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Camila Marciano
Esse livro eu dedico ao Maré que ainda bem que não lê.
Com amor,
Cabelo de Unicórnio.
It's you and me
That's my whole world
They whisper in the hallway, "she's a bad, bad girl" (okay!)
The whole school is rolling fake dice
You play stupid games, you win stupid prizes
It's you and me
There's nothing like this
Miss Americana and The Heartbreak Prince (okay!)
We're so sad, we paint the town blue
Voted most likely to run away
With you
Eu não tenho tempo para essa merda. Tenho dois filhos e uma empresa
para dar conta, não tenho tempo nem disposição para ficar correndo atrás de
marido com crise de meia-idade.
Sair de casa às três da madrugada, numa quarta-feira, para flagrar
marido com outra? Eu? Logo eu?
Patética, Andressa, você é patética.
Estacionei o carro do outro lado da rua, distante de seu carro para
não ser notada, e esperei que ele entrasse no tal inferninho para entrar logo
atrás.
Não sei o que tinha na cabeça quando resolvi flagrar a sem-
vergonhice, mas, se ali estava, dali só sairia com respostas.
Dei alguns minutos para não ser vista e entrei em seguida. Uma
moça muito bonita me abordou ainda na entrada, e me disse que bolsas e
celulares não poderiam entrar.
— Eu não vou frequentar, mocinha. — respondi sem paciência —
Só vim buscar meu marido.
— Pela segurança e privacidade dos membros, é melhor que a
senhora não faça isso.
— Certo — garanti a civilidade —, prometo não fazer barraco.
E avancei para a porta que permaneceu fechada, à direita do balcão
onde a mocinha trabalhava.
— Chaves, celular e bolsa, senhora.
Respirei fundo.
Larguei tudo sobre o balcão e olhei com raiva para a coitada. Ela
não tinha culpa, racionalmente eu sabia, mas como reagir de um jeito com
uma pessoa, quando queremos matar outra?!
— Nome, sobrenome e documentos, por favor.
— Tá de sacanagem, né?
Não estava.
Depois de dar todos os detalhes que ela queria, imaginei que o Lipe
já tivesse até saído pelos fundos, que tivesse se atracado e terminado, que…
sei lá! Talvez, pela demora da mocinha, sequer o encontrasse.
Ouvi a porta destrancar e passei como um raio, pronta para cortar
tudo e todos, e parei no meio do salão, vestida como uma mãe de dois filhos
depois de um expediente cansativo, de frente para uma barra de poledance
ocupada por uma mulher talvez da minha idade, que dançava pelada e fazia
questão de se abrir inteira.
Fiquei em choque pela depravação. Então era esse o tipo de coisa
que meu marido gostava? Esse nível de rebaixamento? Ver uma mulher
dançando sozinha para se exibir para um bando de desconhecido?!
Olhei aos redores caçando pelo marido. Olhei as mesinhas ocupadas
por casaizinhos bebendo, olhei outros casais se batendo com chicotes (!!!!),
um casal já bem mais velho imitando bebê (!!!!!!!!!!!), dois homens
chupando uma mulher, três homens ajoelhados diante de outra.
Uma loucura só, tudo tão escandaloso e pelado que me dava
vergonha por eles.
Não sou nenhuma puritana, não, viu? Eu gosto de sexo, acho
prazeroso, mas tem coisa na vida que nunca me prestaria ao papel, e uma
delas, sem dúvidas, é me enfiar em quartinhos apertados, com cheiros de
outras pessoas, música barulhenta e pouca luz, só para transar.
Lipe não estava em parte alguma e meu coração doía de nervoso.
Olhei no balcão do bar, para todos os casais, até dei uma espiadinha escadas
acima só para saber se existia a possibilidade de ele ter subido, mas não o
vi.
Alguém passou por outra porta e não esperei que ela se fechasse.
Desci os poucos degraus para o lado de fora e parei quando percebi que
aquele espaço, diferente do anterior, era ao ar livre. Tinha gente brincando
com fogo (???), gente bebendo no bar, gente usando gente de cadeira
(???????), gente chupando e sendo chupado ao mesmo tempo.
Um horror de sexo explícito e corpos suados. Um monte de gente
assistia também, encostados nos cantos, bebendo e fumando como se tudo
fosse normal.
Não sabia como todo esse povo tinha estômago, eu não tinha. Minha
sexualidade eu resolvia no quarto, num espaço privado e limpo, não…
naquilo.
De tão horrorizada, acabei perdendo um pouco o foco, e só depois
que voltei à razão. Lipe estava sentado num canto escuro, olhando
fixamente para algum canto que não me interessava, e uma moça, bem na
hora que o vi, se sentou no tampo da mesa em que ele ocupava.
Ele levou um susto, mas não expulsou a menina prontamente. Eles
começaram a conversar, ela cheia de sorrisos e decotes, cruzando a perna
bem alto, na cara dele com aquela saiazinha minúscula provavelmente sem
nada por baixo, e ele cheio de sorrisinhos para a desconhecida.
De repente, a raiva cega passou para dor. Minhas dúvidas não eram
coisa da minha cabeça. Meu marido, meu parceiro de mais de vinte anos,
finalmente resolveu jogar tudo o alto e se aventurar como um adolescente.
Dizem que a crise de meia-idade é como uma puberdade piorada,
mas nada me preparou para aquilo. Nem ninguém.
Quebrada e em prantos, parada no lugar, catei meus caquinhos do
chão, sem coragem nem força para fazer barraco, e fui embora.
Tão machucada e ferida que a única coisa que pude fazer foi chorar
sentada no banco do carro, a cabeça encostada no volante, e tão triste, tão
triste, que não consegui sair do lugar por um longo tempo.
Capítulo Dois
(Andressa)
Você tem duas escolhas, Andressa: Falei para mim mesma, a cabeça
enterrada no volante, o choro caindo para o colo e o coração em mil
pedaços. Ou você arruma mais uma briga e tira essa patifaria a limpo, ou
entre na dança.
Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando tudo sem enxergar nada,
chorando meu peito para fora, tão magoada e sentida que mal conseguia me
mexer.
Sabia que precisava sair dali, dar um jeito na vida, resolver o que
fazer, dar o troco. Sabia de tudo isso, mas, como? Como fingir que não vi o
que vi e ir para casa, me deitar na mesma cama que ele e lhe preparar o café
da manhã como se nada tivesse acontecido?
— É por isso que eu odeio esposas. — Sem que me desse conta,
alguém puxou a porta do passageiro, entrou no meu carro e se sentou,
reclamando, cortando meu fluxo de raciocínio e chororô. — Odeio essa
merda de casamento tradicional e intrigas de gente mal-resolvida.
Assustada num tanto, não consegui me mover. Estava tão frágil e
sentida, que sequer pensei em segurança quando fiquei ali parada, dentro no
meu carro, naquela rua vazia.
— Prazer, Bataille. — E me estendeu a mão num cumprimento
como se nosso encontro tivesse sido espontâneo.
Olhei bem para a cara daquele sujeito, um homem preto enorme de
camisa branca e um monte de tiras de couro sobre o peito, como uma
espécie de suspensório elaborado, o sorriso maléfico com um jeito cafajeste
que toda mulher reconhece de longe, e o rosto lindo.
— Sabia que você seria um problema desde que seu marido pisou
no meu bar pela primeira vez, Dona Andressa.
O meu lado de esposa ressentida queria saber quantas vezes ele
pisou naquele bar. O meu lado sensato só pensava o quão inseguro era
começar uma conversa com um homem que invadiu meu carro. O meu lado
curioso queria saber como ele sabia meu nome e por que puxava aquele
assunto comigo.
De todos os lados que eu podia escolher para dizer minhas primeiras
palavras àquele estranho, escolhi o mais idiota:
— E quantas vezes ele já veio aqui? — Falei num fiapinho triste de
voz que mal saiu, e quis morder minha própria língua.
— Isso não vem ao caso. — Percebendo que eu não cumprimentaria
a mão que tinha estendida, a guardou. — Se serve de algum consolo, ele
nunca te traiu.
— Depende de como você vê a traição — Rebati — Por que sair de
casa no meio da noite e vir para esse… inferninho, para mim é traição, sim.
— E o que muda disso para um pornô? Ver pornografia é traição,
agora?
— É diferente e eu não vou ficar me explicando para você!
Ele deu uma risada alta que me deu vontade de fazê-lo engolir os
próprios dentes.
— Se quer saber…
— Não quero! — Interrompi.
— … você fica muito melhor brabinha do que com todo esse
chororô.
— O que você veio fazer no meu carro, afinal?! — Finalmente
perguntei o que devia ter perguntado desde o começo — Se é para ficar
rindo de mim, pode sair!
— Depois de Valéria, eu virei um frouxo. — Confessou como se eu
soubesse quem, afinal, era essa tal Valéria — A minha funcionária viu você
entrar e me avisou do pior, mas mandei meus seguranças não fazerem nada
até você colocar suas garrinhas para fora.
— Viu que também sou frouxa e não tenho coragem para arrumar
barraco nem quando preciso?
— Ficamos com pena de você. — Ele me corrigiu — Todos nós já
tivemos nosso coração partido em algum momento. O segurança do lado de
fora veio me avisar que você entrou no carro, mas não saiu.
— E você achou esse um bom momento para vir rir de mim.
— É que você me conhece pouco. Se me conhecesse, ficaria
surpresa de me ver com pena de alguém.
— Se tá esperando um “obrigada”, pode esquecer!
Ele respirou fundo três vezes antes de me responder, como se eu
fosse uma criança birrenta. Resmungou alguma coisa que não consegui
entender, olhou para a porta do próprio bar como se esperasse que alguém
viesse em auxílio, e depois falou:
— Você tem duas escolhas aqui, mas só uma é esperta.
— Eu sei disso, mas só que…
— Aprenda a ouvir! — Me deu esporro, com aquele vozerão de
tremer terra, e endireitei a coluna como se tivesse tomado bronca do meu
pai. — Estou aqui, tentando te ajudar, e você não para por um segundo para
ouvir! Se você sabe de tudo e está tudo certo na sua vida, como se enfiou
nessa situação, hein? Perseguir marido no meio da noite, Dona Andressa?
Sério?! É nesse pé que anda seu casamento? É isso o que você tem quando
chega em casa cansada do serviço? O que caralhos aconteceu com o casal
que passa a mensagem de uma entidade forte e sensual em todos os jantares
beneficentes que nos encontramos?
Olhei de novo para o rosto dele. Eu sou boa de nomes e semblantes,
certamente me lembraria dele se tivéssemos nos esbarrado.
— Você me conhece?
— Nunca me apresentei, mas vocês dois sempre me chamam muita
atenção. — E, com um sorrisinho mais ameno, acrescentou: — Só é uma
pena que nunca tenha te visto com o vestido certo.
— Fosse outro vestido, você teria se apresentado?
— Me apresentado?! — E riu. Não tinha uma risada fingida ou
forçada, tinha o tipo de risada aristocrática e divertida que, se fosse num
outro contexto, teria me feito rir também. — Teria te arrastado para o meu
bar na mesma hora. Aliás…
— Não. — Respondi antes que ele sugerisse de voltarmos lá para
dentro.
— Outra hora, então. — E mudou de assunto antes que eu pudesse
explicar com A+B que não haveria “outra hora” — Vou falar das suas duas
escolhas e você vai ficar quieta até eu terminar, tá bom?
Assenti e não falei.
— Boa garota. — Sorriu me congratulando pela obediência e revirei
os olhos quando entendi o contexto — Agora: você tem duas saídas para
essa merda que se enfiou. Uma, você pede o divórcio e fica o resto da vida
se perguntando o que poderia ter feito diferente, ou Duas, faça diferente.
— Como?
— Seja a mulher que ele sempre quis que você fosse…
— Não. — Cortei. — Virar uma puta só para ter esse homem na
minha vida? Não. Não foi com essa mulher que ele se casou e não vou
mudar quem eu sou só para tê-lo comigo!
— Aprenda com as putas, depois fale delas. — Ele retomou
pessoalmente ofendido com o que eu disse — Tente ser 10% de qualquer
mulher lá dentro e depois diga o que elas são. Para uma mulher CEO que
passa o dia brigando contra o machismo, você fala como uma hipócrita.
Depois disso, tive de ficar quieta. Enfiei meu feminismo na bunda e
tive de tomar bronca de um homem por isso.
— Olha, o problema não é elas ou o que fazem. — Respondi com a
orelha quente — Eu não tô nem aí! Só que eu não me vejo abrindo espacate
pelada em cima de uma barra de poledance!
— Esse é o fetiche da Sabrina, não o seu. — E fez a pergunta de um
milhão de dólares: — Quais são os seus?
— Os meus o quê? Fetiches?
Foi a minha vez de rir. Fetiche o quê! Eu tenho quarenta e dois anos,
dois filhos, uma empresa para dar conta! Não tinha tempo nem para tomar
banho de banheira, quem dirá pensar nessas coisas!
— Ultimamente, fetiche para mim é tomar café da manhã em
silêncio. — Respondi rindo porque até isso, na minha casa, era impossível.
— Não me faça perder tempo, mocinha.
— É sério! — Engoli a risada e olhei bem para ele — Não tenho
fetiche algum.
— Cruzes. — Respondeu desanimado — Vai ser pior do que eu
pensava.
— O quê? — Não entendi o que ele queria dizer. Do jeito que falou,
parecia que tinha planos.
— De alguma coisa você vai ter que abrir mão. Ou você me fala
seus fetiches, ou entra lá comigo e descobre alguns.
Não sabia nem o que pensar, quanto mais tomar uma decisão. Amo
muito meu marido e não queria mais encrenca. A nossa vida andava tão
difícil, estávamos tão sem tempo para as coisas que nem nosso aniversário
de casamento comemorávamos mais.
Eu podia pedir o divórcio, mesmo. Podia só aceitar que nosso
casamento estava acabado e que não daríamos certo nunca mais. Era o fim
da picada meu marido sair de casa no meio da noite para se enfiar num bar
de procedência duvidosa e ficar conversando com estranhas.
Por outro lado… Para chegar a esse ponto, alguma coisa não estava
certa há um bom tempo. Não é?
— Tá! — Cedi — Eu posso entrar nesse bar com você antes de
tomar uma decisão definitiva, mas não vai ser hoje.
Olhei no relógio do painel e tive um treco: se dormisse no banco do
carro, ali mesmo, eu teria três horas de sono para aguentar o dia seguinte.
— Amanhã, dezenove horas. — Ele mandou — E quero você com
uma roupa melhor que isso.
— Dezenove? — Sete era praticamente impossível! — Pode ser às
vinte e duas? Às sete eu tenho…
— Delegue. — Me cortou — Se você largar o batente às seis, sobra
tempo suficiente para se arrumar e vir para cá. Quem sabe, dá tempo até de
dar a janta dos seus filhos.
Eu não saía do escritório antes das oito. Não compartilhei minha
rotina com o estranho, mas dar o jantar dos meus filhos também era uma
coisa que eu queria muito fazer todo dia, mas raramente conseguia.
Ainda mais num horário daqueles.
— Vou fazer o possível.
— Não se atrase.
Com um beijo no rosto que quase foi na boca, saiu do meu carro do
mesmo jeito que entrou.
Capítulo Três
(Marido)
Você conhece essa piada: um homem entra num bar e dá de cara com
uma cena violenta de sexo que muda toda a sua perspectiva de casamento.
Numa única piscadela entre uma Domme de vermelho e um
submisso tão extasiado que o suor escorrida de suas costas, entendi o
quanto meu casamento andava uma bosta.
Não me leve a mal, eu amo minha esposa, sou doido varrido nela,
mas a questão não é essa. Depois de anos de casado a gente sabe o que
esperar do parceiro. Sabe tanto, que até para fazer surpresa e suspense fica
difícil.
E isso se aplica à cama, também. Já descobrimos como o outro goza,
como ele gosta das coisas e tudo o mais. Some aquela faísca do primeiro
encontro que deixa a gente meio louco e meio nervoso por não saber nada
sobre o outro.
Olhando aquele casal de aliança dourada no anelar, o jeito
apaixonado como ele a olhava mesmo cheio de marca de chicote nas costas,
suado feito um porco e descabelado, a faísca do primeiro encontro ainda
estava ali. Ainda tinha, no casamento deles, o que Andressa e eu deixamos
que a vida, os filhos, os deveres e os trabalhos matassem.
Estava faltando paixão e não falo só de transar diferente. Faltava
uma alegria de estar junto, uma lembrança do porquê nos casamos.
Que ela me ama, disso nunca duvidei, mas sabia também que não
estava muito disposta a melhorar nossa situação.
Quando cheguei do bar e contei para ela como foi ver aquele casal, a
dinâmica deles, e que nós poderíamos tentar qualquer coisa daquele tipo,
ela mal tirou os olhos do computador. Respondia com “Hm”, “sei”, como se
eu fosse uma criança de cinco anos contando do circo.
— Você não quer ir amanhã comigo? — Tentei.
