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Alfafa

Por onde você anda?


—POR ONDE VOCÊ ANDA?—

Prólogo - Visão de mundo


Capítulo 1 - Ligação sobre o passado
Capítulo 2 - Lago dos suicídios
Capítulo 3 - Escola imóvel
Capítulo 4 - Estrada Núm. 18
Capítulo 5 - Lar abandonado
Capítulo 6 - A carta
Capítulo 7 - Enfrentamento
Capítulo 8 - Samuel
“Não esqueça de onde você veio e nem para onde vai.
Não fuja e nem tenha medo de chorar. Levante seu rosto.”
— Obrigado, Alfafa.
Copyright © 2023 Nicolas Marques

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The characters and events portrayed in this book are fictitious. Any similarity to real persons, living or dead, is coincidental and
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PRÓLOGO - VISÃO DE MUNDO
/\
ós nascemos morrendo, desde o início à mercê da morte. Contra nossa
N própria vontade, adotamos manias passadas por gerações; opiniões construídas
artificialmente e concordamos arduamente com cada palavra expelida pela boca
suja daqueles que a cospem.
"Cala-te, criança estúpida! Não sabe sobre o que fala…. Arg! Abra sua boca novamente e farei
questão de quebrar seus dentes".
Tente mudar o mundo, futuro. Falhe e morra.
Entre o amor e a educação, O ódio habita; esticando seus braços de tormenta, abraçando-
nos com força amargurada e prendendo-nos no loop eterno de dor.
A maldição aplicada em nossa alma ressoa e reside em nossas mentes, degradando o solo
que um dia fora verde.
Os dias nascem e morrem, tornando impossível o levantar de sua cabeça, o limpar de suas
lágrimas e o infernal preparo para a luta interminável com aquilo que nos assusta. Entretanto,
cabe a nós não cedermos. Devemos permanecer na guerra diária com o passado inóspito e "não
nosso" para que um dia possamos caminhar em paz no futuro.
Chute a barriga daquele que lhe impede e beije o rosto de quem teme.
{●}
Nunca gostei de pensar em frases como:
“A vida é como uma brisa em uma tarde ensolarada, gostosa, mas é passageira”
“Aprecie o tempo que lhe resta aqui”
“Ame quem lhe odeia e abrace quem te ama”
São tão clichês quanto as pessoas que as dizem! Porém, foi exatamente isso que pensei
parar iniciar o quê contando a você; mostrar um pedaço de minha memória… Hipócrita, né? Mas
não estou lhe escrevendo, minha amiga, como um juiz impiedoso, fincando lanças naqueles que
merecem pagar por seus erros… Não, venho para demonstrar um pouco do amor que senti em
meio ao caos; o amor que me ensinara.
A ideia de que nada é fixo, eterno, me conforta e assusta; me supõe a nostalgia de
algo que não vivi, e que possivelmente nunca viverei, mas sinto como se essa experiência
estivesse sendo doada a mim… Talvez sendo doada por um ser que se esconde atrás das cortinas.
Me imagino pensando sobre esse assunto interminável, prostrando-me sobre o fato de que
existiram tantas mentes brilhantes que morreram — e morrem — por não estarem na época
certa; por não refletirem com exatidão a mentira que lhe contaram; a qual ainda se prolifera.
"Por muito, sofri e chorei, urrando pelos seus braços. Agarro a memória e o formato do seu
corpo, beijo-o e limpo-o com a imensidão de meu carinho. Por favor volte"
A lama que um dia trouxera, ficou onde deixara; onde pisotearas com todo o ardor de
teu ser. Abandonada, deixei-a.
{●}
Minha cidade modesta e meu coração ambicioso, não tínhamos compatibilidade e com
medo a abandonei contra minha própria vontade; contra meu desejo de continuar crescendo no
solo em que nasci.
Infelizmente fui covarde; fugi de meus medos e ansiedades, corri de meu futuro e agarrei
a mão do meu coração. Despachei-me a um lugar longe e seguro, onde a luz não alcança e o
calor humano não queima.
— Com saudades, Gab.
\/
LIGAÇÃO SOBRE O PASSADO
Foi em uma tarde de sexta-feira que recebi a notícia que mudaria o destino de minha vida
completamente.

