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Texto: Árido

de Willian Maciel

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Abrindo caminho no carmim.

Homem: O caminho é esse, os que vêm de longe, ou sofreram nas encostas


com a poeira que sobe quando passa o cavalo baio, ou quando os tambores
tocam anunciando a vida longa do que é divino, ou na hora que a oferta é
segura, e que só uma bica de carmim faz necessário aos que passam por ali,
no cruzeiro da vida o olhar terno leva os caminhos dos ruim para longe e salva
os mal abençoado, aqui é onde o vórtice da terra criou um lago, onde a luz dos
crisântemos é uma hoste sagrada para o mais nobre dos seres, aquele que é
sagrado sangra pra que o outro adormeça nos lírios da vida nova, a fim de
mais proteção pra frente, abrindo nossa gira, pedindo de coração que cumpra
assim nossa missão, no céu a estrela brilha, caminha em direção certa, salve a
vida do pequeno, salve a mata. Salve a vida, que a gente tem que seguir pra
frente.

Depois que o sagrado subir pro altar, o nosso passado vira um rio do antigo,
lavado com água limpa, uma fonte nascente numa pedra segura, e o que dali
sai, limpa o barro mais forte.

Caminho dos Lírios

Severo: O homem fica de campana. O sino do alto da torre soa às vezes o que
o sol já fez sentir com o peso do caminhar, passando pela frente da igreja os
que sente a graça ajoelha, sente mesmo com o sol um largo nos dente, faz
brilhá os buraco que vem da fossa do homem. Vamos Velha, vamos... que os
largo tem que ficá pra traz, a montanha está ainda longe das vista, vamos
menino, vamos caminha.

Velha: O caminho tá demais severo pro menino, o caminho com esse sol faz
do trecho um caminho no deserto, na sombra da árvore a gente para pra ouvir
o piar da coruja, no sol ela grita feito um abutre, solta um som que faz os pelo
ouriçá. Acho que a parada se faz necessária porque o caminho aqui ainda
longo é. Vamos parar com as malinesa da vida, vamos enxugar o suor naquela

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bica. Vamos sentá, ele nem suspira mais, e cê tem que lembrá que ele tem que
ser o mais limpo, o mais perfeito, é assim que se quer, não adianta chegar com
ele que é só mazela. A proteção e a limpeza não vão acontecer.

Severo: Qué descansá?

(O Menino mudo, com olhos arregalados, a sujeira toma seu corpo.)

Severo: Você vai precisar banhar esse moleque.

Velha: A gente precisa pará no rio, ele se lambuzou de suor e da poeira desse
mundo, tá impregnado de tanta imundície que nem sei se vai servir. O pé
parece uma pata de bode ou touro velho. Acredito que nosso caminho é um
desfavor a todos, podia virá pro rumo de trás e voltá. No caminho, a gente
arruma um jeito de se limpá do que foi feito.

Severo: O que foi prometido tem que ser cumprido.

Velha: Ô homem, não adianta essa peregrinação e o menino não serve pro
que ele foi incumbido.

Versos de Aries.

Menino: Gira, gira, gira, e para. Respira fundo, o que você vê? Uma árvore,
um caminho estreito, um monte de terra, um passarinho que pia um pio
estranho, um casebre, sinto o cheiro de café. Gira, gira, gira, gira, gira. Para.
Respira fundo, fecha os olhos, o que você vê? Um breu, uma noite, um tição
apagado, uma escuridão, um anum piando um pio engraçado, um silêncio, um
tudo repleto de nada, algo cheio do meu vazio. Gira, gira, gira, gira, gira. Para.
Silêncio. O que você vê?

Eu me vejo, caminhando, caminhando.

