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Capítulo I

— CHUVA chata! Eu, se fosse Deus, só mandava chover durante as


aulas - disse Malu ajoelhada no sofá.
Já fazia três dias que as chuvas tinham-se emendado. Tudo tão
molhado, frio, cinzento que dava impressão até das plantas - galhos,
folhas e tudo mais - estar se dissolvendo. Ao lado, a Inspetora lia uma
enciclopédia para crianças. Na outra sala, com um pedaço de flanela
amarela, Bortolina tirava pó. E enquanto trabalhava, cantava. Fazia
quase uma hora que Bortolina estava lá, e foi mais ou menos nessa
altura que tia Aurélia entrou, e Malu ouviu a bronca:
— Bortolina, você vai ou não vai acabar de limpar a sala de visitas?
— Já estava acabando, sim senhora...
Para tirar a prova, tia Aurélia passou o dedo em um móvel.
— Isso é serviço de gente, Bortolina? - perguntou horrorizada. Posso
escrever meu nome em cima da mesinha!
— É que... é que... é que estava faltando só a mesinha! - respondeu
Bortolina correndo com o pano.
— Você tem mais dois minutos para terminar a limpeza desta sala
e sair VOANDO para a sala de visitas! - comandou tia Aurélia, retirando-
se.
Malu não viu, mas com toda certeza, Bortolina deveria ter
mostrado meio metro de língua e, imediatamente se esquecendo da
ordem dada voltou a cantar desafinado.
Malu sentou-se e cruzou os braços. Eloísa continuava firme na
leitura. Isso irritou ainda mais, e Malu perdeu a paciência:
— Ai, que férias chatas Eloísa! Será que não acontece nada
diferente? Já estou cansada de ficar olhando a chuva!
— A chuva é necessária para as plantas - respondeu a Inspetora
dando uma rápida olhada pela janela. — Os fazendeiros plantaram
feijão e, se não chover, vão ter um grande prejuízo.
— Eu não tenho nada com isso! - respondeu Malu.
— É, mas quando tem fome, quer comer, não quer?
— Tudo, menos feijão! Não gosto de feijão.
— Mas tem gente que gosta e precisa de feijão para viver -
respondeu a Inspetora sem piscar os olhos. — Você não sabe que a
agricultura é uma das principais riquezas do Brasil?
— Oh, deixe de fazer sermões! - respondeu Malu mal humorada.
Depois da aventura no Morro do Tatu-Bola, não aconteceu mais nada
pra gente!
— E você espera que aconteça uma aventura por dia? - perguntou
a Inspetora fechando a enciclopédia.
— Por que não? Daqui a pouco, as férias terminam, nós voltamos
para casa e vai ser aquela mesma chateação de antes! Ai, Eloísa, será
que você não dá um jeito de fazermos uma coisa diferente?
— Que coisa?
— Não sei, uai! Uma aventura, um passeio, mesmo uma
brincadeira, acho.
A Inspetora tirou os óculos e limpou as lentes com o lenço que
estava guardado no bolso da saia.
— Acho que não estamos mais na idade de brincar. Aliás, eu não
gosto de brincadeiras. Gosto, sim, de resolver problemas. Mas os
problemas acontecem, querida secretária... A gente não os inventa,
sabe?
— Você é tão inteligente, não pode dar um jeito?
— Não, não posso. Ninguém consegue modificar o mundo só para
criar um “caso". Eu acho que você deveria pegar um bom livro e
começar a ler - respondeu a Inspetora com a mesma calma.
— Detesto livros! -— respondeu Malu, levantando-se.
— Pois faz muito mal Os livros são nossos melhores amigos e é
através deles que aprendemos muitas coisas. Eu, por exemplo, não
saberia tanto se não tivesse lido muitos e muitos livros.
— Você é você - respondeu Malu sempre irritada - eu sou eu. Cada
um tem um gosto.
A Inspetora tirou os óculos e olhou firme para a prima.
— Sabe de uma coisa?
— Não. O que?
— Acho que você continuará secretária a vida inteira...
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que, eu tinha confiança que você, logo logo, viesse
a ser uma Inspetora como eu e tivesse seu próprio grupo de agentes.
Mas, pelo que estou vendo, você nunca será capaz de dar ordens. Para
dar ordens, a pessoa precisa ter “massa cinzenta dentro da cuca", isto
é, ter inteligência, o que se consegue só com a leitura de bons livros...
coisa que, pelo que vejo, você não está muito interessada em
conseguir...
Malu não respondeu. Fechou a cara e ficou olhando a chuva. Ela
sabia que no íntimo a Inspetora tinha razão. Aliás, a Inspetora sempre
tinha razão!
Capítulo II

ERAM três e meia, quando elas ouviram um carro chegando. Malu


estava sentada perto da estante, tentando concentrar-se na leitura de
um livro chamado AS AVENTURAS DE GULLIVER. Ela não ligou para o
barulho. Seria um daqueles vizinhos do tio Clóvis que vinha com os
mesmos problemas de sempre: refazer uma cerca, procurar uma vaca
que tinha sumido, cuidar de uma ponte caída ou passar o trator na
estrada. Na fazenda acontecia sempre a mesma coisa, sempre!
Dez minutos depois, Bortolina apareceu à porta. Nariz erguido,
poses de grande dama, anunciou:
— Meninas, dona Aurélia está chamando vocês...
A Inspetora fechou a enciclopédia.
— Para que?
— Visita...
— Quem?
Bortolina ajeitou as trancinhas e fez ares de mistério.
— Dona Tuluca do Castelo do Morro.
— Dona Tuluca, aqui?
— Ela mesma, em pessoa. Está mais cheia de flores do que um
vaso em plena primavera! - respondeu Bortolina virando nos pés e
desaparecendo.
Malu levantou os olhos.
— Quem é dona Tuluca do Castelo do Morro?
— Uma vizinha, fazendeira solteirona. Mora a uns vinte
quilômetros daqui.
— Que nome! - disse Malu franzindo o nariz.
— O jeito é irmos cumprimentar a velha - disse a Inspetora
levantando-se. — Vamos?
— Eu preferia ficar quieta, aqui - respondeu Malu. — Conversar com
velhas é pior que ficar vendo a chuva cair...
— Mas essa, não - respondeu a Inspetora com segurança. — Acho
que você vai gostar dela.
— Por quê?
— Espere e veja - respondeu.
Sempre resmungando, Malu apanhou um pedaço de papel e
marcou a folha que estava lendo justamente quando Gulliver tinha
acordado em uma ilha, todo amarrado por uma porção de homens
pequeninos que cabiam na mão dele! Em todo caso, tia Aurélia tinha
decretado a presença delas na sala e, quando ela assinava um decreto,
era palavra de rei e tinha de ser obedecida.
Atravessaram o corredor comprido.
— Você conhece a história de Gulliver? - perguntou Malu.
— Conheço...
— O que acontece para ele depois que ele foi amarrado pelos
anõezinhos da ilha?
— Não vou dizer - respondeu a Inspetora inexpressiva. — Se você
quiser saber o resto, leia tudo. É para isso que os livros existem.
Malu quase arrebentou de raiva, porém mordeu a língua, pois
sabia que não adiantava discutir com a prima.
Chegaram à sala de visitas. A Inspetora, à frente. As cadeiras
tinham encosto tão alto, que você não veria, de costas, as pessoas
sentadas nelas.
Malu viu um vulto movendo-se em uma delas.
A Inspetora aproximou-se da mãe; Malu também. Foi aí que ela
viu quem era o vulto: um senhora tão esquisita que Malu perdeu a fala.
Primeiro, ela era muito pálida. Tinha lábios e maçãs do rosto tão
vermelhos que pareciam pintados. Usava um chapéu fora de moda, de
aba larga e azul, coberto por pencas de flores coloridas e por um véu
branco que dava um laço enorme debaixo do queixo. O vestido era
comprido, azul com bolas brancas e gola alta, franzida. O laço do
chapéu dava à velha uma engraçada aparência de bala enrolada em
papel celofane.
— Dona Tuluca quer cumprimentar você, Eloisa... - disse tia
Aurélia.
Eloísa deu um passo, apanhou as barras do vestido, pôs um pé
para frente e curvou o corpo. Malu achou estranha aquela maneira de
cumprimentar.
— A senhora tem passado bem, dona Tuluca? —- perguntou a
Inspetora.
Dona Tuluca colocou uma trombeta comprida junto ao ouvido,
para escutar melhor, pois ela era meio surda. Depois, estendeu a mão
e afagou a cabeça de Eloísa:
— Muito bem, queridinha, e você?
— Bem, obrigada.
— Esta é minha sobrinha, Maria de Lourdes, dona Tuluca... - disse
tia Aurélia.
Malu aproximou-se sem saber se imitava a prima, se estendia a
mão, ou se apenas falava alguma coisa. Tão atrapalhada, pisou no bico
do sapato da velha. Dona Tuluca deu um berro, e tia Aurélia revirou os
olhos.
— Malu não está acostumada às etiquetas de salão, a senhora
desculpe, dona Tuluca.
A velha mordeu os lábios porque Malu tinha pisado mesmo na
unha encravada, mas não fez escândalos porque as pessoas educadas
nunca armam escândalos.
— Não há de ser nada, queridinha... Não há de ser nada... Como é
seu nome, mesmo?
— Meu nome é Malu — respondeu Malu muito sem graça.
— Está passeando na fazenda? — e tornou a colocar a estranha
trombeta junto ao ouvido.
— É, passando as férias... Onde eu morava estava tão chato!
Tia Aurélia pigarreou:
— Malu, queridinha, não use palavras vulgares... Não diga chato...
diga desagradável.
— A senhora mesma disse chato; por que eu não posso dizer
chato? - perguntou Malu mais atrapalhada.
Felizmente, dona Tuluca salvou a situação:
— Ora, vamos, nada de etiquetas, por favor! O tempo dos barões
já se acabou e nós estamos vivendo outros dias... Fiquemos à vontade...
— Melhor assim — propôs tia Aurélia aliviada. — As meninas estão
acostumadas à vida ao ar livre, e a senhora sabe como é... Bem, vou
mandar servir o chá...
Tia Aurélia tocou o sininho de prata. Nada. Novamente badalou a
sineta. Com um estrondo, a porta se abriu e Bortolina apareceu:
bonezinho de rendas e avental comprido, tão liso, tão duro de goma que
ela parecia um foguete espacial.
— Pode colocar a mesa, Bortolina - mandou tia Aurélia, muito
cerimoniosa.
— Sim, senhora - respondeu a negrinha de cara fechada. — Num
minutinho.
Dez minutos depois, estavam todos à mesa, tomando um horrível
chá silencioso. Malu nem segurava a xícara, de medo de revirá-la. Ela
jamais seria capaz de tomar chá com a classe e elegância de Dona
Tuluca! Só as duas adultas conversaram.
— A senhora está seriamente pensando em vender o Castelo do
Morro? - perguntou tia Aurélia.
Dona Tuluca parou com a xícara no ar.
— É um problema muito sério, minha querida, mas infelizmente é
verdade. Tenho recebido muitas propostas, mas, em negócios, é preciso
pensar muito porque, às vezes, uma decisão precipitada pode levar-nos
a um desastre!
— A senhora tem razão, dona Tuluca, muita razão. Em negócios
não se pode agir com o coração, mas só com cabeça fresca! - propôs
tia Aurélia lembrando-se das palavras de de tio Clóvis, que fazia tempo,
estava intencionado em comprar o Castelo do Morro: "Aurélia, a velha
é muito esperta! Não diga nada que ela possa usar contra nossos
argumentos quando formos fazer a proposta da compra do Castelo do
Morro."
Aquele detestável chá durou quase uma hora, e o tempo, em vez
de melhorar, piorou.
Escureceu a ponto de de ser preciso Bortolina acender as luzes,
embora só chuviscasse. Foi assim até que a noite começou a cair; dona
Tuluca ficou preocupada.
— Como posso ir embora com esse aguaceiro?
Tia Aurélia torceu as mãos.
— Que azar! Se Clóvis estivesse aqui, levaria a senhora de volta!
Mas ele foi à cidade e só volta amanhã, à tarde... A senhora não gostaria
de pousar conosco?
Novamente, dona Tuluca examinou o tempo e acabou por fazer
um movimento afirmativo.
— Terei muita honra em aceitar o seu convite, queridinha...
Quem, afinal, não gostou, foi a própria tia Aurélia porque dona
Tuluca era visita de muita cerimônia; com isso, tia Aurélia precisaria
fazer sala e... adeus novelas das sete e oito e meia!
Silenciosas, elas terminaram de tomar o chá.
Capítulo III

Foi como Malu tinha pensado, uma noite horrível. Elas tiveram de
ficar sentadas direitinho na sala, escutando a conversa das duas
mulheres. Era uma prosa chata, dona Tuluca só falava dos tios dela que
haviam sido barões, das primas que tinham se casado com gente rica,
dos parentes, que, enfim, eram os sujeitos mais importantes do mundo.
Certa altura, não se aguentando mais, Malu puxou a prima pela manga:
— Essa velha bem que podia escrever novelas, não acha? Do jeito
que ela inventa “casos"!...
A Inspetora fechou a cara e fez psiiiiiiu. Dona Aurélia olhou com o
rabo dos olhos.
Às dez horas, Malu bocejou tão alto que dona Tuluca
compreendeu. Olhou para o relógio:
— É tarde, e as crianças estão com sono. Acho melhor nos
recolhemos ao leito...
Despediram-se. Dona Tuluca saiu com a imponência de uma
rainha, e tia Aurélia, atrás. As duas meninas seguiram para o quarto.
Quando Malu fechou a porta, explodiu:
— Mais cinco minutos, e eu tinha um acesso! Você viu só, que
velha antipática? Em vez de dizer - “Vamos dormir", vem com esse:
“Acho melhor nos recolhemos, ao leito!"
A Inspetora começou a trocar de roupa.
— Ela é muito educada...
— Nem por isso precisa ficar falando dos barões parentes dela. É
verdade, é?
— É, sim. Ela tem sangue azul...
— Pensei que não existisse mais isso no Brasil.
— Existem alguns casos. Ela é um deles.
— Onde ela mora?
— No Castelo do Morro.
— Uma fazenda?
— É. Uma fazenda diferente das outras porque, em vez de ter uma
casa, tem um castelo.
— Castelo de verdade?
— De verdade. Pequeno, mas castelo de verdade. Foi construído
pelo tataravô dela.
— Ela é casada?
— Não. É solteirona. Parece que ela está por vender o castelo, mas
deve querer uma fortuna. Papai está interessado em comprar, mas,
você sabe, não temos tanto dinheiro.
— Por que seu pai não pede dinheiro emprestado?
— Ele está pensando em fazer um empréstimo no banco, mas,
antes, é preciso saber se dona Tuluca realmente nos dá a preferência
de compra... você não viu como mamãe lida com ela? Toda cheia de
atenções... dona Tuluca disse que tem recebido boas propostas... ela é
muito inteligente, sabe? Afinal, não são todas as fazendas que tem
castelos...
Malu sentou-se na cama.
— Eu não sabia! Pensei que ela fosse apenas uma velha muito
chata...
A Inspetora abotoou a gola do pijama e deitou-se.
— Não faz mal. Você não foi mal-educada. É mesmo muito difícil
lidar com pessoas como dona Tuluca.
— Você não acha que ela é maluca?
— Por quê?
— Aquelas flores, aquele chapéu, aquele véu e o vestido que
parece roupa de museu...!
— Ela vive num outro mundo - um mundo do passado. Mas acho
que você tem um pouco de razão: ela é mesmo uma mulher muito
esquisita...
— Em pleno século XX não se usa vestido como aquele - disse
Malu bocejando. — Ela parece que saiu do retrato do casamento da
minha tataravó...
— É mesmo.
A Inspetora não falou mais nada. Cruzou as mãos na barriga e
ficou olhando para o forro.
— Posso apagar a luz? - perguntou Malu.
— Pode.
— Então, boa noite, Inspetora.
— Boa noite, secretária...
Malu apagou a luz e, em menos de dois minutos, estava
roncando. Mas a Inspetora, não. Em vez de dormir, ela ficou com os
olhos grudados no forro. Pensando, pensando, pensando em coisas que
ninguém sabia o que eram.
Capítulo IV

Malu acordou com cutucões da Inspetora:


