JOSINO DO NASCIMENTO SILVA Campos dos Goitacazes (rj), 1811 — Rio de Janeiro (rj), 1886
Josino do Nascimento Silva foi políti-
co e magistrado, atuando em vários cargos públicos ligados à direção da Secretaria de Justiça, da Instrução Pública e do Conser- vatório Dramático do Rio de Janeiro, além de se projetar como jornalista, tendo sido um dos fundadores do jornal O Cronista. Suas incursões pela literatura parecem ter permanecido dispersas em periódicos. É o caso do conto reproduzido aqui, cujo inte- resse e força residem na representação de uma cena de rua em que a violência social do sistema vigente converte-se em espetá- culo para entretenimento da população. A denúncia do horror associado ao “espetácu- lo” bárbaro e à atitude infame da “plateia” torna-se tanto mais impressionante quan- do se considera que ela parte de uma voz que traduz a visão de um político vinculado ao Partido Conservador e que é enunciada num período muito anterior ao das gera- ções românticas que viriam a se ocupar mais frequentemente da violência associa- da ao escravismo.
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Era num sábado. O dia havia amanhecido triste; o sol não podia desfazer com seus raios a espessa escuma que os cavalos de seu coche tinham espalhado; ameaçava chuva. Tenho eu por cos- tume, logo que acordo, chegar à janela a ver se há alguma novi- dade e nesse dia, apesar do tempo, não deixei minha devoção: abri as janelas e passei com uma vista de olhos perscrutadora re- vista pelas casas de meus vizinhos — que, de passagem o devo dizer, são ótimas pessoas. Notei nelas desusado movimento, pa- recia dia de festa, ninguém trabalhava, todos chegavam de vez em quando à janela com certo ar de impaciência. “Que será isto?”, di- zia eu comigo. “Há novidade na rua”; e em conjeturas, umas mais extravagantes que outras, passei um bom quarto de hora, sem atinar com o motivo da impaciência dos meus vizinhos e vizinhas. Cheguei mesmo a pensar que todos eles tinham virado judeus, e como tais santificavam o sábado; mas a esse pensamento se opu- nha o tê-los eu conhecido no dia anterior mui bons cristãos, toda- via como em homens não há que fiar…
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— Ó Maria — dizia uma vizinha batendo com o pé na casa —,
traz o meu vestido novo. — Qual, senhora, o de Lucrécia? — Não, que esse é muito escuro; traze aquele que tem rosas pintadas. Maldita escrava! Ele não há de tardar a passar, e eu ainda não estou vestida, ainda me não penteei. Maria! Maria! Não tem dúvida, é dia de festa. Mas que festa? Hoje não é dia santo, não há procissão… Quem será esse ele que há de passar? Será coisa pertencente à menina? Mas então por que razão todos se aprontam? Maldita curiosidade! Se tu não foras, tanto me não im- pacientaria por saber o que se passa hoje na vizinhança. Um tanto desacoroçoado retirei-me da janela, e porque sou por natureza curioso não desamparei a sala: sentei-me à banca, pe- guei em um livro, era… se bem me lembro, era o Último dia de um condenado. Lia eu o capítulo em que o condenado no Hôtel de Ville sofria os preparativos necessários para a guilhotina… Lia, disse eu! É falso: a minha curiosidade não me permitia dar atenção à leitura. Atirei com o livro, dei um passeio pela sala, cheguei de novo à janela — o mesmo movimento, o mesmo enigma. “Hei de sa- ber tudo, hoje não saio de casa…” — Esmola para o nosso irmão padecente! — esse grito soou a meus ouvidos como o som lúgubre do ranger de ossos de um es- queleto ao pino da meia-noite. Fiquei imóvel, os cabelos se me eri- çaram, eu vi tudo… Era um homem que ia morrer e para cujo enterro, e para salvação de sua alma, já se pediam esmolas… Não ouvi mais nada, nada mais vi, silêncio de morte se seguiu a esse grito e, só depois que o ouvi outra vez, voltei a mim, recuperei to- das as minhas faculdades. Então quis examinar esse homem que por sua boca soltava palavras tão geladas que gelavam o sangue dos que as ouviam. Era um velho vestido de negro, negra capa es- tava sobreposta à sua casaca, empunhava uma vara também negra e na outra mão trazia a sacola em que se depositavam as esmolas, era um irmão da Misericórdia. Seus cabelos brancos faziam con- traste com seus vestidos. O irmão da Misericórdia trazia em si as imagens do luto e da mortalha que devia cobrir os membros desse desgraçado, morto antes de morrer.
