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Folha de rosto
Sumário
ATO I – Lagarta
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ATO II – Crisálida
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ATO III – Mariposa
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Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
Dedicado a todas as pessoas que têm coragem de convidar
seus demônios para uma dança.
ato i
lagarta
1
Amarílis não brinca mais com a boneca de pano. Ela não é muito alta
para a idade, mas está mais comprida aos dez anos, cotovelos e
joelhos sobrando por toda parte em seu corpo magro. Às vezes, a mãe
se refere a ela como “mocinha”.
E a garota sente mesmo o gosto do fim da infância na ponta da
língua, pois precisa ajudar em casa, em tarefas que antes não lhe
competiam. Na hora de dormir, não há ninguém para trazer até sua
cama um pouco de chá de camomila adoçado com mel, nem para
passar os dedos por seus cachinhos até que a menina pegue no sono.
Na verdade, ela pensa, depositando a caneca de leite quente em uma
bandeja improvisada, agora é o contrário. Com um suspiro, a menina
observa a cozinha encardida, as pilhas de louça suja acumuladas em
bacias cobrindo a mesa. Precisa levar a comida para a mãe, e espera
que tudo corra bem.
Equilibrando a bandeja com o leite quente e um prato de fatias de
bolo de laranja, o único que sabe fazer, Amarílis segue pelo corredor
escuro. Ainda é meio da tarde, mas sempre parece noite nas últimas
semanas. A mãe não permite mais que as janelas sejam abertas, pois
não quer que os vizinhos a vejam, não quer que os Inquisidores
venham. Os passarinhos lá fora parecem pertencer a outro mundo.
Quando Amarílis precisa sair para comprar alguma coisa ou colher
ervas no quintal, proibida de conversar com qualquer outro ser
humano, a claridade machuca seus olhos.
Com o pé, Amarílis empurra a porta do quarto da mãe, ouvindo o
ranger das dobradiças. No interior do cômodo, o ar é abafado e
bolorento, quase azedo. É como uma toca de rato, a menina pensa,
logo depois que nasce uma ninhada e tudo é vida, mas é também
sangue e sujeira.
A mãe está no mesmo lugar de sempre, deitada de lado na cama
com as cobertas até o queixo, de costas para a porta. Quando escuta a
filha entrar, vira o corpo com esforço para ficar sentada. O lençol
escorrega, exibindo a barriga que cresce mais a cada dia. Amarílis
pousa a bandeja na mesinha de cabeceira, pega a caneca e oferece a
bebida para a mulher grávida. Os olhos da mãe estão fundos e
vermelhos, e Amarílis entende que ela andou chorando e que não
conseguiu dormir. Gostaria de saber o que dizer para confortá-la, mas
tem medo de falar a coisa errada e despertar a ira da mãe. Da última
vez, o leite quente foi parar a seus pés, fazendo arder seus dedos
descalços de menina, espatifando a caneca favorita. Na semana
anterior, levou um tapa no rosto por deixar farelos caírem na cama, e
a mãe cortou um chumaço de seu cabelo à força, usando a tesoura de
costura em forma de passarinho. Amarílis ainda consegue sentir o
buraco na cabeça quando passa as mãos pela nuca. Os cachos curtos
ganham mais volume ali. Um feitiço, a mãe tinha dito naquele dia. Ela
queria usar meu cabelo para um feitiço.
— Ele não vai voltar… — A mãe balbucia enquanto leva a caneca à
boca, encarando o vazio da parede oposta. — Ele nunca mais quer me
ver… Tudo de novo. Tudo de novo… — ela repete, encolhendo as
pernas e balançando o tronco para frente e para trás.
Não é sempre assim. Há dias em que a mãe se levanta, dias em que
a cozinha volta a cheirar a tempero, manhãs felizes nas quais Amarílis
pode se sentar para treinar seus bordados enquanto a mãe lhe conta
sobre o irmãozinho que está chegando. Para Amarílis, ver um bebê
crescendo e se movendo dentro do corpo de sua mãe parece um
absurdo, mas ela gosta de sonhar com um menino gorducho de olhos
parecidos com os seus. Às vezes, a mãe deixa que Amarílis mexa no
baú embaixo da cama, onde foram parar os objetos de poder e os
escritos complicados de cada magia. Mas os dias assim, dias bons, são
cada vez mais raros. Sem aviso, o rosto da mãe se transforma, e suas
palavras ficam duras, com gestos perdidos. Ela se recolhe para o
quarto e não sai de lá por muitas horas. Não se levanta nem mesmo
quando alguém bate à porta em busca dos remédios e curas da
mulher mágica. Na verdade, Amarílis aprende a ressentir os dias
bons, porque eles são apenas lembranças de como as coisas eram.
Presentes prontos para serem arrancados de seus dedos. Os dias bons
são feitos para que a dor não passe.
— Perdida, perdida… — a mãe geme, e então dá risada. — Vou
parir um demônio e queimar toda a casa. Ele não vai voltar, e vou
arrancar pela cauda o pequeno demônio que colocou dentro de mim.
Um, dois, três diabinhos queimando.
Em silêncio, Amarílis recolhe a caneca vazia e a troca pelo prato
com as fatias de bolo. Tenta não prestar atenção nas palavras. Não é
nenhuma novidade, afinal — a mãe segue repetindo as mesmas frases
sem sentido desde o dia da briga. O dia em que o homem sem rosto
deixou sua mãe quebrada, e a vida dentro daquela casa nunca mais foi
a mesma.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Capa e ilustração
Joana Fraga
Preparação
Diana Passy
Revisão
Camila Saraiva
Juliana Cury/ Algo Novo Editorial
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-85-5651-195-9
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem
a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.
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