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Aventura de VIVER

De vez em quando o milagre acontece e há leituras, há narrativas que atravessam a vida de lés-a-lés, nos
esclarecem a respeito dos outros e de nós mesmos, desempenhando, através dos destinos e dos dramas
que põem em cena, a sua grande função de efabulação e de ternura. Que seríamos nós sem esse círculo
íntimo de personagens que se tornam nossas cúmplices, sem essas histórias que se lêem e relêem de um
modo fascinado, quase hipnótico?

Alexandre Honrado

Uma Chuvada na Careca

Ilustrações de Rui Truta

© Copyright 1989 ÂMBAR"»- Complexo Industrial Gráfico, S.A.


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Depósito Legal N.° 25350/89

ISBN 972-43-0141-9

1.ª Edição -Março de 1989


4.ª Edição - Agosto de 2000

Título
UMA CHUVADA NA CARECA

Autor
ALEXANDRE HONRADO

Colecção
AVENTURA DE VIVER

São sete horas da manhã do dia 7 de Janeiro do 7° ano unificado da minha vida.
Durmo, mas não durmo. O meu pai chegou ao meu quarto com a voz do despertador a cair-lhe da boca.
Gritou: SÃO MAIS QUE HORAS PARA SAÍRES DA CAMA. A casa tremeu. O meu sono foi-se abaixo,
veio de roldão, estatelou-se na almofada. Por isso, durmo e não durmo. Solto um rugido pequenino: É SÓ
MAIS UM BOCADINHO. O rugido é pequenino, mas eu pensei-o em voz alta. E o meu pai ouve. Ele
ouve tudo, ouve muito bem, tem um radar em cada orelha, às vezes, porém, disfarça e finge não ouvir.
Desta vez não disfarçou. Ligou: os olhos inchados de sono incharam para mím, a barba ainda por fazer
ficou com os pelinhos todos em pé. Mais valia que fizesse como naquelas outras vezes em que parece não
ligar mas ouve tudo. Agora não se cala. Espatifa a caixa de vidro onde guardei o meu sono: SE QUERES
BOLEIA, DESPACHA-TE. Eu quero boleia. É claro que quero boleia. A "Careca" fica longe como tudo...
Mas também quero dormir... só mais um bocadinho... só mais um bocadinho... um bocadinho...
pequenino...
Tive um trabalhão enorme para colar a minha caixa de vidro, o meu sono todo. Finalmente, eu estava na
praia e era Verão, o sol escaldava, vinha uma onda e eu mergulhava...
Foi um sono minúsculo, uma cabeça de alfinete; o Inverno voltou.
ACORDA, MIÚDA!!!
Quem era? A Alexis da Dinastia? O J.R. do Dálias? Aquele senhor que vai à televisão dizer coisas
impossíveis, aquele que tem umas orelhas enormes, tipo asa delta, e um sorriso de plasticina?
Nada disso.
Lá se espatifou a minha caixa outra vez.
Está bem, 'mãe. Já lá vou.
São sete horas e meia deste dia sete. A água do duche sabe a dia novo. As gotinhas do chuveiro são
martelinhos no alto da cabeça, a cantarolarem uma canção dos Afonsinhos do Condado. Da "Salsa das
Amoreiras" corro para a realidade: acordei. Tenho a certeza. Belisco-me para confirmar. Al!
Até me lembro do que se passou ontem à noite, não há dúvidas. Era dia (era noite) da Lotação Esgotada.
A minha mãe, às nove horas, olhava-me como se eu tivesse uma doença contagiosa. Os olhos da minha
mãe dizem sempre o que ela sente. Lógico: fui-me deitar, muito bem educadinha, a educação que me
deram é a melhor, vamos embora, toca a retirar. Vesti o pijama; dei as boas noites ao Buffalo Bill, o meu
eterno, velhíssimo urso peludo — que tanto me tem aturado ao longo dos anos.
Veio o meu pai: beijo número um.
Veio a minha mãe: beijos números dois, três e, após quatro ou cinco recomendações — FIZESTE TODOS
OS TEUS TPC? TENS A MALA PRONTA PARA AMANHÃ? QUAL É A DISCIPLINA QUE TENS NA
PRIMEIRA HORA? NO FIM-DE-SEMANA VAMOS A CASA DA AVÓ LUÍSA; TIVE UM DIA
IMPOSSÍVEL; BOA NOITE, QUERIDA, LAVASTE OS DENTES? — , após tudo isto lá veio o beijo
número quatro.
Enfim, sós. Eu e o Buffalo Bill. "Nem te ficou tempo para responder." "Não sejas urso, sabes muito bem
que é sempre assim."
"É claro que sou urso, o que é que tu querias que eu fosse?"
"Outra coisa qualquer..."
"Prefiro ser urso, apesar de me chamares búfalo."
"Não é búfalo, é Buffalo, à americana."
Conversámos até às nove e meia.
"Já volto."
"Vê lá em que é que te metes!"
"Já sou crescidinha."
"Ora, ora..."
Palmilhei o corredor.
Fui buscar a cadeira que está ao pé do telefone; subi.
Pus-me a ver o filme através da janelinha envidraçada da ombreira da porta.
Não sei se sabem, mas não há nada pior do que ver um filme na clandestinidade, em cima de uma cadeira,
de pescoço esticado, a tremer de medo de ser descoberta... E ainda por cima o filme não valia o esforço. O
Vale do Arco-íris. Puf,
Mi"
só o título! Bem fez o meu pai que se pôs a dormir alegremente.
Mas iria jurar que o Telegoela viu o filme de cima a baixo, de fio a pavio, de ponta a ponta, com
intervalos e anúncios incluídos. E autorizado pelos pais! E repimpado num sofá!
O Telegoela vê tudo o que transmitem na televisão. A única coisa que ele vê, realmente, é o que
transmitem na televisão. O Telegoela é um pequeno televisor ambulante que, em vez de antena, tem
caracóis espetados para o alto. Sabe tudo, detalhe a detalhe, se já deu na televisão. Quando o Telegoela
andava comigo no Ciclo, já era assim. Nessa altura, sabia as aulas inteirinhas de cor: JÁ DEU NO CICLO
PREPARATÓRIO TV, dizia ele. Que pena não haver o Curso Unificado todas as manhãs, ou todas as
tardes antes do Telejornal, nem era preciso ir à escola. É o que pensa o Telegoela.
Eu sei perfeitamente como é que vai ser daqui a pedaço. Hoje, o Telegoela vai-me interrogar: ENTÃO E
O VALE DO ARCO-ÍRIS? ACHAS QUE A TERRA TINHA MESMO PROPRIEDADES MÁGICAS? E
A FILHA DO FULANO? UM ESPANTO! SÓ FOI PENA O FILME COMEÇAR ATRASADO, ASSIM
É IMPOSSÍVEL!
Bom. Como eu não entendi patavina do filme e fui-me deitar muito antes do fim, tenho de encarar o
Telegoela como sempre o faço: a mastigar uma pastilha elástica, a abanar a cabeça, a falar o menos
possível. Como os intervalos da escola são mais curtos do que as aulas, como nas aulas eu só falo com a
Asinhas nos Pés, está resolvido o problema. Pelo menos até ao intervalo seguinte. Eu sei que o Telegoela
adora apanhar-me à traição: NÃO FOI UM FILME BESTIAL? UM ESPANTO!
Para o Telegoela só há duas classificações: ESPANTO e IMPOSSÍVEL. O Telegoela só capta em dois
canais, não sabe da invenção da parabólica... Um dia destes, os professores começam a dar-lhe notas de
uma maneira diferente: Espanto/Impossível. Então, o que é que tiveste a Matemática? Um impossível, vê
lá tu!
Só há uma coisa invejável no Telegoela: chega à "Careca" antes das oito da manhã e vai fresqui-nho como
uma alface, nem parece que perdeu metade da noite anterior a ver televisão...
ANDA, MIUDA! SÓ ESPERO POR TI MAIS TRÊS MINUTOS.
Esfrega, toalha, mexe-te, não ouves o meu pai?
As calças de ganga. A camisa, o camisolão. Safa!
Uma penteadela? Claro!
O espelho deita-me a língua de fora.
Como eu gostava de ter os cabelos macios da minha mãe!
Corre, corre.
Pão com manteiga? Um copo de leite?
Comes o resto no carro. A "Careca" não pode esperar, daqui a nada põe-se a gritar e lá perco a tolerância.
Chumbadínha por faltas é que não vale. É melhor cair na batalha do que chegar atrasada à guerra.
ANDA, MIÚDA!
A miúda anda.
PÕE O CINTO!
A miúda põe.
PÕE A MALA LÁ ATRÁS, OLHA O MANÍPULO DAS MUDANÇAS!
O meu pai vai com a cara de segunda-feira e já estamos na quinta.
Fica-lhe bem, o bigodinho novo. E agora que já fez a barba parece outro.
A ultrapassagem é que não vale. Por acaso deu certo.
NINGUÉM SABE CONDUZIR NESTA TERRA!
Ora ainda bem que o reconheces, papá!
Eu gosto dele. Às vezes faz cara de cágado, mete-se na casca, irrita-se. Às vezes grita. Mas não se pode
ser perfeito.
DESEMBARCA, MIÚDA. DÁ CÁ UM BEIJO!
O Natal já passou, mas aconteceu: o meu pai estreia um sorriso. Só para mim.
Beijo, beijinho.
FIQUEI COM A CARA CHEIA DE MANTEIGA! NÃO TE ESQUEÇAS DA MALA!
Pronto. O carro chia e desaparece. A "Careca" grita, deixa-a gritar que ainda vai no primeiro toque.
Lá vem a Asinhas nos Pés, com o seu passinho ligeiro de bailarina.
Lá vem o João Boião, a transbordar do impermeável.
Olho para a "Careca", coitada. Tenho mesmo pena dela. Depois, dá-me um solavanco cá por dentro. E
tenho, também, pena de mim. Agora, aqui, é a doer. Entra-se às oito horas. Não se conhece quase
ninguém. As aulas são enormes e os professores falam de coisas complicadas. ISTO É O UNIFICADO,
NÃO É A GRACINHA DO CICLO!
À minha volta reúnem-se grupos. São tão velhos,aqueles. Devem ser do 11.°. E aquela professora é tão
novinha. Deve ser da idade deles...
A Asinhas nos Pés dá-me um safanão. Também esta quer que eu acorde.
— Fizeste o trabalho de Inglês? Posso passar pelo teu caderno? Ontem tive aula, no Conservatório, e...
— Tá bem...
— Cuidado com a prancha, não caias!
— Será que nunca mais acabam a Escola?
— Deixa lá, se chover não temos Matemática.
— Não deixa de ter as suas vantagens... Alarme! Chegou o Telegoela.
Bolas, esqueci-me da pastilha elástica!
— Então e o Vale do Arco-íris? Um espanto! Salvos pelo segundo toque.
— Daqui a bocado falamos.
— Um espanto, um espanto aquele filme... Uma corrida. À porta do pavilhão a confusão
é total. Terceira guerra mundial em perspectiva, logo pela manhã. Estão aqui quase todos. A Lindezas está
no seu poiso. Deve dormir cá. Nunca falta, nunca chega atrasada. Já lá está no seu local de trabalho muito
antes de chegarmos. E mal nos vê sentados, desembucha cinquenta minutos de matéria que é uma tristeza
ouvi-la. Quando se cala é uma simpatia. E veste muito bem, a Lindezas.
Hoje, apesar de tudo, não parece nada interessada em falar com voz de nevoeiro durante cinquenta
minutos. Olha-nos com dois olhos tristes e suspira.
A Sara Serigaita avisa:
— Vem aí o Chico Fininho. E traz a Xutos, com toda a certeza.
Há que confiar. A Sara Serigaita sabe sempre tudo acerca do que se passa ou vai passar na Escola.
— Quem me disse foi a Gui, aquela do 9.° ano! A Sara adora a Gui. Quase toda a gente adora
a Gui. Os outros detestam a Gui. A Gui é a melhor. Mesmo quando não diz ou não faz nada. A Gui é a
melhor. É delegada de Turma; é a delegada do seu ano; é a que tem mais apaixonados; é aquela que ajuda
os outros quando os outros precisam de ajuda. Aquilo que ela quer, acontece-lhe. Assim: passe de mágica,
prestidigitação de circo, efeito especial de concerto "rock".
Ou se gosta da Gui ou se detesta. Os professores dizem: a Gui é a melhor, mas não tem o mínimo
interesse em prová-lo. Não se esforça. Os alunos dizem: a Gui é a melhor, quem me dera ser como ela. A
Gui é a melhor. É irritante!
Já disse: a Gui ajuda toda a gente. Parece nunca ter problemas. Terá a Gui os seus problemas? E nesse
caso, quem é que ajuda a Gui?
— Foi a Gui quem mo disse: vem aí o Chico Fininho.
A Sara Serigaita é repetitiva. Um eco. Mas acerta.
Lá vêm eles: o Chico Fininho, cada vez mais fininho, no seu fatinho de veludo castanho. Atrás dele Miss
Xutos. O que é o mesmo que dizer: o Conselho Directivo em peso. Penso que a "Careca" não pode viver
sem eles...
Entramos na sala.
O Chico Fininho e a Xutos entram na sala.
A Lindezas, que já está há anos na sala, tenta pôr ordem na sala:
— O Conselho Directivo tem um comunicado a fazer-lhes!
O João Boião aproveita para comer um pãozinho com marmelada.
O Papá Tem, o miúdo mais irritante da turma, está a contar que o pai o quer mudar de escola.
A Asinhas nos Pés senta-se a meu lado e participa-me que tem umas sapatilhas novas.
A Rute Eléctrica anuncia à Carla Corações que
os pais lhe deram autorização para entrar em casa à meia-noite todas as sextas-feiras, se ela mantiver as
notas altas que teve no período anterior. Se é verdade ou mentira nunca o saberei e da Rute Eléctrica tudo
é de esperar...
O Telegoela conta o filme a quem o quiser e a quem o não quiser ouvir.
É então que o Chico Fininho quase parte a mão ao dar um soco na secretária da stôra. A Lindezas
estremece dentro do vestido.
— Parece que estamos dentro de uma gaiola de periquitos!
É a Xutos que geme, naturalmente. A especialidade da Xutos é gemer.
Faz-se silêncio. A Maria Só resolve assoar-se e o Chico Fininho atira-lhe uma ogiva nuclear:
— CALUDA!
Faz-se silêncio outra vez. A Sara Serigaita está com ar importantíssimo. Sussurra:
— Eu não vos disse?
O Chico Fininho explode. A Xutos geme. A Lindezas está verde. O vestido é azul. Não combinam.
— Como vocês sabem, fizemos um grande esforço para pôr esta escola a funcionar desde o
primeiro dia do ano lectivo. E, mal ou bem, lá o conseguimos.
Muito mal! — apoia a turma.
— No entanto, a escola ainda não está pronta. A quem o dizes! — apoia a turma.
— É até provável que, durante quinze dias, a escola tenha de fechar!
— Apoiado! Apoiado! — grita a turma.
— CALUDA!
O reboliço é grande. Cresce. É gigantesco. A Xutos geme e a Lindezas tem o azar de lhe perguntar se ela
precisa de alguma coisa. A Xutos faz-se de parva e continua a gemer. O Chico Fini-nho berra, a plenos
pulmões:
— Vou convocar os vossos pais. Na próxima terça-feira estará cá um delegado do Ministério e vamos
todos ter uma reunião.
Ah, sim, é claro. O delegado do Ministério. Aquele homenzinho baixote, muito agradável, que fala muito
bem. Já cá esteve da outra vez. Foi o que mandou abrir os buracos à volta da escola, para instalar a
canalização... Até agora só temos os buracos, um fosso enorme à volta da escola, nada de canalização. É
por isso que a escola é o máximo. Para cá entrar temos de atravessar umas
pranchas de madeira, como nos filmes históricos. Temos aulas numa espécie de castelo. O Chico Fininho
tornou-se o rei, a Xutos a rainha.
Por isso adoramos a nossa "Careca". A nossa escola onde vários pavilhões não têm telhado, onde não há
aulas de Matemática quando chove — e tem chovido imenso — onde não há ginástica porque "o pavilhão
está à espera de melhores dias", onde o Conselho Directivo treme em cada vez que o vento é mais forte e
treme sempre que pensa que o vento vai ser mais forte.
Agora é a doer. Mas isto está a ter montes de piada.
— Bom — diz-nos a Lindezas, sem saber o que dizer.
— Bom — diz a Xutos e geme.
— Bom — diz o Chico Fininho e passa um lenço vermelho pela testa suada.
— Bom — diz a Asinhas nos Pés, — está quase a tocar para a saída.
É um intervalo morno aquele que se segue. Morno e frio ao mesmo tempo. É morno porque todos estão
sem vontade para coisa nenhuma e frio por causa do ventinho que cresce e que traz folhas secas em
danças malucas.
Reunímo-nos, no grande e alagado pátio interior da "Careca", em bandos de várias raças: grupinhos e
mais grupinhos que nunca se misturam.
A manhã cheira à terra lavada. É é ainda uma manhã por estrear. Reunem-se também as nuvens no céu.
Vamos ter borrasca. O Telegoela aproxima--se.
— Vamos ao que interessa: quem é que viu ontem o Telejornal?
Só tenho tempo para meter na boca uma pastilha elástica. Enfim, este dia vai ser como os outros, igual
aos outros. E há-de acabar como os outros, embrulhadinho em chuva e tristemente molhado.

