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© 1995 – DONALD CURTIS

UN VENGADOR EN LA NOITE
Tradução de Luiz Orlando Lemos
FERAS DO OESTE 18
381122
CAPÍTULO PRIMEIRO
Somente Jessy

— Vim matar um homem.


— Por que?
— Pelo motivo que sempre se mata alguém quando não
se é assassino. Para ajustar contas.
— A Lei de Talião?
— Por aí.
— Imaginei logo que o vi chegar — suspirou ela,
levantando-se de sob os lençóis revoltos. — Por que dormiu
comigo esta noite? Acho que para você o mais importante é
matar esse homem...
— Esta certa, Manoela.
— Então insisto: por que veio para mim antes de
resolver seus assuntos pessoais?
— Em primeiro lugar, porque gostei de você... Em
segundo, porque tenho pressa. E porque estou um tanto
cansado de viajar a cavalo de lugar em lugar. Precisava de
uma cama. E de alguém a meu lado, para eu me lembrar de
que ainda existe amor no mundo.
— O repouso do guerreiro, não é?
— Vejo que é muito esperta para ser moça de uma
cantina. Tem instrução?
— Não — riu ela, agarrando-se às costas dele. — Repito
o que alguém um dia me disse. Não sabia o que isso
significava. E ele me explicou. Mal sei ler. Para ganhar a
vida como ganho não é preciso...
— Você se engana. Saber coisas nunca é demais. Nem
mesmo para o que você faz. Uni dia pode sair daqui, deste
tipo de emprego.
— Isso eu pensava no início — suspirou Manoela,
beijando os lábios do homem. — Agora já perdi as
esperanças. Mas não se preocupe comigo. Se precisa fazer
alguma coisa, siga o seu caminho. Não vou atrasá-lo.
— Já disse que há tempo. O homem a quem procuro não
partirá de Wichita, porque em pouco tempo irei a seu
encontro.
— Se sabe que pode ser alcançado por você, talvez
consiga escapar... Uma hora pode ser um tempo precioso.
— Não acredito. Alguém está vigiando esse homem. E
me informaria se ele tentasse escapar. Não vim sozinho.
Trouxe comigo um amigo. Agora sei que esse homem tem
dinheiro, tem interesses nesta cidade. Não irá embora daqui
facilmente, a menos que saia morto...
— Ela tomou a beijá-lo. Seu corpo moreno, nu, grudava-
se ao dele. Os seios firmes apertavam-se contra o corpo do
homem. As coxas bronzeadas se enroscavam nele.
— Então me ame de novo — pediu ela.
— Claro, Manoela — sussurrou o homem. — Isso não é
difícil.
E o quarto se encheu de gemidos, quando os dois corpos
se fundiram, na penumbra da noite.
Um assovio, lá fora, interrompeu a batalha amorosa
muito tempo depois.
O homem se afastou do corpo trêmulo da mulher, e seus
dois olhos frios se cravaram na janela aberta.
Levantou-se. Era como uma estátua de bronze...
Avançou para a janela, que dava para a rua. Olhou lá
para fora.
Um homem acenava com os braços, no meio da rua. Ele
assentiu, colocando para fora a mão, que acenou em
resposta ao outro. O outro homem foi embora.
— Meu amigo está aí — disse baixinho, voltando-se
para a mulher sentada no leito, mal enrolada no lençol. —
Vou embora, Manoela.
— Está na hora?
— Sim, acho que sim. Está na hora — disse, indo até a
cadeira onde estavam penduradas as suas roupas; o chapéu e
o cinturão com o revólver calibre 45. O homem pegou o
relógio de bolso e consultou a hora. — Cinco e meia —
disse. — Esse homem madruga. Levanta muito cedo para
mim. Está sabendo de algo. Pretende se afastar daqui, pelo
menos por uns tempos.
— Eu lhe disse. Você pode estar perdendo tempo...
— Não perdi. Mas ele deve estar suspeitando de alguma
coisa... E pretende escapar. Mas não conseguirá.
Vestiu-se com rapidez.
Ajustou o longo cinturão de couro, cheio de balas, à sua
cintura fina, que contrastava com os ombros largos.
As mãos rudes, com dedos longos, alisaram o cabelo
instintivamente, arrumando algumas mechas castanhas.
As feições mostravam-se duras na penumbra da alcova.
— Então, adeus — suspirou ela.
Ele assentiu. Colocou umas notas amassadas sobre a
mesinha. A mulher não disse nada, apenas olhou para o
dinheiro.
— Adeus, Manoela — despediu-se ele, pegando o
chapéu negro, para caminhar em direção à porta com
passadas largas, enérgicas.
— Nem sei o seu nome...
— O que isso importa? Um nome é apenas um nome.
Algumas poucas letras unidas ao acaso. Eu poderia ter
qualquer nome. Mas, se gosta, me chame de Jessy...
— É mesmo o seu nome?
— Sim é.
— Somente Jessy?
— Somente Jessy. Para que mais?
Abriu a porta para sair. Ela disse algo baixinho, com um
suspiro, estendendo-se na cama voluptuosamente.
— Adeus, Jessy — acrescentou.
— Boa-noite, Manoela. Nunca disse adeus a alguém.
Podemos voltar a nos ver. Nunca se sabe...
— Eu gostaria. Isso seria sinal de que esse outro homem
não pôde com você.
— Não poderá. Já pôde uma vez com alguém muito
querido. E para tal teve de usar a traição. Agora o conheço o
suficiente. Não poderá me trair.
— Mesmo assim, tome cuidado. A traição pode sempre
aparecer onde menos se espera. Essa frase eu também ouvi,
Jessy. Mas é verdade...
— Vou pensar nisso, Manoela.
E fechou a porta suavemente.
No corredor, escutaram-se os passos, afastando-se. As
velhas madeiras rangiam com o caminhar daquele homem.
Ela olhou de modo sombrio para as notas amassadas
colocadas sobre a mesinha. Depois seus olhos escuros se
umedeceram.
— Por quê? — sussurrou. — Gosto dele... Não tinha de
pagar. Mas pagou. E não recusei o dinheiro, porque é meu
ofício... Por que, meu Deus, por que?
Lá embaixo, a porta dos fundos se fechou, O homem,
Jessy, tinha ido, partido da vida dela. Talvez para jamais
voltar, como tantos outros.
Ou talvez para morrer, em vez de matar. Isso estava nas
mãos do destino.
E Manoela tinha um mau pressentimento desta vez.
***
— Está preparando a partida, Jessy. Alguém o deve ter
informado de sua chegada.
— As notícias voam, Haycox. Sobretudo quando se é
muito conhecido.
— Eu lhe disse que um homem importante como ele
teria informação fácil a qualquer momento. Sobretudo sobre
uma pessoa tão famosa quanto Jessy Tyrone.
— Ninguém pode evitar isso, afinal de contas. O
importante é evitar que parta de Wichita. Não quero
continuar andando atrás dele por todo o país, agora que o
encontrei.
— Poderia tê-lo apanhado, esta noite, em vez de se
meter com essa mundana...
— Nunca chame uma mulher desse jeito, seja ela quem
for, Haycox — cortou secamente, Jessy. — Elas merecem
mais respeito. Se eu fiquei com essa moça foi porque gostei.
Mas também porque Gaylord estava reunido no momento
com pessoas importantes de Wichita. Não poderia entrar na
casa do prefeito e do juiz e me bater num duelo. Era preciso
esperar.
— E esperou da forma mais doce possível — sorriu
Haycox.
— Isso não muda as coisas. Uma espera, quando se
aguarda esse momento por tanto tempo, é sempre longa e
irritante... O amor de uma mulher acalma os nervos e serena
o espírito. Agora, vamos. Não podemos perder mais tempo.
— Sim, vamos — assentiu Haycox, guiando seu amigo
rua acima. — Ele está sozinho em casa. Melhor que isso,
impossível.
— É verdade. Melhor, impossível. Mas, mesmo que
tivesse a proteção do demônio, eu acabaria com ele. É um
juramento, você bem sabe. E o cumprirei...
Haycox assentiu sem nada dizer.
E prosseguiram sua marcha pela escura e silenciosa rua
principal de Wichita, deixando para trás os grandes
estábulos das empresas de gado que adquiriam, anualmente,
as reses procedentes do Texas através da Rota Chisholm.
— É ali — sussurrou Haycox, apontando um prédio
isolado, no final da rua principal, tendo cavalariças ao lado.
— Agora fique aqui — ordenou Jessy. — O resto é coisa
minha.
— Não vai precisar de ajuda?
— Contra um único homem? — Jessy riu, com desdém,
acariciando a coronha de seu revólver. — Nem mesmo
contra três seria preciso ajuda, Haycox. Isso é algo pessoal,
de homem para homem. Eu dou conta de acabar com a vida
desse traidor canalha... Irah Gaylord...
E, afastando com mão forte seu companheiro do
caminho, seguiu sozinho pela rua, com passo firme, longo,
o olhar frio dos olhos cinzas cravado no prédio, em uma de
cujas janelas via brilhar uma luz solitária no negro da noite.
Haycox ficou definitivamente para trás, enquanto Jessy,
passo a passo, se aproximava da casa.
Quando chegou diante dela, parou. Suas botas não
produziam o menor ruído no pó da rua principal de Wichita
O brilho vinha da janela iluminada.
Seus movimentos, agora, eram cercados da maior
cautela.
Movia-se feito um felino na escuridão. Chegou à porta
da casa. Não estava trancada. Empurrou-a com suavidade.
As dobradiças não rangeram. Ele a abriu de todo.
A luz do andar superior atingia o térreo através da
escada estreita, de madeira, situada bem em frente à porta
da rua.
Ele ia subir, quando um som chegou pelo lado direito.
Depressa, sacou o revólver 45, que engatilhou sem
ruído.
Olhou na direção do som, os dedos fechados em torno da
coronha da arma de cano longo, prestes a disparar.
Eram os estábulos vizinhos.
Um cavalo agitara suas patas.
Uma voz apagada chegou a seus ouvidos:
— Quieto, quieto. Temos de viajar, amigo.
Estremeceu.
Reconheceria aquela voz entre mil que ouvisse... Era a
mais odiada para ele havia muito tempo, desde o dia em
que...
Não quis pensar...
Não, não queria recordar... Não agora.
Não queria que o ódio, a sede de vingança, a ânsia de
matar, pudessem cegá-lo naquele momento decisivo.
Avançou em direção às cavalariças. Viu um leve brilho
entre as paredes de madeira do lugar.
Agora, pensava entender. Gaylord dispunha-se a partir
em plena noite, a cavalo, afastando-se de Wichita.
Fugindo dele...
— Não permitirei — disse. — Chegou a sua hora, Irah
Gaylord. A hora de pagar. A hora do acerto de contas.
Chegou diante da porta do estábulo.
Lá dentro, um cavalo relinchou levemente. Ouviu ainda
um animal escoiceando no chão forrado.
Jessy riu duramente.
Viu, de costas para ele, o homem que mais odiava no
mundo. Era inconfundível, com sua enorme estatura, sua
corpulência, o cabelo cheio de fios brancos.
Estava encilhando um cavalo inquieto, que parecia olhar
ao redor com nervosismo.
Jessy avançou uns poucos passos.
Levantou a arma...
Apontou para as costas do homenzarrão.
Nada mais fácil do que apertar o gatilho agora, acabando
com seu inimigo.
Mas ele não era desses. Gaylord, sim. Não hesitava em
disparar nas costas de alguém.
Jessy Tyrone jamais fizera isso.
Nem o faria agora...
— Boa-noite, Gaylord — cumprimentou friamente.
O outro se voltou de modo brusco, como que
sobressaltado.
Nem fez menção de levar a mão ao revólver, embora
estivesse armado.
— Jessy Tyrone! — disse baixinho, olhando com olhos
arregalados para o outro. — Você!
— Finalmente frente a frente de novo — disse Jessy.
— Somente nós dois. Esperei muito tempo por este
momento. É magnífico que tenha chegado, Gaylord. Agora
não poderá trair ninguém nem jogar sujo. E o fim. O seu
fim...
— Jessy, não há um jeito de acertarmos isso? — disse,
com voz débil, seu interlocutor. — Não é preciso derramar
sangue novamente...
— Feche essa sua boca suja, miserável: — rugiu Jessy.
— E é você quem diz isso? Você, que derramou o sangue
mais querido de minha vida? Vamos, defenda-se se é
homem. Estou aguardando que tente empunhar essa arma.
O que está esperando? Só sabe disparar contra quem lhe dá
as costas ou não espera seu ataque, filho da mãe?
Pálido, mas estranhamente sereno, numa situação como
aquela, Irah Gaylord engolia em seco, esticando as mãos
abertas, sem querer empunhar arma alguma.
— Por favor, Jessy, uns momentos de trégua. Vamos
conversar... — pediu.
— Não! — bramiu Jessy, duramente. — Nem um
instante a mais. Se quer ou o mato, como a um cão raivoso,
Gaylord.
Avançou dois passos, decidido, a mão apertando o
revólver; o dedo tremendo no gatilho.
E de repente sentiu em sua cabeça o contato de um
cilindro de metal.
E o ruído de um percussor.
E uma voz fria, dizendo:
— Amiguinho, largue a arma, ou arrebento sua cabeça
agora mesmo. Acabou seu jogo, Jessy Tyrone.
Como que confirmando a ameaça, de trás dos fardos de
feno e de algumas colunas de madeira, surgiram mais
quatro homens, todos armados com revólveres, apontando
para Jessy, sem contemplação.
Jessy permanecia no meio do estábulo.
— Como vê, amigo Tyrone, voltou a falhar comigo —
riu, com desdém, Gaylord.
— Uma emboscada! — rugiu Jessy. — Estavam me
esperando!
— É verdade, amigo. Não devia confiar em ninguém,
nem mesmo em seu amigo Haycox...
— Traição... — murmurou Jessy, convulso. — Haycox
me traiu...
Virou a cabeça para a porta da entrada.
Lá estava Haycox, pálido, trêmulo, olhando para ele,
engolindo em seco. Deu um passo atrás quando viu a
expressão de Jessy.
— Eu... eu sinto muito, Jessy — murmurou, evasivo. —
Gaylord me pagou bem, muito bem...
— Sinto muito — e Gaylord soltou uma gargalhada
rápida. — Agora é meu prisioneiro. Largue essa arma. Eu
decidirei o que faremos com a droga da sua vida, bastardo
do inferno!
— Você ouviu o patrão — disse o homem que apontava
para a cabeça de Jessy. — Largue o revólver, Jessy. Desta
vez está perdido. Não poderá sair dessa...
Jessy fez menção de jogar seu revólver. Mas, apesar do
perigo mortal em que se encontrava, fez o contrário...
CAPITULO SEGUNDO

