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1|Bendy: Os Perdidos

BenDY And ThE Ink MACHINE:


Sonhos Ganham Vida

BENDY AND THE INK MACHINE: DREAMS COME TO LIFE


(BENDY AND THE INK MACHINE: SONHOS GANHAM VIDA)
ADRIENNE KRESS
DESIGN DA CAPA: BETSY PETERSCHMDT

Traduzido, revisado e editado por Sorinha Phantasie.

Esse livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são obra da
imaginação do autor ou usados de forma fictícia. Quaisquer semelhanças com eventos,
locais ou pessoas, vivas ou mortas, são coincidências.

© 2021 Joey Drew Studios Inc.


Bendy, Bendy and the Ink Machine, Bendy and the Dark Revival e os personagens,
imagens e logos de Bendy são propriedades ou marcas registradas da Joey Drew Studios
Inc. Todos os direitos reservados.

Tradução em português brasileiro pela PHANTASIE TRANSLATE, 2019. A versão atual


desta tradução foi revisada e reenviada em 2022.
A tradução deste material foi elaborada e disponibilizada sem fins lucrativos. Se você
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do autor.
2|Bendy: Os Perdidos
íNDiCe
CAPA

PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25

3|Bendy: Os Perdidos
Vejo aquele sorriso por toda parte. Ele me
saúda de repente em meio à escuridão. Numa esquina. Nos meus sonhos. Aquele grande sorriso.
Uma boca cheia de dentes que parecem lisos e uniformes. Não dá para saber quão afiados eles são
até que se esteja descendo por sua garganta.
Aquele diabinho querido.
Não posso fugir dele.
O que estou prestes a contar vai soar inacreditável.
Não sou bobo. Todos vão ler isso e pensar “não sei quem esse tal de Buddy acha que é, mas
ele não vai me passar a perna”. Mas eu tenho que escrever isso. Tenho que contar a história. Mesmo
que ninguém acredite em mim. Preciso fazer isso enquanto ainda há tempo. Antes que...
A cada som, cada chiado, eu vejo aquele sorriso. Qualquer um diria que estou ficando doido,
mas eu sei qual é a verdade, eu sei o que vi. Sei o que aconteceu.
Você precisa ler com atenção. Palavras nunca foram lá o meu forte. Mas preciso usá-las...
porque não se pode confiar em desenhos.

3|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida


Não confie nos desenhos.
Tem muitas outras pessoas envolvidas. Até demais. Mas se eu puder proteger uma única
pessoa, uma só, do que eles se tornaram...
Do que todos nos tornamos...
Se você encontrar isso, Dot. Se nos encontrar...
Acho que é melhor começar do começo.
E prosseguir.

Até o fim.

4|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida


CAPÍTULO 1
Sonhos se tornam realidade, Buddy, foi isso
o que ele me disse. O Sr. Drew não era um mentiroso. O problema é que, sim, sonhos se tornam
realidade. Assim como pesadelos. Pacote completo.
Pra ser sincero, eu passei muito tempo sem entender nada disso. Então sonhos se tornavam
realidade? Pra quem? Pra gente rica, claro. Mas e quanto à minha família? Sonhos eram só umas
pausinhas rápidas entre os duros dias de trabalho pesado.
Queria poder capturar exatamente como era o Lower East Side no verão de 1946. Queria
poder fazer um desenho: as calçadas derretendo em meio às ruas e escorrendo em direção aos
bueiros, linhas de vapor subindo para riscar o céu extremamente branco, enormes gotas de água
caindo das testas das pessoas. Talvez a palavra “chiado” flutuando pelo ar.
Mas não posso desenhar. Tenho que contar.
Estou tentando me lembrar o que aprendi com você, Dot. Como escrever uma boa história.
Tenho que me lembrar do que você costumava dizer. Usar todos os cinco sentidos, não só a visão.
Escrever não é desenhar.
Os cinco sentidos. Quais são mesmo os outros quatro?
Certo.
Audição: crianças rindo e gritando umas com as outras, adultos brigando, vidro quebrando e
então o som de punhos socando carne. Sempre dava briga quando ficava quente assim. Nada pra
fazer, sem ter aonde ir, o cérebro simplesmente não funciona — vira uma papa rosa e melequenta
na sua cabeça, revirando de um lado para o outro, pronta para escorrer pelos seus ouvidos.
Tato: Sua pele ficava sempre gosmenta com o suor e tudo embaixo dos seus dedos parecia
molhado porque você estava molhado. Não tinha como se sentir seco.
Olfato: o ar estava sempre tranquilo e estagnado, incapaz de passar por cima dos grandes
cortiços. O cheiro, no geral, era de mijo. Fazia você querer vomitar. Às vezes, acabava vomitando.
Ah! Esse era outro. O cheiro de vômito.
Paladar:
Paladar:
Desculpa, não consigo me lembrar de nenhum sabor agora. É muito difícil. Só o que consigo
sentir é o amargo na minha boca. Aquele gosto persistente de tinta.
Tá, só pra você entender. Era quente. E é importante que entenda isso, porque eu teria feito
qualquer coisa pra sair daquele calor, sair daquele bairro. Eu vinha pulando de um trampo pro outro
já há alguns anos, todos me explorando de tudo que era jeito. Desde que o pai morreu. Minha mãe
começou a trabalhar como costureira de tecidos pré-moldados e nisso eu saí da escola pra assumir o
lugar do meu primo Lenny, entregando os ternos e jaquetas já prontos para o chefe, o Sr. Schwartz.
Aí, sabe como é, entregava as peças novas de volta pra mãe e ela começava tudo de novo. A gente
precisava da grana. E era o único jeito que eu conseguia fazer a mãe sorrir. Sinto falta disso.
O sorriso da mãe. Gentil. Calmo. Caloroso. Do tipo que chegava lá em cima, na altura dos
olhos. Não como o sorriso dele. Nada parecido com o sorriso dele.
5|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida
Enfim, eu era pago, o que era importante.
Mas eu já tinha quase dezessete na época e a maioria dos outros garotos tinha só uns doze.
Comecei a me sentir um idiota sendo velho daquele jeito e trabalhando com aquilo, então quando o
Sr. Schwartz sugeriu que eu fosse seu entregador sênior e explicou que eu ia sair do bairro e rodar a
cidade toda, eu disse sim. Tinha muito verde nas outras partes da cidade. Árvores e tal. E os bairros
chiques não cheiravam à mijo. E quando eu levava uma roupa costurada ao Upper East Side, podia
dar uma volta no parque e mergulhar os pés no lago.
Mais importante que tudo isso, podia ver os artistas pelas avenidas desenhando os turistas.
Caricaturas. Podia vê-las de perto.
Foi aí que o problema começou.
Primeiro, artistas são evidentemente temperamentais.
— Ei, garoto, o que acha que tá fazendo?
— Só olhando, senhor. — Talvez daquela vez eu tenha chegado um pouco mais perto da tela
que de costume.
— Cai fora daqui com as suas olhadas!
Era como ir para a escola de artes, mas aposto que na escola de artes os professores não te
perseguem dizendo que você está assustando os clientes porque está chegando perto demais.
Mas essa não era a melhor parte. Sabe, uma coisa que eu não disse, porque acho que você já
deve saber a essa altura, é que eu sou um artista. Bom, sou agora. Na época não era. Mas queria ser.
Não sei bem por quê — talvez tivesse algo a ver com o meu avô que eu nunca conheci. Que ainda
morava na Polônia. Imaginava que devia amar artes. Afinal, a única coisa que guardou e mandou
com a mãe do “velho país”, como costumava chamar, foram aqueles quadros malditos. Todo mundo
ficava sempre muito surpreso em ver aquelas enormes pinturas à óleo num pequeno apartamento de
cortiço. Ela podia tê-los vendido. Por muito dinheiro. Mas não vendeu. E isso sempre ficou comigo.
Comecei a rascunhar tarde da noite, pegando no sono e me atrasando pras aulas. Então fui
mandado à sala do diretor várias vezes por ficar “rabiscando” durante o dia e, cara, como eu amava
tirinhas. Ficava dando a volta no bairro atrás de jornais descartados só pra poder ler as últimas do
Popeye ou do Dick Tracy. Até comecei a desenhar quadrinhos, criando aventuras com Olívia Palito,
Pruneface, Sparkle Plenty. Logo, já estava inventando meus próprios personagens. Eles não tinham
muita graça. Não os mostrei a ninguém.
Mas aí eu encontrei os artistas do Central Park. E digamos que acabei me distraindo.
— Você perdeu o terno? — O Sr. Schwartz podia ser bem assustador para um homem que
tinha só um metro e cinquenta e dois.
— Sinto muito, senhor! Juro que nunca mais voltará a acontecer! — Eu só tinha deixado de
lado por um segundo para olhar um desenho mais de perto, mas foi tempo o suficiente para outra
pessoa chegar de fininho e surrupiar o terno.
— E quanto à última vez, quando chegou três horas atrasado? Meu cliente quase não chegou
à reunião a tempo.
— Sinto muito, senhor.
— Quer ser meu aprendiz? Quer ganhar a vida de forma boa e honesta?
Eu queria, queria muito. Precisava do dinheiro. Nós, eu e a mãe, precisávamos do dinheiro.
E ninguém contrataria um adolescente da favela que nem tinha se formado no ensino médio. Ser o
braço direito do Sr. Schwartz era mais do que eu podia ter esperado. Cara, eu me senti um idiota.
Com vergonha de mim mesmo.
— Mais uma chance, Buddy, mais uma chance e acabou.
Mais uma chance.
Era minha última chance.
E aí eu conheci ele.
Quando fui ao seu estúdio pela primeira vez para entregar seu terno, estava com a bolsa de
roupas pendurada no ombro direito, tinha rolado um apagão por causa do calor. Não só no edifício
alto de tijolos do estúdio, mas no bairro inteiro também. As luzes intermitentes do letreiro do teatro
estavam apagadas e quando passei pela placa escura de St. Louis Woman, dois assistentes de palco
estavam olhando para o alto do prédio, as mãos na cintura, palitos pendurados nas bocas.
6|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida
— E agora, Steve?
— O show tem que continuar.
— É o que dizem, sim.
Não me dei conta de que era de fato um apagão até alguns quarteirões depois, quando passei
por um teatro que não trabalhava com a Broadway e finalmente cheguei ao estúdio ao lado. Estava
extremamente focado em chegar lá, mas já estava atrasado. Daquela vez não foi minha culpa. Foi o
metrô, eu juro. Mas o Sr. Schwartz não notaria a diferença. Eu ia compensar o tempo perdido, por
isso estava andando rápido, sem notar muito do mundo à minha volta. Mas quando entrei no escuro
absoluto, fui puxado de volta à realidade. E aí eu parei e fiquei ali de pé. Era tão negro que não dava
nem pra dizer qual lado era pra cima.
Então, de repente, ficou muito brilhante, como se alguém estivesse apontando uma luz bem
em cima de mim. Ergui a mão e a luz saiu do meu rosto e eu vi enquanto o feixe vasculhava a sala
até chegar a uma mulher mais velha de cabelos grisalhos sentada atrás de uma grande mesa. Dei um
pulo, surpreso por vê-la aparecer daquele jeito.
— Caramba, Norman — disse ela, fechando bem os olhos por trás das lentes dos óculos
enormes.
— O projetor desligou — disse Norman, a voz rouca.
— Caso não tenha notado, a luz acabou por toda parte. Agora vê se tira essa logo lanterna
dos meus olhos!
Houve uma pausa. E então, num clique, ficou tudo escuro de novo.
Mais escuro, eu diria. Mais escuro.
Depois do clarão da luz direta, parecia que não só a lanterna tinha se apagado, mas os meus
olhos também. Senti um arrepio me subindo a espinha.
Não sabia o que fazer. Precisava entregar aquele terno de uma vez. Achava que conseguia
me lembrar onde ficava a mesa, então será que não podia ir até lá aos tropeços mesmo?
— Quem é o garoto? — perguntou Norman de algum lugar.
— Não sei, Norman. — Ouvi o som de um fósforo riscando uma superfície e então aquele
chiado de uma chama ganhando vida. O rosto da velha foi grotescamente distorcido pelas sombras
longas e pronunciadas que se formaram quando acendeu um lampião em suas mãos.
E então houve luz.
Ela tremulava e dançava pelas paredes. Havia pôsteres emoldurados pendurados ao longo
delas. Pareciam pôsteres de filmes. Mas eram desenhos. E todos de um personagem em particular.
Era bem sorridente. Quis olhar mais de perto. Onde eu estava? Que lugar era aquele? Por que o
personagem meio que parecia familiar?
— Muito bem, garoto, agora eu te vejo. O que você quer? — perguntou a mulher sentada tão
baixo atrás da mesa que apenas seus óculos e o topo da cabeça eram visíveis.
— Eu, hã... — Não era tão complicado, mas eu tinha esquecido para quem era a entrega e
olhei para baixo, vasculhando às cegas a bolsa de roupas preta que carregava nos braços para ver se
encontrava o nome.
— Aproxime-se, não consigo ouvir bulhufas do que está falando — disse a mulher. Sua mão
apareceu por cima da mesa e acenou com veemência, indicando para que eu fosse até lá.
Ainda procurando pela placa de identificação, eu fui.
— Eu trouxe um terno — disse, tentando ganhar tempo.
— Aham — disse a mulher.
Finalmente, encontrei a placa.
Aquela foi a primeira vez que o nome dele me marcou de alguma forma. A primeira vez que
significou alguma coisa. Tudo o que importava até aquele momento era levar o terno até o estúdio a
tempo. Não ser demitido. Essa era a parte importante. Então eu sabia o endereço, sabia que era na
Broadway, mas o nome do sujeito não fora nada que tivesse me marcado. Não tinha nem notado.
— Anda, garoto, não tenho o dia todo.
— Joey Drew — disse. — Estou procurando por um Sr. Joey Drew.
— Quem está procurando? — perguntou Norman, a voz cheia de desconfiança.

7|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida


— O Sr. Schwartz — disparei. Não era exatamente a melhor das respostas, mas o escuro e a
atitude do sujeito me deixaram nervoso por algum motivo. E, de alguma forma, a luz tremeluzente
sobre aquele tal personagem de desenho sorridente também não ajudava.
— Quem? — perguntou a mulher.
— O alfaiate, que fez o terno dele. Estou com o terno do Sr. Drew. Sou o entregador. Com...
o terno... dele.
— Ele morreu — disse Norman.
Eu me voltei para o sujeito. Estava parado tão longe da luz do lampião que não era mais que
uma silhueta.
— Morreu...? — Meu coração bateu com força no peito. Aquilo não fazia sentido e me
assustou de um jeito estranho, quase incompreensível.
— Nah — respondeu Norman, dando risada. — Nah, morreu não.
— Eu... não entendo — disse, virando de volta para a velha.
Ela apenas deu de ombros e disse:
— Não é todo mundo que entende as piadas do Norman.
— Era uma piada? — Olhei de volta para a silhueta do sujeito. Norman ainda estava rindo,
mas não parecia uma risada feliz, ou pelo menos certamente não me fez me sentir melhor.
— Vem comigo — disse ele. — A garota dele não vai estar por aqui essa tarde. Pode levar
pra ele pessoalmente.
Olhei para a mulher e ela assentiu, o que imaginei ser a permissão para seguir o sujeito. No
entanto, tenho que ser sincero, eu não queria. Meio que decidi naquele momento que eu e o Norman
provavelmente nunca íamos nos entender, sabe?
O sujeito ligou a lanterna e me guiou por um corredor estreito. Seu feixe de luz era mais
direcionado que o brilho do lampião e só o que conseguia ver de fato era sua silhueta e o outro lado
do corredor, onde havia a grade de um elevador. De vez em quando, no entanto, dava para ter um
rápido vislumbre de outro pôster, com mais personagens de desenho e coisa do tipo. Eles pareciam
felizes, mesmo na escuridão, mas me faziam sentir da mesma forma que o personagem sorridente
da entrada tinha feito. Esquisito.
— Não dá pra usar o elevador — disse Norman. Seu rosto ainda estava envolto em sombras
e eu assenti porque, claro, não tinha energia e tal. Então ele passou pela porta ao lado. A lanterna
iluminou a palavra “escada”, embora, quer dizer, eu podia ter adivinhado.
Começamos a subir juntos, a luz da lanterna de Norman guiando o caminho. Vez ou outra,
eu olhava para a poça de escuridão que ia ficando para trás. Quase parecia que tudo atrás de mim
estava sendo apagado, como se eu tivesse que me apressar ou seria apagado também.
Só pra dizer, estava muito quente lá fora e meu cérebro começou a inventar todo tipo de
história. Dizem que a vida é mais estranha que a ficção. Mas nunca achei que alguma coisa pudesse
superar as coisas estranhas na minha cabeça.
Eu estava errado.
Norman parou quando chegamos ao terceiro andar. Eu estava suando, vou te contar. Minha
camisa e a camiseta que usava por baixo estavam completamente encharcadas, meu cabelo colado
na cabeça. Uma gota escorreu pela minha nuca, descendo por baixo da gola da camisa.
— Aqui, garoto — disse Norman, me entregando a lanterna.
— Pra que isso?
— Eu sei o caminho de volta pra minha sala, você não sabe nada. Vai andando. Boa sorte.
Peguei a lanterna e, enquanto Norman desaparecia em meio às sombras, vociferei:
— Andando pra onde?
— Pra cima, garoto, pra cima até chegar no topo. — Ele riu na escuridão. Cara, eu não
gostei daquela risada.
Então lá estava eu, o terno do Sr. Drew numa mão, uma lanterna na outra e uma gota de suor
descendo pelas costas em direção a um lugar não muito feliz. E quem sabia quantos degraus ainda
haviam pela frente? Apontei a luz para cima para ter uma ideia, mas a velha escada de madeira
parecia continuar para sempre. Direto até o céu. Apontei a luz para baixo, vi as escadas embaixo de
mim. Avançando em meio à escuridão. Direto até o... bom, você sabe aonde quero chegar.
8|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida
Então comecei a subir pelas escadas o mais rápido que pude. Era quente e cansativo e eu não
sabia se ia conseguir, e talvez tenha sido por causa das escadas que tudo isso aconteceu. Porque vou
te contar, quando cheguei no topo e passei pelas portas e o ar parecia mais espesso lá em cima, o
jeito que o calor sobe e tal, eu simplesmente desmoronei. Caí com a cara no chão. Não desmaiei, só
caí, com força, fazendo um barulho alto à beça, e acho que o Sr. Drew ouviu, porque ele logo saiu
do escritório.
— Ei, que confusão é essa? — Mesmo no meu estado atordoado, sua voz me impressionou.
Era tão segura de si, amigável também. Não sei dizer exatamente o que faz uma voz soar amigável,
mas acho que não sou o único por aí que a descreveria assim. Acho que era isso o que fazia as
pessoas gostarem dele.
Confiarem nele.
— Sinto muito — disse, no chão. — Tenho uma entrega para o Sr. Joey Drew.
— Eu sou o Sr. Joey Drew — disse ele, e uma mão se materializou diante de mim. Era para
eu segurá-la. Assim o fiz. Ele me ajudou a me levantar. — Tudo bem?
Assenti.
— Bom. — Ele não soltou minha mão imediatamente, olhou para ela por um momento,
quase como se a estivesse examinando. Não sabia ao certo o que estava fazendo, mas me pareceu
um pouco estranho. Por fim, a soltou e disse: — Venha ao meu escritório, garoto.
Havia janelas lá em cima, então dava para enxergar sem a lanterna.
— Sente-se, beba isso. — O Sr. Drew me passou um copo de água morna enquanto eu me
sentava em frente a ele e sua grande mesa de madeira. Bebi e era como se tivesse vindo de uma
fonte fresca nas montanhas. — Então, — perguntou, recostando-se em sua cadeira — quem é você
e o que está fazendo aqui?
Tomei outro grande gole de água e então respondi suas perguntas:
— Sou um entregador do Sr. Schwartz e trouxe o seu terno.
— Ah! — disse o Sr. Drew, batendo a mão com força na mesa, o que me fez dar um pulo.
Não sabia na época o quanto ele fazia isso, embora, pra ser sincero, nunca tenha me acostumado. —
É o terno! Fantástico! Passa pra cá.
Assim o fiz e o Sr. Drew desabotoou a bolsa e assentiu. Ele tinha esse jeitão exagerado,
como se estivesse atuando num palco e todos precisassem ver mesmo suas menores ações. Quando
aprovava alguma coisa, como era o caso do terno, era a melhor sensação do mundo.
— Formidável, simplesmente formidável. Olhe só para isso, uma obra digna de um artesão
bem aqui.
Talvez porque estava cansado e com calor, não sei, mas eu disse:
— Na verdade, é o trabalho da minha mãe.
O Sr. Drew olhou para mim e senti o sangue sendo drenado do meu rosto. O que eu tinha
dito? Me xinguei internamente.
— Bom. Ela tem talento. — Ele pôs o terno na mesa e se inclinou na minha direção, me
olhando de perto, como se estivesse tentando ver através dos meus olhos, no meu cérebro ou sei lá.
— Você tem talento, garoto?
— O quê?
— Seus dedos, é um escritor? — perguntou.
Olhei meus dedos. Estavam manchados de tinta. Em especial o polegar e o indicador. Estava
tão acostumado com eles assim que nem me lembrei que não era normal.
— Eu desenho às vezes — disse.
— Você desenha às vezes. — Ele sorriu quando disse isso. — Eu também desenho às vezes.
Foi quando finalmente dei uma olhada no escritório. Estava me sentindo um pouco melhor
agora e consegui assimilar tudo ao redor. As prateleiras com livros e papéis. Os tinteiros por todo
lado. Uma mesa de desenho no canto. E mais pôsteres. Mas não só pôsteres: rascunhos, desenhos
inacabados com palavras ilegíveis junto a eles, setas, ideias cruzadas — era quase como um papel
de parede, de tanta coisa por cima uma da outra.

9|Bendy and the Ink Machine: Sonhos Ganham Vida


E a grande mesa que ocupava quase toda a parede dos fundos. Coberta com mais papeis. E
livros. E um troféu de vidro alto como premiação de alguma coisa. E um desenho emoldurado de
um punhado de personagens assinado com o nome Henry Stein.
— Uau — disse. Não consegui me segurar.
— Tenho sensações a respeito das pessoas, garoto. Sensações... Às vezes, simplesmente sei.
— Ele me entregou um pedaço de papel com um rascunho do personagem sorridente lá de baixo. —
O que você vê?
Olhei mais de perto. O personagem não parecia ser humano. Seu corpo era basicamente uma
forma oval com pernas e braços delgados saindo dela. Mas usava botas pretas e luvas brancas.
Tinha uma gravata-borboleta e tudo. Seu rosto era redondo e ele tinha dois grandes olhos negros,
mas sem nariz. E aquele sorriso. Aquele grande sorriso cheio de dentes.
— Vejo um encrenqueiro. Alguém que faz muita travessura e acaba se metendo num monte
de problemas também. Mas não liga pra isso.
Ergui o olhar para o Sr. Drew. Tinha no rosto um sorriso quase como o do desenho.
— Sim! — disse, apontando um dedo para mim. — Exato. Tem ideia de quantas pessoas
simplesmente dizem “um desenho”? Mas você entende.
Assenti. Claro, pensei. Eu acho. Dei mais uma olhada. Foi quando notei que a cabeça não
era um círculo completo. A parte de cima meio que parecia quando se dava uma mordida num
biscoito. Só que liso. Sem as marcas de dentes. Espera. Entendi! Sua cabeça tinha chifres, eram
chifrezinhos na parte de cima.
— É um diabo.
Ouvi o Sr. Drew empurrar sua cadeira para trás, arrastando-a pelo chão de madeira. Ergui o
olhar e o observei enquanto dava a volta em sua mesa e se apoiava nela, ainda sorrindo.
— Garoto, será que você não gostaria de vir trabalhar para mim? Meio que estou precisando
de um entregador, mas só para dentro do prédio. Um office-boy, alguém entregando coisas pelos
departamentos. Seja lá quanto o Schwartz estiver pagando, eu dobro. Colocarei você para trabalhar
no Departamento de Artes, meio que como um aprendiz. Darei uma chance para você provar suas
habilidades. E pode acabar aprendendo algumas coisinhas pelo caminho.
Num primeiro momento, não consegui processar por completo o que ele estava dizendo e,
quando processei, ainda não acreditei. Lá estava eu, preocupado que o Sr. Schwartz fosse me
demitir, e agora estava conseguindo meu trabalho dos sonhos. Finalmente consegui abrir um sorriso
para o homem e apertei sua mão.
— Bom — disse ele. — Excelente. Bem, eu sou Joey Drew e este é o meu estúdio. Pode me
chamar de Sr. Drew.
— Certo, Sr. Drew.
— E você é?
— Ah, meu nome é Daniel, senhor, mas todo mundo me chama de Buddy, ou Bud, tanto faz.
Eu não ligo.
— É um prazer conhecê-lo, Buddy.
Ele ergueu a mão e pegou o desenho do personagem que estava comigo. Ele o virou para
que ficasse de frente para mim. Lado a lado, eles refletiam a imagem um do outro com aqueles seus
grandes sorrisos.
— E esse, — disse, batendo com o dedo no desenho — esse é o Bendy.

10 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
CAPÍTULO 2
— Esse é o Bendy.
Naquele momento, ser apresentado a um desenho bidimensional tinha sido meio, bom, fofo,
eu acho. Embora “fofo” não fosse exatamente uma palavra que eu usasse muito no dia-a-dia. Mas
sim, claro, fofo. É um prazer conhecê-lo, personagem fictício. Mas agora, deixa eu tentar explicar o
que eu entendo daquele momento... O que eu sei agora comparado com o que sabia na época...
Eu não sabia, por exemplo, que quando o quando o Sr. Drew sorria, você precisava olhar de
perto para seus olhos, procurar uma pequena ruga no canto. Todo artista conhecia aquela ruga, ela
contribui para um sorriso de aparência mais autêntica. Mas eu ainda não era um artista. Não na
época. Não sabia o que havia de errado ali.
Também não sabia que uma apresentação podia ter tanto significado — que numa festa, a
forma como alguém apertava sua mão ou dizia seu nome ou até como o Sr. Drew me apresentava às
pessoas — não sabia na época que era tudo uma espécie de código. Algo para decifrar. Queria saber
já naquele momento que o Sr. Drew esperava que eu me desse conta disso. Que algo estalasse lá
dentro e tudo fizesse sentido.
E ele me observou cuidadosamente.
— Olá, Bendy — disse, entrando no jogo. O Sr. Drew deu risada e guardou o desenho.
— Então você não o conhece mesmo, não é? — perguntou. Sacudi a cabeça, indicando que
não. Porque não conhecia.
— É uma pena — disse o Sr. Drew, mais para si mesmo que para mim. Isso eu percebi já na
hora, então não disse nada.
O fato é que o Sr. Drew acreditava que eu devia conhecer o Bendy. E aposto que um monte
de gente se perguntaria o mesmo: por que não conhecia? Afinal, ele aparecia naqueles curtas que
eram exibidos antes dos filmes no cinema, isso sem contar as latas de sopa onde estava estampado.
Pelo amor de Deus, o diabinho vendia até títulos de crédito para operações militares na guerra. Eu
sei, eu sei. E não é como se nunca o tivesse visto. Como escrevi antes, eu cheguei a ter a impressão
de que o reconhecia. Então não era isso.
É que, quando você mora no Lower East Side, cresce lá, vai à escola e aí abandona os
estudos pra fazer dinheiro... quando a sua experiência com filmes é Don Miller segurando a porta
dos fundos do cinema pra você... você acaba não assistindo tantos desenhos quanto uma criança
normal. Se Bendy ainda aparecesse nas tirinhas de jornais na época que comecei a desenhar, teria
sido diferente. Aquele era todo o meu mundo.
Não tinha sido culpa de ninguém. A culpa era de ser pobre. De tentar ajudar a minha mãe e
trabalhar doze horas por dia. E sejamos honestos aqui, aqueles desenhos já não eram exatamente
mais tão populares quanto costumavam ser. Eu mal tinha chegado ao mundo quando os desenhos do
Bendy faziam sucesso. Então o diabinho já não tinha mais tanto apelo. Não representava nada. Não
significava nada.
Mas significava tudo para o Sr. Drew.

11 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— É isso o que eu quero dizer, exatamente o que quero dizer — disse ele, levantando-se e
começando a andar pela sala. Ainda não estava falando comigo, mas estava falando mais alto e eu
não podia simplesmente ignorar.
— Desculpe-me, senhor, mas o que quer dizer com relação ao quê? — perguntei.
Ele olhou para mim, mas continuou andando.
— A que ponto esse estúdio está chegando? A que ponto chegamos para uma criança da sua
idade não conhecer o Bendy? É isso o que quero dizer, é por isso.
Suas palavras ainda não estavam fazendo muito sentido. Era meio louco que um punhado de
frases coerentes ainda pudessem soar como uma completa incoerência.
Gostou dessa, Dot? Sei que gosta desse tipo de coisa. Esse jogo de palavras engraçadinho.
Espero que esteja te deixando orgulhosa.
Espero que leia isso.
Espero que esteja viva.
Onde eu estava?
Certo.
— Ah, sim — disse. Não sabia mais o que dizer àquele ponto.
Houve um segundo de silêncio. Ele parou de andar. Eu parei de falar. E então ele bateu uma
mão na outra com força. De repente. O barulho me fez pular na cadeira. Foi como um tiro — eu
quase me abaixei.
Isso sempre ficou comigo: de todas as memórias que começaram a se misturar aqui, nesse
cérebro, nessa cabeça, nesse... por algum motivo, isso se destaca. No momento em que ele bateu as
mãos, as luzes voltaram. Foi quase como se estivessem esperando por ele, como se ele estivesse no
controle delas.
Não estava. Mas eu fiz essa conexão na época. De alguma forma, fez sentido para mim que
talvez, só talvez, ele tivesse o poder de fazer aquilo.
Não tinha. E não tem. Não deixe ninguém te fazer pensar que tem.
O Sr. Drew notou a luz e riu com um “Ha!” que foi exatamente do jeito que se escreve. Bem
assim: “Ha!” Ele se voltou para mim, sorrindo de novo.
— Venha, vou te dar um tour, garoto.
Assenti e todos os pensamentos estranhos que tivera naquele curto momento desapareceram.
Agora estava empolgado. Ia fazer um tour por um estúdio que fazia desenhos animados. Ia conhecer
outros artistas. Não era nada como imaginei que seria o meu dia quando acordei pela manhã.
— Legal! — Me levantei num instante e logo comecei a seguir o Sr. Drew, deixando seu
escritório e adentrando o saguão agora extremamente bem-iluminado. Havia uma mulher sentada
atrás da mesa junto à porta. Tinha uma aparência compacta, com cabelos excepcionalmente negros
que formavam cachos perfeitos.
— Vamos dar um tour, Srta. Rodriguez — anunciou o Sr. Drew enquanto passava por ela.
— O Tom está aqui — ela respondeu sem erguer o olhar de sua máquina de escrever.
E, de fato, havia um homem alto e encorpado sentado numa das cadeiras perto do elevador.
Estava com uma perna cruzada impecavelmente sobre a outra, segurando seu chapéu no colo. Junto
a ele, havia o que parecia uma caixa de ferramentas amarela com a palavra “Gent” escrita.
Olhei para o Sr. Drew e vi seu sorriso oscilar, semelhante a como fazem as luzes antes de se
apagarem. Mas então ele cresceu ainda mais quando o Sr. Drew apontou para o homem e disse:
— Tommy Connor! — Não era uma pergunta.
O homem se levantou, pegando um longo e estreito tubo de papelão a seu lado na cadeira. O
Sr. Drew notou e apontou para o tubo, mas não disse nada. Então, deu um sorriso ainda maior.
— Sim, senhor — disse Tom, mesmo sem haver uma pergunta a responder. — É sim.
Era o quê?
— Lamento por isso, Buddy, mas preciso participar dessa reunião. Grandes planos, garoto,
grandes planos — disse o Sr. Drew. — Volte logo cedo e vamos acomodá-lo por aqui.
Ele não olhou para mim, mas me deu uma batida firme nas costas enquanto estendia o outro
braço em direção ao escritório.
— Por aqui, Tommy.
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— Sr. Connor — respondeu Tom enquanto ia até lá.
Frente a isso, o Sr. Drew apenas deu risada, embora eu não tenha entendido a piada, e os
dois entraram de volta em seu escritório, fechando a porta atrás deles.
E então, eu estava sozinho.
Fui até a secretária. Ela não olhou para mim. Àquela altura, não esperava que o fizesse.
Também não sabia o que dizer.
— Para que ele te contratou? — perguntou a Srta. Rodriguez.
— Office-boy. Talvez... talvez um artista. Ele disse que vou ficar no Departamento de Artes.
— Já não tinha mais tanta certeza de qual seria exatamente o meu trabalho.
A Srta. Rodriguez parou de datilografar e recostou-se em sua cadeira, voltando o olhar para
a mesa. Abriu uma gaveta e pegou um envelope grosso cheio de papéis. Finalmente olhou para mim
enquanto me entregava um deles.
— Preencha isso, traga com você amanhã. Chegue às nove da manhã e fale com a Srta.
Miller, lá embaixo na entrada.
Peguei o papel e assenti.
— Obrigado.
A Srta. Rodriguez olhou para mim por mais um momento. Como se talvez quisesse dizer
alguma coisa. Mas não disse. Apenas voltou a datilografar.

Não fui para casa imediatamente. Primeiro precisava ver o Sr. Schwartz, avisar a ele que a
entrega tinha sido feita e que o Sr. Drew estava satisfeito com o terno.
E então tive que me demitir.
O que, bom, não acabou muito bem, mas eu não estava nem aí para o quão vermelho ficasse
o rosto do Sr. Schwartz ou para quanto ele apontasse o dedo na minha cara. Na manhã seguinte, eu
ia trabalhar no Joey Drew Studios e ninguém ia me impedir. A única coisa que me assustava era que
o Sr. Schwartz podia acabar descontando na mãe, demitindo ela. Mas não demitiu. A mãe era muito
boa. Às vezes, queria que ela pudesse abrir uma loja própria.
Bom, talvez agora. Talvez quando começasse a ganhar o suficiente. Quando fosse um artista
pago pelo Joey Drew Studios. O pensamento me fez sorrir.
Não estava pronto para ir para casa depois disso. Eu praticamente estava pulando de tanta
empolgação. Dei uma volta pelo bairro. Peguei uma rosquinha de graça com a Sra. Panek quando
ela estava para fechar a mercearia e as crianças Jankowski tentaram me chamar para jogar bets com
elas. Abri um sorriso e fui em frente até que acabei chegando ao East River quando o céu já estava
ficando roxo escuro.
As luzes estavam acesas no Brooklyn. Pareciam até estrelas ao longo do rio.
Me sentei num banco. Quase num cocô de passarinho, mas vi no último segundo e joguei a
bunda pro lado. O ar era menos estagnado perto da água. E estava mais frio agora que o sol estava
quase se pondo. Quase fez com que eu me sentisse mais calmo que antes. Toda a agitação vibrante
do dia começava a me envolver como em um cobertor. Ainda me sentia feliz, mas tudo parecia
muito mais real.
Às vezes, coisas assim aconteciam.

Cheguei em casa tarde. Bem tarde. A luz da frente estava acesa, o que foi legal da parte da
mãe, mas eu sabia que precisava apagar imediatamente depois que entrasse. A conta de luz ficava
alta e a mãe precisava trabalhar mais. Esperava que agora com esse novo trabalho, talvez a luz não
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fosse mais um problema tão grande. Talvez agora ela pudesse sentar para ler com mais conforto,
sem precisar de uma vela.
Sabia também que eu provavelmente levaria um sermão na manhã seguinte por ter ficado
fora até tão tarde. Ela gostava de saber onde eu estava. Como se eu fosse uma criança ou algo do
tipo. Bom, não era minha culpa perder a noção do tempo... tinha sido um grande dia.
Abri a porta o mais devagar que pude. A mãe dormia no sofá-cama que ficava logo ao lado
da entrada. Na verdade, era tudo um espaço só, a cozinha, onde comíamos, onde sentávamos. E a
porta se abria bem no meio de tudo isso. Ela estava enrolada embaixo das cobertas, dormindo
profundamente, e eu tirei os sapatos, carregando-os até o meu quarto.
Meu quarto na verdade nunca foi muito escuro. É engraçado, mas até aquele dia, quando
fiquei parado no meio da entrada completamente negra do Joey Drew Studios, não fazia ideia de
que havia diferentes tipos de escuridão. Nunca me ocorrera que a luz do poste do lado de fora das
janelas tornava possível para mim encontrar minha cama, jogar minhas roupas no canto e me atirar
embaixo das cobertas de shorts sem ficar esbarrando em tudo pela frente.
Nunca me ocorrera que podia estar tão escuro que não seria possível enxergar sua mão na
frente do seu rosto.
Naquela época, eu não conhecia esse tipo de escuridão.
Puxei a coberta e deitei na cama por um momento, tentando me acalmar. Me levantei e abri
uma fresta na janela. A temperatura lá fora não estava muito diferente, mas tinha algo tranquilizante
no zumbido da cidade. Me deitei e fechei os olhos.
Às vezes, você não sabe que pegou no sono. Foi o que aconteceu então. Achei que ainda
estava acordado, tentando pegar no sono, quando percebi que não estava mais deitado na cama.
Ainda estava tudo negro como quando se fecha os olhos, mas eu estava de pé e meus olhos estavam
abertos. Estava tentando ver alguma coisa, mas não conseguia. Então avancei em meio à escuridão.
Havia alguma coisa mais à frente.
Conseguia ouvir.
Alguma coisa respirando, talvez?
Mas, por algum motivo, não sabia dizer se estava viva.
Acho que eu ainda pensava que estava acordado nesse ponto porque pensei comigo mesmo:
“Você não tem tempo pra isso, precisa dormir”. Mas continuei indo em frente.
Finalmente, cheguei a uma porta. Ela meio que se materializou na minha frente. Mas não
fiquei surpreso. Havia uma batida vindo do outro lado. Isso me fez recuar um passo. Senti que não
devia atender.
Toc, toc.
Recuei outro passo. De alguma forma, a porta continuava bem na minha frente.
Houve um longo silêncio.
Uma mão gigante irrompeu em meio à madeira, criando uma chuva de farpas. Ouvi um urro
e me virei aos tropeços, mas não consegui fugir. Ela me perseguia, tateando de um lado para o
outro, tentando me encontrar.
Acordei de súbito, o rosto plantado no travesseiro. A parte de baixo da coberta estava toda
encharcada de suor. Meu coração estava na boca.
Foi um sonho, disse a mim mesmo. Um sonho.
Virei de costas para baixo e olhei para o facho de luz do poste que iluminava o teto. Havia
uma rachadura que percorria os cantos do gesso, uma infiltração. Um dia, começara assumir uma
coloração marrom-escura e a mancha a fazia parecer o rio Hudson. Escura. Fria. Cheia de todo tipo
de sabe-se lá o quê.
Por que não conseguia parar de sentir que estava sendo observado?
Olhei para a direita. Uma figura esguia estava parada à minha porta. Ele reluziu à luz do
poste: um rosto pálido, cadavérico, a pele fina feito um pedaço de papel esticada sobre o crânio.
Olhos esbugalhados e sem vida. Uma longa camisola branca cobrindo sua estrutura esquelética.
Só o que consegui fazer foi olhar. Respirar. Tirar aquele sonho do meu cérebro. Não é real.
Acorde que ele desaparece. Mas ele continuou ali parado. Não se mexeu.

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Ele levantou a mão devagar e apontou para mim. Foi quando não consegui mais aguentar.
Fechei os olhos e gritei. Talvez por covardia, mas não consegui me mexer. Gritei de novo. Meu
corpo todo estava gritando.
As luzes se acenderam de súbito. A que ficava em cima da minha cama piscava como de
costume, a fiação nas paredes danificada pela infiltração lá em cima.
— Buddy, você está bem? — A mãe entrou correndo no quarto, lutando para colocar o robe
roxo desbotado mesmo com a manga direita presa embaixo da faixa da cintura. Eu normalmente
daria risada, mas o terror ainda estava no controle, especialmente quando, mesmo com as luzes
agora acesas e o sonho acabado, o velho continuava lá. E parecia tão assustador quanto antes.
Não consegui respondê-la, obviamente. Não encontrei as palavras.
Foi quando a figura se voltou para a minha mãe. Deu um passo em sua direção. Isso me
ajudou a encontrar minha voz:
— Fique longe dela! — gritei, pulando da cama. Meu pé ficou preso no buraco nos fundos
da coberta de crochê enrolada na beira da cama e eu caí de cara no chão.
— Meu Deus, o que está havendo? — disse a mãe.
Estava procurando qualquer coisa para me ajudar a me levantar. Me sentia um tonto. Me
apoiei nos antebraços. Uma mão ossuda se estendeu em minha direção.
— Vem? — disse uma voz grave e baixa com um forte sotaque que eu conhecia muito bem.
Virei a cabeça e olhei para o homem. As feições em seu rosto ainda pareciam pálidas e
desgastadas demais, mas seus olhos eram azuis-claros e tinham um certo brilho, não eram mais
vazios. Estendi a mão e segurei a dele. Era quente.
Me levantei e olhei para ele por um momento. Tínhamos mais ou menos a mesma altura.
Talvez ele fosse um centímetro mais baixo. Parecia agora mais frágil que amedrontador.
Olhei para a mãe. Tinha conseguido passar o braço pela manga e estava me olhando como se
eu tivesse ficado louco. Talvez eu tivesse. Mas por outro lado...
— Quem é o velho? — perguntei, apontando só para ter certeza que ela sabia do que estava
falando, já que ela parecia muito confusa e aquela não me parecia uma situação confusa.
A mãe fechou os olhos por um momento e sorriu. Suspirou enquanto os abria novamente.
— O velho é o seu zayde.
— Meu o quê?
— Seu avô, Buddy. Meu pai. — As palavras pareceram travar em sua garganta por um
segundo. Olhei para o velho. Ele não sorriu. Não disse nada. Só ficou ali parado do mesmo jeito que
antes, emoldurado pelo aro da porta.
— O que ele está fazendo aqui?
— Olha, vou levá-lo para cama. Depois eu volto aqui e a gente conversa — disse ela. Então
murmurou alguma coisa para ele em polonês e ele assentiu. O pegou pela dobra do braço e o levou
para fora do meu quarto.
Me sentei na cama. Foi a primeira vez no dia todo que finalmente me senti cansado. Não
empolgado por conta do Sr. Drew ou assustado por conta de uma pessoa que era evidentemente o
meu avô. Só muito cansado.
A mãe finalmente voltou e se sentou ao meu lado. Me deu aquela olhada de esguelha que era
sua especialidade. Queria dizer que me achava engraçado. Não estava exatamente rindo de mim,
mas também não estava não-rindo de mim.
— Desculpa, eu não sabia. Como podia saber? — perguntei.
— Tudo bem, foi culpa minha. Aconteceu tudo tão rápido. Não sabia que ele ia vir hoje,
também não estava pronta para ele. Pelo menos não o coloquei na sua cama. Imagine o choque que
não teria sido! — disse ela em meio a uma risada.
— Na minha cama?
— Você tem uma cama grande, Buddy, e vamos ter que fazer isso funcionar por um tempo.
Suspirei com força, mas não disse nada. Minha mãe era do tipo de pessoa doce e boa, mas
não se deixe enganar: não se pode discutir com ela. Você nunca vai vencer.
— Quando você não voltou para casa, coloquei ele comigo esta noite. Não queria assustá-lo.
— Acho que isso foi legal da sua parte — disse, sentindo pena de mim mesmo.
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— Não foi? — disse a mãe, dando uma piscadela. — E onde você estava até tão tarde? Não
pensa na sua pobre mãe em casa, morrendo de preocupação?
Não achava que já fosse hora de mudar de assunto. Ainda não tinha conseguido informações
o suficiente. Meu avô do “velho país” estava agora no meu apartamento em Nova York, e por quê?
O porquê ainda não havia sido abordado. Mas estava tarde. Além disso, a resposta a deixaria feliz.
— Consegui um emprego — disse, tentando não sorrir. Tentando fazer parecer algo bem
casual. Como se não me importasse muito.
— E quanto ao Sr. Schwartz? — perguntou ela, mordendo o lábio.
— Não se preocupe, ele não ficou bravo, seu trabalho ainda é seu. Mas espero que logo você
não precise mais trabalhar para ele também. Esse emprego é melhor. Vou trabalhar como aprendiz
para o Joey Drew Studios. Quem sabe aonde isso pode me levar?
— Vai ser pago pra isso?
— É claro. O dobro que antes.
A mãe abriu um sorriso então, um pequeno sorriso, talvez não fosse nem para eu ter visto,
mas pude notar que algo nela tinha relaxado e isso me deixou muito orgulhoso.
— O que é um Joey Drew Studios? — perguntou ela, virando-se para olhar para mim,
apoiando um joelho na coberta.
— É onde fazem desenhos animados. Os do Bendy. Vou ser um office-boy, mas também um
aprendiz de cartunista. Ver como funcionam as coisas.
Ela me olhou então com uma expressão engraçada. Mas não incomum. Sempre me olhava
daquele jeito, como se tivesse toda uma história rolando na cabeça dela, uma que eu nunca ia ouvir.
Segredos. Ela sorriu outra vez.
— Então vai poder desenhar e ser pago por isso. — Não era uma pergunta.
— Sim.
— E o seu avô chega no mesmo dia que conseguiu esse emprego.
— Pois é — disse.
— Perfeito. — Ela sorriu.
Não entendi a conexão. E é claro que ela não explicou. Também não perguntei. É engraçado.
Começo a perceber como eu não fazia perguntas naquela época. Não até te conhecer, Dot.
— Bem, estou feliz por você, Buddy. — Ela se inclinou e me beijou na testa. Fez eu me
sentir uma criancinha. — Agora vá dormir um pouco. Falamos sobre tudo isso amanhã. — Isso me
fez me sentir ainda mais como uma criancinha.
Ela saiu, apagou a luz e eu voltei para baixo das cobertas. Só então me lembrei do meu
sonho. Imaginei o barulho que não devia ter feito para aquele velho acordar e vir até o quarto.
Fiquei pensando o quanto não tinha me constrangido.
Diante do meu avô sinistro que parecia um fantasma.
Que dia estranho.
E noite.
Se eu tivesse qualquer tipo de percepção supersticiosa, podia ter visto isso como um sinal.
Alguma coisa começando, alguma coisa errada.
Mas é claro que não vi. Não vi os sinais até que já tivesse passado por eles, trilhando um
caminho escuro e sem saída. Outra metáfora. Essa até que não ficou ruim.
Olha só, Dot, estou ficando melhor nisso.

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CAPÍTULO 3
Estou com fome. Ou talvez ele esteja com
fome. Não sei dizer. Simplesmente sinto a fome.
Essa não é a questão. Só deixa escrever mais difícil, pensar mais difícil. Tem sido difícil
para mim permanecer na minha cabeça. Não sei bem se isso faz sentido. Vou ser sincero, aquela
última parte sobre a minha mãe e o meu avô no meu quarto, parecia até que eu estava contando a
história de outra pessoa por um momento.
Aquela era a minha história?
Preciso lembrar: os cinco sentidos. O cheiro do apartamento, velho e mofado, mas também
de carne, batatas e charutos de repolho. O teto manchado de água em cima da cama. Os sons lá fora,
na rua, carros, pessoas gritando, mesmo às duas da manhã. O cobertor que coçava. Me lembro dele.
Te conheci na manhã seguinte, Dot.
Acho que se pode dizer que eu era acostumado a conhecer outras pessoas, ainda mais como
entregador. Pessoas novas não me incomodavam muito. Gostava de olhar para elas. Não, isso soa
estranho. O que quero dizer é que você conhece uma pessoa nova e vê coisas a respeito dela. Como
talvez os sapatos daquele sujeito tivessem acabado de ser engraxados, ou como aquele outro tinha
um círculo de suor marcando a gola da camisa. Os bobes do cabelo daquela dona são manchados de
preto, o batom daquela outra traçava a parte externa de seus lábios. Todo mundo é único.
Na verdade, eu vi a Dot pela primeira vez de longe. Não sabia quem era na época. Só sabia
que aquele ser humano distante era uma garota baixa, um pouco gordinha, com ombros largos e um
caminhar decidido. Devia ter provavelmente a minha idade, com cabelos loiros-escuros molhados,
cujos cachos já estavam desmanchando logo pela manhã. Seus óculos olho de gato pareciam um
pouco grandes demais para seu rosto.
Após notar que ela também estava indo para a entrada principal do Joey Drew Studios, dei
uma corridinha para alcançá-la e ela segurou a porta para mim. Me deu uma olhada completa, da
cabeça aos pés. Foi rápido, mas quando acabou, já tinha uma opinião formada sobre mim. Sei disso
porque conversamos a respeito depois:
— Tinha te achado alto — disse ela.
— Bom, eu sou alto — respondi.
— Era tipo um filhote de cavalo, só pernas. Parecia um pouco desengonçado. Gostei disso.
Ainda não entendo por que ela teria gostado disso. Mas sei que a Dot sempre suspeitou de
quem se gabava: “Como saber se alguém está sendo verdadeiro ou falso quando agem daquele jeito
todo confiante?”
Após me medir, ela continuou com seus passos determinados e assentiu com firmeza para a
mulher atrás da mesa antes de atravessar o salão e desaparecer numa curva.
Eu, por outro lado, fui até a mulher, que me olhou mais uma vez com aquela expressão de
desconfiança. Ou talvez não. Talvez fosse só como era o seu rosto. Sabe, nunca perguntei a ela. Não
sei a resposta pra essa.
Nunca perguntei muita coisa pros outros.
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— Oi, sou Daniel Lewek. Hã... Buddy — disse.
Ela continuou me encarando.
— Eu, hã, sou o novo office-boy e aprendiz de artes.
Ela só me encarou.
Alguém me tocou no braço. Me virei e estava cara a cara com uma mulher, provavelmente
por volta dos cinquenta, com cabelos e franja castanhos um tanto cheios e cacheados, destacando o
rosto anguloso. Tinha uma profunda linha de expressão entre as sobrancelhas que a fazia parecer
preocupada com alguma coisa. Mas eu viria a descobri que era só a aparência normal dela.
— Você é o Daniel? — perguntou.
— Sou.
Ela limpou a mão no avental que estava usando e a ergueu para apertar a minha. Notei que
estava manchada de tinta. Como os meus dedos.
— Sou a Sra. Lambert. Supervisora do Departamento de Artes. Venha comigo.
Levei minha mão à dela, apertamos, e então eu a estava seguindo pelo mesmo corredor que
no dia anterior estivera escuro e assustador, mas que agora estava bem-iluminado com as lâmpadas
zunindo acima. Ela puxou a grade do elevador e nós entramos. Fechando-a atrás de nós, ela apertou
um botão e fomos alavancados para cima, tudo sem dizer nada. O que não me incomodava. Não era
muito de falar. Nunca fui. Nunca serei.
Definitivamente nunca serei.
É meio engraçado. “Humor negro”, é como a Dot chama. Enfim.
Também estava muito interessado no fato de uma mulher ser a supervisora do Departamento
de Artes, estava pensando um pouco nisso. Acho que nunca tinha visto uma mulher na supervisão
de nada antes. Não que não tivesse várias mulheres trabalhando nos últimos anos. Sabia que tinha,
com a falta de homens e vários deles tendo sido mandados pra guerra e tal. Mas uma mulher na
chefia? Não, nunca tinha visto. Me perguntei por quê.
O elevador estremeceu e parou de súbito, o que me fez ranger os dentes de leve. A Sra.
Lambert notou e riu.
— Sim, ele faz isso. — Ela puxou a grade novamente, abrindo-a num ruído estridente, e
então descemos no andar do Departamento de Artes.
Havia artistas sentados por toda a sala, todos com seus próprios cantos e recantos, curvados
em suas mesas e trabalhando duro. Cada um dos espaços era decorado com desenhos e fotografias.
O lugar tinha uma espécie de caos organizado que me agradava.
Era também muito quieto.
Já tinha feito entregas em escritórios o bastante pra conhecer bem o zumbido das conversas
e os estalidos das máquinas de escrever. Era como os sons da cidade, um barulho de fundo suave,
quase reconfortante.
Mas ali, o único som no qual conseguia focar era o de lápis riscando papel. Me fazia sentir
que qualquer som que eu fizesse poderia distraí-los. Como se mesmo a minha respiração fosse um
pouco alta demais. Como se talvez eu não devesse respirar.
A Sra. Lambert não sentia o mesmo:
— Ei, gostaria da atenção de todos! — exclamou bem alto.
Cabeças se ergueram, olhos piscando em nossa direção. Um sujeito sentado à janela tirou os
óculos, limpou as lentes e os colocou novamente.
— Esse é Daniel Lewek — disse ela.
— Buddy — eu a corrigi. Ela olhou para mim. — Todos me chamam de Buddy.
— Certo. Esse é o Buddy, nosso novo office-boy.
— O Joey não tinha congelado novas contratações? — perguntou o sujeito na janela.
A Sra. Lambert deu de ombros.
— Foi ele que contratou o Buddy.
O homem sacudiu a cabeça e se virou de volta para sua mesa.
— Acho que pode ficar com aquela mesa ali nos fundos. Desculpa ser um pouco escuro,
mas... bom, é o que temos. — Ela me viu olhando para ela e sua expressão se suavizou um pouco.