sol brilhava em seu esplendor e esquentava-me em seu amor. Pássaros


O cantavam em harmonia e sintonia com os outros seres que habitavam meu quintal;
a cidade. As nuvens rosas pintavam com felicidade juvenil o céu calmo. No
silêncio natural, bebia um café comum, sem muitos requintes, encontrando-se à sacada de muitos
segredos. Lá, jazia o pequeno lugar que um dia sonhei.
Tudo se fazia em calma e solitude, estando no perfeito equilíbrio de sempre. A
calamidade humana me observava de longe, mantendo-se quieta ao espreitar da noite. Cativa ao
dia, sonhava com seu poder, podendo apenas desejar pelo sabor delicioso.
{●}
Sentado, já pressentia que a premissa do paraíso seria curta demais; esburacada… E
assim aconteceu, interrompendo o belo momento com uma ligação desconhecida.
— Se for cobrança… Juro que quebro esse telefone! — Disse ao correr para o banquinho que
segurava o objeto escandaloso. Sentei-me ao seu lado. — Alô, quem é? — Enrolava meu dedo
indicador ao fio do telefone ansiosamente.
— É sua tia, amor — sua voz estava trêmula, indecisa.
O alívio por não ter que lidar com ignorância foi se dissipando, criando espaço para o
pressentimento de algo estar errado. Não era normal receber ligações que não fossem dos meus
pais, ainda mais de minha tia!
Ela morava em Goiânia, torta e doente, então já imaginei o pior.
Com uma mistura de preguiça e medo, resolvi manter em segredo a habilidade de ignorá-
la.
— Tia… Karen? Está tudo bem com a senhora? — Do outro lado, recebi um "uhum" como
resposta — hum — esperei por alguns segundos, aproveitando para olhar a paisagem exorbitante
do sol entre os prédios. A tentação de desligar aquela besteira era enorme, mas tinha que me
manter firme! — Alô?
— Oh netinho… Estou com dor como sempre. Morta por dentro e por fora — respondia com a
frase que guardava em seus lábios há anos. — Sobrinho querido, posso lhe contar uma coisa?
— Claro! Pode contar — o silêncio da velha me contorcia a orelha, arrebitando os dedos do pé.
— Sabe aquele seu amiguinho? Ah, era tão fofinho. Sinto tanta saudade dos dias em que minhas
pernas eram capazes andar, do tempo em que respirava…
— Que colega? — Cortava seu diálogo pois sabia que nada iria "prosseguir" se não o fizesse.
— Ah, desculpa a tia… Você sabe que eu sou assim! Quando vejo já estou reclamando de minha
artrite, osteoporose, diabetes, hipertensão e osmose generalizada.
— A senhora sabe o que é osmose?
— É aquela ruga que aparece no c…
— AHEM! Desculpa tia, vou ter que desligar. Tem gente batendo na porta.
— Ma-mas o Samuel sumiu! — Meu coração congelou e minha respiração cessou com a notícia
— Gabriel, você ainda está aí? Eu já tentei falar com alguém, mas parece que estou enterrada!
— Sim, eu… — Senti o mundo girar e cerrei meu maxilar — eu só estou tentando entender o
que você me disse — segurava minhas lágrimas e apertava meu peito como um bebê segura seu
brinquedo, com medo de cair. — Quando posso ir aí?
/\
A ideia de voltar para minha cidade natal era de fato agonizante, inquietante e repleto de
nostalgia. Não queria retornar tão cedo, mas também não podia negar o ser que morava no meu
coração gritando de felicidade.
Havia deixado Samuel em Goiânia por volta de quatro anos na tentativa de encontrar um
bom emprego. Desapareci da vida daqueles que eu tanto recusava; fugi dos olhares maléficos
que me cercavam e de toda fofoca retorcida de escanteio que ouvia.
Não sabia com exatidão o porquê de meu amigo nunca me responder ou atender o celular,
mas acreditava que precisava de espaço para aceitar tudo que ocorrera… Apesar disso,
acredito que o deixei correr sozinho mais do que podia.
Sem hesitar, preparei uma pequena mala e fui em rumo ao destino.
\/
O centro da cidade ainda ressoava as velhas dores e amargores, com leves salpicadas de
momentos passageiros de felicidade. O céu cinza contrastava com o amarelo das casas e castrava
a vida aérea que ali passava. A rua percorria longos caminhos tortuosos entre a nuance da
calçada e o asfalto cinzento decaído.
Já a sujeira acumulada, escancarava a verdade imunda que era encoberta por todos na
cidade, sendo arrastada para debaixo do tapete às pressas. Tentavam de tudo para esconder sua
podridão, apesar de nunca demonstrar remorso relacionado às suas atitudes.
As casas inabitadas, por aqueles que as deixaram com o mesmo propósito que tive em
mente há alguns anos, cantavam lentamente o resto de alma que deixaram, emitindo a dor e o
amor que receberam pelo decorrer dos anos.
{●}
Ao me distanciar do pequeno aglomerado da cidade, cheguei ao lago que um dia chamei
de meu. Suas águas me descreviam uma paz inexistente dentro da área urbana, repleto de um
ódio específico que foi diluído nas escolas, igrejas e praças públicas.
Lembro bem de quando o amor se tornou marca de grife desejada por todos, porém, a
maioria só conseguia ter em suas mãos a falsa ilusão de acolhimento e reconhecimento.
Com ondas calmas e compassivas, o lago me convidava alegremente a entrar e flutuar
pela sua superfície, tão atraentes como jovens em seus melhores anos.
LAGO DOS SUICÍDIOS
beira do lago estava repleta de areia úmida que se grudava na sola do meu
A chinelo e adentra entre meus dedos. Sentado, sentia o doce cheiro da grama jovem
e observava a solitude daquela manhã. A água estava muito gelada e com
promiscuidade corria aos meus dedos, fugindo imediatamente em vergonha eterna.
Pelo vento, vinha ao meu ser a melodia serena oriunda da brisa que dormia no lago
parado. E mesmo inóspito, a vida o desobedecia e trazia animais à sua beira, no qual um lobo-
