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Aos dois
distintos membros
da OCF[1]
Carlotta e Peter
O senhor Marquês
Coração de Fogo
Na Curzon S treet
Um cavalheiro útil
Rufus van Aldin havia recém terminado o frugal desjejum
de café e torradas, tudo o que sempre se permitira àquela hora,
quando Knighton entrou no quarto.
– O sr. Goby[1] está lá embaixo esperando para vê-lo.
O milionário lançou um olhar para o relógio. Eram nove e
meia em ponto.
– Certo – disse brevemente. – Pode mandar subir.
Um minuto ou dois mais tarde, o sr. Goby entrou na sala.
Era um homem idoso e pequeno, vestido de forma miserável,
com olhos que vasculhavam tudo em volta com cuidado, mas
nunca se dirigiam à pessoa com quem falava.
– Bom dia, Goby – disse o milionário. – Puxe uma cadeira.
– Obrigado, sr. Van Aldin.
O sr. Goby sentou-se com as mãos nos joelhos, olhando
com gravidade para o aquecedor.
– Tenho um trabalho para você.
– Sim, sr. Van Aldin?
– M inha filha é casada com o honorável Derek Kettering,
como você talvez saiba.
O sr. Goby transferiu o olhar do aquecedor para a gaveta
da esquerda da escrivaninha e permitiu que um sorriso
depreciativo cruzasse seu rosto. Sabia de um grande número de
coisas, mas odiava admitir isso.
– A meu conselho, ela está prestes a impetrar uma petição
de divórcio. O que, é claro, é negócio para um advogado. M as,
por razões particulares, quero as mais completas e detalhadas
informações.
O sr. Goby olhou para a cornija e murmurou:
– Sobre o sr. Kettering?
– Sobre o sr. Kettering.
– M uito bem, sir – o sr. Goby levantou-se.
– Quando as terá?
– O senhor tem pressa?
– Sempre tenho pressa – disse o milionário.
O sr. Goby sorriu de modo compreensivo para a grade da
lareira e perguntou:
– Digamos às duas horas da tarde de hoje, sir?
– Excelente – aprovou o outro. – Bom dia, Goby.
– Bom dia, sr. Van Aldin.
– Eis um homem muito útil – disse o milionário enquanto
Goby saía e o secretário entrava. – Em sua própria linha de
atuação, é um especialista.
– E que linha é essa?
– Informação. Dê-lhe 24 horas e ele poderia desnudar a
vida privada do arcebispo de Canterbury.
– Um tipo útil de sujeito – disse Knighton, com um
sorriso.
– Foi-me útil algumas vezes – respondeu Van Aldin. – E
agora, Knighton, estou pronto para o trabalho.
As horas seguintes viram uma vasta quantidade de negócios
fechados rapidamente. Já era meio-dia e meia quando o telefone
tocou, e o sr. Van Aldin foi informado de que o sr. Kettering
havia se anunciado. Knighton olhou para Van Aldin e
interpretou seu breve aceno de cabeça.
– Peça ao sr. Kettering para subir, por favor.
O secretário ajeitou a papelada e deixou a sala. Ele e o
visitante se cruzaram na porta, e Derek Kettering deu um passo
para o lado, deixando o outro sair. Só depois entrou, fechando a
porta atrás de si.
– Bom dia, senhor. Ouvi dizer que está ansioso para me
ver.
A voz preguiçosa, com uma inflexão vagamente irônica,
despertou lembranças em Van Aldin. Havia charme nela –
sempre houvera. Olhou com atenção para o genro. Derek
Kettering estava com 34 anos, era de constituição magra, rosto
moreno, afilado, que ainda mantinha algo de uma meninice
indescritível.
– Venha – chamou Van Aldin. – Sente-se.
Kettering lançou-se descontraído a uma poltrona. Olhava
para o sogro com uma espécie de sarcasmo tolerante.
– Não via o senhor há um bom tempo, sir – comentou,
agradavelmente. – Quase dois anos, devo dizer. Já esteve com
Ruth?
– Eu a vi noite passada – disse Van Aldin.
– Parecia muito bem, não? – foi o comentário superficial do
outro.
– Não sei se você tem tido muitas oportunidades de julgar
isso – retrucou Van Aldin, seco.
Derek Kettering ergueu as sobrancelhas e disse, de um jeito
despretensioso:
– Oh, nós nos encontramos às vezes no mesmo clube
noturno, o senhor sabe.
– Não vou ficar de rodeios – foi a resposta curta de Van
Aldin. – Aconselhei Ruth a entrar com um pedido de divórcio.
Derek Kettering ficou imóvel.
– Quão drástico! – murmurou – Importa-se se eu fumar?
Acendeu um cigarro e exalou uma baforada de fumaça
enquanto acrescentava, indiferente:
– E o que Ruth disse?
– Ruth tem a intenção de seguir meu conselho.
– É mesmo?
– É tudo o que tem a dizer? – reclamou Van Aldin,
rispidamente.
Kettering bateu as cinzas na grade da lareira e respondeu
com um ar desinteressado.
– Sabe, acho que ela está cometendo um grande erro.
– Do seu ponto de vista, sem dúvida está – disse Van
Aldin, sombrio.
– Ora, vamos – disse o outro. – Não deixe que isto se torne
pessoal. Eu realmente não estava pensando em mim neste
momento, estava pensando em Ruth. O senhor sabe que meu pai
não deve durar muito; todos os médicos dizem isso. Ruth faria
melhor se esperasse mais alguns anos até eu ser lorde
Leconbury, e ela poderá ser a castelã de Leconbury, que é o
motivo pelo qual se casou comigo.
– Não vou mais tolerar o seu maldito descaramento –
berrou Van Aldin.
Derek Kettering sorriu, imóvel.
– Concordo com o senhor. É uma ideia obsoleta – disse. –
Títulos nada valem nos dias de hoje. Ainda assim, Leconbury é
uma ótima propriedade, e, no fim das contas, somos uma das
mais antigas famílias da Inglaterra. Será muito desagradável para
Ruth divorciar-se de mim para me ver um dia casado de novo,
com alguma outra mulher, como senhora de Leconbury, em vez
dela.
– Estou falando sério, meu jovem – disse Van Aldin.
– Oh, eu também – retrucou Kettering. – Estou numa maré
muito baixa, financeiramente; e, se Ruth se divorciar de mim,
isso vai me jogar no buraco. Além do mais, se ela já aguentou por
dez anos, por que não suportar um pouco mais? Dou ao senhor
minha palavra de honra de que o velho possivelmente não durará
mais do que dezoito meses, e, como eu já disse antes, seria uma
pena Ruth não conseguir aquilo que queria ao se casar.
– Está sugerindo que minha filha casou com você por seu
título e sua posição?
Derek Kettering riu uma gargalhada sem muito
contentamento.
– O senhor não pensa que foi por amor, pensa? –
perguntou.
– Eu sei – respondeu Van Aldin devagar – que você disse
coisas muito diferentes em Paris, dez anos atrás.
– Disse? Talvez tenha dito. Ruth era muito bonita, o
senhor sabe... Como um anjo ou uma santa, uma imagem saída de
um nicho de igreja. Eu tinha belas ideias, lembro-me, de virar a
página, de me aquietar e viver de acordo com as mais altas
tradições da vida familiar inglesa, com uma linda esposa que me
amasse.
Riu novamente, de modo ainda mais discordante, e disse:
– M as o senhor não acredita nisso, suponho?
– Não tenho a menor dúvida de que você casou com Ruth
por causa do dinheiro – disse Van Aldin, sem traço de emoção.
– E que ela se casou comigo por amor? – perguntou o
outro, de modo irônico.
– Com certeza.
Derek Kettering encarou-o por um tempo, e então balançou
a cabeça, pensativo.
– Vejo que acredita nisso. Na época, também acreditei. E
posso assegurar, caro sogro, que logo me desiludi.
– Não sei onde quer chegar – disse Van Aldin –, e não me
importo. Você tem tratado Ruth terrivelmente mal.
– Oh, tenho – concordou Kettering, suave –, mas ela é
forte, o senhor sabe. É sua filha. Debaixo daquela maciez branca
e rosada, é rígida como granito. O senhor sempre foi conhecido
como um homem duro, ao menos assim ouvi falar, mas Ruth é
ainda mais dura. O senhor, de alguma forma, ama uma pessoa
mais do que a si mesmo. Ruth nunca o amou e nunca o amará.
– Basta! – disse Van Aldin. – Eu o chamei aqui apenas para
que pudesse dizer-lhe de modo claro e direto o que pretendo
fazer. M inha filha terá um pouco de felicidade. E lembre-se de
que eu a estou apoiando.
Derek Kettering levantou-se e ficou junto à cornija da
lareira. Jogou fora o cigarro e, quando falou, foi com uma voz
muito tranquila.
– O que exatamente o senhor quer dizer com isso?
– Quero dizer – respondeu Van Aldin – que faria melhor
em não se opor ao divórcio.
– Oh – disse Kettering –, é uma ameaça?
– Pode entender da maneira que melhor lhe agradar.
Kettering arrastou uma cadeira até a mesa, sentou-se de
frente para o milionário e disse com um tom de voz suave:
– Apenas em nome do debate, suponhamos que eu me
oponha ao divórcio?
Van Aldin encolheu os ombros.
– Não tem base para sustentar um litígio, jovem tolo.
Pergunte aos seus advogados, eles lhe dirão o mesmo, na hora.
Sua conduta tem sido notória, o assunto preferido de Londres.
– Ruth está criando caso por causa de M irelle, suponho.
M uito tolo da parte dela. Eu não me envolvo com os amigos de
sua filha.
– O que quer dizer? – disse Van Aldin rispidamente.
Derek Kettering riu:
– Vejo que o senhor não sabe de tudo, sir, e é, talvez
naturalmente, preconceituoso.
Apanhou o chapéu e a bengala e se dirigiu para a porta.
Disse, desferindo seu golpe final:
– Não é muito de meu feitio dar conselhos. M as, neste
caso, recomendaria energicamente que houvesse mais franqueza
entre pai e filha.
Saiu rápido da sala e fechou a porta no momento em que o
milionário erguia-se de um salto.
– M as que diabos ele quis dizer com isso? – disse Van
Aldin, enquanto afundava outra vez em sua cadeira.
A inquietação voltou com força total. Havia qualquer coisa
que ele ainda não tinha entendido. O telefone estava ao alcance.
Apanhou-o e pediu pelo número da casa da filha.
– Alô? Alô! M ayfair 81907? A sra. Kettering está? Oh,
está fora? Sim, saiu para o almoço. A que horas volta? Não sabe?
Oh, muito bem. Não, não vou deixar recado.
Furioso, bateu com força o fone no gancho. Às duas da
tarde, não parava de andar em seu quarto, esperando por Goby
com ansiedade. Este se fez anunciar quando passavam dez
minutos das duas.
– E então? – rosnou o milionário com rispidez.
M as o pequeno sr. Goby não era do tipo que se apressa.
Sentou-se à mesa, pegou uma caderneta muito surrada e começou
a ler com voz monótona. O milionário escutou atento, com
crescente satisfação. Goby terminou a leitura e olhou fixo para a
cesta de papéis.
– Hum! – disse Van Aldin. – Isso parece bem definitivo. O
caso será decidido em um piscar de olhos. Está tudo certo com a
evidência do hotel, suponho?
– Com certeza – disse o sr. Goby e lançou um olhar
malévolo para uma poltrona dourada.
– E ele está em maus lençóis nas finanças. Tenta levantar
um empréstimo, foi o que disse? Já obteve praticamente tudo o
que podia esperar do pai. Uma vez que as notícias do divórcio
começarem a circular, não conseguirá levantar mais um centavo,
e, além disso, suas dívidas podem ser compradas e usadas para
pressioná-lo. Nós o pegamos, Goby; nós o apanhamos com as
calças na mão.
Desferiu um soco na mesa. Sua face estava rígida e
triunfante.
– A informação – disse o sr. Goby com uma voz fina –
parece satisfatória.
– Eu tenho de ir agora até a Curzon Street – disse o
milionário. – Estou em grande dívida com você, Goby. Você é
dos bons.
Um pálido sorriso de gratidão mostrou-se no rosto do
homenzinho enquanto dizia:
– Obrigado, sr. Van Aldin. Tento fazer o meu melhor.
Van Aldin não foi direto para a Curzon Street. Dirigiu-se
primeiro para a City, onde teve duas conversas que só
aumentaram sua satisfação. De lá, tomou o metrô até a Down
Street. Enquanto caminhava ao longo da Curzon Street, um vulto
saiu do número 160 e dobrou para subir a rua em sua direção, de
maneira que ambos passaram um pelo outro na calçada. Por um
momento, o milionário imaginou que poderia ser o próprio
Derek Keterring; a altura e a constituição eram semelhantes. M as
à medida que ficavam frente a frente, viu que o homem era um
estranho. Contudo... Não, não um estranho, seu rosto parecia
familiar ao milionário, associado definitivamente a algo
desagradável. Em vão quebrou a cabeça, mas seja lá o que fosse,
a memória esquivava-se dele. Prosseguiu, sacudindo a cabeça,
irritado. Odiava sentir-se confuso.
Ruth Kettering estava claramente esperando por ele.
Quando o pai entrou, ela correu até ele e o beijou.
– E então, papai, como vão as coisas?
– M uito bem – disse Van Aldin –, mas tenho umas
palavras a trocar com você, Ruth.
Ele sentiu a mudança quase imperceptível nela, algo astuto
e cauteloso tomou o lugar da impulsividade de sua saudação. Ela
se sentou em uma poltrona grande.
– Sim, papai? – perguntou. – O que é?
– Vi seu marido esta manhã – disse Van Aldin.
– O senhor viu Derek?
– Sim. Ele disse muitas coisas, a maioria das quais uma
grande desfaçatez. M as, quando estava saindo, falou algo que eu
não entendi. Advertiu-me para estar certo de que havia perfeita
franqueza entre pai e filha. O que ele quis dizer com isso,
Ruthie?
A sra. Kettering mexeu levemente no cabelo.
– Eu... Eu não sei, papai. Como poderia saber?
– É claro que sabe – disse Van Aldin. – Disse ainda algo,
sobre ter as amigas dele e não interferir nas suas amizades. O que
ele quis dizer com isso?
– Não sei – disse outra vez Ruth Kettering.
Van Aldin sentou-se. Sua boca era uma linha severa.
– Olhe aqui, Ruth, eu não vou entrar nisso de olhos
fechados. Não estou totalmente seguro de que aquele seu marido
não tenha a pretensão de causar problemas. Ele não pode fazer
nada, tenho certeza disso. Tenho os meios para silenciá-lo, para
calar-lhe a boca de uma vez por todas, mas tenho de saber se há
necessidade de usar tais meios. O que ele quis dizer com você ter
seus próprios amigos?
A sra. Kettering encolheu os ombros e respondeu
vagamente:
– Tenho muitos amigos. Não sei o que ele quis dizer, tenho
certeza.
– Você sabe – retrucou Van Aldin.
Ele agora falava como se discutisse com um adversário nos
negócios.
– Vou deixar as coisas mais claras. Quem é o homem?
– Que homem?
– O homem. Aquele a quem Derek estava se referindo.
Algum homem em especial que é seu amigo. Você não precisa se
preocupar, querida, sei que não há nada demais nisso, mas temos
que planejar tudo pensando em como parecerá na Corte. Eles
podem inverter as coisas, você sabe. Quero saber quem é o
homem, e também o quão amigável você tem sido com ele.
Ruth não respondeu. Esfregava as mãos com uma
concentração intensa e nervosa.
– Vamos, querida – disse Van Aldin em uma voz mais
branda. – Não tenha medo de seu velho pai. Não fui muito
severo, fui? M esmo naquela vez em Paris... Céus!
Parou, como atingido por um raio.
– Era ele – murmurou para si mesmo. – Bem pensei ter
conhecido seu rosto.
– Do que o senhor está falando, papai? Não entendo.
O milionário caminhou até ela com passos largos e pegou-a
firmemente pelo pulso.
– Olhe aqui, Ruth, você está vendo aquele camarada de
novo?
– Que camarada?
– O que causou toda aquela confusão anos atrás. Sabe
muito bem a quem estou me referindo.
– O senhor quer dizer... – ela hesitou. – O senhor quer
dizer o conde de la Roche?
– Conde de la Roche! – bufou Van Aldin. – Eu disse na
época que aquele homem não era melhor do que um vigarista.
Você se envolveu profundamente com ele, mas consegui tirá-la
das garras do sujeito.
– Sim, o senhor conseguiu – disse Ruth, amarga. – E eu me
casei com Derek Kettering.
– Porque assim o quis – devolveu o milionário, cortante.
Ela deu de ombros.
– E agora – continuou Van Aldin, devagar – você o tem
visto novamente... depois de tudo o que eu disse. Ele esteve
nesta casa hoje. Encontrei-o lá fora, e não consegui reconhecê-lo
por um momento.
Ruth Kettering havia recuperado a compostura.
– Quero dizer uma coisa, papai. Está errado sobre
Armand... Digo, conde de la Roche. Oh, sei que ele teve muitos
incidentes lamentáveis na juventude... Contou-me todos. M as...
Bem, ele sempre gostou de mim. Parti seu coração quando o
senhor nos separou em Paris, e agora...
Ela foi interrompida pelo pai, bufando de indignação.
– Então você se apaixonou por aquele traste, não foi? Você,
uma filha minha! Deus meu!
Ergueu as mãos para cima.
– As mulheres podem ser tão idiotas!
Mirelle
Cartas
No Trem Azul
– Papai!
A sra. Kettering deu pulo violento. Seus nervos não
estavam completamente sob controle naquela manhã. Vestida
com perfeição com um longo casaco de marta e um chapeuzinho
vermelho de laca chinesa, caminhara absorta em pensamentos ao
longo da plataforma abarrotada da estação Victoria, e a súbita
aparição de seu pai, bem como sua efusiva saudação, tiveram um
efeito inesperado sobre ela.
– Ruth. Que pulo!
