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Senhora dos Restos

(Todo o espaço cênico está repleto de lixo. A história se passa num cais, ao
fundo há o rio, à frente há o Mercado. É dos restos do Grande Mercado que
sobrevive a Senhora dos Restos. È escondida entre as sobras que ela está, de
forma que ninguém a vê.).

Senhora dos Restos (grita) – Achei! Achei! Achei! Achei, Menini-


nho, achei. (gargalha) Um osso. Um imenso osso de boi. Ou seria
vaca, menininho? Um grande osso no meio do lixo é como uma
carne pulsando dentro da panela do rico. Um osso que eu vou
roer todinho. Todinho, menininho! Deve ter vindo de algum ma-
tadouro daqui de perto. Santos Matadouros que desrespeitam as
leis e ainda matam os bichos. Pena que a carne não vem parar no
meu bucho. Mas nos imensos ossos dá-se para ver alguns fiapos,
e se não mastigo ao menos sinto o gosto no meu cuspe. Cuspe
de boca que sente fome é mais seco que terra rachada do sertão,
seu moço. E não pense que eu não te vi aí sentado com a gravata
quase enforcando a jugular. Ou a bolsa da madame ali do outro
lado. Todos gostam de ver a maldita atração da cidade. Pensam
que eu sou sábia, que prevejo o futuro, querem saber de tudo em
instantes. Só a velha do cais tem tempo de observar a cidade. Eu
olho como todos se movimentam. O mapa dessa cidade é o meu
búzio. Cada rua está me dizendo que estamos afundando. E é por
isso que vem todos até a Senhora dos Restos. Já vieram aqui dou-
tores, repórteres, candidatos à eleição. Mas ninguém tirou essa
pobre velha da miséria. Filhos de uma égua desgraçados. Mas
essa velha maldita quer continuar na miséria. Essa velha maldita
quer continuar na sua lúcida miséria. Lúcida miséria! Lúcida mi-
séria! Lúcida miséria!

(grita) Ai! Dor condenada. Alguém me arranque a perna direita,


por favor. Ai! Dor condenada. A minha perna direita está pe-
dindo para ser arrancada. Alguém me arranque a perna direita!
Arrasta essa velha para o hospital e lhe arranca a perna direita
com machadadas. Não foge moço. Não foge. Tô com uma fome
desgramada. O mercado durante a semana não dispensa quase
nada. A coisa está ruim pra todo mundo e até o miúdo o povo
está comendo. Senta aí, que a velha conversa, meu fio. Te conto
a história da minha mãe, e a minha. Te conto o que o senhor
quiser saber. Mas o que é que o senhor quer saber? O que é que
o senhor quer?(pausa)

A paz? Está todo mundo seguindo essa de querer a paz, não é


mesmo? Mas, se a gente pegasse em armas, hein? Se a gente
decidisse que o mundo poderia ser diferente e que não haveria
mais velhas na miséria? Se a gente decidisse que não haveria mais
velhas comendo os restos dos outros? Não, não. Esta velha não
é comunista. Simplesmente porque eu não sei o que é isso, ser
comunista. Mas qualquer coisa deve ser melhor para essa velha
do que esperar que o mercado não venda as suas verduras. Qual-
quer coisa é melhor do que se oferecer para o pescador por um

