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Contents

Sinopse
Prólogo
Um Novo Normal
Segurança
Fugindo
O Casulo
A Carona
Nova Etapa
Retomando
O Jogador
Testando os Limites
Em Cena
Perdendo o Controle
Acolhida
O Embate
Controlando-se
A Invasão
No Trajeto
A Proposta
Encurralada
O Encontro
Surpreendido
Negociando
Impedida
Descontrolado
Gatilhos
Confusa
A Noiva
Sem Saída
Questionada
Desestabilizado
Última Vez
A Tocaia
A Notícia
Visita Inesperada
O Segredo
Respostas
Tomando à Rédea
Acuada
O Noivado
De Volta
Esperançosa
Mudança de Planos
O Evento
Comemorando
A Busca
Declarando-se
Mentindo
Aceitando
Adaptações
Saiu pela Culatra
O Pedido
Epílogo
Agradecimentos
About The Author
Bem-Vindo ao Jogo
Books By This Author
O METÓDICO
Série Bem-Vindo ao Jogo
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de
19/02/1998.
Nenhuma parte desse livro, sem autorização prévia da autora por
escrito, poderá ser reproduzida ou transmitida, seja em quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros.
Esta é uma obra fictícia, qualquer semelhança com pessoas reais
vivas ou mortas é mera coincidência.
Revisão: NEIDE MENDES
Capa: FABIANE MENDES BUENO
Sinopse

Imagina ter que se casar por ultimato do pai em seu testamento.


E, quando pensa que aceitou a ideia, se vê no meio de um furacão,
foge da união arranjada e cai num pacto penoso.

Yasmin não pensou nas consequências da fuga, da moto


roubada, da invasão de um carro e da conexão inesperada. Muito
menos de ter que encarar um papel que nunca teria nem nos piores
pesadelos.

Enrico Bennett, dono de personalidade forte e complicada, ar


enigmático e costumes sistemáticos, acostumado ao jogo da família,
esconde a própria verdade.
O homem sedutor tem compromissos que ordenam não poder
ter nada sério com outra mulher, que não seja Leandra. Mas a trama
o coloca no meio do redemoinho de Yasmim, atinge seu coração
reservado e o coloca em situações impensadas.

A história dos irmãos Bennett fica mais agitada e Enrico


coloca todos de cabelo em pé, em pé de guerra e desavenças.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o


mesmo ao final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
Prólogo

Ele estreita o olhar na direção do barulho que chamou sua


atenção; inclina a cabeça para o lado e pensa: “Tem algo errado”.
— Sebastião, me espera aqui — ordena ao motorista de seu
filho, pois, coincidentemente, seu fiel escudeiro teve um contratempo
e não pôde estar com ele naquele dia.
A passos largos, chega a um canto escuro da garagem de seu
prédio imponente.
— Você? — fala com desdém e um sorriso sarcástico
dominando sua face.
— Che... gou o seu... fim — ameaçou a pessoa – gaguejando.
Uma gargalhada escapou de seu peito, ecoando pelo espaço
preenchido por carros.
— Tremendo desse jeito? Não consegue acabar nem com
uma criança, imbecil — ironizou e foi se aproximando de seu
opositor.
— Mais um passo e eu atiro — avisou o oponente, limpando a
garganta e firmando a voz. “Não posso fraquejar agora” — pensou.
A ameaça parecia vazia, ele não deixaria uma pessoa
qualquer o desestabilizar, afinal, seu poder sempre garantiu que
todos estivessem em suas mãos. Mais um passo e, sem que ele
tivesse a chance de recuar...
— Pow!
— Ah..., porra!!! Você atirou em mim!? — Mal teve tempo de
ficar ereto, enquanto inclinava o corpo e levava a mão à virilha...
— Pow... pow... pow!
Ele não podia acreditar que aquela pessoa tinha tido coragem
de o atacar daquela maneira.
Uma dor excruciante foi tomando conta de várias partes de
seu corpo. Sua pele ardia como fogo.
Sua visão foi ficando turva...
Muito sangue...
Muita dor...
A última coisa que ele viu foi o sorriso vitorioso de seu
adversário.
— Morra... — desejou a pessoa e cuspiu nele, enquanto o
poderoso se contorcia no chão.
Um Novo Normal

Gabrielle

Quando você perde seu porto-seguro, a pessoa pela qual você


lutou a vida toda, descobre que perdeu o sentido de viver.
— Miauuuuuuuu...
A reclamação aguda de Oliver provocou uma respiração
profunda em meu peito. Não era só ele que estava incomodado com
a minha inércia – de dias. Logo após o enterro da minha mãe, meu
celular gritou por algumas horas, até acabar a bateria. Após isso, o
telefone fixo começou a trabalhar. Como não me dei ao trabalho de
atendê-lo, foi a vez da campainha. Em todas as vezes, a ladainha
era a mesma:

“Você precisa reagir.”


“Sua mãe deve estar de revirando no caixão.”
“Vamos te levar à força para um hospital.”

Estava cansada das pessoas querendo me salvar. A verdade


é que, mesmo sabendo que a intenção era boa, aquilo estava me
deixando mais puta da vida.
— Dá um tempo, Oliver — resmunguei e virei para o outro
lado.
Puxei o edredom até minha cabeça e espremi os olhos –
desejando nunca sair dali.
— Miauuuuuuu... — Dessa vez, além do miado ser agudo,
senti as unhas puxando o tecido no meu rosto.
— Cacete, Oliver, você sabe ser um pé no saco, cara! —
vociferei e me sentei na cama.
Meu companheiro de todas as horas ignorou meu humor
mórbido e começou a enfiar a cabeça embaixo da minha mão –
acabei sorrindo. Um mês havia passado e a dor no meu peito ficava
cada vez pior. Meu pai não aguentou ficar na casa e viajou sem
prazo determinado para voltar. Quem o culparia? Em cada canto da
casa, tinha ela.
— Você venceu, amigão — comuniquei meu gato e joguei o
edredom no chão. Assim que fiquei em pé, Oliver veio atrás de mim.
Ele virou, literalmente, minha sombra. — Ei, preciso enxaguar minha
boca, cara. — O empurrei um pouco de lado, tirando-o da torneira. A
disputa pela água corrente é diária.
Trinta dias de ações automáticas: reclamar com meu gato,
que me tira da cama, escovar os dentes com ele disputando a água,
pedindo que ele tenha paciência enquanto coloco sachê em seu
pote, dando-lhe broncas por ter espalhado areia fora da caixa
higiênica...
Sentei na cadeira da cozinha e debrucei sobre a mesa.
— Que lixo que você virou, Gabrielle. Como deixou que sua
vida girasse em torno de um gato? Meu Deus! — Meus resmungos
saíram abafados. Também, não faria diferença, se fosse diferente.
Quem, além do meu gato, ouviria? Acho que, naquele
momento, nem mesmo Oliver estava ouvindo. Não deixaria seu
saboroso sachê para prestar atenção em minhas lamúrias.
— Ding... dong... ding... dong.
— Ah, fala sério. Por que não me deixam morrer aqui,
cacete!?
Oliver parou de comer e ergueu as orelhas – atento. Respirei
fundo e me preparei para ser, mais uma vez, “educada” com quem
quer que fosse.
— Ding... dong... ding... dong.
— Já vou, porra!
Afastei um pouco a cortina e estremeci. De todos, ele ainda
não tinha me incomodado. Me conhece, melhor do que qualquer
pessoa, sabia que eu precisava do meu tempo. Se ele estava ali,
claramente, eu teria que sair do meu torpor.
Abri a porta apreensiva. Caminhei até o portão, com ele me
escrutinando. As mãos no bolso da frente da calça jeans; os olhos
estreitados; a língua percorrendo a gengiva; se balançava nos
calcanhares.
O portão já estava aberto, e eu de lado, para que ele pudesse
entrar e, nenhum dos dois, tinha dito qualquer palavra. A batalha
velada de olhares ganhava espaço.
— Entre — ofereci, por fim.
Bento meneou de leve a cabeça e aceitou meu convite.
Caminhamos em silêncio até a cozinha. Não precisei estender o
convite para que se sentasse, calado. Frequentador assíduo da
minha casa, conhece todos os costumes. Me acomodei à sua frente
e apertei as unhas nas palmas das mãos. Gemi instintivamente e as
abri imediatamente. Sem que eu pudesse impedir, Bento as pegou e
ficou analisando um tempo.
— É assim que vai ser, daqui pra frente? — inquiriu, com a
expressão fechada.
As escoriações estavam fundas. Tinha sangue pisado por toda
as palmas. Segurei o lábio inferior nos dentes e engoli em seco. Não
desviei o olhar do dele.
— Acha que é isso que sua...
— Não quero mais ouvir isso — gritei e fui tentar me levantar.
Bento segurou firme em minhas mãos e me fez ficar.
— Cala a porra da sua boca! — vociferou entre dentes.
Arregalei os olhos e retraí o corpo. — Vou dizer como vai ser —
continuou, ignorando completamente minha postura de ataque.
Poucas coisas intimidam Bento, muito menos eu. Me conhece
desde que nasci. Não fosse por ele, minha mãe nem teria conhecido
meu pai. Bento quem a salvou. A colocou em sua proteção. Por um
tempo, desejei que ele fosse meu pai, mesmo que seja o único que
me coloca em meu lugar.
— Todos querem me dizer...
— Falei pra calar a boca — interrompeu-me. Enchi o peito de
ar e assenti. — Não vai mais ficar sozinha — decretou e, quando fui
revidar, ele ergueu as sobrancelhas. — Vá se arrumar, pegue o
necessário, já contratei uma empresa pra vir embalar tudo. Amanhã
mesmo, os inquilinos vão entrar.
— Como assim? — berrei e fiquei em pé repentinamente. —
Não pode alugar minha casa e dizer o que tenho que fazer.
Bento riu sem vontade e ficou em pé também. Chegou bem
perto de mim e afundou o dedo em meu peito.
— Isso é um comunicado, Gabrielle, não um pedido. Se
tivesse agido como uma pessoa normal, nada disso estaria
acontecendo. — Começou a andar pela cozinha com as mãos no
bolso da frente da calça. Senti meu corpo tremendo inteiro. — Dei
seu tempo e o que você fez? Olhe pra você, garota! Acho que nem
uma pessoa que mora na rua tem sua aparência.
— Você não pode estar falando sério — censurei, na
esperança de ser um teste. Porque, se eu tivesse que ficar com
Bento, estaria arruinada. Ele me controlaria e, só de pensar, me
contorcia. Detesto ser controlada.
Bento virou-se para mim e abriu um sorriso irônico.
— Acha que gosto do que estou fazendo? Ter que cuidar de
uma marmanja?
— Ninguém está te obrigando — redargui erguendo o queixo.
Ele chegou bem pertinho de mim e me encarou. Percorreu
toda sua gengiva com a língua.
— Se você não tem amor próprio, sou obrigado, sim. Prometi
à sua mãe, no dia que ela me procurou grávida, que nunca a
deixaria, nem a criança que estava no ventre dela. Só não sabia que
seria uma criança tão teimosa — sorriu de canto – amenizando um
pouco.
Bento tinha sua vida organizada, quando minha mãe lhe pediu
socorro. Eram amigos de infância. Ele não hesitou em a colocar
dentro de sua casa. Mesmo sendo casado e tendo um filho – na
época. Graças a Deus, sua esposa era uma mulher maravilhosa e
apoiou minha mãe em tudo. Infelizmente, um acidente a levou junto
com o menino. Daquele dia em diante, o mundo do Bento ficou turvo.
Minha mãe já tinha se casado com meu pai e eu tinha quatro anos,
quando aconteceu. Desde então, Bento mora sozinho.
— Não posso morar com você, Bento. Preciso do meu espaço
— argumentei.
Seu sorriso expandiu-se um pouco.
— Gabrielle, não tenho o dia todo, se não pegar suas coisas e
se arrumar, serei obrigado a te levar dessa maneira. — Apontou para
o meu corpo e fez uma careta engraçada.
Oliver enroscou-se nas pernas dele, todo metido – chamando
à atenção. Bento, como em todas as vezes, o pegou e colocou de
barriga para cima em seus braços, fazendo cócegas. O gato sem
vergonha, rapidamente, me trocou por ele. Bufei e caminhei até o
meu quarto. Estava mais do que claro de que eu não tinha opção.
Na porta do quarto, tive um estalo.
— Meu pai sabe das suas artimanhas? — gritei e Bento me
lançou um olhar faiscante. Fiz um gesto com as mãos de deixa pra lá
e revirei os olhos. Obviamente, meu pai estava a par. Os dois
sempre foram amigos. Bento não o deixaria sozinho nessa.
Certamente, assumiu o controle da situação para que o meu pai
pudesse ter liberdade de se cuidar.
Segurança

Enrico

— Pilim... Pilim... Pilim...


