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Ficha Técnica

QUANTAS MADRUGADAS TEM A NOITE

Autor: Ondjaki

Editora: Caminho

Capa: António Jorge Gonçalves

ISBN: 9789722123846

© Editorial Caminho – 2004

Uma editora do grupo Leya

Editorial Caminho

Rua Cidade de Córdova, n.º 2

2610-038 Alfragide – Portugal

www.caminho.leya.com
esta estória é muito pra ti, joão vêncio
tristezas, avilo, isso e muito mais... o

passado, minhas lembranças mesmo,

minhas solidões. a vida, muadiê, a vida

é um antigamente só, e nós ficamos lá,

cada vez mais pra frente vamos, e em-

purrados mas, quem, nós mesmo?, nós

somos nosso próprio esquecimento — bor-

racha do futuro a apagar o passado nas

ardósias do presente.

AdolfoDido
As primeira ngalas

Uatono, mona: ku Alunga, ku eniê kumona.

Anga: Uatono, diá: kubadikinya kîma ki nangiê.

Provérbio kimbundu

[Estás acordado, vê: no Além não há vistas.

Ou: estás acordado, come: o pestanejar é coisa breve.]

Sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud'uma batida só, sangue leve no peito e
lágrimas limpas a escorrer? Faz conta foste na pesca, rede e tudo, e em vez do peixe grande meteste a
rede na água e te veio uma nuvem? Se é impossível? Eu sei lá, avilo, eu sei lá... Desde candengue que
ando então a ver as nuvens dançar nas peles do mar, e me pergunto: assim calminho, liso tipo carapinha
com desfrise, o mar não tem as nuvens dele também? De onde eu venho é muito longe, por isso, juro
mesmo, nasci de novo. Vou te confessar: espanto é só aquilo que ainda nunca tínhamos vivido com a
nossa pele!

Avilo, desculpa tanta filosofia, o que tenho é sede mesmo.

Num tenho dinheiro, num vale a pena te baldar. Mas, epá, vamos só desequilibrar umas birras; sentas
aí, nas calmas, eu te pago em estória, isso mesmo, uma pura estória daquelas com peso de antigamente,
nada de invencionices de baixa categoria, estorietas, coisas dos artistas: pura verdade, só
acontecimentos factuais mesmo. A vida não é um carnaval? Vou te mostrar alguns dançarinos, damos e
damas, diabo e Deus, a maka da existência.

Porra, deixa te perguntar ainda: uma carraça pode matar um gajo?


Ai, tás a rir?! E só vais na primeira ngala... Ouve só bem a pergunta, porque duma pergunta é que
tudo pode começar. Calma, vou-te explicar tudo, o tintim pelo tintim, temos a tarde toda e se for preciso,
tu sabes, depois da tarde vem a noite, nada de pressas que estômago não gosta disso, conselho da
médica amiga do mô amigo Burkina. Gala só, isso é nome: Burkina?! Num ri só assim no outro que
você num conhece, bom homem então, grande mô camba de todas aflições deste mundo e do outro, é
verdade, porque eu mesmo aqui que estou, junto contigo, teus sorrisos, tua assistência, teu cumbú, tuas
birras, eu mesmo é que posso falar do outro mundo. Tem razão, desculpa tanta confusão então; vamos
iniciar os primeiros tintins.

O caso do Cão primeiro, quer dizer, não vou poder falar do Cão sem falar da dona também, mas
supondo: o Cão, que não era um cão, mas o Cão, uma besta, grande animal de mangonha e sono, todos
dias, o muadiê habitava a melhor parte do cubíco então, num acreditas? Porra, se tás a pensar que tou
grosso, podes tirar o cabrito da chuva! Isso num tem nada a ver com os poderes do álcool, não vale a
pena te espantares já, guarda pra mais tarde então, vem aí coisa de muito mais, mais-mais, o muito-
mesmo.

Inda escuta: o Cão vivia numa casa, puramente acomodado, e a kota, não vale a pena estarmos mais
a falar outros nomes, só o nome do meu grande camba Burkina já tavas a rir, a kota é uma porreira, lhe
conheço desde candengue, tempos idos — meus cabelos todos dias me avisam. A kota e o Cão, assunto
que nem vale a pena lhe puxar, a kota desvia o olhar, vai na varanda dela. Varanda dela, muadiê, nunca
viste: abelhas! Ché, grande ideia da kota, agora num faz nada, as abelhas trabalham pra ela, não deste
isso na escola?, as abelhas: as operárias, as parteiras, as carregadoras, guarda-as-costas e tudo já, só
pra uma abelhazinha, quer dizer, abelhazona, a rainha? Pois então, é isso, a kota foi mais viva, abateu a
pura rainha e hoje? Hoje? Respeitada, muadiê, a kota é a pura rainha das abelhas dela, num te conto,
muito respeito. Já vi pessoa falar com jacó, com cão, com cabrito, com gato, até com Deus, mas com
abelha?! Avilo, aquela kota tem!, manda as abelhas trabalhar, elas trabalham, puro negócio. Não tás a
captar? Manda então vir mais birras.

A kota me desenrasca então uns almoços, na minha fome, minha desgraça que eu tive, depois te
conto, a noite inda tá pra nascer. Primeiro, lá atrás do tempo, ela é que era a minha vizinha mais velha,
onde pedíamos água gelada e telefonema, ché, marido dela boa pessoa, tratava bem todos miúdos,
mesmo o meu velho lhe gostava. Naquele tempo telefone dava pra estranhar, sabes o quê, ficar no
muro, fazer chiuuu só pra ouvir telefone tocar? Nossa brincadeira — quem ouvia primeiro. Olha, esse
que eu te falei, Burkina, mô camba, era um ndengue muito craque, via mais que todos à noite, tipo gato,
lhe estigávamos de feiticeiro, o muadiê só ria, ouvia o telefone antes de tocar, só lhe víamos já o riso
dele no lado esquerdo da boca como ele ri até hoje, e até aguentava melhor o jindungo na kitaba, nós lhe
invejávamos e ele nos invejava: é que o muadiê, na escada do tempo, esqueceu de crescer.

Yá, nós alturámos, o gajo nada, se male mesmo, primeiro era só cambutismo, lhe estigávamos só dum
coro, depois desistimos, aquilo já não era matéria de estiga — respeito só. O muadiê ficou grosso, mas
só pra cada lado, e batia male, começou a ficar tipo maboque, azedado, quase não falava. Mas era
potente nas damas, xaxeiro de competência reconhecida até na Ilha, único que num era kiungueiro, só
kinjango dele, avilo!, tava a nos meter respeito quanto mais nas damas! O nome dele depois, não sei
quem descobriu, se estendia: BurkinaFaçam, brincadeiras com a pátria dos outros, mas esse nome a
origem dele é a preguiça do Burkina, mesmo a professora já tinha lhe dito

o teu problema não é a altura. É a preguicite aguda!

Aquilo foi estiga ou quê!, nunca mais esquecemos, o Jaí decorou a frase, tipo duas semanas só
falávamos já essas palavras difíceis, um dizia

preguicite

outro respondia

aguda!

távamos a se cumprimentar já assim e tudo, mesmo mais velhos tipo a KotaDasAbelhas a nos
aconselharem

essa frase não dá pra tudo

mas tás a ver, nós, candengues, queríamos gastar todo riso da frase, espremer-lhe as gotas da cócega,
tudo também a espremer a paciência do Burkina.

Tens razão, vou voltar mais atrás, a kota, era isso mesmo que eu tava a falar, quer dizer, tenho que te
contar também essas coisas todas, as recentes e as do antigamente, senão não vais captar e daqui a
bocadinho vais querer me ruar da tua mesa... Tou ta chular birras?, não é isso, meu, calma só. Essa é a
mais pura estória que vais ouvir, até vais pagar no fim pra eu te contar de novo, ou então vais querer
que eu ponha mais outra estória, mas não dá, como esta..., como esta!, mô bróda, não tem igual mesmo.

Passa só uma de-bíers então.

A kota, nossa vizinha desde o tempo da barriga da minha mãe, sempre ali, casarão dela, o avilo dela
campou cedo, depois vieram as independências, estatuto dela então ficou nos arrastos do tempo. Ela
mesmo discreta, porreira como desde sempre, nossas águas geladas, mesmo fingia não nos ver, nós bué,
fim da tarde, no quintal dela a gamar mangas. Avilo, foi ali naquele quintal, antes das damas, das
manobras sexuais, ali aprendi a palavra doçura, aquela mangueira dizem era regada com chá de
caxinde, mentira posta pelo kota Diarabí, mais velho da nossa rua, o cego mais vijú que já conheci —
em 92 lhe apanhámos a esquivar bala; brincas?

Um dia as abelhas chegaram já, primeiro umas, depois as restantes, mais tarde a filharada toda. A
kota então tava a se fingir de banqueira, dentro de casa, entrincheirada já e tudo, nós lhe berrávamos
tá precisar d'alguma coisa...?

ela sorria na janela de pó, sorriso antigo, limpo. A kota, olho e sheltox à espera, desentrincheirou veloz,
na visão certeira: como digo, viu a principal abelha, a kota tinha estudado bem as lições da antiga quarta
classe dela, quem mata rei, rei fica, nunca ouviste assim? Pois, e a kota: a abelha rainha em voo
distraído, a kota metralhou meia lata de sheltox — ou era flit? —, aquilo foi de ver e pedir bis: parecia
era dança rebita, todas abelhas operárias e demais ao redoro da kota, mesmo nenhuma picada, só bzzz-
bzzz de respeito e dali pra diante, ela mesmo, pessoa e rainha, abelhas escravas dela — outros tempos,
muadiê, outras tecnologias. Já viste varanda virar bizness? Ah pois!

Aquilo é a delícia toda — se provas a tua boca só quer já mais, ruína do teu bolso, aquele é mel dos
céus, não é mais coisa de capurroto, porque maluvo, porque kimbombo, mais-velhos do Mussulo bem
dados!..., ali é mel, e podes galar desde moto simson até carro de deputado a parar no passeio dela,
buracos e tudo

dona, tem mais daquele mel bom?

até vais pensar que aquilo é pessoal do Brasil a chegar ali, eles que gostam de usar a palavra mel pra
chamar a pura branquinha, a água que arde, não sabes?, porra, grande matumbo você: aguardente!

Bom, a tarde já se fez, vamos no prolongamento das coisas: não posso nunca esquecer a carraça,
podes rir mesmo, mas essa carraça é que vai nos acompanhar e explicar tudo desde o início. O quê?, o
início mais outra vez? Não tás a captar, avilo..., aqui todas pontas da rede são o próprio início, podes
pegar de qualquer lado, então eu num comecei a te avisar que às vezes um gajo vai na pesca e chega
em casa, tua mulher furiosa, tás atrasado, afinal trouxeste nuvem pra ela grelhar?! Ché!, vai te partir os
cornos, vai chamar pai dela então. Calma só, já sei, teu cumbú, tu mesmo é que tás a patrocinar as
ngalas, vamos só devagar, kuxacatamente: tenho que te apresentar a carraça. É que tá tudo ligado,
muadiê, a vida é um mar picado e todas praias são filhas dele, tentáculos do mesmo polvo salgado —
queres escolher qual?

Antes da carraça está o Cão. Antes do Cão está um outro gajo de seu nome então que dava também
pra ser estigado: AdolfoDido!, tás a captar? Diz só rápido... Já captaste? Adolfo...Dido, Adolfo...Dido,
tudo isso era a maka dos mais velhos porque iam ter que pronunciar a palavra já essa, fodido, e o
muadiê mesmo nem sabia, esse nome é que ia lhe besuntar toda a vida de gente a lhe foder toda hora,
tipo quarra mesmo, um gajo de azar na pele, fazer mais como então!

Esse Adolfo, nosso camba também. Nós então, Burkina, já te falei, o puro Jaí, que era albino, já te
falei?, e o AdolfoDido. Então: ele foi dos primeiros visitantes na casa da KotaDasAbelhas,
desarrumações dela lá dentro, conforme veio reportar logo depois da primeira visita. A kota era dada a
animais: abelhas, negócio obrigatório e safa de vida, e o Cão, avilo, dá medo só de contar, até hoje
trememos e não falamos: o Cão — só assim, não tem nome e tem mais nome que nós dois juntos.
Aguentas? Isso até vai pedir mais uma birra — venha ela.

Mas, assim, pensas que isto tudo é uma confusão, circo meu das palhaçadas, cabeçadas na lógica?
Ainda vais rir, mas prepara também o teu coração pra chorar, a vida é mesmo esse laço apertado, tem
dias que lhe conhecemos os segredos — lhe desapertamos, outros dias lutamos só, nossas derrotas e
lágrimas, e ficamos a olhar: o pescador se irrita com os nós da rede? Isto tudo que eu te falo, não é
efeito do álcool, não é com três nem sete que vais me derrubar; isto tudo que eu falo é assim mesmo, a
mancha da confusão, labirinto, e há que descobrir as coisas no devagar das coisas: o amor não acende
num fósforo sozinho. Vai só ouvindo os nomes que te ponho, a kota, os cambas, as abelhas, a carraça e
o Cão. Jardim zoológico mais?

Agarra só a tua calma.

Te contava: esse mô camba Adolfo foi o primeiro a visitar a casa, os interiores do reino. Hoje lhe
chamamos reino, porque tinha tudo lá dentro pra ser assim, mas não tou então a falar mais do caso da
abelha morta, a rainha, e a rainha posta — a kota. Estou a falar dum rei então! Duvidas? O Cão, meu,
aquele Cão virou rei. Nem que m'apontes a cabeça na pistola nunca vou saber dizer: porquê? Tens que
perguntar na kota, posso te apresentar, casa dela na minha rua. Só não posso é t'apresentar o Cão,
depois te explico porquê, pra não estragar os caminhos da estória, eu preciso de beber, avilo, e não é
beber pra esquecer, é bem acontrário: beber pra lembrar, beber pra contar. Ai uê, meu rasto do passado:
se te entorno aqui môs esgotos, minhas lavas, é que sempre me disseram: pra curar a ferida tens que lhe
olhar no sangue dela. Mas assim, tanto?

Surpresa nossa, não sabíamos, o Cão era o dominante

tou vos a pôr avilos, espaço só dele, sala de televisão, o maior quarto do cubíco. Aliás, aquilo
é sala, só que foi transformada no quarto do Cão. Todos mambos: sofá, cobertor, comida com
hora marcada, o puro mel e tudo. Porra, eu queria ser cão também!

palavras do Adolfo sempre que saía do cubíco da KotaDasAbelhas. Às vezes, nem era sede nem
nada, as curiosidades mesmo

kota, tem água?

e ela logo bem simpática

entra só, filho, não tenhas medo das abelhas, elas não te mordem

aquilo então era verdade, algumas tinham serviço extra, contornar a sala, catar moscas pra não
incomodar o Cão. E ele na ex-sala, porta pouco aberta, ele, o dogue
só o olhar, muadiê!, tá dar medo. Nunca cheguei de olhar mais que um pouco tempo, só pisca-
pisca de olho, brilho nos olhos dele, calmaria raivosa, janela do diabo ou quê?

Ahahah!, o AdolfoDido vinha borrado no medo de nos contar essas estórias assim dos olhos do Cão, o
muadiê virava poeta, meu, o medo traz outras propriedades, nós só de sabermos qual era a janela
correspondente com o Cão também já pouco olhávamos

dá azar!

sempre dizíamos. Aquilo era um senhor Cão, dono do mundo dele, quer dizer, a kota que era rainha de
abelhas perdia estatuto ao pé dele, o filho da puta do Cão!

Mas, nestes presentes de agora é que tudo tem uma razão de ser contado, e uma razão de tristeza:
todos desconfiamos que foi ali, nessas idas dele, que o Adolfo pegou então a doença que lhe foi matar.
Só pode ser, eu nem acho que é feitiço ou coisas do outro mundo, pra mim foi a carraça mesmo,
tentaculista das febres do mal. Ah pois!, agora já entendes, né?, é por isso que eu te perguntava: uma
carraça pode matar um gajo? E agora? Num queres responder?, então passa lá mais uma birra, vamos
lubrificar a locomotiva falatória, como dizia o kota Odorico.

Quer dizer, a morte é sempre um de-repente, vamos fazer mais como então?, agora estamos aqui,
daqui a bocadinho já podemos estar do outro lado do rio, meu camba Arlindo é que dizia

a vida é uma jangada, veículo da curta travessia, temporal... mas: mesmo a jangada afunda.

Aquilo foi muito repentino pra nós: sabes há quanto tempo não via o Burkina chorar? Nem lembro
mais, foi por causa de estarmos a pinar na Ilha, e o muadiê não aguentou a estiga de não saber nadar.
Quer dizer, se atirou só assim na água, bom mergulho mesmo, nós até ficámos admirados, nossas bocas
abertas à espera que ele voltasse. E ali a corrente não era de brincadeira, quem ia pinar pra lhe buscar?
Sabes? AdolfoDido. Aquilo foi por instinto, eu acho, ele não é nada das coragens, mesmo estórias que
ele conta militares, tudo então pura ficção, estórias bem verídicas, como ele gostava de dizer. Saltou,
mergulhou, demorou: a vida é bonita de lhe voltar a ver, eu vi duas, e o Burkina sem ares pra respirar, só
aí na areia, não sabíamos que fazer

tem que dar beijo da boca!

mas quem ia dar beijo na cara feia do Burkina?

AdolfoDido de novo!, isso já foi coragem mesmo, tenho que admitir, Burkina então é um gajo feio,
meu, não dá pra lhe beijar assim, lábios de homem com homem. Mas foi. E mudos, nem falámos mais.
Voltámos só assim da praia, nosso segredo, e o Burkina, que não tinha palavras, chorava só: não era
lágrima de medo, aquilo eram emoções, lágrima do agradecimento que as palavras não podem falar.
Você cala, chora só; nós lhe entendemos. O Adolfo nem disse nada, nem pusemos no Burkina mais
estiga de nada relacionado com o mar, e vimos o Adolfo com outros olhos; nesse dia ele nos ficou
adulto.

Desde esse dia nunca mais tinha visto o Burkina chorar. Só que a morte desbloqueia essas coisas,
mecanismos das lágrimas, verdades que temos guardadas no nosso coração, o tudo e o tanto — podem
mesmo nos fazer falar com uma pessoa que não conhecemos... A morte, muadiê, porra, dá medo!, o
Burkina tava a chorar mesmo, lágrimas então parecidas com as desse dia da praia, então o muadiê que
tinha lhe salvado das águas, tinha assim morrido sem lhe avisar, sem dar tempo do Burkina lhe devolver
o beijo da boca? Meu, dias tristes, nosso desgosto, o albino Jaí tipo tava a ficar maluco, ele é que tava a
dar as voltas do enterro, já até tava esquecer o antigo hábito de sempre procurar as sombras do dia,
nunca parar na quentura do sol. Ai, nunca reparaste? Assim, meio-dia, os albinos pausam em baixo da
árvore!... Mambos de pele, makas que nós desconhecemos, mas é preciso respeitar então, num ri só!

Yá, o Adolfo tinha campado, soubemos só assim, mujimbo de boca-em-boca...

Ou então deixinda arrecuar pra te contar tudo mesmo: começámos na carraça, porque eu agora sei
que foi da carraça, mas na altura ninguém sabia, tás a galar? Calma só, não é nenhuma confusão, são
várias e muitas confusões; primeiro: o morto tinha duas damas; segundo, havia aquela maka das viúvas
do estado, os guitos lá dos ex-combatentes, num tás a lembrar? Isso foi naquelas semanas das
chuvadas, num tás a ver? Calma então, vou te localizar devidamente.

Foi durante essa chuva que ninguém já entendia, até tavam a dizer que era por causa da morte do
man Mbimbi, que era feiticeiro, e que agora essa chuva toda era mesmo por causa dele morrer assim
sem pura despedida, morte matada de repente, é que os ngapas precisam das cerimónias todas da
despedida, não é assim só, aká apontada e disparada e pronto! E as chuvas tavam aí pra confirmar —
Angola ensopada, me lembro bem, foram dias do outro mundo... Mu Luanda, bróda?, até a Kianda,
habituada nas águas, tava ficar atrapalhada!

Avilo: esgoto do mundo?, fim da cauda do rio onde a chuva faz as vinganças dela? Chuva já não era
chuva!, até nós aqui chegamos de meter respeito nos bródas moçambicanos, mesmo eles especialistas
das enchentes. As costuras do céu tinham rebentado e o costureiro-anjo tava de férias — e nós aqui, a
aguentar as aquáticas consequências: mais calamidade menos calamidade, quem quer mesmo saber?
Internacionalmente somos mais destacados é na guerra e na fome, única chuva que lhes interessa vir
aqui sofrer é chuva petroleo-diamantífera, tás a captar, uí?, outras chuvas das lamas dos mosquitos
gordos de matar ndengues na febre das madrugadas, ou mesmo chuva do sorriso repentino e rebentado
dos alcatrões de nunca mais lhes consertarem, ou chuva molhada nas nenhumas tendas e telhas dos
deslocados provinciais da nossa guerra gorda e engordante, essas são chuvas mais próprias pra pobres,
e essas ninguém veio aqui pôr pele dele pra ser salpicado na visão dos olhos: andar já era nadar,
conduzir já era navegar, viver já era só sofrer. Nosso povo mesmo é que me causa espanto no coração:
rir é rir, um acto labial de para-sempre, e rir não só pra dentro, mas de dentro pros outros também, pra
atingir e tingir a vida. Agora parece vou ter que te falar isto: aqui a vida é que está ser adoptada, fosse
uma criança d'olhos bem ramelados que você no olhar lhe busca e encontra a ternura — aí você lhe
gosta, lhe habitua. Aqui a vida parece uma criança enteada que lhe aceitamos em casa, ela a fugir da
guerra... Divago, avilo?, navego nas lembranças molhadas desses dias? É porque não viste: sofrimento
aqui lhe maltratamos male!, ele desiste de nos maltratar, muangolê então é nervoso: a chuva era uma
quase calamidade?, lhe tavam a receber mesmo assim, sorrisos, novas negociatas que as águas
trouxeram, aprender a nadar agora na piscina de alcatrão, ex tua rua, ex teu trajecto dos pés poeirentos.
Num duvida só, era muita chuva, só que: aqui somos muitos também. A união faz o reforço? Meu: é no
sofrimento que o sorriso dum povo fica todo semelhado — uma única boca sem rosto a rir na cara da
desgraça, a lhe amolecer. Brincas? Porque desfortúnio, inundação social? — é quase sempre uma
questão de olhos, olhares. Não espanta só, uí, gala inda: o imbondeiro pra ti pode ser uma árvore
cambuta-seca, feia. Mas!, e se eu te emprestar outras vistas: árvore antiga-rija, bonita de ilustrar muitas
vezes o sol-poente?

Olha o Burkina, sempre ocupado dum lado pro outro, refilava assim na voz dele

porra, nunca vi um morto mais azarado! Já telefonei pra DonaDivina, já telefonei pra
KiBebucha, e ninguém sabe me dizer nada do corpo

e assim mesmo como ele tava enervado, esse mesmo, o BurkinaFaçam, todo pequenino que ele é,
desatava só a chorar, porra, tava a meter impressão, meu, não dava pra falar com ele.

Deixinda ir mais atrás, os primeiros dias: acho que dois dias, ninguém soube nada, não tínhamos
captado bem o acontecido, até já tavam a dizer lá no bairro que era só mujimbo, que o Adolfo num tinha
nada campado. Isso é que num podia ser, porque a notícia depois apareceu no jornal com foto preta-e-
branca do antigamente, pura quindumba jimy, e não há dois gajos com esse nome em Luanda! Fim do
dia: o Burkina e o albino Jaí já sabiam que o corpo tava na morgue, mas por causa da tópsia não podia
sair, e houve maka lá mesmo, por isso é que te falei das duas damas do Adolfo.

Vamos só devagar, vou te pôr os casos, senão não vais captar nada e daqui a bocado em vez de
bebermos vais querer só fazer perguntas e mais perguntas. Pergunta é na escola — aqui é birra! Ó piô:
traz aí mais uma.

Aponta aí na tua memória: tem a primeira esposa, DonaDivina, sempre lhe chamámos assim, desde o
antigamente, kota chata, meu, já entrou no casarão da idade, assim então armada em esperta. Andou no
mato, cagou no mato, num sei se deu tiro ou não, mas dormiu no chão com os bichos, já passou fome, já
comeu comida de lata pra cão, quer dizer, tomava banho no rio, limpava cu com plantas, mas porra, num
aprendeu merda nenhuma — das simplicidades da vida. Ela e o Adolfo se separaram pouco depois de
terem casado, se conheceram aqui em Luanda, numa festa, aí, muito antigamente, nem vale a pena
irmos lá... Paixão, porque paixão, porque amor, porque cama, porque era boa, porque isto e porque
aquilo, afinal a dama tava convencida que o Adolfo então tinha as puras influências, só porque era primo
dum gajo aí do éme, ahahah, gajo só bem honesto, nunca gamou, a dama se paiou!, mas demorou pra
ver isso, sempre a insistir, sempre a falar em nome do Adolfo e até já do primo do Adolfo, meu, aquilo
era abuso das confianças ou quê?! Sabes o quê meter requisição, geleira pro cubíco e bina pros
candengues, e assinar mesmo sem vergonha no dedo, a mulher do primo do camarada fulano de tal,
do éme? Porra, se fosse minha dama, lhe dava bofa mesmo, não admitia se meter assim com a minha
família, mesmo casados já e tudo... É assim?!

Bem, nós sempre a lhe avisarmos, até o Jaí, que é um gajo assim também muito honesto, é professor,
coitado, salário dele só dá mesmo pra nós lhe estigarmos, mas é um salário tão cochêro que só dá pra
duas estigas, não aguenta nem três! Yá, e o Jaí, sempre a lhe dar os puros conselhos

mô Adolfo, essa dama..., sempre a t'abusar, a te falar mal noutros kotas, depois sabes como é,
dizem também que ela anda a dar umas curvas, que essa lanchonete dela num apareceu à toa...

e pouco mais: separação dos factos. Cada um pro seu lado e, de facto, os factos dela sempre a
aumentarem: mais lanchonetes, puro carro, mudou de casa, sempre sozinha, só visitas nocturnas,
importantes. Epá, deixa!, é melhor só não falar de nomes, essa hora podem estar a me encomendar no
Roque, e eu costumo ter makas esquisitas com a morte...

Yá: a dama, pronto, destino dela, independências, etecetera, tava mesmo endinheirada, só queria
passeios de barco no Mussulo, todos mambos, camarão e lagostas, vestidos brilhantes, dar bofas nos
miúdos e tudo. Só que o tempo, avilo — o tempo nos constrói, o tempo nos destrói: o dinheiro nunca é
suficiente, gala só nós, tu e eu: tu me pagas, eu bebo; tu bebes, eu te conto. Mas nunca vamos ter aqui
birras suficientes pra mim, e nunca vou te contar tudo que podias ouvir, ou não é assim? E dinheiro não
é o céu: acaba mesmo.

Dinheiro da dama, num sei como, umou!, sorriso torto na boca dela todas manhãs. Saudade, avilo!,
saudade mata. Quem nunca andou no mar não sabe que a terra fica longe e que a força do braço acaba
rápido no insistir do remo; quem nunca teve dinheiro não sabe canjonjar. Quem é que pode mesmo
guardar no bolso coisa que nunca teve na mão? Só a aflição da dama!, uá uê, o Man Ré mesmo é que
sabe: a mulher tem muíto gêto, mas a tal DonaDivina tava muito desdivinada! É também daí que vem o
desejo dela de encontrar o corpo do Adolfo, se fazer agora de viúva

você mais? Está a brincar ou quê? O passado é o que já não volta nunca mais, águas
passadas...

filipou o albino Jaí, ele nunca gostou muito dela, mas assim a ver princípios de novo aproveitamento,
muito menos.

Lá estavam, no Hospital Maria Pia, aliás, Josina Machel, a tentar encontrar alguém, o responsável
pelo catálogo dos corpos e lhes explicaram: não era ali, era na morgue, onde vissem muita gente, panos
e choros, era aí, mais lá em baixo.

Gritaria toda, claro, xinguilamentos e lágrimas, a morte traz essas coisas humanas todas, meu, tu já
reparaste, falar da morte me arrepia todo, depois vais entender melhor. Chegaram lá, sim, e a confusão,
e os suores, e o sol, e o cheiro — tudo. Pra pior, não acreditas?, chegou mais a outra mulher do Adolfo,
a segunda: KiBebucha, dama assim atarraxada, da Ilha, gosta de bater então. Acho que até o próprio
Adolfo já apanhou dela. Ê!, muadiê, confusão agora ali!, maka de damas, ia sair já luta dos cabelos e
tudo, mas aquele Jaí tem esquebras de juízo

mas agora vão lutar aqui por causa do morto? Que falta de respeito é essa? Primeiro temos
que encontrar o corpo, depois é que as madamas vão se resolver lá pra longe!

Jaí bravou, e ele não é de bravar. Quer dizer...

Lá, muito antigamente, todos tinham nome: eu num sei quem pôs o Façam no Burkina, familiares
talvez; o Adolfo foi num primo dele que lhe puseram, só pra diversão dele, do primo, de ver a cara dos
mais-velhos a chichilar pra dizer o nome do Adolfo assim rápido Adolfodido; e o Jaí, fomos nós todos,
os do futebol: no areal, nas horas do cabrito-mé e a-bola-é-falta, aquela soalheira que dá medo nos
albinos, e sempre mesmo na hora dos futebóis, frase preferida na boca dele

venho já aí!

e nunca mais!, nem apanha-bolas, nem senhor-árbitro, nem já assistente-catingoso. Bazava só, triste
nas sombras que o corpo dele pedia, lá na entrada da escola, onde ele estacionava a ser olhado na
professora dos olhos doces, DonaGirafa, lhe chamávamos, através do pescoço dela: muadiê, aquilo já
não era pescoço, yá?, aquilo eram pescoços! E sempre nessa frase dele

venho já aí, venho já aí...

primeiro lhe pusemos só Venhojaí, mas depois lhe abreviámos e ficou: Jaí, sem chamar albino, eu é
que tou a exagerar aqui nas palavras pra te pôr a estória toda em condições cromáticas.

Nesse tempo, quem não fosse do grupo, camba de caçumbula, e lhe chamasse Venhojaí tinha luta
certa, e o Jaí quando tava filipado batia male também, mas, porra, frase dele sempre cómica, quando
queriam pôr café na areia da luta dele, o muadiê inda dizia

vem só aqui na sombra pra ver se num vou te partir os corno!

Acontecimentos cómicos da nossa infância, meu, tás a ver, um gajo lhe ameaçarem de porrada e ele
na resposta inda tá mandar o outro vir mais na sombra lutar? O Jaí é um gajo porreiro e com a idade só
ajuizou cada vez mais, sem peleja, só um dia que foi diferente. Te ponho? Passa só mais uma ngala.
Nós do grupo nos salvámos assim uns nos outros, o Adolfo salvou o Burkina das águas do mar, o sal
que afoga; e um dia, muito mais tarde, até já não se viam há bué, foi a vez do Jaí ser salvo.

Mambos da estupidez, meu: lembras quando tavam a caçar albinos pra curar sida?, antes de se falar
das virgens, ali naquelas bandas do Roque tava a ser problemático então ser albino! Duvidas? Num
foste lá? Granda maka: época da caça total, albinos a gastar cumbú na tinta pra cabelo e bigode, uns já
não saíam de casa mais de três meses, outros bem agasalhados só, catinga aí no pleno meio-dia, ai uê, a
cor é um problema, avilo!, vê só o que dá, não é só aqui, não é só os albinos, é no mundo todo! África
do Sul — lembras, porque aparteide, porque brancos e pretos e indianos e coloridos? Estupidez, meu, tu
já galaste mesmo, te tocarem uma sirene nos ouvidos pra tu bazares na tua buala? O quê, eu, mentira?
Num sabias? Janesburgo: fim de tarde, o puro cenário, vais pensar que é filme, não, era realidade dura
mesmo, as sirenes a tocar e tu mesmo, bléque, só podias ir no maximbombo dos bléques; se eras
apanhado, chicotada!, bofa, ou cadeia mesmo. Tiro também, de vez em quando — brancos
maldispostos. Duvidas? Violência, avilo, loucura das raças, uns mais que outros? Onde é que isso tá
escrito na Bíblia? Se li?, não, nunca li, mas porra, não pode ser: se tu tens mais cumbú que eu, tudo bem,
tu me pagas as birras; se eu tenho mais estória que tu, eu te ponho as danças falantes, e vamos navegar
aqui, nas borbulhas da cerveja. Mas, porra, cor virar documento? Essas makas, avilo, essas makas que
te falo, porra, coitado do Jaí, o gajo é professor, abdicou das corrupções, só vive disso e tinha mesmo
que ir dar aulas. E agora a maka da sida, se diziam que os líquidos no nguimbo dos albinos é que tinham
o puro milongo? O muadiê passou mal... Calma, já te conto onde é que entra o Burkina. É preciso inda
molharmos mais uns coche o discurso.

O Jaí não tinha saída nem salvação, tinha que enfrentar a multidão — estrada do Roque, nem queria
se aventurar num candongueiro, morte certeira. Só dum chapéu do Pétro, e poucos disfarces, o gajo
enfrentou a vida, destino dele. Tava bem filipado, porra, um gajo sente-se mal, não poder sair de casa
porque vão te cortar a cabeça na rua? Deve ser chato, meu, não achas? Sim, tens razão, mais que
chato: isso é mesmo já do campo dos absurdos, mazelas sociais, mas vamos fazer mais como, nossa
população tava nessa crença bem popular...!

Bem, o muadiê tava no caminho dele, e começou a ouvir gritarias. O medo é um aviso: teu sangue
acelera e você já sabe que vai acontecer alguma coisa com o teu corpo, ou só com a tua cabeça, ou
mesmo com toda tua vida: o Jaí começou a correr, ele me disse mesmo, depois

porra, você já teve bué de pessoas a olhar pra ti tipo que és o peru dos natais todos?, avilo,
brilho da catana é uma merda assustadora!

Coitado, porra, tou a imaginar, pleno dia da tua vida, e seres assim perseguido tipo bicho, mesmo tu já
sabendo o prémio é a pura tua cabeça?, que vão te abrir, vais ficar mesmo sem pescoço, metade sem
metade, teu sangue na estrada, teu corpo pra ninguém nunca enterrar nem te chorar só de vez em
quando, domingo sim domingo não? É o pânico, meu.
Epá, mas o muadiê correu, e sabes como é: quem foge tem sempre mais força que quem persegue,
mas o dinheiro fala muito alto, aliás, já descobri, o dinheiro não fala: berra! E essas cabeças albinas, os
internos líquidos, tavam a valer muitos dodós, zeros e mais zeros, o verde das notas. Jaí correu, porra,
dizem, num sei, num tava lá, ultrapassou dois carros, atropelou uma galinha, e houve um cão que fugiu
porque só tava habituado a dar kibídi, nunca tinham lhe dado — o cão assustou, fugiu nuns becos
também aí. Calma, vou contar: o Jaí sempre a correr, e a multidão atrás dele a aumentar, e o cansaço
também a aumentar, e muita gente já tava a perceber muito bem qual era a razão daquela demóstenes
assim extra dezembrina, pois tavam a galar o fluorescente corredor destacado, de modos que os
perseguidores aumentavam à toa. Safa do Jaí, vê lá como é a vida, cansaço dele já e coração e pulmões
a falhar, antiga asma, maka dele com o calor, viu já um polícia lá longe — quer dizer, a safa da
autoridade. Qual quê!, mal se aproximou, o polícia olhava pra trás dele, uma tia vinha de catana na mão
a berrar

agarra o albino, agarra o albino

o polícia saca da makarov e num faz mais nada: bala na câmara na direcção da cabeça do homem. O
Jaí parou, e só tava já a angustiar na visão da multidão que vinha, gentes rápidas, a ver quem apanhava
primeiro o homem. Vergonha só, né, muadiê? Caça de homem!, prática antiga por estas bandas,
vergonha só — até cuspo no chão!

Foi tudo muito rápido, não é estas sequências todas que eu tou ta pôr: ele via só, me disse mesmo, via
só o brilho da catana, inda pensou

uma catana pode ser usada pra coisas tão diferentes como a política ou a medicina

porque ali se tratava de chegar primeiro ao líquido curador das sidas todas. Meu, pistola mesmo na
testa, bala na câmara e tudo, você faz mais quê?

Pensas que esqueci o Burkina?, eu não esqueço: todos becos vão dar no Roque, parecia filme de
cobói: o anão Burkina passou no candongueiro dele, sem parar, porta nas costas do polícia, pistola no
chão, e os gritos já

entra, entra, entra porra!

o Jaí, coitado, inda pensou que tava mais a ser caçado pela segunda vez e que ia morrer em
andamento num candongueiro qualquer, sem pagar a viagem nem nada

agora te safei, Jaí!

o albino Jaí mesmo fez o sorriso mais estranho mas mais bonito da vida dele, nunca tinha lhe sabido
tão bem ver aquela cara feia do anão BurkinaFaçam, já de cerveja na mão, meio assustado mas inda a
rir e com a outra mão a lhe passar uma birra também. O Jaí tava inda a apanhar ar pra respirar, e riu as
gargalhadas do morto que volta, porra, eu acredito mesmo: dia que você vê a morte mas não morre,
você ri como então? Chegar mesmo de ver o puro São-Pedrito das chaves, porteiro na discoteca do
céu, e lhe fazer um bom manguito sorridente, hum!, você deve rir como as crianças, único riso possível.

Tás a galar, né, uns salvam outros, entre outras coisas que ainda vou te falar e vais saber, se
aguentares o mô ritmo das birras. Aguentas? Môs cambas, nome deles, mais velhos e piôs: estórias de
Luanda — minha Luanda do mô coração, môs sangues aqui derramados. Ndokueto só na conversa, as
palavras são as que nós quisermos, significado delas tá no nosso coração.

Pode ser, avilo?


Morte morrida, de pessoa

ama-se aquilo com que se cruza,

mulher, paisagem, caminho, ou porque

evoca emoções sabidas ou porque

é novo e vem casar com a busca, com

o que se adivinha, e é pressentido a

sós, e é só talvez assim.

Ruy Duarte de Carvalho, Observação Directa

Chuva, meu...?, as águas todas!

Tinham entornado o céu, esqueceram de fechar a torneira, ruas da nossa Luanda a se afogarem no
rachar do asfalto e os negrumes em baixo das águas a meterem medo nos ndengues, menos um,
apareceu até no telejornal, todo alegre

tou a facturare mesmo bem com a chuva!

ideias do puto, ali no largo do aeroporto, as puras profundidades já bem piscinadas, e o mona se
lembrou de esvaziar uma antiga geleira no cubíco dele e montar bizness, assim mesmo, três de cada vez,
faziam travessia do largo, mais rápida que ir dar a volta, na jangada que o puto tava cobrar só 10
kwanzas pra ximbicar pessoas ousadas, ché!, puro passeio na geleira mais flutuante da city — até na
desgraça os miúdos tão a ver negócio, você num brinca, muadiê! Num tás a fazer ideia nesse puto?,
puro ximbicador de geleira, saiu frase dele no jornal
mô kota, é puro bizness: essa chuva tá muito categórica!

Aquilo era muita água, não sei, porra, metia impressão tanta água desperdiçada, faz só lembrar as
vacas... Ai, num sabes?, lá nas europas tão a matar vacas só à toa, só por causa duma loucurazita,
aqueles muadiês não batem bem, num tou a falar só assim do cuspe pra fora; eu tive lá, conheço a tuga,
meu.

Nós aqui mesmo, nosso país, nossas guerras, essa chuvada toda que eu tou ta pôr, deixa só te dizer: a
tua memória é uma merda. Num fica ofendido então, porra, verdade é pra te ofender? Não!, num é: é
pra te contextualizar só, tudo que eu falo, num lembras, meu, tenho que te lembrar tudo. Deixa ir nos
meus caminhos, num me atrapalha, passa só essa ngala.

Tava a dizer, eu, nas europas tão abater vacas, doença com nome de letras, li nos jornais
internacionais, meus antigos hábitos, porra, se desconfiam que uma vaca tá louca — vaca pode ficar
louca? quando muito, tá confusa! — mas se desconfiam só, pronto, pode ser só uma, mas vão abater já
mil. Meu, ouve só a minha ideia mesmo puramente: mandar todas vacas aqui, vamos lhes receber no
porto, festa e cortejo já e tudo. Vamos com as vacas pro campo, mandar as gajas caminhar só aí bem à
toa: festa das minas, mas não só — elas rebentam e ficam logo semigrelhadas. Fala só aqui comigo uma
verdade, nós é que sabemos: vaca, depois da mina, está mais louca?, ou ficou já boa? E mesmo a vaca,
essa, que viu as outras todas camparem aí no saltitar das minas, com o medo, sim, a vaca também sente
medo ou não?, essa vaca, nesse medo dela, num lhe passou já a loucura toda? Meu — estupidez só,
aqui podíamos curar as vacas inda iamos pitar bem durante bué d'anos, são muitas vacas, agora só por
causa da desconfiança, matar as outras todas? Quer dizer, a antiga lei: por causa duma vaca louca
morrem as outras todas? Me dá raiva, meu, e não falo só praí, pros outros, eu mesmo seria o primeiro
grelhador das vacas loucas, todas minas descobertas e carne pronta pra ser seca, guardada no mundo
ou nos nossos estômagos... Minha ideia, uí, mas te autorizo a revelar.