Eu, desde pequeno que levo a lavagem no chiqueiro dos porcos, acordo cedo,
saio, o chão tá ainda molhado, sabe aquele orvalho que no fim da noite cai?
Ele faz a grama ficar úmida, caminho com meus pés no chão, bode, meu

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apelido, a mãe não gosta, toda vez que alguém grita “Ô bode”, ela xinga de
nome que nem sei qual é. Adoro quando alguém grita bode, só pra ouvir, tento
aprender mas a cabeça é daquelas que o vento sopra e vai pra onde o nariz
aponta. O bode... Adoro... Sabe! Eu caminho e a terra vermelha vai criando
uma liga com meu pé, parece casco de bicho, piso de pedra em pedra, vou no
caminho até chegar em um eito de cana, elas estão ainda pequenas, bate só
no meu olhar, gosto quando me perco no mar verde, quando elas dobram meu
tamanho, eu gosto de correr no meio do mar, ouvindo o silvo de cobra, as
lâmina afiada das folhas, elas não tem bainha, as navalhas cortam a carne, não
é fundo, mas se deixar, durante o dia o suor salgado que sai da pele arde feito
vinagre em ferida. Mas eu corro, corro no meio do nada, e eu giro, giro. Abro o
olho e não sei por onde eu entrei, às vezes não saber de onde veio é o melhor
que a gente faz. Conhecer as coisas faz a gente duvidar delas. Mas eu pego
meu eito, a terra é fofa de manhã, na noite ela molhou, cada pisada meu pé
afunda um pouco, e um pouco da terra fica comigo, quando chego perto da
vara dos porcos, o cheiro é uma coisa ruim, meu estômago dá um nó, ele são
bons pra gente, sempre que tinha porco a casa era mais feliz, os restos eram
sempre levados pra eles. Uma vez o Salvador, tirou uma legião de demônio de
um pecador, ele já tinha sido amarrado pelas pernas, braços, mas não tinha
corrente que parasse o homem, ele vivia nos sepulcros, quando o Salvador
chegou, ele gritava que era uma legião, e eles imploravam para que ele os
mandasse pros porcos, assim fez, os dois mil porcos se jogaram no precipício,
foi neles que Deus lançou o pecado do homem. Imagina, dois mil porcos se
matando, que pecado! Tem gente que não come carne de porco, tudo bem. Eu
como. Às vezes fico com um aperto no peito quando vejo eles desde pequeno,
eu dava nome a eles. Mas isso não faz bem, teve vez que comi o Jó, ele
estava assado no forno de casa. Mas os porcos sempre ajudam, pena que
morreram todos, em uma manhã cheguei cedo, o sol não havia brotado, e um
enxame de mosca fazia uma nuvem no chiqueiro. Quando fui ver, eles estavam
todos mortos, mas estavam inteiros, não inteiro, inteiro não. Faltava os olhos.
Eu fiquei olhando, e as moscas fazendo festa, parecia algo estranho ver eles
sem olhos, era um buraco escuro, algo que me chamava pra dentro deles.
Parecia um rio de noite, com aquele cipó que te ajudava a chegar no meio da
água. Eu podia suspender meu corpo e me lançar pra dentro deles, e assim me

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jogar no precipício. Eu podia. Mas olhei pra frente, vendo o sol subindo por
entre as duas mangueiras que ficavam no caminho bem no longe, vi o sol entre
elas disputando espaço com as folhas. Eu fechei o olho. Eu cheguei já era
noite, meu caminho foi caminhando, e eu me perdendo. Quando os olhos se
abriram o portão da minha casa estava na minha frente. Do lado de dentro
minha mãe sentada em uma lajota, parecia escolher feijão nas pedras do
quintal. Quando me viu, um silvo agudo saiu de sua garganta. As mãos
levantadas para o ar. O obstáculo que era o portão foi transposto, ela olhou nos
meus olhos, não queria saber onde estive, só media cada parte do meu corpo,
sentia meu coração que batia em um compasso vagaroso. Ela soube nos meus
olhos por onde me perdi, me levou para a mesa da cozinha, serviu um copo de
café, e uma pedaço de polenta, tudo se misturava e formava uma sopa doce
dentro da minha boca, até aquele momento não sabia o que era fome, meus
olhos ficaram fechados durante um dia todo. Comi e bebi. No fundo da casa,
perto da cerca, ele andava feito um cão, os cachorros já estavam soltos, e com
ele tornavam-se uma matilha, vi da cadeira que estava sentado, todos os
outros dormindo encavalados em um colchão. Só faltava eu pra me juntar.
Quando na janela apareceu ele, só dava pra ver os olhos na escuridão.

