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Entre 0 BAC e 0 CIDAC Augusto Matias Animador Social No inicio dos anos setenta apareceu um desodorizante com o nome de BAC. Uma curiosidade que talvez tenha gerado alguma confuséo passa- geira na PIDE e uma ligeira estranheza nalgumas pessoas quando lhes che- gou a mao, vindo da sombra, um boletim com 0 mesmo nome. Mas esse boletim explicava 0 significado da sigla. BAC era a abreviatura de Boletim Anti-Colonial. Esta publicagao ja nao era um comego. Inscrevia-se na esforgada e persistente luta dos catdlicos progressistas contra a guerra nas colénias portuguesas de Africa. Um outro boletim, 0 Direito a Informagao fizera a sua historia ao longo dos anos. sessenta, com a proeza de nunca ter sido descoberto num tempo em que a clandestinidade era uma tarefa dificil na luta pelo fim de um regime autoritério que, como todos os regi- mes desse cariz, assentava a sua sobrevivéncia na coacgao dos direitos e das liberdades. Ja antes da guerra colonial os cristéos se tinham envolvido em acgdes politicas e militares contra o regime, nomeadamente através da JOC (Juventude Operaria Catélica) e da suc (Juventude Universitaria Catoli- ca). Mas com 0 inicio da guerra, constituiram-se alguns grupos informais, sem filiagdo partidaria, que desenvolveram um processo que viria a pro- longar-se para 14 do 25 de Abril. Estes grupos eram maioritariamente constituidos por gente de profissdes liberais, com alguma participagao de clero, estudantes e militantes da area sindical. Querendo intervir na mudanga politica do pais, em pouco tempo a sua acgao passou de anti-fas- cista para anti-colonialista. Sendo o império colonial um dos pilares ide- olégicos do regime, cedo comegou a ter-se consciéncia de que a guerra nas colonias era a realidade visivel e quotidiana que trazia 4 superficie todos os problemas do regime e da sociedade portuguesa. O pais estava a ficar exausto e o inconformismo misturado de medo respirava-se por todo o lado. Muita gente se questionava: a canalizagéo da maior fatia do orga- mento do Estado para uma guerra sem sentido, sem causa e sem futuro; a questiio ética da guerra e da paz, da violéncia e do pacifismo, da domina- go e da independéncia dos povos; a contengaio do desenvolvimento industrial e mesmo do agricola; a anulagao legal feita ao artigo 8° da Constituicado de 1933, proibindo o direito de associagao, reuniao e infor- magao; 0 constrangimento das mulheres relativamente ao ensino e a par- ticipagao civica, como por exemplo nos actos eleitorais; quase toda a juventude, sobretudo a masculina, na guerra ou em fuga para a Europa central. O avivar destas e outras questdes aliadas a um periodo de abertura ‘cor das solidariedades 21 € renovagao na Igreja universal animou os cristdos a envolverem-se numa causa que nao s6 consideravam justa, mas necessaria e urgente. A formagao do grupo denominado BAC, em 1972, corresponde a neces- sidade de melhorar a qualidade do trabalho realizado pelo grupo do Direito 4 Informagdo entre 1963 e 1971 e também de produzir a reflexao neces- saria para a compreensao do problema que a guerra Tepresentava. Tal como entre os lideres africanos, também em Portugal crescia a consciéncia de que a guerra nao era uma questao entre povos, mas que todos os povos envolvidos eram vitimas do mesmo regime politico e sistema colonial, Amilcar Cabral, lider da resist&ncia na Guiné, repetia-o com muita sim- plicidade: “Nés estamos absolutamente convencidos de que se em Portugal se instalasse amanha um governo que nao fosse fascista, mas fosse democratico, progressista, a nossa luta néio teria razao de ser”. Antecedendo o trabalho deste grupo foram publicados, em 1971, os Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial que tiveram um grande impacto em toda a oposigao. Nuno Teotonio Pereira esclarece: “Com a intencdo de fazer luz sobre as guerras coloniais e os seus antecedentes, combatendo a total desinformagao dos portugueses, o grupo do “Direito a Informagado” abalancou-se a uma iniciativa de grande vulto: a organizagdo de uma colecténea de textos e informagées, perspectivando a guerra no seu contexto histérico. Foram assim organizados, publicados e distribuidos clandestinamente em 