Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Leon Eliachar
Edição integral
CIRCULO DO LIVRO
Desenhos do autor
Digitalizador: desconhecido
Formatado por: SusanaCap
www.portaldetonando.com.br/forumnovo
Este livro deve ser lido desde o início.
O RISCO É SEU.
O meu quem faz sou eu, que não sou bobo. Detesto
a pressa dos jornalistas que querem fechar a página do
jornal de qualquer maneira e acabam enchendo o espaço
com os lugares-comuns do sentimentalismo. Nada de
"coitadinho, era um bom rapaz" nem de "era tão moço",
porque há muito deixei de ser um bom rapaz e nem sou
tão moço assim. Quero que o meu necrológio seja
sincero, porque de nada me valerá a vaidade depois de
eu morrer — a não ser a vaidade de estar morto. Fui
mau filho, mas isso não quer dizer que meus pais
fossem melhores filhos que eu — se fosse eu o pai. Não
fui mau marido e acredito que seja porque não tive
chance de ser, vontade não me faltou. Nunca roubei,
nunca menti: esses os meus piores defeitos. Minha
grande qualidade era ter todos os outros defeitos. Fui
egoísta toda vida, como todo mundo, mas nunca revelei
nada a ninguém, como todo mundo. Passei a vida
tentando fazer os outros rirem de si mesmos: é possível
que agora riam de mim. Fui valente e fui covarde, só tive
medo de mim mesmo, o que prova a minha valentia.
Nunca amei ao próximo como a mim mesmo, em
compensação nunca ninguém me amou como eu mes-
mo. Tive milhões de complexos e venci-os todos, um por
um, com exceção do complexo de morrer: esse morre
comigo. Nunca dei nem tomei nada de ninguém, mas
faço questão de deixar tudo o que tenho para os que têm
menos do que eu. Nunca cobicei a mulher do próximo:
só a do afastado. Jamais entendi perfeitamente o que
eram o "bem" e o "mal", embora a maioria das pessoas
me achasse um homem de bem e este era o mal. Defendi
a minha vida como pude, mas nunca arrisquei a vida
para defendê-la. Nunca me preocupei com dinheiro, pois
sempre tive pouco. Acreditei mais nos inimigos do que
nos amigos, porque os amigos nem sempre se
preocupam com a gente. Jamais tive um segredo, passei
todos adiante. Conquistei muitas mulheres, algumas
com os olhos, outras com os lábios e outras com o
braço. Tive pavor dos médicos, porque eles sempre
descobrem as doenças que a gente nem sabia que tinha
há tanto tempo. Me orgulho de ter vivido oitenta anos
em apenas quarenta: finalmente me livrei dessa maldita
insônia.
***
Às mulheres,
em geral,
que muito me
ajudaram —
não dando
palpites
NÃO existe coisa mais deprimente do que a mentira —
isto é uma verdade.
***
TOMO I
a profissão ideal
o n ze h i s to ri n h a s s em
compromisso
Garantia
A mulher virou para o lado, cobriu a cabeça com o
travesseiro e falou, com a voz sufocada:
Élcio sorriu:
Papel duplo
Isabela era atriz de teatro, ia para o ensaio:
— Por que não vem comigo, amor?
— Quem?
— Em cena, é claro!
E ela:
Tempo instável
Todos os dias de manhã, Eugênia vestia o short,
pegava a barraca, despedia-se do marido e dizia que ia
para a praia. Apesar da chuva, o marido não dava muita
importância, pois não queria desmoralizar o seu
emprego: trabalhava no Serviço de Meteorologia. Na
véspera, Eugênia perguntava:
Desafio
Valentim era pintor de nus artísticos. Sua mulher
costumava dizer:
Valentim respondia:
— Quero.
— Feito.
Ela tirou a roupa, ele espalhou as tintas. Dois
meses depois, o quadro ganhou medalha de ouro numa
exposição abstracionista.
A janela
Gracinda só gostava de dormir com a janela
fechada. Seu marido, João, só gostava de dormir com a
janela aberta. Moravam no térreo, o que vem provar a
teoria de que os últimos serão os primeiros, pois no
mundo de hoje começa-se a morar de cima para baixo —
por causa das cascas de banana que costumam jogar lá
do alto. Mas isso não vem ao caso, o que importa é que
quando apagavam as luzes para deitar, Gracinda e João
mantinham sempre o mesmo diálogo:
O quarto
Quando Gertrudes ligou pra saber do quarto de
frente para o mar, não esqueceu da exigência do
locador: "para pessoa de fino trato".
