ódio.”
Meredith se colocou de pé em um instante.
— Salve! — disse ela, e as outras garotas a ecoaram.
Ela se impeliu para a frente, chegando perto demais, o rosto apenas a um
centímetro do meu.
— Menos que Macbeth, porém maior!
Wren apareceu ao meu lado, os dedos tamborilando na minha cintura, me
espiando com um sorriso travesso.
— Não tão feliz, porém mais feliz!
Filippa mantinha-se afastada.
— Será pai de reis, mas rei não será! — disse ela, indiferente, quase
entediada. — Salve, então, Macbeth e Banquo!
Wren e Meredith continuaram a me apalpar e acariciar, repuxando
minhas roupas, explorando as linhas do pescoço e do ombro, afastando meu
cabelo. A mão de Meredith passeou até a minha boca, a ponta dos dedos
traçando meu lábio inferior, até que James — que estava de fato olhando
tudo aquilo com um tipo de repugnância arrebatada — se sobressaltou e
falou. As garotas viraram a cabeça bruscamente para ele, e eu balancei no
lugar, os joelhos bambos ao perder a atenção delas.
JAMES: “Falem mais, falastronas reversas!
   A morte de Sinel me fez Thane de Glamis,
   Mas como de Cawdor? Seu Thane vive,
   Próspero e saudável. Tomar seu lugar
   Vai além de minhas crenças.”
Elas apenas sacudiram a cabeça, colocaram os dedos sobre os lábios, e
voltaram para dentro da água. Quando desapareceram por completo sob a
superfície e nós recobramos o suficiente de nossas faculdades mentais, eu
me virei para James, com as sobrancelhas erguidas, na expectativa.
— Seus filhos serão reis — disse ele.
— O senhor será rei!
— Thane de Cawdor também. Ou me enganei?
— Não, acertou a melodia e a letra.
Passos se aproximaram das árvores, e eu olhei na direção deles.
— Quem vem lá?
O resto da cena foi curta e, quando eu não estava falando, mantive um
olhar atento à água. Estava imóvel novamente, refletindo o céu roxo
tempestuoso. Quando chegou a hora, eu e os dois sortudos do terceiro ano
que faziam o papel de Ross e Angus saímos pela direita, para longe da luz
da fogueira.
— Nós acabamos — sussurrou um deles. — Merda pra vocês.
— Obrigado.
Eu me escondi atrás do galpão na orla da praia. Não era maior do que
uma cabine de banheiro e, se eu olhasse além da construção, via o fogo, a
canoa descansando na água, o pedaço de areia onde James agora estava
sozinho.
— É uma adaga que vejo à frente / com o cabo para mim?
Ele apalpou o ar vazio à sua frente.
— Vem, que eu te apanho!
Era um discurso que eu jamais esperava ouvi-lo declarar. Ele era
imaculado demais para falar sobre sangue e assassinato como Macbeth,
mas, sob a luz vermelha do fogo, não parecia mais tão angelical. Em vez
disso, ele estava belo da forma que se pensa que o diabo é belo — como
uma bela ameaça.
JAMES: “Terra firme e certeira,
   Peço que despreze meus passos,
   Temo que as pedras me revelem.
   E leve embora o horror que cabe
   A este instante. Enquanto falo, ele respira;
   O calor do momento com palavras esfria.
   Vou, e acabou.”
Ele condenou Duncan outra vez, e então saiu para me encontrar no limiar
da luz do fogo conforme o público esperava, sussurrando uns para os
outros, aguardando a próxima cena.
— E agora? — perguntei, quando ele estava próximo o bastante para
ouvir.
— Eu acho que… espere.
Ele se encolheu, esbarrando em mim.
— O que foi?
— Hécate — sibilou.
Antes que eu sequer pudesse entender a substância da palavra, Alexander
explodiu de dentro da água. Gritinhos de surpresa ecoaram da plateia
conforme as ondas quebravam ao redor dele. Alexander estava ensopado,
despido até a cintura, os cachos soltos e indomáveis emoldurando o rosto.
Ele jogou a cabeça para trás e uivou para o céu como um lobo.
— Literalmente vil — falei.
As garotas surgiram da água mais uma vez.
— O que houve, Hécate? Parece irada — disse Meredith.
Mal acabara de dizer isso quando Alexander a agarrou pela nuca,
espalhando água para todos os lados.
— E não tenho motivo, mocreias? — rosnou. — De onde tiraram as
ideias / de a Macbeth narrar fortuitos / de morte e triunfos gratuitos?
James agarrou meu braço.
— Oliver — disse ele. — Um Banquo ensanguentado me sorri.
— Ah. Ah, merda.
Ele me empurrou para dentro do galpão, a porta dando um gemido traidor
atrás de nós. Lá dentro, o chão estava apinhado de remos e coletes salva-
vidas, mal deixando espaço o suficiente para que nós dois ficássemos cara a
cara. Um balde cheio nos aguardava em uma prateleira baixa.
— Jesus — falei, desabotoando minha jaqueta apressado. — De quanto
sangue eles acharam que a gente ia precisar?
— Um monte, aparentemente — disse James, se abaixando para
destampar o balde. — E fede.
Um odor doce e putrefato preencheu o local conforme eu me
desvencilhava das botas.
— Suponho que devemos valorizar a autenticidade — disse ele.
Meu braço ficou preso em uma manga.
— Merda, merda, merda, eu estou preso, ai, porra… James, ajuda…!
— Xiu! Aqui.
Ele ficou em pé, pegou a camisa pela bainha, e então a puxou para cima.
Minha cabeça ficou presa na gola, e eu trombei nele.
— Dá para sujar as calças de sangue? — perguntou ele, me segurando
pelo cós para me equilibrar.
— Bom, eu não vou sair pelado.
Ele pegou o balde.
— Justo. Feche a boca.
Eu fechei a boca e os olhos com força e ele jogou o sangue na minha
cabeça, como um tipo perverso de batismo pagão. Engasguei e tossi
enquanto o sangue escorria pelo meu rosto.
— Que porra é essa?
— Não sei. E não sei quanto tempo você tem.
Ele agarrou minha cabeça.
— Fique quieto.
Ele espalhou o sangue pelo meu rosto, pelo peito e pelos ombros,
enfiando os dedos no meu cabelo para que ficasse de pé.
— Pronto.
Por um segundo, ele só me encarou, parecendo impressionado e
inteiramente enojado ao mesmo tempo.
— Como estou?
— Incrível pra caralho — disse ele, e me empurrou para a porta. —
Agora vai.
Eu saí cambaleando do galpão e corri para as árvores, xingando as pedras
afiadas e folhas de pinheiros que cutucavam meus pés descalços. Era
certamente assustador, aparecer à meia-noite sem ter ideia de quem eu
encontraria ali na escuridão, mas também era um problema. Eu só sabia
quais eram as minhas cenas, então mal podia adivinhar quanto tempo ainda
tinha antes de entrar como o fantasma de Banquo. Um galho chicoteou meu
rosto, mas eu o ignorei enquanto subia o morro, pisoteando raízes, pedras e
trepadeiras. Outro arranhão na minha bochecha não importaria; eu já estava
coberto de sangue. Senti a pele grudenta conforme secava no ar áspero
noturno, e meu coração estava acelerado de novo — em parte pelo esforço
de subir a trilha, em parte por um medo mesquinho de perder a minha
segunda entrada.
No fim das contas, cheguei ao limite das árvores com boa antecedência.
Eu cheguei lentamente e cambaleante, quebrando galhos sob meus pés, mas
o público assistia ao segundo encontro de James com as bruxas com
atenção ansiosa, e não me notou. Eu me esgueirei sob um galho baixo, o
cheiro pungente do pinheiro cortando o fedor podre do sangue falso na
minha pele.
WREN: “Minha intuição estima:
   Algo cruel se aproxima!”
JAMES: “Ora lá, bruxas nefastas e secretas,
   Que fazem na noite escura?”
As garotas dançaram em círculo ao redor do fogo, os cabelos soltos e
embaraçados, algas verdes do rio grudadas nas saias. De vez em quando,
uma delas jogava um punhado de poeira brilhante no fogo, e uma nuvem de
fumaça colorida explodia acima das chamas. Eu me ajeitei no esconderijo,
esperando. Eu era o último em uma série de visões, mas como apareceriam?
Procurei na multidão de espectadores por rostos familiares, mas estava
escuro demais para distinguir traços específicos. Notei a cabeça loura de
Colin na casa ao lado esquerdo, e a luz da fogueira brilhou em um cacho
cor de cobre que pensei que talvez pertencesse a Gwendolyn. Eu não
conseguia deixar de pensar: onde é que estava Richard?
Uma gargalhada alta e sobrenatural de Wren me chamou a atenção de
volta para a praia.
MEREDITH: “Fale!”
WREN: “Exija!”
FILIPPA: “Responderemos.”
MEREDITH: “Prefere ouvir de nossas bocas
 Ou de nossos mestres?”
JAMES: “Invoquem eles.”
As vozes das garotas se uniram em um canto alto e desafinado. James
continuava olhando, inquieto e inseguro.
MEREDITH: “O sangue da porca derrame já,
A que matou filhotes lá e cá,
Da forca do assassino, o suor
A fogueira…
TODAS: “Lhes cai melhor
   Venha o bem ou o pior!”
Filippa jogou algo no fogo, e as chamas rugiram, mais altas que elas.
Uma voz retumbou do outro lado da praia, tremenda e aterrorizante como
um deus primordial. Era inconfundivelmente Richard.
— MACBETH! MACBETH! CUIDADO COM MACDUFF.
Ele não estava em nenhum lugar visível, mas a voz nos pressionava de
todos os lados, tão alta que sacudia meus ossos. James não estava menos
atemorizado do que eu ou qualquer outro presente, e tropeçou nas próprias
palavras quando falou.
— Seja o que for, agradeço o aviso! / Aguou meus medos. Só uma
palavra mais…
Richard interrompeu, ensurdecedor.
RICHARD: “COM SANGUE E OUSADIA SOA

 O RISO AOS HOMENS, POIS NINGUÉM PARIDO


 POR MULHER FERE MACBETH.”
JAMES: “Então viva, Macduff! Para que temer?”
RICHARD: “COM A BRAVURA DE LEÃO, IGNORA

 O CHORO DE QUEM LAMENTA E CONSPIRA:


 MACBETH NÃO SERÁ VENCIDO ATÉ QUE
 A FLORESTA DE BIRNAM CONTRA ELE
 TENHA SE ERGUIDO.”
JAMES: “Quem poderia pedir à árvore
 Que deslocasse sua raiz? Doce infortúnio.
 Rebeldes, apenas se levantem quando
 A floresta reagir, e nosso estimado Macbeth
 Deve viver à mercê da natureza,
 Pagando ao tempo sua mortalidade.
 Mas meu coração pulsa em curiosidade:
 Sabe dizer se a raça de Banquo
 Reinará aqui?”
As bruxas todas gritaram ao mesmo tempo:
— Perguntas não mais!
JAMES: “Bastará para mim. Se isso me negar,
   Que maldição eterna lhes assombre.
   Digam!”
TODAS:“Mostre aos olhos, sofra o coração!
   Como sombras, vêm e vão!”
Oito figuras encapuzadas se ergueram da última fileira da plateia. Uma
garota sentada ao lado soltou um gritinho de surpresa. Elas deslizaram até o
corredor central e começaram a descer (mais alunos do terceiro ano, será?)
enquanto James lhes assistia, os olhos arregalados de pavor.
— O quê? — entoou ele. — A fila vai até o fim dos tempos?
Meu coração pulou na garganta. Eu entrei na luz pela segunda vez, o
sangue escorregadio e brilhante na minha pele. James me encarou,
boquiaberto, e o público todo se virou para olhar. Gritos abafados flutuavam
à superfície do silêncio.
— Horrível visão! — disse James, fraco.
Eu comecei a descer as escadas, o braço erguido para apontar e
reivindicar as oito figuras encapuzadas como meus pertences.
— Decerto era verdade — continuou ele —, Banquo, ensanguentado, a
mim sorri, / ostentando sua trupe.
Eu abaixei a mão novamente e as figuras desapareceram, fundindo-se às
sombras como se nunca tivessem existido. James e eu ficamos a três metros
um do outro, diante do fogo. Eu reluzia em escarlate, terrível e
ensanguentado como um recém-nascido, enquanto o rosto de James estava
pálido e fantasmagórico.
— Então é isso? — disse ele, ao que parecia ser, para mim.
Um silêncio estranho e carregado seguiu. Nós dois nos inclinamos para a
frente sem mexer os pés, esperando algo acontecer. Então, Meredith se
colocou entre nós.
— Sim, senhor — disse ela, e arrastou o olhar de James para desviar do
meu. — É tudo assim… mas por que / Macbeth está tão pasmado?
Ele se permitiu ser levado embora, de volta ao fogo, e à atenção tentadora
das bruxas. Eu subi as escadas, parei ali no alto e me demorei, para
assombrá-lo. Duas vezes, o olhar dele subiu para onde eu estava, mas o
público voltara a observar as garotas. Elas cercavam o fogo, gargalhando
para o céu de tempestade, e começaram a cantar novamente. James olhou
por um momento, espantado, e então deu as costas e fugiu da luz do fogo.
TODAS:“Eis a dupla, labuta e luta
    Chama borbulha poção absoluta…
    Escama de dragão, do lobo o dente
    Múmia de bruxa decadente…”
Enquanto Meredith e Wren continuavam a dança, em movimentos
ferozes e violentos, Filippa ergueu uma cumbuca que estivera escondida
sob a areia. O líquido vermelho e viscoso derramava pelos lados, o mesmo
sangue falso que pinicava minha pele.
TODAS:“Eis a dupla, labuta e luta
    Chama borbulha poção absoluta…
    Sangue de macaco serve por enquanto
    E aqui está feito o nosso encanto.”
Filippa virou a cumbuca. Fez-se um esguicho nauseante, e tudo ficou
escuro. O público ficou de pé em um rugido de alegria e confusão. Eu corri
de volta para a proteção das árvores.
Quando as luzes ao redor do lago se acenderam — lâmpadas alaranjadas
fracas, piscando estranhamente ao redor da praia —, a margem estava
avivada por gritos, gargalhadas e aplausos. Eu me abaixei na escuridão fria
da floresta, com as mãos no joelho, respirando pesado. Senti que tinha
acabado de fugir de um desabamento de terra. Tudo que eu queria era
encontrar os outros alunos do último ano e compartilhar um suspiro de
alívio.
Porém, uma comemoração tranquila não era possível. O Halloween
exigia uma festa de proporções bacanais, e não demorou muito para que
começasse. Assim que o corpo docente e os mais inibidos entre os alunos
do primeiro e segundo ano se foram, barris de cerveja apareceram como se
conjurados por um resquício de magia, e a batida da música ecoou pelos
alto-falantes que aumentaram a voz de Richard tão fantasmagoricamente.
Alexander foi o primeiro de nós a surgir, cambaleando para fora da água
como um homem afogado que ressuscitara. Admiradores e amigos de outras
disciplinas (havia muitos entre os primeiros, poucos entre esses últimos) o
cercaram, e ele os presenteou com uma história eletrizante sobre passar
mais de uma hora na água. Aguardei na segurança das árvores por um
pouco mais de tempo, consciente de que estava coberto de sangue, e seria
impossível não chamar atenção. Foi apenas quando vi Filippa que me
aventurei de volta para a praia.
Assim que as luzes me iluminaram, as pessoas gritaram os parabéns,
esticaram a mão para dar tapas nas minhas costas e bagunçar meu cabelo
antes de perceber o quão grudento eu estava. Quando por fim consegui
chegar até Filippa, dois copos descartáveis espumando de cerveja haviam
sido colocados nas minhas mãos.
— Aqui — falei, passando um deles para ela. — Feliz Halloween.
Ela olhou do meu rosto ensanguentado para meus pés descalços e sujos, e
de volta para meu rosto.
— Fantasia legal a sua.
Eu puxei a manga do vestido dela, que ainda estava encharcado e, na
maior parte, transparente.
— Gostei mais da sua.
Ela revirou os olhos.
— Você acha que vão tentar fazer a gente ficar completamente pelado
esse ano?
— Bom, ainda tem o baile de máscaras do Natal.
— Meu Deus, bate na madeira.
— Já viu os outros?
— Meredith está por aí procurando pela Voz. Não faço ideia de onde
estão James e Wren.
Alexander pediu licença para o público e surgiu entre nós, enganchando
um braço em nossos pescoços.
— Isso foi tão bom quanto o esperado — disse ele. E depois: — Que
porra é essa? Oliver, você está nojento.
— Não, eu estou morto.
(Ele estava debaixo do barco nas minhas duas cenas.)
— Você está fedendo a carne crua.
— Você está fedendo a água de aquário.
— Touché. — Ele abriu um sorriso e esfregou a palma das mãos. —
Vamos começar essa festa pra valer?
— Como propõe fazer isso? — perguntou Filippa.
— Beber, gritar e transar — disse, apontando um dedo como uma pistola
para ela. — A não ser que tenha uma ideia melhor.
Ela ergueu as duas mãos em um gesto de rendição.
— Vá em frente.
O Halloween parecia acordar um tipo de histeria libidinosa nos alunos de
Dellecher. O que lembrava dos festejos nos meus três primeiros anos foi
rapidamente esquecido, pois ser um aluno do último ano era como ser uma
celebridade. Pessoas que eu não conhecia, com quem mal tinha conversado,
que mal reconhecia, nos cobriam de elogios, perguntavam há quanto tempo
estávamos ensaiando, e expressavam incredulidade apropriada ao descobrir
que não havíamos ensaiado nada. Durante mais ou menos uma hora, aceitei
bebidas, baseados e cigarros, mas a turba apertada logo começou a me
sufocar. Procurei na multidão com certa urgência alguns dos meus outros
colegas de teatro do último ano. (Eu tinha me separado de Alexander e
Filippa, apesar de não saber em qual momento isso tinha acontecido, nem
exatamente como.) Dizendo que eu precisava de outra bebida, eu me
desvencilhei de uma garota do segundo ano que flertava desesperada
comigo; encontrei a bebida e perambulei na direção do limiar da luz. Ali,
respirei com um pouco mais de tranquilidade, contente em observar aquela
depravação sem tomar parte nela. Bebi minha cerveja devagar, até sentir
uma mão no meu braço.
— Oi pra você.
— Meredith.
Ela se desvencilhara de um grupo de garotos de artes plásticas (que
provavelmente imploravam para que ela posasse como modelo vivo nas
aulas de desenho) e me seguiu até a periferia da festa. Ela ainda estava
vestida de bruxa e, em meu estado nebuloso, era impossível não encarar o
corpo dela através do tecido.
— Cansou de ouvir o quanto você é incrível? — perguntou ela.
— Na maior parte, todo mundo só queria tocar o sangue.
Ela sorriu e passou os dedos do meu cotovelo até meu ombro.
— Esses pervertidinhos.
Ela definitivamente tinha bebido, mas ela aguentava beber mais do que
nós.
— Bom, às vezes eles só queriam uma desculpa para tocar em você —
acrescentou.
Ela lambeu uma gota do sangue artificial da ponta de um dos dedos,
dando uma piscadinha, os cílios negros grossos como leques de pena de
avestruz. Era insuportavelmente sexy, o que, por algum motivo, me irritou.
— Sabe — disse ela —, esse visual sem camisa e coberto de sangue caiu
bem em você.
— O visual de lençol sem sutiã caiu bem em você também — respondi,
sem pensar, e só um pouco sarcástico.
Um vídeo em câmera lenta de Richard chutando meus dentes passou na
minha mente, e eu acrescentei em voz alta:
— Cadê seu namorado? Acho que não vi ele.
— Ele está emburrado, tentando impedir todo mundo de se divertir, eu
inclusa.
Segui o olhar dela para a praia, onde Richard estava sentado em um
banco sozinho, uma bebida na mão, observando os foliões como se achasse
a celebração profundamente ofensiva.
— Qual é o problema da vez?
— Quem liga? Sempre tem alguma coisa — disse ela, puxando meus
dedos. — Vem, James está procurando por você.
Eu retirei minha mão, mas a segui obedientemente, engolindo a maior
parte da cerveja com um só gole. Eu conseguia sentir Richard me fuzilando
com o olhar.
Alguém havia acendido a fogueira novamente, e James e Wren estavam
ao lado dela, conversando, e ignorando todo o resto. Conforme nos
aproximamos, ele ofereceu o casaco dele a ela; ela o colocou ao redor dos
ombros, e então olhou para baixo e riu. O casaco era tão grande para ela que
a barra longa quase alcançava seus joelhos.
— Como é que vocês quatro couberam debaixo da canoa? — perguntou
James, quando eu estava próximo o suficiente para ouvir.
— Bom, foi bem aconchegante — disse ela. — Eu quase beijei
Alexander por acidente umas cinco vezes.
— Adorável. Se ele beber mais um pouco, logo vai começar a dizer que
você o deseja desesperadamente.
Wren se virou na nossa direção e teve um sobressalto, segurando o
colarinho do casaco de James com as duas mãos.
— Oliver, você me assustou! Você ainda está horrendo.
EU: “Eu adoraria tomar um banho, mas essa água parece muito gelada.”
WREN: “Não é tão horrível quando você entra até a cintura.”
EU: “Diz a garota que está bem ao lado do fogo, vestindo o casaco de
outra pessoa.”
— Wren — disse Meredith, olhando para trás, na direção dos bancos. —
Você pode ir falar com Richard? Eu já estou de saco cheio dele.
Wren ofereceu a nós um sorriso abatido.
— Meu gentil primo — disse ela.
James a observou atravessar a multidão, Meredith espiando o copo meio
vazio que ele segurava. Ela o pegou da mão dele, e esticou a mão para o
meu.
— Vocês fiquem aqui — disse ela. — Vou voltar com mais bebida.
— Ah, ótimo — falei. — Mal posso esperar.
Quando ela se foi, James se virou para mim e perguntou:
— Está tudo bem?
— Está — falei. — Tudo ótimo.
Pelo sorriso cético que ele me lançou, vi que não acreditava em mim,
mas, felizmente, escolheu mudar de assunto.
— Sabe, você está mesmo com uma cara horrenda. Quase me matou de
susto saindo das árvores daquele jeito.
— James, foi você que fez isso comigo.
— É, mas estava escuro naquela cabine minúscula, não foi a mesma
coisa. Com a luz sobre você, e aquele olhar no seu rosto…
— Bom — falei —, o sangue clama por sangue.
— Bom, quero morrer seu amigo.
— Digo o mesmo — respondi. — Você conseguiu ser um vilão
surpreendentemente convincente.
Ele deu de ombros.
— Melhor eu do que Richard. Ele parece prestes a cometer um
assassinato.
Olhei novamente para os bancos. Richard e Wren estavam sentados
juntos, as cabeças inclinadas. Ele franzia o cenho de forma ameaçadora
enquanto falava, olhando para as próprias mãos. A inquietação que eu
enterrara voltou para a superfície. Eu disse a mim mesmo que era apenas
um mal-estar, que eu bebera álcool demais, rápido demais.
— Som e fúria — falei —, sem significado algum. Não dê atenção a ele.
Outra hora se passou, ou talvez duas ou três. O céu estava tão escuro que
era impossível determinar quanto tempo estava correndo, a não ser que
medisse os minutos pelo número de bebidas que tomasse. Eu perdi as
contas depois da sétima, mas minha mão nunca estava desocupada. Os
alunos mais jovens voltaram para o Pavilhão, passando pelas árvores, rindo
e xingando, aos tropeços nas raízes protuberantes e derrubando o que tinha
sobrado da cerveja sobre si. Os alunos do quarto ano de todas as disciplinas
e alguns mais precoces, do terceiro ano, permaneceram. Alguém decidiu
que a noite não poderia terminar sem que todos estivessem encharcados, e
brigas de galo hesitantes e escorregadias começaram no lago.
Depois de uma dúzia de rodadas, Alexander e Filippa eram os campeões
imbatíveis. Eles pareciam mais uma criatura do que duas, as pernas
compridas de Filippa tão firmes ao redor dos ombros de Alexander que
poderiam ser um par assustador de gêmeos siameses. Ele estava com água
até a cintura, e mal oscilava, segurando os joelhos dela. Ao contrário de
Meredith, ele estava obviamente bêbado, mas aquilo apenas o tornava
invencível.
— Quem vem ‘gora? — gritou. — Invictos, é isso que somos.
— Se alguém derrotar vocês, a noite acaba? — perguntou James.
O resto de nós estava sentado na areia, os pés descalços à beira da água,
as bebidas esquecidas penduradas pesadas nos dedos. O ar estava
atipicamente ameno para outubro, mas ondas frias ardiam nos dedos dos
pés, um aviso do inverno que se aproximava.
Alexander se inclinou para a esquerda e soltou a perna de Filippa para
apontar para nós; ela agarrou a outra mão dele para impedir a própria
queda.
— Tem que zer vocês — falou ele.
Sacudi a cabeça para James. Nós já estávamos satisfeitos só de gritar para
eles e encorajá-los conforme massacravam os alunos restantes do terceiro
ano.
MEREDITH: “Bom, eu é que não vou voltar pra água.”
FILIPPA: “Que foi, Mer? Está com medo de uma lutinha?” Cerca de trinta
espectadores vaiaram e assobiaram.
MEREDITH: “Eu sei o que você está fazendo. Está tentando me provocar.”
FILIPPA: “Óbvio. Funcionou?”
MEREDITH: “Pode apostar, sua vaca. Vem com tudo.”
As pessoas deram soquinhos no ar e Filippa abriu um sorriso. Meredith
ficou em pé, espanando areia da bunda e chamou por cima do ombro.
— Rich! Vamos dar uma lição nesses idiotas.
Richard, que se dignara a descer para a praia, mas estava sentado a cerca
de um metro de nós, disse:
— Não. Pode fazer papel de boba se quiser. Eu vou continuar seco.
Mais uma rodada de risadas, dessa vez mais malvadas. (Meredith era
muito admirada, mas também era muito invejada, e qualquer bola fora que
ela desse era avidamente saboreada por pelo menos algumas pessoas.)
— Tudo bem — disse ela, fria. — Eu vou mesmo.
Ela agarrou as saias e fez um nó na altura do quadril. Entrou na água,
virou-se e disse:
— Você vem, Oliver?
— Quê, eu?
— Você, sim. Alguém precisa me ajudar a afundar esses imbecis, e não
vai ser a porra do James.
— Ela está certa — disse James, despreocupado. — Não vai ser minha
porra mesmo.
(Diferentemente do resto de nós, que sentíamos todos uma atração
biológica e inevitável por Meredith, James parecia achar que a sua
sensualidade ostensiva era repulsiva de alguma forma.) Ele me deu um
sorrisinho torto.
— Vá se divertir — insistiu.
Meredith e eu nos encaramos por um momento, mas a ferocidade da sua
expressão fazia parecer que recusar não era uma opção. Pessoas que eu
sequer conhecia gritaram para me encorajar até eu me colocar de pé, um
pouco desajeitado.
— Isso é má ideia — falei, mais para mim mesmo.
— Não se preocupe — disse Wren, cutucando James com o cotovelo. —
Eu vou fazer ele enfrentar os vencedores comigo.
Ele protestou, mas eu não escutei, porque Meredith tinha agarrado meu
braço e estava me arrastando para a água.
— De joelhos — ordenou.
— Aposto que ela diz isso para todos os caras — disse Alexander. —
Não tem vergonha alguma? / Nem um traço de recato?
Eu o fuzilei com o olhar enquanto me abaixava perto da água. O frio
quase me tirou o fôlego, agarrando-se a meu estômago e peito como um
lençol de gelo.
— Jesus — falei. — Anda logo e suba!
— Aposto que ele diz isso para todas as garotas — disse Filippa, dando
uma piscadinha. — Algo preciso confessar: / pensei que fosse mais cortês.
— Ótimo — falei para Meredith, enquanto mais risadas maliciosas
borbulhavam até meus ouvidos. — Vamos acabar com eles.
— É isso aí.
Ela jogou uma perna por cima do meu ombro, e então a outra, e eu quase
caí para a frente, derrubando-a. Ela não era pesada, mas eu estava bêbado, e
não tinha percebido o quanto até aquele instante. Ela enganchou os pés sob
minhas axilas e eu me endireitei devagar. Houve uma salva de palmas
quando tentei encontrar meu equilíbrio, desejando que a água parasse de me
empurrar de todos os lados. Uma parte do sangue artificial se desprendeu da
minha pele, e escorreu do meu abdome para o cós da calça.
Colin, nosso jovem e convencido Marco Antônio, estava atuando como
juiz. Ele tinha abraçado a canoa virada, com dois copos descartáveis nas
mãos.
— Senhoras, guardem as garras para si — anunciou. — Sem arrancar
globos oculares, por favor. A primeira a jogar a outra na água vence.
Eu me esforcei para focar em Alexander, pensando em como poderia
derrubá-lo. Com as coxas de Meredith molhadas e brilhando dos dois lados
do meu rosto, era difícil me concentrar.
— Ah, pois olhe só! — disse Filippa, exultante. — Sua baixinha odiosa!
— Então assim é seu jogo. — disse Meredith. — Repita que sou baixa,
sua vareta enfeitada.
— Quando brava, é uma megera — respondeu Filippa. — Nos tempos de
escola era uma fera!
Mais risadas escandalizadas.
— Vai permitir que ela me ofenda assim? — disse Meredith. — Se eu
encostar nela…
E nós demos uma guinada para a frente. Eu cambaleei sob Meredith,
lutando para ficar em pé. As garotas se empurravam violentamente, a água
revoltosa, e a gargalhada maníaca de Alexander era tão alta que me
desorientava. Meredith perdeu o equilíbrio, e a mudança do peso dela me
lançou para trás bruscamente.
Eu joguei meu corpo na direção oposta e colidi com Alexander. Filippa
quase chutou meu rosto e o mundo inteiro girou, mas uma ideia apareceu
bem na mesma hora. Eu me joguei de cabeça contra Alexander de novo, e
quando vi o relampejo branco do pé de Filippa, arrisquei soltar a perna de
Meredith para agarrá-lo. Nós tombamos para o lado, mas eu gritei:
— Meredith, agora!
Eu joguei o pé de Filippa para a frente e Meredith a empurrou. Ela
imediatamente foi para trás, levando Alexander consigo, e depois de um
momento breve de suspensão, com os braços girando como moinhos ao
lado, os dois caíram na água. Meredith e eu demos uma guinada para a
direita, e eu agarrei a coxa dela novamente com a mão livre. Os
espectadores bateram palmas e gritaram, mas eu mal os ouvi, porque
Meredith estava abraçando minha cabeça com as pernas, uma mão presa ao
meu cabelo. Aturdido, eu me virei no lugar e tentei sorrir.
Filippa e Alexander surgiram da água, tossindo e cuspindo.
— Tá — disse Alexander. — Alguém me dá uma bebida. Pra mim,
acabou.
— Acho que acabamos todos — disse Filippa.
— Ah, não — falou Meredith, para meu espanto. — Wren disse que
lutaria com o vencedor.
Colin deu um tapa na lateral da canoa.
— Viva! Viva!
— Eu vou se James for — disse Wren.
Eu limpei a água dos olhos e me virei para ele. Ele estava sentado
mexendo na areia com um meio sorriso tímido. Repentinamente, eu queria
que ele brincasse.
— Vamos, James — falei. — Vem fazer papel de bobo, e depois todos
nós vamos pra casa.
— Vão, tomem nossa vingança por nós — disse Filippa, em pé na praia,
torcendo a água da saia.
— Bom — disse ele —, se for preciso.
Wren ficou em pé e ofereceu uma mão para James, ajudando-o a subir.
Ela amarrou a saia em um nó mais modesto do que o de Meredith, e
começou a entrar na água. Alguns dos espectadores haviam desaparecido,
mas ainda havia cerca de dez presentes, que gritaram seu apoio. Meredith
tinha começado a pesar nos meus ombros, então eu a ajeitei mais para a
frente. Ela penteou meus cabelos com a ponta dos dedos.
— Tudo bem aí embaixo? — perguntou.
— Estou bêbado demais pra isso.
— Você é meu herói.
— Exatamente o que eu sempre quis.
Wren chegou até onde nós estávamos.
— Meu Deus, que frio! — exclamou.
— A noite nada está para nado — disse James, estremecendo quando
entrou atrás dela. — Deixa eu te ajudar a subir.
Ele se abaixou como eu fizera, pegando uma das mãos dela quando ela
colocou a perna por cima do ombro.
Porém, antes que ela pudesse terminar de subir, uma voz que nós mal
ouvíramos a noite toda disse:
— Na verdade, acho que já chega.
Eu me virei, lenta e cuidadosamente. Richard estava parado na praia, de
cara amarrada.
— Você não quis brincar — disse Meredith. — Por que acha que tem
direito a uma opinião?
— É só brincadeira — disse Wren.
Ela só tinha conseguido subir até metade, e estava empoleirada, como um
papagaio, no ombro de James. O olhar dele estava fixo em Richard.
— É uma idiotice do caralho, e alguém vai se machucar. Desçam já.
— Qual é, Rick — disse Alexander, de onde estava deitado esparramado
na areia segurando outra bebida. — Ela vai ficar bem.
— Cala a boca — respondeu Richard. — Você está bêbado.
— E você não? — perguntou Filippa. — Relaxa. É só um jogo.
— Vai se foder, Filippa, isso não tem nada a ver com você.
— Richard! — exclamou Wren.
Filippa o fuzilou com o olhar, a boca levemente entreaberta em surpresa.
— Ok, acho que o show acabou — disse Colin, deslizando para longe da
canoa. — Vamos lá, pessoal, circulando.
Alguns dos espectadores que sobraram resmungaram de decepção, e
começaram a partir aos poucos. Colin hesitou, olhando de Richard para o
resto de nós como se ainda não estivesse certo de que não precisávamos de
juiz.
— Vocês dois podem parar de brincadeirinha? — disse Richard, a voz
dele ecoando pela água como se houvesse sido amplificada magicamente
mais uma vez.
— Ah, entendi — disse Meredith. — Você não consegue suportar que a
gente se divirta porque está ocupado demais fazendo birra? Porque, pela
primeira vez, não conseguiu ter o último aplauso?
O rosto dele ficou branco, lívido, e eu apertei os joelhos dela com força,
tentando avisar para ela não dizer coisas demais. Ela não sentiu, não
entendeu, ou não se importava.
— Foda-se — disse ela. — Nem tudo gira em torno de você.
— Ah, que lindo vindo de você, que se faz de vadia pra chamar atenção.
— Richard, que porra é essa?
O relampejo de raiva fez minha cabeça ficar quente abruptamente. Meu
aperto nas pernas de Meredith ficou mais forte por reflexo. O instinto de
defendê-la era inesperado, despropositado, mas eu não tinha tempo de ficar
confuso. Ela ficou perigosamente silenciosa.
Richard começou a dizer outra coisa, mas James interrompeu:
— Já chega — disse ele, e havia uma aspereza na voz dele que eu nunca
ouvira antes. — Vai dar uma volta para esfriar a cabeça, e só volte depois
que já estiver calmo, tá?
Os olhos de Richard ficaram sombrios.
— Tire as mãos da minha prima, e eu…
— E você o quê? — Wren desceu para a água, mas continuou próxima de
James. — Qual é o seu problema? É só uma brincadeira.
— Tá, claro — disse Richard, entrando na água. — Vamos fazer uma
brincadeira. Wren, saia daí, é minha vez.
— Richard, não seja idiota.
Meredith tirou uma perna do meu ombro, e eu a segurei pela cintura para
ajudá-la a descer. Sem o peso adicional, eu me senti preenchido por gás
hélio. Pisquei, com força, tentando desanuviar a cabeça.
— Não, eu quero brincar — insistiu Richard.
O quanto ele tinha bebido? Ele estava falando com clareza, mas seus
movimentos eram frouxos e desenfreados.
— Wren, saia daí — repetiu.
— Qual é, Richard, ele não fez nada — falei.
Richard se virou para mim.
— Ah, não se preocupe. Já, já eu chego em você também.
Eu dei um passo para trás. Se ele estivesse determinado a puxar uma
briga, minhas chances não eram boas.
— Deixe ele em paz — disse James, incisivo. — Ele só brincou porque
você não queria, e ele estava tentando ser legal.
— É, todo mundo sabe como o Oliver é legal.
— Richard — disse Meredith. — Para de ser cuzão.
— Não sou, e quero brincar. Vamos, achei que você queria um último
duelo.
Ele passou por Wren e empurrou James para trás. A água o recebeu com
um esguicho.
— Richard, pare! — disse Wren.
— Qual é o problema? — perguntou ele. — Mais uma rodada!
Ele empurrou James novamente, e James afastou o braço dele.
— Richard, estou avisando…
— Que foi? Eu quero brincar.
— Eu não estou brincando — respondeu James, todos os músculos no
corpo dele tensos e rígidos. — Não faça isso de novo, porra.
— Então você brinca com as meninas, e Alexander e Oliver, mas não
comigo? — exigiu Richard. — VAMOS!
— Richard, para!
Nós gritamos em uníssono, mas havíamos esperado tempo demais. Ele
empurrou James mais uma vez, e não havia nada de brincalhão no gesto.
James atingiu a água com força, os braços batendo na superfície enquanto
ele tentava recobrar o equilíbrio. Assim que ficou de pé novamente, ele se
arremessou contra Richard, acertando-o com todo o peso, e o lançou para
trás. Só que Richard estava rindo conforme a água ficava conturbada ao
redor deles — ele era tão maior que era impossível a briga ser justa. Eu
estava indo na direção deles, arrastando as pernas, quando a gargalhada de
Richard se transformou em um rosnado, e ele enfiou a cabeça de James
embaixo da água.
— RICHARD! — gritei.
Talvez ele não tivesse me ouvido sob o estardalhaço de James se
debatendo, ou talvez fingisse não ouvir. Ele manteve James sob a água, um
braço ao redor do pescoço dele. James bateu com o punho contra o tronco
de Richard, mas eu não conseguia entender se ele estava lutando contra
Richard, ou lutando para se soltar. As garotas, Colin e Alexander se
impeliram na direção deles, mas eu cheguei primeiro. Richard me afastou, e
a água fria bateu contra meu rosto, pulando para dentro da boca e do nariz.
Eu me joguei contra ele de novo, me lancei como se fosse um parasita.
— PARE COM ISSO! VOCÊ ESTÁ SUFOCANDO ELE…
O ombro dele acertou meu queixo, e eu mordi a língua com força. Colin
apareceu do nada, puxando o braço que mantinha James debaixo da água
enquanto eu gritava:
— VOCÊ VAI AFOGAR ELE, CARALHO, PARA COM ISSO!
Meredith agarrou Richard pelo pescoço, Filippa agarrou o cotovelo, e,
quando ele finalmente soltou James, estávamos todos emaranhados uns nos
outros, a água revolta ao nosso redor, gelada e feroz.
James irrompeu da superfície arfando, e eu o peguei antes que pudesse
afundar novamente.
— James — falei. — James, você está bem?
Ele se agarrou ao meu pescoço com um braço, tossindo, água e bile
saindo juntos e escorrendo pelo rosto.
Meredith estava socando o peito de Richard com os punhos, gritando
com ele, forçando-o para fora da água e de volta para a praia.
— Você perdeu a cabeça! Você poderia ter matado ele!
— Qual é o seu problema? — gritou Wren, a voz falhando, as lágrimas
descendo pelas bochechas.
— James? — perguntei.
Eu o apoiei da melhor forma que podia, meus braços em um laço
estranho ao redor das costelas dele.
— Você consegue respirar? — insisti.
Débil, ele assentiu, tossindo de novo, fechando os olhos com força. O
fundo da minha garganta parecia apertado, esticado como a corda de um
arco.
— Meu Deus do céu — disse Colin, baixinho. — Que porra foi essa?
— Eu sei lá — disse Filippa, entre nós, esquelética e estremecendo. —
Vamos tirar ele da água.
Colin e eu ajudamos James a chegar até a praia, onde ele desabou de lado
na areia. O cabelo dele estava encharcado e grudado nos olhos, e o corpo
inteiro tremia enquanto respirava. Eu me agachei ao lado dele, e Filippa
pairou sobre nós. Alexander parecia aturdido. Colin, absolutamente
aterrorizado. Wren chorava em silêncio, pequenos soluços fazendo os
ombros dela saltarem e se contrairem. Eu nunca vira Meredith com tanta
raiva, as bochechas escarlate mesmo sob o fraco luar. E Richard só ficou
parado, parecendo perplexo.
— Richard — disse Alexander, cauteloso. — Isso foi doido pra caralho.
— Ele está bem, não está? James?
James o encarou do chão, os olhos iluminados e duros como aço. Um
silêncio se fez, e eu fui avassalado pela ideia absurda de que nós éramos
feitos de vidro, assim como tudo ao nosso redor. Fiquei com medo de
respirar, de me mexer, com medo de que algo fosse quebrar.
— Era só brincadeira — disse Richard, com um sorriso fraco. — Era só
um joguinho.
Meredith deu um passo para se colocar entre Richard e o resto de nós.
— Vá embora — disse ela.
Ele abriu a boca para responder, mas ela o interrompeu:
— Volte para o Castelo e vá dormir antes de fazer algo idiota o suficiente
para ser expulso.
Ela parecia uma das fúrias, os olhos ardendo em chamas, os cabelos
como cordas molhadas e embaraçadas nos ombros.
— Vai. Agora.
Richard lançou um olhar bravo para ela, então olhou para o resto de nós
e, por fim, se virou e deixou a praia. Um alívio se precipitou sobre mim, me
causando tontura, como quando o sangue volta para uma parte adormecida
do corpo.
Assim que ele estava longe, sumindo entre as sombras das árvores,
Meredith pareceu murchar.
— Jesus — disse ela, se abaixando um pouco e pressionando as mãos
contra os olhos, a boca retorcida como se estivesse tentando não chorar. —
James. Eu sinto muito.
Ele se aprumou para ficar sentado de pernas cruzadas na areia.
— Está tudo bem — disse ele.
— Não está tudo bem.
Ela ainda estava com as mãos no rosto.
— A culpa não é sua, Mer — falei.
A ideia de Meredith chorar era tão bizarra e inquietante, que eu sentia
que não podia assistir àquilo.
— Você não é responsável por ele — disse Filippa.
Ela olhou para Wren, cujo olhar estava fixo no chão, as lágrimas
escorrendo pelo rosto, penduradas no queixo antes de finalmente caírem
sobre a areia.
— Nenhum de nós é — completou.
— Que noite mais revolta — disse Alexander, significativamente mais
sóbrio do que estava meia hora antes. — Puta que pariu. Que bagunça.
Meredith finalmente abaixou as mãos. Os olhos estavam secos, mas os
lábios, rachados e pálidos, como se ela estivesse prestes a vomitar.
— Não sei vocês, mas eu quero tomar um banho, ir para a cama e fingir
que nada disso aconteceu por pelo menos umas oito horas.
— Acho que dormir faria bem a todo mundo — disse Filippa, e um
murmúrio de concordância ressoou pelo ar.
— Vocês podem ir — disse James. — Eu vou… eu vou daqui a
pouquinho.
— Tem certeza? — perguntou Colin.
— Tenho. Estou bem. Só quero um minuto.
— Está bem.
Lentamente, nós nos dispersamos pela praia. Meredith foi primeiro,
depois de lançar um último olhar de desculpas para James — e, por alguma
razão, para mim também. Filippa a seguiu, um braço ao redor dos ombros
de Wren. Colin e Alexander subiram a trilha juntos. Eu fiquei, sob o
pretexto de pegar o resto do figurino do galpão. Quando saí de lá, James
estava sentado exatamente onde o deixamos, olhando para o lago.
— Quer que eu fique? — perguntei.
Eu não queria deixá-lo.
— Por favor — disse ele, baixinho. — Eu só não conseguia lidar com o
resto deles no momento.
Larguei minhas coisas na areia e me sentei ao lado dele. Em alguma hora
durante a festa, a tempestade havia se afastado. O céu estava límpido e
silencioso, as estrelas nos espiando curiosamente de um vasto domo índigo.
A água também estava imóvel, e eu pensei, que mentirosos são todos, o céu
e a água. Imóveis e calmos e cristalinos, como se tudo estivesse bem. Não
estava nada bem, na verdade, e nunca ficaria bem de novo.
Algumas gotas teimosas de água se agarravam às bochechas de James.
De alguma forma, ele não parecia ele mesmo. Parecia tão frágil que fiquei
com medo de tocá-lo. Ele começou a dizer algo — talvez meu nome —,
mas apenas o fantasma do som saiu antes de ele parar, pressionar as costas
da mão contra a boca. Meu peito doía, mas a dor era mais profunda do que
os músculos e ossos, como se algo afiado houvesse rasgado um buraco
dentro de mim. Eu arrisquei estender a mão para ele. Ele deixou escapar um
suspiro pequeno, estremecendo, e então respirou com mais facilidade. Por
muito tempo, nós ficamos sentados lado a lado, em silêncio, minha mão em
seu ombro.
O lago, aquela água extensa e escura, espreitava na paisagem de todas as
cenas que fizemos depois daquilo — como se fosse parte do cenário de uma
peça que fizemos certa vez, escondido nos fundos da sala, que teria sido
rapidamente esquecido se não precisássemos passar por ali todos os dias.
Irreversivelmente, algo mudara naqueles minutos sombrios em que James
ficara submerso, como se a falta do oxigênio reorientasse todas as nossas
moléculas.
ATO II
PRÓLOGO

Na primeira vez em que saio da prisão em dez anos, o sol é uma esfera
branca ofuscante, em um céu cinzento, cor de água suja. Eu me esquecera
de como o mundo aqui fora era imenso. A princípio, fico paralisado pela
vastidão, como o peixinho de estimação de alguém que foi inesperadamente
jogado no oceano. Então, vejo Filippa, encostada no carro, a luz refletindo
dos óculos de estilo aviador. Eu mal consigo resistir ao impulso de correr
até ela.
Nós nos abraçamos violentamente, como irmãos, mas eu a seguro por
mais tempo do que isso. Ela é sólida e familiar, e é o primeiro contato
afetuoso com um ser humano que eu tenho em muito tempo. Eu enterro o
rosto no cabelo dela. Tem cheiro de amêndoas, e eu inspiro o mais
profundamente que consigo, pressionando a palma das mãos nas costas dela
para sentir o batimento do coração.
— Oliver.
Ela suspira e aperta minha nuca. Durante um instante turbulento, penso
que vou me debulhar em lágrimas, mas, quando eu a solto, ela está sorrindo.
Ela não parece diferente. É claro, pois ela veio me visitar a cada duas
semanas desde que me trancafiaram. Além de Colborne, ela é a única que
fez isso.
— Obrigado — digo.
— Pelo quê?
— Por estar aqui. Hoje.
— Meu pobre prisioneiro — diz ela, colocando uma mão na minha
bochecha. — Sou inocente como a ti.
O sorriso dela desaparece quando ela retrai a mão.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — pergunta.
Por um ou dois segundos, eu realmente penso no assunto. Porém, foi tudo
o que fiz desde a última visita de Colborne, e já me decidi.
— Tenho certeza, sim.
— Certo — responde ela, abrindo a porta do motorista. — Entre aí.
Eu subo no banco do carona, onde uma calça jeans masculina e uma
camiseta estão ordenadamente dobradas. Eu coloco as roupas no colo e ela
dá partida no carro.
— São do Milo?
— Ele não vai se importar. Não achei que você gostaria de aparecer nas
mesmas roupas com que foi embora.
— Não são as mesmas roupas.
— Você sabe do que eu estou falando — diz ela. — Essas não cabem.
Você parece que encorpou uns dez quilos. A maioria das pessoas perde peso
na prisão, não?
— Não se quiserem sair inteiras — respondo. — Além disso, não tem
muito o que fazer.
— Então você ficava malhando sem parar? Parece até a Meredith.
Com medo de corar, tiro minha camiseta, na esperança de que ela não
note. O olhar dela parece estar fixo na estrada, mas os óculos são
espelhados, então não consigo determinar com precisão.
— Como ela está? — pergunto, procurando pela etiqueta na outra
camiseta.
— Mal certamente não está. Nós não nos falamos muito. Nenhum de nós
se fala.
— E Alexander?
— Ainda está em Nova York — diz, o que não é uma resposta para a
pergunta que fiz. — Começou a trabalhar em uma companhia que faz umas
apresentações intensas, bem imersivas. Agora ele está fazendo Cleópatra
em um galpão cheio de areia e cobras de verdade. Bem Artaud. Eles vão
fazer A tempestade em seguida, mas acho que vai ser a última peça dele.
— Por quê?
— Bom, eles querem fazer César, mas ele se recusa a fazer de novo. Ele
acha que foi essa a peça que nos deixou fodidos da cabeça. Eu já disse que
ele está errado.
— Você acha que foi Macbeth?
— Não. — Ela para no sinal vermelho e olha para mim. — Acho que nós
todos já éramos fodidos da cabeça pra começo de conversa.
O carro ruge à vida novamente, vai da primeira marcha para a segunda.
— Não sei se isso é verdade — digo, mas nenhum de nós prossegue com
o assunto.
Nós seguimos em silêncio por um tempo, e então Filippa liga o rádio. Ela
está escutando um livro em áudio — O mar, o mar, de Iris Murdoch. Eu o li
na cadeia há alguns anos. Além de malhar e esperar passar despercebido, é
isso que um jovem estudante de Shakespeare faz na prisão. Quando cheguei
na metade da pena de dez anos, fui recompensado pelo meu bom
comportamento (no caso, por não causar estorvos) com um trabalho
arquivando livros, em vez de descascando batatas.
Porque já conheço a história, mal escuto as palavras. Pergunto a Filippa
se posso abaixar o vidro, e penduro a cabeça para fora como se fosse um
cachorro. Ela ri, mas não diz nada. O ar fresco de Illinois passa pelo meu
rosto, leve e aprazível. Eu olho para mundo através dos meus cílios,
alarmado com a claridade mesmo naquele dia nublado.
Minha mente percorre o caminho até Dellecher, e eu me pergunto se irei
reconhecer o lugar. Talvez tenham demolido o Castelo, derrubado árvores
para abrir espaço para dormitórios de verdade, e instalado uma cerca para
manter os alunos longe do lago. Talvez agora se pareça mais com uma
colônia de férias infantil: estéril e seguro. Ou talvez, como Filippa, mal
tenha mudado. Ainda consigo vê-lo, vivaz e verde e selvagem, de alguma
forma encantado, como a floresta de Oberon, ou a ilha de Próspero. Há
coisas que ninguém diz sobre os lugares mágicos — que são tão perigosos
quanto são belos. E por que Dellecher seria diferente?
Duas horas se passam, e finalmente Filippa estaciona na rua comprida e
vazia diante do Pavilhão. Ela sai primeiro, e eu a sigo devagar. O Pavilhão
está igual, mas eu olho imediatamente adiante dele, para o lago, que
resplandece sob o sol incruento. A floresta que o cerca é tão espessa e
indócil quanto me lembro, as árvores afiadas e ferozes subindo na direção
do céu.
— Você está bem? — pergunta Filippa.
Eu não saí de perto do carro.
— Estranho labirinto trilhado pelos homens.
Pânico flutua suavemente ao redor do meu coração. Por um instante,
tenho vinte e dois anos novamente, e observo a inocência escapar por entre
meus dedos, igualmente aterrorizado e ávido. Dez anos tentando explicar
Dellecher, em todo seu esplendor insensato, para homens de macacões bege
que não fizeram faculdade, ou sequer terminaram o ensino médio, me
fizeram perceber que, como estudante, eu era intencionalmente ignorante ao
fato de que Dellecher estava menos para uma instituição acadêmica e mais
para um culto. Quando cruzávamos aquelas portas pela primeira vez,
fazíamos aquilo sabendo que seríamos parte de uma religião estranha e
fanática em que tudo poderia ser perdoado desde que ofertado no altar para
as Musas. Loucura ritualística, êxtases, sacrifício humano. Nós fomos
enfeitiçados? Sofremos lavagem cerebral? Talvez.
— Oliver? — diz Filippa com mais gentileza. — Você está pronto?
Não respondo. Nunca estive pronto.
— Vamos.
Ando atrás dela. Eu me preparei para o choque de ver Dellecher
novamente — quer mudado ou não —, mas eu não estava esperando a dor
repentina no peito, como a ânsia por um antigo amor. Eu senti saudades.
Desesperadamente.
— Cadê ele? — pergunto, quando alcanço Filippa.
— Ele queria esperar no Habeas Copos, mas achei que você não deveria
voltar lá, pelo menos não ainda.
— Por quê?
— Muito do mesmo pessoal ainda trabalha lá — explica, e dá de ombros.
— Não sabia se você estaria pronto para ver todo mundo.
— Eu teria mais medo de eles não estarem prontos para me ver — digo,
porque sei que é nisso que ela está pensando de verdade.
— É — concorda ela. — Isso também.
Ela me leva pelas portas da frente — o brasão de Dellecher, com a chave
e a pena, me encarando em desaprovação, como se para dizer “Você não é
mais bem-vindo”. Eu não perguntei a Filippa quem mais sabe que eu estou
voltando. É verão, e os alunos estão de férias, mas o corpo docente muitas
vezes permanece no campus. Será que, se eu virar um corredor, vou me
deparar cara a cara com Frederick? Gwendolyn? Ou, e que Deus tenha
misericórdia da minha alma, o Reitor Holinshed?
O Pavilhão está estranhamente vazio. Nossos passos ecoam pelos
corredores largos, normalmente tão abarrotados de pessoas que qualquer
som é abafado. Olho curioso para o salão de música. Cortinas brancas estão
penduradas na janela, e a luz recai em faixas largas e pálidas nos assentos
vazios. Tem o mesmo clima assombrado de uma catedral abandonada.
O refeitório também está quase vazio. Sentado sozinho em uma das
mesas para estudantes, segurando uma xícara de café e parecendo
distintamente deslocado, está Colborne. Ele se levanta depressa e oferece
uma mão. Eu a seguro sem hesitar, estranhamente feliz em vê-lo.
EU: “Detetive.”
COLBORNE: “Não mais. Entreguei o distintivo semana passada.”
FILIPPA: “Por que mudou de ideia?”
COLBORNE: “Foi ideia da minha mulher, na maior parte. Ela diz que, se
quiser arriscar minha vida e levar tiros, ao menos eu deveria ser bem
compensado.”
FILIPPA: “Quanta consideração.”
COLBORNE: “Você ia gostar dela.”
Filippa ri, e diz:
— Provavelmente.
— E como você vai? — pergunta ele. — Ainda está pairando por aqui?
Ele olha para as mesas vazias, para o teto abobadado, como se não
tivesse muita certeza de onde está.
— Bom, nós moramos em Broadwater — diz ela.
Presumo que o “nós” se refira a ela e Milo. Eu não sabia que estavam
morando juntos. Ela é quase tão misteriosa para mim agora quanto há dez
anos, mas eu não a amo menos por isso. Eu entendo segredos guardados a
sete chaves mais do que a maioria das pessoas.
— Durante o verão, não costumamos vir muito para cá — completa ela.
Colborne assente. Eu me pergunto se ele se sente estranho perto dela. Ele
me conhece — conheceu todos nós, outrora —, mas e agora? Será que olha
para ela e vê uma suspeita? Eu o observo de perto, e espero que não precise
lembrá-lo de nosso combinado.
— Não vejo motivos pra isso mesmo — diz ele, de forma amigável.
— Só temos que decidir o que vamos fazer na temporada do ano que
vem, mas para isso não precisamos vir até aqui.
— Já tem alguma ideia?
— Estamos pensando em Noite de reis para os alunos do terceiro ano.
Nós temos dois alunos que compartilham do mesmo DNA pela primeira vez
desde… bom, desde Wren e Richard.
Há uma pausa breve e desconfortável antes que ela continue.
— E não temos ideia do que fazer com os alunos do quarto ano.
Frederick quer variar e tentar Conto de inverno, mas Gwendolyn insiste em
Otelo.
— É um bom grupo esse ano?
— Bom como sempre. Escolhemos mais mulheres do que homens pela
primeira vez.
— Ruim não é, então.
Eles compartilham um sorriso rápido, e finalmente Filippa se vira
diretamente para mim. Ela ergue as sobrancelhas de leve. É agora ou nunca.
Eu me viro para Colborne, imitando a expressão dela. Ele consulta o
relógio.
— Vamos caminhar?
— O que você preferir — respondo.
— Certo — diz ele para mim. E então, para Filippa: — Você vem?
Ela sacode a cabeça, de alguma forma sorrindo e franzindo o cenho ao
mesmo tempo.
— Não preciso — diz ela. — Eu estava lá.
Colborne estreita os olhos. Sem se deixar perturbar, ela toca no meu
braço, dizendo:
— Eu te vejo hoje à noite.
Com isso, ela sai do refeitório, e as perguntas não ditas de Colborne
pairam no ar atrás dela. Ele a observa ir embora, e então pergunta:
— O quanto ela sabe?
— Ela sabe de tudo.
Ele franze o cenho, os olhos praticamente desaparecendo sob as
sobrancelhas grossas.
— As pessoas sempre se esquecem de Filippa — acrescento. — E depois
sempre se arrependem.
Ele suspira, como se não tivesse a energia para realmente se incomodar.
Contempla o café por um instante, e então o abandona na mesa.
— Bem — diz ele. — Vá na frente.
— Para onde vamos?
— Você sabe melhor do que eu.
Fico em silêncio, pensando. Então, eu me sento. É um lugar bom como
qualquer outro.
Colborne solta um risinho, relutante.
— Quer um pouco de café?
— Eu não recusaria.
Ele desaparece para dentro da cozinha, onde tem duas cafeteiras no
canto. (Estão aqui ao menos há catorze anos. Estão sempre cheias, apesar de
eu nunca — nem mesmo como estudante — ter visto quem as enchia.) Ele
volta com uma caneca cheia e a coloca na minha frente. Vejo o leite fazer
redemoinhos quando ele se senta na mesma cadeira da qual acabou de
levantar.
— De onde quer que eu comece? — pergunto.
Ele dá de ombros.
— De onde você achar que é melhor. Sabe, Oliver, eu não quero só
descobrir o que aconteceu. Eu quero saber o como e o porquê e o quando.
Eu quero entender tudo.
Pela primeira vez em muito tempo, aquela rachadura que eu tenho em
meu âmago, a ferida escura na minha alma que está lutando para se curar há
quase uma década, pulsa. Os sentimentos antigos voltam aos poucos,
suaves. Uma amargura doce, a discórdia e a incerteza.
— Eu não contaria com isso — digo. — Já faz dez anos, e nem eu
entendi tudo.
— Então talvez ter essa conversa seja bom para nós dois.
— Talvez.
Tomo um gole do café, pensativo. É um café bom — saboroso, diferente
da gosma amarronzada que bebíamos na prisão, que apenas vagamente
lembrava café, mesmo nos dias bons. O calor ameniza a dor inchada no
meu peito, ao menos por um instante.
— Enfim — digo, quando estou pronto.
A caneca está quente nas minhas mãos, e as memórias me inundam como
drogas, afiadas, cristalinas, em um caleidoscópio.
— Era o semestre de outono de 1997. Eu não sei se você se lembra, mas,
naquele ano, o outono foi quente.
CENA 1

Duas semanas antes da noite de estreia, tiramos nossas fotos para


publicidade, e o EBA estava parecendo um hospício. Para as fotos,
precisávamos do figurino, e corremos de um lado ao outro dos camarins
para o salão de ensaios, trocando gravatas, camisas e sapatos até
Gwendolyn ficar satisfeita. A eleição do ano anterior inspirara Frederick a
montar César como uma disputa eleitoral, então estávamos todos vestidos
de aspirantes à Casa Branca. Eu nunca vestira um terno que de fato cabia
em mim, e meu reflexo me surpreendeu mais de uma vez. Pela primeira
vez, me deixei levar pela ideia de que eu poderia ser bonito, caso me
esforçasse. (Anteriormente, eu me considerava atraente apenas de uma
forma inofensiva e esquecível — uma ideia reforçada pelo fato de que as
garotas com quem eu ficara inevitavelmente pareciam perceber que me
preferiam no palco, como Marco Antônio ou Demétrio, do que fora dele,
com minha personalidade pacata.) É claro que, entre meus colegas de
turma, eu era praticamente invisível. Alexander parecia um mafioso, usando
um terno cinza-escuro brilhante, com um alfinete de gravata de ônix
reluzindo no peito. James, impecável em um azul Bic escuro, poderia ser
facilmente o príncipe herdeiro de alguma pequena monarquia europeia.
Porém, era Richard a figura mais impressionante entre nós, usando um
terno cinza perolado claro, e uma gravata vermelho-sangue.
— É impressão minha, ou o terno faz ele parecer ainda mais alto? —
perguntei, olhando através da porta para o salão de ensaios, onde haviam
colocado um tecido para ser pano de fundo.
Queriam que Richard fosse o primeiro, para a “foto de temporada”, como
Gwendolyn estava chamando.
— Acho que é o ego que o faz parecer maior — respondeu James.
Alexander enfiou o pescoço entre nós dois.
— Talvez. Mas não dá pra negar: o cara está bonito. — Ele olhou para
mim de relance, acrescentando: — Você também ficaria, se aprendesse a
dar nó na gravata direito.
EU: “Ainda está torta?”
ALEXANDER: “Você se olhou no espelho?”
EU: “Ai, só conserta pra mim, pode ser?”
Alexander inclinou meu queixo para cima para ajustar minha gravata, e
continuou sussurrando para James:
— Sério, fico feliz que a gente tenha uma noite livre de ensaio para fazer
isso. Todas as vezes que a gente faz a Porra Da Cena da Tenda com os
comentários de Gwendolyn, só quero deitar no chão e morrer.
— Acredito que é assim que você deva mesmo se sentir, supostamente.
— Olha, eu espero ficar emocionalmente exausto depois de uma
apresentação, mas ela faz a cena parecer tão real que eu olho para você fora
do palco e não consigo decidir se quero te beijar ou te matar.
Eu bufei, rindo, e Alexander deu um puxão na minha gravata.
— Pare de se mexer.
— Desculpa.
Filippa apareceu atrás de nós, vinda do camarim feminino. (Ela tinha
pelo menos três figurinos; naquele instante, era um terno listrado, que não
lhe caía bem.)
— Do que estamos falando? — sussurrou ela.
ALEXANDER: “Talvez eu dê uns beijos em James amanhã.”
JAMES: “Que sorte a minha.”
FILIPPA: “Poderia ser pior. Lembra em Sonho de uma noite de verão,
quando Oliver me deu uma cabeçada na cara?”
EU: “Em minha defesa, eu tentei te dar um beijo bacana, mas eu não
conseguia ver nada porque Puck tinha metido o suquinho do amor direto no
meu olho.”
ALEXANDER: “Tem tantas insinuações sexuais nessa frase que eu nem sei
por onde começar.”
Do outro lado da sala, Gwendolyn bateu palmas, dizendo:
— Bom, não acho que vamos conseguir algo melhor do que isso. Qual é
a próxima? Os casais? Certo.
Ela se virou na nossa direção, chamando:
— Filippa, vá encontrar as outras garotas, por favor?
— Porque não existe outro motivo de me quererem aqui — murmurou
Filippa, desaparecendo no camarim mais uma vez.
— Sinceramente — disse James, sacudindo a cabeça —, se não
oferecerem a ela um papel decente na primavera, vou boicotar a peça.
Quando as outras garotas apareceram, ficou imediatamente claro que os
figurinistas haviam passado mais tempo na arrumação delas. Wren usava
um vestido azul-marinho elegante, e Meredith vestia algo vermelho que
abraçava todas as suas curvas como se fosse uma mão de tinta, o cabelo
penteado e cheio de volume, lembrando uma juba de leão.
— Onde querem botar a gente? — perguntou Meredith.
— Na Playboy, imagino — disse Alexander, examinando-a dos pés à
cabeça. — Precisaram de vaselina pra fazer isso caber em você?
— Isso — disse ela. — E vou precisar de mais uns cinco potes pra tirar.
Ela parecia mais irritada do que orgulhosa.
— Bem — disse James —, tenho certeza de que não vai faltar gente para
te besuntar.
Ele não fazia aquilo soar como digno de orgulho.
— James! — gritou Gwendolyn. — Preciso de você e das garotas aqui
em cima, pra ontem.
Eles atravessaram a sala; Meredith, com os scarpins brilhantes de couro
envernizado, andou cuidadosamente, pé ante pé, entre os cabos de extensão
emaranhados.
— Bom — disse Filippa —, agora eu nem conto mais como uma garota.
— Sem ofensas — disse Alexander —, mas definitivamente não com
essa roupa.
— Silêncio na sala, por favor! — berrou Gwendolyn, sem nem mesmo se
virar.
Filippa fez uma careta, como se tivesse mordido uma maçã podre.
— Pela graça de Deus — disse ela. — Eu vou fumar.
Ela não elaborou, mas não precisava. Enquanto Gwendolyn e o fotógrafo
posavam Richard, Meredith, James e Wren sob as luzes, era impossível
ignorar tal demonstração evidente de favoritismo. Eu suspirei, apenas
levemente incomodado, e observei James — que mal parecia se dar conta
da câmera, charmoso sem nem notar —, enquanto Gwendolyn o puxava
para mais perto de Wren. Eu não estava prestando muita atenção quando
Alexander se aproximou do meu ouvido.
— Você está vendo o que eu estou vendo?
— Hein?
— Tá, preste atenção de verdade por um minuto, e depois me conte se
viu.
A princípio, eu não fazia ideia do que ele estava falando. Porém, em
seguida, vi mesmo alguma coisa — apenas um tremor do canto da boca de
Meredith quando a mão de Richard roçou nas costas dela. Eles estavam
lado a lado, levemente inclinados um para o outro, mas Meredith não
parecia muito Calpúrnia, a esposa de político perfeita, tão afetiva que se
tornava uma distração. A mão dela estava espalmada na lapela de Richard,
mas o gesto era duro e artificial. Quando o fotógrafo instruiu, ele passou um
braço ao redor da cintura dela. Ela ergueu o próprio braço, apenas de leve,
para que os cotovelos não estivessem se tocando.
— Problemas no paraíso? — sugeriu Alexander.
Depois do “incidente” no Halloween, como eu o nomeara, havíamos
procedido, no geral, como se nada anormal tivesse acontecido, descartando
o ocorrido como uma brincadeira bêbada meio violenta que havia passado
do limite. Richard oferecera a James um pedido de desculpas sucinto, que
fora aceito com falsidade proporcional, e, daquele ponto em diante, eles
eram rigidamente cordiais um com o outro. O restante de nós estava
fazendo um esforço louvável (apesar de fadado ao fracasso) para voltar ao
normal. Meredith era a exceção inusitada; durante os primeiros dias de
novembro, ela se recusou a falar com Richard em absoluto.
— Eles não voltaram a dormir no mesmo quarto? — perguntei.
— Até ontem à noite, não.
— Como é que você sabe?
Ele deu de ombros.
— As garotas me contam coisas.
Eu lancei um olhar de soslaio.
— Alguma coisa interessante?
Ele me olhou de cima a baixo, rapidamente, e disse:
— Ah, você não faz ideia.
Eu sabia que ele queria que eu perguntasse do que estava falando, então
não perguntei. Espiei pela porta mais uma vez, esperando chegar a alguma
conclusão sobre o estado de Meredick, mas um outro movimento pequeno
me distraiu. Ao ouvir uma instrução de Gwendolyn, Wren inclinou a cabeça
para apoiá-la no ombro de James.
— Eles não parecem o casal americano perfeito? — comentou
Alexander.
— Pois é.
O flash disparou. James estava brincando distraído com uma mecha do
cabelo de Wren, mas na nuca dela, onde eu tinha razoável certeza de que a
foto não registraria. Eu franzi o cenho, apertando os olhos para a cena.
— Alexander, você está vendo o que eu estou vendo?
Ele seguiu meu olhar com apenas a mais vaga demonstração de
curiosidade. James continuava a enrolar uma mecha do cabelo de Wren no
dedo. Eu não sabia se qualquer um dos dois percebia o que ele estava
fazendo. Wren sorriu — talvez para a câmera — como se tivesse um
segredo.
Alexander me lançou um olhar um pouco triste e estranho.
— Você só está vendo isso agora? — disse ele. — Ah, Oliver. Você é tão
distraído quanto eles.
CENA 2

O ensaio geral da noite seguinte foi o nosso primeiro com o cenário


finalizado. Doze grandiosas colunas da ordem toscana formavam um meio
círculo ao redor da plataforma superior, e uma escadaria de degraus baixos
brancos levava ao que chamávamos de Bacia: um disco plano de mármore
falso no chão que tinha dois metros e meio de diâmetro, onde o infame
assassinato acontecia. Atrás das colunas ficava a rotunda, um pano que
reluzia em todo o espectro de cores celestiais, do roxo crepuscular sombrio
ao rubor alaranjado do amanhecer.
Um novo cenário sempre apresentava desafios que não antecipávamos
durante os ensaios, e todos nós voltamos para o Castelo mal-humorados e
doloridos. James e eu imediatamente subimos para a Torre.
— É impressão minha ou de alguma forma esse ensaio durou umas dez
horas? — perguntei, me jogando de costas na cama.
O colchão me abraçou e eu grunhi. Já passava da meia-noite, e nós
estávamos de pé desde as cinco da manhã.
— Essa é a sensação.
James estava sentado na beirada da cama, passando as mãos pelo cabelo.
Quando ele ergueu a cabeça, parecia desgrenhado e cansado, até mesmo
doente. Não havia cor o suficiente no rosto dele.
Eu me ajeitei, me apoiando nos cotovelos.
— Você está bem?
— Por quê?
— Você parece meio… sei lá, exausto.
— Eu não tenho dormido bem.
— Tem alguma coisa te incomodando?
Ele piscou, como se não entendesse a pergunta, e então disse:
— Não. Não é nada.
Ele se levantou e tirou os sapatos.
— Tem certeza?
Ele se virou de costas para mim enquanto desabotoava o jeans e o
deixava cair no chão.
— Estou bem.
A voz dele estava monótona, esquisita, como se alguém houvesse tocado
a nota errada no piano. Eu me ergui da cama e andei lentamente para o lado
dele do quarto.
— James — disse —, não me leve a mal, mas eu meio que não acredito
em você.
Ele me lançou um olhar por cima do ombro.
— Em toda minha vida, nunca / ouvi desafio com tanta modéstia. Você
me conhece bem.
Ele dobrou os jeans e os depositou ao pé da cama.
— Então me conte o que houve.
Ele hesitou.
— Você precisa me prometer que não vai contar a mais ninguém.
— Prometo, claro.
— Você vai querer contar — avisou ele.
— James — insisti, com mais urgência —, do que você está falando?
Ele não respondeu — apenas tirou a camiseta, e ficou parado de cueca
em silêncio. Eu o encarei, aturdido e inexplicavelmente ansioso. Uma dúzia
de perguntas diferentes estavam emaranhadas em minha boca antes que
minha própria inépcia me fizesse olhar para baixo e, então, perceber o que
ele estava tentando me mostrar.
— Nossa senhora.
Eu o peguei pelos pulsos e puxei para mais perto, o constrangimento do
instante anterior prontamente esquecido. Hematomas de um azul cru e
vívido marcavam a parte de trás dos braços, até o cotovelo.
— James, o que é isso?
— Marcas de dedo.
Eu soltei o braço esquerdo dele como se tivesse levado um choque.
— Como assim?
— A cena do assassinato — disse ele. — Quando eu o apunhalo pela
última vez, ele se ajoelha, agarra meu braço e… bem.
— Ele viu isso?
— Claro que não.
— Você precisa mostrar — insisti. — Ele talvez nem saiba que está te
machucando.
Ele ergueu o olhar para mim com um toque de irritação.
— Quando foi a última vez que você deixou uma marca como essa no
corpo de alguém sem se dar conta de que estava fazendo isso?
— Eu nunca deixei uma marca assim em ninguém em toda minha vida.
— Precisamente. Você saberia.
Percebi que eu ainda estava segurando o outro pulso dele e abruptamente
o soltei. Ele oscilou para trás, desequilibrado, como se eu o tivesse impelido
para a frente antes. Ele roçou os dedos na parte anterior do braço, mordendo
o lábio com força como se tivesse medo de abrir a boca, atemorizado pelo
que poderia escapar.
Repentinamente, fiquei furioso, meu batimento cardíaco latejando nos
ouvidos. Eu queria causar dez hematomas em Richard por cada um que ele
causara em James, mas eu nunca poderia ter esperanças de machucá-lo, não
daquela forma, e minha própria impotência me deixou com mais raiva do
que todas as outras coisas.
— Você precisa contar a Frederick e Gwendolyn que ele está fazendo
isso — eu disse, mais alto do que pretendia.
— E ser um dedo-duro? — perguntou James. — Não, muito obrigado.
— Só ao Frederick, então.
— Não.
— Você precisa dizer alguma coisa!
Ele me empurrou levemente para trás.
— Não, Oliver!
Ele desviou o olhar, voltando-se para um canto vazio do quarto.
— Você me prometeu que não diria nada, então não diga.
Senti uma pontada de dor, como se tivesse sido picado por um bicho.
— Me explica por quê.
— Porque não quero dar a ele essa satisfação — respondeu. — Se souber
que é tão fácil assim me machucar, o que vai fazer ele parar?
O olhar dele voltou para o meu rosto, um lampejo cinzento. Suplicante e
apreensivo.
— Ele vai desistir se achar que não está funcionando. Então me prometa
que você não vai dizer nada.
Minhas entranhas se apertaram como se alguém tivesse me chutado na
boca do estômago. O que eu queria dizer era fugidio, inatingível,
indefinido. Eu me agarrei à cabeceira para me apoiar. Minha cabeça pesava,
confusa e enfurecida, e sentindo alguma outra coisa indomada que eu não
era capaz de identificar.
— Cacete, James, que merda.
— Pois é.
— O que vamos fazer?
— Nada. Ainda não vamos fazer nada.
CENA 3