Perguntei sabendo da resposta, mas foi pior do que imaginei: ela só
respondeu o “a gente pode ver” e, a conhecendo como conheço, entendi que
ela não ouviu uma única palavra do que falei.
Andressa Botelho é a pessoa mais pudica que conheço. Me deu dois
filhos, mas para transar comigo além do “papai-e-mamãe” é um parto. E
olha que, quando estávamos grávidos, não sei o que lhe deu e ela aceitou
brincar diferente.
Muito diferente.
Muito diferente mesmo.
Mas foi só na gravidez da nossa primeira filha, a Olga. E depois,
nunca mais. Quando não era sexo baunilha, era uma mãozinha boba, um
beijinho mais para baixo do umbigo, e pronto.
Então, sem que ela tivesse me ouvido e com a certeza de que minha
vida sexual e amorosa não iria melhorar, voltei para o tal bar.
E acabei voltando muitas vezes. Muitas e muitas.
Toda vez que não conseguia dormir ou que estava entediado,
deixava a cama quente da tranquilidade doméstica e ía.
Até o dia em que o dono do bar cansou da minha cara de “homem
que estava assistindo, mas queria estar fazendo”, e me deu a melhor ideia
em anos que alguém poderia me dar.
— Ela vive viajando — Ele me disse enquanto traçávamos o plano
—, uma semana fora de casa para quem já trabalha com isso não é nada
demais.
— Viajar é uma coisa, o que você tá propondo é loucura! — Rebati.
— Você tentou o caminho fácil e ela nem te ouviu.
Tinha um ponto, mas o que ele sugeriu tinha mais cara de suicídio.
— Eu não vou fazer isso só para transar mais gostoso, porra. —
Rebati de novo, dessa vez, certo de que não teria coragem suficiente para
cometer tanta frieza.
— Então tudo vai bem no seu casamento, só o sexo que vai mal?
Não tem mais nada que esteja com problemas e mais nada que precise ser
consertado? — Bataille respondeu com um sorrisinho no canto da cara que
me deu vontade de arrancá-lo no soco — Sexo ruim é sempre o sintoma.
— Nunca falei que era ruim. — Interrompi.
— … Sexo mais ou menos — Ele se corrigiu — É sempre o
sintoma. E sua esposa não dá dois segundos para ouvir o que você quer.
Tem certeza que não quer tirar o band-aid da ferida e curar tudo de uma
vez?
Até o momento em que ela foi ao bar, certa de que eu a traía, eu não
tinha certeza.
Mas quando ele voltou do carro dela e me disse da conversa que
teve com minha esposa, dei o braço a torcer e coloquei o plano em prática.
Voei para casa o mais depressa que pude, e tenho certeza que tomei
uma multa no caminho. Larguei o carro de qualquer jeito na entrada do
Jockey, subi correndo até o nosso quarto, entrei no closet e foi o tempo de
respirar fundo, puxar sua mala de viagem e um blazer para dobrar, que
Andressa chegou.
Visivelmente alterada e com os olhos vermelhos, olhou sem
entender o que eu fazia com a mala de viagem e sua roupa na mão.
— Lipe?
— Oi, amor. — Respondi sem tirar os olhos de seu blazer azul —
Foi tudo bem no trabalho hoje?
— Foi. — Respondeu meio desconsertada, e se sentou na poltrona
sem encosto que ficava bem no meio do closet e que usávamos com certa
frequência para calçar sapatos. — Fui naquele bar que você costuma ir.
Eu já sabia disso. Vi o como ela ficou alterada de me ver
conversando com outra mulher.
— Por que não me contou dele? — Ela tentou.
— Eu já tinha te contado. — A lembrei, mesmo sabendo que ela não
se lembraria.
— Quando?!
— Te chamei para ir comigo, até.
— Não me lembro disso. — Se defendeu.
— Pois é.
— É um bar bem… — Sei o que ela pensou em falar e é a mesma
coisa que ela fala sobre qualquer assunto que não seja moralmente perfeito
e limpinho — bem incomum.
— Gostei de lá. — Respondi sem medo.
— E me traiu quantas vezes depois que “gostou de lá”?
Por acaso ela enlouqueceu?!
— Você me trai com seu trabalho todo dia e eu não reclamo. —
Respondi tão rude e sem pensar, que engoli em seco com medo do que ela
responderia.
Pronta para responder com a mesma grosseria, vi quando ela se
levantou da poltrona. E foi se levantar que soltei o blazer dentro da mala,
respirei fundo, e disse:
— Quero que você vá embora.
Capítulo Quatro
(Andressa)
Fazia sentido eu ir até o tal bar se quase não tinha marido? Quer dizer,
para que ir até lá, descobrir fetiche, me jogar nessa conversa-mole que não
vai acrescentar nada na minha vida, se o Lipe, que gostava desse bar, tinha
desistido de mim?
Dançar em cima de uma barra de ferro só para fazê-lo olhar para
mim outra vez não era, em nada, o meu estilo. Era até ofensivo, se parasse
para pensar. Agarrar marido pelo sexo, gente? Em que ano estamos? 1975?
Se ele ainda me amava, a gente precisava sentar e conversar, como dois
adultos, até resolvermos. E não seria uma dancinha pelada na frente dele
que nos uniria outra vez.
De todo jeito, estava de compromisso marcado. Pelo menos, indo
até lá, eu poderia entender o que o Lipe via de graça. Qual era o seu ponto
de vista de tudo aquilo.
Além disso, tinha a curiosidade, também. Quem era o dono daquele
bar e como ele já me conhecia? Pensando nisso que abri a mala que o Lipe
fez, olhei entre as roupas que ele selecionou e quase ri, de pena de mim
mesma, ao perceber que meu quase ex-marido colocou só as roupas que
mais gostava dentro da mala.
Parecia até piada, sabe? Tinha o perfume que ele gostava, o vestido
azul, saltos altos que ele já tinha me dito, em mais de uma oportunidade,
que gostava de como minha bunda ficava.
O que também me deixou com duas hipóteses: ele colocou as coisas
que mais gostava dentro da minha mala para que me forçar a usá-las, ou
para tirar de seu closet?
Com as suas roupas favoritas fora de casa, ele não teria que topar
com elas toda vez que calçasse um sapato.
Me convenci a pensar que o Lipe queria que eu usasse aquelas
roupas, mesmo meu instinto berrando o contrário, então coloquei com gosto
o vestido azul, frente-única e que me deixava muito pelada.
— Não posso com esse vestido. — Lembro do Lipe, sentado na
beirada da cama, a calça aberta e nenhuma camisa, me olhando com cara de
safado enquanto eu me vestia — Você sabe disso, não sabe? E faz de
propósito, maldita, sei que faz.
Olhando para o espelho, naquele quarto, eu queria ver a beleza que
ele via, mas só que eu nunca vi. Só via a barriga marcando, a flacidez da
coxa escapando pelo racho lateral, e meus braços gordos.
Calcei os saltos que ele deixou numa bolsa protetora e joguei um
blazer preto por cima, só para não sair por aí sem nada. Olhando-me no
espelho ainda, não carreguei muito na maquiagem, mas marquei bem os
olhos com sombra, só por que sabia que o Lipe gostaria, se visse..
Pronta, em cima da hora, saí com a carteira o celular, mas não levei
mais nada. De toda forma, tudo o que levasse ficaria na chapelaria, então,
para quê levar muita coisa?
Um pouco insegura, entrei no meu carro e fui. Coloquei até uns
sertanejos, que confesso que gosto mais do que deveria, mas não escuto
com frequência por que ninguém mais em casa gostava dessas músicas, e
passeei pelas ruas travadas pelo trânsito do fim do expediente paulista como
se nada me incomodasse.
Era não mais que sete e cinco quando estacionei, e não vi aquilo
como um atraso. Desliguei o carro, cumprimentei o segurança que nunca
olhava para ninguém, e pedi desculpas para a moça da chapelaria pela
forma como a tratei da primeira vez que entrei ali.
— Águas passadas — Me respondeu com um sorriso limpo e
profissional — Importa é que você voltou, não é?
Antes de entregar o celular, vi as horas. Era melhor ligar para o meu
Tutu antes de entrar, do que depois de sair, não era? Voltei para a calçada,
disquei o número de casa, e meu filho me atendeu como quem já esperasse
minha ligação.
— Você lembrou!!
— Claro que eu lembrei, você é o menino mais importante da minha
vida! Como que eu ia esquecer?!
— É que da outra vez você esqueceu…
— Desculpa a mãe por ser esquecida, meu príncipe?
— Tá, mas você promete que não se esquece mais?
— Vou até colocar um lembrete no celular!
É sempre bom ouvir a voz dos meus pequenos. Tutu me contou do
dia dele, da escola e dos desenhos que fez, disse que ia pedir para o pai me
mandar foto deles por que queria muito que eu visse, e respondi que mal
podia esperar para vê-los.
Depois, falei com a Olga que me contou em segredo que tinha um
menino na classe dela que ficava dizendo que cavalo é coisa de menino, e
que ela não devia nem saber montar um.
— Ele falou que eu invento essas histórias, mãe!
— A gente pode tacar cocô de cavalo na casa dele, se você quiser.
— A gente sempre falava de fazer isso com os colegas de classe que não
eram tão legais e gentis assim. — O que você acha?
— ! — Riu como sempre ria, e depois mudou de assunto — Você
vai ver minha corrida das semi-finais?
— Óbvio que vou! Você acha que eu sou o quê? Uma doida de
perder?
— É nesse fim de semana, mãe…
— Não tem problema, princesa, a mãe vai dar um jeito, tá?
E daria. Toda vez que a Olga queria que eu a visse correr contra
outros cavalos, eu saía da parte do mundo onde estivesse, e aparecia. Nem
todas ela fazia questão que eu fosse, dizia que algumas seriam fáceis
demais, ou que seu cavalo não estava tão bom assim, mas as que ela pedia
para eu ir, eu que não era doida de perder!
— Vou falar pro papai guardar o seu lugar junto com o tio Guto, tá?
— Tá bom, minha flor.
Desligamos depois de mil te amos e mil beijinhos de boa noite. Com
um sorriso no rosto, menos nervosa pela coisa toda, entreguei celular e
carteira na chapelaria e entrei.
A moça do poledance estava lá novamente, aberta outra vez, mas
não me choquei pela vista. Com a coluna ereta e aquela caminhada de quem
manda no lugar, atravessei o salão e fui direto para o quintal.
Mais bonito que no dia anterior, o dono do bar usava terno e a
mesma tira de couro por baixo, mas sem camisa. Bebia uma dose de uísque
num copo baixo e conversava, seduzindo, com uma mulher um pouco mais
magra que eu num vestido verde arrasador de lindo.
Isso, sem contar o cabelo cacheado perfeito e comprido. E o sorriso
de quem não valia nem dez centavos, sabia disso, e não estava nem aí.
— Andressa, conheça a primeira-dama. — Disse ele, assumindo
uma postura protetora e carinhosa ao mesmo tempo — Valéria.
— Ah, então é você quem deixou esse homem frouxo? — Sorri num
cumprimento de beijinhos e arranquei um sorriso dela logo de cara.
— Fiz bem mais que deixá-lo frouxo, viu? — E, numa piscadela
cúmplice, ela assumiu outro contexto para o “frouxo”. — Prazer, Andressa,
lindo seu vestido.
— É o que dizem. — Respondi um pouco sem graça só de lembrar
que foi meu futuro ex-marido quem me deu — O seu também é lindo, viu?
Inclusive, aceito indicação dessa loja, por que, ô coisa difícil é achar roupa
bonita fora do padrão, né?
— Menina, nem me fala. — Virando-se para o dono do bar, deu um
tapinha em seu ombro e continuou — Mas vou ter que te dizer que quem
achou boa parte do meu guarda-roupas não fui eu, foi ele.
Ok, isso me deixou boba. Quem disse que homem não tem bom-
gosto, né? Geralmente, quando eles escolhem, sempre são as coisas mais
escandalosas e curtas possíveis, mas aquele vestido verde, que parava a um
palmo do joelho, cheio de franjas e paetês, era lindíssimo de um jeito até
que comportado.
— Bom, eu vou deixar vocês dois aí. — Deu um beijinho no canto
da boca do dono do bar e saiu correndo com saltos altíssimos chamando por
um tal de “Dani”.
Foi sua acompanhante sair que o dono do bar virou para mim,
menos amigável, e me disse o clichê do clichê:
— Você está atrasada.
— Me poupa, estava ligando para o meu filho.
— E eles estão bem?
O jeito como perguntou dos meus filhos trouxe uma pulga para atrás
da minha orelha. Para o mal de todo mundo, sou muito observadora. Tão
observadora que entendi, na hora, que o dono do bar sabia que meu marido
tinha me posto para fora.
De algum jeito que ainda descobriria, ele e meu marido estavam
num complô.
— Qual seu nome? — Mudei de assunto imediatamente — Você
quer saber até como estão meus filhos, e sobre você não sei nada.
— Pode me chamar de Bataille.
— Escolha interessante para codinome. — Respondi — Logo o
escritor que compara orgasmo com morte.
— Não o escolhi por isso. — Sentando-se e me convidando para me
sentar no balcão com ele, o homem pediu uma taça de vinho ao bartender
para mim — Escolhi por que ele acredita que nascemos e morremos
sozinhos. E essa solidão só termina quando estamos transando.
— Se ele fosse mulher, diria outra coisa.
— É? — Ele quis saber, dando um último gole em seu uísque — O
quê?
— Que a solidão também vai embora quando nos tornamos mães.
— Te falar que muitas vezes, mesmo eu sendo um pai, que me senti
assim também? — Pediu outra dose ao bartender e depois se virou para
mim — Vai ver, o escritor Bataille nunca foi pai.
— E se foi, foi um pai de bosta. — Concordei.
— … mas não estamos aqui para debater filosofia — Ele retomou.
— Hoje eu vou te dar uma tour pelo bar.
— Pelo bar ou pelas… — Às vezes sinto como se meu vocabulário
fosse de uma senhorinha de oitenta anos que nunca gozou na vida.
— Pelas putarias. — Ele colocou as palavras na minha boca. —
Agora, antes de sairmos pelo bar, me diz: o que você vê aqui que te chama
atenção?
Capítulo Seis
(Andressa)
Olha, em momento algum eu disse que o Lipe estava errado. Ele quis
que eu saísse de casa e não argumentei, apenas fiz o que me pediu. Deixei a
casa que construímos para trás, dei um beijinho nas crianças e saí. Não era
novidade para mim de que estava descontente com o jeito que levávamos a
vida, com a minha falta de tempo e ausência na vida familiar. Ele tinha
razão na reclamação e eu estava contratando mais gente qualificada para me
ajudar no tocante à empresa.
Só que essas mudanças levavam tempo, não seria do dia para a noite
que eu encontraria um bom diretor comercial que tivesse a malícia dos
negócios para que eu não precisasse ficar pendurada no telefone quase
quatro horas todos os dias.
Todos os meus funcionários são altamente capazes, confio neles,
alguns nem têm o currículo brilhante, mas são os melhores na função que
exercem. Só que, como falei, desde o último acidente com os cavalos, eles
estão com medo de errar e serem demitidos. Nada disso se arruma do dia
para a noite e, como CEO da minha própria empresa, eu precisava de tempo
para arrumar a casa.
Cumprimentei a recepcionista noturna e subi, direto para a minha
suíte. Dei uma olhada nos e-mails do trabalho, respondi apenas aos clientes,
deixei meus funcionários sem resposta, e tentei ligar para o Lipe.
Queria falar com ele, saber como estavam as crianças, como ele
estava, como passou o dia. Se sentisse abertura, lhe contaria da ida ao bar.
Mas a ligação foi direto para a caixa postal.
Antes de fazer uma loucura e ir bater na porta de casa como uma
louca, entrei no banho. Era o mais sensato a se fazer: deixar essa coisa toda
passar e conversar de cabeça fria. Tínhamos muito a perder se não
conversássemos como dois adultos e para a gente fazer besteira bastava um
pulo.
De banho tomado, deitei a cabeça no travesseiro, respirei fundo
muitas vezes, rezei pedindo auxílio de alguém melhor e mais sábio que eu,
e tentei dormir. Demorei muito, muito confusa e sem resposta para nada,
mas acabei dormindo.
Sonhei com Valéria me chupando no banheiro. No meu sonho, tinha
um Lipe olhando e fazendo cara de safado, e tinha um Bataille também. Os
dois loucos de tesão olhando para mim, com Valéria ajoelhada entre as
minhas pernas, e eu quase lá.
Acordei no meio de um orgasmo e só apertei as pernas para
terminar. Gozei, sem saber direito nem como, e fiquei olhando para o teto
tentando entender o que minha vida tinha virado da noite para o dia.
Maldita hora em que fui atrás do Lipe naquele bar.
A campainha do quarto tocou antes que eu tivesse coragem de
levantar.
— Chegou isso para a senhora — Um funcionário do hotel
respondeu ao abrir a porta.
Carregava uma caixa enorme, preta, com laço de presente azul. Do
jeito que as coisas estavam eu não podia dizer, com certeza, que era do
Lipe.