Severo: Que se fez com os porco?

Velha: Deixa o menino. Ele tá exausto. Deixa, amanhã se fala disso.

Menino: Engoli meu café, meu fubá.

Velha: Vê se descansa, amanhã cê não vai ter que ir pros porco. Você fica em
casa, junto do seus irmão, cola neles e faz o melhor pra cada um, sabe que
tudo é muito estranho, mas o melhor é saber pouco.

Menino: A maior sabedoria é o nada, não é isso?

Velha: Acertou, você é especial. Agora corre e deita com seus irmãos, a noite
tá quente, vou abrir a janela.

Menino: Eu vou fechar o olho.

Velha: Faz isso menino.

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Banho do cordeiro.

Velha: Ô desgraça de terra que encalacra no seu corpo que num qué sair.

Menino: Mãe, deixa que eu me lavo.

Velha: A bucha esfrega e continua marrom a pele, você nasceu branco, você,
de todos dessa casa foi o único que nasceu branco desse jeito, não pode ficar
nessa sujeira, aqui todos têm a mesma cor, você que nasceu feito dia, então
devia continuar assim.

Menino: As costas tão doendo. Não esfrega forte.

Velha: E esses cascos, parece de bicho, olha que duro.

Menino: Casco de bode.

Velha: Cala a boca Canhoto, Cramulhão. Odeio quando os moleque lhe chama
assim.

Menino: Eu gosto, eu gosto de bode.

Velha: Cê vai sentir a água quente escaldando seu couro. Se não calá.

Menino: Oh, velha!

Velha: Respeita.

(menino ri)

Velha: A velha Bardi veio ontem em casa, disse que você mais seus colega
não param de subir na jabuticabeira dela, falo que se pegá vocês de novo lá vai
dar um coça que você vai voltá tudo virado. Vão ficá tudo nos avesso.

Menino: Ela veio aqui?

Velha: Passou na frente da cerca e gritou, eu estava na porta de casa. Eu


devolvi, “sua mexiriqueira, se tocá a mão no menino, eu juro que cê amanhece
dormindo, te quebro em tantos pedaço que nem Deus pra juntar tudo, vai

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encontrá com Crinado mais cedo, sua puta, sua vaca, rampera, despregada,
sua mulher de todos, seu quinhão de merda.”

Menino: Cê falou tudo isso?

Velha: Não se engraça não, menino. E vê se não aparece lá.

Menino: Mas jabuticaba só tem nas terras dela.

Velha: Se você aparece por lá eu te quebro antes dela.

Menino: Cê já viu que linda é a jabuticaba, ela é pretinha, e quando se abre tá


o miolo branco. Adoro pular de galho em galho e buscar a que fica lá no céu.

Velha: Se você aparecer lá quem te pega sou eu. Fecha o olho.

Menino: Oh velha, essa água... quer me cozer?

Velha: Eu ainda perco a boa com você, se me dé na veneta te tasco um tapa e


aí que cê vai ficá vermelho.

Menino: Eu aceito.

Velha: Aceita o quê?

Menino: O tapa.

Velha: Ah, você está me testando, né?

Menino: Aqui. É só escolher o lado. Faz esse favor.

Velha: Lava as parte. Eu que não vou mexe aí.

Menino: Escolhe.

Velha: Lava tudo.

Menino: Por favor.

Velha: Repassa e depois joga a água no tacho lá fora.

Menino: Onde estão todos? Não vi os outros.

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Velha: Hoje só tá você. Ele levou todos pra junto da encardida. Termina isso
logo, a gente tem que sair. Ele volta logo, falô pra você tá de banho tomado.