Terminei de ajeitar o nó da gravata, de frente ao espelho, e fui
até a pequena cômoda, ao lado da minha cama, pegar o celular que
não parava de anunciar a chegada de mensagens.
Uma irritação, misturada com um sentimento que eu não
soube distinguir, me provocou um sorrisinho de canto, assim que vi
quem era o autor daquelas “milhares de mensagens” – àquela hora
da manhã. Manu não se contentaria em mandar apenas um áudio,
não seria ela. Sem contar que eram praticamente podcasts, cada um
deles.

— E aí, consegue parar com suas manias de maluco e me


responder? — Barulho de gente ao fundo. — Eu sei que está aí,
Enrico. E não adianta fazer careta, não. Enquanto não me responder,
vou ficar enviando mensagens e mais mensagens. Você me
conhece, não desisto, gostosão.

Bufei – revirando os olhos e realmente fazendo caretas. Minha


meia irmã me conhece muito bem. Sabe o quanto sua interrupção na
minha rotina me tira do sério. Apertei o play do próximo áudio.
— Que horas vai chegar, amanhã? Não se esqueça de que
você é o meu padrinho. Já estou até vendo o quanto vai roubar à
atenção no meu casamento.

Ouvi seu bufar e soube que estava sorrindo. Mesmo me


irritando, Manu e eu temos uma ligação forte.

— E aí, Bennett, me responde, cara?!

Me preparei para ligar, afinal, esse negócio de mandar áudio


não faz meu estilo. Gosto das coisas ao vivo, espontâneas. Antes de
completar a ligação, Manu já estava ligando.
— De quantos meses você nasceu? — fui logo repreendendo-
a.
— Bom dia, gostosão — respondeu alegre.
— Sabe que está bagunçando minha manhã, não sabe,
Manu?
— Que bom que atinjo meu objetivo.
— Seja rápida, tenho uma reunião daqui a uma hora.
— Sei que quando diz uma hora é daqui a duas, certinho do
jeito que é, não estaria na sua casa, ainda. Já terminou de arrumar
sua gravata, verificou se os centímetros do nó estão
milimetricamente corretos? — atiçou e caiu na gargalhada.
— Você tem um minuto, caso contrário, vai ficar falando
sozinha — alertei e caminhei até a cozinha.
— Ei, gostosão, sei que não faria isso com sua irmã preferida.
— Só tenho você como irmã — lembrei-a.
— Ah, até pouco tempo sim, agora não, gostosão, tem uma
nova no páreo.
Cocei a nuca e me lembrei da bomba que tinha estourado
recentemente na família Bennett. Nem sabia como o “clã” estava
lidando com aquela novidade. Olhei no Rolex e vi que já tinha
passado trinta segundos.
— Seu tempo está acabando. — Manu praguejou baixinho. —
Olha a boca, garota!
— Se tivesse me respondido, já estaria seguindo suas
maluquices da manhã.
Sentei-me no banco alto em frente ao balcão de mármore e
meneei a cabeça à Cida.
— Que horas tenho que estar na porta da igreja?
— Você não vai à recepção?
— Manu... — suspirei — quantas vezes tenho que explicar
isso?
— Poxa, Enrico, você é o meu único irmão.
— Sabe que vou estragar sua festa, se eu for.
A linha ficou muda um tempo e eu sabia que ela estava
ponderando, sabendo que eu estava certo.
— Odeio que você seja um Bennett — reclamou, por fim.
— Eu também, pode acreditar.
— Tudo bem, só esteja às duas da tarde na porta da igreja,
ok?
— Em ponto.
— Eu sei que sim, meu maluco preferido.
Passei a tela do aparelho pelo tecido da calça e garanti que
não houvesse nenhuma mancha de gordura da minha pele. O alinhei
com o tecido do jogo americano em cima da mesa, que Cida tinha
colocado à minha frente. Cida me observava, enquanto eu deixava o
tecido e os itens em cima dele milimetricamente simétricos. Após
meu ritual, ela se aproximou com o bule de café. Por mais que tenha
a mais cara e sofisticada das cafeteiras em minha cozinha, prefiro o
café que a Cida passa pelo tradicional coador.
— Bom dia, menino — cumprimentou-me sem formalidades.
Cida está comigo desde que decidi morar sozinho, ou seja,
dez anos. Aos vinte e dois, após minha mãe falecer, resolvi que tinha
que seguir meu caminho. Chegara o momento de encarar que era
um Bennett. Enquanto minha mãe era viva, garantiu que meu pai não
se aproximasse. No entanto, ele deixou bem claro que não aceitaria
que um filho dele não assumisse sua parte na empresa.
Formado em tecnologia da informação, assumi o controle de
boa parte da empresa, afinal, todos os departamentos dependem de
um sistema operacional. Meu pai logo percebeu que eu daria conta
do recado. Hoje, tenho uma grande responsabilidade na empresa da
família. Embora tenha uma enorme equipe sob meu comando, sou
extremamente perfeccionista e controlador. Gosto de estar a par de
tudo, nada passa sem o meu crivo.
Verifiquei as horas.
— Manu me atrapalhou — comentei, enquanto Cida preenchia
minha xicara de café até ao meio, como só ela sabe que eu gosto.
— Gosto quando ela te tira da zona de conforto — apoiou à
minha irmã, sem rodeios.
— Meus compromissos não são brincadeiras, Cida —
censurei-a enrugando a testa.
Ela veio até mim e passou o dedo pelo meio da minha testa –
desmanchando o vinco que se formava.
— Menino, quanto tempo que não tira férias?
Bufei e bebi um gole do café. Cida alisou a frente da minha
camisa e bateu com a ponta do dedo no meu nariz.
— Sabe que não posso, Cida.
Depois da morte da minha mãe, me apeguei à Cida. Na época
que veio trabalhar comigo, estava na faixa dos sessenta. Com o
passar dos anos, a deixei como governanta e minha companheira.
Com mais de setenta, não deixaria que se esforçasse tanto. Minha
cobertura, em um bairro nobre de Curitiba, é muito maior do que eu
preciso. Porém, o melhor lugar do mundo, pra mim, é minha casa.
Tenho o melhor de tudo à minha disposição, inclusive uma equipe
liderada pela Cida – garantindo que tudo esteja na mais perfeita
ordem. Assim que coloco os pés para dentro do meu apartamento
meus olhos fazem uma varredura automática. Um porta-retratos, ou
qualquer objeto, que não estiver alinhado com o outro move meus
pés até ele para que eu o alinhe.
— Se um Bennett não pode tirar férias, quem é que pode?
— Ser um Bennett é que me faz não poder tirar férias, talvez
se eu tivesse ficado na cidade da minha mãe, com a minha irmã e
meu padrasto, teria sido melhor.
Cida abriu um sorriso e ajeitou um fio de cabelo meu.
— Nunca conseguiria ficar lá, filho. É muito ambicioso pra
isso.
Dei de ombros e sorri de canto.
— Você está certa — admiti de imediato.
Cida tem razão quanto a não ficar na cidade da minha mãe. É
muito pequena para os meus objetivos.
Assim que assumi meu posto na diretoria da empresa,
busquei especializações. Hoje, tenho brilhado na área. Ninguém se
arrisca a discutir qualquer coisa sob meu comando. Sabem da minha
precisão. Dificilmente algo dá errado e, quando acontece, eu,
pessoalmente, resolvo. Seja em qual for a parte do país.
Terminei meu café e fui me levantando.
— Cida, preciso...
— Já me encarreguei disso, Enrico — interrompeu-me,
franzindo a testa – em sinal de que estava ofendida. — Não se
preocupe, vou deixar uma malinha pronta. Sei que não vai querer
dormir na estrada, então, só por precaução.
Meneei a cabeça e sorri. Caminhei até ela e beijei sua testa.
— Tenha um bom dia.
Ela apertou minha bochecha.
— Tente sorrir mais, você fica lindo quando o faz.
§§§§
Francisco estacionou o carro na vaga privativa, no subsolo do
prédio da empresa. A filial de Curitiba é tão imponente quanto a de
São Paulo. A praça exige que sejamos minuciosos. Meu motorista
abriu a porta para eu descer. Já fora do carro, meneei a cabeça em
agradecimento, ajeitei minha gravata e caminhei até o elevador
privativo que vai diretamente para o último andar.
O prédio tem trinta andares, a fachada é revestida de vidro
fumê e os elevadores são panorâmicos. O Sr. Isaac Bennett tem uma
exigência bem estabelecida quanto à decoração de seus escritórios:
tecnologia de ponta e minimalista. Nada mais do que o melhor.
Enquanto o elevador me transportava ao andar do meu
escritório, fiquei admirando a cidade onde me estabeleci. Embora
tenha sido criado em um lugar com um pouco mais de cinco mil
habitantes, minha ambição sempre buscou estar onde estou.
Ser um Bennett têm suas desvantagens, uma delas é o fato
de eu não poder ficar na recepção do casamento da minha irmã.
Roubaria todo o foco da festa. As pessoas acham que sou uma
celebridade, principalmente pelo fato de eu não expor minha vida. A
curiosidade as deixam mais ouriçadas. No entanto, eu seria muito
hipócrita se dissesse que não fui beneficiado pelo meu sobrenome.
Pena que a bagagem que vem com ele é sufocante.
Assim que coloquei os pés na recepção do andar, a
recepcionista arrumou a postura e sorriu. Meneei a cabeça em
cumprimento e fui direto à minha sala.
— Bom dia, senhor Enrico — cumprimentou Márcia, minha
assistente pessoal.
Márcia, assim como a Cida, está comigo há bastante tempo –
sete anos. Demorou um tempo para pegar meu ritmo e acostumar-se
com minhas manias. Odeio sair da rotina, pessoas ao meu lado
precisam respeitar isso. Tenho tudo programado e não aceito que
mudem o percurso na última hora.
— Bom dia, Márcia — respondi e já fui entrando na minha
sala. Como de praxe, minha assistente veio atrás munida do tablet.
Antes de me sentar, tirei o paletó e o pendurei no mancebo de
metal cromado no canto da sala. Desabotoei os punhos da camisa e
os dobrei até os cotovelos. Márcia aguardava pacientemente, em pé,
em frente à minha mesa – com os objetos totalmente alinhados. Ela
mesma se encarrega de conferir, assim que a equipe de limpeza
deixa a sala. Sentei na minha confortável cadeira e ajeitei a gravata.
Alcancei o estojo dos óculos de sol e o guardei – substituindo-o pelos
de grau. Não tenho opção de não os usar, principalmente no
trabalho. Minha miopia me impediria de reconhecer as pessoas,
mesmo a poucos metros de mim.
Todas as salas do escritório acompanham o estilo minimalista
do prédio. Minha mesa tem os pés do mesmo material que o
mancebo e o tampo de vidro. Por onde olhamos têm vidros e cores
claras. Tenho um espaço grande ao meu dispor. Poderia morar
dentro do meu escritório. Tem copa, sala de estar e banheiro.
Apontei a cadeira à minha frente e aí, sim, Márcia sentou-se.
Minha assistente não é novinha, está chegando aos cinquenta.
Recentemente, sua filha teve uma linda bebê – fazendo-a a avó mais
babona de todas. Confio nela, tanto quanto confio na Cida. Preciso
dessa segurança. Odeio saber que estou perdendo o controle de
qualquer coisa.
— A sala de reuniões já está pronta para a reunião com a
equipe de TI, daqui a meia hora — iniciou e fui incentivando-a que
continuasse.
Repassamos meus compromissos do dia em quinze minutos e
já a dispensei. O escritório trabalhará menos horas nessa sexta-feira,
afinal, a cidade está completamente enfeitada para o Natal. Estamos
no dia vinte de dezembro, nada mais justo dispensar a equipe mais
cedo no último dia de trabalho, antes do recesso. A maioria dos
departamentos só volta no início do ano. Claro que não se aplica a
mim. Dei alguns dias para minha assistente, no entanto, preciso que,
em alguns momentos, ela me atenda.