No ensaio geral da noite seguinte, não parei de olhar para Richard, mas, no
fim, quando ele foi longe demais, eu não era o único que estava observando
de perto.
Nós havíamos acabado de encenar o Ato II, Cena 1, que incluía a reunião
de Brutus com os conspiradores, um encontro com Portia e um encontro
com Ligarius. (Eu não fazia ideia de como James conseguia se lembrar de
todas as falas direito.) Wren e Filippa haviam saído do palco à direita, e
estavam espiando curiosamente pelas cortinas. James, Alexander e eu
saíramos pela esquerda, e esperávamos inquietos na escuridão densa das
coxias por nossa próxima entrada: três-um, a cena do assassinato.
— Quanto tempo vocês acham que eu tenho? — perguntou Alexander,
um sussurro rouco por cima do ombro.
— Para fumar? — falei. — Deve dar tempo se você for agora.
— Se eu me atrasar, deem uma enrolada.
— Como é que eu vou fazer isso?
— Finja que esqueceu uma fala, sei lá.
— E invocar a fúria de Gwendolyn? De jeito nenhum.
Wren colocou um dedo nos lábios do outro lado do palco, e James deu
uma cotovelada em Alexander.
— Pare de falar. Dá para te ouvir do outro lado.
— Qual cena é essa? — perguntou Alexander, mais baixinho.
Richard já entrara no palco — sem gravata e sem paletó — e estava
falando com um criado, um papel feito por nossos inesgotáveis alunos de
segundo ano.
— Calpúrnia — murmurei.
Como se de alguma forma eu a invocasse, Meredith apareceu entre as
duas colunas centrais, descalça e vestindo um penhoar curto de seda, os
braços cruzados.
Alexander deu um assobio baixo.
— Olha só as pernas dela. É mesmo um bom jeito de vender os
ingressos.
— Sabe — disse James —, para um cara que gosta de outros caras, você
faz muitos comentários heterossexuais.
ALEXANDER: “Eu faria uma exceção para Meredith, mas ela precisaria
estar usando esse penhoar.”
JAMES: “Você é nojento.”
ALEXANDER: “Eu sou flexível.”
EU: “Calem a boca, eu quero ouvir.”
James e Alexander se entreolharam com uma expressão que eu não
entendi e escolhi ignorar.
— O que deseja, César? Pensa em sair? — perguntou Meredith, quando
o criado foi embora. — É melhor não sair hoje.
Ela estava parada com uma mão na cintura, a expressão sombria e crítica.
A cena mudara desde a última vez que eu a vira; Meredith descia para a
Bacia e descrevia o sonho que tivera de uma forma que mais parecia uma
ameaça do que um aviso. Richard, a julgar pela expressão, não estava com
paciência de ouvir.
— Bem — disse Alexander —, eu não contaria com ele ficar em casa
depois dessa.
O criado entrou outra vez, claramente aterrorizado por sequer
compartilhar o mesmo palco com os dois.
RICHARD: “Que dizem os augúrios?”
CRIADO: “Que não saia hoje.
 Tirando as entranhas de uma fera,
 Não tinha coração na oferenda.”
Richard se virou para Meredith.
RICHARD: “Os deuses humilham a covardia.
     César seria fera sem coração
     Se ficasse em casa por medo.
     Não, César não cederá.”
Ele a agarrou pelos ombros, e ela se debateu sob o aperto dele.
— É assim que estava na rubrica? — perguntei.
Nem James nem Alexander responderam.
RICHARD: “Bem sabe o perigo
     Que César é mais perigoso que ele.
     Somos leões de igual nascimento,
     Eu, o mais velho e mais terrível…”
Meredith estremeceu e soltou um gritinho de dor. Filippa viu meu olhar
do outro lado das coxias e sacudiu a cabeça muito de leve.
— E César — berrou Richard — vai sair!
Ele jogou Meredith para longe com tanta força que ela perdeu o
equilíbrio e caiu para trás nos degraus. Ela jogou os braços para se proteger,
e fez-se um estalo surdo quando o cotovelo dela se chocou contra a
madeira. O mesmo reflexo vingativo que senti no Halloween me impeliu
para a frente — para fazer o quê, não tinha ideia —, mas Alexander agarrou
meu braço e sussurrou:
— Vá com calma, tigrão.
Meredith empurrou o cabelo para longe do rosto, se voltando para
Richard com olhos arregalados e irados. Por um segundo, o auditório ficou
em silêncio, com exceção do zumbido baixo das luzes, antes de ela dizer:
— Desculpa, mas que porra foi essa?
— Calma! — gritou Gwendolyn, dos fundos do teatro, a voz estridente e
distante.
Meredith ficou em pé e bateu no peito de Richard com as costas da mão.
— O que foi isso?
— O que foi o quê?
Ele, por alguma razão incompreensível, parecia ainda mais irado do que
ela.
— Essa não era a rubrica!
— Olha só, é um momento importante, eu me deixei levar…
— E aí você decidiu me jogar na porra da escada?
Gwendolyn vinha correndo pelo corredor principal, gritando:
— Parem! Parem com isso!
Richard agarrou o braço de Meredith e deu um puxão para perto, tão
perto que ele poderia beijá-la.
— Você vai mesmo fazer escândalo agora? — disse ele. — Eu não faria
isso.
Eu reprimi um palavrão, afastei a mão de Alexander do meu ombro e
corri para o palco, James logo atrás. Só que Camilo chegou primeiro,
pulando da primeira fileira da plateia.
— Ei! — disse ele. — Vamos apartar isso aí. Hora de se acalmar.
Ele enfiou um braço entre os dois, e tirou Meredith do alcance de
Richard.
— O que está acontecendo aqui? — exigiu Gwendolyn assim que chegou
ao palco.
— Bom, Dick resolveu improvisar na direção — disse Meredith,
empurrando Camilo para longe.
Ela fez uma careta quando a mão dele roçou no braço, e abaixou os
olhos. Uma gota de sangue escapava da manga. Minha própria raiva, vinda
de outrem — confusa e sobreposta, em parte por James, em parte por
Meredith —, rugiu em meu peito, e eu cerrei os dentes, lutando contra um
ímpeto suicida de me arremessar contra Richard e jogá-lo no fosso da
orquestra.
— Estou sangrando — disse Meredith, encarando as manchas vermelhas
na ponta dos dedos. — Seu filho da puta.
Ela se virou e jogou as cortinas para trás, ignorando Gwendolyn, que
gritava:
— Meredith, espere!
A raiva de Richard se apagou como uma lâmpada estourada, e o deixou
com expressão inquieta.
— Todos aproveitem e façam dez minutos de pausa — disse Gwendolyn
para o resto de nós. — Ah, que sejam quinze logo. Vamos fazer o intervalo
agora. Vão.
Os alunos do segundo e terceiro ano foram os primeiros a se mexer,
deixando o auditório em duplas, aos cochichos. Senti Alexander pairando
atrás de mim e respirei fundo, me preparando.
— Camilo, pode ir ver se ela está bem? — pediu Gwendolyn.
Ele assentiu e saiu do palco pelo auditório. Ela se virou para Richard.
— Vá pedir desculpas a ela — ordenou Gwendolyn — e, se fizer
qualquer coisa assim de novo, que Deus me acuda, farei Oliver aprender
todas as suas falas e você vai assistir à noite de estreia na primeira fila.
— Me desculpe.
— Não peça desculpas a mim — disse ela, mas a raiva já estava
esvaindo, virando exasperação.
Richard assentiu, quase humilde, e a observou caminhar lentamente de
volta para os fundos do teatro. Foi só depois que ele se virou que pareceu
perceber que nós cinco estávamos parados ali, fuzilando-o com o olhar.
— Ah, relaxem — disse ele. — Eu não machuquei ela de verdade. Ela só
está brava.
Ao meu lado, James cerrou os punhos com tanta força que os braços
estavam tremendo. Eu troquei meu peso de pé, agitado demais para ficar
imóvel. Alexander se inclinou para a frente, como se estivesse pronto para
se atirar entre nós dois e Richard, caso precisasse.
— Pelo amor de Deus — disse Richard, quando ninguém respondeu. —
Vocês sabem como ela gosta de um draminha.
— Richard! — ralhou Wren.
Ele pareceu culpado, mas só por um instante.
— Sério — disse ele —, preciso pedir desculpas pra todos vocês
também?
— Não, claro que não — respondeu Filippa, em uma voz calma e firme
que me distraiu do som latejante do sangue em meus ouvidos. — Por que
faria isso? Você só interrompeu o ensaio, estragou a porra da direção de
Gwendolyn, forçou Milo a apartar uma briga, possivelmente estragou um
figurino e danificou o cenário, e machucou uma amiga nossa, sendo que já
machucou outro antes. Agora Oliver talvez precise aprender todas as suas
falas e fazer o seu papel e salvar a peça quando você inevitavelmente foder
tudo de novo. E você ainda tem coragem de culpar Meredith e falar que ela
gosta de um draminha?
Os olhos azuis dela estavam gélidos como uma nevasca.
— Sabe, Rick, as pessoas não vão aguentar esse seu comportamento por
muito mais tempo — acrescentou.
Ela deu as costas para ele antes que ele tivesse tempo de responder,
desaparecendo entre as coxias. Ela dissera tudo que nós queríamos dizer, e a
tensão cedeu ligeiramente. Eu expirei; James abriu os punhos.
— Nem comece, Richard — disse Wren, quando ele abriu a boca
novamente. Ela sacudiu a cabeça, uma expressão tensa e irritada que não
era muito diferente de desdém. — Não comece.
Então, ela foi atrás de Filippa.
Richard fungou e disse a mim, James, e Alexander:
— Mais alguém?
— Não — disse Alexander. — Acho que ela já falou tudo.
Ele lançou um olhar de alerta para mim e James antes de sair pelas
coxias, revirando os bolsos e procurando por seda.
Só restamos nós três. James, Richard e eu. Pólvora, fogo e rastilho.
Richard e James se encararam por um instante, como se eu não estivesse
presente, mas nenhum deles abriu a boca. O silêncio entre eles era precário
e instável. Eu esperei, me perguntando para que lado penderia, a apreensão
fazendo com que todos os meus músculos tensionassem sob a pele. Por fim,
James ofereceu a Richard o menor dos sorrisos — o brilho de um triunfo
mesquinho — e se virou, saindo atrás de Alexander.
O olhar de Richard repousou em mim, e eu pensei que talvez me
queimasse por dentro.
— Ainda não precisa começar a aprender minhas falas — disse ele.
Então, ele me deixou no palco sozinho. Fiquei em silêncio. Imóvel. Em
minha própria consideração, inútil. Um rastilho sem fogo, sem nada para
inflamar.
CENA 4

Quando terminamos o ensaio (felizmente, sem mais nenhum acidente), eu


evitei os camarins. Enrolei no saguão de entrada até a hora que imaginei
que todos os outros teriam ido embora, e então voltei para o teatro. Todas as
luzes da plateia haviam sido desligadas, e eu tateei entre os assentos com as
mãos anestesiadas, grunhindo com os braços das poltronas que se esticavam
para bater nos meus joelhos na escuridão.
As luzes da travessia piscaram quando entrei no camarim masculino, e
fiquei aliviado ao ver que o espaço estava vazio. Espelhos em uma das
paredes mostravam meu próprio reflexo, e uma arara de figurinos estava
encostada na outra, abarrotada com dois ou três ternos para cada indivíduo
entre uma dúzia de atores. Os dejetos do teatro esparramavam-se por todas
as superfícies — roupas esquecidas, pentes e gel de cabelo, lápis de olho
quebrados.
Comecei a tirar meu figurino, pela primeira vez sem me acotovelar com
os outros quatro garotos. Normalmente, eu teria ficado grato pelo luxo de
ter espaço, mas eu não havia me recuperado inteiramente do desastre do
segundo ato, e estava apenas sentindo um alívio vago de não precisar
compartilhar o ambiente com Richard. Pendurei a camisa, o paletó e a calça
cuidadosamente em um cabide, e guardei os sapatos sob a arara. Minhas
próprias roupas estavam espalhadas pelo cômodo, provavelmente pegas e
descartadas durante o frenesi que se seguia ao Ato V, quando todos estavam
apressados para se vestir e ir para casa. Encontrei minha calça jeans
amassada em um canto, a camiseta pendurada no espelho. Uma das minhas
meias estava escondida sob o balcão, mas a outra nunca apareceu. Eu me
deixei cair pesadamente em uma poltrona e estava acabando de colocar
meus sapatos — dane-se a meia — quando a porta foi aberta com um
rangido.
— Ah, te encontrei — disse Meredith. — Não sabíamos onde você tinha
ido parar.
Ela ainda estava vestindo o penhoar. Arrisquei olhar para ela, e então
voltei toda a concentração intensa para amarrar os sapatos.
— Só precisava respirar um pouco — respondi. — Eu estou bem.
Fiquei em pé e fui na direção da porta, mas ela estava no caminho,
inclinada no batente, uma perna dobrada como um flamingo, o joelho
encaixado perfeitamente na curva do dorso do pé. Havia algo de
introspectivo e ambíguo na expressão dela, mas o rosto estava corado, como
se o ardor da raiva não a tivesse abandonado.
— Meredith, você precisa de alguma coisa?
— Uma distração, acho.
Ela ofereceu um meio sorriso, esperando que eu entendesse.
A compreensão me atingiu com um choque, como se eu tivesse sido
eletrocutado, e eu me inclinei para trás, me afastando dela.
— Acho que não é boa ideia.
— Por que não?
Ela parecia genuinamente confusa, quase impaciente — e eu precisei me
lembrar de que ela era uma atriz nata.
— Porque esse é o tipo de jogo em que as pessoas se machucam —
respondi. — Eu não estou particularmente preocupado com Richard nesse
momento, mas não quero ser uma dessas pessoas.
Ela piscou, e a impaciência desapareceu, substituída por algo mais suave,
menos autoconfiante.
— Eu não vou machucar você — disse ela.
Ela se aproximou com cautela, como se estivesse com medo de me
assustar. Fiquei paralisado, observando a seda ondular como água na pele
dela. Um hematoma começava a inchar sob a clavícula, e eu não consegui
deixar de pensar nas mãos de Richard, e na imensidade do dano que eram
capazes de causar.
— Consigo pensar em alguém que pode querer me machucar — falei.
— Eu não quero pensar nele.
A voz dela possuía uma qualidade tenra e vulnerável, que eu não
reconheci de imediato pelo que realmente era: vergonha.
— Certo. Você quer se distrair.
— Oliver, não é nada disso.
— Sério? Então o que é?
Era uma pergunta desesperada. Não sabia qual era a intenção — dissuadi-
la ou seduzi-la ou desafiá-la; acusar o blefe, forçá-la a jogar e fazê-la
mostrar o que queria. Talvez tudo ao mesmo tempo.
A única coisa que não fez foi dissuadi-la. Ela ainda estava olhando para
mim, mas de uma forma que nunca olhara antes, uma inconsequência
reluzindo nos olhos verdes como vidro.
— É assim.
Senti as mãos dela no meu peito, as palmas quentes através do tecido fino
da camiseta. Meu coração sobressaltou com o toque dela, e abruptamente
me perguntei se ela estava vestindo alguma coisa debaixo do penhoar. Parte
de mim queria arrancá-lo dela e descobrir, e outra parte queria bater a
cabeça dela na parede para ver se assim recobraria o bom senso. Ela se
encostou em mim, e a pressão do corpo dela derrotou quaisquer objeções
lógicas que eu pudesse fazer. Minhas mãos se mexeram automaticamente,
sem minha permissão, levantando para encontrar a curva da cintura dela,
alisando a seda contra a pele. Senti seu perfume, rico e doce e provocante, a
fragrância de alguma flor exótica. Os dedos, pressionando a minha nuca
com suavidade insistente, virando meu rosto para ela. Meu coração bateu
mais rápido, até os ouvidos, a imaginação traiçoeira me impelindo.
Virei a cabeça repentinamente, e a ponta do meu nariz roçou a bochecha
dela. Se eu a beijasse, o que aconteceria depois? Eu não confiava na minha
capacidade de parar.
— Meredith, por que está fazendo isso?
Eu não conseguia olhar diretamente para ela sem encarar sua boca.
— Porque eu quero.
Toda a raiva que adormecera em mim borbulhou como ácido.
— Porque você quer — repeti. — Por quê? Porque James não tocaria em
você, e Alexander não gosta de garotas? Porque você quer deixar Richard
furioso e eu sou o método mais fácil?
Eu a afastei, para não a tocar.
— Você sabe como ele fica quando está furioso. Você é linda, mas não
vale tudo isso.
As últimas palavras saíram da minha boca antes que pudesse segurá-las,
antes que pudesse perceber o quanto eram horríveis. Ela me encarou por um
instante, imóvel. Então se virou e escancarou a porta.
— Sabe, acho que você está certo — disse ela. — As pessoas saem
mesmo machucadas de coisas assim.
Quando a porta se fechou atrás dela, fui levado de volta ao primeiro dia
do semestre, dois meses antes. A beleza dela era de enlouquecer — mas
aquilo tornava qualquer parte dela menos real? Arrastei os dedos pelo rosto
com força, me sentindo enojado.
— Que inferno — falei, baixinho.
Foi tudo que consegui dizer.
Recolhi minhas coisas, pendurei a mochila no ombro e saí do prédio,
enfurecido com nós dois. Quando voltei ao Castelo, parei na frente da porta
dela a caminho da Torre. Um único verso impertinente passou pela minha
cabeça. Coragem, homem; é pequena a ferida.
Eu era sábio o bastante para não acreditar naquilo.
CENA 5

Na manhã seguinte, James me arrastou para fora da cama um pouco depois


das sete para corrermos. Os hematomas no braço dele tinham desbotado
para um verde putrefato, mas ele ainda assim vestiu um moletom com as
mangas repuxadas até os pulsos. Estava frio o bastante na época para que
não parecesse atípico.
Com frequência, nós corríamos pelas trilhas estreitas do bosque ao sul do
lago. O ar estava frio e incisivo, a manhã nublada, nossa respiração saindo
em longos sopros brancos. Mantivemos um bom ritmo durante um circuito
de três quilômetros, conversando em disparos curtos e entrecortados.
— Aonde você foi ontem à noite? — perguntou ele. — Não encontrei
você depois do ensaio.
— Não queria lidar com Richard de perto, então fiquei esperando no
saguão.
— Meredith te emboscou?
Eu franzi o cenho.
— Como você sabe disso?
— Achei que ela tentaria.
— Por quê?
— Só pelo jeito que ela anda olhando para você ultimamente.
Tropecei em uma raiz e fiquei um pouco para trás, e então dobrei a
velocidade para alcançá-lo.
EU: “De que jeito ela está me olhando?”
JAMES: “Como se ela fosse um tubarão e você, uma foquinha distraída.”
EU: “Por que todo mundo anda usando essa palavra pra me descrever?”
JAMES: “Quem mais te chamou de foquinha?”
EU: “Não foi isso. Esquece.”
Fiquei observando o chão por um instante, pensativo. A dor abafada do
meu lado esquerdo intensificava toda vez que eu inalava. O ar tinha cheiro
de terra e coníferas, do inverno que se aproximava.
— Então, vai me contar o que aconteceu? — perguntou James.
— Quê?
— Com a Meredith.
Ele disse aquilo de forma leve, mas também havia certa apreensão. A
culpa fez meu rosto ficar mais quente do que o cansaço já o deixara.
— Não aconteceu nada — falei.
— Nada?
— Nada de mais. Eu falei que não estava interessado em ser o próximo
saco de pancadas de Richard, e ela foi embora.
— Esse é o único motivo?
Pelo tom que usava, dava para notar que não estava convencido.
— Tipo, eu sei lá.
Eu passara a maior parte da noite acordado, repetindo a cena na minha
cabeça, agonizando por aquelas últimas palavras, pensando em mil coisas
que poderia ter dito em vez daquilo, desejando que tivesse acontecido de
forma diferente. Eu não podia fingir que era imune a Meredith; eu sempre a
admirara, mas do que pensava ser uma distância segura. Ao chegar mais
perto, ela me confundira. Eu não acreditava que ela me queria de verdade,
só que eu era o alvo mais fácil. Porém, não podia admitir isso para James —
porque eu tinha vergonha, e porque temia que estivesse errado.
Ele me observava, esperando que eu explicasse melhor.
— É que nem Alexander disse outro dia — falei. — Eu não conseguia
decidir se queria beijar ou matar ela.
Continuamos correndo em um silêncio desconfortável, suavizado pelo
gorjeio de seja lá quais pássaros tapados não tinham ainda voado para o sul
durante o inverno. Passamos a trilha que levava de volta ao Castelo e
subimos o morro íngreme que levava ao Pavilhão. Quando estávamos na
metade da subida, perguntei:
— O que você acha?
— Da Meredith?
— É.
— Você sabe o que eu acho da Meredith — disse ele com um tom de
finalidade que desencorajava mais perguntas.
Só que aquilo não era bem uma resposta — havia algo não dito, algo
encurralado entre os dentes dele. Eu queria saber no que ele estava
pensando, mas não sabia como perguntar, então subimos o resto do morro
sem dizer nada.
Minhas coxas estavam ardendo quando finalmente chegamos ao gramado
extenso atrás do Pavilhão, nos debruçando sobre os joelhos, ofegantes.
Conforme nossos corpos esfriavam, o ar gélido de novembro recaía sobre
nós. Minha camiseta estava grudada nas costas, gotas de suor pingando do
cabelo e descendo as têmporas. O rosto e o pescoço de James brilhavam em
um vermelho febril, mas o resto de sua pele estava pálida devido às noites
insones, e o contraste o tornava distintamente abatido.
— Água? — perguntei. — Você não parece bem.
Ele assentiu.
— Vamos.
Caminhamos pela grama molhada em direção ao refeitório. Às oito da
manhã de sábado, estava praticamente vazio. Alguns professores e
madrugadores estavam sentados lendo em silêncio, xícaras de café e pratos
de comida diante deles. Em uma mesa, um grupo de bailarinos de collant
preto alongavam as pernas compridas. Em outra, uma aluna do coral inalava
o vapor de uma tigela cheia de água fervendo, com a esperança de talvez
combater os efeitos nas cordas vocais do que parecia uma ressaca de rachar.
Um grupinho misto se aglomerara na parede do fundo, onde ficavam as
caixas de correio.
— O que é aquilo lá? — perguntei.
James fez uma careta.
— Acho que tenho uma ideia.
Eu o segui até lá, e a pequena multidão se abriu facilmente para nos
deixar passar — talvez porque estávamos corados e suados, mas talvez não.
No meio da parede ficava um quadro de cortiça comprido reservado para
avisos gerais do campus. Normalmente, estava coberto com folhetos de
baladas e propagandas de aulas particulares, mas, naquele dia, tudo o mais
estava escondido sob um cartaz enorme de temporada com o rosto de
Richard. Ele encarava o espectador com expressão furiosa em um vermelho
monocromático, o belo rosto acentuado por sombras escuras. Sob o nó
impecável da gravata, mas acima do texto menor que detalhava as
informações da peça, letras brancas garrafais proclamavam:

POIS SOU SEMPRE CÉSAR

James e eu encaramos o pôster por tanto tempo que a maioria das pessoas
que tinham ido investigar perderam o interesse e foram embora.
— Bom — disse ele —, isso definitivamente chama a atenção.
Eu ainda estava olhando para o cartaz, irritado por James não estar mais
irritado.
— Foda-se essa merda — falei. — Eu não quero ele em todas as paredes
me encarando como uma espécie de Grande Irmão durante as próximas
duas semanas.
— Ele comanda o mundo estreito / como um Colosso — observou James
—, e nós, homens mesquinhos, / andamos sob suas pernas / até nossos
túmulos sem honra.
— Foda-se essa merda aí também.
— Você está falando que nem Alexander.
— Desculpa, mas, depois de ontem noite, eu acho que as chances de
Richard arrancar minha cabeça subiram em uns cem por cento.
— Lembre-se disso da próxima vez que Meredith se atirar em cima de
você.
— Não foi bem assim — eu disse, e imediatamente desejei que não
tivesse falado nada.
— Cuidado, Oliver — disse ele, sábio, como se lesse minha mente. —
Você confia demais. Ela fez isso comigo também no primeiro ano. Ela foi
minha parceira nas aulas de voz, aquela coisa esquisita de ficar
cantarolando, lembra?
— Espera aí, ela fez o quê?
— Decidiu que me queria e presumiu que eu a queria de volta. Afinal,
não é todo mundo que quer? Quando eu disse não, ela mudou de ideia. Agiu
como se nada tivesse acontecido e partiu para Richard.
— Você está falando sério?
Ele me lançou um olhar irônico em resposta.
— Jesus amado — respondi.
Eu desviei o olhar, procurando pelo refeitório, curioso com quais outros
segredos todo mundo estava guardando. Como nos preocupávamos pouco
com a vida íntima de outras pessoas.
— Por que você nunca me contou?
— Não parecia importante.
Pensei em James enrolando uma mecha do cabelo de Wren nos dedos, e
perguntei:
— Mais alguma outra coisa que eu deveria saber, já que estamos falando
nesse assunto?
— Não. Juro.
Se ele estava escondendo alguma coisa, a expressão — tranquila,
despreocupada — não deixava transparecer nada. Talvez Alexander
estivesse certo, e James e eu fôssemos igualmente tontos.
Troquei meu peso de perna. Senti que Richard me observava, o cartaz
uma horrenda mancha vermelha na minha visão periférica. Eu me virei,
suspirei ao vê-lo, e disse:
— Acho que a boa notícia é que, depois do drama de ontem, ele vai
precisar parar de tentar quebrar seu braço no Ato III.
— Você acha?
— Você não?
James sacudiu a cabeça de uma forma triste e distraída.
— Ele é inteligente demais para isso.
— Então… o que você acha que ele vai fazer?
— Ele vai sossegar, mas só por uns dias. Vai esperar a noite de estreia.
Gwendolyn não vai correr no meio do palco e parar a peça.
O olhar dele perscrutou todos os cantos do pôster. Por um momento,
talvez tivesse se esquecido de que eu estava ali.
JAMES:  “Em nome dos deuses todos, pergunto
De que carne se alimentou nosso César
Para que crescesse tanto?”
Eu fiquei em silêncio por um tempo, e finalmente respondi com uma das
minhas próprias falas, incerto de onde exatamente surgira.
EU: “Me dê a mão:
 Conspire para vingar o luto,
 E meus pés estarão mais longe
 Do que quem já foi longe demais.”
Os olhos cinzentos de James reluziram com um brilho dourado quando
ele encontrou meu olhar.
— Está feita a barganha.
Havia algo desconhecido no sorriso dele, um contentamento voraz que
me deixou ao mesmo tempo ávido e irrequieto. Eu sorri de volta da melhor
forma que pude, e então o segui até a cozinha para pegar um copo de água.
Minha boca estava insuportavelmente seca.
CENA 6

O rosto de Richard me assombrou pelo resto da semana, mas não foi o


único. Cartazes de James também apareceram, o dele em azul-marinho,
com o slogan Alma de Roma. Outras fotos de publicidade — que incluíam
Alexander; Wren e Meredith; e então eu, Colin e nosso Lépido, o
triunvirato completo — apareceram no saguão do EBA e no jornal da
faculdade. O campus começou a tinir novamente na expectativa da próxima
peça.
Na noite de estreia, não havia uma única cadeira vazia no teatro. A
qualidade das produções de Dellecher eram lendárias, e a perspectiva de ver
o próximo grande ator, artista ou virtuoso antes que a fama o sequestrasse
atraía mais do que a coleção óbvia de alunos e do corpo docente. O teatro
estava cheio de bardólatros locais, alunos em excursões e aqueles que
compravam ingressos para toda a temporada. (Na primavera, os melhores
lugares estavam reservados para uma tropa de agentes convidados de Nova
York para verem nossa performance.) As luzes afinaram em um grupo de
segundanistas empolgados, os cidadãos romanos, inebriados pela ideia de
estarem no palco pela primeira vez em Dellecher. O resto de nós, de mais
experiência e apenas meio agitados, esperava nas coxias.
A peça cresceu durante os dois primeiros atos até a tensão estar tão
grande que o auditório inteiro parecia estar prendendo a respiração. O
assassinato foi rápido e violento e, assim que James ordenou aos
conspiradores para se dispersarem, eu cambaleei para fora do palco, os
ouvidos retinindo.
— Porra! — disse, me atrapalhando com as pesadas cortinas pretas ao
lado esquerdo do palco.
Alguém me pegou pelos ombros e me guiou pelas coxias enquanto os
conspiradores secundários andavam a passos curtos de volta ao camarim. O
teatro ecoava com o solilóquio passional de Marco Antônio sobre o corpo
de César.
COLIN: “Me perdoe, barro ensanguentado,
  Por ser fraco com tais carniceiros!
  Tu és a ruína do mais nobre
  Dos que já velejaram no tempo.
  Maldigo a mão que te fez sangrar!”
Eu tateei na direção da parede no escuro, com uma mão no ouvido. A
mesma pessoa me virou de costas para não cair de cara contra a linha da
parede acústica.
— Você está bem? — sussurrou Alexander. — O que aconteceu?
— Ele me acertou bem no ouvido!
— Que horas? — Era a voz de James.
— Quando eu o apunhalei, ele virou e deu uma cotrovelada na minha
orelha com tudo!
Uma rajada de dor tão aguda que parecia sólida se alojara no meu crânio
que nem uma estaca. Eu me empoleirei no trilho dos cabos, me inclinando
para a frente nos joelhos. Uma mão quente pousou na minha nuca; não
sabia a quem pertencia.
— A rubrica não dizia nada disso — observou Alexander.
— Claro que não, cacete — disse James. — Respire fundo, Oliver.
Eu soltei o maxilar e inspirei. A mão de James deslizou para o meu
ombro.
— Ele tentou torcer o seu pulso de novo? — perguntei.
— Tentou.
Ele olhou na direção da luz inclinada no proscênio. Colin terminara o
discurso e conversava com um criado.
— Ele está fazendo essa merda de propósito? — perguntou Alexander. —
Ele quase arrancou minha cabeça quando eu dei a facada, mas achei que só
estava se deixando levar de novo.
— Você já viu os braços de James?
James me silenciou, mas desatou a abotoadeira esquerda, arregaçando a
manga. Mesmo na penumbra das coxias, era possível ver manchas azuis e
arroxeadas na pele dele. Alexander soltou uma sequência de obscenidades
com um só fôlego.
James puxou a manga de volta.
— Exatamente.
— James — eu disse —, precisamos fazer alguma coisa.
Ele se virou, a luz advinda do palco deixando o rosto dele de um amarelo
palúdico e doentio. Era quase hora do intervalo.
— Certo — disse ele. — Mas deixamos Frederick e Gwendolyn fora
disso.
— Como?
— Se ele quer uma briga, vamos brigar — disse Alexander, rosnando.
Eu dei um puxão no lóbulo da orelha. Um zumbido leve e estridente
ainda me incomodava, lembrando uma mosca.
— Alexander, isso é suicídio — eu disse.
— Não sei por quê.
— Ele é maior que todos nós.
— Não, Oliver, seu idiota. Ele é maior que cada um de nós.
Ele me lançou um olhar significativo.
As luzes no palco foram repentinamente apagadas, e o público irrompeu
em aplausos. De súbito, as pessoas estavam correndo à nossa volta. Na
escuridão, era impossível distinguir quem era quem, mas sabíamos que um
deles era Richard. Alexander empurrou eu e James contra os cabos, e as
cordas pesadas estremeceram e grunhiram atrás de nós como os cordames
de um navio. A mão dele era como uma prensa em meu ombro, enquanto o
público rugia em meus ouvidos.
— Olha só — disse ele. — Richard não pode brigar com nós três ao
mesmo tempo. Amanhã, se ele tentar alguma coisa, em vez de um
assassinato, a gente merenda ele na porrada.
— Eis minha mão — disse James, depois de uma hesitação que durou
meio segundo. — O feito é digno.
Eu também hesitei, por mais tempo que ele.
— O mesmo digo eu.
Alexander deu um aperto em meu braço.
— E eu, e agora temos três decisões, deixe só esse filho da puta
desgraçado fazer qualquer coisa.
Ele nos soltou abruptamente quando as luzes do teatro se acenderam, e o
público ficou em pé ruidosamente do outro lado da cortina. Alguns
contrarregras do primeiro ano, vestidos de preto, já estavam correndo para o
palco e limpando a bagunça deixada pelo assassinato. Nós três nos
entreolhamos com uma expressão lúgubre e não dissemos mais nada,
seguindo em fila ao camarim. Andei atrás de James, o corpo formigando
com a mesma sensação alvoroçada da semana anterior, tanto ávido quanto
irrequieto.
CENA 7

Fora a agressividade desnecessária de Richard, a noite de estreia correu


bem, e os elogios da manhã seguinte foram despendidos a todos nos
corredores. Os estudantes de coral e da orquestra permaneceram
indiferentes — sem se deixarem impressionar por qualquer um que não
possuía disciplina para uma arte tão refinada quanto a música —, mas os
outros nos receberam com admiração escancarada. Como poderíamos
explicar que ficar no palco e declamar as palavras de outras pessoas como
se fossem suas não é um ato de coragem, e sim um ímpeto aflito em busca
do entendimento mútuo? Uma tentativa de forjar um elo tênue entre o
falante e o ouvinte, e de comunicar algo, qualquer coisa, de substância. Sem
poder articular tal sentimento, simplesmente aceitamos os louros e os
parabéns com a devida (e, em alguns casos, inteiramente falsa) humildade.
Durante a aula, ficávamos facilmente distraídos. Mal ouvi a palestra de
Frederick, e minha mente voou para tão longe durante os exercícios de
equilíbrio de Camilo que deixei que Filippa me derrubasse para trás.
Alexander me lançou um olhar impaciente que claramente significava “pare
de presepada, cacete”. Assim que fomos dispensados, eu me retirei de volta
para a Torre com uma caneca de chá e Teatro da inveja, de René Girard,
esperando me distrair de uma dúzia de premonições angustiantes da noite
que teríamos. Naquela altura, não sentia compaixão alguma por Richard —
o antagonismo abrangente e pertinaz que ele praticara naquelas semanas
deixara uma impressão mais profunda do que os três anos de amizade
pacata —, mas eu sabia que nenhuma retaliação de nossa parte sairia sem
punição. Qualquer observador imparcial descartaria a situação como uma
disputa de rancor grandiloquente, mas, quando tentei me persuadir que era
somente aquilo, a voz de Frederick me recordava, baixinho, que duelos
foram travados por muito menos.
A perspectiva punitiva de nossa rixa com Richard, por mais enorme que
pairasse, não era a única coisa que pesava em meus pensamentos. Sexta-
feira era a noite da festa do elenco; uma hora depois do cair do pano, a
maioria dos estudantes de teatro de Dellecher, e os mais ousados entre as
outras disciplinas, invadiriam o primeiro andar do Castelo para comemorar
uma boa estreia e beber em saudação ao iminente fechamento da
temporada. Meredith e Wren, nenhuma das quais aparecia no palco depois
do segundo ato, graciosamente concordaram em escapar entre o intervalo e
o pano para deixar tudo pronto para a noite de esbórnia desenfreada.
Quando o resto de nós chegasse, não teríamos nada para fazer a não ser
agradecer a Dionísio e regalar na celebração.
Às seis e meia, fechei o livro e desci as escadas para a sala de jantar. A
mesa e as cadeiras já haviam sido afastadas para abrir espaço para uma pista
de dança. Um conjunto de alto-falantes clandestinamente emprestados da
cabine de sonoplastia estava empilhado em um canto, os cabos
serpenteando pelas tábuas de madeira até as tomadas mais próximas. Saí do
Castelo e comecei a longa caminhada até o EBA com uma sensação ansiosa
e irritadiça que a cada minuto se aproximava mais do pavor.
Devia estar evidente em meu rosto quando finalmente abri a porta do
camarim, porque Alexander agarrou a frente da minha jaqueta, me arrastou
até a baía de carregamento e enfiou um baseado na minha boca.
— Não fique nervoso — disse ele. — Vai dar tudo certo.
(Acho que ninguém no mundo jamais esteve tão equivocado.)
Traguei obedientemente o baseado até que só sobrasse cerca de um
centímetro. Alexander o pegou, puxou entre a ponta dos dedos, jogou-o no
chão e me levou de volta para dentro. Meus receios desbotaram até se
tornarem uma paranoia vaga nas profundezas de minha mente.
O tempo se arrastou enquanto eu fazia minha maquiagem, vestia o
figurino e passava pela rotina dos aquecimentos vocais. James, Alexander,
Wren, Filippa e eu nos encostamos na parede na travessia, as mãos
espalmadas no diafragma, entoando:
— Uivem, uivem mais! Homens de pedra!
Quando um aluno do primeiro ano usando headset apareceu para avisar
que faltavam cinco minutos para estarmos nos lugares, meu retardamento
temporal pessoal desabou, e tudo começou a andar como se estivesse
acelerado.
Os alunos do segundo ano vagaram os camarins e correram para as
coxias, ajeitando as camisas e abotoaduras, afobados, ou pulando no
corredor, tentando amarrar os sapatos. Filippa me atirou em uma cadeira no
camarim feminino e me atacou com um pente e um tubo de gel de cabelo
quando as luzes se acenderam e as primeiras falas da peça chiaram nos alto-
falantes dos bastidores.
FLAVIUS: “Saiam, vadios. Vão para casa!
 É feriado?”
Filippa me deu um tapinha dolorido na testa.
— Oliver!
— Que foi, porra?
— Você tá pronto, saia já daqui — disse ela, fechando a cara, uma mão
na cintura. — O que deu em você?
— Desculpa — falei, saindo da cadeira. — Valeu, Pip.
— Você tá brisando?
— Não.
— Você tá mentindo?
— Sim.
Ela comprimiu os lábios e sacudiu a cabeça, mas não despendeu mais
reprimendas. Eu não estava inteiramente sóbrio, tampouco inteiramente
chapado, e ela sabia que a culpa provavelmente era quase só de Alexander.
Deixei o camarim feminino e vadiei na travessia até que Richard passou por
mim, não me notando mais do que se eu fosse a pintura nas paredes. Eu
segui meio passo atrás dele, surgi sob as luzes ofuscantes, e disse com a
maior sinceridade que pude reunir:
— Ouçam atentos! César fala.
O primeiro e segundo ato passaram de forma não muito diferente da
primeira frente chuvosa de um furacão. Havia estrondo, algazarra e a
sensação de perigo que se aproximava, mas tanto nós quanto o público
sabíamos que o pior ainda estava por vir. Quando Calpúrnia entrou, eu
observei da beirada das coxias. Richard e Meredith pareciam ter superado
as desavenças, ou ao menos as deixado de lado durante a a peça. Ele foi
áspero com ela, mas não violento; ela, impaciente, mas não incitante. Antes
que me desse conta, James estava me sacudindo pelo ombro e sussurrando:
— Vamos.
O terceiro ato abria com a silhueta da colunata contra a rotunda, que
brilhava escarlate — um alvorecer perigoso e bruto. Richard estava parado
entre as duas colunas centrais, o restante de nós em círculo ao redor dele
enquanto Metellus Cimber se ajoelhava na Bacia e suplicava em nome do
irmão. Eu era o mais próximo, tão perto que enxergava o aperto minúsculo
do nervo na mandíbula de Richard. Alexander, aguardando com paciência
felina e predatória do outro lado do círculo, encontrou meu olhar e abriu o
paletó com um movimento rápido para revelar o abridor de cartas enfiado
no cinto. (Eram mais consistentes com o tema do que punhais seriam, mas
não eram menos ameaçadores.)
RICHARD: “Se eu fosse como você, isso me tocaria
 Se eu orasse, cederia a suas preces,
 Mas sou constante como a estrela do norte,
 Que por firme moradia,
 Não tem semelhança no firmamento.”
Ele olhou para o resto de nós com olhos brilhantes, desafiando-nos a
contradizê-lo. Nós nos remexemos, colocando a mão nas lâminas estreitas,
mas mantivemos o silêncio.
RICHARD: “Os céus são adornados de faíscas
 Inúmeras, que brilham e queimam,
 Mas apenas uma é estável.
 Tal qual é o mundo dos humanos,
 Que são carne, osso e aflição.
 Entre eles só reconheço um
 Que o posto mantém inabalável
 E resistente, e esse sou eu!”
A voz dele preencheu todos os cantos do auditório, como uma rachadura
que se abria no manto da terra, o eco e tremor de um terremoto. À minha
direita, Filippa ergueu o queixo, muito de leve.
RICHARD: “Mostro isso com facilidade:
 Fui firme ao banir Cimber daqui
 E firme segue minha decisão.”
Cinna começou a protestar, mas eu não tinha ouvidos para ele. Meus
olhos estavam fixos em James e Alexander. Eles espelhavam os
movimentos um do outro, virando-se ligeiramente na direção do proscênio
para que o público pudesse ver o aço brilhando em seus cintos. Eu umedeci
o lábio. Tudo parecia perto demais, real demais, como se eu estivesse
sentado na primeira fileira de um cinema. Fechei os olhos, o punho cerrado
no cabo da lâmina, esperando escutar as sete palavras que me
impulsionariam para a ação.
RICHARD: “E Brutus não fala aqui em vão?”
Abri os olhos, e tudo que vi foi James, um joelho abaixado em
genuflexão, encarando Richard de baixo, desdém audacioso estampando
seu rosto.
— Mãos, falem por mim! — gritei, e pulei em cima de Richard, enfiando
minha lâmina sob o braço erguido dele.
Os outros conspiradores abruptamente voltaram à vida, e o rodearam
como um enxame de vespas. Richard me fuzilou com o olhar, os dentes
expostos e cerrados. Eu retirei minha faca, e fiz um movimento para dar um
passo para trás, mas ele me agarrou pelo colarinho, amassando o tecido com
tanta força ao redor da minha garganta que eu mal pude respirar. Derrubei a
lâmina, apalpando o pulso dele com as duas mãos conforme o dedão dele
apertava minha artéria carótida.
Minha visão já estava embaçada quando Richard me soltou, com um
rugido de dor — Alexander o havia agarrado pelo cabelo e dado um puxão
para trás. Caí pesado sobre o meu cóccix, uma mão voando para o pescoço.
Alguém dobrara o braço de Richard nas costas dele, e a outra meia dúzia de
conspiradores dera o bote para apunhalá-lo, toda a coreografia da cena
esquecida. Em meio ao caos, ele se debatia loucamente, e atingiu Filippa
bem na boca do estômago, com força o suficiente para derrubá-la. Ela se
estatelou desajeitada nas escadas — eu conseguira ficar de pé bem a tempo
de vê-la cair, e um som inarticulado de fúria ficou preso na garganta.
Empurrei Cinna para o lado e me abaixei de joelhos ao lado dela. Ela
ergueu a cabeça, apertando a barriga, engolindo o ar em lufadas fúteis, sem
nenhum fôlego.
De súbito, a confusão se atenuou, e eu me virei, ajoelhado ao lado de
Filippa, que estava em silêncio, mas segurava minha perna com força.
Richard ficou em pé, rodeado por conspiradores ofegantes, os braços presos
nas laterais, o punho de Alexander ainda cerrado no couro cabeludo dele.
James estava pouco além do alcance de Richard, o terno amarrotado, a
lâmina apertada firme nas mãos.
As palavras de Richard estavam carregadas de ódio quando disse:
— Até tu, Brutus?
James deu um passo adiante e colocou a lâmina contra o pescoço dele.
RICHARD: “Então caia, César!”
O rosto de James estava desconcertantemente inexpressivo. Ele deslizou
a faca rapidamente para a frente — Richard emitiu um som de engasgo
curto, e então deixou a cabeça pender contra o peito. Alexander e o resto
dos conspiradores o soltaram um por um, e ele foi ao chão. Quando eles se
endireitaram novamente, os alunos do segundo e terceiro ano olharam de
mim para James e para Alexander, de olhos arregalados, dolorosamente
conscientes do público, e do fato de que a cena havia saído completamente
de controle. Uma das atrizes tinha uma fala, mas ela parecia ter esquecido
qual era, porque ninguém falou. Alexander esperou o máximo que podia, e
então falou por ela:
— Estamos livres! É o fim da tirania!
Ele deu um empurrãozinho no segundanista mais próximo.
— Espalhem as boas novas nas ruas.
O resto se mexeu, suspirando, todos aliviados. Filippa arfou quando o ar
entrou em seus pulmões novamente. Eu a ajudei a sentar enquanto
Alexander continuava a berrar ordens.
— Corram aos púlpitos e gritem de lá: / Estamos libertos, estamos
livres!
— Povo e senadores, não temam mais — disse James aos conspiradores,
e a tranquilidade dele pareceu reassegurá-los. — Não fujam, está paga a
ambição!
Nós relaxamos, voltando ao texto, como se nada excepcional tivesse
ocorrido. Porém, conforme Filippa e eu nos levantamos, não consegui evitar
olhar para baixo, para Richard. Ele estava deitado, imóvel exceto por uma
inquietação raivosa das pálpebras, uma veia saliente pulsando na garganta.
CENA 8

Minha cabeça desanuviou conforme o golpe de Brutus e Cassius


desmoronava. Richard desaparecera porta afora durante o intervalo, e
ninguém o viu até o quarto ato, quando ele retornava como o fantasma de
César — uma aparição duplamente sinistra devido à sua solenidade pétrea.
O pano caiu às dez e meia, e meu corpo estava dolorido de fadiga, mas o
drama complexo da cena do assassinato e a ansiedade pela festa me
mantiveram acordado e em estado de alerta. Quando por fim acabei de lavar
o rosto, tirar o figurino e me vestir novamente, a maioria dos alunos do
segundo e terceiro ano já tinha partido. James e Alexander estavam
esperando na travessia com quatro baseados grossos que já tinham sido
enrolados (um para cada um de nós, e outro para Filippa, que já tinha
voltado para o Castelo para se trocar). Deixamos o EBA e caminhamos pela
trilha na floresta, com as mãos no bolso. Não tocamos no assunto do
incidente da três-um, exceto por Alexander dizer, simplesmente:
— Espero que ele tenha aprendido a lição.
Quando estávamos a uns dez metros de Castelo, as luzes escaldantes da
festa começaram a inundar as sombras espessas das árvores. Paramos para
terminar de fumar e pisamos nas bitucas sob a umidade das folhas de
pinheiro. Alexander se virou para nós, dizendo:
— Tivemos uma semana longa. Planejo ter uma noite longa e, se vocês
dois não estiverem bem comidos até a meia-noite, eu pessoalmente vou me
encarregar de que vocês sejam comidos, bem ou de qualquer outra forma,
até amanhã cedo. Entendido?
EU: “Parece que está ameaçando me estuprar.”
ALEXANDER: “Faça o que eu digo e não vou precisar recorrer a isso.”
JAMES: “Vocês dois vão para o inferno.”
ALEXANDER: “Direto.”
EU: “Sem escalas.”
ALEXANDER: “À celebração geral do triunfo: uns dançam, outros
acendem fogueiras, cada um cedendo à própria diversão e ao vício.
Chispem daqui.”
Obedientes, nós partimos.
A porta da frente se abriu e uma onda de barulho irrompeu de lá para nos
cumprimentar. O Castelo estava abarrotado de pessoas, alguns bebendo,
alguns dançando, reluzindo com roupas de festa. (Os garotos não estavam
tão diferentes assim do normal — mesmo vestidos de forma melhor, mais
penteados —, mas as garotas estavam praticamente irreconhecíveis. A noite
caíra e, com sua escuridão, trouxera vestidos curtos e colados ao corpo,
rímel escuro e batom acetinado, transformando-as de garotas em uma
irmandade de criaturas noturnas encantadoras.) O rugido de boas-vindas
recaiu sobre nós; mãos se esticaram para agarrar nossas roupas e nos
arrastar, impotentes, para dentro.
Dois barris repousavam na banheira do térreo, preenchida por gelo e
garrafas de água. Pilhas de copos descartáveis atulhavam o balcão da
cozinha, enquanto garrafas de rum barato, vodca e uísque estavam
organizadas no fogão, em uma pirâmide que lembrava pinos de boliche (na
maior parte pagas pela mesada exorbitante de Meredith, com contribuições
mais modestas do restante de nós). As de melhor qualidade estavam
guardadas no quarto de Alexander. Assim que chegamos, Filippa deu uma
corridinha ao andar de cima e voltou com uísque e refrigerante para todos
nós. Imediatamente depois disso, James e Alexander desapareceram,
sugados pela multidão. A maioria dos alunos de teatro se reunira na
cozinha, onde estavam conversando e rindo duas vezes mais alto do que o
necessário, ainda atuando, observados pelos espectadores menos
insuportáveis dos departamentos de artes plásticas, linguística e filosofia.
Os alunos do coral e da orquestra, ávidos para criticar a seleção de músicas,
e os bailarinos, ávidos para se exibirem, preencheram a sala de jantar, tão
mal iluminada que eles pareciam ter apenas uma vaga ideia de com quem
estavam dançando, ou simplesmente não dar a mínima. A música ecoava as
batidas pelas tábuas de madeira, cada nota do baixo um pequeno terremoto,
o passo de um dinossauro lento que se aproximava. A superfície da minha
bebida tremia e vibrava, até que Filippa jogou um punhado de gelo nela.
— Valeu.
A expressão dela estava distante e distraída.
— Você está bem? — perguntei.
— Estou — disse ela, com um sorriso que parecia dolorido. — Ganhei
um hematoma e tanto, mas em um lugar mais escondido.
— Você está bem bonita — eu disse de forma tosca.
Ela estava vestindo uma roupa azul curta, que mostrava as pernas
compridas. Felizmente, não estava arrumada demais, e ainda parecia
humana.
— Acontece de vez em quando — disse ela, suspirando e permitindo-se
relaxar. — Onde você estava?
— Lá fora. Alexander enrolou um pra você, se você quiser.
— Que Deus abençoe aquele hedonista terrível. Cadê ele?
— Na pista de dança — falei —, procurando calouros que ainda não
sabem que são gays.
— Onde mais ele estaria? — disse ela, e foi embora da cozinha,
habilmente manobrando entre as pessoas no balcão, que lutavam para se
apossar dos sucos e refrigerantes que rapidamente se esvaiam.
Tomei um longo gole do uísque com refrigerante, me perguntando quanto
tempo demoraria para o efeito do álcool e da maconha se misturarem. Colin
e vários outros alunos do terceiro ano pararam a caminho da entrada —
onde as pessoas estariam fumando, conversando e esperando que os
ouvidos parassem de latejar — para me parabenizar por ter feito uma boa
peça. Eu os agradeci e, quando eles foram embora, Colin se demorou no
batente. Eu inclinei a cabeça perto dele para ouvi-lo melhor.
— A três-um hoje foi meio intensa — disse ele. — Está tudo bem?
— Acho que sim — falei. — Pip levou uma certa surra, mas ela é
durona. Você viu o Richard?
— Ele está lá em cima, bebendo uísque como se fosse água.
Nós nos entreolhamos, em parte com desdém, e em parte com
preocupação. Nós dois nos lembrávamos bem demais do que acontecera da
última vez que Richard bebera demais.
— E a Meredith? — perguntei, querendo saber se talvez fosse um fator
que contribuísse para o mau humor de Richard, ou se James, Alexander e eu
éramos os únicos culpados.
— Está de anfitriã no jardim — disse Colin. — Ela pendurou todas as
luzes lá. Acho que está observando para se certificar de que ninguém vai
arrancá-las do lugar.
— É mesmo a cara dela.
Ele abriu um sorriso. (Apesar de nós originalmente o compararmos a
Richard, a semelhança não durou muito. Ele fazia os mesmos papéis
bombásticos, mas, fora do palco, a confiança dele era mais cativante do que
frustrante.)
— Quer vir fumar? — disse ele.
— Acabei de fumar um, mas Pip deve estar no jardim.
— Ótimo — disse ele, e saiu atrás dos amigos.
Eu me virei para perscrutar a cozinha, me perguntando aonde James tinha
ido.
Por cerca de uma hora, talvez mais, fui de sala em sala, de conversa em
conversa, aceitando bebidas e parabéns com um desinteresse educado. A
música na sala de jantar estava tão alta que eu mal conseguia ouvir o que
qualquer um dizia. A luz vermelha fraca e o ondular constante de corpos
exacerbaram meu estado de embriaguez, e, quando comecei a ficar tonto,
saí para a entrada do prédio. Assim que coloquei o pé do lado de fora,
aquela garota que havia flertado comigo no Halloween me viu. Dei meia-
volta abruptamente e escapei pela lateral do prédio, em direção ao jardim.
O jardim — que estava menos para um jardim de verdade e mais para um
pedaço de gramado ladeado por árvores — não estava abarrotado. As
pessoas estavam espalhadas em rodinhas de três ou quatro, conversando,
rindo ou olhando para as luzinhas, que haviam sido penduradas de árvore
em árvore, meticulosamente arrumadas. O jardim reluzia como se diversas
centenas de vagalumes prestativos tivessem decidido comparecer à festa.
Meredith estava sentada no meio do jardim, de joelhos cruzados, uma
bebida na mão, e um palito de dentes com duas azeitonas espetadas na
outra. (Aparentemente, ela estava tomando martini enquanto todo mundo se
contentava em misturar álcool barato e Coca-Cola.) Eu pairei, incerto, no
limiar do jardim. Nós não trocáramos mais do que algumas palavras desde o
incidente do camarim, e eu não estava bem certo do status da nossa relação.
Antes que pudesse me conter, eu me vi encarando as pernas dela. As batatas
da perna afinavam perfeitamente em tornozelos esguios, e scarpins pretos
de salto doze. Eu considerei a possibilidade de ela estar sentada na mesa
porque não conseguia ficar em pé no chão de grama sem afundar.
Quando ela percebeu que eu estava ali, abriu um sorriso — sem nenhum
ressentimento aparente. (O garoto ao lado dela — ele tocava violoncelo
com os alunos da orquestra, apesar de eu não saber em qual ano —
continuou falando, ignorante quanto ao fato de que a atenção dela havia se
desviado.) Uma pequena onda de alívio passou por mim. Ela se virou para o
violoncelista, mas olhou para a própria bebida, mexendo lentamente com as
azeitonas.
Eu estava prestes a voltar para dentro quando senti um braço passar ao
redor da minha cintura.
— Oi pra você — disse Wren, com a afeição fofa e cheia de carícias que
ela sempre demonstrava quando tinha bebido.
Ela vestia algo diáfano e verde-claro que a fazia parecer a Sininho.
Eu afaguei o cabelo dela.
— Oi. Está se divertindo?
— E muito, só que Richard está sendo um babaca.
— Estou chocado.
O nariz dela enrugou quando ela franziu o cenho. Ela ainda estava me
abraçando pela cintura, e eu me perguntei, de forma vaga, se conseguia
ficar em pé sozinha.
— Não sei o que deu nele — disse ela, com um tom amargo na voz que
eu nunca ouvira antes. — Ele sempre foi meio grosseiro, mas agora está…
sei lá. Malvado.
Era uma palavra tão inocente que eu senti uma pontada protetora, como a
de um irmão mais velho. Eu a apertei contra mim.
— Não sei se “malvado” é a palavra certa — eu disse.
— Por que não?
— Sei lá, não é só maldade. É sadismo. Ele anda nos espancando no
palco. Na noite de estreia ele quase estourou meu tímpano, Filippa está com
um hematoma do tamanho da Austrália, e James…
Eu parei de falar, lembrando, tarde demais, da minha promessa de não
falar nada. Meus filtros verbais e visuais não estavam funcionando
corretamente.
— O que ele fez com James? — exigiu ela com uma incerteza
amedrontada.
Ela estava tentando se manter na conversa, mas o uísque não estava
colaborando.
— Eu disse que não ia contar a ninguém. Mas ele vai te contar, se você
pedir.
Pensei em James enrolando a mecha do cabelo dela, e ocorreu a mim que
ele faria qualquer coisa que ela pedisse. Algo desconfortável apertou em
meu peito.
Ela franziu o cenho de novo. Os braços dela estavam frouxos ao meu
redor, como se tivesse se esquecido de que estavam lá.
— Sabe, às vezes ele me assusta.
— James? — perguntei, espantado.
Ela sacudiu a cabeça.
— Richard. Eu fico com medo de ele machucar alguém de verdade, ou se
machucar. É que ele é… inconsequente, sabe?
Não era a palavra que eu teria escolhido, mas assenti de qualquer forma.
— Você deveria dizer isso a ele. Você é provavelmente a única pessoa
que ele escuta.
— Pode ser. Mas vai ter que esperar até de manhã. Agora ele está
completamente bêbado.
— Bom — falei —, se ele está bêbado demais pra ficar em pé, talvez
essa festa dê certo no fim das contas.
Tive uma sensação estranha e arrasadora naquele momento. Não
importava o quanto ele bebesse, Richard nunca ficava completamente
incapacitado. O álcool só o deixava ainda mais… inconsequente, para usar
a palavra de Wren.
Meredith deslizou da mesa e pediu licença para seus admiradores (os
quais, naquela altura, já eram quatro em número). Ela cruzou o jardim com
uma firmeza surpreendente, inclinando a cabeça quando chegou.
— Que fofos — disse ela.
De perto, e em meu estado menos lúcido, eu não conseguia parar de olhá-
la. Ela usava um vestido preto colado, com um ombro exposto, uma faixa
de strass reluzindo no outro. Com aqueles sapatos, estava quase da minha
altura.
— O jardim ficou incrível, Mer — disse Wren.
— Ficou. — Ela sorriu para as luzes. — Odeio ter que ir. E assim eu
perco / duas das mais doces amizades.
Ela deu uma piscadinha. A sombra que usava, um tom escuro de ameixa,
de alguma forma deixava seus olhos ainda mais verdes.
— Aonde você vai? — perguntou Wren.
— Lá dentro buscar outra bebida. — Ela ergueu o copo vazio. — Quer
que eu traga mais uma?
Wren soltou um soluço.
— Acho que para mim já deu.
— Eu também acho — disse Meredith, e mal soava como uma bronca, e
sim como um ato fraternal. Ela se virou para mim. — Gostaria do fruto das
oliveiras, Oliver?
Ela ergueu o palito de dente, com uma última azeitona espetada na
extremidade.
— Pode ficar — eu disse, sem conseguir reprimir um sorrisinho. — Se eu
aceitasse, seria canibalismo.
Ela me lançou um olhar penetrante que fez a temperatura subir uns três
graus, e então mordeu a azeitona do palito, desaparecendo dentro do
Castelo. Eu a observei indo embora, encarando a porta vazia inutilmente
enquanto Wren falava:
— Ela não parece estar sofrendo muito.
— Como assim?
— Ela e Rick estão “dando um tempo” — disse ela, desenhando aspas no
ar com apenas uma mão. — Achei que você soubesse.
— Hum, não. Não sabia.
— Ideia dela. Ele não está exatamente feliz com isso, mas você sabe
como ele é. Não pede desculpas por nada. — Ela fez uma careta. — Se ao
menos ele engolisse o orgulho, ela poderia mudar de ideia.
— Ah.
Wren bocejou, pressionando as costas da mão contra a boca.
— Que horas são?
— Não sei — respondi. — É tarde.
Minhas próprias pálpebras pareciam pesar.
— Eu vou descobrir.
— Eu não quero saber.
Ela me soltou, pegando impulso na minha cintura para ficar ereta.
— Ok, eu não vou te contar.
Ela me fez um carinho no braço, como se eu fosse um cachorro, e
cambaleou escada acima, segurando a saia com dois dedos.
O jardim se esvaziara durante nossa conversa. As pessoas ou estavam
voltando para dentro ou (era o que eu esperava) voltando para casa. Eu me
aventurei para o meio da clareira e fechei os olhos. O ar da noite estava frio,
mas não me incomodava. Tranquilizava minha pele quente como um
bálsamo, limpava a fumaça dos pulmões, e expulsava a sombra aveludada
de Meredith da minha cabeça. Quando abri os olhos, fiquei surpreso ao ver
um feixe azulado entre o topo escuro das árvores, uma lasca branca da lua
sorrindo para mim. Um desejo abrupto de ver o céu por inteiro me impeliu a
seguir pela trilha até o lago. Quando eu fiz menção de me mexer, a voz de
James me segurou no lugar.
— Belo brilho, Lua! Há graça em sua luz.
Eu me virei para vê-lo parado atrás de mim, as mãos no bolso.
— Onde você esteve a noite toda?
— Falando sério?
— Sério.
— Eu dei uma volta por um tempo, mas me senti sufocado e me esgueirei
para o quarto para ler um pouco.
Eu ri alto.
— Seu nerd. O que te trouxe de volta?
— Bom, passou da meia-noite, e eu não posso decepcionar Alexander.
— A essa altura eu duvido que ele se lembre de ter falado aquilo para a
gente.
— Provavelmente não lembra mesmo. — Ele inclinou a cabeça para trás
para admirar o céu. — Parece ainda mais distante quando tem tão pouco
dele.
Por um tempo, simplesmente ficamos ali, os rostos voltados para o alto,
em silêncio. O barulho do Castelo era um retumbar abafado ao fundo, como
o rugido de motores de carro em uma estrada distante. Uma coruja piou
baixinho em algum lugar. Ocorreu a mim (pela primeira vez, creio) o
quanto ficávamos isolados quando o Castelo estava vazio, quando não havia
uma festa, quando todos os outros alunos estavam a quase um quilômetro
de distância, no Pavilhão. Éramos só nós — nós sete, e as árvores e o céu e
o lago e a lua, e, é claro, Shakespeare. Ele morava conosco como um oitavo
colega, um amigo mais velho e mais sábio, perpetuamente fora de vista,
mas nunca longe das afeições, como se sempre tivesse acabado de deixar a
sala. Grande é a força da poesia divina.
Fez-se um som de eletricidade baixa. As luzes de Meredith piscaram e se
apagaram. Olhei para o Castelo na penumbra profunda. As luzes da cozinha
estavam acesas e ainda se ouvia música, então presumi que não tínhamos
estourado o transformador.
— O que será que aconteceu?
James não estava curioso o bastante para desviar o olhar do céu.
— Olhe — disse ele.
Com as luzes apagadas, dava para ver as estrelas, pontinhos brancos
minúsculos espalhados ao redor da lua, brilhando como lantejoulas. O
mundo ficou perfeitamente imóvel por um precioso instante. Então, fez-se o
barulho de algo quebrando, um grito, e algo lá dentro espatifou. A
princípio, nem eu nem James nos mexemos. Ficamos os dois nos
encarando, torcendo — silenciosa, desesperada e inutilmente — para que
alguém simplesmente tivesse derrubado uma garrafa do balcão, ou caído
das escadas, ou alguma outra coisa desastrada e inocente. Porém, antes que
pudéssemos abrir a boca, vozes lá dentro começaram a gritar.
— Richard — falei, meu coração já pulando na garganta. — Aposto o
que for.
Nós corremos de volta para o Castelo da forma mais reta que
conseguíamos.
A porta estava escancarada, mas as pessoas a bloqueavam
completamente, preenchendo aquele espaço. James e eu empurramos todos
para entrar na cozinha, onde ao menos uma dúzia de outras pessoas fizera
um círculo junto às paredes do cômodo. James irrompeu pelo círculo
primeiro, acotovelando dois linguistas do segundo ano. Eu não estava
sóbrio o bastante para julgar distâncias e trombei nele quando ele parou,
mas a aglomeração das pessoas impediu que nós dois caíssemos.
O violoncelista que estivera falando com Meredith no jardim estava
estatelado no chão, com uma mão no rosto, sangue escorrendo por entre os
dedos. Filippa estava agachada ao lado dele, de cócoras, no centro de uma
desordem reluzente de vidro quebrado. Meredith e Wren estavam de pé, de
frente para Richard, e os três gritavam ao mesmo tempo, as palavras se
sobrepondo, indistinguíveis em meio à música e às risadas do cômodo ao
lado. Alexander estava parado no batente atrás de Richard, mas apoiado em
Colin, e sem condições de intervir, então James e eu demos um passo à
frente para servir de árbitros.
— O que aconteceu? — perguntei, berrando para ser ouvido acima da
balbúrdia.
— Richard — disse Filippa, lançando um olhar feio por cima do ombro.
— Apareceu e deu um socão nele.
— Mas que porra foi essa? Por quê?
— Ele estava observando o jardim da janela lá de cima.
— Calma! — ordenou James. — Todo mundo, calma!
Wren ficou em silêncio, mas Richard e Meredith o ignoraram.
— Você está descontrolado! — berrou ela. — Você precisa de uma
camisa de força.
— Bom, talvez a gente possa dividir uma.
— Isso não é uma piada, caralho! Você poderia ter arrebentado os dentes
dele!
O garoto no chão grunhiu e se inclinou para a frente, uma trilha comprida
de sangue e saliva escorrendo da boca. Filippa se colocou de pé
rapidamente.
— É, acho que já arrebentou — disse ela. — Ele precisa ir à enfermaria.
— Eu posso levar — disse Colin.
Ele deixou Alexander recostado no batente e passou longe de Richard
enquanto cruzava a cozinha. Ele, Filippa e eu conseguimos colocar o
violoncelista de pé e o penduramos no ombro de Colin. Eles não tinham
nem saído da cozinha antes que Richard e Meredith retomassem a briga a
gritos.
MEREDITH: “Está feliz agora?”
RICHARD: “Você está?”
— Os dois, parem com isso! — A voz de Wren havia ficado estridente e
perigosa. — Só parem, tá?
Richard se virou para ela, e ela deu um passo cauteloso para trás.
— Esse problema não é seu, Wren.
— Não — disse Filippa, incisiva. — Você fez com que fosse o problema
de todo mundo.
— Não seja uma vaca, Filippa…
James e eu demos um passo à frente ao mesmo tempo, mas Meredith foi
quem falou primeiro, e Richard ficou paralisado, todos os músculos entre os
ombros salientes e tensos.
— Não fale com ela assim. Dê a volta e olhe para mim — disse ela. —
Pare de ficar provocando todo mundo como se fosse um adolescente e olhe
para mim, caralho.
Ele se voltou para ela em uma guinada tão repentina que todo mundo
saltou para trás. Meredith, porém, não se moveu um centímetro sequer —
ou ela era corajosa, ou louca.
— Cale a boca… — começou ele, mas ela não o deixou terminar.
— Ou o quê? Vai arrebentar meus dentes? — perguntou ela. — Vá em
frente. Eu duvido que você faça isso.
Eu decidi que “corajosa” e “louca” não eram coisas necessariamente
excludentes.
— Meredith — falei, cuidadoso.
Richard se virou na minha direção, e James e Filippa se aproximaram
mais de mim, fechando a fileira.
— Não me tente — disse ele. — Você eu vou mandar pra enfermaria em
picadinho.
— Deixa isso pra lá! — Meredith o empurrou, as duas mãos acertando o
peito dele com um baque surdo. Antes que ela pudesse recuar mais uma
vez, ele a agarrou pelo pulso. — Não tem nada a ver com ele. Você só está
pegando no pé do Oliver porque não pode me bater e está desesperado para
bater em alguém!
— Você gostaria disso, né? — disse Richard, empurrando ela para a
frente.
Ela tentou desvencilhar o braço até a pele ficar branca.
— Se eu te desse umas porradas, e assim todo mundo tivesse um motivo
para te olhar — continuou ele. — Todo mundo sabe que você ama quando
te olham. Sua puta.
Entre nós seis, tínhamos dito que Meredith era “puta” ou alguma
variação disso milhares de vezes, mas aquilo era horrivelmente diferente.
Tudo pareceu ficar em silêncio, apesar da música que ainda ecoava na sala
ao lado.
Richard agarrou o queixo dela, puxando o rosto dela para cima, para mais
perto do dele.
— Bom. Foi divertido por um tempo.
Meu último fio tênue de hesitação finalmente se rompeu. Eu parti para
cima dele, mas Meredith estava mais perto. As pessoas gritaram quando ela
deu um tapa nele com as costas da mão — não era nada parecido com o que
acontecera na aula de Camilo, não era preciso e controlado, e sim um golpe
bruto e feroz, feito para causar o máximo de dano possível. Richard xingou
alto, mas, antes que pudesse revidar, James e Alexander se chocaram contra
ele como um par de jogadores de futebol americano. Mesmo o peso dos
dois juntos não foi o bastante para derrubá-lo, e ele continuou berrando
xingamentos, tentando agarrar com as mãos qualquer centímetro de
Meredith que conseguisse. Eu a puxei pela cintura, mas ele já estava com
um punhado do cabelo dela cerrado nos punhos, e ela chorou de dor quando
ele puxou com força. Eu a ergui do chão e a desvencilhei dele, apertando-a
contra meu peito, perdendo o equilíbrio e trombando em Filippa. Richard,
James e Alexander tombaram para trás e caíram nos armários, meia dúzia
de pessoas se apressando para segurá-los antes que fossem derrubados ao
chão.
Afastei o cabelo de Meredith do meu rosto, um braço apertado ao redor
dela, sem ter certeza se estava tentando protegê-la, controlá-la ou ambas as
coisas.
— Meredith… — falei, mas ela me acotovelou no estômago e me
empurrou para longe.
Quando eu cambaleei, Filippa agarrou minha camiseta e me segurou,
como se estivesse com medo do que eu faria caso me soltasse. Meredith
encarou Richard atrás de nós, os braços rígidos na lateral do corpo, o peito
arfante e a respiração pesada. Lentamente, Richard se empertigou. James já
tinha se afastado, e as poucas pessoas que ainda estavam segurando Richard
apressadamente retiraram suas mãos. Alexander xingou baixinho, tocando a
ponta dos dedos no lábio ensanguentado. Todos os olhos estavam fixos em
Meredith, mas não era o tipo de olhar com o qual ela estava acostumada.
Tudo que ela sentia estava estampado no rosto — vergonha, fúria, uma
incredulidade paralisante.
— Seu filho da puta — disse ela.
Ela se virou e passou por mim e Filippa, dispersando calouros
aterrorizados no caminho para as escadas.
Richard e eu ficamos nos encarando, como esgrimistas desarmados.
Alexander piscava na minha visão periférica, esticando a mão para pegar
um guardanapo e limpar a boca. Eu ouvia Wren choramingar, mas era um
som distante. James estava atrás de Richard como uma sombra, me
observando com uma expressão espantada, em parte pavor, em parte
indignação. A raiva borbulhava sob minha pele, aprisionada ali pelo tecido
da camiseta colada ao meu corpo. Eu queria ferir Richard como ele ferira
Meredith, como ele ferira James, como ele feriria qualquer um de nós por
qualquer motivo meia-boca. Olhei para Filippa porque, assim como ela, eu
não confiava em mim mesmo para não atacá-lo.
— Vou atrás dela — eu disse, rígido.
Ela assentiu e soltou a camiseta, e eu não esperei. A multidão se abriu
para mim com tanta facilidade quanto para Meredith. Eu segui o corredor
entre a cozinha e a sala de jantar, respirando lentamente pelo nariz até
minha cabeça parar de girar. Eu nem sabia mais exatamente a causa da
minha embriaguez — uísque, maconha ou fúria violenta. Respirei fundo
uma última vez, então passei pela porta na direção da escada.
— Meredith — falei, pela terceira vez.
Ela era a única pessoa ali, no meio das escadas. A música passava pelas
paredes, abafada. Uma luz rosada vazava pela cozinha.
— Me deixe em paz.
— Ei. — Subi os três primeiros degraus atrás dela. — Espera aí.
Ela parou, uma mão tremendo no corrimão.
— Por quê? Essa porra de festa já acabou pra mim. Eu não aguento mais
essa gente. O que você quer?
— Eu quero ajudar.
— É mesmo?
Eu a encarei — o vestido desgrenhado, os braços cruzados, e rosto
corado — e senti um palpitar dolorido e minúsculo nas profundezas do meu
âmago. Ela era teimosa demais.
— Deixa quieto — falei, e me virei para descer as escadas de novo.
— Oliver!
Eu cerrei os dentes, me virando.
— Que foi?
Ela não disse nada por um momento, só me olhou de cara amarrada. O
cabelo dela estava embaraçado e preso a um brinco onde Richard a
agarrara. Aquele rasgo em mim abriu com mais força e ardeu — tenro e
dolorido, escarlate e enfurecido.
— Você quer mesmo ajudar? — perguntou ela.
Era uma meia pergunta. Hesitante, como se desconfiasse da resposta.
— Quero — respondi, feroz demais, magoado pela dúvida.
Aquele mesmo olhar destemido e atrevido que ela me lançara no
camarim brilhou em seu rosto. Em um movimento impulsivo, ela desceu os
três degraus entre nós e me beijou, me segurando, as duas mãos enroscadas
com força no meu pescoço. Fiquei aturdido, mas, ainda assim, distraído de
todo o resto pelo calor inesperado da boca dela contra a minha.
Nós nos separamos um centímetro e nos encaramos com olhares
arregalados e vulneráveis. Nada nela jamais parecera simples, mas, naquele
momento, era, sim. Simples, íntima e linda. Um pouco desgrenhada, um
pouco machucada.
Nós nos beijamos de novo, com mais urgência. Ela forçou meus lábios a
abrirem, roubou o ar direto da minha boca, me empurrou para trás até eu
esbarrar no corrimão. Eu agarrei o quadril dela e a puxei contra mim, pronto
para sentir cada centímetro do corpo dela.
Uma voz desconhecida interrompeu o ruído pesado da música através da
parede.
— Puta merda.
Ela se desvencilhou e se afastou, e eu quase perdi o equilíbrio com a
ausência repentina do corpo dela. Um calouro aleatório do primeiro ano
estava ao pé da escada, uma bebida na mão. O olhar dele seguiu de mim
para Meredith, com uma surpresa entorpecida e sem foco.
— Puta merda — disse ele de novo, e cambaleou na direção da cozinha.
Meredith pegou minha mão.
— Meu quarto — disse ela.
Eu a teria seguido a qualquer lugar, e eu nem me importava com quem
soubesse — Richard (que merecia coisa muito pior do que essa traição
mesquinha) ou qualquer outra pessoa.
Subimos a escada com pressa, atrapalhados, obstruídos pelos saltos altos
dela e pela minha embriaguez, e por nossa recusa tola de parar de nos
agarrar. Corremos pelo segundo andar, batendo nas paredes e nos beijando
mais uma vez antes de cambalear para dentro do quarto. Ela fechou a porta
e virou a tranca. Nós colidimos mais do que nos abraçamos, a cena febril
relampejando com vislumbres doloridos — ela apertou os dedos no meu
cabelo, apertou meu lábio entre os dentes, estremeceu quando a barba
áspera por fazer no meu queixo arranhou seu pescoço. O grave da música
na sala de jantar lá embaixo retumbava sob tudo como se fosse uma batida
de tambor ritual.
— Você é linda pra caralho — falei no meio segundo que tinha para falar
quando ela tirou minha camiseta por cima da cabeça.
Ela a jogou para o outro lado do quarto.
— É, eu sei.
O fato de que ela sabia de alguma forma era ainda mais sexy do que ela
fingir que não sabia. Eu me atrapalhei com o zíper na lateral do vestido
dela, dizendo:
— Ótimo. Só estava me certificando.
O resto de nossas roupas foram despidas e descuidadamente descartadas,
tudo exceto as roupas de baixo e os sapatos de Meredith. Nós nos beijamos,
arfando, e nos agarramos como se estivéssemos com medo de nos soltar.
Minha cabeça rodopiava, o chão girando e balançando quando eu fechava
os olhos. Passei a mão da nuca dela até a lombar, a pele eletrizante sob a
ponta dos dedos. O toque aveludado e quente dos lábios dela em minha
orelha me fez gemer e puxá-la para mais perto — delirante, viciado, furioso
comigo mesmo por ter fingido que eu não a queria.
Nós estávamos a caminho da cama quando um punho bateu na porta,
fazendo-a sacudir no batente. Outro soco se seguiu, e então outro,
golpeando de novo e de novo como se fosse um aríete.
— ABRA A PORTA! ABRA A PORRA DA PORTA!
— Richard!
Eu me afastei, mas Meredith me agarrou pelo pescoço.
— Ele pode bater nessa porta a noite toda se quiser.
— Ele vai quebrar a porta ao meio — eu disse, e as palavras
desapareceram entre os lábios dela antes mesmo de deixarem os meus, o
pensamento esquecido antes mesmo de terminá-lo.
Meu coração pulsava em desespero.
— Ele que tente.
Ela me empurrou para trás na cama, e eu não discuti.
Tudo depois disso foi desconjuntado e confuso. Richard martelava a
porta, xingando alto, berrando ameaças que eu mal ouvia — a voz dele
apenas parte de um ritmo pesado, “EU VOU TE MATAR, EU VOU TE MATAR, EU JURO
POR DEUS QUE EU VOU MATAR VOCÊS DOIS”. Era impossível prestar atenção nele
com Meredith no meio do caminho, intoxicante, tangível, embriagante, o
menor suspiro dela suficiente para abafar qualquer tumulto barulhento que
ele fizesse. Ele desvaneceu, como o fim de uma música ruim, e eu não sabia
se ele tinha ido embora, ou se eu tinha ficado surdo a qualquer coisa que
não fosse Meredith. Minha cabeça estava tão leve que, sem o peso dela em
cima de mim, talvez eu tivesse flutuado para longe. Centímetro a
centímetro, meu corpo e meu cérebro se conectaram. Eu a deixei fazer o
que quisesse comigo por mais um tempo, e então a virei para o lado, de
barriga para cima e a prendi ali, pouco disposto a ser inteiramente
submisso.
Quando caí ao lado dela no colchão, meus músculos estremeciam sob a
pele. Naquele momento, nossa pele fervia, e ficamos deitados com as
pernas enroscadas. Nossas respirações rasas foram se encompridando,
aprofundando, e o sono me puxou rapidamente para baixo, como a
gravidade.
CENA 9

