Você está na página 1de 29

1

MIGUILIM MUTUM

1. APRESENTAÇÃO DA MISSÃO DO ARCANJO MIGUEL

O Arcanjo Miguel, sentado na boca de cena, costura sua asa esquerda, que está
quebrada. Lamenta-se, como um professor tomando cafezinho na sala de
professores.

ANJO​[1]
Ontem arrancaram um pedaço da minha asa. Fiquei depenado… Agora fiquei
assim! Você acha que tem condições de trabalho desse jeito... Vou reclamar com a
diretoria, porque não tem condições de trabalhar assim. E anjo tem direito de greve?
Acha! Tem que permanecer calado e fazer direitinho o seu trabalho porque é função
essencial, não pode fazer greve. E taí! Como trabalhar com asa quebrada desse
jeito? É verdade que eu chorei um pouco, mas eu não tenho muito tempo pra chorar
não…

O sinal toca.

ANJO
Eita que algum menino precisa ser cuidado!

ANJO - APRESENTAÇÃO DE SÃO MIGUEL​[2]


Eu sou um enviado do céu
Nascido com a incumbência
de correr mundaréu
E espalhar a ciência
Mas não a que está na cartilha
Escrita em letra miúda
Uma outra que fervilha
Que nos cadernos não se estuda
A que ensina a habitar esse mundo
E a ele dar o valor
Esse ambiente fecundo
É nosso real professor
Eu sou enviado do céu
E minha tarefa na Terra
É revelar a vida sem véu
Com tudo que ela encerra
E essa vida é mudança constante
2

Do começo até seu fim


É criação a cada instante
De um novo folhetim
É madrasta indômita
É mãe zelosa
É ela que delimita
O doce mel, a erva amargosa
Eu vim de lá de cima
Direto do infinito
Mostrar que esse mundo
É lugar severo e bonito
E do Eterno é oriundo
Por mais que o contrário se tenha dito
E para que a minha lição
Seja melhor aprendida
A localização
Que me foi incumbida
É um lugar incomum
Cravado entre morro e morro
Que todos chamam Mutum
Esse chão que agora percorro

(Anjo toca o berrante para chamar Miguilim​)

2. ​ONDE O ANJO CHEGA​ (Feitura do Mutum)

Nesse momento, São Miguel pega todos os objetos que estão ao seu redor:
arapuca, corda, peneira, chapéu, gaiolas. Pega tudo.
Caminha, tropeça, veste seus óculos, ajeita o que derrubou e anda com mais
firmeza. Aos poucos, acomoda as suas coisas.
Miguilim entra com uma corda e começa a desenhar uma espécie de mapa
enquanto canta sussurrando em tom de dúvida:

CANÇÃO DO MUTUM - MIGUILIM


Bonito assim?
Lugar nenhum
De três marrons e um carmim

Bonito assim?
Lugar nenhum
Explode semente
3

Início/fim

Folha que desmancha em terra


Rosa que desmancha em mim
Dedo que cavoca o chão
que redesenha o mundo
Este desenho assim

ANJO​ ​(enquanto acomoda as coisas, colocando e tomando distância do que coloca,


analisando)
Aqui, vou pôr um morro de terra. O céu com nuvens cor de terra: Marrom, laranja,
sépia, amarelo. A terra também com cor de terra. E o sol é este girassol. Tudo ali,
tudo aqui,​ tão longe do mar. Mas tem água?​(som de trovão) Água da chuva. Em
Mutum parece que chove, chove. É o céu chorando aquele Sertão tão árido. O
sertão: terra e céu em tons de marrom. Uma flor amarela. Todo mundo precisa de
uma flor amarela...

Miguilim segue brincando, enquanto espalha um pouco da terra que está grudada
no seu corpo. Miguilim abaixa e sente o cheiro da chuva na terra.

MIGUILIM
Chuva!

Faz morrinhos: uma pequena cordilheira inventada no quintal. Nas construções de


terra, o menino corre, tropeça, exatamente no mesmo lugar e do mesmo modo que
o Anjo.
O anjo observa longamente o menino. O menino tropeça mais uma vez, começa a
ficar incomodado. Tropeça novamente. Fica ansioso
.
ANJO​ (cria uma estradinha com um elemento diferente do Mapa Mutum)
O que esqueci de dizer pra vocês é que o sinal bateu e tive que vir pro Mutum
rápido-voando pra cuidar do Miguilim. E vejam a situação das penas da minha asa!
É de dar pena! Mas hora que eu cheguei aqui, percebi que Miguilim não está no
Mutum…É cada uma que eu passo! Ele vem vindo naquela estradinha ali! Todo
mundo precisa de uma estradinha, mas nem todo mundo sabe andar nela. Miguilim
está pisando com saudade da sua casa e do seu quintal. Calma, Miguilim… Tô
chegando… ​(vê Miguilim afoito e molha um paninho num laguinho da estrada. Ele
faz a ação e Miguilim a repete, como se a ação do menino fosse uma extensão do
que faz o Anjo. Ele tenta acalmá-lo, mas não fala diretamente com ele. Como uma
presença etérea)
Põe paninho molhado nas ventas e cheira com força. Isso… Teu coração vai
sossegar. Calma, Miguilim, calma...
4

MIGUILIM
(cheira o paninho e se acalma aos poucos. Miguilim torce o paninho e deixa as
aguinhas escorrerem, atento a elas)

ANJO ​(Mesmo jogo. Fala com o menino mas não diretamente)


Lá, o teu quintal, é um lugar bonito assim, entre morro e morro, com muita pedreira,
e muito mato, distante de tudo; e sempre chove… Mas um lugar não é só coisa, ele
é as pessoas que vivem nele. É bonito assim...Calma...