— Acorde, Malu, temos uma coisa importante a fazer...
Malu custou a despertar.
— Depressa - disse abrindo o guarda-roupa e retirando a malinha
com os apetrechos. Aí, Malu interessou-se.
— O que está acontecendo?
— Vamos acompanhar dona Tuluca ao Castelo do Morro...
— Por quê?
— Mâmi mandou. Parou a chuva, e por toda lei a velha quer voltar.
É perigoso ela viajar sozinha. Então, nós vamos.
— Nós, quem?
— Você, eu e o Orelhão.
— Por que o Orelhão?
— Porque ele é homem e, se alguém precisar empurrar o carro,
ele empurra.
— Oh, ele é um menino! Por que você está levando a malinha?
A Inspetora segurou firme a valise debaixo do braço.
— Emergência, secretária, emergência! Regra número um: Estar
sempre preparado. Tenho um pressentimento que vamos encontrar
"coisa“ naquele castelo...
— Que tipo de coisa? - interessou-se Malu.
— Não sei. Dizem que é um castelo assombrado...
— Vamos dormir lá? - perguntou Malu, assustada.
— Claro que não! Só vamos levar a velha e voltamos. Dona Tuluca
é muito teimosa e ela mesmo veio dirigindo o carro. Chegando lá, Abel,
o criado, traz a gente de volta...
Malu não disse mais nada. Meteu-se na roupa, nos sapatos, lavou
o rosto e foi para a sala, onde a mesa do café estava pronta.
Dona Tuluca recebeu-as com cordialidade. À luz do dia, ela
parecia ainda mais pálida do que antes - tão branca quanto a louça.
Malu descobriu que a palidez era devida ao fato de ela aplicar muito pó
de arroz.
Depois do café, saíram. Realmente, a chuva tinha parado, mas o
céu estava meio garoento. O carro era um modelo antigo, branco, com
estofamento vermelho, muito parecido com esses carros de filmes
antigos da época dos 30. As meninas entraram, e dona Tuluca levou
meia hora despedindo-se. Depois, sentou-se ao volante. Foi quando o
Orelhão chegou. Luanda, do alto do alpendre, não se cansava de repetir
recomendações:
— Não me abra a boca, menino! Ela é mulher muito educada, viu?
Orelhão tinha tomado banho, estava com o cabelo penteado e
perfumadíssimo.
— Dá licença? - pediu cerimonioso ao sentar-se no banco de trás.
A velha ligou a chave. Do escapamento saiu uma nuvem azul.
Naquele instante, Bortolina que também estava no alpendre, abriu num
choro tão sentido e agudo, que todo mundo olhou para ela.
— O que foi, Bortolina? - perguntou tia Aurélia, assustada.
— Eles vão conhecer o castelo E EU TAMBÉM QUERIA CONHECER
UM CASTELO! - miou a Bortolina enxugando os olhos com o avental. —
AI, EU TENHO UMA VONTADE DE CONHECER UM CASTELO!
Tia Aurélia quase desmaiou de vergonha. Teve vontade de pregar
uns tabefes na Bortolina. mas a sabidona da Bortolina já estava bem
distante para evitar os petelecos. Dona Tuluca, que tinha ouvido a
choradeira, meteu a cabeça fora do automóvel:
— Deixe a menina vir com a gente, dona Aurélia. Acho que ela não
vai fazer muita falta na casa, vai?
Claro que não ia. Porque a Bortolina, em vez de ajudar, mais
atrapalhava.
— Bem... acho que ela pode... gaguejou tia Aurélia. — Eu acho
que...
Nem chegou a terminar a frase porque, muito assanhada, a
Bortolina já descia a escada aos pulinhos e com mãos para cima:
— Ai, que delícia, eu vou conhecer um castelo! Eu vou conhecer
um castelo! - repetia com a voz esganiçada.
Orelhão abriu a porta de trás. Bortolina entrou depressa. Dona
Tuluca pisou no acelerador.
— Adeus!
— Adeus...
Vagarosamente, o carro se afastou da casa-grande. Toda
importante, Bortolina pediu licença para abrir o vidro e, apesar da
garoa, enfiou a cabeça para fora, pondo-se a cantar.
Capítulo V

Mas, se a viagem começou mais ou menos bem, depois de alguns


quilômetros a coisa mudou. O próprio céu pretejou-se com nuvens
carregadas e desabou uma pancada.
Bortolina fechou o bico e arregalou os olhos.
O vento esborrifava a chuva para baixo e para cima. O carro
derrapava. Dona Tuluca era a pior motorista do mundo e, ao invés de ir
em velocidade moderada, metia o pé no acelerador; os meninos tinham
a impressão de estar na montanha-russa, pois o carro só faltou subir
pelos barrancos. O limpador do para-brisas não vencia, e à frente tudo
se transformou em uma cortina cinzenta.
— A senhora não acha bom parar um pouquinho? - perguntou a
Inspetora, ressabiada.
— Nada disso, queridinha! Se cairmos no atoleiro, ninguém nos
tira de lá...
E, toda calma, dona Tuluca parecia um Emerson Fittipaldi na
estradinha cheia de ziguezagues. Para espantar o medo, ela cantava:

Um e dois - um empurrão;
O que vem não vai voltar.
Se você entende ou não,
Lá eu volto pra ficar!

Bortolina começou a bater os dentes e rezava, contando nos


dedos. Orelhão não olhava para os lados. De vez em quando, viam
arbustos sem folhas, raquíticos, como mãos erguidas. Horrível!
Relâmpagos queimavam um atrás do outro parecendo querer partir a
terra.
De repente, dona Tuluca firmou a vista.
Apareceram umas estranhas formas ameaçadoras em meio ao
caminho.
— Agarrem-se, que é a ponte! - disse ela dando força total ao
motor.
O rio estava transbordando. E, quando o rio transbordava, a
enchente perigosamente arrastava troncos e, às vezes, até animais
mortos. Era tanta água que nem viam o leito da ponte, pois as águas do
rio a tinham coberto. A Inspetora quis pedir que dona Tuluca parasse;
Malu estava sem cor. Bortolina agarrou-se ao Orelhão, e aos trancos e
barrancos, o carro atravessou as madeiras soltas, sem dona Tuluca ter
a menor noção por onde estava passando. Ao chegarem ao lado oposto,
Bortolina virou-se para trás e viu: sacudida pela passagem do carro, a
velha ponte se desmantelava toda, e a enchente levou tudo embora. Aí,
Bortolina fechou os olhos e caiu desmaiada.
Tomando o caminho para o topo do morro, o carro foi subindo
mais devagar. Até que, finalmente, eles avistaram os primeiros
contornos do castelo. Era uma construção antiga, como se saída de um
livro de histórias da Idade Média. Não muito grande, mas com duas
grandes torres, telhados pontiagudos e uma muralha ao redor das
torres. Depois de uma freagem inesperada que fez todo mundo bater a
cabeça no banco da frente, o carro parou, e dona Tuluca desligou a
chave.
— Graças a Deus, chegamos: sãos e salvos!
O portão do castelo abriu-se e apareceu um sujeito com um
guarda-chuva de homem. Era um tipo de pernas compridas, nuas, e
corpo de barril. Meio careca, nariz comprido, Abel usava uma casaca
preta e luvas brancas. Primeiro, ele conduziu a patroa para dentro;
depois, as crianças.
— Que cara tem esse sujeito! - cochichou Malu. — Não gostei do
tipo dele, não! Você viu como ele olhou para a gente?
— Não vá me dizer que você já está pensando em coisas que não
deve! - respondeu a Inspetora agarrando-se à malinha.
Por dentro, o castelo era espaçoso e sinistro. Paredes altas,
escuras e de pedras. Respiravam ali o cheiro do mofo gelado e das
coisas velhas. O chão, também de pedras. Havia retratos com
molduras douradas e até mesmo uma armadura.
— Parece o castelo do “Drácula” - disse Orelhão, ressabiado.
— Ai, Jesus! - fez a Bortolina dando um passo para trás.
— Já vai começar? - rosnou a Inspetora fechando a cara.
Dona Tuluca acabava de retirar as luvas.
— Abel, estou ouvindo vozes na biblioteca.
— É o Doutor Navegante, senhora - respondeu com etiqueta.
— Veio para tratar da compra do castelo...
— Oh, verdade? - perguntou ela franzindo a testa. — Apesar do
temporal?
Abel fez que sim.
— Que desagradável! - disse dona Tuluca retirando o chapéu e
mostrando o cabelo vermelho como fogo — porque a ponte rodou, e,
agora, será impossível ao Doutor Navegante voltar para a cidade...
Abel cinicamente sorriu e ficou de boca fechada. Apanhando as
luvas e chapéus, afastou-se. Dona Tuluca olhou para os meninos:
— Sinto muito que o temporal tenha feito todo esse estrago.
Parece que vocês terão de ficar no castelo até que a chuva passe.
Depois, veremos um jeito de levar vocês de volta, o que não será fácil,
devido ao desmantelamento da ponte. Mas não se preocupem:
telefonarei para dona Aurélia e direi que tudo está correndo às mil
maravilhas. Agora, com licença, preciso atender ao Doutor Navegante.
Fiquem à vontade, naquela outra sala. Assim que desocupar, vou
conversar com vocês. Certo?
— Certo...
Dona Tuluca levantou o nariz e afastou-se para a biblioteca. Os
quatro ficaram juntos, ansiosamente olhando para os lados. A
Inspetora foi a primeira a sair daquele estado de espírito:
— Bem, minha gente, vamos ficar calmos. Afinal, assim que a
chuva passar, nós voltamos para casa, e fim!
— Não estou gostando deste castelo... disse Malu, arrepiando-se.
— É tão gelado que até parece um túmulo!
— Ai, não me fale em defunto! - gemeu a Bortolina.
— Você queria uma aventura, não queria? - insistiu a Inspetora
sempre segurando a malinha junto ao peito. — Isso bem pode ser o
começo de uma!
— Outra mula-sem-cabeça? - arriscou a Bortolina.
Orelhão deu um peteleco na negrinha.
— Olha aqui, sua medrosa, você veio aqui porque quis. Agora, vê
se não começa a encher, viu? Ou eu esquento sua cuca com um pé-de-
ouvido!
— Vamos para a outra sala - comandou a Inspetora.
A outra sala ficava atrás de uma porta alta, pesada e com uma
fechadura de quase meio metro. A Inspetora girou a maçaneta e
empurrou. A folha afastou-se com um chiado. Lá dentro, a luz mostrava
um cômodo menor, com móveis tão altos e trabalhados, que quase
tocavam o forro. Havia um candelabro com velas brancas acesas, e
uma das paredes era inteiramente coberta por uma cortina vermelha.
— Entre você na frente, Orelhão... Afinal, você é o oficial...
— Mas a vigilante é a Bortolina que tem a coruja branca!
— Eu não. Deus me livre! - respondeu a negrinha ameaçando fazer
escândalo. — Não estou com minha coruja e, além disso, como diz dona
Aurélia, primeiro os homens...
Orelhão não pôde evitar. Entrou cauteloso, enquanto as três,
atrás, iam como se estivessem brincando de trenzinho. Assim que
Bortolina passou (era a última), a porta fechou com uma batida de fazer
pular o coração, e os quatro gritaram ao mesmo tempo.
— Calma, gente, foi só o vento - disse a Inspetora, notando que o
vento também balançava a cortina vermelha.
A única coisa viva naquela sala era um relógio de caixa, alto como
gigante e que fazia tique-taque em um canto. Os três o examinaram
passando a mão nos entalhes de flores e frutos. Depois, inspecionaram
os outros móveis. Bortolina foi até uma lareira apagada. Mexeu nos
carvões, passou o dedo no veludo de uma poltrona, sentou na cadeira
de balanço e aproximou-se da cortina vermelha, onde parecia ter ouvido
um barulhinho de gente andando com sapato de salto fino. Bortolina
franziu a testa, sincronizou a orelha e prestou atenção. O barulho vinha
do outro lado da cortina. O que poderia haver lá, senão parede?
Muito intrometida, Bortolina começou a passar a mão na cortina.
De fato, havia parede por baixo! Mas, mais ou menos no meio da
cortina, Bortolina sentiu um vão, e o barulho continuava! Embora com
medo, Bortolína ajoelhou-se e meteu a cabeça por baixo da cortina.
Entretanto, Bortolina não ficou olhando por muito tempo porque o que
ela viu a fez dar um berro de gelar os ossos de um defunto. Bortolina
começou a correr pela sala e não tinha parada - parecia um pião
rodopiando ao redor da mesa.
— O que foi? O que foi? O que foi? - perguntavam os três correndo
atrás dela.
Quando agarraram a Bortolina, ela conseguia apontar para a
cortina vermelha:
— Lá... lá... lá... - repetia tremendo dos pés à cabeça.
— O que tem lá? - perguntou a Inspetora agarrando-se à malinha.
— Vamos ver?
— Não! - gritou a Bortolina.
— Por quê? Você é uma medrosa que corre da própria sombra! -
respondeu a Inspetora fazendo-se de forte. — Secretária, oficial, em
frente!
Foram até à parede. Muito assustada, Bortolina se escondeu
atrás de uma poltrona e só apareciam as trancinhas espetadas.
— Oficial, suspenda a cortina! - comandou a Inspetora.
Orelhão fechou os olhos e deu um puxão.
Quando os olhos das duas bateram na sala seguinte, elas
também perderam a cor. Viram um vulto parecido com uma aranha
gigante, em uma teia branca, luminescente e impressionante. Mas, o
pior de tudo, era o jeito daquela "coisa" horrível que tinha braços
compridos, antenas móveis e sorriso diabólico. Quando a "coisa" topou
com os três ali parados, a “coisa" esfregou as mãos e marchou na
direção deles:
— Oba! - disse a "coisa" com uma voz grave — o jantar chegou!
Foi demais! A Inspetora perdeu o respeito, jogou a malinha para
cima e disparou. Malu, atrás. Orelhão parecia carro atolado; urrava,
urrava, sem sair do lugar. O certo é que a "coisa" não estava nem um
pouco atrapalhada com o medo deles, pois a "coisa“ se aproximava
firme com o propósito de apanhá-los.
— Uma ferroada na nuca, vocês dormem e não sentem nada! -
explicava a “coisa“ aos pulinhos.
A gritaria acabou chamando a atenção do pessoal no castelo. A
porta se abriu, e dona Tuluca apareceu. Mas, em vez de horrorizar-se.
dona Tuluca simplesmente cruzou os braços:
— Ora, vejam só, Sibila! Outra vez com essa fantasia de aranha?
Ao ver e ouvir dona Tuluca, a "coisa" parou em meio ao caminho.
A "coisa" deixou os braços caírem e tirou a máscara.
— Você, Tuluca! Havia de ser você, sua chata, sempre me
estragando tudo! Justamente agora que eu queria fisgar aqueles
tutuzinhos...
Atrás de dona Tuluca, um homem com expressão assustada,
olhava sem compreender. Era gordo, careca no alto, e tinha dois anéis
de brilhantes, um em cada mão. Olhos esbugalhados, ele não
conseguia articular uma palavra. Dona Tuluca esclareceu:
— Esta é minha irmã Sibila, Doutor Navegante... Sempre teve um
sonho secreto: ser mulher-aranha em circo de cavalinhos! Mas papai
nunca consentiu em semelhante vexame; afinal temos sangue
azul! Por isso, Sibila ficou com essa ideia fixa...
— Oh, você é horrível. Tuluca! - reclamou Sibila raivosamente. — Se
eu pudesse, eu mataria você! - e batendo os pés, Sibila fechou a cortina
para continuar tecendo sua teia.
— Acho que está encerrado o programa - disse Dona Tuluca com
um suspiro. — Doutor Navegante, uma vez que é impossível o senhor
voltar para a cidade, pois a ponte rodou e a estrada está intransitável,
acho melhor que aceite nosso convite para pousar no castelo...
Doutor Navegante agradeceu. Dona Tuluca voltou-se para os
meninos:
— E vocês também, queridinhos!
Eles se entreolharam. Malu abriu a boca antes da Inspetora:
— Oh, não, muito obrigada! A senhora não disse que telefonaria
para casa? Tia Aurélia virá nos buscar!
— É que não queremos dar mais trabalho para a senhora - insistiu
a Inspetora.
— Creio que vai ser impossível, queridinhos - respondeu dona
Tuluca com o dedo no queixo. — Infelizmente as chuvas também
derrubaram os postes telefônicos. De uma certa maneira, estamos
isolados aqui no castelo, completamente desligados do resto do
mundo. Vocês também terão de aceitar nossa hospitalidade...
Bortolina começou a morder as unhas. Só não fez escândalos
porque a Inspetora fechou a cara e exigiu silêncio.
Capítulo VI

O JANTAR foi servido às sete horas.


Não era sem tempo, porque o estômago dos quatro já estava nas
costas. Ali, tudo era etiqueta. Puseram a mesa comprida com uma
toalha de linho. Dona Tuluca sentou-se em uma ponta, e o Doutor
Navegante, na outra. Orelhão e Bortolina ficaram à direita; Malu e a
Inspetora, à esquerda. Muito cerimonioso, Abel começou o desfile das
travessas de prata. Um luxo!
— Eu não vou saber comer direito! - cochichou a Bortolina para
Orelhão,
Orelhão fez cara de tonto:
— Nem eu, uai. A gente copia! O que a velha fizer, a gente faz...
A sala era iluminada com um grande candelabro de ferro
retorcido, onde havia seis velas. Os lustres de cristal refletiam uma
dança de pontos cintilantes.
Dona Tuluca estava com um vestido roxo esvoaçante e havia
mudado o penteado. Cheia de jóias, ela faiscava mais que os próprios
lustres. Foi a janta mais cerimoniosa da vida daqueles quatro, e eles
não tiravam os olhos das maneiras de dona Tuluca e do Doutor
Navegante.
— Faz tempo que o castelo foi construído? - perguntou o Doutor.
— Mais de 200 anos - respondeu ela, orgulhosa. — Meu tataravô
trouxe uma planta de um famoso castelo particular europeu. Foi
construído pelos escravos: pedra por pedra! As pedras foram
transportadas em lombos de mulas que vieram da pedreira a mais de
dez quilômetros daqui, no vale.
— Deve ter sido muito difícil!
— Realmente, foi. Dizem que morreram mais de cem escravos na
construção, e todos eles foram sepultados nos alicerces!
Bortolina fez cara de nojo e empurrou o prato da sopa. Olhos
arregalados, continuou escutando.
— Então, este castelo deve ser mal-assombrado - propôs o Doutor.
— Mal-assombrado, ele não é...
— Ainda bem! - disse Malu que tinha ficado de boca fechada.
— Eu diria que ele é bem assombrado - concluiu dona Tuluca
calmamente, tomando uma colherada de sopa.
Os meninos se entreolharam. O Doutor Navegante que era todo
sorriso, fechou a cara;
— A senhora está brincando?
Dona Tuluca não mudou a expressão:
— Meu caro Doutor, eu não acredito nessa bobageira de
fantasmas. Eu nunca vi nenhum. São contos de fadas para as pessoas
medrosas. Mas há a história de um fantasma, neste castelo: um
fantasma dançarino!
Aí, o Doutor sentiu-se mais aliviado.
Dona Tuluca prosseguiu:
— Enfim, um fantasma alegre, para variar! Dizem que é o
fantasma de titio Conegundes que sempre quis trabalhar no teatro;
mas, como também tinha sangue azul, não foi possível. Como a infeliz
Sibila...
— Oh, entendo...
— Dizem que titio Conegundes morreu de tanta raiva, porque os
pais dele não consentiram que ele fosse artista. Dizem que ele costuma
aparecer, a noite, para assustar as pessoas...
— Nos dias de hoje, minha senhora, ninguém mais acredita em
fantasmas, nem assombrações - retrucou o Doutor terminando a sopa.
— A ciência já provou que fantasmas não existem.
— Lógico que não existem, meu caro senhor! - arrematou Dona
Tuluca.
Depois, topando com a expressão assustada das crianças, dona
Tuluca caiu na risada:
— Vamos, que caras são essas? Tudo que eu disse não passa de
uma brincadeira! Todos os castelos bons tem um fantasma particular
e, por isso, eu também inventei o nosso! O que realmente existe, é
apenas um enigma que vem passando de geração a geração em nossa
família... Segundo dizem, foi inventado por tio Conegundes. Como Tio
Conegundes gostava de música e dança, o enigma é cantado...
Os olhos das crianças se acenderam.
Dona Tuluca ficou de pé como um maestro que vai reger e, cheia
de cerimônia, cantou:

Um e dois - um empurrão;
O que vem não vai voltar.
Se você entende ou não,
Lá eu volto pra ficar!

