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1|Bendy: Os Perdidos

BenDY:
os PerdidoS

BENDY: THE LOST ONES (OS PERDIDOS)


ADRIENNE KRESS
DESIGN DA CAPA: JEFF SHAKE

Traduzido, revisado e editado por Sorinha Phantasie.

Esse livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são obra da
imaginação do autor ou usados de forma fictícia. Quaisquer semelhanças com eventos,
locais ou pessoas, vivas ou mortas, são coincidências.

© 2021 Joey Drew Studios Inc.


Bendy, Bendy and the Ink Machine, Bendy and the Dark Revival e os personagens,
imagens e logos de Bendy são propriedades ou marcas registradas da Joey Drew Studios
Inc. Todos os direitos reservados.

Tradução em português brasileiro pela PHANTASIE TRANSLATE, 2022.


A tradução deste material foi elaborada e disponibilizada sem fins lucrativos. Se você
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2|Bendy: Os Perdidos
3|Bendy: Os Perdidos
4|Bendy: Os Perdidos
5|Bendy: Os Perdidos
íNDiCe
CAPA

OS PERDIDOS 21: BRANT


PRÓLOGO: WALLY 22: CONSTANCE

1: BILL 23: BRANT

2: CONSTANCE 24: BILL

3: BRANT 25: BRANT

A MÁQUINA 26: CONSTANE

THOMAS CONNOR 27: BILL

4: CONSTANCE 28: CONSTANCE

5: BRANT 29: BILL

6: BILL 30: CONSTANCE

7: CONSTANCE 31: BILL

8: BRANT 32: CONSTANCE

9: CONSTANCE 33: BILL

10: BILL 34: CONSTANCE

THOMAS CONNOR 35: BILL

11: CONSTANCE 36: CONSTANCE

12: BRANT 37: BILL

13: CONSTANCE 38: BRANT

14: BRANT 39: CONSTANCE

15: BILL 40: BILL

A MÁQUINA 41: BRANT

16: BILL 42: CONSTANCE

17: CONSTANCE 43: BRANT

18: BRANT 44: CONSTANCE

19: BILL A MÁQUINA

20: CONSTANCE AGRADECIMENTOS

6|Bendy: Os Perdidos
Os Perdidos

Todos vivemos em um mundo de faz de conta. Sejamos honestos com relação a isso por um
momento. Um paraíso construído sobre a areia, mas nós o mantemos separado da areia com um cais
igualmente construído por nós. Um paraíso junto ao mar, porém mantido afastado do mar, com as
ondas quebrando bem abaixo dos longos e esticados dedos das docas. Nós fizemos isso. Fizemos os
carros. Fizemos os hotéis. Fizemos o dinheiro.
Fizemos a máquina.
Fomos nós que fizemos.
Uma decisão foi tomada de criar e nós criamos. Regras. Leis. Círculos sociais. Camadas
sociais. É tudo criação do homem. Tudo fruto das nossas imaginações. Das nossas grandes ilusões.
É tudo apenas uma fantasia.
Mas ainda pode te destruir.
As coisas que fazemos.
Elas ainda podem te matar.

5|Bendy: Os Perdidos
Tarde da noite era minha hora favorita do
dia. Eu gostava dos corredores vazios, da escuridão, sem pessoas correndo de um lado para o outro
feito galinhas degoladas. É só trabalho, eu pensava comigo mesmo. Pra que eles ficam tão agitados
por causa de um trabalho? Eu gostava de como os meus passos ecoavam, mas também gostava de
colocar um disco ou ligar o rádio e deixar a música tocar enquanto esvaziava as lixeiras e esfregava
o chão. Às vezes, até fazia uma dancinha com o esfregão. Dancinhas com esfregão são legais. Não
sou nenhum Fred Astaire, mas vai, ele também não é nenhum Wally Franks.
E não me entenda mal, não tô querendo dizer que nunca rolou nada de estranho trabalhando
até tarde, mas se o velho Wally aqui sabe de uma coisa, ele sabe que as pessoas gostam de ter seus
segredinhos. Faz com que se sintam especiais. Eu particularmente nunca entendi isso. Comigo, o
que se vê é o que se tem.
Tinha segredos aqui no Joey Drew Studios. Eu não sou nenhum bobo. Mas também não sou
detetive. Então eu cuido só da minha própria vida. Mesmo quando a nova reforma começou, quando

6|Bendy: Os Perdidos
compraram o teatro ali do lado. Mesmo quando os canos começaram a fazer barulhos estranhos o
tempo todo. Às vezes, quase como se tivesse uma criatura gemendo em algum lugar. Pra mim,
nunca foi nada demais. Deixava a vida interessante, novos corredores pra deixar no capricho, novas
salas e, claro, novos sons também.
Acontece que levava mais tempo pra limpar e meus músculos vinham doendo cada vez mais
ultimamente. A patroa sempre dizia que a gente devia se aposentar e ir pra Flórida de uma vez, mas
eu ainda não estava pronto. Não ainda.
— Deixe-me explicar uma última vez para os palermas cabeças-ocas. Eu não quero ver nem
um único arranhão nessa coisa quando chegarmos lá. Entenderam?
— Sim, senhor, é claro, senhor.
Eu escutava conversas o tempo todo nesse trabalho. Não só por estar na próxima curva ou na
sala ao lado. Não, a verdade é que as pessoas às vezes pareciam esquecer que eu tinha ouvidos pra
começo de conversa; elas simplesmente falavam ou discutiam comigo bem do lado delas, enquanto
fazia meu trabalho. Não que o velho Wally ligasse pra isso. As pessoas faziam o que faziam. Assim
como eu fazia o que eu fazia.
Então eu normalmente não teria pensado muito em nada disso, mas dessa vez foi um pouco
diferente. Foi que, bem, eu podia jurar que estava ouvindo a frustração crescente de um tal Thomas
Connor. E podia jurar que o sujeito tinha sido demitido recentemente. Mas talvez estivesse errado.
Não seria a primeira vez, como a patroa sempre me lembra.
— Não me venha com essa de “sim, senhor”. Só faça o seu trabalho!
E evidentemente era ele, ou pelo menos o seu peito, no qual eu bati com tudo quando dei a
volta no corredor.
— Mas quê...? — Thomas recuou um passo, balbuciando.
— Mil perdões, seu Thomas — disse, passando as mãos casualmente pelas minhas roupas.
Esbarrar nos outros era algo que também acontecia de vez em quando.
— Wally, está aqui até tarde — respondeu Thomas, olhando por cima do ombro sem de fato
fazer contato visual. As pessoas raramente faziam contato visual comigo. Eu não ligava. Não queria
incomodar. Afinal, meu trabalho era facilitar as coisas, não as dificultar.
— Que nada — respondi. Não achava que ele queria conversar, mas ele também não foi
embora, então fiz o meu melhor. Invente uma pergunta, Wally. Não é uma coisa assim tão difícil.
— Então o senhor voltou pra folha de pagamento?
— O quê? — perguntou Thomas. O sujeito parecia distraído.
— Seu emprego, pegou seu emprego de volta? O Sr. Drew te contratou de novo?
— Bom, ele não teve escolha — respondeu Thomas, ainda pensando em alguma outra coisa.
Então ele riu. — Nós dois não tivemos escolha.
Assenti. Não fazia ideia do que ele estava falando. Afinal, todo nós temos escolhas. Mas as
pessoas gostam quando você concorda com elas. Deixa elas em paz.
Thomas então se virou e começou a caminhar em direção à escuridão negra do corredor à
frente. Veja bem, eu sempre gostei do escuro, sentia como se fosse um cobertor confortável com o
qual me enrolar, mesmo sabendo que os outros tinham medo e tal. Também nunca entendi isso. Não
há nada no escuro que não haja na luz.
Na maior parte do tempo.
— Vai realocar aquela máquina, então? — perguntei para as costas de Thomas. Tinha
acabado de me lembrar e resolvi fazer a pergunta.
O homem parou de andar. Sua silhueta era iluminada pelo último filete de luz sobre sua
cabeça antes de tudo ser engolido pela escuridão. Seus ombros se ergueram, os punhos se cerraram.
Agora havia um homem cheio de fúria nele, observei. Sim, uma fúria refinada e poderosa.
— Máquina?
— Aquela máquina grande lá, a que faz uma bagunça com tinta por tudo que é canto. — Eu
não me importava de limpar, mas meu amigo, como era irritante limpar um vazamento dos grandes
e aí ver que ele tá de volta meia hora depois.
Thomas não se virou. Ficou ali parado em silêncio. Imaginei que era melhor também ficar
em silêncio. Eu estava curioso com a resposta. Nem sempre precisava de uma. Nem sempre me
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importava com uma. Mas eu sabia quando alguém precisava responder uma pergunta, mesmo que
fosse mais para si mesmo do que para a pessoa que estava perguntando. Thomas Connor precisava
responder àquela pergunta.
— Sim, a estamos realocando — disse ele, enfim.
— Bom — respondi. — Não sei como aquela coisa funciona, mas desde que chegou, tem
tinta pra tudo que é lado. Parece que está sendo arrastada pelo piso pelas pessoas. Os canos também
tão fora de controle, vazam e ficam fazendo barulho, e tá sendo um trabalho de grego pra concertar
essas coisas do capeta. Sabe, eu nem entendo pra que é que essa máquina existe, ninguém se deu ao
trabalho de contar nada pro velho Wally...
— Sim, bom, vamos realocá-la, e então você vai poder ficar feliz — interrompeu Thomas,
secamente. Isso não fez o menor sentido para mim.
— Bom, não é questão de eu ficar feliz...
— Está feito, Wally. Está feito.
Veja bem, o velho Wally aqui não era nenhum bobo. Havia vezes em que você sabia que
alguém precisava responder uma pergunta e outras em que você sabia que a pessoa tinha respondido
à pergunta e que aquilo era tudo o que ela ia dizer. Tudo o que precisava dizer.
— Bom... então tá joia — disse. Toquei a aba do meu boné. Gostava de fazer isso. Era a
saudação do Wally.
Thomas continuou parado embaixo daquele único filete de luz. Podia ver os músculos sob
sua camisa tencionarem, relaxarem e tencionarem de novo. Ele abriu os punhos e movimentou os
dedos, meio que como se quisesse se certificar de que ainda funcionavam ou coisa do tipo.
Sim, senhor, o homem certamente estava furioso. Com toda certeza.
Então deu um passo em frente e desapareceu em meio ao escuro.
É assim que são as coisas aqui à noite. Na luz por um momento e então de volta à escuridão.
Pra economizar na conta de luz, imaginava. Economizar era a prioridade ultimamente no Joey Drew
Studios. Me disseram pra continuar com os meus panos até eles se desmancharem nas minhas mãos.
Eu era bom recebendo ordens, sempre gostei delas.
Eu vi artistas revirarem as próprias lixeiras e pegarem pedaços de papel que tinham jogado
fora para desenharem no verso. Vi almoços sendo trazidos de casa. Vi contracheques com cada vez
menos dinheiro e cada vez mais mesas vazias.
Eu vi de tudo. Vi tudo o que há para ver.
Ah, sim, o velho Wally vê tudo. Inclusive a máquina. Inclusive o que fazia a tinta no piso. O
que a arrastava ao longo dos corredores e também pelas paredes.
Achava que o velho Wally não tinha visto?
O velho Wally vê tudo.
Eu entrei numa pequena sala muito bem organizada e peguei a lixeira que já estava cheia
pela metade. Joguei o lixo na sacola e parei diante da pequena luminária com a luz acesa em cima
da mesa. Me inclinei e desliguei. Economizar na conta de luz e tal. Então saí de volta no corredor. E
continuei cuidando da minha vida.
Na luz por um momento e então de volta à escuridão. Nunca entendi muito bem por que as
pessoas tinham medo dela.
Não há nada nas sombras que não haja na luz.
Menos, é claro, quando há.
E quando houver, eu vou é dar o fora daqui!

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Eu ergui a gola da jaqueta para cobrir o
pescoço e cruzei os braços com força em cima do peito. Inesperadamente, o ar parecia cortar a pele
ao toque. Tinha até se formado uma camada de gelo na janela de manhã. Mas isso convenceu meu
pai a desistir de seus planos para o dia? É claro que não.
— E a garota? — perguntei do meu lado da mesa na nossa sala de jantar geralmente bem
escura. Luz não era exatamente o aspecto favorito do meu pai na maior parte do tempo, mas algum
arquiteto jovem e pouco experiente resolveu que as janelas dessa parte da casa tinham que ficar
viradas para o norte. Além disso, meu pai não gostava de contas de luz altas, embora pudesse muito
bem pagar por elas, então qualquer tipo de ajuda artificial era deixado de lado até depois das cinco
da tarde no outono.
— Que garota? — Meu pai não ergueu o olhar do jornal que estava lendo e fincou o garfo
em sua toranja às cegas.
— A garota do mergulho com cavalos. Ela vai congelar — disse.
Meu pai balançou a cabeça e fincou o garfo de novo na toranja. Em retaliação, ela contra-
atacou com a mesma força, cobrindo a gola prensada e engomada de seu pai de suco cor-de-rosa.
Isso encerrou a conversa por ali, com ele correndo às pressas para se trocar.

Para dar crédito a ele, sua falta de consideração para com a garota do mergulho com cavalos
parecia agora possivelmente correta. Ela estava ali parada na plataforma de mergulho com um maiô
branco e uma touca de banho também branca, parecendo tão confortável como se fosse o meio do
verão. Eu não entendia como era possível que não estivesse com frio até os ossos, mas respeitava
isso. Me virei para olhar a nossa plateia nas arquibancadas. Até aquele momento, não tinha me dado
conta de até que ponto aquele teatrinho do meu pai estava planejado. As centenas de moradores da
região pagos para estarem sentados ali com suas melhores roupas de verão nos estandes me fez
puxar minha própria gola com ainda mais força. Tinha me arrependido de não levar um cachecol,
mas pelo menos eu não era eles. Pelo menos não fazia parte da ilusão do dia.
Eu me virei e fui andando em direção à câmera e seus operadores. Já tinha sido expulso uma
vez antes, mas imaginei que se eu fosse mais casual agora, como se simplesmente tivesse aparecido
por acidente diretamente do lado dos dois sujeitos, talvez eles me deixassem assistir dessa vez. Eles
ainda não estavam filmando de toda forma, só estavam preparando as coisas. E eu disse a mim
mesmo que, dessa vez, não ia fazer nenhuma pergunta, só ia observar. Só ia...
— Vaza, moleque — disse o que estava segurando uma das caixas com os rolos de filme.
— Mas eu...
9|Bendy: Os Perdidos
— Eu disse “vaza”.
Dei meia-volta. Pelo menos o calor me subindo pelo rosto por conta do constrangimento me
manteria aquecido.
Então comecei a fingir que tinha um gigantesco interesse na plataforma de mergulho, como
se ter ido dar uma olhada na câmera fosse parte de um plano maior para me certificar de que estava
tudo pronto para a gravação. Ergui o olhar para a garota pareada casualmente no topo. Ela baixou o
olhar para mim e então senti a necessidade de dizer alguma coisa, qualquer coisa. Reconfortá-la,
mesmo que ela estivesse totalmente tranquila.
— Tá tudo bem! — disse, acenando. Ela sorriu e assentiu para mim. Era um amor, essa
garota, substituindo sua irmã de último minuto desse jeito. Eu nunca cheguei a conhecer Constance
Gray, mas Molly era famosa aqui em Atlantic City e meu pai tinha muita vontade de conseguir uma
participação dela. Ele ficou com aquela sua expressão audaz de sempre no rosto quando soube que
ela estava doente e que sua irmã mergulharia em seu lugar.
Meu pai. Baita sujeito destemido. Comprando hotéis. Investindo em casas noturnas. Tudo
enquanto a guerra estourava do outro lado do oceano. “Quando esses homens voltarem, vão precisar
se lembrar de pelo que estavam lutando!” Ah, claro, seria então pelas bebidas aguadas e caras e
pelas garotas de fantasias brilhantes?
Era para isso que servia esse filme. Para lembrar todo mundo, não apenas os homens que
haviam voltado da guerra no ano passado, mas as mulheres também, e seus filhos, de pelo que eles
haviam se sacrificado. Pela chance de sair de férias no litoral! De jogar, fazer apostas! Comer,
beber, chutar o balde! Ver uma garota mergulhar na água nas costas de um cavalo a uma altura de
quase vinte metros!
Um “filme de turista”, meu pai chamava. Por isso a ilusão. O pico da temporada de turistas
era entre maio a agosto. As pessoas vinham pelo calor, não pelo vento congelante do Atlântico do
meio de outubro. Então todos tinham que fingir que era verão. Já tínhamos feito algumas gravações
na praia e no calçadão na semana passada, quando ainda não estava nem de longe tão frio. Mas
hoje, bom, hoje era o dia que ele estava mais empolgado. Se alguma coisa atraía uma multidão, era
o mergulho a cavalo no Steel Pier. E claro, pagar para que as pessoas fossem também fazia isso.
Eu examinei a plataforma. Sua aparência sempre me deixou chocado. De um ponto de vista
técnico, não parecia nada segura. Uma estrutura esquelética de madeira e metal, apoiada por cabos
de ferro presos ao chão. Devo admitir que os meus interesses normalmente eram mais mecânicos do
que estruturais (ainda queria que alguém me deixasse mexer com aquela câmera), mas aquilo tudo
ainda me fascinava. Como as coisas eram feitas, como funcionavam, como as peças de um quebra-
cabeça se encaixavam. Eu andava pelo calçadão olhando para os hotéis que foram construídos na
virada do século — como fizeram aquilo com as ferramentas antiquadas que tinham naquele tempo?
As pontes-cais que se projetavam sobre a água também me fascinavam. Ficavam lá por décadas,
judiadas pela corrente e pelo sal.
— Isso não é normal — eu disse então. Meus olhos haviam seguido a extensão do cabo de
metal do alto da plataforma até o chão. O quadrado de metal aparafusado que o segurava no lugar
parecia ter sido puxado para cima. Um grande medo se formou no meu íntimo. — Isso é normal? —
perguntei mais alto, mas ninguém estava me ouvindo. Todos tinham suas próprias tarefas para
cuidar. Isso não era bom. Não era nada bom.
Não, não havia tempo para pânico. Era hora de agir. Eu engoli a sensação ruim e procurei
pelo meu pai, mas ele estava com o diretor, ocupado com um de seus debates acalorados de sempre.
Meu pai gostava de se ver como um tipo criativo que era só pragmático demais para ir em busca das
artes. Olhei para o editor da Gazeta de Atlantic City parado um pouco mais a frente, observando
enquanto a coisa toda acontecia. Eu sabia que meu pai não precisava de mais publicidade negativa,
mas também tinha coisas mais importantes para cuidar agora.
Segui até um sujeito magricelo de cabelos ruivos e com sardas no rosto que estava encostado
na escada da plataforma.
— Ei, hã, aquilo parece normal pra você? — perguntei a ele.
Ele me olhou com os olhos esbugalhados. Isso acontecia bastante comigo. Eu não me sentia
como alguém muito digno de nota, mas também não podia negar a realidade. Ser o filho de Emmett
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Chambers significava que era meio que uma celebridade. Eu não tinha feito nada. Simplesmente
nasci de um homem rico que era dono de metade de Atlantic City.
— Aquele parafuso ali, o cabo, parece estar firme? — Eu apontei e o homem se virou para
olhar, graças a Deus.
— Hã... — disse ele, andando até lá. Eu o segui. Nós olhamos para o parafuso e então um
para o outro. — Não, não tá nada legal.
Como eu pensei. O medo se agitou dentro de mim, mas eu o contive.
— Tá, a gente devia contar pra alguém sobre isso, não é, ...?
— Steve.
— Steve, temos que fazer alguma coisa sobre isso.
Steve assentiu.
— Tem umas ferramentas nos estábulos. Posso ir lá pegá-las.
— Faça isso — respondi. Steve saiu correndo a uma boa velocidade e eu me virei para olhar
para o meu pai. Não o queria envolvido nisso, mas se havia algo tão grande e tão potencialmente
letal quanto uma plataforma de mergulho com uma garota em cima, ele precisava saber. — Pai,
temos um problema — disse, a voz baixa.
— Agora não, William — respondeu ele com aquela sua resposta seca de dentes cerrados
que eu ouvia com frequência até demais.
— Sim, pai, agora.
— O que está havendo? — perguntou o diretor. Eu não estava sendo exatamente sutil ali e
não queria ser. As pessoas precisavam saber sobre o perigo iminente.
— Um parafuso soltou em um dos cabos de suporte — disse, grato por alguém se importar.
— Um sujeito chamado Steve foi pegar umas ferramentas, mas será que não devíamos falar pra
Constance descer?
— Você mandou o garoto do cavalo fazer uma coisa aleatória quando temos um cronograma
a seguir? E quem diabos é Constance? — perguntou meu pai, fervilhando tão obviamente que até o
diretor pareceu desconcertado.
— A garota do cavalo. Ela ainda tá lá em cima.
— Mas é claro que não. Se descermos a garota, a plateia levanta e vai embora. Concerte essa
coisa, e seja rápido.
— Mas ela tá em perigo real — disse enquanto ele virava as costas. Isso fez com que alguns
dos outros sujeitos ao redor olhassem para mim.
Meu pai me ignorou completamente. Ele apenas gesticulou para o jovem parado ao lado do
editor do jornal.
— Você aí! — exclamou. O jovem olhou por cima do ombro e depois virou a cabeça para o
outro lado. Por fim, apontou para si mesmo. — Sim, você, pare de ficar apontado pra você mesmo
desse jeito. Pegue o cavalo e leve pra garota lá em cima.
Fiquei olhando para a cena, completamente confuso. A última coisa que precisávamos agora
era de um cavalo de quase quinhentos quilos em cima daquela plataforma.
— Você me entende? — ouvi meu pai dizer enquanto corria de volta até o cabo.
Vi Steve correndo com seu pequeno estojo de ferramentas, seu rosto tão vermelho quanto os
cabelos. Muito bom, Steve. Pelo menos alguém ali entendia a gravidade da situação.
— Então faça! — Foi a última ordem que meu pai deu antes de eu vê-lo vindo bufando em
minha direção. Então agora ele ligava. Ou queria descontar sua raiva em alguém. Não importava.
Steve tirou uma grande chave-inglesa de sua bolsa e olhou primeiro para ela, depois para o
parafuso solto. Ele desviou o olhar para mim.
— Deixa que eu faço — disse. Eu era um indivíduo razoavelmente forte, e isso sem nenhum
esforço particular da minha parte. Só outro dom que recebi do meu pai. Às vezes, desprezava de
verdade o quanto me parecia com ele. Steve, por outro lado, parecia que podia ser carregado por um
vento mais forte.
Ele me deu a chave-inglesa e eu ouvi meu pai mandando os outros homens que estavam por
ali me rodearem.

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— Temos que esconder isso da plateia — disse ele. Parecia mais preocupado com isso do
que com o cabo solto e a plataforma.
Eu me agachei ao lado da grande placa de metal e ergui o olhar. A plataforma estremeceu
perigosamente e, quando parei para olhar, vi que o cavalo estava sendo levado para ela pelo sujeito
do jornal, claramente muito nervoso. Isso era uma insanidade completa da parte do meu pai — se
não consertássemos o cabo, a plataforma toda podia acabar tombando no chão. Baixei o olhar e vi
lascas de madeira do cais se soltando sob a placa enfraquecida.
Ao trabalho.
Comecei a tentar apertar o parafuso de novo e notei que minha mão estava tremendo um
pouco. Respira, disse a mim mesmo. É só consertar. Mas mesmo a minha força considerável não
seria o suficiente.
— Steve, leve uns homens para o outro lado da plataforma e empurra — disse, fazendo um
breve contato visual com o sujeito antes de voltar ao meu trabalho.
Mais uma vez, Steve me levou a sério. Notei porque meu pai logo começou a esbravejar:
— Aonde pensa que vai?
Para dar crédito a Steve por entender o nível crítico da nossa situação, ele ignorou meu pai,
ainda que temível, e não demorou para que estivesse junto a alguns outros homens bem maiores do
outro lado da plataforma. Assenti para eles do meu lado, vendo-os em meio às grandes vigas de
madeira, e eles empurraram.
A diferença que o empurrão fez foi questão de milímetros, não centímetros, nem metros,
mas milímetros era tudo o que eu precisava. A placa de metal ficou nivelada com o cais e eu apertei
o parafuso o mais apertado que consegui com a mão trêmula, torcendo meu próprio pescoço no
processo. Doeu, mas continuei apertando.
— Ah, pelo amor de Deus, garoto, não dá pra apertar mais — disse meu pai, subitamente
logo acima do meu ombro. — Levanta daí antes que algum idiota entenda o que está acontecendo.
Eu ergui o olhar para ele. Daquele ângulo, seu rosto estava ainda mais caído que de costume.
Ainda era uma figura intimidadora, mas de baixo, parecia mais grotesco que qualquer outra coisa.
Eu voltei à placa, mas ele tinha razão. O sistema todo estava firme, mas a plataforma em si era
fraca, um jeito barato de mandar uma mulher a cavalo para o céu. Mas pelo menos o cabo estava
preso ao cais em segurança de novo.
Eu me levantei e troquei um breve aceno de cabeça com Steve. Bom sujeito, aquele Steve.
— Muito bem, vamos com isso! — anunciou meu pai.
Eu voltei para trás das câmeras e ergui o olhar para a garota agora sentada no cavalo. Era
tudo fingimento. Tudo para o espetáculo. Tudo para as câmeras.
E ainda assim, havia mesmo uma garota a cavalo se atirando em meio ao céu.
Imagina só.

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É um longo caminho até o fundo escuro lá
embaixo. Esse era um daqueles “floreios poéticos”, como meu pai costumava chamar, que o meu
cérebro não conseguia deixar de matutar nas horas mais inconvenientes possíveis. Afinal, eu tinha
concordado com aquilo. Não tinha até me oferecido? Eu queria ajudar. A pobre da Molly estava
doentinha demais e não era justo fazê-la passar por isso. E a Lily, bom, a Lily tinha medo de
cavalos, não é mesmo?
Mesmo assim, cá estava eu, puxando a aba do meu chapéu, tentando me manter aquecida em
meio à forte brisa de outubro enquanto continuava ali parada a quase vinte metros do chão.
— Tá tudo bem aí embaixo? — vociferei de novo. Minha primeira tentativa não tinha obtido
resposta. Arqueei as costas de leve, esticando o pescoço para ver se conseguia enxergar o que estava
acontecendo com a multidão que se reunira aos pés da plataforma.
O garoto rico finalmente ergueu o olhar. Segurou seu chapéu no lugar e acenou.
— Tá tudo certo!
Assenti, mas, para ser completamente franca, não acreditei nele. O que garotos ricos sabem
sobre algo estar “certo”? Qual era a definição de “certo” de um garoto rico, afinal? Imaginava que
os nossos certos deviam ser muito diferentes.
Mas o que eu ia fazer? Descer de volta pelas escadas?
Bom, sim, era algo muito sensato a se fazer.
Mas eu não ia fazer isso. Porque eu “vestia a camisa do time”. De novo, como dizia o meu
pai. Eu não criava confusão. Fazia o que precisava para que o trabalho fosse feito. Não havia espaço
no nosso apartamento para que eu criasse confusão. Não com a Molly sendo uma estrela em
ascensão e o tipo particular de narcisismo da Lily. Ser promovida ao coro do Diamond Lounge com
certeza não ia ajudar com isso. Não havia espaço para que Constance reclamasse. Não havia espaço
para que Constance sequer tivesse alguma personalidade.
Abaixe a cabeça, Constance. Faça o trabalho.
Dê um jeito.
Eu desviei o olhar para as arquibancadas. Estavam cheias, mas haviam sido cuidadosamente
orquestradas pelo pai do garoto rico. O Sr. Chambers podia pagar por uma plateia e precisava
mesmo de uma plateia cheia para fazer seu filmezinho. Nessa época do ano, com os turistas aos
poucos minguando, trazer os moradores da região para o Steel Pier para assistir a outro espetáculo
de mergulho a cavalo não era exatamente algo que não tinha seus desafios. Acrescente o fato de que
a cavaleira era um ninguém que tinha, no último minuto, substituído sua irmã que, essa sim, era um
alguém fabuloso. Bom, quando você paga pela plateia, o público é outro, é só o que quero dizer.
Estavam irrequietos. Podia sentir isso mesmo lá de cima. Também estavam com frio, como
eu. O Sr. Chambers provavelmente não contava com esse vento do norte para sua grande gravação.
E, também como eu, estavam vestidos como se fosse verão. Não, não estavam só com roupas de
banho e nada mais, mas com vestidos leves e calções de linho. Fiquei feliz por não estarem com
roupas de banho. Lily sempre dizia que, quando ficava nervosa, imaginava a plateia de ceroulas,
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mas eu nunca entendi isso. Ela claramente não tinha o gene recessivo da vergonha alheia que eu
herdei da mamãe. “Ah, querida, não, não pense neles assim!”, ela dizia em resposta a como Lily era
afrontosa, o que evidentemente era o motivo pelo qual ela era assim.
Eu não dizia nada, apenas ficava de cabeça baixa. Queria dizer que a ideia de uma plateia
cheia de gente de todos os tamanhos, formas e sexos, todos de roupa de baixo? Pensar nisso me
faria corar e me deixaria mais desconfortável, não menos. Não, não, eu ficava feliz só de tentar
ignorar a plateia por inteiro. Felizmente, quando alguém estava sobre uma plataforma de mergulho
como eu agora, a distância da plateia era tamanha que mal se podia distinguir os indivíduos.
Só uma massa frustrada.
Um borrão.
Um borrão ansioso e aflito.
A plataforma balançou e eu agarrei a grade de metal ao meu lado. Meu estômago pulou na
altura da garganta. Aquela coisa estava para despencar, era por isso toda a confusão lá embaixo?
Minha potencial ruína iminente. “Vai cair em direção à morte, você quer dizer”, ouvi meu pai
falando na minha cabeça.
Bom, sim, pai, é isso o que eu quis dizer. Mas penso em palavras chiques. Mesmo quando a
minha vida está para terminar abruptamente.
Vou te dizer uma coisa: nunca vou ajudar a Molly a sair de uma furada de novo, isso é
certeza. E vou assombrar ela até não poder mais.
Abaixei o olhar em direção ao longo lance de escadas e vi um rapaz que não reconheci
subindo pelos degraus a passos lentos com Trix logo atrás. Ah, entendi. Estava na hora. O balanço
era algo perfeitamente seguro. Aquele tipo de balanço era esperado, não era o tipo de balanço que,
bem, não era.
Trix parecia bem. Tinha sido escovada até os pelos ficarem bem brilhantes, a crina soprando
ao vento como se soubesse que ela era a estrela. Era provável que fosse. Eu sempre dava muito
crédito aos animais, até Molly dizia isso, mas eu só pensava: como eles podem não ter sentimentos,
opiniões e tudo mais? Eles sabem quem nós somos, eles nos reconhecem. Isso certamente significa
que também podem gostar ou desgostar de nós, não é mesmo?
Trix era uma égua bonita e doce. Ela amava todo mundo. Era a égua da Molly, mas era tão
fofa quando eu a montava que para mim era evidente o quanto gostava do tempo que nós duas
passávamos juntas. Será que também gostava de mergulhar numa piscina pequena a quase vinte
metros de distância?
Disso eu não tinha tanta certeza.
Mas ela nunca reclamou. Mantinha a cabeça abaixada. Igualzinho a mim.
— Oi! — eu disse. O rapaz estava tão perto agora que eu me senti um pouco estranha por só
ficar parada esperando. Imaginei que era isso o que a Molly sempre fazia. Ela era a estrela, a égua
era levada até ela. Não havia ninguém fora daquele mundo. Mas como alguém pode simplesmente
ignorar uma pessoa? Alguém bem na sua frente?
— Oi — disse ele. Abriu um sorriso e imaginei que devia ter mais ou menos a minha idade,
uns dezessete ou dezoito anos. Mas parecia um pouco abatido e, qual era mesmo aquele termo
maravilhoso? Cansado da vida, era isso. Como se tivesse algo pesado na cabeça.
— Obrigada por fazer isso. O Steve não apareceu, imagino? — disse. Sabia que minha voz
tinha soado meio estranha. Eu não sabia muito bem como jogar conversa fora.
— Não sei. Mas precisavam de alguém pra ajudar. — Ele olhou para o chão do alto da
plataforma e recuou um passo.
— Eu sou assim! — respondi depressa.
Ele franziu o cenho.
— Assim como?
— Ah, é só que, quando alguém precisa de ajuda, eu ajudo. Eu queria dizer que aprecio o
fato de você ter ajudado. Digo, entendo por que se voluntariou. — Por que eu ainda estava falando?
Podia ver pela sua linguagem corporal que ele só queria descer da plataforma.

14 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Certo — disse ele. Olhou para baixo de novo. Eu segui seu olhar. Um pequeno grupo,
incluindo o garoto rico e seu pai, havia se juntado na base da plataforma. — Olha, eu preciso voltar
lá pra baixo. Você precisa de ajuda pra subir?
— Ha, voltar pra baixo, ajuda pra subir — eu disse. Nossa, como sou idiota.
— E aí, precisa?
— Ah, sim. Sim, eu preciso. — Eu com certeza precisava de ajuda para subir. Precisava de
toda a ajuda que pudesse conseguir. Claramente. Esqueça que a ideia da plateia de roupa de baixo
me faria corar, as próprias palavras saindo da minha boca já eram mais que eficientes nesse quesito.
Ah, por que o meu cérebro não podia ser tão articulado do lado de fora da minha cabeça quanto era
do lado de dentro?
Presa dentro do meu próprio cérebro. Era assim que eu me sentia às vezes. Todos esses
sentimentos, essas frustrações, só borbulhando lá dentro, sem conseguir sair.
— Então... o que eu faço? — Ele já estava ficando cansado de mim, eu estava pensando
demais. Não estava sendo profissional.
— Ah, só segura ela quieta enquanto eu monto. Ela é uma dama, vai ser bem tranquila. —
Isso me pareceu algo decente a se dizer.
O rapaz assentiu.
— Precisa de ajuda? — exclamou então o pai do garoto rico. Não parecia uma preocupação
verdadeira. Porque não era. Era uma instrução: andem logo com isso.
— Acho que é melhor andarmos logo com isso — disse.
— Acho que sim.
O jovem segurou o freio de Trix com um pouco mais de convicção que antes e se plantou na
plataforma com as pernas afastadas. Assenti e rapidamente subi nas costas dela. Era como cavalgar
sem sela, exceto pelo amortecedor que ela tinha nos ombros, preso em volta do peitoral e que me
impedia de escorregar muito para frente quando mergulhávamos juntas. Era para a segurança de
ambas, a dela e a minha, que não havia sela, rédeas ou estribos. Uma vez na água, tínhamos que nos
separar uma da outra com facilidade.
— Tudo pronto? — perguntou o rapaz enquanto eu terminava de me ajeitar em cima dela.
— Ah, claro! — disse, olhando para ele. — Sim, muito obrigada.
— Posso ir então? — Ele parecia inseguro. Mas é claro que estava. Nunca tinha feito aquilo
antes, imaginei.
— Sim, por favor! — Eu agora estava tentando entrar no estado de espírito certo para
mergulhar e me sentia terrivelmente nervosa. Esperava não ter soado grossa com a minha resposta.
Ah, que se dane. Talvez tivesse.
— Meu nome é Constance, a propósito — disse, virando quando ele estava começando a
descer. Ele olhou de volta para mim.
— Eu sei. — Ele se virou mais uma vez e eu me senti como uma idiota de novo, embora
honestamente não soubesse bem o porquê dessa vez. Voltei a me virar e me inclinei para passar a
mão no pescoço de Trix.
— Bom, eu sou uma idiota, não sou, menina? — sussurrei no ouvido dela. Ela deu então
uma breve bufada e eu ri um pouco. — Não era pra você concordar.
— Quando estiver pronta! — Era o pai do garoto rico de novo. Eu odiava pensar nisso, mas
naquele momento, tinha plena certeza de que não ia com a cara dele. — Estamos gravando.
Quando estivesse pronta e, ainda assim, eu me sentia exatamente o oposto. Eles estavam
prontos. Estava na hora.
Mas caramba, como eu estava com medo.
Não, eu tinha que dizer que eram os meus nervos. Nunca que estava com medo. “Medo não
é a mesma coisa”, Lily insistia em dizer. “O medo te segura. Nunca te leva em frente”.
— Vamos, Trix, vamos acabar logo com isso. Aí podemos ir as duas para casa. — Ela bufou
de novo e eu a guiei lentamente mais a frente pela plataforma, de forma que seus cascos ficassem
logo antes da rampa de mergulho. Embora dificilmente alguém chamaria um pedaço de madeira
pendurado e quase tombando de uma plataforma num ângulo de noventa graus em direção a água
exatamente de “rampa”.
15 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Me inclinei sobre o pescoço de Trix. Senti sua crina roçar na minha bochecha, áspera mas
quente, com aquele cheiro familiar de palha seca. Apertei com os braços e as pernas, segurando
meu corpo o mais próximo possível do dela.
— Muito bem, Trix, está na hora. Vamos voar.
Eu pressionei seus flancos com um único movimento mais brusco e ela então se lançou em
direção à rampa de mergulho. No instante seguinte, estávamos no céu. A velocidade foi súbita e o
vento gelado nos rodeou como se estivesse vivo.
Levou apenas alguns segundos e a água se ergueu para nos receber. Fechei os olhos.
Abaixe a cabeça, Constance. Faça o trabalho.
Dê um jeito.

16 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Vamos falar sobre contar uma história. Va-
mos falar sobre decisões narrativas, sobre ponto de vista e o que você quer dizer. O que você
realmente quer dizer. Vamos falar sobre moldar a opinião do público e guiar o leitor em uma
direção particular. Vamos falar sobre como mesmo quando uma história é baseada em fatos reais e
está contando toda a verdade, ela ainda tem seus vieses. Vamos falar sobre jornalismo e integridade.
Vamos falar sobre ir morrendo congelado aos poucos no meio de outubro enquanto uns
riquinhos aleatórios tentam fingir que não é essa época do ano.
Vamos falar sobre cavalos no céu.
E sobre garotas em roupas de banho.
E sobre uma plateia comprada com espectadores gritando quando orientados a fazê-lo.
Vamos falar sobre todas essas pessoas, sobre estar parado no meio de tudo isso e ser total e
completamente invisível.
Ah, sim, vamos falar especialmente sobre isso. Quantos jornalistas tentam simplesmente
desaparecer, observar em silêncio, conseguir a história, a história de verdade, como se suas próprias
histórias pessoais não afetassem as palavras que escrevem? Vamos falar sobre como nenhum deles
realmente sabe o que de fato é ser invisível. Ser um pobre coitado, como dizem. Não ter nascido em
uma família de escritores. Não ter crescido com qualquer expectativa de ir para a faculdade. Não ter
se formado no ensino médio.
Só querer escrever.
Aí, em vez disso, você acaba arrumando um emprego na sala de correspondências de um
jornal. Você se torna o garoto das entregas. Mas mesmo assim, ninguém te vê. Mas você vê tudo.
Até que eles te veem.
— Você aí!
Eu aí? Fui arrancado dos meus pensamentos. Provavelmente algo bom — já estava sentindo
muita pena de mim mesmo pro meu gosto. Apontei para mim mesmo, ciente de que eu era eu e
ciente de que eu estava lá, mas chocado por aquele homem enorme com uma grande jaqueta de
inverno e um grande cachecol de pele sequer ter me notado.
— Sim, você, pare de ficar apontado pra você mesmo desse jeito. Pegue o cavalo e leve pra
garota lá em cima.
Olhei para ele por um momento. Digo, olhei na direção dele. Estava pensando, processando
o comando. Entendia que não tinha como ele saber que eu estava lá por motivos jornalísticos, mas o
que diabos o fez pensar que eu tinha qualquer habilidade para guiar cavalos era algo bem intrigante.
— Você me entende? — Ele falou mais devagar agora, como se estivesse falando com
alguém que não falasse sua língua, ou uma criança, da forma como adultos falam com crianças,
como se fossem idiotas e não como se ainda estivessem aprendendo as coisas.
Assenti.
— Então faça!

17 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Bom, só porque eu tinha entendido, não queria dizer que eu tinha que obedecê-lo. Me virei
para o Sr. Clark.
— Só faça, Brant. Eu sei, eu sei. Mas vamos só acabar logo com essa droga de dia.
— Senhor, eu não sou exatamente louco por cavalos — respondi. Disse isso de uma forma
hesitante. Não gostava muito de compartilhar esse fato a meu respeito. Achava bem vergonhoso, na
verdade. Afinal, cavalos eram parte da vida cotidiana, ainda mais ali em Atlantic City. Puxavam
aquelas carruagens ornamentadas para pombinhos apaixonadas no calçadão, esse tipo de coisa.
— Só faça e depois eu te compenso.
— Eu quero artigos publicados com o meu nome — disse depressa. Eu sabia como tirar
vantagem de um momento. Essa certamente era uma coisa na qual eu era bom. Meu tio incutiu isso
em mim quando eu ainda era pequeno: “Você diz sim para qualquer oportunidade que tenha. É
melhor acreditar que todos os outros por aí vão fazer exatamente isso”.
— Brant, você sabe que eu não posso fazer isso. — O Sr. Clark balançou a cabeça de forma
melancólica e aquela expressão fatigada se materializou em seu rosto. Eu a vinha vendo bem mais
ultimamente. Ele era um homem cansado.
Bom, eu não estava cansado, ainda não. Eu era jovem, recém tinha me tornado um homem,
tinha os tapas de aniversário dos meus primos para provar. Dezoito anos e perfeitamente pronto
para dizer sim para todas as oportunidades. Talvez não tão pronto para dizer sim para oportunidades
que tinham a ver com cavalos, mas de uma forma geral. Estava mais que pronto.
— Sr. Clark, eu não tô brincando aqui, eu quero artigos meus.
— Você é só um garoto... — disse ele, mais para si mesmo que qualquer outra coisa.
— Eu era um garoto que te levava o almoço. E foi o senhor quem viu meu potencial. Quem
realmente me viu e não só enxergou através de mim, como a maioria faz. Eu sei que o senhor me
vê, Sr. Clark.
— Brant...
— E agora, dois dias atrás, eu virei adulto aos olhos da lei. E mais que isso, o senhor sempre
me tratou de forma justa. Sei que o senhor vê algo em mim. O senhor me trouxe aqui hoje. Para ver
seu trabalho e aprender. Então quero ter meus próprios artigos, com o meu nome neles. Ainda vou
te levar o almoço, ainda vou segurar seu chapéu, mas quero esses artigos com o meu nome.
Ele ficou em silêncio por um momento. Eu sabia que estava forçando as coisas ali.
— Cadê aquele garoto com o cavalo? — ouvi o homem enorme dizendo. Eu claramente
tinha me tornado invisível de novo. Estava bem ali... exatamente no mesmo lugar onde ele tinha me
visto por último. Ele podia ter olhado um metro ou dois para a direita, mas estava ocupado demais
reclamando que eu ainda não tinha feito o trabalho.
— Se eu colocar o seu nome, filho, — disse o Sr. Clark, abaixando a voz, mesmo que
ninguém estivesse nos ouvindo antes de toda forma — não posso garantir a publicação. Você ainda
não está pronto, ainda está aprendendo o negócio.
— Eu entendo, Sr. Clark. Mas só quero a chance de me provar. Não espero nenhum favor.
— Como que eu coloque seu nome nos artigos?
Não consegui evitar um sorriso, e estava tudo bem, porque o Sr. Clark também estava com
um sorrisinho se formando na ponta dos lábios. Quase imperceptível, mas você nota esse tipo de
coisa quando é alguém como eu.
— Olha, é só um bom negócio. Estamos só fazendo um acordo.
— Só fazendo um acordo, é? Bom, Brant, nem acredito que estou concordando com isso.
Mas, sim, vamos fazer o seu nome e publicar algo com ele.
— Obrigado, senhor. O senhor não vai se arrepender.
— Já estou arrependido. — Seu sorriso se alargou um pouco. — Agora é melhor você levar
aquele cavalo para a garota porque a minha busanfa já tá congelando aqui.
— Acho que encontrei o assunto do meu primeiro artigo — brinquei.
— Brant!
Eu ri e levantei as mãos.
— Tá bom, tá bom... — Me virei e voltei até os bastidores. Na verdade, eu não sabia onde
esse cavalo estava escondido, mas imaginei que seria um bom lugar para começar a procurar.
18 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu logo o encontrei num pequeno abrigo improvisado, cuidado por um senhor arcado que
me lembrava de um jeito terrível o Sr. Doyle lá do meu bairro. Fui andando até ele.
— Oi. Viu, eu tenho que levar o cavalo pra garota — disse.
O senhor olhou para mim com uma profunda desconfiança.
— Então... o que eu faço aqui? Tem uma rédea, uma corda ou coisa assim? — Eu olhei para
o cavalo, mesmo tendo evitado isso até então. Cara, aquele animal parecia enorme tão de perto.
Veja, eu não tinha bem o que diziam ser medo de cavalos. Eram mais eles que tinham medo
de mim. Afinal, como mais você explicaria o fato de cada um dos cavalos que você tentou montar
na vida terem te jogado no chão? Ficava feliz por viver numa época em que a maioria das pessoas
andava de carro.
— As rédeas ficam no caminho. Leva ela pelo freio. Ela é uma mocinha bem dócil. Uma
dama — respondeu o senhor.
“Mocinha”? Estava mais para “moçona”.
— Então é só...? — Eu não sabia o que dizer. Olhei para a fera. Era bem bonita, de um
castanho escuro com uma estrela branca no meio da testa. Mas ainda era... uma fera.
— O freio, só pega de uma vez e guia ela.
— E... você não pode fazer isso porque...?
O senhor deu risada.
— Olhe pra mim, filho. Essa gente não me quer lá fora, em público. Além do mais, eu não
me dou muito bem com altura.
Bom, eu não me dou muito bem com cavalos, pensei, mas não disse.
— É melhor você ir. Não vou arranjar problemas porque você tem medo de cavalos.
— Eu não tenho! — disse, um pouco rápido demais.
— O nome dela é Trix. Ela vai te seguir.
— Oi, Trix — disse, tentando acalmar os meus nervos.
A égua não parecia reconhecer a minha existência. Qual a novidade? Ergui a mão e segurei
gentilmente o freio. Meus nós dos dedos roçaram em seus pelos e eu hesitei por um momento,
prevendo um ataque de fúria, mas ela não fez nada. Só ficou ali parada, paciente.
— Boa menina — disse, o coração na garganta. Cara, como dava vergonha me sentir assim.
Só acaba logo com isso, Brant. Seja homem, pelo amor de Deus.
Eu não tinha certeza do que fazer depois, então só comecei a andar em direção à plataforma.
Evidentemente, como o senhor havia dito, Trix me seguiu. Foi andando ao meu lado, aqueles cascos
gigantes estalando no palco metálico à medida que nos aproximávamos da escada da plataforma.
— Já tava na hora — ouvi alguém dizer quando nos materializamos na esquina. Não olhei
na direção da pessoa. Estava focado demais em não ser pisoteado até a morte.
Os degraus que levavam até o alto da plataforma de mergulho se assomavam bem na minha
frente. Estavam empilhados num ângulo baixo, obviamente para permitir que um cavalo subisse por
eles. Também eram baixos, fazendo com que a coisa toda parecesse uma rampa. Também tinha o
efeito de fazer com que a garota que estava lá em cima parecesse ainda mais distante. Por que eu
estava fazendo isso e por que parecia que essa tarefa nunca teria fim?
Guiei Trix até o primeiro degrau e ela subiu até que bem tranquila. A senti puxar de leve
quando percebeu com clareza do que aquilo se tratava. Se viu sua cavaleira lá em cima, a morena
com roupa de banho que provavelmente estava morrendo congelada naquele clima, mas parecia tão
serena quanto qualquer modelo de biquíni na praia, ou se só estava empolgada para fazer logo o
mergulho (o que para mim não fazia o menor sentido), eu não sabia dizer, mas ela queria chegar ao
topo. Então acelerei o passo e decidi ficar só olhando para frente e não para a égua ou para o chão
que cada vez mais ia se afastando de nós.
A plataforma balançava conforme avançávamos e, caramba, como era divertido. A garota se
virou e nos notou. Desviei o olhar. Não achava que ela queria um cara olhando para ela do jeito que
eu sabia que estava fazendo. Não era bem por ela, é claro, eu só precisava de algo para olhar, mas
provavelmente seria falta de educação ficar encarando. Em vez disso, olhei para seus pés. Estavam
descalços. Como é que ela não estava completamente congelada?
— Oi! — disse ela, de repente.
19 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Isso me pegou totalmente de surpresa. Eu estava muito focado e não esperava nenhuma
conversa naquele momento.
— Oi — respondi. Sorri porque não queria que ela pensasse que estava com medo daquilo
tudo. A vergonha me queimava por dentro. Se ela não estava com medo e estava prestes a se sentar
naquele animal gigante e se jogar em meio ao céu montada nele, bom... eu pelo menos podia fingir
estar tranquilo.
— Obrigada por fazer isso. O Steve não apareceu, imagino? — disse ela. Eu não fazia ideia
de quem era Steve. Ela estava só jogando conversa fora? Ali? No céu?
— Não sei — respondi. — Mas precisavam de alguém pra ajudar. — Me senti recuando um
passo, mesmo com Trix mexendo a cabeça para me puxar para frente.
— Eu sou assim! — ela disse.
— Assim como? — Agora eu estava mais confuso que nunca.
— Ah, é só que, quando alguém precisa de ajuda, eu ajudo. Eu queria dizer que aprecio o
fato de você ter ajudado. Digo, entendo por que se voluntariou.
Por que ela ainda estava falando? Eu só queria que ela pegasse logo o freio. Esse não foi um
trabalho pro qual eu me voluntariei, moça.
— Certo — disse. Olhei para baixo de novo, vendo o pequeno grupo que havia se juntado na
base da plataforma. Será que alguma coisa estava quebrando? Aquela coisa toda ia tombar? —
Olha, eu preciso voltar lá pra baixo. Você precisa de ajuda pra subir?
— Ha, voltar pra baixo, ajuda pra subir — disse ela.
Agora parecia estar falando em charadas. Qual era a desses artistas e suas personalidades?
— E aí, precisa?
— Ah, sim. Sim, eu preciso.
Que ótimo. Eu meio que tinha uma esperança de que ela fosse dizer não. Mas eu me ofereci.
Porque é o que cavalheiros fazem. Não é, tio?
— Então... o que eu faço? — Por um momento, tive medo absoluto de que ela precisasse
que eu a levantasse para montar na égua. Segurar uma garota quase nua não era algo para o que eu
estivesse preparado.
— Ah, só segura ela quieta enquanto eu monto. Ela é uma dama, vai ser bem tranquila.
É, também era o que o senhor tinha me dito antes. Não que tivesse ficado provado que ele
estava errado. Mas cavalos podiam te surpreender. Eu só assenti.
— Precisa de ajuda? — exclamou então o homem enorme. Ele não parecia estar preocupado
de verdade ou sinceramente oferecendo alguma coisa. Provavelmente porque de fato não estava.
Estava mandando nós dois andarmos logo com isso.
— Acho que é melhor andarmos logo com isso — disse a garota.
Ela obviamente também tinha entendido.
— Acho que sim.
Me mantive firme enquanto a garota parecia desafiar a gravidade e subia nas costas de Trix.
Por sua parte, Trix mal se mexeu, continuou parada feito uma pedra. Era provável que a minha
presença ali não fosse nada necessária. Ergui o olhar e fitei a garota se ajeitando em sua posição.
— Tudo pronto? — perguntei.
— Ah, claro! — respondeu ela, olhando para mim com um sorriso charmoso estampado no
rosto. — Sim, muito obrigada.
Tá, então... e agora?
— Posso ir então?
— Sim, por favor! — respondeu ela. Sua voz estava um pouco tensa. Também devia estivar
nervosa. Talvez eu estivesse deixando as coisas mais complicadas para ela ficando ali em cima. Eu
rapidamente soltei o freio e me virei para descer pela escada. Ela subitamente me pareceu muito
íngreme e muito longa.
— Meu nome é Constance, a propósito — ela disse para as minhas costas. Eu me virei e
olhei para ela.
— Eu sei — disse. E me virei de novo para enfrentar a escada.