E desligou, aliviada.
Acidente
Leocádia era dessas que tinham verdadeira
alucinação por lingerie. Pra ela, o mais importante na
linha da elegância era a roupa de baixo. Todos os dias,
chegava em casa, abria os embrulhos na frente do
marido, exibia calcinhas com bordadinhos e rendinhas
de todas as cores e de todas as qualidades de tecidos. O
marido não entendia:
Amnésia
Zora chegou em casa tarde da noite, encontrou a
porta encostada, foi diretamente para o quarto. Mudou
de roupa no escuro, pra não acordar o marido, deitou ao
seu lado. Quando percebeu que ele estava acordado, foi
falando:
TOMO III
a mulher em flagran te
TOMO IV
c rô n i c a s ex - c ol h i da s
Crônica
de bons princípios
Li um livro de boas maneiras e confesso que a
maioria delas eu já tinha sem sequer saber se eram
boas, enquanto outras acho tão cretinas que não sei
como foram se meter no livro. Quem é que decide, afinal,
quais as boas ou más maneiras? Existem tantos "guias"
nesse sentido que nunca se sabe se as maneiras que um
ensina são as mesmas do outro. Isso pode causar
confusão, pois a gente pode tomar atitudes que leu
justamente pra pessoas que leram outras atitudes. Acho
que as maneiras, como o traje feminino, deviam ter
também a sua moda: em certas épocas do ano se usaria
agir assim, em outras assado. E haveria também os
lançadores de maneiras, franceses ou italianos, ou
mesmo nacionais, que passariam o tempo todo
esboçando os figurinos da conduta humana. Haveria
época em que seria chiquérrimo meter o dedo no nariz
na frente de todo mundo, mas o toque parisiense seria
meter o dedo mindinho, da linha francesa, já que a linha
italiana certamente indicaria o polegar. Haveria moda de
espancar a mulher na rua, ao invés de dentro de casa, e
todo sujeito "bem" deveria cometer no mínimo um crime
passional por ano. Empurrar mulheres vestidas para
dentro da piscina seria um passatempo muito snob,
enquanto espirrar dentro da sopa, dar nó nos
guardanapos, bocejar na cara dos outros e cuspir no
chão, poderiam ser hábitos elegantes. Tudo seria uma
questão de convenção — porque basta se convencionar
pra todo mundo se convencer. Um cavalheiro jamais
mandaria um ramo de flores para a sua amada:
mandaria uma bomba-relógio, que seria muito mais
divertido —- depois de estourada a bomba, ela ainda
ficaria com o relógio. A pontualidade seria apenas uma
questão de originalidade, quem quisesse esperar pelo
outro era só chegar na hora, hábito que muita gente usa
hoje em dia, por mero descuido. Uma campanha bem
orientada decidiria sobre as "boas maneiras" de cada
ano, pra evitar as dúvidas. Assim como está, as boas
maneiras se comparam à nossa ortografia: cada um
escreve como sabe e ninguém se entende. É muito
desconcertante fazer uma gentileza com "f" pra quem
ainda acredita no "ph".
Crônica
na base da insistência
Toca a campainha, sou obrigado a abrir a porta,
pois não tenho olho mágico e mesmo que tivesse não
acho que fosse tão mágico assim. Olho mágico seria
aquele que conseguisse dar sumiço em quem a gente
não quer receber, porque esses que existem o máximo
que conseguem é transformar um chato pequenino em
um chato enorme, quando a gente abre a porta. Porque
sempre abre mesmo e, com raras exceções, aparece um
vendedor "já falando". Aí é que está; assim que dei de
cara com ele, fui logo dizendo que não queria comprar
nada, ele insistiu, disse que se visse o mostruário ia
acabar querendo. Eu disse que não queria ver o
mostruário, ele disse que valia a pena ver, sem
compromisso. Eu disse que não queria ter nem o
compromisso de ver, ele disse que não custava nada,
que era de graça. Eu disse que não era de graça porque
estava perdendo meu tempo, ele disse que eu não estava
perdendo, porque poderia concorrer a prêmios
valiosíssimos. Eu disse que não queria concorrer a coisa
alguma, ele disse que eu poderia ganhar até um
automóvel ou um apartamento, fora uma porção de
brindes de consolação. Eu disse que ele estava sendo
muito insistente e que eu não estava disposto a me
deixar convencer, pois quanto mais ele insistisse mais
eu desistia. Ele quase que disse que quanto mais eu
desistisse, menos ele desistia..Tem certos caras que não
têm desconfiômetro: não sei mesmo como é que conse-
guem certos empregos — ou se conseguem certos
empregos por causa disso. Vontade que dá é de dar com
a porta na cara deles, mas eles contam com a educação
da gente achando muito lógico que a gente também
conte com a- chateação deles. Vai daí que o sujeito me
mostrou quatrocentos catálogos coloridos e acabou
ligando na tomada uma enceradeira elétrica "último
tipo". Foi então que aproveitei pra dar o gozo e lhe
mostrei que o piso da casa era todo forrado com tapete.