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A confusão recrescia em casa dos meus vizinhos, uns grita-
vam, outros batiam com o pé, outros castigavam os escravos por demoras que só existiam na imaginação e que a impaciência fazia maiores. “Nada entendo disso, cada vez mais se baralham mi- nhas ideias.” Pois quando todos se deviam recolher em suas cons- ciências, investigar sua pureza e rogar a Deus por um miserável, que por ser criminoso não deixa de ser homem, é que vejo tanta e tão estranha confusão! És incompreensível, natureza humana! Jogo de paixões contraditórias, obedeces a todas e assim vives! — O Chronista! — gritaram na escada. — O diabo leve O Chro- nista e seus redatores! Que me importo agora com o que faz o mi- nistério? Atirei o jornal para cima da mesa, mas não me tendo sido possível descobrir o enigma em ação que se representava em minha presença, e porque sou curioso como uma mulher, lancei os olhos para as doze colunas do O Chronista e li a seguinte notí- cia: “Hoje é o dia destinado para a execução do escravo que assas- sinou o caixeiro do senhor, na rua do Rosário”. Bem haja O Chronista e seus redatores! Foram eles quem me tiraram do estado cruel de incerteza e dúvida em que me achava, e eu vi tudo — bem como aquele que nunca mais perde de vista a forma humana que oferecem algumas paisagens na distribuição e disposição de certos objetos inanimados, depois que pôde reu- nir os traços que formam essa imagem de homem —, eu vi tudo, todos os traços estavam reunidos, meus vizinhos e vizinhas pre- paravam-se para ver passar o cortejo fúnebre: o crime foi perpe- trado na minha rua, o exemplo devia passar pela porta — tudo estava decifrado e nada podia mais me escapar da ideia. És incompreensível, natureza humana! Por que força essas donzelas tão fracas, tão achacadas de desmaios, preparam-se para ver passar um padecente! Que mistério é esse! De onde ti- ram elas essa força? Da educação, sim, que a natureza não dá for- ças contra si, que o ente por compleição fraco não pode se tornar forte sem uma preparação anterior. Vede! É um homem, e a esse homem vão matar… matar, sim; e vós fazeis mais brilhante com vossa presença o cortejo que o acompanha; o riso está em vossos lábios quando a humanidade solta pungentes gemidos; vós acom-
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panhais o enterro do homem que ainda vive, não chorais sobre as
misérias da humanidade, vossos vestidos são de gala, assistis a uma execução como assistiríeis a uma festa. Eu também quero fazer um esforço, quero ver para contar; ve- rei como se exerce a alta justiça da sociedade; verei dar morte na- tural para sempre a um pobre homem. Mas antes verei passar o cortejo, a minha casa é ótima para isso. Venha a roupa! E a confu- são que havia em casa de meus vizinhos passou-se para a minha, há pouco tempo tão sossegada e taciturna. Tudo era desordem, vesti o colete às avessas, e quando estava na rua é que reparei que tinha calçado o botim do pé esquerdo no direito e vice-versa. Eis- -me vestido, abri as janelas e, impaciente, ora chegava a uma, ora a outra: “Que demora! Que crueldade!”. O povo principiava a juntar- -se no canto das ruas, o que indicava a proximidade do padecente. Dois soldados de cavalaria aparecem no canto, após eles vinha o pendão da Misericórdia: todos se alegraram, e se não repetiram o verso de Filinto,
Lá rebenta o pendão junto ao rocio,
é porque o não sabiam.