Quer dizer, só ele sabia onde eu estava, a fatura do cartão me
denunciava e ele poderia ver os gastos a qualquer momento, mas a letra no
cartão que acompanhava a caixa não era dele.
“Use isso hoje” Estava escrito “E me encontre no bar no bar à
noite”.
Coloquei a caixa sobre a mesa, desapontada por não ser do Lipe, e a
abri.
Era um conjunto de blusa e saia, ambos pretos, com um blazer azul
para jogar por cima. A blusa parecia um corpete decotadíssimo e de amarrar
na frente. Desenharia toda a minha silhueta junto da saia lápis justíssima, e
tive de dar o braço a torcer de que ficaria linda naquela roupa.
Melada do orgasmo-surpresa, pedi café da manhã pelo serviço de
quarto voltei para o chuveiro. Olhei para o relógio, vi que não passava das
sete da manhã e calculei o tempo até o trabalho.
Se por um dia eu tive coragem de faltar, faltar a dois seria
maluquice.
Me vesti naquela roupa e fiquei babando no espelho. Ah, se o Lipe
me visse! Coloquei um salto que já tinha, arrumei a bolsa para o trabalho e
foi o tempo de ficar pronta que o café da manhã chegou, com vários
vasinhos de flor sobre o carrinho de comida.
Sorri para as flores como uma boba. Lipe, desde que a gente se
conhece, arrumava a mesa para jantares especiais com florzinha de canteiro.
Sempre foi uma coisa dele, para todas as meninas da família, da mãe à irmã,
que me deixa apaixonada e tontinha.
Chorei a primeira vez que ele fez isso para a nossa filha, em seu
primeiro dia de aula na escolinha, e, olhando os vasinhos simples sobre o
carrinho de comida, senti saudade de comer em casa, rodeada dos meus
pequenos, naquela barulheira de todo dia e sem um pingo de sossego.
Quando mais nova, desde que me entendo por gente, café da manhã
é minha refeição favorita e sempre amei comê-lo em silêncio. Sentada ali,
olhando aquelas florzinhas, pensando se meus filhos estavam bem e se
sentiam minha falta, me deu uma saudade tão grande de casa, mesmo com
os problemas entre Lipe e eu, que eu daria o mundo todinho para estar lá,
com eles, e não sozinha com meu café em silêncio.
Porém, sabia também que, se aparecesse de surpresa e desse um
beijinho nos meus filhos, eles achariam que voltei de viagem e não teria
outra desculpa para dar se precisasse ir embora outra vez.
Era melhor, por ora, manter a mentira e a saudade.
Capítulo Nove
(Lipe)
Eu sei, mas não briga comigo. Era melhor podar alguns galhos tortos
desse casamento, que ver a coisa toda apodrecer. Era um risco seguro e
calculado. Sempre fui o doido da família, mas nunca fui irresponsável.
Meus filhos estavam acostumados à saída da mãe deles por alguns
dias, teve uma vez que ela passou mais de mês fora de casa. Uma semana
não mataria ninguém e eu sabia bem disso.
Colocar Andressa para fora era para que ela finalmente equilibrasse
as prioridades. As pessoas só dão valor quando perdem, não é assim que
dizem?
Aconteceu como a maioria das coisas acontecem na vida: a gente
acorda um dia, fala um belo de um “foda-se, cansei!” e um amigo com
poucos neurônios funcionando se dispõe a ajudar.
Conheci Bataille do jeito que os pais de crianças se conhecem. Filho
de rico tudo estuda na mesma escola, se conhece de festinhas infantis e com
ele não foi diferente. Lúcia, a filha do meio de Antônio, estuda na mesma
sala que a minha Olga. Minha filha fala pelos cotovelos e Lúcia é autista
não verbal, não sei como que as duas viraram amigas, mas elas viraram e,
no fim, é isso o que importa.
Num dia de levar brinquedo na escola, Olga e Lúcia se juntaram
para brincar, mas o estímulo sensorial para Lúcia foi demais e Olga
percebeu. Arrastou a amiguinha para debaixo de uma mesa e as duas
ficaram lá, quietinhas, até que Lúcia se acalmasse.
Só que Lúcia, em vez de se acalmar, começou a se bater, e Olga
segurou suas mãozinhas para que não se batesse (nessa hora eu imagino
Olga falando sério e meu coração de pai fica que nem manteiga). Lúcia
então começou a usar as mãozinhas de Olga para se bater, e foi aí que
ambas foram encontradas, numa confusão em que pareceu que Olga batia
em Lúcia, e os pais foram chamados.
Obviamente, a situação foi contornada. Olga explicou que não batia
na amiga, Lúcia foi acalmada pelo colo paterno que sempre a acalma e as
professoras ainda tomaram bronca de Antônio que, embora pareça ser muito
divertido e tranquilo, quando se trata de seus filhos, o buraco fica bem
embaixo, do jeito que é, e do jeito que tem que ser.
Depois dessa confusão, as meninas saíram mais cedo e fomos todos
tomar milkshake. Tudo nessa idade se conserta com sobremesa e dessa vez
não foi diferente.
Não descobri sobre seu bar naquele dia, afinal, estávamos com
crianças, mas esse dia nos levou a outros dias, com mais ou menos
milkshakes, mais ou menos crianças, até que ele me contou, em algum
jantar beneficente que fomos obrigados a ir, que ele tinha um lugar, palavras
dele, para “desestressar”.
— Desestressar, é? — Perguntei puxando uma garrafa de uísque do
estoque, no fundo do salão e sem pedir permissão a ninguém, por que
estávamos na área de eventos do Jockey e ele também era meu.
— Você sabe. — Ele deu de ombros, dando um último gole e me
estendendo o copo para que eu lhe servisse mais.
— Ou seu bar é de futebol, ou de putaria. — Respondi colocando
mais para ele, segurando a risada e a piada — E você não tem cara de quem
tem um bar de futebol.
— E não tenho. — Saímos pelos fundos do estoque para não termos
que cumprimentar ninguém do salão principal, e demos de frente a um
jardim bem cuidado, que fazia fundos com o outro salão de eventos, mas
que não era usado para aquele jantar e, portanto, estava vazio — Você devia
ir lá com sua mulher, qualquer dia desses.
Olhei para todos os cantos procurando um banco para sentar, até que
achei. Avancei até lá, arrastando Antônio comigo, e me joguei nele como se
tivesse o peso do mundo nos ombros.
— Para qualquer casal que você chamasse, seria só um convite —
Reclamei —, mas se eu chego na Dê com um convite desses, é capaz dela
ter um infarte.
— Só por causa disso?
— Você não conhece ela.
Contei para ele quem era minha Andressa. Um amor de pessoa, amo
ela desde sempre, sou doido varrido e não me arrependo, mas tem coisas,
principalmente na parte “sexo” e “trabalho” que me irritam bem mais do
que deveria.
Até enchi meu copo um pouco mais para falar dela, pois de copo
vazio não sairia nada, não.
Falei que não adiantava palavra no mundo para convencê-la de que
ela era linda, gostosa e que me deixava doido. Desde que nos conhecemos e
começamos a namorar, a gente só transava se não tinha ninguém em casa e
não adiantava dizer “tem cômodos! E os cômodos têm portas!”.
Para ela, transar com gente em casa dava no mesmo que trepar em
público.
— Por isso que eu fiz o nosso quarto com nível de ruído zero, sabia?
Por que casei com ela pensando nos próximos passos, nos filhos que
viriam, e ai dela se começasse com essa ideia maluca de não trepar com os
filhos em casa!
— Isso — falei para ele depois de ter dito um tanto — é só a ponta
do iceberg, tá?
Ainda tinha a questão “travas com o corpo”, “corpo de mulher
depois de dois filhos”, o fato dela estar sempre cansada, a mente sempre a
mil, o jeito como ela não desligava do trabalho e se o telefone acendesse a
tela no meio do sexo, ela pararia só para olhar.
— E você também não fez nada para ajudar nessas travas dela, né?
— Antônio me perguntou com um sorrisinho no canto da boca que me deu
vontade de arrancar no soco.
— Pelo contrário, eu já fiz de tudo! Uma coisa que você não pode
dizer é que eu não tenha feito a minha parte.
— Tô vendo. — Ele respondeu com cara de desprezo e fiquei com
vontade de levantar e ir embora. — Bom, se você mudar de ideia e quiser ir,
o convite já está feito.
Demorei um bom tempo para criar coragem, mas fui. E o que
encontrei lá me agradou bem mais do que deveria.
Foi aí que as coisas com a Dê começaram a pesar mais, começaram
a pesar muito, por que passei a reparar que os meus desejos, as minhas
vontades, sempre ficavam para depois. Ela vivia correndo atrás do urgente
e, na correria raramente a gente tem tempo para qualquer coisa de divertida.
Sei que entre seus cavalos e eu, ela escolheria aos bichos que a mim.
Pior que eu sou tão otário, tão otário, que nunca nem imaginei fazer
com outras pessoas o que vi naquele bar. Não vai ter a menor graça colocar
uma doida no lugar de quem eu quero só para ter o gostinho de passar por
certas experiências.
O amor, pelo menos do meu lado, não acabou e duvido muito que
acabe.
O que acabou foi a paciência.
Capítulo Dez
(Andressa)
Nunca, em toda minha vida, tinha feito algo tão… maluco. E nunca me
senti tão eu, também. Saí de lá, largando meu marido naquela estado, com a
certeza de que não tinha feito nada de errado, que ninguém iria me cobrar
pelo que fiz. Saí de lá tão vitoriosa, tão satisfeita, tão feliz, que entendi que
o que faltava na minha vida não era uma agenda melhor, um método mais
eficiente e trabalho, outra assistente para dar conta dos meus compromissos.
Faltava era ligar o foda-se. Faltava era desligar o julgamento dos
outros. Era não me importar se tudo não estava perfeito ou se sobrou
trabalho para o dia seguinte. Faltava o que todo CEO masculino aprende
nos três primeiros anos de empresa, e que levei quase vinte anos para
entender.
Faltava entender que a dona da minha vida era eu e não tinha um
chefe, ou pai, ou marido, ou qualquer pessoa acima de mim. Se eu fizesse
merda na minha empresa? Foda-se, que daria um jeito de resolver. Se
falassem mal de mim? Foda-se. Se eu tivesse um desempenho medíocre,
foda-se, que todos os meus amigos eram medíocres e todos eles saíram em
revistas especializadas do mesmo jeito que eu e a minha busca incessante
pela excelência.
Sempre achei que a sexualidade e o tesão fossem um compartimento
da minha vida separado do resto, mas não era. A mulher que tem coragem
de partir para Portugal com dinheiro contado tentando conquistar o mundo
era a mesma que, vinte anos depois, tinha coragem de se despir e se deitar
num balcão de bar para ser chupada por uma completa desconhecida.
Sempre achei que sexualidade era promiscuidade, mas mesmo se
fosse, que promiscuidade suja e baixa era essa que me deixava no topo do
mundo mais do que qualquer dinheiro que fiz na vida?
Sentir o Lipe louco de tesão sem gozar foi maior, para mim, que
qualquer cavalo raro e campeão do mundo. Eu estava eufórica, contente, me
sentindo uma puta gostosa, um puta mulherão que não me senti nem aos
vinte anos.
Olhando a avenida passar rápido demais, dirigindo de volta para o
hotel, eu tinha a sensação de que tinha vencido na vida.
O que quer que acontecesse depois, se o Lipe olhasse para mim e
decidisse que não me queria mais, se as ações caíssem e eu perdesse o
dinheiro investido, se contaminassem a água do Jockey e matassem todos
os meus cavalos:
Eu já tinha vencido.
Já tinha conquistado o que a Andressa adolescente achou que nunca
conquistaria, nunca seria, nunca faria.
Fui eu mesma, sem desculpa nem sorrisinho bobo, sem querer saber
o que os outros iriam achar, ou o que o Lipe, ou minha mãe, ou meus
funcionários, ou meus acionistas. Me permiti fazer o que nunca imaginei, o
que poderia jurar de pés juntos que jamais faria. E vi um lado meu que me
deixou apaixonada por mim.
A vitória não veio da cena no balcão. Certo, aquilo foi ótimo, mas a
vitória veio por que, pela primeira vez na vida, eu me apaixonei por mim.
Pelo jeito como não fiquei caçando desculpas para ser mais comportada,
mais dócil, mais gentil. Fui lá, fiz o que queria, me vesti e estava a caminho
de casa.
E amei a Andressa do corpo gordo que não ficou puxando a saia
para baixo ou conferindo a bunda no espelho por medo de mostrar celulite.
Deitei na cama com um sorriso enorme no rosto, toda babada, com
uma sensação de completude e paz comigo mesma que nunca nem tinha
passado pela minha cabeça.
Acordei com outra caixa na minha porta, outra roupa para vestir, e a
recebi com mais entusiasmo do que a última. Ainda não sabia que dia era, o
que precisava fazer, quantas reuniões tinha no dia.
Entrei no banho e me vesti com o que ganhei, toda de branco, calça
de alfaiataria, uma camisa de alcinha e um colete com corte de blazer da
mesma cor. Coloquei saltos altos, me olhei no espelho e gostei do que vi,
também.
Há anos não me atrevia a vestir branco por medo do efeito dele no
meu corpo, mas confesso que, naquele dia, mesmo se usasse tênis e legging,
me sentiria a mulher mais gostosa do planeta. Nada abalaria a minha
autoestima ou aquele sorrisão enorme na cara por que o que cacei a vida
inteira finalmente foi me dado de presente.
Eu não precisava mais brigar contra a Andresa-Mulher. Não
precisava diminuí-la para caber, não precisava sufocá-la num conjunto de
blazer e sapatos baixos para dar conta da vida cotidiana. A Andressa-
mulher não respirava por aparelhos e ainda dava tempo de tê-la como
minha amiga. Ela era parte de mim, era bonita também, era inteligente, era
mordaz e não era teatrinho para convencer alguém.
Era eu, era parte de mim, era a minha sexualidade, a minha
sensualidade, a minha força vital, o meu oásis para quando o mundo ficasse
pesado demais para carregar nas costas.
Acho que o Lipe também queria ver essa parte de mim. E, se por um
lado doeu muito sair de casa, por outro, foi libertador.
Exceto pela parte das minhas crianças. Não vê-las, não beijá-las, não
saber como estavam… isso acabava comigo.
Vesti a roupa que ganhei e saí de casa depois do café da manhã
silencioso que começava a me incomodar mais do que me acalmar.
Finalmente era sábado e eu não precisava ir ao escritório, mas tinha outro
compromisso, mais urgente e mais importante e que não perderia nunca.
Dirigi até o Jockey, mas não fui para o escritório. Deixei o carro na
área reservada para mim, desviando de uma sequência de carros em fila
dupla que esperavam para estacionarem, e fui andando até as pistas de
hipismo.
Várias crianças vestidas a caráter para a competição corriam para lá
e para cá, empolgadas, cada uma com um número na frente da camisa, e
não demorei muito para achar minha Olga com seu uniforme marrom e
trancinhas no cabelo, falando entusiasmada para um grupinho de meninas
que também competiriam.
— Falei que vinha, não falei? — Parei atrás dela, com as duas mãos
na cintura e chamei sua atenção.
— Mamãe!
Onze anos e só me chamava assim quando estava com saudades.
Pulou no meu colo com carinho, enchendo meu rosto de beijos e se
esqueceu completamente das amiguinhas que ficaram paradas sem entender
o porquê de tanta festa com a mãe.
— Quem fez essa trancinha no seu cabelo, princesa?
— Eu, ué. Vi num tutorial no Youtube…
— Ficou lindo! — Falei e a coloquei no chão novamente, que Olga
não era mais nenhum bebê — Onde estão os meninos?
— Vem! — Disse, me puxando pela mão, andando na minha frente
como se eu fosse muito difícil de arrastar.
Andamos do galpão embaixo das arquibancadas até a área de
descanso dos cavalos fortemente assegurada por escolta por que, por mais
que fossem cavalos de crianças, existiam bichos ali que custavam fortunas.
Numa baia havia um cavalo branco com uma flor desenhada com
tinta guache na testa, coisa da minha sobrinha Madalena, e, na outra, Lipe
trançava a crina de um cavalo preto, enquanto Tutu escovava seus pelos.
— Então é aqui que os meninos se escondem? — Brinquei, ainda
puxada por uma Olga empolgadíssima, chamando a atenção primeiro do
Tutu, que soltou a escova de qualquer jeito e foi logo pulando no meu colo,
e de um Lipe, que num primeiro momento, não dei atenção.
— Mamãe! — Tutu comemorou, enfiando o rosto no meu cangote,
me abraçando bem forte.
— Saudades que a mãe ‘tava de você, meu pequeno!
— Como foi a viagem? Quando você chegou? A Olga achou que
você não viria…
— Mas eu falei que vinha! — Enchi seu rosto de beijos antes de
colocá-lo no chão — Não falei?
— Falou, mas… É que as vezes você esquece, né.