Foi o bastante pro sujeito me vender um aspirador de
pó. E agora, que faço com dois?
Crônica
imprópria pra 18
E daí? Estou com vontade de desabafar coisas e
ninguém tem nada com isso. Vou pensar em voz alta,
azar de quem escutar, porque estou mesmo com
intenção de chocar e causar impacto da opinião pública.
Quando eu era menino, sempre tive vontade de ser
dramaturgo, fui crescendo, crescendo, não sei se foi
sorte minha não ser, já que a única vantagem que se
tira disso é dizer o que se quer, mesmo que se ache que
o que se diz não é nada daquilo que se queria dizer. Eu
também digo e pronto. Por exemplo, acho que o enterro
é uma bobagem onde só devia comparecer o cadáver —
os outros querem fazer média com os parentes do
defunto, ninguém me convence do contrário. Conheço
muito morto que nunca foi procurado por ninguém,
enquanto era vivo, e nunca vai saber que uma porção de
gente que o evitava foi ao seu enterro. Verdade que se
aprende um monte de anedotas novas, mas não preciso
ir até o cemitério só por causa disso, basta procurar um
cara que tenha ido, que ele conta todas. Não sei se isso é
chocante, se não é, desculpem, porque a minha intenção
neste momento é de chocar mesmo. Se essa dose não foi
boa, aqui está outra: acho que toda mulher engana o
homem, nem que seja com o marido. Garanto que essa
vai dar o que falar, pelo menos aos maridos de hoje, que
casam cada vez mais e quanto mais casam ficam sendo
menos maridos — e quanto menos maridos, melhor pra
gente porque sobra mais mulher sem marido. Essa foi
um pouco complicada, não custa ler de novo pra
entender, mas essa outra é mais difícil ainda: o crime
passional é uma necessidade sexual. Não sei bem o que
quer dizer isso, mas quem estiver me lendo, na cadeia,
deve achar o máximo, dependendo naturalmente do
motivo por que está preso. E veja essa: o adultério não
existe — o marido é o primeiro a saber, antes de
acontecer, e o último, depois que acontece. Bárbaro, não
acha? Essa é melhor e mais audaciosa: o marido
enganado prorroga a sua dúvida até o momento em que
ninguém mais tem dúvida de que ele já sabe de tudo.
Pensa bem: a hipocrisia é a melhor arma pra se vencer
na vida, mesmo quando se descobre que a pessoa é
hipócrita, porque a hipocrisia dos outros jamais deixará
transparecer que se descobriu alguma coisa. E agora
vou entrar de sola: o maior crime é matar um
desconhecido, na guerra. Muito mais justificável que se
mate um conhecido, na rua, ao menos se sabe por que
se mata. Gostou? Mas vá lá o Código Penal entender
dessas nuances, me conta. Dos suicídios, o mais
prático, o mais eficiente e o mais delicioso é ser pego em
flagrante por um marido ciumento — vai dizer que não
é. Amigo, se você não se chocou até agora é porque tem
menos de dezoito anos. Desisto. Leia esta crônica em voz
alta, pra sua irmãzinha menor, na frente do papai.
Chegou a hora de mostrar que é um rapazinho arejado:
peito é peito, irmão. E você, menina, que é que está
fazendo aí? Arranque depressa esta crônica senão a
mamãe te toma o livro — pra ler escondida no banheiro.
Crônica
anti-social
Casou um amigo meu e não fui cumprimentá-lo,
acho que sou anti-social. Não vou a casamento de
inimigo, muito menos de amigo. Confesso que me dá
pena ver aquele sorriso forçado, nos lábios do noivo,
como quem se justificado seu ato e.. quer mostrar que
está feliz. A fisionomia da noiva, esta sim, não engana
ninguém. Sua intranqüilidade desaparece totalmente no
dia do casamento: é aí, justamente, onde começa a dele.