Com uma reação fulminante, de reflexos incríveis, Jessy


Tyrone entrou em ação.
Seu corpo era uma máquina perfeita de harmonia.
Músculos e tendões agiram na mais incrível e fulgurante
reação, com reflexos tão assombrosos, que deixou a todos
desconcertados.
Assim, diante de seis adversários armados e dispostos a
tudo, um único homem se comoveu, irado, de modo furioso,
tentando o impossível ou quase impossível, dado que o cano
de uma arma engatilhada pressionava sua cabeça, e bastava
que o homem que segurava essa arma apertasse o gatilho
para que seu crânio explodisse em mil pedaços, arrebentado
pelo chumbo.
Jessy jogou tudo naquela manobra.
Ele sabia disso... Era vida ou morte... Tudo ou nada...
Pois sabia também que, se entregando sem a menor
resistência nas mãos dos outros, sua morte era coisa segura.
Conhecia Gaylord muito bem para esperar clemência dele
ou de seus capangas.
Pegou de surpresa o homem que estava a seu lado, com
sua ação. E, mesmo assim, este, ao se refazer, em questão
de segundos, conseguiu apertar o gatilho.
Jessy Tyrone estava disparando nesse momento com seu
revólver, furiosamente, contra os outros cinco homens. Sua
arma vomitava chumbo, e lançou aqueles homens de modo
violento contra os fardos de palha, onde se reviraram,
sangrando, atingidos em várias partes de seus cornos.
A bala disparada pelo que apontava para a cabeça de
Jessy não chegou a perfurá-lo, felizmente, mas, mesmo
assim, não passou longe de seu crânio, apesar do fulminante
movimento de Jessy, que afastou sua cabeça da arma.
Ele sentiu a queimadura profunda do projétil rasgando
seus cabelos e a fronte esquerda.
Uma sensação de fogo candente invadiu seu cérebro.
Teve vontade de gritar de dor, enquanto o sangue jorrava
copiosamente, escorrendo-lhe pelo rosto.
A sensação dolorosa foi tão forte, que sentiu todo o
corpo se crispar. Seus olhos piscaram, dando a impressão de
que tudo diante dele sumia por alguns segundos, voltando
logo depois, para desaparecer logo em seguida.
Mas, mesmo assim, não parou de disparar com raiva
inesgotável, até ver, estendidos sobre a palha os quatro
pistoleiros, ao passo que Gaylord estava desarmado,
olhando, lívido, para ele, com a mão direita sangrando,
devido a um dedo partido por um disparo. Seu revólver
estava caído junto a seus pós, arrancado pela bala certeira
disparada pelo 45 de Jessy Tyrone.
Jessy ainda teve força e ânimo, apesar de sentir as
imagens vacilantes diante de si, para se voltar e apontar a
arma para o homem que continuava atrás dele e que acabara
de o ferir.
Tudo isso aconteceu em poucos segundos.
O homem, apesar de armado e de disparar contra a
cabeça de Jessy, entrou numa espécie de pânico histérico.
Jogou a arma longe de si, gritando:
— Perdão! Perdão! Não queria matá-lo! Não queria
fazer isso, Jessy!
Jessy o olhou friamente.
Depois engatilhou o revólver.
Era a sexta bala que estava em seu revólver. A última...
Sua raiva por aquele ferimento na fronte quase o fez
esquecer quem era, seus próprios sentimentos, seu código
de honra pessoal e seu código de humanidade. Ainda assim,
conteve-se a tempo. Não chegou a apertar o gatilho contra
um homem agora indefeso, apesar do ferimento que lhe
provocara pouco antes.
— Saia! — disse, mantendo tenso o dedo sobre o
gatilho. — Saia daqui, antes que me arrependa e lhe mostre
como se pode estourar uma cabeça, maldito!
O outro estava muito longe de querer aprender
semelhante lição. Aproveitou o momento para sair correndo
do estábulo, enquanto o ferido Gaylord gritava com voz
abafada:
— Covarde, volte aqui! Não me deixe sozinho com
Jessy! Estúpido Saughnessy, não fuja, volte aqui!
Mas o tal homem tinha fugido como um rato assustado
do local da emboscada contra Jessy, deixando sozinhos os
dois inimigos, frente a frente.
— E agora voltamos a ficar apenas nós dois, Gaylord —
disse Jessy, sentindo uma rara fraqueza mental, uma visão
opaca de tudo que chegava às suas retinas, à medida que a
lancinante dor do ferimento aumentava de intensidade, sem
que o sangue deixasse de escorrer.
— Estou ferido, Jessy — gemeu o outro. — Não seria
justo...
— Também estou ferido, maldito! — disse Jessy, que
procurava em vão por seu amigo Haycox, de quem perdera
todo o rastro durante o violento tiroteio contra Gaylord e
seus capangas. — Vamos, empunhe essa arma, tente se
defender, miserável. Agora não terá mais ninguém que lhe
dê cobertura... Não poderá mais recorrer a traições, porque
esta falhou lamentavelmente para você. Agora isso é entre
nós dois. Um duelo de morte. Você e eu apenas. Um dos
dois sobreviverá. Mas somente um, lembre-se disso,
Gaylord...
O outro, calado, trêmulo, com o rosto pálido como o
gesso, engoliu em seco, olhando o revólver caído a seus
pés, que reluzia entre o feno disperso.
— Use a mão esquerda, maldito! — disse Jessy. — Sei
que sabe usá-la.
— Você me matará... Estou em inferioridade...
Alguma coisa falhava em Jessy. A visão não estava boa.
As formas se distorciam, as luzes oscilavam, a cabeça doía
terrivelmente.
— Depressa — disse, sentindo que a qualquer instante
poderia desmaiar e ficar totalmente à mercê de seu odiado
inimigo. — Empunhe essa arma, ou o matarei!
Gaylord se decidiu. Inclinou o corpo, esticou os dedos
da mão esquerda em busca do revólver.
Nesse momento, Jessy sentiu uma forte dor lhe cortando
o cérebro, como uma agulha ardente.
Por um instante, todas as imagens se apagaram. Viu
apenas vultos. Lançou um grito, sua mão se contraiu... e seu
revólver disparou sozinho.
Gaylord, com um estranho sorriso, percebeu isso
imediatamente.
Apertou os lábios, numa expressão maligna, e recuperou
a auto-confiança, lançando-se à procura da arma caída a
seus pés, segurando o revólver com força, começando a
levantá-lo para aproveitar o momento crucial em que seu
inimigo ficara com o revólver vazio...
Também Jessy, com um poderoso esforço, quase sobre-
humano, e embora continuasse tendo problemas na vista,
abaixou-se como uma centelha, soltando seu revólver e
pegando a arma que o homem que o ferira lançara no chão.
Foi mais rápido do que Gaylord, apesar de seu estado
momentâneo.
Quando o outro quis engatilhar sua arma, viu-se,
surpreendentemente, com a arma apontada para ele por
Jessy, cujo revólver já estava engatilhado.
Com um grito de pavor, o covarde jogou a arma, sem se
atrever a ganhar seu adversário na rapidez. Jessy disparou,
ao vê-lo fugir, com o objetivo de deter sua corrida.
Mas errou.
Pela primeira vez em muitos anos, Jessy Jessy, o melhor
pistoleiro entre Missoun e Nevada, errou num disparo, com
todas as vantagens a seu lado.
Gaylord fugiu do estábulo como o que ele realmente era:
um rato assustado.
A bala que o revólver que Jessy estava usando apenas
silvou junto a ele, indo se cravar na viga, perto de um monte
de feno fresco.
Depois, como acontecem com o traidor Haycox, Gaylord
desapareceu na noite, sem dar a Jessy nova oportunidade de
ajustar suas contas de modo definitivo.
Jessy tentou seguir seu adversário. Mas era inútil. Sua
mão tremia, sentia os olhos invadidos por estranhas
sombras, como se, de repente, o candeeiro do estábulo
estivesse sendo apagado.
Oscilou, sentindo que perdia a arma, que se soltava de
seus dedos. Agarrou-se a uma viga para não cair. Mas não
pôde evitar.
Resvalou. Seu corpo fornido se dobrou no chão, entre a
palha...
E sentiu que uma estranha neblina, escura e fria como a
própria morte, invadia seus olhos e sua mente, fazendo com
que perdesse toda a sensibilidade.
***
— Como está, doutor?
— Não está muito bem, é verdade. Mas pelo menos está
vivo. E, com uma bala passando tão perto dele, já é alguma
coisa. Não, não é bem isso. E um milagre.
Manoela, a moça da cantina, assentiu, observando o
homem estendido na cama com a cabeça vendada e
apresentando ainda uma mancha vermelha de sangue na
fronte esquerda.
— Sim, acho que sim, doutor — suspirou a jovem. —
Uma polegada mais, e estaria morto.
— Nem precisava isso — sentenciou o velho médico,
Lydecker, de Wichita, fechando sua maleta lentamente. —
Com meia polegada ou menos ainda, seria o suficiente. Era
uma bala mortal.
— Mas certamente não tinha o nome dele escrito —
sorriu ela, tristemente. — Alguns pistoleiros que conheci
dizem isso, doutor.
— Que se fiem nessas coisas, e vão ver o que acontece.
Há sempre uma bala que acerta. Este homem enfrentou um
punhado de inimigos. Sozinho, matou quatro. E acho que
dois ou três escaparam... Isso não é lutar. É arriscar a vida
sem a menor possibilidade de ganhar.
— Mas ele ainda está vivo...
— Já lhe disse antes: um milagre, simplesmente. Mas
não há muitos milagres. É melhor que não volte a
experimentar a sorte... se é que poderá voltar a empunhar
uma arma.
Vivamente, Manoela virou a cabeça, procurando com
seu olhar o do velho médico.
— O que quer dizer com isso de “se é que poderá voltar
a empunhar uma arma”? — indagou.
— Não, nada — sacudiu a cabeça o médico, dirigindo-se
para a saída. — Temos apenas de esperar a evolução do
ferimento, moça. Vai ficar com ele em seu quarto?
— Sim.
— Você sabe o que faz. É seu noivo?
— Não tenho noivo, e o senhor sabe muito bem disso —
sorriu, com amargura, Manoela. — Apenas homens. Ele é
mais um...
— Não parece.
— Na noite passada me tratou bem. E um homem
corajoso. E honesto. Sabe ser um cavalheiro com uma
mulher. E mais homem do que muitos que conheci. Acho
que lhe devo isso, doutor.
— Se você diz... — ele deu de ombros. — Mas agora já
sabe quem ele é, não?
— O senhor disse que se chama Jessy Tyrone.
— E não sabe quem é Jessy Tyrone?
— Bem, acho que não. Suponho que seja um pistoleiro...
— É mais que isso. É o melhor e o mais célebre
pistoleiro de todo o oeste, filha. Um homem a quem muitos
desejariam matar, mesmo sem ter coisa alguma contra ele,
pelo simples fato de passarem à história como “o homem
que matou Jessy Tyrone”. Entende, agora?
— Sim... Acho que entendo — olhou longamente o
homem adormecido, estendido em sua própria cama.
— O senhor está dando a entender que pode ser perigoso
tê-lo aqui comigo.
— Mais ou menos — suspirou o médico, já na porta do
quarto. — Se alguém souber que Jessy Tyrone está.., bem,
está ferido... pode acontecer qualquer coisa. Sei que há um
bando de rapazinhos imberbes, ávidos de glória, que mal
sabem manejar um revólver, capazes de vir a Wichita para
inscrever a mosca da morte de Jessy em suas armas. Deus
queira que ninguém saiba disso.
— Conta tudo logo, doutor, O senhor está me
escondendo alguma coisa, o que há com o ferimento de
Jessy Tyrone? O que tenta dizer sem se atrever a dizer?
Porque, se é apenas um arranhão, por mais fundo que seja,
em coisa de três ou quatro dias pode estar totalmente
recuperado...
O doutor Lydeoker meneou a cabeça, olhando para
Manoela como se hesitasse na forma de lhe expor a questão.
Ao fim julgou que não devia lhe esconder a situação. E
lhe disse a verdade.
Manoela empalideceu profundamente. Mas não
comentou nada.
A porta se fechou atrás do médico. A jovem prostituta
caminhou em silêncio até a cama, com seu olhar fixo no
pálido, sereno rosto do homem inconsciente ali estendido.
— Meu Deus — disse ela, juntando as mãos. — Meu
Deus...
***
Jessy olhou ao redor, apoiando-se numa parede da
cantina.
— Ainda me sinto fraco — confessou. — A cabeça gira,
Manoela.
— Claro — sorriu ela, suavemente. — Quer ajuda?
— Não, não. Nada disso — recusou ele. — Tenho de me
recuperar sozinho. Em pouco tempo tudo isso deixará de me
incomodar, tenho certeza.
— Claro — assentiu ela, evitando olhá-lo de frente. —
Quer beber alguma coisa?
— Sim, estou com a garganta seca. Mas não me atrevo a
beber uísque. Tenho medo de que me faça a cabeça dar
mais voltas. Uma cerveja será suficiente, por favor...
— Claro — assentiu Manoela. — Eu mesma vou servi-
lo, Jessy.
Ele assentiu, apoiando um cotovelo no balcão e tocando
com a mão as pálpebras.
Sentia uma fadiga especial quando a luz do sol lhe batia
nos olhos. Ainda era resultado daquele projétil que lhe
rasgara a fronte, pensou com desagrado, enquanto Manoela
colocava diante dele a caneca de cerveja.
— Sua cerveja, Jessy — disse. — Espero que esteja bem
servida. meu trabalho não é no balcão...
— Pois você poderia se dedicar a isso — sorriu Jessy. —
Serviu muito bem. Não é mesmo, Ryker?
O cantineiro assentiu com um grunhido, dirigindo um
olhar de soslaio a Manoela, enquanto Jessy bebia sua
caneca de cerveja e se dirigia a uma mesa, onde se sentou
lentamente.
— Sabe que este homem deve sair o quanto antes da
minha casa. Manoela — disse, com voz seca, o cantineiro
Ryker.
— Ele vai na hora certa — respondeu ela, em voz baixa.
— Só está aqui há quatro dias e ainda não está totalmente
recuperado, você bem viu...
— Pois, para um sujeito tão famoso, está demorando
muito a ficar bom de todo — queixou-se Ryker. — E
ninguém se atreve a vir à minha cantina, sabendo que alojo
nada menos que Jessy Tyrone. E você não recebe um dólar,
além de tudo.
— Mas lhe pago minha porcentagem como se estivesse
trabalhando, seu unha-de-fome — respondeu a jovem,
furiosamente. — De modo que não se queixe tanto de mim
e feche o bico. Se eu for embora de sua cantina imunda.
garanto que encontrarei trabalho dentro de pouco tempo.
— Está bem, faça como quiser. Mas preferia que esse
sujeito estivesse fora daqui dentro de dois dias.
— Com certeza — disse ela, secamente. — Até lá já
estará bom de todo.
Serviu um uísque para si, e foi juntar-se a Jessy. Ele a
olhou, bebendo sua cerveja lentamente.
— O que falava com Ryker? Pareciam discutir...
— Não era nada. Coisas nossas. Você sabe, o negócio...
— Não me engane, Manoela. Ryker não gosta de me ter
aqui. Ele quer clientela. E as pessoas não vêm mais desde
que eu estou na cantina. Parecem temer alguma coisa. O
quê? Que venham pistoleiros de todas as partes, e haja um
grande tiroteio?
— Possivelmente. As pessoas são muito estranhas em
Wichita.
— Além disso, você fez parte do negócio. Trabalha para
ele. E agora está o tempo todo se dedicando a mim. Isso não
é justo.
— Não diga bobagem. Somos amigos, não?
— Mas você ganha a vida de um certo modo. Não tenho
por que impedi-la — apanhou umas notas e colocou na mão
da moça — Tome, isso pode ajudá-la, pelo menos para
compensar suas perdas e as de Ryker.
— Não, não, nada de dinheiro — recusou ela, com
energia, tentando devolver as notas.
— Por favor, Manoela, aceite — e apertou a mão da
moça, com as notas no meio. — Pelo menos poderá dar sua
parte a Ryker para que ele não reclame muito. É um velho
avaro. Isso fará com que fique um pouco calado. Eu, de
qualquer modo, devo ir embora.
— Não, ainda não, eu lhe peço. Fique, pelo menos, mais
alguns dias...
— Mas já estou bem... — objetou ele, sorridente. —
Uma tontura de vez em quando, e nada mais. Isso vai
passando com o tempo...
— Sim, é claro. Mas prefiro que vá embora quando
estiver mais firme, mais seguro de si.
— Como quiser. Mas não pode passar de depois de
amanhã. Então, irei embora, certo?
— Sim, Jessy, de acordo — e ela o olhou longamente.
— Então não farei qualquer objeção ao que decidir, palavra.
— Assim está melhor — e ele acariciou-lhe o rosto.
Manoela suspirou, ao sentir os dedos dele roçando sua pele,
descendo pelo pescoço até acariciarem com suavidade o
início de seus seios rijos...
— Jessy, por favor... Vamos subir. Quero ficar com você
o tempo todo. A sós... Vamos, querido...
Ele a olhou com um sorriso.
— Sim, como quiser — disse Jessy, acariciando com
maior intensidade o estômago, o ventre e as coxas da
jovem. O corpo dela tremia de desejo sob a roupa. —
Vamos...
Levantaram-se.
Os olhos dela ardiam. Ele a olhava de modo intenso,
fixo.
— Gostaria que você fosse só minha — disse Jessy, de
repente, enquanto se dirigiam à escada, segurando-a, sob o
olhar indiferente de Ryker, que limpava os copos atrás do
balcão.
— Eu já sou, Jessy — disse ela.
— Mas para sempre, Manoela.
— Ah, Jessy, você me deixa tão feliz... Sabe que isso
não é possível. Sou uma mulher pública...
— E o que isso tem a ver? Você é uma mulher
maravilhosa. E lhe devo muito. Ninguém se preocupou
comigo àquela noite, exceto você.
Ela ouvia aquilo enternecida, mas em silêncio.
Ele prosseguiu:
— Meu melhor amigo, Jim Haycox, me traiu por
dinheiro. Irah Gaylard me preparou uma emboscada suja.
Um tal de Saughnessy quase me estoura os miolos... E
nesse ninho de cobras, somente você, com seu desinteresse
e sua ternura, me ajudou a recuperar...
— Jessy — ela tentou interrompê-lo, mas ele não deu
atenção às palavras da moça e continuou falando.
— Você me deu sua cama, seu quarto, os seus cuidados,
seu afeto... Nunca poderei lhe agradecer tudo isso, Manoela.
Jamais terei condição de lhe pagar por isso, que tanto vale...
— Já me agradece de sobra, falando assim — disse ela,
trêmula, emocionada, surpresa. — Sinto algo tão especial
por você...
— Manoela...
Tinham chegado ao pé da escada que levava ao andar de
cima da cantina de Ryker.
Neste exato momento, algo veio perturbar aquela paz
que fora a convalescença de Jessy Tyrone.
Uma voz fria soou, lá na porta da cantina.
— Não se mova, Jessy Tyrone... Vim matá-lo!
Os temores do avaro cantineiro Ryker pareciam ter
sentido.

CAPÍTULO TERCEIRO

Manoela teve uma convulsão de raiva.