— A música que a senhora cantou hoje, no carro! - disse Orelhão.


— Cantei? - perguntou a velha.
— Sim, a senhora cantou...
Dona Tuluca sentou-se novamente.
— Devo ter cantado sem sentir. Aprendi essa música quando era
criança e, toda vez que fico nervosa, eu a canto.
— Mas que enigma é esse? - perguntou Malu, curiosa.
— Na verdade, não sei, queridinha. Todos da família garantem que
uma coisa muito importante acontecerá no dia em que ele for
decifrado. Apesar de todos membros da família terem tentado resolve-
lo, até hoje ninguém conseguiu. Por que vocês não experimentam?
Quem sabe conseguem?
Os meninos se entreolharam. Voltando-se para Abel que de longe
mantinha as orelhas ligadas, dona Tuluca deu novo comando:
— Pode passar os outros pratos. Abel...
Com a cara mais fechada do mundo, Abel serviu.
Eles ainda estavam jantando quando, de repente, um clarão
muito forte iluminou a sala, e um trovão estremeceu todo o castelo.
Bortolina meteu-se debaixo da mesa. Orelhão perdeu a fala. Malu
e a Inspetora se abraçaram. Os lustres se apagaram.
— Pronto. Lá se foi a força! - reclamou dona Tuluca, contrariada.
— Agora, nem estrada, nem telefone, nem luz! Horrível!
— O castelo não tem um gerador próprio? - perguntou o Doutor
Navegante.
— Infelizmente, não. Teremos de passar o resto da noite a luz das
velas. Abel, por favor, ilumine a sala... Mas onde está a pretinha?
Só então Bortolina apareceu. Primeiro, a trancinha. Depois, o
branco dos olhos arregalados.
— Pode ficar calma, queridinha, que não há perigo nenhum -
tranquilizou dona Tuluca, voltando ao prato que havia interrompido.
Capítulo VII

O RELÓGIO bateu nove horas.


— Está na hora de irmos para os aposentos - propôs o Doutor
Navegante.
— Oh, sim. As crianças estão pendendo de sono - observou dona
Tuluca.
— Não, não, nós seríamos capazes de passar a noite inteira
acordados!
— Mas ficarão melhor em seus quartos, queridinhos. Abel
acompanhará vocês... — Abel! chamou.
Sempre com feições de pedra, Abel aproximou-se. Dona Tuluca
mandou que ele acompanhasse as crianças. Deram-se as boas-noites,
e todo cerimonioso, Abel apanhou uma vela para mostrar o caminho.
— Por aqui...
Era horrível andar naquele castelo escuro porque não viam quase
nada. Um agarrado ao outro, seguiram os passos de Abel que ia
deixando para trás uma sombra comprida e gigantesca.
Vagarosamente, subiram a escada que tinha um macio tapete
vermelho. A medida que a luz caminhava, eles foram percebendo a
galeria de retratos dependurados.
— Quem é essa gente? - perguntou a Inspetora.
— Os antepassados de dona Tuluca - respondeu Abel com voz que
parecia de outro mundo.
— Ele... ele também não está nestes retratos?
— Ele quem?
— O tal de tio Conegundes... - disse Orelhão.
Abel espremeu os olhos frios e subiu mais dois degraus. Então,
levantou a vela. Viram um quadro onde havia os contornos do uma
pessoa, sem, porém, haver ninguém ali!
— Aqui está o retrato de tio Conegundes - disse sem mover um
único músculo.
— Aí? Mas não estou vendo nada! - observou a Inspetora.
— Exatamente: dizem que tio Conegundes fugiu do retrato para
assombrar o castelo.
Bortolina criou raízes e começou a bater os dentes. Malu
arregalou os olhos; só a Inspetora não se perturbou.
— Ora, que bobagem! Dona Tuluca contou para o Doutor
Navegante que ela nunca viu um fantasma por aqui!
— Não se esqueçam de que ela é surda e medo cega - respondeu
Abel friamente. — Além disso, ela se tranca à noite no quarto e não sai
nem que o castelo venha abaixo!
E, inexpressivo, continuou a caminhar.
— Alguém já viu... o fantasma de tio Conegundes? - insistiu Malu.
— Sim, senhorita...
— Quem?
— Vários compradores que vieram comprar o castelo. Parece que
tio Conegundes não quer que estranhos se tornem senhores destas
terras... O último comprador se atirou do alto da torre porque não deu
tempo de descer pela escada...
— Santa Maria! - gemeu Orelhão.
— M-m-mo-moço - disse Bortolina procurando conter a gagueira -
ele s-s-só aparece para pessoas que-que querem comprar o c-c-castelo,
não é m-m-m-esmo?
— Por enquanto tem sido assim - respondeu Abel sem acrescentar
nenhum pormenor.
Chegaram a uma porta entalhada e escura. Abel abriu-a.
— Vocês dormirão aqui. Felizes sonhos!
Entrou, acendeu as velas.
— Alguma coisa mais?
— Sim - disse a Inspetora muito curiosa. — Alguém... alguém
morreu neste quarto?
— A prima Nanci...
— Morreu de quê?
— De susto, dizem.
— Susto do quê?
— Isso nunca nos disseram. Foi encontrada estendida na cama,
com os cabelos em pé e olhos esbugalhados. Pelo visto, deve ter
presenciado um espetáculo bastante desagradável -
concluiu afastando-se até à porta.
Malu olhou para Orelhão. Bortolina estava praticamente branca.
A Inspetora foi até Abel.
— Onde ficava o quarto do tio Conegundes? - perguntou bem
baixinho, sem os companheiros ouvirem.
— No fundo do corredor. Só isso?
— Só isso, Abel. Muito obrigada!
— Boa noite!
— Boa noite!
Abel saiu. A porta fechou-se com um rangido. Os passos se
perderam no fundo do corredor. A primeira reação foi da Bortolina: voou
para um canto do quarto e começou a morder os dedos, chorar sem
lágrimas e a pular de medo.
— Eu quero ir embora! Quero ir pra casa da vó Padroeira! Deus me
livre, eu não vou dormir em quarto onde morreu defunto nenhum!
— Não seja burra - rosnou a Inspetora sentando-se à cama. —
Defunto não morre! Quem morreu foi a tal de prima Nanci.
— Dá na mesma, dá na mesma! - insistiu a negrinha,
assustadíssima. — Aqui, eu não fico!
— Então, pode ir embora. Vá!
Um relâmpago forte iluminou a sala, e o trovão ribombou.
Bortolina ergueu as mãos, e dando um mergulho, afundou-se debaixo
de uma poltrona. Orelhão e Malu, sentaram-se no sofá. A Inspetora
abriu a malinha.
— Vamos apanhar nossas corujas...
Os olhos de Malu quase saltaram de satisfação:
— Para quê? Você acha que vai ser... outro caso?
A Inspetora não se perturbou:
— Não tenho certeza, mas isto não está me cheirando bem.
Alguma coisa está errada por aí. Não convém facilitar...
Apanhou a coruja verde e pôs no peito, lado esquerdo.
— Você não está com medo, Inspetora?
— Um pouco, mas medo não ajuda. As pessoas que sentem medo,
ficam em desvantagem. Não podemos perder a cabeça. Lembram-se
do caso da mula?
— Foi diferente - observou o Orelhão.
— Aqui está sua coruja azul, oficial Orelhão - disse a Inspetora,
entregando-a — e aqui está sua coruja amarela, secretária Malu. Não
vamos começar a discutir porque não sabemos o que pode acontecer.
O importante é que fiquemos os quatro juntos e tenhamos muita
calma... Prometem?
— Prometido - responderam os dois.
Aí, a Inspetora apanhou a coruja branca.
— Ei, vigilante Bortolina, venha buscar o seu distintivo!
— Não quero! - respondeu a voz abafada.
— Ora, vamos, deixe de ser medrosa! Você não vai passar a noite
enfiada debaixo do sofá. vai?
— Vou - respondeu a mesma voz. - Eu... ATCHIM!
— Saúde!
— É a poeira daqui debaixo! Está cheio de teia de aranha -
reclamou a Bortolina.
— Então, saia daí. Venha dormir com a gente!
— Não saio, não saio, não saio! - gritou Bortolina. — E se, vocês
teimarem, eu grito!
A Inspetora revirou os olhos.
— Está bem, sua teimosa, você quer dormir aí, durma. Se pegar
um belíssimo resfriado, a culpa é sua. Sua alma, sua palma!
Capítulo VIII

A CHUVA continuou violentamente caindo lá fora. De vez em


quando, um relâmpago clareava o quarto, embora a Inspetora tivesse
fechado as cortinas. Ela e Malu deitaram-se na cama de casal. Orelhão
escarrapachou-se em uma cama de solteiro.
Fez-se silêncio e, pouco depois, eles estavam dormindo.
Bortolina continuou debaixo do sofá e até parecia um
cachorrinho. Mas, por mais medo que tivesse, aos poucos começou a
sentir caibra nas pernas. Doeu tanto, que Bortolina teve de sair
depressa. Esfregou as costas do pé esquerdo, sentido uma grande
vontade de chorar porque doía de verdade. Entretanto, para não acordar
os companheiros, Bortolina continuou massageando o músculo até a
caibra passar. Depois, sentou no sofá e ficou examinando os detalhes
do quarto. Era um quarto tão grande que dava dois dos da fazenda. Mas,
apesar de espaçoso, Bortolina não gostava dali, menos ainda quando
pensava naquela tal de mulher morta. Aí, Bortolina tremia, o beiço
encompridava, tinha vontade de gritar - e, se não gritava, era de medo
dos petelecos prometidos por Orelhão.
Os olhos de Bortolina começaram a ficar cansados, as pálpebras
pesadas. Mas ela não queria adormecer - tinha medo, preferia ficar
acordada. E, lutando contra o sono, Bortolina ficou firme enquanto
pôde. Mas, por mais que fizesse, aos poucos a cabeça foi pendendo...
pendendo...
Bortolina acordou de repente, como se alguém lhe tivesse dado
uma sacudida.
— Hein? - perguntou, com cara de tonta.
Não viu ninguém por perto. A chuva tinha diminuído, mas não
passado. Foi quando Bortolina ouviu música.
— Uai, quem será que ligou o rádio?
Música meio distante, música quente, gostosa, um ritmo que
Bortolina conhecia muito bem: o samba.
Bortolina era vidrada por samba, e samba tinha o poder de tirar-
lhe o medo. Bortolina levantou-se e foi até à porta. Encostou a cabeça
no buraco da fechadura - certamente a música vinha de perto.
— Ah, não custa nada dar uma espiadinha... - pensou.
Girou o trinco. A porta rangeu, Bortolina fez um psiiiiíuu mais alto
que o rangido como se a porta entendesse.
O corredor era escuro, comprido, mas havia muitos vitrais, e os
relâmpagos sem trovões iluminavam sinistramente. Além disso, por
ordem de dona Tuluca, Abel tinha deixado velas acesas em três
candelabros. Bortolina apurou o ouvido. A música vinha do quarto do
fundo! Bortolina também percebeu que havia luz lá dentro, pois viu
claridade debaixo da porta.
— Será que vou espiar, ou sera que não? - perguntou para si
mesma.
O samba continuava mexendo com o sangue de Bortolina. Ah, o
carnaval estava perto, e ela andava maluquíssima de vontade de entrar
em um cordão...
— Vou só ver um pouquinho... - resolveu, encolhendo os ombros.
— Pra mim, essa tal de dona Tuluca deve estar ensaiando uma escola
de samba... Ela vive mesmo fantasiada!
Andou na ponta dos pés. Naquele corredor escuro, sendo
Bortolina pretinha e estando de roupa branca, ela, sim, parecia um
fantasma. Foi indo, foi indo... foi indo...
De repente, Bortolina sentiu o sangue congelando tanto pelo
susto, quanto pela reação: duas brasas verdes passaram-lhe voando
perto dos pés. Os cabelos dela ficaram de pé e certamente teria
aprontado um escândalo, se não tivesse ouvido o miado do gato: é que
ela simplesmente havia pisado no rabo do bichano que dormia por ali...
A Bortolina licou amarela, e começou a rir, desapontada.
— Nossa, como eu sou uma bobona!
Ganhando outra vez confiança, encaminhou-se para a porta do
quarto do fundo.
O sambão rasgado continuava. Bortolina encostou a orelha no
buraco da fechadura. Não ouvia outro som que não fosse a música, A
curiosidade era tanta que até fazia cócega.
Bortolina bateu a mão no trinco:
— Olho, ou não olho?
Venceu o “olho”. Muito devagar para não fazer barulho, girou o
trinco, e a porta se abriu. Bortolina enfiou o olho esquerdo; depois, o
direito. Em seguida, a cara inteira. Gozado! Havia um lampião aceso,
mas não tinha ninguém! E Bortolina não estava vendo de onde saía a
música!
Entrou. Viu uma mesa, uma cama, uma cadeira. Mas havia
também uma cômoda e, sobre a cômoda, uma vitrola de corda,
daquelas antigas que tinham um gramofone parecendo flor azul
dessas trepadeiras do campo.
Bortolina se aproximou; o disco continuava tocando o ritmo
gostoso.
— Gozado! - disse ela.
Mas não pôs o dedo.
Quando menos esperava, Bortolina começou a ensaiar uns
passinhos de samba. Mas a vitrola de corda tem o defeito de, assim que
acaba a corda, parar. Por isso, a música engrossou, engrossou, até que,
afinal, parou.
— Que pena! - reclamou a Bortolina. Justo agora que estava
ficando gostoso...
Naquele instante, Bertolínia sentiu um ventinho gelado no
pescoço. Novamente, sentiu que os cabelos ficavam em pé. Só que,
dessa vez, era por ouvir um barulhinho bem atrás dela...
Virou-se devagar. A porta estava aberta.
Ela não viu, mas ouvia. Os olhos cravaram-se na parede. Foi aí que
Bortolina percebeu uma forma branca que parecia vir descendo do
forro. A forma ia tomando jeito de duas pernas... depois, dois braços...
depois, a cabeça que tinha cabelo branco, comprido, esvoaçante...
A "coisa" se agitava no ar, como se estivesse dançando!
Bortolina ficou tão gelada que até sentiu dor de barriga. Queria
correr, mas os pés estavam grudados no chão. Queria gritar, mas a voz
não saía. A “coisa" continuava dançando, crescendo cada vez mais,
aproximando-se... Horrível! E já estava quase encostando no nariz da
Bortolina quando, de repente, ouviu-se um tract! e a vitrola de corda
voltou a funcionar. Aí, encostada no pescoço, Bortolina ouviu uma
risadinha com cheiro de cebola.
Foi demais! Bortolina deu um salto que atravessou a cama e foi
parar do lado oposto.
Dali voou para a porta e, mal atravessou-a, a folha bateu com um
barulho forte, cujo eco percorreu o castelo inteiro.
Bortolina cruzou o corredor com a velocidade de uma flecha. Chegando
ao quarto dos meninos, atirou-se na cama.
— O que foi isso? O que foi isso? .... perguntou a Inspetora meio
dormindo, meio acordada.
Malu, assustada, olhava sem compreender:
— Juro que senti alguma coisa caindo em cima de nós!
Olharam para os pés da cama. Um vulto tremia debaixo das
cobertas. Ao verem aquilo, elas não tiveram dúvida e, ao mesmo tempo,
atiraram-se sobre o vulto com socos, mordidas e beliscões. Foi aquele
barulhão porque a Bortolina urrava sem conseguir tirar o cobertor da
cabeça, e as duas repetiam:
— Pega o fantasma! Vamos dar uma surra nele! Pega! Pega!
Atraído pela gritaria, Orelhão também acordou e, ao ver as duas
emboladas, também pulou em cima. Ai, a coisa complicou-se. Mas,
felizmente, Bortolina conseguiu meter a cabeça para fora. Quase
sufocada, de tanto apanhar, Bortolina não falava direito:
— Bortolina! E você? - disseram as duas, espantadas. — O que você
estava fazendo debaixo das cobertas?
— Bu-bu-bu-bu-bu... - e Bortolina só sabia gaguejar, batendo os
dentes e apontando para a porta.
— Você quer fazer o favor de falar direito Bortolina?
Bortolina caiu sentada, parecia um trapo.
Parou de gaguejar, mas o som não saía.
— Acho que ela está muito assustada - disse Malu.
— Ela é uma trapalhona e medrosa! - falou o Orelhão. — Em todo
lugar que vai, apronta dessas!
— Eu vi o f-f-f-f-fantasma d-d-d-dançando - disse, por fim.
Os três se entreolharam. Bortolina confirmou com a cabeça,
enrolando-se como um gato:
— Juro que eu vi!
Com muito custo, Bortolina conseguiu contar o incidente. Quando
terminou a narração, a Inspetora se pôs a bater os pés:
— Bafo de cebola, hein?
— Sim, cebola, que fedor! - repetiu a negrinha. — Era gelado como
faca cortando...
— No quarto do fundo?
— Lá no fim, ai Jesus!
A Inspetora botou a mão na coruja verde:
— Precisamos examinar...
Malu deu um passo para trás:
— Agora?
— Já...
— Não pode ser amanhã cedo? - perguntou Orelhão querendo tirar
o corpo. — Amanhã, com o sol fica tão mais fácil de se ver... Agora nem
tem luz elétrica, a gente não vai enxergar nada!
— Um bom detetive não deve perder um minuto - respondeu a
Inspetora de cara amarrada. — Vamos nós três jun-ti-nhos!
E marchou até à porta. Não tendo outra alternativa, Malu a
acompanhou. Depois, o Orelhão. Com cara de quem tinha visto o
capeta, Bortolina se enrolou no cobertor.
Eles caminharam pelo corredor, mas não ouviram música. Nem
havia luz debaixo da porta do quarto do fundo.
Quando chegaram lá, a Inspetora olhou para Orelhão:
— Oficial, abra essa porta!
Orelhão franziu a testa:
— Você me manda fazer tudo que é ruim! Por que você mesma
não abre?
— Porque o oficial é você! Porque você é que está usando a coruja
azul.
Orelhão suspirou:
— É... estou começando a achar que esse negócio de coruja azul
é uma boa desculpa para vocês sempre me jogarem no fogo!
— Oficial, não discuta! Abra essa porta, estou mandando!
Orelhão limpou o suor da mão na calça e girou a maçaneta. Mas
a porta não cedeu.
— Está trancada - disse, aliviado.
— Trancada?
— É. Se não acredita, tente você mesma!
A Inspetora tentou. Forçou. A porta não se moveu.
— Realmente, a porta está trancada...
Malu botou as mãos na cintura.
— Vocês querem saber de uma coisa? Pra mim tudo não passou
de um pesadelo da Bortolina, sabe? Ela comeu muito e depois ficou
espremida debaixo do sofá. Isso deve ter perturbado a digestão, e ela
acreditou ter visto o fantasma dançarino...
A Inspetora coçou a cabeça, e Orelhão sorriu, aliviado.
— É mesmo... Bem pode ter sido isso!
— Vamos voltar para o quarto - comandou a Inspetora. — Mas não
se comenta o que aconteceu. Com ninguém - está entendido? Com
ninguém - nem mesmo com dona Tuluca.
— Está bem - disse Malu abrindo os braços. — Quando a Inspetora
manda, os subordinados são obrigados a dizer amém...
Na ponta dos pés eles voltaram para o quarto.
Capítulo IV