– Não esperava vê-lo, papai. O senhor se despediu de mim
a noite passada dizendo que tinha uma conferência esta manhã.
– E tenho – disse Van Aldin –, mas você é mais importante
para mim do que qualquer conferência. Vim para dar uma última
olhada em você, já que não vou vê-la de novo por algum tempo.
– É muito gentil de sua parte, papai. Gostaria que o senhor
pudesse vir também.
– E o que diria se eu fosse?
O comentário era meramente uma brincadeira. Estava
surpreso de ver o rápido afogueamento das bochechas de Ruth.
Por um momento, quase pensou ter visto terror nos olhos dela.
Ela riu de modo incerto e nervoso.
– Por um momento cheguei a pensar que o senhor falava
sério – ela disse.
– Isso a teria agradado?
– É claro – ela disse com ênfase exagerada.
– Bem – disse Van Aldin –, isso é bom.
– Não é realmente por muito tempo, papai – continuou
Ruth. – O senhor irá no mês que vem.
– Ah – disse Van Aldin sem emoção –, às vezes penso que
irei a um desses figurões da Harley Street e ele me dirá que
preciso tomar sol e mudar de ares urgentemente.
– Não seja tão preguiçoso – lamentou Ruth –, mês que vem
é ainda melhor que este mês por lá. O senhor precisa resolver
uma porção de coisas até lá.
– Bem, acredito que sim, suponho – disse Van Aldin, com
um suspiro. – É melhor você subir a bordo desse seu trem, Ruth.
Qual é o seu assento?
Ruth Kettering olhou vagamente para o comboio. À porta
de um dos vagões, estava parada uma mulher alta e magra,
vestida de preto – a criada de Ruth, que logo se aproximou dela.
– Pus sua mala sob o assento, madame, no caso de a
senhora precisar dela. Devo pegar um cobertor para a senhora?
– Não, não, não precisa. M elhor que vá e ache seu lugar no
trem agora, M ason.
– Sim, madame.
A mulher partiu.
Van Aldin entrou no trem com Ruth. Ela encontrou seu
assento, e ele depositou vários papéis e revistas na mesa em
frente. O assento oposto ao de Ruth já estava ocupado, e o
americano lançou um olhar superficial para a passageira. Teve a
impressão fugaz de um par de atraentes olhos cinzentos e de um
elegante traje de viagem. Perdeu-se em uma conversa um tanto
errática com Ruth, o tipo de diálogo característico daqueles que
se despedem de uma pessoa prestes partir em um trem.
Logo, ao soar do apito, ele olhou para o relógio.
– Vou indo. Adeus, querida. Não se preocupe. Vou cuidar
de tudo.
– Oh, papai!
Ele se virou, atento. Havia algo na voz de Ruth, algo tão
inteiramente estranho ao seu comportamento habitual, que ele
ficou alarmado. Era quase um choro de desespero. Ela havia feito
um movimento impulsivo na sua direção, mas no minuto
seguinte já era senhora de si mais uma vez.
– Até o mês que vem – disse, com cuidado.
Dois minutos depois, o trem partiu.
Ruth sentou-se, rígida, mordendo o lábio inferior e
esforçando-se muito para não derramar lágrimas dos olhos
desacostumados a chorar. Sentiu de súbito uma desolação
horrível. Tinha uma ânsia selvagem de pular do trem e dar meia-
volta antes que fosse tarde demais. Ela, tão calma, tão
autoconfiante, pela primeira vez em sua vida sentia-se como uma
folha soprada pelo vento. Se seu pai soubesse... O que ele diria?
Loucura! Sim, apenas isso, loucura! Pela primeira vez
estava sendo levada pela emoção, levada até o ponto de
precipitar-se em algo que ela mesma sabia ser incrivelmente
idiota e descuidado. Era filha de Van Aldin o bastante para
perceber sua própria tolice, e inteligente o bastante para
condenar suas próprias ações. M as também era filha dele em
outro sentido. Tinha a mesma determinação férrea de quem
obtinha o que queria e, uma vez que colocasse algo na cabeça,
não mudaria de ideia. Desde a infância havia sido voluntariosa, as
circunstâncias da sua vida haviam desenvolvido nela essa
personalidade. Bem, a sorte estava lançada. Ela iria até o fim.
Olhou em volta, e seus olhos encontraram os da mulher
sentada no lado oposto. Teve uma súbita sensação de que de
alguma forma a outra havia lido sua mente. Percebeu naqueles
olhos cinzentos entendimento e – sim – compaixão.
Era só uma impressão fugaz. As faces de ambas
endureceram-se com polida impassibilidade. A sra. Kettering
apanhou uma revista, e Katherine Grey olhou pela janela e
observou a vista aparentemente infinita de ruas deprimentes e
lares suburbanos.
Ruth encontrou uma crescente dificuldade em fixar a
atenção na página impressa diante de si. Contra sua vontade,
milhares de preocupações a oprimiam. Que tola estava sendo!
Que tola havia sido! Tal como todas as pessoas frias e
autossuficientes, quando perdia o autocontrole, perdia-o
inteiramente. Era tarde demais... M as seria tarde demais? Oh, se
tivesse alguém com quem falar, alguém que a aconselhasse.
Nunca antes havia tido tal desejo, desprezava a ideia de confiar
no julgamento de qualquer outro que não ela própria, mas
agora... Qual era o problema com ela? Pânico. Sim, era a melhor
definição: pânico. Ela, Ruth Kettering, estava tendo um ataque
de pânico completo e absoluto.
Lançou um olhar furtivo à figura no assento à sua frente. Se
ao menos conhecesse alguém assim, uma criatura delicada, calma,
tranquila e simpática. Era o tipo de pessoa com quem alguém
poderia falar. M as não se pode, é claro, fazer confidências a um
estranho. Ruth sorriu diante da ideia. Pegou outra vez a revista.
Precisava realmente se controlar. No fim das contas, havia
pensado em tudo e decidira-se por livre e espontânea vontade.
Que felicidade havia tido em sua vida até agora?
– Por que eu não posso ser feliz? Ninguém jamais vai
descobrir nada – dizia para si mesma, impaciente.
Não parecia haver transcorrido muito tempo quando
alcançaram Dover. Ruth era uma boa viajante, mas não gostava
do frio, e estava feliz de alcançar o abrigo da cabine que havia
reservado. Embora não admitisse, era um pouco supersticiosa, e
era o tipo de pessoa que gostava de coincidências. Depois de
desembarcar em Calais e de se instalar com sua dama de
companhia em seu compartimento duplo no Trem Azul, dirigiu-
se para o vagão-restaurante. Foi com um pequeno choque de
surpresa que se encontrou sentada a uma mesa em que, no lado
oposto, estava a mesma mulher com quem havia estado cara a
cara momentos antes no vagão. Um tênue sorriso aflorou nos
lábios de ambas.
– É uma bela de uma coincidência – disse a sra. Kettering.
– É verdade – disse Katherine –, é curioso o jeito como as
coisas acontecem.
Um empregado veio até elas com a maravilhosa rapidez
sempre demonstrada pela Compagnie Internationale des
Wagons-Lits e serviu-lhes a sopa. Quando a omelete foi servida,
as duas mulheres já conversavam de modo amigável.
– Será divino chegar à hora do crepúsculo – suspirou Ruth.
– Estou certa de que será uma sensação maravilhosa.
– Conhece bem a Riviera?
– Não, é minha primeira visita.
– Imagine só.
– Vai todos os anos, presumo?
– Praticamente. Janeiro e fevereiro em Londres são
terríveis.
– Sempre vivi no campo. Não são meses muito
inspiradores por lá também. Lama, na maior parte.
– E por que só decidiu viajar agora?
– Dinheiro – disse Katherine. – Por dez anos fui dama de
companhia com dinheiro suficiente apenas para comprar sapatos
resistentes para o campo. Agora, me foi deixada o que, para
mim, parece uma fortuna, ainda que eu ouse dizer que para a
senhora não pareceria tanto.
– Por que diz isso? Que não pareceria muito para mim?
Katherine riu.
– Realmente não sei. Suponho que sempre formamos
impressões impensadas. Em minha mente eu a vi como uma das
pessoas mais ricas deste mundo. Foi só uma impressão, posso
estar enganada.
– Não, você não está errada – disse Ruth, e subitamente
assumiu um ar muito grave. – Que outras impressões formou a
meu respeito?
– Eu...
Ruth interrompeu, desdenhando do embaraço da outra:
– Oh, por favor, não seja tão formal. Eu quero saber.
Enquanto saíamos de Victoria, olhei para você e tive uma certa
sensação de que... Bem, de que entendia o que estava passando
pela minha cabeça.
– Posso assegurar que não leio mentes – disse Katherine
sorrindo.
– Não, mas diga-me, por favor, o que estava pensando – a
impetuosidade de Ruth era tão intensa e sincera que terminou
por convencê-la.
– Vou dizer, se é o que quer, mas não deve me achar
impertinente. Pensei que, por alguma razão, estava angustiada, e
lastimei pela senhora.
– Está certa, completamente certa. Estou em uma
complicação terrível. Eu... Eu gostaria de contar-lhe algo a
respeito, se me permite.
“Oh, não...”, pensou Katherine consigo mesma. “É
extraordinário como o mundo parece igual em toda parte. As
pessoas estavam sempre me contando coisas em St. M ary
M ead, e aqui é a mesma coisa, e eu na verdade não quero ouvir
os problemas de ninguém!”
– Conte-me – respondeu educadamente.
Estavam terminando o almoço. Ruth engoliu o café,
levantou-se e, ignorando o fato de que Katherine ainda não havia
começado a sorver o seu, disse:
– Venha comigo aos meus aposentos.
Eram dois compartimentos simples com uma porta de
comunicação. No segundo deles, uma senhora magra, a mesma
que Katherine havia notado na estação Victoria, estava sentada
muito ereta, agarrada a um grande estojo de marroquim vermelho
no qual se viam as iniciais R.V.K.
A sra. Kettering fechou a porta de comunicação e deixou-se cair
em um assento. Katherine sentou-se ao lado dela.
– Estou com problemas e não sei o que fazer. Há um
homem por quem estou apaixonada... De fato, muito apaixonada.
Nós nos apaixonamos quando éramos jovens e fomos separados
de maneira brutal e injusta. Agora vamos ficar juntos outra vez.
– Sim?
– Eu... Eu estou indo encontrá-lo agora. Oh! Ouso dizer
que pensa que tudo isso é errado, mas não conhece as
circunstâncias. M eu marido é impossível, trata-me de um modo
ignominioso.
– Sim? – repetiu Katherine.
– O que me faz sentir mal é ter de enganar meu pai...
Aquele que se despediu de mim hoje na estação Victoria. Quer
que eu me divorcie de meu marido e, é claro, não faz ideia de que
estou indo encontrar outro homem. Ele acharia isso uma tolice
monumental.
– Bem, e a senhora não acha?
– Eu... acho.
Ruth Kettering baixou o olhar até suas mãos. Tremiam
violentamente.
– M as não posso recuar agora.
– Por que não?
– Eu... Já está tudo combinado, e partiria o coração dele.
– Não acredite nisso – disse Katherine vigorosamente. –
Corações são bastante resistentes.
– Ele vai pensar que eu não tenho coragem nem
determinação.
– A mim parece uma coisa terrivelmente tola o que vai
fazer – disse Katherine –, e acho que a senhora percebe isso por
si mesma.
Ruth enterrou o rosto nas mãos.
– Não sei... Não sei. Desde que deixei a estação Victoria
tenho uma terrível sensação de que alguma coisa... Alguma coisa
vai me acontecer muito em breve. Algo de que eu não posso
escapar.
Apertou convulsivamente a mão de Katherine.
– Deve pensar que eu sou louca falando tais coisas, mas
digo-lhe: eu sei que algo horrível está para acontecer.
– Não pense nisso – disse Katherine –, tente manter o
controle. A senhora poderia mandar um telegrama a seu pai de
Paris, se assim desejasse, e ele viria de imediato.
A outra ficou radiante.
– Sim, eu poderia fazer isso. M eu querido pai. É estranho
mas... Nunca soube até hoje o quanto gosto dele.
Ela se endireitou na cadeira e secou os olhos com um lenço.
– Tenho sido bastante tola. M uito obrigada por me deixar
falar com você. Não sei por que fiquei em tal estado de histeria.
Ruth levantou-se.
– Estou bem agora. Acho que eu realmente precisava
apenas de alguém com quem falar. Não consigo dizer por que
tenho agido de maneira tão estúpida.
Katherine se levantou também.
– Estou contente que esteja se sentindo melhor – disse,
tentando fazer sua voz soar tão normal quanto possível. Estava
ciente de que a consequência de um desabafo é o embaraço.
Acrescentou, com bom-senso: – Devo voltar para meus
aposentos.
Emergiu no corredor na mesma hora em que a criada saía
pela porta ao lado. A outra lançou um olhar por sobre o ombro
de Katherine, e uma expressão de intensa surpresa surgiu em sua
face. Katherine se virou, mas quem quer que tivesse despertado
o interesse da criada havia se recolhido para seu compartimento,
e o corredor estava vazio. Katherine dirigiu-se para seu lugar, no
vagão seguinte. O último compartimento se abriu enquanto ela
passava e um rosto de mulher olhou para fora por um momento
antes de fechar a porta de modo brusco. Era um rosto não muito
fácil de esquecer, como Katherine saberia quando o visse outra
vez. Um rosto bonito, oval e escuro, maquiado de uma maneira
estranha e excessiva. Katherine tinha a sensação de que já o havia
visto antes.
Retornou a seu próprio compartimento sem outros
incidentes e sentou-se por algum tempo pensando nas
confidências que lhe haviam sido feitas. Ficou a imaginar quem
seria a mulher do casaco de marta e qual seria o fim de sua
história.
– Se impedi alguém de agir como idiota, suponho que tenha
praticado uma boa ação – pensou consigo mesma. – M as quem
sabe? Aquele é o tipo de mulher que tem sido egoísta e cabeça-
dura a vida toda, e deve fazer bem a ela agir de modo um pouco
diferente para variar. Oh, bem... Não acho que vá vê-la outra
vez. Ela certamente não vai querer me ver de novo. É o que há de
pior em deixar as pessoas nos contarem coisas. Nunca querem
nos ver de novo.
Torceu para que não lhe destinassem à mesma mesa no
jantar. Refletiu, não sem senso de humor, que seria embaraçoso
para ambas. Reclinando a cabeça contra uma almofada, sentiu-se
cansada e um tanto deprimida. Haviam alcançado Paris, e a lenta
jornada ao redor da ceinture[1], com suas intermináveis paradas
e esperas, havia sido cansativa. Quando chegaram à Gare de
Lyon, ficou feliz em descer e caminhar ao longo da plataforma.
A aragem fria e cortante era um refresco depois de tanto tempo
no trem abafado. Observou com um sorriso que sua amiga do
casaco de marta estava resolvendo o possível constrangimento
do jantar à sua própria maneira. A criada estava à janela,
recebendo uma cesta com alimentos.
Quando o trem partiu mais uma vez e o jantar foi
anunciado por um violento retinir de campainhas, Katherine
ficou muito aliviada. Desta vez, dividiu a mesa com um tipo
bastante diverso – um homem pequeno, a aparência sem dúvida
estrangeira, com bigode encerado e cabeça ovalada que se
inclinava para um lado. Katherine havia levado um livro para o
jantar, e logo notou os olhos do homenzinho fixos sobre ele com
uma espécie de brilho maravilhado.
– Vejo, madame, que a senhora tem aí um roman policier.
Gosta desse tipo de coisa?
– Divertem-me – Katherine admitiu.
O homenzinho balançou a cabeça com um ar de
compreensão total.
– Vendem bem sempre, pelo que me disseram. Por que
será, hein, mademoiselle? Pergunto-lhe como um estudioso da
natureza humana. Por quê?
Katherine sentia-se cada vez mais encantada.
– Talvez deem a quem os lê a ilusão de viver uma vida
excitante – ela sugeriu.
Ele acenou a cabeça com gravidade.
– Sim, pode ser.
– É claro, sabe-se que tais coisas não acontecem de verdade
– Katherine ia continuar, mas ele a interrompeu bruscamente.
– Às vezes, mademoiselle! Às vezes! Eu lhe digo...
Aconteceram comigo.
Ela lançou-lhe um olhar rápido e interessado.
– Algum dia, quem sabe, a senhora esteja no meio de
alguma aventura – ele prosseguiu. – É tudo obra do acaso.
– Não creio que seja provável – disse Katherine –, essas
coisas não acontecem comigo.
Ele se inclinou para ela.
– Gostaria que acontecessem?
A pergunta a assustou, e ela segurou a respiração.
– Talvez seja fantasia de minha parte – disse o
homenzinho, enquanto polia com destreza um dos garfos –, mas
acho que mademoiselle tem em si um desejo ardente por
acontecimentos interessantes. Eh bien, mademoiselle, ao longo
de toda minha vida tenho observado uma coisa: “O que alguém
quer, consegue!” Quem sabe? – sua face retorceu-se
comicamente. – Pode conseguir mais do que espera.
– É uma profecia? – perguntou Katherine, sorrindo
enquanto se retirava da mesa.
O homenzinho balançou a cabeça e declarou, pomposo:
– Nunca faço profecias. É verdade que tenho o hábito de
estar sempre certo, mas não me gabo disso. Boa noite,
mademoiselle, e durma bem.
Katherine percorreu o caminho de volta encantada e
divertida com o seu pequeno vizinho. Passou pela porta aberta
do compartimento de sua amiga e viu o condutor arrumando a
cama. A dama do casaco de marta estava em pé, olhando pela
janela. O segundo compartimento, como Katherine pôde ver
através da porta comunicante, estava vazio, com malas e mantas
amontoadas sobre o assento. A criada não estava lá.
Katherine encontrou sua própria cama feita e, como estava
muito cansada, foi se deitar e apagou a luz por volta das nove e
meia.