Mas adiante então: chuva, tava ta falar, chuva aqui na nossa cidade como nunca mais tínhamos visto
desde há tanto tempo, lá longe, o antigamente das nossas infâncias e brincadeiras no escuro da noite,
nada de candeeiros e luzes e fontes d'água no Largo Primeiro de Maio, só nós e a noite, essa chuva que
eu te falo, coisa recente, mas já sei, num te lembras também: águas mais águas — muitas águas, a
cidade ia-se afundar ou quê? Razão, sabes qual é?, tavam a falar a morte do mano mais velho, kota
Savimbi, que afinal tinha amarrado a chuva pra se movimentar lá nos campos da guerra, quer dizer, gajo
poderoso então, amarrar assim as águas e já não chovia pra ele poder rastejar nos secos lugares. Mas
assim então não foi, nem feitiço nem nada, epá, depois falamos, isso já é outro assunto, só quero inda
meter aqui as chuvas — nossa cidade de Luanda, e mesmo Angola toda já extra besuntada — aquática.

Lamaçais, barrocas que escorregavam delas pro chão, musseques se derretiam, candongueiros com
prejuízo, gentes sem casa, miúdos de rua sem secura no tecto de papelão, os buracos da nossa cidade a
se gigantarem — bocas na noite, carros lá dentro e pessoas também, os acidentes. Foi nesse tempo,
essa sequência que te falo, morte do Adolfo a ser procurado na morgue, e afinal já num tava lá. Como?

Há muitos teatros — pensas que é só com bilhete e cadeira sentada com mosquitos que vais no
teatro? E a vida?, esqueceste esse palco puramente verdadeiro a acontecer todos dias, a se entornar
nos teus olhos de lágrimas que nem vês? Actuação da pura dama KiBebucha, segunda dama do Adolfo,
ela mesmo ali na morgue a querer já discutir com a outra, choros e ameaços e tudo, afinal!, tudo teatro,
meu, dança das palavras no corpo dos olhares. Foi maisomenos assim: a KiBebucha sabia muito bem da
morte do Adolfo, ela lhe encontrou primeiro, tentativas dela sempre ir se enroscar com ele, episódios
ocasionais, mambos da vontade sexual — me entendes? Tinha ido lá, e encontra o muadiê já parado, o
frio da pele na frieza da noite, do momento. A morte assusta qualquer um, não vou duvidar com a
KiBebucha, se pôs aos gritos e ninguém lhe ouviu; era tarde ou quê?

No telefone, chamou cambas dela, choro que nada se entendia, mas eles entenderam que era preciso
aparecer — o desejo das bandidagens. Foram lá, deram de caras com o morto, porra, e logo se
prontificaram a levar umas coisitas do cubíco: tv, geleira, o que ainda cabia no carro deles — pr'além do
morto. E o carro cheio, cheiinho, seguiu no hospital. Porra — vício das pessoas: ir mais com o morto no
hospital fazer quiê? Ahn? Mas é na morgue que se faz a tópsia, num era preciso ir mais chatear
ninguém no hospital... Depois é por isso que os hospitais têm mais mortos que vivos, inda tem alguns
vivos que vão morrer por causa desses mortos — as contaminações, e tem mortos que não querem
bazar sozinhos, puxam mais quem tiver lá ao pé dele. E aí, no hospital, um médico porreiro, endinheirado
mesmo e tudo mas inda tá dar horas no hospital, hum!, deve ser banqueiro tipo o mô camba Jaí, só pode,
bem, esse médico é que quis ver o corpo, porque apresentava uma sintomatologia interessante, e
traços de não sei quê mais lá que ele disse. Oh? Agora o morto era de se apreciar mais, belezas dele?,
tratado da estética moribunda?, manequinho das mortes? Porra, há gajos viciados em tudo, eu gosto de
beber, tu gostas de tar calado, epá, aquele médico era dado a umas observações do pós morte, fazer
mais como então...!

Pediu as devidas autorizações pra abrir o corpo, espreitar lá dentro, como fazem pra entender melhor
o que já não tem, nunca teve, entendimento — a morte. E a KiBebucha nem queria — mas os outros,
larapiosos, fasmigerados, faz-megerados, falmisgeraldos, como dizia o kota Guimas, queriam era
despachar o corpo e voltar a tempo no cubíco do gajo, bater uma retirada nas restantes coisas lá da sala
e quartos. Ela, coitada, estou até a querer entender — morto ele já tava, assistir mais cinema de terror
com sangue, ela num queria, assinou só, responsabilidade nenhuma que ela tinha nele, pois nem no papel
nunca tinham se amarrado, era só de boca

minha segunda dama

como o Adolfo lhe chamava. Mas o médico, intenções urgentes dele, o cheiro também, fechou os
olhos no papel e acreditou no impossível — a suposta senhora esposa tinha autorizado tudo.
Assim mesmo foi, o Adolfo chupou a primeira tópsia, nessa noite, sozinho lá a dois com o médico, no
hospital, onde ele depois foi enviado pra morgue, nessa cena que eu te disse que houve lá com o Jaí, a
DonaDivina, e a própria KiBebucha a se fazer que nada sabia, por causa então do que ela pensou mais
tarde

posso mesmo ir presa, dar assim autorização da minha sinatura pra abrir corpo do outro, e
quem vai provar que ele me amava, se eu mesmo nem sei se me amava assim, desse lado das
responsabilidades todas, a morte e tudo...

Quer dizer, medo dela, silêncio dela, mais tarde entendi, mas ali só os três, escândalo pra quê? O Jaí
falou bem, primeiro ainda é encontrar o corpo, missão deles, depois iam falar.

Era só o caso da demora, havia muita gente viva a perguntar por muita gente morta, bem, vou te dizer,
é melhor assim, porque pior é quando muita gente morta fica a perguntar por alguma gente viva, e lhes
chama, porra, Deus que me livre!, num quero que ninguém do outro lado do rio me pergunte, até prefiro
que os mortos me esqueçam, todo respeito que ponho aqui — até vou despejar cerveja no chão...

DonaDivina falava alto

o meu marido, o meu marido

a KiBebucha só quieta no canto dela, lágrima mais da humilhação que da tristeza, pois também num
podia de qualquer modo dizer essa mesma frase meu marido, porque nem dava mesmo, mas
apesarmente do dito e do redito, como dizia o kota Odorico, o nome não constava nos tais registos da
morgue

AdolfoDido?!? Minha senhora, está gozar comigo ou quê? Alguém então se chama
AdolfoDido?

Ó carácoles!, outra vez a mesma maka de sempre, nome dele, as pessoas pensavam aquilo era
brincadeira-provocação, desde novo mesmo, o azarado com o nome dele — e ele que não abdicava de
nenhuma parte? Nome dele mesmo, como um dia disse

não é questão de gostar ou de não gostar, é como o nosso nariz e boca e kinjango: um gajo
nasce como nasce, e depois já está!, num é uma gaja qualquer que vem agora me dizer se o mô
nome parece isto ou aquilo: se quer me chamar, chama, se não quer, num tem maka nenhuma!

Mas não encontravam mesmo, então se dividiram, que era assim mesmo que estavam a fazer ali nas
gavetas dos mortos: cada um deles três procurava no seu armário combinado, gavetas que se abrem e
fecham e cheiram mal, até encontrarem o devido corpo. Foi o Jaí então — lágrimas dele da amizade e
do espanto, que encontrou o corpo quieto e o sorriso na boca do AdolfoDido, parecia tava só a dormir
inda nem tinha campado, mas a morte é assim mesmo, um adormecer que nunca vais saber qual foi o
minuto certo que a respiração parou de lufar, momento que o coração desistiu de bater pum-pum, pum-
pum.

Agora — pra retirar e levar o corpo, era outra estória. A kota lá da morgue foi buscar a ficha do
morto, e voltou com as rugas da testa acesas, coçando mesmo as carapinhas que não tinha penteado,
ventoinha em cima dela a espalhar o funguto todo, dos mortos e dos vivos, hora do calor aquela, e das
lágrimas. Havia mais maka de quê? O nome tava lá?

Sim, o nome de facto é esse que a senhora disse, AdolfoDido, mas há aqui um problema — é
que o médico escreveu aqui na razão da morte, «autópsia inconclusiva»... Além de que: é preciso
provas que alguém dos senhores é mesmo familiar direito do senhor Fodido, ah digo!,
AdolfoDido.

Até na morte, tu a quereres descansar mais que na vida — o sono eterno, não dizem assim? — mas,
porra, a te foderem até na morte, dá raiva. O Jaí pôs as mãos na cabeça e aproveitou pra limpar as
lágrimas dele, porque queria só despachar o assunto, inda tinha que ir dar mesmo bem a notícia na
KotaDasAbelhas, que era assim tipo madrinha do Adolfo, gostava bué dele, era preciso tratar do
komba, ir saber no ministério dos antigos combatentes se iam largar os guitos pro enterro, tinha que
saber como tava também o BurkinaFaçam, se ele já sabia ou quê, inda por cima o Jaí tava já a
pressentir que ali ia sair discussão das damas — o morto era afinal mais marido de quem?

Meu, num te digo?, a morte é uma maka. Havia uma música até que já dizia

morrer aqui tá muito complicado, é melhor ficar vivo

e isso também as vozes do povo dizem, meu, viver tá custoso mesmo, sem bufunfa, sem saúde nos
hospitais, malambas estranhas a acontecerem num gajo, casos do outro mundo — num soubeste?, ali no
aeroporto? Porra, um gajo a dormir em casa, num tem dinheiro nem pra ir na província, mas assim de
manhã, antes de acabares o sonho, um avião te cai em cima? Quer dizer, tu num pagas pra ir no avião,
mas cento e tal passageiros pagam pra trazer o avião em cima da tua casa, tua cabeça mesmo, teus
filhos, tuas galinhas mais? É isso que tou ta falar, dá pra um gajo pôr dúvida: é melhor viver assim ou
morrer já? Você em casa a cubar, depois do almoço, teu funji a ser resolvido nos ácidos complicados do
estômago, você mesmo assim no calor das três da tarde, bala vem do céu, fura telhado, te mata? Você
na Ilha, a comer baleizão, tua dama já e tudo, tu já a fazeres a tua boa figura, logo à noite vai te garantir
a pura quê no fundo da Ilha, só assim mesmo sentados os dois a se apreciarem, vem camião, fura muro
e te atropela você sentado, longe da rua? Não, viver tá difícil mesmo!, mas morrer, avilo: você num pode
fazer isso nos teus familiares.

Morrer é maka dos outros — nunca do morto, vê então a morte do Adolfo, maka do Jaí, gajo sério,
quer resolver as coisas da maneira que deve ser e vai-se esfolar até ao fim pra tudo se dar nas vias da
normalidade, mas ele já tá a pressentir que num vai dar, ali na morgue já começou a maka toda. A
morte?, a morte fode é os vivos que ficam aqui: as damas dele, do Adolfo, sem querer dizer que uma é
a primeira e outra é a segunda, mas agora vão pelejar, razões várias que eu vou te contar, quer dizer,
estão a pensar no morto ou nelas mesmo, comodidades pessoais, estatutos? BurkinaFaçam, o anão, só
as voltas que ele vai dar com o candongueiro dele, makas de advogados e polícias, vai meter dona
JuízaMeretíssima e tudo no caso, e as putas, cambas dele, do Burkina, miúdas engraçadas, gente nova,
só que foder não é mais assunto da intimidade, pensas o quê, foder é profissão muito antiga, toda gente
fala, fala, mas é só um assunto nenhum, principalmente quem não fode pra sobreviver num devia falar
das outras, profissão delas que custa é no corpo delas, ninguém mesmo calcula — porra, muadiê, te
pergunto: você dava o cu pra alimentar teus candengues? Não davas, né, mas essas gajas dão, dão tudo,
porque é modo de vida já, profissão delas, familiares delas que nem sabem às vezes, há de tudo mesmo,
outras dão porque gostam, outras porque já se habituaram, vêm outras possibilidades de se safarem, um
puro casamento mesmo, e já não querem. Vício? Mal da alma? Hábito nos prazeres do corpo? Não sei,
muadiê, não sei mesmo, ponho filosofias: falam os actos sexuais são as alegorias da alma na caverna do
amor-paixão mas, na profissão de emprestar prazeres, tudo se derrama é nos quintais dum corpo
sofrido, isso eu acho...

Daí, da morgue, cada um pra seu lado, tarefas individuais — cada um na sua cabeça num tem um
mundo? Os pontos todos bem cardeais, eu penso às vezes, o norte fica em lados diferentes, conforme a
cabeça, conforme mesmo a rotação do corpo, isto é, onde tu vais, quem tu és, a lua que tu aprecias, se
aprecias... Muadiê: vais-me dar de maluco s'eu te disser que a lua é uma mulher? Mambo que eu gosto
mesmo com força — ficar só aí, deitado na noite, olhar a lua: branca, marela, vermelha também já vi,
cheia, cheiinha, invisível, triste, húmida-molhada, escondida nas nuvens, a desaparecer no mar, a
aparecer na tarde, as formas todas. Mambos dos chineses, conheces?, tão a falar sempre nas divisões
in-iangue, assim pesado-leve, cheio-vazio, claro-escuro, a lua pros chineses é in, quer dizer feminina...
Ahahah!, tens razão, que é isso?, tou a ficar com bicos nos olhos ou quê? Isso deve ser sede, manda lá
vir mais umas então.

Vou me concentrar — a morgue. Quer dizer, já não estamos mais na morgue, já bazaram todos, foram
dar a notícia, mensageiros da desgraça, num é como dizem?

O Jaí tinha a preocupação de ir ele mesmo, maneira calma dele falar, dar a má notícia na
KotaDasAbelhas, mas encontrou no caminho o BurkinaFaçam, inda por cima contente, lá com a estória
do grupo de música dele, parece iam participar no top dos mais queridos, mas inda não tinham a kêta
preparada. O Jaí então aceitou mesmo a boleia, inda por cima àquela hora dos calores, mesmo com
chuva, mas as abafaduras resistem aqui, já te falei, os albinos só procuram já as frescuras.
Candongueiro do Burkina, avilo, você num brinca, aquilo é tipo mercedes lá dentro. É que o gajo então
tem uma frota

sou dois em um: empresário pequeno e também um pequeno empresário...


Manda três candongueiros no serviço assim de campo duro, as distâncias maiores, porto-golf,
corimba-porto e tal, mas esse que ele anda é um candongueiro puramente artilhado, pura aparelhagem
de se ouvir Kassav, até o carro dança sozinho em cima dos amortecedores, matrícula própria:
BURKINA-2000, e ar concionado, como dizem, que põe mesmo o ndengue Jaí bem-disposto, os
frescos todos, a secura provisória da catinga. Assim, eles lá dentro da viatura — e mais: BurkinaFaçam
só anda de motorista, porque ele vai de lado, na cadeira especial dele, lhe vês de fora nem dizes que é
anão, póster do gajo que ele arranjou pra se fazer nas damas mesmo de dentro da viatura, janela dele do
xaxo — Romeu das julietas impressionáveis no ruca dele.

Conversa, pára-brisas de parar as chuvas, mas não tava a parar nada — as águas todas que te falei.
E o Jaí não queria dar a notícia assim no outro, em pleno trânsito da chuva, buzinadelas e a música
ámuái a tocar bem alto. Lhe disse

vamos na casa da KotaDasAbelhas...

e aquilo acendeu logo as vistas do Burkina, o muadiê também trata o copo por tu, e nunca se escusa
nessas missões molhadas

vamos lá dar no puro mel?

inda quis saber e brincar, mas baixou já a música e viu os olhos sem disfarce do albino Jaí, entendeu
então que havia alguma coisa de mais errado que a chuva que carcomia a cidade. Quis perguntar —
teve medo, calou. Condução solitária

ó Sete, vamos lá na casa da KotaDasAbelhas

falou no motorista, de nome esse Sete, porque já por sete vezes tinha batido com o carro, sempre fim
de ano, na mesma esquina da Ilha, a dos baleizões, lá naquele largozito que as pessoas gostam de
contornar a mais de setenta e depois se dão, baleizão e sangue num só, esse mesmo Sete triste, pois o
dono da geladaria mandou pôr, atrás do muro, pedragulhos enormes, desses da Ilha, que matam os
condutores que tentam entrar naquele cubíco sem ser pra pitar baleizão. Foram.

Solavancos de alma também existem, não é só buracos nas ruas de fazer esquindivas com o volante.
E contaminação de tristeza, tipo meningite? Existe também — se não, como é que vou te explicar que
mesmo sem palavras o anão BurkinaFaçam tava a ficar triste também só de ver o Jaí assim bem calado
apreciar a paisagem passar nas janelas do candongueiro em andamento?, olhos dele a iniciarem brilho
peganhoso das lágrimas húmidas... E mais inda do contágio: que quando chegaram, a kota tava na
varanda a atender uns estrangeiros avermelhados também aí, brincas?, aquele mel foi globalizado, é de
gostos internacionais, partiu barreiras das nacionalidades todas, e assim como ela tava a afastar abelhas
pra não picarem nos nguetas, porque é isso que as abelhas gostam mais, picar nos estrangeiros, assim
como os mosquitos, nunca reparaste?, têm mais preferência por sangue estrangeiro, aliás, as putas
também, pergunta só no Burkina, essas duas damas amigas dele, Madalena e a outra, a Eva, dão assim
umas tantas nos nacionais, mas preferência tantomente preferida, como dizia o kota Odorico, é nas
pilas internacionais, onde elas ignoram o tamanho porque o que interessa é o que está ao lado do janguê,
nos bolsos: o cumbú, meu! Afinal num é isso mesmo que faz a terra girar assim à toa todos dias,
vintiquatro horas seguidas sem parar o rodopio?

A kota também sofreu do contágio — a tristeza é como a chuva, quando cai, molha toda gente! As
abelhas mesmo ali a se recolherem, a kota despachou os estranjas e pôs assim as duas mãos no
sobrepeito dela, onde tem bastante espaço pra ela pôr as mãos e ela gosta mesmo de ficar assim,
varanda do corpo dela, debruçada em cima das xuxas gordas, e depois ficar só deitada num olhar
adormecido, a te atrapalhar, a querer que fales o que tens pra falar independentemente do olhar dela,
das abelhas dela, das xuxas dela.

Kota... Bom dia...

O Jaí, que era mais ou menos conhecido dela, e depois o Burkina também, assim mais em baixo do
nível dos olhos como ele sempre está

bom dia, sim, Dona...

a kota viu que era uma situação de algumas solenidades, mandou entrar, assobiou nas abelhas e elas
se foram — obediência, uí?, aquilo é bonito de se ver, não é porque golpes de estado e ferradas de
vingança ou distracção, aquilo são as obediências máximas, ser rainha é tudo isso mesmo

entrem, não se preocupem, elas não vos picam...

o Burkina fez sinal d'olhos no Jaí a ver se ia pingar algum mel na direcção das gargantas, o Jaí de tão
desconsolado e mesmo atrapalhado que tava ficou só calado, e o Burkina de tanta sede que tinha
mesmo e do modo que adora aquele mel ficou também só calado, a kota pensou assim rapidamente que
aquilo mesmo era o sinal: que as palavras, sem mel, não iam escorregar pro lado de fora das gargantas
— então trouxe o líquido.

O Burkina nem chegou a provar porque tava inda naquela fase da salivação antes da prova, enquanto
o Jaí já tinha começado a tentar falar, e acabou mesmo por dizer assim, mais bruto

é que parece que o nosso camba AdolfoDido campou...

depois se engasgou e disse mais

parece, não!, morreu mesmo, até porque eu já vi o corpo dele morto

então o coitado do Burkina nem teve tempo de provar o mel, ataque das lágrimas dele, eu num te
disse?, há muito tempo que o Burkina não chorava assim, desde outros tempos, as infâncias que eu te
ponho aqui de vez em quando, as lágrimas dele ali, no presente da situação, algumas abelhas tinham
vindo espreitar. Também a KotaDasAbelhas, sem saber mais o que fazer, pegou também num copo,
bebeu, bebeu mais antes de falar qualquer coisa, olhou no quarto do Cão, assim parecia tava com medo,
o Cão tava agitado, ela não falou nada, olhou os dois só assim nos olhos a pedir pra bazarem, e na porta,
entre uma abelha e as outras, pediu pra depois lhe virem dar mais notícias — que ela também sabia da
estória das duas damas e tava já a pensar com as abelhas dela onde e como seria o enterro desse
homem que todos gostavam assim no modo dele diferente de existir, mas que essas duas mulheres iam
querer entrar noutras disputas mais feias — desonra, dinheiro e estatuto.

Porra, esforçar-me assim de lembrar os nomes e as coisas e os momentos todos, nem imaginas —
sede só. Tens mais cumbú aí? Manda só vir mais umas birras então. Num tem maka, eu aqui me
comprometo a te embalar na rede das palavras, nosso mar, nossa canoa, nós dois — nossa amizade
nesta mesa de contar os misosos da vida, travessia nas lágrimas das nossas cervejas, aqui, nos olhos e
na boca da noite.

Avilo, num tem maka nenhuma, a senhora tua esposa te espera? Não mesmo? Então não temos nada
que recear a noite. Noite é leão?... Havendo energia e ngalas, a nait é nossa — estória longa que ainda
vamos driblar, morte morrida do mô camba AdolfoDido, o outro lado da pele das pessoas, os amigos
também.

Morremos, e matamos os outros — eles nos olham e a pele é que diz tudo, o avesso das coisas, os
olhares e as mudanças. É muito isso que estamos aqui a fazer, avilo, tu tás só preocupado com o cumbú
que tás a largar nas cervejas, essas poucas que ainda já abatemos, mas essa é a tua preocupação
errada então — toma masé atenção, tou ta pôr é casos bem humanos, dos fenómenos que não
controlamos, o que aparece de repente e nos vai mudar — revelar. A chuva avisa que vai chegar? A
semente, antes de rebentar, podemos lhe ver a cor da flor? Tás a me dar de bêbado só, nguendeiro mor,
chulador? Abre masé os olhos e a carteira — a carteira pro patrocínio; os olhos, pra não seres assim de
me considerares só um bebedor exagerado. Pensas que bebi muito?, inda não viste nada! O que te
ponho aqui é um caso molhado, essa nossa chuva toda, puras questões da humanidade: já te falei, há
muitas praias, mas um só oceano — cada vez.

Tás a galar o sol?, vai bazar então. Muadiê, já tiveste saudades do sol? Eu já. Nessa altura mesmo,
essa semana filha da puta da morte do Adolfo. Chuva, meu?, nem podes imaginar; mas tu tavas aonde?
Nas províncias? Quê, tuas outras damas ou quê?, ahahah!, num queres falar, tá-se bem, num tem maka,
aqui só fala quem quer, só num pode é faltar o líquido que escorrega.

Tava ta dizer: nessa semana das águas todas, saíram lá da casa da KotaDasAbelhas, esse
candongueiro da tristeza assim a circular na cidade da chuva, o céu só queria entornar, entornar, num se
falou nunca nos feriados oficiais, mas tava tudo já em feriado necessário, pessoas pra sair da casa já
não era mais no próprio pé, sabias?, era assim mesmo, nova profissão — um miúdo te carregava desde
o teu cubíco até ao asfalto mais próximo, daí apanhavas candongueiro, mas tava complicado também,
tinha zonas onde só ia jipe, zonas onde só ia camião e zonas onde já só ia mesmo pessoa. Falta de luz,
falta de píter, falta de esperança, tudo já aí, e as ruas molhadas, mas mesmo molhadas então, aquilo era
piscina constante, ias querer procurar a cor do asfalto e nada!

Saíram da casa da KotaDasAbelhas — tás a ver, eu num esqueço então a nossa pura sequência, fica
só calmo — e lá dentro da viatura iam, os três, e mesmo o Sete, motorista, no volante da chuva e da
tristeza, porque mesmo sem saber bem os pormenores da estória, o gajo apanhou com as ramificações
das tristezas dos outros, meu, todo mundo sabe: dentro de nós, a imaginação é uma e mais viagens, e
puxa outros familiares dela, outras tristezas de outros lugares interinos, e o Sete, coitado, viajou, pássaro
da melancolia, humbihumbi livre nos sangues dele, nem viu o puto atravessar a rua molhada — e pufas!,
o puto nas voltas do ar, a queda.

Sorte deles — a chuva.

Sim, que tinha poucas pessoas na rua, mesmo assim dum prédio começaram a descer mais e mais
pessoas, aqui você nunca pode saber quantas pessoas é que cabem dentro dum prédio, ou dum cubíco
mesmo, ou só dentro dum anexo, não imaginas, podem sair dali trinta ou quarenta pessoas, cercaram o
carro, e o Burkina, coitado, aflito, e o Sete, coitado, assim só parado no pé do travão que ficou lá e nem
se mexia, o Jaí com o medo que ele tem das multidões, não fosse inda alguém gritar apanha o
nguimbo do albino!, só ele mesmo com essa coragem anã dele, BurkinaFaçam, filipado, quando viu
que não chegava no puto e que iam lhe vuzumunar logo ali, sacou a kilunza, meteu bala na câmara,
disparou dois tiros no ar — e foi a solução da multidão, que desapareceu.

Rápido, o albino veio lhe ajudar, entre as águas da chuva, pegaram no miúdo e meteram no carro, não
tinha sangues, e isso era bem pior, começou a assustar o Jaí

porque assim pode haver morragía interna

e o Sete, que não tava muito nas condições de conduzir, lá arrancou

mas pra onde?, tamos a ir aonde então?

berrava, e o Jaí a querer dizer

vamos pro Maria Pia

e o Burkina em cima dos gritos dos outros

Maria Pia, a puta que a pariu!, o hospital chama-se Josina Machel!, mas vamos masé pra uma
clínica que no hospital o puto inda morre antes de ser atendido...!
Avilo: clínica?!, só com os guitos todos ali apresentados e retidos — se não, podes mesmo morrer aí,
sorte do Burkina, tava de serviço uma médica, bléque bué simpática, viu o miúdo assim nos desmaios da
tontura e autorizou a entrada enquanto o Burkina agradecia e fazia questão de dizer

e qual é a maka? Vou em casa buscar môs dólares, qual é a maka? Ahn?, quanto é que é?

e essa senhora do balcão a lhe olhar com uma cara estranha, não sei se era por causa da altura dele
que ela só ouvia na voz e não lhe via lá em baixo do balcão, ou se era de lhes ver assim todos
ensopados — um puto de rua, um albino e um anão a berrar ali naquela clínica dos silêncios todos.

Coitado do Sete, tava já sem paciência mais nenhuma, cansado de guiar naquela chuva assim sem
parar, com medo mais dum outro acidente, andava tudo maluco na cidade, correrias dum lado pro outro
e depois a culpa era dos condutores, só porque o travão escorrega no asfalto molhado, e a viatura dá de
caras com o corpo do atropelado.

Mas tem de ser mesmo, eu num quero azar na minha vida, mortes mais de ninguém. Porra, que
dia mais filha da puta!

falou o Burkina, e lá tinham que ir, até na casa dele longe na Corimba, buscar os guitos e voltar
porque ele tava preocupado era se aquela médica porreira saísse de lá, quem mais ia atender um puto
de rua que tinha aparecido com um albino e um anão, a dizer que o anão tinha ido, no candongueiro dele,
buscar dólares a casa?!

Mas foi assim, o Jaí lá na sala de espera, caso houvesse novidades, e eles devagarinho, o Sete bem
calado só, terem ido e terem vindo quase mais de meia hora, e quando chegaram já o puto tava porreiro,
a rir, a se dar duma coca-cola que a médica tinha oferecido, porque o ndengue já queria bazar sem dar
mais satisfação com medo que fossem lhe dar bofa, agora que ele afinal tava bom e não tinha
acontecido nada — nem mesmo a tal morragía interna.

As crianças, avilo, que têm esse poder dos sorrisos, logo nos põem, nós adultos, molengas de todo, em
aten ções e sorrisos que o Burkina lhes encontrou já ali, todos, albino e médica e senhora do balcão já a
ouvirem o miúdo falar nas coisas engraçadas que ele dizia.

Mas comé que te chamas?

Meu, nome daquele puto, e estórias da vida dele, e estigas dele — num aguentas. Queriam saber o
nome e isso parece que num é maka pra ninguém, mas o puto meteu na feice a máscara da tristeza,
sinceridade dele assim na boca, lábios dele bonitos, o puto todo muito cómico, e o nome dele: Pêcêgê! E
agora, num te falei que num ias aguentar? E foi aí que repararam: no andar do miúdo havia uma falha
das alturas, jeito que ele deu de dar duas voltinhas ali mesmo, circuito assim minúsculo, sala de espera,
sala de morte também, fosse um complemento pra se captar o nome dele, e mais acrescentou
sou mesmo Pisa-com-gêto!, ou só quê, PCG!

explicou ali, na segunda coca-cola, nome que tinham lhe posto nos outros da rua, lá onde viviam,
cubíco deles, sabes o nome? Castelo. Porra, imaginação dessas nossas crianças craques, mas não só
imaginação total, eu cheguei a ver mesmo, ali onde viviam também se podia chamar castelo — os
papelões sobre os papelões, os compartimentos todos, mil e uma noites da desgraça deles — esquebras
de comida, as refeições, porrada dos polícias, a pura diamba.

Dali da clínica, nas despedidas, logo o Burkina se desfez em cumprimentos pra doutora, bléque linda,
meu, noite da noite e brilho dela, dentes e olhos a iluminar tuditodos, e o puto que já dava beijo na kota e
lhe chamava de tia, ela era só sorrisos, esses brilhos que eu te falo.

Mulheres, avilo? Nossa outra metade de nós, no mundo, e na cama nos encontramos, ou não é
assim?, os corpos, os tantos líquidos, sexo das liberdades do nosso corpo na felicidade de nos virmos só
assim, colados, ser humano dentro da ser humana, kinjango bailando na kibiona suave do amor, ai uê,
felicidades, muadiê, felicidades mesmo! Deixa só, depois voltamos mais nas damas, assunto doce —
barrocas de mim...

Da clínica foram mais no tal castelo dos putos, o PCG já a mexer em tudo dentro do carro, puto muito
engraçado, já te falei né?, vitorioso ele na janela ao pé do Sete que também já ria, e só dali do caminho
da clínica pro castelo onde foram, o amor brotou. E eu, eu mesmo, muadiê, quem sou eu pra duvidar do
amor, não tenho cargo de Deus nem diabo, num disparei setas no rabo de ninguém, nem sou das igrejas
nem dos zongoleiros, vou mesmo duvidar no amor das pessoas humanas? BurkinaFaçam, o anão, não
quis mais deixar o puto no castelo, coração dele a se abrir, fosse as influências da morte do Adolfo, não
sei mesmo, até hoje, só não duvido porque duvidar do amor é a coisa mais feia que um homem pode
experimentar fazer.

Então é aqui que tu dormes?

o Burkina queria pôr ralhetes no miúdo, mas desconseguia, estórias do puto PCG, modos dele falar a
vida, contos caricatos que ele pôs só desde a clínica até ali

vamos inda lanchar mais

lhe fizeram a proposta irrecusável, ele só sorrisos e adeuses nos cambas dele, fundo da Ilha no
candongueiro mais dreda da city com ar concionado, como se diz, e a música

Ti Burkina, num tem cassete de cu duro?

o puto riu quando a cassete começou, o Sete também gosta dessas kêtas, e assim mesmo no olhar
triste deles dois, Jaí e Burkina, parecia tinham encontrado um conforto na morte do camba deles, esse,
nome dele, vida dele, as cervejas que lhe estamos a beber aqui, AdolfoDido.
O puto descontou ali estórias pessoais dele, que era mesmo miúdo de rua, inda o albino Jaí quis lhe
atrapalhar

és miúdo de rua ou miúdo na rua?, diz lá a verdade

mas o puto sempre na dele, miúdo de rua mesmo, com castelo e tudo, guardador dos carros que vão
nas compras, lavagem manual com balde e espuma se tiver, e depois, mais à vontade já, a confissão de
algumas cenas de gamanço, piscas e retrovisores, depois vendidos no próprio dono do carro. Mas o
Burkina olhava o lá-longe, o outro lado dessa tarde, a confusão da saudade, morrer é sempre de
repente, já te falei, como é que uma pessoa habitua?, inda ontem um gajo tava neste mundo, hoje já fez
a travessia — kapussoka pro outro mundo...

Jaí, vamos fazer o quê hoje?

o albino também sempre os olhos achinesados na direcção do sol, não queria confianças com a luz,
até nem pensava direito nas soalheiras, professor de profissão fixa, também explicador, às vezes inda
canalizador, e nas escolas públicas que frequentava sempre em acordos com os alunos

vamos fechar mais as janelas pra não entrar tanta luz

então reinava o método da conversa, mais diálogos que apontamentos, os alunos gostavam, lhe
chamavam mesmo de prófe dreda, toda gente podia contar mambos do bairro, conversas das fogueiras
da noite, ou dos ladrões, todos mambos, menos mambos picantes, uma vez uma aluna, que já era
avançada na idade, começou a pôr também estória dela, mambos lá dos garinos, só que o prófe não tava
a captar e permitiu o avanço da sequência, novela curta, uma aula só, todos colegas a agarrar os risos
na garganta porque a mais-velha falava solene e baixo, estória do caso dela em baixo do coqueiro, que
nem se desconfiava nada de nada do que ela ia falar, pensavam só eram namoricos de rádio efe-éme,
amassos, marmeladas e pouco mais, luares da noite escura, mas a kota desatava em descrições
avolumadas do kinjango do gajo que tava com ela, mas tudo num calão altamente secreto que o prófe
só tava a apanhar do ar — e permitia a continuação. Riso, risota, gargalhada geral depois, e o albino Jaí
entendeu então que alguma coisa ele não entendeu, e que mais valia a pena parar com a estória, sendo
que era tarde de mais e já tava tudo dito e medido — era um kinjango descomunal!, e a mais velha,
aluna como as outras, tinha pensado era a mudança da viatura!

Bem, muadiê, te ponho esses entretantos porque a vida é assim — pra falar das pessoas num é só
dizer nome e cor da camisa, vale mais picarmos um braço e lhe pedirmos pra mostrar o sangue, cor
verdadeira dele, assim pode ser vamos entender melhor as pessoas e as coisas que elas fazem no dia-a-
dia delas, não? Só tem uma cena então — toda esta conversa de fim da tarde tá-me a pôr com uma
daquelas sedes terríveis, é melhor escorregarmos mais uma ou várias!
Esse fim de tarde então, quer dizer, ninguém queria começar a pensar na questão do morto, camba
deles, porque esse é mesmo o pensamento que mais custa começar. O Jaí explicou no Burkina que
havia lá makas de o corpo sair do hospital, porque a tópsia tinha lá não sei quê de incompleto e agora
não sabiam bem o que era pra fazer, e que ele mesmo, Jaí, o albino, num tinha inda cabeça de resolver o
assunto bem resolvido, e que tinha tomado só aquela decisão de ir procurar as pessoas, a
KotaDasAbelhas e ele mesmo Burkina, pra lhes avisar, porque as duas damas, DonaDivina e
KiBebucha, já tinham estado lá, nas lágrimas do corpo, e lhe tinham visto e também tinham saído dali
sem saber muito bem o que fazer.

Bem, ali é que ele num pode ficar...

disse o anão, última cerveja dele na mão, e o puto agora bem calado a assistir à conversa dos mais-
velhos no assunto do morto, que ele entendeu bem, era camba deles e tinha campado só assim, não
sabiam bem como.

Comé Jaí, não dá pra ir lá ver o gajo?

o Burkina pagou a conta e começaram a ir pro carro, nesse silêncio das mortes que acontecem,
embora gesto de olho do Burkina fosse olhar no puto pra ver se o ndengue num ia já começar a estigar
dele ser assim anão — mas o puto entrou só na viatura.

Foram, os buracos que eram piscinas, a chuva abrandava mas não parava mesmo, e aquilo já era de
dias, e de noite, sabes, seis da tarde ou quê, as formigas da chuva ganhavam asas e queriam voar ao pé
das luzes, manchas delas, negras, que invadiam de noite a cidade nos poucos candeeiros que ainda
funcionavam. Dizem que se faz bom pitéu com essas formigas, já provaste? Nunca mesmo? Eu
também não, mas, porra, num queria morrer sem provar, num é bom um gajo morrer sem saber essas
coisas da nossa terra, os puros costumes. Quando éramos candengues, eu comecei a gostar de comer
qualquer tipo de formiga, tás a rir?, é verdade, uma minha avó me disse que comer formigas fazia os
olhos então ficarem bonitos, quer dizer, aquelas formigas de de-vez-em-quando que um gajo encontrava
no açucareiro, mas eu fui mais longe, toda formiga que encontrava no jardim eu pitava, um dia apanhei
uma diarrumba séria mesmo, e a minha avó quis saber se eu tinha comido doces ou quê, e eu me
lembrei

só se for das formigas

ela riu, meu, riso dela lindo na velhice dos lábios dela, e aqueles olhos também, riso das velhas mesmo,
todas nossas avós, ela riu bué, e aí, eu já era mais crescido, me falou

tu já tens uns olhos tão bonitos, não comas mais formigas

foi só por isso muadiê que eu deixei de comer, porque ela mesmo me garantiu que as formigas já
tinham feito todo salo que tinham pra fazer nos meus olhos. Mas — vício, muadiê, de vez em quando
vou no quintal e pito uma, fazer mais como, meu jeito só infantil de estar com a minha avó, te ponho aqui
essa confissão, mas num é pra ires contar a ninguém!

Chegaram mais lá na morgue, inda tava a mesma kota, viu o albino, reconheceu logo o gajo, bem, a
cara do Jaí não dá pra confundir, vês o gajo uma vez, vai-te aparecer nos sonhos, agora você já é que
sabe se usa aquela cara dele pra sonho bom ou pesadelo. E a kota quis se azarar

vieram ver novamente o senhor Fodido, ah digo!, desculpe, o senhor AdolfoDido?

o Burkina filipou só com o olhar, a kota logo a pedir desculpas, mas mete logo mal a segunda mudança

o senhor é o pai do senhor Fodido, ai, desculpa mesmo!, do senhor AdolfoDido?

quer dizer, chamar assim o Burkina de velho, sorte mesmo da kota é que ele num tava nos dias dele
de filipar, toda tristeza de ouvir ali o nome do camba a ser fodido na boca da senhora, mas nem disse
nada, olhou só no Jaí, que lhe levou até na gaveta do morto. Mandaram buscar um banco, o Burkina
subiu, e o espanto dos espantos foi quando abriram a gaveta comprida: o corpo não tava lá.

Arranques mais arranques, mas a senhora só sabia dizer que o corpo tinha sido levado

levado? Mas levado por quem então?

quis saber o Burkina, a kota se fazia só de estúpida,

desandava, se fingia de ocupada quando ali todos já tavam mais que mortos e a morte não é ocupação
mais do vivos. O puto então é que se lembrou

Ti Burkina, larga só a pura gasosa, a tia vai falar bem as coisas

e na verdade foi assim mesmo, o Burkina foi no carro, trouxe as notas, chamou a kota lá fora pra
fumar um cigarro.

Quem é que levou o corpo, afinal?

enquanto a kota via as notas lhe entrarem no bolso, olhou pra ver a grossura do maço, e falou, sem
makas

foi uma daquelas senhoras que veio hoje aqui, com esse senhor albino...

Uma das senhoras, o Jaí explicou, só podia ser a KiBebucha ou a DonaDivina, que sim, tinham estado
ali de manhã, lágrimas das crocodilas, a ver quem é que sacava o corpo, e que não era possível por
causa da tal estória da tópsia, mas que pelo vistos alguém tinha conseguido.

Mas veio sozinha, levou o corpo como?


quis saber mais, o albino Jaí, e a kota a se fazer de surda, e então o puto PCG fez outra vez sinal
assim com o dedo na direcção da boca, a fazer o gesto da gasosa, o Burkina largou mais umas notas, e
a kota voltou a poder falar

um carro militar veio aqui, tinha papel oficial e tudo, o corpo foi no carro!

Assim entendiam já, só podia ser a DonaDivina, tás a galar?, cunhas dela, esses gajos todos que ela
conhece, não sei, casos de amizade, casos de cama, tudo já aí, portanto agora era de se ir na casa dela
ver onde tava o corpo e porquê que afinal lhe tinham levado. Num te disse, meu: damas? Traiçoeiras e
com a escola toda: ir assim incomodar o morto mesmo, sem as autorizações devidas inda meter Forças
Armadas no assunto?

Meu — aqui começam as confusões. Sabes qual é a minha maior pena? Do morto.

Você de noite gosta de descansar, tá cansado, é o que se chama fim do dia. Porra, o outro, morto
mesmo já que tava, num queriam lhe dar descanso, meter assim na gaveta, depois jipe, andar aí a
circular pelas chuvas da cidade, assim à toa?, solavancos, mesmo a possibilidade dum acidente, tás a
imaginar um gajo já morto ter mais acidente e ter que ir preso? Ai, duvidas? Ahahah!, só podes duvidar
daquilo que eu inda num te contei, porque esse morto vai mesmo preso... Não!, calma inda, mais lá pra
frente, agora tou muito fatigado destas memórias todas.

