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MIGUILIM MUTUM
O Arcanjo Miguel, sentado na boca de cena, costura sua asa esquerda, que está
quebrada. Lamenta-se, como um professor tomando cafezinho na sala de
professores.
ANJO[1]
Ontem arrancaram um pedaço da minha asa. Fiquei depenado… Agora fiquei
assim! Você acha que tem condições de trabalho desse jeito... Vou reclamar com a
diretoria, porque não tem condições de trabalhar assim. E anjo tem direito de greve?
Acha! Tem que permanecer calado e fazer direitinho o seu trabalho porque é função
essencial, não pode fazer greve. E taí! Como trabalhar com asa quebrada desse
jeito? É verdade que eu chorei um pouco, mas eu não tenho muito tempo pra chorar
não…
O sinal toca.
ANJO
Eita que algum menino precisa ser cuidado!
Nesse momento, São Miguel pega todos os objetos que estão ao seu redor:
arapuca, corda, peneira, chapéu, gaiolas. Pega tudo.
Caminha, tropeça, veste seus óculos, ajeita o que derrubou e anda com mais
firmeza. Aos poucos, acomoda as suas coisas.
Miguilim entra com uma corda e começa a desenhar uma espécie de mapa
enquanto canta sussurrando em tom de dúvida:
Bonito assim?
Lugar nenhum
Explode semente
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Início/fim
Miguilim segue brincando, enquanto espalha um pouco da terra que está grudada
no seu corpo. Miguilim abaixa e sente o cheiro da chuva na terra.
MIGUILIM
Chuva!
MIGUILIM
(cheira o paninho e se acalma aos poucos. Miguilim torce o paninho e deixa as
aguinhas escorrerem, atento a elas)
ANJO
Calma, menino. Tem só mais um pedacinho de estrada e você já chega. Vamos lá…
Coragem! Um passo, dois passos, dez passos… Cheirando o paninho molhado.
ANJO
Quase quase… Mais uns passinhos e uns cheirinhos.
ANJO
Pronto!
O anjo sai.
MIGUILIM
Dito, cadê a mãe? Preciso contá uma coisa pra mãe. (procura algo nos bolsos, mas
não encontra nada, só os bolsos vazios)
DITO
Miguilim! O que trouxe pra mim?
MIGUILIM
Vixi... Estava tudo num embrulho, muitas coisas... Quando um pássaro muito
gigante-grandão bicou o embrulho e começou a voar pro alto do céu, começou a
subir alto alto e entrou dentro de uma nuvem e guardou os presentes lá dentro. Eu
chorei de gritar, mas passarão não devolveu presentes não! Mas quando o
passarão voar aqui no Mutum, eu armo arapuca que é para ele devolver tudinho.
DITO
Sei… Você não sabe nada do céu...
(Ouvimos o vocalize que está gravado no vídeo. Aos poucos Dito se transforma em
Vó Izidra e esta surge com o oratório)
MIGUILIM
Bença, Vó!
MIGUILIM
Cadê minha mãe?
VÓ IZIDRA
Só pode estar deitada. E o pai só pode estar de pé.
MIGUILIM
Licença, Vó, preciso contar uma coisa pra mãe!
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VÓ IZIDRA
Miguilim! Ô Miguilim! Não corre desse jeito, menino! Não sobe no muro! Vai cair daí
de cima e não vai sobrar nem caquinho pra contar a história… Miguilim! Ô, Miguilim,
pára de bulir com as galinhas… Miguilim! Ô, Miguilim!...
(Vó reza)
Me segura, Santa Amarela
O moleque pisou na minha panela
Me segura, Santinho Verde
O moleque sujou a parede
Me segura, Santa Vermelha
O moleque trepou na bêra da telha
Me segura, Santa Lilás
O moleque tem pacto com Barrabás
Me segura, Santa Branca
O moleque matou minha planta!
Me segura, Santa Cinza
Não segura não, de cá a minha cinta!