Era a bandeira da Misericórdia; e que recordações gratíssimas e dolorosas não excitou em minha alma essa vista! Oh! Belos tem- pos em que me contavam as virtudes dessa bandeira! O pade- cente olhava para ela como único refúgio, como a tábua que ainda o podia salvar no naufrágio da vida! Felizes tempos esses em que a religião tinha forças para arrancar um homem das mãos de seus algozes! Essa bandeira está hoje despida de seus mais nobres e mais humanos atributos; nada mais vale; é um ornamento que acompanha a procissão — antes enterro. Sobre a bandeira vi sentada a morte reclamando a presa que lhe davam homens; mas a morte não era impassível nesta festa, não se conservava ociosa; alinhava o cortejo, ria-se para o juiz e, com estridor insólito de ossos, dançava na frente do miserável, depois voltava e de novo, como principal personagem da festa, sentava-se na bandeira e dirigia tudo.
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Seguiam-se irmãos da Misericórdia, frades e, após eles, vinha
de um lado o juiz, pálido e macilento, trazendo impresso no rosto o desgosto de ter de presidir a execução; seu cavalo parecia horro- rizar-se, recuava e apenas obrigado dirigia os passos para o lugar do suplício. Do outro lado iam dois padres, e no meio deles o pade- cente… Carregado de cadeias, com passo vacilante, tinha nas mãos uma imagem do Redentor. Que horror! O padecente é cego, o pade- cente não vê as chagas de Cristo… mas com os olhos da alma vê o abismo que está a seus pés, em que força é que caia. Que haverá no fundo desse abismo?… Breve o saberá. Estava já defronte de minha porta, os padres rezavam não sei que orações, que meus ouvidos só sentiam descompassados sons, tristes como o túmulo. Tudo parou. Meus olhos empanados nada mais viram, eu só ouvia. Silêncio dum momento reinou, e uma voz semelhante ao áspero som de embotada lima em enferrujado ferro disse: — Justiça, que manda fazer o regente em nome do imperador, o senhor Dom Pedro ii, ao réu Domingos Moçambique, escravo de Joaquim Francisco de Oliveira, por ter morto o administra- dor da casa de seu senhor, conforme a sentença que lhe foi imposta pelo tribunal do júri desta corte, que é do teor seguinte: “À vista da decisão do júri, julgo Domingos Moçambique, escravo de Joaquim Francisco de Oliveira, incurso no art. 1o da Lei de 10 de junho de 1835, e o condeno a sofrer a pena de morte, e custas”. Era uma figura insignificante que ia adiante do cortejo e que me havia escapado por pensar que não era dele. Quem é esse homem que acompanha tão de perto o padecente? Negro como a noite, ele veste roupas pretas, tem ao pescoço grosso colar de ferro e é vigiado pelos oficiais que o acompanham. Quem é? São dois os padecentes?… Não, este é o carrasco… O carrasco!… Oh! Meu Deus! Que há de o homem poluir a mais bela feitura de vossas mãos! Vós não criastes carrascos, e o homem fez car- rascos! O que é um carrasco? Não sei. Será um homem? Não, por certo. Era o executor da alta justiça da sociedade; sobre sua cabeça estava sentada Astrea, de rutilante espada; eu vi nesse homem o tipo do justo, e para bem retratar a sociedade o tipo do justo arras-
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tava grossas cadeias. Quem é ele? Sem dúvida o mais virtuoso de
nós todos, sem dúvida é ele o guarda mais severo de nossas leis; seu ofício lhe quadra por sua austeridade, por seu amor à socie- dade… Não, aquele homem é tanto ou mais criminoso do que o padecente, e porque já não tem sequer um atributo de homem, é carrasco! Olhei de novo para ele; não era Astrea quem se sentava sobre sua cabeça; era Satanás, que o incitava a derramar mais sangue sobre sua cabeça. Passou o cortejo; eu tinha visto tudo, mas me faltava o resto. Cheguei ao lugar do suplício e a morte galgou dum pulo a sumidade do patíbulo, Satanás não deixou sua vítima, cada vez o atentava mais, cada vez mais lhe entornava no peito o veneno da ferocidade. Tudo estava pronto: o padre, o padecente e o carrasco subiram, amarraram-se umas cordas não sei onde, o padre desceu depois de dizer não sei o que ao padecente, e depois… depois: “Ai, Jesus!”, foi só o que ouvi e o que ainda ouço. O homem já não existia; eu vivia, mas o que sentia dentro em mim? Ninguém o dirá.