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SÉRIE: A INSPETORA
VOLUME: 4
TÍTULO: AS LUZES NO MORRO DAS BORBOLETAS
AUTOR: SANTOS DE OLIVEIRA
CAPA: NOGUCHI
ILUSTRAÇÕES: TEIXEIRA MENDES
EDITORA: EDIOURO - TECNOPLINT
ANO PUBLICAÇÃO: 1974
PREÇO DA EDIÇÃO:
PÁGINAS: 172

SCANS E TRATAMENTO: RÔMULO RANGEL


romulorangel@bol.com.br

DISPONIBILIZAÇÃO
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Bolsilivro-club@bol.com.br

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----------------------Santos de Oliveira--------------------

A Inspetora
E as Luzes no
Morro das Borboletas

Ilustrações:
Teixeira Mendes

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© EDITORA TECNOPLINT S.A. – 1974

Direitos autorais cedidos à Editora Tecnoplint Ltda.


Proibida a reprodução total ou parcial sob qualquer forma,
meio ou idioma no Brasil ou Exterior, sem prévia
autorização da titular

Todos os Personagens deste livro são fictícios.


Qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos
da vida real é mera coincidência.

HISTÓRIA ou ESTÓRIA?

As edições de Ouro e o Coquetel grafam a palavra


história e não estória por julgar a primeira forma mais
correta, conforme dicionários mais categorizados, que
julgam a segunda forma imitação do inglês story, sem
correspondente com raízes em nossa língua.

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Malu acabou de escovar os dentes e olhou no espelho
para ver se estavam limpos. Estavam. De repente, a Malu
sentiu saudade de casa, da mãe Clara, do pai Cláudio, das
vizinhas, até da escola. Engraçado! Durante as aulas (Malu
estava no terceiro ano, tinha passado para o quarto), ela não
via a hora das férias começarem. Mas, depois, vieram os
exames, o Natal, o Ano-Bom — tudo, e entrou um janeiro
de chuva que não parava mais. Malu ficou tão irritada que
pai Cláudio teve uma idéia:
— Acho que você deveria sair um pouco, Maria de
Lourdes. Você não gostaria de ir passear na fazenda de tia
Aurélia?
Malu quase explodiu de alegria. Tia Aurélia, irmã de
mãe Clara, era superbacana, divertida, e o marido dela, o tio
Clóvis, tinha comprado uma fazenda grande que ficava no
interior. Malu pegou fogo, mãe Clara arrumou as malas e
não parou de dar conselhos. Quando o Opala branco estava
esperando Malu, ainda à porta, mãe Clara despejou as
últimas recomendações:
— Malu, a Tatá — a Eloísa, filhinha de tia Aurélia — é
muito inteligente e educada. Ela gosta de brincar de
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detetive; por isso, o apelido dela é Inspetora. Espero que
você não crie caso com a prima...
Embora Malu já tivesse ouvido falar muito da prima
Eloísa, Malu não a conhecia direito. Quando Malu a viu
pela primeira vez, Malu até sentiu um arrepio: Eloísa era da
mesma altura da Malu, mas tinha cabelo liso, repartido ao
meio, cara redonda e usava óculos. Desde o primeiro
minuto, Malu implicou com o silêncio da prima e ficou
pensando em um meio de pregar-lhe uma peça. Qual peça?
Talvez esborrachar-lhe no nariz o chicle que a Inspetora
ruminava..., porém a Inspetora não era nada boba e, sendo
bem mais esperta que Malu, acabou estourando o chicle-
bola direto no nariz da Malu. Que escândalo! Os tios
precisaram correr a um farmacêutico que, com éter, retirou
o chicle que se havia grudado até na sobrancelha da Malu.
Foi a partir daquela experiência que Malu passou a respeitar
Eloísa.
Com o passar dos dias e a convivência, as duas
tomaram-se boas amigas.
A fazenda do tio Clóvis era mesmo muito grande, e elas
gostavam de passear. Foi em um daqueles passeios que elas
ficaram sabendo que as galinhas dos colonos e as de Vó
Padroeira estavam sendo misteriosamente roubadas. Vó
Padroeira era uma velhinha muito boa que gostava de
contar histórias. Vó Padroeira tinha uma neta: a Bortolina.
Bortolina era uma pretinha mais alta que Malu e Eloísa,
embora só um ano mais velha que as primas. Bortolina
usava duas tranças espetadas para o ar, vivia resmungando
e, muito religiosa, pelas menores coisas invocava todos
santos do céu. Quando não tinha mais santos para chamar,
ela inventava alguns. Bortolina ajudava na cozinha da casa
da fazenda. Ajudar era modo de dizer, pois ela vivia
atrapalhando a Luanda, mulher do Sérgio, o administrador

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das terras do tio Clóvis. Menina mais medrosa que a
Bortolina, não havia. Era justamente por ser medrosa que
ela vivia brigando com o Zé Luís, o único filho da Luanda,
pois Zé Luís tinha grande prazer em assustar a Bortolina.
Zé Luís era um menino gordo e de cabelos queimados,
finos como seda. Por ter orelhas grandes e cabelos finos, as
orelhas dele viviam espetadas para fora, motivo pelo qual
ele tinha o apelido de Orelhão. Bortolina sabia disso; assim,
sempre que Orelhão lhe pregava um susto, ela abria a boca
do tamanho de um prato e ficava insultando de longe:
— Orelhão-burrão! Orelhão-burrão! Orelhão-burrão!
Foi justamente Bortolina quem contou do furto das
galinhas de Vó Padroeira. Segundo a velha confirmou, o
roubo era “arte” da mula-sem-cabeça. A notícia assanhou a
Inspetora que gostava de resolver enigmas. Foi desse modo
que nasceu a patota, isto é, o grupo dos quatro. Mas, como
toda patota para ser legal precisa ter nome e símbolo, Eloísa
escolheu como emblema a coruja. E explicou-se:
— Os xerifes usam estrelas, não usam? Nós usaremos
uma coruja porque a coruja é uma ave que presta atenção.
Como sou patriota, o verde é minha cor favorita...
A partir daquela data, o grupo ficou conhecido com o
nome de a Patota da Coruja de Papelão e, quando
“trabalhando”, cada qual deveria usar, presa à camisa, uma
coruja correspondente ao serviço que executava. Assim,
Eloísa nomeou-se a líder-inteligente do grupo, no cargo de
Inspetora. Malu — que escrevia bem — tornou-se a
Secretária encarregada de registrar os casos resolvidos e
arquivá-los. Malu ganhou a Coruja Amarela, pois é a cor
que vem após o verde, na bandeira brasileira. Orelhão — o
taludo, que tinha força de um bezerro — foi apontado para
o cargo de Oficial da Coruja Azul. Bortolina ficou mesmo
com a Coruja Branca e a função de Vigilante — só que,

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medrosa como era, Bortolina não conseguiria sequer vigiar
o voo de um mosquito!
Pois foi essa mesma patota que havia conseguido
resolver o caso da mula-sem-cabeça, o que os animou, mais
tarde, a também decifrar o enigma do fantasma dançarino
no castelo de Dona Tuluca, da fazenda vizinha.
Mas quem não gostava que a patota se metesse em
complicações era mesmo tia Aurélia. A coitada vivia
assustada porque, volta e meia, os meninos desapareciam, e
ela nunca conseguia prever em que tipo de aventura as
pestes haviam-se metido.
Foi justamente por haverem gostado daquelas
experiências, que os meninos começaram a procurar outras
aventuras. Afinal, as férias ficavam bem mais divertidas
quando eles tinham uma charada para decifrar!
Até que um dia alguém falou das estranhas luzes que
apareciam pelos lados do Morro das Borboletas... um
mistério que ninguém era capaz de explicar!
Ao saber do fato, mais que depressa Malu correu à
procura de Eloísa e contou-lhe tudo.
— Inspetora, nós temos de ir ao Morro das Borboletas
e descobrir o que significam essas luzes!
A Inspetora apertou os olhos e ficou pensando,
pensando...
— Sim... precisamos começar a estudar o caso... parece
interessante! Eu vou conferenciar com o Oficial José Luís e
a Vigilante Bortolina. Só depois de decidirmos os planos de
ataque é que conversaremos com mâmi... Precisamos ter
muito jeito para conseguir que ela nos autorize a ir até o
Morro das Borboletas... Mâmi é muito medrosa!
— E que desculpa daremos a tia Aurélia?

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— Diremos simplesmente que estamos pensando em
fazer um passeio! Afinal, ao dizermos isso, não estaremos
mentindo, estaremos?

***

Ainda olhando para os dentes refletidos no espelho,


Malu pensou rapidamente em tudo aquilo. Aí, como se
despertando, guardou a escova, enxugou o rosto e saiu
correndo para a biblioteca onde os três impacientes a
aguardavam.
— Onde você se meteu? — perguntou a Inspetora. —
Você está bem atrasada!
— Estava escovando os dentes...
— Mas não precisava demorar tanto, precisava? —
insistiu a Inspetora com um olhar congelante. — Nós
resolvemos que vamos “enfrentar” a mâmi e pedir
permissão para um passeio ao Morro das Borboletas. Hoje,
mâmi está de boa veia pois levantou cantando. Acho que é
o momento mais indicado. Todo mundo está pronto?
Cada um tinha uma expressão mais desanimada que o
outro. Mesmo assim, concordaram com uma afirmativa
engolida. Depois, marchando como procissão, eles
rumaram para a cozinha onde tia Aurélia estava
conversando com a Luanda.

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Tia Aurélia ouviu toda a explicação. Depois, ergueu o
dedo e olhou firme para os quatro:
— Não sei se devo deixar que vocês vão... É um pouco
longe, e fico preocupada. Afinal, vocês são pequenos...
A Inspetora apertou os olhos, como tinha costume de
fazer, toda vez que alguém duvidava de sua capacidade de
ser capaz de resolver problemas. Afinal, ela era uma
mocinha que sabia tomar conta dela mesma e também dos
companheiros. Foi uma cara tão feia que tia Aurélia se
desapontou. E disfarçou:
— Bem... não foi exatamente isso que eu quis dizer. Eu
quis dizer que o Morro das Borboletas fica bem longe, e
seria bom se houvesse um adulto para tomar conta de vocês.
Afinal, há perigos que exigem a força de um adulto!
Orelhão torceu o nariz.
— Que perigo pode ter? Já fui lá mais de dez vezes e
nunca vi nada de perigoso!
Tia Aurélia olhou para Luanda como se pedisse
socorro. Luanda continuava firme, de pé, à porta e,
segurando o avental, apenas ouvia. Mãos à cintura, Malu

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esperava o momento do aparte. Atrás de tudo, Bortolina
enfiava a cabeça pelos vãos, a fim de enxergar o que estava
acontecendo. Lá fora, o sol vinha brilhando havia dois dias,
e a terra estava livre dos detestáveis aguaceiros do começo
do ano. Entretanto, o pedido tinha deixado tia Aurélia
atrapalhadíssima. Seria bem preferível que tio Clóvis
estivesse em casa para decidir se seria ou não seria perigoso
concordar com a excursão do grupo.
Ela gaguejou:
— B-bem... eu queria dizer... são as cavernas! Sim, são
as cavernas das boçorocas! — respirou aliviada por
encontrar uma desculpa. — Elas são muito sombrias,
desconhecidas e perigosas. Não são, Luanda?
Luanda encolheu os ombros porque não sabia o que
responder. Luanda era muito bobona, não sabia mentir.
Aquela confirmação silenciosa foi o bastante para que tia
Aurélia insistisse:
— Além disso, há a tal areia movediça. Quem pisa
nessa areia, afunda e não há quem salve. E as aranhas,
então? Nem se fale! Cada uma deste tamanho, olhe! — e
mostrava palmos.
— Não faz mal — respondeu a Inspetora, friamente. —
Aqui, ninguém tem medo de aranha. De mais a mais, aranha
do tamanho que a senhora mostrou não é aranha. É
impossível aranha desse tamanho!
— Bem, talvez eu tenha exagerado, mas que aranha é
horrível, isso nem se discute. Lembram-se da cachorrinha
de Dona Elisa? Engoliu uma aranha, ficou uma semana em
hospital de cachorros, os médicos até operaram a
pobrezinha e, mesmo assim, não houve jeito: a coitadinha
morreu!
Apesar da cara de tristeza, tia Aurélia não convenceu
ninguém. Malu deu um passo à frente:

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— Cachorro é cachorro, e nós somos gente. Sabemos
tomar conta de nós, direitinho!
— É verdade, Dona Aurélia. Palavra! — insistiu
Orelhão muito sério.
Dona Aurélia teve vontade de gritar porque não havia
argumento adulto que conseguisse convencer aquelas
pestinhas. Dona Aurélia olhou firme para Malu — não
havia expressão mais condenadora que os olhos pretos e
desafiadores. Orelhão só faltava engolir tia Aurélia viva. A
Inspetora, imóvel como pedra, não movia um único
músculo do rosto; lá estava de braços cruzados, firme,
inexpressiva. Até a xereta da Bortolina (que costumava ser
mais ou menos obediente, mas depois daquela aventura do
castelo tinha ficado insuportável) resolveu dar palpite.
Meteu a cabeça no vão da porta e reclamou:
— Tenha dó, Dona Aurélia! Eu, que já fui “mocinha”
em uma aventura, sei o que estou dizendo! Pode deixar a
patota ir ao Morro das Borboletas que não tem perigo
nenhum! EU SEI!
Vendo-se incapaz de vencer pelo convencimento, tia
Aurélia perdeu a esportiva.
— Não adianta continuar teimando! Com medo ou sem
medo de aranha, com cara feia ou bonita, NINGUÉM vai
sozinho ao Morro das Borboletas. Já resolvi isso — insistiu
apontando para o próprio peito — e não há quem me faça
mudar de idéia. Agora, todo mundo para o quintal que estou
muito ocupada. Todos, todos para fora! E você também,
Bortolina, não adianta ficar aí com essa cara de boi sonso,
que cara feia não é garrucha. Todo mundo para fora!
Bortolina apanhou a vassoura e, toda ofendida,
marchou.

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— Nossa, que falta de educação! — reclamou.
Felizmente, tia Aurélia não ouviu.
Orelhão saiu atrás da Bortolina. Depois, Malu. A última
foi mesmo a Inspetora. Quando chegou à porta, voltou-se
para trás e, com olhar de pedra, enfrentou a mãe.
— Não adianta — confirmou tia Aurélia, que não
admitia contestações.
A voz da Inspetora saiu grave, baixa, acusadora:
— Até parece que a senhora não foi criança como nós!
— murmurou. — Vovó Ernestina conta que a senhora era
mestra em deixar todo o mundo de cabelos brancos!
Deu meia-volta e retirou-se pisando duro. Faltou pouco
para tia Aurélia arrebentar de raiva, porque ela não gostava
nem um pouco que vovó Ernestina contasse para Eloísa a
peste que Dona Aurélia havia sido quando criança.
A patota se retirou. Tia Aurélia se abanava:
— Viu só, Luanda? Pequenina desse tamanho, pensa
que é gente, que é dona do nariz e me enfrenta! Oh, essas
crianças de hoje... quem é que pode com elas?
Enquanto Dona Aurélia começava um discurso de meia
hora, os três foram sentar-se no banco de ferro do alpendre.
Era o banco que tinha pés de ferro em forma de garras de
leão. O encosto era a cara do leão com aquela enorme juba,
boca aberta, língua de fora. Malu, sentada à ponta, começou
a cutucar na língua do animal. Orelhão sentou-se na ponta
de lá. Silenciosa, a Inspetora sentou- se ao meio e cruzou os
braços. Não aguentando a curiosidade, a Bortolina
apareceu. Lógico, fingindo que varria, mas com uma
tremenda vontade de dar palpite. Ficou de longe espiando,
espiando.
O vento balançou a moita do jasmineiro cheio de
estrelas brancas. Um perfume gostoso e quente chegou até
eles. Estava um dia lindo! O sol, dourado, pintava a

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natureza com cores mais fortes. As chuvas tinham feito a
relva crescer verde como tapete. O mundo estava mesmo
encantadoramente limpo como se Dona Aurélia e Luanda
tivessem feito faxina e lavado tudo — tudinho.
— Por que será que os adultos são tão chatos? —
perguntou Malu, com um suspiro. — Que tem de errado a
gente ir ao Morro das Borboletas? Ah, se tia Aurélia
soubesse de tudo que nós já fizemos, garanto que ela cairia
dura, de costas, no chão.
— Acho que ela j á está desconfiada — respondeu a
Inspetora quebrando o silêncio. — Do contrário, não havia
motivo dela não consentir nesse passeio!
Orelhão preferia conservar a boca fechada.
— Quando eu crescer, não quero ser uma chata —
prosseguiu Malu. — Se eu tiver filhos, meus filhos vão
fazer tudo que eles quiserem. Pa-la-vra!
— Eu, também! — concordou toda assanhada a
Bortolina, mesmo lá de longe. — Ai, quero me casar, ter
muitos filhos. Quero vinte: dez nenezinhos e dez
nenezinhas. Já imaginaram, que gracinha, todos em um
berço comprido, coberto com cortinado de filó para
pernilongo não picar?
Os três olharam sérios para Bortolina. O olhar foi tão
congelante, que a Bortolina ficou de boca aberta, sem som
e com a vassoura no ar.
— É até pecado a gente ficar em casa em um dia tão
bonito assim! — afinal comentou o Orelhão. — Isto não é
justo!
A Inspetora descruzou os braços.
— Ei, esperem! Mamãe não nos deixou ir ao Morro das
Borboletas, mas, de outro lado, ela não nos proibiu de sair!
Orelhão arregalou os olhos.

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— É mesmo, gente! Nós não temos de ficar sentados
aqui no alpendre, chocando como galinhas. Podemos fazer
um passeio por perto!
— Por onde? — perguntou Malu torcendo o nariz. —
Vamos ver a criação de patos, outra vez? Ou vamos colher
ovos? Ah, tem dó, que passeios chatos!
Orelhão se pôs de pé.
— Nada disso. Vamos à Colônia do Lago e bater um
papo com o Joaquim Bentinho.
— E quem é esse Joaquim Bentinho? — perguntou a
Malu sem o menor interesse.
Bortolina se intrometeu:
— Eu sei, eu sei, deixe que eu conto: é o velho mais
mentiroso da paróquia. Ninguém acredita em nada que ele
diz!
— Ele não é mentiroso coisa nenhuma! —respondeu
Orelhão se avermelhando. — Ele já me contou muita coisa
que é verdade porque EU VI!
A negrinha encolheu os ombros:
— Foi isso que me disseram, uai.
— Vamos lá? — insistiu Orelhão. — Ele sabe contar
muitas histórias.
— Não sei se estou com vontade de ouvir histórias de
gente assim — respondeu Malu.
— Bem, eu estava pensando que podia ser que ele
contasse alguma coisa interessante que acabasse virando
uma aventura para nós — reforçou o Orelhão. — Não custa
tentar, custa? Afinal, estamos aqui sentados com cara de
bobos e sem fazer nada. O que você acha, Inspetora?
— Sou contra qualquer tipo de mentira — respondeu
ela. — Mas, em todo caso, não vamos lá para acreditar nas
mentiras dele. Vamos para nos divertir. A idéia parece
razoável!