Eu não dormi por muito tempo, e dormi como um homem em uma jangada,
as ondas oscilando sob mim — mais mareado do que bêbado. Meus olhos
se abriram antes mesmo de eu compreender que estava acordado, e eu
encarei o teto pouco familiar. Meredith estava deitada ao meu lado, uma
mão encaixada sob a bochecha, o outro braço aninhado ao peito. Uma ruga
minúscula se mostrava entre as sobrancelhas, como se a essência dos seus
sonhos a perturbasse.
O abajur na mesa de cabeceira escoava uma luz alaranjada e aguada na
cama. Eu estiquei o braço cuidadosamente para além de Meredith, mas
hesitei. Sua respiração tremulava nas costas da minha mão. Eu não
conseguia deixar de olhá-la — pela primeira vez, não porque ela era linda,
mas porque as pequenas manchas escuras no corpo dela, que em meu fervor
embriagado confundira com sombras e truques da luz, não haviam sumido.
A linha delicada do pulso dela estava marcada por minúsculas
eflorescências roxas, como botões de violeta na pele. Marcas mais antigas,
apagadas como aquarela, mostravam onde uma mão mais pesada que a
minha a tocara, onde dedos fantasmas apertaram com força demais: na
nuca, na curva do joelho. Ela estava tão machucada quanto James. Senti
náuseas, mas aquele sentimento de embrulho repousou em meu peito, em
vez de no estômago.
Arrisquei afastar uma mecha do cabelo dela da bochecha, e então apaguei
a luz. O quarto encolheu ao meu redor, a escuridão ávida invadindo. Ergui o
lençol e coloquei os pés no chão. Precisava de água, muito, para aliviar a
garganta seca e desanuviar a cabeça. Quando cheguei no meio do quarto,
vesti a cueca.
Antes de abrir a porta, pressionei o ouvido contra a madeira. Será que
Richard era louco o suficiente para esperar lá fora a noite toda até que um
de nós saísse do quarto? Quando não ouvi nada, abri uma pequena fissura.
O corredor esticava-se vazio e escuro nas duas direções. A música e as
luzes do andar de baixo tinham sido desligadas, e o prédio inteiro causava
uma sensação esquelética, como uma casca vazia onde uma criatura
molenga invertebrada costumava viver. Eu me esgueirei ao banheiro, me
perguntando se era o único acordado. Evidentemente que não — a porta de
Alexander estava aberta; a cama, vazia. Andei rapidamente, torcendo para
não despertar ninguém. Eu sabia que algum tipo de confronto era inevitável,
mas preferia que não acontecesse antes que fosse absolutamente necessário.
Não antes que eu pudesse convencer a mim mesmo de que tudo aquilo de
fato acontecera — minha memória da festa tinha a qualidade quimérica e
translúcida de um sonho. Parte de mim queria acreditar que tinha mesmo
sido só isso.
Presumindo que um folião embriagado deixara a luz acesa, abri a porta
do banheiro sem bater. No instante que meus olhos demoraram para se
ajustar, uma figura acocorada saltou do chão.
— Jesus!
— Shh, Oliver, sou eu!
James passou a mão por trás de mim para fechar a porta. O braço dele
roçou meu estômago nu, e eu estremeci com a umidade da pele dele. Ele
deu um passo para trás, nu e encharcado. O chuveiro tamborilava
suavemente no fundo.
— O que você está fazendo?
Ele deu a descarga, e a água rodopiou para longe. Ele limpou a boca.
— Só vomitei — falou.
— Está tudo bem?
— Está. Só bebi demais. O que você está fazendo acordado?
— Precisava tomar água — eu disse, desviando os olhos.
Nós dividíamos um quarto havia três anos, e James nu não era nada que
eu nunca vira, mas eu o surpreendera, e aquilo parecia invasivo de alguma
forma.
— Você se importa se eu continuar o banho? — perguntou ele, erguendo
brevemente a mão, um gesto abortivo frouxo na direção do chuveiro. — Eu
me sinto nojento. Odeio vomitar.
— Vá em frente.
Passei por ele para chegar na pia e fiz as mãos em forma de concha para
colocar água fria na boca enquanto ele passava a perna por cima da lateral
da banheira. O chuveiro atingiu a pele dele com um sibilo, e ele puxou as
cortinas para ficarem mais fechadas.
— Então — perguntou ele em um tom descontraído até demais —, você
acabou de vir do quarto da Meredith?
— Hum. Aham.
— Você acha que isso é uma boa ideia?
— Não particularmente.
Meu reflexo estava desgrenhado e caótico. Tentando disfarçar, esfreguei
uma mancha de batom do canto da boca. Pelo espelho, eu via James
apoiado na parede, a água deslizando pelo nariz e pelo queixo.
— Pelo jeito, tá todo mundo sabendo — falei.
Joguei água no rosto, esperando que minha pele esfriasse.
— Um dos calouros veio da escada e praticamente anunciou para todos
na sala.
— Odeio calouros.
Desliguei a torneira, e fechei a tampa da privada para me sentar.
— Então. Como foi? — perguntou ele.
Ergui o olhar, a ansiedade pinicando minha pele de forma dolorida.
— Você sabe que Richard vai me matar, não sabe?
— Parece mesmo ser o plano dele.
James virou o rosto para a água, os olhos fechados. Meus braços e pernas
pareciam pesados e inúteis, como se os músculos e ossos tivessem
dissolvido, substituídos por uma massa de concreto. Passei os dedos
molhados pelo cabelo e perguntei:
— Cadê ele, aliás?
— Não sei. Desapareceu floresta adentro com uma garrafa de uísque
depois que Pip e Alexander o impediram de arrombar a porta de Meredith.
— Cristo amado.
Deixei a cabeça pender por um momento, e então me coloquei de pé
antes que me sentisse pesado demais para me mexer.
— Você vai voltar para o quarto dela? — perguntou James.
Ele estava de costas para mim, a água deslizando entre as clavículas em
duas correntes estreitas (por um instante, me deixei levar pela ideia que
talvez pudesse lavar os hematomas da pele dele como se fossem tinta).
— Eu não quero deixá-la lá, como se fosse coisa de uma noite só.
— Não é exatamente isso?
Eu não me lembrava de já ter ficado irritado com James antes. O
sentimento surgiu de forma inesperada — vulnerável e avassalador, tão
doloroso quanto uma queimadura.
— Não — falei, alto demais.
Ele olhou para trás, o cenho franzido e confuso.
— Ah, é?
— Olha, eu sei que ela não é sua pessoa favorita, mas ela não é só uma
garota aleatória.
Ele pestanejou.
— Acho que não é mesmo — disse ele, dando as costas para mim
novamente.
— James — eu falei, sem ter ideia do que eu queria dizer depois daquilo.
Ele desligou a água, uma mão se demorando na torneira. Algumas gotas
minúsculas ainda se agarravam aos cílios dele, descendo pelo rosto como se
fossem lágrimas.
— Que foi? — disse ele, com um atraso.
Eu me esforcei para pensar em palavras — senti a forma delas, mas não a
substância que deveriam carregar — até que uma mancha na bochecha dele
me distraiu.
— Eu… Você está com vômito na cara — eu disse, abrupto.
A expressão dele ficou vazia enquanto aquela frase estranha era
registrada pelo cérebro dele e, quando registrou, ele corou até a raiz dos
cabelos.
— Ah.
Repentinamente, estávamos os dois profundamente constrangidos (o que
parecia absurdo, dados os últimos cinco minutos de conversas íntimas e
nudez despojada).
— Foi mal, isso é repugnante — disse ele.
— Tudo bem. — Eu me abaixei para pegar a toalha dele do chão. —
Aqui.
Nós dois havíamos nos abaixado para pegar e, quando eu fiquei em pé
novamente, nossas cabeças quase colidiram. Eu dei um passo para trás,
imensamente consciente do meu próprio corpo e de como era desajeitado.
Ele estava com os olhos arregalados, quase alarmado. Senti meu próprio
rosto ruborizar.
Resmunguei um boa-noite, coloquei a toalha na mão dele e saí do
banheiro às pressas.
CENA 10

Cerca de uma hora depois, eu acordei novamente, com o som de alguém


batendo na porta. Também vinha acompanhado de uma voz — feminina.
Não era Richard. Eu me apoiei nos cotovelos, e Meredith se remexeu ao
meu lado. A pessoa bateu mais uma vez, insistente.
— Oliver, eu sei que você está aí — disse Filippa. — Acorde.
A voz dela soava oca, como se fosse uma gravação ruim. Eu não queria
que ela acordasse Meredith, então deslizei para fora da cama e abri a porta
sem me dar ao trabalho de encontrar a calça jeans.
Filippa estava pálida e tensa.
— Vista-se — disse ela. — Os dois. Vocês precisam vir até o cais. Agora.
Ela foi embora, andando depressa, a cabeça abaixada. Fiquei parado no
batente por um instante, surpreendido pela ausência de um comentário
mordaz da parte dela. Algo estava errado — errado o bastante para que o
fato de eu acordar seminu no quarto de Meredith não importasse em nada.
Fechei a porta mais uma vez e comecei a pegar as roupas do chão.
— Meredith — chamei, com urgência. — Acorde.
Nós seguimos juntos para as docas, de olhos inchados e confusos.
— Que porra está acontecendo? — perguntou ela. — Nem amanheceu
ainda.
— Eu não sei — eu disse. — Filippa parecia abalada.
— Por quê?
— Ela não falou.
Nós cambaleamos pelas escadas de madeira raquíticas construídas na
lateral do morro sob a escuridão parcial. Um frio abafado e leve, como um
cobertor de neve, pressionou ao meu redor e me fez estremecer, mesmo que
eu estivesse de moletom e casaco. Os degraus estavam emporcalhados com
pedras e galhos, e o perigo de tropeçar era tão grande que mantive o olhar
nos pés até que finalmente pisei no último degrau e pude erguer o rosto.
Algumas estrelas teimosas ainda espreitavam no céu, pouco mais iluminado
do que os galhos pretos pontiagudos das árvores. Hesitei até meus olhos se
ajustarem ao crepúsculo sem sol. Sombras se solidificaram no formato de
James, Alexander, Wren e Filippa — todos parados nas docas, encarando a
água. Eu não conseguia ver adiante deles, ver o que estavam olhando.
— O que foi? — perguntei. — Pessoal?
Alexander foi o único que se virou na minha direção, e ele só sacudiu a
cabeça — um movimento minúsculo e pesaroso.
— O que aconteceu? — disse Meredith.
Finalmente, um tom de preocupação aparecera na voz dela.
Eu me coloquei entre James e Wren, e a vasta expansão do lago se abriu
diante de mim, a névoa borrando a silhueta das margens. Ondulações
minúsculas marulhavam ao redor de uma forma pálida grotesca,
parcialmente submersa onde a água deveria estar lisa e vítrea. Richard
flutuava de costas, o pescoço virado em um ângulo nada natural, a boca
aberta, o rosto congelado em uma máscara grega de agonia. Sangue
rastejava escuro e grudento pelo rosto, advindo da ruína de pele e osso que
antes era uma órbita ocular, uma maçã do rosto — rachada e destruída,
lacerada como uma casca de ovo.
Nós ficamos em silêncio, entorpecidos nas docas, até a terra finalmente
parar de girar. Uma paralisia terrível prendia nossos seis corpos quentes que
respiravam e Richard — uma coisa imóvel, inerte — sob um mesmo jugo
indestrutível. Então, fez-se um som, um gemido baixo; Richard esticou uma
mão débil em nossa direção, e o mundo deu uma guinada. Wren abafou um
grito e James agarrou meu braço.
— Ah, meu Deus — engasgou. — Ele ainda está vivo.
ATO III
PRÓLOGO

Colborne e eu saímos juntos no começo do entardecer. O dia tem uma


sensação primordial, pré-histórica, o sol forte e ofuscante através da camada
fina de nuvens. Nenhum dos dois está de óculos escuros, e fazemos uma
careta sob a luz, como bebês recém-nascidos reticentes.
— Aonde vamos agora? — pergunta ele.
— Eu gostaria de dar uma volta no lago.
Começo a atravessar o gramado, e ele anda ao meu lado. Até agora, ele
ficou em silêncio, escutando. De vez em quando, o rosto dele respondia a
algo que eu dissera — um erguer sutil das sobrancelhas ou um estremecer
no canto da boca. Ele fez algumas perguntas, coisas pequenas, como “Isso
aconteceu quando?”. Apesar de a linha do tempo ser clara em minha mente,
explicá-la para outra pessoa é uma tarefa curiosa; simples em teoria, mas
trabalhosa na prática, como organizar uma longa fileira de dominós. Um
acontecimento inevitavelmente leva ao próximo.
Caminhamos até o bosque sem conversar. As árvores são mais altas do
que me lembrava — não preciso mais me abaixar para passar pelos galhos.
Eu me pergunto o quanto uma árvore cresce em dez anos e estico a mão
para encostar no tronco, como se cada nó na casca fosse o ombro de um
velho amigo que cumprimento ao passar, sem pensar. Reconsidero: não
tenho nenhum velho amigo, exceto Filippa. Como os outros pensam em
mim agora? Eu não os vejo há tanto tempo. Eu não sei.
Saímos do bosque e seguimos para a praia, que parece exatamente igual.
Areia branca e áspera como sal, fileiras e fileiras de bancos curtidos pelo
clima. A cabine onde James jogou sangue em mim no Halloween está
levemente inclinada para o lado — uma Torre de Pisa diminuta.
Com as mãos escondidas nos bolsos, Colborne olha para a água.
Enxergamos a margem oposta por pouco, uma linha turva desenhada entre
as árvores e o reflexo. A Torre se destaca entre as árvores como um castelo
de contos de fada. Eu conto três janelas para encontrar aquela que ficava ao
lado da minha cama, uma fenda estreita, preta no muro de pedra cinza.
— Fez frio aquela noite? — pergunta Colborne. — Não lembro.
— Frio o suficiente.
Eu me pergunto se ainda há um pedaço desobstruído do céu no jardim, ou
se os galhos todos se emaranharam entre as árvores para impedir a visão.
— Ao menos, eu acho que sim — continuo. — Nós todos tínhamos
bebido, e sempre bebíamos demais, como se fosse uma espécie de
obrigação. O culto do excesso: bebidas e drogas, sexo e amor, orgulho e
inveja e vingança. Nada era consumido em moderação.
Ele sacode a cabeça.
— Eu passo toda sexta à noite em claro, me perguntando qual idiotice
alguma criança bêbada vai fazer que eu vou precisar arrumar no dia
seguinte.
— Agora não mais.
— Isso. Agora só me preocupo com meus próprios filhos.
— Quantos anos eles têm agora?
— Catorze — responde ele, como se não pudesse acreditar. — Vão
começar o ensino médio este ano.
— Eles vão ficar bem — eu digo.
— Como é que você sabe?
— Eles têm pais melhores do que nós.
Ele abre um sorriso, sem parecer saber se estou zombando dele. Então,
ele aponta o Castelo com a cabeça.
— Quer andar até a margem sul?
— Ainda não — digo, me sentando na areia, e ergo o olhar para ele. —
Essa história é longa. Tem muita coisa que você ainda não sabe.
— Eu tenho o dia todo.
— Vai aguentar ficar em pé até escurecer?
Ele faz uma careta, mas dobra os joelhos para se sentar ao meu lado
enquanto uma brisa sopra do lago.
— Enfim — diz. — Quanto do que você me contou aquela noite era
verdade?
— Tudo — respondo —, de um jeito ou de outro.
Ele faz uma pausa.
— Nós vamos mesmo jogar esse jogo?
— Embora falso, sou leal, sinceramente insincero — digo.
— Achei que, na prisão, iriam bater em você até que parasse com essas
besteiras.
— Essas besteiras são o que me fizeram perdurar.
Uma coisa que estou certo de que Colborne nunca irá compreender é que
eu preciso da língua para viver, como alimento — lexemas e morfemas e
lascas de significado me nutrem com o conhecimento de que, sim, há uma
palavra para isso. Alguém já sentiu o que senti antes.
— Por que você não me conta o que aconteceu? Sem teatro. Sem poesia.
— Para nós, tudo era teatro.
Um sorriso pequeno e confidencial toma conta do meu rosto de súbito, e
eu olho para baixo, esperando que ele não o note.
— Tudo é poesia — acrescento.
Colborne fica em silêncio por um instante, e depois diz:
— Você venceu. Conte do jeito que quiser.
Olho para o lago, para o topo da Torre. Um pássaro grande — um falcão,
talvez — voa em grandes círculos preguiçosos acima das árvores, um
bumerangue negro elegante em contraste com o céu prateado.
— A festa começou por volta das onze. Estávamos todos acabados à uma
da manhã, Richard mais do que todo mundo. Ele quebrou um copo, deu um
soco em um garoto. As coisas ficaram feias, houve uma confusão e tudo
saiu do controle, e às duas da manhã eu já tinha subido e estava na cama
com Meredith.
Sinto o olhar dele em meu rosto, mas não ergo o olhar.
— Era essa a verdade? — pergunta ele.
Eu suspiro, exasperado pelo tom de surpresa em sua voz.
— Não houve testemunhas o suficiente?
— Vinte jovens bebaços em uma festa, e só um deles viu alguma coisa de
verdade.
— Bom, ele não era cego.
— Então aconteceu alguma coisa entre vocês dois.
— Sim — concordo. — Aconteceu alguma coisa.
Não sei como continuar. É claro que eu sempre estive à mercê de
Meredith. Como Afrodite, ela exigia exaltações e idolatria. Porém, qual era
a fraqueza dela por mim, dócil e irrelevante, como era meu caso? Aquilo
era um mistério.
Enquanto conto tudo a Colborne, e a culpa se contorce, como uma
lombriga, nas profundezas do meu estômago. Nosso relacionamento foi um
ponto de interesse significativo, mas Meredith se recusou a testemunhar na
minha audiência, insistindo, teimosa, que ela não se lembrava do que todo
mundo queria saber. Ela passou algumas semanas sendo encurralada pela
imprensa, o que se provou ser atenção demais até para ela. Depois que fui
condenado, ela voltou ao seu apartamento em Manhattan e, por cerca de um
mês, não saiu de lá. (O irmão dela, Caleb, chegou aos noticiários antes dela,
quando quebrou a mandíbula de um paparazzi com a maleta. Depois
daquilo, os abutres perderam o interesse, e eu passei a ter mais carinho por
Caleb.)
Meredith chegou à televisão por fim — é a atriz principal de uma série
policial dramática vagamente baseada no ciclo de Henrique VI. Fazia
sucesso na prisão, não pelo material baseado em Shakespeare, mas porque
ela passa boa parte da série relaxando em camisolas coladas que mostram
bem o corpo. Ela veio me visitar — apenas uma vez — e, quando os boatos
se espalharam de que eu tivera algum tipo de caso com ela, ganhei respeito
sem precedentes dos outros prisioneiros. Quando pressionado por detalhes,
contei a eles apenas o que poderia ser encontrado na internet, ou coisas
mais óbvias: que era uma ruiva natural, que tinha uma marca de nascença
no quadril, que não era tímida no sexo. As verdades mais íntimas eu guardei
para mim: que, quando fazíamos amor, era tão doce quanto selvagem; que,
apesar de normalmente ser boca suja, o único som que fazia na cama era
para murmurar “Meu Deus, Oliver” no meu ouvido; e que talvez nós até
tenhamos amado um ao outro, por um minuto ou dois.
Conto a Colborne apenas os detalhes triviais.
— Sabe, ela veio me ver uma noite — diz ele, firmando os calcanhares
na areia. — Tocou a campainha até nos acordar e quando abri a porta ela
estava parada lá, com um vestido ridículo, reluzindo como uma árvore de
natal. — Ele quase ri. — Achei que eu estava sonhando. Ela entrou na casa
e disse que precisava falar comigo, disse que não podia esperar, que estava
acontecendo uma festa e que era a única hora que vocês não dariam pela
falta dela.
— Quando foi isso?
— Na semana que te prendemos. Na sexta-feira, acho.
— Então foi pra lá que ela foi.
Ele me olha, e eu dou de ombros.
— Eu dei pela falta dela — digo.
Nós ficamos em silêncio — ou o mais próximo do silêncio que
conseguimos, com o piar distante dos pássaros, o sussurro do vento entre as
agulhas dos pinheiros, o oscilar leve das ondas na margem. A história
mudou; nós dois sentimos isso. Acontece da mesma forma que aconteceu
há dez anos: encontramos Richard na água, e sabemos que nada nunca mais
será igual.
CENA 1

Richard esticou a mão na nossa direção e arrancou o mundo para fora da


órbita. Tudo tombou, guinando para a frente. Assim que aquelas quatro
palavrinhas — ele ainda está vivo — saíram da boca de James, ele saiu
correndo precipitado até a beirada do cais.
— Richard! — soltou Wren, o som involuntário e compulsivo como uma
tosse.
O primo dela estava convulsionando na água, o sangue borbulhando em
vermelho vívido nos lábios enquanto tateava com uma mão.
— James! — A voz de Alexander, estridente e frenética, perfurando a
penumbra. — Oliver, agarra ele!
Aos tropeços, começando a correr, os pés martelando as tábuas molhadas,
apoderado do medo insensato de que James se jogaria na água e deixaria
Richard arrastá-lo para baixo.
— James!
Meus dedos roçaram nas costas da jaqueta, e se fecharam no ar.
— Pare!
Eu dei mais uma guinada imprudente e o peguei desajeitadamente pela
cintura. Ele perdeu o equilíbrio e tombou para a frente, gritando de
surpresa. Por um terrível momento, a água foi de encontro a nós, mas, assim
que segurei o fôlego para mergulhar, James bateu nas docas com a barriga,
e eu caí em cima dele. Uma dor passou uivando por todo o meu corpo, mas
eu não o soltei, torcendo para que meu peso fosse o suficiente para segurá-
lo ali.
Wren tentou chamar de novo, mas engasgou e engoliu a própria voz.
— Ele consegue ouvir? — disse Alexander. — Jesus, será que ele
consegue ouvir a gente?
Minha cabeça pendia da lateral do cais, o batimento cardíaco martelando
nas têmporas, os olhos arregalados. Richard, pouco além do meu alcance,
engoliu a baba espessa ensanguentada na boca. Os braços e as pernas dele
estavam retorcidos ao seu redor como as asas quebradas de um pássaro —
empurrado cedo demais do ninho, despreparado para o voo. Um trecho de
Hamlet se inquietou em minha memória. Há providência especial no cair
de um pardal.
— Ele não morreu! — James se contorcia embaixo de mim. — Ele não
morreu, me largue!
— Não! — disse Alexander, afiado. — Espera…
A voz de Filippa irrompeu, mais perto do que Alexander.
— Oliver!
Senti as mãos dela nos ombros, me arrastando para longe da beirada.
— Levante — disse ela —, tire ele de perto daí…
— James, vamos!
Eu o arrastei para trás, puxando-o até ficar de pé. Ele se debateu, débil,
contra meus braços, e por um momento temi ter quebrado as costelas dele.
Atrás de nós, Wren estava ajoelhada, gemendo, e Meredith estava agachada
ao lado dela, o rosto lívido — a expressão mais parecida com raiva do que
com pavor.
— Me solte! — disse James, tentando me empurrar. — Me solte…
— Não se você for fazer uma loucura — disse Alexander. — Espera um
minuto…
— Não podemos esperar, ele está morrendo…
— E a gente vai fazer o quê, pular lá para salvar ele? Com todos os
cavalos e todos os homens do rei? Cale a boca e pense por um segundo,
porra!
— Pensar no quê? — perguntei, ainda segurando James, mas sem ter
certeza do motivo.
— Sério, como é que isso foi acontecer? — perguntou Alexander, para
ninguém em particular.
— Bom, ele caiu — disse Filippa, de imediato. — Deve ter…
— Ele só caiu? — perguntei. — Pip, olha só a cara dele…
— Ele deve ter batido a cabeça em algum lugar — disse Meredith. —
Depois do tanto que bebeu, é mesmo de surpreender?
— Meu Deus, Richard — disse Wren de novo, agora furiosa, esfregando
os olhos com raiva. — Richard, seu idiota…
— Ei, pare com isso! — Alexander a puxou para ficar em pé. — Não
chore por ele, caralho, é culpa dele…
— Vocês enlouqueceram? — esbravejou James ao olhar de um para o
outro. Ele parara de se debater contra mim, como se tivesse esquecido que
eu o segurava. — Nós precisamos ajudar!
— Precisamos? — perguntou Alexander, dando uma volta, dando um
passo impulsivo na direção dele. — Sério, a gente precisa mesmo?
— Alexander, ele ainda está vivo…
— Pois é, isso mesmo.
— Quê? — perguntei, mas nenhum dos dois pareceu me ouvir.
— Nós não podemos só ficar parados discutindo como aconteceu,
precisamos fazer alguma coisa… — começou James, mas Alexander o
interrompeu.
— Olha, eu sei que você tem essa necessidade patológica de bancar o
herói, mas agora você precisa parar e se perguntar se isso é mesmo o
melhor para todo mundo.
Eu o encarei, estupefato.
— O que você está dizendo? — perguntou James, fraco, como se já
soubesse da resposta.
Alexander parou, os braços compridos apoiados na cintura, estremecendo
de leve com um tipo de energia potencial descontrolada. Ele olhou para trás
na direção da água. A última convulsão de Richard havia atenuado, e ele
estava imóvel de forma angustiante, como se estivesse se fingindo de
morto. A água estava lisa e escura como veludo, exceto pelas leves
ondulações da respiração que o denunciavam. Pensei: se há de ser agora,
não está para vir.
— Tudo que estou dizendo é que não vamos fazer nada antes de pensar
direitinho — disse Alexander, o suor brilhando nas têmporas apesar do frio
cru de novembro. — Sabe, você não lembra como ele estava nessas últimas
semanas? Batendo em todo mundo no palco... Todos nós estamos cobertos
de hematomas, ele quase te afogou no Halloween... E na noite passada? —
Ele se virou para mim. — Você e Meredith?
Senti uma dor pontiaguda no peito.
— Richard perdeu a cabeça — continuou ele. — Você não ouviu ele
falando o que faria quando pusesse as mãos em você. Se ele não estivesse
na água agora, provavelmente quem estaria era você.
— A gente precisou impedir ele de arrombar a porta — disse Filippa.
Eu quase me esquecera de quanto ela estava perto de mim, uma mão nas
minhas costas, até ela falar e eu sentir a vibração de sua voz.
— Ele quase arremessou Alexander pela parede.
— Nem vou falar nada, e que ele fez com a Wren? — disse Alexander,
mas ele estava apelando para James, e não falando com ela. — Você estava
lá, você viu.
— O que ele fez? — disse Meredith, quando James não respondeu.
Wren apertou os olhos com força.
— O que ele fez com ela? — insistiu Meredith.
— Ela tentou impedir Richard de sair tempestuando por aí — disse
Filippa, falando baixo, sussurrando, como se Richard pudesse ouvir. Como
se ela tivesse medo de acordá-lo. — Ele jogou Wren do outro lado do
jardim. Poderia ter quebrado todos os ossos dela.
— Você acha que isso tudo vai parar? — perguntou Alexander, medo
pulsando na voz. — Você acha que a gente vai tirar ele da água, e ele vai
ficar ótimo, e nós todos vamos ser amiguinhos de novo?
Um silêncio rarefeito o respondeu. Se estiver para vir, não há de ser
agora.
Alexander enfiou uma mão nervosa no bolso e achou uma guimba de
cigarro. Acendeu o isqueiro e colocou uma mão em concha ao redor das
chamas como se fosse indescritivelmente preciosa. Na primeira respiração,
ele estremeceu, e então ele expirou e a voz dele ficou mais baixa, e até mais
firme.
— Não precisam responder em voz alta se não quiserem. Mas cinco
minutos atrás, quando pensamos que ele tinha morrido, o que vocês
sentiram?
O rosto de Filippa estava pálido, mas indecifrável. Caminhos prateados
de lágrimas reluziam nas bochechas de Wren. Ao lado dela, Meredith estava
rígida e imóvel como uma estátua. James estava em pé, suspenso entre nós
dois, a boca aberta em terror atroz e infantil. Ao nosso redor, as silhuetas
escuras das árvores pairavam sombrias, retas e inertes, e nuvens finas
espichavam como fumaça através do céu leitoso. O mundo não estava mais
escuro; uma luz fria irrompera, agachada no horizonte, espreitando a terra
de ninguém entre a noite e o dia. Eu me forcei a olhar para Richard. Não
conseguia ouvir se ele ainda respirava, mas mesmo naquele silêncio ele
estava rosnando, os dentes arreganhados e manchados de sangue. Senti a
compulsão de confessar na ponta da língua, de dizer que, naquele instante
perigoso que eu pensara que ele estava morto, tudo que sentira era alívio.
— Enfim — disse Meredith, e pareceu, de alguma forma, que ela estava
falando por todos nós. Sua vivacidade calorosa se esvaíra, e havia algo na
maneira como ela parecia sóbria e fria, firme que fez calafrios percorrerem
a minha coluna. — O que você sugere que façamos?
Alexander deu de ombros, e havia algo terrivelmente crucial naquele
gesto simples e despropositado.
— Nada.
Por muito tempo, ninguém falou nada. Ninguém argumentou. Eu fiquei
chocado pela reticência deles até que percebi — eu também não me
pronunciara.
A voz de James finalmente agitou o ar cadavérico:
— Nós precisamos ajudá-lo. Precisamos fazer isso.
— Por quê, James? — disse Meredith, baixinho, em reprovação, como se
alguém a tivesse traído de alguma forma. — Você, de todas as pessoas,
deveria entender… Nós não devemos nada a ele.
James desviou o rosto — talvez em desafio, talvez por vergonha — e
Meredith virou seu olhar de górgona para mim. Todas as minúsculas
intimidades da noite anterior se esgueiraram para minha mente: a boca dela
na minha pele, as marcas feias dos dedos de Richard na dela, nenhuma mais
persuasiva do que a outra. Engoli o caroço endurecido na garganta. Se não
for agora, ainda há de vir.
Alexander estava inquieto, prestes a interromper, mas fechou a boca
quando me mexi, trocando de posição e me colocando entre James e o
restante deles. Ele estremeceu com o peso das minhas mãos sobre os
ombros.
— Se não se sabe o que aqui se deixa, que mal faz se antecipar? — falei.
Ele me olhou com uma desconfiança intolerável, como se eu fosse um
estranho, alguém que ele não reconhecia. Eu o puxei um pouco para mais
perto, tentando dizer a ele, de alguma forma impossível, que eu queria que
ele e os outros pudessem se ver livres de medo e machucados, queria mais
isso do que queria que Richard ficasse vivo, e que não poderíamos mais ter
as duas coisas.
— James, por favor. Seja o que for.
Ele me encarou por mais um instante, e então baixou a cabeça.
— Wren? — disse ele, virando-se só o suficiente para que pudesse vê-la
pelo canto do olho.
Ela parecia impossivelmente jovem, aconchegada entre Meredith e
Alexander, os braços apertados com força ao redor da barriga, como se não
fossem capazes de afrouxar. No entanto, ela chorara todo o sentimentalismo
dos olhos castanhos claros. Ela não falou, sequer abriu a boca — apenas
assentiu de leve. Sim.
Algo miserável, parecido com uma risada, escapou dos lábios de James.
— Façam isso, então — disse ele. — Deixem ele morrer.
Aquele alívio detestável e opiáceo correu por minhas veias novamente —
afiado e lúcido com a primeira pontada, antes que tudo ficasse dormente.
Ouvi um dos outros, talvez Filippa, suspirar, e soube que não era o único a
sentir aquilo. O ultraje ético que deveríamos ter sentido foi silenciosamente
sufocado, suprimido como um boato desagradável que não teve a chance de
ser ouvido. Seja lá o que fizéssemos — ou, mais crucialmente, o que não
fizéssemos — mitigava nossos pecados individuais, desde que fizéssemos
aquilo juntos. Não há conforto maior que a cumplicidade.
Alexander tentou dizer alguma coisa, mas um ruído molhado e
gaguejante nos fez olhar para o lago. A cabeça de Richard pendia para um
lado, tão baixa que a água batia no nariz e na boca dele, deixando uma
neblina vermelha escura e hemácia ao redor do rosto. O corpo dele inteiro
enrijeceu, retesando, os músculos no pescoço e no braço intumescendo
como cabos de aço, apesar de ele não parecer ter capacidade de mexer os
membros. O restante de nós observou aquilo em uma paralisia rígida. Fez-
se um grunhido distante, um som encurralado dentro do corpo dele, incapaz
de encontrar a saída. Um último minúsculo espasmo o percorreu, a mão que
havia esticado tão futilmente na direção do som de nossas vozes
desabrochando como uma flor. Os dedos flexionaram, fecharam novamente
e se encolheram na direção da palma. Então, tudo ficou imóvel.
Por fim, Alexander rolou os ombros para a frente, e toda a fumaça que
estivera segurando nos pulmões soltou-se de uma vez.
— Bom — disse, para todos os outros, repentinamente tão calmo e
plácido quanto o lago atrás dele. — E agora?
A pergunta era tão absurda, e a maneira como foi dita tão risivelmente
descontraída, que eu precisei cerrar os dentes para deter o impulso psicótico
de gargalhar. Meus colegas se inquietaram ao meu redor, virando-se para
dentro, uns para os outros, e dando as costas para a água. Os rostos estavam
todos lisos, impassíveis, o pânico de um minuto antes abandonado. Não
havia motivo para escândalos. Não havia pressa. Não pude deixar de me
perguntar se minha própria expressão estava assim tão austera, se talvez eu
fosse melhor ator do que sempre pensara, e nenhum deles suspeitasse que
havia uma gargalhada silenciosa e doentia presa na minha garganta.
FILIPPA: “Precisamos decidir o que contar à polícia sobre o que
aconteceu.”
ALEXANDER: “O que aconteceu com ele? Só Deus sabe. Nem sei onde eu
mesmo estava boa parte da noite.”
MEREDITH: “Você não pode dizer isso. Alguém morreu, e você não sabe
onde você estava?”
EU: “Jesus do céu, não é como se alguém de nós tivesse causado isso.”
FILIPPA: “Não, claro que não…”
EU: “Ele bebeu. Ele bebeu tanto que quase apagou e foi correr pela
floresta.”
WREN: “Eles vão querer saber por que nenhum de nós foi atrás dele.”
ALEXANDER: “Porque ele é um lunático violento do caralho, e arremessou
você do jardim?”
MEREDITH: “Ela não pode falar isso, seu imbecil. Fica parecendo motivo
para assassinato.”
JAMES: “Então é melhor você também não falar onde estava.”
Ele falou tão baixinho que quase não o ouvi. Ele observava Meredith sem
nenhum decoro, o rosto branco e enrijecido como gesso.
— Desculpa — disse ela —, que motivo eu tenho para matar meu
namorado?
— Bom, pelo que eu me lembre de ontem à noite, seu namorado te
chamou de puta na frente de todo mundo, e você subiu as escadas correndo
para transar com Oliver por vingança. Esqueci alguma coisa?
Ele desviou o olhar dela para mim, e aquela dor no meu peito voltou,
como se ele tivesse agarrado uma adaga invisível e a torcido entre minhas
costelas.
— Bom, ele está certo — disse Filippa, antes que Meredith pudesse
argumentar. — Não sabemos o que aconteceu com Richard, mas não tem
necessidade nenhuma de piorar nossa situação. Quanto menos falarmos,
mais rápido isso vai se resolver.
— Tá, mas não podemos evitar a briga na cozinha, porque metade da
escola estava lá — disse Alexander, gesticulando de Meredith para mim. —
E alguém viu esses dois patetas se pegando na escadaria.
— Ele estava bêbado — esbravejou Meredith. — Mais bêbado do que
você, e você nem se lembra de onde estava.
Filippa falou por cima deles.
— Nós todos estávamos bebendo, então qualquer coisa que vocês não
queiram responder, só digam que não lembram.
— E o resto? — perguntou James.
— Como assim? — disse Wren. — “O resto”?
— Sabe. O que aconteceu antes.
Filippa, como sempre, entendeu antes de todos nós.
— Nenhuma palavra sobre o Halloween — disse ela. — Ou a cena do
assassinato, ou qualquer outra coisa.
— Então — disse Alexander —, antes de ontem à noite, tudo estava às
mil maravilhas?
O rosto de Filippa estava perfeitamente inexpressivo, e eu já conseguia
visualizá-la sentada na frente de algum policial novato, as costas eretas, os
joelhos comprimidos, pronta para responder a qualquer pergunta que ele
pudesse fazer.
— Sim, precisamente — disse ela. — Antes de ontem à noite, tudo
estava bem.
Wren raspou os dedos dos pés no cais, desviando o rosto, evitando os
olhos de todos.
— E hoje de manhã? — disse ela, voz baixa.
— Ninguém vem até aqui a não ser nós sete — disse Alexander. — Então
a gente só diz que encontrou ele agora.
— E o que era para estarmos fazendo até agora? — perguntei.
— Dormindo — respondeu Meredith. — O sol ainda nem raiou.
Porém, conforme ela falava, o canto estridente de um pássaro ecoou entre
as árvores, e nós sabíamos que não tínhamos muito tempo. Olhei a beirada
do cais, onde Richard estava imóvel na água, sem conseguir afastar o pobre
pardal caído de Hamlet da minha mente. Estar pronto é essencial.
Alexander disse o que eu estava pensando, em palavras mais humildes:
— Que horas são? Nós temos certeza de que ele… se foi?
— Não — disse Filippa. — Mas, antes de chamarmos a polícia,
precisamos ter.
Outro silêncio, longo o suficiente para o medo que havíamos brevemente
esquecido voltar, espreitando às sombras.
— Eu faço isso — disse Meredith.
Ela passou os dedos pelo cabelo e deixou os braços penderem
novamente. Eu já a vira fazer aquilo mil vezes antes: afastar o cabelo do
rosto, preparar-se e dar um passo na direção dos holofotes. Porém, assistir-
lhe desaparecer dentro da água gélida era mais do que eu poderia suportar.
— Não — eu disse. — Eu vou.
Todos olharam para mim como se eu tivesse perdido a cabeça, exceto
Meredith. Uma gratidão desesperada passou no rosto dela, tão rápido que eu
quase não vi.
— Certo — disse ela. — Vai, então.
Eu assenti, mais para mim mesmo. Quando eu falara, eu o fizera
pensando apenas nela, não no que teria que fazer no lugar dela. Os outros se
afastaram, deixando um caminho estreito para que eu pudesse andar até o
limiar do cais. Eu fiquei inerte e imóvel por um ou dois segundos, e então
coloquei um pé para a frente. Três passos lentos os deixaram para trás. Eu
parei, me abaixando um pouco para tirar os sapatos. Mais três passos. Tirei
a jaqueta e a deixei nas docas, puxando o moletom por cima da cabeça. O ar
frio ardia na minha pele nua, e os calafrios desceram do crânio até a base da
coluna, passando pelos braços e pernas até que todos os pelos no meu corpo
estivessem eriçados. Mais três passos.
O lago nunca parecera tão enorme, tão escuro ou tão profundo. Richard
estava quase afundado sob a superfície, como uma estátua caída, e apenas
fragmentos de mármore emergiam — três dedos curvados, a curva de uma
clavícula, a virada sensual da garganta. A desgraça esculpida em pedra.
Uma fina película vermelha se agarrava à sua pele, vívida demais, sórdida
demais, para aquele lugar de cinza nebuloso e verdes perenes. O medo
tomou conta do meu coração em um aperto impiedoso, e o esmagou em um
grumo pequeno e duro como um caroço de cereja.
Eu o encarei até achar que meu sangue iria congelar se não me mexesse.
Olhei para trás para dizer aos outros que não conseguia fazer aquilo — não
podia me aproximar, não podia mergulhar naquela água escura, não podia
cutucar a garganta retorcida em busca de um pulso. No entanto, ao vê-los
todos encolhidos ali, como cinco crianças temerosas da escuridão, me
observando e esperando por algum tipo de tranquilização, meu próprio
medo pareceu egoísta.
Eu segurei o fôlego, fechei os olhos e saltei das docas.
CENA 2

Duas horas depois, eu ainda não parara de tremer. Nós estávamos sentados
enfileirados, encostados na parede do corredor do terceiro andar, onde
estava mais do que quente. Eu tinha recebido um cobertor e calças jeans
secas, mas não tempo para tomar banho. Pior do que o frio que permanecia
era a sensação da água do lago, e o sangue de Richard infiltrando na minha
pele, queimando e coçando em cada centímetro do meu corpo. Filippa,
sentada desconfortavelmente perto, à minha esquerda, ergueu uma mão sem
olhar para mim, e tocou a parte anterior do meu pulso com tanta leveza que
eu mal senti. Ela, James, Alexander e Wren já tinham prestado depoimento.
Meredith estava no escritório para o dela enquanto eu esperava, em estado
de ansiedade catatônica, pelo meu.
A porta se abriu, arranhando o batente com peso, e Meredith reapareceu.
Sem sucesso, tentei chamar a atenção dela, até que ouvi Holinshed dizer:
— Senhor Marks.
Filippa soltou meu braço, deslizando a mão. Eu fiquei em pé e fui até a
porta com movimento mecânicos e quebradiços dignos do Homem de Lata.
Hesitando no batente, olhei para meus colegas mais uma vez. Estavam
todos sentados com os rostos virados, olhando todos os lugares menos eu e
os outros colegas — exceto Alexander, que me deu o menor e mais secreto
aceno. Eu baixei a cabeça e entrei na sala.
Era maior do que eu esperava, como a galeria, mas com o pé-direito
menor e menos iluminada. As janelas davam vista para a ampla entrada na
frente do Pavilhão, os portões de ferro majestosos reduzidos a barras pretas
espinhentas à distância. Eu estremeci quando a porta bateu atrás de mim.
Havia outras quatro pessoas na sala — Frederick, parado em um canto ao
lado da janela; Holinshed, apoiado na enorme escrivaninha de pés
arredondados, o queixo encolhido junto ao peito; Gwendolyn, sentada atrás
da escrivaninha com a cabeça nas mãos; e um homem mais jovem, de
ombros largos e cabelo cor de areia, vestindo uma jaqueta de aviador
marrom por cima da camisa e da gravata. Eu vira ele de relance no Castelo,
antes de nos guiarem até o Pavilhão.
— Bom dia, Oliver.
Ele estendeu a mão, que eu apertei com dedos úmidos, percebendo que
estava com uma aparência vagamente ridícula, com um cobertor comido
por traças pendurado nos ombros, como a capa de um soberano deposto.
— Esse é o Detetive Colborne — explicou Holinshed, me olhando por
cima do aro dos óculos, a expressão severa e implacável. — Ele vai fazer
algumas perguntas sobre Richard.
Gwendolyn soltou um gemido baixo e cobriu a boca.
— Tudo bem — eu disse.
Minha língua parecia uma lixa.
— Não precisa ficar nervoso — disse Colborne, e aquela mesma risada
histérica de duas horas atrás ecoou no meu cérebro. — Eu só preciso que
você me conte o que aconteceu e, se não lembrar, tudo bem dizer que não
lembra. É melhor não dar informação do que dar a informação errada.
— Certo.
— Por que não se senta? É mais fácil.
Ele gesticulou para a cadeira esperando atrás de mim. Havia outra na
frente da escrivaninha de Holinshed, me encarando, vazia.
Eu me abaixei para me sentar, me perguntando se ela sumiria antes que
eu me recostasse e me deixaria cair no chão. Naquele instante, nada parecia
fixo ou sólido, nem mesmo a mobília. Colborne se sentou à minha frente,
na outra cadeira, e puxou algo do bolso. A mão surgiu com um gravador
preto, que deixou atrás dele, na beirada da escrivaninha de Holinshed. Já
estava ligado, uma luzinha vermelha me encarando.
— Você se importa de eu gravar? — perguntou Colborne de forma
educada, mas eu sabia que não poderia recusar. — Se eu não precisar
escrever tudo, posso prestar mais atenção no que você está dizendo.
Eu assenti e arrumei o cobertor. A dignidade era irrelevante, e eu não
sabia o que fazer com as mãos.
Colborne se inclinou para a frente.
— Então, Oliver — começou ele. — Tudo bem se eu te chamar de
Oliver?
— Claro.
— E você é um aluno de teatro do quarto ano.
Não sabia se era esperado que eu respondesse, então, com um segundo de
atraso, eu disse:
— Sou.
Colborne não pareceu notar, apenas ofereceu mais uma pergunta que não
era bem uma pergunta.
— O Reitor Holinshed me disse que você é de Ohio.
— Sou — respondi novamente, com atraso.
— Você sente saudades de casa? — perguntou ele, e eu quase fiquei
aliviado.
— Não.
Eu poderia ter dito a ele que, se dependesse de mim, Dellecher era a
minha casa, mas não queria dizer mais do que o necessário.
COLBORNE: “Qual é o tamanho da sua cidade?”
EU: “Na média, acho. É maior que Broadwater.”
COLBORNE: “Você fez teatro no ensino médio?”
EU: “Fiz.”
COLBORNE: “Você gostava? Como era?”
EU: “Era ok. Não como aqui.”
COLBORNE: “Porque aqui é…?”
EU: “Melhor.”
COLBORNE: “Vocês são próximos? Vocês seis?”
Parecia um conceito estrangeiro. Nós seis. Nós sempre fomos sete.
— Como irmãos — falei, e imediatamente me arrependi, sem saber a
velocidade com que a palavra “rivalidade” poderia vir à mente.
— Você divide um quarto com James Farrow — disse Colborne, mais
baixinho. — Foi onde dormiu ontem à noite?
Eu assenti, sem confiar em mim mesmo para falar. Decidimos que James
ficaria responsável por mim. O fato de que um calouro bêbado me vira nas
escadas com Meredith não significava que precisávamos admitir o que
acontecera depois.
— E a que horas você foi dormir? — perguntou Colborne.
— Às duas? Duas e meia? Alguma coisa assim.
— Certo. Me conte o que aconteceu na festa, e seja o mais específico
possível.
Meus olhos foram de Colborne a Frederick e, por fim, a Holinshed.
Gwendolyn continuava sentada no tampo da mesa, os cabelos murchos e o
rosto cansado.
— Não há respostas erradas — acrescentou Colborne.
A voz dele tinha uma leve rouquidão, que o fazia soar mais velho do que
era.
— Certo, tá. Desculpa. — Apertei o cobertor, desejando que minhas
mãos parassem de suar. — Bom. James, Alexander e eu saímos do EBA um
pouco depois das dez e meia, e não estávamos com pressa, então
provavelmente chegamos no Castelo por volta das onze. Pegamos bebidas,
e aí nos separamos. Eu só, sei lá, fiquei andando um pouco. Alguém me
disse que Richard estava no segundo andar, bebendo sozinho.
— Tem alguma ideia do motivo de ele não estar socializando com o resto
do pessoal? — perguntou Colborne.
— Não muito — respondi. — Achei que ele desceria quando estivesse
pronto.
Ele assentiu.
— Continue.
Eu olhei para a janela, para a rua serpenteante que se afastava de
Dellecher, desaparecendo no cinza.
— Fui lá fora. Falei com Wren. Falei com James. Então houve um… uma
barulheira, acho, vinda de dentro. Então entramos para ver o que estava
acontecendo. Só eu e James estávamos lá nessa altura. Não sei aonde Wren
tinha ido.
— E vocês estavam no jardim, certo?
— Isso.
— Quando vocês entraram, o que aconteceu?
Eu me remexi na cadeira. Duas memórias diferentes lutavam por
dominância: a verdade e a versão que concordáramos em contar.
— Foi confuso — falei, sentindo um conforto efêmero na honestidade
que aquelas duas palavras continham. — A música estava alta, e todo
mundo estava falando ao mesmo tempo, mas Richard tinha batido em
alguém. Não lembro o nome dele. Colin levou o menino na enfermaria.
— Allan Boyd — disse Holinshed. — Vamos discutir isso com ele
também.
Colborne não reconheceu aquela interrupção, sua atenção fixa em mim.
— E depois?
— Meredick… quer dizer, Richard e Meredith… estavam brigando. Eu
não sei exatamente por quê.
Mais precisamente, eu não sabia o quanto Meredith tinha dito a eles
sobre a briga.
— Os outros disseram que parecia que Allan estava prestando um pouco
mais de atenção nela do que Richard achava confortável — disse Colborne.
— Talvez. Não sei. Richard estava bêbado. Quer dizer, pra lá de bêbado.
Agressivo. Ele disse umas coisas bem horríveis. Meredith ficou magoada e
subiu as escadas, para fugir de todo mundo. Eu fui atrás dela, só pra ter
certeza de que ela estava bem. Nós estávamos conversando no quarto
dela…
Alguns momentos vívidos de Meredith lampejaram no meu cérebro —
mechas de cabelo ruivo presos ao batom dela, linhas pretas sedosas no
limiar das pálpebras, a alça do vestido deslizando do ombro.
— Estávamos conversando no quarto dela, e Richard subiu e começou a
esmurrar a porta — falei, rápido demais, torcendo para que Colborne não
notasse o quanto meu rosto e minha garganta estavam ficando quentes. —
Ela não queria falar com ele, e disse exatamente isso. Ficamos do outro lado
da porta, nós estávamos com um pouco de medo de abrir. Em certa altura,
ele foi embora.
— Que horas foi isso?
— Não lembro, nossa. Foi tarde. Uma e meia, talvez?
— Quando Richard foi embora, você sabe para onde ele foi?
— Não — eu disse, respirando com um pouco mais de facilidade. Outro
fragmento da verdade. — Nós não saímos por um tempo.
— E quando você saiu?
— Todo mundo já tinha ido embora. Eu fui pra cama. James já estava lá,
mas não estava dormindo.
Eu tentei imaginá-lo rolando de lado para sussurrar para mim do outro
lado do quarto. Porém, tudo que via era a luz amarelada fraca do banheiro, a
água quente e o vapor distorcendo o rosto dele no reflexo do espelho.
— Ele me disse que Richard tinha ido para a floresta com uma garrafa de
uísque.
— E essa foi a última vez que ouviu falar dele?
— Até que Alexander o encontrou?
As memórias prismáticas da noite passada se desfizeram, e o gelo da
manhã me percorreu. Eu sentia a água na pele, no cabelo, sob as unhas.
— Foi — respondi.
— Certo — disse Colborne. Ele falava com uma voz gentil, da forma que
se fala com cavalos assustados e gente doida. — Agora, desculpe-me por
perguntar isso, mas eu preciso que me conte o que você viu hoje de manhã.
Eu ainda enxergava tudo. Richard suspenso à superfície da vida,
ensanguentado, ofegante — e o restante de nós simplesmente observando,
esperando o pano cair. Uma tragédia vingativa, eu queria dizer. O próprio
Shakespeare não poderia ter feito melhor.
— Eu vi Richard — eu disse. Não um cadáver de verdade, não flutuando
de verdade. — Só meio que parado lá. Só que quebrado e esmagado, como
se tudo estivesse distorcido.
— E você… — Ele pigarreou. — Você entrou na água.
Foi a primeira vez que ele hesitou.
— Isso.
Puxei o cobertor com mais força, como se aquilo pudesse de alguma
forma me descongelar, me proteger da sensação da água fria se fechando à
minha volta. Sentado no calor seco do escritório de Holinshed, eu sabia que
jamais esqueceria aquilo — como meus pulmões se encolheram tão
abruptamente que pensei que fossem romper, ofegando mais de choque do
que por precisar de oxigênio. O rosto de Richard, perto demais, branco
como os ossos. O cheiro amargo de sangue metálico. Aquela vontade insana
de gargalhar estava de volta, tão forte quanto uma ânsia de vômito, e por
um momento eletrizante eu pensei que vomitaria no tapete, aos pés de
Colborne. Eu engoli novamente, ingerindo tudo para baixo. Ele confundiu
minha onda de náusea por emoção e respeitosamente esperou que eu me
recompusesse.
Por fim, a certa altura, eu consegui dizer:
— Alguém precisava
— E ele estava morto?
Eu poderia ter dito a ele qual era a sensação de esticar a mão para tocar a
garganta de Richard e encontrar a carne gélida, aquela veia, que outrora
pulsara e inchava por raiva, finalmente achatada, finalmente imóvel. Em
vez disso, tudo que disse foi:
— Sim.
Ele me encarou com uma expressão irritadiça, deliberadamente
inexpressiva, como uma cara de blefe ruim. Antes que eu pudesse adivinhar
o que não queria que eu visse, ele piscou e se inclinou para trás.
— Bom, isso não deve ter sido fácil. Meus pêsames.
Eu assenti, sem ter certeza se eu deveria agradecê-lo, ou se oferecer
pêsames era parte do trabalho.
— Só mais uma pergunta, se puder responder.
— O que o senhor precisar.
— Me conte sobre as últimas semanas — disse ele, informal, como se
fosse apenas uma questão rotineira. — Vocês todos estavam sob muita
pressão, talvez Richard mais do que todos. Ele estava se comportando de
maneira estranha?
Outro mosaico de memórias tomou forma como um vitral, estilhaços de
cor e luminosidade. O brilho branco do luar na água no Halloween, os
hematomas azuis nos braços de James, a gota vermelha de sangue vívido
descendo da manga de seda de Meredith. Meu estômago, embrulhado e
tenso um segundo antes, repentinamente afrouxou. Meu batimento cardíaco
desacelerou.
— Não — eu disse. As palavras de Filippa ecoaram suaves em minha
cabeça. — Antes de ontem à noite, estava tudo bem.
Colborne me observava com uma proximidade curiosa.
— Acho que isso é tudo por enquanto — disse ele, depois do que pareceu
ser uma longa pausa. — Eu vou dar a você minhas informações de contato.
Se pensar em alguma outra coisa, por favor, não hesite em me contar.
— Claro — falei. — Vou fazer isso.
Porém, é claro que não faria. Não até que dez anos se passassem.
CENA 3

No quinto andar do Pavilhão Dellecher ficava uma coleção de salas secretas


reservadas para os convidados mais ilustres do conservatório. Aquele
aposento peculiar tinha três quartos, um banheiro e uma sala de estar central
que continha uma lareira, uma coleção de mobílias vitorianas elegantes e
um piano de cauda baby grand. A Casa Hallsworth (como era chamada, em
homenagem à família ricaça da esposa de Leopold Dellecher) era onde o
corpo docente resolvera esconder os seis alunos de teatro do quarto ano
restantes, enquanto a margem sul do lago estava repleta de policiais.
O Reitor Holinshed convocara uma assembleia emergencial no salão de
música naquela noite, mas ele decidira que nós não deveríamos estar
presentes. Ele explicou que não desejava nos sujeitar, ou os outros alunos, à
tentação das fofocas. Então, enquanto o resto do conservatório estava
sentado, estarrecido e silencioso quatro andares abaixo de nós, Wren,
Filippa, James, Alexander, Meredith e eu estávamos prisioneiros da lareira
na Casa Hallsworth. Frederick e Gwendolyn não gostaram da ideia de nos
deixar inteiramente sozinhos, então uma das enfermeiras havia sido postada
como sentinela do outro lado da porta que dava para o resto do quinto
andar, onde ela estava sentada, fungando em um lencinho, enquanto
preenchia palavras-cruzadas sem muito afinco.
Forcei os ouvidos no silêncio sufocante, profundamente consciente de
nossos colegas de faculdade, todos aglomerados sem nós. O exílio era
intolerável. Parecia que estávamos sob a espada de Dâmocles, um período
de julgamento suspenso, temerosos de uma condenação por um júri de
nossos semelhantes. (Ah, minha profética alma.) Nosso alívio impiedoso
por Richard não estar mais presente rapidamente se tornava azedo. Eu já
encontrara milhares de coisas a temer. E se algum de nós deixasse algo
escapar? Falasse dormindo? Esquecesse como a história deveria ser? Ou
talvez andássemos pé ante pé pelo resto de nossas vidas, esperando que
aquele fio rompesse, que a guilhotina baixasse.
Alexander deveria estar contaminado pela mesma ansiedade.
— Vocês acham que vão falar para todo mundo que estamos aqui? —
perguntou ele, encarando o tapete com força, como se pudesse de repente
desenvolver visão raio-X e enxergar o que estava acontecendo no andar de
baixo.
— Duvido — disse Filippa. — Eles não vão querer que ninguém tente
entrar aqui escondido.
As rugas nas laterais da boca dela estavam profundas e escuras, como se
ela tivesse envelhecido dez anos em poucas horas. Os outros estavam em
silêncio, escutando, inutilmente, por algum som lá embaixo. James estava
sentado com os joelhos apertados, os braços cruzados no peito, como se
estivesse com frio. Wren estava indiferente, inerte, os braços dobrados na
cadeira em ângulos desajeitados, como os de uma boneca descartada.
Meredith estava sentada no sofá ao lado dela, de pernas cruzadas e punhos
cerrados, a tensão fazendo com que todas as curvas elegantes do seu corpo
ficassem afiadas e angulosas.
— O que vocês acham que vai acontecer com Júlio César? — perguntou
Alexander, quando não suportava mais o silêncio.
— Vão cancelar — disse Filippa. — É de mau gosto substituir Richard.
— “O show tem que continuar” meu ovo.
Eu tentei — por um momento malogrado — imaginar alguém, qualquer
um, tomando o papel de Richard. A ameaça que Gwendolyn fizera sobre eu
aprender as falas dele e substituí-lo ecoou na minha memória e eu
estremeci, desprezando a ideia.
— Sinceramente — falei, com medo de que eu fosse gritar caso não
usasse minha voz —, vocês querem mesmo subir no palco sem ele?
Algumas cabeças sacudiram; ninguém falou. Então…
— É impressão minha — disse Alexander — ou esse é o dia mais
comprido da vida de todo mundo?
— Bom — disse James. — Da vida de Richard, não.
Alexander o encarou boquiaberto, de olhos arregalados.
— James — disse Meredith. — Puta que pariu.
Filippa respirou em um sibilo, esfregando a testa.
— Não vamos fazer isso — disse ela, e então ergueu o olhar, de um deles
para cada um dos outros. — Não vamos ficar discutindo e brigando entre
nós. Sobre isso, não. O irremediável / não merece preocupação: o feito está
feito.
Alexander soltou uma risadinha fina e sem humor, da qual não gostei
nada.
— Ao leito! Ao leito! — disse ele. — Meu Deus, eu preciso fumar. Eu
queria que não tivessem colocado a enfermeira lá fora.
Ele se apressou para ficar de pé, deu uma volta no lugar, se movendo da
forma rápida e inquieta que fazia quando estava chateado. Ele andou pelo
quarto em um zigue-zague sem rumo, apertou algumas notas aleatórias no
piano, e então começou a abrir armários e fuçar as estantes.
— O que está fazendo? — perguntou Meredith.
— Procurando bebida — respondeu ele. — Tem que ter alguma coisa
escondida aqui. O último convidado que ficou hospedado aqui foi aquele
cara que escreveu o livro sobre Nietzsche, e aposto tudo que eu tenho que
ele é alcoólatra.
— Como você pode querer beber agora? — eu disse. — Meu estômago
parece que está líquido desde ontem.
— Beber cura a ressaca. Ahá!
Ele saiu de um armário nos fundos do cômodo com uma garrada de um
líquido âmbar na mão.
— Alguém quer conhaque?
— Vamos — disse Filippa. — Talvez dê uma acalmada nos nervos.
Os copos tilintaram um contra o outro enquanto ele vasculhava mais
fundo no armário.
— Mais alguém?
Wren não abriu a boca, mas, para a minha surpresa, tanto James quanto
Meredith falaram “sim, por favor” precisamente ao mesmo tempo.
Alexander voltou com a garrafa em uma mão, quatro copos empilhados e
tortos em outra. Ele se serviu de conhaque o suficiente para incendiar o
Pavilhão inteiro, e então passou a garrafa para Filippa.
— Eu não sei quanto você quer — disse ele. — Pessoalmente, estou
planejando beber até dormir.
— Eu acho que nunca mais vou conseguir dormir — respondi.
O rosto semiesmagado de Richard — exagerado como uma máscara de
carnaval — pulava em mim todas as vezes que eu fechava os olhos.
James, encarando o fogo e roendo uma unha, disse:
— Pensei ter ouvido uma súplica: “não durma mais!”
— Onde vamos dormir? — perguntou Meredith, ignorando-o. — Só
temos três quartos.
— Bom, Wren e eu podemos dividir um — disse Filippa, lançando um
olhar de soslaio.
Wren não pareceu reconhecer ter ouvido qualquer coisa.
— Quem quer dividir comigo? — disse Alexander. Ele esperou uma
resposta, mas não obteve nenhuma. — Não precisa todo mundo se matar.
— Eu fico na sala — falei. — Não me importo.
— Que horas são? — disse Meredith.
Ela ergueu o copo aos lábios, com uma expressão dolorida, como se
aquele simples movimento fosse monumentalmente fatigante.
Filippa espremeu os olhos para o relógio na mesa ao lado.
— Nove e quinze.
— Só isso? — perguntei. — Parece meia-noite.
— Parece o dia do Juízo Final.
Alexander tomou mais um gole enorme de conhaque, cerrou os dentes ao
engolir, e pegou a garrafa de novo. Ele encheu o copo quase até a borda e
ficou em pé, agarrando a bebida com força.
— Eu vou deitar — anunciou ele. — Se alguém decidir que não quer
dormir na sala, bem, todos nós sabemos que eu não sou exigente com quem
eu divido a cama. Boa noite.
Ele saiu da sala com uma mesura rígida e curta. Eu o vi ir embora e
apoiei a cabeça em uma mão, sem me surpreender com como estava pesada.
A exaustão pulsava morosa por minhas veias, entorpecendo todos os outros
sentidos. Na escuridão crua da manhã, eu sentira alívio em vez de espanto
diante do espetáculo da morte de Richard, e finalmente estava escuro mais
uma vez — depois de tudo que fizéramos e disséramos durante as longas
horas hipnóticas no entremeio — e eu estava cansado demais para tristeza
ou pena. Talvez tudo aquilo estivesse ausente porque eu não conseguia
acreditar. Eu quase esperava que Richard irrompesse pela porta, limpando
sangue falso do rosto, rindo cruelmente de como enganara a todos nós.
Filippa terminou a bebida, e então o som do copo dela tocando a mesa
me fez erguer o olhar.
— Também vou pra cama — disse ela, ficando em pé. — Eu quero só
deitar um pouco, mesmo se não dormir. Wren? Que tal vir deitar?
Wren ficou imóvel por um instante, e então se reanimou, se desdobrou da
cadeira com os olhos pesados e sem foco. Ela aceitou a mão esticada de
Filippa e a seguiu sem protestos.
— Você vai dormir aqui? — perguntou Meredith, quando elas se forem.
Ela falou comigo como se James não estivesse lá. Ele não reagiu nem
respondeu, como se não tivesse ouvido.
Eu assenti.
— Você fica com o outro quarto.
Ela se endireitou — lentamente, com cuidado, como se tudo doesse.
— Vai dormir? — perguntei.
— Isso — disse ela. — Espero nunca mais acordar.
A primeira pontada de tristeza verdadeira me espetou como uma agulha,
mas na verdade não tinha nada a ver com Richard. Eu queria dizer alguma
coisa, mas não conseguia encontrar sequer uma palavra adequada, então
permaneci sentado e imóvel no sofá enquanto ela também deixava a sala,
metade do conhaque deixado para trás. Quando a porta se fechou atrás dela,
eu murchei, me deixando cair nas almofadas atrás de mim, passando os
dedos pelo rosto.
— Ela não estava falando sério — disse James.
Franzi o cenho atrás dos dedos.
— Esse comentário é uma crítica ou um consolo?
— Não é nada — disse ele. — Não fique bravo comigo, Oliver. Eu não
conseguiria suportar isso agora.
Eu exalei e tirei as mãos do rosto.
— Me desculpa. Eu não estou bravo. Eu só estou… sei lá. Exaurido.
— Nós deveríamos dormir.
— Bom. Podemos tentar.
Nós nos deitamos — eu em um sofá, James no outro —, mas não nos
demos ao trabalho de tentar encontrar lençóis ou travesseiros de verdade.
Afofei um apoio de braço decorativo sob a cabeça, e peguei uma manta
para cobrir as pernas. No outro sofá, James fez a mesma coisa, parando para
terminar de tomar o conhaque dele, e o que sobrara no copo de Meredith.
Quando estava aconchegado, eu desliguei o abajur na mesa atrás de mim,
mas o quarto ainda estava saturado pela luz da lareira. As chamas se
encolheram, apenas pequenos botões amarelos, faiscando entre as toras de
madeira.
Enquanto eu observava a madeira empretecer e esfarelar e se desfazer,
meus pulmões ficaram espremidos, recusando-se a inspirar ar suficiente.
Como foi rápido, como foi abrupto, a forma como tudo deu errado. Onde
foi que começou? Não com Meredith e comigo, eu disse a mim mesmo,
mas meses antes — com César? Macbeth? Era impossível identificar o
Marco Zero. Eu me contorci, sem conseguir dispensar a ideia de que algum
peso invisível e gigantesco estava me esmagando como uma pedra. (Era
aquele tal demônio corpulento chamado de Culpa. Naquela época, eu não o
conhecia, mas, nos meses seguintes, ele subiria no meu peito todas as noites
e ficaria ali sentado, rosnando, um pesadelo grotesco digno de Füssli.) O
fogo queimou até virar brasas, e a luz lentamente deixou o cômodo,
vazando por entre as rachaduras. Sem oxigênio, com a mente aérea, eu me
inclinei na direção da inconsciência, e foi mais como se estivesse sufocando
do que adormecendo.
Um sussurro me trouxe de volta à vida.
— Oliver.
Eu me sentei, piscando na escuridão na direção de James, mas não era ele
quem tinha falado.
— Oliver.
Meredith aparecera, uma forma pálida no vazio escuro da porta do
quarto. A cabeça dela pendia encostada ao batente como um botão de rosa
pesado com a água da chuva, e por um momento estranho eu me perguntei
qual era o peso do cabelo dela, se ela o sentia recair nas costas.
Empurrei meu cobertor e atravessei a sala devagar, lançando outro olhar
furtivo para James. Ele estava deitado de costas, a cabeça virada para o
lado, sem me olhar. Eu não conseguia distinguir se ele estava dormindo um
sono pesado, ou tentando demais fingir que estava.
— Que foi? — sussurrei, quando estava perto o bastante para ela me
ouvir.
— Não consigo dormir.
Minha mão estremeceu na direção dela, mas não foi longe.
— Foi um dia ruim — eu disse, débil.
Ela suspirou, e fez um aceno fraco de cabeça.
— Você vem?
Eu me inclinei para longe dela, lembrando por forças maiores daquela
noite no camarim quando me afastara da mesma forma. Ela poderia tentar
qualquer um, mas o Destino não parecia ser um bom alvo. Já havíamos
sofrido uma perda.
— Meredith — eu disse —, seu namorado está morto. Ele morreu hoje
de manhã.
— Eu sei — disse ela. — Não é isso. — Os olhos dela estavam vidrados,
sem arrependimentos. — Eu só não quero dormir sozinha.
Aquela pontada de tristeza se afundou mais, me tocou nas entranhas.
Como eu fora bem treinado para desconfiar dela. E por quem? Richard?
Gwendolyn? Olhei para James atrás de mim novamente. Tudo que eu via
era um pedaço dos cabelos atrás do braço do sofá.
Não importava onde eu dormiria, decidi. Nada mais importava depois
daquela manhã. Nossas duas almas — quiçá, nossas seis — haviam sido
comprometidas.
— Tudo bem — respondi.
Ela assentiu, apenas uma vez, e voltou para o quarto. Eu a segui,
fechando a porta atrás de mim. Os cobertores na cama já estavam
desarrumados, bagunçados, como se tivessem sido chutados. Eu deslizei
para debaixo dos lençóis ainda de jeans. Eu dormiria vestido. Nós
dormiríamos. Era só isso.
Nós não nos tocamos, nem nos falamos. Ela subiu na cama ao meu lado e
se deitou de lado, um braço dobrado sob o travesseiro. Ela me observou
enquanto eu me ajeitava, aprumava o travesseiro um pouco mais alto.
Quando parei de me mexer, ela fechou os olhos — mas não antes de
algumas lágrimas escaparem, escorrendo por entre os cílios. Eu tentei não a
sentir tremendo no colchão, mas era como o tique do relógio na lareira do
Castelo: suave, persistente e impossível de ignorar. Depois do que pode ter
sido uma hora, ergui o braço, sem olhar para ela. Ela se aproximou,
aninhando a cabeça no meu peito. Eu a abracei.
— Meu Deus, Oliver — disse ela, a voz baixa e abafada, uma mão
pressionada na boca para não deixar nada escapar.
Eu alisei o cabelo dela.
— É — respondi. — Eu sei.
CENA 4

Tudo foi cancelado. As apresentações que ainda faltavam de César e todas


as aulas normais antes do feriado de Ação de Graças. Tomamos chá com
Frederick duas vezes na Casa Hallsworth, e Gwendolyn jantou conosco
uma única vez, mas nos últimos dois dias antes do feriado não vimos mais
ninguém. Na terça-feira, voltamos ao Castelo para recolher nossas coisas. A
morte de Richard havia sido oficialmente declarada como um acidente, mas
a revelação fez surpreendentemente pouco para aliviar nossa inquietação.
Naquela noite, era esperado que comparecêssemos ao velório, onde
veríamos os outros alunos — e também seríamos vistos por eles — pela
primeira vez desde sábado à noite.
O Castelo estava vazio, mas algo no bosque que o cercava havia mudado.
Havia um cheiro insólito no ar, de substâncias químicas e equipamento,
borracha e plástico, os odores restantes de uma dúzia de estranhos
invisíveis. As escadas que levavam às docas foram marcadas com um
cordão de segurança, um X amarelo berrante feito com fita de sinalização.
Na Torre, puxei minha mala de debaixo da cama e arrumei minhas coisas
sem prestar atenção, empilhando camisetas e calças e sapatos e meias
desparelhados e cachecóis enrolados. Pela primeira vez, eu estava feliz por
passar alguns dias em casa no feriado de Ação de Graças. Normalmente,
Filippa, Alexander e eu ficávamos no campus naquela época, mas o Reitor
Holinshed nos informara de que a faculdade ficaria fechada durante o
feriado, pela primeira vez em vinte anos.
Empurrei minha mala pela escadaria em hélice até o segundo andar,
xingando e grunhindo quando atropelava os dedos dos pés com as rodinhas
e esmagava os dedos da mão na balaustrada. Apareci na biblioteca, suando
e irritado, arrastando a mala atrás de mim. Os outros já tinham saído, exceto
Filippa, que estava parada sozinha na frente da lareira com a comprida vara
de latão na mão, apontada para o chão como se fosse uma espada. Ela
ergueu os olhos quando eu entrei fazendo o maior estrépito e me joguei em
uma cadeira — deliberadamente evitando a que ficava mais perto da porta,
que de alguma forma eu ainda pensava que pertencia a Richard.
— A lareira ficou acesa esse tempo todo? — perguntei.
— Não — respondeu ela, erguendo a vara para cutucar duas toras finas
de madeira. — Eu acendi.
— Por quê?
— Não sei. Só parecia errado não estar acesa.
— Tudo parece errado.
Ela assentiu, distraída.
— Você vem com a gente para o aeroporto?
— Vou — disse ela.
Camilo oferecera levar os alunos do quarto ano até O’Hare. De lá,
Meredith iria para Nova York; Alexander, para a Filadélfia; James, para São
Francisco. Wren iria de carona com os tios e voaria com eles para Londres.
(Eles tinham chegado no dia anterior, e Holinshed providenciara um quarto
no único hotel bom de Broadwater, já que a Casa Hallsworth estava
ocupada.) Eu iria para Ohio. Quando pressionada, Filippa dizia que era de
Chicago, mas eu não fazia ideia se tinha alguma família por lá.
— E depois? — perguntei, tentando, sem sucesso, deixar o comentário
parecer leve.
Ela não respondeu. Só ficou observando o fogo, os olhos escondidos pelo
reflexo das chamas nos óculos.
— Pip, eu juro que não estou tentando me intrometer…
Ela apunhalou as brasas de novo, um pouco feroz.
— Então não se intrometa.
Eu me remexi na cadeira. O que eu queria falar para ela parecia
importante, por mais absurdo.
— Escuta, você sabe que pode vir comigo se você quiser, né? — falei,
abrupto. — Eu não estou falando que você tem que vir, ou que você deve,
só que… se você precisar de algum lugar para ir. Quer dizer, todo mundo
surtaria porque eu nunca levei uma garota para casa e todo mundo
interpretaria de forma errada, mas só… Caso você precise. Só isso.
Desculpa. Eu vou calar a boca.
Ela se virou para longe do fogo, e fiquei aliviado ao notar que não estava
franzindo o cenho. Em vez disso, ela me olhava com uma expressão
atordoada e triste. Fui acometido pela ideia absurda e infundada de que ela
estava discutindo se deveria ou não dizer “eu te amo”. Só que a diferença
entre nós é que ela presumia que as pessoas já sabiam esse tipo de coisa,
enquanto eu estava sempre com medo de não saberem.
— Oliver — foi o que de fato disse.
Ela suspirou meu nome como se fosse o sopro de algo caloroso e doce, e
então se recostou na cornija, talvez cansada demais para se sustentar em pé
por conta própria.
— Estou com medo — disse com um sorriso seco, como se fosse um
segredo vergonhoso.
— Do quê? — perguntei, não porque não havia nada a temer, mas porque
havia coisas demais.
Ela deu de ombros.
— Do que vai acontecer agora.
Nenhum dos dois falou nada antes de o relógio bater. Filippa ergueu o
olhar.
— São cinco horas.
O velório estava marcado para as cinco e meia.
— Meu Deus — falei. — É. A gente precisa ir.
Eu me ergui da cadeira com enorme relutância, mas Filippa não se
mexeu.
— Você vem? — perguntei.
Ela piscou para mim com um olhar confuso e vazio, como se tivesse
acabado de acordar de um sonho do qual não se recordava.
— Pode ir na frente — disse ela, cutucando a frente do suéter, que estava
manchado de cinzas. — Melhor eu me trocar.
— Certo. — Eu pairei no batente. — Pip?
— Oi?
— Não fique com medo.
Era uma coisa egoísta de se dizer. Se ela perdesse a coragem, eu não
conseguia imaginar o que aconteceria com todos os outros. Ela era a única
de nós que nunca hesitava.
Ela me ofereceu um sorriso tão frágil que eu poderia ter imaginado.
— Tá bom.
CENA 5