Num me acompanhas mais noutra birra? Vamos lá então. Tou a gostar do teu ouvido — paciência
dele, e do teu bolso, nossas cervejas imparáveis. E pode então ser que vamos estrear aqui uma grande
amizade, num sei, muadiê, num sei — vida é mistério profundo só, maresia... Vida? — piano das teclas
e das músicas desconhecidas, nós só aqui sentados, bitôuvens desta tarde mulata, ou esta parte do dia
não pode ser mestiça?

Pessoalmente tenho paixão pela cor amarela, especialmente essa assim amarela bem torrada: ela me
deixa a cabeça vazia, em calmarias, e eu gosto de ter a cabeça assim vazia pro vento passar nela e eu
estar a pensar um grande nada, minhas liberdades de ficar quieto aqui dentro — na cabeça das estórias,
e ficar a rir tipo bêbado, riso das alegrias maiores, rir nada de nada, tipo os ndengues, faz conta um gajo
tá sentado no muro sem pressas de ir a nenhum lado.

E rir só, a cabeça cheia dos vazios...


Pôr do sonho

Se o coração do homem não transborda de amor ou de

cólera, nada se faz no mundo [...].

Kazantzaki, Cristo Recrucificado

Ouve, uí: a noite são as estrelas do céu que caem.

Não caem mesmo; é só de imaginação minha, mundo meu que te partilho, acredita só: estrelas que
brilham no céu, praia à noite, as damas no fundo da Ilha, caldoverde na madrugada, tudo isso, muadiê,
não tou a falar à toa, são as magias da noite, ou nunca reparaste que os olhos brilham mais bonitos é na
escuridão?

A noite, avilo, a noite é dos poetas, nunca escrevi: sou. Minhas poesias são minhas viagens, umas e
outras, verdadeirosas e imaginadas, brilho dentro de mim, entornado. Cervejas, companhia, môs cambas,
minhas vizinhas tardias, nossos mujimbos de madrugada só, lua-testemunha, velas da falta de luz e nós
abrigados ali, na rua, num aguentas, ali sim, a poesia toda, a poesia popular como iam dizer nuestros
hermanos cubanos — idos. Gatos pretos aí lhes atirávamos pedras, feiticeiros da merda, gatos com
dezassete vidas, aqui em Angola gato já não pode ter só sete vidas, ché, vai acabar rápido. Eu mesmo
chutei a cabeça dum umas quatro vezes, mais o Burkina que lhe ajeitou uns três chumbos do nguimbo,
dele, do gato, então, faz lá as matemáticas, isso num são já sete? Qual quê, aquilo é feiticeiro mesmo,
puramente insistente, dá medo e não podes ter medo: como nos filmes de cobói, quem parar primeiro,
morre. Corre só, meu; kibídi de cão, já apanhaste de madrugada?, é pior, te vêem a correr mas não
vêem o filha da puta do dogue, quer dizer, já és ladrão, porra, esta cidade é fodida então, se for branco a
correr tá a fazer ginástica, se for mulato tá atrasado, mas se for o puro mbumbu, quer dizer, tem que ser
ladrão? Não pode ser atleta, empresário, distraído ou maluco? Ladrão? Cor da pele, avilo? Porra, num
te conto...
Eu falo a noite porque ela vem aí e num sei se tu és dos que têm alergia dela — eu lhe admiro, eu lhe
vivo. Se a senhora tua esposa não tá tua espera, vamos então continuar, casos da vida, meus. Passa só
mais essa garrafa, não, essa não; a outra parece está mais bem gelada.

Muadiê, não posso inventar, eu aqui só tou no campo das verdades — corpo do mô avilo Adolfo tinha
mesmo desaparecido, assim, que ali na morgue era a única coisa que podia informar, mesmo mais notas
no bolso, a kota não falou mais nada — não sabia.

Foram então procurar a KiBebucha, na casa dela da Ilha, onde ela gostava de não ficar dentro de
casa, mas lá no quintal-rua, início do passeio da casa dela, onde espreitava o mar — vício dos olhos dela
desde pequena. Num te falei?, isto é só grandes coisas, efeito da natureza nas pessoas mesmo: céu,
mar, lua, sol, coisas assim enormes não escapam nas vias do coração, meu. Qual é a tua inclinação?
Nada, nada mesmo? Pra ti pôr do sol e pôr de merda nenhuma é a mesma coisa? E ver a lua de noite?
Nada mesmo? Porra, meu, dás pena, quer dizer, estás neste mundo só pra o que der e vier, não queres
meter o corpo e o coração nele?!

Banho de lua, já tomaste? Tás a rir?

Ouve, avilo, num conta só no Jaí, mas vou te pôr um espectáculo bonito que eu vi na Ilha, quase duas
da manhã, verão e noite, sem sonho, toda realidade — bué de albinos aí na praia da Ilha, lua cheia, e eu
tava a passar de carro até pensei que tava grosso. Susto? Fantasmaria!, foi o que pensei, seres das
novelas todas, cravo na canela do antigamente e Roque Santeiro dos lobisomens cantantes, feitiços pra
Kianda ou quê?, tudo isso pensei, mas parei nas bermas da estrada, chave na ignição e tudo, olhei: bué
de albinos mesmo, ao pé do mar, uns passeavam outros banhavam. Meu!, espectáculo dos corpos
acendidos na luz da lua, na praia se passeavam, brincavam, davam pinos. Um dia, na coragem, quis
saber, não fui mais nas curvas da conversa

Jaí, uma vez na Ilha, à noite, duas da manhã quase...

o muadiê nem ouviu mais, pôs aquele sorriso dele e me explicou

nossos banhos, nossas praias. De dia não dá, então nós banhamos mesmo de noite. Vocês num
têm banhos de sol? Nós improvisamos banhos de lua...

aquele jeito dele não ir mais pelo atalho desse mesmo assunto, calei só, respeitei o outro, o silêncio
dele da mágoa escondida eu via no olhar. Banhos, muadiê, mas no braite sáide da luna!

Bem, chegaram na casa da KiBebucha, música dela alta, gravador da voz dos cus duros, meu, o
Burkina abanou a cabeça dele

isso não é nenhum respeito pelo morto!


e era verdade: pôr música assim alta no morto quente? Veio ela, os trajes menores que sempre só
punha, miúda boa mesmo, tem que se dizer e ver!, e quando ia falar já numa suposta voz triste e baixou
o olhar e tudo e quis compor a roupa, o Burkina lhe falou

não tens vergonha? vai masé baixar a música, só queres é dar espectáculo!

ela foi, mais-velho é mais-velho, embora na opinião dela, eu sei, e até entendo, música não interfere
com morto, nem o morto pode mais escutar a música nem dançar, nem uma coisa está ligada com a
outra

pois não!

falou o Burkina

uma coisa está é ligada com a vizinhança que fica a saber que num tens respeito nenhum pelo
teu ex-marido

ela calou de novo, mais-velho é mais-velho, afinal, na Baixa ou na Ilha.

Mas depois a miúda ficou séria mesmo, coitada, saber que o corpo do Adolfo afinal tinha sido raptado

ché, raptado? Quem disse que foi raptado? Num começa já a aumentar as coisas...

mas de facto, se uma mulher, que eles nem tinham a certeza se era a DonaDivina ou não, tinha levado
o corpo, pra mais com uma autorização não sei de quem, num carro das Forças Armadas, e se não
tinham deixado nem recado nem documento, só podia mesmo ser um rapto

e isso é coisa pra justiça!

foi logo dizer a KiBebucha, se vestiu um pouco mais e telefonou pra uma advogada camba dela,
avisou que iam lá na casa dela expor o caso. Também já assim, tudo adiantado nas conversas
telefónicas com promessa de justiça, o Burkina não recusou a boleia e lá foram, sim, de qualquer modo,
via da justiça como não, era preciso encontrar o corpo, estar com o morto, lhe dar conforto, paz e mais
tarde o buraco mais último, ou não é assim, avilo?

O Burkina, deixa só te explicar, meu, pra entenderes bem as coisas, se calhar estou a saltar muito nas
partes de falar das pessoas, as personalidades: o Burkina é um gajo que não pode ver damas, fica tipo
cego, quer dizer, parece que num vê mais nada, e de facto ele andava triste com a morte do camba, isso
é verdade, num vou aqui negar, mas quando ele viu a tal advogada amiga da KiBebucha, meu, o Burkina
até sentiu tonturas, e logo-logo vais entender que, afinal, aparência não é tudo, já dizia o kota Odorico,
as iludências aparudem!, e isso é o que vamos mesmo verificar já daqui a bocado, porque essa
advogada, boua!, era das pessoas mais antipáticas que a cidade já conheceu, e disso o Burkina não
gostava. A tipa, como o Burkina lhe chamava, entrou no carro com cara feia, não cumprimentou
ninguém e só falava com a KiBebucha, pra dizer onde iam

ó KiBebucha, diga ao motorista que vamos à casa do falecido!

Filha da puta!, motorista era da confiança dela? Punha ordens assim no outro, só a cara do Sete, bem
enjoado, mas olhou pro Burkina e ele fez que sim com a cabeça, lá foram, sempre a cabrona da tipa a
falar nas quartas e quintas pessoas, o mais distante possível

não se importa de desligar o ar condicionado?, não pode pôr a música mais baixa?, não
podemos ir um bocadinho mais depressa?

enfim, essas frases de aumentar calundús no Burkina, de modo que toda tontura da beleza da outra
lhe passou em cinco minutos, se foram tantos, e logo-logo tava mais irritado que ninguém, mesmo as
lágrimas a lhe aparecerem ali, no chegarem na casa do camba dele, e ele a não querer acreditar bem
que o camba tinha mesmo campado.

Mas a razão da lágrima era ver a casa do outro assim nua das portas e janelas, rapidez das formigas
humanas, nunca ouviste falar?, onde vêem uma oportunidade de gamar ganham velocidades
supersónicas e antes do tempo ser tempo já num tá lá nada, é assim que funcionam aqui, num querem
saber quem tu foste quando vivo, interessa é que já tás morto. Aquilo foi só sacar, nem deixaram sobras
de nada — casa limpa, só pós antigos das manchas onde os móveis tavam, nada, nadinha, nada de nada
mesmo, ou como dizem os nossos bródas brasileiros: nadica. Mesmo a KiBebucha, boca dela aberta no
espanto e no medo, pois ela tinha prometido nos outros que podiam voltar lá no cubíco dele pra tirar
mais mambos, agora ela num sabia se tinham sido eles, ou outros, ou quem!, e principalmente quando, se
tinha inda só passado um bocadinho de tempo.

Afinal só viemos aqui perder tempo

disse a tipa, que nem quis entrar e que agora, com o calor, já tava no

ó senhor motorista, importa-se de ligar o ar condicionado?

Bem, o Burkina já maldisposto que tava, todo espectáculo, sem saberem do corpo nem nada, ele só a
pensar no camba morto e raptado aí pelas ruas de Luanda

oxalá esteja com a DonaDivina, ao menos assim tá com uma qualquer espécie de familiar

depois, já mais irritado, a muxoxar, foi deixar a tipa na casa dela e aproveitou pra largar lá também a
palerma da KiBebucha.

Avilo, maka mesmo da irritação é um gajo não saber as coisas que se passam — vê só o Burkina, que
é um gajo porreiro, maka dele era mesmo essa — os solavancos do camba dele morto e
desparadeirado. O Jaí é que falou bem

em vez de estarmos só aí a andar à toa, é melhor irmos pr'algum sítio e pensarmos a sério
nisto... Tu tens tantos cambas, Burkina, num há ninguém dos teus contactos que possa ajudar?

e foram andando, quase sem perceberem, na direcção da casa da KotaDasAbelhas.

Quer dizer, e como se diz mesmo, ali tava cada um pro seu lado — incluindo o morto, todo respeito
mesmo já incluído. Pensaram, pensaram bem, precisavam de fazer um telefonema, e o Burkina, celular
dele era só pro póster mesmo, porque nunca aceitava ligar pra lado nenhum, parece bloqueio do dono
mesmo, mas vamos só: PCG e o Sete ficaram a esperar na viatura; os outros dois sentaram mais na
casa da KotaDasAbelhas, ela já num avisou nada e eles também num tiveram mais medo das abelhas,
como é que vou te explicar? Aquilo era hora do expediente, as abelhas num podiam mais parar — tinha
que ser assim mesmo, falar e telefonar e sentar e estar no caminho cruzado das abelhas, vias rápidas do
labor delas, zum-zum de passagem nos ouvidos mas sem picada. E o cheiro, avilo?, ficas maluco! —
cheiro daquela casa é o céu e o paraíso aqui na terra.

Enquanto o Burkina fazia lá as ligações dele pra encontrar um pessoal, a KotaDasAbelhas ia metendo
conversa com o albino Jaí mas não parava de trajectar cozinha-sala, sala-quarto, quarto-varanda,
sempre assim, e ele, Jaí, no atrás dela, seguinte e observador como ele é. Tudo puramente organizado, a
beleza do proletariado animalesco, meu: abelha que dorme, abelha que vai, abelha que vem, abelha que
fode, tás a rir?, é importante, sabes quanto tempo de vida tem a abelha?, eu também num sei, pra dizer a
verdade, mas pra ter tantas ali em casa, o mel dela de todos dias, é mesmo preciso fomentar a
fornicação, brincas?, abelhas com prazer são abelhas satisfeitas, e essas são as que trabalham melhor,
tu tás a brincar ou quê?, aquela kota tem as economias todas estudadas, as biologias também e mais
tarde então, vais perceber no que te digo, as anatomias também, ahahah!, tás só a apanhar do ar, tem
calma — vai só largando as birras, eu vou debitando as falas.

Abelhas, meu!, muitas mesmo, ficas só calminho e num te fazem nada. Na cozinha, um laboratório
completo, divisórias, e as abelhas já sabem o que fazer, o que transportam, o que trazem, segredos
meus, mais não posso te contar, só que a kota deu pro Jaí provar os puros diferentes méis

mas isto... isto é mel mesmo, nada de álcool...

comentou o Jaí, dedo na boca, a provar as doçuras, e a kota também, no mesmo instante, dedo na
boca dela, a provar as doçuras, mas as doçuras do olhar... Hum!? O que te digo, podes pensar mesmo
que tou a aumentar o caso, mas pra mim aquilo começou ali, dedos na boca deles de cada um, e os
olhares, que são as janelas do coração e da alma, ou não é assim?, espreitáveis?

Os românticos foram interrompidos pelo Burkina que tinha feito lá os contactos dele, telefonemas na
conta telefónica da outra, bem, outros mambos, e que, se tinha percebido bem, quem tinha mesmo ido
buscar o corpo era a DonaDivina, mais um camba dela aí de alta patente, e que tinham levado o corpo
pro Hospital Militar

acho que ela vai fazer mais uma tópsia, meu

falou o Burkina, e naquele olhar o Jaí via a pena dele naquele comentário que o anão gostava de fazer
há muito tempo

quando eu campar, Jaí, num vale a pena ninguém vir mais me furar o corpo pra descosturar os
porquês... Tou mesmo a avisar, eu volto e dou um tiro no filha da puta que tiver m'abrir!

falava sério, no dia que falou isso, então o albino entendeu que ele tava com pena assim do Adolfo,
que já tinha sido furado, agora mais outra vez, as peles dele?

Foi a KotaDasAbelhas mesmo quem pediu, por favor, pra irem também avisar a KiBebucha, afinal de
contas e de qualquer modo também era família dele, do morto, não podiam estar a fazer as coisas nas
costas da outra

eu vou só então fazer mais um telefonema...

e fez, enquanto o Jaí e a kota foram mais observar outras tarefas das abelhas, de modo que ele viu a
varanda, ninho total delas, zoológico privado da kota, o inferno na terra: milhésimas, voos e barulhos,
abelhas. Dava medo, sim, dava mesmo medo e nem se podia sonhar com aquela varanda porque um
gajo de manhã corria riscos de acordar todo picado, só o sonho!, fará aquele gatuno que um dia tentou
atravessar ali nas curvas duma madrugada fria, mesmo sem estar nenhuma abelha a trabalhar, e ele
inocente, sabia que a kota vivia sozinha, quis se infiltrar, azar todo dele porque ia ser desfeito pelo Cão,
só num aconteceu porque as abelhas tomaram conta dele.

Meu, diz inda: kibídi de abelha?!

Num é tipo cão, que podes saltar muro que ele num consegue, abelha só quando fores já na água, tás
a galar, mas se elas te esperarem na tua falta d'ar? Sabes o quê sair da casa da kota lá em cima e ir até
na Chicala mergulhar, notícia que saiu no jornal e tudo?, e depois ficou música do Burkina, foi assim que
se qualificaram no top dos mais queridos... Ah, num sabias? Yá, o BurkinaFaçam tem um grupo
musical, chama-se Burkina e sus muxaxos, é homenagem nos cambas dele cubanos, pensei que já
tinha te falado.

Bom, dum lado pro outro, os dois, até que o Jaí sentiu que tinha que parar, porque a kota falava
distraída e ele é que tava a lhe seguir, mas a kota ia entrar com comida lá no quarto do Cão, e o Jaí
mesmo sentiu que não dava pra entrar. Num sei te explicar, avilo, cubíco do dogue, aquela sala é reino
dele, num consegues entrar lá, são poderes que não conhecemos, o Jaí aí parado no corredor, olhos do
medo dele, a tentar espreitar e quase cegou só do Cão lhe ter passado uma olhadazinha. E o mais
estranho é que a kota saiu de lá, como se num fosse nada, inda falou

hora da refeição

foram pra cozinha de novo, meter os dedos nos méis, na boca depois, e se olharem assim tipo doçura,
sempre que os olhos se cruzavam tavam a derreter as vistas. Paixão!, avilo, num conhece a palavra
idade, nem circunstância, nem momento. O amor num é doce tipo melaço que escorrega quente no
agarrar dos dedos?

Antes de saírem mesmo, hum!, só a cara da kota a dizer

de vez em quando apareçam pra almoçar

especialmente inda durante esse caso do AdolfoDido, também porque ela queria estar a par das
situações todas, saber exactamente onde e quando ia ser o enterro, mas o Burkina, sem dizer nada,
captou que aquele convite não era pros dois, se calhar era mesmo aquilo que ele tava a pensar e num
podia inda dizer — o amor tem retalhos que a razão num sabe costurar.

Estava combinado irem dar outras voltas, mas desta vez a tipa já tinha vindo a conduzir, então foram
em carros separados, isto pra te dizer que a chuva era tanta que mal dava pros carros se seguirem e
andavam muito devagarinho e muito colados, os carros, assim como colado tava mesmo o dedo do Jaí
na boca das recordações dele onde tinha restos de mel, que eu já te disse, é doce como o amor, assim
quando um gajo chupa mel lembra-se de todas coisas doces da vida, e também se lembra das pessoas
por detrás dos doces, assim o Burkina concluiu dentro da cabeça dele que o Jaí tava masé não a chupar
mel, nem dedo, mas a pensar na KotaDasAbelhas no modo que os homens pensam nas mulheres que
lhes ensinam o gosto escorregadio do mel. Tás a captar?

Foram inda primeiro na esquadra, que parece era melhor ter ficado lá fora porque lá dentro tava a
chover quase mais que no passeio, embora não fosse chuva forte, já te expliquei, mas não parava, dias e
dias assim, tudo na coincidência da morte do mano mais velho, num sei se era mesmo só coincidência
ou se era a verdade verdadeira, como dizia o kota Odorico, mas que alguém tinha desamarrado as
chuvas, tinha.

Bem, se num vais acreditar num sei se vale a pena te contar, só posso te dizer que ali naquele
compartimento da esquadra, tudo tinha que estar em movimento. Tás a rir? Verdade, avilo: os buracos
de chapa lá em cima se alternavam no deixar cair água, aquilo variava com os pesos, tinha que se estar
cinco minutos num lugar, depois aí começava a pingar e ia-se pra outro lugar, mesmo o kota da máquina
de escrever com outro que lhe ajudava a movimentar as coisas já sabiam de cor o mapa das
deslocações, e assim era tudo mais simples, eles sem dizer nada a ninguém nem explicar, mudavam de
lugar a cadeira, a mesa, a máquina de escrever e a papelada, circo mesmo da vida profissional, te
ponho, e a tipa só a dizer

ai eu não acredito nisto!, eu não acredito nisto!

o Burkina todo satisfeito de ver a gaja assim irritada, mas parece que ela devia lá um favor na
KiBebucha e tinha mesmo que aturar aquilo tudo, de modo que a salvação era só mesmo estar atento,
ver onde é que a secretária ia a seguir e ir também, e rezar depois, sendo crente como não, pra não te
cair a água toda que a chapa tinha acumulado nos últimos quinze minutos. E o americano põe queixa de
terrorismo, meu? Terrorismo é ali — a paciência daqueles dois a mudarem a secretária de local, porque
já nem havia suficientes baldes, então decidiram que dava menos trabalho abrir mesmo assim a porta e
deixar essa água toda escorrer, directamente do céu pro chão, e depois pra rua, destino de todas águas
com a excepção das que forem bebidas, brincas?, havia ali dois furinhos no tecto que até parecia fonte
virada acontrário, tinham já feito marca no chão com a coronha da aká, e se pusesses ali o pé a água
caía bem certinha na boca, bocadinho cadavez, a fonte natural, meu!

Puseram o caso, e claro, o Burkina não podia mais falar filha da puta no polícia quando o polícia não
quis acreditar no nome do morto, mas que era esse mesmo e ninguém podia mais mudar, a KiBebucha
trazia um documento dele dos antigos combatentes, declaração que ela mesmo tinha arranjado num sei
bem aonde, o kota ficou assim pasmado a olhar, e chamou o outro, e quando finalmente ia começar a
bater o texto na máquina de escrever, já tinham passado muitos minutos e era preciso movimentar a
secretária outra vez

ai eu não acredito nisto!

Enquanto os polícias se preparavam, viam se havia viaturas e agentes disponíveis pra acompanhar a
senhora advogada no hospital militar onde ela suspeitava que o corpo estava, informação obtida pelo
anão BurkinaFaçam embora ele não tivesse a certeza nem podia mesmo revelar a fonte, foram todos
aguardar nos carros, cada uns nos seus, e assim ficaram durante algum tempo, do candongueiro do
Burkina se via que a tipa tava cheia de gestos e irritações, calor ou chuva, não sei, chatice mesmo ou
makas com a KiBebucha, nem quero imaginar o catinguê-cardan ali com os vidros fechados.

Avilo, desculpa só a interrupção, mas, porra, num podemos ficar assim tanto tempo sem nada na
garganta...

Bom, lá dentro do carro então, o Jaí é que pegou no jornal, sempre a acompanhar as notícias como ele
gosta, tava mesmo em discussão na Assembleia Nacional a maka dos feriados e não feriados por causa
da chuva, e queriam meter mesmo estado de calamidade na opinião internacional, chamar inda mais
pámes e éfe-éme-ís e coisa e tal, e alguns populares, vinha mesmo nas entrevistas do jornal, disseram
que num era nada daquilo, era mesmo maka de ngapas, tinha que se chamar os puros feiticeiros mais
poderosos pra resolver aquilo, mas havia também populares que achavam que era muito simples
é só chamar a UNAVEM quatro, num é assim que tamo a resolver os prubulema aqui na buala?

hum!, popular mesmo é que sabe, avilo, opinião dele era mesmo essa, mesmo o Jaí tava a comentar
isso em voz alta no carro, até o puto PCG concordou logo, saber de monandengue

yá, kota, tem mesmo que trazê os puro capacete azul, ché, posterados!

mas o Burkina, que já não tava nada bem-disposto, começou

estado de calamidade a puta que os pariu, é preciso vir a chuva pra verem que esta merda está
na calamidade total?

depois parou, inda bem porque o Burkina quando dá pra disparatar fica já aí a noite toda se for
preciso, então se tiver um copo em cima, quer dizer, ao lado, pior inda, e eu num gosto de ficar assim só
a dizer disparates à toa, mesmo assim como estou, a te falar mas pela boca dos outros, num gosto só.

E assim foram nos buracos da cidade

é um caso muito urgente

disse lá o polícia responsável por aquela situação, o puto PCG delirou quando o jipe da polícia à frente
deles ligou as sirenes, meu, num querias ver os olhos do puto no brilho azul das sirenes nas vistas dele,
parecia tinha ficado maluco, num só dia acontecer-lhe tantas coisas, atropelo, clínica e gasosas, lanche
na Ilha e agora já a polícia a comandar as operações tipo que ele, o puto, como ele falou, tava na
perseguição dos bandidos, bang-bang como ele nunca tinha vivido antes — mesmo sendo ele um
morador de castelo. Dali é que foram pro hospital militar, cancela aberta pros carros passarem

agora é que ela vai ver como é!

dizia a tipa, a falar, claro, da DonaDivina, e de facto foi mesmo bom terem chegado àquela hora da
faca, porque o corpo já ia ser reaberto mais outra vez.

O polícia mandou parar as operações, quer dizer, a operação, bem vistas as coisas, avilo, já nem era
operação, era só pra abrir o corpo sem nenhumas anestesias nem cuidados, e espreitar lá pra dentro —
já te falei, num concordo, espreitar corpos dá só azar nos vivos e chatice nos mortos. Suspensão,
identificação da polícia e da tipa advogada, DonaDivina nos olhares da fúria na direcção da KiBebucha,
e as duas a olhar só o corpo ali, repousado no frio todo do outro mundo, cor estranha, mas sempre o
sorriso dele ali nos lábios da morte, tremeliques de vento que o cabelo dele permitia na janela aberta,
roupa com cheiro dele só, ai uê, AdolfoDido na discussão da boca e dos olhares dos outros mas sem um
buraco só pra descansar — achas bem, meu? Se fosses tu, gostavas? Eu num gostava...
Pra esta parte que vem agora, manda só vir mais uma, porque é de mais: o corpo tinha que ser detido!
Não é mais esperar ali ou voltar pra morgue

o corpo tem que ser prendido pra averiguações

explicou o polícia e a advogada tipa não sabia bem o que dizer, porque a intenção dela era mesmo que
o corpo não ficasse na posse da DonaDivina, e então assim num fez nada de se lembrar das leis que
não permitem o corpo andar assim dum lado pro outro — mercadoria, saco humano das batatas? Tavam
então a brincar com fogo...

O Burkina, mãos na cabeça dele já suada, não sabia mais que havia de fazer pra dar descanso no
corpo do amigo, consolo dele era mesmo só esse sorriso que tava na cara do Adolfo, lábios dele,
mistério pra mais tarde, inda passou pelas ideias do Burkina que ele estivesse a ouvir qualquer coisa, ou
que ele, do outro lado do rio, estivesse mesmo a lhes assistir naquelas makas que já não tinham mais
sentido nenhum se fosse a pensarmos na vida dele, mas que tinham assim muito sentido, pra todos, se
fosse a pensarmos na morte dele — dinheiros por resolver, e enterros, que de novo tinha que ver com
os dinheiros. Não captaste? Ainda não..., mas tem só calma, vamos chegar lá.

Aqui o que há pra te dizer é mais isto: o corpo foi mesmo preso, lá no jipe dos solavancos todos da
chuva que se mantinha, sirenes agora redobradas e o jipe a andar bem rápido que ninguém conseguiu
acompanhar, esquadra com quarto especial, pedido da advogada tipa, o corpo não podia mais levar com
águas nenhumas pois tava quase a começar a apodrecer, e isso inda ia dificultar as investigações.

Muadiê, não é falar bem da outra, dessa, a tipa, mas a gaja sabia do assunto e explicou — que o
corpo, mesmo com aquela tópsia que não tinha dado nada, nunca poderia chupar duas tópsias, tá nas
leis, livro grande grosso que ela tinha esquecido em casa e que assim não podia mostrar no kabomba,
mas o kabomba também não queria ler mais livros àquela hora, e explicou também o lado dele da razão,
que o corpo já tinha saído ilegalmente da morgue, portanto era o crime número um, e a tentativa de
fazer segunda tópsia era o crime número dois, e que ele mesmo ia investigar, falou alto, quem era essa
personalidade com esse jipe das forças bem armadas que tinha ido com a DonaDivina buscar o corpo
na morgue, e que ia haver problemas, tudo isso arrotado bem alto lá no hospital, pra que todos ouvissem,
porque

comigo não brincam!

se fosse preciso deixava nome: subintendente Gadinho. Bigode dele, meu? — maiombes todos,
estremeciam cada palavra parecia ele não tinha boca, só gruta com trepadeiras no formato duma
penugem vasta. E era mesmo isso que intimidava, além que era alto, e avisou

todos têm que ir pra esquadra molhada novamente pra prestarem as declarações

embora a declaração de mais interesse fosse a do AdolfoDido


mas esse já não declara merda nenhuma.

Avilo, dia pra esquecer, das voltas todas e a chuva sobre eles, grupo a aumentar, motorista, puto de
rua, advogada tipa, KiBebucha, DonaDivina, polícias, subintendente Gadinho e o morto — o novíssimo
circo angolano tinha chegado na esquadra.

Quarto especial, pro Adolfo, que ficava no escritório do subintendente Gadinho, deitadinho como lhe
puseram num canto onde não chovia, por enquanto e que se soubesse, tapado com a bandeira nacional
que tiraram da parede e uma ventoinha que lhe apontaram

dizem que do outro lado faz muito calor

brincou um polícia, e o Burkina a ouvir aquela merda se conteve só, porque é assim mesmo, quem tem
arma é que fala mais alto e diz o que quer — os outros calam.

Mas a fome é que manda no mundo, a par com o dinheiro, sim, mas a fome também comete os
crimes, também te empurra, também te obriga a gamar. E todos bem fobados como àquela hora tavam,
na simpatia do subintendente Gadinho se decidiram a continuar no dia seguinte, mas o corpo ficava
detido pra averiguação. As duas damas, a primeira e a segunda, até acharam bem, assim cada uma
tinha mais tempo também pra desenvolver estratégias pro dia seguinte, ninguém gosta de ser apanhado
desprevenido e quem pode se volta a arranjar, menos o morto, coitado, voltas dele só nesse dia, morte,
morgue, hospital e prisão — turista que já era em vivo agora se expandia nas passeatas da morte
morrida dele.

Meu, pensas que meto só os casos todos duma vez, não tenho o fio da coisa? Te enganas. Tenho a
coisa toda num fio só, num falo nada por acaso aqui: nem mesmo o jornal. Agora te ponho: todos
bazaram, cada um pra seu lado, num te falei, o norte varia de pessoa pra pessoa, depende do que você
tem por bússola, não é?, e assim foi: as damas pra casa, Burkina lá resolveu levar o puto PCG a
conhecer o cubíco dele, primeiro disse que era só pra jantar, depois se ele num queria campar lá só
aquela noite pra lhe controlarem na saúde dele, depois logo iam ver como é que as coisas ficavam; e o
Jaí pediu lhe deixassem na casa da KotaDasAbelhas pra ele ir contar os sucedidos todos, as sequências
supostas e as havidas, o percurso do morto e os eteceteras que sempre aparecem no meio duma
conversa humana. Ora, abelhas e mel de novo, aí está o Jaí na casa da KotaDasAbelhas, à espera do
jantar, a se distrair no jornal mais uma vez — e viu.

Claro, claridade, coisa tipo manhã, avilo, não vem depois da escuridão? A vela pra existir, chama dela,
num é no escuro?

Então: tava lá no jornal, na sequência da notícia dos assuntos parlamentares dos dorminhocos da
Assembleia, que tava outro assunto no bailar das discussões actuais: as pensões, os cumbús todos dos
antigos combatentes, que era maka antiga, com direito a ministério e tudo, mas não só isso e
principalmente: as damas dos ex-combatentes, quem ganhasse estatuto de viuvez. Jaí leu, leu, e depois
parou — camelo na escolha da água pra beber. Quer dizer, aquela estória toda das damas no coro do
Adolfo, há tanto tempo que num lhe ligavam nenhuma, ninguém queria saber, agora tanta coisa, porque
meu viúvo, meu viúvo?, choradeiras e raptos, luta quase e tantas atenções no outro, o esfriado? Elas
eram espertas então: viúva que comprovasse viuvez mesmo pura, nos laços com o ex-combatente, ia
receber a pensão do gajo, mais um dinheiro extra pela morte do falecido, mais uma viatura — brincas,
ou quê?, num te dizia o dinheiro move o mundo nas vintiquatro horas dele se renovar?

Meu, grande notícia que o Jaí encontrava ali, no por acaso daquela noite, sentado na sala com medo
que o Cão saísse do quarto dele, embora a KotaDasAbelhas já tivesse dito que ele, o Cão, tava a
dormir, e que ela só ia lhe acordar na hora do jantar mesmo. A notícia toda: que, sendo os ex-
combatentes pessoas civis mas ex-militares pra sempre afectos aos órgãos do estado, quando o ex-
combatente campa, a mulher dele, esposa legitimada nos documentos ou nas testemunhas, ganha
automaticamente o estatuto de viúva do estado. Muadiê, brincas?, isto é país ou quê?, onde até o
estado manda viúvas, quer dizer, vou te dizer aqui como disse o Jaí naquela noite na casa da
KotaDasAbelhas, em cima da gargalhada que ele deu, e que depois teve que pedir desculpa na kota por
causa dos ambientes do morto ausente

um estado que tenha viúvas, é um estado que já morreu...

o Jaí concluiu, embora a kota tenha feito aquele sorriso dela só assim, que aceitava as desculpas dele,
e que até tinha percebido que era na notícia do jornal que tava o início da gargalhada, mas aquele sorriso
mesmo num era mais de entendimento nenhum, que a kota não se emprestava muito em assuntos do
presente, claro, a morte do Adolfo era excepção, mais gostava era de habitar outros mundos da cabeça
dela, e esse sorriso, era mesmo só pra lhe chamar pra mesa, lábios que não disseram, mas podiam ter
dito

o jantar tá pronto.

Avilo, sorriso nos lábios duma pessoa não quer dizer nada, você até pode estar a pensar num morto,
tuas recordações boas com ele, sei lá, vossas praias, vossos bodas, vossas nguendarias nas noites de
carnaval antigo — vinte e sete de março, e a pessoa que te vê fica só assim com a boca a querer rir
também, mas tá a tentar imaginar, na cabeça dela, o que você tá a rir... Esses mistérios que eu gosto de
falar e de te pôr aqui, quer dizer, sorriso não é só sorriso, é principalmente pensamento, e aí no jantar,
sem afastar as abelhas, porque a kota lhe tinha já avisado que tentar afastar as abelhas era pior e elas
podiam levar a mal, e depois aquilo, hum!, se um leva a mal naquela casa, tás paiado, como foi do
ladrão, porque a abelha leva a mal, o jacó começa a berrar, e o Cão acorda, e aí já não há mais solução
de fazer-as-pazes, é correr só, então ele tava só assim, a comer com a kota, ché avilo, num goza só, eu
disse comer com a kota, não disse outras coisas aí da tua cabeça de malcriadez, e ele sorriu mais outra
vez da outra conversa que o Burkina tinha tido com ele... Passa só mais uma birra, já vou te explicar
isso.

Já te pus, avilo, o Burkina é um gajo das surpresas — palhaço do circo da vida com a caixinha dos
coelhos saltitantes. O Burkina num canta, finge que canta, mas finge tão bem que tu pensas que ele
sabe cantar — grupo dele, esse, Burkina e sus muxaxos, você pensa é quê?, pura diversão dele, rede
de kuatar damas, famas pra ele só, num te disse tá a preparar a kêta pra ir no top dos mais queridos, ele
assim tá contente, é muito dessa maneira que ele faz a vida brilhar, uma luz aqui uma luz ali,
pirilampagens, amizades e conversas — mais das vezes mesmo, loucuras.

Queres saber mesmo?

Num te falei essas amigas dele, epá, putas..., vou dizer mais como, prostitutas? Se elas mesmo dizem
que são putas, vamos respeitar só. Essas amigas dele, que são putas, a Madalena e a Eva, são gajas
porreiras então, o Jaí já lhes viu umas duas vezes no carro do Burkina, mesmo lhe convidaram pra ir dar
uma volta, mas o albino recusou porque tem responsabilidades de professor e não quer ser visto com
determinadas pessoas

sem querer ofender ninguém

elas só tristes sem perceberem o fundo da questão e pensarem que o albino era mesmo esquisito e
não gostava de privar com putas, mas não era isso, é que o Jaí é muito do antigamente, outras maneiras
da educação dele que eu num sei onde é que foi buscar, mas pronto, ele é assim, deixa só. Mas o
Burkina já muito tempo que queria lhe apanhar e foi assim — proposta irrecusável, porque também o
Burkina já tinha salvado o Jaí daquela vez dos nguimbos albinos que davam pra curar a sida.

Jaí, epá, eu tenho uma ideia, meu, mas preciso que m'ajudes

foi assim, um dia, que começou a falinha bem mansa do anão BurkinaFaçam que o Jaí já sabia que
vinham chumbos grossos dali, mas tinha que lhe ouvir

meu, tu sabes aquelas miúdas, a Madalena e a Eva, boas miúdas, de vez em quando dou lá
uma curva, epá, eu gosto de ver aquelas miúdas felizes então de vez em quando lhes enfio uma
balda

mas isso mais pra quiê então, o Jaí lhe disse, se tu mesmo já lhes dás dinheiro, dormes com elas, tá
tudo bem entre vocês

por isso mesmo, porque gosto de lhes ver bem, ouve inda: é que eu lhes disse que o governo
está a pensar arrancar com um sindicato das prostitutas.
Ahahah!, avilo, aquele Burkina foi encomenda de Deus, ele num existe! Sindicato de putas?! O
governo mesmo?

Mas dizia: ali onde estavam a jantar, o Jaí olhou as abelhas passarem,

está muito a pensar na vida, senhor Jaí

a KotaDasAbelhas falou, o albino até reparou que se calhar tava a ser indelicado, a comida tava boa
e ele inda nem tinha dito nada, inda por cima, ele pensou, se a kota tivesse a capacidade de espreitar na
cabeça dele, ia perceber essas coisas todas que ele tinha estado a pensar, as putas e o sindicato, e pior,
que o Burkina tinha lhe pedido pra ele ir numa reunião se fazer de membro do governo que queria falar
com as putas pra conhecer as necessidades delas e os desejos pra reforma, sim, a reforma!, porque era
mesmo isso que o sindicato tratava, uma reforma pra quando elas fossem mais velhas, além de algumas
viagens que tinham direito inda durante o tempo de serviço, camisas de vénus e doutros planetas,
vacinas grátis e creche pros candengues. Avilo, diz só, o Burkina num devia ir fazer filme?

Mas a kota, apesar de falar com abelhas e ter aquele relacionamento estranho com o Cão, acho que
num sabia espreitar pensamentos, quer dizer, não assim-só-à-toa, hora do jantar e boca na comida, hora
de estar olhar assim no albino Jaí sem ele perceber que aquele era mais um olhar de mel

coma mais um bocadinho, senhor Jaí, não faça cerimónias

zum-zum, abelhas também na mesa, mas um gajo rápido se habitua, porra, pitar mesmo assim de borla
mais o puro mel a escorregar só, o mel que os estranjas vêm aqui e pagam dodós você tás lha dar assim
só, repete-repete, e a dona da casa inda tá a rir, cuia mesmo, ou não?

Lá estavam, lá ficaram, hora da telenovela que não ouviram nada, porque o Jaí ficou então a falar a
sério, a pôr na senhora as voltas todas que tinham dado, o estado do morto e o local onde ia dormir, a
bandeira sobre ele, a esquadra, o subintendente Gadinho e todos mambos mesmo, damas e tudo,
DonaDivina, KiBebucha, a estória do PCG que a KotaDasAbelhas sorriu muito, e tudo só assim, até
aparecer na televisão esse kota mesmo que eu te falo de vez em quando, o Odorico, quer dizer, sempre
essa mania, ali não era mais Odorico, era outro, mas porra, num ficou já pra sempre Odorico?, acho que
ficou, melhor personagem que já assisti, kota mesmo que sou fã dele — chorei na morte dele com as
minhas lágrimas sem vergonhas nenhumas. E ali os dois, avilo, no em frente da televisão sem som, a
comentarem só essas coisas de personagens e novelas, e de como a vida é mesmo parecida com uma
novela, e depois a KotaDasAbelhas falou que a vida não era parecida

a vida é mesmo uma novela, em vários sítios do mundo, no Brasil também, mas principalmente
aqui em Angola, então o senhor não vê, senhor Jaí, que o senhor está sentado numa casa onde
uma velha vive e fala com abelhas

ela sorria
ó dona, não diga isso, a senhora não é velha, por amor de Deus

ela pausou e lhe falou que a velhice dela não se via mesmo por causa do mel que ela bebia e do mel
que ela punha na pele, mas que a velhice dela era lá dentro e apontou na direcção do coração, bateu
com a mão devagar no peito

porque é aqui que se envelhece, senhor Jaí

e acrescentou inda que ia na cozinha buscar um líquido, também feito a partir do mel, pra ele besuntar
o corpo do Adolfo pra ser possível lhe conservar ali, só nos frios da ventoinha, porque ela achava que
aquilo inda ia levar uns dias.

Lá dentro — quarto e reino, o Cão ladrou baixinho e a KotaDasAbelhas se despediu nas pressas da
varanda de fora, e entrou, mistério doutra cara dela que ela tava a fazer, preocupação ou obediência, e
que já era hora de ir atender o Cão, falou e sorriu, a se despedir e a convidar o albino a vir almoçar
amanhã

pra conversarmos mais um bocadinho..., sempre me põe a par das novidades

e ele, no adeus dele atrapalhado com os barulhos do Cão, esqueceu de agradecer a refeição e o mel.