1971 os “Sete Cadernos sobre a guerra colonial”, com o subtitulo “Colonialismo e Lutas de Libertagao"’.1 A publicagao do Boletim Anti-Colonial2 comecou em Outubro de 1972, tendo sido editados nove nimeros ao longo de um ano. No primeiro numero dizia-se: “Este Boletim fornece informacdo; a informagao leva ao esclarecimento e a decisdo; 0 esclarecimento e a decisao devem provocar acgées. A luta é urgente”. Entre os Sete Cadernos e 0 BAC, foram elaborados dossiers de informacao tematica, dedicados ds baixas portuguesas na guerra colonial (contabilizadas a partir da informagao oficial diariamente publicada no Diario de Noticias), aos crimes de guerra portugueses na guerra colonial (violagdes da Convengao de Genebra, tra- tamento de prisioneiros, utilizagdo de armas quimicas, massacres de populagées civis, como nos casos da Baixa do Cassange em Angola, de Pidjiguiti na Guiné-Bissau, de Mueda em Mogambique), a visita da mis- sao da ONU a Guiné-Bissau em 1972. Todo 0 trabalho era realizado de modo voluntario e pago pelos proprios ou através de quotizagdes entre amigos. Longe ainda de todas as tecnolo- 22 a cor das solidariedades gias que hoje preenchem o nosso quotidiano, os recursos acessiveis eram minimos. Além disso, tudo era realizado clandestinamente, com a sombra da PIDE sempre nas costas. Quaisquer atitudes ou comportamentos menos comuns ficavam sob suspeita. Era suspeito comprar varias resmas de papel ou muitos envelopes, entregar muitas cartas no mesmo correio ou comprar muitos selos, comprar material para maquinas de escrever ou stencils para maquinas duplicadoras, telefonar frequentemente para as mesmas pessoas, conversar em grupo nos cafés ou caminhar depressa na rua como quem leva uma missao. Era por isso necessario manter sempre activa a imaginagao: arranjar envelopes de empresas ou de entidades reli- giosas, distribui-los por varias pessoas para que os endere¢os tivessem letras diferentes, deixd-los em varios marcos do correio e distantes uns dos outros. Mesmo assim, no meio de todas as dificuldades, 0 modo de agir do grupo tinha adquirido uma logistica mais sustentada e algum profissiona- lismo. O seu funcionamento baseava-se num pequeno nucleo central, ligado por uma tinica pessoa a outros nticleos, estanques, cada um deles encarregado de uma tarefa especifica, em particular ligada a difusdio da informagao, numa cadeia organica que visava manter a seguranga de todo 0 trabalho realizado. Foi clandestinamente alugado um quarto numa casa de uma pessoa amiga e comecou a estruturar-se um arquivo documental. A obtengao e divulgagao da informagao beneficiava de uma vasta rede de contactos, que incluiam, para além dos catélicos progressistas, também os meios estudantis e sindicais, os movimentos ¢ iniciativas li gados a oposi- g&o democratica, nao deixando de fora os grupos que praticavam a luta armada, os meios militares. Através destes diltimos, era possivel fazer chegar aos quartéis, em Portugal ¢ nas colénias, os documentos produzi- dos. E indirectamente, eles acabavam também por ser do conhecimento de responsaveis dos movimentos de libertagao. O objectivo era ter uma actividade continuada e em expansao relativa- mente a informacao e, a partir dai, promover ou apoiar acgdes concretas que provocassem situagdes publicas de crise. Estes objectivos tiveram varias expressdes na multiplicagao da informa- go a nivel local e regional, mas em Lisboa tornaram-se sobretudo visi- veis com duas iniciativas de maior impacto. Uma foi a Vigilia pela Paz na noite de 31 de Dezembro de 1972, na Capela do Rato, com todos os efei- tos socais e politicos dela resultantes: de facto, essa acgao tornou publico © debate sobre a guerra colonial, desde os cafés até a Assembleia Nacio- nal. A outra iniciativa foi a formagao do semi-legal Movimento Justiga e Paz, também em 1972. No Porto ja existia uma Comissio Justiga e Paz, dentro dos quadros possiveis na Igreja, que tinha produzido um impor- tante documento, mas em Lisboa constituiu-se como Movimento por se a cor das solidariedades 23 tratar de uma confluéncia de varios grupos ¢ activistas. Segundo as con- clusdes do seu primeiro Encontro, em Julho de 1973, o Movimento Justi- ga e Paz definia-se “como forma de congregar os