Encontrei James no começo da trilha, parado ali, encarando o caminho


como se não pudesse se obrigar a dar um único passo. Se ele me ouviu
aproximar, não reagiu, e eu esperei atrás dele no silêncio crepuscular,
incerto do que fazer. Uma coruja piou em algum lugar entre as árvores —
talvez a mesma que piara no sábado à noite.
— Você não acha um pouco mórbido? — perguntou ele, sem
preâmbulos, sem sequer se virar. — Fazer o velório na praia.
— Acho que o salão de música é meio… festivo demais — respondi. —
Todas aquelas coisas douradas.
— Era de se esperar que quisessem fazer isso o mais longe possível do
lago.
— É.
Olhei de volta na direção do Pavilhão. Poderia até ser Halloween mais
uma vez — James e eu espreitando sob a sombra das árvores —, mas o ar
estava gelado demais, pressionando minha pele como uma lâmina de aço
achatada.
— Eu não confio mais no lago.
— Como assim?
— Primeiro o Halloween, agora isso — falei, dando de ombros mesmo
que ele não pudesse ver. — É como se esse lago se voltasse contra a gente.
Como se morasse uma náiade lá embaixo, e nós a irritamos. Talvez
Meredith estivesse certa e nós deveríamos ter nadado pelados no começo do
semestre.
Não percebi o quanto aquela fala era estúpida até sair da minha boca.
— Como se fosse um ritual pagão? — perguntou James, virando a cabeça
para que eu pudesse ver a lateral do seu rosto, a curva da bochecha. — Meu
Senhor amado, Oliver. Durma com ela se precisar, mas não a deixe entrar
na sua cabeça.
— Eu não estou dormindo com ela. — Eu via que ele estava prestes a
protestar, então acrescentei: — Sabe, não figurativamente.
— Não importa, né? — perguntou ele, e finalmente se virou para me
encarar.
O movimento era deliberadamente descontraído e não me convenceu.
— O quê?
— Se é figurativo.
— Não entendi.
Ele ergueu a voz para o suave silêncio da floresta como se fosse uma
lâmina afiada.
— Não, não entendeu mesmo, porque não acho que você seja esse tipo de
idiota.
— James — eu disse, perplexo demais para ficar bravo de verdade —, do
que você está falando?
Ele desviou o olhar.
— De vocês — disse ele, encarando as árvores. — Você e ela.
Ele fez uma careta, como se dizer aquelas palavras juntas deixassem um
gosto amargo na boca.
— Você não nota a impressão que isso passa, Oliver? Não importa se
você está ou não dormindo com ela de verdade. A aparência é ruim de
qualquer forma.
— E por que você se importa com essa aparência? — perguntei, forçando
a demonstração de indignação, mais alvoroçado do que qualquer outra
coisa.
O sarcasmo dele era cáustico e estranho.
— Não me importo — disse ele. — De verdade. Eu me importo com
você, e com o que pode acontecer se continuar fazendo isso.
— Eu não…
— Eu sei que você não entende, você nunca entende. Richard está morto.
Olhei para o Pavilhão mais uma vez, a silhueta quadrada no topo do
morro.
— Não é como se a gente tivesse matado ele.
— Não seja ingênuo, Oliver, por uma vez em toda a sua vida. Ele está
morto há dois dias, e a namorada dele já está na cama com você todas as
noites? — Ele sacudiu a cabeça, os pensamentos esvaindo em uma torrente
implacável e imprudente. — As pessoas não vão gostar disso. Vão falar
disso. Vão fofocar, porque é isso que pessoas fazem. — Ele colocou uma
mão em concha ao redor do ouvido, dizendo: — Abram as portas, pois que
ouvido / recusaria a visita d’um Boato?
Minha voz ficou presa na garganta, seca como giz.
— Por que está falando disso como se tivéssemos matado ele?
Ele agarrou a frente da minha jaqueta, como se quisesse me esganar.
— Porque parece que matamos, porra. Você acha que as pessoas não vão
se perguntar se algum de nós pode tê-lo empurrado? Se continuar dormindo
com Meredith, vão achar que foi você.
Eu o encarei, surpreso demais para me mexer. A mão dele era a única
coisa sólida, o grosso da raiva pressionado no meu peito na forma de um
punho.
— James, a polícia… Eles já falaram que foi um acidente. Ele bateu a
cabeça. Caiu.
Ele deve ter visto o medo no meu rosto, porque as linhas tesas ao redor
dos olhos e da boca desapareceram, como se alguém houvesse cortado o fio
certo e o desarmado antes que pudesse explodir.
— Sim, claro que foi isso.
Ele olhou para baixo, soltou minha jaqueta, e passou a mão na lapela para
alisar as rugas.
— Me desculpe, Oliver. Tudo virou de cabeça para baixo.
Dei de ombros constrangido em resposta, ainda semiencurralado pela
minha paralisia angustiante.
— Tudo bem.
— Você me perdoa?
— Claro — respondi, um segundo tarde demais. — Sempre.
CENA 6

Os minúsculos brilhos de mil velas oscilavam na praia como pequenas


fadas. Metade dos que compareceram seguravam candeias brancas finas
com respaldos de papelão, e lanternas de papel pairavam ao fim de cada
fileira como acompanhantes espectrais. Os alunos do quarto ano de coral
estavam aglomerados em formação na areia, cantando baixinho, as vozes
tremeluzindo pela água, como se nossas sereias caprichosas estivessem de
luto. Ao lado deles na praia estava um velho púlpito de madeira e um
cavalete coberto. Lírios brancos floresciam na base de cada um, a fragrância
fina delicada demais para disfarçar o cheiro terroso do lago.
James e eu descemos pela fileira central em meio a um espinheiro de
sussurros, que se abriu relutante para nos deixar passar. Wren, Frederick,
Gwendolyn e os pais de Richard estavam sentados no primeiro banco à
direita, e Meredith e Alexander à esquerda. Eu me sentei ao lado deles,
James ao meu lado, e, quando Filippa chegou, Alexander e eu nos
afastamos para abrir espaço para ela. Eu me perguntei o motivo de nos
colocarem na frente, onde todos poderiam nos ver. As fileiras de bancos
pareciam a galeria de um tribunal, centenas de olhos ardendo na minha
nuca. (Aquela sensação, no fim, acabaria se tornando familiar. Um tipo
singular de tortura para um ator: ter a atenção integral de um público e virar
as costas para ele por vergonha.)
Olhei para o banco do outro lado do corredor. Wren estava sentada ao
lado do tio, que lembrava tanto Richard que eu não conseguia evitar encará-
lo. Os mesmos cabelos pretos, os mesmos olhos pretos, a mesma boca
cruel. Porém, o rosto familiar era mais velho, enrugado, e faixas de
prateado se esgueiravam pelas laterais do cabelo. Aquele, sem dúvida, seria
o que Richard teria se tornado em vinte anos. Não havia mais chance de
aquilo acontecer.
Ele deve ter sentido o meu olhar, da mesma forma que eu senti o de todo
mundo, porque se virou abruptamente na minha direção. Eu desviei o rosto,
mas não rápido o bastante — houve um momento de contato, um choque
elétrico que me sacudiu de dentro para fora. Soltei uma respiração ofegante,
as luzes das velas dançando na visão periférica. Por que tais fogos?, pensei.
Por que tais fantasmas?
— Oliver? — sussurrou Filippa. — Tudo bem com você?
— Sim — respondi. — Tudo certo.
Eu não acreditava em mim mesmo, e ela também não, mas, antes que
pudesse dizer outra coisa, o coro fez silêncio, e o Reitor Holinshed apareceu
na praia. Ele estava vestido de preto, com exceção de um cachecol (azul
Dellecher, com a chave e a pena bordados em uma das pontas), que estava
pendendo frouxo do pescoço. Além daquela faixa de cor, ele era uma figura
lúgubre e imponente, o nariz curvado como bico fazendo uma sombra
temerosa no rosto.
— Boa noite.
Havia um tom cansado e murcho em sua voz.
Filippa entrelaçou os dedos dela com os meus. Eu apertei a mão dela,
grato por ter algo para segurar.
— Estamos aqui — disse Holinshed — para honrar a memória de um
jovem extraordinário que todos vocês conheciam.
Ele pigarreou, dobrando as mãos atrás das costas, e, por um instante,
olhou para o chão.
— Como é melhor se lembrar de Richard? — perguntou ele. — Ele não é
o tipo de pessoa que logo desaparecerá da memória. Poderia dizer que ele
era maior do que a própria vida. Não parece exagero pensar que ele também
é maior do que a própria morte. E de quem mais isso pode ser dito?
Ele fez outra pausa, mordiscando o lábio.
— É impossível não pensar em Shakespeare quando pensamos em
Richard. Ele apareceu em nosso palco muitas vezes, em diversos papéis.
Porém, há um papel que nós nunca tivemos oportunidade de vê-lo fazer.
Aqueles que o conheceram bem provavelmente concordarão que ele teria
sido um excelente Henrique V. Eu, de minha parte, me sinto traído por não
ter tido a oportunidade de ver isso.
As pulseiras de Gwendolyn sacudiram quando ela ergueu a mão até a
boca. Lágrimas rolavam pelo rosto, arrastando rastros de rímel borrado.
— Henrique V é um dos heróis shakespearianos mais amados e mais
complicados, assim como Richard foi um dos nossos. Eles serão, creio eu,
lamentados de formas semelhantes.
Holinshed enfiou a mão no bolso fundo do casaco, procurando por algo.
Enquanto buscava, ele disse:
— Antes de ler isso, preciso pedir para os colegas atores de Richard que
me perdoem. Eu nunca me passei por ator, mas desejo prestar um tributo, e
espero que, dadas as circunstâncias, tanto vocês quanto eles possam
encontrar em seus corações uma parcela de compaixão para perdoar minha
infeliz enunciação.
Fez-se um murmúrio de risadas. Holinshed desdobrou uma folha de papel
do bolso. Ouvi um ruído de tecidos remexendo. Alexander estava
segurando a outra mão de Filippa. Ele olhava bem para a frente, a
mandíbula proeminente.
HOLINSHED: “Que a noite tome o dia e escureça o céu
     Cometas, tragam boas mudanças
     Com sua cauda de cristal
     E levem longe as más estrelas
     Que consentiram com a morte de Henrique.
     Nunca a Inglaterra perdeu um rei tão valioso.”
Ele franziu o cenho, amassando o papel e devolvendo-o ao bolso.
— Nunca Dellecher perdeu um aluno tão valioso — disse ele. —
Deixemo-nos guardar boas lembranças de Richard, como ele teria desejado.
É uma honra, nesta ocasião, mostrar o retrato que de hoje em diante ficará
pendurado no saguão do Teatro Archibald Dellecher.
Ele esticou a mão para puxar o tecido preto frouxo do cavalete. O rosto
de Richard surgiu de trás dele — era o retrato de César, a foto antes de ser
pintada de outra cor e cortada para o pôster — e meu coração subiu até a
garganta. Eu me senti dar um passo além das docas mais uma vez,
mergulhar na água frígida do lago. Ele nos encarava através da praia —
soberbo, enfurecido e, de forma abominável, vivo. Eu segurei a mão de
Filippa com tanta força que os nós dos dedos dela ficaram brancos.
Holinshed estava errado: Richard não queria que guardássemos boas
lembranças — ele nunca fora tão misericordioso. Ele queria causar uma
devastação imensurável sobre o restante de nós.
— Há limites para o que posso dizer em nome de Richard — continuou
Holinshed, mas eu mal o ouvi. — Eu não tive o privilégio de conhecê-lo tão
bem quanto muitos de vocês. Então, eu me retirarei, e deixarei que outra
pessoa, mais próxima e mais querida, fale por ele agora.
Ele terminou sem nenhum gesto grandioso, e se retirou do púlpito. Eu
olhei para o banco, espantado, mas Meredith não se mexeu. Ela continuou
sentada, pálida, com a mão esquerda de Alexander no colo, apertada com
força entre as duas dela. Quatro de nós estávamos conectados, como
bonecas de papel em uma corrente. Eu senti o batimento cardíaco de Filippa
entre meus dedos e afrouxei meu aperto.
Um sussurro suave me fez olhar para o outro lado. Wren estava de pé,
caminhando ao púlpito. Quando chegou lá, ela mal era visível, um rosto
pálido e cabelos louros finos pairando logo acima do microfone.
— Richard e eu nunca tivemos irmãos, então éramos mais próximos do
que muitos primos — disse ela. — O Reitor Holinshed estava certo em
dizer que ele era maior que a própria vida. Só que nem todo mundo gostava
disso nele. Na verdade, sei que muitos de vocês não gostavam dele nem um
pouco.
Ela ergueu o olhar, mas não para nenhum de nós. A voz dela era baixa e
instável, mas os olhos estavam secos.
— Para ser perfeitamente honesta, eu às vezes não gosto… não
gostava… dele também. Não era fácil gostar de Richard. Mas era muito
fácil amá-lo.
No banco do outro lado do nosso, a sra. Stirling chorava em silêncio,
uma mão segurando o colarinho do casaco. O marido dela estava sentado
com os punhos cerrados entre os joelhos.
— Meu Deus do céu — murmurou Alexander. — Não vou aguentar.
Meredith enterrou as unhas no pulso dele. Eu mordi a língua, cerrei os
dentes com tanta força que pensei que fossem quebrar.
— A ideia de que eu teria que… o deixar partir antes que nós
estivéssemos velhos e caducos nunca nem me ocorreu — continuou Wren,
escolhendo as palavras uma por uma, como uma criança que pulava de
pedra em pedra através de um riacho. — Mas não parece que só perdi um
primo. Parece que perdi uma parte de mim mesma.
Ela soltou uma risada trágica.
James agarrou minha mão tão abruptamente que eu me sobressaltei, mas
ele não pareceu notar. Ele observava Wren com uma angústia no rosto,
engolindo em seco sem parar, como se fosse vomitar a qualquer segundo.
Filippa estremecia ao meu outro lado.
— Na noite passada, eu não consegui dormir, então reli Noite de reis —
disse Wren. — Todos nós sabemos como termina… Com um final feliz, é
claro, mas também há tristeza ali. Olívia perdeu um irmão. Viola também,
mas elas lidam com a situação de formas muito diferentes. Viola muda de
nome, muda toda sua identidade, e quase que imediatamente se apaixona.
Olívia se retira do mundo, e se recusa a amar de qualquer forma que seja.
Viola tenta desesperadamente esquecer-se do irmão. Olívia talvez se lembre
dele até demais. Então o que devemos fazer? Ignorar nosso luto, ou nos
deixar levar por ele?
Ela ergueu o olhar da areia e nos encontrou, seus olhos seguindo de rosto
em rosto. Meredith, Alexander, Filippa, eu e, por fim, James.
— Todos vocês sabem que Richard se recusa a ser ignorado — disse ela,
falando para nós, e com mais ninguém. — Mas, talvez, todos os dias que
deixarmos o luto entrar, também deixaremos um pouco escapar e, uma hora,
poderemos respirar novamente. Ao menos, é assim que Shakespeare
contaria a história. Hamlet diz: Dê um tempo da felicidade. Mas só um
pouco. O show não acabou. É partido agora um nobre coração. Boa noite.
O resto de nós precisa continuar.
Ela parou de falar, e desceu do púlpito. Alguns sorrisos tristes e
hesitantes apareceram no público, mas nenhum veio de nós. Nós
segurávamos as mãos uns dos outros com tanta força que não conseguíamos
sentir mais nada. Wren andou de volta ao banco com pernas bambas. Ela se
afundou entre a tia e o tio, ficou ereta por um segundo ou dois, e depois
desabou no colo do tio. Ele se dobrou sobre ela de forma protetora, tentando
ampará-la com os braços, e logo os dois estavam sacudindo com tanta força
que eu não conseguia distinguir qual deles estava soluçando.
CENA 7

Uma reunião de última hora aconteceu no Habeas Copos. Estávamos todos


desesperados por uma bebida, e nenhum de nós queria voltar para o
isolamento na Casa Hallsworth. Nossa mesa parecia miseravelmente
debilitada. A cadeira que Richard sempre usava estava desocupada
(ninguém sequer queria encarar o espaço vazio onde ele deveria estar),
Wren já estava a rumo do aeroporto, e a maioria das pessoas só se
aproximava por tempo o suficiente para desejar pêsames e fazer um brinde
para Richard antes de ir embora. Nós não falamos muito. Alexander pagara
por uma garrafa inteira de Johnnie Walker Black, que estava destampada no
meio da mesa, o conteúdo lentamente diminuindo até só sobrar cerca de um
dedo.
ALEXANDER: “A que horas o Camilo vem nos buscar?”
FILIPPA: “Logo. Alguém tem algum voo mais cedo do que nove?”
Todos sacudimos a cabeça, juntos.
ALEXANDER: “James, que horas você chega lá?”
JAMES: “Às quatro da manhã.”
FILIPPA: “E o seu pai vai te buscar a essa hora da madrugada?”
JAMES: “Não. Vou pegar um táxi.”
MEREDITH: “Alexander, e você vai pra onde?”
ALEXANDER: “Vou ficar com meu irmão adotivo na Filadélfia. Sei lá onde
minha mãe se enfiou. E você?”
Ela inclinou o copo, observando o resto de uísque aguado escorrer pelos
cubos de gelo derretidos.
— Meus pais estão em Montreal com David e a esposa — disse ela. —
Então seremos só eu e Caleb no apartamento, se é que ele vai voltar do
trabalho.
Eu queria reconfortá-la de alguma forma, mas não ousava tocar nela, não
na frente dos outros. Havia um aperto em meu peito, como se todo o choque
e horror dos dias anteriores estivessem forçando meu coração.
EU: “Nossos planos de feriado são os mais deprimentes do mundo.”
JAMES: “Acho que os da Wren são provavelmente piores.”
ALEXANDER: “Meu Deus. Vai se foder.”
JAMES: “Só estava providenciando um pouco de perspectiva.”
MEREDITH: “Você acha que ela vai voltar depois das férias?”
Um silêncio se instaurou na mesa.
— Como assim? — disse Alexander, muito alto.
Meredith se inclinou para trás, olhando de soslaio para a mesa vizinha.
— Quer dizer, pense um pouco — disse ela, consideravelmente mais
baixo do que Alexander. — Ela vai voltar para casa, enterrar o primo dela,
ter três dias para ficar de luto e cruzar o oceano de volta para fazer provas e
audições? O estresse pode acabar com ela. — Ela deu de ombros. — Talvez
ela não volte. Talvez termine ano que vem, ou nem termine. Eu não sei.
— Ela falou alguma coisa para você? — exigiu James.
— Não! Ela só… Eu não voltaria de imediato se fosse ela. Você voltaria?
— Jesus Cristo — disse Alexander, passando os dedos pelo rosto. — Eu
nem pensei nisso.
Além de Meredith, ninguém tinha pensado. Todos encaramos nossas
bebidas, as bochechas rosadas de vergonha.
— Ela precisa voltar — disse James, olhando de mim para Meredith,
como se um de nós pudesse reassegurá-lo de alguma forma. — Ela precisa.
— Talvez não seja o melhor para ela — disse Meredith. — Talvez ela
precise de um tempo fora. Um tempo longe de Dellecher e… de todos nós.
James ficou imóvel por um momento, e então ficou em pé e deixou a
mesa sem dizer mais uma palavra. Alexander o observou partir, de mau
humor.
— E então sobraram quatro — disse ele.
CENA 8

A casa de minha família em Ohio não era um lugar que eu gostava de


visitar. Era uma entre doze casas quase idênticas (com ripas de madeira,
pintadas em tons de bege quase indistinguíveis) em uma rua suburbana
silenciosa. Cada casa vinha completa, com uma caixa de correios preta,
uma entrada cinza para a garagem e um gramado verdejante pontuado por
pequenos arbustos redondos, alguns dos quais já estavam envoltos de pisca-
piscas brancos de Natal.
O jantar de Ação de Graças (tradicionalmente um acontecimento tedioso,
alegrado apenas pela abundância de vinho e comida) foi incomumente
tenso. Meu pai e minha mãe estavam sentados em pontas opostas da mesa,
vestindo o que eu sempre considerei “roupas de igreja”: calças pretas e
suéteres verde-ervilha que eram vergonhosamente parecidos. Minhas irmãs
se acotovelavam de um lado, e eu estava sentado sozinho do outro, me
perguntando quando Caroline ficara tão magra e, já que estávamos nesse
assunto, quando Leah fizera o oposto e desenvolvera curvas. Ambas as
mudanças pareciam ter se tornado elementos de disputa em minha ausência
— meu pai disse a Caroline para “parar de brincar com a comida e comer
logo” mais de uma vez, e o olhar da minha mãe continuava se demorando
na curva do colo de Leah, como se a profundidade do decote a deixasse
profundamente desconfortável.
Alheia ao escrutínio, Leah me encheu de perguntas sobre Dellecher desde
o instante que abrimos o vinho. Por alguma razão, ela tinha uma
curiosidade ávida pelos meus métodos de aprendizado alternativos,
enquanto Caroline nunca demonstrava interesse algum. (Eu não precisava
ficar ofendido. Caroline raramente demonstrava interesse em qualquer coisa
que não estivesse relacionada a malhação frenética ou a seu fetiche pela
moda dos anos 60.)
— Você sabe que peça vão fazer no semestre da primavera? — perguntou
Leah. — Acabamos de ler Hamlet na aula de literatura.
— Duvido que vá ser essa — respondi. — Fizeram ano passado.
— Eu queria ter visto vocês fazendo Macbeth — continuou ela em um
ímpeto. — O Halloween aqui foi incrivelmente chato.
— Está velha demais para se fantasiar?
— Eu fui a uma festa horrorosa vestida de Amelia Earhart. Eu acho que
eu era a única menina lá que não estava só de lingerie.
A palavra “lingerie” saindo da boca dela foi um pouco alarmante. Fazia
quatro anos que eu não passava muito tempo em casa, e ainda pensava que
ela era muito mais jovem do que seus dezesseis anos.
— Bom — falei. — Isso é… enfim.
— Leah — avisou minha mãe. — Durante o jantar, não.
— Mãe, por favor.
(Quando ela mudara para falar apenas “mãe”, em vez de “mamãe”? Eu
estiquei o braço para pegar a taça de vinho e a entornei apressadamente.)
— Você tem fotos de Macbeth? — insistiu Leah. — Eu adoraria ver.
— Não dê nenhuma ideia a ela, por favor — disse meu pai. — Um ator
na família já é o suficiente.
Em particular, eu concordava com ele. A ideia de minha irmã apenas de
camisola na frente de todos os garotos de Dellecher me causou leve enjoo.
— Não se preocupe — disse Caroline, relaxando a postura na cadeira,
removendo um fio solto do punho do moletom. — Leah é inteligente
demais para isso.
As bochechas de Leah coraram.
— Por que você sempre fala isso como se fosse horrível?
— Meninas — disse minha mãe. — Agora não.
Caroline deu um sorriso torto e ficou em silêncio, esparramando purê de
batata no prato com o garfo. Leah bebericou o vinho (ela podia tomar meia
taça, e apenas meia taça), ainda corada. Meu pai suspirou, sacudindo a
cabeça, e disse:
— Oliver, me passe o molho.
Cerca de meia hora depois, passada de forma excruciante, minha mãe
empurrou a cadeira para longe da mesa para recolher os pratos. Leah e
Caroline começaram a carregar coisas da sala de jantar, mas, quando fui me
levantar, meu pai me instruiu para ficar exatamente onde estava.
— Eu e sua mãe precisamos falar com você.
Eu endireitei a postura, aguardando. Porém, ele não disse mais nada,
apenas voltou a atenção para o próprio prato, remexendo os pedaços
fragmentados de massa de torta que havia sobrado. Eu me servi de uma
quarta taça de vinho com dedos nervosos e desajeitados. Será que tinham
ouvido falar de Richard de alguma forma? Eu passara dois dias espreitando
a caixa de correios e pegara o informativo de Dellecher assim que chegara,
esperando prevenir precisamente isso.
Passaram-se outros cinco minutos antes de minha mãe voltar. Ela se
sentou ao lado de meu pai na cadeira que fora de Leah durante o jantar e
abriu um sorriso, com um estremecimento nervoso do lábio superior. Meu
pai limpou a boca, deixou o guardanapo no colo e olhou diretamente para
mim.
— Oliver — disse ele. — Precisamos falar com você sobre algo difícil.
— Certo, o que foi?
Ele se virou para minha mãe (como sempre fazia quando “algo difícil”
precisava ser dito).
— Linda? — disse ele, chamando-a pelo nome.
Ela esticou a mão por cima da mesa e agarrou minha mão antes que eu
pudesse retirá-la. Relutei contra o impulso de me desvencilhar.
— Não há um jeito fácil de dizer isso — disse ela, as lágrimas
aparecendo nos olhos. — E vai ser um choque para você, já que você passa
tanto tempo longe de casa.
A culpa deslizou pela minha coluna como se fosse uma aranha.
— Sua irmã… — Ela soltou um suspiro estrangulado e minúsculo. —
Sua irmã não está bem.
— Caroline — disse meu pai, como se não fosse óbvio a qual das duas
ela se referia.
— Ela não vai voltar para a faculdade esse semestre — minha mãe
continuou. — Ela estava tentando tanto terminar, mas o médico achou que
seria melhor para a saúde dela fazer uma pausa.
Eu olhei dela para o meu pai.
— Tá. E o que…
— Não interrompa, por favor — disse ele.
— Tudo bem. Desculpa.
— Sabe, querido, Caroline não vai voltar para a faculdade, mas também
não vai ficar aqui — explicou minha mãe. — Os médicos acham que
alguém precisa ficar de olho nela, mais do que nós podemos, já que ficamos
o dia todo no trabalho.
Caroline era a que tinha menos bom senso entre nós três, mas o fato de
meus pais falarem dela como se não pudesse ficar sozinha era um pouco
inquietante.
— O que isso significa? — perguntei.
— Significa que ela vai… passar um tempo longe, para ficar com pessoas
que podem ajudar.
— Tipo na reabilitação?
— Nós não chamamos disso. — Meu pai me cortou, como se eu tivesse
dito algo obsceno.
— Tá, então chamamos como?
Minha mãe pigarreou de forma delicada.
— É um centro de recuperação.
Eu olhei primeiro para ela, depois para meu pai, e depois voltei mais uma
vez antes de dizer:
— Do que ela está se recuperando, meu Deus?
Meu pai emitiu um som impaciente.
— Você certamente notou que ela não está comendo direito — disse.
Eu desvencilhei minha mão do aperto de minha mãe. Minha mente estava
vazia, presa, sem conseguir processar essa informação. Tomei outro gole
atrapalhado da minha taça e apoiei as mãos no colo, longe do alcance deles.
EU: “Certo. Isso é… horrível.”
MEU PAI: “É. Mas agora precisamos conversar sobre o que isso significa
para você.”
EU: “Para mim? Não entendi.”
MINHA MÃE: “Bom, estamos chegando lá.”
MEU PAI: “Por favor, só escute, certo?”
Eu cerrei os molares, e observei minha mãe.
— Esse centro de recuperação é caro — disse ela. — Mas nós queremos
nos certificar de que ela receba o melhor tratamento possível. E o problema
é que… o problema é que não conseguimos pagar o centro de recuperação e
sua faculdade ao mesmo tempo.
Meu corpo ficou entorpecido com tanta rapidez que me senti zonzo.
— Como assim? — falei, como se não tivesse ouvido.
— Ah, Oliver, eu sinto muito.
As lágrimas deslizaram dos olhos dela e deixaram manchas escuras na
toalha de mesa, como marcas de cera de vela.
— Nós debatemos muito — continuou —, mas a verdade é que, nesse
momento, precisamos ajudar a sua irmã. Ela não está bem.
— E a mensalidade da faculdade dela? Você falou que ela trancou… e
esse dinheiro?
— Não é o suficiente — disse meu pai, curto.
Olhei dele para ela, boquiaberto, a incredulidade fazendo com que meu
sangue corresse como se fosse lama. Pulsava e gotejava lentamente do meu
coração ao meu cérebro.
— Só falta um semestre para mim — eu disse. — O que eu vou fazer?
— Bom, você precisa falar com a faculdade — disse meu pai. — Talvez
pensar em pegar um empréstimo de última hora se quiser mesmo se formar.
— Se eu quiser… por que eu não iria querer me formar?
Ele deu de ombros.
— Não consigo imaginar que um diploma faça tanta diferença para um
ator.
— Eu… Quê?
— Ken — disse minha mãe, de forma desesperada. — Por favor, vamos
só…
— Deixa eu ver se entendi — falei.
A raiva se alojava nas profundezas do meu estômago, rapidamente
devorando os fragmentos minúsculos de incredulidade.
— Vocês estão me dizendo que eu preciso sair da Dellecher porque
Caroline precisa que algum médico chique dê comida na boca dela?
Meu pai bateu com a palma da mão aberta na mesa.
— Estou dizendo que você precisa considerar alternativas monetárias
porque a saúde da sua irmã é mais importante do que pagarmos vinte mil
dólares para você ficar vivendo no mundo da fantasia!
Eu o encarei por um momento, com uma revolta atônita, e então joguei
minha cadeira para trás e deixei a mesa.
CENA 9

Passei quatro horas do dia seguinte trancado no escritório do meu pai, no


telefone com os funcionários administrativos da Dellecher. Eles conectaram
a ligação a Frederick, a Gwendolyn, até, por fim, ao Reitor Holinshed.
Todos soavam exaustos, mas cada um deles me assegurou de que
encontraríamos um jeito. Empréstimos foram sugeridos, assim como um
arranjo de trabalho na faculdade, e inscrições tardias em bolsas de estudo.
Quando finalmente desliguei, me retirei de volta ao quarto, me deitei na
cama e fiquei encarando o teto.
Inevitavelmente, meu olhar seguiu para a escrivaninha (entulhada de
fotos e programas de peças antigas), para a estante (estufada com livros em
brochura espandongados, comprados por moedas de sebos e liquidações da
biblioteca), por cada um dos pôsteres pendurados na parede, uma galeria
dos meus empreendimentos teatrais no colégio. A maioria era Shakespeare:
Noite de reis, Medida por medida, e até um panfleto que sobrara de uma
produção tremendamente equivocada de Cimbeline, que se passava no Sul
dos Estados Unidos antes da Guerra de Secessão por razões que o diretor
não conseguira explicar de forma satisfatória. Eu suspirei com uma tristeza
estranha e saudosa, me perguntando o que costumava ocupar meus
pensamentos antes de Shakespeare. Meu primeiro encontro atrapalhado
com ele, aos onze anos, rapidamente desabrochara em uma idolatria
absoluta ao Bardo. Eu comprei um exemplar das peças completas com
minha mesada preciosa e o levava para todo canto, feliz demais em ignorar
a realidade menos poética do mundo lá fora. Nunca antes na vida eu
vivenciara algo tão inegavelmente emocionante e importante. Sem ele, sem
Dellecher, sem a companhia dos meus colegas de sala e suas paixões líricas,
o que seria de mim?
Eu decidi então — de forma sóbria, sem hesitação — que preferiria
roubar um banco ou vender um rim a deixar tal coisa acontecer. Relutante
em deixar minha mente se demorar na possibilidade de tais situações
extremas, tirei Teatro da inveja da mochila e continuei a ler.
Um pouco depois das sete, minha mãe bateu à porta e avisou que o jantar
estava pronto. Eu a ignorei e permaneci onde estava, mas me arrependi da
decisão duas horas mais tarde quando meu estômago começou a roncar.
Mais tarde, Leah me trouxe um sanduíche recheado de sobras do dia de
Ação de Graças. Ela se empoleirou na beirada do colchão, dizendo:
— Acho que te contaram, então.
— É — respondi, com a boca cheia de peru, pão e molho de cranberry.
— Sinto muito.
— Vou encontrar dinheiro em algum lugar. Não posso não voltar para
Dellecher.
— Por quê?
Ela me observava com os olhos curiosos, azuis como porcelana.
— Não sei. É só que… Eu não quero ficar em mais nenhum outro lugar.
James, Filippa, Alexander, Wren e Meredith são como minha família.
Eu omitira Richard sem ter intenção disso. O pão se dissolveu em uma
substância pastosa na minha boca.
— Melhor do que família, na verdade — acrescentei, quando consegui
engolir. — Nós todos nos encaixamos. É diferente daqui.
Ela puxou uma ponta solta do edredom.
— A gente se encaixava, antigamente — disse ela. — Você e Caroline
gostavam um do outro.
— Não gostávamos, não. Você só era novinha demais para perceber.
Ela franziu o cenho, então decidi elaborar.
— Não precisa se preocupar. Eu amo a Caroline, exatamente como devo.
Eu só não gosto muito dela.
Ela mordeu o lábio inferior, pensativa. Ela nunca antes havia me
lembrado tanto de Wren; e o luto e o afeto me preencheram ao mesmo
tempo, inesperados. Eu queria abraçá-la, apertar sua mão — mas, na minha
família, nunca fomos propensos a demonstrações físicas de afeto, e temi
que ela achasse o gesto estranho.
— Você gosta de mim? — perguntou.
— Claro que gosto — falei, surpreso pela pergunta. — Você é a única
que presta nessa casa.
— Ótimo. Acho bom você não esquecer. — Ela ofereceu um sorriso
relutante e deslizou para fora da cama. — Me prometa que você vai sair do
quarto amanhã.
— Só se o pai não estiver por perto.
Ela revirou os olhos.
— Eu aviso quando a barra estiver limpa. Vá dormir, seu nerd.
Eu apontei para ela, e então para mim.
— Sujo. Mal lavado.
Ela mostrou a língua antes de desaparecer pelo corredor, deixando a porta
entreaberta. Talvez ela não tivesse crescido tanto assim.
Eu me deitei novamente para terminar Girard, mas, pouco tempo depois,
algumas palavras evocativas desconfortáveis passaram pelas barreiras
mentais que eu construíra para afastar Richard: “essa mimese do conflito
significa mais solidariedade entre os que lutam juntos contra um mesmo
inimigo e mantém essa promessa um ao outro. Nada une os homens como
ter um inimigo em comum”. Na página seguinte, o nome de Casca me fez
parar tão subitamente como se fosse meu próprio, e eu fechei o livro com
força. Então, Richard era nosso inimigo? Parecia um exagero absurdo, mas
de que outra forma poderíamos chamá-lo? Eu dedilhei as páginas, me
maravilhando por precisarmos ser tão pouco convencidos para aquiescer
com o Muito barulho por nada de Alexander. Alguns dias de distância
daquele momento transformaram meu horror em algo frio e endurecido,
mas eu me perguntei mais uma vez o que me fizera tomar aquela decisão.
Fora algo tão digno de defesa quanto o medo, ou apenas retaliação
mesquinha, inveja, oportunismo? Passei o dedo no marca-página. Um
número estava escrito no verso com tinta vermelha impetuosa. No
aeroporto, depois do velório, eu carregara as malas de Meredith para serem
despachadas e, quando voltei, ela sugerira (longe dos ouvidos de James e
Alexander) que eu deveria visitá-la em Nova York antes de voltarmos para
a faculdade. Richard se fora. O que mais poderia me impedir?
A culpa coçava como uma inflamação na pele. Ardia todas as vezes que
minha mente roçava em Richard, e desaparecia em forma de um
desconforto entorpecente quando eu conseguia me obrigar a esquecê-lo,
durante uma hora ou duas. Pior do que a culpa era a incerteza. Estou com
medo, Filippa me dissera, do que vai acontecer agora. Enquanto estava
deitado no passado, no quarto de minha infância, o futuro me parecia
pantanoso como nunca antes. Pensei naquilo em termos de estrutura
narrativa dramática, porque não sabia outra forma de pensar. A morte de
Richard não parecia tanto um desfecho quanto uma reviravolta na trama
durante o segundo ato, o evento catalisador que desdobrava todo o resto da
história. Como Wren dissera, o show não terminara. Era o final
desconhecido que me apavorava.
Pressionei a base das mãos nos olhos. A exaustão que tomara meus ossos
na Casa Hallsworth ainda se agarrava a mim, como a lassidão que perdura
quando a febre cede. Logo, eu adormecera em cima do cobertor,
perambulando em um sonho em que eu e os outros alunos do quarto ano —
só nos seis — estávamos parados em meio a um pântano nebuloso e cheio
de tocos de árvores, mergulhados até o quadril, dizendo todos ao mesmo
tempo, em infinita repetição: “Ele se afogou no rio; basta olhar no fundo
para vê-lo ali.”
Cerca de uma hora depois, acordei, sobressaltado. As faixas do céu
visíveis entre as persianas da janela eram pretas como o vazio, e sem
estrelas. Eu me apoiei nos cotovelos, me perguntando o que me acordara.
Um baque surdo no andar de baixo me fez sentar, os ouvidos atentos. Sem
ter certeza se eu ouvira mesmo algo, passei as pernas pelo lado da cama e
abri a porta. Meus olhos se ajustaram lentamente à penumbra enquanto eu
me esgueirava pelo corredor, mas eu tinha bastante prática em sair de casa
às escondidas depois do cair da noite, e era improvável tropeçar. Quando
cheguei ao térreo, parei, escutando, uma mão no corrimão. Algo se moveu
na varanda, grande demais para ser o gato de um vizinho ou um guaxinim.
Outra batida. Alguém estava à porta.
Andei pé ante pé no saguão e olhei cauteloso pelo vidro ao lado da porta.
A surpresa lançou-se sobre mim, e me atrapalhei para destrancar a porta.
— James!
Ele estava parado na varanda com uma mala de lona nos pés, a respiração
uma nuvem branca no ar noturno gélido.
— Eu não sabia se você estaria acordado — disse ele, como se estivesse
meramente atrasado para uma reunião que havíamos combinado, e não
aparecendo inesperadamente.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, olhando para ele um
pouco perplexo, incerto se eu ainda estava sonhando.
— Desculpa — disse ele. — Eu deveria ter ligado.
— Não, está tudo bem… Entre, está frio aí.
Eu acenei para que ele passasse pelo batente, e ele agarrou a mala que
havia deixado na varanda, entrando rapidamente. Fechei a porta atrás dele,
trancando-a novamente.
— Todo mundo está dormindo? — perguntou ele, a voz baixando para
um sussurro.
— Aham. Suba, podemos conversar no quarto.
Ele seguiu atrás de mim pelas escadas e pelo corredor, olhando para as
fotos nas paredes, as tralhas empilhadas nas mesinhas. Ele nunca estivera na
minha casa, e eu estava inseguro, envergonhado por tudo. Eu estava
dolorosamente consciente do fato de que não tínhamos livros o suficiente.
Meu próprio quarto era menos deficiente de forma escancarada — ao
longo dos anos, eu me isolara do resto da casa (do resto da vizinhança, do
resto de Ohio) com camadas de tinta, papel e poesia, como um esquilo que
forrava seu ninho. James me seguiu para dentro, e ficou parado olhando em
volta, curiosidade óbvia no rosto enquanto eu fechava a porta. Pela primeira
vez, o quarto pareceu pequeno.
— Aqui, deixa eu pegar isso.
Eu estiquei a mão para a mala dele, e a coloquei no espaço estreito entre
a cama e a parede.
— Gostei do seu quarto — disse ele. — Parece que alguém viveu nele.
O quarto de James na California parecia que alguém tinha tirado o
modelo completo de uma revista de decoração para bibliotecários ricos.
— Não é muita coisa.
Eu me sentei no pé da cama e o admirei enquanto ele absorvia os
arredores. Ele parecia deslocado, mas não de uma forma inteiramente
desagradável — como um aluno que entrara na sala errada e descobrira que
aquela nova matéria era profundamente interessante. Ao mesmo tempo, eu
não podia ignorar como ele parecia desgastado. Os ombros estavam baixos,
os braços pendendo sem vida ao lado do corpo. Um mapa bagunçado de
amassados mostrava-se no suéter, como se tivesse dormido com ele. Ele não
fizera a barba, e a sombra leve em seu queixo era estranha e dissonante.
— É perfeito — disse ele.
— Bom, seja bem-vindo. Mas… Olha, não me leve a mal, você não tem
ideia de como estou feliz em te ver, mas por que diabos você está aqui?
Ele se recostou na beirada da escrivaninha.
— Precisava sair de casa — disse ele. — Ficar andando pela casa
sozinho durante o dia, pisar em ovos perto dos meus pais à noite… Não
aguentei. Eu não podia voltar para Dellecher, então voei até Chicago, mas
estar no burburinho foi ruim da mesma forma. Pensei em pegar um ônibus
até Broadwater, mas não existe tal ônibus, então vim para cá. — Ele
sacudiu a cabeça. — Desculpa, eu deveria ter ligado.
— Não seja ridículo.
— Tua amizade nos renova.
— Sem ofensas, mas não parece — eu disse a ele. — Você parece
acabado, na verdade.
— Foi uma noite longa.
— Então vamos botar você na cama. Conversamos mais amanhã.
Ele assentiu, os olhos cansados e calorosos de gratidão. Eu o encarei,
momentaneamente desnorteado pela pergunta sem sentido que pairava em
minha mente, se por acaso ele já me olhara daquela forma antes.
— Onde você quer que eu fique? — perguntou.
— Quê? Ah. Por que você não dorme aqui, e eu fico no sofá lá embaixo?
— Eu não vou expulsar você da sua própria cama.
— Você está precisando mais do que eu de um bom sono.
— Não, por que a gente não… Podemos dividir, não é?
Minhas sinapses se apagaram mais uma vez. A expressão dele era parte
confusa, parte expectativa, e tão completamente infantil que ele parecia
mais consigo mesmo do que eu o vira havia semanas. Ele se remexeu, os
olhos seguindo para a janela, e percebi que estava esperando uma resposta.
— Não vejo por que não — respondi.
A boca dele timidamente abriu um sorriso.
— Não somos companheiros de cama tão estranhos.
— Não.
Eu o observei enquanto se abaixava para desatar os cadarços, então tirei
minhas meias e a calça do moletom. Olhei para o relógio na mesinha de
cabeceira. Já passava das duas da manhã. Franzi o cenho, calculando quanto
tempo ele ficara no ônibus. Cinco horas? Seis?
— Qual lado você quer? — perguntou.
— Quê?
— Na cama.
Ele apontou.
— Ah. Tanto faz.
— Tá.
Ele dobrou a calça jeans no encosto da cadeira da escrivaninha, e tirou o
suéter. Hematomas fantasmas ainda marcavam os pulsos e os antebraços em
tons esverdeados.
Eu me sentei cuidadosamente na beirada da cama, e me peguei pensando,
inesperadamente, no verão que passáramos na Califórnia — nos revezando
no volante da velha BMW que um dia pertencera ao pai de James, dirigindo
pela costa até chegar a alguma praia cinzenta, borrada pela névoa, onde
enchíamos a cara de vinho branco, nadávamos pelados e dormíamos na
praia.
— Você se lembra daquela noite em Del Norte — comecei —, quando
dormimos na praia…
— E quando acordamos de manhã todas nossas roupas tinham sumido?
Ele respondeu com tanta prontidão que deveria estar pensando no mesmo
que eu. Quase soltei uma risada, e me virei para vê-lo levar o edredom, os
olhos mais alegres do que estavam antes.
— Eu ainda me pergunto o que aconteceu — falei. — Você acha que
pode ter sido a maré?
— Mais provável que alguém com senso de humor e passos bem
delicados gostou da ideia de nos obrigar a andar até o carro completamente
nus.
— É um milagre a gente não ter sido preso.
— Na Califórnia? É preciso mais do que isso.
De súbito, aquela velha história — a água, a manhã cinzenta e o
comentário de James de “é preciso mais do que isso” — era familiar
demais, próxima demais do incômodo das lembranças mais recentes. Ele
desviou os olhos, e eu sabia que ainda estávamos pensando nas mesmas
coisas. Nós deitamos na cama, empurrando os travesseiros, e fingimos nos
acomodar em um silêncio acanhado. Eu fiquei com as costas no colchão,
abismado que os quinze centímetros de espaço entre nós de repente estavam
mais para cem quilômetros. Meus medos mesquinhos do velório foram
confirmados — a morte não impediria Richard de nos atormentar.
— Posso desligar a luz? — perguntou James.
— Claro — respondi, contente que os pensamentos dele e os meus não
estavam mais seguindo pelos mesmos caminhos.
Ele esticou a mão para o interruptor, e a escuridão caiu do teto. Com
aquilo veio um pânico absurdo e entorpecente — eu não enxergava mais
James. Resisti ao impulso de tatear na cama até encontrar o braço dele.
Falei em voz alta, só para ouvir uma resposta:
— Sabe no que eu fico pensando? Sabe, quando penso em Richard.
Ele foi lento em responder, como se não quisesse descobrir o que viria
em seguir.
— No quê?
— O pardal de Hamlet.
Eu o senti remexer.
— É, você falou. Que seja o que for.
— Eu nunca entendi esse discurso — falei. — Quer dizer, eu entendo,
mas não faz sentido nenhum. Depois de passar tanto tempo tentando
reivindicar as coisas e restaurar alguma ordem, Hamlet de repente vira um
fatalista.
O colchão se mexeu sob ele mais uma vez. Ele pode ter rolado na cama
para me encarar, mas estava escuro demais para ver.
— Acho que você entendeu perfeitamente. Nada faz sentido tampouco
para ele. O mundo dele todo está se despedaçando e, quando percebe que
não consegue impedir, consertar ou mudar nada, só tem uma coisa que ele
pode fazer.
Meus olhos se ajustaram devagar de forma enlouquecedora.
— O quê?
A sombra dele deu de ombros na penumbra.
— Absolver-se. Culpar o destino.
CENA 10

Na manhã seguinte, retornei gradualmente à consciência, flutuando na


superfície do sono, de olhos ainda fechados. Algo roçou no meu ombro, e
lembrei: James. Diferente das noites que passei deitado ao lado de Meredith
na Casa Hallsworth, imediata e profundamente, tornei-me consciente de sua
presença.
Abri um olho, sem ter certeza se deveria me mexer, mas relutante com o
risco de acordá-lo. Ele rolara em minha direção em algum momento da
noite, e a cabeça dele estava aninhada no meu ombro, a respiração
percorrendo meu braço cada vez que ele expirava. O pensamento estranho e
súbito de que eu não queria me mexer me acometeu com a mesma lucidez
surpreendente de um raio de sol diretamente nos meus olhos. O peso
caloroso e sonolento ao meu lado na cama parecia natural, confortável,
comme il faut. Fiquei completamente imóvel, me perguntando o que
esperava, e lentamente adormeci mais uma vez.
Não dormi nem tão profundamente nem tanto tempo para sonhar.
Acordei talvez meros segundos depois, vagamente consciente de vozes
sussurrando nas imediações. Os cochichos tomaram forma, aumentaram até
que uma risadinha escapou, e foi rapidamente abafada. Eu me ergui na
cama; James se remexeu ao meu lado, mas não acordou por inteiro. Pisquei
furiosamente e, quando consegui enxergar à luz acentuada da manhã, fuzilei
minhas irmãs com o olhar. As duas estavam de pijama, juntas no batente.
Leah mordeu o lábio inferior e continuou rindo em silêncio. Caroline estava
inclinada no umbral, me olhando de forma maliciosa, as pernas finas saindo
de um moletom gigantesco da faculdade Ohio State como se fossem um par
de hashis.
— Sai do meu quarto — falei.
Leah se dissolveu em uma gargalhada sonora. James abriu os olhos,
espremendo-os na minha direção, e seguiu meu olhar furioso para a porta.
— Bom dia? — disse ele.
CAROLINE: “Qual é o nome do seu namorado, Oliver?”
EU: “Vai se foder, Caroline.”
JAMES: “Eu sou o James. Prazer em conhecê-las.”
Leah achou isso hilário.
CAROLINE: “Você vai se assumir para a mamãe e o papai?”
EU: “Sério, sai do meu quarto.”
CAROLINE (PARA JAMES): “O que você vê nele?”
JAMES: “Não provoque. Oliver está pegando a garota mais gata da nossa
turma.”
CAROLINE: “A ruiva?”
JAMES: “Ela mesma.”
Uma pausa.
CAROLINE: “Mentira.”
LEAH: “Não acredito. Achei que ela era namorada do Richard!”
CAROLINE: “É, o que foi que aconteceu com ele?”
EU: “Nada aconteceu com ele, tá? As duas pra fora.”
Chutei os cobertores, deslizei para fora da cama e as espantei para o
corredor. Leah me admirou de olhos arregalados, como se nunca tivesse me
visto antes.
— Oliver — disse ela, fingindo que estava sussurrando. — Oliver, você e
a Meredith estão mesmo…
— Já chega, eu não vou tocar nesse assunto.
Eu a empurrei na direção das escadas e, relutante, ela começou a descer,
mas Caroline pairou no patamar para dizer:
— Mamãe quer saber se você e seu namorado vão tomar café da manhã
com a gente.
— Por que você não vai lá e come alguma coisa pra variar?
O sorriso dela ficou azedo, e ela fez uma careta. Imediatamente me
arrependi de fazer aquele comentário, mas não pedi desculpas. Ela
murmurou algo como “escroto” e desceu as escadas em silêncio. Voltei para
o quarto. James já levantara e estava revirando a mala.
— Então essas são suas irmãs — disse ele.
Se estava com vergonha, não deixou transparecer.
— Foi mal.
— Está tudo bem — disse ele. — Eu nunca tive irmãos.
— Bom, não gaste seu tempo desejando ter um.
Olhei para a porta, considerando pela primeira vez o quanto era perigoso
ele ficar em casa. Eu não me importava com o que minha família pensasse
de James, mas me importava com o que ele acharia da minha família.
Comparado ao meu pai, minhas irmãs eram inofensivas.
— Quer tomar café?
— Eu não recusaria. E adoraria conhecer o resto da sua família.
— Eu não tomo responsabilidade por qualquer coisa que disserem a
você.
— Você não vai descer?
— Vou — eu disse. — Daqui a pouco. Acha que consegue encontrar o
caminho?
Ele passou a cabeça pela gola de um suéter azul limpo.
— Eu dou um jeito.
Quando ele saiu do quarto, rapidamente vesti uma camiseta limpa e a
mesma calça de moletom da noite anterior. Tirei o marca-páginas de Teatro
da inveja e o enfiei no bolso. No patamar, escutei as vozes vindas de baixo.
Pelo que parecia, Leah estava bombardeando James com perguntas sobre a
Califórnia. Minha mãe mal conseguia dizer uma palavra, mas, quando
conseguia, parecia de alguma forma educada, confusa e levemente
desconfiada, tudo ao mesmo tempo. Aliviado por meu pai parecer já ter ido
embora, eu me esgueirei pelo corredor na direção do escritório, entrei e
fechei a porta. Era uma sala feia e pequena, onde um grande monitor de
computador ficava zumbindo na mesa como uma fera pré-histórica em
hibernação. Peguei o telefone, encaixei-o entre a orelha e o ombro e
resgatei o marca-páginas do bolso. Depois do fracasso do jantar de Ação de
Graças, eu havia considerado desertar meu posto e passar o final de semana
em Manhattan. Era um plano irresponsável, mas a ideia de ver Meredith e
ter uma cobertura só para nós dois — independentemente do que fosse
acontecer lá — era muito mais atraente do que passar três outros dias
trancado no meu quarto de adolescência, escondido dos meus pais e de
Caroline. No entanto, James aparecera na varanda, como um tipo de
intervenção divina.
O telefone ecoava alto nos meus ouvidos. Apertei demais o fone na mão,
torcendo para que ela não atendesse.
— Alô?
Talvez fosse a distância ou a qualidade da ligação, mas ela parecia
sonolenta, desorientada, como se tivesse acabado de acordar. Aquele único
tom rouco de voz fez uma brasa se acender no fundo do meu estômago.
Olhei a porta para me certificar de que estava fechada.
— Meredith, oi. Sou eu… Oliver — falei. — Olha, James acabou de
aparecer aqui em casa ontem à noite. Eu não fazia ideia de que ele estava
vindo, mas não tenho como largar ele aqui. Acho que não vou poder ir pra
Nova York.
Fez-se um silêncio curto e raso antes de Meredith responder:
— Claro.
CENA 11

O primeiro dia de dezembro foi uma manhã límpida, cristalina e de um frio


congelante. As aulas estavam programadas para acontecerem normalmente
no dia seguinte, e fomos informados quando chegamos no campus que
teríamos permissão para nos mudar de volta para o Castelo às quatro da
tarde. Alexander e Filippa se acomodaram à mesa de sempre no Habeas
Copos, esquentando as mãos com canecas de cidra com álcool, enquanto
James e eu tomávamos chá com Frederick. Meredith estava esperando por
um voo atrasado de LaGuardia. Nós não recebêramos notícias de Wren.
Eu arrastei as malas até o terceiro andar do Pavilhão para uma breve
reunião com o Reitor Holinshed, em que ele apresentou a solução para a
minha repentina falta de recursos: uma combinação de empréstimos,
financiamento de bolsas que não tinham sido usadas e um programa de
trabalho na faculdade. Eu escutei, assentindo e agradecendo-o
copiosamente e, quando ele me dispensou, pendurei a mala no ombro e
passei pela trilha através das árvores. Holinshed me explicara que uma das
minhas ocupações do programa de trabalho seria assumir a limpeza e
manutenção do Castelo. Nem me ocorreu que eu deveria ficar humilhado
diante da tarefa. Eu estava tão desesperadamente feliz por não precisar sair
de Dellecher que teria esfregado todas as privadas do Pavilhão se ele tivesse
me pedido.
O lugar estava tão bagunçado quanto o tínhamos deixado. Decidi
começar pela cozinha, onde os resíduos de nossa desastrosa festa de Júlio
César estavam esparramados por todas as superfícies. Fui informado de que
os produtos de limpeza ficavam embaixo da pia — um lugar que eu nunca
tinha me dado ao trabalho de explorar. Primeiro, porém, acendi a lareira da
biblioteca. Estava penosamente frio no Castelo, como se o inverno
houvesse se esgueirado entre as pedras e se alojado ali em nossa ausência.
Amassei algumas folhas de jornal do cesto ao lado do braseiro e as coloquei
entre duas novas toras sem espanar as cinzas velhas. Alguns minutos me
atrapalhando com os fósforos renderam uma chama pequena porém
resistente, e eu esfreguei as mãos diante dela até voltar a sentir meus dedos.
Enquanto me endireitava, escutei uma porta se abrir no andar de cima.
Será que Alexander havia se esgueirado para dentro três horas adiantado?
Eu o xinguei em silêncio e andei pé ante pé pelas escadas, esperando
desviá-lo da cozinha, vasculhando meu cérebro para encontrar uma
desculpa plausível para minha presença ali. (Eu não queria sobrecarregá-lo,
nem sobrecarregar mais ninguém, com o meu drama familiar. Nós já
tínhamos drama o suficiente sozinhos.)
Uma voz estranha me fez parar nos dois últimos degraus.
— Por que mesmo a gente está aqui?
— Porque eu quero dar uma olhadinha antes de todos aqueles garotos
voltarem.
— Se é o que você diz, Joe.
Eu me agachei no último degrau e espreitei pela porta. Dois homens
estavam parados na sala de jantar, de costas para mim. Eu reconheci o mais
alto deles — ou melhor, reconheci a jaqueta marrom. Colborne. O mais
baixo vestia um casaco azul de nylon e um cachecol amarelo cheio de
caroços, que certamente era feito à mão. Uma crina de cabelos ruivos
despenteados deixava a impressão de que a cabeça dele estava pegando
fogo. (Eu aprenderia, tempos depois, que o nome dele era Ned Walton.) Ele
ficou cambaleando entre a ponta dos pés e os calcanhares e olhou em volta.
— O que estamos procurando, chefe?
— Não me chame de chefe — disse Colborne com um suspiro que
sugeria que não era a primeira vez que dava aquelas instruções. — Não sou
o chefe. E não toque em nada.
Enquanto Walton perambulava em direção à janela, ele tirou as luvas
com os dentes e as enfiou no bolso. Eu me perguntei se ele conseguia ver o
cais de onde estava.
WALTON: “É a primeira vez que perdem um aluno?”
COLBORNE: “Uma bailarina morreu por suicídio há uns dez anos.
Descobriu que não passaria do terceiro ano, subiu até o quarto e cortou os
pulsos.”
WALTON: “Jesus.”
COLBORNE: “Eu já tinha visto ela por aí. Uma garota bonitinha, parecia
ser feita de papel de seda. A mídia pulou em cima, acusou a escola de ‘levar
os alunos ao desespero’.”
WALTON: “Foi isso que aconteceu com esse garoto?”
Colborne se virou no lugar onde estava, as mãos no quadril — a
expressão tensa e contemplativa.
— Não, ele era a estrela do programa, pelo que entendi. Você viu aqueles
pôsteres enormes vermelhos pela cidade? Pois sou sempre César?
— Vi.
— É ele.
— Cara assustador — respondeu Walton.
Colborne assentiu.
— As crianças não abriram o bico, mas fiquei com a sensação de que
nem todo mundo gostava dele.
— Ah, é? — perguntou Walton, uma sobrancelha ruiva levantada.
— Pois é.
Walton franziu o cenho para Colborne.
— É por isso que estamos aqui? — perguntou. — Achei que tínhamos
determinado que foi um acidente.
— É. — Uma sombra passou no rosto de Colborne. — Tínhamos mesmo.
— Tá — disse Walton, e a palavra continha uma entonação interrogativa.
Ele se debruçou no parapeito, de braços cruzados. — Me fale o que
aconteceu.
Colborne deu um passo lento para a frente, o olhar fixo no chão.
— Há uns nove dias — disse ele —, os alunos do quarto ano e vários
outros alunos de teatro apresentaram uma peça no Edifício de Belas Artes.
Ele apontou para o nordeste, onde ficava o EBA. Eu me sentei nos
calcanhares, colocando uma mão na parede para me apoiar. Minha
respiração estava leve e rápida, pelo nariz, o ar frio ardendo nos pulmões.
Colborne continuou andando, colocando um pé cuidadosamente na frente
do outro, fazendo um círculo grande ao redor da sala.
— A peça acabou às dez e meia — continuou —, e os alunos passaram
pela floresta para chegar aqui, onde a festa já estava acontecendo. Música,
dança, drogas, álcool. Richard se isolou na biblioteca com uma garrafa de
uísque.
— Se ele era a estrela, por que estava lá sozinho?
— Bom, é isso que ninguém quer me contar. Ele estava de mau humor,
todo mundo concorda nesse ponto, mas por quê? Um dos alunos do terceiro
ano sugeriu que ele estava tendo problemas com a namorada.
— Quem é a namorada?
— Meredith Dardenne, outra aluna do quarto ano.
— Por que esse nome me é familiar?
— A família dela faz aqueles relógios caros. Poderiam comprar a cidade
inteira se quisessem.
— Você acha que é por isso que ninguém quer acusar ela?
Colborne deu de ombros.
— Não sei. Mas aparentemente os dois tiveram uma briga feia, de garras
à mostra, na frente de todo mundo, e ao final da noite ela já estava beijando
outra pessoa.
Walton soltou um assovio baixo e perigoso. Eu me inclinei para a frente,
as mãos no joelho. O sangue correu do meu peito pelos braços e pulsou em
meus ouvidos.
WALTON: “Quem?”
COLBORNE: “Ninguém quis dizer, mas alguém sugeriu Oliver Marks.
Outro aluno do quarto ano. Ele admitiu subir até o quarto com ela, mas de
acordo com ele estavam só ‘conversando’.”
WALTON: “Bem improvável.”
COLBORNE: “Você não viu essa garota. Você não faz ideia do quanto é
improvável.”
Walton soltou uma risadinha.
— O que ela disse sobre isso?
— Bom, a história dela é igual à dele — disse Colborne. — Ela diz que
subiram ao quarto dela, onde ficaram conversando até Richard aparecer e
tentar arrombar a porta. Eles não o deixaram entrar, e em certa altura ele foi
embora. E é aí que a história fica nebulosa.
— Como assim?
Colborne parou, ficando cara a cara com Walton, franzindo o cenho,
como se o fato de que ele estivesse confuso o irritasse.
— Mais ou menos nessa hora, e ninguém sabe me dizer exatamente que
horas isso aconteceu, quase todo mundo menos os alunos do quarto ano
foram embora. Richard saiu pisando duro da frente do quarto da namorada,
onde talvez ela estivesse beijando um dos amigos mútuos dos dois, ou
talvez só estivessem conversando, pegou uma garrafa de uísque
Glenfiddich, e seguiu para o jardim. Ele já estava bêbado, e era um bêbado
agressivo, todo mundo concorda nessa parte. Então, ele foi para o jardim e
deu de cara com a prima conversando com James Farrow.
WALTON: “Outro aluno do quarto ano?”
COLBORNE: “Marks e ele dividem um quarto. Moram no sótão lá em
cima.”
WALTON: “Tá, e daí? O que aconteceu?”
— Wren, a prima de Richard, tentou conversar, mas ele se
“desvencilhou” dela. Foi assim que Farrow descreveu. Quando eu perguntei
o que significava, ele fechou a boca. Me faz pensar se talvez tenha sido um
pouco violento, porque nenhum dos dois o seguiu. Enfim, Farrow ficou
com a prima, e Richard desapareceu em meio às árvores.
O rosto de Colborne ficou sombrio, as sobrancelhas espessas afundando
sobre os olhos.
— Ninguém o viu de novo até de manhã, quando Alexander Vass, o
último dos alunos do quarto ano, desceu até o cais para fumar e encontrou
Richard na água. Então temos umas três horas das quais nada sabemos
sobre onde Richard estava ou o que ele estava fazendo.
Os dois ficaram em silêncio por um instante, olhando através da mesma
janela estreita. O dia lá fora estava inundado por uma luz cristalina branca
que não fazia nada para suavizar a amargura do frio.
— Bom, o que a legista disse? — perguntou Walton.
— Um golpe duro na cabeça, mas ela não conseguia distinguir a causa ou
a arma usada. A princípio presumimos que foi isso que o matou.
Walton franziu a testa.
— Não foi?
— Não.
Colborne suspirou, pesado, e os ombros dele abaixaram um centímetro.
— Ele estava vivo quando caiu na água. Vivo, mas inconsciente, ou
abalado demais para conseguir rolar para cima. Seja lá o que o acertou no
rosto, o dano foi ruim, mas não deveria ter sido fatal.
— Então como ele morreu?
— Afogado — disse Colborne. — De certa forma. Se afogou no próprio
sangue.
Eu me virei para longe da porta, achatei as costas contra a parede. Minha
cabeça estava girando, o ritmo do meu sangue leve e distante, e eu me
perguntei se era assim a sensação — a perda lenta do ar, a vida se esvaindo
na água que o cercava, e o próprio sangue, espesso como um vazamento de
óleo, se esgueirando por todos os espaços vazios até chegar aos olhos, e o
mundo inteiro ficar vermelho. Asfixia. Falha no sistema. Tela preta.
A voz de Colborne saiu afiada e clara do cômodo ao lado:
— Não faz sentido. Tem alguma coisa faltando.
— Encontramos a garrafa de uísque?
— Na floresta, a uns quatrocentos metros do cais. Pensamos que pudesse
ter sido acertado com ela, mas estava intacta. Vazia, intacta, sem nenhum
sangue e sem as impressões digitais de mais ninguém fora ele. Então o que
diabos ele estava fazendo entre as três e as seis da manhã?
— Foi a hora da morte?
— O mais perto que a legista determinou.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo. Eu não ousei me mexer do
esconderijo.
— No que está pensando? — perguntou Walton a certa altura.
Colborne emitiu um som baixo e impaciente. Eu me inclinei lentamente
para a frente até vê-lo de novo, sacudindo a cabeça, a língua presa entre os
dentes.
— Esses garotos — disse ele. — Os alunos do quarto ano. Não confio
neles.
— Por que não?
— Porque eles são um bando de atores, caralho — disse Colborne. —
Podem estar contando a maior mentira, e como saberíamos?
— Jesus Cristo.
Ficaram em silêncio novamente, até Walton dizer:
— O que vamos fazer?
— Ficar de olho neles. Esperar até que algum deles surte. — Ele passou
o olhar pela sala de jantar vazia. — Os seis enfiados aqui, sozinhos? Não
vai demorar muito.
O assoalho rangeu enquanto se moviam na direção da cozinha.
— Aposto na prima — disse Walton.
— Talvez — disse Colborne. — É o que veremos.
— Para onde vamos?
— Quero andar pela floresta para ver onde encontramos a garrafa, ver se
consigo entender como Richard foi de lá até o cais.
— Ok, e depois?
— Não sei. Depende de encontrarmos alguma coisa.
Walton respondeu, mas a voz dele se esvaiu, baixa o suficiente para eu
não conseguir ouvir o que dizia. A porta se fechou atrás deles com um
ranger e um baque. Eu deslizei até o chão, as pernas fracas, parecendo
desossadas. Richard pairava enorme em minha mente, e se eu pudesse falar
algo teria dito a ele: “À beira da morte, por acaso / conseguiu desvendar os
segredos?”
Em meu devaneio, ele respondeu: “Por vezes me pensei bem-sucedido /
em dar vazão ao meu fantasma, / mas a corrente de inveja / em minha alma
não permitiu / que eu buscasse ar vasto e vazio.”
“E não despertou de tamanha agonia?”, perguntei.
E por fim, ele abandonou Shakespeare, e disse apenas: “Não”.
CENA 12

Nosso primeiro dia de volta às aulas foi surpreendentemente tranquilo.


Wren não aparecera, e Meredith chegara tão tarde na segunda-feira à noite
que ninguém a viu e foi concedida a permissão para ela faltar à aula na
terça. Com apenas os garotos e Filippa na aula, nossos professores se
contentaram em explicar apenas que o curto período de inverno entre o dia
de Ação de Graças e o Natal incluiria Romeu e Julieta, nossa introdução a
combate com armas e os discursos do meio do semestre.
A noite nos cumprimentou, nós quatro de volta na biblioteca do Castelo
(arrumada por mim no dia anterior, de forma vigorosa), escrevendo nossos
novos monólogos e começando a analisá-los. Canetas, lápis, marca-textos,
cadernos e taças de vinho estavam esparramados por todas as mesas. Um
fogo agigantado iluminava a sala inteira, mas não mantinha o frio tão longe.
Filippa e eu estávamos com os dedos dos pés encostados no sofá, um
cobertor grosso de lã esticado entre nós dois. Minhas pálpebras haviam
começado a fechar cerca de uma hora antes, e por fim eu as deixei cerrar.
Poderia ter cochilado se não fosse o movimento constante do pé esquerdo
de Filippa, que oscilava, persistente, contra minha perna enquanto ela
escrevia.
As palavras da minha nova tarefa giravam entre meus ouvidos,
desconectadas e caóticas, ainda sem os alicerces que a prenderiam na minha
memória. Haviam me dado algo surpreendentemente robusto — o discurso
incitante de batalha de Felipe, o Bastardo, em Rei João:

Majestades aqui, sigam a mim:


Unam-se e conspirem livremente
Pelo mal maior a esta cidade.
Quando a ruína se instalar,
Uns aos outros devemos desafiar
Para o céu e o inferno conquistar.