Mas de uma vez por todas, ambos ficam livres da
pergunta: "quando é o casório?" Não sei por que existe
essa pseudopreocupação dos casados com os solteiros.
Me parece que querem uma forra, já que eles casaram —
que todo mundo case pra ver só como é bom. Não gosto
de admitir meus amigos metidos num fraque, durinhos,
de dedinho mole para receber a aliança. Tenho a
impressão que uma aliança deve dar a mesma sensação
de uma algema, e nunca sei se essa algema é colocada
porque o homem foi capturado ou se entregou. De
qualquer forma, é bonito o ritual. Todos saem à rua pra
ver passar o carro da noiva, num cortejo branco de
felicidade cristalina, não gosto de escrever assim mas já
que saiu, fica. As noivas são mansas e suaves, quando
entram na igreja. Os noivos parecem bonecos mal
lubrificados. Mas é lindo saber que entram dois e saem
um, depois de terem jurado que só a morte os separará,
já que naquele momento ninguém pensa na inflação.
Daí em diante, há um outro mundo à espera,
completamente imprevisível. O amor, por si, é uma coisa
bela — feio é estereotipá-lo de convenções, propagá-lo,
divulgá-lo como um jingle de frases feitas. Falar em
jingle, tem gente que se repete: casa várias vezes e diz
sempre a mesma coisa.
Crônica
feita a martelo
Sou considerado dos chamados sujeitos que têm o
"sono pesado". Não sei por que se chama assim, mas já
que se chama, devia haver sono de 900 gramas, de 2
quilos, de 5 ou de 10. O meu é de 20. Só acordo com o
tilintar do telefone no meu ouvido e assim mesmo
quando não é cobrador, que conheço pelo toque. Esta
semana, tenho acordado todos os dias às sete da
manhã, com marteladas na cabeça. No primeiro dia fui
reclamar ao vizinho de baixo, em nome da "Lei do
Silêncio", que começa às dez da noite e termina às oito
da manhã. Ele disse que eu estava enganado: que acaba
às sete. Liguei pro distrito, furioso, e o comissário me
disse que era às sete mesmo. Voltei ao vizinho pra pedir
desculpas pelo meu erro. Ele me disse que devíamos
continuar amigos — mas* não me lembro nunca de ter
sido seu amigo. Também não queria ser inimigo e lhe
disse que martelasse à vontade. Descobri, então, pelo
porteiro, que o meu vizinho estava colocando ladrilhos
na casa toda. Em uma semana, devo ter ouvido 46 000
marteladas e não consegui fazer as contas de quantos
ladrilhos ele colocou, pois não sei de quantas
marteladas precisa cada ladrilho. Só sei que enquanto
outros dormem contando carneirinhos eu durmo
contando ladrilhos. Hoje não houve barulho. Foi
estranho. Ou acabaram as obras ou os ladrilhos. Já
estava tão habituado com o barulho que agora as
marteladas do vizinho estão fazendo falta. E durma-se
com um silêncio destes.
Crônica
congelada
Minha geladeira tem quatro anos de idade, mas tem
garantia de cinco. Não é como o ser humano, que nasce
e não tem garantia nenhuma. Os parteiros deviam dar
às criancinhas, que também são "indústria nacional",
um certificado de duração de pelo menos dez anos — e
qualquer defeitozinho as peças seriam substituídas ou
então trocariam a criança por uma nova. Fabrica-se
criança no Brasil há muito mais tempo do que geladeira,
mas nesse ponto a indústria de geladeiras é mais
adiantada: dá uma garantia de funcionamento. Só é
chato quando dá defeito. A gente telefona pra firma onde
comprou, a firma toma nota do número do motor, do
número do modelo, do número da série, do número do
talão, da data da compra, da data da garantia, do
número de defeitos, depois telefona pra fábrica e a gente
fica esperando que o técnico apareça, não sabe a que dia
nem a que horas, que eles não estão à nossa disposição.
Justiça seja feita, a indústria de geladeiras nacionais
está indo muito bem, que ela não é besta de dar
assistência de cinco anos por um negócio que
enguiçasse facilmente. Mas quando isso acontece, o pior
não é desenguiçar a geladeira — é desenguiçar o técnico.