Entrei na sala de reuniões e já estavam todos a postos,


esperando minhas orientações. Ali, junto à equipe de TI, é onde me
encontro. Por mais que eu tenha responsabilidades, muito maiores
do que aquela, estar no meio de vários nerds me faz sentir-me
“normal”.
— Bom, pessoal, precisamos fazer um rodízio da equipe,
sabem que não podemos sair todos, não é mesmo?
E assim iniciou mais um dia – sem sair da minha rotina.
Fugindo

Yasmin

O número de pessoas circulando pela casa era assustador. Não


fosse o fato de a casa ser uma mansão – literalmente –, ficaria
preocupada em faltar oxigênio, com a quantidade de gás carbônico
que estava sendo liberado ali dentro.
— Não mexa a cabeça, querida — repreendeu minha
madrasta, ao lado do cabelereiro que me penteava. Revirei um
pouco os olhos – já que ela não me via. — Não seja malcriada,
Yasmin, o que o rapaz vai pensar de uma moça tão linda, revirando
os olhos. — Ela tem o poder.
A euforia dela era, de longe, muito maior do que a minha.
Claro, estaria livre de mim em poucas horas. Vinte e cinco anos
esperando por isso, já que assumiu minha criação quando eu tinha
três.
— Gabriel, querido, peça para o fotógrafo subir, quero que
faça um making of da noiva — continuou Adélia, com sua voz
irritantemente melosa.
Chegou o dia do meu casamento e as pessoas ao meu redor
estavam muito mais animadas do que eu. Também, pudera, um
casamento completamente arranjado. Literalmente uma negociação.
Adélia deixou o ambiente, dando ordens para a equipe que
contratara e Gabriel se aproximou.
— E aí, noivinha, feliz? — provocou Gabriel, filho da minha
madrasta. Nem sei se eu poderia chamá-lo de irmão, já que nunca
tivemos um bom relacionamento.
Quando meu pai se casou com a Adélia eu tinha três anos e
Gabriel cinco. Fomos criados juntos, no entanto, somos como água e
óleo. Sempre que pode, ele me rebaixa.
— Acho que você muito mais, não é? — respondi com ironia.
Gabriel, em seu um metro e oitenta, com olhos azuis e
cabelos loiros, cruzou os braços e abriu o sorriso sarcástico que me
atormenta.
— Sim, não vejo a hora de ficar livre de você — desdenhou.
— Claro que sim, principalmente porque vai poder usufruir do
que meu pai deixou sem que eu te incomode de perto — provoquei e
ele fechou a cara.
— Nosso pai — reivindicou.
— Sério?
— Não sei se percebeu, Yasmin, mas só você que nunca se
encaixou nessa família.
— Hum... deixa-me ver... — Estreitei os olhos e fiz uma cara
de quem estava pensando. — Será que é porque sou a única negra
por aqui?
— Você não é negra é morena — corrigiu-me e eu caí na
risada.
— Aí está a questão — continuei — o fato de só minha mãe
ser negra e eu ter nascido com a pele mais clara não faz de mim
uma branquela azeda como você. Continuo sendo negra, seu
imbecil. Não é você mesmo que chama meu cabelo de ruim?
Ele fez uma careta e saiu, fazendo um gesto de desistência.
Os profissionais que me arrumavam ficaram mudos e eu sabia que
estavam receosos, afinal, o que dizer daquele momento tão escroto?
— Desculpem por isso — justifiquei-me e só menearam a
cabeça.

Uma limusine preta, com vidros escuros, me esperava na


porta. O chofer abriu a porta e fez uma mesura. Sorri e entrei. Meu
pai deveria estar ali dentro, pronto para me carregar para o altar, mas
não... Respirei fundo e olhei para o banco vazio à minha frente. Me
recusei a entrar na igreja com Gabriel. Seria o maior castigo de
todos. Melhor que fosse sozinha.
No trajeto, não muito longo, até a igreja. Fiz uma breve
retrospectiva da minha vida. Enquanto um filme passava pela minha
cabeça, senti meu peito doer. Não entendia como tinha deixado que
minha vida chegasse ali. Totalmente contra minha vontade.
Quando meu pai era vivo, mesmo omisso, em boa parte do
tempo, controlava minha madrasta. Embora até quem não a
conhece, diria que ela me prejudica de algum jeito. Em geral, mostra-
se solicita e amável. É nos pequenos detalhes que consegue ser a
pessoa mais hipócrita e racista que conheço. Acho que só seu filho é
páreo para ela.

Não faz muito tempo que estamos na cidade, Adélia decidiu


se mudar para cá, depois do acidente do meu pai. Segundo ela,
precisávamos de novos ares. Assim que nos estabelecemos na
cidade, ela fez seu papel de boa moça – afiliou-se às várias
instituições de caridade e está toda semana nas mídias sociais.
Adélia, sempre que pode, me apresenta de uma maneira que
eu me sinta como uma obra de caridade dela. Sendo que, casou-se
com meu pai por puro interesse. Meu pai deixou uma bela herança.
Garantindo nosso futuro. Infelizmente, atrelado a ela. Ele sabia que,
assim que faltasse, não ficaríamos juntas. Portanto, quem administra
o dinheiro é ela. A não ser que eu me case. Umas coisas malucas
que as pessoas colocam em seus testamentos. E aqui estou, a
caminho do meu casamento, ou melhor, da negociação do meu
futuro.
Se fosse só me casar, seria mais fácil, mas não. Meu pai me
conhecia melhor do que ninguém. Tenho que ficar, no mínimo, um
ano com o felizardo, caso contrário, minha herança volta a ser
administrada pela minha madrasta.
Alisei a tatuagem do meu punho e sorri, sentindo um
quentinho no coração. Meu melhor amigo, o único que me entende.
Em uma de nossas loucuras, de madrugada, decidimos deixar
registrado nosso amor. Tatuamos uma peça de quebra-cabeça em
cada punho. Quando emparelhamos nossos punhos, elas se
encaixam.
— Por que você não está aqui? — murmurei e enxuguei uma
lágrima atrevida no canto do meu olho.
Em uma sociedade racista e homofóbica, nos conhecemos no
grupo da terapia, nos identificamos. Enzo se recusou a vir ao meu
casamento. Segundo ele, não apoiaria uma patifaria como essa.
Chegou a me ameaçar em cortar relações, caso desse continuidade,
porém, não tive alternativa. Não tem como continuar vivendo no
mesmo ambiente daqueles dois. Tenho que seguir com a minha vida.
O carro parou e eu puxei uma quantidade considerável de ar
para dentro dos meus pulmões. Fiquei um tempo segurando-o, com
os olhos fechados. Pela janela, avistei as pessoas se preparando na
porta da igreja. A igreja mais disputada da cidade, não que tenha
tantas. Por esse motivo, os casamentos acontecem seguidos,
principalmente, nessa época do ano, onde logo tudo entrará em
recesso. Tinham muitas pessoas na porta, muitas de casamentos
que estavam terminando ou aconteceriam após o meu. Dali,
seguiríamos para o espaço mais sofisticado da cidade para eventos.
Adélia, junto com a família do meu futuro marido, gastaram fortunas
com aquele arranjo.
Todos se empenharam muito para aquela ocasião – menos
eu. Charles, meu noivo, esperou por esse momento por meses. Sim.
Estamos juntos desde que cheguei à cidade. Quando comecei a ter
um relacionamento com ele, não sabia que iria tão longe. Mal eu
sabia que já tinha o dedo da minha madrasta. Ele faz parte da alta
sociedade. Tão rico quanto nós. Filho de político e todo galante. Não
se incomoda com o fato de não termos nenhum sentimento amoroso.
Para ele, o que importa são os negócios. Chegou a propor um
casamento aberto. Fiquei sem palavras e preferi não responder.
A porta do carro foi aberta e minha ficha caiu – não tinha mais
volta. O chofer, educado, esticou a mão enluvada para eu pegar.
Aceitei e agradeci com um sorriso sem graça. Minha expressão,
seguramente, não era de uma noiva feliz. Esconder sentimentos,
nunca foi meu forte.
Assim que coloquei os pés para fora do carro, meus olhos
cruzaram-se com os de Charles – parado à porta da igreja. Foi um
breve segundo – antes de ele entrar. Não teve sorriso, nem
cumplicidade. Senti meu peito apertar e o massageei imediatamente.
Rapidamente, tinham várias pessoas ao meu redor me preparando.
Engoli em seco e fiquei olhando a limusine se afastar – desejando
voltar para dentro dela e pedir que o chofer me levasse para um
lugar onde ninguém pudesse me achar.
Instruções e mais instruções...
Meu cérebro não assimilava absolutamente nada.
Me carregaram em direção à entrada da igreja e eu
continuava absorta. Buscando uma maneira de sair daquela
enrascada.
Foi muito rápido...
Um rapaz parou a moto, tirou o capacete e desceu. Ele estava
muito próximo – minha tábua de salvação.
— Ei, volte aqui, tá maluca, essa moto é minha? — gritou e eu
simplesmente ignorei – acelerando o quanto podia.
O Casulo

Gabrielle

Oliver foi o primeiro a se familiarizar com a nova casa, não seria


diferente, afinal Bento o mima.

Demorei, quase uma semana, para entrar no ritmo acelerado


do Bento. Não que eu não seja parecida com ele, nesse ponto, mas,
logo na primeira semana, percebi o quanto ele é inquieto. Dorme
muito tarde e acorda muito cedo.
Aos poucos, fui entendendo sua rotina e me adaptando,
comecei a levantar no mesmo horário que ele e sair para correr.
Tudo bem que corremos lado a lado, mas não trocamos uma palavra.
Cada um com seus fones de ouvido. Apenas no café da manhã,
começamos nossa interação.
— Seu irmão retirou a acusação — comunicou, enquanto
levava uma garfada de omelete à boca.
A palavra irmão me travou na hora.
— Sou filha única — rebati e comecei a colocar café na minha
xícara.
O sorriso irônico dele me irritou demasiadamente. Puxei o ar
com raiva e o encarei. Ele não recuou, claro que não.
— Não adianta ficar brava comigo, Gabrielle, você mesma o
desafiou, esqueceu-se?
Dei de ombro e desviei o olhar. Levei a xícara de café até os
lábios e tomei um gole – sentindo o olhar de Bento me queimar.
— O que pretende fazer? — continuou, já que eu resolvi me
calar.
— Estou ponderando.
Mais uma vez, seus lábios mostraram um riso forçado. Bento
terminou de comer e empurrou os itens para o meio da mesa. Apoiou
o corpo ao encosto da cadeira e cruzou os braços. Eu não tinha
terminado e franzi o cenho – olhando para ele.
— Vai ficar aí, não vai trabalhar? — inquiri provocativa.
— Esperando você terminar de ponderar. — Quase
engasguei.
— O quê? Agora? — Ele fez que sim com a cabeça. Respirei
fundo e, mesmo sem ter terminado, fiz como ele – empurrando para
o meio da mesa os itens que tinha usado. — O que quer que eu
faça? — Minha voz saiu um pouco estridente e Bento só ergueu uma
sobrancelha.
— Não quer saber por que ele retirou a acusação?
— Na certa, porque o prejudicaria, de alguma maneira. Aquele
egomaníaco não faz nada que não seja pensando nele mesmo.
Dessa vez, o sorriso de Bento expandiu-se.
— Tem visto as notícias?
— Sabe que não. Nem sei onde está meu celular.
— O que tem feito?
— Ah, sei lá... — Repeli olhar para ele. — Limpo a casa,
arrumo os armários. Reparou como sua casa está outra, depois que
eu cheguei? Cuido do Oliver. Achei uns livros legais na sua estante,
tenho lido, também — disparei a falar, enquanto Bento me
observava. Pelo seu olhar, eu sabia que tinha a resposta pronta em
sua mente.
— Percebe que chegou a hora de encarar a situação,
Gabrielle?
Apoiei os cotovelos na mesa e afundei o rosto entre as mãos.
Eu sabia que ele tinha razão. Não estava sendo eu mesma, desde
que minha mãe me deixara. Esfreguei as mãos no rosto e voltei a
encará-lo.
— Vai devolver meu distintivo e minha Glock? — Bento
concordou com um gesto, no entanto, tinha mais coisa. Desde o
início da conversa, ele queria que eu o questionasse, relutei, mas
teria que fazer. — Tá, ok, você venceu. Por que o arrogante retirou a
acusação?
— Enquanto você se enfiou no seu casulo, seus amigos estão
tendo que enfrentar, todos os dias, um bando de abutres para entrar
no distrito — contou, com uma expressão de nojo.
Franzi o cenho e recuei um pouco o tronco, na dúvida se
minha interpretação daquela alusão à abutres estava certa e por
quê?
— Repórteres? — Ele confirmou calado. — Por que, cargas
d’água, teria repórteres na porta do distrito?
— Nem imagina?
Arregalei os olhos e levei a mão à frente da boca, entendendo
o que tinha acontecido.
— Como assim? Quem vazou a informação?
— A pergunta que não quer calar. — Bento desdenhou em
tom irônico.
Joguei o corpo no encosto da cadeira e fechei os olhos.
— O que estão dizendo?
— Veja você mesma — respondeu e ficou em pé. — Você tem
somente hoje pra terminar de ponderar o que vai fazer com a sua
vida. Pra começar, ache a porra do seu celular e se atualize —
terminou de falar e virou as costas, deixando-me de queixo caído.