Jessy deteve-se, rígido.
Pouco a pouco, voltou a cabeça, esperando ver um
revólver apontado para ele.
Não havia nada disso.
Na porta, recortado contra o sol da rua, uma figura
juvenil, espigada, permanecia com as pernas meio
afastadas, os braços pendurados ao longo do corpo, dois
revólveres no cinturão.
O recém-chegado usava camisa branca, calça cinza e
botas da mesma cor. Um chapéu também cinza cobria seus
cabelos louros, longos.
— Quem é você? — perguntou, friamente, Jessy.
— Meu nome é Young Harris — disse o outro, com voz
aguda.
— Sim, parece bem jovem.
— Sou muito jovem. Tenho apenas dezoito anos. Mas
venho matá-lo, Jessy.
— Por quê? Eu lhe fiz algum mal? — perguntou,
suavemente, o pistoleiro.
— Não. Nem sequer nos vimos antes. Mas tenho de
matá-lo...
— Entendo — suspirou Jessy. — Você é um desses...
— Fiquei sabendo que o encontraria aqui. E assim é.
Vim atrás de você. Não pode se negar a lutar. Está com seu
revólver no cinturão. Use-o, ou o matarei como a um cão.
— Escute, filho, volte por onde veio. Beba um copo e
suma. Não quero matá-lo. Não quero matar ninguém.
— Não me chame de filho! — rebelou-se, furiosamente,
o jovem. — Sou seu inimigo! Serei o homem mais famoso
de todo o oeste quando sair daqui, porque terei matado
Jessy Tyrone.
— É possível — admitiu, tristemente, Jessy. — Mas se
perder? Então, sairá daqui morto, a caminho de uma tumba
fria. Se eu fosse você, não tentaria. Não vale a pena,
acredite.
— Ficou covarde de repente? Hem, Jessy Tyrone? —
instigou-o o jovem. — Sou muito homem! Já matei três
pessoas! E você será a quarta marca no meu revólver.
— Ouvi isso também de outros, mas jamais conseguiram
gravar essa marca em seus revólveres, rapaz.
— Também não sou um rapaz! — rugiu o jovem, com
raiva. — Vamos, dispare, maldito, ou vou deixá-lo todo
perfurado!
E, sem vacilar um instante, sacou sua arma,
engatilhando-a com surpreendente rapidez para um rapaz
tão jovem, pronto para começar a disparar contra seu
antagonista, apesar de que este não fizera a menor menção
de empunhar o revólver.
Manoela gritou, afastada para o lado por um firme
empurrão de Jessy, ao mesmo tempo em que sua mão
direita voava para a coronha de sua arma.
Apesar de toda a vantagem que o novato tinha naquele
duelo, este se revelou insuficiente diante da vertiginosa
rapidez de Jessy, que ficou com seu revólver engatilhado e
pronto para disparar décimos de segundos antes do tal
Young Harris, mesmo tendo começado a se mover depois.
Ressoaram as duas detonações na cantina.
Ryler, assustado, escondia-se atrás do balcão.
A bala de Jessy, fulminante, cravou-se entre as duas
sobrancelhas do jovem.
Um negro orifício se abriu, gotejando sangue.
Apesar disso, Young Harris disparou, mas a bala já
brotou sem direção, porque ele tinha movido o braço de
modo espasmódico, com o chumbo enterrado no crânio.
Jessy ouviu o projétil silvar longe dele, acabando sua
trajetória num espelho da cantina, que se quebrou de modo
ruidoso.
Depois, com olhar triste, sem rancor e até com certa dor,
viu o jovem oscilando, começando a cair lenta-mente, muito
lentamente, sobre as pernas dobradas, com o assombro da
morte estampado no rosto imberbe.
— Não podia nem tentar atirar na mão dele —
lamentou-se, amargamente, Jessy. — Era muito arriscado
com um rapaz tão rápido com uma arma, apesar de sua
pouca idade. E tive de atirar para matar. Deus, que pena!
Sem dúvida, só aprendeu isso na vida, em vez de estudar
algo proveitoso... Queria ser o homem que matou alguém...
Como se isso fosse uma carreira ou um título de glória...
Meneou a cabeça com desalento. Depois murmurou,
baixinho:
— Estranho. Com o sol que fazia... e agora o tempo
ficou nublado de repente.
Manoela mordeu o lábio inferior.
Ryker, que tinha reaparecido atrás do balcão, depois de
terminado o breve duelo, olhou com espanto para o
pistoleiro, que guardava lentamente seu revólver, enquanto
fechava os olhos, esforçando-se para enxergar.
— Com certeza vai chover, quando escurece desse modo
— comentou Jessy, com ar surpreso.
— Mas que diabos está dizendo este homem? —
resmungou Ryker, enquanto Manoela empalidecia. — Se o
sol continua brilhando com toda a sua força... Não há uma
só nuvem no céu.
— Meu Deus... Então... — Jessy apoiou-se na mesa mais
próxima, passando a mão diante dos lhos, com gesto
crispado. — Então, o que está acontecendo? Tudo se
escurece de vez em quando. Não estou vendo. nada agora.
Diga que não é verdade. Diga que há nuvens no céu, que
Ryker mentiu... É como se fizesse noite de vez em quando...
— Sinto muito, Jessy — gemeu Manoela, com a voz
sumida. Devia ter lhe dito, mas não tive coragem...
— Dizer o que? O que quer dizer, afinal, Manoela, pelo
amor de Deus? — pediu ele, voltando-se para a jovem,
tentando avançar, embora tenha tropeçado num banco, a
ponto de cair. Esticou um braço, tateando no ar, como se
não soubesse onde se encontrava. — O que está
acontecendo comigo, maldição?
— O...o doutor Lydecker explicou — soluçou a jovem.
— Tinha de acontecer um dia, se estivesse certo o
diagnóstico dele...
— Acontecer o quê? Deus, eu não estou vendo nada!
Tudo escureceu!
— É isso, Jessy. É seu ferimento na fronte. Disse o
médico que afetou o nervo ótico... algo assim. Disse que,
qualquer dia, assim de repente, chegaria a noite para você...
— A noite? Manoela. A que noite se refere? — indagou
ele, trêmulo.
— A cegueira, naturalmente. Sinto muito Jessy. E
terrível, mas... você... ficou cego.
***
— Cego!
— Sim, Jessy. Tem de se acostumar com essa idéia de
uma vez por todas...
— Eu, cego! Um homem que depende do olhar, que tem
de ver seus inimigos! Cego, eu, a quem dezenas de homens,
ou de moleques como esse pobre Young Harris, procuram
constantemente para matar e conseguir assim algum
prestígio!
— Pode se esconder por um período, viver com nome
falso. Ninguém vai achá-lo... Talvez um dia a cegueira
tenha cura e...
— Cura? Você acha que os olhos que deixam de ver
voltarão a enxergar algum dia? Não, Manoela, isso jamais
acontece. E não sirvo para viver escondido feito um rato.
Um nome falso não serve para nada. No fim, há sempre
alguém que o reconhece, alguém que o encontra...
Sobretudo quando se é famoso, tristemente famoso...
— Deve se acalmar — suspirou ela, acariciando as mãos
dele. — Desesperar não leva a nada. Está vivo, e é isso o
que importa.
— Eu, vivo? Chama a isso de viver?
— Embora não acredite, sim. Você está aqui, respirando,
falando comigo, sentindo, ouvindo, movendo-se. Somente
uma coisa lhe falta: a visão.
— E acha que é pouco? É tudo, Manoela.
Absolutamente tudo: luz, cores, seres, coisas, terra, céu...
Tudo!
— É muito, mas não é tudo. Precisa pensar assim.
— Não posso. Sinto, mas não posso. Teria sido melhor
que aquele miserável tivesse vencido e partido. Se eu
soubesse, teria deixado que ele fosse mais rápido, para me
vencer...
—E ser agora o defunto? Isso seria um suicídio, Jessy.
Um ato de covardia. E você não é covarde, não pode ser.
Jessy não respondeu.
Caminhava pelo dormitório como se fosse um tigre
enjaulado. De vez em quando esbarrava em algum móvel e
o jogava para o lado, xingando furioso diante de sua
incapacidade de enxergar. Deteve-se, ofegante, junto à
janela. Apalpou-a e segurou os vidros com as mãos
crispadas.
— Luz... Meu Deus, luz... — pediu. — Aí está... Sinto o
calor do sol na pele, mas não consigo vê-lo. Está tudo
escuro para mim. Tudo é noite!
— Sim, Jessy. Você mesmo acaba de dizer. Este sol que
não enxerga esquenta a sua pele. Está aprendendo a captar
outros sentidos que antes ficavam adormecidos. Assim, vai
compensar o seu defeito pouco a pouco. Esta noite, em que
agora se mexe, pode não ser nova para você, alguma vez,
com certeza, teve de se movimentar num quarto escuro,
numa noite fechada, negra como a boca do lobo...
— Isso é verdade. Mas passava. E sempre voltava a luz.
Agora, é diferente.
— Só é diferente nisso. Tem de se habituar à noite.
Viver nela sem se desesperar.
— Isso é fácil de dizer, quando não se sofre...
— Gostaria de ser tão cega quanto você, agora, para
podermos compartilhar nosso infortúnio, Jessy, se isso
pudesse ajudá-lo de alguma forma — disse ela, abraçando-o
ternamente. — Mas não é possível. E não posso nem devo
furar meus olhos, agora que talvez precise deles mais que
nunca... para ser sua guia.
— Você, minha guia, Manoela? Você? Sacrificar toda
uma vida jovem por minha causa? Isso é uma completa
loucura. Nem fale nisso...
— Falo de todo o coração, Jessy, minha vida. Serei feliz
ficando a seu lado, guiando-o por todos os lugares, sendo
sua guia nessa noite que agora cerca sua vida...
— Não, não. Não deve me seguir no meu infortúnio.
Viva sua vida, Manoela. Deixe que eu viva meu destino,
seja ele qual for.
— Nem pense nisso. No vou abandoná-lo, enquanto a
visão lhe faltar, pode ter certeza. A menos que me deixe de
lado, dizendo que o aborreço e que me despreza.
— Seria impossível. Uma criatura tão terna, tão nobre, é
impossível a gente odiar ou desprezar, Manoela — disse
ele, pegando as mãos da jovem, que estremeceu. — Acho...
acho que começo a sentir algo muito profundo por você...
Ah, Manoela, me ajude, preciso tanto de você!
E abraçou-se a ela, dominando um soluço com toda a
força de vontade.
Manoela, radiante, pegou-o em seus braços, beijando-o e
abraçando-o com paixão, com profunda ternura, trêmula de
felicidade.
— Sim, meu amor, minha vida — disse. — Eu o
ajudarei até o fim dos meus dias, se for preciso. Você me
terá sempre a seu lado, Jessy querido...
E as lágrimas escorreram pelo rosto da mulher.
***
— Sei de boa fonte, Gaylord. Ele está cego!
— Cego? — Irah Gaylord olhou com olhos reluzentes de
prazer para Jim Haycox. — Não, não posso acreditar...
— Uns sujeitos que passavam por Wichita me juraram.
Disseram que ele disfarça, mas que está cego. Vê-se que a
bala disparada por Saughnessy não foi inútil como você
pensava, Gaylord.
— Se é verdade, esta poderia ser nossa grande
oportunidade de nos livrarmos dele — sussurrou o outro,
olhando para sua mão direita inutilizada, onde faltava o
dedo indicador, destroçado pela bala de Jessy, no estábulo.
Além disso, Gaylord tinha várias cicatrizes pelo dorso e
palma da mão, resultado dos estragos feitos pela mesma
bala, que deixara paralisada aquela mão direita do homem a
quem Jessy tanto odiava. — E eu me vingaria para sempre
de minha mão perdida...
— Além disso, se algum dia ele recuperar a visão,
tornará a buscá-lo — disse Saughnessy, que limpava um
rifle atentamente, num canto. — Isso é certo... Se o
liquidarmos enquanto está cego, livramo-nos de problemas
para sempre, Irah.
— Tem razão, Saughnessy. Sua bala nos facilitou muito
as coisas. Desculpe se alguma vez reprovei sua falta de
serenidade naquela ocasião. Será divertido brincar com um
Jessy cego, como o gato brinca com o rato. Preparam as
coisas. Vamos voltar os três a Wichita. E, uma vez lá,
estudaremos a melhor forma de acabar com Jessy Tyrone de
uma vez por todas...
— Para mim também será um motivo de tranqüilidade
— disse Jim Haycox. — Não gosto da idéia de saber que
Jessy está vivo, depois que o traí por dinheiro, Gaylord.
Éramos amigos há mais de dois anos, e essa traição ele não
esquecerá enquanto viver.
— Não se preocupe — riu Gaylord. — Terá ocasião de
descansar de uma vez por todas quando souber que seu
amigo está bem morto, Jim. Mas lembre-se de que também
não confio muito em você.
— Em mim? Por que diz isso? — espantou-se Haycox.
— Porque se foi capaz de trair Jessy, sendo amigo dele,
faria a mesma coisa comigo, que nem sequer sou seu amigo.
Só está a meu lado por dinheiro. Em gente como você
nunca se confia, Jim.
— Eu lhe disse que pode confiar em mim...
— Disse, mas eu não confio. De forma que é melhor que
continue a me servir lealmente, se quiser continuar com
vida. E mais ainda no caso de Jessy.
— Não se preocupe. Tenho tanto interesse quanto você
em acabar com ele. Desta vez, em Wichita, estando
incapacitado para lutar, não poderá escapar...
***
— Acho que gostaria de saber por que desejo matar Irah
Gaylord...
— Imagino que tenha suas razões, Jessy — disse
Manoela, olhando para os olhos opacos daquele homem
que, poucas horas antes, tinha a luz e a força do ódio e da
morte em seu olhar.
— Tenho minhas razões, sim. É uma velha história —
suspirou ele, recostando-se na cadeira, enquanto limpava os
lábios com o guardanapo e colocava o garfo sobre o prato
do jantar. — Uma história de sangue e de maldade, que
começou há três anos, em Rapid City, em Dakota do Sul...
Irah Gaylord era alguém ali. Um sujeito importante, com
negócios e muita influência. Achava-se capaz de tudo, só
porque atingiu poder e autoridade. Hipócrita, falso e ruim,
soube enganar muita gente, mas não a mim nem a
Samantha.
— Samantha? — repetiu Manoela, com uma repentina
pontada dolorosa no coração, como que esperando uma
rivalidade temida desde o início.
— Sim — disse ele, com um sorriso amargo e cheio de
dor. — Uma bela moça. Doce, terna e graciosa. Um anjo de
beleza e bondade. Alguém merecedora de tudo de bom. Eu
a amei. Eu me apaixonei por ela, Manoela. Ia ser minha
esposa. Marcamos a data do casamento.
— E... — disse Manoela, num fio de voz.
— E então Irah Gaylord se meteu. Samantha rechaçou as
propostas dele, aparentemente honestas e bondosas. Eu o
conheci pouco depois. Gaylord ficou furioso ao ver que seu
dinheiro e seu poder não conseguiam dobrar a vontade de
uma moça por quem tinha apenas um capricho carnal, e não
amor nem afeto... Com a ajuda de um bando de facínoras,
pagos com dinheiro dele, Gaylord a raptou.
— Céus... — disse Manoela.
— Ele a levou de Rapid City certa noite. Quando a
encontrei... estava morta. Aquele porco, bastardo miserável,
a tinha violentado. Depois de manchar aquela moça tema,
jogou-a no prado e foi com seus homens comemorar a
façanha. Mas Samantha não teve sorte, pois, além da
humilhação, foi picada por um réptil venenoso. Quando a
encontrei, estava agonizando. E estava ferida; cheia de
arranhões, hematomas, e tinha as roupas rasgadas, o corpo
ultrajado...
— Que barbaridade! — exclamou Manoela,
sinceramente chocada.
— Ela me confessou tudo. Eu a beijei, e ela morreu com
esse beijo nos lábios. Matei a serpente, mas sabia que não
era ela a culpada. Fora apenas um instrumento fatídico do
destino desatado por uma única pessoa: Irah Gaylord.
— Calma, Jessy. Se não quiser me contar...
— Não — disse ele. — Faz bem recordar tudo isso que
guardo dentro de mim há anos. Somente Jim Haycox sabia
da história. E o canalha me traiu pelo dinheiro fácil de
Gaylord. Sabia que Jim era um espertalhão, mas não
imaginei que chegaria a tanto. Agora, por culpa de sua
traição, estou cego... longe de minha sonhada vingança.
Mais longe do que nunca.
— Isso nunca se sabe, Jessy. Deus é misericórdia, me
disse um dia um pastor. Ele me disse que Deus perdoa até
as pessoas como eu, que vivem no pecado.
— Isso é verdade. Deus não pode ser cruel a ponto de
não perdoar uma mulher que só faz o que a vida a obriga a
fazer. Há em você muito mais motivos de afeto por parte de
Deus do que nos que são chamados de Virtuosos... Bem,
como eu dizia, Samantha morreu, e voltei a Rapid City com
seu cadáver. Fui à procura de Gaylord. Estava festejando
num bordel. Fui atrás dele. Assustado, ele fugiu, deixando
seus capangas para lhe darem cobertura. Eu ia matá-lo.
Alguém o avisou, e foi aí que conseguiu fugir. Soube que
tinha vendido tudo ao banco local, para jamais voltar por lá.
Procurei-o até encontrá-lo, agora. E me escapou de novo. E
nem posso procurá-lo mais.
— Calma, Jessy. Nada é irremediável, salvo a morte.
— A cegueira é. Não voltarei a enxergar.
— Não pode ter certeza disso. É uma lesão produzida
pela bala, O doutor Lydecker não tinha certeza de coisa
alguma. Só imaginava que poderia ficar cego a qualquer
instante, caso o dano fosse o que pensava...
— E foi como ele pensou.
— Mas ele disse que não podia afirmar que seria uma
cegueira definitiva. Somente os especialistas de outros
lugares poderiam dar a palavra final.
— Um jeito de suavizar as coisas, você bem sabe. Já viu
algum cego tornar a enxergar?
— Não, mas...
— Então, pare de tentar me consolar com falsas
esperanças. Sei enfrentar a desgraça. Lamento apenas que
não possa executar meu piano, e deixar que a morte de
Samantha fique sem um castigo justo...
— Por que não confia na lei e esquece a vingança?
— Porque a lei não existe. Não existiu quando mataram
Samantha. E não existe quando realmente se precisa dela. A
lei foi criada apenas para punir os infelizes, mas não os
verdadeiros culpados. Por isso, tenho de cumprir minha
vingança. Não se pode chorar, Manoela, mas sim devolver
golpe por golpe...
— Você está amargo, Jessy...
— Sim, estou. E muito desenganado de tudo. Quando
encontramos pessoas como você, chegamos a crer que o
mundo é melhor do que pensávamos. Mas é uma pequena
ilusão. Você é uma vítima dos outros. Não faz parte deste
mundo. Tiram-na dele porque não gostam de você ou não a
aceitam, já que a maioria vive no esterco moral...
— Jessy, jamais ouvi alguém falar assim... — disse ela,
absorta.
— Talvez porque outros não tiveram a oportunidade de
estudar. Eu tive. Aprendi coisas que logo a vida me
demonstrou que não valiam para nada: cultura, honradez,
responsabilidade, sentido do dever. Que eu saiba, ninguém
com esses valores chega a lugar algum. Irah Gaylord é um
exemplo. E há muitos outros no mundo.
— Terá de esquecer sua sede de vingança e aceitar a
realidade como ela é...
— Nunca! Mesmo cego, Manoela continuo prometendo
me vingar. E continuarei assim até o fim dos meus dias...
O silêncio caiu sobre o quarto. O candeeiro aceso não
adiantava para Jessy, a não ser para acender o cigarro.
— Acho melhor irmos dormir, querido — disse ela,
levantando-se da cadeira. — Vamos, pare de pensar.
Esqueça tudo...
— Se eu pudesse. Se eu pudesse, minha querida...
Manoela, nos lençóis macios, procurou fazer com que
ele se esquecesse de tudo que não fosse paixão, desejo,
entrega mútua e prazer.
Mas, mesmo nos melhores momentos daquela luta
amorosa, ela sabia que, em algum canto da mente de Jessy,
havia pensamentos de ódio, de raiva, de impotência, de
vingança...
Nas ruas de Wichita, o destino manejava os fios de
alguns personagens que iriam modificar por completo o
curso dos acontecimentos e o próprio futuro de Jessy
Tyrone, o pistoleiro cego.