A minha, por exemplo, começou a suar. Engraçado uma
geladeira suar, mas sua mesmo e sua frio, como se
estivesse resfriada, o que não é de estranhar, passando
dias e noites, como ela passa, sujeita a uma
temperatura muito baixa. Pois bem, quando o técnico
chega, desmonta a porta, desforra-a todinha e estende-a
sobre o sofá, como se fosse submetê-la a uma operação
cirúrgica: só falta mesmo anestesia. Fica horas
trabalhando, no fim cobra a visita, como se fosse um
médico, e mais o serviço. O fato é que ela pára de suar,
pelo menos naquele momento. Só começa de novo no dia
seguinte, em local diferente: ao invés de suar na testa,
sua na barriga. O ritual é o mesmo: telefona pra cá,
telefona pra lá, vem outro técnico, fala mal do serviço do
outro e repete a mesma operação, isto é, cobra a visita e
a mão-de-obra. Aí a geladeira pára de suar e quem
começa é o dono, que dono de geladeira não tem
regulador, fica suando até cair duro — e pra ficar duro
não custa muito. O melhor é deixar a geladeira suando,
até que a maçaneta quebre e a porta fique aberta a
semana inteirinha, com um banquinho encostado na
porta pra escorar. Quando o técnico chega de novo,
cobra o que quer pra tentar consertar, depois diz que
não tem jeito e põe uma nova por um preço que ele diz
que é de amigo, imagine se fosse de inimigo. Ele garante
que a porta não fica mais aberta e acerta em cheio: não
dura dez dias e a porta não abre mais — de jeito
nenhum. Não se pode colocar nada lá dentro nem tirar,
é aí justamente quando a gente começa a pensar pra
que diabo ter uma geladeira em casa que fica ocupando
espaço à toa, e chama de novo o técnico. Da próxima vez
que eu comprar uma geladeira não vou pedir garantia
nenhuma pra ela: vou pedir é garantia para os técnicos
— que não estou aqui pra entrar numa fria.
Crônica
de sangue
O crime evoluiu, a polícia não. Não se ouve dizer
que cinco policiais prenderam um assassino, é sempre
um policial que "ocasionalmente passava pelo local".
Isso quando coincide do policial passar pelo local em
que se cometeu o crime, porque geralmente policial só
anda em lugar onde não se comete nada, que ele não é
bobo. O criminoso, ao contrário: só anda em lugar onde
acontece crime, porque se não acontece ele mesmo faz
acontecer. E a prova de que o crime evoluiu é que
antigamente o assassino "com um tiro certeiro prostrou
a vítima ao solo". Hoje não faz por menos: "matou a
amante com cinco balaços na cara", "deu 64 facadas na
amásia por ter sido repelido", "fuzilou o marido com
quatro tiros no escritório", "comprou a pistola e baleou o
vendedor", "trucidou o sócio com dezoito machadadas",
"capataz matou lavrador com quinze foiçadas", "violento
tiroteio em pleno coração da cidade". As balas estão
mais caras, os revólveres caríssimos, os punhais e
derivados custam os tubos. Não resta dúvida que as
armas estão pela hora da morte, inclusive utilizadas
para trocadilhos como esse. Acho que o assassino as
usa maior número de vezes justamente pra compensar o
seu preço. Um punhal, digamos, de 2 500 cruzeiros,
dando apenas uma punhalada, essa punhalada custará
exatamente 2 500 cruzeiros. É muito lógico que dando
25 punhaladas, cada uma custará 100 cruzeiros. Dando
cinqüenta, custará 50. E de punhalada em punhalada, o
punhal acabará ficando de graça — e daí em diante,
tudo é lucro. Acho que é por isso que os crimes quase
sempre são cometidos pela mesma arma e um dia a
polícia descobrirá que as armas são muito mais
criminosas do que os seus portadores, tanto que quase
ninguém tem porte de arma. O certo então seria con-
denar as armas a cinco, dez ou vinte anos de reclusão e
soltar os seus donos. Me parece que os criminosos,
quando entram no xadrez, deixam suas armas na
portaria, como quem deixa o guarda-chuva, e recebem
um ticket. Depois de interrogados e identificados como
"indivíduos sem identificação", apresentam o ticket e
levam a arma de volta. E enquanto aguardam o decorrer
do processo, vão praticando outros crimes, que é pra
valorizar a arma. Por isso é que se vê, de vez em quando,
a polícia realizando verdadeiras caçadas à arma
assassina. Os detetives ficam tão empolgados pela "arma
do crime" que acabam esquecendo os criminosos.