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resto de tainha. O mundo é cruel, moço. Principalmente para os
que estão sozinhos. Há pessoas que usam os dedos, as unhas e os
dentes para outras coisas que vocês não são capazes de imaginar.
A pele é frágil, moço. Nossa pele é muito frágil. A nossa pele é
como parede de mercado que descasca. Ah! Velha pele de mer-
cado! Eu olho esse mercado com seus turistas e sua ostentação,
e me lembro de antes. Quando eu era menina a miséria estava
desenhada na cara dele. Agora é na minha cara que a miséria
se estampa. Na minha cara. O mercado já foi podre. Era uma
confusão danada, e o esgoto passava pelo meio das barracas. Eu
lembro da minha mãe me arrastando no meio dos pescados e eu
sentindo aquele cheiro ruim de peixe na minha venta. A minha
mãe me puxava pela mão e me arrastava entre as barracas e o
meu nariz passava rente aos peixes, aquele futum de peixe dentro
das minhas narinas. Ah! Como eu sentia nojo dos vendedores.
Nojo dos peixes. Hoje, o cheiro de inhaca de peixe está por todo
o meu corpo. Das tetas ao xibiu. Nas minhas veias passa um esgo-
to. Eu sou a extensão da imundície. Eu, Mistura de bolor e água
suja. Eu, a Senhora dos restos, a podridão humana. Talvez um
dia saia num desses jornais. Nessa cidade não há um jornal que
preste. E a vida da senhora dos restos seria um prato cheio para
eles. Prato cheio - doce ilusão dessa velha. Prato - doce ilusão
dessa velha. A senhora dos restos come é com a mão, e finge que
é tão gostoso como caruru em dia de Cosme e Damião. Eu já
fui uma das crianças na mesa de Cosme e Damião. Minha mãe
me colocava um velho vestido de chita e me puxava os cabelos
em duas chiquinhas. E eu, limpa e asseada, comemorava o dia
dos santos. Minha mãe era devota de tudo que fosse santo, fazia
promessa no altar e me arrastava pelos pulsos em dias de procis-
são. E desde pequena, eu olhava aquelas imagens e sentia uma
raiva gigante. Aquelas malditas santas com suas roupas limpinhas
e suas ventas perfeitas. Santa Ifigênia, Santa Barbara, Santa Lu-
zia. Santas mesquinhas. E ainda criança eu sentia vontade de
esmagar a cabeça das santas que minha mãe devotava. Esmagar
o gesso do pescoço delas, espatifar seus corpos no chão. Todas as
santas iludiam a minha mãe que acreditava que velas acesas tra-
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riam o meu pai de volta. Ele volta, ele volta sim, bêbado perdeu
o caminho, mas ele volta para mim.

(grita) Ele não volta! Os homens não voltam! Se esconde, Meni-


ninho, se esconde. Eles estão vindo aí. Se perguntarem por mim,
digam que não estive aqui. (A Senhora dos Restos se esconde por um
tempo curto).

Já se foram? Eles não me viram. São os meninos bem criados. Fi-


lhos de juízes e deputados. È com eles que eu devo tomar cuida-
do. Nem todo mundo quer os conselhos da Senhora dos Restos.
Nem todo mundo por isso vem aqui. Tem gente que quer usar
os dedos, as unhas e os dentes na gente. E sempre são aqueles
que tem o poder. Espancam, bolinam, incineram. Eles podem,
eles podem tudo. E matam. Aproveitam do silêncio da noite para
fazer suas perversidades. Já tocaram fogo em Das Dores da São
Cristovão, quebraram o braço do velho barbudo do Hotel Pala-
ce, já rasgaram o rosto da mudinha que se esconde pelo Museu
do Palácio. Eles sempre aparecem e ninguém faz nada. Tem a
complacência dos policias, e o aval da sociedade. E mesmo que eu
fale tudo que acontece na noite tranquila dessa cidade, nada irá
mudar. E é por isso que tenho minhas armas. Caso eles me achem
tenho como me proteger. Me defendo com os meus bastões. (puxa
os bastões que estão pendurados na saia). Eles sãos os meus protetores e
não as imagens de santas que não trazem as pessoas de volta.