Foi você que pediu um dia diferente? Pois bem, aí o tem. Não há dúvidas: se este dia parecia ser como os
outros, não vai acabar como os outros. Entenda-se: em primeiro lugar, mal as aulas acabaram, parámos
um pedacinho no café mais próximo da "Careca". É coisa a que já nos habituámos. Ocupamos as mesas
todas, falamos aos gritos, irritamos imenso o pobre do Bandejas. O Bandejas até é amoroso, mas não tem
o menor sentido de humor. Como o Bandejas passa a vida a suspirar sem razão, nós resolvemos dar-lhe
montes de razões para os seus suspiros. Se não fosse o bigodinho
do Bandejas, bem podíamos considerá-lo parecido com a Xutos. O que o Bandejas sabe suspirar sabe a
Xutos gemer. Deviam casar um com o outro...
A primeira bronca da tarde foi da responsabilidade do Papá Tem. Virou-se para o Bandejas e imitando a
voz da Quicas Argila, a "stôra" de História, sentenciou:
— A Humanidade fez um grande progresso a partir da altura em que começou a comer pão. Com uma
pedra, a que chamavam mó, esmagavam o cereal, durante horas, até o reduzir a farinha. Depois
amassavam-na e punham-na a cozer. Não usavam fermento...
O Bandejas arregalava os olhos. Tanto que pareceu atirá-los à cara do Papá Tem quando gritou:
— Mas, afinal, o que é que quer comer?
— Meu bom e primitivo homem, está bom de entender que pretendo uma tosta mista, feita de cereal
esmagadinho durante horas por uma mó, tornado pãozinho cozido e tostadinho, com muito fiambre e
queijo quanto baste.
O Bandejas enfureceu-se: JÁ PODIA TER DITO. O Papá Tem ripostou: JÁ O TINHA DITO, a Asinhas
nos Pés tirou-me o "dossier" de inglês e espalhou
as folhas todas por cima do Bandejas, o Bandejas gritou É PROIBIDO ESTUDAR NESTE
ESTABELECIMENTO, o Telegoela gritou ISTO NÃO É UM ESTABELECIMENTO, É UM CAFÉ e,
para que a confusão fosse maior, a Gui fez a entrada da tarde: em cima de uma motorizada, com o ar mais
natural deste mundo, invadiu o café/estabelecimento. O Bandejas atirou com a bandeja ao ar e gritou pelo
patrão. O patrão tinha saído mais cedo e a Gui aproveitou para pedir um cigarro ao Pedro Surfista. O
Pedro Surfista não fuma. A Gui também não, mas gosta de armar. Mas o Pedro Surfista desfez-se em
sorrisos e foi à máquina dos cigarros ver o que é que se podia arranjar. Nisto eu descobri que as folhas do
meu "dossier" estavam a transformar-se, muito estranhamente, em aviões de papel. E tive de dar um
sopapo ao Papá Tem. O Papá Tem deu-me um sopapo que, por sorte, acertou no Telegoela. O Telegoela
atirou uma canelada por debaixo da mesa. Acertou, com bela pontaria, no João Boião. Fez-se um minuto
de silêncio por alma do Bandejas que, irritadíssimo, nos começou a pôr pela porta fora à vassourada.
As folhas do meu "dossier" ficaram na batalha, pobres guerreiros brancos e espezinhados...
Cá fora, os ânimos acalmaram. O Pedro Surfista pediu boleia à Gui, a Gui disse que tinha de devolver a
mota ao Tó Grande. O Papá Tem disse que o pai tinha uma mota fantástica para lhe oferecer assim que ele
tivesse idade para motas fantásticas. O Telegoela disse que havia um programa na televisão que não
queria perder. E eu disse à Asinhas nos Pés que não podia perder o autocarro.
Resolveu-se tudo num instante. Até o Bandejas veio à porta do café e, mais bem disposto, me disse adeus.
O autocarro chegou. O Papá Tem declarou:
— Vou contigo. O papá tem que fazer e não me pode mandar o motorista.
O autocarro parou. Lá dentro, famílias inteiras apertavam-se como se fossem todas muito amigas e
quisessem, em abraços e mais abraços, provar em público a sua amizade.
O Papá Tem, que adora História — não percebe muito bem a matéria mas, em compensação, sabe o livro
de cor — resolveu esclarecer:
— "A caça era a incerteza. A agricultura trouxe a abundância." Se não fosse a agricultura, tínhamos lugar
no autocarro e já não havia esta tremenda abundância de pessoas.
Conseguimos furar. Sentámo-nos no porta-malas, que fica atrás do motorista. E preparámo-nos para viver
uma hora de emoções.
— Saia de cima do meu pé, por favor!
— Esta juventude! Uma senhora grávida, de pé, e um rapaz saudável muito bem sentado.
— Vai sair na próxima?
— Alguém viu o meu filho?
— Quantos módulos são para ir até ali?
— Há lugar lá atrás?
— Só um jeitinho!
O Papá Tem interrogou-me:
— Se a escola fechar, o que é que vais fazer? O papá tem planos óptimos para as férias, talvez se possam
antecipar.
O que é que eu vou fazer se a escola fechar durante quinze dias? O que é que eu vou fazer? Sei lá, talvez
ver quinze dias de televisão, para poder discutir com o Telegoela...
— Não sei; se calhar vou para casa da minha avó Luísa.
A ideia não pareceu agradar ao Papá Tem.
— Sabes que o papá tem avó? É muito velhinha...
Para grande, enorme felicidade, o autocarro
chegou à "minha" paragem. O motorista fez algumas habilidades fantásticas, equilibrou o autocarro no
piso molhado e escorregadio, evitou deitar ao chão as trinta e tal pessoas que, mal viram o desejado
transporte, se atiraram para o meio da rua; e, finalmente, parou.
Meti ombros à tarefa complicadíssima de sair. E saí, com dois ou três arranhões, meia dúzia de nódoas
negras no corpo.
Procurei a chave de casa. A chave da minha casa tem o condão e a magia de andar sempre desaparecida.
Ainda a procurava quando, para meu espanto, a porta se abriu.
Foi você que pediu um dia igual aos outros? Impossível! O meu pai, inteirinho, a abrir-me a porta. Por
detrás dele a minha mãe e, um pouco mais atrás, a cara de caso da minha avó Luísa. O que teria
acontecido?
— Entra —i disse o meu pai.
— Entra, filha — disse a minha mãe.
— Olá, meu amorzinho, cada dia que passa cresces mais um bocadinho — recitou a avó Luísa.
A filha, o amorzinho, a menina crescida, a mala da escola e um sorriso cor de fruta fora da época entraram
em casa. Tudo ao mesmo tempo. Gaguejei:
— Aconteceu alguma coisa?
— Talvez, ainda não se sabe.
Ora, talvez não é resposta e eu não me fiquei por tão pouco:
— Mas aconteceu o quê, a quem? Por que é que estão todos aqui a esta hora?
— Vamos a casa do tio Gaspar. Vai mudar de roupa!
Quando uma mãe fala é como quem paga um imposto: não se responde, faz-se.
No meu quarto, o Buffalo Bill sorria:
"Há novidade!"
"Lá isso há, mas não sei o que seja."
Troquei de roupa: as calças de ganga, o camisolão azul...
A minha mãe espreitou por uma nesga da porta:
— É melhor pores o vestido novo.
O Buffalo Bill escangalhou-se em gargalhadas. Eu fiquei corada até à pontinha dos cabelos: o vestido
novo? A prenda terrível da avó Luísa? Eu adoro a avó Luísa, mas ela bem me podia consultar acerca do
que eu gosto ou do que não gosto...
— Posso ir de calças e camisolão?
— O vestido está pendurado no roupeiro. Fim de citação.
"E dizes tu que já estás crescidinha! É só corpo, rapariga. Ainda te falta muito para cresceres..."
Atirei com uma almofada ao focinho do Buffalo Bill e o pobrezinho deu uma cambalhota.
Entretanto, já que a minha mãe deixara a porta aberta, pus-me à escuta. Não sou nenhuma bisbilhoteira,
mas não gosto de ficar longe das jogadas que me dizem respeito.
Da sala vinha o som amargo de uma discussão. E, pelas franjas que me chegavam da conversa, ninguém
se entendia. Se havia mistério era para todos.
— O que é que será que ele quer?
— Parecia muito bem disposto, mas nunca se sabe.
— O Gaspar nunca regulou lá muito bem.
— Não diga isso, mãe.
— Digo, torno a dizer, e não és tu que me irás mandar calar...
Quando as vozes sobem de tom, não há nada melhor que a velha táctica da Asinhas nos Pés. Por isso, fui-
me ao gira-discos e pus a rodar o "True Blue", o meu disco preferido da Madonna. Enchi a casa com "La
Islã Bonita", gritada a plenos pulmões de gira-discos. A técnica resulta sempre:
eles param de discutir e correm a discutir comigo:
— PÁRA ESSA SANFONA IMEDIATAMENTE! JÁ ESTÁS PRONTA? VESTISTE ESSE VESTIDO
COMO SE FOSSE UM SACO DE BATATAS!
— Ó menina, onde é que já se viu tanta falta de elegância?
— Despacha-te. O Tio Gaspar não gosta de atrasos...
Pronto. Alvo atingido, submarino afundado. Barco de dois canos ao fundo, porta-aviões a pique.
Esqueceram-se da discussão deles. Agora têm-me a mim para pagar as favas. Vou-me à Madonna e corto-
lhe as goelas. A calma volta a reinar no lar. A avó Luísa lamenta-se:
— E ainda por cima, vou perder a telenovela.
— Deixe lá, mãe, mesmo que perca dez ou vinte capítulos fica sempre a par da história.
A minha mãe manda o meu pai trocar de gravata. E o meu pai diz-lhe para trocar de brincos. A minha avó
troca de posição e procura um sofá. E eu fico mais um pedacinho no quarto para pedir desculpas ao
Buffalo Bill. Recebidas e aceites as desculpas, começamos a falar do Tio Gaspar.
"É aquele velhote bonitão, não é? Aquele que tem os cabelos ondulados, cor de neve?"
"Exactamente. É o irmão da avó Luísa."
"Como é que se chamava a mulher dele, aquela esganiçada?"
"Maria Adelaide. Lembras-te dela?"
"Lembro-me das histórias que tu contavas dela... E da paciência do Tio Gaspar."
"Penso que só o Tio Gaspar é que gostava da Maria Adelaide."
"Ela era muito doente, não era?"
"Era. Já morreu há quase três anos."
"Lembro-me: pouco antes dela morrer vocês foram à praia. E tu vieste irritadíssima!"
"Pudera. Elá passou o dia inteirinho a obrigar-me a vestir a parte de cima do meu biquini. Que diabo, eu
tinha dez anos nessa altura e até a minha mãe, quando a Maria Adelaide não ia à praia, não usava a parte
de cima do biquini e porque é que eu..."
"Tu não és nada tolerante. Criticas muito as pessoas, é isso. As pessoas e os ursos..."
"Podes ter razão. Mas nunca me ouviste dizer nada de desagradável acerca do tio Gaspar."
"Tu sempre adoraste o tio Gaspar."
"E sabes porquê?"
"Não faço ideia."
"Porque o tio Gaspar sempre conversou comigo,
sempre arranjou um pedacinho de tempo para conversar comigo."
"Uma espécie de Buffalo Bili."
"Talvez..."
O QUE É QUE TU ESTÁS A FAZER? AINDA NÃO ESTÁS PRONTA?
Bom, lá terá de ser. Segunda parte do jogo. Coragem, ânimo. Para a frente é que é o caminho.
— Posso pôr uma gotinha de perfume?
— Usa do teu, que o meu não é para brincadeiras.
— Porque é que não te penteaste?
Como é que eu vou explicar à avó Luísa que não tenho nem os cabelos dela nem os cabelos da minha
mãe, mas a grande confusão revoltada dos cabelos do meu pai?
Descemos até ao carro.
— Ficou tudo bem desligado lá em cima?
A pergunta é sempre igual, não é para responder. A avó Luísa, vendo-se ignorada, não cai na asneira de
tornar a perguntar. Tem já outra preocupação: chegar, antes da minha mãe, ao banco da frente, ao lado do
meu pai.
— É por causa das minhas pernas.
No banco de trás, que tem muito mais espaço,
diga-se a propósito, as pernas da avó Luísa são diferentes.
Cá estou eu, com a minha mãe, atrás. A minha mãe está com cara de poucos amigos. Ainda se ao menos
hoje fosse sexta-feira, as coisas eram mais simples. Amanhã ficávamos um bocado mais na cama, a curar
esta passeata nocturna. Porque ainda são uns bons quilómetros até casa do tio Gaspar... A minha mãe
conversa animadamente com os botões do seu lindíssimo casaco comprido. Se eu fosse do tamanho dela,
pedia-lho emprestado...
— Faça favor, conduza com precaução!
Está tudo estragado. A avó Luísa pediu o impossível ao meu pai. E o meu pai ficou com ar de bonequinho
de semáforo, muito rígido e vermelho.
— A que horas é que entras amanhã na escola? — Quer saber, sem o querer, a minha mãe. Estou a pensar
em responder-lhe mas já ela adianta:
— A escola já está acabada? Aquilo qualquer dia vai ao chão.
Eu não gosto que digam mal da "Careca", defendo:
— Eu gosto dela.
— No meu tempo — começa a avó Luísa, mas engasga-se pois o meu pai passou um sinal amarelo que já
era encarnado há pelo menos dois minutos.
Aí vai o "às do volante" acelerando pelas esburacadas ruas da amargura. A minha avó não gosta. E imita
na perfeição a "voz" de um computador: NÃO ESTOU PROGRAMADA PARA EMOÇÕES FORTES.
Tradução:
— Por favor, veja lá se conduz mais devagar.
O meu pai quase que trava a fundo para não atropelar a minha avó. Os pneus deitam um cheirinho a
borracha queimada que se confunde com o cheiro da estrada molhada.
A minha mãe nem liga. Olha distraidamente pela janela. Faz contas à vida.
O meu pai acalma-se, já não é o "às do volante". E o computador, perdão, a minha avó, muda de
conversa:
— Oxalá o Gaspar nos dê de jantar. Só agora me lembro que ele não disse nada acerca disso.
É a vez do meu pai suspirar de modo audível. É a vez da minha mãe acordar:
— Então, ele não ia fazer um convite para esta hora da noite se não incluísse o jantar...
Tanta conversa sobre um tema tão específico pôs-me o estômago a debater-se com um formigueiro
estranho. Procuro debaixo do banco do meu pai. Há por ali, invariavelmente, um conjunto impressionante
de coisas. Finalmente encontro: eis o meu chocolate de há três ou quatro semanas atrás. Guardado está o
bocado para quem o há-de comer. Sabe bem melhor que as tostas mistas do café do Bandejas.
— O que é que estás a mastigar?
— Não me digas que é alguma pastilha elástica!
Não se fala com a boca cheia. Por isso, findo o chocolate, participo:
— Era um chocolate.
Ninguém me liga, Ainda bem. Aproveito e vejo as casas que parecem correr à minha volta. Oiço, à minha
frente, o meu pai resmungar. Oiço a minha avó que parece rezar em surdina. Oiço os pensamentos da
minha mãe — que ela às vezes pensa com tanta força que até se ouve cá fora.
— Mas que raio quererá o tio Gaspar? Resolvo interromper o silêncio barulhento que
vive dentro do carro:
— Estou com frio.
— Eu disse logo que a menina devia ter vindo com um camísolão.
A minha avó é assim: eu disse logo isto, eu disse logo aquilo, eu disse logo... Quando é que ela terá dito
tanta coisa que ninguém ouviu?
— Um vestido desses numa noite destas. E ainda por cima um vestido dessa cor, menina! Onde é que
foste arranjar isso?
Impossível responder: foi a avó quem mo deu, no ano passado, pelos meus anos. Por isso:
— Deram-me, nos anos. A minha mãe desabafa:
— Francamente!
A minha avó concorda:
— Francamente; que falta de gosto.
É então que o meu pai, farto de andar a passo de caracol com asas ou motor turbo em cima da casca,
carrega no pedal e faz-nos voar por cima de mais dúzia e meia de buracos. O motor do carro ronca,
insatisfeito. E a minha avó Luísa resolve rezar mais um bocadinho. Procuro, em vão, mais alguma coisa
que se coma.
Conseguimos, no entanto, chegar inteiros à porta da casa do tio. O meu pai procura fazer boa figura e
arrumar à primeira. Bate com o pneu
do lado direito na borda de um passeio e damos todos um pulo sobressaltado dentro do carro. Sãos e
salvos lá saímos.
— Graças a São Cristóvão! — diz a minha avó.
— São Cristóvão, Cristóvão Colombo, Colombo de Bife, Bife do Lombo.
— Que disparate é esse, menina?
— Era uma coisa que cantávamos no Ciclo.
— Disparate...
A minha avó resmunga os oito andares do prédio do tio Gaspar. O meu pai olha para a minha mãe e a
minha mãe olha para mim.
— Para a próxima, quem te penteia sou eu. Nota-se que todos estão nervosos e que eu
estou esfomeada. É o tio Gaspar quem nos abre a porta e nos faz esquecer tudo isto. Primeiro, porque traz
o seu lindíssimo sorriso; segundo, porque a seu lado tem uma senhora muito bonita, pequenina, com um
sorriso tão lindo como o dele.
— Boa noite a todos. Esta é a Sofia.
A minha avó tem um ataque de tosse, o meu pai encolhe os ombros, a minha mãe aperta o meu braço
como se este fosse fugir pela escada abaixo.