CAPITULO QUARTO
Catorze degraus

O ginete era estranho.


Estranho e sinistro. Frio e hermético como um fantasma.
Vestia-se totalmente de preto. Camisa preta, chapéu de
couro preto, calça preta, botas pretas...
Tinha apenas um revólver, do lado esquerdo.
Portanto, era canhoto.
Mas, do lado direito, um facão largo na funda — negra,
logicamente — sugeria a inquietante possibilidade de que
talvez o ginete fosse algo mais que um canhoto.
Tinha o cabelo curto e escuro. Contudo era pálido e de
olhos azuis. Rosto sem barba, cara de criança, com feições
suaves, era contraste com o frio brilho daquelas pupilas
celestes...
Também usava luvas de couro. As mãos estavam
apoiadas sobre o alto da sela, segurando as rédeas. As luvas,
é claro, eram pretas também.
O cavalo era preto, embora com uma mancha branca na
testa, como se fosse um triângulo.
Era um belo animal, certamente de fácil e veloz galope.
Entrou em Wichita em plena noite, cercado pelos dois
lados pelas filas de casas, que projetavam sobre ele as
sombras das construções.
Seus olhos esquadrinhavam tudo com metódica frieza,
sem que o rosto imberbe revelasse a menor emoção que
fosse.
Deteve-se diante de um prédio. Era o Hotel Kansas.
Desmontou, caminhando com andar firme para a porta de
vidro. Movia-se como uma pantera negra..,
O vigia da noite acordou, assustado, diante daquela
visão negra. Depois, deu um sorriso profissional, mas com
olhos desconfiados.
— Boa-noite, senhor — disse. — Em que posso lhe
servir?
— Imagino que na única coisa para a qual o colocaram
aqui — foi a seca resposta, com uma voz, embora suave,
profunda e dura. — Quero um quarto. Com banho, se
possível.
— Temos apenas dois. Estão livres, mas custam sete
dólares por dia cada um.
— Não perguntei o preço. Indaguei apenas se tinha
banho. Quero um — e colocou sete dólares sobre o balcão,
com mão firme. — Ficarei apenas um dia. E o tempo de que
preciso para fazer o que me traz aqui.
— Sim, senhor — disse o vigia, timidamente,
umedecendo os lábios. — Terá de preencher a ficha... E o
que se exige, não?
— Claro — sorriu levemente o viajante. — Assinarei.
Guarde o meu cavalo. Está aí na frente. Precisa de alimento,
de água e de um bom lugar para repousar.
— Ele terá tudo isso senhor. Não se preocupe.
— Nunca me preocupo — sorriu o cavaleiro de negro.
— Você é quem deve se preocupar, se não me atender
direito.
O vigia engoliu em seco, apressando-se em assentir.
O homem de roupas negras preencheu a ficha e assinou
com um traço seguro, incisivo: Yuma Kid.
Deixou a velha pena sobre o balcão, apanhou as chaves
que lhe estendia a mão trêmula do vigia e se dirigiu à
escada, sem dizer mais coisa alguma.
Mas, quando estava nos primeiros degraus, voltou-se e
lançou uma pergunta ao vigia:
— Sabe se alguém chamado Jessy Tyrone está na
cidade?
— Sim.., sim, senhor. Está na Cantina Eldorado, de
propriedade de Joe Ryker, senhor.., senhor Yuma. Com
uma moça de vida fácil, chamada Manoela. É seu amigo?
— Não - negou Yuma Kid secamente. — Vim matá-lo.
E subiu a escada sem dizer mais nada.
***
Irah Gaylord apontou a casa.
— É ali — disse. — Cantina Eldorado, não?
— Sim — disse Haycox. — Esteve ali até a noite antes
de tentar matá-lo, Gaylord. Uma mulher de vida fácil tem
cuidado dele. Jessy é assim: capaz de sentir amor por uma
figura como Samantha Kelly... ou por uma vadia como
Manoela. É um homem muito complexo.
— Isso não me preocupa. O importante é que agora é um
cego, um inútil. É o momento ideal para acabar com ele, e
chega. Será hoje mesmo, sem mais demoras. Assim que
amanhecer, quando sair à rua... ou descer para a cantina.
Falta pouco para amanhecer, não?
— Uma hora mais ou menos — disse Saughnessy,
bocejando. — Estou morto de sono, chefe.
— Pois se agüente. Quando esse bastardo estiver morto,
poderá dormir o dia inteiro se quiser. Com o que vai ganhar
com essa morte, seus sonhos serão muito doces...
— Desde que não sonhe sozinho — riu Saughnessy.
— Sem dúvida, vou deitar com essa fulana que tanto
agrada a Jessy. Deve ter alguma coisa muito boa para
agradá-lo tanto.
— Vamos, monte guarda aqui, agora — ordenou
Gaylord, com voz seca. — Esperarei num lugar onde não
me possam ver. Se ele tentar sair antes do dia nascer, por
qualquer motivo, avisem-me. Não quero que dessa vez
percamos a grande ocasião de nos livrarmos dele para
sempre. Ficou claro?
— Sim, Gaylord — assentiu Jim Haycox. — Confie em
nós dois. Além disso, Jessy não deixará a cama dessa
prostituta enquanto não clarear. E menos ainda estando
cego...
Gaylord se afastou.
Haycox e Saughnessy ficaram diante da cantina, num
local escuro, sentados na calçada. O primeiro tinha um
revólver na mão, e o outro um rifle Winchester.
Estavam prontos para esperar a chegada do novo dia,
para eliminarem com toda a facilidade um inimigo sem o
sentido da visão.
***
Mal clareava, quando Jessy Tyrone saltou da cama.
Ouviu a respiração profunda de Manoela. Ela dormia.
Estava tão cansada, que nem percebeu que ele despertava.
Tentou agir sozinho, valendo-se de seus próprios
recursos, agora tão escassos, pois lhe faltava a visão, a luz
de seus olhos, mergulhados para sempre, sem dúvida,
naquela escuridão.
Tateou, ao tropeçar no velho tapete, enquanto procurava
suas botas. Calçou-as sem pressa, tentando não fazer ruídos
que pudessem acordar a moça.
Depois, moveu-se com toda a cautela pelo quarto.
Procurava se lembrar de cada detalhe, para não esbarrar em
nada. Mesmo assim, esbarrou numa cadeira. Manoela
mexeu-se na cama, mas não acordou.
Segurou a cadeira com as duas mãos, xingando
mentalmente sua desgraça.
— É inútil... — disse. — Nunca poderei me valer
sozinho. Estou perdido...
Mesmo assim, tateou o móvel até encontrar a camisa.
Vestiu-se. Abotoou cada botão, lentamente. Depois, voltou
a agitar as mãos, à procura da calça e do cinturão com o
revólver.
— Não sei para que isso vai me servir, mas sou um
pistoleiro — disse. — Tenho de ir armado. Se fingir que
vejo normalmente... talvez meus inimigos se assustem e não
me ataquem...
Mas sabia que isso era quase impossível. Não é fácil se
fingir vidente quando se é cego. Perceberiam seu olhar
perdido, vazio, seus movimentos torpes. Pensou isso
enquanto abotoava a calça e ajustava o cinturão.
Respirou fundo.
Não sentia alívio algum ao se saber armado. Era como
continuar tão indefeso quanto se estivesse nu.
Foi até a porta, com passo lento, comedido. Não pôde ir
muito longe. Desta vez seu pé se enrolou na ponta do lençol
que caíra no chão. Quase tombou para frente. Teve de se
segurar na beira da cama. E acordou Manoela.
— Jessy! — ela se levantou, sobressaltada. — Aonde
vai?
— Maldição, estou com fome. Quero comer alguma
coisa, beber um copo.
— Posso trazer para você.
— Como se eu fosse uma criança ou um inválido? —
exasperou-se ele. — Acha que é o que quero, Manoela?
Não, diabos! Posso descer a escada, comer alguma coisa lá
embaixo. Conheço bem o lugar. Muito bem mesmo. Não
me acontecerá nada.
— Jessy, você tropeçou em alguma coisa. Pode
acontecer na escada. E se machucar...
— E daí? — bramiu ele. — Tenho de me movimentar,
fazer algo, provar a mim mesmo que ainda sou uru ser
humano. Que sirvo para alguma coisa neste mundo!
— Jessy, claro que sim. Mas isso requer tempo,
treinamento...
— Ao diabo com tudo isso. Vou descer para comer ovos
com toucinho e beber uma caneca de cerveja. Será melhor
não me seguir nem tentar me ajudar em nada...
— Está bem — suspirou ela, olhando-o com pena. —
Como quiser, Jessy. Desça, se isso vai deixá-lo tranqüilo.
Irei mais tarde.
— Assim está melhor. Quero apenas fazer alguma coisa
por mim mesmo. É só. Sinto se estou um pouco aborrecido
agora. Não posso evitar, Manoela Desculpe.
E saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Avançou pelo corredor, tateando a parede até que esta
terminou. Sabia que ali começava a escada que levava à
cantina.
Lembrava-se perfeitamente.
Quantos degraus tinha? Doze? Catorze? Ou eram
quinze? Não, não conseguia se lembrar. Nem estava seguro
de coisa alguma.
Mesmo assim, começou a descer.
Degrau a degrau, com muito cuidado. Agarrando o
corrimão com a mão direita, sentia-se totalmente indefeso
diante de tudo. Não sabia sequer se a cantina estava cheia
ou vazia.
Não sabia nada de nada. E isso o deixava louco de raiva,
de impotência.
Era o degrau número doze. Passou o pé, sem largar o
corrimão. Havia mais.
Um.
Somente um?
Eram treze.
Um mau número, pensou ele.
Mas não. Havia outro. Eram catorze. Ao descer o último,
o corrimão terminou. Pisou então no chão da cantina. E
respirou aliviado.
— Consegui — disse. — Desci sozinho, sem a ajuda de
ninguém. Catorze degraus. Consegui.
Em alguma parte da cantina soou a voz de Ryker, o
proprietário.
— Puxa, Jessy, não esperava vê-lo descer assim tão
facilmente... Quer alguma coisa?
— Sim — disse Jessy, dando uns passos para a frente,
tateando para afastar de seu caminho as cadeiras e as mesas
do lugar. — Um bom desjejum. Ovos com toucinho e café.
Mas antes um trago de cerveja para tirar a sede.
— Já vou trazer, Jessy — disse Ryker, com rara
amabilidade para um homem do seu caráter. — Vai se
sentar a alguma mesa ou vai comer no balcão?
— Sim, prefiro comer de pé. Estou farto de ficar quieto,
parado, como um inútil.
— Sim, claro. Vou à cozinha — disse Ryker. — Logo
trarei seu desjejum. A cerveja está servida no balcão, à sua
direita. Certo?
— Certo. De qualquer modo pensava em encontra-la
sozinho — riu Jessy.
Caminhou alguns passos. Ouviu os passos de Ryker se
afastando para os fundos.
Era imaginação sua ou tinha captado outra respiração no
recinto. Uma respiração próxima, contida...
— Há alguém mais aqui? — perguntou, em voz alta. Um
silêncio total foi a resposta.
Jessy aguçou o ouvido. Não captou mais nada. Nem
mesmo essa possível respiração humana.
Acalmou-se.
Sua cegueira o fazia imaginar coisas.
Chegou-se ao balcão.
Começou a beber a cerveja sem pressa, uma vez
localizada a jarra.
Mas, de repente, ficou rígido. Tinha ouvido ranger a
madeira do balcão, do lado oposto. Dirigiu seu olhar
naquela direção. Estava tenso, os nervos crispados.
— Sei que há alguém aí — disse, com aspereza. —
Quem é? Por que não responde?
A resposta desta vez chegou. E o deixou gelado.
— Está bem. Vejo que seu ouvido se aguçou com a
cegueira, Jessy. Estou aqui. Você me conhece?
— Gaylord! — disse Jessy, ofegante, levando a mão
com rapidez ao revólver.
— Cuidado — advertiu o outro, com um risinho. —
Você não enxerga. Contra quem vai disparar? Não estou
sozinho. Estou acompanhado de bons amigos, que você
conhece: Saughnessy e Haycox.
— Esse cão traidor! — revoltou-se, girando a cabeça ao
redor, tentando desesperadamente localizar os demais. —
Como soube...?
— Essas coisas a gente sempre sabe. Um homem como
Jessy Tyrone não pode ficar cego sem que a notícia corra
como um rastilho de pólvora.
— Talvez esteja mentindo e esteja sozinho.
— Talvez. Você não pode saber. Mas, se tentar
comprovar alguma coisa, descobrirá que três armas estão
voltadas contra você neste momento. Cada arma num ponto
diferente.
— Três homens para um cego? — riu Jessy. — Ainda
me temem?
— Eu o temo. E o odeio, Jessy Tyrone. Você inutilizou
para sempre minha mão direita. É agradável ver que agora
sua visão também está inutilizada. Haycox deseja vê-lo
morto, porque teme que um dia você possa se vingar dele
por sua traição, mesmo estando cego. Como vê, ainda
provoca medo nas pessoas... inclusive agora, no estado em
que se encontra.
— E esse porco do Ryker os ajuda. Ele me deixou
sozinho de propósito... para que me matassem.
— Bem, cada qual age da forma que lhe convém. Ryker
está perdendo muito dinheiro por sua causa. Embora você
pague, está mantendo apenas para si a moça da cantina, o
que reduz os ganhos dele. Acrescente a isso uma boa
propina... e entenderá por que Ryker faz como todos. Disso
entende bem o seu grande amigo Haycox, não é verdade?
— Por favor, Jessy... — soou a voz afogada de Jim
Haycox, em algum ponto da sala. — Desculpe-me. Fui um
tolo ao traí-lo. Sei que você nunca perdoa algo assim. Mas
não desejo que o matem...
— Você é um falso, covarde, um embusteiro — acusou-
o duramente Jessy. — É o primeiro a desejar minha morte.
É pior do que Gaylord, pior do que o porco do Ryker.
Ouviu Haycox engolir em seco.
Gaylord riu. Em outro ponto da cantina, Saughnessy
também riu...
Não era preciso enxergar para calcular a localização de
cada um deles.
O riso de Saughnessy soava exatamente onde estava o
grande espelho da cantina. Jessy tinha certeza disso.
— Bem — disse Gaylord, friamente. — Saque sua arma,
se quiser. De qualquer modo vai morrer, Jessy.
Houve um silêncio. Pesado, mas breve. Depois Jessy
ouviu passadas. Gaylord não confiava e estava mudando de
posição. O mesmo fez Haycox, lá no fundo da cantina.
Saughnessy, porém, não trocara de lugar. Mas isso era
uma simples dedução de Jessy, que não podia ver nada e,
portanto, não poderia ter certeza de coisa alguma.
— Muito bem — disse Jessy com calma. — Isso tinha
de acontecer. Que seja, já que não há outro remédio...
E levou sua mão ao revólver, disposto a morrer matando,
se é que isso era possível a um pistoleiro cego.