Acordou assustada, sem noção da hora. Olhando para o
relógio, percebeu que ele havia parado. Um sentimento de
intensa inquietação a invadiu e se fortaleceu momento a
momento até que ela se levantou, enrolou-se no roupão e saiu
para o corredor. O trem inteiro parecia mergulhado em sono
profundo. Katherine abriu a janela e sentou-se no batente por
alguns minutos, sorvendo o ar fresco da noite e tentando, em
vão, acalmar seus medos inquietantes. Decidiu que iria ao fim do
vagão para perguntar ao condutor a hora certa e assim poder
acertar seu relógio. Encontrou, entretanto, vazio o assento do
homem. Hesitou por um momento e então caminhou até o carro
seguinte. Olhou para a longa linha do corredor na penumbra e
viu, para sua surpresa, que um homem estava parado com a mão
na porta do compartimento ocupado pela dama do casaco de
marta. Quer dizer, achou que fosse o compartimento dela.
Provavelmente, contudo, estava equivocada. Ele ficou ali parado
por algum tempo, de costas para ela, parecendo indeciso e
hesitante. Então virou-se lentamente e, com um estranho
sentimento de fatalidade, Katherine o reconheceu como o mesmo
homem que havia visto duas vezes antes – uma delas no corredor
do Savoy Hotel e outra no escritório da Cook. Ele abriu a porta
do compartimento e entrou, fechando-a atrás de si.
Uma ideia relampejou pela mente de Katherine. Poderia
este ser o homem de quem a outra mulher havia falado – o
homem que ela estava viajando para encontrar?
Katherine disse a si mesma que estava romanceando. Com
toda probabilidade, enganara-se em relação ao compartimento.
Voltou para seu próprio vagão. Cinco minutos depois, o
comboio reduziu a velocidade. Soou o longo e queixoso apito do
freio e, pouco depois, o trem fez uma parada em Lyon.
Assassinato
Katherine acordou na manhã seguinte com o sol brilhando
radiante. Tomou o café da manhã cedo, mas não encontrou
nenhum dos seus conhecidos do dia anterior. Quando retornou
para seu compartimento, ele havia sido restaurado à sua
aparência diária pelo condutor, um homem moreno de bigodes
escorridos e rosto melancólico.
– M adame tem sorte – ele disse. – O sol brilha. É sempre
um grande desapontamento para os passageiros quando chegam
em uma manhã cinzenta.
– Eu ficaria desapontada, com certeza – disse Katherine.
O homem se preparou para partir e disse:
– Estamos um tanto atrasados, madame. Eu a avisarei
pouco antes de chegarmos a Nice.
Katherine concordou com um meneio de cabeça. Sentou-se
à janela, arrebatada pelo panorama ensolarado. As palmeiras, o
azul profundo do mar, o amarelo brilhante das mimosas tinham
todo o apelo da novidade para a mulher que por catorze anos
havia conhecido apenas os invernos escuros da Inglaterra.
Quando chegaram a Cannes, Katherine desceu e caminhou
pela plataforma. Estava curiosa a respeito da dama do casaco de
marta, e olhou para as janelas da cabine dela. As persianas ainda
estavam cerradas – as únicas em todo o comboio. Katherine
pensou um pouco e, quando voltou ao trem, passou pelo
corredor e notou que aqueles dois compartimentos estavam
trancados e com as venezianas fechadas. A dama do casaco de
marta claramente não se levantava cedo.
Logo o condutor veio até ela e disse que em alguns minutos
o trem aportaria em Nice. Katherine deu-lhe uma gorjeta; o
homem agradeceu, mas ainda demorou-se. Havia algo estranho
nele. Katherine, que havia a princípio imaginado que a gorjeta
não havia sido suficiente, agora estava convencida de que alguma
coisa mais séria acontecia. Sua face estava com uma palidez
doentia e ele tremia de cima a baixo, parecendo que havia tomado
o maior susto de sua vida. Olhou-a com curiosidade e disse,
abruptamente:
– M adame vai me desculpar, mas está sendo esperada por
amigos em Nice?
– Provavelmente – disse Katherine. – Por quê?
M as o homem apenas sacudiu a cabeça, murmurou algo que
Katherine não conseguiu entender e se afastou, não reaparecendo
até que o trem parasse na estação e ele descarregasse os
pertences da moça através da janela.
Katherine ficou parada por um momento na plataforma,
parecendo perdida, mas um jovem claro, de rosto ingênuo, veio
até ela e disse, um tanto hesitante:
– Srta. Grey, não?
Katherine disse que sim, o rapaz sorriu para ela um riso
angelical e se apresentou:
– Sou Chubby, a srta. sabe... marido de lady Tamplin.
Espero que ela tenha falado de mim, mas talvez tenha esquecido.
Tem seu billet de bagages? Perdi o meu quando vim para cá este
ano, e não imagina o rebuliço que fizeram por causa disso.
Katherine entregou o bilhete e já estava seguindo atrás dele
quando uma voz gentil e insidiosa murmurou em seu ouvido.
– Um momentinho, madame, se me dá licença.
Katherine se virou e viu um indivíduo que compensava a
insignificância da estatura com a grande quantidade de galões
dourados no uniforme.
O indivíduo explicou: havia certas formalidades. M adame
teria, talvez, a gentileza de acompanhá-lo. Os regulamentos da
polícia... Ele ergueu os braços: absurdos, sem dúvida, mas
existiam.
O sr. Chubby Evans ouviu com um entendimento muito
limitado; seu francês era péssimo. Era um desses leais patriotas
britânicos que, tendo se estabelecido em um país estrangeiro,
ressentiam-se fortemente dos seus habitantes originais.
– Coisa de franceses – murmurou. – Sempre prontos a criar
um problema bobo. M as nunca atacaram ninguém na estação
antes, eu acho. É algo realmente novo. Suponho que deva ir.
Katherine partiu com seu guia. Um tanto para sua
surpresa, ele a conduziu a um ramal para onde havia sido
desviado um vagão do trem que partira. Convidou-a para subir e,
precedendo-a através do corredor, segurou a porta de um dos
compartimentos. Dentro, havia um oficial de aparência pomposa
e, com ele, um ser desinteressante que parecia um escrevente. O
personagem de aparência pomposa se ergueu polidamente, fez
uma mesura para Katherine e disse:
– Queira nos desculpar, madame, mas há certas
formalidades a serem cumpridas. Fala francês, creio?
– O suficiente, eu acho, monsieur – respondeu Katherine
naquele idioma.
– M uito bem. Por favor, sente-se, madame. Eu sou o sr.
Caux, comissário de polícia – estufou o peito com um ar
presunçoso, e Katherine tentou parecer suficientemente
impressionada.
– Deseja ver meu passaporte? – ela perguntou. – Aqui está.
O comissário lançou-lhe um olhar arguto e deu um leve
grunhido.
– Obrigado, madame – disse, tomando o passaporte das
mãos dela. A seguir, pigarreou. – M as o que realmente desejo
são algumas informações.
– Informações?
O comissário sacudiu a cabeça devagar.
– Sobre uma dama que veio a ser sua companheira de
viagem. A senhora almoçou com ela ontem.
– Temo que não possa dizer nada sobre ela. Conversamos
sobre a comida, mas é uma completa estranha para mim. Nunca a
vi antes.
– E, ainda assim – disse o comissário, ríspido –, foi até o
compartimento dela após o almoço e sentou-se lá conversando
com ela por algum tempo?
– Sim – disse Katherine –, é verdade.
O comissário lançou-lhe um olhar de encorajamento.
Parecia esperar que ela dissesse mais alguma coisa.
– Então, madame?
– Sim, monsieur? – disse Katherine.
– Poderia, talvez, me dar uma ideia geral dessa conversa?
– Poderia – disse Katherine –, mas neste momento não vejo
nenhuma razão para fazê-lo.
De um modo um tanto britânico, ela estava irritada. Esse
oficial estrangeiro parecia impertinente.
– Nenhuma razão? – bradou o comissário. – Oh, sim,
madame, eu posso garantir que há uma razão.
– Então talvez o senhor devesse revelá-la.
Pensativo, o comissário esfregou o queixo sem falar nada
por algum tempo.
– M adame – ele disse, enfim –, a razão é muito simples. A
dama em questão foi encontrada morta em seu compartimento
esta manhã.
– M orta! – arfou Katherine. – E o que foi? Ataque do
coração?
– Não – disse o comissário, com uma voz meditativa e
sonhadora. – Não, ela foi assassinada.
– Assassinada! – gritou Katherine.
– Vê agora, madame, por que estamos ansiosos por
qualquer informação que possamos obter?
– M as certamente a criada...
– A criada desapareceu.
– Oh – Katherine fez uma pausa para organizar seus
pensamentos.
– Uma vez que o condutor viu a senhora falando com ela
em seu compartimento, ele muito naturalmente reportou o fato à
polícia, e eis por que, madame, nós a detivemos, na esperança de
obter alguma informação.
– Sinto muito – disse Katherine. – Eu sequer sei o nome
dela.
– O nome dela era Kettering. Sabemos disso pelo
passaporte e pelas etiquetas na bagagem. Se nós...
Ouviu-se uma batida na porta do compartimento. O sr.
Caux franziu as sobrancelhas e abriu-a cerca de quinze
centímetros.
– O que é? – disse peremptoriamente. – Não posso ser
perturbado.
A cabeça oval do companheiro de jantar de Katherine
apareceu na abertura. Em sua face havia um sorriso radiante.
– M eu nome – ele disse – é Hercule Poirot.
– Não – o comissário balbuciou –, não o Hercule Poirot...
– Ele mesmo – disse Poirot. – Lembro-me de encontrá-lo
uma vez, monsieur Caux, na Sûreté em Paris, embora sem dúvida
o senhor tenha esquecido...
– De modo algum, monsieur, de modo algum – declarou o
comissário entusiasticamente. – M as entre, eu suplico. O senhor
sabe desse...?
– Sim, sei – disse Hercule Poirot. – Vim para ver se posso
ser de alguma ajuda.
– Seria uma honra – respondeu o comissário prontamente.
– Deixe-me apresentá-lo, monsieur Poirot, a... – ele consultou o
passaporte que ainda tinha na mão – a madame... ahn...
mademoiselle Grey.
Poirot sorriu para Katherine.
– É estranho, não – ele murmurou –, que minhas palavras
tenham se tornado realidade tão rápido.
– M ademoiselle, infelizmente, pôde nos dizer muito pouco
– disse o comissário.
– Estava explicando – disse Katherine – que aquela pobre
dama era uma completa estranha para mim.
Poirot meneou a cabeça.
– M as ela falou com a senhorita, não falou? – ele disse
gentilmente. – Formou sobre ela uma impressão, não é?
– Sim – disse Katherine pensativa –, suponho que sim.
– E essa impressão foi...?
– Sim, mademoiselle – o comissário debruçou-se sobre a
mesa –, deixe-nos por favor ouvir suas impressões.
Katherine sentou-se, revolvendo a coisa toda em sua
mente. Ela se sentia como se de algum modo estivesse traindo
uma confidência, mas, com a palavra “assassinato” tinindo em
seus ouvidos, não ousaria manter nada oculto. M uito poderia
depender disso. Então, o mais próximo que pôde, repetiu
palavra por palavra a conversa que havia tido com a mulher
morta.
– Interessante – disse o comissário, lançando um olhar para
o outro. – E então, monsieur Poirot, interessante, não? Se é que
tem alguma coisa a ver com o crime... – ele deixou a frase
inacabada.
– Suponho que não poderia ser suicídio – disse Katherine,
um tanto em dúvida.
– Não – disse o comissário –, não poderia ser suicídio. Ela
foi estrangulada com um pedaço de corda preta.
– Oh! – Katherine estremeceu.
O sr. Caux afastou as mãos em um gesto de desculpas.
– Sim, muito desagradável. Acho que nossos ladrões de
trem são mais brutais do que os de seu país.
– É horrível.
– Sim, sim – sua voz era suave e compungida –, mas tem
grande coragem, mademoiselle. Ao menos, tão logo a vi, disse
para mim mesmo: “M ademoiselle tem muita coragem”. É por
isso que eu vou pedir que faça algo mais... algo penoso, mas
asseguro que muito necessário.
Katherine olhou para ele, apreensiva. Ele afastou as mãos
outra vez.
– Vou pedir que mademoiselle faça a gentileza de me
acompanhar até o próximo compartimento.
– Eu preciso? – perguntou Katherine em um tom de voz
baixo...
– Alguém deve identificá-la – disse o comissário –, e uma
vez que a criada desapareceu... – pigarreou em tom significativo
– parece que é a única pessoa que a viu a maior parte do tempo
desde que ela entrou no trem.
– M uito bem – disse Katherine, tranquila. – Se é
necessário...
Levantou-se. Poirot lhe deu um leve aceno de aprovação e
disse:
– M ademoiselle é ponderada. Posso acompanhá-los,
monsieur Caux?
– Será uma honra, meu caro monsieur Poirot.
Saíram para o corredor, e o sr. Caux destrancou a porta do
compartimento da mulher morta. As persianas ao fundo haviam
sido entreabertas para permitir a entrada de luz. A vítima jazia
no leito, à esquerda, em uma posição tão natural que alguém
poderia pensar que dormia. As roupas de cama haviam sido
estendidas sobre ela, e sua cabeça fora virada para a parede, de
modo que se viam apenas os cachos ruivos. M uito gentilmente,
o sr. Caux pousou a mão sobre o ombro dela e virou o corpo, e a
face se tornou visível. Katherine recuou e enterrou as unhas nas
palmas das mãos. Uma pancada violenta havia desfigurado as
feições quase além do reconhecimento. Poirot fez uma
observação curiosa:
– Quando isto aconteceu? – ele perguntou. – Antes ou
depois da morte?
– O legista diz que depois – disse o sr. Caux.
– Estranho – disse Poirot, franzindo as sobrancelhas.
Virou-se para Katherine: – Seja valente, mademoiselle; olhe bem
para ela. Tem certeza de que esta é a mulher com quem falou no
trem ontem?
Katherine tinha nervos resistentes. Forçou-se a olhar longa
e seriamente para a figura deitada. Então inclinou-se e pegou a
mão da mulher morta.
– Tenho certeza – respondeu, por fim –: o rosto está muito
desfigurado para ser reconhecido, mas o porte e o cabelo são os
mesmos, e, além disso, enquanto estava falando com ela, notei
isto – disse, apontando para uma pequena verruga no pulso da
morta.
– Bon – aprovou Poirot. – É uma excelente testemunha,
mademoiselle. Parece não haver, então, dúvida quanto à
identidade, mas é estranho, ainda assim – franziu o olhar na
direção da morta com um ar de perplexidade.
O sr. Caux encolheu os ombros e sugeriu:
– O assassino estava transtornado pela raiva, sem dúvida.
– Se ela tivesse sido nocauteada pelo golpe, seria
compreensível – cismou Poirot –, mas o homem que a
estrangulou esgueirou-se por trás e a apanhou desprevenida. Um
ruído abafado... um gorgolejo... é tudo o que se ouviria, e então,
depois, o golpe esmagador na face. Por quê? Tinha esperança de
que se a face estivesse irreconhecível ela não seria identificada?
Ou a odiava tanto que não pôde resistir a dar aquele golpe
mesmo depois de ela estar morta?
Katherine estremeceu, e ele se voltou para ela gentilmente.
– Não permita que eu a aflija. Para mademoiselle tudo isto
é muito novo e terrível. Para, mim, oh, céus, não é novidade.
Peço a ambos mais um momento.
Encostaram-se à porta assistindo enquanto Poirot percorria
rapidamente o compartimento. Observou as roupas da mulher,
dobradas com perfeição aos pés da cama, o grande casaco de pele
que pendia de um gancho e o pequeno chapéu de laca vermelha
jogado sobre o cabide. Depois, passou para o compartimento
adjacente, aquele no qual Katherine havia visto a aia sentada.
Aqui a cama não havia sido arrumada. Três ou quatro mantas
estavam empilhadas frouxamente sobre o assento; havia uma
caixa de chapéu e um par de malas. Virou-se de chofre para
Katherine e disse:
– A senhorita esteve aqui ontem. Vê alguma coisa
diferente? Algo faltando?
Katherine olhou com cuidado ao redor de ambos os
compartimentos e disse:
– Sim. Está faltando algo. Um estojo de marroquim
escarlate. Trazia as iniciais “R.V.K.”. Poderia ser um estojo de
toucador pequeno ou uma caixa de joias grande. Quando o vi,
estava com a criada.
– Ah – disse Poirot.
– M as certamente... – disse Katherine – eu, é claro, não sei
nada a respeito de tais coisas, mas certamente me parece muito
simples, se a criada e a caixa de joias estão sumidas...
– Quer dizer que a criada era a ladra? Não, mademoiselle,
há uma razão muito boa contra essa hipótese.
– Qual?
– A aia desembarcou em Paris.
O comissário virou-se para Poirot:
– Gostaria que ouvisse pessoalmente a história do
condutor – murmurou em tom confidencial. – É muito sugestiva.
– M ademoiselle sem dúvida gostaria de ouvi-la também –
disse Poirot –, se o senhor não se opõe, monsieur le
commissaire...
– Não – disse o comissário, que claramente se opunha
muito. – Não, claro que não, monsieur Poirot, se assim quiser.
Terminamos aqui?
– Acho que sim. Um minutinho.
Poirot havia remexido as mantas, levado uma até a janela, e
agora a olhava, retirando algo com seus dedos.
– O que é? – perguntou o sr. Caux, atentamente,
– Quatro fios de cabelo ruivo – inclinou-se sobre a mulher
morta. – Sim, são da cabeça de madame.
– E o que tem? Vê importância neles?
Poirot deixou a manta cair no assento.
– O que é importante? O que não é? Não se pode dizer
neste estágio. M as devemos examinar cada detalhe
cuidadosamente.
Voltaram para o primeiro compartimento, e logo o
condutor do vagão chegou para ser interrogado.
– Seu nome é Pierre M ichel? – disse o comissário.
– Sim, monsieur le comissaire.
– Gostaria que repetisse para este cavalheiro – disse,
apontando para Poirot – a história que me contou sobre o que
aconteceu em Paris.