Eu me sentei quando uma voz baixinha disse:


— Oi. Desculpa o atraso.
— Wren!
James pulou da cadeira.
Ela estava parada no batente, os olhos cansados e sonhadores, uma mala
de mão pendurada no ombro.
— Achamos que você não fosse voltar — disse Alexander, lançando um
olhar feio para o corredor onde ficava o quarto de Meredith.
— Cansaram de mim? — perguntou Wren, e James tirou a mala do
ombro dela, colocando-a no chão.
— Claro que não. Como você está? — disse Filippa, em pé, os braços já
abertos.
Wren pareceu flutuar até o abraço e a envolveu com força pela cintura.
— Melhor agora.
Eu saí do sofá atrás de Filippa e, em um momento de carinho tolo,
abracei as duas ao mesmo tempo.
— Nós também.
Alexander bufou.
— Sério? — disse ele. — Abraço em grupo? A gente vai fazer isso?
— Cala a boca — disse Wren, a bochecha esmagada no ombro de
Filippa. — Não estrague o momento.
— Tudo bem.
Um segundo depois, os longos braços de chimpanzé de Alexander
esmagaram todos nós, e então James também aderiu. Nós perdemos o
equilíbrio, oscilando, Wren presa e rindo no meio de nosso nó humano. O
som estremeceu por todos nós, balançando fluido de um corpo ao próximo
como um sopro de ar quente.
— O que está acontecendo aqui?
Eu olhei por cima da cabeça de todo mundo na direção do corredor.
— Meredith.
Ela estava no batente, descalça e sem maquiagem, de leggings e uma
camiseta comprida que eu tinha razoável certeza de que pertencera a
Richard. O cabelo dela estava bagunçado; os olhos, lentos e enevoados. Eu
não a vira desde o aeroporto, e perdi o fôlego de leve.
Nosso aperto se desfez, cada um de nós recuando meio passo até que
Wren surgiu do centro. A expressão austera de Meredith suavizou.
— Wren.
— Eu.
Ela sorriu de leve. Meredith piscou, cambaleou sala adentro e se jogou
nela. As duas se abraçaram, rindo e caindo ao mesmo tempo, e Filippa e eu
mal tivemos tempo de segurá-las antes que colidissem com a mesinha de
centro.
Quando estávamos todos em pé mais uma vez, nos recuperando dos
pisões nos pés e cotoveladas, Meredith soltou Wren e disse:
— Já era sem tempo. Bom conforto / e boas-vindas sempre terá aqui.
FILIPPA: “Você deve estar exausta. Que horas era seu voo de Londres?”
WREN: “Ontem de manhã. Adoraria conversar sobre as férias com vocês,
mas não quero ofender ninguém ao cair no sono.”
ALEXANDER: “Não seja idiota. Deite-se para descansar; pois precisa.”
JAMES: “Cadê sua mala?”
WREN: “Lá embaixo. Não tive coragem de subir com ela.”
JAMES: “Eu vou lá pegar.”
WREN: “Tem certeza?”
— Deixa ele ir — disse Meredith, afastando o cabelo de Wren da testa.
— Parece que você precisa de alguém para te carregar.
— Vamos — disse Filippa. — Vou te ajudar a arrumar as coisas.
Elas desapareceram juntas pelo corredor, enquanto James desapareceu
pela escadaria. Alexander me ofereceu um sorriso soporífico.
— Está todo mundo aqui — disse ele.
O olhar dele se moveu preguiçoso entre Meredith e eu, e o sorriso
desapareceu do rosto. Toda a docilidade anterior pareceu deixar a sala com
Wren, e ela me encarou com uma expressão dura e inatingível.
— Então — disse Alexander. — Vou fumar um antes de ir pra cama.
Ele amarrou o cachecol ao redor do pescoço, e saiu da sala assobiando
“Secret Lovers”, de Atlantic Starr, bem baixinho. (Eu considerei correr atrás
dele e chutá-lo escadaria abaixo por causa da piadinha sobre amantes
secretos.)
Meredith estava fazendo a pose de flamingo de sempre, uma perna
empoleirada na parte de trás do joelho oposto. Ela fazia com que aquilo
parecesse gracioso. Eu não sabia o que fazer com as mãos, então as enfiei
no bolso de trás, o que parecia um gesto casual demais.
— Como foi em Nova York? — perguntei.
— Sabe, o de sempre — disse ela, seca. — Teve um desfile.
— Certo.
— E como foi em Ohio?
— Uma merda — respondi. — Sempre é.
O fato de que eu poderia ter ido para Nova York e não fora pairava
pesado no ar entre nós e não precisava sequer ser mencionado.
— Como está sua família? — perguntei.
— Não faço ideia — disse ela. — Só vi o Caleb uma vez, e todo o resto
estava no Canadá.
— Ah.
Eu conseguia imaginá-la perambulando por um apartamento vazio, sem
nada que pudesse distraí-la da morte de Richard. Nossas férias não tinham
sido muito diferentes, provavelmente — horas lendo e encarando o teto,
isolados de nossos irmãos e pais, tão diferentes de nós que poderiam até
mesmo serem de outras espécies. É claro que para mim houvera a felicidade
da companhia inesperada de James, e ela não tivera tanta sorte. Um pedido
de desculpas impossível grudou minha língua no céu da boca.
Ela cruzou os braços.
— Eu vou pra cama, a não ser que você tenha algo a dizer.
Eu não tinha. Queria desesperadamente dizer algo, mas minha mente
estava em branco. Para alguém que amava tanto as palavras quanto eu, era
admirável quantas vezes elas me abandonavam.
Ela esperou, me observando, e, quando eu não disse nada, a máscara de
apatia rachou por um momento e eu vi a decepção silenciosa por trás dela.
— Bom — disse ela. — Boa noite.
— Eu… Meredith, espere.
— Que foi? — perguntou ela, soando entediada e cansada.
Eu troquei o peso de perna, incerto, hesitando, amaldiçoando minha
própria falta de eloquência.
— Você quer, hum, dormir sozinha?
— Não sei — disse ela. — Você quer dormir comigo ou prefere dormir
com James?
Eu desviei o olhar, esperando esconder o rubor acalorado repentino nas
bochechas. Quando voltei a olhar para ela, ela estava sacudindo a cabeça,
um canto da boca voltado para cima, algo entre pena e desdém. Ela não
esperou uma resposta — apenas virou de costas e saiu pelo corredor. Eu a
observei ir embora, as engrenagens mentais rangendo e disparando
respostas fracas e inadequadas até que ela desapareceu, e era tarde demais
para qualquer coisa que fosse.
Eu me demorei perto da lareira, tentando decidir se deveria segui-la —
irromper quarto adentro, jogá-la contra a parede e beijá-la até que ficasse
sem fôlego para dizer palavras tão duras — ou só me retirar para a Torre e
tentar dormir. Eu era covarde demais para a primeira opção, e estava
inquieto demais para a última. Sem conseguir me comprometer com
qualquer curso de ação, peguei meu casaco.
A noite estava tão fria que sair era como tomar um tapa no rosto. Passeei
pelas árvores, os ombros encolhidos para manter as orelhas aquecidas,
observando no caminho as raízes e pedras que poderiam me fazer tropeçar
no escuro. Cheguei ao cais quase sem perceber onde estava. Meus pés me
levaram até ali automaticamente, como se não houvesse nenhum outro lugar
lógico para ir. À noite, o lago era preto e imóvel como um espelho,
quinhentas estrelas perfeitamente refletidas na superfície. Não havia lua —
apenas um buraco redondo no campo de estrelas onde ela deveria estar.
Alexander estava sentado no cais, sozinho, as pernas penduradas acima da
água.
Andei até a borda e parei atrás dele. Ele deve ter ouvido meus passos,
mas não reagiu, só continuou encarando o lago com as mãos espremidas
entre os joelhos.
— Posso ficar aqui com você? — perguntei, e minhas palavras saíram na
forma de vapor.
— Claro.
Eu me sentei ao lado dele e, por um instante, nenhum de nós falou nada.
— Quer fumar? — disse ele, em certa altura.
— Aham. Acho que faria bem.
Ele enfiou a mão no casaco sem olhar e me passou um baseado,
vasculhando os bolsos em busca de um isqueiro. Ele acendeu a chama, e eu
inspirei o mais profundamente que conseguia, a fumaça ardendo quente na
garganta.
— Obrigado — eu disse, depois do segundo trago, passando-o de volta
para ele.
Ele assentiu, os olhos fixos em frente.
— Como foi?
Presumi que ele estava falando da minha conversa com Meredith.
— Nada bem.
Ficamos sentados em silêncio por um tempo, a fumaça e a respiração
espiralando e se misturando à deriva acima da água. Tentei afastar Meredith
dos pensamentos, mas não havia distrações seguras. Em todos os cantos da
minha mente, a dúvida e o medo espreitavam agachados, esperando dar seu
bote e afundar os dentes em mim diante da menor provocação.
— Colborne veio ao Castelo — eu disse, sem planejar dizer.
Eu não contara a ninguém o que ouvira, mas era um conhecimento
perigoso para se ter, e eu não confiava em mim mesmo para abarcá-lo por
conta própria.
— Quando? — Ele quis saber.
— Ontem.
— Você falou com ele?
— Não, mas ouvi ele falando com outro policial. Um ruivo mais novo.
Um que não tinha visto da outra vez.
Alexander engoliu um bocado de fumaça, que se desenrolou das narinas
dele de uma forma distintamente parecida com um dragão.
— Sobre o que estavam conversando? — perguntou ele, com um
acanhamento que sugeria que não queria de fato saber.
— Sobre tudo… isso.
Fiz um gesto abrangente e sem especificidades que incluía o lago, o cais
e nós dois.
— Você acha que ele desconfia de alguma coisa? — perguntou
Alexander.
Para alguém que não o conhecia tão bem, ele poderia não soar assustado.
— Ele sabe que nós mentimos. Só não sabe sobre o quê.
— Puta merda.
— Pois é.
Ele puxou um trago no baseado e a ponta se incendiou, alaranjada, uma
única brasa iluminada naquele sertão desolado de Illinois. Não restava
muito além de uma ponta. Ele me ofereceu; eu puxei o último trago e então
o apaguei.
— O que vamos fazer?
— Nada, acho — disse ele, e aquela palavra, “nada”, me fez apertar as
mãos dentro do bolso. — Continuamos com a mesma história. Ficamos
espertos.
— Deveríamos contar para os outros. Ele está esperando que um de nós
cometa algum descuido.
Ele sacudiu a cabeça.
— Eles vão começar a agir estranho se descobrirem.
Eu repuxei o lábio inferior, me perguntando quanto, exatamente,
estávamos em perigo. Pensei no fato de ter encontrado James no banheiro
na noite da festa. Por um acordo tácito, nós não mencionamos nada aos
outros. Era trivial, insignificante. Porém, a possibilidade de que nós não
éramos os únicos guardando segredos fez com que meu coração batesse um
pouco mais rápido. Se nós todos mentíramos uns para os outros como
mentimos para Colborne… eu sequer conseguia concluir o pensamento.
— O que acha que aconteceu com ele? — perguntei. — Depois que ele
saiu do Castelo.
— Sei lá.
Ele sabia de quem eu estava falando.
— Não consigo imaginar que ele só tenha cambaleado pela floresta —
acrescentou.
— E você estava onde? — perguntei.
Ele me lançou um olhar suspicaz.
— Por quê?
— Só fiquei curioso. Eu não vi nada depois de, hum, subir as escadas.
— Se eu contar, você precisa jurar que vai ficar de bico fechado.
— Por quê?
— Porque, diferente de você — disse ele, com ar superior —, eu não saio
beijando as pessoas e depois espalho pela faculdade inteira.
Meio curioso, meio irritado, perguntei:
— Com quem você estava, seu babaca?
Ele desviou o olhar de mim, um sorrisinho presunçoso na boca.
— Colin.
— Colin? Não achei que ele gostava de caras.
O sorriso de Alexander se alargou, só o bastante para mostrar os caninos
afiados.
— Ele também não achava.
Eu ri, de má vontade, o que parecia impossível dois minutos antes.
— Chame o oficial responsável: encontramos o mais perigoso caso de
depravação já visto aqui!
— Olha só quem fala.
— Puta que pariu — respondi. — Foi ela quem começou.
— Óbvio. Sem ofensas, Oliver, mas você não começa nada.
Eu sacudi a cabeça, minha diversão amortecida pela amargura que
restava da conversa com Meredith.
— Eu sou tão idiota.
ALEXANDER: “Se quiser se sentir melhor, eu teria feito exatamente a
mesma coisa.”
EU: “O que você é?”
ALEXANDER: “Sexualmente anfíbio.”
EU: “Essa é a coisa mais nojenta que eu já ouvi em toda minha vida.”
ALEXANDER: “Você deveria experimentar.”
EU: “Já tive desventuras sexuais o bastante por um ano inteiro, obrigado.”
Suspirei e olhei para o meu próprio reflexo na superfície da água. Meu
rosto, de alguma forma, parecia estranho, e eu apertei os olhos, tentando
entender o que estava diferente. A compreensão me atingiu como um golpe
no estômago: com o cabelo escuro um pouco mais despenteado do que o
normal, e os olhos azuis esvaziados pela luz fraca das estrelas, eu quase
parecia Richard. Por um momento nauseante, ele me encarou de volta do
fundo do lago. Ergui o olhar rapidamente.
— Tá tudo bem? — perguntou Alexander. — Por um momento parecia
que você ia se jogar no lago.
— Ah. Não.
— Acho bom. Não faça isso. — Ele ficou em pé. — Vamos embora. Está
frio pra caralho, e eu não vou largar você aqui sozinho.
— Tá legal — falei, me levantando e espanando cinzas do colo.
Alexander enterrou as mãos nas profundezas do bolso, esquadrinhando a
escuridão que envolvia a margem oposta.
— Eu estava voltando do quarto do Colin — disse ele, e parecia
aleatório, até ele continuar —, quando encontrei ele. Vim até aqui para
fumar e… lá estava ele. Eu nem pensei em ver se ele estava vivo, de tão
completamente morto que parecia. Não deve ter me escutado.
Não sei por que ele estava me falando aquilo. Talvez revivesse aquele
momento apavorante da descoberta todas as manhãs, da mesma forma que
eu sentia meu estômago embrulhar e me via afogado na memória todas as
vezes que fechava os olhos.
— Sabe o que é mais esquisito? — perguntou ele.
— O quê?
— Tinha sangue na água, mas não no cais.
Baixei o olhar para os pés. A madeira estava limpa e seca, descolorida,
alvejada como ossos por anos de lutar contra o vento, o sol e a água. Não
havia uma gota de vermelho. Nem uma única mancha maldita.
— E daí?
— E daí que a cara dele estava esmagada. Se ele sofreu um golpe na
cabeça e caiu na água… que porra que ele atingiu?
A guimba do baseado fumegava bem na beiradinha do cais. Alexander a
empurrou com a ponta do sapato. As ondas oscilaram para fora do ponto de
impacto, distorcendo o reflexo do céu, fazendo com que as estrelas
estremecessem e piscassem, inexistentes.
— Fico pensando no pássaro.
Eu não queria falar aquilo. Era uma compulsão, um tique nervoso, como
se eu pudesse tirar aquela imagem da cabeça se as palavras saíssem da
boca.
Ele me olhou de soslaio, inteiramente perplexo.
— Que pássaro?
— De Hamlet. Foi isso que ele me lembrou.
— Ah — disse ele. — Não sei se consigo ver Richard como um pardal.
Parece… delicado demais.
— Então que tipo de pássaro ele seria?
— Sei lá. Do tipo que bate numa janela tentando brigar com o próprio
reflexo.
Era a minha vez de olhá-lo com estranheza, mas, assim que nossos olhos
se encontraram, eu quis rir. Fiquei horrorizado, até perceber que ele também
lutava contra aquele ímpeto.
— Meu Deus do céu — falei, sacudindo a cabeça.
Alexander deixou escapar a respiração que ele segurava, rindo baixinho.
— Quando foi que viramos pessoas tão horríveis? — perguntei.
— Talvez nós sempre tenhamos sido horríveis.
Ele deu de ombros e observou a nuvem branca de sua risada oscilar e
desaparecer. O bom humor dele pareceu se esvair com a fumaça e, quando
falou de novo, a voz parecia quebradiça:
— Ou quem sabe aprendemos com Richard — acrescentou ele.
Aquilo me assustou mais do que Colborne.
CENA 13

Uma semana depois, chegamos ao refeitório para tomar café da manhã e


nos deparamos com a empolgação das festas natalinas. Em todas as mesas,
as pessoas estavam rasgando envelopes de convites e conversando sobre o
baile de máscaras natalino — que seguiria normalmente, apesar dos
acontecimentos recentes. A comoção era surpreendentemente revigorante
depois de semanas de cabeças baixas e rostos rígidos e carrancudos.
— Quem quer ir pegar as cartas? — perguntou Alexander, já começando
a devorar uma pilha de batatas cozidas com voracidade característica.
(Filippa tinha feito bullying para ele sair da cama para tomar café,
insistindo que, se pulasse mais alguma refeição, ele simplesmente
desapareceria por completo.)
— Por que se dar ao trabalho? — perguntei. — Já sabemos o que diz.
Filippa soprou o café da xícara, dizendo:
— Você não acha que pode ser um pouco diferente esse ano?
— Não sei. Parece que querem tentar voltar as coisas ao normal.
— Bom, graças a Deus — disse Alexander. — Não aguento mais as
pessoas me encarando.
— Poderia ser pior — disse Wren, remexendo os ovos no prato, sem
comer. Ela estava magra e fraca, como se não comesse há dias. — As
pessoas ficam evitando olhar para mim, como se eu não existisse.
Ficamos em silêncio, as línguas presas — escapando do olhar uns dos
outros, e da cadeira vazia de Richard —, enquanto os outros alunos
continuavam a tagarelar sobre o baile, o que vestiriam, e como a decoração
do salão ficaria espetacular. O feitiço de isolamento se quebrou quando
Colin apareceu na nossa mesa, uma mão repousando (sem ser notada por
ninguém, exceto por mim) na cadeira de Alexander.
— Bom dia — disse ele, e então franziu o cenho. — Está todo mundo
bem?
— Sim. — Alexander espetou uma salsicha com a ponta do garfo em um
gesto violento. — Só estamos considerando começar nossa própria colônia
de leprosos lá no Castelo.
— Eles encaram bastante, não é? — disse Colin, olhando em volta como
se tivesse acabado de notar o tamanho da distância que todo mundo
mantinha da nossa mesa.
— Esses merdinhas curiosos — disse Alexander, mordendo a salsicha ao
meio, os dentes se fechando como uma guilhotina. — O que te traz ao
exílio com o resto de nós?
Colin ergueu um envelope familiar, pequeno e quadrado, com o respingo
preto da caligrafia de Frederick na frente.
— Nos deram os papéis de R e J — disse ele. — Achei que vocês
gostariam de saber.
— Ah, é?
Alexander se virou na cadeira, olhando em volta da sala para a parede
onde estavam nossas caixas de correio.
— Quer que eu busque os envelopes? — perguntou Colin.
— Não precisa — respondeu Meredith, empurrando a cadeira para trás e
jogando o guardanapo na mesa. — Tenho que pegar outro café. Eu vou.
Ela deixou a mesa e, enquanto cruzava a sala, as pessoas
automaticamente se afastavam do caminho, como se temessem que seu
infortúnio pudesse ser contagioso. Eu senti uma pontada de raiva ou
ansiedade (não conseguia mais diferenciar aqueles sentimentos; depois da
morte de Richard, eram de alguma forma indistinguíveis), cortei um pedaço
de bacon ao meio e continuei a amassá-lo até não existir mais. Não percebi
que estava ignorando todo mundo até Filippa dizer, bem alto:
— Oliver?
— Que foi?
— Você está torturando o seu bacon.
— Desculpa, estou sem apetite. Vejo vocês na aula.
Eu fiquei em pé e levei meu prato até a cozinha. Joguei tudo na cesta de
louça suja sem me dar ao trabalho de raspar e voltei para o refeitório.
Meredith ainda estava nas caixas de correio, coletando as cartas. A mesa de
alunos de linguística estava toda a observando, e eu os fuzilei com o olhar
até que abaixassem a cabeça para seus pratos e comida, sussurrando
ferozmente em grego.
— Meredith — falei quando estava perto o bastante para que apenas ela
pudesse me ouvir.
Ela ergueu o olhar, os olhos passando objetivamente por meu rosto antes
de se voltar para as caixas de correio.
— Pois não?
— Olha — eu disse, sem hesitar. Minha irritação com o resto do corpo
discente de alguma forma me deixara mais ousado do que o normal. — Me
desculpe pela outra noite, e me desculpe pela viagem. Eu sou o primeiro a
admitir que não sei o que estamos fazendo. Só que eu quero descobrir.
Ela parou de vasculhar as cartas de correio, a mão empoleirada na
beirada daquela que dizia STIRLING, WREN. Ao lado dela estava a caixa de
correio de Richard, vazia. Não haviam removido o nome dele. Eu me
obriguei a ignorar aquele nome e olhar para Meredith. A expressão dela era
indecifrável, mas ao menos estava escutando o que eu tinha a dizer.
— Por que a gente não sai beber junto ou algo assim? — perguntei, me
aproximando mais. — Só nos dois. Não consigo pensar direito com todo
mundo observando como se a gente fosse um reality show.
Ela cruzou os braços.
— Tipo um encontro? — perguntou, cética.
Eu não sabia qual era a resposta correta.
— Acho que sim. Não sei. A gente descobre quando chegar lá.
O rosto dela se suavizou, e eu fiquei sobressaltado mais uma vez ao
perceber o quanto ela era bonita.
— Certo. Vamos sair para beber.
Ela colocou um par de envelopes na minha mão e me deixou sozinho
perto das caixas de correio, vendo-a se afastar com cara de bobo. Demorei
um segundo ou dois para notar que, agora que ela tinha ido embora, os
alunos de linguística tinham voltado a atenção para mim. Eu suspirei, fingi
que não os via, e abri o primeiro envelope. A letra cursiva na frente era
comprida e cheia de curvas, muito diferente do garrancho apertado e
inclinado de Frederick. Uma fita de seda azul fora fixada com um lacre de
cera, que exibia o brasão de Dellecher. Passei os dedos sob a cera e abri o
envelope. O bilhete era curto e com exatamente os mesmos dizeres dos três
anos anteriores, com exceção da data.

Você está cordialmente convidado ao


BAILE DE MÁSCARAS NATALINO
Por favor, dirija-se ao Salão de Baile Josephine Dellecher
entre as 20h e 21h na noite de
20 de dezembro, sábado.
Máscara e traje de gala são obrigatórios.

O segundo envelope era menor, e menos ornamentado. Eu o abri,


rapidamente verificando o conteúdo lá dentro.

Por favor, esteja no salão de baile às 20h45 na noite de 20 de dezembro.


Venha preparado para o Ato I, Cenas 1, 2, 4 e 5;
Ato II, Cena 4; e Ato III, Cena 1.

Você fará o papel de BENVÓLIO.

Compareça à sala de figurino às 12h30


no dia 15 de dezembro para fazer os ajustes.
Compareça ao salão de ensaios às 15h
no dia 16 de dezembro para a coreografia de luta.
Não converse sobre isso com seus colegas.
Deixei o refeitório sem voltar para a nossa mesa. Colin ficara com o meu
lugar. Todos os envelopes estavam abertos, e olhavam uns para os outros, se
perguntando o que dizia cada bilhete de Frederick. Pela primeira vez, eu
decidi que não queria saber.
CENA 14

Nossos horários do bimestre de inverno eram tão caóticos que demorou


cinco dias para que Meredith e eu conseguíssemos alguns minutos livres
para fugir do Castelo. James, Wren e Filippa estavam trancados em quartos
diferentes — provavelmente decorando suas falas; nós mal tínhamos tempo
para fazer justiça a elas —, e Alexander desaparecera mais cedo
(provavelmente com Colin, era o que eu pensava, apesar de manter a
hipótese para mim mesmo). Com R e J e também nossas tarefas para os
discursos finais, estávamos todos anormalmente extenuados. A ideia de sair
para beber em tranquilidade era incrivelmente tentadora, mas, mesmo
enquanto segurava a porta aberta do bar para Meredith passar antes de mim,
eu não tinha certeza de que nenhum de nós dois tinha tempo para aquilo.
Eu esperava que o bar estivesse vazio, considerando o dia (domingo) e o
tanto de trabalho que todos precisávamos fazer antes do dia 20 de dezembro
(uma quantidade alarmante). Porém, o Habeas Copos estava
surpreendentemente lotado, nossa mesa de sempre roubada por alunos de
filosofia que estavam discutindo muito alto a significância do hábito que
Euclides de Mégara tinha de se vestir de mulher.
— O que estão todos fazendo aqui? — perguntei enquanto Meredith me
guiava para uma mesinha do lado oposto do salão. — Eles não têm lição de
casa?
— Têm, mas não têm metade de uma peça para decorar — disse ela. —
Nossa perspectiva é um pouco distorcida.
— Deve ser — falei. — Vou pegar bebida pra gente.
Ela se sentou e fingiu olhar para o cardápio de coquetéis (como se já não
o conhecêssemos de cor e salteado), enquanto eu deslizava entre cadeiras e
banquinhos para chegar até o bar. O garoto à minha esquerda — do terceiro
ano, um bailarino, creio eu — me lançou um olhar feio quando pedi um
chope e uma vodca com refrigerante e limão. Ele sacudiu a cabeça enquanto
eu pagava e levou o copo à boca sem dizer uma palavra.
— Valeu — eu disse para o bartender, e levei as duas bebidas até o outro
lado do salão, tomando cuidado para não derrubar nada em mim mesmo
enquanto desviava de tornozelos esticados, cadeiras e manchas úmidas no
chão.
Meredith aceitou a vodca, agradecida, e tomou metade antes de dizermos
uma palavra sequer um para o outro.
Nossa conversa foi surpreendentemente constrangedora. Fizemos
comentários bobos e superficiais sobre nossos discursos e sobre o baile
enquanto estávamos profundamente conscientes de que não estávamos
sozinhos de verdade. A nossa era a terceira de cinco mesas enfileiradas, e os
grupos pequenos sentados aos nossos lados haviam ficado silenciosos de
uma forma muito suspeita quando nos sentamos. (Eram quase todas garotas,
notei, e todas alunas de Dellecher. Garotas sempre cochichavam tanto
assim? Eu não conseguia decidir se era novidade ou se eu só nunca notara.
Confesso que eu nunca antes fora um objeto digno de cochichos.) Meredith
terminou a bebida, e eu agarrei a oportunidade de ir pegar mais uma.
Enquanto estava esperando, considerei comprar um shot para mim. Não
consegui deixar de me perguntar o quanto tudo seria diferente naquela noite
se nós tivéssemos de fato alguma privacidade, e decidi que, se aquilo
continuasse prosseguindo da mesma forma tenebrosa, eu sugeriria terminar
nossa bebida e voltar para o Castelo, onde poderíamos ao menos trancar
uma porta ou escapar para o jardim e respirar com um pouco mais de
facilidade.
Quando eu me sentei de novo, Meredith sorriu para mim, evidentemente
aliviada.
— É tão esquisito não estar na mesa de sempre — falei. — Acho que eu
nunca me sentei desse lado do ambiente.
— Nós não temos vindo mais com tanta frequência — disse ela. — Acho
que perdemos o direito de falar que é nossa.
Eu olhei por cima do ombro para os filósofos, ainda discutindo a
obsessão possivelmente homoerótica de Euclides com Sócrates (me parecia
puro desejo).
— Provavelmente conseguimos recuperá-la — disse. — Se chegarmos
com todo mundo aqui, podemos fazer uma invasão.
— Precisamos organizar isso.
Ela sorriu de novo, mas o sorriso era incerto.
A mão dela repousava na mesa e, em um momento de coragem raro, eu
estiquei a minha e a coloquei sobre a dela. Quatro dos dedos dela se
curvaram ao redor de dois dos meus.
— Está tudo bem? — falei, em um sussurro baixo. — Quer dizer, você
está bem de verdade?
Ela mexeu a bebida.
— Estou tentando ficar. Apesar do que todo mundo acha, também estou
cansada das pessoas me encarando.
Eu não consegui evitar que meus olhos seguissem para as pessoas das
mesas ao nosso redor.
— Parece cruel, mas não me importo — continuou. — Eu só não quero
mais ser a namorada do cara que morreu.
Imediatamente, quis soltar a mão dela.
— E o que você quer ser? — perguntei, sem refletir. — Minha
namorada?
Ela me encarou, a surpresa apagando todas as outras emoções do rosto
dela.
— Mas o que…
— Eu não sou o substituto do Richard — falei. — Eu não vou entrar no
lugar dele, fazer o papel agora que ele saiu do palco. Não é isso que eu
quero.
— Eu também não quero isso. Isso é precisamente o que eu não quero.
Meu Deus, Oliver.
Os olhos dela estavam endurecidos — como vidro verde de garrafa, com
pontas afiadas e cortantes.
— Richard e eu terminamos pra valer — disse ela. — Ele era um filho da
puta, era violento comigo e com todo mundo, e eu já estava cheia dele. Eu
sei que ninguém quer se lembrar disso agora que ele se foi, mas você
deveria.
Eu abaixei a voz.
— Me desculpa — eu disse. — Eu só… talvez porque você seja você, e
sabe, olha só pra você, e eu não entendo. Por que eu? Eu não sou ninguém.
Ela desviou o olhar, mordendo o lábio inferior com força, como se
estivesse tentando não chorar, ou talvez não gritar. A mão dela estava
frouxa e fria sob a minha, como se não estivesse mais conectada ao resto do
corpo. As mesas ao nosso lado tinham parado inteiramente de conversar.
— Sabe, todo mundo fala que você é “legal” — disse ela, de forma lenta,
a expressão pensativa e carregada. — Mas essa não é a palavra. Você é
bom. Você é tão bom que não faz ideia de quanto você é bom.
Ela riu, uma única vez — um som resignado e triste.
— E você é de verdade — continuou. — Você é o único entre nós que
não está atuando o tempo todo, que não está só vivendo o papel que
Gwendolyn atribuiu a você faz três anos.
Os olhos dela encontraram os meus novamente, o eco daquela risada
pairando na boca dela.
— Eu sou tão ruim quanto os outros. Trate uma garota como se fosse
uma puta, e ela vai aprender a agir como uma — disse ela, os ombros
levemente inclinando para cima, um dar de ombros quase imperceptível. —
Mas não é assim que você me trata. E isso sempre foi tudo que eu quis.
Fechei os olhos com força, e então ergui o rosto para o teto. Era o único
lugar seguro para olhar, o único lugar onde eu sabia que não encontraria
outros cinco pares de olhos me encarando.
— Eu sinto muito — falei de novo, desejando que nunca tivesse falado
nada, que tivesse tido o bom senso de sentar ali com ela e ficar maravilhado
diante do fato de que ela queria se sentar ali comigo, e nunca perguntar o
motivo.
Deveria ter sido tão fácil, mas nada entre nós jamais seria. Se era isso que
queríamos, fizemos um jogo sujo. Nós poderíamos ir embora do bar e
escapar o escrutínio dos outros alunos, mas as portas trancadas não
adiantavam de nada quando era Richard que estava nos olhando.
Meredith parecia mais abatida do que com raiva.
— É, bom. Eu também sinto muito.
— Então onde isso nos deixa? — perguntei, com medo de colocar
esperanças demais naquela única pergunta.
Coragem, homem, me disse Romeu novamente, aquele filho da puta
mentiroso, é pequena a ferida.
— Não sei. Em lugar nenhum. — Ela afastou a mão. — Vamos só voltar
para o Castelo. Melhor lá do que aqui.
Eu me coloquei de pé e juntei os copos vazios em um silêncio tímido. Eu
a ajudei a vestir o casaco, deixei uma mão demorar tempo demais no ombro
dela. Ela não pareceu sentir, mas, na mesa ao lado, ouvi uma garota
murmurar para as outras:
— Uma puta falta de vergonha na cara.
Só que a vergonha ardia quente em meu rosto e pescoço enquanto seguia
Meredith rumo à escuridão de dezembro. As primeiras lufadas de neve
dançavam contra o céu preto, e eu me encontrei torcendo para que caíssem
aos milhões, cobrindo o chão com rapidez, e enterrassem tudo ali.
CENA 15

Na segunda-feira, o cronograma dos discursos estava grudado no quadro de


avisos na travessia. Eu estava agendado no primeiro horário, durante o que
seria normalmente o tempo de ensaio das quartas à tarde, e Wren iria em
seguida. James e Filippa estavam com aqueles mesmos horários na quinta-
feira, Alexander e Meredith na sexta.
A neve caíra grossa e voraz de domingo à noite até a terça de manhã, se
esforçando para satisfazer o desejo insensato que eu fizera enquanto saía do
bar. Nossos dedos e pés estavam perpetuamente dormentes, as bochechas e
narizes de um tom rosado, e hidratante labial virou repentinamente uma
mercadoria valiosa. Na quarta-feira, Frederick e Gwendolyn nos apressaram
para dentro do salão de ensaios bem arejado, onde descartamos cachecóis,
casacos e luvas, e fomos sujeitados a um rigoroso exercício de aquecimento
selecionado por Gwendolyn.
Eu prontamente fiz meu discurso enquanto Wren esperava no corredor.
“Eu brincaria sem parar com a corja / até que, desolados e sem defesa, /
ficassem nus como o ar vulgar” me forçou a desacelerar, e a vividez da
imagem me carregou com mais firmeza através de “Gostam de meus
conselhos incivis?”, quando eu me senti obrigado a aumentar a velocidade
novamente. Ao fim, eu estava sem fôlego, mas estranhamente eufórico,
aliviado por ser outro alguém que não eu mesmo por um tempo — mais
disposto a ir à guerra do que confrontar meus próprios sórdidos e parcos
demônios.
Frederick e Gwendolyn ambos sorriram para mim — a boca de
Gwendolyn um travessão audacioso do batom escuro que usava no inverno,
a de Frederick um arco pequeno e curvo.
— Muito bem, Oliver — disse Gwendolyn. — Um pouco apressado no
princípio, mas você se acomodou bem depois.
— Eu achei inteiramente persuasivo — disse Frederick. — O que
sustenta a ideia de que você obteve sucesso.
— Obrigado — respondi.
— Vai receber o resto de nossos comentários na sua caixa de correio
amanhã — disse Gwendolyn. — Mas não precisa se preocupar. Sente-se.
Eu os agradeci novamente e fui me sentar ao lado deles na mesa,
tomando água da garrafa debaixo da cadeira enquanto esperávamos por
Wren. Gwendolyn a chamou da travessia e, quando ela apareceu, fiquei
alarmado por sua aparência pequena e frágil.
— Bom dia — disse ela, a voz apenas um eco naquela sala cavernosa.
— Bom dia — disse Frederick. — Como você está?
— Bem — disse ela, mas eu não acreditei. O rosto e mãos estavam
pálidos e as olheiras, escuras. — Só não estou muito no clima.
— Com esse tempo que está fazendo, não tem como não estar — disse
Gwendolyn, dando uma piscadela.
Wren tentou rir, mas, em vez disso, acabou tossindo com força. Olhei
para Frederick, inquieto, mas não conseguia ver além do reflexo nos óculos.
— O que tem para nós hoje? — perguntou ele. — Lady Anne, não é?
— Isso mesmo.
— Ótimo — disse Gwendolyn. — Quando você estiver pronta, pode
começar.
Wren assentiu, e então firmou os pés no chão, a dez passos de distância
da mesa. Eu franzi o cenho, sem ter certeza se era só minha imaginação ou
se ela mesmo estava tremendo.
WREN: “Pedi a Deus que o aro dourado
   Que deve me circundar a fronte
   Queime até me selar o cérebro!
   Ungida serei com mortal veneno,
   Até morrer antes que por mim clamem!’”
As palavras dela ecoaram em alto e bom som sob o teto abobadado, mas
também estremeciam. Ela continuou com coragem, o pequeno corpo se
contraindo, ainda menor, sob a dor dilacerante de Anne — eu não duvidava
que ela a sentia de forma tão intensa quanto se fosse a sua própria.
WREN: “Eis meu desejo: ‘Maldito seja,
   Por me fazer tão jovem viúva!
   Que o lamento cubra sua cama.
   E, se uma insana esposar,
   Que você a faça tão infeliz
   Quanto me fez por matar meu senhor!’”
A voz dela falhou, o som áspero demais para ser apenas a afetação de um
ator. Ela golpeou o torso com força com o punho, mas fosse uma expressão
tácita do seu luto ou uma tentativa desesperada de desalojar aquilo que a
engasgava, eu não soube distinguir. Gwendolyn se inclinou para a frente na
mesa, as sobrancelhas franzidas, preocupada. Porém, antes que pudesse
falar, a voz de Wren saiu, gaguejando mais uma vez, falha e desconjuntada.
Ela estava quase dobrada ao meio, uma mão ainda no peito, a outra
violentamente cravada no estômago. Eu paralisei no assento, segurando a
lateral da cadeira com tanta força que as pontas dos dedos ficaram
entorpecidas.
WREN: “Antes que eu me repetisse,
   Em tão breve tempo, meu coração
   De mulher se deu a seus encantos
   E se fez alvo do meu maldizer.
   Nunca mais pude dormir,
   Uma noite só, em seu leito…”
Ela parou, parecendo esquecer-se, e oscilou no lugar. Piscou, de forma
pesada, e murmurou:
— Sono…
Eu sabia que ela cairia, mas fui lento demais ao pular da cadeira para
segurá-la antes que fosse ao chão.
CENA 16

Voltei ao Castelo uma hora depois, o frio devorando braços e pernas


enquanto subia as escadas. Ainda estava tremendo de frio (ou talvez só
tremendo, como Wren, um sintoma não relacionado à temperatura lá fora)
quando apareci na porta da biblioteca. James e Filippa estavam no sofá,
com o nariz enterrado nos próprios roteiros até me ouvirem entrar. Um
choque prolongado ainda deveria estampar meu rosto, porque os dois
pularam de imediato.
FILIPPA: “Oliver!”
JAMES: “O que aconteceu?”
Tentei falar, mas nenhum som saiu, perdido no tumulto das memórias
recentes que abarrotavam meu cérebro.
James me agarrou pelos ombros.
— Oliver, olhe para mim — disse ele. — O que aconteceu?
— Wren — eu falei. — Ela simplesmente… desmaiou, no meio do
discurso.
— Quê? — falou James, tão alto que eu me afastei. — Como assim,
desmaiou? Ela está bem? Onde…
— James, deixa ele falar! — ralhou Filippa, puxando-o para trás. De uma
forma mais gentil, mas ainda pálida, ela prosseguiu: — O que aconteceu?
Eu contei tudo em um monólogo preenchido por pausas constrangidas e
hesitações: que Wren caíra no salão de ensaio e que, depois de uma
tentativa fracassada de acordá-la, eu a pegara no colo e correra até a
enfermaria, com Gwendolyn e Frederick logo atrás de mim, tendo
dificuldade de acompanhar meu passo.
— Agora ela está estável, foi o que disseram. Ela estava abrindo os olhos
quando a enfermeira me expulsou. Eles não me deixaram ficar.
Aquela última frase foi dita em tom de desculpas, para James.
Ele abriu a boca, mexendo os lábios sem dizer uma palavra, como um
homem falando embaixo d’água. Então, de forma abrupta, ele disse:
— Preciso ir.
— Não, espera…
Eu me estiquei para agarrar o braço dele, mas apenas rocei na manga. Ele
já estava fora do alcance, indo à porta. Ele me lançou um último olhar
doloroso, tentando comunicar algo que não tive tempo de compreender,
antes de me dar as costas e correr pelas escadas. Quando ele se foi, a
adrenalina se esvaiu do meu corpo de uma vez só, e meus joelhos cederam.
Filippa me guiou até uma cadeira, mas não a mais próxima — não a que
pertencia a Richard.
— Só fique sentado quietinho aí um pouco — disse ela. — Você já fez o
bastante.
Agarrei o pulso dela, apertando-o com força demais, em um surto
estranho e desesperado. Wren havia perdido a consciência e tombado com
tanta rapidez que eu não pudera segurá-la, e então James também
desaparecera, porta afora e noite adentro, como água que passava entre
meus dedos. Estava relutante em ficar sozinho, ainda mais relutante de
deixar que outro amigo sumisse de vista, como se algum de nós pudesse
simplesmente desaparecer. Filippa afundou no chão ao lado da minha
cadeira, apoiando a cabeça no meu joelho em silêncio, simplesmente
esperando até que eu não precisasse mais dela.
Depois de uns dez minutos, talvez, eu a soltei, mas foi só quando
Alexander e Meredith chegaram que me senti capaz de ficar em pé
novamente. Contei a história a eles de forma mais coerente, e passamos
uma hora aglomerados ao redor do fogo, falando pouco, aguardando mais
notícias.
EU: “Vocês acham que vão continuar com o baile?”
FILIPPA: “Não vão cancelar agora. As pessoas ficariam em pânico.”
ALEXANDER: “Alguém vai precisar aprender as falas dela. Ninguém nem
vai saber que era para ter sido ela.”
MEREDITH: “Eu não sei vocês, mas eu estou cansada de todo esse
mistério.”
Nós voltamos para o silêncio, observando as chamas, aguardando.
Era meia-noite quando James voltou. Alexander tinha se jogado de lado
no sofá e adormecido — o rosto pálido, a respiração curta —, mas as
garotas e eu estávamos acordados, os olhos inchados e inquietos. Quando
ouvimos a porta da frente abrir, todos nos endireitamos nas cadeiras,
escutando os passos na escada.
— James? — chamei.
Ele não respondeu, mas um instante depois apareceu na porta, a neve
grudada nos cabelos. Duas manchas vermelhas vívidas brilhavam em suas
bochechas, como se o rosto dele tivesse sido maquiado por uma garotinha
que não fazia ideia da quantidade adequada de blush que deveria aplicar.
— Como ela está? — perguntei, me levantando do sofá para ajudá-lo a
tirar o casaco.
— Não me deixaram vê-la.
Os dentes dele estavam batendo, fazendo com que as palavras saíssem
entrecortas e trêmulas.
— Como assim? — perguntou Meredith. — Por que não?
— Não sei. Outras pessoas entraram e saíram e foram de um lado para o
outro como se fosse a própria Central, mas me fizeram sentar no corredor.
— Quem estava lá? — perguntou Filippa.
— Holinshed e todas as enfermeiras. Mandaram buscar um médico de
Broadwater. A polícia estava lá também. Aquele cara, Colborne, e outro,
Walton.
Alexander acordara com a entrada de James, e eu olhei diretamente para
ele. A boca dele tornou-se uma linha fina e lúgubre.
— O que estavam fazendo lá? — perguntou ele com os olhos ainda
grudados em mim.
James se deixou cair pesadamente na cadeira.
— Não sei. Ninguém me falou nada. Só perguntaram se eu sabia o que
ela estava fazendo ultimamente.
— Bom, é exaustão, não é? — disse Meredith. — Fadiga. Ela teve essa…
experiência terrível, e quando volta para cá e todo mundo fica evitando ela,
e além disso tem quinhentas falas para aprender. É um milagre nós aqui
estarmos em pé.
Eu só estava escutando pela metade. As palavras de Walton quicavam em
meu cérebro como uma bolinha de pinball perdida. Aposto na prima. Fiquei
sentado em silêncio na mesa e dobrei o casaco de James, segurando-o no
colo, torcendo para que ninguém prestasse atenção em mim. Guardar a
investigação de Colborne em segredo do resto deles não parecia mais ser
justo, e eu duvidava que conseguiria manter meu silêncio se alguém me
perguntasse qualquer coisa que fosse, mesmo que não fosse nada
relacionado ao assunto. Alexander me observava como uma águia e,
quando arrisquei levantar o olhar para ele, ele apenas sacudiu a cabeça de
leve.
— O que vamos fazer? — perguntou Filippa, olhando de James para
Meredith.
— Nada — disse Alexander antes que qualquer um dos dois pudesse
falar.
Eu queria perguntar “é essa sua resposta para tudo?”. Eu me perguntei
quantas vezes ele poderia usar aquela palavra, e se minha alma iria se
contorcer e se afastar cada vez que ele a pronunciava.
— Continuamos como sempre — disse ele —, ou vão começar a fazer
todo o tipo de pergunta a que não queremos responder.
— Quem? — inquiriu Meredith. — A polícia?
— Não — falou ele, com rapidez. — A faculdade. Vão botar todo mundo
na porra da terapia se ficarmos mais assustados do que já estamos.
— Temos todos os motivos do mundo para ficarmos assustados — disse
ela. — Um dos nossos colegas morreu, e a outra acabou de ter um colapso
nervoso.
— E o que você acha que isso parece? — perguntou ele. — Eu entendo
que não dá pra gente fingir que não foi afetado por isso, mas, se todo
mundo começar a agir como se tivéssemos matado alguém, eles vão
começar a se perguntar se a gente de fato não fez isso.
— Nós não matamos Richard — disse Meredith de imediato, com raiva.
Eu reconheci aquele reflexo, a culpa tentando refutar uma alegação que
era próxima demais da verdade.
— Não, claro que não — disse Alexander, fazendo com que cada palavra
fosse um golpe. — A gente só deixou ele morrer.
Na época da morte, parecia uma distinção muito importante a ser feita.
Porém, nas semanas que se seguiram, enquanto nos recuperávamos da
loucura temporária daquela manhã, a diferença entre uma coisa e outra
ficou cada vez mais tênue. As palavras de Alexander arrebentaram aquele
último fio de fingimento. Àquela altura, todos sabíamos, assim como
Richard, que na verdade não fazia diferença nenhuma.
Alexander ficou em pé, incluindo todos nós em um olhar fuzilante
enquanto apalpava os bolsos.
— Preciso fumar. Venham falar comigo se tiverem notícias.
Ele deixou a sala abruptamente, um cigarro já pendurado na boca. James
o observou ir embora, e então desmoronou, afundando a cabeça nas mãos.
Filippa se empoleirou no braço da cadeira em que ele estava, uma mão
repousando na nuca dele, se inclinando mais baixo para dizer algo que eu
não pude ouvir. Assim que Alexander sumiu de vista, Meredith me lançou
um olhar misto de indignação e confusão.
— Que porra tem de errado com ele? — perguntou.
— Não faço ideia.
CENA 17

Três dias depois, fiquei sozinho na Torre, me preparando para o baile de


máscaras e nossa apresentação truncada de Romeu e Julieta. Os figurinistas
nos vestiram em um estilo que chamavam de “alta costura carnavalesca”,
que, pelo que eu compreendia, não aderia a nenhum período histórico em
particular, mas envolvia bastante veludo e brocados dourados. Olhei o
reflexo no espelho, me virando de um lado ao outro. Eu parecia um
mosqueteiro cheio da grana e particularmente extravagante. A capa curta
que me entregaram estava pendurada em um ombro, amarrada com uma fita
que brilhava no meio do meu peito. Eu a puxei, consciente da minha
imagem.
James e as garotas já tinham seguido para a festa (exceto por Wren, que,
pelo que sabíamos, ainda estava de cama na enfermaria), e eu tinha alguns
minutos de sobra. Tentei calçar as botas ainda de pé, mas rapidamente caí
de lado na cama e terminei o trabalho ali. Minha máscara estava na mesinha
de cabeceira, me observando de olhos vazios. Era uma coisa encantada e
linda — com um xadrez em linhas douradas, pintada em azul, preto e
prateado reluzente. (Como tinham sido feitas sob medida pelos estudantes
de arte e não serviriam em mais ninguém corretamente, nos foi informado
que poderíamos ficar com elas depois da apresentação.) Amarrei a fita de
seda atrás da minha cabeça com dedos atrapalhados, murmurando as
primeiras falas baixinho, e me olhei pela última vez, em seguida descendo
as escadas apressadamente.
Alexander estava na biblioteca, mas eu não o reconheci a princípio, e ele
me assustou tanto que eu cambaleei para trás. Ele ergueu os olhos de onde
estava agachado em frente a uma fina linha de pó branco na mesa de centro.
Os olhos afiados dele me observaram através de dois buracos profundos na
máscara verde e preta, mais larga e menos delicada que a minha, que afilava
em uma ponta demoníaca ao fim do nariz.
— O que você está fazendo? — perguntei, mais alto do que era minha
intenção.
Ele girou o tubo de uma caneta esferográfica entre os dedos.
— Só pra eu não dar branco antes do baile — disse ele. — Você quer
também?
— Quê? Não. Você tá falando sério?
— Falo mais sério do que mostro / e assim deve me receber.
Ele abaixou a cabeça na mesa e fungou, com força. Eu virei o rosto, sem
disposição para ver aquilo, furioso com ele por alguma razão incoerente e
elusiva. Eu o ouvi suspirar e olhei novamente. A carreira tinha sumido, e
ele estava sentado com a mão nos joelhos, a cabeça inclinada para trás, os
olhos quase fechados.
— Então — eu falei. — Faz quanto tempo que isso está acontecendo?
— Você vai me dar uma bronca?
— Seria bem merecida — respondi. — Os outros sabem?
— Não. — Ele ergueu a cabeça de novo, e me observou com intensidade
enervante. — E eu espero que continue assim.
Olhei para o relógio, minha mente um turbilhão.
— Nós vamos nos atrasar — eu disse, curto.
— Então vamos embora.
Saí da biblioteca sem esperar para ver se ele me seguiria. Estávamos na
trilha, na metade do caminho que levava ao Pavilhão, quando ele finalmente
me alcançou e ficou ao meu lado.
— Você vai me dar gelo a noite toda? — perguntou, tão casualmente que
eu tinha certeza de que ele não se importaria se eu o fizesse.
— Estou considerando isso, sim.
Ele riu de novo, mas o som parecia falso. Impaciente, segui em frente. Eu
queria fugir dele, me perder em uma multidão de pessoas desconhecidas,
evitar pensar naquilo durante algumas horas. A capa caía pesada no meu
ombro, mas o frio se esgueirava sob ela, corroendo minha pele através das
camadas mais finas da camisa e do gibão.
— Oliver —chamou Alexander, e eu o ignorei.
Ele mal conseguia acompanhar meu passo, os pulmões trabalhando a
duras penas para converter aquele ar frígido em algo capaz de ser respirado.
A neve era esmagada sob as nossas botas — quebradiça e com gelo no topo,
um pó denso embaixo.
— Oliver. Oliver!
Da terceira vez que ele disse meu nome, me agarrou pelo braço e me
puxou para que eu o encarasse.
— Você vai mesmo ser escroto com isso?
— Vou.
— Tá. Olha.
Ele ainda estava segurando meu braço, com força demais, os dedos
esmagando os músculos até atingir os ossos. Cerrei os dentes, quase certo
de que ele sequer percebia que estava fazendo aquilo, sem querer
reconhecer a possibilidade mais preocupante de que era de propósito.
— Só preciso de um impulso extra para passar nas provas. Vou estar
limpo quando você me vir em janeiro.
— É melhor estar. Você já pensou no que vai acontecer se Colborne
encontrar essa merda no Castelo? Ele só está procurando um motivo para
arrombar o lugar de novo e, se você lhe der um, eu juro que te mato.
Ele me encarou, máscara contra máscara, com uma expressão que eu não
reconhecia bem, cautelosa e cheia de suspeitas.
— O que aconteceu com você? — perguntou ele. — Você não parece o
mesmo de sempre.
— Bom, tá, você não está agindo como sempre também.
Tentei desvencilhar meu braço do aperto dele, mas os dedos estavam
travados no meu bíceps.
— Você é mais esperto que isso — eu disse. — Eu não vou mais guardar
nenhum segredo seu. Me larga. Vamos embora.
Arranquei meu braço, livre enfim, e dei as costas para ele, marchando em
frente pela neve mais espessa.
CENA 18

Alexander me seguiu como uma sombra por três lances de escada. O salão
de baile se esticava em direção aos céus, tomando desde o quarto até o
quinto andar, com um balcão comprido e um átrio de vidro reluzente que se
espichava em direção à lua.
O baile de máscaras natalino era tradicionalmente um evento espetacular,
e o que ocorreu no inverno de 1997 não foi exceção. O chão de mármore
fora polido para ficar tão brilhante que parecia que os convidados estavam
caminhando em espelhos. Figueiras de folhas caídas, que cresciam de
dentro de vasos quadrados profundos em cada um dos quatro cantos,
estavam decoradas com minúsculas luzes brancas e faixas de fita e arame
que lançavam reflexos dourados ao redor do salão. Os candelabros —
pendurados por correntes grossas, que se esticavam de parede a parede três
metros acima do balcão — faziam com que um brilho caloroso recaísse no
salão lotado. Mesas empilhadas com tigelas de ponche e travessas de
minúsculos canapés ladeavam a parede oeste, e os estudantes que já tinham
chegado se aglomeravam ao redor delas como mariposas na luz da lanterna.
Todos estavam vestidos com seus melhores trajes, apesar de os rostos
estarem bem escondidos — os garotos de máscaras bauta, as garotas de
morettas pretas menores. (Em comparação, nossas máscaras eram
devastadoramente mais elaboradas, feitas para se destacarem em meio aos
rostos anônimos e vazios.) Os alunos da orquestra haviam se reunido de um
lado do salão com os instrumentos, as partituras apoiadas em pedestais
prateados elegantes. Uma valsa aérea e encantadora ondulava sob o teto.
Assim que entramos, rostos se viraram na nossa direção. Alexander
imediatamente adentrou a multidão, uma figura alta e imponente, vestida de
preto, prateado e verde-escuro. Eu me demorei na porta, esperando os
olhares se distraírem, e comecei a caminhar devagar e discretamente pelas
bordas da sala. Procurei por vislumbres de cor, na esperança de ver James,
Filippa ou Meredith. Assim como no Halloween, não sabíamos como iria
começar. A expectativa vibrava no salão como uma corrente elétrica. Minha
mão repousava no cabo da adaga no cinto. Eu passara duas horas na terça à
tarde com Camilo, aprendendo o combate do primeiro duelo da peça. Quem
seria Teobaldo, e onde ele estava escondido? Eu estava pronto.
A orquestra recaiu em silêncio e, quase imediatamente, uma voz chamou
do balcão:
— A briga é entre os nossos senhores, e nós, seus homens.
Duas garotas — ambas alunas do terceiro ano, imaginei — estavam
inclinadas do balcão da parede leste, com máscaras prateadas simples
escondendo os olhos, os cabelos penteados para longe do rosto. Estavam
vestidas como garotos, de calças, botas e gibão.
— Tanto faz — disse a segunda. — Me farei de tirano: depois de lutar
com os homens, pegarei as donzelas e darei castigo.
— Dar castigo às donzelas?
— Sim, dar castigo às donzelas, ou elas que me darão a castidade;
entenda como quiser.
Elas forçaram uma risada maliciosa e masculina, que foi compartilhada
de maneira entusiasmada pelos que olhavam de baixo. Eu fiquei observando
e me perguntei a melhor forma de entrar na disputa. Porém, assim que
Balthasar e Abraham (também garotas do terceiro ano) entraram no salão de
baile, Gregório e Sansão jogaram as pernas por cima da parede do balcão, e
começaram a descer pela coluna mais próxima, os dedos agarrando com
firmeza as trepadeiras ao redor. Assim que tocaram o chão, uma delas
assobiou, e os dois criados de Montéquio se viraram. A mordida dos
dedões, acompanhada por mais risadas indulgentes, rapidamente se tornou
uma discussão.
GREGÓRIO: Procura briga, senhor?
ABRAÃO: Uma briga, senhor? Não, senhor.
SANSÃO: Se estiver, senhor, aqui estou. Meu senhor é nobre como o seu.
ABRAÃO: Não melhor.
SANSÃO: Melhor, sim, senhor.
ABRAÃO: Mentiroso!
Eles irromperam em um duelo de quatro espadas atrapalhado. O público
(já achatado contra as paredes do salão) observava com deleite ávido, rindo
e torcendo por seus favoritos. Eu esperei até que a briga parecesse pronta
para ser interrompida, e então corri para a frente, puxando minha própria
adaga, afastando as garotas.
— Parem já, tolos! — eu disse. — Guardem as espadas, não sabem o
que fazem.
Elas se afastaram, ofegantes, mas a próxima voz ecoou do lado oposto do
salão. Teobaldo.
— Armado para lebres indefesas? Vire-se, Benvólio, e encare sua morte.
Eu me virei. A multidão havia aberto espaço para Colin, que estava me
encarando através dos buracos de uma máscara preta e vermelha, cortada
dos dois lados para revelar as maçãs do rosto, angulosas e reptilianas, como
asas de um dragão.
EU: “Busco a paz: guarde a espada,
Ou a use para apaziguar.”
COLIN: “Armado e pregando a paz?
Ódio à palavra, a você,
Aos Montéquios e ao inferno. Toma!”
Colin me atacou, e nós nos chocamos como um par de galos de briga.
Nós cortamos e trocamos golpes até que as quatro garotas se lançaram
juntas na confusão, aos gritos zombeteiros de centenas de estudantes
mascarados que assistiam. Levei uma cotovelada no queixo e caí no chão,
pesado, de costas. Colin estava em cima de mim em um instante, mirando
na garganta, mas eu sabia que Éscalus chegaria bem a tempo para impedir
meu estrangulamento. Ele — ou melhor, ela — apareceu no topo das
escadarias do balcão, em um esplendor real de tirar o fôlego.
— Rebeldes, inimigos da paz, / que ofendem com aço seus iguais… / Não
me ouvem?
Muito pelo contrário, nós paramos o enfrentamento de imediato. Colin
me soltou, e eu rolei de joelhos, erguendo o olhar para Meredith, em um
deslumbramento silencioso. Ela parecia um príncipe tanto quanto um de
nós, garotos, teria parecido — os cabelos ruivos presos para trás em uma
trança comprida, as pernas esbeltas escondidas sob botas de couro, o rosto
protegido por uma máscara branca que reluzia como se feita de poeira
estelar. Conforme descia, arrastava na escada a capa comprida atrás de si.
MEREDITH: “Alto lá, seus homens bestiais
 Que apagam o fogo da raiva
 Com as fontes de veias roxas,
 Dor e tortura. Larguem as espadas
 De suas mãos sangrentas
 E ouçam o que diz seu príncipe!”
Obedientemente, jogamos as armas no chão.
MEREDITH: “Lutas civis, do verbo nascidas,
 Três vezes nossa cidade corromperam,
 E fizeram os anciãos de Verona
 Deixarem honrosos adornos
 E pegarem armas nas mãos velhas,
 Pacíficas, para seu ódio findar.”
Ela andou lentamente entre nós, a cabeça empinada. Colin deu um passo
para trás e fez uma reverência. Eu e as garotas nos abaixamos, com um
joelho no chão. Meredith olhou para baixo, para mim, e ergueu meu queixo
com uma mão enluvada.
— Se mais uma vez aqui perturbarem, / suas vidas pagarão a paz.
Ela se virou nos calcanhares, a barra da capa estalando no meu rosto.
— Por ora, afastem-se todos daqui.
As garotas e Colin se abaixaram para recuperar as armas descartadas e os
pedaços perdidos do figurino. Porém, o príncipe estava impaciente.
— Repito: afastem-se ou morram!
Nós nos espalhamos pelo centro do salão, que irrompeu em aplausos
conforme Meredith subia as escadas para o balcão novamente. Eu pairei
perto da beirada da multidão, observando os pés dela nos degraus até que
ela desapareceu, e então me virei para o convidado mais próximo — um
garoto, não sabia quem era, só que os olhos castanhos estavam visíveis o
bastante atrás da máscara — e disse:
— Onde está Romeu? — E então, para outro espectador: — Já o viu
hoje? Ao menos na briga ele não estava.
Exatamente naquele instante, Romeu surgiu de uma porta na parede leste,
vestido todo de azul e prata, a máscara gentilmente curvada ao redor das
têmporas. Ele quase parecia uma figura mística, um Ganimedes, lindamente
petrificado entre a aparência de um homem e um garoto. Eu sabia que seria
James, eu adivinhara, mas nem por isso a aparência dele me afetava menos.
— Lá vem ele — falei, para a garota mais perto de mim, em um tom de
voz mais baixo.
Aquele orgulho estranho e possessivo tomou conta de mim novamente.
Todos na sala estavam observando James — como poderiam não o fazer?
—, mas era eu quem o conhecia, de verdade, cada centímetro dele.
— Deem já licença / A tristeza o toma como doença. / Bom dia, primo!
James ergueu o olhar e olhou diretamente para mim. Ele parecia surpreso
em me ver parado ali, apesar de eu não saber que motivo tinha para isso. Eu
não era sempre sua mão direita, seu tenente? Banquo ou Benvólio ou Oliver
— fazia pouca diferença.
Nós discutimos brevemente seu amor não correspondido, uma
brincadeira surgindo em que eu bloqueava o caminho dele todas as vezes
que ele tentava ir embora, que fazia uma tentativa de evitar minhas
perguntas. Ele parecia contente de me acompanhar até que disse mais
firmemente:
— Adeus, primo.
— Espere — disse eu. — Eu vou junto. / Não me machuque me deixando
aqui.
— Estou perdido, não estou aqui. / Não sou Romeu, aquele anda por aí.
Ele se virou para ir embora, e eu dei um pulo para impedir seu caminho
mais uma vez. Meu desejo de mantê-lo ali, a certa altura, transcendera o
alinhamento entre a motivação do ator e do personagem. Eu queria que ele
permanecesse ali e, com certo desespero, estava atormentado pela ideia sem
sentido de que, se ele fosse embora, eu o perderia de forma irrecuperável.
— Com tristeza, revele seu amor — eu disse, procurando no rosto dele
por algum vislumbre de que aquele era um sentimento recíproco.
JAMES: “Ao triste doente pede testamento?
Na doença não tem cabimento.
Com tristeza, primo, amo uma dama.”
Por um instante, esqueci qual era a minha próxima fala. Nós nos
encaramos por um instante, e a multidão desapareceu ao nosso redor, como
uma sombra indistinta, um pano de fundo. Com um sobressalto, eu me
lembrei da minha fala, mas não eram exatamente as palavras certas.
— Ouça, primo: — falei, pulando alguns pedaços. — Esqueça ela.
James piscou rapidamente atrás da máscara, mas então ele deu um passo
para trás, distanciado, e continuou a encenação. Eu fiquei imóvel e o
observei andar em círculos: as palavras, os passos, os gestos — tudo nele
inquieto.
Um criado entrou, dando as notícias da festa de Capuleto. Nós
fofocamos, planejamos e traçamos os passos, até que finalmente um
terceiro mascarado entrou: Alexander.
Ele falou a primeira frase de onde estava sentado, na beirada da mesa que
continha a tigela de ponche, cada braço ao redor de um dos dois membros
mais próximos do público — uma das quais estava dando risadinhas,
descontrolada, atrás da máscara, enquanto a outra se encolhia para longe do
toque dele, obviamente aterrorizada.
— Não, gentil Romeu; devemos dançar.
Ele deslizou para longe da mesa com um gesto tão harmonioso que era
como se fosse líquido, e se aproximou de nós com um andar distintamente
felino. Ele me cutucou para sair do caminho, andando ao redor de James em
um círculo pequeno, parando para olhá-lo de cada ângulo intrigante. Eles
trocaram palavras e gracejos, fáceis e inconsequentes, até que James disse:
— Qual o carinho do amor? Dói demais, / é rude, finca feito espinho.
Alexander soltou uma risada que parecia um ronronado, e agarrou James
pelo gibão.
ALEXANDER: “Se o amor fere, fira o amor!
      Espete de volta e triunfe.
      Dê uma caixa para eu guardar o rosto:
      Uma cara por outra.”
As testas deles se bateram, Alexander segurando James com tanta
firmeza que o ouvi grunhir de dor. Eu comecei a ir na direção deles, mas,
assim que me mexi, Alexander o empurrou para trás, diretamente nos meus
braços.
ALEXANDER: “De que me importa
      Olhos curiosos por defeitos?
      Eis aqui um rosto que corará.”
Eu ergui James novamente, dizendo:
— Bata e entre sem demora, / lá dentro é cada um por si.
ALEXANDER: “Assim perdemos o sol!”
JAMES: “Não é bem isso.”
ALEXANDER (IMPACIENTE): “Digo que o atraso
      Desperdiça o dia com descaso.
      Do bom senso tire o sentido,
      Com os cinco não está garantido.”
JAMES: “E nossa intenção à festa é boa,
 Mas não sábia.”
ALEXANDER: “Por que assim destoa?”
JAMES: “À noite sonhei.”
ALEXANDER: “E eu também.”
JAMES: “Que disse seu sonho?”
ALEXANDER:“Sonhadores mentiras têm.”
JAMES: “E sono, então se deitam a dormir.”
ALEXANDER: “Então a Rainha Mab foi te divertir!”
Dei dois passos para trás para observar aquele monólogo peculiar se
desdobrar. O Mercúcio de Alexander era provocador, desequilibrado e
quase insano. Os caninos afiados reluziam na luz quando ele sorria, a
máscara brilhando de forma travessa enquanto ele dançava ao nosso redor,
primeiro brincando com um espectador, e depois com outro. A voz e os
movimentos ficaram tanto mais sensuais quanto mais selvagens, até que ele
perdeu controle completo e deu um bote em mim. Eu cambaleei para trás,
mas não rápido o bastante — ele me agarrou pelos cabelos, dobrou meu
pescoço para trás contra o ombro dele, rosnando em meu ouvido.
ALEXANDER: “Ela é a velha que ensina
      A boas donzelas a prática
      Do parto e do que o antecede.
      Essa é ela…!”
Eu me debati contra o aperto, mas a força dele era de ferro, pesada, em
conflito com a delicadeza de uma ponta dos dedos que traçava o bordado
em meu peito. James, que estava observando, congelado e rígido, lutou
contra a paralisia e arrancou Alexander de mim.
— Basta já, Mercúcio, pare. — Ele segurou o rosto de Alexander entre
as mãos. — É bobagem o que fala.
Os olhos distraídos de Alexander se agarraram a James, e ele falou de
modo mais lento:
ALEXANDER: “Sim, falo de sonhos,
     Frutos da mente vazia
     E nascidos de fantasia,
     Feitos de nada além do ar,
     E mais instáveis do que o vento.”
Quando foi minha vez de falar novamente, eu o fiz com cuidado, me
perguntando se Alexander ainda era verdadeiramente confiável. Nossa
conversa de antes parecia próxima demais, recente demais para ser
ignorada, como um arranhão que começava a avermelhar na pele e coçar.
EU: “Esse vento nos deixa à deriva.
 Já se vai o jantar. Sem mais atraso.”
James virou o rosto para os céus, estreitando os olhos para a pirâmide de
vidro que parecia tão distante, procurando nos fragmentos de luz dos lustres
pelo brilho secreto e longínquo de uma estrela. Eu pensei na noite da festa,
quando eu e ele ficamos juntos no jardim, encarando os céus através da
abertura entrecortada entre a copa das árvores. Nosso último momento de
inocência e isolamento; aquela calmaria que precedia a ventania e os golpes
de uma tempestade.
JAMES: “É cedo demais. A intuição
    Me alerta um agouro a vir
    Deste evento que perseguimos.
    Sinto chegar o inevitável fim
    Desta vida aqui em meu peito
    Por alguma força prematura.”
Ele fez uma pausa, olhando para cima com uma surpresa suave, a tristeza
como pontos azuis nos olhos dele. Então, suspirou, sorrindo, e sacudiu a
cabeça.
JAMES: “Seja quem for no controle do meu ser,
    Oriente meu curso. Vamos, rapazes.”
Eu quase havia me esquecido de onde estávamos — até de quem éramos
—, mas a orquestra começou a tocar novamente, e a realidade veio em um
borrão. Outra valsa crescente preencheu o átrio e deu um sopro de vida ao
público, que havia ficado em silêncio durante a última cena. De repente, o
baile dos Capuletos estava acontecendo.
Alexander agarrou a garota mais próxima e a arrastou à força para uma
dança. Os outros atores apareceram das coxias improvisadas e fizeram a
mesma coisa, escolhendo parceiros aleatórios, incentivando os convidados a
se juntarem em pares. Logo, o salão virara um redemoinho de movimento,
surpreendentemente gracioso considerando a quantidade de casais.
Encontrei uma parceira ao meu cotovelo — indistinguível de todas as outras
garotas, exceto pelo fato de usar uma fita preta amarrada no pescoço — e
fiz uma mesura antes de começarmos a dançar. Enquanto rodopiávamos e
girávamos e trocávamos de lugares, minha atenção estava constantemente
em outro lugar. Filippa apareceu na minha visão periférica, com uma
máscara preta, prata e roxa — ela também estava vestida como um homem,
dançando com outra garota, e eu me perguntei se faria o papel de Páris. Eu
me virei e a perdi de vista mais uma vez. Procurei por James, por Meredith,
mas não consegui encontrar nenhum dos dois, qualquer que fosse.
A música persistiu (na minha opinião) por tempo demais. Quando
acabou, fiz outra mesura apressada e saí da sala, indo direto para as
escadarias do fundo do balcão. Estava silencioso ali e profundamente
escuro. Alguns casais haviam buscado aquele sigilo, e estavam sem as
máscaras, entrelaçados pelos lábios e pressionados nas paredes. A música
recomeçou, mais lenta. As luzes diminuíram e ficaram azuis, exceto por um
único círculo branco onde James estava parado, sozinho. Quando a luz o
atingiu, os dançarinos nos arredores se afastaram e recaíram em silêncio.
JAMES: “Quem é a donzela que enfeita
 A mão do cavalheiro?”
O público se virou lentamente para ver quem ele estava encarando. E ali,
tênue e efêmera como um fantasma, estava Wren. Uma máscara azul e
branca emoldurava seus olhos, mas, sem dúvida nenhuma, era ela. Meus
dedos se curvaram na balaustrada; eu me inclinei o máximo que conseguia
sem cair.
JAMES: “Era amor antes disso? Falso olhar,
 Pois nunca havia visto beleza maior.”
A música se elevou mais uma vez. Wren e o parceiro emprestado
lentamente se viraram no lugar e deram um adeus encenado. Os pés de
James o levaram para mais perto, os olhos fixos nela como se temesse que
ela fosse simplesmente desaparecer caso ele a perdesse de vista. Quando
estava perto o bastante, ele segurou a mão dela, e ela se virou para ver quem
a tocara.
JAMES: “Se ofendo com indigna mão
    O sagrado altar da sua
    Com beijo meus lábios a paz trarão
    de peregrinos sob essa lua.”
Ele abaixou a cabeça e beijou a mão dela. A respiração dela soprou nos
cabelos dele quando ela falou.
WREN: “Peregrino, sua mão rejeita em tanto
    se a minha toma em devoção na sua.
    Sua gente faz tal com as do santo.
    E palmas se beijam faça sol ou lua.”
Na metade do discurso dela, os dois começaram a se mover juntos, palma
contra palma, girando lentamente. Eles fizeram uma pausa, trocaram as
mãos, e deram passos coordenados em direção oposta.
JAMES: “Em igual, os santos lábios não têm?”
WREN: “Sim, peregrino, usados para a fé.”
JAMES: “Que lábios façam o que mãos fazem bem.
    Minha reza devassa desespero é.”
WREN: “Santos não se movem, mas atendem quem ora.”
JAMES: “Recolho meu milagre em sagrada hora.”
Eles ficaram imóveis. Os dedos de James roçaram a bochecha dela; ele
virou o rosto dela levemente para cima, na direção do dele, e a beijou tão
suavemente que ela talvez nem mesmo tenha sentido.
JAMES: “Meu pecado agora é seu, então.”
WREN: “E guardo em mim o que tomei.”
JAMES: “Em ti meu pecado? Doce tentação.
Devolva-o já.”
Ele a beijou mais uma vez, dessa vez de forma mais longa, duradoura.
Minha máscara estava quente e grudenta no meu rosto, meu estômago
revirado às avessas e dolorido como uma ferida aberta. Eu me apoiei
pesadamente na balaustrada, tremendo sob o peso das verdades paralelas
que eu, até aquele instante, conseguira ignorar: James estava apaixonado
por Wren, e eu estava com ciúme — um ciúme cego e violento.
ATO IV
PRÓLOGO

— É menor do que eu me lembrava — falo para Colborne quando estamos


parados no cais, olhando a água. — Naquela época, parecia se estender por
quilômetros.
Nós passamos pela floresta na margem sul do lago, conversando
baixinho. Colborne escuta com uma paciência inesgotável, pesando e
avaliando cada palavra. Eu me viro para ele, perguntando:
— É permitido aos alunos vir aqui hoje em dia?
— Não conseguimos impedir ninguém, mas, assim que percebem que é
só um cais, sem nada para ver, acabam perdendo o interesse. Temos mais
problemas com as pessoas que roubam coisas que costumavam ser de
vocês.
Esse pensamento nunca me ocorrera, e eu olho para Colborne com
curiosidade.
— Quais coisas?
Ele dá de ombros.
— Livros antigos, peças do figurino, a foto da turma de vocês no saguão
atrás do teatro. Nós conseguimos recuperar essa, mas não antes de alguém
riscar seu rosto com uma caneta.
Ele percebe a confusão na minha expressão e acrescenta:
— Não é tudo ruim. Ainda recebo algumas cartas tentando me convencer
de que você é inocente.
— É — respondo. — Essas eu também recebo.
— Você já se convenceu?
— Não. Eu conheço bem demais a história.
Eu ando pelo cais e Colborne me segue, sempre um passo atrás. Eu sei
que devo a ele um novo final para nossa velha história, mas, de uma forma
inesperada, acho difícil continuar. Até o Natal, nós conseguíamos fingir
que, de modo geral, estávamos bem — ou que algum dia ficaríamos.
Eu paro na beirada do cais, olhando para a água. Pode-se dizer que
envelheci bem. Meu cabelo ainda está escuro, meus olhos ainda azuis-
claros, meu corpo mais firme e mais forte do que era antes da prisão. Eu
agora preciso de óculos para ler, mas, além disso e de algumas novas
cicatrizes, não mudei muito. Eu me sinto muito mais velho do que meus
trinta e um anos.
Quantos anos tem Colborne agora? Eu não pergunto, mas poderia. Nossa
relação não é limitada por expectativas de cortesia. Paramos com os dedos
dos pés passando um pouco da beirada do cais, em silêncio. O cheiro verde
da água é tão familiar que sinto um leve puxão no fundo da garganta.
— Nós não vínhamos muito aqui quando estava frio — falo, sem precisar
que ele pergunte. — Entre o feriado de Ação de Graças e o Natal, passamos
a maior parte do tempo no Castelo, sentados perto da lareira, rabiscando
discursos e fazendo escansão. Era quase normal, exceto pela cadeira vazia.
Acho que nunca vi ninguém sentar nela depois que ele morreu. Ficamos
todos um pouco supersticiosos, imagino. Ler tantas peças cheias de bruxas e
fantasmas acaba deixando a gente assim.
Colborne assente de modo vago. Então, a expressão dele muda, o cenho
franzido.
— Você culpa Shakespeare por algumas das coisas que aconteceram?
A pergunta é tão improvável e tão sem sentido vinda de um homem
sensato como ele que eu não consigo reprimir um sorriso.
— Eu o culpo por tudo.
Ele imita o meu sorriso, apesar de o dele ser inseguro, incerto de onde
está o humor naquela resposta.
— Por quê?
— É difícil colocar em palavras.
Eu faço uma pausa, desperdiço um minuto tentando organizar os
pensamentos e prossigo sem ter organizado nada.
— Nós passamos quatro anos, e a maior parte de nós até vários anos
antes disso, inteiramente imersos em Shakespeare. Embrenhados. Aqui,
podíamos aproveitar essa obsessão coletiva. Nós falávamos de Shakespeare
como se fosse um idioma próprio, conversávamos em poesia, e acabamos
perdendo o contato com a realidade, ao menos um pouco.
Eu reconsidero aquilo.
— Bem, fui um meio impreciso — continuo. — Shakespeare é real, mas
os personagens dele vivem em um mundo de opostos extremos. Passam de
euforia a desespero, amor a ódio, fascinação a pavor. Porém, não é bem um
melodrama, nenhum deles está exagerando. Todos os momentos são
cruciais.
Lanço um olhar para ele, duvidando se a conversa faz algum sentido. Ele
ainda está exibindo aquele meio sorriso incerto, mas assente com a cabeça,
então eu continuo.
— Um bom ator shakespeariano… bem, qualquer bom ator, na verdade,
não só fala as palavras, mas também as sente. Nós sentimos todas as
paixões dos personagens que atuamos como se fossem nossas. Só que as
emoções de um personagem não anulam as emoções de um ator. Em vez
disso, sente-se as duas ao mesmo tempo. Imagine ter todos os seus próprios
pensamentos e sentimentos, emaranhados com os pensamentos e
sentimentos de uma pessoa completamente diferente. Às vezes fica difícil
distinguir qual é qual.
Eu desacelero e pauso, frustrado pela minha própria inabilidade de me
expressar (uma frustração exacerbada pelo fato de que, mesmo depois de
dez anos, eu ainda me considero um ator). Colborne me observa com os
olhos atentos e curiosos. Umedeço os lábios com a língua e prossigo com
mais cuidado.
— Nossa capacidade pura de sentir fica tão sobrecarregada que cedemos
sob o peso, como Atlas cede ao peso do mundo.
Eu suspiro, e a frescura do ar me distrai. Quanto tempo vai demorar para
eu me acostumar a sentir isso de novo? Meu peito dói, e talvez seja pela
pureza estranha do ar, mas talvez não.
— A questão de Shakespeare é que ele é eloquente… Ele fala as coisas
indizíveis. Ele transforma o luto e o triunfo, o êxtase e o ódio, em palavras,
em algo que conseguimos entender. Ele faz com que todo o mistério da
humanidade se torne compreensível.
Eu paro de falar, dando de ombros.
— É possível justificar qualquer coisa se fizer isso de forma poética o
suficiente — concluo.
Colborne abaixa o rosto, olhando para o reflexo branco do sol na água.
— Você acha que Richard concordaria?
— Acho que Richard estava enfeitiçado por Shakespeare tanto quanto o
resto de nós.
Colborne aceita isso sem protestar.
— Sabe, é estranho — diz ele. — De vez em quando, eu preciso me
lembrar de que na verdade nunca o conheci.
— Você ou o teria amado, ou odiado.
— Por que diz isso?
— É assim que ele era.
— E você? Você o amava, ou o odiava?
— Normalmente as duas coisas ao mesmo tempo.
— É disso que fala quando diz que sente todas as coisas em dobro?
— Ah — digo. — Então você de fato entende.
O silêncio que se segue é confortável, ao menos para mim. Esqueço o
motivo de estarmos ali por um instante, e observo uma folha se depreender
de uma árvore e rodopiar na brisa para repousar na água. Ondas circulares
tremulam na direção das margens do lago, mas desaparecem antes de
chegarem lá. Quase consigo ver nós sete, correndo pela margem através das
árvores, arrancando nossas roupas e disparando até a água, prontos para
mergulhar juntos. No terceiro ano, o ano da comédia. Leves, alegres e
distantes. Dias que nunca voltarão.
— Bom — diz Colborne, após ter esperado tempo demais para que eu
continuasse falando. — E depois?
— O Natal.
Eu desvio o olhar, na direção da floresta. O Castelo está mais próximo
agora, a Torre irrompendo entre as árvores, a sombra comprida recaindo na
cabine decrépita.
— Foi aí que tudo deu errado.
— Como começou? — pergunta ele.
— Já tinha começado.
— Então o que mudou?
— Nós nos separamos — digo. — James foi para a Califórnia, Meredith
foi para Nova York; Alexander, para a Filadélfia; Wren, para Londres,
Filippa… só Deus sabe onde. Eu voltei para Ohio. Ficar trancados juntos no
Castelo com nossa culpa e o fantasma de Richard era horrível, de certa
forma. Só que ficar separados, jogados cada um em um canto do mundo
para enfrentar aquilo sozinhos… foi pior.
— Então o que aconteceu?
— Nós rachamos — digo, mas a frase parece errada. Não foi simples ou
direto como um pedaço de vidro fraturado. — Mas só estilhaçamos depois
que nos reencontramos.
CENA 1

O Natal em Ohio foi um desastre.