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Não muito, não o suficiente para apagar a ruga entre as sobrancelhas, mas um pouco. — Está tudo
bem, Buddy, vamos dar um jeito em tudo. Mas preciso voltar ao trabalho agora.
E com isso, eu atravessei a sala. Tomei nota do lugar enquanto o fazia. Não era tão grande,
mas, agora que parava para olhar com mais atenção, havia apenas quatro pessoas nele. As paredes
eram placas de madeira sem pintura, mas estavam quase completamente cobertas de desenhos e
fotos de pessoas, animais e lugares, talvez como referência para poses e outras coisas que pudessem
precisar ao fazer os desenhos, imaginei.
Me sentei na minha mesa. Sim, meu canto era escuro, mas não parecia triste. Quase parecia
aconchegante. Sobre a mesa, havia alguns desenhos amarelados do Bendy. Tinha também outros
personagens. Uma garota com um vestido sem alças preto e uma auréola na cabeça. E o que parecia
um lobo alto com as orelhas esticadas no ar e vestindo um macacão.
— Essa é a Alice Angel, esse é o Lobo Boris e aquele ali obviamente é o Bendy — disse
uma voz simpática atrás de mim. Me virei e vi um dos cartunistas olhando para mim. — E eu sou o
Jacob. Prazer em conhecê-lo, filho. — Peguei sua mão e a apertei. Vestia um terno cinza elegante e
usava uma gravata marrom com um lenço de bolso combinando. Estiloso.
— Obrigado. Acho que é melhor eu aprender essas coisas — disse. Jacob riu.
— Sim. Mas não pergunte a ninguém. Especialmente ao Sr. Drew. Se tiver perguntas, faça
aqui no Departamento de Artes. Alguns dos mais veteranos podem ser sensíveis. Não entendem que
nós também não sabíamos quem eram esses personagens antes de chegarmos aqui.
— Certo — disse.
— A fama é passageira — disse Jacob, empurrando o chapéu um pouco para trás. Ele me
abriu um sorriso. E então disse: — Pode levar essa pasta ao pessoal de Redação? Preciso que eles
deem visto na arte antes de prosseguir.
— Ah, claro — disse.
Peguei a pasta e ele voltou à sua mesa. Me virei para olhar para a minha, pensando no que
ele tinha dito. A madeira estava desgastada devido aos anos de uso, escurecida em algumas partes
com manchas de tinta derramada. Podia ver que alguém também havia esculpido a própria madeira:
um par de olhos engraçados. A auréola de Alice. E mais embaixo, na beira da mesa, um nome. Mas
não parecia igual aos desenhos. O nome parecia ter sido talhado de novo e de novo, várias vezes.
Mais profundamente. Era evidentemente o antigo dono da mesa.
— Vou tentar te deixar orgulhoso, Henry — disse para a mesa, a voz baixa. Então ergui o
olhar para me certificar de que ninguém tinha ouvido.
Me levantei e fui até a Sra. Lambert. Ela não tinha uma secretária e eu não sabia muito bem
a quem mais recorrer. Ela olhou para mim com profunda desconfiança.
— Hã, preciso levar isso à equipe de Redação — disse.
Ela me encarou com um olhar severo, dando a impressão de que não fazia ideia de por que
eu a estava dizendo aquilo.
— Hã... onde fica? — perguntei.
— Ah — disse ela. — Um andar abaixo. — Então voltou ao seu storyboard e eu me senti
basicamente invisível de novo.
Tá, é só fazer isso, disse a mim mesmo. Impressione-os e faça o seu trabalho que em algum
momento eles vão te deixar desenhar. E pelo menos você não está lá fora no calor.
Apesar que, na verdade, lá dentro não estava tão mais fresco assim. Os ventiladores no teto
só pareciam circular o ar quente.
Desci um andar e me encontrei numa sala praticamente igual à do Departamento de Artes.
Mais cabeças recurvadas sobre mesas. Dessa vez havia uma secretária bem jovem e bonita junto à
entrada e ela ergueu o olhar para mim, esperando que eu me pronunciasse.
— Oi, eu sou o Buddy, sou novo aqui. Me pediram para entregar essa pasta? — formulei a
frase como uma pergunta, mesmo sabendo que era exatamente o que precisava fazer.
A secretária disse:
— Leve à Dot.
Dei uma olhada na sala.
— Quem é Dot? — perguntei.
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Agora ela olhou para mim como se eu fosse um idiota.
— A única escritora mulher na sala? — Ela também formulou a frase como uma pergunta,
mas definitivamente não era uma. E definitivamente fez eu me sentir um imbecil.
Assenti depressa e comecei a procurar uma mulher. Finalmente, eu a vi, sentada um pouco
distante do resto da equipe, perto de uma janela com uma pequena estante de livros embaixo. Sua
cabeça estava recurvada tão perto do papel que eu me diverti imaginando que ela estava escrevendo
com o nariz.
— Com licença — disse.
Ela me ergueu um olhar expressivo, mas não surpreso. Não parecia assustada. Só... intensa.
Claro. Agora eu me lembrava. A garota lá de baixo. A que tinha segurado a porta para mim.
Acho que ela teve um momento semelhante de percepção.
— Sim? — disse ela.
— Preciso entregar isso pra você. — Dei-lhe a pasta, que ela pegou com um movimento
rápido e eficiente.
Olhou para mim outra vez.
— Sou novo — decidi explicar. — O Sr. Drew me contratou ontem. Sou do Departamento
de Artes. — Por que eu ainda estava falando? Não costumava falar tanto assim, então por que não
conseguia parar?
— Certo — disse ela. E aí voltou ao que estava escrevendo. Não tive escolha senão partir.
É estranho pensar que aqueles dois breves encontros te fizeram ter tanta certeza sobre mim.
Te fizeram gostar de mim. Nunca vou entender por quê. Mas sempre serei grato a você por ter
tomado essa decisão.
Tive sorte de ter conhecido você.

O resto da manhã foi basicamente um combo onde fiquei sentado na minha mesa por tempo
até demais e então fui fazer algumas entregas. Ninguém ainda parecia saber de fato que eu existia,
mas a Sra. Lambert me assegurou que quando o resto do estúdio descobria que tinha um office-boy
novo no pedaço, a demanda seria alta.
— Aproveite a paz e tranquilidade enquanto pode — ela disse com um sorriso torto. — E
leve isso à equipe de Música.
Assim o fiz. Desci vários andares até chegar ao do Departamento de Música. Foi a primeira
vez que tive noção do labirinto que aquele prédio era. Diferente do meu departamento, que era só
uma única sala grande, o elevador agora tinha se aberto num corredor estreito. Ele se estendia para
ambos os lados e não havia placas ou quaisquer outros indicadores que apontassem aonde eu devia
ir. Nem pessoas. O que destoava bastante em comparação com todas as outras áreas agitadas do
estúdio. Era quase estranhamente sinistro. Minha imaginação imediatamente se perguntou o que
teria acontecido a todas as pessoas. Imaginei uma mão gigante brotando do chão e pegando todo
mundo. Era engraçado, mas, por algum motivo, ainda me sentia um pouco inquieto.
Deixei tudo isso de lado. Porque estava sendo bobo. Era só um corredor vazio.
Escolhi ir para a direita. Fui caminhando, ouvindo o som dos meus próprios passos, até que
o corredor finalmente se abriu num pequeno espaço que dava em quatro salas. Três das portas ali
estavam trancadas — a quarta levava a um banheiro que não parecia ser usado há muito tempo.
Fechei a porta. A sensação de inquietação continuava lá. Portas trancadas queriam dizer que alguém
queria manter as pessoas fora. Mas um banheiro sem uso queria dizer que ninguém ia lá há algum
tempo. Qual seria o caso?
Havia outro pequeno corredor escuro que se dividia do que eu estava, mas sentia que estava
indo para o lado errado, entrando cada vez mais fundo no labirinto, então dei meia-volta e fui pelo
outro caminho. Só tinha duas escolhas, afinal. Passei pelo elevador e dessa vez virei à esquerda. Me

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sentia mais confiante. Aquele corredor tinha pôsteres pendurados nas paredes e, enquanto avançava,
encontrei partituras e até alguns discos emoldurados, suspensos como obras de arte.
E então, de repente, estava de volta a um corredor de aparência mais simples. Girei sobre os
calcanhares, mas não consegui entender como aquilo tinha acontecido. Devia ter errado uma curva
em algum lugar. Estava começando a me sentir um pouco em pânico.
Era ridículo. Aqueles corredores não podiam simplesmente continuar para sempre. Aquele
prédio ficava espremido entre outros dois prédios. Aquela era Nova York, uma cidade numa ilha,
sempre crescendo para cima porque não havia mais para onde crescer para os lados.
Só dê a volta e você vai acabar entendendo. Em algum momento.
Mas...
Não consegui. Na verdade, agora também não conseguia mais encontrar o caminho de volta
até o elevador. Estava começando a sentir aquela sensação familiar que tinha quando fazia entregas
para o Sr. Schwartz. Não queria ser conhecido como o cara que atrasava, ou que não era confiável.
Não ali, não no estúdio. E com certeza não no meu primeiro dia.
Fui parar num corredor mais escuro que os outros. Eu agora estava ficando genuinamente
assustado. Estava perdido num labirinto e, àquele ponto, minha imaginação começava a se apossar
de mim. Toda vez que fazia uma curva, meu estômago se comprimia só um pouco com a ideia do
que eu poderia encontrar.
Ou quem.
Dei a volta em mais uma curva e então ouvi alguma coisa. Me esforcei para escutar melhor.
Música. Estava ouvindo música. Era baixa e esparsa. Como um grito lento e agudo. Ficou
mais alta, mas então voltou a abaixar. E mais uma vez, aumentou e abaixou. Segui o som e fiz uma
curva. A luz era mais brilhante ali e acabei encontrando uma mesa vazia junto à uma porta. Em
cima, havia uma placa: Departamento de Música. E a música vinha de trás da porta. Alguém estava
tocando. Esse alguém ia me ajudar a sair daquele labirinto.
Abri a porta cuidadosamente e espiei lá dentro. Era uma sala grande, com um teto com dois
andares de altura e um palco mais à frente. Na parede dos fundos, um quadrado de luz branca e
brilhante bruxuleava, como se um rolo de filme tivesse acabado de terminar uma exibição. Me virei
para olhar a parede oposta. Havia uma cabine de projeção acima, mas a luz era tão ofuscante que
não consegui identificar se aquele tal de Norman que tinha conhecido no dia anterior estava lá, ele
ou qualquer outra pessoa, na verdade. Então dei a volta e avancei pela sala. Cadeiras e suportes de
partituras estavam espalhadas por todo o palco. E havia uma série de instrumentos acomodados nos
assentos, seus estojos abertos no chão junto a eles. Parecia que todo mundo tinha tirado uma pausa
pro almoço. Exceto pela moça com o violino.
Estava sentada bem no meio do palco, cercada por uma floresta de suportes de partituras,
seu cabelo comprido, liso e sem corte. Sua partitura lhe escondia o rosto e boa parte do instrumento,
então só conseguia ver sua mão e seus dedos, quase como garras, segurando as cordas no braço do
violino. A música que produzia era lenta e penosa, dificilmente se podia considerar uma melodia.
Ela atravessou a minha cabeça e me fez me sentir um pouco zonzo.
— Com licença? — disse, a voz baixa, sem querer interrompê-la, mas sem saber também o
que mais fazer.
Ela ergueu a cabeça depressa e a música parou instantaneamente. Olhou para mim por trás
dos olhos de pálpebras extremamente carnudas.
— Oi, desculpa interromper, mas estou perdido...
Houve um súbito estrondo do lado de fora da sala. Então, um grito desesperado. A mulher se
levantou e fitou a porta e eu me virei para olhar, meu coração palpitando rápido.
— O que houve?
A mulher ficou olhando, completamente imóvel. Então, num sussurro, disse:
— Ele está vindo.
Me virei de volta para ela.
— Quem?

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De repente, a sala ficou escura. Olhei em volta e notei que o projetor tinha sido desligado.
Apenas uma luz mais ao canto iluminava a sala agora. Podia sentir meu peito se contrair de medo,
mas era só uma mudança na iluminação. Só isso. Só isso.
Toc.
Me virei devagar em direção à porta. Me lembrei do meu pesadelo. A escuridão à minha
volta. A mão passando pela porta. Olhei para a violinista. Estava completamente parada em seu
longo vestido preto. Seu cabelo se mesclava a ele, fazendo-a parecer uma grande sombra. Ela não
deu meia-volta, não fugiu. Ficou apenas olhando para a porta.
Toc, toc.
Parecia o som de alguém mancando, pisando com força num pé só. Logo do lado de fora.
Aproximando-se.
Não. Não ia deixar que o meu cérebro me pregasse peças.
Toc, toc.
Não era um pesadelo.
Segui até a porta devagar, respirei fundo e então a abri com tudo.
Não havia ninguém lá.
— Ele está vindo.
Olhei para a violinista. Ela apontava para a porta com seu arco.
— Quem? — perguntei outra vez.
Ela não disse nada, ficou só olhando. Estava começando a me sentir mais frustrado do que
assustado e então me virei em meio a um suspiro longo, apenas para me deparar com o rosto de uma
criatura coberta numa gosma negra que pingava bem na minha frente.
Recuei aos tropeços e a pasta na minha mão caiu no chão, esquecida, enquanto o monstro
adentrava a sala usando o batente da porta para se atirar em minha direção. Seu corpo inteiro estava
coberto com uma coisa escura que ficava escorrendo. Ele apalpou o próprio rosto e então disparou
uma lamúria de pura agonia enquanto se lançava para cima de mim. Não consegui fugir. Tropecei
nos próprios pés enquanto a coisa caía de mim, cobrindo meu corpo com aquela mesma substância
grudenta e molhada. Empurrei o mais forte que pude enquanto ela arranhava seu próprio rosto,
nunca cessando o urro horripilante que vinha do fundo de sua garganta. Toda vez que abria a boca,
a gosma negra escorria de sua garganta, fazendo-a gorgolejar e cuspir.
Finalmente, ela rolou para o lado, saindo de cima de mim, e eu me levantei aos tropeços.
Olhei para mim mesmo. Minhas mãos, calças, camisa — estava tudo coberto. Fitei minhas mãos de
perto, esfregando a gosma negra.
— Tinta? — disse, ofegante.
Me virei para a coisa no chão e percebi que não era um monstro. Era um homem. Coberto de
tinta. Um homem coberto de tinta, se debatendo no chão, agoniado e furioso.
Num instante, já estava abaixado a seu lado.
— Senhor, senhor, consegue me ouvir?
O homem subitamente agarrou a gola da minha camisa e me puxou para perto.
— Meus olhos!
Assenti e tirei suas mãos de cima de mim enquanto me levantava. Vasculhei a sala com o
olhar desesperadamente e vi um pedaço de tecido enfiado num estojo de violoncelo aberto. Atrás
dele, na fileira dos fundos, tinha um copo de água pela metade. Passei correndo pela violinista,
ainda parada lá feito uma estátua, peguei os dois e, em pânico, voltei.
— Água e um pano — expliquei, entregando-os ao sujeito. Ele sacudiu os braços às cegas e
eu agarrei sua mão, fechando seus dedos em volta do copo. Fiz o mesmo com a outra e o pano.
Observei enquanto ele esfregava os olhos furiosamente e me parecia que só estava piorando
as coisas. Ao mesmo tempo, eu também não ia dizer a ele o que fazer — ele parecia um pouco...
ensandecido.
A tinta faz isso com você.
No fim, ele conseguiu limpar seu rosto o suficiente porque se acalmou, abaixou os braços ao
lado do corpo e ficou ali deitado, olhando para o teto.
— Você está bem, senhor? — perguntei.
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O homem ficou parado por mais um momento e então virou a cabeça para que pudesse olhar
para mim. Seu rosto estava manchado e a parte branca dos olhos não estava branca. Em vez disso,
estava mais para um tom pálido de rosa. Tudo nele parecia pontiagudo. Seu nariz, seu queixo, até o
formato de suas sobrancelhas.
— Se estou bem? — perguntou em meio a uma risada, repetindo o que eu tinha dito. Ele
sacudiu a cabeça e me encarou.
— Está sangrando — disse, apontando para um ponto por onde o sangue escorria.
O homem o tocou, subindo com os dedos em direção ao alto da cabeça. Estremeceu. E então
puxou alguma coisa com toda a força. Olhou para seus dedos. Em meio a eles, havia um pedaço de
vidro. Ele olhou de volta para mim.
— Quem diabos é você?
— Ah, hã, sou o Buddy. Sou o novo office-boy do Departamento de Artes.
Ele me encarou por mais tempo dessa vez. E então começou a rir, uma risada que era só
respiração, sem som. Quase como se estivesse arquejando.
— Departamento de Artes. Certo. Certo, office-boy do Departamento de Artes, responda-me
isso: por que vocês estão guardando tinta no depósito das partituras? E por que o Joey tá passando
um cano que aparentemente tá cheio de tinta pelo meu depósito?
Um cano? Com tinta? Aquilo certamente não me parecia normal, mas, pra falar a verdade,
eu não fazia ideia do que era normal para um estúdio de animação.
— Eu não sei.
— Você não sabe. Você não sabe. — A risada ficou ainda maior, embora continuasse sendo
só respiração. Agora tinha também estalido que parecia vir do fundo da sua garganta. Ele se ergueu,
apoiando-se nos cotovelos, ainda rindo.
— Eu... não sei — disse, como se repetir as palavras fosse fazer com que a resposta soasse
menos engraçada. — Eu... não sei nem onde o depósito das partituras fica.
Não sabia onde ficava a maioria das coisas. Mesmo agora, nesse momento, nem sempre me
lembro onde ficam as coisas.
Mas me lembro do homem levantando e me agarrando pelo cotovelo. E me lembro de olhar
para a violinista, do jeito que ela ficou olhando em silêncio enquanto ele me arrastava para fora da
sala. Me lembro de segui-lo sem saber o que estava acontecendo. E da força de sua mão. Seus dedos
eram tão pontiagudos quanto todo o resto.
Eu me lembro.
Me lembro de seguir um rastro de pegadas de tinta em sentido contrário pelo chão.
E me lembro do depósito.
A porta estava escancarada e o chão completamente negro, com tinta pingando das pilhas de
papéis brancos nas prateleiras altas, como se uma torneira tivesse acabado de ser fechada. Havia
vidro quebrado por todo lado.
— Esse é o depósito das partituras — disse o sujeito, soltando meu braço de um jeito que
mais pareceu um empurrão. Tropecei em direção ao lugar. Bati com o pé num caco de vidro que foi
tilintando para um canto escuro. — E essa é a tinta que não devia estar aí.
Ele apontou para uma série de fileiras de tinteiros intactos e sem qualquer tipo de rótulo.
— E esse é o cano inexplicavelmente passando por aqui cheio de tinta e que ainda conseguiu
estourar, arruinando incontáveis montantes das minhas partituras.
— Certo — disse. Olhei para ele. Ele olhou para mim.
— Certo? — Ele parecia indignado, mas eu não sabia mais o que podia dizer. Só queria
voltar ao elevador e ao meu trabalho.
Quando não disse mais nada, ele sacudiu a cabeça para mim. Então se inclinou tão perto que
eu podia ver a tinta que penetrara em cada um de seus poros. Quando falou, pude ver sua língua e
gengiva manchadas de tinta:
— Limpe. Essa. Bagunça.
E então ele saiu batendo os pés e eu fiquei sozinho. De novo.
Olhei para o depósito.

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Aquela sensação de estar perdido não me deixava em paz. Aquela sensação de estar sempre
errado. Não era boa. E então, olhando para a bagunça, eu não conseguia entender. Eles não tinham
pessoas para limpar aquilo? Como aquele podia ser o meu trabalho?
E como eu podia fazer aquele trabalho?
Como se limpa tinta derramada?
É uma pergunta complicada de responder.
Porque a resposta é: não se limpa.
Deixe-me contar uma coisa sobre a tinta. Ela não vai embora. Quer dizer, você pode lavar as
mãos e esfregar e você acha que se livrou de tudo, mas aí um pontinho, um pequeno pontinho vai
brotar. Algo que você não tinha visto? Talvez. Mas não é o que parece. Então, em vez de continuar
tentando tirar, você espera que as partículas da sua pele a removam. E aí ela some. Ou será que não?
Você acha que sumiu, mas aí você acha mais. Em outro lugar.
E mais.
A tinta nunca desaparece.
Ela está sempre lá, como se estivesse se escondendo, esperando para se revelar. Está sempre
lá para te lembrar. Ela nunca irá embora.
No início, não é ruim. Você acaba se acostumando a vê-la por dentro da unha do seu dedo
indicador. Talvez seja até uma amiga. Ou uma marca de orgulho. É assim que ela te atrai.
Mas ela floresce e se enterra. E penetra e mergulha.
E submerge e bebe.
Está viva.
Está em toda parte.
Está dentro de mim. Respira por mim. Posso senti-la esguichando nos meus pulmões.
Posso senti-la no meu cérebro.
Eu sou a tinta.

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CAPÍTULO 4
— Buddy?
Àquela altura, já estava esfregando a tinta com um esfregão velho que encontrei na despensa
há provavelmente uma hora.
Antes disso, tinha recolhido o vidro quebrado e os frascos de tinta. Joguei fora todos os
papéis de partitura destruídos. Sentia que tinha feito algo útil. Mas agora não. Agora era só tinta
girando e girando, sem ir a lugar algum.
Me virei.
— Ah, oi. — Era a garota do Departamento de Redação. A que eu tinha visto mais cedo.
Era a Dot.
Vindo ao meu resgate.
— O que está fazendo? — perguntou. Disse isso como se pensasse que eu era doido.
— Ah, hã, o cara da música me disse pra limpar isso — disse, sustentando o esfregão no ar
enquanto ele pingava no chão. Mais tinta. — Ele estava aqui e acho que quebrou uns frascos e teve
um cano que estourou ou algo do tipo.
— Cara da música?
— Isso... Ele é... pontiagudo. — Não sabia muito mais sobre ele. Nem mesmo seu nome,
parando para pensar.
— Ah — disse a garota, um sorriso rompendo sua expressão severa. — O Sammy.
— Talvez.
— Ah, com certeza foi o Sammy. Ele... é bem entusiasmado. — Ela deu a volta por mim de
forma extremamente eficiente para dar uma olhada na bagunça no depósito. — O que essa tinta toda
estava fazendo aqui pra começo de conversa?
Ela estendeu a mão e tocou uma poça grudenta em uma das prateleiras.
— Espessa — disse, mais para si mesma do que para mim.
— Nem me fala — respondi, finalmente abaixando o esfregão no chão e sentindo toda a
exaustão da limpeza me tomando o corpo.
— Tinta estraga? — perguntou ela, olhando para mim.
— Nem ideia.
Ela deu de ombros.
— Bom. Não importa. Ele não devia ter feito você fazer isso. Olha pra você, está horrível.
Me lembrei então que também estava coberto de tinta. Por causa do Sammy. A mãe ia me
matar quando visse o estado das minhas roupas.
— Vem comigo, quero te mostrar uma coisa.
E como qualquer coisa era melhor que ficar empurrando tinta em círculos, fiz conforme ela
disse. Não sabia por que Dot fazia tanta questão de me levar aonde quer que estivéssemos indo. Tá,
admito que o meu primeiro pensamento foi que talvez ela fosse a fim de mim. Quer dizer, não só a
fim, mas estivesse caidinha por mim.

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Se estiver lendo isso, sei que está rindo, Dot, mas não sei dizer nenhum outro motivo pelo
qual uma garota iria querer sair com um cara, ainda mais na nossa idade. Não me ocorreu então que
podíamos ser simplesmente duas pessoas juntas.
Amigos.
Fico feliz por ter me dado conta disso.
Enfim, eu não sabia aonde ela estava me levando ou por quê, mas qualquer coisa era melhor
que ficar ali limpando, como eu disse, e àquela altura eu já tinha me desviado tanto da minha tarefa
que nem sabia mais qual era o meu trabalho. E eu merecia uma pausa.
Sempre fui muito bom fazendo as coisas fazerem sentido na minha cabeça, bem desse jeito.
Eu a segui pelo corredor, virando aqui e acolá até que chegamos ao elevador. Senti tanto
alívio ao vê-lo que me esqueci por um momento que não estava indo para o Departamento de Artes
e fiquei completamente desnorteado quando o elevador começou a descer em vez de subir.
— Aonde estamos indo? — perguntei. A gaiola na qual estávamos sacudia um pouco e as
engrenagens que controlavam o mecanismo de movimentação faziam um barulho um pouco alto
demais. Esse elevador deve ter sido um dos primeiros do gênero, pensei. Um artefato histórico. Um
artefato histórico bem lento.
— Não quero estragar a surpresa — disse Dot, bastante natural.
— Hm — disse em voz alta. Era para ser apenas um pensamento. Ela se virou e estreitou os
olhos na minha direção, desconfiada.
— O quê?
— O quê? Ah, não, não é nada. Você só não parece do tipo que se interessa por mistério,
jogos e essas coisas. — Eu desacelerei enquanto dizia isso e ela olhou para mim.
De repente, me senti como um imbecil. Não sabia nada sobre ela. Só sabia que ela parecia
mais pragmática.
Mas aparências podem enganar.
— Não está errado — disse ela, abrindo os olhos outra vez. — Mas de vez em quando, sabe
como é, uma surpresa pode ser bacaninha. Além disso, é difícil explicar, melhor você ver.
— É, às vezes palavras não são o bastante — concordei.
Ela pensou a respeito por um momento.
— Vou escolher não levar isso como um insulto pessoal.
— Ah! Não, não foi. — Definitivamente não foi o que eu quis dizer. Só achei que estava
concordando com ela. Ela fazia eu me sentir pressionado, como se caso eu não dissesse tudo bem
perfeitinho, ela podia entender errado.
Mas no fim, eu estava certo. De um jeito bom.
— Sou a Dorothy, à propósito. — É, acho que foi mais ou menos assim que aconteceu.
Acho que foi a primeira vez que nos apresentamos. Sou a Dorothy, à propósito. — Todo mundo me
chama de Dot. Eu me chamo de Dot. Só me chame de Dot.
Certo. Me lembrei então da secretária a chamando assim.
— Eu sou o Buddy. Meu nome verdadeiro é Daniel, mas todo mundo me chama de Buddy.
— Sério, por quê?
— Bom, por que te chamam de Dot?
— É um apelido comum que as pessoas dão para Dorothys — respondeu ela, como se eu já
devesse saber. — Para Daniel, normalmente é algo como Dan, Danny ou coisa do tipo. Buddy é
meio estranho.
Isso meio que me pegou de surpresa. Não concordava com ela com relação a isso.
— Não é não. Na verdade, começou como Little Buddy[1]. Todo mundo lá no bairro me
chamava assim. Eu era bem pequeno e estava sempre fazendo o que podia pra ajudar os meus pais,
com tarefas e tal. Só queria ser útil. Ficava dando voltas e voltas no bairro. Acho que as pessoas
simplesmente começaram a me chamar assim. Mas aí, bom, você sabe... — Abaixei a cabeça e olhei
para mim mesmo, para aquele meu par de pernas esguias enfiadas nos meus grandes sapatos.
Sempre senti que eu era uma vareta num suporte ou algo do tipo.
— Você cresceu — disse ela.
— É.
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O elevador finalmente parou com um solavanco, fazendo com que eu rangesse os dentes por
um instante. Imaginei que precisava me acostumar com as paradas súbitas ou então eles iam acabar
caindo da minha boca.
Dot abriu a grade e adentramos um corredor escuro e vazio. Estávamos no porão, isso ao
menos era evidente. E quando olhei em volta, ficou claro para mim que ninguém trabalhava ali,
aquele espaço era usado mais para armazenamento que qualquer outra coisa. Enormes recortes de
papelão do tamanho de uma pessoa com a imagem do Bendy estavam inclinados na parede à direita
e, quando Dot se virou e eu a segui para a esquerda, vi vários depósitos de portas abertas. Dentro
das salas havia uma porção de caixas empilhadas umas sobre as outras.
— Podemos mesmo vir aqui embaixo? — perguntei.
Dot deu de ombros.
Considerei isso um não. Ela fora tão direta para responder todas as outras perguntas, então
imaginei: um gesto como esse não seria também uma resposta para a pergunta? É, provavelmente
era um não.
— Então, posso te perguntar uma coisa?
Ela olhou para mim, aquele olhar desconfiado de novo.
Quer dizer, eu acabaria descobrindo que era assim que ela olhava pra todo mundo — porque
suspeitava de todo mundo. Ainda assim, no início, me fazia pensar o que estava fazendo de errado o
tempo todo.
— Certo.
— Notei que tem várias... moças trabalhando aqui. — Não tinha muita certeza de como
dizer aquilo.
Dot deu risada. Uma risada única, que parecia vir junto a uma tosse. E ela sacudiu a cabeça.
— Quem está chamando de moça, Buddy? — disse ela em meio a um sorrisinho travesso.
Meu rosto ficou quente frente a isso.
— Você sabe o que eu quis dizer. Todas essas, bom, todas essas garotas que trabalham aqui.
Como a supervisora do Departamento de Artes. É uma moça. E... você sabe... — Eu meio que
extingui o pensamento e fiquei quieto.
— Sei o quê? — perguntou ela, fazendo uma curva. Eu a segui. Ela ligou um interruptor e
uma série de lâmpadas empoeiradas que percorriam o teto estreito foram piscando até finalmente se
acenderem.
— Não estou... acostumado a ver tantas mulheres fazendo... esse tipo de trabalho. — Era
difícil expressar o que eu queria dizer. Principalmente porque, acredito, eu não sabia bem o que
estava perguntando.
— Tá, tá, antes que você acabe se enrolando mais aí, varapau, deixa eu te ajudar.
Dot parou de andar e se virou para olhar para mim. Eu também olhei para ela.
— Durante a guerra, o Sr. Drew, assim como todos os outros empregadores, perdeu vários
funcionários que foram lutar a boa luta. Então, assim como várias outras companhias, ele contratou
as “moças”, como você colocou. A guerra acaba, nem todos os rapazes voltam e aqueles que
voltam, bem... O Sr. Drew gostou do nosso trabalho. Acho que no começo ele ficou surpreso, mas
então percebeu que vinha ignorando muitos talentos sem perceber. O Sr. Drew gosta de talento. E
não se importa com o gênero, a idade ou a cor do qual se originou.
— Sim — assenti, pensando na minha entrevista com ele. Não que o Sr. Drew realmente
soubesse que eu tinha alguma competência. Eu ainda não tinha desenhado nem mesmo um círculo.
Esquisito, quando parei para pensar por esse ângulo.
— Enfim, você entende. Os caras que voltaram, voltaram. Mas o Sr. Drew não demitiu
nenhuma das garotas. Nós trabalhamos juntos por um tempo, alguns dos homens ficaram por aí,
outros já não gostaram muito de receber ordens de mulheres, então... acabamos onde estamos agora.
— Com moças na chefia. — Agora eu entendo.
— São chefes como qualquer outro, Buddy. Mulheres não são nenhuma espécie estranha e
especial de chefe. Só pessoas, Buddy, só pessoas. — Assenti de novo. Quer dizer, eu sabia disso.
Claro que sabia. Dot olhou para mim por um momento. — Você vai ter que jogar essa roupa
todinha fora. Tá destruída.
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Olhei para baixo outra vez, para a tinta preta que ensopava a minha camisa.
— Pois é — disse. Não queria pensar a respeito. Com isso, me restava apenas mais um bom
conjunto de camisa e calção.
Dot assentiu com veemência e começou a andar de novo. Fiz o mesmo. Ela andava depressa,
mas duas passadas dela equivaliam a uma das minhas, então não me senti exatamente apressado.
Ainda que eu meio que soubesse que devia estar voltando ao trabalho. Era bom ter algo que fizesse
algum sentido. Era bom ter uma amiga. Ela era minha amiga? Não tinha certeza.
Finalmente paramos frente a uma porta fechada. Dot olhou em volta, o que definitivamente
me fez pensar que o que estávamos fazendo não era permitido. Ela tirou uma pequena chave de
bronze de um bolso fundo em sua saia e destrancou a porta.
— Onde conseguiu isso?
Ela deu de ombros de novo.
Abrindo a porta, ela acendeu a luz e nós entramos. Era mais um depósito. Mas muito maior
que os outros pelos quais tínhamos passado, que eram pouco maiores que um armário.
Dito isso, havia tanta coisa empilhada junto às quatro paredes que dava a impressão que o
espaço era muito menor do que realmente era. No meio, havia um conjunto de cadeiras e uma mesa.
E o que parecia uma porção daquelas casinhas de boneca que se via na vitrine de uma loja de
brinquedos estava disposta sobre a mesa. Meu ombro bateu em alguma coisa que se sobressaltava e
eu virei para olhar o que era. Era um volante.
Um volante?
Foi quando tudo finalmente entrou em foco.
É interessante como o cérebro funciona. Ele vê várias coisas como uma só. Não vê as peças
soltas individualmente. Você vê um carro. Não vê um para-brisas, as portas, os faróis. Esses você
vê depois. Depois que viu o “carro”.
É engraçado como, se não procurar pelas peças, às vezes você nem chega a notá-las.
As coisinhas individuais que formam o todo. As pistas.
A questão é que eu só tinha visto “coisas”. Mas agora que tinha notado o volante, notei mais.
Notei que o volante estava preso a um kart de aparência diminuta e me dei conta de que era muito
parecido com os carrinhos bate-bate de Coney Island. E então notei que aquela parede era composta
por uma pilha de carros. E mais que isso, havia uma placa meio escondida com várias lâmpadas em
volta. Estava escrito “DY Bate-Bate” nela. Adentrei a sala e dei a volta num círculo, notando mais
coisas. Como um cavalo de carrossel preto e branco e um recorte do Lobo Boris segurando uma
bandeja com uma seta com a palavra “Comida”.
— Incrível, não é? — perguntou Dot.
Me virei e vi que ela estava parada junto à mesa.
— O que é tudo isso?
— Bom, deixa eu te mostrar — disse ela, apontando para as casinhas de boneca.
Me juntei a ela na mesa e notei então que não eram casas de boneca. Eram todas parte de um
modelo em pequena escala, o que fazia muito mais sentido. Ambos nos sentamos dos dois lados da
mesa. Ergui o olhar por um instante e a forma como o nariz e a boca de Dot sumiram atrás do
pequeno modelo de um prédio fazia parecer que ela era um gigante observando um circo de pulgas
humano. Voltei a olhar para baixo. Estava pairando logo acima de uma pequena placa onde estava
escrito “Bendy Bate-Bate”. Olhei por cima do ombro para o verdadeiro, agora oculto nas sombras.
— Não entendo. Coney Island? — perguntei.
— Bendyland — respondeu ela.
Ergui o olhar de volta para ela, que estava olhando para mim com uma expressão de quem
sabe tudo.
— E isso existe? — perguntei. Mas mesmo enquanto o fazia, já sabia a resposta. Não podia
existir, já que todo aquele lixo estava entulhado naquela sala. — Existiu?
Ela sacudiu a cabeça em negação.
— É o próximo grande projeto do Sr. Drew. Ele tem trabalhado nisso nos últimos anos, pelo
menos desde que comecei a trabalhar aqui. Mas sempre em segredo. Ninguém sabe desse lugar, não

28 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
que eu tenha visto. Era só umas coisinhas aqui e ali e o modelo só foi crescendo e crescendo. Mas aí
no último mês, essa sala começou a encher de verdade. Como se algo estivesse prestes a acontecer.
Pensei naquele sujeito, o Tom, que tinha visto no dia anterior. Pensei no tubo de papelão que
ele carregava nas mãos. O tipo de tubo que arquitetos e designers carregam. Talvez ele estivesse
trabalhando nisso.
— Não sei onde ele vai guardar tudo, porque até esse armazém é minúsculo. Loucura, né?
Dei uma boa olhada em toda a cena apresentada no modelo diante de mim. Havia diversos
brinquedos e atrações, com uma área central onde ficavam pequenas barracas com vários tipos de
jogos. Tinha uma praça de alimentação e até algo que parecia uma casa assombrada. Era um parque
completo. Só com coisas do Bendy.
— O Sr. Drew bolou tudo isso? — perguntei, admirado.
— Quem mais? — retrucou Dot.
— E você acha que mais alguém sabe?
— Acho que não. — Dot se ergueu e cruzou os braços na frente do peito, ainda olhando para
o modelo. Também me levantei.
— Como é que você sabe sobre isso? — perguntei.
— Ótima pergunta, Buddy. — Ela parecia impressionada. — Continue fazendo perguntas
assim por aqui. É importante.
Eu não entendi. Digo, entendi o que tinha dito, só não entendi por quê. Então perguntei. Já
que, sabe como é, foi exatamente o que ela tinha me dito para fazer.
— Por quê?
— Não sei, Buddy, não sei. Só estou sentindo alguma coisa nas minhas entranhas e não está
me cheirando bem. Preciso entender isso melhor. Gosto de informação. Gosto de detalhes.
A mãe costumava dizer que o diabo estava nos detalhes.
— Enfim, não se distraia, Buddy. Você me fez uma pergunta e veja o que eu fiz. Não a
respondi e nós mudamos de assunto.
Assenti. Estava confuso, mas, ao mesmo tempo, não estava. O que também era confuso.
— Então como você sabe sobre isso?
— Eu fuxico as coisas. Quero juntar os fatos.
— Por causa da coisa das entranhas.
— Isso.
Eu entendia isso de fuxicar. Fazia muito disso no meu bairro. E quando ficava espiando os
artistas no Central Park.
— Onde conseguiu a chave? — perguntei. Dot sorriu frente a isso.
— Pergunta ainda melhor.
— Obrigado.
— O Wally está sempre perdendo as chaves. Não quer dizer que eu tenha que devolvê-las.
Assenti outra vez, sem saber ao certo como me sentia a respeito de toda essa coisa de roubar.
Bom, eu sabia como me sentia e não gostava, mas gostava da Dot e ela parecia tão segura de si,
como se sempre soubesse a coisa certa a fazer. Talvez a coisa certa daquela vez de alguma forma
fosse a coisa errada?
— Provavelmente é melhor a gente voltar lá pra cima antes que eles notem a nossa ausência
— disse ela. Senti uma pontada de pânico pensando em como estava atrasado e como podia ser
demitido, mas, ao mesmo tempo, já tinha sumido há muito tempo antes de descer ali com ela e
ninguém parecia ligar. Se bem que ninguém também sabia que eu trabalhava lá. Ainda.
— Será que você pode me ajudar a achar o caminho de volta ao Departamento de Artes? —
perguntei enquanto fechávamos a porta atrás de nós e seguíamos em direção ao elevador.
— Claro.
Então eu parei. Pensando. Dot também parou. Notando.
— O que foi? — perguntou ela.
— Por que eu? — indaguei.
— Por que você o quê?
— Por que veio atrás de mim? Por que me mostrou isso tudo?
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Ela então estreitou os olhos para mim com aquele olhar. Você tem aquele olhar, sabia, Dot?
Aquele olhar que diz que, de alguma forma, era eu quem tinha que descobrir, que eu tenho a chave,
a solução.
Eu não tinha. Não tinha na época, não tenho agora. Você põe muita fé em mim, Dot.
— Minhas entranhas — respondeu ela.

----------
GLOSSÁRIO:
[1]
Little Buddy: Algo como “garotinho”, “rapazinho”, “camaradinha”, etc. É um tipo de apelido carinhoso.

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CAPÍTULO 5
Não cheguei a ver o Sr. Drew naquele dia.
Isso me deixou um pouco mal. Até um pouco preocupado, pensando que talvez ele não estivesse
falando sério quando me ofereceu o trabalho ou que talvez já tivesse até me esquecido. Mas quando
voltei ao Departamento de Artes, pareceu até que um holofote gigante se acendeu sobre mim. Eu
definitivamente não estava mais invisível.
— Quando dizem pra você cair de cabeça no trabalho, não é pra levar pro lado literal.
— Isso é algum tipo de obra de arte conceitual?
— Quer virar um personagem de desenho quando crescer?
Acho que o pessoal do Departamento de Artes disse mais algumas coisas, mas não consigo
me lembrar. Me lembro deles rindo. Me lembro do meu rosto ficar quente. E me lembro de tentar
cumprir com as tarefas que todos me davam o mais rápido que conseguia, conversando o mínimo
possível até o final do expediente.
O relógio continuou correndo. Cinco horas. Seis horas. Eu já estava mais que pronto para ir
embora. Belo primeiro dia para o trabalho dos sonhos. Mas ninguém me disse quando o dia acabava
e ninguém à minha volta se levantou. Todas as cabeças continuavam inclinadas sobre suas mesas,
seus lápis riscando furiosamente o papel.
— Tudo bem, Buddy, já pode ir — disse a Sra. Lambert. Eu quase dei um pulo, ela meio
que tinha chegado em mim de surpresa.
— Eu posso ficar — disse. Não queria parecer preguiçoso. Sempre trabalhei duro.
— Não precisa. Estamos com um prazo bem apertado, mas é o seu primeiro dia. Além do
mais, parece que não foi um dia exatamente fácil. — Ela me abriu um sorriso.
Não sabia o que dizer ou fazer. Eu meio que só queria sair correndo. A ideia de sair lá fora
coberto de tinta daquele jeito não era lá das melhores. Mas fiz como ela disse e, pegando a minha
jaqueta, fui para casa. Fiquei muito focado na calçada sob os meus pés. Não estava muito no clima
para ficar vendo pessoas olhando para mim.
Foi mais difícil ignorar os gritos das pessoas do meu bairro.
— Fala, Buddy! Tu caiu num tanque de chocolate, foi? — Esse tipo de coisa.
Cheguei em casa e subi correndo as escadas, esbarrando no Sr. McKenna enquanto saía do
banheiro, aquela velha toalha aos farrapos amarrada na cintura, sua grande barriga caída sobre ela:
— Cuidado, garoto!
Entrei no apartamento às pressas e disparei por trás da mãe, que estava lavando os pratos na
cozinha, seguindo rapidamente em direção ao meu quarto. Parei de súbito. Tinha me esquecido.
Meu avô.
Ele estava parado no pequeno espaço que havia entre o pé da cama e a parede, observando o
grande quadro pendurado ali. Na verdade, acho que o quadro em si não era exatamente grande, era
do tamanho que era. Só era grande em comparação à parede e eu sempre pensei que ele meio que
dominava o quarto inteiro.
— Só preciso trocar de camisa — anunciei.
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Mas ele não se mexeu ou fez algum sinal de que tinha ouvido. Nem mesmo um grunhido.
— Koszula — disse. Meu polonês era horrível, só sabia uma coisinha ou outra aqui e ali.
Não tinha nem certeza se sabia como era “camisa” em polonês pra começo de conversa.
Dizer isso a ele também não pareceu surtir efeito.
Então segui lentamente em sua direção, tentando fazer com que ele me notasse. Quando ele
não o fez, finalmente resolvi subir na cama para chegar à cômoda. Olhei para o quadro enquanto
passava. Era uma paisagem natural, com montanhas e árvores. Não era uma pintura realística como
uma foto, era mais como se o artista tivesse simplesmente jogado a tinta aos montes na tela e
conseguido a paisagem por acidente.
Estava tão acostumado com o quadro, tão familiarizado com cada forma, cada linha. Mas
não só com a pintura em si. Tinha também a moldura dourada. Quando era pequeno, perguntei à
mãe se era ouro de verdade. Não era, ela disse. Eu disse que se fosse ouro de verdade, podíamos ter
vendido e comprado um apartamento novo. E mais comida também. Ela abriu um sorrisinho. “Não
é a moldura que é valiosa”.
Não tinha entendido o que ela quis dizer na época. Mas entendi alguns anos depois, quando
Tommy Sharp me disse que tinha visto no jornal que um quadro que parecia bastante um dos nossos
foi vendido por dez mil dólares num leilão. Não acreditei nele e acabamos brigando por causa disso.
Depois, fui pra casa todo machucados e dei uma olhada nele. E foi como se o meu mundo inteiro
tivesse entrado em foco nesse momento. Notei os outros quadros no apartamento. Os que estavam
empilhados uns sobre os outros ao longo do corredor. Notei como eles ocupavam todo o espaço, do
chão até o teto, quase como se estivessem num estoque. Estavam todos tortos. Empoeirados. Tinha
vivido com eles por tanto tempo que nunca notei que os quadros eram algo a se notar.
— Mãe, podíamos vender esses quadros — disse. — Podíamos fazer dinheiro. A senhora
podia parar de se matar de tanto trabalhar para o Sr. Schwartz todo dia.
— Essas ideias que você tem — disse ela em meio a uma risada, levantando-se da mesa para
bagunçar o meu cabelo, como se eu ainda fosse uma criancinha e não tivesse já meus treze anos.
— Dinheiro é importante, mãe — disse, me virando de onde estava sentado para poder olhar
para ela.
— Não me diga que dinheiro é importante como se eu não soubesse disso. — Ela se apoiou
na pia e olhou para mim. — Nós não vamos vender os quadros.
— Eles são valiosos. A senhora mesmo me disse isso uma vez — disse a ela. — Você não
viu no jornal?
— Não. — Ela se voltou para a pia de novo. Só que não fez nada. Só ficou ali parada. Em
silêncio. Lágrimas não fazem barulho. As pessoas acham que fazem porque quando alguém soluça e
tal, costuma fazer sons com a garganta, mas na verdade é possível chorar sem que ninguém saiba.
Mas eu sabia. Eu sempre sabia. O que não entendia era por que ela estava chorando. Meu
coração afundou na altura do estômago.
— É por causa do pai? — perguntei, a voz baixa. Não recebíamos cartas dele há semanas.
Ela se virou abruptamente, seus olhos arregalados e vermelhos. Parecia assustada, mas não
de um jeito que eu saiba bem como explicar. Tenho certeza que você saberia, Dot. Sua expressão
então subitamente se suavizou e ela disse:
— Ah, o seu pai. Não, não, não é por causa dele.
Olhei para o meu avô enquanto seguia até a cômoda e abri minha gaveta.
De repente, ela estalou na minha cabeça, aquela memória. “É por causa do pai?” Ela pensou
que eu estava perguntando sobre o pai dela, não o meu. Ela sempre escondeu alguma coisa. Sobre a
família dela.
O que será que ele estava olhando no quadro? Por que era tão importante? O que eu não
conseguia ver?
Peguei uma camisa e outro par de calças, fechando a gaveta num empurrão.
Não era justo, eu não precisava disso. Não precisava de um velho misterioso que não falava
a minha língua no meu quarto, no meu espaço, só complicando tudo. Também não gostava de como
ele deixava a mãe triste. Ela era sempre tão feliz, menos quando falava dele. Por que o estava
deixando entrar na vida dela desse jeito? Na nossa vida?
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Por que ele estava parado tão perto do quadro?
Era demais. Aquele dia tinha sido demais.
Fiz o caminho de volta pisando pesado em cima da cama, o que na verdade não é algo que se
possa fazer. Estava mais para um tropeço furioso que praticamente me jogou do outro lado. E então
voltei para o nosso corredor estreito. Me despi e troquei de roupa, jogando as manchadas de tinta
em cima da cama.
Meu avô nem se mexeu.
Só ficou olhando.
E continuou olhando.