Miguilim corre de Vó Izidra que logo se cansa de correr e desiste do menino. Ele
entra correndo dentro de casa atrás da mãe.
MIGUILIM
Vem, mãe, eu vou te mostrar!
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PAI
Não tá vendo que eu tô aqui, menino! Tô falando com você! Você tem poeira nos
olhos? Não tem nada que mostrar beleza nenhuma, não! Ninguém precisa de
beleza. Beleza não enche barriga de ninguém. Diabo de menino, puxou pra quem?
Fica longe um monte de dias e quando chega nem olha pro pai. Queria que Miguilim
tivesse braço forte. Mas diabo de moleque tropecento, puxou a quem? Está certo
um filho da gente ficar dias fora e quando passa perto nem olha?
MIGUILIM
Benção, pai!
PAI (remedando)
Benção, pai!... Benção, pai!... Não, não, não, não… Sou eu que ponho o de comer
em cima da mesa e sou o último que você olha? Pois agora eu vou pescar no rio
doce e não levo menino ingrato pra acompanhá. Tina, traz o milho pra esse menino
debulhar!
(O Pai vai ao balaio se transmuta em Tina e pega o balaio de milho para debulhar)
(Tina canta uma cantiga numa língua incompreensível enquanto debulham o milho)
TINA
Não aponta pro céu que dá verruga na ponta do dedo.
MIGUILIM
O sol tá indo embora?
TINA
Ele tá indo dormir. Pra voltar bem descansado na manhã seguinte.
MIGUILIM
E quem cuida quando ele descansa.
TINA
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As estrelinhas bem miudinha ficam olhando tudo tudinho. E de vez em quando uma
sai correndo pra contar as novidades. Isso que são os cometas. Daí os cometas
contam tudo pro Sol que está dormindo.
MIGUILIM
Tina, cometa tem boca?
TINA
Tem! Uma bocona bem grandona pra falar bem alto.
MIGUILIM
Tina, como você sabe de tanta coisa?
TINA
Eu lavo, passo, faço de um tudo, mas a minha vida não é pequinha que nem quintal
de casa, não. A minha vida é ser do mundo.
MIGUILIM
O Dito também sabe um monte de coisa também. Ele sabe olhar pro céu. Ele
ensinou. Eu aprendi. As nuvens vão virando e desvirando. Cabrito vira carruagem.
Carruagem vira cocozinho de coelho... Espalhadinho… Dito contou que Deus põe
anjo no começo do céu. Anjo assopra e as nuvens arrevoam. As nuvens não são
nada. As nuvens são tudo. Dito contou pra mim! Só de noite é que as nuvens
dormem quietas e daí elas não são mais carruagem e nem cocozinho de coelho.
Dito me ensinou que de noite as nuvens são só nuvens mesmo.
TINA
Muito bom, Miguilim! O Sol já foi dormir, as nuvens foram dormir. Agora faltamos só
nós depois. O milho já foi debulhado e amanhã vamos ter canjica. Boa noite,
Miguilim! (beija carinhosamente a testa do menino).
(Aos poucos clareia e, ao longe, ouvimos um galo cantar e depois um choro doído
de cachorro)
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MIGUILIM
Pingo de ouro! Pingo de Ouro! (o choro fica cada vez mais doído) Cadê você, Pingo
de Ouro? (mesmo jogo) Dito, vem me ajudar! Pingo de Ouro! Dito! (mesmo jogo)
Continua latindo, Pingo de Ouro, que é pra eu achar você.
(Miguilim encontra a Pingo de Ouro que está presa na Arapuca. Não vemos a
cachorra, apenas a ação dos meninos tentando soltá-la)
MIGUILIM
Ô, Dito! Que demora!
DITO
Mas agora eu tô aqui e vou te ajudar!
MIGUILIM
Cuidado que a coleira ficou presa. Vai devagar que é pra ela não se enforcar.
DITO
Olha a unha dela! Desenrosca daqui!
MIGUILIM
Peraí, cuidado!