Eu sobrevivi aos quatro dias que o precederam em um estado constante
de leve inebriação, conversando apenas quando necessário. A véspera de
Natal decorreu sem problemas, mas o jantar do Natal (a eletrizante
continuação do jantar de Ação de Graças que aconteceu um mês antes)
acabou em uma comoção quando Caroline deixou a mesa por tanto tempo
que levantou suspeitas, e meu pai a pegou no banheiro, dando descarga na
maior parte da comida que ingerira. Três horas depois, ela e meus pais
estavam aos gritos na sala de jantar. Eu fugi do cômodo e fui arrumar a
mala, abrindo-a no meio da minha cama por fazer. Amassei meia dúzia de
cachecóis, e o máximo de meias que consegui, jogando tudo na mala.
— Oliver! — Leah bloqueou a porta, soluçando, como fazia havia dez
minutos. — Você não pode ir embora agora!
— Eu preciso.
Estiquei o braço até a escrivaninha para pegar uma pilha de livros e os
despejei em cima dos cachecóis.
— Eu não aguento — insisti. — Preciso sair daqui.
A voz de meu pai rugia do andar debaixo, e Leah choramingou.
— Você também deveria ir embora — falei e a afastei, pegando meu
casaco do gancho atrás da porta. — Vá para a casa de uma amiga ou algo
assim.
— Oliver! — gemeu ela, e eu me virei, sem conseguir olhar para ela
quando o rosto estava todo contorcido como o de um recém-nascido,
molhado e brilhante por causa das lágrimas.
Atirei uma pilha de roupas — não sabia se estavam limpas ou sujas, e
não importava — na mala, e a fechei com força. O zíper deslizou com
facilidade porque eu só havia colocado na mala metade das coisas que
levara para casa. Lá embaixo, minha mãe e Caroline estavam berrando ao
mesmo tempo.
Vesti o casaco e puxei a mala da cama, quase esmagando o pé da minha
irmã quando a coloquei no chão.
— Vamos, Leah — eu disse. — Você precisa me deixar ir embora.
— Você vai me largar aqui assim?
Eu cerrei os dentes para afastar o arroubo de culpa subindo como bile do
fundo do estômago.
— Me desculpa — falei, e então passei por ela pela porta.
— Oliver! — gritou ela, pairando no topo da escada enquanto eu descia
correndo. — Para onde você vai?
Eu não respondi. Não sabia.
Arrastei a mala pela calçada coberta de neve fina, que parecia açúcar
cristalizado, e esperei por um táxi que chamara antes de arrumar a mala, me
perguntando o que diabos eu faria em seguida. O campus de Dellecher
ficava fechado no Natal. Eu não tinha dinheiro para um hotel em
Broadwater ou uma passagem de avião para a Califórnia. A Filadélfia não
ficava longe, mas ainda restava uma certa raiva de Alexander, e eu não
queria vê-lo. Filippa teria sido a melhor opção, mas eu não fazia ideia de
onde ela estava ou de como me comunicar com ela. Pedi que o táxi me
deixasse na rodoviária, onde liguei para Meredith de um orelhão,
explicando o que acontecera e perguntando se a oferta que ela fizera no
outro feriado ainda estava de pé.
Não tinha nenhum ônibus na noite de Natal, então precisei ficar
esperando seis horas sentado na frente da rodoviária, tremendo e duvidando
da decisão que tomara. Pela manhã, estava com tanto frio que não me
importava se era uma má ideia, e imediatamente comprei uma passagem
para o terminal rodoviário de Port Authority. Dormi quase o caminho todo,
meu rosto esmagado na janela engordurada. Quando chegamos, liguei
novamente para Meredith, e ela me deu um endereço no Upper East Side.
Os pais dela, o irmão mais velho e a cunhada estavam no Canadá de
novo. Mesmo com a minha presença, a dela e a de Caleb (o irmão do meio,
solteiro, protestando a todo custo entrar na casa dos trinta), o apartamento
parecia vazio e intocado, como o cenário de uma série de televisão. Os
móveis eram caros, estilosos e desconfortáveis, a decoração feita toda em
branco ofuscante e cinza pedregoso sem graça. Na sala, a estética da revista
Architectural Digest era maculada por indícios de ocupação: um exemplar
cheio de marcações de A fogueira das vaidades, garrafas de vinho pela
metade, um casaco Armani largado de qualquer jeito no braço do sofá. O
único indício de que uma data comemorativa tinha passado por lá era um
menorá com quatro velas semiderretidas, depositado torto na janela.
(— Somos péssimos judeus — explicou Meredith.)
O quarto dela era menor do que eu esperava, mas o pé-direito alto do teto
inclinado o impedia de parecer apertado. Comparado ao quarto dela no
Castelo, era ferozmente organizado, as roupas guardadas nos armários e
cômodas, os livros enfileirados em ordem de tema nas prateleiras. O que me
chamou a atenção foi a penteadeira. Estava atulhada de pincéis pretos e
tubos elegantes de batom e rímel, mas tantas fotos haviam sido grudadas na
moldura que o espelho em si era praticamente inutilizável. Apesar de um
dos retratos exibir ela e os irmãos (eram crianças admiráveis, todas de
cabelos ruivos e olhos verdes, sentadas em fileira como matrioskas russas
no para-choque de uma Mercedes preta), encaixada no canto superior, o
resto das fotos era de nós. Wren e Richard, os rostos pintados de preto e
branco na aula de mímica do segundo ano. Alexander na galeria, fingindo
compartilhar um cigarro com Homero. Meredith e Filippa, de shortinhos e
biquíni, esparramadas na água rasa da margem norte do lago, como se
tivessem acabado de cair do céu e aterrissado ali. James, sorrindo, mas não
para a câmera, uma mão erguida em timidez para afastar a lente, o outro
braço enganchado no meu pescoço. Eu, alheio ao fato de que estávamos
sendo fotografados, rindo para algum lugar distante, uma folha de outono
colorida presa ao cabelo.
Observei aquela colagem sentimental que ela criara até um nó se formar
na minha garganta. Quando olhei para trás, para o restante da
impessoalidade intacta do resto do quarto — o edredom alisado, o chão de
madeira sem nada —, me ocorreu enfim notar o quanto ela era solitária.
Incapaz (como sempre) de encontrar as palavras para expressar minha
própria compreensão tardia, eu não disse nada.
Por três dias, Meredith e eu ficamos por ali — lendo, conversando, sem
nos tocar — enquanto Caleb entrava e saía, indiferente à minha presença,
raramente sóbrio, e sempre no telefone com alguém. Como a irmã, ele era
tão bonito que chegava a ser injusto, os atributos semelhantes
estranhamente delicados e femininos nele, mas não de uma forma
desagradável. Ele tinha um sorriso rápido, mas os olhos distantes, como se a
mente estivesse perpetuamente ocupada com algum negócio importante em
outro lugar. Ele prometera, apesar de fazer pouca diferença para nós, uma
festa de Ano-Novo extravagante. Caleb, apesar dos defeitos, era um homem
de palavra.
Às nove e meia na noite de trinta e um de dezembro, o apartamento
estava lotado de pessoas com roupas de festa glamurosas. Eu não conhecia
nenhuma delas; Meredith, apenas um punhado; Caleb, um quarto, no
máximo. Lá pelas onze, todo mundo estava bêbado, incluindo eu e
Meredith, mas, quando as pessoas começaram a cheirar carreiras de cocaína
no balcão da cozinha, nós saímos de lá, sem ser notados, com duas garrafas
de champanhe Laurent-Perrier.
A Times Square, como o apartamento, estava abarrotada de pessoas, e
Meredith se pendurou no meu braço para não ser levada pela multidão na
calçada. Nós rimos, tropeçamos e bebemos champanhe rosa direto do
gargalo até que as garrafas foram confiscadas por um policial exasperado. A
neve caía como confete sobre nossas cabeças e ombros, e grudava nos cílios
de Meredith. Ela reluzia sob a luz noturna como uma pedra preciosa —
vívida e sem defeitos. Eu disse isso a ela, bêbado, e à meia-noite nós nos
beijamos em uma esquina de Manhattan, um entre um milhão de casais se
beijando ao mesmo tempo.
Perambulamos pela cidade até o efeito da champanhe passar e o frio
começar a incomodar, e então, aos tropeços, voltamos para o apartamento.
Tudo lá estava escuro e silencioso, os convidados espalhados nos móveis da
sala de estar, dormindo, ou chapados demais para se mexerem. Andamos pé
ante pé até o quarto dela, descartamos nossas camadas de roupas
encharcadas e nos aconchegamos debaixo dos cobertores. A busca por calor
lentamente, mas de forma previsível, se transformou em mais beijos, então
despimos as roupas de forma gradual, em toques cautelosos, e por fim,
inevitavelmente, os gestos levaram ao sexo. Depois, eu esperei a culpa, a
compulsão de implorar perdão ao fantasma de Richard. Porém, pela
primeira vez, quando eu mais esperava abrir os olhos e encontrá-lo ali
parado em cima de mim, ele se recusou a aparecer. Em vez disso, a silhueta
que vi na parede pertencia, inexplicavelmente, a James — que não tinha
motivos para estar naquele quarto, nos meus pensamentos, naquele
momento. A raiva tomou conta de mim, mas, antes que subisse à minha
cabeça, Meredith se mexeu, aconchegando-se mais, e interrompeu a ilusão.
Eu suspirei, aliviado por pensar que ela me acordara de algum sonho
perturbado. Deixei que meus dedos a acariciassem da ponta do ombro até a
curva suave da cintura, reconfortado pela maciez feminina dela. A cabeça
dela descansava no meu peito, e eu me perguntei se ela sentia a imobilidade
frágil da minha alma perturbada e inquieta.
Os três dias seguintes se passaram da mesma forma. À noite, bebíamos
só um pouco demais, tolerávamos Caleb o máximo de tempo que
conseguíamos, e então caíamos juntos na cama. De dia, passeávamos por
Nova York, desperdiçávamos o tempo e o dinheiro dos Dardenne em
livrarias, teatros e cafés, conversando sobre a vida depois de Dellecher,
percebendo que aconteceria só dali a alguns meses. Tínhamos tantas outras
coisas para pensar.
— Vão chamar olheiros para as peças da primavera — disse Meredith
certa tarde enquanto nos afastávamos da livraria Strand, de mãos vazias
apenas porque já passáramos por lá antes. — E depois temos as
apresentações em maio. Eu nem pensei ainda no que vou ler.
Ela me deu uma cotovelada.
— Devíamos fazer uma cena juntos — falou. — Podemos ser…
Margaret e o Duque de Suffolk. — Ela jogou a cabeça para trás, e disse,
aérea: — Você carregaria meu coração como uma joia em uma caixinha?
— Não sei. Você carregaria minha cabeça por aí em uma cesta se eu
fosse decapitado por piratas?
Ela me olhou como se eu fosse maluco, e então — para o meu alívio e
alegria — ela riu, o som bravio e adorável, como o de um botão de lírio-
tigre se abrindo. Quando a alegria se anuviou, ela olhou em volta para as
pessoas na calçada, seguindo em um fluxo constante na direção da Union
Square.
— Como vai ser estranho — disse ela, de forma mais sóbria — todos nós
aqui nessa cidade.
— Vai ser divertido — falei para ela, me perguntando se nós todos
ficaríamos no apartamento dela na semana das apresentações, dormindo no
chão como se fosse uma festa do pijama. — Que nem um test-drive. Ano
que vem, nessa mesma época, provavelmente vamos estar todos morando
por aqui.
— Você acha?
— Bom, vamos precisar ir para algum lugar onde existe Shakespeare.
Você vai ficar no apartamento?
— Meu Deus, não. Eu preciso sair de lá.
— Então acho que vai ter que se mudar para alguma espelunca no
Queens com o restante de nós.
Eu me inclinei até que nossos ombros se esbarraram, e ela me ofereceu
um sorriso tímido.
— Vamos ficar morando uns em cima dos outros de novo, igual a no
Castelo?
— Não vejo por que não.
O sorriso desapareceu e ela sacudiu a cabeça.
— Não vai ser a mesma coisa.
Eu passei um braço pelo pescoço dela, puxando-a para perto, e depositei
um beijo em sua têmpora. Senti Meredith suspirar e, quando ela expirou a
tristeza, eu a inspirei. Não, não seria a mesma coisa. Eu não poderia
argumentar contra isso.
No domingo à noite, voamos de volta para O’Hare, de primeira classe —
presente de Caleb. Fomo os primeiros a chegar no Castelo, já que as aulas
só voltariam na quarta-feira. (Fiquei grato por isso. Seja lá o que Meredith e
eu estivéssemos fazendo — nós não havíamos conversado sobre isso desde
o infeliz “encontro” no Habeas Copos —, eu não estava pronto para discutir
os aspectos daquilo com mais ninguém.) Arranquei a etiqueta que dizia
LaGuardia da mala e a deixei no pé da cama. Por um momento eu parei,
encarando o canto do quarto que era de James. Com as crises histriônicas da
minha família e a enorme distração que era Meredith, eu tinha conseguido
afastá-lo, durante uma ou duas semanas, dos meus pensamentos. Eu disse a
mim mesmo que o arroubo ciumento que tomara conta do meu ser durante o
baile de máscaras natalino fora um mero momento de insanidade, um efeito
colateral da magia manipuladora do teatro. Porém, parado lá na Torre com a
sombra dele no quarto, senti que o sentimento se esgueirava de volta.
Em passos instáveis, desci as escadas e passei mais uma noite com
Meredith — a única cura na qual eu conseguia pensar.
CENA 2

As audições do segundo semestre foram anunciadas no quadro de avisos, na


quarta-feira de manhã.

Todos os alunos do quarto ano, segundo ano e do terceiro ano que foram
convidados, por favor, preparem um monólogo de dois minutos para

REI LEAR

O cronograma de audições e ensaios estava postado abaixo. Alexander


faria a audição primeiro, sem ninguém para observar. Então, ele assistiria à
de Wren, ela assistiria à minha, eu assistiria à de Filippa, que assistiria à de
James, que por fim assistiria à de Meredith.
Passamos a semana seguinte atrapalhados, preparando novas peças para a
audição, universalmente surpreendidos pela escolha de produção. Em
cinquenta anos, nunca tinham tentado fazer Rei Lear em Dellecher,
provavelmente porque (como Alexander fizera questão de observar) ter um
jovem aluno de vinte e poucos anos no papel principal seria inteiramente
absurdo. Não conseguíamos imaginar como Frederick e Gwendolyn
planejavam abordar esse problema.
Às oito da noite no dia das audições, fiquei sentado sozinho na nossa
mesa de sempre no Habeas Copos, recebendo olhares desgostosos de
grupos maiores que estavam esperando por uma mesa. Meredith acabara de
ir embora para se preparar para a própria audição, e imaginei que Filippa
chegaria em breve. Eu assistira à audição dela — uma excelente versão de
Tamora — e estava ávido para discutir o elenco com outra pessoa que já
tinha feito a própria leitura. (Eu não encontrara Alexander nem Wren.)
Terminei minha cerveja, mas não saí da mesa, certo de que seria roubada se
me levantasse para ir ao bar.
Felizmente, Filippa chegou depois de cerca de cinco minutos. O cabelo
dela estava embaraçado pelo vento, as bochechas brilhando em um tom
rosado com as lufadas de frio que sopravam neve pelas ruas. Quando ela se
sentou, eu perguntei:
— Quer uma bebida?
— Nossa, quero, sim. Alguma coisa quente.
Eu saí da mesa enquanto ela se desfazia das camadas externas —
cachecol, gorro, luvas, casaco — e as empilhava no canto da cabine. Voltei
do bar com duas canecas de cidra quente, e Filippa ergueu a dela em um
brinde silencioso antes de tomar um bom gole.
— Acho mesmo que o inferno congelou — eu disse, afastando flocos de
neve que caíram do gorro e do cachecol do banco ao meu lado.
— Vou acreditar nisso quando vir o anúncio do elenco. — Ela limpou
uma gota de cidra grudenta dos lábios. — O que você acha que eles vão
fazer?
— Se eu precisasse adivinhar? Não tenho ideia de quem vai ser Lear, mas
obviamente Wren vai ser Cordélia. Você e Meredith serão Regan e Goneril.
Eu provavelmente vou acabar como Duque de Albany, James vai ser Edgar,
Alexander vai ser Edmund.
— Eu não ficaria tão certo assim dessa última parte.
— Por que não?
Ela se remexeu no assento, olhando para a mesa mais próxima, onde um
trio de bailarinas bebia vinho branco de taças compridas. Quando ela se
inclinou pela mesa, abaixando a cabeça, por instinto imitei o movimento.
Estávamos tão próximos que uma mecha do cabelo dela fez cócegas na
minha testa.
— Então, acabei de assistir à audição de James — disse ela.
— O que ele leu? — perguntei. — Ele não quis me contar.
— Richard Plantageneta, Henrique VI, Parte 2. Talvez a coroa eu farei
ceder / quem a nação inglesa faz sofrer.
— Sério? Esse discurso é tão… sei lá, agressivo. Não parece muito o
estilo dele.
— Pois é. Assim que ele chegou na parte de Virá o dia de York ter o que
lhe pertence, era como se, do nada, fosse uma pessoa diferente. — Ela
sacudiu a cabeça em gestos lentos. — Você deveria ter visto, Oliver. Na
verdade, ele me assustou.
Eu fiquei mudo por um momento e depois dei de ombros.
— Bom para ele.
Ela me lançou um olhar cético tão profundo que quase comecei a rir.
— Pip, estou falando sério — respondi. — É bom mesmo para ele. Ele
disse no começo do ano que estava cansado de fazer o mesmo papel sempre
e que sempre teve essa amplitude, mas nunca teve chance de mostrar,
porque todos os papéis desse tipo ficavam com Richard. Por que se dar ao
trabalho? Agora ele tem a oportunidade de fazer uma coisa nova.
Ela suspirou.
— Você provavelmente está certo. Só Deus sabe como eu gostaria de ter
a chance de fazer alguma coisa nova.
— Talvez mudem alguma coisa dessa vez. É uma dinâmica diferente.
Eu apontei vagamente com a cabeça para a cabeceira da mesa, onde, seis
semanas antes, Richard poderia estar sentado. Ele havia se tornado um
ponto cego perpétuo na minha visão periférica, e eu suspeitava de que na
dos outros também.
— Bom, você não está errado — disse Filippa, desviando o rosto na
direção da porta, não olhando nada em particular. — De qualquer forma,
ficaria surpresa se não escolherem James para ser Edmund.
Eu não dei muito ouvido àquela profecia (tolice de minha parte). Nossa
conversa mudou de rumo, e duas horas se passaram sem incidentes até que
Meredith entrou, trazendo um redemoinho de neve consigo.
— A lista foi divulgada, e vocês nunca vão acreditar — disse ela,
jogando o papel na mesa.
Eu não tive tempo de perguntar onde estavam os outros.
Filippa e eu quase batemos as cabeças tentando ver a lista ao mesmo
tempo; ela engasgou e tossiu cidra, esparramando tudo pela cabine.
— Frederick vai fazer o papel de Lear?
— Camilo vai ser Albany? — perguntei. — Mas que diabos?
— Não é só isso — disse Meredith, se atrapalhando para desenrolar o
cachecol. — Leiam tudo, é completamente insano.
Nós abaixamo a cabeça novamente, com mais cautela. Frederick e
Camilo estavam listados em primeiro lugar, seguidos dos alunos do quarto
ano, então os do terceiro, e por fim os do segundo.
O elenco de Rei Lear como escolhido a seguir:

REI LEAR — Frederick Teasdale


ALBANY — Camilo Varela
CORDÉLIA — Wren Stirling
REGAN — Filippa Kosta
GONERIL — Meredith Dardenne
EDMUND — James Farrow
EDGAR — Oliver Marks
O BOBO — Alexander Vass
DUQUE DE CORNWALL — Colin Hyland

Parei de ler depois do nome de Colin, e encarei Meredith boquiaberto.


— Meu Deus, o que eles estão fazendo?
— Porra, sei lá — disse ela, ainda atrapalhada com o cachecol, que
estava emaranhado no cabelo.
Por instinto, ergui a mão para ajudá-la, mas meu pulso bateu na parte de
baixo da mesa, e eu achei melhor não.
— É como se eles tivessem resolvido misturar todos os garotos, e depois
decidiram que mudar as garotas também seria esforço demais —
acrescentou.
FILIPPA: “Alexander vai ficar eufórico.”
EU: “De minha parte, eu estou eufórico.”
MEREDITH: “Sério, Oliver, você age como se estivessem te fazendo um
favor. Não é como se você não merecesse.”
O rosto dela desapareceu quando ela desistiu de desenrolar o cachecol e
simplesmente o arrancou por cima da cabeça. Filippa olhou para mim e
ergueu as sobrancelhas. Eu poderia ter culpado a cidra por aquela sensação
calorosa e derretida no estômago, mas minha caneca estava vazia havia
muito.
Meredith reapareceu e jogou o cachecol ofensivo em cima das coisas de
Filippa.
— Só tem vocês dois aqui? — disse ela.
— Por um tempo, só tinha eu — falei. — Cadê todo mundo?
— Wren voltou para o Castelo depois da audição e foi direto para a cama
— disse Meredith. — Acho que ela não quer arriscar ter outro “episódio”.
Foi assim que começamos a chamar o desmaio de Wren durante o
discurso de Lady Anne. Ninguém parecia saber dizer ao certo o que tinha
de errado com ela. “Exaustão emocional” era o que o médico de
Broadwater descrevera, mas o diagnóstico de “complexo de culpa” que
Alexander havia dado parecia a causa mais provável.
— E James? — perguntou Filippa.
— Ele ficou vendo minha audição, mas estava com um humor daqueles o
tempo todo — disse Meredith. — Sabe? Birrento.
(Esse comentário foi direcionado a mim, apesar de eu, na verdade,
desconhecer qualquer coisa do tipo.)
— Eu perguntei se ele vinha para o bar, e ele disse que não — continuou
—, que iria sair para caminhar.
Filippa ergueu as sobrancelhas ainda mais, tão alto que praticamente
desapareceram sob o couro cabeludo.
— Nesse clima?
— Foi isso que eu perguntei. E ele respondeu que queria espairecer e que
não se importava com a lista do elenco, que estaria tudo igual de manhã.
Olhei para Meredith, então para Filippa, e disse lentamente:
— Ok. E Alexander?
FILIPPA: “Provavelmente com Colin.”
EU: “Mas… como é que você sabe?”
MEREDITH: “Não é como se fosse um segredo.”
EU: “Ele me disse que era!”
FILIPPA: “Pelo amor de Deus. A única pessoa que acha que é um segredo
é o Colin.”
Sacudi a cabeça, passando o olhar pelo bar lotado.
EU: “Por que a gente se dá ao trabalho de fingir que há qualquer
privacidade nesse lugar?”
MEREDITH: “Bem-vindo à faculdade de artes. É como Gwendolyn sempre
diz: ‘Quando você entra no teatro, precisa abandonar três coisas na porta: a
dignidade, a modéstia e o espaço pessoal.’”
FILIPPA: “Achei que era dignidade, modéstia e orgulho pessoal.”
EU: “Ela me disse dignidade, modéstia e dúvidas pessoais.”
Nós três nos encaramos em silêncio por um momento antes de Filippa
dizer:
— Bom, isso explica muita coisa.
— Você supõe que ela tem três coisas diferentes para cada aluno com
quem conversa? — perguntei.
— Provavelmente — disse Meredith. — Só fico surpresa por ela achar
que espaço pessoal era meu maior problema.
— Talvez ela quisesse te preparar para ficarem te encarando, apalpando e
praticamente assediando sexualmente em cada uma das peças que fazemos
— disse Filippa.
— Ha, ha, eu sou um objeto, que engraçado. — Meredith revirou os
olhos. — Juro, eu devia ter virado stripper.
Filippa abriu um sorrisinho debochado com a boca já na caneca.
— Todo mundo precisa de um plano B.
— É — disse Meredith. — Você sempre pode resolver fazer uma
cirurgia, virar um garoto de vez e começar a se chamar “Philip”.
As duas se fuzilaram com o olhar e, em uma tentativa de acalmar os
ânimos, eu disse:
— Acho que minha outra opção é ter uma crise existencial.
— Não é assim tão ruim — disse Filippa. — É só você interpretar
Hamlet.
Bebemos mais seis canecas de cidra entre nós três, esperando em vão
para que um dos outros aparecesse. Nunca antes houvera tão pouco
interesse em uma nova lista de elenco. Mesmo enquanto bebíamos e
conversávamos e ríamos sem muito ânimo, era impossível ignorar o fato de
que nossas prioridades haviam mudado. Wren parecia frágil demais para
fazer a caminhada de sempre do EBA ao bar. James estava distraído demais.
Alexander já estava ocupado. Os caprichos das forças que governavam o
corpo docente de Dellecher eram igualmente intangíveis. Por quê, de forma
tão repentina, decidiram romper seu boicote de meio século a Lear, e
colocaram Frederick e Camilo com o restante de nós? Enquanto vestia o
casaco e as luvas no fim da noite, eu disse a mim mesmo que estavam
tentando simplesmente preencher o buraco que Richard deixara para trás.
Porém, outra voz irritante no fundo da minha mente continuava
perguntando se poderia haver outro motivo. Era possível que eles, assim
como Colborne, não confiassem em nós? Talvez Frederick e Camilo fossem
mais do que colegas de elenco e professores. Talvez tivessem começado,
finalmente, a perceber o perigo que estávamos correndo.
CENA 3

Conforme fizemos nossas primeiras incursões ao pântano trágico que era


Rei Lear, pouco foi esclarecido. O que ficou dolorosamente claro para mim,
no entanto, é que nós todos havíamos subestimado em muito a magnitude
da ausência de Richard. Ele era mais do que um quarto vazio, um assento
desocupado na biblioteca, uma cadeira na mesa do refeitório onde se
sentava como o fantasma de Banquo, invisível a todos os olhos exceto aos
nossos. Muitas vezes, eu pensei tê-lo visto pelo canto dos olhos, uma
sombra vaga, desaparecendo de vista nas esquinas. Durante a noite, era um
personagem recorrente em nossos sonhos — como meu parceiro de cena na
tarefa do meio do semestre ou companheiro silencioso no bar —,
distorcendo os mais mundanos entre os cenários em algo sombrio e sinistro.
Eu não era a única vítima de tais tormentos noturnos; James começara a
murmurar e se debater enquanto dormia e, nas noites em que dividia uma
cama com Meredith, às vezes eu acordava e a encontrava tremendo ao meu
lado. Duas vezes fomos acordados ao som de gritos e soluços vindos do
quarto de Wren. Ele era tão agressivo na morte quanto era em vida, um
gigante que deixara para trás não apenas um espaço vazio, mas um buraco
negro, um enorme vácuo faminto que engolia todos os nossos confortos,
mais cedo ou mais tarde.
Porém, enquanto passávamos cautelosamente pelo mês mais curto no
calendário, nosso conforto era na maior parte minha responsabilidade.
Limpar o Castelo tornara-se minha ocupação principal fora das aulas,
ensaios e lição de casa. Meu cronograma de trabalho era irregular,
determinado na maior parte por quando eu tinha tempo livre, e ninguém
mais estava no prédio. Aquelas oportunidades, que dependiam de
coincidências, eram poucas e espaçadas, e fui forçado a aproveitá-las
quando chegassem, sem dar importância ao meu próprio cansaço. O
segundo dia de fevereiro me encontrou de quatro no chão na biblioteca,
finalmente fazendo o que eu adiava havia semanas: limpando inteiramente a
lareira.
As poucas toras de madeira restantes descansavam na grade como uma
pilha de ossos enegrecidos. Eu as ergui delicadamente, por medo de se
esfacelarem e deixarem marcas de fuligem no carpete, e as depositei uma a
uma em um saco de papel do qual me havia apropriado para aquele único
propósito. Apesar do persistente frio de inverno, eu suava, gotas grossas e
salgadas caindo da testa na lareira. Quando as toras estavam todas a salvo
dentro da sacola, estiquei o braço para pegar a pá e a escova, e comecei a
empilhar as cinzas, que haviam se acumulado como uma montanha nos
fundos da chaminé. Enquanto eu espanava, murmurava as falas de Edgar
baixinho:
— Na mente está a maior dor do sozinho, / cujo riso abandona seu
caminho, / mas a mente mente o passado, / e, o que se sofreu, em
companhia é curado.
Sem conseguir me lembrar do que vinha a seguir, parei e me sentei nos
calcanhares. E depois? Não fazia ideia, então engatinhei mais para dentro
da lareira, recomeçando o discurso enquanto voltava a espanar. O monte
mais denso de cinzas desmoronou sob a escova, mas, quando o puxei para a
frente, algo deslizou sob as cerdas. Uma linha retorcida e comprida, como a
pele de uma cobra, aparecera no chão da lareira. Tecido.
Não era mais do que um fragmento, de cerca de doze centímetros de
comprimento e cinco de largura, curvado nas pontas. Uma ponta estava
mais pesada, com costura dupla — o colarinho de uma camisa, talvez, ou a
barra de uma manga. Abaixei a cabeça no tecido e soprei gentilmente, para
que algumas lufadas de cinzas se erguessem. Fora branco outrora, mas
estava muito queimado, e manchado de um vermelho muito escuro, como
vinho. Eu encarei o tecido por um momento, perplexo, e então fiquei
paralisado onde estava ajoelhado na lareira — tão tomado por horror que
não ouvi a porta se abrir no andar de baixo. Porém, conforme os passos na
escadaria se tornaram mais altos na subida, voltei à vida com um
sobressalto, tirei aquela coisa traiçoeira do chão e a enfiei no bolso. Peguei
a pá e a escova e dei um pulo para ficar em pé, segurando cada uma em
uma mão, como escudo e espada.
Ainda estava nessa postura rígida e ridícula quando Colborne apareceu
no batente. Os olhos dele mal se abriram, rapidamente se ajustando e indo
da surpresa pela minha presença ao reconhecimento.
— Oliver.
— Detetive Colborne — eu disse, minha língua pesada e atrapalhada.
Ele apontou para a sala.
— Posso entrar?
— Se quiser.
Ele deslizou as mãos para o bolso do jeans. O distintivo brilhava no
quadril, e o cabo de uma pistola fazia volume sob a barra do casaco do
outro lado. Depositei a escova e a pá na cadeira mais próxima, esperando
que ele falasse.
— Você não está normalmente ensaiando a essa hora do dia? —
perguntou ele, puxando as cortinas para ver através da janela, na direção do
lago.
— Não sou chamado para o combate até as cinco.
Vasculhei meus arquivos mentais em busca das rotinas de respiração de
Gwendolyn, esperando que me ajudassem a espairecer.
Ele assentiu, lançando um olhar confuso para mim.
— E o que você está fazendo, exatamente? Se não se importar de eu
perguntar.
— Limpando.
Eu contei até quatro para inspirar.
A boca dele estremeceu, como se houvesse um sorriso genuíno se
escondendo por detrás do superficial que demonstrara.
— Nunca pensei que os alunos de Dellecher fossem do tipo que
limpassem as próprias coisas.
— Normalmente, não. Eu estou em um programa de bolsa.
Contei até cinco para expirar.
Ele deu um risinho, como se não pudesse acreditar.
— Então fazem você limpar esse lugar?
— Entre outras coisas.
Meu batimento começou a desacelerar.
— Eu não me importo — acrescentei.
— Você é de Ohio, certo?
— O senhor tem uma boa memória. Ou tem um arquivo sobre mim em
algum lugar?
— Talvez as duas coisas.
— Eu devo ficar nervoso? — perguntei, mas já me sentia muito mais
tranquilo.
Colborne era um público mais atento do que eu estava acostumado, mas
ainda assim era um público.
— Bom, você saberia mais do que eu se houvesse a necessidade.
Nós nos encaramos. Ele ainda exibia aquele sorriso de duas camadas, e
ocorreu a mim que, em outras circunstâncias, eu teria gostado dele.
— Difícil não ficar nervoso quando a polícia fica entrando e saindo de
casa com tanta frequência — eu disse, sem pensar.
Ele não sabia que eu ouvira a conversa dele com Walton um mês antes.
Se notou meu deslize, ele não deixou transparecer.
— É justo. — Ele olhou outra vez pela janela, e então atravessou a sala e
se sentou no sofá à minha frente. — Vocês leem bastante ou isso é tudo só
para decoração?
Ele apontou para a estante mais próxima.
— Nós lemos.
— Lê alguma coisa além de Shakespeare?
— Claro. Shakespeare não existe em um vácuo.
— Como assim?
Eu não sabia se ele estava verdadeiramente interessado ou se era algum
tipo de artimanha.
— Bom, pense em César — eu disse, incerto de qual tipo de informação
incriminadora ele poderia esperar obter com aquela pergunta. —
Supostamente a peça fala da queda da República Romana, mas também fala
da política do começo da Inglaterra moderna. Na primeira cena, os cidadãos
e os tribunos conversam sobre o comércio e os feriados como se fosse
Londres em 1599, mesmo que supostamente seja 44 a.C. Existem alguns
anacronismos, como o relógio no segundo ato, mas, na maior parte,
funciona das duas formas.
— Que esperto — disse Colborne, depois de considerar aquilo por um
instante. — Sabe, eu me lembro de ler César na escola. Eles nunca
contaram nada disso para nós, só forçaram todos os alunos a ler até o final.
Eu devia ter uns quinze anos, e achei que estava sendo castigado por
alguma coisa.
— Qualquer coisa pode parecer um castigo se for ensinado de forma
precária.
— Verdade. Acho que estou só me perguntando o que faz um garoto
dessa idade decidir que vai dedicar a vida dele inteira a Shakespeare.
— Está me perguntando?
— Aham. Fiquei intrigado.
— Não sei — respondi. Era mais fácil continuar falando do que parar. —
Eu comecei cedo. A escola precisava de um garoto para participar de
Henrique V quando eu tinha uns onze anos, então minha professora de
inglês me levou para fazer uma audição. Suponho que achava que aquilo
me deixaria menos tímido, e de alguma forma acabei no palco com todos
esses garotos vestidos de armadura e carregando espadas que eram duas
vezes maiores que eu. E lá estava eu, gritando “Ainda que jovem, vi bem
tais três ladrões”, só torcendo para que as pessoas me ouvissem. Fiquei
aterrorizado até a noite de estreia, mas depois disso era tudo que eu queria
fazer. É meio viciante.
Ele ficou em silêncio por um instante, e então perguntou:
— Isso te faz feliz?
— Perdão?
— Isso te faz feliz?
Abri a boca para responder — sim parecia a única resposta possível —,
mas então a fechei de novo, incerto. Pigarreei e falei com mais cautela:
— Não vou fingir que é fácil. Estamos sempre trabalhando e não
dormimos muito, e é difícil ter amizades normais fora do nosso círculo, mas
só essa adrenalina de ficar no palco e falar as palavras de Shakespeare já faz
tudo valer a pena. É como se não estivéssemos vivos até esse momento, e
então tudo se ilumina e as coisas ruins desaparecem e não queremos estar
em nenhum outro lugar.
Ele ficou impossivelmente imóvel, os olhos cinza atentos, fixos em mim.
— Você descreve muito bem o que é um vício.
Tentei voltar atrás.
— Parece melodramático, mas é assim que nós somos. É assim que
sentimos tudo.
— Fascinante.
Colborne me observava, os dedos entrelaçados entre os joelhos, a pose
casual, mas cada músculo no corpo dele estava retesado pela expectativa. O
relógio que fazia tique-taque sobre a lareira parecia absurdamente alto,
pulsando diretamente contra meus tímpanos. O pedaço de tecido tirado das
cinzas pesava como chumbo no meu bolso.
— Então — continuei, ansioso para mudar de assunto, para desviar do
que eu tinha acabado de dizer. — O que traz o senhor até aqui?
Ele se inclinou para trás, mais relaxado.
— Às vezes eu fico curioso.
— Sobre o quê?
— Sobre Richard — disse ele, e foi perturbador ouvi-lo falar com tanta
facilidade o nome que nós evitávamos como uma maldição, algo mais
profano do que os juramentos e obscenidades que usávamos tão
generosamente. — Você não?
— Na maior parte, tento não pensar nisso.
O olhar de Colborne subiu dos pés para meu rosto, e de novo para os pés.
Um olhar avaliativo. Medindo a profundeza de minha honestidade.
— Não consigo não pensar no que aconteceu naquela noite — disse ele,
uma mão tamborilando distraída no braço do sofá. — Todo mundo parece
se lembrar dela de uma forma diferente.
Havia um desafio sutil e nauseante na voz dele. Responda, se ousar.
— Todo mundo teve experiências diferentes, acho.
Minha própria voz saiu fria e monótona, meus nervos amansados
novamente pelo fato de que ele me fornecera um papel no qual atuar e,
como diretor de elenco, ele não tinha mais imaginação do que Gwendolyn.
Eu era parte da visão periférica, um observador, uma testemunha reticente
que pode ser convencida.
— É como ver o noticiário — acrescentei. — Quando uma tragédia
acontece, todas as pessoas se lembram da mesma forma? Todos vimos
aquilo de ângulos diferentes, de pontos diferentes.
Ele assentiu lentamente, considerando a réplica.
— Suponho que não dê para argumentar contra isso.
Ele se colocou de pé. Quando estava ereto novamente, se inclinou nos
calcanhares, erguendo o olhar para o teto.
— Aqui está o ponto em que tenho dificuldade, Oliver — disse ele,
falando mais com o lustre do que comigo. — Matematicamente, não faz
nenhum sentido.
Eu esperei que ele elaborasse. Ele não elaborou, então eu disse:
— Eu nunca fui muito bom em matemática.
Ele franziu o cenho, mas vi um vislumbre de diversão na expressão dele.
— Surpreendente. Afinal, Shakespeare é poesia, na maior parte, pelo
menos, e há um certo padrão matemático na poesia, não há?
— Pode-se dizer que sim.
— Em qualquer equação matemática, uma série de fatores conhecidos e
desconhecidos são equivalentes à solução proposta.
— Isso é mais ou menos tudo o que eu me lembro de álgebra. Encontre o
x da questão.
— Precisamente — disse ele. — Bem, aqui temos uma equação com uma
solução conhecida, a morte de Richard. Vamos chamar isso de x. E, do
outro lado do sinal de igualdade, temos os seus testemunhos do evento, no
caso, dos alunos do quarto ano. A, b, c, d, e e f, digamos. E então tem todo o
resto. Vamos chamá-los de y. Nove semanas depois, temos todas as
variáveis no lugar, mas ainda assim não consigo encontrar o valor de x. Não
consigo equilibrar os dois lados da equação. — Ele sacudiu a cabeça, o
movimento comedido e deliberado. — Então o que isso significa?
Eu o encarei, e não respondi.
— Significa — continuou — que ao menos um de nossos fatores está
incorreto. Isso faz sentido para você?
— Até certo ponto. Mas acho que a premissa tem falhas.
— Como assim? — perguntou, irônico, quase uma provocação.
Dei de ombros.
— Não podemos quantificar a humanidade. Não pode ser medida, não da
forma que o senhor está propondo. As pessoas têm paixões, falhas e
imperfeições. Elas cometem erros. As memórias esvanecem. Os olhos
enganam. — Fiz uma pausa, por tempo o suficiente para ele acreditar que
eu não estava planejando dizer o que diria em seguida. — Ou às vezes elas
bebem demais e caem no lago.
Colborne piscou algumas vezes, e um tipo de confusão profunda emergiu
na expressão dele — como se não soubesse com certeza se havia me
avaliado de forma errada.
— É isso mesmo que você acredita que aconteceu?
— Sim — falei. — Claro que sim.
Nós estávamos dizendo aquilo havia semanas. Sim. Ele caiu. Claro que
caiu.
Colborne suspirou, a respiração pesada no ar tépido da biblioteca.
— Sabe, Oliver, eu gosto de você. Mesmo a contragosto.
Eu franzi o cenho, incerto de que ouvira de forma correta.
— Que coisa esquisita de dizer.
— Bom, a verdade é muitas vezes mais estranha que a ficção. A questão
é que eu gostaria de confiar em você, mas é muita coisa a se pedir, então,
em vez disso, vou só pedir um favor.
Eu percebi que ele estava esperando uma resposta, então disse:
— Tudo bem.
— Imagino que você vá conseguir dar uma boa olhada nesse lugar
quando limpar tudo — disse ele. — Se encontrar alguma coisa incomum…
bem, vamos dizer que eu não acharia ruim se você me deixasse informado.
Uma pausa se seguiu, como o intervalo entre as falas em uma peça.
— Vou manter isso em mente.
Os olhos de Colborne se demoraram em mim por mais um instante, e
então ele lentamente cruzou a sala de volta para as escadas, onde parou.
— Tome cuidado, Oliver — disse ele. — Como falei, eu gosto de você. E
me permita dizer isso de uma forma que você vai entender: Tem algo podre
aqui na Dinamarca.
Ele foi embora em seguida, um pequeno sorriso nos lábios, ao mesmo
tempo triste e cheio de deboche. Fiquei imóvel enquanto os passos dele
rangiam escada abaixo, e apenas quando ouvi a porta da frente fechar atrás
dele finalmente abri o punho cerrado no bolso. A faixa de tecido manchada
de sangue estava amassada e úmida de suor.
CENA 4

Eu deixei Colborne ter cinco minutos de vantagem porque não queria deixar
que me visse saindo do Castelo. Guardei os produtos de limpeza sob a pia
da cozinha, vesti o casaco e as luvas, e saí pela porta dos fundos. Corri até
chegar ao EBA sem parar nem um minuto, a geada triturada sob meus pés.
Quando finalmente cheguei, meus braços e pernas estavam dormentes, os
olhos lacrimejando por causa do ar frio de fevereiro.
Eu entrei por uma porta lateral e fiquei ouvindo atentamente. Os alunos
do terceiro ano estavam no auditório, passando pelo segundo ato de Os dois
cavalheiros de Verona aos trancos e barrancos. Torcendo para que não
trombasse com ninguém vadiando nos bastidores, eu corri apressado na
escada, uma mão deslizando pelo corrimão enquanto eu descia para o porão
dois degraus por vez.
Um labirinto extenso espreitava sob o Teatro Archibald Dellecher e todos
os corredores e antessalas afluentes. Normalmente, apenas a equipe técnica
se aventurava por esse ermo de teto baixo e mal iluminado, para desenterrar
velhas peças de cenário e móveis cujas existências foram determinadas
como irrelevantes e condenadas ao estoque eterno. Eu não planejava entrar
lá, nem sequer pensara naquilo até estar no caminho do EBA, de início
apenas desesperado para escapar do Castelo. Porém, enquanto me
esgueirava entre dois ou três corredores sombrios abarrotados de descartes
teatrais, percebi meu próprio brilhantismo acidental. Ninguém nunca
conseguia encontrar nada ali embaixo, mesmo se soubesse exatamente o
que estava procurando. Logo mais, tropecei em um canto emaranhado por
teias de aranha onde uma série de armários (provavelmente arrancados da
travessia lá pelos anos 80) estava inclinada pesadamente contra a parede.
Ferrugem vazava entre as aberturas como sangue seco e envolvia as portas
abertas e afiadas. Era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
Arrastei uma mesa escangalhada para abrir caminho, e então desbravei o
mar de lixo empilhado por ali. O primeiro armário tinha um cadeado
pendurado na porta, a tranca salpicada de ferrugem como um dente cheio de
cárie. Eu o retirei, apertando o puxador com força, e xinguei tão alto quanto
ousava quando a porta se abriu e colidiu com minha canela. O armário
estava vazio, com exceção de uma caneca lascada que exibia um brasão de
Dellecher desbotado, um aro preto de café grudado no fundo. Peguei do
bolso a faixa de tecido que havia encontrado na lareira. Eu a observei na luz
baixa, e aquela mancha vermelha agourenta me encarou de volta. Eu sequer
tinha certeza de que era sangue, mas minha própria paranoia me arrastou de
volta para o dia do velório de Richard, quando encontrara Filippa sozinha
perto da lareira. Eu afastei aquele pensamento, alarmado. Não havia
fechadura nas portas da biblioteca, então poderia ter sido qualquer um de
nós. O ar no porão era gélido. Qualquer um de nós poderia ter feito o quê?
Abruptamente, cheio de náusea e impaciente para me livrar daquela coisa,
eu me inclinei e enfiei o tecido dentro da caneca. Se mais alguém o
encontrasse lá, pensariam que era só um pano rasgado — manchado de
tinta, ou de alguma outra substância inócua. Poderia até ser mesmo. Eu
ralhei comigo mesmo por me deixar levar. Alexander estava certo sobre
uma coisa: se não conseguíssemos nos manter calmos, tudo aquilo
desmoronaria. Eu bati a porta, então hesitei. Não sabia a senha do cadeado.
Eu jamais queria voltar para buscar aquilo, mas só caso precisasse, deixei o
cadeado pendurado, ainda aberto.
Arrastei a mesa de volta na frente dos armários, esperando que ninguém
mais fosse se dar ao trabalho de movê-la, que ninguém nem saberia que eu
estivera ali. Dei um passo para trás e fiquei parado, encarando aquele
pequeno aro que era a fechadura, o minúsculo espaço entre a manilha e o
estojo. Como era descomunal a angústia de decisões não tomadas.
CENA 5

Eu me perdi ao sair do porão e cheguei atrasado para a aula de combate.


James, Camilo e três alunos do segundo ano já estavam lá.
— Desculpa — eu falei. — Desculpa, perdi a noção do tempo.
— Onde você estava? — perguntou James com uma expressão
estranhamente afrontosa.
Eu estava ansiando por fazer a mesma pergunta a ele, mas não na frente
de outras pessoas.
Camilo interveio:
— Vamos deixar as conversas para depois. Temos muito a repassar em
pouco tempo. Vocês dois ensaiaram no final de semana?
Olhei para James.
— Sim — disse ele, antes que eu pudesse responder.
Só repassáramos a coreografia duas vezes, porque ele tinha passado a
maior parte de sábado, e domingo o dia todo, fora do Castelo.
— Então vamos começar — disse Camilo. — Vamos pegar da parte do
desafio de Edgar?
O palco de Lear estava marcado no chão com fita-crepe azul. Era um
projeto curioso, o proscênio esticando-se em uma passarela que passava
pelo corredor central da plateia. Chamávamos aquilo de Ponte; a elevação
estava marcada em cento e vinte centímetros.
Tomei meu lugar no palco, o florete pendurado na lateral esquerda do
quadril. James e o resto dos alunos já estavam nos devidos lugares — ele,
no topo da Ponte, os soldados, no palco esquerdo, Camilo e o arauto, do
lado direito. Meredith também deveria estar lá, mas não fazia sentido
mandar chamá-la quando tudo o que fazia na cena era assistir.
EU: “Quem fala por Edmund, Conde de Gloucester?”
JAMES: “O próprio. O que tens a dizer?”
Eu o fuzilei com o olhar, os punhos apertados e o estômago embrulhado.
Não havia necessidade de impressionar ninguém com emoções durante um
ensaio de combate, mas eu já estava com os nervos à flor da pele.
EU: “Pegue a espada,
 E se for nobre o coração que ofendo,
 Que seu braço o vingue. Eis o meu.”
Desembainhei a espada, e James ergueu as sobrancelhas, parecendo
levemente entretido. Eu cruzei o palco até chegar ao alto da Ponte.
EU: “Apesar de tuas vitórias e fortunas,
 De teu valor e coração, és traidor
 Dos deuses, teu irmão e teu pai
 Conspirando contra este príncipe.
 Do fio mais alto da tua cabeça
 Até o pó sob teus pés,
 És um coaxante traidor.”
Em dado momento no meio do meu discurso, o divertimento irônico de
James esvaneceu e foi substituído por uma expressão feia e gélida. Quando
foi a vez dele de falar, eu o observei de perto, incerto se ele estava apenas
atuando, ou se tanto ele quanto eu estávamos entornando segredos entre
dentes.
JAMES: “O atraso que posso conceder
 Pela cavalaria, meu desprezo tem.
 A ti devolvo as ofensas!”
Seria melhor ele ter cuspido na minha cara.
JAMES: “Que tal mentira odiosa te mate,
 Por mais levemente que me fira,
 E que minha espada leve agora
 Aonde deves estar. Trompetes!”
Erguemos nossas armas, fazendo mesuras um ao outro sem quebrar
contato visual. Ele atacou primeiro; meu bloqueio foi desajeitado, e a
lâmina dele deslizou no comprimento da minha até o cabo com um sibilo
exaltado. Eu o afastei e recuperei o equilíbrio de forma deselegante. Outro
golpe, outro bloqueio. Eu contra-ataquei, acertando o ombro esquerdo. Os
floretes se chocavam, as pontas cegas colidindo com o chacoalhar e tilintar
de um tambor.
— Calma — disse Camilo. — Calma.
Nós dançamos em passos coordenados e rápidos no corredor estreito
entre as duas linhas compridas de fita. Era aquela a coreografia: eu o
derrotaria no fim da Ponte, onde ele cairia, uma mão no estômago, o sangue
desabrochando entre os dedos. (Ainda seríamos informados de como isso
aconteceria pelos figurinistas.) Nós lutávamos com os corpos paralelos, as
espadas relampejando entre nós. Ele cambaleou e perdeu o equilíbrio, mas,
quando ergui o braço para proferir o golpe fatal, os dedos dele se apertaram
com mais força no cabo da espada. O punho e a guarda-mão se chocaram
contra meu rosto, e estrelas brancas explodiram no meu campo de visão, a
dor me atingindo como um aríete. Camilo e um dos soldados gritaram ao
mesmo tempo. O florete deslizou entre meus dedos, e caiu ao meu lado
enquanto eu caía para trás, apoiado nos cotovelos, o sangue jorrando do
nariz como se alguém tivesse aberto uma torneira.
James soltou a espada e me encarou de olhos arregalados.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — berrou Camilo.
James deu um passo para trás, como um sonâmbulo, em transe.
Flexionou a mão na lateral do corpo, os nós dos dedos de um vermelho
brilhante. Tentei falar, mas minha boca estava cheia de ferro, o sangue
escorrendo pelo queixo, encharcando a camiseta. Os dois soldados me
ergueram, e minha cabeça pendeu para a frente, pesada, como se todos os
tendões no pescoço estivessem rompidos.
Camilo ainda estava gritando.
— É inaceitável! O que é que deu em você?
James olhou para ele, em vez de para mim.
— Eu… — começou.
— Saia daqui — disse Camilo. — Lido com você depois.
A boca de James se mexeu, mas sem palavras. Água repentinamente
encheu os olhos dele, e ele se virou e correu para fora da sala, deixando o
casaco, as luvas e todo o resto para trás.
— Oliver, você está bem? — perguntou Camilo, se agachando ao meu
lado e erguendo meu queixo. — Está com todos os dentes?
Eu fechei a boca, engoli sangue, e me esforcei para conter o impulso de
vomitar. Ele apontou primeiro para o mais alto dos soldados, e então para o
outro.
— Você, me ajude a levar ele até a enfermaria. Você, corra para encontrar
Frederick e diga a ele que eu preciso ver tanto ele quanto Gwendolyn
imediatamente. Mexam-se.
O mundo virou um borrão quando ele me ergueu, e eu vagamente torci
para perder consciência e nunca mais acordar.
CENA 6

Não me deixaram sair da enfermaria antes das onze da noite. Meu nariz
estava quebrado, mas não de uma forma terrível. Uma tala fora colada com
esparadrapos no dorso para mantê-lo reto e, sob ela, hematomas vermelhos
e roxos estavam se espalhando sob os olhos. Tanto Gwendolyn quanto
Frederick tinham ido me ver, perguntado o que tinha acontecido,
desculpado-se copiosamente, e então pedido que eu guardasse o ocorrido
para mim e dissesse que foi um acidente caso outros alunos perguntassem.
Eles disseram que não precisávamos de mais fofocas nem de mais
problemas. Quando finalmente consegui voltar ao Castelo, eu ainda não
decidira se estava de acordo com aquilo.
Subi as escadas imediatamente, mas não fui para a Torre. Parecia
improvável que James estivesse lá, mas eu não queria arriscar. Em vez
disso, dei uma batidinha leve na porta de Alexander. Ouvi o barulho de uma
gaveta se fechando e um momento depois ele apareceu, uma mão na
maçaneta.
— Caralho, Oliver — disse ele. — Pip me contou o que aconteceu, mas
não achei que estaria ruim assim.
Os olhos dele estavam avermelhados, a boca seca e rachada. Ele não
estava assim tão melhor do que eu.
— Não quero falar disso.
— Justo. — Ele fungou, limpando o nariz na manga. — Posso ajudar?
— Minha cabeça está doendo pra cacete e eu prefiro não sentir nada que
está acima do meu pescoço.
Ele abriu a porta para me deixar passar.
— O médico é por aqui.
Eu não frequentava muito o quarto de Alexander, e sempre era
surpreendido pela escuridão. Em algum dia nas semanas anteriores, ele
colocara uma tapeçaria para cobrir a janela. A cama estava enterrada sob
uma pilha de livros, que ele juntou nos braços e jogou na escrivaninha
atulhada. Seda amassada, fósforos quebrados e roupas sujas estavam
esparramados pelo chão. Ele gesticulou para a cama, e eu me deixei cair no
colchão, grato, minha cabeça latejando com força entre as têmporas.
— Posso perguntar o que aconteceu? — disse ele, enquanto vasculhava a
primeira gaveta da escrivaninha. — Não vou fazer você falar sobre isso. Só
quero saber se, da próxima vez que eu vir James, preciso empurrar ele pra
dentro do lago.
Incerto quanto àquele comentário ser simplesmente o senso de humor
mórbido de Alexander ou uma ameaça mais deliberada, eu me remexi na
cama, atribuí aquilo à paranoia que subsistia e decidi ignorar.
— Você tem visto ele ultimamente? — perguntei. — Sinto que ele nunca
está por aqui.
— Ele entra e sai. Você saberia mais do que eu.
— Ele geralmente chega depois que já fui dormir e, quando me levanto,
já saiu.
Alexander sacudiu um pouquinho de maconha de dentro de um tubinho
de filme fotográfico, e o amassou em uma seda.
— Se quer saber, acho que ele está entrando um pouco demais no papel.
Seguindo o Método, sabe? Não sabe mais onde ele acaba e onde Edmund
começa.
— Isso não pode ser boa coisa.
Ele olhou para mim e para meu nariz arrebentado.
— Claramente — falou.
Ele fez uma careta, como se tivesse acabado de morder a língua.
— Te deram uns analgésicos para isso? — perguntou.
Tirei um frasco de pequenos comprimidos brancos do bolso.
— Lindo — disse ele. — Me vê dois desses.
Eu os entreguei. Ele amassou os comprimidos com o tubinho e polvilhou
o pó na maconha na seda. Então, ele abriu a gaveta de novo e pegou um
frasco misterioso. Ele tirou a tampa e despejou um pouco na mão. Outro pó
branco, ainda mais fino, que acrescentou ao baseado sem me dizer o que
era. Eu não perguntei.
— O que aconteceu, afinal? — perguntou ele, começando a enrolar. —
Vocês estavam fazendo a cinco-três, e ele te deu um murro do nada?
— Basicamente.
— Puta que pariu. Por quê?
— Acredite em mim, eu adoraria saber.
Ele lambeu a parte que sobrava do papel e a grudou com a ponta de um
dedo. Torceu a ponta em um redemoinho minúsculo e me entregou o
baseado.
— Pronto — disse ele. — Fume esse aí de uma vez e você não vai sentir
nada por uma semana inteira.
— Maravilha.
Eu me pus de pé, me agarrando ao encosto da cadeira. Minha cabeça
estava latejando.
— Está tudo bem?
— Vai ficar em alguns minutos.
Ele não pareceu convencido.
— Tem certeza?
— Aham — falei. — Vou ficar bem.
Eu tateei até a porta como se estivesse cego, as mãos indo de um pedaço
de mobília ao outro até chegarem a parede.
— Oliver — disse ele, enquanto eu abria a porta para ir embora.
— Que foi?
Ele me jogou um isqueiro quando me virei, e então apontou para o
próprio nariz, oferecendo um sorriso triste. Estiquei a mão para o rosto.
Havia uma mancha fresca de sangue no meu lábio superior.
Por via de regra, não fumávamos dentro do Castelo. Eu saí pela porta
lateral e fiquei na frente do prédio com o baseado, o beque, seja lá o que
fosse, espremido bem entre os lábios. Inalei como Alexander me ensinara
dois anos antes, tragando o ar profundamente até os pulmões. Estava frio,
mesmo para fevereiro, e minha respiração e a fumaça saíram da boca unidas
em uma única espiral comprida. O meu nariz parecia congestionado por
sinusite, pesado e espesso, como se estivesse entupido de argila. Eu me
perguntei quando os hematomas sumiriam e se meu nariz já teria voltado ao
normal dali a três semanas.
Me recostei na parede e tentei não pensar em mais nada, certo de que iria
à loucura se o fizesse. A floresta estava ao mesmo tempo silenciosa e
repleta de ruídos pequenos — o piar distante de uma coruja, o farfalhar seco
das folhas, uma brisa se esgueirando entre a copa das árvores. De alguma
forma, e muito lentamente, o meu cérebro se desconectou do restante de
mim. Ainda sentia dor, ainda estava me contorcendo sob o aperto da
indecisão, mas havia algo entre mim, meus pensamentos, meus sentimentos
e tudo o mais — uma névoa fina, um pano de fundo iluminado, silhuetas de
marionetes se movendo tênues do outro lado. Se foi o frio ou o baseado de
Alexander eu não soube dizer, mas, pouco a pouco, fiquei entorpecido.
A porta se abriu, e então se fechou. Olhei sem nenhuma expectativa ou
curiosidade. Era Meredith. Ela hesitou, parada na varanda por um instante,
e então desceu as escadas. Não me mexi. Ela tirou o baseado da minha
boca, jogou-o no chão, e me beijou antes que eu pudesse falar. Uma
palpitação entorpecida de dor subiu pelo nariz até meu cérebro. A mão dela
estava quente na lateral do meu rosto, a boca era magnética. Ela pegou a
minha mão, como fizera tantas semanas antes, e me levou de volta para
dentro.
CENA 7

Dormi a maior parte do dia seguinte, recobrando a consciência por apenas


um instante ou dois quando Meredith deslizou para fora da cama, afastou
meus cabelos da testa e foi para a aula. Tentei murmurar algo em resposta,
mas as palavras não tomaram forma. O sono se aninhou em mim como um
gato afetuoso e ronronante, e eu não acordei por outras oito horas. Quando
abri os olhos, Filippa estava sentada de pernas cruzadas na cama ao meu
lado.
Olhei para ela, fatigado, vasculhando a memória enevoada da noite
anterior, sem ter certeza de que eu estava vestido sob o cobertor. Ela me
empurrou para baixo quando tentei me sentar.
— Como você está se sentindo? — perguntou ela.
— Qual é a minha aparência?
— Sinceramente? Horrível.
— Coincidência? Não. Que horas são?
As janelas já estavam escuras.
— Quinze para as nove — respondeu, a testa franzida. — Você dormiu o
dia todo?
Eu grunhi, me remexendo, relutante em erguer a cabeça.
— Praticamente. Como foi a aula?
— Bem quieta.
— Por quê?
— Bom, sem vocês, só estávamos em quatro.
— Quem mais faltou?
— Quem você acha?
Eu virei a cabeça para o outro lado no travesseiro, encarando a parede. O
movimento produziu um baque doloroso na cavidade do nariz que me
distraiu, mas apenas por um instante.
— Suponho que você esteja esperando que eu pergunte onde ele está —
falei.
Ela puxou um fio na costura do edredom, onde estava dobrada sobre meu
peito.
— Ninguém o viu desde ontem. Depois do ensaio de combate, ele
simplesmente desapareceu.
Eu grunhi.
— Tem um “mas” aí — falei. — Dá para ouvir na frase.
Ela suspirou, os ombros se erguendo de leve, e afundando muito mais.
— Mas ele já voltou. Está lá em cima, na Torre.
— Nesse caso, vou ficar aqui até Meredith me chutar para fora.
A boca dela se tornou uma linha fina rosada. Por trás dos óculos — não
sei por que ela os estava usando, já que não estava lendo nada —, os olhos
eram de um azul oceânico sonolento; pacientes mas cansados.
— Vamos, Oliver — disse ela baixinho. — Não vai doer subir até lá e
falar com ele.
Eu gesticulei para meu rosto.
— Aparentemente, dói, sim.
— Olha, estamos todos bravos com ele também. Acho que Meredith
deixou uma marca de queimadura onde estava em pé, de tanto que
fumegava quando ele voltou. Nem Wren quis falar com ele.
— Ótimo — respondi.
— Oliver.
— Que foi?
Ela apoiou a bochecha na mão e abriu um sorriso inexplicável e relutante.
— Que foi? — repeti, dessa vez mais desconfiado.
— Você — falou ela. — Sabe, eu nem estaria aqui se fosse qualquer
outra pessoa.
— Como assim?
— Você tem mais motivos que o resto de nós para guardar rancor dele,
mas também vai ser o primeiro a perdoá-lo.
A sensação inquietante de que Filippa enxergava diretamente através da
minha pele me fez afundar ainda mais no cobertor.
— É mesmo? — perguntei, fraco e sem convicção, de um jeito que era
excessivo até mesmo para mim.
— É. — O sorriso dela desapareceu. — Nós não podemos ficar brigando
agora. As coisas já estão ruins o suficiente.
De repente, ela pareceu frágil. Tênue e transparente, como uma paciente
de quimioterapia. Filippa, a imperturbável. Senti um ímpeto estranho e
avassalador de simplesmente abraçá-la, envergonhado por ter, não importa
o quão brevemente, suspeitado dela. Eu queria puxá-la para baixo do
cobertor e abraçá-la. Quase fiz isso antes de me lembrar de que
(provavelmente) não estava vestido.
— Tá bom — eu disse. — Eu vou lá falar com ele.
Ela assentiu, e pensei ter visto o brilho de uma lágrima por trás das
lentes.
— Obrigada. — Ela esperou um instante, percebeu que eu não me mexi,
e disse: — Ok, que horas?
— Hum, daqui a pouco.
Ela piscou, e qualquer rastro da lágrima — se é que houve algum —
desapareceu.
— Você está pelado? — perguntou.
— Pode ser que sim.
Ela foi embora do quarto. Demorei um tempo para me vestir.
Enquanto subia as escadas até a Torre, me vi andando em câmera lenta.
Não parecia que eu estava subindo para ver James pela primeira vez em
apenas um dia ou dois. Parecia mais que eu não o vira, falara com ele, ou
tivera qualquer troca significativa desde antes do Natal. A porta no topo das
escadas estava aberta por uma fresta. Umedeci os lábios, nervoso, e a
empurrei.
Ele estava empoleirado na lateral da cama, o olhar fixo no chão. Só que
não era a cama dele — era a minha.
— Está confortável aí? — perguntei.
Ele se colocou de pé rapidamente e andou dois passos.
— Oliver…
Eu ergui uma mão, com a palma para fora, como um guarda que impedia
a passagem.
— Não. Fique aí por enquanto.
Ele parou no meio do quarto.
— Está bem. O que você quiser.
Meus pés estavam oscilantes sobre as tábuas de madeira. Engoli em seco
e enterrei uma onda repentina e estranha de carinho.
— Eu quero perdoar você — falei, de imediato. — Mas, James, estou
com vontade de te matar, sério.
Eu estiquei a mão na direção dele, fechei o punho no ar vazio.
— Eu quero… — tentei. — Meu Deus, não consigo nem explicar. Você é
que nem um pássaro, sabe?
Ele abriu a boca — uma pergunta, uma expressão de confusão presa na
ponta da língua dele. Eu fiz um gesto deselegante e severo, um corte da
mão, para impedi-lo de falar. Meus pensamentos tropeçavam nas palavras,
maníacos e desorganizados.
— Alexander estava certo. Richard não é o pardal, é você. Você é… não
sei, essa coisa frágil e esquiva, e sinto que, se ao menos pudesse te segurar,
eu te esmagaria por completo.
Ele exibia uma expressão magoada e terrível, e não tinha direito algum
daquilo, não naquele instante. Meia dúzia de sentimentos conflitantes
rugiram dentro de mim de uma vez, e eu dei um passo enorme e desajeitado
na direção dele.
— Eu quero tanto ficar com raiva o suficiente de você para fazer isso,
mas não consigo, então fico bravo comigo mesmo. Você entende o quanto
isso é injusto?
Minha voz estava estridente e ríspida, como a de um garotinho. Eu odiei
aquilo, então xinguei, muito alto.
— Foda-se! Foda-se isso, eu que me foda, você que se foda… Puta que
pariu, James!
Eu queria jogá-lo no chão, brigar com ele e… e fazer o quê? A violência
contida naquele pensamento me alarmou e, com um ruído estrangulado de
ódio, eu peguei um livro do baú ao pé da cama de James, e o atirei nos
joelhos dele. Era um exemplar de Rei Lear em brochura, frouxo e
inofensivo, mas James estremeceu quando o atingi. O livro caiu no chão aos
pés dele, uma página saindo torta da encadernação. Quando ele ergueu o
olhar, eu desviei o meu imediatamente.
— Oliver, eu…
— Não! — Eu apontei um dedo para ele, pedindo silêncio. — Não
comece. Só me deixe… só… um minuto.
Arrastei os dedos pelo cabelo. Um caroço dolorido havia se formado
atrás do dorso do nariz, e meus olhos estavam lacrimejando.
— O que é esse efeito que você tem? — perguntei, minhas palavras
embargadas devido ao esforço de manter a voz firme.
Eu o encarei, esperando por uma resposta que eu sabia que não obteria.
— Eu deveria te odiar agora. E eu quero… meu Deus, como eu quero…
mas não é o suficiente.
Sacudi a cabeça, completamente perdido. O que é que estava
acontecendo com nós dois? Procurei no rosto dele algum traço de resposta,
alguma pista a que me apegar, mas, por um bom tempo, tudo que ele fez foi
respirar, o rosto retorcido como se o próprio ato doesse.
— Odeio meu nome, caro santo — disse ele. — Pois para você ele é
inimigo.
A cena da varanda. Desconfiado demais para adivinhar o significado
daquilo, eu disse:
— Não faça isso, James, por favor. Dá para sermos apenas nós mesmos
nesse instante?
Ele se abaixou, erguendo o texto mutilado do chão.
— Me perdoe — disse ele. — É mais fácil ser Romeu, ou Macbeth, ou
Brutus, ou Edmund. Outra pessoa.
— James — repeti, dessa vez mais gentil. — Está tudo bem com você?
Ele sacudiu a cabeça, os olhos voltados para o chão. A voz dele saía da
boca de forma cautelosa, amedrontada.
— Não. Não está.
— Certo.
Troquei o peso de pé, de um lado ao outro. O chão ainda assim não
parecia firme o suficiente.
— Você pode me dizer o que há de errado? — perguntei.
— Ah — disse ele, com um sorriso estranho e diluído. — Não. Tudo.
— Perdão — falei, e pareceu mais uma pergunta.
Ele deu um passo à frente, apenas um, fechando o espaço entre nós, e
ergueu a mão, tocando o hematoma que se esparramava sob meu olho
esquerdo. Senti uma pontada de dor. Estremeci.
— Sou eu quem deveria pedir perdão — disse ele.
Meus olhos abaixaram para ver os dele. Cinzentos, como aço; dourados,
como mel.
— Não sei o que me fez agir assim — falou. — Eu nunca quis machucar
você antes.
Os dedos dele eram como gelo.
— Mas e agora? — falei. — Por quê?
O braço dele caiu, sem vida, abaixado. Ele desviou o olhar.
— Oliver — disse ele —, não sei o que tem de errado comigo. Quero
machucar o mundo inteiro.
— James.
Peguei o braço dele e o virei de volta para mim. Antes que eu pudesse
decidir o que fazer em seguida, senti a mão dele no meu peito e olhei para
baixo. A palma dele estava pressionada contra minha camiseta, os dedos
espalmados em cima da clavícula. Eu esperei que ele me puxasse para mais
perto ou que me afastasse. No entanto, ele apenas encarou a própria mão,
como se fosse algo estranho que nunca vira antes.
CENA 8

Fevereiro não se demorou. O meio do mês veio e passou antes que eu


parasse de escrever janeiro em todos os meus trabalhos por engano. Nossa
avaliação de apresentação estava se aproximando com rapidez — e, apesar
de tanto Frederick quanto Gwendolyn agirem de forma excepcionalmente
bondosa com relação às tarefas, estávamos lutando para sobreviver com a
cabeça na superfície em meio a um mar de falas a decorar, leituras a fazer,
textos a grifar e trabalhos a entregar. Em uma tarde de domingo, James, eu e
as garotas estávamos aconchegados na biblioteca, repassando as falas de
cenas que deveríamos apresentar em aula na semana seguinte. James e
Filippa estavam com Hamlet e Gertrudes, Meredith e Wren leriam Emília e
Desdêmona, e eu estava esperando Alexander aparecer, o Arcito para meu
Palamon.
— Sério mesmo — disse Filippa, depois de tropeçar na mesma fala pela
quarta vez —, teria matado alguém me dar o papel de Ofélia? Nem usando
muita imaginação eu sou velha o suficiente para ser sua mãe.
— Que não fosse assim! — disse James.
Ela soltou um suspiro cansado.
— O que fiz para merecer ataques / tão brutos que vêm de ti?
— Tal ação / que esnoba a graça e o toque de pudor.
Eles continuaram a discutir baixinho. Eu me recostei no sofá, assistindo a
Meredith pentear o cabelo de Wren por um instante. Elas eram como uma
pintura, o fogo da lareira reluzindo suave nos rostos, brilhando nas curvas
dos lábios e dos cílios.
WREN: “Farias como tal, pelo mundo todo?”
MEREDITH: “O mundo é enorme: é alto o preço
Por tamanho peso.”
WREN: “Não te levo a sério.”
Ergui meu próprio caderno mais uma vez. Meu texto estava cheio de
rabiscos, e sublinhado de quatro cores diferentes, com anotações tão
caóticas que era difícil encontrar as palavras originais. Murmurei baixinho
por um tempo, as vozes dos outros ecoando gentilmente com os sussurros e
estalos do fogo. Quinze minutos se passaram, e então vinte. Já estava
ficando inquieto quando a porta se abriu lá embaixo.
Eu me endireitei na cadeira.
— Finalmente.
Os passos voaram rapidamente pela escada.
— Estava na hora — falei. — Passei a noite toda esperando.
As palavras saíram antes que eu percebesse que não era Alexander.
— Colin — disse Wren, interrompendo a própria cena.
Ele acenou, as mãos se mexendo desconfortáveis no bolso do casaco.
— Desculpe a interrupção.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Estou procurando Alexander.
As bochechas dele estavam coradas, mas eu duvidava que tinha a ver
com o frio lá de fora.
Filippa trocou um olhar rápido com Meredith, que disse:
— Nós achávamos que ele estava com você.
Colin aquiesceu, o olhar passando pela sala, estrategicamente evitando
todos os rostos.
— É, ele disse que iria me encontrar para beber às cinco, mas eu não o vi
e não ouvi mais nada. — Ele deu de ombros. — Comecei a ficar
preocupado, sabe?
— Sei. — Filippa já estava saindo da cadeira. — Alguém quer ir ver no
quarto dele? Vou olhar na cozinha, talvez tenha deixado um bilhete.
— Eu vou — disse Colin, e praticamente correu da biblioteca, claramente
desesperado para voltar ao corredor, onde nós não estaríamos todos o
encarando.
MEREDITH: “O que vocês acham que houve?”
EU: “Não sei. Ele falou alguma coisa pra algum de vocês?”
WREN: “Não, mas ele anda meio estranho ultimamente.”
JAMES: “E não andamos todos?”
Wren franziu o cenho para mim. Eu não tinha nada a acrescentar, então
dei de ombros. Ela abriu a boca, mas nunca soube o que ela estava prestes a
dizer, porque Colin irrompeu porta adentro, a cor rosada dissipada do rosto.
— Ele está no quarto dele! Tem alguma coisa errada, muito errada
mesmo!
A voz dele falhou na última palavra, e todos nós ficamos em pé de
imediato. A voz de Filippa nos perseguiu no corredor da cozinha, estridente
e nervosa, chamando:
— Pessoal? O que aconteceu?
A porta se chocou com força na parede quando Colin a abriu. Livros,
roupas e papéis amassados estavam espalhados pelo quarto como os dejetos
de uma explosão de bomba. Alexander estava deitado no chão, os braços e
pernas esticados em ângulos desajeitados, a cabeça jogada para trás como
se o pescoço estivesse quebrado.
— Meu Deus do céu — falei. — O que a gente faz?
James passou por cima de mim.
— Saia da frente. Colin, faça ele se sentar, consegue fazer isso?
Wren apontou para algo do outro lado do quarto.
— O que é isso?
Embaixo da cama, o chão estava atulhado de frascos de remédios e tubos
de filme fotográfico, quase escondidos atrás de um pedaço do edredom que
caía da cama. As etiquetas médicas haviam sido arrancadas de alguns
frascos, deixando marcas brancas de papel macio.
James se ajoelhou ao lado de Alexander, apertando o pulso dele, à
procura do batimento cardíaco. Colin ergueu a cabeça dele do chão e um
pequeno ruído escapou por entre os lábios.
— Ele está vivo — eu disse. — Tem que estar, ele só…
A voz de James estava rouca e tensa:
— Cale a boca um minuto, eu não…
Filippa chegou atrás de nós, parando no batente.
— O que aconteceu?
Alexander murmurou alguma coisa, e Colin abaixou a cabeça para ficar
perto do rosto dele.
— Não sei — falei. — Ele deve ter tomado uma dose muito alta de
alguma coisa.
— Ah, meu Deus. O que é? O que ele estava usando, alguém sabe?
— O batimento está bem errático — disse James, falando baixo e
rapidamente. — Ele precisa ir ao hospital. Alguém precisa ir lá embaixo
chamar uma ambulância. E outra pessoa, pegue toda essa merda.
Ele apontou para os frascos de remédios sob a cama.
Colin hesitou, segurando a cabeça suada de Alexander no colo.
— Você não pode mandar essas coisas pro hospital. Quer que ele seja
expulso?
— Você prefere que ele morra? — disse James, feroz.
Antes que Colin pudesse responder, o corpo de Alexander tensionou, os
dentes apertados, músculos convulsionando.
— Faça o que ele diz — ordenou Meredith. — Para o telefone, já.
Ela se agachou ao lado de James e começou a coletar os frascos de
debaixo da cama. Alexander gemeu, uma mão tateando o chão. Colin a
agarrou e apertou com força, oscilando levemente para a frente. Wren havia
se afastado para um canto, e estava abaixada ali, abraçando as próprias
pernas, parecendo enjoada. Meu estômago tentou se arrastar para fora da
minha boca.
Filippa agarrou meu braço.
— Oliver, você pode…
— Sim, eu vou. Cuide da Wren.
Deixei o quarto e voei escada abaixo, meus pés entorpecidos e
desajeitados sob o peso. Agarrei o telefone do gancho e disquei o número.
Uma voz respondeu. Feminina. Indiferente. Eficiente.
— Emergência, como posso ajudar?
— Estou no Castelo, no campus da faculdade Dellecher, e precisamos de
uma ambulância imediatamente.
— Qual é a natureza da emergência?
Ela soava tão tranquila, tão calma. Resisti ao ímpeto de gritar com ela. É
uma emergência! Essa palavra não significa nada para você?
— Algum tipo de overdose, não sei. Mande ajuda, agora.
Soltei o telefone, deixando que caísse das mãos, o cordão ficando
esticado com um puxão e balançando como um cadáver pendurado na
forca. Enquanto eu escutava a voz minúscula saindo do telefone e os sons
distantes de desespero e agitação do andar de cima, tudo em que eu
conseguia pensar era: por quê? Por que as drogas, por que a overdose, o que
foi que ele fez, o que foi que ele fez, o que foi que ele fez? Eu não conseguia
voltar lá para cima, mas não conseguia ficar onde estava, aterrorizado pelas
possibilidades do que eu diria quando a polícia e os paramédicos quisessem
respostas. Deixei o telefone pendurado e escancarei as portas, saindo sem
pegar o casaco, o cachecol, as luvas, nem nada.
Ganhei impulso conforme percorria o caminho pela frente da casa, o
cascalho como pedaços de gelo sob as minhas meias. Quando finalmente
cheguei à terra — enterrada sob um cobertor enredado de neve antiga e
folhas de pinheiro —, já estava correndo a toda velocidade. Meu coração
pulsava contra o frio, o sangue percorrendo as veias, rugindo e trovoando
nos ouvidos até que a represa na cavidade nasal irrompeu, e começou a
jorrar do nariz novamente. Eu corri diretamente árvores adentro, onde os
galhos e espinhos rasgaram meu rosto e braços e pernas, mas eu mal os
senti, pequenas agulhas de dor perdidas em meio ao tumulto e rosnado de
pânico. Desviei da trilha e mergulhei mata adentro, tão mais adentro que eu
não sabia se encontraria o caminho de volta, em uma floresta densa o
bastante para que ninguém me ouvisse. Quando achei que meu coração e
pulmões fossem explodir, caí de joelhos, as mãos no chão com folhas
congeladas, e uivei para as árvores, até que alguma coisa na minha garganta
despedaçou.
CENA 9