Menino: Mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro.

Velha: O que cê disse?

Menino: Disse nada. Nada.

Velha: Hoje a gente caminha, vamos buscar uma trouxa de roupa que vou
lavar, a roça tá uma desgraça, tudo apodrece no chão, a terra tá podre.

Menino: Calma, as coisas vão melhorar.

Velha: Se veste.

Menino: Eu gosto de ficar assim.

Velha: Toma tenência moleque. Os vizinhos vê e vão achá sandice da gente,


um moleque graúdo andando do jeito que veio ao mundo. Veste as roupa.

Menino: Queria ter visto os meninos, queria ter olhado pra eles antes.

Velha: Do que cê tá falando?

Menino: Queria ter abraçado eles.

Velha: Cê vai ter tempo pra isso.

Menino: Sabia que eu mergulhei dentro dos porcos? Eu caminhei de quatro


um dia todo, ia me jogar do precipício, mas abri o olho e já estava na frente de
casa.

Velha: Deixa essa coisa pra lá.

Menino: Mãe..

Velha: Fala menino.

Menino: Me dá um beijo.

Velha: Por que dessas coisa?

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Menino: Um beijo na minha testa.

Velha: Cê tá zombando de mim?

Menino: Eu só quero um beijo, ele já está perto, dá pra sentir o cheiro dele de
longe. Quando ele chegá a gente já sai, não é?

Velha: É isso.

Menino: Ce tá feliz?

Velha: Eu só tô tentando o melhor pra todos.

Menino: Fica feliz... Vamos brincar... aquele que parar de rir primeiro perde.

(Silêncio, os dois começam a rir. Param de súbito com a entrada de Severo.)

Conversa entre homens

Homem: Senta.

Severo: Sento.

Homem: Cê veio para tratar dos negócios que temos em pendência? Então
abra a boca e despeje o que te trouxe aqui.

Severo: Estou certo que já sabe o que me traz até você.

Homem: Uma dúvida faz você franzir a sua fronte.

Severo: Não tenho dúvida.

Homem: Então entenda tudo e não queira voltar atrás depois. Esse caminho é
sem volta, aqui você trata de coisa acima da sua compreensão, aqui a gente
fala de coisa que outros não teriam possibilidade de entendimento.

Severo: Estou certo disso. Por isso vim de alma aberta.

Homem: Fez bem.

Severo: É de verdade, que tudo o que foi dito tem que ser feito?

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Homem: Você veio pra barganhar?

Severo: Vim em busca de mais entendimento.

Homem: Uma vez que veio, as condições foram postas em última conversa.

Severo: Mas creio que podia torná o fardo menos custoso.

Homem: Aqui não é lugar de pechincha, cê tinha os caminhos, e decidiu parar


na minha porta. Então você já estava certo do que queria.

Severo: Só pesa sobre meu lombo o olho, o olho sabe?

Homem: É o que faz a gente pensar em desistir. O Olho.

Severo: Como faço para isso não atormentar?

Homem: Fecha os seus.

Severo: Serve uma água, a garganta tá seca.

Homem: Daqui a pouco tem que seguir seu eito. Eles começam a
peregrinação em algumas horas, daí não tem mais como sair pela estrada, cê
vai ter que passar a noite escondido. Se alguém te achar...

Severo: Não vou prolongar nossa conversa.

Homem: Assim é muito melhor.

Severo: E como fica o trato?

Homem: As cabra vão pra sua casa, no dia seguinte. Então você tem leite. E
faz seu dinheiro.

Severo: Mas precisava de uma importância em espécie.

Homem: A gente arruma.

Severo: O valor está por demais baixo, eu lhe entrego tudo e de volta recebo
nada.

Homem: Você é de mesma serventia que nada, então contenta com o que lhe
ofereço, sem resmungar.

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Severo: O trato tá pendendo mais pro seu lado.