Crônica
TOMO V
eu saí de casa
O Tóquio mágico
Eu parei o trânsito
Verdade seja dita: motorista carioca faria sucesso
em qualquer circo do mundo. Sua missão é tão
arriscada que quando ele sai de casa, não diz até-logo à
família: diz adeus. O trânsito do Rio pode ser comparado
a um imenso parque de diversões, porque cada um se
diverte com o malabarismo do outro. Poderia mesmo ser
usado como uma das maiores atrações turísticas da
cidade, em matéria de organização. Os ônibus não
ultrapassam os carros pequenos, passam por cima. O
carro de praça não corre, fica parado no ponto. O carro
oficial respeita a ambulância, porque sabe que só existe
uma. Há muitos sinais no meio da rua que dão um
colorido especial ao trânsito, muitos deles apagados —
mas isso não tem importância, porque muitos
motoristas também estão. As ruas são inteiramente
democráticas: um dia dão mão pra um lado, outro dia
pro outro — e a maioria das vezes pra nenhum, por
causa dos consertos. Os veículos só estacionam em local
proibido, porque todo local é proibido. Aí entram os
carros-reboques: dois contra uma cidade inteira. E fica
tudo como está. O tráfego se divide em duas partes,
sinalização e analfabetização. O equipamento do
motorista é o palavrão, o do pedestre, a vela. A beleza do
trânsito não se deve exclusivamente à inspetoria, mas
também ao povo, que está satisfeitíssimo com o trânsito.
Tanto assim que pedestre carioca não anda, pula. Deve
ser de contente.
TOMO VI
POLÍTICA
HORA CERTA
A especialidade da televisão é passar desenhos
animados de 1935. Às vezes passa um novo, de 1936.
COMERCIAL AO VIVO
TOMO VII
manchetes definitivas
CATÁSTROFE:
TOMO VIII
u m b ra s i l e i ro n o co sm o
PRIMEIRO ESTÁGIO
O primeiro grande problema pra se mandar um
brasileiro ao espaço não é a fabricação do foguete; é do
homem que vai. No Brasil, ninguém quer ir a lugar
nenhum — a não ser que esteja tudo pago.
SEGUNDO ESTÁGIO
Uma vez escolhido o candidato, o foguete seria
construído na Fábrica Nacional de Motores, com a
percentagem inicial de 33 por cento brasileiro e 67 por
cento estrangeiro, como toda indústria nacional que
nasce. Quanto ao combustível, não precisaria ser nem o
russo nem o americano: seria o brasileiro mesmo que é o
que mais sobe.
TERCEIRO ESTÁGIO
Em terra firme, começaria a exploração: seria
entrevistado em auditório de rádio, assinaria colunas de
jornais, acabaria gravando marchinhas para o carnaval
sob o pseudônimo de "cantor astronauta".
TOMO IX
TOMO X
ficção científica
A experiência
Eu era a cobaia. Quando subi na balança, depois
de um regime apertadíssimo de dois anos e meio, estava
pesando "menos 48 quilos". Era a primeira vez que via
um homem pesar "menos" — e esse homem era eu. Pra
subir na balança eu precisava descer: colocaram no meu
pé uma espécie de âncora que me puxava pra baixo. Pra
sair, era só desatarraxar a corrente que eu saltava. Foi o
que fizeram, quando comecei a subir. Lá embaixo, os
cinco cientistas esfregavam as mãos, cada vez menores.
Uma sensação de alívio, à medida que me afastava
deles. Não sentia o meu corpo e, pra ser franco, nem sei
mesmo se ainda tinha corpo, pois não era possível pesar
"menos" e ainda ter um corpo. Tentei me apalpar, mas
não tinha forças pra mover os braços. Só a muito custo
percebi que nem sequer tinha braços. Isso de não ter
braços foi o que mais me preocupou — até eu descobrir
que também não tinha pernas. Nem tronco. Nem
pescoço. Incrível, eu não tinha mais eu. Era um
absurdo. Como é que eu estava pensando? Pelo menos
devia ter cabeça — mas como verificar, se não podia
perguntar a ninguém e os cientistas ficaram lá embaixo,
cada vez mais pequenininhos e cada vez menos
cientistas? Tentei me lembrar do primeiro dia em que
me apresentei como voluntário e para isso usei o
sistema do flash back, muito usado pelo cinema
americano. Tudo foi ficando fora de foco e quando
começou a ficar nítido, o tecnicolor estava impecável — e
eu sempre imaginei que só se pensava em preto e
branco.
— Voluntário 1335!
— Pronto.
— Comutador número 4!
— Pronto.
— Comutador número 5!
— Tire o corpo.
— Como?
— Tire.o corpo.