Bento mal fechou a porta, eu já estava procurando meu


celular. Pela a irritação dele, seguramente, as coisas não estavam
nada bem para o meu lado. Coloquei o celular para carregar e fiquei
apertando o botão para ele ligar. Assim que o aparelho deu sinal de
vida, uma quantidade interminável de mensagens começou a chegar.
Ignorei-as e fui direto para o navegador da internet. Digitei Gabrielle
no provedor de busca e nem precisei continuar a digitação, meu
nome apareceu como sugestão e eu gelei.
“A detetive Gabrielle Mantovani salvou a vida do empresário
Isaac Bennett. Segundo fontes fidedignas, ela é filha do dono da
maior empresa alimentícia do país. No momento que o mesmo
precisou de sangue, a detetive se apresentou. Seria uma atitude
nobre, não fosse o fato de a mesma tê-lo ameaçado de morte, dias
antes. Gabrielle acusa o próprio pai de ser aliciador de mulheres.
Sua mãe, uma das mulheres aliciadas pelo Isaac Bennett – de
acordo com a detetive –, faleceu em decorrência de complicações de
uma doença a qual vinha lutando há anos. Gabrielle se desesperou e
passou a caçar o pai. Fica a pergunta: “Será mesmo que ela tinha a
intenção de salvá-lo? Ou não teve opção, já que é a principal
suspeita em cometer o ataque sofrido pelo empresário Isaac
Bennett?” Tentamos contato com a detetive e ninguém sabe do
paradeiro dela. A casa em que morava foi alugada e não aparece
para trabalhar, desde a morte de sua mãe.”
Pedro Augusto Ribeiro – Folha de São Paulo

Terminei de ler e soltei o ar dos pulmões, que nem sabia que


segurava. As palmas das minhas mãos, junto com a minha garganta,
ardiam. Corri mais algumas páginas e cada vez mais sentia-me
acuada. Os meios de comunicação mais sérios se ativeram aos
fatos, já os sensacionalistas – tabloides de merda –, criaram várias
teorias da conspiração.
Me joguei na cama e afundei as unhas nas palmas das mãos.
— Me ajuda, mãezinha, eu sei que está me vendo daí de
cima.
A Carona

Enrico

Miguel me olhou e fez um gesto engraçado – me sacaneando


com o fato de ter vários paparazzi na porta da igreja. Torci o nariz e
sacudi a cabeça.
— Acho que vai ter que criar uma saída estratégica —
murmurou minha parceira.
Soraia é amiga da minha irmã desde sempre. É como se
fosse uma irmã para mim, embora ela não encare exatamente dessa
forma. Por vezes, a dispensei. Não que ela seja feia ou coisa
parecida, muito pelo contrário, os anos estão lhe fazendo bem. A
questão é que não tenho tempo para isso.
— Me ajuda? — A encarei e vi o brilho em seus olhos.
— Com todo prazer, gostosão. — Usou o apelido carinhoso
que minha irmã criou para mim. Ergui um pouco o canto dos lábios e
assenti.
Voltamos a prestar atenção à cerimônia, que parecia não ter
fim. Enquanto o padre falava, fiquei pensando o quanto aquilo era
desnecessário. A média de um casamento cai, cada vez mais – são
promessas vazias. Seria mais fácil se todos pensassem como eu:
fiquem com alguém por conveniência – sejamos práticos. Depois do
que pareceu uma eternidade, finalmente, os noivos se beijaram e
começaram os cumprimentos. Manu veio diretamente a mim e pulou
no meu pescoço.
— Eu te amo, gostosão. Não sei o que seria de mim sem você
— lamuriou-se entre lágrimas.
A apertei em meu peito e beijei sua têmpora.
— Eu também te amo, mimadinha. — Manu me beliscou,
enfiando a mão por baixo do paletó. Dei um pequeno salto e a olhei
feio.
— Ei, cara, pode parar de monopolizar minha esposa? —
brincou meu cunhado – Carlos.
Soraia e Miguel se juntaram a nós. Nós cinco passamos a
infância juntos. Somente eu me mudei para Curitiba, eles
continuaram na cidade, que fica a cento e trinta quilômetros da
capital do Paraná. Depois que fui embora, poucas vezes voltei. Além
de não ter tempo, detesto o fato de todos me olharem como se fosse
um alienígena.
Minha infância foi simples, meu padrasto, embora nos
manteve estabilizados, nunca teve muito dinheiro. Minha mãe nunca
aceitou que meu pai ajudasse. No entanto, não me privou do meu
dinheiro. Fez ele investir meu dinheiro para que depois eu
assumisse. Foi o que eu fiz, assim que ela se foi. Hoje, faço tudo o
que posso pela minha irmã, mesmo que, quase tudo, ela não aceite.
Carlos é muito orgulhoso para aceitar qualquer coisa que não seja de
seu próprio esforço. Admiro, porém, de algumas coisas não abro
mão. O casamento dela foi uma delas.
— Não vai mesmo à recepção? — inquiriu Miguel, assim que
todos se afastaram.
Apontei para a porta da igreja com o queixo.
— Não quero estragar o dia da Manu. Ela tem que ser a
atração principal.
— Posso pedir para o meu pai prender todos eles, pelo menos
por um tempo — sugeriu Miguel.
Lancei um olhar enviesado, ele já sabia minha resposta.
Jamais eu deixaria que o pai dele se complicasse por mim causa.
Miguel deu um soco no meu ombro, replicando:
— Cara, você está cada vez mais chato. Precisa sorrir mais,
sair para beber, curtir a vida, meu! Que problemas teria? Ele é o
delegado.
Respirei fundo e fiquei olhando sério ao meu amigo. Antes de
eu responder, se é que eu responderia, Soraia voltou.
— Vamos, gostosão, falei com o padre, tem uma saída pelos
fundos. Dá a chave do seu carro, levo ele até lá, enquanto você sai.
Me remexi no lugar, incomodado em deixar que ela dirigisse
meu carro. Durante a semana, só ando no carro da empresa – com
motorista. Não gosto que mexam em nada no meu carro.
— Tudo bem, eu consigo enfrentá-los, estou acostumado.
Soraia e Miguel se entreolharam e menearam a cabeça –
reconhecendo minha recusa em entregar a chave do meu carro.
— Prometo não mexer em nadinha — garantiu e ergueu as
mãos.
Cerrei os punhos e apertei o maxilar – é mais forte do que eu.
Não conseguiria, nem que fizesse muito esforço. Meus amigos me
conhecem bem. Miguel, vendo minha agonia, tomou à frente:
— A gente o escolta, Soraia. Acho que é melhor.
Sem opção, ela deu de ombros e concordou.

A quantidade de pessoas enfiando celulares e câmeras na


minha frente, deixou-me um pouco atordoado.

— Enrico, como vai ser agora, com seu pai na cadeira de


rodas?
— Seu irmão mais velho vai ficar fixo no comando da
empresa, como CEO?
— Já sabem quem atirou nele?
— Como você está lidando com isso?
— Já foi ver seu pai?
— A detetive é mesmo uma Bennett?
— Você concorda com as atitudes do seu pai?
— Ele é mesmo um aliciador de mulheres?

O segurança que tinha me acompanhado até ali, em seu


próprio carro, me esperava na porta do meu. Soraia pegou a chave
da minha mão e correu na frente. Logo a porta do meu
Maserati[1]estava aberta. Miguel me empurrou para dentro.
— Abutres do caralho — praguejou e fechou a porta –
batendo no teto para que eu arrancasse.
Rapidamente, me desvencilhei da multidão. Olhei pelo
retrovisor e respirei aliviado. Sentia o suor escorrer pelas costas. Não
sei explicar o que acontece comigo, no meio de muita gente. Detesto
exposição. Se tem uma coisa que preservo é minha privacidade. Ser
um Bennett já não é fácil, com os últimos acontecimentos, as coisas
só pioraram. Não posso ir na esquina sem um segurança por perto.
Depois de um bom trecho, seguro de que não teria mais
ninguém que pudesse me incomodar, decidi parar em um posto de
combustível. Embora faltasse apenas uns cem quilômetros,
precisava comer alguma coisa e abastecer o carro. Ver o marcador
de combustível chegando perto da reserva, tirou meu foco da
estrada.
Assim que peguei o carro na minha garagem, enviei uma
mensagem ao rapaz que cuida dele, pois era para estar com o
tanque cheio. Foi o que combinamos, afinal só saio com ele aos
finais de semana. No entanto, ele teve um problema familiar e não
conseguiu preparar o carro.
Cliquei no número do telefone do segurança que vinha logo
atrás, para avisá-lo da minha decisão.
— Senhor, está com algum problema? — perguntou de
imediato.
— Está tudo bem, só preciso comer alguma coisa e abastecer.
— Certo, ficarei atento.
Agradeci e já fui entrando no posto. Como de costume, logo
um frentista veio até mim e só faltou estender o tapete vermelho para
eu descer do carro. Expliquei o que eu precisava e deixei que ele
fizesse o trabalho dele, enquanto caminhei até a loja de
conveniência.
O sorriso da moça, detrás do balcão, demandou todo seu
rosto. Ergui apenas uma sobrancelha e me aproximei. Com toda a
certeza ela não me conhecia, afinal, não sou como o Lucca que está
com o rosto estampado por toda a parte.
— Olá, como posso te ajudar?
— Boa tarde — respondi sisudo. Ela desfez um pouco o
sorriso e alisou o avental – ficando ereta. — Por favor, um café puro
e...
Me afastei para olhar as opções que ela tinha. Entortei os
lábios em pensar como qualquer coisa que comesse daquilo me faria
mal.
— Posso preparar algo pra você, se preferir — ofereceu a
moça, mais contida. A olhei novamente e fiquei pensativo. — Aqui,
pode escolher. — Entregou-me o cardápio.
Uma corrida de olhos foi o suficiente para eu saber que eu
continuaria com fome. Respirei fundo.
— Você faz omelete? — perguntei e ela abriu novo sorriso.
— Pra você, qualquer coisa. — Estreitei os olhos e enfiei as
mãos nos bolsos da calça social. A garota limpou a garganta e se
afastou, levando o cardápio com ela.
Me acomodei em uma mesa e aguardei que ela me trouxesse
o pedido. Enquanto isso, abri as redes sociais da Manu e fiquei
admirando seu sorriso nas fotos tiradas em seu recente matrimônio.
Ainda não consigo entender como as pessoas expõem tanto suas
vidas nas redes sociais. Não fazia nem uma hora que eu tinha saído
de lá e já tinham incontáveis fotos em suas redes sociais. Eu
malmente acesso às minhas e evito postar fotos, mesmo assim, sou
obrigado a andar com seguranças.
— Espero que esteja do seu agrado — disse a moça,
colocando o prato à minha frente – junto com o café.
Meneei a cabeça em agradecimento.

