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Bricolagem, a partir do texto “O último Godot”, de Matéi Visniec, traduzido por Roberto Mallet.
Com excertos de Samuel Beckett, James Joyce, Guillermo Calderón, Franz Kafka, Albert
Camus, Parmênides, Pirandello, Karl Valentim, Jean Barrault, Theodor Seuss Geisel e Joseph
Campbell.
(Ambiente desértico, vazio. Uma lata de lixo ao fundo, à esquerda. Outra lata de lixo, à frente, à
direita. Ao fundo, à esquerda, a silhueta de uma figura andrógina, que fuma. Fumaça. Névoa.
Tudo remete a um beco, escuro, sem saída. À esquerda, ao fundo, ao alto, um neon verde,
escrito “saída”. De algum lugar, invisível para a plateia, vem o som de uma porta se abrindo,
ouve-se uma balbúrdia surda e um segundo homem, decentemente vestido, é jogado ao chão.
Como veremos adiante, este segundo homem é Samuel Beckett em pessoa. O personagem
quase despenca sobre Godot.)
BECKETT: Desculpe.
GODOT: É a regra, meu caro. (olhando-o com mais atenção) Ei, olha aí, a manga descosturou!
BECKETT: Não. Na verdade eles me sujaram. E rasgaram meu paletó. Até que foi pouco.
Nesses tempos sombrios sujam-me todos os dias. A gente vai se acostumando. O meu ofício
tem sido arremessado à lama e colocado em desonra, dia após dia.
GODOT: (oferecendo-lhe uma bituca) É demais para um homem só. Quer uma tragada?
BECKETT: Obrigado.
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GODOT: Sente-se. Por que não se senta? (Beckett senta-se na lata de lixo, os pés na sarjeta) É
só impressão minha ou eles jogaram você pra fora? Hein, não jogaram você pra fora? E eles
não bateram em você?
BECKETT: Bateram, mas não demais.
GODOT: Os mesmos de sempre?
BECKETT: Os de sempre? Não sei.
GODOT: Não sabe se te bateram ou se te jogaram?
BECKETT: (ligeiramente irritado) E você por acaso viu eles me jogando pra fora?
BECKETT: De onde?
GODOT: Do teatro.
BECKETT: Quando?
GODOT: Há pouco.
GODOT: Tinha.
BECKETT: Devia ter insistido. Se você tinha um ingresso, devia ter brigado. Eles não tinham o
direito de não representar! Se a gente não insistir para que eles atuem, estarão fadados ao fim.
Parece que está ficando normal essa situação. Os belos cartazes já ficaram sujos e ilegíveis,
foram arrancados, não ocorreu a ninguém substituí-los; a tabela com o número dos dias de
jejum e quarentena, que nos primeiros tempos era cuidadosamente renovada, agora continua a
mesma há muito tempo. Essa não é a arte do jejum. É o que eu penso: tinham que representar.
Mesmo que só pra você. Devia ter brigado.
BECKETT: Você não devia ter permitido. Eles são obrigados a representar. Mesmo se houver
só cinco pessoas na plateia. Não interessa. São atores. É o ofício deles.
GODOT: Talvez eles também estejam de saco cheio. Anteontem tinha exatamente cinco
pessoas, como você disse. E eles representaram. Percebe? Talvez eles também estejam
cansados...
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GODOT: E se tiver?
BECKETT: Estará salvo.
GODOT: Todo mundo está cansado. (pausa – retoma a bituca e puxa uma baforada) Ontem
tinha só dois. Olha a regra aí!
BECKETT: Como sabe que tinha só dois?
GODOT: Era eu um dos dois. (puxa uma baforada) Sempre estou por aqui, quer dizer... tento
estar. (pausa longa) Vou mostrar uma coisa... Sabe atirar a bituca com dois dedos? Veja...
Pegue assim... Com esse dedo aqui... Dá-lhe um impulso, e então ela sai voando... (joga a
bituca na outra calçada) Viu? Consegue fazer isso?
GODOT: Eu também já tinha visto a sua. Não era você o sujeito no fundo da plateia? Quer dizer,
ontem à noite, era você o segundo?
GODOT: Eu tinha sacado que era você. Quando vi você, saquei na hora. E você fazia o que ali?
GODOT: O quê?
GODOT: O quê?
