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UM

ENFORCADO

O CARRASCO
Josino do Nascimento Silva

1837

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JOSINO DO NASCIMENTO SILVA
Campos dos Goitacazes (rj), 1811 —
Rio de Janeiro (rj), 1886

Josino do Nascimento Silva foi políti-


co e magistrado, atuando em vários cargos
públicos ligados à direção da Secretaria de
Justiça, da Instrução Pública e do Conser-
vatório Dramático do Rio de Janeiro, além
de se projetar como jornalista, tendo sido
um dos fundadores do jornal O Cronista.
Suas incursões pela literatura parecem ter
permanecido dispersas em periódicos. É o
caso do conto reproduzido aqui, cujo inte-
resse e força residem na representação de
uma cena de rua em que a violência social
do sistema vigente converte-se em espetá-
culo para entretenimento da população. A
denúncia do horror associado ao “espetácu-
lo” bárbaro e à atitude infame da “plateia”
torna-se tanto mais impressionante quan-
do se considera que ela parte de uma voz
que traduz a visão de um político vinculado
ao Partido Conservador e que é enunciada
num período muito anterior ao das gera-
ções românticas que viriam a se ocupar
mais frequentemente da violência associa-
da ao escravismo.

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Era num sábado. O dia havia amanhecido triste; o sol não
podia desfazer com seus raios a espessa escuma que os cavalos de
seu coche tinham espalhado; ameaçava chuva. Tenho eu por cos-
tume, logo que acordo, chegar à janela a ver se há alguma novi-
dade e nesse dia, apesar do tempo, não deixei minha devoção:
abri as janelas e passei com uma vista de olhos perscrutadora re-
vista pelas casas de meus vizinhos — que, de passagem o devo
dizer, são ótimas pessoas. Notei nelas desusado movimento, pa-
recia dia de festa, ninguém trabalhava, todos chegavam de vez em
quando à janela com certo ar de impaciência. “Que será isto?”, di-
zia eu comigo. “Há novidade na rua”; e em conjeturas, umas mais
extravagantes que outras, passei um bom quarto de hora, sem
atinar com o motivo da impaciência dos meus vizinhos e vizinhas.
Cheguei mesmo a pensar que todos eles tinham virado judeus, e
como tais santificavam o sábado; mas a esse pensamento se opu-
nha o tê-los eu conhecido no dia anterior mui bons cristãos, toda-
via como em homens não há que fiar…

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— Ó Maria — dizia uma vizinha batendo com o pé na casa —,


traz o meu vestido novo.
— Qual, senhora, o de Lucrécia?
— Não, que esse é muito escuro; traze aquele que tem rosas
pintadas. Maldita escrava! Ele não há de tardar a passar, e eu
ainda não estou vestida, ainda me não penteei. Maria! Maria!
Não tem dúvida, é dia de festa. Mas que festa? Hoje não é dia
santo, não há procissão… Quem será esse ele que há de passar? Será
coisa pertencente à menina? Mas então por que razão todos se
aprontam? Maldita curiosidade! Se tu não foras, tanto me não im-
pacientaria por saber o que se passa hoje na vizinhança.
Um tanto desacoroçoado retirei-me da janela, e porque sou por
natureza curioso não desamparei a sala: sentei-me à banca, pe-
guei em um livro, era… se bem me lembro, era o Último dia de um
condenado. Lia eu o capítulo em que o condenado no Hôtel de Ville
sofria os preparativos necessários para a guilhotina… Lia, disse
eu! É falso: a minha curiosidade não me permitia dar atenção à
leitura. Atirei com o livro, dei um passeio pela sala, cheguei de
novo à janela — o mesmo movimento, o mesmo enigma. “Hei de sa-
ber tudo, hoje não saio de casa…”
— Esmola para o nosso irmão padecente! — esse grito soou a
meus ouvidos como o som lúgubre do ranger de ossos de um es-
queleto ao pino da meia-noite. Fiquei imóvel, os cabelos se me eri-
çaram, eu vi tudo… Era um homem que ia morrer e para cujo
enterro, e para salvação de sua alma, já se pediam esmolas… Não
ouvi mais nada, nada mais vi, silêncio de morte se seguiu a esse
grito e, só depois que o ouvi outra vez, voltei a mim, recuperei to-
das as minhas faculdades. Então quis examinar esse homem que
por sua boca soltava palavras tão geladas que gelavam o sangue
dos que as ouviam. Era um velho vestido de negro, negra capa es-
tava sobreposta à sua casaca, empunhava uma vara também negra
e na outra mão trazia a sacola em que se depositavam as esmolas,
era um irmão da Misericórdia. Seus cabelos brancos faziam con-
traste com seus vestidos. O irmão da Misericórdia trazia em si as
imagens do luto e da mortalha que devia cobrir os membros desse
desgraçado, morto antes de morrer.