guará bebia o líquido contaminado, exibindo sua pelagem magnífica com coragem astutamente
ignorante. Seu destino já havia sido proclamado.
Focado na traição, ouvia de longe um ruído que se mascarava como passos molhados,
aproximando-se com cautela. Tapei a luz incandescente do sol com minha mão e com força
esmaguei meus olhos para olhar a figura que estava parada ao meu lado inquietamente.
— Gabriel? — A voz doce aguçava meus sentidos e me revelava uma memória perdida. — É
você mesmo... Ah, quanto tempo que não lhe vejo! — Pude reconhecê-la rapidamente. Seu tom
magnífico, quase cantado, acariciava minhas orelhas e penteava meus cabelos. — Quando você
chegou?
— Ana, que saudade! — Levantei como um raio e a abracei fortemente, esquartejando sua
cintura com meus dedos.
Preso no seu abraço, respirava profundamente e aproveitava a oportunidade de sentir
seu perfume novamente; de sentir o calor que vinha do seu coração.
— O que faz aqui? — Afastei meu corpo para vê-la.
— Eu que lhe faço essa pergunta! — Disse ao bater em meu ombro — você nos abandonou sem
nem dar recado; sem deixar rasto… Sem me avisar! Eu tô tão-tão puta contigo que nem sei mais
o que falar! — Seu sorriso combatia as lágrimas que desciam de seus olhos e lutavam pelo
terreno — Você me deixou sozinha nesse pedaço de fim de mundo, no pedaço em que VOCÊ me
prometeu que deixaríamos juntos. E eu te procurei, te liguei e me desesperei com medo de você
ter acabado que nem ela… — Chorava como uma criança magoada, e eu também.
— Me desculpa… Eu não sei o que falar. Acreditei que era a única opção, o único recurso.
— Ah, sério? Para com isso! Eu sempre te ofereci meu ombro, assim como acreditava que tinha
o seu. Morri de esperar uma ligação sua de noite; saber se você estava vivo ou não! Eu só fiquei
sabendo onde tu estava por conta do seus pais! Acha mesmo que foi fácil? — O amargo de sua
garganta se espalhava pelo ar e adentrava minha garganta, trancando as palavras que um dia
escrevi.
— E-eu… Eu não queria ter te machucado — respirei profundamente, mantendo minha cabeça
virada ao chão. — Fiquei com vergonha de te ligar — murmurei.
— Ve-vergonha? — Ana ria enquanto tentava recuperar seu fôlego — Ah, quer saber? Não
posso mentir que estou aliviada em te ver, te abraçar… Mas fica esperto! Se pensar em sumir de
novo eu te mato — mesmo com a “resolução”, sentia que não havia feito progresso. — Até
pensei que fosse um fantasma hahaha.
— Desculpe — limpei minhas lágrimas e devolvi o carinho com um sorriso esguio e
envergonhado — eu prometo...
— Cala a boca.
Caminhamos pela beira do lago, intercalando o silêncio com pequenas frases com o
intuito de nos atualizarmos dos assuntos perdidos. O sol nos acariciava a face, me esquentava
como um abraço de mãe e iluminava a morte brusca da saudade insaciável do tempo que nunca
iríamos recuperar.
Mesmo com a atmosfera tensa, passear com Ana foi um remédio amargo, mas totalmente
eficaz. Apenas ela sabia como me tratar não como eu queria, mas como necessitava.
Rimos e choramos, ambos sob nosso juramento infantil. As guerras que iniciávamos e os
planos infalíveis que criávamos para conquistar nossos “amantes secretos” permaneciam em
nossas mentes e dava-nos esperança de que um dia tudo possa retornar à paz antiga que nos
confortava.
— Mas… O que te trouxe você aqui de verdade? — Ana me olhava com preocupação e segurava
minha mão com força. Seus cabelos crespos balançavam majestosamente com a leve brisa que
passava e seus olhos reluziam como mel profundo.
— Samuel, ele sumiu e eu vou encontrá-lo, eu tenho que achar ele — ela me olhava com um ar
de incompreensão e raiva. — Não lembra? Ele estudou com a gente por uns anos.
— Ah, lembro sim! — respondeu com uma risada envergonhada — Você tem alguma ideia por
onde começar? Afinal, você sabe muito bem como é sumir.
— É né… Hahaha! — Os pelinhos do meu pescoço se arrepiavam ao perceber que foram pegos
no flagra nesta hipocrisia. — Eu não quero te incomodar mais do que já fiz, então pode deixar
que eu vou atrás dele sozinho — trocamos números e a abracei, podendo lhe dar um adeus
temporário — Fica tranquila, eu volto! — Acenei e fui ao rumo da escola primária que um dia
chamei de minha.
ESCOLA IMÓVEL
oberta de sujeira e pichação, com paredes manchadas e vibrações negativas,
C a escola se tornava a primeira atração mal-assombrada da cidade, com histórias
terríficas e exageradas de supostos assassinatos.
Corria minha mão pelo muro gradeado sentindo as memórias perdidas que um dia escolhi
esquecer. Com o portão arrombado, adentrei o terreno observando que sua totalidade nunca fora
minha devido a sua mudança exterior; uma traição com meus sentimentos. Seu telhado estava
decadente e por mais que este sempre fora seu estado, acreditei que desta vez o tempo havia
tomado mais do que devia.
Apesar de ter estudado por um período curto, lembrava com exatidão dos desenhos que
adornavam as paredes externas, do som estrondoso da “tia do lanche” nos convocando para
devorar pãezinhos e suco de caju, das vezes que explodia em animação e corria pela quadra com
meus colegas... Mas nem tudo pode ser eterno.
A estrutura não era a melhor e a posição em relação a cidade era ruim, mas nada, nunca,
iria justificar o fechamento daquela escola de médio porte. Durante a troca de instituições,
muitos queriam possuir respostas para as inúmeras perguntas, falando que tudo aquilo era
proveniente de uma fundação mal feita, falta de dinheiro, ou corrupção, entretanto, o que
crianças de 10 anos sabem sobre coisas de adulto?
Porém, todos nós sabíamos que estávamos reclamando de barriga cheia, pois já haviam