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— Vai ser ótimo — observou Orelhão se acendendo. —
E, como eu disse, bem pode ser que ele nos conte alguma
coisa que se transforme em uma aventura!
A Inspetora se pôs de pé e ajeitou a fivelinha.
— Disso eu duvido. Não acredito que de boca de
mentiroso possa sair o que preste; porém, como nada temos
a fazer, não será pecado algum visitarmos o Joaquim
Bentinho...
— Oba, então vamos embora! — propôs Orelhão
correndo para a escada.
Do mesmo lugar, Bortolina não se conteve:
— Ei, e eu?
A Inspetora virou a cabeça para trás.
— De nós quatro, você é a única que ainda não terminou
sua obrigação. Você só poderá sair conosco depois de fazer
tudo que mamãe mandou.
Viraram as costas e afastaram-se. Bortolina ficou
branca de raiva. Mostrou a língua, fez careta, atirou longe a
vassoura, mas, porque ouviu a voz de Dona Aurélia, saiu
correndo para apanhar a vassoura e, enfiando o rabo entre
das pernas, continuou varrendo aquele alpendre sem fim.

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A fazenda ficava em um vale verde, tendo, para a
esquerda, o famoso Morro do Tatu-Bola que tinha esse
nome por ser arredondado como se fosse um tatu dormindo.
Para a direita, o vale se alongava até começar a ondular-se
em pequenas colinas que iam gradativamente aumentando
de tamanho para formar o Morro das Borboletas. Bem
adiante, no coração da baixada, havia um grande lago.
Segundo Vó Padroeira, naquele lago aconteciam coisas
estranhas — inclusive aparecia um estranho animal que
ninguém sabia ao certo se se tratava de peixe ou mamífero.
Um monstro horrível! Por isso, sempre que a Inspetora
passava por perto daquelas águas douradas de sol, acudia-
lhe a vontade de descobrir qual animal seria aquele. Foi por
lembrar-se da Vó Padroeira que ela se voltou para Malu:
— Secretária, registre que nós temos de dar uma busca
na Lagoa Branca...
— Por quê? — perguntou Malu. — Existe lá alguma
coisa que poderia se transformar em um “caso”?
— Não sei. É bem possível. Mas não será hoje,
Secretária. Estamos em férias, e eu já disse que preciso —

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pelo menos — de uma semana de folga. Não vamos tratar
do assunto, agora. Apenas anote em nossa folha de
serviço...
— Está bem — e Malu obedeceu.
A Colônia de Baixo ficava quase no centro desse vale,
onde a terra mais fértil fazia crescer muitas árvores de frutas
de todas as qualidades. Todas as casas tinham jardins com
muitas flores.
— A casa do Joaquim Bentinho é a terceira — apontou
Orelhão.
— A azul? — perguntou Malu forçando a vista.
— É. Ele gosta de tudo que é azul.
— Pensei que ele preferisse o vermelho... — observou
a Inspetora.
— Por quê?
— Porque vermelho é a cor do fogo, e os mentirosos
são apelidados de “queima-campos”, por aqui. Ora, se ele
vive “queimando”, só poderia gostar mesmo do vermelho!
Orelhão não respondeu. Eles continuaram caminhando
até chegarem diante da casa. Devido às chuvas, o azul
estava manchado, transparecendo os traços que o pintor
havia feito durante a caiação. Casa de duas janelas, porta ao
centro e uma roseira-menina desabando pencas de flores
cor-de-rosa em um jirau de bambu.
— Ele pode ser um mentiroso — cochichou Orelhão —
mas que ele gosta de flores, isso nem se discute!
Orelhão bateu palmas. Dali a pouco, ouviram uma voz
rouca:
— Quem é?
— Sou eu, o Orelhão! — respondeu Orelhão, que já
estava se acostumando com o apelido.
A porta se abriu, e apareceu um velho. Era baixo, meio
gordo, e tinha olhos escuros, muito vivos. Vestia camisa de

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xadrez de manga arregaçada. Imediatamente, Malu
observou que ele usava botinas muito grandes, pois
Joaquim Bentinho tinha pés desproporcionais para o
tamanho do corpo. Ao reconhecer Orelhão, o velho ergueu
as mãos e, muito satisfeito, convidou-os para entrar. Era
uma casa muito simples, assoalho de tábuas largas e umas
cadeiras de palha. Havia um comprido banco de madeira
encostado à parede. Sentando-se naquele banco, Joaquim
Bentinho cruzou as pernas, tirou um pedaço de fumo do
bolso, abriu o canivete e começou a preparar um cigarro de
palha.
— As meninas gostariam que o senhor contasse algum
“caso” engraçado, seu Joaquim...
— “Caso” engraçado? Hum... hum... — repetiu o velho
continuando a picar o fumo. — Para que vocês querem
ouvir um “caso” engraçado?
— Bem, acontece que a gente estava à toa em casa, e eu
disse que o senhor poderia ter uma porção de “casos” para
contar. Por isso...
Com toda calma do mundo, Joaquim Bentinho enrolou
o cigarro e o acendeu. Tragou a fumaça e olhou para as
meninas.
— Incomoda?
— Não, senhor! — respondeu a Inspetora
discretamente enfiando o nariz no vão da janela. Malu
tossiu. Joaquim Bentinho, entretanto, não percebeu que
Malu não gostava do cheiro de cigarro, pois ele já estava
parafusando para ver qual história contaria.
— Sim... sim... eu me lembro de um “caso” engraçado
que aconteceu comigo quando eu tinha 15 ou 16 anos... Foi
uma vez, quando encontrei uma raposa no mato, e a raposa
me contou que...
Orelhão arregalou os olhos:

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— Como? A raposa falou com o senhor?
— Sim, claro que falou! Ou vocês não acreditam em
mim?
O ar de descrédito da Inspetora era tão frio, que fez o
velho perder o entusiasmo.
— Ora, vamos deixar pra lá o que a raposa me disse! —
propôs ele encolhendo os ombros. — Acho que esse tipo de
“caso” só interessa mesmo para meninos de 4 ou 5 anos.
— Nós queremos um fato bacana.
— E verdadeiro — se possível — emendou a Inspetora
muito franca.
Joaquim Bentinho tirou outra baforada. Aí, a expressão
do rosto dele mudou. Realmente parecia estar-se
recordando de um acontecimento verdadeiro.
— Bem, se vocês não têm medo de “casos”
impressionantes, então eu sei um...
— Qual? — perguntaram os três ao mesmo tempo.
— Aconteceu comigo faz duas semanas, quando eu
voltava pra casa de caminhão.
— Qual caminhão?
— O caminhão do Nenê Lenheiro, da cidade. Eu tinha
ido buscar o caminhão vazio para, no dia seguinte, levar
cheio de lenha. O Chevrolezinho tem o nome de Gastão...
— Que nome!
— É...
— Conte o resto!
Joaquim Bentinho coçou o alto da cabeça.
— Bem... antes de sair da lenhadora, nós tomamos um
licorzinho de jabuticaba que é a coisa mais gostosa deste
mundo. Estava escurecendo. Eu me despedi da turma, entrei
no Gastão, dei partida e me mandei. O Gastão é uma lesma.

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Além disso — vocês sabem — para chegar na fazenda
existe uma subidona daquelas...
Ele tomou fôlego e prosseguiu:
— Assim que a cidade ficou para trás, comecei a
perceber que o Gastão estava manhoso. O motor rateava,
tossia, falhava — uma bomba! “Vou acabar dando uns
pontapés neste Gastão!”, foi o que eu pensei. Só que não
desci para chutar o Gastão porque eu estava com fome, com
vontade de tomar um banho e pular na cama. Vim vindo...
vim vindo... vim vindo...
Joaquim Bentinho bateu a cinza do cigarro em um
cinzeiro que não passava de xícara de cabo quebrado e só
depois de outra baforada que prosseguiu:
— Lá ia eu todo distraído quando, logo atrás de mim,
percebi dois faróis acesos e deste tamanhão!
Com as mãos, fez um círculo do tamanho de uma bacia
grande.
— Farol deste tamanho? — perguntou Malu meio
incrédula. — Os faróis que eu conheço são — quando muito
— do tamanho de pires...
— Eu também só conheço faróis do tamanho de pires
— confirmou Joaquim Bentinho — mas aqueles eram
mesmo deste tamanho — e voltou a mostrar o círculo. —
Eram tão brilhantes que quase fiquei cego!
— Se o senhor estava olhando para frente, e os faróis
estavam por trás, como foi que o senhor quase ficou cego?
— perguntou Orelhão.
— Pelo espelho retrovisor — respondeu o velho com
tanta rapidez que os meninos acharam que, ou Joaquim
Bentinho mentia muito depressa, ou, então, estaria mesmo
dizendo a verdade.
— E depois?

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— Bem, só pensei que podia ser um carro querendo me
ultrapassar. Por isso, eu me desviei para o acostamento sem
saber se pregava o pé no acelerador, ou parava. Eu não
estava gostando nada, nada daquele estranho farol
gigantesco...
— E o que o senhor resolveu?
— Bem, primeiro fiz o que qualquer pessoa faria: meti
o pé e procurei fugir. Gastão continuava horrível, tossia,
espirrava, falhava. Com isso, perdi velocidade. E a danada
luz estava ali, atrás, quase passando por cima de mim!
Malu ouvia de boca aberta. Orelhão espremia os olhos.
A Inspetora, imperturbável.
— Dei sinal para o carro passar.
— E... ele passou?
O rosto do Joaquim Bentinho se transformou:
— Huuuuuum! passou?! Quem é que sabe?
— Ué, o senhor não sabe?
— Não, não sei. O negócio foi impressionante porque
eu nem sei direito o que me aconteceu. Assim que dei o
sinal, senti que a luz se aproximava pela minha esquerda,
como se me quisesse engolir. Ouvi um barulho do alto, por
cima de minha cabeça — um barulho diferente da “batida”
de tudo quanto é motor que já ouvi funcionando. Ouvi,
também, uma espécie de grito ou choro — não sei — como
se alguém estivesse sofrendo muito. Fiquei apavorado,
arrepiadíssimo, fechei os olhos porque não aguentava mais
aquela luz! Quando abri os olhos, sabem o que aconteceu?
Os três fizeram um único movimento negativo.
Joaquim Bentinho deu um murro na mesa, o que fez os três
ouvintes pularem dos lugares.
— A LUZ TINHA SUMIDO!
— Sumido?
— Que jeito? Apagou?

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— Sei lá! A luz sumiu, não vi nada pela frente, nem
carro nenhum estava tentando me ultrapassar — nada, nada,
nadinha! O barulho do motor também tinha parado!
Os meninos se entreolharam.
— Vocês estão com cara de quem não acredita em mim
— falou o velho, aborrecido.
— Toda vez que conto esse “caso” para alguém, todos
me olham exatamente com essa cara de quem comeu e não
gostou... Por isso que não gosto de contar a verdade! Prefiro
mesmo as histórias de raposa e dos bichos...
— É mesmo muito impressionante, seu Joaquim
Bentinho! — confirmou a Inspetora.
— Mais ou menos onde foi que aconteceu?
— Pelas bandas do Morro das Borboletas.
— Parece um caso de assombração — murmurou
Orelhão, assustado.
— Não me fale em fantasma! — implorou Malu.
— O senhor não acha que poderia ter sido o licor de
jabuticaba? — sugeriu a Inspetora.
— É o que as pessoas me perguntam — ele explicou.
— Eu bebi um golinho e nada mais. Não costumo beber —
palavra de homem! Além disso, já fazia quase uma hora que
eu tinha bebido o licor, quando aconteceu o “caso”.
Portanto, menina, se é isso que você quer saber, eu
respondo: não foi bebedeira. Foi, sim, um fato que eu não
sei explicar. E foi muito feio. Enquanto eu viver, jamais me
esquecerei do grito que ouvi. Até hoje me arrepio, só em
pensar nisso. Credo, parecia que estavam matando alguém!
O velho apagou o cigarro. Malu quebrou o clima de
suspense.
— Seu Joaquim, eu não gosto muito de “caso” de
assombração... Eu preferia um caso engraçado. Adoro casos

— 26 —
de raposas... Será que o senhor não quer contar aquele só
para mim?
— Bem, o que eu contei não posso afirmar se foi um
caso de assombração. Foram vocês quem disseram isso.
Dou minha palavra que jamais voltarei a passar por aquela
estrada à noite e sozinho, nem que seja para eu ganhar um
milhão de cruzeiros, não teria coragem de fazer isso de
novo. Juro!
Ajeitando-se no banco, seu Joaquim Bentinho
desanuviou o rosto e deixou escapar um sorriso:
— Está bem, vamos ao caso da raposa. Pois, quando eu
tinha 15 ou 16 anos, uma vez eu saí de casa para ir até ao
monjolo a fim de buscar um pouco de quirera. Pois foi nesse
caminho que encontrei a raposa que conversou comigo...
Aí, todo mundo caiu na risada, porque todos sabiam que
o velho ia mesmo contar mentira pura.

— 27 —
Orelhão montou no cavalo e puxou as rédeas. Era um
belo cavalo cor de fogo que ainda não tinha três anos.
Orelhão gostava de Cacique e sempre o tratava com carinho
especial — inclusive chegando a roubar açúcar da cozinha
para dar ao companheiro. Também, bastava Orelhão ter de
ir a algum lugar, já sabia: enfiava os dois dedos na boca,
soltava o assobio comprido e, de onde quer que estivesse,
Cacique vinha correndo à procura de seu dono. Por isso, tio
Clóvis tinha mandado Orelhão selar o animal e ir até a
cidade para buscar uma encomenda na loja do Aguiar.
Orelhão saiu de manhãzinha, logo depois da ordenha.
Quando as meninas se levantaram e perguntaram para
Luanda onde estava o Oficial, atarefadíssima, Luanda
respondeu que ele havia ido à cidade.
— Se ele nos tivesse avisado que ia à cidade —
observou Malu aborrecida — a gente poderia ter ido, junto!
Você já pensou que legal, Eloísa?
— É que seu Clóvis resolveu isso hoje mesmo —
respondeu Luanda retirando o bule de cima do fogão. —
Nem deu tempo de falar com vocês...

— 28 —
Naquela manhã, a Inspetora não estava muito para
conversa. Preferiu se trancar na biblioteca e ficar lendo. Não
tendo com quem se distrair, Malu foi procurar a Bortolina
que estava na horta.
Quando Orelhão chegou à cidade, foi direto à loja do
Aguiar, apanhou a encomenda e saiu. Mas — como todo
menino — ele bem que deu umas voltinhas pelas ruas,
antes. Orelhão gostava da cidade, das casas, das pessoas e,
principalmente, do movimento dos carros — mesmo que
aquela fosse uma cidade pequena. Foi, ao lembrar-se que o
pai poderia dar uma “bronca” se demorasse muito, que
Orelhão resolveu passar pelo bar do Marcelino, — comprou
um sorvete e voltou a trote bem lento. Afinal, ele e o
Cacique estavam com preguiça.?
A estrada era estreita, cheia de curvas e não havia
árvores fazendo sombra. De vez em quando, um passarinho
voava baixo; outros dois, briguentos, vinham se bicando e
discutindo com tanta irritação que quase batiam na cabeça
do Cacique. Um deles cantou no arbusto enviesado — um
dos poucos traços de vegetação por ali. Tudo tão calmo que
Orelhão quase caiu da montaria por causa do cochilo.
Acordou assustado: um grupo de moleques estava fechando
a estrada.
— Ei, parado aí! — comandou o mais alto.
Orelhão arregalou os olhos.
— Quem são vocês?
O moleque tinha cara redonda, olhos caídos. As
pálpebras gordas se abriam até a metade, dando-lhe uma
engraçada expressão de sono. Ele segurava uma cachorra
preta que tinha um colar de bolas vermelhas e amarelas.
— Sou Dorminhocão e esta é Samanta, nossa rainha e
a única menina do grupo. Estes são meus companheiros:

— 29 —
Dinim, Tampinha, Boca de Sapo e Pega-Pega. Somos os
Invencíveis.
— Meu nome é Zé Luís. Moro na Fazenda dos Morros...
Dorminhocão se aproximou do Cacique e quis afagar-
lhe a cabeça, mas Cacique não gostava de estranhos e
zurrou. Enquanto isso, Orelhão examinou aqueles meninos
desconhecidos. Dinim era um mulato barrigudinho, cuja
camisa só tinha um botão, pouco abaixo do queixo. Usava
calção vermelho, desbotado. Tampinha — o loirinho sem
um dente de cima, que olhava com um olho aberto, outro
fechado. Boca de Sapo, gordo, de olhos pretos, tinha
mesmo uma boca que ia de orelha a orelha. Pega-Pega era
igual a esses moleques briguentos: cabelos de milho, nariz
vermelho e corpo cheio de curativos de mercurocromo.
— O que tem dentro dessa caixa? — perguntou
Dorminhocão.
— Não sei. Seu Clóvis mandou buscar uma encomenda
na loja do seu Aguiar e não me disse o que era.
Dorminhocão parecia muito desconfiado.
— Você sabe que este caminho está dentro da fazenda
do meu pai?
— Sei que é de outra fazenda. Não sabia que era de seu
pai. Nós sempre passamos por aqui.
— Garanto que você não paga pedágio. Paga?
— O que é pedágio?
— É uma taxa. Quando você vai ao Rio, por exemplo,
precisa pagar pedágio para transitar pelo asfalto.
— Ué, eu não sabia! — respondeu Orelhão coçando a
cabeça. — Nunca ninguém me disse desse tal pedágio e,
sempre que passei por aqui, não houve quem me cobrasse.
— Pois é — respondeu Dorminhocão — agora tem. É
uma lei nova. Pode ir revirando os bolsos e tirando um
cruzeiro.

— 30 —
— 31 —
— Eu não trouxe dinheiro! — respondeu Orelhão se
lembrando que a única moeda tinha sido para comprar o
sorvete no bar do Marcelino.
Dorminhocão não queria desculpa. Olhou para Pega-
Pega e fez um movimento com a cabeça. Pega-Pega
entendeu. Orelhão previu complicações e já fechou os
punhos.
— Veja se ele está mesmo dizendo a verdade, Pega-
Pega! — comandou Dorminhocão.
Pega-Pega deu uma risadinha e tomou posição de
ataque. Aí, Orelhão começou a ver estrelas:
— Ah, você quer uma briga, não é mesmo? Pois nós
vamos ter uma briguinha gostosa. Espere só um pouco!
Orelhão pulou do cavalo com a classe de um cowboy e
preparou-se para o ataque. Afastando-se para deixar o leito
da estrada livre, os meninos começaram a torcida. Pega-
Pega e Orelhão pareciam dois galos de briga se enfrentando
de cabeça baixa, um olhando nos olhos do outro. O primeiro
golpe partiu de Pega-Pega. O soco passou de raspão pois,
muito ágil, Orelhão se desviou e, com a direita, pregou
direto uma bolacha no nariz de Pega-Pega. O sangue
começou a escorrer, e a irritação de Pega-Pega aumentou.
Isso foi mau porque, quando uma pessoa se irrita, ela perde
a calma e não consegue pensar direito. Como consequência,
todos os demais golpes de Pega-Pega foram praticamente
perdidos porque, percebendo o nervosismo do adversário,
Orelhão se aproveitava para irritá-lo ainda mais.
Finalmente, os dois se agarraram e rolaram no chão, com
isso levantando uma nuvem de poeira. Orelhão levou
vantagem até o fim. Com um inesperado golpe, prendeu o
braço de Pega-Pega para trás, sentando-se nas costas do
inimigo. Quanto mais ele puxava o braço, mais Pega-Pega

— 32 —
gemia. Até que, não se aguentando mais, Pega-Pega botou
a boca no mundo:
— ÁGUA! — pediu com um palmo de língua para fora.
— Você vai me quebrar o braço!
Todo suado e sujo de terra, Orelhão soltou Pega-Pega e
olhou firme para Dorminhocão. Dorminhocão deu ordem
para Pega-Pega se levantar, mas foi um custo porque Pega-
Pega tinha levado uma surra pra valer. Esfregando o braço
e desapontadíssimo, Pega-Pega foi sentar-se do outro lado
da estrada, onde recuperou o fôlego.
— Está bem, seu cara de lua cheia — disse Orelhão
encostando o dedo na ponta do nariz de Dorminhocão —
você também quer tomar uma surra?
— Samanta não gosta de violência — respondeu o líder
dos Invencíveis coçando a cabeça da cachorra. — Samanta
não gosta de brigas.
— Então, por que você me provocou?
— Porque eu precisava saber se você é duro na queda e
merecia entrar para nossa patota.
Orelhão passou as costas da mão pelo nariz.
— Eu não pedi para entrar no seu grupo. Eu nem
conheço vocês!
— Meu pai comprou a fazenda há pouco tempo.
— Não, muito obrigado, mas não quero entrar em sua
patota.
— Por quê?
— Porque já faço parte de uma: sou o Oficial da Coruja
Azul na Patota da Inspetora Eloísa — disse orgulhoso,
enchendo o peito de ar. — Nós já resolvemos dois casos
importantíssimos!
Dorminhocão fez cara de quem comeu e não gostou.
— Quem é essa Inspetora Eloísa? Nunca ouvi falar
dela!