CAPÍTULO QUINTO
Um acordo

— Nãaao, Jessy — clamou a voz aguda, tensa. —


Miseráveis, não podem assassinar um homem indefeso!
Ouviu passadas rápidas, um xingamento dito por
alguém. Gritou para Manoela:
— Não se meta, por Deus! Afaste-se, podem feri-la!
Ressoou uma detonação. Depois outra. Mas não sentiu o
chumbo quente em seu corpo.
Porém ouviu um gemido, depois da penetração das balas
num corpo.
E a voz de Manoela, que antes gritava
desesperadamente, tomou-se de súbito num gemido de dor,
de agonia...
Exasperado, disparou contra o ponto onde sua intuição
dizia que pouco antes estava Saughnessy, o homem que o
ferira na fronte poucos dias atrás.
Seu revólver rugiu na mão firme, como se Jessy Tyrone
dispusesse ainda da visão, como sempre.
Um alarido de raiva e dor acolheu seu disparo. Ouviu-se
o ruído de vidros quebrados pela bala.
Em seguida, outra arma rugiu, e pouco depois uma
lâmpada do teto quebrou-se.
E um corpo caía pesadamente.
— Manoela! Manoela! — bramiu Jessy, engatilhando o
revólver, desesperado em sua cegueira, que o impedia de
saber o que estava ocorrendo à sua volta.
— Bom... disparo... querido — chegou até ele a voz
apagada de Manoela. — Você acertou num deles...
— Matou Saughnessy, maldito! — gritou Gaylord,
frenético. — Vamos, Haycox, temos de acabar com esse
endemoniado Jessy! As balas que se dirigiam a ele se
cravaram todas na moça, ao se interpor...
Uma contração dolorosa comoveu Jessy. Pressentia
aquilo antes de ter a confirmação. Era fácil imaginar o que
acontecera.
Manoela tinha descido atrás dele, viu a cena, interpôs-
se... e agora jazia no chão, ferida, talvez agonizante...
E os dois assassinos vivos iam acabar com ele sem
piedade.
Ele disparou às cegas, à sua volta, quase esvaziando
desesperadamente o revólver, no louco desejo de alcançar
algum deles, mas sabia que isso era quase impossível.
Do chão, um som de respiração ofegante chegava até
ele. Manoela... pensou Jessy.
Na porta da cantina bramiu asperamente outro revólver.
E a voz fria ressoou na sala asperamente, apesar de seu
tom suave, quase infantil:
— Largem suas armas todos dois. Não sentem vergonha
da sua superioridade contra um homem cego? Vamos,
saiam daqui antes que eu arrebente suas cabeças...
Jessy ouviu duas armas caindo no chão. Depois, ouviu as
dobradiças da porta rangerem. Dois homens saíram
correndo da cantina.
Um profundo silêncio caiu sobre o local. Jessy, com sua
arma vazia, moveu-se torpemente, tateando o ar.
— O que há aqui? Quem falou?
— Eu — respondeu o recém-chegado. — Os dois já se
foram, não precisa temer mais nada.
— E a moça?
— Acho que está morrendo — disse o homem,
friamente. — Venha, eu o guiarei.
Uma mão suave, pequena, metida numa luva de couro, o
segurou pela mão esquerda. Levou-o até determinado ponto
da sala. Ali o deixou.
— Abaixe-se agora — disse. — Está aí. Não há remédio,
sinto muito. Mas irei à procura de um médico, de qualquer
maneira...
Jessy abaixou-se.
Colocou um joelho no chão. Passou os dedos sobre urna
roupa enrugada. Tateou, procurando mãos, um rosto...
Uma respiração entrecortada chegou até ele, muito
longe.
— Manoela... — disse Jessy.
— Sim... Jessy — respondeu a moça, com voz débil,
difusa. — Tivemos má sorte... nós dois.
— Por que fez isso? Por que ficou na frente das balas
endereçadas a mim?
— Não podia fazer outra coisa. Os dois dispararam
contra você...
— Quem foram os que dispararam? Quem foram?
— O do balcão... e o outro, que estava perto da janela...
— Gaylord... e Haycox — disse Jessy, torcendo o
queixo. — Eles a feriram, Manoela. E o terceiro,
Saughnessy?
— Ia disparar também, mas você o alcançou primeiro.
Para quem não enxerga, foi um ótimo disparo, Jessy... — e
ao dizer isso, um jorro de sangue, em forma de vômito, caiu
sobre a camisa dele. — Eu... sinto. Teria sido uma boa guia
para você, querido.
— Manoela, você não pode morrer agora...
— Acho que nem você nem eu mandamos nisso... Deus
quis assim, Jessy, deixe que Ele faça as coisas a seu modo.
Mas procure outro guia na vida. Uma mulher que o ame
como Samantha o amou, como eu o amo... A vida continua,
Jessy. Procure conservá-la.
— Juro que vou vingá-la. Matarei os que lhe fizeram
isso, Manoela...
— Você não poderá fazer nada, Jessy. Eles sabem que
está cego. Não vá atrás deles. Eles o matariam sem piedade.
Vá para longe, onde esses dois canalhas não o encontrem.
— Não, Manoela. Juro que você será vingada. Juro
perante Deus, solenemente. Não descansarei ate’que isso
aconteça, dou-lhe a minha palavra. Não sei como farei, mas
farei, minha querida...
— Jessy, você me deixa tão feliz falando assim —
suspirou ela, com a voz cada vez mais fraca. — Teria sido
lindo se nós... Mas alguém me disse, certa vez, que a
felicidade não existe quando é muito grande. Não pode
existir... Jessy, minha vida, adeus!
Ele a apertou contra si e beijou-lhe os lábios sujos de
sangue.
E soube que aquele corpo de mulher, quente e trêmulo,
se imobilizava para sempre entre seus braços. Manoela
acabava de morrer.
Não sabia quanto tempo tinha se passado. Uma mão o
segurou de modo firme no ombro, afastando-o do cadáver.
Era uma mão com luva de couro. A voz do doutor
Lydecker soou pausada, séria, junto a ele:
— Sinto muito Jessy. Não posso fazer nada por
Manoela... As balas a atingiram no pulmão e no estômago.
Deve ter sofrido muito até morrer, pobre moça.
— Mas não demonstrou — disse, com lágrimas nos
olhos velados, Jessy. — Não demonstrou o sofrimento um
minuto só que fosse. Era uma grande garota. Uma grande
garota deu sua vida por mim, doutor...
— Depois se apoiou no balcão. E começou a chorar
como um menino.
Perto dele, um jovem imberbe, de preto, o olhava em
silêncio, com o cenho franzido, sem qualquer simpatia na
expressão dos olhos azuis e frios.
E, contudo, foi aquele mesmo homem jovem, de roupas
pretas, que pouco antes salvara sua vida diante das armas
engatilhadas de Irah Gaylord e Jim Haycox.
***
Soprava um vento frio quando voltaram do cemitério.
Manoela ficara nele para sempre, sob uns palmos de
terra.
Ali terminou a curta vida de uma moça que podia ter
trilhado um caminho errado, mas que soube morrer para
salvar outra pessoa. Uma pessoa a quem amou até o último
alento.
O xerife de Wichita ia atrás do pequeno grupo de
pessoas que participaram do enterro.
À frente do cortejo, ia Jessy Tyrone, sombrio, apoiado
no braço de um novo e estranho amigo: o jovem imberbe,
de preto, com rosto pálido e taciturno.
Ninguém disse coisa alguma durante o enterro.
— Sinto muito, Jessy — falou o xerife, quando se
detiveram diante da Cantina Eldorado, agora com as portas
fechadas e um cartaz onde estava escrito que não seriam
servidas bebidas, nem atendida a clientela.
— Se prefere mudar de alojamento.
— Não, obrigado — recusou, secamente, Jessy. — Fico
na cantina, no quarto de Manoela, se não houver objeção
por parte de ninguém.
— Não, não há. Por enquanto, o negócio está fechado
devido à ausência de seu proprietário, Joe Ryker. Não
sabemos aonde foi. Deixou a cantina abandonada, e
provisoriamente ficará fechada ao público, mas sob a
supervisão da administração local, que eu represento.
Enviarei um comissário para que cuide de tudo, inclusive de
sua manutenção.
— Não se preocupe com isso, xerife — disse Yuma Kid.
— Eu mesmo farei a comida. Não haverá problema nesse
sentido. Acho que Jessy e eu não precisaremos de ninguém.
— Como queira — concordou o xerife. — Suponho que
esse Ryker, ao ficar do lado dos que assassinaram Manoela
e tentaram matá-lo, Jessy, não voltará aqui por muito
tempo.
— Isso é seguro — confirmou Jessy, com o rosto
contraído. — E, se voltar, eu o matarei.
O xerife olhou alternadamente para os dois homens e se
afastou sem dizer nada.
Jessy caminhou em direção à cantina, e Yuma Kid o
seguiu.
Depois que entraram, o jovem fechou a porta e as janelas
cuidadosamente. Jessy, parado no meio da cantina, escutava
o ruído das trevas.
— Teme que nos assaltem? — indagou.
— Nunca se sabe o que pode acontecer — suspirou
Yuma. — Somos dois. E eles podem ser mais. É melhor não
nos deixarmos surpreender, Jessy.
— Sim, acho que sim — admitiu ele, de má vontade.
Tateou, encontrou uma cadeira e se acomodou nela. — Por
que ficou comigo? Por que me ajudou contra eles?
— Coisas minhas — Yuma deu de ombros, dirigindo-lhe
um olhar frio, estranho, no qual não se lia amizade nem
apreço, apesar do seu comportamento. — Não gosto que
ninguém abuse dos indefesos. E você está indefeso.
— Mas matei um homem..
— Sim, eu sei. O tal Saughnessy, o que o feriu. Você me
contou a história. Poderia ter feito o mesmo com os outros
dois?
— Não — admitiu Jessy, seco. — E lhe agradeço por
isso, Yuma.
— Não perguntei para que me agradecesse. Não gostei
que tentassem assassiná-lo. Tenho meu próprio código de
honra. Inclusive o mais odiado inimigo deve ter a
oportunidade de se defender. Você não poderia se
defender...
— Concordamos nisso. Mas Gaylord não sabe nada
sobre lealdades. É um canalha. É o pior que já conheci. E
seu atual capanga, Jim Haycox, é pior do que ele: traidor,
falso, mim... O mesmo que Ryker, o cantineiro. Vendem-se
a quem lhes paga mais.
— Você tem maus inimigos, Jessy. Eles continuam
vivos, e você está cego.
— Não precisa me lembrar disso. Sei muito bem — foi a
acre resposta de Jessy.
— Mas parece esquecer. Continua fazendo juras de
vingança, como se tudo isso fosse possível.
— Por que não pode ser? Uma vez conheci um pistoleiro
maneta. Cortaram o braço dele com um machado. Ele
aprendeu a atirar com a esquerda. E matou os que o tinham
mutilado.
— Mas ele podia enxergar. Você, não. Para onde vai
apontar, sobretudo se for atacado por dois ou mais homens?
Nem mesmo Jessy Tyrone pode escapar de algo assim.
— O que quer que eu faça? Confessar que estou vencido
e me entregar aos meus inimigos?
— Não disse isso. Lute. Tente superar sua cegueira à
base de outros recursos.
— Que recursos? Não consigo ver para onde disparo...
— Os cegos desenvolvem outros sentidos: o olfato, o
tato, a audição. E ainda a intuição. Aja assim também.
Aprenda a disparar às cegas, guiado por um som, por mais
leve que seja. Ou por um odor, uma respiração, inclusive
uma presença humana totalmente silenciosa.
— É difícil se aprender isso quando sempre se teve a
visão, Yuma. Precisaria de alguém que me ensinasse, um
mestre. Onde poderia encontrar um?
— Aqui.
— Aqui? Quem me ensinaria?
— Eu.
— Você?
— Mas é claro — disse Yuma.
— Vamos, vamos... O que entende de ensinar um cego a
disparar?
— Sei tudo sobre como disparar uma arma. Também
posso ensinar a um cego, é claro.
— Deve ser muito jovem, Yuma. Quantos anos tem?
— Vinte.
— Parece ter muito menos. Por que veio a Wichita?
— Isso é assunto meu. E pode esperar. De fato, tem de
esperar...
— Deixaria tudo para me ajudar, para ser meu guia e me
ensinar a lutar como cego?
— É o que estou lhe oferecendo.
— De acordo. Aceito. O que devo lhe pagar por isso?
— Nada. Somente os gastos. Se tiver dinheiro suficiente,
isso bastará.
— Tenho. Sempre me pagaram bem por meu trabalho.
Quando começamos?
— Agora mesmo — respondeu, com entusiasmo Yuma.
— Aqui?
— Tanto faz. Aqui ou em qualquer outro lugar. Todos
servem. Você enxerga da mesma maneira em todos os
lugares. Anda nas trevas. Na noite. Acostume-se a idéia.
Faça da sua cegueira uma vantagem e não um defeito. Pode
fazer isso. Todo o mundo pode fazer o que se propõe.
— Então vamos começar... Qual será a primeira lição,
Yuma? — perguntou, ficando de pé.
— Assim, verá agora mesmo...
CAPÍTULO SEXTO
Vamos partir

Irah Gaylard ficou em pé de um salto.