anunciado que uma escola maior estava em construção a algumas quadras de distância — sem
contar que nos fora garantido o atendimento das necessidades de toda região do entorno… O que
não foi totalmente cumprido, mas isso não tem importância agora.
Esgueirava-me entre os escombros e mobílias velhas que recheavam os corredores,
observando os momentos do passado. Percebi que conseguia me lembrar de quase tudo, mas era
impossível tentar reconstruir o rosto de Samuel… Como se ele nunca houvesse existido; como se
nunca tivéssemos conversado por horas e horas. Naquela verdade, esforçava minha mente e
rangia um pensamento:
“Impossível! Como não me lembro do rosto do meu melhor amigo? Lembro de todos, menos
dele… Por que logo ele?”
A pequena frase se mantinha em minha mente, rasgando a calma que havia se instituído.
O mundo infinito de armários, mesas e cadeiras me rodeavam e forçavam o desespero desleal.
Conseguia ouvir os sussurros daqueles que já se foram e a ausência dos que partiram para outra
cidade. Meus olhos enchiam de água e minha língua amargurava, amarrando-se aos meus dentes.
No meio dos escombros, uma figura se destacava brilhando em um pequeno círculo
laranja.
— Gabriel? Onde caralhos você esteve? — Era Marcos, fumando um baseado na sala em que
costumávamos estudar matemática — Sente aqui meu querido! Eu não sabia que você viria…
Dessa vez eu não tenho nada pra te dar.
— Oh, o mais arrombado dessa cidade está perdoado na presença de vossa granditude! — Disse
sorrindo — Ah, que saudade… Como vai? — Sentei ao lado esquerdo do armário caído — Passa
esse queridinho aqui — estiquei minha mão e peguei o cigarro — já eu possuo um enorme
presente, minha caríssima companhia.
— Ah, claro! Estou honrado… Sabe, apesar de sua partida, teu nome nunca caiu em desuso, mas
acredito que já deve saber disso né? — Balancei minha cabeça afirmando. Puxei o ar e exalei a
preocupação — Eu te respeito demais, cara, mas sair sem sequer deixar um bilhete é maldade!
Sabe, não quero parecer emocional ou um “viadinho”, mas eu senti saudade de suas loucuras,
risadas e… Seus olhos curiosos; tão instigantes… É essa palavra, né? — Marcos olhou
profundamente nos meus olhos, pediu o cigarro e continuou a reclamar. — Você é um vacilão,
mas sabe que eu te amo.
Entre pitadas e risadas, acabamos com o bendito cigarro de índole duvidosa e
conversamos por horas. Apesar do ambiente inabitado, consegui me sentir confortável e acolhido
na presença de Marcos, sempre com o frio adequado para meu deserto.
— Ih mano, Você tem aonde dormir? — Disse entre tossidas. Abanava suas mãos no ar, tentando
limpar seu campo de visão enquanto seu corpo se aproximava — Sabe que pode ficar na minha
casa por um tempo — tocou meu ombro com atenção. Em seu pulso, exibia a pulseira da época
em que éramos quatro amigos. Aquele artefato fez com que lembrasse do motivo de estar aqui,
afastando o sentimento de segurança — se quiser, é claro.
— N-não obrigado — disse gaguejando — tenho que encontrar um amigo, o Samuel — Marcos
me olhou perplexo. — Você não se lembra também? Parece até que ele não era famoso hahaha.
Lembra… O moleque do bullying?!
— Ah! Porra… — Marcos parou no tempo por alguns segundos — Claro que lembro! Ele era
parecido demais com ti — ele apontou com seu cigarro, ainda aceso, à minha face, enfatizando
nossos pontos parecidos. — Saudade daquele filha da puta, saudade.
— Bom… Adeus então — levantei e o abracei.
— Senti saudades, de verdade — disse manhoso, encaixando sua cabeça em meus braços. — Vê
se não some de novo — em seu abraço apertado, suas mãos percorriam minha cintura até minhas
pernas.
— T-tchau!
Me desgrudei do seu corpo e saí envergonhado. Seus olhos vermelhos se despediram de
mim como uma criança olha para sua única figura responsável, dizendo-lhe que iriam sair sem o
levar… Talvez seja pelo fato de eu realmente sempre ter sido o mais responsável do grupo, ou,
talvez, que ele me reconhecesse como uma figura confiável.
Apesar de seu costume mal visto e carregado de preconceito, Marcos nunca foi uma
pessoa sem visão, futuro ou educação… Na verdade, ele é um “menino” muito educado que vive
sonhando e estudando em busca de um futuro melhor. Para ser honesto, o grande motivo dele ter
"adentrado neste caminho" foi a pressão contínua que ele sentia da sociedade, sempre ouvindo
palavras duras demais.
“Nossa sociedade nunca aliviou sua mão pesada das costas daqueles que não andam;
que não se conformam com os padrões do povo escolhido ou qualquer coisa que converge desse
tal padrão incansável; intocável.”
— Marcos
ESTRADA NÚM. 18
ndava pelas ruas desertas observando as casas e os lugares que um dia
A frequentei. De longe, avistei o único parquinho da cidade, que sempre esteve
limpo, vazio e bem pintado. Por algum motivo, apenas se via adolescentes sentados
e conversando entre si — pelo menos eles não vandalizavam nada! Eles sabiam que aquilo era
tudo que tinham — sempre felizes, cantando e fazendo algazarra… Penso se eu precisava ter
mais disso quando era jovem.
Esfregava meus olhos na procura de confirmar o que via, um grupo de adolescentes,
provavelmente amigos. Os jovens conversavam baixinho, ao ponto de me perguntar se eu estava
surdo, ou se eles é que estavam calados, olhando uns aos outros. O Grupo consistia de quatro
amigos:
{●}
Garota 1
Seus cabelos ruivos; uma coroa de milhares de cachos, ela exibida com grande graça e
delicadeza, assim como o aparelho odontológico que surgia em meio de sorrisos alegres,
demonstrando as diversas cores de seu coração.

