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O velho Ramis, no fundo, esperava por esse dia.

Tinha visto aos poucos a derrocada da magia desse espaço. Primeiro foram os animais que, por
exigirem cuidados especiais e caros, foram rareando dia a dia. Há tempos não se viam os
cavalos. Que ironia! Logo eles e seus picadores responsáveis pelo batismo dessa velha redoma.
Logo eles que são a causa da serragem e desse cheiro que me entope há anos as narinas, que
entupiu meu brônquios e causa essa tosse insuportável!

Mas o velho Ramis tem resistido a tudo. Resiste inclusive a esse dia.

Engraçado ver o que deixaram para trás: eu, as velhas lâmpadas, o piano, a serragem (essa
podiam ter levado consigo), algumas carroças, malas velhas, alguns truques. Tudo que lhes
pareceu sem vida.

Não devia ter me surpreendido quando encontrei Clovis rodando atrás de comida, como um
rato faminto. Ele que não tem um cérebro brilhante, nem é dotado da astúcia que fez com que
Ramis sobrevivesse todos esses anos aspirando a serragem. Ele que é um pobre coitado sem
pai nem mãe e que encontrou debaixo dessa velha lona seu único refúgio.

Eu assistia de longe como imitava meus números. Clóvis tentava refazê-los com uma
performance digna de pena.

Pobre diabo!

Mas era o único presente naquele dia fatídico!

O grande Ramis! O maior gracioso da história do circo foi salvo por um órfão retardado. A
única pessoa que devia ter alguma consideração pela minha existência. Mas isso não era claro
na hora. Ficou depois, anos depois, quando comecei a ouvir os sussurros de Francesca no
trailer do repugnante Antônio Bleu. Ele nunca percebeu a ausência dos animais do picadeiro e
continuou tratando-nos a todos como tal, com exceção da ração especial.

Veja bem! Eu fui o maior gracioso de todos os tempos! Eu já disse isso? O meu número era o
último da noite, após o passeio dos cavalos, quando eles ainda estavam por aqui. Todos viam
de longe para assistir Ramis, o gracioso. Nunca um palhaço trouxe tanto dinheiro para o circo.

Certamente eu não era um palhaço qualquer, além de ter a precisão indispensável para a
comédia – sabia com exatidão os momentos em que o público riria e nos quais pararia – era
dotado de extraordinária habilidade física.

“Eu era capaz de quedas impensáveis para outros seres humanos! Eu revolucionei a arte da
pancadaria nos picadeiros! Eu entrava depois dos cavalos! Eu era mais importante que os
cavalos!!

Maldita tosse!

E aquela vaca fugiu com o dono do circo! Eu era o dono do circo, ele apenas administrava o
dinheiro… Sempre entregando os meus minguados trocados na frente dos outros, com um
tapinha nos ombros: “Muito bem, Ramis! Seu show estava ótimo! Já pode pensar na inovação!
O público anseia pela novidade…”

A novidade agora é que não há público. Não há nada.

É como diz a canção:


“Eu sou a menor coisa do mundo no meio do nada!”

E o nada está aqui e é todo o meu mundo.

Ramis está sentado em sua velha cadeira, feita com rodas de bicicletas, olhando o picadeiro.
Não sou mais um cavalo branco exuberando em minhas repetidas voltas sob o estalido dos
chicotes do picador.

Aí vem Clóvis! Ele vem regularmente. Parece que o mundo para quando tem que me dar esses
remédios. Um estimulante, um antidepressivo, um me excita e o outro me enoja! Não
precisava de tudo isso quando era um homem inteiro.

Esse maldito despertador!

Porque ele não olha em um relógio de pulso como todo mundo? Tem que colocar esse maldito
despertador! Esse maldito som que me arrebenta os ouvidos.

Eu sobrevivi à gripe espanhola. Levou metade do circo!

Os grandes malabaristas, os trapezistas, os equilibristas. Muitos sucumbiram…

Primeiro a guerra, depois a gripe. Doença maldita. O circo sempre condenado por coisas sem
sentido.

O que ele está olhando naquelas latas? Não há ninguém lá. Ele sabe disse.

Maldito retardado!

Ele quer me enlouquecer!