NO CAFÉ do dia seguinte, os quatro mostraram-se muito


ressabiados. O Doutor Navegante estava na sala e preocupado olhava
pela janela. A porta se abriu para dar passagem a dona Tuluca vestida
inteirinha de branco. O cabelo, escondido por uma touca como de
banhista - também branca. Além disso, ela tinha passado tanto pó de
arroz, que parecia um defunto.
— Bom dia, pessoal crescido e pessoal pequeno! - cumprimentou.
Vamos tomar nosso cafezinho?
Muito educado, o Doutor Navegante puxou a cadeira para ela
sentar-se.
— Obrigada, Doutor Navegante! O senhor é realmente um
cavalheiro...
Percebendo os distintivos dos meninos, dona Tuluca forçou a
vista:
— O que são esses bichinhos nas roupas de vocês, queridinhos?
— Oh, não é nada - respondeu prontamente a Inspetora. - É apenas
o distintivo de nosso clube. Nós temos o Clubinho da Coruja Brasileira,
sabe?
A velha se satisfez com a resposta, e Abel começou a servir.
— O senhor parece preocupado, Doutor Navegante - disse ela
percebendo a expressão do homem.
— São os negócios - ele respondeu. Estamos, por assim dizer,
desligados do mundo, sem telefone... sem energia elétrica... sem ponte
para cruzar o rio, e essa chuva não passa!
— Infelizmente, contra isso nada podemos fazer - respondeu dona
Tuluca aceitando o leite que Abel despejava. — Chega, obrigada, Abel!
— Mâmi deve estar preocupada conosco - propôs a Inspetora.
— Nem pensem nisso, queridinhos. Hoje de manhã mandei Ivo,
nosso criado e marido da cozinheira, ir até ao rio, e ele conseguiu avisar
o velho Souza, que mora na margem. O velho levará o recado dizendo
que vocês estão bem, não se preocupem... Dormiram bastante?
— Ótimo - respondeu Malu.
— Tive a impressão de ter ouvido música ontem à noite - propôs o
Doutor Navegante.
— Música?
Bortolina engasgou com um pedaço de pão. Precisaram dar-lhe
dois murros nas costas. Certamente Bortolina já iria começar os
escândalos, não fosse a cara feia que a Inspetora fez. Bortolina
encolheu-se como um gato.
— O que foi, minha queridinha? - perguntou dona Tuluca.
— Nada... nada... - respondeu com um sopro de voz.
— Continue, Doutor Navegante... O senhor dizia ter ouvido...
música?
— Sim, música. Alguém teria ligado um rádio, por acaso?
— Creio que não - respondeu dona Tuluca. Eu não tenho rádio.
Nem Sibila tem rádio. Abel, você tem um rádio?
— Não, senhora - rosnou Abel.
— Pois veja o senhor, Doutor Navegante... Ninguém tem rádio.
Como o senhor poderia ter ouvido música?
O Doutor Navegante ficou meio atrapalhado.
— Deve ter sido qualquer coisa durante o sono... As vezes a gente
acorda e não acorda e, por isso, confunde a realidade com o sonho. Sim,
deve ter sido um sonho, apenas.
— Não teria sido o tio da senhora, dona Tuluca? - perguntou a
Inspetora para provar a reação da velha.
— Tio, queridinha? Qual tio?
— O tio Conegundes...
Dona Tuluca juntou as mãos e caiu na risada:
— Ah, o fantasma dançarino, você quer dizer!
— Sim, não poderia ter sido ele?
Dona Tuluca fez um muxoxo.
— Duvido - respondeu. - Como já disse, eu, pessoalmente, nunca
vi um fantasma em minha vida!
A Bortolina continuava de olho parado e muda. Malu olhava para
dona Tuluca, o Doutor Navegante e o próprio Abel que, de longe e
imóvel, parecia uma múmia em pé.
— O senhor tem medo de fantasma, Doutor Navegante? - indagou
a Inspetora apertando os olhos atrás dos óculos grossos.
A pergunta era embaraçosa. Afinal, era de dia e, de dia, ninguém
tem medo de fantasmas. Então, encolhendo os ombros, o Doutor
Navegante fez o que qualquer adulto teria feito diante de uma criança:
— Claro que não! Fantasmas não existem? A não ser na Inglaterra,
claro, como disse dona Tuluca. Lá, dizem, há turistas que pagam para
passar uma noite em um castelo mal-assombrado!
— Que diversão boba, o senhor não acha?
— Bastante!
— Mas, e se neste castelo existisse um fantasma? - insistiu a
Inspetora.
O Doutor Navegante estava realmente ficando chateado com
aquela conversa.
— Bem, se houvesse, seria o caso de aproveitar e franquear o
castelo ao público que gosta de ver almas do outro mundo, não é
verdade? - respondeu.
Dona Tuluca juntou as mãos:
— É para isso que o senhor deseja comprar o castelo?
Doutor Navegante começou a abanar-se.
— Absolutamente, não! Minha intenção é comprá-lo para
aproveitar os campos e partir para a maior criação de gado do Estado.
Sou homem de negócios e não um empresário de teatro!
— Oh... entendo - respondeu dona Tuluca. — Será uma pena vender
este castelo depois de termos vivido aqui a vida inteira. Afinal, como eu
lhe disse, são duzentos anos que as famílias Barros Paranhos e Tiririçá
tem morado aqui... Enfim, Doutor Navegante, eu estou satisfeita que o
senhor tenha amanhecido conosco...
— Corno, amanhecido? A senhora me esperava ver morto, por
acaso?
— Oh, não se trata disso! É que... é que... coisas estranhas
aconteceram neste castelo... Toda vez que algum comprador vem vê-lo
para comprar e pousa conosco, no dia seguinte, eles nunca
amanhecem aqui! Todos desaparecem no meio da noite!
— Mas... o que a senhora quer dizer com... desaparecer durante a
noite?
— Não precisa fazer essa cara assustada, meu caro Doutor! Eles
simplesmente vão embora sem ao menos dizer muito obrigado! Acho
que todos são muito grosseiros, pois nem se dão ao trabalho de
agradecer nossa hospitalidade. Não é mesmo, Abel?
— Sim, senhora...
— Tem vindo muito desses... compradores visitá-la? - insistiu o
Doutor.
— Quantos, Abel?
Abel consultou a memória.
— Uns quinze, minha senhora.
— Tantos assim?
Ela abriu as mãos.
— Tantos assim...
Discretamente, o Doutor Navegante tirou o lenço e enxugou a
testa.
— Mas... mas é inexplicável! E eles... por acaso... depois disso...
nunca entraram em contato com a senhora?
— Não, senhor.
— Nada de carta, ou cartão, ou telegrama?
— Nada, nada!
— Então, como a senhora sabe que eles estão vivos? - insistiu,
desabotoando a gravata.
— Meu caro doutor, o senhor não vai me dizer que o senhor está
pensando que eu esteja dando a entender que todos eles tenham sido...
assassinados aqui dentro, não é mesmo?
Bortolina botou as mãos na cabeça:
— AI JESUS!
— Cale-se, que ninguém pediu sua opinião - mandou dona Tuluca
batendo com a colher na cabeça de Bortolina. Fiquei muito irritada com
essa sugestão idiota! Afinal, podemos ser um pouco diferentes das
pessoas comuns, mas não somos malucos, ora essa! Francamente,
Doutor Navegante, sua insinuação me deixou pasmada!
O Doutor procurou dominar-se. Ele estava ali para comprar o
castelo e não para deitar tudo a perder.
— A senhora me desculpe, dona Tuluca. Eu não deveria ter dito o
que disse. Acho que foi influência do tempo... Estou um pouco nervoso,
sabe? Talvez eu devesse tirar umas férias...
Dona Tuluca aceitou as desculpas. Tirou do rosto a expressão irritada.
— Compreendo, Doutor Navegante. O senhor é um homem
ocupado e, ficar assim, fechado, sem poder comunicar-se com os seus,
deve ser muito irritante. Enfim, falemos de coisas mais agradáveis.
Afinal, eu teria muito prazer em vender o castelo para o senhor...
Aí, mais à vontade, eles conversaram a respeito de assuntos
menos arrepiantes.
Capítulo X

A PARTE da manhã transcorreu com chuva, chuva e mais chuva.


Tão fechado o tempo que o silencioso Abel teve de acender as velas,
pois a eletricidade não tinha voltado.
— Parece outro dilúvio, cruz credo! - disse Malu olhando pela
janela. - Que coisa! Estava chato lá na fazenda, e a gente queria
aventuras. Agora, viemos para este castelo horrível quase certos de que
aconteceria uma novidade, e o que acontece? Continuo fechada em
outra sala, olhando a chuva cair...!
Bortolina olhou com o rabo dos olhos.
— Continuo dizendo que vi um fantasma!
A Inspetora fechou o livro.
— Está bem. Nós acreditamos em você!
— É, mas não parece!...
Voltaram a ficar quietos. Sentados, ouvindo a chuva bater na
janela. De repente, OreIhão teve uma ideia.
— Ei, pessoal, por que nós não brincamos de visitar o castelo?
Conhecer tudo... Quem sabe existe um porão escondido? Ou um quarto?
Talvez, portas falsas...
— Eu não vou! - contestou a Bortolina cruzando os braços. — O que
vi,já chega! Nem por decreto saio desta cadeira!
— Eu acho boa a ideia - disse Malu. — O que você acha, Inspetora?
— Bem, desde que não temos nada a fazer... Seria uma sondagem
de terreno, não é mesmo? Além disso, há o enigma que dona Tuluca
propôs. Como é mesmo?
Malu que tinha a melhor memória, cantou a quadrinha:

Um e dois, um empurrão;
O que vem, não vai voltar.
Se você entende, ou não,
Lá eu volto pra ficar!

— É exatamente isso - propôs Orelhão que não tinha entendido


nada.
— Então, vamos - afirmou a Inspetora colocando o livro no sofá. —
Todos juntos para ninguém se perder...
O grupo foi até à porta.
— Você não vem mesmo, Bortolina?
— Não! Daqui não saio, daqui ninguém me tira! - e a magrinha
cruzou os braços, emburrada.
— Então, nós vamos sozinhos...
O grupo saiu. Bortolina que estava sentada na poltrona verde
próxima à janela, mostrou a língua. Não era divertido ficar ali sozinha;
então, procurando distrair-se, começou a brincar de sentar-se em todas
as poltronas.
Mas o que Bortolina não esperava, aconteceu: ao escarrapachar-
se na poltrona verde próxima a janela, Bortolina começou a esfregar os
braços do móvel; inesperadamente, abriu-se um alçapão debaixo da
poltrona, e Bortolina mergulhou em um poco fundo e preto. Aconteceu
tudo tão ligeiro, que ela nem teve tempo de gritar. A poltrona voltou à
posição antiga, e a sala ficou deserta.
Enquanto isso, a Inspetora, a secretaria e o oficial atravessavam
o corredor comprido e cheio de portas. Havia quadros, colunas, cortinas
e estátuas dispostos ao longo das paredes. Eles examinaram todos os
detalhes na tentativa de descobrir alguma coisa, o que não aconteceu.
— Onde está o pessoal deste castelo? perguntou Malu. — Eles
parecem terem se evaporado!
— O tal de Doutor Navegante deve estar dormindo - propôs a
Inspetora - ou pelo menos, descansando no quarto...
— De manhã?
— E o que você queria que ele estivesse fazendo com esta chuva?
Jogando futebol, por acaso?
— Acho que ele está jogando paciência com dona Tuluca. Ouvi
quando ela pediu o baralho para Abel.
— Onde estará aquela maluca que se veste de aranha?
— O que você acha do tal de Abel? - interrompeu Malu antes que
a Inspetora desse opinião a respeito de Sibila.
— Não sei. Parece um sujeito de confiança... Mas eu duvido de
todo mundo.
— Você não tem medo do fantasma?
— Não. Fantasmas não existem! Isso é pura história pra assustar
as pessoas.
Enquanto conversavam, eles mexiam por toda parte. Foi Orelhão,
quem, sem querer, girou um globo que uma estátua de bronze
segurava. Imediatamente, uma porta se abriu bem atrás da Inspetora
e de Malu. Tão distraídas estavam que nem viram. Orelhão abriu a boca:
— Olhem!
Elas viraram-se para trás. Malu não podia acreditar: Uma
passagem secreta!
— Eu sabia que deveria haver uma passagem secreta - rosnou a
Inspetora. — Este não seria um castelo de verdade, se não houvesse a
tal passagem...
— Há uma escada descendo... Deve ser para um porão. Vamos
ver?
— E se tiver alguém enterrado lá?
— Está enterrado, ora essa! — Quem tem medo de gente
enterrada? - desafiou a Inspetora. — Orelhão, você é o oficial. Marche
em frente!
— Lá vou eu de novo! - reclamou Orelhão coçando a cabeça. - Isso
já está ficando chato!...
Desceram muito devagar e com cuidado. A escada era de
madeira e rangia. Lá embaixo estava tão escuro que eles não puderam
continuar. A Inspetora deu novo comando:
— Orelhão, precisamos de luz...
— Já sei, toca a ir buscar uma vela, não é mesmo?
E foi. Trouxe três: uma para cada um.
Em seguida, continuaram a descer. A claridade ia revelando teias
de aranha que pareciam véus. Estava frio e úmido. De vez em quando,
ouviam um trovão muito distante, o que provava que eles estavam
longe das paredes externas do castelo. Finalmente, a escada acabou.
Erguendo as velas, eles observaram uma sala comprida, paredes de
pedras, com uma porção de toalhas brancas cobrindo formas
irregulares. Orelhão estremeceu:
— O que estará escondido debaixo dessas toalhas?
— Móveis, com certeza - respondeu a Inspetora muito tranquila. —
Querem ver?
— Quero - concordou Malu.
— Orelhão, descubra os móveis - comandou a Inspetora.
Orelhão puxou a toalha. Um vulto escuro saiu debaixo, passando
sobre a cabeça de Malu que, dando um berro, atirou a vela longe:
— O fantasma!
A Inspetora, imperturbável, continuava firme.
— Foi um morcego! Vocês estão nervosos a troco de nada!
Orelhão, puxe esse lençol de uma vez!
Realmente, tratava-se de uma poltrona.
— Viu só? São apenas móveis e nada mais! - confirmou a
Inspetora, vitoriosa.
— Estamos no porão onde guardam os móveis antigos do castelo
e...
A Inspetora cortou a explicação porque eles tinham escutado um
gemido. Um gemido perfeitamente audível e que parecia ter provindo
de perto. Orelhão olhou para Malu e para a Inspetora.
— FOI UM GEMIDO - cochichou Malu com insistência. — EU OUVI.
— Pode ter sido um gatinho... - respondeu a Inspetora também
desconfiada.
— Não será melhor a gente voltar? Está tão frio aqui dentro! -
observou Orelhão.
O gemido repetiu-se. Muito ressabiados, eles chegaram-se
pertinho um do outro.
— Isto está ficando feio! - disse Malu.
— Psiiiiiiu! - fez a Inspetora.
Ouviram um ruído de quem ligava alguma coisa. Então, ouviram
música: uma música abafada, triste, comprida, impressionante e
tocada por órgão de igreja. O coração deles pulava pelo pescoço acima.
Coisas estranhas continuaram acontecendo: o pano branco que cobria
um móvel no canto do porão, saiu voando como se alguém o tivesse
puxado. Malu quase desmaiou; Orelhão perdeu a cor, e a Inspetora nem
piscava.
Debaixo daquele pano estava o órgão e que também se abriu sem
que ninguém o estivesse tocando! O som vinha dali! E, para piorar, algo
ainda mais impressionante aconteceu: uma forma esvoaçante brotava
da parede - uma forma que dançava!
— SANTO DEUS, É O FANTASMA DANÇARINO! - berrou Orelhão
dando um salto. — É ELE EM CARNE E OSSO!
Orelhão não esperou mais. Virou nos pés e voou degraus acima,
rumo à porta. Malu imitou de perto, e a Inspetora, pilhando-se sozinha,
correu com a mesma velocidade.
Mas, quando Orelhão ia transpondo a porta, com uma violenta
batida, a folha se fechou, e eles ficaram trancados naquele horrível
túmulo!
Foi aquela gritaria! Orelhão esmurrava e dava pontapés, e as
meninas, acompanhavam aos berros. Estavam naquele desespero,
quando Malu, virando-se para trás, deu um berro mais assustado ainda:
— VEJAM!
Foi a mesma coisa que derrubar um balde de água gelada nas
costas deles: perceberam que o vulto branco se aproximava silencioso
e, apesar de a escada ser de madeira, não ouviam os passos! Aquilo
parecia mesmo um fantasma cujos movimentos ritmados
acompanhavam os acordes fúnebres da música do órgão triste.
— Dê um jeito de abrir essa porta depressa! - gritava Malu
amedrontada e tampando os olhos de Orelhão.
— Tire a mão dos meus olhos! Como posso enxergar? - gritava
Orelhão afastando Malu.
Com olhos parados, a Inspetora nem tinha forças para falar alto:
— O fantasma está bem atrás de nós! - ela disse.
Orelhão olhou com o rabo dos olhos. Era verdade - pouco faltava
para as formas esvoaçantes tocar-lhes os ombros, Aí, foi demais;
Orelhão perdeu a noção do que estava fazendo e passou a esmurrar a
porta com tanta força que, com um dos socos, atingiu uma pequena
argola à qual se agarrou desesperadamente. Foi a salvação pois,
descoberta para acaso a chave do mecanismo, a porta se abriu, e os
meninos caíram de volta no corredor. A porta se fechou rápida,
trancando o vulto no porão dos móveis.
Eles ficaram sentados no chão. Finalmente, dominando-se, a
Inspetora se ergueu:
— Ufh! Juro que pensei que desta vez nós estávamos fritos...
Malu também se levantou. Primeiro as pernas, depois o corpo.
Murcha e desapontada.
— Eu gosto, sim, de aventuras, mas acho que o negócio está indo
longe demais!
O último foi Orelhão.
— É... vocês podem achar tudo muito bonito, muito legal, muito
bacana, mas eu não estou gostando nada, nada do que está
acontecendo!
Nesse instante, eles ouviram passos no corredor. A Inspetora
pegou Malu pela mão e fez um sinal para Orelhão:
— Vem vindo alguém! Psiíiiu! Depressa, vamos para o quarto,
porque ninguém deve saber do que nos aconteceu, hoje!
Eles se trancaram no quarto bem a tempo porque nem bem a
porta se fechou, com a importância de um general, Abel atravessou o
corredor.
Capítulo XI