(enquanto faz movimentos de luta com os bastões) Bastões para os estu-


pradores, para os padres, para a solidão. No rosto, no ventre, nos
culhões. Devolver cada abuso com porretadas. Ai! Se me apare-
cem os governantes dessa cidade. Os meus bastões ensinariam
o que a esmola provoca. Na nuca, nos peitos, na boca do estô-
mago. E eles veriam o que uma pobre velha pode fazer em sua
defesa. O crime é uma defesa. A defesa dos que não possuem
nada. Então seria crime usar os meus bastões? Hein? È crime
os mais fracos se protegerem? Se for crime, a senhora dos restos
é uma criminosa. E podem me fichar e trazer as algemas. Sou
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criminosa por usar os meus bastões. E enquanto houver força
nesses braços, enquanto sangue percorrer minhas veias eu me
defendo. Eu uso os meus bastões e deformo quem tentar se apro-
ximar dessa velha. Ninguém há de tocar o corpo dessa velha sem
a sua permissão. Uma senhora, mesmo nos restos, tem que saber
se defender. Estou na merda, mas não quero ser morta. A morte
ainda me assusta, mesmo estando na miséria. E a miséria é o
último estágio. Dela ninguém sai, para ela muitos ainda virão.
É. Não pense que todo mundo nasce na miséria. A senhora dos
Restos já teve casa, já frequentou escola com farda e caderno na
mão, e já amou – miséria maior. A maior miséria do mundo é
amar um ser humano. Para o ser humano, excrementos. Para o
ser humano, os restos. Eis me aqui. Onde todos deveriam estar.
Enfurnados na pobreza. Sem roupas, sem espaços, sem onde co-
locar a cabeça. Sem poder estirar o corpo em paz. Nenhum cubí-
culo apertado para habitar. A senhora dos Restos não descansa.
Está sempre viva, em defensiva. E quando às vezes relaxa, um
motor de carro ou outro vem espantá-la. Zruuuuuuum! Acor-
da velha imunda! Zruuuuuuuuuuuuuum! Levanta amaldiçoada.
Zruuuuuuuuuuuum! Abre os teus olhos. A cidade fala com a Se-
nhora dos Restos. A todo o momento ela grita aos seus ouvidos
que está em ativa. A cidade não dorme e não deixa que eu durma
também. Ela me quer desperta, lúcida e desperta para presenciar
todas as suas mazelas. Assaltos, estupros, vícios, contrabando,
amores, atropelamentos, solidão. Feitiçarias em encruzilhadas.
Batidas de carros. Crianças sendo decapitadas. Não! Crianças,
não! Não machuquem o menininho. Não machuquem o Menini-
nho. Não. Menininho, me ouve! Quando tentarem ver seu pesco-
ço, esconde a mancha com um pano, ou com as mãos. Não deixa
ninguém ver a sua marca. Não deixa que as santas fuxiqueiras
te identifiquem. Mente, Menininho, mente. Por você e por essa
velha azeda. Mente. Prova que me perdoaste e mente descara-
damente. É a minha única saída, é a minha única solução. Eles
inventaram o pecado e enquanto o pecado existir eu ficarei presa
na terra. Eles não me deixam partir. Já tive tuberculose, enfarto,
pressão alta, dor de cabeça, leptospirose, bicho de porco, cinco
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facadas, tiro de atravessar as costas. Mas não morro. Acho que
não morrerei nunca. Os homens vão se destruir uns aos outros.
Os rios vão secar e o ar vai ser sujo e repleto de grãos, e eu estarei
aqui, nesse cais, nesse lugar que me recebe, esperando a hora
final. Só sairei da miséria para a morte! Para a morte!