Vontade eu tinha de tirar o corpo fora, mas de que
jeito? Dois enfermeiros se aproximaram com uma
máquina de calcular. Na contagem dos meus glóbulos
vermelhos e brancos houve um saldo de 0,00000000002
a favor dos vermelhos e, pra acertar as contas, foi
preciso contratarem o maior contabilista do país pra
tirar a diferença. Segundo a teoria do Dr. Germigold, que
estava fazendo um estágio ali, pois ganhara uma bolsa
de estudos, o meu desaparecimento seria feito
consubstancialmente e quando lhe perguntei o que
significava isso ele limitou-se a me olhar com um ar de
superioridade, como quem quer evitar de me chamar de
ignorante.
— Ignorante!
artigos do dia
O "ballet" da ortografia
Sei mais ou menos o sentido de cada palavra em
relação a cada homem, sei também a palavra exata que
faz cada homem ficar sentido — embora muitos deles
não tenham nenhum sentido. Ainda assim, confesso que
na hora de escrever fico indeciso diante de certas
palavras. Por exemplo, não sei por que "exemplo" se
escreve com "x" e não com "z", se a gente pronuncia
"ezemplo". Outras vezes fico sem saber se se escreve
"asa" ou "aza" e me explicam que "asa" é com "s", "azar"
é que é com "z". Pego alguns livros de noções
elementares e fico cada vez mais sem noção e cada vez
mais elementar. Certas regras a gente tem de decorar,
não só as regras como também as exceções, e a maioria
das regras têm mais exceções do que regras — salvo
exceções. Bolas, se tiver de decorar tanta coisa, não
consigo escrever, preocupado que fico com as regras.
Sinto-me assim uma "garota-propaganda" que fica mais
preocupada com o texto que decorou do que
propriamente com a mensagem que está transmitindo:
não se sente nenhuma espontaneidade no que diz,
justamente porque nem mesmo ela sabe o que está
dizendo. Depois me explicam que não existe mais "k" no
alfabeto: abro os jornais e vejo JK pra cá, JK pra lá. Às
vezes penso que o "k" foi substituído pelo "q" — mas logo
verifico que até o "q" renunciou, pois todos insistem em
dizer que está tudo oká. Às vezes escrevo contacto, a
revisão corrige para contato. Mas quando escrevo jato, a
revisão corrige para jacto — ninguém percebe que um
jato sem o "c" fica muito mais leve e tem muito mais
possibilidades de chegar. O "c" eles devem guardar para
a propaganda, quando dizem DC-3,
TOMO XV
o doutor, esse
desconhecido
a hora da coragem
TOMO XVI
Fig. 1
MODO DE USAR
Pegue uma pequena e convide-a a ir à praia com
você. Não importa que leve barraca ou não, o essencial é
que leve este livro. Abra exatamente neste capítulo e
coloque o livro na areia. Depois peça à pequena que
deite de bruços de frente para o livro e deite você tam-
bém de frente para o livro, no sentido oposto. Ambos
ficarão um de frente para o outro, com o livro no meio
(fig. 1). Parece complicado pra ler, mas você verá que
não, pois este capítulo foi feito para isso. Quanto aos ou-
tros, espero que você já tenha convencido a pequena a
deitar ao seu lado.
nos bons tempos em que ainda não
Quarenta graus à sombra que o tempo é marcado pelo sol, como
que ninguém leva relógio para a praia: é
Na praia o que faz suar não é o sol, é o mulheres vêm sempre por fora. Já sei por
biquíni. O Serviço Meteorológico me que não é bobo, por isso é que as
parece muito meteoro e pouco lógico, não deixa ninguém entrar dentro dele,
nunca prevê o tempo estável sujeito a diminuem. Aliás, biquíni que se preza
brotos, com ligeira elevação no decorrer mas é pura ilusão: os biquínis é que
do período: banho de mar de tarde só dá brotinhos de hoje crescem mais depressa,
velhota. Quanto vale uma vida humana? cara. A impressão que se tem é que os
Os banhistas salvam, em média, umas calção, que está custando os olhos da
dez por mês que, divididas pelo seu salá- seiscentas pratas, cada uma, fora o
rio, devem custar aí por volta de umas rio, devem custar aí por volta de umas
seiscentas pratas, cada uma, fora o dez por mês que, divididas pelo seu salá-
calção, que está custando os olhos da Os banhistas salvam, em média, umas
cara. A impressão que se tem é que os velhota. Quanto vale uma vida humana?