– M uito bem, monsieur le comissaire. Depois que
deixamos a Gare de Lyon, fui fazer as camas, pensando que
madame estaria no jantar. M as ela pedira uma cesta com comida
no compartimento, e me disse que havia sido obrigada a deixar a
criada em Paris, portanto eu só precisaria arrumar um leito.
Levou seu cesto para o compartimento adjacente e sentou-se lá
enquanto eu fazia a cama, e disse que não gostaria de ser
despertada cedo pela manhã, que gostaria de dormir. Eu disse
que havia compreendido, e ela me desejou “boa noite”.
– Você não entrou no compartimento adjacente?
– Não, monsieur.
– Então não notou se havia um estojo de marroquim
vermelho no meio da bagagem dela.
– Não, monsieur, não notei.
– Seria possível para um homem esconder-se no
compartimento adjacente?
O condutor refletiu e disse:
– A porta estava semiaberta. Se um homem estivesse em
pé atrás da porta, eu provavelmente não conseguiria vê-lo, mas
ele estaria, é claro, perfeitamente visível para a madame depois
que ela entrou.
– Isso mesmo – disse Poirot. – Há algo mais que gostaria
de nos contar?
– Acho que é tudo, monsieur. Não recordo de nada mais.
– E esta manhã? – instigou Poirot.
– Conforme madame havia solicitado, não a perturbei. Só
em Cannes ousei bater à porta. Não obtendo resposta, eu a abri.
A senhora parecia estar dormindo. Toquei em seu ombro para
acordá-la, e então...
– E então você viu o que havia acontecido – completou
Poirot. – Très bien. Acho que já sei tudo o que gostaria de saber.
– Espero, monsieur le comissaire, que eu não venha a ser
culpado de nenhuma negligência – disse o homem, choroso. –
Um caso desses acontecendo no Trem Azul! É horrível.
– Acalme-se – disse o comissário. – Tudo será feito para
manter o caso o mais discreto possível, pelo interesse da Justiça.
Não o considero culpado de qualquer negligência.
– E monsieur le comissaire vai relatar isso à companhia?
– M as certamente, certamente – disse o sr. Caux, com
impaciência. – Será feito agora.
O condutor saiu.
– De acordo com as evidências médicas – disse o
comissário –, a senhora provavelmente estava morta antes de o
trem alcançar Lyon. Quem, então, foi o assassino? Pelo relato de
mademoiselle, parece claro que em algum ponto da jornada ela
iria encontrar esse homem de quem falou. O ato de se livrar da
criada parece significativo. Teria o homem tomado o trem em
Paris, e ela o ocultado no compartimento adjacente? Se foi assim,
podem ter discutido, e ele pode tê-la matado em um acesso de
raiva. Esta é uma possibilidade. A outra, e a mais provável para
mim, é que o atacante foi um ladrão de trem viajando no
comboio: roubou os compartimentos ao longo do corredor,
despercebido pelo condutor, matou-a e fugiu com o estojo de
marroquim vermelho, que sem dúvida continha joias de algum
valor. Em qualquer das hipóteses, deixou o trem em Lyon, e nós
já telegrafamos para a estação de lá para que nos informe todos
os detalhes de qualquer um que tenha sido visto deixando o trem.
– Ou ele poderia ter vindo até Nice – sugeriu Poirot.
– Poderia, concordou o comissário, mas teria sido uma ação
bastante ousada.
Poirot ficou em silêncio por algum tempo e então disse:
– Na segunda hipótese, pensa que o homem era um ladrão
de trens comum?
O comissário sacudiu os ombros.
– Depende. Devemos pôr as mãos na criada. É possível
que ela esteja com a caixa de marroquim vermelho. Se é assim,
então o homem de quem mademoiselle ouviu a vítima falar está
envolvido no caso, e é um crime passional. Pessoalmente, penso
que a solução de um ladrão de trem é mais plausível. Estes
bandidos têm se tornado bastante audaciosos ultimamente.
Poirot olhou de repente para Katherine e disse:
– E mademoiselle? Não ouviu ou viu nada durante a noite?
– Nada – disse Katherine.
Poirot se voltou para o comissário.
– Não precisamos reter mademoiselle aqui por mais tempo
– sugeriu.
O outro anuiu.
– Vai nos deixar seu endereço? – ele disse.
Katherine informou a ele o nome da villa de lady Tamplin.
Poirot fez-lhe uma breve reverência.
– Permite que eu a veja de novo, mademoiselle? – disse. –
Ou tem tantos amigos aqui que seu tempo estará tomado?
– Ao contrário. Terei muito tempo livre, e ficaria encantada
em vê-lo de novo.
– Excelente – emendou Poirot, e deu a ela um amigável
aceno de cabeça. – Este será um roman policier à nous.
Investigaremos este caso juntos.
Capítulo 12
Na Villa Marguerite
O conde de la Roche
Um cavalheiro aristocrático
– Já esteve alguma vez na Riviera, Georges? – perguntou
Poirot ao seu criado na manhã seguinte.
George era um indivíduo de feições impassíveis,
intensamente inglês.
– Sim, senhor. Estive aqui dois anos atrás quando estava a
serviço de lorde Edward Frampton.
– E hoje – murmurou o patrão – está aqui com Hercule
Poirot. Como subiu na vida!
O criado não respondeu à observação. Depois de uma
pausa conveniente, perguntou:
– O traje de passeio marrom, senhor? O vento está um
tanto frio hoje.
– Há uma mancha de gordura no colete – objetou Poirot. –
Um morceau de filet de sole à la Jeanette caiu quando eu
almoçava no Ritz terça passada.
– Não há mais mancha alguma, senhor – disse George, em
tom reprovador –, eu a removi.
– Très bien! – disse Poirot. – Estou satisfeito com você,
Georges.
– Obrigado, senhor.
Após uma pausa, Poirot murmurou em tom sonhador:
– Suponha, meu bom Georges, que você tivesse nascido na
mesma esfera social que seu patrão anterior, lorde Edward
Frampton... e que, sem um tostão, tivesse desposado uma
mulher extremamente rica, mas que essa mulher pretendesse se
divorciar, com excelentes razões, o que faria a respeito?
– Eu me empenharia em fazê-la mudar de ideia.
– Por métodos pacíficos ou pela força?
George pareceu chocado ao responder:
– Vai me desculpar, senhor, mas um cavalheiro da
aristocracia não se comportaria como um quitandeiro de
Whitechapel, nem faria nada tão baixo.
– Não, Georges? Imagino... Bom, talvez esteja certo.
Ouviu-se uma batida na porta. George foi até ela e abriu-a
apenas alguns discretos centímetros. Seguiu-se um colóquio
sussurrado, e o criado voltou a Poirot.
– Um recado, senhor.
Poirot tomou o bilhete. Era do sr. Caux, o comissário de
polícia: “Estamos prestes a interrogar o conde de la Roche. O
juiz de instrução roga que o senhor esteja presente.”
– Rápido, Georges, meu traje! Devo me apressar!
Quinze minutos mais tarde, lampeiro em seu traje marrom,
Poirot entrou na sala do magistrado de instrução. O sr. Caux já
estava lá, e tanto ele quanto Carrège saudaram Poirot com polido
empressement.
– O caso é um tanto desencorajador – murmurou o sr.
Caux.
– Parece que o conde chegou a Nice no dia anterior ao
assassinato.
– Se for verdade, isso encerra o caso perfeitamente para o
senhor – respondeu Poirot.
O sr. Carrège limpou a garganta:
– Não devemos aceitar o álibi sem uma verificação muito
cuidadosa – declarou, enquanto apertava a campainha sobre sua
mesa.
Um minuto depois entrou na sala um homem alto e
moreno, vestido de modo impecável, com uma fisionomia algo
arrogante. O conde tinha uma aparência tão aristocrática que
pareceria uma completa heresia sequer sussurrar que seu pai fora
um obscuro comerciante de cereais em Nantes – o que, a
propósito, era verdade. Ao olhar para o conde, alguém poderia
jurar que inúmeros de seus ancestrais haviam perecido na
guilhotina durante a Revolução Francesa.
– Estou aqui, cavalheiros – disse, com altivez. – Posso
perguntar-lhes por que queriam me ver?
– Tenha a bondade de se sentar, monsieur le comte – disse
o juiz de instrução delicadamente. – Estamos investigando o caso
da morte de madame Kettering.
– A morte de madame Kettering? Não compreendo.
– Senhor conde, creio que o senhor era... aham!... conhecido
dessa senhora.
– Certamente eu era conhecido dela. O que isso tem a ver
com o assunto?
Ajustando um monóculo, ele olhou ao redor da sala com
frieza, e seu olhar pousou longamente sobre Poirot, que o mirava
com uma espécie de admiração simples e inocente que era
agradável à vaidade do conde. O sr. Carrège se recostou em sua
cadeira e pigarreou:
– O senhor talvez não saiba, monsieur le comte... que
madame Kettering foi assassinada.
– Assassinada? Mon Dieu, que terrível!
A surpresa e o sofrimento foram bem representados... tão
bem, de fato, que pareciam completamente legítimos.
– M adame Kettering foi estrangulada entre Paris e Lyon –
continuou o sr. Carrège –, e suas joias foram roubadas.
– Isso é uma iniquidade! – berrou o conde, exaltado. – A
polícia devia fazer algo a respeito desses ladrões de trem. Nos
dias de hoje, ninguém está seguro.
– Na valise de mão de madame – prosseguiu o juiz –,
encontramos uma carta escrita pelo senhor. Ela havia, ao que
parece, combinado encontrá-lo.
O conde encolheu os ombros, estendeu as mãos e disse
com franqueza:
– Que utilidade têm os segredos agora? Nós somos todos
homens do mundo. Entre nós, e de modo privado, admito o caso.
– O senhor a encontrou em Paris e viajou com ela,
suponho? – disse o sr. Carrège.
– Esta era a combinação original, mas, pela vontade de
madame, foi mudada. Eu deveria encontrá-la em Hyères.
– O senhor então não se encontrou com ela na Gare de
Lyon na noite do dia 14?
– Ao contrário, eu cheguei a Nice na manhã desse dia, então
o que o senhor sugere seria impossível.
– Sim, concordo – disse o sr. Carrège. – Por uma questão
de mera formalidade, o senhor poderia me dar detalhes de seus
movimentos na noite do dia 14?
O conde refletiu por um minuto.
– Jantei em M onte Carlo no Café de Paris. Depois, fui até
o Le Sporting e lá ganhei alguns milhares de francos – ao dizer
isso, deu de ombros – e voltei para casa talvez por volta de uma
da madrugada.
– Pardon me, monsieur, mas como o senhor voltou para
casa?
– No meu automóvel de dois lugares.
– Não havia ninguém com o senhor?
– Ninguém.
– Pode apresentar testemunhas que apoiem sua declaração?
– Sem dúvida muitos dos meus amigos me viram lá naquela
noite. Jantei sozinho.
– Seu criado o recebeu em seu retorno à villa?
– Entrei com minha própria chave.
– Ah! – murmurou o magistrado.
Pressionou de novo a campainha em sua mesa. A porta se
abriu e um mensageiro apareceu.
– Traga a criada, M ason – disse o sr. Carrège.
– Sim, senhor juiz.
Ada M ason foi introduzida na sala.
– Tenha a bondade, mademoiselle, de olhar para este
cavalheiro. Pode afirmar que foi ele quem entrou no
compartimento de sua senhora em Paris?
A mulher lançou um olhar longo e penetrante ao conde, que
estava, Poirot imaginou, um tanto desconfortável com aquele
escrutínio.
– Eu não poderia dizer, senhor – disse a criada, por fim. –
Poderia ser e poderia não ser. Tendo visto apenas suas costas,
como vi, é difícil afirmar. M as acho que sim, era este cavalheiro.
– M as não tem certeza?
– Não... – disse M ason, com relutância – n-não, não tenho
certeza.
– Já viu este cavalheiro antes na Curzon Street?
Ada M ason sacudiu a cabeça.
– Eu provavelmente não veria nenhum visitante que fosse à
Curzon Street – ela explicou –, a não ser que estivesse
hospedado na casa.
– M uito bem, isso é tudo – disse o juiz de instrução,
evidentemente desapontado.
– Um momento – emendou Poirot. – Há uma pergunta que
gostaria de fazer a mademoiselle, se me permitem.
– Certamente, sr. Poirot... sem dúvida que sim.
Poirot se dirigiu à criada.
– O que aconteceu com as passagens?
– As passagens, sir?
– Sim, as passagens de Londres a Nice. Estavam com você
ou com sua senhora?
– A senhora tinha sua própria passagem do vagão-leito,
senhor; as outras estavam a meu encargo.
– O que aconteceu com elas?
– Entreguei ao condutor no trem francês, senhor. Ele disse
que era o de praxe. Fiz a coisa certa, senhor?
– Oh, claro que sim. Era uma mera questão de detalhe.
Tanto o sr. Caux quanto o juiz de instrução olharam para
ele com curiosidade. Ada M ason pareceu confusa por algum
tempo, e então o magistrado a dispensou com um breve aceno de
cabeça, e ela saiu. Poirot rabiscou alguma coisa em um pedaço de
papel e o estendeu para o sr. Carrège. Este leu o que estava
escrito e seu semblante clareou.
– Bem, cavalheiros, devo permanecer aqui muito mais
tempo? – o conde inquiriu em tom arrogante.
– Por certo que não – o sr. Carrège apressou-se em dizer,
com grande amabilidade. – Está tudo esclarecido a respeito de
sua posição neste caso. Naturalmente, em vista da carta de
madame, fomos obrigados a interrogá-lo.
O conde se levantou, apanhou sua vistosa bengala a um
canto e, com uma saudação um tanto breve, deixou a sala.
– É isso mesmo. O senhor tem toda a razão, sr. Poirot –
disse o sr. Carrège –, é muito melhor deixá-lo sentir que não é um
suspeito. Dois dos meus homens vão segui-lo como sombra dia e
noite, e ao mesmo tempo nós vamos verificar a questão do álibi.
A mim me parece um tanto... forçado.
– Possivelmente – concordou Poirot com ar pensativo.
– Pedi ao sr. Kettering para vir aqui esta manhã –
continuou o juiz –, apesar de realmente duvidar que tenhamos
muita coisa para perguntar-lhe, mas há uma ou duas
circunstâncias suspeitas... – fez uma pausa e coçou o nariz.
– Tais como? – perguntou Poirot.
– Bem... – o magistrado pigarreou. – Esta senhora com a
qual foi dito que ele estaria viajando... mademoiselle M irelle.
Está hospedada em um hotel e ele em outro. Parece-me... ahn...
um tanto estranho.
– Parece que estão sendo cuidadosos – emendou o sr. Caux.
– Exato – disse o sr. Carrège, triunfante –, e a respeito do
que eles deveriam ser cuidadosos?
– Excesso de precaução é suspeito, não? – disse Poirot.
– Précisément.
– Acho que devemos fazer uma ou duas perguntas ao sr.
Kettering – murmurou Poirot.
O juiz deu algumas ordens. Pouco depois, Derek Kettering,
cortês como sempre, entrou na sala.
– Bom dia, monsieur – disse o juiz, com educação.
– Bom dia – respondeu com brevidade Derek Kettering. –
Os senhores me chamaram. Há alguma novidade?
– Tenha a bondade de se sentar, monsieur.
Derek tomou assento, jogou o chapéu e a bengala sobre a
mesa e perguntou, impaciente:
– E então?
– Não temos, até aqui, nenhum dado novo – disse o sr.
Carrège, com cautela.
– M uito interessante – disse Derek secamente. – Os
senhores me chamaram aqui para me dizer isso?
– Pensamos, naturalmente, que monsieur gostaria de ser
informado do progresso do caso – disse o magistrado, severo.
– M esmo se não existe progresso.
– Nós também gostaríamos de fazer-lhe algumas perguntas.
– Pois faça.
– O senhor tem absoluta certeza de que não viu nem falou
com sua esposa no trem?
– Eu já respondi a essa pergunta. Não.
– O senhor pode nos dizer, sem dúvida, suas razões.
Derek fixou no juiz um olhar desconfiado.
– Eu... não... sabia... que... ela... estava... no... trem –
explicou, espaçando cuidadosamente as palavras, como se
falasse com alguém cujo raciocínio era lento.
– Isso é o que o senhor diz, é claro – murmurou o sr.
Carrège.
Um franzir de sobrancelhas tornou sombria a face de
Derek:
– Eu gostaria de saber onde o senhor quer chegar. O senhor
sabe o que eu acho, sr. Carrège?
– Diga, monsieur.
– Acho que a polícia francesa é superestimada em demasia.
Seguramente os senhores já deveriam ter alguma informação
sobre essas quadrilhas de ladrões de trem. É ultrajante que tal
coisa tenha acontecido em um train de luxe, e que a polícia
francesa esteja impotente para tratar do assunto.
– Nós estamos tratando, monsieur, não tenha dúvidas.
– Se bem compreendo, madame Kettering não deixou
testamento – interrompeu subitamente Poirot. Tinha as pontas
dos dedos juntas e olhava com intensidade para o teto.
– Não creio que ela tenha feito um alguma vez – disse
Kettering. – Por quê?
– Desta forma, o senhor herda uma bela fortuna, uma
fortunazinha para lá de boa – comentou Poirot.
Embora seus olhos ainda estivessem postos no teto, ele
conseguiu ver o afluxo de sangue que escureceu o rosto de Derek
Kettering.
– O que quer dizer? E quem é o senhor?
Poirot descruzou gentilmente os joelhos e, baixando o
olhar, encarou diretamente o jovem. Disse, com tranquilidade:
– M eu nome é Hercule Poirot, e eu sou provavelmente o
maior detetive do mundo. O senhor tem certeza de que não viu
nem falou com sua esposa no trem?
– Onde o senhor quer chegar? Os senhores... os senhores
estão sugerindo que eu... que eu a matei?
De súbito, ele riu.
– Não devo perder a calma. É um absurdo tão palpável. Por
que, se eu a matei, eu não teria necessidade de roubar suas joias,
não?