DITO
Tira aqui, ó! Não, aqui! Isso!
MIGUILIM
Peraí. Só falta esse pouquinho.
DITO
Foi.
(Dito sai)
MIGUILIM
Olha como ela festeja…
ANJO
DE QUANDO O PAI DEU A PINGO DE OURO[8]
Agora vem momento triste
Que mostra que a vida não é justa
Quem essa história assiste
Um pouco da mágoa degusta
Vou contar o que sucedeu
Direitinho e com lisura
O que dentro da casa aconteceu
Trouxe desgosto e desventura
Entre pai e mãe houve intriga
E pai pôs-se a embrutecer
Era uma rixa antiga
Que os dois tinham a resolver
Miguilim entrou no meio
Pra proteger mãe Nhanina
Tomou do pai esbofeteio
Na face tão pequenina
Foi posto de castigo
Em um banquinho sentado
Apenas por Dito, seu irmão,
Acalentado.
DITO
Miguilim! Miguilim!
DITO
Você sabe que quando acontece uma coisa ruim, ruim mesmo é porque vem uma
boa logo em seguida, né?
DITO
Às vezes acontece uma coisa ruim depois outra, mas acontece uma coisa boa
depois.
DITO
Às vezes acontece três ou quatro coisas ruins seguidinho, mas tem que ter calma
porque uma coisa boa há de vir uma hora.
DITO
Como agora está acontecendo coisa ruim seguidinho, mas vou ensinar uma coisa
pra você: a gente pode ficar alegre com toda coisa ruim que acontece. A gente deve
ficar mais alegre, mas alegre por dentro.
MIGUILIM
Pingo de ouro!
ANJO
O pai por vingança do feito
Deu embora a cachorra
E por causa desse mal jeito
Miguilim se apavora
MIGUILIM
(triste num cantinho de morro)
E agora, Pingo? Pra onde levaram você? Quem vai cuidar da sua patinha
machucada? Quem vai passar aguinha na sua pata, depois remédio e depois fazer
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carinho no seu pêlo? Será que você tá com frio, Pingo? Com fome? Pingo, se você
voltar eu não deixo mais a arapuca no quintal… Eu juro!
Miguilim está enfurecido. Irredutível na sua assombrosa tristeza, sai sozinho pela
estradinha de terra. O anjo se posta num canto e apenas observa a situação.
MIGUILIM
Meus pés são pequenos
E não sabem voar
Volta Pingo de Ouro
Um, dois, três e já!
ANJO
(enquanto o annarra, Miguilim corre sem parar rodeando o mapa)
Miguilim pega estrada
Corre para fora do Mutum
Sai sem rumo sem nada
Vai pra o lugar nenhum
ANJO
Se Deus escreve certo
Por tortas linhas
Menino desenha torto
Amarelinhas...
MIGUILIM
Ela é pequena com o pelo ralinho… (fala enquanto desenha) Como é mesmo que o
Dito ensinou? Era uma vez uma mulher. Começou a chover e ela abriu o
guarda-chuva. Ela estava com muita fome, entrou num bar e comprou duas
linguiças e dois ovos fritos para comer…Mas dentro do bar tinha goteiras... (o
desenho dele é bem grande e com traços muito imprecisos)
MIGUILIM
O que foi isso?
ANJO
Depois da tristeza vem a alegria
Mas não no momento de agora
Tão cedo se aproximaria
Dor enorme e sem demora
DITO
Miguilim! Miguilim!
Não faz assim
Tenha dó de mim
Abra seu fortim
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Miguilim! Miguilim!
Não faz assim
Tenha dó de mim
Abra seu fortim
MIGUILIM
Dito! Dito!
Eu não acredito!
Vou te dar um pito!
Ai, Ai, Ai, meu São Benedito!
DITO
Não fica bravo não, Miguilim!
MIGUILIM
Não era pra você vir atrás de mim.