Miguilim tropeça e se exaspera.

ANJO
Calma, menino. Tem só mais um pedacinho de estrada e você já chega. Vamos lá…
Coragem! Um passo, dois passos, dez passos… Cheirando o paninho molhado.

(Miguilim para, cheira o lenço umedecido, sempre mimetizando o Anjo)

ANJO
Quase quase… Mais uns passinhos e uns cheirinhos.

MIGUILIM ​(falando consigo mesmo)


Cheguei.

ANJO
Pronto!

O anjo sai.

3. ​AS PERSONAGENS DO MUTUM

(Miguilim chega ao Mutum)

MIGUILIM ​(procura algo escondido atrás dos morros)


Sobe morro! Desce morro!
Passo-a-passo não tem fim.
Desce morro! Sobe morro!
Sola, pé, perna, braçim...
(Repete)

DITO​ ​(surge correndo para abraçar Miguilim)


Miguilim! Miguilim! Miguilim! Que é que você trouxe pra mim?
5

MIGUILIM
Dito, cadê a mãe? Preciso contá uma coisa pra mãe. ​(procura algo nos bolsos, mas
não encontra nada, só os bolsos vazios)

DITO
Miguilim! O que trouxe pra mim?

MIGUILIM
Vixi... Estava tudo num embrulho, muitas coisas... Quando um pássaro muito
gigante-grandão bicou o embrulho e começou a voar pro alto do céu, começou a
subir alto alto e entrou dentro de uma nuvem e guardou os presentes lá dentro. Eu
chorei de gritar, mas passarão não devolveu presentes não​! Mas quando o
passarão voar aqui no Mutum, eu armo arapuca que é para ele devolver tudinho.

DITO
Sei… Você não sabe nada do céu...

MIGUILIM ​(entre os morrinhos, cantando)


Sobe morro! Desce morro!
Passo-a-passo não tem fim.
Desce morro! Sobe morro!
Sola, pé, perna, bracim...

(Ouvimos o vocalize que está gravado no vídeo. Aos poucos Dito se transforma em
Vó Izidra e esta surge com o oratório)

MIGUILIM
Bença, Vó!

VÓ IZIDRA ​(em tom grave)


Deus abençõe, Miguilim!

MIGUILIM
Cadê minha mãe?

VÓ IZIDRA
Só pode estar deitada. E o pai só pode estar de pé.

MIGUILIM
Licença, Vó, preciso contar uma coisa pra mãe!
6

(Miguilim entra correndo na casa e Vó Izidra já começa a bulir)

VÓ IZIDRA
Miguilim! Ô Miguilim! Não corre desse jeito, menino! Não sobe no muro! Vai cair daí
de cima e não vai sobrar nem caquinho pra contar a história… Miguilim! Ô, Miguilim,
pára de bulir com as galinhas… Miguilim! Ô, Miguilim!...

(Vó reza)
Me segura, Santa Amarela
O moleque pisou na minha panela
Me segura, Santinho Verde
O moleque sujou a parede
Me segura, Santa Vermelha
O moleque trepou na bêra da telha
Me segura, Santa Lilás
O moleque tem pacto com Barrabás
Me segura, Santa Branca
O moleque matou minha planta!
Me segura, Santa Cinza
Não segura não, de cá a minha cinta!

Vó Izidra começa a ciscar entre as coisas procurando a cinta.

IZIDRA ​(correndo atrás de Miguilim)


Santa Roxa, minha tia! Agora me dê pontaria.

Miguilim corre de Vó Izidra que logo se cansa de correr e desiste do menino. Ele
entra correndo dentro de casa atrás da mãe.

MIGUILIM​ ​(brincando entre ser cachorro e Miguilim)


Mãe, Mãe! ​(ele encontra a mãe, mas não vemos nem ouvimos a personagem,
somente miado e ronronar de gato) Mãe, ô mãezinha, não precisa mais ficar triste.
Eu ouvi na estradinha do Sucurijú: nosso Mutum é lugar bonito. Tem até uma
musiquinha. Quer ouvir? ​(começa a cantarolar) “Bonito assim, lugar nenhum/ De
três marrons e um carmim”...

PAI​ (​surge interrompendo a canção)


Não adianta. Pode parar de besteira. Ela nunca vai achar o Mutum bonito!...

MIGUILIM
Vem, mãe, eu vou te mostrar!
7

PAI
Não tá vendo que eu tô aqui, menino! Tô falando com você! Você tem poeira nos
olhos? Não tem nada que mostrar beleza nenhuma, não! Ninguém precisa de
beleza. Beleza não enche barriga de ninguém. Diabo de menino, puxou pra quem?
Fica longe um monte de dias e quando chega nem olha pro pai. Queria que Miguilim
tivesse braço forte. Mas diabo de moleque tropecento, puxou a quem? Está certo
um filho da gente ficar dias fora e quando passa perto nem olha?

MIGUILIM
Benção, pai!

PAI​ ​(remedando)
Benção, pai!... Benção, pai!... Não, não, não, não… Sou eu que ponho o de comer
em cima da mesa e sou o último que você olha? Pois agora eu vou pescar no rio
doce e não levo menino ingrato pra acompanhá. Tina, traz o milho pra esse menino
debulhar!