brotinhos de hoje crescem mais depressa, do período: banho de mar de tarde só dá
mas é pura ilusão: os biquínis é que brotos, com ligeira elevação no decorrer
diminuem. Aliás, biquíni que se preza nunca prevê o tempo estável sujeito a
não deixa ninguém entrar dentro dele, parece muito meteoro e pouco lógico,
que não é bobo, por isso é que as biquíni. O Serviço Meteorológico me
mulheres vêm sempre por fora. Já sei por Na praia o que faz suar não é o sol, é o
que ninguém leva relógio para a praia: é
que o tempo é marcado pelo sol, como Quarenta graus à sombra
nos bons tempos em que ainda não
TOMO XVIII
NamoraDos
Trabalho
Ano novo
AniverSário
Dia do Trabalho
Ano-bom taí
COQUETEL DE CHAMPANHA
COQUETEL PICADILLY
COQUETEL FASCINATION
Aniversário
Me acostumaram a achar, desde menino, que o dia
em que nascemos é uma data que deve ser comemorada,
todo ano. Nunca entendi direito qual a vantagem desse
regozijo, como se fosse um desafio ao tempo.
Salgadinhos, bebidinhas, um pouco de música e um
pouco de amigos, tudo em volta de um bolinho onde, à
meia-noite em ponto, apagam as luzes e todos cantam
sem muito entusiasmo o happy-birthday mais
desafinado do mundo — e ainda por cima em inglês.
Depois vêm as palmadinhas nas costas, as pequenas e
constrangedoras filas pra repetir o abraço que já foi
dado na entrada, com pouco menos de espontaneidade.
É uma espécie de pêsames às avessas. O aniversariante
faz cara de homem feliz, se sente assim o centro dos
acontecimentos, porque enquanto todos batem papo,
tocam violão, dançam e riem, ele fica num cantinho
completando o seu aninho. Nem sei mesmo se aquele
sorriso é de felicidade ou de cortesia para consigo
mesmo, enquanto a presença de todos lhe lembra, a
cada instante, que está um ano mais velho, um ano
mais gasto, um ano mais acabado. Fica fazendo planos
em se adaptar à nova idade, que ele já viu outros
fazerem e que só agora ele sente como realmente é. O
efeito me parece mais psicológico do que lógico.
Ninguém faz anos nem ninguém envelhece de ano para
ano. A lembrança e o festejo da data é que nos fazem
sentir aquela obrigação de envelhecer. Uma frase, uma
despedida, um encontro casual, uma descoberta
qualquer, podem nos envelhecer de um momento para
outro. Ou rejuvenescer. Mas o homem cismou que a
data do seu aniversário é o momento matemático de
envelhecer, física e mentalmente. É uma imposição do
tempo que a sociedade inventou. Eu, por exemplo, me
acostumei a fazer dias, o que já considero um milagre —
nos dias de hoje. Cada um que passa é mais difícil de
ser completado. Os acontecimentos andam tão rápidos
que quando a gente vai ver, amanhã já é ontem e ontem
foi há quatro ou cinco meses atrás. Não sei por que essa
mania de dividir o tempo, se a gente nem sequer sabe
quanto tempo vai viver. Acho, portanto, que o
aniversário é mais uma satisfação que se dá aos que nos
cercam do que a nós mesmos. Não me lembro de ter tido
aniversários mais felizes ou menos felizes. Se alguém
não me advertisse, talvez eu fizesse anos sem perceber.
Os telegramas, as cartas, os telefonemas, me põem
perplexo pela presteza da memória alheia, coisa que
sempre invejei. Dificilmente me recordo do que fiz ontem
e raramente me preocupo com o que vou fazer amanhã.
Simplesmente vou vivendo, espremido inconscien-
temente entre uma coisa e outra. Nasci a 12 de outubro,
se meus pais não me tivessem avisado eu teria menos
uma preocupação na vida. Iria crescendo, ficando
maduro, sem saber precisamente quando nem quanto. A
todos os que nasceram nessa data, feliz aniversário.
Quanto a mim, paciência, o aniversário é meu e faço
quando bem entender.
TOMO XIX
e n c o n t r o c o m a s e s tá t u a s
SOLIDARIEDADE:
O DISCOBULO E O DISCÓFILO:
TIRANDO O PÉ DA LAMA:
CASQUINHA:
DISPLICÊNCIA:
APERTO:
ESTE NÃO QUIS ENTRAR NA BRINCADEIRA:
TOMO XX
re fl e x õ e s s e m re fl ex o
T OMO
Mais nenhum
***