DITO
Eu fiquei preocupado e, além do mais, tudo lá em casa tá uma confusão. A mãe
trancada no quarto que só chora. Vó Izidra disse que você vai ficar de tanto castigo
que não vai nem lembrar o que é liberdade. Pai Béro tá meio triste meio bravo, mas
parece que é tanta coisa que eu fiquei um pouco confuso. (vê o desenho) Olha! É a
Pingo de Ouro certinha! Só tá faltando uma pinta que ela tem aqui. Cadê com o quê
você desenhou?
MIGUILIM
Eu não sei… Acho que caiu no chão.
DITO
Ela tem uma pinta bem aqui do lado do nariz.
MIGUILIM
Nunca vi não.
DITO
Você é muito distraído, Miguilim.
MIGUILIM
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DITO
Tá não. Eu fiz promessa para ela estar bem pertinho.
MIGUILIM
Dito, você acha feio sonhar demais?
DITO
A gente precisa de duas vidas. A vida vivida e a vida sonhada.
MIGUILIM
Eu acho que eu sonho demais. Eu sonho com monstros, com anjos. Eu nem preciso
fechar os olhos pra isso. Agora mesminho. Eu tô sonhando que São Miguel traz a
mãe Nhanina bem pertinho para a proteger nós dois. (Miguilim chora escondendo
do irmão)
DITO
Então dorme e sonha Miguilim! Que sonho da gente fica de verdade lá nas nuvens.
ANJO
Dorme, dorme, Miguilim
Que alguém vai te proteger
A noite molha teu choro
E alguém vai te proteger
(Anjo começa devagar a percutir no corpo. Esse som aos poucos vai aumentando e
ganhando ritmo. Começamos a identificar o tropel de um cavalo. Ele percute cada
vez mais forte e cada vez mais ritmado. A presença do animal cresce).
ANJO
Mas a manhã é transformadora
Carrega consigo o destino
E o surgimento da Aurora
Muda a vida do pequenino
MIGUILIM
(A cena é feita com Miguilim contracenando com alguém que não vemos. Ele reage
com o corpo como se estivesse sendo puxado. O anjo continua a percutir o som do
cavalo)
Pai! Que isso? Ai … Me solta… Pai! Tá doendo meu braço. Não, pai! Não! Deixa eu
levar o desenho da Pingo… Pai! Pai! Solta! Por favor, eu pego rápido! Ai, pai! Ai! Eu
não quero ir… Eu quero procurar a Pingo! Ai, pai! Ai! Dito, me ajuda! Não, não… Eu
não quero ir! Me solta! Ai!
ANJO
O destino esse grande vilão
Não se cansa de maldar
Reserva na figura do irmão
Um castigo exemplar
(Silêncio. Tudo pára. Miguilim olha fixo para o chão. O anjo se traveste de Dito e se
coloca de forma a posicionar o pé na direção do olhar de Miguilim.)
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Abriu o pé do menino
Abriu brecha ferina
O pé pro menino é casa
De uma alma pequenina
MIGUILIM (assustado)
Machucou, Dito? Que que é esse vermelho?
DITO
É sangue. Num tá vendo?
MIGUILIM
Tá doendo?
DITO
Tá doendo sim. Me ajuda a levantar. (relaciona-se com o personagem do pai, sem
que o avistemos). Pode ir na frente, pai. O Miguilim vai me ajudar no caminho.
(Os meninos acompanham o pai se distanciando com os olhos. Dito passa o braço
no ombro de Miguilim. O menino vai mancando e eles rodeiam novamente o mapa
que desenha o Mutum, fazendo o caminho de volta.)
MIGUILIM
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Anjo-da-guarda, que pisa nas nuvens da manhã, traz um remédio do céu pra curar
meu irmão? Eu sei que você cuida de mim, mas dessa vez não é pra mim que estou
pedindo não. Não é para me ajudar a parar de tropeçar. Ajuda o meu irmão Dito. Ele
é forte, não é doentinho e fraco como eu, não está acostumado com essas coisas.