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CAPÍTULO 6
Trabalhar no estúdio não era nada como
eu achava que seria. Quer dizer, não era ruim. Qualquer coisa era melhor que trabalhar na rua como
entregador para o Sr. Schwartz no calor do verão de Nova York. Mas dito isso, também não tenho
certeza se escolheria ser entregador num lugar fechado no calor do verão de Nova York. Ainda mais
se esse lugar fosse um estúdio de animação sufocante e mal ventilado.
Mas também não queria dizer que não tinha suas vantagens. Observar os artistas trabalhando
era uma gigantesca, isso é, quando eles me permitiam, claro. O Jacob sempre me deixava dar uma
olhadinha por cima do seu ombro, mas o Richie, nah, ele escondia seu trabalho de mim como se
estivesse escrevendo mensagens secretas para os Aliados durante a guerra. Mas honestamente
falando, poder dizer ao pessoal do meu bairro que eu estava trabalhando para o Joey Drew Studios
no centro também era bem legal. Eles ficaram impressionados. Ficaram com inveja.
E as pessoas que conheci no trabalho também eram bem bacanas. Ou pelo menos a maioria.
A Sr. Lambert, que supervisionava o Departamento de Artes, era um pouco severa e às vezes me
deixava frustrado quando me dizia para sentar na mesa e parar de ficar zanzando o tempo todo. Ela
também usava ternos masculinos, algo que achei fascinante e definitivamente uma inspiração para
algum tipo de personagem que pensava em criar. Algum dia. Quando ela finalmente me deixasse
desenhar. O que não aconteceria tão cedo. Eu queria aprender, queria fazer parte do grupo.
Aí tinha o resto da equipe. O Richie, o Dave e o Jacob, que eu tinha conhecido no primeiro
dia. Pareciam até uma ganguezinha, eu diria. Suas mesas ficavam enfileiradas junto à uma parede
embaixo de três lâmpadas brilhantes. Richie e Jacob pareciam ter seus vinte e poucos anos e eram
cheios de energia. Richie era meio bruto e estava sempre fedendo à fumaça de cigarro. As pontas de
seus dedos eram até amareladas, o que descobri quando ele me passou alguns rascunhos novos, me
encarando com um olhar cheio de desconfiança por cima dos pequenos óculos redondos que usava.
Suas roupas sempre pareciam um pouco amarrotadas e isso fazia eu me sentir um pouco melhor, já
que depois daquele incidente com o Sammy, eu agora tinha só um conjunto de camisa e calção pra
chamar de meu. Não tinha nem um paletó.
Jacob, por outro lado, se vestia muito elegantemente, com gravatas bem coloridas e meias
combinando. Eu não sabia nem que faziam meias em cores que não fossem pretas ou brancas. Às
vezes, ele usava até seu chapéu no estúdio. Parecia um sujeito bem tranquilo, mas era o que mais
gozava de mim. Parecia não conseguir esquecer toda a história de eu ter tomado um banho de tinta.
Pelo menos quando tocava no assunto, ele sorria. O fato era que ele importunava todo mundo, então
tentei não levar para o lado pessoal.
Dave era mais velho que todos nós e sua pele era tão fina e seca quanto um pedaço de papel.
Depois que a Dot me explicou o que tinha acontecido no estúdio depois da guerra, fiquei me
perguntando como um sujeito mais velho como ele se sentia recebendo ordens de uma mulher, se
era muito aferrado às velhas tradições ou coisa assim. Mas ele não parecia ligar muito. Não parecia
fazer nada além de desenhar e tirar longas pausas para o almoço. Não costumava falar muito com

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ninguém. Entregava seus trabalhos no tempo certo e sempre ia para casa na hora, menos quando o
departamento estava com o prazo apertado.
Mas já que eu trabalhava como office-boy, como eles chamavam, também conheci pessoas
de fora do meu departamento. Eu geralmente pegava coisas de uma pessoa e dava a outra. Tinham
muitas coordenadas que precisavam ser dadas naquele prédio e eu era a ponte entre todo mundo ali.
Sentia que isso por si só já devia ter me rendido um pouco de respeito, mas eu definitivamente era a
base da base da pirâmide, pelo menos por enquanto. Então eu levava roteiros do Departamento de
Redação para o Departamento de Artes. Partituras do Departamento de Música para o Laboratório
de Animação. Recibos de todo mundo para a Contabilidade e contas da Contabilidade para todo
mundo. Conheci todas as secretárias. Conheci todos os chefes.
Acabei descobrindo que o tal “Sammy” era Samuel Lawrence, um músico premiado e o
supervisor do Departamento de Música. Vê-lo sem estar coberto de tinta pela primeira vez foi um
pouco estranho para mim. Os ângulos de seu corpo eram ainda mais pronunciados agora que ele não
estava oculto embaixo de toda a tinta pegajosa. Ele meio que me parecia um pássaro. Especialmente
quando ficava no posto de regente durante os ensaios. A violinista ainda me dava arrepios.
Conheci também Norman Polk, o sujeito que me guiara pelas escadas durante o blecaute,
embora ele não tenha demonstrado nenhum interesse em me conhecer. Ele operava o projetor, o que
descobri que era feito quando precisavam sincronizar som e imagens animadas. Era por isso que
tinha uma cabine de projeção na Sala de Música, como eu havia notado daquela vez. E tinha uma
também no Estúdio de Gravação de Voz. Norman conhecia todos os atores e músicos e sempre
observava quando eles performavam, notei. Ele os observava por trás da luz brilhante do projetor.
Não o conhecia lá muito bem, mas nas poucas vezes que interagimos, tive a sensação de que
ele não gostava de mim. Me chamava de “entregadorzinho do Drew”, o que não era verdade. Mas
também não sabia o que havia de errado com isso. Era quase como se não gostasse do Sr. Drew ou
algo do tipo. O que eu não conseguia entender. Como se podia não gostar dele?
Só conheci uma atriz naquelas minhas primeiras semanas. Segurei a porta para ela quando
estávamos entrando no prédio e fiquei abismado com como ela não parecia ninguém mais no
estúdio. Quer dizer, ela parecia ter sido tirada diretamente de um filme.
No dia que segurei a porta para ela, estava vestindo uma saia cinza-claro e uma jaqueta com
uma blusa cor-de-rosa por baixo. Usava um pequeno chapéu com laço na frente que lhe cobria os
olhos, embora não completamente. Devo dizer, nunca entendi porque ela resolveu trabalhar com
dublagem. Sua beleza era equiparável à de Ginger Rogers. Tinha até aquele mesmo cabelo loiro-
platinado. Nós acabamos no elevador juntos e vou te contar, ela era muito simpática. Agradeceu
quando eu segurei a grade para ela e até perguntou o meu nome.
— Buddy. — Foi tudo o que consegui dizer. Não consegui nem perguntar qual era o dela.
— Bom, eu sou a Allison, o que é um pouco engraçado, né? — disse ela, abrindo um sorriso
enquanto subíamos.
Não quis encará-la e não entendia por que “Alisson” era engraçado, então só fiquei jogando
o meu peso de um pé para o outro no chão do elevador.
— Por causa da Alice. Allison. Alice. É muito parecido, sabe? — Podia notar que ela estava
olhando para mim. Queria que eu achasse a sacada engraçada e esperta. Qual é, Buddy, qual é...
— Ah! Você é a voz da Alice Angel! — disse mais alto do que devia quando o elevador
chegou ao meu andar.
Allison riu.
— Sim! Bom, parece que essa é a sua descida. Foi um prazer te conhecer, Buddy. — Ela me
ergueu a pequena mão enluvada e eu a segurei com a minha, bastante suada, sacudi uma vez e saí
do elevador praticamente correndo em direção ao Departamento de Artes.
Não a vi mais desde então e, francamente, fiquei aliviado com isso.
Comecei a ver a Dot com mais frequência. Desde a nossa aventura estranha, ela decidiu que
éramos amigos e embora eu não tivesse entendido exatamente por que tinha decidido isso, também
não liguei. Era legal quando ela vinha me procurar no almoço. Ou me mostrar um novo roteiro no
qual estava trabalhando e começava a explicá-lo pra mim em vez de simplesmente me entregar e
ignorar, como os outros escritores costumavam fazer. Talvez fosse porque tínhamos quase a mesma
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idade. Talvez fosse porque, mesmo que ela de fato pudesse escrever e não fosse só um office-boy
como eu, parecia que só pegava a parte mais chata do trabalho do Departamento de Redação e
estava na base da pirâmide, assim como eu. No geral, ela só corrigia a ortografia e gramática, pelo
que pude notar. Mas no almoço, vinha sentar na minha mesa, no canto escuro do Departamento de
Artes, enquanto os canos mais acima rangiam e chiavam, e contava tudo sobre as várias diferentes
histórias do Bendy que tinha bolado.
— Fiz uma bem legal que ele é um cowboy — disse ela, dando uma mordida no sanduíche.
— Eu gosto de cowboys — respondi.
Talvez fosse seu instinto lá das entranhas sobre mim o que nos tornou amigos.
Eu não ligava. Era bom ter uma companheira.
Mas a pessoa que eu não tinha visto nem uma única vez aquele tempo todo era o Sr. Drew.
Eu entendia que ele era ocupado. Estava no comando da coisa toda. Não esperava que ele fosse
aparecer para ver como eu estava pessoalmente. Ou me convidar para almoçar. Ou qualquer coisa
assim. Mas cheguei a pensar que talvez, sei lá, talvez ele fosse querer me acompanhar pelo menos
uma vez depois de ter me contratado. Talvez eu só estivesse imaginando coisas, como sempre, mas
achei mesmo que ele tinha gostado de mim.
— É como é o Sr. Drew — disse Dot.
Ela tinha me convencido a dar uma passada no pub do outro lado da rua depois do trabalho.
Era um lugarzinho pequeno e enfurnado de gente que ficava descendo um lance de escadas e era
claramente frequentado por muitos tipos que gostavam de curtir depois do trabalho. O lugar era
cheio de homens e até algumas mulheres espremidos no bar e sentados nas poucas mesas perto da
porta e aos fundos. O ar ali era tão espesso com fumaça de cigarro que me fez tossir à princípio. Dot
tinha dezoito anos, então já podia beber, mas fiquei um pouco aliviado quando, em vez disso, ela
pegou um refrigerante. Me ajudou a não me sentir tão bebezão. Nós pegamos nossas bebidas com o
barman e encontramos um lugarzinho junto à parede.
— Como assim, “como é” o Sr. Drew? — perguntei, quase gritando por cima do barulho.
— É simplesmente o que ele faz: desaparece. Apenas faça o seu trabalho, é só com o que
precisa se preocupar.
Suspirei, mas sabia que a Dot não tinha ouvido. Me inclinei para falar em seu ouvido:
— Esse é o problema. Não estou fazendo o trabalho que quero fazer. Preciso que ele diga à
Sra. Lambert para me deixar desenhar.
Dot sacudiu a cabeça e me abriu um pequeno sorriso.
— Você não precisa de permissão, Buddy — retrucou ela. — Só vai lá e faz. Desenhe.
— Não. — Sacudi a cabeça. — Não, eu não tenho tempo. Fico correndo de um lado pro
outro o dia todo. Você sabe disso.
— Então faça em casa, desenhe algumas coisas do Bendy. Mostre à Sra. Lambert.
No quê? Perguntei a mim mesmo. Com o quê?
A Dot não entendia. Claro, eu tinha um lápis e papéis velhos, mas precisava das ferramentas
certas. O papel do estúdio era espesso e poroso, absorvia a tinta. Não podia simplesmente entregar
um desenho feito atrás de um recibo do mercado. Ou pelo menos não queria, não queria que vissem
como gastávamos pouco com comida.
— Eu... não posso...
Dot olhou para mim. Já estava me acostumando com o olhar àquela altura. Então só olhei de
volta. Se ela pudesse ler minha mente, se pudesse descobrir qual era o problema sem que eu tivesse
que dizer a ela, seria ótimo.
E então, ela o fez. Não de verdade, é claro. De alguma forma, ela sempre conseguia saber o
que as pessoas realmente estavam pensando, não o que diziam estar pensando.
Ela não disse nada. Só pôs a mão no bolso e me passou sua chave.
— Pega emprestada. Vou deixar na minha mesa de agora em diante, caso precise de novo.
Eu não peguei, só olhei para ela.
— Você quer que eu use isso? — disse, devagar.
— Sim.
— Para...?
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— Para arranjar os materiais certos, Buddy. Arranjar um pouco de papel e tinta.
Sacudi a cabeça.
— Isso é roubo.
— É pegar emprestado. Afinal, vai estar fazendo isso pelo bem do estúdio. No seu próprio
tempo, claro. E você também quer mostrar um pouco de iniciativa, não é? É assim que se faz isso.
Por um lado, ela estava certa, não parecia ser nada demais. Não era como se eu fosse pegar
as coisas e então vender para as crianças do bairro ou algo assim. Por outro lado...
— Pense a respeito — disse ela.
Coloquei a chave no bolso depressa.
— Você é uma má influência — disse em meio a uma risadinha.
Dot deu de ombros, como sempre fazia.
— Talvez esteja mais para uma influência pragmática. Eles te contrataram para um trabalho.
Então faça o seu trabalho.
Pragmática. Eu não conhecia essa palavra na época. Procurei o que queria dizer depois.
Pragmática. Era alguém que lidava com as coisas de forma “sensata”. Sem usar a emoção. Fazendo
uma escolha por praticidade. Não achei que concordava com ela com relação a isso, mas queria.
— Vou pensar.
E pensei. Pensei a respeito disso a noite toda, deitado ao lado da figura ossuda do meu avô,
assobiando ritmicamente pelo nariz enquanto dormia. Devo ter apagado em algum momento, mas
senti que tinha passado horas acordado, pensando. Pensando sobre viver assim, com a minha mãe,
agora com o meu avô. Dormindo ali, na cama grande. No quarto grande. Num apartamento que mal
comportava uma única pessoa, menos ainda uma família. Com todas as outras famílias no meu
prédio morando em cinco ou mais pessoas. Aquele quarto grande que costumava pertencer aos
meus pais. Até que o meu pai morreu e aí ele passou a ser meu.
— Você já está tão alto, Buddy — a mãe tinha dito. — Não preciso de um quarto tão grande.
Alto como ele costumava ser alto.
Imaginei mais quartos. Imaginei um apartamento que não absorvesse o calor e te sufocasse
lá dentro. Imaginei ter um terno. Não podia pegar o do meu pai emprestado. Não podia colocá-lo.
Simplesmente não podia.
Eu nunca teria mais quartos e um terno se continuasse sendo office-boy. Já era velho demais
para ser um entregadorzinho.
E de toda forma, o estúdio tinha tanto papel e tinta que só faltava se afogar nela. Como o
Sammy. Coberto de tinta. Era tanta tinta que aparentemente podiam até passar por canos.
Quando acordei de manhã, decidi que sabia o que fazer. A Dot estava certa. Era a escolha
pragmática.
Era a única escolha.

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CAPÍTULO 7
O armário de suprimentos artísticos ficava
num corredor logo atrás da minha mesa, mas eu estava com muito medo de ser pego. Então recorri
ao único outro lugar onde sabia que havia suprimentos do Departamento de Artes, quer Sammy
aprovasse isso ou não: o depósito de partituras no Departamento de Música. Era uma vantagem. Ser
um office-boy queria dizer que todos ali estavam acostumados comigo andando pra lá e pra cá em
diferentes partes do estúdio, fazendo o que quer que estivesse fazendo. Imaginei que isso tornaria a
minha tarefa bem fácil. Mas ainda queria esperar pelo almoço, quando estaria sozinho.
E assim o fiz.
Esperei uns cinco minutos, garantindo que ninguém fosse voltar de repente porque esqueceu
o chapéu ou coisa assim. Então me levantei da mesa e desci até o Departamento de Música, através
do sinuoso aglomerado de corredores, e cheguei ao depósito. Dei mais uma olhada no corredor por
onde tinha vindo e aí para o outro lado, que levava... bem, eu não sabia aonde levava. Nunca tinha
ido mais longe que no depósito antes e imaginava que devia acabar levando a algum tipo de beco
sem saída. Parando para pensar, aquele lugar parecia até um labirinto. Talvez houvesse mais alguma
coisa dentre as sombras. Sorri pensando que talvez tivesse uma esfinge ou algo do tipo, guardando
uma entrada secreta, interrogando os funcionários e decidindo se os deixaria passar.
Não. Chega de ficar imaginando coisas. Para com isso, Buddy!
Eu rapidamente destranquei a porta do depósito, entrei e puxei a corrente para acender a luz.
Me abaixei e peguei um pequeno maço de papel branco, espesso e poroso. A diferença na qualidade
de diferentes tipos de papel era incrível. Nunca tinha pensado muito nisso antes de trabalhar ali.
Então procurei em volta pela tinta. Tinha uma caixa de papelão no chão, e eu abri com cuidado. Lá
estavam elas, pequenas garrafinhas de vidro cheias de preto. Tirei uma de lá todo animado. Ainda
precisava de uma caneta. Foi quando estava vasculhando as prateleiras estreitas que ouvi as vozes.
Congelei no lugar e fiquei escutando. É de se pensar que como tenho orelhas grandes, teria
uma audição um pouco melhor, mas o jeito com que elas se destacavam nunca pareceu fazer uma
grande diferença. Mas eu pelo menos podia dizer, como qualquer um provavelmente poderia, que as
vozes vinham da parte escura do corredor, não do Departamento de Música. Estava começando a
ficar ansioso. Não podia ser pego — se fosse, com certeza seria demitido. Eu precisava do emprego
e estava começando a me arrepender de verdade de fazer aquilo.
Me joguei dentro do depósito e fechei a porta atrás de mim. Então puxei a corrente da luz e
fiquei completamente parado com um braço cheio de papel em meio à escuridão total. As vozes
foram ficando mais altas e agora eu também conseguia ouvir passos. Eles estavam quase em frente
à minha porta quando pararam. Ouvi o som de uma briga.
— Não me segure outra vez, Sr. Lawrence — disse uma voz severa que eu não reconheci.
— Então escute quando eu falo com você! — Essa definitivamente era a voz de Sammy,
essa eu conhecia bem. Era mais baixa que os berros frenéticos que ouvi no nosso primeiro encontro,
mas parecia um pouco tensa. Sempre com um quê irritado nela.
— Eu escutei, mas não acredito em você — disse a outra voz.
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— Por que não? — O jeito como ele falou foi quase um guincho.
— Eu vi você andando às escondidas na minha estação de trabalho. Vi você na máquina. Na
última sexta, você perguntou ao meu funcionário onde nós guardamos a tinta. Então não me venha
com essa história de inocência. Vou falar com o Sr. Drew.
— Tom, qual é, por que eu iria querer a sua tinta? — perguntou Sammy.
Tom... Eu ainda não sabia de quem se tratava.
— É Sr. Connor — respondeu Tom, a voz fria.
— Por que não posso chamá-lo de Tom?
— Porque não somos amigos. E você me dará o respeito que mereço.
Houve então uma longa pausa. Não conseguia decidir se eu queria que os dois avançassem
pelo corredor de uma vez ou que ficassem ali para eu ouvir mais.
Quando Sammy não disse nada, Tom acrescentou:
— Qual o problema, Sr. Lawrence? Não está acostumado a dar respeito a alguém como eu?
— O que quer dizer com “alguém como você”? — O tom de Sammy tinha ido de furioso à
ameaçador.
— Você sabe o que quero dizer — respondeu Tom.
Houve uma longa pausa.
— Me deixe em paz — disse Sammy. Ouvi o som de passos à medida em que ele marchava
de volta para a parte escura do corredor.
— Deixe a minha tinta em paz! — exclamou Tom atrás dele.
Eu subitamente fiquei muito consciente do pequeno tinteiro que tinha em mãos. Parecia ter
ficado bem mais pesado que um momento antes. Também notei quão alta soava a minha respiração
naquele pequeno espaço confinado. Não fazia ideia que tinta era algo tão importante. E que era tão
importante para Tom Connor.
Tom bufou do lado de fora da minha porta e então finalmente ouvi seus calçados pisando
com força em direção ao corredor escuro. Continuei parado, esforçando-me para ouvir mais passos.
Para ver se um deles ia voltar. Mas quanto mais ficava esperando, me dei conta, mais provável era
que alguém acabasse aparecendo e também tinha o fato de que o almoço provavelmente já estava
para acabar. Então eu não tinha escolha. Abri a porta com todo o cuidado.
Ninguém.
Me virei depressa e peguei a primeira caneta recarregável que consegui encontrar. E então
saí de lá, trancando a porta atrás de mim, correndo de volta para a minha mesa e escondendo os
suprimentos na lixeira embaixo dela. Fiquei lá sentado, imóvel por um momento, e então respirei
fundo. Estava mais assustado que no início. Claro, roubar não era algo de que eu fosse fã, mas eu
realmente nunca achei que tinta fosse algo tão importante. Não do jeito que Tom fazia parecer.
Senti a chave no meu bolso.
Me levantei e segui até o elevador, que imediatamente se abriu diante de mim. Jacob saiu
dele, voltando do almoço.
— E aí, Buddy — disse ele enquanto passava, todo casual, como se não houvesse nada de
estranho acontecendo no estúdio.
Provavelmente porque ele não sabia.
Provavelmente porque eu estava pensando demais no assunto.
Desci um andar até o Departamento de Redação e por sorte encontrei Dot na mesa dela, seu
sanduíche desembrulhado na sua frente, sua cabeça tão inclinada sobre o papel que seu nariz
praticamente encostava nele. Não tinha certeza se era certo interrompê-la, mas ela tomou a decisão
por mim. Com um rápido movimento, ela subitamente se ergueu e estava olhando para mim.
— Eita, você me assustou — disse, recuando um passo.
— Eu assustei você? Era você que tava me espiando — respondeu Dot, direta como sempre.
— É, tem razão.
— O que tá pegando? — perguntou ela, olhando para mim atentamente, como se estivesse
tentando ler o meu cérebro.
— Eu, hã... — Olhei por cima do ombro, mas não havia ninguém por perto. — Eu queria
devolver, você sabe.
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Dot assentiu e abriu sua gaveta. Eu rapidamente coloquei a chave lá dentro e ela se curvou,
pondo-a em meio às páginas de um livro. A Obra Completa de Sir Arthur Conan Doyle, dizia na
capa em letras douradas.
— Obrigada.
Fiquei ali parado. Não conseguia decidir se devia contar a ela o que tinha escutado.
— E aí, pegou o que precisava? — perguntou ela, após um momento.
— Sim. — Eu não sabia bem o que dizer. Talvez só estivesse em pânico porque agora era
um ladrão.
— No que está pensando, Buddy? — perguntou ela, recostando-se em sua cadeira outra vez.
Tá bom, vai.
— Você sabe alguma coisa sobre um homem chamado Tom Connor? — perguntei, a voz
baixa. Dot pensou a respeito por um momento.
— Acho que não.
— Bom, eu ouvi ele e o Sammy falando sobre tinta.
— Tinta?
— É, parecia que esse tal de Tom achava que o Sammy estava roubando tinta. — Então me
lembrei de outra coisa. — E ele também disse alguma coisa sobre uma máquina.
— Uma máquina? — Dot franziu as sobrancelhas, olhando fixamente para mim. — Que tipo
de máquina?
— Não sei. Só fiquei curioso porque, bom, como você sabe, eu... — Eu abaixei minha voz
num sussurro, mesmo não havendo ninguém por perto. — Eu acabei de roubar um pouco de tinta. E
estou preocupado que isso possa ser mais grave do que pensamos.
Dot sacudiu a cabeça.
— Não, isso é bobagem.
Eu não gostei disso. Não, não era bobagem. Ela não estaria pensando isso se tivesse ouvido
o que eu ouvi.
— Vou ver se descubro mais a respeito — disse ela.
— Não precisa, só queria saber se você sabia — disse. Mas não com muita convicção. Dot
era realmente muito boa “descobrindo mais” sobre as coisas e qualquer ajuda ali seria bem-vinda.
— Não, eu quero.
Foi quando ela olhou por cima do meu ombro e eu me virei. Mike, um dos escritores, tinha
acabado de sair do elevador.
— Me avise o que a Contabilidade tem a dizer, mas não tem pressa — disse ela, em voz alta,
e eu logo percebi que agora estávamos fingindo.
— Claro.
Dei meia-volta e passei por Mike, que me olhou de canto de olho enquanto tirava a jaqueta e
se sentava de volta em sua mesa. Ele abaixou a aba do chapéu e empurrou a cadeira para trás,
sustentando seu peso nas pernas traseiras. Pegando algo em que estava trabalhando, começou a ler o
que havia escrito.
Eu voltei ao Departamento de Artes bem a tempo de ser mandado numa tarefa real no
Departamento de Música. A última coisa que queria fazer era ver Sammy, mas ele felizmente ficou
na dele, sentado em sua banqueta no posto de regente, revisando anotações e resmungando. Ao lado
dele, havia um frasco de tinta pela metade.
Normalmente, eu nunca prestaria muita atenção em algo assim, mas agora, bem, agora eu a
fitei por um momento. Pensando comigo mesmo.
Eu sacudi a cabeça e logo deixei a pasta que me fora dada na caixa de entrada junto à porta e
me virei para partir.
Talvez eu devesse perguntar. Talvez tivesse um jeito de perguntar.
Me virei de volta. O frasco de tinta agora estava vazio.
Como?
— O que você quer, Departamento de Artes? — perguntou Sammy, subitamente erguendo o
olhar para mim.
— Nada! Só deixei uma pasta pra você — disse, recuando às pressas.
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— Fantástico — respondeu ele, olhando de volta para seu trabalho.
Eu imediatamente fui embora, me sentindo terrivelmente perturbado. Não porque ele me
pegou de surpresa. Estava acostumado com o fato de ele ser imprevisível. Também não pelo que
tinha ouvido ele dizer mais cedo.
Foi porque eu podia jurar que, quando ele se virou para olhar pra mim, tinha uma pequena
mancha preta no canto direito da boca dele.

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CAPÍTULO 8
Cheguei em casa cedo o suficiente para
me juntar à mãe e ao meu avô no jantar.
— Bom ver você, Buddy — disse a mãe, dando-me um grande abraço enquanto colocava
meu prato diante de mim.
— Obrigado. Como vai o Sr. Schwartz? — Estava tentando não fazer careta enquanto ela
bagunçava o meu cabelo.
— Ah, ele está bem. Como vão as coisas no estúdio?
Não achava que o Sr. Schwartz estivesse “bem”, mas as coisas no estúdio também não iam
lá tão bem. Mas era meio isso o que sempre dizíamos. Era a nossa rotina. Quando a vida não é fácil
e os dias são longos e custosos, você não quer entrar muito nos detalhes. Então é isso que você diz.
E segue em frente.
Depois disso, ficamos lá sentados, em silêncio. Toda uma conversa sobre absolutamente
nada. Incluindo meu avô, que ficou apenas quieto, enfiando comida na boca. Bem divertido.
Comi o mais rápido que pude e então corri para o meu quarto. Tinha que pegá-lo para mim
antes que meu avô o fizesse. Sentei no chão e coloquei minha tinta e papeis roubados mais à frente.
Peguei uma placa e a apoiei no parapeito da janela. Não era tão grande quanto uma mesa, mas era
uma superfície sólida o suficiente e eu a usava para desenhar desde que era criança. Tinha sorte que
as janelas eram baixas do jeito que eram. E que meu corpo era alto do jeito que era.
Hora de desenhar.
Sim. Dot, você sabe muito bem como é encarar uma folha em branco. Sei que escritores tem
a mesma sensação. Começa empolgante, mas conforme os segundos passam, os minutos, a sensação
começa a mudar. Começa a ficar ruim. Você vai ficando ansioso e quase consegue sentir o papel
rindo da sua cara.
Não o tempo todo. Mas parece acontecer bem quando você precisa desenhar alguma coisa.
Essa sensação de pressão.
Não é nada divertido.
Eu estalei o pescoço e joguei o cabelo que me cobria a testa para trás. Ele ficou parado nessa
posição, molhado de suor. Mal podia esperar que o verão acabasse. Tirei minha camisa de botão e
fiquei ali sentado só com a camiseta de baixo. Era mais fresca. Só um pouco. Bem pouco.
Só começa logo a desenhar. Desenhe qualquer coisa.
Bendy Cowboy.
Ela brotou na minha cabeça assim de repente. A ideia da Dot. Bom, ela certamente precisava
de imagens para acompanhar a ideia. E eu gostava de cowboys.
Sorri comigo mesmo e comecei a desenhar. Era a minha primeira vez fazendo alguma coisa
do Bendy e fiquei surpreso com como ele era mais difícil de desenhar que eu imaginava. Ele parecia
tão simples de fazer. Uma cabeça redonda, dois olhos, uma boca. Nem mesmo um nariz com que se
preocupar. Narizes podem ser complicados.
Mas por algum motivo, ele toda vez ficava meio torto.
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Parei. E então tentei outra tática. Comecei a desenhar o cavalo que queria que ele montasse.
Também não foi fácil. De alguma forma, o corpo parecia atarracado e rechonchudo, como
um burrico ou um cachorro acima do peso. As pernas também ficaram muito grandes. Assim como
a cabeça. Não queria nem pensar como seria uma cabeça como aquela num cavalo de verdade.
Tentei de novo. Dessa vez, as proporções ficaram um pouco melhores. Parei e dei uma
olhada no papel. Dois Bendys esquisitos e dois tipos de cavalos.
Não estava ruim. Mas... também não estava bom.
E então não estava mais lá.
O papel subitamente desapareceu por baixo de mim e eu me virei, deparando-me com meu
avô, que se assomava à minha frente. Não fazia ideia do que ele estava fazendo, mas, por algum
motivo, não disse nada. Só olhei para ele. Notei que, mesmo num dia como aquele, estava vestindo
a mesma camisa de manga comprida, os punhos muito bem abotoados na altura dos pulsos, calças
compridas e suspensórios, meias e sapatos. Não fazia ideia de como não estava derretendo de calor.
Seus olhos estavam atentamente voltados para o papel.
Ele olhou para mim. Então apontou para mim.
— Você? — perguntou.
— É para o trabalho — disse. Será que ele já entendia palavras como “trabalho”? Entendia
alguma coisa? Mesmo quando falava sua própria língua? Estava começando a pensar que talvez as
pessoas da Polônia o achassem tão bizarro quanto eu.
— Montaria? — perguntou, apontando para o papel.
— Sim — respondi, assentindo.
Ele sorriu:
— Cowboy.
Não pensei naquele momento que era legal meu avô saber o que era um cowboy. Não pensei
nem em questionar como ele sabia. Estava muito frustrado, com muito calor. Suspirei. Sim, avô, um
cowboy. Pode me devolver o meu papel? Por favor?
Ele o pôs sobre a cômoda ao lado e se inclinou, observando-o de perto. Fez um movimento
com os dedos, como quem vai agarrar alguma, mas não olhou para mim. Não sabia o que ele estava
fazendo. E não tinha tempo para aquilo.
— Dê, dê — disse ele, ainda sacudindo os dedos.
Finalmente fez sentido: ele queria a caneta. Queria desenhar. Aquilo não era só um jogo pra
mim, mas ele estava tratando como se eu fosse uma criancinha com seu hobby. Não gostei nada
disso. Mas ele não ia parar. Eu sabia disso.
Dei a caneta a ele. Ele sorriu.
— Dê. — Ele me ergueu as sobrancelhas. Então abaixou o olhar.
Suspirei de novo e lhe passei uma folha em branco.
— Ah! — disse ele. Começou a desenhar na folha enquanto eu me recostava na parede.
Aquilo era ridículo.
Olhei pela janela empoeirada. A Sra. Bilski do outro lado da rua estava pendurando a roupa
lavada. Seu gato tentava brincar com as cobertas que iam balançando. Nunca gostei de gatos.
— Cowboy — disse o meu avô. Estava sorrindo para mim e apontando para o papel.
Assenti.
Ele deu uma batidinha no papel.
Então, em meio a um gemido, eu me ergui com um empurrão e olhei para ele.
E olhei.
E fiquei olhando.
Me voltei para o meu avô. Ele estava saindo do quarto. Simplesmente saindo, como se nada
tivesse acontecido. Como se não tivesse conseguido desenhar um cavalo perfeito. E um Bendy
perfeito. Simples assim. Em menos de um minuto.
Peguei o papel e imediatamente o segui pelo corredor.
— Vô! — Dei a volta e entrei na cozinha. Ele já estava sentado, olhando para mim como se
eu tivesse enlouquecido. Parece que o jogo tinha virado, não é mesmo?
— Buddy? — A mãe estava de pé junto à pia, também olhando para mim. Eu a ignorei.
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— Como? Como você fez isso? — perguntei a ele, apontando para o papel.
— Como? — ele me perguntou, confuso.
— Como! — eu meio que gritei, o que o fez se encolher de um jeito estranho e, embora não
tivesse sido minha intenção assustá-lo, eu estava extremamente cheio de energia. Ele se encolheu
em sua cadeira, como se seu corpo velho e fragilizado estivesse murchando, quase desaparecendo
em meio a ela, mas ainda mais que só isso.
— Buddy, por favor — disse a mãe, sua voz em sinal de alerta.
— Sinto muito — disse, sentando-me junto a ele. — É que... é... bom. É muito bom.
Ele me fitou atentamente e pensou por um momento.
— Você desenha cowboy?
— Não consigo.
— Consegue.
Eu ri de um jeito que não era exatamente uma risada. Estava mais para um suspiro frustrado.
— É sério, vô, eu não consigo.
Ele se aproximou e tomou minha mão gentilmente com a sua. Era quente e macia. Examinou
meus dedos cuidadosamente, olhando para as manchas de tinta.
— Consegue.
Sacudi a cabeça. Aquele calor estava começando a mexer comigo e eu estava me sentindo
sobrecarregado e muito cansado. E zangado comigo mesmo. A única coisa que queria fazer e nem
isso conseguia.
— Eu ensino — disse ele.
— Não. — Me levantei devagar. — Não, não precisa.
De que adiantaria?
Segui em direção à porta.
— Aonde você vai? — perguntou a mãe.
— Não sei — respondi. A pergunta permaneceu no fundo da minha cabeça. Aonde estava
indo? O que ia fazer, afinal?
Saí lá fora, mas o ar estava pesado. Comecei a caminhar para o lado do rio. Precisava sentir
a brisa no meu rosto, precisava não me sentir tão completamente sufocado. Aumentei a velocidade e
logo percebi que estava correndo. Estava fugindo? Correndo em direção a alguma coisa?
O rio me saudou e eu consegui respirar outra vez.
Pelo menos por ora.

No dia seguinte, me sentei no meu cantinho escuro e foi a primeira vez que não me importei
por estar tão longe do resto da equipe. Tirei o desenho do Bendy Cowboy do meu bolso, o abri
sobre a mesa e comecei a desamassá-lo o melhor que pude usando as mãos. Não era só o fato do
meu avô ter desenhado o cavalo perfeito. Era mais que isso. Era a expressão no rosto do Bendy,
confiante e orgulhoso. Não era só aquele sorriso plástico que eu tinha visto nos grandes recortes
publicitários armazenados pelo estúdio.
Tinha personalidade, mesmo tendo tão pouco com o que trabalhar. Só olhos e uma boca.
Tinha também uma sensação de movimento, como se estivesse cavalgando a toda velocidade. E
tinha também a parte cômica da sua corda de laçar ter ficado toda emaranhada num cacto.
Ele tinha feito tanto com tão pouco. E eu não sabia como. Precisava descobrir. Para que
pudesse impressionar o Sr. Drew.
— O que é isso? — perguntou uma voz por cima do meu ombro. Ergui o olhar. Era Jacob.
Ele se inclinou e olhou para o desenho. — Olha só, garoto, nada mal.
Ele me abriu um sorriso e se ergueu.
— Obrigado — disse.

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Sabia que tinha que explicar para ele, dizer que não tinha sido eu quem tinha feito. Mas era a
primeira vez que alguém naquele lugar de fato me dizia uma coisa boa. Ele assentiu, mas não foi
embora, então imaginei que precisava dizer mais alguma coisa.
— Fiz ontem à noite.
— Ficou de arrebentar a boca do balão — disse ele.
— Isso é uma coisa boa? — perguntei. Jacob sorriu.
— Com toda a certeza. — Ele se virou. — Ei, Sra. Lambert!
— Não, por favor — disse, mas era tarde demais. Ela ergueu o olhar de sua mesa do outro
lado da sala, descruzou as pernas longas, se levantou e marchou até nós com o seu par de calças
acentuadamente apertadas.
— O que houve? — perguntou. A ruga entre suas sobrancelhas parecia ainda mais profunda
que de costume.
— Dá uma olhada no que o nosso office-boy fez ontem à noite — disse Jacob, apontando
para o desenho.
Tentei sorrir de um jeito mais relaxado enquanto Jacob saía da frente para que ela pudesse
ver por cima do meu ombro. Mas estava começando a entrar em pânico. E se me fizessem recriar o
desenho ou coisa do tipo?
— Ficou decente — disse a Sra. Lambert, franzindo o cenho enquanto acenava com a
cabeça em aprovação.
— Fiz ontem à noite — disse, sentindo-me um pouco aliviado. Mas também não conseguia
dizer muito mais que isso.
— Você estava aqui? — Ela olhou para mim, confusa. — Eu estava aqui.
— Não — disse, gaguejando enquanto procurava pelas palavras. — Não, em casa. No meu
tempo livre. — Tinha soado legal, né? Soava como algo que alguém que trabalhava duro diria. Eu
trabalhava mesmo no meu tempo livre.
A Sra. Lambert ficou ali parada por um momento. Então se aproximou e pegou o desenho.
Mas não estava olhando para o desenho em si, estava olhando para o papel, sentindo-o entre o dedo
indicador e o polegar.
— Diga a verdade, Buddy. Onde conseguiu o papel e a tinta?
Ah. Certo. A verdade. A verdade era...
Um silêncio grande e constrangedor se sucedeu enquanto eu pensava comigo mesmo qual
realmente era a verdade.
— Compreendo. Buddy, nosso estoque estava baixo hoje e você sabe tanto quanto todos
aqui que o dinheiro está apertado. Não somos um time de beisebol. — Ela passou o desenho de
volta para mim.
— Um time de beisebol? — perguntei. Notei que Jacob não estava mais do meu lado. Estava
voltando lentamente para sua mesa.
— Você não tem direito a três strikes aqui.
Eu ainda não tinha entendido.
— Sinto muito, Buddy, mas isso é simplesmente inaceitável. Roubar não é permitido e o Sr.
Drew é muito rígido com relação a isso. Você não pode fazer isso, Buddy.
Tá bom, claro. Eu entendo, eu entendo. Não ia fazer de novo.
— Não vou fazer de novo.
A Sra. Lambert sacudiu a cabeça e então olhou para os canos que passavam pelo teto sobre a
minha cabeça.
— Sinto muito, Buddy. Tenho que levá-lo ao Sr. Drew.
Meu estômago pareceu cair do corpo. Quase podia ouvir na minha cabeça, ele caindo no
chão em meio a um baque molhado.
Só consegui me sentir vazio com tamanha injustiça. Era só um pouco de papel e tinta. Mas
tá, não era como se eu pudesse comprar papel e tinta. Tinha um custo. E pelo visto era um custo
muito maior do que eu tinha imaginado.
— Vamos. — A Sra. Lambert fez sinal para que eu me levantasse.

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Assim o fiz e a segui em direção ao elevador. Podia sentir as cabeças se virando para espiar,
mas não olhei para trás. Estava muito envergonhado.
Ficamos em silêncio no elevador à medida que ia subindo ruidosamente até o topo.
— Eu... eu sinto muito — disse. Me dei conta de que ainda não havia dito. Era verdade, mas
será que talvez fizesse diferença se eu realmente sentisse?
— Eu sei. É difícil. As coisas não são mais como costumavam ser aqui. Temos que proteger
cada dólar. Mas ainda mais que isso, temos que ter confiança.
Assenti. Não é como se eu não tivesse notado que com certeza pareciam estar contando as
moedas por ali. Se tinha uma coisa da qual eu entendia, era isso. Pegar papel usado do cesto de lixo
para usar como rascunho, um único zelador para o estúdio inteiro, todas as salas vazias e os cantos
empoeirados. Sim, eu tinha notado. Mas ainda não tinha entendido. Até aquele momento.
A Sra. Lambert puxou a grade para o lado quando chegamos ao escritório do Sr. Drew e me
deixou sair primeiro. Logo fomos até a Srta. Rodriguez, sentada atrás de sua mesa, datilografando
naquele seu passo apressado, exatamente como da primeira vez que vi o Sr. Drew.
Da única vez que vi o Sr. Drew.
— O Sr. Drew tem tempo para nós? — perguntou a Sra. Lambert.
A Srta. Rodriguez ergueu o olhar, mas não parou de datilografar. Ficaria impressionado se
não estivesse me sentindo tão para baixo.
— Cinco minutos — disse ela. E, sem parar de datilografar ou levantar ou qualquer outra
coisa, gritou bem alto: — A Sra. Lambert está aqui com aquele novo office-boy.
— Aquele novo o quê? — O Sr. Drew gritou de volta com aquela sua voz rouca.
— O garoto. — Ela olhou de volta para mim, examinando-me de cima a baixo. Eu enfiei a
camisa instintivamente mais fundo dentro das calças, ajeitando a postura dos ombros.
— Que garoto? Esquece, mande entrarem! — gritou novamente o Sr. Drew.
A Srta. Rodriguez fez um gesto com a cabeça em direção à porta e desviou o olhar de volta
para o que estava fazendo. Olhei para a Sra. Lambert, que não pareceu achar nada disso estranho e,
seguindo em direção à porta, a abriu.
— Sr. Drew, precisamos conversar — disse ela.
— Claro, claro, podem entrar — ouvi o Sr. Drew responder.
A Sra. Lambert se virou para mim e me lançou um olhar que eu sabia que definitivamente
significava que era para segui-la. Assim o fiz.
E nós entramos no escritório do Sr. Drew.
Ele estava sentado atrás de sua grande mesa, com uma grande pilha de papéis espalhados por
toda parte. Tudo parecia ainda mais bagunçado que da primeira vez que eu vira o lugar, se é que era
possível. As persianas da janela estavam abaixadas dessa vez, sem vista para a Broadway agora.
Fazia a sala parecer menor, mais apertada, desconfortável.
Ou talvez fosse porque eu estava me sentindo desconfortável.
— O que é isso tudo? — disse ele, sem erguer o olhar, atentamente focado num pedaço de
papel diante de si.
Era a primeira vez que eu via o homem desde que me contratara. Desde que lhe trouxera seu
terno. E agora estava para ser demitido. O que aconteceria depois? O Sr. Schwartz me aceitaria de
volta? Eu não acreditava nisso. A mãe ficaria tão decepcionada comigo.
— Sinto muito, Sr. Drew, mas o seu garoto novo foi pego roubando — disse a Sra. Lambert.
— Roubando? — Diante disso, ele finalmente levantou a cabeça. — O garoto! — disse,
apontando para mim, lembrando-se que eu existia. Isso não me fez me sentir mal, ser esquecido.
Não, nem um pouco.
— Sim, senhor, Buddy Lewek. Infelizmente, ele foi pego roubando e, de acordo com as
regras... bem, eu o trouxe ao senhor para que possa resolver o assunto. — Sua voz soava cansada,
como se aquela fosse a última coisa que queria estar fazendo agora. Eu não a culpava.
— Ah — disse o Sr. Drew. — Bom, certo, Buddy, o que tem a dizer em sua defesa?
Ele franziu a testa para mim e suas grossas sobrancelhas se encontraram no topo do nariz
para terem uma conversa privada. Eu imaginei olhos nelas, com linhas onde elas também estariam
franzindo as próprias testas.
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A Sra. Lambert me deu um pequeno empurrão.
— Vamos.
Olhei de volta para ela. Não parecia tão brava, apenas tinha que fazer aquilo.
— Eu queria desenhar — disse, virando-me novamente para o Sr. Drew.
A Sra. Lambert suspirou pesadamente atrás de mim.
— Ele roubou suprimentos e os levou para casa consigo. O senhor sabe que não podemos
arcar com os custos de...
— Por favor, Sra. Lambert. Que tal começar a me dizer com quais custos eu posso ou não
posso arcar? — O Sr. Drew cruzou os braços em frente ao peito.
Olhei de volta para a Sra. Lambert e a vi bufar de leve. Ela ia dizer alguma coisa, mas parou
no meio do caminho.
— Estava apenas seguindo as suas instruções, senhor — disse ela, entredentes.
O Sr. Drew assentiu.
— Eu compreendo, Sra. Lambert. Compreendo. E não podemos simplesmente deixar que a
equipe fique pegando as coisas. Temos um estoque para cuidar. E claro que o fato de ele ter entrado
num armário trancado...
Ele me examinou meticulosamente. Não gostei disso. Por um momento, tinha pensado que
talvez ele estivesse do meu lado. Agora já não fazia mais ideia do que ele estava pensando.
— Volte ao trabalho, Sra. Lambert. Deixe-me ter uma palavra com o nosso office-boy aqui.
— Sim, Sr. Drew. — Com isso, ela se virou e deixou o escritório, seus sapatos estalando até
o som desaparecer por completo.
O Sr. Drew não se mexeu. Não disse nada. Apenas ficou olhando para mim daquele jeito
que estava olhando para mim.
— Buddy, certo? — disse ele, enfim.
— Sim, senhor.
Ficou parado por mais um momento. Então...
— Certo, vamos dar uma olhada.
— Uma olhada no quê?
— Você queria desenhar, então vamos dar uma olhada. Vamos ver o resultado final.
Eu não tinha um resultado final. Só tinha o desenho do meu avô no meu bolso traseiro.
Levei a mão para trás e o tirei de lá, pondo-o na mão erguida do Sr. Drew. Ele o desdobrou e
olhou para ele. Depois olhou para mim.
— Feche a porta, Buddy.
Eu fechei a porta.
— Sente-se.
Eu me sentei.
— Existem coisas que eu devo dizer e fazer como chefe. Mas o fato, garoto, é que eu nunca
planejei me tornar o chefe de ninguém. Eu era só um homem com um sonho. Era só um homem que
sabia o que queria e dei um passo e depois dei mais outro, até que já estava dançando, sabe o que
quero dizer?
Na verdade, não.
— Sei — disse.
— Eu devia te dizer que roubar é errado e, acredite, eu não gosto quando alguém rouba de
mim. Mas isso é roubo? — Ele ergueu o desenho.
— Eu...
— Roubo é quando tiram algo de mim. Alguém que diz que algo é seu quando na verdade é
meu. Não tenho muita tolerância com alguém que tira algo de mim. Acho que nenhum homem tem.
Mas quando você faz algo pelo bem maior? Quando você cria e faz alguma coisa, quando dá um
passo a mais na pista de dança... isso não é roubo. Sabe do que chamamos isso?
Ele ficou me olhando, cheio de expectativa. Mas, mais uma vez, eu não fazia ideia do que
devia dizer a ele.
— Não sei, senhor.

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— Chamamos de ambição. — Então o Sr. Drew finalmente abriu um sorriso, recostando-se
em sua cadeira.
Não tinha certeza de como ou por que, mas entendi com isso que pelo menos eu não estava
encrencado. Entendi que, por algum motivo, eu na verdade estava sendo elogiado.
O Sr. Drew olhou para o desenho novamente.
— Isso é bom, Buddy, muito bom. Sabia que você tinha habilidade, mas não sabia que tinha
ambição. Você estava impaciente. Entendo isso. Fui impaciente minha vida toda. Você sabia o que
queria, então foi lá e pegou. Também entendo isso. Pelo bem maior.
— Pelo bem maior — repeti.
A história que ele estava confabulando a meu respeito era parcialmente mentira. Eu não era
tão habilidoso. Não conseguia desenhar daquele jeito. Me senti culpado por um momento, até que
me dei conta que a coisa que deixara o Sr. Drew impressionado na verdade também fazia parte da
mentira. Ele só não sabia disso. Mostrar a ele o desenho que meu avô tinha feito me ajudara a salvar
o meu emprego. Tinha sido pelo bem maior.
— Gosto de você, Buddy. Peço desculpas por não ter aparecido muito, tenho trabalhado
num projeto. Tem sido... complicado. Nem tudo funciona logo na primeira tentativa, sabe?
Isso eu definitivamente sabia.
— Sim, senhor.
— Tem sido muitas noites em claro, com reuniões e investimentos em tecnologias que devo
admitir que ainda não compreendo por completo. Pode acreditar quando digo que na primeira vez
que vi um filme, achei que fosse mágica. É assim que eu sou com novas invenções. É tudo mágica
pra mim. — Ele suspirou. Então, como se tivesse decidido alguma coisa, se levantou. — Então não
veja minha ausência como um sinal de que não gosto de você, Buddy.
— Não vejo, senhor. — Não mencionei como ele parecia ter se esquecido completamente de
quem eu era apenas um momento antes. Provavelmente porque não queria pensar a respeito. Queria
acreditar nele.
— Bom. Venha comigo. Tenho algo para lhe mostrar.
Me levantei e o segui porta afora. Achei que estávamos indo para o elevador, mas ele virou
no corredor depois da mesa da Srta. Rodriguez. Fui com ele até uma pequena despensa que ele
destrancou com um sorriso no rosto, puxando então uma corrente para acender a lâmpada fosca e
empoeirada no teto. Havia uma série de latas de sopa de bacon novinhas em folha em uma prateleira
mais ao lado e um recorte de Alice Angel. Junto à parede dos fundos havia uma pilha de caixas
amontoadas até o topo e o Sr. Drew logo começou a desempilhá-las.
— Poderia me dar uma mão aqui, Buddy? — disse, passando-me uma caixa. Era grande,
mas leve. Quase como se estivesse vazia. Eu a coloquei ao lado e peguei a próxima, depois mais
uma, e foi quando notei um buraco atrás delas.
Quando tiramos a última caixa, o Sr. Drew se voltou para mim com um dedo nos lábios e
então fez sinal para que o seguisse. Ele desapareceu pelo buraco, em meio à escuridão mais adiante.
Admito, me aproximei com cautela, um pouco preocupado. Devia ter confiado nele, eu acho,
mas aquilo tudo era tão estranho. Tirar um monte de caixas casualmente de dentro de um armário e
depois entrar num buraco gigante no meio da parede. E quando me aproximei, ouvi sons esquisitos
do outro lado. Eram ocos e ecoavam. Vozes?
Mas não podia simplesmente ficar ali parado sem fazer nada. Pensei na Dot. Pensei em todas
as coisas que já tinha feito. Eu conseguia.
Além do mais, quando o seu chefe te diz pra fazer alguma coisa...
Passei pelo buraco e saí numa pequena plataforma de ferro fundido, meio parecida com uma
daquelas escadas de incêndio. Olhei para baixo, entre os meus pés. O chão parecia bem longe lá em
baixo, em meio à escuridão. Podia ver as sombras de cordas balançando suavemente sob mim.
Em frente, havia uma passarela com um brilho mais ao longe. O Sr. Drew olhou para mim e
eu o segui por ela, segurando firme nos corrimões de ambos os lados, sem olhar para baixo. Eu não
chegava a ter medo de altura, mas talvez tivesse um pouquinho de medo de altura. As vozes que
tinha ouvido ficaram mais altas e me dei conta de que estavam vindo lá de baixo, mas continuei