Garota 2
A menina miúda, com braços cobertos por um casaco largo, permanecia em um estado
perpetuamente isolado, presa no cinza de sua blusa de frio. Contida pelo quente de seu manto,
observava seus amigos enquanto tentava esconder seu desejo de retornar ao seu eu anterior, se
libertar e participar da alegria coletiva assim como um dia fizera.
Garoto 1
Marcado por seus cabelos curtos e enrolados, debatia sem apatia e com intenso fervor
sobre tópicos complexos, mas sempre com sua festividade única e compassiva.
Garoto 2
E por fim, o garoto com a maior estatura chorava de rir; eufórico consigo mesmo. Com
seus olhos a postos, varria o cenário completo em seu coração e sorria, retribuindo o amor que
recebido.
{●}
A conversa cessou assim que me aproximei, como o motor de um carro que luta para se
esfriar, gaguejando ao roncar. Os adolescentes rapidamente levantaram de suas posições e
correram, rindo pelas ruas sujas e escuras da cidade. Seus passos preenchiam o vazio da tarde e
demonstravam o abandono da cidade silenciosa.
Por um tempo, fiquei parado observando com familiaridade a fuga dos jovens, ouvindo
os resquícios de vidas felizes que estavam em um perpétuo ciclo análogo à miséria que viviam
naquele bairro.
Os segui secretamente, tentando não fazer barulho ou convocar atenção.
Ouvi então uma voz idosa, rouca e arranhada que me chamava com esforço. A velha
vestia um pijama rosa de bolinhas pretas, o qual possuía pequenos buracos devido aos anos de
uso, segurando uma caneca escrito:
“Melhor vó do mundo”
— Venha aqui meu jovem! — Me aproximei vagarosamente, tentando identificar quem era a
idosa corcunda com exatidão — Oh! Como pude me confundir, é claro que é a minha querida
Gabriela — disse ao erguer seus braços, insinuando um abraço apertado. — Venha aqui!
— Dona Carla! Boa tarde, como vai? — A dama já estava tão velha e caducante que decidi
ignorar o fato de ter ressuscitado aquele nome.
— Que saudade! — Seus olhos percorreram por todo meu corpo, dos meus pés aos meus longos
cabelos pretos — está precisando de dar uma engordada, né? Um dia desses passa uma brisa e te
leva! Ah, já cansei de falar isso.
— Sim! "Pódecha" — Bufei ao abraçá-la e olhei em seus olhos, enxergando a saudade que sentia
de Carla — eu realmente estou com pressa, corrido. Me desculpa, mas a senhora pode me falar
onde a casa do Samuel fica mesmo? Eu estudei com ele…
— Patrícia? Aquela sua amiguinha tímida? Ah, vi ela passando por aqui nessa tarde ainda... Ou
foi ontem? — Sua feição rapidamente mudou para o tom maternal que subjuga sua própria
existência num cadáver tardio. A senhora gaguejava e tremia ao conversar. — O tempo tem sido
tão engraçado… — Disse ao me olhar fixamente — Ah, não importa!
— Não. SA-MU-EL! — Carla me encarou, esperou um pouco e abriu sua boca.
— Nossa, pois é. Também não o vejo faz um tempo — fui para apertar sua mão, em despedida,
mas a anciã desejava conversar prolongadamente. — Sabe de uma verdade, minha filha? —
Olhei para seus óculos retangulares — faz tempo que não vejo aquela piranha da Marta, aquela
caloteira! — rugia ferozmente — Se por um acaso você passar por ela, entregue isso — colocou
em minha mão uma caixinha preta minúscula; amassada. Ao me dar adeus, ria ao observar o
espanto ilustrado em minhas sobrancelhas.
Balancei minha cabeça em agradecimento e caminhei lento, sem rumo e ocioso pela
estrada, pensando onde Samuel poderia estar; quando eu finalmente teria a oportunidade de
abraçá-lo pela última vez.
Entre pensamentos turvos, ouvi a voz rouca da Velha caducante:
“O Samuel mora na esquina da 9. Boa sorte!"
“Obrigado!”