BECKETT: Eu.
GODOT: Estupendo! Estou diante do autor! Daquele que tem a linha da vida nas mãos. A vida é
um brinquedo – para vocês, escritores. Nascem melancólicos e ainda não são capazes de levar
nada a sério, nem mesmo os sofrimentos das personagens. Há momentos em que até duvido de
que a vida é mais real do que as coisas que escrevem. Então você existe.
BECKETT: É claro que eu existo. Quem lhe botou na cabeça que eu não existia?
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GODOT: Na verdade, eu já tinha entendido há muito tempo que você existia.Há poucos anos
que me perguntei se você existia mesmo. Dizia pra mim mesmo: ele existe ou não existe? Em
alguns dias eu achava que você não poderia existir. Está entendendo? Há dias assim. Há dias e
dias, percebe? Todo tipo de dias.Me bate todos os dias e agora se porta como um dissimulado...
GODOT: Se você quer saber, já me bateu demais! Tem é que parar de me bater. Já me bateu
demais até aqui.
BECKETT: Eu nunca te vi. Se te machuquei quando caí, há pouco, foi porque eles me
empurraram.
GODOT: Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés! Não saca coisa alguma. (fixando-
o) Não estou falando de hoje. Falo em geral. Há anos você me ignora.
GODOT: É, você! Todos os dias, cada segundo, há anos. Você me esfolou vivo, me esmagou,
me destruiu. Fez de mim um fantasma, um fantoche; humilhou-me. Imagine, para uma
personagem, a desgraça que lhe contei, de ter nascido viva na fantasia de um autor que depois
quis negar-lhe a vida, e diga-me se essa personagem, abandonada assim, viva e sem vida...Isso
então é uma personagem? (põe-se de pé, ameaçador) Que encontro!
(acachapante)
Eu sou Godot!
GODOT: Je suis Godot!, Oui! Oui! Pra ser mais globalizado, (pensa) peraí: ! am Godot! Yes, my
creator! Pero que si, pero que no, Yo soy Godot! Na lata: Eu sou Godot! Isso lhe diz alguma
coisa? Está entendendo bem? Chegou sua hora. Pelo menos tem de entender, sentir que
chegou sua hora!
BECKETT: Está louco. Não foi à toa que jogaram você pra fora.
GODOT: Eu, louco? Eu? Não me chame de louco. Não sou louco. Adoraria ser. Ser um
autêntico louco. Um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de
trair uma determinada ideia superior de honra humana. Pois o autêntico louco é o homem que a
sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. Quem
escreve pensando que ser louco é algo que se possa resumir em uma sinopse, esse que é o
louco. Isso lá é jeito de escrever? Por que não olha um pouco em volta da vida, pra ver como se
escreve? Onde é que já se viu uma personagem que não aparece? Onde? Quem você pensa
que é?
GODOT: Eu sei quem é você! Quero saber quem você pensa que é!!!
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GODOT: Uma personagem, senhor Beckett, pode sempre perguntar a um homem quem ele é.
Porque uma personagem tem, verdadeiramente, uma vida sua, assinalada por caracteres
próprios, em virtude dos quais é sempre “alguém”. Enquanto que um homem – não me refiro ao
senhor agora – um homem, genericamente, pode não ser ninguém.
GODOT: Apenas para saber se, realmente, tal como é agora, o senhor se vê? Por exemplo: na
distância do tempo, o que o senhor era em outra época, com todas aquelas ilusões, com todas
as coisas aí dentro e também aquelas em redor de si. Como elas lhe pareciam – e eram,
realmente! Pois bem! Pensando novamente naquelas ilusões, que agora o senhor não mais as
inventa… Pensando em todas aquelas coisas que agora mostram-se reais, desse tempo do
agora, não sente o chão lhe faltar? Não digo estas sagradas tábuas do palco, mas a própria
terra, debaixo dos seus pés! Pois se considerarmos esta sua presença, aqui e agora, como uma
realidade do hoje, podemos pensar que essa presença será ilusão, amanhã?
GODOT: Oh! Nada, senhor. Fazê-lo ver que, se eu, a não ser a ilusão, não tenho outra
realidade, é conveniente que o senhor também desconfie da sua realidade, desta que o senhor
hoje respira e toca, porque – com a realidade de ontem – está destinado a que amanhã
descubra que não passa de ilusão!...
