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Resumo:
O texto se debruça sobre a obra de Gilka Machado (1893-1980) cujos versos, marcados pelo erotismo, foram por essa razão, muito
discutidos na época de sua publicação e chegaram a colocar na sombra a figura de Gilka, graças a visões preconceituosas.Os poemas
são lidos e entendidos a partir da observação da perspectiva da reivindicação dos direitos para as mulheres, adotada por Gilka
Machado e de como foram entendidos pelos contemporãneos. A seguir o texto analisa cuidadosamente a fortuna crítica dessa obra
acompanhando a palavra de críticos literários durante várias décadas.
Para percorrer este circuito poético, convém remontar, pois, ao começo do século:
1915, data do primeiro livro de Gilka Machado, intitulado Cristais partidos, ou Crystaes
partidos, para ser mais fiel à forma original de suas primeiras edições, aliás, de ótima
qualidade gráfica. Já Estados de alma, de 1917, incluiria caprichosamente a página em
papel de seda a resguardar o retrato da autora de olhos sonhadores, voltados para o alto,
retrato bem situado no canto direito da página, em forma circular, acompanhado da
tradicional pena, espátula e laço de fita, desenhados logo abaixo.
Gilka, aos 22 anos, iniciava uma carreira que iria marcar os seus quase 90 anos de
vida, até o último dezembro de 1980, quando faleceu, no Rio de Janeiro, onde morava com
sua filha, a célebre bailarina Eros Volúsia, que encantou plateias, no Brasil e no
estrangeiro, algumas décadas atrás. Durante todos estes anos, Gilka não perdeu sua
firmeza nas colocações, ao demonstrar, por exemplo, a necessidade da união das escritoras
brasileiras no sentido de defenderem os interesses de classe. Nem escondeu sua amargura,
profunda, que também foi acumulando durante todos estes anos, por cargo de ofício que lhe
foi penoso e lhe valeu a triste condição de ter sido rejeitada, primeiro, e esquecida,
depois, pela crítica. São os sinais que pude perceber de sua longa jornada poética, por
ocasião de um depoimento seu, prestado a mim e à jornalista Ilma Ribeiro, em fins de
1978, em sua casa, no bairro carioca da Tijuca.
Destes poemas, seleciono alguns de sua primeira publicação, dos Crystaes partidos,
onde se delineia a encruzilhada das suas preocupações, aliás, típicas da época: pendor
esteticista, na trilha da elaboração do formalismo parnasiano; e recursos de cunho
simbolista que lhe fornecem as brechas para as impulsões sensoriais de caráter liberador.
Há intenso vigor instintivo nos versos da moça pobre, sem muita erudição, de uma
família de artistas,[1] em impulsões que serão analisadas a seguir. Ressalte-se, por
enquanto, a consideração, por Gilka Machado, do poema como uma joia de luxo formal, e a
arte poética como o polimento indispensável a estes cristais de versos. Eis um exemplo
(conforme ortografia de 1918):[2]
E o último terceto:
Diante da situação, vem a queixa da mulher que descobre o ‘sem sentido’ da vida:
Aves!
quem me déra ter azas,
para acima pairar acima das cousas rasas,
das podridões terrenas,
e sahir, como vós, ruflando no ar as pennas,
e saciar-me de espaço, e saciar-me de luz,
nestas manhans tão suaves!
O verso branco, com soltura sintática e vocabular e com ritmo frásico próximo à
fala oral, sugerindo um modo poético espontâneo, acentua tendência de caráter nitidamente
pré-modernista, como já observou a crítica. (Góes, 1960, v. V: XXXIX)[3] Além disso, o
ritmo em ascensão crescente e a diversidade vérsica e estrófica tendem para a
representação de uma ânsia progressiva, de um ‘projeto de um jeito de ser mulher’ que,
contudo, não pode se efetivar. A renovação do temário amoroso reside nesta força da
rebeldia diante da condição feminina como objeto de dominação, de que quer escapar.