Esta noite a minha avó fica a dormir cá em casa. Não só porque lá fora a chuva cai em desespero, mas
também porque, conforme nos declarou, ela está "um pouco indisposta". Pudera! Ia tendo um ataque de
coração quando o tio Gaspar, todo sorrisos e felicidades, nos participou o seu próximo casamento com a
Sofia. Foi a batalha de Aljubarrota na cabeça penteada da minha avó. Ela não imaginava que o tio Gaspar
fosse fazer uma daquelas. Casar outra vez! Para a minha avó, casamento só há um, o primeiro e mais
nenhum. Na sua opinião, o tio Gaspar estava assim muito bem, viuvinho
e bom rapaz. Eu bem a ouvi dizer à minha mãe, num segredinho de esquina de mesa: "Ele já tinha idade
para ter juízo." Pois bem, na minha modesta opinião, acho que se há alguém com juizinho cá no sítio, esse
é mesmo o tio Gaspar.
Agora não se houve uma mosca cá em casa. Ouvem-se, apenas, os zumbidos cochichados de dois
mosquitos e um moscardo em conversas muito particulares: na sala, minha avó e os meus pais conspiram,
parecem preparar-se para um golpe de Estado. Impossível! O governo do tio Gaspar está sólido e não há
revolução que o derrube.
Não perco o meu rico tempo. Deito-me. E convido o Buffalo Bill para a minha almofada. Ele não se faz
rogado e aterra ao meu lado com um belo sorriso no focinho. Até parece o tio Gaspar quando olha para a
Sofia.
Naturalmente, o Buffalo Bill está roído de curiosidade.
"Então, rapariga, o que é que se passou? Estás com cara de caso... não queres contar as novidades?"
"Passou-se uma história de amor, foi o que foi. E eu que julgava que este dia seria igual aos outros."
"As histórias de amor fazem-me sono. São quase todas iguais: casaram, tiveram uma dúzia de meninos,
receberam o subsídio de férias, arranjaram um andar com quatro assoalhadas, compraram um automóvel
ao preço dos caramelos espanhóis, foram todos muito felizes para sempre..."
"Não sejas assim, que urso tão chato! Nem todas as histórias de amor são iguais. Esta, por exemplo, é
diferente. É a história de amor entre o tio Gaspar e a Sofia. Vão casar. Mas, naquela idade não penses que
terão muitos meninos. E também não precisam de um andar com quatro assoalhadas ao preço dos
caramelos espanhóis. A casa do tio Gaspar é magnífica e acho que a Sofia também tem uma casa dela..."
"Assim é que é amor: com o problema da habitação resolvido e tudo!"
"Estás sempre a desconversar... O que interessa é que, tenho a certeza, eles vão ser muito felizes; aquilo é
uma verdadeira paixão."
"Se for como a tua pelo Xico Volei..."
"Não me venhas com recordações tristes... eu era uma miúda!"
"Pois, pois, é verdade. Já se passou quase um ano..."
"Queres, ou não queres saber o resto?" "Quero... não fiques escandalizada e conta, anda."
"Pois conto. Foi assim:
Cena um — abre-se a porta da rua, o tio Gaspar aparece, todo pasta dentífrica, luminoso. Atrás dele uma
senhora pequenina e muito sorridente. Eu paro um bocadinho de tremer de frio e fico para ali a adivinhar
as cenas dos próximos capítulos. O meu pai põe aquela expressão habitual que quer dizer: tanto me faz,
logo se verá, amanhã já passou.
A minha avó perde a cor da maquilhagem e imagina o fim do mundo. A minha mãe não acredita que
chegou a hora da catástrofe nuclear, mas empalidece um pedacinho, talvez por solidariedade para com a
minha avó. O tio Gaspar, farto da cena, puxa-nos para dentro de casa. Lembrando--me da educação que
me têm dado — a qual, sempre o digo, é muito jeitosinha — dou um beijo à Sofia que podia ser ouvido
do lado de lá do Oceano Atlântico. E foi assim como o beijo que o príncipe deu à Bela Adormecida.
Acordou toda a gente no palácio enfeitiçado. Puseram-se aos beijinhos. A minha avó até conseguiu
gaguejar na perfeição: Mui-mui-muito, pra-pra-prazer.(E via-se à légua que ela não tinha prazer nenhum
em estar ali.)
Cena seguinte — o silêncio. O silêncio não é de ouro. É uma chatice cinzenta. O silêncio é de chumbo.
Ficámos dois minutos para ali, a olhar. O meu pai suspirou e resolveu: "Então, Gaspar, cá estamos..." As
pessoas quando não sabem o que dizer falam como se o soubessem. E de repente, aconteceu. A Sofia,
muito pequenina, muito bonita, muito doce, agarrou na mão do tio Gaspar e começou a falar. Falou com
uma voz de sonho, serena, cantarolada. E enquanto falava, o meu pai recostava-se numa cadeira, a minha
mãe traçava uma perna sobre a outra, o tio Gaspar olhava embevecido e a minha avó atravessava as sete
cores do arco-íris por baixo da sua maquilhagem de tons avermelhados. Lá fora a chuva caía, mas da voz
da Sofia iam-se desprendendo raios de sol muito quentinhos.
Outra cena — o meu pai, muito conveniente: tio, não há para aí nada que se coma? Ah, o jantar, é
verdade. Com a conversa esqueci-me. NÃO TENHO FOME, disse a minha avó. Pois eu tenho, disse a
minha mãe.
Cena seguinte — à mesa. A minha avó de olhos
no prato. A minha avó de olhos no tio Gaspar. O tio Gaspar de olhos na Sofia. A Sofia de olhos em mim,
perguntando-me se eu gostava de empadão de carne, se queria "mousse" de chocolate como sobremesa, se
eu já bebia café (estranho, acho que aquilo que me fez gostar mais dela foi o facto de termos passado uma
noite juntas sem ela me ter feito nenhuma pergunta acerca da escola, se eu era boa aluna, se gostava dos
meus professores, enfim, essas coisas que todos me perguntam todos os dias, a todas as horas, sempre que
me conhecem. E o que é mais curioso é que a Sofia interessou-se pelas minhas respostas!). Entretanto, a
minha mãe estava de olhos na Sofia e no tio Gaspar e o meu pai estava de olhos postos na minha mãe,
pelo menos até à altura em que o tio Gaspar lhe pôs debaixo dos olhos, um balãozinho com uísque: Se
vai conduzir não beba, disse eu entre dentes. O meu pai para variar ouviu-me, deitou-me duas faíscas para
cima: ISTO NEM É BEBER, É SÓ PROVAR, METE-TE NA TUA VIDA.
NÃO FALES ASSIM À MIÚDA, disse a minha mãe.
ELA JÁ NÃO É NENHUMA MIÚDA E ATÉ SABE MUITO BEM O QUE ESTÁ A DIZER, disse a
minha avó.
ÉS SEMPRE A MESMA, LUÍSA. SÓ SABES FALAR AOS GRITOS, disse o tio Gaspar.
E pronto a família tinha voltado ao normal. Começaram todos a reclamar e a exigir justiça.
Cena imediata — a Sofia meteu o braço dela no meu, "Anda daí, que eles parecem ter assuntos
importantes a tratar".
E fomos, enquanto eles gritavam. Ficaram na sala em alegre discussão. Eu e a Sofia fartámo-nos de
conversar..."
"Gostaste mesmo dela, não foi?"
"Gostei. Sabes? A Maria Adelaide era uma chaga, mas se calhar nem tinha culpa. Ontem fiquei a perceber
muitas coisas... Já há muitos anos que toda a gente sabia que a Maria Adelaide podia morrer de um
momento para o outro. Talvez por isso ela se tenha tornado uma mulher azeda, sempre contra tudo e
contra todos. O tio Gaspar gostava muito dela e ainda hoje fica com uma expressão de saudade quando se
fala da Maria Adelaide. A Sofia sabe disso, e sabe que o tio Gaspar deve ter sido das poucas pessoas que
gostaram verdadeiramente da Maria Adelaide.
Olha, Buffalo Bill, só ontem é que entendi alguns segredos. Por exemplo, que há muitas maneiras
de gostar. O tio Gaspar conhece pelo menos três maneiras de gostar: da Maria Adelaide, da Sofia, de mim.
Ele é mesmo especial..."
"E a Sofia? Também é especial? Tu nem pareces a mesma, miúda! Costumas falar de tal maneira daqueles
que te rodeiam que agora até fico espantado ao ouvir-te dizer bem de tanta gente ao mesmo tempo..."
"A verdade é para se dizer. A Sofia é também muito especial. Não é nada parecida com a Maria Adelaide.
É mais nova do que ela, embora seja mais velha que a avó Luísa. Mas é incrível! Gosta de andar de
bicicleta e de nadar, gosta de fazer campismo, lê imenso... Vê lá tu que até conhece os livros que eu gosto
mais..."
"Espera lá, cuidado com o entusiasmo: ela não vai casar contigo, mas com o teu tio Gaspar!"
"É verdade, mas por esse lado podemos ficar descansados. Eles entendem-se na perfeição."
"Bom, e depois? Discutiram lá por casa e pronto, ficaram assim?"
"Depois, o meu pai disse que já era muito tarde, a minha avó disse que era tardíssimo, a minha mãe disse
para o tio Gaspar nos visitar um destes dias com a Sofia e eu disse à Sofia que tinha
gostado muito dela. Depois viemos para o carro, o meu pai fintou uns pinguinhos da chuva e os buracos
da estrada e a má disposição da minha avó. Chegámos inteiros. Eu fui mandada para a cama e eles lá
estão, realizando a cimeira da família em pé de guerra."
"Só não percebo porque é que a tua avó não quer que o tio Gaspar case outra vez..."
"Sabes, o tio Gaspar não tem herdeiros e parece que tem um excelente pé de meia..."
"Então se o problema é esse, fica descansada. O amor é mais forte que o dinheiro."
"Como é que tu sabes? Os ursos não percebem nada disso."
"É o que tu pensas: eu valho o meu peso em amizade. Se me quisesses vender não te davam uma moeda,
sequer, por mim."
"Tu e o tio Gaspar, são os meus amigos preferidos. Se for possível, ficarei convosco para sempre." Estava
eu assim, muito distraída com a conversa, quando uma bala de canhão cruzou os ares e se estatelou nos
meus ouvidos: — TAL E QUAL COMO A SUSANA!
Incrível, a minha avó Luísa disse a palavra proibida: Susana.
"Ouviste, Buffalo Bill?" "Perfeitamente."
É natural, o bairro inteiro deve ter ouvido. É estranho, a minha avó falou da Susana. Quem é a Susana? É
a irmã da minha mãe, é a minha tia, a mãe dos gémeos, o Pedro e o Paulo. É, na opinião da minha avó
Luísa, a ovelha negra, a vergonha da família. Porquê? Porque, muito simplesmente, se divorciou do
Miguel e casou outra vez, com o Eduardo. A minha avó Luísa não lhe fala. A minha mãe raramente lhe
telefona , penso eu que por medo à avó Luísa.
E a avó Luísa, agora, resolveu falar da Susana! Isto é que é um dia a sério. Peço desculpa ao Buffalo Bill
e vou até à porta. Já que é dia de festa, porque não hei-de aproveitar?
Da sala vem uma infinidade de relâmpagos. Dentro de casa a tempestade chama-se avó Luísa e é bem
mais forte que a outra tempestade que a Natureza resolveu fazer lá fora.
Não há dúvidas. A avó Luísa fala da "vergonha": da Susana que se divorciou e que é feliz (a minha avó
não diz feliz, diz "maluca", mas eu traduzo com facilidade). A avó Luísa fala da "vergonha": do tio
Gaspar que vai casar e que é feliz (a minha avó diz "louco varrido" e acrescenta "velho tonto", e eu
traduzo, traduzo, traduzo).
Às tantas, o meu pai ergue a voz: AMANHÃ TENHO DE ESTAR A HORAS NO ESCRITÓRIO. A avó
Luisa responde: O SENHOR É UM EGOÍSTA, ISTO É UMA URGÊNCIA, O SEU ESCRITÓRIO
PODE ESPERAR! O meu pai responde: COM CERTEZA, MINHA SENHORA, ENTÃO ATÉ
AMANHÃ, UMA NOITE FELIZ.
Eu corro para a cama. O meu pai vem na direcção do meu quarto e deve trazer consigo o beijinho da
noite.
Tem um ar cansado. Tem um ar muito cansado. Mas transforma-o num sorriso que chega a ser divertido
— eu não disse que este era um dia diferente? O meu pai afasta para o lado o Buffalo Bill, que resmunga.
O meu pai senta-se na minha cama (quando foi a última vez que o meu pai se sentou um pedacinho na
minha cama? Eu estava com febre, febre muito alta e...).
— Que dia este, garota! Não consegues dormir, não é? Dá cá um beijinho...
Dou-lhe um e dois e três beijinhos. E recebo um e dois e três beijinhos.
O meu pai ri. Depois olha para a porta, como se esperasse a avó Luísa a entrar de repente por ali dentro e
a proibir os beijinhos e os divórcios, mais os casamentos e a pontualidade nos escritórios.
— Queres que eu te conte uma história? — pergunta o meu pai com um ar matreiro. E lembra--me o meu
pai de quando eu tinha três anos, que se sentava na minha cama, agarrava no Buffalo Bill e dizia: Esta
noite, este urso não é um urso. É... o marquês dos Pés Tortos que anda à procura do reino das Batatas
Fritas.
— Quero!
— Era uma vez uma avó Luísa a gritar, porque um tio Gaspar queria casar. Era outra vez uma tia Susana
a fugir, para ser feliz e sorrir. E era mais uma vez um pai, uma mãe e uma filha a ouvirem uma avó e
cheios de vontade de dormir...
Rimos. Rimos os dois. Eu e o meu pai. Rimos tanto que a minha mãe veio ver o que era. E trouxe a avó
Luísa. Rimos tanto que (eu bem notei) o Buffalo Bill ficou roxo de ciúmes.
— Então, isto não são horas para fazer barulho — disse a avó Luísa. E aí lá se foi a minha excelente
educação: eu ri ainda mais. Barulho? Como é que alguém a rir pode fazer barulho? O riso pode ser tudo
menos barulhento...
— A avó diz que não consegue dormir no sofá da sala. Vais ter de emprestar-lhe a tua cama...
Olhei para a minha mãe como se o mundo tivesse acabado ou como se tivessem anunciado na rádio que o
Michael Jackson tinha engordado noventa quilos... A minha cama? A minha caminha? Que dia tão
diferente...
Peguei no Buffalo Bill.
— Esta miúda é muito infantil!
Ah, que saudades da avó Ana, tão diferente, tão meiga, tão gentil... Talvez um pouco parecida com a
Sofia...
"Deixa-me ficar, tenho umas coisas a dizer à tua avó Luísa!"
Olho para o Buffalo Bill, nem quero acreditar: pede-me o impossível. Mas como seria bom se a avó Luísa
ouvisse o Buffalo Bill.
— Toca a dormir no sofá — diz o meu pai e pisca-me o olho. Pisca o olho? O meu pai a piscar o olho? A
rir-se e a piscar o olho e depois, muito sério para a avó Luísa:
— A caminha é muito cómoda; desejo-lhe uma boa noite.
A avó Luísa não lhe responde. Vira-se para a minha mãe.
— Não te vás ainda, filha, gostava de te dizer
umas coisas.
A minha mãe fica. Olha para mim e para o meu pai com um ar triste. Também ela tem um escritório à sua
espera logo de manhã. Também ela concorda que a Susana, o tio Gaspar, a Sofia e até a avó Luísa têm
direito à felicidade. Os olhos da minha mãe, já o disse, nunca mentem. E agora, os olhos da minha mãe
contam uma verdade: não concordam com a avó Luísa e têm muito, muito sono.
— Olha, não te esqueças do remédio, já passa da hora — diz o meu pai e a minha mãe fica surpreendida.
Remédio? Qual remédio? Mas a minha avó pega na frase (que era o que o meu pai
queria):
— Filha, se tens de tomar um remédio não te demoro. Amanhã conversamos.
A minha mãe aproveita. Sai do meu quarto e fecha, mansamente, a porta à avó Luísa. O meu pai dá-lhe a
mão e passa a outra mão pelos meus cabelos. Sussurra:
— Vamos todos tomar o remédio milagroso do
soninho.
É a vez da minha mãe rir. Mas muito baixinho, para não despertar as dúvidas da avó Luísa.
"Sabes, Buffalo Bill, gostava que todos os dias fossem diferentes."
O Buffalo Bill não me responde. Ele, que teve o dia mais calmo de todos nós, já está a dormir.
Entro no sofá como quem entra no metropolitano em hora de ponta. Sem qualquer vontade... Depois,
penso em tudo o que se passou desde as sete horas da manhã e, pouco tempo passado, sonho que estou na
praia a nadar ao lado da Sofia, da Susana, dos meus pais, do tio Gaspar, dos meus primos gémeos e do
Eduardo, do Buffalo Bill... E sonho com a avó Luísa, sentada na areia, a ver-nos nadar e a sorrir muito
feliz.