20 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Foi só quando cheguei lá embaixo que me dei conta do que disse. Eu não sabia o nome dela.
Por que tinha dito aquilo? E por que não me apresentei como ela claramente esperava que fizesse?
Era o meu orgulho idiota. Eu vinha trabalhando duro para escondê-lo. Precisava fazer isso.
Não ia chegar a lugar nenhum sendo um filho da mãe orgulhoso. Mas às vezes ele simplesmente
saía do seu esconderijo. “Eu sei”. Eu não era um garoto invisível idiota que não fazia a menor ideia
do que estava fazendo ou de quem era qualquer uma daquelas pessoas chiques na plateia. Eu sabia
das coisas.
Lá estava ela de novo, aquela pitada de vergonha diante do meu comportamento. Ela sempre
me seguia, aonde quer que eu fosse. Mesmo quando eu me sentia completamente seguro de mim,
ela estava sempre lá para me atormentar depois do fato. Mas nunca me impedia de fazer o que a
causava. Não, isso seria muito prestativo.
Eu me virei bem a tempo de ver a garota voar pelo ar em cima de Trix e pousar em meio a
um grande espirro d’água na piscina pequena.
Isso sim era coragem. Ou burrice.
Na verdade, quando se parava para pensar, não tinha muita diferença entre as duas coisas.

21 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Medo.
Raiva.
Vergonha.
Tudo agora é um redemoinho. Tudo agora é uma única coisa. Um sentimento que não existe.
Uma existência que não existe. E, mesmo assim, cá estamos nós.
E, mesmo assim, nós sentimos.
Não é estranho não existir e, mesmo assim, ainda ser real?

22 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Enjoado. Fantástico. É por isso que eu odi-
ava barcos. Não tinha conversa. Você entra num barco, ele balança, você se sente uma merda. Fim
da história. Sabe, eu sempre tive um motivo para pensar o que penso.
Sempre havia uma explicação.
Mas vai tentar explicar pra Ally por que você pegou seu emprego de volta. Depois de ter
sido demitido. Depois de terem roubado o trabalho da sua vida. Vai tentar explicar isso para ela. Ela
simplesmente não entendeu e isso me deixou furioso. Não havia motivo para ela não entender. Ela
foi a única que ficou, afinal, que ainda trabalhava com aquele homem, então por que era tão ruim se
fui eu quem disse sim? Sim, vou pegar meu emprego de volta. Sim, vou consertar a máquina. Sim,
vou tirá-la do estúdio, dos olhares indiscretos e de uma escritora curiosa até demais que perambula
por aí. Sim, vou voltar a um trabalho que nunca pareceu dar a mínima para mim. Para o que eu fiz.
O que eu fiz?
O que eu fiz.
Sabe, na minha idade eu já era um pouco velho demais para histórias em quadrinhos, mas de
vez em quando dou uma olhada no Superman. Heróis que poderiam salvar o dia me deixavam feliz.
Era tão fácil para eles. A linha entre o certo e o errado era óbvia. Queria que a vida real fosse assim
tão óbvia. O que é bom, o que é ruim, claro e fácil.
Eu sei o que fizemos.
Eu sei o que criamos.
Mas é também uma invenção diferente de tudo antes dela. Você não pode simplesmente
abandonar algo assim. Não quando estava tão perto. Você não abandona uma criança porque ela
quebrou alguns copos. Porque ela sai esperneando e bate na sua cara por engano.
Uma criança só precisa de ajuda para crescer. Você não abandona o seu filho.
Não é só uma máquina, é um milagre.
Você não abandona um milagre.
Mesmo que ele te assuste.
Mesmo que ele te mate.

23 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Obrigada, obrigada, obrigada!
Eu sorri enquanto Molly me espremia até ficar sem ar. Eu realmente esperava que seja lá o
que ela tivesse não fosse contagioso, mas não ia dizer para ela não me abraçar. Não posso ferir os
sentimentos da pobre garota.
— De nada — sibilei em vez disso.
Ela recuou com um sorriso e segurou minhas mãos com as dela. O olhar de gratidão em seu
rosto era doce e ridículo. Minhas duas irmãs tendiam a agir como se estivessem se apresentando
para uma plateia o tempo todo. Mas pelo menos com Molly tinha algum tipo de sinceridade.
— Eu juro que você nunca mais vai ter que fazer isso — disse ela.
Molly espirrou em seu lenço, soltando uma das minhas mãos, mas puxando a outra para que
eu a seguisse. Eu me permiti ser puxada para o quarto dela e da Lily. Eu costumava dividi-lo com a
Lily antes, mas ela ficou tão frustrada com as minhas “experiências científicas bobas”, como ela
chamava, que Molly gentilmente se ofereceu para trocar de quarto comigo. Ah, ser tão meiga
quanto a Molly. Eu sabia que muita gente achava que eu era, mas esse não é o meu verdadeiro eu.
Estou sempre frustrada ou no limite. As intenções da Molly eram pura bondade.
— Tudo bem — respondi. — Já fazia tempo que eu não mergulhava. A Trix foi um amor.
— Ela não é uma querida? — perguntou Molly enquanto abria a porta do quarto. — Ta-dá!
Levei um momento para ver em meio às flores desbotadas que decoravam o quarto. Havia
roupas jogadas por a cama de Lily, como sempre, e meus olhos sempre acabavam sendo atraídos
para a bagunça. Eu nem notei a caixa azul lisa na de Molly.
Até que notei.
— Molly... você não fez isso — disse, soltando sua mão e indo lentamente até sua cama.
— Eu fiz! — Ela estava extremamente animada e batia palmas feito uma criança. E depois
congelou. E espirrou alto.
Eu flutuei em direção à caixa e li as palavras que sabia que estavam impressas nela com
aquela foto do garotinho assustador segurando o frasco: “Aparelho de Química do Gilbert”.
— Você me deu o Conjunto Mestre da Química? — perguntei admirada, com medo de abrir
a coisa na minha frente.
— Sim! Eu sei que você não queria mergulhar e sei que você odeia ser o centro das
atenções, sua coisinha tímida, e eu sabia que você queria isso. Quer dizer, como não ia saber? Você
não conseguia parar de olhar pra ele toda vez que a gente passava pela loja do velho Doc. — E ela
continuou assim, contando a história da minha própria vida como se fosse novidade para mim.
Eu só coloquei a caixa de volta na cama e a abri com cuidado. Dentro havia várias dezenas
de pequenos frascos com rótulos laranja brilhante, cada um detalhando seu conteúdo. Havia frascos
com pós estranhos, uma balança, um ímã e um livro com experiências para tentar. Senti as lágrimas
brotarem e me virei para Molly, que ainda tentava me deliciar com sua história de magnificência,
agarrando e apertando-a com força nos braços.
Isso a fez calar a boca.
24 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Ah — disse ela, assustada. Ela me abraçou de volta.
— É o melhor presente que alguém já me deu — disse, a voz suave. — Obrigada, Molly.
Nós nos separamos e acho que ela viu as lágrimas nos meus olhos porque parecia tensa e um
pouco vermelha.
— Bom, como eu disse, sei que foi uma grande coisa pra você fazer o que fez hoje.
— É tão caro — foi tudo o que consegui dizer em resposta.
— Não pense nisso — respondeu Molly.
Olhei para ela com atenção.
— Molly, onde você conseguiu o dinheiro?
Ela suspirou e balançou a cabeça.
— Alguém comprou isso pra você? — perguntei.
Outro suspiro.
— Molly!
— Eu sei como você se sente sobre homens me comprando presentes, mas juro que eu sou
uma garota crescida e, além disso, eu gosto de presentes. Ainda mais se forem para as minhas irmãs
— ela disse com aquele seu sorriso suave e doce. Tudo em sua aparência era suave e gentil. Um
rostinho redondo, as curvas suaves do corpo, os cabelos cacheados que nunca ficavam no lugar.
Suavidade até demais para quem era tão atlética.
— Eu me preocupo — foi tudo o que consegui dizer. Mas queria dizer muito mais. Queria
sacudi-la e dizer que esses homens não valiam o seu tempo. Que todos eles eram esquisitos e ela era
muito melhor que eles. Que eles só queriam essa ilusão suave que ela espalhava pelo mundo, não a
garota real, engraçada e generosa que ela era. Que eu me preocupava com a reputação dela. Não que
eu pessoalmente pensasse como os outros pensavam, mas eu sabia como os outros viam ela e a Lily.
Era injusto e me deixava extremamente frustrada que os meninos que cortejavam minhas irmãs não
tivessem exatamente as mesmas preocupações com a reputação. Eles podiam se safar com muito
mais do que nós, garotas. No entanto, era como eram as coisas. E eu não queria que as pessoas
pensassem coisas negativas sobre a minha adorável Molly.
Mas eu não podia dizer essas coisas. E nem nunca poderia. Eu guardava esses pensamentos
confusos para mim. Como poderia dizer essas coisas sabendo como ela ficaria chateada? Ela ficou
muito feliz por ter me dado esse presente.
— Eu estou bem — disse Molly, e fui salva de deixar escapar algo de que talvez me
arrependesse quando Lily irrompeu na sala.
— Constance! Vem, a gente vai se atrasar!
Olhei para Molly e nós imediatamente trocamos um olhar, aquele olhar, nosso olhar que
significava “ah, a Lily”.
Minha irmãzinha de dezesseis anos era um turbilhão na melhor das hipóteses, mas, antes de
um show, ela era um tornado. Não havia nada que se pudesse fazer a não ser seguir o caminho da
destruição e tentar colocar as coisas em ordem depois.
— Estou indo — disse. Meu cabelo ainda estava úmido e eu sabia que estava horripilante,
mas disse a mim mesma que isso não importaria, eu estaria nos bastidores. Além do mais, Lily
provavelmente gostaria que eu estivesse parecendo um rato afogado. Não que ela fosse uma pessoa
indelicada. Ela só gostava de ser o centro das atenções. Muito.
Olhei uma última vez para Molly, que havia se sentado na cama e agora estava assoando o
nariz delicadamente. Era impressionante como ela conseguia ser tão delicada e tão repugnante ao
mesmo tempo.
— Obrigada de novo — disse.
— Connnnnstaaaaance! — Foi um gemido e ao mesmo tempo um grito, os dois vindo da
porta da frente.
— É melhor você ir — respondeu Molly.
Eu ri e fui me juntar a Lily, que já estava segurando meu casaco de lã cinza estendido para
mim. Agarrei-o e o vesti, apertando bem o cinto na minha cintura.
— Sem chapéu? — ela perguntou quando saímos no corredor e eu fechei a porta.

25 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Quer que eu tire um tempo para prendê-lo? — perguntei, enfiando a mão nos bolsos para
pegar minhas luvas.
— Não — ela respondeu fazendo biquinho e ajustando o próprio chapéu clochê na cabeça.
Lily tinha um senso de propriedade tão bobo, mesmo quando os outros a olhavam de soslaio
por dançar com umas roupas bem reveladoras no show.
Fomos recebidas por uma rajada de vento frio quando saímos na rua e viramos à esquerda
em direção ao calçadão. Lily estava andando num ritmo que, se fosse um pouquinho mais rápido,
estaríamos correndo. Tentei fazer o meu melhor para acompanhá-la, mas fiquei um pouco para trás.
Queria dizer para ela ir devagar, não estávamos atrasadas, estava tudo bem, mas não queria começar
uma discussão.
Então eu caminhei até lá, atrás dela, pensando no dia que já tinha tido. Do mergulho na água
gelada. Na frente de uma baita multidão, registrado em filme para sempre. Esperava ter parecido
profissional e confiante. Esperava estar bonita. Não, não pense assim. Havia mais na vida do que ser
bonita. Às vezes é difícil quando sua irmã mais velha é famosa por voar pelo céu em um cavalo e
sua irmã mais nova dança com lantejoulas e penas, não que eu fique pensando muito nisso, só um
pouquinho... e me importe. Sem pensar, eu levei a mão ao topo da minha cabeça ainda molhada. E
se o ar ficasse mais frio, podia acabar com um capacete de gelo.
Devia ter usado um chapéu.
Chegamos ao calçadão e o vento ficou mais forte. As ondas batiam contra a praia vazia mais
à frente e fiquei grata por termos mergulhado quando o fizemos. O tempo estava se agitando cada
vez mais agora, como em um frenesi perigoso.
Era incrível que tivesse algum turista vagando pelo calçadão, mas tinha. Eles vinham o ano
todo, embora agora em número muito menor. Possivelmente “turista” era a palavra errada para esse
tipo de pessoa. No período de baixa temporada, parecia que as pessoas que vinham a Atlantic City o
faziam por motivos de trabalho. Ou para outros, por motivos mais ilícitos. Eles não vinham aqui
para ver os pontos turísticos, vinham para dar uma fugidinha nas boates ou restaurantes caros. Se
escondiam em suítes nos últimos andares dos hotéis mais chiques.
Falando nisso... nós entramos no Oceanview Hotel e corremos pelo saguão em direção às
portas do teatro do Diamond Lounge.
— Obrigada, Jaque! — exclamei para o porteiro atrás de mim, e ele levou a mão à ponta do
chapéu em resposta.
Nós voamos pelas portas do teatro. As luzes estavam acesas, fazendo a magia do espaço
desaparecer nos cantos escuros, e a suavidade da sala ganhava um relevo nítido: as manchas no
carpete, o papel de parede descascado, os arranhões e entalhes nos móveis.
— Aí está você — disse Mac, o gerente de palco. Estava ajustando a barra da cortina do
palco, um de seus enormes charutos pendurado no canto da boca.
— Cuidado, Mac, você ainda pode acabar colocando fogo nesse lugar — disse Lily com sua
risada melodiosa.
— Nunca aconteceu — ele respondeu com um sorriso.
— Oi, Mac — eu disse quando Lily passou correndo por ele em direção aos bastidores.
— E aí, garota — respondeu ele. — Alguma novidade da nossa grande cientista?
Eu balancei a cabeça. Eu morria de vergonha quando ele me chamava assim. Desde que
descobriu que eu gostava de química, ele pensou que eu era algum tipo de cientista ou sei lá o quê.
O que eu não era. Nem um pouco. Mas é claro que ele gostava de me chamar assim e eu não queria
aborrecê-lo pedindo que não o fizesse.
— Falando nisso — disse em vez disso. — A Molly me deu o conjunto de química.
— Deu, é? Ora, se não é um baita gesto legal da sua irmã.
— Realmente. Sabe, eu estava pensando, talvez eu pudesse dar um jeito naqueles efeitos de
neblina que você queria — respondi. Meu estômago ficou todo agitado com a ideia.
— Poxa, seria excelente. Faça isso e nós pagamos pelo privilégio, não se preocupe! — Mac
era sempre tão entusiasmado com tudo que às vezes era difícil dizer se estava sendo sincero. Mas
ele estava. Ele era adorável.
Eu sorri e ele olhou por cima do ombro e então de volta para mim novamente.
26 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— É melhor você voltar lá. Já está um caos.
— Sério? É só um show de terça à noite.
— O caos não se importa com o dia da semana — respondeu ele, dando mais uma tragada
em seu charuto.
Eu realmente não entendi aonde ele queria chegar, mas sorri e rapidamente segui rumo aos
bastidores. Fileiras de espelhos emolduradas com luzes estavam ocupadas com fileiras de garotas
sentadas na frente deles, cutucando e espetando seus rostos, acrescentando cor e realces diversos.
Outras garotas puxavam as meias e jogavam suas roupas de rua sobre as cadeiras enquanto corriam
para pegar suas fantasias no cabideiro. Certamente havia uma energia caótica enquanto as garotas se
preparavam para o show. Eu era sua auxiliar, sua assistente, tudo o que precisassem para garantir
que subiriam no palco na hora certa e estariam fabulosas. Às vezes precisava costurar uns botões, às
vezes precisava colocar mais grampos nos enfeites de cabeça, esse tipo de coisa. Era um trabalho
relativamente fácil quando as meninas não estavam nervosas. Como estavam hoje.
— Constance! Ajuda! — Uma Naomi toda enfeitada pulou na minha frente e virou as costas.
Ainda com as luvas, fechei os botões e ela voou de volta para o espelho no momento em que
meus dedos a soltaram.
Tirei rapidamente meu casaco e luvas e os joguei numa das poucas cadeiras vazias, quando
fui abordada por três garotas falando a mil por hora e uma por cima da outra. Concordei com seus
pedidos sem entendê-los totalmente e me sentindo sobrecarregada pela energia e pelo pânico.
Este certamente estava se tornando um daqueles dias.

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— Brant, agora não. — O Sr. Clark se sentou
pesadamente atrás de sua mesa e tirou o chapéu. Ele esfregou a careca algumas vezes, como se
estivesse prestes a fazer um pedido.
— Sim, agora, Sr. Clark — respondi. Coragem ou estupidez, não importava.
— Foi uma longa manhã com aquela coisa idiota do cavalo — disse ele.
— Sim, eu sei, mas o senhor também me prometeu um artigo meu se eu fosse um ajudante
de cavalo idiota, e eu tenho uma ideia doida. — Eu me sentei na cadeira diante dele sem que ele
solicitasse. Estava me sentindo bem invencível, para dizer a verdade.
— Apresente-me rápido — disse o Sr. Clark.
Eu balancei a cabeça e deslizei para a ponta da cadeira. Meus braços se levantaram e minhas
mãos começaram a se mover no ar enquanto eu falava. Sim, eu era um orador enérgico. Quebrei
algumas coisas quando criança no apartamento, me meti em encrenca. E fiz de novo. De novo e de
novo. Na verdade, na semana passada.
— Aquele garoto rico e o pai dele — disse. — Os que fizeram o filme de turista hoje.
— Ah, sim, aquele garoto rico e o pai dele. Também conhecidos como William e Emmett
Chambers. Este último sendo o homem que é dono de metade de Atlantic City.
— Bom, é exatamente disso que eu estou falando. Que tal um artigo sobre a corrupção em
Atlantic City, com o Sr. Chambers no centro de tudo? — Parecia ótimo para mim.
— Ah, genial — respondeu o Sr. Clark, decididamente não tão entusiasmado.
— É uma história sólida — disse.
— É uma história velha, uma história conhecida. Está me dizendo que tem corrupção em
Atlantic City? O lar de provavelmente mais bares clandestinos extintos que Nova York? A cidade
que a Lei Seca enriqueceu? Uau, Brant, eu não fazia ideia. — O Sr. Clark olhou para mim com uma
expressão exausta, um suspiro cansado escapando seus lábios. — Vocês, jovens, são todos iguais.
Apresentando histórias velhas como novas, porque nunca leem coisa antiga. Você não pode ignorar
a história, filho. E ninguém mais está interessado em corrupção. Não depois da guerra. As pessoas
só querem viver suas vidas, não importa como sejam financiadas. Você me entende?
Ah, eu entendia muito bem.
Eu balancei a cabeça. Não era justo.
— Quer dizer da mesma forma que esse jornal é financiado.
O Sr. Clark não ficou zangado com isso. Ele apenas olhou fixamente para mim por um
momento e disse:
— Sim.
Tá, eu tinha que pensar rápido. Eu não teria outra chance além dessa e sabia que era uma das
boas. Eu só tinha que convencer o Sr. Clark de que eu estava certo.
— Tá, olha, é notícia velha. Mas e se eu pudesse oferecer uma nova perspectiva?
— Brant, eu realmente preciso de um momento de silêncio sozinho aqui...

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— O garoto rico, aquele no mergulho a cavalo esta manhã. William, você disse que era o
nome dele. E quanto a ele?
— Apenas diga a sua ideia. Essas perguntas estão me dando dor de cabeça. — Ele beliscou a
ponta do nariz enquanto dizia isso, caso eu não acreditasse nele. Mas eu acreditava. Havia muito
poucas coisas que não davam dor de cabeça no Sr. Clark.
— Dá para perceber que ele e o pai não se dão exatamente, que nem tudo é ótimo lá. Aposto
que fazer amizade com o filho dele pode levar a umas informações bastante interessantes.
O Sr. Clark suspirou e recostou-se na cadeira. Ele se virou de costas para mim e olhou pelas
janelas sujas, cobertas com camadas de poeira e sal marinho.
— Olha — disse ele após outro suspiro. — Escreva a história que quer escrever. Se for boa,
vai para o jornal. A essa altura, Brant, sei que não devo tentar te dizer não. Mas só porque prometi a
você um artigo com o seu nome não significa que eu publico qualquer coisa que passe pela minha
mesa. Ainda tem que ser bom. Ou, pelo menos, não vergonhoso para o jornal.
Aquilo era o suficiente para mim.
— Isso é muito legal da sua parte, Sr. Clark, muito legal. Não vou te decepcionar, prometo!
Eu já tenho uma pista! É uma festa, uma festa de arromba, Sr. Clark. Parece que alguns figurões de
Nova York estão vindo para se encontrar com o Sr. Chambers e ele quer fazer algo legal para eles.
Eu tenho um amigo que tem um...
— Basta! — interrompeu o Sr. Clark. — Saia do meu escritório, Brant.
Não precisava dizer de novo.
— Claro, Sr. Clark! E obrigado, Sr. Clark!
Eu estava animado. Era isso! Eu finalmente estava tendo a chance de provar que podia fazer
mais que entregar a correspondência. Você precisa que fazer com que te enxerguem, ninguém mais
vai fazer isso por você. Outra lição do meu tio.
Eu estava muito cansado de ser invisível. Era hora de ser notado.

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A sala de jantar era um espaço claro e
brilhante. Bem diferente da sua contraparte daquela manhã. Me encostei no batente da porta da copa
e olhei para os delicados copos de vidro, cada uma das facetas com seu pequeno brilho dançando
em torno de seus rostos. A prataria recém polida, a porcelana fina, as velas acesas em seus castiçais
de prata. As luzes do candelabro no alto tão brilhantes e acolhedoras.
E pensei comigo mesmo: Esse cômodo não foi feito para as pessoas que moram aqui. Esse
cômodo foi feito para as pessoas que vêm visitar.
Que patético.
— Você está pronto, filho?
Meu pai tinha um jeito de irromper em uma sala como um touro infame em uma loja de
porcelana. Os copos sobre a mesa pareceram tremer de medo. Suspirei. É claro que estava pronto.
Quando eu nunca não estava pronto?
— Sim, pai — respondi.
— Bom. O que acha? Parece caro? — perguntou meu pai, indo até a mesa e examinando-a
de perto. Ele encontrou uma mancha invisível numa faca e cuspiu nela, esfregando-a com a manga
de seu paletó de corte perfeito.
— Pai, o senhor não pode fazer isso — disse. Fiz um gesto para um dos criados que acabara
de colocar um arranjo floral gigante no aparador. Ele imediatamente assentiu e se lançou em sua
direção, de alguma forma muito educadamente pegando a faca da mão carnuda de meu pai.
— Mas parece caro, não é? — disse ele, virando-se para mim. O dia inteiro tinha sido só
pergunta atrás de pergunta. Meu pai estava tentando garantir que tudo estivesse perfeito por medo
do que os outros pudessem pensar.
Eu realmente queria que mamãe ainda estivesse viva para momentos como esse. Ela tinha
um efeito mágico calmante nele. Em todos nós. Ela colocava as coisas em perspectiva. Nem meu
pai nem eu éramos particularmente bons em colocar as coisas em perspectiva.
— Sim, parece — respondi.
— Extravagante, certo? — Ele se virou para a mesa e colocou as mãos nos quadris. Parecia
estar satisfeito.
— Muito chique.
Ele se virou e sorriu para mim.
— Você sabe, do jeitinho que Nova York gosta.
— Exatamente desse jeito.
Nunca foram nomes com eles. Com qualquer um deles. Sempre foram lugares. Nova York.
Chicago. Filadélfia. Esses homens se identificavam tanto com suas cidades que era como se as
tivessem construído do zero. Irônico, já que a maioria deles veio para os Estados Unidos não muito
tempo atrás. De certa forma, todos nós éramos recém-chegados. E se não nos lembrávamos disso,
então éramos lembrados por outros. Os outros que não se chamavam pelos nomes das cidades, mas

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pelos próprios sobrenomes. Sobrenomes que sugeriam uma permanência mais profundamente
alicerçada do que as próprias cidades. Dinheiro antigo.
Tudo isso era para se exibir.
Tudo isso era exaustivo.
Eu não queria fazer parte disso. No entanto, cá estava eu. De repente. Sentado em uma mesa
com cerca de uma dúzia de homens como o meu pai. Barulhentos, famintos por algo mais do que
apenas o bife à mesa e ricos. Extremamente ricos.
Eu tinha desempenhado esse papel, assistido a tantos desses jantares, que nem percebi como
passávamos de um momento para o próximo, como acabei comendo um bife sangrento quando há
pouco estava apenas olhando meu pai cuspir numa faca.
Logo seria hora da sobremesa. E ela passou.
Depois, uísque ou conhaque caro para meu pai e seus convidados.
Ah, isso também já foi.
E depois?
Depois, de repente, eu estaria em alguma boate no calçadão ou em um bar elegante de um
hotel. Cercado de barulho e risadas descontroladas. Aquele comportamento bêbado confuso que não
era perigoso o suficiente para começar uma briga, mas não tão seguro a ponto de oferecer uma
piada sem causar ofensa profunda.
Agora não era uma possibilidade futura. Agora eu estava lá. No Clube Rose. O Clube Rose?
Era um lugar chique. Meu pai realmente havia se esforçado bastante com essa visita. No meu estado
muito sóbrio, percebi apenas então que essa visita era algo grande para o meu pai. Como um grande
negócio. Meu pai só trazia convidados para esse clube se estivesse envolvido em um negócio que
teria um grande efeito em sua renda e, mais importante, em seu poder sobre Atlantic City.
Eu não estava prestando atenção. Agora me arrependo disso. Eu estava à deriva. E não fazia
ideia do que estava acontecendo. Isso acontecia comigo às vezes, o tempo entrava e saía. Lembro de
tentar explicar ao meu pai quando criança esse sentimento de perder momentos. Ele não conseguia
entender o conceito e não tinha vontade de se esforçar mais. Minha mãe tinha acabado de falecer e
ele mal tinha espaço para seus próprios pensamentos. Eu não o culpava por isso. Mas se ele tivesse
entendido, eu senti naquela época, então talvez isso também pudesse ajudá-lo. Ajudá-lo a passar
pelas coisas assustadoras, pelas coisas frustrantes e se concentrar apenas no que precisava ser feito.
Foi assustador depois que a minha mãe morreu. O que fazemos agora sem ela? Como
vivemos nossas vidas sem o apoio dela?
Melhor ignorar essas perguntas.
Minha vida voltou a um ritmo mais regular e fui trazido de volta à realidade quando recebi
uma taça de champanhe.
— Ele tem dezessete anos! — Um homem com um forte sotaque nova-iorquino deu risada,
não muito preocupado com o meu caráter moral, apenas curtindo o momento.
— Champanhe não conta! — riu sua namorada, uma mulher ruiva, baixa e sardenta com um
sorriso gengival.
— É Atlantic City. Nada conta aqui — acrescentou outro sujeito.
— Exceto a opinião do Emmett — disse o homem com sotaque nova-iorquino.
Todos riram muito da ganância do meu pai e do tilintar dos copos. Eu não me juntei a eles,
apenas coloquei minha taça de champanhe cheia na bandeja de um garçom que passava, me virei e
olhei para a grande pista de dança. Redemoinhos de cores deslizavam pela minha visão enquanto as
pessoas dançavam, a banda no coreto atrás. Era incrível como, apesar da temporada turística já ter
passado, ainda havia gente suficiente para encher o salão. Gente suficiente que precisava de uma
bebida, uma risada e uma volta na pista de dança. Que precisava escapar.
Do que estavam fugindo naquela noite? O que os pesaria amanhã de manhã? Eles viram seus
futuros completamente determinados diante de si por outra pessoa? Desejavam poder ir para o meio
da terra e viver uma ou aventura ou duas? Eles estavam presos?
Eles eram como eu?
E então todas as luzes se apagaram.

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— Você vai sair com a gente! — anunciou
Chloe, praticamente arrancando sua fantasia e chutando-a para o lado. Ela respirou fundo e eu não a
culpei: os espartilhos da última fantasia da noite eram justos até demais. Eu saberia. Fui eu que tive
que amarrá-los.
Balancei a cabeça e disse:
— Não, obrigada. — Eu realmente não podia sair esta noite, não depois do longo dia que
tive. E era só uma terça-feira, afinal. Por que é que todo mundo estava fazendo uma terça-feira tão
dramática hoje?
Chloe agarrou minha mão e praticamente arrancou meu ombro do lugar, puxando-me com
tudo em sua direção.
— Hora do retoque!
Não, por favor, não. Não a hora do retoque. Eu odiava a hora do retoque.
Fui empurrada sem cerimônia para uma cadeira em frente a um dos espelhos. Eu estava
horripilante, é verdade, e gostava de parecer apresentável, mas odiava me vestir como uma boneca.
Isso acontecia a cada poucos meses e eu realmente não fazia ideia do que havia de errado com a
minha aparência normal. Olhei para Lily, sentada na frente do seu espelho. Ela já estava vestida
com suas roupas normais e estava reaplicando cuidadosamente a maquiagem para sair depois de
tirar a maquiagem da apresentação. Ela me olhou no espelho e deu de ombros. Lily nunca seria
minha salvadora.
As meninas sabiam que eu não revidava, nunca revidei. Elas gostavam muito disso e eu não
queria arranjar confusão, não importava o quanto não gostasse de cutucões e espetadas. E, claro, da
mensagem subjacente de “sua aparência não está boa o suficiente”. Logo fui transformada em uma
versão da Cinderela no baile, delineador escuro, batom ousado e até um pouco de blush. E então fui
passada para Mirabel, que me deu um vestido preto com brilho acetinado.
— Anda, rápido — ela ordenou.
Então eu me apressei.
Olhei para mim mesma enquanto colocava o vestido. Não estava nada mal. Eu nunca tive
problemas com o resultado final. Mas não parecia comigo. Eu gostava da minha maquiagem de uma
certa maneira, um pouco mais suave. Minhas roupas um pouco menos vistosas. Não que eu não me
ligasse para a minha aparência, só achava que já parecia bem. Exceto por hoje, quero dizer. Hoje eu
estava um desastre completo.
Talvez o retoque fosse justificado. Dessa vez.
— Vamos, vamos! — Ah, lá estava o choramingo familiar e insistente de Lily. A ordem foi
seguida e logo todas nós, inclusive eu, muito exausta, estávamos saindo do hotel e indo para o
calçadão em meio a gargalhadas retumbantes.
Chloe enlaçou o braço no meu e piscou para mim.
— Você é gente boa — disse ela. Eu sempre gostei dela. Ela tinha a reputação de uma típica
ruiva impetuosa, mas para mim ela parecia a mais pé no chão de todas as garotas do coro.
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— Eu sou é uma molenga — respondi. Conseguia ser um pouco mais honesta com ela do
que com a maioria.
— Você devia trabalhar nisso — respondeu ela.
Assenti. Ela estava certa, mas eu não sabia por onde começar. Eu não conseguia superar a
noção de que era melhor manter tudo dentro de mim. Minhas irmãs podiam ser extrovertidas e
compartilhar tudo o que pensavam e sentiam porque era seguro. Molly era tão completamente
adorável e Lily era inofensiva e boba mesmo no seu jeitão exigente, mas o verdadeiro eu? Meu eu
interior? Tinha certeza que ninguém queria vê-lo. Ver minha frustração. Ver o que eu realmente
pensava do mundo e dos que estavam nele. Ninguém entenderia. Não funcionaria.
“Sê fiel a ti mesmo”. Shakespeare escreveu isso. Mas Shakespeare não era uma garota.
Descemos a rua, seguindo atrás das outras em direção a uma placa vermelha piscando que
dizia “O Clube Rose”. Podia parecer um buraco do lado de fora, mas era um dos clubes mais
sofisticados de Atlantic City. E era caro.
— Não se preocupe — disse Chloe enquanto descíamos o curto lance de escadas até a
entrada. — Algum ricaço está pagando para todas nós. Sujeito bobo.
Realmente bobo, se achava que pagar para elas significava que ele receberia algo especial
em troca. Elas não eram estúpidas, essas garotas. Elas sabiam como lidar com esses tipinhos. Quase
dava para sentir pena deles, pela maneira como bajulavam e gastavam prodigamente com tantas
esperanças que jamais eram satisfeitas. Mas... não de verdade.
Só o que pude fazer foi assentir. Eu odiava que me pagassem por qualquer coisa, mesmo se
fosse alguém com boas intenções. Gostava de não ter que depender de ninguém. Talvez fosse por
ter visto Molly e Lily receberem tantos presentes ao longo dos anos, mas eu não queria isso. Queria
ser autossuficiente.
Verificamos nossos casacos e fomos recebidas por uma parede de barulho e redemoinhos de
cores. O lugar estava lotado. Mas como um cardume de peixes, nosso grupo manobrou junto e
conseguiu uma mesa de canto sobre a qual bolsas e luvas explodiram numa confusão colorida.
— Quer uma bebida? — perguntou Chloe.
— Ah — respondi, me sentindo subitamente sobrecarregada. — Acho que um refrigerante.
Chloe riu.
— Vou pegar uma bebida de verdade pra você."
Eu pretendia dizer a ela que eu era muito nova e, francamente, não tinha lá muito interesse
em álcool, mas ela ergueu o dedo e olhou para mim com um olhar intenso. Então eu não disse nada
e ela rapidamente desapareceu na multidão.
De repente, me senti sozinha. Era interessante, na verdade, quando você pensa a respeito. Cá
eu estava, cercada por tantas pessoas, e ainda assim podia muito bem dar um passeio sozinha pelo
calçadão e me sentir perfeitamente contente. Eu normalmente ficaria feliz apenas em observar —
esta não era minha primeira festa, nem minha primeira vez em uma boate. Eu gostava de observar
as pessoas, gostava de ver rostos felizes e vê-los rindo e dançando juntos. Eu gostava quando a vida
era colorida e bonita. Quando, mesmo que só por um período curto, os cuidados e preocupações
eram deixados de lado.
Mas hoje parecia tão diferente. O dia todo, algo vinha me fazendo cócegas na espinha.
Eu balancei a cabeça. Devia ter sido o mergulho daquela manhã. Ainda podia sentir o vento
contra o meu rosto — sentia meu estômago revirar, olhando para a água bem abaixo de mim. A
escuridão negra como tinta. De repente, tudo o que eu queria fazer era ir para casa, dormir e acordar
revigorada com um novo dia de possibilidades à minha frente.
Meu olhar desfocado pousou sobre um rosto familiar. O garoto rico de antes. Aquele que eu
tinha visto correndo em volta da base da plataforma de mergulho. Ele estava parado com um grupo
de homens grandes e barulhentos, o tipo de homem que sempre ria um pouco alto demais nas festas,
que nunca terminava de beber, mas sempre enchia os copos. O garoto rico parecia miserável. Meu
coração então se compadeceu dele. Todos nós temos nossos próprios problemas — é tudo relativo.
Mesmo aqueles que vivem em palácios têm dias em que as paredes parecem estar desmoronando,
presumi. Quer dizer, somos todos humanos, afinal.

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Eu estava observando o garoto rico de perto agora, me perguntando sobre ele, quem ele
realmente era, por que seu pai precisava fazer aquele filme dele, quando notei um jovem diferente
caminhando de repente em minha direção. Ele cruzou o caminho entre mim e o garoto rico e sorriu
ao fazê-lo. Era muito bonito, observei, cabelos escuros bem repartidos, um terno de corte perfeito.
Uma covinha em uma bochecha.
Não me ocorreu que estava caminhando em minha direção até que começou a falar e disse:
— Olhos se encontrando em um salão lotado.
Eu olhei para ele. De repente, ele pareceu muito próximo. Como se tivesse acabado de se
materializar bem na minha frente, a mão estendida.
— O quê? — disse. Era a coisa errada a dizer, mas quando eu conseguia dizer a coisa certa?
O jovem riu.
— Eu vi você olhando para mim. Devo dizer que nunca me senti tão lisonjeado.
Eu apenas olhei para ele, para seus olhos castanhos profundos, a leve ruga nas bordas. Ele
estava se divertindo com a minha reação. Ah, como eu não gostava de pessoas divertidas assim. As
pessoas achavam que eu era rude ou divertida. Sempre fui objeto de algum tipo de fascínio. Tudo
porque não conseguia dizer as palavras que queria como deveria. Mais um motivo para manter tudo
para mim. Ninguém parecia me entender. Mais que isso, ninguém tentava me entender.
— Ah, sim — disse, completamente confusa. E então tudo se encaixou. De alguma forma,
esse homem pensou que meu olhar era direcionado a ele. Agora minhas bochechas definitivamente
estavam queimando. Que bom que o salão estava extremamente quente e ele não notaria.
— Eu sou o Andrew — disse ele. Percebi que sua mão estendida era para eu pegar e então
eu a apertei desajeitadamente. Ele também deu um pequeno aperto e então soltou minha mão.
Olhei um pouco mais para ele. Realmente era muito bonito. Alto. Magro, mas forte. Havia
também algo muito agradável na sua presença, quase calmante.
— E...
E?
— E?
Ele riu e eu não me senti mais particularmente calma. O que eu estava perdendo?
— Seu nome é? — perguntou ele.
É claro! Eu não era idiota, sabia como apresentações funcionavam.
— Ah, sim, claro, meu nome é Constance.
— Prazer em conhecê-la — respondeu Andrew.
Agora eu estava começando a me sentir lentamente frustrada. Ele falava com expectativa na
voz e ficava ali parado em silêncio, como se eu devesse ler sua mente. Mas eu francamente estava
bem confusa. Eu geralmente não era abordada por ninguém em situações assim. Por que agora?
Então me lembrei do vestido. E da maquiagem. E do cabelo.
E, ah, meu Deus, ele pensou que eu estava olhando para ele antes.
Isso é uma coisa de menino/menina acontecendo agora, não é? Eu me perguntei. Você não é
uma criança. Você consegue fazer isso. Não era como se eu nunca tivesse saído com um garoto
antes, ou mesmo beijado um. Uma vez. Aquela vez. Ah, como a Lily riria de mim agora com esse
meu “jeitinho casto”, como ela chamava. Onde ela estava?
— É um prazer conhecer você também. — Mas era mesmo? Será que não era talvez muito
estressante, na verdade? Por que de repente eu senti falta de me sentir sozinha? Como é que agora
sentia falta daquele estranho pavor na minha alma e da lembrança do mergulho na água fria? Esses
sentimentos eram melhores do que a confusão afobada que estava sentindo agora? Acho que sim.
Pelo menos eu os entendia. Essa sensação atual estava muito fora do meu controle.
— Gostaria de dançar?
Na verdade, não.
— Sim, seria adorável.
Então aconteceu. Ele pegou minha mão gentilmente e notei dessa vez como a dele era macia
e quente. Também notei como a minha estava suada e fria. Como ele deve ter se arrependido de
fazer isso. Mas não parecia. Ele me acompanhou até a pista de dança e então a outra mão estava na
minha cintura. Isso não ajudou com meus sentimentos afobados. Mas me concentrei na música e
34 | B e n d y : O s P e r d i d o s
nos passos de dança. Afinal, eu não era uma dançarina ruim. Todas nós éramos muito boas nessas
coisas, as irmãs Grey. Mesmo a que tinha se recusado a entrar no show business, a que era feliz nos
bastidores. Mesmo ela, ou seja, mesmo eu, gostava de dar uma boa volta no salão.
E foi bom. Ele era muito elegante e seguro de si. Ele tinha graça. Não era nenhum Fred
Astaire, mas quem era na vida real?
Comecei a me sentir tontura.
— Se você olhar para mim, vai ajudar — disse ele, claramente percebendo.
Bom, isso seria um problema, não é? Eu estava propositalmente tentando não olhar para ele.
Olhar para ele fazia eu me sentir muito vulnerável. Porque eu gostava de olhar para ele.
Eu olhei para ele. Ele sorriu. Eu sorri.
Talvez seja normal sentir-se afobada às vezes. Talvez seja uma sensação boa. Talvez seja
uma sensação muito boa.
Eu me sentir me acomodar em seus braços. Não exatamente relaxada, mas não tensa.
Foi agradável.
E então tudo ficou preto.

35 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Não era bem isso que eu tinha em mente
quando você disse que me colocaria na festa — eu disse baixinho.
— Shh — respondeu Mike.
Eu balancei a cabeça enquanto seguia ali parado, ouvindo o maître nos dar instruções sobre a
maneira correta de distribuir bebidas e comida.
— Circule, sempre circule — disse ele com um forte sotaque francês que soava quase
francês demais.
— Se esse cara é francês, então eu sou um peixinho dourado — murmurei.
— Eu disse shh!
O maître nos lançou um olhar severo.
— Algo errado, Monsieur Michael?
— Não, senhor — respondeu Mike, respirando fundo. Eu segurei uma risada diante disso.
— Vocês têm suas instruções, agora allez! — disse o maître, batendo palmas.
Fomos praticamente jogados em uma área de preparação. Pegando uma bandeja, eu disse:
— Achei que a gente ia para a festa, não trabalhar na festa”.
Mike revirou os olhos para mim.
— Eu disse que te colocaria dentro e você está dentro. Para de ser tão mala.
Eu podia ter dito algo sobre como Mike era tão mala que precisava de rodinhas. Mas me
contive e, em vez disso, apenas peguei a bandeja com as bolinhas de queijo porque sabia que, se
pegasse a com as taças de champanhe, estaria tudo no chão antes mesmo de chegar aos convidados.
Saímos da cozinha pequena e entramos no salão de festas reluzente, completo com pista de
dança e até uma banda ao vivo. Parecia uma festa legal. Teria sido bacana ser um convidado. Não a
droga de um garçom. Eu me virei para encontrar Mike e repreendê-lo um pouco mais, mas ele já
tinha sumido na multidão.
— Circule, Monsieur Morris. — O maître desenhou um círculo com o dedo enquanto
sibilava a instrução em meu ouvido antes de sair para beijar alguns convidados em cada bochecha.
Um talento e tanto, fazer tudo isso em apenas um movimento. Precisava de uma boa coordenação
para isso. Peguei uma bolinha de queijo, coloquei na boca e decidi tirar o melhor proveito possível
da situação. Então comecei a circulei.
E, francamente, acabou sendo uma excelente desculpa para vagar no meio da multidão
procurando por William Chambers. Eu nunca diria isso ao Mike.
— Uhh, bolinhas de queijo! — Um homem alto com bochechas muito vermelhas de repente
inclinou a cabeça na minha frente para examinar cada um dos salgadinhos.
— Sim — disse enquanto o observava respirando em cima de tudo. Tomei uma pequena
nota mental de nunca mais comer nada que tivesse “circulado”. Ele finalmente pegou uma pequena
bolinha bem no meio de todas, sua mão roçando em algumas das outras enquanto tomar posse dela.
Então ele foi embora. E eu ainda estava observando seus membros compridos recuarem para
a multidão quando outra mão surgiu ao meu lado.
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Instintivamente, eu disse:
— Não! — E me virei logo em seguida para me desculpar pelo surto. — Lamento muito, é
que... — Parei. Eu estava olhando para um perplexo William Chambers. Lá estava ele, bem na
minha frente. Eu rapidamente mudei meu tom de desculpa para um tom conspiratório. Se havia uma
coisa que eu sabia sobre as pessoas, é que elas adoravam pensar que sabiam um segredo. Baixei a
voz, o que automaticamente o fez se aproximar para me ouvir. — Teve um sujeito agora há pouco
que fuçou quase todas elas. Eu não recomendaria comer uma.
William olhou para mim, confuso, mas não disse muita coisa, apenas meio que assentiu. Ele
parecia estranhamente aborrecido — talvez só estivesse bêbado. Mas era diferente. Me assustou um
pouco. Escrevi uma nota mental sobre isso. Em algum momento, teria que transpor tudo que estava
dentro da minha cabeça para um pedaço de papel de verdade. Precisava me lembrar de fazer isso.
Observei enquanto William se virava para olhar para outro lugar. Sua mente parecia muito
ocupada, mas eu realmente queria bater em sua porta e ver se podia entrar.
— Você é William Chambers? — perguntei. É melhor simplesmente ir em frente, pensei.
E foi aí que o mundo ficou preto.
Eu soube imediatamente o que estava acontecendo, embora parecesse ser um dos únicos.
Imaginei que essa gente rica não estivesse tão acostumada com apagões quanto eu. Era por isso que
meu tio sempre falava dos bons e velhos tempos onde você não precisava depender de eletricidade e
coisa e tal. Velas, ah, sim, ele adorava velas.
As pessoas estavam ficando nervosas e dava para ver que iam se movimentando pelo local,
tentando fazer algo útil, tentando não entrar em pânico. Eu sabia que, se a luz não voltasse logo, as
coisas ficariam muito mais tensas, talvez até perigosas. Um grande grupo de foliões bêbados presos
num clube no porão e no escuro ainda por cima? Enquanto o pensamento me cruzava a cabeça, vi
que tinha caído no chão. Alguém tinha esbarrado em mim com toda a força.
— Sinto muito. Você está bem?
Não sabia quem estava falando comigo, mas senti uma mão em meu ombro e recebi ajuda
para me levantar.
— Temos que chegar à caixa de fusíveis — disse a voz. — Posso consertar isso se achar
uma caixa de fusíveis.
— Concordo — respondi. — Fica na cozinha, eu vi. Venha comigo. Siga minha voz.
Meu corpo se lembrou do caminho de volta e eu chamei meu novo amigo para me seguir.
Não sabia se ele tinha conseguido no escuro até que nós entramos na cozinha. O gás ainda estava
funcionando, então os queimadores do fogão ainda estavam ligados. Era uma pequena quantidade
de luz, mas parecia o sol em comparação com a escuridão do salão de baile.
Me virei para o meu amigo e foi quando percebi que era William. Olhei para ele enquanto
saía correndo, procurando a caixa de fusíveis. Esse garoto ia salvar o dia?
O fiquei observando de longe, uma sombra agora, um mero contorno, avançando. Tentando
encontrar um substituto para o fusível, imaginei. Ele parecia saber o que estava fazendo. E então, de
repente, as luzes voltaram.
Simples assim.
Nova tática, sem conspiração. Hora da familiaridade. Talvez funcionasse.
— O que um garoto rico como você sabe sobre consertar coisas? — perguntei, indo até ele.
William fechou a porta onde estavam os fusíveis, brincando com o gasto em sua mão.
— Já nos encontramos antes? — perguntou, parecendo confuso e um pouco desconfiado.
Sorri e estendi a mão para cumprimentá-lo.
— Brant Morris. Você é William Chambers. Eu estava no evento de mergulho a cavalo hoje
pela manhã.
William olhou para a minha mão por um momento e então sorriu. Ele a apertou.
— É Bill. Prazer em conhecê-lo, Brant. E eu gosto de consertar coisas, o que posso dizer!
— Não sabia que as coisas precisavam ser consertadas na sua área — disse, me inclinando
contra a bancada. A equipe estava inundando a cozinha agora e o maître já estava latindo ordens.
Mas eu estava determinado a ter essa conversa com William, ou melhor, Bill.

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— Coisas sempre precisam ser consertadas — disse. Parecia profundo do jeito que proferiu
as palavras, significativo. Talvez fosse. Ou talvez fosse só o jeito dele. Tudo nele parecia confiante.
Este era um homem que sabia que devia ocupar um espaço neste mundo. Talvez só quisesse dizer
que objetos quebram e você precisa consertá-los.
— Por aqui, monsieur. — Finalmente me virei para o caos quando o maître veio diretamente
em nossa direção com um homem de macacão logo atrás. Quando ele se aproximou, vi uma etiqueta
de identificação costurada com o nome “Scott” escrito e, embaixo, a palavra “GENT” estampada
em letras maiúsculas.
— Foi só um fusível — disse Bill quando Scott, o cavalheiro da Gent, passou por ele, sem
sequer virar o rosto para olhar duas vezes.
— Não tem nada de “só” neste sistema — respondeu Scott, ríspido, abrindo a porta de metal
e olhando para dentro do pequeno espaço que parecia um armário.
Bill se juntou a ele.
— Bom, também tive que recolocar um fio solto aqui — disse ele, apontando.
— Você! Volte ao trabalho! — O maître me agarrou pelo ombro e eu me virei depressa. —
É melhor você tirar essa mão daí antes que eu perca a cabeça.
O maître recuou devagar, me fuzilando com os olhos, mas não era como se eu estivesse
planejando que essa relação empregatícia fosse um tipo de contrato de longo prazo. Eu não me
importava com a sua raiva. Tinha coisas mais importantes a fazer. Como conseguir essa história.
Voltei a tempo de ver Bill e Scott apertando as mãos.
— Até que você não foi nada mal, garoto — disse Scott. — Se algum dia precisar de um
trabalho, é só me avisar.
— Obrigado, senhor — respondeu Bill, e não consegui evitar uma risada. Ambos olharam
para mim, confusos.
— Ah, qual é, como se esse garoto rico precisasse de um trabalho — disse.
Scott olhou para Bill e depois de volta para mim. Então balançou a cabeça, pegou suas
ferramentas e tomou seu rumo, a palavra “Gent” nas costas do macacão desaparecendo atrás dos
cozinheiros e garçons.
Olhei para Bill e ele estava me encarando de um jeito engraçado. Droga. Eu calculei mal.
Achei que talvez ele fosse o tipo de cara que estava cansado de bajuladores, que apreciaria alguém
que fosse um filho da mãe pé no chão com ele. Mas, é claro, agora que pensava a respeito, quantas
pessoas ricas realmente gostariam de algo assim? Ainda mais de um completo estranho.
— Ei — disse, tentando me desculpar. — Olha...
— Tá afim de uma bebida? — perguntou Bill, interrompendo.
Ou... talvez eu tivesse acertado em cheio. “Cheio” da grana, quero dizer.

