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MARIA-MARIAS
Sufocada no cubículo anteriores às grades que separam o lado de lá, mal posso imaginar
o momento do toque. Saudades de meu menino. Pobre.
Quis sabê-lo vivo, são, de verdade. A meu lado acompanha sua mãe, minha tia, com um
desejo infernal de abraçar aquele adorado filho. Sufocávamos ambas sob o efeito de um
cheiro fétido e asqueroso, naquele lugar também asqueroso, de um medo que dá dó. As
pessoas ao nosso redor, comprimidas, eram de uma classe de gente bem simples,
destoávamos do todo. À hora do desespero somos todos iguais. Uma gritaria infernal em
que ninguém entendia-se com ninguém. Aguardávamos ansiosas.
Os pobres diabos, insurretos do lado de lá, aumentavam a confusão. O delegado não
liberaria tão cedo as visitas, mas nós, as mulheres, acima de tudo, não arredávamos o pé.
Nós, gritando e lançando-nos no ar, a ver se ao menos agarrávamos uma mão conhecida.
Esse era o cenário de meu calvário naquele dia desinfeliz, naquela delegacia de subúrbio.
E, pulando eu também do lado de cá, eis que vejo meu parente, um primo-irmão muito
próximo. Timidamente estendo meu braço e nada alcanço senão lamúrias no ar.
Ao final do dia, pela primeira vez na vida, após tanta miséria exterior e interior, penso
seriamente em deixar-me morrer. Quanta perdição, Deus meu!
Amontoados, eram muitos e furiosos. Jogados uns contra os outros, comprimiam-se
desnorteados, a apontarem e lançarem-se em todas as direções. Em meio a essa confusão,
vejo o cretino. Grito. E ele também. Uma comunicação surda estabelece-se entre nós. Eu
a perguntar por ele e ele a preocupar-se comigo. Foi comovente... Impressionante, todos
negros, ou quase – assim me pareceu. Exceto por meu irmão, um moreno claro. Fazia a
diferença.
O que teria aprontado aquele energúmeno para estar ali onde só se está não por boa coisa.
Meu irmão e a ralé. Na hora não pensei nada disso, apenas gritei e me esfalfei até
conseguir falar com ele, até tocá-lo.
Não, não havia nenhum engano naquela bizarra situação. O cara pisara na bola, estava
metido com gente barra pesada, já sabíamos todos em casa, mas dessa vez foi pego e não
sabíamos ainda no que tudo aquilo daria. Enfim escuto meu nome bem alto: Acordo com
sua voz.
Ah, esse mundo que havia nos colocado em lugares opostos e de maneira tão ingrata
quanto aleatória. Eu não compreendia, ou não aceitava, o descompasso entre a situação
extrema em que se encontrava, e a candura usual de seus atos e gestos. Havia
tranquilidade em seu olhar.
- Quero saber de você! Grita ele de lá.
– Não, sou eu quem quero saber de você!
Sua conduta, pura paixão, não chegava a ser assim tão grave...O pior seriam as
consequências. Todos temíamos o pior.
Desfalecendo de mim mesma só de pensar nessa hipótese, saco de minha carteira de
estagiária da lei e dão um jeito de deixar-nos vê-lo. Ufa! Que sufoco!
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Não, não posso passar a mão por sua cabeça dessa vez. Iria se ver comigo! Refleti comigo:
- Meus colegas de faculdade fazem o mesmo sem serem punidos. Mas ele envolvera-se
demais nas drogas.
Quantos entorpecem-se por amor? Essa era sua desculpa. Uma namorada de vida inteira
o largara por outro. É duro mesmo.
Enturmara-se com o pessoal do morro, sobretudo os moradores, e isso o encantava. As
pessoas simples. Chegava a assistir o culto junto a eles. A minha própria experiência
passava por aí. Recentemente passara a viajar para os cantões do interior do país e a mim
também encantavam essas fugas de nossas realidades imediatas. A entrega a relações mais
autênticas com as gentes, ampliando nossa humanidade. Nos compreendemos nisso. Não
podia culpa-lo de todo, desde que saísse vivo dessa.
No tumulto de pobres mal cheirosos, sobressai-se o meu claro e belo irmão, realmente
belo. Temo por tanta discrepância ali naquele antro. Toda a encarnação do mal encontra-
se ali impactado. Tudo misturado, a corja de matadores, assassinos, ladrões de carteiras,
enfim, quem não presta para mais nada. Assusto-me com essa ideia! É branco e cheira
mal, mas não é da mesma condição desses decelerados, os demais encarcerados. Sequer
pertence mais à minha condição de sei lá o quê – já desconheço, louca que sou, a que
classe e gente que sou. Também sou uma maldita, uma marginalizada, uma apontada nas
ruas.
Penso inusitadamente cá comigo: - O que estarão sussurrando lá consigo as pobres mães
desse bando do mal, negros-negros, dizimadores de quaisquer coisas? Sei lá.
O que seria eu, afinal, diante daquele irmão ali desviado e algemado diante de mim? As
dores de meus tantos e trágicos amores perdidos pareciam nada. Todos assustadores...
O rapaz-fora-da-lei, feito menino nesta hora, de algemas, pede a mim que coce-lhe a
cabeça. Um terno afago bem à hora do pavor... Não terei ninguém a me afagar após a
partida desse irmão querido. Sem dar por mim, assim se deu nossa derradeira e inusitada
despedida.

Apoiada em sua mãe, retirei-me do local chocada. Para precipitar-me, depois, em choros
e lamentações. O cativeiro da morte na delegacia no lado norte da cidade assustara-me.
Mas, afinal, por quanto tempo, afinal, por quanto tempo ausentara-me eu daquelas bandas
para viver meu sonho cor de rosa de tornar-me filósofa com meus novos pares? Apavoro-
me de minhas escolhas exorbitantes.
Meu pulso perde força, trata-se de meu irmão, e, mais ainda... um filho à espera de sua
mãe! A maternidade é quase sem escolha. Mas esse irmão que te conforta e te consola,
também não é artigo que se adquira em loja de departamento...
- Vá me ver quando sair daqui!
- Isso é uma ordem!
Pensei em toma-lo da mão e sair com ele dali por esses matos por aí afora. Fugirmos para
meu lugarzinho secreto recém descoberto onde eu finalmente era eu. Quantas coisas
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pensei fazer por nós dois! Ou simplesmente nos abandonarmos à infância e invadirmos a
larga casa de nossos avós...
Dali a três semanas, a notícia temerária nos alcançou: Execução! No mato. E, depois,
abandonado em uma dessas valas mal cheirosas no meio de um caminho qualquer. Uma
saraivada de tiros na cabeça. Justo no local que eu acabara de acariciar. Minha benção
fraternal.
Nem quero espargir-me na dor inapreensível dessa desesperada mãe, como na das demais,
mães dos negros-negros da delegacia, todas iguais. Foi minguando, minguando nesse seu
penar até o fim. Quanta maldição nessa ingrata família! Juro que abreviarei meus
sofrimentos daqui em diante. Há males maiores e piores que os meus.
Maria-marias movem-se neste instante na História maior. Com seus braços emprestados
a alguma grande causa, ou guardadas em casa na escuridão de seus lares, enquanto a roda
de todas as máquinas a girar no mundo. O que importa?
O silêncio me cumula, e por isso peço clemência a todas essas mães-mulheres, essas assim
chamadas Maria-marias. Que marchem em linha reta, e que eu, que não sou mãe, vou
atrás por pura solidariedade.
Incompreensível este mundo de tudo para minha tão pouca filosofia.

Por Alessandra Peixoto.


(1994)

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