BECKETT: Ah, muito bem! E diga então: o senhor é mais real e verdadeiro do que eu?
BECKETT: Ah, é?
BECKETT: Mas sabemos que pode mudar, é claro. Muda continuamente, como a de todos!...
GODOT: Mas a minha, não! Está vendo? A diferença é esta! Não muda, não pode mudar, nem
ser outra, jamais, porque já está fixada – assim – “esta” – para sempre. Aahhh, é terrível, senhor
Beckett. Realidade imutável, que devia te dar um arrepio ao se aproximar de mim.
Eternamente em uma coxia!!!
(pausa. Ele espera uma resposta)
Quem você acha que é? Veja só Shakespeare! Todas as personagens aparecem! Cada uma
delas, individualmente, daria outra peça. Até o fantasma! Tudo o que está escrito no papel entra
em cena. E você? Pensa que foi fácil todo esse tempo pra mim? (pausa longa) No fundo quem
sou eu? Como é possível que brinque assim comigo?
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(pouco a pouco começa a choramingar)
Um minuto só me bastaria...Até um segundo... Eu também poderia dizer uma fala... Não importa
a fala... Por exemplo, eu poderia dizer NÃO... Eu poderia aparecer bem no final, ir até a boca de
cena e dizer NÃO... O que poderia acontecer se eu dissesse NÃO? Digo que não aconteceria
nada... Não é que não aconteceria nada?
BECKETT: Não.
GODOT: Já confessei em silêncio eterno o que me apavora: o não existir.. Mas vou te dizer
também o que não me apavora. Não tenho medo de estar sozinho, de ser desdenhado por quem
quer que seja, nem de deixar seja lá o que for que eu tenha que deixar. E não tenho medo,
tampouco, de cometer um erro, um erro que dure toda a vida e talvez tanto quanto a própria
eternidade mesma. (pausa) Como é possível vagar assim infinitamente? Ser e não ser, ao
mesmo tempo? É isso o que quero perguntar a você, entende? Como é possível ser e não ser?
Apenas o ser pode ser pensado, já que o não-ser não é. Se eu não consigo ter uma ideia do que
a coisa é, não posso pensá-la - e o que não pode ser pensado não é. Só o ser é - e que o não-
ser, não é. Então me esclareça, Mr. Beckett: Como é possível ser e não ser?
GODOT: Mas tem que saber. Como pode não saber? Alguém tem que saber. Quem pode saber,
se você não sabe?
GODOT: Talvez tenha sido um momento de destempero. Um mau dia. Pode acontecer com todo
mundo, né? Uma fatalidade... Mas as coisas podem se arranjar... Pode ser feito alguma coisa.
Como eu já disse, não preciso mais do que um minuto, mais do que uma única palavra pra
existir, pra ser eu mesmo.
Olha... Aqui... Não tenho absolutamente nenhuma pretensão... Você escreve o que julgar
coerente com a expectativa que foi criada sobre a minha entrada, e eu faço! Podemos até
ensaiar! Isso! Ensaiaremos! Claro, temos que testar a cena! Você escreve e então olha a minha
performance, assim… sem compromisso!
Escreve, vai! Me coloca em algum lugar... Não importa onde... Um parêntese... Alguma coisa...
(Beckett mantém-se em silêncio, sem saber o que dizer. Faz menção em pegar as folhas das
mãos de Godot, mas este as recolhe, absorto em seu raciocínio, e continua.)
GODOT: Eu sei! Eu sei! Pode ser que você não tenha confiança se eu teria algo a dizer! Mas
posso garantir que sei falar bem! Muito bem, aliás! Foram muitos, mas muitos anos nas coxias!
Tirei de ouvido muitos, mas muitos trechos da peça, mesmo da coxia! Tem um em especial, que,
particularmente, gosto muito e acho que seria bastante propício passar essa fala pra mim, é.....
Melhor não! Você pode escrever uma única fala pra mim. Eu ensaio. Te mostro e você avalia,
sem compromisso!
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BECKETT: (folheia as páginas, entediado, depois as lança fora) Inútil. O teatro está fechado.
GODOT: My God, que tristeza! Se conseguirmos uma plateia grande, talvez, eles reabram!
BECKETT: É… talvez!