esforcos dos caidlicos pela liberdade, o direito 4 informagio e o fim da guerra colonial”. Também se intensificaram as actividades de divulgacao mais aberta de documen- tos e informagées, nomeadamente as portas das igrejas, sobretudo de Lis- boa e do Porto, Em 1971/72, alguns missiondrios estrangeiros a trabalhar em Mogambique tinham denunciado a pratica de varios massacres por parte das tropas portuguesas. A sua divulgacao produziu uma grande indignagao e maior agitacdo na luta anti-colonial. Uma acgao também destacada, inclusive pelo seu simbolismo, foi a distribuigao de panfletos de “reflexdo sobre a Igreja, o pais e a situagdéo de guerra”, em Fatima, nos dias 13 de Maio e 13 de Outubro de 1973. Mostrando uma ligag{o e um apoio mais explicitos aos movimentos de libertagéo, o grupo BAC editou ainda os “Zextos Politicos” de Amilcar Cabral, no entender de muitos o mais carismatico dos lideres africanos na luta de libertagao das colénias portuguesas, ¢ também aquele cujo pensa- mento era mais divulgado. Mas a descoberta das instalagdes do BAC, no final de Novembro de 1973, apds um ano de intensa actividade, levou ao desmantelamento do grupo e a pristio de alguns dos seus membros que sé viriam a ser libertados apés 0 25 de Abril, juntamente com todos os pre- sos politicos. Nome incontornavel em toda a histéria dos catélicos progressistas deste periodo é 0 de Nuno Teoténio Pereira que, juntamente com sua mulher Natalia eram grandes animadores e agregadores de gente e de vontades. Desde cedo entrou também Luis Moita nesse circulo. O nucleo central do BAC era composto por Fatima e Manuel Brandao Alves, Rosario Leal de Oliveira, Gabriela Ferreira, José Dias, Luis Moita e Nuno Teoténio Perei- ra. O chamado “grupo do Porto” colaborou particularmente na elaboragao dos Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial: Mario Brochado Coelho, José Soares Martins, Anténio Melo e Rui Vieira. Pedro Onofre, Luis Gor- jao Henriques e Francisco Solano de Almeida responsabilizavam-se pela parte logistica. O quarto onde se guardava a documentagio do 4c ficava na casa de Luisa Sarsfield Cabral e Rui Peixoto cedeu um local no seu escritério onde estava instalado o stencil electrénico que gravava os tex- tos a partir dos originais batidos 4 maquina. As cépias para distribuigio eram duplicadas no policopiador existente na pardquia de Igreja Nova, com a cumplicidade do padre Ismael Nabais Gongalves. Depois do 25 de Abril, acompanhando a agitacao politica e social do momento, os cat6licos progressistas tinham-se repartido por varios parti- dos ou movimentos politicos e formado varios grupos enquanto cristaos. Nuno Teoténio Pereira e Luis Moita pensaram 0 que fazer com 0 acervo 24 a cor das solidariedades de documentos que a PIDE tinha apreendido e arquivado na sua sede, com outras inten¢des. Em pouco tempo nasceu a ideia de organizar um Centro de Informagao e Documentagao Anti-Colonial. Mas nao se tratava de for- mar um arquivo morto para memoria futura, ou nao se tratava sé disso. A questao colonial ainda nao estava clara. Havia varias correntes no poder politico e militar sobre os caminhos a seguir. Falava-se da possibilidade da implantagao de um modelo neo-colonial, de adiar as independéncias 0 mais possivel de modo a ganhar tempo para uma solugao que nao fosse a libertagao das colénias, de confiar em que a evolugao politica em Portu- gal tomasse um rumo favoravel 4 sua manutengao sob outra formula. Neste contexto e em consonancia com outros movimentos politicos tinha todo o sentido continuar a prestar-se atengao e a dar apoio aos povos afri- canos das coldnias portuguesas. Foi assim que em Maio de 1974 nasceu 0 CIDA-C, Centro de Informac4o e Documentagao Anti-Colonial. Trés anos depois, nao fazendo ja sentido a referéncia anti-colonial e em homenagem a Amilcar Cabral, 0 ciDAc passou a denominar-se Centro de Informagao e Documentagao Amilcar Cabral. 2. Igualmente publicados pola Afrontamento, Boletim Anti-Colonial, Porto, 1975 (Arquivo: 2) Coloniatismo e lutas de libertagho: 7 cadernos sobre a guerra |. Publicados pela editorial Afrontamento, com 0 titulo colonial, Porto, 1974 (Arquivo: 1) 2 cor das solidariedades 25

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