(O Pai vai ao balaio se transmuta em Tina e pega o balaio de milho para debulhar)

MIGUILIM ​(falando consigo enquanto senta no tamborete)


Tina gosta de mim
Tina não me faz mal
Tina me põe no colo
Tina canta pra dormir

(Tina canta uma cantiga numa língua incompreensível enquanto debulham o milho)

(Miguilim apontando o céu)

TINA
Não aponta pro céu que dá verruga na ponta do dedo.

MIGUILIM
O sol tá indo embora?

TINA
Ele tá indo dormir. Pra voltar bem descansado na manhã seguinte.

MIGUILIM
E quem cuida quando ele descansa.

TINA
8

As estrelinhas bem miudinha ficam olhando tudo tudinho. E de vez em quando uma
sai correndo pra contar as novidades. Isso que são os cometas. Daí os cometas
contam tudo pro Sol que está dormindo.

MIGUILIM
Tina, cometa tem boca?

TINA
Tem! Uma bocona bem grandona pra falar bem alto.

Miguilim olha a Tina curioso.

MIGUILIM
Tina, como você sabe de tanta coisa?

TINA
Eu lavo, passo, faço de um tudo, mas a minha vida não é pequinha que nem quintal
de casa, não. A minha vida é ser do mundo.

MIGUILIM
O Dito também sabe um monte de coisa também. Ele sabe olhar pro céu. Ele
ensinou. Eu aprendi. As nuvens vão virando e desvirando. Cabrito vira carruagem.
Carruagem vira cocozinho de coelho... Espalhadinho… Dito contou que Deus põe
anjo no começo do céu. Anjo assopra e as nuvens arrevoam. As nuvens não são
nada. As nuvens são tudo. Dito contou pra mim! Só de noite é que as nuvens
dormem quietas e daí elas não são mais carruagem e nem cocozinho de coelho.
Dito me ensinou que de noite as nuvens são só nuvens mesmo.

(escurece, vemos as estrelas)

TINA
Muito bom, Miguilim! O Sol já foi dormir, as nuvens foram dormir. Agora faltamos só
nós depois. O milho já foi debulhado e amanhã vamos ter canjica. Boa noite,
Miguilim! ​(beija carinhosamente a testa do menino).

4. ​ APRESENTAÇÃO DA PINGO DE OURO

(Aos poucos clareia e, ao longe, ouvimos um galo cantar e depois um choro doído
de cachorro)
9

MIGUILIM
Pingo de ouro! Pingo de Ouro! ​(o choro fica cada vez mais doído) Cadê você, Pingo
de Ouro? ​(mesmo jogo) Dito, vem me ajudar! Pingo de Ouro! Dito! ​(mesmo jogo)
Continua latindo, Pingo de Ouro, que é pra eu achar você.

(Miguilim encontra a Pingo de Ouro que está presa na Arapuca. Não vemos a
cachorra, apenas a ação dos meninos tentando soltá-la)

MIGUILIM
Ô, Dito! Que demora!

DITO
Mas agora eu tô aqui e vou te ajudar!

MIGUILIM
Cuidado que a coleira ficou presa. Vai devagar que é pra ela não se enforcar.

DITO
Olha a unha dela! Desenrosca daqui!

MIGUILIM
Peraí, cuidado!

DITO
Tira aqui, ó! Não, aqui! Isso!

MIGUILIM
Peraí. Só falta esse pouquinho.

DITO
Foi.

(Dito sai)

MIGUILIM
Olha como ela festeja…

5. OS TROPEIROS E A PARTIDA DE PINGO


10

ANJO
DE QUANDO O PAI DEU A PINGO DE OURO​[8]
Agora vem momento triste
Que mostra que a vida não é justa
Quem essa história assiste
Um pouco da mágoa degusta
Vou contar o que sucedeu
Direitinho e com lisura
O que dentro da casa aconteceu
Trouxe desgosto e desventura
Entre pai e mãe houve intriga
E pai pôs-se a embrutecer
Era uma rixa antiga
Que os dois tinham a resolver
Miguilim entrou no meio
Pra proteger mãe Nhanina
Tomou do pai esbofeteio
Na face tão pequenina
Foi posto de castigo
Em um banquinho sentado
Apenas por Dito, seu irmão,
Acalentado.

Miguilim senta no cantinho e fica muito quieto.

DITO
Miguilim! Miguilim!

Miguilim não responde.

DITO
Você sabe que quando acontece uma coisa ruim, ruim mesmo é porque vem uma
boa logo em seguida, né?

Miguilim continua mudo

DITO
Às vezes acontece uma coisa ruim depois outra, mas acontece uma coisa boa
depois.

Miguilim continua mudo.


11

DITO
Às vezes acontece três ou quatro coisas ruins seguidinho, mas tem que ter calma
porque uma coisa boa há de vir uma hora.

Miguilim olha Dito desconfiado.

DITO
Como agora está acontecendo coisa ruim seguidinho, mas vou ensinar uma coisa
pra você: a gente pode ficar alegre com toda coisa ruim que acontece. A gente deve
ficar mais alegre, mas alegre por dentro.

Ouve-se um choro desesperado de Pingo de Ouro.

MIGUILIM
Pingo de ouro!

(O menino levanta e sai correndo do castigo. No trupé Dito se transforma em anjo.


Os sons do choro se intensificam )

ANJO
O pai por vingança do feito
Deu embora a cachorra
E por causa desse mal jeito
Miguilim se apavora

(O som do choro começa a ficar longe)

Pingo de ouro foi embora


Com uns tropeiros passantes
Quando Miguilim corre lá fora
E só ouve passos galopantes

(o som do choro fica cada vez mais distanciado).