– É verdade – murmurou Poirot, com um ar abatido –, eu
não havia pensado nisso.
– Se já houve um caso claro de assassinato e roubo, foi este
– disse Derek Kettering. – Pobre Ruth, aqueles malditos rubis a
condenaram. Deviam saber que ela os trazia consigo. Já houve
assassinatos cometidos por causa daquelas pedras, eu suponho.
Poirot endireitou-se na cadeira de repente. Uma débil luz
verde brilhava em seus olhos. Parecia-se extraordinariamente
com um gato lustroso e bem alimentado.
– M ais uma pergunta, monsieur Kettering – disse. – Pode
me informar o dia em que viu sua esposa pela última vez?
– Deixe-me ver... – refletiu Derek – Deve ter sido... sim,
mais de três semanas atrás. Temo que não possa fornecer o dia
exato.
– Não importa – disse Poirot secamente –, era tudo o que
eu queria saber.
– Bem – disse Derek Kettering com impaciência –, algo
mais?
Olhou diretamente para o sr. Carrège, que buscou
orientação em Poirot, e recebeu deste um tênue aceno de cabeça.
– Não, sr. Kettering – disse o juiz, com delicadeza –, não
acho que precisemos incomodá-lo mais. Tenha um bom dia.
– Bom dia – disse Kettering e saiu, batendo a porta atrás de
si.
Poirot se inclinou e perguntou peremptoriamente, tão logo
o jovem deixou a sala:
– Diga-me, quando o senhor falou daqueles rubis ao sr.
Kettering?
– Não falei – respondeu o sr. Carrège. – Foi apenas ontem
à tarde que soubemos deles, pelo sr. Van Aldin.
– Sim, mas havia uma menção na carta do conde.
O sr. Carrège olhou, aflito:
– Naturalmente eu não falei daquela carta ao sr. Kettering –
emendou, em uma voz surpresa. – Teria sido por demais
indiscreto na presente conjuntura do caso.
Poirot inclinou-se e tamborilou no tampo da mesa.
“Então como ele sabia a respeito deles?”, perguntou-se,
suavemente. M adame não teria contado, se ele não a via há três
semanas. Parece improvável que o sr. Van Aldin ou seu
secretário os tenham mencionado; suas entrevistas com ele
seguiram linhas bastante diferentes, e não havia nenhuma nota ou
referência a eles nos jornais.
Ele se levantou, deu de mão no chapéu e na bengala e
murmurou consigo mesmo:
– E ainda assim, nosso cavalheiro sabia a respeito deles.
Fico a imaginar como. Sim, fico a imaginar!
Capítulo 18
Derek almoça
Derek Kettering foi direto para o Hotel Negresco, onde
pediu dois coquetéis e deu conta deles sem demora. Depois,
olhou com grande melancolia para o deslumbrante mar azul.
Observou mecanicamente os passantes – uma multidão estúpida,
malvestida e desinteressante; nos dias de hoje, só com muito
custo era possível ver alguma coisa que valesse a pena. Corrigiu
a última impressão com rapidez ao ver uma mulher sentar-se a
uma mesa a pouca distância da dele. Vestia um conjunto
maravilhoso, laranja e preto, com um chapeuzinho que fazia
sombra em sua face. Ele pediu um terceiro coquetel e outra vez
ficou mirando o mar, até que, subitamente, assustou-se. Um
perfume bem conhecido assaltou suas narinas, e ele ergueu os
olhos, para encontrar a dama de laranja e preto parada a seu lado.
Agora via-lhe a face e a reconhecia. Era M irelle, que sorria aquele
sorriso insolente e sedutor que ele conhecia tão bem.
– Dereek! – murmurou. – Está tão feliz em me ver, não?
Deixou-se cair em uma cadeira no lado oposto da mesa e
então zombou:
– M as dê-me as boas-vindas, seu estúpido!
– Que prazer inesperado – disse Derek.– Saiu de Londres
quando?
Ela encolheu os ombros:
– Um ou dois dias atrás...
– E o Parthenon?
– Eu os... como é mesmo que vocês dizem... eu os mandei
às favas!
– Verdade?
– Não está sendo muito amável, Dereek.
– Esperava que fosse?
M irelle acendeu um cigarro e soltou algumas baforadas
antes de dizer:
– Acha, talvez, que não é prudente tão cedo?
Derek olhou para ela, encolheu os ombros e comentou, em
tom formal:
– Vai almoçar aqui?
– Mais oui. Com você.
– Sinto muitíssimo. Tenho um compromisso muito
importante – disse Derek.
– Mon Dieu! M as vocês homens são como crianças! –
exclamou a dançarina. – Você banca a criança mimada comigo
desde aquele dia em Londres, quando saiu amuado do meu
apartamento. Ah! Mais c’est inouï![1]
– M inha cara – disse Derek –, realmente não sei do que
está falando. Concordamos em Londres que os ratos desertam de
um navio a pique, e isso é tudo o que há para ser dito.
A despeito de suas palavras descuidadas, a face de Derek
parecia exangue e cansada. De súbito, M irelle se inclinou para
ele.
– Você não me engana – ela murmurou. – Eu sei... eu sei o
que fez por mim.
Olhou-a com atenção. Ela fez um aceno com a cabeça.
– Ah! Não tenha medo, sou discreta. Você é magnífico, tem
uma coragem soberba, mas, ao mesmo tempo, fui eu que dei a
ideia, naquele dia, quando disse, em Londres, que acidentes às
vezes acontecem. E você? Está em perigo? A polícia não
suspeita de você?
– M as que diabos...?
– Quieto! – ela ergueu para ele uma mão morena e esguia
com uma grande esmeralda no dedo mínimo. – Está certo, eu não
deveria falar disso em um lugar público. Não falaremos outra vez
do assunto, mas nossos problemas terminaram, nossa vida
juntos será maravilhosa... maravilhosa!
Derek riu num repente... um riso cruel e desagradável.
– Então os ratos estão de volta, não é? Dois milhões fazem
diferença... É claro que fazem. Eu devia saber – ele riu
novamente. – Vai me ajudar a gastar aqueles dois milhões, não
vai, M irelle? Você sabe como, melhor do que qualquer mulher –
riu outra vez.
– Silêncio! – gritou a dançarina. – Qual é o problema com
você, Dereek? Veja... as pessoas estão se virando para olhar.
– Comigo? Eu direi qual é o problema. Eu terminei com
você, M irelle. Está me ouvindo? Terminei!
M irelle não recebeu aquilo como ele esperava. Olhou-o por
algum tempo e então sorriu, com delicadeza.
– M as que criança! Está irritado e ofendido, e tudo porque
sou uma mulher prática. Eu não disse sempre que adorava você?
Ela se inclinou para ele.
– M as eu o conheço, Dereek. Olhe para mim... Veja, é
M irelle quem está falando. Não pode viver sem ela, você sabe.
Amei você antes e amarei você centenas de vezes mais agora.
Tornarei sua vida maravilhosa... M aravilhosa. Não há nenhuma
mulher como M irelle.
Os olhos dela queimaram nos dele. Ela o viu empalidecer e
inspirar ruidosamente, e então sorriu para si mesma, contente.
Conhecia seu poder e fascínio sobre os homens.
– Estamos acertados – disse, com suavidade, e deu uma
risada breve –, e agora, Dereek, vai me convidar para o almoço?
– Não.
Ele tomou fôlego e se levantou.
– Sinto muito, mas eu disse... que tinha um compromisso.
– Vai almoçar com outra pessoa? Ah! Não acredito.
– Vou almoçar com aquela dama ali.
Cruzou abruptamente até onde uma dama de branco
acabava de subir as escadas, e dirigiu-se a ela, um pouco
ofegante:
– Srta. Grey, gostaria... gostaria de almoçar comigo? A
senhorita me conheceu na casa de lady Tamplin, se ainda lembra.
Katherine olhou-o por instantes com aqueles olhos
cinzentos e pensativos, que diziam tanto.
– Obrigada – disse, depois de uma pausa. – Eu adoraria.
No tênis
M uitos dias se passaram. Katherine havia saído para um
passeio sozinha, pela manhã, e voltou para encontrar Lenox
sorrindo para ela, expectante.
– Seu rapaz lhe telefonou, Katherine.
– A quem chama de “meu rapaz”?
– Um novo... O secretário de Rufus van Aldin. Você parece
ter produzido uma forte impressão nele. Está se tornando uma
destruidora de corações, Katherine. Primeiro Derek Kettering, e
agora o jovem Knighton. O engraçado é que eu me lembro muito
bem dele. Estava no hospital de guerra que mamãe pôs para
funcionar aqui. Eu tinha uns oito anos na época.
– Foi ferido com gravidade?
– Alvejado na perna, se me lembro corretamente... Ainda
assim, um negócio bem desagradável. Acho que os médicos
pioraram as coisas, porque disseram que ele não mancaria nem
nada assim, mas quando saiu daqui estava coxo.
Lady Tamplin juntou-se a elas.
– Estava falando do major Knighton? – ela perguntou. –
Um rapaz tão precioso! Logo de início eu não me lembrava
dele... Eram tantos... M as agora tudo está voltando.
– Ele era um tanto desimportante antes para ser lembrado –
disse Lenox. – Agora que é o secretário do milionário americano,
é uma questão muito diferente.
– Querida! – disse lady Tamplin em seu tom de vaga
censura.
– O que o major queria ao telefone? – indagou Katherine.
– Perguntou se você gostaria de ir ao tênis esta tarde. Se
sim, ele viria buscá-la de carro. M amãe e eu aceitamos por você
com empressement. Enquanto se entretém com o secretário,
poderia me dar uma chance com o milionário, Katherine. Ele
deve estar na casa dos sessenta anos, suponho. Andará à procura
de uma coisinha jovem e doce como eu.
– Gostaria de conhecer o sr. Van Aldin – disse lady
Tamplin, séria –, já ouvi falar tanto dele. Esses belos homens
rudes do Oeste – interrompeu-se e murmurou –, tão
fascinantes...
– O major Knighton fez questão de frisar que era um
convite do sr. Van Aldin – continuou Lenox. – Disse isso tantas
vezes que farejei segundas intenções. Você e Knighton
formariam um belo casal, Katherine. Deus os abençoe, meus
filhos.
Katherine riu e subiu as escadas para mudar de roupa.
Knighton chegou logo após o almoçou e resistiu com
virilidade às efusões de reconhecimento de lady Tamplin.
Quando Knighton e Katherine se dirigiam para Cannes,
comentou:
– Lady Tamplin mudou tão pouco.
– Em modos ou em aparência?
– Ambos. Ela deve ter, suponho, bem mais de quarenta,
mas ainda é uma mulher notavelmente bonita.
– Sim, ela é – concordou Katherine.
– Estou contente que tenha podido vir hoje – continuou
Knighton. – M onsieur Poirot estará lá também. Que
homenzinho extraordinário é ele. Conhece-o bem, srta. Grey?
Katherine negou.
– Conheci-o no trem a caminho daqui. Estava lendo uma
história de detetive e comentei, por acaso, que aventuras como
aquelas não aconteciam na vida real. Claro, não tinha ideia de
quem era ele.
– É uma pessoa notável – disse Knighton, devagar –, e já
fez coisas incríveis. Tem uma espécie de gênio para ir à raiz de
um problema e até o fim ninguém tem ideia do que ele está
realmente pensando. Lembro-me de que estava hospedado em
uma casa em Yorkshire, e as joias de lady Clanravon foram
roubadas. Parecia a princípio ser um simples roubo, mas a
polícia local ficou perplexa. Pedi a eles que chamassem Hercule
Poirot e disse que ele era o único homem que poderia ajudá-los,
mas preferiram confiar na Scotland Yard.
– E o que aconteceu? – disse Katherine, curiosa.
– As joias nunca foram recuperadas.
– O senhor realmente tem confiança nele.
– De fato. O conde de la Roche é um tipo bem matreiro, e
saiu ileso da maioria de suas trapaças. M as creio que finalmente
encontrou um rival à altura em Hercule Poirot.
– O conde de la Roche... – disse Katherine, pensativa. –
Então pensa realmente que ele cometeu o crime?
Knighton olhou-a espantado.
– É claro. A senhorita não?
– Oh, sim – apressou-se em responder Katherine –, quer
dizer, isso se não foi apenas um simples roubo de trem.
– Poderia ser, é claro – concordou o outro –, mas me parece
que o conde se ajusta particularmente bem a esse caso.
– Ainda que tenha um álibi.
A face de Knighton rompeu em um atraente riso infantil:
– Oh, álibis! A srta. Grey lê histórias de detetives. Deve
saber que qualquer um que tenha um álibi perfeito é sempre alvo
de suspeitas.
– Acha que as coisas são assim na vida real? – perguntou
Katherine, com um sorriso.
– Por que não? A ficção é fundamentada nos fatos.
– M as é superior a eles – sugeriu Katherine.
– Talvez. De qualquer modo, fosse eu um criminoso, não
gostaria de ter Hercule Poirot no meu encalço.
– Eu também não – disse Katherine, e sorriu.
Foram recebidos na chegada por Poirot. Como o dia estava
quente, trajava um fato folgado de linho branco com uma camélia
também branca na lapela.
– Bonjour, mademoiselle. Pareço bastante inglês, não?
– O senhor está esplêndido – disse Katherine.
– A senhorita zomba de mim, mas não tem importância –
respondeu Poirot, em tom cordial. – Papa Poirot sempre ri por
último.
– Onde está o sr. Van Aldin? – perguntou Knighton.
– Vai nos encontrar em nossos lugares. Para dizer a
verdade, meu amigo, não está muito satisfeito comigo. Oh, esses
americanos... não conhecem a calma, o repouso. O sr. Van Aldin
gostaria que eu me abalasse na perseguição dos criminosos
através de todos os atalhos de Nice.
– Penso que não seria um mau plano.
– Pois está errado – disse Poirot –; nesses assuntos, o que
se precisa não é de energia, e sim de elegância. Em uma partida
de tênis, encontra-se todo mundo, e isso é muito importante.
Ah, ali está o sr. Kettering.
Derek veio até eles abruptamente. Parecia apressado e
furioso, como se algo o tivesse perturbado. Ele e Knighton se
cumprimentaram com alguma frieza. Apenas Poirot não pareceu
tomar conhecimento da atmosfera carregada e tagarelou, amável,
em uma louvável tentativa de deixar a todos confortáveis.
Distribuiu elogios.
– É impressionante, sr. Kettering, o quanto o senhor fala
bem o francês – observou. – Tão bem que poderia passar por
francês se quisesse. É uma característica muita rara entre os
ingleses.
– Gostaria de ser assim – disse Katherine. – M as sei muito
bem que meu francês é dolorosamente britânico.
Chegaram a seus lugares e sentaram-se, e quase de imediato
Knighton percebeu seu empregador fazendo sinais do outro lado
da quadra. Saiu para falar com ele.
– Quanto a mim, admiro esse rapaz – disse Poirot,
dirigindo ao secretário um sorriso radiante. – E a senhorita?
– Gosto muito dele.
– E o sr. Kettering?
Uma réplica impaciente aflorou aos lábios de Derek, mas
ele a conteve depois que alguma coisa nos olhos cintilantes do
belga o pôs em alerta. Falou com cuidado, escolhendo as
palavras.
– Knighton é um camarada muito bom.
Por um momento, Katherine achou que Poirot parecia
desapontado.
– É grande admirador seu, monsieur Poirot – disse, e
contou algumas das coisas que Knighton havia relatado,
admirada de ver o homenzinho estufar o peito como um pássaro
e assumir um ar de falsa modéstia que não iludiria ninguém.
– O que me lembra, mademoiselle – ele disse, de súbito –,
que tenho um assuntinho de negócios a tratar com a senhorita.
Quando estava sentada conversando com a pobre senhora no
trem, creio que deve ter deixado cair uma cigarreira.
Katherine pareceu confusa ao dizer:
– Acho que não.
Poirot tirou do bolso uma cigarreira de couro azul, macio,
com a inicial “K” gravada em dourado.
– Não, não é minha – disse Katherine.
– Ah, mil desculpas. Sem dúvida pertencia à própria
madame. “K”, é claro, é de Kettering. Estávamos em dúvida,
porque ela tinha outra cigarreira na bolsa, e pareceu estranho que
trouxesse duas – Poirot se virou de repente para Derek. – O
senhor não sabe, presumo, se esta cigarreira era ou não de sua
esposa?
Derek pareceu momentaneamente perplexo, e gaguejou em
sua resposta.
– Eu... eu não sei, suponho que seja.
– Por acaso não seria sua?
– Certamente que não. Se fosse minha, dificilmente estaria
em posse de minha esposa.
Poirot parecia mais ingênuo e infantil do que nunca.
– Achei que talvez o senhor a tivesse deixado cair quando
esteve no compartimento dela – explicou, com sinceridade.
– Nunca estive lá. Já disse isso à polícia uma dúzia de
vezes.
– M il perdões – disse Poirot, com seu ar mais compungido.
– Foi mademoiselle aqui que mencionou tê-lo visto se dirigindo
para lá.
Ele parou com um ar de embaraço.
Katherine olhou para Derek. O rosto dele parecia pálido,
mas talvez fosse só impressão. Quando riu, a risada veio
bastante natural.
– Enganou-se, srta. Grey – disse, com calma. – Pelo que me
disse a polícia, deduzi que meu compartimento ficava a apenas
uma ou duas portas de distância do de minha esposa... Ainda
que eu nunca tenha suspeitado desse fato na época. Deve ter me
visto a caminho de minha própria cabine.
Levantou-se ao ver Van Aldin e Knighton se aproximando
e anunciou.
– Vou deixá-los agora. Não posso, por preço algum,
aguentar meu sogro.
Van Aldin saudou Katherine com muita cortesia, mas
estava, é claro, de mau humor.
– Parece muito interessado em assistir ao tênis, monsieur
Poirot – resmungou.
– É um prazer para mim – respondeu Poirot, placidamente.
– Que bom que o senhor está na França – disse Van Aldin.