Para ficar na altura de seu rosto, agachei-me na frente dele, olho no
olho e lhe sorri:
— Perdoa das vezes que a mãe esquece as coisas?
— Mas eu nem fico bravo! — Respondeu empolgado — A Olga já
me explicou que você é quem toma conta de tuuuuuuuuuudo, e que às vezes
esquece por que tem muita coisa para fazer.
— A Olga te disse isso? — Meu lado mãe que queria ter mais tempo
para curtir os filhos ficou tão amolecido que teve que segurar o choro.
— Falei, ué! — Olga, parada logo atrás, sorriu e deu a mão para o
pai dela — E é por isso que existem os pais, não é, pai?
Não sabia dizer o que houve na minha ausência, mas alguma coisa
aconteceu. Desde que dei tchau para mais uma viagem, daquela vez, fajuta,
Olga me defendia e entendia o meu lado. Como se tivesse crescido dez anos
em dias.
Olhei para o Lipe, que já olhava para mim, e lhe sorri um pouco
boba, mas um pouco mais calma também. Na última conversa que tivemos,
no almoço em seu escritório, ouvi coisas que não gostei.
No entanto, ele me olhava com alguma doçura e cumplicidade, de
mãos dadas com Olga que desembestou a falar e falar, mas era como se,
entre nós, o tempo tivesse parado.
São curiosas essas coisas de casal antigo. A gente passa a vida
inteira junto e simplesmente entende o que um olhar significa. O que um
sorriso de canto de boca, meio triste, meio saudoso, quer dizer. A gente se
entende, enquanto nossa filha conta da vida e do mundo, sem precisar nos
falar.
Me deu uma piscadela cúmplice, deixando claro que conversaríamos
depois, e voltamos nossa atenção para nossos filhos. Logo, Tutu e Lipe
foram para as arquibancadas e eu fiquei, depois de trocar os saltos por um
par de botas emprestado, para ajudar minha menina a se preparar.
Enquanto eu afivelava a cela e o cabresto, Guto, meu cunhado,
apareceu com a filha Madalena. Tinham tomado um sorvete do outro lado
das pistas e a menina vinha, inteirinha vestida de branco, o mesmo tom de
seu cavalo, pulando o caminho todo.
Guto é o tipo de homem que entra mudo e sai calado, mas numa
frase, roubava a cena inteira. Já vi esse homem, irmão do meu marido, de
tudo quanto era jeito.
Definitivamente, ali, com seus três filhos e fazendo da minha irmã a
mulher mais feliz do mundo, aquele era seu melhor momento. Tinha um
sorriso limpo na cara, embora as calças estivessem sujas de areia e barro, e
as botas tão surradas quanto as de Bianca, que era uma mula teimosa e se
enfiou para o Rio só para garantir que seus potrinhos chegassem bem.
Olga e Madalena, por outro lado, se importavam pouquíssimo com o
prêmio ou a vitória. Elas amavam correr a cavalo e faziam aquilo juntas.
Treinavam desde pequenininhas e estavam sempre cuidando uma do cavalo
da outra.
E, enquanto a égua Flor tinha uma flor desenhada de guache na
testa, a égua Estrela da minha filha tinha um strass de estrela. E, se
deixássemos, elas enfeitariam seus cavalos como se fossem filhotes de
cachorro recém-saídos da petshop.
Enquanto eu e meu cunhado arrumávamos nossas filhas sobre seus
bichos, as duas ficaram o tempo inteiro de mãozinhas dadas, através das
vigas das baias, e faziam planos para depois da corrida.
Guto sempre ficava com o coração na mão quando alguém de sua
família subia num cavalo. Já tivemos tantos acidentes com Bianca, que não
tirava sua razão.
Homem sem sorte que era, pelo jeito desvairado que Madalena
crescia, sempre bonita e destemida demais para seu próprio bem, ele não
teria sossego tão cedo.
— Te vejo depois da linha, amor meu. — Ele disse para a filha, com
o mesmo coração apertado que dizia para a esposa, e lhe deu um beijo no
rosto antes de lhe entregar o capacete.
Já eu, para me despedir da minha menina, lhe dei um beijo no rosto,
um abraço apertado, e um voto de boa sorte que ela sempre me respondia
como vem respondendo desde que aprendeu a cavalgar:
— A sorte vem para quem se prepara, mãe.
— E você tá preparada, Coelha?
— Tô! Não faltei a nenhum treino, fiz todos os exercícios e dei
bastante descanso para a Estrela.
— Então dê seu melhor, amor. — Beijei-lhe outra vez antes de
entregar seu capacete, mas reforcei com cuidado uma coisa que eu queria
ter ouvido mais quando tinha sua idade: — Não importa o resultado,
Coelha, saiba que a vitória não muda em nada no orgulho que temos por
você, tá? Seu pai e eu estaremos aqui para comemorar seu esforço.
Só era permitido um acompanhante na área da baia, por isso, eu
estava ali e o Lipe não. Com empolgação, ela caçou o pai pela arquibancada
e, quando o viu, sacudiu o braço num tchauzinho feliz que foi respondido
com um assovio escandaloso e um “ACABA COM ELES, COELHA!”
vindo de um pai babão e um irmão que não gostava muito de cavalo, mas
amava ver a irmã correr sobre um.
Capítulo Dezesseis
(Andressa)
Não sei por que ela se preocupou tanto se dividiríamos a cama, se ela
sabia que eu não dormiria. O que era para ser uma sacudida para ver se ela
acordava virou um dramalhão, um parto, um monumento grandioso que
emergiu de lá do fundo do nosso casamento e trouxe consigo um monte de
antigas mágoas e ressentimentos.
Vi os primeiros raios despontarem por trás da cortina da sala e não
sei bem quando apaguei. Só fechei o olho e não vi mais nada, mas dentro da
minha cabeça o mundo continuava a funcionar. Era como se alguém
conversasse comigo a droga do tempo inteiro.
— Deixa o papai dormindo, Coelha — Ouvi Andressa dando bronca
na nossa filha.
— Por que ele tá dormindo no sofá? A gente nunca pode dormir a
noite inteira no sofá! — Ouvi Tutu protestando também.
— Vem, deixa o papai. — Andressa cochichava — A noite dele não
foi fácil.
— Ele tá acordado! Mamãe, papai já acordou!
Também, com todo mundo ao meu redor, me olhando como se eu
fosse um alien no meio da sala, quem não acordaria?
— Vai para a cama, Lipe. — Andressa sugeriu com uma voz
reticente de quem não sabia se podia manter conversa comigo. — Pode
deixar que eu…
O mundo cambaleou um pouco, mas firmei os pés em tempo. Tutu
subiu no sofá e deu um pulo nas minhas costas, Coelha ficou de bracinhos
erguidos esperando seu bom-dia, ambos sem perceberem que eu estava tão
destruído que uma ressaca teria doído menos.
Olhei para minha mulher, que tinha o semblante magoado, e lhe dei
um bom-dia sem me aproximar.
— A mãe fez panqueca! — Tutu gritou enquanto se pendurava nos
meus ombros. — E chocolate molinho!
— Vai devagar, Tutu. — Pedi, colocando-o no chão — O pai tá só o
bagaço.
— Você não dormiu, não?
— Claro que ele dormiu — Olga respondeu para o irmão — Você
não ouviu ele roncar?
Nem dormi, quem dirá dormir bem. O corpo desistiu e desligou,
mas a cabeça, …
Sugeri que todos fôssemos para a cozinha e tive de dar o braço a
torcer: toda vez que a Dê voltava de viagem, no dia seguinte, o café da
manhã dela era a melhor coisa do dia. Fazia questão de arrumar a mesa com
carinho e de deixá-la bonita, de fazer a comida favorita das crianças,
panqueca igual às dos filmes e chocolate quente mais concentrado, com o
caldo bem grosso e doce.
Até para mim tinha comida diferente e, embora tivéssemos nossas
diferenças, ela manteve a tradição: fez tapioca com queijo branco, uma para
mim e outra para ela.
Sentamos para comer e as crianças quiseram contar tudo o que
fizeram de bom em sua ausência, exatamente como toda vez que ela voltava
para casa.
— E você, papai? — Olga me puxou para a conversa enquanto eu só
queria saber de me entupir de café — Não vai contar para a mamãe o que
fez de bom durante a semana?
— Sua mãe e eu já conversamos, amor. — Desviei da pergunta da
minha filha, mas não acabei com o assunto — Esqueci de avisar que todo
mundo combinou de cair na piscina depois do café da manhã.
— Todo mundo?! — Andressa abriu um sorriso lindo para os filhos,
principalmente para o Tutu que amava água — Até o vovô e a vovó?
— A vovó Fefê disse que queria dormir até mais tarde, não sei se ela
vem… — Tutu respondeu com um desapontamento bonitinho.
— Ora, se ela não vier até as dez da manhã a gente vai até lá buscar
ela!
— É — Olga sorriu mexendo na calda de chocolate de seu prato
com o indicador —, se até a Tia Manu vem, e a titia é a maior dorminhoca
do mundo, a vovó tem que vir!
— Use o garfo, Olga. — Andressa lhe deu bronca.
— Tá…
Domingo de manhã era um dos raros dias em que nada de ruim
acontecia. Nem mesmo a nossa situação diminuiu a tranquilidade na casa,
ou a risada de nossos filhos.
Podíamos ter mil diferenças e mil desavenças, mas, mesmo assim,
éramos bons pais. Nossos filhos tinham uma vida saudável e segura, cheia
de priminhos parra brincar, família para nos dar suporte e, se tudo isso não
bastasse, ainda tinham uma piscina no quintal de casa.
O Lipe de dez anos que ficou no passado, teria dado tudo para ter
tido uma piscina também, por isso, quando construí nossa casa, a primeira
coisa que pensei em fazer com o espaço sobressalente nos fundos do
condomínio de três casas, foi instalar uma piscina grande e que servisse de
vista na janela do nosso quarto.
Olga foi a primeira a estourar para fora de casa, de maiô, quando
Andressa liberou piscina. Tutu correu logo atrás, de sunga e com uma
toalha na mão, berrando para os primos, vizinhos da casa ao lado, que já
podiam brincar.
Não demorou muito que a casa ficasse cheia. Meus pais chegaram
pouco depois e todo mundo começou a berrar “Manu! Manu!” para que
minha irmã saísse logo de casa e enfrentasse a água que, para um domingo
ensolarado daqueles, até estava um pouquinho gelada, mas nada que nos
impedisse de curtir o dia.
— Eu não sei se vocês me amam ou se me odeiam. — Manu
reclamou quando abriu a porta dos fundos da própria casa, o cabelo todo
bagunçado e ainda de camisola — Me deixem dormir, que saco!
— Vem, Titia Manu! — Diguinho, o filho mais novo do Gustavo,
meu irmão, saiu de onde estava e foi direto receber minha irmã, com os
braços bem abertos, todo carinhoso e querendo abraços.
Manteiga que era, a boca ácida não aguentou nem dois segundos
depois que Rodrigo Neto a puxou para lhe dar um monte de beijos. Pediu só
um segundo para lavar o rosto e, quando saiu, ainda com roupa de dormir,
saiu com um café na mão e os dois maridos que, ao contrário dela, já
estavam acordados há tempos.
Reunidos, os Ferreira e os Botelho têm a mania que era quase uma
doença patológica de se provocarem com farpas e deboches até o fim da
reunião. Gustavo e Andressa raramente participavam, mas, se chamados
para a briga, não saíam.
Minha mãe era sempre quem começava e daquele dia não foi
diferente. A questão é que eu não estava muito para brincadeiras, não. Sem
dormir e com a cabeça a mil, preferi me jogar na água e entrar na
brincadeira das crianças.
Era quase meio dia quando Andressa saiu da cozinha com aperitivos
para todo mundo, além de limonada geladinha. Ela não era a típica mãe que
cozinhava todo dia, mas sempre gostou de receber gente em casa.
Enquanto distribuía copos de suco para a garotada eufórica e ria
oferecendo pinga para esquentar a limonada dos adultos, a única coisa que
fui capaz de reparar foi no tamanho de seu biquíni.
Andressa Botelho, a minha esposa, de biquini. Se vi esse advento
duas vezes na vida, foi muito. E não era aquele tipo de biquíni cuja calcinha
ia até as costelas para esconder a barriga, era biquini normal, que cobre o
que tem que cobrir e deixava o resto todo para fora.
Além de deixar a bunda, também. E o decote.
Um biquíni tão bom, tão perfeito, que se estivesse num dia comum,
num dia bom, a teria arrastado para dentro de casa, de volta para a cama, e
só sairia de lá quando as crianças estivessem berrando de fome.
Essa era a qualidade daquele biquini que, me perdoe, não me
lembrava sequer da cor.
Devo ter feito cara de idiota e seu biquini não passou despercebido
por ninguém. Bianca, que era a pessoa que mais conhecia minha esposa na
vida, fez um bico surpreso, mas não lhe teceu elogios à cara. Em certa
medida, todos sabíamos que, se falássemos que percebemos a mudança da
roupa, Andressa colocaria alguma coisa por cima do corpo só para não ser
mais vista.
Quando Bataille me disse que daria roupas para minha esposa e
pediu o meu cartão de crédito para isso, nunca imaginei que fizesse essa
diferença. Eu sou um cara, e como a maioria de nós, a gente gosta de
mulher arrumada e tal, mas não participa ativamente disso.
A gente só fica sentado no sofá, esperando a beleza desocupar o
banheiro, e que gosta de tomar aquele soco na cara quando percebe que a
espera compensou.
Saber comprar roupa? Isso, nunca. Nem para mim eu sabia direito,
meu outfit sempre foi camisa e calça jeans e, provavelmente, quando meu
filhos forem me enterrar, Deus queira que daqui uns cinquenta anos, eles
terão só que escolher entre as camisas brancas e as azuis, pois é nisso o que
se resume meu guarda-roupas.
Mulher, não. E todo mundo sabe que roupa de gorda dá mais
trabalho de achar. Não é qualquer coisa que fica bom e tal e coisa, e já ouvi
Andressa reclamar disso muito mais do que gostaria, inclusive.
Só que vamos dar o braço a torcer aqui de que o homem fez milagre.
O vestido azul? Delícia. A saia e a blusa do outro dia? Delícia. Com
absoluta certeza, ele não deu um biquini a ela, mas as outras roupas que ele
tinha escolhido lhe deu coragem de escolher alguma coisa por si além de
maiô e canga.
E isso, meus amigos, ficou explícito na minha cara. Andressa
prendeu o cabelo para entrar na piscina e ficou lá dentro, sentada nos
degraus, os braços apoiados na borda, perto de um copo de água gelada e os
peitos flutuando na água, perfeitos demais para que eu soubesse me
comportar.
Não bastassem os gêmeos, olhando para baixo tinha barriga. E
coxas. E um triangulinho pequeno ali, no meio, que parecia que falava
assim, ó:
“Veeeeeeeeeem, Lipe. Veeeeeeeeeeeem”.
— Se vai ficar babando na minha irmã desse jeito, ô, sem modos —
Bianca interrompeu uma sequência de planos indecentes que eu fazia na
cabeça para quando Andressa e eu estivéssemos amiguinhos de novo —, vê
se esconde a barraca.
Olhei para Bianca, olhei para meu shorts, olhei para a família que
estava inteira olhando para a minha cara e que explodiu de rir quando me
toquei, e me ajeitei na cadeira para ficar menos indecente na frente das
crianças.
Fui até abastecer a jarra de limonada depois disso porque tinha que
caçar o que fazer para não ficar louco.
Entrei na cozinha, sentindo a diferença de temperatura do domingo
ensolarado para a cozinha de piso frio, vi que tinha uma segunda jarra
preparada na geladeira e me servi um pouco.
Foi o tempo de matar um copo que a famigerada chegou, com o
corpo todo molhado, descalça na cozinha e com um sorrisinho inocente
mais falso que nota de três reais.
— Bem que a gente podia almoçar lá na Dona Alexandra hoje, né?
— Ela sugeriu, abrindo a porta da geladeira para pegar não-sei-o-quê e
colocando o rabo imenso para cima — Olga e Madalena já estão com fome.
— O que você disse? — Depois que aquela bunda entrou em jogo,
não ouvi uma só palavra.
— Almoço. — Ela respondeu sem sorrir, segurando um pote de
maionese na mão — Vamos na Dona Alexandra? Não estou a fim de
cozinhar para esse monte de gente.
— Você sabe que sua mãe e a Bia amam uma beira de fogão —
Recuperei a decência e me mantive bem perto da beira da pia para não
denunciar a ereção.
— Ai, mas até ficar pronto, Lipe? — Das duas, uma: ou Andressa
estava realmente falando de coisa de casa comigo, como um domingo
qualquer, ou tinha virado um demônio da manipulação barata e sabia
exatamente o que fazia ao colocar o corpo inteiro para jogo.
A conhecendo como conhecia, ambas as situações eram possíveis.