— 33 —
— É a filha de seu Clóvis, o dono da fazenda. Ela tem
um fabuloso cérebro eletrônico!
— Que casos foram esses?
Rapidamente, Orelhão contou o caso da mula-sem-
cabeça e o do fantasma dançarino.
Os Invencíveis ouviram a narrativa sem abrirem a boca.
Estavam admiradíssimos.
— Se isso é verdade — observou Dorminhocão afinal
— essa Inspetora é um gênio! Eu preciso conhecê-la!
— Se quiser, basta aparecer na fazenda. Chegando lá,
vou contar à Inspetora que vocês gostariam de ser
apresentados a ela.
— Sim, pode dizer isso — confirmou Dorminhocão. —
Quem sabe, um dia, nós poderemos trabalhar juntos?
Orelhão apanhou a caixa e montou.
— Quem sabe? A gente nunca prevê quando vai
precisar das pessoas, não é mesmo?
Olhou para Pega-Pega que continuava desapontado e de
cabeça baixa. Depois, sem dizer mais nada, reiniciou a
marcha interrompida. Ao chegar à curva, olhando para trás,
Orelhão viu que a estrada estava vazia — os meninos
haviam desaparecido como se por encanto.
“Que engraçado!”, pensou ele, coçando a cabeça. “E,
mais engraçado ainda, era aquela cachorra usando colar de
bolas vermelhas e amarelas. Eu nunca vi cachorro usando
colar, em minha vida!”
Continuou pensando nos Invencíveis até chegar à
fazenda. A primeira pessoa que viu foi Simão, da cocheira.
Orelhão deixou Cacique em uma boa sombra e foi depressa
apagar os vestígios da briga. Com cara lavada, entregou a
encomenda a seu Clóvis que, agradecido, lhe deu uma
moeda. Feliz da vida, Orelhão saiu pelo alpendre da frente.

— 34 —
Quando descia as escadas para o jardim, topou com Malu e
a Inspetora que estavam sentadas debaixo do jasmineiro.
— Você está com cara de quem andou descobrindo
alguma coisa... — observou a Inspetora olhando firme para
os olhos de Orelhão. — O que foi?
Não havia mesmo jeito! Por mais que Orelhão quisesse
enganar aquela esperta menina de óculos, não conseguia.
Então, sentando-se no banquinho ao lado delas, contou tudo
o que havia acontecido na viagem de volta. A Inspetora
mordeu os lábios porque era seu costume, enquanto ouvia
informações.
— Onde foi que aconteceu isso? — perguntou, por fim.
— Perto do Morro das Borboletas. Por que?
A Inspetora bateu os pezinhos e ficou pensando...
pensando...
— Por nada... por nada... Só para eu saber...

— 35 —
Tarde do dia seguinte. Tio Clóvis tinha acabado de
jantar e estava descansando na cadeira do papai. Nisso,
bateram à porta. Bortolina que estava tirando a mesa,
encolheu os ombros e pôs-se a assobiar.
— Faz de conta que eu não escutei...
Na cozinha, Luanda e tia Aurélia conversavam. Malu
tinha ido escovar os dentes, e a Inspetora procurava
sintonizar o televisor na novela. O sol do dia quente havia
secado todas poças d’água, estava uma noitinha gostosa e
cheia de grilos cantando. Longe, as pererecas na lagoa
iniciavam o concerto. De vez em quando, ouviam a voz de
Luanda:
— Já está na hora de uma chuvinha... As plantas
cresceram depressa e, se parar de chover de uma hora para
outra, seca tudo e adeus colheita!
Tomaram a bater à porta. Bortolina voltou a encolher os
ombros, fazendo de conta não ter ouvido.
— Quem será o chato?
Continuou tirando os pratos. A voz imperiosa de Dona
Aurélia veio do fundo da cozinha:

— 36 —
— Bortolina, estão batendo. Será que você não escuta,
criatura?
Bortolina fechou a cara e, toda irritada, atirou os pratos
em cima da mesa e foi atender. Era o Gentil do Vale, um
dos empregados da fazenda. Ele estava todo nervoso,
rodava o chapéu na mão e, por toda lei, queria falar com seu
Clóvis. Muito mal-educada, Bortolina fechou a porta no
nariz do homem com um: “Espere. Vou ver se ele atende...”
Pouco depois, seu Gentil estava na sala, conversando
particularmente com o dono da fazenda.
Enquanto isso, diante do televisor, a Inspetora
continuava lutando na tentativa de apanhar o canal da
novela. Foi quando Dona Aurélia entrou. Estava toda
perfumada.
— Conseguiu, Eloísa?
— Não, mâmi. Acho que saiu do ar...
— Outra vez? Mas será possível? Faz três dias que é
sempre a mesma coisa! Você experimentou direitinho?
— Já estou ficando cheia de experimentar!
— Isso não fica assim! — reclamou Dona Aurélia
marchando para o telefone. — Vou chamar o prefeito e
dizer-lhe poucas, porém boas! É um desaforo! Pagamos
uma taxa absurda para conservação dessa porcaria de torre
de retransmissão e, quando chega a hora da novela, é essa
penitência? Não, senhor!
E, nervosa, discou o número da casa do prefeito.
Dona Aurélia teve um bate-boca com Dona
Alexandrina, a mulher do prefeito. Foi quando tio Clóvis
apareceu. Vendo o televisor desligado, foi ligá-lo. Sentada
ao lado de Malu, a Inspetora fez um movimento negativo.
— Não adianta. Desligaram a torre. A mâmi está lá,
discutindo de novo com Dona Alexandrina, pápi...

— 37 —
Nem bem tinha acabado de dizer, Dona Aurélia
desligou o telefone. Abanou-se com a mão e, sentando-se,
procurou controlar-se:
— É um absurdo! Faz mais de dez anos que essa
porcaria de torre de retransmissão fica nesse chove-não-
molha! O prefeito resolveu aumentar o preço da taxa de
conservação dessa porcaria, paga aquele tonto do Fernandes
para tomar conta, e o que acontece? Dia sim, dia não,
queima a chave, queima fusível, queima tudo. Só não
queima a vergonha desses vigaristas! Oh, como eu me
arrependo de ter votado nesse sujeito!
Tio Clóvis se estendeu na poltrona e esperou que
passasse a onda de nervosismo da esposa. Só depois de
quase dez minutos de silêncio que ele abriu a boca.
— Sabe quem esteve aqui?
— Não. Quem?
— O Gentil...
— Pedir aumento ou dizer que vai abandonar o serviço?
— Nem um, nem outro. O homem está uma pilha de
nervos.
— Brigou com a mulher? — perguntou Dona Aurélia
secamente. — Eles vivem como cão e gato.

— Nada disso. Ele veio me contar um fato muito


estranho. Disse que, à noite retrasada, quando vinha no
caminhão do leite, ele viu umas estranhas luzes vermelhas
brilhando no meio do campo. Davam impressão de um
edifício de três andares, todo iluminado. Um vermelho-
vivo, frio, esquisito. Ele disse mais que o motor do
caminhão começou a ratear, quase parou. Assustadíssimo,
o Gentil quis fugir. Quando já estava bem distante da luz,
olhou para trás e viu uma coisa mais impressionante, ainda:
a luz simplesmente se apagou... e ele não viu mais nada!

— 38 —
Lembrando-se do “caso” do Joaquim Bentinho, a
Inspetora e Malu se entreolharam. O velho também tinha
falado mais ou menos a mesma coisa!
— Esquisito! — comentou Dona Aurélia. — Estou toda
arrepiada! O que poderia ter sido, Clóvis?
— Quem é que sabe?
— Acho que você precisa tomar uma providência e
procurar saber! Pode não ser nada, mas pode ser alguma
coisa ruim, sabe Deus!
— Como posso tomar providência, Aurélia?
— Não sei, ora essa! Talvez ir à polícia, pedir a ajuda
deles e, se preciso, alertar os órgãos de segurança nacional.
Tio Clóvis se levantou e foi até a janela.
— Acho que não é caso de perigo nacional nem
calamidade pública. Acho melhor esperarmos...
— Oh, você é mesmo o homem dos panos quentes! —
reclamou Dona Aurélia também se levantando. — O Jorge,
o Manuel e o Pedro também já vieram dizer que têm ouvido
tiros e encontrado carcaças de animais mortos por aí.
Apesar dos avisos, você nunca toma providências e
simplesmente espera mais um pouco. Isso me deixa
nervosa, sabe? Muito nervosa!
Dona Aurélia foi até ao televisor e ligou. Entrou o som.
Dali a pouco, a imagem do final da novela iluminava a tela.
Então, eles calaram a boca porque novela é sempre a mesma
lorota, mesmo que você perca quase todo o capítulo, nada
de extraordinário aconteceu e, pelo finzinho, você é capaz
de avaliar tudo que passou durante os minutos a que você
não assistiu.

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Aquela noite, Malu e a Inspetora não conseguiram
pegar no sono porque as duas estavam muito elétricas.
— Já sei o que você está pensando — comentou a
Inspetora deitada e com as mãos cruzadas na barriga, como
era do costume dela — que nós temos de dar um jeito e
descobrir o que estará acontecendo por aí...
Malu sentou-se na cama e olhou firme para a prima.
— Será que você andou lendo meu pensamento?
— Não. Eu estava lendo os meus próprios. Também
fiquei muito curiosa com esse negócio de luzes...
— O que você acha que pode ser, Eloísa?
— Não gosto de julgar sem ter os fatos. Você acredita
em disco voador?
Malu descorou.
— Meu Deus! Você está pensando que pode ser...
— Não estou pensando nada. Apenas fiz uma pergunta.
Os jornais e as revistas vivem noticiando incríveis fatos a
respeito dos discos voadores. Há quem jure já haver,
inclusive, viajado nos tais discos. Há fotografias... Os

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americanos têm um sistema organizado especialmente para
estudar esse negócio de discos voadores... há filmes na
televisão... há uma literatura inteira que se dedica a isso:
Objetos Voadores Não Identificados... Segundo certos
estudiosos, os discos voadores são velhíssimos e já teriam
existido muito antes do Brasil haver sido descoberto. Já
imaginou? Os mapas antigos mostravam tão perfeitos os
contornos dos continentes que só poderiam ter sido
desenhados por pessoas que tivessem visto a Terra de um
ponto muito alto, lá no céu. Há desenhos em cavernas,
inscrições em pedras que também mostram a presença de
estranhos seres usando capacetes e viajando em aparelhos
voadores que expeliam fogo pela cauda... Uma vez, meu
professor disse que o profeta Elias — aquele que subiu para
o céu em um carro de fogo — teria subido, sim, em um
disco voador... Isso está na Bíblia!
Malu, fascinada, nem piscava.
— Nossa! Imagine que seja mesmo um disco voador...
Já pensou, Eloísa, se a gente encontrasse um disco voador
e pudéssemos falar com seus tripulantes? Nós ficaríamos
célebres da noite para o dia. Seria legal à beça, você não
acha?
— Sim, seria...
— Então, por que você não fica tão entusiasmada como
eu?
— Porque não é tão simples quanto você pensa. Afinal,
faz mais de mil anos que os discos andam rondando a Terra,
e ninguém jamais conseguiu tornar-se amigo deles!
— Você mesma não disse que muitos já viajaram em
discos e tornaram-se amigos deles?
— Bem, as revistas publicaram fotografias e
entrevistas, mas quem prova que as declarações dessas
pessoas são verdadeiras?

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Malu perdeu o entusiasmo. Voltou a estender-se na
cama e imitou a prima, cruzando a mão em cima da barriga.
— É... as coisas não são como a gente quer...
A Inspetora ficou em silêncio. O vento agitou as árvores
ao lado da janela, e o farfalhar parecia chuva. As vidraças
estavam descidas. Por causa do calor, tinham deixado a
folha aberta para entrar a brisa da noite. Dava para verem
um pedaço de céu pontilhado com milhares de estrelas
miúdas e cintilantes.
— Amanhã vou procurar saber em que lugar seu Gentil
viu a tal luz vermelha. Vai ser um modo de começarmos,
porque todos os casos precisam ter um ponto de partida...
— Então, quer dizer que nós vamos começar outra vez?
— perguntou a Malu tomando a sentar-se.
— Acho que sim. Mas é melhor você não ficar muito
acesa porque, se a mâmi farejar que nós estamos querendo
nos meter com seres de outro planeta, você bem pode
imaginar o que ela seria capaz de fazer, não? Se para irmos
até o Morro das Borboletas ela ficou com medo da areia
movediça e das aranhas, sou capaz de prever o espetáculo
que ela vai fazer se souber que estamos pretendendo nos
meter com... discos voadores!
Malu fechou a boca. O coração disparava de alegria.
Aquela noite ela só sonhou com uma coisa: que estava
subindo para o céu em um carro de fogo, igualzinho ao
profeta Elias.

— 43 —
— Se você quiser ir com a gente, tem de falar!
Bortolina mordia o dedo pois estava perdida na
indecisão. À direita, Malu. À esquerda, a Inspetora. Ambas
com olhares de pedra e acusadores.
— E se eu não falar?
— Não vai conosco.
— Vai ser bacana?
— Lindo de morrer. O bailado das borboletas é a coisa
mais inédita do mundo.
— Não tem mula-sem-cabeça?
— Nem fantasmas. Nada, nada. E, se você usar a
cabeça, pode muito bem ser a mocinha, outra vez...
Bortolina acabou confirmando com um movimento
rápido de cabeça.
Está bem. Eu falo. Vocês esperem aqui.
A Bortolina virava nos pés, quando o Orelhão chegou.
É que, durante a véspera a Inspetora tinha “bolado” um
plano que lhes permitisse dar uma volta pela fazenda, sem
que Dona Aurélia “desse a bronca”. É que, tendo Malu e a
Inspetora ido consultar ao Gentil, chegaram à conclusão

— 44 —
que alguma coisa de extraordinário deveria estar
acontecendo no Morro das Borboletas, pois tinha sido por
lá que também o Gentil havia visto as estranhas luzes tão
altas como um prédio de três andares. Se Dona Aurélia
descobrisse a intenção deles, jamais permitiria que
fossem... exatamente no Morro das Borboletas! Então, a
única saída tinha sido a Bortolina dar uma desculpa que iria
levar os meninos para visitar a tia dela — Dona Rosária do
Bico Preto — uma divertida viúva de mais de 100 quilos
que morava no fim da Colônia de Baixo. Tudo dependeria
da insistência de Bortolina: insistir, insistir, insistir até
Dona Aurélia ficar cheia e, para ver-se livre da negrinha,
dar o consentimento.
Dez minutos depois, toda assanhada, a Bortolina
chegava correndo e com o polegar direito para cima.
— Positivo, macacada, ela topou! Disse que é pra gente
sumir o quanto antes pois ela pode acabar se arrependendo
e não deixar mais!
— Oba, então vamos voando apanhar nosso material,
Malu — falou a Inspetora.
E as duas se esfumaçaram para a casa.
Poucos momentos após eles estavam juntos no terreiro
de café. Abrindo a famosa malinha, a Inspetora distribuiu
os emblemas que orgulhosamente foram colocados nos
lugares de destaque. A única a dar um passo para trás foi a
Bortolina.
— Uai, pra que a coruja? Não vai ser só um passeio em
casa de tia Rosária e ver as borboletas dançando?
A Inspetora mordeu os lábios. Malu, que já estava
ficando mais esperta, foi quem salvou a situação.
— É que nós queremos fazer uma surpresa para Tia
Rosária, Bortolina. Enfim, ela pode bem gostar de ver
nossas corujinhas, não? Com elas, nós ficamos mais legal!

— 45 —
— 46 —
Embora desconfiada, a Bortolina acabou prendendo a
coruja branca na blusa.
Depois, em fila, os quatro começaram a descer para a
colônia. Andaram quase uma hora porque a colônia não era
perto. Mas, ao chegarem à encruzilhada, em vez de
descerem em direção à casa de Tia Rosária, eles
prosseguiram a trilha que Bortolina sabia ser a trilha para o
Morro das Borboletas. Aí, a Bortolina empacou:
— Ei... alguma coisa está errada. Essa não é a direção!
Vocês disseram que primeiro a gente ia visitar Tia Rosária
e, depois, iríamos até ao lago para ver o bailado das
borboletas!
Os meninos se entreolharam. Foi a vez da Inspetora
inventar uma desculpa:
— Bortolina, querida, nós temos uma surpresa para
você...
— Qual surpresa? — perguntou ela já querendo
antecipar uma crise.
— É que o bailado das borboletas não fica no lago, mas,
sim, no Morro das Borboletas!
A negrinha deu um passo para trás.
— Virgem Maria, lá tem aranha! Ouvi a Dona Aurélia
dizer!
— E você, toda intrometida, xereteou dizendo que não
tinha perigo nenhum, lá! — observou o Orelhão perdendo
a paciência.
— É que eu não sabia desse negócio de aranha...
— Oh, você é muito boba! Não vê que mamãe inventou
isso só para meter medo na gente?
— É?
— Claro que é! Vamos depressa, Bortolina, que não
temos tempo a perder! Se chegarmos atrasados, as

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borboletas terão ido dormir! Elas são muito preguiçosas e,
depois do almoço, tiram as asas e dormem.
— Por isso que elas viram lagarta?
— É, sim.
Bortolina novamente se acendeu.
— Então, vamos depressa. Deixa a Tia Rosária pra lá.
Estou louquinha para assistir ao bailado das borboletas
amarelas...
A Inspetora piscou para Malu, e Orelhão escondeu a
boca para não rir na cara de Bortolina. Então, alegremente,
eles prosseguiram na caminhada.
O Morro das Borboletas era um bocado longe. Não
tinha sido fácil vencer a subida cheia de eucaliptos, mas, em
compensação, a vista lá do topo era a coisa mais linda do
mundo! Ao longe, as duas colônias pareciam casas de
brinquedo e, refletindo-se ao sol, a lagoa faiscava o vaivém
das ondas. Eles se assentaram e abriram os lanches que
Malu tinha trazido dentro de uma cestinha. Os quatro
comeram rápido e em silêncio porque estavam morrendo de
fome. Depois de haverem comido tudo, a Bortolina ficou de
pé e olhou a toda volta.
— Bem, pessoal, agora toca a procurar as borboletas.
Até agora não vi nenhuma!
— É que elas moram do outro lado do morro — arriscou
o Orelhão. — Precisamos ir até lá.
Dobraram os guardanapos, fecharam a cestinha, e
Orelhão amarrou-a às próprias costas como se fosse
mochila. Caminharam pelo topo do morro até atingirem a
descida do lado oposto. Ali, a vista era bem diferente
porque, em vez da encosta terminar suave e verdejante,
terminava, reta, abrupta, cortada e aguda como um
precipício. No fundo, um valo comprido, silencioso, cheio
de arbustos de folhagens duras como couro. Esses valos

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com bordas, mostrando camadas de diferentes cores de
terras superpostas, eram conhecidos como boçorocas, uma
palavra indígena que significa buracão. São valos naturais
em cujo leito geralmente corre um riacho espraiado em
areia. A corredeira constante e natural das águas vai
lentamente cavando mais fundo o valo. Vendo aquele
sinistro lugar silencioso, Bortolina estacou:
— Jesus, Ave Maria, não vão me dizer que o negócio é
lá embaixo...
— É, sim, Bortolina, é. Será possível que depois de tudo
o que você fez no castelo, você vai ter medo de descer
naquele valo?
Atingida na vaidade pessoal, Bortolina procurou se
dominar.
— Bem... não é questão de medo! É que... é que... é que
me parece tão perigoso descer por essas rampas...
— Não há perigo algum — assegurou Orelhão. —
Conheço o caminho como a palma da minha mão e, se
formos com cuidado, não acontecerá nada. O importante é
ver onde eu piso e fecharem o bico.
Improvisando outra fila, começaram a descer. Não era
fácil pois o terreno arenoso se desfazia e, de vez em quando,
grandes torrões desmoronavam. As plantas eram feias,
escuras e raquíticas. Eles gastaram um bocado de tempo até
atingirem uma espécie de plataforma de chão liso como
sabão. Havia um arbusto com bagas vermelhas. Dali
podiam descortinar todo espetáculo do fundo da grota que
não era tão feio quanto visto lá de cima, do topo do Morro
das Borboletas. O riacho espraiado aparecia aqui, ali, por
entre as folhagens, e as aberturas das grutas eram pontos
escuros e esparsos encravados por entre arbustos floridos de
pencas roxas e cor-de-rosa.