Éramos apenas quatro na aula da terça de manhã: James, Filippa, Meredith


e eu. Alexander ainda não voltara da clínica de emergência de Broadwater
— apesar da situação já ser estável, ou ao menos era o que nos disseram. O
resto de nós foi tirado da sala de aula um por um na segunda-feira para
passar por uma avaliação psiquiátrica. A psicóloga da faculdade e uma
médica de Broadwater se revezaram nos fazendo perguntas invasivas sobre
nós mesmos, sobre os outros e sobre nosso péssimo histórico coletivo com
abuso de substâncias químicas. (Todos nós saímos da sala com um panfleto
que pregava sobre os perigos do uso de drogas, e um lembrete rigoroso de
que era obrigatório comparecer ao seminário de conscientização do
consumo de álcool que aconteceria em breve.) Além dos problemas óbvios
de estresse e exaustão, tanto James quanto Wren, pelo que eu ouvi na frente
do escritório de Holinshed enquanto ia ao banheiro, estavam demonstrando
sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Wren faltara um dia de
aula para descansar, mas, quando sugeri que James fizesse o mesmo, ele
disse:
— Se ficar trancado no Castelo o dia inteiro sozinho, vou perder a
cabeça.
Não argumentei contra isso, mas, no fim das contas, ele não se deu muito
melhor no Estúdio Cinco.
— Bem — disse Gwendolyn assim que nós nos sentamos. — Acho que
ninguém está animado para pegar material novo hoje e, além disso, não há
gente o suficiente aqui. Eu provavelmente acabaria dando a mesma aula
amanhã de novo.
A solução dela foi passar por cenas difíceis de Rei Lear que não
conseguiam ser dissecadas de forma mais aprofundada durante os ensaios
por causa do tempo.
James e eu ficamos observando durante uma hora enquanto Gwendolyn
atormentava Meredith e Filippa, procurando por faíscas de rivalidade
fraternal verdadeira para conseguir transformar em chamas no palco. Era
um trabalho feito a duras penas: Meredith mal conhecia os próprios irmãos,
e Filippa dizia que não tinha nenhum. (Eu ainda não sei se isso é verdade.)
Gwendolyn me tirou de um estado de estupor perguntando sobre as minhas
irmãs, um assunto que na época não era — e na verdade, nunca foi — meu
favorito. Ela chegou perto de divulgar meu novo trabalho como faxineiro
do Castelo mas, misericordiosamente, seguiu a aula. Quando ela aborrecera
as garotas a ponto de ficarem distraídas demais para continuar, nos deu
cinco minutos para beber água e instruiu James e Meredith a voltarem
preparados para o Ato IV, Cena 2.
Quando voltamos, Gwendolyn começou a falar da cena que
trabalharíamos, dando uma bronca a respeito do desempenho decepcionante
da semana anterior.
— Estou falando sério — disse ela. — Esse é um dos momentos mais
passionais da peça, entre dois dos personagens mais poderosos. Não poderia
haver riscos mais altos do que naquele momento, então eu não quero sentir
que estou assistindo a uma paquera qualquer em um bar.
Meredith e James escutaram sem comentar nada e, quando ela terminou,
tomaram seus lugares sem sequer reconhecer a presença um do outro ali.
(Depois que James quebrou meu nariz, a atitude de Meredith para com ele
foi de indiferente a gélida, o que sem dúvidas contribuía para a completa
falta de química entre os dois no palco.)
Filippa deu uma fala anterior — não era a dela, mas Gwendolyn não se
deu ao trabalho de corrigir — e eles passaram pelo texto com uma rigidez
sem emoção que me fez estremecer. As palavras eram rasas; os toques,
forçados e estranhos. Ao meu lado, Filippa viu a cena desmoronar com uma
expressão dolorosa e lúgubre, como se estivesse sendo torturada.
— Parem, parem, parem — disse Gwendolyn, abanando uma mão entre
James e Meredith. — Parem.
Com certa graciosidade, eles se afastaram, como ímãs de polaridade
semelhante. Meredith cruzou os braços; James fez uma carranca para o
chão. Gwendolyn olhou de um para o outro.
— O que está acontecendo com vocês dois? — perguntou.
Meredith enrijeceu. James sentiu a reação e ficou tenso também, mas não
olhou para ela. Gwendolyn colocou as mãos na cintura e os examinou com
um olhar sagaz.
— Seja lá o que for, eu vou descobrir — disse ela. — Mas, antes, vamos
falar da cena. O que está acontecendo aqui? Meredith?
— Goneril precisa da ajuda de Edmund, então ela o suborna com o único
método que conhece.
Ela parecia profundamente entediada com aquilo.
— Certo — disse Gwendolyn. — Essa é uma boa resposta, se você virou
um cadáver do pescoço para baixo. James? Vamos ouvir de você. O que
está acontecendo com Edmund?
— Ele encontra uma outra forma de obter o que quer, e joga com as
cartas que ela dá — disse ele, monótono, de forma quase automática.
— Que interessante. Também é uma resposta de merda — disse
Gwendolyn, e eu até ergui o olhar, em surpresa. — Alguma coisa
gigantesca está faltando nessa cena, e está bem na cara de vocês —
continuou ela. — Goneril não vai matar o marido só para ter um novo
capitão no campo de batalha, e Edmund não vai arriscar perder o título de
Regan a não ser que exista outra oferta mais atraente. Então por que fazem
isso?
Ninguém disse nada. Gwendolyn se virou nos calcanhares.
— Ah, pelo amor de Deus! Oliver! — gritou ela, tão alto que eu dei um
pulo. — Eu sei que você sabe. O que é do assassinato como a chama à
fumaça?
Aquela velha fala familiar de Péricles passou pela minha cabeça.
— Luxúria? — perguntei, cauteloso com a palavra, com um medo
equivalente de estar certo e errado.
— Luxúria! — berrou ela, e sacudiu o punho na direção de James e
Meredith. — Paixão! Se vocês só fizerem por lógica e não por sentimentos,
a cena não funciona! — Ela acenou para os dois novamente. — Claramente
vocês não sentem isso, então vamos precisar consertar a situação. Como?
Primeiro, vamos ficar de pé, um encarando o outro.
Ela pegou James pelos ombros e o virou com força para que ele e
Meredith estivessem quase se encostando, nariz contra nariz.
— Agora, vamos dispensar toda essa bobagem de disse me disse e
começar a falar como pessoas de verdade. Pare de falar em “Edmund”
como se ele fosse alguém que encontrou em uma festa. A questão não é ele,
é você.
Os dois a encaravam com expressões vazias.
— Não — disse ela. — Não olhem para mim.
Eles se viraram e se fuzilaram com o olhar, até que Gwendolyn
acrescentou:
— Não é uma disputa de quem pisca primeiro.
— Não está funcionando — esbravejou Meredith.
— E por que não? — perguntou Gwendolyn. — Vocês não gostam um do
outro nesse instante? Poxa, que peninha. — Ela parou, e deu um suspiro. —
Eis o problema, crianças, e eu sei disso porque vivi uma vida longa e cheia
de escândalos… o problema da luxúria é o seguinte: vocês não precisam
gostar um do outro. Já ouviram falar de transar por ódio?
Filippa emitiu um ruído engasgado, e eu engoli uma risada nervosa.
— Continuem olhando um para o outro, mas me digam se eu estiver
errada — continuou Gwendolyn. — James, você não gosta de Meredith.
Por que não? Ela é linda. Ela é inteligente. Ela é apaixonante. Eu acho que
ela intimida você, e você não gosta de se sentir intimidado. Só que tem algo
além disso, não é?
Ela começou a andar em um círculo ao redor dos dois, como um felino
predador.
— Você olha para ela como se ela causasse repugnância, mas não acho
que é esse o problema. Ela distrai você, como distrai qualquer homem vivo.
Quando você olha para ela, não consegue evitar pensamentos sujos e
sexuais, e sente nojo de si mesmo.
As mãos de James se fecharam em punho nas laterais do corpo. Eu via o
cuidado que tomava para respirar — o peito subindo e descendo no ritmo
perfeito de um relógio.
— E aqui temos a senhorita Meredith — ronronou Gwendolyn. — Você
não tem medo de sexo nem de sujeira, então qual é o problema? Você está
acostumada com todo mundo olhar para você como se fosse uma deusa, e
acho que se sente ofendida pelo fato de James resistir ao seu charme. Ele é
o único garoto aqui que você não pode ter. E isso faz você o querer ainda
mais.
Diferente de James, Meredith não parecia sequer estar respirando. Ela
estava perfeitamente imóvel, os lábios entreabertos, uma mancha vívida
rosada em cada bochecha. Eu conhecia aquela expressão — aquela mesma
expressão ardente e inconsequente que ela me lançara na escadaria durante
a festa de César. Algo se remexeu em meus pulmões.
— Agora — instruiu Gwendolyn —, uma vez que seja, quero que
esqueçam o contato visual, e observem cada centímetro do corpo um do
outro. Façam isso. Sem pressa.
Eles obedeceram. Eles olharam um para o outro, se encarando,
indulgentes, e eu segui os olhares, vi o que eles viam — a linha da
mandíbula de James, o triângulo de pele macia visível sob a gola V da
camisa. As costas da mão dele, os ossos delicados, como traços precisos
esculpidos por Michelangelo. E Meredith — o tom rosa-perolado da boca, a
curva do pescoço, a inclinação dos ombros. A pequena marca que eu
deixara com os dentes na base da palma dela. A ansiedade percorria cada
nervo em meu corpo.
— Agora olhem nos olhos um do outro — disse Gwendolyn. — E façam
a cena para valer. Filippa?
Filippa desceu o olhar para o texto que tinha nas mãos e pronunciou a
última fala de Oswald.
— O suposto alvo de seu ódio o agrada / E o que gosta ofende.
Meredith inspirou de súbito, como alguém que acaba de acordar. A mão
dela pousou no peito de James antes que ele pudesse se mexer, o deixando
longe.
MEREDITH: “Então não busque mais.
É o terror covarde de sua alma,
Que nada ousa. Erro algum
O comove. Nossos desejos
Podem ter efeito.”
Ela brincou com o colarinho da camisa dele, talvez distraída com o calor
sob o tecido. Ele esticou a mão para segurar o pulso dela, traçando as veias
azuis que encontrou ali com a ponta dos dedos.
MEREDITH: “Edmund, volte a meu irmão.
Faça os preparos e comande seu poder.
Eu é que assumo as armas, e a roca
Entrego ao meu marido.”
Ele observou a boca dela enquanto falava, e ela dobrou o braço um
pouco, convidando-o a se aproximar, como se houvesse se esquecido do
motivo para manter a distância.
MEREDITH: “Este servo de confiança
Será o mensageiro. Logo ouvirá,
Se ousar agir por conta própria,
Ordens de uma mulher.”
Ela subiu a mão para a gola do suéter dela, e a mão dele a seguiu,
pairando apenas a um centímetro da pele dela enquanto ela encontrava um
lenço e o retirava.
— Use isto — disse ela. — Não diga nada. / Abaixe a cabeça…
Em um movimento súbito, ele agarrou o lenço e a beijou com tanta força
que quase a derrubou. Ela agarrou a camisa dele com os dois punhos como
se quisesse enforcá-lo, e eu escutei a respiração dele estremecer, um
pequeno ofegar em resposta. Foi agressivo, violento, o lenço amassado e
esquecido, bem como a sedução delicada. Se tivessem garras, teriam
rasgado um ao outro. Eu me senti febril, enjoado, desorientado. Eu queria
desviar o olhar, mas não conseguia — era como observar um acidente de
carro. Cerrei os dentes com tanta força que minha visão começou a borrar.
Meredith se afastou e empurrou James até ele dar um passo para trás.
Ficaram a um metro de distância, encarando um ao outro, desgrenhados e
sem fôlego.
MEREDITH: “Este beijo, se falar pudesse,
Elogiaria teu espírito aos céus.
Imagine, e vá em paz.”
JAMES: “Seu, à margem da morte.”
Ele se virou e saiu para o lado errado, passando porta afora. Assim que
ele desapareceu, Meredith girou, dando as costas ao lugar onde ele estava, e
disse com palavras pontiagudas e furiosas:
— Ah, a diferença entre os homens! / A ti cabe os serviços de uma
mulher, / um tolo usurpa meu ser.
O sinal tocou, e não poderia ser mais bem-vindo. Saí correndo da sala, a
pele inteira formigando com a sensação horrenda de que todos os olhos me
acompanhavam.
CENA 10

Eu acotovelei as pessoas até traçar meu caminho escada acima,


praticamente jogando um aluno de filosofia da balaustrada na pressa de me
afastar do Estúdio Cinco. Derrubei um livro mas não voltei para buscá-lo —
alguém o encontraria; meu nome estava escrito na capa. Quando cheguei à
galeria, escancarei a porta sem bater, fechei-a atrás de mim e pressionei
minhas costas contra ela. Um espirro começou a se formar sob a tala no
meu nariz, e por um instante não ousei respirar, temendo o quanto aquilo
doeria.
— Oliver? — Frederick saiu de trás do quadro, um pano de limpar giz na
mão.
— Sim — eu disse, suspirando de uma vez só. — Me desculpe, eu só…
queria um pouco de silêncio.
— Compreensível. Por que não se senta, e eu sirvo o chá?
Assenti, os olhos enchendo d’água com o esforço de segurar um espirro,
e cruzei a sala para olhar pela janela. Tudo estava deprimente e cinzento, o
lago opaco e sem vida sob uma fina camada de gelo. Lá de cima, parecia
um espelho embaçado, e eu imaginei Deus esticando uma mão para limpar
o vidro com a manga.
— Quer mel? — perguntou Frederick. — Limão?
— Sim, por favor — respondi, minha boca distante da mente.
James e Meredith estavam emaranhados, lutando em meu cérebro. O suor
pinicava o couro cabeludo e se acumulava nas clavículas. Queria escancarar
a janela, deixar que o vento frio do inverno aniquilasse a febre que me
abatia, me congelasse até que eu não conseguisse sentir mais nada.
Frederick me trouxe o pires e a xícara, e eu tomei um gole de chá. Estava
escaldante e queimou tanto a língua quanto o céu da boca, e eu não senti
gosto de nada, nem mesmo o ácido do limão. Frederick me observava,
parecendo confuso. Tentei sorrir para ele, mas deve ter mais parecido uma
careta, porque ele tamborilou a própria lateral do nariz, dizendo:
— Como está?
— Coçando — respondi.
Uma resposta automática, mas era honesta.
O rosto dele primeiro ficou neutro, e então ele deu uma risadinha.
— Você, Oliver — disse ele —, é verdadeiramente indomável.
Meu sorriso saiu rachado como gesso.
Ele voltou para o aparador e continuou servindo chá. Eu curvei os dedos
no punho mais cerrado que conseguia, lutando contra o impulso de gritar,
ou talvez de soltar finalmente aquela risada maníaca, mesmo que minha
garganta ainda estivesse machucada e dolorida da noite em que Alexander
sofrera a overdose.
O sinal tocou mais uma vez, e eu ergui o olhar para Frederick, que estava
conferindo o reloginho dourado no pulso.
— Todo mundo se atrasou? — perguntou ele.
— Não sei. — Minha voz estava rígida, quebradiça. — Alexander está na
clínica, Wren só volta amanhã, mas…
— E o restante?
— Não sei — repeti, sem conseguir reprimir uma onda de pânico. —
Estavam todos na aula de Gwendolyn.
Uma parte pequena e racional do meu cérebro forneceu uma lista de
razões pelas quais poderiam se atrasar. Era provável que estivessem todos
abalados depois da última aula. Cansados. Não estavam se sentindo bem.
Transtorno de estresse pós-traumático.
Frederick espiou pela porta do corredor, primeiro olhando de um lado,
depois do outro, como uma criança que se prepara para atravessar a rua.
Tentei pegar o chá, esperando que ajudasse a me acalmar, mas a xícara
escorregou da minha mão trêmula. O líquido quente e abrasador se
esparramou pela minha pele — gritei de dor, e a porcelana se estilhaçou no
chão.
Frederick se mexeu com mais rapidez do que eu jamais o vira, dando um
pulo e se virando para longe da porta.
— Oliver — disse ele em um tom de surpresa que quase beirava a
repreensão.
— Me desculpe! — eu falei. — Desculpe, é que escorregou, e eu…
— Oliver — disse ele de novo, fechando a porta atrás de si. — Eu não
estou preocupado com a xícara.
Ele esticou a mão para pegar um guardanapo no aparador e o trouxe até
mim. Sequei as mãos da melhor forma que consegui enquanto tremiam com
força, e respirei em soluços curtos e estranhos, engolindo o ar cheio de giz
como se fosse repentinamente desaparecer. Frederick se sentou na cadeira
que James normalmente ocupava.
— Olhe para mim, Oliver, por favor — disse ele, austero, porém com um
tom bondoso.
Ergui o olhar.
— Agora — continuou ele. — Me diga o qual é o problema.
— Todo mundo… — Eu sacudi a cabeça, enquanto rasgava o guardanapo
com as pontas dos dedos queimadas e doloridas. — Estamos todos caindo
aos pedaços.
Eu sabia, àquela altura, como a história acontecia. Nossa pequena
tragédia estava seguindo veloz na direção do clímax. O que viria a seguir,
quando chegássemos ao precipício?
Primeiro, a sentença. Em seguida, a queda.
ATO V
PRÓLOGO

A ida do primeiro andar até a Torre leva uma década. Eu subo devagar,
como um homem a caminho da forca, e Colborne segue atrás, hesitante. O
aroma do lugar — madeira velha, livros antigos, sob uma camada fina de pó
— é tão familiar que entorpece os outros sentidos, apesar de eu nunca ter
notado isso há dez anos, quando morava aqui. A porta está entreaberta,
como se um de nós, aos vinte e poucos, a tivesse esquecido assim, na pressa
de correr para o teatro, o Estúdio Cinco, o Habeas Copos, seja lá onde. Por
um instante, eu me pergunto se James está esperando do outro lado.
A porta se abre silenciosamente quando eu a empurro — não enferrujou
da mesma forma que eu. O quarto vazio me encara quando passo pelo
batente, preparado para a dor da memória me atingir como um relâmpago.
No entanto, há apenas um tênue sussurro, um suspiro como a mais leve
brisa do outro lado do vidro da janela. Eu me aventuro quarto adentro.
Alunos ainda moram por aqui, ou ao menos é o que parece. As camadas
de poeira nas estantes vazias só são de algumas semanas, e não de anos. As
camas estão sem lençóis, nuas e esqueléticas. A minha. A de James. Eu
estico a mão para tocar em um dos pilares do dossel, a madeira espiralada
lisa como vidro. Solto uma respiração que sequer notei que segurava. O
quarto é só um quarto.
A janela entre meu guarda-roupa e a cama de James — estreita, como
uma seteira — espreita o lago. Se esticar o pescoço, vejo o fim do cais,
saliente na água esmeralda do verão. Eu me pergunto (pela primeira vez,
estranhamente) se eu teria assistido a tudo acontecer daqui, caso não
passasse a noite da festa de César no andar de baixo, no quarto de
Meredith. Escuro demais, eu digo a mim mesmo. Eu não teria visto coisa
alguma.
— Esse era o seu quarto?
Atrás de mim, Colborne está olhando para o teto, o ponto central distante
onde todos os pilares convergem, onde os raios se encontram em uma roda.
— Seu e de Farrow — completa.
— Isso. James e eu.
O olhar de Colborne desce lentamente para encontrar meu rosto. Ele
sacode a cabeça.
— Vocês dois. Eu nunca entendi.
— Nós também não. Era mais fácil não entender.
Ele parece ter dificuldade de encontrar as palavras por um instante.
— O que vocês eram? — pergunta ele, por fim.
Parece grosseiro, mas é só uma exasperação com sua própria inabilidade
de formular a pergunta de forma melhor.
— Éramos muitas coisas. Amigos, irmãos, parceiros de crime.
A expressão dele fica sombria, mas eu ignoro e continuo:
— James era tudo o que eu queria desesperadamente ser e nunca poderia
me tornar: talentoso, inteligente, viajado. Filho único de uma família que
prezava arte acima de lógica, e paixão acima de paz e tranquilidade. Eu me
agarrei nele como um carrapicho desde o dia em que nos conhecemos, na
esperança de que o brilhantismo dele de alguma forma passasse um pouco
para mim.
— E ele? — pergunta Colborne. — Qual era o interesse dele por você?
— É assim tão difícil acreditar que alguém pode só gostar de mim, Joe?
— Claro que não. Já te falei mais de uma vez que eu gosto de você,
completamente a despeito de mim mesmo.
— É — disse, seco —, e isso nunca deixa de me fazer sentir acolhido.
Ele abre um sorriso irônico.
— Você não precisa responder, mas não vou retirar a pergunta.
— Pois bem. É puramente especulação, claro, mas acho que James
gostava de mim pelas razões opostas às quais eu gostava dele. Todo mundo
me falava que eu era “legal”, mas o que queriam dizer era “ingênuo”. Eu
era ingênuo e impressionável e incrivelmente normal. Mas eu era esperto o
bastante para conseguir acompanhá-lo e, portanto, ele me deixava.
Colborne lança um olhar estranho e avaliativo para mim.
— E era só isso?
— Claro que não — eu digo. — Nós fomos inseparáveis durante quatro
anos. Não é algo que se possa explicar em poucos minutos.
Ele franze o cenho, enfiando a mão nos bolsos. Meu olhar
automaticamente desce para o quadril, à procura do brilho dourado do
distintivo, antes de eu me lembrar de que ele mudou de emprego. Olho para
o rosto dele de novo. Ele não envelheceu, na verdade — é mais como se
tivesse desbotado, como um velho cão.
— Sabe o que eu acho que era? — pergunta ele.
Ergo as sobrancelhas, intrigado. As pessoas quase sempre queriam uma
explicação do meu relacionamento com James — o que parecia
inerentemente injusto, esperando que metade de uma equação pudesse
explicar o todo —, mas nunca ninguém ofereceu seu próprio diagnóstico.
— Acho que ele estava enamorado de você porque você estava
igualmente enamorado dele.
(“Enamorado.” Noto que essa é a palavra que ele escolheu usar. Não me
parece inteiramente certa, mas também não está inteiramente errada.)
— É possível — digo. — Eu nunca perguntei. Ele era meu amigo. Muito
mais do que isso, na verdade. Era o suficiente. Eu não precisava saber o
porquê.
Nós ficamos parados, encarando um ao outro em um silêncio que é
desconcertante apenas para ele. Há outra pergunta que ele está ansiando por
fazer, mas não fará. Ele chega o mais próximo que consegue, devagar,
talvez esperando que eu me prontifique para terminar aquele pensamento
em nome dele.
— Quando você diz “mais do que amigos”…
Eu espero.
— Sim?
Ele abandona a tentativa.
— Acho que não importa, mas não deixo de me perguntar.
Eu ofereço um sorriso, desinteressado o bastante para que ele
provavelmente continue a se perguntar — ao menos sobre essa questão —
por mais bastante tempo. Se ele tivesse a audácia de perguntar, eu teria
respondido. Meu fascínio por James (está aí a palavra, “enamorado” não faz
jus) transcendia qualquer noção de gênero. Colborne — um homem
comum, casado e feliz, pai de dois filhos, não muito diferente de meu
próprio pai em alguns aspectos — não me parece o tipo de homem que
compreenderia isso. Nenhum homem parece capaz, talvez, até que ele
mesmo experimente isso, e a negação deixe de ser plausível.
O que éramos, então? Em dez anos, ainda não encontrei uma palavra
adequada que pudesse descrever nosso relacionamento.
CENA 1

Assim que os alunos do terceiro ano terminaram de apresentar Os dois


cavalheiros de Verona, o cenário foi demolido com pressa indecorosa. Três
dias depois, o cenário de Rei Lear tomava conta do palco, e nós
percorremos o espaço transformado pela primeira vez. Durante o que
normalmente seria a aula de combate, andamos pelas coxias, um por um,
entorpecidos demais para sentir a habitual empolgação de ver um novo
cenário. (Àquela altura, Alexander já voltara da clínica. Ele andava atrás de
todos — de olhos vazios, rígido e sem vida, um cadáver ambulante. Estava
tão inteiramente destruído que eu ainda não tivera ânimo — ou coragem,
talvez — para confrontá-lo sobre qualquer coisa.)
— Aqui está — disse Camilo, enquanto acendia as luzes. — Realmente
se superaram dessa vez.
Por um momento precioso, esqueci meu cansaço, o peso da preocupação
constante que havia assentado em meus ombros. Era como entrar em um
sonho.
Desenhado em fita-crepe no chão, a simplicidade do cenário enganava:
um palco vazio e uma Ponte estreita que se esticava na fileira central como
uma passarela. Porém, o projeto artístico se apoderava da imaginação como
uma droga. Um espelho gigantesco cobria cada centímetro do chão,
refletindo as sombras profundas além das cortinas. Outro espelho erguia-se
na parede do palco onde ficava a rotunda, inclinado o suficiente para que
ele também apenas refletisse a escuridão e o vazio, e não a plateia. Meredith
foi a primeira a se aventurar pelo palco, e eu lutei contra o impulso ridículo
de agarrá-la e puxá-la para trás. Uma gêmea idêntica apareceu de ponta-
cabeça, refletida no chão.
— Meu Deus — disse ela. — Como conseguiram?
— É um acrílico espelhado — explicou Camilo —, então não vai rachar,
e é perfeitamente seguro andar em cima. O pessoal do figurino está
colocando antiderrapantes especiais nos calçados para não escorregarmos.
Ela assentiu, inclinando a cabeça na direção de uma queda vertical até
ver… eu não fazia ideia. Com cautela, Filippa deu um passo para seguir
Meredith. Então Alexander, depois Wren, e, por fim, James. Eu esperei nas
coxias, hesitando.
— Uau — disse Wren, em voz baixa e fascinada. — Qual é a aparência
quando as luzes do palco estão acesas?
— Por que eu não mostro? — disse Camilo, virando-se para o monitor no
canto. — Voilà.
Wren soltou um suspiro quando as luzes se acenderam. Não era o
amarelo quente e escaldante com o qual estávamos acostumados, e sim um
branco deslumbrante. Nós piscamos, cegos, até que os olhos se ajustaram.
Meredith apontou para cima, dizendo:
— Olhem!
Acima, entre o espelho do fundo e a cortina maior (onde normalmente
ficavam apenas ripas vazias e as longas cordas), um milhão de cabos
minúsculos de fibra óptica estavam pendurados, brilhando com luzes
azuladas como estrelas. O espelho sob os pés de todos havia se
transformado em um infinito céu noturno.
— Pode ir — disse Camilo para mim. — Prometo que é seguro.
Obediente, eu me esgueirei para fora das coxias e pisei no espelho, com
medo de que afundaria no chão e me derrubaria em um abismo. Só que o
espelho permaneceu lá, sólido e enganador. Andei com cuidado até o centro
do palco, onde estavam meus colegas, aglomerados em um grupinho
apertado, alternando entre olhar para cima e para baixo, os rostos relaxados
em expressões de espanto.
— Eles fizeram constelações de verdade — disse Filippa. — Ali é o
Dragão.
Ela apontou, e James seguiu o olhar. Olhei para baixo, na direção da
Ponte, onde outra faixa de arames de fibra-óptica estava pendurada no teto
do teatro.
— Que loucura — disse Alexander baixinho.
Abaixo de nós, os nossos reflexos se esticavam no abismo estrelado. Meu
estômago ficou embrulhado, uma sensação desagradável.
— Levem o tempo que quiserem — disse Camilo. — Caminhem por aí.
Se acostumem a andar em um chão de três dimensões.
Os outros se dispersaram, flutuando para longe em silêncio, como ondas
na superfície do lago. Percebi, com um sobressalto estranho atrás do plexo,
que era isso que aquele palco me lembrava: o lago no auge do inverno, logo
antes de congelar, o céu vasto e negro refletido como um portal para outro
universo. Fechei os olhos, sentindo náuseas.
As últimas semanas passaram como um borrão, às pressas, às vezes
passando tão devagar que era insuportável, às vezes tão veloz que era
impossível recuperar o fôlego. Nós nos tornáramos uma pequena colônia de
insones. Fora as aulas e os ensaios, Wren raramente deixava o quarto, mas
quase sempre a luz dela ficava acesa a noite toda. Alexander, assim que fora
liberado do hospital, passava duas horas por semana com uma enfermeira e
a psiquiatra da escola, e vivia sob ameaça de expulsão caso perdesse a linha
nem que fosse um centímetro. No Castelo, ele era constantemente
observado por Colin ou Filippa enquanto passava pelo período de
abstinência. Sofriam com ele — vigiando, preocupados, sem dormir. Meu
sono era agitado, em horários estranhos, e nunca durava muito tempo.
Quando passava a noite no andar de baixo, com Meredith, ela ficava
tranquila e silenciosa ao meu lado, mas sempre mantinha uma mão em meu
braço ou nas costas ou no peito enquanto lia (às vezes durante horas, sem
nunca virar uma página), talvez só para certificar-se de que eu estava lá. Se
eu não conseguia dormir em um quarto, seguia para outro. James era um
companheiro inconstante. Às vezes, ficávamos deitados nas camas lado ao
lado, em silêncio fraterno. Às vezes, ele se debatia e murmurava durante o
sono. Em certas noites, quando pensava que eu já estava dormindo, ele saía
da cama, pegava o casaco e os sapatos, e desaparecia na escuridão lá fora.
Eu nunca perguntava aonde ele ia, temendo que ele não pediria que eu o
acompanhasse.
Eu ainda via Richard, quase todas as noites, mais do que nunca no
labirinto do teatro. O sangue escorria por debaixo da porta do armário e,
quando eu a abria, encontrava-o esmagado lá dentro, o líquido vermelho
escorrendo do nariz, dos olhos e da boca. Porém, ele não era mais o único
ator em meu repertório onírico; tanto Meredith quanto James haviam
tomado parte na trupe, às vezes atuando como amantes, às vezes inimigos,
às vezes em cenas tão caóticas que não conseguia distinguir qual seu papel.
Pior de tudo, às vezes lutavam um contra o outro e pareciam não me ver.
Em meio aos dramas do meu inconsciente, eles, como a violência e a
intimidade, de alguma forma eram intercambiáveis. Mais de uma vez eu
acordava sobressaltado por culpa, sem conseguir me lembrar no quarto de
quem eu estava, a quem pertencia a respiração suave que movia o silêncio.
Abri os olhos, e meu próprio reflexo vertiginoso me encarou. As minhas
bochechas estavam esqueléticas; a pele, inchada e com hematomas que
desapareciam. Ergui a cabeça, olhando de um amigo a outro. Alexander
tinha caminhado até o fim da Ponte e se sentado ali, encarando o teatro
vazio. Meredith estava parada na beirada do palco, olhando para o fosso da
orquestra, como alguém que contemplava suicídio. Wren, alguns passos
atrás dela, colocava um pé cuidadosamente na frente do outro, os braços
esticados, como se andasse na corda bamba. Filippa havia se retirado para a
coxia esquerda, o rosto inclinado na direção de Camilo, que se aproximara
para sussurrar algo sem interromper a calmaria.
Encontrei James parado contra a rotunda, um braço esticado, palma a
palma com o próprio reflexo, os olhos de um azul-acinzentado sob a luz fria
e cósmica.
Eu me mexi, e os sapatos rangeram no espelho. James se virou e
encontrou meu olhar. Porém, fiquei onde estava, com medo de ir na direção
dele, com medo de perder o equilíbrio no chão sólido, de me desprender do
que havia me ancorado antes e ficar à deriva no vácuo do espaço — uma
lua errática e fugidia.
CENA 2

Nossa primeira apresentação de Rei Lear ocorreu de forma relativamente


tranquila. Os cartazes foram feitos em branco e azul-escuro, e apareceram
em toda parede vazia ao redor do campus e da cidade. Uma versão
mostrava Frederick, de vestes brancas, Wren inerte e imóvel aos pés dele.
Sob essa imagem, o aviso:
NÃO PERTURBE DRAGÃO EM FÚRIA

Em outro, James estava sozinho, em pé na ponte, com a espada ao lado,


um ponto radiante em meio à escuridão. Algumas das palavras sábias do
Bobo estavam espalhadas entre as estrelas refletidas sob ele:

NÃO CONFIE EM MANSO LOBO

O teatro estava cheio na noite de estreia. Quando todos aparecemos no


palco para os aplausos finais, o público ficou em pé como uma maré
oceânica, mas o ruído dos aplausos não abafou os sons de pesar que
persistiram durante a última cena trágica. Gwendolyn estava sentada na
primeira fileira ao lado do Reitor Holinshed, lágrimas escorrendo nas
bochechas, segurando um lenço sob o nariz. Nós voltamos para o camarim
em um silêncio sufocante.
Como sempre, planejáramos dar uma festa na sexta-feira à noite, apesar
de eu ter certeza de que nenhum de nós estava a fim de comemorar. Ao
mesmo tempo, estávamos desesperados para fingir que tudo estava bem —
ou algo perto disso — e para provar tal coisa para todos os outros. Colin,
que morria ao final do Ato III, tomara para si a tarefa de voltar para o
Castelo antes de cair o pano e deixar tudo pronto para quando chegássemos.
Em uma vaga demonstração de respeito à repressão mais recente da
faculdade ao excesso de bebida, só compráramos metade do álcool que
normalmente comprávamos, e Filippa e Colin deixaram claro a todos os
convidados que qualquer um que trouxesse uma substância ilegal para perto
do Castelo — ou de Alexander — haveria de pagar caro por isso.
Nós demoramos para nos despir depois da peça, em parte porque os
figurinos eram complicados (estávamos todos vestidos ao estilo do império
neoclássico, em tons de azul, cinza e lilás), e em parte porque, sendo
pessoas que mal dormiam, estávamos cansados demais para ir mais
depressa. James se trocou mais rápido do que eu ou Alexander, pendurou o
figurino no cabideiro e deixou o camarim sem dizer uma palavra. Quando
chegamos à travessia, não havia sinal dele.
— Ele já deve ter ido para o Castelo.
— Você acha?
— Para onde mais iria?
— Só Deus sabe. Eu parei de me perguntar isso.
A noite estava fria, e um vento impiedoso e agitado soprava do céu.
Apertamos os casacos e andamos apressados, de cabeça baixa. O vento
estava fazendo um barulho tão alto que estávamos quase na porta quando
finalmente escutamos a música. Diferente da nossa última festa, não havia
luzes do lado de fora — apenas o fraco brilho amarelado saindo da cozinha.
No andar de cima, uma vela bruxuleava em uma das janelas da biblioteca.
Nós entramos e encontramos a cozinha com uma população escassa. Só
havia duas garrafas abertas, e a maior parte da comida permanecera
intocada.
— Que horas são? — perguntei.
— Tarde o suficiente — respondeu Alexander. — Devia ter mais gente
aqui.
Aceitamos alguns parabéns baixos da pequena multidão reunida no
balcão antes de Wren e Filippa entrarem, vindas da sala de jantar. Haviam
se trocado e colocado roupas de festa, mas estavam estranhamente incolores
— Filippa vestida em um prateado elegante; Wren, em um rosa-pálido.
— Oi — disse Filippa, a voz alta o suficiente para ser ouvida acima da
batida da música da sala ao lado, cuja alegria era incongruente. — Querem
uma bebida?
ALEXANDER: “Ah, pode ser. O que temos?”
WREN: “Não muita coisa. Tem uma vodca boa guardada lá em cima.”
EU: “Por mim, ótimo. Alguma de vocês viu James?”
Elas sacudiram a cabeça em movimentos idênticos.
FILIPPA: “Achamos que ele viria com vocês.”
EU: “É. A gente também.”
— Pode só estar dando uma das caminhadas dele — sugeriu Wren. —
Acho que ele precisa de um tempo para se recuperar de Edmund, sabe?
— É — repeti. — Acho que sim.
Alexander examinou a sala, o pescoço esticado para ver a cabeça de todo
mundo, e perguntou:
— Cadê o Colin?
— Na sala de jantar — disse Wren. — Está bancando o anfitrião mais do
que nós.
Filippa tocou o cotovelo de Alexander.
— Vamos — disse ela. — Ele está te esperando.
Juntos, eles desapareceram na sala de jantar.
Wren me ofereceu um sorriso fraco. Eu a imitei, sem convicção, e disse:
— Você não viu Meredith, certo?
— No jardim, acho.
— Você vai ficar bem se eu te deixar aqui?
Ela assentiu.
— Vou ficar bem.
Eu a deixei, um pouco relutante, e saí do Castelo.
Meredith estava sentada na mesa mais uma vez. Seria uma visão familiar,
evocatória daquela infame noite de novembro, se não fosse a sensação vazia
e estéril do jardim. O vento soprava ao meu redor, passando por debaixo da
camisa e do casaco, e fazendo arrepios percorrerem a minha pele. Meredith
estava encolhida na mesa, os cotovelos dobrados e próximos ao corpo, os
joelhos pressionados juntos, com força. Estava vestida de preto mais uma
vez, mas parecia mais pronta para um velório do que uma festa. O cabelo
dela chicoteava em lufadas de vermelho vívido ao redor do rosto.
Enquanto eu cruzava o jardim, os galhos das árvores farfalhavam e se
chocavam, um sibilar suave e ruidoso nas sombras. A música parecia
titubear e gaguejar vinda do Castelo, abafada pelo vento em um momento,
carregada pelas árvores como o aroma de incenso doce em outro. Eu me
sentei ao lado de Meredith na mesa, e o cabelo dela se embaraçou em seus
dedos quando tentou afastá-lo do rosto. À primeira vista, era difícil notar na
penumbra, mas a pele sensível sob os olhos dela brilhava, e borrões pretos
haviam se esparramado sob os cílios, como os de uma boneca de pano. Ela
respirava em arfadas curtas pelo nariz, mas ficou em silêncio. Ela não me
olhara desde que eu pisara lá fora, e eu não sabia se tocá-la ofereceria
conforto ou seria incômodo, então não fiz nada.
— Você está bem? — perguntei quando o vento pareceu assentar por um
momento.
Era a mesma pergunta que eu fizera a James na Torre um mês antes — a
mesma, porque eu já sabia qual era a resposta.
— Nem um pouquinho.
— Posso ajudar? — perguntei, e olhei para as minhas mãos, imóveis e
inúteis no meu colo. — Eu ainda… eu quero ajudar.
A brisa retomou o sopro, jogou algumas mechas do cabelo dela no meu
rosto. Roçou nos meus lábios e fez cócegas no nariz. O perfume dela já me
era familiar, âmbar e jasmim. Algo doeu dentro do peito. A ventania
baixou, e o cabelo dela recaiu novamente nos ombros. Ela passava a mão na
borda do copo com as unhas roídas e curtas, que tentava esconder com um
esmalte cor de vinho.
— Oliver — disse ela, a voz grave e tensa. — Preciso te contar uma
coisa.
A dor no meu peito se aprofundou, a casquinha que havia na alma
ameaçando se romper e sangrar.
— Certo — falei.
Uma única lágrima arrastou um fio preto aquarelado pela bochecha dela.
Eu queria limpá-la, beijar as duas pálpebras, tomar suas mãos para mim e
esfregá-las até ficarem quentes. Em vez disso, esperei.
Ela ergueu a cabeça de repente, esfregou a pele sob os olhos e me olhou
de soslaio.
— Quer saber? Vamos falar disso amanhã.
— Sério? — eu disse. — Eu não…
Senti a mão dela na parte atrás do meu joelho.
— Amanhã.
— Está bem. Se você tem certeza.
— Tenho certeza — disse ela. — Hoje, vamos só nos divertir.
A dor passou e se tornou uma sensação nauseante e triste que tomou
conta do meu estômago, embrulhando tudo.
— Tá. — Apontei para o canto do meu próprio olho. — Você quer…?
— Aham. Deixa eu ir me arrumar, e encontro você depois. — Ela me
entregou o copo quase vazio. — Quer ir buscar uma bebida para mim?
— Vai ajudar?
— Não vai atrapalhar.
Ela deslizou da mesa, a mão passando pelo meu joelho. Fiquei
observando a silhueta dela enquanto cruzava o jardim, o vento se erguendo
e hasteando os cabelos, arrastando-os atrás dela. Quando ela desapareceu
cozinha adentro, as engrenagens do meu cérebro começaram a rodar
lentamente. O que poderia ser assim tão grave a me contar, que arrancara
lágrimas de Meredith, uma mulher feita de mármore?
Eu havia me torturado ao questionar se meu próprio desejo egoísta de tê-
la para mim e sair impune era um fator mais forte do que o medo de
Richard, quando eu concordara em deixá-lo morrer. No entanto, eu nunca
considerara a possibilidade de que Meredith poderia ser culpada de algo tão
ruim quanto isso — ou de algo pior. Os seis meses anteriores se
estilhaçaram em fragmentos pontiagudos de memória: a luz dançando nos
dentes de Meredith enquanto ela ria, areia e água e um lençol molhado
grudado no corpo dela na praia. Ela, caindo no palco, o sangue escorrendo
por debaixo da manga. Os braços rígidos nas laterais do corpo enquanto
gritava com Richard na cozinha. Os dedos dele, agarrados aos cabelos dela.
Um pedaço de tecido ensanguentado na lareira. Poderia ela ter feito aquilo?
Saído do Castelo enquanto eu dormia no quarto dela, seguido até o cais e o
matado, e então tirado as roupas e se aninhado de volta na cama comigo?
Eu me senti zonzo só de pensar. Só que era absurdo, quase impossível. Eu
certamente teria acordado.
Outra imagem, outro vislumbre, metade sonho e metade memória, voltou
ao meu cérebro sem pedir permissão. O Estúdio Cinco. Ela. James. Fechei
os olhos com força para dissolver aquela imagem, fragmentá-la, como um
desenho na areia. Em meio ao esforço de me distrair, levei o copo dela aos
lábios para sentir as gotas no fundo. Vodca. Saí da mesa e passei pela porta
dos fundos assim que o vento começou a uivar novamente.
As vozes e a música percorriam o Castelo, presas ali pela ventania que
soprava do lado de fora. Na cozinha, Wren e Colin falavam com os alunos
do segundo ano que participaram de Rei Lear. Filippa e Alexander não
estavam em lugar nenhum, e Meredith também desaparecera. Eu me
esgueirei entre uns poucos alunos do primeiro ano, que estavam discutindo
o que fariam no verão sem nenhum entusiasmo, e segui para as escadas.
Wren dissera que a vodca boa estava guardada lá em cima, mas não
especificara onde. Não seria no quarto de Alexander, que fora declarado
uma zona livre de substâncias. A biblioteca parecia ser o local mais
provável. Eu alcancei o topo das escadas e parei, surpreso ao ver que a
biblioteca não estava vazia.
— James.
Ele estava em pé, em cima da mesa, de costas para mim e com as mãos
no bolso. Havia aberto uma janela, e o vento entrava na sala, bagunçando a
barra da camisa, que ele não tinha se dado ao trabalho de abotoar até o fim.
Uma garrafa de vodca estava aberta na mesa ao lado dele, mas não vi um
copo.
— O que você está fazendo? — perguntei.
Todas as velas — que normalmente não acendíamos, considerando a
quantidade de livros naquela sala — queimavam e bruxuleavam aos
caprichos da brisa, lançando sombras que perseguiam umas às outras
através das estantes, chão e teto. Parecia que ele estava se preparando para
uma sessão espírita.
— Dá para ver o galpão de barcos do lago daqui de cima.
— Ótimo — respondi. — Você pode descer? Está me deixando nervoso.
Ele se virou e deu um passo além da beirada da mesa, com a mão ainda
nos bolsos. Caiu com uma graça surpreendente, para alguém que havia
bebido meio litro de vodca em menos de uma hora, e então atravessou a
biblioteca até chegar bem à minha frente. Ele não lavara o rosto desde a
peça — o pó pálido e o lápis preto borrado sob os olhos davam a impressão
de que os olhos dele estavam se afundando cada vez mais para dentro do
crânio.
— Uma palavra, irmão — disse ele, com um olhar malicioso estranho.
— Tá, mas podemos fechar a janela primeiro?
— Tranque as portas, senhor: é noite perversa.
Passei por ele, fui até a janela, e a fechei.
— Você está estranho.
— A fria noite nos fará tolos e loucos.
— Pare com isso. Não estou entendendo.
Ele suspirou, dizendo:
— Mandam-me ao açoite por falar a verdade; tu me açoita por mentir; e
às vezes por ficar calado.
— O que está acontecendo com você?
— Ah, tão doente!
— Parece mais bêbado.
— Por obediência forçada de influência planetária! — disse ele de
forma insistente. — E olhe! Ele vem, como o caos de velhas comédias.
Ele subiu de volta na mesa e ficou sentado com as pernas balançando
pela lateral. Eu nunca o vira tão bêbado e, sem saber o que fazer, resolvi
continuar a conversa.
— Diga-me, irmão Edmund? — perguntei. — Qual séria reflexão
entretém?
— Penso, irmão, numa previsão que li — disse ele. — Morte, fome,
amizades finitas, ameaças e maldizeres, exílio de amigos, rompimentos
matrimoniais e não sei o que mais.
— Perde tempo com tal matéria?
Ele pulou para várias falas adiantes.
— Se for viajar, leve armamento.
— Armamento, irmão?
— Aconselho pelo melhor. Vá armado. Faltaria com sinceridade.
Fiquei esperando pela palavra “se”, que deveria ter seguido, mas nunca
veio. Ele pulou novamente, disparatado.
— Relatei o que vi e ouvi, mas meramente, pois nada como o horror da
imagem.
Ele pulou novamente da mesa e correu até a janela, escancarando-a de
novo.
— Ele chega agora, apressado na noite!
Ele agarrou o parapeito, os dedos brancos, se inclinando o máximo que
conseguia para fora, os olhos percorrendo de um lado ao outro os galhos
vazios esbranquiçados das árvores.
— Estava aqui no escuro, espada em punho.
Eu coloquei uma mão no ombro dele, com medo de que ele caísse se
inclinasse muito mais para a frente.
— Mas onde está ele? — perguntei.
De quem ele estava falando? Richard? Ele não estava só brincando —
dava para distinguir, pela forma que respirava, encarava, sem piscar.
Ele passou uma mão pelo rosto, arfando.
— Veja, há sangue em mim!
Ele estendeu a palma nua e a empurrou no meu rosto. Eu a afastei com
um tapa, a paciência rapidamente se esgotando.
— Onde está o vilão, Edmund? — perguntei.
Ele abriu um sorriso louco, ecoando:
— Onde está o vilão, Edmund? Uma pausa, para pontuação, certo? Só
que não do dramaturgo. As vírgulas pertencem aos intérpretes. Onde está o
vilão Edmund? Aqui, senhor, mas não o incomode.
— Você está me assustando — eu falei. — Para com isso.
Ele sacudiu a cabeça, o sorriso diminuindo até desaparecer.
— Imploro que vá — disse ele.
— James, só fale comigo!
Ele me empurrou para trás.
— Peço que vá! Estou a seu serviço nesse assunto.
Ele passou por mim, foi rapidamente até a porta. Eu corri atrás dele,
peguei-o pelo braço, e o puxei para olhar de novo para mim.
— James! Pare!
— Pare! Sem ajuda? O inimigo está aí.
Naquela altura, ele já estava gritando, e bateu uma mão no peito nu, onde
deixou uma marca vermelha e dolorida. Eu me esforcei para continuar
segurando o outro pulso.
— O ciclo está terminado; aqui estou!
— James! — falei, puxando o braço dele. — Do que você está falando?
O que aconteceu?
— Fiz tudo aquilo e muito mais. O tempo revela!
Ele desvencilhou o braço, e alisou a camisa, como se estivesse tentando
limpar as mãos.
— As gotas de sangue em mim / provam meu esforço.
— Você está bêbado. Não está falando nada com nada — decidi,
resistente à ideia de acreditar no contrário. — Se acalme, e nós vamos…
Ele sacudiu a cabeça, lúgubre.
— Já vi bêbados / pior fazerem por risadas.
Ele deu um passo em direção à escada.
— James!
Eu me estiquei para pegar o braço dele novamente, mas ele se mexeu
com muita rapidez, erguendo uma mão para derrubar um par de velas da
estante mais próxima. Eu xinguei, e pulei para fora do caminho.
— Tochas! Tochas! — gritou ele. — Adeus, então!
Ele desceu correndo as escadas e desapareceu. Xinguei mais uma vez, e
apaguei as velas. O canto de um fac-símile na estante inferior havia pegado
fogo. Eu o tirei de onde estava próximo aos outros, e abafei as chamas com
a ponta do tapete. Quando se apagou, eu me agachei e esfreguei uma manga
na testa, que naquela altura estava úmida de suor, apesar do frio que o ar de
março soprava da janela.
— Puta que pariu. Puta que pariu — murmurei, e me levantei
novamente, estremecendo.
Cruzei a biblioteca e fechei a janela, trancando-a, e então me virei,
encarando a garrafa de vodca na mesa. Estava quase vazia. Meredith, Wren
e Filippa certamente tinham tomado um pouco, mas estavam sóbrias na
maior parte. James nunca fora de beber muito. Ele havia até vomitado na
festa de César, mas… mas então o quê? Ele não tinha sequer bebido na
mesma quantidade naquela noite.
Suas palavras incoerentes ecoaram na sala vazia. Apenas um ator que
divagava, eu disse a mim mesmo. O Método sempre acompanhava a
loucura. Não havia significado nenhum naquilo. Levei a garrafa aos lábios.
A vodca queimou minha língua, mas bebi tudo em um gole terrível. Um
pouco de saliva aguada se acumulou nos fundos da garganta, como se eu
mesmo fosse vomitar.
Apressado, apaguei as velas e desci as escadas, segurando a garrafa,
determinado a encontrar James. Eu o faria marchar até o ar gélido e o
manteria ali até que estivesse sóbrio o bastante para falar alguma coisa com
sentido.
Quase colidi com Filippa nas escadas.
— Eu estava subindo para pegar a vodca — disse ela. — Jesus, você
bebeu tudo isso sozinho?
Sacudi a cabeça.
— Foi o James. Cadê ele?
— Meu Deus, não sei. Ele passou pela cozinha há um minuto.
— Certo — falei.
Ela pegou a manga da minha camisa quando tentei passar por ela.
— Oliver, o que aconteceu?
— Não sei. James está tendo um surto. Eu vou ver se consigo encontrá-lo
e descobrir o que está acontecendo. Cuide dos outros, tá?
— Tá — disse ela. — Tá. Claro.
Eu coloquei a garrafa na mão dela.
— Esconda isso — falei. — Definitivamente é tarde demais para James,
e pode ser tarde demais para Meredith, mas mantenha Wren e Alexander
sóbrios se você conseguir. Estou com uma sensação estranha sobre essa
noite.
— Está bem — concordou ela. — Ei. Toma cuidado.
— Com o quê?
— Com James. — Ela deu de ombros. — Você mesmo disse que ele não
parece bem. Só… lembre o que aconteceu da última vez.
Eu continuei encarando até perceber que ela estava falando do meu nariz
quebrado.
— Pode deixar — disse. — Obrigado, Pip.
Passei por ela, saí do saguão e fui para a cozinha. As únicas pessoas ali
eram alunos do terceiro ano, na maior parte da turma de teatro. Eles
pararam de falar e olharam para mim quando entrei. Colin não estava entre
eles, então resolvi me dirigir ao grupo, erguendo a voz o bastante para
conseguir ser ouvido por cima da música que ecoava da sala vizinha.
— Algum de vocês viu James?
Nove entre os dez sacudiram a cabeça, mas a última apontou para a porta
da frente e disse:
— Foi por ali. Para o banheiro, provavelmente.
— Valeu.
Eu assenti para ela, e segui o caminho indicado. O saguão estava escuro e
vazio. O vento rugia contra a porta da frente, sacudindo os painéis da janela
das laterais. A porta do banheiro estava fechada, mas uma luz espreitava
por debaixo da madeira, e eu a abri sem bater.
A cena ali era ainda mais estranha e desconcertante do que a com que eu
havia deparado na biblioteca. James estava debruçado sobre a pia, o peso
nos punhos, os nós dos dedos da mão direita cortados e sangrando. O
espelho estava rachado ao meio, de um canto a outro, uma fissura enorme e
fractal se esticando em linhas retorcidas, e uma faixa preta no balcão levava
à ponta de um rímel sem tampa. O tubo tinha rolado para o chão e brilhava
junto ao rodapé, roxo-metálico. Era de Meredith.
— James, que porra é essa? — perguntei, sentindo um formigamento na
coluna.
Ele ergueu a cabeça abruptamente, como se não houvesse escutado a
porta abrir e não soubesse que eu tinha entrado.
— Você quebrou o espelho? — perguntei.
Ele olhou para o objeto, e então para mim.
— Que azar.
— Eu não sei o que está acontecendo, mas você precisa falar comigo —
eu disse, distraído pelo latejar do meu batimento cardíaco nos ouvidos e os
baques díspares da música passando pelas paredes, que persistiam,
desimpedidos. — Eu só quero ajudar. Deixa eu te ajudar, tá?
O lábio dele estava tremendo quando ele o puxou para trás dos dentes,
mas os braços também estavam trêmulos, como se não aguentassem o peso
dele. A rachadura rasgava o rosto dele em quatro pedaços diferentes no
reflexo. Ele sacudiu a cabeça.
— Não.
— Vem. Me conta. Mesmo se for ruim, mesmo se for ruim de verdade.
Vamos encontrar um jeito de consertar. — Percebi que eu estava
implorando, e engoli em seco. — James, por favor.
— Não.
Ele tentou sair, mas eu bloqueei o caminho.
— Me deixa ir embora! — insistiu.
— James! Espera…
Ele atirou o peso contra mim, pesado e bêbado. Eu me apoiei na porta
com um braço, e o peguei ao redor dos ombros com o outro. Ele me
empurrou com mais força quando sentiu a minha mão, e eu o esmaguei
contra mim, lutando para impedi-lo de me afastar, até nós dois cairmos ao
chão.
— Me solta! — disse ele, a voz abafada de onde o rosto estava esmagado
na curva do meu braço.
Ele se debateu contra mim por mais um momento, mas de alguma forma
eu o tinha em um aperto firme, os braços dele presos entre nós, as mãos
empurrando futilmente meu peito. De repente, ele parecia tão pequeno.
Como era fácil para mim dominá-lo.
— Só depois que você falar comigo.
Minha garganta se apertou, e eu temi que fosse chorar, até perceber que
James já estava chorando, soluçando, na verdade, sorvendo o ar de forma
desajeitada, fazendo os ombros dele estremecerem e se debaterem no meu
aperto. Nós ficamos naquela posição, que de alguma forma se tornou um
abraço, até que ele ergueu a cabeça, e o rosto dele ficou próximo demais do
meu. Ele se desvencilhou de mim, então cambaleou de volta para o saguão
e disse, com a mesma raiva de uma criança petulante:
— Não me siga, Oliver.
Só que eu o persegui, cegamente, de forma idiota, como um homem em
um sonho, impelido por alguma força grande e misteriosa a seguir adiante.
Eu o perdi em meio à turba de pessoas dançando na sala de jantar, as luzes
nebulosas e indistintas, azuis e roxas, as sombras elétricas balançando de
forma frenética de uma parede à outra. Trilhei um caminho entre os
dançarinos, procurando pelo rosto de James no borrão de pessoas. Consegui
um vislumbre enquanto ele entrava pela cozinha, e o segui de perto, quase
caindo em minha pressa de alcançá-lo.
Wren, Colin, Alexander e Filippa haviam se juntado aos alunos do
terceiro ano. James olhou para trás, me viu, e então agarrou o braço de
Wren e a puxou para longe dos outros.
— James! — guinchou ela, tropeçando atrás dele. — O que você está…
Ele já a estava arrastando para fora da cozinha, na direção da escadaria
que levaria à Torre.
— Não… — falei, mas ele falou por cima de mim.
— Wren, venha comigo para a cama, por favor.
Ela parou, e todos nós congelamos ao redor dela, observando. Porém,
tudo que ela via era James. Os lábios dela se moveram, sem som, e então
ela gaguejou:
— Sim.
Ele olhou por cima da cabeça dela para mim, algo estranho, amargo e
vingativo na expressão dele, mas por apenas um segundo. Então, ele se foi,
tirando ela da cozinha, levando-a consigo. Incrédulo, tentei segui-los, mas
Alexander me pegou pelo ombro.
— Não, Oliver — disse ele. — Não dessa vez.
Ele, Filippa e eu ficamos nos encarando, enquanto os alunos do terceiro
ano nos olhavam em silêncio. A música continuava, insensível, atrás de nós,
e o vento rugia lá fora. Eu fiquei paralisado no meio do cômodo, perplexo
demais para me mexer ou falar. Perplexo demais para notar que Meredith
não estava ali.
CENA 3

Acordei sozinho no quarto de Filippa. Depois que James desaparecera Torre


adentro junto de Wren, eu passara a noite perambulando pelo Castelo como
um sonâmbulo, me perguntando para onde Meredith tinha ido e mais
preocupado do que eu ousaria confessar para qualquer um. Quando tudo
finalmente ficara vazio e todo mundo estava na cama, cheguei à conclusão
angustiante de que ela não voltaria. Às três e meia, batera na porta de
Filippa. Ela abrira, vestindo uma camisa de flanela grande demais e meias
de lã que chegavam até a altura das panturrilhas.
— Não posso voltar para a Torre — eu dissera. — Não sei onde Meredith
está. Não quero dormir sozinho.
Eu enfim compreendia aquele sentimento.
Ela abrira a porta, me pusera na cama e se encolhera em posição fetal ao
meu lado sem dizer uma só palavra. Quando eu começara a tremer, ela se
aproximara mais, passando um braço em cima de mim, e adormecera com o
queixo apoiado no meu ombro. Eu ficara escutando a respiração dela,
sentindo o coração bater nas minhas costas, e tentando me enganar,
pensando que, quando acordássemos, tudo teria voltado ao normal. Porém,
que tipo de normal nós possuíamos, para podermos retornar a ele?
Pela manhã, todo mundo se fora. Não sabia para onde, mas eles
esperavam voltar para uma versão do Castelo que estivesse limpa e
organizada, de onde todos os indícios da festa houvessem desaparecido.
Precisava de distração como se fosse uma droga, algo para ocupar minha
mente e exauri-la, para impedi-la de vagar novamente ao labirinto da
memória da noite anterior. Assim, passei horas engatinhando no chão,
atordoado pelo cheiro do cloro, as mãos em carne viva de tanto esfregar. A
mim, parecia que o Castelo não fora limpo daquele jeito havia anos, e eu
ataquei a sujeira que havia se acumulado nas reentrâncias entre as tábuas do
assoalho, possuído pela ideia de que eu poderia expurgar aquele lugar,
batizá-lo, absolvê-lo de todos os pecados e reconstruí-lo.
Da cozinha passei para o banheiro do térreo, a sala de jantar e o saguão.
Não havia nada que eu pudesse fazer para consertar o espelho quebrado —
precisaria entrar em contato com a equipe da limpeza no Pavilhão —, mas
limpei a mancha vermelha do sangue de James, o corte preto do rímel de
Meredith. O tubo ainda estava no chão. Eu o peguei e guardei no bolso, me
perguntando quando teria a chance de devolver aquele pertence.
Subi as escadas, com o pano e o desinfetante na mão, e, quando cheguei
ao segundo andar, meus joelhos estavam doendo. Não conseguia consertar a
marca de queimadura no tapete da biblioteca, então deixei como estava.
Limpei o banheiro, passei pano no corredor, esfreguei as janelas dos quartos
e arrumei o que conseguia sem desarrumar as coisas de ninguém. Fiz a
cama no quarto de Filippa. Ver a cama de Wren, lisa e intocada, fez meu
estômago se embrulhar tanto que mais parecia um nó. Fechei a porta e não
entrei. O quarto de Alexander estava tão bagunçado que eu não conseguia
fazer nada. Olhei embaixo da cama dele e verifiquei as gavetas, em busca
de qualquer indício de uso de drogas, mas não encontrei nada. (Ele havia
aprendido a lição, eu esperava.) O quarto de Meredith estava igual ao que
deixáramos, abarrotado, mas não caótico: livros empilhados na
escrivaninha, taças de vinho vazias na mesa de cabeceira, roupas jogadas ao
pé da cama. Não encontrei o vestido que ela usara na noite anterior.
Quando saí de lá, a porta de Richard parecia me observar do fim do
corredor. Alguém a fechara depois que ele morrera e, pelo que eu sabia,
nenhum de nós a abrira desde então. Pisquei, sem ter certeza se me
lembrava da aparência do quarto dele. Sem perceber o que fazia, tomei a
decisão de me mexer, andei pelo corredor e virei a maçaneta. A porta abriu
sem protestos, sem nem mesmo um rangido. A luz da tarde, tocada pelos
raios rosados do crepúsculo, entrava em feixes pela janela e repousava na
cama. O resto do quarto estava sob um tom de azul-acinzentado, esperando
pacientemente pelo cair da noite. Muitas das coisas dele ainda estavam lá;
livros em capa dura, despidos sem as capas protetoras, organizados na
estante acima da cama, e o relógio (eu sabia, sem querer saber, que
Meredith o presenteara no aniversário dele no terceiro ano) estava
descartado na escrivaninha. Um par de luvas de boxe de couro marrom
estava pendurado no canto de um armário, e ali dentro eu via uma fileira de
cabides, as regatas brancas que ele gostava tanto de usar suspensas ao lado
de camisas de botão que de fato amassavam. Um carinho antigo e esquecido
me tomou, e eu desviei o olhar, procurando por algo que pudesse me
lembrar do motivo pelo qual seria um tolo por me arrepender, por sequer
um minuto, de que ele se fora. Uma coleção de peças de xadrez de madeira
estava parada como uma fileira de soldados aguardando ordens no parapeito
da janela. Estavam todas em pé com exceção do cavalo branco, um dos
quais estava derrubado. O outro não estava no lugar onde deveria estar. Me
perguntando se poderia ter caído do parapeito, eu me abaixei para olhar
debaixo da cama e senti a voz minúscula e abafada de minha consciência
protestar. Um par de sapatos estava lá embaixo, torto de onde ele os
chutara, os cadarços emaranhados. Eu o conhecia bem o suficiente para
saber que ele nunca os teria deixado daquele jeito se pensasse que não
voltaria mais.
O luto tomou conta de mim tão abruptamente que pensei que fosse
desmaiar. Ele estava lá, naquele quarto onde nós tentáramos trancá-lo,
fechado para que não fosse visto, com todos nossos pecados mortais para
servirem de companhia. Eu me coloquei de pé, cambaleando, tropecei de
volta para o corredor e bati a porta.
Subi as escadas até a Torre, incerto do que encontraria lá, mas
desesperado para abrir o máximo de distância possível entre mim e o quarto
de Richard. À primeira vista, tinha a mesma aparência de sempre, e por um
instante fiquei parado, oscilando no batente, procurando por um conforto na
familiaridade dócil. Nosso pequeno quartinho no sótão, com as duas camas,
duas estantes, dois guarda-roupas. Quando minhas pernas pareceram mais
firmes, eu entrei. Minha própria cama bagunçada eu arrumei com um
cuidado meticuloso, adiando a travessia inevitável que faria para o lado de
James. Quando não consegui encontrar nada mais para arrumar, nada para
dobrar, nada para esconder em uma gaveta ou encobrir dentro do guarda-
roupa, fui do meu lado para o dele.
Endireitei os livros, espanei o pó das cortinas, peguei o lápis que caíra da
prateleira e rolara para o chão. O lado de James era sempre infalivelmente
asseado, sempre fora, e não havia muito com o que me ocupar. Por fim,
finalmente fui para os lençóis, e estiquei o de baixo, alisando-o no colchão,
tentando não pensar nele e em Wren, e como cada vinco e cada sulco fora
pressionado no lugar.
Um canto do lençol estava dependurado debaixo do colchão. Eu me
abaixei para arrumar, mas hesitei quando senti algo inesperadamente macio
entre os dedos. Quando ergui a mão, um tufo branco flutuou para longe da
minha palma, caindo no chão novamente. Puxei o canto do edredom de
James até soltá-lo e encontrei outro punhado de tufos de algodão
aglomerados ao redor de uma das pernas da cama, como se tivessem sido
gradualmente varridos até lá por pés que passavam descuidados. Puxei o
lençol mais para trás. Se houvessem percevejos, ou se a mola estivesse
aparecendo, precisaria acrescentar um colchão novo à minha lista de
pedidos para a equipe de manutenção.
Puxei o lençol de elástico do pé da cama. Havia um rasgo na parte de
baixo do colchão, como uma boca sorrindo, de uns quinze centímetros.
Verifiquei o estrado à procura de um prego solto, alguma farpa
protuberante, mas não encontrei nada que pudesse rasgar o tecido. O rasgo
estava aberto, rindo de mim, e eu não percebi que estava me aproximando
mais até ver uma mancha vermelha estreita ao final do corte, como um
traço de batom. Eu fiquei encarando o colchão por um instante, como se
estivesse paralisado no lugar. Então, enfiei a mão no buraco.
Tateei por um emaranhado de molas e algodão e espuma até encontrar
algo indiscutivelmente sólido. Não saiu com facilidade — alguma coisa
estava emperrada —, mas, com um bom puxão, finalmente livrei o objeto e
deixei que caísse no chão. Era uma coisa assustadora e preocupante, errada,
naquele lugar — anacrônica, quase gótica, roubada em meio às areias do
tempo de alguma era sombria. No fundo de minha mente, eu sabia o que
era: um gancho de barco, curvado na ponta como uma garra, afanado da
prateleira de ferramentas nos fundos do galpão de embarcações, há tanto
tempo esquecida. A garra e o mastro haviam sido limpos de forma
apressada, mas ainda havia sangue nos sulcos nas carquilhas, rachado e
descamando como ferrugem.
Meus pulmões se debateram à procura de ar. Eu agarrei o gancho do
barco do chão e saí correndo do quarto, uma mão tapando a boca, temendo
que fosse vomitar meu próprio coração ali no chão.
CENA 4

Corri pela floresta até o EBA da mesma forma que fizera algumas semanas
antes, segurando um pedaço de tecido no punho. Corri com o gancho de
barco ao meu lado como uma lança, os pés amassando e revolvendo a terra.
Quando avistei o prédio, percebi o meu erro — eu me esquecera da hora.
As pessoas já estavam se enfileirando lá fora para ver a peça, convidados
com roupas de sair, conversando e rindo, com o programa em mãos. Eu me
agachei e espreitei ao redor do sopé do morro, com a cabeça abaixada.
A porta lateral que levava à escadaria se abriu com um baque. Eu a
segurei quando tentou bater em mim e deixei fechar com mais suavidade, e
então desci as escadas até o porão com tanta rapidez que quase caí. O suor
se acumulava no rosto enquanto eu atravessava aquela maré de mobília
empilhada. Depois de três minutos angustiantes, encontrei a sala onde
estavam os armários, o cadeado aberto me encarando como um único olho
de ciclope. Arrastei a mesa para o lado, retirei o cadeado, e escancarei a
porta. A caneca estava ali, intocada, com aquele pedaço culposo de tecido
enfiado ali como um guardanapo amassado. Enfiei o gancho do barco ao
lado, bati a porta, e chutei até que ela se fechasse, sem me importar com o
barulho que fazia. A tranca rangeu conforme deslizou de volta pelo aro, e
eu coloquei a corrente de volta no lugar sem hesitar. Cambaleei para trás,
encarando o feito, e corri escada acima novamente, o pânico subindo da
sola dos pés ao topo da cabeça como um arroubo quente e delirante.
Passei em disparada por dois corredores nos bastidores, o murmúrio e
ruído do público atravessando as paredes. Na travessia, dois alunos do
segundo ano passaram apressados por mim para chegar às coxias,
apontando e sussurrando conforme eu marchava. Escancarei a porta do
camarim, e todo mundo ergueu o olhar de súbito.
— Porra, onde você estava? — exigiu Alexander.
— Desculpe! — falei. — Eu só… Eu explico depois. Cadê meu figurino?
— Bom, o Timothy está usando, caralho, porque a gente não sabia onde
você estava!
Eu me virei no lugar e encontrei Timothy (um aluno do segundo ano que
normalmente interpretava o criado traiçoeiro do Duque de Albany), em pé,
esverdeado de náusea, segurando o texto em mãos.
— Puta merda, me desculpa — falei. — Tim, me dá isso.
— Graças a Deus — respondeu ele. — Graças a Deus, cacete, eu estava
tentando aprender as falas…
— Me desculpa, aconteceu uma coisa …
Vesti as roupas rápido conforme ele as tirava, lutando com as botas, o
cinto da espada, o casaco. As conversas do público que saíam dos alto-
falantes estalaram e por fim cessaram. Um pequeno arfar ondulou do
público, e eu sabia que as luzes estavam acesas no palácio sidéreo de Lear.
KENT: “Pensei que o Rei era mais comovido pelo Duque de Albany do
que Cornwall.”
GLOUCESTER: “E tal nos pareceu; mas agora, na divisão do reino, não se
considera mais qual Duque tem maior apreço, pois as partes foram pesadas
tão precisamente que nada um ganha sobre o outro.”
KENT: “Esse não é seu filho, senhor?”
Olhei para Alexander, que estava de joelhos, amarrando os cadarços das
minhas botas enquanto eu me atrapalhava com os botões do casaco.
— James já está no palco? — perguntei.
— Óbvio.
Ele puxou os cadarços com tanta força que eu quase me desequilibrei.
— Fique parado, seu desgraçado — mandou.
— E Meredith?
Peguei o lenço do pescoço.
— Nas coxias, presumo.
— Então ela está aqui — falei.
Ele ficou em pé e começou a encaixar o meu cinto no passante.
— Por que não estaria?
— Não sei.
Meus dedos estavam atrapalhados, instáveis, sem conseguir formar o nó
familiar.
— Ela passou a noite fora — expliquei.
— Se preocupe com isso depois. Agora não é a hora.
Ele apertou o meu cinto com força demais e agarrou as luvas do balcão.
Eu olhei no espelho. Meu cabelo estava desgrenhado, e o suor brilhava nas
bochechas.
— Você está com uma aparência horrível — disse ele. — Está doente?
— Estou doente de tanto pensar — respondi, antes que pudesse me
impedir.
— Oliver, mas que…
— Deixa para lá — falei. — Preciso ir.
Saí na travessia antes que ele pudesse falar mais uma vez. A porta se
fechou pesadamente atrás de mim, e eu esperei com a mão na maçaneta,
forçando-me a ficar parado pela concentração enorme da qual eu
necessitava, naquele momento, apenas para respirar. Fechei os olhos, a
mente esvaziada de tudo que não fosse o ato de inspirar e expirar, até que a
última fala da primeira cena me trouxe de volta à vida. A voz de Meredith,
baixa e resoluta, ecoou:
— Algo devemos fazer.
Cambaleei pela fileira de cabos, naquele escuro impiedoso dos
bastidores, até que meus olhos se ajustaram ao brilho suave do abajur no
canto da concentração. O assistente me viu, e sibilou no fone com
microfone que usava:
— Som? Estamos com um Edgar. Não, o original. Um pouco
descabelado, mas está pronto.
Ele cobriu o microfone com a mão, murmurando:
— A Gwendolyn vai comer o seu cu, amigo.
Então, ele voltou a atenção para o palco novamente. Por um breve
momento, eu me perguntei o que ele diria se eu contasse que, naquele
momento, Gwendolyn era a menor das minhas preocupações.
No palco, James estava parado, a cabeça abaixada em deferência ao pai.
GLOUCESTER: “Vimos o melhor do nosso tempo. Maquinações, vazio,
traição, e todas as desordens de ruína nos seguirão ao túmulo. Encontre o
vilão, Edmund…”
A boca de James estremeceu, e eu me lembrei da repetição aflitiva da
noite anterior. Gloucester terminou o discurso e passou pelo chão estrelado
até a coxia oposta.
— Eis — disse James assim que ele desapareceu — a grande tolice do
mundo: quando doentes em fortuna (muitas vezes dívida de nossas próprias
ações), entregamos a culpa de nossos desastres ao sol, à lua, às estrelas…
como se fôssemos vilões pelo acaso; tolos por compulsão celestial; ladrões,
pilantras e traidores por predominância terrena; bêbados, mentirosos e
adúlteros por obediência forçada à influência planetária; e como se a
culpa de tudo mais em que somos vis fosse de tentação divina!
Ele olhou aos céus, cerrando o punho, que sacudiu para as estrelas. Uma
risada brotou de seus lábios, ecoando nos meus ouvidos, audaciosa e
incontida.
— Como é admirável o desvio da podridão humana de atribuir aos
astros sua disposição perversa!
Ele ergueu um dedo, apontando para uma única constelação em meio a
centenas, e continuou a falar de forma pensativa.
— Meu pai se acasalou com a minha mãe sob o rabo do Dragão, e nasci
sob a Ursa Maior. Em consequência, sou grosseiro e depravado.
Ele riu mais uma vez, mas dessa vez era uma risada amarga. Troquei o
peso de pé no lugar, todos os cabelos na nuca arrepiados.
— Ainda seria o que sou, mesmo que a mais pura das estrelas no céu
brilhasse no meu bastardamento. Edgar…
Ele hesitou, fosse por incerteza da minha presença ou por outra
inquietação maior. Não saberia dizer. Surgi em meio ao nosso mundo
estrelado com um passo cauteloso.
— Diga-me, irmão Edmund? — perguntei, pela segunda vez em menos
de dezoito horas. — Qual séria reflexão entretém?
Nós passamos tranquilamente pela mesma conversa que tivéramos na
noite anterior em pedaços decepados, pouco a pouco. O rosto de James
poderia ser uma máscara. Ele dizia as falas tão tranquilamente quanto
sempre o fizera, alheio à incredulidade, ao medo e à fúria que ameaçavam
me dilacerar cada vez que eu o olhava. Minhas palavras saíram ríspidas e
severas quando eu disse:
— Algum vilão me trapaceou!
— É o que temo — respondeu ele, lentamente, mas, ao continuar, voltou
a deslizar naquela mesma fala arrastada e sedosa.
Esqueci qual era a rubrica, e fiquei parado, imóvel, minhas respostas
mecânicas e monótonas.
Quando ele terminou novamente, eu disse, brusco:
— Em breve terei notícias suas?
— Estou a seu serviço nesse assunto — disse ele.
Era minha vez de partir, mas eu não o fiz. Esperei tempo demais, tempo o
suficiente para que ele fosse forçado a olhar além de Edgar, e me ver em
vez disso. O reconhecimento passou nos olhos dele e, com isso, uma faísca
de medo. Eu me virei para ir embora e, enquanto eu andava na direção das
coxias, eu o ouvi falar de novo, um pouco mais baixo.
JAMES: “… um nobre irmão,
    Cuja natureza abomina o mal,
    Que de nada suspeita,
    E a tola honestidade em mim confia.”
De repente, aquela bravata parecia falsa. Ele sabia o que eu sabia. Por
enquanto, era o suficiente. A peça seguiria, aos tropeços.
CENA 5