Muadiê, acho que a kota tem mesmo razão — novelas nossas que se passam aqui na city ninguém
aguenta, nem mesmo os brasucas. Aqui as coisas do dia-a-dia são muito fortes, e como dizia o kota
Diarabí, antigo morador da minha rua

o que se vê todos dias, já ninguém dá valor. Sede é quando não temos água!

ché, brincas, filosofia poética do cego menos cego do nosso bairro, em 92 esquivou bala, já te falei?

Eu acho isso mesmo, coisas que nós observamos aqui todos dias já nem falamos, mas nos olhos dos
estrangeiros eu costumo encontrar espanto, já te falei, noutros tempos de outras missões, mambos aí de
estudos fajutos, eu viajei, avilo, já estive nas europas, e nos baloiços do vinho falei de mais — vi nos
olhos deles a nossa realidade lá, e espantei também, meu, deixa só!, nós é que sabemos, essas aventuras
todas que te ponho, coisas simples de contarmos em cima das cervejas, mas se não fosse esse calor, eu
te falava tudo o que tou ta falar? E tu rias e calavas assim só, sem me perguntar bem as coisas?...

Já é de noite então — hora dos grilos, dos pirilampos e dos gambozinos, ai uê, minhas infâncias...
Muadiê, já caçaste gambozino?
O não julgamento e outras esquindivas

respeito muito minhas lágrimas

mas ainda mais minha risada

Caetano, cantando Vaca Profana

Ir mais aonde então, tás grosso ou quê?

Vamos ficar mesmo aqui sentados nas cervejas; o fim da estória, num sei, num vale a pena me
perguntares... Mas qual é a tua maka, num aguentas mais umas? Agarra bem a tua calma, vamos só na
noite — nossa viagem, os aquis, também os entretantos, estas falas que te ponho. Ché, bi querful — a
pressa também é inimiga da cerveja.

Há muito ainda que ser explicado; por exemplo, a manhã seguinte: cada vez apareceram mais pessoas
nisto, e notícias também, porque essa questão do corpo do Adolfo envolvia o primeiríssimo caso das
viúvas do estado, então tava todo mundo atento. A notícia viaja, meu, nem sempre dá pra controlarem
como gostam, já tava tudo cá fora, nos jornais: mô camba, AdolfoDido, assunto de segunda página, com
essa foto da quindumba jimy dele que afinal tinham ido buscar nos registos dos antigos combatentes, eu
nem sabia que ele tinha combatido noutro sítio que não nas discotecas da noite luandense — mas fiquei
a saber, é assim mesmo que a ignorância tomba pra morrer.

Era de manhã, mas os bigodes maiombeiros dele, do subintendente Gadinho, tavam na mesma
desarrumados como sempre foram e ele tava com ar mais importante, já tinha recebido telefonemas
graúdos, até jornalistas, até uma senhora juíza já se tinha inteirado do caso e queria notícias do morto.
Muadiê, aquele caso num era só um caso, eram muitos já, tanto pra família como pros cambas como
pros políticos, e o Jaí apercebeu-se bem disso quando encontrou a esquadra cheia de gente jornalística,
câmaras e tudo a quererem imagens do Adolfo, mas o subintendente Gadinho, que entende um pouco
daquilo, não deixou

é preciso a família autorizar.


Mas a maka era mesmo essa: ali, quem era afinal puramente familiar?

O processo correu nos papéis, lá no tal escritório onde a secretária se movimentava dum lado pro
outro a fugir da chuva, e a DonaDivina é que tinha uns papéis nos conformes e embora a KiBebucha
estivesse autorizada a assistir tudo, não podia assinar nada. Então, através da ordem da
JuízaMeritíssima o corpo tava mesmo detido, e provisoriamente se faziam as documentações pela
assinatura dela, DonaDivina, que tinha ainda papéis de casada, embora o subintendente Gadinho
quisesse ouvir todos, e até o puto PCG bem divertido foi ouvido também, porque tinha que se perceber
essa estória do corpo ido e retirado da morgue, o sub tava farto de ver

carros e patentes militares se sobreporem nas ordens dos outros

falou alto e todo mundo comentou que o homem tava a se azarar assim.

Aqui é que vou te apresentar a senhora juíza, que ficou só a ser chamada de JuízaMeritíssima, que
telefonou pro subintendente Gadinho

já marquei pra esta manhã uma sessão extra-ordinária

era preciso levarem lá o corpo e as pessoas que ela queria ouvir em tribunal — e deu lista por fax.
Meu, te ponho, aquele subintendente tava mesmo com vontade de resolver as coisas, mobilizou o
pessoal e quando viu que tinha falta de viaturas requisitou o Burkina, mais a viatura dele, pra serem
provisoriamente semi policiais

enquanto a operação AdolfoDido durar

o Burkina gostou, lhe emprestaram uma sirene externa que ele ligava no isqueiro do carro dele, e ia
assim também com a polícia, candongueiro dele que era já um carro bem esculú, agora virava
candongueiro policial, com sirene e tudo, primeiro que vimos na nossa cidade de Luanda a passar com
velocidade da luz azul em cima — pra não falar que o PCG delirava então.

Ouve, uí, grande confusão ali — o coitado do Adolfo mais outra vez rebocado nos ombros
desconhecidos, e o Burkina, só com pena dele, apanhou um espécie de quadro, antigamente era ardósia,
lembras?, e escreveu assim

defunto a bordo!

o subintendente lhe disse que como o carro dele era dum coro da polícia ele tinha que se identificar no
motivo da sirene. Meteu o quadro dentro, junto do vidro, e toda gente via mesmo aquele candongueiro
com sirene passar bem rápido — defunto a bordo!, brincas?
No caminho, o Jaí agarrou o hábito dele de ler jornal em andamento e leu bem as notícias do caso
Adolfo: que era o mais recente morto antigo combatente, precisamente na altura em que se debatia na
Assembleia Nacional o caso das pensões das viúvas do estado, e que aquele caso elucidava bem a
necessidade de haver uma cuidadosa verificação do estado de viuvez, porque afinal o que tava em
causa era um estatuto praticamente governamental, uma vez que a viúva ficaria afecta ao estado dali
pra sempre, etecetera, e blá-blá que os jornalistas gostam de acrescentar nas notícias em vez de ir
investigar as coisas em condições.

Inda demoraram pra arrancar lá da esquadra, porque, claro, a DonaDivina já queria aproveitar pra se
relançar nos meios sociais, já queria se dar de ser a autêntica primeira viúva do estado, falou já dos
tempos de guerrilha e tudo, e o Jaí só a olhar pro Burkina, e o Burkina só a olhar pra KiBebucha, todos
eles sabiam bem que não havia nenhuma combatentice nos passados do Adolfo, mas a KiBebucha fez
sinal no Jaí pra estar calado

eu depois te explico

e lá foram andando, chuvas e solavancos, até no tribunal onde já tavam mais jornalistas à espera.

Quando entraram, e pouca gente entrou, o Burkina inda ficou algum tempo a olhar bem a cara da
JuízaMeritíssima, lhe parecia que conhecia aquela chipala doutro lado qualquer, mas depois lá se distraiu,
todos tinham que ajudar a trazer o corpo, inda por cima a bandeira tava ensopada, foram lá fora
espremer, a JuízaMeritíssima fez cara feia porque os polícias tavam a lidar com a bandeira parecia
aquilo era um simples pano e ela tinha mesmo dúvidas se uma bandeira, apesar de ensopada, devia ou
podia ser espremida, e tinha que ter todos esses cuidados porque tava lá muita comunicação social e
mesmo também muita comunicação mujimbeira, e ela, por precaução, acho eu, mandou todos jornalistas
saírem, e que só ficava a família

mas qual família?

perguntou o Jaí, já quase de lágrimas nos olhos, a JuízaMeritíssima entendeu que aquilo era mais caso
de amizades que laços familiares, e deixou o subintendente Gadinho escolher quem ficava, gajo porreiro,
o bigodudo, que até escolheu o PCG pra ficar também, embora ele não soubesse muito bem quem era
quem ali.

A JuízaMeritíssima esteve inda a parlar com o subintendente pra entender quem eram as pessoas e o
que se tinha passado factualmente, porque ela também tinha só recebido nessa manhã uma ordem pra
ver o caso, assim do ponto das vistas da lei, mas tinha poucas informações, e foi conversando
informalmente com as pessoas pra estudar o caso e os relacionamentos que cada um tinha com o
morto.
Falou bem com o Jaí que lhe explicou as horas já do morto sem enterro das dignidades todas, e que
agradecia muito que o caso fosse abreviado por respeito com a família e com os amigos, mas
principalmente com o próprio morto, que já era de mais assim, a JuízaMeritíssima entendeu
perfeitamente, tão perfeitamente que depois de feita uma breve conversa com os dois, Gadinho e Jaí,
autorizou besuntarem o corpo com aquela espécie de mel que a KotaDasAbelhas tinha dado, e pra
espanto de todos assim aconteceu — Jaí, Burkina e a KiBebucha a besuntarem o corpo de mel, aquilo
foi muito bom pois a sala ficou a cheirar bem, pôs as pessoas mais bem-dispostas, só a DonaDivina tava
a recusar pegar nesses líquidos e pôr no corpo do ex-marido. Assim no de vez em quando das curvas do
corpo, o Burkina tava a espreitar a JuízaMeritíssima, até que se lembrou, outros tempos dele quando, às
quintas-feiras, dia dos casos divorciosos, ele gostava, fim da tarde, ir num outro tribunal acaçar jovens
recém-divorciadas — fazer mais como, avilo?, mambos dele, deixa só o outro.

Quer dizer, o amor estava no ar, tinha vindo com a chuva ou sei lá quê, porque no dia anterior já o Jaí
andava aí a babar de mel na boca, olhos e tudo a escorregar na direcção da KotaDasAbelhas, e hoje
mesmo, ali em pleno tribunal, o Jaí que não era dessas coisas mais tradicionais, estar assim a espalhar
mel misterioso no corpo do camba dele, AdolfoDido?, e mesmo o anão, que desde o dia anterior
também não largava mais o puto que atropelou, e agora, a olhar assim nos olhos da JuízaMeritíssima que
ela já tava a reparar e a ficar atrapalhada, antes da sessão começar? Hum!, são as malambas do
coração...

A JuízaMeritíssima abriu a sessão, com morto presente e tudo mais, ouviu oficialmente cada um,
versões deles, e explicou que ela tinha muito que pensar, pedia já desculpas a quem se considerasse
familiar do morto, porque o caso era mesmo complicado e ela não ia poder resolver aquilo com a
brevidade toda que o Jaí tinha lhe pedido, porque ali havia mais formigas que formigueiro, poesia minha,
avilo, que eu tou a pôr no caso, mas que é bem verdade, ali eram várias makas: como tinha morrido o
morto, quem tinha feito a primeira tópsia, quem tinha raptado o corpo e então por fim, o actual: qual das
duas teria direito ao dinheiro e ao estatuto de primeira viúva do estado angolano.

Até o PCG tava com vontade rir, meu, nunca se viu um morto com tantas implicações, pessoais e
políticas, pra não falar nas convivências todas que aquilo tava a provocar, e a JuízaMeritíssima inda
avisou mais

eu nem sei se isto constitui um caso propriamente dito

o que só confundiu as pessoas, porque confuso já aquilo tava e alguém tinha que resolver a pura
contenda, não dava pro morto ficar assim a circular tantos dias mais

e o corpo do senhor Fodido, ah perdão!, do senhor AdolfoDido, tem mesmo que continuar
detido
falou na voz bonita que ela tinha, se fosse pra te baldar aqui, muadiê, eu ia já dizer que o anão Burki
naFaçam tava a babar no queixo dele de olhar as tranças bonitas nos carreiros da cabeça da senhora
JuízaMeritíssima... Mas não vou baldar, num gosto disso, meus casos são só em cima das verdades
verdadeiras, e o anão então ficou só a olhar assim, vítima do coração dele que batia nos compassos
todos errados, e o Jaí lhe captou muito bem.

Ti Burkina, vamo então?

teve que lhe dizer o puto PCG senão o muadiê parecia tinha pausado a dormir.

Logo-logo o Burkina acordou, tava outra vez entusiasmado porque o subintendente lhe nomeou
responsável das deslocações do morto e da JuízaMeritíssima enquanto durasse o julgamento, se
houvesse julgamento, porque na realidade não havia bem um crime, havia mais mistério e morte, mas a
lei tinha a obrigação de clarificar as coisas, ou não é assim? Então lá foi o Burkina, a ardósia do
defunto a bordo!, as sirenes do riso dele e do Sete também que agora podia zunir mesmo bem, furar
nos trânsitos de Luanda que tavam piores que nunca com essas chuvadas que eu te falo e pasmo de tu
não lembrares, se foram as nossas maiores chuvadas desde o tempo do antigamente — quando nevou
no Huambo, lembras?, eu num vi, num me lembro, me contaram só.

Quando iam devolver o corpo na esquadra, ordens do sub Gadinho, nessa pressa das sirenes o
Burkina viu que o PCG se tava a esconder quase em baixo do banco quando uma mulher ia atravessar
a rua e fez um monte de sinais pro candongueiro policial, mas com os vidros fechados e tudo — cheiro
só do mel delicioso lá dentro — ninguém entendeu nada e deram a mulher de maluca, mas o Burkina
ficou lá nos pensamentos dele a matutar na cara da mulher e não esqueceu o assunto. Lá na esquadra
já tinham arranjado o puro quarto, ventoinha nova que tinham mandado do ministério dos antigos
combatentes

aqui é o quarto do senhor Fodido, ah, desculpem lá, do senhor AdolfoDido

disse o subintendente Gadinho, que tinha ido primeiro arranjar as melhores condições pra repouso do
morto, ali onde seria o lar dele, se morto pode ter lar longe dos grãos arenosos, até finalizarem as
investigações todas.

Ali mesmo, porque afinal ele era mesmo um morto, apesar de não ter sido inda enterrado e de lhe
estarem toda hora a mudar de sítio, ali mesmo tinha banquinhos pros familiares sentarem, e o lado de lá
da pequena janela dava pra um corredor onde as pessoas todas que quisessem, antigos combatentes,
amiguinhas do morto, populares em geral, podiam passar e olhar, espécie de pequeno mausoléu que lhe
fizeram, provisório, mas o Burkina não achava nada disso bom

coitado do mô camba AdolfoDido, foi completamente fodido


disse, quando entrou no carro, sempre a correr porque a chuva agora tinha aumentado, e já não era
mais brincadeira de pinga-molha, era mesmo banho vasto.

Mas..., comé mô avilo, o patrocínio acabou ou quê? Vou arranhar assim as palavras nos paredões
sonoros da garganta seca? Passa lá mais uma!

Aí no carro, tanto o Jaí como o Burkina espremeram a KiBebucha, queriam saber que estória era
essa do Adolfo ser antigo combatente, que vergonha!, estarem só aí a dizer isso nas notícias e tudo,
quando mesmo facilmente na idade do gajo iam ver que aquilo eram manobras impossíveis, nem tinha
idade nem passado de combatente, quanto mais antigo, foi então que a KiBebucha tirou todos os
pontos dos is: que era plano deles, na dificuldade dos dinheiros que tinham, ou melhor, que não tinham, e
que ouviram dizer num camba governamental que tavam a preparar essas coisas dos apoios pros
antigos combatentes, casas, carros, cumbús, e outros mambos, e que na altura nem sabiam nada disso
das viúvas do estado, trataram das falsas papeladas, falsas testemunhas e tudo, foram inscrever o puro
Adolfo como antigo combatente!

Mas vocês num sabem que esse pessoal se conhece?, sabem todos as caras e os nomes uns dos
outros...

mas a KiBebucha fez assim com os ombros, explicou que isso era antigamente, antes das cunhas,
mas muito antigamente mesmo, que agora com umas notas todos se lembravam é de caras diferentes,
guerras diferentes e, se fosse preciso, heróis diferentes, então eles não viam como é que num
instantinho já tava o nome do Adolfo nas notícias com direito a polícia e dona Juíza Meritíssima e tudo?

Mas vocês foram dizer que ele era combatente aonde então?

a KiBebucha olhou na janela do candongueiro, pediu pra abrirem o vidro porque mesmo com a chuva
tava calor, e ela precisava dar ar nas lágrimas

dissemos que ele combateu no Namibe

gargalhada que o Burkina desconseguiu de evitar

no Namibe?!, porra, no Namibe nunca houve guerra!

ela de novo só com os ombros, como quem lhes explica mais outra vez que o dinheiro faz a guerra até
onde ela num devia ser feita

num sabiam?

Meu — grande maka, já viste? Brincadeira dela pra ver uns cumbús do ministério assim nessa
mentira que tinham arranjado, só que agora o caso tava aí, jornais e Assembleia e tudo já, com dona
JuízaMeritíssima a querer saber as coisas e também ia querer saber do pas sado dele, e ela, KiBebucha,
só disse que num queria saber, porque ela tinha o papel, cartão dele de antigo combatente

na província do Namibe!...

o Burkina ria — e que aquele documento não era falso, falso era tudo o que declararam, o que
inventaram, como faz muita gente que declara o que quer e bem entende e depois consegue
documentos como esse e todos são forçados a dizer que é mesmo verdade.

Aqui já não existe documento falso... Existe é pessoas falsas

disse a penúltima frase dela, o Jaí ficou pensativo naquela verdade profunda que a KiBebucha tinha
dito assim na boca espontânea dela, o Sete arrancou com o carro e ela falou de novo

leva-me masé pra casa!

Além das missões do corpo, transportes oficiais com direito a defunto a bordo, missão do Burkina
era também acompanhar a JuízaMeritíssima no que ela precisasse, e isso incluía boleias na hora do
almoço pra ir e sair de casa — só que antes deixaram o entusiasmado Jaí na casa da KotaDasAbelhas.

Avilo, tás a galar as voltas que o mundo dá?, ontem mesmo o Burkina era só um kazukuteiro social
com uma frota de candongueiros, hoje anda aí de sirene, assim como ele foi e esperou na porta e depois
ela saiu, e ele explicou

Dona JuízaMeritíssima, nós é que lhe transportamos nestes dias mais oficiais, ordens do
subintendente Gadinho

ela no sorriso dela simples entrou, tudo ali dentro era diferente porque o muadiê achou que
JuízaMeritíssima não podia ouvir cu duro, e achou bem, meu, porra, pôr a kota também nas músicas
assim da barulheira!, então tinha ido a correr, quer dizer, dentro do carro, comprar cd de música
clássica, a JuízaMeritíssima mesmo tava contente de entrar naquele candongueiro limpo com ar
concionado, como se diz, e música clássica e cheiro a mel lá dentro

que cheiro é este? Cheira tão bem...

o cabrão do Burkina quis baldar a kota

é um produto que todos meus candongueiros têm...

mas a JuízaMeritíssima lembrou-se

ah, já percebi, foi o morto que andou aqui, não é?


e todos calados foram assim no caminho, só interromperam o silêncio quando perguntaram na bonita
JuízaMeritíssima o lugar onde ficava a casa dela.

Meu, o Burkina não esquece então à toa as coisas, viste, né?, não demorou nada e o gajo lembrou-se
da cara da JuízaMeritíssima, ficou aí a rir não só a beleza dela, as tranças certinhas que ela usa, mas
também esses tempos dele ir lá se meter com as recém-divorciadas que iam quinta-feira no tribunal
fazer queixinhas, e choravam, e era aí mesmo que ele gostava de lhes encontrar, razões que ele pode te
contar melhor, mas uma delas, eu sei, ele captava que as mulheres assim chorosas tavam mais moles, e
iam lhe deixar entrar bem no xaxo, lanche no fundo da Ilha e — num sei como te dizer — não era só
isso que ele achava das quintas-feiras, ele sempre dizia

as damas quando choram por cima, porra, nem imaginas comé que tá por baixo

malandrices dele que ele falava assim nos cambas, comprovação dele, deve ser.

Mas isso de ele num esquecer nada, que eu te falo aqui, é porque durante o almoço ele voltou a
apertar o PCG, do porquê que ele tava assim escondido no carro quando aquela senhora passou, e o
puto só a tentar disfarçar no mais-velho, e o Burkina a ver mesmo que ali havia gato, ou se calhar havia
tigre mesmo

num será que aquela senhora é a tua mãe?

meu, parece que o Burkina é que tinha virado felino, todo faro dele ali na mesa da refeição e o puto a
não falar. Mas falou.

Mãe dele mesmo!, ó duvidas?, esses putos nem sempre são miúdos de rua, experiências nas palavras
do Jaí, que também já colaborou nas ó-éne-gês, e que fala muito de miúdos na rua, coisa bem diferente,
que virou salo deles aqui na city, estarem mesmo a pedir, fim do dia fazem as contas e te põem

hoje facturei, avilo!

Quer dizer, substituição toda das escolas, nem mais educação dos prófes, não, tudo na rua, e às vezes
sair mesmo só de casa, como esse puto PCG, tem casa lá no bairro dele, mas preferia estar ali, na rua,
nessa casota dos papelões todos encolherem na chuva — o castelo. Mesmo ponho admiração no
Burkina não ter lhe varrido logo ali umas ngaias, porque coisa que o Burkina não gosta, e disse logo e
avisou no miúdo, é de mentiras, porque as mentiras crescem mais que os cabelos, lhe disse

e depois morres asfixiado nos cabelos todos da mentira

mas o miúdo quando ouviu esses metaforismos todos capilares desatou masé a rir, o Sete também, e
depois o Burkina, que fez bem, do ponto de vista das psicologias pedagógicas, em vez de embirrar ou
bater no puto, lhe disse que depois do almoço iam lá conhecer a mãe dele.
Calma só, num esqueci nada, léte mi spik: na casa da KotaDasAbelhas, também tavam a pitar, funji
das delícias maravilhosas que a kota fazia com água de mel, num te disse?, ali tudo funcionava a mel, e
mesmo na hora do papo, já com mais confiança e a kota toda sorridente, o Jaí quis saber daquelas
propriedades todas, não tanto entrar nos detalhes do negócio, números e fontes, ou clientes e
quantidades, mas mais saber daquelas descobertas todas, aquelas divisõezinhas que a kota tinha nos
lavatórios da cozinha, a domesticalização das tantas abelhas, tudo isso, pergunta atrás de pergunta, sem
nunca falar no Cão, que não era nem sequer um assunto. A KotaDasAbelhas é uma porreira, já te falei,
avilo, num tem makas nas respostas, sempre a servir mais, prato e o copo onde deixava tombar esse
mel alcoólico que só ela sabia produzir — ela, a rainha das abelhas dela...

Meu, aquilo são diversidades, nunca soube que o mel dava pra tanta coisa. A kota mesmo explicou,
sem entrar nas origens dos mistérios, que isso tava nas infâncias deles, quando ela destituiu a rainha-
abelha com lata de sheltox, e todos posteriores acontecimentos, as científicas descobertas

meio por acaso

como ela disse, nas misturas que lhe ocorreram, e ela fez: agora tinha mel de pôr na cara contra todas
as velhices do tempo enrugado, cara que ela usava assim suave-suave tipo lã, e que ela mesmo no gesto
da mão fez questão de pegar na mão do albino e pôr lá na bochecha-mel dela, buracos que não tinha,
rugas que não haviam. Mesmo esse produto das bochechas era de banho também

uma vez por semana, se quiser dou-lhe um bocado

e ainda, sem ser o mel alcoólico, mel que se bebia pra limpar estômago e intestinos, tudo na origem de
misturas com ervas tradicionais que a amiga Batalha lhe dava, e ela ia misturando

porque o mel dá pra misturar com tudo, sabe?

mel no funji, peixe grelhado com mel, mandioca cozida em banho de mel, chá de mel, bolo de mel, isto
nos campos da gastronomia dela, porque da bebida nem precisava falar, bastava ver os carros aí
parados todos dias, mas que era um mel que ela desaconselhava, pois aquele sim, dava cabo do fígado
quando se tomava muito demasiadamente, como dizia o kota Odorico. E o Jaí só ouvia, boa memória
dele pra mais tarde recordar, algumas receitas simples até que ela deu, e depois passaram então à
explicação do funcionamento da varanda, tudo muito organizado

não dá trabalho nenhum

explicou

porque elas fazem tudo, é impressionante


riu depois, um negócio do caraças!, pensou masé o albino, desde que se saiba, como ela tinha sabido,
como e quando matar a rainha-abelha pra ser a sucessora — tipo aquela novela, lembras?

Almoço deles, avilo, na sobremesa que não era mais de mel, outro bolo que ela tinha feito e que
comiam na companhia do café quente, assim como ficaram os dois de chávena na mão e olhares nos
olhos, um com o outro e o Cão a dormir, só assim, esse prazer de escutar o barulho da chuva cair no
chão — a lhe mudar os ares e a trazer outros cheiros deliciosos na terra do depois de chover.

Também depois do almoço, sem mais nenhumas abreviaturas se puseram no carro e foram buscar a
senhora JuízaMeritíssima na casa dela, o Burkina mesmo filipou e pegou na mão do Sete quando ele ia
buzinar aí em frente da casa da juíza pra ela não demorar

tás a gozar ou quê?, num sabes que num se buzina na JuízaMeritíssima?

regra que o Sete ia aprender dali pra sempre, e nunca mesmo, nem que lhe batessem, ia mais buzinar
na senhora.

Saíram, se voltaram a cumprimentar e o Sete reparou que todo caminho o anão Burkina ia só com as
vistas na mira do retrovisor, olhos dele a comboiar os trilhos das tranças da madama, senhora bonita
mesmo, que dava vontade de olhar mais e mais, e todos ali no carro com inveja do PCG que era o único
que dava beijinhos nela. A JuízaMeritíssima parecia era uma pessoa simples ou simplesmente educada,
pois pediu ao Burkina pra desligar a sirene e tirar esse quadro que ele tinha posto no vidro,
JuízaMeritíssima à bordo, também pediu pra abrirem o vidro porque ela queria cheirar a tarde! O
PCG deu já o toque no Sete e depois de deixarem a JuízaMeritíssima queriam estigar a kota por causa
dessa dica de cheirar a tarde, ahahah!, o Burkina tava a filipar com os dois, o PCG dizia assim pro Sete

abre só um bocado a janela

o Sete, já de propósito perguntava

pra quê?

e, na gargalhada, os dois respondiam ao mesmo tempo

pra poder cheirar a tarde, ahahahah!!!

mas o anão, que era dono do carro e mais velho ali, mandou os dois calarem e o PCG que dissesse
onde é que era exactamente a casa da mãe dele, que iam pra lá agorinha mesmo, antes da segunda
sessão do não julgamento, e que deixasse masé de faltar respeito nos maisvelhos, principalmente numa
senhora JuízaMeritíssima!

A casa do puto ficava ali pràs bandas do aeroporto, mesmo juntinho só que do outro lado, pra azar
dele, explicou, ali mesmo onde os aviões levantavam voo e largavam fumos e barulhos logo pela manhã,
especialmente quando os mambos da guerra tavam quentes e havia mais voos pras províncias — páme
e outros mais.

O Burkina quis mesmo entrar, a senhora tava desconfiada de ver assim um anão todo bem vestido
entrar na casa dela, inda por cima com candongueiro policial parado na porta, começou logo a perguntar

qual é a maka?

o anão explicou que não era polícia e que só tinha vindo ali conversar com a dona por causa do miúdo

qual miúdo?

quando ela viu o PCG sair do carro, esse modo dele cambaleado de pisar o mundo, lhe olhou só assim
de lado, mãe furiosa, e lhe aplicou duas ngaias no nguimbo

você fica tantos dia sem aparecer aqui?, é ansim?

o anão deixou aquilo passar e se sentaram. Explicou tudo: que queria lhe falar do acidente acontecido,
depois mandou o PCG sair pra lhe falar das intenções dele, que tinha dinheiro e que gostava que o
miúdo passasse uns tempos na casa dele, a se ambientar, e que depois, no início do ano lectivo, ia falar
com uma professora conhecida dele a ver se arranjava vaga pro miúdo ingressar no universo académico

o quê que a senhora acha?

Ficaram ali, tás a ver, conversa puxa conversa, o Burkina conheceu outros irmãos do PCG, e não
dava inda pra falarem desses assuntos do porquê de sair de casa, mas a mãe adiantou já que aquilo era
mesmo só mania do miúdo querer facturare, porque ali tavam bem tirando só mesmo o facto de terem
sempre que acordar cedo, assim que ouviam barulhos no aeroporto todos levantavam e saíam de casa

mas, porquê então, dona?

a senhora riu, deu a volta na cadeira dela, se aproximou da porta

o senhor num sabe que agora estão caire aviões só assim à toa? Todos dia de manhã tamo
acordá cedo... Só voltamo mais na cama quando já num tem avião na pista.

Aguentas, meu?, todos dias mesmo de manhã, o medo do avião vir te acordar na tua cama
directamente pro outro lado do mundo? Mesmo o anão lhe explicou que esses acidentes com aviões não
eram ali, eram do outro lado onde eles vão aterrar — e a senhora no riso torto da boca dela e do cigarro
no canto, pôs

mas se ali que vão terrare estão caire, magina inda aqui onde estão subire... Deixa só, melhor
é mesmo ansim, fora de casa é más seguro...
se despediram, a senhora parece tava contente, falou dos chichilares da vida, que não era só uma
criança, havia mais outras pra cuidar, e o BurkinaFaçam entendeu que aquilo era já assunto da gasosa
— e largou a bufunfa.

Dali foram mais no tribunal, que havia continuação da sessão e antes, com as sirenes e o defunto a
bordo foram buscar o corpo na esquadra e levar lá, no tribunal que te falei. A JuízaMeritíssima não
deixou entrar nenhum jornalista, só mesmo essas pessoas envolvidas no caso, o morto com cheiro de
mel, e começou ela a explicar que a justiça também podia ser compreensiva e que o melhor era todos
decidirem falar só a verdade, quanto mais rápido descobrissem as coisas melhor, podiam sair todos dali
e o morto, coitado, finalmente ia poder ser enterrado.

O mais engraçado sabes é o quê, avilo?, tava a explicar a advogada tipa, que ali não havia caso
nenhum, nem aquilo podia ser chamado de julgamento, porque não havia queixa nenhuma e, a bem dizer
das coisas, o único ali a ser julgado era o morto, que ainda por cima nem se podia sentar no banco dos
réus, porque tava sempre é deitado, e que aquilo não passava duma grande manobra política e de
aproveitamento da situação em contexto de maka chuvosa, com outros problemas por se resolver, aquilo
tava a ser usado pra desviar as atenções, isto é, meu, e a tipa tinha razão nisso, que queria saber o que
tavam todos ali a fazer, principalmente o morto.

A JuízaMeritíssima num se deixou

se continua nesses modos vai ter que abandonar o tribunal, até porque a senhora está aqui
como simples membro da assistência

explicou na voz e na vez dela que aquilo não era bem um caso nem se tratava, como andavam a dizer
nas bocas dos jornalistas, dum julgamento

trata-se de um pedido especial dos órgãos competentes

pra que o processo, dada sua delicadeza, fosse tratado ali e por ela, considerada pelo governo como
personalidade isenta, e que as chuvas não eram pra ali chamadas, nem outros assuntos que não
especificamente saber como tinha morrido o morto e outras coisas já supra citadas

e tenho dito.

Ouvidas as pessoas, muadiê, cada uma puxava o carvão mais pro seu carapau, então a DonaDivina
explicou que pra todos efeitos ela era a única esposa factual do morto, com papel ali que ela tinha
trazido, anos de convivência comprovados na comissão de bairro e outras testemunhas que ela podia
apresentar, aproveitou já pra dizer que ela tava mais necessitada do dinheiro que a outra pois, através da
instabilidade cambial, o negócio dela das lanchonetes tinha falido completamente, e que a outra,
KiBebucha, tinha como se virar
ela vira-se muito bem, se a dona JuízaMeritíssima me entende..., os amiguinhos que param na
casa dela...

e a JuízaMeritíssima

aqui não são chamados assuntos pessoais

mas fez anotações e quis ouvir a outra.

A KiBebucha, avilo, só estilo dela, carnes aqui e ali bem postas nas contracurvas do corpo a
bambolear mistura de serpente com gato, vestidos dela de sempreverão e brincos a-dar-a-dar,
espalhafatosa nas simplicidades do falar dela, explicou então que

nada disso!, tou a par das notícias todas e isso de casamento num outro tempo não vale de
nada pro caso das viúvas do estado, e eu fui a última a estar com o Adolfo nisso que chamam
união de fato

a JuízaMeritíssima corrigiu

união de facto!

sim, isso, e que de facto mesmo e mais ultimamente, pouca coisa tinha acontecido mas que, em
termos da união corporalmente dita, ela tinha sido a mais recente, e a bem dizer

se a dona JuízaMeritíssima diz qué pra dizermos a verdade, fui eu que acompanhei o Adolfo
no tempo da guerrilha

aí várias pessoas queriam rir mas travaram a gargalhada e a cócega, mesmo o subintendente Gadinho
olhou o morto, olhou a KiBebucha, e baixou a cabeça, que aquilo assim era de mais, dizer que eles dois
também tinham marchado no maquí, contra os tugas, fome de beber água na mata e caçar com aká
quando aparecia animal.

A dona JuízaMeritíssima quis também ouvir os cambas do Adolfo, perguntou duas vezes no Burkina
se o nome dele era mesmo BurkinaFaçam, se lembrasse que estava sob os juramentos da lei

sim, é esse nome mesmo que me deram com ele

a JuízaMeritíssima aceitou e o anão, em vez de pôr ali as informações recentes que ele sabia e que
ele também tinha participado, voltas dele com o albino, conversas ouvidas e esses eteceteras, tava de
lágrima no olho e quis pôr estórias dele do antigamente mesmo, infâncias da cueca na rua e não
crescimentos dele, as intimidades acontecidas no espaço que ia da pessoa dele até na pessoa do camba
dele, o morto, AdolfoDido; e a JuízaMeritíssima, o coração mole dela a ir nas lágrimas do anão, lhe
deixava falar, parecia filme, tavam todos ali a ouvir outras recordações, e isso eu entendo, muadiê, te
mandam falar assim num teu amigo que tá morto e o corpo dele ali ao pé de ti sem descanso na terra
vermelha e a cheirar a mel, quer dizer, o mortoabelha, e aí tu vais mais fazer quiê, abrir só a torneira das
emoções todas, jorro das lágrimas e das palavras, vais mesmo mangueirar com força quem estiver na
tua frente, seja subintendente ou JuízaMeritíssima, tanto e algum tempo que a advogada tipa começou
outra vez a bufar

ai, eu não acredito nisto!, eu não acredito nisto!

Com o Jaí foi mais rápido, nas emoções contidas dele, modo de falar dos professorados todos dele, aí
a JuízaMeritíssima aproveitou pra entender algumas coisas do presente, porque vistas bem as coisas,
aquela sessão tava mais radicada nos passados, que é também o modo e a maneira das pessoas
viverem a vida, muadiê, num sei se já reparaste, mas isso do presente é uma só armadilha, coisa de
poucos valores reais, pois o que se faz é sempre ir perguntando no futuro o que ele nos vai dar, voltar no
presente, fazer as contas rápidas e espreitar no passado, outras vezes parecidas, se foi assim mesmo
como o futuro está prometer, ou não é, avilo?, pra mim é tudo a mesma rede: pontas dela são os dias,
bóias dela são os passados, atirar rede na água são os futuros e o peixe, o peixe? — o peixe vindouro
somos nós mesmo, apanhados nas correntes marítimas do presente. Falei bonito, muadiê?

Epá, tou cansado já dessa parte do tribunal, coisas oficiais que não dão paixão de contar — num lhes
gosto. Vamos mais noutros assuntos puramente interessantes, o depois dessa sessão que pouco mais há
pra te contar, mais uma sessão inconclusiva, como a tópsia, lembras?, e dali todos muito apressados
foram inda levar o morto mais na esquadra, e lá estava mesmo muita gente, queriam ver o corpo do
afamado AdolfoDido, nome dele nos jornais da capital e as oposições a apertarem com esse caso,
alguém já tinha fontes de investigação e começou a dizer que aquilo era tudo falsidade, nenhum
combatente, ninguém lhe conhecia e aonde é que já se tinha visto antigo combatente das matas do
Namibe?!

Qual mata é essa, nos desertos lindos do Namibe?, o outro mais-velho que fala nos livros dele, esse
com nome de ipslon — Ruy, todos kuvales e leites de cabra das anotações dele, meu, muadiê tipo dos
filmes, barbas dele!, fica a passear aí nos suis de Angola, fala com este mais fala com aquele, cambas
dele então só mais-velhos das puras aldeias errantes, monta só fogueira dele e fica aí, parado-sentado, a
ver não só o sol se pôr mas as pessoas também, fala com elas, não faz muita pergunta — mais ouve,
maneira que uma pessoa deve afinal escutar quando quer realmente ouvir, e elas falam — coisas
bonitas que elas falam e têm no coração, esse tal sekulu que eu te falo, Ruy, que não sei se tem aquela
beleza toda nesses desertos kuvalares de leite e cabras nos hábitos da terra, ou se é mesmo já nos olhos
dele que a beleza aplacou e ele depois entorna assim, falésias, textos dele que vão até lá fora, nos
estrangeiros, e lhe convidam depois pra ele ir falar lá, ao vivo e na voz, os sonhos que ele sentou pra
poder escutar... Meu, esse kota, no antigamente das minhas leituras, é que me mostrou — ir conhecer
as pessoas, todos hábitos delas, tradições e casamentices, não basta só sentar e perguntar, você tem que
entrar dentro das pessoas, tás a galar, e isso demora quanto tempo?, quanto?, não, nada disso, num se
põe no número dos dias e das horas, tens só que saber chegar e sentar lá, mas é dentro das pessoas, me
entendes? Desculpa então essa conversa toda, mas isso é pra te ilustrar — Namibe não é das guerras e
dos maquís, é dos desertos que esse kota fala, não só prosas dele mas poesias também, e olha que eu
nunca fui no Namibe, os desertos, os bois e os leites; foi esse kota que me apresentou esse sul do país
na decisão da idade dele, e nunca mais sonhei da mesma maneira, sabes o que é isso, muadiê?, isso é
saber asfaltar sonho dele no sonho dos outros — ser um homem duro na poesia das sensibilidades sem
medo, isso sim, barbas dele...

Escuta então: lá na esquadra da tanta confusão o anão BurkinaFaçam nem quis mais ficar ali, ver
aquele espectáculo das exibições dum corpo, e as pressas de todos que eu te falei, eram estas: o Jaí já
queria ir na casa da KotaDasAbelhas

mas, num é só na hora do jantar?

quis saber o Burkina

âca!, e vou chegar lá só assim, tipo que fui mesmo só pra jantar, nem os aperitivos da conversa
nem entre tantos nenhuns?!

o albino, nas pressas do mel dos olhos deles, dele e da kota, e a pensar inda por cima que o amor é
transparente e que não se vê, quando o anão se virou pra ele e lhe disse assim abertamente

carne de porco não é transparente, sabias, né?

o albino sem entender

sabia, e depois?

o anão lhe devolveu

pois as paixões são como a carne de porco...!

o albino calou já, no caminho da viatura, onde foram primeiro deixar o PCG lá no castelo dele pra
visitar os cambas, e dali foram pra tal missão da reunião, primeira reunião do SNP, sigla puramente
inventada pelo Burkina, Sindicato Nacional de Prostitutas, onde tirou da carteira um cartão feito a
computador que dizia assim já posto na camisa do Jaí: Al Bino Javenho, SNP, Comissão Instaladora.

Meu, reunião das quarras, que tinham trazido mais amigas, aquilo já era uma anedota humana,
primeiro falou o Burkina, que apresentou o senhor Al Bino

representante do governo junto da massa prostituinte


como ele falou, e depois falou a Madalena, a mais recatada, a agradecer os esforços pessoais do
senhor Burkina mas também do senhor Albino, e o anão corrigiu

é Al Bino, como os árabes!

ela sorriu e falou

Al Bino!, sim, mas o que importa num são os nomes, são os corações das pessoas

e que era bom pra elas ter pessoas interessadas em melhorar as condições de vida, e depois sentou no
chão, como ela gostava, a fazer festinhas nos pés do Burkina, gesto só de carinho, parecia aquela das
águas perfumadas nos pés do outro... Depois então, muadiê, aquilo era a mais pura reunião dum gajo
assistir mesmo!, falou a outra, mais assanhada, a tal Eva, que aquilo era sim uma grande ideia, e que
logo-logo depois da reunião havia que comemorar, e acendeu as vistas do BurkinaFaçam, embora ele
soubesse que o Jaí não era muito dessas coisas, e explicou, ainda essa Eva, que até tinha trazido amigas
que não eram da profissão mas que depois daquela reunião se calhar iam ver aquilo como um ramo
vantajoso, conforme ia explicar o senhor Albino, e o anão corrigiu

é Al Bino, como os árabes!

era só de ver, muadiê, a cara do tal senhor Al Bino que ali no cantinho dele nem acreditava no que
tinha acabado de ver e ouvir.

Eu num te dizia que espanto é só aquilo que ainda nunca vivemos na nossa pele?, tá aí uma das
provas, o Jaí, gajo só bem porreiro, agora ali empossado representante do governo e membro pleno do
Sindicato Nacional das Prostitutas, na vez dele dizer qualquer coisa

senhor Al Bino, fashovor, pode falar

terminou a Eva.