Homem: Quando se tem na mão o cajado do misericordioso as coisas pendem


mais pro nosso lado. Um dia voce pode estar na mesma importância que eu, é
só livrar do que passou. Já deu sua hora.

Severo: As visita vão ser durante o dia?

Homem: As visitas são sempre durante o dia. Então se apressa, porque o


caminho que vocês vão trilhar é longo e se chegar na hora da peregrinação, ele
vai ser levado pelas almas.

Severo: A gente sai antes do sol acordar.

Homem: É isso.

Severo: Então! Eu me vou.

Homem: Não esquece de nada do nosso trato.

Severo: Afianço que não.

Homem: Até mais ver.

Severo: Mas eu queria ...

Homem: Vai... A peregrinação começou. O barulho está no fim da rua, se


chegar e você estiver aqui dentro...

Cantiga de Velha

Velha: Dorme meu filhinho, descansa seu corpo nesses pano, esquece de
tudo, dorme.

A noite hoje escureceu muito, não vejo a lua, os cachorro já dormiu. Só eu que
não sei o que é sono, o olho fica aceso a noite toda, a última vez que fechei os
olho o menino ainda estava no meu ventre, depois que nasceu eu nunca mais
grudei uma pálpebra com a outra, mas quando o galo canta eu estou desperta,

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a fraqueza não pega em meus ossos. A minha madrinha contava uma história
de uma procissão puxada pelo diabo, ele conduzia uma manada de gente, um
homem nu, igual veio ao mundo, dançando em cima de um carro de boi, as
crianças brincava com ele, ele cuidava delas, dava sangue pra elas beber,
tirava o sangue da parte delas, o sangue bom é o da menina na sua primeira
vez. Quem tomava desse sangue ganhava asa e podia voar, os olhos ficava
que nem duas brasa, alumiava a noite toda, ninguém conseguia enfrentá esse
cortejo, até Deus se escondeu nessa noite, era noite da festa deles. Para saber
o que ia dar aquela andança fúnebre você tinha que seguir eles, os homens
ficavam encantado com as mulheres que dançavam balançando os peito, uns
caminhavam seguindo as criança. O homem pega uma lança e atravessa com
uma leveza brutal o ventre de uma delas, outros assistem e se divertem com a
função. O que você espera do homem? O que podia vir de uma andança igual
essa? Eles caminharam a noite toda, desfrutaram cada segundo do relógio. Só
foi parar quando o Galo cantou pela terceira vez, assim que o galo calou a
boca, todos desapareceram. Então, a noite quando está escura, você pode ver
se alguém chegar com os olho em braça, esse participou do cortejo. A coisa é
assim. Na noite as estranheza ganha clareza. O homem mostra sua cara na
noite, quando deitei a primeira vez o quarto estava escuro, só sabia que duas
bola de fogo olhava pra mim, e meu sangue jorrava, ali se alimentou a noite
toda, meu olho aberto era um vazio. Meu corpo tremia, as mão num suador, a
voz ficou entalada no peito, nem a respiração conseguia sair. Parecia uma
possessão, alguém me tirou daquele lugar, só o corpo recebia a visita noturna,
no quarto do lado a madrinha rezava, eu ouvia cada parte do rosário, cada
conta que passava, cada pai nosso que seguia. A cada um meu sangue
alimentava os olhos de fogo.

Assim que o galo cantou, a ladainha da madrinha já tinha cessado, e eu


deitada podia voltar pro meu corpo, o quarto foi clareando aos pouco, uma
brisa leve entrava pela janela aberta. E logo um cheiro de café tomou conta da
casa, e eu podia respirar novamente, a porta logo bateu na saída da casa.
Percebi que agora meu corpo voltava a ser meu.

Dorme menino, dorme... Não acorda não. Dorme e abre o olho só quando a
procissão for embora. Não abre seu olho enquanto o galo não cantar. Dorme.