Empunhava furiosamente seu revólver, de modo
trabalhoso, com a mão esquerda.
Haycox também levantou o rifle, disposto a apertar o
gatilho.
— Não, não disparem — gemeu apressadamente uma
voz aguda, trêmula.
E, do meio da escuridão que cercava os dois homens,
acampados em plena planície, com uma pequena fogueira
ardendo entre eles, surgiu a figura encolhida de um homem
covarde, cujo rosto era a imagem do medo.
— Hyker! — disse Haycox, com tom de desprezo. —
Que diabos faz aqui?
— Tive de abandonar meu negócio... — disse ele,
ofegante. — Compreendam. Jessy sabia que lhes deixei
campo livre para dispararem, para surpreende-lo na cantina.
E vocês mataram a moça, Manoela... Agora está cheio de
ódio, de cólera, Jurou matar todos nós...
— Não precisa temer um pobre cego, Ryker — disse
Gaylord, em tom irônico. — Não pode fazer nada, mesmo
que queira. Mesmo que tente...
— Ah, não? Então por que partiram de Wichita com
tanta pressa, hem? Qual o motivo?
— Maldito idiota... Não fugimos de Jessy, mas desse
amigo que ele arranjou, aquele todo de preto... — grunhiu
Gaylord, irritado. — É um pistoleiro profissional e não está
cego!
— Sim, é um pistoleiro — assentiu Ryker. — Chama-se
Yuma Kid. Antes de deixar Wichita, ouvi dizer que iria
ficar para fazer companhia a Jessy Tyrone, que ia ensinar o
outro a lutar como cego...
— Então é isso que pretendem? Para depois Jessy sair
novamente atrás de nós. E agora os dois juntos... Temos de
nos antecipar a esses planos, Haycox.
— De que modo? — lamentou-se o traidor. — Não
quero voltar...
— Não teremos de voltar. Para isso tenho dinheiro.
Contrataremos os melhores pistoleiros de Dodge City,
quando chegarmos lá, dentro de alguns dias. Conheço
vários que matariam a própria mãe por um punhado de
dólares. E os piores deles todos são os irmãos Waldron.
— Os Waldron? — Haycox enrugou o cenho. — Já ouvi
falar neles.
— Quem não ouviu falar neles no Kansas? — falou
Gaylord. — São quatro irmãos ferozes como bestas
selvagens. Não se gostam nem entre si. Eles seriam capazes
de se matarem, se cada um recebesse uma quantia para se
livrar dos demais. Pois bem, essas figuras serão contratadas
por nós, em Dodge City, para irem a Wichita com a única e
específica missão de se desfazerem de Jessy e de Yuma
Kid. Para esse quarteto de feras, não será nada difícil
liquidar um pistoleiro cego e outro que mal largou as
fraldas.
— Temos de nos apressar. Jessy me preocupa, mesmo
cego, — disse Haycox. — E ainda mais agora, com esse
professor...
— A mim também assusta — disse Ryker.
— Pois deixem de preocupações com ele ou com o
amigo dele. Os dois morrerão em breve, assim que os
Waldron chegarem a Wichita com seu encargo, fiquem
seguros — disse Lrah Gaylord, com uma áspera gargalhada
de prazer.
***
Os disparos cortaram o silencio da manhã.
Repetiam-se naquele descampado perto dos estábulos de
Wichita. Com rifle ou com revólver, era um concerto
espasmódico de estampidos e silvos de aço candente.
Garrafas, pedaços de madeira ou simples galhos
saltavam no ar, alcançados pelas balas em sucessão
constante.
De repente, um leve som de alguma parte, às vezes um
simples roçar mal captado pelos ouvidos de uma pessoa
normal, fazia com que a arma se voltasse, esvaziando sua
carga de chumbo em outra direção, diametralmente oposta.
E novamente as latas, os galhos ou os objetos mais
diferentes possíveis, usados como alvos. Todos voavam
pelos ares, atingidos em cheio pela chuva de projéteis.
O quieto ar da manhã cheirava a pólvora queimada.
Finalmente soou uma voz:
— Chega!
E os disparos cessaram.
Os pássaros distantes revoavam inquietos, mas pouco a
pouco voltaram a pousar nos galhos, quando a tempestade
de chumbo e fogo cedeu por completo, devolvendo o
silêncio.
Suado, esgotado, Jessy Tyrone deixou-se cair sobre um
tronco de árvore cortado, onde ficou à guisa de assento,
enxugando o suor do rosto.
Umas passadas suaves se aproximaram dele, fazendo
ranger os talos das ervas.
— Faz mais ruído que um elefante ao caminhar —
comentou Jessy, rindo.
— Isso é agora. No primeiro dia, você mal me ouvia —
respondeu Yuma. — Nesta semana, seu ouvido se aguçou
notavelmente. Mas não foi apenas isso. Você intui as coisas,
detecta a presença do inimigo, mesmo no silêncio. E cheira
o ar para constatar a presença de uma pessoa. Tudo isso
permite que dispare muito depressa, para o lugar certo.
— O que não impede que eu continue cego — disse
Jessy, com amargura.
— Claro que você é cego, continua cego. Isso não posso
resolver. Nem ninguém. Ouviu o doutor Lydecker. Ele não
é um especialista em questões oculares, mas supõe que sua
cegueira seja irreversível se seu nervo ótico foi afetado
definitivamente. De qualquer modo, aconselhou-o a ir a
Kansas City, ou mesmo a Saint Louis, onde poderá ser
examinado por um especialista.
— Sei que não adiantaria nada.
— Não pode ter certeza. Ninguém conhece nada de si
nem de seu organismo, para falar a verdade. Mas, se prefere
não mover um dedo... O importante é que, dentro de mais
uma semana ou de duas, poderá se valer sozinho, e muito
bem. E, como isso não sobra nos outros, a vantagem ficará
do seu lado...
— Vantagem! — repetiu, amargamente, Jessy. Ficou em
pé de um salto, depois de recarregar o rifle e os revólveres.
— Será melhor voltarmos a treinar, Yuma. Prefiro a ação ao
pensamento. Tenho medo de pensar.
— Como queira — disse o jovem pistoleiro de roupas
pretas, fitando-o com olhos firmes. — Vamos lá, se é o que
deseja.
— Yuma... — chamou bruscamente Jessy.
— O que é?
— Estava olhando para mim, agora?
— Sim — admitiu o pistoleiro de preto.
— Com ódio?
Yuma Kid estremeceu.
Apreensivo, estudou as pupilas de Jessy.
Por um instante, indagou-se se permaneciam cegas ou se
podiam enxergar. Mas afastou a idéia, que considerou
ridícula.
— Que bobagem! — disse Yuma, forçando um sorriso.
— Por que eu haveria de odiá-lo?
— Não sei. Foi uma idéia que me assaltou. Um
pressentimento, talvez enganado, não sei...
— Sem duvida, enganado — suspirou Yuma Kid,
retomando sua marcha. — Prepare-se, Jessy. Darei a ordem
de disparar de novo, em menos de quinze segundos...
E quando estava mais longe dele, disse para si,
apertando a mandíbula e endurecendo seu rosto jovem,
quase infantil:
— Sim, eu o odeio, Jessy Tyrone. Mas tenho de
esperar... Esperar até que possa matá-lo sem remorsoso...
Jessy, de pé na clareira, aguardava a voz de comando
para reiniciar o treinamento.
***
— Você nunca fala sobre si mesmo, Yuma...
— Há pouco a falar. Sou muito jovem.
— Mas viveu intensamente, pelo que imagino.
— Bem, isso é verdade. Aos dezessete anos matei o
primeiro homem na minha vida.
— Matou muitos outros? — perguntou Jessy.
— Vários — disse, evitando uma resposta precisa. —
Por que pergunta. Jessy?
— Simples curiosidade. Ouvi falar vagamente em você.
Você é do Arizona, não?
— Não. Mas comecei minha carreira no Arizona.
— Vocação ou necessidade?
— Um pouco de cada coisa.
— Não tem família?
— Não — houve uma hesitação em sua voz. —
Ninguém.
— Mas um dia teve, sem dúvida alguma.
— Claro. Como todo o mundo. Pois, uma irmã. Vamos
deixar isso agora. Não é agradável. Vamos falar de você.
— Sobre mim se sabe quase tudo. Sou muito conhecido,
Yuma.
— Mas não sei nada de sua vida sentimental. Foi
Manoela a única mulher em sua vida? — perguntou Yuma.
— Céus! Não, é claro. Manoela foi... um amor fugaz.
Primeiro, uma simples garota para me divertir. Depois,
apreciei qualidades nela. E cheguei mesmo a apreciá-la
profundamente, pobrezinha.
— Então houve outras?
— Claro. Uma, em especial...
— Quem?
— Ah! O que interessa isso agora? — recusou-se Jessy,
bruscamente. — Vamos mudar de assunto. Também não
gosto de lembrar isso. Ela morreu. Deve bastar, Yuma.
— Então somos dois solitários agora...
— Mais ou menos. Mas você ainda é muito jovem...
— Em nosso ofício, nunca se sabe — riu Yuma Kid,
afastando o prato de comida. — Que tal se dormirmos uma
sesta e depois retomarmos o trabalho?
— Boa idéia, Yuma. Sim, vamos dormir um pouco, que
nos faz falta. E depois...
Deteve-se. Esticou o corpo. Parecia cheirar o ar.
Yuma franziu o cenho.
— O que há, Jessy? — perguntou em voz baixa.
— Psiu... — sussurrou Jessy Tyrone. — Está
acontecendo algo. Gente que se aproxima. Pela porta de
trás... E agora pela frente. Devem ser vários. Três, pelo
menos. Não. Quatro. São quatro, é isso. Dois por trás. Dois
pela frente. É uma emboscada, cuidado...
Yuma Kid não disse nada.
Não se moveu.
Sua mão grudou-se à coronha do revólver, o olhar fixo
na porta dos fundos da cantina vazia onde se alojavam.
— Sim, olhe para trás — disse Jessy, como se
enxergasse. — Eu olharei para frente, a porta principal.
Deixe esse lado comigo.
— Jessy, pode ser qüe você ainda não esteja preparado
de todo para...
— E o que isso importa agora? — disse Jessy, ofegante.
— Eles não vão esperar que eu esteja...
E assim foi.
Subitamente, irromperam todos na sala, como se
tivessem ensaiado todas as manobras.
A porta dos fundos e a principal abriram-se ao mesmo
tempo.
Quatro homens...
Dois de cada lado...
Penetraram na cantina descalços, sem produzir o menor
ruído com suas passadas, empunhando seus volumosos 45,
engatilhados, prestes a vomitar fogo, chumbo e morte.
Os dois homens permaneciam sentados na mesa, como
se nada acontecesse, tendo à sua frente seus pratos e seus
copos, cobertos, mas sem darem o menor sinal de alarme.
Na verdade, davam a impressão de que foram
surpreendidos por completo.
Isso deu mais confiança aos quatro homens rudes,
barbudos, mal-encarados e sujos, que dirigiam seus
revólveres para eles.
Os quatro procuraram apontar também, para não errar
em seus alvos.
E isso fez com que perdessem pelo menos dois
segundos.
Apenas dois.
Mas valiosos...
Porque quando tentaram apertar o gatilho, tiveram a
desagradável surpresa de ver que a arma do homem cego
chamejava em sua mão, com uma pontaria inexplicável,
cravando naqueles corpanzis vários projéteis.
Enquanto isso, o jovem de expressão infantil e roupas
pretas também disparava sua arma, abatendo
espetacularmente os dois indivíduos que penetravam na
cantina pela porta dos fundos.
Eles foram empurrados e lançados contra as paredes de
madeira, antes de caírem pesadamente no chão.
Um estava com a cabeça destroçada, e o outro encontrou
a morte com uma bala certeira no coração.
Os inimigos escolhidos por Jessy Tyrone para seus
disparos não tiveram melhor sorte.
Foram lançados contra as portas oscilantes da cantina,
indo se projetar na calçada. Seus corpos rolaram em meio
ao sangue e foram se deter junto ao bebedouro dos animais..
— Eram apenas quatro — disse Jessy, cansado. — Não
resta mais nenhum, Yuma.
— É o que parece. Como você pôde?
— Perceber a presença deles?
— Sim, claro.
Jessy sorriu e depois disse:
— Eles não eram muito silenciosos. Pelo menos não
tanto quanto imaginavam. Além disso, fediam a suor.
Devem ter pensado que o olfato das pessoas que não
enxergam não é muito sensível, para deixarem escapar um
detalhe como esse.
— Sinceramente, Jessy, começo a pensar que já é capaz
de se defender sozinho — comentou, admirado, Yuma Kid,
fixando nele seu olhar perplexo.
— Esses sujeitos eram escória, gentalha a soldo. Há
alguns piores. Gaylord e Haycox são muito mais astutos e
perigosos. Não será tão fácil vencê-los...
Yuma foi até os homens mortos para revistar seus
bolsos.
Voltou com um bom punhado de notas amassadas.
E com uma ficha de casa de jogo, de cor vermelha.
— Tinham quase cem dólares cada um — disse Yuma
Kid. — Deve ter sido o pagamento para tentarem nos matar.
Além disso, tinham uma ficha de roleta. Com o nome de um
cassino: Cimarrón House, Dodge City.
Jessy Tyrone ficou calado por algum tempo, absorvendo
aquela informação. Depois, disse lentamente:
— Dodge City... — falava como se estivesse
imaginando algo. — Acha que isso é coisa de Gaylord, e
que agora ele está em Dodge City?
— Apostaria o pescoço como é exatamente isso — disse
o jovem pistoleiro, com o olhar fixo em Jessy.
— Então, teremos de continuar treinando durante a
viagem — comentou de modo áspero, Jessy Tyrone. —
Vamos a Dodge City, Yuma.
— Eu estava imaginando — disse o rapaz, gravemente,
guardando o dinheiro e a ficha de jogo. — O que estamos
esperando, amigo Jessy?
Mas, quando os dois se dirigiram à saída, Yuma Kid
olhou para Jessy Tyrone de soslaio.
Havia um estranho brilho nos olhos do jovem pistoleiro
de roupas pretas. Um brilho de prazer naqueles olhos azuis
de expressão inocente.
Era como se aquela viagem tivesse um significado
especial.
Era como se soubesse que, naquela viagem que os dois
fariam a Dodge City, não só Jessy Tyrone procuraria
cumprir sua vingança, como ele mesmo teria sua própria
ocasião de se vingar de outra pessoa...
CAPÍTULO SÉTIMO
No meio do caminho

O Forte Dodge apareceu à distância.


Era o velho forte que o coronel Dodge levantara ali nos
dias das duras lutas contra os índios e contra os piratas da
pradaria.
A cidade, que agora, ficava duas milhas mais à frente,
em direção do oeste, recebera o nome do forte militar,
ocupado então por uma guarnição de “casacos azuis”, cuja
missão especial era montar guarda, passear pela cidade ou
fazer exercícios militares fora das cercas que um dia foram
o heróico baluarte contra os ataques das tribos indígenas, e a
proteção dos brancos que ocupavam aquela região.
— Isso quer dizer que já estamos chegando à cidade,
Jessy — disse Yuma Kid. — O Forte Dodge está à vista.
— Espero que Gaylord ainda esteja nesse lugar onde
contratou aqueles quatro pistoleiros.
— Suponho que a essa hora ele pensa que fomos mortos
pelos quatro miseráveis — disse o jovem pistoleiro, com
um suspiro. — Talvez você consiga surpreendê-los, Jessy...
— Fala como se não fosse estar comigo nesse instante
— disse Jessy, com tom de surpresa, detendo seu cavalo,
que montava com a mesma perícia do tempo em que
enxergava.
— É isso, Jessy — disse Yuma, com toda a calma. —
Você já não precisa de mim para coisa alguma. Já sabe se
valer sozinho, é evidente. Durante esta viagem
completamos a preparação. Agora não terá problema algum
para enfrentar quem quer que seja.
— Mas não posso seguir sozinho. Preciso de alguém a
meu lado...
— Isso não é verdade. Falta é confiança a você, é tudo.
Não precisa de guia para nada. Já deu provas de sua eficácia
com as armas, mesmo sem ver o que há à sua volta, Jessy.
Já não posso fazer mais nada por você. Sua vingança não é
minha vingança. Entenda isso.
— Vai me deixar agora, então?
— Escuta, Jessy. Tenho meus próprios problemas.
Também estou procurando executar uma vingança há muito
tempo. Procuro um homem. Jurei que, quando o
encontrasse, o mataria. Algo parecido com a sua situação
em relação a Gaylord, Haycox e Ryker.
— Por que quer se vingar de alguém? Nunca me falou
sobre isso, Yuma.
— Não há muito a contar. Eu tinha uma pessoa muito
querida. Foi morta. Soube quem era seu assassino. E
percorri todo o Oeste à procura dele. Agora o encontrei. E
tenho de cumprir minha própria vingança. É o momento
adequado.
— Onde está esse homem? Em Dodge City também?
— Não. Muito mais perto de mim do que a cidade de
Dodge, Jessy. Muito mais perto...
— Não entendo — disse Jessy.
— Está aqui. Bem aqui. Diante de mim.
***
Jessy Tyrone refletiu depressa e ficou desconcertado por
um instante.
Hesitou, sem entender. Depois, de repente, compreendeu
o que estava acontecendo.
Parecia inclusive saber muito bem que seu inseparável
companheiro daqueles últimos dias tinha sacado
silenciosamente seu revólver, apontando para ele.
— Por que faz isso? — perguntou. — Você está
apontando sua arma para mim, Yuma?
— Você percebe? — perguntou o jovem. — E como se
pudesse me ver. Isso quer dizer, Jessy, que pode se
defender, que pode lutar. Eu lhe ensinei isso o tempo todo
com um único objetivo.
— E esse objetivo era...
— Lutarmos nós dois, frente a frente. E nos matarmos,
se fosse preciso.
Um silêncio profundo, denso, pesado, reinou naquele
local, de onde se podia ver de longe o Forte Dodge.
Jessy mantinha os olhos fixos em Yuma, como se
pudesse enxergar.
Mas não movia um único músculo.
— Então, o homem que você procura... sou eu —
indagou.
— Sim. Eu procurava Jessy Tyrone. Jurei matá-lo.
Agora, já sabe.
— Por que não me matou antes? Teve mil ocasiões
favoráveis...
— Não sou um covarde. Não posso matar um ser
indefeso. Não é o meu estilo de agir. Também não poderia
deixar que esses bandidos o matassem. Era coisa minha,
Jessy. Eu soube esperar. Por isso salvei sua vida naquele
dia. Por isso o ensinei a lutar sem enxergar. Agora podemos
travar um duelo, você e eu. Não será um crime. Você pode
se defender.
— Por quê? Por que, Yuma, Por que eu?
— É simples, já lhe disse. Você matou um ser muito
querido. E tem de pagar por isso.
— Quem era essa pessoa? Nunca matei alguém que não
pudesse me matar.
— Ela você matou. Visitei sua tumba há pouco tempo.
Você era o homem em quem ela confiava... Por que foi
fazer isso? Disseram também que ela tinha sido violentada
miseravelmente. Foi por isso? Você a matou depois de
abusar dela?
— Não pode estar falando de... de... — disse Jessy
Tyrone, muito pálido, sem encontrar as palavras.
— De Samantha? Sim, Jessy, é dela que estou falando.
— Mas... quem Samantha era para que você deseje
minha morte?
— Éramos irmãos, entende agora? Um dia, ela me
escreveu. Ia se casar com um homem chamado Jessy
Tyrone, um pistoleiro. Mas estava feliz com isso. De
repente, não soube mais dela, até saber que tinha morrido. E
que você tinha desaparecido, sem deixar rastro...
— Meu Deus! É isso? — sussurrou Jessy, abaixando a
cabeça, sombrio.
— Sim, é isso. Acha pouco? Defenda-se, Jessy. Vou
matá-lo, se não se defender. Vou guardar a arma. Depois...
que vença o mais rápido. Pode me matar. Está capacitado
para isso...
— É uma loucura, Yuma. Não sabe o que está dizendo
nem fazendo. Eu amava Samantha.
— Por isso acabou com a vida dela, por isso abusou
dela, sem tomá-la sua esposa, como ela esperava? — disse
Yuma, duramente.
— Não entendo nada. Sabe por que procuro Irah
Gaylord para matá-lo?
— Não, nem me interessa. Você nunca quis falar sobre
isso. Se falasse, eu teria entendido.
— Foi um erro de minha parte. Devia ter lhe contado.
Yuma. Você entenderia.
— Está perdendo tempo. Gaylord não me interessa. É
você que me interessa. Espero que não queira fugir deste
duelo de morte...
— Nunca fujo de um duelo — disse Jessy, com
arrogância. — Mas está cometendo um tremendo engano.
Vai matar o homem que mais amou sua irmã, alguém que
só pensa em vingar a morte dela...
— Chega. Não quero mais ouvir desculpas. Para mim
basta o que sei. Defenda-se. Contarei até três. Você sabe
onde estou, me conhece e pode adivinhar o que farei,
mesmo sem me ver. E não haverá alternativa, Jessy. Um!
— Espere! — disse Jessy. — Foi Gaylard quem...
— Dois! — troou, taxativo, Yuma Kid, com a voz
parecendo o golpe de um chicote no silêncio daquela
paragem.
— Isso é uma loucura — insistiu Jessy,
desesperadamente. — Não posso matá-lo, Yuma. Nem você
me matar. Samantha foi...
Soube que Yuma Kid sacava, engatilhava...
Ele não teve outro remédio senão fazer o mesmo.
Sacar, engatilhar, disparar...
***
A tarde se encheu com o seco ruído dos disparos das
armas de fogo.
Jessy sentiu novamente como se a bala de chumbo
roçasse seu crânio. Saltou da sela, impelido pelo disparo e
pelo aturdimento.
Mas ouviu seu antagonista gemer. Depois, outro corpo
caiu na montaria, batendo surdamente no chão.
Seguiu-se um silêncio de morte.
— Yuma... — sussurrou Jessy, de joelhos no chão,
sentindo o sangue escorrer por seu rosto. Diante daquele
silêncio, insistiu, ríspido: — Yuma, responda, por Deus!
Um gemido foi tudo o que ouviu.
Moveu-se naquela direção, cauteloso, empunhando o
revólver fumegante. Sentia o calor que brotava do cano, não
longe de seus dedos.
Tropeçou no corpo caído no chão.
Abaixou-se, tateando. Seus dedos da mão esquerda
tocaram num objeto frio, metálico. Depois, chegaram ao
tubo quente. Sentiu cheiro de pólvora.
Era a arma de Yuma Kid.
Ninguém a empunhava. Continuou. Tocou num tecido
molhado.
— Yuma... — disse. — Você está ferido? Novamente a
resposta foi um leve gemido. Mal conseguiu entendê-lo.
— Você ganhou... Pode acabar comigo... Não me deixe
vivo... ou um dia voltarei para matá-lo, Jessy Tyrone...
— Está louco, ou o que se passa — perguntou Jessy,
furioso. — Nada disso faz sentido, Yuma! Você estava
enganado o tempo todo. Eu jamais teria provocado o menor
mal que fosse a Samantha! Era meu ser mais amado! Era o
outro amor de quem lhe falei outro dia, infinitamente mais
profundo do que o amor que senti por Manoela! Esse
canalha do Gaylord a raptou, a ultrajou e a deixou morrer
no prado! Eu... eu a encontrei moribunda e a levei a um
local onde tivesse sepultura cristã, sem dizer nada a
ninguém. E jurei dedicar minha vida a encontrar Irah
Gaylord e acabar com ele... Será que você não entende?
— Não... não pode ser... Não posso ter cometido um erro
assim...
— Tentei lhe dizer antes, mas você não quis me ouvir,
maldito cabeça dura — encontrou os botões de sua camisa e
começou a abri-los, para cuidar de seu adversário ferido. —
E agora nos atacamos como dois imbecis... Deus queira que
isso tenha remédio... Maldição!
— E você? O que tem? Está sangrando por todo o
rosto... — disse Yuma.
— Sua maldita bala. Nada sério. Tenho a cabeça dura. É
a segunda vez que me livro de vê-la furada. Acho que o
couro cabeludo está sangrando, é tudo...
— Não, deixa... — disse Yuma, com estranha
entonação. — não tente... me ajudar, Jessy.
— Vá para o diabo! — grunhiu Jessy Tyrone, abrindo-
lhe a camisa e apoiando as mãos em seu peito. — Tentarei
curar esse ferimento e...
Ficou imóvel, sem ação, com as duas mãos crispadas
sobre os músculos do peito do jovem pistoleiro.
Eram realmente duas formas duras, sob a camisa preta.
Jessy custou a entender, mas, quando compreendeu
aquela situação totalmente surpreendente, ficou calado.
Depois, disse apenas:
— Meu Deus! Você... você é uma mulher!
— Sim — gemeu Yuma. — Sou Ruth... irmã mais nova
de Samantha.
Depois, Jessy viu que a moça desmaiava. Ele também
mergulhou numa situação aflitiva, pensando que, por pouco,
mesmo contra sua vontade, não matara a irmã da pessoa que
mais amara na vida.
Não sabia o que pensar daquela triste ironia do destino...
Jamais soubera que Samantha tinha uma irmã. Tudo
mudava, menos sua cegueira.