(grita) Ai! Dor condenada. Alguém me arranque a perna direita,


por favor. Ai! Dor condenada. A minha perna direita está pe-
dindo para ser arrancada. Alguém me arranque a perna direita!
Arrasta essa velha para o hospital e lhe arranca a perna direita
com machadadas. Vocês podem pensar que a gente suporta as
dores. Que a doença no nosso corpo não age. Mas o nosso corpo
é feito da mesma matéria que vocês. E a chaga também se alastra
nele. O nosso corpo também tem o mesmo criador. A minha mãe
me ensinou que somos filhos do mesmo criador. Embora eu não
acredite que ele more naquelas igrejas que ela frequentava. Deus
escapole. Por mais que a gente persiga. Por mais que a gente
tente, ore, reze, se ajoelhe. Deus escapole da gente. Ele escapole
de mim. Desta velha suja, Deus desvia. Ele não vem a mim. Não
adentra no meu corpo-caverna, não se faz presente. Assim como
todos, Deus me largou de mão. E eu fui caindo cada vez mais fun-
do. Senhoras e Senhores, olhem para mim. Vejam esta velha en-
cardida. Mirem essa imunda em farrapos. Olhem para mim. Eu
já fui mulher. Eu já fui uma mulher. Hoje não tenho nada. Sou
dejeto. Todos me olham torto. E o meu cheiro é ruim. Não há
coisa pior do que não suportar o seu próprio cheiro. Não há coisa
pior do que se acostumar com o seu podre cheiro de fezes-mijo-
-lodo. Vejam a minha podridão e se acostumem com ela. Ela está
em cada esquina, em cada rua dessa cidade. Em cada moleque
que pede um trocado, em cada menina que vende o seu corpo
na noite. Está em você. Em você que não vê. Que tapa os olhos,
que atravessa a avenida com medo. Está em você que silencia e
permite. A podridão é a única coisa realmente coletiva. Não há
como se livrar dessa culpa. A miséria do outro é a nossa própria
miséria e não há caridade que te isente disso. Somos cúmplices.
Todos cúmplices. Em cada refrigerante que lhe desce pela gar-
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ganta, em cada hambúrguer que come, em cada vestido fútil que
veste. Está nos doces, no comércio, na diversão. Somos cúmpli-
ces, sim. Porque enquanto eu estiver aqui, gasta e esfarrapada,
vocês continuarão aí, limpos e perfumados. É o ciclo da vida.
Desta vida. É assim que as pessoas enganam suas consciências. É
assim que os políticos chegam ao poder. Eu, Senhora dos Restos,
uma fábrica. Uma fábrica manipulada por aqueles que possuem
a direção. Com todas as suas engrenagens enferrujadas. Senhora
dos restos - a única operária. Com todos os abusos acumulados.
Produzindo o escárnio. E os chefes me guiando cada vez mais
abaixo. Ao poço e avante. E eu não posso ir. Para nenhum lugar.
Não posso entrar em lugares iluminados, não posso olhar as novi-
dades que a cidade oferece. A cidade, inclusive, é como Dalva, a
puta que abre as suas pernas para qualquer um. E eu sou o germe
no xibiu de Dalva. Eu sou a coceira que não para.
(gargalha) Senhora dos Restos, um germe no buraco da cidade.
Mas eu sei que ninguém vem aqui para ouvir acusações. Querem
que eu resolva alguma coisa? Vamos! Digam! Dívidas, Vingança,
solidão! O que lhes preocupa tanto, o que não te deixa dormir?

(pausa) Agora, se o assunto é amor, lhes digo: sente com força até
a última gota, que o amor é coisa que passa. E destrói o pouco de
estrutura que esse mundo lhe dá. Te enlouquece ou te empobre-
ce. Eu fiquei pobre. Nos restos, perdi o amor próprio, conheci o
crime. Abandonei Menininho ao próprio destino. E mesmo que
ele não saia da minha memória, eu sei que Menininho não existe.
Não existe mais. Graças a mim. Maldita seja a minha mãe que
me dizia que os homens não prestavam. Maldita seja a Regina
Duarte que me dizia que eles prestavam. Maldita seja eu que
amei um homem de olhos fechados. Mas era preciso, era pre-
ciso quebrar a cara, romper com a minha mãe, ter Menininho
e abandoná-lo. Tudo era preciso. Porque hoje, em meio a toda
a pobreza, em meio a toda imundície, eu reino. No silêncio da
noite, quando a cidade dorme e os carros cessam, quando os ban-
didos se cansam, só a Senhora dos Restos percebe. Só a Senhora
dos Restos vê. A cidade que pela manhã se acotovela, à noite
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dorme e processa as suas doenças e só a Senhora dos Restos tem
a insônia dos justos.