Comecei então a correr para não chegar ainda mais tarde.


Os postes já estavam acesos e mesmo com a luz da lua não era possível enxergar
perfeitamente o que havia a alguns metros de distância de minha face. O vento gélido abraçava
meu corpo, queimava a ponta de meu nariz e orelhas, trincando meus lábios enquanto me gritava
todos os pensamentos obscuros que tive nos últimos anos de minha vida. Meus joelhos choravam
em ansiedade e desespero, tentando não falhar comigo e meus pulmões queimavam como
caldeiras ferventes, regrando a quantidade de ar que me era ofertado.
{●}
Andar ali, naquela cidade horrenda, me trazia à tona lembranças que foram pioneiras para
minha decisão de abandonar este lugar decadente; fugir de minha manjedoura.
Os padrões invisíveis daquela cidade pacata eram difíceis para mim... Ainda mais para meus
pais. Minha ausência nos eventos infantis os machucavam, cortando com mão pesada a carne de
meus genitores. Enfurecidos, argumentavam e latejavam nas mentes daqueles que proferiam
comentários idiotas sobre seu primogênito e lutavam pelo direito de ter direitos.
{●}
LAR ABANDONADO
casa de dois andares, com suas janelas quebradas e de entrada violada,
A vibrava com a solidão que lhe foi deixada. As tábuas tapavam a silhueta de seus
detalhes e permitiam um pequeno vislumbre do conforto de seu interior.
Já de longe o cheiro familiar me aguçava o nariz, me instigando a continuar a exploração
com cuidado. Me esgueirei entre a fenda da porta principal e mandei-me ao solo consagrado.
A porta principal, mesmo coberta por tábuas, jazia na destruição ao se conformar com o
seu destino. Logo, a corrupção tampouco esperou que se fizesse uma década de abandono, pondo
enfim seu plano de erradicar quaisquer traços originais da caixa de concreto.
A solidão se tornou a habitante daquele pedaço de mundo escuro e por fim, a era de amor
se esvaiu.
{●}
Por um vidro, observar e aprender com o que há fora de nossas paredes se torna fácil; se torna
uma prática diária. Porém, sujeitando-se a tamanha curiosidade, ficamos vulneráveis aos males
inquietantes… É a teoria da caixa de vidro com portas abertas; a crença na farsa da
instabilidade e imutabilidade.
"Mas que porra é isso?"
{●}
A Casa estava intacta por dentro, coletando poeira e teias de aranha — parada no tempo.
Com poucas mobílias restantes, o eco preenchia a fortaleza quase oca. Já não havia muitos
pontos que retratassem a velha realidade de uma família perfeita que ali viveu. As paredes
ficaram manchadas de risadas em tardes quentes; os móveis amassados em carinho e abraços
apertados e as lâmpadas marcadas com a imagem do amor puro.
Nós nunca esquecemos onde escolhemos para ser nosso porto seguro, nem de onde
viemos, quem amamos e dos grandes amargores.
É impossível ignorar o passado, sendo ruim ou não.
Adentrei meu quarto de infância vazio, porém repleto de lembranças. A janela estava
aberta e por ela o vento noturno me acariciava o corpo. Entre a sujeira pude avistar uma caixa de
sapato rasgada, deixada de canto; isolada de minha visão e memória. Sentei ao chão lentamente,
lembrando-me do conteúdo esquecido, assim como a memória de uma amiga profunda.
Comecei a desbravar o passado pela leitura de uma prosa; a prosa a qual pertencia a ela,
seguida por sua última carta.
{●}
Naquele topo do prédio; na hora maldita e na roupa amaldiçoada, caí do meu pedestal,
atingindo o chão com todo o peso dos meus sentimentos guardados, das mentiras que
rasgavam meu pescoço.
Naquela solidão eu desabei.
Minhas lágrimas, misturadas com a chuva, eram iluminadas pelo brilho do luar. A Lua
brilhante me observava com classe, sem demonstrar descontento ou felicidade, com um
semblante opaco. Meu grito abafado pelo barulho intenso da tempestade, silenciado pelas
milhares de gotas de terno e gravata apertada, chorava em um eterno pedido de socorro. A
trágica situação era fruto de nosso amor pela vida, nossa semente imortal e impossível de
brotar… Por que a desejo tanto?
Morri de novo e vou morrer novamente. Afinal, morrer faz parte do processo.
Quero poder parar de passar as noites chorando amargurada; desesperada com meu futuro
inalcançável. Desejo poder parar de ver meu fracasso; parar de tentar adivinhar como vou
cair nos próximos passos. Quero poder erguer meu sorriso novamente e triunfar na glória
que um dia me pertenceu.
Quem sabe eu possa te esquecer um dia; quem sabe eu possa te superar. E será nesta data
que poderei olhar para o céu e rir de meu passado turbulento. E nessa esperança que me
pergunto: "Onde eu posso encontrar aquele que não existe?"
Voltei a sentir o grande desespero. A lâmina fria me chama; proclama meu nome ao gritar
com toda sua garganta. Socorro, não consigo aguentar por muito tempo.
“Naquela minha morte, quero quem volte”
•●•
E é pela dor que lhe suplico, lhe peço com ardor que me acompanhe; que segure minha
mão ao andar na escuridão. Por tanto tempo derramei a minha vida em teu nome, roguei a tua
prece… Mas nada, sequer, funcionou.
Prosto meu rosto sobre o caderno que lhe dei, o mesmo que tu devolveste, e me pergunto
o motivo de tanto ódio.