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A confusão recrescia em casa dos meus vizinhos, uns grita-


vam, outros batiam com o pé, outros castigavam os escravos por
demoras que só existiam na imaginação e que a impaciência fazia
maiores. “Nada entendo disso, cada vez mais se baralham mi-
nhas ideias.” Pois quando todos se deviam recolher em suas cons-
ciências, investigar sua pureza e rogar a Deus por um miserável,
que por ser criminoso não deixa de ser homem, é que vejo tanta e
tão estranha confusão! És incompreensível, natureza humana!
Jogo de paixões contraditórias, obedeces a todas e assim vives!
— O Chronista! — gritaram na escada. — O diabo leve O Chro-
nista e seus redatores! Que me importo agora com o que faz o mi-
nistério? Atirei o jornal para cima da mesa, mas não me tendo
sido possível descobrir o enigma em ação que se representava em
minha presença, e porque sou curioso como uma mulher, lancei
os olhos para as doze colunas do O Chronista e li a seguinte notí-
cia: “Hoje é o dia destinado para a execução do escravo que assas-
sinou o caixeiro do senhor, na rua do Rosário”.
Bem haja O Chronista e seus redatores! Foram eles quem me
tiraram do estado cruel de incerteza e dúvida em que me achava,
e eu vi tudo — bem como aquele que nunca mais perde de vista a
forma humana que oferecem algumas paisagens na distribuição
e disposição de certos objetos inanimados, depois que pôde reu-
nir os traços que formam essa imagem de homem —, eu vi tudo,
todos os traços estavam reunidos, meus vizinhos e vizinhas pre-
paravam-se para ver passar o cortejo fúnebre: o crime foi perpe-
trado na minha rua, o exemplo devia passar pela porta — tudo
estava decifrado e nada podia mais me escapar da ideia.
És incompreensível, natureza humana! Por que força essas
donzelas tão fracas, tão achacadas de desmaios, preparam-se
para ver passar um padecente! Que mistério é esse! De onde ti-
ram elas essa força? Da educação, sim, que a natureza não dá for-
ças contra si, que o ente por compleição fraco não pode se tornar
forte sem uma preparação anterior. Vede! É um homem, e a esse
homem vão matar… matar, sim; e vós fazeis mais brilhante com
vossa presença o cortejo que o acompanha; o riso está em vossos
lábios quando a humanidade solta pungentes gemidos; vós acom-

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panhais o enterro do homem que ainda vive, não chorais sobre as


misérias da humanidade, vossos vestidos são de gala, assistis a
uma execução como assistiríeis a uma festa.
Eu também quero fazer um esforço, quero ver para contar; ve-
rei como se exerce a alta justiça da sociedade; verei dar morte na-
tural para sempre a um pobre homem. Mas antes verei passar o
cortejo, a minha casa é ótima para isso. Venha a roupa! E a confu-
são que havia em casa de meus vizinhos passou-se para a minha,
há pouco tempo tão sossegada e taciturna. Tudo era desordem,
vesti o colete às avessas, e quando estava na rua é que reparei que
tinha calçado o botim do pé esquerdo no direito e vice-versa. Eis-
-me vestido, abri as janelas e, impaciente, ora chegava a uma, ora a
outra: “Que demora! Que crueldade!”. O povo principiava a juntar-
-se no canto das ruas, o que indicava a proximidade do padecente.
Dois soldados de cavalaria aparecem no canto, após eles vinha
o pendão da Misericórdia: todos se alegraram, e se não repetiram
o verso de Filinto,

Lá rebenta o pendão junto ao rocio,

é porque o não sabiam.