Ele ajuda o pai na plantação, carrega coisa pesada. Ele não sabe o que é ter febre,
ficar de cama. Não sabe o que é não poder fazer as coisas porque é fraco e sempre
tropeça. Ajuda ele, anjo da guarda...
(Miguilim segue sozinho o vocalize que antes entoou com Dito. Dito deita atrás de
um morrinho, desaparece aos olhos do público. Vemos ressurgir vó Izidra, com
folhas imensas na mão e um incensário católico na outra. A velha entoa a reza a
seguir como em uma novena misturada com benzimento)
VÓ
(Ao final de sua reza, Vó Izidra joga a peneira no chão, na boca de cena. Miguilim
olha, observa longamente e, aos poucos, se transforma em cachorro. Vó Izidra se
livra das coisas que usou para fazer a benzeção e também se transforma em
cachorro. A peneira faz às vezes de vasilha de ração para ambos os cachorros que
aparecem)
GIBÃO
Dá aqui que essa carne é minha!
CÃ
Vem arrancar do meu dente se tem coragem!
GIBÃO
Acha! Essa pequenininha quer ser valente!
CÃ
Pronto, engoli! Come um pedaço de vento, Gibão...
CÃ
Socorro!!! Dito! Miguilim!
GIBÃO
Quieta! Que o Dito tá descansando! Xiiiiiiiii!
CÃ
Eu sei. Eu ajudo ele a descansar… Dou uma lambida no pé dele e ele dorme feliz.
GIBÃO
Ontem, ele fez uma careta feia. A cara espremia só de um lado. Parecia que tava
triste de um lado só. Faz tempo que ele não vem aqui pro quintal brincar!
CÃ
Por isso que eu durmo perto dele.
CÃ
Fedido é seu… focinho!!! Seu Gibão que não gosta de banho!
GIBÃO
Ontem eu ouvi do Nhô Béro! Ele disse que preferia que fosse o Miguilim! Que já tá
acostumado com o Miguilim só doente! Ele disse: “Era melhor que fosse Miguilim!
Ele disse isso pra Nhanina… Ela só chorou doído.
CÃ
Gibão… Olha ali atrás daquele morrinho...Espia… Mas quieto! Miguilim ainda tá
chorando.
BÉRO
Levanta, Miguilim! Chorá não dá chapéu pra ninguém!
MIGUILIM
(sem olhar pro pai) Vou ajudar mãe…(vai saindo e o pai o segura)
BÉRO
Sua mãe não precisa de ajuda! Tem mulher demais pra isso! Eu preciso de um filho
comigo, um filho que garanta o de comer dentro de casa. Cozinhar, depois, é
trabalho de mulher.
MIGUILIM
Então eu vou brincar com o Dito no quarto...
MIGUILIM
Como é que trabalha?
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MIGUILIM
Qual?
BÉRO
Aquela com cabo bem comprido. (Miguilim pega um objeto pequeno. O pai recusa
com a cabeça e aponta para ele buscar outra coisa. Miguilim pega um objeto
mediano. O pai toma da mão dele e joga fora. Sem paciência, o pai pega o Girassol
e traz para Miguilim) Agora segura na enxada! (Miguilim pega com imprecisão) Tem
que segurar com firmeza. As mãos abraçam o cabo… Uma mão mais em cima,
outra mais embaixo… (Miguilim tenta reproduzir as ordens) Segura direito, que nem
homem!
MIGUILIM
Mas eu sou criança! Não sou homem ainda.
(Nhô Béro sai na sua revolta e deixa Miguilim sozinho na lida. O menino continua o
aprendido e tenta reproduzir o que o pai ensinou.)