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A CARTA
Oi Gab!
Ainda lembro do ano passado… Naquele dia em que você me salvou.
Eu não consigo dizer o quão sou grata — passei um tempo olhando para esse papel vazio,
imaginando os inúmeros motivos de dizer isso.
Não quero continuar dizendo sobre o quanto esse mundo consegue ser horrível e/ou como
quero que tudo se exploda… Não, não! Preciso falar sobre os dias magníficos que fiquei em sua
companhia, das vezes que colocaste um sorriso em minha face — estou começando a falar que
nem você hehehe — e quando me defendeu mesmo sabendo que isso te denunciaria… Obrigado
por acreditar em mim, por me ajudar a me entender e aceitar meu eu real.
Estão sem demorar, lhe relembrarei:

Queimando a bruxa -
Se não me engano foi numa sexta de tarde na escola. O dia estava quase irreal de lindo,
com as nuvens pintadas de rosa celestial; ungida pela brisa calorosa. Lembro que tivemos apenas
duas aulas, já que se tratava do dia em que assistiríamos a palestra do pastor Malakus Pinto.
Nossa, lembro que ele sofria por conta desse nome… Mas ele merecia!
E que palestra CHATA! Minha cabeça latejava em fúria, mas você manteve sua mão
agarrada à minha enquanto eu segurava minhas lágrimas… Nunca achei que haveria uma
palestra sobre mim — acho que devo ser realmente interessante, mas tenho minhas dúvidas —
uma jovem de dezessete anos que transou com "o consagrado; o filho do pastor, homem que
reinava a cidade". Culpa da Larissa — aquela fofoqueira do caralho que contou para todo
mundo sobre a impotência sexual do "muleke".
Chorava e ria contigo no "caminhar" daquela palhaçada, e você? Me defendendo com
unhas e dentes, mesmo sem nem me conhecer direito.
Obrigado ♡
Já então no findar do dia, ele me chamou para conversar atrás da escola. Você tinha
concordado em ficar nos arbustos.
— Preciso falar com você — disse o menino irritado com a luz do sol batendo em seu olho.
— Que foi merda? — Eu estava puta da vida. — Já não basta o que me fizeste passar? — Ele se
atreveu a me olhar com confusão — Ué... Talvez AQUELA VERGONHA QUE SEU PAI
APRONTOU!
— Que porra de palavra é isso, aprendeu com aquela putinha? Quem mandou ser uma vadia? —
Rapidamente bati em seu rosto, o que fez com que ele parasse por alguns segundos em fúria.
Lembro de te ouvir rir baixinho — Porra! Quem você acha que é?
— Talvez a pessoa que foi humilde o suficiente para fazer sexo contigo? Ou quem sabe a mulher
que não conseguiu levantar teu pau? — Ele ficou tão vermelho — Eu, realmente, não queria que
isso tivesse virado atração na escola. Eu contei, acreditei na Larissa.
— Minha irmã nunca faria isso! — Disse batendo com o punho fechado em seu peito como um
menino de cinco anos que foi recém ensinado a ser homem.
— Nunca? Nunca Matheus? Ela que é a piranha aqui. A única que tem malícia o suficiente para
se oferecer para o primeiro que cede!
Ainda sinto a dor da joelhada que recebi, porém imagino que ele deve sentir até hoje a
dor do chute que você deu na cara dele.
Não sei como você conseguiu acertar o rosto dele e quebrar o maxilar do coitado. Foi
épico.
"Um garoto que se arriscou a mexer com a família mais importante da cidade por uma garota
dada como Vadia? Só podia ser você."
Sem você, não teria aguentado um mês sequer nessa cidade decadente. Foi por sua conta
que estou sorrindo agora… Mas nem tudo são rosas e eu não aguento mais viver. Sinto muito por
não conseguir escrever uma carta digna à sua altura. Cuide dos outros. Vou sentir saudades ♡
— Desculpa, falhei com você. Paty
ENFRENTAMENTO
e encontrei no banheiro, chorando em negação. Não queria trazer para a
M realidade a falta de Patrícia e seu carinho eterno que foi talhado em mim;
bombardear meu coração com os fatos enterrados com seu corpo.
Caí ao chão com todo meu ser e existência, chorei em desespero ao lutar pelo direito de
viver. Meu pulmão queimava e meu coração pegava fogo com a lembrança do gosto fervoroso de
minha amiga; de suas pimentas. Olhei para meus braços com cicatrizes conhecidas e acariciei-as,
tampando meu rosto em desonra e desabei.
Patrícia disse que eu a salvei, mas acredito que foi ela a heroína... Em meus anos mais
obscuros foi ela que estendeu sua mão, manteve minha cabeça erguida e me apoiou. É dela a
medalha de honra por ter apagado o fogo quando quase queimei por completo, por ter cantado
quando eu só conseguia ouvir ruídos. Tentei dar o meu máximo para ser seu anjo assim como
fora, mas acredito que falhei.
"Paty não iria querer isso. Você não quer isso"
Me revolta saber que a única pessoa que poderia ter evitado essa tragédia era ela mesma,
que mesmo se pudesse dar minha vida em troca, ainda sim ela seria a dona de seu destino.
Carregarei sua alma eternamente comigo, encantada em meu ombro.
Levantei minha face para o espelho embaçado, encontrando, finalmente, o jovem que
procurava e com isso cheguei ao fim de minha jornada exaustiva.
Samuel estava do outro lado do espelho me encarando com meus olhos pretos cor amora.
Entre minha escuridão, prevalecia sua luz jovial com seu sorriso que brilhava como o sol. Me
pressuponha a liberdade e esperança sobre o futuro. Com o gosto salgado de minhas lágrimas,