Vejam só! Quem mais está aqui!… Eu queria estar sozinho. Quantos vermes mais vão sair do
esgoto. Não é possível um homem querer morrer em paz e sozinho nesse mundo!

Clóvis e Pucci, uma dupla realmente fascinante! Se pudesse me levantar dessa cadeira,
certamente mataria os dois com minhas próprias mãos. Quero morrer em paz!

Maldito despertador! Maldita tosse!

Mas agora não é tão mal, é a hora do estimulante! Gosto desse remédio, gosto das ondas que
produz no meu corpo, sinto cócegas, como que a vadia da Francesca me fazia. Por uns minutos
eu acho que sou um homem!

Com a gripe vieram os atores, os pobres é claro. Os que eram destituídos de qualquer talento,
que não tinham espaço nas grandes casas, nos grandes teatros. Pareceu uma ótima ideia todos
se abrigarem debaixo dessa lona. Mas, no fundo, Ramis gostava dos atores. Eles não eram
enjoativos como os trapezistas, sempre a contar as vantagens do trabalho com o perigo ou
qual era o lucro da pipoca. Clóvis anda feito um louco tentando uma forma de estourar o milho
de pipoca. Vai ser divertido vê-lo fazer isso. No fundo ele me faz rir. No fundo eu o tenho como
um filho ou como um bicho de estimação, mas não quero que essa aberração perceba isso.

Essa não!Pucci vai afinar seus instrumentos!

Se eu pudesse, levantaria dessa cadeira e o mataria com minhas próprias mãos!

Mas eu gostava dos atores. Contavam longas histórias e bebiam muito conhaque. As mulheres
também. Todas com belas pernas à mostra.
Pucci se envolveu com uma delas, mas esses atores são mais levianos que a gente de circo.

Sabe-se lá para onde ela foi… Trabalhar como prostituta em algum cabaré, dançando em torno
de canos de ferro para que homens incautos bebam mais rum e sintam-se amados. Pucci caiu
nessa… belas, pernas, rum e amor… Ah! O amor… essas malditas vadias que chupam nossos
paus e extorquem nosso dinheiro.

Eu ouvi ontem à noite quando cochichavam: Francesca e Bleu. Os dois acertavam os últimos
detalhes da partida. Ouvi os planos de todos: o trapezista tinha emprego na cidade como
pintor de paredes; o atirador de facas foi ser garçom em uma churrascaria em Buenos Aires, a
domadora de leões será baby-sitter. Pobres crianças… Eu via muito bem quando ela esfregava
a sua velha boceta nos pintos daqueles animais cansados. E Francesca, minha adorável
equilibrista, abriria um prostíbulo em Amsterdã em sociedade com Bleu. Ele não quis
diversificar muito seus negócios…

Se eu pudesse sair dessa cadeira… e controlar essa tosse…

E o velho Ramis ficou sozinho, debaixo dessa tenda quente e mal-cheirosa, com Clóvis, o
retardado, e com Pucci, o músico corno. Por que ele não tira aquele sorrisinho besta do rosto?
Sua vida é mais miserável que a minha.

Como era mesmo o nome da história? Eles me contavam sempre histórias fascinantes… Um
homem quase cego, vivendo preso a uma cadeira, era cuidado por um jovem, que tencionava
ir embora. Não ia porque não tinha a chave da dispensa… Isso é arrebatador! Divertidíssimo!
Que escreveu é um excelente autor cômico!

Clóvis! Eu não vou te dar a chave da dispensa! Está decidido.

Um homem velho, quase cego, preso a uma cadeira de rodas, cuidado por um retardado que
não o abandona porque não tem a chave da dispensa.

Maldito despertador!

Eu não quero essas pílulas! Fazem com que tudo isso pareça muito real!

Fim de jogo! Era isso mesmo! O nome parece tão adequado.

Será que tinham essas malditas pílulas? Não me lembro…

Meu Deus! Esse maldito cachorro também está entre os animais esquecidos nesse fim de
mundo!

Por que ele late tanto?

E por que Clóvis sobe naquela escada? Ele acredita realmente que haja alguém que venha nos
ver? Estamos mortos não estamos? Somos o nada no meio de lugar algum. Nada no meio do
mundo.