(O anjo chega trazendo o oratório. Fala todo o texto a seguir brincando com o
oratório nas mãos)
ANJO
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E a chuva ficava forte no Mutum! Quantos olhos tem nesta casa? Da mãe, do pai,
da vó. Olhos vigilantes sem dormir ... Todos entram e saem do quarto onde o Dito
está. Ali deitado o Ditinho, perto dele Miguilim. Dos olhos de Miguilim saem águas e
mais águas. Aqui fora a chuva aperta e eu não tenho direito nem de um
guarda-chuva… Lá no céu os anjinhos espetam as nuvens e a chuva do Mutum só
aumenta. (Olhando pro céu) Vocês podem parar!? O aguaceiro aqui fora, o riso se
abrindo nos pés de Dito e Miguilim secando por dentro.
DITO
Entra, Miguilim! Pára de esconder atrás da porta.
MIGUILIM
Eu não tô aqui não.
DITO
Então se não está, fica estando e entra.
DITO
Então é por isso essa catinga brava.
MIGUILIM
Eu não tô catinguento. Eu tô banhado com sabonete perfumado e tudo. Vó Izidra
montou o presépio e disse que, pra eu ver tenho que estar limpinho.
DITO
Já é Natal?
MIGUILIM
Quase quase.
DITO
A quanto tempo eu estou no quarto?
MIGUILIM
Acho que já vi umas três ou quatro luas diferentes.
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DITO
Eu logo saio. Eu vô sair voando por aquela janela e vou ter uma conversa bem
pertinho com São Miguel. Vou me alistar com ele. Que, quando eu for anjo, quero
ser anjo de exército e lutar contra toda malvadeza desse mundo.
MIGUILIM (chorando)
Não vira anjo agora não, Dito! Daí nunca mais vou te ver…
DITO
Chora não, irmão...Quando eu for anjinho vou achar a Pingo de Ouro e não deixo
nunca mais ela sumir.
MIGUILIM
Não, avoa, irmão…
DITO
(com dificuldade pegando o oratório que o anjo deixou) Miguilim, vou ensinar o que
agorinha eu sei, demais: que quando acontece uma coisa ruim, depois acontece
uma coisa boa. Mas a coisa ruim também é a coisa boa porque é o jeito que a vida
arranja de ensinar a gente o que é estar nesse mundo. Porque o mundo é muito
grande Miguilim. Ele vai bem além dos morros do Mutum.
(Dito respira arfante e pára de falar. Miguilim olha pra cima. Ele se relaciona com a
mãe Nhanina, mas apenas ele a vê. Enquanto nos mostra essa presença, ouvimos
também o som de um acalanto em boca chiusa)
MIGUILIM (sussurrando)
Mãe, o que acontece quando alguém morre e a gente não disse tudinho pra essa
pessoa?
(Dito tira de dentro do oratório vários papéis de seda amarelos picados e começa a
soprá-los formando uma revoada amarela)
MIGUILIM
Olha, mãe! As borboletas são uns anjinhos bem pequenos que vem pra Terra só pra
trazer beleza. E, mãe, a senhora sabe que depois de um momento triste tem um
outro muito bom? Então a gente fica feliz por dentro, mesmo com toda tristeza em
volta porque essa alegria um dia explode e voa que nem borboleta.
ANJO
A morte é como uma lagarta saindo do casulo. Primeiro ela quebra no meio e
parece que vai acabar com tudo, mas, depois, sai uma asa bonita, grande, colorida,
e é aquela asa que te ensina a voar.
(O anjo - meio anjo, meio Dito - corre pelo palco voando com as suas asas
compridas feitas das coisas do quintal. Ele dá pulos altos e sorri gargalhando.
Miguilim recolhe os papéis picados no chão, silencia olhando as borboletas
amarelas que recolheu)
MIGUILIM
O que acontece quando não se perguntou tudo pra alguém que não está mais aqui?
Tem um rio nos meus olhos
Cadê o Mutum?
Cadê arapuca?
Meus pés pisam no chão do mundo
Mas eu não vejo mais mundo
Posso correr pra fora do Mutum
Não tem mais graça
Não tem mais história
Cadê o Mutum?