A minha mãe acordou tarde e acordou tardíssimo o meu pai que se ia esquecendo de me acordar.
É sexta-feira e a manhã começa do avesso. Choveu durante toda a noite e cá em casa temos cara de
tempestade. Só o Buffalo Bill e a avó Luísa se mantêm muito descansados a dormir alegremente.
— Hoje não tenho boleia e tenho de ir com vocês, diz a minha mãe e o meu pai trinca uma torrada, salva
de um incêndio, muito escurinha e triste.
— O melhor é telefonar para o escritório, diz a minha mãe e o meu pai larga a torrada e responde:
telefona para o meu escritório que eu telefono para o teu escritório, sempre é mais fácil assim.
Entretanto, eu acabo de arrumar a minha mala, tarefa que não consegui fazer na véspera. Imagino a cara
da "stôra" de Matemática quando lhe participar que não fiz os exercícios que ela marcou ontem à tarde.
Improviso:
— Desculpe, "stôra", mas estivemos todos a ouvir a avó Luísa e o meu tio vai casar e a Susana
divorciou-se há três anos e o Buffalo Bill ressonou a noite toda e...
— Prontas? — diz o meu pai e abre a porta da rua sem esperar resposta. Saímos. Vou faltar à primeira
hora, bolas! Primeiro deixámos a minha mãe no emprego, depois uma volta enorme até descobrir num
descampado a cara desmaiada da "Careca"... e o meu pai ainda tem de voltar para trás e chegar a horas ao
escritório.
Certeza, só tenho uma: não há aula de Educação Física, a não ser que seja de natação. A chuva continua a
cair e a "Careca" deve estar num estado lamentável.
O meu pai deposita a minha mãe à frente do prédio enorme onde ela trabalha. Adeusinho, até logo, nem
há tempo para mais, à noite logo nos vemos lá em casa, se a avó Luísa nos der tempo para tanto.
O meu pai deposita-me (empurra-me quase) à porta da "Careca". Nem tempo para um adeusinho em
miniatura.
Fico ali especada. O enorme fosso escavado ao redor da escola está cada vez mais cheio. Duas das três
pranchas que somos obrigados a atravessar para entrar na escola já se foram com a enxurrada. Quase
tremo ao atravessar a única ponte levadiça que resta.
Está muito triste hoje a minha escola. Chora, chora com vontade. Já levo trinta minutos de atraso. Vou até
ao pavilhão onde, provisoriamente, está instalado o bar. A dona Lurdes de Berlim tem o ar de quem não
dorme há duas semanas. Tento acordá-la: Uma bola com creme, se faz favor.
Nem com creme nem sem creme, nem bola nem bolinha, nem balão. A padaria que fornece os bolos
recusou-se a fornecê-los a uma escola onde não é seguro entrar, ainda alguém caía da prancha abaixo,
morriam os bolinhos afogados, era um prejuízo e quem é que pagava? Ela, Lurdes, não era com toda a
certezinha e se a menina quer um bolinho vá até ao café lá ao fundo da estrada
e peça ao Bandejas que não está lá para outro serviço. Se ainda quiser uma bebida, vá que não vá, temos
para aí uns enlatados, nada de especial mas arranja-se. Outra coisa é que não, e para comer um saquinho
de amendoins do tempo d'el-rei D. Manuel ou coisa que o valha e por aí fora até se transformar esta
escola numa escola de jeito que ela, sim, que ela, já tinha trabalhado em escolas a sério que aquela era
tudo menos uma escola, onde é que já se tinha visto uma escola sem telhado, onde chovia nas salas e nem
havia bolas com creme, nem bolas sem creme, nem coisissíma nenhuma, só amendoins do tempo em que
os portugueses andavam a descobrir as Áfricas e...
— Muito obrigada, um santo dia, adeusinho, ponto final; parágrafo.
Atravessei o lodo e recolhi-me debaixo de um tapume. Contornei o Pavilhão 2 e pus-me à escuta. Havia
um som estranho, mais estranho que a água a suicidar-se vinda do céu. Alguém chorava. Era um som
inconfundível.
Procurei.
Achei.
O dia da véspera, a manhã atrapalhada, a conversa louca da Lurdes de Berlim foram com o vento.
À minha frente estava a Gui, que soluçava. Aproximei-me devagarinho. Eu nunca sei muito bem como
aproximar-me de alguém que chora. Eu nunca sei como aproximar-me da Gui, uma rapariga que, pensava
eu, nunca devia chorar.
A "Careca", muito sossegada. A chuva, muito inquieta. Eu, meio nervosa pelo tempo passado. E a Gui ali.
Um quadro triste, uma manhã de cinzas escuras.
Aproximei-me mais. A Gui não reparou. E depois, nem sei bem porquê, passei-lhe um braço sobre os
ombros, disse-lhe baixinho: O que é que te aconteceu?
A Gui sobressaltou-se. Olhou para mim e eu não vi os olhos espantosos da Gui, aqueles olhos que a todos
dominam, os olhos em brasa e capazes de conquistar o mundo. Vi dois aquários pequeninos, cheios de
água e, lá dentro, dois peixes esverdeados que se debatiam para não morrerem afogados.
A Gui não disse nada.
Eu não disse nada.
Ficámos assim, abraçadas como duas amigas de há longa data, até a "Careca" se pôr aos gritos para
anunciar que a aula tinha acabado. A Gui,
então, tirou o meu braço de cima dos seus ombros, enxugou os olhos, assoou-se. Voltou, aos poucos ao
normal.
Pôs-se de pé.
Pus-me de pé.
Ela olhou-me, por segundos, agradecida. E depois desatou a correr pelo pátio fora e saiu da escola. Eu vi-
a afastar-se. Cada vez mais pequena, cada vez mais pequena, cada vez mais pequenina. E parecia tão
frágil...
— Então, o que é que te aconteceu? Não foste à aula...
Era a Asinhas nos Pés. Voltei à realidade.
— Um pequeno problema com o despertador, nada de especial.
— Logo à tarde, queres passar lá por casa?
— Gostava...
A Asinhas nos Pés nunca me tinha convidado para ir a casa dela...
— A minha mãe não está, podíamos conversar um bocado e vias o meu fato de palco.
— Combinado.
— Fizeste o TPC de Matemática?
— Não. E tu?
— Também não.
— Acho que vai haver uma chamada ao quadro...
— Uma chamada?
— O João deve saber. Há bocado estava a conversar com a "stôra"... Eh, João!
O João Boião aproximou-se. Vinha a comer um pãozinho com doce e tinha o ar de um Drácula que
preferisse doce de morango a sangue fresquinho.
Entre duas dentadas, lambuzadinho de todo, explicou:
— A "stôra" vai fazer chamadas. Vamos todos ao "escravo".
— Ao escravo?
O João Boião passou o dedo indicador da mão direita pelo queixo, lambeu-o, suspirou com saudades do
último pedacinho de pão com doce e contou:
— O grande escravo negro. O quadro. O escravo, o pobre escravo negro que, nos primeiros séculos da
Conquista, era dedicado aos engenhos do açúcar brasileiro, é agora posto ao serviço da nossa ignorância
matemática.
— Onde é que foste buscar essa estúpida teoria?
— Àquele génio que acolá partilha os seus vastos conhecimentos.
Olhámos para a direcção em que o João Boião apontava. Vimos o Papá Tem gesticulando no meio de um
vasto grupo de colegas, certamente a contar que o seu pai tinha isto e mais aquilo e um pou-cochinho de
mais qualquer coisa.
— Muito bonito, mas nós também temos quadros verdes. Não me digas que nos tempos coloniais
também havia escravos verdes?
— Só quando colonizarmos Marte, minha boa colega. Até lá preparamo-nos, riscando de giz a nossa
cultura marciana.
Felizmente, a "Careca" é de uma simpatia sem limites. Com um belo trinado chamou-nos para as aulas. E
o João Boião ficou-se a ruminar as suas teorias.
O dia de agias passou-se quase sem história, havendo que notar, no entanto, duas excepções: a aula de
Matemática e a de Língua Portuguesa. Confesso desde já que gosto mais da segunda, o que não significa
que não me aplique com todas as ganas à primeira. Só que Matemática é... um pouco complicado.
Na aula de Matemática não podia dizer a verdade à "stôra". Ela nunca iria acreditar-me. Assim, disse-lhe
que me esquecera do caderno e como ela ia fazer chamadas, perdoou-me. É claro que fui premiada: a
primeira a ir ao escravo negro. As minhas pernas tremiam, a minha mão recusava-se a escrever, a minha
cabeça abanava por dentro como uma máquina de lavar roupa a funcionar. Safei-me como pude e até
parece que não foi tão mal quanto isso. Pior andou a Carla Corações que nem os corações que passa a
vida a desenhar no caderno conseguiu deixar no quadro. A Rute Eléctrica foi a seguinte e ainda conseguiu
fazer pior figura pois declarou à professora que ia tirar , um curso de Direito, para ser advogada como o
pai, e não precisava de matemática para nada. Naturalmente a "stôra" ficou furiosa, perguntou-lhe se ela
queria chumbar já no Primeiro Período ou se a levava a Tribunal por ela lhe dar um zero muito bem dado.
A Rute Eléctrica disse que se estava nas tintas, a professora disse que ela era muito malcriada, a Rute
Eléctrica disse quero lá saber e a professora disse ai ele é isso, então vai lá para fora aprender a ser mais
educadinha.
O resto não é para se contar, pois o desfile pelo escravo não deu grandes lucros.
A aula de Língua Portuguesa foi muito mais engraçada. A "stôra" é óptima, eu gosto imenso dela. Levou-
nos um texto para analisar, que era este muito bem policopiadinho:
FELICIDADE
"A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela. Tinha feições de menino inconsolável. Um
menino impúbere ainda sem amor por ninguém, gostando apenas de demorar as mãos ou de roçar
lentamente o cabelo pelas faces humanas. E, como menino que era, achava um grande mistério no seu
próprio nome."
JORGE DE SENA
A discussão do poema foi engraçadíssima. Em primeiro lugar as miúdas da turma, em especial a Rute
Eléctrica, discordaram de que a felicidade fosse um menino. Antes uma menina e o negócio estava
arrumado. A Carla Corações disse que podia ser um menino, se tivesse olhos verdes, uma moto fabulosa e
de preferência que andasse na Universidade Católica como o seu primo Bernardo. Aí, o Telegoela disse
que Bernardo era nome de cão e a Rute Eléctrica, para defender a sua amiga Carla, deu-lhe com o
"dossier" na cabeça. A Maria Só disse que o autor era um grande machista e o João Boião propôs que se
lhe escrevesse uma carta, a pedir que mudasse a palavra menino para rapaz, ou homenzinho. Aí, a Maria
Bonita disse que nem rapaz nem rapazinho, nem menino nem menina. Para ela, a felicidade era uma
mulher de vestido até aos pés e com muitas jóias e um namorado rico. O Pedro Poças disse que não e que
o avô dele achava que a felicidade não é deste mundo, por isso a felicidade devia ser uma história de
mortos, boa para um filme de terror ou coisa assim. O Tó Provetas disse: a felicidade é um substantivo
feminino, não pode ser um menino. A professora disse muito bem, muito bem, e quem é que me sabe
explicar o que é que quer dizer a palavra "impúbere". O Telegoela disse que tinha a ver com a puberdade,
mas corou até à raiz dos cabelos porque julgava que a palavra era ordinária. A cor voltou-lhe ao normal
quando a professora repetiu muito bem, muito bem. Mas quem é que sabe o significado da palavra? Como
ninguém sabia ela fez um ar muito importante e esclareceu: Impúbere diz-se de uma pessoa que ainda não
chegou à puberdade. O antónimo da palavra é púbere.
Ficámos quase todos na mesma, menos o Te-legoela que, inspirado, adiantou: A "stôra" até parece o
dicionário lá de casa. De uma palavra passamos para outra e levamos o dia todo a folhear o livro.
Aí a "stôra" já não disse muito bem, muito bem e foi a vez dela mudar de cor. Ripostou: Puberdade
significa adolescência, é a idade da transição entre a infância e a juventude.
— Então — disse o Tó Proveta — se há a terceira idade também devia haver terceira puberdade.
A "stôra" não gostou da gracinha e fulminou-o com um olhar bem adulto. Depois, acalmou-se, continuou:
— Púbere é o que chegou à idade da puberdade, por exemplo, aquele que começa a ter barba ou os pêlos
finos que anunciam a adolescência.
— Como o Rafael Bigodinhos? — perguntou a Rute Eléctrica apontando para o dito cujo que se
escondeu debaixo da carteira.
— E não só — disse a professora e quando o disse notou que dois ou três rapazes da turma escondiam a
cara com as mãos para que não visse o bigodinho que lhes teimava em crescer.
O Simão Botelho, para se armar em engraçado, declarou:
— O meu irmão já teve um ataque disso e curou-se; passou a usar a lâmina do meu pai.
Aí a professora obrigou-nos a voltar ao texto e o Tó Proveta, o nosso perito em Ciências, tornou a
defender a ideia de escrever ao autor do texto a pedir umas emendas. A "stôra" explicou que o autor, Jorge
de Sena, um grande poeta português, já tinha morrido. O Telegoela disse: Pois, com os mortos não se
brinca, e o Pedro Poças disse: Afinal o meu avô é que tem razão, a felicidade perfeita não é deste mundo e
se o autor já morreu lá deve saber melhor que nós e se já morreu é melhor não o incomodar, nem por carta
nem por nada que assim até é melhor para a felicidade de todos.
Aí, a Carla Corações pôs-se a gemer: Coitadi-nho, já morreu e escreve tão bem. A Rute Eléctrica fez coro:
coitadinho, por isso é que ele disse que a felicidade era um menino, se fosse vivo veria que a felicidade é
uma menina. E a Maria Só choramingava: É por isso que ele fala em mistérios.
Aí, o João Boião largou a bolachinha de chocolate que estava a comer e disse: Pois é, se ele já morreu não
diz coisa com coisa, por isso é que ele confundiu o menino e até lhe chamou impúbere, coitadinho.
Aí foi a Carla Corações que deu com a caneta na cabeça do João Boião e o João Boião perdeu o amor ao
resto do pacote das bolachinhas e o esfregou na cara da Carla Corações.
Aí a "stôra" deu a parte da aula dedicada à sintaxe por terminada e obrigou-nos a escrever um texto sobre
a felicidade. Fez-se, finalmente, um silêncio de túmulo. Na minha turma ninguém gosta muito de fazer
composições... De má vontade, lá começámos.
Estivemos muito entretidos. A meu lado, depois de um longo minuto de pausa, notei que a Asinhas nos
Pés começava a escrever com alegria. Esqueci--me da minha própria redacção e espreitei a dela.
Começava assim:
"Querida leitora depois de analisar atentamente o seu problema,
este consultório sentimental está habilitado a responder-lhe. Você está a dois passos da felicidade. Procure
nas revistas da especialidade a secção dos horóscopos; descubra o seu número da sorte..."
Bom, não tive paciência para mais e comecei a tratar do meu próprio problema. Que tarefa! Que coisa é
essa, a felicidade? Pensei na Gui, que todos, ou quase todos, julgam feliz. Pensei no tio Gaspar e na
Sofia, na tia Susana, nos gémeos, no Eduardo e também no Miguel. Pensei na avó Luísa. Pensei nos
meus pais. Olhei à minha volta: o Telegoela escrevia com afinco. Que felicidade seria a dele? Uma
felicidade onde entravam todos os programas de televisão? Olhei pela janela: a pobre da "Careca", sem
telhados, sem comodidades, seria feliz? Olhei para a "stôra", tinha um ar cansado, muito cansado. Que
idade teria? Vinte e cinco, vinte e seis anos? Seria feliz?
Agarrei na caneta. Hesitei. Saiu-me a primeira linha, sem esforço. Afinal, escrever é isto, arrumar as letras
em palavras e juntar as palavras umas atrás das outras de modo a completar frases com sentido.
O que é a felicidade? Um cheiro, uma cor, um gesto? Uma manhã de chuva escutada na cama? Uma
conversa com um urso peludo ao cair da noite? Uma boleia do meu pai? Um beijo da minha mãe? Um
passeio no parque com o tio Gaspar a falar de pássaros e de plantas, a rir para mim?
O que é a felicidade? Um menino? Uma menina? O grande mistério de pousar todos os dias no peitoril da
janela? O que é a felicidade? Os corações da Carla? As coisas do pai do Papá Tem? Porque é que nos faz
esta pergunta, "stôra"? Porquê?
A caneta deslizava sozinha. Ia e vinha no papel e contava todos os meus segredos, os meus mistérios.
Sei lá se a felicidade é um menino ou uma menina, sei lá se a felicidade está nesta sala. Sei lá se a
felicidade me conhece...