— 49 —
— Onde estão as minhas borboletas? — perguntou a
Bortolina perdendo a paciência. — Eu estou achando este
passeio besta e chato. Não é melhor a gente voltar para
casa?
— Orelhão, você acha que as borboletas entraram em
férias? — perguntou a Malu com toda seriedade do mundo.
Orelhão coçou a cabeça e entendeu o que a Malu estava
querendo dizer.
— Não sei, não...
A Bortolina ergueu o dedo.
— É, vocês não me enganam, não! Nunca ouvi dizer
que as borboletas entrassem em férias porque elas não vão
à escola. Nem nunca ouvi dizer que elas tiram as asas para
virar lagartas! Eu estou achando que vocês vieram aqui pra
fazer alguma coisa errada, alguma coisa que Dona Aurélia
não gostaria, e agora ficam aí, procurando passar melado
em minha boca...
— Se você é tão medrosa, pode ficar aqui, mas nós
vamos descer ao fundo daquela caverna! — sentenciou a
Inspetora, irritada.
Com isso, a Bortolina perdeu a esportiva. Fincou as
mãos na cintura e empacou:
— Eu sabia! Desde que nós saímos de casa, eu já devia
ter imaginado! Quando vocês não quiseram ir à casa de Tia
Rosária, eu já deveria ter entendido! Toda vez que acontece
alguma coisa errada, vocês me empurram para o bolo. Mas
querem saber de uma coisa? Desta vez eu não caio no conto!
Vou voltar para casa e contar para Dona Aurélia tudinho
que vocês estão fazendo!
— Vai, linguaruda, vai correndo!
— Vou mesmo, uai!
Bortolina girou nos pés e começou a escalar o caminho
da volta. Orelhão puxou Malu pelo braço.

— 50 —
— Meu Deus, ela vai mesmo!
— E, se ela chegar em casa e puser a boca no trombone,
vai ser aquele tempo-quente! — acrescentou Malu. — O
que você acha, Inspetora?
A Inspetora piscou os olhinhos frios.
— Acho que devemos prosseguir; do contrário, nunca
chegaremos lá.
— E a Bortolina?
— É uma medrosa. Daqui a pouco ela estará correndo
atrás de nós... Ela tem medo até da própria sombra. Você
acha que ela vai ter coragem de voltar sozinha para casa?
Fez uma pausa e olhou para os companheiros.
— Vamos continuar?
— Sim, vamos...
A Inspetora passou pelo arbusto de pencas roxas.
Depois, a Malu. Quando foi a vez do Orelhão,
desastradamente, ele esbarrou em um galho, e uma escura
nuvem de marimbondos caiu em cima dos três.
— CORRA, GENTE, CORRA! — gritou a Inspetora
escorregando pela encosta abaixo sem se preocupar com o
modo de descer.
Lá do alto, a Bortolina escutou a gritaria. A Bortolina
caiu na risada. Os amigos sumiam no fundo da boçoroca. A
Bortolina continuava rindo e achando bem feito, quando um
intrometido marimbondo grudou-lhe na ponta da orelha.
Gritando de dor, a negrinha saiu ventando pela estrada a
fora e, na corrida, nem viu por onde estava pisando.

— 51 —
— Minha Nossa Senhora Aparecida! Meu São
Benedito! Meu São Dimas! Onde eu fui me meter, ai me
acuda! — e Bortolina procurava tirar os carrapichos
grudados no vestido. A corrida não tinha sido moleza. A
Bortolina estava com a língua de fora, cansada, nervosa,
com uma vontade deste tamanho de chorar como criança.
Olhou para frente, para trás, para os lados, não sabia qual
direção seguir. Não sabia nada — se prosseguia ou se
voltava para alcançar os companheiros. Mas, voltar como?
Os três haviam sumido no fundo da boçoroca, e as palavras
de Dona Aurélia continuavam se repetindo no cérebro da
Bortolina: “É perigoso por causa da areia movediça, das
aranhas, das cobras...” Bonito! As horas haviam passado,
entardecia, e ali estava a Bortolina completamente sozinha!
O que haveria de fazer quando a noite caísse? Só em pensar
na mula-sem-cabeça, arrepiava-se toda. Quando, então,
lembrava do fantasma de tio Conegundes, Bortolina ficava
com dois olhos do tamanho de pires. Adeus a “mocinha”
corajosa que se gabava de ser a única que havia resolvido o
“caso” no castelo mal-assombrado...! Ora, Bortolina não

— 52 —
passava de uma negrinha medrosa — medrosíssima da silva
que já estava quase morrendo de vontade de chorar!
Esticou o beiço, as primeiras lágrimas escorreram:
— Ai, meu Nosso Senhor dos Passos, me ajude... me
ajude, que eu prometo nunca mais ser desobediente... toda
vez que Dona Aurélia me mandar varrer o alpendre, juro
por Deus que eu varro!
Por estar com medo, os menores barulhos ao redor dela
pareciam prenúncios horríveis. Viu que eram passarinhos
voando por entre os galhos dos arbustos, ou, então, apenas
o vento brincando com as folhas. Ela sorria amarela e, dali
a pouco, estava outra vez branca de susto. Foi indo até ouvir
um barulho diferente...
— Tem alguém por p-p-p-p-peeeerto? — perguntou ao
sentir que o coração quase saltava pela boca.
Nada de resposta. Não havia mais vento, nem pássaros.
E o barulho se aproximava como se alguém estivesse
amassando folhas secas.
— T-tem a-a-alguém p-p-p-p-p-poooooor
peeeeeeeeeerto?
Um lagarto verde de quase meio metro passou por cima
do pé da Bortolina. Aí, sim, pegando fogo nas canelas, ela
voou a dois metros de altura e, como um avião a jato,
desapareceu.
Só parou quando estava sem fôlego. Sentou-se em uma
pedra e, bem à vontade, abriu o choreiro. Chorou, chorou,
chorou tanto que acabou dormindo. Acordou ao sentir uma
coisa fria e úmida encostada no joelho.
Uma coisa bigoduda. Bortolina caiu de costas e quase
morreu de susto, quando uma língua preta e quente lambeu-
lhe a cara. Só então ela compreendeu que era um cachorro.
Atrás do cachorro, cinco meninos.
— Quem é você? —perguntou o que tinha cara de sono.

— 53 —
— 54 —
Toda atrapalhada, ela se levantou. Foi quando percebeu
que o cachorro usava colar de bolas amarelas e vermelhas.
— Eu sou a Bortolina.
— O que você está fazendo, dormindo na estrada?
— Não estou dormindo! Estou é perdida e não sei voltar
para casa! — respondeu revirando o beiço e disposta a
recomeçar o choro.
— Essa deve ser uma Maria-Mole chorona — emendou
o mulatinho de barriga de fora e calça vermelha. — Como
todas as meninas, será que não sabe contar uma coisa sem
chorar? É por isso que eu não gosto de meninas, são todas
umas chatas-derretidas!
— Eu não sou chata, nem chorona! — reclamou a
Bortolina engolindo as lágrimas. — Acontece que estou
muito nervosa, só isso! Hoje, de manhã, eles me enganaram
dizendo que a gente ia ver o bailado das borboletas
amarelas...
— Eles quem?
— Foi a Inspetora que inventou tudo isso!
O menino franziu a testa.
— Inspetora? Que Inspetora?
— A Inspetora Eloísa e a turma: Orelhão, a Malu... Por
quê? Você está fazendo uma cara!... Eu disse alguma coisa
errada?
— São os tais da Patota da Coruja?
— É, sim. Como você sabe? Eu sou a Vigilante da
Coruja Branca, está vendo? Sou toda importantona... — e
mostrou a coruja que estava meio manchada de terra.
— Onde estão os outros?
Bortolina apontou para trás.
— No fundo daquela boçoroca horrível!
— Você sabe o que eles foram fazer lá?

— 55 —
— Mentiram que iam ver a tal dança das borboletas.
Mas pensam que sou boba? Sou nada! Dei no pé antes que
as coisas pretejassem como pretejaram no caso da mula-
sem-cabeça e no castelo do fantasma...
Os companheiros de Dorminhocão se entreolharam.
— Quer dizer que houve mesmo o caso da mula-sem-
cabeça? — perguntou ele, curioso.
Bortolina se apavorou toda:
— Claro que houve! e houve um caso horrível — o do
castelo do fantasma do tio Conegundes — que foi cem
vezes pior. Ai, que coisa horrível! Só que, nesse, eu fui a
mocinha.
— Que “mocinha”?
— “Mocinha” é a pessoa mais importante da história.
Quando é um menino, então ele é o “mocinho”.
Dorminhocão deixou a Bortolina a sós com suas
vaidades e foi cochichar com os companheiros.
— Pessoal... então, o menino não estava mentindo!
Existe mesmo a Patota da Coruja, e neste momento eles
devem estar se metendo em uma ótima aventura. Vocês não
acham que nós devemos ir atrás deles?
— Pra quê? — perguntou o Tampinha, que era o mais
medroso.
— Ora, se houver alguma coisa bacana, nós poderemos
estar juntos! — respondeu o Dinim de barriga de fora.
— Eu não gosto muito desse negócio de mula-sem-
cabeça ou fantasma — insistiu o
Tampinha. — Vocês não escutaram o que ela disse?
— Estou com uma vontade de brigar com alguém! —
disse Pega-Pega coçando a palma da mão esquerda. —
Acho que devemos ir!

— 56 —
— Vamos fazer uma votação — propôs Dorminhocão,
que era muito liberal. — Dinim, primeiro você: qual é seu
voto?
— Vamos!
— E você, Tampinha?
— Prefiro ficar...
— Boca de Sapo?
— Positivo!
— Pega-Pega?
— Claro que estamos nessa!
— Eu também quero ir — decidiu o líder. — Portando,
com o voto da Samanta somos cinco contra um. Está
decidido: nós vamos!
— A Samanta não abriu a boca! — reclamou Tampinha.
— Ela vota em meu candidato — respondeu
Dorminhocão. — Para isso que ela é nossa rainha.
— Não tem graça!
— Não enche. Agora, o que precisamos é controlar a
Bortolina para que ela nos mostre o caminho... Ela está
muito nervosa. Deixem que eu falo com ela!
Bortolina continuava no mesmo lugar, com os braços
para trás.
— Bortolina — disse Dorminhocão, que sabia elogiar
as pessoas — a meninada está feliz da vida porque, pela
primeira vez, nós temos a oportunidade de conhecer uma
“mocinha” em carne e osso!
— Ah, fui sim! — insistiu ela deixando-se levar. — E,
conforme a Inspetora mesma disse, foi o “caso” mais difícil
dela!
— Outro dia, fiquei conhecendo o Oficial José Luís, e
ele já me havia contado tudo isso a respeito de você...
— Nossa, o Orelhão contou?

— 57 —
— Contou. E disse mais: disse que você é a menina
mais legal do mundo!
— É... acho que sou mesmo...
— Sabe o que o Dinim contou?
— Não. O quê?
— Que esse negócio de dança das borboletas
amarelas... é verdade! Ele já viu!
Dinim chegou a dar um salto para desmentir, mas o
Dorminhocão fechou a cara, e o Dinim fechou o bico.
Bortolina se derreteu:
— Existe mesmo?
— Existe. Só que acontece à noite...
— Ora, mas a Inspetora falou que era depois do almoço,
antes das borboletas tirarem as asas...
— A Inspetora errou. Dinim já assistiu à dança, mas foi
à noite!
— Engraçado... sempre achei que as borboletas não
voavam à noite, quanto mais dançar! À noite, fica escuro.
Como é que elas enxergam?
— Elas pedem lampiãozinho emprestado para os
vagalumes — explicou o Boca de Sapo.
— E fazem o baile encantado — confirmou
Dorminhocão. — É a coisa mais linda que já se viu.
— E onde é o baile?
— Na boçoroca, claro!
— Naquele lugar horrível para onde a patota foi?
— É.
Bortolina armou escândalo:
— Ai, lá eu não volto! Não gosto daquilo! Minha Nossa
Senhora dos Remédios, aquilo é feio de doer. Não volto,
não volto!
Bortolina miava tanto que, pensando ser gato, Samanta
começou a latir.

— 58 —
— Está bem, você não volta. Então, fique aqui sozinha
e se vire. Nós vamos assistir à dança das borboletas. Vamos
embora, pessoal.
Começaram a andar. Bortolina continuava imóvel,
beiços caídos e tremendo.
— Não precisa se assustar se aparecer o lobisomem, viu
— preveniu Dorminhocão. — Se ouvir um assobio, já
sabe... E, se ele estiver com os dentes cheios de fiapos
vermelhos, tanto pior...
Reiniciaram a marcha. Antes de darem dez passos, a
Bortolina já estava atrás.
— Jesus, Ave Maria, sozinha não fico, não! Nem pra
ganhar dinheiro! Eu vou com vocês, mas vocês juram que
não vai me acontecer nada de ruim?
— Palavra de honra, Vigilante Bortolina! Nós, os
Invencíveis, prometemos tomar conta de você. Você será
tratada como se fosse a Samanta, isto é, exatamente como
tratamos nossa rainha!
Então, mais animada, Bortolina concordou.

— 59 —
Dorminhocão era um menino esperto. Havia muitas
pencas cor-de-rosa de campainha do campo florescendo nas
terras arenosas. Apanhando alguns cipós, Dorminhocão
entrelaçou um conjunto de cachos, improvisou um colar e o
ofereceu a Bortolina.
— Para que isso? — ela perguntou meio atrapalhada.
— O colar é o símbolo de nossa realeza. Veja, a
Samanta usa um colar de bolas vermelhas e amarelas. Já
que você também é rainha e não temos um colar de bolas
para oferecer...
Bortolina babou-se de gosto.
— Que lindo!
Os meninos se entreolharam e deram risada.
Obedecendo ao comando do chefe, ergueram os braços,
caíram de joelhos e cantaram:
— Ave, ave, Rainha Bortolina!
— Eu não sou ave, sou gente! — respondeu Bortolina
com ar cretino.

— 60 —
— Os antigos romanos diziam “ave” em vez de “salve”
— explicou Dorminhocão. — É assim que saudamos nossa
rainha Samanta...
— Oh, então, ave, ave, pessoal!
Entardecia. Pouco a pouco, o sol começava a deitar-se
atrás do morro. As sombras prolongavam silhuetas quando
eles atingiram o topo do Morro das Borboletas. Depois de
muito aperto, chegaram exatamente ao ponto onde a terra
era lisa como sabão, e onde Bortolina havia deixado os
companheiros.
— Eles desceram por ali—ela comandou.
Pega-Pega foi examinar o caminho.
— Cuidado que tem marimbondo! — advertiu a
Bortolina ainda sentindo a picada na ponta da orelha.
— Foi por aqui, sim, chefe — advertiu Pega-Pega. —
Estou vendo os sinais.
— Então, também podemos descer.
A rainha ficou branca de susto.
— Ei... não me digam que vocês vão descer lá!
— Claro que vamos! A dança das borboletas é nas
cavernas. Ou você espera que as borboletas venham dançar
aqui em cima?
Bortolina segurou o colar.
— Está muito escuro, lá embaixo. Além disso, começa
a escurecer...
O sol já estava afundado atrás da capoeira, pintando o
céu de alaranjado forte. Com isso, o fundo da boçoroca
estava escuro quase como noite.
— Já dissemos que as borboletas pedem os
lampiõezinhos dos vagalumes e clareiam tudo! — insistiu
Dinim.

— 61 —
— 62 —
— Que é isso, Majestade! Uma rainha não pode ser
covarde! Uma rainha precisa ter classe até para enfrentar a
morte, se for preciso. Você nunca ouviu falar de Maria
Stuart, a rainha da Escócia, que foi decapitada?
— Deca... o quê?
— Decapitada.
— O que é isso?
— Cortaram a cabeça dela...
— Ai, meu Deus do céu — berrou a Bortolina jogando
o colar de flores longe. — Eu não quero ser Maria Stuart
nenhuma! Quero continuar sendo a neta da Vó Padroeira, a
menina mais coitadinha da colônia! Esse negócio de ser
rainha não está me cheirando a boa coisa...
Apareciam as primeiras estrelas. Dorminhocão olhou
firme para os companheiros.
— Dinim, conte para ela onde estão as borboletas e que
elas estão fazendo agora.
Dinim engoliu seco.
— Bem, elas estão dentro das grutas... acendendo as
lanterninhas, acho.
Bortolina apertou os olhos como fazia a Inspetora.
— Acendendo lanterna, uma banana! EU NÂO DESÇO
NESSE BURACO NEM AMARRADA! Se vocês
teimarem, eu boto a boca no trombone até todo mundo ficar
surdo! Afinal, se eu sou uma rainha, eu posso dar ordens
que vocês são obrigados a me obedecer!
Samanta latiu. Dorminhocão estava irritadíssimo.
— Está bem, já que essa Majestade de meia-tigela está
aprontando escândalo, vamos modificar o esquema... Uns
vão explorar as cavernas, enquanto outros ficam aqui com
a rainha. Quem fica?
— Eu fico! — disse Tampinha erguendo a mão.