A omelete não estava ruim, mas longe da perfeição das que


eu estou acostumado a comer – feitas pela Cida. Paguei o que tinha
comido, o combustível, e caminhei até meu carro. Fiz um gesto com
a cabeça ao segurança, avisando-o de que continuaríamos. Agradeci
ao frentista e assumi a direção do carro. O liguei e, antes que as
portas fossem travadas, algo inusitado aconteceu...
— Vamos, eles vão me achar... rápido!
Afastei o tronco e franzi o cenho. Olhei no retrovisor e vi o
segurança vindo como um leão em direção à porta do passageiro,
que já tinha se fechado.
— Enlouqueceu? Quem é você? Como entra no meu carro
dessa maneira? — disparei a falar, me afastando, cada vez mais.
Estava a um passo de sair do carro, não fosse o desespero em
pensar que aquela maluca poderia assumir a direção e ir embora
com ele.
— Depois eu explico, vamos... por favor... preciso sair daqui...
Ela ofegava e olhava desesperadamente para trás. Cruzei os
braços e encostei na porta – olhando-a sério, soltei:
— Você, certamente, escapou de algum hospício. Quem, em
sã consciência, anda vestida de noiva? Como chegou até aqui? —
Olhei para fora, me certificando se estávamos próximos de alguma
cidade, mas, não.
— Meu Deus! Cara, você é complicado, eu não sou louca, só
preciso sair daqui logo, porra! — gritou e trancou a porta
rapidamente, assim que o segurança apontou no vidro da sua janela.
— Você é algum político, ou coisa parecida, porque tem esse
brutamonte te escoltando?
Sorri completamente sem vontade.
— Era só o que me faltava, uma louca de boca suja —
desdenhei.
— Vai me ajudar ou continuar me dando sermão? Cheguei
aqui de moto, aquela porcaria acabou o combustível e, como pode
ver, não tenho nada comigo.
— Como vou te ajudar se eu nem sei quem você é?
— Por isso mesmo, ajudar quem conhece é fácil, vamos... —
Pegou no meu braço e eu empurrei sua mão imediatamente. Ela
enrugou a testa. — Faça sua boa ação de hoje — concluiu, recuando
um pouco.
Mal terminou de falar, um carro importado foi entrando no
posto. Ela virou o rosto na direção do carro e sua expressão ficou
transtornada. Não achei que aquela maluca conseguiria me
convencer a entrar na dela, mas ver o seu desespero e as lágrimas
que começarem a escorrer pelo seu rosto, me fez mudar de ideia.
Abri o meu vidro e fiz um sinal ao segurança para que fosse até ali.
— Vamos — ordenei.
— Mas senhor...
— Está tudo bem — interrompi-o. — Fique de olho.
— Preciso revistá-la, senhor, não pode... — Ergui uma
sobrancelha. — Certo, senhor, estarei logo atrás.
Acelerei e saí. Vi quando a “doida” soltou o corpo no banco e
bufou aliviada.

Por um bom tempo, viajamos calados. A moça ergueu a saia


longa de seu vestido branco e apoiou os pés no painel do carro.
Apertei o volante e cerrei os dentes. Respirei fundo, antes de olhar
para ela.
— Pode, por favor, tirar os pés daí? — rosnei. Ela fez uma
careta e não tirou.
— Credo, não tem prego nos meus pés. Eu tirei os sapatos,
não viu? — Engoli em seco e me controlei.
— Olha só, estou indo além dos meus limites te ajudando,
então, por favor, colabore.
Seus olhos reviraram-se e, foi nesse momento, que meu
coração deu uma pequena acelerada. A estrada estava tranquila e
estávamos em uma longa reta. Fiquei um tempo olhando para a
garota. Pele sedosa; lábios carnudos; cílios longos; olhos grandes e
amendoados. A cor da íris foi o que mais me chamou a atenção –
âmbar – meio mística. Sem contar a cor da sua pele – me remeteu a
um cappuccino, daqueles que fazem minha boca ficar cheia d’água.
— O que foi? Estou ficando com medo, está me olhando como
se eu fosse um prato de comida. — Chacoalhei a cabeça e limpei um
pouco a garganta – sem graça.
— Desculpe-me — murmurei.
— Tudo bem, pra onde está indo? — Olhei-a novamente e
sorri de canto.
— Agora quer saber? — ironizei. Ela deu de ombros.
— Que opção eu tinha? — Virou o rosto para a janela e
abraçou o corpo.
— Curitiba — respondi, voltando minha atenção à estrada.
— Sorte a minha, é pra lá mesmo que preciso ir.
Voltamos a ficar em silêncio. Pensei em fazer algumas
perguntas, mas logo desisti. Não queria saber nada dela e, muito
menos, que soubesse algo sobre mim. Não demoraria muito para
chegarmos, a deixaria em algum ponto estratégico e teria feito minha
boa ação do dia.
— Pode me emprestar seu celular?
Fechei brevemente meus olhos e busquei controle. Todos ao
meu redor sabem o quanto detesto que peguem minhas coisas. A
palavra emprestar está fora do meu vocabulário. É mais fácil eu dar
do que emprestar. Seguramente, a pessoa vai mexer onde não deve.
— Por que precisa do meu celular?
Ela cruzou os braços e me olhou com os olhos estreitados.
— Qual o seu problema?
— Como assim? A única que está com problemas aqui é
você.
— Nossa, eu tinha que pegar carona com um cara tão
complicado?
Sorri de canto e balancei a cabeça. Peguei o celular no bolso
e o entreguei. Quando ela foi pegar, puxei de volta.
— Não mexa em nada, apenas faça sua ligação.
Mais uma vez, seus olhos reviraram-se – provocando uma
coisa esquisita dentro de mim.
Nova Etapa

Yasmin

Minha madrasta sempre me criticou pelas minhas atitudes


impetuosas. Cresci ouvindo que eu ainda me daria muito mal, por
não pensar antes de agir. Ao longo dos anos, me perguntei o quanto
realmente ser impetuosa é ruim. Se com essas atitudes fui muito
discriminada, como seria se eu fosse mais “racional” – segundo
Adélia?
O mesmo discurso era ditado aos meus ouvidos diariamente:

“Querida, precisa ser diferente de sua mãe, olha o que


aconteceu com a vida dela, não quer acabar como ela, não é
mesmo?”

Uma fala com um preconceito implícito que me incomodou por


todos esses anos.
Agora, estou aqui, de carona com um cara... sei lá...
complicado, metódico..., honestamente, não sei dizer. Ele é sério.
Tudo dentro do seu carro é extremamente organizado. Fiquei um
pouco assustada com a mudança em sua expressão, quando
coloquei os pés no painel vermelho. Até entendo que seja um carro
caro, afinal, gosto muito de carro e conheço muito bem. Mas, meus
pés não têm o poder de furar o painel.
Fico me perguntando se foi uma boa ideia entrar no carro
dele. Porém, mais uns minutos, e me levariam de volta. Foi o tempo
de entrar no carro e o motorista da minha madrasta entrar com o
carro no posto.
— Não vai fazer a ligação? — Dei um pequeno sobressalto –
sua voz, com uma tonalidade bem abaixo do que eu estava
acostumada a ouvir, tirou-me dos meus devaneios.
A verdade é que, naquele momento, analisava se tinha
tomado a decisão certa de fugir. No ímpeto do meu desespero, não
pensei nos detalhes. Minha vida mudaria radicalmente. Nem sabia
por onde começar. Nunca precisei trabalhar, tudo que fiz foi
voluntariamente, ajudando instituições. Acostumada ao luxo, como
faria? Teria que ser forte. Me reinventar.
— Você pode pegar o aparelho pela parte detrás, está
manchando toda a tela, e... — Respirou fundo e eu o encarei, para
ter certeza de que ele estava mesmo falando sério.
— Você precisa se tratar — afirmei – subitamente. Estiquei o
braço, devolvendo-lhe o aparelho. Visivelmente, estava incomodado.
Ele não tirou as mãos do volante, onde as juntas estavam
esbranquiçadas, de tanto que ele apertava.
— Você não me conhece, não tem o direito de dizer que
preciso me tratar — repreendeu-me, com uma expressão
completamente fechada. Em seguida, voltou sua atenção à estrada –
deixando-me com o braço esticado.
Coloquei o aparelho celular no meu colo, virei o corpo em
direção a ele – dobrando uma perna embaixo do corpo –, e cruzei os
braços. Estreitei os olhos e fiquei admirando seu perfil.
O cara podia ser estranho pra caramba, só que eu não
poderia negar que era muito bonito. Acho até que o seu lado
excêntrico o deixa mais bonito. Ele não é aquele tipo de cara que
quer se “comer” quando se olha no espelho.
Quando estava de frente para mim, já tinha observado os
detalhes. Seus cabelos castanhos claros, contrastam com seu estilo
bom moço sério – é todo espetado para cima. Os olhos são
exatamente da cor do cabelo, com o contorno da íris verde. A boca
tem algo atrativo, lábios inferiores um pouco mais carnudos que os
superiores – que têm um contorno desenhado. Para completar,
deixando-o extremamente sex, óculos quadrados de aro preto. O
estranho é que observei os de Sol, ignorados no console do carro.
Isso demonstrou o quanto ele não está preocupado com sua
aparência.
— Perdeu alguma coisa aqui? — indagou, erguendo um
pouco o canto dos lábios – senti um calor permear minha pele.
Aspirei uma boa quantidade de ar e chacoalhei a cabeça –
recuperando a razão.
Tudo o que eu menos precisava, naquele momento, é sentir-
me atraída por outro “branquelo”, obviamente, montado na grana.
Provavelmente, pior do que o Charles, já que andava com
segurança.
Virei-me rapidamente para frente, ajeitando a saia do vestido
e colocando o celular no console do carro. Limpei a garganta.
— Se puder me deixar em um lugar onde tenha um telefone
público, agradeço — sugeri sem olhar para ele. Minha cabeça já
estava uma bagunça total, não deixaria que mais uma distração me
perturbasse.
— Como quiser — murmurou.
Senti seu olhar queimar minha pele, mas me mantive firme –
olhando para frente.
Nunca agradeci tanto, por morar perto de Curitiba, caso
contrário, teria que ficar naquela tensão “gigante” que se formou
dentro do carro, por mais tempo.