Observe-se que este poema foi dedicado a uma poetisa contemporânea sua, Francisca
Júlia da Silva, parnasiana que se caracterizava pela ‘placidez’ a encobrir quaisquer
possíveis experimentações mais íntimas e mesmo as de cunho mais ligeiramente pessoal.
Mário de Andrade faria críticas severas a Francisca Júlia em conhecida série de artigos
intitulada “Mestres do passado”, escrita no Jornal do Commercio, São Paulo, 1921, em que
a considera “gelada”, a que não faz poesia mas “leciona”, a que sacrificou o lirismo à
Beleza, ao querer, ainda segundo Mário de Andrade, “fazer belos versos”. (Brito, 1974:
259-266)
A inquietação ansiosa vai gerar, também, uma carga mais intensa de sensualidade em
outros poemas: é o caso do conhecido “Nocturno VIII”, publicado no primeiro volume de
versos. Nele, sensações noturnas provocadas pela noite, luar, bodas, noivado, Lua, tecem
um trabalho imagístico de cunho notadamente simbolista, centrado na magia lúgubre de
experiências trabalhadas pelo aguçamento dos sentidos.
Saliento, aí, as rimas audaciosas: “sensual arrepio/ eterno cio”, e o não menos
audacioso verso, propagado pela crítica, o célebre “Sinto pellos no vento… é a Volúpia
que passa”, neste poema que, em edição de 1947, figurará com o título de “Cio”.
O pendor erótico da sua poesia nasce, pois, com mais ou menos intensidade e com
mais ou menos sutileza e aguçamento, do campo das sensações: cores, perfumes, tato, sons,
atmosfera – o que motivou, aliás, logo em 1916, um tema de conferência que a Autora
proferiu no Rio de Janeiro, de título “A revelação dos perfumes”. Segundo depoimento seu,
as coisas materiais, que sempre achou ótimas, são: perfume, sorvete e automóvel – que
empatariam, também segundo seu depoimento, em ordem de preferência, com a admiração pelo
cantor príncipe Roberto Carlos, o que conseguiu levar a poesia ao povo através da música,
cumprindo a mesma função que desempenhavam os salões de poesia do seu tempo…
E mais:
A “rosa”, que “o coração excita, enleva, estua”, é a imagem que sustenta impulsos
eróticos:
E no último terceto:
E no primeiro terceto,
São também, no entanto, estas mesmas sensações que diluem a experiência do que
seria sua militância feminina enquanto proposição de um procedimento literário de avanço:
a herança romântica do escapismo, que o simbolismo adotou e transfigurou em
desfazimentos, propõe um discurso amoroso sem destinatário real possível, que gira, pois,
em sensações de um eu ensimesmado. A linguagem desfaz-se em abstrações, sonhos,
fantasias, com fecho pessimista: gera derrota, mostra fraqueza, dilui-se em Sono, Morte,
Nada.
Mas fica deste comportamento poético o traçado firme de quem buscou sua identidade
na consciência da condição feminina inserida num sistema social de repressão. Fica também
nítido um projeto de construção individual e social das mulheres, desmitificando o
condicionamento redutor. Acrescente-se ainda a descrição das sensações eróticas, com
‘expressões-estopins’ perturbadoras a mobilizarem uma crítica positiva e a outra,
difamadora, que Gilka Machado corajosamente teve de enfrentar.
Mesmo a crítica favorável, que reconhecia valores na sua produção poética, fazia
questão de distinguir, cuidadosamente, num habilidoso recurso de defesa moral, as duas
mulheres: a da realidade da poesia e a da realidade da vida. Na maioria dos críticos, há
o reconhecimento da ousadia, que gerou escândalo, após o que seu nome foi esquecido; e,
paralelamente, a preocupação de inocentá-la de uma sensualidade pecadora.