– Somos um pouco mais rígidos nos Estados Unidos. Lá os
negócios vêm antes do prazer.
Poirot não se ofendeu; na verdade, sorriu de modo gentil e
confiante para o iracundo milionário.
– Não se irrite, eu suplico. Cada um tem seus métodos.
Quanto a mim, sempre achei uma ideia deliciosa e agradável
combinar negócios e prazer.
Lançou um olhar aos outros dois. Estavam em absorta
conversação um com o outro. Poirot balançou a cabeça em sinal
de satisfação, e então se inclinou para o milionário, baixando o
tom da voz:.
– Não é apenas pelo prazer que estou aqui, sr. Van Aldin.
Observe no lado oposto ao nosso aquele homem velho e alto...
Aquele com o rosto macilento e a barba venerável.
– Bem, o que tem ele?
– Aquele é monsieur Papopolous – disse Poirot.
– Grego?
– Como o senhor bem disse, grego. É um negociante de
antiguidades de reputação mundial. Tem uma pequena loja em
Paris, e a polícia suspeita que seja também algo mais.
– O quê?
– Um receptador de mercadorias roubadas, especialmente
joias. Não há nada que ele não saiba a respeito de relapidação e
reengaste de gemas. Negocia com a mais alta nobreza da Europa
e com a mais baixa ralé do submundo.
Van Aldin olhou para Poirot com a atenção subitamente
despertada.
– Bem? – perguntou, uma nova entonação na voz.
Poirot bateu no próprio peito, dramático:
– Eu me pergunto, eu, Hercule Poirot, me pergunto por que
monsieur Papopolous de repente está em Nice?
Van Aldin estava impressionado. Por um momento, havia
duvidado de Poirot e suspeitado que o homenzinho era coisa do
passado, alguém que apenas mantinha a pose. Agora, de uma só
vez, havia voltado à sua opinião original. Olhou para o pequeno
detetive.
– Devo-lhe desculpas, monsieur Poirot.
Poirot recusou as desculpas com um gesto extravagante e
exclamou:
– Ora! Nada disso tem importância. Agora escute, sr. Van
Aldin; tenho notícias.
O milionário lançou-lhe um olhar atento e pleno de
interesse. Poirot continuou:
– Digo que o senhor ficará interessado. Como sabe, o conde
de la Roche tem estado sob vigilância desde seu depoimento ao
juiz de instrução. Um dia depois daquilo, durante sua ausência, a
Villa M arina foi vasculhada pela polícia.
– Bem – disse Van Aldin –, eles encontraram algo? Aposto
que não.
Poirot fez-lhe uma breve mesura.
– Sua perspicácia não falha, sr. Van Aldin. Não
encontraram nada de natureza incriminadora, e nem era esperado
que encontrassem. O conde de la Roche, como vocês dizem em
seu expressivo idioma, não nasceu ontem. É um cavalheiro
astuto com grande experiência.
– Bem, continue – resmungou Van Aldin.
– Pode ser, é claro, que o conde não tenha nada
comprometedor a esconder. M as não podemos negligenciar a
possibilidade. E se tem algo a ocultar, onde está? Não na casa...
A polícia procurou minuciosamente. Não está com ele, porque
sabe que está sujeito a ser preso a qualquer minuto. Resta... o
automóvel. Como eu disse, ele estava sob vigilância. Foi seguido
naquele dia até M onte Carlo. Dali, dirigiu sozinho até M enton.
Seu carro é muito potente e tomou distância dos perseguidores.
E por aproximadamente quinze minutos perderam
completamente o rastro dele.
– E durante esse tempo o senhor acredita que ele escondeu
algo em algum ponto da estrada? – perguntou Van Aldin, muito
interessado.
– Em algum ponto da estrada não. Ça n’est pas pratique.
M as ouça... Fiz uma pequena sugestão ao sr. Carrège, e ele
graciosamente a aprovou. Investigaram cada posto de correio das
imediações procurando alguém que conhecesse o conde de vista.
Porque, veja, monsieur. A melhor maneira de esconder algo é
enviando pelo correio.
– E? – perguntou Van Aldin, o rosto iluminado de interesse
e expectativa.
– E... voilà! – com um floreio dramático, Poirot retirou do
bolso um pacote de papel pardo, semiaberto, do qual os
barbantes haviam sido removidos. – Durante aqueles quinze
minutos, nosso bom cavalheiro postou isto.
– O endereço? – perguntou o outro, ríspido.
Poirot respondeu com um meneio de cabeça.
– Poderia nos dar alguma pista, mas infelizmente não é o
caso. O pacote estava endereçado a umas dessas banquinhas de
jornal em Paris onde cartas e embrulhos são mantidos até serem
resgatados mediante o pagamento de uma pequena comissão.
– Sim, mas o que há dentro? – perguntou Van Aldin
impaciente.
Poirot desembrulhou o papel pardo, revelando uma caixa
quadrada de cartolina, e olhou ao redor.
– É uma boa hora – disse, com tranquilidade –, todos os
olhos estão voltados para a partida. Veja, monsieur!
Ergueu a tampa da caixa por uma fração de segundo. Uma
exclamação de total assombro escapou ao milionário. Sua face
tornara-se branca como giz.
– M eu Deus – suspirou –, os rubis.
Sentou-se, estupefato. Poirot devolveu a caixa ao bolso e
sorriu placidamente. Súbito, o milionário pareceu sair do transe,
inclinou-se para Poirot e apertou sua mão com tanto vigor que o
homenzinho retorceu-se de dor.
– Isso é maravilhoso – disse Van Aldin. – M aravilhoso! O
senhor é dos bons, monsieur Poirot. De uma vez por todas, o
senhor é o melhor.
– Não é nada – disse Poirot com modéstia. – Ordem,
método, estar preparado para qualquer eventualidade... Isso é
tudo.
– E a esta hora, suponho, o conde de la Roche está preso –
continuou Van Aldin, ansioso.
– Não – respondeu Poirot.
Um olhar de completa perplexidade assomou ao rosto de
Van Aldin.
– M as por quê? O que mais querem os senhores?
– O álibi do conde continua inabalável.
– M as isso é absurdo.
– Sim – disse Poirot. – Também penso que é absurdo, mas
infelizmente temos de provar que é.
– E nesse meio-tempo ele lhes escapará por entre os dedos.
Poirot sacudiu a cabeça, enérgico e disse:
– Não... não escapará. A única coisa que o conde não pode
se permitir sacrificar é a posição social. A qualquer custo, vai
ficar e nos enfrentar, com descaramento.
Van Aldin ainda não estava satisfeito.
– M as não vejo como...
Poirot ergueu a mão.
– Conceda-me um momentinho, monsieur Van Aldin.
Tenho uma ideia. M uitos já zombaram das ideias de Hercule
Poirot... E estavam errados.
– Bem – disse Van Aldin –, vá em frente. Qual é a ideia?
Após uma pausa, Poirot disse:
– Vou procurar pelo senhor no seu hotel, amanhã pela
manhã, onze em ponto. Até lá, não diga nada a ninguém.
Capítulo 22
Poirot dá um conselho
O milionário precisou de alguns minutos para compreender
a coisa toda. Olhava para Poirot com uma expressão confusa. O
pequeno belga anuiu gentilmente com meneios de cabeça e disse:
– Isso modifica tudo, não?
– Imitações! – ele disse, e se inclinou para Poirot. – Tinha
essa ideia o tempo todo, sr. Poirot? O tempo todo era essa a
linha que estava seguindo? Nunca acreditou que o conde de la
Roche fosse o assassino?
Poirot respondeu, tranquilo:
– Tinha minhas dúvidas e expressei muitas delas. Assalto
com violência e assassinato? – ele sacudiu a cabeça de modo
enérgico. – Não, é difícil de imaginar. Não condiz com a
personalidade do conde de la Roche.
– M as acredita que ele pretendia roubar os rubis?
– Certamente, não há dúvida a respeito disso. Vou relatar o
caso da maneira como o vejo. O conde soube dos rubis e
formulou seus planos. Inventou uma história romântica sobre
um livro que estava escrevendo, de forma a induzir sua filha a
trazê-los com ela. Providenciou duplicatas exatas. Parece claro,
não, que pretendia substituir as joias. M adame, sua filha, não era
uma especialista. Levaria provavelmente um bom tempo até que
descobrisse o que havia ocorrido. E quando descobrisse, bem,
não creio que denunciaria o conde. M uita coisa viria à tona,
porque ele estaria de posse de várias cartas escritas por ela. Oh,
sim, um ardil muito seguro, do ponto de vista do conde...
Provavelmente já o pôs em prática antes.
– Parece claro o bastante, sim – disse Van Aldin,
pensativo.
– E se ajusta à personalidade do conde de la Roche –
completou Poirot.
– Sim, mas agora... – Van Aldin olhou de modo perspicaz
para o outro – o que realmente aconteceu? Diga-me, sr. Poirot.
Poirot encolheu os ombros e disse:
– É muito simples. Alguém se adiantou ao conde.
Houve uma longa pausa, e Van Aldin pareceu revolver o
caso em sua mente. Quando finalmente falou, deixou os rodeios
de lado:
– Há quanto tempo suspeita de meu genro, sr. Poirot?
– Desde o início. Ele tinha o motivo e a oportunidade.
Todos tomaram por certo que o homem na cabine de madame em
Paris era o conde de la Roche. Eu também. Então, como por
acaso, o senhor mencionou que havia, certa vez, confundido o
conde com seu genro. Isso me confirmou que eram da mesma
altura e constituição física, e tinham até o mesmo tom de pele, o
que pôs algumas ideias curiosas na minha cabeça. A criada
trabalhava para sua filha havia pouco tempo. Era improvável que
conhecesse bem a aparência do sr. Kettering, uma vez que ele
não está morando na Curzon Street; e também o homem havia
tido o cuidado de manter o rosto oculto.
– O senhor acredita que... ele a matou? – disse Van Aldin,
com a voz rouca.
Poirot apressou-se em erguer a mão:
– Não, não, eu não disse isso... M as é uma possibilidade
muito forte. Ele estava encurralado, ameaçado com a ruína, e essa
podia ser a única saída.
– M as por que levar as joias?
– Para fazer parecer um crime cometido por simples
ladrões de trem. Caso contrário, as suspeitas recairiam sobre ele.
– Se foi assim, o que terá feito com os rubis?
– Isso ainda permanece em aberto. Há várias
possibilidades. Há um homem em Nice que pode nos ajudar,
aquele que eu indiquei no tênis.
Levantou-se. Van Aldin fez o mesmo, pousou a mão sobre
o ombro do homenzinho e falou, em uma voz áspera e
emocionada:
– Encontre para mim o assassino de Ruth. É tudo o que
peço.
Poirot empertigou-se e disse, com formalidade:
– Deixe tudo nas mãos de Hercule Poirot, não tenha medo.
Eu descobrirei a verdade.
Esfregou uma mancha de poeira no chapéu, dirigiu ao
milionário um sorriso tranquilizador e deixou a sala. Contudo, à
medida que descia as escadas, a confiança ia desaparecendo de
seu rosto.
– Está tudo muito bem – murmurava para si mesmo –, mas
há dificuldades, sim, há grandes dificuldades.
Ao sair do hotel, estacou, de súbito. Um carro havia
estacionado na frente da porta. Dentro dele, estava Katherine
Grey, e Derek Kettering, de pé do lado de fora, falava-lhe em um
tom alegre. Pouco depois, o carro arrancou e Derek ficou na
calçada. Olhou a partida do veículo com uma expressão
indefinível, fez um repentino gesto de impaciência com os
ombros, suspirou profundamente e se virou para topar com
Hercule Poirot ao seu lado. Não conseguiu refrear a surpresa. Os
olhares dos dois homens se encontraram. O de Poirot, firme e
resoluto, e o de Derek com uma espécie de desafio descontraído.
Erguendo de leve as sobrancelhas, disse, com um tom de
zombaria no qual havia um toque de sarcasmo:
– Ela é uma graça, não é? – perguntou, com a maior
naturalidade.
– Sim – Poirot respondeu, pensativo. – Isso descreve
mademoiselle Katherine muito bem. É uma frase muito inglesa, e
mademoiselle Katherine é, também, muito inglesa.
Derek não respondeu e permaneceu perfeitamente imóvel.
– E além de tudo ela é sympathique, não é?
– Sim, não há muitas como ela – disse Derek com
suavidade, como se pensasse alto.
Poirot balançou a cabeça de modo significativo, aproximou-
se do outro e falou em um tom de voz diferente, um tom grave e
tranquilo que era novidade para Derek Kettering:
– O senhor perdoará um homem velho, monsieur, se ele
disser algo que pareça impertinente, mas há um desses seus
provérbios ingleses: “É preciso terminar um amor antigo antes
de começar um novo”.
Kettering virou-se para ele com fúria.
– O que diabos quer dizer?
– O senhor se irrita comigo, como eu já esperava – disse
Poirot placidamente. – Quanto ao que eu quero dizer... Quero
dizer, monsieur, que há um segundo carro com uma dama dentro
dele. O senhor a verá se virar a cabeça.
Derek olhou em volta e sua face escureceu de raiva.
– M aldita M irelle! – resmungou – Eu vou...
Poirot deteve o movimento que o outro estava prestes a
fazer:
– É sábio o que o senhor pretende fazer? – perguntou, de
modo caloroso, seus olhos brilhando com uma débil luz verde.
M as Derek estava completamente transtornado pela ira e não
percebeu os sinais de advertência.
– Eu rompi com ela em definitivo, e ela sabe disso! – gritou
o inglês, furioso.
– O senhor rompeu com ela, sim, mas ela rompeu com o
senhor?
Derek soltou uma risada áspera e sussurrou, brutal:
– Ela não vai romper com dois milhões de libras se puder
evitar. Nisso, pode confiar nela.
– O senhor tem uma perspectiva bastante cínica –
murmurou Poirot, de sobrancelhas erguidas.
– Tenho? Já vivo neste mundo há tempo o bastante,
monsieur Poirot, para saber que todas as mulheres são iguais –
disse Derek, e não havia alegria alguma em seu sorriso amplo e
repentino. De súbito seu rosto se suavizou:
– Todas menos uma.
Encarou desafiador o olhar de Poirot, no qual crepitou por
instantes um brilho de alerta, e logo desapareceu. Derek ergueu o
queixo na direção de Cap M artin e completou:
– Aquela.
– Ah – disse Poirot, em uma entonação tranquila, calculada
para provocar o temperamento impetuoso do outro, que se
apressou em falar:
– Sei o que o senhor dirá: o tipo de vida que tenho levado,
o fato de que não sou digno dela. Dirá que não tenho direito de
sequer pensar em tal coisa. Que não é o caso de dar má
reputação a um cachorro... Eu sei que não é decente falar assim,
sem consideração pela morte recente da minha esposa,
assassinada, ainda por cima.
Ele fez uma pausa para respirar, e Poirot aproveitou para
comentar, em um tom de voz queixoso:
– M as eu não disse nada!
– M as dirá.
– É mesmo?
– O senhor dirá que não tenho a mais remota chance de me
casar com Katherine.
– Não, eu não diria isso – emendou Poirot. – O senhor tem
má reputação, sim, mas isso nunca foi o bastante para deter as
mulheres... Se o senhor fosse um homem de excelente caráter, de
moralidade impecável, que não fizesse nada que não devesse
fazer... e possivelmente fizesse tudo o que deveria... eh bien! Aí
eu teria sérias dúvidas a respeito de seu sucesso. Compreenda,
qualidades morais não são românticas. Por mais que sejam
apreciadas pelas viúvas.
Derek Kettering olhou-o por algum tempo, girou em seus
calcanhares e saiu na direção do carro.
Poirot o acompanhou com interesse e viu a encantadora
mulher curvar-se à janela e falar alguma coisa. Derek não parou,
apenas tirou o chapéu e seguiu adiante.
– Ça y est – disse Poirot –; é hora, penso eu, de retornar a
chez moi.
Encontrou George a passar calças a ferro, imperturbável.
– Um dia agradável, Georges. Um tanto cansativo, mas não
desprovido de interesse – disse.
George recebeu o comentário com a aparência insípida de
costume.
– De fato, senhor.
– A personalidade de um criminoso, Georges, é um assunto
interessante. M uitos assassinos são homens encantadores.
– Sempre ouvi dizer, sir, que o dr. Crippen era um
cavalheiro de muito boa conversa. E ainda assim, retalhou a
esposa em pedacinhos.
– Seus exemplos são sempre perspicazes, Georges.
O criado não respondeu, e na mesma hora o telefone tocou.
Poirot pegou o receptor.
– Alô... Alô... Sim, é Hercule Poirot quem fala.
– Aqui é Knighton. Pode aguardar na linha um instante,
monsieur Poirot? O sr. Van Aldin deseja falar com o senhor.
Houve uma pausa, ao fim da qual a voz do milionário
surgiu no aparelho.
– É o sr. Poirot? Gostaria apenas de dizer-lhe que M ason
veio até mim agora, por sua própria iniciativa. Andou pensando
a respeito, e diz que tem quase certeza de que o homem em Paris
era Derek Kettering. Alega que havia algo de familiar nele, mas
que naquela hora não conseguiu identificar o que era. Parece ter
muita certeza agora.
– Ah – disse Poirot –, obrigado, sr. Van Aldin. Isso para
nós é um avanço.
Recolocou o receptor no lugar e permaneceu por um tempo
com um sorriso curioso no rosto. George teve de falar duas
vezes antes de obter uma resposta:
– Ahn? O que está dizendo?
– O senhor vai almoçar aqui ou vai sair?
– Nenhum dos dois – disse Poirot. – Vou para a cama
tomar uma tisane. O que era esperado aconteceu, e quando o
esperado acontece, sempre me emociono.
Capítulo 25
Desafio
Quando Derek Kettering passou pelo automóvel, M irelle
se debruçou e disse:
– Dereek... Preciso falar com você um instante...
M as, erguendo o chapéu, Derek seguiu adiante, sem parar.
Quando voltou para o hotel, o porteiro deixou sua guarita
de madeira e o abordou.