É por isso que todos vocês vem aqui. Todos os criminosos, os


que não conseguem, os que mentem, os que se aproveitam, os
que tem a alma dilacerada, os que tem medo. Todos vem aqui.
Todos vem aqui. E eu não temo. Eu não recuso. Não tenho nojo,
não desvio o olhar. Eu não evito encostar a minha mão. Eu não
ignoro a limpeza de todos vocês. Mas por mais limpos, por mais
saudáveis, eu os recuso. Eu não os aceito. Da Senhora dos Restos
não terão o conforto. E nem precisam. Para isso existem os sofás,
as almofadas, as canções de ninar, os lanches das empregadas.
Para isso existem as empregadas. E eu sei como elas são tratadas.
Eu já fui uma delas: pegava três ônibus para ir às 5 da matina
e mais três ônibus para voltar às 10 da noite. E ainda aturar as
reclamações da madame “o peixe não está assado”, “ os tomates
que você comprou não estão frescos” “Esse chão não está lim-
po”. O conforto de servi-los não encontrão nesta velha. Eu sou
o bicho que vai entrar no seu sapato e vai acabar puxando a sua
gravata até a asfixia. Eu vou roer os dedos do teu pé, para que
você lembre que pequenas partes são importantes. Vou enfiar o
dedo no teu olho, quem sabe assim você não enxergue. Eu sou a
tua maldição. Fechem o portão, ninguém sai. Parem de gritar que
há civilização. Agora vocês vão me ouvir. Não queria ouvir essa
velha, agora ouçam o que eu tenho a dizer. Não há conforto nesse
lugar. Não há conforto na cidade, nem nas ruas. E eu gosto é dos
que vivem no desconforto. E são esses a quem eu clamo: Venham
até mim ! (se põe a rodar, erguendo as saias com os bastões) Venham até
mim todos os que tem fome. Venham até mim, os necessitados
Venham até mim com a boca, com os dentes, com mordidas de
arrancar a pele. Eu lhes ofereço o sumo para que permaneçam
vivos. Venham até mim! Venham até mim! Venham até mim.
Pois, A Senhora dos Restos está viva. (gritando) Está viva! Eu sou o
bicho que Manuel Bandeira viu no meio do lixo.

(Remexendo no lixo) Eu vasculho, cato, cavo dentre os restos algo


que me sirva. Vocês dispensam muito. O mercado dispensa mui- 115
to. Achei! Achei! Achei, Menininho! Achei. Um saco. Um peque-
no saco com dicuri. Quando era moça, sentia um prazer danado
em quebrar os adicuris. Adicuri é gostoso, parece coco e os me-
lhores são molhadinhos. Um “pedoio”, um “pedoio”, preciso de
um “pedoio”. (acha uma pedra e começa a quebrar os adicuris)

As minhas lembranças são como fotografias amareladas dos anos


60. São esquisitas, alegres e me dão saudade. Outro dia, eu vi a
minha mãe. Está velha, mas lúcida como eu. Descia do barco e
colocou em cima de mim dois grandes olhos imensos de culpa.
Não falou nada. Desde que sai da casa dela naquela noite ela
não falou nada. As pessoas guardam muitas amarguras em seus
silêncios. As pessoas tentam esquecer essas amarguras com terços
e orações. Os imensos olhos de culpa da minha mãe me escavam
e durante umas horas eu esqueço que reino, e lembro de tudo. O
soco do meu pai, o grito dela, o sangue brotando da minha boca,
se misturando ao cuspe. A única palavra que ouvi: RUA! A rua
que não saiu mais de mim. A Rua para onde fui e não voltei mais.
Rua – atalho sem volta, caminho sem retorno, constante apren-
dizado. A testa no paralelepípedo. A calçada como colchão. E o
Menininho nas minhas entranhas. Roendo as minhas tripas, au-
mentando a minha fome. E ele foi crescendo sem nem ao menos
entender que dentro de mim não havia espaço. E eu não sabia o
que fazer. Quando Menininho veio ao mundo, eu senti vergonha.
Tive Menininho como quem defeca, e tive que eliminar os res-
tos do parto com detergente. Me trouxeram Menininho enrolado
num pano de prato. E ele tremia e eu não entendia como alguém
podia tremer tanto nessa cidade que queima qualquer coisa, que
queima qualquer um. Andei pelas ruas com aquele menino nos
braços. Eu era uma menina e segurava Menininho com meus
braços finos e ele não parava de chorar. Ele não parava de tremer.
E eu não sei o que aconteceu, eu tentava proteger aquela criatura
pequena e minhas mãos se comprimiram em seu pescoço. E eu
apertei cada vez mais. Os ecos do choro de Menininho torturan-
do minha cabeça. E eu apertei até o som de seus gritos pararem.
E Menininho se tornou um corpo mole. E eu andei com esse cor-
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po durante três dias, antes de abandoná-lo ao rio. Eu entreguei
Menininho ao rio. Dei Meninho, eu o abandonei.