Foi o que aconteceu com alguns leitores profissionais da década de 1930 – 15 anos
após o lançamento do primeiro livro de poemas de Gilka Machado. Numa crônica de 1930,
Henrique Pongetti considerou Gilka Machado como “a maior poetisa brasileira” e a respeito
dos seus poemas luxuriosos diz que “eram extraordinários por nascerem, paradoxalmente, de
uma solitária enamorada do espírito”, conforme lembra Fernando Góes, citando-o em sua
antologia. (Góes, 1960, v. V: 166) Outro crítico, Humberto de Campos, envereda pela mesma
linha:
"Leal com a sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia externar em
versos, impunemente, no Brasil, como Lucie Delarue-Mardrus, Marcelline
Desbordes-Valmore ou a condessa de Noailles, todo o ardor da sua mentalidade de
crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas cheirando a pecado, toda
gente supôs que estas subiam dos subterrâneos escuros de um temperamento,
quando elas, na realidade, provinham do alto das nuvens de ouro de uma bizarra
imaginação." (Campos, 1945: 400)
Outro argumento de defesa construído por este crítico recai na consideração de que
a literatura manifesta sempre o ‘outro lado’ do homem, chegando a afirmar, radicalmente,
que “só se escreve aquilo que não se executou” ou “Passa-se para as letras aquilo que não
encontrou aplicação na prática”. (Campos, 1945: 400) Humberto de Campos pode, a esta
altura, relembrar outros defensores, para resguardar a ‘moralidade’ da poeta:
É o caso, também, do crítico Agrippino Grieco que propõe, sutilmente, uma distinção
entre a Gilka “dos domínios da arte” e a Gilka “em sua vida modesta e altiva”. (Grieco,
1947: 93) Esta observação mostra-se curiosa se considerada enquanto séria tentativa de
defendê-la da difamação. Da Gilka, a dos “domínios da arte”, naturalmente, o crítico
ressalta com entusiasmo a coragem na representação do amor:
"Grande artista, a sra. Gilka, com a sua deliciosa voz de contralto! […] Nunca
teve o medo do amor e das palavras que exprimem o amor, nunca os preconceitos a
amordaçaram, nunca temeu o puritanismo dos “quakers” da estética. Fez-se a
bacante dos trópicos e jamais o sol, a floresta, o oceano conheceram uma
sacerdotisa sem dogmas e sem ritos que os celebrasse com tal fervor, e por
vezes com tamanho furor… Em vez de mortificações ascéticas, o prazer de atirar-
se ao prazer, a todos os prazeres." (Grieco, 1947: 93)
Entende-se o ponto de vista do crítico, se comparado com a crítica severa que faz
de Cecília Meireles, em que reconhece carências de plasticidade: “Suas traduções da
natureza quase não tomam corpo, são pouco plásticas”, e de alegria: “faltam-lhe certa
fluidez, certa inconsistência, certa flexibilidade… Ignora a sedução do sorriso. É uma
artista que parece ter abdicado de toda alegria, de toda esperança de felicidade.”
(Grieco, 1947: 163)
Isso é apenas nos domínios da arte e, em sua vida modesta e altiva, nunca ninguém a
viu tomar a atitude de certas madamas desabusadas – misto de sabichonas de Molière e de
“bas-bleus” de 1830 – que pretendem adotar as maneiras masculinas, virando alunos de
saias, usando gravatas e monóculo, fumando pelos botequins, quase indo ao extremo de
andar travestidas pelas ruas, como fazia em Paris a quinquagenária Jane Dieulafoy.
Estes textos críticos aparecem por volta da década de 30: os poemas de Gilka
Machado já haviam, pois, eclodido e gerado manifestações de desagrado por parte de um
público indignado com as audácias “femininas”.
Gilka surge, no desfile das 50 mulheres escritoras, caracterizada por seu espírito
de “rebeldia”, que, no entanto, fica quase “submerso” nas galas da linguagem pomposa do
crítico, que não ultrapassa as raias do apologético, e não dispensa nem mesmo os ecos do
discurso camoniano.