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olhando em frente, para as costas do Sr. Drew e para o que havia à nossa volta. Agora havia várias
cordas, além de alguns cabos por ali também. Uma cortina escura se abriu mais ao lado.
Nós paramos.
— Eles fecham no próximo final de semana — disse ele, a voz baixa, e olhou para baixo.
Então eu também finalmente olhei para baixo outra vez. E foi só aí que entendi.
Nós estávamos sobre um palco. Olhei para o palco lá embaixo em meio aos equipamentos de
luz. Bem abaixo de nós, talvez a uns 15 metros de distância, vi dois atores andando em volta num
cenário que parecia uma sala de estar chique.
Era legal porque, de onde estávamos, podíamos ver o topo da parede dos fundos do cenário,
então dava para ver ambos os lados: a parte da frente, coberta com aquele papel de parede pomposo
e com uma grande janela cortada no meio, e a parte de trás, um amontoado de compensados lisos
sustentados por suportes de madeira. Os atores estavam sob luzes bem brilhantes que contrastavam
bastante com a escuridão do outro lado. Em meio às sombras, havia dois assistentes de palco
sentados em caixas de maçãs, ambos vestidos de preto, sem fazer muita coisa.
— Eu gosto de vê-los assim — disse o Sr. Drew.
— Sim, é legal — respondi na mesma voz baixa.
— Ah, é mais que legal, Buddy — respondeu ele.
— É?
O Sr. Drew se inclinou sobre o corrimão da passarela, ainda olhando para baixo em meio ao
labirinto embaralhado de cabos e cordas.
— Eles têm papeis a cumprir. Eles fazem tudo igual em todos os shows. Todo padrão que
fazem no palco é repetido. — O público riu naquele instante, uma onda abafada contra a cortina
baixa diante de nós. — Ouviu isso?
É claro que tinha ouvido.
— Sim.
— O público ri toda vez na mesma parte. Estão enfeitiçados. Eles não sabem que vão rir
exatamente naquele ponto da peça, mas vão. É o destino deles. — Foi a vez do Sr. Drew rir.
Era interessante ouvir o que ele tinha a dizer. Era verdade. E uma forma diferente de pensar.
Uma forma bizarra, com a qual eu não estava acostumado.
— Quem está no controle? — ele me perguntou, virando-se então pela primeira vez para
olhar para mim. Olhei de volta para ele. Estava nas sombras e a expressão no seu rosto era difícil de
ler. Não tinha certeza se a pergunta era retórica, mas tentei dar o meu melhor para responder:
— Os atores? — perguntei. O Sr. Drew sacudiu a cabeça e olhou para baixo novamente.
— Os atores não, Buddy. Eles precisam ser ditos aonde ir. Lembra?
Eu me lembrava.
— Certo, hm. Acho então que a pessoa que os diz isso?
— O diretor — disse o Sr. Drew.
— Sim, o diretor.
Observamos os atores por mais um tempo. Um deles caiu por cima de um sofá sem derramar
sua bebida e então um alçapão se abriu sob ele, que desapareceu embaixo do palco. O público logo
começou a rir e aplaudir.
— Alegria. Diversão. Prazer. É tudo coordenado e cuidadosamente planejado. Todos sabem
disso e todos trabalham juntos. Funciona porque eles confiam na visão.
Assenti.
— Sabe o que é isso? — ele me perguntou.
— O quê, “visão”?
— Sim.
— Claro.
— E o que é?
Olhei para ele e ele estava me fitando atentamente.
— Ah, hã, é ter um sonho, eu acho. Querer uma coisa e vê-la como se fosse real. Como
quando falam sobre visões que tiveram, às vezes religiosas ou às vezes estão doentes e veem coisas
e... — parei porque percebi que estava divagando. Sabia que ninguém gostava quando eu divagava.
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— Continue.
— Mas, hã, o jeito que você tá falando é como ver alguma coisa na sua imaginação e querer
fazer com que aconteça.
O Sr. Drew então abriu um sorriso e estalou os dedos para mim.
— Exato. Tornar seu sonho realidade.
— Sonhos ganham vida — disse, automaticamente. Já tinha visto isso no pôster do Bendy
diversas vezes.
— Eles ganham, Buddy. Eles ganham. — Ele olhou para o palco outra vez, então eu fiz o
mesmo. — Mas isso não acontece sem trabalho. E ambição. Você tem que lutar pelos seus sonhos.
Lutar duro.
Agora eu não conseguia dizer se o Sr. Drew estava falando consigo mesmo ou não. Mas aí
ele parou de falar por completo, então não tive que me preocupar mais com isso. Num primeiro
momento, seu silêncio me deixou desconfortável, mas me acostumei com ele e comecei a curtir o
fato de que podia assistir mais da peça. Não sabia o que estava acontecendo ou quem os atores
estavam fingindo ser ou sequer por que a plateia ria. Mas, por algum motivo, assistir daquele ângulo
era algo muito fascinante. Também me dava uma sensação meio que de vazio, uma onde eu me
dava conta de que estava perdendo algo que não sabia que estava perdendo.
Eu nunca tinha visto uma peça. Sempre achei que as luzes da Broadway e da Times Square
eram suficientes. Meio que como um quadro, eu acho. Mas também havia magia dentro dos prédios.
Nunca tinha pensado muito a respeito. Até agora.
De repente, meu corpo inteiro foi lançado para frente, minhas mãos se soltando da barra e
meus pés escorregando embaixo de mim. Pensei que ia cair no palco. Bater com a cabeça numa das
lâmpadas e bater com tudo no chão, minhas pernas torcidas embaixo de mim. Foi um pensamento
tão vívido que, por um momento, achei que tinha acontecido. Eu gritei, de medo e pela dor que não
estava realmente sentindo, e então o mundo recuperou o foco e então eu percebi que ainda estava na
passarela. O Sr. Drew estava rindo, rindo muito. Notei então sua mão segurando a parte de trás da
minha camisa. Me segurando.
Olhei para baixo. Os atores estavam olhando para mim. Ou pelo menos para a escuridão
sobre eles. A magia havia parado. Tudo havia acabado. Pelo menos por ora.
— Desculpe, Buddy, foi uma pegadinha terrível. Não devia ter feito isso. Mas vê agora o
que eu quis dizer? — perguntou o Sr. Drew, oferecendo-me sua outra mão para ajudar a me erguer.
— O quê? — perguntei. Estava sem fôlego, mesmo sem ter ido a lugar algum. Ainda estava
tentando entender a natureza da pegadinha.
— Quando todos trabalham juntos, tudo funciona perfeitamente. Quando uma pessoa não o
faz, tudo para.
— Você me empurrou? — perguntei.
— Nah. Te joguei rapidinho para frente e depois puxei para trás, só de brincadeira, Buddy.
Como uma iniciação. Sabe como é.
Eu não sabia, mas me senti melhor por ter sido uma piada, por ele não ter me colocado em
perigo de verdade, mesmo sentindo que o havia feito. Na verdade, era meio engraçado, agora que
tinha me acalmado. Imaginei que devia ter parecido um bobo achando que ia cair para a morte e
gritando daquele jeito. Sendo que estava seguro.
Tão bobo.
— Eu comprei este teatro — disse ele.
— Você o quê?
— Isso. É tudo meu. — Ele fez um gesto com o braço em meio ao espaço escuro.
— É impressionante. — Foi tudo o que consegui pensar em dizer.
Ele assentiu e deu um passo em minha direção.
— Ainda é um segredo, então não conte a ninguém. Ainda preciso resolver umas coisas, mas
está tudo mudando, Buddy. Tudo. — Ele pôs a mão no meu ombro e olhou intensamente para mim.
— Isso é uma coisa boa — disse, mas foi meio que uma pergunta.
O Sr. Drew sorriu e assentiu.
— Ah, sim, Buddy. É uma coisa muito boa.
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CAPÍTULO 9
A princípio, nem acreditei que não tinha si-
do demitido. A Sra. Lambert também não conseguiu acreditar quando voltei lá pra baixo e me sentei
na minha mesa.
— Bem, eu não entendo — disse, parada do meu lado. — Acho que ele gosta de você, hein?
Eu assenti.
Ela também assentiu.
— Bom, tudo bem, eu entendo como é. E você pode ter a confiança do Sr. Drew, mas ainda
vai demorar um tempo para ganhar a minha — E dizendo isso, ela juntou as mãos.
Assenti outra vez.
— Certo — prosseguiu. — Vá à Redação e veja se já estão com o roteiro novo.
Eu me levantei num instante, pronto para mostrar que a fé que o Sr. Drew tinha em mim não
era à toa. Para mostrar à Sra. Lambert que eu não era alguém com quem tinha que se preocupar.
— Entendido — disse. Imediatamente segui para o elevador.
— Buddy! — Ela me chamou quando saí andando.
— Sim?
— Continue trabalhando no Bendy Cowboy — disse ela. — É melhor que valha tudo isso.
A expressão em seu rosto continuava tão severa quanto de costume, mas, ainda assim, eu
finalmente estava recebendo a minha primeira tarefa artística. Estava apavorado imaginando se
conseguiria fazer direito, já que nem tinha de fato conseguido fazê-lo pra começo de conversa. Mas
estava tão empolgado por não ter sido demitido e por poder desenhar que não consegui evitar e abri
um sorriso gigantesco.
— Sim, senhora!
Passei o resto do dia fazendo atividades de office-boy, o que não chegou a me incomodar
porque eu não podia de fato trabalhar no Bendy Cowboy. Estava animado por finalmente receber a
chance de desenhar, de fazer mais que só ficar correndo de um lado para o outro, mas, ao mesmo
tempo, não conseguia fazer o que o meu avô tinha feito e será que ninguém ia notar a diferença na
habilidade se eu começasse a desenhar minhas próprias coisas?
— Então você tá numa enrascada daquelas — disse Dot depois que eu expliquei tudo. Ela
tomou um gole de refrigerante e se recostou em sua cadeira.
Não queria admitir nada para ela, mas ela ouviu falar sobre a minha quase demissão e exigiu
que fôssemos ao pub juntos de novo para poder me passar seu roteiro do Bendy Cowboy e ouvir a
história completa. E eu contei. Era como se não conseguisse esconder as coisas dela.
— É — disse, enfim. — Tenho que praticar, mas não acho que vá conseguir ficar bom da
noite pro dia.
A porta atrás de nós se abriu e eu ergui o olhar, deparando-me com Jacob, Richie e mais uns
caras da Contabilidade entrando no bar. Arqueei um pouco os ombros. Não queria ser visto por eles.
Mas não sabia por quê. Talvez me sentisse um pouco intimidado. Eles desapareceram em meio à
multidão pelo bar e eu olhei de volta para Dot.
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— Então, descobri mais sobre aquele tal de Tom — disse ela.
— Ah! — Tinha esquecido que perguntara sobre isso para ela.
— Pois é, e até que é bem interessante. Ele trabalha pra uma empresa chamada Gent. Parece
ser um dos bam-bam-bans da empresa. Ele parece estar trabalhando com o Sr. Drew em algum tipo
de máquina.
— Com o Sr. Drew?
— Não sei o que é, não consegui descobrir nem onde está. Mas vou continuar procurando.
— Que tipo de máquina?
Dot deu de ombros e tomou mais um gole.
— Talvez um jeito mais eficiente de filmar desenhos?
Assenti.
— Talvez.
— Olha só vocês, tão aconchegados! — De repente, Jacob estava se sentando do meu lado,
batendo com sua cerveja na mesa, de forma que a espuma transbordou e escorreu pelo copo.
Dot revirou os olhos.
— Nesse calor, não ia querer me aconchegar com ninguém. Sem ofensa, Buddy.
— Pior que é verdade — respondeu Jacob, tirando o chapéu e secando o suor na testa com
um lenço estampado. — E aí, Buddy, — perguntou — o que tem achado de trabalhar no estúdio?
— Tem sido interessante — respondi.
— Bom, vou te contar: fico feliz que você não tenha sido demitido. E fico feliz por ter feito
aquele desenho. Porque às vezes é difícil ser notado. Acredite, eu sei. As pessoas vão te subestimar
a todo momento, filho. — Ele olhou para a Dot. — Certo?
— Com certeza. — Ela assentiu.
— Se alguém sabe como é ser ignorado é a mulher e o negro. Pode confiar na gente com
relação a isso. — Ele ergueu o copo para Dot, que bateu com o seu no dele. Continuava a mesma
garota divertida de sempre. Mas, de certa forma, era como se não estivesse se divertindo.
— Você tem uma garota, Buddy? — perguntou Jacob após beber um gole.
— Nah — respondi.
— Sério? Um garotão bonito feito você?
— Não estou muito focado nesse tipo de coisa agora — disse. O fato era que eu não estava
nada focado nisso. Claro, tinha uma ou outra garota lá no bairro que eu era a fim, mas não tinha
tempo para chamá-las pra sair... e também não tinha dinheiro. E agora, com esse novo emprego e
tudo mais... Na verdade, eu me sentia bem desconfortável de falar sobre isso com pessoas do
trabalho. Com qualquer pessoa.
— Dá pra focar em mais de uma coisa de cada vez, sabia? — disse Jacob.
— Eu sei, mas... eu preciso organizar algumas coisas. — E eu moro na casa da minha mãe.
E divido minha cama com o meu avô. E preciso me tornar um artista profissional da noite pro dia.
— Como é a sua vida amorosa, então? — perguntou ele, voltando-se para Dot.
Ela não disse nada, apenas olhou para sua bebida.
— Você parece meio tristinha, Sapatinhos de Rubi. Eu disse algo errado?
Ela riu um pouco diante dessas palavras e então olhou para ele.
— Não me chame assim. E não, eu não tenho uma vida amorosa. Não estou pronta pra isso.
— Pronta? — perguntei.
Dot respirou fundo.
— Vocês dois. Garotos. Pressionando, sempre fazendo perguntas. Não gostam de respondê-
las, mas adoram perguntar.
— Desculpa — disse a ela. Àquele ponto, toda a conversa já tinha meio que fugido de mim.
Não sabia bem o que estava fazendo ou o que devia dizer.
— Qual é, Dot — disse Jacob, cutucando-a com o cotovelo.
— Eu disse não, Jacob — disse ela, com firmeza, encarando-o.
— Tá bom, tá bom, eu sei quando não sou desejado. — Ele se levantou, pegou sua cerveja e
tomou mais um gole. — Vejo vocês por aí. — Ele sacudiu a cabeça como se fôssemos dois doidos e
então passou por entre a multidão, seguindo de volta para a mesa com os outros caras.
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Dot olhou para mim por um momento e então apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se
um pouco.
— Não gosto de falar dessas coisas.
— Não te culpo — respondi.
Ela fez outra pausa, bebendo mais um pouco do refrigerante. Olhou de volta para mim.
— O meu marido morreu na guerra — disse ela, sem rodeios.
— Você foi casada? — perguntei. Sabia que não era essa a questão. Sabia também que não
devia estar surpreso. Muitas garotas do meu bairro, as que cresceram comigo, já tinham arrumado
alguém e eram agora donas de casa. Mas tinha algo na Dot que parecia... bom, não era igual a elas.
— Não por muito tempo. Éramos namorados no ensino médio. Então ele fez dezoito e foi
recrutado. Nós nos casamos no cartório pouco antes de ele ter que partir. — Ela girou devagar o que
ainda restava do refrigerante no fundo do copo. — Um mês depois, ele faleceu. E um mês depois
disso, a guerra acabou.
Não sabia o que dizer. Não sabia nem por que ela estava compartilhando isso comigo. Ainda
mais depois do que disse sobre garotos pressionarem demais.
— Meu pai morreu na guerra. Bem no início. Em 42. — Foi tudo o que consegui pensar em
dizer. Mesmo que não quisesse pensar a respeito pra começo de conversa.
Ela então ergueu o olhar para mim e me abriu um sorriso triste.
— Eu lamento, Buddy.
— Também lamento por você. Você quer...?
— Nah, não quero falar sobre isso agora.
Me senti bem desconfortável. Não sabia como continuar uma conversa como se as coisas
estivessem normais. Não sabia se Dot queria que eu o fizesse. Não sabia de nada. Como alguém
simplesmente mudava de assunto assim? Era só... mudar?
— Bom, o que você acha que eu devo fazer? — perguntei, só para tentar.
Dot olhou para mim por um momento. Então:
— Tá falando do Bendy Cowboy?
Assenti, aliviado por estarmos na mesma página. Aliviado por ter funcionado.
— Acho que você só tem que treinar. Acho que você também devia perguntar ao seu avô se
ele pode te ensinar.
— Não posso fazer isso — disse, sacudindo a cabeça de leve enquanto dava um último gole
na minha Coca.
— Por que não?
— Ele mal fala a nossa língua.
— E o que ele fala?
— Polonês.
Dot pensou a respeito.
— Não sei se vocês precisam mesmo falar a mesma língua. Quer dizer, seria diferente se
fosse escrita, mas arte... é universal. Ele não pode só, você sabe, te mostrar?
Dei de ombros. Eu não sabia. Talvez pudesse. Mas esse não era o maior problema. O maior
problema era o simples fato de ele estar lá. De que ele me assustava, tirava o meu espaço, de que a
minha mãe sequer me disse que ele estava vindo. De que tínhamos mais uma boca para alimentar.
De que eu me sentia ressentido com ele. Era difícil pedir favores a alguém assim.
Mas talvez ela estivesse certa. Talvez não importasse como eu me sentia.
Foque na sua visão. Seja ambicioso. Sonhos ganham vida.
Faça o que precisa fazer.
— Vou pensar no assunto. Ele acabou de chegar nos Estados Unidos e ainda está todo
confuso. Pode não conseguir me ajudar, mesmo que eu pedisse.
— Você é judeu, não é, Buddy? — perguntou Dot.
Senti aquele aperto familiar no estômago. Aquele escudo protetor se desdobrando ao longo
da minha espinha. Fiquei um pouco mais reto na cadeira, mas tentei soar ainda mais casual:
— Sou sim. Isso é um problema? — Não soei casual. Soei bravo e sabia disso.
— Claro que não — disse Dot. — É que você disse que o seu avô era da Polônia.
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— Somos poloneses — repliquei. Era óbvio que éramos.
Dot ergueu as mãos.
— Esquece. Desculpa. Não quero levar pro lado pessoal.
— Bom, eu já te disse que o meu pai morreu, que sou judeu, mas claro, não vamos levar pro
lado pessoal. — Não consegui não ficar bravo. Sabia que ela estava me julgando. Só sabia. Como
os valentões no pátio da escola quando eu era criança. Como os mesmos valentões já mais velhos.
Me xingando enquanto eu passava pelo bairro deles. Como eu odiava aquilo.
Dot sacudiu a cabeça.
— Já entendi. Me desculpa. — Ela empurrou seu copo para o meio da mesa. — Vou indo
embora agora. — E aí ela se levantou, simples assim. Então se virou e foi embora.
Me senti mal. Aquela atitude defensiva desapareceu e eu logo me levantei, seguindo-a até o
lado de fora. Ela já estava a meio quarteirão, andando daquele jeito rápido que andava. Finalmente a
alcancei e segurei pelo ombro. Ela se virou e me lançou um olhar de morte.
— Ah, — disse ela, sua expressão se suavizando — é você.
— Olha, eu não quis te deixar chateada — disse.
— Eu sei.
Olhei para ela. Ela olhou para mim.
— Ainda está zangada comigo? — perguntei.
— Não fiquei zangada com você. Só me senti mal. Eu te aborreci. Achei que era melhor ir
embora. Além do mais, já está ficando tarde. — Ela me olhou como se fosse eu quem estava
fazendo algo estranho.
— Ah, achei que você estivesse me afastando.
— Não.
Não. Então tudo bem.
Eu disse boa noite e ela também e essa foi a primeira vez que vi quão direta ela era.
Quão direta você é.
Uma vez, você me disse que gostava de escrever nas entrelinhas nos seus roteiros, mas que
não tinha tempo para entrelinhas na vida real. Eu sempre me lembrei disso.
Então, caso ainda não tenha sido claro, Dot, e seguindo o seu exemplo sempre tão incrível,
vou dizer da forma mais direta possível: Você tem que salvá-los.
Você tem que detê-lo.

Era final de semana, mas não que isso importasse muito pra mãe. Ela estava sentada ao lado
da janela em sua máquina de costura, junto à mesa da cozinha, costurando um paletó para o Sr.
Schwartz. Tinha que admitir que eu também ainda estava me acostumando com a ideia de ter o final
de semana livre. Em vez disso, tinha passado as últimas semanas fazendo tarefas para a mãe, indo
ao mercado para fazer compras, pagando o leiteiro, esse tipo de coisa.
Estava pensando no que a Dot tinha dito quando meu avô passou por mim com seu paletó e
chapéu já bem gastos.
— Aonde está indo? — perguntei.
Ele olhou para mim daquele jeito que sempre olhava.
— Aonde ele vai? — perguntei à mãe.
Ela não ergueu o olhar do seu trabalho.
— Provavelmente à biblioteca.
Me virei e o vô já tinha aberto a porta. Tive aquela sensação de que “era agora ou nunca”.
— Ei, vô, eu vou com o senhor.
Isso fez a mãe erguer o olhar. Ela me abriu um sorriso, pequeno mas perfeitamente pleno.
Era um agradecimento. Não entendia por quê, mas ela estava feliz.

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Não me preocupei em colocar uma camisa já que só estávamos indo na biblioteca. Ela ficava
subindo o quarteirão e todo mundo também estaria usando só a camiseta de baixo. Estava quente
demais para se importar. Enfiei meus pés nos sapatos e lhe segurei a porta. Ele me olhou um pouco
enquanto seguia para a saída. Então assentiu.
Quando saímos em meio ao ar espesso do meio-dia sob o sol quente do meio-dia, eu ainda
não tinha certeza se devia lhe pedir ajuda. Obviamente, minhas entranhas achavam que era uma boa
ideia e a Dot sempre dizia que era preciso confiar nas suas entranhas. Mas, ao mesmo tempo, como
sequer seria possível que ele me ajudasse?
Me lembrei que ele tinha se oferecido para me “ensinar”. Que talvez eu devesse respeitar
isso. Mas ainda assim.
Atravessamos a rua para desviar do hidrante de incêndio aberto que jogava água nas crianças
locais e eu nunca pensei que seria uma daquelas pessoas que atravessavam a rua para desviar disso.
Acho que queria dizer que estava ficando mais velho.
— Divertido — disse ele, apontando para as crianças gritando e rindo em meio à água.
A biblioteca era um edifício de tijolos de quatro andares que ficava mais ao canto. Uma mãe
e sua garotinha estavam sentadas nos degraus que levavam a ela, lendo um livro de canções infantis.
A garota acenou para mim quando estava passando e eu acenei de volta. Lá dentro, o ar era um
pouco mais fresco graças aos ventiladores de teto girando lentamente sobre nós e às paredes brancas
e altas feitas de alvenaria. Foi um grande alívio.
O silêncio também era bem relaxante. Não dava para ouvir nem o burburinho da cidade. Era
como quando a mãe desligava o rádio quando estava na hora de dormir.
Segui meu avô até as prateleiras dos fundos. Ele parecia ter um propósito. Fomos até a seção
infantil e foi quando ele parou para dar uma olhada na coleção. Examinou cuidadosamente cada um
dos livros que tirava da prateleira, abrindo as capas, folheando as páginas e colocando-os no lugar
onde havia encontrado com todo o esmero. Era um processo demorado, mas fascinante de observar.
Ele finalmente recolheu uma pequena pilha de livros. Três livros ilustrados, incluindo um do
George, o Curioso e um da Píppi Meialonga. Foi quando ele olhou para mim, satisfeito com sua
coleção, que finalmente me dei conta do que estava fazendo.
Estava aprendendo nossa língua por conta própria. É claro.
Se podia ensinar algo difícil assim para si mesmo, então eu não devia ter medo de pedir a
ele. Ou pelo menos foi assim que funcionou a minha linha de raciocínio.
— Vô? — sussurrei enquanto seguíamos para a mesa da biblioteca.
Ele olhou em minha direção.
— Pode me ensinar a desenhar melhor? — Ele parou de andar e me fitou. — Você sabe —
disse, mexendo a mão para fingir que estava desenhando num pedaço de papel. — Arte.
Ele sorriu.
— Arte.
— Sim. Pode me ajudar? — perguntei.
Ele não assentiu, nem disse nada. Apenas pôs os livros em cima da mesa de retirada e falou
com a bibliotecária ali sentada:
— Separe para mim?
Ela assentiu.
— Com certeza, Sr. Unger.
Ela o conhecia. Claro que conhecia.
— Venha — ele disse para mim, ao que eu o segui. Dessa vez, ele foi em direção às escadas
e nós as subimos bem devagar.
Fomos ao segundo andar, passamos por uma série de prateleiras e então paramos. Estávamos
na seção de artes. Devia saber. Mais uma vez, meu avô examinou os livros cuidadosamente, sem
pressa. Sorriu para eles e os tocou como se tivesse uma boa recordação de cada um. Então começou
a tirar livros das prateleiras. E passá-los para mim. Um atrás do outro e atrás do outro.
A pilha foi ficando pesada nos meus braços e, quando vi os títulos, não entendi exatamente
por que os estaria segurando a menos que quisesse aprender tudo sobre a história da arte, o que não

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queria. Roma Antiga. Grécia Antiga. Renascença. Da Vinci. Monet. Nem um único livro sobre
como desenhar. Nada desse tipo.
Meu avô parou e olhou para mim. Então disse:
— Bom. — E se virou para as escadas.
— Vô, isso é tudo bem legal e tal, mas eu não quero ser artista, artista. Só quero aprender a
fazer desenhos cartunizados — disse, mesmo sabendo que ele provavelmente não entenderia.
— História. Bom — respondeu.
História era bom.
Quando finalmente chegamos em casa, eu estava todo suado e cansado, mas meu avô só
estava começando. Ele se sentou na mesa da cozinha e olhou para mim.
— Papel — disse.
Então eu peguei o papel, a caneta e a tinta do nosso quarto e levei para ele. Ele tirou um
pequeno livro bastante grosso com o título “A História da Arte” escrito na capa. Abri. As letras
eram pequenas e muito bem apertadas em cada uma das páginas. Parecia impossível de ler. Fiquei
entediado só de passar as páginas.
— Ler e praticar. Hoje, círculo. — Ele pegou um dos livros maiores e mais brilhantes e
então o abriu. Encontrou uma página onde havia uma foto lustrosa de uma pintura. Era de uma
mulher que parecia um pouco deprimida, sentada com um cachorrinho no colo. Meu avô olhou para
mim e apontou para a pintura. Então começou a recriar a pintura na página com círculos. E ovais. E
outras formas geométricas. Ela não tinha expressões faciais, mãos, nada. Era quase como se fosse
uma sombra de si mesma. — Vê? — disse.
— Ah, círculos — disse a mãe, dando uma olhada por cima do meu ombro. — Começando
com o básico.
Assenti.
— Água? — perguntou ela.
Assenti outra vez.
Enquanto ia até a pia, ela disse:
— Sabe, eu sempre disse que você tinha herdado as suas habilidades artísticas do seu avô.
— Pra quem? — perguntei, vendo meu avô desenhar.
— Para todo mundo — respondeu ela, colocando dois copos de água embaçados na mesa.
— Pra mim não — disse. — Não me lembro de você falar dele.
— Eu falava — respondeu ela. — Talvez você não lembre.
— Não falava. — Me senti incomodado de novo. Lembrei de como ela simplesmente tinha
convidado aquele estranho para morar conosco sem sequer falar comigo a respeito. Sem sequer me
avisar a respeito.
Escutei ela suspirar.
— Vou comprar as coisas para o jantar. — Ela deu meia-volta e saiu.
— Buddy — disse o meu avô e então olhei de volta para ele, chocado. Nunca o ouvira dizer
meu nome antes. — Certo, trabalho agora.
Ele me passou algumas folhas e empurrou o livro em minha direção, trocando de página. Era
estranho ver aquelas pinturas tão vívidas em preto-e-branco. Era como se só estivessem contando
metade da história.
— Trabalho.
Ele me passou a caneta e olhou atentamente para a minha folha. Eu finalmente assenti.
— Círculos? — perguntei.
— Sim. Círculos.

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CAPÍTULO 10
Foi divertido. Foi sim. Aprender com o vô.
Com certeza frustrante, e às vezes até tedioso. Era tudo muito técnico, eu não podia desenhar o que
quisesse. Mas, é, também foi divertido. E quanto mais empolgado eu ficava quando aprendia algo
novo, melhor. Em alguns dias, ele acrescentou mais coisas às lições. Ainda estávamos fazendo
círculos, mas avançamos para as linhas. Linhas que ajudavam com perspectiva. Não me pergunte
como ele conhecia essa palavra, ele só conhecia.
Traçamos um bocado de linhas, uma do lado da outra, até o meio da folha. Então fomos
desenhando coisas como retângulos para prédios e cones para árvores em meio às linhas.
Desenhamos as mesmas coisas em menor escala conforme nos aproximávamos do centro da folha.
E deu certo! Parecia que as “árvores” estavam ficando mais distantes.
— Pirâmide — disse o vô. — Perspectiva.
Ele estava apontando para uma pintura de da Vinci. Da Virgem Maria sentada numas pedras
enquanto segurava o menino Jesus.
Assenti.
— Pirâmide — repeti.
Continuamos praticando depois do trabalho, nos finais de semana e eu também praticava nos
meus intervalos no estúdio. Não tinha mais Bendys Cowboys para dar à Sra. Lambert e às vezes
podia senti-la olhando para mim, me julgando, duvidando de mim. Eu realmente queria me provar
para ela. Talvez até mais agora que para o Sr. Drew, de certa forma. Sentia que ela não achava que
eu salvara meu trabalho porque merecia. Sentia como se ela achasse que o Sr. Drew simplesmente
gostava de mim. Aquela coisa do clube do Bolinha.
Achava isso porque ela disse uma vez. Só “aquele velho clube do Bolinha de sempre” e não
foi bem pra mim, mas eu ouvi. E pensei sobre isso. Sobre como o Sr. Drew a dispensara naquele dia
no escritório dele. Eu estava tão confuso. Qual era a verdade, afinal? Ele respeitava talento ou não?
Ou talvez respeitasse, mas era mais complacente com pessoas que eram como ele? Que o faziam
lembrar de si mesmo?
Não, não. Não queria pensar desse jeito.
Enfim, imaginei que estava na hora de começar de fato a fazer uns Bendys e planejei pedir
ajuda ao meu avô em casa. Estava me sentindo empolgado e saí correndo pelo saguão de entrada no
final do dia quando ouvi uma voz familiar:
— Buddy!
Derrapei até parar e me virei. O Sr. Drew estava parado junto à recepção com um grande
sorriso no rosto.
— Senhor! — disse, chocado. Imediatamente fui até ele.
— Aonde vai com tanta pressa, tem um encontro? — perguntou ele em meio a uma risada.
Senti meu rosto ficar quente como ficava toda vez que alguém me fazia perguntas pessoais
como aquela.
— Ah, não, senhor, não tenho namorada.
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O Sr. Drew assentiu frente a isso.
— Provavelmente é melhor assim. Nesse momento, é importante para nós focar no trabalho.
— Sim — disse. Eu imaginava. Na verdade, não era exatamente isso, mas também era.
Quando eu teria tempo para isso?
— Tenho algo para você. Peço desculpas pela demora, mas te dei um pequeno bônus para
compensar. — Ele me entregou um pedaço de papel branco.
Olhei para ele.
Meu cheque de pagamento. Meu primeiro cheque de pagamento.
Fazia três semanas e, é, acho que tinha demorado um pouco, mas eu estive tão enrolado com
tudo o que tinha acontecido com o desenho, a mentira e depois com dar o meu melhor para encobrir
a mentira que acho que eu meio que esqueci. O motivo primordial para aquilo tudo.
O dinheiro.
Quarenta pratas.
Quarenta dólares, redondinho.
Na minha mão.
— Espero que seja o suficiente. Nunca chegamos a falar sobre quanto o Schwartz te pagava.
Uma boa lição, Buddy: sempre discuta números.
Sempre discutir números.
Quarenta pratas.
Senti como se não conseguisse respirar.
— Está ótimo — consegui botar para fora.
— Ótimo! — respondeu o Sr. Drew. Ele me deu uma boa batida nas costas e eu tossi. —
Venha, vamos comemorar!
Vamos?
Sem sequer esperar que eu dissesse alguma coisa, ele partiu em direção à porta e eu o segui
lá para fora em meio ao calor escaldante. Por algum motivo, ele não pareceu tão completamente
sufocante, para variar. De alguma forma, parecia até que bom.
Alcancei o Sr. Drew e o acompanhei enquanto ele ia caminhando depressa pela calçada.
— Aonde estamos indo? — perguntei.
— Comemorar — respondeu ele, sorrindo novamente.
Sim, mas como e onde, eu queria saber. Não perguntei de novo. Não era para perguntar. Eu
só tinha que confiar nele. E assim o fiz, confiei nele.
Seguimos por uma série de quarteirões e então viramos para o sul. Finalmente chegamos a
um restaurante com um grande toldo vermelho. A palavra “Sardi’s” estava escrita nele.
— Acho que já ouvi falar desse lugar antes — disse enquanto passávamos pelas portas e
adentrávamos o interior vermelho-escuro.
— Esperava que sim — disse o Sr. Drew em meio a uma risada.
— Ah, Sr. Drew, a mesa de sempre? — perguntou o recepcionista na bancada.
— Com certeza — respondeu o Sr. Drew e, quando ergueu a mão para apertar a dele, notei
um vislumbre de uma nota de dólar passando entre os dois.
— Por aqui! — disse ele com um largo sorriso.
Nós o seguimos até os fundos do restaurante, até uma mesa para dois junto a uma parede
cheia de caricaturas de pessoas famosas.
— É o Sinatra! — disse enquanto me sentava.
— Algum dia, garoto, seremos nós — disse o Sr. Drew.
— Bom, pelo menos o senhor — respondi. Não notei como o Sr. Drew reagiu a isso, estava
com os olhos arregalados demais enquanto olhava em volta. Havia desenhos de pessoas famosas
cobrindo todos os cantos das paredes. E eu tinha certeza que também devia haver algumas pessoas
famosas de fato sentadas em algumas das mesas, não que eu as tivesse reconhecido. Homens com
seus ternos, mulheres com seus vestidos, jantando antes de ver um espetáculo.
Olhei sobre minha cabeça para as caricaturas ali. Reconheci Lauren Bacall. Estava muito
boa. Para ser franco, eu não tinha esse desejo de estar num dos desenhos, mas a ideia de ter um dos
meus desenhos ali em cima? Para que todos vissem? Isso deixou meu estômago empolgado.
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Um garçom de jaqueta vermelha se aproximou.
— Bebidas, cavalheiros?
— Me veja um old-fashioned — disse o Sr. Drew. — Buddy?
Ele olhou para mim e notei que, se quisesse, podia ter pedido o mesmo. Mas simplesmente
não consegui.
— Um refrigerante? — perguntei ao garçom. — Uma Coca?
O garçom sorriu para mim como se eu tivesse feito a escolha mais perfeita que qualquer um
já tivesse feito antes e se retirou para buscar as nossas bebidas.
— Buddy, você precisa começar a beber como um homem — disse o Sr. Drew.
— Eu, hã, tenho umas coisas que preciso fazer quando chegar em casa. Preciso estar sóbrio
— respondi. Achei estranho. Como o que eu bebia me fazia mais ou menos homem? Eu já não era
um homem simplesmente por que era um?
Ainda assim, por algum motivo, eu me senti mal.
O garçom voltou com as nossas bebidas e se foi tão rápido quanto.
— Como a Lambert tem te tratado? — perguntou o Sr. Drew, pegando seu copo e bebendo
um gole. Ele fechou os olhos e suspirou. — Que belezinha — disse para a bebida.
Bebi um gole da minha Coca de canudo.
— Ah, ela é legal. Está me deixando trabalhar no Bendy Cowboy — respondi.
— Bom, bom. Bem, se ela ficar se achando muito pra cima de você, me avise. Ela pode ser
difícil — respondeu ele.
Eu não pensava exatamente isso dela. Só a achava séria.
— Bom, eu acredito que você tenha um grande potencial, Buddy, de verdade. Vejo quão
duro você trabalha. O jeito como percorre o estúdio. Aposto que vê todo tipo de coisa. — Ele me
deu uma piscadela.
— Hã, na verdade não, senhor, só gosto de cumprir com o meu trabalho.
Não sabia exatamente o que ele queria dizer com “todo tipo de coisa”, mas tomei um grande
gole da minha Coca, tentando acalmar minha garganta que começava a se apertar. Não era mentira,
de toda forma, eu não tinha visto nada. Só escutado. Escutado conversas.
Sobre máquinas.
E tinta.
O Sr. Drew se inclinou sobre a mesa, meio como se fosse me contar um segredo.
— Se vir algo... interessante... ou algo que ache que eu devia saber, me conte.
— Claro. — É claro que eu imediatamente senti que devia contar tudo a ele naquele exato
momento. Especialmente sobre o Tom e o Sammy. Mas isso envolveria a Dot. E ela gostava de ter
segredos. Sentia que eram necessários. Ela devia ter um bom motivo, ainda que eu não entendesse.
Mas naquele rápido momento, eu soube que não podia contar a ele.
Não ainda.
— Bom — disse o Sr. Drew. Ele se recostou na cadeira quando o garçom voltou à mesa.
— Prontos para pedir? — perguntou ele.
Olhei para o cardápio que ainda não tinha aberto.
— Hã...
— Vamos querer dois bifes, ao ponto, e não economize nas batatas — anunciou o Sr. Drew,
devolvendo o seu cardápio. O garçom riu, como se o Sr. Drew tivesse feito a melhor piada que já
tinha ouvido. — E mais um — disse o Sr. Drew, batendo com o dedo no copo vazio.
— Outra Coca para você, senhor? — perguntou o garçom, voltando-se para mim.
Eu ainda estava na metade da que tinha pedido.
O Sr. Drew riu.
— Vamos, Buddy, viva um pouco!
— Certo — disse ao garçom.
— Muito bem, senhor.
E então ele se foi em mais um de seus rápidos movimentos.
Enquanto esperávamos a comida, o Sr. Drew começou a falar. Não me refiro a falar como na
conversa que estávamos tendo antes. Mas falar mesmo. Do jeito que tinha falado quando fomos ao
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teatro. Do jeito que tinha falado no dia que me contratou. Estava começando a me acostumar com
isso, a ouvi-lo falando. Ele tinha muitas filosofias de vida pessoais. E parecia ter a necessidade de
compartilhá-las. Eu podia ouvir, embora nem sempre entendesse do que ele estava falando.
— Foi por isso que escrevi o livro. É tudo uma ilusão, compreende? A vida. Viver. Está tudo
aqui. — Ele deu uma batidinha na lateral da cabeça e tomou um grande gole do novo old-fashioned
que havia se materializado diante dele. — As pessoas acham que existem regras, mas regras são
coisas criadas pelo homem. Para tentar manter a sociedade em ordem. Isso não é ruim, mas também
não é algo com que pessoas como nós precisem se preocupar.
Ele sempre dizia isso, dizia “nós”. Não sabia bem se eu era uma pessoa como nós. Mas
gostava de como isso soava.
— Eu não entendo — respondi.
Foi quando os bifes chegaram e eu olhei para eles, boquiaberto. Não que quisesse fazer isso
e, quando o garçom riu, imediatamente fechei a boca, sentindo-me envergonhado. Mas eles eram
enormes. Os maiores pedaços de carne que já tinha visto. Aquilo facilmente poderia alimentar eu, a
mãe e o vô num jantar.
— Parece fantástico — o Sr. Drew disse ao garçom, que abriu um sorriso e partiu. Então ele
se voltou para mim e sorriu. — Não tenha medo, Buddy, cai dentro!
— Não estou com medo — respondi enquanto pegava meu garfo e faca. Mas, honestamente,
eu meio que estava.
Cortei uma fatia e comi. Foi o sabor mais incrível que tinha sentido em muito tempo. Macio
e suculento, com a quantidade certa de condimentos. Me parecia quase errado que uma comida
pudesse ser assim tão gostosa e nem todo mundo tivesse a chance de experimentar. Não. Não era
quase errado. Era errado.
— Dizem que as regras são feitas para serem quebradas — disse o Sr. Drew, mastigando. —
Mas eu digo, por que não reescrever as regras? Por que quebrá-las quando se pode controlá-las?
Trata-se de ter o controle sobre o nosso próprio destino.
Assenti enquanto pegava uma batata. Tinha um gosto diferente, um toque especial.
— Rabanete — respondeu o Sr. Drew, sem que eu tivesse que perguntar. — Incrível, não é?
— Sim — disse de boca cheia.
E então ele continuou. Foi um jantar no qual o Sr. Drew queria falar sobre coisas profundas
que eu não entendia de fato e no qual tudo o que eu queria era degustar. Queria saborear. Guardar
tudo na memória. Pra ser sincero, eu mal o escutei. Ouvi a palavra “visão” outra vez. E mais coisas
sobre ilusões. Mas depois do terceiro old-fashioned, tenho certeza que até o Sr. Drew já não estava
mais acompanhando o que tentava dizer.
Quando atacamos o cheesecake que pegamos de sobremesa, não achava que meu estômago
fosse aguentar mais comida. E certamente não achava que meu cérebro fosse aguentar mais dos
discursos do Sr. Drew.
Finalmente, a maratona acabou e ambos nos recostamos em nossas cadeiras. O Sr. Drew
tinha parado de falar, eu tinha parado de comer. Nós simplesmente ficamos ali sentados. Cheios.
— Isso sim é vida — disse o Sr. Drew.
— Ou uma boa ilusão dela — respondi, meio sem pensar. Mas acho que todas as coisas que
ele dissera de alguma forma tinham conseguido entrar no meu cérebro.
O Sr. Drew apontou para mim e começou a rir, muito. Mais do que eu já tinha visto alguém
rindo antes. Ele se inclinou para frente e se curvou, rindo tanto que começaram a sair lágrimas de
seus olhos, mas o som da risada não saía.
— Puxa vida, caramba, Buddy — disse ele, limpando o rosto com um guardanapo. — Você
é bom, garoto. Você é dos bons.
Eu também sorri, embora me sentisse mais inquieto que qualquer outra coisa.
O garçom foi até nós com um livrinho preto fino.
— Quando estiver pronto, senhor. — Ele entregou o livro ao Sr. Drew.
— Sim, claro. Buddy? — disse o Sr. Drew, estendendo a mão por cima da mesa.
— Sim? — perguntei.
— Você precisa assinar a conta — explicou ele.
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Olhei para ele. Ele me olhou de volta.
E foi então que entendi.
Eu tirei meu cheque de pagamento do bolso enquanto o garçom me passava uma caneta.
— Hã, quanto ficou? — perguntei.
O Sr. Drew abriu o livrinho preto.
— Com a gorjeta, vamos arredondar para quinze.
Olhei para ele. Quinze dólares. Por uma refeição.
— O dinheiro vem acompanhado de responsabilidades, Buddy. É assim que funciona.
— Sim... s-senhor — gaguejei, ainda olhando para o número “quinze”.
— Vamos, garoto, ambos temos lugares aonde ir — disse o Sr. Drew. O tom de sua voz
ficara sério agora, quase irritado.
Eu peguei a caneta da mão do garçom devagar e assinei o livro da conta. Entreguei a ele.
— Muito bem, senhor — disse o garçom. — Vou trazer o seu troco.
Olhei de volta para o Sr. Drew, meu coração acelerado. Esperava que ele não conseguisse
ver o pânico nos meus olhos.
— Isso sim é o que eu chamo de comemoração, não é, garoto? — perguntou ele em meio a
um grande sorriso.
— Sim, senhor — respondi, a voz baixa.
— Mas não vá gastar desse jeito toda vez que receber o pagamento. — Ele riu. — Não seria
responsável.
— Sim, senhor — disse outra vez. Mal conseguia falar as palavras.
O Sr. Drew olhou por cima do ombro. Podia ver que estava impaciente. Ele suspirou.
— Olha, Buddy, tudo bem por você se eu voltar ao escritório? Vou receber uma pessoa em
meia hora.
Ele ia me deixar ali? Quer dizer, por que não, não é? O jantar já tinha terminado. E eu não
precisava de ajuda para ir para casa ou coisa do tipo.
— Ah, sim, claro.
O Sr. Drew jogou seu guardanapo na mesa e se levantou enquanto assentia com firmeza.
— Excelente. Continue com o bom trabalho, garoto. Te vejo amanhã. — E com isso, foi sua
vez de partir, apertando a mão do garçom e do recepcionista enquanto ia embora.
Todos riram.
Eu não entendia qual era a graça.
— Seu troco, senhor — disse o garçom, voltando e me entregando o livrinho preto.
— Obrigado. — Eu o abri. Vinte e cinco dólares, em espécie. Ainda era bastante dinheiro.
Mas era mais. Muito mais.
Enfiei as notas no bolso e saí daquele restaurante o mais rápido que pude. Peguei o metrô
para casa, mantendo a mão no bolso. Não precisava de ninguém surrupiando o resto.
Cheguei em casa quando a mãe estava limpando a mesa. O vô me abriu um sorriso da pia e
acenou para mim com a mão ensaboada.
— Buddy! Achei que você vinha jantar em casa — disse a mãe quando me viu.
— Eu também — respondi. Fica firme, Buddy, não pode deixar que eles saibam que está se
sentindo culpado. Olhei para a cortina empoeirada, a pilha de pratos sujos, o velho sofá-cama onde
a mãe dormia. Não, aquilo não ia ajudar com a culpa. — Hã, o Sr. Drew me levou para comemorar.
Recebi o pagamento hoje.
— Finalmente! — disse a mãe. Ela me abriu um sorriso. — Estava ficando preocupada.
— É, eu também. Enfim, aqui. — Eu rapidamente coloquei a pilha de notas amassadas em
cima da mesa.
— Nossa, uau, Buddy — disse a mãe, olhando para elas.
Aquilo me fez engolir em seco.
— Sim, vinte e cinco pratas. Mas vai ser mais, agora que ele confia em mim. — Uma
mentira. Vai ser mais agora que não vou ter mais nenhum jantar chique. — É tudo seu.
A mãe recolheu o dinheiro com cuidado, desamassando cada dólar. Ela estendeu dez para
que eu pegasse.
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— Você precisa de alguma coisa, roupas novas. Talvez levar um dos seus novos amigos
para comer uma fatia de bolo.
Eu quis fugir de tão envergonhado que estava.
— Não, mãe, por favor. Não dessa vez. Talvez da próxima — disse.
E então fui para o meu quarto o mais rápido que pude. Me escondi lá dentro. Meu coração
não estava acelerado, mas doía.
Era o tipo de vergonha que nunca tinha sentido antes. Estava bravo comigo mesmo. E com o
mundo também. Todas aquelas pessoas naquele restaurante, elas tinham dinheiro para comer lá, não
estavam tendo uma crise por causa de uma refeição. Não era justo. Simplesmente não era justo.
Nunca mais, eu disse a mim mesmo. Não até que eu pelo menos conseguisse bancar aquilo
de verdade. Não até que pudesse levar a mãe, comprar um bom vestido chique para ela. Levar o vô
também, claro. Comprar um terno novo para ele. Uma nova camisa de manga comprida, já que ele
gostava tanto delas.
Nunca mais.
Não até lá.

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CAPÍTULO 11
Era por causa dos canos. Agora eu sei. O
meu cantinho do Departamento de Artes onde ninguém queria sentar. Aquele afastado de qualquer
fonte de luz. Não era só por ser pequeno e apertado. Era porque os canos que percorriam o prédio
passavam pela parede e pelo teto em cima dele. Eles faziam um som metálico quando a temperatura
mudava ou quando uma válvula era virada em algum lugar. Mas não era algo que eu pensava que
devia achar incômodo. Afinal, nosso apartamento era cheio de rangidos lentos, o constante ajuste da
fundação do prédio. Quando era pequeno, meio que sempre pensei que o apartamento estava vivo,
que estava respirando e suspirando, com frio no inverno e suando no verão.
Então os canos ficarem fazendo aqueles barulhos estranhos enquanto eu só ficava ali sentado
trabalhando no meu canto naquela noite na verdade sequer me fizeram piscar. Não me fizeram nem
olhar para cima.
Até que fizeram.
Começou com um estrondo. No sentido literal da palavra. Estava debruçado na minha mesa,
trabalhando a questão da perspectiva. Desenhando um monte de linhas. Não estava indo muito
bem... tinha sido um dia longo e eu estava cansado. Mas também estava determinado. Tinha ficado
até tarde, mesmo depois de todos os outros já terem ido embora. Determinado a acertar naquilo. E
toda vez que ficava um pouco cansado ou entediado, tinha uma visão do Sr. Drew me empurrando
da beira da passarela. Tá, talvez não fosse a melhor coisa pra se ver e talvez os outros dissessem que
ele tinha um jeito estranho de motivar a equipe, mas posso afirmar com certeza que não achava que
tinha sido essa a intenção dele. Afinal, tínhamos saído para jantar na semana anterior, conversamos
como verdadeiros amigos. Tinha sido só uma piada.
Só isso.
Mas ainda assim, funcionou. Me deu uma agitada, me deu um novo foco. E então houve um
momento em que comecei a desligar, meus olhos um pouco pesados, quando subitamente imaginei
que estava caindo em direção ao chão do palco e no exato momento que ia me espatifar, um bang!
alto e forte soou sobre a minha cabeça.
Me joguei tão para trás na minha cadeira que quase caí. Meu coração estava palpitando e, à
medida que as sombras do Departamento de Artes foram voltando a clarear na minha visão, eu não
soube dizer se tinha imaginado o som ou se tinha sido mesmo real.
Até que aconteceu de novo.
Me levantei instintivamente. Não era uma caldeira que estava um pouco frustrada. Era outra
coisa. Mas o que era, isso eu não fazia ideia.
Bom, o que eu sabia era que não era da minha conta. Então voltei a me sentar e foquei na
minha folha.
Foi quando o gemido começou.
Não era como o vento nas árvores. Ou como o rangido do piso quando um vizinho precisava
usar o banheiro. Era como um animal, como quando um cachorro faminto uiva num beco. Mas não

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exatamente desse jeito. Desse jeito, mas também como quando um gato vê um inimigo e faz aquele
som que vem lá do fundo das entranhas.
E talvez também o que parecia uma única nota, bem baixa, tocada num violino.
Não era como nada que eu já tivesse escutado antes.
E eu fiquei curioso.
E também me lembrei do que o Sr. Drew havia dito. Que tomar a iniciativa era importante.
Estava tarde, a ponto de já estar escuro lá fora, mesmo no verão. Os outros já tinham ido
para casa e a Sra. Lambert teve que reacender a luz quando notou que eu ainda estava lá. Tinha feito
isso de propósito, é claro. Para mostrar ao Sr. Drew e a todos os outros que eu tinha vontade. Com
isso em mente, se eu era o único ainda no prédio e algo estranho estava acontecendo no estúdio do
Sr. Drew, no estúdio que significava tanto para ele, então certamente era meu dever investigar.
Fiquei sentado em silêncio onde estava por um momento, só escutando. Então ouvi aquela
batida determinada de novo e me levantei. Não ia ficar pensando muito a respeito, simplesmente ia
fazê-lo. Ainda que fosse acabar me assustando um pouco no processo.
Não tinha muita certeza de por onde começar, mas imaginei que a sala da caldeira podia ser
um bom lugar e então segui para o elevador. Enquanto descia em direção ao porão, me dei conta de
como estava sozinho. Todos os andares estavam vazios, uma única luz acesa no prédio, todo o resto
tomado por sombras profundas. Talvez aquilo tudo fosse muito ambicioso da minha parte. Talvez
eu tivesse ficado até tarde demais.
Tarde demais.
O porão estava completamente negro e tive que tatear a parede para encontrar o interruptor.
O nó no meu estômago deu uma afrouxada quando a sala se iluminou, parecendo bastante normal. E
me senti mais confiante conforme seguia para a sala da caldeira.
Tinha ido lá uma vez, procurando pelo zelador, o Wally, porque um dos vasos do banheiro
estava transbordando. Wally tinha montado um tipo de escritório improvisado ali embaixo, então
era sempre lá que dava para encontrá-lo quando ele não estava fazendo rondas. Mas o expediente já
tinha acabado agora, então é claro que quando eu tentei abrir a porta, ela estava trancada. Não tinha
pensado bem a respeito.
Ouvi mais uma daquela batida alta. Ergui o olhar e foi só aí que notei que tinha ido fundo
demais. Parecia que o som não estava vindo da caldeira, afinal. O que era uma boa notícia, já que eu
não tinha acesso a ela. Em vez disso, o som parecia estar vindo de algum lugar logo acima de mim,
um andar acima. E quase que para confirmar esse pensamento, houve outro bang bem em cima da
minha cabeça. Partículas de poeira começaram a flutuar sobre mim, caindo das tábuas do teto.
Foi quando um pranto veio em minha direção. Um pouco como o gemido de antes, só que
mais angustiado. Soava bem menos como um problema com o encanamento e bem mais como um
problema com algo vivo. Isso fez meus pelos do braço se arrepiarem, mas também me impulsionou
ainda mais a entrar em ação. Se fosse alguém com problemas, não só um cano com defeito, então eu
tinha que me apressar. Tinha que ajudar.
Pressionei o botão do interruptor de novo para apagar as luzes enquanto me enfiava de volta
no elevador. Me senti inquieto vendo as paredes descendo devagar enquanto eu subia. Quando o
chão do próximo andar se materializou na minha frente, notei que minha respiração estava rasa. E
quando o elevador parou num solavanco, já estava me perguntando quão certo eu realmente estava
do meu plano. Mas saí no corredor escuro e acionei um interruptor. Mais uma vez, a claridade fez
eu me sentir um pouco menos tenso.
O pranto veio flutuando em minha direção outra vez. Soava como se viesse de algum lugar
mais à frente no corredor. Saber que estava seguindo a pista certa fez o meu estômago revirar. Não
sabia bem se era de medo ou empolgação.
Provavelmente medo.
Por algum motivo, sempre que ia no andar do Departamento de Música, tinha alguma coisa
que não me fazia, não me deixava sentir nada além de desconforto.
Ouvi um baque alto. Esperei. Então o gemido começou de novo.
Bom, eu definitivamente estava no andar certo dessa vez.
Não tinha certeza se isso era uma coisa boa.
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Enquanto seguia o som, me lembrei da primeira vez que estive ali embaixo, perdido num
labirinto de corredores. Quando fiz uma curva e me deparei com um lance de escadas que levava
para baixo, senti um grande pavor tomar conta de mim. Pendurada ao final das escadas havia uma
placa com a palavra “Enfermaria” escrita. Uma enfermaria? Nem sabia que o estúdio tinha uma.
Desci pelas escadas devagar, os degraus rangendo sob os meus pés, e então entrei no saguão
da enfermaria. A sala era bem grande, com cadeiras de madeira duras, uma cama mais ao canto e
uma mesa coberta de prontuários junto à parede. As paredes no geral estavam vazias, com exceção
de um pôster amarelado que tinha sido colocado sem muito zelo perto da sala de espera. Era uma
imagem do Bendy vestido de médico, da Alice Angel com um uniforme de enfermeira e do Lobo
Boris deitado numa maca, com o título “Leitos e Penicos” escrito em cima com aquela típica fonte
dos desenhos do Bendy.
Crash.
Dessa vez mais alto e vindo do corredor no alto das escadas. Isso me trouxe de volta a mim.
Não sabia o que era mais inquietante, o som em si ou não fazer ideia do que o som sequer podia ser.
Esperava que fosse só um cano frouxo. Esperava de verdade que não fosse alguém invadindo o
lugar. Eu não era um cara durão, não achava que conseguiria afugentar alguém.
Ainda assim, segui o som. Imediatamente acendi a luz do corredor e vi uma série de portas
enfileiradas de ambos os lados. Esperei. E esperei. Mas é claro que agora, quando eu precisava, não
teve som de batida, não teve gemido. Não teve nada.
Decidi que a única coisa a fazer era checar cada uma das salas. Se estivessem destrancadas.
Não acreditava que estariam. Mas a primeira porta se abriu, revelando um pequeno escritório com
algumas mesas e uma cadeira. Chequei mais duas salas, ambas iguais. Então encontrei um escritório
maior. Esse tinha alguns diplomas emoldurados na parede e por um segundo me perguntei a quem
deviam pertencer.
Fechei a porta atrás de mim. Ela fez um barulho alto, mais alto do que eu esperava, e então,
imediatamente, eu ouvi. Era o pranto de novo. Mas dessa vez soou mais como um grito. Como se
alguém tivesse me ouvido. Como se estivesse me alertando.
Parecia vir do fim do corredor.
Atrás de uma porta.
Com dois grandes pedaços de madeira cruzados na frente, formando um “X”. Como se a tal
porta estivesse sendo protegida de uma tempestade ou coisa do tipo. Exceto pelo fato de que a porta
obviamente ficava dentro do prédio.
De repente, alguma coisa se atirou contra a porta. Ela sacudiu. Houve um grande baque e
uma sombra apareceu e então desapareceu na fresta embaixo da porta.
Com certeza tinha alguém preso dentro. Ou... alguma coisa? Notei que estava segurando o
fôlego e botei tudo pra fora de uma só vez, começando a puxar o ar de volta logo depois.
Alguma coisa? Como um animal? Como um... fantasma?
Que idiotice. Só precisava ver com os meus próprios olhos, saber que o que quer que aquilo
fosse fazia todo o sentido. Impedir que a minha imaginação fizesse das coisas maiores do que eram.
O pranto recomeçou, dessa vez definitivamente vindo de trás da porta. De perto, algo nele
parecia um pouco diferente. Quase triste, quase como um choro. Mas não um choro humano. Um
choro animal. Soava quase desamparado e fez eu me sentir mal. Quase tão mal quanto o quão
assustado eu estava.
Levantei a mão devagar e a levei até a maçaneta. Estava trancada. É claro que estava. Quem
deixaria uma porta destrancada com uma coisa daquelas do outro lado?
O fato de estar trancada devia ter sido um sinal para mim. Nem um sinal, na verdade. Não
era mágica, não era uma mensagem de uma força superior. Era uma porta trancada. E uma porta
trancada significava “fique longe”.
A menos que você tenha a chave.
Pensei na Dot. Pensei na chave dela.
Não parecia provável que uma cópia da chave daquela porta estaria simplesmente jogada
por aí em qualquer lugar. Ainda mais quando todas as outras portas estavam abertas. Era uma sala
na qual não era para se entrar. Comecei a divagar. Nunca tinha perguntado a ela, mas o fato de que
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a Dot tinha aberto uma sala no porão e então um depósito parecia indicar que era uma daquelas
chaves que podia abrir muitas fechaduras: uma chave mestra.
Vários pensamentos me passaram pela cabeça na sequência. Dentre eles, preocupações e, é
claro, aquela sensação de que não devia estar fazendo isso, mas, ao mesmo tempo — não sei dizer
por quê — eu senti um impulso. Não sentia mais que tinha algo a ver com o Sr. Drew.
Eu precisava desvendar aquilo.
Quando cheguei ao Departamento de Redação, indo à mesa da Dot, imaginei que ela ficaria
impressionada comigo e não se importaria que eu fizesse aquilo. Provavelmente teria me encorajado
se estivesse ali. Provavelmente teria levado a chave junto, só para caso uma situação como aquela
acontecesse. E lá estava ela. Na gaveta de baixo, escondida em meio às folhas de uma cópia de A
Obra Completa de Sir Arthur Conan Doyle.
Não me lembro como cheguei de volta à porta com o “X”. Não me lembro dos pensamentos
que tive. Talvez me lembrasse em algum momento, mas do jeito que a minha mente está agora, com
tudo misturado, eu realmente não lembro.
Só sei que eu estava lá.
Na frente da porta.
Com a chave.
Seja lá o que estava lá dentro me ouviu outra vez porque se atirou de novo contra a madeira
e pareceu chacoalhar o corredor inteiro. O pranto era mais insistente agora.
Encaixei a chave na fechadura e bam! De novo, a coisa se jogou contra a porta, ameaçando
quebrar tudo em pedaços e me fazendo tremer dos pés à cabeça. Engoli em seco.
Virei a chave.
Click.
Silêncio. Nem mesmo o pranto. Nada.
Respirei fundo, girei a maçaneta e empurrei. Em meio a um alto rangido, consegui abrir uma
fresta e então empurrei com mais força, até que decidi me jogar nela para abrir tudo de uma vez.
Imediatamente acendi as luzes com o interruptor ao lado.
Fiquei parado sob o batente da porta, olhando para uma sala vazia. Parecia ser uma sala de
operação em miniatura. E estava tudo revirado. Lixo no chão, a lixeira virada ao lado. Instrumentos
cirúrgicos estranhos estavam espalhados desordenadamente no balcão, com uma cadeira de madeira
quebrada em pedaços mais ao canto.
O que não parecia haver lá era... alguém. Ou alguma coisa.
— Olá? — disse. É o que as pessoas tendem a dizer, tinha notado, quando não sabem se
devem entrar num lugar. Ainda que talvez receber um “olá” em resposta não seja o que você quer.
Naquele momento, eu não sabia o que queria. Mas aquela sala vazia definitivamente não
estava na lista.
Entrei na sala com cautela e então, mais que depressa, chequei atrás da porta, porque é onde
as pessoas sempre se escondem, atrás da porta. Mas não tinha ninguém lá. Não tinha ninguém em
lugar nenhum. Então fiquei parado de frente para a porta aberta, confuso, sozinho e me sentindo
ainda mais inquieto. Senti um arrepio me subindo a espinha, como se uma mão gelada estivesse
passando os dedos pelas minhas costas.
Foi quando a luz escureceu. Ou talvez “escureceu” não seja a palavra certa para descrever
exatamente. Diria que estava mais para como se sombras tivessem começado a se espalhar pela
sala. Começaram devagar, então pensei que a lâmpada estivesse para queimar, mas então olhei para
baixo e vi a escuridão se fechando em volta do meu pé. Puxei o pé para cima, achando que fosse
algo molhado, mas era só uma sombra.
Só uma sombra.
Ergui o olhar e observei enquanto ela subia pelas paredes. Ia para o teto. Cobria a sala na
mais absoluta negritude. Como uma sala cheia de tinta derramada.
Me virei e olhei para o corredor e, obviamente, a negritude estava escorrendo porta afora.
Segurei o fôlego e fiquei completamente imóvel. Estava congelado, em pânico. Nunca tinha
visto nada como aquilo antes e também não achava provável que alguém já tivesse. Não sabia o que
queria dizer ou como estava acontecendo, mas sabia de uma coisa.
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Parecia ameaçador. Perigoso.
Como se aquelas sombras gotejantes fossem o mal encarnado.
Não sei explicar como você sente que algo é o mal. Você só sente. Eu simplesmente sabia.
Meu sangue gelou.
Todas as luzes se apagaram de uma vez. Na sala. No corredor. As sombras tinham vencido e
eu mal conseguia ver o batente, só alguns centímetros à minha frente.
Devia ter ido embora.
Mas o medo me fez ficar plantado no lugar. Medo da escuridão. Medo das sombras.
E um medo arrastado e crescente. Me fazendo cócegas na nuca.
Medo de que houvesse algo na sala comigo.
Uma respiração suave e aquosa. Quieta e calma, mas distinta. Em algum lugar atrás de mim.
E agora eu podia ouvir o som de algo raspando o chão, como passos arrastados, travados, mancos.
Então o silêncio.
Houve um súbito estrondo quando algo pousou no balcão atrás de mim, seguido pelo tilintar
de metal caindo no chão. Os instrumentos cirúrgicos, pensei comigo mesmo. Lâminas afiadas e
precisas no chão. Mas ainda não consegui me mexer. Tinha a impressão de que, se não me mexesse,
talvez o que quer que fosse aquilo não fosse me ver.
O som de algo raspando o chão recomeçou. Foi ficando mais alto a medida que a coisa se
aproximava. E então, enquanto continuava parado tentando ser invisível, senti a sua presença. Não
só ouvi. Pude senti-la logo atrás de mim. Ela se inclinou em minha direção.
A respiração quente e molhada na minha bochecha.
E então um outro tipo de som de respiração. Inalações rápidas.
Estava sorrindo para mim.
Eu não estava invisível. Precisava correr. Precisava correr mais rápido do que jamais tinha
corrido na vida.
Vai, Buddy, corra.
Corra!
Me lancei em direção à porta, erguendo um dos pés como se o estivesse tirando de dentro de
um lamaçal. Apoiei meu braço no batente da porta para tentar me atirar mais longe. Não conseguia
entender — não estava fisicamente preso. Mas minha mente estava fazendo o meu corpo agir como
se estivesse.
A coisa atrás de mim me fez então um estranho grunhido, como se tivesse se dado conta de
alguma coisa. Senti ela se afastar.
Foi quando senti um súbito peso nas costas, me empurrando para frente, seguido pelo som
de passos pesados passando por mim a toda velocidade. Eu tinha sido empurrado e caí com tudo no
chão. Tinha a mesma força que eu vira ser aplicada contra a porta e isso me tirou o ar. Mas não
fiquei de cara no chão por muito tempo. Me levantei. Meu cérebro finalmente desprendeu meus pés
e eu saí correndo pelo corredor atrás do som de passos.
Em transe, olhei pra tudo que era canto. De um lado, uma parede. Do outro, um corredor que
levava de volta à sala de espera. Não tinha nada. Corri até a mesa da frente e derrapei para parar
diante dela.
De novo.
Nada.
Foi quando notei a claridade à minha volta. A falta da sombra negra feito tinta. Me virei e vi
que o corredor atrás de mim também estava muito bem-iluminado. Ligeiramente ofegante, voltei
andando devagar para a sala. Sem sombras.
Nada.
Esfreguei as mãos uma na outra, notando agora que estavam doendo pela queda e vendo o
rasgo na altura do joelho das minhas calças. Agora estava com uma camisa e dois pares de calças a
menos. Tinha só a camisa do corpo que estava limpa e inteira o suficiente para trabalhar. De todas
as coisas, não era isso que devia estar me preocupando naquele momento. Mas era.
Uma onda de exaustão tomou meu medo num abraço.