Quando saímos da escola não chovia. Houve logo quem festejasse, como o Tó Proveta que, no intervalo
das suas experiências mais ou menos científicas, adora jogar à bola. Eu também gosto, mas desta vez
resolvi ir a casa da Asinhas nos Pés.
No caminho para a paragem dos autocarros demos um saltinho ao café do Bandejas. Pedimos dois galões
e arrumá-mo-nos numa mesa onde já estava uma multidão. Lá no fundo, parecendo muito alegre, está
Gui. Acenei-lhe mas ela não reparou (ou fingiu que não reparou, sei lá).
— És amiga da Gui? — perguntou-me a Asinhas nos Pés.
— Não sei. Acho-a muito estranha...
— Eu não gosto dela — declarou a Asinhas nos Pés e dedicou-se a mexer o galão que entretanto tinha
chegado.
E eu, gosto da Gui? Não gosto da Gui? Qual será o verdadeiro nome dela? Um dia destes, se tiver
coragem, vou ali ao grupo dela e pergunto-lhe: Afinal, qual é o teu nome?
— Está ali um tipo que não tira os olhos de ti.
— Ora.
— É engraçado, repara.
Dou um safanão à Asinhas nos Pés. Pago ao Bandejas que me faz um largo sorriso.
— Vamos!
O autocarro demora. Os autocarros demoram sempre. É a sua maneira de estar na vida, como diz o meu
pai.
Embarcamos.
O caminho não tem história.
Uma senhora que leva um bebé ao colo adormece e quase deixa cair o pequenito.
— Podias emprestar-me esse camisolão.
— Troco-o, durante dois dias, pelo teu blusão impermeável.
Fazemos a troca em pleno autocarro. Tem graça trocar de roupa com as nossas amigas. A minha mãe não
acha graça nenhuma, mas eu acho.
— Fica-te bem — diz-me a Asinhas nos Pés.
— A ti também, esse camisolão é muito giro, não é?
Reparo: a Asinhas nos Pés está enervada. Não pára de se mexer. Pergunto se há algum problema. A
Asinhas nos Pés diz que não e depois diz que sim. Não está nada à vontade.
— Desembucha!
— É por causa do Pedrinho...
— Quem é o Pedrinho?
— É o meu irmão...
— O que é que tem o teu irmão? Eu nem sabia que tu tinhas um irmão...
— Quase ninguém sabe que eu tenho um irmão. Ele não sai à rua. Não pode sair à rua, percebes?
— Não.
O autocarro salta alegremente pelos buracos da cidade. A Asinhas nos Pés faz-me um sinal. Saímos na
próxima.
Cá fora o bairro é muito bonito, muito elegante. As casas são lindas.
— É aqui que eu vivo — diz-me a Asinhas nos Pés com um ar quase envergonhado: — Ali.
Uma empregada abre-nos a porta e cumprimenta-nos. A Asinhas nos Pés entrega-lhe as nossas malas da
escola. Ela desaparece por um longo corredor. Desaparece mesmo.
A casa está em silêncio mas, de súbito, ouço uma espécie de gargalhada muito estranha. Olho para a
Asinhas nos Pés.
— É o Pedrinho. Nota logo quando eu chego. Ela abre uma das muitas portas de um longo
corredor. Lá dentro há muita luz, muitos brinquedos e... o Pedrinho. De início, tenho medo. Não sei o que
é que hei-de fazer. O Pedrinho é um rapazito muito magrinho, sentado numa cadeira de rodas, que se ri de
um modo muito estranho. Não fala, emite uns sons esquisitos...
— O Pedrinho é deficiente — diz a Asinhas nos Pés e dá-lhe um beijo. Depois abraça-o.
— Esta é a minha melhor amiga.
Eu dou um passo, depois outro e mais outro. Estendo a mão e o Pedrinho toca-me. O Pedrinho toca-me e
ri. Eu aproximo-me mais, e mais. O Pedrinho toca-me no cabelo. Eu toco-lhe no cabelo.
— Ele gostou de ti.
Dou um beijo ao Pedrinho. O Pedrinho é como o bebé que ia no colo da senhora do autocarro.
É um bebé enorme que faz festas e ri. Até usa fraldas.
— Também eu gostei do Pedrinho.
A Asinhas nos Pés está muito contente, agora.
— Tinha tanto medo que não gostasses do Pedrinho. As pessoas às vezes reagem muito mal àqueles que
são diferentes. Por isso o Pedrinho nunca sai à rua, só para ir ao médico, ou para a escola.
— O Pedrinho vai à escola?
— Há escolas especiais para aqueles que nasceram como o Pedrinho... Sabes? Cá em casa todos
gostamos muito do Pedrinho. Eu, às vezes, danço só para ele.
— O Pedrinho olha-nos com dois olhos vivos. Entenderá a nossa conversa?
— Não parece, mas o Pedrinho é mais velho do que eu. Os meus pais tinham muito medo que eu
nascesse assim...
Asinhas nos Pés olha para o irmão com uma ternura enorme. Eu olho para a Asinhas nos Pés com uma
ternura enorme.
— Gosto de ser tua amiga. Gosto de ser amiga do Pedrinho. Posso?
A Asinhas nos Pés dá-me um abraço. Um abraço muito apertado. E sinto uma lágrima quente que
me rola pela cara. Uma lágrima dela? Uma lágrima minha?
— Anda. Vamos para o meu quarto. Levamos o Pedrinho, está bem?
Lá vamos, os três. O Pedrinho ri e nós rimos com ele.
O quarto da Asinhas nos Pés é maravilhoso. Tem um espelho enorme na parede e, à frente do espelho,
ergue-se uma barra.
— É aqui que treino todos os dias.
A Asinhas nos Pés liga um gira-discos. Ouve-se uma música doce, muito lenta, que ela acompanha com
gestos graciosos.
— Hoje, vou dançar só para vocês.
Eu sento-me no chão, aos pés do Pedrinho. A Asinhas nos Pés veste o seu fatinho de bailarina. Calça as
suas sapatilhas. E dança. Dança, dança, dança. Eu e o Pedrinho olhamo-la, em silêncio...
Se a professora fizesse outra vez aquela pergunta já sabia o que responder. A felicidade, "stô-ra"? A
felicidade é ter amigos...
O Pedrinho ri e eu bato palmas quando a música acaba.
6