"Gilka da Costa Machado, cantando com uma poderosa voz cheia de imprevistos
accentos nunca dantes escutados, accende na delicada volupia dos seus poemas,
convulsivamente carinhosa, as energicas chammas das revoltas supremas: revoltas
sociaes da mulher ferida pela organização iniqua do mundo; revoltas estheticas
da artista desgostosa dos monotonos scenarios prosaicos; revoltas sentimentaes
do coração limitado a um circulo de amor convencional; revoltas audazes do
espirito ebrio e sedento de liberdade!" (Sousa, 1918: 90)
Para o poeta gaúcho Leal de Sousa, que reúne três conferências com o título geral
de A mulher na poesia brasileira, publicado em 1918, a “musa” suprema, pelo menos a que
merece destaque neste desfile feminino, é a poetisa Francisca Júlia, a boa parnasiana. E
por quê? É ela a “lapidaria exacta das Esfinges, submissa às rigorosas leis scientiphicas
da arte” que “engasta na transparente correcção da limpida phrase metrificada, a riqueza
vernacula das aureas rimas insubstituiveis”. (Sousa, 1918: 75) E os versos são
“recortados em rijo vigor marmoreo”. (Sousa, 1918: 75) O Autor seleciona, naturalmente, o
poema “Musa impassível” para definir o seu valor enquanto escritora-mulher especificando
o que aí aparece de feminino. E o que seria? Nada.
Entende-se, pois, que o seu ideal feminino, “para companheira na vida e musa na
arte” se identificasse “com uma estátua que […] com a serena fronte deserta de idéias e o
calmo coração vasio de lembranças viesse, e recebesse, e vivesse os pensamentos e os
sentimentos do poeta”. (Sousa, 1918: 13)
De outro lado, surge uma face reformista do Autor, que revela consciência dos
problemas das mulheres e do movimento feminista através da cruzada reivindicadora das
sufragistas, que se reverte, contudo, em temores e cuidados paternalistas e que leva o
Autor a afirmações inacreditáveis, como esta:
O final do texto de Leal de Sousa mantém a coerência mais uma vez em linguagem
imersa no clímax laudatório e vazio, ao anunciar os novos tempos do reinado feminino…
glorioso:
Unica divindade immortal, a mulher triumphará dos nossos despotismos e dos seus
desvarios, e, sob o saudoso azul deserto de deuses vendo os altares e os thronos vasios,
deante della, na sua graciosa fragilidade floral resumindo as extinctas aspirações
celestes e os excelsos prestigios terrenos, o poeta, num commovido deslumbramento,
exclamará: Ave, regina! (Sousa, 1918: 96)
A situação das mulheres, quando se dispõem a cantar o amor, é muito mais embaraçosa
do que poderia parecer á primeira vista. Os homens tem o direito, não só de alludir ao
sentimento amoroso no que nelle ha de abstracto, como de descer ás minucias descriptivas
que nos parecem deliciosas. Mesmo sem chegar, como alguns autores, a percorrer as
bellezas femininas e compôr um poema especial para louvar cada uma, qualquer autor
masculino póde alludir a um pormenor da formosura da mulher, sem que isso cause
extranhesa. Que alguem pense num corpo feminino, da cabeça aos pés, e, por pouco que
tenha manuseado poetas, verá que não ha nada nelle que não tenha excitado o enthusiasmo
deste ou daquelle escriptor.
"Permitr-se-ia às mulheres fazer o mesmo? Parece que não. Até hoje pelo menos
não se tem permitido. (Medeiros e Albuquerque, 1920: 67)
Por que então as poetisas de nossa espécie não hão de ousar cantar os homens,
que lhes pareçam bellos?” (Medeiros e Albuquerque, 1920: 68)
Vem como resposta o estatuto machista, com a subsequente aceitação, por parte da
mulher: “Há talvez no facto uma prova do ciume masculino. Parece que um homem não lê
nunca com muito prazer um ellogio à belleza de outro homem. E, assim, todas as tentativas
a esse respeito chegaram sempre a ser um pouco ridículas. […] O interessante é que as
mulheres acabaram por acceitar esse ponto de vista, que só se justificava enquanto a
literatura era exclusivamente feita pelos homens.” (Medeiros e Albuquerque, 1920: 68) E
conclui:
A maior parte das poetisas deixou inteiramente de lado os seus amores. Algumas
falaram disso, do modo mais abstracto que lhes era possível, cantando o Amor, – uma
especie de amor theorico e impessoal – sem referencia alguma aos homens que ellas amavam.