6. ​EM BUSCA DA PINGO

MIGUILIM
(triste num cantinho de morro)
E agora, Pingo? Pra onde levaram você? Quem vai cuidar da sua patinha
machucada? Quem vai passar aguinha na sua pata, depois remédio e depois fazer
12

carinho no seu pêlo? Será que você tá com frio, Pingo? Com fome? Pingo, se você
voltar eu não deixo mais a arapuca no quintal… Eu juro!

Miguilim está enfurecido. Irredutível na sua assombrosa tristeza, sai sozinho pela
estradinha de terra. O anjo se posta num canto e apenas observa a situação.

MIGUILIM
Meus pés são pequenos
E não sabem voar
Volta Pingo de Ouro
Um, dois, três e já!

Minhas mãos não sossegam


Não podem parar
Volta Pingo de Ouro
Um, dois, três e já!

Meus olhos procuram


E não conseguem encontrar
Volta Pingo de Ouro
Um, dois, três e já!

(Miguilim caminha e caminha. O anjo observa sem intervir.)

ANJO
(enquanto o annarra, Miguilim corre sem parar rodeando o mapa)
Miguilim pega estrada
Corre para fora do Mutum
Sai sem rumo sem nada
Vai pra o lugar nenhum

Trás sempre sua Pingo na mente


Não pretende sem ela voltar
Procura, procura e adiante
Pára pra poder descansar

MIGUILIM​ ​(MUITO TRISTE E MUITO CANSADO)


Paninho na boca, respira com calma, Miguilim! Cadê minha Pingo de Ouro? Ela é
boazinha e não é de ninguém não, mas gosta mais de mim do que dos outros.
Quando eu escondo no fundo da horta pra brincar sozinho, ela fica do meu lado
bem quietinha. Ela é muito companheira… É tão bonita! Eu vou desenhar para não
esquecer… ​(Ele apalpa o chão procurando algo pra desenhar)
13

ANJO
Se Deus escreve certo
Por tortas linhas
Menino desenha torto
Amarelinhas...

Pra desenhar Pingo de Ouro


trago caquinho de telha
Desenha, seu tesouro
Que no desenho ele se espelha

MIGUILIM
Ela é pequena com o pelo ralinho… ​(fala enquanto desenha) Como é mesmo que o
Dito ensinou? Era uma vez uma mulher. Começou a chover e ela abriu o
guarda-chuva. Ela estava com muita fome, entrou num bar e comprou duas
linguiças e dois ovos fritos para comer…Mas dentro do bar tinha goteiras... ​(o
desenho dele é bem grande e com traços muito imprecisos)

Ele ouve um barulhão.

MIGUILIM
O que foi isso?

Miguilim vai procurar a origem do barulho.

7. ​ DITO ACODE MIGUILIM

ANJO
Depois da tristeza vem a alegria
Mas não no momento de agora
Tão cedo se aproximaria
Dor enorme e sem demora

(O anjo se transforma em Dito)

DITO
Miguilim! Miguilim!
Não faz assim
Tenha dó de mim
Abra seu fortim
14

Miguilim! Miguilim!
Não faz assim
Tenha dó de mim
Abra seu fortim

MIGUILIM
Dito! Dito!
Eu não acredito!
Vou te dar um pito!
Ai, Ai, Ai, meu São Benedito!

DITO
Não fica bravo não, Miguilim!

MIGUILIM
Não era pra você vir atrás de mim.

DITO
Eu fiquei preocupado e, além do mais, tudo lá em casa tá uma confusão. A mãe
trancada no quarto que só chora. Vó Izidra disse que você vai ficar de tanto castigo
que não vai nem lembrar o que é liberdade. Pai Béro tá meio triste meio bravo, mas
parece que é tanta coisa que eu fiquei um pouco confuso. ​(vê o desenho) Olha! É a
Pingo de Ouro certinha! Só tá faltando uma pinta que ela tem aqui. Cadê com o quê
você desenhou?

MIGUILIM
Eu não sei… Acho que caiu no chão.

DITO
Ela tem uma pinta bem aqui do lado do nariz.

MIGUILIM
Nunca vi não.

DITO
Você é muito distraído, Miguilim.

(Dito desenha a pinta e os dois meninos sentam-se aconchegados debaixo do


desenho da Pingo de Ouro)

MIGUILIM
15

Dito, você acha que a minha Pingo tá longe?

DITO
Tá não. Eu fiz promessa para ela estar bem pertinho.

MIGUILIM
Dito, você acha feio sonhar demais?

DITO
A gente precisa de duas vidas. A vida vivida e a vida sonhada.

MIGUILIM
Eu acho que eu sonho demais. Eu sonho com monstros, com anjos. Eu nem preciso
fechar os olhos pra isso. Agora mesminho. Eu tô sonhando que São Miguel traz a
mãe Nhanina bem pertinho para a proteger nós dois. ​(Miguilim chora escondendo
do irmão)

DITO
Então dorme e sonha Miguilim! Que sonho da gente fica de verdade lá nas nuvens.

(Dito transforma em Anjo e o conforta com um acalanto.)