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Não é que eu não gostasse de gente, é
que eu não gostava quando tinha muita gente. No mesmo cômodo. Ao mesmo tempo. Mas o que eu
não gostava ainda mais que um grande grupo de pessoas era um grande grupo de pessoas em pânico
no escuro absoluto.
Meu parceiro de dança ainda me segurava perto e me dei conta de que o estava segurando,
minhas mãos apertando seus braços com força. Ele não parecia estar com medo ou preocupado. Na
verdade, até riu um pouco.
— Olha, isso sim é divertido — disse. Mas quando eu não respondi, seu tom mudou. Ficou
mais suave. — Você está bem?
Houve um estrondo do outro lado da sala, então um grito, e eu soube instantaneamente que a
multidão estava prestes a passar de um grupo de indivíduos nervosos para uma única entidade.
Como uma gota numa lâmina de microscópio, deslizando em direção e depois se tornando uma com
a outra. Andrew não parecia entender a ameaça iminente, ou, se entendia, não parecia se importar.
Eu balancei a cabeça. Era hora de simplesmente assumir o comando.
Deslizei minha mão por seu braço e peguei sua mão.
— Vamos — disse com uma risadinha. Ele resistiu apenas por um momento e então
permitiu que eu o puxasse pela escuridão. Foi algo que minhas irmãs me ensinaram. Se quer que
alguém faça alguma coisa por você, peça com um sorriso ou uma risadinha. Não entendia por que
funcionava, mas funcionava. Eu só queria pedir as coisas normalmente, mas evidentemente, quando
pedia as coisas normalmente, era muito “severa”.
Foi surpreendentemente fácil guiá-lo até as portas e sair em meio ao ar fresco. Eu conhecia
bem o caminho e caminhar com propósito, mesmo no escuro, é uma forma eficaz de chegar a um
lugar, mesmo que você esteja um pouco perdido. Mesmo que esteja esbarrando em dançarinos
bêbados e garçons em pânico.
— Aonde estamos indo? — perguntou ele, mas não parecia estar interessado na resposta.
Havia um tom em sua voz que fazia parecer que ele achava toda essa experiência adorável. Eu não
tinha certeza de como me sentia com relação a isso.
Eu só queria ar, céu e mar. Só queria ficar longe de todo mundo, daquela multidão que saía
correndo do clube para a rua, da minha irmã. E, no entanto, segurei sua mão, então acredito que, ao
puxá-lo em direção ao calçadão, não queria ficar longe de absolutamente todo mundo.
Soltei sua mão enquanto estendia a minha em direção à grade que separava o calçadão da
areia alguns metros abaixo. Eu a agarrei com força e fechei os olhos, respirando fundo, inalando o
sal e o ar gelado. Senti uma lembrança repentina e intensa daquela manhã, de cair pelo vento, de
pousar na água. Do caos, da correria, dos chutes e da tentativa de descobrir qual era o caminho.
Abri os olhos, senti minhas pernas cederem e desabei no chão.
Fiquei ali sentada, encostada num poste, respirando com dificuldade, olhando do outro lado
do calçadão para a loja James’ Salt Water Taffy, fechada e escura. Esse sentimento de pavor que eu
tive o dia todo. Alguma coisa estava errada.
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Balancei a cabeça negativamente. Era mentira. Nossas emoções mentem para nós. Não havia
nada errado. Estava tudo muito bem, na verdade. Você ganhou um presente, foi a uma festa e aí
teve um apagão. Uma coisa muito comum. Está tudo muito bem.
— Você é uma figura! — disse o jovem, sentando-se ao meu lado. Estava sem fôlego e eu
olhei para ele. Eu estava correndo? Não achei que estava correndo. Minha respiração ficou rápida e
fraca, mas era mais por causa da minha mente, eu pensei.
Eu estava correndo?
— Ah, bem, eu só precisava de um pouco de ar — disse. Mas abri um sorriso. Ele sorriu de
volta. Ele estava se divertindo e eu me senti aliviada. Não importava que naquele momento eu
estivesse me sentindo estranha e indisposta; ele estava se divertindo e isso já era alguma coisa.
Mas era mesmo?
— Rapaz, vou te contar. — Ele riu de novo e virou todo o corpo para se voltar para mim. —
Esse chão tá congelando. Tem certeza que você está bem?
Não, eu definitivamente não tinha certeza disso.
— Devíamos levantar — disse.
Ele galantemente se levantou e me ajudou a levantar em seguida. Foi muito bom. Eu não
sabia o que fazer agora que estava olhando para ele, então me virei e voltei a fitar o oceano.
— Eu nunca canso disso — comentei. Havia uma lua minguante naquela noite, como uma
última despedida de luz. Engraçado pensar nisso assim agora. Ela refletia no oceano, nas cristas
brancas das ondas.
— Posso entender por que não. — Ele ficou ao meu lado de forma que seu braço e o meu se
tocassem. — Você mora aqui?
Assenti.
— Moro.
— E é uma dançarina. — Eu balancei minha cabeça. Ele percebeu. — Não é?
Olhei para ele.
— Não sou nada. — Senti o retorno da estranha pontada escura no meu estômago, mas não
quebrei o contato visual.
— Isso é impossível — ele respondeu com uma risada.
— Não, é muito possível.
Olhei para o mar e vi então uma silhueta no horizonte. Navios iam e vinham com grande
frequência aqui, mas havia alguma coisa naquele. Simplesmente aparecendo daquele jeito à noite,
tão tarde, tão secreto. Me lembrei das histórias de navios nos anos 20 trazendo álcool ilegalmente
do Canadá. Mas é claro que isso agora tinha acabado.
— Você com certeza é alguma coisa. É alguém — ele rapidamente se corrigiu. — Você é a
Constance.
Eu sou a Constance. Constance constante. Sim, era verdade. Sempre confiável, disponível
para qualquer situação. Como um item doméstico do dia a dia, um par de luvas de jardinagem.
Olhei para Andrew e não havia mais nada a dizer ou fazer, então apenas sorri. Ele sorriu de
volta. Ele se sentiu orgulhoso, dava para ver. Ele me animou, ou pelo menos assim pensava. Seu
trabalho aqui estava feito. Ele olhou de volta para o oceano, contente com sua bondade.
Eu também olhei.
O navio tinha sumido.

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Acho que eles achavam que eu era igual
ao meu pai, afinal. Mesmo na minha idade, achavam que eu gostaria de beber álcool e, claro, do
melhor tipo. Os olhos de Brant se arregalaram tanto que quase vi o cristal refletido neles.
— Não, obrigado — disse enquanto o garçom se preparava para me servir um copo. — Vou
querer um Roy Rogers.
Brant riu.
— Não tomo um desses desde que era criança. Traga dois! — Ele sorriu para o garçom, que
parecia um pouco confuso, mas assentiu e foi buscar nossas bebidas, deixando o uísque caro para
trás. Brant olhou para ele e depois riu outra vez.
— A garrafa inteira, simples assim? Se você quisesse? — Ele balançou a cabeça.
O garçom voltou quase imediatamente com as nossas bebidas. O serviço para o filho de
Emmett Chambers era sempre excelente.
— Bom, digamos assim, — disse, levantando meu copo — não é generosidade se você não
está pagando, então não pense assim.
— Fiquei impressionado. Não estou mais — ele respondeu. Eu ri. — Um brinde ao bom e
velho berço de ouro.
— E a não deixar que isso suba à cabeça — respondi. Batemos nossas taças uma na outra e
tomamos nossas bebidas. Brant estremeceu um pouco com a doçura.
— Eu sabia que lugares como esse existiam, mas... — Brant se recostou na cadeira e olhou
em volta. Não fazia nenhum esforço para parecer bem-nascido. Ele não era e eu gostava que não
fingisse ser. Era uma bela sala, afinal. Painéis de madeira escura, paredes com prateleiras cheias de
livros, uma lareira crepitante para uma noite tão ventosa quanto aquela. Era também uma noite
particularmente tranquila, bem como eu gostava. Um clube de cavalheiros era bom para se ter como
retiro, mas quando lotado de homens bebendo a noite toda e pontificando em voz alta, era minha
ideia de, bem, o oposto do paraíso.
— Então — disse, também me inclinando para trás, sentindo um pouco da ansiedade da
noite finalmente derreter em meus ombros. — Devo aceitar o trabalho?
Brant olhou para mim e revirou os olhos. Eu ri de novo.
— Não, é sério — disse. — Seria errado? Eu quero aprender e tem um limite para o que se
pode ensinar a si mesmo.
— Às vezes não temos o luxo de ter professores — respondeu Brant.
— Eu entendo. — Tomei outro gole. — Mas e quando você tem a chance de ser ensinado,
simples assim?
— Você pode estar tirando uma oportunidade de alguém que realmente precisa dela.
Eu não tinha pensado nisso. Eu realmente não tinha pensado nisso.
— Apesar que talvez você tenha um dom especial, não devia desperdiça-lo — acrescentou
Brant, pensativo, girando sua bebida.

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Ele era um sujeito de aparência estranha agora que eu de fato tinha tempo para avaliá-lo. Era
um pouco baixo e um pouco atarracado, mas não de uma forma que você realmente o descreveria
assim. Seu cabelo já estava caindo, mas ele era jovem — devia ter mais ou menos a minha idade.
Talvez não fosse isso, talvez só fosse muito fino e leve. Não tinha bem certeza do que as mulheres
pensariam dele, mas ele tinha um brilho nos olhos que aposto que elas gostavam. Eu não conseguia
entendê-lo, mas sabia que havia algo de interessante nele e que apreciava a sua franqueza.
— Bom, agora não faço ideia do que fazer — respondi. E então meu estômago afundou. —
Ah, não, não, não, não, não. — Eu deslizei para baixo em minha cadeira.
— Você está se escondendo? — perguntou Brant, virando-se na cadeira. Droga, eu estava
me escondendo. — Calma, aquele é o seu pai?
Com toda certeza era o meu pai.
Por cima da cabeça de Brant, ali perto da entrada tendo, entregando seus casacos para a
nossa excessivamente simpática garota do guarda-roupa, Lola, estava meu pai e os homens de Nova
York. As moças pareciam ter se retirado para dormir. Uma pena porque agora as festividades
noturnas certamente ficariam ainda mais animadas. Talvez durassem até a noite toda.
— Ora, se não é o meu filho que estou vendo! — Tentei afundar mais na cadeira. Quando
meu pai começava a me tratar como um velho amigo e não como uma grande decepção, nada de
bom podia advir disso.
Obviamente, eu não podia me esconder desses homens. Não no mundo real, nem em meu
futuro cuidadosamente planejado e ordenado pelo meu pai. Eles logo chegaram até nós, arrastando
cadeiras em meio a um barulho dolorosamente alto pelo chão de madeira.
— O que temos aqui? — perguntou o Sr. Bowman, pegando a garrafa com sua mão muito
grande, capaz de envolvê-la quase completamente.
— Macallan 18 — respondi com um sorriso de boca fechada.
— Vai servir. — Ele chamou um garçom e, antes que ele sequer chegasse à nossa mesa,
gritou: — Copos!
Meu pai se sentou ao meu lado e me deu uma olhada.
— Você sumiu, onde estava?
— Alguém tinha que acender as luzes — respondi.
Ele balançou a cabeça.
— Acho que eles já tinham tudo sob controle.
— Na verdade, senhor, graças ao seu filho, as luzes acenderam bem antes do que deviam.
Tínhamos que esperar a chegada do empreiteiro — disse Brant. Seu tom era educado, muito mais
respeitoso que quando falava comigo. Ele sabia, então, como se comportar perto de certas pessoas.
Ele sabia que eu era uma certa pessoa. O que o fazia escolher que tipo de tom usar?
Lancei um olhar para o meu pai e fiquei envergonhado ao perceber que ele estava encarando
Brant com a mesma expressão que eu estava fazendo. Eu relaxei meu rosto e o tornei mais aberto.
— Quem é esse? — perguntou meu pai.
— É meu amigo Brant. Você o conheceu antes, pai — disse.
Meu pai olhou cuidadosamente para ele, então deu de ombros.
— Ele parece mesmo familiar.
Imaginei que não precisava acrescentar que Brant foi quem ele mandou levar o cavalo até a
plataforma de mergulho. Deixe ele imaginar que ele era um de nós por enquanto.
— Então, vocês são de Nova York? — perguntou Brant.
— Não dá para ver? — respondi, tentando mudar o tom.
— Nova York! — exclamou um dos homens menores, levantando o copo. Os outros fizeram
o mesmo e beberam. Engolindo seus Macallans num só gole.
— Aqui a negócios? — perguntou Brant.
— Você é o quê, um policial? — perguntou o Sr. Russo com uma risada.
— Por que um policial se importaria se estão aqui a negócios? — seguiu Brant.
— São todas as perguntas, não o que está perguntando — respondeu meu pai com aspereza
na voz. Não que ele não gostasse de perguntas, só preferia ser quem as fazia.
Brant definitivamente se tocou e levantou a mão para se desculpar.
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— Lamento muito, só fiquei curioso.
— Cuidado com isso — respondeu meu pai.
— Bem, meu tio sempre diz que a curiosidade é uma excelente forma de expandir a mente
— disse Brant com um sorriso.
— Engraçado, o meu disse que era uma ótima forma de se matar. — Meu pai terminou sua
bebida e começou a se servir de outra. — Cada cabeça, uma sentença, eu acho.
— É verdade — respondeu Brant com aquele seu jeito agradável.
— Outro? — perguntei, apontando para o garçom.
Brant assentiu com um sorriso. Trocamos um olhar. Um que sugeria que estávamos nessa
juntos, lidando com o excesso de riqueza com humor e graça e não sem uma grande dose de apreço
pelo absurdo de tudo isso.
Enquanto o garçom trocava seu copo, no entanto, tive que me perguntar: se ele não era um
policial, o que ele era?

43 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu estava trabalhando com idiotas. Quão
difícil era carregar algo por um lance de escadas? Especialmente se era o seu trabalho carregar as
coisas. Contrate um serviço de mudança, eles disseram. Vai economizar o seu tempo, eles disseram.
Empurrei o sujeito magricela que segurava o lado esquerdo do caixote para fora do caminho
e peguei eu mesmo.
— Vamos — disse. Sim, era pesado, mas às vezes algo pesado era bom. Sentir a tensão nos
músculos, o esforço necessário, você se sentia vivo. Além disso, às vezes um trabalho simplesmente
precisava ser feito. Pare de se queixar disso.
Se queixar.
Não tinha dado um pio durante toda a viagem. Eu nem tinha certeza se ainda estava conosco.
Ainda não entendia o que estava acontecendo e por que tinha acontecido. Mas tinha certeza de que
estava conosco. De que se moveria junto com a máquina. Tinha algum tipo de conexão com ela.
Todos eles tinham.
Descemos até o primeiro lance de escadas. Apertei o botão escondido para que pudéssemos
terminar de descer. Scott tinha encontrado esse lugar, essa velha fábrica dos tempos da Lei Seca.
Havia muitos lugares como esse na cidade, mas este era especial. Este tinha mais a oferecer do que
se podia perceber à primeira vista.
Ainda bem que eu tinha Scott como braço direito. Ainda bem que ele ainda estava por perto.
Muitos dos homens da Gent já haviam deixado Atlantic City a essa altura. Transferidos para outras
sedes da Gent em cidades maiores, com mais coisas quebradas e mais coisas para consertar. Mas
Atlantic City era nosso verdadeiro lar. O lugar onde invenções foram feitas. Onde o céu se enchia
de luz à noite, onde a roda-gigante sobrevivia aos fortes ventos gelados do oceano. Aqui fizemos as
coisas especiais. As coisas mágicas.
Aqui nós tínhamos feito a máquina.
E aqui nós a consertaríamos.

44 | B e n d y : O s P e r d i d o s
O dia seguinte foi claro e alegre. Quase
claro e alegre demais. Provavelmente tinha menos a ver com o sol brilhando na água e mais com o
nível geral do entusiasmo exaustivo da Molly.
— Pode ir contando tudo! — Ela estava apertando minha mão com tanta força que achei que
ia acabar arrancando. De repente, ela a soltou para procurar às pressas um lenço em sua carteira e
espirrar delicadamente. Estava bastante determinada a não pegar um resfriado, embora o resfriado
não estivesse tão determinado a não pegá-la.
Lily estava andando depressa à nossa frente, quase propositalmente mostrando que não se
importava, embora eu não soubesse por quê. Nós duas sabíamos que ela se importava, sim. Ela com
certeza não engolia o fato de eu ter saído com um pretendente na noite passada e ela não. Embora
eu dificilmente chamaria o misterioso Andrew de “meu pretendente”.
— Não tem muito o que contar. Nós dançamos e aí teve um apagão, então fomos para fora
— respondi. — Ele quer me levar para jantar cedo hoje à noite, antes do trabalho. — Enquanto eu
dizia isso, me dei conta de que estávamos rapidamente nos aproximando do exato mesmo lugar
onde eu e ele nos sentamos no chão. Lily queria caramelo e, embora houvesse várias lojas que
vendiam, o da James era de longe o melhor. O fato de eu não ter ligado os pontos até agora só me
mostrou como eu estava me sentindo mal. Ontem tinha sido um turbilhão e hoje eu acordei me
sentindo completamente esgotada, exausta. Olhei para o oceano. Estava mais tranquilo hoje, fez eu
me sentir melhor. Eu sabia que as condições meteorológicas não dependiam das emoções que
atribuíamos a elas, mas um mar calmo era uma espécie de bálsamo.
— Aquele não é o rapaz de ontem à noite? — perguntou Lily, mais à frente. Ela apontou o
dedo enluvado e eu olhei, sentindo meu rosto esquentar e meu coração bater acelerado de repente.
— Onde? — perguntou Molly, empolgada.
Quem vinha andando em nossa direção não era Andrew, mas o garoto rico.
— Conhece ele? — perguntei, mas Lily estava muito longe para me ouvir, ou talvez tivesse
escolhido voltar a me ignorar. Então eu apenas observei enquanto íamos em direção um ao outro.
Ele estava com um casaco longo de lã bege, chapéu fedora e cachecol cinza. Tinha um porte alto e
robusto, uma cópia fiel de seu pai. Aquele mesmo cabelo castanho também me fez lembrar da noite
anterior, embora agora estivesse escondido sob o chapéu. Era um sujeito bonito no geral, embora
não parecesse compreender esse fato sobre si mesmo, ou, pelo menos, não quisesse parecer que
compreendia. Ele tinha toda a pinta da riqueza despojada. Tinha muito disso em Atlantic City,
dobrando esquinas, passando por portas que eram escancaradas só para eles, apontando para o mar e
tirando fotos, passeando em seus riquixás.
Tinha também os ricos que forçavam a barra, aqueles homens que praticamente carregavam
notas de dólar nas mãos enquanto andavam pela rua, mulheres com penas, diamantes e peles de
todas as cores possíveis. Quando criança, eu me perguntava quais criaturas mágicas tinham sido
esfoladas para produzir um regalo roxo ou um chapéu rosa choque.

45 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Mas esse não era o caso dos Chambers. Eles não tinham origem nobre, mas agiam como se
tivessem. Na verdade, eu não sabia exatamente de onde vinha o dinheiro — vai saber, talvez fosse
antigo mesmo. A questão é que sempre me foi dito o contrário. O que eu sabia sobre a política em
Atlantic City? Eu apenas mantinha a cabeça baixa e focava no meu próprio mundinho quando esse
era o tema em pauta.
Lily parou para falar com o garoto rico, então paramos um momento depois, finalmente
chegando e nos juntando a ela, sem ser completamente ignoradas. Ela havia ativado o seu charme e
eu foquei observando com minha admiração habitual. No fundo, Lily era uma boa menina, mas ela
era o bebê da família e passou todos os seus dezesseis anos de vida se esforçando muito para ser
notada, às custas de todos e qualquer um. Às vezes era frustrante, mas em momentos como esse,
quando ela irradiava energia pura, quando seu sorriso podia abastecer um quarteirão inteiro, era
muito divertida observá-la.
Sobre o que os dois estavam conversando eu não fazia nem ideia. Estava perdida na minha
admiração pela minha irmãzinha, quando de repente todos os olhos se voltaram para mim.
— Constance, vem aqui — disse Lily com sua voz alegre e amigável. Olhei para Molly, que
me deu um sorriso astuto, e ri. Ah, Lily, agora nós éramos melhores amigas, entendi.
Mas eu fiz conforme ela disse e me juntei a eles.
— Constance, certo? — perguntou o garoto rico.
— Sim. — Estava me sentindo inacreditavelmente tímida naquele momento. Me lembrei de
ter encarado ele na noite anterior. Por que tinha feito isso? Ah, Constance.
— É tão maravilhoso encontrar você! Você está disponível no momento? — perguntou.
Ah, como eu odiava perguntas assim. Se eu dissesse que sim, então não importava o motivo
da pergunta, eu estaria presa. Eu não podia dizer não a algo com ele sabendo que eu tinha tempo. E
se sua empregada estivesse doente e ele precisasse de uma governanta para o dia? Ou alguma outra
coisa do gênero, algum trabalho penoso que agora eu não podia recusar.
Podia sentir minhas irmãs olhando para mim.
— Sim — respondi suavemente.
— Excelente! Nossos cineastas já editaram as cenas de ontem e achei que vocês iriam gostar
de ver! Estamos exibindo para alguns investidores e tal. — Ele estava sorrindo de orelha a orelha.
— Quer dizer agora? — perguntei.
— Sim! Já que você está disponível, afinal.
Afinal.
Nós éramos uma família relativamente moderna, e ir a um lugar sozinha com um rapaz não
era necessariamente visto como algo ruim. Também haveria investidores, evidentemente. Mas, por
algum motivo, desejei muito que fôssemos o tipo de família que insiste em ter acompanhantes.
— Vai, Constance! Parece divertido! Se eu não estivesse indisposta, até iria com você —
respondeu Molly.
— Ah, você é a irmã mergulhadora.
— Sim — disse Molly com um sorriso. — A original.
— Estou tão feliz por ter encontrado com vocês — disse o garoto rico. — Vocês são todas
bem-vindas, é claro!
— Não — disse Lily com aquele seu jeito direto. — Tenho planos.
Eu olhei para ela, desejando ter a capacidade de simplesmente dizer não para as coisas como
ela. De simplesmente fazer o que queria sem me preocupar em ferir os sentimentos dos outros.
— Bem, então somos só você e eu — disse ele, virando-se para mim. Ele estendeu o braço e
eu coloquei minha mão na dobra de seu cotovelo. Me senti profundamente desconfortável, mas abri
um sorriso. Nos afastamos das minhas irmãs e senti meu rosto queimar quando passamos de novo
pelo local da noite anterior.
— Aonde estamos indo? — perguntei o mais calmamente que pude.
— Para o hotel do meu pai, o Plaza — respondeu ele.
— Ah — disse. Isso não fez eu me sentir melhor.
— Temos uma tela de projeção montada em um dos salões menores — ele rapidamente
acrescentou. Foi gentil da parte dele esclarecer e ajudou um pouco.
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Caminhamos então em silêncio até chegarmos ao hotel. Depois ele me acompanhou pelo
saguão cavernoso com sua mesa de madeira escura estendendo-se por toda o cômodo, sofás verdes
nos quais os clientes ficavam casualmente reclinados e detalhes em ouro nas paredes e no teto que
reluziam no lustre.
— Que lindo — disse.
— Você nunca esteve aqui dentro? — perguntou ele, parecendo bastante chocado.
— Nunca pensei em sair entrando sem um motivo. Parece errado.
— Bem, de agora em diante, saiba que você é sempre bem-vinda! — disse. — Diga a eles
que eu te mandei se disserem alguma coisa.
Desviei o olhar para ele enquanto seguia nos conduzindo por um corredor com um papel de
parede de brocado fino.
— E... quem devo dizer que você é? — perguntei. Era uma pergunta tão estranha e me dei
conta de que estava falando com uma formalidade também estranha, como se ele fosse um príncipe
ou coisa do tipo. Minhas entranhas queimaram.
O garoto rico parou no meio do caminho e olhou para mim.
— Meu nome é Bill Chambers. Do outro dia. Eu estava lá quando você mergulhou.
— Ah! — disse rapidamente. — Eu sei quem você é, só não sabia os detalhes. Como o seu
primeiro nome.
Bill então riu e balançou a cabeça.
— Sinto muito. Que rude da minha parte!
— Tudo bem. — Também ri um pouco. Rir deixa as pessoas à vontade e eu não queria que
ele se sentisse mal.
— Estou atrasado? — De repente, um jovem de cabelos ralos se juntou a nós, bem ofegante,
como se tivesse acabado de sair de uma corrida.
— Brant, meu velho, que bom que pôde vir!
— Eu conheço você — disse, encarando Brant com um olhar intenso.
— Ah, sim, você conhece — respondeu. Ele endireitou a postura e até fez uma pequena
reverência com o pescoço. — Eu levei o seu cavalo ontem.
— É claro! — disse. Não sabia dizer por quê, mas me senti aliviada em vê-lo. Talvez fosse
simplesmente por ver alguém que não era rico, ou apenas um outro rosto familiar, mas pela primeira
vez eu abri um sorriso sincero.
— Venham, vocês dois, a exibição já vai começar — disse Bill, puxando meu braço que
ainda estava firmemente preso ao dele.
O que podíamos fazer? Nós obedecemos.

47 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Me sentei ao lado da garota da égua nos
fundos da sala. As cadeiras estavam dispostas em quatro fileiras e havia muitos lugares vagos. Mas
eu não queria sentar na frente. Eu não estava ali pelo filme. Estava ali pelos homens parados em
volta do carrinho de bebidas, rindo alto e tilintando gelo em seus copos.
— Quem são eles? — perguntou Constance, inclinando-se mais para perto, e imediatamente
me senti intimidado. Ah, claro, já tinha estado muito perto de garotas bonitas. Tinha muitas no meu
bairro. Na verdade, ela me lembrava aquela garota, Francine, que todos diziam ser minha namorada
quando eu tinha oito anos. Como se qualquer um de nós se importasse com esse tipo de coisa. Só o
que gostávamos de fazer era fingir que éramos detetives resolvendo os mistérios da vizinhança.
Mas eu a tinha colocado na categoria de “celebridade” ontem, e agora estávamos sentados
juntos assim, como pessoas normais? Eu definitivamente precisava superar esse sentimento se fosse
entrevistar todo tipo de gente.
— São de Nova York, fazendo negócios com o pai do Bill.
— São eles que queriam um filme turístico então? — ela perguntou.
— Será? — perguntei. Mas é claro! Todas as peças estavam se encaixando agora. Por isso o
Sr. Clark tinha sido convidado para assistir, por isso nós publicamos aquele artigo estranho sobre as
mudanças no turismo após a Segunda Guerra Mundial pela manhã. Turismo, não é? Que tipo de
investimentos foram necessários para impulsionar uma coisa dessas?
— Sabe, pode ser errado da minha parte dizer isso — disse ela, inclinando-se ainda mais
perto. Podia sentir a respiração dela na minha bochecha. — Mas eles parecem muito o tipo de
homem que se ouve falar dos tempos da Lei Seca. O tipo de sujeito para quem o meu pai acabava
entregando coisas em horários muito estranhos quando era um atendente da nossa idade.
— Olha, eu concordo plenamente com você — respondi. Ei, eu não estava só afirmando, ela
com certeza estava certa.
Ela sorriu.
— Legal!
Também sorri. Claro que não era de fato “legal”. Era ilegal e provavelmente muito perigoso.
Estávamos à margem de algo muito mais sombrio do que esse momento fofo sentados na última
fileira. Ainda assim, para nós dois, dois completos forasteiros naquele mundo, quem poderia não
achar isso tudo empolgante ou “legal”? Afinal, eu enxergava como uma história que poderia me
ajudar a conseguir o meu artigo. Ela enxergava como uma intriga. Como será que o Bill enxergava?
Era a sua vida real. Provavelmente bem diferente, provavelmente tão perigoso quanto de fato era.
A perspectiva muda tudo.
— Obrigado a todos por virem! — O pai de Bill estava parado na frente da tela improvisada
com um grande sorriso no rosto, os polegares enfiados no bolso da jaqueta, os dedos tamborilando
no torso. — Esta é apenas uma primeira tentativa, mas queríamos todos os seus comentários.
Afinal, Atlantic City merece a melhor representação porque é a melhor cidade da América.

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Constance e eu batemos palmas, mas fomos dois dos poucos que fizeram isso. A lista de
convidados consistia principalmente de nova-iorquinos. Você não pode simplesmente dizer a nova-
iorquinos que qualquer lugar é a melhor cidade da América se não for Nova York.
— Vamos rodar o filme, sim? — disse o pai de Bill, parecendo imperturbável. Mas tive a
sensação de que ele devia estar fervendo por dentro. Este era um homem que gostava de ser amado.
O homem se sentou na primeira fileira, ao lado do filho, e as luzes se apagaram. O projetor
foi ligado e, por um momento, estávamos apenas olhando para um quadrado brilhante de luz. Então
ouvi os rolos girando atrás de mim e o filme começou.
Abrimos com uma tomada aérea do calçadão, é claro — era de certo a parte mais pitoresca
da cidade. Será que tinham alugado um avião para isso? Foi muito impressionante ver a cidade do
oceano assim. O Steel Pier se projetava sobre as ondas brilhantes e depois se juntava ao calçadão.
Eu sempre me encantava com isso quando era criança — como aqueles postes de madeira que
mergulhavam no mar sustentavam o grande edifício que se estreitava até a ponta, diminuindo
progressivamente até se abrir em pleno ar? Você poderia sentir que estava sozinho, perdido no mar,
se ficasse na ponta e não se virasse. Não pareceria haver toda uma cidade atrás de você.
A câmera sobrevoou a praia com pessoinhas minúsculas e pequenos guarda-sóis abertos. Em
seguida, subiu para o calçadão estreito que percorria toda a extensão da areia. As pequenas lojas que
ladeavam tudo isso escavam com seus toldos abertos e o vidro em suas janelas em arco polido até
brilhar. Os grandes hotéis de tijolos que mais pareciam castelos assomavam-se atrás deles, tão
impressionantes quanto de costume. Era evidente que todos haviam se preparado para a filmagem e
estavam se exibindo com grande efeito.
Em seguida, o filme cortou para um close de turistas caminhando ao longo do calçadão. Eles
desfilavam com suas melhores roupas de verão, sorridentes e alegres enquanto apontavam para as
janelas. “Ah, olha”, pareciam dizer, “a James’ Salt Water Taffy! Que graça de chapéu, que belo par
de sapatos! Uma maravilha!” Deu vontade de vomitar. Foi estranho assistir aquilo tudo ainda sem
nenhuma narração. Apenas tomadas de lugares e pessoas diferentes. Nada as conectando, exceto
pelo quão acolhedor tudo parecia. Tinham feito um trabalho bem decente ali. Mas não filmariam o
meu bairro, isso era certo. Também não filmariam o Northside. Nem nenhum dos prédios sujos e
corroídos pelo sal nos limites das tomadas. Nenhuma realidade invadiria as margens desse mundo
de faz-de-conta cintilante.
E então eu estava olhando para aquela plataforma de mergulho. Isso me pegou de surpresa.
Mas lá estava Constance, lá em cima, acenando. E lá estava eu, embora não se pudesse dizer que era
eu, com a égua Trix. Isso tinha sido ontem? Assistir tudo no filme fez com que parecesse que nunca
tinha acontecido. Ou que tinha sido anos atrás.
— É você na égua — disse, inclinando-me para perto de Constance.
— É — ela respondeu, parecendo um pouco envergonhada.
— Lá vem o mergulho.
Olhei para ela, seu perfil olhando para frente. Ela estava iluminada pela tela, mas fora isso
era só uma silhueta escura. O que uma garota como aquela pensava?
De repente, ela estava olhando diretamente para mim.
— Está sentindo cheiro de fumaça?
Eu aspirei o ar e, sim, ela estava certa. Me virei na cadeira e vi que tinha fumaça saindo da
parte de trás do projetor. O operador e seu assistente estavam em pânico, tentando consertar o que
estava errado. E fazendo um péssimo trabalho.
— Desliguem essa coisa — disse, alto o suficiente para que a sala inteira pudesse ouvir.
Cabeças se viraram.
— O que está acontecendo? — perguntou o Sr. Chambers, levantando-se da cadeira. Bill
também se ergueu num pulo.
— Desculpe, senhor, é o projetor. É... espera um pouco, a gente dá um jeito... — respondeu
o operador.
Pelo amor de Deus, isso não ia acabar bem.

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O Sr. Chambers veio furioso em nossa direção e metralhou o projecionista com os olhos. Se
um olhar pudesse matar, o dele com certeza o faria. Se ao menos olhares consertassem projetores.
Ele finalmente examinou o objeto, viu a fumaça e balançou a cabeça com uma carranca.
— Isso é um desastre — eu o ouvi sussurrar. — Consertem de uma vez!
— Estou tentando — disse o projecionista, mas pelo pânico na voz, ou ele não sabia como
ou estava muito intimidado para pensar com clareza. Ele se virou para o colega e disse baixinho: —
Traga o sujeito da Gent aqui.
Seu colega saiu correndo da sala assim que Bill se aproximou.
— Posso ajudar? — perguntou ele.
— Vá se sentar, filho — disse seu pai, a voz em um tom frio.
— Acho que eu consigo consertar, pai — respondeu Bill, soando educado e muito mais
jovem, de uma forma que eu nunca o ouvi soar.
Observei atentamente enquanto Bill examinava o projetor e o abria. Não fazia ideia do que
ele estava fazendo, mas confiei que conseguiria consertar aquela coisa. Assim que ele se levantou
com um pequeno sorriso no rosto, aquele sujeito, Scott, entrou andando às pressas na sala.
Isso seria divertido, pensei, recostando-me na cadeira.
— Consertei — disse Bill, parecendo incrivelmente orgulhoso de si mesmo. Era tão estranho
que alguém tão rico se importasse tanto com essas coisas.
Scott olhou para o projetor e o ligou. Ele zumbiu de volta à vida, iluminando os homens de
pé em seus assentos, transformando suas cabeças em telas com dançarinas. Pareceu adequado —
esses homens certamente sempre pareciam ter só garotas na cabeça.
— Bom trabalho — disse Scott.
— Obrigado.
— Você se lembra do que eu disse ontem à noite?
— Quem é você? Saia daqui — disse o pai de Bill, acenando com a mão. Scott revirou os
olhos para Bill e o garoto sorriu. Um segredo compartilhado.
— Preciso ir — Constance então disse.
Bill ouviu isso e se aproximou.
— Você não estava simplesmente magnífica? — perguntou ele.
— É interessante me ver na tela, com certeza — ela respondeu com uma risadinha. — Você
foi impressionante consertando aquela máquina.
Bill sorriu. Ele estava sendo um pouco exagerando, mas, por outro lado, quando se tem tanto
dinheiro, não importa como você se comporta. Você geralmente tem uma recepção positiva.
— Obrigada de novo — disse ela. — Brant, foi um prazer conhecê-lo oficialmente.
Peguei a mão enluvada que ela ofereceu e a segurei por um momento. Foi bom. Ela a puxou
gentilmente de volta e então saiu da fileira de assentos e passou pela porta.
Ela desapareceu tão depressa, tão facilmente. Foi um truque legal.
Então eu pensei, talvez garotas assim precisassem saber como desaparecer. Atenção nem
sempre é bom. Eu mesmo não entendia isso. Estava cansado de ser invisível. Estava desesperado
para ser notado, para ser levado a sério.
Mas todo mundo é diferente. Olhe para o Sr. Conserta-Tudo aqui. Todo orgulhoso por ter
consertado um projetor. Como se tivesse salvado o mundo.
Todos nós queremos coisas diferentes. E, francamente, não vejo problema nenhum nisso.
Contanto que eu também consiga o que quero.
— Estamos prontos para continuar — anunciou o Sr. Chambers.
Eu com certeza estava, sim.

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Tive que correr para casa para me prepa-
rar para o meu encontro. Foi muito estranho para mim pensar nisso e eu não odiei totalmente. Voei
escada acima, passando pelas minhas irmãs, que estavam ajudando a mamãe a descascar maçãs para
fazer uma torta, e entrei no meu quarto. Rapidamente tirei minhas roupas e fiquei ali de lingerie, de
repente completamente imóvel, olhando para a meia dúzia de vestidos que tinha. Como eu gostaria
de ter um emprego adequado como cientista ou algo assim, para poder comprar coisas que não eram
necessárias, como vestidos bonitos em lojas encantadoras.
Sentei na cama, olhando para o armário aberto. Então me virei e olhei para o meu pequeno
conjunto de química. Eu mal o usava e só fazia os experimentos de sempre, os fáceis que ensinam
às crianças, como fazer cristais com bicarbonato de sódio e misturar cobre com ácido nítrico. Como
eu gostaria que meus pais não tivessem insistido que aos dezesseis anos nós tínhamos que deixar a
escola para começar a ganhar uma renda. Havia muito mais coisas para aprender. Mas meus pais
desistiram quando eram adolescentes para ajudar no sustento de suas famílias e não viam por que
nós não devíamos fazer o mesmo. Precisávamos mais do dinheiro do que de uma “educação de alto
nível”, como eles chamavam. E não era como se meus pais não tivessem parado de aprender — eles
adoravam ler, de Shakespeare até livros de história. Então por que não deixar a escola para ganhar
dinheiro e estudar por conta própria? Mas eu descobri que não havia muito que dava para aprender
sem um bom professor. E eu gostava da escola. Muito.
Comecei a me arrepender desse encontro agora. Eu quase não tinha tempo livre e, de alguma
forma, não me parecia justo. O dia ontem já tinha sido cheio, tive que ficar fazendo um monte de
coisas para os outros, aí hoje? Bill, o garoto rico, precisou do meu tempo de manhã e logo mais eu
tenho o encontro com o Andrew. Esses garotos todos pareciam precisar do meu tempo. Ontem
tinha sido o próprio Sr. Chambers, embora ele estivesse bem longe de ser um garoto, e foi algo
completamente diferente. Não foi um favor, estava mais para uma ordem e uma missão de resgate.
A reputação da Molly certamente teria sofrido se eu não a tivesse substituído, não importa o quão
apavorada eu estivesse com a ideia.
Era legal fazer coisas para os outros — eu só queria era ter um tempo para mim de vez em
quando. Nossa, parecia egoísta pensar nisso. Não era? Era? Estava me sentindo quase... com raiva?
Mas não, que besteira. Eu logo reprimi o sentimento. Era uma grande bobagem. A exibição tinha
sido interessante e encontros são maravilhosos. Não era como se eu nunca tivesse tido um antes,
eles só não eram tão frequentes quanto os das minhas irmãs. Mas sim, como eu me lembrava, eles
eram ótimos. Conversa divertida, comida gostosa, borboletas no estômago.
Mas então por que as minhas borboletas mais pareciam pavor?
Levantei depressa, me sentindo um pouco corada e brava, embora não conseguisse entender
por quê. Peguei meu vestido cor-de-rosa e rapidamente o coloquei. Serviria e eu tinha um belo
batom para combinar.
Depois de maquiada, arrumei meu cabelo e estava me sentindo melhor até que Molly bateu
na minha porta.
51 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— O Andrew está te esperando! — ela disse com uma risadinha.
Dei uma última olhada no espelho para ver como eu estava e então peguei minha jaqueta de
lã cinza e um chapéu combinando.
— Você está tão fofa! — disse Molly quando passei por ela na cozinha.
— Não se atrase para o show — mandou Lily, sem erguer o olhar.
Revirei os olhos para Molly e mamãe bateu nela com o pano de prato.
— Divirta-se, querida!
Eu queria, de verdade, mas não tinha certeza se sabia como. Corri escada abaixo e dei à Sra.
Wilson um pequeno aceno e um sorriso enquanto ela me espiava por trás de sua corrente na porta.
Ela sempre precisava saber de tudo.
Saí e lá estava o Andrew, esperando por mim na calçada com um lindo buquê de rosas.
— São lindas — disse, atordoada.
— Você também — ele respondeu.
Não olhei para ele e, em vez disso, examinei propositadamente as flores. O elogio era bobo e
soava como algo que ele já havia dito antes. Não de uma forma ruim — só não parecia um elogio
dirigido especificamente a mim. Mas esse era o meu ego falando, supus.
— Devemos ir? — perguntei.
Ele assentiu e ofereceu o braço. Me lembrou do Bill mais cedo. Esses garotos. Engatei meu
braço no dele.
Demos um longo passeio e acabamos no restaurante italiano Reggiano. Eu nunca tinha ido e
fiquei muito empolgada quando tirei meu casaco e ele puxou a cadeira para mim. Me sentei e tirei
as luvas enquanto ele se sentava à minha frente. Estávamos perto da janela e o vidro emitia um
pouco de frio, mas era bom poder ver as pessoas passarem. Exceto por isso, estávamos sozinhos. O
restaurante tinha acabado de abrir.
— É muito gentil da sua parte se acomodar à minha agenda — eu disse.
— É claro! Com as aulas na universidade, as agendas ficam complicadas. Ora, eu jantei com
um amigo outro dia à meia-noite porque era o único horário que ele e eu podíamos nos ver — disse
ele com uma risada.
Também ri. Geralmente, sair à meia-noite não era grande coisa em Atlantic City. Decidi não
contar a ele que ficava fora e fazia refeições tarde assim desde os quinze anos.
— Onde você estuda? — perguntei. Fiquei instantaneamente com inveja.
— Eu frequento a Rutgers. Estou planejando cursar direito algum dia — disse ele.
— Ah, que interessante. Se eu fosse para a universidade, estudaria ciências — respondi.
Sabia que não devia ter dito isso, mas estava pensando nessas coisas e acabou vazando. Por que
diabos ele se importaria com o que eu teria feito se tivesse a chance? Que hipótese boba. Lá fui eu
de novo, dizendo a coisa errada na hora errada. Foco, Constance, foco.
— Ciência, bacana — disse Andrew, tomando um gole de água. — Sempre gostei muito de
ciências. Acho direito muito interessante... gosto das complexidades e questões de moralidade.
Assenti. Estava um tanto aliviada por ele ter evitado a minha audácia e se mantido em seu
próprio trajeto, como eu devia ter feito com a conversa. Eu conseguia. Eu conseguia ser normal.
— Advogados parecem ter vidas tão interessantes — disse, mesmo sem nunca ter conhecido
um advogado antes.
— Ah, eles têm sim. Um dos meus professores me convidou para jantar outro dia e disse
uma coisa superengraçada. — Andrew fez uma pausa, como se para se lembrar. Eu sorri enquanto
ele pensava.
O garçom chegou e se manteve nas proximidades. Ficamos esperando com expectativa.
— Não consigo me lembrar direito — ele disse finalmente.
Eu ri, no entanto, para deixá-lo à vontade. Estava ficando melhor nisso. Talvez fosse por que
era o nosso segundo encontro? Talvez devido à manhã esquisita?
— Posso anotar seus pedidos? — perguntou o garçom.
Abri o cardápio.
— Não cheguei nem a...

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— Comeremos um prato de lasanha cada. Vou querer o Merlot e uma água com gás para a
senhorita — disse Andrew com um sorriso.
— Muito bem, senhor — respondeu o garçom.
— Obrigada — disse, entregando a ele meu cardápio com um sorriso. Não era contra a ideia
de comer lasanha, mas estava bastante animada para examinar o cardápio, imaginar como seria a
aparência e o sabor de tudo. Não tive nem a chance de abri-lo. Bem, encontros são assim mesmo.
— Sinto muito pela água — disse Andrew.
— Ah, eu gosto de água com gás — menti.
— Você deve ser acostumada a poder beber onde e quando quiser. Tudo em Atlantic City é
tão ilícito. — Ele parecia animado com a ideia.
— Como futuro advogado, tenho certeza que você não aprova — disse. Não mencionei que,
na verdade, nunca tive interesse em beber e tinha certeza que, mesmo quando fosse maior de idade,
não ficaria muito interessada. Ah, talvez eu até tomasse uns goles de champanhe aqui ou ali, mas
gostava de ficar com a cabeça limpa e já tinha visto muitas brigas e desentendimentos de bêbados
no calçadão para me convencer de que não era exatamente a minha praia.
Minha declaração o confundiu por um momento e ele cuidadosamente endireitou o garfo.
— Ah, não, acho que há uma diferença entre a essência e o texto da lei — disse ele.
— Ah, é mesmo? Poderia me explicar melhor? — Obrigada, Lily, pelas pequenas lições que
você me ensinou pelo caminho, pensei. Pedir a um acompanhante para explicar algo definitivamente
levantaria o seu ânimo e preencheria o tempo. Com Andrew não foi exceção.
O resto do jantar continuou sem incidentes. Gostei da minha lasanha, mesmo que não fosse
minha primeira escolha, e pude comê-la com bastante tranquilidade, já que ele assumiu a maior
parte da conversa. Ele era interessante em alguns momentos e achei toda a questão do certo e errado
das leis meio atraente. Gostaria de ter contado a ele um pouco sobre a minha aula de química, mas
não queria interrompê-lo. Ele estava se divertindo muito conversando comigo.
Terminamos e ele pagou por nós. Ele me ajudou com meu casaco. Em seguida, caminhamos
até o Oceanview e nos separamos em frente ao hotel. Enquanto ficávamos ali olhando um para o
outro, senti aquelas borboletas da noite anterior. Mas eu também não tinha certeza se queria beijá-
lo. Podia ver que ele também não tinha certeza se devia me beijar.
— Sabia que eu faço mergulho a cavalo de vez em quando? — perguntei.
Ele ficou me olhando e piscou uma vez antes de dizer:
— O quê?
— Muito obrigada pelo jantar. Foi maravilhoso. — Estendi minha mão e ele a pegou, ainda
confuso, mas caloroso. Eu sorri, mas era mais para mim do que qualquer coisa. Se ao menos ele
tivesse feito uma única pergunta sobre mim.
Enquanto eu subia as escadas, ele gritou atrás de mim:
— Posso ver você de novo?
Algumas coristas perto de mim riram.
— Sim — respondi. Por que não outra chance? Ele era até que bem decente.
E entrei no hotel.

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Após a exibição, estava me sentindo inspi-
rado. Estava trabalhando a todo vapor na máquina de escrever reserva no escritório. Notei que o Sr.
Clark estava me observando. Não o tempo todo. Mas ele aparecia na porta do seu escritório e me
olhava com os olhos estreitos. Ele não queria que eu escrevesse essa história. Não quando o Sr.
Chambers era um investidor do jornal. Mas era bom demais. Aqueles homens de Nova York. Ainda
não tinha identificado nenhum deles, mas havia uma boa chance de reconhecê-los se eu cruzasse
algumas referências nos arquivos... se eles não tivessem nenhuma relação com a máfia, eu comeria
meu chapéu sem pensar duas vezes. E eu só tinha um chapéu, então isso significava muita coisa!
Saí naquela tarde praticamente pulando pela rua que nem a minha irmãzinha. Então tive uma
ideia: e se eu voltasse para o clube? Talvez acabasse encontrando de novo com o Bill, ou com o seu
pai, ou até com aqueles homens. Então me dei conta: não, o hotel Atlantic Plaza. Era de longe o
maior hotel do Sr. Chambers e ele com certeza não abriria mão de hospedar seus convidados em
uma de suas melhores suítes com vista para o mar. Eu ficaria de tocaia no saguão.
Dei meia-volta e segui em direção à orla. Como sempre, o ar ficou mais frio e o vento mais
forte conforme fui me aproximando da água. Tinha dias que isso dava calafrios, mas hoje pareceu
revigorante. Eu estava pronto para enfrentar o mundo!
Cheguei ao Plaza e sorri desajeitadamente para o porteiro ao passar pelo grande saguão de
mármore. Claro, foi tranquilo quando o Bill estava comigo de manhã, mas, sozinho, eu subitamente
me senti muito deslocado. Tinha que admitir que não costumava visitar muito esses prédios, embora
teoricamente não tivesse que pagar nada para fazê-lo. Eles me intimidavam, claro. Mas a ostentação
da riqueza, o custo de importar o mármore e um espaço gigantesco e cheio de nada, enquanto outros
viviam de salário em salário e mal conseguiam colocar comida nas mesas, tudo isso também me
deixava desconfortavelmente inquieto.
— Posso ajudá-lo, senhor? — perguntou um homem de paletó sob medida com as letras
“AP” bordadas na lapela.
Certo. Este era o outro motivo. Quando se tinha a minha aparência ou as minhas roupas,
você não tinha permissão para se demorar muito por ali.
— Só esperando para pegar um pacote — respondi. — Vou ficar aqui atrás.
— Devo ligar para o quarto, senhor? — perguntou o homem, claramente não acreditando.
— Não, disseram para não incomodar.
O homem olhou para mim com uma sobrancelha levantada.
— Posso esperar lá fora — disse, e me afastei devagar. Passei novamente pela porta que o
porteiro manteve aberta e ele deu de ombros com simpatia.
Atravessei a rua e olhei para o oceano. O céu estava azul e radiante, o sol começava a se pôr
e banhava tudo numa luz calorosa. A água parecia quase aconchegante. Se não fosse pelo vento frio
soprando, você facilmente poderia achar que estava tão quente quanto nos trópicos.
Eu me virei e me encostei na grade do calçadão, observando a entrada do hotel. Estava frio,
mas também estava bom. Além disso, meu entusiasmo estava ajudando a me aquecer por dentro.
54 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Brant? — Alguém me chamou da praia abaixo. Olhei por cima do parapeito e vi Bill
acenando para mim. Foi um encontro inesperado, mas muito bem-vindo.
— Bill! — exclamei, acenando de volta. — O que está fazendo aí, amigo?
— Juntando conchas. Desça e junte-se a mim — disse ele.
Juntando conchas? Isso não parecia o hobby de um garoto rico, mas o que eu sabia sobre os
hobbies de garotos ricos, não é verdade?
— Claro!
Segui até as escadas e me juntei a ele na praia. A areia deslizava sob os meus sapatos e eu
penei para finalmente chegar até ele.
— Conchas? — perguntei quando finalmente consegui.
Bill assentiu e levantou a mão. Tinha meia dúzia de conchas, a maioria delas pequena, mas
bastante detalhadas e inteiras. Achar boas conchas inteiras assim devia ter dado um baita trabalho.
— Engraçado ver você aqui — disse ele.
— Eu precisava de um pouco de ar antes de ir para casa.
Ele assentiu. Me perguntei então se ele confiava em mim. Achava que estávamos nos dando
bem, mas não tinha me passado pela cabeça que ele poderia não ter caído totalmente na minha farsa
de me fazer de amiguinho.
Eu me virei e apontei para um hotel menor alguns prédios além do Plaza.
— É do seu pai também, não é?
Ele assentiu de novo.
— Aquele, e aquele, e aquele outro. — Ele os foi apontando à medida que desapareciam ao
longo do calçadão.
— Como é?
— Como é o quê?
— Ter um pai que é dono de uma cidade? — Ajustei meu casaco ao corpo e comecei a dar
alguns passos sem sair do lugar.
— Francamente? — ele perguntou.
— Por que você não seria completamente franco com um estranho que acabou de conhecer
ontem? — perguntei de volta com um sorriso.
Ele finalmente sorriu.
— Eu tento não pensar sobre isso. Só quero viver minha própria vida. Não quero ser dono de
tudo isso. Dá muito trabalho e muito... — Ele fez uma pausa. Eu esperei. Não pressionei. — Às
vezes é perigoso.
— Perigoso?
Ele me deu uma olhada.
— Você sabe o que quero dizer.
Eu sabia? Ele estava confirmando o que eu estava pensando daqueles homens de ontem?
— Aqueles sujeitos de Nova York — disse.
Mas ele não respondeu. Apenas desviou o olhar para o mar.
— Eu entendo querer fazer suas próprias coisas. Ter seus próprios sonhos. Por que os mais
velhos tentam empurrar as coisas para cima da gente? Eles são todos decididos sobre tudo agora que
estão velhos, mas quando eram mais novos, eram rebeldes — eu disse isso pensando na minha tia e
no meu tio. Pensando em como eles tinham me acolhido. Pensando no que sacrificaram. Me senti
um pouco culpado.
— Exatamente — disse Bill. — Exatamente.
— Me sinto um pouco mal — disse.
— Sério? Por quê? — perguntou Bill.
— Toda essa conversa sobre sonhos e tal, e eu disse para você não perseguir os seus. — Seja
empático, lembre-se dos detalhes e faça com que se sintam especiais.
Bill sorriu.
— Ah, aquilo. Aquilo é besteira. De que me serviria? Além do mais, você estava certo, não
quero tirar o trabalho de outra pessoa.