Cá em casa tudo bem, pois a televisão começa cedo e a avó Luísa não perde pitada. Sendo assim, posso
estar à vontade com o Buffalo Bill.
Hoje, os meus pais chegam mais tarde. É sexta-feira, devem estar mais mortos do que vivos, e pagaram
certamente o atraso matinal com juros bem altos.
Enquanto a avó Luísa cá está tenho uma vantagem: não é preciso visitá-la. Sendo assim, vou aproveitar o
sábado para pôr os meus caderninhos em dia — tive de pedir emprestado o caderno de inglês que morreu
de morte natural no café do Bandejas — e para ouvir os meus disquinhos. Para já tenho o Sting a can-
tarolar, o que é bem capaz de não agradar aos ouvidos delicados do Buffalo Bill.
Estou a mudar de roupa. No regresso da casa da Asinhas nos Pés caiu valente chuvada. É estranho ver-me
ao espelho. Estou a ficar diferente. Todos os dias noto mudanças. Estou mais velha.
"Eh, Buffalo Bill, estou a ficar velha!"
"Também eu. Antigamente tinha um pêlo tão bonito. E o meu nariz, todo roído... obra tua, aqui há uns
anos atrás."
"Desculpa!"
"Estás desculpada. Só não te desculpo o teres--me prometido uma coisa que nunca cumpriste."
"E o que foi, pode saber-se?"
"Descobrires quem era esse Buffalo Bill de onde vem o meu nome."
"Já te disse, era americano."
"Isso não chega. A América está cheia de americanos e nem todos são recomendáveis."
"Ora, tu e as tuas desconfianças!"
"Vê lá na enciclopédia, está em B, de Buffalo e de Bill..."
"Chato!"
Vou-me à enciclopédia. Procuro. Finalmente:
"Buffalo Bill é a alcunha do aventureiro norte-americano William Frederick Cody, que nasceu em 1846 e
morreu em 1917. Exímio caçador de búfalos (abateu quatro mil em 18 meses) e batedor do exército
nortista, percorreu Mundo à frente de um circo; foi ele quem inspirou, por tudo isto, os filmes de
aventuras do Oeste." "Então?"
"Diz aqui que era um aventureiro e que graças a ele é que há filmes do Oeste."
"E, pelo menos, gostava de ursos?" "Acho que sim. Não gostava era de búfalos." "Eu nunca vi nenhum
búfalo, mas se visse também não gostava... Pronto, deixa lá. Podes continuar a chamar-me Buffalo." "Está
bem, aventureiro." Estávamos nisto quando tocaram a campainha. Naturalmente, a minha avó nem ouviu.
A telenovela tinha começado o seu capítulo número cento e qualquer coisa.
Abro a porta: surpresa! A Susana, os gémeos.
— Está cá a avó Luísa.
— Deixa-a estar, que nós também estamos. Deve ter aberto a semana mundial da família,
penso eu e levo a minha tia Susana com os meus primos para a sala.
— Avó, temos visitas.
A avó Luísa continua, sem se mexer, a ver a televisão.
Para ligar a minha avó, desligo o televisor.
— Desculpe, mas temos visitas.
A minha avó acorda de um sonho brasileiro. Ergue os olhos.
— Susana!
— Olá, mãe.
— Os meninos estão tão crescidos!
— Resolvemos fazer uma visitinha...
— E fizeram muito bem. Senta-te filha, porque é que estás de pé? Sabes quem vai casar, é o Gaspar... e
faz muito bem, não achas?
Bom, neste estado dos acontecimentos, eu estou a mais. A avó Luísa não me parece a mesma. Será a
mesma? Pouco importa. Eu sei que os gémeos gostam de música.
— Vamos ouvir uns discos?
— Vamos a eles.
Quando os meus pais chegam, há festa cá em casa. A avó Luísa está em grandes conversas com a minha
tia Susana. O meu gira-discos não pára de rolar. E o Buffalo Bill, com um sorriso muito aventureiro,
descansa das fadigas em cima de uma almofada.
Apetecia-me telefonar à Asinhas nos Pés a contar-lhe as novidades.

7
O fim-de-semana é um par de dias pequeninos que vivem a correr. Chega o sábado, dá duas piruetas e
foge. Chega o domingo e, se não há sol, não presta para nada. Pousa e levanta voo num instante.
No sábado fartei-me de escrever. Escrevi o dia todo, passei cadernos e caderninhos, fiz trabalhos para
casa e até estudei matemática. Espantoso! É como um jogo que, quanto mais se jogar, mais se aprecia.
No domingo ouvi os meus discos e li, mas houve uma surpresa. A avó Luísa chegou ao meu quarto e
disse:
— Vamos às compras?
Eu adoro ir às compras.
Mesmo quando não compro nada, o que acontece com muita frequência.
— E não ponhas aquele vestido horrível! — advertiu-me alegremente a avó Luísa.
Fomos ao supermercado. O dia estava seco mas as nuvens reuniam-se no céu a anunciarem uma segunda-
feira muito aborrecida.
No entanto, quando se faz compras, nada disso conta. Pode chover e trovejar que eu não me importo.
No supermercado corri para a secção dos discos. A avó Luísa, por estranho que pareça, esteve montes de
tempo na secção de bicicletas.
— O que é que achas? Ouvi dizer que faz muito bem à saúde andar de bicicleta...
A avó Luísa está a mudar. É como o meu corpo, só que um bom pedaço mais velha. Que mude. Para
melhor. É o que eu desejo.
Gosto de supermercados. São grandes, cheios de coisas, cheios de cores e de pessoas. Gosto dos carrinhos
dos supermercados. Gosto da secção de doces dos supermercados. E gosto de andar sozinha nos
supermercados:
— Avó, vou dar uma volta, encontramo-nos na zona das caixas.
E cá vou eu, com um carrinho vazio que conduzo com perícia entre todos os carrinhos cheios que andam
à minha volta. Se o meu pai me visse... bem podia aprender alguma coisa. Quando eu tiver idade, sou eu
que o levo de automóvel pelas ruas da cidade e então ele vai ver quem é que sabe conduzir... No
supermercado vê-se de tudo. Encontra-se gente de todos os tamanhos e feitios. Até gente conhecida. Lá
está a Lurdes de Berlim. Parece mais magra dentro daquele vestido preto. E hoje parece mais bem
disposta. Será que vai comprar algum bolo? Talvez uma bola com creme...
O melhor é voltar à zona dos discos. Há sempre títulos por descobrir...
Tocam-me no ombro, muito de leve.
— Olá!
— Olá, Gui, por aqui?
— Gosto de supermercados.
— Também eu. Estava exactamente a pensar
nisso.
— Vais comprar algum disco?
— Não. E tu?
— Não tenho dinheiro...
De repente a Gui parece-me outra. Mais nova, talvez mais triste. Uma Gui diferente.
— Obrigada... por aquele dia.
— Ora, não tem importância.
— Para mim teve. Teve muita importância... Andamos as duas à volta do supermercado,
de lá para cá. Vejo a minha avó: está na secção dos fatos de treino. O que é que se está a passar com a avó
Luísa?
— Olha, aquela é a minha avó!
— Parece simpática.
— Pois parece...
Rimos as duas. Conversamos muito. Os supermercados são sítios óptimos para conversar. A minha avó
aproxima-se.
— Encontraste uma amiga? Olá! Como se chama?
— Gui.
— Guilhermina, talvez?
— Não, Maria Guilherme. O meu pai queria um rapaz.
— Quando eu andava na escola chamavam-me Lulu.
A minha avó Luísa conseguiu: o nome da Gui. E, quem diria, ela era a Lulu!
— Vamos comer um bolo? — convida a avó Luísa. E pergunta:
— Assim que vier o bom tempo, vocês não se importam de me ensinar a andar de bicicleta?
Comemos. Bebemos laranjadas. A Gui toca-me no braço:
— A tua avó é o máximo!
— Pois é, quem havia de dizer.
— E tu também és muito simpática!
— Pois é, quem havia de dizer!
Ficámos amigas. E, é estranho, eu não me sinto do grupo dos que gostam da Gui, nem do outro grupo que
detesta a Gui. Simplesmente, acho que a entendi. Acho que vou gostar imenso da sua amizade.
Eu adoro supermercados!