Era a bandeira da Misericórdia; e que recordações gratíssimas
e dolorosas não excitou em minha alma essa vista! Oh! Belos tem-
pos em que me contavam as virtudes dessa bandeira! O pade-
cente olhava para ela como único refúgio, como a tábua que ainda
o podia salvar no naufrágio da vida! Felizes tempos esses em que
a religião tinha forças para arrancar um homem das mãos de
seus algozes! Essa bandeira está hoje despida de seus mais nobres
e mais humanos atributos; nada mais vale; é um ornamento que
acompanha a procissão — antes enterro.
Sobre a bandeira vi sentada a morte reclamando a presa que
lhe davam homens; mas a morte não era impassível nesta festa,
não se conservava ociosa; alinhava o cortejo, ria-se para o juiz e,
com estridor insólito de ossos, dançava na frente do miserável,
depois voltava e de novo, como principal personagem da festa,
sentava-se na bandeira e dirigia tudo.

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Seguiam-se irmãos da Misericórdia, frades e, após eles, vinha


de um lado o juiz, pálido e macilento, trazendo impresso no rosto
o desgosto de ter de presidir a execução; seu cavalo parecia horro-
rizar-se, recuava e apenas obrigado dirigia os passos para o lugar
do suplício. Do outro lado iam dois padres, e no meio deles o pade-
cente… Carregado de cadeias, com passo vacilante, tinha nas mãos
uma imagem do Redentor. Que horror! O padecente é cego, o pade-
cente não vê as chagas de Cristo… mas com os olhos da alma vê o
abismo que está a seus pés, em que força é que caia. Que haverá no
fundo desse abismo?… Breve o saberá.
Estava já defronte de minha porta, os padres rezavam não sei
que orações, que meus ouvidos só sentiam descompassados sons,
tristes como o túmulo. Tudo parou. Meus olhos empanados nada
mais viram, eu só ouvia. Silêncio dum momento reinou, e uma
voz semelhante ao áspero som de embotada lima em enferrujado
ferro disse:
— Justiça, que manda fazer o regente em nome do imperador, o
senhor Dom Pedro ii, ao réu Domingos Moçambique, escravo
de Joaquim Francisco de Oliveira, por ter morto o administra-
dor da casa de seu senhor, conforme a sentença que lhe foi imposta
pelo tribunal do júri desta corte, que é do teor seguinte: “À vista da
decisão do júri, julgo Domingos Moçambique, escravo de Joaquim
Francisco de Oliveira, incurso no art. 1o da Lei de 10 de junho de
1835, e o condeno a sofrer a pena de morte, e custas”.
Era uma figura insignificante que ia adiante do cortejo e que
me havia escapado por pensar que não era dele.
Quem é esse homem que acompanha tão de perto o padecente?
Negro como a noite, ele veste roupas pretas, tem ao pescoço grosso
colar de ferro e é vigiado pelos oficiais que o acompanham. Quem
é? São dois os padecentes?… Não, este é o carrasco… O carrasco!…
Oh! Meu Deus! Que há de o homem poluir a mais bela feitura
de vossas mãos! Vós não criastes carrascos, e o homem fez car-
rascos! O que é um carrasco? Não sei. Será um homem? Não, por
certo. Era o executor da alta justiça da sociedade; sobre sua cabeça
estava sentada Astrea, de rutilante espada; eu vi nesse homem o
tipo do justo, e para bem retratar a sociedade o tipo do justo arras-

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tava grossas cadeias. Quem é ele? Sem dúvida o mais virtuoso de


nós todos, sem dúvida é ele o guarda mais severo de nossas leis;
seu ofício lhe quadra por sua austeridade, por seu amor à socie-
dade… Não, aquele homem é tanto ou mais criminoso do que o
padecente, e porque já não tem sequer um atributo de homem, é
carrasco! Olhei de novo para ele; não era Astrea quem se sentava
sobre sua cabeça; era Satanás, que o incitava a derramar mais
sangue sobre sua cabeça.
Passou o cortejo; eu tinha visto tudo, mas me faltava o resto.
Cheguei ao lugar do suplício e a morte galgou dum pulo a sumidade
do patíbulo, Satanás não deixou sua vítima, cada vez o atentava
mais, cada vez mais lhe entornava no peito o veneno da ferocidade.
Tudo estava pronto: o padre, o padecente e o carrasco subiram,
amarraram-se umas cordas não sei onde, o padre desceu depois de
dizer não sei o que ao padecente, e depois… depois: “Ai, Jesus!”, foi
só o que ouvi e o que ainda ouço. O homem já não existia; eu vivia,
mas o que sentia dentro em mim? Ninguém o dirá.

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