Meu — ahahah!, cara do albino num dá pra te pôr aqui amarrotada nas palavras, só o vivido lá ou
fotografia então que ninguém mesmo tirou: atrapalhação toda, o albino tava a ficar vermelho, mas
vermelho como então se bléque não fica corado e no afinal das contas, albino é mesmo bléque?

Só assim com os olhos, o camba dele Burkina lhe dava forças pra ele falar, não fosse mesmo a razão
do anão lhe ter salvado da catana lá nas ruas do Roque, o albino teria saído dali a correr a se beliscar
nervosamente na rua só pra poder concluir que tava a sonhar, mas a mão dele nervosa assim no bolso a
mexer secretamente contra a perna lhe avisou mesmo que aquilo não era sonho, quando muito era
pesadelo, mas acontecia nos campos reais da vida, e era preciso mesmo dizer qualquer coisa.

Bem, professor também que ele era, usou a imaginação pra dizer o que fosse, esse quase nada que
falou, e remeteu tudo nas palavras já ditas do anão BurkinaFaçam, que aquilo inda era só o princípio do
começo, mas que iam tentar, nos meandros governamentais, fazer os possíveis e alguns impossíveis
também pra melhorar as condições de trabalho, dignificar a profissão e outros eteceteras, depois
agradeceu a presença de todos, ou melhor, de todas, em nome do governo da República Popular de
Angola, o Burkina bateu palmas com força, e elas também, porque o gajo tinha se enganado e dito
popular, como nos antigamentes, e o Burkina gostava dessas palavras, e se levantou, não que isso faça
muita diferença pra um anão, e gritou

viva a paz!, viva o sindicato das putas!

e todos, ou melhor, todas lhe acompanharam nessas euforias do momento, e depois desses dois viva
era preciso vir um abaixo, mas não fazia mais sentido dizer abaixo o imperialismo!, até porque
aquelas jovenzinhas não sabiam o que era isso, inda iam pensar que ele tava a mandar abaixo um filme
pornográfico, então disse só assim muito a propósito

abaixo as chuvas!

todos riram e concordaram que foi uma boa dica que ele lançou ali, naquela hora dos sorrisos da
alegria erótica que só o Jaí não via já tavam instalados.

Avilo, essa noite foi uma das noites mais bonitas então que eu posso te contar aqui, conforme me
contaram mesmo, sem pôr nenhum aumento, porque depois que o Sete foi levar o Jaí na casa da
KotaDasAbelhas, o Burkina ficou lá no universo todo das damas agora sindicalizadas, diz que aquilo foi
festa das mais completas pra não dizer complexas pornografias humanas, libertinagem dos corpos
transpirados

salada de kinjangos e xuxutas

como dizia a Eva quando tava assim eufórica nos gritos das fornicações dela, profissional, por sinal e
por prática, e o Burkina quase não acordava no dia seguinte mesmo o Sete a lhe estremecer assim tipo
terramoto

chefe, acorda então, a dona JuízaMeritíssima está esperar...

Meu, verdade mesmo pra falar, não é mais na boca das palavras — é nos corpos, ou não é assim?
Você quando nasce sabe falar? Não. Mas sabe gritar, espernear, quer dizer, usa as cordas vocais do
grito nisso que é a tua urgência — mamar na tua mãe, por isso que eu digo, o nené encosta ali, mama e
adormece nas primeiras felicidades dele, calor da xuxa na boca, nenhum frio mais — sonha só, primeiro
sonho estreado neste nosso mundo das aventuras verídicas que eu te ponho. Muadiê: o corpo é que
sabe e nenhumas outras linguagens lhe ganham — sentir é sentir, comer é comer, e foder é foder, ou tou
a falar errado?
Ouve, uí: vamos intervalar nas vozes, tou a ficar desidratado. Grande invenção de Deus mesmo — a
cerveja...
Nos brilhos da madrugada

o tempo não sabe nada/o tempo não tem razão

o tempo nunca existiu/o tempo é nossa invenção [...]

meu amor/o tempo somos nós

Jorge Palma, cantando Eternamente Tu

Muadiê, já dizia o kota Guimarães, rosa no apelido e olhar dele: cada criatura é um rascunho a ser
retocado sem cessar...

Num sei explicar; pra mim, minha uma outra alcunha podia ser qualquer palavra parecida com
madrugada — sou muito isso, o avesso duma noite a provocar as beiras dum dia seguinte, radioso.
Brilhos, encantamentos, num sei desenhar, uns pensam que é da tibaria, mas aqui de caxexe mais,
ponho: num é nada disso, as coisas do sonho e das palavras soltas da boca não começam nas ngalas e
chegam aqui nas conversas depois, mesmo as conversas dum gajo divagar sozinho, num é nada disso!

Gosto de estar preso na infância e sei muito mal desprender-me de lá. Mais das vezes acaricio
lembranças, nuvens esbranquiçadas nas chuvadas da minha memória — avô, avó, e os bichos da rua:
me lembro muito das libélulas, que nós chamávamos de helibélulas, e nos meus sonhos, um dia, consegui
vislumbrar um gambozino. Era de tarde, muadiê, e fui já dar encontro nos cambas da rua pra contar
como era afinal um gambozino. E como é então?, me perguntaram, e eu só quis chorar: porra...,
esqueci!

Às vezes me volta esse pensamento: ando perdido no mundo, na imensidão duma profunda
madrugada: minhas estórias onde procuro morrer fosse um louvadeus nos actos carnais do amor:
atrevimento de morte, estória e tristeza no acabar de contar. Te pus, te ponho: os olhos brilham mais é
na escuridão; pirilampo espera noite pra ser alguém; peixe fica seco é dentro d'água, fora dela é que ele
transpira de morte; etecetera, muadiê, pra te dizer: de noite é que perco vergonha de ser eu mesmo e
abro as torneiras do imaginado: meu coração de ser assim, contador. Pouca inventice, transformo só o
material pra lhe dar forma, utilidade. O artista molha as mãos pra trabalhar o destino do barro? Eu
molho o coração no álcool pra fazer castelo das areias em cima das estórias..., e o mô espelho são as
madrugadas.

Uma noite, quantas madrugadas tem? Andas a contar? Eu não. Lhes apanho só, conforme lhes vejo e
sinto. Atrevo: uma só noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos.
Confesso-me aqui, nos lábios da sinceridade: gosto muito disso — acreditar no impossível das palavras,
lhes maltratar no português delas, ser livre na boca das estórias e me deixar tar aqui, sentado dentro de
mim, abismático. E sonhar!, sonhar até chegar nesse quintal onde dentro de mim nascem barulhos e não
só: nascem brilhos. Vejo búzios que riem à toa e aprendo: posso descansar as vozes como se fossem
conchas de pousar na areia depois de lhes apanhar numa noite de lua brilhante. Depois do barulho das
vozes os búzios se calam e eu, no respeito, me calo também.

Sabes, muadiê, aí sobram só calmarias da noite. É aí que logo-logo começam a rebentar devagarinho
os brilhos, os brilhos da madrugada. Falei ou disse?

Dado o adiantamento da conversa, vou-te pôr aqui uns passados. Não são mais dicas da retórica
criativa ou derrapagens discursistas, como dizia o kota Odorico, mas as palhas que faltam no teu
luando — migalha com migalha num faz micate?

A palavra madrugada me acende o coração, fogo mesmo, ondalu dizem, e ela já vem aí. Se a
senhora tua esposa num te espera no cubíco, se não tens candengues pra deitar nem sogra da língua de
cobra pra cuidar, e como num vives em jassanã nem aqui tem nenhum comboio das onze horas, vou-te
pôr uns passados, que é um dos outros lados das pessoas, pele onde todos dias sai o ditado da vida e
cabulamos nosso destino incerto.

Não pode é faltar o puro combustível, já te expliquei... Manda lá vir mais umas então, que nunca fez
mal a ninguém beber só mais uma — de cada vez!

Vê o caso do BurkinaFaçam, anão desde a nascença dele até na nossa descoberta que ele num ia
crescer mais, só assim, foi se complexando no avançar dos tempos — calado, raivoso, mesmo connosco
sem mais muitas brincadeiras de estigas que ele num aceitava, só resmunguices, nem mais kibionas nas
festas de contribuição da nossa rua, meia-noite, hora dos beijos bem molhados com nome de peixe,
linguados, e de se fazer malcriado na casa do kota Diarabí, que supostamente não via nada, ou quase
nada, como mais tarde lhe descobrimos, em 92, a esquivar bala. Aguentas?

O Burkina deixou a escola na conta da estiga, mas tu brincas ou quê?, estiga pode acabar com uma
pessoa, tinha um gajo lá no bairro, nome dele esqueci nos temporais da minha memória, será cerveja
também?, num sei, o gajo estigava male então, te punha a chorar babas e ranhos de você ir na tua casa
maldisposto e num querer falar mais com ele uma semana. Mas porquê então?, hoje eu me pergunto,
porquê que as pessoas num sabem aceitar só a craqueza dos outros, jeito dele mesmo era só aquele, das
puras estigas... Póster dele, avilo?, ficar só aí no canto a ouvir-ouvir, e quando aparecia assim um gajo já
armado em esperto, mesmo da nossa escola ou doutro bairro, aí então inda pior, o muadiê vinha só nas
calmas dele e te punha

é só isso que tens pra me estigar?

e os gajos, que num lhe conheciam começavam já a rir

olhinda esse gajo, tás armado em bom ó quê?

ele ria só, perguntava de novo

é memo só isso que tens pra estigar...? então vou t'acabar!

Meu!, essa frase dele dizer sexta-feira na hora de irmos embora que ninguém ia, só de espanto, ficar
ali d'ouvidos bem abertos a ver se captavas a rapidez dele nas estigas que te punha. Quê?, exemplos?
Num sei se lembro, tou a lhe falar agora, esse gajo das estigas, por causa mesmo do Burkina, que só
assim à toa gostava de se meter com o outro, mesmo nós já sabíamos que não valia a pena, ficávamos
só a rir quando alguém de fora a lhe ver assim só no canto da árvore pensava ele era o maior banqueiro,
afinale!, avilo, ele era o nosso puro monacaxito das estigas, te furava pior que aká, ias em casa pedir
perdão na tua mãe só de teres te encontrado com o gajo!

Estigas dele?, ofensas!, meu, puramente familiares que eram as estigas mais agressivas dele, se eu
tou ta dizer podes acreditar: vi muita gente chorar na boca daquele muadiê, estigas dele mesmo algumas
curtas já te acabavam

foste roubar pecado na igreja com carro de mão!

ou então metia animais

no tô cubíco compraram um rafeiro em segunda mão que já num ladra!

e mesmo podiam lhe pôr estigas fortes o muadiê ficava parado, riso dele irritante na tua cara, ias já
ficar nervoso, e ele só a te esperar

estiga mais, estiga mais então...

e tu continuavas assim a gastar mesmo as tuas estigas e ele ia mandar todos fazerem pouco barulho e
te dizer assim da cara, pra dar mais raiva

no tô cubíco tem dois ratos mulumbeiros que te dão aula de jeová.


Essa estiga pôs muito avilo mais velho a chorar!, ché: dois camundongos que são mulumbeiros inda
por cima te dão aulas, e num é aula matemática-português, aula de jeová, meu? Você chora!

Eu sei, voltar mais no assunto, mas já te expliquei, te ponho aqui ilustrações do antigamente, pensas
que é só assim, avançar na estória sem os porquês e os entretantos? Calma só, assim vais me fazer te
emprestar a voz do mô avô quando falava aquela frase dele

vai devagar pra chegares depressa!

Eu te falava, o Burkina, esse tempo das estigas foi dos tempos únicos dele da escola, depois se foi,
anos desaparecidos do contacto lá do bairro, cambas dele a quererem imaginar onde ele tinha ido, e
todos a crescerem só assim, nas alturas da juventude, mesmo a se lembrarem que o Burkina era dos
que não cresciam mais assim por fora, quando muito lá nas raivas de ter calhado, ele, ser assim, o anão
do bairro. Complexos dele, complexos de toda gente, que dá pra nos afastarmos do mundo, ou não é
assim, muadiê?, se você num tem os puros cambas que te ajudam, mãos nas tuas costas de estares
assim chateado com a vida que te nasceu dum modo ou d'outro que você não gosta, se você prefere os
isolamentos da imaginação sozinha, isso é que faz um gajo se afastar dos outros — das pessoas.

Vê o Jaí, vida dele também sem ser fácil, toda hora ir de manhã na escola com banda sonora

olha o kilombo!, olha o kilombo!

ele só assim cabisbaixado, de vez em quando surrava lá o banqueiro dele, mas, porra, num podia
pelejar todos dias, e gajos grossos lá no bairro dele lhe chamavam

kilombo, toma graxa de sapato uê!

ele tinha só que aguentar, mas aguentou até nas habituações das pessoas, que depois também
deixaram já de pôr toda hora kilombo, kilombo no muadiê, porque já dizia a KotaDasAbelhas

o que é de mais, cheira mal

e não é só isso, meu, toda hora a mesma graça perde a piada então... Só não perde a piada é essa
cerveja bem gelada que vais me passar.

O Jaí se decidiu mesmo pelo professorado, fez o INE todo das matérias do éme de enfiar nos putos
dicas ngangulares pra não dizer mais, e hoje tá aí, professor Jaí, ou profe dreda como lhe chamam os
alunos, esses, que ficam na escuridão das aulas e, em vez de escreverem, mais conversam, que é uma
boa maneira de captar a atenção dos miúdos, estórias da vida que ele relaciona lá com as aulas e assim
vão estudando as matérias, redacções que ele corrige em casa, riso dele na colecção de redacções que
ele faz, porradas no português escrito e falado

atrocidades criativas
ele diz, pior que os pontapés que eu dou — como já viste, que eu num ligo nada nessas coisas do
português correcto e sabes porquê?, te ponho, muadiê: porque se o mundo tá torto como tá, deixa lá o
português ser uns coche massacrado também.

O que eu sei, te falo: sem nada de esconderijos, conversa afiada daqui pra frente, mas como foi até
agora — com base nas verdades. Tás com frio? Porquê? Eu nada, nada de nada mesmo, coisa que eu
adoro em Luanda estas temperaturas assim dum gajo tar aqui, sentado nas madrugadas brilhantes, tudo
calmarias da noite e a simplicidade essa das pessoas da nossa terra — muadiê, só te ponho, estar em
casa cuia!, e não fica a dar saudades violentas.

Eu já tive nas europas, já te falei; aquilo é de mais: cor da pele, avilo?, pode te desgraçar. Sabes o que
é um gajo andar assim despreocupado, mas aqui é na banda, agora chegar mesmo na tuga, tão te a
olhar tipo esse gato preto eu te falei, o feiticeiro? Eu mesmo, ngapa agora só porque nasci escuro e um
ngueta assim todo europeu, mais matumbo que eu, a me olhar do ponto das vistas racistas dele?

Ouve, uí, eu bazei da tuga por causa disso então, os olhos dos outros tavam a me querer ensinar outra
pessoa que não era eu, cheguei mesmo a dar bofa num dikota, ai uê, já viste, eu mesmo, crescido aqui
no mô bairro, minhas correrias, minhas kibionas inofensivas nas damas que gostavam, eu mesmo, agora,
só porque na tuga, país do outro, dar bofa no mais-velho? A tuga faz mal, avilo, coração que muda de
cor, outras manhãs, mbambi a dar do osso, você já não quer acordar — e a primeira pessoa que
encontras na rua vais querer lhe dar bofa mesmo com vontade ou raiva? Nada..., a tuga, até num vale a
pena...! Mambo que às vezes penso — epá, vais rir, eu sei, mas é o rabo das tugas... Meu, tábua
d'engomar, a xoetice toda? Rabo foi aonde então, Nzambi lhes castigou assim porquê?, nossa
observação que nós fazíamos, antigas missões na tuga e noutras europas mais, comissão disto e daquilo
que dava é pra tirarmos comissões no nosso bolso, e nós ali no bar, fim de tarde, sem as palavras — os
olhares só: uma tuga, duas tugas, muitas tugas, mas agora pra encontrar inda um rabo de acender
mesmo as vistas? Passas mal. Uí, falo isso por causa da maka das culturas, diferenças só, que eu fico
mesmo a pensar que a cultura está mesmo até nos nossos olhos de pessoas, tás a rir?, gala só então: um
gajo é daqui, fica a pôr riso na dança dos tugas e outros europeus, ancas desarranjadas e não dão
semba, tão a falar é malcriado, mambos dos brasileiros, carnaval só. Afinal? Mas depois, considera só:
eles também a nos verem dançar e vestir e pôr cu duro, num vão falar dança dos bêbados?, a dar
bungula puramente e pôr açúcar e as kabetulas todas, num vão dizer estamos a ficar parecidos com os
macacos?, xinguilamentos musicais? Olhos deles, muadiê, tou ta pôr, e os nossos olhos todos de cada
um: culturas!, num enorme plural e final das contas.

Ando a pensar estes dias: tanta coisa anda a me acontecer na minha vida, mesmo incluindo essa
minha conversa contigo aqui, que ficas só a me deitar olhares desses, tipo eu sou maluco de ficar a te
contar bué de mambos, várias direcções da conversa, às vezes num captas, né?, pensas que eu avario,
mudo sulinorte nos poentes e nascentes, trocadilhos dos personagens, é isso? Calma só, muadiê, como
eu digo: pra saber q'a maré tem quatro comportamentos, é preciso olhar o mar um dia inteiro, tás a
captar? O que eu te ponho aqui, dica ou recordação, vais precisar pra entender tudo. Portanto, desculpa
só, eu sei: meus devaneios todos, minhas outras lembranças, mas tá tudo ligado, num dá pra fugir, os
assuntos tão todos aqui, minha cabeça cansada, minha sede também. Sai mais uma birra?

Muadiê: o que eu li, eu li. Meus livros antigos, outra minha vida, antes das bebidas e das miúdas, antes
do estatuto, o que eu li foram minhas outras vidas enriquecidas nas ondas da palavra. Outras vidas?,
está tudo lá, nos livros, tou ta pôr, incendiadas imaginações que tomavam conta de mim, nunca escrevi
poesia: fui! Me apeteceram sempre alguns rascunhos, porém, queimados mas — como o kota Pablo —
também confesso que vivi.

Nomes são pra esquecer, num sou desses que andam na rádio e na televisão e nos jornais a querer
dizer que já leram cem livros ou mesmo duzentos e mais, pergunta só na gente séria, os padres: há livros
que têm já tudo, fosse o mar: você quer banhar, provar o sal, é preciso ir em todas praias? Onda é onda,
peixe é peixe, mar é mar. Agora ir no lodo, pantanosas folhas de letras suspeitas, e ir sempre no lodo, as
tantas vezes da sujidade, e vir aqui dizer que leu duzentas vezes a mesma porcaria de lodo? Isso é
palavreado pro vento apagar. Deixa só, vamos mais nas nossas ngalas.

Palavra bebe-se, meu, pura verdade. Eu, minhas viagens antigas, meus conhecimentos: uma vez,
antiga missão, outras coisas da vida — o partido, as deslocações, a pátria e os camaradas... Fomos no
Brasil, afamada terra das miúdas; nossos primos, mas não querem dizer isso, porra, afinal a carapinha
mete assim vergonha? Mesmo o puro mbumbu aí da Bahia, você pensa quê?, está só a falar

raíziz, nóssas raíziz

mas lhe pergunta inda onde é Luanda, onde fica Angola? Vai pensar tás a falar é dança

sim, sim, dança afro

porra, muadiê, aqui tem dança afro? Isso é quiê então, dança afro?! Eu filipei, isso já depois das
birras, bramas!, geladinhas, filipei mesmo

afro, a puta que vos pariu... tão só aí a falar à toa...

me disseram pra não falar assim no país do outro, que eu tava grosso. Grosso, avilo?, grossura é
desconhecer que a nossa quindumba veio do outro lado do mar, isso é que é grossura, eu lhes disse
mesmo, e é grossura das vistas, da mente, obscuridade maior. Todos dias encontros, um dia palestra,
porque literatura negra! Ai?! Literatura mais negra? E branca também? Já'gora, mulata? Como é que
vai ficar mais essa literatura mulata? E aí não tava grosso, falei puramente bem, os à-vontades todos,
arregacei môs discursos improvisados, deambulei: África do Sul, aparteides, separatismos; e virmos
mais agora na literatura também a querer fronteirizar?! Nada, avilo, recusei-me
o camarada: diga-me lá a cor da literatura desse livro que tem aí entalado no sovaco...
fashovor: é literatura mestiça?

os brasucas me despediram em palmas, que sim senhor, a literatura não era mais pra ser do terreno
do aparteide, porra, meu, porque literatura negra?, e branca ainda?!

Mas isto pra te dizer: fomos, lá mais pro fundo dos quintais — porra, muadiê, Angola é grande?,
porque

deste duas voltas no bacio berraste Angola é grande?

Brasil então é enorme, tá nos a deixar no chinelo, aquilo é mais que assustador na distância, o
pesadelo todo. Mas fomos, lá looonge, e um kota nos recebeu aí no sítio dele, que lá então sítio é a pura
fazenda, já com lavra, imensidão, boi, às vezes até pista d'aviação. Tás a rir?, pura verdade mesmo, o
kota, muito porreiro, comida tava-se bem, pura branquinha, toda cachaça, os mimos! Afinal, à noite, o
kota começa a metralhar perguntas, de hábitos e estórias, se em Angola tinha lobisomem? Oh!, só nós,
tás a ver, né?, queríamos já rir, mais o copo em cima então, toda boa disposição — mas o kota só queria
isso mesmo, lhe contássemos cada um uma estória, de preferência cada um contava estória da
província dele, ou mesmo falar da comida, porque funji, porque mandioca, porque peixe do rio, e o kota,
avilo, num te conto, papéis dele, lápis de molhar na boca e sem as vergonhas, começa a rabiscar ali os
puros poemas, oh!, nossas estórias ali logo bem reinventadas nos dons da poesia, o kota era craque
então! E ainda sem mais vergonhas nos deu ali as composições dele, nos perguntava

assim tá de acordo com vossas estórias?, vossas crenças?

Nós íamos mais dizer quê?, hoje vou te dizer: a linda poesia!, muadiê, eu num sou escrevedor de
poemas, vivo isso, sou pura poesia sonora, mas aquilo!, aquilo era poesia a sério, sabes o quê, aproveitar
a lágrima da tibaria pra não dizer que aquela lágrima afinal era do puro poema? Isso me aconteceu,
avilo. Aquela poesia tava então a me aguar, palavras do chão, como ele dizia, o kota era dado a uns
bichismos, é isso mesmo, não tem outro termo, aí entendi: combustível do lápis dele era baba da lesma.
Tás a rir?, é porque não tavas lá: poesia dos pirilampos, das moscas, até as palavras merda e foder ele
inclui lá, meu, não há porque maneirismos, isso-não-se-diz e aquilo-não-se-escreve, o que vier veio,
mesmo como um gajo se vem, assim ele se vinha: poesia dele, sangue dele: o kota tinha o nome
puramente posto, com ó no Manoel só pra chatear, um camba meu lhe alcunhou

kota, se você fores em Angola, ficas já Manel do barro!

yá, assim foi, Brasil, e as palavras dele — isso sim me impressionou, palavras que ele ouvia de nós,
deixava na boca dos tabacos e não pedia licença pra nos cuspir as nossas próprias palavras. Poesia,
muadiê?, poesia é a beleza de te cuspirem em cima e inda te porem os lábios a rir. Aguentas?
Epá, pra num dizeres que já falei muito à toa vamos mais outra vez nos nomes que tu conheces: a
Kota DasAbelhas. Do que sei, do que viram e me contaram, nunca ninguém soube do início — a
chegada do Cão. Mas algum dia ele deve ter chegado, não é, avilo?, cão, que eu saiba, num é filho de
parede com abelha, deve ter tido mãe, e num vou aqui chamar a kota de outros nomes, uma vez que ela
é simples pessoa, e não tem nada de relacionamento maternal com o dogue, mambos ali são outros —
escravidão mais?, ou terror? Aquele cubíco, sempre o mistério, e todos a pensar que não podiam entrar
lá, mesmo em candengue só o Adolfo de vez em quando ir lá pedir águas, mas em missão de espreitar

porra, num deu pra ver nada, mas a kota sempre entra lá num quarto e fecha a porta, mesmo
no outro dia entrei sem bater, ouvi voz dela na conversa com o Cão, que ia fazer comida e que
não demorava... Meu, o Cão põe palavras na boca dele? É melhor só pararmos de espreitar
então...

ahahah!, o gajo sempre com medo do Cão, e os outros no respeito do silêncio, ficavam só a pensar na
situação — mistério terrível, canino.

Mais tarde, já te pus, todos começaram a entrar lá em casa, o Jaí já almoça lá nas calmas, parece já
ouviu um rosnar ou dois, mas, tás a galar, esse assunto é muito silencioso, e num é preciso ninguém falar
nada nem a KotaDasAbelhas dizer que isso não é um assunto — aliás, assunto é aqui que eu tou ta pôr,
mas lá, casa dela, nacionais como estrangeiros irem mesmo nos buracos da rua dela com chuva e tudo
buscar o puro mel, alguém comentava isso do dogue?

Eu sei, num vais querer acreditar, mas na medida da madrugada, se as cervejas estiverem a
escorregar bem, eu te ponho a estória toda... O quê? Se tem assunto, o Cão? Tem. Aqui todos têm
assunto, tou só nas pausas da memória, porque eu gosto muito desta parte do dia, quer dizer, parte da
noite, a madrugada. De noite me revelo, muadiê, minha tia que dizia antigamente

eu queria ser poeta

depois olhava na lua, riso dela esbranquiçado nos brilhos da marginal e concluía

mas não sou!

Só que mais tarde, eu descobri, até já te falei: ser poeta num é só publicar poesias, ir na Ilha, fim do
dia, pôr do sol, escrever na ponta do lápis as damas que passam, os amores, temáticas pontiagudas do
coração, e dizer assim jornalisticamente sou poeta! Ser poeta é de várias maneiras, o outro dizia

sou aquilo que vivo, minhas escrituras são minhas pegadas na areia do mundo

nome dele esqueci, mas, vês?, num esqueci o mais importante: a frase que ele disse e me serviu
também na minha existência. Por isso quando me chamo poeta, principalmente de noite, me querem
então perguntar onde estão minhas escrituras, e eu respondo assim na voz que eles pensam é a voz da
cerveja, ou do vinho, mas que é minha voz mais verdadeira — aquela que eu lhe acredito mesmo

estou a dizer que sou poeta, simplesmente porque sou uma pessoa...

aguentas, muadiê?, diz lá se isso não é já uma frase pra mandar esses gajos irem um mês pra casa
pensarem que a poesia não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo arco-
íris: ou há ou não há — sorte e azar dos olhos no depois da chuva.

Deixa..., vou voltar mais no Burkina, no hábito dele que eu sempre te falo que são estrelas, iluminices
que ele chama pra abrilhantar a vida: esse mambo do grupo dele musical, Burkina e sus muxaxos, que
agora, na morte do camba dele AdolfoDido, estava o anão assim na varanda da casa dele, mais esses
cambas a inven tarem a kêta AdolfoDido, mô grande amigo, e dali não saíam, porque também nada
mais eles sabiam, quase nenhuns acordes, mais assobio e birras que trabalho musical, quando a tristeza
bateu.

Saudade, avilo?, saudade num é nada uma palavra tuga, todos corações do mundo podem ter saudade
e têm mesmo — quem são os médicos pra dizerem que num há uma alagoa no coração, sempre
escondida, chamada saudade, que molha mais de noite, ou quando tamos longe dos cambas, ou da dama,
ou naquelas emoções de não compreendermos nada, como olhar o sol, o mar, os arcos-íris, os
nascimentos do dia, ou mesmo essa lembrança do anão BurkinaFaçam, que lhe deu de repente, estar na
cabeça dele a voz do camba AdolfoDido, contador de estórias como só ele, e nas notas musicais do som
lhe pareceu estar a ouvir o camba chamar, até se assustou

num gosto disso

pensou, mas pediu nos cambas

toquinda esse som de novo

um som qualquer, a bruto, que tava ali o homem da viola a praticar, e ali mesmo nasceu a kêta
AdolfoDido, mô grande amigo, os cambas concordaram que o Burkina tinha futuro nos mambos
musicais, embora eu até hoje duvido, aquilo não era som dos talentos, era só som da saudade, pura
saudade que lhe bateu e as coisas pequenas mas grandes da vida, muadiê, são isso mesmo também:
pegarmos no sangue da saudade e deixarmos as mãos trabalharem: o que vier, vai vir sujo no barro da
emoção, derretível, barro bonito então — te ponho, nenhuma inventice.

Agora vou nas diferenças, que está muito na moda desrespeitar diferenças, afirmar com certezas
deste e do outro mundo que isto-assim é melhor que aquilo-assado, mas em todas filosofias do mundo,
segundo ouvi dizer nos mais entendidos, os padres, nas diferenças aparecem mais ideias, quer dizer,
linguagens marinhas do meu avô
na rebentação da onda é que a concha brilha mais

tás a captar, avilo?

Por seu lado, o Burkina se ausentou das escolaridades e se foi, mistérios do crescimento dele, que não
cresceu no lado físico por impossibilidade mesmo independente da vontade, e se fez homem por dentro,
que é onde interessa uma pessoa ser mesmo crescida, por fora já quase tanto faz, sem fazer birra nem
exagerar nas kibionas, pra que esse lado de fora te contamine cá dentro também, no coração, assim é
que eu entendo a vida, muadiê — o campo das seriedades misturado com o campo das infantilidades
várias, essa nossa maneira africana de rir na cara da guerra, de estar mesmo a cantar na hora da morte,
de dançar no suor do corpo, catinga e tudo incluído já, corpos juntos, a se esfregar, porque não é só as
palavras da boca que aproximam as pessoas — me entendes? Agora, por outro lado, o Jaí, maneira dele
mais certa de caminhar no mundo, nenhumas manobras de corruptice, ofertas várias que ele recusou ao
ponto de se afastar do éme quando viu com olhos de entender: uma pequena mancha pode ser pior que
varicela, que até se vê com as vistas, quando essa mancha em vez de ser na tua pele é na tua pessoa
mesmo, lugar público e social que você ocupa.

Mas, aí, na diferença, num é que está a palavra vida?

Os dois continuam cambas assim de se abraçar, o Burkina já desenrascou muitas vezes o Jaí na hora
dos apertos dele, maka de fomes e doenças, e nunca coisas de pedir algo em troca, sem ser isso do puro
Sindicato Nacional de Prostitutas que, tás a ver?, num dá pro Jaí recusar esses múves assim da amizade
do Burkina, porque mesmo ele, albino Jaí, sabe que o anão gosta só de ver um sorriso entornado na
boca das amigas dele, essas Madalena e Eva, embora também o albino saiba que ali depois vão sair
grandes vantagens pro Burkina, que já anda a pedir fotos nas miúdas, a dizer que o tal senhor Al Bino
Javenho mandou pedir duas fotos tipo passe e fotocópia do BI delas pra mandar fazer passaporte —
porque elas vão participar no encontro internacional dos sindicatos das putas! Aguentas essa beleza
toda no coração do Burkina?

É verdade: e leitura dos olhos, sabes?, tou a ler nos teus olhos agora: pensas que tou grosso já; mas
não, tou em plena forma do levantamento de copo, neste caso garrafa, e se o tô bolso aguenta, vamos
nos expandir na rebentação da onda — a nossa conversa.

Pra num aguares mais, vou te pôr: inda falta na estória o padre puramente cómico, o ralhador, vê só!,
vai ralhar mais no morto, mesmo na ausência dele, é que ainda vão combinar uma missa sem o morto,
por causa da DonaDivina que quer fazer boas figuras junto das autoridades igrejísticas, como dizia o
kota Odorico, e vai encomendar missa mesmo sem o subintendente autorizar o corpo do morto
participar na própria missa — gajo nervoso também, o sub Gadinho. Falta mais, pr'além do padre, o
Cão, que já tem sido aqui falado, mas que tenho que te pôr mais vezes, pra entenderes bem o que é o
mistério do relacionamento dos homens com os bichos, e aqui não é imagens televisivas, porque bêbêcê,
porque néxonel geográfic, coisa nenhuma: vida real, nossa cidade de Luanda, inundada das águas das
chuvas que não paravam — mas vão parar, muadiê, só num sabes como, mas vão parar.

No antigamente d'outros anos mais atrás, também a chuva arruinou a DonaDivina, mas não só. Vida
dela era proliferação dos negócios dela, lanchonetes, mambos que ela num dizia nos cambas dela
governamentais e outros, porque tinha vergonha dessas negociatas ditas suspeitas, ter aí um monte de
lanchonetes espalhadas pela capital, feitas só de improviso nos contentores comprados no porto,
nenhumas condições de higiene mas aí sim, avilo, onde o puro pincho bate e a cerveja também, três da
manhã, tás com a dama, o pincho de galinha, tou ta pôr então, cuidado!, às vezes é puro gato —
feiticeiro ou não, num sei. Mas mesmo sendo esse, pincho de gato, que dizem é até melhor que o de
galinha, negócio da kota era mesmo esse, quatro ou cinco lanchonetes que ela tinha, toda facturação
dela, ambí como ela sempre foi, só que a gastar mais do que podia, e a ruína chega simplesmente assim:
não olhava a números, só compra-compra de fúria de nova madame, amigos dela dos puros guitos e ela
a pensar que aguentava. Até o dia: makas cambiais e negócios dela dos dólares com os libaneses, o
estado a perseguir os gajos, que até já tavam quase a controlar a nossa economia nacional, e a
DonaDivina se deu mal, investimento pesado dela na hora errada, libaneses expulsos, nome dela mesmo
nos relatórios e tudo, safa foi das cunhas dela, dos lençóis dela, dizem, num sei, pelo menos o nome num
apareceu em mais lado nenhum, ela só é que sim, arruinada da noite pro dia, as lanchonetes vendidas à
pressa pra aguentar as contas do cubíco dela, onde mandou também suspender as obras — falta da
verba total. Quer dizer, agora entendes, né?, viu aí na morte do ex-marido a oportunidade do
reaparecimento social, mesmo esses dias de não julgamento ela já andava a gastar nas contas do que
ainda nem tinha recebido, porque modista daqui e unhas d'acolá, cabeleireiro das lacas pulverizadas,
celular novo e outros apetrechos sociais, aí lhe vemos, a madama fénix ressurgir-se das lamas e querer
aparecer nas páginas frontais do niuspeiper

eu é que sou a primeira viúva do estado!

Já a KiBebucha, maka dela é a mesma, mas é outra: ela mesmo gostava do Adolfo, se deram só mal
nos entretantos do amor, idas dele nas ancas das outras e rabos sem saias e cama e tal, mas ela além de
estar mesmo na necessidade do cumbú, não tanto do estatuto, se considerava mais legítima que a outra
por ter mesmo gostado dele — jeito só dele lhe falar no ouvido as malcriadices que ela gostava de ouvir,
ali, nos em frentes do mar e escuridão da tarde, amassos de beijos sob as luzes brancas da expressão
lunar. A KiBebucha, vou te explicar como?, não posso lhe safar também na tua opinião, porque ela
mesmo tinha deixado os amigos dela tirarem as primeiras coisas lá da casa do Adolfo, até tava planear
ir lá buscar mais as esquebras do recheio, não fosse alguém ter passado lá, que vijú é quem chega
primeiro e primeiro sai, ninguém que lhe viu. Também ela já tava a se afundar nas dívidas da camba
dela advogada, e rechear mão deste e daquele polícia lá na esquadra pra falar nos jornalistas assim e
assado, que ali as opiniões públicas iam de certeza influenciar a cidade no acompanhar do caso viúvas
do estado via notícias, e tudo afinal são influências.
O Jornal de Angola fez mesmo a pura reportagem, duas páginas e meia, do pouco que se sabia e do
muito que se especulava, nome da JuízaMeritíssima tava lá mas num lembro, que era puramente de
confiança, kota de num lhe pagarem porque num adiantava nada, e que o caso tava nas boas mãos da
justiça angolana embora vários juristas entrevistados se vissem à rasca pra explicar qual era final o caso
que ali se tratava. Matéria do jornal inda, que incluía as devidas sequências sabidas, corpo na morgue e
todos solavancos sucedentes, e se soube que a pilharia da casa tinha sido feita pela distante família do
Adolfo, num conheço nem sei quem são, que reclamaram o direito africano de nada daquilo ser das
viúvas mas sim da família, não sobrou nem só um sapato, avilo, nem mesmo podia querer te dizer uma
meia só lá escondida na casa de banho, mais até!, não sobrou nem sequer o chulé do muadiê, levaram
tudo, tudo mesmo — razia familiar, tipo tempestade, num é do deserto, é aqui de Luanda mesmo.

Caso estranho, que ninguém comentava mesmo tendo aparecido lá no jornal, mambos dele de antigo
combatente, sem nome de guerra nem nada, embora um jornalista tivesse mesmo pedido desculpa nos
telespectadores e disse o nome de guerra do gajo era Comandante Fodido, e ficou assim, sem
ninguém duvidar, o director dum jornal independente mesmo na sua coragem fez assim título da
manchete

Continua a derradeira batalha do Comandante Fodido

aí fazia comentários no tom da dúvida, que quem seria aquele antigo combatente que ninguém
conhecia, nunca ninguém tinha ouvido falar na rádio nem nos círculos das amizades militares, onde é
que já se viu combater na província do Namibe, mas que o nome fazia todo sentido realmente, não só
porque devia ser tão fodido no seu tempo que ninguém lhe via, como agora o nome lhe assentava
melhor que a luva pois nunca mais conseguia descansar em paz, e a matéria terminava com citação
dum alguém, espécie de familiar, que tinha dito assim

AdolfoDido quando vivo teve sorte, mas na qualidade de morto, foi completamente fodido!

A chuva continuava mais, num dava nem pra descansar os olhos e mesmo os românticos já tavam
fartos de ouvir o barulho dela a cair e cheirar o cheiro dela na terra, que já num aguentava mais águas,
nem deitava cheiro, quase se afogava — quer dizer, Angola toda queria pedir abuçoito, mas como terra
não fala, isso que eu te digo são só cálculos meus, suposições que fiz nas minhas próprias observações
do caso molhado. Falta d'água nos canos, falta de distribuição do píter, falta das higienes que tava a
rebentar febres-amarelas e tifóides e de todas as cores e feitios nos bairros, os hospitais tavam cheios
de pessoas vivas e mortas que tavam a dizer na rádio pra irem só nos postos de saúde locais, num valia
pena irem no hospital que já tava sem condições, mesmo o kota lá do posto de saúde a te perguntar

mas, mãezinha, porquê que num vai já morrer em casa?

aquilo era só escolher, mas não era escolha de viver ou morrer, era só dizeres se ias morrer ali no
posto, no hospital mais, ou na tua casa, conforto dos teus familiares a espreitarem os olhos da morte no
teu olhar, e aí mesmo no quarto, ou na casa de banho, a pingar o pinga-pinga imparável, que a chuva,
muadiê, já te disse, num tava dar tréguas.

O inferno fica longe, uí? Abre masé os olhos...

Bom, vou então no dia seguinte depois da festa do Sindicato Nacional das Prostitutas, quando o Sete
foi acordar o Burkina, que tava inda com sorriso preso nos lábios, num fosse ser motorista e o Sete tinha
lhe espetado uma ngaia pra ver se o sorriso se desprendia da boca e ia assim no chão, com as águas da
chuva sem esgoto pra escorrer. Mas nada, emprego dele era a safa dos candengues dele também, que o
Burkina era mesmo bom chefe, acordou só bem o outro, a explicar dos atrasos, que ainda tinham que ir
buscar o morto e a dona JuízaMeritíssima pra irem mais no tribunal, assunto esse

qual assunto de quê mais?

estremunhou o anão

ai?, o chefe num tá lembrar mais, o caso do kota Fodido?

o anão acendeu as vistas, o Sete fugiu dali pra sala, antes que o Burkina lhe desse um encontrão

fodido ficou o teu pai quando viu que eras assim feio!, tás ouvir, mô camelo?

animal esse, dos desertos, que, não sei porquê, o Burkina gostava de chamar nas pessoas.

Mesmo nos atrasos, tás a pensar o quê?, o Burkina não dispensa matabichar nas calmas, quer dizer,
não tão nas calmas como costume dele, mas mesmo assim ir na varanda, chamar o puto PCG pra
matabicharem juntos e ficarem ali a ver a chuva cair do céu

a torneira toda!, né Ti Burkina?

o puto falou, o Burkina fez só que sim com a cabeça, o leite na boca a escorregar devagar, mambos
do estômago dele, um leite especial que o gajo bebia e não lhe dava mais dores dessas, dos nervosismos
do dia-a-dia da vida dele.