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Vagando por Nova York tarde da noite, meu único pensamento era chegar em casa. Olhando
para as sombras escuras em meio a becos e vitrines gradeadas, senti um pavor diferente de tudo que
já tinha sentido antes. Não conseguia entender o que tinha acontecido. Não tinha nada naquela sala,
mas então algo respirou em mim. Me empurrou.
Era a minha cabeça me pregando uma peça? Eu estava assim tão cansado? Eu tinha caído?
Tropeçado no meu pé? Não teria sido a primeira vez. “Pés de palhaço”, costumavam me zoar na
escola. Mas e quanto aos sons? Às batidas na porta? Às sombras crescentes? Tinha sido real. Mais
que real. Aquelas sombras estavam vivas, tinha certeza disso. Respiravam, existiam.
Não era um sonho. Não era mentira. Eu tinha ouvido os sons. Tinha visto a porta sacudir. E
tinha sido empurrado ao chão. Tudo isso tinha acontecido. Eu sabia que tinha. Não ia duvidar da
minha mente. Estava tão seguro com relação à minha mente naquele momento.
Me lembro do que senti.
Era quase como se estivesse sentindo de novo.
Fui andando para casa. Demorei pouco mais que uma hora, mas precisava disso. Precisava
de tempo para acalmar os nervos, para entrar naquele ritmo familiar, para ver outras pessoas sendo
só pessoas, não pesadelos. As sombras me perseguiam, mas eu andava rápido. E quando finalmente
cheguei em casa, o medo estava muito pequeno e a exaustão já tinha tomado conta. Isso era bom.
Eu só precisava dormir.
Subi as escadas e me enfiei no nosso apartamento escuro. Todos já tinham ido para a cama.
O que era bom. Eu não estava no clima para falar com o meu avô ou tentar fazer a mãe achar que
estava tudo bem.
Abri a porta do meu quarto cuidadosamente, tentando não acordar o velho. Deitado do seu
lado da cama com a luz do poste iluminando seu rosto, ele quase parecia um cadáver. Me perguntei
se estava respirando. Não consegui me segurar — levei a mão sobre seu nariz e boca e senti um ar
ligeiramente quente contra ela.
Graças a Deus por isso.
Me sentei do meu lado da cama, encarando a porta fechada, e vi novamente a porta trancada
do estúdio. Não. Sacudi a cabeça — não ia mais pensar naquilo naquela noite. Puxei lentamente os
suspensórios dos meus ombros e os rolei para trás, arqueando o pescoço e ouvindo um estalo
bastante satisfatório.
Suspirei.
Então algo me segurou com força por trás.
Pulei em meio a um berro e me virei, vendo meu avô ali sentado, fitando-me com aqueles
olhos vazios, arregalados e assombrosos. Sua boca estava aberta no que parecia medo ou angústia.
— O quê? — perguntei um pouco alto demais, só que meu coração estava extremamente
acelerado. — O que foi?
Ele ergueu a mão devagar e apontou. Apontou direto para mim.
— Vô, sou eu. Sou o Buddy, o Daniel. — Coloquei a mão no meu peito e dei uma batidinha.
— Sou só eu. Seu neto.
Ele continuou apontando, seu dedo indicador sacudindo de leve. Sua expressão continuava
congelada. Me inclinei em sua direção para tentar, sei lá, confortá-lo? Achei que talvez ele não
conseguisse ver muito bem, então se me visse de perto...
— Viu? Sou só eu.
Com outro súbito movimento, ele me agarrou pela gola com ambas as mãos. Sua velocidade
me impressionou. Ele estava puxando a minha camisa. Podia ouvir as costuras na altura do ombro
começando a rasgar.
— Para, vô, para com isso! — Puxar o braço de volta só piorava as coisas e seus longos
dedos esqueléticos só apertavam com mais força. — Para com isso!
— Tire! — disse ele, a voz rouca.
— O quê?
Ele finalmente conseguiu passar um botão pela casa.
— Você precisa ver, precisa ver. — Ele agora estava determinado, mas finalmente entendi e
então coloquei minhas mãos sobre as dele, que continuavam trêmulas.
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Ele não me soltou e, enquanto tentava me levantar, cedi e desabotoei a camisa enquanto o
fazia. Ele continuou me puxando até que finalmente consegui puxar meus braços das mangas,
desemaranhando-me do tecido e recuando em direção à porta aos tropeços.
Meu avô segurou a camisa em cima do colo e a fitou fixamente. Olhei para ele com olhos
esbugalhados, vestindo apenas a minha camiseta de baixo amarelada.
— Qual o seu problema, velho? — Eu quis gritar, mas não queria acordar a mãe, então só
sussurrei entredentes.
— Veja — disse o meu avô. Olhei para mim mesmo. Só o que vi foi eu mesmo. E o buraco
no joelho das minhas calças.
— Não. Koszula.
Ergui o olhar. Ele segurou minha camisa dobrada em seu colo por mais um instante e então,
com as mãos trêmulas e envelhecidas e os dedos finos feitos pincéis, a ergueu para que eu visse.
E eu vi.
E fiquei olhando.
— Veja — disse o meu avô.
A luz lá fora iluminou a camisa, deixando-a transparente. Permitindo que eu enxergasse as
costas da camisa facilmente. Que visse a sombra negra que fora marcada nela.
Ergui a mão e peguei a camisa dele. Ele a soltou facilmente.
— Você viu — disse o meu avô, soando satisfeito e deitando-se novamente no travesseiro.
Uma marca de mão.
Exatamente onde eu tinha sido empurrado.
Nas costas da minha camisa.
Uma grande marca de mão, preta e manchada de tinta.

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CAPÍTULO 12
Hoje, eu não sabia o que era isso.
Hoje, olhei para essas páginas e esqueci por que estavam aqui. O que era para ser esse
objeto. Fiquei confuso.
Tive que escavar no fundo da minha mente.
Os cinco sentidos:
Tato: folhas de borda áspera.
Olfato: tinta e papel.
Paladar: sem sabor algum.
Audição: silêncio absoluto.
Visão: palavras nas páginas.
Palavras nas páginas. Buddy. Dot. Mãe. Vô.
Joey Drew. Minha história.
Essa não é só minha história, é sua história também, Dot. Queria poder contá-la do seu ponto
de vista às vezes. Queria saber por que você acreditou em mim e me procurou naquela primeira vez.
Queria que a resposta fosse mais que as suas “entranhas”.
Queria entender você do jeito que você parecia me entender.
Talvez fosse tudo uma mentira.
Mas você nunca mentiu para mim. Essa era a questão, não era? Você escolheu não mentir.
As pessoas podem fazer essa escolha.
Queria saber por que você acreditou em mim quando te contei sobre a Enfermaria. Sobre a
criatura na escuridão. Sobre a minha camisa. Fui um idiota por não tê-la trazido ao trabalho comigo
no dia seguinte, mas não importava, porque você acreditou em mim.
Não era só um conto de fadas macabro.
Era real.
Você foi comigo ao corredor da Enfermaria no horário do almoço. Eu te mostrei a sala. Não
tinha nada lá, claro, mas isso não te fez não acreditar em mim. Só te fez querer investigar mais.
Você, Dot, sempre fazia perguntas.
E ela fazia mesmo. Caso seja outra pessoa. Caso não seja ela quem está lendo. Ela era ótima
fazendo perguntas.
— E quanto ao Sammy e ao Tom? — perguntou ela, rapidamente guardando a chave mestra
no bolso depois que a devolvi a ela. Não parecia ter ligado que eu a tivesse pegado, mas talvez fosse
porque estava muito interessada no que eu havia encontrado.
— O que tem eles?
— Aquela conversa que você ouviu. Sobre a tinta. — Eu sacudi a cabeça, não tinha certeza
do que pensar. — Qual é, Buddy. Esses caras estão guardando segredos sobre tinta desse jeito
esquisito e aí você acaba com uma marca de mão manchada de tinta nas costas. Pode ser que não
tenha conexão, mas você acha mesmo que não tem? Pois eu acho que tem.
Era verdade.
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Mas tinha uma coisa que eu não contei a ela. Porque me deixava desconfortável. Eu não
confiava completamente no que tinha visto e detestava tirar conclusões precipitadas, parecer idiota.
Mas se alguém ia me escutar, esse alguém era a Dot. Então contei depois da conversa. Sobre ir até o
Sammy e ver o frasco de tinta do lado dele e a mancha preta no canto de sua boca.
— Como se estivesse com a caneta pendurada na boca? — ela perguntou.
Me senti num conflito ainda maior ao dizer a próxima parte:
— Talvez, mas acho que me lembro de ter visto o frasco mais cheio e aí, quando olhei de
novo, ele tinha menos tinta. — Não queria aquilo dizer diretamente. Fiquei preocupado que ela
fosse me olhar engraçado, mas, em vez disso, ela imediatamente perguntou:
— Você acha que ele bebeu? Mas seria tóxico, não seria?!
Ela fez a pergunta que eu não ousara fazer a mim mesmo.
— Não sei.
— Bom, já é um lugar pra começar. Primeiro o Sammy, depois o tal do Tom.
Assenti.
— Uma coisa de cada vez.
Assenti de novo.

No fim do dia, eu e Dot decidimos ir ao Departamento de Música para dar uma olhada. Foi a
primeira vez que me senti realmente a bordo de um dos seus planos, principalmente porque tinha
sido um plano que bolamos juntos. Àquele ponto, eu podia simplesmente ter fingido que nada tinha
acontecido. Tantos outros no estúdio fingiam. Isso se é que sabiam que algo estranho sequer estava
acontecendo. Mas eu não conseguia. Em parte, com certeza porque queria impressionar o Sr. Drew
e mostrar a ele que alguma coisa estava acontecendo no seu estúdio. Mas em parte por conta da
minha própria curiosidade. Minha própria necessidade.
Tinha também alguma coisa na minha amizade com a Dot, quando eu a via interagindo com
as pessoas, todas aquelas perguntas diretas que ela fazia. Me fazia imaginar por que as pessoas não
falavam mais daquele jeito. Por que as pessoas não eram tão diretas o tempo todo. A Dot me fez
começar a fazer perguntas e agora eu queria saber as respostas.
Então lá estava eu, de volta ao Departamento de Música. Dot me lançou um olhar enquanto
atravessávamos o corredor em direção à escada da Enfermaria. Como se tivéssemos um segredo.
Que tínhamos. Tentei lançar um olhar similar de volta para ela, mas meio que só franzi a testa. Não
conseguia fazer igual a ela. Tinha algo que sempre me deixava desconfortável no Departamento de
Música. Os corredores pareciam desnecessariamente escuros e vazios. Os músicos nem sempre
estavam lá gravando, então todo aquele grande espaço necessário para eles parecia assustador e
vazio o restante do tempo.
Além disso, eu nunca consegui tirar aquele meu primeiro encontro com o Sammy da cabeça.
Se é que se podia chamar aquilo de encontro. Seu corpo mergulhado em tinta. Se debatendo no chão
daquele jeito. Tinta nos ouvidos, na boca, nos olhos.
— Você está bem, Buddy? — perguntou Dot enquanto entrávamos na grande sala. O palco
estava cheio de instrumentos como sempre. Mas agora, por algum motivo, a imagem me deixou
mais inquieto. Me deu a impressão de que os músicos haviam estado lá, mas então, de repente,
simplesmente desapareceram. Do nada. Para o nada.
— Sim. — Tentei lhe abrir um sorriso reconfortante, mas me lembrei como era horrível com
sorrisos reconfortantes. — O que você acha que estamos procurando?
— Não sei. — Ela seguiu para a mesa junto à parede do outro lado.
Nunca tinha visto Sammy sentar lá, me dei conta enquanto ela começava a abrir gavetas e
examinar papéis. Até então, eu só o vira junto a seu suporte de partituras na beira da plataforma.
— Não tem muito aqui — disse ela.
— Talvez no armário de suprimentos?
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Dot se ergueu e, fechando a gaveta, assentiu.
— Boa ideia. Quer dar uma olhada enquanto eu termino por aqui? — perguntou, levando as
mãos aos quadris.
Me lembrei de tentar limpar a tinta, me lembrei do Sammy gritando comigo, me lembrei da
respiração quente e molhada no meu rosto na noite anterior.
— Não — respondi.
Dot olhou para mim por um momento. Então disse:
— Tá, deixa comigo. Veja se tem mais alguma coisa que pareça suspeita por aqui. — E saiu
marchando de volta ao corredor naquele seu passo cheio de propósito.
Fiquei ali parado admirando sua coragem. Então me dei conta:
— Dot!
Sua cabeça apareceu novamente da curva que ela tinha feito.
— Sim?
— Você não quer que eu... quer dizer... ir sozinha... — Não consegui nem me oferecer para
protegê-la, porque a expressão em seu rosto fez eu me sentir um bobo. É claro que ela ficaria bem.
Ela sempre ficava bem.
Ela sacudiu a cabeça e suspirou. E então desapareceu outra vez.
Foi só quando me virei e olhei em volta que me lembrei que ficar sozinho na Sala de Música
também não fazia eu me sentir particularmente bem.
Subi no palco com cautela e dei a volta nos instrumentos, observando seus estojos, tentando
ver se algo parecia deslocado. Mas eu não era músico. Como é que eu ia saber o que era normal e o
que não era? Só o que eu sabia era o que parecia sinistro e o que não parecia e, embora as tábuas do
palco rangessem sob mim e meus passos ecoassem de um jeito que fazia parecer que tinha alguém
na sala comigo andando exatamente na mesma velocidade que eu, nada parecia estranho.
Na verdade... tudo parecia estranho.
Eu eventualmente dei a volta até o posto de regente do Sammy. Achei que talvez ele tivesse
alguma coisa com tinta mais ao lado ou algo assim, talvez até mesmo uma gotinha derramada. Mas
só o que ele tinha eram suas notas musicais. Sabia o que eram porque ele tinha rabiscado “Notas
Musicais” na frente do livro. Era forte o bastante para ver, mesmo sendo tinta preta na capa preta.
Inclinei a bancada um pouco mais para cima e a tinta reluziu na capa. O que me intrigou. Porque
tinta normalmente não é brilhante assim. Talvez ainda estivesse molhada. Toquei na beira do “N”
com todo o cuidado. Estava tão cansado de ficar coberto de tinta, do Sammy. Da marca de mão.
Não precisava de mais. Ainda mais agora que estava usando uma das camisas do meu avô, depois
de ficar sem mais nenhuma das minhas.
Seca.
Inclinei ainda mais a bancada, mas lentamente, só para ver. Notei algo no canto de baixo.
Peguei o livro e olhei mais de perto. Estava me sentindo ousado agora. Parecia... parecia um par de
chifres do Bendy. Como a parte de cima da cabeça do Bendy, sem o círculo. Era difícil dizer. O
desenho reluziu e desapareceu em meio à luz. E parecia quase ter escorrido da capa.
Não consegui me deter, precisava ver mais.
Então abri o livro.
Dentro havia fileiras de linhas com notas musicais dentre elas. O título “Bendy e os Piratas”
estava escrito no topo. Era no que o Richie estava trabalhando lá em cima. Não havia nada ali de
incomum, exceto pelo fato de ver a música daquele jeito. Eu nunca tinha visto uma partitura antes.
Era interessante. Mas não estranho.
Virei uma página. Agora estava escrito “Canção da Alice”.
Outra. “A Dança da Gangue dos Açougueiros”.
E mais uma. “Boris e o Agito da Noite”.
Tinha esquecido que sequer estava procurando alguma coisa em geral, até que virei a página
de novo e quase derrubei o livro. A diferença espantosa entre as músicas normais e aquilo era um
soco no estômago. Chocante de verdade.
Parecia, se fosse para colocar de um jeito agradável, um monte de rabiscos. Mas era muito
mais que isso. Mais pareciam marcas de arranhão, imagens desenhadas às pressas com respingos e
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borrões de tinta, tudo jogado como se quem quer que tivesse feito aquilo fosse um maníaco. Como
se estivesse com toda a pressa do mundo. Como se tivesse que colocar as imagens no papel antes
que alguma coisa acontecesse. Eu entendia a sensação.
O que não entendia era o que estava olhando.
No meio das folhas havia um grande esboço de um símbolo que eu nunca tinha visto antes,
um círculo com uma parte cortada e com várias linhas ao redor e outro círculo em volta de tudo.
Sammy parecia ter desenhado por cima dele tantas vezes que o papel estava rasgado perto do meio.
A tinta ali brilhava como a tinta da capa, mas também estava seca.
Mas não foi isso o que me fez gelar até o osso. Ocupando toda a página do lado direito havia
o que eu só podia descrever como um desenho de um Bendy deformado. Mas ele pouco tinha em
comum com o personagem animado fofinho. Seus membros eram compridos, quase como os de um
louva-a-deus, com mãos que tinham garras, não suas luvinhas brancas e fofas. Pior ainda era seu
rosto, parcialmente obscurecido com — o que era aquilo? Sangue?
O desenho estava em preto-e-branco — era difícil dizer o que era tudo.
Só o que conseguia ver era como seus chifres de demônio agora eram muito maiores, como
seu sorriso estava cheio de dentes afiados. Seus olhos completamente ocultos atrás de uma gosma
negra gotejante.
Sangue.
Não.
Tinta?
As páginas estavam cheias de outros desenhos, coisas que eu não consegui reconhecer. E
palavras também. “Sonhos ganham vida”, como no pôster do Bendy. E também “Nos libertar”. Essa
eu não me lembrava de ter visto antes.
Tinha também mais símbolos, e tudo parecia estar escorrendo da folha. Como se Sammy os
tivesse desenhado enquanto era arrastado para longe.
Como se as imagens também estivessem sendo puxadas.
Olhei para baixo. A ilusão de que as coisas estavam escorrendo da folha era tão intensa que
não consegui evitar.
Olhei para o chão por um bom e longo momento. Nada. Claro que nada. Só aquele piso de
madeira velho, coberto de riscos. Ergui o olhar e sacudi a cabeça, aproximando-me para colocar o
livro de volta na bancada. E foi quando vi o símbolo estampado nela. Mais que só um. E então só
círculos e linhas, desconexos, mas em todo lugar, cobrindo a madeira por inteiro. Cobrindo, eu vi
quando me abaixei para olhar, até lá embaixo.
Me ergui novamente. E aí notei também um pequeno esboço do Bendy. E as palavras “Ele
vai”. Coloquei o livro com todo o cuidado de volta na bancada, onde o havia encontrado.
“Ele vai”.
E se alinhava perfeitamente com “Nos libertar”.
— Buddy, preciso te mostrar uma coisa.
Eu quase pulei pra fora do corpo. Me virei e olhei para Dot, meus olhos esbugalhados. O
medo corria pelas minhas veias e ela podia ver. Sabia que podia ver.
— Que foi? — perguntou.
Não consegui falar, só apontei para o livro. Dot deu a volta por mim para dar uma olhada.
Houve um momento silencioso em que eu a observei passar o dedo delicadamente pelas imagens, se
curvar, examinar o papel com toda a atenção.
— O que você tá tramando, Sammy? — ela disse a si mesma.
— Estranho, né? — Finalmente consegui dizer.
— Mais que estranho — respondeu Dot, erguendo-se e desviando o olhar de volta para mim.
— Vem comigo.
Assenti e a segui como sempre fazia quando ela dizia isso. Seguimos pelo corredor e fomos
ao armário de suprimentos. Quando vi a porta de madeira, meu estômago apertou como se alguém
tivesse enfiado a mão pela minha garganta e o espremido com tudo. A simples maçaneta de bronze.
Olhei para baixo. Ainda tinha tinta preta derramada no corredor, onde eu não conseguira limpar. A
mão dentro de mim espremeu com mais força.
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— Está tudo bem, Buddy — disse Dot. — É seguro. Mas você precisa ver isso.
Ela abriu a porta.
E nós olhamos.
Diante de nós, do chão cheio de tinta até o teto, cobrindo todas as prateleiras pintadas de
preto, havia frascos.
Frascos de tinta, o vidro completamente limpo. Frascos vazios.
— Ei! O que estão fazendo aqui?
Eu nunca tinha visto a Dot se virar de surpresa antes. Nada nunca parecia perturbá-la, mas
dessa vez perturbou, e ela rapidamente fechou a porta do armário e se virou. Jacob vinha marchando
pelo corredor em nossa direção a passos largos. Não parecia bravo, mas tinha um olhar intenso no
rosto. Talvez até de preocupação.
— Tentando achar o Sammy — disse, quando Dot não respondeu.
— Certo, bem, Buddy, precisam de você no saguão — disse ele, sem parecer ligar muito
para a resposta.
— De mim?
— Ah, sim — disse Jacob.
— Por quê?
— Eu... — Ele parou. Parecia desconfortável. O que não era bem o estado normal do Jacob.
Na verdade, eu nunca tinha visto ninguém tão confortável consigo mesmo. Aquela mudança nele
também me deixou desconfortável.
— O que foi?
— Acho que é o seu avô — disse ele, levando a mão para trás da cabeça e coçando a nuca.
A mão que me espremia o estômago soltou no mesmo instante, mas em vez de me sentir
aliviado, senti que estava respirando facilmente demais agora. Vi estrelas brilhantes nos cantos da
minha visão antes de sacudir a cabeça para tirá-las de lá e sair correndo imediatamente em direção
ao elevador. Pude ouvir a Dot e o Jacob vindo atrás de mim.
Uma vez lá dentro:
— Tem certeza? — perguntei.
— Não — disse Jacob. — Mas ele é velho, estava perguntando de você e... bom, ele parece
um pouco com você.
Não queria que ele entrasse muito no assunto. Não com todos os insultos que eu costumava
receber quando criança.
— Certo — foi tudo o que disse.
Não me preparei para a parada súbita e acabei trincando os dentes de novo. A primeira vez
em semanas que isso me acontecia. Estava irritado comigo mesmo. Mas não tinha tempo para estar.
Corri pelo corredor e cheguei ao saguão.
— Buddy! — disse uma voz alegre, alta e muito familiar.
Lá estava ele, sendo segurado pela dobra do cotovelo por Wally, que não parecia exatamente
nenhum tipo de segurança assustador. Estava até segurando a vassoura com a outra mão.
— Vô, o que está fazendo aqui? — perguntei, correndo até ele. — Pode soltá-lo agora. O
que acha que ele vai fazer, tomar o lugar?
Wally sacudiu a cabeça.
— Nunca se sabe — disse, dando de ombros.
— Está bem? — perguntou o vô, olhando bem de perto para mim. Examinando meu rosto
atenciosamente.
— Claro, sim, estou ótimo. Olha, você não pode ficar aqui. Afinal, como foi que...? — Senti
a Dot do meu lado.
— Buddy — sussurrou ela.
— Agora não, Dot.
— Buddy, ele está aqui.
— Quem...? — Ergui o olhar e parado ao lado da Sra. Lambert junto à mesa da frente estava
o Sr. Drew. Estava recostado na mesa, os braços cruzados frente ao peito. A expressão em seu rosto
era ilegível. — Sr. Drew! — disse, assustado.
74 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— O que é tudo isso? — perguntou ele. Abriu então um sorriu, mas não tinha certeza se era
um sorriso feliz.
— Não é nada, é só o meu avô... — respondi, a voz baixa. Foi a minha vez de pegá-lo pelo
braço. Mas quando o fiz, o vô se soltou da minha mão e foi até o pôster do Bendy na parede. Olhou
para ele. Então se aproximou para olhar ainda mais de perto.
— O que ele está fazendo? — perguntou Dot.
— Está... olhando. É assim que ele olha.
O vô se voltou para mim e apontou para o pôster.
— Cowboy! — disse ele.
Respirei fundo. Não, não. Tinha que tirá-lo dali rápido. Antes que de alguma forma deixasse
escapar que ele era o verdadeiro artista. De alguma forma. Com seu vocabulário de três palavras.
Eu rapidamente fui até ele e o segurei pelo cotovelo.
— Vamos, vô, hora de ir para casa.
O vô olhou para o pôster outra vez e então para o Sr. Drew. Depois olhou de volta para mim.
— Chefe?
Assenti.
O Sr. Drew ouviu isso e, afastando-se da mesa devagar, veio até nós, subitamente com um
largo sorriso no rosto.
— Olá, senhor. Eu sou Joey Drew. É um prazer conhecê-lo. Seu neto é muito talentoso. —
Ele ergueu a mão para apertar a dele.
Meu avô olhou para a mão dele por um momento e então a segurou. Mas não a apertou. Ele
levou a mão até o rosto e a olhou de perto. Ele a virou e olhou o interior da palma do Sr. Drew. O
Sr. Drew olhou para mim com um sorriso intrigado. Sorri de volta, esperando que fosse a escolha
certa. O que meu avô estava fazendo?
Finalmente, ele ergueu o olhar para o Sr. Drew.
— Chefe — disse outra vez. O Sr. Drew assentiu. E nesse instante, o vô finalmente apertou
sua mão. Então a soltou, quase como se tivesse esquecido que a estava segurando, e se virou para
mim novamente.
— É um prazer conhecer sua família, Buddy, mas não fazemos isso aqui. Está na hora de ele
ir para casa — disse o Sr. Drew. Ele deu meia-volta e foi embora, me fazendo me sentir inquieto de
novo. Como se algo tivesse dado errado. Como se eu estivesse encrencado.
— É melhor levá-lo para casa — disse Jacob, observando enquanto o Sr. Drew partia. —
Antes que a Sra. Lambert venha te perturbar.
— É, vai lá, Buddy — disse Dot.
— Mas e quanto...? — Parei. Eu obviamente não podia dizer o que queria dizer. Não na
frente de todo mundo. Mas nós só tínhamos começado a nossa investigação.
— Temos tempo — respondeu Dot.
Não achava que tínhamos, mas por outro lado, que escolha eu tinha?
— Vem, vô, vamos pra casa — disse. Podia contar o que aconteceu para a mãe, pedir que
ela explicasse por que aquilo não era algo que as pessoas faziam em Nova York. Sair aparecendo
nos lugares. Mas claro, isso era meio que a especialidade dele, não era? Aparecer de repente.
O vô assentiu com um sorriso e então se virou para olhar para todos.
— Bom conhecendo a vocês — disse ele.
— Também foi um prazer conhecê-lo — disse Dot.
Ele sorriu para ela, então olhou para mim e me deu uma piscadela. Ah, não, velho, não. Não
era assim. Mas senti meu rosto ficar quente.
Eu o escoltei para fora do prédio, em meio à rua cheia de gente. Ele parou e olhou para o
tráfego por um momento e então ergueu o olhar para os prédios que se assomavam à nossa volta.
Também ergui o olhar.
— Por aqui — disse ele. Ele virou para a esquerda, que não era o caminho certo. Era norte.
— Não, vô — disse, mas, de repente, ele estava andando rápido. O que me surpreendeu,
porque ele normalmente demorava para ir a qualquer lugar. Imaginava que fosse por conta do quão

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frágil ele era. Mas agora eu não fazia ideia. Porque aquele homem era rápido. Não tive escolha
senão segui-lo e, quando o alcancei, tentai pará-lo.
Mas ele não parou.
Ele virou à direita. Não fazia ideia do porquê e não tinha noção de qual era seu plano. Se ele
sequer tinha um plano. Nós atravessamos a Broadway, com todas aquelas luzes piscando e buzinas
buzinando, e continuamos andando em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, mas que não
devia ter sido mais que dez minutos, até que paramos. Por algum motivo.
O vô sorriu.
— Aqui — disse ele, apontando. Ele gostava de apontar.
Olhei para a fachada diante de nós.
Era impressionante como ela se sobressaía a todos os prédios em volta. Muito moderna. Não
tinha outra descrição para ela. Um retângulo sólido feito de retângulos de vidro dentro de retângulos
de concreto. Não consegui decidir se era bonita. Só sabia que era bem diferente.
— Onde estamos? — perguntei.
O vô olhou para mim como se eu fosse doido. Ele sacudiu a cabeça e me levou para dentro
do salão silencioso.
— Arte — disse ele, a voz baixa, enquanto nossos passos ecoavam no chão de concreto.
Arte?
Finalmente, meus olhos pousaram numa placa. O Museu de Arte Moderna.
Ah.
Arte.
Eu não tinha tempo para arte.
— Vamos, vô — disse. Minha voz estava baixa, mas soou alta e clara. Olhei para a mulher
sentada atrás da mesa de informações.
Mas ele não parou de andar e eu não tinha poder para detê-lo. Parecia que ninguém tinha, já
que ninguém disse uma única palavra, mesmo eu achando que tínhamos que pagar para entrar. Nós
simplesmente seguimos em frente.
Estava me sentindo cada vez mais inquieto. Esse não era o plano. Será que ele não entendia
que coisas sérias estavam acontecendo? Tinha que entender, senão não teria ido ver como eu estava.
Por causa da noite anterior. Por causa da marca de mão. Mas ainda assim...
Nós finalmente paramos e ele se sentou num banco em frente a um quadro. Me sentei junto a
ele. Diante de nós havia uma tela. Parecia a margem de um rio ou algo assim. Era estranha. Era o
que era, mas era também...
— Pontos? — perguntei.
— Para fazer arte, precisa fazer coisas novas — disse o vô sem desviar o olhar do quadro. —
Ver mundo de jeito diferente. Entende?
Assenti. Acho que sim. Talvez?
Mas não sabia o que aquilo tinha a ver com desenhos animados.
— Não pintura bonita. Pintura grande. História. Ideia. Mente. Alma. — Ele estava tentando
ao máximo se comunicar. E eu escutei. É claro que escutei. Me senti idiota. Não só pelo quanto eu
não sabia sobre arte ou mesmo sobre o mundo, mas pelo quanto não sabia sobre o vô. Não só da
vida dele na Polônia e tudo mais, mas também sobre como ele pensava. E o que ele pensava.
— Vô, eu tenho que ir.
— Chefe — disse ele, assentindo.
— Sim.
— Tinta.
— O quê?
Ele pegou minha mão e apontou para a tinta no meu dedo. Ele ergueu sua mão e me mostrou
o exato mesmo ponto na dele. Por estar me ajudando, imaginei.
— Tinta — disse ele.
Assenti.
— Sim. Ainda estou treinando.
Então ele pôs sua mão nas minhas costas. Abriu bem os dedos.
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— Tinta — disse outra vez.
Minha respiração ficou mais fina, sentindo-o tocar no mesmo lugar que na noite anterior.
Sentindo sua mão me pressionar as costas. Ele abriu um breve sorriso e afastou sua mão, erguendo-
a diante de mim.
— Não essa mão, mão chefe — explicou.
— Certo — disse, sem entender muito bem.
— Tinta.
Assenti. Claro, sim, o Sr. Drew também tinha tinta nas mãos. Ele também era um artista. Ou
pelo menos... era o que tinha insinuado quando o conheci.
Quer dizer, ele tinha inventado o Bendy, não tinha?
Não tinha?
— Tinta chefe, mesma tinta — disse o vô.
— Mesma tinta? — Mesma tinta do quê? Da marca de mão? Não, eu sabia que aquilo
definitivamente não era o Sr. Drew.
— Tinta má.
Olhei para ele. Queria que ele explicasse. Precisava entender. Alguns dias atrás, aquilo tudo
seria loucura para mim. Teria olhado para ele como se fosse só um velho maluco.
Mas não depois do que tinha acontecido na noite anterior.
Não depois do caderno do Sammy.
— Tinta má — repeti.
O vô abaixou sua mão e assentiu solenemente.
Tinta má.

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CAPÍTULO 13
Não vi a Dot pelo resto do dia. Quando
voltei ao escritório, faltava umas poucas horas até a saída. E eu tinha trabalho a fazer, de verdade.
Fiquei até tarde, mas não tão tarde quanto na noite anterior. Não ia mais ficar no estúdio sozinho,
isso era certeza. Quando vi Richie se recostar na cadeira e estalar os punhos por cima da cabeça,
soube que estava na hora de recolher minhas coisas também. E fiquei feliz em fazê-lo.
Quando cheguei em casa, o vô estava dormindo e tive que me esgueirar por ele para dar uma
olhada nos nossos desenhos. Achei que talvez estivesse na hora de tentar um cavalo. Talvez. Fiquei
parado de frente para a cômoda, me curvei um pouco até sentir o pescoço doer e copiei um cavalo
de uma pintura, primeiro em forma de círculos e depois desenhando lentamente por cima deles.
Transformando-os em feições de verdade.
Meio que funcionou.
Ou pelo menos funcionou melhor que o velho-cavalo-gordo-em-forma-de-cachorro-burrico
que criei na primeira tentativa. Mas ainda parecia que eu tinha um longo caminho pela frente, mais
que nunca. Especialmente depois da visita à galeria de arte. Quanto mais eu aprendia, mais me dava
conta do quanto não sabia.
Sentia praticamente o mesmo com relação ao estúdio.
Com relação à tinta.

No dia seguinte, eu estava exausto — mal conseguira dormir. Os pensamentos não pareciam
querer me deixar em paz e eu odiava isso. Odiava pensar demais. Quanto mais eu pensava, mais
embaralhados os pensamentos ficavam. Meio que como quanto mais eu olhava para os quadros no
museu, menos eu conseguia ver da pintura.
Não conseguia mais ver o contexto geral.
Fiquei grato por não ter muitas entregas a fazer pelo estúdio. Quase me pareceu que a Sra.
Lambert podia ver como estava indisposto. Como se estivesse me dando uma folga. Decidi praticar
desenhando a Alice naquele dia. Porque nunca nem tinha tentado. E ela era bonitinha. Era divertido
desenhá-la.
Eu precisava de um pouco de diversão.
E como precisava.
Eu fui o primeiro a ver o Sammy. Ele veio às pressas do corredor que ficava junto à minha
mesa e eu imediatamente passei de exausto para aterrorizado. Imaginei que tivesse descoberto que
eu a Dot o estávamos espionando. Que soubesse que tínhamos visto os desenhos estranhos em sua
música, os frascos vazios em seu armário. Que estivesse vindo para arrumar briga. E eu não sabia o
que faria nesse caso porque, pra começar, não achava que brigar fosse considerado profissional ou
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algo que as pessoas fizessem no centro, mas também porque fui um péssimo lutador a vida toda. Só
tinha conseguido vencer umas desavenças aqui e ali porque era difícil me derrubar.
Em vez disso, ele passou direto por mim, sequer parecendo me notar sentado no meu canto
escuro, e então disparou em direção à sala mais clara do Departamento de Artes. A Sra. Lamber se
levantou da cadeira devagar, sua testa franzida. Ela podia ler a fúria em seu rosto. Não era difícil de
ver. Provavelmente dava pra notar mesmo do topo do Empire State Building.
— Sr. Lawrence — disse ela, meticulosa.
— Abby — respondeu ele.
Ela mordeu o lábio inferior, mas não disse nada. Me lembrei do Sammy chamando o homem
da Gent de “Tom” em vez de “Sr. Connor” e me perguntei se era um hábito dele. Se era algo que
fazia com todo mundo. Ou talvez... fosse o que Jacob dissera no bar sobre como mulheres e negros
não recebiam o mesmo respeito, sobre como precisavam trabalhar duas vezes mais duro. Pensei a
respeito enquanto me virava na cadeira para olhar o que acontecia depois.
— Como posso ajudá-lo?
— Cadê a minha tinta?
Ajeitei minha postura no assento.
— Sua tinta? — perguntou a Sra. Lambert.
— A tinta. Aonde ela foi?
A expressão da Sra. Lambert não parecia mais de desconfiança, agora parecia preocupada.
— Está pedindo um pouco da tinta do Departamento de Artes emprestada? Podia só falar,
Sr. Lawrence. Não precisa agir de forma tão autoritária.
Sammy bufou alto e enfiou as mãos nos bolsos. Ele sacudiu a cabeça violentamente e, após
pressionar os lábios um contra o outro algumas vezes, finalmente disse:
— A tinta do seu armário de suprimentos.
— Nós não guardamos tinta no armário de suprimentos.
Tá, isso era estranho. Nós não guardávamos tinta no armário de suprimentos? Então o que o
Departamento de Música fazia com um armário cheio dela quando as pessoas que realmente
precisavam de tinta, os artistas, as guardavam a sete chaves? Mas eu não achava que fazia sentido
tocar no assunto agora. Certamente não queria lembrá-la de toda a história do roubo. Não depois de
conseguir uma segunda chance. Além do mais, talvez ela estivesse mentindo para manter o Sammy
longe das nossas coisas. Ele tinha mesmo um lance estranho com a tinta. Claramente.
Sammy parecia a ponto de dizer alguma coisa, mas não disse. Era como se estivesse tendo
dificuldade para falar. Um estranho murmúrio veio dele, como se as palavras quisessem sair, mas
ele as estivesse contendo.
— Olha, nós guardamos nossa tinta aqui, embaixo da minha mesa, no cofre. Posso lhe dar
um frasco, se quiser. Mas você precisa se acalmar. Não tem por que se estressar tanto com isso.
Sammy sacudiu a cabeça, o pescoço tão rígido que seu corpo todo começou a virar de um
lado para o outro freneticamente. Então ele passou por mim às pressas e disparou pelo corredor
escuro. E desapareceu.
— Mas que diabos foi isso? — perguntou a Sra. Lambert.
Jacob se levantou, seus olhos arregalados e sobrancelhas erguidas.
— O sujeito ficou lé-lé. Quer que eu vá dar uma olhada no armário de suprimentos?
A Sra. Lambert assentiu.
— Sim, por favor. Obrigada.
Jacob lhe lançou um sorriso brilhante e então passou por mim. Ele então também me lançou
um e por um momento me peguei pensando quão impressionante era como ele conseguia abrir um
sorriso tão grande para todos e ainda parecia real. Como ele estava genuinamente feliz em ver você.
Os meus sorrisos só faziam parecer que eu estava com algum tipo de dor. Ou gases.
Eu o observei atravessar o corredor e segurei o fôlego. Não o fiz de propósito e não sabia
nem por que o estava fazendo. Não sabia o que queria que ele encontrasse. De toda forma, imaginei,
era estranho.
Ele voltou bem depressa e sorriu enquanto voltava a se sentar em sua mesa.
— Não, nada. Deu a louca no sujeito.
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Senti um forte aperto no estômago. Não entendia o que estava acontecendo. Por que não
tinha tinta no nosso armário? Por que estava tudo no Departamento de Música?
— Buddy — disse a Sra. Lambert, me chamando. Me levantei um pouco rápido demais, e
meu pé escorregou embaixo de mim enquanto eu me forçava a não cair.
— Bela agilidade — disse Richie, rindo.
Assenti, mas não disse nada.
— Pegue aquele rascunho do Bendy Cowboy enquanto vem aqui — disse a Sra. Lambert.
Assenti de novo e, levando a mão à mesa, peguei o pedaço de papel enquanto me apressava
em sua direção.
— Então, vamos prosseguir com a ideia do Bendy Cowboy e a Redação gostaria de alguns
rascunhos de exemplo para inspiração. Acha que pode dar conta? — perguntou ela. Havia um brilho
maroto em seu olhar que me fez pensar que talvez ela realmente estivesse orgulhosa de mim. Ou
empolgada. Eu com certeza estava empolgado por mim.
— Claro — disse o mais calmamente que pude e lhe entreguei o papel.
Ela o examinou e assentiu.
— Isso, algo assim, mas certifique-se de centralizar a imagem. Precisamos do cavalo inteiro,
não pode faltar os cascos nem nada. Decidimos quanto queremos mostrar depois. Tudo bem? — Ela
me passou o papel de volta.
Assenti, mas estava um pouco confuso.
— Então me dê talvez uma meia dúzia de ideias diferentes para o Bendy Cowboy.
Assenti de novo.
— Isso é tudo. — Ela me dispensou e eu voltei à minha mesa.
Agora eu estava nervoso. Tinha praticado bastante no curto período desde que o meu avô
desenhara o Bendy Cowboy pela primeira vez. Mas seis Bendys em momentos diferentes? Será que
conseguia fazer isso?
E o que ela queria dizer com “o cavalo inteiro”? Meu avô tinha esquecido alguma parte?
Coloquei o desenho na minha mesa e olhei para ele. Estranho. Ela estava certa. O desenho
estava bem na ponta de baixo, as pernas cortadas. Não fazia sentido. Eu estava lembrando errado?
Achava com toda certeza que ele tinha desenhado os pés. Achava com toda certeza que ele estava
bem no meio da folha, como um quadro numa série de animação.
É incrível o quão frequentemente nós supomos que a nossa mente está nos pregando peças.
Que quando coisas estranhas e impossíveis acontecem, nós de alguma forma devemos estar errados.
Mas as coisas às vezes são estranhas e impossíveis.
E nós não fazemos a conexão até que seja tarde demais.
Eu não fiz a conexão naquele momento. Acabei fazendo depois e não sei se devia contar isso
agora ou esperar até o momento que aconteceu. De que adianta esperar?
Não. Não posso sair pulando demais. Se der um salto na história, posso acabar esquecendo
de voltar. As memórias podem mudar. Minha preocupação é de que eu já as tenha mudado. Eu fui
mesmo ao museu de arte e vi a pintura de Seurat com o meu avô ou conversamos sobre esse quadro
na cozinha, vendo-o em um de seus livros?
Sei que ele foi me ver naquele dia e sei que estava preocupado. Mas talvez ele simplesmente
tenha ido para casa depois. Talvez isso faça mais sentido.
Talvez o cavalo não estivesse escorrendo da folha.
Talvez eu tivesse pensado no caderno do Sammy naquele momento, não depois. Lembrado
de como as figuras nele também pareciam estar escorrendo.
Talvez eu tenha feito a conexão então.
Nem tudo continua fazendo sentido para mim.
Mas ainda me lembro disso. Me lembro de estar sentado, olhando para frente, me sentindo
assustado e confuso e então ouvindo:
— Eu nunca vou me cansar desse cowboy, me faz sorrir toda vez!
Me virei um pouco rápido demais diante da voz, tencionando o pescoço para ver o Sr. Drew
pairando sobre mim.
— Sr. Drew! — disse depressa e me levantei.
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— Olá, filho. Animado com o Bendy Cowboy? — perguntou ele com um sorriso no rosto.
— Com toda certeza, senhor. Obrigado.
— Uma boa ideia é uma boa ideia. — Ele continuou sorrindo para mim e eu não sabia se
devia dizer algo de volta porque, bem, não havia muito a dizer, exceto...
— Obrigado. Mas na verdade veio tudo do roteiro da Dot...
— Então! Você trabalhou para o tal Sr. Schwartz por um tempo. Sua mãe fazia trenos para
ele, você mencionou — disse o Sr. Drew, recostando-se na parede junto à minha mesa.
— Sim.
...O quê?
— Então você entende de ternos — disse ele. Não era uma pergunta.
Nunca tinha pensado nisso desse jeito. Sentia que conhecia muito mais as bolsas nas quais
os ternos eram carregados. Mas acho que já tinha visto a mãe costurar ternos o suficiente para ter
algum tipo de conhecimento.
— Claro — respondi. Parecia a coisa certa a dizer. Não era exatamente um sim. Não era
exatamente um não.
— Ótimo, venha comigo — disse ele, juntando as mãos.
Olhei para a Sra. Lambert, que nos observava atentamente. Ela assentiu devagar, apesar do
olhar de reprovação, dando sua permissão, mesmo não tendo como eu dizer não. Ela também sabia
disso. É claro.
— Sim, senhor — disse.
Foi uma sensação estranha a de segui-lo até o elevador com todo mundo nos olhando. Jacob
parecia estar a ponto de cair na gargalhada e imaginei que provavelmente tinha algo a ver com a
expressão no meu rosto. Sabia que estava atônito. Me sentia atônito.
— Seu avô está bem? — perguntou o Sr. Drew enquanto seguíamos pelo corredor.
— Ah, sim, está ótimo.
— Família pode ser difícil — disse ele com uma risada.
— Sim, quer dizer, é diferente. Tê-lo por aqui agora.
— Ele veio morar com você recentemente? — perguntou o Sr. Drew.
Assenti.
— Ah, sim, obrigações. Eu entendo. Mas não as deixe segurá-lo. Os mais velhos o fazem
sentir-se culpado, mas eles viveram seus sonhos, não viveram? Por que você não deveria?
Pensei a respeito.
— Sim, ele viveu. — Tentei me lembrar do que a mãe me dissera anos antes. — Meus pais
tentaram convencê-lo a vir para os Estados Unidos com eles quando eu nasci. Ele recusou. Tinha
suas próprias coisas a fazer, eu acho.
O Sr. Drew tamborilou os dedos na parede do elevador.
— Exatamente. — Ele parou por um momento e ficamos escutando o som engasgado das
correntes nos levando para baixo. — Bom, ele parece um bom velhinho. Só não podemos deixá-lo
interromper o expediente daquele jeito de novo.
Ele riu. Como se fosse uma piada.
Mas era sério.
— Sim, claro. Ele só estava preocupado comigo — disse. Então estremeci. Porque é claro
que a pergunta seguinte seria:
— Preocupado?
Droga.
Fiquei parado, pensando a fundo.
Estava pronto para contar alguma mentira, mas parando para pensar, por que simplesmente
não contava ao Sr. Drew o que tinha visto? Ele gostaria disso. Talvez.
— É pessoal — acabei dizendo. Soou tão idiota.
— Eu entendo, garoto, eu entendo. Mas estou sempre aqui — disse ele, pondo a mão no meu
ombro. — Se precisar conversar sobre alguma coisa, a porta do meu escritório está sempre aberta.
De repente, senti que talvez eu quisesse conversar com ele. Sobre minhas ambições e talvez
sobre o que eu podia fazer como parte da companhia no futuro. Mas não só sobre isso. Também
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queria compartilhar coisas sobre o meu avô e como eu me sentia confuso com como a minha mãe
simplesmente o jogou em cima de nós. E sobre como não era justo ela ter que trabalhar tão duro. E
como eu agora era forçado a vestir as camisas dele porque não conseguia pagar por mais nada. Me
sentia culpado demais para gastar mais dinheiro comigo mesmo. Ou pelo menos por enquanto.
Não disse nada disso, claro. Apenas o segui pelo saguão e entrei no carro que estava à nossa
espera. O interior era extremamente limpo e cheirava a couro. Os assentos eram macios ao toque.
Tinha também tanto espaço que eu quase conseguia esticar minhas pernas por inteiro.
— Belo carro, não é? — disse o Sr. Drew, sorrindo para mim.
— Belíssimo carro, senhor — disse.
Ele me deu uma piscadela e então se recostou no assento, virando a cabeça para olhar pela
janela. Eu fiz o mesmo e observei enquanto minha cidade passava por mim de uma forma nova e
singular. Não tinha entrado em muitos carros na vida. Claro, nos fundos da caminhonete do Zip por
uma quadra ou duas e até me segurando no para-choque do velho calhambeque surrado do Nick. E
pegava um táxi de vez em quando, mas não muitas vezes e sempre às custas de outra pessoa. Então
ver o mundo do meio da rua, fazer parte do tráfego pra variar em vez de ficar desviando dele, fez eu
me sentir grande, sabe? Fez eu me sentir bem.
Seguimos até a Quinta Avenida e paramos na frente de uma loja do outro lado do parque.
Desembarcamos em meio à calçada. Uma mulher com um grande chapéu quase esbarrou em mim,
seu cachorrinho branco e felpudo quase esmagado embaixo dos meus pezões de palhaço.
— O que acha? — perguntou o Sr. Drew enquanto olhávamos para a pequena e luxuosa loja
de ternos. Na janela havia um terno risca de giz perfeitamente alinhado, com mocassins pretos e
brilhantes que reluziam ao sol da tarde.
— Acho que não faz o menor sentido o senhor ter escolhido o Sr. Schwartz — respondi.
O Sr. Drew riu e me deu um tapinha nas costas.
— Vamos entrar, Buddy — disse ele.
Entramos. Estava escuro, mas não vi uma única partícula de poeira flutuando nos fachos de
luz. Em vez disso, tudo brilhava, mesmo as prateleiras de madeira. Havia um brilho em tudo.
Um homem calvo com pequenos olhos redondos num terno azul-marinho simples veio até
nós. Tinha uma fita métrica envolta em seu pescoço e ficava tão bem nele que imaginei que talvez
aquela fosse a nova moda que as pessoas estavam usando nas ruas.
— Sr. Drew, entre — disse. — Vamos ver como este smoking fica no senhor.
Foi aí que eu entendi melhor. O Sr. Schwartz não fazia trajes de luxo. Não tinha clientes o
suficiente para isso.
Esperei enquanto o Sr. Drew se trocava para pôr um smoking completamente negro e fiquei
maravilhado com quão belo e bem-acabado ele era. Ele ficou ali parado de braços abertos enquanto
o alfaiate o media com a fita, fazendo pequenas anotações em seu bloco enquanto isso.
— Tirando as medidas de um homem — disse o Sr. Drew, em meio a uma risada.
— Sempre, Sr. Drew — respondeu o alfaiate.
— Aprendeu alguma coisa?
— Algumas pessoas têm braços bastante compridos — respondeu o alfaiate.
O Sr. Drew deu uma grande gargalhada frente a isso. Então se virou para mim.
— Como está, Buddy?
— Muito bom — disse. Senti uma pontada nas entranhas, sentado ali com a camisa do meu
avô que coçava ao toque. E com os calções com o buraco costurado no joelho.
— Vamos dar uma festa, o estúdio, quero dizer. Uma grande festa de gala. Cobertura de
hotel. Dançarinos. Tudo incluso.
— Parece ótimo — disse. Porque parecia.
— Tem que estar bem apresentado. Tem que fazer eles pensarem... — Ele fez uma pausa. —
Tem que fazer eles saberem, Buddy. Saberem que não estamos de brincadeira. Expansão em todos
os sentidos.
— O teatro — disse, me lembrando.
O Sr. Drew olhou para mim e assentiu.
— Exatamente.
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— Então o estúdio está indo bem — disse, sentindo-me aliviado.
O Sr. Drew me olhou meio engraçado.
— O que quer dizer com isso?
— Ah, bom, você sabe. As pessoas têm dito que, bom... você sabe... — Parei de falar porque
a expressão engraçada tinha se tornado algo menos engraçado. Mais severo.
— Quem tem dito?
Olhei para o alfaiate, que tinha ido até o balcão por um momento para riscar alguma coisa
em seu bloco. Seus olhos se ergueram em minha direção e então voltaram a se abaixar.
— Hã, ninguém em específico. É que quando eu fui pego pegando as coisas do armário, me
foi dito que não podíamos arcar com os custos de desperdiçar suprimentos e... bom... você sabe...
— A Sra. Lambert? Bom, sim, ela é uma boa funcionária, mas é uma mulher, Buddy —
disse o Sr. Drew, olhando para frente e inclinando o pescoço para o lado para estalá-lo.
— O que quer dizer?
— Quer dizer que elas nem sempre entendem de negócios.
Não tinha certeza se eu acreditava nisso. A mãe era muito boa com dinheiro e ela trabalhava
duro. E a Dot parecia saber tudo o que acontecia no estúdio. Às vezes até mais do que o próprio Sr.
Drew parecia saber.
— Olha, eis aqui a verdade, garoto — continuou o Sr. Drew. Estava olhando para si mesmo
no espelho agora e quase parecia estar falando com seu reflexo. — Sempre haverá pessoas que
tentarão derrubá-lo. Talvez seja sabotagem, o que acaba sendo mais fácil, porque você consegue ver
bem ali, diante dos olhos. Talvez sejam burburinhos e fofocas. O pior é a traição, Henry, traição é o
pior. Quando você acha que alguém entende o plano, quando acha que alguém faz parte do time.
Quando você acolhe uma pessoa e divide com ela todas as suas visões para o futuro. É como
compartilhar uma parte da sua alma, garoto.
— Visão é importante — respondi, lembrando-me daquela vez na plataforma do teatro. Mas
não conseguia ignorar a estranheza de ter sido chamado de “Henry”. As pessoas cometiam deslizes
o tempo todo. Quer dizer, caramba, mesmo eu confundia os nomes dos meus amigos do bairro e os
conhecia desde que tinha nascido. Mas aquele nome... o nome talhado na minha mesa. Aquilo me
assustou um pouco.
O Sr. Drew se voltou para mim. Era um olhar extremamente profundos. Olhando através dos
meus olhos, nem mesmo dentro deles.
— Exatamente, você entende, com certeza. — Ele desceu da pequena plataforma sobre a
qual estava parado e veio até mim. — Buddy, você virá a essa festa.
— Virei?
— Estou te convidando. Você precisa ver o que estamos fazendo. Precisa fazer parte disso.
Eu queria fazer e estava empolgado em fazer. Não sabia se precisava fazer, mas podia dizer
que era totalmente a favor.
— Sabe do que mais você precisa? — perguntou o Sr. Drew.
Sacudi a cabeça. Eu tinha uma lista de necessidades na vida: dinheiro, segurança, comida.
Mas não achava que era disso que o Sr. Drew estava falando.
O Sr. Drew me abriu um sorriso.
— Você precisa de um smoking.