— Por mim pode ser, tanto faz — Olhei para a janela que dava para
a piscina só para desanuviar um pouco e ri quando percebi que meu pai e o
vô André, pai dela, jogavam as crianças para dentro da água cantando:
“balança caixão, balança você!”. — Espia só:
Andressa veio ver do que eu ria e não se conteve, também. Quando
éramos pequenos, antes da época em que meninas viravam objeto de desejo,
antes dessa mulher virar minha sina e minha cruz para carregar, meu pai e o
pai dela costumavam fazer isso conosco.
Lembro de uma vez que Andressa não quis brincar assim por que
achou que os dois adultos não conseguiriam carregá-la e passou a tarde
inteira chorando no quarto. Foi na pior fase da gordofobia da mãe dela, que
não podia vê-la mastigar que já reclamava.
Coisas que só tomei conhecimento anos e anos depois, por que a
mãe dela não fazia essas coisas na frente de todo mundo.
— Eu nem lembrava mais dessa bobeira deles. — Andressa falou
sorrindo — Isso faz o quê? Uns trinta anos?
— Trinta anos, no mínimo.
— Caramba, como o tempo passou. — Sorrindo, com o cabelo todo
desgrenhado de cloro, toda arrepiada pela água da piscina que escorria pelo
corpo, ela olhou para mim de um jeito que conheço e amo há tanto tempo
que fiquei sem ar. — Em algum momento você imaginou que a sua vida
seria assim? Com o seu pai e o meu pai brincando com os nossos filhos na
piscina da nossa casa?
Era um olhar emocionado e apaixonado que me dizia tudo sem
precisar dizer um “a”. Eu não sou doido no olhar dela só por que era azul,
podia ser da cor que fosse, a questão sempre foi o quanto conseguia me
dizer em apenas um contato visual de relance.
Ninguém nunca me olhou do mesmo jeito que ela. Sempre tem um
fundinho doce, meio lar, meio sonho de menina, quando olhava para mim.
E era uma pena que tivéssemos perdido isso no decorrer da rotina.
— Não. — Respondi ao que ela me perguntou e que deixei sem
responder porque fiquei preso demais ao que me dizia com os olhos —
Você imaginou que sua vida seria assim?
— Sonho com isso desde que me entendo por gente, amor.
Capítulo Dezenove
(Lipe)
— Olha — Ela trocou de assunto —, sei que não estamos num bom
momento, mas me desculpa, tá? Nada do que fiz foi com intenção de te
machucar ou te jogar para escanteio. Eu sou viciada em trabalho, sou
ansiosa, sou controladora, tenho problemas em delegar e, quando o faço,
parece que sempre delego a função errada. Mas eu nunca parei de olhar
para você. Nunca esqueci de você. Nunca pensei numa vida diferente dessa,
nem quis outra coisa para mim. O trabalho me dá uma posição para ocupar,
mas o que me dá vida é você. Nada tem sentido sem você, e me desculpe
por ter te feito duvidar disso.
Se tivesse ainda dúvidas da estratégia de Bataille, ali as perdi. Era
cruel colocá-la para fora sem a intenção de pedir divórcio? Sem dúvidas.
Ela provavelmente ficaria muito brava quando descobrisse? Com certeza.
Mas olhe nosso avanço. Olhe o quanto, em pouquíssimo tempo com
esse tratamento de choque, as coisas evoluíram. Da mulher que entrou
abismada num bar de putaria, ela virou a principal cena da noite e eu não
precisei fazer absolutamente nada.
Sempre soube que existia essa mulher dentro dela. Em certos
momentos, a via. Vejo sempre quando ela se dedica ao trabalho ou em
situações extremas.
Só nunca tinha visto essa mulher ao lidar comigo. E isso sempre me
quebrou. Como ela tinha tanta ousadia no trabalho, a sua função com o
mundo, mas não a tinha com si mesma e comigo? A gravidez da Olga foi a
única vez que ela se permitiu sair da caixinha correta, mas, desde então,
nunca mais.
Ainda existe muito amor e muita paixão entre nós, pensei sem sorrir
nem demonstrar afeição. A gente só precisa saber para onde olhar.
Com um sorriso no rosto, alguma calma que eu não sentia há vai
saber quanto tempo, segurei sua mão e dei um beijo, mas não a soltei logo
em seguida.
— Você sabe o que eu sinto por você. — Falei com um tom sério,
mas essa severidade não alcançava o coração — Sabe tudo o que eu deixei
para trás para construir uma vida do teu lado, não sabe?
— Sei, amor.
— Então vê se não joga isso fora.
Era minha deixa. Soltei-lhe a mão e saí da beira da pia, pois
precisava arrumar o almoço daquele povo todo que ficou do lado de fora
provavelmente tecendo piadinhas sexuais sobre nós dois.
Foi eu me afastar um pouco que fui puxado de volta e tomado num
beijo. Beijo que faz a gente ferver na raiz dos cabelos e do lado de dentro da
calça. Um puta beijo de amor e paixão misturado à uma vontade enorme de
foder que me deixou mais zambeta que o biquini minúsculo que meteu
naquela manhã.
De ferro nunca fui. Se tinha um material que me caracterizasse, esse
era o gesso. Tem aspecto de duro, tem cara de pedra, mas basta um
empurrão. Flexível, se molda em qualquer forma, tapa qualquer buraco. Na
mão dela, então? Um toque e eu estaria completamente em pó.
A janela e a porta estavam abertas e não dava para brincar ali, sob a
ameaça de qualquer um entrar a qualquer momento, então a tomei pela mão
e a arrastei pela cozinha, pela sala, escadas acima e pelo corredor até
chegarmos no quarto.
Para minha sorte, ela já foi se desfazendo da parte da cima do
biquini, me mostrando o que eu queria ver desde que rompeu pela área da
piscina usando somente aquilo. A fome estava na cara dela e na minha, mas
tinha uma coisa diferente ali, uma faísca acesa no sorriso e no fundo do
olhar.
Tinha alguma coisa que não fui eu que dei, mas que ela achou pelo
caminho.
E que bom que achou.
Tomei-a num beijo-suicida ouvindo a respirarão ofegante de quem
me queria muito. Puxei um nó da lateral de sua calcinha e deitei-a na cama,
apaixonado no cabelo esparramado no travesseiro, no rosto vermelho e no
olhar que nunca abandonou o meu.
Não tinha mulher na face da terra que me deixasse daquele jeito, tão
louco em tão pouco tempo. Por mais filha da puta que Andressa fosse.
Apoiei um joelho em cada lado de seu quadril e ergui o peito, ela me
puxou para fora do short, brincando comigo, olhando na minha cara e no
meu peito, de cima a baixo, apertando as pernas, doida de tesão.
Desci para beijá-la outra vez e esfreguei o pau na barriga dela, como
se a fodesse, e quase queimei a largada. Andressa gemeu entre os meus
lábios, querendo que eu entrasse nela, e desci a boca para os mamilos,
molhados de piscina ainda, duros de tesão e que me ] deixou óbvio o quanto
estava com saudade deles assim que meti a boca.
Senti uma pontada mista de tesão e tristeza, por que aquela era a
minha mulher, a mãe dos meus filhos, a menina dos meus sonhos desde os
meus dezessete anos, e ainda assim, mesmo assim, ficávamos distantes um
do outro ao ponto de eu sentir aquela saudade doída de quem vive mais
tempo afastados que juntos.
— Lipe — Ela pediu com a melhor voz do mundo, molhada de
tesão inclusive nas palavras, pronta para levar rola e querendo muito isso
—, me chupa.
Ela teve quem lhe fizesse isso. Não esqueci da namorada de Bataille
caindo de boca no que era meu. Fiquei doido de ver, quase gozei nas calças,
e não me esqueci também da maldade que me submeteu ao dar para mim,
mas não me deixar gozar.
A filha da puta foi tão maldosa, que senti as contrações de seu
orgasmo ao redor do pau e, bem quando era a minha vez, tirou e me deixou
quicando pelo bar enquanto se arrumava para ir embora.
No ritmo onde dançava um, dançam dois. E se ela sabia ser ruim,
alguém precisava lhe contar que eu podia ser pior.
Subi os joelhos de seus quadris para suas costelas.
— Segura eles assim — Mandei, aproximando os dois peitos,
pedindo que ela os deixasse bem próximos um do outro.
Andressa tem as tetas mais lindas do mundo. Não cabem na mão,
nem na boca, e são grandes. As auréolas são pequenas, os bicos são grandes
e eu amo colocá-los na boca.
Enquanto ela os segurava conforme pedi, ajeitei o travesseiro
embaixo de sua cabeça para que ficasse inclinada e o queixo quase
encostasse no peito.
Só assim, enfiei o pau no vão entre os dois seios e tentei encostar a
cabeça em sua boca. Como sabia obedecer, abriu a boca e olhou para mim,
com a linguinha para fora, me dando um sorriso safado enquanto eu metia
nela, cada vez mais forte e ofegante, até que chegasse a minha liberação.
— Não engole. — Mandei, quando senti que faltava pouco, e parei
de brincar entre os seios para enfiar na boca dela com tudo.
Tive de apoiar o braço na cabeceira da cama. Ela passava a língua
na cabeça do meu pau e o orgasmo não tinha fim. Fazia muito, mas muito
tempo que eu não gozava daquele jeito, do jeito como um homem casado
devia gozar todo dia, mas que eu só tinha essa graça uma ou duas vezes por
ano.
— Mostra para mim. — Pedi quando recuperei o fôlego e saí de
dentro de sua boca.
Ela colocou a língua para fora, tão vermelha de tesão que quase
gozei de novo, e vi a língua esporrada, a boca cheia e o jeito como ela
apertava os próprios mamilos, pronta para continuar a brincadeira.
Dei um beijo em sua testa, me guardei no short, dei outro beijinho
em seu nariz e me levantei da cama.
— Infelizmente, você ainda não sabe a senha.
Se eu soubesse o quanto isso seria divertido, teria começado há
muito tempo.
Fui para o closet, peguei uma camiseta qualquer e desci.
Provavelmente meus filhos já estavam verdes de fome.
Capítulo Vinte
(Andressa)
Louca como há muito tempo não sabia como era. Qualquer coisa me
lembrava o Lipe e molhava a minha calcinha. Passei o almoço inteiro, junto
da minha família, me concentrando em manter a respiração uniforme. Se
conseguisse isso, já daria o dia como um sucesso.
Dormir foi um sacrifício, uma tortura. E não tinha nem Lipe na
cama para tirar uma casquinha. Não era só a falta de gozar, isso me resolvi
cinco segundos depois que ele fechou a porta e me deixou sozinha, era o
todo, era tudo, era o conjunto.
Levantei para trabalhar sentindo o cansaço da noite insone e a
animação de uma adolescente apaixonada num ídolo musical, num ator de
novela, nalguma coisa assim.
Dei café para os meus filhos e me surpreendi quando eles me
perguntaram do porquê de eu ainda estar de camisola. Olhei para baixo,
constatando mesmo a roupa de dormir, e dei de ombros.
A Andressa normal já sai do quarto vestida para o trabalho, para
poupar tempo e sair de casa assim que as crianças fossem para a escola.
Aquela segunda-feira, obviamente, não era dia de Andressa normal,
constatei, e lhes perguntei se queriam outra bisnaguinha.
Lipe desceu pouco depois, diferente do normal dele também, um
pouco mais perfumado que o de costume, um pouco mais arrumado
também.
— Pai, por que tá bonito hoje? — Olga foi a primeira a notar.
— Coelha, eu tô bonito todo dia! — Com uma piscadela
brincalhona, ele lhe deu um beijão na bochecha, outro no Tutu, e até eu
ganhei um beijão na bochecha.
Ele, mais alto que eu, sorria diferente e levei algum tempo para
decifrar que tipo de sorriso era aquele. A rotina realmente tirou o que tinha
de mais divertido entre nós e nem percebi.
Aquele sorriso, com a mão na minha cintura, era sorriso de quem me
queria de café da manhã, e demorei tanto para entender, que assim que
meus dois neurônios funcionaram, corei de vergonha.
Pela primeira vez em muito, muito tempo, vi o quanto minha vida
poderia ser divertida e confesso que me empolguei com isso. Onde eu
estava com a cabeça quando ignorei tudo isso em favor do meu trabalho?
Sim, houve dias difíceis em casa e no trabalho, complicações e
desafios tanto lá quanto aqui, mas isso deveria significar o completo
esvaziamento de cor e sabor da minha vida?
— Fica hoje. — Ele pediu, com as chaves de seu carro na mão,
segurando a mochila do Tutu num ombro e a pasta de Olga na mão. — Sei
o que falei ontem, mas fica.
— Não quero atrapalhar, amor. — Falei o que falei, mas só queria
comemorar pulando e me jogando na cama, igual adolescente.
— A gente conversa disso depois, mas fica. — Com um beijinho de
casado, deu outra piscadinha, cúmplice e cheia de amor antes de fechar a
porta de casa.
E, antes que eu terminasse de me arrumar para o trabalho, recebi
uma mensagem dele:
“Te vejo hoje à noite?” Imediatamente, entendi que ele não queria
me ver em casa.
Só de pensar no homem amarrado no pátio daquele bar, nas coisas
que eu faria se ele não me desse a maldita senha, acabei sorrindo sem
querer.
“Vou ver se a Manu fica com as crianças de novo.”. Respondi.
E não falou mais nada, me deixando com uma poça na calcinha, as
ideias completamente fora de lugar, e torta de desejo.
Passar pelo dia de trabalho foi péssimo. O diretor de logística era
uma bagunça, gaguejava para falar comigo, e a Bia, principal cuidadora dos
cavalos, o odiava cada dia mais.
— Eu tô te falando, se é para ter um zé mané cuidando dos meus
bichos, deixa que eu me viro!
Ela já tinha ido, de caminhão, com os dois cavalos que precisavam
ir ao Rio de Janeiro. Da última vez que ficamos sem um responsável pela
logística, o casamento da minha irmã quase acabou e só por isso eu
mantinha um completo incompetente no cargo. São muitas viagens, muitas
horas na estrada, muita burocracia. Nosso modelo de negócio envolve
muito transporte de animais e somos referência nisso porque nos
importamos muito com o bem-estar deles.
No entanto, são pouquíssimos os veterinários com especialização
em carga, ou gente da logística com especialização em cavalos. Já tivemos
um bicho apreendido pela alfândega por dois dias por falta de um
documento e quase ficamos loucas.
Sabe o que é um cavalo sem comida ou bebida por dois dias? Luar
voltou para casa no soro, coitado, e isso nos deixou tão nervosas que nem
falamos com o diretor de logística por uma semana para não termos que dar
na cara dele.
Aquela segunda, enquanto em casa parecia um sonho molhado, a
empresa era um inferno na terra. Vinha uma nova viagem por aí,
internacional, de entrega de dois potros treinados e filhos do Leonardo,
netos de BelaDona.
A égua Bela, o cavalo mais rápido do mundo, pariu o potrinho
Leonardo desafiando todos os manuais de saúde reprodutora. Quando ela se
tornou o animal mais rápido do mundo, diziam que estava velha demais
para competir.
E morreu como morrem os campeões: dormindo. Deixou o Léo e o
Bê para trás, Leo que corre como a mãe, campeão americano de Turfe,
prestes a concorrer o título mundial, e o Bê, atual dono da taça mundial de
Enduro.
Com os netos de BelaDona rumo à China, diante desses dois cavalos
que têm mais fama e que valem mais que carreiras inteiras de ídolos pop,
como deixaríamos que um incompetente lidasse com o transporte para o
outro lado do mundo?
Esse era o principal motivo da minha segunda, no trabalho, valer o
inferno na terra inteirinho.
— Honestamente? — Falei ao Guto quase no fim do expediente —
Não vai ter outra saída. Ou Bianca e eu levamos esses bichos, ou eles não
chegam.
— Honestamente? — Gustavo me rebateu — Se você fizer isso, vai
acabar com o Lipe.
Eu sabia disso. Não tinha voltado para casa por tempo suficiente
nem para esquentar a cama, as coisas entre nós finalmente se ajeitavam, e
sabia que falar a palavra proibida “viajar” quebraria sua esperança de
sermos o que fomos quando estávamos grávidos da Olga.
— Vou pensar numa saída. — Respondi, puxando meu blazer do
encosto da cadeira e tomando minha bolsa num dos ombros. — Até
amanhã, Guto.
— Manu não vai poder ficar com as crianças hoje, você quer que eu
fique com elas até vocês chegarem?
— Guto — Sorri e dei meia-volta para dar um beijo no cunhado e
melhor amigo mais precioso do universo —, o que seria da minha vida sem
você?
— Não me apareça com sorriso de mulher bem-comida, que eu não
quero descobrir que meu irmão transa.
— Não se preocupe, Gutinho. — Concordei dando gargalhadas
enquanto caminhava até o elevador.
Até por que o Lipe não transa, ele dá show.
Capítulo Vinte E Um
(Andressa)
Passei em casa para comer alguma coisa e trocar de roupa, depois fui
direto para o bar. Precisava encontrar o Bataille e lhe pedir ajuda, pois
enquanto detonava um pão de queijo endurecido com café, tive uma ideia
que, hm, modéstia completamente à parte, deixaria meu Lipe sem fala.