Meu, aquilo já não eram mais brincadeiras pra estar a falar calamidade e águas excessivas, te ponho:
dois bairros do Lobito, um do Huambo e um do Moxico já tinham desaparecido; na Boavista os
populares tavam todos dias a tomar banho, não por vontade própria ou os desejos repentinos da limpeza
corporal, mas porque o dia deles era só preenchido com isso, tarefa de ficar na chuva, olhar o céu de
olhos abertos e molhados, indagar no Deus dele, quem tivesse Deus, quando aquilo ia parar, e nada
mesmo, nenhum sinal de branduras, aberturazinha de raios solares, nesgas na esperança da secura —
águas só.
Já não havia mais graça de entrevistar nem de fotografar nem de filmar, que ali a graça tinha também
morrido afogada, miúdos na rua e miúdos de rua agora riam inda de vez em quando, meio de transporte
deles nos bairros era barco de madeira, bóia de camião ural ou ifa, ai uê, tecnologias soviéticas!, muitos
morriam afogados de nunca terem aprendido a nadar em cima do asfalto que não se via mais.
Televisões internacionais, brincas?, estavam a reportar os factos, a nos compararem com as chuvas
chinesas com a diferença que aqui num tínhamos arroz nem helicópteros de salvação, e um gajo
apanhado a andar assim na chuva nas horas de pior temporal, lhe quiseram entrevistar, ele só assim
parado, parecia estar a desafiar os céus, no em frente duma igreja que tava mesmo aberta a receber as
pessoas e ele num queria entrar

mas o senhor num vai inda dentro da igreja por quê?

lhe pôs o repórter da desgraça alheia

num sou crente!

o muadiê, só nas calmas

mas pelo menos num fique na chuva, entre lá dentro, na igreja

o repórter quase lhe obrigava, e ele nas calmas molhadas de pingos nos lábios e cuspe de babas, mas
simples-simples no olhar da nenhuma reserva de paciência mais, lhe falou assim

ó camarada..., me deixa só em paz então, porras... Vou mesmo entrar na igreja, joelhar aí
dentro e tudo, sendo crente como não?

Maianga pra baixo, pra Baixa, inda se circulava, mesmo assim, andar bem só de jipe, e alto, que aquilo
tava então a ficar perigoso, buracos que não se viam, mesmo a António Barroso já tinha engolido duas
viaturas, desaparecidas assim só, conforme os testemunhos dos populares nas janelas da assistência,
prédios dali, que viram um carro ir, e outro maior, que tentava passar de seguida, desaparecer também,
não é só desaparecer de vista, nas sub águas, é mesmo vir a grua e encontrar o buraco já vazio no dia
seguinte, uns diziam

tentáculos da Kianda até aqui

outros punham só hipótese dos carros terem sido gamados de noite, num sei.

Candongueiro do Burkina, amortecedores e suspensões reforçadas que ele usava pra não solavancar
tanto nas curvas e buracos, inda dava pra andar, e com esse atraso de ter adormecido nas recordações
da noite anterior, mandou o Sete ligar a sirene policial e não tinha nada pra escrever no quadro dele de
pôr às vistas dos polícias, porque não tinham nem JuízaMeritíssima nem morto a bordo, então escreveu
só as famosas iniciais SNP mas, o azar deles com aquela pressa do atraso, um kabomba bem destacado
aí na Mutamba, magriço da fome dele todo ensopado tipo pintainho careca, manda os gajos pararem e
fica só assim a fazer com a boca, hum... hum..., a olhar aquela sirene improvisada e a tentar ler no
quadro das ardósias. E pôs

bom dia, camaradas... Fashovor: facultem só a vossa dentificação pessoal e documentação


total da viatura

o Sete começou a tirar os documentos, enquanto desligou a sirene, e todos davam os documentos e o
anão teve que pedir pra ele entrar no carro porque senão ia molhar os documentos todos.

Dentificação do puto também, fashovor... Aqui num há discriminação de mais-novo

o Burkina começou a filipar

comé, camarada agente!, é preciso identificar o puto também?

o polícia olhou assim nas demoras dele, o PCG a se encolher todo lá atrás

esses puto então são mais-velho embarrado...!

mas não fez questão e ficou só assim a olhar os interiores da viatura, música clássica já posta pra
preparar os ambientes da JuízaMeritíssima, ar concionado, como se diz, e então é que fez a derradeira
pergunta

mas vucê anda assim com a sirene porquê então? Esse carro é puro candongueiro... Comé que
vucê explica isso?

o Burkina tirou do tabliê a declaração do subintendente Gadinho, e o agente começou a rir

ai, vocês são do caso desse morto bem fodido?!

riu a sair do carro, e o Burkina já bem nervoso de porem assim riso no camba dele Adolfo, abriu mais
o vidro, chamou o agente

além disso, senhor agente, este carro pertence ao Sindicato Nacional das Prostitutas!

e arrancaram, gargalhadas do Burkina e do Sete ficaram na cara do polícia só assim a pensar naquele
sindicato recém-formado que ninguém tinha lhe informado ainda

sindicato das quarras!, afinale?

Apanharam o corpo do morto na esquadra, e foram buscar a JuízaMeritíssima, pronta e bonita como
só ela desde de manhã, e o Burkina
queira desculpar, dona JuízaMeritíssima, mas é que o motorista adormeceu plenamente esta
manhã, queira desculpar

o Sete só calado e o PCG a rir lá atrás onde ele ia, coitado, a dividir lugar e cheiro com o morto.

Agora sim, sirene ligada, ardósia a anunciar Juíza Meritíssima a bordo!, só que passaram mais outra
vez naquele polícia que tinha ficado na dúvida e mandou de novo parar o carro.

Dona JuízaMeritíssima

o Burkina falou rápido

este agente está impedir o normal funcionamento da justiça nacional...

abriram os vidros quando pararam

ai?, afinal agora esse carro já num é do sindicato das putas?

o agente falou e começou a rir bem alto, até ver a identificação da dona JuízaMeritíssima, que ainda
se virou pra ele

cuidado, senhor agente, olhe que eu posso enquadrá-lo nos rigores da lei

ele pediu logo as desculpas todas, e ficou só assim a malbuciar nos lábios dele

porra, maka do kaiaia!, nos rigores da lei, meu, nos rigores da lei!...

e fazia assim de abanar a mão pra cima e pra baixo, naquele jeito dum gajo dizer tou lixado!, o
candongueiro policial ligou então a sirene e arrancou, riso do Burkina só de lhe veres, muadiê, contente
assim de poder ser autoridade puramente legal, inda que só por uns dias e na conta da morte do camba
dele.

Enquanto a sessão num iniciava, o Burkina tava lá fora à espera do Jaí, depois ele chegou, depois
chegaram as madamas todas, advogada tipa e a KiBebucha, DonaDivina acompanhada no braço dum
padre esquisito, ares dele de caminhar nos trejeitos de pisar os ovos, lábios que tremiam tremeliques de
ser esquisito, como é que vou te falar mais, ares dele de paneleiro mesmo. Depois, mais atrasado
chegou o subintendente Gadinho a perguntar assim no Jaí

já souberam?

ninguém sabia de nada e ele disse que também não podia dizer nada, era preciso ouvir a dona
JuízaMeritíssima, e assim que entraram na sessão, mesmo depois de instalarem o morto no cantinho
dele do mel, bandeira a tapar-lhe
tão bonito que ele ficava

na versão da KiBebucha, assim vermelho e preto e amarelo, estrela e roda dentada nas zonas do
kinjango que avolumavam a bandeira de modo engraçado, a JuízaMeritíssima avisou que o caso tinha
sido suspenso até data incerta, ordens bastante superiores, tão superiores que pensaram ser ordens de
Deus, mas estando nos tribunais da justiça nacional depois esqueceram essa ideia religiosa e
perceberam que eram ordens bastante secretas, e essas não valia a pena serem perguntadas. O corpo
ficava inda sob custódia da polícia, até novas ordens, e depois então dessas ordens todas e de bater
martelo na mesa é que a DonaDivina, a chorar, e o padre se aproximaram da juíza pra requerer a missa
do corpo presente

mas aqui no tribunal não se pode fazer a missa, minha senhora!

explicou a JuízaMeritíssima, assim de martelo na mão parecia que ia dar na cabeça da Divinosa.

Mas não era ali!, aquilo era um pedido extra, coisa que ela tinha lembrado na noite anterior e acordou
já o padre das amizades dela pra encomendar a pura missão, irem ali no tribunal chorar no martelo da
dona JuízaMeritíssima a ver se autorizava missa oficial do corpo presente, mas que a responsabilidade
de transporte e devolução do corpo era dela, a ex mais oficial do momento.

Nem pensar nisso, JuízaMeritíssima!

gritou já o Burkina

o transportador oficial sou eu até esta operação terminar, num é assim, sub Gadinho?

e já iam instalar ali confusão dos gritos e das vontades quando lá do fundo da sala o puto PCG gritou
com a voz dos fantasmas da morte

o morto mexeu!

e todos calaram e o martelo da JuízaMeritíssima baixou e a KiBebucha se levantou pra olhar na


direcção volumosa da bandeira onde o martelo e a estrela tavam a realçar o janguê e o sub Gadinho
aproximou a mão da pistola e o padre se benzeu mesmo com a mão mais próxima que era a esquerda e
o Jaí sentiu um arrepio lhe chegar nos cabelos até com gosto de mel na boca e um trovão arrebentou no
ar dos ouvidos deles todos e o puto, naquele silêncio de depois do espanto, mais baixinho na voz dele
grave, repetiu mais outra vez pra retirar as dúvidas

Ti Burkina, juro mesmo: o morto mexeu!


Missa de corpo ausente

[...] e nada é mais sério que a emoção, que chega

ao mais fundo dos dispositivos orgânicos.

Pierre Bourdieu, Meditações Pascalianas

Ouve, uí: mistérios aquáticos da nossa city que te ponho aqui, mambos das damas ambís e gajos
estranhos só dum gajo pensar na imaginação — o albino, o anão e um puto de rua que lhe chamam só
de pisa-com-gêto. Daqui pra frente então os acontecimentos vão ficar inda mais duros de acreditar,
mas me confia só, meu. Teu cumbú mesmo, tuas birras que tamos a se dar aqui: eu só deposito estórias
puramente verídicas, nenhumas ficções. Tás ma seguir?

Aí no tribunal das justiças nenhumas é que decidiram mesmo: havia que dar rumo no caso do morto,
pois mesmo como falou a JuízaMeritíssima

eu não sei quanto tempo esta suspensão pode durar, mas seria bom resolver-se a situação do
senhor Fodido, ah perdão!, do senhor AdolfoDido

todos concordavam que sim, madamas e tudo, chegaram então a combinar que iam fazer almoço na
casa da KotaDasAbelhas, terreno neutro pra todos, esses que ali tavam e mais alguns, pra resolver os
destinos do morto fora das fronteiras demorosas da lei.

Dispersaram, cada um foi mais na direcção dele preparar mambos e argumentos; era um puro almoço
de contribuição, as damas levavam pitéu, os damos preparavam a tibaria toda e se davam encontro lá
mais pra uma, todos avisados que tavam que era uma casa especial onde não se podia fazer muito
barulho pra não incomodar e acordar o Cão, onde circulavam abelhas laborais de não picar ninguém se
ninguém picasse na paciência delas, cara estranha que as pessoas fizeram, a pensar que aquilo eram
alucinações ilusionistas do albino Jaí, o sub Gadinho a pôr no ouvido de alguém
estes albinos não são normais, é por isso que dizem que têm líquidos na cabeça que curam
sida...

outros a porem só risos no aviso do albino, sendo que o anão fazia que sim com a cabeça, mas pronto,
logo iam ver que nem tudo que a cabeça imagina e põe no discurso verbal é impossível de ser vivido no
dia-a-dia do mundo real.

Aquela kêta que eu te falei, da inspiração repentina do Burkina, AdolfoDido, mô grande amigo, já
tava a ser ensaiada pelo grupo musical mais suspeito de Luanda, Burkina e sus muxaxos!, e mesmo
até à hora do almoço ele encomendou no Sete pra ir com o Jaí nas bandas do Roque buscar bebida,
embora o albino tenha recusado só, e começou a coçar o nguimbo, comichão repentina, que é uma
maneira que as pessoas têm às vezes de coçar nas recordações, boas como más, e rejeitou só essa
proposta, de modo que o Sete foi só com o puto, enquanto o Jaí ia se adiantar na casa da
KotaDasAbelhas, pra explicar os factos todos, incluindo o almoço, mesmo até porque tinha sido a
própria kota a disponibilizar o cubíco pra eventuais reuniões funéreas.

Lá foi o anão, contente no coração dele como ele ficava na hora da música, mesmo sem tocarem
bem, até mesmo, vou te dizer, a tocarem mal como tocavam, mas sempre nessas discussões da filosofia
humana que ele tinha com o dono da garagem onde eles ensaiavam, porque o kota só gostava de estigar

mas vocês ficam só aí, a tocar bem male ansim pra quiê então?

o Burkina lhe ria só uns cochito, lhe punha kwanzas na mão e entrava, mas um dia lhe explicou

nós aqui num tamos a ensaiar a música perfeita nem os hinos nacionais, kota; nós tamos só a
ensaiar os dedos e o coração, tás a galar?

depois o gajo ria, se sentava lá com sus muxaxos e iniciavam o ensaio deles musicalmente torto, difícil
mesmo de escutar, mas eu lhe entendo, muadiê, que nem sempre um gajo faz as coisas pra ser o melhor,
ou pra oferecer nos outros um resultado da coisa perfeita, mas mais pra se exercitar numa qualquer
área mesmo, e a música, todo mundo sabe, aquece as veias da alegria e te faz rir à toa, e aquilo afinal
num era mesmo uma maneira de ele estar ali umas horas, simplesmente divertido nos risos da conversa
e do coração, com aqueles cambas dele?

Agora, aquela kêta, num sei se fruto das emoções ou quê, tava a ficar mesmo puramente boa, e dias
mais tarde ele ia mesmo chamar camba dele — kota Dionísio Rocha — pra lhes pôr uns conselhos na
percussão e nos ritmos da viola, porque mais que o prémio da consolação de ter conseguido estar
mesmo na selecção do top dos mais queridos, o Burkina queria só que as pessoas soubessem aquilo era
pura homenagem no camba dele, inda ia explicar a estória, nas lágrimas da palavra, que a música tinha
nascido naqueles dias difíceis de ver o camba dele assim, a frequentar o local dos vivos, quando já tava
morto e devia era tar quieto na quentura da terra — a casa dos mortos. A pura kêta tava a ficar bonita,
com direito a refrão e tudo, dizia mais ou menos isto assim

AdolfoDidooooo, mô grande amigooooo/já num tás vivoooo, tás bem


fodidooooo/AdolfoDidooooo, mô grande amigooooo/vou t'enterrar, tá decididooooo...

mas foi o kota Dionísio, mais velho pausado, que lhe aconselhou a tirar essas partes de dizer
fodidooooo, não tanto por causa do peso disparático da palavra mas porque assim se arriscava a ser
logo desclassificado por malcriadice musical — e o Burkina lá considerou.

A KotaDasAbelhas, já te falei, era uma porreira, até achou boa ideia mesmo aquilo do terreno neutro,
acho que foi ideia dela propor que os enterros, se fossem haver, se fizessem ali mesmo na casa dela,
maka só era a questão do espaço pois a maior divisória da casa era habitada pelo Cão, e isso nem era
caso pra pensar em mudanças

até porque é impossível...

pareceu no Jaí que a kota se estava a queixar, e quis meter a deixa no assunto, mas a kota lhe travou

nem vale a pena falar nisso

e começou os preparativos do grande almoço da discussão do caso AdolfoDido, morto errante, morto
errado, que tinha mesmo sido autorizado pelo sub Gadinho a comparecer naquela primeira reunião extra
tribunal.

Embora o albino lhe tenha avisado mesmo que todos iam trazer bebidas e comidas, a
KotaDasAbelhas quis preparar uns puros pitéus que ela fazia de mel, claro, estranhas ordens que o
albino presenciou de ela assobiar de modo estranho, zumb-zumb, zum-zum e zain-zain, mas logo aquilo
tinha implicações imediatas no mundo abelhal, elas se moviam de modo diferente e havia mais abelhas
que o costume, irem na varanda e voltarem mais na cozinha, logo-logo numa meia hora o Jaí viu mel
doutras cores aparecer nos lavatórios coloridos da cozinha, era uma visão bonita de se espreitar: névoa
de abelhas em torno da kota, e ela a se mover rapidamente, fosse ela abelha também, e ninguém se
chocava com ninguém, mesmo ele tava já autorizado a circular ali, quase não via nem ouvia nada, só
barulhagem estrondosa de zum-zum pra todos lados, bué de abelhas que pousavam na mão da kota na
altura de misturar os líquidos, e o sorriso dela de estar assim cercada do carinho dos bichos, porque se
via mesmo nitidamente que as abelhas e ela se davam bem, não era despotismo nenhum, só respeitosas
hierarquias, e o mel a vir-a-vir, da varanda, quer dizer, do mundo de fora, e o cheiro a aumentar-
aumentar, que o albino não sabe o que lhe deu na tontura do momento, só que se aproximou da kota por
trás e ela no virar da cara do espanto de lhe sentir tão perto foi beijada assim só, sem os prefácios do
xaxo calú, nem nada mais, beijo esse só tão rápido porque uma abelha lhe ferrou, no albino, aí onde a
barriga dele apertou as costas da kota, e abelha se sentiu na sua mais pura falta de ares pra voar!
Lá dentro, o mesmo momento então, nada de atrasos de segundos milesimais, o Cão ladrou alto e o
albino tremeu. A KotaDasAbelhas retirou o resto dos méis que tinha na mão e se foi lá pra dentro, safa
dele que também não ia saber o que dizer na atrapalhação do depois-de-beijar, e foi sentar na sala,
assim só, língua dele a passear nos beiços, que não era mais imaginação de cheiros — era todo gosto do
mel que tinha lhe ficado na boca, sonho dele real, e saboreava devagarinho o odor dos lábios como as
crianças canjonjam o caroço da manga: com medo sempre que ele já vai acabar.

A kota se demorou e não havia vozes de se escutar com atenção. O Jaí foi mais no corredor, pernas
dele só a tremerem na imaginação de dar encontro com o Cão terrível, temível, mas foi andando,
corredor estreito e escuro e a porta lá no fim pouco aberta, nada de vozes nem barulho nenhum, muito
pior: o silêncio todo. Pé depois de pé se aproximou e olhou pra ver: muadiê, universo do Cão, que dói
nas vistas só de espreitar e me dói na boca só de falar, o medo todo: a kota tava sentada no cantinho do
sofá, sofá grande então, cheio das mantas todas bonitas indianas avermelhadas das mil e uma noites do
filho da puta do Cão, televisão ligada mesmo só das imagens nenhumas do cinzento chuvoso, e o Cão lá
do outro lado da sala a olhar a janela do mundo onde as águas continuavam a cair, segundo me contou o
próprio Jaí, o Cão mais bigue que ele já tinha visto, nem conseguia imaginar na cabeça dele qual era a
marca, pra te pôr aqui se era dobermén ou rotevailer, num sei, só sei que era mais que enorme, Cão
gigante, negro e escuro com as orelhas de parecer chifres em pé, e todo parado e silencioso sem se
mexer que é uma das maneiras que um ser pode assustar o outro: ficar só bem quieto e olhar, na
paragem dos tempos, a te fazer, tu também, ficares tipo Petra, petrificado nos medos, assim como tava
o Jaí na porta da sala enorme das arábias todas que o Cão habitava só pra ele. Medo?, muadiê, medo é
o suor de não conseguires mexer pernas nem olhos e ficar só ali, como tava o Jaí, a olhar a besta,
grande e enorme como ele disse que viu, e ninguém se mexia mesmo, nem ele nem a kota nem o Cão, e
o Jaí quis arranjar um bocado de espaço na cabeça dele pra pôr esse pensamento

a kota tá em secretas comunicações com o Cão?, coisas do silêncio mental, ou assobios mais
que secretos, modos dela comunicar com abelhas como com o Cão?

e afastou essas ideias pra poder olhar mais bem a besta, enquanto podia, porque ele também sabia
que a qualquer momento a vida dele podia terminar ali, dentes caninos enormes no pescoço albino dele,
e nada de nada interrompia aquele momento de pause, como quando pões no vídeo pause-estilo e ficas
a apreciar a imagem assim paradinha, os pormenores todos, o Cão ali só mexeu um bocadinho a ponta
da orelha e o abanar muito curto da cauda enorme que ele tinha, a KotaDasAbelhas corrigiu posição de
mãos, e na parede havia de tudo, estátuas, decorações de crucifixos de Cristo e outros menos santos,
livros poucos, cristaleira de copos de cristal antigos e mais panos no chão, quase não se via chão, se via
era mais mantas e tapetes assim asiáticos, e na cabeça do albino Jaí a única ideia que tava a aparecer lá
no fundo e que ele queria entender mas não entendia, era uma semelhança de tudo aquilo com um
cenário, ele esmifrou os pensamentos pra entender e se lembrou que tudo aquilo lhe lembrava masé o
inferno, estórias da infância contadas pelo kota Diarabí, cego só dum coro, e aí o Jaí entendeu qual era a
ideia no fundo da cabeça dele, começou a tremer mais e mais, recuou outra vez na sala, e pensou que o
Cão, as orelhas enormes tipo chifre e aquela cor assim escura do negro das formigas que lhe mordiam
nas nádegas da infância, aquele Cão lhe lembrava mesmo é o diabo!

Isto que tou ta pôr são então os prefácios do almoço, quer dizer, te localizo as pessoas pra entenderes
todo o antes do almoço: o Burkina tava lá a terminar os ensaios da música das amizades só, enquanto o
Sete passeava com uma dama no carro, ar concionado, como dizem, e música clássica que ele agora
num queria mais pôr cu duro, mas teve que pôr porque o PCG ameaçou de

queixar no Ti Burkina

aquilo de ele andar assim a meter damas no carro quando só tinham lhe mandado ir buscar bebida,
inda por cima estar agora a meter música dos violinos da dona JuízaMeritíssima àquela hora dos meios-
dias dos calores do Roque Santeiro, só pra fazer estilo na dama que nem tava apreciar a música

isso já não!

pôs o puto que, pelos vistos, segundo pensou mesmo o Sete, já se tava a dar ares de sobrinho do outro
que ele inda num era.

Foram chegando então, como já sabes, avilo, aqui na city num dá pra um gajo controlar bem os
convidados, você vai fazer mais como então?, festa de dez vão vir já quarenta e por aí fora, é só
aguentar mesmo uma boa disposição e rezar pra num te destruírem o cubíco, de resto, risada só, se
fosse noutro ambiente, mas mesmo os patos tavam avisados que ali era um assunto demarcadamente
defuntuoso, como dizia o kota Odorico, e que nada de contarem estórias de estigas e exagerarem já
nos assuntos da guerra, porque man Mbimbi campou assim ou campou assado, que ali era caso sério,
nada de kombas ainda, pra se tratar mesmo é do rumo do corpo do morto, embora ali houvesse posições
distintas, como te ponho: a JuízaMeritíssima tava ali a fazer o quê?, se ali num é tribunal, nem ela pode
trazer martelo dela, nem capas vampirescas, nem mandar calar este nem aquele? O sub Gadinho
mesmo, também tava ali a fazer o quê?, se ele tinha ordens é de estar a prender o morto lá na esquadra
sem nenhuma autorização de circular com o corpo como ele tinha trazido o Adolfo ali pra assistir o
próprio destino, e porquê que autorizava o corpo a vir no almoço se num podia ir na missa? A advogada
tipa tava ali também a fazer o quê?, se nunca tinha sido oficialmente nem oficiosamente relacionada
com o caso, se num considerarmos as bocas que ela andava a lançar lá em pleno tribunal, mais esses
decotes da não decência que ela anda a não vestir, sim, porque aquilo já é não vestir mesmo, mamas
praticamente à mostra até do sub Gadinho se desconcentrar quando tá perto dela! O puto PCG, só
porque semi atropelado e levado na clínica na conta da simpatia do outro, já se dava de sobrinho que
num quer música clássica no candongueiro policial, inda com ameaças no motorista do outro, já com
essas cúnfias de Ti Burkina pra aqui, Ti Burkina pra ali, a se empanturrar das chamuças de mel da
kota, estômago dele a inchar à toa inda tá pedir mais?, num dá só perdão na comida? Os dois ajudantes
do sub Gadinho, que não são eles que carregam o corpo do morto, vieram ali fazer o quê então? O
grupo todo musical, esse los muxaxos, também vieram ali fazer quiê?, se inda num era hora de mostrar
a música nem de avolumar um enterro de gente, afinal ali, é isso que tou ta pôr, avilo, ali inda num era
enterro nenhum, eram só combinas provisórias, quer dizer, vamos lá falar bem a sério: afinal aquilo era
uma diversão dos circos ou quiê?

Eu te ponho a resposta: onde há píter e chupex, o angolano desconsegue de resistir.

Alguém quis já pôr as conversas — mas também desconseguiu, primeiro era só pitar, derrubar as
ngalas todas que tinham vindo do Roque puramente bem geladas, que é como quem diz, estupidamente!,
ir nos aperitivos todos, chamuça de mel, rissol de camarão com mel, salada com mel, kitaba com mel,
cola-gingibre com mel, quer dizer, ahahah!, todos melados que já tavam, aquela alegria só de estarem
muitos angolanos que já ninguém consegue falar baixo e chama mais inda a vizinhança — é que num
tinha ninguém a controlar a porta, muadiê! —, finalmente apresentaram nos outros o afamado kota
Diarabí, cego não de nascença mas de azar, água de bateria que lhe caiu no olho, mas o PCG logo nas
desconfianças

ché!, esse kota então vê feio, costumava a nos dar kibídi

mas ninguém ouviu nem ligou, o kota sentou lá no canto dele, ficava só assim, comer e sorrir nos
sorrisos bonitos que os cegos põem na boca, nunca reparaste, meu?, num é por estar aqui a te pôr os
ambientes do mel da casa dessa kota, mas nunca galaste o riso dos cegos?, é riso de mel então, a
doçura toda da escuridão deles que só vivem nos ouvires do mundo, e tocares também, daí que aquelas
damas Madalena e Eva gostavam de vez quando de vuzar um cego, vuzar na cama, num é de dar tiro,
quer dizer, pode ser também de dar tiro, porque dar um tiro também é sinónimo de quê..., intriga dos
corpos, luta dos lençóis, chega-pra-cá-e-pra-lá, vaivém, remanço, ou mesmo pra ir até quase nos latins
da palavra foder, como dizia o mô camba Chico Santos

langus mangus fuca la truca.

Fui longe, né, muadiê?, mas vou voltar: essas damas, Madalena e Eva, gostam de vuzar de vez em
quando um cego porque os gajos são os reis do apalpanço, tactos todos, dedos das sensações que nós,
os videntes, só desconfiamos muito de vez em quando — as mulheres é que sabem, meu, num é só luta
corporal de enfia-enfia, vais me desculpar aqui as descrições penetratórias, mas que não são tudo, tu
sabes, as damas também são viradas pras carícias, amores e beijares, enfim, exploração detalhosa nos
entretantos da arte horizontal de foder.

Aquilo aumentava nas gentes, houve pessoas que ouviram barulho de vozes e risadas lá dentro, e
entraram só, até um zaicô que ninguém lhe queria deixar entrar, porra, também o calú é fodido!, num
podia deixar o outro entrar porquê?, só que acenderam as vistas e as narinas quando galaram a pura
kizaca que o avilote trazia nos cheiros da mão, pitéu só de me tra zer água na boca agora, muadiê, e
quando a kota pôs lá os segredos gastronómicos do mel dela, até o zaicô delirou
kota cozinharre muito bên, ficarre deliciozo, marravilhas de mel, ãh? Eu querrro aprrenderre...

Lá no canto, ao pé do cego Diarabí, tava então o corpo do Adolfo mais outra vez tapado com a
bandeira, a KotaDasAbelhas foi lá buscar mais desse produto da conservação das peles, esteve lá bem
uma meia hora a lhe aplicar os méis, mesmo lhe pôs também o produto que ela mesmo usava na cara
dela, e assim a brilhar de mel nas cores da tarde e esse sorriso que tinha ficado preso nos lábios dele, lá
do outro lado da sala, numa tristeza nada dividida, o anão BurkinaFaçam quis poder pensar que aquilo
tudo era a maior mentira do país dele dos mentirosos, e o camba dele num tinha nada campado, e num
ia nada haver missa nem enterro, e dali a bocadinho ele ia mesmo acordar, com aquela sede toda que
ele usava nos fins das tardes, e ia só querer beber, beber as cervejas dele bem geladinhas que ele tinha
que beber praí umas catorze antes de falar assim nos hálitos da cerveja

porra, Deus é um gajo porreiro!

mas a kota terminou de pôr os méis, e nada daquilo aconteceu, o morto repousava ali, no canto da
sala, enquanto eles comiam, bebiam, alguém até ligou o rádio, primeiro baixinho, depois alguém
aumentou mais, e às tantas já tavam com pé a bater no chão, ritmo do corpo na batida musical que
nunca dá pra evitar depois do funji de mel e umas tantas já bem escorregadas nos corredores do
estômago, embora, é curioso, as implicações da cerveja se verifiquem mais ao nível dos olhos, que
passam a brilhar, da cabeça, que ganha tonturas, e do coração, que fica assim, como é que vou te pôr?,
mais bem-disposto só — alegrias dele que vão até na boca, na forma das palavras ditas, danças da
língua que vibra pra falar.

Puseram então o assunto, e é por isso que te falo dessas boas disposições todas das cervejas, porque
foi tudo já muito mais fácil que no tribunal: tavam todos de acordo nisso, que independentemente de
quem ficasse com os cumbús, DonaDivina ou KiBebucha, iam dar parte do dinheiro pra pagar o enterro,
e que nos entretantos do julgamento, iam fazer duas coisas: pagar e adiantar a missa do corpo ausente,
e instalar ali, na casa da KotaDasAbelhas, uma espécie de pré komba permanente, até que houvesse
decisão oficial do destino a darem no corpo do morto. Mais: iam fazer obras de ampliação naquele
cubíco, porque todos sabiam, embora não se falasse nisso, que a divisória melhor do cubíco tava com o
Cão, que nem era pra discutir uma mudança do animal, iam partir uma parede lateral e aproveitar parte
do quintal pra aumentar aquilo que ia ser então a segunda sala.

Depois, muadiê, tudo já parecia tão simples e tavam ali a viver outros momentos: o Jaí só nos
encontros de olhar com a KotaDasAbelhas, cumplicidade deles só de se rasparem aí nas curvas da
cozinha, porque

eu vou ajudar a buscar as coisas

grande ajuda mesmo!, sembas laterais e tudo, investidas de anca disfarçadas de encontrão casual,
hum!, e o Burkina a tirar a picture toda, mas só no silêncio dele de num atrapalhar, porque é mesmo
assim e ele sabia, no início as abelhas devem ser deixadas sós pra poderem acasalar sem interferências,
e o albino todo contente nesses momentos-mel de irivir da cozinha com os lábios besuntados de outras
salivas. O sub Gadinho, já muito atravessado, num fez mais nada, saca a KiBebucha pra uma
kizombada lenta, tarraxinha mais tarraxinha, aquilo era já tarraxona, os outros a assistirem só os passes
do sub

nada mau, nada mau mesmo

pensou a DonaDivina a saborear as ancas do sub Gadinho bambolearem com vigor, tava a se
entusiasmar mas não podia, porque essa postura dela de palerma bem vestida de brincos a fingir que
são de ouro num dava pra ir se tarraxar nas partes kizombáticas do subintendente. O Burkina se
aproximou por via da conversa jurídica, queria pôr dúvidas na JuízaMeritíssima, mas já nada ouvia, só
punha os olhares dele a vaguear nas tranças da juíza, mistério mesmo que ele num disfarçava na dúvida
que ele tinha

essas trancinhas assim certinhas, quem mesmo é que faz...?

e ficou todo surpreendido porque a JuízaMeritíssima respondeu

é uma afilhada minha, muito talentosa, o senhor gostaria de experimentar?

quer dizer!, o gajo estacionou na boca aberta do susto dele: afinal a JuízaMeritíssima ouvia
pensamento ou o pensamento dele é que tinha sido falado? Respondeu que não

num tenho mais idade pra essas coisas de trancinhas

e pela primeira vez, lhe pareceu, a JuízaMeritíssima lhe olhou de outro modo, como é que vou explicar,
sem ser os modos dela institucionais de mirar o anão, mais qualquer coisa solta, espécie de simples olhar
de mulher pra homem — e ele teve medo.

A tarde se comia a ela própria na boca do tempo, e ninguém pode agarrar os minutos, muadiê, nem as
cervejas dali pras bocas, e das bocas, já te disse, pros olhos e corações dos presentes. O único que não
tinha bebido era o puto PCG, que andava a circular pela casa sempre a tentar encontrar o quarto do
Cão, curiosidades dele que já tinha dito

Ti Burkina, eu num tenho medo desse Cão, já vi cão muito bigue, esse Cão aí de viver bem
trancado nem sabe só dar kibídi...

e depois da porta da casa de banho, aí onde independentemente da hora do dia o corredor tá sempre
escuro, o puto sentiu no corpo dele a respiração do Cão, o cheiro que vinha do reino com os panos todos
no chão e as paredes cheias de coisas penduradas desde o antigamente, e desconseguiu de parar —
entrou.
Muadiê, eu num te disse pra preparares o coração também?

Há muita brutalidade num momento de silêncio — raiva é aquilo que aparece na humidade dos olhos,
indignação. Ali não houve barulhos, nem sei: talvez um golpe de dentes tenha sido tudo — abrupto
apagão. Aqui ponho mesmo imaginações: se nós mesmo homens puramente verticais estamos a morder
com força nos dentes emprestados dos caninos, ele mesmo, o bicho propriamente original, dono das
quatro patas no chão e dos dentes dele, o que fez então no pescoço do ndengue? Rasgão é só na roupa
ou a pele também tem tecidos furáveis? Uá uê!, me arrepio na pele dos pêlos, nem quero falar isto que
vou dizer: o Cão a imitar um vampiro dos livros e o puto mesmo a desaparecer tipo balão sem nenhum
ar pra vencer as alturas, todo sangue mesmo descoagulado do corpo directamente no estômago quente
do dogue! Exagero, meu? Você sabe qual é o resultado dum puro kibídi? É a dentada. Perna, inda vá
que num vá, agora: pescoço mesmo? Tás a ver o tamanho do ndengue ali ao pé do Cão besta? E as
dimensões da boca, cabem mais na tua imaginação? Ninguém mesmo vai conseguir me convencer: esse
Cão era aparentado com o diabo, mínimo dos mínimos, afilhado. E esses segundos então que te ponho,
foram milésimas de momento, rapidezes de morder toda inocência do puto a lhe espreitar sem maldade
nenhuma, desprevenido pela idade, lento de não conseguir mesmo escapar da brutal mordedura —
depois só a língua do Cão satisfeito a recolher babas vermelhas, só já poucas gotas de sangue a sobrar
no chão de ser testemunha. Mesmo a vida é uma gota de sangue, cabe numa só lambidela: demora
quase nada a cair no abismo do tempo, demora quase nada a ser beijada pela morte. Uma criança
mesmo? Ai uê, sanguinolência, desgraça! Sabes o quê?, penso mesmo a morte é prima como irmã do
silêncio — só que muito silêncio...

Hum!, mesmo o silêncio quase chegou na sala, todos cansados e tibados começaram a dispersar, com
os joelhos a tremer, as damas tavam só tontas, e todos foram despachados pra casa deles: só ficaram
naquela casa a KotaDasAbelhas e o morto. O sub Gadinho saiu com a KiBebucha mais a advogada
tipa e esqueceu de levar o corpo, o Sete mais ou menos habituado a conduzir grosso, depois de largar o
albino, foi pra casa do Burkina e ninguém deu pela falta do puto, todos cada um pro seu norte e bússola
das intenções sexuais e outras, a JuízaMeritíssima disse que ia dormir na casa duma amiga ali perto e
saiu a pé, de modo que quando o padre telefonou a confirmar a missa pro dia seguinte, ninguém tava em
condições de atender.

Como é que todos foram lá no dia seguinte pra missa de corpo ausente, num sei, só sei que tava muita
gente, principalmente gente da Praia do Bispo porque aquele padre num gostava de missa vazia, e como
era a primeira missa que ele dava de corpo ausente mesmo, mandou avisar pessoas pra aparecerem, e
aquelas que disseram

sim, eu sei mesmo quem é esse camarada fodido que tá nos jornais e tudo, mas eu num lhe
conheci, padre!

o padre respondeu a sorrir


por isso mesmo é que você deve ir, porque ele não vai estar lá, além de que os familiares não
sabem se você conhecia ou não.

Assim foi, até vou dizer mais, essa foi a pura missa mais especial da Praia do Bispo, contou até com
presença do senhor Tuarles mais as filhas dele principalmente a Paurlete, agora já com um nené no
colo, candengue bonito até. O padre conhecia a família e se aproximou, fez festinhas no miúdo e
destapou a fralda só pra confirmar as curiosidades dele: num te conto, meu!, o puto tinha o dedo grande
do pé pior que o da mãe dele, o padre só murmurou isto assim

vocês são os campeões dos dedos grandes...

epá, mambos que num te interessam assim muito, num conheces a família, mas eu conheço, e num
posso passar aqui despercebido esse facto do senhor Tuarles mais as filhas todas dele terem ido mesmo
na missa, sabes porquê?, isso só significa que já não tinham nada melhor pra fazer, e isso é muito mau
sinal, num achas?, o kota Tuarles, dono das tibarias todas, ir mais na missa de morto desconhecido?
Hum!, deixa só.

O sub Gadinho mandou dizer que tava muito ocupado e com muita dor de cabeça, além de que aquilo
era só pros familiares, o padre inda tentou dizer

aí é que o senhor se engana, esta é uma missa muito nacional

mas o sub lhe desligou o telefone na cara, o padre devolveu o celular no Burkina, que não cansava de
perguntar

mas onde é que se meteu o filha da puta do miúdo?

o Sete já tinha passado lá no castelo e ninguém tinha lhe visto, e enquanto não começavam as
cerimónias religiosas inda o Sete foi na casa da mãe do PCG saber as novidades, mas disse que voltou
sem elas

voltaste sem elas?, sem elas quem?

o Burkina já irritado

sem elas: as novidades!, a senhora num tinha nenhumas novidades!

afirmou o Sete, se defendendo que o próprio Burkina tinha lhe mandado ir lá saber se havia novidades,
e o anão até se benzeu na burrice do outro

tu foste lá mesmo... e perguntaste se ela tinha novidades...? Foi só isso que perguntaste?
e o Sete, coitado, a fazer assim com os braços abertos, que tinha sido aquilo só que tinham lhe
mandado

vai pro carro e não ligues o ar concionado, pode ser que o calor derreta a merda toda que
tens dentro da cabeça e passes a usar o cérebro pra pensar!, foda-se...!

entrou só na igreja, lá nas músicas celestiais que tavam a tocar no órgão, coisa que lhe agradou e
acalmou, toda sombra dentro da igreja e os anjos na parede a rirem à toa

esses é que são felizes...!

Muadiê, passa só aí mais uma birra... Vou te contar, meu, eu é que num queria tar no lugar do Adolfo,
nem quero missa nenhuma quando eu campar, nem de corpo presente nem ausente, nem espécie
nenhuma de padre a falar pra mim. Sabes o que é ralhar um morto? Não, num deves saber...

Ralhar um morto, assim mesmo de ele quase querer estremecer e levantar, caso ele tivesse ali a ouvir
os puros ralhetes — foi o que aconteceu naquela missa da indignação da DonaDivina, que nunca
pensou numa coisa daquelas pro ex-marido: primeiro, logo de estreia, veio uma desconhecida tia do
Adolfo, se identificou ali no em frente da multidão sentada e perguntou onde tava o cabrão do morto, e o
padre só assim de dedo na boca

minha senhora, por amor de Deus!

e a kota a continuar

ah?, num querem mostrar o morto?, falo mesmo assim!

Avilo!, sabes o que é o padre ter que lhe pedir pra ir se sentar, e mesmo ter que lhe baldar

minha senhora, vá-se lá sentar, ainda outras pessoas querem vir aqui ralhar o morto também

mas isto depois de ela pôr ali os puros podres do morto, inda misturar com makas lá da não antiga
combatentice do gajo, que ela lhe conhecia bem, caluanda preguiçoso que só saía de Luanda pra ir nas
missões do estrangeiro e, ainda

onde já se viu morrer assim?

quer dizer, a família não poder aproveitar nada das famas nem dos cumbús, tudo fica só pràs damas

essas assanhadas de merda

como disse a kota, que quando chegou lá na casa dele pra sacar os mambos já pouco ou nada havia,
mesmo só tinha rendido eram os lençóis bonitos que tinham lhe oferecido numa missão na China!
Depois veio uma prima, ralhações diferentes, promessas também aí que ninguém chegou de perceber se
tinha havido um caso ou não, ou se na opinião da mboa devia ter havido caso, coisas ligeiras, e depois
ficar só aí a chorar as lágrimas dela de crocodila também, mesmo em frente das supostas viúvas a ver
se ia pingar algo da pensão pro lado dela, mas as duas, DonaDivina e KiBebucha, bem duras, parecia
que nem tavam a ouvir nem nada, de modo que é como te digo, avilo, aquilo se transformou numa
espécie de comício religioso, onde muita gente sentiu que tinha obrigação de pôr falas.