— 63 —
— Eu já sabia que você era um medroso! — respondeu
Dorminhocão. — Quem vai?
— Eu vou, chefe. Não tenho medo do escuro! — propôs
Pega-Pega dando um passo à frente.
— Nem eu — afirmou Dinim.
— Eu também não — insistiu Boca de Sapo.
Dorminhocão coçou a cabeça. Como líder, ele teria de
ser o sacrificado e ficar tomando conta daquela negrinha
medrosa.
— Está bem, vão vocês três. Nós ficamos aqui em cima,
esperando notícias. Mas, olhem lá: todo cuidado é pouco,
ouviram? Não vão muito longe por causa da areia
movediça. Caminhem sempre por terra firme e nunca no
leito do espraiado, a não ser que tenham certeza que ele é
seguro.
Os três fizeram continência e começaram a descer. Em
pouco tempo já se haviam confundido com a escuridão da
noite e os arbustos raquíticos. Já era praticamente noite e
começava a ventar frio.
— Bem — propôs Dorminhocão com vontade de socar
a cabeça da Bortolina — aqui estamos nós. O que Sua
Majestade vai querer, agora?
Bortolina sentou no chão, encostou-se no barranco e
pôs a Samanta no colo.
— Sua Majestade quer que todos fiquem pertinho de
Sua Majestade, porque Sua Majestade não gosta nem um
pouquinho do escuro!
Dorminhocão puxou umas folhas secas perto do tronco
do arbusto de bagas vermelhas, improvisou uma almofada
e sentou-se. Em silêncio, ficou olhando para o céu azul
pontilhado de estrelas.

— 64 —
Passou-se uma hora. Dorminhocão estava cansado de
ficar sentado e levantou-se. Inquieto com a demora dos
companheiros, evitava dar demonstrações, pois a Bortolina
bem seria capaz de aprontar outro escândalo. Uma hora era
demais!
Esperou outros quinze minutos. O luar clareava a terra.
Viu Bortolina dormindo com a cabeça na Samanta como se
Samanta fosse um travesseiro. Então, ele foi acordar o
Tampinha.
— Ei, Tampinha!
Tampinha se enrolou. Foi preciso Dorminhocão sacudi-
lo.
— Bonitos ajudantes eu tenho! — disse Dorminhocão
chateado. — Quando a gente pensa que eles estão vigiando,
estão dormindo como pedras!
Desistiu de acordar o Tampinha. Levantou-se. Olhou
para o céu. E ainda estava com olhar firme, quando viu a
luz vermelha, distante, acendendo, apagando, acendendo,
apagando. Dorminhocão tornou a esfregar os olhos: a luz

— 65 —
continuava lá, no mesmíssimo lugar. O que poderia ser
aquilo?
“Avião não é”, pensou. “Já vi aviões voando à noite, e
a luz caminha no espaço. Mas essa luz parece estar parada...
O que pode segurar uma luz parada, no céu?”
Forçou o ouvido. Não havia som. Dorminhocão
estremeceu:
— Será... um disco voador?
Nem respirou, com medo de despertar a Bortolina.
Ficou olhando, olhando. A luz continuava firme e no
mesmo lugar. De repente, a cor mudou para azul! E, de azul,
para verde!
— Meu Deus! Só pode ser mesmo um disco voador! —
concluiu, sentindo o coração disparando. — Se for verdade,
vamos curtir a maior aventura do século!
Não se contendo, Dorminhocão sacudiu os dois
companheiros.
— Vamos, vamos, acordem!
Bortolina fez um “Huuuuuum, o que que é?”, ajeitou-
se novamente em cima da Sa- manta. Tampinha não parava
de bocejar. Só entupiu a boca quando o chefe lhe deu um
safanão.
— Um disco voador!
Tampinha cortou o bocejo pela metade.
— O quê? Onde?
— Lá, veja!
A notícia fez a Bortolina arregalar os olhos.
Dorminhocão continuava apontando para o céu onde a luz
estava outra vez vermelha.
— Ela já ficou azul e verde — explicou.
Acabou de dizer, acendeu-se o azul e, em seguida, o
verde. Pouco depois, avermelhava- se pela terceira vez.
— O que estará acontecendo?

— 66 —
— 67 —
— Será que estão tentando comunicar alguma coisa?
— Para quem, bobo? Os tripulantes dos discos voadores
não fazem amizade conosco. Dizem que somos muito
burros e eles, muito inteligentes...
— Ouvi dizer que têm revólveres que disparam raios
que paralisam as pessoas.
— Meu Bom Jesus de Pirapora! — gemeu a Bortolina.
— Isso deve ser mil vezes pior que um fantasma!
— Veja, Dorminhocão! — mandou Tampinha
estendendo o dedo — a luz voltou ao azul, ao verde e ao
vermelho!
Aos poucos, a luz começou a mover-se e aumentar de
tamanho, como se o objeto se movesse para a direção deles.
Ao mesmo tempo, ouviram um estranho ronco.
— Deve ser um aviãozinho — observou a Bortolina,
aliviada. — Um aviãozinho bonitinho e de brinquedo, mais
nada...
— Avião não ronca assim.
— Nem voa devagar.
Bortolina abraçou a Samanta.
— Credo, vocês acham que pode mesmo •tri um d-d-d-
d-disco v-v-v-voador?
Pode...
E vem vindo em cima de nós?
O ruído do motor era sibilante como chicotadas
cortando o ar. Um facho de luz branca — mais forte que o
farol de automóvel — varreu a terra como se examinasse as
margens da boçoroca.
— Será que eles sabem que nós estamos aqui? —
perguntou o Tampinha começando a tremer.
Dorminhocão não respondeu. A luz caminhava devagar
em direção a eles.

— 68 —
— Vamos nos esconder, macacada! — comandou
Dorminhocão, achando que as coisas começavam a
pretejar.
Dito e feito, os dois se afundaram atrás de uma moita
folhuda. Bortolina, porém, tremendo e agarrada à Samanta,
não conseguia sair do lugar! Ela gaguejava sons sem
sentido, continuava de olhos firmes, virados para o céu, e o
facho de luz perigosamente se encaminhava para ela.
— Eles vão pegar a Bortolina! — falou Tampinha
tampando os olhos.
As orelhas de Dorminhocão queimavam. Teve vontade
de esmurrar o nariz daquela negrinha.
— Esconda-se, Bortolina! Esconda-se, Bortolina! —
gritou.
Mas qual, a Bortolina continuava imóvel. A luz se
aproximava. Achando tudo muito engraçado, Samanta
sacudia o rabo. Quando faltava quase um metro para a luz
atingir a Bortolina, Dorminhocão reuniu a coragem e voou
em cima da pretinha, jogando-a atrás de um arbusto. Bem a
tempo, a luz passou pertinho, pertinho, bem no dedão da
Bortolina. Aí, o barulho dos motores aumentou, aumentou
tanto que parecia estar caindo em cima deles. Paralisados
de sustos, eles fecharam os olhos, tamparam ou ouvidos e
não viram mais nada.

— 69 —
— ...e eles devem estar esperando a gente até agora! —
disse o Boca de Sapo terminando a narrativa.
Sentado em um canto, Pega-Pega tinha a cara mais feia
do mundo. Dinim ouvia sem piscar, sempre com a barriga
de fora. Orelhão coçou a cabeça. Malu e a Inspetora
continuavam sentadas, olhando, boca fechada e prestando
atenção. Onde eles estavam, não sabiam. Tudo havia
acontecido de um modo inesperado: Orelhão, Malu e a
Inspetora tinham caminhado pelo leito macio porém firme
do espraiado até que viram uma gruta, cuja entrada tinha
uma cortina de fitas de matéria plástica escondida com
galhos secos. Curiosamente e na ponta dos pés, eles se
aproximaram da entrada. Com a experiência adquirida
durante a caçada à mula-sem-cabeça, eles entraram na
caverna não pelo meio, porém encostados às laterais. Foram
indo... foram indo...até que, sem explicações, viram-se
levantados pelos ares. Estavam presos em uma rede como
se fossem peixes! De nada adiantou gritarem — como de
fato gritaram. A rede os apertava juntinhos, juntinhos,
quase a ponto de sufocá-los. Eles estavam suando e com

— 70 —
medo de morrer, quando a rede parou de apertar, deixando-
os completamente imobilizados. Não viram ninguém, mas
foram transportados para dentro daquela cela que mais
parecia uma caixa de isopor. Como se tratava de um
cubículo a prova de som, podiam gritar à vontade, que
ninguém viria socorrê-los. Quanto tempo eles ficaram
presos, não saberiam dizer — talvez duas ou três horas. Foi
quando a porta se abriu, e Dinim, Pega-Pega e Boca de Sapo
também foram atirados lá dentro.
— Quem nos prendeu deve ser marciano — observou
Orelhão com expressão assustada. — Isso não é coisa de
gente da Terra...
— Será que vai custar muito para o Dor- minhocão
descobrir a gente aqui? — perguntou Dinim coçando a
barriga.
— Ele precisa ser muito esperto — respondeu a Malu.
— Se fizer como nós e cair na rede como vocês três, adeus
viola! Acabará trancado nesta caixa de isopor, e estamos
todos perdidos!
— Precisamos dar um jeito de fugir! — rosnou Pega-
Pega, que a troco de nada perdia a paciência. Então,
começou a esmurrar o isopor. Conseguiu, quando muito,
arrancar uns pedaços e, com um último soco, bateu em uma
coisa tão dura, que começou a pular em uma perna só.
— Ai, ai, ai, ai, quebrei minha mão! Ai, ai, ai, ai!
Todos acudiram para examinar, menos a Inspetora que
continuava imperturbável em seu canto.
— Eu já disse que não adianta perdermos a cabeça!
Precisamos ir com calma!
— Você é uma porcaria de líder! — respondeu Pega-
Pega ainda pulando de dor. — Garanto que, se fosse o
Dorminhocão, já estaríamos livres há muito tempo. Não
gosto de menina mandando em mim!

— 71 —
— Não fale assim para a Inspetora! — rosnou Orelhão
erguendo os punhos.
— Deixe que ele fale o que quiser, porque ele não sabe
o que está falando — observou a Inspetora apertando os
olhos.
— Você tem pinta de inteligente — desafiou Pega-Pega
mais aliviado porque a dor estava passando. — Então,
vamos, prove! Por que em vez de ficar aí, sentada no canto
como uma coruja, você não faz alguma coisa? Estou
esperando!
— Quem fala muito, erra muito — respondeu a
Inspetora. — Estou ocupada, pensando. E, se você quer
mesmo sair daqui, cale essa boca, porque eu não consigo
me concentrar com esse barulho todo, ora essa!
— É sim, gente — concordou a Malu — para a gente
pensar, a gente precisa de silêncio.
Então, cada um sentou no canto e ficaram mudos como
peixes.

— 72 —
Quinze minutos depois, a Inspetora cochichou para o
Orelhão:
— Vamos aprontar uma briga aqui dentro...
— Por quê?
— Se eles estiverem nos ouvindo, eles virão nos
separar. Só assim teremos uma oportunidade de escapar.
— Conto para Pega-Pega?
— Nada disso. Ele é muito burro e não vai saber fingir.
Você faça o que puder. Nós ajudaremos...
Momentos depois, Orelhão começou a olhar feio para
Pega-Pega. Pega-Pega se irritou:
— Por que você está olhando tanto para mim? Nunca
me viu?
Imediatamente, fechou os punhos, apesar de estarem
doendo. Pega-Pega não via a hora de desforrar a surra que
tinha tomado.
— Olho quanto quero e não tenho satisfação a dar! O
olho é meu! — provocou Orelhão.
— Sabe que você é um chato?
— E você é uma galinha morta!

— 73 —
Pega-Pega deu um pulo:
— Repete!
— VOCÊ É UM COVARDÃO! — insistiu Orelhão
mostrando a língua. — Um galinha morta que tem medo de
apanhar! MEDO! ME- DÁO!
— Eu não tenho medo de coisa nenhuma, seu orelha de
elefante! E vou dar uma lição da qual você nunca mais vai
se esquecer!
Aí, fechou o tempo. Pega-Pega voou em cima de
Orelhão, e os dois começaram a rolar. Dinim e Boca de
Sapo torciam, batiam palmas e vibravam por Pega-Pega.
Quando pôde, Boca de Sapo deu um pontapé nos fundilhos
de Orelhão. Quando Malu viu aquilo, ela pulou direto nas
costas do Boca de Sapo. Boca de Sapo caiu, Malu ficou
andando a cavalo em cima dele. Vendo isso, Dinim pulou
nas costas de Malu, e a Inspetora voou sobre o Dinim. Foi
mesmo aquela briga feia! Eram sopapos, socos, gritaria.
Tanto berraram, tanto fizeram que, de repente, acendeu-se
uma luz vermelha na cela. Os briguentos não ligaram e
prosseguiram na pancadaria como se nada houvesse
acontecido. Dali a pouco, a porta se abriu e apareceu um
vulto vestindo uma estranha roupa brilhante. Na cabeça, ele
usava uma espécie de capacete com duas antenas. O
desconhecido apontava uma pistola prateada e diferente de
todas as espécies de armas que os meninos já haviam visto.
Quando Boca de Sapo deu de cara com a estranha figura,
Boca de Sapo ficou branco e sem voz. Aos poucos, a briga
foi acalmando: o Dinim parou, Malu e a Inspetora também.
Os últimos a se largarem foram Orelhão e Pega-Pega que já
estavam com meio metro de língua para fora. Estavam
sujos, cansados, rasgados. O desconhecido fez um gesto
com a arma indicando que eles marchassem para fora. Um
a um, eles foram saindo.

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— Será que ele é marciano? — perguntou a Malu com
o coração saltando violento.
Havia pouca claridade, e o sujeito não parecia estar para
brincadeiras. Por isso, os seis ficaram de bico fechado.
Percorreram um corredor comprido, escuro. O homem,
silencioso, atrás. A Inspetora foi observando que o corredor
se comunicava com outras cavernas, mas não pôde ver
dentro, porque tiras plásticas ali também improvisavam
cortinas. Caminhando mais um pouco, foram parar em uma
espécie de gruta com paredes internas brilhantes como
cristal. Um motor girava, e a brisa fazia as tiras de cortina
se movimentarem como se tivessem vida. Imediatamente, a
luz ficou alaranjada, e um painel semelhante ao de um avião
iluminou- se. Havia um televisor aceso, sem imagens. Do
ar, emanavam estáticas como se ouve nas ondas curtas. Era
como se alguém estivesse tentando sintonizar uma
emissora. De repente, uma voz grave, sinistra, irritada:
— Euq secov mereuq iuqa sues seuqelom soditemortni?
— É inglês? — perguntou Malu.
— Não...
— Será russo?
— Também não. Os russos têm uma língua dura, áspera
e, quando falam, parece que estão latindo...
— Acho que são marcianos — cochichou Orelhão,
olhando cç>m o rabo dos olhos para ver o que o
desconhecido com o revólver estava fazendo.
— Euq secov mereuq iuqa sues seuqelom soditemortni?
— insistiu a voz mais irritada, como se estivesse exigindo
uma resposta.
— Inspetora, ele quer que você fale alguma coisa! —
suplicou Malu morrendo de medo.

— 76 —
— Não! Não falo! — respondeu a Inspetora mordendo
os lábios. — Não falo enquanto eu não tiver certeza de uma
coisa...
A voz tornou a ameaçar:
— EUQ SECOV MEREUQ IUQA SUES
SEUQELOM SODITEMORTNI???
— Pelo amor de Deus, fale alguma coisa que ele já está
perdendo a paciência, Inspetora! — pediu Orelhão todo
trêmulo. Pega-Pega, Boca de Sapo e Dinim, mudos, só
sabiam olhar com olhos maiores que a cara.
Aí, as luzes começaram a acender e a apagar. Enquanto
os meninos fechavam os olhos e punham as mãos na cabeça,
a Inspetora permanecia imperturbável — sempre com olhos
vigilantes. Ela observava fria e demoradamente os botões
do painel.
— EUQ SECOV... — recomeçou a voz em um volume
tão alto que as paredes estremeciam. Entretanto, quando a
voz terminou o discurso, a Inspetora pôs as mãos na cintura
e deu um grito:
— Somereuq rev aus arac, ues oniterc! Acerapa!
E antes que eles entendessem o que estava acontecendo,
ela deu um salto contra o painel e girou todos os botões. Os
zumbidos e as estáticas arrebentaram as caixas acústicas
dependuradas, e o desconhecido atirou longe o revólver
para tampar os ouvidos.
— ATACAR, MACACADA! — comandou a Inspetora
que, dando o exemplo, pulou em cima do inimigo.
Eles pareciam um bando de marimbondos. Eram seis
contra um! E, ao mesmo tempo, todos atacaram o tal,
conseguindo imobilizá-lo por mais que ele esperneasse ou
desse socos no ar. Enquanto isso, começou a sair fumaça do
painel e, com um estouro chocho, algumas válvulas se
queimaram. Quando a Inspetora conseguiu arrancar a

— 77 —
máscara do homem, todos viram a humaníssima cara de um
sujeito barbudo. Ele respirava ofegante e fazia a cara mais
feia do mundo.
— Ele é gente como nós! — observou Pega-Pega,
desapontado.
— Claro que é! — respondeu a Inspetora. — Está na
cara que essa roupa bordada com lentejoulas é a fantasia
mais cafona que já vi em minha vida! Essa turma não tem
nada de marciano! Eles simplesmente estavam falando de
trás para frente!
— Ah, é? — perguntou Orelhão criando alma nova. —
Então, quem é você? Por que você prendeu a gente?
O homem não respondeu. Orelhão fechou os punhos:
— Ou você fala ou...
— Ou o quê, seu moleque?
A voz não era conhecida. Orelhão olhou para trás e
imediatamente perdeu a valentia: perto do painel, estava um
homem baixo, gordo, de cabelo comprido e rosto muito
pálido. Parecia feito de louça. Usava calças de xadrez
branco e vermelho; camisa, bota e meias brancas. Ao lado
dele, uma mulher de quase dois metros de altura. O rosto
dela também era incrivelmente branco. Lábios vermelhos,
em forma de coração, olhos pretos e cabelos dourados,
crespos, armadíssimos. O baixinho apontava com um
revólver de verdade e não parecia nada disposto a
brincadeiras. Pega-Pega engoliu seco e levantou-se.
Depois, o Dinim, o Boca de Sapo e a Malu. O homem de
fantasia verde também ficou de pé e pôs-se a bater a poeira
da roupa.
— O que faço com eles, chefe?
— Depois eu chamo você, Rato... Pode ir!
Rato obedeceu. Com um sorriso cínico, o baixinho
enfrentou a patota:

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— Muito bem... muito bem... aqui estão seis crianças
intrometidas que estão querendo xeretear nos meus planos,
não é verdade? Não se contentaram em ficar quietinhos na
cela de isopor...
— Quem é você? — perguntou Malu.
O baixinho se virou para a mulher alta:
— Querida, que falta de educação a minha! Eu esqueci
de me apresentar!
— Você é mesmo um descuidado em etiquetas! —
respondeu a mulher sem mover os lábios nem os músculos
do rosto.
— Meu nome é Chicão Banana e esta é minha noiva,
Maria Amendoim, meus queridos! — disse Chicão
inclinando a cabeça.
— Que nomes esquisitos! — observou Boca de Sapo
caindo na risada.
— Vocês são muito engraçadinhos — rosnou Chicão
Banana fechando a cara. — E agora, uma vez apresentados,
eu pergunto: O QUE VOCÊS VIERAM FAZER AQUI?
Os seis se entreolharam sem abrir a boca. Foi a
Inspetora que, se adiantando, prestou as informações:
— Viemos assistir à dança das borboletas...
Chicão Banana arregalou os olhos. Olhou firme para a
noiva:
— Viu só, Maria Amendoim? Eles vieram assistir à
dança das borboletas!
— Eles devem gostar de balé — respondeu Maria
Amendoim sempre inexpressiva. — Por acaso essas
borboletas são artistas do Teatro Municipal?
— Não — respondeu a Inspetora. — Dizem que elas
dançam ao pôr do sol...
— Oh, borboletas que dançam com hora marcada! —
repetiu Chicão Banana, com olhos mais arregalados ainda.