OS TRÊS só desceram para a hora do almoço. Toda falante, dona


Tuluca entrou contando um caso para o Doutor Navegante.
Ao topar com uma cadeira vazia, ela estranhou:
— Onde está a Bortolina?
— Estava na biblioteca - respondeu a Malu. — Será que ela se
esqueceu de vir almoçar?
— Acho bom alguém ir chama-la, queridinha. Pontualidade é uma
virtude que todas as pessoas devem praticar!
Malu pediu licença, levantou-se e saiu. Momentos depois, voltava
assustada:
— Ela não está lá...
— Não?
— Não, senhora!
— Você procurou direitinho?
— Sim, senhora.
— Olhou debaixo dos móveis?
— Oh, por favor, a Bortolina não costuma se esconder debaixo dos
móveis!
— Então, onde terá se metido aquela criatura? Não está no
quarto?
— Não, senhora...
Irritada, dona Tuluca atirou o guardanapo na mesa.
— Com efeito! Abel, você não viu a Bortolina?
— Não, senhora!
Dona Tuluca tamborilou os dedos.
— Estão acontecendo coisas desagradáveis neste castelo!
— Acho - propôs o Doutor Navegante se intrometendo — que não
devemos nos preocupar, antes de procura-la. O castelo é grande, mas
se cada um der busca em um cômodo encontraremos Bortolina em
pouco tempo.
Aliviada, duna Tuluca sorriu.
— O senhor tem ideias geniais, Doutor Navegante! Vamos todos,
todos, procurar essa fujona!
Foi assim que começou a busca que durou até às cinco da tarde.
Um pouco antes das seis, estavam novamente todos reunidos na sala
de jantar e, pelo jeito pouco faltava para dona Tuluca ter um chilique:
— Ai, minha pobre cabeça, como dói! Por que essa menina foi
fazer isso? Estou preocupada, preocupadíssima e nem passo imaginar
o que teria acontecido com ela! Onde teria se metido? Teria, por acaso,
voltado a pé para a fazenda?
Fumando um cigarro atrás do outro, o Doutor Navegante
caminhava em círculos.
— Ela não deve ter saído do castelo, dona Tuluca. Ninguém
enfrentaria um tempo desses! É muito importante que fiquemos
calmos e esperemos. Afinal, está anoitecendo e não podemos fazer
mais nada. Amanhã, quando o tempo melhorar, chamaremos a
polícia...
Dona Tuluca fechou os olhos e suspirou.
— Este tempo horrível! Não conseguimos nem reparar a rede de
iluminação elétrica, quanto mais a linha telefônica para chamar a
polícia! Além disso, o rio está intransponível...
— Com tempestade ou sem tempestade, se a menina não
aparecer até amanhã cedo, algum de nós precisa ir à polícia - insistiu o
Doutor Navegante mordendo a ponta do polegar.
A Inspetora, que não havia participado da conversa dos adultos,
deu um passo para frente:
— Acho que nós não podemos fazer nada, podemos, dona Tuluca?
- perguntou.
A velha olhou direto nos olhos redondos de Eloísa:
— Infelizmente nada, queridinha. Só nos resta... esperar!
— E levando a mão à cabeça, recomeçou a gemer:
— Oh, que dor insuportável! Abel, meus comprimidos, por favor!
Silencioso, Abel retirou-se para buscar o remédio.
Capítulo XII

ESCURECEU. Abel acendeu os candelabros e serviu a refeição.


Embora nervosas, as crianças estavam com fome, pois haviam passado
o dia inteiro percorrendo o castelo.
Dona Tuluca nem tocou na comida, e o Doutor Navegante falava
pouco. Lá pelas nove, a Inspetora abriu a boca:
— Acho melhor irmos para cama... - disse.
Dona Tuluca concordou:
— Sim, queridinha... É bom vocês descansarem um pouco...
— Boa noite, dona Tuluca...
— Boa noite...
— Boa noite, doutor...
— Boa noite...
Silenciosos, eles subiram para o quarto, mas assim que fecharam
a porta, começaram a falar ao mesmo tempo. Foi preciso a Inspetora
mandá-los calar a boca e que falasse um por vez, porque daquele jeito
jamais chegariam a um acordo.
— Não adianta ninguém ficar assustado - ela gritou. — Alguma
coisa séria aconteceu à Bortolina, e nós precisamos ir com calma para
descobrir. Confusão só atrapalha!
— E se a Bortolina foi embora? - sugeriu Orelhão.
— Ir embora como? Medrosa e bobona do jeito que é, você acha
que ela enfrentaria esse tempo e essa estrada e sem falar para nós?
— Desconfio daquela tal de Sibila... - propôs a Malu endireitando
a coruja amarela.
— Este é um dos casos mais difíceis que já tive - observou a
Inspetora.
— Você já teve muitos outros? - perguntou Orelhão.
— Só o da mula-sem-cabeça - respondeu ela, andando de um lado
para outro.
— Então, não pode ser um dos casos mais difíceis porque você só
teve dois até agora! - concluiu Orelhão com cara de tonto.
— Ora, você quer calar a boca e ver se não me enche? Todo bom
detetive faia pouco, e pensa bastante. Agora, estou ocupada, pensando.
Preciso reconstituir a cena...
— O que é reconstituir a cena?
— Significa lembrar de tudo e com todos os detalhes. Um detalhe,
às vezes insignificante, pode ser a chave de tudo! Vamos ver... a
Bortolina estava na sala de música...
— Sentada em uma poltrona - completou Malu. — Era uma
poltrona de veludo verde, perto da janela.
— Veludo marrom - corrigiu Orelhão.
— Verde! - insistiu Malu.
— MARROM! - repetiu o Orelhão.
— Você não conhece cores! Era verde, cor de folha
— Não era! Era marrom, cor de terra!
A Inspetora ergueu os braços:
— Arre, que teima! Será que vocês vão brigar por causa de uma
cadeira que era estofada de AZUL?
Os dois olharam rápido para a Inspetora.
— Azul, coisa nenhuma! Era verde! - repisou Malu.
— Marrom - repetiu Orelhão, vermelho de raiva.
A Inspetora perdeu a paciência:
— Está bem, está bem, era uma cadeira, o que tem isso? A cor faz
tanta diferença assim?
— Pra mim faz. Quando eu teimo que é de um jeito, é PORQUE É
DO JEITO QUE EU TEIMEI, UAI! - disse o Orelhão.
— Vamos acabar com a briga que não adianta nada! - comandou
a Inspetora. — Muito fácil; vamos até a sala de música e tiramos a prova.
Está bem assim?
Malu e Orelhão concordaram.
— Então, vamos esperar até que o pessoal se deite - sugeriu a
Inspetora. - Assim, podemos circular mais livremente pelo castelo.
— Ótimo.
Para descansarem um pouco, elas se estenderam na cama.
Orelhão esticou-se no sofá. Sem perceber, ferraram no sono.
A Inspetora acordou com um barulho na janela. Sentou depressa,
olhou, mas não viu nada. Meio corrida, a cortina mostrava um céu
escuro, estrelado e sem chuva.
— Que bom, o tempo firmou! - disse ela.
E, cutucando Malu, despertou-a. Malu esfregou os olhos.
— Você ainda quer ir ver se a poltrona era verde? - perguntou a
Inspetora.
— Claro! Quando eu teimo, é pra valer - respondeu Malu
levantando-se. — E acho bom acordar aquele cabeçudo do Orelhão. Que
horas são?
— Dez e pouco...
Cinco minutos depois, como três sombras, eles desceram para a
sala de música. Algumas velas quase se apagando iluminavam o
castelo. Silenciosamente, abriram a porta. A sala de música estava às
escuras. Rápidos, os três se aproximaram do sofá. A Inspetora apanhou
uma vela e levantou-a:
— VERDE, VERDE, VERDE! - repetiu Malu mostrando a língua e
pulando sentada na poltrona. — Eu não disse que ela era verde?
— Verdinha, verdona, verdérrima. Alguém mais quer teimar
comigo?
Orelhão murchou. A Inspetora ficou desapontada.
— É... desta vez parece que você tem razão...
Sem perceber, Malu começou a apalpar os braços da poltrona.
Inesperadamente, o sofá inclinou-se para baixo, e Malu foi atirada no
alçapão como se fosse uma pedra. O sofá voltou a posição anterior, e,
com cara de tontos, Orelhão e a Inspetora se entreolharam.
— Então, deve ter sido isso! - falou a Inspetora pondo a "cuca" para
funcionar. — A Bortolina estava sentada aqui, quando... DEPRESSA.
ORELHÃO, VAMOS DAR UM JEITO DESTE SOFÁ INCLINAR-SE
NOVAMENTE! Precisamos encontrar Malu e a Bortolina! Elas devem
estar por perto... Depressa!
A Inspetora correu até um candelabro de ferro.
— Ajude a puxar isto daqui, Orelhão!
— Para quê?
— Ajude e não faça perguntas!
Orelhão fez força e conseguiu levar a peça até perto do sofá.
Depois, cuidadosamente, a Inspetora apalpou os braços da poltrona. De
repente, o alçapão se abriu.
— Enfie esse ferro ali para ele não fechar! - mandou ela. — Vou
apertar o botão outra vez...
Quando o alçapão se abriu de novo, Orelhão atravessou-o
rapidamente com o ferro, o que impediu de fechar-se.
— Traga a vela! - mandou a Inspetora.
Orelhão obedeceu. Era um buraco escuro.
— Malu! Malu! Você está me escutando? - perguntou a Inspetora
enfiando a cabeça no buraco.
Apurou os ouvidos. Nada de resposta!
— Malu! Malu! Você está me escutando? - tornou a perguntar.
Aí, meio abafada, ela ouviu a voz de Malu:
— Inspetora? Onde você está?
— Ela me ouviu! - disse a Inspetora para Orelhão. Depois,
novamente enfiando a cabeça no buraco, continuou: — Estou aqui, na
sala de música. E você? Onde está?
— Não sei! Está escuro! - respondeu Malu. — Venham me buscar
depressa! Está frio! Estou com medo!
— Ora, não precisa ficar com medo que nós vamos descer logo.
Olhe para cima. Está vendo alguma coisa?
— A luz de uma vela...
— Sou eu - afirmou a Inspetora. — Agora, fique calma. Vou estudar
um jeito pra chegarmos até aí, está bem?
— Está, mas não demore...
A Inspetora voltou-se para Orelhão.
— Como podemos chegar lá?
— Com uma corda...
— E onde conseguir uma corda, agora?
Depois de muito pensar, Orelhão teve uma ideia:
— Tem aquela teia que a tal Sibila andava tecendo. Se a gente
conseguisse desmanchar...
— Oh, é mesmo! Pois então, toca a buscar a corda. Vamos! O que
estamos esperando?
Saíram nas pontas dos pés. Mas nem tinham andado dez passos,
perceberam uma sombra comprida que se aumentava pelo corredor.
— O FANTASMA! - gemeu Orelhão.
— Psiiiiiu! - fez a Inspetoria puxando o Orelhão para trás da cortina
de uma janela.
E ficaram imóveis, respiração presa, só os pés aparecendo. A
sombra passou atrás de um candelabro.
— O Abel! - suspirou a Inspetora aliviada depois que a sombra foi
embora.
— Onde será que ele vai?
— Não interessa. Precisamos apanhar a corda. Vamos!
A teia de Sibila estava atrás da cortina de veludo vermelho. Era
uma teia bem feitinha, e foi uma dificuldade conseguirem desfazê-la.
— Oba, aqui deve dar mais de quarenta metros - disse Orelhão
fazendo um rolo com a corda de náilon.
— Depressa - insistia a Inspetora.
— Calma, que coisa, eu não sou máquina!
Voltaram correndo à sala de música.
— Nós já estamos indo - informou a Inspetora ajoelhando-se perto
do alçapão.
— Está tudo bem aí, Malu?
— Sim, só que estou ouvindo uns barulhos...
— Devem ser ratinhos bonitinhos, não se assuste...
A Inspetora virou-se para Orelhão:
— E agora? Como fazemos para descer?
— Eu consigo descer fácil - respondeu Orelhão. - O problema e
você!
— Por que eu?
— Porque você e menina, e todas as meninas têm medo de
escorregar pela corda!
A Inspetora levantou o nariz:
— Eu não tenho medo de coisa nenhuma, e você é uma besta!
Vamos, dê aqui esta porcaria...
Apanhando-a, a Inspetora deu uma porção de nós, meio metro
um do outro. Depois, jogou a ponta da corda para Malu e mandou
Orelhão amarrar a ponta oposta na mesa. Em seguida, enfiando-se pelo
buraco, começou a descer com muita facilidade, pois os nós evitavam
um escorregão. Quando chegou lá embaixo, fez sinal para Orelhão.
Orelhão trouxe uma veia acesa e, quando a luz clareou o cômodo, eles
abriram a boca de espanto:
— O PORÃO DOS MÓVEIS!
— É mesmo! Foi aqui que nós estivemos de manhã...
Só então, eles viram que, debaixo do sofá, havia uma grande
cama cujo colchão havia amortecido a queda de Malu e possivelmente,
da Bortolina.
— Você viu a Bortolina por aqui? - perguntou Orelhão.
— E como podia ver, se estava tudo escuro como a noite? -
perguntou Malu irritada. — Você é mesmo um...
Não concluiu o que pensava, pois ouviram um gemido. Malu e
Orelhão se agarraram. A Inspetora não se moveu.
— Esperem, por que esse medo?
— Você não ouviu?
— Ouvi...
— Você também não se lembra do que vimos hoje de manhã neste
mesmo lugar?
— Estou pensando que, hoje de manhã, quando estivemos aqui,
ouvimos um gemido assim. E, quando estivemos aqui, a Bortolina não
estava com a gente. Ora, se ela caiu antes de chegarmos, talvez esse
gemido... SEJA DELA!
Os dois se entreolharam.
— Será possível?
— Acho melhor começarmos a procurar - comandou a Inspetora.
Assim, levantando a vela para clarear melhor, os três retiraram os
lençóis que cobriam os móveis.
— Bortoliiiina! Bortoliiina!
O gemido repetiu-se.
— É ELA! - confirmou a Inspetora. — Ela deve estar trancada por
perto!
— Bortoliiiiiiina, continue fazendo barulho para nós ouvirmos
você...
O gemido repetiu-se. Também ouviram pancadas como se
alguém estivesse esmurrando a parede.
— Vem de lá - disse Orelhão pondo a mão em concha na orelha
direita. - Eu nunca me engano em questão de direção do som. Sou o
maior caçador da fazenda.
Marcharam na direção que Orelhão apontou.
— Impossível! - observou a Inspetora. Aqui só existe parede! Acho que
seu “formidável" ouvido de caçador desta vez falhou, Orelhão!
— Meu ouvido nunca falha - ele insistiu. O barulho vem daí. Quer
ver só?
E dizendo essas palavras, Orelhão deu umas pancadas na parede
fria; depois, aguardaram uns segundos... e as pancadas responderam
do lado oposto!
— Eu não disse que ela está lá? - perguntou, vitorioso.
— Como essa diaba foi parar do outro lado? - perguntou Malu
coçando a cabeça.
— Bem, não interessa ficarmos perguntando - intrometeu-se a
Inspetora. — Devemos procurar libertar a Bortolina o quanto antes.
— Sim, como?
— Se ao menos ela pudesse dizer como foi parar lá! - disse Orelhão
desanimado. — Eu não estou vendo na parede nenhuma marca que
possa indicar uma porta ou qualquer coisa parecida...
As meninas aproximaram-se com as velas, mas a fraca claridade
revelava muito pouco. As pancadas de Bortolina persistiam, o que
aumentou o desespero dos três.
— Não seria bom chamar dona Tuluca e o Doutor Navegante? Eles
são adultos e poderiam achar um modo de retirar a Bortolina! Talvez
com picaretas, talvez uma dinamite...
— Não diga besteira! Enfiar uma dinamite na parede poderá
causar a morte da Bortolina, onde já se viu!
Quando Orelhão ficava nervoso, ele perdia a paciência. Por isso,
começou a esmurrar a parede. Esmurrou, esmurrou até que, quase sem
forças, caiu sentado.
— Acho que não vamos conseguir nada! - gemeu ele.
Malu aproximou-se para examinar. Olhou para baixo, para cima e
para os lados. Sabia que não adiantava fazer mais nada. Entretanto,
contagiada pela raiva do Orelhão, ela deu duas pancadas secas nas
pedras escuras e um empurrão.
— Abra, porcaria!
Nem bem tinha acabado de falar, eles ouviram um barulho
esquisito e, de repente, a parede girou rápida, trazendo para fora a
Bortolina com as tranças em pé. Malu deu um salto. Orelhão, que
continuava sentado no chão, agora tinha sumido porque, com o giro, a
parede o tinha empurrado para dentro!
— Pronto, um saiu, entrou o outro! - queixou-se a Inspetora. —
Malu, o que você fez para abrir a passagem?
— Dei dois socos e empurrei, acho...
— Então, faça de novo!
Malu obedeceu. Imediatamente, o barulho se repetiu, e o Orelhão
foi atirado para fora. Assustadíssimo, ele se levantou. Enquanto isso, a
Bortolina começava a reclamação:
— Minha Nossa Senhora Aparecida, que coisa horrível me
aconteceu! Faz horas que estou trancada naquele quartinho abafado!
Por que vocês não vieram antes? Quase fiquei sem as mãos, de tanto
esmurrar as paredes!
— Nós procuramos trabalhar depressa, Bortolina - informou a
Inspetora - mas não conseguimos nada. Passamos o dia inteirinho
procurando você. O que aconteceu, afinal?
A Bortolina esticou o beiço e fez cara de choro.
— Não me lembro direito. Só sei que tinha acabado de sentar na
poltrona, de repente levei um tombo e afundei no escuro. Ainda bem
que cai no macio! Depois, levantei e comecei a procurar uma saída. Eu
estava batendo em uma parede, quando ouvi um barulho... e senti que
alguma coisa me empurrava...
— Deve ter sido a abertura secreta - observou a Inspetora coçando
o queixo. - Bem, o importante é que tudo acabou bem, embora deva ter
sido horrível, não foi, Bortolina?
— Sim, foi uma brincadeira boba! Quero ir embora pra casa... -
insistiu a negrinha derrubando o beiço e ameaçando as primeiras
lágrimas.
— Nós vamos logo - respondeu a Inspetora. — Agora, precisamos
voltar para o quarto...
— Você sabe o caminho?
— Sabemos; hoje de manhã já estivemos neste porão de móveis -
respondeu Malu. — E nós vimos...
A Inspetora fechou a cara para Malu não dizer o que tinha visto,
pois, se dissesse, aí sim, a Bortolina armaria o escândalo.
— Viram o que? - perguntou Bortolina, desconfiada.
— Nada! Vimos um jeito de sair, foi só isso...
— Então, vamos. É por aqui - anunciou o Orelhão.
Com a fraca claridade das velas, não foi difícil vencer a escada,
encontrar a argola que abria a porta falsa. Quando a porta se afastou,
a Bortolina deu risada:
— Legal, até parece cinema!
— Psiiiiu!
Na ponta dos pés, voltaram para o quarto. Bortolina atirou-se no
sofá. A Inspetora sentou-se aos pés da cama. Malu, a direita. Orelhão
ficou de lado.
— E agora?
— Estou pensando... estou pensando... respondeu a Inspetora
mordendo os dedos. — Abel disse que todos os compradores que vieram
ver o castelo, fugiram assustados, no meio da noite. O que os teria
assustado tanto assim?
— Com certeza, o fantasma...
— Ai, não me falem em fantasma, pelo amor de Deus! - gemeu a
Bortolina começando a tremer.
Ninguém ligou.
— Mas por que o fantasma só aparece para eles? Dona Tuluca
disse que ela nunca viu nem ouviu o tal fantasma!
— É, mas eu vi e ouvi! - reclamou a Bortolina, ofendida. — E fico
louca de raiva quando vocês dizem que eu estava sonhando! Eu não
estava sonhando coisa nenhuma! O fantasma estava dançando um
sambão rasgado, daqueles!
A Inspetora continuou andando em círculos.
— Vocês falam demais e eu não consigo me concentrar. Os
Inspetores precisam se concentrar para pensarem direito... Nós
estávamos dizendo que o fantasma aparece para os compradores do
castelo... e para a Bortolina, naturalmente...
A Bortolina sorriu, agradecida.
— E aquilo que vimos no porão dos móveis? - perguntou Orelhão.
A Bortolina ficou de orelhas em pé.
— O que vocês viram no porão dos móveis?
— O fantasma quase nos agarrou hoje de manhã, lá - respondeu
Orelhão. — Nós estávamos na escada, ele veio subindo... subindo... até
que...
Bortolina deu um salto e enfiou a mão inteira na boca. Tremia
como geleia:
— E eu estive trancada no porão com o fantasma? Meu São
Benedito! Minha Santa Vitória! Minhas Almas mais necessitadas! Meu
São Bom Jesus do Pirapora... Minha Santa Teresinha do Amor Divino...
— Oh, que coisa horrível você aprontou, Orelhão! Você foi
justamente ligar a ladainha de Todos os Santos, e não há quem faça a
Bortolina fechar o bico! - reclamou Malu, aborrecida.
Não houve, mesmo. A Bortolina se encolheu em um canto, cobriu
a cabeça com o cobertor e continuou repetindo os nomes dos santos
que existiam e mais alguns que ela inventou por conta própria.
— Esse fantasma parece que só quer uma coisa: assustar os
compradores que vêm examinar o castelo! - concluiu a Inspetora, com
a mão no queixo. — Por quê?
— Decerto o fantasma não quer que ninguém compre o castelo!
... - sugeriu o Orelhão.
De repente, a Inspetora deu um salto:
— Gente, se o fantasma quer mesmo assustar todo mundo, ele
também vai assustar o Doutor Navegante! Aposto que, ontem à noite,
a música foi para atrair o Doutor Navegante! Só que a Bortolina entrou
na frente e estragou todos os planos do fantasma!
— Será possível?
— Acho que sim. Pra mim, a armadilha estava armada para o
comprador, e não para a Bortolina! Já são duas vezes que a Bortolina
se meteu onde não era chamada: no quarto e revirando o tombo da
cadeira...
— Eu não me meti onde não fui chamada coisa nenhuma! -
reclamou a Bortolina descobrindo a cabeça. — Eu fui ao quarto porque
gosto de samba, e não tenho a culpa se aquela cadeira horrível virou
comigo! Santa Maria do Amor Divino! São Cosme e Damião... - e
novamente cobrindo a cabeça, a Bortolina continuou recitando a
ladainha.
— Quer dizer que a Bortolina já andou “pondo formiga" no doce de
alguém que está interessado que dona Tuluca não venda o castelo!
— E... esse alguém é o fantasma?
A Inspetora deu aquela risadinha de quem enxerga longe.
— Não sei. Só sei que, se for verdade o que estamos dizendo, HOJE
o fantasma vai tentar assustar o Doutor Navegante. Então, o que nós
precisamos fazer, é o seguinte...
Puxando Malu e o Orelhão bem pertinho, a Inspetora cochichou
tão baixo que eles precisaram fazer força para ouvir o que ela estava
dizendo.
Capítulo XIII