A DonaDivina se esforçou mais é por impressionar o padre e alguma autoridade governamental que
ela pensou que estivesse ali disfarçada de simples público, mas que não havia, o governo queria era
despachar o caso, concluir aquela merda de processo que já tava muito comentado nos jornais e a
chamar a atenção de outros antigos combatentes, depois também já havia a parte dos mutilados de
guerra que afinal também tinham esposas e familiares, como é que ficava isso tudo?, e os miúdos de
rua, e os professores com salários em atraso, e a confusão nos hospitais e na morgue, e a distribuição
de comida e assistência hospitalar nas províncias, e os coveiros que só recebiam salários dos próprios
familiares das vítimas, e os da função pública sempre a ter que pedir gasosa, quer dizer, na função
pública não se pede gasosa, pede-se já garrafão, senão o teu assunto fica puramente esquecido, e os
deslocados da filha da puta da guerra, e os candongueiros todos que ainda não tinham mas que podiam
vir a ter um sindicato também, e os camponeses que tinham terra, sim, terra até de sobrar nas vistas
mas tinham minas na terra e terras ocupadas por gente endinheirada, tudo isto passando pelos pequenos
empresários e kínguilas e quitandeiras e roboteiros e a merda da chuva, já pra não falar no recém-
formado Sindicato Nacional das Prostitutas... Tás a ver a maka?, uma coisinha de nada, bem posta nos
jornais, podia fazer despoletar a pura merda, e ninguém queria isso.

A KiBebucha optou mesmo pelo choro, no quase nada-de-jeito que ela sabia dizer, até posso
considerar que foi uma coisa bem pensada. Mas antes, do lugar que ela saiu até chegar lá frente, onde
foi falar, ou melhor, onde foi chorar, foi ela mesmo, KiBebucha como só ela, que acordou aquela missa,
inclusive se viu que o padre tava atrapalhado nas respirações dele: corpo dela nos volumes e veludos do
vestido preto que ela pôs, bronze dela, olhos a brilharem bonitos e sobrancelhas grossas, pelinhos assim
dourados nos braços que tavam a acender na escuridão da penumbra ao pé do altar, perna, avilo!,
perna?, de olhares só assim a cada passo do sapato-alto dela, toc-toc-toc, todos que dormiam
acordaram, os que se distraíam se atentaram, os que mal viam focaram

booouuuaaa...!

alguém disse baixinho, e o padre em vez de ralhar, mexeu só assim a cabeça devagarinho, baixo pra
cima e cima pra baixo de novo, porque aquilo era uma evidência divina, num era pra contrariar mais
aqui na terra dos homens da carne fraquíssima.

Depois o padre achou já que aquilo era muita demora, iniciou lá uns latins suspeitos, fumos de incenso
da tosse das velhas pra todos lados, mas aquilo dava muito jeito ali na Praia do Bispo porque também
afastava mosquitos, e já tava quase a despachar a missa quando o Burkina também pediu pra falar. O
padre só tinha que aceitar, apesar da DonaDivina ter feito assim que não com a cabeça, mas o padre já
tinha deixado tanta gente falar, como é que ia recusar o pedido do puro amigo do morto, pra mais, o
transportador oficial do corpo de mel! Ninguém então entendeu, avilo, mas aquela estória do Burkina
iniciar de falar das chuvas e as implicações dela na vida do nosso povo, aquilo eram só atrapalhações
pessoais, assuntos que ele arranjava pra não chegar no assunto do morto, mesmo porque ele tava a
sentir as lágrimas lhe chegarem nos olhos, triste como ele de repente ficou e não conseguia mais dizer
frase nenhuma, ao ponto do padre lhe dizer

mais alto, meu filho!, mais alto

e ele todo encabulado se chegou na cadeira mais próxima que havia ali e subiu nela, quer dizer, a
pensar que o padre lhe estigava de ser assim baixote, mas o padre, de novo

é pra falar mais alto, senhor Brukina

como o padre sempre broava

eu disse mais alto, mas era o tom de voz...!

o Burkina já ali em cima da cadeira, de garganta entalada no silêncio que as pessoas fizeram pra lhe
ouvir, só lhe saiu esta triste frase de se dizer dentro da igreja

coitado do mô camba AdolfoDido, nunca mais lhe enterram... nunca mais lhe deixam em paz...
Este mundo tá fodido!

e largou as lágrimas dele nos mármores do chão, largou também o posto do comício dele, quer dizer, a
cadeira, saiu só assim a correr de dentro da igreja, carro ligado que encontrou e disse no Sete

vamos lá pra casa da KotaDasAbelhas, eu vou acabar com esta merda duma vez por todas

e mesmo sem entender, coisa que acontecia muitíssimas vezes, o Sete arrancou só, não sabia se o
Burkina tava a falar de quê ou de quê!

Lá fora da missa sempre se davam aquelas conversas do depois das coisas, o padre a sacudir a
batina, todos de guarda-chuva não sei quê que tavam a fazer ali, melhor seria ficarem lá dentro na
companhia de Jesus Cristo, meu, vou te pôr aqui, pra mim Jesus Cristo era um gajo porreiro, me
entendes? Tu és dado a umas práticas religiosas ou nem por isso? Epá, vou te pôr aqui umas minhas
opiniões, nada de te ofenderes só, coisas minhas: digo que Jesus é um gajo porreiro porque actualmente
não faz mal a ninguém, cada igreja tem um, fica só ali quietinho na cruz a te olhar, mesmo te digo, olhar
do gajo é assim calmo, faz bem, mas principalmente acho que ele foi, no tempo dele das vidas
mundanas, um gajo porreiro, porque segundo me contaram o gajo era dado a uns milagres assim
inesperados, como é que vou te dizer?, cómicos mesmo, gala só: tavam numa festa também aí, sim,
porque, num sei se tu sabes, mas naqueles tempos, e isso num é invenção minha, tá na Bíblia, havia
pouco pra se fazer, meu, andavam sempre dum lado pro outro, a falar de Deus e doutras coisas mais,
era só chegar no teu cubíco largar umas rezas e uns sermões e umas estórias, inda te serviam almoço,
lanche e ceia, mas num é a grande ceia, é só ceias pequenas de antes de dormir e era assim que os
gajos faziam, sempre a contar factos religiosos do blá-bla, daí mesmo dois vícios meus: um, que só
acredito naquilo que vejo, porra, nisso, já dizia minha avó, sou muito parecido com S. Tomé sem ser
príncipe, o gajo era dado ao método da dúvida também, só acreditava nas feridas depois de meter lá os
dedos e ver o outro gritar, ó duvidas... Outro hábito é o de recear a água... Ai, num te contei?, eu receio
a água, muadiê, e esse meu receio tem fundamentos altamente antiquados no tempo contabilizado pelas
bíblias: se o próprio Jesus, nessa festa que eu te pus, gastou milagre a transformar água em vinho, eu
mais é que vou ser o teimoso, Judas da tibaria? Nem pensar!, água pra mim só da praia, bem salgada
mesmo, e quando lavo os dentes faço os possíveis pra num engolir, inda essa merda vai me fazer mal
nas veias. Tás a rir?, pensas que a religião é pra quê, é pra aprender mesmo, melhorar nossos
comportamentos na base duma interpretação bem livre dos factos religiosos, tão livre que hoje em dia
cada um tem sua versão, ou tou a falar errado assim?

O Jaí então tava no hábito dele de vasculhar o jornal, ficou lá sentado, tás a ver?, gajo vijú, fica só ali
dentro das não chuvas, na companhia de Jesus, que é um sítio muito bom de se estar, sem makas do diz-
que-disse lá de fora, as damas e o padre cada um a querer puxar carapaus pro seu lado, o kota Tuarles
a se despedir das pessoas, só não fala mesmo com o padre, mas a Paurlete foi lá mais outra vez pro
padre pôr bênção na testa do miúdo. No jornal a novela seguia — caso do morto não enterrado, que não
havia bem caso nem havia seguimentos fúnebres, que a investigação se mantinha, e outros eteceteras
dos não entendedores da matéria.

É sempre assim, como dizia o kota Odorico, onde se dão acontecências relevosas, os jornaleiros
aparecem abutremente, tendo as notícias factuais como não, inventando mesmo se for preciso. Além
duma curta entrevista do Burkina, sacana do gajo, sacripanta!, num tinha dito nada no Jaí, tinha saído
mais outra matéria daquelas assim extensas, por acaso até mal escrita mas com muita informação,
todos mambos mesmo, até explicava como eram as deslocações, vinha as horas que podiam os
populares espreitar

filhas da puta!

pensou o albino

agora a espreitarem um gajo morto... Nunca mais o gajo descansa em paz!

no jornal até falava das características dum estranho produto que não deixava o corpo apodrecer,
falava mesmo na hipótese de comercializar esse líquido pra combater o envelhecimento das peles,
outros queriam combater o envelhecimento total do organismo e outros já pensavam numa versão mais
amarelada do viagra, que ia se chamar fortex angolano. Era mesmo um número especial dentro do
jornal com título bem bigue

AdolfoDido: duro de morrer!

falta de respeito na morte do outro, mas também a lei não tava munida de nenhuma manobra anti falta
de respeito, portanto cada um punha mais ou menos o título que bem entendesse, e nesse capítulo do
duro se abordavam outras perspectivas do assunto, e alguns populares, ou melhor, algumas popularas
afirmaram ter visto, por duas vezes, o kinjango do morto em posição de combate, quer dizer, avilo, o
janguê do gajo inda tava em pleno funcionamento das vontades ou quê?, num sei, tava no jornal, e com
descrição dada pela moça

ali onde na bandeira fica mesmo a catana, pois... é aí mesmo que quê... o quê do morto... tava
a se levantare...

o Jaí só abanou a cabeça e olhou mais pro Jesus, fazer mais como então?, se não há nada mais de
interessante pra relatar, se a chuva de tanta insistência já tinha perdido protagonismo nos jornais, só
sobrava o coitado mesmo do AdolfoDido. Mas, porra, o assunto chegar já no janguê do morto?!

Avilo, prepara só mais umas cervejas, porque tamos quase a chegar no fim, mas não vamos funcionar
com as pressas — aqui tem que ser tudo no tempo de cada birra, nós aqui sentados como sempre
estivemos, nada de avança-avança de atropelar as recordações e os momentos da pura nossa estória.
Sem kijila — a estória tem que ser bem zungada e eu tou aqui pra isso.

Tou ta pôr as coisas do depois da missa, mas tens que ser vijú na tua cabeça e pensares que eu só
posso contar uma coisa de cada vez, mas mais de mil coisas estão a suceder ao mesmo tempo, como
diz a KotaDasAbelhas

ouves um só zumbido mas na colmeia tem mais de seiscentas abelhinhas a trabalhar.

Por exemplo, esse tempo todo da missa, o sub Gadinho foi na casa da KotaDasAbelhas buscar o
corpo do morto que ele tinha lá esquecido no dia anterior, lembras, né?, e ninguém lá dentro lhe
respondeu. Bateu, bateu, e só lhe devolviam ganidos de ladrar alto, que ele até se assustou e mandou
um agente cabíri espreitar na janela da sala se tava lá um morto com cheiro de mel, mas o agente que
também tinha ouvido o Cão ladrar assim tipo bosse do cubíco, não quis ir; logo o sub Gadinho teve que
lhe ameaçar com férias definitivas no pouco salário que ele já recebia de vez em quando, e ele lá
espreitou, na janela que o sub tinha falado, mas só tinha lá a bandeira nacional no chão.

Tás a falar a sério?

lhe pôs, e o outro disse


sim, chefe

ainda do lado de fora da viatura, todo ensopado que ele ficou logo, e o sub lhe disse pra ele ir a pé na
esquadra, pra num entrar mais no carro que ia molhar tudo, e lá foi o agente cabíri a resmungar pela rua
fora, e como era hora do calor, já te pus, apesar da chuva, foram masé beber cerveja enquanto
esperavam o fim da missa, pois o sub pensou que eles tinham desobedecido ordens e tinham levado o
corpo na missa, ou então tinha sido através da autoridade mesmo jurídica da dona JuízaMeritíssima, era
melhor nem fazer muitas perguntas, e foi montar espera das novidades na esquadra dele.

O quê, avilo? Não, eu num menti nada, aqui não há mentiras nem confusões, eu te falei mesmo a
verdade: na igreja num tinha corpo nenhum, porra, se não comé que o gajo ia mesmo pôr nome de
capítulo missa de corpo ausente?, ele também num quer ser apanhado assim nos flagrantes literários...,
e eu inda num tou grosso! Aí onde chegamos, é onde eu queria mesmo chegar, tu é que num tás a
captar: o corpo não constava mais em lado nenhum e quando os outros voltaram da igreja, pensaram
que era acontrário, que o sub Gadinho tinha levado o corpo pra esquadra, e assim por diante e pelas
laterais também, quer dizer, até a DonaDivina ter passado na esquadra com o padre pra benzer o corpo,
e o sub dizer que o corpo não tava ali, tava na igreja!

Na igreja?!, não, não...

afirmaram quase em coro os dois, DonaDivina e o padre, e então o sub Gadinho começou a
desconfiar que o corpo tinha sido mais outra vez raptado — desgraça dele, pois tinham lhe avisado nas
instâncias superiores que não podia acontecer mais nada com o corpo.

Também o Burkina chegou na casa da KotaDasAbelhas e, como viu todas portas bem fechadas,
pensou que num tinha lá ninguém, ele mesmo sabia que era raro a kota sair do cubíco, e ela nem tinha
ido à missa, portanto era caso de esperar ali mais um bocado, enquanto tavam a tentar refazer o dia
anterior, ele e o Sete, pra perceber em que altura tinha então o PCG desaparecido assim sem dizer
nada... E concluíram: a última vez foi quando ele foi mijar

só se ele saiu e num demos conta, chefe

pôs o Sete, mas o Burkina disse que não, porque

a sala era muito pequena e ele num ia passar por ali sem ninguém lhe ver.

A conversa deles foi interrompida pela chegada dos carros dos ninjas, cercaram o cubíco da
KotaDasAbelhas e saiu o sub Gadinho do carro dele, sem guarda-chuva nem nada, todo molhado tipo
rambo que ele queria parecer assim vestido de preto nas missões especiais da operação fodido, só lhe
arruinava o póster era aquela barriga a querer empurrar o colete prova-de-bala.
Afinal, olharam bem: num era a casa que tava cercada, era mesmo o candongueiro policial, o Burkina
parou de rir mesmo antes de começar porque o sub veio de metralhadora na mão, apontou na viatura e
lhes mandou sair, coitado do Burkina, bué de ninjas só a olharem pra altura dele, assim cheio de medo
com aká apontada no nguimbo e a lhe mandarem mudar de viatura, ele a perguntar

mas, o quê que se passa então?

o sub só dizia

lá na esquadra já vais poder dizer o quê que se passa, agora passa masé aí pra dentro, tu e
esse motorista também!

Quando entrou na parte de trás da viatura policial, onde o sub também depositou a sirene arrancada
do candongueiro dele mais o quadro das ardósias escrito operação AdolfoDido, o anão Burkina deu
mesmo de caras com o camba dele, também detido

ó!, mô Jaí?!, tás aqui a fazer o quê?

mas o Jaí então é um gajo calmo, inda deu pra ele responder

o mesmo que tu!, num sei muito bem o quê, mas parece que tamos presos!

o carro seguiu, lhes mandaram calar, mas bom mesmo era ver a cara do Sete, coitado, começou só a
chorar e a dizer baixinho

chefe, me desculpa mesmo, às vezes quando o chefe vai nas damas eu fico a fazer mesmo
candonga com o carro do chefe... Uma vez também fui na Ilha passear com a minha dama, e
outra vez também quando o chefe tava doente fui até na barra do Kwanza estilar com damas...

mas o Burkina lhe mandou só calar

pára masé de chorar, ó camelo!

num te disse, nome desses do deserto que ele gostava de chamar no outro.

E assim foi, quer dizer, tudo numa operação ninjática tão rápida e molhada que partiram sem ouvir o
tiro, lá dentro de casa... Mas isso é pra depois então.

Chegaram já na esquadra; na sala onde costumava estar o corpo do Adolfo, tava a DonaDivina, o
padre, a KiBebucha e a advogada tipa, todos também com ares preocupados, e o padre só disse

isto não fica assim, senhor Vandinho!

e o sub já bem irritado


eu já lhe disse que o nome é Gadinho!, GADINHO, porra!

tava um daqueles ambientes de cortar com faca, o Jaí só estranhou que o corpo não tava ali, então o
quê que tinha mesmo acontecido, e porquê que tavam todos detidos?

Meu, mais tarde, o sub entrou pra perguntar onde é que andava a última conspiradora, e aí sim, o Jaí
começou a ficar preocupado, já vinham esses termos de conspiração e não sei quê mais, depois iam
começar a dizer que eles eram infiltrados, agentes duplos — quer dizer, o Burkina só podia ser acusado
de meio agente —, depois dali a ameaça de preparação subversista era um passo ou dois, conforme o
espaço na cela reservada pra cada um. Mas a tal última conspiradora que o sub procurava era mesmo a
KotaDasAbelhas, que logo-logo ia chegar ali, cheia de sangue nas mãos e nas mamas, pra esclarecer
tudo e mais alguma coisa, só que só falava na presença dos outros pra não ter que explicar duas ou
mais vezes a mesma coisa, e exigia inda que lhe dessem uma cerveja bem gelada

mas a kota... a kota num é da equipa dos méis?

quis saber o sub Gadinho, mas ela lhe olhou com uma cara do cansaço do outro mundo, e ele mesmo,
a olhar pra ela assim toda banhada em sangues escuros, não recusou o pedido e passou-lhe a birra.

Muadiê! — a surpresa toda, num te conto...

Queres saber? Então já tou como a KotaDasAbelhas todas: passa masé uma birra!
Morte matada, de cão
Múkua-kâfua ûfua, o kâfua ni kâbue.

Provérbio kimbundu

[Tem que morrer o defeituoso, para que o defeito acabe.]

A kota, em vez de pôr logo os mambos, quer dizer, assim que viu que ela é que detinha as informações
todas, e mesmo quando o sub Gadinho lhe avisou que era melhor a explicação dela dos sangues incluir
os actuais paradeiros do morto, ela insistiu mesmo em começar mais a falar do sonho dela. Depois
pausou ainda, começou assim a coçar de modo estranho, tipo tava remexer mesmo sentada na
cadeira... Ahahah!, eu sei, aquilo é maculo, avilo, dá muita comichão e num dá pra disfarçar — modo
que aquela kota tava assim a raspar as bundas na cadeira?, puro maculo do pão do Lima, num duvida
só!

Falou que tinha sonhado com mambos que ela num gostava de sonhar, mas ali todos tavam a pôr
respeito é na idade da kota, como é que você vai mandar sekulu mesmo abreviar uma estória? Você
ouve só, ouvidos da atenção, olhos que nunca viram coisas que eles, mais-velhos, te falam assim tipo
coisas normais, e que eram mesmo normais!, lá no outro lado do tempo, nos antigamentes.

Um viajante é o quê?, num é aquele que vem de mais longe? Se você vem de longe, quantos
caminhos é que você cruzou, quantas pessoas e o mundo delas, quantas visões você viu, quantas
magias? O tempo, avilo, o tempo é essa estrada comprida que eu te falo, e quem vem de longe sempre
já tropeçou em mais pedras e enfrentou mais lacraus. Mentira?

O sonho, um gajo se lembra é de manhã, às vezes... Porque tem vezes também que o sonho se apaga
mesmo sozinho, te devolve no abrir de olhos da realidade e te castiga com puro esquecimento: queres
falar, queres lembrar, mas é só um abismo que tens dentro de ti. Mas a kota não — tinha sonhado com
as coisas todas que ela num gostava de sonhar, e assim começou a falar, com duas abelhas que iam lhe
sobrevoando os ombros e ninguém se atrevia a afastar

primeiro, lembro-me bem, no meu sonho havia só a imagem do mar... e mesmo que tentasse
virar-me pra outros sítios, mesmo que quisesse olhar pro céu, era o mar que me inundava o
sonho, mar azul, muito azul mesmo, aliás tão azulado que nem conseguia entender a linha onde
o mar toca os céus, lá longe, onde o sol aprecia desaparecer

todos inda suspiraram um cochito nas poesias da kota.

Como sabem, sonhar com o mar é sonhar com as lágrimas, e não as lágrimas leves dos
momentos felizes, mas as lágrimas de qualquer tristeza que está pra chegar...

o sub Gadinho teve que desligar o gravador, porque não queria gravar ilusões de sonhos, conversas
afiadas nas abstractices da KotaDasAbelhas, inda por cima tinha trazido com ela duas abelhas, guarda
as costas ou quê?! E a kota

depois tudo escureceu, e ouvi passos; eram passos apressados com um barulho enorme, e
então vi os sapatos, por mais que esforçasse não via se era um homem ou uma mulher que
calçava esses sapatos, só ouvia os passos irritantes dum lado pro outro... como sabem

mas quem sabia ali?

sonhar com sapatos é sonhar com barulheira, confusão, kazukuta!, como diz o povo, e o
sonho ia se enchendo de barulhos, tantos, mas tantos que eu pensei que a qualquer momento
deveria estar prestes a acordar, o que não foi tão rápido...

tão lenta está a ser a puta da explicação!, o sub Gadinho deve ter pensado, mas lá está, muadiê,
quando o mais-velho fala, você cala!

Depois a cor azul foi desaparecendo devagarinho e tudo se foi tornando branco, branco como
as nuvens, branco como os tecidos das noivas, branco como um lençol de seda, e como sabem,
sonhar com lençóis brancos é sonhar com os tecidos suaves que forram os interiores do caixão...
aí tive medo e, confesso mesmo, decidi acordar

até que enfim, pensou o sub Gadinho, e ligou novamente o gravador a pensar já que iam então passar
pro mundo das realidades concretas todas, os sangues e o desaparecimento do afamado AdolfoDido.

Mas, tás a fazer essa cara porquê, muadiê, te aborreço? Tens sede...? Não?!, porra, mas eu tenho, e
estamos aqui a chegar na pura parte, se calhar é melhor mandarmos já vir mais umas tantas, por razões
de segurança, num achas? É melhor só.
Pra num te maçar, vou pôr novamente as coisas no meu discurso, meus trejeitos assim de te contar os
assuntos nos solavancos da memória, mas eu já vi que tás a captar tudo, então vou prosseguir na voz da
minha própria boca.

Tens inda que captar a ambiência toda dali, os sangues que a kota respingava bem escuros, não
parecia nada sangue de pessoa, e todos ali de boca aberta não só a tentar imaginar o que se tinha
passado mas também já em esforço de pensamento: o quê que aquilo tudo tinha que ver com o
desaparecido morto?, e finalmente os que tavam só preocupados masé em sair dali, fosse a
KotaDasAbelhas ou outro qualquer alguém a lhes safar.

Mas só pra me meter contigo, avilo, vou ir inda mais longe, do outro lado da estória, o finzinho: pra que
saibas, o anão BurkinaFaçam num vai nada curtir com a dona JuízaMeritíssima, que aquilo tinham sido
mais palhas que fogos, ou se calhar era daqueles fogos-de-artifício da marginal que prometiam sempre
no fim d'ano mas depois ou não havia ou, havendo, quase nada daquilo explodia, tás a galar?, mais olhos
que barrigadas, isto é, nada de contactos físicos pontiagudos que ultrapassassem os beijinhos lado-a-lado
do cumprimentar normal, mesmo de qualquer modo o Burkina sempre a apreciar, quando via a
JuízaMeretíssima, as tranças dela assim certinhas na cabeça, luke dela africano bem posterado que ele
admirava e pensava assim muitas vezes

porquê que as mulheres africanas só gostam masé de desfrisar cabelo toda hora?

e mesmo quando não tava nos trajos dela de JuízaMeritíssima do luto judicial, sempre lhe encontrava
trajada nos mais belos tecidos africanos, Nigéria e Quénia das áfricas dos suis todas, roupagem
interessantemente concebida, como dizia o kota Odorico, mas tudo não passando das respeitosas
contemplações, como te ponho, porque ali tinha havido faísca mas não incêndio, me compreendes?
Agora, lá no Sindicato Nacional das Putas, aí sim, as coisas corriam muito bem, e quando as damas se
fartavam só de ouvir promessas sem nenhuma concretização, o Burkina voltava a falar na possibilidade
do encontro internacional de putas a acontecer no Brasil, elas se entusiasmavam de novo, e voltavam
mais nas grandes farras de meia-noite organizadas pela Eva, com direito às famosas saladas sexuais
que ela temperava com o galheteiro da arrojada imaginação dela, sendo ela mesmo, inda hoje,
reconhecida como uma das pioneiras dos mais variados métodos sexuais em uso na nossa capital,
mambos de dar porrada — só que nos homens, e lhes amarrar, e lhes pôr cócega com dor, mambos até
de sufocar e fingir afogamentos na ponta da Ilha, meia-noite pra diante, tudo inventado nas mãos
calejadas e húmidas da Eva e da Madalena

profissionais altamente competentes

na opinião do mais afamado anão de Luanda, BurkinaFaçam, que nunca mais encontrou o puto PCG,
mas encontrou a fama naquela notícia surpreendente de dias depois, onde se atribuía ao grupo musical
Burkina e sus muxaxos o grande prémio nacional do top dos mais queridos, dia que ele chorou mesmo
quando pôs lá discurso de recebimento do prémio no Cine Loanda, na presença do governador da
província, outras entidades oficiosas, vossas eminências e outras deputências.

A KiBebucha num sei bem o que aconteceu, se perdeu lá nos hábitos dela de ir apanhar estrangeiros
nas festas e discotecas de Luanda, sempre a se pendurar nas idas e vindas da advogada tipa, que afinal
era grande camba dela dessas da infância, meu, e a infância é isso mesmo — raízes que um gajo traz
nas costas do passado e no coração do nosso presente, e essas pessoas que são as sementes da nossa
infância nós nunca lhes conseguimos ver de outra maneira, ficam anjos pra sempre, ou diabinhos pra
nunca mais, e se lhes vemos sorrir, sorrimos só também, mesmo que seja um grande filha da puta a te
esfaquear as costas, você desconsegue de lhe dizer chega!, porque essa pessoa que você vê ali, nas
costas da facada, é o anjo que se cortou caçumbula contigo na areia da rua, cacos no chão da nossa
memória, jogos de ficô e bica-bidôn de não ir jantar só pra ficar na rua a jogar, então eu entendo,
muadiê, a advogada tipa e ela se respeitavam no reino das lembranças e lá mesmo se abraçavam, inda
que aqui nos infernos do dia-a-dia se olhem assim com faíscas de ameaçar nos olhos abertos.

O Jaí se safou na abertura das faculdades todas privadas, mesmo na teimosia dele de num deixar de
leccionar nas públicas

compromisso social

ele me falou, antigas coerências dele dos camaradismos, deve ser ele é um desses poucos que
levavam aquela merda a sério, nada de leninismos mascarados de interesses mais que pessoais, nem
camaradices só de bater as continências no recolher da bandeira no pôr do sol, mas tudo o resto, a
orquestra comunista a tocar bem alto dentro dele, as divisões impossíveis com a justeza toda do trabalho
social e outros proletarismos que ele sonhava desde cedo, livros dele grossos na mesa-de-cabeceira,
noites de discussão marxista nas barbas falsas de outros camaradas

assim que viram a oportunidade dispensaram a más cara

palavras do albino, no olhar dele só de desgosto de ficar aí, fim da tarde, a olhar as fotografias dos
cambas dele cubanos

estes gajos não existiam...

fica a dizer

estes gajos não existiam...

às vezes chora mesmo nas músicas francesas que ele escuta em cima das fotos que gosta de olhar:
preto e branco das fardas e almoçaradas com los compadres, promessas de se escreverem que nunca
aconteceram e idas a Cuba de visitar la comadre María, e agora, onde tinha ido tudo isso?, os cartões
de pensarem que assim era tudo justo, mas dentro das igualdades parece há sempre uns mais iguais que
outros, ou não é assim, muadiê, e cinco pães dum avilo podem não ser bem iguais a cinco pães doutro
avilo, depende às vezes se você é muito camarada ou pouco camarada, enfim, dúvidas afogadas no mar
e nas calemas do tempo, coisas dele, divagações domingueiras dum gajo num se meter lá, mas posso te
dizer que o gajo assentou, salários dele melhores que davam pra acompanhar as despesas da casa dele
e sua esposa bem estranha, isso mesmo, adivinhaste: a KotaDasAbelhas!

Meu, eu num esqueço nada, até agora pelo menos inda num esqueci nada, tou ta pôr as coisas como
eu sei, no ritmo dessas nossas ngalas aqui da madrugada, vamos só falar bem, e ninguém que venha
aqui nos falar dos respeitos se estamos aqui a falar dos outros ou não, porque isto é também um acto
artístico, sim, isto mesmo, a nossa conversa, os arrotos que tamos a dar, tamos a dar na cara de
alguém?, não!, tamos a dar na cara das estrelas e isso não é a toda liberdade de sermos homens?,
irmãos, bródas, quer dizer, companheiros não só de país mas também de existência? Vamos só, muadiê,
agarra a tua calma e vai mijar por ti e por mim já; quando voltares te ponho o que queres saber — o
destino do morto e do Cão.

Vou mais emprestar a minha boca nas palavras da KotaDasAbelhas quando ela chegou lá na
esquadra, de modos que enquanto eu falo tu pensas só que é a kota que tá sentada aqui contigo, essas
duas moscas que andam aí fazem mesmo a vez das abelhas e eu fico a kota, teatro nosso onde ninguém
paga bilhete, só birra. Aceitas?

Hoje eu entendo: morrer pede paz, e num é essa paz de se fazer pouco barulho e chorar em cima do
corpo do morto, é a paz do chão mesmo, o barulhinho só dos alguns bichos, as sementes junto com o
corpo, o crescimento delas na forma da rebentação duma flor a ser pisada, ou não. Mas penso que a
morte quer isso mesmo, esquecimento no tempo do que um gajo foi, não talvez do que um gajo fez, mas,
tirando as fotos e as memórias que sempre vão desaparecendo, a morte quer o corpo dum gajo
quietinho e pronto a se fingir de grão de areia, os outros dizem pós e cinzas, epá, num sei, eu vou dizer,
terra na terra, se todos no fim dos dias tombamos, então todos somos só um conjunto de grãos arenosos
aí a circular, e depois voltamos pra casa. Isto é nos planos físicos, o que tá tudo ligado: na quentura do
chão o corpo repousa, alguns dias depois e anos mais tarde cumpriu a missão de ser também estrume
do planeta, o morto dá lugar nas plantas, nas árvores, numa outra beleza em forma de flores, ou não é
assim?, e é nesse desfazer das conjunturas corporais, como dizia o kota Odorico, que aquilo que
chamam de alma pode seguir os destinos astrais dela, subir, descer, flutuar ou desaparecer, segundo as
crenças de cada um. Aqui chegamos no prubulema que tamo com ele, como se diz aqui: esse morto
num tinha paz nenhuma, nunca tinha sido enterrado, tavam a lhe tratar, desculpa inda se vou faltar
respeito aqui, tavam a lhe tratar tipo saco das batatas, pra num dizer outros sacos piores e mais leves
ainda, mas eu te ponho, houve um grande filipanço, ai?!, você pensa quiê?, morto também filipa, mas a
verdade é que num foi filipanço dele, num vou aqui adiantar nomes, mas dizem que a primeira pessoa
que viu o gajo andar mais outra vez, e nem sei se posso dizer viu, foi o cego Diarabí, sentado ali na casa
da KotaDasAbelhas, lá fora, em baixo do imbondeiro como ele sempre ficava, deixou de tocar a árvore
quando ouviu um tiro e depois os passos
ai uê, mamã!, mas... mas... voltaste mais, kuombo lokista kazukuteiro??? Tavas aonde então?

falou o dikota quando apercebeu que o puro ex-morto Adolfo saía da casa da kota duma makarov na
mão inda com cheiro de pólvora, e só depois aconteceu o choro feminino lá dentro, e o cego, sem ajuda
de nenhuma bengala e nenhum cão que ele tinha, foi só assim a andar sozinho pela casa até lá dentro,
sem ouvir a primeira palavra sair na boca do primeiro morto que voltou, se foi o primeiro, nunca soube
de outros..., essa palavra só perdida nos ouvidos das abelhas, se abelha tem ouvido, num sei

kalungangombe... kalungangombe...

aí onde podia estar a resposta total do grande mistério das dúvidas humanas e de todas filosofias
universais, pra onde vamos?, e mais eventualmente ainda, a outra, se Deus existe!

Muadiê, vou te dizer mais quê, se essa é a pura verdade: falta de descanso, abuso das confianças e da
paciência do outro, saco das batatas da inveja e da justiça e das pensões dos antigos combatentes e das
viúvas do estado? Toda hora só a sacudirem a paciência e a morte do outro, agora o muadiê tava aí,
filipado mesmo de arma na mão e tudo, só a se olhar assim no corpo dele besuntado daquele mel
estranho, a galar as abelhas que única missão mesmo delas agora era lhe limparem, porque assim já
autorizado a circular no mundo dos vivos, não tava precisar mais daquelas besuntices dos méis, e as
abelhas, as abelhas são vivas, meu, já em serviço de limpezas corporais, isso que eu admiro naquelas
abelhas, se o país funcionasse assim ficávamos bem, não esperam mesmo ordem da kota pra bumbar,
se sabem mesmo que o gajo tá vivo, limpam só o muadiê. Se tu lhe visses assim, parado na rua!,
fardamento de morto dele bem bangão, trajado fato escuro das cerimónias mais fúnebres, e um monte
de abelhas a lhe bicarem as roupas, ele parado, se tu lhe visses ias pensar que ele tava a colaborar com
as operárias abelhosas e esperava contemplativo a finalização do trabalho, mas não: ele tava a se
reabituar de pensar, sentir outra vez as circulações sanguíneas, e fechar os olhos assim chinesadamente,
o sol a lhe perturbar as vistas habituadas na escuridão dos últimos dias e, num te conto, muadiê: a chuva
tava só a parar e o sol voltou a brilhar assim tipo queimadura viva!

Filme?, versão angolana do morto que volta? Não, avilo, verdades só: AdolfoDido ali, as abelhas que
iam e vinham, mais iam que vinham porque ele tava a ficar puramente limpo, linhoso, e as mais-velhas
quitandeiras a passarem nos cameralentas dos olhares delas, até pararem de gritar assim ê-peixêêêêê,
ê-peixêêêêê pra poderem olhar bem aquele homem assim de fato escuro bem vestido e bonito no meio
do passeio, ali onde o imbondeiro dava sombra no sol que tinha acabado de chegar, e elas mesmo no
cameralenta também dos gestos a baixarem as quindas pra afastar o cheiro do peixe e sentir só, no abrir
intencional das narinas, o cheiro quase bonito de mel que vinha daquele homem, do outro lado da rua,
mesmo assim de kilunza na mão que não tinha ar de assustar nem magoar ninguém. Só depois deram
conta que a chuva tinha parado, deram perdão no salo e foram pra casa comemorar o fim da chuva,
sabes como é, né, avilo, aqui tudo é desculpa pra meter feriado e fazer farra.
Aí, nesse passeio de se apalpar pra ver se tudo funcionava como antigamente e ficar a inspirar com
força a testar a capacidade dos pulmões, o Adolfo saiu assim a caminhar pelas ruas, mesmo a enfiar os
sapatos e as meias brancas nas poças d'água, afinal, sujidade nos pés e nas meias, mesmo quem sabe
uma queda por causa dum buraco, o fato todo sujo e a estiga toda dos putos de rua, mas o que era isso
então ao pé mesmo do facto de estar ali, puramente vivo, a celebrar não o sol ou as contemplações da
city, mas a celebrar simplesmente o facto de poder estar assim, a respirar e a rir, cada vez a não
acreditar mesmo que tava vivo...

Banho de chuva?, já tomei muito banho de chuva quando era candengue: era só pingar e já queríamos
ir tomar banho de chuva das constipações de logo à noite, principalmente os que tinham asma e as mães
não deixavam banhar nas águas do céu, e tínhamos que ir às escondidas, pedir no kota Diarabí pra num
dizer que tinha nos visto, ali, do outro lado da rua, e ficar assim a saltar, porque, num sei se sabes,
muadiê, mas é assim que se chama a chuva pra ela vir: saltas, saltas, tipo tás a bungular, e dentro do teu
coração desejas com toda vontade que o céu fique mais escuro e as águas iniciem, torneira toda aberta
do dono da torneira do céu... Mas ali na caminhada dele de vivo, o Adolfo tava então a contemplar
pessoas no banho de sol, e então percebeu mais ainda o significado da palavra saudade, que num é só
de pessoa ou dos amores, pode também haver saudade da luz amarela, universal, e tavam todos a sair
dos carros e a se abraçarem, mesmo, como ele, a não se importarem com as circunstâncias da sujidade
dos lamaçais, putos de rua a atirarem águas pro ar, quer dizer, eles eram os próprios chuveiros deles, e
buzinas nos ouvidos assim só tipo celebração e tiros até lá mais longe, o Adolfo queria só rir,
simplesmente rir, direito dos vivos que ele agora tinha, quando viu lá longe uma mboa bem cambaia só
vir a correr nos alicates das pernas dela, correr só correr como dantes, sem querer pensar nas
direcções, e o pensamento dele sim, mais uma vez, se dirigiu pras ruas da infância, onde um primo dele
contava que no Sumbe, terra dele, tinha muitas miúdas cambaias, e ficava só assim calado nos silêncios
do olhar dele, a esperar alguém lhe perguntar

porquê?

e ele, o primo, respondia na voz dos mistérios todos

é que no Sumbe tem muitos buracos na rua... quando as mulheres vão cartar água, toda hora
pisarem nos buracos, quê..., ficam ansim cambaias...!

Afinal, muadiê, diz só a verdade: a memória nunca te fez cócega?

Ali, na esquadra, todos tinham ouvido tiros lá fora e gritarias tipo Carnaval da Vitória, mas o sub
Gadinho tinha insistido nos interrogatórios e tinha dado ordens de nenhuma interrupção, então ninguém
ali dentro sabia dos acontecidos nem da paragem das águas, até que a KotaDasAbelhas chegou lá e pôs
também esse facto solar, e então o sub Gadinho abriu os estoros e todos assim baixinho berraram
ahhhhhhhhh!!!..., num te digo?, só da saudade deles de olhar os raios do sol assim a entrar na sala e
um bocadinho nos corações também, e tava tudo gravado só que havia coisas que ele, sub Gadinho, num
tinha entendido bem, mandou todos saírem menos a KotaDasAbelhas

a senhora veio aqui fazer o quê então?

ele inda num tinha entendido.

Vim dizer... dizer...

nunca mais dizia nada, até que disse

que o Cão está morto!

Dentro dele, o sub Gadinho filipou mesmo com vontade, mas nos exteriores da pessoa e olhos dele, e
ali a galar a kota assim triste e cheia dos sangues escuros do Cão nos braços como nas xuxas, não quis
mais pôr ralhetes na kota, ficou só ali, meio a ouvir o que ela ia dizendo pro gravador, meio a olhar os
raios de sol lá fora, tirou cigarro dele do bolso e se preparou pros prazeres pulmonares do fumo, assim
tudo devagarinho, enquanto a kota explicava os entretantos todos do antes daquilo que o cego viu, afinal,
ela tinha sido a primeira a ver o morto viver.

Muadiê, tu fumas? Eu também não, gosto é de beber — passa lá mais uma então, antes que o
discurso corra risco de enferrujar...

Mas, avanço: quando ela entrou em casa nessa manhã, viu as abelhas muito irrequietas e não
entendeu, foi na varanda e confirmou que num tinha havido nenhum golpe de estado, o lugar da rainha lá
na colmeia tava intacto, e ela guardava aí uma pequena ramela dela, do dia então que ela tinha abatido a
rainha-abelha com lata de sheltox, monacaxito dela dos químicos anti abelha que funcionou na perfeição
porque ela soube escolher o dia, porque ali há muito de se estudar, avilo, e há dois dias do mês que a
abelha rainha só dorme, sem grande poder de resposta, foi então num desses dias que a kota atacou. Lá
na varanda tava tudo bem, na cozinha havia menos abelhas que o costume a trabalhar, mas ela pensou
que eram inda consequências das confusões havidas ali em casa, que as puras operárias num tavam
habituadas a tantas companhias, e ouviu zum-zum exagerado na sala do lusco-fusco, onde a boca dela
do espanto se abriu ao ver a bandeira assim abandonada no chão, sem o ocupante, e as abelhas já a
limparem o mel da bandeira, roda dentada bem dentada mesmo pelas camaradas abelhas da limpeza, e
uma sensação muito repentina lhe queimou o peito e pensou em tudo o que tinha sonhado nessa noite, e
foi só assim nos caminhos do corredor pra divisória do Cão.

Muadiê, confronto é nas mãos ou é nos olhares?, sim, te ponho: confronto, peleja bigue mesmo, num é
mais nos olhares que nos gestos? E estar parado, afinal, é o quê...? Num é um gajo num se conseguir
mexer e ficar assim só estátua, como disse o kota Guimas

o medo é a ignorância num momento muito agudo


é assim que vamos encontrar a KotaDasAbelhas no corredor da própria casa dela a ver o confronto
da vida com a morte, ou seria um vice-versa desses que um gajo num sabe ver onde tá o bem onde tá o
mal?