Ou, se referencia havia, era também a typpos psychologicos: o Ingrato, o Inconstante, o
Infiel” […] (Medeiros e Albuquerque, 1920: 69)
A mesma atitude de certa surpresa como leitor de poesia erótica feminina, ao mesmo
tempo deslumbrado e escandalizado, é a que transparece quando comenta a obra de Madame
Burnat-Provins, com o Livre pour toi, que “revelou coisa incrivel: que a belleza do homem
é susceptivel de ser cantada!” Ali, denuncia conceitos éticos de ‘proibição’ e de
‘impropriedade’:
"O curioso é que muitas vezes as mesmas expressões que nós empregamos falando
da belleza feminina nos chocam applicadas á masculina. Um homem póde descrever
aquella attitude a que allude Madame Burnat-Provins de estar enroscado a um
corpo de mulher. Quantos o têm feito! Mas, si é a mulher que diz exactamente
isso, parece a cousa brutal, luxuriosa, cynica. Trata-se da evocação da mesma
scena: feita por um dos actores, é acceitavel, feita pelo outro, é pelo menos
incorrecta”… (Medeiros e Albuquerque, 1920: 70-71)
"Há nisso uma certa contradição. Por um lado, nós achamos que uma Renée Vivien
exaggera, quando se queixa de ter estado “condemnada ás feialdades masculinas”;
mas si uma mulher se decide a cantar as bellezas masculinas, –isso, que nos
devia lisongear, se nos affigura improprio." (Medeiros e Albuquerque, 1920: 71)
Em carta dirigida a Gilka Machado, datada de 1915, Lima Barreto afirma que “admirei
muito de sua inspiração, a sua completa independência de moldes, dos velhos ‘cânons’, e a
sua audácia verdadeiramente feminina” – confirmando também o caráter de novidade da obra:
“Quero crer que há nos seus versos novidades, novidade de pensamentos, de emoção diante
das cousas e dos angustiosos problemas do nosso destino.” (Barreto, 1956, t. I, v. XVI:
230)
A outra observação que faz a esta escritora diz respeito justamente a seus limites,
enquanto escritora-mulher:
"O seu livro é bem um poema em prosa, e um poema de mulher, de senhora, pouco
conhecedora da vida total, dos altos e baixos dela, da variedade de suas dores
e das suas injustiças. Vivendo à parte, em um mundo muito restrito, a senhora,
muito naturalmente, não podia conhecer senão uma espécie de dor, a dor de amar;
e, dessa mesma, a senhora faz dela uma Exaltação. "(Barreto, 1956, t. I, v.
XVI: 284)
O argumento usado para chegar a tecer tal crítica reside no caráter necessariamente
universal ou, pelo menos, na dimensão humana da literatura versada para além dos muros de
dramas pessoais. Em tom de benevolente conselheiro, o Autor julga poder dar-lhe uma
‘lição’, em nome de procedimentos que ele atribui a si mesmo: a preocupação social com a
coletividade e a abjuração de interesses individuais e egoístas.