55 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Ou talvez eles nem planejassem contratar ninguém, mas você foi a exceção. Sabe... —
disse, uma ideia me vindo à cabeça. — Você poderia se oferecer para trabalhar de graça. Pequenos
negócios sempre precisam de ajuda. Seria mais como, sei lá, uma ação de caridade.
— Ação de caridade — repetiu. Ele pareceu pensar no assunto por um momento, mas depois
descartou a ideia. — Bom, isso não vem ao caso agora. É melhor eu ir entrando. Há um jantar que
vou ser obrigado a participar.
— Com aqueles mesmos homens? — perguntei. Bill assentiu, parecendo distraído. — Se
quiser companhia... — Ele olhou para mim, confuso. — Só estou dizendo que não tenho planos.
— Brant — disse Bill, franzindo ligeiramente a testa. — Desespero não é uma coisa bonita.
— Ah, eu não quis pressionar. — Longe demais, Brant, longe demais.
— Eu sei. Foi mal. É que eu já estou cansado de pessoas querendo coisas de mim. Eu sei
que você não é assim.
— Eu entendo — disse. Senti como se tivesse tentado pegar um cachorro de rua agarrando-o
pelo pescoço. Na próxima, disse a mim mesmo, na próxima. — Bom, tenha um bom jantar!
— Obrigado — disse Bill. Ele olhou para a mão por um momento, então se virou e jogou as
conchas na água. Ele esfregou as mãos, assentiu para mim uma última vez e foi andando pela praia
de volta até as escadas.
Me sentei na areia fria e levantei a gola do casaco.
Isso sempre acontecia. Eu sempre ia um pouco longe demais. As pessoas me davam a mão e
eu queria o braço, como dizia o ditado. Meu tio dizia que era uma boa qualidade, principalmente
como repórter, mas acho que às vezes não é. Principalmente com alvos ariscos que nem o Bill.
Na próxima eu me sairia melhor. Na próxima eu conseguiria o furo.

56 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu estava em uma pequena rua escura que
estava ainda mais escura graças ao sol poente escondido atrás dos prédios sujos e cinzentos. Olhei
em volta. Mais uma vez, eu nem vi o tempo passar. Não conseguia me lembrar do momento exato
em que decidi fugir do jantar, que decidi seguir um endereço em um cartão de visita. Mas cá estava
eu. Então certamente devia tê-lo feito. Conferi duas vezes o cartão na minha mão e depois olhei
para o endereço na minha frente. Era onde devia estar a sede da Gent, mas eu estava diante de uma
loja vazia com janelas empoeiradas. Olhei em volta. Estava começando a ficar preocupado, com um
pouco de medo. Era mesmo esse o lugar? Talvez eu devesse só voltar para o hotel, me juntar ao
meu pai e aqueles homens no jantar, como disse ao Brant que ia fazer. Mas não. Não, eu não ia
suportar isso. Bati timidamente. Depois de esperar alguns momentos, bati com mais força. E então,
finalmente, segurei a maçaneta bem na hora em que a porta se abriu. Meu braço praticamente se
deslocou do meu ombro e eu tropecei para frente, caindo no chão.
— Olha só, é o garoto do projetor. Sr. Caixa de Fusíveis. — Scott estava olhando para o
meu corpo tombado com um sorriso no rosto.
— Hora errada — disse, levantando e limpando a poeira na frente da minha roupa.
— Eu diria que a hora foi perfeita. Foi um tombo digno do Buster Keaton.
— Bom, ótimo, quero sempre causar uma primeira impressão positiva — respondi. Voltei
para a rua, deixando Scott sair do prédio e observando enquanto ele fechava a loja.
— Odeio te dizer isso, garoto, mas esta é sua terceira impressão — disse ele.
— Certo, certo. — Eu normalmente não ficava sem palavras, ainda mais em um contexto de
negócios, mas naquele momento, me senti muito... bem... bobo. E muito sem jeito.
— Então, o que posso fazer por você? — ele perguntou.
— Gostaria de aceitar a sua oferta. Gostaria de aprender. E faria isso de graça. Não preciso
do dinheiro. — Pareceu idiota dizer isso no momento que eu disse. Parecia que estava me gabando.
Eu não queria isso. Queria soar caridoso, como o Brant sugeriu. Em vez disso, soei presunçoso.
— Bem, vou te contar, o chefe vai ficar emocionado. Você manda bem, garoto, e além disso,
fazer de graça é, bom, é fantástico. Não dava pra ser melhor.
— A menos que eu te pagasse — brinquei. De repente, por um momento, Scott pareceu
considerar que a ideia tinha mérito. Droga. Por que eu tinha dito aquilo? — Só não conta para o
meu pai. Ele acredita que trabalho duro deve ser recompensado de forma adequada e justa, e nem
sempre entende que isso pode significar mais do que só dinheiro.
Scott assentiu.
— Claro. Não tenho certeza de quando terei essa conversa íntima com o seu pai, mas vou
me certificar de não contar a ele.
— Obrigado. — Ainda me sentia sem jeito. — E aí, o trabalho é meu?
— Vejamos, nós concordamos que você vai trabalhar de graça e que é talentoso e motivado.
Acho que, com certeza, podemos tentar. — Ele sorriu. — Que tal vir comigo pra conhecer o chefe?
— Ótimo, perfeito, eu adoraria.
57 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu logo mudei de ideia enquanto acelerávamos pelas ruas da cidade na caminhonete do
sujeito, a lateral pintada com letras garrafais: “GENT”. Era como se ele pensasse que estava numa
pista de corrida, fazendo curvas em velocidades que reviravam o meu estômago, e eu tinha quase
certeza que aquela lata-velha surrada ia cair aos pedaços no próximo buraco. Ou pelo menos eu ia
perder alguns dentes de tanto baterem um no outro quando isso acontecesse.
— Aonde estamos indo? — Eu achava que conhecia Atlantic City bem, mas essa direção
maluca me deixou completamente perdido.
— Para um bar de jazz fantástico. Chama-se Jive Dive — respondeu Scott, girando o volante
e virando-nos quase 180 graus para fazer uma curva bem normal à direita. Me senti enjoado.
— Nunca ouvi falar desse — disse.
— Fica no Northside — respondeu ele.
— Ah. — Não disse mais nada. Estava preocupado que, se o fizesse, podia vomitar.
— Tudo bem por você? — perguntou ele, olhando para mim.
Por favor, para de olhar para mim, olha para a rua. Uma jovem mulher com seu filho estava
atravessando a rua à nossa frente. Parecia uma cena tirada de um filme.
— Claro — disse.
— Porque se te deixa desconfortável...
— Por que me deixaria desconfortável...? Ah, meu Deus...!
Scott olhou de volta para a rua, desviou da mulher com a maior naturalidade do mundo e
então lhe deu um aceno amigável.
— Bom, então tá joia! Você vai adorar o chefe. Só pra você saber, ele pode ser um pouco
arisco. Passou por muita coisa em Nova York — disse ele.
— Nova York? — perguntei.
— Ele foi demitido, conseguiu o emprego de volta, não quis voltar, é uma longa história.
Pode ser que ele te conte tudo isso. Ou não. Só deixa ele falar ou deixe ele quieto. Deixe que ele...
— Deixar ele conduzir a situação, eu entendo. A maioria dos chefes é assim.
O resto da viagem foi misericordiosamente silenciosa, conforme Scott corria pelas ruas até o
Northside. Segurei firme na parte de baixo do meu assento e tentei só respirar durante a experiência.
Quando finalmente paramos e consegui sair da caminhonete, quase caí de joelhos na calçada para
beijar o chão.
— Por aqui! — disse Scott, completamente inconsciente da provação que me fez passar, ou
bem o oposto. Não sabia dizer.
Me juntei a ele enquanto caminhávamos pelas ruas movimentadas até um pequeno clube
com uma marquise iluminada na frente. Entramos. O clube era pequeno e escuro, mas o efeito era
aconchegante e íntimo, não lúgubre. As luzes da ribalta iluminavam um pequeno palco no outro
extremo, onde um trio de jazz tocava, e cada mesa tinha uma vela bruxuleante. O lugar era muito
casual, bem o oposto do clube do meu pai. Também permitia a entrada de homens e mulheres, o que
era, pensei, muito mais bacana.
Segui Scott até uma mesa nos fundos, um banquete curvo forrado de vermelho-escuro de um
lado. Sentado ali estava um homem grande e intimidador, com uma carranca no rosto. Ah, como eu
esperava que fosse um guarda-costas e não o próprio chefe.
— Fala aí, chefe! — disse Scott, deslizando ao lado da montanha de homem. Que ótimo. —
Este é o garoto de quem eu estava falando.
Eu rapidamente tirei meu chapéu e estendi a mão.
— Oi! Eu sou Bill Chambers.
O homem olhou para mim por um momento, olhou para Scott e depois olhou de volta para
mim. Então, devagar e com óbvia relutância, estendeu a mão e apertou a minha.
— Thomas Connor — disse ele.
— Bem, Sr. Connor, estou muito animado com esta oportunidade. Me parece que a Gent faz
umas coisas realmente inovadoras.
58 | B e n d y : O s P e r d i d o s
O Sr. Connor olhou para mim e então mais uma vez olhou para Scott.
— O que você disse para ele?
Scott levantou as mãos e riu.
— Opa, opa, não disse nada! Só que ficaríamos felizes em contratar alguém para trabalhar
para nós de graça.
— De graça?
— Sim.
O Sr. Connor olhou para mim novamente e de repente senti vontade de fugir. Simplesmente
sair do clube, entrar na caminhonete do Scott e dirigir até em casa.
— Por que quer trabalhar de graça?
— Sou rico — disse. Desse jeito mesmo. Do mesmo jeito que poderia ter dito quando tinha
uns sete anos e aprendi a diferença entre mim e a maioria das pessoas.
O Sr. Connor olhou para mim. Então balançou a cabeça.
— Sente-se de uma vez.
Me sentei depressa do outro lado dele no banquete. Parecia estranhamente íntimo, nós três
sentados curvados daquele jeito, um do lado do outro. Tentei ficar o mais perto possível do canto.
Foi quando uma garçonete chegou.
— Posso trazer algo para vocês beberem?
— Vou querer um uísque com limão — disse Scott.
A garçonete olhou para mim.
— Só um refrigerante, obrigado.
Ela saiu e houve uma longa pausa. Poderia dizer que ficou tudo em silêncio, mas não era
bem o caso. A banda estava tocando algo alegre e vibrante, os clientes nas outras mesas eram
barulhentos e escandalosos. Era uma cena muito animada. Exceto naquele canto escuro. Naquele
canto escuro, as coisas estavam, bem, desconfortáveis.
— Correu tudo bem ontem à noite? — Scott então perguntou ao Sr. Connor.
O Sr. Connor assentiu.
— Tão bem quanto se poderia esperar.
— Não acredito que o senhor fez aquilo. Depois de tudo que aquele homem fez com você.
— Agora não, Scott.
A garçonete voltou com as nossas bebidas e fiquei grato por ter algo para me ocupar durante
aquilo, a entrevista de emprego mais desconfortável do mundo.
— Só achei estranho — disse Scott, tomando um gole da sua bebida.
— Um homem tem as suas responsabilidades. Mesmo depois de tudo. Foi uma coisa boa.
Era o certo a se fazer. Tirar de lá.
— Acho que o senhor devia ter afundado aquele navio. Mandado tudo pro fundo do oceano.
— E você sabe o que teria acontecido então, não sabe? Você sabe como a tinta e a água do
mar teriam... — Ele parou. Se lembrou que eu estava lá. O Sr. Connor se virou para mim. — Você
gosta de consertar coisas?
Foi tão de repente que apenas balancei assenti.
— Bom, garoto, é melhor que você seja tão bom quanto o Scott diz que é. Há muitas coisas
que precisam ser consertadas por aí.
— Isso é uma metáfora? — perguntei.
— Não.
— Certo.
Mas eu tinha certeza que era. O que raios eles estavam discutindo? Tinha despertado minha
imaginação, isso era certeza. Acionou um gatilho no meu estômago e eu me senti, bem, um pouco
assustado. Mas muito intrigado.
— Então, hã, o trabalho é meu? — perguntei.
O Sr. Connor assentiu.
— Por que não? — Então riu consigo mesmo. — Claro. Por que não?

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Expectativa ansiosa.
De algo desconhecido.
Estamos aqui esperando. Não podemos ver nada no escuro. Mas podemos sentir.
Não estamos sozinhos.

60 | B e n d y : O s P e r d i d o s
O tempo passa. Sempre seguindo em frente,
não importa o que mais esteja acontecendo. Às vezes você sente que está correndo para alcançá-lo,
outras vezes sente que ele está te empurrando para frente tão rápido que você vai acabar tropeçando
nos próprios pés. Ele passa e os momentos que têm significado se sobressaem, mas o resto, o resto é
apenas uma sequência de cenas rápidas. Retratos de uma vida vivida. Meu tempo salta. Ignora a
preocupação, ignora as pequenas partes que conectam as coisas.
Agora, eu realmente queria ter prestado mais atenção. Queria ter tido guardado as semanas
que passei trabalhando na Gent na cabeça com mais esmero. Mas agora está tudo misturado em um
grande borrão. Os dias eram muito parecidos, mesmo que os trabalhos não fossem. Eu acordava,
tomava café da manhã e lia um novo livro. Ia para a loja sem nome empoeirada, me encontrava com
Scott e ficávamos fora o dia todo consertando coisas. Podia ser algo simples como uma caixa de
fusíveis, ou fascinante como um jogo de luzes de teatro. Podíamos ter que subir a escada até o alto
de uma marquise ou descer num porão para mexer em um gerador. Era tudo uma grande farra.
Também vi o Brant algumas vezes. Aquele rapaz tinha um jeito de aparecer de repente. Se
eu fosse meu pai, teria achado que ele estava me perseguindo. Ele era muito bacana e gostava de
uma boa conversa. Sua companhia não me incomodava, por mais que eu me sentisse despreparado
toda vez que ele surgia como num passe de mágica.

61 | B e n d y : O s P e r d i d o s
O que costumam dizer é que o amor vence
tudo. Sempre imaginei que isso significava que, independentemente do que acontecesse em um
relacionamento, se vocês se amassem muito, não importava. Mas o que eu estava descobrindo era
que estar em um relacionamento significava que nada mais importava. Não para mim, mas para
todos os outros. Se eu me atrasasse para ajudar as meninas a se arrumarem, elas davam risadinhas e
culpavam o Andrew. Lily de repente ficou interessada em conversar, falando sobre seus muitos
pretendentes, perguntando se Andrew teria feito tal e tal coisa terrível e bajulando as flores que ele
mandava para mim.
Até meus pais, que sempre apoiaram tanto i meu jeito quieto, pareciam bem satisfeitos. Se
Andrew me levava para passear na cidade à noite, eu de repente não precisava mais lavar a louça
depois do jantar.
Pior de tudo, meu conjunto de química novo ficou lá juntando poeira, sendo deixado de lado
enquanto várias caixinhas com colares e broches enchiam minha mesa. O amor estava literalmente
vencendo meus hobbies, meus interesses, minhas paixões.
O amor vencia tudo. Todas as coisas. Só o que importava era o amor.
Havia, é claro, um único problema. Eu não estava apaixonada por ele. Ele estava apaixonado
por mim. Era o amor dele deixando todo o resto de lado. Era o amor dele que mais importava. Para
a minha família. Para todos que sorriram conscientemente para mim.
Todos estava extremamente satisfeitos. Então quem era eu para estragar a alegria deles? E
Andrew era perfeitamente aceitável. Interessante à sua maneira, gentil, respeitoso. Supus que teria
de me casar com ele. Parecia que as coisas eram assim.
O que eu poderia dizer? Como poderia expressar o ressentimento que senti nessa situação?
Como poderia magoar todas essas pessoas? Desejei então ser rica como o Bill. Dessa forma, nada
disso importaria.
Mas provavelmente importaria.
Uma garota precisa de um pretendente. Uma garota precisa se casar. É o trabalho dela.
Peguei um dos pequenos frascos de vidro com líquido do meu conjunto de química todo
cheio de poeira. Ergui o braço para atirá-lo contra a parede. Imaginei como o som do vidro se
quebrando seria satisfatório. Como o líquido espirrando por todo lado seria agradável. Então
suspirei e o coloquei delicadamente de volta na caixa.

62 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Fiz questão de aprender a rotina do Bill.
Foi fácil. O cara era um funcionário da Gent em tempo integral agora. Graças a mim. O único
problema era que isso significava que ele passava muito menos tempo com seu pai pomposo e seus
amigos notáveis. Qual era a história agora? Garoto rico se voluntaria para consertar a cidade que
seu pai quebrou? Não é uma manchete ruim, mas não é digna de primeira página.
Não havia muito que eu pudesse fazer agora. Só tinha que manter a amizade. Eu sabia que
algum dia, em algum lugar, a história apareceria. Esse garoto tinha muito ao seu redor para não
escorregar e cair de cabeça em alguma coisa. Enquanto isso, eu tinha que agradecer ao Sr. Clark por
me acolher sob sua asa. Eu estava editando os obituários agora, oficialmente fora da sala de
correspondências. Não era muito, mas significava um salto no salário, e quer saber, até que era uma
leitura interessante sobre a vida que as pessoas levavam antes de morrer. A maioria das mortes não
é notícia de primeira página; simplesmente acontece tão naturalmente quanto nascer. As pessoas
estão em nossas vidas e então se vão. Mais ou menos como meus pais, eu acho, não que eu os
tivesse conhecido por tempo suficiente para perceber que eles se foram.
Então, sim, é legal ver as vidas vividas. Os filhos, netos, até bisnetos às vezes. Também
pode ser bem repetitivo. O que, novamente, talvez também seja algo legal. Talvez mostre que a
maioria das pessoas vive vidas simples e previsíveis e são muito felizes.
Fiquei pensando no assunto. Seria por conta da minha criação incomum que eu não pensava
muito em uma esposa e uma família no meu futuro? Que tudo com o que eu me preocupava era em
aparecer na primeira página? Ou seria por que o futuro parecia não existir para mim? Era tudo só
um vazio negro lá fora, um vazio negro feito tinta.
Nossa, que ideia mais sinistra.
Eu balancei a cabeça e voltei à edição.

63 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eram 17h e já estava escuro lá fora. Eu es-
tava parado na frente da loja vazia da Gent, tremendo um pouco no meu casaco de inverno preto,
comprido e de lã. Estava tentando trancar o lugar, mas meus dedos estavam dormentes de tanto frio.
Devia ter colocado um par de luvas.
— Está sozinho? — perguntou uma voz sinistra atrás de mim.
Dei meia-volta, o coração na boca. Uma grande figura se assomava sobre mim e, quando o
reconheci, não ajudou muito a amenizar meu medo.
— Olá, Sr. Connor — disse, me sentindo intimidado como sempre me sentia perto dele. Eu
não o via há pouco mais de duas semanas, desde aquela noite no clube. Ele tinha voltado para Nova
York e era isso. Ou foi o que pensei.
— Bill. — Nós nos encaramos. Então: — Cadê o Scott?
— Ele foi para casa mais cedo. O bebê dele está doente. — Parecia uma mentira, mas era a
verdade. Havia alguma coisa na forma como o Sr. Connor olhou para mim que me fez sentir como
se tudo o que eu estava dizendo fosse de alguma forma inapropriado.
— Ótimo — disse ele com um forte suspiro.
— Qual o problema? — perguntei, mas então imediatamente duvidei que de fato havia um
problema para início de conversa e que eu não devia fazer tais suposições sobre as pessoas, ainda
mais indivíduos grandes que pareciam poder me partir ao meio.
— Eu preciso de ajuda. Mas é... — Ele parou e olhou fixamente para mim. Levantei as
sobrancelhas e tentei sorrir um pouco para mostrar que eu era um tipo de pessoa confiável que não
representava nenhuma ameaça a ele.
— Posso ser útil? — perguntei.
Ele continuou me olhando.
— Estou melhorando muito, acho que o senhor ficaria impressionado. — Por que eu estava
insistindo tanto? Havia algo no Sr. Connor que me fazia querer impressioná-lo.
— Não se trata de talento. Tenho certeza que você é bom, garoto. A questão é confiança.
— Confiança?
— Você é confiável?
Fiquei um pouco ofendido.
— Claro que sou.
— Com segredos, sabendo que não pode contar a uma única alma, e se o fizer, vou fazer
você se arrepender.
Bem, com uma ameaça dessas, quem era eu para dizer não?
— Sou muito bom em guardar segredos. — Eu não ia entrar em detalhes de como mantinha
em segredo todas as coisas que sabia que meu pai fazia e sobre como ele ganhou toda a sua fortuna.
Porque, bem, era um segredo, afinal.
O Sr. Connor assentiu. Ele pareceu entender. Não era como se os rumores sobre o meu pai
não circulassem por Atlantic City como as ondas no oceano.
64 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Então venha comigo — ele disse.
Dirigimos até uma parte da cidade repleta de estacionamentos e fábricas de embalagens. Um
lugar cheio de prédios com telhados baixos, poeira e fuligem. Era tudo feito com um propósito, sem
atenção a detalhes que pudessem agradar os olhos. Estacionamos em um prédio de tijolos com uma
porta desinteressante e saímos. Olhei em volta. Estávamos nos limites da cidade. Não exatamente
na água, mas eu podia ouvir as ondas ao longe. O cheiro de óleo e gasolina se misturava no ar. Era
um lugar para trabalho duro. Ervas daninhas mortas cobriam todo o nosso caminho; nosso carro era
o único estacionado no lote vazio.
Entramos no prédio. O Sr. Connor acendeu as luzes e apenas metade ganhou vida. Estávamos
em uma sala grande e vazia com alguns ganchos pendurados no teto.
— Um frigorífico? — perguntei, olhando em volta.
— Foi sim, uma vez. Cerca de vinte anos atrás.
Vinte anos atrás. Ah. Agora eu entendi.
— Esse prédio é mais do que parece, não é?
O Sr. Connor balançou a cabeça, mas de alguma forma estava concordando comigo e me
levou a um lance de escadas nos fundos. Descemos até a pequena área antes dos próximos degraus,
onde uma série de prateleiras cobriam a parede oposta. Ele rapidamente soltou a ponta do pilar da
escada e acionou alguma coisa. A parede ao nosso lado de repente começou a se abrir. Era maciça e
suas engrenagens rangiam com força. Se eu estivesse certo, e eu tinha certeza que estava, era uma
passagem com vinte anos de idade, usada durante a época da Lei Seca. O que provavelmente havia
do outro lado? Produção de álcool. Mas eu não perguntei. Achei que logo descobriria a verdade.
Entramos em uma sala pequena e úmida, passamos por uma abertura na parede e descemos
outro lance de escadas barulhentas. Elas desembocaram em uma grande sala. Esta tinha muito mais
equipamentos, quase como se tivessem sido deixados para trás às pressas. Havia grandes mesas e
pias ao longo da parede, cestos pendurados no teto. Havia um enorme congelador velho, envolto por
uma corrente, e garrafas espalhadas pelo chão. Tudo isso eu notei e processei, mas mal olhei. Mal
cheguei a olhar em volta. Meus olhos só focaram...
Na máquina.
Eu nunca tinha visto uma máquina como aquela na vida. Era gigantesca. Com canos que
entravam e saíam, mas não estavam conectados a mais nada. Parecia nova, mas usada. O metal
tinha um brilho, mas as juntas pareciam estar um pouco enferrujadas. E tinha uma substância preta
salpicada por toda parte. Óleo, talvez?
— O que é isso?
— A Máquina de Tinta — respondeu o Sr. Connor, aproximando-se dela.
— O que ela faz? — perguntei, indo atrás dele.
— Sem tempo para perguntas. Preciso de ajuda para soldar este lado. — Ele já havia tirado o
casaco e estava arregaçando as mangas.
Eu assenti e fiz como ele.
— O que eu faço?
— Você precisa abrir o painel do outro lado e puxar a alavanca para controlar a pressão
interna. — Ele me passou uma chave-inglesa enquanto se acomodava ao lado da máquina.
Caminhei até o outro lado da máquina gigante e encontrei o painel. Desparafusei depressa e
enfiei a mão lá dentro.
— Puxo agora?
— Sim — respondeu o Sr. Connor do outro lado. Puxei a alavanca e houve uma explosão
súbita de luz. Pensei que tinha sido culpa minha até que lembrei que o Sr. Connor estava soldando
do outro lado. Faíscas voaram; conseguia vê-las se erguendo por cima da máquina. Olhei de volta
para a minha mão dentro da máquina e me inclinei para dar uma espiada lá dentro. Estava escuro,
como se pode imaginar. Podia ouvir a soldagem do outro lado. Então tudo ficou em silêncio.
— O que é uma máquina de tinta? — Tentei de novo, agora que já estávamos trabalhando.
Talvez uma conversa casual o inspirasse a me responder.
— Algo que ninguém devia ter inventado — respondeu ele.
— Ah. — Isso não fez eu sentir bem. — Por que não?
65 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Houve outro rompante de som e um forte clarão. Esperei ali, agarrado àquela alavanca, que
acabasse. Esperei por uma resposta. Minha empolgação havia sido envenenada e agora se tornara
um gosto azedo na boca.
— Você faz muitas perguntas — respondeu o Sr. Connor. — Pode soltar a alavanca e fechar
o painel agora.
Olhei de volta para a máquina enquanto soltava a alavanca devagar. Ouvi um pequeno estalo
e então alguma coisa borrifou no meu rosto. Me levantei e comecei a cuspir. Enquanto me afastava
da máquina, o Sr. Connor apareceu de repente ao meu lado, me entregando um pano.
— Limpe essa coisa, rápido — disse ele.
Assenti e assim o fiz, limpando o rosto com cuidado. Olhei para o pano, preto com o mesmo
óleo ou sela lá o que fosse o que estava salpicado na máquina. O pano foi rapidamente arrancado da
minha mão e o Sr. Connor então o enfiou no bolso. Ele não disse nada, apenas se virou e olhou para
a gigantesca fera de metal diante de nós.
Eu fiz o mesmo. Olhei para ela. Tentando decifrá-la. Desconstruí-la. Entendê-la.
— O homem que construiu esta máquina pensou que estava revolucionando uma indústria.
Em vez disso, ela criou um monstro — disse então o Sr. Connor.
— Como assim? — perguntei, virando-me para ele.
— Você não sabe o que é um monstro? — respondeu o Sr. Connor, sem olhar para mim, os
olhos ainda voltados para a máquina à nossa frente.
— Eu sei o que são monstros. Tipo o Jaguadarte. — Tipo o meu pai. Essa era a resposta que
eu queria dar.
— O quê?
— Estou relendo Alice no País das Maravilhas.
— Ah, o livro infantil — ele disse com desdém. — Você sabe o que acontece quando um
homem faz uma máquina e uma máquina faz um monstro?
Eu balancei a cabeça. Fiquei sem palavras. Este homem que mal juntava duas palavras numa
conversa agora estava falando em estranhas metáforas distorcidas. Era perturbador.
— O homem perde tudo.
— Entendo.
O Sr. Connor suspirou profundamente.
— Não. Você não entende. Ninguém entende. Ele a roubou dele. Depois, implorou para que
ele voltasse. Implorou para que a trouxesse para cá. Eu devia destruí-la.
— De quem o senhor está falando?
— De um homem. Um homem muito perigoso. Mas cá estou eu. A culpa é minha, então a
responsabilidade também é.
— Sr. Connor, peço desculpas se isso soar rude, — disse — mas estou muito confuso. De
quem o senhor está falando?
O Sr. Connor riu.
— Você é direto. Não odeio isso em você, garoto. Estou falando de um Sr. Drew.
— Ah. — Por que esse nome me soava familiar?
— E de mim.
— Do senhor? — Foi quando tudo fez sentido. — O senhor inventou essa coisa.
— Sim. É minha culpa.
— Quando o senhor diz monstro...
O Sr. Connor balançou a cabeça e então, de repente, terminou a conversa. Ele se virou e
voltou para as escadas, apagando as luzes ao fazê-lo.
Fiquei parado por um momento no escuro, observando enquanto suas costas recuavam. Um
arrepio percorreu minha espinha. Me virei para olhar para a máquina uma última vez. E então o
segui às pressas.

66 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Srta. Gray, isso era exatamente o que eu
precisava — disse Mac, o contrarregra. Bem diante de nós, o palco se enchia de uma neblina
encantadora, que dava um ar de magia a tudo, inclusive ao esfregão e ao balde que estavam bem no
centro. — Às vezes, você é uma moça fenomenal.
— Obrigada, Mac! — disse. Nem podia acreditar! Depois de tantos com o Andrew, eu
finalmente tinha um fim de semana só para mim. Ele se lamentou tanto por ter que ir visitar sua
família. Eu o assegurei que a saudade fortalece o amor, mas por dentro eu estava explodindo de
alegria. Tempo para fazer o que eu quisesse. Tempo para finalmente brincar com o meu conjunto de
química. Para criar fenômenos climáticos falsos.
Ou pelo menos uma fabulosa neblina de palco que parecia fantástica sob as luzes.
— Continue fazendo isso e eu vou te pagar pelos materiais e um pouco mais por essa sua
mente brilhante — disse Mac, com as mãos nos bolsos, balançando a cabeça alegremente.
— E o melhor de tudo, não vai deixar cheiro nos figurinos — acrescentei.
— Tá, tá, é melhor você dar o fora daqui. As meninas vão precisar de você!
Eu balancei a cabeça e pulei no palco leve como uma pena. Corri para os bastidores e fiquei
na coxia por um momento. Então dei uma pequeno rebolada e bati palmas. Estava tão feliz. Não
sabia que podia me sentir tão feliz assim. Nada mais tinha me provocado isso antes disso. Nem o
mergulho a cavalo, nem garotos, nem ajudar com os figurinos. Fazer algo assim, era mágico.
Não, era ciência.
Nada do que me disseram nos bastidores chegou aos meus ouvidos. Embora tivesse notado
Chloe dizendo algo sobre eu estar apaixonada e perdida nas nuvens. Achei isso quase um insulto,
mas não disse nada. Eu nunca dizia. Além disso, por algum motivo, isso não me incomodou. Porque
pelo menos eu sabia que não era verdade. E talvez eu estivesse mesmo perdida nas nuvens, perdida
em nuvens de fumaça feita pelo homem! Ou melhor, feita por uma garota!
Fiquei no camarim durante o show, limpando tudo e me sentindo orgulhosa de mim mesma,
e depois felizmente mergulhei na correria após a performance, desabotoando botões e recolhendo
coisas que precisavam ser limpas. Estava tão incrivelmente animada que me perguntei se essa
sensação iria durar para sempre. Até concordei quando Chloe me pressionou novamente para sair, e
peguei emprestado outro vestido brilhante.
— Quer experimentar o meu batom? — ela perguntou. Normalmente, quando me faziam
esse tipo de pergunta, eu dizia não. Não que pedissem muito a minha opinião sobre maquiagem.
Mas desta vez, por algum motivo, eu disse sim.
— Quero sim, obrigada.
Passei o batom com cuidado. Era intenso e ousado e me deixou um pouco nervosa, mas eu
também estava me sentindo intensa e ousada, então respirei fundo e admirei o resultado.
— Constance, tem um rapaz esperando por você — disse Nancy, enfiando a cabeça pela
porta que dava do corredor no palco.

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E foi assim. Meu ânimo estourou como um balão. Meu rosto murchou. Achei que Andrew
estivesse visitando seus pais em Bridgehampton neste fim de semana. Assenti para ela.
— Você está bem? — perguntou Chloe, notando minha expressão.
— Por que os garotos estragam tudo? — perguntei, levantando-me e ajeitando meu vestido.
— Os garotos certos não — respondeu ela, me dando um abraço de leve por trás. — Não
tem problema se você decidir que não gosta de um garoto. O importante é encontrar o certo.
Eu balancei a cabeça. Não tinha certeza se havia mesmo um certo. Neste momento, minha
única quedinha era pelo meu conjunto de química. Não que eu não gostasse de garotos e não ficasse
toda agitada perto deles. Só sentia que essa não era a minha prioridade agora. Mesmo que para
todos os outros parecesse ser.
Peguei minhas coisas segui até a porta do palco. Respirei fundo, sorri e então a abri.
— Bill? — perguntei, surpresa.
— Estou tão feliz que você está aqui! Mas por que não estava no palco? — perguntou ele,
todo sorridente.
— Eu não sou uma artista — respondi, ainda atordoada, enquanto saía no restaurante.
— Mas o cavalo!
— Ah, aquilo foi um favor para a Molly — respondi. — Prefiro ajudar nos bastidores.
Bill assentiu como se isso soasse perfeitamente razoável.
— Posso te pagar uma bebida? É tão maravilhoso ver você!
Notei algumas das garotas paradas na beira do palco, observando. Me perguntei como seria
ser um Chambers. Sempre tendo alguém te observando. Mas foi estranhamente bom vê-lo.
— Sim, por favor — respondi.
Ele me conduziu pelas mesas ao pé do palco e subiu na plataforma mais alta, nos fundos,
onde geralmente os patrocinadores mais abastados assistiam ao show, mas não de fato. Eles apenas
conversavam uns com outros enquanto eram atendidos por nossos garçons mais atenciosos. Uma
apresentação de algum tipo acontecia à distância.
Claro que era ali onde o Sr. Chambers estava sentado com seus amigos. Foi aonde Bill me
levou e aonde puxou uma cadeira para mim em uma mesa vazia.
— Você estava aqui sozinho? — perguntei enquanto me sentava.
— Sim — ele respondeu. — Eu gosto de fazer as coisas sozinho. É esquisito, eu sei —
acrescentou, balançando a cabeça.
— Não é tão esquisito — respondi com um sorriso. Eu entendia. Queria ter esse privilégio.
Seria legal, ter tempo para não ficar perto de ninguém.
— Então, o que você faz nos bastidores? — perguntou ele, acenando para um garçom, que
chegou quase instantaneamente. Imaginei que estivesse observando e esperando que Bill Chambers
levantasse a mão.
— Ah, nada de muito empolgante. Eu ajudo com os figurinos. Troco as roupas, faço umas
mudanças rápidas, lavo de vez em quando.
— Desculpe interromper. O que você gostaria de beber? — perguntou Bill.
— Ah, hã, só um refrigerante — disse, virando-me para o garçom.
— Dois refrigerantes! — ele disse ao garçom. Então se virou de volta para mim. — Você
estava dizendo?
— Eu estava? — respondi. — Ah, sim, era só sobre os figurinos.
— Bem, parece fascinante. O mundo dos bastidores sempre foi muito intrigante para mim —
disse Bill.
Eu ri porque era bem o oposto. Sujo e fedorento. Eu ousaria dizer a ele que garotas fedem?
— Mas, ah! — eu disse de repente.
— Sim?
— Eu fiz algo incrível hoje — acrescentei. Afinal, por que não compartilhar? Aquela onda
de empolgação borbulhante começou a me tomar por dentro mais uma vez. — Eu criei a receita
perfeita para neblina!
— Para neblina? — Ele parecia confuso.

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— Para neblina, no palco, quero dizer. Eu fiz em casa, tenho um conjunto de química. Não é
nada muito elaborado, mas eu que fiz. E deu certo. E o Mac vai usar. — Abri um largo sorriso.
— Que maravilha! — disse Bill, bem quando os refrigerantes chegaram. — Na hora certa!
— Ele ergueu o copo e eu também, acompanhando o seu gesto. — Um brinde às invenções!
Eu não conseguia parar de sorrir.
— Às invenções! — E então demos um gole em nossas bebidas. — Eu sei que você gosta de
máquinas e como elas funcionam. Vi você no outro dia com aquele projetor — eu disse.
— Sim, mas tenho que perguntar mais sobre esse seu conjunto de química — disse Bill,
dispensando a pergunta sobre ele.
Assenti, embora não conseguisse pensar na última vez que alguém quis me perguntar sobre
alguma coisa.
Então eu lhe contei. Contei como tudo tinha começado na escola, quando eu tinha meus sete
anos, brincando com o clássico experimento do vulcão. A partir daí achei fascinante poder misturar
as coisas para criar outras coisas.
Pegamos outro refrigerante e também alguns aperitivos e então me peguei falando sobre a
minha família e como eu a amava, mas que eu não podia ser eles, e como o mergulho a cavalo me
aterrorizava (“Mas você foi tão bem!”) e como eu gostava de ficar sozinha, assim como ele.
Chegou um momento em que eu queria muito saber mais sobre ele e me perguntei se ele só
estava falando de mim para fugir desse assunto. Ele não poderia estar realmente interessado.
— Bem, é só que eu não sou tão interessante assim — ele disse. — Minha vida está toda
planejada para mim. Vou assumir os negócios do meu pai em algum momento. Às vezes vou para o
trabalho com ele e ele me obriga a ir numas festas horríveis com uma gente horrível. Preciso saber
quem é importante. Mas francamente, eu sou igual a você.
— Não é possível — disse.
— Muito possível. Também gosto de ciência, como você sabe. Como consertar coisas. Se ao
menos eu pudesse trabalhar na Gent para sempre. — Ele se inclinou para frente. — Posso te contar
um segredo?
— Com toda certeza!
— Eu tenho me voluntariado com eles. Sou um faz-tudo! — ele disse com uma risada.
— Não!
— Sim! Eu saio todo dia com um sujeito chamado Scott, e a gente conserta coisas. E eu
simplesmente amo. Também acredito que eles me acham muito bom. Outro dia, o chefe dele, ou
melhor, “nosso”, o Sr. Connor, me levou para ajudá-lo em um projeto ultrassecreto.
— Uhh — disse. Estava ficando tonta. A empolgação dele se somou à minha, e foi uma
sensação muito boa.
— É a máquina mais incrível que eu já vi e não faço ideia do que ela faz — disse Bill com
os olhos arregalados. — É aterrorizante e bonita ao mesmo tempo.
— Parece muito interessante! — respondi, meus olhos também bem arregalados. Havia algo
um pouco diferente no Bill esta noite. Ele sempre foi entusiasmado e gentil comigo, mas era outra
coisa. Eu não sabia dizer o quê. Era algo quase maníaco. Notei uma pequena mancha preta de terra
ou algo do tipo logo abaixo do seu olho esquerdo. Me peguei fixada nela até que Bill bateu seu copo
de refrigerante na mesa, derramando o líquido em sua mão. Quase pulei de susto!
— Você gosta de ciência! — ele disse. — Eu vou te mostrar!
— É, eu gosto de ciência — respondi. — Tá bem! — Por que não? Isso tudo era muito
divertido e empolgante.
Nos levantamos e Bill acenou para o garçom enquanto eu tentava colocar meu casaco. Por
algum motivo, uma das mangas insistia em não colaborar.
— Eu ajudo, eu ajudo! — disse Bill. Sim, ele estava bem eufórico. Isso me fez hesitar, mas
só por um momento. Era difícil conter a alegria de ser levada a sério pela primeira vez por alguém
fora da minha família.
Juntos, conseguimos colocar meu casaco e então ele agarrou minha mão e me puxou para o
outro lado da sala. Eu estava rindo muito e não ligava se as pessoas estivessem olhando.
Tinha sido um dia tão bom.
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Observei Bill e Constance das sombras da
sala. Me sentia um espião. Os dois estavam se divertindo muito, principalmente o Bill. Ele estava se
comportando de um jeito estranho. Teria pensado que talvez estivesse bêbado se eles não tivessem
bebido refrigerantes o tempo todo. Era estranho. Tinha alguma coisa acontecendo ali. E eu ia
descobrir o quê.
Eles se levantaram e eu rapidamente tentei chamar um garçom. Fui ignorado. Claro que fui.
Então joguei cinco pratas na mesa e logo me levantei para segui-los. Não sabia para onde estavam
indo ou por quê, mas precisava de uma história. Precisava de um jeito de entrar. Tinha ouvido o Bill
dizer alguma coisa sobre uma máquina, e isso era tudo que eu precisava saber. Aqueles homens de
Nova York, agora um novo tipo de máquina? Devia estar tudo conectado.
Era assim que era naquela época. Fazendo conexões sem prova nenhuma. Mas ignorando as
coisas bem na minha frente. Não até que fosse tarde demais.
Eu os segui de longe, saindo do teatro e depois caminhando pelo saguão do hotel. Este era
bem menos grandioso que o Plaza e me senti mais confortável aqui. Havia também muitas colunas
sustentando o teto, ou pelo menos fingindo fazê-lo, então eu podia me esconder atrás delas. Meio
que como um esquisitão. E observar. Também como um esquisitão.
Eles deixaram o hotel e chamaram um táxi. Droga. Eu logo corri para a saída e cheguei lá
fora bem quando eles embarcaram. Também peguei um e me perguntei se poderia voltar lá dentro e
buscar aqueles cinco dólares. Mas eu tinha um pouco mais de dinheiro comigo. Era todo o dinheiro
que eu tinha para o resto da semana. Isso tinha que valer a pena.
Entrei no táxi e disse:
— Siga aquele carro! — Não consegui conter um sorriso. Não era uma coisa que se dissesse
muito. Foi divertido. O taxista, por outro lado, não parecia assim tão entusiasmado com a ideia de
perseguir alguém.
— Sério? — perguntou ele, virando-se em seu assento para olhar para mim.
— Não é brincadeira, amigo — respondi. — Eu realmente preciso segui-los.
O taxista suspirou e se virou de volta. Ele arrancou e começou a segui-los. Será que pediam
muito isso a ele? Achei que fosse só uma coisa dos filmes, mas cá estava eu perseguindo um carro,
então as circunstâncias também devem surgir para outras pessoas. Engraçado pensar nisso.
Perseguimos o carro pelas ruas até os limites da cidade. Quando eles pararam, passamos por
eles e dobramos a esquina. O taxista fez isso sem eu que eu tivesse que pedir. Eu provavelmente
sequer teria pensado em fazer isso. Sujeito esperto. Paguei e lhe dei uma gorjeta, ao que ele
retribuiu com um aceno de cabeça.
— Boa sorte, companheiro — disse ele.
Eu sorri.
Refiz meus passos e Bill e Constance tinham sumido. Rapidamente corri até o prédio onde
tinham sido deixados. Havia uma única porta numa parede larga.
Claro, por que não?
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Abri devagar e com cuidado, então olhei em volta. Era uma grande sala vazia com uma série
de ganchos pendurados no teto. Bill e Constance não pareciam estar em lugar nenhum.
Foi quando ouvi uma risada.
Veio de algum lugar nos fundos da sala.
Corri pelo espaço aberto até a escada e olhei para baixo.
Podia ouvi-los conversando.
Muito bem.
Eu esperaria, só por um momento.
Era empolgante. Era o que eu estava esperando.
Finalmente.

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Uma escada para lugar nenhum. Eu já tinha
visitado a minha cota de velhos bares clandestinos. Eram o tipo de lugar que seduzia dançarinas e
atraía o fascínio de ricos pretendentes em potencial. Então presumi que esta sala de cimento vazia
devia ser algo mais.
Fui até uma das paredes e a observei de perto, passando os dedos por ela, tentando encontrar
uma porta escondida.
— Quer que eu te mostre como é? — perguntou Bill. Sua energia ainda estava estranha,
mais calma agora, mas esquisita, quase impaciente.
Balancei a cabeça. Não queria admitir que esses tipos de quebra-cabeças me frustravam, mas
eu ainda queria descobrir. O ar frio do lado de fora tinha ajudado a dissipar um pouco da minha
empolgação e eu estava me sentindo um pouco mais focada agora. Eu conseguia.
Recuei um passo quando percebi que não havia nenhum tipo de porta oculta esculpida nas
paredes. O que só poderia significar uma coisa:
— A parede é a porta.
Bill deu um sorriso astuto e eu suspirei por dentro, mas sorri de volta. Os homens gostavam
de dar esses sorrisos astutos junto das garotas. Na maioria das vezes era porque uma das coristas
fingia não saber o que era uma determinada bebida, ou prato de comida, para que esses jovens
pudessem compartilhar seu conhecimento. Mas dessa vez pelo menos tinha um sentido. Era um
sorriso indicando que Bill sabia algo que eu não sabia.
— Então... — disse a mim mesma. Senti aquela pequena raiva que às vezes sentia nesses
momentos. Quando não entendia alguma coisa e outra pessoa sim. Tentei ignorá-la. Era bobagem
me sentir assim. Ele se ofereceu para me explicar, eu é que estava sendo teimosa agora. Senti essa
necessidade de provar que eu sabia o segredo. Apesar de saber que o segredo era um segredo. Esse
meio que era o propósito dos segredos.
Não ajudava o fato de que ele estava um degrau acima, literalmente me encarando do alto,
apoiado tão confortavelmente no pilar do corrimão.
Ah, claro.
Subi para me juntar a ele e dei um empurrão rápido em seu cotovelo. Quando ele se afastou
do pilar com uma interjeição, eu o examinei. Havia uma dobradiça de um lado, clara como o dia
agora que estava procurando por ela. Puxei o topo do pilar e ele se abriu. Dentro havia um botão de
cobre bem brilhante bem no meio. Exatamente onde muitos polegares o deviam ter pressionado.
Então eu o pressionei.
Houve um estrondo alto e depois um som de rangido enferrujado. Virei depressa para ver
enquanto a parede à nossa frente se abria lentamente. Eu me aproximei e a examinei. Não era
concreto, afinal. Era um metal pesado pintado de cinza para combinar com o resto das paredes.
— Para que serve isso? — perguntei. — Uma segunda entrada secreta?
— Acredito que era aqui que fizeram as bebidas — respondeu Bill, juntando-se a mim na
porta. — Precisavam de toda proteção possível.
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— Acho que sim — disse, olhando para a sala cinza vazia além da porta.
— Ainda tem mais. Uma aventura e tanto — disse Bill enquanto entrava na sala.
Eu o segui. Estava me sentindo um pouco nervosa agora, não tão animada quanto antes.
— Uma aventura e tanto — repeti.
Atravessamos rapidamente a sala simples e vazia. Imaginei saber o que sabia agora, que esta
sala era usada para armazenar mercadorias antes de serem despachadas. Seguimos até um grande
buraco na parede à nossa esquerda e descemos outra escadaria escura. Lá embaixo, fomos recebidos
por uma grande sala. Ergui o olhar e vi cestas enferrujadas penduradas em uma linha que corria ao
redor da sala como um trilho para um trem de brinquedo. À nossa frente havia duas banheiras
gigantes e, ao lado delas, mesas e bancos virados. A sala inteira parecia antiga, como se tivéssemos
aberto um sarcófago egípcio. Poeira e escombros.
Exceto pela máquina.
— Não é incrível? — perguntou Bill. — É ao mesmo tempo aterrorizante e fascinante, você
não acha?
Eu não tinha tanta certeza.
— O que é isso? — perguntei, olhando para ele. Era exatamente o oposto de tudo na sala:
nova, brilhante, mas coberta por alguns pontos pretos aqui e ali. Era completamente moderna e
enorme. Nada parecida com as instalações antiquadas dos contrabandistas.
— “É chegada a hora”, disse a Morsa, “de falar de muitas coisas”... — respondeu Bill, indo
até ela. Eu o segui.
— A Morsa? — perguntei, me sentindo um pouco preocupada. Ele estava falando de um
jeito estranho agora. Não bobo, não ansioso, agora ele parecia quase hipnotizado. Quando se virou
para a máquina, notei mais algumas manchas pretas em sua nuca.
Manchas pretas.
Olhei para a máquina.
Bill colocou a mão sobre ela, quase como se estivesse tocando a lateral de um animal
gigante. Ele foi deliberado e lento, passando a mão pela lateral da máquina em direção a uma
enorme abertura em um dos lados. Pôs a mão em uma das grandes engrenagens e a empurrou
suavemente. Eu não tinha certeza do porquê, mas nada se moveu.
— De Aventuras de Alice no País das Maravilhas. Já leu o livro? — perguntou ele, ainda
olhando para a máquina.
Não queria admitir que eu não era uma grande leitora de ficção. As únicas histórias que eu
conhecia eram as que os meus pais liam para nós em sua cópia gigante e carcomida de A Obra
Completa de William Shakespeare, o que eles faziam mais para sua própria diversão do que para a
nossa. Os livros que me interessavam eram os de ciências. Ou melhor, suponho, o livro. O livro que
eu roubei da escola ano passado. Ainda acredito que peguei emprestado. Eu sabia que um dia iria
devolvê-lo, quando o tivesse memorizado completamente.
— Eu conheço — respondi. Estava ao lado dele agora, mas não queria tocar na máquina.
Algo nela me deixava desconfortável.
— Bom, é um poema do livro. A Morsa e o Carpinteiro levam várias ostras jovens para
passear na praia.
— Estranho — respondi. Talvez mais estranho ainda fosse por que diabos ele estava me
contando isso. Por que estava agindo tão estranho? Ocorreu-me então quão perigosa uma estranheza
inócua podia ser. O começo da nossa noite juntos tinha sido tão divertido, mas agora tinha mudado,
como uma fruta que passara do ponto. Senti minhas defesas se erguerem.
Bill olhou para a máquina; ele parecia estar quase em transe. Podia-se dizer que era como
um homem apaixonado. Mas era um tanto diferente. Não amor, mas fascínio? Obsessão, talvez?
— “É chegada a hora”, disse a Morsa, “de falar de muitas coisas. De sapatos... e barcos... e
vazas”. — Ele deu a volta no canto da máquina onde um grande cano se curvava para baixo, se
alargando na ponta. Bill se abaixou e olhou para a grande boca escancarada. Quase enfiou a cabeça
inteira dentro. — “De repolhos... e reis”. — Sua voz então ecoou um pouco e eu recuei um pequeno
passo. — “E por que o mar tanto ferve... e se os porcos têm asas.” — Ele puxou a cabeça para fora
do cano, se ergueu novamente e olhou para mim. — E para que diabos serve essa coisa?
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— Isso não faz parte do seu poema” —respondi.
Ele balançou sua cabeça.
— Você devia olhar aqui, cientista maluca. O que é essa coisa preta?
De repente eu não queria. Estava me sentindo cada vez mais preocupada com o Bill. Além
disso, fiquei bastante intimidada com a máquina, e aquela abertura gigante parecia poder arrancar
minha cabeça se eu a enfiasse lá dentro. Mas eu não podia dizer isso aa Bill. Não queria que ele
reagisse mal e, a essa altura, não fazia a menor ideia de como ele reagiria.
Me aproximei da boca da máquina e dobrei os joelhos para poder olhar dentro dela. O
interior era completamente preto, como se tivesse sido pintado. Mas parecia molhado. Como se
tivesse acabado de ser pintado. Eu não tinha o menor interesse de tocar no material, mas imaginei
que fosse tinta. Tinta de uma cor preta profunda, diferente de qualquer outra que eu já tivesse visto.
Um preto tão perfeitamente escuro que parecia que eu estava olhando para um buraco que levava
para as profundezas da terra.
Um buraco, como o da Alice em seu livro. Disso eu sabia. Ela caiu por uma eternidade e
acabou em um mundo completamente novo. Senti um arrepio crescente dentro de mim. Não queria
cair em buraco nenhum hoje.
Recuei e fiquei de pé.
— É tinta. Uma tinta bem preta.
— É como olhar para um céu sem lua — disse Bill, concordando.
Fiquei feliz por ele ter entendido.
— Nunca vi nada igual.
— Você devia coletar uma amostra — disse ele. — Para o seu conjunto de química.
Aquele ponto bem lá no meu íntimo sentiu algo diferente então, não medo, nem raiva, mas
empolgação.
— Não trouxe um frasco comigo. — Desejei então que Bill tivesse me dado um tempo para
me preparar, que não tivesse sido tão espontâneo com essa visita.
— Então voltaremos com um. — Pude ouvir minha empolgação ecoando de volta para mim
na voz de Bill.
— O que é esta máquina? Para que serve, Bill? — perguntei.
Ele balançou sua cabeça.
— Não faço ideia. Eu vim aqui com o Sr. Connor para ajudar a consertá-la. Mas o que ela
faz? Ninguém me disse. Os rapazes da Gent têm sido tão reservados. Achei que talvez fosse algo
para ajudar no encanamento de um clube grande, mas quanto mais a examino, mais me parece algo
destinado a produzir alguma coisa.
— Produzir alguma coisa?
— Você não acha? Não tem outros tubos, não tem passagem de uma parte para outra. É tudo
independente. Exceto por esta única saída. — Ele apontou para o cano.
— Ou entrada — disse.
Bill assentiu.
— Pode ser. — Ele fez uma pausa. — É um pouco engraçado.
— O quê? — Comecei a andar devagar em torno da máquina. Meus pés estavam assumindo
o controle do meu corpo, minha curiosidade levando a melhor sobre mim. O que você é? Pensei
comigo mesma. E então também pensei: Por que está escondida?
— Algo que o Sr. Connor disse. Ele falou de um monstro. Pensei que era uma metáfora, mas
ele pareceu insinuar que não era.
— Você acha que eles fizeram um monstro? — perguntei. Estava cética. Quando cheguei ao
lado em que Bill estava parado, também coloquei a mão na engrenagem gigante na parte inferior da
máquina. Olhei para Bill. Ele parecia, bem, por falta de uma palavra melhor, assustado. — Eu não
acho que seja verdade — disse, tentando tranquilizá-lo.
Ele deu de ombros e não disse nada.
Passei os dedos sobre os dentes da engrenagem, subindo, descendo, subindo, descendo.