CAPÍTULO OITAVO
Página virada

Irah Gaylord sorriu, saboreando lentamente sua taça de


champanhe.
— Magnífico — disse, lendo de novo o telegrama que
acabara de chegar às suas mãos. — Conseguiram. É uma
mensagem dos irmãos Waldron, Haycox. Dizem que
acabaram com os dois. Jessy Tyrone e Yuma Kid. Estão
mortos, não há dúvida.
— Você deu seu endereço em Dodge City a esses
valentões? — surpreendeu-se Haycox, servindo outro copo
de uísque.
— Não — riu Gaylord. — Mas eles sabem que sempre
viemos aqui, ao Cimarrón House. E por isso enviaram para
cá o telegrama. Boa idéia de Jeff Waldron. Bem, agora
podemos respirar tranqüilos. E comemorar nosso triunfo.
Maldição, Haycox, por que não bebe champanhe em vez
desse uísque fedorento? O champanhe é bebida de
cavalheiros.
— Eu sei. E a minha é bebida de gente rude — riu Jim
Haycox, esvaziando o copo num gole. — Não sou um
cavalheiro. Nem jamais pretendi ser. Sou um porco, o pior
que existe. Jessy tinha razão. Os traidores como eu não
merecem viver.
— Hei, não vai bancar o moralista agora — disse Irah
Gaylord de modo burlão. — Ainda bem que está
trabalhando para mim, como esse bastardo do Ryker.
Agora, vou comprar esse lugar, como você sabe. Será meu.
E os dois trabalharão para mim com um bom salário. O que
mais quer por sua traição a um miserável pistoleiro?
— Esse miserável pistoleiro, como você diz, Gaylord,
era um grande sujeito. Valente, nobre, esforçado... Jamais
devia tê-lo traído por dinheiro. Era um homem de verdade.
Só queria se vingar de você, de sua suja e miserável
ruindade.
— Já chega — cortou Gaylord, irritado. — Sou eu quem
paga. Não consentirei em mais insultos, de você, nem de
ninguém. Vá dormir, para curar a bebedeira, e amanhã verá
as coisas melhor. Vou ficar por aqui, para acertar os
detalhes da compra do Cimarrón House com seu atual
dono. Esses dois sujeitos que contratei como guarda-costas
poderão me proteger melhor do que você esta noite...
E apontou para os dois sujeitos de péssima aparência,
rostos lívidos e expressões geladas, que montavam guarda
não longe dali, com as mãos perto dos revólveres.
Ryker também estava sentado a uma mesa, fumando um
charuto e bebendo uma taça de champanhe, sem largar o
rifle que tinha sobre os joelhos.
— Talvez tenha razão — disse Haycox, levantando-se
cambaleante. — Estou me sentindo mal. Não posso
esquecer que traí Jessy Tyrone... a que ajudei a assassinar
aquela moça, Manoela. Ainda bem que Jessy está morto.
Caso contrário tenho certeza de que, nem mesmo no
inferno, estaria eu a salvo de sua vingança.
— A vingança de um cego? — riu-se Gaylord. —
Vamos, não exagere. Nem que estivesse vivo, ele me
preocuparia muito, estando incapacitado..
Haycox deu de ombros, meneou a cabeça e dispôs-se a
deixar o local.
Mas, quando se dirigia para a saída, arregalou os olhos,
olhou com expressão alucinada para as portas de vaivém do
Cimarrón House, e exclamou com a voz carregada de
horror:
— Meu Deus! Não! Jessy! Jessy Tyrone!
Irah Gaylord deu um salto.
Virou a cabeça, lançando um grito surdo de pavor,
vendo, de fato, erguido no umbral, nada menos que Jessy
Tyrone.
Impávido, com os olhos fixos nele, como se pudesse
enxergar novamente o que acontecia à sua volta.
— Não, não é possível... — sussurrou, lívido,
decomposto, ao ver as feições duras e frias de Jessy,
ameaçadores como a própria máscara da morte, ali, diante
dele. — Você está morto, Jessy...
— Pensa isso mesmo, miserável? — riu Jessy, com voz
glacial. — Por acaso pareço um fantasma?
— Jessy... Eu sabia... Sabia que você estava vivo... —
disse Haycox, trêmulo, retrocedendo, como se realmente
estivesse diante de um fantasma ameaçador e terrível. — Eu
sabia... Foi você... foi você quem matou os Waldron, e não
eles a você... não podia ser de outro modo...
— Sim, é verdade, Haycox. Vejo que está aterrorizado.
Esse medo não impedirá que preste contas de seus atos.
Pagará muito caro por sua traição. Porque vim para isso.
Para que todos paguem por suas culpas. Todos vocês.
— Matem-no! — gritou Gaylord, desfigurado, apontado
para Jessy Tyrone, enquanto os demais clientes do
Cimarrón House apressavam-se em deixar o local, pelos
fundos, diante da iminência de um tiroteio.
Na verdade Ryker, que estava branco como cera desde
que viu aparecer ali Jessy Tyrone, levantou-se de um salto,
apontando seu rifle, para dispará-lo contra o pistoleiro.
Para sua surpresa, Jessy virou-se, sacando seu revólver,
calibre 45, que chamejou na altura de sua cintura.
Ryker, o cantineiro, foi empurrado para trás com o
crânio arrebentado por uma pesada bala, com o dedo ainda
curvado no gatilho, sem chegar a disparar sua arma, que,
quando vomitou chumbo, o fez pelo simples fato de ter
batido no chão. A bala saiu sem rumo.
— Um dos miseráveis que provocaram a morte de
Manoela já caiu — disse Jessy, virando sua arma para outro
ponto da sala. — Agora é você, Gaylord, assassino das duas
mulheres que eu amei e que me amaram... Samantha e
Manoela pedem vingança do Além. E sou eu quem
executará a sentença, bando de ratos...
Os dois capangas de Irah Gaylord sacaram suas armas.
Os dois recém-contratados guarda-costas iam apontar
para Jessy Tyrone com rapidez.
Mas quando o revólver 45, de Jessy vomitou fogo e
chumbo por duas vezes, antecipando-se aos dois em
décimos de segundo, seus corpos foram lançados contra a
parede.
Um deles foi projetado contra um grande espelho, que
ficou partido em pedaços.
O outro homem se dobrou, caindo sobre uma mesa de
roleta, enquanto uma moça loira gritava aterrorizada, ao
sentir que o sangue daquele homem respingava nela.
Parecia impossível que Jessy pudesse disparar assim,
estando cego.
Irah Gaylord, mortalmente pálido, assim como Haycox,
levou a mão à sua arma.
A voz de Jessy lhe chegou em forma de advertência:
— Sim, saque depressa. Ou é um homem morto...
— Não pode ser... Você não está cego...? Está vendo
tudo... — disse Gaylord, trêmulo.
— Sim — riu Jessy, duramente, piscando o olho. —
Vejo que percebeu Gaylord. Os milagres às vezes
acontecem. A bala de um de seus homens me afetou o nervo
ótico, privando-me da visão. Mas outra bala, recentemente,
tocou de modo providencial nesse mesmo nervo, reparando
ó mal, embora eu não sabia como nem por que. Talvez eu
nunca saiba, mas recuperei a visão a tempo. E agora chegou
o momento de todos vocês pagarem sua dívida comigo.
Saque sua arma também, Haycox. Porque, do contrario, vou
matá-lo como a um cão, mesmo que não queira se defender.
— Não, Jessy — suplicou Haycox, de modo sombrio. —
Mate-me. Eu prefiro. Não me defenderei. Nem não tornarei
a trair, nem a você nem a ninguém. o dinheiro de uma
traição não vale nada. Não deixa feliz a pessoa que trai.
Estou em suas mãos, Jessy. Vamos, acabe logo com os dois.
Nós merecemos isso...
— Cão traidor! Covarde asqueroso! — rugiu Gaylord. E
sua arma chamejou, apontando para Haycox, que saltou
para trás, violentamente, alcançado em cheio no peito, pelo
chumbo do assassino.
Rolou pelo chão, com o corpo banhado em sangue e uma
expressão que era como um sorriso final de zombaria, não
se podia dizer se para os que ficavam neste mundo ou se
para si mesmo.
Mal atingiu Haycox com seu disparo, Gaylord voltou
sua arma na direção de Jessy, bem no momento em que
outros dois homens, postados no alto do Cimarrón House
surgiam com seus rifles para disparar contra Jessy Tyrone,
com toda a vantagem.
Esta, que fora a carta escondida de Gaylord o tempo
todo, para o que desse e viesse, representava agora uma
séria ameaça a Jessy, que tinha de enfrentar no mesmo
tempo três adversários armados: o próprio Gaylord, com
seu revólver fumegante, e os dois homens lá em cima, com
os dois Winchester preparados.
Mas, neste exato momento, um tiroteio no salão de jogos
destruiu o espelho da sala e atingiu os dois homens, que se
dobraram contra a grade do segundo andar, atirando para o
ar, arrastando consigo pedaços de madeira da grade.
***
Irah Gaylord finalmente ficou sozinho diante de Jessy
Tyrone.
E desta vez era impossível para ele escapar. Todas as
suas trapaças tinham fracassado...
Estava cara a cara com seu inimigo.
Cara a cara com a morte.
— Bem, Gaylord — disse Jessy. — Lembra-se de
Samantha, minha bela noiva? Você, sujo bastardo, a
ultrajou, provocando sua morte... Depois, não contente com
essa infâmia, assassinou a sangue-frio Harriett, outra moça
que não tinha lhe feito mal algum. Você é culpado.
Indiscutível culpado de duas mortes imperdoáveis.
— Piedade, Jessy... — quase soluçava Gaylord, trêmulo
de medo, com o rosto completamente pálido. — Piedade,
pelo amor de Deus...
— Não há piedade para porcos como você. Defenda-se,
logo! — rugiu Jessy, engatilhando seu revólver e o
levantando, implacável...
Gaylord soltou um gemido de exasperação, meneou a
cabeça, frenético, fazendo menção de jogar a arma ao solo.
— Não! — clamou. — Mate-me, mas não me
defenderei, Jessy!
Diante desse gesto, Jessy hesitou.
Não era capaz de disparar nem mesmo contra um ser tão
odioso quanto Gaylord, se este não quisesse se defender.
Abaixou sua arma, lentamente, contraindo a mandíbula.
— Você não tem escapatória, Gaylord — disse. — Use
sua arma. Contarei até três. É melhor que, quando eu
terminar de contar, você tente me acertar. Se não fizer isso,
vou disparar, mesmo que não queira defender sua miserável
vida. Um!
Gaylord soltou um gemido.
Sua arma parecia que ia cair no chão. Seus dedos se
afrouxavam...
Mas tudo era uma outra armadilha...
Depressa como uma centelha, fechou os dedos sobre a
coronha do revólver e o levantou, a fim de acertar Jessy
Tyrone, quando este contasse “dois”.
A qualquer outro teria pegado de surpresa.
A Jessy não completamente, embora por pouco.
Fulminante, o pistoleiro saltou de costas, fazendo seu
revólver latir bem a tempo.
Gaylord foi alvejado.
Emitiu um alarido lancinante, ao receber o chumbo no
peito.
Mas, simultaneamente, caso Jessy falhasse no disparo,
outro tiro surgiu pela grande janela do salão.
Este arrebentou a cabeça de Gaylord como se fosse um
fruto maduro, espalhando ossos, sangue e massa encefálica
à sua volta.
O corpo do canalha rolou pelo chão, até ficar imóvel.
Um silêncio de morte se abateu no Cimarrón House, em
Dogde City.
— Assunto encerrado... — disse Jessy, ofegante,
baixando sua arma. Virou a cabeça, olhando para a figura
de preto que assomava pela janela. — Pensei que você não
pudesse se mexer, Yuma...
— Posso me mexer o suficiente, pelo menos para lhe dar
uma ajuda nisso — sorriu debilmente Yuma Kid, cujo rosto
estava mais pálido e parecia mais infantil do que nunca. —
Além disso, Gaylord era coisa de nós dois, Jessy. Não era
justo que você se vingasse dele sozinho.
Os dois olharam o cadáver do assassino com indiferença.
A normalidade voltava com estranha rapidez ao local,
depois do tiroteio, apesar de haver no chão sete homens
mortos, sobre as poças de seu próprio sangue.
Não havia dúvida de que, num lugar como Dodge City,
as pessoas estavam habituadas a espetáculos semelhantes,
para que não dessem muita importância àquele fato, apesar
de ser um verdadeiro massacre.
Jessy caminhou para a saída.
Na calçada se juntou a Yuma Kid, sempre vestido de
preto, que caminhava para ele algo vacilante, insegura,
pálida, mas tranqüila.
— Acho que não temos mais nada a fazer aqui — disse
Jesse.
— Eu também acho, meu amigo — sorriu Yuma, sem
esconder agora a doçura de seu sorriso feminino.
— Como está esse ferimento que provoquei em você? —
perguntou Jessy, sinceramente interessado, pegando Yuma
por um braço, suavemente.
— Não está ruim de todo — disse a moça, olhando para
ele, sorridente. — Fico alegre, porque pelo menos minha
bala serviu para lhe devolver a visão, Jessy.
— Na verdade acho que precipitou a cura. Confesso que,
quando começamos a duelar àquela tarde, eu já vislumbrava
alguma coisa. Apenas vultos... Acho que o ferimento, que
você me provocou apressou a cura...
— Tola que eu fui...
— Sim...
— Queria me vingar do homem que queria apenas
vingar minha irmã...
— Você não podia saber disso, Ruth... Prefere que eu a
chame assim?
— Sim, agora isso importa pouco. Sempre quis ser
menino. E me tomei um pistoleiro por causa disso.
Samantha detestava. Para ela, Yuma Kid não era sua irmã.
Talvez por isso nunca falasse em mim. Nem mesmo com
você, apesar de estarem noivos.
— Gostaria de ter encontrado no meu caminho um
demônio assim, Ruth. Graças a você foi possível que eu
ajustasse essa velha conta de uma vez por todas...
— E agora? Creio que está na hora de nos separarmos,
de seguirmos nosso próprio caminho — disse ela.
— Você já não precisa de mim.
— Nem você de mim, suponho. Mas nos tomamos bons
amigos nesse tempo. Por que não ficarmos juntos um pouco
mais?
— Jessy, não daria certo. Você agora sabe que sou uma
mulher. Viu meu rosto, viu meu corpo. Notei seu tremor ao
tocar em meu peito, quando ia tratar de meu ferimento...
Você é um homem, não pode evitar...
— Vamos procurar ser apenas amigos e esquecer o sexo.
— Mas se não pudermos? Gosto de você. Você me atrai.
Eu lamentava ter de matá-lo, porque você me atraía.
Samantha não existe, nem Manoela. A vida continua. Posso
me sentir muito atraída por você... embora você não sinta
nada por mim.
— Você é quem está dizendo. A vida continua. Aprendi
essa lição quando Samantha morreu. Isso é duro, mas é
verdade. E temos de aceitar. Deixemos que as coisas sigam
seu curso normal. E, se os dois esquecermos o passado, se
um dia simplesmente recordarmos que somos homem e
mulher, acho que ninguém pode nos reprovar por isso.
— Sim, Jessy. De acordo — e ela o olhou direto nos
olhos. Já não havia ódio naqueles olhos azuis, mas atração.
— Vamos continuar a viagem juntos. E que seja o que Deus
quiser...
Ele assentiu.
Ajudou a moça a subir no cavalo e depois montou no
seu.
Partiram sem pressa, rua abaixo, através de Dodge City.
Não tinham rumo fixo.
Não iam a parte alguma.
Mas o destino era seu guia agora. A noite ficava para
trás, para um vingador que atingira seu objetivo.
Agora o futuro era transparente. Cheio de luz do dia nos
prados do oeste.
E, ao lado de uma jovem como Ruth, esse futuro poderia
ser melhor do que se imaginava.
Só faltava que o tempo passasse. E passasse para ser
esquecido. Esse assunto agora era página virada no livro da
vida.
E o tempo passa...