A PORTA do quarto estava apenas encostada, de modo que


podiam ouvir qualquer barulho, no corredor. Embora tentassem se
manter acordados, o sono foi maior, e eles ferraram no sono. Bortolina
acordou com o coração disparado, porque foi a primeira a ouvir:
— A MÚSICA!
Embora assustada, ela despertou os companheiros.
— É um sambão! - confirmou se esquecendo que estava com
medo.
Era, mesmo. Só que o volume do som estava mais alto que na
véspera.
— Só um surdo não acorda com essa barulheira! - observou a
Inspetora, levantando-se e indo até à porta.
Malu também quis ver. Sobre a cabeça de Malu apareceu a cara
redonda do Orelhão e, embaixo de tudo, os olhos muito brancos da
Bortolina.
— Eu não disse? Olhem lá: vem daquele quarto do fundo! -
apontou a negrinha.
— O quarto de tio Conegundes! - informou secamente a Inspetora.
— DO FANTASMA? - gemeu a Bortolina dando um pulo para trás.
— É, do fantasma, sim senhora. E daí? Você vai armar outro
escândalo só por isso?
A irritação da Inspetora deixou Bortolina muito sem graça. A
música continuava no mesmo volume.
— Será que o Doutor Navegante não vai despertar? Daqui a pouco
racham as paredes do castelo, e o velho não acorda!
— Psiiiiiu, olhem, luz no quarto dele! Ele acordou!
Encostaram mais à folha, espiando por uma fresta quase
imperceptível. Finalmente a porta do quarto do Doutor Navegante se
abriu, e eles viram um vulto com um roupão escuro. Havia poucas velas
no corredor; eles enxergavam apenas uma silhueta.
— Ele vai direto para o quarto do Velho Conegundes! - disse Malu
que não queria perder os detalhes.
Realmente, o vulto foi até diante do quarto. Aí, a porta se afastou.
O vulto entrou. Houve um momento de expectativa.
— Será que não vai acontecer nada? - perguntou Orelhão.
— Será que ele não viu o fantasma?
— Será que existe um fantasma? - insistiu a Inspetora olhando
firme para a Bortolina.
Bortolina arrepiou-se.
— Você vai querer duvidar de mim outra vez?
— A Inspetora não teve tempo para responder porque eles
ouviram um berro de gelar o sangue. O vulto saiu do quarto com as
mãos para cima! Só que ao invés de sair pela escada próxima ao quarto
dos meninos, o vulto desapareceu pela escada do corredor.
— Pobre Doutor Navegante! - disse a Inspetora fechando a porta.
— Este é mais um dos compradores que anoitecem e não amanhecem...
Os quatro sentaram-se à cama.
— E agora? - perguntou Malu.
— Esperar até amanhecer - respondeu a Inspetora.
— E que vamos fazer depois?
— Não sei. Verdade, ainda não sei...
— Você está pensando em "caçar" o fantasma?
— Não contem comigo - intrometeu-se a Bortolina. — Não quero
saber de lidar com essas coisas horroríveis!
— O que quer dizer horrorível?
— É uma mistura de horroroso e horrível - respondeu Bortolina.
— Isso, nós já sabemos, nem precisava se manifestar!...
— Afinal - disse Malu — por que nos preocupamos com o
fantasma? Ele não mexeu conosco e, amanhã, nós vamos embora para
casa...
A Inspetora levou a mão à coruja verde:
— Você seria mesmo capaz de ir embora sem resolver este caso?
Quem é que reclamou que as férias estavam chatas porque não
acontecia nada de diferente? Agora que está acontecendo... você quer
mesmo dar o fora?
Malu sentou-se. Apoiou os cotovelos nos joelhos e segurou a
cabeça com as mãos.
— Oh, você sabe, que eu falei só por falar! Acontece que estou
preocupada...
— Com o quê?
— Não sei! Desta vez estamos lidando com pessoas. Quando
fomos caçar a mula era um animal. Mas agora...
— E o Chico Madureira não era gente? - perguntou o Orelhão.
Aí Malu concordou:
— Você tem razão. Estou muito cansada e, quando tico cansada,
não sei pensar direito. Acho que a melhor coisa que temos a fazer é
dormir um pouquinho, vocês não acham?
A ideia foi aceita por unanimidade e, pouco depois, todos
estavam roncando.
Capítulo XIV