sorri em aceitação.
Encontrei conforto com ele após a fuga de minha casa, meu ponto inicial. Juntei meus
pedaços quebrados; retomei minha consciência e razão. Minha jornada não poderia acabar ali.
Não fui criado para ser fraco e desistir, ou puxar a corda do desespero.
Apesar da dor, desilusões e amargor, sei que possuo pessoas que me amam; sei que
não há a possibilidade de trazê-los para a luz divina, nem desfazer minhas atitudes. Afinal
todos estamos fadados à solidão cruel, numa fraqueza da mente humana. E no fim, o que me
resta é chorar sozinho?
Saudade, apenas ela é quem sobra.
Entretanto, me lembro diariamente que não posso cair nesse poço sem fundo, nem
nadar nesse “preto-universo” sem fim.
"No fim, escapei em prol da minha segurança e sanidade. Abandonei tudo e todos que amei
por conta da lâmina envenenada que me esfaqueava intensamente e me fazia jorrar sangue
púrpura… Não vou mais ceder e nem negar quem sou."
Enxuguei meu rosto molhando enquanto ria.
Não sabia para onde eu iria, apenas queria sentir o frio da noite em meu nariz; sentir o
calor de meus pulmões e sofrer com a dor nas minhas articulações.
SAMUEL
aí lentamente de minha antiga casa, ainda choramingando ao tentar manter-me
S quieto. O vidro da porta principal se encontrava restaurado, repleto de brilho e metal
à sua volta, mas não me importei com isso.
Sentei no degrau da entrada e fiquei observando o céu estrelado — o frio congelava
minhas mãos e eu tentava mantê-las quentinhas enfiando-as em meu bolso. O vento uivava em
meus ouvidos; as corujas fofocavam e voavam em curiosidade, rastejando pelos cantos mal
iluminados.
O álgido divino da noite é mal entendido; rejeitado por sua brutalidade e quietude, mas é a
partir de sua benção que posso colocar minha mente em seu funcionamento ideal, ignorando as
tormentas que me assolavam.
Com meu olhar fixado para a lua, ouvi o som de alguém sentando ao meu lado, mas
não o olhei e preferi me manter no estado ocioso entre a seca e o derramar de lágrimas
interminável. Minhas lágrimas escorriam com fluidez ao sentir o casaco me cobrir seguido de um
abraço forte. Naquele calor repentino, agradecia em silêncio e retribuía com meu olhar.
— M-marcos, o que faz aqui? — Disse soluçando — me desculpa, eu vou parar… Prometo.
— Vish, você está bem? — Com seu rosto preocupado, enxugou meu rosto e procedeu a me
abraçar — O que aconteceu?
— A Patrícia, lembra dela? — Ele balançou sua cabeça em afirmação e segurou minha mão —
Eu sinto tanta saudade dela. Queria não ter sido tão ignorante com seus sentimentos; queria não
ter a ignorado.
Com a fuga de meu oxigênio, comecei a chorar mais forte, rasgando minha garganta.
Marcos me abraçou ainda mais forte. Retribuía a gentileza com o amarrar de meus braços ao seu
corpo, desejando viver naquele momento para sempre… A culpa pesava meu pescoço e fincava
sua lança prateada em meu coração, perfurando-me e me prendendo ao chão.
— Ela pediu minha ajuda; chorou no meu ombro tantas vezes… — O olhei sério — Podia ter
contado para algum adulto, ter tentado algo realmente significativo — minha boca se curvava em
amargor. — Não acredito que ela se foi; não quero acreditar... Me recuso a crer que ninguém se
lembra do motivo do nome daquele lago maldito! — Minha garganta doía com a força que
colocava para espremer aquelas palavras entaladas — E eu esqueci dela! Como pude ter
esquecido o sorriso dela? E-eu não aguento mais carregar esse fardo; essa culpa.
— Você não precisa carregar isso sozinho, não tem. Divide isso comigo.
— M-me desculpa por ter te abandonado! — Exclamei batendo em minha cabeça — Eu te
deixei; me deixei aqui, esqueci de minha essência, do meu propósito e minhas paixões! Fugi
como um covarde sem nem olhar para trás… Eu quero voltar para cá… Voltar para você!
— Ei! — Marcos gritou. Levantei minha face rapidamente para olhá-lo. — Você é o homem
mais carinhoso e atencioso que conheço! Eu também morro de saudades dela… Assim como
também a esqueci — disse rindo. — Mas tu não tem culpa, ninguém tem! — Ele parou, respirou
e encarou no fundo dos meus olhos — não sei o que exatamente houve, mas estou aqui para
você… E sempre vou estar. Te amo — Marcos me abraçou com seu casaco quente e me beijou.
Nada mais importava. O peso que me esfaqueava se acalmou, deixando apenas a cicatriz
de uma batalha árdua na carapaça de um besouro.
— Quer que eu te leve para sua casa?
— Você é minha casa.
"Obrigado, Pat. Eu te deixo ir"
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BOOKS BY THIS AUTHOR
O Sequestro De Ana
Ana, uma garota brasileira de 17 anos, foi sequestrada após realizar um ritual à lua de sangue.
Confusa, terá que entender o motivo de sua permanência para sair de sua prisão especial
enquanto supera seus medos e traumas.
A acompanhe nessa jornada surreal, vazia e onde não existe teto ou chão.

A Maldição Da Garça - TRIO


Trio composto por: Maquina Divindade, Lagoa eterna e A maldição da Garça.
Por meio de três contos, a historia da maldição da garça será contada e efetivamente letal desde a
brutalidade da guerra até a inutilização da humanidade insensível e egoísta.

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