CAPÍTULO NONO
Adeus às Armas

— Hei, Walcox, hoje a farra vai ser boa.


— Sim, uma bela moça de olhos azuis. E além disso
deve haver muito dinheiro nessa bagagem.
Os dois homens mal-encarados estavam à frente do
grupo de cinco bandidos que interceptaram o caminho de
Jessy e Ruth.
Os dois, como nos velhos tempos de Wichita, não
demonstraram a menor emoção.
A única diferença, agora, era o fato de não existir mais
Yuma Kid. A lado de Jessy Tyrone, cavalgava
garbosamente Ruth.
Mas será que Yuma Kid estaria mesmo morto? Os cinco
bandidos nem poderiam supor que uma vez existiu um
jovem pistoleiro vestido de preto que percorreu todo o oeste
à procura de um homem. E que nesse percurso mandara
para o inferno alguns intrusos.
Os cinco estavam vendo apenas um casal. Ou pelo
menos um homem e uma mulher, teoricamente presas fáceis
naqueles lugares violentos.
E não hesitaram em atacar.
Jim Broxn, o que falara primeiro, voltou a se dirigir ao
tal Walcox:
— Bem, a melhor fica primeiro com o chefe, você sabe,
Walcox.
— Não acho justo, Bronx. Afinal, não há chefe entre
nós...
— Eu sou o mais antigo...
E ao dizer isso olhou com cara feia para o outro, que
pareceu se convencer, não pela expressão do homem, mas
pelo rifle que havia em sua sela, já apontado para ele.
Bronx fez seu cavalo se aproximar das montarias de
Jessy e Ruth.
— Casadinhos de pouco? — perguntou, soltando uma
gargalhada irônica.
Jessy se manteve calado, imitado por Ruth.
— Ah, não façam isso com seu padrinho... Bem, vocês
sabem que o padrinho pode dar o primeiro beijo na noiva.
Jessy estava inquieto. Mas não sabia qual a melhor
reação. Não pensava em si. Agora se preocupava com Ruth.
Se fosse com Yuma Kid...
Mas isso lhe deu uma idéia.
Olhou firme para a jovem e disse:
— Se lembra de Wichita?
— Sim, claro — respondeu ela, sem atinar com a
intenção de Jessy.
— Lembra-se das quatro visitas?
— A, sim... Como esqueceria aquela cortesia?
Bronx não entendia nada, mas não estava gostando
daquilo.
— Hei, vamos parar com essa conversa mole — disse,
irritado.
— Isso mesmo... — imitou-o Walcox.
Jessy pareceu não ouvir aquilo. Continuou falando com
Ruth:
— Vamos dividir as visitas outra vez?
— Sim, é uma boa idéia — disse ela, acariciando a bolsa
pequena que levava junto à ela e na qual repousava seu
revólver.
— A porta dos fundos pode ficar comigo desta vez.
Você cuida da porta da frente...
— Perfeito, chefe! — ironizou ela, assentindo.
E foi assim que aconteceu.
Com nítida lembrança do dia em que os irmãos Waldron
invadiram a cantina em Wichita. Ruth entendeu que ficaria
encarregada de abater os dois homens que estavam na frente
do grupo, junto a ela e Jessy, enquanto este dispararia
contra os outros três.
Não seria fácil. Mas também não era impossível que eles
levassem a melhor.
Bronx e Walcox, sem querer, facilitaram as coisas.
Colocaram seus cavalos à direita de Ruth, com os olhos de
cobiça voltados para ela.
Ruth sorriu, tirando partido da situação, mas sua mão
pequena e branca estava dentro da bolsa, acariciando com
calma a coronha de sua arma.
Os cavalos de Jessy e Ruth estavam juntos. Então, foi
fácil para Jessy contar baixinho: um, dois, três.
E tudo aconteceu de repente.
Jessy sacou seu revólver com a velocidade do raio,
disparando uma, duas, três vezes contra os homens que
estavam mais à frente.
Ao mesmo tempo, Ruth alvejava, sem deixar de sorrir,
os dois homens que a olhavam com expressão de perverso
desejo.
Mas houve uma surpresa.
Atrás de uma enorme rocha, mais à direita, numa curva
do caminho, surgiu um ginete armado.
Era membro do grupo, e estava ali para dar uma ajuda
caso as coisas saíssem, como saíram, erradas.
Certeiro, ele disparou contra Jessy, que sentiu a mordida
quente do chumbo.
Mas durou pouco o sentimento de vitória do bandido.
Ato contínuo, Ruth fez dois disparos, fazendo homem e a
montaria rolarem pelo caminho.
Mortos.
A bala do bandido acertara Jessy no ombro, e em pouco
tempo sua camisa ficou banhada de sangue.
— Jessy! — gritou Ruth, assustada, ao ver a camisa
vermelha de sangue. — Você está ferido!
— Isso não é nada.
— Desmonte, eu vou fazer um curativo em você...
Jessy gostou da maneira carinhosa, feminina, como foi
tratado por Ruth. Sabia que nenhum companheiro de
viagem, por mais habilidoso que fosse, teria um desvelo tão
grande para ele.
Nem mesmo Yuma Kid, pensou com um leve sorriso,
faria aquilo melhor.
Ruth limpou a ferida, aqueceu a ponta da faca e
conseguiu retirar a bala. Não era nada demais, logicamente,
e pouco depois eles seguiam viagem.
— Quando chegarmos à próxima cidade eu vou levá-lo
ao médico — disse ela.
— Médico? Deus me livre.
— No seja teimoso, Jessy...
***
O resto da viagem correu sem problemas. Quando
chegaram a Benny Town, uma pequena cidade onde a
principal atividade era a criação de gado, Jessy foi à cantina
beber um trago. Estava com a garganta seca. Mas ali não era
lugar para uma moça, uma dama.
Ruth foi ao armazém, comprar algumas coisas de que
precisavam para o restante da viagem.
Na verdade, Ruth estava gostando daquele novo tipo de
vida que levava. Embora fosse boa com as armas, sentia-se
segura na companhia de Jessy, que, apesar de ser um
pistoleiro — o mais temido da região — sabia se comportar
como um verdadeiro cavalheiro. Quando os dois se
encontraram pouco depois, na porta do armazém, Jessy
estava com o rosto sério, a expressão fechada.
Ela percebeu que alguma coisa tinha acontecido. Mas
hesitou em perguntar.
Porém nem foi preciso, pois o próprio Jessy chegou
perto dela e disse:
— Ruth, eu acho que precisamos conversar...
— Está bem. O que houve, Jessy?
— Eu penso que muita coisa...
— Não entendo... — disse a moça.
— Creio que, nesse tempo todo em que estamos
viajando, nos portamos bem, como dois bons amigos, dois
bons companheiros de viagem...
— Sim, eu concordo. Mas isso lhe parece mal? Você
está com uma cara...!
— Não, não acho isso mal. Mas acontece que já não
posso segurar meus sentimentos por você. Quer dizer, não
consigo esquecer que somos homem e mulher e que você,
como mulher, me atrai muito.
— Finalmente aconteceu aquilo sobre o que
conversamos, não é?
— Acho que sim. Porque é diferente. Nosso
relacionamento, embora tenha sido o mais respeitoso
possível, é diferente do relacionamento entre dois homens
que viajam juntos. Estou gostando de você, Ruth...
— Oh, Jessy!
— Diga que sim.
Ela corou um pouco.
Ele, num impulso, disse:
— Quer casar comigo?
— Jessy, tem certeza do que está me perguntando?
— Sim, Ruth. Estive bebendo uns goles lá na cantina e
pensando nesta cidade. E tive vontade de me casar com
você, comprar um rancho e começar a criar reses.
Poderíamos ter uma vida mais pacata. Se por acaso a
violência chegasse até aqui, nós dois saberíamos nos valer.
— Jessy, seria maravilhoso.
Ele pegou a mão dela. Ajudou-a a montar, e partiram em
busca de um rancho onde pudessem se instalar o mais
depressa possível.
Quanto ao casamento, seria algo simples, pois nenhum
dos dois tinha família, e seus amigos estavam muito longe.
Saíram cavalgando pelos prados que havia em tomo da
cidade. Viram uns dois ou três ranchos, mas nenhum deles
era a expressão do sonho que cada um tinha.
Mas, no dia seguinte, encontraram.
Era o lugar perfeito.
Jessy ficou encantado com a paisagem. Ruth se
emocionou ao imaginar que ali poderia começar uma vida
nova ao lado do homem que já amava.
O rancho confinava com um pequeno riacho, que
garantia o abastecimento de água, e a casa da propriedade
ficava numa pequena elevação do terreno, que dava para
divisar até onde a vista alcançasse.
Fecharam o negócio e depois... Bem, depois foram tratar
do casamento. Não houve, logicamente, viagem de lua-de-
mel, que foi passada na casa do rancho.
— Não tem importância — disse Ruth. — Teremos
muito tempo para viajar.
— Sim, querida. Agora temos que assentar as bases de
nossa vida. Vamos esquecer um pouco os revólveres e
cuidar mais das reses.
E eles começaram um trabalho duro, árduo, difícil.
Levantavam bem cedo, providenciando tudo, desde cercas
até construção de celeiros.
A jornada pesada, compartilhada pelos dois, só
terminava à noite, quando ambos estavam exaustos.
Mas a felicidade habitava com eles.
***
Até que chegou a primeira partida de reses. Foi uma
festa, mas um trabalho muito maior também.
E os problemas não estavam longe daquele rancho.
Muito pelo contrario...

CAPÍTULO DÉCIMO
Uma proposta

Depois de um dia de intenso trabalho, Jessy e Ruth


estavam jantando na sala da casa, iluminada por dois
candeeiros.
Conversavam sobre os detalhes do embarque de reses
que fariam no dia seguinte. Sabiam que seria uma operação
difícil, trabalhosa. Mas estavam dispostos a tudo.
De repente, um dos vidros da janela da frente da casa se
quebrou com um tiro.
Jessy levou a mão depressa ao revólver e levantou-se
ouvindo com atenção, pronto para agir.
Veio o segundo disparo.
Ruth também se armou.
Os dois ficaram em posições estratégicas, de onde
poderiam ver lá fora, apesar de ser noite.
Mas nesse momento alguém gritou:
— Hei Jessy, bota a cara de fora como um homem e
venha enfrentar uma arma seca para matar. Não fique
escondido aí feito um rato.
— Quem é você? — perguntou Jessy, com frieza.
— Uma visita que deseja acabar com você, canalha!
Jessy esforçava-se para reconhecer a voz. Mas não fazia
a menor idéia.
— Qual o problema? — perguntou Jessy, depois de um
breve silêncio.
— Faz tantas mazelas pelo mundo, que nem se lembra
mais de por que o procuram, não é Jessy?
— Não sei sobre o que está falando.
E, ao dizer isso, outro disparo penetrou na casa. Jessy
disparou também. Ouviu um grito e, em seguida, alguém
caindo da sela do cavalo.
Mas novos disparos se dirigiram à casa, prova de que o
homem que falava não estava sozinho.
E, na verdade, não fora ele quem caíra, pois logo em
seguida ele disse:
— Mais uma vítima para sua contabilidade, Jessy...
Você matou um dos meus amigos.
— O que quer, afinal? — perguntou lesse.
— Sou irmão de Manoela. Meu nome é Johnny. Vim
acabar com você. Foi por sua causa que minha irmã morreu.
— Não diga tolices — respondeu Jessy, em tom seco. —
Sua irmã foi baleada por dois bandidos, mas eu já a vinguei.
Matei os dois...
— Mas ela foi morta por sua causa, bandido! E novo
disparo. Desta vez com melhor pontaria, pois feriu o braço
esquerdo de Ruth.
Ao ver aquela pele alva sangrando, Jessy ficou furioso,
revoltado, possesso.
Jogou o revólver no chão e pegou o rifle que estava
pendurado atrás da porta.
Começou a disparar para fora. Parecia um louco. Ouviu
outro gemido de dor e novamente alguém caindo do cavalo.
— Miserável! — gritou Johnny. — Matou outro amigo
meu.
— Cuidado — disse Jessy, — porque o próximo pode
ser você.
— Eu temo que não, amigo — disse Johnny, voltando a
disparar com intensidade.
No entanto suas balas acertavam apenas as paredes. lesse
estava com o olhar fixo no exterior, mas não conseguia
deixar de olhar de vez em quando para Ruth, que, mesmo
ferida, continuava com seu revólver empunhado.
Johnny foi se aproximando.
Um tremendo erro. Porque agora a tênue luz dos
candeeiros roubou um brilho da arma que ele empunhava,
deixando que sua figura fosse percebida pelos atentos olhos
de Jessy Tyrone.
Jessy mudou de posição, mas antes disparou para
confundir o homem.
Assim pôde ver seu adversário se movimentando, já no
último degrau da escada que levava à varanda da casa.
Johnny voltou a disparar, mas para o lugar que Jessy
abandonara, dando as costas para ele.
E continuou avançando...
— Não vai sair, Jessy? — voltou a gritar Johnny.
— O que deseja, afinal?
— Eu já disse! Matá-lo!, para vingar a morte da minha
irmã...
— Não tive culpa naquilo. Já lhe disse que matei os
responsáveis pela morte de Manoela.
— Isso não basta. Você também tem de morrer. A não
ser... Bem, podemos fazer um acordo que seja vantajoso
para nós dois.
Então era isso — pensou Jessy. — O irmão de Manoela,
se é que era realmente irmão da moça, queria, na verdade,
dinheiro. Estava atrás disso, e não de vingar a morte de
ninguém.
Somente para saber das intenções do homem, Jessy
perguntou:
— O que você propõe, Johnny?
— Bem, podemos acertar uma quantia que me faça
esquecer a sua culpa...
— Quanto?
— Bem, digamos dois mil dólares.
— Dois mil?
— Sim — respondeu Johnny. — Fechamos negócio, ou
terei de matá-lo.
Jessy não respondeu.
O outro insistiu na pergunta, caminhando lentamente em
direção à porta, com a arma em punho, os olhos injetados
de maldade.
Quando ia dar um passo que o deixaria praticamente
junto à porta, Jessy disparou uma única vez.
Arrebentou o peito do homem com a bala do rifle.
Johnny deu um salto, lançando a arma para o ar, e caiu com
estrépito. Morto. Sem qualquer recompensa.
Jessy correu então para Ruth e viu que a bala apenas
roçara o braço da esposa.
— Não foi nada, querido — disse ela.
— Eu sei. Mas já vimos que não podemos esquecer os
revólveres nesta terra selvagem.
— Acho que não.

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