(Godot se anima)
Ainda existem plateias repletas de gente entusiasmada, atenta e sedenta por jogo!
BECKETT: Veja o futebol! Entram aos milhares, se apertam, se esfregam! Faltam lugares, às
vezes! E são organizados. Tem até uniforme!!! São fanáticos por jogo!
GODOT: (recolhe as folhas no chão) Não é possível, não é possível... Não pode acabar assim...
BECKETT: Já está quase no fim. (pausa) Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios
olhos? (pausa) Nada a fazer. (pausa) Enquanto esperamos o fim, será que dormimos? Amanhã,
quando pensar que estou acordando, o que direi desta espera? Que esperei aqui, o teatro abrir,
até o amanhecer? Mas quanta verdade haverá nisso tudo? Do útero para o túmulo é uma
jornada difícil. Dá o tempo justo de envelhecer. O ar fica repleto dos nossos gritos. As portas
trancadas. As luzes, todas apagadas. O projeto de fim, galopa com medalhas de mérito
alfinetadas ao peito. Não posso continuar. (pausa) A peça não vai mais ser encenada.
GODOT: (interrompendo o gesto no ar) Como assim não vai mais ser encenada?
BECKETT: Não viu como eles me jogaram para fora? Não vai mais ser encenada. Nada mais
vai ser encenado, em lugar nenhum. Nada.
BECKETT: Não há mais como, você mesmo disse, estão todos muito cansados!
GODOT: Mas ficar somente esperando, esperando algo acontecer, sem fazer nada, será
horrível! Um dia você dirá “estou cansado, vou me sentar” e sentará. Então dirá “tenho fome,
vou levantar e conseguir o que comer”. Mas você não levantará. E você dirá “fiz mal em me
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sentar, mas já que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois levanto e busco o que
comer”. Mas você não levantará e nem conseguirá o que comer (Pausa) Ficará um tempo
olhando a parede, então você dirá “vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me
sentir melhor”, e você os fechará. E quando abrir os olhos não haverá mais parede (Pausa)
estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todas as almas, de todos os tempos, ainda que
ressuscitassem o preencheriam, e então você será como um grão de areia perdido no deserto.
(Pausa) Sim, um dia você saberá como é, será como eu.
(longo silêncio)
GODOT: Por quê? É a lixeira do teatro... (levanta e desvira a lata de lixo) Aí está. Pode escolher.
GODOT: Nojo? Do lixo do teatro? Do que podemos ter nojo no lixo de um teatro?(remexendo
com o pé por entre os objetos espalhados) Um lenço de papel com resto de maquiagem de um
Hamlet vivido e abandonado depois do aplauso final? Hum? Chicletes mascados, já sem sabor e
manipulado entre os dentes vorazes da prima dona de seios fartos e voz rouca? O que você
acha que encontraria aí? Pode ser que encontre um pedaço de um bilhete comprometedor que
arruinaria qualquer companhia. Tem coisas fora do lixo que dão mais nojo. Mas, no fundo, talvez
você tenha razão...
(preocupado com os restos do teatro)
A lona já não se aguenta em pé... Não é mais como era... Basta olhar para esta lixeira pra ver
que o teatro está fodido...
BECKETT: Nem as que são obrigatórias. Usam no queixo! (pausa) O teatro precisa de cavalos
limpos para suportar vida à máscara. O ator que não oferece o próprio corpo como cavalo, pra
receber a entidade da máscara, não passa de uma caricatura. Quem ousaria vestir a máscara
de Dionísio por cima de tantas outras , carnavalescas, alegóricas, hipócritas, de papel marchê
ou atadura de gaze? A máscara perdeu seu sentido trágico. Enfileira-se em gavetas, adereço de
roupa, esperando ser escolhida para desfilar em passarela social na esperança de uma selfie
compartilhada e presenteada com mil likes.
GODOT: (puxa uma baforada – senta-se ao lado de Samuel Beckett e estende a ele a bituca –
cochichando)
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GODOT: (cochichando) Atrás de nós. Um sujeito. Parou ali faz uns cinco minutos e está no
escutando.
BECKETT: Fica tranquilo. Questões que se resolvem com violência nunca ficam resolvidas.
Vamos apostar naquilo que sabemos fazer melhor: falar! Além do mais não somos fluentes em
violência!