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— Viu só, Maria Amendoim? Borboletas que dançam com
hora marcada!
— O que será que elas dançam? — perguntou Maria
Amendoim. — Valsa? Samba? Ou um twist?
— Bem, nós ouvimos dizer que elas... — ia
respondendo a Inspetora, mas Chicão Banana deu um berro
tão forte que a luz do painel se acendeu, e um zumbido
cortou os ares. O rádio fez piuiiiiiim e emudeceu.
— CHEGA!!! Vocês estão pensando que nós somos
idiotas? Onde já se viu borboletas dançarinas? Pensam que
me enganam, é? Vocês vieram aqui nos espionar! Só não
sei quem foi que mandou vocês! Quem foi? Quem foi?
— Ninguém mandou a gente aqui! — responderam em
coro. — Nós viemos, mesmo, atrás das borboletas
dançarinas!
Chicão Banana cruzou os braços e fechou a cara:
— Vocês não me enganam! Eu acho que quem mandou
vocês foi o Expedito Cartola! O Expedito foi, durante
muitos anos, meu parceiro de roubos e assaltos. Estivemos
presos cinco vezes e cinco vezes escapamos juntos. As
coisas iam relativamente bem até que, um dia, aquele cínico
resolveu medir forças comigo!
Chicão Banana começou a caminhar em círculos, com
as mãos para trás.
— Ele não se contentava com a metade... Agora, queria
tudo! Por isso, nossa sociedade chegou ao fim. Aconteceu
no dia de Ano-Bom e — acreditem! — foi o dia de Ano
mais triste de minha vida!
Ele tirou um lenço e secou as lágrimas.
— Tenho um coração bobo, bobo! Por isso que me
apelidaram de Chicão Banana. Qualquer história triste me
comove, e eu começo a chorar. Quando me lembro da

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ingratidão do Expedito Cartola, que tristeza me arrebenta o
coração!
Chicão Banana chorou tão alto, que todos sentiram dó
dele. Entretanto, de repente e como se tivesse sido tocado
por brasas, deu tamanho berro que a molecada assustou.
— AQUELE TRAIDOR ME PAGA! Ele mandou
vocês me espionar, não mandou? Pois já sei direitinho o que
fazer com meninos xeretas assim... Já tenho um plano... Já
tenho um plano que eu não poria em ação, se vocês tivessem
ficado quietinhos na cela de isopor!
Correu a uma campainha que apertou. Pouco depois, o
Rato aparecia.
— Pronto, Chefe!
— Rato, essas pestinhas são suas para você dar nelas o
fim que desejar!
— Sim, senhor!
— Espere, Rato... — observou Chicão Banana coçando
a testa — acho melhor você usar o esquema número seis. É
mais seguro...
— Sim, Chefe! — repetiu o Rato, prontamente.
Foi aquela gritaria! Boca de Sapo, Dinim e até o Pega-
Pega se abraçaram. Orelhão continuava ao lado de Malu, e
os dois tremiam. Só a Inspetora mantinha o nariz erguido.
— Você não passa de um desajustado, um neurótico
muito complexado, Chicão Banana! — disse com firmeza.
— Garanto que você foi um menino enjoado, mandão e
superprotegido. Não sei se tenho dó ou raiva de você!
Chicão Banana empalideceu.
— Vejam só, a pestinha brincando de psicanalista e
querendo entender a “cuca” dos outros! Até parece que você
me conheceu, quando eu era pequeno!

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— Você deve ter apanhado muito de seus colegas,
porque você era um chato! — arrematou a Inspetora com o
dedinho em pé.
Chicão Banana perdeu o resto da paciência.
— Não permito que ninguém se meta em minha vida
particular, entendido? Rato, dê sumiço nessas pestes e que
o esquema número seis seja aplicado bem devagarinho!
Saíram pela abertura protegida por fitas plásticas,
enquanto Chicão Banana continuava dando murros no ar:
— Quero ver se eles confessam ou não confessam
serem espiões do Expedito Cartola!
Passaram por uma pequena escavação onde estava
sentado um sujeito que tinha bigodes finos e compridos.
— Nandão, temos festa! — disse o Rato com uma
risadinha. — Esquema número seis!
Nandão se levantou e pôs-se a esfregar as mãos:
— Mas que delícia! Embora o esquema número seis
seja meio sem graça, pelos menos é novo... Além disso, tem
uma vantagem: não deixa nenhum vestígio!
— Eu prefiro o número sete — insistiu o Rato. — Mas
o Chefe é o chefe e não podemos contrariar uma ordem
dele...
Saíram da caverna. Havia um pouco de terra seca. Mais
adiante, a superfície serena de uma lagoa iluminada pelo
luar, pois já estava de noite. Nandão acendeu um farol que
refletiu como espada nas águas da lagoa. Os meninos
olharam para cima: havia um poste de cá e outro na
extremidade oposta da lagoa. Os postes estavam ligados por
uma corda grossa, na qual havia dez cadeirinhas
dependuradas. Essa corda descia para uma roldana que
tinha uma espécie de manivela.
— Vamos começar a nossa brincadeirinha — explicou
o Rato, todo alegre. — Cada um vai sentar-se em uma

— 82 —
dessas cadeirinhas. Primeiro, aquele menino de cara de
mau...
Muito a contragosto, Pega-Pega se acomodou. O
banquinho até que era confortável! Então, o Rato girou a
manivela, o banquinho foi para a frente e outro, vazio,
desceu ao chão.
— Agora, o mulatinho de barriga de fora.
Dinim até que gostou. Ele era maluco por parque de
diversões e aquilo estava parecendo o Chapéu Mexicano.
— Você — e apontou para Boca de Sapo, depois de
mandar a cadeirinha do Dinim para diante.
Os seguintes foram, por ordem, Orelhão, Malu e a
Inspetora. Girando um pouco mais a manivela, Rato deixou
todos banquinhos parados bem em cima das águas.
— Está gostoso aí em cima? — perguntou.
Nandão acendeu um cigarro.
— Agora, faremos como manda o figurino — explicou
Rato com toda calma do mundo.
— As crianças adoram novidades e brincadeiras, não
adoram? Pois bem, vocês vão se divertir à beça...
Ninguém respondeu. Rato apanhou uma vela grossa,
acendeu-a e colocou-a pertinho da corda que segurava as
cadeiras penduradas sobre a lagoa.
— O negócio é muito simples, meus queridos: a chama
vai derretendo a vela. Quando a chama chegar na altura da
corda, o fogo vai queimar a corda e... Sabem o que
acontecerá?
Os seis olharam firme para a vela acesa.
— Muito simples! — concluiu. — A corda se arrebenta
e vocês... tiguuuuuum, caem direitinho na lagoa. Mas —
levantou o dedo — só que existe um detalhe: se fosse lagoa,
vocês nadariam e seria fácil se salvarem. Só que não é
lagoa: É AREIA MOVEDIÇA!

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Por que Rato foi dizer aquilo? Os meninos
empalideceram e começaram a protestar, mas Rato nem
ligou.
— Podem gritar à vontade que ninguém escuta. Eu, se
fosse vocês, ficaria bem quietinho, porque deve ser horrível
engolir areia com a garganta doendo. Ah, vai ser uma pena
que eu não esteja aqui para ver quando a corda pegar fogo!
Sempre achei o esquema seis muito emocionante!
— Vamos embora, Rato, chega de discursos!
— Adeus, crianças! Se vocês quiserem confessar que
estão trabalhando para o Expedito Cartola, avisem, sim?
Aí, os dois apagaram o holofote e desapareceram na
caverna. Só ficou brilhando aquela detestável chama e, por
mal dos pecados, não havia sequer um ventinho que a
ameaçasse de apagar!

— 84 —
— Eu tinha certeza que o negócio ia acabar ficando
feio! — gemeu a Bortolina esticando o beiço. — Eu seria
capaz de jurar! Toda vez que a Inspetora inventa uma
aventura, juro que lá vem complicação. Viu só? Borboleta
dançarina, uma fava!
Cochichando quase gritado, Bortolina continuava
afundada debaixo da moita. De olhos arregalados,
Tampinha segurava a Sa- manta. Dorminhocão coçava o
queixo.
— É... alguma coisa, que não estava nos planos,
aconteceu. Nossos amigos devem estar em apuros e temos
de ir salvá-los!
E assim dizendo, olharam para o fundo da boçoroca
onde havia um grande helicóptero vermelho. A luz forte que
tinham visto no céu eram os faróis do grande aparelho que
misteriosamente tinha pousado naquele improvisado
heliporto.
— O que você pensa fazer? — perguntou Tampinha. —
Ir lá?
— É o único jeito!

— 85 —
— Ai, que coisa horrível! — gemeu a Bortolina se
encolhendo. — Eu tenho medo!
— Ah, cale essa boca, sua chorona! — mandou
Dorminhocão perdendo a paciência. — Desde que nós nos
encontramos, você só sabe repetir que tem medo! Escute
aqui: com medo ou sem medo, nós precisamos salvar
nossos amigos, compreendeu? E vamos salvá-los
imediatamente! Desceremos lá e tem mais: não quero saber
de ouvir um pio, certo? Qualquer barulho pode atrair os
bandidos e, se você, com essa mania de medo, puser tudo a
perder... NÓS VAMOS ACERTAR AS CONTAS!
Bortolina mordeu os beiços. Tampinha quase
desmaiou.
— Eu vou à frente. Vocês me acompanham! —
comandou o líder.
Desceram tão silenciosos quanto podiam os dez metros
que os separavam do fundo da boçoroca. De vez em quando
a Bortolina gemia, a Samanta escorregava e o próprio
Tampinha precisou morder a língua porque acabou
enfiando o pé em um formigueiro.
— Lambe que passa! — mandou Dorminhocão sem
interromper a marcha.
O grande helicóptero vermelho parecia um gafanhoto
morto. O luar refletia gelo nas hélices prateadas. Protegidos
atrás de um arbusto, eles olhavam com grandes olhos
arregalados. A entrada da gruta não estava longe; via-se
uma claridade amarela por entre os fios plásticos imitando
cortina.
— É lá que precisamos entrar — observou
Dorminhocão.
— Que jeito?
— Entrando, uai!

— 86 —
— É bom ter muito cuidado — observou o Tampinha.
— Se o pessoal já está preso lá dentro, alguma coisa anda
errada por aí...
— Já estou cansado de escutar sermão! — respondeu o
líder. — Vou na frente. Vocês venham atrás, e sem fazer
barulho. Vou contar até três. Um... dois...
Não chegou a dizer três. Samanta levantou a orelha, o
nariz e farejou. Depois, latiu.
— Psiiiiiiu! — pediu a Bortolina segurando a boca da
cachorra. — Isso não é hora para fazer serenata!
Samanta rosnou como se não gostasse de ser
atrapalhada.
— Ai, que cachorra sem educação! — reclamou a
Bortolina soltando Samanta que, farejando melhor,
continuava latindo.
— Cale aboca, Samanta!—mandou Dorminhocão,
irritado. — Ou eles vão acabar nos descobrindo!
Samanta rosnava nervosa, desobediente. Depois de
alguns segundos, como se procurando orientar-se por algum
som que só ela conseguia ouvir, saiu em disparada rumo
oposto à gruta.
— Samanta, volte aqui! — comandou o Tampinha sem
erguer a voz.
Naquele instante, a entrada da caverna se iluminou.
Apareceu um sujeito alto com uma lanterna na mão. Olhou
para baixo, para cima, permaneceu imóvel contemplando o
céu.
— Deve ter sido algum cachorro-do-mato — disse ele,
antes de novamente entrar.
Os três se afundaram atrás do arbusto e ficaram calados.
— A Samanta deve ter descoberto alguma coisa —
falou, por fim, Dorminhocão. — Ela nunca foge! Acho
melhor irmos na direção que ela foi...

— 87 —
— Vou ter de molhar meus pés nesse barro frio? —
reclamou a Bortolina.
— A rainha prefere ficar aqui e ser descoberta pelos
bandidos?
— Santas Almas do céu, Deus me livre!
— Então, vamos e... CHEGA DE CONVERSA!
Um atrás do outro, como três sombras, marcharam em
direção ao caminho que Samanta havia escolhido. Aos
poucos, as encostas das boçorocas iam-se estreitando, até se
transformarem em uma espécie de corredor em ziguezague,
cujo fim não se via.
— Como vamos continuar se não estamos vendo nada?
— perguntou Tampinha.
— Não seria bom buscarmos uma vela? — sugeriu a
Bortolina.
Dorminhocão estava tão ocupado, pensando, que nem
ouviu a bobagem pronunciada pela negrinha.
A lua ajudou, iluminando mais. Eles caminhavam bem
em meio ao leito do riacho espraiado. As encostas se
estreitavam tanto que a Bortolina já estava sentindo falta de
ar. Só não teve um faniquito por temer a reação do chefe.
Viravam para a esquerda, para a direita, para a esquerda
novamente... e o sinistro labirinto não tinha fim!
— Onde vamos parar? — gemeu o Tampinha. — E se
a Samanta estiver biruta?
Dorminhocão não respondeu. Era apenas o ruído dos
pés sovando o barro. De repente, ele parou:
— Escutem!
— O quê? — quis saber a Bortolina já começando a
tremedeira.
— Latidos!
Então, os três apuraram os ouvidos. Eram mesmo
latidos continuados.

— 88 —
— É A SAMANTA! — informou Tampinha
desmanchando a preocupação em sorriso.
— Como você sabe? — indagou a desconfiadíssima
Bortolina. — Todos os cachorros latem iguais!
— Latem nada! A Samanta é diferente. Escute, ela late
assim: au-au-au-auuuuuu — e desafina no uuuuuu!
Prestaram atenção. Tampinha estava certo, Bortolina
criou alma nova.
— Vai ver que ela descobriu o pessoal! — propôs
Dorminhocão. — Vamos depressa que não temos nenhum
minuto a perder!

— 89 —
Dependurados nos balanços, os seis torciam para o
vento apagar a chama. Sentada ao lado da vela, Samanta
não fazia outra coisa senão levantar o pescoço e uivar
longamente, como se quisesse comunicar alguma coisa.
— Tomara que eles cheguem depressa! — gemeu o
Dinim quase desmaiando. — Ai, Jesus, vejam como a vela
já ficou curtinha!
Era mesmo. Aliás, a chama já dava as primeiras
chamuscadas no cordel.
— Não seria bom chamar o Rato e mentir que vamos
confessar?
— Não adianta! Aí, nossos amigos não poderão nos
salvar!
— E não venta! Nenhum ventinho!
— Não se mexe uma folha. Está um tempo horrível de
ótimo! — rebateu o Orelhão.
— Será que se todo mundo soprasse junto não
adiantaria? — sugeriu o Boca de Sapo com um ar muito
imbecil.
— Vê lá!

— 90 —
— Gente, juro que eu vi a chama lamber a corda! Até
saiu foguinho!
Séria e inexpressiva, a Inspetora espremia os miolos em
busca de uma solução.
— Tá pegando fogo! TÁ PEGANDO FOGO!!!
— Por que essa peste da Samanta não sopra em vez de
ficar uivando?
— Cachorro não sabe soprar...
— PEGOU FOGO! PEGOU FOGO! PEGOU FOGO!
Os meninos se balançavam, no desespero de fazerem
alguma coisa, mas não conseguiam fazer coisa nenhuma.
Imóvel, a Samanta prosseguia naqueles uivos insuportáveis.
De repente, os três apareceram. A claridade do luar
mostrava os seis prisioneiros se balançando sobre a sinistra
lagoa de águas paradas. Não custou para Dorminhocão
tomar consciência do que estava acontecendo. Rápido,
atirou-se contra a corda e a envolveu com um punhado de
barro. Os meninos estavam tão assustados que nem
conseguiam abrir a boca. Agora já chegavam a Bortolina e
o Tampinha.
— Nossa, o que será que a turma está fazendo
dependurada como roupa no varal? — perguntou
cretinamente a Bortolina.
Antes de alguém responder, ouviram vozes que
provinham da entrada da caverna. Mais do que depressa,
Dorminhocão deu um salto e afundou-se atrás de uma
moita. Bortolina (pela primeira vez na vida sendo esperta...)
voou atrás e, por último, o Tampinha. Bem a tempo porque
logo apareceu a horrível figura do Rato. Primeiro, ele
observou a vela apagada. Rato não era bobo, ficou logo
desconfiado.
— Vejam só que coincidência... — disse ele. — Não
está ventando, e a vela apagou!

— 91 —
Os seis estavam que não abriam a boca. Rato se abaixou
para examinar.
— Barro na corda? Quem teria jogado barro?
Rato levantou o revólver e deu uma risada comprida.
— Muito bem... eu acho que estou percebendo a coisa...
ou vocês são muito espertos, ou deve ter gente escondida
por aí... pois bem... vou começar a dar uns tiros sem olhar a
direção... talvez eu acerte em algum intrometido...
A Bortolina tremia tanto que a moita tremia junto.
— Vamos contar até três. Se não aparecer alguém...
UM...
Os olhos miúdos e pretos de Rato correram da direita
para a esquerda.
— DOIS...
Levantou o revólver.
— E lá vai o T...
Não completou. Ágil como um raio, Sa- manta deu um
salto e meteu dentes no braço de Rato. Rato deu um berro
de susto e de dor, atirando longe o revólver. Encorajado
com isso, Dorminhocão passou a mão em um pedaço de pau
e voou direto em cima do bandido. Criando coragem,
Bortolina apanhou outro pedaço de pau. Formou-se uma
confusão! Rato gemeu, reclamou, e acabou fechando a boca
porque Bortolina jogou terra dentro. Rato cuspiu, quase
morreu sufocado. Mas foi mesmo Tampinha que, acertando
uma porretada no alto do coco de Rato, prostrou-o
desacordado no chão.
Ofegantes, os três arrancaram uns fios plásticos da
cortina da entrada da gruta e amarraram firme as mãos, os
pés e a boca do rato.
— Depressa, tirem a gente daqui! — comandou a
Inspetora. — Se os bandidos derem pela falta de Rato, virão
ver e nós estaremos perdidos!

— 92 —
Rapidamente, Dorminhocão entendeu que seria
necessário girar a manivela gigantesca. Fez força. Tornou a
fazer. Quase se arrebentou de ficar tão vermelho, e a
manivela nem se moveu.
— Está duro! Bortolina, Tampinha, ajudem aqui!
Os dois acudiram, enquanto os seis, dependurados,
torciam para que eles conseguissem. Afinal, a peça
começou a girar. Aos soquinhos, os balanços foram
voltando ao ponto de partida. A primeira a descer foi a
Inspetora. Depois, Malu e Orelhão. Eles desciam na ordem
inversa que tinham ido. Tudo ia muito bem até que,
chegando na vez do Pega-Pega, o último, a corda
arrebentou! Pega-Pega caiu na areia movediça que era
macia e não afundava depressa. A patota inteira gritava,
ninguém sabia o que fazer. Entretanto, mais uma vez, foi o
sangue-frio da Inspetora que salvou a situação.
— Deixem de correr como galinhas mortas e vamos
atirar a corda.
Orelhão, que se dizia bom de pontaria, enrolou o laço.
Ao atirar, entretanto, a ponta da corda caiu a dois metros do
Pega-Pega que já estava começando a afundar.
— Andem depressa com essa porcaria! — gemeu Pega-
Pega com os olhos esbugalhados.
Aí, a Inspetora teve outra idéia.
— Amarre uma pedra à ponta da corda, Oficial. Isso faz
mais peso, e você conseguirá atirar a corda mais distante...
— O banquinho já afundou! — disse Malu, tampando
os olhos.
Todo mundo corria atrás de uma pedra, e não
encontravam nenhuma. Foi Tampinha que acabou achando
uma forquilha.
— Serve, serve! — aprovou a Inspetora que já estava
começando a ficar nervosa.