Não precisei de ajuda para me vestir, nem presentes. Sabia o que
colocar antes mesmo de sair do trabalho. Precisava ser um vestido azul
intenso, lindo, e sem cara de vestido formal. Custei a achá-lo, mas ao vesti-
lo, me senti uma gostosa de cima a baixo.
Com um transpassado na área da cintura, o vestido disfarçava a
minha barriga ao mesmo tempo que desenhava as curvas. Além de ter um
decote em V bastante profundo que deixava meu colo bonito.
Eu, que não era boba nem nada, taquei um spray no peito para
deixá-lo brilhando, nas pernas também, e me maquiei o suficiente. Se me
sentasse para me maquiar mesmo, levaria mais de uma hora, então apostei
no corretivo em locais estratégicos, um batom vermelho bastante vivo, mas
que não brigasse com o azul da roupa, e penteei os pelos da sobrancelha.
Pronta em meia hora, para aquele nível de produção, parecia um
milagre. Faltou apenas um salto, que, quando cruzei as tiras no tornozelo,
deu um charme na roupa que me deixou orgulhosa.
Estava começando a me acostumar com essa ideia de ser gostosa e
chamar atenção. Para quem era conhecida como a mosca-morta da família,
aparecer sempre foi um problema.
Das vezes que precisava, era como se eu encenasse alguém que não
fosse eu, como se eu estivesse vulnerável demais e sem defesa.
Tudo que vinha do universo demasiado feminino, era como se me
enfraquecesse. Aprender que eu também era aquela imagem no espelho,
aquela pessoa linda e gorda, linda e arrumada, linda e sensual, me deixava
um tanto boba, mas feliz também.
Quarenta anos para entender que nem só de defesas vive uma
mulher. É mole?
Assimilar a maldade do mundo para dentro do nosso espírito tem
vezes que é fácil demais. E, quando percebemos, estamos presas num
círculo onde nada pode, tudo é errado, e onde ninguém é feliz.
Saí de casa com as chaves do carro na mão, mas, de repente, não
quis usar aquele. Eu tenho um segredo e um vício que só os mais próximos
sabem, que é meu gosto por carro.
Dona de cavalos que sou, proprietária dos cavalos mais rápidos do
mundo também, não deveria chocar ninguém o fato de eu gostar de
velocidade. Cheguei, nos meus tempos áureos, a ganhar carro de cliente
quando fechava um bom negócio.
Isso, antes de fincar os pés no Brasil.
Caminhei até o outro lado do condomínio de três casa, onde ficava a
garagem fortemente protegida, a única saída do Jockey em que ninguém
nunca via aberta, e apertei o botão do portão.
Acendi o disjuntor do lado direito do galpão e suspirei toda
orgulhosa de me reencontrar com eles: já foram oito, mas agora eram
quinze carros importados, cada um com uma história para contar, que na
minha vida de mãe, esposa e CEO não tinha mais tanto tempo para usá-los
assim.
O Lipe já sugeriu que os vendêssemos, mas quase infartei. Podia
não ter tanto tempo assim para usá-los, mas isso não significava que não os
amasse.
E o engraçado é que cada um tinha um terço benzido que minha mãe
me deu, e a foto da minha família. Para onde quer que eu fosse, em qual
carro preferisse, o terço de Dona Angélica e os meus andavam sempre
comigo.
Digitei a senha eletrônica no painel ao lado do disjuntor de luzes e
abri o pequeno cofre com as quinze chaves. Cada chave tinha um chaveiro
diferente, todos feitos pela Olga, com penduricalhos de miçanga cor-de-
rosa, ou pompons.
De dia, usava sempre um Range Rover SUV, que cabiam minhas
crianças e era moderado no combustível.
Naquela noite, puxei a chave do Huracán preto, carro esporte,
rebaixado demais para as vias de São Paulo, mas que era tão confortável e
gostoso de dirigir que valia a pena.
O meu modelo tinha uma customização de fábrica: além dos vidros
tão escuro quanto sua pintura preta, suas rodas eram douradas.
O tipo de modelo que, quando visto nas ruas, todo mundo achava
que o motorista se tratava de um CEO gostoso e rico, mas que quando viam
quem saía de dentro, podiam jurar que eram de meu marido.
Tecnicamente, aquele carro também era do meu marido, mas por
que ele se casou comigo. O negócio do Lipe, de toda forma, era bicicleta.
Não sei onde que ele foi pegar gosto no duas-rodas, mas o pobre coitado
pegou.
Se bem que… se bem que se o Lipe sai de dentro do meu Huracán
abotoando o terno e jogando a chave para um frentista, acho que eu gozo só
de ver.
Talvez eu tenha um pouco de tesão com multimilionários de terno,
também, afinal, quem não tem?
Entrei no carro, busquei pelo controle automático de ambos os
portões, tanto o traseiro por onde passei, quanto o dianteiro por onde
passaria, e tive dificuldade para me lembrar como o dirigia.
Em segundos, com a máquina na mão e funcionando, tive de me
desfazer das sandálias, me lembrei do câmbio de dupla-embreagem, dos
detalhes técnicos que todo mecânico vinha querer me ensinar como se eu
não soubesse o carro que tinha, e deslizei feito seda para fora do Jockey.
A viagem não era comprida, mas valia cada metro. Mesmo sem
poder abusar da velocidade, ainda era um carro gostoso de dirigir. Uma
única vez na vida andei com ele na autobahn alemã, que não tem limite de
velocidades, e lembro da delícia que foi.
Não saí do carro, depois que parei no único estacionamento aberto
naquela rua, sem calçar as sandálias. Pronta, com a pequena bolsa que
escolhi para aquela ocasião, entrei no bar depois de cumprimentar o
segurança e a moça da recepção que me olhou embasbacada, como se nunca
antes tivesse me visto.
Fui direto para o pátio, mas a moça que sempre ficava na barra de
poledance não me passou despercebido. Era incrível como o fetiche dela era
apenas dançar pelada e ser vista. Ela nunca se relacionava com alguém,
nem dançava para alguém específico. Ficava ali, sozinha, sorrindo e
rebolando no pole, muito melada, e não saberia dizer se se satisfazia ali
mesmo, ou se escolhia outro lugar.
Encontrei Bataille sozinho, sentado numa espécie de trono de ferro,
e estranhei. Não tinha Valéria para ele, naquela noite?
— Ela vem mais tarde. — Ele se explicou — Está na reta final de
um projeto e, quando ela senta para escrever, ninguém, nem eu, a tira de
casa.
Sequer sabia que Valéria escrevia, e, quando descobri a matéria de
seus livros, prometi a mim mesma que os pesquisaria mais tarde.
Se ela é parceira de Bataille e escreve livros eróticos, no mínimo seu
conteúdo me daria ideias novas para dar trabalho a um Lipe que, para
minha sorte, já se encontrava amarradinho na parede do pátio e não
escondia mais suas tatuagens.
— Bataille, você me ajuda? — Pedi.
— Depende. — Respondeu com um sorriso no canto da boca,
sabendo que meu pedido de ajuda não seria para coisas bobas.
— Eu quero amarrar o Lipe de mais jeitos, deixá-lo mais imóvel
ainda. — Provoquei tentando segurar o sorriso que fluía sozinho — Só que
não sei como.
— Lady Blue, a senhora é uma caixinha de Pandora. — Levantando-
se, ele me deu o braço para que o acompanhasse, e sussurrou bem perto da
minha orelha — Estive sonhando com o dia que me pedisse para lhe ensinar
o bondage.
— Nunca imaginei que ele fosse gostar de ser amarrado —
Confessei baixinho também, conforme ele me levava de volta ao salão
principal.
— Mas agora que sabe, não vai desperdiçar a chance, não é?
Dei-lhe uma risadinha cúmplice e, em pouquíssimo tempo, descobri
uma das muitas portas do andar superior.
Capítulo Vinte E Dois
(Lipe)
Sabe aquele cansaço gostoso que deixa a gente até mole? Que o sono
vem tão fácil que a gente dorme feito um bebê? Chegamos em casa em
carros separados, mas nos juntamos logo em seguida. Nos jogamos na cama
depois de arrancar a roupa, suados e melados ainda, e deitei em seu peito,
sentindo a quentura familiar que eu não fazia ideia do quanto sentia falta até
ouvi-lo suspirar de cansaço.
— Lipe? — Bocejando muito forte, o chamei.
— Oi.
— Te amo. Te amo tanto que dói.
— Você sabe que nosso problema nunca foi falta de amor.
Concordei com a cabeça, mas não quis falar mais. A sensação do
peito dele, deitada naquele quentinho confortável, era bom demais para que
a gente começasse com discussões. Depois da noite que tivemos,
merecíamos dormir tranquilamente.
Até por que os problemas ainda estariam lá na manhã seguinte.
Capítulo Vinte E Cinco
(Lipe)
Não sei o que foi que me deu, o plano de amarrar o Lipe só ia até a parte
em que eu o amarrasse: toda a parte da sedução e da senha inventei na hora.
Nunca imaginei que teria coragem para tanto. Pode ser bobagem para muita
gente, mas nunca tinha feito nada parecido antes, nunca tinha me mostrado
daquele jeito, nem mesmo para ele.
Enfiar um consolo atrás e esperar que ele me comesse na frente?
Nem nos meus sonhos mais molhados!
(Só que, posso falar uma coisa? Para mim, aquele foi o melhor sexo
em anos e tenho certeza que ele se sentiu do mesmo jeito.).
Estava louca para voltar ao bar. Estava louca para que o Lipe me
punisse, desse o troco, me usasse como bem entendesse. Estava pronta para
que ele fizesse o que quisesse desde que aquela fagulha se acendesse de
novo, desde que eu perdesse as travas do corpo e dos julgamentos e me
soltasse outra vez.
Foi tão bom, tão bom, que não conseguia me concentrar no trabalho.
Ao redor de alguns clientes chineses que tinham vindo ao Brasil apenas
para conhecer os cavalos que já tinham adquirido, eu falava, ouvia e ria
com eles, mas quando me mexia na cadeira e sentia a leve ardência nas
partes, era como se estivesse deitada no chão com o Lipe outra vez.
— What about this week? — Um deles me perguntou, entre goles de
um vinho branco que combinava com o calor do meio-dia.
— O fim do mês é melhor para nós — Respondi à proposta de levar
dois dos meus cavalos árabes, puro sangue, até Jilin. — Nosso tempo de
preparo de viagem leva de cinco a dez dias.
— We can’t wait ‘till next month. — O homem mais velho da mesa
barganhou e disse alguma coisa em chinês para seu assistente.
— Como eu disse, no fim do mês. — Repeti.
A regra básica de qualquer negócio é nunca mostrar suas falhas ao
seus clientes. Estávamos com um péssimo diretor de logística e nunca o
deixaríamos coordenar uma viagem tão longa, mas isso não era coisa para
que os clientes soubessem, então bati o pé quanto ao prazo, aumentando-o
ao máximo possível, e o restante dos problemas eu resolveria com Bianca.
O mercado chinês era um alvo há muito tempo, mas nunca consegui
penetrá-lo antes de conquistar o mercado europeu e árabe primeiro. Muitos
anos depois da minha primeira tentativa de conversa com eles, com posição
consolidada, os próprios chineses vieram atrás e, ao contrário
principalmente do europeu, eles apreciaram o custo do transporte.
Aquele almoço era apenas questão de azeitar a conversa. Eles
vieram até o Brasil para conhecer os potros que lhe vendemos, com
certificação internacional e pureza reconhecida, com pai e mãe vencedores
de prêmios e bastante famosos.
Bianca, minha sócia, quando vendia um potro e não a inseminação,
os vendia com a certeza de que seriam primeiro bem-tratados, segundo, de
origem humanizada, com as mais altas certificações, e depois dos seis
meses de treino.
Para vendermos esses, fizemos um leilão na França, com mais de
trinta convidados, e deu tão certo que, depois deles, alguns outros
compradores entraram numa fila de espera do próximo leilão para o ano
seguinte.
Agora, com os chineses era questão de entregar seus cavalos e eu
não via saída para essa entrega sem que fosse eu mesma indo até a
província de Jilin, no noroeste da China.
Não seria nem a primeira, nem a segunda vez que eu faria as
entregas. No começo, Bianca e eu passávamos mais tempo dentro de aviões
de carga que em terra firme, mas éramos mais novas, com menos
responsabilidades e, sem dúvidas, sem família para cuidar.
Eu não sabia como, depois de toda a reviravolta das últimas
semanas, eu viraria para o meu marido, que acabava de me aceitar em casa,
e lhe dizer que precisava viajar para tão longe por pelo menos quinze dias,
que era o tempo de adaptação dos bichos ao seu novo habitat.
Por isso, com os chineses, estiquei o tempo de entrega até o fim do
mês. E até lá eu daria um jeito no transporte.
Saí do almoço, depois de deixá-los com um motorista que os levaria
de volta ao hotel, direto para o estábulo dos cavalos de corrida. Precisava
sentar e conversar sério com minha irmã para a gente decidir o que fazer.
— Pois pode deixar que eu vou. — Ela disse logo que expliquei o
que estava acontecendo, parada no meio do estábulo com uma escova na
mão e os joelhos da calça sujos de barro — Cê sabe bem como que eu sou
com esses potrinhos e aquele mão curta que cê contratou vai matar meus
filho’ na viagem.
— Fiz burrice com esse diretor, Bia, sei disso, mas ele inflou demais
o currículo dele. — Respondi ao achar um caixote de madeira e me sentar
— Agora eu vou atrás de um especialista em logística e dois veterinários
especialistas em cavalo. A logística vai cuidar da papelada, os dois
veterinários vão cuidar da viagem, e pronto. Tô querendo o Santo Graal,
tudo em um só, mas desisto.
— É que a gente fazia isso muito bem, quando ‘tava solteira. — Ela
entendia meu ponto bem antes de eu precisar falar — Você ia sozinha com
os bichos, eu ia sozinha, e nunca deu problema nenhum.
— Pois é, mas não dá mais para ficar viajando igual antes. — Não
precisei lhe contar sobre meu medo, pois Bia já estava careca de saber.
— Dessa vez eu vou. — Largou a escova, a pendurou num prego à
parede e limpou as mãos nas calças — Preocupa não. Cê vai comigo para
terminar os acordos com os compradores, mas vai num pé, volta no outro, e
daí pra frente pode deixar que eu toco o barco.
— O que seria da minha vida sem você, Bia?
Eu sabia que era bem capaz que o Guto fosse com ela, não porque
Bianca não pudesse se defender sozinha, mas pelo contrário, por que ela era
doida, sempre foi doida, e se ninguém estivesse olhando, ela dormiria
dentro dos estábulos, junto com os cavalos.
A Bia indo, implicaria num Guto indo também.
— Vou pedir pra mãe vir aqui me ajudar com as crianças. — Ela
decidiu — Ela ‘tava louca para vir pra cá um pouco, mesmo. Já peço essa
ajuda e mato dois coelhos duma vez.
Saí da conversa um pouco menos preocupada, mas com a sensação
de que devia fazer mais do que apenas aquilo. Olhei para o relógio do
celular, decidi que poderia trabalhar mais algumas horas antes de ir para
casa, e fui direto para o departamento de Recursos Humanos.
Se tínhamos um diretor para cuidar disso tudo e mesmo assim não
podíamos confiar nele, sinal que estava fazendo hora extra na minha
empresa.
Decidi com a diretora do departamento do RH os termos do contrato
do diretor e não me dei ao trabalho de me despedir dele. Ao longo dos anos
aprendi que quanto mais formal uma demissão, menos dor de cabeça eu
teria depois.
Voltei para a minha sala, para amarrar algumas coisas pendentes, e
dei de cara com uma caixa enorme, azul, com um laço branco. Tinha uma
florzinha de canteiro no meio do laço e isso me abriu um sorriso enorme
pois por mais que a caixa fosse linda, era a florzinha que dava o toque
especial.
Abri o presente, mas vi renda demais e corri para fechar a porta do
escritório. Sozinha, olhei melhora renda e quase engasguei. Nunca, em toda
minha vida, tinha sido dona de uma lingerie tão… amostrada.
Tirei todo o papel de seda de dentro da caixa, procurando mais
alguma coisa, mas não achei nada. Realmente, só tinha aquilo.
Sinal que era para eu usar somente a lingerie quando fosse me
encontrar com o Lipe no bar?
Respirei fundo, um pouco em pânico, e olhei o fio dental. Era
daqueles modelos mais modernos em que a calcinha não era separada do
sutiã, parecido com um maiô em tule, sem nenhuma censura aos seios, nem
às partes baixas. Tinha só um trançado bonito nas costas, mangas compridas
com furos para que passassem os dedos por entre eles, e só.
Recebi uma mensagem no segundo seguinte, e sabia de quem era.
Lipe, no seu auge, só escreveu:
“Oito horas. Esteja lá”.