A grande desgraça da noite de domingo aconteceu à avó Luísa. Estava toda entretida a ver televisão e a
televisão teve um colapso. Um estrondo, um clarão, um cheirinho a queimado.
O meu pai: BOLAS! A minha mãe: QUE CHATICE! A minha avó: E AGORA, E AGORA???
Eu saí a correr do meu quarto e vi que a crise era relativa. Uma avaria; nada de grave. Pronto!
A avó Luísa estava inconsolável: Uma casa sem televisão é como uma ponte sem pernas, um chafariz sem
água, um jogador de futebol sem sapatos próprios para a relva.
O meu pai, que detesta choraminguices, declarou: Tudo tem solução. Há por aí uma oficina onde arranjam
aparelhos e até trabalham ao domingo. Pode ser mesmo que nos emprestem um.
A avó Luísa suspirou de meio alívio: Vá lá, vá lá. Se quiser eu pago.
O meu pai vestiu o casaco, pôs uma gabardina por cima e disse-me: Dá aí uma ajuda.
Lá fomos os dois abraçados ao televisor, tentando protegê-lo da chuva que já caía outra vez.
Desta feita, o meu pai guiou com cuidado, com medo que o televisor se partisse. Andámos às voltas, meio
perdidos num bairro às escuras, até que demos com uma tabuleta minúscula: Clínica Electrónica VINTE
E QUATRO HORAS AO SEU SERVIÇO.
— É aqui! — declarou o meu pai carregando a fundo no travão e quase partindo o pescoço ao pobre do
televisor.
Lá fomos aos tropeções até à Clínica. Se o problema do aparelho fosse uma apendicite aguda, estava em
boas mãos.
Quem nos atendeu foi um senhor ainda novo (devia ter a idade do meu pai, pouco mais ou menos). O
sorriso dele fazia-me lembrar alguém.
— Boa noite. Entrem, entrem, não se molhem. Molhados já nós estávamos, mas foi agradável
entrar para dentro da casa. Uma casa muito quen-tinha, cheia de luzes e de aparelhos doentes como o
nosso.
O meu pai teve de explicar os sintomas. O senhor garantiu que não era nada de grave. O nosso televisor
estava practicamente salvo, na sua opinião. Ainda não era desta que morria.
— Se quiserem esperar um pouco, vou ver o que é que se pode fazer. E, já agora, chamo o meu
assistente, que deve andar para aí escondido em qualquer buraco.
Aquela de um assistente escondido num buraco qualquer fez-me recordar um filme de terror que vi há
alguns meses atrás: um cientista maluco que escondia um assistente, porque o assistente era um morto-
vivo que...
— Raul! Raul! Onde é que te meteste? Este rapaz... É o meu filho, sabem? Um génio da electrónica e da
electricidade, embora seja ainda um miúdo. Dá-me uma grande ajuda. Todas as noites cá o tenho comigo.
E hoje deu em esconder-se...
O senhor abria o televisor com cuidado enquanto falava. Aquela história do filho não me sossegou. Talvez
o filme de terror tivesse alguma veracidade e eu estivesse em casa de um cientista louco que... De repente
senti um barulho vindo de baixo de uma das bancadas de trabalho. Ratos? Não tenho medo de ratos.
Resolvi investigar, apanhando o meu pai e o técnico de reparações muito bem entretidinhos a
conversarem um com o outro.
Fui-me à bancada e espreitei. Ouvi de novo o ruído. Desta vez a um palmo do meu nariz. Meti um braço
por baixo da bancada e senti um casaco de lã, ou coisa parecida. Puxei.
Surpresa das surpresas, mistério dos mistérios. Bem preso às minhas mãos estava o Telegoela!
— Ah, o meu assistente! — disse, muito alegre, o senhor das reparações.
— Boa noite! — tremelicou o Telegoela.
— Boa noite! — disse-lhe eu e pisquei-lhe o olho, declarando-me cúmplice no segredo da sua cultura
televisiva.

Chegou mais uma segunda--feira prontinha a usar.


Estou na "Careca" a horas certas pois desta vez não houve quaisquer sobressaltos. Procuro a Asinhas nos
Pés e não a encontro. Quero devolver-lhe o blusão e reaver a minha camisola e isto porque a minha mãe
não achou graça nenhuma à troca e avisou-me: Ou trazes o blusão ou vou lá eu buscá-lo.
Se a minha mãe conhecesse a Asinhas nos Pés...
Não, não a encontro. Mas vejo o Telegoela que me diz adeus lá do fundo. Hoje não vou usar o truque da
pastilha elástica. Ele que fale de televisão até lhe doerem as bochechas. De que outra coisa poderia o
Telegoela falar?
— Olá, tudo bem?
— Tudo bem.
— O televisor ficou bom, não foi? Aquele meu pai é um grande génio da electrónica.
Pelos vistos, em casa do Telegoela só há génios. E devem ser todos génios de lâmpadas maravilhosas,
como o Aladim.
.— O televisor ficou perfeito. A minha avó Luísa agradece.
— Ah, o televisor é da tua avó?
Conto, resumidamente, a história ao Telegoela que se farta de rir.
— Se soubesses — diz ele — , há pessoas mesmo malucas pela televisão. Até choram quando o aparelho
se escangalha.
Pessoas malucas por televisão? Nunca esperei ouvir isto da boca do Telegoela.
— E agora?
— Agora o quê?
— O que é que temos ao primeiro tempo?
— Educação Visual.
Lá vamos, educar-nos visualmente.
A Morena Fotogénica entra mesmo à tabela como é seu hábito nas segundas-feiras de manhã. Dita o
sumário: o Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Depois, começa com um discurso, coisa que também lhe é
habitual:
— Como a escola ainda não tem máquina de diapositivos não pode haver projecções. Por isso vou passar
um livro de mão em mão que quero reaver tão impecável como está neste momento.
"Não sei como é que vos posso educar visualmente a passar livros de mão em mão..."
Esta sim, é uma aula gira. Uma aula muito gira. Vendo, discutindo e aprendendo.
O Mosteiro de Santa Maria da Vitória parece uma toalha bordada que a minha mãe tem lá em casa.
Todos queremos ser os primeiros a ver o livro e a Morena Fotogénica põe-se aos gritos, não vá alguém
rasgar uma folha da sua preciosa obra.
— É igualzinho ao Mosteiro da Batalha — diz o Tó Proveta. Aí a "stôra" intervém:
— Pois é o Mosteiro da Batalha. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória também tem o nome de Mosteiro
da Batalha e fica na região de Leiria. Apontem nas vossas fichas: foi começado a construir no ano de
1387 em cumprimento de um voto do rei D. João I aquando da Batalha de Aljubarrota, travada a poucos
quilómetros de distância do local. É o mais notável monumento gótico em Portugal e um dos mais belos
complexos arquitectónicos monacais da Europa.
— "Stôra", o que é gótico?
— "Stôra", o que é monacal?
— Gótico é um estilo artístico; monacal é relativo aos monges e ao monaquismo, que é o estado de vida
dos monges.
— "Stôra", é lá que mora o Frei Hermano da Câmara? — pergunta a Carla Corações que gosta muito de
canções românticas. A Morena Fotogénica não liga. Quando o livro lhe chega às mãos perde--se a
observá-lo com um ar sonhador. Ou será um ar ensonado?
Entretanto, o João Boião discute a batalha de Aljubarrota com o Papá Tem. A Rute Eléctrica aproveita
para contar umas intriguinhas à Carla Corações. E eu olho para a carteira vazia, ao meu lado. Por onde
andará a Asinhas nos Pés?
A "stôra" acorda:
— Já alguém ouviu falar de Afonso Domingues?
— Joga no Benfica? — pergunta um anónimo armado em engraçadinho. A "stôra" faz ouvidos de
mercador de arte gótica.
— Afonso Domingues tem o seu nome ligado ao Mosteiro da Batalha. Foi o primeiro arquitecto do
mosteiro, onde trabalhou entre 1386 e 1402. O escritor Alexandre Herculano dedicou-lhe uma boa parte
de um livro seu chamado "Lendas e Narrativas". Até porque a vida de Afonso Domingues tem muito de
lendária.
"Uma das zonas do Mosteiro nunca foi terminada. Chama-se a essa zona das Capelas Imperfeitas, não
sendo as capelas imperfeitas mas sim incompletas..." É engraçado, penso eu, um mosteiro do século XIV
parecido com a "Careca". Talvez um dia a minha escola entre na história, com os seus pavilhões sem
telhado, as suas saletas imperfeitas. E haverá então uma Morena Fotogénica que levará um livro para as
suas aulas e que dirá: É o mais notável monumento careca em Portugal...
Estava eu nisto quando bateram à porta. A "stôra" disse "entre", a Asinhas nos Pés entrou, muito
atrapalhada. Tinha os olhos inchados de chorar.
Ela pediu desculpa pelo atraso e a "stôra" não disse nada, apontou-lhe a carteira e ela veio sentar--se ao
meu lado.
Eu escrevi a lápis no alto da ficha: TUDO BEM?
A Asinhas nos Pés escreveu a resposta: TUDO MAL.
Fiquei roída de curiosidade. Felizmente as aulas são mais curtas do que parecem ser e esta, tal como as
outras, também acabou.
Saímos e evitámos a chuva que inundava alegremente o pátio. Lá nos refugiámos num cantinho. A
Asinhas nos Pés desabafou:
— Os meus pais discutiram outra vez. Ultimamente tem sido assim. Falaram em divórcio!
— E tu? E o Pedrinho? E eles, como é que vão ficar?
— Não sei, não sei mesmo.
A Asinhas nos Pés rebentou em lágrimas. Há muitas capelas imperfeitas nesta vida.

10

O dia passou sem mais sobressaltos. À noite verifiquei que a avó Luísa tinha libertado a minha cama e
se preparava para ocupar nova posição no sofá da sala. Assim ficamos melhor, declarou ela e eu
concordei mas não percebi porque é que só ao fim de tanto tempo é que ela tinha verificado uma coisa
que se metia pelos olhos dentro desde o primeiro minuto. Jantei com a avó Luísa e fui-me deitar. Estava já
deitada há um bom par de minutos quando a avó Luísa entrou no meu quarto.
— Disseram agora mesmo na televisão que o tempo vai piorar. Esperam-se rajadas ciclónicas e grandes
aguaceiros de Norte a Sul do país.
A avó Luísa é assim mesmo: o rigor da repetição.
— O tio Gaspar casa no próximo domingo. Temos de comprar uns vestidinhos bonitos, não
achas?
Eu achava. E achava a avó Luísa muito, muito mudada.
— Tinhas saudades da Susana? Pois eu tinha. E dos gémeos também.
A avó Luísa é assim? Se é assim, óptimo. Estou perdida de sono mas não perdia esta visita nocturna por
nada deste Mundo.
— Não consigo distingui-los. São tão parecidos... Parece-me que o Pedro é um bocadinho mais alto
que o Paulo.
Por acaso até é ao contrário, mas porquê desmentir a avó Luísa que fala tão animadamente.
— Hoje, os teus pais vêm muito tarde...
Os meus pais chegam sempre tardíssimo. Têm os engarrafamentos todos a ajudá-los.
— Fico convosco até domingo. Tenho vivido muito solitária ultimamente.
Como seria o meu avô Ricardo? Conheço-o das fotografias, mas é assim uma espécie de Educação
Visual. Ver o Mosteiro da Batalha numa folha de papel deve ser bem diferente de vê-lo ao natural.
— Quando vier o bom tempo, vamos dar um passeio. Queres?
— Quero. Vamos à Batalha?
— Há tantos anos que eu não vou à Batalha...
A avó Luísa perde-se em recordações. Que recordações terá a avó Luísa? Porque é que faz aquele sorriso
bonito (parece a minha mãe quando faz sorrisos bonitos)?
— Estive lá uma vez com o teu avô Ricardo... Como seria o avô Ricardo? Como seria a avó
Luísa?
Os meus olhos fecham-se sem eu querer. Começo a sonhar com o avô Ricardo e a avó Luísa, com a
Asinhas nos Pés e com o Pedrinho, com a minha família toda e os meus amigos. Estamos na Batalha e
reconstruímos as Capelas Imperfeitas.