O cara, que eu não fiz questão de saber o nome, até porque,


ele também, não perguntou o meu, entrou no primeiro posto da
cidade. Estacionou o carro e respirou fundo – olhando para mim.
— Posso te levar até onde vai ficar — ofereceu e eu neguei
veemente com a cabeça.
Não queria resquícios de nada daquele fatídico dia. Nem
sabia quem ele era, pelo seu terno caro e a flor na lapela, certeza
que também vinha de um casamento. Quem me garantia que não
era um dos convidados do Charles?
— Obrigada, vou ficar bem — afirmei e fui abrindo a porta.
Fora do carro, não esperei que ele dissesse alguma coisa,
fechei a porta e virei as costas.
Caminhei rapidamente para a loja de conveniência, pensando
na desculpa que eu arrumaria para que me deixassem usar o
telefone. Não me virei para olhar o cara ir embora, soube que tinha
ido pelo barulho do motor de seu carro e do segurança que o seguiu.
Consegui chamar à atenção de todos que estavam no
estabelecimento, assim que entrei. Claro, quando é que uma noiva
decide andar por aí, como uma doida?
— Olá — cumprimentei a moça atrás do balcão – ignorando
os olhares e os cochichos. A moça acenou, com uma expressão
engraçada. Certamente, achando que eu tinha fugido de algum
hospício. — Preciso de ajuda — falei baixinho fazendo um gesto
para que ela se aproximasse. Mesmo ressabiada, chegou perto. —
Posso usar o telefone? Prometo que, assim que meu amigo chegar
aqui, ele te paga.
A moça afastou o tronco e segurou os lábios nos dentes –
negando com a cabeça. Fechei um pouco os olhos e me sentei no
banco alto. Apoiei os cotovelos no balcão e afundei o rosto entre as
mãos.
Minha respiração saía entrecortada. Eu precisava ser
persuasiva, coisa que nunca precisei, nem sabia se conseguiria.
Olhei o solitário no meu dedo, que meu pai me deu nos meus
quinze anos e, com uma dor enorme no peito, o tirei. Ergui o rosto e
a moça continuava com uma expressão desconfiada.
— Fique com ele, até o meu amigo chegar aqui. — Estiquei o
braço e ofereci que pegasse o anel.
Minha voz saiu embargada. Mesmo que eu soubesse que
voltaria para o meu dedo, em pouco tempo, só de sugerir aquela
troca, considerei uma traição ao meu pai.
Vendo meu completo desespero, a moça pegou o anel e fez
um gesto para que eu a acompanhasse. Saí do banco e, em poucos
passos, estava em frente ao caixa, no qual ela me entregou um
celular. Sorri aliviada e meneei a cabeça em agradecimento.
Meus dedos tremiam ao digitarem os números que eu sabia
mais do que decor. Chamou uma, duas, três, na quarta vez, meus
nervos começaram a endurecer.
— Atende, Enzo — ciciei aflita.
— Alô.
— Graças a Deus — desabafei e suspirei.
— Yasmin? — Enzo reconheceu minha voz na hora. Claro que
reconheceria, não passou um dia sequer sem que não nos
falássemos por telefone ou vídeo-chamada.
— Preciso de ajuda — falei de uma vez, mesmo porque, com
a gente, não tem cerimônias.
— Que número é esse, criatura? Onde você está? Não é a
festa do seu casamento?
— Enzo — suspirei —, explico depois, por favor...
— Está me assustando.
— Estou bem, só preciso que venha me pegar.
— Te pegar? Do que você está falando, Yasmin? — Bufei e
revirei os olhos. — Ok, não precisa revirar os olhos pra mim, sua
malcriada. — Meus lábios sorriram involuntariamente, em reconhecer
nossa conexão. — Me passa o endereço.
— Vou pedir para uma pessoa te passar, não tenho a mínima
ideia de onde estou e... — suspirei — sem perguntas, por favor. Não,
agora.
— Já entendi, Yasmin, passa logo o aparelho pra pessoa.
Fui entregar o aparelho para a moça e decidi apressá-lo.
— Enzo... — Respirei fundo. — Não demore.
— Se continuar falando comigo, vou demorar muito mais. —
Sorri novamente e pedi à moça que lhe passasse o endereço.

Nunca achei que eu ficaria tão feliz em ver meu amigo,


embora sinta muito a falta dele. Assim que Enzo entrou pelas portas
automática da conveniência, pulei do banco e fui ao seu encontro,
enterrando o rosto em seu peito largo.
— Jesus, Maria e José, por que diabos você está vestida de
noiva, filha de Deus?!
Resmunguei alguma coisa inteligível, no calor de seu corpo, e
o abracei forte. Até aquele momento, sentia-me forte, os braços dele
me envolvendo e seus lábios depositando milhares de beijos no topo
da minha cabeça, abriram a fonte das lágrimas. Pareciam
intermináveis.
— Shiiiii... eu sabia que isso ia dar merda. Falei pra você cair
fora, meu bombom preferido — consolou-me, carregando-me de
volta ao banco e me acomodando nele.
Nós dois enfrentamos muita discriminação e preconceito
juntos, um dia, quando um idiota me chamou de bombom suculento
na rua, no primeiro momento, fiquei possessa, querendo voar na
garganta do trouxa, mas, depois, caímos na risada. A partir daí, Enzo
começou a me chamar de bombom. Ele adora chocolate e diz para
todo mundo que eu sou o preferido dele. Não que eu aceite que
qualquer pessoa me chame de chocolate ou coisa parecida, no
entanto, com Enzo é diferente. Ele se encaixou entre minhas pernas
e pegou meu rosto com as duas mãos. Limpou minhas lágrimas com
os polegares e beijou a ponta do meu nariz.
— Pronto? Melhor agora? — Assoprou de leve meu rosto e eu
sorri. Só ele tem o poder de me acalmar. Sabe do que eu preciso.
— Eu te amo — declarei, pela milésima vez.
— Eu também te amo, pena que o que você tem no meio das
pernas não me atraí nem um pouquinho — brincou e eu dei um tapa
em seu ombro.
— Você é o irmão que eu não tive, pena que é branquelo
azedo — provoquei e entortei os lábios.
— Você gosta, vai. — Afundou o dedo nas minhas costelas –
me fazendo jogar a cabeça para trás – gargalhando.
Enzo é lindo por ter uma beleza comum. Nada de olhos azuis,
cabelos loiros e etc... Tem os olhos e os cabelos castanhos escuros
e a pele clara. Seus cabelos são encaracolados e ele sempre os
deixa grandes – dando-lhe um estilo fashion. Na maioria das vezes,
usa calça skinner e camisetas coladas – em geral, regatas.
— Podemos ir? — sugeriu e eu confirmei com um meneio de
cabeça. — Quanto te devo, moça? — perguntou à moça que, até
então, não tinha pronunciado uma palavra.
— Está tudo certo — garantiu e esticou o braço, entregando-
lhe o anel. Enzo franziu a testa e pegou o anel. Ficou encarando-a.
— É sério isso? — inquiriu, erguendo o anel. O rosto da moça
enrubesceu de imediato.
— Deixa isso pra lá, Enzo. — Peguei no braço dele –
puxando-o.
— Eu tô passado! — vociferou e olhou em volta. Vendo que
tinham várias pessoas nos observando ele aumentou o volume da
voz. — Uma pessoa precisa de ajuda e tem que deixar o rim pra
vocês ajudarem, é isso? Que maluquice!
— Enzo, vamos...
— Não... não... isso é um absurdo, não viram que você está
de noiva? Precisava dizer alguma coisa? E se você tivesse correndo
risco de morte? Tivesse sido sequestrada... sei lá...
Seu tom de voz foi ficando cada vez mais alto e ele
gesticulava no meio do estabelecimento.
Eu já tinha presenciado vários momentos daqueles e, na
maioria das vezes, contribuía, mas minhas forças já tinham acabado.
Só precisava de um banho e de uma boa noite de sono.
Aos poucos, as pessoas foram saindo da loja e a moça foi se
encolhendo atrás do balcão.
— Enzo, sério, me tira daqui... — implorei e foi o que o fez
parar de falar e olhar para mim. Respirando fundo e concordando.
Pegou a carteira no bolso detrás da calça jeans, tirou uma
nota de cem reais e jogou no peito da moça.
— Isso é pela sua cortesia.
§§§§
O trajeto até o apartamento do Enzo foi curto, mas o suficiente
para ele me bombardear com perguntas. Justo, afinal, estava indo
para a casa dele, sem plano algum. Contava com a sua ajuda.
Assim que entramos na garagem no prédio, fiquei
impressionada. Mesmo sabendo que os pais dele são muito bem
financeiramente, pelo histórico do relacionamento dele com a família,
não achei que eles fossem ajudá-lo.
No elevador panorâmico, fui analisando o local, arborizado e
com casas luxuosas. Eu sei que não deveria ficar aliviada, afinal, fui
eu mesma quem quis sair do conforto da minha casa, melhor
dizendo, do luxo da minha casa. Porém, confesso que respirei
aliviada. Eu seria hipócrita em dizer que não gosto de morar bem,
comer tudo o que gosto, me vestir com marcas que me agradam e
todo o resto. Claro que eu não manteria tudo de início, mas, pelo
menos, a moradia estava à altura.
— Seja bem-vinda, meu bombom. Mi casa, su casa —
brincou, fazendo uma mesura, assim que abriu a porta do
apartamento.
Meu sorriso demandou todo o meu rosto. Entrei devagar,
escrutinando cada pedaço do local. Era de se esperar que seria tudo
moderno e descolado. Por onde olhava, tinham coisas com figuras
geométricas e desenhos abstratos. O branco e o preto imperavam,
exceto alguns objetos amarelos e vermelhos – quebrando a
monotonia de cores.
— Gostou? — perguntou às minhas costas.
— Uau! — exclamei e me virei para ele. — Seus pais foram
bem generosos.
Enzo abriu um sorriso amargo e eu entendi. Obviamente não
tinha saído barato. Não quis entrar em detalhes.
— Vem, vou te mostrar seu quarto.
— Meu quarto? Você nem sabia que eu viria.
— Faz-me rir, garota. Claro que eu sabia, quem te conhece
melhor do que eu, hein! — Passou o braço pelo meu ombro e foi me
carregando pelo corredor.
O quarto, assim como o resto do apartamento, moderno –
mantendo as mesmas cores. A cama de casal com colcha e
almofadas apertou o botão do meu cansaço. Não fosse o fato de eu
precisar muito de um banho, teria me jogado nela.
— Amada, esse é seu banheiro, espero que tenha tudo o que
está acostumada. Vou pegar uma roupa minha, sabia que viria, mas
não achei que não traria sua bagagem — divertiu-se e eu lhe mostrei
a língua.
Ali começava uma nova etapa da minha vida, uma vida
completamente desconhecida para mim.
Retomando