Pucci não comece a música! Pare! Vamos morrer! Esse é o momento! Vamos aproveitar esse
fantástico momento de morrer! Esse maldito cachorro não para de latir!
E essa maldita tosse que não me abandona!

São criaturas tristes esses dois! Tristes como a vida. Eles realmente acreditam que o show não
pode parar. Aquele ali curando a dor nos cornos deixada por uma atriz de picadeiro que deve
ter fugido com um vendedor de xaropes para a tosse. O outro, um retardado, uma criança que
acredita que um dia será um grande palhaço. Para quê? Para quem? Será que lá fora existe
alguém que queira rir das quedas de um adulto dentro de uma redoma feita para cavalos?

E é essa a única criatura que acredita que eu deva ficar vivo… Tirando ele, ninguém. Nem eu
mesmo.

Eu morri no dia que cai daquela cadeira.

Eu era o maior gracioso do meu tempo!!! Maldita tosse!

Morri quando parei de fazer acrobacias. Morri quando ninguém me viu equilibrando, lá no
alto, com um copo de leite na mão. Bebendo como se nada fora. Morri quando fiquei fora do
picadeiro e nunca mais pisei nele. Ramis, o gracioso morreu, restou esse arremedo. Mário da
Silva Santos Filho, esse homem decadente, que carrega o cadáver dos pais nas costas. Carrega
uma vida que poderia ter sido e que não foi.

Talvez esses dois lunáticos tenham razão! Talvez eu tenha que morrer no picadeiro, fazendo a
minha arte mórbida: um palhaço aleijado em sua velha cadeira.

Prepare o picadeiro, Clóvis! Vamos entrar em cena! Faça a tabuleta: “Hoje, fim de jogo”. O
mais genuíno circo-teatro da terra. Os últimos da terra. Aqueles que poderão dizer que o jogo
realmente acabou.

Acenda as luzes, Clóvis, não existe picadeiro sem que haja as luzes da ribalta!!!!!

As luzes assim e eu me lembro de Francesca na corda bamba, linda, com suas falsas asas
brancas de anjo... Eu via um anjo! Eu via um anjo voando. Aos meus olhos a corda era invisível,
só havia o seu corpinho magro e branco, com os músculos rasgados na carne. Eu a via voar. As
penas desprendiam de suas asas. As crianças corriam a recolher os restos do seu vôo, como se
colhessem bênçãos… ou não achavam nada disso e só eu via que ela era uma vaca.

Francesca se dizia a mulher mais pura do picadeiro. Deitou-se com praticamente todos os
homens do circo, fixos e passantes. Só aquela mulher poderia ser engraçar com um palhaço.

Vejam bem, eu sei, você sabe que o palhaço é a alma do circo. Mais ninguém sabe disso.

Eu criei um número excepcional. Um número que me elevaria completamente da simples


condição de palhaço para de um artista múltiplo.

Eu disse como comecei? Como essa minha febre pelo cheiro da serragem me trouxe até aqui?
Eu não fui criado em algum circo, como você pode estar imaginando. Eu fui um menino quieto
criado na cidade, entre a casa e a Igreja. Menino criado para ser contabilista, assim como o pai
e viciado em ansiolíticos, como a mãe. Esse era o futuro digno para um filho. Esse era o futuro
que meus pais esperavam. O caçula de quatro irmãos. O último, a ovelha negra, aquele que
não deu certo.

Aos vinte e seis anos eu era tudo o que os meus pais não esperavam que fosse.

Meu pai me deu um bilboquê! Eu tomei um gosto tremendo pelo brinquedo. Mas do que o
acertar, havia o risco. Cheguei a perder a unha por causa da batida daquela maldita bola de
madeira.

E como riam! As pessoas me achavam divertidíssimo jogando. Eu fui criando técnicas cada vez
mais sofisticadas para que a bola “quase” batesse no meu dedo. As pessoas gostavam quando
eu parecia um desajeitado, quase retardado. Foi assim que descobri minha veia para a
palhaçada. Eles riam dos meus defeitos. E eu me ria por saber que eram todos forjados… ou
quase todos.

Meu pai não via graça nas minhas peripécias com o bilboquê, dizia que eu o envergonhava,
que eu não conseguia fazer uma única coisa bem feita.

Maldito despertador!