– Um cavalheiro está esperando para vê-lo, monsieur.
– Quem é? – perguntou Derek.
– Não forneceu o nome, monsieur, mas disse que tinha
negócios importantes a tratar e que iria esperar.
– Onde ele está?
– Na saleta, monsieur. Ele a preferiu ao saguão porque era
mais privada, foi o que disse.
A saleta estava vazia, exceto pelo visitante, que, assim que
Derek entrou, ergueu-se e curvou-se em uma reverência de suave
dignidade. Derek havia visto o conde de la Roche uma única vez,
mas não encontrou dificuldade em reconhecer a aristocrática
figura. Franziu o cenho, irritado. Era uma completa
impertinência!
– Conde de la Roche, eu presumo. Temo que o senhor
tenha perdido seu tempo vindo aqui.
– Espero que não – disse o conde, com modos agradáveis e
um sorriso no qual resplandeciam os dentes brancos.
As maneiras charmosas do conde eram inúteis contra seu
próprio sexo. Todos os homens, sem exceção, tinham por ele
profunda antipatia. Derek Kettering já sentia o claro desejo de
enxotar o conde da sala a pontapés. Detinha-o somente a ideia de
que um escândalo seria inoportuno naquele momento. Admirou-
se, outra vez, que Ruth pudesse ter algum afeto – como
certamente tinha – por aquele sujeito. Um salafrário, ou ainda
pior que um salafrário. Olhava com repulsa para as mãos do
conde, que sem dúvida haviam sido tratadas por uma manicure.
– Vim procurá-lo para tratar de negócios – disse o conde. –
Creio que seria aconselhável que o senhor me ouvisse.
Derek sentiu outra vez a forte tentação de chutar o outro
para fora, mas refreou-se. Não passou despercebida uma alusão
de ameaça naquelas palavras, que interpretou à sua própria
maneira. Havia várias razões para concluir que seria melhor ouvir
o que o conde tinha a dizer.
Sentou-se e ficou a tamborilar, impaciente, os dedos sobre
a mesa.
– Então – disse, por fim, em tom ríspido –, o que é?
Não era do estilo do conde ir direto ao assunto.
– Permita-me, monsieur, oferecer minhas condolências pela
sua perda recente.
– Se eu ouvir mais alguma impertinência de sua parte, vai
sair daqui por aquela janela – disse Derek, calmamente, acenando
com a cabeça na direção da vidraça atrás do conde, que se mexeu,
desconfortável, antes de retrucar, com arrogância:
– Posso enviar-lhe meus padrinhos, monsieur, se é o que
deseja.
– Um duelo? M eu caro conde, não levo o senhor a sério o
bastante para isso. M as teria imenso prazer em cobri-lo de
pontapés Promenade des Anglais[1] abaixo.
O conde não estava, em absoluto, ansioso por aceitar a
ofensa. Limitou-se a erguer as sobrancelhas e a murmurar:
– Os ingleses são uns bárbaros.
– Bem – disse Derek –, o que o senhor tem a me dizer?
– Serei franco e irei direto ao ponto, o que será conveniente
para nós dois, não? – disse o conde, e outra vez sorriu de modo
encantador.
– Prossiga – foi a resposta curta de Derek.
O conde olhou para o teto, uniu as pontas dos dedos e
murmurou com suavidade:
– O senhor recebeu uma grande soma de dinheiro,
monsieur.
– E o que diabos tem o senhor a ver com isso?
O conde empertigou-se:
– M onsieur, meu nome está manchado. Sou suspeito,
acusado de um crime infamante.
– A acusação não vem de mim – disse Derek, com frieza. –
Como parte interessada, não expressei opinião alguma.
– Sou inocente – continuou o conde, erguendo as mãos. –
Juro perante os céus que sou inocente.
– Creio que o sr. Carrège é o juiz de instrução encarregado
do caso – sugeriu Derek, com delicadeza, no que foi ignorado:
– Não apenas sou suspeito, injustamente, de um crime que
não cometi, como também estou em sérias dificuldades
financeiras – emendou o conde, pigarreando de modo sugestivo.
Derek se levantou e disse com voz suave:
– Estava esperando por isso, seu bruto chantagista! Não
darei um centavo sequer. M inha esposa está morta, e nenhum
escândalo que possa fazer pode alcançá-la agora. Ouso dizer que
ela escreveu-lhe cartas imprudentes. Se eu as comprasse por uma
soma considerável neste exato minuto, tenho plena certeza de
que ainda guardaria consigo uma ou duas; e deixe-me dizer uma
coisa, sr. De la Roche: chantagem é uma palavra feia tanto na
Inglaterra quanto na França. É a minha resposta. Boa tarde.
– Um momento – disse o conde, estendendo a mão, quando
Derek já se virara para deixar a sala. – Está enganado, monsieur.
Está completamente enganado. Ainda sou, assim espero, um
cavalheiro – nesse ponto, Derek riu. – Qualquer carta que uma
dama possa ter me escrito seria sagrada – o conde lançou a
cabeça para trás com um belo ar de nobreza. – A proposta que
eu trazia a sua consideração é de natureza bem diferente. Estou,
como já disse, com sérios problemas financeiros, e minha
consciência me impele a ir à polícia com uma determinada
informação.
Derek retornou à sala devagar.
– O que quer dizer?
O sorriso amável do conde brilhou outra vez e ele
sussurrou:
– Com certeza, não é necessário entrar em detalhes.
Procure a quem o crime beneficia, não é o que dizem? Como eu
disse, o senhor herdou muito dinheiro há pouco tempo.
Derek riu e perguntou, com desprezo:
– É tudo?
O conde sacudiu a cabeça em negativa.
– Não é tudo, meu caro senhor. Não viria até aqui a menos
que tivesse uma informação muito mais precisa e detalhada. Não
é uma coisa agradável, monsieur, ser preso e julgado por
assassinato.
Derek se aproximou dele com tal fúria que o conde recuou
alguns passos involuntariamente.
– Está me ameaçando? – interpelou o jovem, irritado.
– O senhor não ouvirá de mim mais nada sobre o assunto –
o conde assegurou.
– De todos os blefes colossais que já enfrentei...
O conde interrompeu-o erguendo a mão pálida:
– Está errado, não é um blefe. Para convencê-lo, direi que
minha informação foi obtida de uma certa dama. Ela é quem
detém a prova irrefutável de que o senhor cometeu o assassinato.
– Ela? Quem?
– M ademoiselle M irelle.
Derek recuou como se houvesse recebido um golpe e
sussurrou:
– M irelle.
O conde considerou aquilo uma vantagem e foi rápido em
aproveitá-la:
– A bagatela de cem mil francos. Não peço mais do que
isso.
– Como? – disse Derek, com ar ausente.
– Eu dizia, monsieur, que a bagatela de cem mil francos
satisfaria minha... consciência.
Derek pareceu retomar o controle sobre si. Olhou firme
para o conde.
– Gostaria de ter minha resposta agora?
– Por favor, monsieur.
– Então aqui está: pode ir para o diabo. Entendeu bem?
Deixando o conde surpreso demais para falar, girou nos
calcanhares e saiu da sala.
Uma vez fora do hotel, tomou um táxi e se dirigiu para
onde M irelle estava hospedada. Ao perguntar no balcão, soube
que a dançarina chegara havia pouco. Derek deu ao recepcionista
seu cartão:
– Leve para mademoiselle e pergunte se pode me receber.
Transcorreu um intervalo muito breve, e então foi dito a
Derek que seguisse o garoto de recados. Uma onda de perfume
exótico assaltou suas narinas quando ele atravessou a soleira da
porta do apartamento da moça. A sala estava repleta de cravos,
orquídeas e mimosas. M irelle estava parada à janela trajando um
penhoar de renda. Veio até ele com as mãos estendidas.
– Dereek... você veio. Sabia que viria.
Ele afastou os braços pegajosos e lançou-lhe um olhar duro:
– Por que mandou o conde de la Roche até mim?
Olhou-o com uma surpresa que ele tomou por genuína.
– Eu? M andar o conde de la Roche até você? M as para
quê?
– Aparentemente para me chantagear – disse Derek,
inflexível.
Ela o encarou de novo. Súbito, sorriu e balançou a cabeça
– Claro. Eu devia esperar que ele fizesse isso, ce type là.
Devia saber. De verdade, Dereek, não o mandei até a você.
Derek lançou-lhe um olhar penetrante, como se procurasse
ler sua mente.
– Contarei tudo – disse M irelle. – Estou envergonhada,
mas contarei tudo. No outro dia, você entende, estava louca de
raiva, absolutamente louca – ela fez um gesto eloquente. – M eu
temperamento não é dos mais pacientes. Queria me vingar de
você, e fui até o conde de la Roche, e o instruí a ir à polícia e
dizer isso e aquilo e aqueloutro. M as não tema, Dereek. Não
perdi completamente a cabeça; a prova está apenas comigo. A
polícia não pode fazer nada sem a minha palavra, entende? E
agora...
Achegou-se a ele, olhando-o com olhos ternos.
Ele a empurrou para longe com rudeza. Ela ficou parada, o
peito arfando, os olhos estreitando-se em uma linha felina.
– Tome cuidado, Dereek, tome muito cuidado. Você voltou
para mim, não?
– Eu nunca voltarei para você – disse Derek, com firmeza.
– É mesmo? – as pálpebras da dançarina palpitavam; mais
do que nunca parecia uma gata. – Há outra mulher? Aquela com
quem almoçou aquele dia. É isso? Estou certa?
– É bom que saiba que pretendo pedir aquela dama em
casamento.
– Aquela inglesa afetada! Acha que vou tolerar isso por um
momento que seja? Ah, não... – seu belo e flexível corpo tremia.
– Ouça bem, Dereek, você se lembra da conversa que tivemos em
Londres? Você disse que a única coisa que poderia salvá-lo era a
morte de sua esposa. Lamentou que ela fosse tão saudável.
Então veio a ideia de um acidente. M ais do que um acidente.
– Suponho – disse Derek com desdém – que foi essa a
conversa que você repetiu para o conde de la Roche.
M irelle gargalhou.
– E eu sou boba? A polícia poderia fazer alguma coisa com
uma história vaga como essa? Veja... Darei uma última chance.
Você deve desistir dessa inglesa e voltar para mim. E aí, chéri, eu
nunca, nunca mencionarei...
– M encionará o quê?
Ela riu com gentileza:
– Pensou que ninguém o havia visto...
– O que quer dizer?
– Como eu disse, pensou que ninguém o havia visto. M as
eu vi, Dereek, mon ami: eu vi você saindo do compartimento de
madame sua esposa naquela noite, pouco antes de o trem
chegar a Lyon. E sei mais do que isso. Sei que quando você saiu
do compartimento ela estava morta.
Ele a encarou. E então, como em um sonho, virou-se muito
lentamente e saiu do quarto, oscilando de leve à medida que
caminhava.
Uma advertência
Querida Katherine...
Vivendo entre grandes amigos, como vive agora, não creio
que estará interessada em ouvir qualquer notícia nossa;
mas, como sempre a considerei uma moça sensata, talvez
você esteja um pouquinho menos convencida do que
suponho. Tudo continua mais ou menos igual por aqui.
Houve grande agitação a respeito do novo cura, que é
escandalosamente alto. Em minha opinião, é apenas um
católico. Todos falaram a respeito com o vigário, mas sabe
como ele é: todo caridade cristã e nenhuma espirituosidade.
Tive uma porção de problemas com as criadas ultimamente.
Aquela garota Annie não era boa coisa... Saias acima dos
joelhos e não se dispunha a usar meias de lã decentes.
Nenhuma delas desempenha o que se lhe diz para fazer. De
qualquer modo, tenho sofrido muitas dores com meu
reumatismo, e o dr. Harris persuadiu-me a ir a Londres para
consultar um especialista... Um desperdício de três
guinéus[1], fora a passagem de trem, como eu disse a ele;
mas, ao esperar até quarta-feira, consegui baratear a viagem
de volta. O médico de Londres amarrou a cara e falou com
muitos rodeios e nunca de modo direto, até que eu disse
para ele: “Sou uma mulher franca, doutor, e gosto que as
coisas sejam ditas francamente. É câncer ou não?” E então,
é claro, ele teve de dizer que era. Dizem que, com cuidado,
duro um ano sem muitas dores, mas tenho certeza de que
posso aguentar o sofrimento tão bem quanto qualquer outra
cristã. A vida parece um tanto solitária às vezes, com a
maioria dos meus amigos mortos ou longe. O fato é que
gostaria que você estivesse aqui em St. M ary M ead, minha
querida. Se não tivesse herdado aquele dinheiro e entrado
para a alta sociedade, eu lhe ofereceria o dobro do salário
que a pobre Jane lhe pagava para que viesse e cuidasse de
mim; mas não, não é bom desejar o que não podemos ter.
Contudo, se as coisas ficarem ruins para você... o que é
sempre possível, tenho ouvido um sem-fim de histórias
sobre falsos aristocratas que casam com garotas, se
apossam do dinheiro e então deixam-nas na porta da igreja.
Ouso dizer que você é ajuizada demais para que qualquer
coisa do tipo lhe aconteça, mas a gente nunca sabe; e nunca
tendo recebido muita atenção de tipo algum, um pouco que
seja poderia facilmente subir-lhe à cabeça. Portanto, a título
de prevenção, minha querida, lembre-se de que sempre
haverá um lar para você aqui; e, apesar de eu ser uma
mulher de conversa franca, sou também de coração franco.
Sua afetuosa amiga,
Amelia Viner.
Explicações
– Explicações?
Poirot sorriu. Estava sentado de frente para o milionário a
uma mesa de jantar na suíte privativa deste último no Negresco.
Van Aldin encarava-o aliviado, mas muito confuso. Poirot
reclinou-se em sua cadeira, acendeu uma de suas cigarrilhas e
ficou a olhar pensativo para o teto.
– Sim, darei explicações. Começou com um ponto que me
intrigou. Sabe que ponto foi esse? O rosto desfigurado. Não é
uma coisa incomum de se encontrar na investigação de um crime
e sempre levanta uma questão imediata: a da identidade. Essa,
naturalmente, foi a primeira pergunta que me ocorreu. A mulher
era mesmo a sra. Kettering? M as essa linha não me levou a lugar
nenhum, devido ao reconhecimento feito pela senhorita Grey ter
sido positivo e muito confiável, então eu deixei a ideia de lado. A
vítima era Ruth Kettering.
– Quando começou a suspeitar da criada?
– Há não muito tempo, mas um detalhezinho peculiar
chamou minha atenção: a cigarreira achada no vagão, e M ason ter
nos dito que a sra. Kettering a havia comprado para dá-la ao
marido. Achei muito improvável, dados os termos em que as
coisas estavam entre eles. Aquilo despertou uma dúvida na
minha cabeça quanto à veracidade geral das declarações de Ada
M ason. Havia, também, o fato muito suspeito e digno de ser
levado em consideração de que ela se encontrava a serviço de sua
filha há apenas dois meses. Certamente não parecia que pudesse
ter alguma coisa a ver com o crime, uma vez que havia sido
deixada para trás em Paris e a sra. Kettering fora vista com vida
por muitas pessoas depois daquilo, mas...
Poirot inclinou-se para frente, ergueu um indicador enfático
e sacudiu-o na direção de Van Aldin.
“– M as sou um bom detetive: eu suspeito. Não há nada
nem ninguém de que não suspeite, nem acredito em coisa alguma
que me seja dita. Perguntei a mim mesmo: como sabemos que
Ada M ason foi realmente deixada em Paris? E em um primeiro
momento a resposta a essa questão parecia satisfatória. Havia a
declaração de seu secretário, major Knighton, um perfeito
estranho, cujo testemunho supostamente seria imparcial, e havia
ainda as palavras da própria vítima ao condutor no trem. M as
deixei o último ponto de lado, por um momento, porque uma
ideia muito curiosa, uma ideia talvez fantástica ou impossível,
estava tomando forma em minha mente. Se por alguma
casualidade ela se provasse verdadeira, aquela peça testemunhal
em particular resultaria sem valor.
“– Concentrei-me no principal obstáculo para minha teoria:
as declarações do major Knighton de que havia visto Ada M ason
no Ritz depois que o Trem Azul já havia deixado Paris. O que
parecia conclusivo o bastante, mas, no entanto, examinando os
fatos cuidadosamente, notei duas coisas. A primeira: por uma
curiosa coincidência, ele também estava havia exatamente dois
meses ao seu serviço. A segunda: a inicial de seu nome era a
mesma letra K. Supondo, apenas supondo, que fosse dele aquela
cigarreira encontrada no vagão. Então, se os dois estivessem
trabalhando juntos, e ela tivesse reconhecido o objeto quando o
apresentamos, não teria agido precisamente daquela forma? Pega
de surpresa em um primeiro momento, rapidamente apresentara
uma teoria plausível que se ajustava à culpa do sr. Kettering.
Bien entendu, não era essa a ideia original. O conde de la Roche
deveria ser o bode expiatório, embora Ada M ason não fizesse
um reconhecimento positivo, para o caso de ele estar apto a
provar um álibi. Agora, se o senhor levar sua mente de volta
àquela época, lembrará de que algo significativo aconteceu. Sugeri
a Ada M ason que ela havia visto não o conde de la Roche, e sim
Derek Kettering. Na hora ela pareceu incerta, mas depois que eu
havia voltado para o meu hotel o senhor me telefonou e disse
que ela o havia procurado para dizer que, pensando melhor,
estava agora bastante convencida de que o homem em questão
era o sr. Kettering. Eu esperava algo do tipo. Só podia haver uma
explicação para aquela certeza súbita: depois de deixar o hotel ela
havia tido tempo para consultar alguém, de quem recebera
instruções. Quem deu a ela tais instruções? O major Knighton. E
havia outro detalhezinho ínfimo, que podia não significar nada e
podia significar muita coisa. Em uma conversa casual, Knighton
havia falado de um roubo de joias na casa em que estivera
hospedado em Yorkshire. Talvez uma mera coincidência... talvez
outro elo na corrente.”
– M as há uma coisa que eu não entendo, monsieur Poirot.