Eu nunca coubera num terno antes. Bom, isso não era inteiramente verdade. A mãe sempre
soltava as bainhas e tinha um jeito mágico de estender a vida útil de todas as minhas roupas, me
fazendo ficar lá parado feito um manequim numa vitrine. Mas eu nunca tive um smoking antes e
com certeza nunca tive um de uma alfaiataria do Upper East Side. O smoking não era feito do zero
como o do Sr. Drew. Era um que por algum motivo tinha sido devolvido ao alfaiate, um que ele
estava revendendo. Então ele soltou a bainha das calças, o que sempre acontecia comigo, e apertou
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um pouco a cintura, tudo tão rápido que eu e o Sr. Drew mal tivemos que esperar até que ele me
entregasse uma bolsa preta chique com um cabide brotando do topo.
Estava acostumado a carregar esse tipo de bolsa para outras pessoas. Mas aquela era minha.
E isso fazia toda a diferença.
— O que acha, garoto? — perguntou o Sr. Drew enquanto voltávamos para seu carro.
— Acho que é incrível, obrigado, senhor. — Ainda estava em choque com aquilo tudo.
— Não foi nada — disse o Sr. Drew com um aceno de sua mão. — E então, garoto, onde
você mora?
Não soube o que dizer naquele momento. Não que eu não soubesse a resposta, era só que...
— Ei, Buddy — disse ele, pousando uma mão sobre o meu ombro. — Eu sei como é. Não
precisa ter vergonha.
Olhei para ele. Era difícil não ter. Não era só por ter crescido no meu bairro e ser pobre. Isso
já era ruim o suficiente. Era morar num apartamento de cortiço que eu dividia com a minha mãe e
avô. Onde todos os apartamentos do meu andar e do debaixo dividiam um único banheiro pequeno.
Onde às vezes a água era cortada por algum motivo aleatório e a luz zumbia alto demais.
Como eu poderia me orgulhar disso?
— No Lower East Side — disse.
— Ótimo! — Ele se inclinou para frente para falar com o motorista e eu me recostei no meu
assento, querendo desaparecer em meio a ele.
Nós logo partimos e o Sr. Drew começou a falar sobre como Nova York era a maior cidade
do mundo, como Los Angeles não tinha nada do que estávamos fazendo ali com animação, como os
atores eram muito melhores e como ele amava as estações e odiava palmeiras. E eu simplesmente
não podia concordar ou descordar porque nunca tinha deixado a cidade e, ainda que tivesse, meu
estômago estava dando um nó atrás do outro à medida que nos aproximávamos do meu bairro.
Onde eventualmente chegamos. Eu odiava o quanto ele era feio. Quão altos eram os prédios.
Como pareciam que podiam cair um por cima do outro. As roupas lavadas penduradas nas janelas,
as barracas de comida ao longo das ruas estreitas. E as pessoas. Tantas pessoas gritando umas com
as outras. Mesmo que não estivessem bravas. Só o barulho, o calor e aquele cheiro. Aquele cheiro
que eu tinha contado antes. De mijo. E vômito. E suor.
— Qual é a sua rua, Buddy? — perguntou o Sr. Drew.
— Tem certeza? — disse. Não estava muito empolgado para mostrar isso a ele.
— Não quer mostrar a essas pessoas como é o sucesso de verdade? Não quer que eles vejam
o que se ganha com trabalho duro? Eles têm que ficar maravilhados com você, Buddy — disse o Sr.
Drew enquanto passávamos pelo Açougue do Singer.
Até onde eu sabia, todos no meu bairro trabalhavam duro. Até onde eu sabia, trabalhavam
até não conseguirem mais ficar de pé. Era por isso que éramos um bairro de corcundas com peles
bronzeadas e rostos magros e angulosos. Era por isso que nunca ficava quieto por ali. As pessoas
estavam sempre com pressa, mesmo às duas da manhã. Mas eu tinha entendido o que ele quis dizer.
Ele quis dizer que eu tinha conseguido sair e que isso era algo a se invejar. Eu com certeza invejava
quem tinha escapado antes de mim. Tinha diferença entre bom trabalho duro e mau trabalho duro.
Ou pelo menos... foi o que eu senti na época. Naquele momento. Naquele carro chique com
o meu smoking novo, eu me senti... bem, eu agora tenho vergonha disso, mas naquele momento, eu
me senti... superior.
Guiei o Sr. Drew até a porta da frente do nosso prédio. Foi difícil chegar lá com as pessoas
que começavam a se aglomerar e o motorista teve que avançar devagar. Cabeças foram brotando
das janelas acima e notei Timmy Sharp sair correndo da loja do seu pai para espiar o carro. Acenei
para ele, que se ergueu e exclamou:
— Buddy Lewek está naquele carro!
Bom, isso só atraiu a multidão para ainda mais perto e vi que a expressão no rosto do Sr.
Drew não estava mais tão feliz. Ele parecia inquieto. Talvez estivesse preocupado que pudéssemos
acabar batendo em alguém com o carro.
Nah, não era isso. Isso foi o que disse a mim mesmo na época.

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Mas essa é a minha história e eu não preciso mais ficar inventando mentiras. Não depois do
que sei agora.
Não era preocupação.
Era nojo.
Nós paramos.
— Bom, é melhor você sair, Buddy. Seus fãs estão esperando — disse ele. Estava sorrindo,
mas parecia impaciente agora. E eu estava confuso porque, afinal, a ideia tinha sido dele.
Assenti e, pegando a bolsa, saí do carro. Quase no mesmo instante que meus pés tocaram o
pavimento, o Sr. Drew já estava indo embora. Não o culpei por querer dar o fora daquilo tudo. A
situação só me deixou com ainda mais vergonha.
— Ei, Buddy, posso pedir uns três desses pra mim? — perguntou Timmy, apontando para o
carro do Sr. Drew.
Eu sorri, mas não sabia o que dizer. Não era muito bom com piadas.
— Quem era aquele, Bud? — perguntou Molly O’Neill.
— Meu chefe — respondi, tentando abrir caminho pelas pessoas para chegar à minha porta.
— Você trabalha naquele estúdio chique, né? — perguntou Timmy.
— Sim.
— Você vai se lembrar da gente, não vai? — disse o Sr. Goldman do outro lado da rua. —
Ei, Buddy, não se esqueça da gente!
Acenei para ele e sorri. Passei pela porta.
— O Billy vai dar uma festa no sábado, vê se aparece — disse Molly.
— Talvez — disse, mas não ia acontecer. Eu não ia a uma das festinhas do Billy onde todo
mundo ficava bêbado e sempre acabava dando em briga.
Então eu fechei a porta. Acho que se pode dizer que a fechei na cara deles, mas eles não
estavam recuando e eu estava me sentindo esmagado. Sempre quis impressionar a vizinhança, mas
nunca tinha me dado conta de quanta coisa sentiria com isso.
No geral, o que eu mais conseguia pensar era no rosto do Sr. Drew e no quão rápido ele foi
embora com seu carro. Estava começando a me dar dor de cabeça.
Subi até o apartamento, encontrando-o vazio, e fiquei grato por isso. Não estava a fim de
conversar com ninguém, explicar “como tinha sido meu dia”. Também não estava a fim de praticar
meu traço. Só queria deitar na minha cama e olhar para o teto. Pendurei o smoking cuidadosamente
no guarda-roupa junto aos dois ternos surrados do vô.
Fui até a cama e olhei para ela. Olhei para a cômoda ao lado. Para as folhas de desenhos em
cima dela. Me arrastei por cima da cama e peguei um punhado antes de me virar e deitar de costas
no colchão, olhando para a mancha de água lá em cima. Quando criança, costumava fingir que era
um rio e criava cidadezinhas na minha imaginação que viviam à sua margem. Confabulava cavalos
e até escolhia um para mim, para a mãe e para o pai. Algum dia, íamos morar num lugar que tivesse
espaço para todo mundo. Espaço para respirar.
Peguei um dos meus desenhos. Um de um anjo gorduchinho de um teto em algum lugar da
Europa. Tinha começado como círculos, mas agora já estava bem parecido com a pintura. Nunca
imaginei que desenharia anjos gorduchinhos. Nunca imaginei que era necessário. Mas agora estava
começando a entender melhor. As linhas simples que compunham o Bendy ainda eram baseadas em
figuras humanas. Em ângulos clássicos. Eu conseguia desenhá-lo andando e realmente parecia que
ele estava andando.
Foi quando notei que metade de uma das asas do meu anjo estava para fora da folha. Aquilo
não fazia sentido. Por que eu não teria desenhado a asa por inteiro? Fazia parte do exercício.
Me sentei. Isso me lembrou do cowboy do vô daquela tarde. A forma como ele parecia ter
escorrido da folha.
Olhei para a próxima folha na minha mão e então para a próxima. Será que eu estava ficando
louco? Eles todos estavam mesmo parecendo um pouquinho diferentes? Todos os desenhos estavam
escorrendo da folha?
Ou era só coisa da minha cabeça? Só um deslize da minha mente...

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Joguei as folhas no chão à frente e lancei meus antebraços sobre os olhos. Estava tudo tão,
tão quente. Meu braço, minha cabeça, meu cérebro.
Eu precisava que tudo esfriasse.
Que todos ficassem frios, na deles.
Mas é claro que isso não ia acontecer.
Da frigideira para o fogo, como dizem.
Direto para as chamas.

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CAPÍTULO 14
O tempo passa. Dizem que quando as coi-
sas estão indo bem, o tempo passa mais rápido — quando vão mal, ele passa mais devagar. Consigo
ver isso. Mas às vezes acho que o tempo toma suas próprias decisões a respeito das coisas.
Não sei dizer quanto tempo se passou aqui. Na escuridão gotejante. Não sei dizer o que o
tempo fez, se aconteceu tudo ontem ou se foi anos atrás. Ou, sei lá, se ainda nem aconteceu.
Quero contar sobre o Sammy. Sobre quando ele desapareceu. Quero chegar a essa parte da
história. Mas a questão é que só notamos que alguém sumiu quando o tempo passa. É como quando
o relógio vai batendo normalmente e de repente ele pula uma batida. E a gente olha para cima. E
não chegamos de fato a escutar algo acontecendo. Mas algo dentro de nós notou. E ficou encucado.
Não foi bem assim com o Sammy. Não exatamente. Não foi uma pequena batida pulada.
Embora isso até que fizesse algum sentido para um diretor musical. De uma forma engraçada. Mas
não foi engraçado.
Tudo começou duas semanas depois que eu peguei o meu smoking. Depois que o Sr. Drew
me convidou para a festa. Estava indo para a parte do estúdio que menos gostava, o Departamento
de Música, quando me deparei com a estranha violinista que encontrara no meu primeiro dia. Nunca
descobri o nome dela. Os músicos não ficavam muito por ali e, de toda forma, ela me dava arrepios.
Sempre parecia perturbada.
Seu cabelo continuava uma chapa negra e ela vestia aquela longa saia negra e um suéter,
apesar que, é, talvez o clima estivesse alguns graus mais fresco agora que era setembro, mas não
estava assim tão melhor. Ela não parou. Não sabia nem se tinha me notado. Ela passou por mim de
lado e continuou em frente. E foi isso.
Mais tarde naquele dia, ouvi o Dave, de todas as pessoas, falando sobre como os músicos
tinham ficado trancados do lado de fora da Sala de Música.
— Mas que papo é esse? — perguntou Richie, erguendo a manga amarrotada e coçando um
bíceps. — Arranjem uma chave-mestra.
— E arranjaram. Parece que tinha alguma coisa barrando a porta — respondeu Dave. Todos
olhamos para ele. O velho nunca falava, nunca parecia lembrar que estávamos ali. — É só o que eu
sei — acrescentou ele, e então, como se um interruptor tivesse sido desligado, voltou ao trabalho,
folheando entre suas duas páginas, certificando-se de que a mudança de traço no braço de Boris
estivesse correta de um quadro para o outro.
— Tem que ter algo mais nessa história — Jacob disse para mim.
Algo a ver com a tinta, pensei comigo mesmo, mas não disse em voz alta. Porque seria algo
bizarro a se dizer.
Três dias depois, quando tempo suficiente havia passado, mas não tanto a ponto das pessoas
chegarem a notar, o Toby da Contabilidade mencionou que o Sammy não foi pegar seu cheque de
pagamento. Novamente, nós funcionários só ficamos sabendo algo a respeito porque o próprio Sr.
Drew estava correndo por todo lado, esbravejando a respeito disso. Interrogando todo mundo que

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encontrava no meio-tempo. Não sentia que a raiva fizesse sentido com a situação, mas me dei conta
de que talvez ele tivesse mais em mente do que apenas o desaparecimento de um diretor musical.
— É a máquina — disse Dot enquanto almoçávamos.
— O que tem ela? — perguntei. Ela sempre dizia as coisas de repente desse jeito.
— Algo não está funcionando direito. Ouvi ele gritando com o Tom.
— Ele grita com todo mundo — respondi.
— Sim. Mas confia em mim. Queremos respostas? Então temos que dar um jeito de achar
essa máquina — disse ela.
Não consegui exatamente dizer a ela que não estava mais interessado em continuar com a
investigação. Como a criatura perto da Enfermaria não me deixava mais curioso, só me fazia querer
manter distância. Depois de ir à alfaiataria com o Sr. Drew, só o que eu queria fazer era desenhar e
mostrar ao Sr. Drew o que conseguia criar. Só queria trabalhar.
Mas então o Sammy desapareceu.
Oficialmente.
Estava sumido há mais de uma semana. Mas quando a polícia apareceu e começou a falar
com as pessoas, foi aí que notamos que era mais que só alguém tirando um dia de folga.
As perguntas eram diretas: “Qual foi a última vez que você o viu?”
E foi quando me lembrei que a última vez que o havia visto foi quando ele entrou com tudo
no Departamento de Artes, procurando por tinta. Isso me deixou muito desconfortável.
Mas então houve uma reviravolta.
Me lembro de ir ao trabalho e a polícia estar do lado de fora, o estúdio fechado. Me lembro
do Richie dizer que alguém tinha invadido o lugar e que estava tudo revirado dentro. Que estavam
investigando um possível assalto. Me lembro do Sr. Drew saindo às pressas do seu carro e gritando
na cara do detetive alguma coisa sobre sabotagem. Como vê-lo gritando daquele jeito era pior que
ver o Sr. Schwartz perder a cabeça. Pior até que ver o Sammy perder a cabeça. Era chocante e um
pouco assustador. Especialmente em comparação a como ele normalmente se portava.
Me lembro de encontrar a Dot em meio à toda a confusão. Ou talvez tivesse sido ela quem
me encontrou.
— Você acha que foi um assalto, Buddy? — perguntou.
— É claro que não — disse, soando mais convicto do que me sentia.
— Então você vem comigo, hoje à noite, quando todos tiverem ido embora. Para darmos
uma olhada — disse ela. Nem sequer perguntou. Se tivesse perguntado, eu provavelmente teria dito
não. Se bem que eu ainda podia ter dito a ela que não queria ir. Ela não tinha poder sobre mim.
O fato era que, apesar das minhas preocupações, eu ainda estava curioso. Mas era mais que
isso. Ver o Sr. Drew tão alterado, vê-lo tremendo de raiva, trancado para fora do próprio estúdio.
Bom, isso me fez querer consertar as coisas. E se a Dot e eu conseguíssemos descobrir o que havia
acontecido, se desvendássemos o mistério, ele ficaria grato. Eu tinha ambição, afinal.
E a Dot tinha uma chave.

As barreiras da polícia ainda estavam montadas à noite. Mas não havia nenhum policial.
Ninguém em volta vigiando o estúdio.
— A gente que mesmo fazer isso? — perguntei.
Não conseguiria desenhar uma cena mais sinistra nem se tentasse. Apesar que àquela altura,
bom, eu começava a achar que os meus esforços com desenhos não eram lá tão impressionantes.
Mas ainda assim.
O exterior escuro e iminente. A placa de “Não Entre”. O fato de que mesmo a lâmpada do
poste sobre nós estava apagada. Uma lâmpada queimada ou coisa do tipo.
Dot acendeu uma lanterna.
Porque ela tinha trazido uma lanterna.
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Porque ela sempre pensava a frente desse jeito.
— Não acho que devemos acender alguma luz lá dentro. Não queremos chamar atenção para
o prédio — disse ela, começando a andar. — E fique longe das janelas, certo?
— Sim — disse, o que não era exatamente a coisa certa a dizer, mas estava me sentindo tão
inquieto agora. Eu sabia que Dot estava segura de que Sammy estava por trás de tudo de estranho e
bizarro no estúdio. E queria confiar nela, assim como com a maioria das coisas.
Mas não conseguia me esquecer da respiração no meu rosto. Da grande marca de mão na
minha camisa. Não fazia sentido para mim que isso tudo fosse... bem... humano...
Acontece que também não fazia sentido que não fosse.
Mas eu não queria assustá-la. E não queria me assustar. Mas estava com medo do que se
escondia nos cantos escuros.
Entramos no elevador. Foi uma experiência estranha. Sentir o movimento, mas ver apenas a
Dot e parte do teto iluminado. Era difícil acreditar que sequer estávamos nos mexendo. Dot não
disse nada, mas parecia tão determinada quanto de costume, segurando a lanterna pouco abaixo da
altura dos ombros. Seus óculos criavam grandes sombras em volta dos olhos, cobrindo-os de forma
que parecia que ela estava usando uma máscara. Era uma super-heroína.
O elevador parou em meio a um ruído e saímos no corredor escuro. Lá vamos nós de novo,
pensei. Caminhamos por aquele corredor familiar e Dot lançou a luz em volta para mais do que só
para onde estávamos indo.
— Buddy, veja — disse ela. Sua luz apanhou o brilho de algo na parede.
Ela se aproximou, mas não precisava. Eu sabia bem o que era.
— Tinta — disse.
Ela acompanhou a marca com a lanterna e lançou a luz na parede mais afastada de nós. Ela
cresceu, revelando grandes rastros de tinta, como se uma mão tivesse sido arrastada por ela, mas
maiores. Havia respingos maiores no final da parede, como se alguém tivesse jogado baldes de tinta
nela. Atirado no chão e salpicado tinta por toda parte.
— Não me surpreende terem fechado tudo. Não sei nem como começariam a limpar isso.
Isso é coisa de alguém com raiva — disse Dot.
— Acha que foi o Sammy? — perguntei.
— Quem mais? — Ela começou a andar de novo.
Não achava que o Sammy tivesse feito aquilo. Me sentia mais convicto disso a cada instante.
Sammy não tinha feito aquilo tudo e aí simplesmente desapareceu.
Outra coisa tinha feito aquilo... e então feito alguma coisa com o Sammy.
E no instante em que pensei nisso, eu ouvi.
Agora que paro para pensar, me pergunto se aconteceu mesmo desse jeito. Que eu pensei
nisso e então ouvi a respiração. Talvez tenha ouvido a respiração primeiro. Faria mais sentido. Não
sou assim tão esperto.
A princípio, achei que fosse minha mente me pregando peças. Como a tinta escorrendo do
papel. Mas então a Dot parou e disse:
— Shh.
E eu soube. Soube que ela também tinha escutado.
Nós paramos de andar e ficamos em silêncio absoluto. Só que não podíamos ficar parados
em silêncio. Não com aquele som de respiração úmida vindo de algum lugar atrás de nós. Não com
o súbito baque no chão. E outro.
Notei que a luz da lanterna da Dot estava se tornando fosco. Belo momento para a lâmpada
falhar. Me virei para olhar e vi o rosto da Dot iluminado pelo brilho, olhando apavorada enquanto
as sombras começavam a avançar em meio ao feixe de luz. Podia ser água se fechando à nossa
volta, mas eu sabia que não era.
Outro baque e mais outro.
A respiração ficava cada vez mais alta. A luz ficava cada vez mais fosca.
— Corre! — sussurrei alto e dei um empurrão na Dot. Nem pensei a respeito, só fui lá e fiz.
E ela correu. Não perguntou por quê, não tentou bolar um plano melhor. Só correu. E eu corri.

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A luz que restava saltitava pelas paredes, fazendo difícil dizer em que direção estávamos
indo. Ela iluminou um pôster e de repente Bendy estava sorrindo para nós, como se tivesse saltado
de trás de uma curva. Arquejei, mas o pôster logo ficou para trás. Assim como a respiração, cada
vez mais alta. Ofegante. Um animal grande e pesado nos perseguindo. E chegando perto.
Mal consegui ver a palavra “Música” quando Dot exclamou:
— Por aqui!
Nos lançamos pela porta para a Sala de Música e — seja lá como foi que entramos, seja lá
como conseguimos passar — estávamos dentro e a porta se fechou com tudo atrás de nós. Me lancei
de costas contra ela com toda a força, ainda sem fôlego, o pavor emanando de cada poro.
— Buddy, olha — disse Dot, a voz baixa, mas urgente. Estava apontando a lanterna para os
meus pés. Olhei para baixo na mesma hora. As sombras estavam se infiltrando por baixo da porta e
a luz vacilou outra vez.
Me empurrei para longe da porta rápido, tropeçando em meio à sala e esbarrando na Dot,
que acabou cambaleando. Agarrei sua mão por instinto, para não me perder dela. Ela não reclamou.
Sua lanterna iluminava a parede, a luz ainda titubeante.
Mais tinta.
Ela então se virou para iluminar a sala.
Cadeiras e suportes de partituras quebrados. Instrumentos espalhados por todos os cantos.
E tinta. Tinta para todo lado.
— Consegue ouvir? — sussurrou ela. — Não tô ouvindo.
Forcei meus ouvidos a escutarem a respiração úmida, os passos.
— Não. Vira a luz pra porta de novo — sussurrei de volta.
Ela o fez e arfou. Ambos recuamos um passo imediatamente, ainda segurando um no outro.
As sombras negras estavam ainda mais compridas e agora pareciam vir em nossa direção, quase
como se estivessem subindo pelo feixe da lanterna. Como dedos tentando nos agarrar.
— Desliga, desliga! — disse, em pânico.
Pude ouvir o tatear pela lanterna e então houve um click.
Ficamos lá parados na escuridão absoluta. As únicas respirações que conseguia ouvir eram a
dela e a minha. Encolhi meu corpo todo, preparando-me para que as sombras nos encontrassem, nos
envolvessem por inteiro.
Nada aconteceu.
— O que foi isso? — perguntou Dot num sussurro frenético.
— Foi a coisa. A da Enfermaria — sussurrei de volta, tentando desesperadamente responder
e também não fazer barulho.
— Eu não entendo — sussurrou Dot, sua mão tremendo junto à minha. — Não faz sentido.
As sombras, os sons.
— Shh!
Ela ficou quieta no mesmo instante. Eu não sabia o que tinha ouvido, mas alguma coisa,
alguma coisa aguçou meus sentidos. Fechei os olhos. Mesmo no escuro absoluto, fechei os olhos.
Tentando ouvir dentre a escuridão, como se a própria escuridão fosse espessa e estivesse de alguma
forma abafando o som.
Muito quieto. Quieto demais.
— Acha que foi embora? — perguntou Dot.
Crash.
Ambos gritamos.
— Acende a luz! — disse, e houve um movimento de pânico atrás de mim enquanto Dot se
atrapalhava com a lanterna.
O feixe de luz estava fraco, fraco demais, quando se estendeu pelo chão. Mas foi o suficiente
para pegar a figura coberta de tinta espessa no chão diante de nós.
— Buddy — arfou Dot.
Me abaixei. Já tinha feito isso antes. Estava experienciando o mesmo que antes. Na Sala de
Música. Me curvando sobre uma figura coberta de tinta.

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A cabeça sacudiu e eu caí para trás, em cima da Dot. Ela tropeçou e a luz tremulou por um
momento.
Olhei para a figura.
Estava se erguendo com as mãos, os cotovelos dobrados e as omoplatas sobressalentes. Uma
cortina de cabelo lhe caía sobre o rosto, gotejando agora em meio à tinta, como se o próprio cabelo
fosse de tinta.
Eu conhecia aquele cabelo.
— Ele está aqui — disse uma voz áspera e familiar.
A cabeça se retorceu de súbito e então o corpo caiu em meio a um baque nauseante contra o
chão de madeira.
— O que é isso? — perguntou Dot, sua voz alta e trêmula.
— A violinista — respondi, mal conseguindo colocar as palavras para fora.
— Quem?
Ergui a mão para Dot — precisava da lanterna. Precisava. Estava completamente em pânico
e só o que sabia que ele estava ali. A coisa estava ali.
De alguma forma, Dot entendeu e pôs a lanterna na minha mão trêmula. Apontei ao redor da
sala loucamente, mal parando para ver se os cantos estavam vazios, ignorando as sombras que se
erguiam, a luz que ficava mais fraca, o lampejo. Em todas as direções, em todos os lados possíveis.
Apontei para baixo, por tudo à minha volta, de volta para a porta e o caos na sala fez com que tudo
parecesse ter sido só um sonho febril, como se eu estivesse tonto.
Nada. Ninguém.
Parei, o fraco feixe de luz pousando novamente sobre a violinista.
— De onde ela veio? — sussurrou Dot. — Não pode simplesmente ter aparecido.
Sacudi a cabeça. Não fazia ideia.
— Foi como se ela simplesmente tivesse sido... — Não terminei meu pensamento. Houve
uma pausa e então Dot concluiu minha frase:
— ...Jogada aqui.
Devagar e com uma longa e profunda respiração, virei o feixe de luz titubeante para cima de
nós. E então eu vi.
Algo molhado. Preto. Gotejante. Uma figura. Com algo pontiagudo que brilhava frente à luz.
Algo como dentes.
Foi quando a lanterna se apagou em meio às sombras.

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CAPÍTULO 15
O gemido. O mesmo gemido da Enfermaria,
mas dessa vez estava mais para um rugido. Ele cortou a escuridão, perfurou meu cérebro e eu senti
aquela sensação tão familiar de paralisia tomar conta de mim.
Estava preso. Era o fim.
Era o fim.
Dot assumiu o controle e puxou meu braço com força, me forçando a me mexer, a segui-la
em sua corrida maluca pela sala, enquanto um alto estrondo e o terrível som de coisas se quebrando
e daquela mesma respiração úmida enchia o lugar. Nós continuamos correndo, fugindo de tudo, sem
saber o que estava acontecendo ou onde estávamos. Batemos com força na beira do palco, caindo
nos suportes de partituras, derrubando a lanterna e eu me debati para voltar a me erguer enquanto
ainda a segurava pela mão.
— Buddy, pare, pare, escute — ela sussurrou no meu ouvido.
Eu não conseguia parar, não ousava parar. Tínhamos que dar um jeito de fugir.
— Escute.
Eu arrastava as unhas pelo palco, sentindo as farpas embaixo delas.
— Pare! — gritou ela. Alto. Alto para que qualquer um ou qualquer coisa pudesse ouvir.
Eu parei. Parei, ainda que meu corpo inteiro estivesse tremendo. Ainda que tudo dentro de
mim estivesse implorando para que eu fugisse.
Silêncio.
Não o terrível silêncio de antes.
Um tipo diferente de silêncio.
Escutei a Dot em meio ao silêncio. A escutei procurando alguma coisa e então... um feixe de
luz sólido. Me virei para olhar para ela, para seu rosto ainda escurecido pelas sombras, mas agora
visível no raio de luz. Foi tão bom ver seu rosto outra vez.
Ela assentiu para mim, para me dizer que estava bem, e então virou o feixe de luz.
A violinista tinha desaparecido. A coisa tinha desaparecido.
Só o que restava era uma mancha de tinta preta.
Dot ergueu o feixe de luz.
Nada.
Só mais tinta. Gotejando um pouco. Agora eu conseguia ouvir. Uma única gotícula que ia
caindo vez ou outra, bem baixinha.
Ela vasculhou a sala com a lanterna de novo, mas, mesmo enquanto o fazia, eu sabia que
ambos sabíamos que, seja lá o que fosse aquilo, seja lá o que fosse aquela coisa, não estava mais lá.
As sombras se foram.
Finalmente, Dot se virou, abaixando o feixe outra vez, e então disse:
— Você está bem?

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Não sabia bem como responder à pergunta. Não estava ferido. Mas o medo, o pavor do que
tínhamos visto. Sentia como se estivesse. Como se estivesse por dentro. Como quando uma pessoa
está com uma hemorragia interna.
Uma forte luz subitamente inundou a sala, me ofuscando. Ergui a mão sobre o rosto. O que
estava acontecendo agora? Meu coração estava acelerado e eu não conseguia nem engolir em seco.
Morrendo de medo da fera.
— Norman? — vociferou Dot.
Tirei o braço da frente do rosto. Ainda estava brilhante demais para ver muita coisa, mas
conseguia ver a Dot do meu lado olhando para cima, em direção à parede dos fundos. Então fiz o
mesmo. Só o que enxerguei foi um círculo de luz branco sobre mim. Brilhando.
— Norman, é você? — Dot berrou outra vez.
— Olá, mocinha — disse uma voz familiar do andar de cima.
— O que diabos está fazendo aqui? — Ela pôs a mão sobre os olhos para protegê-los da luz,
então fiz o mesmo.
— Ora, eu poderia te perguntar a mesma coisa — disse ele.
Eu olhava para a luz brilhante. Me parecia errado, quase como se estivéssemos falando com
o projetor e não com uma pessoa de verdade.
— Você viu? Viu o que aconteceu? — perguntou Dot.
Houve uma pausa.
— Vocês dois estão bem? — respondeu ele.
— Estamos bem. Você viu o que aconteceu? — perguntou Dot.
— Não dessa vez — disse ele. — Mas escutei. Foi por isso que vim.
Dot se voltou para mim.
— Vamos falar com ele.
Eu imediatamente sacudi a cabeça. A entrada da cabine de projeção ficava do lado de fora
da porta. De jeito nenhum. Eu não ia sair daquela sala de jeito nenhum, não agora, não com aquela
coisa lá fora.
— Vamos, é seguro — disse ela, a voz suave. — Só temos que ficar de olho na luz.
— Seguro? — perguntei. Não conseguia acreditar no que ela estava dizendo. — Tá de
brincadeira? Temos que sair daqui!
— Vocês dois provavelmente deviam esperar um pouco antes de voltar pro elevador, só pra
garantir — disse Norman. — Ela está certa com relação à luz.
— Como você sabe? — perguntei, me virando abruptamente. As palavras soaram gritadas,
furiosas. O que qualquer um de nós de fato sabia sobre aquela... coisa? Não fazia o menor sentido
pra começo de conversa, então como eles podiam saber que estaríamos seguros lá fora?
— Eu sei — disse Norman.
— Vamos — disse Dot. Sacudi a cabeça mais uma vez, mas é claro que não consegui deter a
Dot. E eu definitivamente não ia ficar pra trás.
Eu a segui até a porta e ela a abriu com todo o cuidado, lançando a luz da lanterna pela curva
a frente. Olhou de volta para mim.
— Tudo certo, feixe estável.
E então, lá estava eu, o coração na boca, saindo às pressas da Sala de Música atrás da Dot,
subindo pelas escadas e entrando na pequena área aberta que servia como a cabine de projeção do
Norman, batendo a porta depressa e com força atrás de mim.
Uma onda de alívio tomou conta de mim, mas no lugar do medo, a realidade de tudo o que
havia acontecido conosco me veio à tona.
Aquela coisa. Aquela coisa coberta de tinta.
A violinista. Seu corpo no chão. Caído.
Era demais para mim, demais.
Olhei para fora da cabine, para a sala lá embaixo, segurando com força no parapeito. A luz
forte e intermitente do projetor fazia um retângulo perfeito na parede dos fundos da Sala de Música.
Ela tremeluzia e iluminava a sala, revelando o caos em ainda mais detalhes. A tinta nas paredes, no
chão. Aquele ponto no chão. Onde estivera a violinista. Me reclinei sobre o parapeito e olhei mais
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de perto. A mancha de tinta parecia borrada, como se seu corpo tivesse sido arrastado para... algum
lugar. Até que a tinta ficava cada vez mais fraca e então desaparecia.
— Oi, Norman — ouvi a Dot dizer. Ela soava tão exausta quanto eu me sentia.
Me virei e a vi se sentando numa caixa cheia de rolos de filme de metal. Eu não tinha onde
ficar, então me apoiei desconfortavelmente no parapeito.
— E aí, felizes consigo mesmos agora? Viram o que acontece quando ficam bisbilhotando o
tempo todo? Vocês e essa mania de meterem o nariz onde não são chamados — disse ele, sacudindo
a cabeça. Tomou uma golada de uma caneca, mas eu não tinha certeza se era café lá dentro.
— Esteve nos observando? — perguntou Dot.
Norman riu consigo mesmo.
— Nunca vi uma dupla de adolescentes bisbilhotar tanto quanto os dois aí sem nunca dar
uns amassos.
Engasguei com nada e então comecei a tossir.
— Garoto sensível ele, né não? — perguntou Norman, desviando o olhar para Dot.
— Se bem que o que você disse foi bastante vulgar — retrucou ela.
Norman deu de ombros.
— Você sabe o que está acontecendo? — perguntou Dot.
Ele deu de ombros outra vez. Dot deu um longo suspiro.
— Norman, você nos convidou aqui pra cima. Achei que quisesse conversar.
— Bem — disse ele, tomando outra lenta golada da caneca e se recostando em sua cadeira.
Parecia tão extremamente casual, tranquilo, nada como o que eu estava sentindo. E isso me deixava
ainda mais tenso.
Norman pensou por um momento e foi quando notei o quanto ele parecia um personagem de
uma história em quadrinhos. Um velho cavalheiro sentado em sua varanda. Ele tinha um lenço no
pescoço em vez de uma gravata.
— Se eu disser que estão certos, o que acontece depois? — Seu rosto enrugado brilhava à
luz bruxuleante do projetor e suas sobrancelhas peludas tinham uma pontinha tão acentuada no
meio que o faziam parecer quase diabólico.
— Depois, você nos conta — disse Dot.
Norman olhou para mim, aquelas olhadas de cima a baixo. Como as pessoas costumavam
fazer naquela minha primeira semana aqui. Mas foi como se não tivesse chegado a olhar de fato
para mim antes de agora.
— É o que querem saber? — ele me perguntou.
— É claro. — Foi uma resposta fácil. Estava me sentindo tenso e tinha certeza que tínhamos
que estar dando o fora dali imediatamente, mas se era preciso esperar até sabe-se lá quando, então,
sim, é claro que queríamos saber o que diabos estava acontecendo.
— É claro — Norman disse a si mesmo. Tomou mais uma golada. — E ele fala desse jeito,
sabendo que foi ele que trouxe essa criatura a nós. É claro. É claro.
Então eu senti frio, como se a temperatura tivesse abaixado e fosse inverno. Como se, caso
eu falasse, minha respiração fosse congelar.
— O que quer dizer? — Mas eu sabia o que ele queria dizer. Estava falando da Enfermaria.
Da coisa na sala com a porta trancada. Da porta que eu tinha aberto.
Eu a deixara sair.
Eu.
Era tudo culpa minha.
— O que vocês dois sabem sobre a tinta? — perguntou Norman em vez de responder.
— Sabemos que o Sammy está obcecado por ela — disse Dot.
— Então não muita coisa — disse Norman.
— Quanto você sabe? — perguntei, tentando me recompor.
— Tudo.
Dot se ajeitou onde estava sentada e não consegui dizer se era por que estava empolgada por
estar descobrindo a verdade ou incomodada por ele estar sendo tão evasivo.
— Conte-nos — disse.
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— Quanto? — perguntou ele.
— Tudo — respondi.
— Sim — disse Dot, a voz um pouco tensa.
— Tá, tá, vão com calma. Vocês tão agindo como se tivessem algum lugar pra ir. Quando
todos sabemos que ninguém nesse estúdio tem pra onde ir.
Eu não sabia o que ele quis dizer com isso.
— Do começo, Norman — disse Dot.
Norman assentiu.
— Do começo. — Ele se recostou na cadeira com sua caneca em mãos e pôs o pé na beira
da mesa onde ficava o projetor. — Quão familiarizados vocês estão com o Henry?

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CAPÍTULO 16
Henry.
O nome que me assombrava desde o primeiro dia. O nome talhado na minha mesa. O nome
do qual o Sr. Drew tinha me chamado quando estávamos provando os smokings. Aquele nome que
eu acreditava ser simplesmente de um ex-funcionário e que, bom, quem precisava saber desse tipo
de coisa, afinal?
— O antigo parceiro de negócios do Sr. Drew — disse Dot. — Ajudou a fundar o Joey
Drew Studios. Ele criou o Bendy.
— Ele criou o Bendy? — disse. — Eu achava... quer dizer... sempre acreditei...
— Um monte de gente acredita — disse Norman. — Não é do feitio do Sr. Drew corrigi-las.
Isso fez eu me sentir desconfortável. A implicação nisso.
— Ele criou os grandes três, não foi? — perguntou Dot.
— Bendy e Boris. Até a Alice, mas só começaram a incluí-la depois que o Henry já tinha ido
embora. Sim. Ele era um artista talentoso. Um sujeito decente também. Na medida do possível.
— Vindo de você, é um baita elogio — disse Dot.
Norman deu risada.
— Acho que sim.
— Mas o que o Henry tem a ver com a tinta? — Eu queria prosseguir com a história, não
precisava saber do Henry e do Sr. Drew.
— Bom, o Henry foi embora. Disso vocês sabem. Ele pediu as contas, queria passar mais
tempo com a esposa, a Linda. Vocês entendem, esse trabalho pode ser... consumidor.
— Claro — disse Dot.
Assenti, mas engoli em seco. Pensei em todas as noites em que ficava até mais tarde. Pensei
em como tentava provar o meu valor. Pensei em como não tinha uma boa conversa com a mãe há
um bom tempo.
— Como vocês acham que um homem como Joey Drew lida com isso?
— Lida com o quê? — perguntei.
— Com a partida. O Sr. Drew tinha a visão. Mas o Henry, ele tinha o talento. O talento se
foi, e agora? Não é pessoal, mas o Sr. Drew lida como se fosse. Talvez ele decida que não precisa
do Henry. Nunca precisou. Só precisa do talento.
Nada disso estava fazendo o menor sentido e, com tudo o que tinha acabado de acontecer, a
ideia de ter um monstro do lado de fora da porta, e essa sensação, essa sensação que mais parecia
um soco no estômago ao ouvir a palavra “visão”... eu não conseguia juntar as peças.
— Certo, então o Sr. Drew contrata pessoas talentosas, sabemos disso — disse Dot.
— E sabemos que os desenhos vão bem por um tempo, depois que o Henry vai embora. A
Alice até que foi popular por um tempo. Assim como sua atriz original, a Susie. Chegou a vê-la? —
Norman perguntou a Dot.
— Uma vez — respondeu ela.

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— Um doce de menina. — Ele terminou sua bebida e pôs a caneca na mesa. — Mas enfim.
Não durou. Todo o talento do mundo, e não durou. Ele começa a gastar dinheiro com um parque de
diversões que nunca vai construir.
É claro que o Norman também sabia disso.
— E com o teatro — disse, quase mais para mim mesmo.
— Que teatro? — perguntou Norman.
— O estúdio começa a decair — disse Dot, colocando-nos de volta nos trilhos.
Norman assentiu.
— Ele precisa de alguma coisa, qualquer coisa. Para colocar o estúdio de volta nos jornais.
Deixar os investidores empolgados de novo.
Foi quando finalmente estalou.
— A máquina — disse. — Tom Connor.
— Sim — disse Norman, olhando para mim. — Então vocês sabem da máquina — disse ele,
como se em aprovação.
— Mais ou menos — disse. Não pude evitar e acabei olhando por cima do ombro, só para
checar se a luz continuava brilhante.
Continuava.
— Sabemos que existe uma. Sabemos que Tom Connor está trabalhando nela — disse Dot.
— Estava — corrigiu Norman.
— Estava? — perguntei.
Norman me ergueu uma sobrancelha.
— Estava.
Houve um silêncio no qual imagino que devíamos ter perguntado a ele por quê. Mas então a
Dot fez uma pergunta diferente.
Nos colocando de volta nos trilhos. Como sempre fazia.
— O que a máquina tem a ver com a tinta?
— Ela precisa de tinta para funcionar.
— O cano — disparei.
— Que cano? — perguntou Dot.
— Achei bem estranho, naquele primeiro dia, quando o Sammy estava coberto de tinta e eu
tive que limpar tudo. A tinta era de um cano que tinha estourado no depósito. Tinha tinta passando
pelo cano. Mas como...?
Norman me interrompeu:
— Não sei como e não sei o que está acontecendo. Só o que sei é que toda essa tinta entra e
então sai e, quando sai, de algum jeito sai diferente.
— Tinta diferente. — Pensei a respeito. Agora que as peças estavam começando a se juntar,
as coisas faziam mais sentido na minha cabeça bagunçada. Eu conseguia resolver mais problemas.
— A tinta que o Sammy estava procurando... pela qual estava doido... — eu disse com cautela,
fazendo contato visual com a Dot.
— Sim — disse ela. — É claro. Por que ele se importaria tanto com tinta normal? Tem por
todo lado. Somos um estúdio de animação, temos tinta por todo lado.
— Por todo lado — repeti.
— A máquina — disse Dot, virando-se de volta para Norman e se inclinando ligeiramente
em sua direção. — Você disse que o Sr. Drew precisa de tinta para a máquina. Norman, o que a
máquina faz?
Segurei o fôlego esperando pela resposta. Quase senti que não queria saber qual era ela.
Norman apenas sacudiu a cabeça. Ele tirou o pé da mesa e voltou a se sentar.
— Queria saber. Só observo o que posso ver. E o Sr. Drew e o tal do Tom Connor, eles são
mais sorrateiros que vocês dois. Só sei que o Sammy não é mais o Sammy. A tinta, bem, eu não sei,
mas me parece que a tinta está tomando o controle dele. Acho que foi a tinta que o levou.
— Acha que ele está vivo? — perguntou Dot.
— Não sei, mas vou contar uma coisa. Essa tinta tem uma mente própria. Vai aonde quer...

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— Escorre da folha — disse, pensando no meu Bendy Cowboy. Pensando no caderno do
Sammy. Pensando...
Um tipo de pânico que nunca tinha sentido antes, nem mesmo quando o monstro estava nos
perseguindo. Algo animalesco e profundo, algo que ia além das minhas entranhas, bem na minha
espinha, me tomou em meio a um momento de pura e profunda percepção.
— Eu tenho a tinta — disse, enfim. — Peguei um frasco do armário de suprimentos, do
estoque do Sammy.
— Bom, a essa altura, o estúdio inteiro já foi tomado por ela. O Sr. Drew se certificou disso
— disse Norman.
— Não, ele não fez isso, não é justo! — gritei, mas mesmo enquanto o fazia, me lembrei do
meu avô olhando para a mão do Sr. Drew, das palavras “tinta má”.
Não, não era verdade. Não podia ser verdade.
— Você mesmo disse que ele contrata pessoas com talento, — disse a Norman — que ele é
o homem de visão, então nada disso foi culpa dele. Foi desse Tom Connor. Ou talvez do Sammy.
Eu estava tremendo agora. Todos os meus sentimentos misturados em forma de medo. Não
conseguia dizer qual era qual. Não conseguia separar a minha percepção com relação à tinta da
conversa sobre o Sr. Drew ou da criatura e da violinista e das sombras. As sombras em forma de
garra que tentavam nos pegar. Era tudo uma única grande bola de medo.
— Buddy, acalme-se — disse Dot.
— Não consigo, você não entende. Eu tenho que ir! — Eu tinha, eu tinha que ir.
— Está tudo bem, Buddy, mas temos que esperar um pouco mais — disse Dot, levantando-
se e vindo até mim, pousando uma mão gentil sobre o meu ombro.
— Eu não posso! Você não entende? Eu tenho a tinta. Tenho a tinta lá em casa. Ela está no
meu apartamento.
Tirei sua mão de mim e saí correndo da cabine de projeção. Não me preocupei se a havia
machucado. Não me preocupei se Norman ia achar que eu estava ficando louco. E também não me
preocupei com a ideia de que a criatura podia me achar e me pegar.
Não me preocupei com nada disso porque não estava pensando. Não estava processando.
Só estava fazendo.
Estava correndo para casa.

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CAPÍTULO 17
Não sei como cheguei lá ou quanto tempo
levei. Não sei se peguei o metrô ou se corri o caminho todo. Não estava sem fôlego quando cheguei,
mas estava encharcado de suor — se era por conta do medo ou do calor, eu não saberia dizer.
Eu não sei.
Só sei que estava em casa. E entrei com tudo no apartamento escuro. E não conseguia ouvir
o silêncio ou o som dos meus pés pisando com força no chão de madeira sob eles, só meu coração
bombeando o sangue pelo meu corpo, retumbando nos meus ouvidos.
Corri para o meu quarto.
Meu avô fantasmagórico estava deitado de costas, como de costume, a luz do poste lá fora o
fazendo parecer extremamente pálido, só pele e osso. Dei a volta pela cama e fui até seu lado para
dar uma olhada nos desenhos. Estavam como eu havia deixado, espalhados no chão depois que fui
passando freneticamente por cada um deles, vendo as mudanças, me sentindo ansioso.
Me ajoelhei e os recolhi. Mas assim que o fiz, o medo voltou pulsando. Estavam em branco.
Todas as folhas caídas no chão estavam em branco. As virei para trás, examinando ambos os lados.
Só papel branco.
Ergui o olhar, tenso. E foi então que a vi. Uma trilha de tinta que subia pelo lado da coberta,
avançando pela longa manga do pijama do vô e marcando seu pescoço à medida que seguia rumo à
sua boca. Como se fossem veias, ou talvez um rio de sangue, mas que subia. Em direção a ele.
Dedos. Se aproximando.
— Não! — gritei. Dei um pulo com tudo em cima do meu avô e o sacudi. Erguendo-o para
que se sentasse.
Seus olhos se abriram e ele começou a se debater, arranhando meus braços que seguravam
os dele. Ele gritou de terror, ou de dor. Ou ambos.
— Tá tudo bem, tá tudo bem! — disse, mas ele não parava de se mexer e não estava tudo
bem. Ainda estava coberto de tinta. Ergui minha mão, tentando limpar a tinta em seu pescoço com
os dedos, mas ele me agarrou pelo pulso e então me empurrou com força, com mais força do que eu
achava que um homem da idade dele conseguisse empurrar. Caí para trás.
— Mas o que é isso?! — De alguma forma, a mãe estava no quarto, na cama, indo até seu
pai. — Papa! — Ela segurou seu rosto firme, porém gentilmente em meio a suas mãos. — Papa,
wszystko w porządku!
Só o que consegui fazer foi observar, um pouco ofegante, enquanto o velho finalmente se
acalmava e olhava nos olhos da minha mãe. Ele ergueu a mão devagar e segurou o rosto dela junto
ao seu, de forma que ambos ninassem um ao outro.
— Irena — disse ele, a voz suave.
— Tak, Papa, tak — disse ela. — Irena.
Ele então abriu um sorriso, devagar. E assentiu. Ele olhou para mim.
— Buddy.
Sorri de volta, esfregando meu pulso onde ele havia apertado.
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— Sim — disse.
Ele assentiu outra vez.
— Está tudo bem — minha mãe finalmente disse, na nossa língua. Ela olhou para mim. —
O que houve?
Foi quando vi a tinta na bochecha do vô.
— A tinta — disse, voltando a mim. — Temos que limpar a tinta.
Ela a viu e então olhou para sua mão. Também havia tinta nela, de quando ela o segurara e
então a passara em seu rosto.
— Mas o que é isso...? — repetiu ela, a voz baixa. Ela olhou de volta para o vô e foi só
então que notou a tinta que subia pelas cobertas, passando por sua mão, seu pijama, seu pescoço. —
O que é tudo isso, Buddy?
— Eu explico enquanto o limpamos. Vamos tirar esse pijama. — Movimentei o vô para que
ele erguesse os braços.
Ela assentiu e explicou a ele o que estávamos fazendo. Era muito mais fácil se comunicar
com ele quando se podia se comunicar com ele.
Nós tiramos a camisa do pijama e, como eu já imaginava, a tinta tinha se enfiado por baixo,
deixando um rastro fino que ia do pescoço até a ponta dos dedos. Peguei seu braço e a examinei,
aquela negritude viva e brilhosa. Passei o dedão pela tinta e a borrei um pouco. Foi bom.
Peguei o próprio pijama, já que estava arruinado mesmo, e comecei a esfregar o braço.
— Buddy, não — disse a mãe.
Mas eu não escutei porque não fazia sentido. Não tínhamos tempo. Tínhamos que tirar toda
aquela tinta.
Toda ela.
Não havia tempo a perder.
— Pegue um pano molhado, mãe — disse, ainda esfregando.
— Buddy, pare!
Ela me segurou pelo ombro. Olhei para ela, confuso. Ela olhou para mim por um instante e
depois para o braço. Eu parei.
E também olhei para o braço dele.
A tinta fora removida, mas, embaixo dela, mais tinta se revelara.
Números.
Uma tatuagem.