ANJO
Dorme, dorme, Miguilim
Que alguém vai te proteger
A noite molha teu choro
E alguém vai te proteger

Debaixo da Pingo Desenho


Debaixo da sua guardiã
Debaixo do Choro Molhado
Tem o sorriso de amanhã

E dentro deste menino


o sonho desenha saudade
da mãe cantando baixinho:
dorme, dorme, noite invade

8. O PAI VEM BUSCAR OS MENINOS


16

(Anjo começa devagar a percutir no corpo. Esse som aos poucos vai aumentando e
ganhando ritmo. Começamos a identificar o tropel de um cavalo. Ele percute cada
vez mais forte e cada vez mais ritmado. A presença do animal cresce).

ANJO
Mas a manhã é transformadora
Carrega consigo o destino
E o surgimento da Aurora
Muda a vida do pequenino

O pai Béro vem a cavalo


Montado na força bruta
E nesse vigente embalo
Do menino só o grito se escuta

MIGUILIM
(A cena é feita com Miguilim contracenando com alguém que não vemos. Ele reage
com o corpo como se estivesse sendo puxado. O anjo continua a percutir o som do
cavalo)
Pai! Que isso? Ai … Me solta… Pai! Tá doendo meu braço. Não, pai! Não! Deixa eu
levar o desenho da Pingo… Pai! Pai! Solta! Por favor, eu pego rápido! Ai, pai! Ai! Eu
não quero ir… Eu quero procurar a Pingo! Ai, pai! Ai! Dito, me ajuda! Não, não… Eu
não quero ir! Me solta! Ai!

ANJO
O destino esse grande vilão
Não se cansa de maldar
Reserva na figura do irmão
Um castigo exemplar

Dito vinha lá atrás


Ouvindo tanto lamento
Entristecido ouvia
Pisava mesmo nem vendo

O caco que fizera o desenho


Com sua ponta diminuta
Teve outro desempenho
E no pé de Dito abriu uma gruta

(Silêncio. Tudo pára. Miguilim olha fixo para o chão. O anjo se traveste de Dito e se
coloca de forma a posicionar o pé na direção do olhar de Miguilim.)
17

ANJO ​(Cantando como um lamento enquanto se deita para a transformação em


Dito)
Abriu o pé do menino
Abriu caminho pra dentro
O pé do menino é asa
Que corre além do vento

Abriu o pé do menino
Abriu brecha ferina
O pé pro menino é casa
De uma alma pequenina

MIGUILIM​ ​(assustado)
Machucou, Dito? Que que é esse vermelho?

DITO
É sangue. Num tá vendo?

MIGUILIM
Tá doendo?

DITO
Tá doendo sim. Me ajuda a levantar. ​(relaciona-se com o personagem do pai, sem
que o avistemos). Pode ir na frente, pai. O Miguilim vai me ajudar no caminho.

(Os meninos acompanham o pai se distanciando com os olhos. Dito passa o braço
no ombro de Miguilim. O menino vai mancando e eles rodeiam novamente o mapa
que desenha o Mutum, fazendo o caminho de volta.)

9. ​CHEGANDO DE VOLTA EM CASA

(Miguilim por um momento se desfaz do abraço de Dito e busca o oratório que


representa a casa. Posiciona o oratório no centro da cena e ajuda Dito a se
aconchegar bem perto. Nesse movimento, os dois meninos entoam o vocalize que
serviu para a recepção de Miguilim. Agora a música é um adagio lento e triste.
Miguilim coloca o irmão deitado perto da casa. Cobre-o. Fecha a porta do oratório.
Afasta-se lentamente. Miguilim olha para o céu e reza.)

MIGUILIM
18

Anjo-da-guarda, que pisa nas nuvens da manhã, traz um remédio do céu pra curar
meu irmão? Eu sei que você cuida de mim, mas dessa vez não é pra mim que estou
pedindo não. Não é para me ajudar a parar de tropeçar. Ajuda o meu irmão Dito. Ele
é forte, não é doentinho e fraco como eu, não está acostumado com essas coisas.
Ele ajuda o pai na plantação, carrega coisa pesada. Ele não sabe o que é ter febre,
ficar de cama. Não sabe o que é não poder fazer as coisas porque é fraco e sempre
tropeça. Ajuda ele, anjo da guarda...

(Miguilim segue sozinho o vocalize que antes entoou com Dito. Dito deita atrás de
um morrinho, desaparece aos olhos do público. Vemos ressurgir vó Izidra, com
folhas imensas na mão e um incensário católico na outra. A velha entoa a reza a
seguir como em uma novena misturada com benzimento)

Pra fechar riso sangrento


Uma folha de Babosa
Amassada com Bravura
Com essa não há quem possa!

Pra fechar riso sangrento


Dois galhinhos de Mastruz
Bem banhados nessa carne
Fecha com o sinal da Cruz!

Pra fechar riso sangrento


Serve até o Alecrim
Vai, estanca, riso rubro
No pé deste meninim!

Essa febre que aumenta!


Esse riso que se alarga!
Segura com este unguento
Capim-limão e sálvia

Essa febre só aumenta!


Esse riso só se alarga!
Afasta tanto tormento,
Bastante Língua-de-vaca

10. ​OS CÃES SE PREOCUPAM COM DITO


19

(Ao final de sua reza, Vó Izidra joga a peneira no chão, na boca de cena. Miguilim
olha, observa longamente e, aos poucos, se transforma em cachorro. Vó Izidra se
livra das coisas que usou para fazer a benzeção e também se transforma em
cachorro. A peneira faz às vezes de vasilha de ração para ambos os cachorros que
aparecem)

GIBÃO
Dá aqui que essa carne é minha!


Vem arrancar do meu dente se tem coragem!

GIBÃO
Acha! Essa pequenininha quer ser valente!