Devo ser um tapado ou já teria percebido: quem era o homem no
trem em Paris? Derek Kettering ou o conde de la Roche?
– Essa é a simplicidade da coisa toda. Não havia homem
algum. Ah... mille tonnerres! Não vê a esperteza de tudo isso?
Em que nos baseávamos para concluir que havia um homem lá?
Apenas na palavra de Ada M ason. E nós acreditamos em Ada
M ason por causa do testemunho de Knighton de que ela havia
ficado em Paris.
– M as a própria Ruth disse ao condutor que havia deixado
a criada para trás – objetou Van Aldin.
– Ah! Estou chegando lá. Temos agora as palavras da
própria sra. Kettering, mas, por outro lado, não temos realmente
o depoimento dela, porque uma mulher morta não pode depor.
Não era o testemunho dela, mas sim o testemunho do condutor
do trem, duas coisas completamente diferentes.
– Então acha que o homem mentiu?
– Não, não, de modo algum. Falou o que pensava ser a
verdade. M as a mulher que lhe disse que havia deixado a criada
em Paris não era a sra. Kettering.
Van Aldin encarou-o.
– M onsieur Van Aldin, Ruth Kettering foi morta antes de o
trem chegar à Gare de Lyon. Foi Ada M ason, vestida com as
roupas inconfundíveis de sua patroa, que pediu uma cesta de
comida e que fez aquela muito necessária declaração para o
condutor.
– Impossível!
– Não, monsieur Van Aldin; não é impossível. Les femmes
se parecem tanto hoje em dia que são reconhecidas mais pelas
roupas do que pelo rosto. Ada M ason era da mesma altura de
sua filha. Vestida naquele suntuoso casaco de pele e com o
chapéu de laca vermelha caído sobre os olhos, com apenas alguns
cachos de cabelo ruivo aparecendo por trás das orelhas, não é de
admirar que o condutor tivesse sido enganado. Ele ainda não
havia falado com a sra. Kettering, o senhor deve se lembrar. É
claro que deve ter visto a criada ao menos quando ela lhe
entregou os bilhetes, mas reteve somente a impressão de uma
mulher esquelética de vestido preto. Se fosse de inteligência
incomum, teria percebido que a patroa e a criada não eram nem
parecidas, mas é extremamente improvável que tenha sequer
pensado nisso. E lembre-se: Ada M ason, ou Kitty Kidd, era
uma atriz, hábil em mudar de aparência e de timbre de voz de um
momento para o outro. Não, não havia perigo de que o condutor
reconhecesse a criada nos trajes da patroa, mas havia sim o
perigo de que quando o corpo fosse descoberto ele percebesse
que aquela não era mulher com quem havia falado na noite
anterior. E agora temos a razão para o rosto desfigurado. O
maior risco a que Ada M ason se expunha era o de que Katherine
Grey pudesse visitar a companheira de viagem em seu
compartimento depois que o trem tivesse saído de Paris. Tomou
providências contra essa dificuldade pedindo uma cesta de
comida e trancando-se na cabine.
– M as quem matou Ruth... e quando?
– Primeiro, tenha em mente que o crime foi planejado e
executado pelos dois: Knighton e Ada M ason trabalhando
juntos. Knighton estava em Paris naquele dia, a seu serviço.
Embarcou no trem em algum lugar no trajeto da ceinture. A sra.
Kettering ficou surpresa, mas não tinha motivos para suspeitar.
Talvez ele tenha chamado a atenção dela para algo fora da janela,
e aproveitado o momento para passar-lhe a corda ao redor do
pescoço... e tudo estava acabado em segundos. A porta do
compartimento estava trancada, e ele e Ada M ason se lançaram
ao trabalho. Despiram as roupas da vítima, enrolaram o corpo
em uma cortina e o puseram no compartimento adjacente, entre
malas e bagagens. Knighton saltou do trem, e levou consigo o
estojo contendo os rubis. Uma vez que os indícios apontariam
para um crime cometido só dali a doze horas, estava
perfeitamente a salvo, e seu depoimento e as palavras da falsa
sra. Kettering para o condutor providenciariam o álibi perfeito
para sua cúmplice.
“– Na Gare de Lyon, Ada M ason encomendou uma cesta
de comida e, trancando-se no compartimento, rapidamente
vestiu as roupas de sua senhora, ajustando os cachos falsos de
cabelo ruivo, e arrumou-se de modo a parecer-se o mais possível
com ela. Quando o condutor chegou para arrumar a cama, ela
ficou parada olhando pela janela, com as costas voltadas para o
corredor e para as pessoas que nele passavam. O que foi uma
sábia precaução, porque, como sabemos, a senhorita Grey era
um desses passantes, e apenas ela, dentre todos os outros,
estaria disposta a jurar que a sra. Kettering estava viva naquela
hora.”
– Prossiga – disse Van Aldin.
– Antes de chegar a Lyon, Ada M ason ajeitou o corpo da
senhora no leito, dobrou cuidadosamente as roupas aos pés da
morta, vestiu-se com trajes masculinos e preparou-se para deixar
o trem. Quando Derek Kettering entrou no compartimento da
esposa e pensou que ela estava dormindo, a cena já estava
montada, e Ada M ason estava escondida no compartimento ao
lado esperando o momento de sair do trem sem ser vista. Assim
que o condutor desceu na plataforma em Lyon ela o seguiu,
andando despreocupadamente como se apenas quisesse tomar
um pouco de ar. Em um momento em que ninguém estava
olhando, apressou-se a cruzar para a outra plataforma e tomar o
primeiro trem de volta para Paris e para o Hotel Ritz. O nome
dela estaria na lista de registros desde a noite anterior graças a
uma das cúmplices de Knighton. Ela não tinha mais nada a fazer
a não esperar placidamente pela sua chegada, sr. Van Aldin. As
joias não estavam, e nunca estiveram, em poder dela. Nenhuma
suspeita a ligava a Knighton, que, como seu secretário, pôde
trazê-las para Nice sem medo de ser descoberto. A entrega das
joias ao sr. Papopolous já estava combinada, e, na última hora,
foram confiadas a M ason para serem levadas ao grego. No
conjunto, um golpe cuidadosamente planejado, como seria de se
esperar de um mestre jogador como o M arquês.
– O senhor está mesmo me dizendo que Richard Knighton
era um criminoso conhecido que vinha fazendo esse tipo de
negócio há anos?
Poirot anuiu.
– Um dos principais recursos do cavalheiro chamado
M arquês eram suas maneiras educadas e insinuantes. M onsieur
Van Aldin também caiu vítima de seu encanto quando o
contratou para ser seu secretário depois de tão pouco tempo de
relação.
– Poderia jurar que ele não nunca tentou obter o cargo –
lamentou o milionário.
– Foi tudo feito de um jeito muito astuto... Tão astuto que
enganou até um homem cujo conhecimento sobre os demais é tão
grande quanto o seu.
– Informei-me sobre seus antecedentes, também. A ficha
do sujeito era excelente.
– Sim, sim, era parte do jogo. Como Richard Knighton, sua
vida estava livre de qualquer mácula. Ele era bem nascido, bem
relacionado, servira de modo honroso durante a guerra e parecia
totalmente acima de qualquer suspeita; mas quando comecei a
catar informações sobre o misterioso M arquês, encontrei muitos
pontos de similaridade. Knighton falava francês como um nativo,
havia estado na América, na França e na Inglaterra na mesma
época que o M arquês agira naqueles lugares. O M arquês era
suspeito de planejar vários roubos de joias na Suíça, e foi na
Suíça que o senhor cruzou com o major Knighton.
E foi precisamente naquela época que começaram a circular os
primeiros boatos de que o senhor estava em negociações para
comprar os famosos rubis.
– M as por que o assassinato? – murmurou Van Aldin,
arrasado. – Certamente um ladrão habilidoso poderia ter roubado
as joias sem arriscar seu pescoço na forca.
Poirot sacudiu a cabeça:
– Este não é o primeiro assassinato na conta do M arquês.
Ele é um assassino por instinto, e acredita, também, em livrar-se
de todas as evidências. M ortos não contam histórias.
“– O M arquês tinha uma intensa paixão por joias
históricas famosas. Traçou seus planos com antecedência
instalando-se como seu secretário e garantindo que sua cúmplice
obtivesse o emprego como criada de sua filha, a quem ele
presumiu que as joias estavam destinadas. E, embora tivesse
amadurecido cuidadosamente o plano, não teve pruridos de
tentar um atalho, contratando uma dupla de apaches para
emboscá-lo na noite em que comprou as joias. Aquele golpe
falhou, o que muito deve tê-lo surpreendido, eu acho. Já o plano
que arquitetara, pensou, era completamente seguro. Nenhuma
suspeita recairia sobre Richard Knighton. M as como todos os
grandes homens, e creia-me, o M arquês é um grande homem, ele
tinha sua fraqueza. Ele se apaixonou sinceramente pela senhorita
Grey, e, suspeitando de que ela gostasse de Derek Kettering, não
pôde resistir à tentação de responsabilizá-lo pelo crime quando a
oportunidade se apresentou. E agora, monsieur Van Aldin, vou
dizer-lhe algo muito curioso. A senhorita Grey não é, de jeito
nenhum, uma mulher de imaginação desvairada. M as ainda assim
ela acredita firmemente que sentiu a presença de sua filha ao lado
dela certo dia, nos jardins do Cassino em M onte Carlo, logo
após ter mantido uma longa conversa com Knighton. Ela estava
convencida de que a mulher morta tentava contar-lhe algo, com
insistência, e que subitamente percebeu que a sra. Kettering
queria dizer que Knighton era o assassino! A ideia pareceu tão
fantástica na época que ela não falou a respeito com mais
ninguém, mas estava tão convicta de sua veracidade que resolveu
agir, ainda que de um modo aparentemente desvairado. Ela não
desencorajou os avanços de Knighton e fingiu acreditar
plenamente na culpa de Derek Kettering.”
– Extraordinário – disse Van Aldin.
– Sim, e muito estranho. Não se pode explicar tais coisas.
Oh, a propósito, houve um pequeno detalhe que me confundiu
consideravelmente. O seu secretário, evidentemente, era manco,
como resultado de um ferimento durante a guerra. M as o
M arquês não mancava. Parecia-me um obstáculo definitivo. M as
a senhorita Lenox Tamplin mencionou um dia, casualmente, que
o coxear de Knighton havia sido uma surpresa para o cirurgião
que havia se encarregado do caso no hospital de sua mãe. Aquilo
me sugeriu um engodo. Quando estive em Londres, fui até o
médico em questão e obtive muitos detalhes técnicos que
confirmaram minha suspeita. Anteontem, mencionei o nome do
cirurgião de modo a que Knighton o ouvisse. O natural seria
Knighton comentar que havia sido atendido pelo mesmo
profissional durante a guerra, mas não disse nada... e esse
detalhe, acima de tudo, representou para mim a afirmação
definitiva de que minha teoria a respeito do crime estava correta.
A senhorita Grey, também, forneceu-me um recorte de jornal no
qual se relatava um roubo ocorrido no hospital de guerra de lady
Tamplin durante a época em que Knighton esteve lá internado.
Ela percebeu que eu estava na mesma pista que ela quando lhe
escrevi uma carta do Ritz, em Paris. Tive alguns problemas em
minhas investigações por lá, mas obtive o que eu queria... a
informação de que Ada M ason havia chegado na manhã seguinte
ao crime e não na noite do dia anterior.
Houve um longo silêncio, ao fim do qual o milionário
estendeu a mão por sobre a mesa para apertar a de Poirot.
– Creio que o senhor compreende o que isso significa para
mim, monsieur Poirot – disse, com a voz embargada. – Enviarei
um cheque amanhã pela manhã, mas não há cheque no mundo
que possa expressar o que eu sinto pelo que fez por mim. O
senhor é o bom, monsieur Poirot. O senhor é o melhor.
Poirot se levantou com o peito estufado e respondeu
modesto:
– Sou apenas Hercule Poirot. Como o senhor mesmo já me
disse, à minha maneira eu sou um grande homem, do mesmo
modo que o senhor. Estou feliz e contente de ter estado a seu
serviço. Agora quero reparar os danos provocados pela viagem.
E ai de mim! M eu excelente Georges não está aqui.
No saguão do hotel ele encontrou o venerável senhor
Papopolous, ao lado da filha Zia.
– Pensei que o senhor havia partido de Nice, monsieur
Poirot – ronronou o grego enquanto apertava a mão
afetuosamente estendida.
– Negócios me forçaram a voltar, meu caro monsieur
Papopolous.
– Negócios?
– Sim, negócios. E por falar de negócios, espero que sua
saúde esteja melhor, velho amigo.
– M uito melhor. Na verdade, estamos voltando para Paris
amanhã.
– Estou encantado em ouvir tão boas notícias. Ainda não
arruinou completamente o ex-primeiro-ministro grego, suponho.
– Eu?
– Estou certo em concluir que o senhor vendeu a ele um
rubi maravilhoso que... estritamente entre nous... tem sido usado
por mademoiselle M irelle, a dançarina?
– Sim, é isso mesmo – sussurrou o sr. Papopolous.
– Um rubi quase idêntico ao famoso “Coração de Fogo”?
– Tem seus pontos de semelhança, certamente – disse o
grego, em tom casual.
– Tem a mão maravilhosa para joias, monsieur
Papopolous, eu o cumprimento. M ademoiselle Zia, lamento que
esteja voltando tão rápido para Paris. Tinha esperanças de vê-la
com mais frequência agora que meu negócio aqui está concluído.
– Eu estaria sendo indiscreto se perguntasse de que negócio
se trata? – indagou o sr. Papopolous.
– De modo algum, de modo algum. Fui bem-sucedido em
pôr as mãos no M arquês.
Um ar distante tomou conta da nobre fisionomia do sr.
Papopolous.
– O M arquês? – ele murmurou. – Por que esse nome me
soa familiar? Não... Realmente não me recordo.
– Tenho certeza que não – emendou Poirot. – Refiro-me a
um notório criminoso e ladrão de joias. Ele foi preso pelo
assassinato daquela dama inglesa, madame Kettering.
– Verdade? Que interessante!
Seguiu-se uma polida troca de despedidas, e quando Poirot
estava longe demais para ouvir, o sr. Papopolous virou-se para
sua filha e comentou, impressionado:
– Zia, aquele homem é o demônio.
– Eu gosto dele.
– Também gosto dele – admitiu o sr. Papopolous. – M as
ainda assim, ele é o demônio.
Capítulo 36
À beira-mar
As mimosas estavam quase murchas, e o perfume que
desprendiam era vagamente desagradável. Gerânios cor-de-rosa
enroscavam-se ao redor da balaustrada da villa de lady Tamplin,
e uma massa de cravos mais abaixo lançava no ar um perfume
doce e enjoativo. O M editerrâneo estava em seu período mais
azul. Poirot sentou-se no terraço com Lenox Tamplin. Havia
acabado de contar a ela a mesma história que havia relatado a
Van Aldin dois dias antes. Lenox o ouvira absorta, com as
sobrancelhas unidas e os olhos sombrios.
Quando ele terminou, ela simplesmente disse:
– E Derek?
– Foi libertado ontem.
– E partiu... para onde?
– Deixou Nice ontem à noite.
– Foi para St. M ary M ead?
– Sim, para St. M ary M ead.
Houve uma pausa e Lenox continuou.
– Eu estava enganada sobre Katherine. Achei que não
gostasse dele.
– Ela é muito reservada e não confia em ninguém.
– Poderia ter confiado em mim – disse Lenox, com um
toque de amargura.
– Sim – ajuntou Poirot com seriedade –, poderia ter
confiado na senhorita M as mademoiselle Katherine passou
grande parte de sua vida ouvindo, e aqueles que muito ouvem
não acham fácil falar; mantêm suas dores e alegrias para si
próprios e não as contam a ninguém.
– Fui uma idiota – disse Lenox. – Pensei que ela realmente
gostasse de Knighton. Deveria ter percebido. Suponho que me
convenci disso porque, bem, tinha esperança de que fosse
verdade.
Poirot apertou a mão dela de modo amigável e disse, gentil:
– Coragem, mademoiselle.
Lenox olhou para o mar, e sua face, em sua feia rigidez,
teve um momento de trágica beleza.
– Oh, bem – ela voltou, por fim –, não teria dado certo. Sou
jovem demais para Derek. E ele é como uma criança que nunca
vai crescer. Anseia pelo toque de uma M adona.
Houve um longo silêncio, ao fim do qual Lenox se virou
para ele de modo rápido e impulsivo.
– M as eu ajudei mesmo, monsieur Poirot. De algum modo
eu ajudei.
– Claro. Foi mademoiselle quem me fez ter o primeiro
pressentimento de verdade quando disse que a pessoa que
cometera o crime não precisava estar no trem. Antes disso, eu
não conseguia ver como a coisa havia sido feita.
Lenox respirou fundo.
– Fico contente. Já é alguma coisa...
Vindo de longe, chegou até eles um assobio prolongado.
– É o maldito Trem Azul – disse Lenox. – Trens são coisas
implacáveis, não são, monsieur Poirot? Pessoas morrem e são
assassinadas, mas eles continuam assim mesmo. Estou falando
bobagem, mas o senhor sabe o que quero dizer.
– Sim, sim, eu sei. A vida é como um trem, mademoiselle.
Ela continua. E é bom que assim seja.
– Por quê?
– Porque uma hora o trem chega ao fim da viagem. E há um
provérbio sobre isso na sua língua, mademoiselle.
– “O fim da viagem é o encontro dos amantes” – Lenox riu.
– Bom, para mim isso não é verdade.
– É verdade sim. M ademoiselle é jovem, é até mais jovem
do que sabe que é. Confie no trem, mademoiselle, porque é le
bon Dieu quem o dirige.
O assobio se fez ouvir novamente.
– Confie no trem, mademoiselle – murmurou outra vez
Poirot. – E confie em Hercule Poirot. Ele sabe.
Agatha Christie
(1890-1976)
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
C479m
ISBN 978.85.254.2277-4