BECKETT: Por que será que hoje em dia a violência tem tanta mídia? Tanto ibope. Talvez seja
por falta de investimento no pensamento, os homens estão se entretendo com o que
conseguem! Mas passei tanto tempo lidando com a vida e os conflitos através da escrita, que
me recuso a iniciar uma carreira nova no tapa!
GODOT: Quero fazer alguma coisa por você. Não posso vê-lo assim... acabado. Quero fazer
alguma coisa por você. Dou então só um safanão nele, pra aliviar a tensão.
BECKETT: Por que bater nele? É um homem. Claro que estes que estão por aí, hoje em dia, se
comportam mais como animais! Mas talvez, o tratar como um homem que acreditamos que ele
seja – ou possa ser – o atinja mais! O atinja dentro da cabeça e não somente sobre ela! Não
quero criar mais vazios!! Não vê como as ruas estão desertas? Até me espanto em ver alguém
andando por aí.
BECKETT: Quando vinha pra cá atravessei um parque. Quantas pessoas você acha que
passeavam nele?
GODOT: Quantas?
BECKETT: Três.
BECKETT: Há duas horas fui beber uma cerveja na calçada. Quantas pessoas você acham que
estavam lá?
GODOT: Quantas??
BECKETT: Três.
GODOT: Bosta! Eu ia dizer três e não sei por que não disse.
BECKETT: Tente entrar num ônibus. Você vira louco varrido. Vim pra cá de ônibus. Quantas
pessoas você acha que estavam no ônibus?
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GODOT: (triunfante) Três!
BECKETT: Só eu e o motorista!
BECKETT: O motorista era meio surdo. Quando perguntei a ele onde deveria descer, ele
encolheu os ombros.
GODOT: Animais. Não é mais um mundo em que se possa sair de casa. A melhor coisa é ficar
trancado e pensar.
BECKETT: É triste, é só olhar o outro lado da rua. Todas as janelas estão trancadas, todas as
cortinas fechadas. Através da fresta da única janela entreaberta o amanhecer não espalha mais
nenhuma luz. Da rua nenhum som de despertar. Estão enterrados sabe-se lá em que
pensamentos. Insensíveis à luz do dia, ao som do despertar. Que pensamentos? Quem sabe?
Pensamentos, não. Não pensamentos. Abismos de consciência. Enterrados sabe-se lá em que
abismos de consciência. De inconsciência. Lá onde nenhuma luz pode chegar. Nenhum som.
Então, continuam sentados, como se fossem de pedra.
BECKETT: Claro! Existem outros lugares. Outros compartimentos. Vazio é que não falta!
BECKETT: Quem?
BECKETT: Foda-se!
BECKETT: : Quanto a isso não há dúvidas! Muitos já foram fechados! Companhias inteiras nas
ruas! Uma tragédia!
GODOT: De costumes!
BECKETT: De improviso!
BECKETT: Contemporânea!...
São as leis do mercado! Uma franquia nova comprou a maioria dos teatros!
BECKETT: Dizem que é por causa do palco! Colocam um cenário fixo e chamam de altar!
Alguma coisa está se movendo aqui embaixo. Está ouvindo alguma coisa se mover aqui
embaixo? Parece-me uma segunda cidade, trabalhando incessantemente, como os ratos de
Kafka, que não tinham tempo para o descanso e nem sequer para serem crianças por muito
tempo, vez que tão logo os filhotes conseguissem andar e enxergar eram incumbidos dos
trabalhos dos adultos e da luta pela sobrevivência, ao passo em que novas ninhadas enormes
de filhotes nasciam uma após a outra.
GODOT: Sério? Consegue ouvir tudo isso? A mim me parece imóvel. (escuta) Você acha que
está se movendo?
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BECKETT: Às vezes, quando me levanto de manhã, tenho a impressão de que alguma coisa sai
da minha cabeça e se espatifa no chão. Vivo tão isolado de tudo, que me imagino acordando,
não mais em meu corpo, mas na forma de uma imensa barata, perambulando pelas rachaduras,
tentando encontrar restos para poder me alimentar. Me imagino comendo restos de folhas de
papel onde antes havia textos. Como cada letra como se fossem torrões de açúcar. Você acha
que é possível?
GODOT: Tudo é possível. Mas esse seu pensamento de ser como uma barata, devorando
pequenos pedaços de textos...O que será isso?