11

O boletim meteorológico da avó Luísa tinha razão. Nunca choveu tanto neste inverno como hoje. E o
vento... Horrível.
O fosso da "Careca" transborda. O Chico Fininho e a Miss Xutos estão à porta da escola e parecem muito
preocupados. O Varetas, que é o nosso contínuo preferido, avisa os alunos que chegam que vai haver
reunião geral de escola. Dirigem--nos para o Pavilhão que devia ser Gimnodesportivo mas que ainda não
é. Recordo-me que está prevista para hoje a visita do homenzinho do Ministério. Irão fechar a "Careca"?
O vento uiva. A chuva cai. À porta da escola o Chico Fininho e a Xutos estão completamente
encharcados. Encontro os meus colegas. Toda a gente me parece triste. Toda a gente não. A Asinhas nos
Pés está mais bem disposta:
— Houve evolução no caso. Parece que está tudo normalizado.
Não sei o que responder. Queria dizer-lhe muitas coisas, mas guardo-as para outra altura. Agora há um
reboliço tremendo dentro da "Careca".
Todos se dirigem para o pavilhão. Está incompleto mas serve perfeitamente de abrigo.
— Isto é uma aventura — grita o João Boião e aproveita para comer algumas batatinhas fritas que tira da
sua enorme mochila. Às vezes, penso que a mochila do João Boião está tão cheia de comida que nem
deve haver-espaço para livros e cadernos.
— É uma aventura — repete o Telegoela. — Faz-me lembrar aquele filme que deu no domingo...
De repente o Telegoela olha para mim e cora. Fica muito corado. Eu olho na direcção oposta. Na direcção
oposta está a Lurdes de Berlim a conversar com a Lindezas e com a Morena Foto-génica, está a Sara
Serigaita a tirar nabos da púcara, que é como quem diz a ouvir ali para contar
acolá, e está a Gui rodeada por um grupo de rapazes e está a Quicas Argila a gesticular imenso como é
seu hábito.
Alunos mais velhos juntam-se a alunos mais novos e parece que finalmente toda a gente se conhece,
porque todos falam uns com os outros, a barulheira é imensa mas é muito agradável. Os contínuos
também estão aqui, todos juntos, a tagarelarem: o Perninhas, a Osguices, a Mafaldinha, o Rato, a
Sonsinha e até o Varetas que abandonou a entrada da escola.
Toda a gente se aperta no Pavilhão Quase Gim-nodesportivo. E mal se reúne a escola em peso, desaba
sobre a "Careca", e sobre toda a cidade, a maior tempestade de que tenho memória. Uma ventania
tremenda, chuva aos litros, até uma trovoada aparentemente impossível resolve aparecer.
— Que vendaval!
— Parece o naufrágio do Titanic.
— Quem é o Titanic?
— Era. Era um barco muito grande que naufragou num dia de tempestade.
Falamos aos gritos para nos entendermos e, desse modo, ainda nos entendemos pior. De repente ficamos
às escuras.
Falha de energia. Ouve-se um estrondo e a Xutos geme. O Chico Fininho olha pela janela e anuncia: Já
não temos o Pavilhão número 5.
— Nunca o tivemos — responde um engraçadinho.
Ouve-se outro estrondo e o Chico Fininho volta para a janela
— Foi a prancha. Já não temos prancha para sair da escola.
A Xutos desmaia. No meio da confusão ninguém a vê desmaiar e só quando o Óculos de Latão, o "stôr"
de Matemática do 11.° ano, tropeça nela é que a descobre. O Varetas acorre, dá-lhe uma estalada. A Xutos
acorda, esfrega a cara e devolve a estalada . Mas acerta nos óculos do Óculos de Latão. A Lindezas dá
gritinhos. A Carla Corações diz que se sente muito mal e pede ajuda a um miúdo muito giro do 9.° ano.
Este ajuda-a logo e é então que a Rute Eléctrica diz a um colega do 10.° ano que ainda está mais mal
disposta que a Carla Corações. O Telegoela anuncia: A vedação está a soltar-se!
O Chico Fininho anuncia: Vou telefonar para os bombeiros. Sai para a tempestade. Voltaremos a vê-lo?
O João Boião chega-se para mim e pergunta:
— Quantas horas é que uma pessoa pode estar sem comer?
— Não sei, não faço ideia, ainda agora tomei o pequeno-almoço e não tenho fome nenhuma.
Afinal, o Chico Fininho volta, molhado mas inteirinho:
— Não temos telefone. A água já entra na sala do Conselho Directivo.
A Lurdes de Berlim suspira:
— O que estas crianças precisavam era de uma bola com creme.
— O que estas crianças precisavam era de uma escola nova — geme a Xutos.
— Isto é uma grande responsabilidade — geme também o Chico Fininho.
— Preciso de uma casa de banho — diz o Tó Proveta e sai para o temporal. Sai mas desiste, volta atrás:
— Safa! Que tempestade.
— Tem cuidado, Tó, que ainda fazes nas calças.
— Não tem importância, já estou molhado, ninguém nota.
A Marianinha Compassos, uma professora muito velhinha, de Educação Musical, começa a chorar.
— Quero ir para casa! — grita alguém. Começam os gritos e os disparates.
— Se isto fosse um submarino, como naquele filme que... — começa o Telegoela, mas ninguém quer
ouvi-lo.
Há alunos que se pegam à pancada, só para passar o tempo. Há alunos que se sentam no chão, só para
passar o tempo. Há professores que conversam sobre assuntos que nunca conversaram.
O Chico Fininho anda para trás e para a frente como um leão enjaulado. A confusão é tremenda. Sento-me
num canto e oiço a Asinhas nos Pés que me conta o que se passou lá em casa.
Ouve-se mais um estrondo, um estrondo enorme.
Desta vez é o Varetas quem corre à janela:
— Senhores professores, informo humildemente que também já não temos o Pavilhão número três.
Os alunos mais novinhos começam a chorar em coro.
Noto que a Carla Corações já não está mal disposta. Noto que a Rute Eléctrica seguiu os ensinamentos da
Carla Corações. Noto que o João Boião encontrou uma sandes de queijo dentro da mochila. Noto que a
Morena Fotogénica está muito animada, conversa com o Não Faz Nenhum, o "stôr" de Educação Física.
Noto que a Xutos troca receitas de bolinhos com a Marianinha Compassos. Noto que a chuva aumenta,
aumenta, aumenta sem parar...
— Este pavilhão é seguro, ou também cai? Não sei quem fez a pergunta mas a resposta
foi uma multidão aos gritos.
O Chico Fininho tenta impor a ordem, mas está provado que essa não é uma das suas especialidades.
O Varetas arma-se em corajoso e sai para a chuva, a ver a evolução dos acontecimentos.
— Uma vez no Telejornal deu uma desgraça parecida no Brasil, quando...
Ouve-se um estalo. O Chico Fininho perdeu as estribeiras e calou o Telegoela com um sopapo. A Xutos
não gosta e devolve o sopapo ao Chico Fininho, a Lindezas põe-se pelo meio a separá-los e o "stôr" de
Educação Física mete-se no molho.
Reentra o Varetas:
— Há perigo. Um cabo de alta tensão desprendeu-se e caiu ao fosso. Que ninguém se aproxime da água
que pode apanhar um tremendo choque eléctrico.
Mais gritos, mais choro. É então que uma figura sobe para uma cadeira e ergue a voz mais que todos os
outros. E, espantoso, começa a cantar: Ó Rama, ó que linda rama, ó rama da oliveira, o meu par é o mais
lindo que anda aqui na roda inteira.
Outras vozes juntam-se à primeira. De súbito, todos cantamos. Cantamos com muita convicção, até com
alegria. Dentro do Pavilhão Gimnodespor-tivo toda a gente canta. E a tempestade vai amainando lá fora e
cá dentro. Ó rama, ó que linda rama, ó rama da oliveira...
A Gui é fantástica. Só ela teria a ideia de pôr a "Careca" em peso a cantar...

12

"E agora?", quer saber o Buffalo Bill.


"Agora, a escola fechou para obras e tenho, pelo menos, quinze dias de férias."
"Tens planos?"
"Tenho, tenho sempre planos."
"Por exemplo?"
"Vou a casa da Asinhas nos Pés. E vamos passear com o Pedrinho, se estiver bom tempo. E vou ter com a
Gui. O Telegoela também me pediu para passar pela clínica do pai dele. E tenho o casamento do tio
Gaspar, no domingo. E tenho de ir fazer compras com a avó Luísa e..."
"E eu, não figuro nos teus planos?"
"Tu figuras sempre nos meus planos."
"Mentirosa!"
Dou um abraço ao Buffalo Bill. Dou-lhe um abraço apertado.
"Tem cuidado que me sufocas!"
"Cala-te, tu és um urso peludo, não podes sufocar."
"Desculpa, já me tinha esquecido."
"Anda, não fiques amuado..."
— Estás a falar sozinha, filha? — quer saber a avó Luísa.
— Não, estou a falar com os meus botões — respondo. E ouço o Buffalo Bill:
"Ah, agora fui despromovido: sou o Botões, não é?"
Não perco tempo a discutir, tanto mais que o telefone está a tocar.
— Estou? Sim, sou eu...
— Daqui é o Daniel, lembras-te? Conhecemo--nos durante a chuvada na "Careca"...
É claro que me lembro.
— Não, não estou a ver.
— Não acredito! Estivemos horas a conversar. Sou aquele dos olhos verdes, que anda no 8.°.
— Ah, com certeza, que disparate!
— Como estamos numa espécie de férias, pensei que podíamos ir ao cinema uma destas tardes.
— Vou pensar nisso.
— Óptimo, quando é que achas que podes?
— Tens alguma coisa para fazer esta tarde?
13

"Sabes, Buffalo, fui ao cinema."


"Bom, e então?"
"Com o Daniel."
"Quem é o Daniel?"
"É um colega meu do 8.-ano."
"Foi por isso que andaste duas horas à procura da camisola azul?"
"Não me digas? Andei duas horas à procura da camisola azul? És um urso indecente, muito bisbilhoteiro."
"Fica-te bem, a camisola azul."
"Obrigada. O Daniel disse--me o mesmo."
"Estás parecida com a Carla Corações..."
"Tu nem conheces a Carla Corações!"
"Estou farto de te ouvir falar da Carla Corações."
"És um urso muito intrometido."
"Eu? Que ideia. Só por querer saber com quem é que namoras..."
"Eu não namoro com ninguém e estás aqui estás a ir dormir para o sofá, com a minha avó."
"Bem sei. Guardas-me sempre o pior destino. Ontem, por exemplo, fiquei para aqui caído..."
"Desculpa-me, ursinho."
"Há mais de dez anos que não me chamavas ursinho."
"Soa melhor que Buffalo Bill."
"E não é americano."
"Boa noite, ursinho."
"Boa noite, miúda..."

14

Ninguém se lembrou que hoje é o dia dos meus anos. Faço anos neste domingo que parece de primavera e
ninguém se lembra. Só há palavras para a Sofia e para o tio Gaspar e muito justamente. Eles vão casar-se.
Eu só faço anos.
Comprei um vestido. Ao meu gosto. A minha mãe emprestou-me o perfume dela e disse: Toma, podes
ficar com o resto.
Comprei uma gravata para o meu pai, que era mesmo a que ele gostava de ter (eu tinha-o visto a mirar a
montra mais de trinta vezes). Onde é que eu fui buscar o dinheiro? Deu-mo a avó Luísa: Toma,
compra qualquer coisa para o teu pai levar ao casamento.
Hoje todos têm prendas. Todos menos eu, que faço anos e ninguém se lembra.
Toca o telefone. É a Asinhas nos Pés:
— Parabéns!
Toca o telefone. É o Telegoela:
— Parabéns!
Toca o telefone. É a Gui:
— Parabéns!
Toca o telefone. É o Daniel:
— Parabéns! Queres ir comigo ao cinema amanhã?
Hoje todos têm prendas.
O meu pai chama-me à parte:
— Não me esqueci.
A minha mãe chama-me à parte:
— Não me esqueci.
A minha avó chama-me à parte:
— Também eu, não me esqueci.
— Vamos lá casar o tio Gaspar — diz o meu pai.
Entramos no carro. Abro a janela. Vejo as coisas à minha volta que parecem correr, correr, correr.
"A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela. Tinha feições de menino(...) gostando apenas
de demorar as mãos ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas."

FIM

Títulos desta colecção:


PEDRO ALECRIM - António Mota
UMA CHUVADA NA CARECA - Alexandre Honrado
O PRÍNCIPE DOS TRIÂNGULOS BRILHANTES - Isabel Ferreira e Amilton de Jesus dos Santos
CORTEI AS TRANÇAS - António Mota
CAMPO DE URTIGAS - Martins da Rocha
OS SONHADORES - António Mota
O RAPAZ DE LOUREDO - António Mota
MARIANA NA FRONTEIRA DO SONHO - Mariana Aguilar
A TERRA DO ANJO AZUL - António Mota
O MAIOR DOS MISTÉRIOS - Alexandre Honrado
A CASA DAS BENGALAS - António Mota
OS HERÓIS DO 6.º F - António Mota
DOÇURA AMARGA - Ana Saldanha
O AGOSTO QUE NUNCA ESQUECI - António Mota
PRIMAVERA INTERROMPIDA - Daniel Marques Ferreira
FORA DE SERVIÇO - António Mota
SENTADOS NO SILÊNCIO - Alexandre Honrado

Aventura de VIVER

Alexandre Honrado

É um autor com créditos firmados na literatura juvenil, tendo já publicado, na colecção Aventura de Viver,
o livro O Maior dos Mistérios e, recentemente, Sentados no Silêncio.
A sua escrita fluente retrata com talento os ambientes em que as histórias se desenrolam.
A forma leve, subtil - às vezes bem-humorada, mas séria - como aborda problemas actuais que afectam os
jovens, cativa o leitor e prende-o a uma leitura agradável.
Uma Chuvada na Careca

É a história de uma adolescente que, numa semana, se transforma, crescendo em experiência e forma de
pensar. Os acontecimentos da escola, a aceitação da avó e o procurar em conjunto conhecerem--se
melhor, é uma maneira bem diferente e sugestiva de ver como uma coisa que nos parece aborrecida se
pode transformar numa vivência rica em conhecimento.

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