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(Todo o espaço cênico está repleto de lixo. A história se passa num cais, ao
fundo há o rio, à frente há o Mercado. É dos restos do Grande Mercado que
sobrevive a Senhora dos Restos. È escondida entre as sobras que ela está, de
forma que ninguém a vê.).
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resto de tainha. O mundo é cruel, moço. Principalmente para os
que estão sozinhos. Há pessoas que usam os dedos, as unhas e os
dentes para outras coisas que vocês não são capazes de imaginar.
A pele é frágil, moço. Nossa pele é muito frágil. A nossa pele é
como parede de mercado que descasca. Ah! Velha pele de mer-
cado! Eu olho esse mercado com seus turistas e sua ostentação,
e me lembro de antes. Quando eu era menina a miséria estava
desenhada na cara dele. Agora é na minha cara que a miséria
se estampa. Na minha cara. O mercado já foi podre. Era uma
confusão danada, e o esgoto passava pelo meio das barracas. Eu
lembro da minha mãe me arrastando no meio dos pescados e eu
sentindo aquele cheiro ruim de peixe na minha venta. A minha
mãe me puxava pela mão e me arrastava entre as barracas e o
meu nariz passava rente aos peixes, aquele futum de peixe dentro
das minhas narinas. Ah! Como eu sentia nojo dos vendedores.
Nojo dos peixes. Hoje, o cheiro de inhaca de peixe está por todo
o meu corpo. Das tetas ao xibiu. Nas minhas veias passa um esgo-
to. Eu sou a extensão da imundície. Eu, Mistura de bolor e água
suja. Eu, a Senhora dos restos, a podridão humana. Talvez um
dia saia num desses jornais. Nessa cidade não há um jornal que
preste. E a vida da senhora dos restos seria um prato cheio para
eles. Prato cheio - doce ilusão dessa velha. Prato - doce ilusão
dessa velha. A senhora dos restos come é com a mão, e finge que
é tão gostoso como caruru em dia de Cosme e Damião. Eu já
fui uma das crianças na mesa de Cosme e Damião. Minha mãe
me colocava um velho vestido de chita e me puxava os cabelos
em duas chiquinhas. E eu, limpa e asseada, comemorava o dia
dos santos. Minha mãe era devota de tudo que fosse santo, fazia
promessa no altar e me arrastava pelos pulsos em dias de procis-
são. E desde pequena, eu olhava aquelas imagens e sentia uma
raiva gigante. Aquelas malditas santas com suas roupas limpinhas
e suas ventas perfeitas. Santa Ifigênia, Santa Barbara, Santa Lu-
zia. Santas mesquinhas. E ainda criança eu sentia vontade de
esmagar a cabeça das santas que minha mãe devotava. Esmagar
o gesso do pescoço delas, espatifar seus corpos no chão. Todas as
santas iludiam a minha mãe que acreditava que velas acesas tra-
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riam o meu pai de volta. Ele volta, ele volta sim, bêbado perdeu
o caminho, mas ele volta para mim.
(pausa) Agora, se o assunto é amor, lhes digo: sente com força até
a última gota, que o amor é coisa que passa. E destrói o pouco de
estrutura que esse mundo lhe dá. Te enlouquece ou te empobre-
ce. Eu fiquei pobre. Nos restos, perdi o amor próprio, conheci o
crime. Abandonei Menininho ao próprio destino. E mesmo que
ele não saia da minha memória, eu sei que Menininho não existe.
Não existe mais. Graças a mim. Maldita seja a minha mãe que
me dizia que os homens não prestavam. Maldita seja a Regina
Duarte que me dizia que eles prestavam. Maldita seja eu que
amei um homem de olhos fechados. Mas era preciso, era pre-
ciso quebrar a cara, romper com a minha mãe, ter Menininho
e abandoná-lo. Tudo era preciso. Porque hoje, em meio a toda
a pobreza, em meio a toda imundície, eu reino. No silêncio da
noite, quando a cidade dorme e os carros cessam, quando os ban-
didos se cansam, só a Senhora dos Restos percebe. Só a Senhora
dos Restos vê. A cidade que pela manhã se acotovela, à noite
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dorme e processa as suas doenças e só a Senhora dos Restos tem
a insônia dos justos.
Uma menina de seis anos deitou ao meu lado uma noite dessas.
Acordei com ela cheirando o meu sovaco. Ela não se importou
com o cheiro. Também fedia. E tinha a cara coberta de catarro
seco. Quando acordou, olhou para mim e disse. “Eu sei como
arranjar comida”. Se enfiou com o velho da padaria e voltou com
dois pães e um pedaço de salame, quinze minutos depois. Come-
mos em silêncio. Isso não me assusta. Um menino de dez anos
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noite passada deitou ao meu lado. Estava agarrado num frasco de
cola. E mordia o meu seio. Insistentemente mordia o meu seio es-
querdo. O menino com seus dentes furou minha blusa, dilacerou
o meu peito. Isso não me assusta. Uma mulher outro dia deitou
ao meu lado. Tinha caroços no corpo inteiro e gemia. Seus gemi-
dos zuniam no meu ouvido. Os caroços roçavam no meu corpo
inteiro. Pareciam coçar. Isso não me assusta. Um homem outra
noite, deitou ao meu lado. Sangrava nas duas pernas. Tinha uma
mão decepada, com a outra me procurava. Eu deixei que ele
me tocasse com a única mão. Ele me fez sangrar no meu espaço
fundo. Isso não me assusta. Todos vocês conhecem essas histórias
e outras ainda piores. Isso me assusta. (pausa)
Eu, Senhora dos Restos, a boca maldita. Eu, Senhora dos Restos
a voz que a cidade silencia. Mulher, velha, pobre. O Estado tem
dívidas para comigo. A sociedade há de me pagar. Em cada gota
de suor, em cada saliva que me falta, em cada noite que eu não
dormi. A cidade há de me pagar. A cidade há de me pagar. Eu,
senhora dos Restos, porta-voz dessa cidade. Eu, Senhora dos Res-
tos, vendo tudo. Eu, senhora dos Restos, ponto final.
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