Pronto, engoli! Come um pedaço de vento, Gibão...

GIBÃO​ ​(partindo pra cima da cadela)


Eu vou comer é um pedaço do seu lombo, sua…


Socorro!!! Dito! Miguilim!

GIBÃO
Quieta! Que o Dito tá descansando! Xiiiiiiiii!


Eu sei. Eu ajudo ele a descansar… Dou uma lambida no pé dele e ele dorme feliz.

GIBÃO
Ontem, ele fez uma careta feia. A cara espremia só de um lado. Parecia que tava
triste de um lado só. Faz tempo que ele não vem aqui pro quintal brincar!


Por isso que eu durmo perto dele.

GIBÃO ​(Avançando na cadela)


É por isso que ele não sara! Fica lambendo ele com essa língua fedida!!!!!
20


Fedido é seu… focinho!!! Seu Gibão que não gosta de banho!

GIBÃO
Ontem eu ouvi do Nhô Béro! Ele disse que preferia que fosse o Miguilim! Que já tá
acostumado com o Miguilim só doente! Ele disse: “Era melhor que fosse Miguilim!
Ele disse isso pra Nhanina… Ela só chorou doído.


Gibão… Olha ali atrás daquele morrinho...Espia… Mas quieto! Miguilim ainda tá
chorando.

(A Cã vai para o montinho para onde apontou e se transforma em Miguilim e chora


bem baixinho. Gibão pára e olha, aos poucos se transforma em Nhô Béro)

11. ​PAI MANDA MIGUILIM TRABALHAR

BÉRO
Levanta, Miguilim! Chorá não dá chapéu pra ninguém!

MIGUILIM
(sem olhar pro pai) Vou ajudar mãe…​(vai saindo e o pai o segura)

BÉRO
Sua mãe não precisa de ajuda! Tem mulher demais pra isso! Eu preciso de um filho
comigo, um filho que garanta o de comer dentro de casa. Cozinhar, depois, é
trabalho de mulher.

MIGUILIM
Então eu vou brincar com o Dito no quarto...

BÉRO​ ​(pegando forte o menino pelo braço)


Olha bem pra mim, Miguilim! Tá na hora de você ser homem! Honrar essas calças
que veste! Eu preciso de alguém comigo na plantação, carregando peso, fazendo o
trabalho pesado. E você é o único que estou vendo que pode fazer isso! Então pára
de nhem-nhem-nhem e vai trabalhar antes que eu te dê uma sóva!

MIGUILIM
Como é que trabalha?
21

BÉRO​ ​(apontando para o girassol)


Pega ali aquela enxada!

MIGUILIM
Qual?

BÉRO
Aquela com cabo bem comprido. ​(Miguilim pega um objeto pequeno. O pai recusa
com a cabeça e aponta para ele buscar outra coisa. Miguilim pega um objeto
mediano. O pai toma da mão dele e joga fora. Sem paciência, o pai pega o Girassol
e traz para Miguilim) Agora segura na enxada! ​(Miguilim pega com imprecisão) Tem
que segurar com firmeza. As mãos abraçam o cabo… Uma mão mais em cima,
outra mais embaixo… ​(Miguilim tenta reproduzir as ordens) Segura direito, que nem
homem!

MIGUILIM
Mas eu sou criança! Não sou homem ainda.

BÉRO ​(falando consigo mesmo)


Por que que o Dito foi machucar!

(Nhô Béro sai na sua revolta e deixa Miguilim sozinho na lida. O menino continua o
aprendido e tenta reproduzir o que o pai ensinou.)

MIGUILIM ​(muda a ação aprendida e começa gentilmente a plantar os girassóis


na peneira)
Uma mão mais em cima, outra mais embaixo… Direito, que nem homem… ​(o
menino tem uma fala chorosa) Por que que você foi machucar, Dito? Era você que
me ensinava as coisas do mundo. Como olhar as horas pelo Sol, como entender os
desenho das nuvens. Era você que sempre dizia o que que os cachorros
conversavam. E agora? … Uma mão mais em cima, outra mais embaixo....E bate
com pontaria assim! O ferro machuca a terra… Será que tá certo?

12. ​MIGUILIM SE DESPEDE DO IRMÃO

(O anjo chega trazendo o oratório. Fala todo o texto a seguir brincando com o
oratório nas mãos)

ANJO
22

E a chuva ficava forte no Mutum! Quantos olhos tem nesta casa? Da mãe, do pai,
da vó. Olhos vigilantes sem dormir ... Todos entram e saem do quarto onde o Dito
está. Ali deitado o Ditinho, perto dele Miguilim. Dos olhos de Miguilim saem águas e
mais águas. Aqui fora a chuva aperta e eu não tenho direito nem de um
guarda-chuva… Lá no céu os anjinhos espetam as nuvens e a chuva do Mutum só
aumenta. ​(Olhando pro céu) Vocês podem parar!? O aguaceiro aqui fora, o riso se
abrindo nos pés de Dito e Miguilim secando por dentro.

(O anjo coloca o oratório no chão, deita-se ao lado e se transforma no menino Dito.


Miguilim se aproxima com um pouco de medo).

DITO
Entra, Miguilim! Pára de esconder atrás da porta.

MIGUILIM
Eu não tô aqui não.

DITO
Então se não está, fica estando e entra.

MIGUILIM​ ​(entrando como quem quer sair)


Eu tava ajudando o pai no trabalho.

DITO
Então é por isso essa catinga brava.