(grita) Ai! Dor condenada. Alguém me arranque a perna direita,


por favor. Ai! Dor condenada. A minha perna direita está pe-
dindo para ser arrancada. Alguém me arranque a perna direita!
Arrasta essa velha para o hospital e lhe arranca a perna direita
com machadadas. Menininho morreu e a culpa não é minha.
Menininho morreu e a culpa não é minha. Mesmo que Deus em
sua magnânima sabedoria me acuse, mesmo que no céu vejam a
mancha no pescoço de Menininho. Eu não tenho culpa. A culpa
é da fome, do desamparo, da falta de estudos dos meus pais, da
covardia dos homens que comem menininhas. A culpa é de quem
administra essa engrenagem e decide que a mulher tem que ter
o seu filho haja o que houver. Mesmo que o menino desça a ras-
gando. Mesmo que ela nada possa oferecer. Quem criaria Meni-
ninho por mim? Os abrigos, uma outra família? Não há diferença
entre não dar a chance de uma mãe cuidar de seu próprio filho
e a Morte. Dar seu filho também é um aborto. O problema é
que a cidade não entende. Ela vigia, pune, persegue. A cidade
amordaça. A cidade, a grande vilã. Linda como uma atriz da te-
levisão que interpreta a mulher enciumada. A cidade se disfarça
para não demonstrar suas mazelas. E os tolos não enxergam, ou
fingem não enxergar a miséria que ela produz. Os tolos fingem
não ver a miséria. Os tolos fingem não ver a Senhora dos Restos.
E passam por aqui, em seus carros com os vidros fechados, des-
pejando fumaça. E cospem no chão da gente.

Maior ofensa é cuspir onde alguém dorme. Ou mijar. E toda a


cidade mija no chão da minha casa. Todos, felizes, vez ou outra
param por aqui e fazem o que querem. E ainda gritam que a ci-
dade é pública, que o meu chão é de todo mundo. Filhos de uma
égua desgraçados. Nem um chão para despejar o corpo cansado
de uma velha me é de direito? Eu exijo que respeitem ao menos
o meu chão. Que se comportem como porcos em outros lugares,
não aqui. Não em mim. Parem de mijar na cara dessa velha. De
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cuspir na minha cabeça. Deixe as moedas ou parta em paz. Partam
em paz. Não saem, querem ouvir até o fim. Querem esmiuçar a
miséria dessa velha até a última gota. Saber como ela chegou nesse
ponto e ficou. Os homens não prestam, posso assim resumir. Ai, se
eu soubesse desde o começo. Se eu soubesse desde o começo talvez
não estivesse aqui. Mas era preciso. Era preciso acreditar que ele
era a solução, que ele ia me tirar da proteção da minha mãe, da
tirania do meu pai. Eu queria ter direito a qualquer escolha. E eu
tive. Ele foi bom, bom apesar de tudo. Ele foi bom, embora todos
os homens não prestem. Ele foi um engano bom. (pausa)