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(Da janela vê-se olhos em brasa, o Homem assiste a velha ninando o menino)

Dorme criança... Dorme meu anjo... Cordeiro de Deus que tirais o pecado do
mundo, tende de piedade de nós... ô meu menino, esquenta esses osso.

Disputa por um quinhão.

Severo: Lavô o moleque?

Velha: Sim.

Severo: Amanhã a gente sai cedo. O caminho até lá é longo, então prepara o
menino pra aguentar.

Velha: Ele nem abre a boca.

Severo: Eu não quero que resmungue. A gente sai ante de o galo cantar. E
vamo caminhando.

Velha: Eu vou lavar a roupa.

Severo: Deixa tudo em ordem, depois passa um café pra mim.

Velha: Tem pouco pó.

Severo: Passa um tanto e guarda o resto pra de manhã, assim a gente


caminha desperto.

Velha: Cê acha de bom juízo fazer isso mesmo?

Severo: Cê tá zunindo o quê, velha?

Velha: Só quero saber se você acha de real precisão fazer isso. A gente se
arruma de outro jeito, a vida nunca foi fácil, a gente não pode botá na conta
dele a salvação de tudo.

Severo: Cala a boca.

Velha: Eu só acho que você devia refletir.

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Severo: Você realmente não tem que achar. Fecha a boca e segue as minhas
ordens.

Velha: Só quero que a minha ideia seja também ouvida, no final ele ficou no
meu ventre, foi em mim que ele se criou. Então tenho direito sobre o destino
dele, não acho que realmente devia fazer essa travessia.

Severo: Você não tem que achar coisa nenhuma. Eu já acertei tudo. Me
respeita!

Velha: Acho que ainda não chegamos numa decisão. Eu olho pro menino ele
mudo, dormindo no pano, não sei de verdade se devia continuá com esse
despropósito.

Severo: Você qué faze o quê? Vai fugi com ele?

Velha: Olha que posso fazer isso sim.

Severo: Se você não apronta tudo do jeito que lhe disse, eu parto você em
vinte, arranco seu olho da cara, faço cê andá nesse mundo procurando luz.

Velha: Eu só estou pedindo um pouco de piedade para com ele.

Severo: Ninguém tem piedade nesse mundo.

Velha: Mas veja ele, feito da nossa carne, a gente fez ele junto. Dos dois junto
nasceu ele. Então é nosso.

Severo: A mulher deve obediência ao homem.

Velha: Eu sei disso, sei que você sabe melhor do que eu o que a gente deve
fazer, mas acho que a gente devia chegá num entendimento.

Severo: Já chegamo, saímos amanhã cedo.

Velho: A gente não sai.

Severo: Está me desobedecendo?

Velha: Só acho que não vamos sair amanhã cedo.

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Severo: Você já viu como tá lá fora? Viu como a terra tá seca, viu que tudo
apodrece, olhe pro seu ventre, vê como está podre, já percebeu que você bota
no mundo essa podridão. Essa é a desgraça do nosso mundo, a semente
posta em terra seca só brota coisa desajustada, o mundo está cheio de
desajuste, a gente tem que limpá a terra ante de fazer florescer.

Velha: Eu só tô podre porque o arado foi feito ceifando a minha pureza. Cê


acha que tudo é resultado do acaso, que eu nasci assim? As conta da virgem
que sabia do que me acontecia, hoje quem conta os nó do santíssimo sou eu.
Por que o olho brilha na noite escura, eu sinto o cheiro do canhoto, esse cheiro
é o mesmo que acompanhou na meninice. Então a guarda do que me é caro
ainda é uma decisão que eu posso tomar.

Severo: Você vai ter leite pra dar pros outro, vai vim vinte e nove cabra, assim
os bezerro mais novo vão tudo estar com o bucho cheio. Eu estou fazendo isso
só por precisão, aqui não iria pra frente, ainda mais com tudo que é desgraça
que se faz nessa casa. O menino nasceu feito dia, então ele que ajude a
clarear um pouco esse breu da nossa vida.

Velha: Eu só não concordo com o destino que cê está traçando pra ele.