O DIA seguinte amanheceu sem chuva, mas com uma cerração


tão densa, que não se via um palmo adiante do nariz. A primeira a
levantar-se foi a Inspetora. Trocou-se e caminhou até a janela para ver
o aspecto triste do tempo. Ainda estava olhando, quando Malu também
acordou. Depois, a Bortolina. O último foi o preguiçoso Orelhão que
soltou um bocejo de quase cinco minutos.
— Não está chovendo mais - observou Malu, satisfeita.
— Está um dia pior do que se chovesse - respondeu a Inspetora. —
Neblina também causa acidentes nas estradas...
Malu olhou para baixo e para cima.
— Está parecendo daquelas fitas inglesas de terror...
— É. O castelo foi realmente feito em uma posição topográfica que
favorece para cerração, neblina e chuva... Bem, não podemos
estranhar. Afinal, o tataravô da dona Tuluca era inglês, não era? Mania
desses ingleses que gostam dessas coisas...
A Bortolina deu um laço na trancinha e, muito assanhada,
também veio olhar.
— Ai, que dia horrorível! - ela opinou. — Não vejo a hora de voltar
para a fazenda, sossegadíssima da silva, passear pelos campos...
dormir no paiol... Odeio tempo feio assim!
— Este é o terceiro dia - disse a Inspetora. — Se o tempo melhorar,
voltamos para a fazenda, ainda hoje. Bem, agora, vamos tomar café?
Desceram em fila pela escada de passadeira vermelha: a
Inspetora, a secretária, a vigilante Bortolina e o Orelhão que, sendo
homem, só poderia ser o último da fila.
Na sala de jantar a primeira pessoa que a Inspetora viu foi Abel.
Ele tinha a mão esquerda enfaixada. Meio atrapalhado, Abel procurou
esconder a mão para evitar que ela continuasse olhando. Entretanto. a
Inspetora rapidamente se esqueceu de Abel porque dona Tuluca,
irritadíssima, só faltava gritar ao discutir com o Doutor Navegante!
— Você não disse que ele ia embora? - perguntou Malu, olhando
firme para a Inspetora.
— Do jeito que ele saiu correndo, uma hora dessas era para ele
estar na China - observou Orelhão.
— Psiiiiiu - mandou a Inspetora. — Escutem!
Então, eles ficaram atentos a discussão dos adultos.
— Impossível! - concluiu dona Tuluca batendo a mão na mesa. —
Por essa bagatela jamais venderei meu castelo! Não, não e não!
O Doutor Navegante estava vermelho como um peru:
— E as contas para pagar? Se a senhora não aceitar meu preço,
será pior para a senhora! Quem vai dar mais por este castelo horrível e
cheio de fantasmas?
— Não há fantasmas em meu castelo, Doutor Navegante! - insistiu
ela com outro murro na mesa. — O senhor está proibido de falar dessas
coisas porque isso é uma infâmia que só tem uma única finalidade:
desvalorizar minhas terras!
— Ah, não existe? - perguntou o Doutor Navegante empurrando a
cadeira e levantando-se. — Então, minha senhora, pode me dizer o que
foi que aconteceu para o Abel à noite passada? - e puxando o criado
pela mão, colocou-o diante da patroa.
Dona Tuluca se admirou ao ver a mão enfaixada de Abel.
— Abel! - disse ela, séria — você pode me explicar o que aconteceu
a você à noite passada e o que tem sua mão a ver com um possível
fantasma neste castelo?
Abel arregalou os olhos. Pela primeira vez demonstrou medo.
— Perdão, dona Tuluca, mas ontem à noite, tendo eu ido ao quarto
do Doutor Navegante para preparar a cama, comecei a ouvir música -
música no quarto do finado tio Conegundes...
Aí, Abel empacou.
— Continue - mandou dona Tuluca meio desconfiada. — E depois?
— Entrei lá. Não havia ninguém, senhora... Mas, de repente,
começaram a aparecer umas formas no forro que pareciam braços
dançando... e eles queriam me agarrar! Então... então... eu perdi a
cabeça e sai correndo. Tropecei na escada, e... - Abel mostrou a mão.
Bortolina estava branca e com a boca arregalada.
— Ridículo! - disse dona Tuluca virando o rosto. - Um fantasma e
dançarino! Apesar de tio Conegundes ter sido um grande amante do
palco, ele jamais daria um vexame desses, principalmente com gente
da família!
— Ridículo ou não, o certo é que mais de quinze compradores já
desapareceram no meio da noite e nunca deram notícias para a
senhora - respondeu o Doutor Navegante.
— A verdade, dona Tuluca, é que ninguém quer comprar este
castelo porque todos sabem que ele é assombrado! Mas eu estou
disposto a comprá-lo porque não temo fantasmas e usarei as terras
exclusivamente para criar gado. O castelo ficará fechado, portanto, não
haverá prejuízo para ninguém.
— Infelizmente, caro senhor, não será possível. Reconheço que
estou endividada, mas pelo preço que o senhor me oferece, não se trata
de VENDER o meu castelo, mas, sim DÁ-LO DE PRESENTE AO SENHOR!
A Inspetoria não tirava os olhos dos dois. Ela sentia dó do aperto
em que se encontra dona Tuluca.
— Dona Tuluca - disse ela, aproximando-se — acho que a senhora
deveria conversar com pápi, antes de vender o castelo. Pápi está
querendo comprá-lo, e tenho certeza que ele pagará o preço justo que
as terras valem.
Dona Tuluca olhou para a menina e sorriu.
— Seu papai está mesmo interessado no castelo, queridinha?
— Está, sim senhora. Outro dia, ouvi quando ele disse que ia fazer
uma proposta para a senhora... Acho que, se não fez, foi porque não
teve oportunidade!
O Doutor Navegante fechou a cara.
— Quem vai lá comprar um castelo cheio de fantasmas horríveis?
A Inspetora não se perturbou.
— Os fantasmas daqui não são tão horríveis assim. Até que eles
são camaradas porque são fantasmas "legais" e dançarinos.
— Como você sabe? - perguntou dona Tuluca, admirada.
— Porque nós já vimos o fantasma - respondeu a Inspetora.
Foi a vez da velha cair sentada na cadeira, e a Bortolina
acompanhou com meia-dúzia de nome-do-padre.
— JÁ??? Meu Deus, parece que eu sou a última a saber o que está
acontecendo neste castelo!
Enfrentando a carranca do Doutor Navegante, a Inspetora contou
tudo - tudinho. E terminou, muito séria:
— Já sabemos que o fantasma é bonzinho e camarada porque,
quem dança, não pode ser um mau sujeito!
O Doutor Navegante desabotoou o colarinho.
— Você está enganada, menina! Quem vê cara, não vê coração. O
fantasma daqui é uma peste malvada que gosta de torcer o pescoço de
suas vítimas!
A Inspetora olhou firme atrás dos óculos de lentes grossas.
— Como é que o senhor sabe?
Por uns momentos, o Doutor Navegante se atrapalhou; mas
conservando a calma, ele conseguiu uma resposta lógica:
— É que... é que... é que ele já me atacou!
— Já? Quando? - perguntou dona Tuluca mais surpresa ainda.
— Na primeira noite - respondeu o Doutor Navegante tirando o
lenço do bolso para enxugar o suor. — Eu estava sentado, quando vi um
vulto branco correndo em minha direção. Ele me agarrou aqui - olhem -
— na garganta. Quase me sufocou! Foi preciso eu pegar um pedaço de
pau e bater na cabeça dele. Só assim. ele me soltou e foi embora.
— Estranho! - disse dona Tuluca. - O senhor não me disse isso
antes!
— Eu não queria assustá-la - respondeu o Doutor. — Não fui como
os demais covardes que desapareceram no meio da noite... Não! Eu sou
honesto e não tenho medo de caretas! EU VOU COMPRAR ESTE
CASTELO, MINHA SENHORA! ELE SERÁ MEU A QUALQUER PREÇO!
E proferindo aquela ameaça, retirou-se batendo os pés. Só então,
Dona Tuluca olhou para a porta e deparou com a expressão abobalhada
da Bortolina. Dona Tuluca botou as mãos na cintura.
— Ora, vejam só, dona Bortolina. Enfim resolveu aparecer! Será
que você pode nos contar onde foi que você se enfiou ontem o dia
inteirinho, sua fujona?
Bortolina olhou para os companheiros e imediatamente começou
a esticar o beiço em preparo do choro que estava por chegar. Mas a
Inspetora, muito esperta, deu um passo para frente e inventou uma
desculpa:
— Ela estava na capela, dona Tuluca...
— Na capela?
— Sim. Parece que ninguém se lembrou de procurar na capela... -
confirmou a Inspetora com a maior cara-de-pau do mundo.
— Mas o que você foi fazer na capela. Bortolina? - perguntou a
velha muito desconfiada.
— Ela foi rezar pela alma de tio Conegundes - insistiu a Inspetora
fazendo figa.
Dona Tuluca olhou tão feio que a negrinha até se encolheu.
— É verdade, Bortolina?
— Bem... eu... - Bortolina pôs as mãos para trás.
A Inspetora fazia gestos afirmativos. Bortolina imitou os
gestos da Inspetora.
— Eu fui, sim, dona Tuluca. Fui rezar pra alma dele ter paz e não
assustar mais o castelo e.... e acabei dormindo lá!
Dona Tuluca, não totalmente convencida da explicação, olhou
para o Orelhão, para Malu, para Bortolina e para a Inspetora.
— A Bortolina é mesmo uma santinha rezadeira! - confirmou a
Inspetora. — Ela gosta de viver praticando boas ações, é só isso.
Então, comovida, dona Tuluca juntou as mãos e esqueceu-se da
zanga.
— Coitadinha da Bortolina! Eu não sabia que você tinha um
coração grande desse jeito, queridinha... Mas, agora, vamos nos
esquecer de tudo isso. A mesa do café está pronta, e eu estou morrendo
de fome. Vamos comer alguma coisa?
Capítulo XV

A CERRAÇÃO ficou tão densa que, apesar de ser dia, tiveram de


acender velas. Malu, Bortolina e Orelhão, estavam na biblioteca
jogando dominó. A Inspetora tinha lido um pouco, mas acabou
cansando, pois, os olhos ardiam. Depois, como não achou nada de
extraordinário para fazer, subiu até ao quarto. Fechou a porta, botou as
mãos na cintura e franziu a testa:
— Pápi tem de ajudar dona Tuluca! Não podemos deixar que esse
vigarista engane a pobre velha! Não é justo!
A Inspetora não tinha percebido que, em um canto do quarto,
havia uma poltrona coberta com um lençol branco, como os móveis do
porão. Só dali a pouco que deu de cara com a poltrona.
— Ora essa, por que será que dona Tuluca mandou colocar essa
poltrona nova aqui? Ela não estava, antes. Bem, seja como for, não
estou com vontade de me sentar. Estou é com uma vontade de andar a
cavalo! Que saudade do sol! A Bortolina é que tem razão...
Foi até a janela para ver o tempo. Ao voltar-se para dentro, a
Inspetora sentiu um arrepio: a poltrona estava perto da cama!
— Uai, eu era capaz de jurar que aquela poltrona estava naquele
outro canto...
Aí, o coração da Inspetora disparou porque, firmando bem a vista,
ela percebeu que a poltrona se movia parecendo respirar! A Inspetora
engoliu seco e pensou em fugir. Mas não podia deixar-se dominar pelo
medo - precisava aparentar calma, chegar até à porta e sair correndo.
Por isso, começou a assobiar - sem conseguir assobiar direito. A
poltrona pareceu entender a intenção da Inspetora porque mal a
Inspetora deu três passos, a poltrona deu um. A Inspetora deu outro, a
poltrona ficou de pé, estendeu os braços brancos e correu atrás da
Inspetora. A Inspetora tentou fugir, mas não conseguiu, porque a
poltrona se pôs entre a Inspetora e a porta. A Inspetora correu para a
esquerda, a poltrona, atrás. Formou-se tremenda confusão no quarto,
pois a Inspetora era pequena e esperta, e a poltrona ágil e grandalhona.
Finalmente, com um golpe inesperado, um pano branco caiu sobre a
cabeça da Inspetora, e ela se viu completamente imobilizada por
braços fortes. A Inspetora quis gritar; a poltrona fechou-lhe a boca. A
Inspetora sentiu que a carregavam, sem saber para onde. “Estou
perdida!" - pensou. - “E se eu não pensar depressa, não sei como vou
acabar!" Criando coragem, a Inspetora ficou quietinha. A poltrona
soltou-lhe a boca. A Inspetora contou: UM, DOIS, TRÊS - e pregou a maior
dentada do mundo no primeiro lugar que achou. O berro que a poltrona
deu ecoou pela casa inteira e, de um momento para outro, a Inspetora
se viu atirada longe, revirando um belíssimo tombo no chão.
Procurando livrar-se do lençol que a cobria, ela viu um vulto branco
correndo pelo corredor e na direção do quarto do tio Conegundes. Mais
do que depressa, a Inspetora se abaixou e pegando com as duas mãos
a comprida passadeira do corredor, deu um puxão com toda força.
— Se for fantasma de verdade, agora ele vai sair voando! - pensou
ela, esperando o resultado.
O fantasma branco levantou as duas pernas, descreveu um
círculo no ar e voou direto para o fim da escada.
— SOCOOOOOOORRO! - gritava ele escorregando sentado pelos
degraus como se fosse um tobogã.
A Inspetora correu. O grito chamou a atenção de todos, e a própria
dona Tuluca, apareceu guiada pelas mãos das crianças. No piso do
salão de entrada, esparramado e com o braço sangrando, o Doutor
Navegante estava com uma cara de meter medo!
— Doutor Navegante! - disse dona Tuluca apertando os olhos para
ver melhor. — O que significa tudo isso? - e pôs a corneta no ouvido pois
queria ouvir direito.
Rapidamente, a Inspetora se intrometeu:
— O Doutor Navegante me atacou, dona Tuluca! Ele se cobriu com
um lençol e fingiu ser uma poltrona. Ele ia me levar não sei para onde.
Então, eu preguei uma dentada no braço dele!
O Doutor Navegante tentou esconder a mordida, mas o sangue
vermelho denunciava. Dona Tuluca franziu a testa:
— Realmente, Doutor Navegante, o que o senhor está fazendo,
vestido com essa camisola branca?
Não havia como dizer que a Inspetora andava inventando coisas
pois ele estava mesmo com uma camisola branca. Então, furioso, ele
contou tudo - desde o começo:
— Eu resolvi que compraria o castelo por uma pechincha. Todos
os compradores que vieram vê-lo, vieram a pedido meu. Eu já tinha
ouvido falar de um fantasma por aqui e resolvi explorar a ideia para
desvalorizar seu castelo. Então, meus compradores vinham, davam um
jeito de pousar aqui e, quando batia meia-noite, fugiam para dar a
impressão que tinham visto alma do outro mundo!
Dona Tuluca sentou-se.
— Não estou entendendo mais nada! Seus amigos fingiam ter
visto um fantasma?
— Fingiam.
— Ora essa, então o senhor afirma de pés juntos que o fantasma
não existe?
— Nunca existiu fantasma nenhum! - respondeu o Doutor, louco
da vida. — Eu me vesti assim porque queria pegar essa menina xereta
e dar-lhe uma bela lição. Ela não tinha nada de intrometer-se dizendo
que o pai dela também queria comprar o castelo. Pensei em assustá-la
para fazer mudar de ideia...
A Inspetora bateu os pezinhos.
— Assustar? O senhor não me conhece!
Dona Tuluca não ligou para a resposta da Inspetora.
— Mas, se não existe um fantasma, o que aconteceu ao Abel, a
noite passada?
— Sim, e o que eu vi lá no quarto que acabei revirando um tombo
e quebrando a mão? - confirmou Abel, que, até então só tinha escutado.
O Doutor Navegante encolheu os ombros.
— Como posso eu lá responder isso?
— Talvez exista realmente um fantasma - emendou dona Tuluca
com um arzinho desconfiado.
— JESUS DO CÉU, SERA QUE EXISTE MESMO UM FANTASMA? -
gritou a Bortolina se preparando para outro ataque de recitação do
terço.
— Cale a boca você e não se meta - respondeu dona Tuluca
interrompendo a crise de Bortolina. — Estamos resolvendo problemas
sérios, por favor!
Muito desapontada, a Bortolina fechou o bico e ficou quieta. A
Inspetora pôs as mãos na cintura:
— Muito bem, depois de tantas atrapalhadas, pelo menos uma
coisa de bom aconteceu: a senhora não vai mais ter de vender o seu
castelo a esse doutor a troco de bananas!
Dona Tuluca concordou.
— Senhor Doutor Navegante, Eloisa tem razão: eu não vou mesmo
vender o castelo para o senhor - nem que o senhor, de joelhos, me
ofereça uma fortuna! O senhor agiu de um modo muito feio e eu não
gosto de pessoas interesseiras. Passe muito bem!
Levantou o nariz, virou nos calcanhares e marchou para a sala de
música. Bortolina acompanhou de perto. Atrás, a Malu. Orelhão, de
orelhas murchas, seguiu sem fazer comentários. A Inspetora continuou
no mesmo lugar e na mesma posição. Olhando para cima, Abel parecia
um cão de guarda esperando que o Doutor Navegante resolvesse fazer
alguma coisa. E o que ele fez foi levanta-se espumando de raiva.
— Você é uma menina horrível, intrometida e trapalhona! Se não
fosse por você, teria acertado todos meus negócios! Você me fez perder
quase mil anos de planos, esperas e noites mal dormidas, SUA MENINA
CHATA!
Batendo pés, subiu para o quarto. A Inspetora limitou-se a olhar
para Abel:
— Acho bom você ficar aqui, esperando que o Doutor Navegante
pegue as coisas dele e desapareça, Abel. Como diria dona Tuluca: ele é
mesmo uma pessoa indesejável...
— Sim, senhorita! - respondeu Abel, cerimoniosamente.
Cinco minutos depois, apesar da cerração, o carro do Doutor
Navegante deixou o castelo à toda. Os faróis acesos, bem depressa
morreram engolidos pela névoa úmida. Com olhos vigilantes, Abel ficou
à janela, até o veículo desaparecer.
— Seguiu pela direita - observou ele. — Com isso, ele evitará passar
pelo rio, mas deverá dar uma volta de quase cem quilômetros para
chegar à cidade. Bem feito!
E fechou a cortina.
Capítulo XVI