MIGUILIM
Eu não tô catinguento. Eu tô banhado com sabonete perfumado e tudo. Vó Izidra
montou o presépio e disse que, pra eu ver tenho que estar limpinho.

DITO
Já é Natal?

MIGUILIM
Quase quase.

DITO
A quanto tempo eu estou no quarto?

MIGUILIM
Acho que já vi umas três ou quatro luas diferentes.
23

DITO
Eu logo saio. Eu vô sair voando por aquela janela e vou ter uma conversa bem
pertinho com São Miguel. Vou me alistar com ele. Que, quando eu for anjo, quero
ser anjo de exército e lutar contra toda malvadeza desse mundo.

MIGUILIM ​(chorando)
Não vira anjo agora não, Dito! Daí nunca mais vou te ver…

DITO
Chora não, irmão...Quando eu for anjinho vou achar a Pingo de Ouro e não deixo
nunca mais ela sumir.

MIGUILIM
Não, avoa, irmão…

DITO
(com dificuldade pegando o oratório que o anjo deixou) Miguilim, vou ensinar o que
agorinha eu sei, demais: que quando acontece uma coisa ruim, depois acontece
uma coisa boa. Mas a coisa ruim também é a coisa boa porque é o jeito que a vida
arranja de ensinar a gente o que é estar nesse mundo. Porque o mundo é muito
grande Miguilim. Ele vai bem além dos morros do Mutum.

(Dito respira arfante e pára de falar. Miguilim olha pra cima. Ele se relaciona com a
mãe Nhanina, mas apenas ele a vê. Enquanto nos mostra essa presença, ouvimos
também o som de um acalanto em boca chiusa)

MIGUILIM​ ​(sussurrando)
Mãe, o que acontece quando alguém morre e a gente não disse tudinho pra essa
pessoa?

(Dito tira de dentro do oratório vários papéis de seda amarelos picados e começa a
soprá-los formando uma revoada amarela)

MIGUILIM
Olha, mãe! As borboletas são uns anjinhos bem pequenos que vem pra Terra só pra
trazer beleza. E, mãe, a senhora sabe que depois de um momento triste tem um
outro muito bom? Então a gente fica feliz por dentro, mesmo com toda tristeza em
volta porque essa alegria um dia explode e voa que nem borboleta.

13. ​MORTE DO DITO


24

ANJO
A morte é como uma lagarta saindo do casulo. Primeiro ela quebra no meio e
parece que vai acabar com tudo, mas, depois, sai uma asa bonita, grande, colorida,
e é aquela asa que te ensina a voar.

(O anjo - meio anjo, meio Dito - corre pelo palco voando com as suas asas
compridas feitas das coisas do quintal. Ele dá pulos altos e sorri gargalhando.
Miguilim recolhe os papéis picados no chão, silencia olhando as borboletas
amarelas que recolheu)

MIGUILIM
O que acontece quando não se perguntou tudo pra alguém que não está mais aqui?
Tem um rio nos meus olhos
Cadê o Mutum?
Cadê arapuca?
Meus pés pisam no chão do mundo
Mas eu não vejo mais mundo
Posso correr pra fora do Mutum
Não tem mais graça
Não tem mais história
Cadê o Mutum?
Tem um rio nos meus olhos
e eu não sei nadar
Até os passarim sabe que eu tô triste
Eles vem perto cantar
Mas o Dito é que me ensinava a ouvir cantoria de passarinho

(Chuva forte. Com raios, trovões, ventos. Miguilim se acocora se protegendo da


chuva)

TINA ​(trazendo um barquinho de papel nas mãos)


Tudo precisa de descanso, Miguilim, o Sol, as nuvens, as estrelas, os cometas. A
gente nasce, cresce e descansa. Descansa para começar a nascer de novo do
outro lado do céu. O que aqui era flor, lá vai renascer passarinho. O que aqui era
gente, lá vai nascer bicho. Tudo nasce diferente lá...e aqui.

(Tina mostra o barco de papel grande nas mãos. Ela se aproxima de Miguilim e para
ele começa a mostrar alguns objetos que tira de dentro do barco: um pião, um boné
pequeno, um carrinho. Miguilim vai recebendo os objetos.)

MIGUILIM
25

É do Ditinho, Tina. O pião, o boné, o carrinho…

TINA
Vamos ajudar o Dito a dormir desse mundo.

(Os dois se encaminham à peneira na qual Miguilim plantou os girassóis. Tina se


afasta e deixa Miguilim sozinho se despedindo).

MIGUILIM
Dito, eu ainda não perguntei tudo e você já foi embora. Mas eu não vou ficar perdido
não. Eu vou perguntar tudo que eu sinto aqui bem dentro do meu peito. Eu sei que
lá no fundo você vai sussurrar baixinho e eu vou entender. A Tina disse que do
outro lado a gente nasce outra coisa. Então eu peço para que você nasça vento que
é pra ir me dizendo a direção.