(pausa)
GODOT: Inesquecível.
GODOT: É sofrível.
GODOT: De circo.
BECKETT: De pantomima.
GODOT: De circo.
GODOT: Divertido, ele! Agora que decidiu fumar, sumiu com a bituca! (Riso ruidoso)
GODOT: Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar baixo e com calma, já que calados
não conseguimos ficar.
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GODOT: Para não ouvir.
GODOT De folhas.
BECKETT: De areia.
GODOT: De folhas.
Silêncio.
GODOT: Meu velho, vou lhe dizer uma coisa. Acho você cada vez mais simpático.
BECKETT: Eu também quero dizer uma coisa. Lamento tudo o que aconteceu nesses anos
todos. Se quiser, você pode entrar no final, como queria.
GODOT: Agora? (ri) E pra quê? Não percebe que os teatros estão cada vez mais vazios? E
sabe por quê? Simplesmente, porque o público não vem. Culpa de quem? Unicamente do
Estado. Se cada um de nós se visse obrigado a ir ao teatro, as coisas mudariam completamente.
Por que não instituir o teatro obrigatório? (pausa) Por que instituímos a escola obrigatória?
Porque nenhum estudante iria à escola se não fosse obrigado. Talvez, com a obrigatoriedade de
ir ao teatro, pudéssemos salvá-lo. (reflete) Esquece. Delírio! O teatro está morto.
BECKETT: Não, não… Quero acrescentar alguma coisa… (procura por entre as folhas)
GODOT: Meu velho, esses tempos... não merece um final. Sugiro outra coisa. Tenho uma
garrafa!
(durante todo esse tempo, outros passantes aproximaram-se e pararam para escutá-los. Até o
final, eles formarão um semicírculo em torno deles.)
GODOT: Isso não importa. O importante é que está aqui. É minha! (tira a garrafa do paletó)
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GODOT: Não, é lastimável beber pura e simplesmente. Neste mundo é lastimável apenas beber.
Beber é um ato revolucionário! No fundo de uma garrafa, como esta aqui, está a chave para a
libertação destas grades feitas de razão, pura e simples! É a maneira que temos de sairmos
desta salinha das crianças ingênuas, viciadas em rotina e nos sentarmos na mesa dos deuses!
Só assim para gente entender que isto aqui, apenas (bate em seu corpo) não basta! É preciso ir
além! Eu, na mesa dos deuses todos, olharia nos olhos de Dionisio, lhe daria um beijo na boca e
proporia (levanta a garrafa) “Ao Teatro! Que acaba de morrer”. Talvez ele me daria um safanão
(ri e dá um gole).
BECKETT: Para o inferno o Teatro… (pega a garrafa e bebe - pausa longa) O teatro é como se
fosse o primeiro soro que o homem inventou para se proteger da doença da angústia. Um pouco
deste inferno dentro de mim. (bebe um gole) Pode parecer não ter sentido, mas eu gosto de
coisas que não fazem sentido: isso acorda as células do cérebro. Fantasia é um ingrediente
necessário, é um modo de olhar a vida pelo lado errado do telescópio. (bebe outro gole) O
quanto eu o amei...
GODOT: Vermes… Ratos nojentos… Matar a arte… (bebe com entusiasmo, aturdido)
Posso abraçá-lo?
GODOT: (sobre o ombro de Samuel Beckett) O que se pode fazer agora? Está tudo afundando...
A calçada... A rua… dizem que este flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas
nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam. Vamos
todos morrer, esperando algo.
BECKETT: Para com isso, ninguém vai morrer por causa disso.
GODOT: (choramingando) Eu não poderia viver sem o Teatro… Não duraria muito… Toda noite,
eu estava na plateia, estava entre as pessoas, vivia... Sofria como um animal, mas vivia... Vivia
em tudo, em cada palavra... Como eles podem fechar tudo? Como podem jogar as pessoas pra
fora? O que será de mim agora?
(O som vai aumentando e outros passantes vão se aproximando, ao fundo, juntando-se aos que
já estavam)
BECKETT: I couldn't live without theater ... I wouldn't last long ... Every night, I was in the
audience, I was among people, I lived ... I suffered like an animal, but I lived ... I lived in
everything, in every word ... How could they close everything? How could they throw people out?
What will happen to me now?