Severo: Você não tem que concordá com nada.

Velha: Eu tenho os meu direito.

Severo: Eu também, você vai querer medir força, a essa altura dos
acontecimentos.

Velha: Eu só acho...

Severo: Você não tem que achar nada, pega a trouxa de roupa, vai pro tanque,
de você só quero ouvir as batidas da roupa, quero ouvir a música do pano com
a pedra. Quero o silêncio da sua boca, essa fossa que cheira a merda, e
prepara o café. Hoje eu quero ficar desperto, e traz o menino, quero ter uma
conversa com ele.

Velha: Isso não vai ter fim, deixa o menino descansá...

Severo: Já falei pra calar. Faz o que te mando.

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Velha: E...

Severo: Traz o menino.

(Velha sai).

Um dia de ansiedade

(O menino está no meio do palco e de uma janela vemos apenas os olhos de


Severo)

Severo: Acalma seu coração menino. A sua trajetória vai ser longa, só precisa
acalmar o coração, com o coração todo bagunçado não vai prestar nossa
caminhada.

(O menino fica calado)

Severo: Se quiser abrir a boca e falar a hora é agora.

Menino: Ele calou.

Severo: O que você disse?

Menino: Ele calou, diante de todos que ali estavam, ele calou.

Severo: Mas agora cê pode falar.

Menino: Eu não tenho o que dizer.

Severo: Na hora que cê pode falar, cê prefere calá?

Menino: Eu não vejo muita função na nossa ida pra esse lugar.

Severo: Amanhã a casa vai estar cheia de vida nova, a vida que essa casa
precisava.

Menino: E eu não vou ver nada disso.

Severo: O egoísmo tá enchendo seu coração de coisas ruim.

Menino: Eu quero ver os meus irmãos.

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Severo: Eles não estão na casa.

Menino: Eu não aguento a caminhada que você me pede.

Severo: Do seu lado direito está sua mãe e do lado esquerdo o seu pai.

Menino: E se a sede fizer meu juízo ir pra outro lugar.

Severo: Lá você estará entre amigos.

Menino: Amigo meu é só eu.

Severo: E sua mãe e eu.

Menino: Você anda feito cão, não entra nessa casa, o cheiro que vem de você
é igual ao de carne queimada. O berro que sai da sua garganta parece uma
facada na minha cabeça. A cada passo que você dá nesse terreiro sinto a casa
tremendo feito o juízo final. Eu quero meu porco. Eu quero caminhar na terra
sem medo de ir adiante. Eu quero olhar pro nada, e não ver mais esse portão,
nem quem me leva pra um lugar onde sou testemunha da minha dor.

Severo: A revolta é o pior dos sentimento, eu te trato com carinho. Estou te


levando pra um lugar bem melhor.

Menino: O melhor é pra vocês.

Severo: Cala a boca, eu não devia ter pedido pra você falar.

Menino: Pai.

(Severo fica em silêncio)

Menino: Pai.

(Severo não se manifesta)

Menino: Você é pai, não é?

(Severo mudo)

Menino: É isso que pai faz? Tem uma hora que vai escolher o melhor cordeiro
e entregar pro sacrifício?

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A função do pai é uma tarefa árdua por demais, essa de ter que escolher no
rebanho o que vai ser dado pra que os outros maltratem. Eu tenho pena do pai.
Eu me compadeço com a sua dor. Sabe! Eu sei que no seu silêncio o peso do
dia que segue é um fardo demais de pesado. Sei que uma cruz de aço faz seu
corpo arquear.

Eu entendo.

E amanhã a gente caminha.

E amanhã a gente encontra o que está procurando.

E que amanhã os nossos caminhos se bifurquem e cada um acorde no outro


lugar.

E sei que a volta vai ser mais leve.

Mas a noite mais pesada.

Eu sei de tudo isso.

Eu me calo.

E assim você também se cala.

Mas ...

O melhor é eu me calar.