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— Como é o resto do poema? — perguntei, tentando fazer com que ele se sentir um pouco
melhor. Olhei para a máquina. Era tão alta assim de perto. Era impressionante. Havia um cano ali,
grande e sinuoso junto à boca da máquina, como uma jiboia.
— Ah, ele só continua sem parar, bem absurdo. Muito típico — respondeu Bill, parado ao
meu lado e também olhando para cima.
— Por que o mar “tanto ferve”? — Mas é claro que não era verdade. Era isso que era algo
absurdo? Só uma mentira? — Qual é o sentido disso?
— Eles comem todas as ostras — disse Bill. Ele estava olhando atentamente para o tubo.
— Não entendi — respondi.
— Eles convidam as pequenas ostras para passear e depois as comem. — Ele bateu no cano.
Fez um pequeno som oco. Ele ergueu a mão um pouco mais e bateu novamente. O mesmo som.
— Essa é a mensagem do poema? — Me senti horrorizada com essa ideia.
— Não sei. Mas é o que acontece.
Outra batida. Outro som oco.
— Ah — disse. — É o que acontece.

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Segurei a porta pouco antes de ela bater,
minha mão impedindo-a de fechar totalmente. A dor percorreu o meu braço e pressionei os lábios
com força. Eu não ia gritar. Sabia que estava perto de desvendar essa história toda. Este seria o meu
caminho para uma manchete. Isso me daria aquele artigo.
Mas cara, cara, como a minha mão doía.
Eu a puxei, minha mão esquerda juntando-se à direita enquanto a porta se abria lenta e
pesadamente, de pouco em pouco. Vozes vieram flutuando até mim, Bill e Constance. Ainda não
conseguia ouvir o que estavam dizendo.
Continuei puxando, todo o meu corpo tensionado com o esforço. A coisa devia ser feita de
metal maciço. Na época da Lei Seca, provavelmente não era só a Liga Antialcoolismo e a polícia
que eles queriam barrar por ali. Essa coisa era à prova de balas. E a guerra de gangues era algo
comum e sangrento.
Houve um estalo. Era um som pesado, como se uma decisão tivesse sido tomada. Relaxei
meus músculos devagar, ainda segurando a lateral da porta. Então rapidamente pulei pelo espaço
aberto para a sala do outro lado. Me senti como um contorcionista, ainda segurando a porta. Não ia
me deixar ser esmagado até a morte por um pedaço de ferro velho e quebrado.
Então a soltei. A porta permaneceu no lugar. Suspirei e olhei para minha mão direita. Havia
um corte profundo no meio da palma onde eu tinha segurado as laterais serrilhadas. Flexionei minha
mão de leve; a dor foi impressionante. Irradiou por todo o meu corpo. Pensei nos personagens que
lia em livros fazendo juramentos de sangue e cortando as palmas das mãos para isso e achei um
absurdo. De todos os lugares para se cortar por vontade própria? A palma da mão? Sério?
As vozes foram ficando mais baixas e percebi que estava me perdendo de Bill e Constance.
Olhei ao redor da pequena sala de cimento cinza. Estava completamente vazia, como a cela de uma
cadeia. Mas havia um vão na parede, da largura de um homem grande, com bordas toscas, como se
a coisa toda tivesse sido feita às pressas há muito tempo. Corri por ela e desci a estreita escada de
madeira no escuro aos tropeços. Cambaleei em direção ao pé da escada, errando o degrau, mas
consegui chegar ao chão de pé, embora bem abalado. Pisar em falso assim numa escada te faz sentir
como se você estivesse à beira de um precipício, mesmo que o próximo degrau esteja apenas alguns
centímetros abaixo. Meu coração estava batendo forte no peito.
— Você é o Brant, certo? — disse Constance, e eu ergui o olhar. Ela e Bill estavam parados
ao longe, ao lado de uma máquina gigante. Ocupava todo o outro lado da sala e quase tocava o teto.
Era quadrada com alguns canos curvos que saíam e voltavam para dentro. E tinha uma abertura de
um lado. O interior parecia pintado de preto. A coisa toda parecia relativamente nova; o metal era
bem brilhante. Não havia sinais de ferrugem. Mas manchas pretas escuras seguiam as linhas de suas
juntas. Não conseguia dizer de onde estava se era algum tipo de mofo, talvez?
— Brant, meu velho! — Bill parecia chocado, mas não infeliz em me ver. Parecia quase
aliviado, na verdade.

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Forcei um sorriso. Sabia que, se quisesse saber os detalhes da história, precisava manter a
encenação, mas ser chamado de “meu velho” me parecia, bom, condescendente.
— Oi, Bill! Desculpe pela intromissão, amigo. — Ri um pouco. Não era como se eu tivesse
tropeçado no escritório dele ou coisa do tipo. Cá estávamos nós, nas entranhas de Atlantic City,
num lugar onde não tínhamos o direito de estar. Eu esperava que esse fato evitasse que Bill fizesse
maiores perguntas, como, digamos, por que eu estava aqui para começo de conversa.
— Não é intromissão nenhuma! Na verdade, estou feliz que você esteja aqui. Eu estava
mostrando a máquina para a Constance. Você provavelmente também vai curtir. — Alguma coisa
me soava estranha na voz de Bill. Só não sabia dizer o que era.
A máquina.
Me juntei a eles e observei a coisa mais de perto. Era enorme agora que estava ao lado dela.
— O que isso faz? — perguntei.
— Bom, essa é a questão, não é? — respondeu Constance. — Alguma coisa supersecreta,
evidentemente.
— Eu nem devia saber que está aqui — respondeu Bill.
— Como você a achou? — Comecei a andar lentamente ao redor da máquina, examinando-a
de perto de todos os ângulos. Cheguei à grande abertura de um lado e espiei por ela. O vazio negro
me olhou de volta.
— Tenho trabalhado com os empreiteiros da Gent.
Eu já sabia disso, é claro, — eu o estava espionando há semanas — mas me virei para olhar
para Bill e ergui as sobrancelhas como se fosse uma surpresa agradável. Então olhei de volta para
dentro da máquina, desta vez estendendo a mão e tocando a escuridão. Um resíduo preto pegajoso
cobriu as pontas dos meus dedos.
Houve um estrondo repentino.
Dei um pulo. Meu coração estava acelerado com o choque, mas instantaneamente me senti
envergonhado por ser tão covarde. Me virei e sorri para os outros, mesmo enquanto secava minhas
mãos suadas nas calças.
— O que foi isso? — perguntou Bill.
— Parece ter vindo de lá. — Constance estava apontando para uma grande caixa branca de
metal enferrujado, quase da altura da sala, ao lado de uma das pias. Uma corrente grossa estava
enrolada no meio, como um cinto.
— Parece uma geladeira velha — disse Bill, aproximando-se.
Fiquei onde estava e observei os dois examinarem a caixa por um momento. Virei de volta
para a máquina, para o vazio negro. Olhei fixamente para ele. Fora uma coincidência que o barulho
alto e estridente tivesse acontecido quando eu toquei o interior? Engoli em seco. Mas não era mais
medo, era uma emoção avassaladora. Eu estava tão perto da minha história, da verdade. Estava me
sentindo eufórico.
— Tem um cadeado — disse Constance.
— Parece novo — Bill acrescentou assim que coloquei a mão dentro da máquina outra vez.
Senti uma atração, uma necessidade de tocar a escuridão novamente. Só para ver... só para tentar.
Meu dedo roçou o interior.
Bang.
Constance gritou.
Eu me virei.
— Tudo bem? — perguntei. Mas eu não estava preocupado, estava animado. Tinha algum
tipo de correlação, tinha que ter!
— Tem alguma coisa ali — ela disse, sem se virar para olhar para mim. — Tem alguma
coisa que alguém está guardando. — Ela olhou para Bill, que parecia branco feito papel.
Então é óbvio que precisamos saber o que é, pensei comigo mesmo. Marchei até a geladeira.
— Muito bem, vamos ver. — Examinei a corrente e o cadeado. Sem ferrugem, com certeza
nova. Era isso. Essa era a história, bem aqui.
— Acho que não devíamos abrir — disse Constance.

77 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Provavelmente não devíamos — respondi com um sorriso. — E é por isso que vamos. —
Eu me virei para olhar para Bill, para colocá-lo do meu lado. — Consegue arrombar uma fechadura,
Sr. Conserta-Tudo?
Eu sabia que ele ia fazer. Podia ver a indecisão no seu rosto, mas sabia que no final das
contas ele ia fazer. Ele era como eu, curioso sobre o mundo.
— Sim, consigo. — Ele se aproximou timidamente da caixa.
— Espere — disse Constance. Revirei os olhos por dentro. Ela foi até a parede e pegou uma
garrafa do chão. Olhou para ela por um momento e então bateu com tudo contra a parede.
— Ficou maluca? — perguntei, olhando para ela.
Ela voltou segurando a garrafa quebrada na mão, as pontas afiadas se projetando como uma
tocha alucinada.
— Vocês dois podem querer encontrar o que quer que seja essa coisa desarmados, mas eu
não sou boba — respondeu ela, e segurou a garrafa diante de si, olhando fixamente para a geladeira.
Tá, talvez ela não estivesse tão assustada, afinal.
Houve um som de metal contra metal quando a corrente de repente começou a escorregar
pela geladeira.
— Está feito — disse Bill, segurando o cadeado e parecendo um pouco perdido.
Agarrei a corrente caída e enrolei a ponta em volta da minha mão. Constance teve uma boa
ideia com a coisa da arma.
— Então, temos certeza de que devíamos abrir esta porta? — perguntou Constance.
— Eu tenho — respondi. Nunca tivera tanta certeza de algo na vida. — Vou tentar pular em
cima de seja lá o que for, então é melhor você chegar para o lado — disse a ela.
Ela o fez, posicionando-se ao lado de Bill, cuja a mão segurava a borda da porta.
— No três. Está pronto? — perguntei.
— Essa é uma pergunta complicada — respondeu Bill.
Eu não tinha tempo para o seu jeito enrolado de falar.
— Um, dois, três!

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Abri a porta com Brant na frente, a cor-
rente em ambas as mãos, pronto para dar um bote. Da minha parte, eu estava pronto para agarrar
Constance e sair correndo. Tinha certeza que o que quer que fosse esse monstro do qual Thomas
tinha falado, metáfora ou não, humano ou... não, era isso. Bem aqui na nossa frente. Minhas mãos
estavam tremendo.
Houve um silêncio que parecia bem-vindo e ao mesmo tempo indesejado naquele momento.
Devia haver um monstro nos atacando por causa de todo aquele barulho vindo de dentro da
geladeira. Mas, em vez disso, estava tudo extremamente quieto.
— Está vazia — disse Constance, segurando sua garrafa com força.
— Não pode ser — disse Brant. Ele estava parado bem na frente da geladeira. Bem ali,
olhando para ela. Como podia duvidar do que seus próprios olhos estavam lhe dizendo?
Apesar que minha própria mente me pregava peças o tempo todo.
Me juntei a ele e olhei dentro da caixa. Estava mesmo vazia. Não era sequer um vazio negro
como dentro da máquina. Apenas o interior de uma geladeira. Tão enferrujado quanto o exterior.
O mundo à nossa volta pareceu ficar mais escuro, mais sombrio, como se estivéssemos
sendo atraídos para aquela coisa. Eu balancei a cabeça, tentando fazer o mundo se iluminar. Era
minha mente me pregando peças de novo. Eu odiava ter tão pouco controle sobre ela.
— Uma luz apagou? — perguntou Constance, sua voz se tornando um sussurro.
Meu coração pulou na minha garganta. Então não tinha sido só eu, não era uma invenção da
minha imaginação? Era real? Olhei em volta. As luzes ainda zumbiam lá em cima. Mas ela estava
certa. Realmente parecia mais escuro na sala. Por quê? O que estava acontecendo? Senti vontade de
correr, mas me acalmei. Tinha que ter uma explicação lógica para aquilo, não havia espaço para
pânico. Ainda não.
— As sombras — sussurrou ela, apontando para a parede.
— Rapaz, que estranho — disse Brant, finalmente falando, parecendo tão confiante quanto
de costume. — O que você acha que faz uma coisa dessas acontecer?
Sombras negras pareciam escorrer pelas paredes enquanto outras se erguiam do chão para
encontrá-las. Parecíamos estar em algum tipo de centro macabro, onde todas as sombras buscavam
se encontrar.
Como Brant podia estar tão calmo?
Constance avançou um passo em direção às sombras e se abaixou para olhar mais de perto.
Isso estava errado. Muito, muito errado.
— É melhor irmos embora — disse. Podia sentir o pavor tomando meu corpo por inteiro.
— Você não quer saber o que está acontecendo? — perguntou Brant.
— Não.
Eu não queria. Queria ir embora. Todos nós tínhamos que ir embora.

79 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Não tem nada lá — disse Constance enquanto voltava para o nosso pequeno grupo,
falando baixinho, mas com urgência. Seus olhos estavam arregalados de preocupação. — Não é
nada tangível. Só uma sombra.
— Uma sombra do quê? — perguntei, observando enquanto a sombra vinha se aproximando,
notando que a sala estava ficando cada vez mais escura.
— Eu não sei — respondeu ela. Sua voz estremeceu enquanto seus olhos percorriam a sala.
Ficamos ali, congelados no lugar, não por uma força externa, mas pelo peso do nosso
próprio medo e confusão. Ou pelo menos... pelo menos foi o que aconteceu comigo. A sala ficou
cada vez mais escura.
E mais escura.
A sombra se esgueirava à nossa volta. Ela a qualquer momento nos alcançaria, se instalaria
em nós. Me senti atraído por ela, mesmo com o forte impulso de repeli-la. Precisávamos sair dali.
Precisávamos sair dali agora.
Ficamos parados.
— Quer saber — disse Brant, de repente muito mais perto de mim que um momento antes,
sua voz finalmente tingida de preocupação. — Tem razão. É melhor sairmos daqui.
Foi quando as luzes se apagaram. Não havia uma caixa de fusíveis para encontrar dessa vez.
Não havia solução razoável para a escuridão. Não havia fios para conectar. Era o tipo de escuridão
que você só vê quando fecha os olhos.
Um grito estridente. Constance.
Então eu fui atirado no chão. Meu corpo se chocou contra o concreto frio com força, mas a
dor excruciante que senti foi outra coisa. Algo tinha agarrado meu pé e estava me arrastando, uma
coisa pontiaguda estava perfurando meu tornozelo. Eu queria gritar de dor, mas minha resposta de
lutar ou fugir tomou conta e a adrenalina preencheu meu corpo. Me virei de costas e chutei com o
pé livre. Chutei diretamente o que quer que fosse. Meu pé atingiu algo sólido. Havia algo ali, algo
real, algo que não estava só na minha cabeça. Gritei alto enquanto chutava de novo com toda a
minha força. Houve um berro lancinante e sobrenatural que soou como um rugido. Chutei de novo e
de novo, meu coração pulsando alucinadamente. A coisa pontiaguda arranhou meu pé, me fazendo
gritar de dor, mas eu estava livre e me levantando aos tropeços, sendo puxado pela parte de trás da
blusa por alguém mais acima.
Eu estava de pé, meu tornozelo ardendo, e Brant disse, ofegante:
— Você está bem?
— Meninos, vamos sair daqui, agora! — gritou Constance.
Virei minha cabeça e a encontrei. Ela estava na saída, com o rosto sujo, o vestido rasgado no
ombro, e então me dei conta de que conseguia vê-la. A escuridão à sua volta estava recuando. As
sombras estavam disparando para cada vez mais fundo na sala, para onde Brant e eu estávamos,
deixando as beiras iluminadas.
Houve um estrondo repentino e eu me virei. Era difícil enxergar nas profundezas da
escuridão, mas com a pouca luz de nossa rota de fuga, vi uma sombra grande e pesada de algo que
parecia estar atacando a máquina. A sombra correu para cima ela, como um touro enfurecido, mas a
máquina era sólida e seguiu onde estava.
Um monstro. Não era uma metáfora. Um monstro de verdade. Podia sentir o gosto de bile na
minha garganta, minha cabeça queimando de medo.
— Bill! Agora!
Senti Brant puxando meu ombro, mas fui atraído pelo espetáculo à minha frente. O que era
esse monstro? Parecia alto e magro, como uma sombra viva, mas sua cabeça era enorme. Ele atacou
a máquina com garras que brilhavam sob a luz. De repente, a máquina ganhou vida, iluminando a
área ao redor com um brilho amarelo doentio.
Grandes dentes refletidos na iluminação.
Como um sonho ganhando vida.
Um pesadelo ganhando vida.
A máquina engasgou e começou a funcionar, como se fosse um outro tipo de fera. E então
vomitou por todo o chão, bem onde estávamos. Do enorme cano aberto saiu um líquido preto e
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espesso. Foi caindo aos montes, espalhando-se rapidamente por todos os cantos da sala. O demônio
rugiu outra vez.
— Bill! — desta vez era Constance e, ao ouvir sua voz tão alta e brava, fui puxado com tudo
de volta à realidade.
Eu me virei e corri em direção a ela, com Brant logo atrás.
Corremos para a saída e subimos as escadas, o som do rugido ainda ecoando em meus
ouvidos, misturado com o som do sangue bombeando na minha cabeça e do meu coração disparado.
Era uma cacofonia de barulhos. A dor no meu pé subiu pela minha perna como um raio. Ouvi outro
rugido atrás de nós e isso me fez subir os degraus de dois em dois, o suor agora escorrendo pela
minha testa. Olhei para trás e vi as sombras nos perseguindo, subindo ao longo das paredes como
trepadeiras. A gosma negra pairava na base da escada, subindo devagar. Se não fôssemos comidos
vivos por esta fera, podíamos facilmente nos afogar.
A porta secreta estava fechada no alto da escada, mas eu sabia abri-la. Havia um pequeno
botão escondido nas sombras ao canto. Eu tinha visto o Sr. Connor apertá-lo quando estávamos
saindo. Estendi minha mão trêmula e o apertei. Ouvi as engrenagens rangendo. Parecia estranho,
algo estava errado.
— Isso não está certo — disse, mais para mim que qualquer outra coisa. Fiz todo o possível
para conter meu pânico crescente e me concentrar em resolver o problema. Limpei o suor da testa.
— Tive que abrir à força para seguir vocês — disse Brant, ofegando ao meu lado. — Isso
pode ter feito alguma coisa.
Eu olhei para ele, mas só pude vê-lo vagamente na escuridão negra. Não havia tempo para
apontar o dedo, mas eu queria muito. Por que ele faria isso conosco? No que estava pensando? Me
virei de volta para o botão e tateei em volta dele. Tinha que haver algum tipo de painel.
— Está subindo — disse Constance, com um tom desesperado na voz.
— Eu sei — respondi, tentando manter a calma, mas tremendo mesmo assim.
Me ajoelhei e passei a mão pela parede até o chão, tentando sentir alguma coisa, qualquer
coisa. Tinha que ter alguma coisa... alguma coisa...
Senti meu dedo passar por um vão e eu empurrei. Um painel se deslocou sob minha mão e
eu rapidamente o removi. Meus olhos estavam se ajustando ao escuro, mas o escuro sugava cada
vez mais luz do ar. Não estava conseguindo ver. Apenas fui em frente e enfiei minha mão no
pequeno buraco no escuro. Tateei e cheguei a uma alavanca. Meu coração parou e me lembrei de
antes, uma alavanca semelhante, um jato de algo preto e molhado. Eu conseguia fazer isso, eu tinha
que fazer isso. Puxei a alavanca com força. Mais rangidos e então um estrondo.
— Está abrindo! — disse Constance.
— Deixa comigo — acrescentou Brant.
Me levantei e vi a porta aberta apenas o suficiente para um único corpo passar, Brant se
esforçando ao máximo para mantê-la aberta esse tanto.
— Constance, vá — ele ordenou, e ela olhou para nós dois antes de passar.
— Eu posso ajudar — ela disse do outro lado, suas mãos enluvadas aparecendo ao redor da
porta, puxando-a do seu lado.
— Bill, vamos — disse Brant, sua voz agora tensa com o esforço.
Eu apenas olhei para ele e então para a porta. Podia ouvir o ranger das engrenagens, até
sentir o cheiro do atrito de metal contra metal. A ideia da porta se fechando, batendo com tudo em
um corpo. Esmagando-o.
— Bill!
Quando dei por mim, estava passando pela porta. Assim como em tantos outros momentos
que me perdi em minha mente. Eu simplesmente estava lá.
— Bill!
Mas desta vez era Constance. Ela ainda estava tentando manter a porta aberta com Brant. Eu
imediatamente me juntei a ela, agarrando com força enquanto a porta resistia com tudo contra nós.
Não éramos fortes o suficiente para isso. Foi apenas graças à uma ou outra engrenagem ali que a
porta tinha se aberto aquele tanto.
— Brant, você vai ter que pular — disse Constance, a voz tensa.
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— E tem que ser agora — acrescentei. O cheiro de queimado preenchia o ar.
Brant respirou fundo e assentiu.
Senti a porta empurrando minhas mãos com força agora. Ouvi outro estrondo e, de repente,
senti um peso repugnante nas palmas das minhas mãos. Constance gritou, mas não soltou. Brant
tinha que pular agora.
E ele pulou.
Houve um barulho alto e eu instintivamente agarrei Constance e a puxei na mesma hora que
o mecanismo da porta assumiu o controle. Caímos no chão e fiquei ali por um momento, ofegante,
sentindo a dor nas palmas das mãos e no tornozelo.
— Brant!
Me sentei e virei. Vi Constance no chão, puxando Brant, caído perto da porta. Me levantei e
fui até lá aos tropeços, mas então parei diante da cena à minha frente. O torso de Brant estava preso
na porta, sua metade inferior do outro lado. A porta o estava esmagando. Se não fizéssemos alguma
coisa, se não o ajudássemos...
— Constance, pare — disse ele, ofegante.
A área onde estávamos estava bem iluminada. Poder ver assim tão claramente parecia quase
demais. Mas tornou muito mais fácil encontrar o painel oposto deste lado e pude até ver o que havia
atrás dele. Encontrei a mesma alavanca, mas estava frouxa ao toque; quando puxei, nada aconteceu.
Olhei além dela, para a escuridão da parede, e então vi um grande botão de latão com a inscrição
“Parar/Iniciar”. Apertei com todas as minhas forças.
O rangido parou. O cheiro de metal contra metal pairava no ar.
Senti meu corpo ficar mole de alívio.
— Brant, fique conosco! — exclamou Constance.
Por favor, Brant, fique conosco.

82 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Havia uma parte de mim que não conseguia
acreditar que isso estava acontecendo.
Então havia a parte de mim que estava com muita dor.
Dor.
Dor terrível e intensa.
E uma compreensão perfeitamente terrível. Olhei para as mãos de Constance em suas luvas
infantis brancas. Sentindo-a puxar meus braços, sentindo o desespero naquele momento. Não
consegui fazer contato visual.
— Brant!
Não conseguia pensar para descrever a sensação. O aperto no meu torso, me esmagando e
me tirando todo o ar. A sensação de que a qualquer momento podia estourar como um balão. E a
dor aguda no meio do meu corpo.
Mas então tinha minhas pernas, o molhado que aumentava cada vez mais, tocando meus
tornozelos, como se eu estivesse deslizando lentamente para dentro do oceano. Estava tão frio,
estranhamente frio. Não devia estar tão frio. Eu não entendia. Até que, de repente, entendi. A gosma
negra. Ainda estava subindo do porão. Ainda fazendo sua jornada lenta, mas constante. À medida
que subia por minhas pernas, a senti apertar em torno delas e começar a me puxar de volta. De volta
para a escuridão e para aquela coisa. Constance puxava meus braços; o líquido preto e pegajoso
puxava minhas pernas.
Eles vão me partir em dois.
— Pare. — Mas a palavra mal deixou minha boca.
Foi culpa minha.
Foi minha ideia abrir aquela geladeira. Foi minha ideia seguir o Bill até ali. Foi minha ideia
escrever uma história sobre ele para começo de conversa. Foi tudo culpa minha.
É meio engraçado, mas não de verdade.
Isso tudo é demais. Está na hora de ceder. De parar de lutar.
Eu me senti bem com essa decisão. Me senti tonto, como se estivesse bêbado e
perfeitamente bem com essa decisão. Agora eu consegui fazer contato visual.
Nós fizemos. Ela estava olhando para mim com os olhos arregalados, lágrimas escorrendo
pelo rosto. Provavelmente nunca tinha visto a morte antes, ou se viu, nunca a segurou pela mão.
Eu sorri. Queria que ela soubesse que eu estava bem.
Está tudo bem.
Meu único arrependimento era nunca ter escrito nada disso. Nada. Nenhuma anotação, só
guardei tudo na minha cabeça, como sempre fazia.
— Brant! Fique conosco!
Por que eu nunca escrevi nada disso?
Eu devia ter escrito.

83 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Brant ficou mole. Rapidamente comecei a
procurar sua pulsação no pulso, meus olhos cheios de lágrimas. Sabia que isso era algo que se podia
fazer. Tinha lido no meu velho livro de ciências. Esteja vivo, Brant, por favor, esteja vivo. Você
tem que estar vivo. Sua pele estava escorregadia de suor quando tateei seu pulso. Lá estava ela, bem
fraca, mas estava lá. Senti um alívio e, em seguida, uma sensação instantânea de urgência.
— Vamos, Bill, temos que puxar — disse, mantendo toda a minha atenção no corpo flácido
de Brant.
— Não podemos fazer nada por ele aqui. Ele está preso. Mesmo que tivéssemos força o
suficiente, partiríamos ele em dois, não tem como tirá-lo em segurança — respondeu ele.
— Então abra a porta, faça funcionar, faça a porta funcionar. — É nisso que você é bom,
Bill, em fazer funcionar. Eu estava desesperada, mas também estava certa. Eu tinha que estar certa.
— Eu não consigo — disse ele, a voz baixa.
— Então vá buscar ajuda. — Eu finalmente me virei para olhar para ele sentado do outro
lado da escada, e ele me encarou com uma expressão que eu não entendi. Parecia quase em transe,
mas não era isso. Só estava com medo.
— Não podemos — disse.
— Claro que você pode! — Aquilo era ridículo!
Bill abaixou o olhar e fechou os olhos, depois os abriu novamente.
— Isso é culpa nossa. Não vê? Tem algo secreto lá embaixo, algo sobre o que nós nunca
devíamos ter ficado sabendo.
— Não importa, podemos lidar com isso depois. Só chama alguém, qualquer um.
Me virei de volta para Brant. Não conseguia soltar suas mãos.
Esse não podia ser o fim, podia? Não era o fim. Um dia não podia começar tão lindo e
simples e terminar assim. Simplesmente não podia.
Senti quando Bill se moveu e levantou. Ele estava parado ao meu lado. Estava usando uma
tática diferente, imaginei. Isso me deixou furiosa.
— Constance, temos que ir embora. Você tem que deixá-lo. Ele não ia querer você assim.
Não ia querer que você tivesse que carregar o fardo de seus erros.
— Eu não sei o que ele ia querer. Nós mal nos conhecíamos. — Olhei para o corpo do
jovem na minha frente, mole no chão. Ele ainda estava aqui, ainda podia ser salvo.
— Bem, eu o conhecia e você tem que acreditar em mim.
Olhei para ele outra vez. Nunca tinha visto o Bill assim, todo desgrenhado, o rosto vermelho
e manchado, o cabelo desajeitado. Ele estava apavorado. Eu também estava. Claro que estava. Mas
não podia simplesmente abandonar o Brant. Não podia. Mesmo que ele preferisse assim. As pessoas
nem sempre tomam as decisões certas para si ou para os outros. A vida dele valia esse risco.
Me virei para Brant. Precisava de um sinal me dizendo o que fazer. Deixo ele ou não deixo?
Eu poderia mesmo deixá-lo? Eu conseguiria deixá-lo?

84 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Foi quando que notei o líquido preto como tinta se espalhando ao longo de seu torso. A
gosma. Do andar de baixo. Ela havia chegado até nós. Até ele. Inalei o ar bruscamente.
Algo então me veio à cabeça. Eu ainda não tinha chegado a dar uma boa olhada naquela
substância. Estava horrorizada, mas fascinada. Me aproximei para observá-la com atenção. Era bem
espessa, parecia pegajosa e se estendia pelo corpo de Brant em ramificações, avançando enquanto
abria caminho como dedos abertos com garras. Eu não entendia que tipo de líquido podia funcionar
daquele jeito, sem escorrer em um fluxo contínuo; em vez disso, tinha beiras e pontas afiadas.
— Constance, temos que ir agora. — Bill pôs sua mão na minha, tentando tirar meus dedos
dos de Brant à força.
— O que é isso? — perguntei. Me inclinei ainda mais sobre o corpo de Brant. A gosma
estava na altura de seus ombros agora, envolvendo seu torso em um negrume espesso, pingando no
chão sob ele.
— É aquela coisa preta, lá de baixo — respondeu Bill, puxando minha mão com mais força.
Ele não estava mais sugerindo que eu o deixasse, estava basicamente me forçando. Eu não gostei
disso. Não gostei nada disso.
— Eu sei — esbravejei. Ele recuou enquanto eu o encarava e tirou sua mão da minha. Nunca
tinha sido tão ríspida assim antes. Me acalmei para explicar. — Mas do que é feita? Por que está se
comportando assim?
— Constance, não é hora para uma análise.
Ele não estava errado. Mas eu simplesmente não conseguia ignorar o Brant. Ou essa minha
necessidade de saber. Tudo isso. Algo dentro de mim estava se contorcendo de uma forma que eu
não entendia. Fiquei olhando enquanto a tinta subia pelo pescoço de Brant em direção à sua cabeça.
— Bill, essa coisa vai afogá-lo. Temos que tirá-lo daqui agora! — Puxei com toda a força
agora, mas foi estupidamente inútil. Observei horrorizada enquanto a gosma escura escorria e abria
caminho com suas garras pelo lado de sua cabeça. Enquanto se infiltrava em seu ouvido, enquanto
se espalhava sobre seus olhos fechados, seu nariz, sua boca entreaberta, até que seu rosto
desapareceu e restou apenas uma sombra negra como tinta. E ainda assim, a tinta desafiou todo
comportamento razoável e serpenteou ao longo de seus braços, puxando-os enquanto se movia em
direção a suas mãos, minhas mãos. Me senti doente. Estava além do medo agora, estava em outro
lugar. Em um lugar que esvaziou meu corpo, fez minha pele parecer papel, meus olhos afundaram
em meu crânio. Me senti consciente de mim mesma, como um recipiente que armazenava sangue e
ossos. Não me sentia humana. Olhei para minhas mãos segurando as mãos de Brant. Elas estavam
lá. Eram reais. Eu era real. Eu existia.
E então Bill estava me puxando pelos ombros. Eu olhei para ele. Seus modos e aquele seu
cavalheirismo exagerado tinham sido deixados de lado para me fazer soltar. Havia algo nisso que eu
gostava. Aquela fachada nunca me pareceu sincera. Ele vivia de aparência, não de essência.
Olha só, rimou.
Ri comigo mesma. Estava me sentindo como se tivesse exagerado um pouco nas taças de
champanhe, uma estranha sensação de tontura. Foi quando as mãos de Brant apertaram as minhas e
eu estremeci, chocada com o movimento repentino. Ele estava acordado?
Abaixei o olhar para as minhas mãos. O líquido preto como tinta estava subindo por elas.
Notei que não era Brant as apertando, era aquela substância estranha. Estava comprimindo o meu
punho, beliscando minhas mãos dentro das luvas. Pela primeira vez, me senti tomada pela urgência
de soltá-lo. Comecei a me afastar, para tirar minhas mãos das de Brant. Mas elas estavam grudadas,
fundidas como metal derretido.
— Não posso soltar — disse. Bill ainda me segurava pelos ombros.
— Você precisa — respondeu ele.
— Não, quero dizer que estou presa. Estou presa nele. — Puxei com mais força, o pânico
aumentando enquanto a gosma preta passava por entre meus dedos e subia pela minha mão. Estava
puxando com tanta força agora que balançava meus braços e também os de Brant, como se estivesse
manipulando uma marionete demoníaca.
— Deixe-me puxar os dedos dele — disse Bill, vindo para o lado de nossos braços.
— Não! — disse isso com tanta força que fiquei surpresa.
85 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— O quê?
— Não, se você tocar na substância, se você tocar nela... — Eu não sabia qual era o resto da
frase, mas sabia que estava certa. Pensei no Bill e nas manchas pretas em seu rosto, na sua estranha
atração pela máquina. Em tudo isso. — Não, deixe que eu faço isso. São as luvas. Se eu puder só...
A gosma tornava difícil relaxar meus dedos nas mãos de Brant, mas consegui mexê-los um
pouco. A substância negra subiu até o meu pulso, em direção à borda das minhas luvas.
— Como posso ajudar? — perguntou Bill.
— Não sei.
Ele passou por cima de mim e segurou meus dois antebraços, pegando-os gentilmente com
as mãos, e começou a puxar, não com força, não para doer, mas para ajudar, acredito. Eu não tinha
certeza se isso realmente ajudava muito, mas deixei.
Senti as luvas escorregarem pelos meus dedos, prendendo na ponta. O topo das minhas mãos
estava livre, mas a tinta rapidamente as agarrou. Puxei com toda a força agora, sem me importar se
acabaria rasgando minha própria pele. Eu estava completamente fora de mim.
— Puxa! — mandei. Bill puxou levemente meus antebraços, seus dedos roçando minha pele
como se estivesse acariciando um gato arisco. A raiva estava crescendo dentro de mim. Por que ele
era tão completamente inútil? — Puxa, droga! — gritei. Minha voz soou brusca, mas eu até que
gostei. Senti a raiva em meu peito enquanto também puxava.
Bill claramente me levou a sério e enfim agarrou meus braços com força, quase a ponto de
cortar minha circulação, e puxou. Sincronizamos nossas ações e puxamos, de novo e de novo. As
pontas dos meus dedos arderam quando as luvas descolaram da minha pele.
Então, com grande impulso e em completo choque, voamos para trás, meus dedos livres das
luvas. No mesmo instante, a gosma preta explodiu e levantei os braços instintivamente para
proteger o rosto. Gotas choviam por toda parte e, quando finalmente houve silêncio, ergui o olhar
para ver o que tinha acontecido.
Diante de mim, onde antes estava o corpo de Brant, coberto de preto, uma poça viscosa se
espalhava pelo chão. Não havia sinal de Brant, sua forma, sua presença, nada. Apenas uma poça
que parecia vir em direção a mim e Bill até que de repente a pesada porta de metal se fechou.
Eu gritei e levantei os braços mais uma vez. Então, quando percebi o que havia acontecido,
os abaixei e olhei para a pequena poça de tinta diante de nós. Ela começou a recuar, em direção à
porta de metal fechada, se esgueirando para longe de nós, deslizando pelas frestas.
Então sumiu.
Ele sumiu.
Brant sumiu.
— Você está bem? — perguntou Bill.
Que pergunta era essa? Claro que eu não estava bem. Mas eu sabia que ele estava querendo
dizer fisicamente. Acredito que, fora o ardor nos dedos, eu estava.
— Sim. — Ergui minhas mãos e olhei para elas. As pontas dos dedos estavam vermelhas e
esfoladas, e havia preto em meus pulsos onde a tinta vazara sob a borda das luvas. Notei então o
preto nas minhas mangas e olhei para a minha saia. Mais gotas pretas da explosão. Me virei e olhei
para Bill. Ele tinha mais manchas pretas no rosto e algumas agora no cabelo. — E você?
— Estou bem. — Ele não parecia bem. — Vem, vamos sair daqui.
Ele estava certo. Já estava na hora. A ideia de simplesmente ir embora parecia esmagadora,
mas era a única coisa a fazer. Estávamos embolados um no outro, então levou um momento para
que conseguíssemos nos ajudar a ficar de pé. Olhei para Bill. A tinta estava toda salpicada em seu
corpo, da cabeça aos pés, e presumi que eu devia estar igual. Ele olhou para si mesmo.
— Bom, meu pai vai me matar.
A raiva cresceu dentro de mim outra vez, como uma súbita explosão de luz na escuridão.
— Pelo menos isso é só uma metáfora. Pelo menos você não é o Brant.
Bill então olhou para mim. Havia um olhar de traição em seus olhos e eu imediatamente me
senti culpada.
— Desculpa — disse baixinho, abaixando o olhar. — Só estou chateada.

86 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Eu também — ele respondeu, também em voz baixa. Ficamos ali em silêncio e então,
sem que tempo suficiente tivesse se passado, ele disse: — Temos que sair daqui.
Ele estava certo, eu sabia que estava certo. Brant tinha acabado de virar uma gosma preta e
explodir, e aqui estávamos nós, as únicas duas pessoas na cena. Seríamos culpados por tudo.
Apesar que... não foi de certa forma culpa nossa? Não devíamos ser culpados por isso?
Olhei para a pequena mancha preta no chão e minha mente simplesmente não conseguia
aceitar totalmente a ideia de que Brant havia desaparecido daquele jeito. Que estava lá e agora não
estava mais. Eu queria chorar, mas era tudo inacreditável demais.
Tudo que eu sentia era culpa. E uma brasa ardente de raiva.
— Vamos. — Me abaixei e peguei minhas luvas com cuidado, segurando-as pela parte de
dentro. Estavam revestidas de preto, mas eu não podia simplesmente deixá-las lá. Eram provas.
Provas.
De um crime.
O que nós tínhamos feito?

87 | B e n d y : O s P e r d i d o s
A casa parecia morta. Não que isso deves-
se ser uma surpresa. Afinal, casas eram feitas com materiais essencialmente mortos: árvores mortas,
terra seca, água lamacenta. E eram construídas em terra morta, matando tudo que houvesse embaixo,
destruição proposital, a remoção da vida. Desenterrando raízes. Jogando fora montanhas de grama.
Mas um lar, um lar tinha alma. Uma lareira. Calor e risadas. Lares tinham personalidades
que você podia sentir assim que entrava.
Mas a minha casa parecia morta.
Talvez sempre tivesse me parecido morta. Nunca houve amor entre mim e esta construção,
isso era certo. Mas quando entrei no vestíbulo e fechei a porta silenciosamente atrás de mim, senti
uma sensação de frio e vazio. Como se tivesse entrado em um mausoléu.
Então eu estava no meu quarto. O tempo tinha passado de novo e eu estava parado ali, na
frente das minhas gavetas, minhas roupas manchadas de tinta amontoadas no chão ao meu lado. Me
sentia entorpecido e um pouco idiota. Como se qualquer pensamento que eu buscasse esclarecer
fosse incapaz de penetrar na minha cabeça dura.
O termo “fadiga de combate” rondou minha cabeça por um momento. Meu pai tinha falado a
respeito. Não sobre si mesmo, claro. Ele nunca serviu. Não fazia ideia de como tinha conseguido se
livrar do alistamento, mas ele tinha. Se livrou tão facilmente quanto como de qualquer pergunta
sobre como tinha se livrado. Mas ele ainda falava da guerra como se tivesse vivido a experiência em
primeira mão. Tanto que talvez alguns acreditassem que tinha. Talvez ele agora também acreditasse
que tinha. Dizer algo repetidas vezes pode fazer você acreditar naquilo.
O Brant não está morto.
O Brant não está morto.
O Brant não está morto.
Meu pai dizia que o termo “fadiga de combate” era uma desculpa esfarrapada, inventada por
gente que não tinha fibra. Isso não podia ser verdade. Não depois da guerra.
Eu me encontrei no chão, enrolado em posição fetal, sem nada para me segurar em pé. Nada
capaz de me segurar em pé. Sem ossos. Sem músculos. Sem força de vontade. Senti um vazio, um
vazio severo. Oco. Como uma casca. Senti a falta de algo superava qualquer outro sentimento. Senti
como se eu estivesse do avesso.
Senti.
Senti.
Brant tinha acabado de estourar como uma bolha. Num momento ele estava lá e no seguinte
era uma poça.
Senti.
Esse medo corrosivo começou a encher os bolsões vazios dentro de mim. Ele dominou tudo,
me inundando como aquela gosma preta e pegajosa envolvendo o Brant. Não havia como escapar.
Fechei os olhos e tudo o que vi foi o corpo do Brant explodindo. Eu os abri e tudo o que vi foram

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quatro cantos de um quanto que não podia me proteger. Nada podia me proteger. Eu precisava
fugir; precisava de uma saída.
Eu estava de pé, minha coluna funcionando de novo, pelo que parecia. E então eu estava no
escritório do meu pai, no seu bar cheio de garrafas de cristal que brilhavam à luz de algo em algum
lugar lá fora. Os homens se embriagavam até a morte, costumam dizer. Eu nunca tinha visto isso.
Mas eu não precisava da morte, só precisava de uma morte falsa agora. Já tinha visto meu pai
dormindo no sofá da sala de estar com o rosto para baixo em uma poça da própria baba vezes o
suficiente para saber como o álcool podia simular uma morte falsa.
Eu precisava apagar. Eu precisava forçar minha mente a saltar no tempo. Por que ela sempre
saltava e caía nos piores momentos, quando meu cérebro fervia de fúria, quando meus sentimentos
gritavam de agonia? Por que eu não podia pular essas partes?
Peguei uma garrafa de uísque, o recipiente de cristal pesado na minha mão. Como isso
funcionava? Era só beber tudo? Como a poção de Alice? Ela me tornaria pequeno, muito pequeno,
menor que as partículas de poeira no ar? Eu desapareceria?
Brant explodindo em uma poça de gosma.
— Sr. Chambers?
Me virei. Anna, a governanta, estava em seu roupão de banho, sua longa trança sobre um
dos ombros. Ela me encarou e por um momento eu estava no lugar dela. Olhando para uma criança
pálida de cueca segurando uma grande garrafa de uísque na mão como se fosse uma caixa de leite.
— Estou bem, Anna. Volte a dormir — disse.
Ela continuou me encarando. Minhas palavras não correspondiam a nada do que acontecia
naquela sala no momento. Por que ela confiaria nelas? Mas ela lentamente se virou e fez o que lhe
pedi. Sentia falta da Sra. Walker. Ela teria insistido no assunto. Teria pegado a garrafa e me levado
escada acima. Me faria vestir o pijama. Me mandaria dormir. A melhor governanta do mundo. A
melhor mãe que um menino poderia ter se não tivesse mãe.
Larguei a garrafa. Isso era um absurdo. Eu nem gostava de beber para começo de conversa.
Havia um jeito muito mais simples, me dei conta. De saltar no tempo. Cair inconsciente.
Atravessei o escritório até a parede e bati com a cabeça nela.
A dor explodiu por todo o meu corpo, estrelas brilharam na minha visão, mas eu ainda
estava consciente para sentir isso.
Droga.
Então bati com a cabeça na parede de novo.
Não me lembro de nada depois disso.

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Quando eu era criança, nosso vizinho tinha
uma pequena terrier preta e branca chamada Mancha. Ela latia muito e corria para dentro do nosso
apartamento sempre que mamãe deixava a porta aberta sem querer.
“Sai, Mancha maldita!”, ela dizia com um sorriso no rosto, e foi só quando fiquei mais velha
e nós três estávamos sentadas na cama de mamãe enquanto ela lia sua obra completa de William
Shakespeare que descobri que era uma fala muito famosa de uma peça também muito famosa. A
personagem em questão era louca e via manchas de sangue onde não havia nenhuma. Ela tentava
lavá-las furiosamente, fazê-las sumir. Mas não conseguia.
O que não te dizem é que sangue é muito mais fácil de sair do que tinta.
Tentei imaginar a cadelinha Mancha enquanto lavava meu vestido na banheira. Estava ali
sentada sobre os meus joelhos, de camisola, esfregando furiosamente. Tentei imaginar a cadelinha
Mancha na porta, dizendo a ela para sair, agora, por favor, sai. Malandrinha. Mas minha imaginação
não era forte o suficiente. Minhas mãos ainda estavam manchadas de preto e meus esforços para
lavar meu vestido estavam sendo em vão.
Eu esfregava e esfregava, e quanto mais tentava, com mais raiva ia ficando. O sentimento
simplesmente não passava, a culpa ainda estava lá, ah, como estava, mas estava mantendo o portão
aberto agora, se divertindo enquanto via o fluxo de raiva me invadir e dominar. Nunca tinha sentido
nada assim antes, e não consegui nem parar para me dar conta. Isso é, até que o vestido rasgou em
minhas mãos, nem sequer na costura, mas na saia. Um buraco gigante e desfiado olhando para mim.
Me inclinei sobre meus calcanhares e, com as costas molhadas da mão, tirei o cabelo que
tinha caído no meu rosto. Foi quando percebi minha respiração acelerando para acompanhar o meu
ritmo. Como se eu tivesse corrido uma corrida.
Eu tinha corrido? Tinha ido para casa correndo?
Ou era só a tinta no meu vestido e a minha loucura tentando limpá-lo?
— Acho que eu vim pra casa correndo — disse em voz alta.
Minha voz soou fina e muito baixa, mesmo para mim. Isso fez com que a raiva em meu
estômago borbulhasse de novo.
— Não! — eu disse a ela. Mais alto desta vez. Senti uma estranha euforia ao ouvir minha
voz ecoando no nosso banheiro pequeno. Sorri comigo mesma e então olhei para o vestido. Estava
arruinado agora. Mamãe ficaria zangada.
Mas como estava arruinado...
Tirei o tecido molhado da banheira e arrastei o vestido do banheiro para o meu quarto. Eu
sabia em algum lugar dentro de mim que a água estava formando uma trilha atrás de mim, mas senti
como se estivesse andando em um sonho.
Me sentei na minha cadeirinha e coloquei a massa molhada do vestido em cima da mesa. Ele
tombou sobre ela como um grande peixe morto. Procurei rapidamente para ver se achava algo para
cortar o material, se o kit de costura estava no meu quarto... mas então me dei conta, quem é que
precisa de uma tesoura?
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Agarrei o tecido e puxei, o som do rasgo mais pronunciado agora que não estava debaixo
d’água. Foi tão satisfatório. Puxei as bordas desfiadas, os músculos em meus braços e pescoço
tensos e engajados. Quando o pedaço de tecido se soltou do resto do vestido, senti a mesma
sensação de euforia e sorri. Minha raiva estava quase se tornando alegria.
Me levantei e então me ajoelhei, estendendo a mão debaixo da cama. Tateei até encostar na
borda da caixa do meu conjunto de química e meus dedos a agarraram. Puxei-o de lá e fiquei ali
sentada, admirando-o por um momento, acariciando suavemente a parte da frente. Era um objeto
tão bonito. Abri. Ele se desdobrou no meu colo, três seções separadas com garrafas bem presas ao
papelão. Tudo parecia tão perfeito; não queria nem usar.
Mas é claro que eu queria usar.
Tirei o conta-gotas de seu pequeno suporte e peguei o pequeno frasco de alvejante. Seria ali
que eu começaria, no lugar óbvio. Eu rapidamente enchi o conta-gotas.
Segurei-o cuidadosamente logo acima da tinta. Minha mão estava tremendo um pouco e
estendi a outra para ajeitar meus óculos de laboratório, para ter certeza de que estavam bem firmes
ao redor dos olhos. Eu não sabia que tipo de reação essa substância estranha podia produzir, sequer
se era um gás nocivo. Com aquilo em mente...
Prendi a respiração enquanto apertava o conta-gotas. Uma única gota caiu na superfície do
tecido, na tinta. Mas a tinta não se misturou ou evaporou ou fez qualquer coisa que eu pudesse ter
previsto. Em vez disso, ela se afastou da gota por um momento e deu a volta nela, circulando-a. Me
inclinei mais perto, ainda sem respirar. A gota era bem pequena, mas minha visão era aguçada. A
tinta estava... estava subindo pelas laterais da pequena gota?
Toquei a gota com o conta-gotas para estourá-la. Ela não se espalhou como uma bolha, mas
correu para lá e para cá como se estivesse tentando fugir. Fugir da tinta de todos os lados.
O corpo negro de Brant explodiu em minha mente.
Me sentei direito. Tirei os óculos de laboratório e senti minha garganta apertar. Olhei para
minhas mãos, ainda manchadas.