Quando descobrimos que o pai tinha morrido, a mãe não me contou até aquela noite. Não
sabia que ela tinha passado todos os dias apenas vivendo a vida, fazendo seu trabalho, suas tarefas,
cuidando de mim com todo aquele peso no coração. Que um homem de uniforme tinha vindo à
nossa porta. Que tinha ido direto ao ponto. Que lhe havia dito a verdade.
Ela me contou à noite, na cama, para que pudesse fazer eu me sentir melhor, me cobrir, se
deitar ao meu lado, acariciar o meu cabelo. Porque queria que eu estivesse pronto para ficar triste.
Mas nem sempre você pode se preparar para a tristeza. Só tem que viver com ela.
Me lembrei disso agora, sentado ali com ela, o relógio batendo na parede, meus ombros
pesados, minhas costas doendo depois de esfregar toda a tinta do vô.
Embaixo da única lâmpada sobre a mesa da cozinha, as sombras no rosto da mãe a faziam
parecer muito mais velha do que era e bastante cansada. Imaginei que se tivesse um espelho ali para
olhar, eu veria o mesmo efeito em mim. Parecia que o verão tinha durado uma eternidade — e, vai
saber, talvez realmente tivesse. Eu não sei. Não tenho certeza se o tempo funciona do jeito que
sempre achei que funcionava.
— Por que você não me contou? — disse, enfim.

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— Tinha tanto a contar e você pegou esse trabalho novo e eu nunca te via. E eu também
tinha trabalho a fazer. E aí vocês dois pareciam estar se dando bem e de que adiantaria? — disse
ela. Notei que sua frase longa e enrolada era como um reflexo dos meus pensamentos, também
longos e enrolados. Devo ter puxado isso dela, imaginei.
— Comece do início.
Começar do início.
Como se isso existisse. Não há um início. Há apenas um momento que faz com que os
momentos seguintes importem.
A mãe sacudiu a cabeça porque ela entendia isso.
— Você sabe quantas vezes eu tentei descobrir quando foi o início? — Ela suspirou. — Ah,
Buddy. É tão triste.
Me inclinei para frente e segurei sua mão.
— Tudo bem, eu aguento a tristeza.
— Seu pai queria vir para cá. Queria oportunidade. Muitas pessoas querem. Eu vim com ele
e trouxe você, esse pequeno embrulho nos meus braços, porque ele era o meu marido. Porque ele
me fez acreditar na aventura. Eu queria que o seu avô viesse conosco. Mas ele tinha seu trabalho,
seus alunos.
— Ele era professor? — perguntei.
— Você não notou? — Ela sorriu.
— Artes...
Ela assentiu.
— Então... então quando as coisas começaram a ficar assustadoras por aqui, eu implorei a
ele para que viesse, implorei. Ele era a única família que eu ainda tinha e achava que ele precisava
de mim tanto quanto eu precisava dele. Mas ele recusou. Ele não veio. Tinha que ficar pela sua
comunidade, ele disse. Mas ele nos mandou sua coleção de arte. Isso ele queria proteger, não a si
mesmo. — Ela parecia brava, triste e extremamente cansada.
— Eu não entendo. Só por que eles valem alguma coisa? O que tem de tão importante nesses
quadros? — Olhei para um que estava pendurado logo abaixo do relógio, sua moldura dourada, o
desenho abstrato e multicolorido.
— Para ele, arte é mais que só um quadro bonito. É história. É...
— Sua alma — disse, me lembrando agora.
— Sim. Os alemães tinham invadido e estavam levando tudo. Ele não ia deixar ninguém
para trás, mas não queria que pusessem as mãos no seu trabalho. Fiquei tão brava com ele na época,
mas agora eu entendo. Quando escuto sobre o que aconteceu por lá, quando escuto sobre tudo o que
foi destruído... ele estava certo em enviar sua arte. Mas nunca poderei perdoá-lo por não se enviar.
— Seus olhos estavam úmidos com lágrimas.
— Consigo entender isso. — Segurei sua mão com a minha.
— Então ele desapareceu. E não ouvi mais notícias suas. — Ela desviou o olhar para a mesa,
a cabeça bem abaixada. — Estava de luto pelo seu pai, estava cuidando de você, estava trabalhando
para poder nos sustentar, e essas pinturas me assombravam. Estava com raiva, achava que ele estava
morto e me sentia magoada. Então não pensei em procurar mais a fundo. — Uma lágrima caiu no
tampo de madeira manchado da mesa. Bem no meio de um círculo feito por um copo molhado.
— Tudo isso faz sentido, mãe — disse. Não estava acostumado a confortá-la. A ser quem
consola. Eu sempre quis cuidar dela, mas via isso como ganhar dinheiro, para que ela não tivesse
que trabalhar tanto quanto trabalhava. Cuidar da sua tristeza, dos seus medos, isso era algo para o
que eu não estava preparado. Era difícil. Minha garganta doía. — Você não devia se sentir mal.
— Eu digo isso a mim mesma. Mas me sinto. Porque é como devo me sentir.
Ela apertou minha mão e ergueu o olhar para mim.
— Quando a guerra acabou, o irmão do seu pai estava procurando pela família. Porque é o
que bons meninos fazem. Ele descobriu tanta coisa. O que tinham feito, para onde tinham mandado
pessoas como nós. Coisas terríveis. Me sinto tão envergonhada. Ele encontrou o vô. Uma família
numa cidade perto do acampamento onde ele estava preso estava cuidando dele. Uma família, não a

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família dele. Não eu. — Ela respirou fundo e secou as bochechas depressa. — Seu tio me ajudou a
trazê-lo para cá. E você sabe o resto.
— Mãe, você devia me contar essas coisas — disse.
— Assim como você está contando as coisas do seu trabalho? Como você e a sua namorada
não têm seus projetos secretos? — disse ela, sorrindo por entre as lágrimas.
— É diferente e você sabe disso — disse. Segurei ambas as suas mãos agora com as minhas.
— Ah, Buddy, eu sinto tanta vergonha disso. Mas você precisa aprender com os meus erros.
Precisa lutar pelas pessoas que ama. Certo?
— Sim. — É claro que eu lutaria. Sempre lutaria por ela, pelo vô.
Foi tão fácil naquele momento fazer essa promessa a ela, a mim mesmo. Parecia tão óbvio.
Tão evidente de que era claro que isso era o certo a se fazer. Não fazia ideia de que dentro de meras
vinte e quatro horas, essa promessa seria testada.

Mais uma vez, eu não sabia como tinha chegado aonde estava indo. Mas dessa vez não era
por extremo medo ou pânico, mas por nunca ter me sentido tão extremamente sobrecarregado antes.
Tanta coisa me havia sido dita num espaço tão curto de tempo. Eu tinha vivido tanto. Meus olhos
foram abertos para coisas que eu nunca sequer tinha imaginado e minha própria culpa e confusão
me pressionavam com tudo.
Quando cheguei ao East River, me dei conta de duas coisas: que eu julgara meu avô de uma
forma tão horrível e, no fim, acabei descobrindo que não sabia nada sobre ele ou sobre a minha
própria família. E que eu também não sabia nada sobre o Sr. Drew, então como poderia conseguir
entender suas motivações, o que estava acontecendo no trabalho? Precisava conhecer sua história.
Todos tinham uma história a contar.
Ainda que fosse fictícia.
Joguei a bolsa com os papéis, a caneta, o frasco de tinta, os panos e a camisa do pijama do
avô na água negra diante de mim. Ela boiou por um momento, mas então foi afundando devagar.
Não me senti bem com isso. Só mais inquieto.
A água parecia tinta.

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CAPÍTULO 18
Não havia nada em mim que estivesse mini-
mamente a fim de ir a uma festa. Era tudo pelo que eu mais esperara nas últimas semanas e agora
mais parecia uma nuvem negra num dia ensolarado. Estava quase torcendo para que, com todo o
caos no estúdio, essa coisa toda acabasse sendo cancelada, mas o estúdio reabriu dois dias depois e
todos voltaram ao trabalho como se nada tivesse acontecido.
É claro que para a maioria das pessoas não tinha sido nada de mais, dois dias de folga, um
pequeno descanso. Mas o que eu e a Dot tínhamos passado? O que tínhamos visto? Voltar ao prédio
foi algo realmente aterrorizante. Eu não estava em qualquer posição para pedir demissão — tinha
que continuar fazendo dinheiro para a minha família. Mas também podia garantir que não ia mais
ficar vasculhando cantos escuros. Ia ficar de cabeça baixa e ir embora antes de escurecer. Focar no
meu trabalho e só no meu trabalho.
E se o Sr. Drew achava que era seguro o suficiente para que todos voltássemos lá pra dentro,
bom, eu confiava nele.
Ainda.
Mais ou menos.
O Sr. Drew deu um pequeno discurso motivacional no saguão:
— Sei que esses últimos dias foram complicados, mas já reabrimos e o trabalho continua!
Deixem que essa seja uma lição para aqueles que acham que podem mexer com o nosso estúdio! —
Ele deu uma boa gargalhada e todos aplaudiram enquanto eu trocava um olhar com a Dot. Ela foi
até mim quando a plateia começou a se espalhar.
— Oi — disse ela. — Como você está?
Não consegui fazer contato visual com ela. Não queria falar sobre nada. Só queria fingir que
nada daquilo tinha acontecido. Tinha que focar na vida real. Já estava farto de monstros.
— Tenho que voltar ao trabalho — disse e passei por ela em meio a um empurrão.
Ela não me seguiu. Dot não era do tipo que seguia as pessoas.
O engraçado é que estou sentado aqui escrevendo isso na esperança de chegar até ela.

A festa era na quinta-feira e, conforme o dia vinha se aproximando, nuvens tempestuosas se


formavam na minha cabeça. O Departamento de Música seguia fechado e ninguém ouviu falar nada
sobre o Sammy. Dot e eu não chegamos nem a conversar sobre aquela noite porque eu a vinha
evitando. Não acho que ela entendia por quê. Quer dizer, por que entenderia? Bom, provavelmente
deve ter pensado que eu ainda estava com medo por conta da criatura aterrorizante no escuro, por
conta da violinista. E, sim, eu estava. Mas não podia contar a ela a outra parte. Que eu ainda estava
processando tudo o que a mãe tinha me contado. Sobre o que aconteceu com o vô durante a guerra.
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Dito isso, o vô parecia estar muito bem. A tinta não o afetara em absolutamente nada. Acho
que depois de tudo pelo que ele passou, uma noite estranha como a que tivemos não era lá grande
coisa. Ele simplesmente tinha voltado a si e só estava um pouco decepcionado por eu ter jogado os
desenhos e a tinta fora. Queria praticar mais. Mas eu disse a ele que não podia. Não agora.
Talvez nunca mais, disse uma parte de mim.
Me sentei na cama logo pela manhã do dia da festa, segurando a bolsa do terno nos braços.
Nunca me sentira tão pesado antes. Com tamanho fardo sobre os meus ombros. Por conta... de algo
que eu não sabia explicar o que era. Só tinha a sensação de que aquela noite não iria bem.
Queria ter fé no Sr. Drew, mas quanto mais eu descobria, mais difícil era para mim e isso me
fazia me sentir um bobo. Mas então eu pensava em todos no estúdio que pareciam confiar nele,
acreditar nele. Não sabia o que pensar.
— Triste? — perguntou o vô, sentado ao meu lado. Não sabia nem que ele estava ali.
— Cansado.
Ele assentiu.
— Sim — disse. Podia dizer que estava olhando para mim, mas não quis olhar de volta. Ele
segurou minha mão na sua e disse: — Buddy. Coração seu é bom. Alma sua é boa. Isso é bom.
Eu finalmente olhei para ele, para aqueles olhos que um dia me aterrorizaram e que agora
pareciam tão calorosos e atenciosos. Desejava poder falar com ele direito. Queria dizer a ele que
não tinha certeza. Não tinha certeza de mais nada. Que o mundo me deixava confuso e assustado.
Mas não sabia como expressar isso a ele.
— Vô, me desculpa — disse em vez disso.
Ele olhou para mim, um pouco confuso.
— Desculpa? — Ele sacudiu a cabeça. — Não, não precisa desculpa.
— Não, é sério. Eu estava com raiva por você estar aqui, com raiva da arte, eu não entendia.
O vô se virou e olhou para o quadro no pé da cama. Não fazia ideia se as minhas palavras
estavam fazendo algum sentido para ele.
— Tudo bem raiva — disse ele.
Tudo bem? Não tinha certeza se isso era verdade. Não me parecia ser, isso eu podia garantir.
— Raiva pode inspirar pessoa. Pode fazer mudança. Pode fazer arte. — Ele ergueu a mão e
tocou o quadro, só a ponta dos dedos, mas eu fiquei chocado. Quem era aquele que tinha tocado o
quadro? — Paixão.
Assenti. Não tinha muita certeza de aonde ele queria chegar com isso, mas precisava escutar.
Precisava do que ele estava dizendo.
— Tanta raiva... — Ele empurrou a tela gentilmente, ainda apenas com as pontas dos dedos.
A tinta rachou e a tela foi para trás, como uma porta oculta. Havia um buraco na pintura. Fiquei
olhando. Como ele sabia que aquilo estava lá? Espera. A menos...
— Foi você... esse quadro é seu? Foi o senhor que pintou? — perguntei.
O vô assentiu. Ele fitou o buraco atentamente. Fechou o punho e então o colocou devagar lá
dentro. Encaixava perfeitamente.
— Ódio — disse, voltando-se para mim.
Não sei como eu finalmente o compreendi, depois de todo esse tempo. Mas compreendi. Era
uma pintura dele, ele a havia criado. Algo o deixou muito furioso. Ele tentou destruí-la.
O vô me abriu outro sorriso e então se voltou novamente para o quadro, tirando a mão de
dentro com todo o cuidado. Ele delicadamente pegou a ponta da tela partida entre seus dois dedos e
puxou a peça solta lentamente de volta para o lugar.
— Raiva inspira. Ódio destrói. Amor conserta. — Ele então abriu um largo sorriso. — Lição
chique — disse, quase em meio a uma risada.
Não consegui me segurar e acabei rindo também, vendo-o consciente assim. Me perguntei
como eram seus pensamentos — será que eram como os meus? Confusos e dispersos? Comentando
a respeito de tudo? Teriam talvez sido assim antes e agora eram calmos?
Ele pegou minha mão e deu umas batidinhas nela.
— Você bem.
Isso eu não achava que era verdade. Mas talvez eu fosse ficar. Talvez eu fosse ficar bem.
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O vô abriu mais um sorriso e deu mais uma batidinha na minha mão antes de soltá-la. Ele se
levantou, me deu uma última olhada e com um aceno satisfeito da cabeça, deixou o quarto.
Despedidas são difíceis. Principalmente quando você não sabe quando vai ver alguém outra
vez. Se sequer vai voltar a ver essa pessoa. Me despedir do pai me pareceu impossível, como se eu
tivesse que espremer as palavras do meu peito. Segurar sua mão porque soltá-la era difícil demais.
Mas agora eu conheço algo pior.
Não poder se despedir.

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CAPÍTULO 19
Levei o smoking para me trocar no traba-
lho porque não queria uma repetição de quando o Sr. Drew me levou de carro até em casa. Também
não conseguia me imaginar sentado no metrô com aquele terno, com todo mundo olhando pra mim.
E ir andando estava fora de questão. Eu apareceria num lugar todo elegante encharcado de suor.
Então levei a bolsa comigo, o que significava, claro, que todos que me viram imediatamente
souberam que eu tinha sido convidado. A Sra. Lambert não disse nada. Só fez olhar para a bolsa,
sacudir a cabeça e voltar ao trabalho. Mas tanto o Richie quanto o Jacob se divertiram tirando sarro
de mim. Não sei, talvez na verdade estivessem com um pouco de inveja e quisessem esconder, mas
pareciam bem decentes enquanto o faziam.
— Bom, nós íamos te convidar pra nossa própria festinha hoje à noite, no Duke’s do outro
lado da rua. Mas acho que não, Sr. Chiquérrimo — disse Jacob.
— A Dot sabe? — perguntou Richie, recostando-se na minha mesa.
— A Dot? — perguntei.
— Se ela é sua acompanhante, é isso que ele está querendo saber — disse Jacob, olhando
para Richie.
— Ah, não, não. Só eu. Sozinho. Eu... meio que queria não ter que ir. — Não quis ser tão
honesto, mas meio que saiu desse jeito.
— Tá brincando, um jovem solteirão na cidade? Cercado de damas lindíssimas, todas elas
extremamente bem-arrumadas? Você tem que ir, por mim — disse Richie.
Bom, eu não podia não ir de toda forma. Engraçado como o normal pode parecer estranho.
Às vezes, as coisas não deviam ser normais. Depois de tudo pelo que eu passei, as brincadeiras, o
trabalho, ir a uma festa me parecia muito estranho.
Não vi a Dot o dia inteiro. Nem uma única vez. Não sei por quê. Fui à Redação várias vezes,
mas ela não estava lá em nenhuma delas. Sei que ela foi ao trabalho naquele dia, outras pessoas me
disseram. Era quase como se estivesse me evitando. Talvez estivesse. Afinal, eu a estivera evitando
a semana toda. Era justo.
Queria esperar até que o resto da equipe fosse embora antes de me trocar e pôr o smoking,
mas eles tinham outros planos em mente e então fui forçado a dar uma voltinha para exibir meu
terno enquanto assobiavam para mim. Devo admitir que usar aquele terno fazia eu me sentir muito
bem. Havia algo em roupas feitas sob medida e que te deixavam bonito que afetava o seu humor.
Nós finalmente partimos e foi então que eu vi a Dot. No saguão. Esperando os outros caras
para ir ao Duke’s Pub com eles.
— Você tá de smoking — disse ela, franzindo as sobrancelhas.
— Sim, o Buddy vai àquela festa chique do Sr. Drew — disse Jacob, me dando um tapinha
de leve nas costas.
— Sério? — Ela estava me encarando com firmeza.
— Sim — disse. — Mas nem queria ir.

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— Ótimo — disse ela. — Acho que a gente devia voltar essa noite, com a festa e todos os
outros saindo mais cedo. Temos que encontrar aquela máquina. Descobrir o que faz.
Meu rosto começou a ficar quente e meu estômago apertou. Mas não era medo. Para variar.
Me dei conta de que estava sentindo raiva. Dela.
— Por quê? Por que temos que fazer isso? — perguntei de forma abrupta.
Ela pareceu surpresa.
— Porque temos que descobrir o que está acontecendo no estúdio — respondeu ela, devagar.
— Não, não temos. Não temos — retruquei. Não deixe que a raiva se torne ódio, Buddy,
disse a mim mesmo, ouvindo as palavras do meu avô no meu ouvido. Não a deixe crescer. — E
ainda que por algum motivo o mistério precise ser desvendado, não temos que ser nós a fazer isso.
— Buddy — disse Dot. Ela parecia estar se sentindo desconfortável, inquieta. Não gostava
de vê-la inquieta. — E quanto à violinista?
Minha garganta fechou quando tentei engolir. Me inclinei em sua direção e sussurrei:
— É exatamente por isso que temos que parar.
— É exatamente por isso que não podemos — ela sussurrou de volta, a voz intensa.
Sacudi a cabeça. Não. Não valia a pena arriscar minha vida por isso. Eu tinha uma família
para cuidar. Precisava protegê-los.
— Por que você precisa fazer isso? O que significa pra você?
— Eu preciso — disse ela, sua voz tremendo de emoção.
— Mas por quê? — De todas as coisas que ela não podia ser direta.
— Porque eu consigo! — Ela ainda estava sussurrando, mas parecia um grito. — Porque é
algo que eu consigo fazer. Eu realmente posso fazer a diferença. Não tenho só que ficar ali sentada,
esperando, preocupada, vendo pessoas morrerem. Eu posso impedir. E ajudar. Você não faz ideia de
como é não ter nada que você possa fazer.
Não pude evitar, eu ri. Era loucura. Se tinha uma coisa que eu sabia era como era se sentir
impotente, sem controle da situação.
— Não ria de mim — disse ela.
— Eu vou à festa. Estou cansado e não quero ir, mas é importante para o Sr. Drew.
Dot riu.
— Depois de tudo o que o Norman nos disse, você ainda acha que ele se importa mesmo
com você, Buddy?
Aquilo estava indo longe demais.
— Acho. Acho que ele se importa. Acho que ele se importa pelo menos comigo. Ele pode
não ser perfeito, mas ninguém é. Eu não sou. Ele não é. Você não é.
Dot mordeu as bochechas por dentro. Recuei um passo quando Jacob veio em nossa direção.
— Beleza, vamos começar essa festa! — disse ele, juntando as mãos.
— Achei que você não fosse — disse, distraído pela expressão no rosto da Dot.
— Não a festa chata que você vai, Buddy, a festa divertida. A minha festa. — Ele meu deu
outro tapa nas costas.
Dot continuou olhando para mim.
— Bom, divirta-se — disse ela. Então se virou com tudo em direção à porta e começou a
sair do prédio.
— Ei, Dot, espera aí! — exclamou Jacob. — Foi mal, Bud, tenho que ir. Vem se juntar à
gente no Duke’s se não beber até cair!
Ele correu atrás dela, e Richie rapidamente o seguiu, me dando uma piscadela.
E então eu fiquei sozinho no saguão.
Me sentindo terrivelmente frustrado e terrivelmente idiota. É claro que o nível de idiotice
não era nada comparado a como me senti quando cheguei ao hotel para a festa.
Primeiro, eu peguei um taxi e depois que paguei o motorista e saí na rua, me senti um burro
por gastar meu dinheiro desse jeito. Só porque não queria amassar meu smoking. E aquela elegância
no fim das contas nem pareceu importar porque, em comparação aos casais perfeitamente bem-
vestidos que entravam no salão reluzente, eu subitamente senti que as roupas não faziam o homem.

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Bom, talvez fizessem, se esse homem fosse o porteiro. Que era o que eu mais estava parecendo. Ou
talvez um garçom. Basicamente qualquer outra coisa, menos um convidado.
Não era só a qualidade do meu smoking, que eu notei não ser tão boa quanto a do smoking
do cavalheiro parado ao meu lado, esperando os elevadores. Foi o jeito como ele se portou. O jeito
como ele e sua esposa olharam para mim. O jeito como ela puxou sua estola de pele um pouco mais
para perto do corpo e a apertou junto a si. Eles provavelmente conseguiam sentir o cheiro do meu
bairro em mim. Ainda que não pudessem ver. Eles sabiam.
As portas do elevador finalmente se abriram e um atendente com um uniforme e um chapéu
de um vermelho vibrante as segurou para que entrássemos.
— A festa do Joey Drew Studios? — perguntou ele.
Assenti. A mulher com a pele respondeu que “sim” de um jeito que dava mais duas sílabas
para a palavra.
As portas se fecharam.
Ficamos parados em silêncio por um momento, subindo pelo prédio.
— Bom, isso vai ser interessante — disse o homem, suspirando.
— Ora, quieto — disse sua esposa.
Ele revirou os olhos e olhou para mim, como se quisesse que eu também revirasse os olhos
em solidariedade.
— Você conhece o Joey? — perguntou.
Eu não queria falar, não queria que eles ouvissem o meu sotaque. Então apenas assenti outra
vez e meio que pigarreei um som de sim com a garganta.
— Não sei o que ele acha que está tentando provar. Ele sequer pode pagar por isso?
— Querido, quieto — disse a esposa com um pouco mais de ênfase.
O marido olhou para mim e suspirou. Consegui revirar meus olhos dessa vez, o que pareceu
agradá-lo.
As portas se abriram.
— Cobertura — anunciou o operador do elevador com um sorriso.
Saímos numa pequena e luxuosa sala de espera, toda cor-de-rosa, tanto o carpete quanto o
papel de parede vibrante. Uma espreguiçadeira estava recostada na parede oposta e uma mulher de
vestido roxo estava sentada, checando seu batom em seu estojo de maquiagem.
Segui atrás do homem e sua esposa em direção a um conjunto de portas duplas, onde dois
homens vestidos quase exatamente como eu as abriram para uma gigantesca e barulhenta festa na
cobertura, já rolando à toda. Literalmente. A pista de dança estava cheia de casais que dançavam e
rodopiavam e uma banda tocando ao vivo para eles mais ao fundo. Me perguntei por um momento
se algum daqueles músicos trabalhava para o Sr. Drew.
Me lembrei da violinista.
Então instantaneamente tentei esquecê-la e só assimilar tudo o que estava vendo.
Essa é outra ocasião em que eu queria poder desenhar a cena. Era impressionante, mas o que
significa quando eu digo isso? Posso dizer que estávamos no pátio da cobertura com as luzes da
Cidade de Nova York espalhadas diante de nós. Era como estar no céu, cercado de estrelas. Havia
luzes brilhando na pista de dança, no bar espelhado, nos convidados que vestiam todas as cores do
arco-íris. Floreiras gigantescas cheias de jacintos amarelos emolduravam os quatro cantos do lugar.
Eu só conhecia aquele tipo de flor porque passamos um tempo recebendo várias delas. Depois que o
pai morreu. O único jeito de não querer jogá-las pela janela era aprendendo um pouco sobre elas.
Havia risada, conversa e o tilintar de copos de champanhe.
Fiquei ali parado, paralisado em admiração, boquiaberto. E naquele momento me dei conta
do quão diferente eram as vidas das outras pessoas. Não que eu já não soubesse disso desde sempre.
Mas foi meio que como um chute no saco. Um chute no saco depois de você ter sido socado e está
encolhido no chão. Eu sacudi a cabeça e pisquei com força, decidindo então que pegar uma bebida
talvez pudesse ajudar.
Então me virei e percebi que estava cara a cara com o Bendy.
Olhei para o grande sorriso, os dentes, os olhos negros sólidos. Olhei para aquele rosto que
conhecia tão bem diante de mim.
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Vivo, bem na minha frente.
Senti uma onda de náusea tomar conta de mim e tropecei, cambaleando para frente.
— Ei, cuidado! — disse ele. Ou acho que foi a voz abafada dentro do Bendy que disse. Foi
difícil para mim naquele momento entender o que estava acontecendo, meu coração estava batendo
rápido demais. Mas quando ele me segurou pelo ombro e começou a se afastar, tudo entrou em foco
mais claramente. Me virei às pressas para vê-lo vagando por entre as pessoas, que o notavam e riam
com gosto. Um homem com uma enorme fantasia de Bendy.
Foi quando vi um grande Boris na pista de dança, meio que tentando dançar Charleston de
uma forma bem desajeitada. E Alice parada junto à banda, fingindo reger. Cada uma das mascotes
tinha cerca de um metro e oitenta de altura, talvez até mais. Pareciam estranhas. Não tinham as
proporções certas. Suas aparências não estavam de acordo com as imagens que eu tinha na cabeça.
Não estavam de acordo com os desenhos. Eles não deviam ser grandes daquele jeito. Não deviam
ser do tamanho de uma pessoa.
— Eles nem sequer trabalham, não é mesmo? — disse uma voz familiar. Olhei para a minha
direita e, obviamente, o Sr. Drew tinha aparecido do meu lado.
— Não — respondi, esperando que ele não fosse se importar. Mesmo tendo acabado de
dizer o que havia dito.
— Venha dar uma olhada nessa vista comigo, Buddy — disse ele, acenando com o braço.
Eu o segui em meio aos convidados. Ele disse oi a todos, apertou mãos, deu tapinhas em
costas, riu de piadas das quais só tinha escutado o final. Era quase como uma dança, assim como a
das pessoas girando com a música. Ele me levou até onde alguns casais estavam reunidos na beira
da cobertura, olhando para o reluzente Empire State Building. A vista era, bem, magnífica.
Uma palavra que eu acho que nunca tinha usado antes daquela noite.
— Incrível, não é? — disse o Sr. Drew, debruçando-se na grade de ferro fundido. Tive na
mesma hora um flashback de quando estava do seu lado na passarela. Da pegadinha que ele fez.
Fiquei alguns centímetros atrás dele.
— Sim — respondi.
— Cada um desses prédios lá fora, cada um deles foi construído por alguém que tinha um
sonho. Que trabalhou duro e nunca o perdeu de vista.
Assenti, embora ele não pudesse me ver. Mas também não achava que ele precisasse que eu
reagisse. Ele ia dizer o que queria dizer.
Mas, no fim, ele se virou e olhou para mim.
— Você não concorda?
— Não, eu concordo — disse depressa. — Fiz que sim com a cabeça. Desculpa, eu concordo
sim. — De repente, me senti extremamente desconfortável.
Ele estreitou os olhos para mim.
— Porque algumas pessoas te dirão que você devia desistir. Que é coisa de louco.
— Sempre vai ter quem diga isso — disse.
O Sr. Drew continuou olhando para mim. Então ele subitamente estava bem perto.
— Não deixe que ninguém te refreie — disse em um sussurro alto. Podia sentir o cheiro de
álcool no seu hálito.
— Bem, Joey, esta é uma festa e tanto, mas não tenho certeza se eu mereço tudo isso. —
Uma voz bombástica quebrou seu olhar intenso e o Sr. Drew subitamente estava dando um grande
abraço num homem grande e corpulento.
— Bertie, seu velho filho-da-mãe! — disse ele com uma risada. — Então você finalmente
chegou à sua própria celebração.
Eles se separaram enquanto o homem maior ria às gargalhadas.
— Claro, claro. Você diz isso agora, mas vai querer me jogar pelo lado desse prédio quando
você-sabe-o-que bater no ventilador e tivermos que mudar o prazo.
— Bom, o que é justo é justo — disse o Sr. Drew e ambos riram mais uma vez. — Buddy!
— disse ele, virando-se para mim enquanto passava um braço sobre o ombro do sujeito. — Este é
Bertrum Piedmont. Ele é um gênio.

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— Bom, acho que alguma coisa eu sou — respondeu Bertrum, erguendo uma mão carnuda e
apertando vigorosamente a minha. — É um prazer conhecê-lo, Buddy.
— O Buddy é um aprendiz lá no estúdio. Um artista — disse o Sr. Drew.
— Bem, nós sempre precisamos de um desses — disse Bertrum, mas eu não sabia se estava
realmente falando sério.
O Sr. Drew riu e então lhe deu um tapa nas costas.
— Vamos, agora que você chegou, está na hora do discurso.
— Ah, ótimo, eu adoro esses! — disse Bertrum e os dois riram juntos enquanto seguiam em
direção ao palco.
Como podiam duas pessoas que pareciam tão felizes e despreocupadas me fazerem sentir o
completo oposto?
Eu passei pela pista de dança, mas fiquei do lado oposto do palco, perto das portas da sala de
espera. Não sabia por que, mas sentia que precisava de uma rota de fuga rápida. Só por precaução.
Quando a banda terminou com sua música, o Sr. Drew subiu no palco e recebeu o microfone
antes em posse da cantora de roupas brilhosas. Ele sorriu e a beijou em ambas as bochechas antes
de se voltar para a plateia.
— Como estão todos esta noite? — exclamou. Sua voz ribombou sobre a plateia e fiquei me
perguntando por um momento se toda Nova York podia ouvi-lo.
Houve uma alta aclamação por parte da audiência, mas não se comparava nem de longe ao
nível de entusiasmo dele.
— Primeiramente, eu gostaria de agradecer a todos por terem vindo esta noite. Gostaria de
agradecer à banda, Janie e os Bandidos. E, acima de tudo, gostaria de agradecer ao nosso convidado
especial aqui esta noite, Bertie Piedmont.
Houve outra grande salva de palmas. Se era possível que palmas soassem confusas, aquelas
certamente soaram.
— Mas quem é Bertie Piedmont, vocês se perguntam? — disse ele, claramente sentindo a
confusão. — Ele é muitas coisas. Um gênio, alguns poderiam chamar. Um amigo, é o que eu diria.
Mas, acima de tudo, é um homem de visão.
E lá estava aquela palavra de novo.
— Foi um projeto que passou seis anos sendo elaborado, mas, graças ao Bertie, Bendy e
seus amigos sairão numa aventura inteiramente nova. Não precisam temer, as histórias que vocês
tanto amam não irão a lugar algum. Mas agora vocês também poderão fazer parte delas!
Olhei em volta. Vi pessoas sussurrando e algumas risadinhas. Sim, o homem podia ser maior
que a vida. Mas aquela era a sua festa. Eles eram seus convidados. Deviam pelo menos mostrar um
pouco de respeito.
— Sim, senhoras e senhores, eu lhes apresento a Bendyland!
Com um floreio de seu braço, o Sr. Drew deu lugar a uma bela modelo morena de vestido
preto curto, usando uma auréola brilhante no cabelo. Ela empurrava um carrinho de mão no qual
estava a maquete que eu e a Dot tínhamos visto no meu primeiro dia no estúdio. Ela tinha sido
pintada, não estava mais em preto e branco. E ainda que estivessem rindo dele apenas um momento
antes, pude ver que a audiência se esticava para olhar mais de perto.
— Imaginem: jogos, atrações, tirar uma foto sua com as próprias estrelas dos desenhos! —
disse ele com um enorme sorriso no rosto. — Mas isso não é tudo! Expansão em todos os sentidos,
eu sempre digo! A partir de amanhã, o Joey Drew Studios é agora dono do Court Theater. Traremos
todas as produções do Bendy de volta à Manhattan. Com isso, tudo será produzido nesta única sede:
animações, brinquedos e tudo relacionado ao parque de diversões. Esta é uma nova era para o Joey
Drew Studios e isso é o que estamos celebrando esta noite!
A plateia voltou a aplaudir e, dessa vez, eu fiz o mesmo. Aquilo tudo era empolgante, como
poderia não ser?
— Sim, sim, é mesmo incrível, não é? Nosso foco agora é a mudança... tudo... — O Sr.
Drew pareceu um pouco distraído. Como se tivesse notado alguma coisa. — Hã... tudo vai mudar.
Mas não esta noite! Hoje, vamos dançar e... é, som na caixa!

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Ele apontou o dedo para que a banda voltasse a tocar, mas já estava andando em minha
direção antes que a música sequer começasse.
Não. Não, não era na minha direção. Ele estava olhando para trás de mim.
Eu me virei.
Parado sob a soleira da porta havia um casal que acabara de chegar à festa. A mulher, notei,
era Allison Pendle. A atriz que dava voz a Alice Angel. Estava usando um vestido que passava a
impressão que alguém havia derramado prata sobre seu corpo. Ele abraçava todas as suas curvas e
reluzia sob a luz do teto. Com o braço atado ao seu havia um homem que mal consegui reconhecer,
mas que também me parecia familiar.
— Você não devia estar aqui — disse o Sr. Drew enquanto se aproximava de mim, seguindo
em direção a eles.
— Tom, é melhor irmos — ouvi Allison dizer, mas o homem apenas continuou parado lá,
rígido feito uma pedra.
Tom Connor. É claro. Era Tom Connor.

111 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
CAPÍTULO 20
Fui empurrado para o lado enquanto o Sr.
Drew se aproximava deles. Ele foi diretamente para cima de Tom e parecia estar tremendo de raiva,
apesar do que deixava transparecer.
— Eu não vou embora enquanto não tiver o que é meu — disse Tom enquanto o Sr. Drew o
encarava. O Sr. Drew riu como se Tom tivesse contado uma excelente piada e olhou em volta para
as poucas pessoas que os observavam. Elas logo se dispersaram.
O Sr. Drew se voltou para Tom novamente e, numa voz baixa, disse:
— Você está demitido, Tom. Eu disse para não chegar nem perto do meu estúdio. Vamos
para a sala de espera, pode ser?
— Não estamos no seu estúdio agora, estamos? — respondeu Tom, impassível. Não tinha
como o Sr. Drew intimidar esse homem fisicamente. Tom não era corpulento feito um urso, como
Bertrum Piedmont. Não, estava mais para uma muralha. Ainda assim, o Sr. Drew o agarrou pelo
cotovelo e disse entredentes:
— Lá fora. Já.
— Vamos, Tom, não precisa fazer uma cena — disse Alisson, a voz suave, pondo uma mão
gentilmente sobre seu ombro.
Tom permitiu que ele o escoltasse ao salão cor-de-rosa. Eu os segui. Tinha que descobrir o
que estava acontecendo. Nem pensei a respeito ou me dei conta do quão estranho era o fato de eu
estar indo junto. O Sr. Drew sinalizou para que as grandes portas fossem fechadas e, tão logo os
recepcionistas o fizeram, ele se virou com tudo, seu sorriso desaparecendo, e disse:
— Você precisa ir embora imediatamente, antes que eu chame a segurança aqui para jogá-lo
para fora!
— Eu quero a minha patente de volta — disse Tom, direto na cara do Sr. Drew. Os dois
estavam quase encostando os narizes. Ou melhor, o nariz de um no queixo do outro.
— Ela é minha, legal e eticamente. Agora saia. — Ele se virou para Alisson. — E, Alisson,
estou envergonhado de você. Está demitida.
Alisson apenas abriu aquele seu sorriso deslumbrante que me fez derreter um pouco, apesar
da cena estar me deixando incrivelmente tenso.
— Conversamos sobre isso de manhã, Joey. Venha, querido. — Ela deu um empurrãozinho
no ombro de Tom e era evidente que conseguia mover montanhas porque, mais uma vez, ele cedeu
e recuou um passo.
— É a minha máquina, Drew, minha.
— Você arruinou tudo e eu que vou ter que consertar. É a minha máquina e a sua bagunça.
Agora vá embora.
Eu ouvi tudo. Tudo o que o Sr. Drew disse. Mas não consegui absorver na hora porque só
conseguia focar na palavra “máquina”.

112 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
Observei enquanto Tom e Alisson seguiam lentamente em direção aos elevadores. O Sr.
Drew se virou e abriu uma das portas, sem sequer notar que eu estava bem ali. Ele entrou de volta
na festa com tudo. E fechou a porta atrás de si.
Eu logo me virei, afastando-me rapidamente das portas, da festa. Seguindo Tom e Alisson. E
então eu estava segurando o sujeito pelo ombro. Tentando fazê-lo parar. Precisando fazê-lo parar.
E assim o fiz.
Ele deu meia-volta, furioso, e me encarou como se eu fosse louco.
— Ouvi você dizer alguma coisa sobre a máquina — disse depressa enquanto ele se soltava
da minha mão.
— Tire as mãos de mim, filho. — Ele estava me olhando com facas nos olhos.
— Tom, está tudo bem. Ele é o office-boy do estúdio. O Buddy — disse Alisson.
Olhei para ela por um momento. Como diabos ela se lembrava de mim? Fiquei embasbacado
com a ideia de que alguém como ela sequer notaria que eu ocupava espaço no planeta.
— Não me importa. Ninguém me segura desse jeito — disse Tom.
— Desculpa, desculpa, mas você disse alguma coisa sobre a máquina e eu preciso saber. —
Eu parei. Pude notar que os dois foram pegos de surpresa com isso. Com o que eu disse. Não tinha
certeza se eu devia continuar.
— Como sabe sobre a máquina? — perguntou Tom, aproximando-se um passo em minha
direção. Podia parecer elegante, mas notei quão bem ele preenchia suas mangas, como seus braços
forçavam o tecido. Eu definitivamente não queria brigar com esse homem.
Não consegui pensar em nada que fizesse sentido. Não podia lhe contar sobre o Norman ou
sobre quando fiquei escondido no armário. Então deixei voar a única palavra que consegui pensar:
— Sammy.
Tom suspirou alto e Alisson lhe apertou o braço.
— Devia ter imaginado — disse ele. Mas não disse nada mais.
Não sei onde encontrei a coragem, mas acho que canalizei um pouco da objetividade da Dot
naquele momento. Estava tão cansado de pessoas que não diziam as coisas de uma vez. De receber
só parte da história.
— O que é a máquina? Para que ela serve? E por que o Sr. Drew te demitiu? — Eu queria
fazer ainda mais perguntas. Queria perguntar se ele achava que o Sr. Drew era bom ou mau. Queria
perguntar sobre a tinta e o Sammy. Sobre a criatura, a violinista. Mas também sabia que perguntas
demais confundiam as pessoas.
Eu agora sei que quando faço perguntas demais para mim mesmo, eu começo a desligar. Ele
começa a lamuriar. Não gostamos disso.
Tom respirou fundo e deu uma olhada pela sala luxuosa.
— Certo. A máquina foi feita para criar... — Ele fez uma pausa. — Personagens.
— Como as mascotes lá dentro? — perguntei. Não parecia algo tão esquisito. Eles já faziam
brinquedos, por que não uma máquina que fazia grandes fantasias do Bendy?
Tom sacudiu a cabeça devagar. Pela primeira vez, me dei conta de que ele não estava se
segurando apenas por teimosia. Ele estava... com medo.
— Eu não devia estar te contando isso... — disse ele, ainda sacudindo a cabeça.
— Olha, eu sei sobre... a tinta — disse. — E sei... sobre... — Parei.
Tom olhou para mim com cautela. Era difícil manter contato visual com ele. Queria desviar
o olhar. Para qualquer coisa.
Finalmente, ele disse:
— Você sabe sobre aquilo.
— Não tenho certeza — respondi. Porque não sabia o que eu sabia.
Tom respirou fundo outra vez.
— Certo. Certo — disse ele, decidindo-se. — Certo. Não eram mascotes. Nada desse tipo.
Era... um jeito de pegar os desenhos e torná-los reais. Não pessoas em fantasias de mascotes, mas
versões reais, vivas, dos personagens. — Ele olhou para mim como se para perguntar se eu tinha
entendido. Eu não achava que tivesse.
Alisson interrompeu:
113 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— Pense nela como uma impressora, mas... para pessoas.
— Pessoas? — perguntei.
— Não pessoas, Alisson. Por favor — disse Tom, sacudindo a cabeça. — Não quero você
envolvida nisso.
— Eu já estou, Tom. Você não pode me fazer não me importar porque eu me importo com
você. O que você ajudou a criar foi algo extraordinário.
— O que eu ajudei a criar foi algo monstruoso e você sabe disso — disparou ele, voltando-
se para ela. Então sacudiu a cabeça. — Desculpe, desculpe.
— Tudo bem. Mas devíamos ir. Tenho certeza que ele já chamou a segurança.
Tom assentiu.
— Não foi minha culpa — disse. Então me fitou com aquele olhar intenso outra vez. — Não
foi minha culpa.
— O que não foi? — perguntei, cauteloso.
— Ele me demitiu porque não foi minha culpa — continuou Tom, sem mais de fato me
ouvir. — Ele me demitiu para pôr a culpa em qualquer um que não ele mesmo. — Ele olhou para
mim por cima do ombro. — Mas ele ainda está com a máquina. Mesmo depois de tudo. E aquela é
uma invenção da Gent, eu ajudei a inventá-la e ele me tirou os meus direitos, o meu design, tudo.
— Como ele pôde fazer com que você fizesse isso? — perguntei.
Ele se virou devagar e sacudiu a cabeça.
— Nem todos temos boas conexões, filho. Nem todos temos chances. Especialmente para
conseguir emprego como engenheiro quando não tive uma boa formação e treinamento. Ninguém
em qualquer posição tinha me dado aquele tipo de respeito desde o tempo que trabalhei com aviões
durante a guerra. Eu confiei nele. Ele me pagava extra. Tinha um contrato legal com a Gent. Me
tratava como um verdadeiro homem de negócios. Mas eu não li as letras miúdas.
Eu não soube o que dizer frente a tudo isso. Só fiquei ali parado.
— Todos nós confiamos nele — disse Alisson. — Não conheço ninguém que realmente
entendesse o que estava assinando. Acho que o Sr. Drew gosta de achar pessoas que são talentosas
mas que também precisam do emprego. Que realmente precisam do emprego.
Eu agora sentia algo engraçado no estômago. Não mais um aperto, nem borboletas, só uma
dor estranha.
— Não vamos nos esquecer da Susie — acrescentou ela.
Tom suspirou.
— Quem é Susie? — perguntei. O Norman também não tinha mencionado algo sobre ela?
Alisson olhou para mim com uma expressão triste no rosto e sacudiu a cabeça.
— Não é essa a questão, Buddy. A questão é que todos aqui concordam que o Sr. Drew é
dono de tudo que produzimos. Desenhos. Histórias. Canções. E... — Ela olhou de novo para Tom.
— Invenções. Começou com o Henry e continua com o resto de nós. É o sacrifício que fazemos.
Eu estava processando tudo o que eles estavam me contando. Estava tudo desabando sobre
mim, todas as muralhas que eu erguera em defesa do Sr. Drew. Eu já não conseguia mais sustentá-
las e estava sendo enterrado embaixo delas.
— Agora nós temos que ir e você vê se se cuida. E cuide daquela escritora. Ela é supimpa —
disse ela com um sorriso pequeno e entristecido.
— Normalmente é ela que cuida de mim... — respondi.
A sensação no meu estômago ficou mais forte.
— Dê o fora enquanto pode, filho — disse Tom, quando o elevador se abriu e eles entraram.
As portas se fecharam e eu estava sozinho. Os sons da festa vazavam pelas portas, mas eles
agora já não me tentavam mais. Só deixavam a minha inquietação pior.
Eu não devia estar aqui, pensei. Não devia. Eu devia estar com a Dot. E com o Jacob. Esse
não é o meu lugar. Meu lugar é com as pessoas que são importantes para mim.
Que se importam comigo.

114 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
O Duke’s Bar estava tão cheio quanto de costume quando fui me espremendo pelo bar. Pela
primeira vez, as pessoas lá me notaram. Algumas riram, algumas assentiram como se tivéssemos
algum tipo de segredo compartilhado a respeito do meu smoking, enquanto outras só me encararam.
Senti falta de ser um zé-ninguém invisível.
— Oi, garoto — disse o barman, um sujeito feliz com entradas no cabelo que se recusava a
aceitar. — Uma Coca como sempre?
Sacudi a cabeça.
— Estou procurando a Dot — disse. O barman sorriu.
— Claro que está. Bom, não os vejo vai fazer uma hora.
— Ah — disse, sentindo-me murchar. Apoiei meu corpo no bar, agora com um grande peso
nos ombros.
— É, acho que eles voltaram pro escritório. — O barman se voltou para o próximo cliente
que o estava chamando.
Pro escritório?
— Espera! — gritei. — Todos eles? A Dot, o Jacob e o Richie?
O barman estava puxando uma caneca e assentiu em minha direção, a parede de som entre
nós densa demais para que pudesse dizer algo que eu fosse escutar.
Dei meia-volta e segui para o lado de fora, onde então atravessei a rua. É claro que estava
entrando em pânico de novo. E é claro que, de alguma forma, Dot tinha convencido os caras a
voltarem com ela para o estúdio. Me perguntei se ela tinha explicado tudo. Me perguntei se eles
entendiam o que os estava esperando.
Ela tinha que ter explicado. Não era mentirosa e não ia colocar alguém em perigo sem que a
pessoa soubesse o que estava acontecendo. Ainda assim. Sendo assim. Por que diabos eles foram
com ela? Não tinha como saberem o que se escondia em meio às sombras negras, ou que as próprias
sombras estavam vivas.
As luzes do estúdio estavam todas acesas, embora, por algum motivo, ele não parecia menos
sinistro que na noite em que eu e a Dot ficamos presos lá dentro. Especialmente porque eu tinha
sacado, elas estavam acesas para que, se o monstro aparecesse, houvesse um sinal.
O pensamento não me segurou ou me fez desacelerar. Era incrível como entrar no covil de
um monstro de repente me pareceu o certo a fazer, mas ir a uma festa num hotel chique me parecera
o juízo final.
A porta da frente estava aberta. Talvez a Dot a tivesse deixado assim de propósito, caso eu
aparecesse. Porque ela sabia que eu ia aparecer. Disparei pelo saguão e segui rumo ao elevador,
olhando para os pôsteres ao longo do caminho. Subitamente me lembrei das versões em tamanho
real dos personagens na festa e sua esquisitice absoluta. E então do que Tom havia dito. Sobre o
propósito da máquina. E sobre “aquilo”.
Comecei a correr e derrapei quando vi a grade do elevador, batendo nela com tudo. Suspirei
enquanto a abria e entrei. Precisava ir com calma, não ficar tão em pânico. Mas era difícil não ficar.
Eles estavam em algum lugar lá embaixo, procurando aquela fera sozinhos.
Cheguei ao andar do Departamento de Música e dei um passo cauteloso pelo corredor. As
luzes estavam acesas com força total e isso me deu confiança para avançar com cuidado em direção
ao Departamento de Música. Não sabia com certeza absoluta se eles estavam lá, mas acreditava que
estavam. Afinal, era onde tudo parecia acontecer.
Estava com tanto medo das luzes bruxuleantes que às vezes a minha imaginação me pregava
peças — achava que tinha visto um tremeluzir pelo canto do olho, mas, quando me virava, as luzes
continuavam zumbindo com força. Estáveis. As sombras não estavam vindo atrás de mim. Não
estavam lá. Ainda. Enquanto as luzes continuassem brilhantes eu estaria bem, lembrei a mim
mesmo. Mas tinha me esquecido a respeito da tinta nas paredes. Se eu achava que ver aquela tinta
reluzente de relance com o feixe de luz da lanterna era mais assustador que vê-la com a iluminação
normal, bem, eu estava muito enganado.
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Quando fiz uma curva e me deparei com a tinta, havia algo extremamente inquietante no
fato de simplesmente vê-la... ali.
Sem tentar se esconder. Sem tentar ser nada. Só orgulhosamente espalhada por todo lado.
E havia algo novo também. Algo que não estivera ali antes, quando eu e a Dot cruzamos as
barreiras da polícia. Algo escrito na tinta, desenhado por um dedo, imaginei:
“Ele Nos Libertará.”
Parei e olhei para aquilo. Como o caderno. Como a tinta que escorrera das notas de música,
metade na folha, metade na bancada.
“Ele Nos Libertará.”
Tive um pensamento repentino. Um pensamento estranho, profundo e perturbador.
E se o Sammy não tivesse desaparecido? E se...
E se estivesse se escondendo?
— Olá, Departamento de Artes — disse uma voz atrás de mim.
Eu me virei no mesmo instante, apenas para ver que estava cara a cara com o Bendy.
De novo.

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CAPÍTULO 21
Eu já tinha sido deixado inconsciente uma
vez antes, numa briga. Ou talvez não estivesse tanto para uma briga, foi mais uma surra mesmo. Por
ser diferente. Como sempre. Já estava conseguindo me defender melhor. Fugir melhor. Mas daquela
vez, os valentões me pegaram de surpresa. Pularam em cima de mim enquanto eu estava virando a
esquina de casa.
Eles não queriam me desacordar. E tenho certeza que os valentões ficaram assustados com
isso. Não com as consequências. Mas com o seu próprio poder. Eles me deixaram em paz por um
tempo depois disso.
Mas eu não me lembrava muito de como tinha sido. A parte de ter sido espancado. A parte
de acordar. E quando abri os olhos na Sala de Música, no palco, amarrado numa cadeira, eu tinha
certeza absoluta de que não me lembrava daquela dor de cabeça ardente que parecia queimar os
meus olhos naquele exato momento.
— Ei, Buddy, você tá bem?
Pisquei algumas vezes para tentar me reorientar e então me virei na cadeira, onde encontrei
Richie olhando para mim, amarrado assim como eu. Ele abriu um sorriso aliviado. Não acho que já
tivesse sorrido para mim de forma sincera assim antes. Seus sorrisos costumavam ser sempre um
pouco... sarcásticos.
— Richie, o que está havendo? — perguntei em pânico.
— É o Sammy. Ele perdeu a cabeça. Ou o que restou dela — disse, seus olhos vasculhando
a sala escura.
Também olhei em volta, mas estávamos sozinhos.
Estávamos sozinhos.
— Cadê a Dot e o Jacob? — perguntei. As cordas à minha volta ficavam mais apertadas à
medida que eu tencionava o corpo.
— A Dot fugiu. — Meus músculos instantaneamente relaxaram. — Não sei onde ela está. O
Jacob... ele pegou. Ele o levou... Buddy, acho que ele planeja... — Richie parou de falar, como se
tivesse ouvido alguma coisa.
Eu também ouvi. O som da porta se abrindo. Nós nos viramos e olhamos ao mesmo tempo.
— Esse é o Sammy? — sussurrei.
Richie assentiu de um jeito meio louco e apressado, mas não disse nada. Seus olhos estavam
arregalados, seu corpo inteiro tremendo.
— Ora, ora, vejam o que a fera trouxe pra cá — disse Sammy naquela sua voz superior. Era
ele. Era ele atrás da máscara.
Era tão estranho e errado. Ele estava usando o que parecia uma máscara de papelão, do tipo
que se destaca da parte de trás de uma caixa de cereal para o Halloween. Como uma máscara de
gatinho ou coisa assim.
Mas aquilo não era um gato.