Nada tenho a condenar o limite do direito de amar que a senhora defende. Se há quem
tenha o respeito a teorias mais radicais sou eu: mas, minha senhora, a literatura é um
perpétuo sacerdócio, diz Carlyle, e desde que li isso, eu não me sento na minha modesta
mesa para escrever sem que pense não só em mim, mas também nos outros. O que há de
pessoal nos meus pobres livros (ou adiante na objeção) interessa a muita gente e isso,
penso eu, me desculpa. (Barreto, 1956, t. I, v. XVI: 284)
A resposta de Albertina, de Barbacena, datada de 26/11/1917, confirma as
observações do seu crítico, pois confessa, em tom abnegado, que:
"Ah, bem sei que transformo a realidade, que a doiro apesar da minha visão
física, que a não descrevo com minúcias, com detalhes de verdade, que a
dignifico, que a elevo, que minto… mas que fazer se sou assim, totalmente
eivada desse mal divino e ingênito, dessa morbideza inexplicável mas incisiva e
penetrante, veneno das minhas vísceras e do meu espírito. Compreende agora
porque nunca conseguirei tornar-me o eco fiel e exato das cousas onde meus
olhos batem? "(Barreto, 1956, t. I, v. XVI: 285-286)
Algum tempo mais tarde, quando Lima Barreto troca correspondência com Monteiro
Lobato, para tratar da publicação da obra Gonzaga de Sá pela Revista do Brasil, ambos
comentam as edições de seus respectivos livros. Monteiro Lobato comenta o seu sucesso, em
carta de 4/01/1919:
"[…] já tirei em cinco meses três edições num total de 7 000 exemplares. E
pelos modos por que sai a terceira (seiscentos, vendidos na primeira semana),
para o ano farei a quarta. "(Barreto, 1956, t. II, v. XVII: 55-56)
"O meu Policarpo do qual tirei 2000, há dois anos, está longe de esgotar-se,
apesar de tê-lo vendido (a edição) quase pelo preço da impressão." (Barreto,
1956, t. II, v. XVII: 57)
"A Dona Albertina Berta foi mais feliz e a D. Gilka Machado, com os seus livros
de versos, a 5$000 a plaquete, ainda mais." (Barreto, 1956, t. II, v. XVII: 57)
É possível que haja mágoa por detrás do seu desabafo e que esta mágoa persista,
motivando o comentário que fez, em seguida, sobre o tipo de leitor e de obra que ele
prefere ler: critica, assim o leitor carioca, que exige do escritor “posição social” e
cuja preferência recai sobre o livro de
"O que ele quer não é a dignificação da mulher, não é a sua elevação; o que ele
quer são lugares de amanuenses com cujos créditos possa comprar vestidos e
adereços, aliviando nessa parte os orçamentos dos pais, dos maridos e dos
irmãos." (Barreto, 1956, v. VIII: 55)
Ainda segundo Lima Barreto, nestes casos, o que “está em jogo” é “a maneira
irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos, por moças e senhoras”
(Barreto, 1956, v. VIII: 61): repudia, pois, as “nomeações ilegais de moças para as
repartições públicas”. (Barreto, 1956, v. VIII: 74)
A visão da crítica posterior aos anos das primeiras publicações de Gilka Machado –
de 1915 a 1920, especialmente, em considerações tecidas por Leal de Sousa, Medeiros e
Albuquerque e Lima Barreto, e as tecidas na década de 30 por Henrique Pongetti, Humberto
de Campos e Agrippino Grieco – encontra repercussão nos textos críticos posteriores.
Nos anos 40, destaco Jaime de Barros, que no seu Poetas do Brasil reconhece Gilka
Machado a ocupar o primeiro lugar no quadro da poesia feminina da época, aludindo,
preferencialmente, à fase posterior à dos seus primeiros livros de poesia:
O crítico detém-se, pois, na fase da poesia quando “já não são tão vivas as
primitivas cores rubras do sensualismo dos seus poemas” (Barros, 1944: 135-136) e a
poetisa dará preferência à poesia filosófica e social, de temário referente aos
operários, à miséria dos mocambos do Recife, à crítica contra exploradores dos
proletários, ou ao sensualismo revertido para a natureza.