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Acordei na cama, de pijama, com um raio
de sol bem no meu rosto. Apertei os olhos e senti meu corpo inteiro dolorido. Meu tornozelo ardia
de dor, me lembrando do dano que havia sofrido por meio de um latejar constante em sintonia com
as batidas do meu coração. Tentei me erguer.
O que tinha acontecido? O tempo tinha me fugido de novo? Estendi a mão para passar meus
dedos pelo cabelo e senti um tecido na testa. Eu o toquei e estremeci. Um curativo na cabeça. Será
que eu tinha caído em algum momento?
Houve uma leve batida na minha porta.
— Sim? — disse em voz alta, ainda zonzo e desorientado.
— Senhor, há uma jovem para vê-lo. Tentei mandá-la embora, mas ela é bastante insistente.
— Sim, por favor, mande-a embora. Obrigado, Anna — disse, recostando-me na cabeceira
da cama. Mas então: — Espere. Qual o nome dela?
— É uma Srta. Constance Gray.
Tudo então me veio à tona numa enxurrada tão avassaladora que me virei depressa para o
lado da cama, me curvei e vomitei. Olhei para a poça de vômito e me lembrei da poça negra da
noite anterior, os restos de Brant agora um nada escuro como tinta. Caí de costas na cama com
gosto de enjoo na boca e minha cabeça latejando de dor.
— Sr. Chambers?
— Diga a ela... diga a ela que vou descer num momento. Preciso me ajeitar.
— Sim, senhor.
O que ela estava fazendo aqui? Como tinha me encontrado? Senti o medo tomar conta de
mim novamente e me lembrei daquela necessidade aguda de fugir. Fugir de tudo. Me lembrei do
escritório de meu pai. As garrafas de cristal. A parede. Toquei minha testa de leve. Que coisa louca
de se fazer. Mas tinha funcionado. Um sono sem sonhos, que passou quase rápido demais. Uma
noite não tinha sido suficiente. Eu precisava dormir por dias. Meses.
Constance. A Constance que tinha segurado Brant pela mão. Que também testemunhou sua
explosão. Ela estava lá embaixo, provavelmente buscando consolo e conforto depois de tudo o que
passamos. Isso não acalmou meu medo, mas me motivou a jogar as cobertas para fora da cama de
uma só vez e finalmente me levantar.
Na poça do meu próprio vômito.
Maravilha.

— Constance! — disse um pouco alto demais quando entrei na sala de estar. Em parte
estava tentando esconder meu desconforto, em parte era a descoberta de que ela não estava sozinha.
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Meu pai, de todas as pessoas, estava lhe fazendo companhia, sentado em sua grande poltrona
vermelho escura enquanto ela bebia com muita delicadeza um copo d’água no sofá perto da janela.
— O que aconteceu com a sua cabeça? — ele imediatamente perguntou.
Bem, isso respondia essa pergunta. Minha enfermeira misteriosa então tinha que ter sido a
Anna. Por que teria sido meu pai, afinal? Pensei comigo mesmo, me sentindo um pouco idiota por
sequer ter considerado isso.
— Estou bem — respondi enquanto Constance se levantava e eu pegava sua mão. —
Constance, como é bom vê-la.
Ela assentiu.
— Digo o mesmo.
Por tudo o que tínhamos passado na noite anterior, ela parecia até que bastante, bem,
normal, por falta de uma palavra melhor. Seu cabelo estava perfeitamente cacheado, sua jaqueta e
vestido, simples, mas arrumados e limpos. Nem um traço de tinta em qualquer lugar em sua pessoa.
— Pai, será que poderíamos ter um pouco de privacidade? — perguntei, sem ter certeza de
que ele nos daria.
Ele ficou ali sentado por um momento e então finalmente se levantou.
— É claro. É um prazer vê-la novamente, Srta. Gray. — Ele se virou para mim ao passar e
disse, em uma voz longe de baixa: — Ela é adorável e muito bonita. Divirta-se com ela, mas ela não
é a pessoa certa.
Eu quis fugir, que coisa para dizer.
— Isso foi incrivelmente rude da sua parte — disse Constance.
Olhei para meu pai, cujo rosto ficara vermelho. Me virei então para olhar para Constance,
que havia colocado a mão sobre a boca, os olhos arregalados de choque.
— Sinto muito, senhor — disse ela.
— Quem você pensa que é? — perguntou meu pai.
Me senti enraizado no lugar, incapaz de pensar ou fazer qualquer coisa.
— Eu sinto muito — ela disse novamente.
— Saia da minha casa! — ele ordenou, apontando duramente para a porta da frente.
Constance assentiu e se levantou imediatamente, mantendo os olhos baixos enquanto passava por
mim e meu pai. — Eu sei das suas irmãs, garota. Eu as vi na cidade com um pretendente diferente
todas as noites. Você é como elas, não é, tentando fisgar um homem rico para se casar?
Constance não disse nada, mas vi sua mão tremendo quando ela a estendeu até a maçaneta.
— E aí tem você, na plataforma de mergulho, em um traje de banho na frente de centenas,
sem qualquer modéstia. Sem qualquer vergonha.
Ela se virou e encarou meu pai.
— E como chamamos o homem que a contratou?
Ela se virou, abriu a porta e saiu de casa.
— Se eu a vir em minha casa novamente...! — meu pai gritou para ela pela porta aberta,
depois a fechou atrás de si. Sua raiva era absoluta, mas havia algo nela que parecia fraco. Pequeno.
Especialmente em comparação com a de Constance. A raiva dela tinha um poder estranho por trás
que eu nunca tinha visto antes.
Enquanto isso, tudo o que eu sentia era uma grande vergonha; estava com vergonha mais do
que suficiente para todos na sala. Na rua inteira. Fiquei olhando para a formidável porta à minha
frente enquanto ouvia meu pai irromper em seu escritório.
E então descobri que podia me mover de novo. Foi a minha vez de escancarar a porta.
— Constance! — Corri pela calçada e me virei para alcançá-la mais abaixo na rua. Ela era
rápida. Estendi a mão para segurar seu ombro, mas ela parou e se virou. Seu rosto estava vermelho.
— Como ele ousa?! Eu salvei ele e aquele seu filmeco. Como ele ousa falar assim de uma
pessoa? Qualquer pessoa! — Ela tentou passar por mim e voltar para a casa, mas eu bloqueei a
passagem. Agora eu não estava mais com medo por mim, mas por ela.
— Ele estava errado. Tudo o que ele disse estava errado e você estava certa. Mas você não
pode enfrentá-lo. Você não entende quão perigoso ele pode ser.
Seus olhos eram selvagens. Ela andava na minha frente como um animal enjaulado.
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— Depois de tudo que passamos, não tenho mais medo de homens como ele — disse ela.
Eu não sabia o que dizer em resposta, mas sabia que precisávamos conversar. Precisávamos
conversar sobre tudo.
— Vem comigo — disse. — Tem um pequeno parque na esquina onde podemos conversar.
Ela olhou para mim, ainda furiosa, mas então, finalmente, assentiu.
Levei-a pela rua e viramos a esquina até o parque. Era um espaço tão pequeno, na verdade
só um lote de terra, insuficiente até para uma casa neste bairro. Mas tinha um belo carvalho e um
belo banquinho pintado de branco embaixo dele. Parecia tudo um pouco desolado naquela época do
ano, mas era um lugar bom o suficiente para discutir monstros no escuro.
— Como você está? — perguntei quando nos sentamos.
— Estou bem — respondeu ela, abaixando o olhar enquanto brincava com um fio solto em
seu casaco.
— Não, não assim. Como você está? — Ela não disse nada. Notei então que precisava
assumir a liderança. Por algum motivo, senti que podia compartilhar as coisas com ela. Assim como
tinha compartilhado sobre a máquina para começo de conversa. Eu ainda confiava nela dessa forma.
— Eu não estou bem — admiti. — Estou com medo. Com muito, muito medo. Eu não entendo o
que aconteceu. É como se fosse um pesadelo.
— Mas não foi — disse ela calmamente.
— Não.
Ficamos sentados ali por um momento enquanto uma brisa fria soprava pelo carvalho, seus
galhos estalando ao vento, as pontas se abrindo como dedos que tentavam alcançar algo intangível.
— Você está triste? — perguntou Constance então.
— Triste?
— Pelo Brant. Eu... acho que me sinto triste com isso. Mas sinto principalmente muita raiva.
Eu também não o conhecia muito bem, então será que é por isso? — Ela parou e fechou os olhos.
Então os abriu e olhou para mim. Eram tão azuis. Não conseguia encontrar nenhuma comparação
para descrever quão azuis eles eram. Eram muito, muito azuis. — Acho que sou uma pessoa ruim.
— Você não é — disse, segurando instintivamente as mãos dela. Ela deixou.
— Precisamos contar a alguém — disse ela. — Talvez para um daqueles sujeitos da Gent?
Eles precisam saber que tem uma coisa lá embaixo, precisam saber sobre a tinta...
Balancei a cabeça. Senti o medo subindo em minha garganta outra vez.
— De jeito nenhum.
— Bill!
— De jeito nenhum, Constance! Fosse aquilo o que fosse, a Gent sabe. Caso contrário, por
que estaria trancado? E a tinta? Ela veio de dentro da máquina deles. A Gent sabe de tudo.
— Então temos que detê-los! Temos antes que alguém...
Balancei a cabeça de novo. Ela não entendia que não era assim que funcionava? Ela não
tinha vivido no meu mundo. Qualquer empresa que pudesse pagar por uma máquina daquelas, que
pudesse escondê-la, que tivesse segredos tão grandes e tão obscuros, eles também deviam ser
protegidos por algo enorme.
— É muito perigoso — disse.
Ela riu diante dessas palavras.
— Mais perigoso que ontem à noite? Eu quero fazer isso, Bill. Eu tenho que fazer isso...
— E não importa o que eu quero? — perguntei a ela.
— O que você quer, Bill? — Ela estava olhando para mim agora com aquela ferocidade de
antes. Foi algo que achei tão atraente nela ontem. Mas agora estava vendo o lado negro daquilo. O
lado que falava de comportamento imprevisível. Eu não conseguiria lidar com isso.
— Eu quero esquecer tudo o que aconteceu. Quero só seguir em frente e concordar que
levaremos esse segredo conosco para o túmulo.
Constance olhou para mim por um momento. Não sabia dizer no que estava pensando, mas
era evidente que havia um redemoinho girando dentro dela.
— Eu entendo, Bill — disse ela, surpreendentemente calma, terminando o longo silêncio. —
Vamos seguir em frente. Não podemos deixar que uma noite nos consuma para sempre.
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Ela então ficou quieta, imóvel. Eu apertei sua mão. Ela não apertou de volta. Em vez disso,
ela soltou e suspirou suavemente. Observei enquanto se levantava devagar, alisando a frente do
casaco e estendendo a mão para trás para ter certeza de que estava ajustado nas costas. Tudo isso
pareceu inconsciente, um hábito, as pequenas coisas que fazemos todos os dias.
— É melhor eu ir.
E ela partiu sem se despedir ou sequer se virar para olhar para mim. Observei enquanto se
afastava, não mais um redemoinho de fúria. Mas outra coisa. Algo que me preocupava ainda mais.
Algo mais contido e focado. Como uma bala.
O medo voltou.
Não havia como ela seguir em frente.
Tinha sido uma mentira. Para me fazer sentir melhor, acredito. Mas ainda era uma mentira.
E eu não tinha ideia do que ela faria a seguir.

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— Você não está comendo — disse Andrew,
apontando o óbvio. Ele sempre fazia isso. “Você esqueceu seu chapéu”, “o céu está muito azul
hoje.” Era doce, mas também incrivelmente monótono. Era bom que ele se preocupasse comigo, eu
acho, mas não deixava de ser engraçado. Minha falta de fome em um chá da tarde não estava no
topo da minha lista de preocupações.
— O que você sabe sobre monstros? — perguntei, pegando um sanduíche da travessa de três
andares entre nós e colocando-o no meu pratinho com flores curvas pintadas nas bordas.
Andrew riu um pouco.
— Monstros? Como em monstros de contos de fadas? Ogros, duendes, esse tipo de criatura?
Balancei a cabeça. Não era disso que eu estava falando. Mas eu também não sabia do que
exatamente estava falando.
— Não, quero dizer na vida real.
— Monstros metafóricos então? Como assassinos? Como os nazistas durante a guerra? —
Ele tomou um gole de chá e me fitou com um olhar divertido por cima da xícara.
— Não, também não. — Estava ficando frustrada. Não havia por que ficar tão aborrecida
com ele. Ele não entendei. Ele nunca entenderia. Assim como Bill não entendia. Como ninguém
jamais entenderia.
— Nossa, você está parecendo tão séria. Você está bem? — perguntou Andrew, largando a
xícara e estendendo a mão sobre a mesa para segurar a minha. Eu a dei para que ele segurasse. —
Sem luvas? — perguntou.
Meu estômago se apertou.
— Isso é um problema?
— Não! Eu amo poder segurar sua mão. É que você anda sempre tão elegante. É uma boa
mudança vê-la mais à vontade. — Ele sorriu para mim.
Minhas luvas. Minhas luvas sujas de tinta estavam em casa, na minha mesa. Eu não sabia o
que fazer com elas. Não conseguia identificar quais eram as propriedades da tinta, então parecia um
tanto inútil guardá-las. Mas também tinha medo de jogá-las fora. E se fossem encontradas? E se a
tinta contaminasse outras coisas?
— Você acha que poderiam existir monstros? Dinossauros existiram. De certa forma, eles
são como monstros. Acha possível que monstros estranhos e sombrios, como os que dizem viver
nos armários... você acha possível que tais monstros de fato existam?
Andrew olhou para mim. Ele estava desconfortável. Tudo o que eu queria fazer era lhe
contar tudo, falar com ele, ser ouvida. Este homem era meu pretendente, era o amor da minha vida,
segundo Lily. Eu devia poder lhe contar essas coisas. Queria abrir a boca e vomitar as palavras,
tudo o que sempre quis dizer, mas não tinha dito. Queria dizer não ao mergulho a cavalo, não a ficar
me produzindo toda, não à ideia de namorar. Só queria dizer não. Dizer não a tudo e a todos e ouvir
minha voz soar como os sinos da igreja.
— Não — disse Andrew.
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— Ah — respondi. Olhei para a toalha de mesa de linho branco, para os minúsculos potes de
geleia vazios que havíamos usado, as migalhas dos bolinhos. A pequena bagunça delicada à nossa
volta. Senti vontade de virar a mesa. Simplesmente me levantar e jogá-la para o alto. Para criar uma
bagunça de verdade. Um caos de verdade. Ver os olhares nos rostos das outras pessoas sentadas tão
educadamente à nossa volta, falando em tom suave, sendo apropriados.
Qual era o sentido de ser apropriado quando a vida não tinha sentido algum? Quando uma
noite pode mudar o curso de sua vida e destruir uma pessoa viva?
Um pequeno besouro preto subiu casualmente na toalha da mesa e passou pelos meus olhos.
— Constance — disse Andrew, esfregando delicadamente a palma da minha mão com o
polegar — Há algo que eu gostaria de lhe perguntar.
— Está vendo isso? — perguntei. Tentei puxar minha mão da dele, mas ele segurou firme.
Assim como Brant. Apertado. Tão apertado. Puxei com mais força. Ele não me soltou. Uma raiva
ardente começou a subir pela minha garganta. — Me solta!
Me levantei, furiosa, e Andrew, num pulo, recuou ligeiramente em sua cadeira. Peguei um
dos potes de geleia vazios e apanhei o besouro por uma das patas, prendendo-o lá dentro com os
restos de framboesa.
— Constance, o que há de errado com você? — perguntou Andrew, assustado.
— Tenho que ir. — Empurrei minha cadeira para trás e logo parti em direção à saída, me
espremendo por entre as mesas, pedindo desculpas por atrapalhar os outros convidados. Eu sabia
que estavam todos olhando para mim. Todos achavam que eu era louca.
Saí para respirar e quase esbarrei com tudo em um casal que ia dar um passeio.
— Mil perdões — disse enquanto eles olhavam para mim, irritados.
— Constance. — Andrew me segurou pelo ombro e eu o afastei quando me virei para ele.
— Não — disse.
— Qual o problema? Nem está parecendo você. Aconteceu alguma coisa? — Ele parecia tão
preocupado. Não estava nem um pouco chateado comigo. Achava que eu estava enlouquecendo.
Como poderia dizer a ele que nunca tinha me sentido mais como eu mesma na vida?
— Não aconteceu nada. — Enfiei o pote com o besouro no bolso.
— Eu queria perguntar se você quer ser minha garota — disse ele.
Assenti. Eu sabia que ele queria perguntar algo grande. Temia um pedido de casamento e me
senti um pouco aliviada por ele não ter planejado um. Afinal, foram apenas algumas semanas de
cortejo. A ideia, no entanto, de que eu poderia estar vendo outras pessoas, de que ainda não estava
totalmente comprometida a ele, me chocou. Então queria dizer que ele não estava totalmente
comprometido a mim este tempo todo?
— Você já saiu pela cidade com outras garotas? — perguntei. Disse isso com delicadeza,
um sorriso; ainda me lembrava das velhas técnicas.
— Eu sou um homem da cidade — disse ele com uma risada. — O que só reforça o quão
especial você é. — Ele segurou minhas duas mãos agora. Eu não podia. Não podia ser segurada
pelas mãos. Era visceral demais. Eu as afastei. — Não fique assim — disse ele. Parecia que estava
falando com um cachorrinho fazendo manha.
Eu não estava chateada com ele. Estava chateada comigo mesma. Esse tempo todo presumi
que Andrew e eu éramos algo certo. Esse tempo todo presumi que era uma conclusão inevitável.
Tinha me contentado com ele, decidido que o prazer de nossas interações era bom o suficiente para
mim pelo resto da vida. Nem havia considerado que ainda poderia sair para olhar as vitrines.
Por que não considerei isso?
— Eu... acho que não quero um compromisso sério com você — disse devagar, incapaz de
olhá-lo nos olhos. — Preciso me priorizar.
— Eu juro que te amo, Constance. Quero me casar com você um dia. Juro que todo tempo
gasto com outras garotas nada significou para mim. — Ele se mexeu desajeitadamente no mesmo
lugar, incapaz de me abraçar.
— Garotas de sorte essas — disse, quase como se para mim mesma.
— Por que está sendo tão cruel? — ele perguntou.
Balancei a cabeça.
97 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Não estou. Não me importa o que você fez. Me importa o que eu deixei de fazer.
— Eu não entendo. — Ele piscou para mim.
— Não espero que entenda. — Eu finalmente lhe ergui o olhar. — Vamos deixar as coisas
como estão por ora. Na verdade, vamos deixar para lá. Acabar com tudo isso.
Ele não pareceu feliz com essa sugestão. Mas assentiu.
— Se é o que você quer.
— É sim.
Era o que eu queria. Na verdade, era exatamente o que eu queria. A sensação de saber o que
eu queria e conseguir o que eu queria era avassaladora.
O que mais eu queria?
— Quero ir para casa agora — disse.
— Claro — ele respondeu.
E assim o fiz.

98 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Você vai ao jantar esta noite.
Eu não fazia ideia de por que meu pai ainda insistia que eu encenasse o filho obediente,
ainda mais hoje, depois de tudo. Ele queria que eu aparecesse todo enrolado em ataduras? Queria
que eu pedisse desculpas pela Constance? Isso não ia acontecer. Talvez pretendesse me humilhar
em público. Era sempre uma possibilidade.
Estava na frente do meu espelho comprido, olhando para o meu reflexo todo arrumado e
pronto para sair com meu terno de três peças e lenço no bolso. O sol havia se posto, então estava
com a pequena luminária de mesa acesa ao meu lado. Ela formava sombras estranhas e fazia meu
rosto parecer ainda mais magro. Tirei as bandagens e limpei o corte na testa. Era menor do que eu
imaginava sob as ataduras, mas ainda ardia ao toque. Puxei o cabelo para frente para escondê-lo.
Ficou parecendo desleixado, não aquela aparência apropriada de um penteado para trás. Isso me
agradou. Eu gostava de não parecer apropriado. Ainda que a ideia revirasse meu estômago com uma
sensação de desconforto.
Como eu poderia simplesmente ir a um jantar depois de tudo? Como poderia ser noite de
novo tão cedo? Como eu poderia viver mais uma noite sem pensar em tudo o que aconteceu? Sem
esse medo corroendo meu estômago? Podia ouvir o vento soprando lá fora, os galhos do grande
carvalho batendo na janela. Isso acontecia quando o vento soprava e eu estava acostumado. Quando
era criança, eu tinha tanto medo disso, achava que tinha um fantasma flutuando do lado de fora e
escondia a cabeça debaixo das cobertas com medo de ver alguma coisa. Os galhos bateram de novo
e, por algum motivo, desta vez, fui compelido a olhar para a janela, para a escuridão que pairava do
lado de fora da casa.
A silhueta negra de um rosto. Na minha janela no segundo andar.
Recuei aos tropeços, me atrapalhando nos próprios calcanhares, meu coração batendo rápido.
Era impossível. Certamente tinha sido um truque de luz. Lembranças antigas me assombrando.
Olhei outra vez. O rosto tinha sumido.
Eu me recompus e respirei fundo. Estava apavorado, mas me aproximei devagar da janela
para ver, para dar uma olhada. Olhei para os galhos das árvores rangendo com o vento. Vi a estrada
e a calçada. Vi o vazio.
Eu sabia o que estava acontecendo. Tinha lido livros suficientes para saber como as pessoas
que lidam com a culpa e o medo manifestam seus pesadelos como realidade. Era tudo culpa minha.
Tudo isso. Me disseram para guardar segredo, e o que eu fiz? Exibi como um troféu porque gostava
de uma garota.
Então a culpa era da Constance.
Não. Não, isso era errado e impensado. Algo que meu pai diria. Ele encontraria alguém,
qualquer um para culpar, era um mestre nisso.
Me afastei lentamente da janela e me virei para o quarto. Notei então como estava escuro.
Como a única lâmpada ao lado do espelho tornava os cantos muito mais escuros. Como sombras
penetrando na sala.
99 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Tentei ignorar a ideia e voltei para o espelho, para endireitar minha gravata. Minhas mãos
estavam trêmulas, mas eu já estava quase acostumado com isso agora. O medo estava começando a
fazer parte de mim.
Sem nunca ir embora, sempre lá, no comando.
Ouvi um som. E me virei para olhar para o canto escuro do meu quarto. Não havia nada.
Claro que não havia nada.
Por que eu não conseguia controlar esse medo? Era desonroso e descortês. Tenha um pouco
de autocontrole, Bill. Você não é mais criança. Tem quase dezoito anos. Não há fantasmas do lado
de fora da janela. Não há monstros debaixo da cama ou escondidos nas sombras.
E ainda assim...
Eles existem no subsolo. Aqui. Em Atlantic City. Não tão longe.
Meus olhos focaram no escuro. No nada vazio. Senti aquela atração, tal qual na sala com a
máquina. Me senti atraído pela escuridão. Me lembrou daquela sensação de quando você está em
uma varanda alta, olhando para o chão. Você sabe que não vai pular... mas talvez...
Balancei a cabeça. Não. Não, eu me recusava a permitir que minha mente fosse para lá.
Olhei de volta para o espelho e vi uma silhueta alta e negra parada atrás de mim. Eu pulei e
me virei. Meu coração na garganta. Minha respiração comprimida e pesada.
Nada. Ninguém.
Mas minha mente ainda podia ver a figura. Sem rosto, como uma sombra. Olhei para a
escuridão mais uma vez. Respirei fundo e avancei devagar até o canto, estendendo minhas mãos à
minha frente, apenas para ver, apenas para saber, apenas para tocar. Devo estar enlouquecendo.
Meus dedos tocaram a parede. Encontrei apenas a escuridão vazia e o ponto onde as duas
paredes se encontravam. Soltei um suspiro e senti meu corpo relaxar, mesmo que minha mente
ainda estivesse acelerada. Me virei e recostei na parede, olhando agora para a lâmpada que, por
algum motivo, parecia bem distante, mesmo que estivesse do outro lado da sala. Isso era algum tipo
de loucura. Tinha que ser. Deslizei e me sentei. Coloquei minhas mãos ao lado do corpo, apenas
para me firmar no chão. Para me tornar sólido, não uma massa trêmula e gelatinosa.
O chão estava molhado.
Ergui as mãos.
Estavam cobertas de tinta preta.

— Olha aí o meu garoto, antes tarde do que nunca! — exclamou meu pai quando entrei na
sala privada no segundo andar do restaurante. Me senti estranhamente sem fôlego pela subida, mas
sabia que não era por causa das escadas. Tinha corrido para trocar minhas roupas sujas de tinta e
depois escondê-las debaixo da cama como uma criança escondendo um livro inapropriado dos pais.
Minhas mãos ainda estavam manchadas, não importava o quanto as lavasse. Mais fraco agora, mas
ainda com uma camada de preto. Tinha colocado luvas, mas já estava começando a sentir o calor.
Eu estava um desastre. Não ia conseguir. Mas eu precisava. Então sorri, dei risada e acenei
desajeitadamente para a multidão reunida. Era mais que só os homens de Nova York dessa vez,
fiquei aliviado ao notar. Havia também a grupinho de sempre que eu costumava ver nas festas do
meu pai. Lá estava o Sr. Brown. E a Madame Turcotte com sua filha. E o Sr. e a Sra. Sawyer,
discretamente tímidos na beira da multidão. Havia também alguns outros que eu não reconheci.
Estavam todos andando de um lado para o outro, tomando coquetéis, e eu me juntei à Madame
Turcotte, dando-lhe um oi.
— Meu Deus, como está crescendo rápido — ela disse enquanto beijávamos o ar ao lado do
rosto um do outro.
— Bem, a senhora não mudou nada — respondi. Ela riu e me senti relaxar um pouco.
Conversa fiada sem sentido. Havia certo conforto nisso.
— ...a Gent. É uma empresa de soluções técnicas com escritórios em toda a Costa Leste.
100 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Me virei tão rápido que a minha bebida derramou pela borda do meu copo. Olhei para uma
das mulheres mais bonitas que já tinha visto. E já tinha visto muitas aqui em Atlantic City. Não
tínhamos apenas cantores e dançarinos; recebemos convidados de todo o mundo e até sediamos o
Concurso Miss América. Ainda assim, não consegui tirar os olhos desta mulher. Ela parecia brilhar
de dentro para fora, usando um vestido de cetim todo branco que cintilava na luz. Seu cabelo era tão
loiro que quase combinava. Ela era um anjo.
O anjo me notou.
— Sim? — perguntou com sua adorável voz melódica.
— Sinto muito, ouvi a senhora dizer algo sobre a Gent? — Eu flutuei até ela. De repente,
parecia que não havia mais ninguém na sala.
Ela sorriu e eu senti que quase morri — foi como uma flecha no coração, mas de uma forma
estranhamente boa.
— Meu namorado é gerente da empresa — disse ela.
— Seu namorado.
Pensei no Sr. Connor. O Sr. Connor rude e grosseiro. Era ele o gerente? Achei que fosse,
mas não podia ser, podia? Não se essa criatura elegante fosse a parceira do gerente.
— Sim.
— Thomas Connor, bom sujeito, mente brilhante, conversador tedioso. — Um homem alto
de terno elegante e com um brilho nos olhos se juntou a nós. — Joey Drew — disse ele, estendendo
a mão. Estendi a minha para apertá-la. Ele não era o homem de quem o Sr. Connor estava falando?
Minha memória estava nebulosa, preenchida apenas com imagens da noite anterior. Não conseguia
passar por todas elas para me concentrar na conversa.
— Prazer em conhecê-lo — disse enquanto apertávamos as mãos. — Sou Bill Chambers.
— O filho! — disse Joey.
— O próprio.
— Ora, é um prazer. Esta adorável criatura é a famosa atriz Allison Pendle. Imagino que já
tenha ouvido falar dela. — Sorri para indicar que sim, mas para ser sincero, não tinha. — Se ainda
não ouviu falar dela, certamente já a ouviu. Ela dubla minha querida Alice Angel.
Alice Angel? Por que isso era tão familiar?
Joey Drew...
— O senhor é o homem das animações — disse, finalmente entendendo. — Joey Drew
Studios. Os desenhos do Bendy!
Joey sorriu para mim, com os lábios ligeiramente cerrados. Não achava que tivesse dito nada
de errado. Levei um momento com o estado do meu cérebro para lembrar, mas consegui afinal.
— Eu amo os seus desenhos — disse. Não era bem verdade. Eu os assistia quando criança e
acredito ter visto alguns dos personagens fazendo propaganda de títulos de guerra. Não tinha muitas
lembranças deles. — O Boris é o meu favorito — acrescentei.
— Ora, obrigado — respondeu Joey, ainda com a boca apertada.
Mude logo de assunto, pensei. Por algum motivo, aquilo estava indo muito mal.
— E o que traz os dois a Atlantic City?
— Bem, filho, eu sempre fui um fã. Adoro lugares que iluminam o mundo. Esta cidade é
como um parque de diversões repleto de vida e fôlego. Conhece Bertrum Piedmont? — perguntou
Joey com uma energia renovada.
Balancei a cabeça negativamente.
— É um engenheiro de parques incrível. Ele está trabalhando em alguns novos projetos para
mim e sugeriu que eu fizesse uma visita para conferir as novidades que estão surgindo aqui. Disse
que eu deveria ligar para o seu pai!
— Se algo está sendo construído, meu pai está financiando — disse.
— Seu pai é um homem muito bem-sucedido — disse Joey. Foi uma afirmação que parecia
uma pergunta.
— Suponho que sim, ele é.
Joey sorriu.

101 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Bem, talvez algum dia ele e eu trabalhemos juntos em alguma coisa. Gosto de trabalhar
com os melhores.
Essa foi a minha entrada:
— E o senhor também trabalha com Thomas Connor, correto?
O sorriso de Joey vacilou ligeiramente.
— Trabalho.
— Ouvi dizer que houve algumas complicações com uma máquina ou outra? — Cuidado,
Bill, meu instinto me disse. Este era um território perigoso. Não podia deixá-los saber o que havia
acontecido, que eu sabia que havia segredos obscuros sobre aquela máquina. Mas eu tinha que saber
mais. Se não por mim, pela Constance. A corajosa Constance, que falou umas verdades para o meu
pai e fez isso de queixo erguido.
— Quem te disse isso? — perguntou Joey.
— O próprio Sr. Connor.
— Você conhece o meu Tom? — perguntou Allison docemente. Sua fala não demonstrava
nenhuma intenção de buscar algo mais profundo.
— Sim, conheço — respondi. Me virei para ela e fui imediatamente dominado por seu
esplendor mais uma vez. — Eu trabalho com a Gent às vezes. Por diversão. Gosto de consertar
coisas. Encontrei o Sr. Connor em certas ocasiões.
— Esta máquina que mencionou, você a viu? — perguntou Joey. Aquele medo, aquela
sensação que me assombrava desde ontem, me encheu totalmente naquele momento. Ele não podia
saber que eu tinha visto. Não podia saber nenhuma das coisas que eu sabia. Eu não diria a ele.
— Não, na verdade não sei bem do que se trata. Ele não falou muito a respeito, apenas que
era um projeto para alguém em Nova York.
— Ele disse isso, não foi? — O homem de repente pareceu muito diferente, como se uma
nuvem negra tivesse passado por cima dele. Nada havia mudado, nem seu sorriso nem sua postura,
mas eu podia sentir algo perigoso.
— O que ela faz? — perguntei. Não pretendia ser tão direto. Minha intenção na verdade era
justamente o oposto. Parar de falar sobre o assunto. Elogiar o vestido de Allison. Me afastar e ficar
parado num canto até que o jantar fosse servido. Mas de alguma forma eu fiz a pergunta que mais
desejava fazer. A pergunta que eu tinha desde aquele dia em que o Sr. Connor e eu consertamos a
máquina: o que ela faz?
Allison riu então, uma risada que dançou alegremente no ar.
— Você nunca conseguirá fazer com que esses meninos lhe digam nada sobre essas suas
invenções secretas. Acredite, eu tentei. — Ela piscou para mim.
Joey se inclinou e com um leve sorriso disse:
— Você já parou para pensar, meu garoto, que a sua realidade não é mais real do que um
sonho que tive ontem à noite?
— Eu... nunca tinha pensado nisso, não — respondi.
— Bem, pense a respeito agora.
— Eu... vou pensar.
O sininho do jantar tocou naquele exato momento. Uma pequena bênção em uma situação
estranha. Me separei deles e tomei meu lugar na mesa entre a Sra. Sawyer e o Sr. Brown. Duas
pessoas muito inofensivas que amavam meu pai incondicionalmente e, portanto, eu não poderia
dizer nada acidentalmente para arruinar sua reputação. De minha parte, fiquei feliz por estar longe
do animador e da dubladora.
Eu não fazia ideia do que ele queria dizer e nem desejava imaginar minha própria existência
daquela maneira. Pensei por um momento que minha realidade era tão inacreditável que só poderia
ser um pesadelo para ele. Talvez ele estivesse certo nesse aspecto.
Talvez todos estivessem certos.
Talvez a Constance tivesse razão. Essas pessoas — Sr. Connor, Joey, até mesmo a magnífica
Allison — de alguma forma, essas pessoas eram diferentes. Estavam tramando algo que não era
natural. O que nós vimos, o que aconteceu com o Brant, não era algo que simplesmente acontecia.
Foi algo criado por humanos. Como as bombas que caíram do céu durante a guerra.
102 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Que tipo de gente inventava algo assim? Que tipo de gente abrigava uma criatura que caçava
sua presa daquele jeito, no subsolo, nas profundezas secretas que remontam a passados secretos?
Eu precisava falar com a Constance de novo. Precisava contar a ela sobre essas pessoas.
Precisava dizer que ela estava certa.

103 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Estava segurando o pequeno frasco deli-
cadamente nas mãos. O besouro rastejava lá dentro, tentando achar uma saída, mas acabou caindo
de costas. Senti uma hesitação enquanto olhava para esta pequena criatura viva. Então me perguntei
por quê. Do que eu estava com medo? Tinha planejado esmagá-lo quando o vi pela primeira vez no
restaurante, pisando nele e indo embora sem pensar mais.
Ainda assim...
Estremeci.
As paredes do nosso apartamento eram finas, ridículas e inúteis. Ridícula e inútil. Virei o
frasco e o besouro caiu de novo, com as perninhas se debatendo.
Olhei para ele. Então me imaginei sendo o besouro no frasco. Me imaginei sendo observada
de perto e com atenção. Examinada.
De repente, olhei por cima do ombro. Senti que talvez Molly ou Lily estivessem paradas
silenciosamente na porta, mas não havia ninguém. Apenas o corredor escuro. Eu me sentia muito
consciente agora da minha própria existência, de estar sob o pequeno foco de luz que me iluminava
na minha mesa. Quão vulnerável seria. Quão vulnerável eu me sentia.
Também me sentia consciente da escuridão como algo vivo. Como as sombras rastejantes
que nos perseguiram na outra noite. Tive uma visão da escuridão do lado de fora da minha porta de
repente irrompendo em uma onda no meu quarto, me engolindo, me afogando.
Levantando-me depressa, marchei até a porta e a fechei. Senti uma onda de alívio. E então
aquele sentimento familiar de raiva. Estava frustrada comigo mesma por ser tão fraca, por ter medo
de monstros no escuro. O que quer que tenhamos encontrado estava longe e trancado no subsolo.
Ou será que não?
Bem, eu estava determinada a descobrir, com ou sem a ajuda de garotos idiotas, cabeças de
vento. O problema era voltar até a máquina.
Então ouvi um estranho choramingo. Baixo e quase como o vento ou o ranger das tábuas do
assoalho. Mas não era isso. Também não era minha imaginação. Era um som suave e desesperado.
Alguém estava com dor. Seria uma das minhas irmãs? Me ergui e subi na cama, indo até a parede,
onde encostei o ouvido. Silêncio. Bom, Molly e Lily estavam bem.
Me levantei, fui até a parede oposta que dividia com meus pais e fiz o mesmo. Mais silêncio.
Me virei e escutei com atenção, esforçando-me para ouvir o som novamente. Fechei os olhos, como
se desligar os outros sentidos pudesse ajudar a tornar este mais forte.
Algo me agarrou com força pelo pulso.
Abri os olhos e puxei o braço.
— Me solta! — gritei para o canto escuro e vazio na minha frente.
Me virei. Nada. Ninguém. Marchei em direção ao interruptor e acendi a lâmpada do teto.
Meu quarto se encheu de luz e eu o examinei cuidadosamente. De novo, não havia nada. Não. Isso
não estava certo. Não acreditava que era minha imaginação. Alguém estava brincando comigo.
Olhei para o interruptor que ainda tinha entre os dedos e notei então a mancha preta em meu pulso,
104 | B e n d y : O s P e r d i d o s
na manga da camisola. Uma marca de mão negra onde tinha sido agarrada. Molhada, fresca e, ah,
com certeza estava lá.
Não fiquei com medo então. Senti raiva por algo ter ousado me atacar. Senti raiva pela coisa
ter fugido, desaparecido como um covarde. Quer brigar, me atacar, me arrastar e me matar? Então
tenta. Estava me sentindo tão energizada, minha pele estava zumbindo. Eu podia enfrentar qualquer
coisa agora. Essa raiva era combustível; era incrível.
Corri de volta para a mesa e abri o pequeno frasco. O besouro não conseguia sair dele e isso
era bom, porque eu precisava da outra mão para isso. Peguei a manga da camisola e espremi a
gosma preta fresca no frasco, como quem torce a toalha depois de lavar a louça. Várias gotas caíram
no frasco e no besouro. Sorri e logo fechei o frasco novamente.
Olhei para minha mão enquanto deixava marcas pretas do lado de fora do frasco.
E sorri.
Agora esperaríamos para ver.

105 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Olhei para a mancha preta no chão do
quarto na manhã seguinte. À luz do dia, esperava uma explicação lógica. Por exemplo, como uma
figura sombria à noite se torna um cabideiro de dia. Mas não, meu chão estava manchado de tinta
preta. Tinha secado, mas antes disso, se mexera. Podia ver a mancha irregular, aqueles dedos de
tinta. Assim como na fábrica dos tempos da Lei Seca, assim como sobre o corpo de Brant, a tinta se
arrastara para frente, procurando alguma coisa. Não tinha encontrado.
Havia um monstro no meu quarto na noite passada. Era o mesmo que tinha arranhado meu
tornozelo no escuro? Presumi que sim. Como não seria? A ideia de que podia haver mais de um era
demais para mim. Rapidamente arrastei minha poltrona para o canto, escondendo a tinta embaixo
dela. Não precisava de nenhum dos criados tentando limpá-la e se metendo em problemas.
Me vesti às pressas e com toda a determinação, saindo de casa apenas para parar alguns
quarteirões a frente e perceber que não fazia ideia de para onde estava indo. Como ia encontrar a
Constance? Me encontrar era muito mais fácil; nossa casa era muito conhecida, a maior do bairro.
Mas encontrar alguém que ajudava a vestir coristas e morava com as irmãs e os pais em uma cidade
como esta? Era uma tarefa muito mais difícil.
As coristas.
Era isso! Poderia encontrá-la no teatro mais tarde, à noite. Com certeza daria certo. Eu lhe
pediria desculpas e contaria a ela sobre o que aconteceu ontem à noite. Contaria tudo, sobre a tinta,
sobre ter conhecido o tal Joey Drew.
Claro que agora havia toda uma tarde até então.
Tive outra ideia.

Me trouxeram um café quando me sentei no sofá verde e macio no saguão do hotel.


— Obrigado, Johnson — disse. O senhor com o uniforme do Plaza acenou com a cabeça e
se virou; me lembrei então de brincar de pique-esconde com ele quando mais novo. O hotel era o
meu parquinho, e eu o amava ainda mais do que a praia lá fora.
Agora o hotel parecia um peso me pressionando, um lembrete do que estava por vir. Houve
dias em que quis fugir de tudo. Começar uma nova vida, talvez na Costa Oeste. As coisas lá
pareciam vibrantes, cheias de vida. Todos haviam deixado algo para trás. Quando eu fizesse dezoito
anos, talvez fizesse isso.
Talvez.
O problema com o medo é que, embora fugir possa parecer perfeito, também existe o medo
de fugir de fato. Do que isso significaria, de onde ir e quem ser. De estar sem a rede de segurança
das conexões e riqueza do meu pai.
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Por que eu tinha tanto medo? Era exaustivo, mas a sensação persistia, se prolongava sem
cessar, como uma dor de dente.
Ele entrou no saguão como se estivesse caminhando por um palco. Lá estava ele, em seu
terno risca de giz de corte fino, o Sr. Joey Drew da noite anterior. Me afundei no sofá e abaixei o
chapéu. Podia ver seus pés agora enquanto ele praticamente dançava pelo chão. Seus sapatos tinham
sido recém-engraxados e eram de couro fino. Há muito não via sapatos tão bem feitos. A riqueza do
homem me intrigava. Ele era espalhafatoso demais para ser simplesmente o herdeiro de uma família
rica, isso era certo.
Ele veio acompanhado por outro par de sapatos, ou, devo dizer, botas. Esses eu reconheci,
embora achasse interessante sequer tê-los notado para começo de conversa. Eram marrons, bem
gastos e enormes. Fiquei surpreso ao vê-los. Meu plano era apenas ficar de olho nesse tal Joey, mas
lá estava ele. Isso tornou as coisas um pouco mais difíceis. Afundei ainda mais.
— Tom, meu bom homem, é maravilhoso vê-lo de novo — disseram os sapatos brilhantes.
— Vamos — responderam as botas.
— Sempre com pressa — retrucaram os sapatos brilhantes.
— Só gosto de fazer logo o trabalho. — As botas se viraram e seguiram em direção à saída.
Os sapatos brilhantes ficaram parados por um momento e depois seguiram.
Levantei o chapéu e observei enquanto as costas do Sr. Connor e Joey se afastavam. Eu
tinha que segui-los. E logo. Mesmo com meus nervos me mantendo enraizado no lugar.
Consegui me levantar num pulo, derramando um pouco de café no sofá verde. Baixei o
olhar. O líquido escuro penetrou no tecido e desapareceu. Cerrei os punhos. Ainda estava usando
luvas; a tinta em minhas mãos estava quase sumindo, mas não completamente.
Não completamente.
Eu tinha que segui-los. Corri atrás deles, saindo do hotel e batendo com tudo no Sr. Connor.
Caí de costas bem no meio da calçada. Foi como dar de cara numa parede.
— Está nos seguindo, Bill? — perguntou o Sr. Connor, olhando para mim. Joey se juntou a
ele e, juntos, pairaram sobre mim como personagens distorcidos de um desenho animado. O que era
apropriado, acredito.
— Não, Sr. Connor — respondi.
— Venha, talvez possa ajudar. — O Sr. Connor estendeu a mão carnuda e eu a segurei. Ele
me ajudou a me levantar.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntou Joey, que parecia bastante seguro da
resposta.
— Ajuda sempre é bem-vinda. Ele já ajudou antes. — O Sr. Connor se virou e começou a
andar novamente enquanto Joey e eu nos entreolhávamos.
— Se você sabia sobre a máquina, por que não me disse? — perguntou Joey.
Eu não tinha certeza se ele estava tentando me enganar, mas neste momento a honestidade
me pareceu a melhor política.
— Eu estava guardando segredo para o Sr. Connor.
Joey pensou sobre isso e, de repente, toda a sua postura se iluminou.
— Bom, isso é uma maravilha, não é? — Ele sorriu e me deu um tapinha de leve nas costas.
— É melhor irmos atrás dele. Não quero me indispor com o Tom — ele disse com um sorriso.
Sorri de volta, sem saber se já podia ser considerado um amigo, mas fiquei feliz por tê-lo
conquistado naquele momento. Caminhamos rapidamente para alcançar o Sr. Connor, que estava
nos esperando em sua caminhonete. Quando subi e fui espremido no meio do banco, perguntei:
— E o Scott?
O Sr. Connor não disse nada. Apenas ligou a caminhonete e nós partimos.
Considerando a empresa e a direção na qual estávamos seguindo, presumi que nosso destino
final seria a fábrica dos tempos da Lei Seca. Não fiquei muito feliz com isso, mas o que esperava
encontrar se os tivesse seguido? Claro que era para lá que estavam indo e eu simplesmente tive que
lidar com o fato muito real de que estava prestes a entrar num lugar onde vi um homem explodir e
onde um monstro me perseguiu pelo escuro.

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Ri comigo mesmo com o pensamento cotidiano de “simplesmente ter que lidar” com isso.
Não era algo assim tão simples de se fazer.
— O que te diverte, amigo? — perguntou Joey.
— Ah, não é nada — respondi distraidamente, esfregando as mãos.
Ele não pressionou, o que foi bom porque eu não conseguia nem começar a pensar numa
única piada que pudesse usar como desculpa.
Toc, toc!
Quem é?
Brant.
Que Brant?
Isso era tudo que a minha mente podia me dizer, repetindo a mesma frase de novo e de novo.
Pois é, que Brant? Ele tinha uma família? Estavam sentindo falta dele? Será que a polícia começaria
a procurá-lo?
Que Brant?
Nós paramos e, como de costume e sem cerimônia, o Sr. Connor abriu a porta e desceu da
caminhonete. Fiquei chocado. Não estávamos na fábrica. Estávamos numa parte suja da cidade, em
um barzinho imundo no canto da rua, que ironicamente se chamava A Saída.
Joey abriu a porta casualmente e saiu da caminhonete enquanto o Sr. Connor seguia com
determinação e abria a porta do bar. Ele desapareceu lá dentro antes que Joey acidentalmente
fechasse a porta da caminhonete na minha cara.
— Desculpe por isso, garoto — ele disse com um sorriso, e a abriu novamente.
Eu sorri e desci na calçada, olhando para o bar. Não conseguia entender nada, mas queria
que a Constance estivesse comigo.
Quando entrarmos no bar, ambos tiramos os chapéus e observamos o ambiente escuro e
delapidado. Ainda era início da tarde, então não havia muitas pessoas, e as que estavam lá pareciam
sempre ter estado, como se fossem parte da mobília. Partículas de poeira flutuavam em meio aos
raios de sol e pousavam em anéis de bebida nas mesas, mas estes pareciam não iluminar nada mais.
— Vamos — disse o Sr. Connor do outro lado do cômodo. Estava ao lado de uma porta
junto ao balcão melequento e nós logo o seguimos até uma sala dos fundos com painéis de madeira
escura. Havia uma mesa e cadeiras empilhadas em cima dela. Havia cheiro de mofo no ar e, quando
me aproximei do Sr. Connor junto a um dos painéis de madeira, meus sapatos grudaram um pouco
no chão a cada passo.
— Isso não é exatamente o que eu tinha em mente, Tom — disse Joey, caminhando com
passos firmes até nós.
— Eu disse que a outra entrada está avariada — respondeu o Sr. Connor.
Outra entrada.
— Você ganha a vida consertando as coisas, Tom — respondeu Joey.
O Sr. Connor balançou a cabeça e pressionou o painel de madeira, que se afastou um
centímetro de junto da parede. Ele então o arrastou para o lado.
— Algumas coisas simplesmente não podem ser consertadas. — Ele passou pelo buraco.
Não achei de bom tom segui-lo, então estendi a mão para permitir que Joey passasse. Ele o
fez sem sequer olhar para mim e eu o segui pelo escuro.
Nos encontramos em um túnel se estendia em uma inclinação constante. Ele logo se tornou
mais plano e o Sr. Connor iluminou o caminho à frente com uma lanterna.
— Fiquem à direita — disse ele, e assim que o fez, bati com a perna na ponta de alguma
coisa e tropecei para frente.
— Ai.
O Sr. Connor virou a lanterna para mim e depois para a esquerda do túnel, como se apontasse
com ela. Havia uma mesa de metal ao nosso lado. Ou não. Não era uma mesa. Quando o Sr. Connor
passou a luz ao longo da parede, revelou uma longa esteira rolante.
— Para caixas, garoto — disse Joey ao meu lado. — Caixas de bebidas.
Assenti.