Ele usava sandálias de couro, e eu sempre achei corajoso homem


que usa sandálias de couro em terra que as botas imperam. E ti-
nha a mania, a mania bonita de tocar uma viola, cantando em se-
guida. Ele cantava de olhos fechados e onde houvesse pelos, eles
se eriçavam em minha pele. A sua loucura de perdido me tornou
essa velha perdida que sou hoje. Os homens não prestam. Em
sua beleza, desde o começo, eu sabia, que ele não prestava. Mas
ele cantava as belezas que antes a cidade tinha. E falava dos meus
olhos como a porta do paraíso. Foi fácil gostar dele, foi simples.
E mesmo que eu soubesse que ninguém o aceitaria, que ele era
muito para o pouco que somos, eu o amei. Como menina gostei
dele e esperei que o amor crescesse dentro de mim como erva
daninha. Mesmo sabendo que não daríamos certo, nunca. Eu
sou agressão física e ele era pura pressão psicológica. Eu espanco,
soco, tiro sangue. Ele em seu silêncio, tortura. A dor que provoco
logo passa, a dele permanece para sempre. Eu sou a dor que ele
provoca. Porque ele é só conquista. Chega manso, e parte apres-
sado. E quando parte, parte o coração da gente. Planta no ventre
Menininho e nos deixa na miséria, à espera. Foi o que ele fez, é
o que os homens fazem. Eu era jovem, tola e deixei que assim
acontecesse. Logo em seguida veio o soco do meu pai, o sangue
se misturando a saliva. Eu saí com a roupa do corpo, fazia sol,
não tinha para onde ir. A palavra RUA girando na minha cabeça.
Entrei numa padaria, tomei um café com leite e um pão com
manteiga. Foi a última coisa que comprei com o meu dinheiro.
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Eu sei que eu poderia ter encontrado outro caminho. Mas a rua
me acolheu, a rua me trouxe os restos desse mercado que me
alimenta. Aprendi a ser essa mulher que tudo sabe, aqui. En-
frentando os medos, a violência, a doença. Sendo o alvo. A gente
aprende muito sendo o alvo das outras pessoas. A gente apren-
de a se defender. (puxa os bastões) Com a direita - dos desacatos,
dos xingamentos, dos assaltos. Com a esquerda - dos bêbados,
dos colegas, dos homens de poder. A Senhora dos Restos é uma
perdida. Mas conheci muitos outros Menininhos que nasceram
e não foram sufocados pelas mães. Muitos Menininhos que nas-
ceram na noite desabitada dessa cidade. Muitas mulheres sendo
rasgadas pela fome dos bebês-meninos. Moleques que cresceram
pedindo, ou tomando. Ninguém intercedeu por eles. Nem a igre-
ja, nem o Estado, nem vocês. A educação não é para eles. A saú-
de não é para eles. O Comércio não é para eles. A Arte não se
faz para eles. Há outro tipo de mundo para os miseráveis. Com
outra lei, outra fé. Nas ruas, respeito é deixar o outro quieto, não
invadir a sua pobreza. Deixar em sua lucidez. Roubar, matar,
ferir não é crime, é sobrevivência. Porque pior nos fazem, pior é
viver por aqui, assim. Aqui não existe loucura, felicidade, busca.
Aqui não existe idade, nem amor. Aqui é terra para plantar de-
samor, meu irmão. Aqui, a defesa é o que interessa. Quando se
é jovem, se tem medo. Mas aos poucos se descobre a defesa. Isso
é a fome. Então, não se pode reclamar da mordida no braço do
menino que te assalta. O pedaço de pele que ele te arrancou foi
a única coisa que ele pôs na garganta, pode crer. O nosso bando
está formado. Com fome, encoleirados, rangendo os dentes. Até
quando seremos controlados? Até quando suportaremos? (pausa)

Uma menina de seis anos deitou ao meu lado uma noite dessas.
Acordei com ela cheirando o meu sovaco. Ela não se importou
com o cheiro. Também fedia. E tinha a cara coberta de catarro
seco. Quando acordou, olhou para mim e disse. “Eu sei como
arranjar comida”. Se enfiou com o velho da padaria e voltou com
dois pães e um pedaço de salame, quinze minutos depois. Come-
mos em silêncio. Isso não me assusta. Um menino de dez anos
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noite passada deitou ao meu lado. Estava agarrado num frasco de
cola. E mordia o meu seio. Insistentemente mordia o meu seio es-
querdo. O menino com seus dentes furou minha blusa, dilacerou
o meu peito. Isso não me assusta. Uma mulher outro dia deitou
ao meu lado. Tinha caroços no corpo inteiro e gemia. Seus gemi-
dos zuniam no meu ouvido. Os caroços roçavam no meu corpo
inteiro. Pareciam coçar. Isso não me assusta. Um homem outra
noite, deitou ao meu lado. Sangrava nas duas pernas. Tinha uma
mão decepada, com a outra me procurava. Eu deixei que ele
me tocasse com a única mão. Ele me fez sangrar no meu espaço
fundo. Isso não me assusta. Todos vocês conhecem essas histórias
e outras ainda piores. Isso me assusta. (pausa)

Se eu tivesse voz, eu cantaria. Durante o dia faria versos felizes.