(A chuva prossegue e começa um forte vento no Mutum. Miguilim inicia uma


trajetória pelo contorno do mapa que contorna a cena, como se andasse nessa
linha)

14. ​TIRANDO AS ASAS

(O Anjo surge querendo se aproximar de Miguilim, mas impedido pelos raios,


ventos, trovões)

ANJO
Esta chuva é tempestade
Tem barulho e claridade
O tanto que molha ela destrói
Chuva assim na gente dói

E eu olhando tudo distante


Com coroa e asa brilhante
Sem tomar parte nessa dor
Cuidar assim não tem valor

Ninguém ouve anjo aqui


Mãe só chora e faz dormir
Pai foi longe caminhar
E vó reza sem orar

Vou botar fora essas asas


Entrar dentro da casa
26

E abraçar o Miguilim
Um tanto por ele e um tanto por mim

Vou mudar essa missão


De ser só anjo de proteção
Vou tomar um viver mundano
Me tornando ser humano

(Anjo tira as próprias asas e a chuva pára. Vemos quando se transforma em Miguel,
tira algumas penas de suas asas e coloca-as na gaiola à guisa de realejo. Ouvimos
a música típica desse artefato)

15. ​O ENCONTRO COM O ANJO SEM ASAS

(Misturando-se à música, ouvimos o canto de um pássaro, aos poucos outros sons


de outros pássaros vão se somando. Miguel se aproxima trazendo a gaiola)

MIGUEL
Venha ver sua sorte! Venha ver sua sorte! Se aproxime, menino, para ver o que a
sorte tem pra você.

MIGUILIM
Para mim?

MIGUEL
Não se assuste não, menino… Que este passarinho que trago comigo voa no céu
todos os dias e só fica aqui quando quer… É um passarinho sabido. Ele conhece as
pessoas...

MIGUILIM
Quem é você?

MIGUEL
Um funcionário dos pássaros. Mas que agora anda na terra.

MIGUILIM
Você não me é estranho, mas você me é estranho.

MIGUEL
27

Venha ler a sua sorte… ​(Abre a gaiola, tira uma pena e a entrega para Miguilim)
Olha, O passarinho tem um recado pra você. Toma! Este recado é especial porque
o passarinho cantou bonito.​(Aparece uma letra M projetada embaçada)

MIGUILIM
Não consigo, faz tempo que tem uma poerinha aqui no meu olho.

MIGUEL
Eu te ajudo. ​(tira os óculos e os coloca em Miguilim)

(A letra M aos poucos adquire foco)

MIGUILIM
Nossa!

Miguilim sai correndo com os óculos de Miguel. Vendo e identificando todas as


coisas.

MIGUILIM ​(refazendo o caminho do começo da peça)


Aqui tem pedra, aqui tem tronco deitado… Olha! Um monte! um marzinho!...Um
muro... Mãe! Mãe! O Mutum é maravilhoso!... Mãe!... ​(de repente ele pára e se
relaciona com alguém que não vemos) Mãe, a senhora é muito mais linda do que eu
achava! Ali é a Tina ​(aponta para longe), Abenção, avó (faz menção a alguém que
não está na cena) e aquele é o Pai? Aquele lá longe do chapéu grande. ​(corre para
o morro mais alto) Olha só o que tem pra lá do Mutum… Tem uma casa velha onde
já foi um castelo. E tem uma estrada comprida. um riacho. Olha naquela árvore lá
longe, um bando de macacos muito arteiros! Um caminho por onde as borboletas
voam e tem flores amarelas… Eu não sei o nome das flores… Como chamam as
flores? E aquele pássaro ali? Como ele chama? Eu quero saber o nome das coisas!
O Mutum tem um longe muito mais do que eu achava.

MIGUEL
Menino, passarinho mandou outra mensagem pra você. ​(Junto da letra M surgem as
letras UNDO. Miguel pega a gaiola e começa a sair)

MIGUEL ​(pegando de volta os óculos que estão em Miguilim)


Eu e passarinho vamos pro mundo. Vamos pro lugar onde se aprende o nome das
coisas que você vê aqui e outras tantas que só se vêem por lá.

MIGUILIM
Eu ainda quero que o passarinho me ensine outros nomes. Eu posso ir com você?
28

(Miguel recoloca os óculos em Miguilim)

16. ​A PARTIDA DO MUTUM

(Miguilim pega lenta e delicadamente o oratório nas mãos)

MIGUILIM
A minha casa! Meu ranchinho fundo de paredes arranhadas. Minha casa tão bonita.
Tão bonita como o Mutum. Tchau, Vó! Não fica muito brava aí não…Olha quantas
flores tem na roupa da senhora. Cadê o pai? Ele não tá em casa? Eu nunca dei
abraço em pai. Chora, não mãe… Chora não…Tina, cuida da mãe .Eu vou ser do
mundo como você é, Tina. Mãe, a senhora é bonita, tem um monte de pintinhas…

(Miguel começa a tocar o Realejo. Miguilim se aproxima dele. Dá adeus para o


Oratório, coloca-o no chão e acende uma vela na sua frente)

MIGUILIM
Meu nome é Miguilim, venho de lá do meio da serra onde a mata una verdejante se
faz parede em torno a estrada de terra, que chega ao Mutum.
É nessa terra esquecida no meio do sertão que vivo, revivo e revivendo com Pai
Béro, Mãe Nhanina e irmão Dito, estrela lá do céu.
Essa terra é bonita feito beija-flor beijando o girassol, no mais alto da serra.
Vivo a procura de coisas que nem mesmo sei o que é, busco aquilo que se esconde
na casa do João de barro.

MIGUEL
Miguilim piquininim, brota da terra, do seco, traz na alma a vontade do querer,
simples, traz no peito a alegria de viver, sonhar, aprender, mas não deixa de amar.

(Saem andando pela estrada ao som do realejo e ouve-se uma voz de mulher)

VOZ DE MULHER (OFF)


Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar.

MIGUILIM ​(olhando de repente ao longe)


Pingo de Ouro!

Black out
29

Fim
28/06/2018

Você também pode gostar