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Poemas de António Gedeão

Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa. António Gedeão, pseudónimo de


Rómulo vasco de Gama de Carvalho, concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-
Químicas, exercendo depois a actividade de docente. Teve um papel importante na
divulgação de temas científicos, colaborando em revistas da especialidade e
organizando obras no campo da história das ciências e das instituições, como A
Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e XIX.
Publicou ainda outros estudos, como História da Fundação do Colégio Real dos Nobres
de Lisboa (1959), O Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações entre Portugal e a
Rússia no Século XVIII (1979). Revelou-se como poeta apenas em 1956, com a obra
Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras obras, como Teatro do Mundo
(1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967) e
ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia,
reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são
heterogéneas e equilibradas de modo original pelo homem que, com um rigor
científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da solidão humana,
muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos poéticos foram
aproveitados para músicas de intervenção. Em 1963 publicou a peça de teatro RTX
78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A Poltrona e Outras
Novelas (1973). Na data do seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de
uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de
Sant'iago de Espada.

Nasceu a 24 Novembro 1906 (Lisboa, Portugal)

Morreu em 19 Fevereiro 1997 (Lisboa)

Amostra sem valor


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,


sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida


ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Dez réis de esperança
Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
Gota de Água
Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.
Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho


é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho


é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,


que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores


que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o
Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,


e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,


mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?


Poema da malta das naus
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,


levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,


pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,


tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,


com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres


ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,


alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo


a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.


Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
Poema da auto-estrada
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,


Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.


Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem


corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as núvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos


já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.


Vai na brasa, de lambreta.
Soneto
Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade

Não pode Amor por mais que as falas mude


exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,


magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
näo pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,


também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,


em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.
Poema épico
O rapagão da camisola vermelha sacode a melena da testa
e retesa os braços num bocejo como um jovem leão voluptuoso.
Dorme a sesta
o involuntário ocioso.

A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela janela


e sumiu-se na noite escura do mundo.
Quis respirar mais fundo
e isso de ser coitada é lá com ela.

O homem da barba por fazer conta os filhos e as moedas


e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufelho.
Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas;
- Eu já venho!

O da face doente,
o que sofre por tudo e por nada, sem querer,
abana a cabeça negativamente:
- Isto não pode ser! Isto não pode ser!

Sentados às soleiras das portas,


mordendo a língua na tarefa inglória,
com letras gordas e por linhas tortas
vão redigindo a História.
Poema do homem-rã
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.

Com barbatanas calçadas


e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.

Sob o luminoso feixe


correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma?


Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem.


Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.
Poema do fecho-éclair
Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de oiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato


de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas


forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.

Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da Terra,


foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,


pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha


era um fecho-éclair.
Poema do coração
Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos".

Mas o meu coração é como o dos compêndios.


Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)
e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).
O sangue ao circular contrai-os e distende-os
segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece


ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,
e uma lâmina baça e agreste, que endurece
a luz dos olhos em bisel cortados.
Parece então que o coração estremece.
Mas não.
Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,
que esse vento que sopra e ateia os incêndios,
é coisa do simpático.
Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos!
Vamos à lição!
Em quantas partes se divide o coração?
Lição sobre a água
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,


sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,


as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,


nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Impressão digital
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.


De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas


onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.

Inútil seguir vizinhos,


que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.


Vê gigantes? São gigantes.
Esta é a Cidade
Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.

Freme como a sede bebe


numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.

Treme e freme, freme e treme,


friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.

Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descança,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.

Tanto sonho! Tanta esperança!


Tanta mágoa! Tanta gente!
Dor de Alma
Meu pratinho de arroz doce
polvilhado de canela;
Era bom mas acabou-se
desde que a vida me trouxe
outros cuidados com ela.

Eu, infante, não sabia


as mágoas que a vida tem.
Ingenuamente sorria,
me aninhava e adormecia
no colo da minha mãe.

Soube depois que há no mundo


umas tantas criaturas
que vivem num charco imundo
arrancando arroz do fundo
de pestilentas planuras.

Um sol de arestas pastosas


cobre-os de cinza e de azebre
à flor das águas lodosas,
eclodindo em capciosas
intermitências de febre.

Já não tenho o teu engodo,


Ó mãe, nem desejo tê-lo.
Prefiro o charco e o lodo.
Quero o sofrimento todo,
Quero senti-lo, e vence-lo.
Arma secreta
Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dipara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,


nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,


em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.
Amador sem coisa amada
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar


de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,


aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.
Adeus, Lisboa
Vou-me até à Outra Banda
no barquinho da carreira.
Faz que anda mas não anda;
parece de brincadeira.
Planta-se o homem no leme.
Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito;
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica
como um boneco de corda.
Nem sei se vai ou se fica.
Só se vê que tremelica
e oscila de borda a borda.

Chapas de sol, coruscantes


como lâminas de espadas,
fendem as águas rolantes
esparrinhando flamejantes
lantejoulas nacaradas.
Sob o dourado chuveiro,
o barquinho terno e mole,
vai-se afastando, ronceiro,
na peugada do Sol.

A cada volta das pás


moendo as águas vizinhas,
nos remoinhos que faz,
nos salpicos que me traz
e me enchem de camarinhas,
há fagulhas rutilantes,
esquírolas de marcassites,
polimentos de pirites,
clivagens de diamantes,

Numa hipnose coletiva,


como um friso de embruxados,
ao longe os olhos cravados
em transe de expectativa,
todos juntos, na amurada,
numa sonolência de ópio,
vemos, na tarde pasmada,
Lisboa televisada
num vasto cinemascópio.
O sol e a água conspiram
num conluio de beleza,
de elixires que se evadiram
de feiticeira represa.
Fulva, no céu incendido,
em compostura de pose,
a cidade é colorido
cenário de apoteose.
Há lencinhos agitados
nos olhos de todos nós,
engulhos de namorados,
embargamentos na voz.
Nesta quermesse do ar,
neste festival de tons,
quem se atreve a acreditar
que os homens não sejam bons?

Adeus, adeus, ribeirinha


cidade dos calafates,
rosicler de água-marinha,
pedra de muitos quilates.
Iça as velas, marinheiro,
com destino a Calecu.
Oh que ventinho rasteiro!
Que mar tão cheio e tão nu!
Ó da gávea! Põe-te alerta!
Tem tento nos areais.
Cá vou eu à descoberta
das índias Orientais.
Não tenho medo de nada,
receio de coisa nenhuma.

A vida é leve e arrendada


como esta réstea de espuma.
Toda a gente é séria e é boa!
Não existem homens maus!
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa!
Adeus, Ribeira das Naus!
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!
A Funda
Arranquei à pele do peito,
com os dedos ensangüentados,
um retângulo perfeito
de cem centímetros quadrados.

Estendi-o ao sol a curtir


a haurir uns raios que projetam
certo incógnito elixir
que os detectares não detectam.

Depois de bem seco e rijo


prendi-lhe, nos quatros cantos,
quatro nervos desses tantos
com que me franjo e me aflijo.

Eis-me de funda na mão


no mais ereto dos montes,
devassando os horizontes
com os pés bem presos no chão,
as pernas em ângulo agudo
para assentar com firmeza
nessa dúvida de tudo
tão certa como a certeza.

Só, entre os fundibulários,


no centro dos meus domínios,
como o pastor dos Hermínios
na defesa dos contrários,
ponho na funda um poema
de agrestes arestas vivas,
e em rotações sucessivas
de celeridade extrema,
com todo o vigor do braço,
como o vento em torvelinho,
lanço o poema no espaço
no seu exato caminho.

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