— 93 —
Orelhão amarrou a ponta e outra vez armou o laço.
— Lá vai ela! — e atirou.
Apesar da tentativa, ele falhou de novo!
Suando como torneira, Orelhão preparou o laço.
Felizmente, na terceira tentativa, Pega-Pega conseguiu
agarrar-se à corda.
— PUXAR COM TODA FORÇA, MACACADA! —
comandou Dorminhocão sendo o primeiro a fazer sua parte.
Enquanto todos davam o que tinham, Samanta latia.
Foi desse jeito que, depois de quase porem os pulmões
de fora, eles conseguiram retirar o Pega-Pega das areias
movediças.
— Ai, minha Nossa Senhora Aparecida, que suadouro!
— gemeu Bortolina (que não tinha feito força nenhuma)
limpando as mãos.
E caiu sentada na areia macia.

— 94 —
A lua, no céu, iluminava quase tanto quanto as
lâmpadas de mercúrio das avenidas das grandes cidades.
Era uma luz branco- azulada. Sentada em uma pedra — e a
boa distância da entrada da caverna — a Inspetora
argumentava. A patota, reunida à volta: Dorminhocão com
a Samanta no colo; Pega-Pega, Boca de Sapo, Dinim e
Tampinha. Do lado oposto, Malu, Orelhão de cara
emburrada e a Bortolina.
— Esta deve ser uma quadrilha bem organizada —
disse a Inspetora com o dedinho para cima. — Boa coisa
eles não estão fazendo!
— Não sei como eles têm um helicóptero, se no Brasil
particulares não podem ter helicóptero! — observou
Dorminhocão.
— Não seria melhor irmos contar tudo à polícia? —
perguntou Malu.
— Não adianta. Vocês estão cansados de saber que os
adultos não acreditam nas crianças. Se chegarmos lá e
dissermos que existe uma quadrilha na boçoroca — uma

— 95 —
quadrilha que, ainda por cima tem um helicóptero — sabem
o que vai acontecer?
— Minha mãe vai perguntar se eu estou com febre, me
manda tomar uma injeção e pular na cama!
— Acho que meu pai me dá uma surra para eu não
mentir — falou Dinim.
— Graças a Deus minha mãe está longe daqui ! — disse
a Malu.
— Mesmo se eles acreditassem em nós — prosseguiu a
Inspetora — só para irmos daqui lá, demoraríamos um
tempão. Enquanto isso, os bandidos fugiriam!
Samanta coçou-se, e o colar de contas fez rec-rec-rec.
— Ela tem razão, pessoal — aprovou Dorminhocão
para o próprio grupo. — Nós temos de espremer a cuca e
resolver o negócio AQUI!
Muito desmancha-prazeres, Bortolina deu um aparte:
— Todo mundo está querendo enfrentar os bandidos,
mas, agora, me façam um favor de explicar uma coisa: eles
têm revólveres, e nós não temos nada. Como vamos
conseguir vencer aqueles cavalões? Eu não quero ficar
dependurada em uma cadeirinha horrível daquelas! — e
apontou para a lagoa.
Todos olharam para a Bortolina porque, pela primeira
vez na vida, ela dizia alguma coisa certa. A Inspetora foi a
seguinte a abrir a boca:
— Mas nós temos cabeças, e quem tem cabeça,
consegue livrar-se de complicações. O importante é nós
dividirmos nosso grupo em dois: a patota da Coruja de
Papelão fica encarregada de “reconhecimento do terreno”,
e a patota do Dorminhocão vai cuidar do helicóptero...
— Parece razoável — aceitou Dorminhocão. — Mas,
como já disse a Bortolina, eles têm armas e nós estamos de

— 96 —
mãos abanando. Como vamos enfrentar os bandidos,
sabicho- na? Com o revólver do Rato, talvez?
Os companheiros de Dorminhocão começaram a fazer
o coro de: “É mesmo, como vai ser?” A Inspetora deu uma
risadinha de superioridade e concluiu:
— Eu lidero minha patota, e Dorminhocão lidera a dele.
De agora em diante, Dorminhocão, você está nomeado
como Inspetor Adjunto e, sendo assim, vamos ter uma
reunião particular, como fazem os generais durante as
guerras. Os soldados não devem se preocupar com os
detalhes dos planos.
O protesto alcançou ares. A Inspetora não deu ouvidos.
Descendo da tribuna de pedra, encaminhou-se até Orelhão.
— Oficial, você ainda está com aquele saquinho de
plástico no bolso?
— Sim, Inspetora! — confirmou ele, conferindo.
— Está furado?
— Não tem nenhum furinho.
— Ótimo. Então, Oficial, você pode vir conosco porque
já temos uma missão para você...
— Não pode! Não pode! Não pode! — protestaram os
demais. — Ele é soldado raso como nós. Por que pode ouvir
os planos e nós não?
A Inspetora se irritou:
— O Oficial não vai ouvir os planos. ELE VAI
EXECUTAR UMA ORDEM! Quanto a vocês, fiquem em
silêncio, porque, se os bandidos descobrirem que nós
escapamos, eu não me responsabilizo por ninguém mais!
Os meninos resolveram calar a boca. A Inspetora,
Dorminhocão e o Oficial dirigiram-se para uma moita, atrás
da qual desapareceram.

— 97 —
Bortolina estava morrendo de rir:
— Ainda bem que já sou preta e não preciso passar
carvão!
Dorminhocão e sua patota estavam esfregando carvão
no rosto porque deviam confundir-se com a noite. Afinal, a
camuflagem havia sido sugerida pela Inspetora. Pega-Pega
acabou se irritando com as risadas da Bortolina:
— Chefe, ou você manda essa pafúncia fechar o bico,
ou eu esmurro o nariz dela!
— Esmurra nada! respondeu a Bortolina erguendo o
nariz. — Você já se esqueceu que eu sou sua rainha?
— Uma bela porcaria de rainha!
Dorminhocão entrou para acalmar:
— Vamos esquecer a briga. Já estamos atrasados!
Venham todos atrás de mim e em silêncio!
Pega-Pega olhou feio para a Bortolina e obedeceu ao
comando. A fila marchou até boa distância; aí, Pega-Pega
virou para trás e mostrou a língua para a Bortolina.
Malu e a Inspetora aguardavam o retorno do Orelhão.
Segurando a Samanta no colo, a Bortolina se uniu às duas.

— 98 —
Orelhão chegou pouco depois. E vinha em uma corrida de
quem havia visto o capeta.
— Conseguiu? — perguntou a Inspetora.
Ele confirmou, erguendo o saco de matéria plástica que
continha alguma coisa escura.
— Deixa ver? — pediu a Bortolina.
— Não é da sua conta!
— Ai, que falta de educação!
— Acho que podemos ir — sugeriu a Inspetora. —
Você vai ou fica, Bortolina?
— Deus me livre ficar neste escuro!
— Então, escute bem: se você abrir o bico... EU DEIXO
VOCÊ LÁ COM OS BAN-DIDOS, compreendeu?
Bortolina encolheu o ombro ao nem-te-ligo e abraçou a
Samanta.
Marcharam em direção à entrada da caverna.
Vagarosamente, começaram a entrar. Não estava muito
claro, havia apenas a luminosidade de um lampião aceso.
Silenciosos como sombras, eles viram um empilhado de
caixotes, atrás dos quais se enfiaram bem depressa.
Deveriam ser uns vinte caixotes e todos do mesmo
tamanho.
— Uhmmmmm... — fez Orelhão franzindo o nariz.
— Que foi? — perguntou a Inspetora.
— Cheiro de couro curtido...
— De onde?
— Dos caixotes...
Malu também cheirou.
— Parece cheiro de plástico.
— É couro.
— Acho que é plástico! — teimou a Malu.
— É COURO! — repetiu Orelhão começando a
avermelhar-se.

— 99 —
— Não teime, Oficial! Já se esqueceu da cadeira, no
castelo? — desafiou a Malu.
— Psiiiiiiu!—mandou a Inspetora. — Não é hora de
brigar. Vamos em frente!
Sempre protegidos pela fileira de caixotes,
prosseguiram colados à parede. Quando passaram diante de
uma abertura, ouviram vozes. Espiando por trás dos
caixotes, reconheceram Chicão Banana que conversava
com um homem alto, gordo, todo vestido de preto como se
vestido para um baile de gala. Ao lado, Maria Amendoim
permanecia parada como uma estátua. Enquanto isso,
Nandão lidava com o painel destruído pela Inspetora.
— O “material” está bem acondicionado? — perguntou
o gordo de preto.
— Claro, Corvo! — respondeu o Chicão Banana.
— De primeira?
— De primeiríssima; do jeito que você mandou.
— Ai, ai! — falou Maria Amendoim estendendo os
braços. — Com a “bolada” eu quero comprar uma peruca
nova e comprida. Peruca cor de ouro!
O Corvo tirou um lenço do bolso e enxugou o suor da
testa.
— Cale a boca, você que só sabe falar besteira, sua
tonta! Afinal, Nandão, quantas horas você vai demorar para
consertar essa porcaria?
— Calma, Corvo, calma! Estou fazendo o que posso!
— Você também é uma besta, Chicão Banana! —
acusou o Corvo, voltando-se para o gordo. — Como foi
deixar que uns meninos imbecis fizessem esse estrago?
— Quem é que esperava que eles fossem tão
desordeiros? — defendeu-se o Chicão Banana. — Quem é
que pode com a vida daquelas pestinhas?

— 100 —
— Ah, ah, ah, ah, ah! Sem o rádio você não pode ir
longe, Corvo linguarudo! — riu-se a Maria Amendoim. —
Se a polícia rodoviária estiver rondando perto, adeus viola!
Lá se vai o seu helicóptero e toda a “muamba” para o
beleléu!
— E por que você está rindo, sua boba? Se eu e minha
“muamba” formos para o beleléu, sabe o que acontece?
Maria Amendoim não respondeu. O Corvo arrebentou:
— Simplesmente vai acontecer que eu “abro o bico” e
conto que vocês também estão no jogo. Com isso, querida
Menina da Peruca de Ouro, nós todos vamos parar na
cadeia... INCLUSIVE VOCÊ!
Maria Amendoim ficou irritadíssima e pôs-se a abanar-
se com o lenço.
— Você é um bruto, Corvo! UM BRUTO, UM
CAVALÃO, UM CHATO!
Chicão Banana acendeu um charuto, e os dois
briguentos calaram a boca. Enquanto Nandão continuava
tentando reparar o painel, a Inspetora fez um sinal para eles
se aproximarem.
— Ajudem a empurrar estes caixotes — pediu. —
Devagar e sem fazer barulho.
— Para quê?
— Para chegarmos mais perto deles. Eu gostaria de
tentar fechá-los lá dentro...
— Será que dá certo? — perguntou Malu, atrapalhada.
— Não custa tentar, custa?
Em seguida, os três começaram a fazer força. Só a
Bortolina que não ajudava.
— Por que você não dá uma mãozinha? — perguntou
Orelhão.
— Porque eu estou ocupada segurando a Samanta que
está dormindo!

— 101 —
E, desligada da vida, continuou fazendo cafuné na
cachorra que usava colar.

— 102 —
Porque morria de medo, Tampinha ficou vigiando a
moita escura enquanto os demais iam roubar material. O
primeiro a voltar foi Pega-Pega. Veio com tamanha pressa
que deu uma topada em uma pedra, e a unha do dedão voou
longe.
— Ai, ai, aii — gemeu baixinho e tampando a boca com
a própria mão, a fim de segurar o som.
— Conseguiu? — perguntou Tampinha.
A dor era muita. Irritado, Pega-Pega atirou as tiras de
matéria plástica em cima do pequenino.
— Aí está a sua porcaria de cortina! Palavra, não sei o
que o Dorminhocão vai querer fazer com essa porcaria! Ai,
como me dói o dedo!
— Cospe em cima que é bom — recomendou o pequeno
médico.
Depois, chegou o Dinim. Trazia um embrulho maior
que ele próprio.
— Rapaz, quase que eles me pegaram! Eu estava
arrancando os fios da cortina, quando apareceu um cara que
quase me viu! Voei atrás de uns caixotes e fiquei quietinho,

— 103 —
quietinho... Nem respirei! Mas o que aconteceu com o
Pega-Pega? Está com uma cara...!
— Deu uma topada e arrancou a unha do dedão.
— Verdade, Pega?
— Não enche. Está ardendo!
O terceiro a retornar foi o Boca de Sapo.
— Não consegui nada!
O último, Dorminhocão. Trazia fios de cortina azul.
Olhou para os companheiros, e Tampinha transmitiu as
notícias:
— Pega-Pega arrancou a unha do dedão, Dinim trouxe
bastante cortina, e o Boca de Sapo não conseguiu nada.
— O bandido não saía de lá! —justificou- se Boca de
Sapo. — O que eu poderia fazer?
Dorminhocão não estrilou.
— Está bem, ninguém precisa ficar chateado. Acho que
já temos material suficiente. O pior vem agora...
— O que você vai fazer com isso, chefe?
Dorminhocão indicou o helicóptero vermelho que
continuava morto como um gafanhoto gigante.
— Vou enrolar as tiras no eixo das hélices...
— Para quê?
— Escutem: nós precisamos impedir que esse aparelho
levante voo, porque, se ele subir, levará os bandidos
embora, compreendem? E o único jeito de atrapalhar a
subida é danificando o eixo das hélices...
— E quem vai fazer isso? — perguntou o Tampinha,
empalidecendo.
— Não precisa ficar assustado, menino. Para missões
perigosas, sempre é o líder que tem de se virar — respondeu
Dorminhocão procurando fazer-se de forte. — E já vou
indo.
Vocês fiquem aqui, à espera do sinal da Inspetora...

— 104 —
— Que sinal?
— Qualquer um. Não conversem. Mantenham os
ouvidos atentos!
Em seguida, agachado, Dorminhocão se dirigiu para o
helicóptero. A água do espraiado corria mansa, parecendo
vidro. Dorminhocão meteu a mão no barro e encheu um
bolso.
— Por que será que ele fez isso? — perguntou Dinim.
Ninguém respondeu.
Manso como um gato, Dorminhocão chegou até o
aparelho e subiu nele. Mal e mal os companheiros
conseguiam vê-lo tentando enrolar os fios plásticos ao eixo
das hélices. Enrolou... enrolou... e, ao terminar, enfiando a
mão no bolso, retirou o barro com o qual besuntou tudo.
— Agora eu entendo por que ele pegou o barro! — disse
Dinim com um sorriso largo. — É para prevenir, caso a
matéria plástica não “amarre” a hélice...
Pega-Pega tornou a cuspir em cima do dedão.
— Gente, olhe! — falou, de repente, Tampinha dando
uma cotovelada nas costas do Boca de Sapo.
Naquele instante, um holofote se acendeu e a luz caiu
em cima do helicóptero.
— Será que eles perceberam que o Dorminhocão...
— MEU DEUS!
Eles não sabiam o que dizer. Nisso, apareceu um sujeito
à saída da gruta. Todos olharam para o helicóptero. O
holofote clareava a água, como dia. Dorminhocão, imóvel,
agachado atrás do eixo das hélices. O Nandão marchou para
o aparelho.
— Será que ele vai ligar?
— Se ligar, aquelas hélices cortarão o Dorminhocão em
mil pedaços!

— 105 —
O bandido chegou a subir ao helicóptero. Lá em cima,
junto às hélices, Dorminhocão suava em bicas. Quando o
homem tentou enfiar a chave na partida, verificou que não
entrava.
— Ei, Corvo, você me deu as chaves erradas!
E voltou depressa para a caverna.
Aproveitando-se do incidente, Dorminhocão saltou de
cima do helicóptero. Não era muito alto, mas ele caiu de
mau jeito, esborrachando-se no chão. Depois, rápido,
correu para esconder-se atrás de uma moita.
— Ele não veio para cá! — reclamou o Dinim.
— Porque o holofote está aceso — respondeu Pega-
Pega cujo dedo já não doía tanto. — Não faz mal. O
importante é ficarmos de ouvidos atentos, porque não
sabemos qual vai ser o sinal daquela intrometida, nem
sabemos o que teremos de fazer. Eu acho que não
deveríamos obedecer às ordens dela! Afinal, ela é menina,
e as meninas nunca fazem coisas que prestem!
Ninguém respondeu. Estavam de olhos cravados no
helicóptero vermelho que continuava imóvel como se fosse
um pássaro de asas machucadas.

***

Nandão deu um passo para trás.


— O rádio está pronto, Chefe...
Chicão Banana atirou longe o charuto e, empurrando
Nandão aproximou-se do transmissor. Comprimiu um
botão, começou a falar:
— Chamando Pudim! Chamando Pudim! Chamando
Pudim! Câmbio!
Esperou. Maria Amendoim continuava se abanando. O
Corvo não tirava os olhos do relógio.

— 106 —
— Estamos atrasados! Estamos atrasados!
— Chamando Pudim! Chamando Pudim! Chamando
Pudim! — insistia Chicão Ba- nana já olhando feio para
Nandão.
Finalmente, em meio a chiados, uma voz rouca e
distante se ouviu:
— Pudim respondendo. Transmissão horrível. Câmbio.
Todo nervoso, Chicão Banana quase esmurrou o
receptor.
— Que me importa se você não está ouvindo bem, seu
cretino? Responda: mamãe recebeu o presente?
— Faz quase uma hora que mamãe ganhou o presente!
Estamos cansados de esperar vocês para a festinha! —
rosnou Pudim.
— Já estamos a caminho. Aguarde cinco minutos.
PRESENTE EMPACOTADÍSSIMO!
Chicão Banana atirou o receptor à mesa.
— Ouviu, Corvo? Mamãe ganhou o presente, e isto
significa que a pista está livre, completamente
desimpedida! Eles estarão nos esperando com o caminhão
de mudanças no quilômetro 333! Podemos ir agora, Corvo.
Você ficou nervoso à toa. Meus homens nunca falharam!
— Então vamos depressa que não temos mais tempo a
perder!
Quando os bandidos já iam escapando, os meninos
ouviram um ruído à entrada da gruta. Era Rato! Apesar de
amarrado, ele tinha conseguido locomover-se aos pulinhos.
Foi assim que chamou a atenção do pessoal, e Nandão
apressou-se a desamarrá-lo. Rato estava com os olhos
soltando fogo de tanto ódio:
— As pestes dos meninos fugiram! — anunciou
passando a mão na cabeça onde estava doendo.
Os quatro, atrás dos caixotes, encolheram-se todos.