Gabrielle

Eu sabia que ser uma Bennett era uma maldição, mas não tinha
ideia de quanto seria difícil lidar com o peso do nome. Queria poder
xingar todos e sair chutando a bunda de cada idiota instalado na
porta do distrito. Infelizmente, Bento não exagerou. Os “abutres” se
amontoaram ali. Eram tantos que, mesmo que eu pudesse, ficaria
complicado chutar a bunda de cada um. Fiquei me perguntando o
porquê de ainda estarem atrás de uma notícia, relativamente, velha,
afinal, passou-se mais de um mês.
— Detetive, quando vai assumir seu posto na empresa do seu
pai?
— Onde você estava todo esse tempo?
— É verdade que seu irmão retirou as queixas contra você?
— Como teve coragem de atirar em seu próprio pai?
— Conseguiu o que queria, se vingar pela sua mãe!?
— Detetive...
— Detetive...
— Já falou com seu pai, depois que ele acordou?
— Sabe que deixou seu pai na cadeira de rodas?
— Atirou no pênis dele como vingança?
Fui afastando os aparelhos celulares e as câmeras que foram
enfiando no meu rosto. Coloquei tanta força nos meus braços, que
eu não sei como não derrubei alguns deles. Bento me ajudou na
tarefa, soltando milhões de palavrões, enquanto entrávamos no
distrito. Respirei fundo, assim que botei os pés para dentro do recinto
e Bento fechou a porta. Ergui a cabeça e dei de cara com uma
plateia. Todos os policiais civis junto com a sargento, me
observavam. Não soube, de imediato, se estavam a favor ou contra,
até que uma salva de palmas irrompeu o local.
Ângela, a sargento, foi a primeira a vir me abraçar. Me apertei
ao corpo dela, sentindo-me em casa.
— Não está sozinha — garantiu e se afastou um pouco –
colocando meu rosto entre suas mãos. — Não se deixe abalar por
aquilo lá fora, daqui a pouco, arrumam outra coisa pra focarem,
tenha paciência.
Meneei a cabeça e sorri com os lábios fechados.
— Chega de melação, por hoje, temos muito o que fazer lá em
cima — apressou Bento e a sargento lançou-lhe um olhar fulminante.
Bento ergueu as mãos em rendição e eu sorri de verdade.
A única que consegue fazer com que Bento recue, é a Ângela.
Graças a Deus, alguém tem esse poder. Agradeci a equipe de civis
com um aceno e acompanhei Bento pelas escadas, até o
departamento da inteligência. Lá em cima, no meu local de trabalho,
meus companheiros não economizaram abraços. Cada um dos
brutamontes veio até mim e expressou seu apoio. João Pedro ficou
no canto, de braços cruzados, esperando que me liberassem.
Assim que me vi livre da equipe, abri os braços no meio da
sala e fiz um gesto ao meu parceiro, para que viesse até mim. João
sorriu de canto e balançou a cabeça – aceitando meu convite.
— Bem-vinda de volta, madame — sussurrou no meu ouvido,
apertando-me ao seu corpo.
Afundei o rosto em seu pescoço e absorvi seu cheiro peculiar.
Depois de tantos anos trabalhando juntos, sinto como se João fosse
parte de mim. Sabemos exatamente o que o outro vai fazer, somente
com um olhar. Belisquei seu abdômen trincado e ele deu um
pequeno salto.
— Sentiu minha falta?
— Sabe que sim. — Beijou minha têmpora e apoiou o queixo
no topo da minha cabeça.
Ficamos um tempo assim até Bento chegar apressando tudo:
— Na minha sala, Gabrielle.
Me afastei do meu parceiro e beijei seu queixo.
— Hora do show! — brinquei e marchei à sala do meu chefe-
padrinho.
Como de costume, Bento estava de costas para mim, com as
mãos enfiadas nos bolsos da frente da calça jeans, se balançando
em seus calcanhares – olhando para a janela.
Me acomodei na cadeira em frente sua mesa e aguardei que
ele se virasse. Embora tivéssemos tido nossa rotina matinal, ali, eu
sabia que era meu chefe. Não seria burra em achar que me trataria
diferente dos demais. Muito pelo contrário, a cobrança seria muito
maior – pior do que antes.
Ele se virou e ficou me escrutinando por um tempo, passando
a língua pela gengiva. Mesmo que eu estivesse acostumada,
naquele momento, sentia-me frágil.
Desviei um pouco o olhar e ele percebeu meu incômodo.
Sentou-se em sua cadeira e abriu a gaveta de sua mesa. Retirou
minha Glock e meu distintivo e jogou em cima da mesa. Estiquei o
braço para pegá-los e ele segurou minha mão – olhando-me sério.
— Vou me arrepender?
Engoli em seco e neguei com a cabeça. Sem ter certeza de
que minha resposta era verdadeira. Se antes de minha mãe me
deixar, eu já queria acabar com o velho asqueroso, depois, não
respondia pelos meus atos.
— Gabrielle — disse em tom ameaçador.
— O que quer que eu diga, porra! — explodi, apertando as
unhas na mão que estava no meu colo.
— Quero que você seja racional, inteligente, coisa que você
não foi até aqui, caralho! — vociferou e soltou minha mão, permitindo
que eu pegasse os itens que me pertenciam.
Bento jogou o corpo no encosto da cadeira e cruzou as mãos
sobre a mesa. Ficou me encarando, enquanto eu arrumava meu
revólver e distintivo em minha cintura.
— Farei o meu melhor — respondi, depois de um tempo, mais
para mim do que para ele.
A verdade é que eu nem sabia o que era o melhor a fazer.
Desafiei o idiota do Henry a tomar o posto dele, mas não podia parar
as investigações contra o velho asqueroso. Ele jamais sairia impune
das maldades que fez.
— Preciso encontrar uma maneira de conciliar as duas coisas
— pensei alto e Bento franziu o cenho. Fiz um gesto de deixa pra lá
e saí.
O Jogador

Enrico

— Isso, de alguma maneira, é problema meu? — questionei


minha assistente que se encolheu na cadeira com o tom agressivo
da minha voz. — Desculpe-me, Márcia, estou com uma dor de
cabeça infernal.
— Tudo bem, senhor Enrico, vou pegar um analgésico para o
senhor — avisou e foi se levantando. Estiquei o braço e a segurei.
— Não precisa, sabe que não gosto de tomar remédios. Já vai
passar. É que... — suspirei —, meu final de semana foi uma merda.
Apertei a têmpora com o polegar e, involuntariamente, veio a
imagem da noiva-sedutora dentro do meu carro. Sim, não consegui
tirar a garota da cabeça, desde então. Cheguei a pensar que a
garota tinha alguma coisa de bruxa. Porque as mulheres não têm
tanto poder sobre mim, quanto ela conseguiu. Quase retornei o
carro, quando a deixei naquele posto de combustível, para pedir seu
contato. Ou, pelo menos, perguntar seu nome. Mas logo caí em si e
vi que não seria racional. Não seria eu a cometer um erro tão
amador.
— Tem algo que eu possa fazer?
Sorri de canto e neguei.
— Está tudo bem, só prepare a sala de reuniões para eu
resolver de uma vez essa questão chata.
Ser o diretor responsável por toda a logística da empresa, na
maioria das vezes, me causa uma tremenda dor de cabeça. Embora
eu tenha uma equipe competente, em todas as unidades, quando o
assunto fica muito complicado, sobra para eu resolver. Minha
assistente saiu da sala e decidi responder alguns e-mails. A pessoa
que estava piorando minha dor de cabeça estava na recepção,
esperando para falar comigo.
Depois de não muito tempo, o telefone da minha mesa tocou.
— Sim, Márcia.
— Senhor, a sala está preparada, precisa de mais alguma
coisa?
— Chame o responsável do departamento de logística, quero
ele junto. — Márcia concordou e, antes que ela desligasse, continuei:
— Você também, Márcia, preciso que anote tudo.
— Claro, senhor, daqui dez minutos, pode ir para a sala,
estará tudo preparado.
— Obrigado — agradeci e fiquei em pé. Fui até o canto da
sala e apanhei meu paletó no mancebo.
Vesti o paletó e ajeitei a gravata, no espelho do meu banheiro.
Fiquei tentado em tomar um gole de uísque, antes da reunião.
Porém, jamais atenderia, qualquer pessoa, com o hálito cheirando a
álcool.

Entrei na sala e as pessoas ficaram em pé. Cumprimentei-os


com um menear de cabeça e me sentei à cabeceira da mesa.
— Roberto, explique o porquê estamos aqui, porque ainda
não entendi como isso não foi resolvido pelo seu departamento — fui
direto ao assunto, com o responsável pelo departamento de logística.
Ele limpou a garganta e olhou para a pessoa que tinha
requisitado minha atenção.
— Senhor Enrico, desculpe-me, mas a empresa que nos
atende hoje, para fazer o transporte de algumas cargas, está
querendo aumentar o custo em quarenta por cento.
Franzi o cenho e olhei para o representante da empresa em
questão.
— Essa informação confere?
— Veja bem, senhor...
— Confere? — interrompi-o e ele abriu um riso nervoso.
— O senhor precisa entender que o combustível aumentou
demais, nos últimos seis meses, não podemos manter as taxas,
precisamos reajustar.
— Quarenta por cento? — indaguei, com o rosto franzido.
— As coisas aumentaram, senhor — argumentou.
Fiquei em pé e abotoei o paletó.
— Roberto, procure outra empresa — ordenei e o rosto do
meu colaborador se contorceu.
— Estamos no final do ano, senhor. Têm várias entregas
pendentes.
— Temos um contrato, não temos?
Ele umedeceu os lábios e respirou fundo. O representante da
empresa sorriu satisfeito.
— Vence amanhã — esclareceu o cara, vitorioso.
Apertei, novamente, o polegar na têmpora, sentindo um latejar
insuportável ali. Sentei-me de volta e abri o botão do paletó. Apoiei
os antebraços sobre a mesa e cruzei os dedos.
— Vamos negociar esse valor — sugeri, já que, naquele
momento, eu não tinha muitas alternativas.
— É nossa última oferta — decretou o representante da
empresa.
Sorri, completamente sem vontade.
— Está jogando com os Bennett, senhor? — inquiri e ele deu
de ombros. — Sabe que está enfiando a mão em um vespeiro, não é
mesmo? — Mais um gesto de desdém. — Tudo bem, se quer jogar,
vamos lá, é o que fazemos de melhor. Se quiser manter a Bennett
como cliente, vai ter que aceitar nossa oferta, caso contrário...
— O quê? Vai fazer como o CEO de vocês, que faz qualquer
coisa pela empresa, independente de ser legal ou não? Ou igual ao
seu pai... Ops... acho que agora ele não vai poder fazer muita coisa,
não é mesmo, acertaram ele em cheio.
Não esbocei reação alguma à provocação dele. Se queria me
desestabilizar, perdeu o tempo. Tenho muitos defeitos, mas perder a
compostura não é um deles. Sou controlado demais para isso
acontecer. Dificilmente, alguém consegue fazer com que eu exploda.
— Quinze por cento — continuei, como se ele estivesse
mudo.
— Quarenta ou nada.
O encarei por alguns segundos, antes de dar a cartada final.
Peguei o celular, passei a tela pela perna e olhei contra a luz, para
ver se não tinha nenhuma mancha. Olhei para a câmera para que
liberasse a tela. Senti o olhar dos dois, mas não parei o que fazia.
Encontrei a página da empresa que já tinha aberto.
— Vocês prestam serviço para várias empresas — segui —
Augusto, dono da Pergamota, vai gostar de saber da nossa
negociação. Mário, dono da Minessota, vai estranhar o fato de vocês
não terem mais a Bennett como clientes. Tiago, dono da Nevrasca,
sente-se seguro quando têm amigos usando os mesmos serviços.
Líbero...
— Tudo bem — interrompeu-me. — Trinta por cento.
— Senhor, deixa-me explicar uma coisa, eu quem dou as
cartas — lembrei-o e ergui uma sobrancelha. — Quinze por cento —
ordenei e voltei a ficar em pé, fechando o botão do paletó. Olhei para
o Roberto e concluí. — Peça para o jurídico preparar o contrato.
Estarei na minha sala. Márcia, o acompanhe e leve para que eu
assine. — Senhor, boas festas! — desejei e meneei a cabeça, saindo
da sala.
Não precisava ficar para saber que ele aceitaria minha oferta.
Quem, em sã consciência, desafiaria um Bennett achando que sairia
ganhando? Jogar é o que fazemos de melhor. Temos muito poder
para que as pessoas nos encostem na parede.
§§§§
Cheguei um pouco mais cedo em casa, somente uma parte da
empresa estava funcionando, a maioria dos colaboradores estava
em férias coletivas. Seriam somente dez dias, mas o suficiente para
me deixar sobrecarregado. Aproveitei que naquele dia não
apareceram tantos problemas, no final da tarde, fui embora.
— Meu Deus, o que aconteceu, filho? — questionou Cida,
com uma expressão preocupada.
— Está tudo bem, Cida. Só preciso de um banho e tomar um
analgésico, estou com uma dor de cabeça horrível, desde cedo.
Cida veio até mim e colocou a mão na minha testa –
conferindo minha temperatura. Sorri e peguei sua mão – beijando-lhe
a palma.
— Enrico, você deve estar muito mal, nunca vem pra casa
nesse horário.
Ela tinha razão, levo muito a sério meu trabalho, na verdade, é
a minha prioridade. As demais coisas, vão se encaixando.
— Estou bem, Cida — garanti e ela foi pegando o paletó da
minha mão.
— Tudo bem, vou preparar um chá de camomila e te levar um
analgésico. Vá tomar um banho quente, filho. — Alisou meu cabelo e
me incentivou a seguir, com um tapinha nas minhas costas.
Segui o conselho da Cida, coloquei a banheira para encher,
enquanto terminava de me despir. Depositei os itens usados no
armário basculante de roupas sujas, os sapatos na sapateira e
alcancei um jogo de toalhas brancas limpas – deixando-as fáceis.
Mergulhei na banheira, sentindo meus nervos relaxarem
imediatamente. Apoiei a cabeça ao encosto almofadado e fechei os
olhos. Não demorou muito para a dor de cabeça começar a diminuir.
Ouvi uma batida de leve à porta e, em seguida, Cida entrou.
— Aqui, filho. — Cida sentou-se na beirada da banheira e me
entregou uma caneca de chá fumegante. Esticou a outra mão com
um comprimido.
— Só o chá, Cida. Esses remédios baixam minha pressão,
fico grogue, já estou melhor, o chá vai terminar de me ajudar.
— Está certo, filho. — Ficou me observando, calada. Tomei
um gole do chá e vi que ela não sairia dali. — Você precisa sair pra
se divertir um pouco, Enrico.
— De novo, com essa história, Cida — esquivei-me.
— Sabe que eu tenho razão, precisa de uma namor... — Ergui
uma sobrancelha. — Não pode chamar aquilo de...
— Não continue — interrompi-a.
Cida me conhece e sabe quando parar, não precisei pedir
novamente. Ela meneou a cabeça e saiu, me deixando com os
nervos à flor da pele. As pessoas insistem em achar que temos que
projetar nossa felicidade em outra pessoa. Eu tenho que achar minha
felicidade, sem precisar de ninguém. Suprindo minha necessidade
fisiológica, o resto eu me viro.
Antes que eu terminasse de tomar o chá, meu celular tocou,
sobre o banco, ao lado da banheira. De longe, vi o nome do Miguel e
soube que seria mais uma sessão de blá... blá... blá.
— Fala aí — atendi divertido, escondendo um pouco a
irritação.
— Que tal suprir sua necessidade fisiológica, hoje? —
ofereceu de imediato. Acabei sorrindo. Meu amigo me conhece, sabe
a melhor abordagem.
— Está em Curitiba?
— Claro que sim! Sabe que, quando venho pra cá, temos que
sair.
— O que tem em mente?
— Paradise Club.
— Não sei se é um bom dia, desde cedo com dor de cabeça.
— A porra deve estar subindo para o seu cérebro, só tem
tempo para trabalhar. Não sei como seu pau ainda não necrosou! —
provocou e caiu na risada.
Continuei ouvindo, sem me incomodar. Não seria ele a me
tirar do sério. Principalmente, com um assunto tão banal.
— Sabe que tenho meus meios de liberar as coisas por aqui
— entrei no jogo dele.
— Sim, com aquela boneca inflável, chamada Leandra.
— Ok, Miguel, passe aqui em meia hora — encerrei o assunto
antes que ele me irritasse, a ponto de me fazer ficar em casa. E, de
certo modo, ele tinha razão, fazia um bom tempo que eu não
transava.
§§§§
Miguel estacionou seu carro conversível na vaga privativa do
clube. Depois de tantos anos frequentando o lugar, virou cliente VIP.
Como, na maioria das vezes, ele me carrega junto, recebo o mesmo
título.
Gosto do lugar, é afastado da cidade e as pessoas são
discretas. Todos sabem quem eu sou e respeitam minha privacidade.
Nunca saiu nada na imprensa sobre isso. Tomo o máximo de
cuidado para não ser visto chegando.
Miguel coloca seu carro na garagem do meu prédio e saio de
cabeça baixa, para que ninguém me veja no carro dele. Ele odeia
andar com a capota do carro descida, mas, se quer minha
companhia, ela permanece fechada. Sabe o quanto detesto
exposição.