Esperei por dez cenas, ou cerca disso, no camarim até que James
aparecesse. Ele nunca apareceu, mas eu sabia que não deveria procurar nas
coxias. O tipo de confronto que estávamos destinados a ter não poderia ser
confinado às vielas e passarelas dos bastidores. O intervalo seria minha
melhor chance de encontrá-lo antes que fugisse. Enquanto a última cena do
Ato III se aproximava do clímax violento, eu saí da cadeira, vestindo uma
jaqueta sobre o torso despido. Os trapos de louco me faziam sentir nu e
vulnerável.
A travessia estava vazia, as luzes brilhando com um tom amarelado
outonal. Eu estava esticando a mão para a porta dos bastidores quando
Meredith surgiu do outro lado do corredor. Eu não pusera os olhos nela em
toda aquela noite e, por um instante, fiquei congelado no lugar. Ela parecia
uma princesa grega, drapeada em chiffon e voil azul-claro, um aro de ouro
circulando a testa, os cachos caindo soltos pelas costas. Eu me virei e andei
diretamente até ela, incerto de quando a encontraria novamente, ou o que o
resto da noite traria. O som dos meus passos fez ela erguer o olhar, e uma
expressão de surpresa passou pelo rosto antes de eu alcançá-la e beijá-la, da
forma mais profunda que eu ousava.
— Por que isso agora? — perguntou ela, quando me afastei.
Ela sabia que era linda. Eu não precisava dizer isso.
— Sabe, você me assusta de verdade — falei, segurando o tecido do
vestido para mantê-la ali comigo.
— Como assim?
— Não sei, é como se eu olhasse para você e de repente os sonetos
fizessem sentido. Os bons, pelo menos.
Seja lá o que qualquer um de nós esperava que eu falasse, não era aquilo.
Ela enrubesceu, e uma pequena pontada de prazer me percorreu —
improvável, inexplicável, considerando todas as outras circunstâncias
daquela noite. Porém, foi extinguida como a chama de uma vela, soprada da
existência pelo ar da dúvida.
— Onde você estava ontem à noite? — perguntei.
Ela desviou o olhar.
— Eu só… precisava ir a um lugar.
— Não entendo.
— Eu vou te contar — disse ela, traçando o osso da minha clavícula com
um dedo, distraída. — Hoje à noite. Depois.
— Está bem.
Eu não conseguiria deixar de me perguntar se haveria tempo para depois.
Qual era o significado daquele “depois”.
— Depois — concordei mesmo assim.
— Preciso ir.
Ela afastou meu cabelo da testa, um gesto afetuoso da parte dela, que me
era familiar e perpetuamente aguardado. Porém, minhas apreensões e
desassossegos fizeram meus joelhos tremerem.
— Meredith — eu disse, enquanto ela seguia na direção do camarim
feminino.
Ela parou na porta.
— Aquele outro dia, na aula… — Eu não queria dizer em voz alta, mas
não conseguia me impedir. — Não beije James daquele jeito de novo.
Ela me encarou, uma incompreensão vazia no rosto por um momento, e
então o olhar dela endureceu.
— De quem você está com ciúmes? — perguntou ela. — Dele ou de
mim?
Ela emitiu um ruído baixo de asco, e desapareceu pela porta antes que eu
pudesse responder. Minha garganta se apertou. O que eu tinha intenção de
fazer? Protegê-la, avisá-la do perigo ou o quê? Bati a mão aberta na parede,
e o impacto ressoou, dolorido.
Aquilo precisaria esperar. O Ato III estava acabando, e eu ouvia Colin
arfar pelos alto-falantes.
COLIN: “Fui ferido. Siga-me, senhora.
Expulsem o cego vilão! Atirem-no
Na imundice. Regan, sangro aqui.
Antes da minha hora. Dê-me o braço.”
Esperei pela porta do lado esquerdo, as costas achatadas contra a parede.
As luzes se apagaram e o público aplaudiu, primeiro fraco, e então com um
fervor maior, aturdido pela imagem dantesca dos olhos arrancados de
Gloucester. Os alunos do segundo ano se espalharam pelas coxias e
passaram apressados sem me ver. Então, Colin, e depois Filippa. Por fim,
James.
Eu o agarrei pelo cotovelo, e o levei para longe dos camarins.
— Oliver! O que você está fazendo?
— Precisamos conversar.
— Agora? — disse ele. — Me solte, está me machucando.
— Estou?
Eu segurava o braço dele com um pulso firme e brutal — era maior do
que ele e, pela primeira vez, eu queria que nós dois tivéssemos uma
consciência profunda daquele fato.
Abri a porta do corredor com um empurrão, puxando-o atrás de mim.
Meu primeiro pensamento fora o local de carga e descarga, mas Alexander
e alguns dos alunos do segundo e terceiro ano teriam saído para fumar.
Considerei o porão, mas não queria ficar encurralado lá embaixo. James fez
duas ou três perguntas — todas variações do mesmo tema; para onde
estávamos indo? —, mas eu ignorei todas e ele recaiu em silêncio, o pulso
acelerando sob meus dedos.
O gramado atrás do Pavilhão era vasto e reto, o último lugar aberto antes
que o chão se inclinasse para baixo na direção das árvores. O céu
verdadeiro era enorme acima de nossa cabeça, fazendo os espelhos e as
luzes do palco parecerem ridículas — a tentativa fútil do homem de imitar a
arte de Deus. Quando estávamos longe o bastante do EBA para que eu me
tranquilizasse de que não seríamos vistos no escuro, e muito menos
ouvidos, soltei o braço de James e o empurrei para longe de mim. Ele
tropeçou, recuperando o equilíbrio, e olhou nervoso para a queda íngreme
do morro atrás dele.
— Oliver, estamos no meio de uma apresentação — disse ele. — O que
você quer?
— Eu encontrei o gancho.
De repente, desejei que o vento uivante da noite passada voltasse. A
imobilidade do mundo sob o domo escuro do céu era sufocante,
insuportável.
— Eu encontrei o gancho enfiado dentro do seu colchão — eu disse.
O rosto dele ficou pálido como ossos sob a luz crua da lua.
— Eu posso explicar.
— Pode mesmo? — perguntei. — Porque eu preciso abrir o Ato IV, então
você tem uns quinze minutos para me convencer de que isso não é nada do
que eu estou achando.
— Oliver… — disse ele, desviando o rosto.
— Me diga que você não fez isso.
Arrisquei dar um passo para a frente, temendo erguer a voz acima de um
sussurro.
— Me diga que você não matou Richard — insisti.
Ele fechou os olhos, engolindo em seco, e disse:
— Não era minha intenção.
Um punho de aço se fechou em meu peito, tirando todo o ar dos pulmões.
Meu sangue ficou gelado, arrastando-se pelas veias como morfina.
— Meu Deus, James, não.
Minha voz falhou. Rachou ao meio. Ficou sem som nenhum.
— Eu juro, não era minha intenção… você precisa entender — disse ele,
andando desesperado na minha direção.
Dei três passos para trás, cambaleando, onde ele não poderia me alcançar.
— Foi um acidente, exatamente como dissemos… foi um acidente,
Oliver, por favor!
— Não! Não chegue mais perto — eu disse, forçando as palavras quando
sequer havia ar para elas. — Fique longe. Me conte o que aconteceu.
O mundo pareceu parar no eixo, como um pião equilibrado
precariamente na ponta. As estrelas brilhavam, cruéis, estilhaços de vidro
espalhados pelo céu. Cada nervo em meu corpo entrara em um curto-
circuito, encolhendo-se do toque do ar frio de março. James era ainda mais
frio, esculpido do gelo, não era meu amigo, sequer era humano.
— Depois que você subiu para o quarto com Meredith, aconteceu uma
coisa com Richard — disse ele. — Foi como no Halloween, mas pior. Ele
saiu agitado do Castelo com um… ódio incontrolável. Você deveria ter
visto. Era como ver a explosão de uma estrela.
Ele sacudiu a cabeça, lentamente, o terror e a reverência indistinguíveis
na expressão.
— Wren e eu estávamos sentados na mesa. Não fazíamos ideia do que
estava acontecendo, mas então ele apareceu, com aquele olhar no rosto que
dizia que esmagaria qualquer coisa que entrasse em seu caminho. Ele estava
indo na direção da floresta, para fazer sabe-se lá o quê, e Wren tentou
impedir.
Ele fraquejou, fechando os olhos com força, como se a lembrança fosse
próxima demais, ardida demais, uma dor excruciante.
— Meu Deus, Oliver. Ele a agarrou, e eu juro que pensei que ele fosse
parti-la ao meio, mas ele a jogou na grama, a arremessou pelo jardim. E
então ele saiu batendo os pés até as árvores, e deixou ela lá, soluçando. Foi
horrível. Tentei acalmá-la como pude, e Pip e eu a colocamos na cama. Só
que ela não parava de chorar, e ficava dizendo “vá atrás dele, ele vai se
machucar”. Então eu fui.
Abri a boca, incrédulo, mas ele não me deu a chance de dizer uma
palavra.
— Você não precisa me dizer o tamanho dessa idiotice — disse ele. —
Eu sei. Eu sabia na época. Mesmo assim, eu fui.
— E você o encontrou.
Eu já conseguia ver a cena se desdobrando. Uma discussão. Uma
ameaça. Um empurrão. Algo além.
— Não a princípio — disse ele. — Cambaleei na escuridão como um
idiota, chamando o nome dele. Então, tive a ideia de que ele talvez tivesse
descido até o cais.
Ele deu de ombros, e o gesto era tão patético e impotente que senti o nó
em meu peito afrouxar, só um pouco.
— Desci o morro, mas não o vi. Cheguei até o galpão de embarcações, só
para ter certeza de que ele não tinha feito alguma estupidez, como pular na
água, e, quando me virei para voltar para casa, ele estava lá. Ele estava me
seguindo aquele tempo todo na floresta, como se fosse uma brincadeira
doentia.
Ele estava falando mais rápido naquela altura, todas as palavras que
prendera por meses saindo como uma enchente, todas de uma vez.
— E eu disse: “Aí está você. Vamos voltar, sua prima está devastada”. E
ele disse, bom, você pode adivinhar o que ele disse, que foi “Você não
precisa se preocupar com a minha prima”. Então eu falei: “Ótimo. Está todo
mundo chateado. Vamos voltar e resolver isso”. E ele me lançou aquele
olhar de novo… Meu Deus, Oliver, há semanas que sonho com isso. Era
como se todo o ódio do mundo estivesse condensado ali. Alguém já olhou
para você dessa forma?
Por um instante, aquele mesmo medo estupefato pareceu dominá-lo, mas
então ele sacudiu a cabeça e continuou:
— E foi aí que começou. Os empurrões. As… provocações.
A voz dele ficou esganiçada, em um tom nervoso e agudo, e ele esfregou
os braços, batendo um pé no chão como se não conseguisse esquentar o
próprio corpo.
— E ele não parava. Era que nem no Halloween, tudo de novo. Vamos,
vamos brincar. Eu não mordi a isca, e só ficou pior. Por que você não
revida? Por que não suja suas mãos? Vamos brincar, pequeno príncipe,
vamos brincar. Era só isso para ele, mas eu estava com tanto medo, e eu
tentei, eu disse mais uma vez, por que você só não volta para o Castelo para
conversarmos com a Wren? Vamos falar com Meredith, consertar tudo. E
ele só disse… ele disse…
Ele parou, o rosto corado de um tom escarlate, como se as palavras
fossem tão vis que ele não conseguisse repeti-las.
— James, o que foi que ele disse?
Ele ergueu o olhar subitamente, a cabeça inclinada para trás, a boca uma
linha fina e cruel, os olhos sombrios e impenetráveis. Ele parecia Richard;
até mesmo soava como ele quando falou:
— “Por que você e Oliver não admitem logo que são duas bichas, e
deixam minhas meninas em paz?”
Eu o encarei, a garganta apertada, um suor frio de pavor se esparramando
lentamente pelos braços e pernas.
— Então eu falei — continuou James, com a própria voz —: “não sei
quem te disse isso, mas você não é dono de Meredith, e certamente não é o
dono da Wren. Pode beber até morrer se quiser. Eu estou indo embora”. Só
que ele não me deixou.
— Como assim?
— Ele queria brigar. Não ia me deixar ir embora sem brigar. Tentei
passar por ele, mas ele me agarrou, me jogou na porta do galpão. Não é
uma porta sólida, de tão velha, e eu meio que fui arremessado lá para
dentro, caí no meio de todas aquelas coisas empilhadas lá. E ele veio me
atacar de novo, aí eu só peguei a coisa que estava mais próxima, e era o
gancho.
Ele parou, pressionando a mão nos olhos, como se quisesse apagar aquela
lembrança. Os lábios dele tremiam. O corpo todo tremia.
— E depois?
Eu não queria perguntar, não queria saber, não queria ouvir mais
nenhuma palavra.
— Ele riu — James disse, fraco.
Eu quase escutei o som, a risada perigosa e profunda de Richard,
ecoando na escuridão.
— Ele riu, e disse, vá em frente, bonitinho, pequeno príncipe, eu duvido.
E ele me empurrou de novo. Me empurrou até o fim do cais, dizendo “eu
duvido, eu duvido, você não vai fazer isso”. E eu olhei para trás, e a água
estava bem ali, e tudo que eu conseguia pensar era no Halloween, e quem
iria impedir ele de me afogar dessa vez? E ele não calava a boca,
continuava repetindo que eu não faria nada, duvido, duvido, duvido, e eu…
A mão dele deslizou para cobrir a boca, os olhos arregalados em espanto,
como se apenas naquele momento ele percebesse o que fizera.
— Eu não tinha intenção — disse ele, com um gemido suave, escondido
pela mão. — Eu não queria. Só que eu estava tão assustado e com tanta
raiva.
Eu conseguia ver tudo conforme acontecia. Um golpe bruto, sem
planejamento. O impacto doloroso, sobressaltado. A surpresa com o
respingo de sangue quente no rosto. Richard despencando em câmera lenta
no lago. Um ruído mórbido ao cair na água, seguido de um silêncio mais
mórbido ainda.
— Oliver, eu achei que ele estava morto — disse James, tão baixinho que
eu mal o ouvi. — Eu juro, achei que ele já tinha morrido. E eu não sabia o
que fazer, então eu só… corri. Acho que perdi a cabeça por um segundo.
Corri de volta para as árvores, e acho que teria corrido a noite toda se não
tivesse trombado com Filippa.
Eu me senti entorpecido, congelado, paralisado pelo choque.
— Você fez o quê?
Ele assentiu, distraído, como se não conseguisse se recordar como o resto
tinha acontecido.
— Acho que ela ficou preocupada que eu não tinha voltado ainda e veio
procurar por mim, e eu esbarrei nela. Foi um milagre eu não ter machucado
Filippa, ainda estava com a porra do gancho na mão… não sei o que me fez
levar aquilo embora.
— Ela sabia — falei, o fato travando e repetindo no meu cérebro. — Ela
sabia?
— Ela estava tão calma, quase como se esperasse aquilo. Nem fez
perguntas, na verdade só me levou para dentro e subiu as escadas comigo,
de alguma forma. Eu estava tremendo tanto que ela precisou me ajudar a
me despir, mas, assim que me deixou no banheiro, ela foi queimar todas as
coisas que tinham sangue, e eu só comecei a vomitar e não consegui parar
até…
Ele recaiu em um silêncio abrupto e fez um gesto estranho na minha
direção, como se eu devesse terminar a frase.
— Meu Deus — falei. — Eu.
Meio dormindo, meio despido. Ele. O coração pulsando, abaixado no
chão.
— Você não me contou.
Eu não percebi até que saísse da minha boca, que aquele único fato na
verdade era pior do que todo o resto.
— Por que você não me contou? — insisti.
— Eu não queria que você soubesse — respondeu ele.
Ele deu outro passo na minha direção, e dessa vez eu não andei para trás.
— Filippa eu não sei, talvez ela seja louca, nada a perturba… mas você?
Oliver, você…
A voz dele falhou e, naquela ausência, ele gesticulou para mim
novamente, mas era um pensamento que eu não poderia terminar por ele.
— O que tem eu, James? Não estou entendendo.
Ele deixou que a mão caísse ao lado e deu de ombros daquele mesmo
jeito, sem esperanças e desamparado.
— Eu nunca queria que você me olhasse como está me olhando agora.
E talvez houvesse algum tipo de terror na minha expressão, mas não pela
razão que ele estava pensando. Eu olhei para ele, sob o luar frio, frágil e
pequeno e assustado, e as mil perguntas que haviam me rodeado,
atropelando tudo, cada vez que eu olhava para ele desde o Natal se
derreteram, fundiram-se e encolheram, até que só sobrou uma.
— Oliver?
— Sim — falei, aquela única palavra aceitando tudo de uma única vez.
Não sabia bem quando ele tinha começado a chorar, mas as lágrimas
brilhavam nas bochechas dele. Ele me encarou, descrente e confuso.
— Está tudo bem — eu disse, tanto para ele quanto para mim.
Eu olhei para trás, na direção do EBA, e me acalmou de alguma forma
ouvir Hamlet mais uma vez em minha mente: Estar preparado é essencial.
— Vai ficar tudo bem — eu disse, mesmo que nunca tivesse sentido
menos certeza de qualquer coisa. — Vamos dar um jeito, mas agora
precisamos voltar.
Eu não fazia ideia do que um “jeito” poderia significar, ou como ele
supunha que deveria interpretar aquilo.
— Precisamos voltar e agir como se nada estivesse errado. Precisamos
sobreviver a essa noite, e depois nos preocupamos com isso. Tudo bem?
Alívio… ou esperança… ou alguma outra coisa… finalmente iluminou o
rosto dele.
— Você…
— Sim — respondi, a única resposta possível para qualquer que fosse a
pergunta que ele quisesse saber. — Vamos.
Eu me virei na direção do EBA. Ele segurou meu braço.
— Oliver — disse ele, um ponto de interrogação pendurado ao final do
meu nome.
— Está tudo bem — repeti. — Depois. Vamos dar um jeito.
Ele assentiu, os olhos voltados para baixo, e eu senti os dedos dele
apertarem meu braço com mais firmeza.
— Vamos — falei.
Ele me seguiu na corrida de volta para o teatro. Nós entramos pela porta
lateral e nos separamos: eu fui para as coxias, e ele seguiu pelo outro lado,
para o banheiro, para limpar qualquer indício de aflição do rosto. Naquele
breve momento, eu me perguntei se “bem” ainda poderia ser possível, ou ao
menos alcançável. Porém, é assim que as tragédias como a nossa e Rei Lear
partem corações — ao fazer todos acreditarem que os finais ainda podem
ser felizes, até o último minuto.
CENA 6

A segunda metade da peça passou rapidamente, seguindo em frente de


forma desenfreada. Eu estava agindo de forma tão lunática e distraída
quanto o Pobre Tom deveria estar, mas Frederick e Gloucester devem ter
notado a mudança, já que, ao final do quarto ato, os dois me olhavam de
forma suspeita. O Ato V abriu com James direcionando os movimentos de
seu exército. Ele falava com uma urgência inegável — talvez tão
desesperado quanto eu para encerrar a apresentação, nos trancar na Torre e
descobrir o que faríamos a seguir. Ele falou com Wren, curto, parecendo
não a ver, e tratou Frederick com a mesma apatia fria. Camilo se
aproximou, ladeado por Filippa e Meredith — que parecia tão culpada que
eu poderia acreditar que ela tivesse acabado de envenenar alguém. Eu
espreitei às sombras no palco, esperando minha entrada ao final.
Filippa pareceu rapidamente ficar enojada, e esticou a mão para se apoiar
no braço de Camilo.
FILIPPA: “Ah, que doente!”
MEREDITH (APARTE): “Se não, desconfio da medicina.”
JAMES (PARA CAMILO, ATIRANDO A LUVA AO CHÃO):
“Eis minha permuta. Quem me chama
De traidor, como um vilão mente.”
A voz dele se ergueu para me chamar do meu esconderijo. Os arautos
foram convocados, as trombetas soaram; Filippa caiu ao chão e foi
carregada para fora do palco por um grupo de alunos do segundo ano.
ARAUTO (LENDO): “Se algum homem de caráter ou qualidade na lista do
exército continua a ladear Edmund, suposto Duque de Gloucester, como
traidor é tido. E que se mostre e seja ousado em sua defesa.”
Respirei através do lenço amarrado à minha boca e nariz para me
disfarçar, e então entrei no palco, com uma mão na espada.
EU: “Perdido meu nome está,
 Pelas presas da traição.
 Mas sou nobre como o adversário
 Que vim enfrentar.”
CAMILO: “Quem é o adversário?”
EU: “Quem fala por Edmund, Conde de Goucester?”
JAMES: “O próprio. O que tens a dizer?”
Eu falei toda a litania de seus pecados, e ele escutou com uma atenção
íntima e cativante. Quando respondeu, era sem a malícia costumeira, sem a
arrogância habitual. As palavras eram pensativas, humildemente
conscientes da própria falsidade.
JAMES:   “A ti devolvo as ofensas.
    Que tal mentira odiosa te mate,
    Por mais levemente que me fira,
    E que minha espada leve agora
    Aonde deves estar.”
Desembainhamos as espadas, fazendo mesuras, e nosso duelo final
começou. Nós nos movemos em uníssono, as lâminas brilhando e reluzindo
sob as estrelas artificiais. Comecei a ganhar território, acertando mais
golpes do que recebia, manobrando James na direção da boca estreita da
Ponte. O suor brilhava na testa dele e na cavidade do pescoço, os pés
ficando mais desajeitados. Eu o forcei para a escuridão profunda e hostil da
plateia até que não pudesse ir mais adiante. O último ruído do aço contra o
aço ecoou nos ouvidos, e eu enfiei o florete sob o braço dele. Ele agarrou
meu ombro, arfando, a própria lâmina retinindo ao cair no chão espelhado
da Ponte. Deixei que minha espada também caísse, passei um braço ao
redor das costas dele para apoiar seu peso, e desci o olhar para encontrá-lo
encarando algo ao longe, na penumbra da coxia esquerda. Gwendolyn
estava parada lá, no limiar da luz, a expressão vazia em choque. Holinshed
estava ao lado dela, e o Detetive Colborne estava parado ao lado do reitor, o
distintivo no quadril reluzindo sob a luz estelar de fibra ótica.
Os dedos de James se afundaram em meus braços. Cerrei os dentes e o
abaixei lentamente até o chão. Atrás de nós, Meredith estava sendo levada
às pressas do palco para as coxias. Camilo a observou, o rosto sombrio,
cheio de dúvidas.
MEREDITH: “Não me pergunte.”
CAMILO: “Sigam-na. Findem o desespero.”
Os últimos alunos do segundo ano deixaram o palco. Fiquei abaixado por
cima de James. O tecido roxo que usávamos no lugar de sangue saíra do
colarinho aberto da camisa, e eu o puxei lentamente conforme ele falava.
— Fiz tudo aquilo e muito mais — disse ele. — O tempo revela.
Ele estremeceu sob mim, e eu repousei uma mão no peito dele para
mantê-lo imóvel.
— Mas passou, e eu também. — Um sorriso cansado apareceu na boca
dele. — Mas quem és / para ter a fortuna contra mim? / Se for nobre,
perdoo.
— Troquemos desculpas — disse, abaixando o lenço do rosto. Não havia
nada mais que pudesse reconfortá-lo. — Sou Edgar, filho de teu pai.
Olhei para as coxias. Meredith estava parada ao lado de Colborne,
falando próximo ao ouvido dele. Quando percebeu que eu a observava, ela
fechou os lábios, e lentamente sacudiu a cabeça. Eu me virei de volta para
James.
— Os deuses são justos — falei —, e com vícios nossos provocam.
James deu uma risada destroçada, e eu senti algo no fundo de meus
pulmões romper-se ao meio.
— Falas a verdade — disse ele. — O ciclo está terminado; aqui estou.
Camilo falou algo atrás de nós, mas eu mal o ouvi. Minha próxima fala
devia ser para ele, mas, em vez disso, eu falei para James.
— Ó nobre príncipe, bem sei.
Ele me encarou por um momento, e então ergueu a cabeça e me abaixou
para que eu o encontrasse. Foi quase um beijo fraternal, mas não
inteiramente. Era doloroso demais, frágil demais. Sussurros suaves de
confusão e surpresa espalharam-se pelo público. Meu coração latejava e
doía tanto que eu mordi o lábio dele. Senti a respiração dele prender, e o
soltei, rebaixando-o ao chão mais uma vez. O silêncio se prolongou por
tempo demais. Seja lá qual era a próxima fala de Camilo, ele a esquecera,
então falei mesmo que não fosse minha vez.
— Ouça o conto / e ao fim, que exploda meu coração!
Eu não conseguia me lembrar do resto. Não me importava. Camilo cortou
meu discurso, talvez tentando compensar o lapso prévio, a voz trôpega e
incerta. James estava caído no chão, como se a alma de Edmund o tivesse
deixado, e o que restava da própria vida não fosse o suficiente para fazê-lo
se mexer.
CAMILO: “Se houver mais, maior tristeza,
 Guarde-a. Estou prestes a dissolver.”
Eu não falei mais uma vez. Minha voz estava comprometida. Uma aluna
do segundo ano, percebendo que nem eu nem James diríamos mais uma
palavra, voltou correndo e rompeu o feitiço de paralisia que havia recaído
sobre o palco.
— Ajuda! Ah, socorro!
Deixei que Camilo conversasse com ela. As mortes estavam contadas e
em ordem. Era a hora de James ser carregado para longe, mas nenhum de
nós dois se mexeu, profundamente conscientes do que nos esperava do
outro lado da cortina. Os criados e arautos declararam nossas falas com
vozes incertas e tímidas. Frederick entrou, carregando uma Wren morta nos
braços. Ele também se afundou no chão e, apesar de tudo que poderia ser
feito, caiu morto, subjugado pelo peso do próprio luto. Camilo — o último
bastião do nosso mundo em ruínas — terminou a peça da melhor forma que
conseguiu, com um discurso que deveria ter sido meu.
CAMILO: “Com o peso do passado devemos arcar,
 Diga o que sente, não o que deve falar.
 Os mais velhos sofreram mais,
 Os mais jovens em pouco terão paz.”
As estrelas todas se apagaram de uma só vez. A escuridão inundou o
mudo. O público começou a aplaudir, incerto e lento. Eu me agarrei a James
até que as luzes voltassem, e então o ajudei a ficar em pé. Wren e Frederick
foram reanimados como cadáveres ambulantes. Filippa, Meredith e
Alexander surgiram das coxias, sem erguer os olhos do chão. Nós fizemos
uma reverência rígida, dobrando cintura, e esperamos que as luzes se
apagassem mais uma vez. Quando o fizeram, voltamos em fila às coxias. O
pano caiu atrás de nós, um farfalhar pesado de veludo, abafando o vozerio
humano suave da plateia — que ficava em pé, recuperando aos poucos.
As luzes do teatro voltaram a se acender. Os alunos do primeiro e
segundo ano se retraíram ao ver o rosto desconhecido de Colborne. Ele veio
lentamente do lugar onde estava parado ao lado dos cabos, observando
James como se não houvesse mais ninguém no mundo.
— Bem — disse ele. — Não poderíamos ficar no teatrinho para sempre.
Está pronto para me contar a verdade?
James oscilou ao meu lado, abrindo a boca para falar. Antes que ele
pudesse emitir um som sequer eu dei um passo em frente, a decisão já
tomada, feita no mesmo instante que foi colocada à existência.
— Sim — eu disse.
Colborne se virou para mim, incrédulo.
— Sim — eu repeti. — Estou pronto.
CENA 7

Luzes e sirenes. Do lado de fora, no ar insubstancial, os membros do


público em suas melhores roupas, contrarregras de preto e atores de
figurino viram Walton me guiar para o banco de trás de uma viatura, a
lateral pintada com o letreiro Departamento de Polícia de Broadwater.
Estavam todos sussurrando, encarando, apontando, mas eu só via meus
colegas, aglomerados juntos da mesma forma que aquele dia no cais. O
rosto de Alexander estava tão tomado pela tristeza que não havia espaço
para o choque. Na expressão de Filippa, apenas uma espécie de confusão
desesperada. Wren parecia vazia. Meredith exprimia algo violento que eu
não conseguia encontrar palavras para descrever. E, no rosto de James,
desespero. Richard estava ao lado deles, tão sólido que parecia um milagre
que mais ninguém o visse, os olhos negros ardentes, de alguma forma ainda
insatisfeito. Olhei para as algemas que reluziam nos meus pulsos e me
afundei no assento de couro rachado do carro. Colborne fechou a porta e,
naquela escuridão pequena e silenciosa, eu me esforcei para respirar.
Passei as quarenta e oito horas seguintes em salas de interrogatório sem
janelas, cutucando copos minúsculos de água morna, e respondendo às
perguntas de Colborne, Walton, e mais dois policiais cujos nomes esqueci
imediatamente após tê-los ouvido. Eu contei a história da mesma forma que
James a contara para mim, com apenas algumas variações necessárias.
Richard, enfurecido pela traição minha e de Meredith. Eu, dando o golpe
com o gancho na cabeça em um surto de pavor ciumento. Não perguntaram
o que aconteceu na manhã seguinte.
As outras apresentações de Rei Lear foram canceladas. Seguindo um
mapa que eu desenhara na parte de trás do caderninho de Walton, Colborne
levou cinco outros policiais com lanternas para o porão do teatro, onde
arrombaram o armário com um pé de cabra e um alicate. As provas para a
condenação, cobertas com minhas digitais.
— Agora — disse Colborne, friamente — é a hora de você chamar um
advogado.
Eu não tinha advogado, claro, então o estado me providenciou uma. Não
havia dúvidas quanto a ser um homicídio, apenas quanto à classificação. A
advogada me explicou que nossa melhor chance era de argumentar em
favor de uma legítima defesa imperfeita, em vez de homicídio culposo. Eu
assenti e não disse nada. Recusei a ligação para minha família. Não era com
eles que eu gostaria de falar. Na segunda-feira de manhã, fui informado de
meu novo status como detento pré-julgamento, mas não fui mandado
imediatamente para a cadeia. Fiquei em Broadwater, porque (de acordo com
Colborne) me mudar para uma penitenciária maior e mais lotada significava
que talvez eu nunca chegasse vivo até o julgamento. Parecia mais provável
que ele estivesse enrolando. Mesmo depois que assinei minha confissão por
escrito, dava para ver que ele não acreditava verdadeiramente naquilo.
Afinal de contas, ele viera até o EBA esperando prender James, agindo em
nome de uma informação providenciada por uma “fonte anônima”. Presumi
que fosse Meredith.
Talvez aquela dúvida persistente fosse o motivo para me deixar receber
tantas visitas. Filippa e Alexander foram os primeiros. Eles se sentaram
lado a lado em uma mesa do outro lado das grades.
— Meu Deus, Oliver — disse Alexander quando me viu. — Que porra
você está fazendo aqui?
— Só… esperando.
— Não é disso que eu estou falando.
— Falamos com a sua advogada — disse Filippa. — Ela me pediu para
ser uma testemunha de caráter.
— Eu não — acrescentou Alexander, com um sorriso trêmulo e triste. —
Pelo problema com as drogas e tal.
— Ah. — Olhei para Filippa. — Você vai fazer isso?
Ela cruzou os braços apertado.
— Não sei. Ainda não perdoei você por isso.
Passei um dedo em uma das grades entre nós.
— Me desculpe.
— Você não tem nem ideia, né? Do que fez. — Ela sacudiu a cabeça, os
olhos firmes, raivosos. Quando falou novamente, a voz dela não mudara de
tom: — Meu pai está preso desde que eu tinha treze anos. Vão devorar você
vivo.
Eu não conseguia olhar para ela.
— Por quê? — perguntou Alexander. — Por que fez isso?
Eu sabia que ele não estava perguntando o porquê de ter matado Richard.
Eu me remexi onde estava sentado na cama, lutando com aquela questão.
— É como em Romeu e Julieta — disse, por fim.
Filippa emitiu um ruído impaciente.
— Do que você está falando?
— Romeu e Julieta — repeti, e arrisquei olhar para os dois.
Alexander estava encostado na parede. Filippa me fuzilava com o olhar.
— Você mudaria o final, se pudesse? — falei. — E se Benvólio tivesse
dado um passo em frente e dito “Eu matei Teobaldo. Fui eu”?
Filippa abaixou a cabeça, passando a mão pelos cabelos.
— Oliver, seu idiota — disse ela.
Eu não podia discordar.
Eles voltaram algumas vezes. Só para conversar. Dizer o que estava
acontecendo em Dellecher. Para dizer que minha família havia descoberto.
Filippa foi a única corajosa o suficiente para falar com minha mãe no
telefone. Eu mesmo não fui corajoso para fazer tal coisa. Nunca ouvi o que
meu pai tinha a dizer sobre isso, ou Caroline, e não esperava nada deles.
Colborne encontrou Leah na frente da delegacia, soluçando e jogando
pedras nas paredes. (Ela fugira de Ohio na calada da noite, como eu fizera
outrora.) Ele a levou até lá para me ver, mas ela não abriu a boca. Só ficou
sentada no banco, me encarando, mordendo o lábio até sair sangue. Passei o
dia todo pedindo desculpas, de forma inútil, e à noite Colborne a colocou
em um ônibus de volta para casa. Ele me reassegurara de que Walton havia
ligado para meus pais para avisar onde ela estava.
Não vi Meredith antes do julgamento e só ouvi dela por intermédio de
Alexander, Filippa e minha advogada. Eu deveria estar desesperado por
uma chance de me explicar, mas o que eu poderia dizer? Ela tinha já a
resposta, a resposta para a última pergunta que me fizera. Mesmo assim, eu
pensava nela com frequência. Com mais frequência do que pensava em
Frederick, Gwendolyn, Colin ou no Reitor Holinshed. Eu não conseguia
suportar pensar em Wren. É claro, afinal, que a única pessoa que eu
desejava de fato ver era James.
Ele apareceu na metade da minha primeira semana de detenção. Eu
esperei que ele me visitasse antes, mas, de acordo com Alexander, era a
primeira vez em dias que ele tinha conseguido se levantar da cama.
Eu estava dormindo quando ele chegou, deitado de costas no catre
estreito, preso no torpor permanente que persistia desde o intervalo de Rei
Lear. Senti alguém do outro lado da cela e me sentei lentamente. James
estava sentado no chão, na frente das grades, pálido e, de alguma forma,
insubstancial, como se fosse constituído e costurado por feixes de luz,
memórias e ilusão — uma boneca de pano.
Desci do catre — me sentindo repentinamente e inesperadamente fraco
— e me sentei de frente para ele.
— Não posso deixar você fazer isso — disse ele. — Não vim antes
porque não sabia o que fazer.
— Não — eu disse, rapidamente.
Eu tinha minha parcela de culpa, não é? Eu seguira Meredith até o
quarto, sem pensar no que aconteceria se Richard descobrisse. Eu
convencera James a deixar Richard na água quando mais ninguém havia
conseguido. Eu cometera uma boa quantidade de erros trágicos, e não
precisava de exoneração.
— Por favor, James — eu falei. — Não desfaça o que eu fiz.
A voz dele, quando saiu da garganta, era rouca e falha:
— Oliver, eu não entendo — disse ele. — Por quê?
— Você sabe o porquê.
Eu estava farto de fingir outra coisa.
(Acredito que ele nunca me perdoou por aquilo. Depois que fui preso, ele
visitava com frequência no começo. Todas as vezes, ele pedia que eu o
deixasse consertar as coisas. Todas as vezes, eu me recusava. Àquela altura,
eu sabia que sobreviveria ao tempo na prisão, silenciosamente contando os
dias até que todos meus pecados fossem expiados. Só que a dele era uma
alma mais tenra, aprofundada no pecado até o pescoço, e eu não estava
certo de que ele sobreviveria. Ao longo das visitas, ele ia tomando minha
rejeição de forma cada vez mais pessoal. A última vez que veio me ver, seis
anos depois que fui condenado, fazia seis meses que eu não o via. Ele
parecia mais velho, doente, exausto.
— Oliver, eu estou implorando — disse ele. — Não consigo mais
aguentar isso.
Quando eu me recusei mais uma vez, ele pegou minha mão do outro lado
da mesa, beijou-a e então se virou para ir embora. Eu perguntei aonde ele
estava indo, e ele disse:
— Para o inferno. Del Norte. Lugar algum. Não sei.
Meu julgamento aconteceu misericordiosamente rápido. Filippa, James e
Alexander foram todos arrastados para testemunhar, mas Meredith se
recusou a dizer uma só palavra em minha defesa ou contra, e respondia a
todas as perguntas com a mesma frase inútil:
— Eu não me lembro.
Minha determinação fraquejava um pouco todas as vezes que eu olhava
para ela. Eu evitava os outros rostos familiares. Wren e os pais de Richard.
Leah e minha mãe, as duas com o rosto inchado e manchado de lágrimas,
distantes. Quando chegou a hora de eu mesmo falar, recitei a confissão
escrita sem nenhuma emoção ou enfeite, como se fosse apenas outro
monólogo que memorizara. Ao fim, todo mundo parecia esperar um pedido
de desculpas, mas eu não tinha um para fornecer. O que eu poderia dizer?
Sei que tal escuridão é minha.
A decisão final foi um acordo, assumindo homicídio culposo (além de
mais tempo por obstrução de justiça) antes de o júri chegar a um veredito.
Um ônibus me levou até a penitenciária, a alguns quilômetros dali.
Entreguei as roupas e os pertences pessoais, e comecei minha penitência de
dez anos no mesmo dia que o ano letivo de Dellecher acabou.
O rosto de Colborne foi o último conhecido que vi.
— Sabe, não é tarde demais — disse ele. — Se houver alguma outra
versão da verdade que você queira me contar.
Eu queria, de alguma forma estranha, agradecê-lo por se recusar a
acreditar em mim.
— Eu próprio sou honesto sem distinção — confessei. — Mas acusar a
mim mesmo de coisas que, em verdade, teria sido melhor que minha mãe
não tivesse me concebido. O que fazem os iguais a mim vagando entre o
céu e a terra? Somos apenas malandros notórios. Não acredite em nós.
EPÍLOGO

Ao final de minha história, sinto-me minado de vida, como se tivesse


passado as últimas horas sangrando livremente em vez de simplesmente
conversando.
— Não me perguntem — digo a Colborne. — Você sabe o que sabe: /
Daqui em diante nada falarei.
Dou as costas à janela da Torre, evitando os olhos de Colborne ao passar
por ele a caminho das escadas. Ele me segue até a biblioteca em um silêncio
respeitoso. Filippa está lá, sentada no sofá, um exemplar de Conto de
inverno aberto no colo. Ela ergue o olhar, e a luz que desaparece do
crepúsculo reflete em seus óculos. Meu coração fica um pouco mais leve ao
vê-la.
— É quase manhã — diz ela a Colborne —, e, ainda não está satisfeito
com eventos estes.
— Bem, não posso pedir mais de Oliver — diz ele. — Ele já confirmou
algumas das suspeitas que eu tinha há muito tempo.
— Vai descansar melhor com um mistério a menos assombrando sua
mente?
— Sinceramente, não sei. Achei que dar um desfecho a isso pudesse
deixar tudo mais suportável, mas agora não tenho certeza.
Vou lentamente ao canto da sala e encaro a marca de queimadura no
tapete. Agora que contei tudo a Colborne, me sinto à deriva. Eu não tenho
mais nada que me pertence, nem mesmo segredos.
O som do meu nome me faz me virar para os outros.
— Oliver, você toleraria uma última pergunta? — questiona Colborne.
— Pode perguntar — digo. — Não prometo responder.
— Justo.
Ele olha para Filippa, e então volta para mim.
— O que vai fazer a seguir? Só estou me perguntando. O que acontece
agora?
A resposta é tão óbvia que fico surpreso de não ter ocorrido a ele. Eu
hesito a princípio, me sentindo protetor. Então, encontro os olhos de Filippa
e percebo que ela também está se perguntando.
— Os planos são eu ir ficar com a minha irmã. Leah, você deve se
lembrar dela. Está fazendo o doutorado em Chicago — digo. — Não culpo
o resto da família se não quiser me ver. Mas, mais do que isso, vocês devem
saber, mais do que qualquer outra coisa, eu só preciso ver James.
Algo estranho acontece. Não vejo no rosto deles a exasperação que
esperava encontrar. Em vez disso, Colborne se vira para Filippa, os olhos
arregalados, alarmados. Ela endireita a postura no sofá e ergue uma mão
para impedi-lo de falar.
— Pip? — digo. — O que aconteceu?
Ela fica em pé devagar, alisando rugas invisíveis da calça jeans.
— Tem uma coisa que eu não te contei.
Engulo em seco, lutando contra o impulso de fugir da sala e nunca
descobrir o que ela vai dizer a seguir. Só que permaneço onde estou,
paralisado no lugar, pois o pavor de não saber é ainda pior.
— Fiquei com medo de contar quando você estava ainda preso, porque
talvez você nunca fosse querer sair de lá — diz ela. — Então eu esperei.
— Me contar o quê? — indago. — Me contar o quê?
— Ah, Oliver — diz ela, a voz como um eco distante de si. — Eu sinto
muito. James se foi.
O mundo desaba sob meus pés. Minhas mãos tateiam às cegas pela
estante ao meu lado, em busca de apoio. Encaro a marca no tapete,
escutando o meu próprio batimento cardíaco, e não ouço nada.
— Quando? — É tudo que eu consigo dizer.
— Há quatro anos — diz ela baixinho. — Faz quatro anos agora.
Colborne abaixa a cabeça. Por quê? Será que sente vergonha de ter
arrancado a história toda de mim, sendo que, enquanto ele sabia sobre
James, eu não sabia de nada?
— Como aconteceu? — perguntei.
— Devagar. Foi a culpa, Oliver — disse ela. — A culpa o estava
matando. Por que você acha que ele parou de visitar você?
Há um tom de desespero na voz dela, mas não sinto nenhuma pena. Não
há espaço para isso, nem para a raiva. Apenas pelo sentimento de perda
catastrófica. Filippa ainda está falando, mas eu mal ouço suas palavras.
— Você sabe como ele era. Se nós sentíamos tudo em dobro, ele sentia
triplamente.
— O que ele fez? — exijo saber.
As palavras dela saem minúsculas. Praticamente inaudíveis.
— Ele se afogou — diz ela. — Ele mesmo se afogou. Meu Deus, Oliver,
eu sinto muito. Eu queria contar quando aconteceu, mas fiquei com tanto
medo do que você poderia fazer.
Eu percebo que ela não tem menos medo agora.
— Eu sinto muito — repete ela.
Eu estou devastado. Abandonado.
De repente, parece que existe uma quarta pessoa na sala. Pela primeira
vez em dez anos, olho para a cadeira que sempre foi de Richard e vejo que
não está vazia. Ali está ele, sentado, tranquilo em sua arrogância leonina.
Ele me observa com um sorriso fino, e eu percebo que agora é a hora — o
desfecho, o contragolpe, a conclusão pela qual ele esperava. Ele permanece
só tempo o suficiente para que eu veja o brilho do triunfo nos olhos de
pálpebras pesadas. Então, ele também desaparece.
— Enfim — digo quando finalmente tenho força o suficiente para falar.
— Agora eu sei.
Não falo novamente até dizermos adeus para Colborne no Pavilhão. O
dia acabou, e a noite cai enquanto voltamos caminhando pela floresta que
nos envolve em um mundo de escuridão. Não há estrelas hoje.
— Oliver — diz Colborne, quando nós estamos sob a sombra do
Pavilhão novamente. — Sinto muito que hoje tenha acabado dessa forma.
— Eu sinto muito por várias coisas.
— Se eu puder fazer alguma coisa por você… bem, você sabe onde me
encontrar.
Ele me olha de uma forma diferente do que já me olhou, e percebo que
por fim ele me perdoou agora que conhece a verdade. Ele estende a mão, e
eu a aceito. Apertamos as mãos. Então, cada um segue seu caminho.
Filippa está me esperando ao lado do carro.
— Eu levo você para onde quiser — diz ela. — Se você me prometer que
eu não preciso me preocupar.
— Não — eu digo. — Não faça isso. Já nos preocupamos o suficiente
por uma vida toda, não acha?
— Por dez vidas.
Eu me apoio no carro ao lado dela, e ficamos parados ali por muito
tempo, encarando o Pavilhão. O brasão de armas de Dellecher nos encara
de volta, em toda a sua grandeza delirante.
— Está tudo esquecido? — pergunto. — As amizades pueris, a inocência
infantil?
Eu me pergunto se Filippa reconhecerá aquela fala. Pertenceu a ela,
outrora, nos dias simples do nosso terceiro ano, quando pensávamos que
éramos invencíveis.
— Nós nunca esqueceremos — diz ela. — Essa é a pior parte.
Raspo os dedos do pé na terra.
— Tem uma coisa que eu ainda não entendo.
— O quê?
— Se você sabia o tempo todo, por que não contou a mais ninguém?
— Meu Deus, Oliver, não é óbvio? — Ela dá de ombros quando eu não
respondo. — Vocês eram a única família que eu tinha. Eu mesma teria
matado Richard se achasse que deixaria o restante de vocês a salvo.
— Eu compreendo isso — digo, pensando particularmente que, se tivesse
sido ela, nós provavelmente teríamos escapado incólumes. E, na verdade,
poderia ter sido qualquer um entre nós. — Mas eu, Pip? Por que você não
poderia ter me contado?
— Eu conhecia você melhor do que você mesmo — diz, e ouço dez anos
de tristeza carregados pela voz dela. — Eu fiquei aterrorizada ao pensar que
você faria exatamente o que fez.
Meu martírio não foi do tipo altruísta. Não consigo olhar para Filippa,
envergonhado por todas as mágoas que causei — como um homem com
uma bomba amarrada ao peito, pronto para se explodir sem pensar nenhum
instante no dano colateral.
— Como estão Frederick e Gwendolyn? — digo, procurando um outro
assunto mais fácil. — Esqueci de perguntar.
— Gwendolyn está do mesmo jeito — me conta com a sombra de um
sorriso sarcástico, que desaparece assim que surge. — Só que eu acho que
ela agora não se permite apegar a nenhum aluno.
Assinto, sem comentar.
— E Frederick?
— Ele ainda dá aulas, mas está diminuindo a carga horária — diz ela. —
Pesou bastante para ele. Pesou bastante para todos nós. Só que, se não
tivesse pesado, eles não precisariam de mim como diretora, então acho que
não foi de todo ruim.
— É, acho que não — digo, um eco vazio. — E Camilo?
Eu não sei como começou, mas tenho minhas suspeitas sobre o feriado de
Ação de Graças no nosso quarto ano. Como estávamos todos distraídos
demais para notar.
Ela me oferece um sorriso pequeno e culpado.
— Ele não mudou em nada. Pergunta de você a cada duas semanas
quando volto para casa.
Na pausa curta que se segue, eu quase a perdoo. A cada duas semanas.
— Você vai se casar com ele? — pergunto. — Já faz bastante tempo.
— Ele diz a mesma coisa. Você voltaria para o evento, certo? Preciso de
alguém que me leve até o altar.
— Só se Holinshed presidir a cerimônia.
Não é uma promessa tão firme quanto a que ela gostaria, mas ela não
receberá mais que isso. James se foi, e não tenho certeza de mais nada.
Nós ficamos lado a lado por mais um tempo, sem falar. Então, ela diz:
— Está ficando tarde. Para onde eu posso levar você? Sabe, você é bem-
vindo na nossa casa.
— Não — respondo. — Obrigado. Se me deixar na rodoviária já está
ótimo.
Nós entramos no carro e dirigimos em silêncio.
Não vejo Chicago há dez anos, e demora muito mais tempo do que
deveria para que eu encontre o endereço que Filippa escreveu, relutante. É
uma casa antiga e despretensiosa, porém elegante, que exala ares de
dinheiro e sucesso e um desejo de não ser perturbada. Por muito tempo
antes de bater na porta, fico parado na calçada, encarando a janela do
quarto, onde brilha uma luz branca suave. Faz sete anos desde a última vez
que a vi, a única vez que ela me visitou, para me dizer que eu não estava
enganando ninguém. Ao menos, não a enganava.
— Aquela camisa no armário, não era a sua, não daquela noite —
dissera. — Eu sei muito bem.
Respiro fundo, o máximo que consigo (meus pulmões ainda parecem
pequenos demais), e bato na porta. Enquanto espero na varanda sob as
sombras quentes do verão, me pergunto se Filippa avisou que eu viria.
Quando ela abre a porta, os olhos já estão úmidos. Ela dá um tapa na
minha cara, com força, e aceito o golpe sem protestar. Eu mereço até pior.
Ela emite um ruído de satisfação magoada, e então abre a porta para que eu
entre.
Meredith é tão perfeita quanto me lembro. O cabelo dela está mais curto
agora, mas não muito. Ela está vestindo roupas um pouco mais largas, mas
também não por muito. Servimos vinho, mas não bebemos. Ela fica sentada
em uma cadeira na sala, e eu me sento no sofá ao lado, e nós conversamos.
Conversamos por horas. Há uma década de coisas que não falamos em voz
alta.
— Eu sinto muito — digo, quando há uma pausa longa o bastante para
que eu prendesse minha coragem onde é devida. — Sei que não tenho
direito nenhum de perguntar, mas… aquilo que aconteceu entre você e
James na aula de Gwendolyn, alguma vez chegou a acontecer fora do
palco?
Ela assente, sem olhar para mim.
— Uma vez, logo depois. Achei que cada um iria para um canto, mas,
quando eu entrei na sala de música, ele estava lá. Eu queria sair, mas ele me
agarrou e a gente só…
Eu sei o que deve ter acontecido, sem que ela precise me dizer.
— Não sei o que deu na gente para fazer isso. Eu precisava entender,
você e ele, e como é que ele tinha você na palma da mão. Eu não consegui
pensar em nenhum outro jeito — diz ela. — Mas acabou assim que
começou. Ouvimos alguém chegar. Filippa, claro, ela deve ter pressentido
que alguma coisa estava errada, e parece que recuperamos o bom senso.
Então só ficamos parados lá. E ele disse: “No que você está pensando?”. Eu
respondi: “Na mesma coisa em que você está pensando”. A gente nem
precisou mencionar o seu nome.
Ela franze o cenho para o oceano vermelho em sua taça.
— Foi só um beijo, mas, nossa, doeu para cacete.
— Eu sei — digo sem nenhum ressentimento.
Qual de nós poderia dizer que sofremos mais pecados do que os
cometemos? Éramos manipulados com tanta facilidade — a desconexão nos
fez de obra-prima.
— Pensei que já tinha acabado ali — diz ela, a voz incerta, parecendo se
esforçar. — Mas na noite da festa de Rei Lear… eu estava no banheiro,
consertando a maquiagem, e senti uma mão na cintura. Primeiro achei que
fosse você, só que era ele, e estava bêbado, falando igual a um louco. Eu o
empurrei e disse: “James, o que tem de errado com você?”. E ele
respondeu: “Você não acreditaria se eu contasse”. Ele me agarrou de novo,
mas foi uma coisa violenta. Doeu. Ele disse: “Ou talvez só você acreditasse,
mas por que protestar? Estava feito o feito, e a justiça nos fora servida em
equilíbrio”. E aquilo foi o suficiente. Eu entendi. Eu soube. Consegui
escapar, mas por pouco. Fugi do Castelo e fui direto para Colborne. Disse
tudo que eu sabia. Não sobre o cais, não sobre aquela manhã, mas todo o
resto. E eu queria te contar, ali na travessia, mas estava com medo que você
fosse fazer alguma coisa idiota, quem sabe ajudar ele fugir no meio do
intervalo. Eu nunca pensei…
A voz dela se esvai.
— Meredith, me desculpe — digo. — Eu não pensei. Eu não me
importava com o que acontecesse comigo, mas deveria ter pensado no que
aconteceria com você.
Ela não olha para mim, mas diz:
— Tem uma coisa que eu preciso saber, agora.
— Claro. O que quiser.
Eu devo isso a ela.
— Nós dois. Todo aquele tempo. Alguma parte daquilo foi verdade, ou
você sabia o tempo todo, e o que tínhamos era só um passe livre para
James?
Ela me fuzila com aqueles olhos verdes-escuros, e eu me sinto enjoado.
— Meu Deus, Meredith, de jeito nenhum. Eu não fazia ideia — conto a
ela. — Você era verdade para mim. Às vezes, acho que você era a única
coisa verdadeira.
Ela assente como se quisesse acreditar, mas há algo no caminho.
— Você estava apaixonado por ele? — pergunta.
— Sim — respondo simplesmente.
James e eu submetíamos um ao outro ao tipo de paixão inconsequente da
qual Gwendolyn sempre falava, alegria e raiva, desejo e desespero. Afinal
de contas, seria isso tudo assim tão estranho? Não me causa mais
perplexidade, assombro ou vergonha.
— Estava, sim — repito.
Não é a verdade por completo. A verdade é que eu ainda estou
apaixonado por ele.
— Eu sei — diz ela, soando exausta. — Eu sabia na época, só fingia que
não.
— Eu também. Ele também. Eu sinto muito.
Ela sacode a cabeça, encarando a janela escura por um instante.
— Eu sinto muito também. Pelo que aconteceu com ele.
Dói demais falar daquilo. Meus dentes estalam na cabeça. Abro a boca
para falar, mas o que sai é uma respiração torta, um soluço, e a tristeza que
o choque manteve à distância me assola como um dilúvio. Eu me inclino
para a frente, aquela risada doentia que está presa na minha garganta há dez
anos finalmente liberta. Meredith dá um pulo da cadeira, e acaba jogando a
taça de vinho no chão, mas ignora o barulho que faz ao estilhaçar. Ela diz
meu nome, e mais uma dúzia de coisas, mas eu mal a ouço.
Nada é tão exaustivo quanto a angústia. Depois de quinze minutos, estou
consumido, minha garganta rouca e dolorida, o rosto quente e úmido de
lágrimas. Fico deitado no chão sem memória de como cheguei ali, Meredith
segurando minha cabeça como se fosse uma coisa frágil e preciosa que
pudesse quebrar a qualquer momento. Quando já fiquei em silêncio por
mais meia hora, ela me ajuda a me levantar e me leva para a cama.
Ficamos deitados lado a lado sob a escuridão solene. Tudo em que
consigo pensar é Macbeth — na minha imaginação, ele tem o rosto de
James — gritando, Não dorme mais! Macbeth matou o sono, não durma
mais! Ah, o bálsamo das mentes feridas. Quero dormir desesperadamente,
mas não tenho esperança nenhuma de ter um descanso.
Porém, acordo pela manhã, e pisco com as pálpebras inchadas enquanto o
sol se ergue e entra pela janela. Em alguma hora da noite, Meredith se virou
de lado, e agora dorme com o cabelo espalhado atrás dela, a bochecha
contra meu ombro.
Apesar de não falarmos no assunto, de alguma forma fica decidido que
ficarei com Meredith indefinidamente. Enquanto a vida profissional dela é
abarrotada de pessoas, a vida pessoal é na maior parte solitária, as horas
longas preenchidas por livros, palavras e vinho. Por uma semana,
reencenamos o Natal em Nova York, de forma mais cautelosa. Sento-me no
sofá com uma xícara de chá e um livro no joelho, às vezes lendo, às vezes
apenas encarando as páginas. A princípio, ela se senta do outro lado. Então,
ao meu lado. Depois, ela deita com a cabeça no meu colo, e eu faço cafuné
nela.
Quando explico tudo isso a Leah, não consigo decifrar se ela fica
decepcionada ou aliviada.
Alexander liga, e nós concordamos em nos encontrar para tomar alguma
coisa da próxima vez que ele estiver na cidade. Não tenho esperanças de
que Wren entre em contato — Meredith me disse que ela está em Londres,
trabalhando como dramaturga e vivendo como uma eremita, com medo do
mundo lá fora. Não falamos de James de novo. Eu sei que, seja lá o que
acontecer, nunca mais falaremos.
Filippa liga e pede para falar comigo. Ela diz que mandou algo para mim
no correio. Chega dali a dois dias, um envelope pardo simples, com um
segundo envelope branco dentro. Ao ver a caligrafia de James no segundo,
meu coração para de bater por um instante. Eu o escondo sob uma almofada
do sofá, e decido só abrir quando Meredith não estiver por perto.
Na semana seguinte, ela vai filmar algo em Los Angeles. Deposita as
chaves na mesa de cabeceira, me beija e me deixa dormindo no que
comecei a pensar — talvez prematuramente — como a “nossa” cama.
Quando acordo outra vez, vou atrás da carta de James.
Agora já sei mais sobre o ocorrido. Ele saiu do pequeno apartamento
onde morava em Berkeley, dirigiu para o norte e se afogou na água gelada
das ilhas San Juan. No carro, abandonado na balsa, ele deixara as chaves,
uma garrafa vazia de alprazolam, e um par de envelopes praticamente
idênticos. O primeiro não tinha marcações, não estava selado, e continha
um bilhete curto escrito à mão, mas sem explicações ou confissões. (Ao
menos, ele respeitara o último pedido que fiz a ele.) No segundo, ele
escrevera apenas uma palavra:

OLIVER

Abro com dedos trêmulos. Dez linhas de verso estão rabiscadas no meio
da página. Ainda é a letra de James, mas mais pontiaguda, como se tivesse
sido escrita às pressas, com uma caneta que já quase não tinha mais tinta.
Reconheço o texto — um monólogo desconjuntado como um mosaico,
remendado de uma cena no começo de Péricles.

E então o mar me jogou às rochas


Me levando de orla a orla, como o ar
Sem nada além de na morte pensar.
Apaguei o que fui da mente;
Mas a ambição me relembra:
Um homem esfriado, veias geladas,
Sem vida que o sustente
Para a língua esquentar em pedido,
E se a ajuda negar, quando morto,
Em minha cova terei conforto.

Leio aquilo três vezes, me perguntando por que ele deixaria uma
passagem tão estranha e obscura para mim — até lembrar que não ouço
aquelas palavras desde que ele as cantou para mim, enquanto estávamos
deitados, bêbados, em alguma praia de Del Norte, como se ele houvesse
sido trazido pela maré para ficar ao meu lado. Estou profundamente
consciente da minha própria necessidade desesperada de encontrar uma
mensagem em meio àquela loucura e, conforme ela toma forma, tenho uma
suspeita, e temo ter esperanças. Porém, a implicação do texto e o pequeno
papel que tem em nossa história são impossíveis de ignorar, cruciais demais
para um estudioso tão meticuloso quanto James desconsiderar seu
significado.
Quando não consigo mais suportar um instante sequer de inércia, corro
pelas escadas até o escritório, minha cabeça preenchida pelo que teriam
sido as últimas palavras de Péricles, caso ele não tivesse decidido pedir por
ajuda.
O computador na mesa volta à vida quando toco no mouse e, depois de
um minuto interminável, abro o navegador da internet, procurando por
todos os registros que consigo encontrar da morte de James Farrow no
inverno desolador de 2004. Devoro cinco, seis, dez artigos antigos, e todos
dizem a mesma coisa. Ele se afogou no último dia de dezembro e, apesar
das autoridades locais terem perscrutado a água gelada durante dias e por
quilômetros, o corpo dele nunca foi encontrado.
EXEUNT OMNES.
NOTA DA AUTORA

Ao escrever este livro, consultei muitas edições diferentes das obras


completas e peças individuais, e seria impossível listar todas elas sem que a
bibliografia se tornasse mais comprida do que a própria história. No
entanto, alguns volumes se destacam como dignos de menção (e também,
da minha eterna gratidão). The Riverside Shakespeare (2ª edição) foi um
companheiro quase constante não apenas enquanto escrevia esse livro, mas
em todas as empreitadas shakespearianas nas quais embarquei desde que o
adquiri, em 2010. Mais recentemente, e especialmente no processo
complexo da revisão, dependi muito de The Norton Shakespeare (3ª
edição), com seu compromisso inovador de preservar “tanto a maravilha
quanto a sonoridade”, como Stephen Greenblatt descreveu no lançamento,
em outubro de 2015. Assim como o Riverside, tornou-se indispensável,
especialmente ao navegar o texto labiríntico de Rei Lear. Seria remisso de
minha parte não mencionar outros dois livros, Speaking Shakespeare, de
Patsy Rodenberg, que teve uma influência significativa nas filosofias
teatrais de Gwendolyn, e Teatro da inveja, de René Girard, que poderia ter
evitado muitas das coisas que dão errado para os alunos do quarto ano, caso
Oliver tivesse o lido um pouco antes.
Aqui preciso também reconhecer que saqueei toda a obra de Shakespeare
com uma alegria desenfreada. Os atores do quarto ano falam uma forma de
inglês tão saturada com palavras, citações e expressões shakespearianas que
poderia quase ser classificado como um novo dialeto (excepcionalmente
pretensioso, não posso negar). Porque esse é um fenômeno natural e
desregulado, em algumas instâncias as citações emprestadas do bardo —
que foram grafadas em itálico, independentemente de serem verso ou prosa
— não são emprestadas palavra por palavra. Essa é uma liberdade criativa
do idioma. Para adequar o propósito dessa história em particular, o texto de
Shakespeare e seus colaboradores (fossem quem fossem) é sempre filtrado
pela boca dos personagens e/ou pelo cérebro de Oliver e, portanto, está
sujeito a pequenas transformações. Os caprichos da ortografia moderna
foram regularizados para o leitor contemporâneo, e eu pontuei o texto da
forma que acreditei que servisse melhor à cena ou aos personagens. Como
James denota no Ato 5, “As vírgulas pertencem aos intérpretes”. Seja lá
quais forem as pequenas discrepâncias, todas as frases de Se fôssemos
vilões são escritas com a intenção de prestar homenagem a William
Shakespeare — que teve sua cota de defamantes, caluniadores e blasfemos.
(Senhor, como são tolos tais mortais!)
NOTA DE TRADUÇÃO

O enredo de Como se fôssemos vilões gira em torno dos alunos de uma


turma de teatro especializada em Shakespeare, e a narrativa é composta em
diálogo intertextual constante com as obras do bardo. Esse contexto
proporcionou, portanto, desafios peculiares à tradução, feita aqui a quatro
mãos. Sabendo que o público leitor de uma narrativa que se preocupa tanto
com tradições literárias pode igualmente se interessar pelo tema, achamos
pertinente incluir esta nota, comentando nossa abordagem tradutória — não
só para o texto de M. L. Rio, como para as muitas citações de Shakespeare
— e como se insere no contexto de traduções anteriores da obra do
dramaturgo do inglês para o português. Cabe aqui também o alerta de
spoilers ao leitor desavisado que decidiu começar pelo fim, já que
comentaremos alguns momentos-chave do livro para justificar nossas
escolhas.
Assim como a atuação, a tradução depende quase que inteiramente da
capacidade de interpretar o intuito do autor. Além disso, a tradução envolve
um certo desgaste natural, principalmente com um texto que trabalha tanto
o duplo sentido das palavras quanto a preocupação de seguir uma métrica,
tendo como objetivo final que as palavras sejam encenadas.
No Brasil, não temos uma forte tradição de estudar as obras de
Shakespeare. Apesar de não existir uma tradução considerada consagrada,
mais de um tradutor já se aventurou por suas obras. Carlos Alberto Nunes,
poeta maranhense, traduziu toda a obra teatral, concentrando-se
especialmente nos elementos poéticos. Beatriz Viégas-Faria traduziu quinze
peças, preferindo seguir a tradução em prosa, e não em verso, para respeitar
os jogos de linguagem. Em suas traduções da obra completa, Bárbara
Heliodora, grande estudiosa e professora de História do Teatro, decidiu
seguir uma veia dedicada à valorização da obra no palco e da transformação
do texto falado, para que fluísse com naturalidade, sem erudição exagerada.
No entanto, encontrar, para uso no romance, uma tradução consistente e
que também pudesse ser moldada de acordo com o propósito de M. L. Rio
não foi tarefa fácil. Os personagens de Como se fôssemos vilões são atores,
interpretando papéis constantemente, seja no palco ou fora dele. Cada verso
escolhido para citação na obra é selecionado não apenas pelo conteúdo,
como pela relação dos personagens com a obra, com o que acreditam que o
trecho deixa transparecer para que os outros interpretem a emoção desejada.
É um jogo de luz e sombras através dos versos shakespearianos, no qual
não se deve apenas considerar o que Shakespeare escreveu no século XVI,
mas também a relação individual de Oliver, James, Richard, Meredith,
Wren, Alexander e Phillipa com o texto. Portanto, para que pudesse se
adequar ao máximo às diversas camadas textuais, foi necessária uma
tradução própria para o livro.
Assim, a tradução dos trechos e versos citados foi feita pensando
justamente na relação que cada aluno de Dellecher tem com o bardo,
levando em consideração não só o significado temático da obra original,
como também o que representa no enredo do romance.
Um exemplo dessas variações de interpretação do texto shakespeariano
entre os protagonistas do romance são as interpolações dos trechos de
Hamlet na Cena 1 do Ato III de Como se fôssemos vilões (“Se há de ser
agora, não está para vir. Se estiver para vir, não há de ser agora. Se não for
agora, ainda há de vir”). Essas citações, trazidas na narrativa introspectiva
de Oliver quando encontram o corpo de Richard no lago, soam muito mais
desesperadas e aflitas do que talvez soariam na cabeça de James, que é
meticuloso e tem as emoções comedidas, mesmo em meio ao caos.
Mais tarde na trama, na Cena 9 do Ato III, Oliver e James discutem esse
mesmo trecho. Oliver diz atrelar a Richard a metáfora do cair de um pardal,
mas confessa não entender o repentino fatalismo de Hamlet depois de tanto
buscar restaurar a ordem nas desventuras na Dinamarca. James explica que,
para ele, o discurso é uma aceitação da inevitabilidade como tentativa de
culpabilizar o destino para se inocentar por não ter sido bem sucedido. Na
Cena 12 do mesmo ato, Oliver volta a mencionar que relaciona Richard ao
pardal, e Alexander discorda, pois não consegue ver em Richard a
delicadeza de um pássaro pequeno. Assim como Oliver traz a própria
inquietação para sua interpretação do texto shakespeariano, James e
Alexander também o fazem a partir de seus próprios pontos de vista.
Isto é: Shakespeare não soa da mesma forma para cada ator, e o mesmo
acontece quando pensamos em tradução.
Quando se fala da obra do bardo, é difícil dissociar a forma do conteúdo:
o que está sendo dito importa tanto quanto como está sendo dito, e
diferentes profissionais da tradução vão preferir dar foco a diferentes lados
do texto. Em Como se fôssemos vilões, optamos por caminhar entre esses
dois mundos. Por isso, nos trechos de Shakespeare que aparecem em
diálogos entre os alunos de Dellecher, a preferência foi por uma tradução
que aproximasse a citação shakespeariana do contexto da interação,
tomando uma maior liberdade em relação à forma, já que o que está em
jogo é o conteúdo e como se aplica à situação e aos personagens. Por outro
lado, nas cenas que trazem encenações e ensaios das peças, a tentativa foi
de emular o conteúdo do original sem se desprender ao todo dos recursos
formais.
A cena em que James e Wren interpretam o primeiro encontro e o
primeiro beijo de Romeu e Julieta pode nos ajudar a ilustrar isso. O diálogo,
no original, forma um soneto de catorze versos, dividido entre três estrofes
e um dístico, que fala de amor e desejo através de metáforas da religião.
Veja abaixo a comparação do texto shakespeariano e da nossa tradução
apresentada na Cena 18 do Ato III:
Personagem Original de Shakespeare Tradução em
Como se fôssemos vilões

Romeu/ 1. If I profane with my unworthiest hand (A) 1. Se ofendo com indigna mão (A)
James 2. This holy shrine, the gentle fine is this: (B) 2. O sagrado altar da sua (B)
3. My lips, two blushing pilgrims, ready stand 3. Com beijo meus lábios a paz trarão (A)
(A) 4. de peregrinos sob essa lua. (B)
4. To smooth that rough touch with a tender kiss.
(B)

5. Good pilgrim, you do wrong your hand too 5. Peregrino, sua mão rejeita em tanto (C)
much, (C) 6. se a minha toma em devoção na sua. (D)
Julieta/ 6. Which mannerly devotion shows in this; (D) 7. Sua gente faz tal com as do santo (C)
Wren 7. For saints have hands that pilgrims’ hands do 8. E palmas se beijam faça sol ou lua. (D)
touch, (C)
8. And palm to palm is holy palmers’ kiss. (D)

Romeu/ 9 Have not saints lips, and holy palmers too? (E) 9 Em igual, os santos lábios não têm? (E)
James

Julieta/ 10 Ay, pilgrim, lips that they must use in prayer. 10 Sim, peregrino, usados para a fé. (F)
Wren (F)

11 O, then, dear saint, let lips do what hands do; 11 Que lábios façam o que mãos fazem bem
Romeu/ (E) (E)
James 12 They pray, grant thou, lest faith turn to 12 Minha reza devassa desespero é. (F)
despair. (F)

Julieta/ 13 Saints do not move, though grant for prayers’ 13 Santos não se movem, mas atendem
Wren sake. (G) quem ora. (G)

Romeu/ 14 Then move not, while my prayer’s effect I 14 Recolho meu milagre em sagrada hora.
James take. (G) (G)

Como em outras traduções de Shakespeare, a reprodução da métrica deu


lugar à preservação dos jogos de palavras e das referências à religiosidade
que concretizam a cena como um momento sagrado entre os jovens que
acabavam de se conhecer. Para isso, abrimos mão do recurso do pentâmetro
iâmbico (verso de dez sílabas alternadamente átonas e tônicas) que é típico
da obra do bardo, mas ainda assim mantivemos a contagem de versos e o
esquema de rimas entre eles: ABAB na primeira estrofe, CDCD na segunda,
EFEF na terceira e GG no dístico final.
Nesse trecho, assim como na encenação das bruxas de Macbeth
interpretadas por Meredith, Wren e Philippa, preferimos respeitar a
sonoridade de rimas do texto shakespeariano para que a interpretação teatral
dinâmica fosse a mais clara e preservada possível. Nas citações em meio a
diálogos dos personagens, preferimos focar no sentido expressado do
original com o máximo de fidelidade, pois nesses casos o sentido fala mais
alto que a encenação.
Esperamos que, com esta nota, a leitura de Como se fôssemos vilões em
nossa versão traduzida ganhe novas camadas, e novos pontos de interesse.
Para aqueles que terminaram a leitura e ficaram desejosos de se aventurar
nas obras originais, o projeto “Escolha seu Shakespeare”, da Profa. Dra.
Márcia A. P. Martins, da PUC-Rio, contém uma base de dados com todas as
traduções brasileiras, além de comentários sobre as escolhas tradutórias
individuais e outros métodos de pesquisa que podem auxiliar na escolha de
uma tradução em particular. O projeto pode ser acessado através do link:
https://www.dbd.puc-rio.br/shakespeare/index.htm.
Pedimos a compreensão e a indulgência necessárias a todos os tradutores
que trabalham com algo que admiram e amam na busca de honrar o
original, e esperamos que, assim como nós, os leitores também possam
encontrar pedaços de um reflexo nas palavras de Shakespeare, e tenham a
curiosidade de apreciar mais a fundo alguém que há quase meio milênio
encanta e diverte os mais variados leitores. Mais que a língua pode
expressar, / dai-me uma trégua para desculpar-me.

LAURA POHL
e CARLOS CÉSAR DA SILVA
AGRADECIMENTOS

Estou em dívida com Arielle Datz, que arriscou muito em uma jovem
escritora, fazendo-a descer de vários parapeitos perigosos, e caminhou com
ela durante todo o processo de publicação com paciência infalível e
entusiasmo incansável. Agradeço a Christine Kopprasch, que riu das
minhas piores piadas e, com um instinto formidável e grande percepção
sobre a arte de contar histórias, usou sua mágica para dar um jeito na
bagunça que era o manuscrito original. A todos na Flatiron Books, cuja
dedicação, criatividade e amor por velhos livros são incrivelmente
inspiradores. A Chris Parris-Lamb, cuja orientação foi indispensável, e sem
a qual o livro nunca passaria do estágio de mandar cartas para agentes. Aos
meus colegas mestrandos no King’s College, que confirmaram minha
convicção de que, sim, algumas pessoas são de fato tão obcecadas que
conversam inteiramente por citações de Shakespeare. A Margaret, por
escutar todas as minhas reclamações. Às minhas primeiras leitoras
(Madison, Crissy e Sophie), que foram todas subornadas por vinho, e
ofereceram opiniões inestimáveis em troca. A meus amigos em Chapel Hill
(Bailey, Cary e a família Simpson), cuja boa-vontade nunca diminuiu,
mesmo diante da minha ansiedade artística devastadora. Aos professores e
diretores (Natalie Dekle, Brooke Linefsky, Greg Kable, Ray Rooley, Jeff
Cornell e Farah Karim-Cooper), que encorajaram e incentivaram meu
fascínio por Shakespeare. À minha avó, que encorajou meu amor por
literatura desde uma tenra idade e me deixou beber todo o chá e a maior
parte do álcool dela enquanto eu trabalhava neste manuscrito no canto de
sua biblioteca. E a meus pais, que me levaram e buscaram de inúmeros
ensaios, assistiram a uma porção de peças verdadeiramente horrendas,
leram uma pilha de igualmente horrendos primeiros rascunhos e nunca
condenaram minhas paixões pouco práticas. Humildemente, agradeço a
todos.
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como o pão-de-ló, bolo mármore, toucinho do céu, tarte tatin de
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catupiry do restaurante Carlota, mas também faz a releitura, com
muita criatividade, de receitas clássicas como crème brûlée de
papaia, petit gâteau de doce de leite e tiramisù gelado de tapioca.

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Jenny sempre escolheu disciplina em vez de diversão. Isto é, até a


noite em que ela conhece Jaewoo. Misterioso, bonito e um pouco
atormentado, Jaewoo é exatamente o tipo de distração que Jenny
normalmente evitaria. No entanto, ela se vê passando momentos
inesquecíveis com ele, vagando por Los Angeles na última noite
antes de ele precisar voltar para a Coreia do Sul. Com Jaewoo do
outro lado do oceano, não adianta nem sonhar com o que poderia
ter acontecido entre os dois. Mas, quando Jenny e sua mãe se
mudam para Seul para cuidar da avó doente, adivinha quem ela
encontra na academia de artes de elite onde acabou de ser aceita?
Entrar na sala de aula e se deparar com o cara que roubou seu
coração já seria notável, mas acontece que Jaewoo não é um
estudante qualquer: ele é membro de um dos maiores grupos de k-
pop do mundo. E, como a maioria dos k-pop idols, Jaewoo é
estritamente proibido de namorar qualquer pessoa. Uma vez que
um relacionamento entre os dois significa não só comprometer o
futuro de Jenny na escola de música de seus sonhos como também
colocar em risco tudo pelo que Jaewoo trabalhou para chegar aonde
está, ela tem que decidir de uma vez por todas o quanto está
disposta a arriscar por amor.

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Mc Gowan - que ficou nacionalmente conhecida depois da sua
marcante participação na vigésima edição do Big Brother Brasil -
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sexualidade e prazer. Abordando desde reflexões acerca de
conceitos sociais opressores como virgindade e padrões estéticos
até temas mais técnicos como os detalhes da anatomia das pessoas
com vulva e o que acontece fisiologicamente com nosso corpo
quando está diante de um estímulo sexual, Marcela tem como
objetivo criar um canal de autoconhecimento e de aprendizado, em
linguagem acessível e totalmente livre de julgamentos. Por mais
que as discussões sobre sexualidade já tenham avançado muito,
sabemos que o assunto ainda é um grande tabu. SENTA QUE NEM
MOÇA, então, vai te ajudar a tratar do tema com a naturalidade
que ele merece, colaborando para que você amplie o conhecimento
sobre o seu corpo e tire o melhor proveito do sexo, tomando todo
cuidado necessário e agindo com mais propriedade no assunto.
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os moradores dos morros para dar lugar aos novos bairros. Aos
mais pobres, restou invadir os prédios alagados, criando ali as
novas favelas. Neste Brasil, Zias vai encontrar seu destino. Criado
no exílio pela mãe, ele acaba órfão, vivendo nas ruas de Lisboa em
meio ao crime, às drogas e ao vício digital. Um dia, ele recebe a
revelação de que seu pai estaria vivo e somente o filho poderia
salvá-lo. Zias parte para o Rio e se descobre "escolhido" para
assumir a igreja evangélica liderada por seu pai. Durante a jornada
de Zias para cumprir a profecia paterna, vemos um Rio onde a
Milícia convertida foi legalizada, uma nova droga assola as igrejas
e onde trabalhadores de aplicativo fazem qualquer coisa por alguns
trocados. Um Brasil em que Estado e religião se fundiram sob a
bênção da democracia em um cenário incomodamente real. Em seu
romance de estreia, Everton Behenck nos leva a questionar quão
distante estamos da realidade desta ficção especulativa.
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