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— Muito bem, acabou a excursão — disse o Sr. Connor. Ele apontou a lanterna à sua frente,
iluminando o grande túnel e mostrando o vazio negro ao longe. Sua enorme silhueta nos mostrou o
caminho e nós o seguimos, um ponto de luz em meio à escuridão atrás de nós e escuridão absoluta à
nossa frente.
Eu agora já entendia o que estava acontecendo, e o pavor me preenchia a cada passo que
dávamos. É óbvio que haveria mais de uma entrada para a fábrica de uísque. Que havia outra saída
o tempo todo. Que podíamos ter saído de outra forma, que o Brant...
Que Brant?
Algo disparou pelo feixe de luz à nossa frente.
— Viram isso? — perguntei, parando.
Mas ninguém mais parou. Eles apenas continuaram andando, a luz se distanciando cada vez,
a escuridão me cercando. Como sombras escalando a parede. Corri para poder alcançá-los e prendi
a respiração quando nos aproximamos do local onde tinha visto a coisa.
Nada aconteceu.
Então soltei a respiração em um longo suspiro silencioso.
— Bill!
Eu gritei quando caí de cara no chão áspero, algo pesado em minhas costas. Algo que sabia
meu nome. Tentei tirar de cima, tentei me virar, mas seja lá o que fosse, se contorcia e resistia,
forçando o corpo sobre mim, roçando meu rosto no cascalho do chão. Não conseguia nem pedir
ajuda — estava completamente sem ar. Foi quando ouvi um tumulto sobre mim. Os sons de uma
luta. Gritos e então um poderoso grunhido quando algo foi arrancado com tudo de cima de mim.
Me virei de costas para baixo, sentado ali no chão de cimento frio, ofegante, tentando
desesperadamente encher os pulmões o mais rápido que pude. A lanterna havia caído e iluminava
agora os sapatos reluzentes de Joey. Ao longe, podia ver a sombra fraca do Sr. Connor lutando.
Estendi a mão rapidamente para pegar a lanterna enquanto me levantava. Virei a luz para o Sr.
Connor, por cima do ombro de Joey.
O Sr. Connor estava segurando uma figura ereta, uma mão em cada lado da parte superior do
tronco. Não estava apenas segurando-a na vertical, estava segurando-a pendurada no ar, os dedos
dos pés apenas roçando o chão. As roupas e o cabelo da figura estavam encharcados de tinta preta,
mas não estava completamente coberta, não como Brant estivera. Esta figura, dava para ver seu
rosto, seus olhos selvagens.
Era o Scott.
— O que está acontecendo?! — indaguei.
— Acalme-se — o Sr. Connor disse para Scott enquanto ele se debatia no ar.
— Ele está vindo... ele está vindo atrás de todos vocês! — gritou ele. De repente, olhou
diretamente para mim, para o feixe de luz. Seus olhos brilharam sob a luz e seu rosto se contorceu
em uma careta grotesca.
— Faça-o se calar — disse Joey, aproximando-se de mim com um silvo raivoso.
— E como você acha que eu deveria fazer isso? — perguntou o Sr. Connor, olhando para
nós. Seus braços estavam tensos com o esforço de segurar um Scott que não parava de se contorcer.
— Apenas faça — mandou Joey.
— É tudo culpa sua — Scott disparou para Joey. — Você é o verdadeiro monstro!
— Tom!
— Como você vai me silenciar, Drew? O que quer que ele faça comigo? — Scott começou a
rir. Era uma risada aguda que perfurou meus ouvidos. O som ecoou pelo túnel.
— Faça! — mandou Joey.
Scott se debateu novamente e o Sr. Connor se esforçou para continuar a segurá-lo. Ele se
retorceu e virou e então se inclinou e mordeu a mão do Sr. Connor. Instintivamente, o Sr. Connor
soltou e Scott se desvencilhou de suas mãos e imediatamente correu para as sombras. Houve um
baque surdo na escuridão quando o Sr. Connor e eu corremos para segui-lo.
Scott estava estirado no chão, inconsciente. O túnel fazia uma curva de noventa graus e ele
tinha avançado com tudo naquela direção, dando de cara com a parede. Estendi a mão e toquei a
ferida em minha testa. Pensei em como a havia conseguido.
109 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Me afastei lentamente do Scott.
— Ótimo — disse Joey, juntando-se a nós. — Deixe-o aí para dormir e se acalmar. Vamos.
— Ele pegou a lanterna da minha mão e continuou seguindo pelo túnel.
O Sr. Connor ajeitou Scott cuidadosamente para deixá-lo mais confortável e então fitou seu
corpo por um momento de silêncio. A luz foi ficando cada vez mais fraca e, enquanto eu olhava
para Scott e o Sr. Connor, senti a necessidade de dizer algo:
— O que ele quis dizer com “monstro”? — perguntei baixinho.
— Já te falei sobre isso — respondeu ele.
— O que está acontecendo? Por favor, diga. — Eu soava patético. Soava muito desesperado,
até demais, como uma criança pequena. Meu pai não teria aprovado. Eu não tinha uma posição de
“autoridade” nesta conversa.
— Não posso — disse o Sr. Connor, a voz igualmente baixa. Ele se levantou e olhou para a
luz desaparecendo no túnel ao longe. — Temos que consertar a máquina e depois levá-la de volta
para Nova York o mais rápido possível.
— Certo — eu disse, mas, por dentro, estava uma pilha de ansiedade e medo. Como eles
fariam isso? Como tirariam a máquina de lá sabendo que havia uma criatura à solta? Simplesmente
a deixariam aqui para assombrar Atlantic City para sempre? Ou... ou a levariam junto para uma das
maiores cidades da América? Para potencialmente fazer todo tipo de horrores lá?
— Vamos — disse o Sr. Connor.
— Não posso. — Eu não podia. Não podia voltar lá, não podia. Não podia fazer parte disso.
Não depois de tudo que eu tinha visto.
— Não seja tolo, vamos. — Eu agora já mal conseguia ver mais o Sr. Connor. Joey havia
nos deixado literalmente no escuro.
— Não. — Quem ele achava que era, me dando ordens assim? Eu era William Chambers, o
herdeiro de toda Atlantic City. Quer dizer, eu provavelmente também era dono desses túneis. Eu me
virei e comecei a refazer meus passos no escuro.
— Bill! — chamou o Sr. Connor, mas eu estava farto daquilo. Não ia acabar como o Brant
ou o Scott. Eu sabia lá no fundo quão perto eu tinha chegado. Quão perto eu estava. Eu sentia uma
loucura dentro de mim que imaginava ser uma reação humana a uma situação horrível, mas agora,
agora não tinha certeza. Agora eu não sabia o que estava acontecendo comigo.
Virei a curva e acelerei. Era só uma reta direto até o bar agora. Quando o chão começou a se
elevar, senti uma grande onda de alívio e irrompi na sala dos fundos por trás do painel como água
rompendo uma represa.
Fiquei ali na sala por um momento e me recompus o melhor que pude, embora o medo não
fosse embora.
Eu refleti intensa e profundamente.
Precisava encontrar a Constance.

110 | B e n d y : O s P e r d i d o s
O besouro estava morto.
Não por causa da tinta; não tinha sido envenenado. Eu o observei a noite toda à medida que
ia ficando cada vez mais agitado. À medida que corria em pequenos círculos no frasco. À medida
que se esgotava e simplesmente parava de se mexer. Abri então o frasco e o tirei com cuidado,
colocando-o sobre um pano na mesa.
A tinta havia surtido um efeito em seu comportamento, isso eu tinha entendido. Mas que
tipo de efeito, eu não entendia completamente. Teria feito o besouro querer correr e correr? Parecia
um tipo muito específico de reação, algo particular demais.
Tentei manter a calma em meio à frustração. Eu queria respostas. Precisava de respostas.
Mas quando Molly bateu na porta do quarto, prontamente gritei com ela, zangada demais por ela ter
me interrompido. O que ela achava que estava fazendo? Será que não via que eu estava tentando
resolver um problema delicado?
O que era a tinta?
— Mamãe quer ajuda com o café da manhã — disse ela, parecendo surpresa com a minha
resposta.
— Estou doente — respondi depressa.
— Ai, não, você pegou meu resfriado? — Ela parecia genuinamente preocupada. Claro que
estava. Era a garota mais doce e gentil que existia. Sempre tentei ser igual a ela. Mas eu não era ela.
Eu tinha pensamentos complicados e confusos que queria gritar aos quatro ventos. Odiava pensar
nisso, mas de muitas maneiras, eu era mais parecida com a Lily, menos pelo fato de que Lily não se
importava em ser quem era.
O que eu era? Quem eu era?
Balancei a cabeça tentar atirar o pensamento de dentro dela. Então olhei para a manga da
minha blusa. A marca de mão preta de tinta. Eu não estava com meda. Estava determinada.
— Sim — disse.
— Meu Deus. Quer que eu te traga uma sopa? Um pouco de chá?
— Só vai embora. — Eu não gritei, mas minha voz denotava um certo aborrecimento. Eu
estava tão perto da solução e ela continuava me interrompendo. Tive uma visão então de estar na
roda-gigante do Steel Pier, sentada bem no topo.
E gritar.
Suspirei com força. Senti uma onda de exaustão percorrer meu corpo. Afinal, tinha ficado
acordada a noite toda.
Mas era mais que isso. Era algo dentro de mim. Algo enterrado profundamente, uma parte
da minha alma que estava gritando há muito tempo, que estava cansada.
Olhei para o besouro.
Ele tinha corrido, corrido e corrido até ficar extremamente cansado.

111 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Foi quando algo estalou dentro de mim. Poderia ser? Ah, como eu queria poder falar com o
Bill sobre tudo isso. Queria que ele se importasse. Como podia não se importar? Era tão insensível,
tão desdenhoso e horrível. Meninos ricos e sua falta de empatia.
Me levantei com tudo numa onda de raiva e gritei, frustrada. Minha cadeira tombou para trás
e caiu no chão.
— Você está bem? — Era Molly de novo na porta.
— Sim, estou perfeitamente bem — disse, fechando minhas mãos em punhos. Mas eu não
estava. Isso não era normal. Mesmo que parecesse certo, mesmo que eu nunca tivesse me sentido
mais como eu mesma, nada disso era normal. Compartilhar meus sentimentos, deixar que eles me
dominassem, não estar no controle.
Tudo se encaixou.
A tinta. A tinta estava fazendo alguma coisa comigo. Mesmo que eu a tivesse lavado, eu
claramente não tinha tirado tudo. Em algum lugar dentro de mim ela espreitava, e estava soltando
esses sentimentos bem guardados, essas emoções cuidadosamente escondidas. Eu não queria andar
em círculos, mas queria ser livre.
Peguei minha cadeira e me sentei novamente à mesa.
Minhas luvas ainda estavam lá, no meio de todos os meus pequenos frascos e experimentos.
Respirei fundo. Era hora de limpá-los.

112 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu estava na frente da porta dos bastido-
res que nem um fã idiota enquanto os garçons preparavam as mesas para o jantar. Me senti ridículo
só de ficar ali. Esperando, sabendo que nas profundezas da cidade havia homens trabalhando em
uma máquina que destruiria a todos nós. Ao meu lado havia um sujeito segurando um buquê de
flores, esperando que sua namorada aparecesse para trabalhar, sem dúvida. Ele parecia tão normal,
tão inconsciente do mal acontecendo agora.
Onde ela estava? Por que ainda não estava aqui? Uma dúzia de garotas já havia passado por
nós e rido do homem segurando as flores, mas ainda nem sinal da Constance.
Eu não conseguia ficar parado. Estava tão nervoso, que sentia que ia explodir por dentro.
— Andrew! — Uma garota de aparência familiar com cabelos pretos escuros penteados em
cachos perfeitos nas laterais e usando um casaco vermelho, simples, mas charmoso, correu até o
homem com as flores. Eu esperava um abraço ou algo do tipo, mas, em vez disso, ela parou e
apenas lhe abriu um sorriso. — O que está fazendo aqui?
O homem sorriu.
— Olá, Lilly. Estou esperando a sua irmã — respondeu.
— Ah, ela não está se sentindo bem hoje. Devo levar as flores para ela? — Ela estendeu a
mão com expectativa.
— Não está? — perguntou ele, parecendo bastante pensativo.
— Só um resfriado. Não precisa se preocupar assim. — Lily parecia um pouco irritada.
— Eu preciso vê-la.
— Não há nada que eu possa fazer quanto a isso. Agora me dê as flores. Prometo que vou
dá-las a ela. — A garota então estendeu a mão para pegar as flores, mas Andrew as puxou de volta.
— Não, eu vou até ela.
Lily suspirou pesadamente.
— Então está bem. Ela está em casa, você pode encontrá-la lá. Diga que eu tentei ser uma
boa irmã. Ela não vai acreditar. — Ela sorriu. — Bill, você também está esperando por ela?
De repente, a menina estava olhando diretamente para mim e foi então que me lembrei dela,
do calçadão. É claro! Ela era irmã da Constance. Espera, era ela a irmã de quem os dois estavam
falando agora?
— Estou sim. Você disse que ela está em casa, ela não está bem?
Lily assentiu e fez menção de falar, mas foi interrompida rudemente por Andrew:
— Por que está procurando a Constance? — perguntou.
Andrew e eu nos encaramos. Havia algo acontecendo dentro dele, algo que parecia mais do
que apenas um pretendente potencialmente ciumento. Apresar que, bem, sempre havia algo mais
acontecendo dentro de nós, algo secreto que nunca contamos a ninguém. Um medo profundo e
terrível do futuro, talvez? Ou era só comigo?
— Somos amigos — respondi.

113 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Andrew, este é William Chambers — disse Lily em um tom carregado de significado. —
Você sabe quem é o Sr. Chambers é, não é?
Andrew assentiu, mas ainda me fitou de perto.
— Vamos juntos vê-la? — perguntei, tentando soar amigável. Também imaginei que seria a
solução perfeita para o meu problema, considerando que eu não fazia ideia de onde ela morava.
Andrew assentiu novamente. O homem tinha ficado mudo.
— Vamos, eu pago a condução — disse.
Andrew zombou disso:
— Me surpreende que alguém como você não tenha um carro chique.
— Até tenho, só que eu odeio dirigir — respondi. Eu odiava tudo o que dizia respeito à
direção; a velocidade, o perigo. Estar no controle de algo que poderia facilmente sair do controle.
Estremeci com a ideia.
— Tudo bem, vamos — Andrew de repente seguiu em direção à saída, abaixando as flores e
deixando-as balançar em sua mão como se não fossem coisas delicadas que facilmente poderiam
acabar sendo destruídas.
Apesar que, me dei conta enquanto o seguia, elas tecnicamente já estavam mortas.

114 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Houve uma época em que, se minha irmã me
dissesse que havia dois meninos esperando para me ver lá fora, eu ficaria imensamente feliz.
Sempre sonhei em atrair a atenção de vários pretendentes. Agora, no entanto, esta era a última coisa
que me interessava. Eu havia organizado uma série de tubos de ensaio e estava trabalhando em uma
solução, literalmente, para eliminar a tinta. Havia descoberto que adicionar um pouco de óxido de
ferro à mistura estava dando um resultado incrível. Não tinha tempo para garotos que estavam
bravos comigo. E mais, eu era quem estava mais brava com eles.
Isso me fez questionar meu antigo desejo por pretendentes para começo de conversa. Será
que o romance era mesmo algo em que eu estava interessada ou o objetivo era apenas agradar meus
pais, casar e ajudar no sustento da família? Será que havia alguma coisa na minha vida que era
mesmo como eu queria?
Bufei e me levantei, sentindo-me extremamente frustrada. Não queria ver nenhum deles e
também não queria perder mais tempo do que o necessário, então calcei minhas botas de inverno e
peguei meu roupão azul forrado.
Passei correndo por Molly, ainda parada na minha porta, e atravessei a cozinha antes que
alguém pudesse comentar. Ouvi mamãe dizer “você não pode sair assim!” Mas de que importava?
De que qualquer coisa importava? Eu não ligava para o que os outros pensavam.
Desci as escadas às pressas e olhei para a Sra. Wilson enquanto ela espiava pela porta do
andar térreo, a corrente ainda presa à porta. Abri a porta da frente do prédio. Parados diante de mim
estavam Andrew, com um buquê de flores nas mãos e um olhar de fúria no rosto, e Bill, que mais
parecia ter visto um fantasma.
— O quê? — perguntei, colocando as mãos nos quadris.
— Você se faz de santa e de vítima, mas na verdade é uma hipócrita, Srta. Gray — disse
Andrew, jogando as flores no chão.
— Como é? — perguntei. Eu queria rir. As pobres florzinhas na minha varanda. Elas não
tinham feito nada de errado. Aliás, eu também não.
— Você está namorando William Chambers — disse ele, apontando para Bill, parado ao
lado dele.
— Não, veja bem — disse Bill, todo corado.
— Ah, por favor — respondi, revirando os olhos bem pronunciadamente. Aquilo era um
absurdo. — Seu ciúme está te deixando irracional.
— Então o que ele está fazendo procurando por você no teatro?
— Ele é meu amigo, Andrew. Você sabe o que são amigos, não é?
— Sarcasmo não combina com você — disse ele.
— Bem, fazer beicinho não combina com você! — Balancei a cabeça e olhei para eles.
Estava no alto dos três pequenos degraus; isso me dava altura suficiente para que eu me sentisse
literalmente maior que os dois. Apesar que, para ser sincera, eu estava bastante feliz em ver o Bill.
Tinha tanta coisa para dizer a ele.
115 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— O que aconteceu com aquela garota doce e tímida que eu desejava ter como namorada?
— perguntou Andrew, balançando a cabeça.
— Esse é o problema, Andrew. Eu nunca fui doce ou tímida. Você estava muito ocupado
falando sobre si mesmo para notar. E talvez tenha sido minha culpa, talvez eu devesse ter falado
antes. Não sei. Não sei mais por que sempre fui tão quieta, mesmo.
— Bem, por que você não pode ser assim de novo?
Agora eu ri. Fechei os olhos e balancei a cabeça. Descobri que rir assim era libertador, como
gritar ou jogar alguma coisa longe. Não era exatamente igual, mas senti uma pressão ser liberada,
como uma chaleira assobiando.
— Não ria de mim.
Abri os olhos.
— Então não me faça uma pergunta tão idiota de novo!
— Chega disso, vocês dois — disse Bill daquele jeito que ele às vezes falava, imitando o
pai. Me perguntei se ele sabia quão bobo ele parecia quando fazia isso. Como uma criança pequena
usando os sapatos dos pais.
— Você devia ir embora agora, Andrew — disse. Eu o encarei. Ele, por sua vez, tentou fazer
o mesmo, e fiquei imaginando se todas aquelas disputas de olhar fixo com minhas irmãs realmente
tiveram um propósito prático no fim das contas.
— A senhora pediu para você ir — disse Bill, interrompendo a batalha.
Andrew olhou para Bill e depois de volta para mim.
— Se eu for embora agora, acabou. Acabou entre nós.
— Andrew, acabou entre nós quando eu o deixei na casa de chá. Você não tem o direito de
tirar isso de mim para se sentir melhor. — Eu não fazia ideia de onde essas palavras estavam vindo
e como fluíam tão facilmente, mas era uma sensação incrível.
Não, eu sabia bem de onde elas vinham. Só não me importava naquele momento. Naquele
momento, estava feliz em deixar que os sentimentos tomassem as rédeas.
— Você é igualzinha às suas irmãs. Não se importa com o romance, só quer a atenção dos
homens — disse ele, aproximando-se com o rosto.
E então estava se afastando, segurando o rosto com as mãos. Eu não fazia ideia de que tinha
a habilidade de esbofetear uma pessoa. Nunca tinha feito uma coisa dessas antes, mas pareceu fácil
e a coisa certa a fazer.
— Nunca diga uma palavra sobre as minhas irmãs. Nunca mais se aproxime de alguém da
minha família! — Eu estava pronta para me lançar sobre ele. Queria bater nele de novo. Como é
que ele ousava?!
— Constance, não! — disse Bill, colocando-se entre nós. — Andrew, você precisa ir.
— Estou indo. Ela é maluca. — Ele se foi aos tropeços. Eu bufei, vendo-o recuar como um
cachorro com o rabo entre as pernas.
— Você devia ter me deixado ir para cima dele, Bill — eu disse.
— Não, não acho que devia. Embora ele merecesse. Você está bem? — perguntou ele.
— Nunca me senti melhor — respondi. Finalmente mudei meu foco para ele. — O que está
fazendo aqui, afinal?
Bill ainda parecia preocupado e isso estava começando a me irritar. Ele estava aqui por uma
razão e mesmo assim, de alguma forma, Andrew também tinha conseguido arruinar isso.
— Bill — disse. — Por favor. O que está fazendo aqui?
Ele assentiu e disse:
— Eu descobri tanta coisa sobre a máquina no último dia, preciso te contar tudo.
Eu olhei para ele. Tinha antecipado um pedido de desculpas ou possivelmente que ele queria
me convidar para um encontro. Mas que estivesse fazendo exatamente o que tinha me dito para não
fazer, isso me deixou chateada e impressionada.
— Você mentiu para mim então, para me proteger em um grande gesto? — perguntei.
— Não, de forma alguma. — Ele parou e pensou a respeito. — Não que eu não fosse querer
protegê-la, mas juro que achei que fosse o melhor curso de ação no momento. Ainda acho.

116 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Ainda acha? — Agora eu estava confusa. Sorri para o Sr. Sweet e seu filhinho enquanto
eles passavam e acenavam. — Acho que precisamos entrar. Não temos o benefício do espaço como
no seu bairro. Estamos sendo observados. — As palavras soaram sinistras, mas não era este o caso.
O fato era que a Sra. Fielding, do outro lado da rua, no segundo andar, com certeza estava nos
observando por trás de suas cortinas de renda. A rua gostava de uma boa fofoca.
— Certo — disse Bill, parecendo um pouco preocupado. Abri a porta e ele tirou o chapéu
enquanto passava pela soleira.
Subimos as escadas em silêncio e, ao nos aproximarmos do meu apartamento, respirei
fundo. Trazer um menino para casa não era algo que qualquer uma de nós fazia. Para Lily, era
porque ela nunca levou nenhum de seus pretendentes a sério o suficiente para levar para casa; para
Molly, era porque ela preferia sua privacidade. E para mim, bem, para mim era porque eu nunca,
antes de Andrew, tive um menino para levar para casa para começo de conversa. Bill seria recebido
de braços abertos e isso era parte do problema. O filho do Sr. Chambers em nosso apartamento.
Preocupava-me que minha mãe ficasse constrangida sem o aviso para limpar tudo e meu pai se
desse conta de como era pobre. Eu me preocupava com o que o Bill pensaria, se ele pensaria mal de
mim. Ele sempre pareceu achar que eu andava sobre a água, ou pelo menos que era impressionante
por mergulhar nela.
Pensei tudo isso num momento, mas não parei antes de abrir a porta e anunciar em voz alta:
— Bill Chambers veio me visitar!
Minha mãe e Molly se aproximaram, todas sorridentes. Já estavam vestidas para ir assistir ao
novo show de Lily, minha mãe com o chapéu nas mãos e Molly enrolando o cachecol no pescoço.
Elas congelaram no lugar quando ele entrou no apartamento.
Enquanto isso, meu pai levantou-se casualmente da poltrona, dobrando o jornal e colocando-
o em seu assento. Ele parecia estar esperando por Bill e não estava remotamente surpreso com sua
presença. Ele e Bill apertaram as mãos.
— Rapaz, você acabou de perder o jantar. Posso lhe oferecer um café? — perguntou ele.
— Estou bem, Sr. Gray — respondeu Bill, todo educado.
— Constance, querida, por que não veste algo mais apropriado — disse minha mãe, e eu
podia ver que se sentia envergonhada até a alma por eu estar de roupão em tal companhia, embora
tentasse ocultar.
— Estou bem — respondi. — Vou mostrar ao Bill o meu conjunto de química. — Fiz sinal
para que Bill me seguisse.
— Pois eu acho que não, mocinha — disse minha mãe. Meu pai pegou o casaco e concordou
com a cabeça.
Eu não tinha tempo para esse súbito comportamento antiquado deles.
— Ele vem comigo para o meu quarto e vocês vão confiar em mim — eu disse secamente.
Minha mãe me olhou com certa surpresa. Eu estava ficando acostumada com isso agora.
— Constance — disse Molly, como uma forma de me dizer gentilmente que o que eu disse
foi indelicado.
— Por favor, estou me sentindo indisposta, me deixem fazer isso — disse. — Vocês todos
vão ao teatro. Prometo que vai ficar tudo bem.
Minha mãe e meu pai se entreolharam e, finalmente, minha mãe assentiu devagar. Mas o que
mais eles podiam fazer? Podiam dizer não, mas com que frequência alguma de suas filhas trazia
para casa um rapaz de tão alto nível como um Chambers? Os três saíram, com Molly murmurando
“comporte-se” para mim enquanto o faziam. Eu odiava que mamãe não aprovasse, mas também
sabia que havia coisas mais importantes acontecendo agora do que ela pensava. Então logo conduzi
Bill pelo corredor estreito até o meu quarto, fechando a porta atrás de nós. Só então senti o peso do
decoro social sobre meus ombros. Eu estava sozinha no quarto com um menino. Minhas bochechas
ficaram vermelhas e eu esperava que Bill não notasse.
— Isso é incrível — disse ele. Ele foi diretamente para a minha mesa, não parecendo ter as
mesmas preocupações. Mais uma vez, senti raiva da hipocrisia; nem lhe ocorreu que isso poderia
manchar uma reputação. Por que lhe ocorreria? Ele era protegido por ser um menino, e um menino
rico ainda por cima.
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Eu prontamente me juntei a ele.
— Eu descobri muito sobre a tinta — disse.
— E eu descobri muito sobre a máquina.
— Conte-me tudo.
Bill olhou para mim e depois deu uma olhada no quarto, como se pudesse haver alguém à
espreita nas sombras da noite que cresciam em minhas paredes. Talvez houvesse. Olhei para o canto
onde fui agarrada e instintivamente puxei o pulso do meu roupão para baixo, para esconder o preto
da minha camisola por baixo.
— A máquina pertence a um homem chamado Joey Drew — disse ele.
— Joey Drew? Quer dizer, tipo, Joey Drew Studios? — perguntei, chocada.
— Já ouviu falar dele?
— É claro! Eu assistia aos desenhos do Bendy quando criança no cinema. Sabe, até este
momento, eu tinha me esquecido completamente disso. Engraçado como certas memórias da nossa
infância nos assombram para sempre e outras simplesmente desaparecem como se aquele momento
da sua vida nunca tivesse acontecido.
— Bem, parece que o Sr. Connor fez a máquina para o Joey em Nova York, mas depois a
trouxe para Atlantic City — disse Bill.
— Por quê?
— Pelo que entendi, eles precisam “consertar” a máquina. Está quebrada. Na verdade, eu
cheguei a ajudar o Sr. Connor algumas semanas atrás com isso. Foi assim que descobri sobre a
máquina. Acho que a trouxeram para cá porque a empresa Gent tem instalações e conexões únicas
aqui em Atlantic City.
— É mais fácil trazer uma máquina gigante para cá do que enviar alguns funcionários da
Gent para Nova York? — perguntei. Isso me parecia muito questionável.
Bill balançou a cabeça.
— Acho que sim.
— Ou talvez... ou talvez o que aconteceu conosco não tenha sido algo estranho. Talvez já
tivesse acontecido antes.
— Talvez eles tenham tido que tirar a máquina de Nova York, você quer dizer — disse Bill,
seguindo minha linha de raciocínio.
— Tinha um monstro preso lá embaixo, Bill. Não estava apenas vivendo no subsolo, estava
preso de propósito. — Comecei a entender melhor o que estava acontecendo. E isso me deixou
furiosa. — Como eles ousam? Como ousam trazer um monstro para cá, como se as pessoas de
Atlantic City não importassem tanto quanto as de Nova York? Qual é o problema deles?
Sentei com tudo na cama, meu cérebro girando de raiva. Todos nós importamos, e esses
homens achavam que podiam trazer algo assim para cá e colocar todos nós em perigo.
— Bem, eles planejam levar de volta para Nova York quando for consertada — disse Bill,
parecendo nervoso agora. Apesar que, ultimamente, ele parecia bastante nervoso no geral.
— E é claro que as máquinas nunca mais quebram. E o monstro vai com eles? — Apertei a
ponta do meu edredom com as mãos. Eu não tinha como extravasar a raiva que me consumia.
— O que você descobriu sobre a tinta?
Essa pergunta me ajudou a focar minha mente. Diminuí a força com a qual apertava a borda
do edredom.
— Tenho quase certeza de que achei uma forma de apagá-la, finalmente. Fiz uma solução.
Está naquele frasco ali. — Apontei para um tubo de ensaio tampado no pequeno suporte de madeira
que veio com o livro. Era um carmesim escuro graças em parte ao óxido de ferro. O líquido era bem
espesso, semelhante em consistência à tinta preta. Na verdade, com a textura e a cor, francamente
parecia muito com sangue.
— Sério? — Ele se virou e olhou para o frasco. Parecia quase hipnotizado.
— Também descobri que a tinta faz alguma coisa. Parece realçar algo bem lá no fundo de
tudo com o que entra em contato. Para um pequeno besouro tentando fugir, ela o torna maníaco, o
deixa desesperado. — Observei enquanto Bill pegava o frasco com cuidado. Ele o fitou de perto.
Examinando.
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— Entendo — disse ele.
— Acho que ela me afetou, Bill — confessei.
Ele não reagiu. Não pareceu surpreso.
— Sim, faz sentido.
— Faz?
Ele se virou e olhou para mim.
— Ela também teve efeito em mim.

119 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Confessar para alguém que a minha parte
mais profunda era um covarde não era algo que eu planejava fazer hoje. Ou, na verdade, nunca na
vida. Mas cá estava eu, olhando para Constance e sabendo que a verdade não era apenas necessária
naquele momento, era vital.
— Sinto medo o tempo todo agora — disse. — Acho que sempre tive um pouco de medo.
Do que meu futuro reservava, de não estar no controle, de me sentir excluído do mundo. Nunca o
suficiente para me sentir como quando se lê um livro de terror, mas sempre esteve lá. — Constance
assentiu. — Agora sinto vontade de fugir o tempo todo. E eu fugi. Fugi hoje, do túnel. Fiz de tudo
para que nós fugíssemos do Brant...
Eu parei. Minha garganta fechou de repente. Sentia que estava a ponto de chorar. Eu não
podia chorar agora; não era o momento. Concentrei minha atenção no pequeno frasco cheio de
sangue. Não, não era sangue, eu sabia, mas parecia. Também me deixou assustado. Virei o frasco na
mão, observei o líquido correr de cima para baixo, de cima para baixo, escorrendo enquanto eu o
virava lentamente várias vezes.
— Eu sinto tanta raiva — disse Constance.
— Sinto muito — respondi, desculpando-me pela minha confissão, pelo meu comportamento
inadequado. Estava me sentindo péssimo. Eu era uma pessoa horrível.
— Não, estou sempre sentindo essa raiva — disse ela. — Como você. Acho que sempre tive
essa necessidade de ser ouvida, de gritar, de me sentir compreendida. É demais.
Senti um pequeno alívio. Ela não me julgou. Ela tinha suas próprias preocupações. Nem
tudo era sobre mim.
— Então, temos que tomar isso? — perguntei, ainda olhando para o frasco. Na verdade, eu
não queria. O vermelho, a consistência, tudo me fazia sentir mal do estômago.
Ergui o olhar para ela. Ela balançou a cabeça.
— Não sei. Não sei se é seguro. Limpou minhas luvas, mas será que pode desfazer esses
efeitos? Nós... — Ela fez uma pausa. — Nós queremos desfazer esses efeitos?
— Claro que sim — disse. Eu não conseguiria viver assim por muito mais tempo. A batalha
para não fugir a cada momento estava ficando cada vez mais e mais difícil. — Você deve querer ser
você mesma de novo.
Constance ficou olhando para o colo, suas mãos apertando com força a colcha da cama.
— Acho que eu nunca fui tão eu mesma. — Ela ergueu o olhar para mim. Parecia assustada.
Quase petrificada. Estava tremendo e eu não conseguia entender por quê.
— O que estamos vivenciando não é apenas uma versão amplificada de nós mesmos? Você
não vai se perder completamente...
— Bill, cala a boca — disse Constance.
Ninguém na minha vida, exceto o meu pai, jamais havia dito isso para mim. Me fez congelar
no lugar. Magoado, mas também assustado.
— Fique perfeitamente imóvel — disse ela.
120 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Percebi então que ela não estava olhando para mim. Estava olhando mais adiante. Por cima
da minha cabeça. Atrás de mim.
Então ouvi um gotejamento. Como uma torneira pingando. Plop. Plop. Plop. Ouvi só com a
audição. Não sentia nada além de puro terror. Não conseguia sentir minhas mãos ou meus pés ou
meu coração batendo. Só o que senti foi um brilho incandescente dentro de mim. Um nível de medo
paralisante e intransigente que nunca tinha sentido na vida.
Constance se levantou muito lentamente, estendendo a mão enquanto o fazia, olhando para o
que quer que estivesse atrás de mim.
— Está tudo bem — ela disse suavemente. Mas não para mim. Para a coisa.
Pensei na tinta preta debaixo da minha cadeira no canto do meu quarto. No rosto do lado de
fora da janela. Era o monstro. Minha boca ficou seca.
— Bill, você precisa ficar parado.
Bem, essa não era uma instrução difícil de seguir.
— Oi — ela disse com uma gentileza calorosa para a coisa atrás de mim. — Nós nos vimos
ontem à noite, não foi?
O som de gotejamento se agitou atrás de mim agora, como se algo estivesse se movendo.
— Não tenha medo — disse ela. Eu quis rir. O que quer que estivesse atrás de mim não era
quem estava com medo. — Eu sou a Constance, este é o Bill.
O que quer que estivesse atrás de mim fez um estranho som de gemido suave.
— Você está machucado? Precisa de ajuda? — Ela começou a vir em minha direção, em
direção à coisa. Prendi a respiração, com medo de que o som pudesse antagonizar o monstro.
O gotejamento atrás de mim ficou mais silencioso, como se estivesse recuando.
— Pode levantar agora, Bill, mas bem devagar — disse ela, sem fazer contato visual comigo
e continuando a vir lentamente em nossa direção.
Eu não sabia bem se conseguiria, mas também sabia que não podia ficar ali sentado de costas
para um monstro por muito mais tempo. Eu engoli o medo com toda a força que consegui encontrar,
como bile queimando na garganta. E me levantei devagar, minhas pernas tremendo enquanto o
fazia. Mas consegui ficar de pé e então me virei, mantendo a cabeça baixa. Não queria fazer contato
visual com um monstro.
Por fim, levantei lentamente a cabeça e vi pela primeira vez a figura. Primeiro os pés, as
pernas, depois o corpo e então a cabeça. Era uma figura pingando tinta. Como se uma poça de tinta
tivesse assumido forma humana. Não tinha olhos, nem nariz, nem boca. A tinta gotejava sem parar
no chão e depois era reabsorvida para refazer toda a jornada novamente. Ficou ali, perto da parede,
perto das sombras. Parecia estar olhando para nós.
O medo ardente que eu sentia se dissipou um pouco, mas agora eu podia sentir meu coração
batendo forte no peito de novo, o pânico aumentando, o desejo de disparar em direção à porta e sair
correndo do apartamento.
— O que você quer de nós? — perguntei. Queria soar calma como a Constance, mas minha
voz saiu trêmula.
A coisa gemeu de novo e então ergueu um de seus braços negros de tinta em nossa direção.
Um dedo se materializou em meio à tinta. Apontou para mim. Diretamente para mim.
— Isso vai me matar — disse. Eu estava tonto. Eu não queria morrer.
— Você quer o Bill? — perguntou Constance.
A figura quase pareceu balançar a cabeça. Lentamente, ela se moveu de um lado para o
outro. E então toda a figura deslizou em nossa direção. Em minha direção. Se moveu mais rápido do
que eu esperava e então parou, a centímetros do meu rosto. Eu podia ver a tinta fluindo agora,
entrando, saindo e circulando. Estava hipnotizado por ela.
De repente, o monstro agarrou meu pulso. Eu gritei de dor. A coisa segurou meu pulso com
força e levantou minha mão perpendicularmente ao chão. Como podia a tinta, algo que era tão
insubstancial, ainda ter substância para agarrar, espremer, machucar?
— Meu Deus, Bill. Ele quer o frasco. — Os olhos de Constance estavam arregalados de
admiração. — É isso que você quer? A solução?
O monstro virou a cabeça para olhar para ela, apesar de não ter olhos.
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— Dê a ele, Bill.
A coisa segurou meu pulso rápido. Não conseguia abrir a mão. Meu medo a mantinha firme
em torno do vidro.
— Não consigo. Eu quero, mas...
Constance então veio até o meu lado. Em meu ouvido, um sussurro ríspido:
— Dê a ele.
— Não fique com raiva, eu quero. — Desejei que minha mão se abrisse. Eu não conseguia.
— Desculpa — disse ela, compreendendo então. Lembrando da minha recente confissão. —
Me perdoe. Mas você consegue. Você é mais que apenas o seu medo. Assim como eu sou mais do
que a minha raiva.
Fechei os olhos, mas ainda podia ver o monstro em minha mente. Voltei a abri-los e olhei
então diretamente para a criatura. Ela não queria me machucar. Só queria o frasco. É só soltar, só
soltar, só soltar.
Minha mão se abriu de repente e Constance engasgou quando o frasco caiu. O monstro o
pegou — ele se moveu tão rápido, tão desumanamente. Então se afastou de nós e eu comecei a
respirar novamente, me sentindo zonzo com o ar voltando a fluir pelo meu corpo.
Observamos o monstro parado ali, de costas para nós. Enquanto consumia o frasco, vidro e
tudo, por onde devia estar sua boca.
— O que acontece agora? — sussurrou Constance. Balancei a cabeça. Não conseguia formar
uma palavra sequer.
O monstro de repente convulsionou como se estivesse com muita dor, curvando-se contra a
parede. Ele caiu no chão e se contorceu de costas, tendo espasmos e se contorcendo. Me perguntei
se estava morrendo. Me dei conta de que não me importaria se isso acontecesse. Se simplesmente
desaparecesse por completo, como uma mancha sendo apagada.
Houve mais alguns movimentos violentos e então a criatura se enrolou em posição fetal,
deitada de lado como uma criança pequena. Eu não me importava. Não ia sentir pena daquela coisa.
Então soltou um gemido alto, uma lamúria, um urro longo e agudo, como se estivesse
sentindo muita dor.
E então, pop.
Bem desse jeito.
Assim como Brant.
A criatura explodiu, tinta voando por toda parte. Me virei para proteger o rosto e levantei os
braços. Então silêncio.
— Ai, meu Deus — disse Constance ao meu lado.
— A coisa se foi? — perguntei, não querendo virar e olhar.
— Não — disse ela. Mas disse de uma forma que me deixou curioso. Apesar do meu pavor,
me virei para olhar.
Caída no chão havia uma figura, uma pessoa. Não uma criatura de tinta. Não um monstro.
Ela gemeu novamente, de leve, e virou de costas para o chão.
— Ai, meu Deus — disse Constance de novo, desta vez levando a mão à boca.
Toc, toc.
Quem é?
Brant.

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— Oi — eu disse.
Eles me fitaram com esses olhares nos rostos. Me fez rir. É, não, ainda dói. A única coisa
boa de ser um Monstro de Tinta? Não tem dor. Ser uma pessoa de novo queria dizer que toda a
história da caixa torácica esmagada tinha voltado com força total. Eu respirei fundo. Ai, ai, ai.
— Rápido, ajude-o a subir na cama — disse Constance.
Eu não fazia a menor ideia de como eles iam fazer isso, então balancei a cabeça e comecei a
me levantar devagar. Mas eles instantaneamente me agarraram pelos braços. Eu os deixei. Juntos,
conseguimos arrastar esse corpo quebrado para a cama e mais uma vez eu estava deitado de costas.
— Seu antídoto funciona — disse Bill enquanto se sentava ao meu lado.
— É, parece fazer alguma coisa — respondeu Constance, sentando-se à minha direita.
— Tem mais?
Vi Constance balançar a cabeça negativamente. Do que eles estavam falando? Foi quando
me lembrei de uma coisa, um lampejo de memória, de algo vermelho como sangue, de estender a
mão para pegar seja lá o que fosse, precisando desesperadamente daquilo.
— Mas vou fazer mais — disse ela.
Então ambos pareceram notar novamente a minha existência. Em uníssono, eles olharam
para mim:
— Brant, como está se sentindo?
— Ah, maravilhoso, garota do cavalo, maravilhoso. — Fechei os olhos para suportar a dor
que veio ao falar.
— Isso é impossível — disse Bill à minha esquerda.
— Bom, é, vou ser honesto com você, Bill, velho amigo, aconteceu. — Senti uma onda de
vergonha atravessar o meu corpo, o que foi bom porque me distraiu da dor lancinante. — Ei, turma,
eu só quero pedir desculpas.
— Por que diabos? — perguntou Constance.
— Bem, por toda essa situação em que nos encontramos. — Eu estremeci e levei a mão às
minhas costelas.
— Talvez você não devesse mais falar — disse ela, parecendo lindamente preocupada.
— Nah. Em todo caso, é tudo minha culpa. Fui eu que nos fiz abrir aquela geladeira. Segui
vocês dois sem ser convidado. Me desculpem. — Eu estava me sentindo um pouco zonzo agora.
— Por favor, pare — disse ela. — Deixe-me pegar um pouco de água. — Ela desapareceu
de vista e ouvi uma porta abrir e fechar.
Fiquei lá com um Bill pensativo, olhando para algum lugar à sua frente. A visão perfeita do
seu nariz. Pobre garoto rico. Finalmente, ele olhou de volta para mim.
— Como foi? — ele perguntou baixinho, como se não quisesse que mais ninguém ouvisse.
— Desculpa, amigo, como foi o quê? — perguntei.
— Quando você era... aquela coisa... — Ele estava tão pálido, como uma sombra do sujeito
que eu tinha conhecido antes de tudo acontecer.
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— É difícil lembrar.
Fechei os olhos novamente, tentando buscar as lembranças. Só o que via eram lampejos,
como fotografias em um livro. Momentos. Havia muita escuridão, mas não como quando as luzes
são apagadas. Era uma escuridão espessa, rodopiante. Como estar preso em um redemoinho nas
profundezas do oceano. Então houve momentos de luz branca brilhante à distância, e eu seguia em
direção a ela. Como tantas pessoas descrevem a morte. Mas quando cheguei à luz, de repente eu
estava em uma sala. Em um lugar que não reconhecia. Então estava ciente. Vi a Constance. Vi o
Bill. Vi os dois e soube por dentro que estava procurando por eles, tentando encontrá-los. Algo
dentro de mim continuou me arrastando para aquela luz. Não fazia ideia como cheguei a esses
lugares, não sei para onde fui quando saí. Foi como um sonho. Até que esta noite aconteceu. Se já
era complicado demais para que eu entendesse, como contar ao Bill a respeito? Parecia impossível.
— Receio não poder explicar.
Constance estava de volta com a água.
— Consegue se sentar, Brant? — perguntou ela.
Assenti.
— Posso tentar.
Mais uma vez, eles gentilmente me ajudaram e pela primeira vez me senti um pouco mais
humano. Me sentir humano era uma coisa muito boa de sentir.
Constance me entregou cuidadosamente o copo d'água e eu o peguei. Parecia tão pesado.
Tinha tanta substância. Era tão... sólido. Realmente existia de uma maneira realmente existente.
Fiquei olhando para ele.
— Brant, você está bem?
— Boa pergunta, garota do cavalo.
Tomei um gole de água. O frio desceu pela minha garganta. Pude senti-lo dentro de mim.
Foi fantástico. Tinha um gosto tão bom. Melhor do que qualquer refrigerante ou bebida chique que
eu já tinha tomado. Tive a súbita ideia absurda de que devia engarrafar e tentar vender. Com certeza
ainda estava meio doido.
— Então — disse, segurando o copo com as duas mãos, curtindo a sensação de frescor —
Quais as novidades?
Constance sorriu, Bill franziu o cenho e eu me senti como a Dorothy em O Mágico de Oz,
finalmente em casa.
— A máquina pertence a Joey Drew — explicou Constance.
— O animador, claro, interessante. Isso explica a tinta? — perguntei. Percebi que Constance
olhou para Bill e me virei para ver sua reação.
— Não tínhamos pensado nesse tipo de conexão — disse Bill.
— Então tá — eu disse.
— Aparentemente, eles precisam consertar a máquina e levá-la de volta para Nova York —
continuou Constance.
— E o monstro?
— Você não é o monstro — disse Bill, mais para si mesmo que qualquer outra coisa.
— Fico lisonjeado por você perceber isso — respondi com um sorriso.
Mais uma vez, a vergonha cresceu dentro de mim. Não fazia ideia de onde estava vindo essa
sensação de remorso. Eu normalmente nunca me senti assim. Acho que sempre senti um pouco de
culpa, aceitando um trabalho que não dava muito dinheiro pela minha própria ambição, sem ajudar
muito a minha família. Então é claro que havia o que eu estava sentindo agora, sabendo que estava
mentindo para o Bill esse tempo todo. Mas eu geralmente conseguia ignorar esses sentimentos.
— Diga, Bill — eu disse. Ele olhou para mim. — Há algo que eu preciso confessar. Estou
com muita vergonha de mim mesmo agora e eu geralmente não sou assim tão humilde. — Ri um
pouco, tentando esconder meu desconforto. Então a dor aguda felizmente cutucou minhas costelas,
bem na hora certa.
— Bom, isso não é nenhuma surpresa — disse Constance. — Veja, essa é a outra coisa que
descobrimos. A tinta parece ter um efeito sobre a pessoa, parece se prender aos demônios internos,

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por assim dizer. — Ela estava olhando tão intensamente para mim. Era quase ridículo. Então ela
disse: — A menos que tenha sido uma piada.
— Foi e não foi — respondi.
— Então, evidentemente, a tinta me deixa apavorado e vou dizer uma coisa agora para vocês
dois: nós não temos tempo para ficar de conversinha assim. Não temos tempo para nada disso —
disse Bill, sua voz realmente tremendo. Isso me abalou. Senti muita pena do cara.
— O que quer dizer? — perguntou Constance.
— O que quero dizer? Esses homens estão consertando a máquina enquanto conversamos.
Eu estava com eles. Querem levá-la embora o quanto antes. O Joey disse que querem levar amanhã.
Não sei nem se ainda estão vivos lá embaixo com aquele monstro à solta, mas nós temos que detê-
los. — Bill estava quase ofegante agora, falando com tanta apressado e sem respirar.
— Bom, é para isso que servem as autoridades — respondeu Constance.
— Não seja ridícula, Constance — disse Bill. Meio que senti como se tivesse um anjo e um
demônio em meus ombros, debatendo um com o outro pela superioridade moral. Foi até um pouco
engraçado, mas também cansativo ficar virando a cabeça de um lado para o outro.
— Por que? É para isso que a polícia existe — disse Constance.
— Bom, talvez em outras cidades, mas aqui em Atlantic City, a polícia é só o sistema de
segurança pessoal do pai dele — disse, querendo um papel nessa performance.
Bill olhou para mim por um momento e então assentiu.
— Exatamente. E parece que meu pai e o Joey estão pensando em trabalhar juntos.
— Ah — disse. — A peça que faltava no quebra-cabeça. Aqueles homens de Nova York...
pensei que fossem da máfia.
— Acho que também são investidores em potencial. Acho que o Joey Drew Studios pode
estar precisando de uma injeção de dinheiro.
— Os desenhos certamente já não são mais tão populares quanto costumavam ser — disse
Constance. Ela pensou por um momento. — Aquela máquina e toda aquela tinta. Será que é uma
nova maneira de fazer desenhos animados? Ou talvez de inventar um novo tipo ou forma de fazer
filmes que ainda nem conhecemos. Certamente é um novo tipo de tinta.
— Isso é certeza — disse baixinho.
— Se não podemos chamar as autoridades, então o que vamos fazer, Bill? — Ela também
parecia ansiosa, mas, ao mesmo tempo, quase... irritada.
— A máquina precisa ser destruída.
Houve um silêncio completo então.
— Esta noite — acrescentou Bill, caso não já não fosse óbvio.
— E como você propõe que façamos isso? Nós mal conseguimos sobreviver da última vez
— disse Constance, parecendo ainda mais frustrada.
— História engraçada. Eu não sobrevivi — acrescentei.
Ninguém achou engraçado. Mais uma vez, senti a vergonha. Essa tinta com certeza estava
me afetando, e como.
— Não tem “nós”, Constance. Eu é que tenho que ir. Sou o único aqui que sabe alguma
coisa sobre máquinas, e é culpa minha vocês dois terem se metido nisso. E é culpa do meu pai o
Joey ter dinheiro para fazê-la voltar a funcionar. Além disso, — disse Bill — eu conserto coisas. É
o que eu faço. Tenho que consertar tudo isso.
— Ah, me poupe — disse Constance. — Estou farta de garotos que pensam que tudo é sobre
eles. Você pode entender a máquina, mas eu entendo a tinta. Então, se esse é o plano, eu vou ajudar.
— É perigoso — disse Bill.
— Eu não ligo. Quero fazer algo importante. Por que é que ninguém me deixa fazer algo
importante? — Ela se levantou numa onda de raiva.
— Sabem o que mais? — acrescentei. — Me deixem ajudar. Aposto que eu consigo andar.
Provavelmente. — Outra tentativa de diminuir a tensão com humor, mas falhou outra vez. Plateia
difícil, como diria Bob Hope.
— Não seja bobo, Brant — disse Constance, fazendo pouco-caso.
— Não, olha, isso vai render uma baita história. Vai ser um furo daqueles — disse.
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— Como assim? — perguntou ela.
— Como assim o quê?
— O que seria “um furo daqueles”?
Percebi então o que eu havia dito. A vergonha me consumiu, rápida e furiosa. Eu estava me
afogando de novo, mas desta vez não numa gosma preta e espessa. Olhei para Bill, que olhou para
mim. A traição era tão fácil de ler em seu rosto que era quase como se tivesse a palavra estampada
no meio da testa.
— Você é um repórter — ele disse daquele seu jeito de quem pergunta sem perguntar. — É
claro que é. Foi só por isso que você quis ser meu amigo, não é? Foi por isso que estava lá naquela
noite. Você nos seguiu. Para conseguir uma história.
— Olha — eu disse, tentando me elevar um pouco mais, mas escorregando no travesseiro,
— Sim, mas ainda acho você um cara legal, Bill. Acho que somos amigos de verdade, mesmo que o
começo não tenha sido... tão real.
— Não consigo acreditar. Como pôde fazer isso comigo?
— Bill, quando você para pra pensar, não é tão ruim. As pessoas se conhecem em todo tipo
de circunstância. É o que acontece depois do fato...
— Você nos pediu para abrir aquela geladeira. Você fez isso por uma história?
— Bom...
— Chega! — disse Constance, a voz alta e furiosa. — Não vou ouvir nem mais um segundo
disso. Os dois não estão cientes de que o nosso tempo está se esgotando? Quem se importa se vocês
são amigos de verdade ou não? Em que mundo isso importa quando há um monstro à solta e uma
máquina cheia de uma tinta que pode destruir a todos nós será enviada amanhã para a maior cidade
da América?
Houve mais silêncio, pelo menos o meu, cheio de mortificação. E se o que Bill disse fosse
verdade sobre os efeitos da tinta sobre ele, eu não ficaria nem um pouco surpreso se ele estivesse
completamente apavorado com a Constance naquele momento.
— Você está certa — disse ele.
Assenti para concordar.
— Bom. Então, vamos destruir essa máquina?
— Sim — disse Bill.
Assenti para concordar novamente.
— Bom — disse Constance. Ela respirou fundo para se acalmar e soltou o ar. — Agora,
deixem-me tirar esse roupão.