A porta toda escancarada, meu, e só havia mais que medos ali — a kota sabia que num podia abrir a
boca pois assim ela ia quebrantar o gelo do momento e aquilo podia dar pro bem torto, quero dizer,
desconcentrar os puros pelejadores: do lado de lá, mesmo junto da janela onde a chuva inda batia com
as gritarias do vento, o Cão tava com os ares dele assustadores do outro mundo, dentes de arreganhar
pânicos em qualquer um homem comum e mortal, mas não naquele, Adolfo bem fodido, descomum
morto voltado mais aqui no reino dos vivos, fato dele a pingar méis e nenhuma abelha ali a se aproximar,
mão dele quente-quente mas firme na makarov só duma bala muito única, aí tava então o nervo do
combate, avilo, não podia ali haver falhas nenhumas! Já ouviste barulho de poste-electricidade das altas
tensões? Era assim só — os dois a se olharem no confronto aberto, o Cão pronto pra saltar e o Adolfo
só parado, olhos nos olhos do Cão besta, nenhuns movimentos, só as moléculas do ar a se deslocarem
porque a KotaDasAbelhas sofreu uma lágrima no olho dela a escorregar até no buraco da boca, onde
entrou e ela sentiu o sal, e era demasiado salgada a lágrima, última sensação que ela sentiu e lhe
distraiu, até perder o momento do derradeiro salto do Cão mor, salto um tantomente enormístico, como
dizia o kota Odorico, quase vindo do outro lado da sala, que era grande, até pular sobre cima da mesa de
centro e querer chegar, patas e dentes caninos afiadíssimos, na garganta do ex morto, e o tiro se ouviu
no ar, seco como o barulho da morte quando está levar um alguém. A kota ficou só aí — engoliu o sal
da lágrima dela e esperou: o Adolfo se levantou, os cheiros da pólvora no ar, e afastou o Cão inda
respirativo, ofegâncias dele no olhar e uma estranha baba a lhe escorrer no canto da boca, e mais em
cima, no buraco-bala do entre-olhos saía sangue escuro, sujava o pano bonito das arábias das
comodidades todas do Cão, o Adolfo a lhe apontar mais a pistola na cabeça, e a esperar a força da
reacção do bicho, e o bicho — os olhos a se fecharem na lenta despedida, virou os olhares pra kota, ela
se aproximou

não toque nessa baba!

o homem da pistola avisou no berro, enquanto o Cão cessava as respirações e ela vinha pelo outro
lado lhe abraçar, assim só como fez e ficou, enquanto o ex morto ficava ali a querer entender aquele
abraço, depois passava na sala devagar e saía de casa, o sol regressava em Angola, sem ninguém pra
ver a kota chorar e apanhar, no canto do olho do Cão, a ramela que foi pôr na varanda, na colmeia,
antes de sair de casa e ir na esquadra pôr o regresso do morto... Squiúze mi: inda deixa cuspir aqui no
chão.

Depois de olhar assim a cidade do coração dele em festa, o Adolfo pensou que não tinha onde ir, e de
repente lhe deu um cansaço de morte, não é jogo das palavras, é a verdade mesmo, estar morto num é
brincadeira, avilo, dá cansaço mesmo. Pensou que mais valia descansar, além de que lhe atacou uma
daquelas sedes como já num sentia há muito tempo, e regressou mais na casa da KotaDasAbelhas já
ausente, onde o cego Diarabí já tava outra vez sentado lá fora, a rir só

ó kazukuteiro, vucê é que trouxeste então o sol!

o Adolfo depositou nas mãos dele a makarov. O dikota sorriu, lá na cabeça dele começou a juntar as
nenhumas peças que ele sabia, então pensou que aquela kilunza num era uma qualquer kilunza, lhe tinha
sido facultada pelo próprio morto, aliás, ex morto, se calhar aquilo era mesmo um puro calubungo, e ele
ia ser rival da KotaDasAbelhas num bizness mágico também improvisado.

Lá da esquadra todos vieram rapidamente constatar essas evidências do morto que tinha voltado, nas
palavras da KotaDasAbelhas, embora todos pensassem que aquilo era pura verdade, pois a chuva tinha
mesmo parado e a tristeza nos olhos da kota dizia, sem a terceira margem da dúvida, que o Cão tinha
mesmo sofrido uma morte matada.

O Sete tinha gamado lá do jipe a sirene do candongueiro policial, e vinham de sirene ligada, todas
velocidades já, no quadro das ardósias não tinha nada escrito, as águas da rua que eles atiravam nas
pessoas a berrar nos passeios, e o Sete, motorista desde o antigamente do Burkina, só por hábito dele de
sempre entrar no carro e ligar o rádio, ligou, e tavam a noticiar essa repentina paragem das chuvas,
davam já entrevistas sobre os exageros das comemorações solares, até um mais-velho assassino,
acusado de matar um miúdo através duma forte tibaria, se defendia ainda a querer explicar o acto

mandei o ndengue caular uma de uáine, o ndengue partiu a ngala..., chinei o ndengue, é
male?!

e o Burkina

desliga lá essa merda, ó camelo

nesse nome dos desertos que ele gostava de pôr no outro, mas o Sete só riu, todos naquelas
curiosidades de morte pra ver o morto, a não ser que aquilo fosse tudo uma grande invenção da
KotaDasAbelhas, nesse caso não lhe faltava um parafuso só

se calhar falta-lhe o mecanismo todo

disse o Burkina, mas o Jaí disse pra ele parar de estigar a kota.

O candongueiro assim tava cheiinho de gente — todos tinham vindo ali, ninguém queria perder a visão
do acontecimento — e mal abriram a porta, saíram as duas madamas a correr e a gritar

amor, amor!
nome nas bocas falsas delas, e foram acordar o Adolfo que tava mais outra vez a repousar
embrulhado na bandeira, que elas apanharam grande susto de ver ele assim a se desenrolar nos cheiros
do mel e olhar pra elas mesmo com olhos de vivo, queriam lhe abraçar de dar beijos das madalenas
rependidas, e ele lhes afastou assim na brusquidão dos braços, lhes disse

vão masé as duas pra puta que vos pariu!

e a ouvir as vozes lá fora, saiu — ir a correr mesmo nas alegrias de não tropeçar senão no abraço
quente-caloroso dos cambas deles, Burkina e Jaí, nas lágrimas dos três de não se dizerem nada e
ficarem só assim a abanar as cabeças pros lados a não quererem acreditar que aquilo tava a acontecer,
e pra quebrar aquele momento da pieguice amistosa, o Adolfo disse só

porra, tou com uma sede, avilos!...

riram e foram lá pra um bar dos tempos deles, beber as primeiras e as tantas de só saírem no dia
seguinte, na altura que começaram a dizer pro gajo do bar

traz aí a primeira saideira...

Meu, conheces a palavra, saideira?

Nós, lá no Brasil, lhes pusemos uma nova definição — verdade. Essa palavra saideira é palavra dos
brasileiros, não é coisa nossa, nós não dizemos isso porque não queremos dizer que vamos sair, que
vamos abandonar a birra. Pra eles, a saideira é a ultimazinha, ahahah!, o estrago definitivo, as gotas
finais antes das ralhações da tua mboa em casa. Só que nós rimos, e lhes pusemos: nós vamos tomar
agora as saideiras, porque nós pra sairmos daqui precisamos de várias! Avilo, aquilo foi chupar ou
quê?, assim tipo nós dois aqui, agora: vamos lá iniciar as nossas saideiras!

Madrugada nossa, o sol vem já aí, afinal uma estória e algumas birras só demoram isto?, pensei que
fosse mais tempo, mas como sou um gajo honesto mesmo, e antes de começar a te baldar, vou pôr aqui
o fim da estória, muadiê. Nunca vais poder dizer que te aumentei nas contracurvas do acontecido, pois
fiquei-me só pelo campo do real, o resto que não disse, não houve; se houve, lhe desconheço.

Quer dizer, agora eu te ponho: a vida sempre é mais complicada mas também mais mágica que o
imaginado, ou não é muadiê?, gala só as voltas que um só mundo dá, a vida desse gajo, idas dele nos
terrenos do outro mundo que nunca quis pôr mais assuntos, nem falar de momentos desses, do que viu-
não-viu, nem do Cão, nem de nada, assuntos só do domínio dele, mesmo podes lhe querer pagar que o
gajo aguenta, num cai nem descai... Acontecendo, só se for nas vontades dele.

Vindo lá do outro lado do rio, foram nas birras, né?, e ali o início foi só silêncios, uma, duas, vinte e
quatro birras seguidas sem parar, até o Burkina rir mesmo assim na gargalhada da boa disposição dele e
dizer
porra, estás em forma, Adolfo!, a morte fez-te bem!

e ele rir na concordância dessa afirmação mas fazer assim com o dedo na boca pro outro num estar
aí a pôr nas bocas do mundo esse assunto, e o anão a lhe explicar que ia ser muito difícil porque o país
inteiro esteve a espreitar cada passo da morte dele

afinal? conta lá então!...

mandou vir mais umas tantas e várias, enquanto o Jaí se alternava com o Burkina nas sequências a
descrever, mambos deste e daquele jornal, passando pelo puto desaparecido e dona JuízaMeritíssima,
Assembleia da República e outras instâncias governamentais envolvidas e interessadas — o Adolfo só a
olhar assim distante no olhar de quem ouve alguma coisa que de algum lado ele já sabia... Me entendes,
muadiê?

Depois desses dias vieram outros dias, aquilo deu alguma maka entre os principais kimbandas, o facto
do gajo ir e voltar assim sem querer dar explicações, o governo é que ficou lixado sem poder explicar às
populações que aquilo não tinha sido nenhum golpe nem contra-golpe informativo, que não havia
nenhuma manobra secreta ou mal escondida, e que o morto era mesmo um morto que tinha voltado,
embora oficialmente, e nesse quadro das globalizações que se anda viver, o governo nunca ia poder
afirmar aquilo, porque depois ia dar maka com outros governos e entidades igrejísticas, ficou só assim o
visto pelo não dito, os jornais comeram por fora pra evitar de falar no assunto, nem convinha mesmo,
principalmente nesses âmbitos de terrorismo que tavam na moda, se descobrissem que um gajo podia ir
e voltar ileso isso ia se transformar certamente num bom negócio, e os bons negócios são sempre
ilícitos, como sabes, mesmo o Adolfo recebia mal as pessoas que lhe queriam só indagar desses
assuntos, seja do ponto de vista oficial, esotérico ou curiosisticamente perguntativo, como não disse,
mas podia ter dito, o kota Odorico. Mais tarde bigue bosses de oliúde inda queriam vir cá, mas foram
informados que este era um país muito instável sem segurança nenhuma e outras verborreias
vacinativas de assustar estrangeiros, diz lá, muadiê, aqui onde estamos na madrugada das nossas ngalas
geladinhas, aqui há alguma falta de segurança? Porra, um sítio onde um gajo quer morrer e lhe
devolvem assim no sítio da origem, esse sítio num é até bem seguro? Se eu fosse estrangeiro, era
acontrário mesmo: eu queria era vir morrer aqui, assim me habilitava a voltar uns diazitos depois...
Ahahah!, ou não é assim, avilo?

Agora vamos bazar; devagarinho só, sem muita sacudidela na barriga nem na cabeça, por causa dos
eventos que te pus: não vais só lhes perder da tua cabeça, lhes deixar escorregar aí no germinar do sol e
amanhã vires me acusar, no teu esquecimento, que estive toda noite a beber contigo só de borla sem pôr
nada na permuta!

Vamos só, malembemente — faz conta somos os cágados e as lesmas — enfrentar o nosso dia-a-dia:
se essa é a terra que nascemos com ela, vamos fazer mais como então...?
A outra margem

Porque eu também tenho uma missão

na vida: anotar os lugares de

areia branca, vôo rasante de passarinho,

todos os modos do sol. Tenho

tanto que fazer no almoxarifado da

humanidade.

Adélia Prado, Solte os cachorros

Quiê?! Queres mais quê então? Da carraça..., falar mais da carraça? Vais só me obrigar a contar
coisas que eu num queria, o outro mundo e tudo mais.

Pra te falar na carraça, que é uma coisa tão miudinha que pouco ou nada se vê, vou te falar das
coisas maiores do mundo: Deus e o diabo, os céus!, a antiga maka da existência. Mas esta tem que ser
mesmo a última birra, tou a iniciar de ficar com sono!

O céu é um sítio malaico, muadiê, num se faz nada lá

palavras inda do retornado Adolfo, que ele mesmo é que veio informar a razão da doença dele, nada
disso de relatórios médicos que só apontavam nas lesões do fígado, o gajo mesmo tava chateado a
comentar

quer dizer, mesmo depois de morto inda querem me chamar de bêbado


e riam só nesses entretantos da conversa, aproveitando cada nesgazinha que o gajo revelava lá dos
outros mundos onde ele teve.

Maka da morte dele foi uma carraça filha da puta que habitava lá no cubíco do Cão, e não se sabe
como lhe mordeu assim com as fúrias da baba dela, nisso que é uma doença das vacas, sem ser essa
doença das vacas enlouquecidas, mas doença que as vacas é que costumam apanhar das carraças, logo
o azarado do AdolfoDido foi lhe apanhar: febre da carraça!, sozinho em casa nos dias que ele esteve,
antes de campar, por já não conseguir se mexer nas dores e febres de ficar só assim a gritar um
poemário de alucinações várias, alto-alto, berros, os que passavam na rua dele pensavam era discussão
do marido com a mulher onde não se mete a colher, ou então pura e simples tibaria através da tristeza
da chuva que nunca mais parava. Nada disso, muadiê, pura febre da carraça, vir assim camuflada de
comichão matar um gajo na calada da noite, o gajo se lembra, num se calava, dores no corpo da barriga
dele inchada, muita febre e desconseguir de parar de fazer as quadras poéticas que ele nunca soube

ai uê minha vida/num sei se morro ou não/ai uê minha amiga/me traz só banana com pão

mambos já sem nexo, elevadas vontades da temperatura

sinto sangue na cabeça/num sei se é do corte/só sei que vou depressa/visitar a puta da morte

sempre assim, toda noite, até que um aclarão lhe visitou os olhos, ele mesmo a pensar era mais um
raio demorado, e nada disso: era um manto quente sem ser de febre, um arrepio congelado sem ser de
vento, um adormecer duro — sem ser de sonhar e voltar mais a acordar. A morte num é mesmo a
última vez que adormecemos, muadiê?

O Adolfo, já em vivo falava as palavras que desenham as imagens, nada de turvas afirmações
insinuadas nos arrotos da cerveja ou interrompidas no ir mijar... Eram palavras mesmo, por exemplo, o
diabo: gajos que lhe desenharam tinham instinto, ou sonho mesmo puro, o diabo é mesmo assim feio,
cara de javali com cavalo, mas tem uma coisa: o gajo é dado só a bons perfumes, e aí num vale a pena,
só francês mesmo!, o gajo passa o dia a tomar banho, verdade aqui com sangue de Cristo!, nenhumas
catinguices do inferno nem nada que se pareça: as divisões lá não são assim regra com esquadro da
conferência de Berlim, a impor as fronteiras todas, isso são só imaginações nossas, homens terrenos
ainda vivos só. O diabo é um gajo bem-disposto de algumas assustadoras aparências na chipala, mas
fatos que ele usa às vezes estilo europeu muitas vezes estilo oriental, panos de deixar cair sobre os
corpos e estar tudo fresco por baixo, vantagens... vantagens..., o gajo ria nesse riso das malandrices
femininas, tudo nos respeitos da aparência dele, por-favores e dá-licenças toda hora, mas sim, muito,
muito feio, mais que horroroso, pêlos no nariz compridos e os chifres não são estória nenhuma de
assustar monandengues, estão lá, curtos, no vermelhismo da visibilidade. O gajo é tão feio que assusta o
próprio medo, verdade mesmo, gajo alto de não se desequilibrar nas botas de salto alto, toc-toc-toc, voz
das grutas desumanas a lhe saírem vapores na boca quando ele fala, mas voz doce, dos homens
enganadores, e hábito dele terrível é só um: vir se disfarçar de homem e andar nos cemitérios, ficar lá
sentado nas madrugadas a esperar as quitías que apanha lá, na escuridão da casa dos mortos, e fazer
mesmo todos mambos, os sexuais, com ou sem autorização da pessoa, vício dele, muadiê, vir na terra
sempre que pode e ficar aí, fuca-fuca nos gritos das moças que ninguém entra só no cemitério pra ver o
que se passa e mesmo o coveiro finge que está sonhar sonho doce de não lhe acordarem com gritos. O
diabo é um gajo estranho e gosta muito de ficar a fazer poemas, caneta dele de sangues, esses hábitos,
sim, do inferno, como dizem aqui, imagens das decadências todas são imagens dele preferidas, embora
tenha jardins de flores limpas também, e outro hábito dele é passear nas lágrimas, faz colecção de sal
das lágrimas pequenas e prova na língua dele quente o que as pessoas pensam no chorar, e quem não
guarda lágrimas na boca ou na mão e deixa só assim despreocupadamente cair no chão, essa lágrima é
que o diabo gosta, lágrima suja, já ida na terra que ele recupera e guarda... Fólô mi?

Como dizia o Adolfo, o céu é um lugar muito malaico, avilo, porque exagera nas belezas, só outras
dimensões que ainda não sabemos imaginar aqui, mais luzes que lugares, mais sensação que movimento,
me entendes?, faz conta estás na água e mergulhas e tens que voltar cá em cima nos oxigénios, mas lá
não: nem tinhas essa preocupação e nadavas só, abraços nos peixes e nos polvos e nas alforrecas de
não te ferrarem porque, ali, o mar era outro, e a água era a casa da tua pele também.

Te confundo? Não? É que tens cara de cabrito mal morto que ainda falta lhe dar um tiro... Queres a
verdade toda, o círculo completo, o rabo da formiga pra passar a dor onde te piquei mesmo?

Ouve inda, quero te agradecer puramente, ouviste bem a minha estória. Afinal não é só aquele que
conta que conta: quem escuta calado também faz a estória. Se vais contar tudo isto nos teus cambas ou
nos teus candengues, porra, num aumenta só mais essa estória — ela toda já é um espanto da vida,
viagens todas incluídas, volta e vinda também. Mais até: no mô coração só vou guardar, pra sempre, o tô
sorriso agora na minha derradeira sentença que eu largo aqui pra nos despedirmos já: o morto, esse
morto que lhe bebemos aqui..., tou ta pôr: esse morto sou eu!, AdolfoDido, eu mesmo!

Hum!, deixinda te olhar no dentro dos olhos...

Eu tinha te dito quando sentei aqui — de onde eu venho é muito longe, só que sempre é difícil
acreditar num gajo que fala assim, eu sei... Vim dali, onde chamam lá em cima, e vi tudo como num era
pra ver, porque era pra ter ficado lá, mas não sou dono do mundo da terra muito menos do mundo do
céu: se mesmo Deus e o diabo falaram e me mandaram mais voltar aqui, querias que eu dissesse quê?
Arrumei minhas nenhumas imbambas e vim só, no caminho da descida, o que me afligia mais era a
sede, te confesso, te confessei já.

Agora, o voltar, num lembro bem: senti só comichão no dedo mindinho do pé, lhe chamo mindanji,
pensei era mais a minha antiga bitacaia a me querer provocar comichões dela de ninguém lhe encontrar,
dedo besuntado com tintura-diodo e tudo, queimaduras só, e no de vez em quando da vontade dela, só
voltava, comichões, e lá foi assim também, me distraí tanto a lhe procurar, a bitacaia, quando acordei
tava aqui, embrulhado na bandeira nacional, até apanhei susto!
Sem maises, vou te pôr: o puto PCG tá lá no céu, é verdade, puto porreiro aquele, esperto de ficares
espantado se eu te contar aqui o que ele já fez lá: dá aula de estiga a Deus, e ri só na cara do muadiê
quando o gajo emprega mal as estigas, outros tão a refilar que o puto num pode rir assim na cara do
puro muata do céu, mas aquilo é dum gajo s'atirar no chão, tás a ver Deus a estigar, avilo?, deixa só...
Fazem concurso lá em cima, de várias coisas mesmo, melhor ideia, melhor isto melhor aquilo, até de
poesias, e não há essas rivalidades todas que falam aqui, dum lado Deus doutro o diabo, Deus até gosta
e autoriza sempre o gajo a pôr poesias também — isso que chamam de céu é um deserto vasto de
areias flutuantes pra boiar os olhos, um repouso de sonhares, meu...

Deus não é um gajo de lhe vermos de várias maneiras? Deve ser nas minhas infâncias me
ameaçaram assim com as barbas, então lhe encontrei de barbas, riso dele de ficar só sentado a ouvir os
outros falarem, quase-quase esqueces que ele tá ali. Imagens num vale a pena te pôr — iam ser
fotografias apagadas já amanhã, a tibaria num perdoa a memória. Te ponho antes poesias, palavras que
as birras trazem na minha boca e vais pensar eu é que falei bonito, mas não, foi o momento emocionado
mesmo, o querer te pôr coisas que num são de pôr na conversa. Vento faz curva, avilo?, eu acho que
não, mas na tua pele já sentiste vento fazer curva, ou não foi? Se deitares no chão da areia e ficares de
manhã cedo, na hora da fila do pão d'antigamente, assim com ouvido a beijar o chão, vais ouvir o quê?
Eu te digo: vais ouvir os passos das miúdas a irem no posto do pão pôr pedra, mas não só: vais ouvir
também as formigas e o cafucafuca a trabalhar nas grutas dele, aí vais só rir e quem te vê de longe,
sabe mesmo se estás a rir o quê ou o quê? Não sabe, avilo, ninguém mais sabe, só tu... Deus é isso
então, as curvas do vento e os barulhos surdos que um gajo ouve e num conta a ninguém, pra num
dizerem

esse gajo tá estagiar...

mas dentro de ti tu sabes sozinho — as formigas evitam dormir pois assim acordam mais cedo, hora
do fermento do pão, massambalas da kota Tavares, hora de ir na fila pôr pedra pra num perder o lugar
de matar o bicho da fome com pão quentinho, maculo já incluído. Em baixo do chão é que vive o
cafucafuca, mas a maneira de lhe espreitares é com o ouvido... Tás a galar, muadiê?, pra espreitar
Deus é também com olhos de ouvir... O quê?! Prosa evangélica? Ahahah!, abuçoito então, arrecuo já.
Ché!, falar um bocadinho à toa já é obrar na poesia dos arcanjos?

Deixinda te pôr as cores, assunto que eu gosto desde criança — lá em cima a visão é outra, muita
coisa desaparece do teu coração, queres assim visitar as raivas e desconsegues; queres lembrar muito e
só lembras pouco, tudo são só manchas se tentas mesmo espreitar os homens, as intenções, os passados
e a Terra que é tão azul e verde e bonita de qualquer sítio que lhe olhas — zuliverde, como lhe vi e
chamo agora, a Terra do nosso planeta mundo. Cores dela?, aguarelas aguadas dos nossos sonhos mais
leves, chichi inocente de estares só a dormir no abrir duma torneira imaginada e esperar a quentura no
entre pernas de amanhã de manhã o colchão cheirar mal, inda virem te estigar
mijãooo, mijãooo!

e tu só rires dentro de ti esse sonho zulamarelado que tiveste com tonalidades de nunca conseguir
lembrar acordado... Discurso atoado?, ou é então pra te pôr a sensação mais parecida com as cores
que vislumbrei lá de cima?

O bom de ir e voltar e ter estado lá são as paredes que espreitei de mim — o que tinha esquecido das
infâncias, Luanda nos antigamentes de nenhumas nuvens dela, os puros maximbombos, e tudo que eu
quis espreitar no coração das pessoas estava lá — e eu vi. Agora me é difícil odiar alguém, muadiê, e
quando digo filhas da puta nessas damas que foram minhas, não é na voz da raiva nem da vingança do
desprezo do meu cheiro de mel que elas querem cheirar mais outra vez, mesmo eu sabendo que o
cheiro que elas querem é do mel do cumbú, as pensões desse assunto que eu acompanhei no lá em
cima, ver mesmo todos rirem nas questões do dinheiro que são quase nossa segunda pele, e ultrapassam
mesmo o sonho, a família, os bem-estares, o amor e o respeito nos mais-velhos, nada disso! Nas
palavras fortes que os angolanos não gostam, essas: filhas da puta, eu tava a querer lhes acordar — o
susto num cura o soluço?, mesmo os mais-velhos a quererem só usar a linha na testa... Eu disparato
essas mboas é pra elas acordarem na importância da vida delas, porque morrer em vivo é isso também
— darmos nascimento num outro que não tem de ser melhor nas aparências e nas capacidades, mas só
bem melhor dentro dele, como dizem os poetas

nas peles duras do coração.

Vês o Jaí, a me ver morto se deixou navegar na canoa do amor e ximbicou na direcção certa, se
revelou, sem esconder nem da KotaDasAbelhas nem dele próprio o amor que aparecia e era mais forte
que eles e que as abelhas, e mesmo o Burkina, muita gente não entende esse relacionamento dele
contente com as putas que, mais que putas, são cambas dele, e ele quer quê, afinal, muadiê?, carinhos,
festividades no órgão dele do lado esquerdo do peito a se encher assim das alegrias que nunca tinha
tido, jinhos sinceros, pôr sonhos de viagens e reformas nas prostitutas e o que ele vê nos olhos delas e
às vezes nas saladas que eles três temperam, nada pode comprar aquilo, é só amor derretido no leite-
moça dos olhos delas — catorzinhas de já mais idade, num sei como vai ser daqui a tempos, mas têm
que pôr novas noções: vintiuminhas, trintiumistas, e daí pra frente, é já com onas — quarentonas,
cinquentonas, esquecidonas...

Meu, sabes qual foi o mô maior susto nestas mortes temporárias? Foi não poder voltar mais; e nem
era tanto a ideia do mundo todo, as humanidades do meu corpo com o aquecer dos sangues dele, num
era isso... Estava a me dar lágrima da saudade da minha terra, minha Angola toda de mim, eu tava
acocorado na inveja de vos galar aqui celebrar as hipóteses todas da paz e me assustei nos meus
medos, entendi que tava longe mesmo, nem liguei tanto nessas contra-curvas que deram no meu corpo,
mais me visitavam as tristezas de não morar mais aqui, como digo, não é no mundo todo, mas na nossa
terra mesmo de sermos tão daqui que mesmo na morte nos custa ir habitar outros lugares, entendes,
avilo?, nada de patriotismos construídos nos estragos da educação social e política, mas os puros
mambos dos nossos muximas, laços na terra que um gajo num sabe que tem e descobre é no estar
longe, águas nos olhos, assim sentado eu ficava só a me perguntar se esse meu nome AdolfoDido me
tinha assim fodido tanto a vida que vocês todos aqui iam poder ver a paz chegar e eu não, só nos lá em
cimas do mundo, mesmo iam autorizar a pôr kizomba e birras e kitaba e funji com peixe seco mas, diz
só, muadiê, lá em cima, mesmo outros muangolês lá, eu mesmo é que ia pôr kizomba com dama
fantasma?! Porra, fiquei só sentado, a pôr lágrimas tantas que já não chorava assim desde muito
antigamente, então vi tudo a vir — os ensinamentos bonitos que um gajo parece não ouviu nas avós mas
afinal ouviu, toda a importância das águas do mar que o meu avô tinha me enredado no coração, nossas
estigas, nossos estares na rua, na noite, as danças todas que eu tinha visto e que eu num tinha visto,
nortisul de Angola das caras mais bonitas das damas que nunca encontrei, tranças e óleos de besuntar
os corpos e as mãos e as almas, um sem findar de missangas tradicionais que eu visitava simplesmente
porque queria e podia — meu acesso nas razões de muitos corações, modo que agora volto assim, meio
bazeza, meio djedjedje, como ficam os kotas que entendem de mais as coisas do coração das pessoas,
sem vontade nenhuma de discutir nem estigar mambos sérios nos defeitos do corpo dos outros porque já
lhes visitei as tristezas, avilo, e de agora em diante minha paixão são só duas: viver a vida nos
entretantos normais do nosso ritmo, angolano; e esperar sentado a paz chegar, a paz não só das armas
pararem de cuspir fogo, mas a paz de todos sentarmos mais outra vez numa só fogueira e rirmos, rirmos
só de nenhum assunto especial, rirmos sabendo no coração que estamos mesmo só a rir de coisa
nenhuma, se a paz pode ser chamada de coisa nenhuma ou se aqui devíamos masé chamar a paz de a
coisa toda.

Ponho lágrimas, me derreto, muadiê? Venho de muito longe..., tão longe que me deu saudade até de ir
mais caçar gambozino... Já foste caçar gambozino?, ahahah!, eu sei, um gajo só pode ir caçar
gambozino uma vez na vida, na vez que te banqueiram a sério, tu mesmo aí nos lodos da rua, charco
d'água dos mosquitos paludismáticos, ervas daninhas da sujidade onde os outros te põem a ver o que
não tá lá

procura só bem, aí mesmo nas ervas, tens que afastar, aí tem gambozino, procura só bem...

tu na vergonha das horas e momentos que passam — todos a rirem de estares mesmo a procurar o
puro inexistente gambozino, mas tu a pensares que tão a rir da tua zutice, que eles vêem gambozino
nítido onde tu nem desconfias, e continuas mais, na insistência da teimosia até começares a mentir

ahn... parece vi um...!

e todos te estigarem, passado bué de tempo

porra, então és o primeiro gajo a ver mesmo um gambozino


e tu então perceberes, no esconderijo das lágrimas, que te banqueiraram a sério, que não vais bater
ninguém porque são muitos, vais só calar e assistir nascer em ti a vontade de apanhares também o teu
banqueiro, dia que vão te deixar dizer também noutro avilo mais inocente

comé, avilo, nunca caçaste gambozino...?, nessa lagoa aí tem bué...

no teu coração vais sentir o calor da alegria chegar através do gesto do outro — o boêlu, ele a se
debruçar na água dos mosquitos e procurar também o mesmo gambozino que nem tu nem ninguém
nunca encontrou, e vais rir, muadiê, vais rir com a vontade toda a te encher o coração só pelo simples
facto de teres nascido aqui, Angola, país das estigas violentas de pôr um gajo a chorar, ou a engolir as
lágrimas antes de chorar só de não conseguir encontrar um simples gambozino. Yá, muadiê, me deu
saudade disso tudo. Hoje sei — de onde eu venho é muito longe, me doem os pés da memória, tou duro
no caminhar, sim.

O lagrimar dos olhos? Meu novo nascimento: sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração,
tud'uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Assim foi voltar e acreditar na
estória de ir na pesca e apanhar nuvem em vez do peixe pra grelhar. Poesias, estórias de sentar na
revolta duma fogueira...?, nada disso; te ponho mais outra vez: espanto é aquilo que ainda nunca viveste
com a tua própria pele!

O mundo, eu lhe olho, eu lhe sinto: está bem torto de se viver nele, mesmo me pergunto qual será a
causa de ele estar assim — avariado... Num será que o cágado do kota Pepe apanhou bitacaia numa
das quatro patas e está assim coxo no caminhar, vintinovetrinta, pisa com jeito?

Deixa só, quero masé te agradecer no mô coração a disponibilidade do teu bolso, as ngalas todas que
entornámos aqui, a tua paciência de seres tão ouvinte, ou será tua curiosidade nos prafrentementes,
como dizia o kota Odorico? Num sei, de qualquer modo aguentas bem, tenho que reconhecer, há muito
tempo que não encontrava assim um bom desequilibrador de birras também. Se te abusei, ponho
desculpas, mas é que a sede está custar a passar, mas devagarinho havemos de chegar, o cágado num
chegou?, nós vamos só lhe imitar então.

Amanhã, cuidado!, depois do sono, não vale a pena acordares maluco a pensar que aqui saiu só sonho,
mas também num é pra ires aí no mundo desbocar a nossa conversa... Cuidado: lembrar de mais pode
te pôr louco, mas não aceitar uma lembrança pode te pôr maluco, ahahah!, escolhe só: é merda ou tuji.

Muadiê, vou bazar mesmo.

Sabes o quê..., num sei se tou vivo — queria era tar morto, quer dizer, calma então!, morto só de
afirmar isso nas palavras artísticas que te ponho. É que um mô camba um dia me falou: pra contar uma
estória um gajo deve morrer nela!, sangue alagado no suor das palavras.
Tu nessa tua cara mesmo a olhar pra mim, o brilho nos teus olhos, me responde inda uma coisa: achas
que eu morri de facto e nos factos?, morri tudo que tinha pra morrer nessa estória das redes piscatórias
da vida que eu tinha pra te pôr? Me diz então... Tu e eu mesmo é que somos o cardume, vou falar mais
com quem? Nzambi? Num quero mais.

Quero só saber se posso ir no mô camba Vêncio lhe dizer que eu morri tudo, ou se inda sobrei mais
em mim, o poucochito e as esquebras...

Sobrei, muadiê? A verdade só: sobrei ou morri mesmo tudo?


um abraço de agradecimento para:

sita (que primeiro me falou de um

morto como o adolfo); tó e joaquim

(pela estória original da senhora que

vivia com um cão enorme).

ainda: às abelhas da casa do mussulo.


Glossário

O estilo coloquial deste livro faz com que nele apareçam com frequência termos pouco comuns para o
leitor português. Em geral, tal facto não é impeditivo nem da fluência da leitura nem da compreensão do
essencial do texto. Em todo o caso, para aqueles leitores que pretendam uma abordagem mais analítica,
publicamos a seguir um glossário suficientemente amplo.

Abuçoito (pedir...): requerer uma pausa.

Aká: modo de dizer AK47, arma russa; Kalashnikov.

Ambí: egoísta.

Avilo: amigo; companheiro (o mesmo que camba).


Avilote: diminutivo de avilo.

Baldar: mentir.

Baleizão: sorvete; gelado.

Bangão: com estilo; vaidoso.

Banqueirar: trapacear.

Bazeza: palerma; lento; idiota.

Bica-bidôn: jogo infantil praticado em espaços abertos, semelhante ao esconde-esconde.

Bina: bicicleta.

Birra: cerveja.

Bitacaia: parasita que se entranha na pele dos dedos.

Boda: festa.

Boêlu: pessoa que é facilmente enganada (o mesmo que bazeza).


Bofa: bofetada.
Broar: pronunciar erradamente, de forma involuntária, uma palavra.

Bróda (do inglês brother): amigo (o mesmo que camba).

Buala: expressão para dizer lugar, aldeia.

Bufunfa: dinheiro.
Bumbar: trabalhar.
Bungula: tipo de dança.
Bungular: dançar bungula.

Cabíri: magro; pequeno.

Caçumbula: jogo infantil que consiste em tentar adquirir um objecto de outrem, batendo na mão de quem
o possui; uma vez no chão, o objecto é de quem primeiro o apanhar.

Café (pôr ou meter...): instigar o início de uma luta entre duas crianças.

Cafucafuca: pequeno insecto que faz buracos na areia e vive neles.

Caluanda: natural de Luanda.

Calubungo (kimbundu): objecto mágico que, arremessado ao chão, ocasiona prodígios.

Calundú: (no caso) irritação.

Camba: amigo.

Cambaia: aquele(a) que tem pernas arqueadas.

Cambutismo: de cambuta, pessoa baixa.

Campar: dormir; morrer.

Camundongo: rato.

Candengue (do kimbundu ndengue): garoto; miúdo; rapaz.

Candongueiro: táxi com rota pré-definida que transporta o número máximo possível (excedendo-o por
vezes) de passageiros.
Canjonjar: poupar.

Capurroto: bebida alcoólica.

Catinguê-cardan: jogo de palavras a partir de catinga e da linha de perfumes Pierre Cardin.

Caular: comprar.
Caxexe (de...): de fininho.
Chichilar: passar mal; ter dificuldades.

Chinar: provocar um corte.


Chipala: rosto.

Cochêro: reduzido; muito pequeno.


Cubar: dormir.
Cubíco: casa.

Cuia: de cuiar, estar muito bom.


Cumbú: dinheiro.

Diamba: o mesmo que liamba; marijuana.

Dikota: mais-velho.

Djedjedje: o mesmo que bazeza.

Dodó: dólar.

Dreda: o que está na moda; badalado.

Éme: nome por que é vulgarmente designado o MPLA.

Esculú: muito bom.

Esquebra: excedente.

Esquindiva: esquiva.

Estigar: ridicularizar outrem através de um criativo e bem-humorado jogo de palavras.


Fajuto: falso.

Ficô: jogo infantil semelhante à apanhada.

Filipar: ficar zangado; ficar revoltado.

Fobado: faminto.

Funguto: mau cheiro.

Funji: prato tradicional angolano feito a partir de farinha de mandioca e/ou de milho.

Galar: olhar; mirar; ver.

Gêto: modo de dizer jeito.

Guitos: dinheiro.

Humbi-humbi: pássaro; espécie de águia.

Imbamba: coisa; tralha.

Jacó: papagaio.
Janguê: órgão sexual masculino.
Jindungo: picante para comida.

Kabetula: tipo de dança.

Kabomba: polícia.

Kalungangombe (kimbundu): entidade espiritual que, nas profundezas do globo, suprime a vida, julga e
pune os mortos.

Kapussoka: nome dado ao barco que faz a travessia entre Luanda e a ilha do Mussulo.
Kazukuteiro (do kimbundu kazukuta): confusionista.

Kêta: música.

Kianda: sereia.

Kibídi: perseguição.

Kibiona (dar uma...): acto de inserir e retirar rapidamente o dedo da vagina ou ânus de outrem.

Kijila: problema.

Kilombo: albino.

Kilunza: pistola.

Kimbanda: feiticeiro Kimbombo: bebida alcoólica.

Kínguila: mulher que faz o câmbio monetário na rua.

Kinjango: o mesmo que janguê.

Kitaba: espécie de pasta feita com amendoim torrado.

Kiungueiro: indivíduo circuncisado.

Kizaca: prato típico do Norte de Angola e também da República Democrática do Congo.

Kizombada: de kizomba, dança.

Komba: velório.

Kuatar (do kimbundu kuata): agarrar.

Kuombolokista (do kimbundu kuomboloka): desaparecer ou dormir.

Kuvale: tribo do Sul de Angola.

Kuxacatamente (do kimbundu kuxacata): arrastando os pés.

Linhoso: com estilo; bem arranjado.


Luando: esteira.
Maboque: fruto ácido.

Maculo: parasita que provoca intensa comichão na região anal.

Maiombe: floresta localizada em Angola, na província de Cabinda.

Maka: problema.
Makarov: pistola de fabrico russo.

Makí: mato; (no caso) guerrilha.

Malaico: sem graça.


Malamba: problema.
Malembemente: devagar; lentamente.

Maluvo: bebida alcoólica.

Mambo: coisa; assunto.

Mangonha: preguiça.

Massambala (andropogon sorghum): variante de sorgo.

Matumbo: boçal.

Maximbombo: autocarro.

Mbambi: frio.

Mbimbi: um dos nomes atribuídos a Jonas Savimbi.

Mboa: rapariga; moça; dama.

Mbumbu: negro.

Micate: pequeno bolo frito.

Milongo (do kimbundu mulongo): remédio.

Misoso (kimbundu): estória; narrativa.

Mô: meu.

Mona (do kimbundu monandengue): miúdo; garoto


Monacaxito: nome vulgar para canhão de quarenta bocas.

Monandengue (kimbundu): criança.

Muadiê: moço; rapaz; homem.


Muangolê: pessoa de Angola.
Muata: chefe.

Mujimbeiro(a): pessoa que procura e espalha boatos.


Mujimbo: boato.
Mulumbeiro(a): pessoa corcunda.

Múve (do inglês move): iniciativa.

Muxima (kimbundu): coração.

Ndengue (kimbundu): miúdo(a).

Ndokueto: vamos.
Ngaia: bofetada.
Ngala: garrafa.

Ngangular: referente a Nangula, suposto herói angolano.

Ngapa: feiticeiro.
Nguendaria: festança; desbunda.

Nguendeiro: grande farrista; frequentador assíduo de festas.

Ngueta (kimbundo): pessoa de raça branca.

Nguimbo: nuca muito saliente e/ou bicuda.

Ninja: denominação corrente da polícia de intervenção rápida (normalmente trajada de negro).

Nzambi (kimbundu): Deus.

Ondalu (umbundu): fogo.


Paiar: lixar alguém; tramar.
Páme: designação por que é vulgarmente conhecido o Programa Alimentar Mundial (PAM).

Pinar: mergulhar.
Pincho: espeto no churrasco.
Piô: criança.
Pitar: comer.
Píter: comida; pitéu.

Quarra: prostituta.
Quinda: cesto.

Quindumba: penteado volumoso.

Quitandeira: vendedora de rua.


Quitía: rapariga; moça.

Rebita: dança em roda executada por pares, de modo lento. É acompanhada de batimentos de pé e
palmas.

Roboteiro: carregador.

Ruar: expulsar.

Ruca: carro.

Salo: trabalho.

Sekulu (umbundu): mais-velho.

Semba: passo de dança que consiste no confronto das zonas pélvicas entre duas pessoas.

Tarraxinha: dança sensual, em que o par se mantém muito agarrado movimentando-se com extrema
lentidão e erotismo.

Tibaria: bebedeira.
Tuga: referente a Portugal ou a portugueses.

Tuji (kimbundu): merda.

Uáine (do inglês wine): vinho.

Umar: desaparecer; acabar.

Vijú: esperto; perspicaz; expedito.

Vuzar: (no caso) ter relações sexuais.


Vuzumunar: (no caso) matar.

Ximbicar: mover uma canoa fazendo uso de uma longa vara que chega ao fundo do mar, em zonas de
baixio.

Xinguilamento: (no caso) o estrebuchar.

Xoetice (de xoeta): desprovimento de nádegas salientes.

Xuxuta: órgão sexual feminino.

Zaicô: cidadão zairense.

Zongoleiro: coscuvilheiro; fofoqueiro.

Zungada: vendida.

Zutice: burrice.

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