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No podría vivir sin el Teatro ... No duraría mucho ... Todas las noches, estaba en la audiencia,
estaba entre la gente, vivía ... sufría como un animal, pero vivía ... Vivía en todo, en cada palabra
... Cómo ¿pueden cerrar todo? ¿Cómo pueden echar a la gente? ¿Qué será de mí ahora?
BECKETT: (olhando embaraçado em volta de si, cochichando) Cale a boca, que pronúncia
horrível! Não vê que está todo mundo rindo?
BECKETT: (cochichando) Não vê? Que se fodam! Está vendo quantos eles são?
BECKETT: Não tenho a mínima ideia. Se multiplicam muito rápido. Parece que é quase sem
querer!
BECKETT: Coisas impressionantes acontecem assim! Parece o kefir! Sabe aquele bichinho
branco que faz iogurte? Que aliás, se multiplica com uma rapidez absurda, também!
BECKETT: Assustador! Atualmente, acontece o tempo todo! Deviam comer quilos de kefir e os
bichinhos ir crescendo na barriga deles até explodirem. Já imaginou essa explosão? Uma
mistura de kefir com nada! (se dá conta das pessoas à volta) Enquanto ficamos aqui distraídos,
debatendo, eles se multiplicaram ainda mais! Na situação que estamos, não importa mais como
eles se formaram, O que importa é que eles estão aí.
BECKETT: Não… Não… Vamos continuar falando. Vamos falar mais. (pausa) Quem sabe
assim, eles aprendem algo. Sabe o que eu acho mais maravilhoso? Com toda essa nossa
condição, é maravilhoso não passarmos um dia, nenhum sequer, sem aprendermos alguma
coisa. Podemos estar enterrados em um monte de terra, só a cabeça para fora e ainda assim,
estaremos aprendendo alguma coisa. Vamos continuar assim. Podemos aprender a fingir que
não temos nada a dizer, nada a fazer. E espantar o medo de chegar ao fim das horas antes da
cortina final. O medo de que os dias passem, e não voltem. E não se tenha nada mais a dizer.
Mas antes desse dia chegar, vamos continuar falando. (olha para os passantes) Eles não
querem, mas precisamos continuar.
GODOT: (espantado, agitado) Não sei de onde eles saíram. A rua estava deserta. Estava
deserta há pouco. Como podem se reunir assim?
Terra plana
Jesus na goiabeira
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Pandemia
Volta da ditadura
Tortura elogiada
Nazismo de esquerda
BECKETT: Falar. O mais importante é falar. Dizem que procuramos um sentido para a vida. Não
penso que seja assim. Penso que... o que estamos procurando é a experiência de estar vivos,
de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no
interior do nosso ser e da nossa realidade. Vamos falar de tudo. Já não importa o que falar,
importa falar.
GODOT: (olha em torno, assustado, os passantes sentados na rua) My God, o que é que vou
dizer?
BECKETT: Pergunte-me se eles me bateram… Enquanto isso eu tiro o sapato e olho pra eles.
Depois, você me pergunta o que estou fazendo. (tira o sapato)
GODOT: Estamos sempre achando alguma coisa para fazer, né Bébé, para dar a impressão de
que existimos!
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(pausa - reflexivo)
Ah, como eu gostaria de ter um texto, agora, pra poder existir na cara deles!
GODOT: É como um transe. É espontâneo. Um gozo, um jorro. Vem do estômago, Sr. Beckett.
Vamos fazer uma revolução na nossa pátria e será linda. As pessoas sairão para cantar nas
ruas e depois, morrerão. Porque nas ruas estarão homens rudes. Que gostam de beber cachaça
ruim até cair e brigar na rua, para ver sangue. Estes que usam botas e jaquetas, pra demonstrar
sua macheza. Estes que fumam qualquer coisa, somente pra aumentar a saliva e cuspir ao
chão. Ofendem as mulheres, riem das próprias piadas. Amam o próprio fedor. Banham-se num
rio podre com os abutres no calor tropical. Vamos convocar uma revolução, Bébé! Eu gostaria
de ser, de existir, homem ou mulher, mesmo que fosse para ter estado na cadeia, ter sido
chutado, não acreditar em deus, mijar na rua, dormir de dia, não ter medos, Mr. Becket, eu
gostaria.