Mais entusiasmada é a posição de Mário Linhares, que, alguns anos antes de Jaime de
Barros, faz ressurgir Gilka Machado no rol dos seus Poetas esquecidos, nos fins da década
de 30, em 1938. Para o crítico, “Gilka Machado é a figura culminante, pelo imprevisto de
ritmos ignotos, com acentos charltonizados de uma instintiva volúpia, liberta de
refalsados preconceitos sociais. É uma suprema revoltada que rompe as gargalheiras das
mentiras convencionais que lhe amordaçam os incontidos arroubos de sua imaginação ardente
e caprichosa”. (Linhares, 1938: 275)
Suas considerações críticas são questionáveis: respeita a escritora Maria Eugenia
Celso, filha de Afonso Celso, pela “tradição de sua gloriosa ancestralidade”; considera
que Rosalina Coelho Lisboa desperta “a melhor simpatia… apesar da falta de ambientação
brasileira e a primitiva preocupação de ressuscitar os deuses védicos” (Linhares, 1938:
276); considera Henriqueta Lisboa “uma flor de emoção” (Linhares, 1938: 277) e Cecília
Meireles, “sem dúvida, uma alta sensibilidade. Mas caiu no modernismo, malbaratando os
seus peregrinos dons”, levada que foi por “sugestões enganosas”. (Linhares, 1938: 277)
Seu depoimento colabora para registrar o conceito que se tinha, na época, da poesia
de Gilka Machado. Ao narrar um encontro que teve com a poetisa Carmen Cinira, na Livraria
Freitas Bastos, no Rio, pelos idos de 1928, refere-se à restrição feita por esta à alusão
de que seria discípula de Gilka: não o era, “tinha pelo contrário, um temperamento
religioso, místico”. (Linhares, 1938: 280) A resposta do crítico explicita os termos da
comparação entre as duas escritoras: “Respondi-lhe que o calôr dos seus versos me dera
aquela impressão.” (Linhares, 1938: 280) É o que fica da leitura de Gilka Machado, também
para os seus críticos mais tardios: os da década de 50 em diante.
Persiste neles a preocupação de defesa moral: “Nem sua ousadia tinha impureza,
mas punha à mostra a riqueza de seus sentidos, especialmente de um, pouco explorado em
poesia, o tato. Sua sensibilidade é requintada, algo excêntrica, mas profundamente
feminina” – escreve Péricles Eugênio da Silva Ramos, na sua Poesia simbolista. Mas é mais
comum a tradicional postura do reconhecimento de sua ousadia, conforme propõe o crítico
Fernando Góes: para o crítico, Gilka, “de quem, hoje, injustamente, tão pouco se fala”, é
“a maior poetisa brasileira da época, depois de uma estreia rumorosa”, com livros que
provocaram “admiração e escândalo”. (Góes, 1960, v. V: 165) As tônicas da poesia
ressaltadas pelo crítico recaem na ousadia sensual:
“A forma ousada dos seus versos, de um ritmo livre e bastante pessoal, harmoniza-se
com a liberdade de inspiração, onde predomina um forte sensualismo.” (Góes, 1960, v. V:
165) Tal observação não invalida uma análise que considera também outros aspectos da obra
da Autora. Ao lado dos versos de “riqueza carnal”, louva a poesia participante, de
preocupação social, “falando das crianças abandonadas e dos humildes trabalhadores e sua
luta, seus sofrimentos, e ganhando tons ásperos de revolta em versos como os de ‘Alerta,
Miseráveis’, ou naqueles em que se refere aos operários de sua cidade ou aos mocambos de
Recife”. (Góes, 1960, v. V: 166) E ressalta a poesia espiritual e mística:
nota biográfica
Nádia Battella Gotlib é mestre, doutora e professora livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde deu aulas de Literatura
Portuguesa e Literatura Brasileira até 1997, quando se aposentou. Ministrou cursos e seminários em várias Universidades do Brasil e
do exterior. Foi coordenadora do ‘GT A mulher na literatura’ da ANPOLL. Atualmente é professora colaboradora do Programa de
Pós-Graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. E é também pesquisadora sênior do CNPq.