ESTAVAM todos reunidos na sala de música. Dona Tuluca


marchou direto para a poltrona verde, mas a própria Bortolina deu um
salto:
— Pelo amor de Deus, não sente nessa poltrona.
— Por quê? - perguntou a velha, atrapalhada.
— Porque eu revirei um tombo daqueles aí...
— Um tombo? Não compreendo...
Orelhão aproximou-se dos braços da cadeira e apertou nos pontos
conhecidos. Imediatamente, a poltrona deitou sobre o alçapão escuro.
Dona Tuluca deu um salto para trás:
— Deus do céu! Em dois dias vocês descobriram coisas neste
castelo que eu nunca imaginei apesar de meus sessenta anos! Como
foi que vocês descobriram isso?
Sentados no sofá vermelho, os quatro começaram a narrar as
aventuras. Dona Tuluca ouviu sem abrir a boca. Só mesmo quando a
Inspetora terminou, que a velha ergueu as mãos, assombrada:
— Que coisa! Estou de tal maneira confusa que já nem sei mais o
que pensar. Se existir um fantasma, será titio Conegundes - o que acho
muito improvável. Mas, se não existe um fantasma, quem será
o responsável por tudo que vem acontecendo aqui? Acaso, seria o
Doutor Navegante? Não! Isso também é bem pouco provável. Então,
como ficamos?
Para pensar melhor, dona Tuluca fincou o dedo na bochecha. Ao
lado, a Inspetora sentou-se de pernas cruzadas. Depois, a Malu. Orelhão
fechava os olhos porque sentia sono, e a Bortolina fazia a ponta das
tranças. De repente, começaram a ouvir música.
Dona Tuluca franziu a testa; apesar de meio surda, também tinha
ouvido muito bem. Antes dela levantar-se, a tampa do piano se abriu
sem que ninguém tocasse. As teclas puseram a movimentar-se na
execução de um chorinho brasileiro como se algum artista estivesse
presente. Apesar de ser música alegre, dona Tuluca ficou de cabelo em
pé. A Inspetora, imóvel. Malu e Orelhão, de bocas abertas. E Bortolina,
beiço caindo e tremendo, começava a invocar os santos de estimação.
Mas não ficou só naquilo, não! Como se emergindo da parede de pedra,
começaram a aparecer formas indistintas que se transformavam em
pernas, braços e corpo. O rosto a princípio não identificado sorria largo,
camarada. Leve como uma pena, o fantasma começou a pular de cima
do piano para o chão, do chão para cima da estante e da estante para
as poltronas, com a agilidade de um gato. Dona Tuluca estava com a
respiração presa.
— TITIO CONEGUNDES, SERÁ POSSÍVEL!?!
O fantasma continuava no perereco, e a música cada vez ficava
mais vibrante. Além da dança, a toalha da mesa, subia para o teto, o
jarro de flores virou, e a água caiu toda na cabeça da Bortolina que, com
um salto, voou longe. As rosas saltaram dos vasos para acompanhar o
fantástico bailado do fantasma. Além disso, tendo-se aberto uma
estante, os livros começaram a voar como morcegos. Formou-se uma
confusão incrível e, para fugir de ser atropelada, dona Tuluca deu um
salto com uma agilidade pouco comum para uma velha de sessenta
anos. Malu abraçou-se ao Orelhão, e a Bortolina afundou-se debaixo do
sofá. A coisa ficou tão maluca que, perdendo a paciência, a Inspetora
se irritou e deu um formidável berro:
— CHEGA DE PALHAÇADA!
O grito surtiu algum efeito, porque os livros começaram a cair um
a um, e também as rosas. O próprio fantasma, descorando-se aos
poucos, se foi imobilizando, imobilizando, até apagar-se como
uma lâmpada. Só mesmo o piano continuava tocando.
— O que aconteceu? - perguntou dona Tuluca meio tonta com tudo
aquilo.
Em vez de responder, a Inspetora saiu correndo da sala para a
biblioteca. Embora assustados, todos correram atrás dela, sendo que
dona Tuluca foi a última. A Inspetora foi direto à cortina vermelha, atrás
da qual a Bortolina havia encontrado a teia de aranha da Sibila. Com
um gesto rápido, puxou a cortina:
— Peguei ou não peguei o fantasma no pulo?
Todos olharam para cima. Muito sem graça, no alto de uma
plataforma, Sibila tomava conta de um projetor de filmes, cujo foco
passava através de um pequeno orifício na parede vizinha à sala de
música. Também viram uma confusão de fios de náilon aparentemente
inúteis.
— O que você está fazendo aí em cima, Sibila? - perguntou dona
Tuluca completamente atrapalhada.
Sibila ainda ficou um pouco desapontada por haver sido
apanhada em flagrante. Depois, erguendo as mãos, fez um sinal de
quem se dá por vencida e começou a descer a escada.
— Você sempre me considerou biruta, não é mesmo, Tuluca?
— Com efeito, sim! E agora, você me parece mais maluca ainda,
empoleirada lá no alto, como uma macaca! Quer, por favor, nos explicar
o que está acontecendo?
Sibila sorriu. Na realidade, sem aquela horrível roupa de aranha,
ela até que era uma mulher simpática, com profundos olhos azuis.
— É uma história muito comprida, Tuluca, mas vou tentar fazê-la
curta. Você se lembra que eu sempre desejei trabalhar no circo, não é
verdade? Mas a família nunca consentiu.
— Sim, claro que eu me lembro!
— E havia um rapaz - um mágico, um sujeito alto, elegante e
bonito que tinha um bigode preto, lindo de morrer; lembra-se?
— Sim, eu me lembro do mágico e não do bigode dele, claro! Você
começou de namoro com ele e, para evitar um casamento, tivemos de
mudar pra cá...
— Exatamente - confirmou Sibila com um sorriso misterioso. — Foi
nessa ocasião que Abel apareceu para trabalhar conosco.
— Certo! - confirmou a outra.
Naquele instante, Sibila olhou para o Abel que continuava
solenemente à porta. Ela caminhou até Abel e segurou-o pela mão. Abel
se atrapalhou todo, e dona Tuluca zangou-se:
— Sibila, que intimidades são essas com a criado?
— Ele é meu marido - respondeu Sibila dando um beijo na
bochecha do Abel.
— Marido? - e dona Tuluca caiu sentada na cadeira que a
Inspetora puxou depressa para evitar que a velha se estatelasse no
chão.
— Sim. Nós nos casamos há 46 anos, querida Tuluca... Abel
abandonou o palco e veio morar cá, conosco. Mas, lógico, ele trouxe
todo o equipamento de magia e, durante todo esse tempo, nós
continuamos praticando para mantermos a forma. Você sabe, nunca se
sabe do dia de amanhã! Foi ideia nossa, "bolarmos" o número do
fantasma dançarino! Afinal, titio Conegundes sempre gostou de teatro
e...
Dona Tuluca se abanava por sentir falta de ar.
— Assombroso! Impossível! Inacreditável!
— Mas é a pura verdade - confirmou Sibila. — Se desde o começo
você não tivesse sido mandona e tivesse aceito meu namoro com Abel,
teríamos nos casado, viveríamos uma vida feliz e sossegada no castelo.
Mas você, Tuluca, como papai e mamãe, sempre foi uma implicante de
marca maior!
Tuluca não tinha coragem de abrir a boca. Sibila voltou-se para a
Inspetora:
— Nós preparamos nossos truques tão bem! Como foi que você
descobriu tudo?
A Inspetora encolheu os ombros:
— Acho que é porque eu leio muito, eu estudo bastante. E fui
notando certos "defeitos de técnica"...
— Sim, quais? - perguntou Sibila toda acesa. — As opiniões de
pessoas que entendem são valiosas para ajudar-nos a melhorar!
A Inspetora cruzou os braços e, importante, começou a enumerar
as falhas:
— Primeiro: este piano toca sozinho porque é uma pianola de rolo
e, basta colocar-se o rolo, dar corda, e ela toca qualquer música. Certo?
— Certo...
— Segundo: cordéis de náilon abriram a tampa do piano, puxaram
a toalha da mesa para cima, fizeram as rosas dançar e levantaram os
livros - tudo como em um teatro de marionetes. Certo?
— Certíssimo! - murmurou Sibila encantada. - E o que mais?
— O foco de luz - por mais que se disfarce a projeção de um filme,
sempre existe um foco de luz que acompanha a imagem. Enquanto
todo mundo olhava para o fantasma e gritava de medo, eu olhei para
trás e vi que a luz vinha do outro lado da parede. Ora, atrás da parede
havia um cômodo onde a senhora tecia sua teia. Portanto, eu logo
imaginei que alguém estaria ali projetando um filme! Se não fosse a
senhora, poderia ser qualquer outra pessoa! MAS ALGUÉM TINHA DE
ESTAR LÁ!
Sibila juntou as mãos:
— Que menina inteligente, santo Deus! Se ela nos ajudasse no
número, Abel, nós estaríamos ricos!
Dona Tuluca acordou.
— Número? Que número?
Aí, Sibila explicou-se melhor.
— Estamos com muitas dividas, não estamos? Pois bem, se nós
conseguíssemos fazer turismo com um castelo mal-assombrado e
alugássemos os quartos para os hóspedes, vocês não acham que
faríamos um dinheirão? Afinal, o povo adora assistir a filmes de horror,
não adora?
— Eu pagaria para passar uma noite aqui - completou a Malu.
— O próprio Doutor Navegante vai começar a fazer propaganda do
fantasma do castelo aí por fora, na tentativa de desvalorizá-lo -
observou o Orelhão dando a única opinião inteligente de sua vida.
— E a senhora não precisaria mais vender suas terras - concluiu a
Inspetora.
Dona Tuluca levantou-se e olhou para os companheiros.
— Vocês estão ficando malucos?
— Maluca está você, queridinha - respondeu Sibila — se não
aceitar o dinheiro que vai cair do céu, se soubermos usar a cabeça.
Então? Vamos, o que você acha? Abel continua como criado, cuida dos
quartos e, à noite, me ajuda a movimentar o “fantasma”!
Dona Tuluca olhou direto para os olhos de cada um. E, em cada
olhar, havia uma afirmativa. Finalmente, fez um movimento afirmativo.
— Negócio fechado.
Aí, dando-se as mãos, os quatro começaram a pular em volta
dela.
Mas dona Tuluca ainda não estava plenamente satisfeita.
— Ainda há uns pontos que me deixam curiosa, Sibila...
— Quais, Tuluca?
— Por que você começou a movimentar o fantasma pelo castelo?
Sibila pensou antes de responder.
— Primeiro, porque, como eu já disse, Abel e eu precisávamos
manter a forma e procurávamos aperfeiçoar o número. Segundo,
queríamos mesmo espantar aqueles compradores horríveis!
— Quer dizer que... que eles chegaram a ver alguma coisa?
— Muito pouca coisa, Tuluca! Muito pouca coisa, mas o suficiente
para fazê-los sair correndo para sempre.
— Quer dizer, então, que eles viram alguma coisa... E, se eles
viram alguma coisa, devem ter contado ao Doutor Navegante... Apesar
disso, o Doutor Navegante não pareceu ter medo nenhum... Por quê?
— Certamente, porque ele queria desvalorizar o castelo sob
qualquer pretexto - respondeu Sibila — e usou o caso do fantasma. Ou
talvez não tenha acreditado no que os outros teriam lhe contado; ou
talvez, ainda, estivesse mesmo disposto - quem sabe? — a comprar o
castelo e acabar com o "fantasma”?
Dona Tuluca coçou a cabeça.
— É... podia mesmo ser assim..
Sibila caiu em uma gargalhada.
— Mas não vai ser mais, querida Tuluca. Este castelo é nossa
tradição de família e nenhum estranho vai pôr as mãos nele porque nós
conseguiremos pagar nossas dívidas e voltaremos aos dias gordos de
antes. Como você disse... é negócio fechado, Tuluca!
As duas se abraçaram e, sem saber porque, começaram a chorar
uma no ombro da outra.
Capítulo XVII

À TARDE, saiu o sol, e dona Tuluca pediu para Abel levar os


meninos de volta para a fazenda. Houve abraços, beijos e as promessas
de que eles haveriam de voltar.
— E por onde quer que vocês forem, queridinhos - disse Sibila
muito interesseira — podem mesmo dizer que vocês viram fantasmas
horríveis por aqui. Isso será uma ótima propaganda!
— Ai, pode deixar - respondeu a Bortolina toda importante - afinal
de contas, a "mocinha" da história fui eu porque eu que vi o fantasma
de titio Conegundes no quarto e fui eu quem caiu da cadeira!
— Eu também caí! - apartou Malu, irritada com o exibicionismo da
Bortolina.
— É, mas eu caí antes - respondeu a Bortolina mostrando a língua.
— Nós todos também vimos o fantasma dançando na sala! -
contestou Orelhão.
— Só que eu fui a pri-mei-ro-na — a pri-mei-ro-na! - e toda vaidosa,
Bortolina enfiou-se no carro.
Finalmente, o automóvel se afastou seguindo para a direita, a fim
de contornar o rio, uma vez que a ponte ainda não havia sido
reconstruída.
Quando eles chegaram a fazenda, dona Aurélia veio correndo
abraça-los. Atrás, a Luanda toda chorosa que não se desgrudava do
Orelhão. Tio Clóvis e o Sérgio também receberam e deram abraços.
Tudo em meio a muita conversa, pois eles tinham muito o que contar.
Afinal, depois de haverem agradecido a gentileza de Abel por
trazer as crianças de volta, Abel despediu-se e voltou para o carro. A
Inspetora acompanhou-o. Durante o retorno do castelo à fazenda,
enquanto todos riam e contavam vantagens, muito séria, a Inspetora ia
reparando certos detalhes.
— Abel, eu ainda estou em uma dúvida danada!
— O quê, senhorita?
— Se você ajudava Sibila em todas representações, e se você
sabia que tudo tinha sido preparado por ela, então, por que você tendo
ido aquela noite ao quarto do fantasma, saiu correndo, gritando e até
revirou o tombo na escada e acabou machucando a mão? Se você sabia
que tudo era mentira, por que teve medo?
Ele piscou o olho, maroto:
— Não se esqueça, senhorita, que nós, mágicos, somos artistas.
Eu estava representando um número!
— Para assustar a quem?
— Ninguém. Era só para manter a forma!
A Inspetora franziu a testa:
— Eu acho que não entendo direito essa gente de teatro!
Abel encolheu os ombros:
— Ninguém entende os artistas, mesmo. Nós somos todos muito
imprevisíveis. Afinal, não estava no programa que, em meu tombo pela
escada, eu machucasse a mão. Acho que estou ficando destreinado...
ou já estou muito velho para essas extravagâncias!
— Oh, não diga isso! Você ainda está muito jovem e muito bacana
- contradisse a Inspetora dando um beijo em Abel.
Abel ligou o motor. A Inspetora deu a uma sugestão:
— Acho que vocês não devem perder tempo projetando os filmes
do fantasma no porão dos móveis. Afinal, ninguém nunca vai lá!
Abel fez cara de quem não havia entendido.
— Como?
— Acho que é besteira projetar o filme do fantasma no porão dos
móveis, só isso....
A expressão de Abel se transformou...
— Você disse... porão dos móveis?
— É, sim, pois foi lá que vimos o fantasma pela primeira vez!
A Inspetora ficou preocupada ao perceber como Abel tinha
empalidecido.
— Mas Sibila nunca projetou o filme lá! - confirmou ele.
— NÃO???
— Claro que não!
Um calafrio gelou a Inspetora.
— Então... o que nós vimos no porão dos móveis?
— Não sei! Lá estão apenas os móveis antigos! E eu nem sabia
que vocês tinham chegado lá. Como vocês conseguiram?
— Pela porta secreta do corredor. Havia uma estátua com uma
esfera na mão. Orelhão girou a esfera, a porta se abriu, e nós descemos
ao porão dos móveis. Foi ali que, de repente, ouvimos aquela música
do órgão...
— Órgão? - perguntou Abel mais atrapalhado. — Sibila tem pavor
a órgão! Ela só gosta de vitrola, ou piano. Mesmo em se tratando de
encenar um número para fantasmas, ela não quis saber nem de órgão,
nem de música triste — tanto é que escolheu um samba para a vitrola,
e um chorinho para a pianola!
— Você tem razão, Abel! - disse a Inspetora forçando o raciocínio.
— A música que ouvimos no porão não era do mesmo tipo que ouvimos
na sala! Logo, quem escolheu a música do porão não pode ter sido a
mesma pessoa que escolheu as outras músicas!
Os olhos de Abel quase saíam do lugar.
De repente, deu um estalo na cuca da Inspetora:
— Achei! Achei! A música que ouvimos no porão é a mesma do
enigma que dona Tuluca nos ensinou!
— Essa música foi compacta por titio Conegundes - afirmou Abel
mais atrapalhado ainda.
— Como eram as palavras, mesmo?
Abel fechou os olhos e cantou:

Um e dois - um empurrão;
O que vem não vai voltar.
Se você entende, ou não,
Lá eu volto pra ficar!

Mal ele terminou, a Inspetora, empolgada, prosseguiu:


— Escute, Abel: a Bortolina estava sentada na poltrona verde da
sala e caiu, por um alçapão, no porão dos móveis. Procurando escapar,
ela foi batendo pelas paredes até que aconteceu uma coisa estranha: a
parede girou, prendendo-a em uma câmara secreta... foi Malu que, por
acaso, conseguiu descobrir como abrir essa câmara: bateu duas vezes
e deu um empurrão...
— E daí? - perguntou Abel com a mesmíssima cara de tonto.
— Ora, Abel! - disse a Inspetora aflita — você não entende? É o
primeiro verso do enigma! "Um, dois, um empurrão!" — foi assim que
abrimos a passagem secreta da câmara secreta!
Abel quase desmaiou. A Inspetora atrapalhou-se:
— O que está acontecendo, Abel? Você está com uma cara!
— Eu acho que... eu acho que... esse negócio de câmara secreta é
o túmulo de titio Conegundes!
— COMO?
— Sim, ninguém sabe exatamente onde ele foi enterrado.
Desconfiávamos que teria sido em um dos porões do castelo, mas
nunca descobrimos nenhuma pista — menos ainda, no porão dos
móveis!
Aí, foi a vez de a Inspetora arrepiar-se.
— O senhor quer dizer que a Bortolina...
Ele fez um movimento afirmativo.
— Eu acho que ela descobriu, e ficou trancadíssima no túmulo do
fantasma!
A Inspetora sentiu o coração batendo pela emoção da descoberta.
— Isso significa que, se a Bortolina entrou...
— O... O FANTASMA SAIU - disse Abel confirmando o que a
Inspetora já tinha certeza. — Ou seja... o fantasma de titio Conegundes
foi libertado por um simples acaso!
A Inspetora vibrou:
— Isso mesmo, Abel! "O que vem, não vai voltar" - isso significa
exatamente o fantasma! "Lá eu volto pra ficar.” Ficar onde?
— No castelo, lógico! Uma vez libertado, do próprio túmulo, titio
Conegundes ficará para sempre assombrando o Castelo do Morro. Isso
significa que, a partir de ontem... o Castelo do Morro tem um fantasma
de verdade! Então, o enigma era esse! Decerto, antes de morrer, o
próprio tio Conegundes fez a trova e a canção, na certeza que, no futuro,
alguém a decifrasse e lhe desse a liberdade. No entanto, a libertação
ocorreu por um simples acaso e, mais uma vez, a Bortolina teve alguma
coisa a ver com a descoberta! Isso significa que, o que nós vimos, então,
no porão dos móveis....
— Teria realmente sido titio Conegundes dando-lhe as boas-
vindas! - concluiu Abel. — Só que uma coisa nisso tudo me deixa
desapontado.
— O que Abel?
— O fato de Sibila e eu termos passado 45 anos aperfeiçoando
nosso número de fantasma e, justamente agora, aparece um fantasma
de verdade! Isso é para desencorajar qualquer cristão!
— Não acho - propôs a Inspetora. - Um dia, quem sabe, vocês e o
fantasma entram em um acordo e alternam os dias de "shows"? Assim,
vocês “trabalham" durante uma semana, e o fantasma trabalha na
seguinte. Com isso o Castelo do Morro sempre ficará cheio de hóspedes
que nunca terão certeza se estão vendo um fantasma de verdade... ou
um truque de cinema!
A Inspetora piscou. Abel esboçou um largo sorriso:
— Sabe de uma coisa? Eu acho que você tem razão!
A Inspetora deu um passo para trás.
— Obrigado, Inspetora. Você nos ajudou bastante. Tchau...
— Tchau, Abel! E mande sempre notícias para nós, certo?
— Certo...
O carro foi embora. Naquele momento, Malu desceu até ao pátio
onde a Inspetora continuava na mesma posição observando o carro
desaparecer na distância.
— Devo arquivar o caso do Fantasma Dançarino? - perguntou a
secretária.
A Inspetora franziu a testa:
— Sim, mas escreva: "à espera de comprovação futura".
— O que significa isso?
— Um dia você vai saber tudo, secretaria. Por enquanto, não posso
revelar mais nada. Como dizem os americanos, é segredo de guerra.
Agora, chega de falar nesse fantasma e vamos para dentro. Garanto
que a Bortolina deve estar inventando um mundo de mentiras. Mas,
afinal, como ela mesma disse, ela foi a única "mocinha" da história
desta vez, não é mesmo?
Elas entraram na casa, e a primeira coisa que ouviram foi a voz
esganiçada e aguda da Bortolina:
— Dessa vez, juro que foi verdade, eu não tive um pingo de medo!
Malu olhou para a Inspetora e deu uma risada.
— O que vai acontecer agora, Inspetora?
A Inspetora levou a mão ao emblema da coruja verde.
— Vamos, pelo menos, descansar uma semana. Depois a gente
parte para outra, tá?
E, atenciosas, continuaram ouvindo o rosário de mentiras que
Bortolina não se cansava de inventar.

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