O caminho dos lírios

Severo: Anda Velha, anda Menino. O caminho ainda é longo.

(Os três caminham)

Severo: Vamos que ainda temo uma dezena de quilômetro pra percorrê, tem
que chegá antes de anoitecer. A nós cabe caminhar.

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Velha: O menino não vai aguentá, hoje não colocou um naco de pão na boca,
nem água bebeu.

Severo: Aguenta, toda gente aguenta caminhar, só não caminha porque é


frouxo.

Velha: O menino não abriu a boca, não falo uma palavra. Homem, a gente tem
voltar.

Severo: Ô desgraça, aqui ainda quem manda sou eu, e a gente vai caminhar,
a gente vai andar, e se preciso vai correr.

Velha: Você diminua a sua fala, se a gente quiser pará e desisti a gente vai
pará.

Severo: Cê está me desafiando?

Velha: Eu lhe dou todo meu respeito, mas a concordância não é possível.

(Severo e Velha param, menino continua a caminhar)

Severo: A sua vontade ou concordância não vale nem uma moeda pra mim.
Eu lhe dei uma ordem e essa que se cumpra.

Velha: Eu apelo pro seu coração.

Severo: Eu sei o fardo que carrego, eu sei o meu quinhão, então cê ande.

Velha: Eu não saio daqui, cê leva meu corpo, mas sem eu.

Severo: Eu juro que volto e te rebento.

Velha: Eu só quero todos eles de volta na casa.

Severo: Agora já temos um trato. E você trate de andar. Olhe pra gente. Olha
pra frente...

Velha: Menino, pare.

Severo: Ande, Menino.

Velha: Pare, Menino.

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Hora de Partir

Homem: Despediu de todos?

(Menino em silêncio)

Aqui você descansa, o melhor que faz é isso, a boca fechada é uma cilada a
menos pra alma. Você pode deitar embaixo daquela cama, a procissão vai
passar, cada casa é visitada pelas almas, cada alma sente o cheiro diferente,
por isso seu cheiro de menino tem que desaparecer, o cheiro de menino é um
aroma que lembra a corrida de cavalo novo no pasto. Aquele cheiro que
mistura um azedo com leite saído das tetas da cabra. Por isso o banho. Agora
se aquieta, se recolhe pro seu canto.

Aquele que crê no filho terá vida eterna, mas aquele que duvida e se mantém
rebelde contra o filho não verá a vida, e sobre ele permanecerá a ira de Deus.

Eu aqui me compadeço com a sua trajetória, eu sou um instrumento na mão do


Senhor, aqui faço o que me pede num ato de devoção, a lança atinge a terra e
faz sentir a força do homem, os olhos podem pedir piedade, mas a mão ainda
deve ser mais forte, o corpo tomado pela mão firme, dedilhando os pedaços de
carne, a respiração que precipita, o coração que bate num compasso
desritmado, é mostra de que é humano, sabe que tudo no mundo é mais forte
que o homem, é ele que se deixa variar.

Aos olhos do outro o entendimento fica desqualificado, eu quero que confie em


mim. Eu quero que você se sinta à vontade. A mão firme será sua guia, o
corpo, uma terra pronta pra arar, e a você cabe ficar sereno. As vontades do
homem, só ele sabe o quanto devem ser tornadas realidade, eu sinto e você
sente até que ponto a gente consegue suportar.

Se acalme, o coração deve estar sem revolta. A você beijo a face terna, e
cubro o corpo com o carmim de um deus aveludado. A cada parte lhe serei
grato, e cada respiração me será saudosa.

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Aquiete-se comigo, aconchega seu coração no ritmo do meu, esse suor é obra
do acaso, pois o pensamento firme abre caminho pro eterno.

Respire, ouça o silêncio, nele você mergulha pra sua vida toda.

Mergulha. O escuro vai reconfortar, a dor passa, a dor passa.

(Silêncio, fica escuro, vemos os olhos vermelhos do homem e berros de


cordeiro).

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