Publicou 11 livros, entre eles: Teoria do conto (Ática,atualmente na 12a ed.); Tarsila do Amaral, a modernista (SENAC, atualmente
na 4a. ed.); Clarice, uma vida que se conta (Ática, atualmente na 7ª ed.); Clarice Fotobiografia. (Edusp/Imesp 3ª ed.); Organizou
livro com texto de Elisa Lispector, até então inédito: Elisa Lispector, Retratos Antigos (2011); Publicou em Buenos Aires, Clarice,
una vida que se cuenta. (Adriana Hidalgo ed., 2007) e no México, Clarice Lispector Fotobiografía (editorial S/Conaculta, 2015).
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Imprensa Nacional,
Brito, Mário da Silva. 1974.História do Modernismo brasileiro. Antecedentes da Semana de Arte Moderna. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,
Campos, Humberto de.1945. Crítica. 2ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson,
Góes, Fernando.1960. In: Panorama da Poesia Brasileira. “O Pré-Modernismo”. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira,
Grieco, Agrippino. 1947.“As poetisas do Segundo Parnasianismo”. In: Evolução da poesia brasileira. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro: José
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Lima Barreto.1956, “Coisas do Reino de Jambon. Sátira e folclore.” In: Obras. São Paulo: Brasiliense, v. VIII.
Lima Barreto.1956 “Vida urbana. Artigos e crônicas.” In: Obras. São Paulo: Brasiliense, . v. XI.
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Silva, Domingos Carvalho da. 1959. Vozes femininas da poesia brasileira. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura,
Notas:
* Este texto, agora revisto, foi publicado originalmente na revista Polímica. Revista de Crítica e Criação, n. 4, 1982, p. 23-47.
[1] Gilka Machado (1893-1980) pertencia a uma família de artistas: era bisneta de Francisco Barreto Moniz Filho, famoso repentista
baiano; neta da cantora Cândida, filha do citado repentista; neta, do lado materno, do célebre violinista português Francisco Pereira da
Costa; filha do poeta Hortêncio da Gama Souza e Melo; filha e sobrinha de atrizes de teatro; casada com Rodolfo Machado, poeta.
[2] As citações das obras Crystaes partidos (1915) e Estados de alma (1917) foram extraídas de Machado, Gilka. Poesias (1915-
1917). Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1918.
[3] Fernando Góes situa Gilka Machado na fase do Pré-modernismo brasileiro, ressaltando sua característica de cultivadora do verso
livre, junto a Manuel Bandeira e Alberto Ramos. Além da “efetivação do verso livre, iniciada pelos simbolistas e que se confirmou
em versos de poetas pré-modernistas”, cita outras constantes desta época: a renovação dos temas poéticos; o sentimento brasileiro ou
a preocupação nacional; e “certa liberdade sintática e vocabular que os rebeldes da Semana de Arte Moderna levariam às
consequências finais”. (Panorama da Poesia Brasileira. “O Pré-Modernismo”. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira, 1960, v. V.)
[4] Os poemas dos demais volumes de versos, com exceção dos dois primeiros: Crystaes partidos e Estados de alma, foram extraídos
da seguinte edição: Machado, Gilka, Poesias completas. Rio de Janeiro, Brasília: Cátedra, MEC, 1978. .
[5] Os poemas de Gilka Machado foram traduzidos para o espanhol, em 1930, por Enrique Bustamante y Ballivian, e figuraram na
antologia 9 poetas nuevos del Brasil, com: Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Cecília
Meireles, Ribeiro Couto, Murilo Araújo, Tasso da Silveira. E também, em 1932, teve poemas traduzidos por Gregorio Reynolds,
embaixador da Bolívia no Rio de Janeiro, que publicou-os sob o título de Sonetos y poemas, com prólogo de Arturo Capdevilla, em
Cochabamba, na Bolívia.