Dê isso de uma vez, Clóvis! Por que aumentar essa tortura.

Essa pílula sempre me dá fome. Ainda bem que tenho restos da comida dos animais. EU tenho.
Clóvis e Pucci que se fodam.

Eu criei números maravilhosos com a minha vocação para o erro calculado.

Até o dia que quis voar.

Construí uma estrutura de 14 metros com uma cadeira na ponta. Eu subia e tomava um copo
de leite. Sempre fingia que ia derramar uma enorme quantidade de leite na plateia.

Eu fui o maior gracioso do meu tempo!

Caí. Eu caí como um tomate podre.

Maldito despertador que insiste em lembrar que eu não passo de um tomate podre!
Caí em cima da maldita bicicleta que, pelo menos, teve a decência de doar as rodas para essa
cadeira… tão elegante… Quanta ironia!

“Eu sou a menor coisa do mundo no meio do nada,

Mas o que é a menor coisa no meio do mundo?

Nada!

Eu sou nada no meio do mundo!”

É o que eu sou.

Eu sou o nada, no meio do nada deixado dentro dessas malas querendo fazer com dois outros
nadas uma encenação. Triste fim. Triste fim de jogo.

Eu fui o maior gracioso do meu tempo. Todas as mulheres dormiram em minha cama. Todas as
mulheres queriam ver como era meu lindo rosto debaixo do enorme nariz vermelho.

Ora, Ramis! Quem você está querendo enganar? Maldita tosse! Será que não posso mais rir?
Será que nem posso rir de mim mesmo?

Clóvis tem vocação para a comédia. É um degredado, excluído… um palhaço, sem dúvida.
Clovis é a escória, aquele que não avisariam se o circo estivesse em chamas. Veja como abre as
malas, como uma criança que nunca teve brinquedos. Ele realmente nunca teve brinquedos.

Foi deixado aqui a sua própria sorte.

Seu pai veio em busca de serviço e acabou deixando o garoto terminando de se criar sozinho.

Não teve brinquedos, nunca ninguém lhe deu carinho ou um elogio ou qualquer coisa que
fosse boa. Ele cresceu quieto porque ninguém o ouviria. Não sei se ele é mudo. Ninguém sabe.
Ninguém nunca se interessou em saber.
Ele entrou aqui e nunca disse nenhuma palavra. Nunca ninguém se interessou em saber qual a
primeira palavra que ele diria. Eu emudeci. Perdi as pernas e a voz… e a integridade. Perdi
completamente o homem que viveu dentro de mim. Percebo-me em diálogos intermináveis
comigo para tentar ressuscitar esse homem.

Eles não sabem, mas “Fim de jogo” é a encenação da minha morte. Pucci, toque uma canção
fúnebre: precisamos de música para esse momento. Talvez eu mate você também, pobre
diabo. Não precisa me agradecer.

“Clóvis”, porque você não me mata e abandona esse lixo? “Porque eu não tenho a chave da
dispensa, ele diria”.

Uma vez tentei fazer um número como ventríloquo. Música, Pucci!

Ele sentava no meu colo e cantava:

“Eu sou menor criatura do mundo no meio de lugar algum!

Mas o que é uma pequena criatura no mundo?

Não é nada.

Então eu sou um nada no meio do mundo!”

E todos riam regozijantes! Porque eu cantava em francês e ninguém entendia porra nenhuma.
Exceto uma professora de francês, com uns peitos enormes que veio me ver depois do show.
“Sua canção é muito triste”, ela disse, “você é um palhaço e deveria cantar coisas alegres,
coisas para as pessoas ficarem felizes”.

Eu queria ter colocado aquela senhora de joelho e posta a sua linda boca francesa no meu pau.
Mas eu só dei de ombros: “sou um nada no meio do mundo.”

Eu, Clóvis e Pucci. Nada no mundo.

Certa vez usei um paletó com um girassol enorme na lapela. Antes de começar o show, o
girassol se soltou, acredito que por causa do peso e o segurei na mão. Eu deitei no picadeiro e
uma criança gritou: “Olha, mamãe, o palhaço está morto!” As crianças são espertas.

Eu queria ser enterrado embaixo de uma plantação de girassóis. Também tenho minhas
fantasias.

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