Tem um rio nos meus olhos
e eu não sei nadar
Até os passarim sabe que eu tô triste
Eles vem perto cantar
Mas o Dito é que me ensinava a ouvir cantoria de passarinho
(Tina mostra o barco de papel grande nas mãos. Ela se aproxima de Miguilim e para
ele começa a mostrar alguns objetos que tira de dentro do barco: um pião, um boné
pequeno, um carrinho. Miguilim vai recebendo os objetos.)
MIGUILIM
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TINA
Vamos ajudar o Dito a dormir desse mundo.
MIGUILIM
Dito, eu ainda não perguntei tudo e você já foi embora. Mas eu não vou ficar perdido
não. Eu vou perguntar tudo que eu sinto aqui bem dentro do meu peito. Eu sei que
lá no fundo você vai sussurrar baixinho e eu vou entender. A Tina disse que do
outro lado a gente nasce outra coisa. Então eu peço para que você nasça vento que
é pra ir me dizendo a direção.
ANJO
Esta chuva é tempestade
Tem barulho e claridade
O tanto que molha ela destrói
Chuva assim na gente dói
E abraçar o Miguilim
Um tanto por ele e um tanto por mim
(Anjo tira as próprias asas e a chuva pára. Vemos quando se transforma em Miguel,
tira algumas penas de suas asas e coloca-as na gaiola à guisa de realejo. Ouvimos
a música típica desse artefato)
MIGUEL
Venha ver sua sorte! Venha ver sua sorte! Se aproxime, menino, para ver o que a
sorte tem pra você.
MIGUILIM
Para mim?
MIGUEL
Não se assuste não, menino… Que este passarinho que trago comigo voa no céu
todos os dias e só fica aqui quando quer… É um passarinho sabido. Ele conhece as
pessoas...
MIGUILIM
Quem é você?
MIGUEL
Um funcionário dos pássaros. Mas que agora anda na terra.
MIGUILIM
Você não me é estranho, mas você me é estranho.
MIGUEL
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Venha ler a sua sorte… (Abre a gaiola, tira uma pena e a entrega para Miguilim)
Olha, O passarinho tem um recado pra você. Toma! Este recado é especial porque
o passarinho cantou bonito.(Aparece uma letra M projetada embaçada)
MIGUILIM
Não consigo, faz tempo que tem uma poerinha aqui no meu olho.
MIGUEL
Eu te ajudo. (tira os óculos e os coloca em Miguilim)
MIGUILIM
Nossa!
MIGUEL
Menino, passarinho mandou outra mensagem pra você. (Junto da letra M surgem as
letras UNDO. Miguel pega a gaiola e começa a sair)
MIGUILIM
Eu ainda quero que o passarinho me ensine outros nomes. Eu posso ir com você?
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MIGUILIM
A minha casa! Meu ranchinho fundo de paredes arranhadas. Minha casa tão bonita.
Tão bonita como o Mutum. Tchau, Vó! Não fica muito brava aí não…Olha quantas
flores tem na roupa da senhora. Cadê o pai? Ele não tá em casa? Eu nunca dei
abraço em pai. Chora, não mãe… Chora não…Tina, cuida da mãe .Eu vou ser do
mundo como você é, Tina. Mãe, a senhora é bonita, tem um monte de pintinhas…
MIGUILIM
Meu nome é Miguilim, venho de lá do meio da serra onde a mata una verdejante se
faz parede em torno a estrada de terra, que chega ao Mutum.
É nessa terra esquecida no meio do sertão que vivo, revivo e revivendo com Pai
Béro, Mãe Nhanina e irmão Dito, estrela lá do céu.
Essa terra é bonita feito beija-flor beijando o girassol, no mais alto da serra.
Vivo a procura de coisas que nem mesmo sei o que é, busco aquilo que se esconde
na casa do João de barro.
MIGUEL
Miguilim piquininim, brota da terra, do seco, traz na alma a vontade do querer,
simples, traz no peito a alegria de viver, sonhar, aprender, mas não deixa de amar.
(Saem andando pela estrada ao som do realejo e ouve-se uma voz de mulher)
Black out
29
Fim
28/06/2018