Capítulo Vinte E Sete
(Andressa)
Se não fosse o DIU, certamente teria ficado grávida bem ali e, por um
segundo, desejei não ter contraceptivo. Doida de tesão, querendo gozar
como nunca, esperei pela próxima ordem que não demorou nadica a vir:
— De quatro. — Ele mandou enquanto se recompunha, erguendo-se
do chão e subindo o zíper da calça.
Achei a ordem bastante estranha, mas não falei nada. Não era meu
dia de mandar, então o obedeci com os seios tão pesados que eu sentia o
tule da lingerie roçando neles.
— Você pode dizer não, se quiser. — Ele retomou — E qualquer
“não” que me disser, pararei.
Não entendi o que ele fez, mas não demorei a entender. Lipe pegou
uma correntinha, vai saber de onde, e colocou nas minhas costas, numa
argola pesada que tinha no meu harness.
Oficialmente, eu tinha uma guia para passear.
Olhei para ele, me sentindo muito incomodada com a presença
daquilo e fiquei mais incomodada ainda quando ele me deu um sorriso sem-
vergonha, com a pontinha quebrada de maldosa, mostrando que tinha
gostado daquilo bem mais do que deveria.
— Vou mostrar para todo mundo desse bar a quem você pertence.
Bobagem, pensei, que a aliança de casamento já servia e muito para
esse propósito.
Tomei um tapa estalado na bunda e senti que o Lipe puxou ainda
mais os fundilhos do body para o lado, para me deixar completamente à
mostra para quem quisesse ver.
— Vem. — Ele falou, mas não deu um puxão.
Me fez andar de volta para onde ele estava sentado com os outros
homens e recuperou o vibrador comandado por celular que ficou perdido no
meio do caminho.
— Tão cachorra que anda por aí com a bunda arrebitada. — Não era
a voz doce e calma do meu marido, mas uma coisa mais sensual e
intimidadora.
Confesso que escondi o rosto entre os ombros, um pouco
envergonhada de mim mesma, e considerei parar a brincadeira.
Pois foi quando ele colocou o vibrador de volta no lugar dele, no
meio das minhas pernas, tão bem-posicionado e apertado entre meus lábios
que, assim que o treco ligou, perdi a força nos braços e quase dei com a
cara no chão.
Para a minha sorte, o Lipe não disse uma palavra. Acho que se
tivesse rido de mim, certamente teria parado.
Ele esperou que eu me ajeitasse outra vez, em quatro apoios, e deu
um puxão pela correntinha, me forçando a andar.
De quatro, com o clitóris engolido pelo vibrador, engatinhei pelo
pátio tentando manter o autocontrole. Quanto mais eu me mexia, mais o
vibrador me atormentava. Em certo ponto, esqueci que estava naquela
posição comprometedora e que tinha gente me olhando.
Praticamente andava de olho fechado, numa bolha pré-orgástica
difícil de resistir e, se parava por que a minha liberação estava próxima
demais, o Lipe me puxava me obrigando a caminhar outra vez.
Foi essa tortura até atingirmos o salão do lado de dentro. Lá, as
pessoas olharam muito mais para nós do que do lado de fora. Lipe deu um
tapa na minha bunda, estalado e que provavelmente deixou marca, para que
eu parasse de me preocupar com os olhares.
Os comentários, ao contrário do que eu suspeitei, não foram para me
envergonhar. De certa forma, ouvir um desconhecido falar “que delícia ver
porra escorrendo dessa bunda” me deu mais tesão do que achei que daria.
Joguei o cabelo para o lado, um pouco mais segura da situação, e
quando o Lipe viu isso, ele parou na minha frente, se agachou e rasgou o
tecido do body fazendo dois buracos por onde meus seios passaram,
deixando-os nus.
— Tenho duas coisas para você, cachorra. — O Lipe e esse
sorrisinho sacana.
Saiu da minha vista e fiquei ali sozinha, de quatro, o vibrador me
torturando tanto que não via nem ouvia nada direito, e os seios para fora
davam uma sensação gostosa como se alguém realmente estivesse passando
a mão neles.
Quando meu marido voltou, ele tinha dois grampinhos na mão. A
princípio pareceram aqueles prendedores de varal em miniatura, mas que só
fui entender a utilidade quando ele prendeu meus mamilos neles.
Não era um aperto forte de machucar, era como se alguém apertasse
meus bicos com os dedos, numa pressão firme, mas que passava longe de
dor.
Depois, ainda agachado na minha frente, ele tirou um plug anal do
bolso, me mostrou e me circundou até ficar de frente para a minha bunda.
Com os fundilhos do body já bastante puxados para o lado, tudo o
que o Lipe precisou fazer foi lambuzar a joia nos meus fluídos. Senti o
gelado do metal encostar em mim e fechei os olhos, sentindo o pior se
aproximar.
Ele não precisou enfiar nada, apenas segurar o plug com firmeza na
entrada da minha bunda. Feito isso, com o tesão absurdo que estava, o plug
entrou sozinho e gemi alto sem querer, então mordi meu próprio braço para
não fazer tanto barulho.
— O que mais um homem precisa na vida, hein? — Lipe ficou com
a mão na minha bunda, mas se aproximou do meu ouvido com uma voz tão
baixa e tão grave, que me arrepiei inteira — Uma vadia do cu guloso e que
sabe receber ordens é tudo o que eu preciso.
— Lipe… — Gemi.
— O que foi, amor? — Mais cínico e falso que nota de três reais.
— Você vai pagar tão caro…
Ele explodiu numa risada sensual e áspera, mas me deu um tapa na
bunda logo em seguida e entrou com três dedos na minha vagina, me
comendo bem rápido com eles, tão rápido que a tensão pré-orgasmo bateu
forte o suficiente para que eu não conseguisse me controlar.
Só não gozei por que ele tirou a mão. E que pena que tirou.
— Sabe, Andressa — Ele puxou conversa antes que eu pudesse me
recompor e se sentou sobre os calcanhares na minha frente para chamar
minha atenção — Nós nunca exploramos fetiches muito à fundo, nós dois.
Concordei com a cabeça poisnão estava em condições de responder
coisa alguma.
— Mas aprendi uma coisa que talvez nem você tenha percebido.
— É? — Respondi quando ele parou de falar e fez uma pausa
imensa, esperando que lhe respondesse. — E o que foi?
— Você goza mais quando estão estimulando seus dois buracos ao
mesmo tempo.
Ao mesmo tempo em que não podia discordar, fiquei com medo
sobre onde esta conversa nos levaria.
— Estou te perguntando de coração aberto — Ele ergueu meu rosto
para que nos olhássemos e também me sentei sobre os calcanhares quando
ele desligou o vibrador. — Sem julgamentos e não vou ficar pesando sobre
isso, independente da resposta.
Fiquei sem fala. Estava louca para gozar? Sim. Queria que ele me
usasse ainda mais? Sem dúvidas.
— Escuta — Ele e esse sorriso de quem tinha um plano infalível
para propor —, tem alguém que está louco para te comer. Você sabe, eu sei.
Bataille.
— E tem mais dois na fila. — Ele sorriu como se aquilo fosse
engraçado. — Por hoje, eu tô disposto a tentar isso com um deles, se você
estiver.
— Lipe — Tive que arrancar juízo da puta que pariu —, eu não
suporto nem a ideia de ver você comer outra mulher.
— Não tem mulher. — Ele respondeu com carinho e compreensão.
— Mas Valéria…
— Ela está terminando o livro, nem aqui está.
Tive de parar por dois segundos. Dois homens de uma vez? Era isso
o que o Lipe propunha. Um me comendo por trás, outro na frente. Ok, eu
realmente gostei de noite passada, mas era entre um brinquedo e o meu
marido, não era… alguém de verdade.
E se ele quisesse pedir o troco depois? Se ele quisesse comer duas
mulheres? E se ele ficasse bravo comigo, caso eu gostasse da experiência
mais do que deveria? Somos um casal, casados, com filhos e temos muito a
perder caso…
Como se lesse meus pensamentos, ele colocou as mãos sobre as
minhas, chamando minha atenção.
— Eu te trouxe até aqui. — Ele falou com segurança — Trouxe para
criar laço de novo com você, desenvolver nosso lado sexual, brincar com
limites e fetiches. Eu quis isso desde o começo e não vou, nem quero,
reclamar que você está se descobrindo.
“Não é meu trabalho limitar você” Ele continuou “Meu trabalho é te
fazer gozar que nem uma filha da puta e te dar banho com carinho quando
chegarmos em casa”.
— Você tá completamente certo disso? — Derretida, perguntei com
um sorriso enorme no rosto.
— Estou. — Como se soubesse o que eu faria, se levantou do chão e
me deu a mão para que eu me levantasse também.
— Então vamos.
Capítulo Trinta
(Andressa)
Sentei-me com meus dois sócios logo pela manhã do dia seguinte.
Precisávamos resolver as questões com os cavalos da China e toda a nossa
deficiência em logística.
— Sempre fomos um clubinho fechado, olha só no que deu. —
Gustavo alertou assim que chegou à sala de reuniões com um café preto,
sem açúcar, e mais dois cafés adoçados numa bandeja. — Eu tô cantando
essa bola já tem um tempo, mas parece que vocês duas têm medo de
mostrar como fazem o trabalho para outras pessoas.
Olhei para minha irmã e a gente sabia bem que medo era aquele.
Bianca e eu fomos sozinhas contra o mundo desde o começo.
Aliás, sabia que foi por causa de um cavalo correndo risco de
eutanásia que comecei a trabalhar com equinos? Minha irmã quase foi presa
por que achou uma boa ideia roubar um pobre de Altair Português todo
capenga da sala de eutanásia e decidiu, nós duas sem um tostão furado, que
ia cuidar de seus tratamentos.
Deu certo, prosperamos, mas comemos tanto capim no caminho,
que o nosso jeito de trabalhar acabou ficando assim, função só dela e
minha. Nem Gustavo, que chegou depois por que era o amor da minha irmã
e por que sempre foi meu melhor amigo, tinha liberdade suficiente dentro
da empresa para tomar suas próprias ações.
Quer dizer, se ele quisesse, certamente o faria, ele tinha cargo e
poder para isso, mas ele respeitava a nós duas, sempre respeitou, e sempre
veio falar conosco antes de sair dando canetada por aí.
— Bom dia, amor. — Com um beijinho de gente casada, Bianca se
levantou para cumprimentar o marido e tomou a bandeja de suas mãos —
As cria’ foram para a escola?
— Manu passou lá, todo mundo tá na aula.
Bianca sempre acordou e sempre vai acordar com as galinhas.
Quando ela sai para trabalhar, as crianças nem em pé estão. Por isso era
bem comum que Bianca só visse o marido lá pela hora do almoço, ou
quando voltassem para casa.
Porém, como pedi a reunião, eles se viram um pouco mais cedo
naquele dia.
— Bom dia, cunhado. — Desejei segurando o riso por que ele
odiava ser chamado de assim.
Tomei um olhar de esguelha e nenhum voto para que meu dia fosse
bom.
— Mas você quer me foder, né? — Foi a primeira coisa que ele me
disse assim que puxou a cadeira do meu lado direito e se sentou — ‘Porra
de Bianca um mês na China.
— A ideia foi dela, não foi minha. — Me defendi.
— E desde quando Bianca decide isso? O reino dela é lá no estábulo
e ninguém é doido de contrariar, mas aqui em cima quem manda sou eu e
você.
— Certo, Gustavo — mal consegui encostar a boca na xícara —,
então me dá uma solução para isso, por que do modo que tô enxergando,
não vejo saída boa, não.
— A bicha tem um exército de veterinário lá embaixo. Quantos que
são, Bianca? Quinze?
— Vinte e cinco. — Bianca respondeu.
— Pois dois vão para a China. Bianca escolhe. Dois revezam na
viagem, entre cuidar dos bichos e descansar, e eles que cuidem da
adaptação dos potros.
— Não. — Ela nem pensou para responder — Todo mundo lá tem
família, nem sei se eles têm passaporte. Não vou fazer isso com eles e…
— Pois com a família deles você se importa e a sua que se foda, né?
Déjà vu fodido esse. Não foi isso que quase ruiu o meu casamento?
Olhei para a Bianca, que tem os mesmos instintos imbecis que o meu, mas
concordei com o Guto.
— Gustavo tem razão, Bia. — Deliberei, tentando não ferir o
orgulho da minha irmã — Não vou mais colocar a nossa família em risco
por causa de trabalho. A gente vai, você e eu, mas só por causa da logística.
Entregamos os potros nas mãos dos chineses e voltamos. Coisa de um dia, e
nada mais.
— Você vai mesmo abrir mão disso, Dê? — Bianca me perguntou
uma coisa simples, mas não era simples do ponto de vista do nosso
histórico.
Enquanto para o Guto o “abrir mão” significava apenas não passar
um mês enfurnada na China, para nós duas o “abrir mão” era deixar que os
outros cuidassem daquilo que sempre foi só nosso. Como entregar nosso
bebê na mão de um estranho.
— Precisamos. — Suspirando e pensando nos meus últimos
aprendizados, continuei — Não somos mais tão novinhas, nem estamos
sozinhas. A gente fez o que pôde e o que não até aqui, mas acho que está na
hora de pararmos de pensar como só nos duas.
— Deus, eu daria um beijo na boca do Lipe só por ele ter te feito
enxergar o óbvio. — Gustavo interviu.
— Cala a boca, Guto, que eu tô falando com a minha irmã.
— Auditório, meia hora. — Ele respondeu ao se levantar — Que eu
vou convocar todos os veterinários e dar as boas-novas.
— Não, porra, espera aí. — Bianca se levantou junto — Não tá nada
decidido ainda.
— Meia hora. — Ele mandou, já abrindo a porta — E vê se põe
juízo na cabeça da sua irmã. — Ele falou para mim antes de ir.
Deixei Bianca reclamar. Deixei que ela dissesse por A+B o porquê
seria ruim deixar veterinário despreparado ir na viagem. Ouvi que ninguém
sabia mais dos esquemas que nós duas, que ninguém faria como nós, que a
nossa empresa só era o que é por que demos sangue e muito suor para
erguê-la.
Duas semanas antes eu concordaria com ela em tudo. Inclusive,
bateria de frente com Gustavo, se preciso fosse. Se Bianca era acelerada e
teimosa, sempre fui o pior. Ela tinha um incêndio, eu aparecia para apagar.
Ela tinha uma ideia, eu aparecia para executar. Sempre fomos assim e não
me impressionou em nada perceber que a vida dela era tão bosta, do ponto
de vista pessoal, quanto a minha.
Gustavo também era o marido que ficava para depois, as crianças
também viam a mãe pouco. A diferença é que Gustavo largou uma vida na
medicina para se dedicar aos desejos da minha irmã, enquanto o Lipe
atrasou todos os seus sonhos e me deu dez anos de espera, só para que eu
prosperasse na Europa e voltasse.
— Bia… — Falei quando ela se sentou outra vez — O quão
sortudas nós somos de termos parceiros que nos entendem e se sacrificam
por nós?
— O caso não é esse. — Ela respondeu dando um gole em seu café.
— As crianças vão crescer e os maridos vão partir, se continuarmos
assim. — Rebati — E o quanto disso a gente já perdeu por não saber
delegar?
— Não é que a gente não sabe delegar, é que os veterinários…
— Bia… — Peguei em suas mãos, olhando no fundo dos olhos — A
gente nunca ensinou o que fazemos para ninguém. Nem nunca deixou a
equipe se virar.
— É a vida dos meus cavalos que estão em risco!
— Risco? — Tive de ser um pouco mais dura — E não foram esses
mesmos veterinários que ajudaram a parir e criar esse bichinhos?
Eu sabia que tinha ganhado a discussão apenas pelo jeito como ela
não respondeu. Bianca quando fica brava estoura, se levanta, sai batendo
porta, dá baile. Enquanto eu sempre fui a irmã de chorar quando ninguém
via, ela fazia questão de tacar fogo e dedo na cara com a mesma
intensidade.
Sempre fui água e ela sempre foi fogo.
E ambas temos terra firme para onde voltar quando chegamos em
casa.
Capítulo Trinta E Quatro
(Andressa)
No geral, tudo correu bem. Minha função ali era mais burocrática que
prática. Fui para honrar meus clientes, que mereciam que eu fosse até eles
depois do pedido de adiamento da entrega dos cavalos, e para apresentar a
papelada para os órgãos regulamentares.
No todo, a ida foi mais comprida que a permanência. Nossos
clientes eram da província de Jilin, entre a Rússia e a Coreia, no noroeste do
país, muito difícil de chegar, segundo o piloto, mas fácil de sair.
Para a surpresa de ninguém, geava muito, mas não estava tão frio
quanto a previsão do tempo propôs. Depois que os cavalinhos acordaram,
bastou uma manta por cima deles, que ficaram bem.
Somente um veterinário da equipe chinesa falava inglês e um inglês
bem precário, tanto que meus veterinários acabaram se comunicando mais
apontando as coisas uns aos outros que realmente falando.
E eu, que fui convidada para um almoço extremamente tradicional,
ganhei uma caixinha de música de presente, que cantava o hino chinês, toda
feita de seda e ouro. Tão linda que minha filha Olga certamente a roubaria
de mim.