— 107 —
— FUGIRAM??? — e o grito do Chicão Banana até
estremeceu a terra.
— Sim, alguém conseguiu salvá-los, Chicão Banana!
Eles me deram uma porretada na cabeça e me amarraram
com essas porcarias de fios plásticos das cortinas...“
— Que história é essa? — perguntou Corvo que não
estava achando boa a cara do Chicão Banana.
— É um caso muito comprido, e eu não tenho tempo de
contar agora, Corvo — ele respondeu. — Mas, se as pestes
fugiram, nós temos de dar no pé imediatamente porque é
mais que certo que eles irão direto à polícia. VOCÊ É
MESMO UMA BESTA, RATO! — urrou o Chicão Banana
avermelhando-se como peru.
— Se a polícia levar o meu estoque — ameaçou Corvo
quase perto de um chilique — VAI TODO MUNDO PARA
A CADEIA!
Os dois já estavam quase a ponto de se pegarem,
quando a Maria Amendoim se intrometeu:
— Vocês são mesmo dois cavalões! Por que, em vez de
ficarem aí brigando como dois moleques, não pegamos os
caixotes e damos o fora? O tempo está passando e cada
minuto é precioso!
Corvo e Chicão Banana se entreolharam, atrapalhados,
como se se vissem pela primeira vez.
— Eu acho que ela tem razão, Corvo!
— Em vez de ficarmos correndo, vamos começar o
carregamento do “material”! — concordou Chicão Banana.
Maria Amendoim continuou se abanando com o lenço.
— Os homens! Depois eles ainda falam que as mulheres
é que perdem tempo discutindo bobagens!
O beiço da Bortolina quase caiu no chão. Ela se agarrou
à Samanta que correspondeu com uma lambida. Orelhão se
encolheu mais. Malu ficou muda. Mordendo os lábios, a

— 108 —
Inspetora pensava em uma saída de emergência. Fugir pela
entrada da caverna seria impossível. Talvez a melhor
solução fosse que dessem no pé assim que Nandão e Rato
levassem os primeiros caixotes, deixando o corredor
desguarnecido. Porém ela acabou reconhecendo que o
plano não daria certo, pois, embora Nandão e Rato tivessem
saído para levar alguns caixotes, Corvo e Chicão Banana
continuavam ali, grudados e discutindo:
— Quero conferir caixote por caixote — insistia o
Corvo com papel e caneta à mão.
— Você não confia em mim? — perguntou o Chicão
Banana muito desapontado.
— Não. Você é um mentiroso de marca maior.
— Basta você contar os caixotes e pronto! Se tiver
vinte, deverá haver vinte no helicóptero!
— Não acredito nem em minhas próprias contas!
— Oh, é demais, é demais! — desistiu Chicão Banana
se puxando os cabelos.
Rato e Nandão voltaram para apanhar mais outros
caixotes. Quando Nandão puxou o dele, topou com Malu
agachada e escondendo a cara. Nandão deu uma risada:
— Olhem só o que eu descobri...
Corvo se aproximou com o nariz de tucano. Chicão
Banana esfregou as mãos, e Maria Amendoim não disse
nada.
— AS CRIANÇAS ESTÂO POR AQUI, CHEFE! —
gritou o Nandão.
Foi aquele Deus nos acuda! A Bortolina atirou a
Samanta em cima de Rato e fugiu pela direita. Orelhão se
afundou no meio dos caixotes. Malu virou sorvete, e a
Inspetora deslizou por entre as pernas do Chicão Banana.

— 109 —
— AGARREM ESSAS PESTES! AGARREM ESSAS
PESTES! — urrava o Chicão Banana que, sendo muito
gordo, não era esperto.
Rato saltou em cima do Orelhão, mas Orelhão
conseguiu tirar o corpo e, pondo-se de pé, pregou um
violento chute nos fundilhos de Rato. Com o guarda-chuva,
Corvo tentava segurar a Inspetora pelo pescoço; ágil como
um sagui, Eloísa agarrou o guarda-chuva, puxando-o
violentamente. Com isso, Corvo perdeu o equilíbrio,
esborrachando-se de nariz no chão. Enquanto isso, Nandão
perseguia a Bortolina que se defendeu com uma violenta
dentada na mão dele. Nandão pulava de dor. Vendo-se livre
Bortolina conseguiu correr até à saída da gruta onde botou
a boca no mundo:
— ACUDAM! ACUDAM! ACUDAM!
Era o sinal! Mas, fazer o quê? A patota
do Dorminhocão não saía do lugar, porque esperavam
que Dorminhocão agisse primeiro. Por isso, de repente, ele
teve uma idéia e, com os braços para cima, começou a
correr, gritando:
— A POLÍCIA! A POLÍCIA VEM VIN-DO! A
POLÍCIA VEM CHEGANDO!
Vendo aquilo, Pega-Pega deu um murro na cabeça do
Tampinha:
— Vamos ajudar, macacada!
Embora com o dedão ardendo, Pega-Pega foi pulando
com uma perna só. Atrás, Dinim, Boca de Sapo e
Tampinha. Todos fazendo uma barulheira infernal:
— A POLÍÍÍÍÍÍCIA!
Vendo as coisas pretas, Maria Amendoim tentou fugir,
mas a Samanta deu um salto e cravou os dentes na saia da
bandida. Toda nervosa, Maria Amendoim batia os pés e
gritava:

— 110 —
— Vai embora, cachorra, me solta!
Foi quando a Inspetora se lembrou:
— Oficial Orelhão... O SACO DE MATÉRIA
PLÁSTICA! FOOOOOOOOGO!
Orelhão olhou para a direita, para a esquerda. Em meio
à pancadaria, tinha deixado o saco não sabia onde. Mas,
com uma rápida vista de olhos, descobriu-o caído a poucos
metros. Ágil, apanhou-o. Ali estava a caixa de
marimbondos que ele havia arrancado do espinhento jaú
bravo, aquele arbusto no qual eles haviam roçado quando
escorregaram pelos barrancos da boçoroca. Orelhão soltou
uma risadinha sinistra e, para mais infernizar os
marimbondos, chocalhou bem o saquinho. Irritadíssimos,
os insetos afiaram os ferrões. Depois, fazendo um sinal para
a Inspetora, Orelhão juntou toda a força e atirou longe o
saquinho que caiu bem diante do nariz de Corvo.
— O que é isso? — perguntou o Corvo forçando a vista.
Os marimbondos não queriam saber de brincadeira.
Pilhando-se livres, começaram a atacar, na desforra de tanto
tempo de prisão. Mais do que depressa, a patota da Coruja
de Papelão correu para fora da caverna, mas os grandes que
não sabiam o que estava acontecendo, pulavam de verdade!
Maria Amendoim urrava, batia com a bolsinha em todas as
direções, tanto é que acabou acertando no nariz de Rato.
Nandão se esfregava como cachorro depois do banho.
Chicão Banana pulava, e Corvo aplicava tabefes na própria
cara.
— VAMOS FUGIR! — comandou o Chicão Banana,
desesperado.
Aos gritos, sopapos e trambolhões, chegaram até o
helicóptero. Todo mundo queria entrar primeiro. Maria
Amendoim continuava dando bolsadas a torto e a direito:

— 111 —
— EU SOU UMA DAMA! EXIJO QUE ME DEIXEM
ENTRAR PRIMEIRO!
Mas qual, ninguém pensava em ser educado, pois todos
queriam salvar a própria pele. Tanto empurraram, que
Maria Amendoim levou um tombo, e a peruca caiu. Maria
Amendoim era careca como uma bolha! Depois de muito
empurra-empurra, eles conseguiram se fechar no
helicóptero. Nandão ligou a partida, a hélice girou.
Acenderam os faróis, imprimiram mais velocidade ao
motor. Enquanto isso, já reunida, a patota fazia figas:
— Tomara que não suba! Tomara que não suba!
Tomara que não suba!
O helicóptero estremeceu, arrancou com um barulho
forte, ergueu um vento de folhas secas e começou a subir.
— Ah, eles conseguiram! — gemeu a Malu,
desapontadíssima.
— Que pena! Será que todo nosso plano vai dar em
nada?
O helicóptero se elevou mais dois metros e derivou para
a direita.
— Lá se vai ele...
— Agora, ninguém acreditará em nós!
Quando o aparelho atingiu a altura das laterais da
boçoroca, de repente o motor começou a engasgar. Tossiu,
sacolejou, entortou de cá, entortou de lá e... AS HÉLICES
PARARAM DE GIRAR!
— ESTÁ DESPENCANDO! — gritou a Inspetora
batendo palmas.
A patota saiu correndo e bem a tempo, porque, depois
da última tossida, o helicóptero desabou como uma pedra,
levando um belíssimo tombo.

— 112 —
Foi a vitória! Os bandidos desmaiaram e, mais do que
depressa, aproveitando-se das tiras de matéria plástica, os
meninos ataram bem forte as mãos e os pés dos fujões.

— 113 —
O céu estava começando a ficar vermelho pela
madrugada que vinha raiando. Os meninos ouviram buzinas
e, depois, vozes. O primeiro a aparecer foi Pega-Pega que
tinha sido o encarregado de ir levar a notícia. Atrás dele,
uma verdadeira romaria à borda da boçoroca, onde estava
tia Aurélia.com as mãos postas como louva-a-deus:
— Minha Nossa Senhora, Clóvis, eles estão mesmo lá
embaixo!
Quando a Inspetora ouviu os gritos da mãe, ela tirou os
óculos e revirou os olhos:
— Já vai começar o sermão!
Toda nervosa, Dona Aurélia descia pela ribanceira da
boçoroca. Ela não era nenhuma criancinha nem tinha a
agilidade de um moleque. Por isso, levava escorregões nos
quais puxava seu Clóvis, Luanda e até o taludo do Sérgio.
Eles não vinham sozinhos: lá estava a mãe do Dinim, que
era uma mulata beiçuda; os pais do Tampinha, a tia do
Pega-Pega, uma solteirona azeda como limão, e os pais do
Dorminhocão — uma senhora baixinha, elétrica, e um
senhor meio careca, de olhos empapuçados como o próprio

— 114 —
Dorminhocão. Vinha meia colônia. A Bortolina reconheceu
até a Vó Padroeira capengando de reumatismo e Tia Rosária
do Bico Preto. E ainda chegava gente da cidade, inclusive
meia dúzia de soldados. E o povo descendo as encostas da
boçoroca como fila de procissão. Mas o pior espetáculo foi
mesmo quando Dona Afonsina, a mulher mais curiosa da
cidade, tentou amparar seus cem quilos em um arbusto de
folhas miúdas — o arbusto foi arrancado pelas raízes, Dona
Afonsina soltou um berro e rolou como uma pedra por cima
do Sargento Campos que era magro como palito. Por um
triz não esborracharam o Severino Coutinho, Escrivão de
Polícia, que acompanhava o Delegado, Doutor Pedro.
— Vai ser aquele drama! — disse Dorminhocão
fechando os olhos. — Garanto que mamãe vai começar
assim: “Meu filho! Por que você faz essas coisas? Você
ainda vai acabar matando esta sua pobre mamãe!”
Agora, o pessoal já estava no córrego espraiado. Como
ali era puro barro, eles enfiavam os pés até a canela, e a
marcha se tornava mais lenta. Era engraçado ver as
mulheres reclamando e os homens tendo de arregaçar as
calças para não sujar.
Quando, finalmente, chegaram perto do helicóptero de
rodas para cima, o espetáculo foi indescritível. Lourenço,
do jornal, corria com o Salomão, fotógrafo, para tirarem
fotografias, pois Lourenço esperava preparar uma belíssima
reportagem para o domingo próximo.
Os oito (inclusive Samanta) estavam empoleirados na
carcaça do helicóptero. Sentados na água barrenta e com
cara de condenados, estavam a careca Maria Amendoim,
Chicão Banana, com cara de meter medo, Corvo, com
charuto apagado, Nandão e Rato — os dois envergonhados
que não sabiam onde enfiar a cara. Amarradíssimos à

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ferragem do helicóptero. Volta e meia, a Maria Amendoim
espirrava:
— Quero sair desta friagem! Vou acabar pegando uma
pneumonia!
O povo chegou. Dona Aurélia estava com uma cara
horrível. Ela esticou o dedo e deu uma ordem:
— Desçam já daí!
Lourenço, do jornal, puxou Salomão pela manga.
— Não, não desçam! Vamos fotografar!
— Eu que mando! — gritou Dona Aurélia até vendo
estrelinhas. — DESÇAM JÁ DAÍ!
— NÀO DESÇAM DAÍ! — gritou Lourenço
enfrentando Dona Aurélia. — EU PRECISO TIRAR UMA
FOTOGRAFIA DELES!
Afinal, com a aproximação do Doutor Pedro, os
moleques tiveram de descer. Enquanto isso, os soldados
iam examinar as cavernas e os caixotes.
— Eloísa, eu não proibi vocês de virem ao Morro das
Borboletas? — perguntou Dona Aurélia fincando as mãos
na cintura.
Não houve tempo da Inspetora responder porque a mãe
do Dorminhocão acabava de chegar. A mulher ergueu os
braços, caiu de joelhos e começou a ladainha:
— Meu filho! Por que você faz essas coisas? Você
ainda vai acabar matando esta sua pobre mamãe!
Dorminhocão piscou para a Inspetora:
— Eu não disse?
Enquanto o pai e a mãe de Dorminhocão o agarravam
pelo braço, Vó Padroeira e Tia Rosária do Bico Preto
socavam Bortolina. Sérgio agarrou o Orelhão pela orelha
direita e Luanda pela esquerda. Tendo tirado o chinelo do
pé, a mãe do Dinim esquentava os fundilhos do mulatinho.
Os pais do Tampinha não paravam de gritar, e a tia

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solteirona do Pega-Pega dava guarda-chuvadas na cabeça
do sobrinho. Felizmente, os soldados disseram qualquer
coisa no ouvido do Doutor Pedro, justamente quando a irmã
mais velha do Boca de Sapo chegava, atrasada, procurando
a peste para dar-lhe uma surra. O Doutor Pedro ergueu os
braços, pediu silêncio, e os adultos pararam de bronquear
com a molecada.
— Era uma quadrilha de contrabandistas de peles —
explicou o delegado.
— Contrabandistas de pele?
— Sim. Vocês sabem que a caça só é permitida durante
certa época do ano. Entretanto, esses desnaturados não
obedecem à lei e matavam animais a torto e a direito. Isso é
um crime muito sério, porque a matança indistinta pode
acabar com muitas espécies de animais, e o governo quer
preservá-los.
Os bandidos continuavam de olhos baixos, murchos,
desapontados.
Dona Aurélia pôs a mão no queixo.
— É por isso que apareceram tantas carcaças de animais
por aí...
O povo começou o zunzum:
— Não é que eu andei escutando muitos tiros, mesmo?
— É, sim! Antigamente havia muitos jacarés na lagoa;
de uma hora para outra, os jacarés deram de sumir...
— Também os sapos...
— Nunca mais vi onças na capoeira!
— Nem gambás!
— Menos ainda, os macacos. Lembra dos macacos?
Eles eram tão engraçados!
— Afinal, doutor, quem são esses bandidos? —
perguntou Lourenço, do jornal, com lápis e papel, prontinho
para redigir um noticiário.

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— São Maria Amendoim, Chicão Banana e Corvo. Os
outros dois, ainda não identifiquei, mas a Maria Amendoim
tem um belíssimo mandado de prisão nas costas: está
condenada a quinze anos por latrocínio. Chicão Banana
fugiu da penitenciária do Estado, onde cumpria pena de
quarenta anos. Quanto a Corvo, está condenado à prisão
perpétua, pois tem 180 anos de cadeia para pagar.
— 180 anos? Papagaio!
A assistência olhava para os bandidos que continuavam
espirrando. Então, Doutor Pedro se virou para o militar
magro.
— Soldado Souza, pode levá-los... Esses não vão mais
fazer diabruras por aqui, graças a esses pequenos heróis!
Ele acabou o elogio, Salomão bateu uma chapa da cara
do Delegado.
Dona Aurélia arregalou os olhos:
— Doutor Pedro, o senhor chama essas pestes de...
heróis???
— Sim, senhora! Eles conseguiram prender cinco
perigosos marginais. A senhora não acha que isso é uma
façanha que mereça elogios?
— Mas..., mas eles me desobedeceram, Doutor Pedro!
— Isso não vem ao caso, minha senhora. Quer a senhora
queira ou não queira, ninguém poderá deixar de reconhecer
que eles prestaram um grande serviço à coletividade!
— Mas... — e Dona Aurélia estava tão atrapalhada que
nem conseguia falar direito.
Quando o povo ouviu os elogios do Delegado, o caso
mudou de figura. Os pais pararam de socar os filhos, e até
a solteirona, tia do Pega-Pega, jogou longe o guarda-chuva.
De uma hora para outra, eles passaram a ser bajulados como
se fossem santos. Lurdinha Perimão, que escrevia para o
jornalzinho da escola, correu para uma entrevista exclusiva

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com o Dorminhocão. Ao ver aquilo, Lourenço também
correu, e começou a discutir com Lurdinha que ele havia
chegado primeiro. Salomão não perdia oportunidade para
queimar “flashes”. Afinal, quando todos calaram a boca, o
Dorminhocão contou tudo — tudinho. E terminou virando-
se para a Inspetora:
— ...mas, apesar de todo esforço que fizemos, não
teríamos conseguido nada não fosse a inteligência da nossa
Inspetora da patota da Coruja de Papelão!
Uma salva de palmas. Meio sem jeito, a Inspetora
ajeitou a fivelinha do cabelo e fez um agradecimento
público ao Dorminhocão.
Muito despeitada por não haver sido a “mocinha”
naquela aventura, Bortolina passou a mão em Samanta e se
afastou. Malu correu atrás da negrinha:
— Vamos tirar uma fotografia, Bortolina!
— Não!
— Porquê?
A Bortolina apontou para o nariz inchado que estava do
tamanho de uma batata.
— Por causa deste horrível marimbondo que me picou,
uai! — e botou a boca no choreiro.
Malu caiu na risada. Bortolina fechou a cara:
— Quando eu fui a “mocinha” naquele caso horrível do
fantasma do castelo — prosseguiu, aborrecida — ninguém
tirou fotografia minha! Agora que é a Inspetora, todo
mundo tira fotografia dela. Ai, me dá uma raiva!
Pega-Pega que também tinha saído do grupo,
aproximou-se mancando porque o dedão ainda doía um
pouco.
— Não precisa ficar triste, Bortolina. Afinal, você ainda
é a rainha da nossa patota. Já se esqueceu?

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— Rainha? — perguntou a Malu, interessada. — Que
negócio é esse de rainha? Não estou sabendo...
Esquecendo-se do marimbondo, Bortolina ergueu o
nariz:
— É verdade do Pega-Pega. Eu sou a rainha da patota
deles — eu e Samanta. Mas essa é outra história,
queridinha... uma história que eu faço questão de contar só
quando alguém me pedir: faça o favor. Por enquanto,
Secretária — como a Inspetora vai mandar — cumpra sua
obrigação...
— Qual?
— Arquive o caso.
— Como vai chamar?
Bortolina pensou, pensou.
— O Caso das Luzes no Morro das Borboletas.
Malu fingiu que escrevia. Bortolina encolheu os
ombros.
— Dança das borboletas! E eu, muito bobona, quase
que acreditei nessa bobagem! Ah!
— E agora? — perguntou Pega-Pega que não estava
entendendo nada.
A Bortolina piscou os olhos redondos.
— Vamos tomar um fôlego. Ai, como me cansa esse
negócio de ser importante, de ficar popular... Preciso de
umas férias..., mas sou capaz de jurar por tudo quanto é
santo que, antes do fim da semana, já estaremos metidos em
outras complicações. Essa Inspetora não tem sossego!
Aí, o pessoal começou a ir embora porque não tinham
mais nada que ver. Os oito novamente se reuniram,
enquanto os adultos não se cansavam de comentar. Em
poucos minutos, a Boçoroca Roxa estava vazia. Ficou
apenas o helicóptero com as ferragens retorcidas. Dois dias
depois, uma tralha o levaria embora, a boçoroca ficaria mais

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morta do que nunca, e os animais poderiam continuar
vivendo felizes e livres pelos campos, pois os
contrabandistas não estariam mais ali para destruí-los.

FIM

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