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— Você está igualzinha à Katharine Hepburn —
disse Bill enquanto segurava a porta do táxi aberta para mim. Disse baixinho, quase num sussurro,
como se estivesse com medo de estar me insultando, e também como se não quisesse que Brant
ouvisse. Lembrei a mim mesma que tudo o que ele fizesse ou dissesse estaria tingido de medo.
— Obrigada — disse. Eu não me achava muito parecida com a atriz famosa, mas estava de
calças compridas e ela era conhecida por sua elegância ao usá-las. Da minha parte, só pensei que
destruir máquinas perigosas seria menos prático de saia. A estética nem me passou pela cabeça.
— Então é aqui que o mundo acaba, hein? — disse Brant, chegando ao nosso lado e olhando
conosco para o barzinho imundo.
— Esperamos que não — disse. — Vamos, mostre o caminho, Bill. Não temos tempo para
admirar a paisagem. — Fique calma, disse a mim mesma, fique calma.
Bill assentiu e nos levou para dentro, depois para a sala dos fundos. Ninguém nos parou; não
havia muitas pessoas para fazer isso de toda forma, mas nem mesmo o barman parou para nos olhar
direito. Ele sabia o que espreitava embaixo dele? Ele se importava?
Entramos na sala dos fundos vazia e Bill colocou sua bolsa de ferramentas no chão e tateou
cuidadosamente a parede dos fundos. Ele parou, sorriu consigo mesmo, respirou fundo e empurrou.
O painel de madeira em suas mãos se deslocou um centímetro para frente e deslizou para o lado.
— Eu odeio entradas secretas — disse, pensando naquela maldita porta de metal na fábrica.
— Eu odeio mais — respondeu Brant. Olhamos um para o outro e ele me deu uma piscadela.
Só o fato de ele sequer estar de pé já me impressionava, mas o de estar andando e fazendo piadas
era nada menos que milagroso.
— Anda, anda, anda — disse Bill freneticamente.
Acendi minha lanterna e atravessei o buraco na parede. O chão se inclinava para baixo e eu
iluminei o espaço à frente com a luz. Toda a extensão túnel estava completamente escura, mas ao
lado havia uma esteira rolante. Esses contrabandistas pensaram em tudo.
Mais luz inundou o túnel e olhei para trás para ver Bill e Brant chegando ao meu lado.
— Vamos — disse Bill, e começou a descer o túnel. Fomos atrás dele e achei interessante
como o medo também podia impulsionar uma pessoa, não apenas segurá-la. Havia o medo da coisa.
Mas também havia o medo de não fazer a coisa. Neste caso, acredito, o medo do que aconteceria se
não quebrássemos a máquina. Se ela fosse levada de volta a Nova York.
Nós o seguimos pelo túnel, cercados pela luz de três lanternas. A escuridão seguia atrás de
nós e, de vez em quando, eu olhava para a negritude, me perguntando se havia algo nas sombras. Se
o monstro estava nos perseguindo e não o contrário.
Apertei com força o atiçador de fogo que carregava na mão direita, só para me lembrar de
que estava ali. Não tinha muita certeza do que faria com ele — ninguém nunca me ensinara a lutar.
Mas eu sabia que a raiva constante dentro de mim me diria o que fazer.
O vazio escuro à nossa frente tornou-se repentinamente mais e mais claro, até que paramos
em frente a uma parede. O túnel bifurcou agora. Tínhamos uma escolha entre esquerda ou direita.
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— Qual lado, Bill? — perguntei, frustrada com sua indecisão. Afinal, ele devia ser o nosso
líder. Ele já tinha estado ali antes.
— Esquerda — ele disse, não soando inteiramente certo. — Com certeza esquerda.
Nós o seguimos para a esquerda, mas quando viramos, apontei minha lanterna para a direita,
só para ver se havia algum indício da máquina naquela direção. Só o que havia era mais escuridão.
Continuamos seguindo pelo túnel. Nossas lanternas destacavam vazios negros repentinos na
parede, saídas de outros túneis. Continuamos em frente, mas fiquei maravilhada com tudo aquilo.
Com o tamanho desse sistema subterrâneo. Como tinham construído tudo isso? Foi construído para
transportar álcool ilegal ou alguma parte já existia antes?
Não importava. Nenhuma das minhas perguntas importava.
Só o que importava era a tarefa diante de nós. Nós tínhamos que conseguir. Era isso ou nada.
Chegamos a outra parede. Outra bifurcação no caminho.
Bill parou.
— Qual lado? — perguntei novamente, sentindo-me ainda mais irritada. Isso não devia estar
demorando tanto.
— Eu não sei — respondeu ele.
— Você não sabe? — perguntei. Mas que absurdo!
— Não cheguei até aqui — ele abaixou o tom quando disse isso. Quase envergonhado. Ele
virou a lanterna para um lado e depois para o outro. — Eu... não sei. — E voltou a virar a luz da
lanterna para ambos os lados. — Eu não sei, de verdade mesmo. — A luz começou a tremer, e eu
olhei para a mão dele. Seu corpo inteiro estava tremendo. Ele estava em pânico. Nós não tínhamos
tempo para isso.
— Ei — disse Brant, aproximando-se dele e pondo a mão em seu ombro. — Vamos seguir a
esteira rolante. — Ele apontou com a luz da lanterna para a direita e, bem como dissera, havia outra
esteira rolante ao longo da parede oposta. Bill também olhou. Ele assentiu.
— Sim, faz sentido — disse ele.
— Mostre o caminho — disse Brant, dando-lhe um tapinha amigável nas costas.
Bill assentiu e então virou à direita. Nós voltamos a segui-lo. Parecia que o seguiríamos para
sempre. Eu não aguentaria muito mais disso. Minha pele coçava de frustração. Estava me sentindo
como uma criança pequena querendo gritar: “já chegamos?”
E então...
Nós chegamos.
Outra parede, mas não outros túneis. Havia uma fenda em forma de porta nela e um desnível
na altura da mão. Bill imediatamente descobriu como abri-la, deslizando-a para a esquerda. Tantas
portas de correr.
E então, lá estava. Bem ali. Estávamos no outro extremo da sala, de frente para a parte de
trás da máquina.
Meu coração instantaneamente subiu à garganta quando as memórias voltaram à tona. Não
queria pensar em nenhum monstro à espreita nas sombras, então rapidamente atravessei a sala e
acendi as luzes. Elas piscaram um pouco antes de ganharem vida e iluminarem o espaço familiar.
Olhei em volta. Vi a geladeira, a porta ainda aberta. Bem, pelo visto, não haviam recapturado a fera.
Claro que não. Quanta incompetência.
— Muito bem, Bill — disse Brant. Mais uma vez, Bill apenas assentiu. — Por que você não
senta e descansa um pouco?
— Não temos tempo para isso — eu disse do outro lado da sala. Como alguém poderia
descansar em um momento como este?
— Sim, temos — respondeu Brant, me fitando com um olhar cheio de significado. Garotos e
esses seus olhares. Metade do tempo eles nem sabiam qual era o significado por trás do olhar, e
deixavam para o resto de nós a tarefa de decifrar alguma profundidade.
— Não, nós não temos. — Olhei para a porta secreta aberta. Do outro lado, não havia nada
além de escuridão. Não, não nada. Em algum lugar lá fora, espreitava um monstro que queria matar
todos nós. Se não tivesse medo de alertar a fera sobre a nossa presença, teria gritado de frustração.

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Brant ajudou Bill a se sentar, apoiando-o na parede, e então veio até mim. Eu podia ver a dor
em cada passo que dava.
— Não podemos deixar a tinta vencer. Não deixe sua raiva assumir o controle, boneca.
— Não me chame de boneca — disse.
— Desculpa, não vou chamar de novo. Deixe-o se recuperar. Ele não vai conseguir fazer o
trabalho direito. Levará menos tempo assim. Você sabe que é verdade.
Eu entendia o que ele queria dizer, mas parecia impossível apenas sentar e esperar que Bill
superasse o medo que ele nunca poderia superar. Assim como eu nunca superaria essa raiva. Assim
que terminássemos tudo isso, eu faria outro frasco da solução. Eu nos consertaria. Eu também podia
consertar coisas.
Fui andando até a máquina, até o que eu havia decidido ser sua parte da frente, com o tubo
gigante aberto como uma boca escancarada. Olhei para a tinta preta que cobria todo o interior, para
a escuridão e as sombras.
— Não toque nela! — gritou Bill de onde estava no chão.
— Não vou tocar — disse o mais calmamente que pude. Eu não tinha intenção de tocar na
máquina. Me lembrava claramente daquela noite. Me lembrava do Brant, pondo a mão ali dentro, e
então do som do monstro. Um monstro que ainda deve estar solto em algum lugar.
— O que fazemos agora, Bill? — perguntei.
Bill continuava ali sentado feito um peso morto, olhando para o chão. Ele respirava fundo,
soltava o ar e repetia o processo. Estava perdendo tempo. Estava sendo indulgente. Estava sendo um
garoto rico que nunca teve problemas reais do mundo real sobre os ombros até agora. E agora que
estava acontecendo, não conseguia enfrentá-los. Com tinta ou sem tinta, este era quem ele era. Eu
não aguentei. Não ia tolerar isso. Por que estava ali sentada esperando que ele tomasse todas as
decisões? Eu também tinha um cérebro. Sabia o que precisava ser feito. Precisávamos destruir a
máquina. Era simples assim; provavelmente nem precisávamos do Bill para fazer isso. Afinal,
quebrar coisas é muito mais fácil que consertá-las. Marchei para o outro lado da máquina, onde
ficava o grande cano curvado. Levantei meu atiçador e, com um urro gutural vindo de algum lugar
bem no meu íntimo, apunhalei a lateral da máquina.
— Não, Constance, não! — gritou Brant.
A lança perfurou o metal. Fiquei chocada quando ela mergulhou fundo na máquina. Nunca
imaginei que meu plano funcionaria. Acreditava que não seria forte o suficiente, ou que o metal da
máquina seria impenetrável. A tinta preta jorrou e começou a cair como chuva sobre mim. Puxei o
atiçador com força e o desalojei, caindo de costas no chão. Observei enquanto a tinta tateava o chão
com seus dedos estranhos, vindo em minha direção. Me arrastei para longe dela, olhando atordoada
para a bagunça que tinha feito.
— Constance, você está bem? — perguntou Brant, mancando e curvando-se ao meu lado.
— Estou bem, eu... não pensei que isso fosse acontecer. Só estava... com raiva. — Estava
tremendo agora. Minha vez, eu acho. O que eu tinha feito?
O que eu tinha feito?

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Era tudo culpa minha. Não era um demônio
interno mentindo para mim bem lá no fundo, tentando me manter aqui paralisado, incapaz de me
mover, de respirar. Era a verdade completa. Se eu não tivesse me oferecido para trabalhar para a
Gent, se não tivesse trazido a Constance para cá, se o Brant não tivesse nos visto e seguido, nada
disso teria acontecido. O monstro teria continuado trancado. O Sr. Connor e Joey Drew e quem quer
que também trabalhasse para eles teriam consertado a máquina e a levado embora. Seria como se
nunca tivesse existido. Todos nós poderíamos ter continuado nossas vidas e ter sido felizes.
Quando a tinta espirrou da máquina e começou a se acumular à nossa volta, eu me perguntei
se não deveria simplesmente me deixar afogar. Se não seria melhor que eu deixasse a tinta cobrir o
meu corpo e eu explodisse como o Brant.
— Me desculpe, Bill. Se eu não consigo controlar, por que deveria esperar que você
conseguisse? — O pedido de desculpas desolado de Constance ecoou ao meu redor, como se ela
não estivesse realmente ali, como se fosse um espírito falando comigo. — Por favor, Bill, você
precisa nos ajudar.
Que tipo de ajuda eu poderia oferecer? Eu conserto coisas. Que piada. Eu destruo coisas,
assim como o meu pai. Finjo ser algo maior do que sou.
— Bill, vamos, anime-se! — Era o Brant agora, ecoando em meu ouvido. Eles estavam aqui.
Estavam bem ao meu lado, mas pareciam tão distantes.
— Eu não consigo. É mentira. Eu não conserto nada. Eu destruo tudo.
Podia sentir a Constance bem perto de mim, mas não conseguia olhar para ela. Olhava
apenas para a poça de tinta, estendendo-se cada vez mais, procurando por nós.
— Mas essa é a boa notícia — disse Constance. — Precisamos que você destrua a máquina.
Me sentei diante desta informação. Percebi que era a verdade. Finalmente ergui o olhar.
Constance estava coberta de manchas pretas de tinta, Brant estava com as mãos nas costelas. Era
hora de fazer isso. Me levantei devagar. Senti todo o meu corpo ficar dormente. Não sabia dizer se
estava suportando meu próprio peso ou não. Mas eu estava de pé.
— Suas ferramentas, senhor — disse Brant com um sotaque extravagante, como se fosse
meu mordomo. Queria explicar que mordomos não falam assim, mas essa não era a questão. Ele
estava tentando me fazer rir.
Segui até o outro lado da máquina, tentando com todo o cuidado evitar pisar na poça de tinta
que se estendia em minha direção enquanto eu passava. Cheguei ao painel lateral com o qual ajudei
o Sr. Connor, me sentei e o arranquei. Foi uma sensação boa não ter que me preocupar em ser
delicado e cuidadoso. Destruir coisas exigia muito menos esforço que consertá-las.
— Podemos fazer alguma coisa? — perguntou Constance, agachando-se ao meu lado.
— Fiquem atentos — respondi. — Ao Sr. Connor e ao Joey.
— E ao monstro — acrescentou Brant.
Eu não queria dizer essa parte em voz alta.

130 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eles então me deixaram a sós; o mundo era apenas este pequeno metro quadrado na minha
frente. Peguei minha chave-inglesa e procurei na máquina por qualquer parafuso que pudesse tirar,
ou mesmo apenas afrouxar. Estava escuro dentro dela, mais difícil de ver que da última vez, então
acendi minha lanterna.
— Bill, você tem que se apressar — disse Constance, parada junto à entrada secreta.
— Eu sei — respondi.
— Não, não é isso. As sombras, elas voltaram.
Ergui o olhar. A sala estava ficando mais escura. O medo subiu até a ponta dos meus dedos,
minhas mãos trêmulas de novo. Gotículas de suor se formaram na minha testa. Concentre-se, Bill,
concentre-se. Se eu desfizesse todo o trabalho lá dentro, se conseguisse tirar aquela alavanca...
Trabalhei o mais rápido que pude, mas mesmo com a luz forte da minha lanterna, podia sentir as
sombras se aproximando.
De repente, a alavanca estava solta na minha mão. Eu a tirei da máquina e a coloquei ao meu
lado. Depois arranquei as engrenagens atrás dela. Logo, eu tinha uma pequena pilha de entranhas da
máquina no chão ao meu lado. Peguei tudo e enfiei no meu conjunto de ferramentas, então olhei
para as vísceras da criatura. Será que era o suficiente? Não parecia ser o suficiente. Definitivamente
não era o suficiente. Senti um medo crescente, uma necessidade de eviscerar a máquina inteira, de
virá-la do avesso.
Minha lanterna então fez algo reluzir. Olhei mais de perto, quase enfiando a cabeça dentro
da máquina. Um tubo cromado brilhante que subia pelas vísceras da criatura. Era pequeno, mas
significativo. Feito de um metal diferente do resto da máquina, tinha que ser importante. Peguei
minha chave-inglesa e comecei a mexer no encaixe onde ele dobrava para cima.
Foi quando um rugido súbito quase fez parar meu coração. Não era como um leão ou um
urso; era mais como um grito, um grito agudo com um estrondo baixo no fundo. Fazia gelar até os
ossos. Ergui o olhar. A sala agora estava escura como breu. Não conseguia ver Constance ou Brant,
apenas os feixes de suas lanternas.
— Cadê ele? — perguntei, meu corpo paralisado mais uma vez. Eu não tinha mais forças
para lutar contra o terror dentro de mim.
Os fachos das lanternas percorreram a sala às pressas, procurando.
— Encontrem! — exclamei. Voltei ao cano. Minhas mãos tremiam tanto que não conseguia
segurar a chave-inglesa em apenas uma. Larguei a lanterna; já não fazia sentido tentar usá-la. E
então, usando ambas as mãos, torci o tubo com toda a força.
Houve outro rugido alto, desta vez logo acima de mim. Ergui o olhar novamente e agarrei a
lanterna, virando-a para o outro lado da máquina e para cima. Eu gritei.
Meu feixe pousou em um largo sorriso cheio de dentes. Presas afiadas pairavam sobre mim.
Como o sorriso do Gato Risonho, flutuando bem ali. Mas eu sabia que também havia um corpo,
sabia que o monstro tinha garras. Ele olhou para mim, ou pelo menos pareceu olhar. Eu estava
paralisado. Não conseguia correr. Não conseguia desligar a lanterna.
— Bill, saia daí! — ouvi Brant gritar.
Sim, sim, saia daí. Saia daí, Bill.
Mas e o tubo? Minha mão direita ainda segurava a chave-inglesa dentro da máquina, mas eu
não conseguia desviar o olhar.
A boca pareceu se alargar e se abriu, revelando quão afiados eram os dentes.
Foi quando algo muito estranho aconteceu. Todo o medo, tudo, se foi. Senti uma leveza, um
sentimento de aceitação. Olhei para baixo e vi a tinta se acumulando ao meu redor. A vi subindo
pelas minhas pernas, impulsionando-se para cima de mim. De repente, entendi o termo “conclusão
inevitável”. Me virei para a máquina, minha mão firme como uma rocha. Puxei com força a chave-
inglesa no encaixe do tubo. Senti uma explosão de tinta cobrir minha mão quando o tubo cromado
caiu e eu o peguei com destreza. Joguei-o para longe da máquina, junto com as outras entranhas.
Olhei para o monstro mais uma vez.
Eu venci.
— Bill! — gritou Constance.
E então Brant:
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— Constance, não!
Constance, está tudo bem. Sério mesmo, está tudo bem.
Olhei para a boca escancarada da fera. A luz reluzia no corpo de tinta brilhante do monstro.
Fino, apenas uma sombra. Toda a minha vida eu tive medo do que o futuro me reservava. Mas cá
estava ele, me encarando. Conforme a tinta subia pelo meu torso, eu senti calor, me senti à vontade.
Ergui o olhar para a criatura.
E pela primeira vez em muito tempo, sorri.

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Segurei Constance, que se debatia em meus
braços. Eu mal conseguia segurá-la, ela era forte e determinada. Ela tinha a ira ao seu lado e estava
com raiva de mim por impedi-la de ajudar o pobre Bill. Mas eu tinha a minha vergonha, minha
vergonha que vinha da tinta, e ela me fez segurá-la com força. Porque se não podíamos salvar o
Bill, então pelo menos eu ia nos salvar.
Ele só ficou lá sentado. Ele podia ter corrido. Poderia ter lutado. Mas só ficou lá sentado.
Nós assistimos enquanto a tinta crescia pelo seu corpo. Até o pescoço. Ele ficou lá sentado, sorrindo
feito um idiota. Só sorrindo. Com a fera sorrindo de volta para ele.
E então a boca da fera se escancarou, tão larga que sua mandíbula se deslocou, os dentes
brilhando na luz.
Constance parou de lutar em meus braços. Nós dois apenas olhamos.
E assistimos.
Enquanto Bill sorria, a tinta se arrastou até o alto de sua cabeça bem quando a fera avançou
com tudo para cima dele.
— Não! — gritou Constance, mas eu estava sem palavras. Pela primeira vez. Eu não tinha
nada a dizer. Como isso podia estar acontecendo?
A figura coberta de tinta explodiu quando a fera o envolveu.
— Seu monstro! — gritou Constance, e se virou para mim. — Me solte agora, Brant. — Era
uma ordem, mas eu não consegui. Não sabia o que ela faria quando estivesse livre.
— Ele não está morto — eu a lembrei. Minha própria experiência me veio à cabeça, o
redemoinho e as luzes brilhantes. Ele estaria procurando por nós, procurando ajuda. Se não cedesse
à atração da escuridão. Era uma atração poderosa. Mas talvez ele pudesse resistir. — Eu sei como é.
E você pode trazê-lo de volta, assim como fez comigo!
Isso pareceu acalmá-la.
— Eu posso fazer mais do antídoto — disse ela, juntando as peças de tudo o que eu disse na
própria mente.
— Exatamente.
O monstro rugiu de repente e nós nos viramos em sua direção. Segurei Constance com força,
não para protegê-la, mas por um medo pessoal primitivo. Nós assistimos, congelados, enquanto a
criatura parecia notar a porta aberta para os túneis. Ela caminhou lentamente até lá, olhou por um
momento e depois desapareceu por ela.
— Essa não — disse Constance. — Não! Temos que deter essa coisa!
Eu a soltei ir e disse:
— Sim. Eu tenho.
Ela olhou para mim em total descrença:
— Não seja um herói. Eu posso ajudar.
— Claro que pode, mas você precisa fugir, precisa fazer o antídoto. Então deixe-me mostrar
a esse cabeça de vento quem é que manda — disse com um sorriso. Não estava me sentindo tão
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confiante quanto fingia estar. Eu não fazia ideia de como lutar contra um monstro, mas sentia que
entendia melhor do que ela jamais poderia entender. Sabia pelo menos como era ser uma criatura
desumana gotejante.
Fui andando devagar em direção à poça de tinta onde Bill antes estava. A luz na sala estava
voltando agora que o monstro tinha ido embora. Parei junto à sua caixa de ferramentas e vi a chave-
inglesa ali. Eu a peguei. A tinta subiu pelos meus dedos.
Constance veio até o meu lado.
— Vou levar a bolsa dele. Vamos colocar as peças da máquina dentro. Vou me livrar delas
— disse ela. Nós nos abaixamos e juntos colocamos tudo na bolsa.
Algo afiado espetou meu dedo.
— Ai — gemi.
— Você está bem? — perguntou Constance.
— Estou bem. — Mais uma vez, senti uma vergonha profunda. Tinha sido só um corte. Eu
não estava sendo comido vivo, digamos. — Então temos um plano — disse quando nos levantamos
e Constance segurou a bolsa perto de seu corpo.
Constance assentiu.
— Não importa o que aconteça, você tem que continuar em frente, entendeu? — perguntei.
Eu tinha que alcançar a razão que ainda restava nela, além da sua raiva movida à tinta.
— Entendi.
Avançamos lentamente até o túnel, ela segurando a bolsa com o atiçador de fogo em uma
das mãos, eu com a chave-inglesa. Iluminamos o túnel com as nossas lanternas; a luz seguia forte e
nós sabíamos que isso significava que o monstro estava muito à nossa frente, em algum lugar.
Não dissemos nada um ao outro — nosso plano era simples e burro. Olhei para a chave-
inglesa em minha mão. Seria o suficiente contra um Monstro de Tinta? Provavelmente não. Ri
comigo mesmo. Era tudo tão absurdo. Foi quando notei uma coisa. Levantei a mão para poder ver
melhor, fingindo que estava examinando a chave-inglesa ainda mais de perto.
Ri de novo. É claro. Mas é claro.
Constance olhou para mim.
— O quê? — perguntou.
— Essa coisa toda é bem engraçada quando se pensa a respeito — respondi. Não podia dizer
a ela a verdade. Meu pequeno corte estava sangrando. O que não era grande coisa. Mas o sangue era
preto e eu tinha quase certeza que não era sangue.
— Não, não é — ela contestou.
— Vamos —disse, abaixando a chave-inglesa, e avançamos lentamente pelo túnel escuro.
Voltamos para a escuridão. Éramos caçadores em busca de uma fera. Eu nunca na vida teria
imaginado que acabaria aqui. Depois de tudo isso. Uma história bem bacana. Não que eu tivesse a
chance de escrevê-la.
Estávamos tão quietos, nós dois. Estávamos ouvindo e olhando. A escuridão estava vazia à
nossa frente... por enquanto.
— Se acontecer alguma coisa, você tem que correr. Não é para lutar, entendeu? — sussurrei,
lembrando-a. Sabia que sua raiva com certeza queria fazer o oposto, mas ela não podia.
— Eu sei — disse ela. Parecia obviamente irritada comigo e eu imediatamente quis pedir
desculpas. Mas esta não era a hora nem o lugar.
— Corra sem mim. Eu preciso levar aquela coisa de volta para a sala e prendê-la lá se não
conseguir, bem, você sabe... — parei. A ideia meio que me assustava.
— Matá-la — disse ela, terminando a frase. Acho que a ideia não a assustava tanto. Ela tinha
coragem, essa moça, isso era inegável. Talvez ela fosse quem devia enfrentar a fera. Eu não sabia
quanto tempo me restava.
Podia sentir no meu íntimo. Podia sentir a tinta circulando em minhas veias. Devia contar a
ela a verdade? Que o antídoto era apenas uma solução de curto prazo?
— A luz está ficando fraca — sussurrou Constance.
Eu não tinha notado, mas agora eu vi. Nossas lanternas não pareciam mais encher o túnel
com tanta luz. Prendi a respiração devagar.
134 | B e n d y : O s P e r d i d o s
— Está pronta? — perguntei. A luz enfraqueceu ainda mais. — Tem uma bifurcação no túnel
bem ali, tá vendo? — Havia um buraco escuro na parede; era a melhor rota de fuga possível. Todos
esses túneis tinham que levar a algum lugar.
— Estou vendo.
— Bom.
A luz enfraqueceu novamente.
Aqui vamos nós. Era uma loucura. Mas não éramos todos loucos aqui?
— Se alguma coisa acontecer... — disse.
— Sem mais desculpas — ela respondeu daquele seu jeito direto.
— Bem, só queria dizer que foi bacana à beça conhecer você.
Houve uma pausa e então ela disse:
— Igualmente.
Ela não sabia como eu estava me sentindo. Ela achava que nós conseguiríamos. Que nós
dois conseguiríamos. Ela não sabia que era isso. Que isso era um adeus. Para sempre. Era melhor
assim. Eu pessoalmente não gostava muito de despedidas. Elas nunca se eram satisfatórias. Nunca
cumpriam bem o seu papel.
A luz se apagou.
— Está aqui.
Houve um rugido repentino e o monstro estava nas minhas costas, me empurrando para o
chão. Podia sentir sua estranha pele molhada, suas garras rasgando minha camisa. A tinta em minhas
veias pareceu pulsar e correr pelo meu corpo mais rápido. Perdi o fôlego quando caí com tudo. Mas
consegui gritar na escuridão:
— Constance, corra!
Me debati no chão e finalmente consegui virar meu corpo, balançar a chave-inglesa e acertar
o monstro bem na cara. Ele urrou e olhou para mim, como se mal tivesse sentido o golpe, e recuou
quase em confusão, me dando um momento para me levantar num pulo, bloqueando a saída do
túnel. Ataquei novamente, e ele cambaleou para trás, inclinando ligeiramente a cabeça para mim,
quase como se estivesse surpreso. Isso era bom. Era muito bom.
Olhei em volta. Constance não estava à vista; isso também era bom. Ela tinha ido embora.
Ela estava segura. Alguém tinha que sair daqui, e ela era um ótimo alguém. Fui atingido no rosto e
voei contra a parede do túnel. Percebi naquele pequeno momento que uma das mãos da criatura era
menor que a outra. Interessante. Me impulsionei para fora da parede e parti para cima do monstro
aos tropeços.
— Anda, vem cá! — gritei, me debatendo freneticamente. Cada centímetro do meu corpo
gritava de dor, não apenas minhas costelas, mas minhas entranhas, elas só queriam estourar dentro
do corpo, estourar como uma bolha. Eu me segurava à minha pele como um chapéu prestes a ser
levado pelo vento em meio a uma tempestade. Mas eu não podia ceder.
O monstro parecia saber que algo estava acontecendo dentro de mim. Ele se lançou contra
mim e revidou, mas não mordeu, não arranhou, e eu caí novamente no chão frio de pedra. Ele veio
para cima de mim e rugiu tão alto que pensei que meus tímpanos iam estourar. Não tinha como
derrotar essa fera em uma luta. Mas havia uma coisa que eu podia fazer.
Lancei minha mão para cima com toda a força. A chave-inglesa tocou o alvo algumas vezes,
fazendo com que a criatura uivasse e se lançasse para trás, parando novamente por um momento e
ficando ereta para olhar para mim. Mais uma vez parecia confusa, perguntando-se por que eu lhe
tocaria tão suavemente com esta coisinha de metal. Mas foi uma pausa suficiente para eu me erguer,
abrir caminho entre as pernas da fera e começar a correr.
Vamos, siga-me, seu demônio de tinta. Eu o ouvi atrás de mim, vindo em minha direção.
Bom. Eu só tinha que levá-lo de volta para a sala da máquina. Eu só tinha que chegar lá. Então eu
poderia deixar para lá, poderia deixar tudo isso para lá.

135 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Eu corri. Corri energizada pela raiva e pelo
medo. Não, disse a mim mesma, não medo. Nervos, como a Lily chamava. Veja pelo lado positivo.
Continuei descendo o túnel. Não fazia ideia de para onde ele levava, só o que sabia era que levava
para longe do monstro. Mas também para longe do Brant. Era tão injusto. Ele estava em perigo de
novo. Estava colocando sua vida em risco de novo, logo depois que eu o trouxe de volta. Eu era a
mais apta para essa situação. Era eu quem deveria estar enfrentando a fera. Meu estômago revirou,
como se estivesse tentando me fazer voltar atrás dele. Antes que fosse tarde demais. Antes que eu o
perdesse. De novo.
Não. Balancei a cabeça para me livrar desses pensamentos. Mesmo que o pior acontecesse,
eu podia salvá-lo. Eu tinha o antídoto. Eu salvaria o Bill, salvaria todo mundo.
Era incrivelmente difícil correr em qualquer velocidade, segurando aquela bolsa cheia de
ferramentas e pedaços de máquina, além do atiçador e da lanterna. Eu avançava aos tropeços, me
sentindo ridícula e irritada por não poder simplesmente correr. Mas o que eu poderia deixar para
trás? Certamente não a lanterna, nem o atiçador. E o objetivo era me livrar da bolsa. Não podia
simplesmente deixá-la num túnel para um dos homens da Gent ou esse tal de Joey Drew.
Os desenhos animados de Joey Drew.
Era exatamente isso o que parecia. Eu estava correndo em um desenho animado, as paredes
do túnel passando por mim, sempre iguais, sem fim, carregando comigo uma quantidade absurda de
adereços. Como podia ser a vida real?
Eu derrapei até parar de súbito em uma bifurcação. Não havia uma esteira rolando para me
dizer qual caminho seguir. Olhei para a esquerda, depois para a direita. Então olhei diretamente para
frente. Não, eu não ficaria intimidada com essa escolha. Usaria a lógica para achar a resposta. Dei
um passo à direita. Não havia nada à vista a não ser mais um túnel. Podia sentir um nó se formando
no meu estômago. Então fechei os olhos e escutei. Me esforcei para ouvir alguma coisa, nem sabia
o quê, mas talvez houvesse alguma coisa. Também tentei sentir algum cheiro, embora o único em
volta fosse o forte cheiro daquela tinta estranha. Podia sentir as gotas se movendo pela minha pele,
tentando encontrar uma forma de tomar o controla, mas eu não deixaria.
Então abri os olhos e dei um passo à esquerda. Me esforcei novamente para ouvir alguma
coisa, qualquer coisa.
Ondas. Aquele era o som de água corrente? Estava sentindo o cheiro de sal no ar?
Eu não era um cão de caça, não sabia dizer essas coisas com certeza, e minha mente estava
desesperada, então talvez fosse só coisa da minha cabeça. Mas foi o suficiente para eu escolher o
lado esquerdo.
Comecei a correr novamente. Não me sentia cansada, embora meus músculos doessem. Me
sentia grata pela minha raiva. Ela me estimulava. Me fazia querer sair dali e, mais importante, me
dava confiança de que estava certa em todas as minhas decisões. Eu sabia que ela provavelmente
era problemática no mundo real, mas neste estranho mundo subterrâneo, eu era como a Alice do
livro. Esta não era realidade.
136 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Era o País das Maravilhas. Eu estava caindo em um buraco, mas estava correndo ao longo
dele e o buraco estava de lado.
Somos todos loucos aqui.
Agora eu ouvi as ondas. Ouvi de verdade, não apenas talvez. Apertei o passo, segurando a
bolsa com força contra o peito. Corri em direção ao som e depois ao cheiro, o cheiro do ar, do sal e
do mundo exterior.
— Estou chegando! — gritei enquanto corria em frente.
Eu estava quase lá, eu podia sentir. Podia sentir no rosto, na pele. Eu estava quase lá.
Algo me puxou com força por trás. Minha cabeça se virou num estalo, como um chicote, e
eu e tombei de costas no chão, derrubando tudo o que levava nas mãos. Minha lanterna rolou pelo
chão, iluminando agora o caminho atrás de mim. Me sentei por um momento em puro choque que
logo se transformou em raiva. Estendi a mão para pegar o atiçador que estava longe demais para
que eu alcançasse. Vi uma sombra ao longo da parede, uma criatura. O monstro? Não. Parecia ter
duas orelhas compridas. Como um coelho, ou possivelmente uma espécie de cachorro. Mas era alto
e de tamanho humano. E, um instante depois, já não estava mais lá.
A sombra desapareceu no corredor. Ela me deixou. Me atacou e depois simplesmente me
deixou. Eu não entendi.
Me virei para olhar a bagunça à minha volta. Observei enquanto o atiçador rolava alguns
centímetros para longe até que, de repente, desapareceu.
Podia ouvir as ondas mais alto agora. Peguei a lanterna às pressas e a iluminei o caminho à
frente. Fiquei no chão, rastejando lentamente para frente. O som das ondas inundou tudo à minha
volta e eu de repente estava muito consciente dos meus arredores. Eu não estava em um sonho,
estava em um túnel construído por contrabandistas na década de 1920. Era tudo muito real.
Continuei rastejando em frente e então vi a borda. O chão simplesmente acabou, sumiu sem
qualquer aviso. Impossível de ver no escuro. Deitei de bruços agora e serpenteei em frente, o chão
áspero arranhando minha blusa e minha pele. Estendi a mão direita e passei os dedos pela beirada,
me puxando para frente. Devagar e sempre, cheguei à borda e olhei.
Tinha água lá embaixo, correndo e batendo em uma caverna. Estava a cerca de dez metros
de distância, com rochas salientes. Examinei tudo com a lanterna e me perguntei por que esse lugar
existia. A que propósito poderia servir? Então me ocorreu. Maré alta. Apontei a luz para o vazio
escuro à minha esquerda. Não era mais a caverna, era o mar. Era o mundo exterior. Eles podiam
despachar o uísque daqui, carregar os barcos. Imaginei se tinha sido assim que trouxeram a máquina
para cá para começo de conversa.
Essa era a saída? Agora eu simplesmente esperava? Eu sempre tive paciência no passado;
minha vida inteira, eu sempre tive que esperar pelas coisas. Tinha que esperar por pessoas, esperar
por momentos de silêncio para finalmente ficar com os meus próprios pensamentos. Mas agora eu
sentia que ela tinha acabado. Como diabos eu deveria usar um poder do qual me ressentia tanto
agora? A ideia fez eu me coçar por inteiro.
Olhei por cima do ombro para a escuridão. Aquela coisa de orelhas compridas me salvou de
passar por cima da borda. Não tinha me atacado. Queria me ajudar. Que outras criaturas haviam na
escuridão? Estavam todas de alguma forma ligadas à máquina, atraídas por ela como um ímã, ou
viviam dentro dela e foram libertadas quando abrimos a geladeira? Ou quando eu perfurei o cano?
Ou em algum outro momento que ainda não havíamos conectado a tudo isso? Será que havia uma
ciência que pudesse explicar tudo isso?
Não. Não havia. E quem é que ligava? Isso era perigoso e imprudente. Era mais uma vez um
certo grupo de pessoas tomando decisões sem se importar com o resto de nós. Peguei a bolsa de
ferramentas e me levantei devagar. Senti uma confiança renovada e fiquei na beirada, com os dedos
dos pés pairando sobre a água lá embaixo. Segurei a bolsa em meus braços e então respirei fundo,
juntando toda a raiva que tinha dentro de mim, e a joguei na água agitada. Observei enquanto ela
caía em meio às ondas e imediatamente desaparecia.
Senti um peso deixando meus ombros. Pelo menos isso já estava feito. Agora eu tinha que
fazer a outra coisa. Eu tinha que fugir.
— Socorro! — Uma voz gritou em meu ouvido.
137 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Fui novamente agarrada por trás e desta vez puxada para me encontrar cara a cara com um
homem de olhos enlouquecidos. Ele estava encharcado de tinta, mas ainda podia ver que estava
usando um macacão com a palavra “Gent” estampada. O nome Scott também estava ali embaixo,
manchas de tinta obscurecendo-o parcialmente. Não era uma criatura de tinta, era um ser humano.
Mas parecia mais um animal do que qualquer coisa.
— Socorro! Está atrás de mim, você tem que me ajudar! — Ele olhou para mim com olhos
selvagens e depois por cima do ombro outra vez. Meu cérebro de cientista assumiu o controle e
conseguiu me manter calma, contendo até a minha raiva, apesar do meu desejo de tirar suas mãos
de cima de mim. Disse a mim mesma que seu comportamento era provavelmente o efeito da tinta
sobre ele, direcionado à sua paranoia.
— Vou tentar. Você sabe onde é a saída? — perguntei, tentando controlar meu temperamento.
Como poderia ajudá-lo se não podia nem me ajudar?
— Não há saída — respondeu ele, balançando a cabeça. Ele repetiu isso de novo e de novo.
— É claro que há. Tem o caminho do bar. Tem outros túneis — disse, tentando refrescar sua
memória. Ele claramente tinha enlouquecido por estar perdido ali embaixo com o monstro por sabe-
se lá quanto tempo.
Ele continuou balançando a cabeça.
— Não, não, não. Você não pode ajudar. Ninguém pode ajudar. Ele vai matar todos nós. —
Ele caiu com tudo no chão. Me lembrou agora do Bill. Sentado lá. Apenas olhando para a fera. Sem
revidar. Isso me deixou com tanta raiva.
Me virei para a água. Caminhei até a borda mais uma vez e olhei para baixo com a luz da
minha lanterna. As rochas eram irregulares, mas havia um espaço vazio. Logo abaixo. Mais ou
menos do tamanho de uma piscina. Como uma pequena piscina para um mergulho a cavalo. É mais
fácil mergulhar na água sem um cavalo, disse a mim mesma. Bem mais fácil.
Me virei para o Scott.
— Temos que mergulhar — disse. — Acho que podemos conseguir.
Ele continuou sentado à beira da luz. Ele balançou a cabeça.
— Não, não, não.
— Venha comigo — disse. Queria soar gentil e tranquila, mas as palavras saíram como uma
ordem rude.
Ele foi se afastando devagar da minha mão estendida. Balançando a cabeça. Balançando a
cabeça. Balançando a cabeça dele.
Até que as sombras o envolveram.
Eu olhei para a escuridão, ouvindo o eco de um “não, não, não” enquanto ele recuava pelo
túnel. Até que parou. Tudo o que eu ouvia eram as ondas quebrando abaixo.
De repente, um enorme urro de agonia ressoou pelo túnel, fazendo reverberar até os meus
ossos. O monstro. Brant o havia matado? Era esse o som que eu tinha ouvido?
Me lembrei da minha tarefa. A primeira parte estava feita, eu tinha me livrado das peças da
máquina. Parte dois, chegar em casa para fazer o antídoto.
Era hora de fazer o trabalho.
Eu me virei e encarei a água agitada abaixo. Apontei a lanterna para lá e examinei a pequena
área que parecia segura. Direto para baixo. Só isso. Não era longe.
A água se agitou. Eu olhei para ela.
Fechei os olhos.
Abaixe a cabeça, Constance. Faça o trabalho.
Dê um jeito.

138 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Consegui que ele me perseguisse até a en-
trada e estava exausto com esse nosso jogo de gato e rato. Qualquer adrenalina que antes estivesse
bombeando dentro de mim, escondendo a dor que eu estava sentindo, agora decidiu revelá-la como
uma sobremesa surpresa especial em um restaurante chique: ta-dá! E era insuportável.
Me virei para atacar o monstro e ele agarrou a chave-inglesa com a mão. Estava farto do
meu brinquedinho, percebi. Não tive força para puxá-la de volta e, em vez disso, a criatura a soltou
e eu acertei com tudo embaixo do queixo, batendo meus dentes uns nos outros com força. Caí para
trás, de costas, batendo a cabeça num baque surdo. Fiquei ali, tentando recuperar o fôlego, e levei a
mão à boca. Podia sentir o gosto de sangue. Mas não era salgado. Era diferente. Familiar. Levantei a
mão e olhei para ela. Bem como eu imaginava, tinta preta. Estava escorrendo de dentro para fora.
Meus ouvidos zumbiam.
Eu estava tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Me senti completamente envergonhado. Eu
só tinha uma coisa a fazer, só uma. Fui trazido de volta por uma única noite, só para fazer isso. Só
esta noite. Eu ri. Estava sentindo aquela estranha sensação de embriaguez de novo, com a cabeça
leve e o riso solto.
— Só esta noite: Brant Morris contra o Monstro de Tinta, hoje no Top Hat Nightclub — eu
disse em voz alta. Ri um pouco mais.
Então fechei os olhos, senti aquela atração, vi a escuridão rodopiante, quis ceder e me deixar
derreter. Queria penetrar nas rachaduras de mim mesmo. As sensações eram tão familiares agora.
Eu já tinha passado por isso antes. Não. Não, ainda não. Eu tinha que levantar. Tinha que ir até o
fim. Abri os olhos novamente.
Pairando sobre mim estava o monstro. Estava tão perto que eu podia sentir seu hálito fétido
no rosto. Podia ver dentro de sua boca, além dos dentes afiados como tesouras, a escuridão absoluta.
Eu não fazia ideia do que ele estava fazendo, mas fiquei completamente imóvel. Não queria mover
um centímetro sequer.
Devagar, ele se afastou de mim, ficando de pé em toda a sua altura. Meus dedos tatearam
cuidadosamente o chão em busca da chave-inglesa. Toquei em algo metálico. Estava um pouco longe
demais para que eu pegasse. O monstro abriu bem a boca, o maxilar dilatado, os dentes afiados. Ele
soltou um urro estridente, o som fez seu sangue gelar.
Continuei tentando pegar a beira da chave-inglesa. Olhei para ela e com toda a vontade que
me restava no corpo e me lancei em sua direção, bem quando a fera se lançou contra mim.
E uma figura escura se lançou contra ela.
Uma figura que parecia ter vindo do nada voou sobre mim como o Superman. Ela atingiu o
monstro nas pernas e o monstro vacilou, perdendo ligeiramente o equilíbrio. A figura saiu de vista e
o monstro se virou, partindo para cima dela ela em meio a um urro gutural. Então vi a figura se
erguer e correr às pressas para a sala da máquina, o monstro em seu encalço. Me levantei num pulo,
a adrenalina correndo pelo meu corpo para um último ato de bravura.

139 | B e n d y : O s P e r d i d o s
Uma vez de pé, eu agarrei a porta, pronto para fechá-la com tudo atrás do monstro, quando
finalmente vi a figura. Preta como tinta, pingando, como a forma de uma pessoa, mas sem feições.
Ela se virou para mim por um momento. Posso jurar que estava olhando para mim. Então pensei: eu
estava assim? Essa coisa é o que eu era, o que eu me tornaria de novo? Era como olhar para um
espelho e uma máquina do tempo ao mesmo tempo. Eu não queria mais fechar a porta. Eu queria
ajudar a figura. Enfrentar o monstro ao lado dela.
Então ela acenou com a cabeça para mim. Um aceno. Foi tão humano. Era quase como se
me conhecesse. Como se tivesse me reconhecido.
— Bill? — perguntei.
A figura se virou para o monstro e se lançou contra ele novamente. Foi inútil. O monstro era
enorme, mas foi distração o suficiente para que eu conseguisse fechar a porta e trancá-la, o coração
palpitando no peito. Fiquei parado ali no túnel escuro. Estava me sentindo completamente exausto.
Esgotado. Acabado.
Virei as costas para a porta e deslizei por ela. Pronto. Eu tinha conseguido. Não, nós tínhamos
conseguido. Obrigado, Bill. Fiquei pensando se conseguiria me comunicar com ele de novo quando
voltasse para aquela forma de tinta.
Será que havia outros? Havia pessoas em Nova York que tiveram um destino semelhante?
Tínhamos feito o nosso melhor para evitar que isso voltasse a acontecer. Mas será que já não tinha
acontecido? Não era tarde demais?
Se houvesse outros, pensei enquanto fechava os olhos, pelo menos não estaríamos sozinhos.
Poderíamos nos perder juntos na imensidão do vazio.
Constance, espero que você tenha conseguido.
Estava na hora. Meu corpo sabia; minha mente sabia; meu coração sabia.
Hora de ser invisível.
Hora de deixar para lá.

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Tirei um momento apenas para ficar ali. Pa-
ra olhar as estrelas e tremer com o ar gelado. Para respirar. Então me sentei com as costas eretas.
Olhei para o oceano, escuro e agourento. Eu não tinha tempo para organizar meus pensamentos.
Tinha que voltar para o meu apartamento, voltar para casa. Tinha que fazer o antídoto. Tinha que
salvar todo mundo.
Olhei para a estreita faixa de areia onde eu estava. Não podia bem dizer que chegara aqui
nadando. A correnteza me levou. As ondas me puxaram de volta. Foi uma luta para sair da caverna
e entrar no vasto e interminável oceano. E eu acabei vindo parar aqui. Em uma praia rochosa rasa
que ficava ao lado da rodovia, logo acima da colina de grama ressecada. Nenhum carro havia
passado. Eu estava completamente sozinha.
Me levantei, tremendo. Não sabia se era o frio, o choque ou o medo. Provavelmente era tudo
isso. Eu mergulhei fundo dentro de mim mesma e me deparei com a minha raiva, que me esperava
pacientemente. Eu a soltei ali no vazio e gritei. Gritei tão alto que achei que minha voz se propagaria
eternamente pelas ondas.
Então parei e me inclinei com as mãos nas coxas, ofegante.
Chega.
Era hora de ir.
Subi a colina e comecei minha longa caminhada pela estrada. Como eu queria que um
veículo passasse. Como eu queria algum tipo de ajuda.
Eu andei e andei. Sem luzes, sem casas. Só uma garota sozinha no escuro. Andando. A calça
molhada e a blusa congelada no ar frio. Seu cabelo, longos pedaços de gelo.
É só chegar em casa. Não importa quanto tempo demore. Mesmo que você congele até a
morte. Mas com sorte antes disso acontecer.
A noite era tão longa e tão escura. O sol nunca mais nasceria. Era tudo frio e interminável.
Eu estava desesperada, estava com raiva do mundo por tudo. Pela a máquina, pela tinta. Por tudo.
Pelo menos nós impedimos. Pelo menos nós revidamos.
Bill.
Brant. Será que o Brant ainda estava vivo? Será que tinha sido consumido? Eu temi a última
opção. Como poderia não ser este o caso?
Mesmo que eu conseguisse fazer o antídoto, como eu os encontraria novamente? Será que
ainda estariam presos lá embaixo ou eles viriam ao meu encontro? Assim como Brant tinha feito
antes? Sim, eu esperaria por eles, esperaria que me encontrassem e, quando o fizessem, eu estaria
pronta. Eu dedicaria o resto da minha vida se fosse preciso, para trazê-los de volta.
Houve uma luz. Um brilho atrás de mim. Iluminou a estrada escura à minha frente. Eu me
virei e tudo o que vi foi um clarão. Protegi os olhos.
Um carro.
Ele desacelerou.

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Dei um passo para o lado, cautelosa. Já tinha pegado carona antes, mas era sempre um pouco
arriscado. Nunca se sabe.
O carro parecia chique e a janela do lado do passageiro estava aberta. Um homem de aspecto
bastante agradável olhou para mim por um momento.
— Você está bem? — perguntou ele, parecendo preocupado.
— Só estou com frio.
— Bom, quer uma carona? — perguntou.
— Estou indo para Atlantic City — disse.
— Nós também. Suba!
Eu estava com tanto frio e tão cansada. Ri então comigo mesma. Pensei no perigo que tinha
acabado de enfrentar, toda aquela situação de vida ou morte. Se tinha conseguido enfrentar aquilo,
podia enfrentar qualquer coisa.
Abri a porta e corri para dentro, fechando-a novamente atrás de mim. Estava quente.
Eu também não estava sozinho.
— Não há escapatória — disse Scott, da Gent, olhando para mim com olhos arregalados. —
Você nunca poderá escapar.
Eu olhei para ele.
— Ah, não ligue para ele. Ele é inofensivo — disse o homem no assento do carona. Ele se
virou para olhar para mim e estendeu a mão em minha direção. — Meu nome é Joey — disse.
Fiquei apenas olhando.
— Não há escapatória — disse Scott. — Não, não, não, não, não...
O carro acelerou.

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O redemoinho negro apertava com tanta
força, primeiro como um abraço, mas depois aperta, esmaga, sufoca. Parece fogo, mas também é
frio. Queima. O frio pode queimar. Um zumbido baixo, depois mais alto, como mil vozes falando,
todas ao mesmo tempo. Gritando de uma só vez. Fora e dentro. Nossos pensamentos não são nossos
próprios pensamentos. Mas de quem são esses pensamentos? Quantos de nós será que existem?
Quantos mais se juntarão a nós?
Estamos todos gritando. Estamos todos esperando. Estamos todos... perdidos.
A luz aparece em rajadas repentinas. Brilhante demais, ela te perfura, te faz em pedaços
mesmo quando você tenta alcançá-la.
O que há para alcançar? Por que se machucar? É só afundar. Afundar com seus amigos.
Medo. Bill.
Vergonha. Brant.
Raiva. Constance.

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Nós afundamos e afundamos, sem parar, cada vez mais. Nós entendemos agora. Vemos
como estávamos errados esse tempo todo. Agora entendemos a piada.
Toc, Toc.
Quem é?
Não podemos consertar a máquina. Nunca pudemos.
Toc, toc.
Quem é?
Quem está aí? Aí fora? Aqui fora?
Estamos todos aqui.
Nós entendemos agora.
Esta é a piada: não se pode consertar o que não está quebrado.

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