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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – A ILUSÃO DO

MIGRANTE

Quando vim da minha terra,


se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é consequência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim


de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,


moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoma incessantemente
em nossas fundas paredes.
Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,


não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado, enganoso.
O maior trem do mundo

O maior trem do mundo


Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
Carlos Drummond de Andrade
Banho de bacia [Carlos Drummond de Andrade]
No meio do quarto a piscina móvel
tem o tamanho do corpo sentado.
Água tá pelando! mas quem ouve o grito
deste menino condenado ao banho?
Grite à vontade.

Se não toma banho não vai passear.


E quem toma banho em calda de inferno?
Mentira dele, água tá morninha,
só meia chaleira, o resto é de bica.

Arrisco um pé, outro pé depois.


Vapor vaporeja no quarto fechado
ou no meu protesto.
A água se abre à faca do corpo
e pula, se entorna em ondas domésticas.

Em posição de Buda me ensaboo,


Resignado me contemplo.
O mundo é estreito. Uma prisão de água
envolve o ser, uma prisão redonda.
Então me faço prisioneiro livre.
Livre de estar preso. Que ninguém me solte
deste círculo de água, na distância
de tudo mais. O quarto. O banho. O só.
O morno. O ensaboado. O toda-vida.

Podem reclamar,
podem arrombar
a porta. Não me entrego
ao dia e seu dever.
José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,


está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão


quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Paredão

Uma cidade toda paredão.


Paredão em volta das casas.
Em volta, paredão, das almas.
O paredão dos precipícios.
O paredão familial.

Ruas feitas de paredão.


O paredão é a própria rua,
onde passar ou não passar
é a mesma forma de prisão.

Paredão de umidade e sombra,


sem uma fresta para a vida.
A canivete perfurá-lo,
a unha, a dente, a bofetão?
Se do outro lado existe apenas
outro, mais outro, paredão?

(Carlos Drummond de Andrade)


NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
Fruta-Furto

“Jabuticaba chupa-se no pé.


O fruto exaure-se no ato de furtar.
Consciência mais leve do que asa
ao descer.
Volto de mãos vazias para casa”.

“Fruta-Furto” está em uma placa localizada na frente da Escola Municipal


Coronel José Batista — ou Grupo Escolar Carvalho de Brito, na época em que
o modernista estudava por lá, em sua infância. O poema, de forma simples e
honesta, mostra uma das conexões de Drummond com a sua cidade.

O pequeno Carlos costumava roubar jabuticabas atrás da escola. Foi dessa


forma que ele passou grande parte de sua infância e, principalmente, fez
amigos. Vale a pena conferir o local!
Herói
Regressa da Europa Doutor Oliveira.
É dia de festa na cidade inteira.

Doutor Oliveira fez longa viagem.


Maior, mais brilhante ficou sua imagem.

Viajou de cavalo, de trem, de navio.


Foi bravo, foi forte, venceu desafio.

Falou língua estranja, que não percebemos.


Ergueu nosso nome a pontos extremos.

Conversou doutores de barbas sorbônicas


e viu catedrais, joias arquitetônicas.

Papou iguarias jamais igualadas


nas jantas mais finas: consomes, saladas,

ovas de esturjão, e pratos mil flambastes,


que aqui falecemos sem conhecer antes.

Praticou mulheres das mais perigosas,


ofertou-lhes mimos, madrigais e rosas.

Nenhuma o prendeu entre grades de seda.


Volta o nosso amigo, livre, de alma leda.

Tudo há de contar-nos à luz do lampião,


para nosso pasmo e nossa ilustração.
Depressa, cavalos e arreios de prata,
que vai esperá-lo o povo bom, a nata.

Da cidade às portas, como triunfador,


eis chega Oliveira, preclaro doutor.

Ginetes aos centos correm a saudá-lo.


Foguetes, discursos e até o abalo

de tiros festivos no azul — eta nós!


dados por Janjão e por Tatua Queirós.

Pois quem destes matos foi até Paris


honrou nossa terra, deu-lhe mais verniz.

E assim, ao apear, desembarca na História

Doutor Oliveira, para nossa glória.


Confidência do Itabirano [Carlos
Drummond de Andrade]
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,


vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:


esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.


Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

[Sentimento do mundo]
Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia. 
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé,
Comprida história que não acaba mais. 

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu 


A ninar nos longes da senzala -- e nunca se esqueceu
Chamava para o café. 
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom. 

Minha mãe ficava sentada cosendo


Olhando pra mim:
-- Psiu... não acorde o menino. 
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo! 

Lá longe meu pai campeava


No mato sem fim da fazenda. 

E eu não sabia que minha história


Era mais bonita que a de Robinson Crusoé. 

                                                  Carlos Drummond de Andrade.


CULTURA FRANCESA

Com Mestre Emílio aprendi


esse pouco de francês
que deu para ler Jarry.

Murilo, diabo na aula,


tinha gestos impossíveis
que nem macaco na jaula.

Mestre Emílio, tão severo


não via no último banco
o aluno de moral-zero.

Os verbos irregulares
saltavam do meu Halbout,
perdiam-se pelos ares.

Nunca mais os encontrei...


Talvez Brigitte Bardot
me ensinasse o que não sei.
Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te...

Sim, tenho saudades.


Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste
Carlos Drummond de Andrade

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