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Era o Bendy. O rosto do Bendy. Com aquele sorriso. Aquele grande sorriso cheio de dentes.
Pela segunda vez naquela noite, eu estava olhando para aquele rosto e começava a notar como ele
não era nada fofo.
Mas a máscara não era a única coisa perturbadora nele. Sammy estava usando seus calções e
suspensórios, como de costume, mas não estava de camisa. Em vez disso, seu peito, suas mãos, seu
pescoço e — acreditava eu — seu rosto atrás da máscara estavam cobertos de tinta negra e brilhosa.
Era difícil dizer se estava seca ou molhada, já que ela reluzia à luz das lâmpadas. Mas, de alguma
forma, parecia parte dele. Já era parte dele há algum tempo.
— Sammy, o que está fazendo? — perguntei quando ele começou a seguir lentamente em
direção a seu suporte de partituras, olhando para nós.
Sua voz soou como se ele estivesse sorrindo atrás da máscara. Como se estivesse feliz:
— Apenas eu sei o que ele quer.
Aquilo era loucura.
— O que aconteceu com você?
— Ha! — Sammy vociferou uma risada. — O que aconteceu comigo? Você sabe o que
aconteceu comigo! Você estava lá! Você viu!
Eu estava? Eu vi?
— Naquele dia, quando a tinta me encontrou. Ela me queria. Ele me queria. No início, eu
tive medo. No início, conseguia senti-las dentro de mim, as gotas que engoli por acidente. Por sorte.
Conseguia senti-las se mexendo dentro de mim. Não devia ter tido medo. Fui um tolo. — Ele estava
acelerando, jogando as palavras quase mais rápido do que conseguia dizê-las. — Então começou o
desejo. Eu precisava de mais tinta. Não havia escolha. Era preciso. E quanto mais eu consumia,
mais eu entendia. Mais eu o sentia. O escutava. Precisava agradá-lo.
Sammy então começou a dar a volta na sala. Se eu conseguisse fazê-lo continuar falando...
Comecei a puxar minhas mãos em meio às cordas. Tentando me soltar à força.
— Vejam vocês dois nessas vidinhas tristes. Vivendo só um dia atrás do outro. Pra quê? Pra
agradar Joey Drew? — Ele deu outra risada, dessa vez mais longa e pesada. Ele respirou fundo. —
Por que agradar um homem quando se pode agradar um deus?
Fui puxando as cordas com cada vez mais força.
— Onde está o Jacob? — perguntei.
— Onde tudo começou. Um pequeno gesto no início. E então, bem... Então...
— Onde é isso?
Sammy parou de andar. Estava bem no meio da sala, longe o bastante para que ficasse quase
completamente oculto nas sombras. Os olhos do Bendy olharam para mim, olharam para a minha
alma. Ainda que fosse só papelão e tinta.
Tinta.
Maldita tinta.
— Shhhhh. Chega de perguntas, carneirinho. — Ele riu depois de dizer isso. — Carneirinho,
carneirinho, está na hora do soninho — disse ele numa voz cantarolada.
Crash.
E com isso Sammy estava estirado no chão embaixo de um grande projetor, inconsciente e,
graças a tudo que é mais sagrado, quieto.

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CAPÍTULO 22
— Vocês estão bem, garotos? — disse uma
voz familiar do alto da cabine de projeção.
— Dot! — exclamei.
— Mas ele gosta mesmo de falar, hein? — comentou ela, sacudindo a cabeça enquanto se
debruçava no parapeito.
— Sim — respondi, aturdido, mas me sentindo também um pouco eufórico por vê-la.
— Já desço aí. — Ela desapareceu em meio à escuridão outra vez.
Olhei para Richie com um sorriso, mas ele estava branco feito papel, como se tivesse visto
um fantasma.
— O que diabos foi isso? — berrou ele.
Assim que abri a boca para responder, Dot abriu a porta e entrou correndo na sala.
— Desculpa ter demorado tanto, precisava que ele estivesse no lugar certo. Não sou forte,
mas sou estrategista. E só tinha uma chance — disse ela, indo para trás de Richie e desamarrando as
suas mãos. Então foi até as minhas.
— O que houve? — perguntei.
— Quando ele atacou, não sei se notou que eu estava lá, só os garotos. Eu consegui fugir e
fiquei escondida por um tempo, mas aí o vi arrastando o Jacob e soube que não podia simplesmente
ficar escondida pra sempre. — Ela finalmente desamarrou as minhas mãos. Eu as trouxe para frente
e esfreguei os pulsos por um momento. — Você veio.
Não conseguia olhá-la nos olhos, me sentia envergonhado.
— Sim.
— Por quê?
— O Sr. Drew... acho que não confio mais nele — disse. Estava minimizando a situação,
mas, ao mesmo tempo, me sentia um verdadeiro idiota. Como se fosse um tonto por ter acreditado
nele. — E não foi por isso. Foi também... — Eu não sabia como dizer.
— Tudo bem... — disse Dot. Mas eu sacudi a cabeça.
— Vou falar bem rápido. Direto. Como você faz — disse. — Eu achava que cuidar das
pessoas que importam para mim era fazer dinheiro para a minha mãe e o meu avô, era zelar por
eles. E é. Mas é mais que só isso. Eu posso conseguir outro emprego, sempre vou ajudá-los. Mas
você precisava da minha ajuda esta noite. Você estava em perigo. E eu estava numa festa idiota. O
que eu te disse antes, o que eu fiz, foi errado e eu sinto muito.
Eu finalmente a olhei nos olhos.
— Tá tudo bem — disse ela. — Eu entendo. Você não faz ideia do quanto eu entendo. —
Ela tinha no rosto uma expressão que eu não consegui ler, não era nada que já tivesse visto antes.
Triste, mas doce. E cansada.
— Pessoal — disse Richie. Tinha esquecido que ele estava ali.

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— Temos que salvar o Jacob — disse Dot, sua voz toda determinada de novo. Assenti e me
curvei depressa para soltar meus pés enquanto ela ajudava Richie, que ainda estava lá sentado,
desnorteado.
— Você sabe para onde ele o levou? — perguntei, me levantando.
— Não sei. Acho que para onde está a máquina. Mas sinto que já vasculhei cada canto do
estúdio nessas últimas semanas. Já fui pra tudo que é lugar, Buddy. É como se ela fosse invisível ou
coisa do tipo. — Richie estava livre e alongou o corpo inteiro enquanto se levantava.
Foi quando me ocorreu. O discurso. Na festa.
— O teatro — disse. — Só pode estar no teatro.
— Que teatro? — perguntou Richie.
— O prédio ao lado. O Sr. Drew o comprou. As peças pararam faz uma eternidade. Talvez...
Não, não acho que seja um talvez. Ela está lá.
Dot assentiu, concordando comigo instantaneamente. Ela se virou para Richie.
— Certo, Richie, você precisa ir à festa e contar a alguém o que está acontecendo aqui.
Traga o Sr. Drew — disse ela.
Senti meu estômago revirar. Aquilo me parecia errado.
— Tem certeza? — perguntei. Pensei no Tom, talvez ele pudesse ajudar. Mas então me dei
conta de que eu não tinha como saber onde ele estava ou como contatá-lo.
— Não sei o que mais fazer.
Assenti. Não tínhamos tempo para ficar ali parados discutindo todas as nossas opções.
— Bom, sim, ele não vai aprovar o que o Sammy está fazendo, então seja lá o que mais ele
fosse pensar, ela ia querer impedir isso — disse.
— Exato. Ele não pode chamar a polícia — disse ela. — Isso é tudo estranho demais e vai
saber quem eles culpariam.
Àquela altura, todos nós podíamos ser presos, por invasão, por... simplesmente estar no
lugar errado na hora errada.
— Certo. Richie, vá trazer o Sr. Drew. Ele está na festa.
— Sim — disse Richie. Ele estava tremendo.
— Você consegue — disse, colocando uma mão no ombro dele do mesmo jeito que a Dot
sempre colocava uma no meu. Pareceu surtir o mesmo efeito nele.
— Eu consigo — disse ele, um pouco mais confiante.
— Bom. — Dot se virou para mim. — E você e eu, bem, acho que vamos ao teatro.

— Estamos bem alto, então toma cuidado — avisei a ela. Ela assentiu e nós dois entramos
pela passarela escura. Dot imediatamente acendeu sua lanterna e eu senti uma onda de alívio por
saber que tínhamos um pouco de luz para nos manter em segurança. Ou pelo menos para nos avisar
que não estávamos.
Ficamos ali parados, assimilando nossos arredores. O teatro era muito mais intimidador no
escuro. Não conseguia ver tão claramente. As sombras das cordas à frente brincavam com a minha
imaginação, às vezes quase parecendo vivas, como uma floresta de cobras. Então Dot passou a luz
pela passarela gradeada, voltando-a para o palco bem lá embaixo. O cruzamento das sombras que
cresciam e então sumiam em meio à luz me lembrou das sombras vivas na Sala de Música. E então
a luz iluminou alguma coisa. Foi um vislumbre rápido, mas logo desapareceu.
— Dot, traz de volta — murmurei.
Ela ergueu a luz de novo e foi aí que nós vimos. Alguma coisa. Alguma coisa balançando
mais abaixo, pendurada em uma das barras usadas para sustentar os cenários.
— O que é isso? — sussurrei.
Sem responder, ela partiu em direção à massa no centro do espaço e eu a segui de perto. A
coisa embaixo de nós sacudiu devagar em resposta aos nossos movimentos balançando a passarela.
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Como se uma brisa leve a estivesse soprando. Estávamos bem em cima dela agora e a Dot então se
abaixou. Mais uma vez, segui suas ações e nos deitamos de barriga para baixo na passarela, olhando
por entre as grades.
A luz ricocheteou na massa suspensa em meio a uma série de cordas que vinham de várias
direções diferentes, feito uma mosca numa teia de aranha. Ela brilhou frente à luz, aquele brilho
asqueroso de tinta molhada.
— É uma pessoa? — perguntei, me sentindo subitamente enjoado.
— Não sei. — Dot não parecia assustada ou enjoada.
— É o Jacob?
— Não sei. Não importa. Seja lá o que ou quem for, temos que tirar daí. Tem que ter um
jeito de levar lá pra baixo. Afinal, teve um jeito de trazer aqui pra cima.
Nos levantamos e rapidamente seguimos para o outro lado da passarela, rumo a uma escada
estreita presa à parede externa do teatro, que nos levaria até a altura do palco. Dot desceu primeiro,
desligando a lanterna enquanto o fazia. Eu a segui. Descer no escuro daquele jeito, pisando em cada
degrau da escada à medida que eles surgiam, me fazia sentir que o tempo tinha parado. Conseguia
ouvir cada rangido daquele lugar. Segurei o fôlego para ouvir mais que isso. Muito mais.
— Estou no chão — Dot sussurrou para mim e logo eu também estava. Ficamos ali parados
por um momento. Conseguia escutar sua respiração que, embora estável, por algum motivo não me
parecia calma. Soava mais como se ela estivesse tentando mantê-la sob controle, mas sem sucesso.
Ela acendeu a lanterna mais uma vez e lançou a luz para cima. Ela arquejou.
E eu entendi por quê.
Não havia apenas uma massa suspensa lá em cima. Havia pelo menos três. Figuras de tinta
negra, cada uma delas em meio a uma teia cuja silhueta perfilava nas cortinas do teatro.
— Três — disse em voz alta.
— Olha! — Dot apontou. Ela iluminou uma das figuras com a lanterna. Estava se debatendo
em meio às cordas. Não com muito esforço, mas estava se mexendo.
— Temos que trazer todos aqui pra baixo — disse, mas Dot já estava correndo em direção às
roldanas enfileiradas na parede. Me sentia feliz por ela estar comigo, mas também aterrorizado com
a ideia de que a qualquer momento podíamos ser nós lá em cima. De que podíamos ser atacados por
trás e subitamente estar numa teia nossa, cobertos assim como eles. Com tinta em nossos rostos, em
nossas bocas, pingando por dentro de nossas gargantas.
— Buddy, me ajuda!
Tentei me livrar do medo, mas ele persistiu mesmo enquanto me juntava a ela e contávamos
as cordas até encontrarmos as que pareciam corresponder à barra. Dot cuidadosamente desfez o nó
que segurava a corda no lugar e, juntos, começamos a abaixar a barra. As teias começaram a descer.
Os guinchos por onde as cordas passavam chiaram enquanto o fazíamos e, ainda que não fosse alto,
foi o suficiente para que a minha frequência cardíaca aumentasse ainda mais. Abaixei o olhar em
direção à luz da lanterna que brilhava no chão. Um feixe estável. Bom.
Mais alguns instantes e as massas estavam no chão. Corri até elas imediatamente e, assim
que o fiz, as luzes se acenderam num forte zumbido lá no alto. Me virei e olhei para Dot, que corria
para me alcançar.
— Não dava pra ver nada e imaginei que a luz ajudaria a nos manter mais seguros.
Era verdade. Mas havia algo aterrorizante na ideia de que agora estávamos expostos daquele
jeito, no meio de um palco todo iluminado. Olhei em volta, só para ver. Caso a criatura estivesse ali
em algum lugar. Caso a tinta estivesse se arrastando lentamente em nossa direção, como eu a vira se
arrastar pelo meu avô. Não havia ninguém. Os assentos da plateia eram um buraco negro de nada.
Mas tinha uma coisa. Lá, bem no meio do palco, no meio de tudo, estava a máquina.
Segurei o fôlego enquanto olhava para ela. Era grande e quadrada, com um enorme tubo
curvo do qual uma tinta espessa e pegajosa pingava. Parecia possível entrar e subir pelo tubo bem
facilmente, caso alguém quisesse fazê-lo. A máquina também parecia rústica, caseira, como se não
tivesse sido finamente trabalhada. Seus parafusos eram grandes e destrambelhados e suas laterais
estavam soldadas uma na outra, arqueando e borbulhando nas juntas.

121 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— Buddy, é o Jacob! — Dot tinha ignorado completamente a máquina e correu em direção
às massas. Logo me juntei a ela e vi do que se tratava.
Ela estava certa. Era o Jacob. Coberto da cabeça aos pés com bolhas espessas de tinta. Me
lembrou um pouco da primeira vez que eu vi o Sammy.
Daquele primeiro dia. Do dia em que a tinta o tomou.
— Temos que limpá-lo — disse, rapidamente tirando minha jaqueta e esfregando seu rosto.
Suas feições se materializaram embaixo da gosma e Jacob subitamente respirou fundo, puxando o
ar para dentro.
— Fujam, vocês têm que fugir — disse ele, ofegante.
Dot sacudiu a cabeça.
— Está tudo bem, as luzes estão brilhantes. Estamos bem. — Ela então tirou seu suéter e
continuamos esfregando a tinta dele. — Eu faço isso, você desamarra as cordas — ela me disse.
Olhei para a teia. As cordas estavam amarradas por todo o seu corpo, encharcadas de tinta.
Parecia impossível.
— Preciso de alguma coisa para cortar.
— Tem um machado na caixa de incêndio — disse Dot.
— Já vejo, vou dar uma olhada nos outros.
Me levantei depressa e fui correndo até os outros corpos. Comecei a limpar a tinta. Um rosto
apareceu. Era o Dave. Do meu departamento.
— É o Dave — disse. O bom e velho Dave, sempre quieto, sempre fazendo o seu trabalho.
Dot ergueu o olhar, chocada.
Eu nem sabia que ele tinha desaparecido. É claro que não. O sujeito ia para casa cedo toda
noite. Às vezes nem parecia estar lá, sempre de pausa ou coisa do tipo. Eu o sacudi pelo ombro.
— Dave — disse. — Vamos, acorda!
Sua cabeça pendeu para o lado, inerte. Há quanto tempo ele estivera lá em cima? Há quanto
tempo estivera sufocando naquela tinta? Lutando para fugir? O horror era demais para imaginar.
— Eu sinto muito, Dave — disse.
Precisava checar o outro corpo, mas estava profundamente aterrorizado. Com medo de que
houvesse uma ordem para a loucura. O jeito como os corpos foram pendurados na barra. Tentei
limpar a tinta o mais rápido que pude, mas eu sabia, bem lá no fundo, que não faria diferença.
Um rosto apareceu.
Norman.
Essa não.
Ah, Norman.
É claro que ninguém notaria que ele havia desaparecido. De todos no prédio. Ele observava
todo mundo, mas ninguém nunca o via. Ou pelo menos não muito.
Me levantei devagar e olhei para os dois corpos lado a lado. Uma grande tristeza pareceu
tomar forma dentro de mim. Eu não tinha tempo para luto e também não conhecia nenhum daqueles
homens muito bem. Mas mortos. Realmente, verdadeiramente mortos. Seja lá o que fosse o que
aquela máquina tinha feito, seja lá como tivesse acontecido, pessoas estavam morrendo. Pensei na
violinista. Me lembrei dela caída no chão. Não tinha imaginado que podia estar morta agora.
O Sr. Drew não podia saber daquilo. Não podia. Aquilo era demais, ele nunca quis aquilo.
Ele ia destruir a máquina. Agora que sabia.
Não ia?
— Não, Jacob, por favor, mantenha a calma — ouvi a Dot dizer. Isso me trouxe de volta ao
presente e eu fui até ela.
— Vocês têm que me ouvir — disse ele, tentando se erguer, sem sucesso, escorregando na
tinta embaixo de si e caindo com tudo sobre os cotovelos. Ele gemeu de dor e se deitou novamente.
— O que foi? — perguntei à Dot.
— Ele está traumatizado, é óbvio. Por causa da criatura. Temos que tirá-lo daqui. Temos
todos que sair daqui.
Assenti e me virei de novo para pegar o machado. Mas assim que o fiz, Jacob me chamou:
— Buddy, me deixe.
122 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
Desviei o olhar por um momento para o chão do palco, para a luz. Ainda estava brilhante.
Ainda era seguro.
— Não antes de te desamarrarmos.
Corri então até os bastidores, procurando freneticamente pelo machado. Logo o encontrei
trancado em sua caixa de vidro. Corri de volta até a Dot, pequei sua lanterna e, sem nem pensar a
respeito, voltei às pressas. Com um rápido movimento, eu quebrei o vidro. Recuei um passo quando
os cacos voaram pelo ar. Senti uma pontada de dor na bochecha, onde um deles me cortou. Passei a
mão pelos cacos quebrados e agarrei o machado, rasgando minha camisa no processo. Mas não me
importei, com nada disso. Só corri de volta até o Jacob.
— Deite. — Dot o empurrou um pouco pelos ombros. Ele ainda estava resistindo.
— Não! — Seus olhos pareciam quase vermelhos de fúria. — Vocês não entendem. Essa
coisa está brincando com a gente.
Ele se debatia com força e eu logo me aproximei e golpeei a primeira corda com o machado.
Atingi em cheio e me senti bem satisfeito quando a vi se partindo em duas. Continuei fazendo isso,
de novo e de novo. Foi difícil, já que Jacob não parava de puxar e se debater, mas mantive o foco e
quando finalmente cheguei à última corda, disse, satisfeito:
— Pronto!
Jacob se jogou para cima num pulo com a mesma energia de quando estava amarrado. Ele
deu de cara com Dot e ela caiu com tudo de costas no palco.
— Dot! — exclamei.
Jacob tentava se levantar, brigando com as poças de tinta à sua volta, totalmente fora de si.
Sua linguagem corporal parecia bastante com a do Sammy. Podia muito bem ser o Sammy ali.
A tinta. A tinta o havia tomado.
Mas ele também estava lutando contra ela. Observei enquanto ele se encolhia e balançava os
braços, como se tentasse jogar a tinta longe. Ele se retorceu e berrou, um tipo de berro sobrenatural,
inumano. Ele ergueu uma mão em direção à Dot, como se para agarrá-la, mas a segurou com a outra
mão, puxando-a para trás. Me preparei para jogar o machado longe e disparar para cima dele.
— Para trás, Buddy! Não quero te machucar! — ele berrou outra vez.
Não parava de se debater, atirando seu corpo em todas as direções. E então fizemos contato
visual por um momento. Só por um breve momento. E eu vi o Jacob lá dentro. Eu o vi. E ele estava
com um olhar estranho nos olhos, como se estivesse triste, mas feliz, determinado. E então virou a
cabeça para o teto e urrou bem alto, se jogando com tudo no chão do palco.
E ele parou de se mexer.
Corri até seu lado, pondo o ouvido em seu peito. Estava se mexendo um pouco e conseguia
ouvir seus batimentos. Dot imediatamente correu até o meu lado.
— Ele ainda está vivo — disse a ela.
— Ele fez isso por nós. Ele se desacordou para nos proteger.
Assenti, ainda em choque.
— Vem — disse. — Vamos tirá-lo daqui.
Foi quando as luzes se apagaram.

123 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
CAPÍTULO 23
Meus olhos se ajustam às diferenças na luz
muito melhor agora. Deve ser a única coisa boa. Mas então, naquela época, uma mudança súbita na
luz me ofuscava por tempo demais, deixava difícil de entender o que estava acontecendo.
Eu ouvi um urro diferente de tudo que já tinha escutado antes, um grito gutural, mas também
agudo. Nenhum animal no zoológico, nenhum trem chiando num túnel do metrô, não havia nada
que se comparasse àquilo. E então um alto estrondo no palco. Algo me agarrou e, a princípio, tentei
me soltar com tudo, mas então notei que era a Dot segurando a minha mão, certificando-se de que
sabia onde eu estava. Apertei sua mão com a minha.
Puxei ela para que me seguisse e, enquanto meus olhos se ajustavam à luz turva, começamos
a engatinhar rumo à máquina, para nos escondermos atrás dela. Conseguimos nos levantar junto a
ela do lado oposto à criatura, que estava atravessando o palco a passos pesados.
— Tinta — sussurrou Dot, apontando. Olhei para a direção que ela estava indicando e vi
quatro grandes baldes cheios dela. Fomos para o mais longe deles que podíamos.
Meus olhos finalmente estavam acostumados com a iluminação. Via agora que não estava
totalmente escuro. As lâmpadas em cima do palco ainda estavam acesas, mas estavam obscurecidas
agora em meio às sombras de tinta que pareciam seguir a criatura. Elas ficavam mais claras e mais
escuras à medida que as sombras se movimentavam e eu então me dei conta de que precisava saber
como era a aparência da tal criatura. Se agora eu conseguia enxergar, então eu conseguia vê-la. E
precisava saber o que estávamos enfrentando. Finalmente.
Eu cuidadosamente me inclinei junto ao canto da máquina, apenas o suficiente para dar uma
espiada, boa parte da minha visão cortada pela lateral. A criatura estava parada no meio do palco.
Como se estivesse nos farejando, como daquela primeira vez na Enfermaria.
Na verdade, eu não estava pensando muito nisso porque o que vi na minha frente me fez
congelar por inteiro. Não só o meu corpo, mas também a minha mente. O meu coração. Meu tudo.
Parada à frente estava a criatura do caderno do Sammy. Não era só um rabisco inventado,
era real. E era...
O Bendy.
Ou pelo menos uma estranha versão do personagem animado. Sua cabeça era o que mais
parecia com ele. Tinha a mesma forma, redonda com pontas para formar os chifres. Tinha também
o mesmo sorriso. Grande e branco, com linhas separando cada um dos dentes, mas aqueles dentes
eram reais. Eles reluziam com saliva. O resto? Bom, o resto do rosto estava coberto de tinta, tinta
que escorria por sua cabeça, em cima de onde seus olhos deviam estar. Queria dizer que ele era
cego? Não achava que precisava haver lógica para uma criatura como aquela.
Seu corpo era alto, magro e também pingava tinta dele. Não, não era só magro, era quase um
esqueleto gotejante. Dava para ver a reentrância embaixo das costelas. Mas ele ainda era em partes
um personagem de desenho, o que provavelmente era a coisa mais aterrorizante nele. Ainda tinha
aquela gravata-borboleta e uma luva branca, como aquelas que todos os personagens tinham.

124 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
Ele continuou ali parado. Com um rosnado bem lá no fundo, como se tivesse um motor em
pleno funcionamento dentro de si. Ele sabia que nós estávamos em algum lugar. Observei enquanto
voltava a andar pelo palco. Andar em meio aos corpos no palco.
Jacob.
Mas, em vez de ir até ele, foi em direção ao Dave. Ele cheirou a figura meticulosamente. De
repente, ele urrou, agarrando-o, e então puxou, arrancando o braço direito do Dave de uma só vez e
atirando-o do outro lado do palco.
Senti a Dot me agarrar pelo ombro e apertar. Assenti, mas não sabia mais o que fazer. A fera
agora parecia estar crescendo. Seus braços e pernas se alongando, a cabeça se alongando, os dentes
ficando mais afiados. A criatura então se arrastou em direção a Jacob.
Não, não, não, não. Isso não podia acontecer.
— Ei! — exclamei, levantando-me e aparecendo em meio ao palco. As luzes ficaram quase
negras quando a criatura se virou para mim.
— Ei! — Dot gritou então. Me virei e vi que ela tinha saltado do outro lado da máquina. Eu
a encarei. — Ele não pode caçar nós dois — ela sussurrou para mim.
Ela estava certa, é claro. Como sempre. A fera olhou para ela, então de volta para mim, com
os olhos que não tinha. Ou talvez tivesse.
Eu penso sobre esse momento todos os dias. Tento me lembrar dele com todos os detalhes.
Mas é difícil. Tinha tanta coisa naquele momento. Tanta coisa acontecendo. Não só com a criatura,
a Dot e o Jacob, mas dentro de mim também. Meu medo, minha necessidade de acabar com aquilo
tudo, minha culpa. Minha culpa por ter sido eu quem soltou a criatura pra começo de conversa.
Eu me lembro de algumas coisas, mas não de tudo.
Me lembro que ele decidiu seguir a Dot, não eu. Me lembro dele saindo correndo atrás dela
enquanto ela fugia e me lembro de correr atrás dele. Eu tropecei num cano que devia fazer parte da
máquina e, por um momento, me senti impotente enquanto o via caçar a Dot. Mas então a fúria que
senti ao vê-lo perseguindo a Dot me deu forças de novo e eu peguei o machado. Eu tinha uma arma.
Me atirei contra ele. Dei um pulo e ataquei, atingindo-o com tudo nas costas. Ele nem
vacilou. Sequer parou de ir para frente. Caí de costas, como se tivesse dado de cara numa parede.
Não, eu não ia me sentir impotente de novo, ainda que me parecesse impossível vencer. Tinha que
ter outro jeito, eu tinha que encontrar outro jeito.
Ele agora tinha encurralado a Dot no canto um pouco mais afastado do palco, em meio às
sombras mais profundas dos bastidores. Estava longe demais para golpear com o machado, então o
joguei contra ele em vez disso. Sabia que não ia machucá-lo, mas talvez, só talvez...
Ele o acertou na parte de trás da cabeça e o monstro se virou com tudo e rosnou para mim.
Nesse momento, Dot mergulhou por baixo de suas pernas e fugiu do canto onde estava. Fiquei
impressionado por um único momento, até que a fera percebeu o que havia acontecido e atacou. Dot
estava correndo em minha direção e eu fiz o mesmo, erguendo a mão para ela.
Mas no instante em que segurei sua mão, a criatura agarrou seu pé.
— Dot! — gritei. Tentei achar a outra mão e ela se agarrou à minha, seus dedos começando
a se soltar dos meus. Eu não ia conseguir segurá-la por muito mais tempo. Tinha medo de que, se
conseguisse, eu e a criatura acabaríamos partindo-a em duas. Ela soltou minhas mãos e saiu voando
pelo ar quando o monstro a atirou pelo palco.
Ela pousou em meio a um forte baque.
— Dot!
— Buddy — eu a ouvi dizer, a voz suave.
Tentei correr até ela, saltando sobre canos e dando a volta por baldes de gosma negra e
espessa. A criatura disparou entre nós e me atingiu com força no peito. Derrapei para trás, batendo
de cabeça na lateral da máquina.
— Você tem que sair daqui — disse ela, a voz rouca e fina. — Pegue o Jacob e saia daqui.
— Não — respondi. — Isso é culpa minha. Fui eu que deixei essa coisa fugir. Nós vamos
consertar isso juntos.
— Isso não... não foi você quem o criou. Você não...

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A criatura rugiu entre nós. Saliva voou de sua boca e pousou dentre as bolhas negras diante
de mim. De repente, vi a Dot no ar outra vez, seu grito ecoando pelo teatro. A criatura a pegara com
uma de suas mãos em forma de garra e a apertara com força.
Essa coisa está brincando com a gente, Jacob tinha dito.
Era como um gato torturando um rato. Não apertava com força o bastante para matá-la, mas
com o suficiente para machucá-la.
— Para! — berrei. Saí correndo em direção ao monstro e agarrei sua perna. Tentei derrubá-
lo, mas ele estava sólido no chão, quase como se estivesse plantado lá. Ele então ergueu a perna e,
com um chute selvagem, fui jogado longe outra vez.
Caí novamente em meio a um forte estrondo. Estremeci de dor. Tudo doía — meus ombros,
minhas costas, minha cabeça. Olhei para o chão na minha frente, para a tinta por todo lado.
Para... o machado.
De alguma forma, a dor desapareceu quando peguei a arma. Corri em direção à fera outra
vez e a golpeei na perna. Ela cambaleou e rugiu. E eu vi que tinha criado uma grande ferida negra e
profunda de onde agora vazava tinta. Ainda assim, a coisa não soltou a Dot. Mas me sentia melhor
agora. Golpeei a perna de novo e a criatura então me atacou com sua mão livre. Me esquivei num
salto e tentei recobrar o fôlego.
Então, para o meu horror, observei enquanto a ferida na perna do monstro, em meio a um
som de sucção asqueroso, começou a se curar, a tinta se reformando e remodelando. Ele não podia
ser destruído, não podia ser derrotado.
Olhei para a Dot. Ela parecia tão distante.
Não, esse não era o fim. Não era impossível. Mesmo que tudo indicasse que era.
Olhei para a máquina, furioso. Eu a odiava tanto. Odiava o fato de que ela existia e odiava
os tonéis de tinta que a cercavam. Nunca pensei que algum dia fosse odiar tinta tanto assim.
Poças de tinta por todos os lado, cobrindo as minhas roupas. Onde eu começava e a tinta
terminava?
Dot gritou outra vez.
— Dot! — exclamei. — Eu vou afogá-lo!
Não sabia se ela tinha me escutado, mas então me lembrei — me lembrei do alçapão por
onde o ator tinha caído na peça que eu assisti lá de cima com o Sr. Drew. E pensei em toda a tinta
que tinha saído do cano no depósito de partituras. E talvez... talvez se eu conseguisse prender a fera
embaixo do palco, talvez se eu conseguisse encher aquela sala lá embaixo de tinta...
Cambaleei pelo espaço à minha frente para me aproximar o máximo que pudesse do monstro
sem ser atacado por ele.
— Você precisa se soltar — gritei para a Dot. Ela não estava se mexendo muito. Senti meu
estômago revirar. Não, ela não pode estar morta. Por favor, não esteja morta.
Sua cabeça se mexeu um pouco. Houve uma pausa e então ela se virou um pouco mais. Ela
conseguia me ouvir.
— Preciso que pegue o machado. Preciso... jogá-lo pra você. — Um plano imbecil. Imbecil,
imbecil, que plano imbecil.
— Certo — disse ela. Estava tentando elevar sua voz, mas ela soava fina e sem fôlego.
Eu não podia. Não podia simplesmente jogar o machado para ela. Ia acabar lhe matando.
— Eu consigo pegar — disse ela. — Só joga... devagar. — E deu meio que uma risada.
Isso não fez eu me sentir melhor. Fez eu me sentir petrificado. Mas ela ainda era a Dot. E ela
ainda estava lutando. Eu não podia decepcioná-la.
A fera urrou e, sacudindo os braços loucamente, se aproximou um pouco mais de mim.
Ótimo, mais alguns passos e ele estaria bem em cima do alçapão.
— Pode vir! — gritei para ele, recuando mais um pouco. Abaixei o olhar e vi o ponto onde o
palco tinha um quadrado demarcado. As extremidades do alçapão.
De repente, a criatura parou. Não se mexeu mais. Só ergueu a Dot um pouco mais alto no ar,
quase como se a estivesse mostrando para mim. Eu estava com tanta raiva, tão cheio de fúria que
simplesmente gritei. Abri a boca e gritei com ele do fundo das minhas entranhas, com toda a minha
garganta. Com tudo o que havia dentro de mim.
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A criatura rugiu de volta e então deu um passo em frente. Agora estava bem no ponto certo,
a Dot tinha conseguido soltar sua mão e aquilo tudo parecia extremamente impossível, mas era tudo
o que eu tinha.
— Pronta? — gritei.
— Por que não? — ela gritou de volta, a voz rouca.
— Um, dois, três...
Joguei o machado e me encolhi com a ideia de que ela podia acabar batendo com a mão na
lâmina. Mas ela o pegou, só um pouco abaixo da lâmina, e quase o derrubou imediatamente, mas
conseguiu segurar na parte de baixo quando ele tombou de sua mão. Ela sorriu. Senti uma onda de
alívio que logo foi embora quando me virei e corri em direção aos bastidores, tentando achar a
alavanca do alçapão. Aquele plano ia me parecendo cada vez mais imbecil. Mas eu não tinha outro.
Finalmente encontrei a alavanca, vermelha escura, mas, em meio às sombras, quase preta.
— Achei! — exclamei. Esperava que ela conseguisse me ouvir, me entender. Era provável
que não, mas pelo menos sabia que uma coisa ela conseguia fazer: — Agora! — gritei.
Dot golpeou o pulso do monstro com o machado uma, duas, três vezes enquanto eu puxava a
alavanca. O chão caiu sob a criatura enquanto eu disparava em sua direção e ela ergueu a cabeça,
chocada, enquanto Dot caía no palco, ainda envolta na mão da criatura, mas a mão já não fazia mais
parte dela. O monstro caiu na escuridão e Dot saiu correndo em direção à máquina. Ela golpeou o
cano que a alimentava pela lateral até que ele estourou. A tinta começou a vazar aos montes e jorrou
rumo ao buraco. Meus ombros doíam, minha respiração estava ofegante, meus pés escorregavam no
chão molhado à minha volta. Levantei a cabeça e vi a criatura tentando sair do alçapão com a mão
boa que lhe restava, agarrando-se à beira do buraco enquanto a tinta a engolia. Estava lutando
fervorosamente contra ela.
— Buddy! — disse Dot. Ela subitamente estava do meu lado, me ajudando a redirecionar o
fluxo de tinta para o buraco. Vê-la ali me deu força outra vez.
Era isso, era tudo o que podíamos fazer. E nós ficamos olhando. E observando. Observando
enquanto o braço da fera parecia derreter em meio à tinta. Seu rosto voltou a aparecer na superfície
por um momento e ele disparou para nós um rugido que foi engolido por um gorgolejar. Sua boca
ficou mais larga, então se achatou e, no fim, já não era mais uma boca.
Estava se misturando com a tinta. Era tinta.
As luzes clarearam e pareceram quase claras demais depois de ter me acostumado tanto com
a escuridão. Eu e a Dot ficamos olhando para o nada em silêncio por um momento.
Foi quando percebi que ela estava olhando para mim. Então olhei para ela.
— Você conseguiu — disse ela com um grande sorriso.
— Bem, nós conseguimos... — respondi e então, de repente, ela estava me abraçando. Foi
tão completamente do nada. Eu só meio que fiquei ali parado por um momento, até que me dei
conta de que provavelmente devia abraçá-la de volta. O que eu fiz. Pela primeira vez em muito
tempo, senti meus medos recuarem. E apenas me deixaram relaxar e curtir o momento.
— Acha que a coisa se foi? — perguntou Dot quando finalmente nos soltamos.
Eu não fazia ideia. Não acreditava que tivesse. Não conseguia acreditar que tinha acabado.
— Não acho que a gente tenha tempo para descobrir. Vamos pegar o Jacob e dar o fora
daqui — disse.
— Sim. — Ela imediatamente se voltou para o Jacob, que eu notei que estava se mexendo
um pouco onde o havíamos deixado.
Me virei para o buraco de novo. A tinta continuava lá, como um lago embaixo do palco. Me
perguntei por um momento se havia um jeito de se livrar dela. Se ela simplesmente ficaria ali. Para
sempre. Assombrando o estúdio.
Esperando.
Paciente.
Com fome.
Respirei fundo. Estava botando medo em mim mesmo outra vez. Era hora de partir. Era
finalmente hora de confrontar o Sr. Drew.
Uma mão irrompeu da tinta e agarrou minha perna.
127 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— Buddy!
Aconteceu tão rápido que não sei dizer muito bem como foi. Só sei que eu subitamente
estava passando pelo alçapão com aquela tinta espessa na altura do pescoço, e a Dot agarrou minhas
mãos bem na hora. Ele tinha pegado a minha perna em cheio, agarrando-se a ela com uma força
assombrosa. Não havia como me soltar.
Dessa vez era a Dot quem estava me puxando, tentando me salvar. Segurei suas mãos com
força, mas não tinha como vencer. A criatura era forte demais. E toda a tinta à minha volta também
estava me puxando. Quase como uma sucção que ao mesmo tempo me espremia e me arrastava. Ela
tinha que me soltar, senão eu a acabaria puxando para baixo. Nós a puxaríamos para baixo.
— Me solta — disse, a tinta respingando na minha boca quando a abri. Tossi e me engasguei
com ela. Tinha um gosto amargo, salgado. Queimava o fundo da minha garganta.
— Buddy, eu não posso — disse ela, ajustando sua mão ao redor do meu pulso, seus dedos
escorregando e então segurando os meus no último momento.
Meu corpo doía, uma sensação pungente, como um aperto que me subia pela espinha. Senti
algo afiado fincando com força na altura da minha coxa, como se tivesse sido esfaqueado. As garras
da criatura. Eu não podia gritar, não sem inalar mais tinta. Chutei e arrastei meu pé pelo braço da
coisa nas profundezas negras. Então senti uma dor ardente. Algo diferente. Tão avassalador que
tudo simplesmente parou. O monstro tinha afundado seus dentes afiados no meu peito, mordendo a
minha carne, meus músculos, meus tendões. Arfei em silêncio e a tinta encheu minha boca outra
vez. Tudo começou a perder o foco e eu já não conseguia entender mais o que estava acontecendo.
O olhar de horror da Dot pairava pela minha visão.
Salve-se, pensei e precisava que ela lesse a minha mente. Do jeito que ela sempre parecia ser
capaz de ler. Está tudo bem. Está tudo bem. Apenas salve-se. Salve o Jacob.
Está tudo bem.
Olhei para ela, engolindo cada vez mais tinta, tossindo e incapaz de respirar à medida que
ela enchia os meus pulmões. Não havia ar. Não havia nada. Só tinta.
Então houve um momento em seus olhos. Um momento que eu reconheci.
Ela entendeu. Ela sacudiu a cabeça e apertei sua mão. Foi minha última escolha de verdade.
Está tudo bem.
Você precisa ir agora.
Você precisa se salvar. Salvar o Jacob.

Precisa salvar a todos.

E você soltou a minha mão. Fiquei tão grato.


A escuridão se ergueu depressa à minha volta e eu te vi só por mais um momento e me senti
orgulhoso e sortudo por ter te conhecido. Por ter tido essa chance. E então você se foi. Ou eu me
fui. E eu afundei na tinta, que preencheu meus ouvidos enquanto a criatura me puxava para baixo e
a dor era tanta que eu quase já não conseguia mais senti-la. Não conseguia sentir nada.
Os cinco sentidos:
Tato: nada.
Paladar: nada.
Audição: nada.
Olfato: nada.
Visão: negritude.
E então:

Nada.

128 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
CAPÍTULO 24
Eu não tenho resposta para todas as suas
perguntas, Dot. Sei que você achava que eu estava morto. Sei como é achar que alguém está morto.
Sei como é esse vazio absoluto. Como é a descrença. A forma como você luta contra a sua própria
mente. Como se não entendesse. Como se fosse tudo mentira. Ou um sonho ruim.
A questão é que, claro...
Sonhos ganham vida.
Eu não estou morto.
Mas também não estou vivo.
E você não pode me salvar.
Mas pode salvar todos os outros.

Não sei qual foi o momento que eu acordei. Veio em estágios, o que não é algo normal.
Normalmente você está dormindo e então está acordado. Mas descobri que quando se tem duas
mentes vivendo juntas, quando se tem dois conjuntos de memórias, às vezes uma mente acorda
antes da outra.
Na primeira vez que acordei, estava confuso com relação a onde estava. O mundo à minha
volta estava escuro e sombrio e eu estava acostumado com as coisas brilhantes. Toquei o chão e vi a
minha mão. Ela estava diferente. Eu a virei. Parecia mais arredondada. Não era tão plana quanto a
que eu estava acostumado. Também tinha mais lados. Não conseguia entender. Me sentei e olhei em
volta, agora em pânico, e havia alguém parado ali. Ele tinha uma forma estranha, sua cabeça muito
pequena, seu corpo muito alto. Estava envolto em sombras, era difícil de identificar.
Quem era ele? O que queria de mim?
— Buddy? — perguntou.
Quem era Buddy?
Na segunda vez que acordei, era a minha mente. Não a dele. Eu estava olhando diretamente
para o Sr. Drew.
Isso me deixou confuso. Por que ele estava aqui? Ainda estava usando seu smoking.
Foi quando me dei conta de que estava sentado e não me lembrava de como tinha feito isso.
Onde eu estava? Fechei os olhos por um momento e então me lembrei.
Do teatro. Da criatura.
Da Dot.
De me afogar.
Da morte.

129 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
Do monstro. Eu rapidamente me virei para olhar, mas ele não estava lá. Estávamos sozinhos.
Soltei um longo suspiro e foi muito bom fazê-lo. Nunca tinha me dado conta antes do quão bom era
simplesmente respirar.
Olhei para o Sr. Drew de novo e ele estava sorrindo para mim. Notei então que eu não estava
embaixo do palco, estava em cima dele. Bem no meio. Os assentos da plateia se estendiam num
vórtice negro atrás dele. Me virei para olhar para o outro lado. Em cima de mim pairava a máquina.
Gigantesca desse ângulo. Gotejando insistentemente. O som era hipnótico e um pouco doloroso.
Esse tempo todo, o Sr. Drew não disse absolutamente nada. Ficou só me observando. Era
estranho e perturbador. Olhei de volta para ele.
— Estou morto? — perguntei. Era uma pergunta tola e, depois de perguntar, percebi que já
sabia a resposta. Era óbvio que não estava. Eu sabia onde estava, sabia quem eu era. A menos que
fosse assim que era estar morto.
O Sr. Drew então se aproximou de mim a passos lentos.
— Buddy? — disse ele.
— Sim? — respondi.
— É você, Buddy? — Ele estava parado bem na minha frente agora, pairando sobre mim.
Sua pele era enrugada. Ele parecia quase inumano.
— Sim, sou eu — disse a ele. É claro que era eu.
Ele me agarrou por baixo do queixo e manteve minha cabeça imóvel. Tentei afastá-lo, mas
ele segurava forte feito um torno. Ele ergueu a outra mão e me segurou com ainda mais força. Então
veio mais perto e me fitou atentamente nos olhos. Seu cheiro era poderoso. Nunca tinha chegado a
notar isso antes. Mas agora, por algum motivo, conseguia sentir seu cheiro claramente. Não era só a
fumaça do cigarro e a pomada do cabelo. Podia sentir o cheiro do seu jantar, dos hors d’oeuvres da
festa. O cheiro do uísque e do champanhe. O cheiro do ar da cidade e do calor do dia.
Seu suor.
Sua loucura.
— Consigo senti-lo aí — sussurrou ele.
— Do que está falando? Me solta! — gritei na cara dele. Não ligava mais se ia impressioná-
lo ou ofendê-lo. Não ligava para o que ele pensava de mim. Sua máquina tinha feito isso com todos
nós. Tinha matado eles. Tinha me matado.
E agora... agora lentamente me ocorreu. A máquina tinha me trazido de volta à vida?
— É claro que você não consegue me responder — disse ele, subitamente se dando conta de
alguma coisa. Seus olhos brilhavam e ele mordeu o lábio. — É claro que não consegue. Ah, isso é
mesmo incrível, Buddy.
Não consigo respondê-lo? Mas que diabos?
Ergui as mãos e o empurrei, com força. Com mais força do que já tinha empurrado qualquer
um antes, e ele caiu de costas no palco de madeira em meio a um baque. Me senti estranhamente
poderoso. Também já não estava mais sentindo dor alguma. Me levantei. Marchei até ele. Era a
minha vez de pairar sobre ele.
Ele se encolheu. Ele realmente se encolheu de medo. Me senti muito bem com isso.
— O que você fez comigo? — perguntei.
— Vamos, Buddy — disse ele, erguendo uma mão. — Não fique bravo. Lembre-se que eu
salvei a sua vida.
— O que você fez? — Me aproximei um passo, pondo as mãos nos quadris. Gostei do fato
da minha sombra o encobrir por inteiro daquele jeito, enchendo seu pequeno mundo de escuridão.
— Você está bravo, está frustrado. Não consegue se expressar, eu entendo, mas não vê que
eu te consertei? E agora você está, você está... perfeito!
— O que quer dizer com isso? — Aquela palavra me tirou o ar dos pulmões, acabou com a
minha confiança.
— Vê? Não é tão ruim, certo? — disse o Sr. Drew com um pequeno sorriso no rosto.
— Do que você tá falando? — disse. Sentia agora que estava falando com uma parede. Por
que ele não podia me dar uma resposta direta? — Diga o que fez. Diga o que há de errado comigo.

130 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
— Suspirei frustrado e me virei para olhar primeiro para a máquina e depois de volta para ele. —
Diga... — Nesse momento, eu finalmente notei a minha sombra. — Diga...
De repente, fiquei distraído.
Diga...
Recuei aos tropeços. Minha sombra era alta e magra, como sempre havia sido. Ela cobria o
Sr. Drew, agora se levantando, não mais encolhido de medo. Me observando atentamente. Estava
curioso, não com medo. Parecia entender algo que eu não entendia. Algo que estava para descobrir.
Toquei o topo da minha cabeça. O que era aquilo na minha sombra? Duas pontas altas e
curvas que pareciam crescer de ambos os lados do meu crânio. Eram macias ao toque. E quando
meus dedos as tocaram, eu senti meus dedos. Aquelas pontas eram parte de mim. Assim como meus
braços ou minhas pernas.
Abaixei as mãos e olhei para elas.
Recuei outro passo.
— Atrás de você, Buddy — disse o Sr. Drew.
Me virei devagar. Não queria fazer o que ele estava dizendo, mas, ao mesmo tempo, sabia
que precisava.
No chão, havia uma figura completamente coberta de tinta. Esparramada em meio ao palco.
Inanimada. Encharcada. Me aproximei dela com cautela.
— Quem é esse? — perguntei, mas soou como um gemido. Sem palavras. Só a sensação por
trás das palavras.
Eu não queria saber a resposta. Porque eu já sabia a resposta.
Me inclinei para olhar mais de perto.
O corpo no chão era meu.

131 | B e n d y a n d t h e I n k M a c h i n e : S o n h o s G a n h a m V i d a
CAPÍTULO 25
Acho que minha história está chegando ao
fim. A minha parte nela, pelo menos. Acho que estou quase terminando de escrever. Não acho que
vá conseguir fazer isso por muito mais tempo. Ele está gostando da história, mas também está com
fome. Eu estou com fome.
Dot, se você encontrar isso, compartilhe.
Espero que consiga dizer a eles se essa história é verdade.
Sei que nem tudo é verdade.
Mas acho que a maior parte do que escrevi é real.

Minha mente e a mente dele.


A nossa mente.
Eu não estava sozinho, o Sr. Drew estava parado ao meu lado. Olhando para o corpo. Para o
meu corpo. Meu cadáver.
Ninguém pode ver a si mesmo morto. Ninguém chega a vivenciar isso. Como a minha mente
poderia sequer compreender?
Eu estou morto. Esse é o meu cadáver.
— Vê? Eu te salvei — disse o Sr. Drew.
— Eu não entendo — respondi.
— Shh, pare de tentar. Só vai frustrá-lo.
— Eu já estou frustrado. Preciso entender isso. Você tem que explicar para mim — disse,
voltando-me para ele.
— Por favor, me escute. Pare de tentar falar, Buddy. Só vai conseguir se machucar.
— Do que está falando? Não estou frustrado com a minha fala... — Então eu parei. Parei
para escutar de verdade. — Não estou... — Um grunhido. — Sr. Drew. — Outro grunhido.
Abri minha boca. Tentei dizer meu nome:
— Buddy. — Um som que quase parecia um latido.
Congelei. Não conseguia respirar. Caí de joelhos e agarrei minha garganta com ambas as
mãos. Ergui o olhar para o Sr. Drew e, por um momento, achei que ele parecia preocupado. Mas
não parecia, não mesmo. Só parecia feliz consigo mesmo.
Me virei de volta para o corpo, meu corpo. Não sabia mais ao certo o que fazer. Não sabia
nem o que pensar. Parte de mim se sentia estranhamente fascinada com tudo, como se eu estivesse
vendo o mundo pela primeira vez. Parte de mim estava aterrorizada, desesperada.
Rastejei, me arrastando pelo chão até o corpo. Meu corpo.

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Olhei para as minhas mãos, não as do meu corpo antigo, as do meu novo. Minhas mãos
enluvadas. Eu não tinha luvas. Nunca usava luvas. Nem no inverno. Só enfiava as mãos nos bolsos.
Eu não conseguia entender nada. E, ainda assim, entendia. Sabia exatamente o que tinha
acontecido agora, mas ainda era inacreditável.
Só porque algo é inacreditável, não quer dizer que não seja verdade.
Lembre-se disso, Dot. Ah, por favor, acima de todo o resto, lembre-se disso.
Toquei meu rosto. Não o rosto do qual estava olhando, mas o morto e gelado que pertencia
ao corpo no chão. Você já viu um cadáver antes? Não é só assustador do jeito que as histórias de
fantasmas são assustadoras. É assustador porque é a pessoa bem ali na sua frente, mas você sabe
que não é exatamente ela.
Falta alguma coisa.
— Este é o seu corpo, Buddy. Mas não é você — disse o Sr. Drew, agachando-se ao meu
lado. Ele disse essas palavras como se pudesse ler a minha mente.
Olhei para ele, furioso. Sabia agora que não conseguia falar. Nem me incomodei em tentar.
Em vez disso, apontei. Apontei para o corpo. Seu rosto, seu peito, suas pernas...
— Isso são só partes, nada além disso. O verdadeiro você... o verdadeiro você está aqui. —
O Sr. Drew ergueu o braço e me tocou no peito, pondo a palma da mão com firmeza nas minhas
costelas. — Sua alma.
Me afastei.
Não.
— Me escute, Buddy, me escute — disse ele, pondo uma mão no meu ombro. Queria tirá-la
de lá, mas não consegui. Simplesmente não tinha a força. — Vou explicar de forma rápida. Eu fiz a
minha máquina para criar versões reais dos meus personagens.
“Minha” e “meus”, ele disse. Mas não eram dele.
A máquina era do Tom e os personagens eram do Henry.
— Usei a minha tinta especial. Era para funcionar. Mas a criatura que saiu, aquele demônio
de tinta. Não era esse o plano. Percebi que o homem que contratei para ajudar me desorientou. Foi
culpa dele, por não entender a máquina. — Uma mentira. — Faltava alguma coisa. Quase tinha
funcionado. Então o que podia ser? Bem, era aquilo que dá vida a cada um de nós.
A alma, pensei de imediato.
— Consegue adivinhar? — perguntou ele.
Eu sabia a resposta. Não era tão difícil.
— A alma. Mas como eu consigo uma alma? O Sammy trouxe aquelas pessoas aqui para
baixo... Achei que pudesse usá-las, mas a tinta as infectou por dias. Já não restava mais alma nelas.
Eu precisava de alguém real. Alguém bom. Nunca pensei que teria tanta sorte de ter você, Buddy.
Mas era o destino. Era o plano desde o começo. Foi por isso que você foi enviado a mim. Quando
cheguei aqui, quando vi você, nas garras da fera... eu entendi o seu propósito.
Não. Aquele não era o meu propósito.
Senti a raiva crescer dentro de mim e finalmente empurrei sua mão do meu ombro. Fiquei
onde estava, a fúria ardente agora me energizando, quase me dando medo de me levantar. Do que
eu poderia fazer.
— Eu salvei a sua alma, Buddy. E você me salvou. Você vai salvar o Bendy.
Eu não fiz isso. Minha intenção era salvar a Dot e os outros. Esse era o meu propósito. Ele
não podia e não iria me tirar isso. Meu propósito agora era e sempre seria proteger o mundo daquela
fera. Daquela máquina.
— Isso vai ser maravilhoso. Você vai ver, você vai ver — disse o Sr. Drew. — Agora venha
comigo. Preparei um belo quartinho para você. Um lugar bacana. Vai gostar. Tem comida.
Ele estava falando comigo como se eu fosse idiota. Como se eu fosse ele, o lobo bobo alegre
que divide a mente comigo. Sei que ele ficou empolgado com isso naquela hora. Podia senti-lo me
empurrando, querendo que eu fosse com o Sr. Drew. Mas então, naquele momento, eu era muito
mais forte que ele. O Sr. Drew não entendeu isso.
Essa era a minha vantagem.
Me virei para ele. Ficamos cara a cara. Ele sorriu.
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— Venha comigo.
Ele estendeu o braço em minha direção e eu o agarrei. Segurei com força, e ele berrou de
dor. Não ia matá-lo. Não posso matar. Não é quem eu sou. Apenas o joguei no chão.
Fiquei parado sobre ele.
E respirei por um momento.
Então eu corri. Saí correndo. Pela escuridão do teatro, passando por alçapões e dutos de
ventilação. Simplesmente corri. Desapareci em meio ao prédio. Em meio a seus segredos, segredos
que nem mesmo o próprio Joey Drew sabia. Me escondi.
Me escondi e ele não me encontrou.
Não conseguiu me encontrar.
E então eu conheci o mundo subterrâneo. Conheci o teatro e o estúdio. Observei, escondido,
enquanto os dois se fundiam. Vi o Sr. Drew demitir pessoas e contratar outras e o observei enquanto
tentava fazer a máquina funcionar.
Descobri que desenhos ganhavam vida. Como eu sempre temi. Como sempre soube.
E então decidi escrever isso.
E eu acho, acho que terminei.
Acho que devo ter terminado porque, Dot, estou tão cansado. E ele está ficando mais forte.
Agora eu já não sou mais o Buddy. Sou também o Boris. Caindo cada vez mais fundo nesse mundo
de loucura que só vai envelhecendo e amarelando.
E temos que continuar fugindo porque...
O Monstro de Tinta.
Porque ele ainda está vivo.
E ainda está com fome.
Detê-lo. Você precisa...
Detê...lo...
Salve-os.
Salve...

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