Dequeimar casas de ricos, violar madames, socialigths e patricinhas. Tenho esse desejo, de
existir, de ser homem e mulher ao mesmo tempo. Matar, se for preciso. Linchar, Comer carne
humana, lutar numa guerra, com sede de justiça.
Gostaria de ser homem, mulher, animal, misturados. Eu me sentiria feliz. Uma revolução
começando por mim, na minha carne. A revolução não foi feita para gente que sai de casa pra ir
ao teatro. Por quanto tempo se pode falar de teatro sem se falar em revolução? A quem isso
importa?
Lá fora está acontecendo dias sangrentos, pessoas estão morrendo de fome nas ruas e
querem escrever peças de teatro que falam de mentiras? O teatro dá conta de contar essa
história? A história passa como um fantasma, é tempo de uma revolução. E quem é tão imbecil
para ficar trancado em uma sala de teatro para sofrer por historinhas de amor e de morte
mentida? Tenho vergonha de ser personagem desta festa desértica.
É tão egoísta, uma armadilha burguesa, uma lixeira, um estábulo de éguas. Quantas vezes se
pode chorar e clamar por verdade em um palco? Chega!. Estamos no século XXI e creio que o
teatro envelheceu, ruminando aspirações estilísticas de glamour requentado. Ou o teatro dá
conta da nossa história do agora ou, acabou!
Me dá asco. Poderia começar por queimar este teatro e ver arder com ele a arrogância, a
vaidade. Detesto o amor fake do teatro, fake plays, seus gestos falsos, sua formalidade, sua
pachorra. Me sufoca, Sr. Beckett. Suplico a existência real. Aquela que pode ter na minha fala a
força de uma dinamite, capaz de estourar fortalezas recheadas de hipocrisia, com gente
recatada e do lar.
Quer fazer algo que seja de verdade? Saia às ruas e veja a força simples da violência política. É
tão lindo imaginar matar um capitão que nos mata todos os dias, isso exala odor de justiça.
Esse teatro acabou. Os atores não vão chegar, foram mortos. Que venha um renascimento de
novos gritos e verdades escancaradas em suor de batalha.
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Vamos fazer uma revolução e os que sobreviverem serão livres. Vamos beber, vamos ganhar
guerras e vamos cantar nos funerais.
Mas, Sr. Beckett, Vamos falar daquilo que pode ser cortante na carne, não me fale de vazio, de
árvores secas, de chapéus coco e pés descalços. Vamos falar da fome. Fundar um hospital,
sair em passeata, fazer algo de que não sinta vergonha, uma vez na vida não falar com um nó
na garganta, ensaiado com o perfil mais apropriado à fotografia do instagram.
Para que perder tempo fazendo isto aqui? Como podemos ficar em pé no palco sabendo que lá
fora, na rua, no mundo, as pessoas estão morrendo? Arte burguesa, teatro burguês. Odeio o
público que vem para se emocionar, me odeio por ser personagem de coxia, esperando a
possibilidade de existir de um ato para o outro. Antes tivesse morrido feito Cacilda!
Detesto esse cheiro falso de palco e suas lágrimas doces. Ficam satisfeitos em sofrerem
sentados, confortáveis, como se sofre no teatro?
Querem chorar? Vá trabalhar em uma plantação de cana como fazem as crianças e deixe que
seus pulmões sequem com a fuligem da queimada. Mas não me venha dizer que no palco se
sofre.
Porque não se sofre. Se sofre na vida. Tem gente morrendo de fome na rua, as crianças perdem
seus dentes de leite e no lugar não nascem outros.
Não fale de dor no teatro. Fale. E não fale de morte porque não podemos compreendê-la. Fale.
Fale aqui, de nós, da nossa pequena estatura diante de tudo. Fale do que podíamos ter sido.
Não me deixe sozinho na coxia, ocupe as ruas, me dê voz, Sr. Beckett! Ocupe a ágora com uma
revolução, enquanto é tempo. No futuro, quando o mundo se acabar, só existirão telas frias e
isso vai nos fazer chorar como gado suicida, com os olhos enfiados numa cerca de arame
farpado. Falemos!. Precisamos continuar. Eu não consigo respirar! Falar. Ar. E tanta coisa a
dizer, a fazer. A fazer! Ser! Tudo a fazer, Bebé!
FIM
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