Durante o dia eu sou muito feliz. Há o sol batendo no rio, há
pessoas apressadas. A noite, a consciência me doi. A noite, todo
o meu corpo reclama. Corpo-mercado implora que eu o repre-
sente. Foi este mercado que roubou minha juventude. Em sua
reforma, este mercado me tornou feia e gasta. Suja. Em sua re-
forma eu fiquei desfigurada. Dentro de mim guardei a imundície,
a podridão que ele era. Se eu estava sem rumo, que ao menos
o mercado se arrumasse. E ele ainda me dá os seus restos. Ele
ainda permite o respirar no dia seguinte. Ele ainda permite que
a minha palavra viva. A palavra é uma arma. A mais potente
de todas. E a senhora dos restos é uma poeta. Uma punheta!
E eu me visito, me revisito todas as noites. E foi assim que as
pessoas começaram a chegar até a mim. Dizem que sou uma pu-
nheta da oralidade. E pediram para eu colocar minhas palavras
na rua. Idiotas. A senhora dos Restos é a rua. A Rua que girou
na minha cabeça. A rua, descaminho. A rua, casa. A rua, estar
nela. A rua, estado. A rua, constante aprendizado. A rua que me
tornou dona e sábia dessa cidade. Vocês estão chegando agora e
não conhecem essa velha. Não sabem das suas conquistas. Não
conhecem os seus prazeres. Eu queria apenas sentar à mesa com
todos vocês. Numa mão, uma dose de bebida, na outra um pão
jacó mordido. Na boca, as minhas palavras misturadas no farelo.
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Misturadas no afeto. E hei de levantar e dizer: Eu, Senhora dos
Restos, ex-doméstica, nascida em 14 de abril de 1946, filha de
José Joaquim Silva, ex-funcionário do Muro da Leste e de Maria
Pureza Soledade, dona de casa, matei uma criança asfixiada na
manhã de 25 de setembro de 1963 e não pagarei por esse cri-
me. E todos vocês vão aplaudir. De forma ensurdecedora vão
me aplaudir. Pois, não há quem acredite na impunidade dos que
nada tem. Não há quem acredite na nossa lucidez. Estarei louca,
ou drogada, ou velha demais. E terminarei o meu pão jacó sem
que ninguém me importune.

Cegos! Todos cegos. Não querem ver a minha lucidez, assim


como não querem ver a minha pobreza. Para mim apenas os
restos, o que já é muito. Ó Céu, porque não se abre e despeja o
seu famigerado raio. Que ele parta a minha cabeça. Em pedaços.
Para que eu não pense. Para que eu não pense em mais nada
que não seja a paz. A paz que o senhor procura e não acha. A
paz que amortece a todos. A paz que entorpece os loucos-livres,
pseudo-lúcidos. A paz que é droga, tornando os homens uns frou-
xos. Raio parta a minha cabeça para que eu não seja essa velha
encardida, que contamina. Que ninguém mais me procure por
essa paz que eu não quero. Porque enquanto eu continuar viva,
eu incomodarei, eu entrarei nem que seja pelo seu sapato. Eu
gritarei aos quatro cantos que a vida não é bela. Que os homens
não prestam e que Deus escapole. Eu prevenirei a todos que o
mundo é cruel, moço. Muito cruel.

Eu, Senhora dos Restos, a boca maldita. Eu, Senhora dos Restos
a voz que a cidade silencia. Mulher, velha, pobre. O Estado tem
dívidas para comigo. A sociedade há de me pagar. Em cada gota
de suor, em cada saliva que me falta, em cada noite que eu não
dormi. A cidade há de me pagar. A cidade há de me pagar. Eu,
senhora dos Restos, porta-voz dessa cidade. Eu, Senhora dos Res-
tos, vendo tudo. Eu, senhora dos Restos, ponto final.

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