Eu, que não era boba nem nada, trazia na mala um presente para
eles, também. Entre os pratos típicos e a reunião mediada por um tradutor
de confiança, levei mel de laranjeira em duas garrafas hermeticamente
fechadas, feitas na minha cidade natal, Poços de Caldas.
Aparentemente, eles amaram. Para os chineses, mel era considerado
sagrado e custava muito caro, então, vendo como eles ficaram empolgados
com as garrafas de mel, senti que aquela não seria a última vez que iria para
lá entregar cavalos.
Voltei no mesmo avião de carga, na manhã do dia seguinte, e levei
na mala, além da caixinha de música, muitas fotos. Eu tinha certeza que
meus filhos iam querer ver a grande muralha da China, mas não foi para ela
que fui, nem mesmo fiquei perto, então tirei fotos de outras coisas bonitas
para ter o que contar quando chegasse em casa.
Para voltar para casa, porém, só eu voltei. Os veterinários ficariam
pelo resto do mês e assim que embarquei para voltar, Bianca embarcava
para ir. Foi um meio-termo que consegui com ela. Ela iria ver seus bebês
instalados na nova casa, ficaria apenas um dia, e voltaria ao Brasil para
cuidar de todos os outros.
Para a empresa não ficar sem nós duas ao mesmo tempo, eu fui para
a China e, quando estivesse voltando, ela iria.
E foi assim que fizemos. Bianca embarcou quando faltavam doze
horas para o meu desembarque, num avião comercial com duas escalas.
A única coisa ruim de um avião de carga, mesmo o adaptado, é que
não tinha serviço de bordo. Instalamos uma cozinha minúscula perto da
cabine do piloto, mas só tinha bobagem para comer. Acho que, enquanto
estava ali, devo ter comido uns quatro miojos diferentes tanto que, quando
finalmente estávamos chegando, mesmo com fome, evitei comer mais um,
ou a azia que já me deixava ruim, ficaria ainda pior.
Durante todo o voo de volta deixei meu celular desligado e dormi
por boa parte do percurso. Quando não dormia, mexia no computador no
modo avião, resolvendo planilhas e outras burocracias que eu deixava numa
pasta separada justamente para momentos como aquele.
Ao todo, embora muito cansativa, foi uma viagem tranquila.
Enquanto o avião taxiava, liguei o celular novamente e ele começou a apitar
tanto, bem além do comum, que entendi que alguma coisa de errado no
Brasil tinha acontecido enquanto estive fora.
Peguei o primeiro carro disponível na porta do aeroporto, nem me
despedi do piloto, só fui, tentando ligar para o Guto que tinha me ligado
mais de trinta vezes, sem contar a ligação de outros funcionários.
Levei mais de uma hora para chegar e só me atenderam quando o
motorista me deixou na porta do Jockey, de mala e bolsa na mão, bem de
frente à frota armada da segurança contratada, mais cinco carros de polícia.
Corri para a pequena roda formada por policiais e seguranças
olhando a planta do estábulo dos cavalos premium, cogitando entradas e
saídas.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo? — Interrompi
a conversa que acontecia calma demais para aquela quantidade de força
policial.
Um homem, vestido de farda e que tinha MORENO escrito no peito,
me olhou de cima a baixo com o olhar de desprezo que eu conhecia bem até
demais. O chefe da segurança contratada estufou o peito e endireitou a
coluna, como se estivesse de frente para a mãe dele.
— E você é… ? — Perguntou o policial Moreno.
— A dona. — Respondi sem paciência. — O que está acontecendo
aqui?
— A situação está sobre controle, minha senhora. — Me respondeu
o folgado. — É melhor a senhora procurar um lugar para se sentar e…
— Eu perguntei o que está acontecendo!
— Dona Andressa… — Disse o chefe da segurança contratada —
Seu Oscar deve ter usado a credencial antiga para acessar os estábulos dos
cavalos premium e, pelos tiros, já matou mais de…
Tiros?
Enquanto quebrava o cerco policial e corria o mais rápido possível
até o estábulo, tentava varrer a memória em busca de quem era o tal Oscar.
Não era um nome comum para que eu conhecesse dezenas dele.
Oscar eu só conhecia um e ele era…
Parei de frente ao grande portão do estábulo e ouvi mais dois tiros e
um relinchar. Oscar era o diretor de logística mais incompetente que já
contratei na vida.
Lembro de tê-lo demitido da forma correta, por meio do RH, com
todos os direitos reconhecidos e nenhum desrespeito de minha parte. Não
fui pessoalmente lhe dar tchau, até por que isso nunca é bom, mas lembro
da cortesia.
Outro tiro, outro relinchar.
O chefe da segurança chegou ao meu lado e perguntei como foi que
o ex-diretor conseguiu passar por todas as portas que me disseram seguras e
impenetráveis quando as implantei.
Não era fácil chegar até aqueles cavalos e somente pessoas
credenciadas tinham acesso. Para passar da área pública do Jockey,
qualquer um da staff tinha que apresentar o crachá e passá-lo pelas catracas.
Cada crachá tinha um nível de acesso e somente trinta pessoas, entre
veterinários e peões, podiam chegar aos cavalos mais caros do mundo.
Isso, sem contar o meu crachá, o de Bianca e o de Gustavo.
Olhei ao redor e procurei meu cunhado. Ele deveria estar ali em
algum lugar, mas, pelos grupos que se formavam de funcionários curiosos e
policiais ao redor de suas viaturas, não o achei em lugar algum.
Guto chegou minutos depois, correndo como um louco e mandando
meia dúzia de seguranças tomarem naquele lugar.
Ele me abraçou preocupado, me deu um beijo na testa, mas seu
olhar não tinha nada de bom.
— Como ele conseguiu entrar? — Foi a primeira coisa que
perguntei — Não cancelaram as credenciais dele?
Guto não tinha a cara boa, imaginei que fosse pela situação, mas era
pior, bem pior. Puxou o celular do bolso da calça, o desbloqueou e colocou
uma mensagem que recebeu para tocar no viva-voz:
— Só eu sei o que sacrifiquei por esse serviço! — Dizia Oscar aos
berros — As longas horas de viagem me deixaram fora de casa por tanto
tempo que minha esposa me largou. Levou minha filha para morar com o
amante e eu fiquei sozinho. Alguma vez levei meus problemas para a
empresa? Alguma vez faltei no serviço? Mesmo com a minha casa
desmoronando, eu nunca sequer faltei! Agora a senhora me demite?! Por
causa de um cavalo?! Pois a senhora vai sentir na pele a mesma dor que eu
senti, Dona Andressa. A senhora vai perder tudo!
Sentindo o estômago congelar de medo, engoli em seco e não
consegui olhar para o Guto.
— O Lipe saiu para levar as crianças para a escola e foi trabalhar
logo em seguida, não é?
Sem conseguir me olhar também, Guto balançou a cabeça me
dizendo que não.
Nem meu marido nem meus filhos saíram do Jockey naquela
manhã.
Capítulo Trinta e Nove
(Andressa)
Tinha certeza que estava morto quando aquele cara me ameaçou com
uma arma, na portaria principal, quando saía para levar as crianças para a
escola. Sabia. Olhei bem para aquela arma e as minhas crias no banco de
trás.
Estava pronto para morrer. Soltei a trava para crianças da porta
traseira e mandei Olga correr com Tutu enquanto chamava atenção para o
homem com a arma na mão, os olhos muito vermelhos de quem estava sob
efeito pesado de drogas, para que ele sequer notasse que as crianças tinham
fugido.
Todo o resto foi confirmação da minha morte.
E quando ele perguntou: Quem vai ser, seu marido ou seus cavalos,
senti a minha cova sendo aberta, a missa rezada para mim, meus pais
chorando adeus.
Tinha tanta certeza disso que quando o cara começou a assassinar
cavalo por cavalo, senti que ficaria para o Grand Finale.
Só que então, do nada, ele se virou para mim, deu um sorriso
enlouquecido e disse, com todas as letras:
— Eu teria escolhido os cavalos.
E ploft.
Voou cérebro e sangue para todo lado e acho que essa imagem vai
demorar um tanto para sair da minha retina. Não sinto pena nem
compaixão, mas fiquei em choque. Os policiais falaram comigo e eu não
entendia nada, como se fosse em outra língua, como se fosse numa outra
frequência de rádio. Eles falavam e mexiam em mim, desamarrando e
despendurando, mas era como se aquilo ocorresse num estado de sonho
onde nada era realmente o que parecia.
Só quando um médico tacou uma lanterna no meu olho e ela doeu,
que entendi que era tudo de verdade. Que Andressa deixou que matassem
os cavalos desde que salvassem a mim.
Nunca imaginei que a situação hipotética poderia ser real e teria
outro resultado. Sempre imaginei que em caso de vida ou morte, ela
salvaria seus cavalos e sacrificaria a mim.
Sei de seu esforço para erguer aquele jokey, do esforço para se
manter no mercado, das coisas que abdicou para levar o sonho da irmã
adiante. Na minha cabeça, os cavalos representavam sua irmã e Andressa
jamais escolheria eu, se Bianca estivesse em risco.
Quando ela segurou a minha mão, porém, me senti tão vulnerável e
bobo por ter pensado isso por tanto tempo, que não pude falar nada
enquanto ela brigava comigo. Éramos casados, pais de duas crianças lindas,
mas ao mesmo tempo sempre me senti de escanteio. Eram sempre as
crianças, depois eu. O trabalho, depois eu. Como não pensar que ela
escolheria o trabalho a mim?
— Lipe… — Ela chorou — O que eu fiz de tão errado para você se
sentir assim?
Olhando para aquele rosto lindo e aquelas mãos, não tive o que
responder. Se por um lado eu ficava de escanteio em tempos difíceis,
sempre me senti honrado por ficar ao seu lado. Sempre me senti especial
por vê-la falar, ouvi-la desabafar, ser no meu colo onde pudesse descansar.
— Desculpa. — Falei envergonhado e tão vulnerável que me sentia
um lixo — Desculpa.
— Não, amor. — Ela respirou fundo, voltou a sentar-se ao meu lado
e puxou as minhas mãos para si — Eu sei de onde essa dúvida vem, mas
acho que estamos há muito tempo preocupados com o que fizemos ou não
fizemos no passado. O que importa é hoje, amor, não o que aconteceu há
anos. Te amo hoje, Lipe, te escolho hoje, amor. E eu sempre sacrificaria
meus cavalos se fosse para salvar você.
Eu não sabia, naquela cama de hospital, que ela tinha dado um
milhão de dólares para a filha do assassino, além da vida dos cavalos. Um
milhão de dólares que vinha de seu fundo de emergência pessoal, e não do
caixa da empresa.
Pedi que fosse mandado para casa e assinei um termo de
responsabilidades mesmo contra a vontade de Andressa. Queriam me
manter a noite inteira deitado na cama e eu não quis. Precisava ir para casa,
ver minhas crianças, me deitar com minha mulher e sentir que tudo poderia
voltar ao normal.
De olho remendado e alguns ferimentos pelo corpo, chegamos em
casa e Gustavo estava lá, com todas as crianças da família, assistindo a um
desenho na TV.
Quando nos viram, nossos filhos vieram correndo. Olga segurou o
choro e só me abraçou, mas o Tutu desatou no berreiro, com a mão nos
olhinhos, apreensivo por não saber como eu estava.
Olga se agarrou na mãe, segurando muito o choro, mas abraçou-se à
barriga dela e desabou. Chorou, chorou, chorou, e quando se sentia melhor,
Guto veio com um copo d’água.
Não mentimos para as crianças. Mamãe contou como tudo
aconteceu, de um jeito que as crianças entenderiam a gravidade, sem
ficarem impressionadas nem preocupadas.
— Então a mãe salvou o pai? — Olga perguntou enquanto
estávamos à mesa, com copos d’água e alguns docinhos.
— É. — Respondi sorrindo — A mãe me salvou.
— E o homem que fez tudo isso? Ele tá aonde? — Tutu perguntou
enfiando mais um marshmallow na boca.
Dê olhou para mim e entendi tudo.
— Deixa ele pra lá, Tutu. — Respondi evitando entrar no assunto
“suicídio” — O que importa é que a gente tá bem.
— A Flor morreu, papai? — Madalena, que estava com os irmãos e
o Guto ao redor da mesa com a gente, tinha os olhinhos cheios d’água e um
biquinho triste de quem já sabia da resposta.
— Foi, amor meu. — Guto respondeu abertamente, puxando a
garota para o colo. — Eu sinto muito.
— A Estrelinha também, né? — Olga entendeu logo em seguida.
— Flor e Estrela salvaram o papai. — Andressa respondeu — Elas
salvaram o papai muuuuuuuito mais do que eu.
Sabia que faríamos um enterro simbólico para as éguas quando as
duas meninas se olharam e começaram a cochichar. Era justo, afinal.
Faríamos um enterro simbólico para todos os cavalos que perderam a vida
por causa daquele filho da puta que além de trabalhar mal, ainda era um
louco.
Naquele dia, porém, merecíamos descansar e foi exatamente isso o
que fizemos. Depois do almoço, deitamos todo mundo na cama do papai e
da mamãe e ficamos lá, só nós quatro, assistindo filmes da Disney que
fazem qualquer um chorar, e jantamos pipoca com manteiga depois.
Dia seguinte, embora tenha dormido de mal jeito por que minhas
crianças não eram mais tão pequenas e minha cama não era tão grande
assim, levantei-me antes de todo mundo e fiz outro café da manhã.
Dessa vez, para todo mundo. Com flor de canteiro, que não passava
de maria sem vergonha arrancada da beirada das árvores perto de casa e
alguns raminhos bonitos que não fazia nem ideia de que flor eram.
Bati um bolo que não cresceu como os bolos da Andressa, mas era
um bolo comível, fiz tapioca com queijo minas, mais algumas comidas, e
chamei todo mundo bem depois do horário de irem para a escola.
Do jeito traumático que tinha sido o dia anterior, nem ferrando que
eu levaria minhas crias na escola naquele dia.
Andressa e eu precisávamos de um tempo sozinhos e isso só foi
acontecer de noite. Eu precisava dela muito mais do que achava, precisava
de um tempo, nem que fosse só olhando para seu rosto, e me curar de
feridas que não eram novas, nem desconhecidas, para poder seguir em
frente.
Fiquei tão assustado com tudo que tive que repensar muitas coisas.
A maior delas, sem dúvidas, era a certeza de que minha mulher me trocaria
pelos cavalos. Esse era o tamanho do meu costume de ser deixado de lado.
Era o tamanho do meu medo, também.
Depois disso, por mais que o bar fosse a nossa válvula de escape, ela
não curava tudo. Dava uma bela de uma azeitada na máquina no casamento,
mas não resolvia todos os nossos dilemas.
Por isso, uma semana depois do acontecido, entramos na terapia de
casal, também. Era o certo a se fazer. Se nos amávamos tanto assim,
daríamos um jeito de conversar até nos entendermos e sairíamos muito
melhor de toda essa crise.
Além, é claro, de transar feito uns malucos.
Capítulo Quarenta E Dois
(Andressa)
Esse livro é a conclusão de uma jornada que levou mais de um ano. Essa é a
terceira vez que escrevo esta história que começou em 28 de agosto de 2021
e me ajudou a atravessar uma fase da vida que não estava boa, mas eu não
sabia o por quê.
Entrego este livro nas suas mãos com a mais plena certeza de que era assim
que devia ser desde o começo. Era assim que ele teria que sair de mim, com
toda a dor e sofrimento que passei, todo choro e todas as noites em claro.
Então esse agradecimento vai a você, leitora véia de guerra, que me viu
passar por tudo, me esperou, teve paciência comigo, ficou puta várias vezes,
detestou a primeira versão, viu o começo da segunda, e não entendeu lhufas
quando eu sumi.
E se você tá lendo isso, Mendiga, saiba que você contribui todos os dias
para que eu permaneça aqui, escrevendo e reescrevendo, e apagando, e
editando.
Esse livro encerra um ciclo na minha vida. E agora eu estou pronta para
recomeçar.
Leandro não procurava amor quando precisou socorrer um amigo que tinha
levado um pé na bunda. Tocou a campainha de Natália por acaso da vida.
Ela, por outro lado, viu o loirinho com cara de bom-moço e um corpo
escultural, e só conseguiu imaginar uma única coisa: seus joelhos no chão e,
de preferência, pedindo pelo amor de Deus para poder…
Só tinha um problema, Leandro era noivo. Para piorar, muito religioso. Para
piorar ainda mais, mantinha seu celibato intacto à espera do casamento.
Natália não buscava por relacionamento, mas não poderia deixar passar essa
oportunidade da vida. E você sabe que ela não deixou.
Valéria, por outro lado, precisa aprender o que é BDSM para seu novo
romance e, nos chats da internet, conhece Lady Nïn, a Domme mais famosa
do Stage.
É por aí que a história começa. Ela precisa aprender, mas não vai ser
Bataille a ensinar.