Paradise Club é uma casa noturna sofisticada, com belas


mulheres, as melhores bebidas e a melhor comida da cidade. O lugar
é conhecido pela apresentação de shows de muitos grupos famosos.
Nunca frequentei o lugar sozinho e Miguel, conhecendo minhas
manias, pede para deixarem o mesmo lugar de sempre reservado
para nós. Fica em um canto, sem que as pessoas nos percebam. Ali,
posso curtir minha bebida a música e admirar belas mulheres. Não é
explicito que as mulheres fazem programas, mas, para clientes VIPs,
é oferecido um catálogo para que se possa escolher as melhores.
Não que eu use o serviço – diferente do meu amigo.
Testando os Limites

Yasmin

Estiquei os braços e busquei o celular em cima da pequena


cômoda ao lado da cama. Como não o achei, me sentei –
encostando-me à cabeceira. Esfreguei os olhos e bocejei, olhando
tudo em volta, sem ter a menor ideia de onde estava.
Antes mesmo de eu entender o que estava acontecendo,
Enzo entrou no quarto – com um sorriso encantador.
— Hora de acordar, Bela Adormecida — brincou e sentou-se à
beirada da cama – entregando-me uma caneca de café.
Respirei fundo e forcei um sorriso. Infelizmente, a ficha
começou a cair. Aceitei a caneca de café e dei um belo gole – na
esperança de que o líquido me revigorasse, porque, seguramente,
minha caminhada seria longa.
— Que horas são? — questionei, obviamente, eu não tinha
encontrado meu celular, porque o deixei em minha antiga casa. Aliás,
não só ele, como todo o resto na minha vida. Nem mesmo roupas
para vestir eu tinha.
— Quase uma.
Franzi o cenho e terminei de tomar o café – colocando a
caneca vazia na pequena cômoda.
— Devia ter me acordado — avisei, sem saber ao certo o que
dizer.
— Vai passar a noite em claro, por isso, deixei você
descansar. — Recuei o tronco e entortei o nariz, sem compreender
qual era a charada. — Meu bombom, eu até queria que você fosse
minha convidada de honra e tal. Manter seu padrão de princesa e
tudo mais, porém... — Suspirou e começou a alisar o lençol da cama.
— Ei, por que está hesitando, quando é que fizemos isso?
Enzo ergueu os olhos e deu de ombros – desculpando-se,
antes mesmo de continuar.
— Isso aqui. — Apontou com o indicador para o espaço. — É
tudo dele, por causa da minha mãe, você sabe. — Fez uma careta.
— Só que tenho que me manter, e você sabe que gosto de coisas
boas.
— Sei, estou dormindo com um moletom Calvin Klein, e nem é
imitação, porque eu sei que você jamais usaria uma — afirmei,
reforçando a ideia que ele tentava me passar.
— Então, bombom, não consigo manter nós dois, gata, vai ter
que rebolar — falou de uma vez.
— Ah! Entendi — murmurei, meio assustada. Embora
soubesse que teria que fazer algo, não tinha pensado que seria tão
rápido.
— Mas... — Ficou em pé e esticou a mão para eu pegar. —
Não se preocupe, o clube em que trabalho é de gente rica, melhor,
podre de rica. Então... — Deu de ombros. — Não será um problema
pra você.
Eu já estava em pé e ele me puxando para o banheiro. Parei,
assim que ouvi a palavra: clube. Puxei minha mão da dele.
— Você disse clube?
Enzo revirou os olhos e colocou as mãos nos quadris.
— Não me venha você também, Yasmin. Sim, dondoca, clube,
algum problema nisso? Eu disse a você que era Barmen!
Mordi o lábio inferior e um frio passou pela minha espinha. O
que meu amigo achou que eu poderia fazer em um clube?
— Enzo... — suspirei — o que tá pensando?
— Ah, deixa de ser careta, garota, não vai ter que dá pra
ninguém, não. Como se essa piriquita nunca tivesse visto um pau na
vida.
— Enzo — repreendi-o – batendo em seu ombro.
— Yasmin, venha aqui. — Pegou em minhas duas mãos e me
levou de volta à cama, sentando-me na beirada e ficando de joelhos
à minha frente. — Você só vai servir mesas, ok? Depois, talvez, se
você quiser, eu sei que você ama dançar, a gente pode pensar em
alguma coisa. Tenho muitos contatos lá dentro.
Fechei os olhos e senti meu peito apertar.
— O que elas farão sem mim?
— Vão dar um jeito, meu bombonzinho.
— Elas não têm culpa — lamuriei-me, pensando em como as
crianças carentes da minha cidade sentiriam minha falta no clube
atlético, onde eu era voluntária como professora de dança.
— Eu sei, mas... bola pra frente, gata! Você criou coragem e
se livrou daquela corja, só que têm consequências. E uma delas é
você pegar no batente, meu amor. Até acharmos um bom advogado
e contestar aquele testamento ridículo que seu pai deixou em pleno
século XXI.
— O dinheiro era dele, Enzo, ele fez o que achou melhor, não
estava preocupado em que século estamos — contestei e recebi um
olhar enviesado do meu amigo.
— Se você está falando — desdenhou e saiu andando,
comigo o seguindo. Ele parou e se virou para mim. — Vai escovar
esses dentes, dondoca, temos que sair e comprar roupas pra você.
Como é que vou te apresentar no clube, vestida com minhas roupas
que cabem duas de você?
Sorri e balancei a cabeça – convencida de que tinha feito a
melhor escolha, mesmo que tivesse que lidar com consequências
penosas.
— Enzo — chamei-o, antes que ele saísse do quarto.
— Chora.
— Ninguém pode saber que estou aqui.
Sua risada preencheu todo o ambiente e eu fechei a cara.
— Amada, pra onde mais você iria?
— Se faz de desentendido — argumentei e ele bufou.
— Claro que eu vou me fazer de desentendido, até eles
encontrarem uma maneira de te abordar, gata. Lembra que não pode
ficar presa aqui dentro?
Revirei os olhos. Ele veio até mim e beliscou minha bochecha.
— Você não pode ser malcriada assim com os clientes,
Yasmin. Pare com essa mania de menina mimada.
— Eu, mimada? É sério isso, Enzo?
— Meu bombom, você pode acusar sua madrasta de qualquer
coisa, mas não minta pra você mesma, querida. Ela sempre fez de
tudo por você, pra agradar seu pai, sabe disso, Yasmin.
Quando pensei em revirar os olhos novamente, me contive.
Ele tinha razão, eu precisava agir como adulta. Teria que esquecer
toda a mordomia deixada para trás.
§§§§
— Enzo, chega, não posso ficar completamente zerada —
reclamei, enquanto fazia mais um pix para a conta da loja que estava
comprando.
Milagrosamente, não tinham bloqueado minha conta no
banco. Acho até que foi uma estratégia para saber onde eu estava,
embora Enzo tivesse razão, obviamente que eu o procuraria. Todos
sabem a ligação que temos.
Inicialmente, usei o celular do Enzo para ter acesso à minha
conta bancaria, em seguida, comprei um celular, assim pude usar
minha conta da Apple e recuperar tudo do meu antigo aparelho.
Agradeci aos deuses da tecnologia, por inventarem todas essas
facilidades, sem que eu precisasse de cartões de banco,
documentos e tudo o mais. Não que eu não fosse precisar de
documentos para outras coisas, mas, naquele momento, minhas
pendências estavam sendo resolvidas.
— Melhor zerar logo essa conta, Yasmin, vai saber quanto
tempo a louca da sua madrasta vai deixar você usá-la — alertou-me
meu amigo.
— Ok, então, o melhor a fazer é ir ao caixa eletrônico e retirar
tudo, não gastar com roupas. Até eu receber meu primeiro salário,
preciso ter uma reserva.
— Bem pensado, bombom, por isso que te amo tanto, não é
só um rostinho bonito e uma bunda gostosa, tem um cérebro que
funciona muito bem.
— Enzo... — censurei-o e olhei sem graça para a moça que
estava no caixa, fingindo que não ouvia, mas seu risinho contido
demonstrou que ouvia cada detalhe da nossa conversa.
— Nossa, quanto pudor — divertiu-se. — Não se preocupe
com dinheiro, não, gata. Com essa bunda, vai receber muitas
gorjetas — continuou e caiu na risada – enquanto saíamos.

Fiquei calada por um tempo, durante o trajeto até o carro,


pensando no que meu amigo tinha deixado escapar sobre as
gorjetas. Receava perguntar algo e ele achar que eu estava
recusando o trabalho. Sem experiência, não tinha como ficar
escolhendo. Mesmo que fosse formada em artes cênicas, minhas
únicas atuações haviam sido na minha cidade e todas voluntárias.
Entramos no carro calados, foi quando Enzo se virou para
mim, antes de girar a chave na ignição.
— Já não te disse que só vai servir mesas, Yasmin? — Dei de
ombros e desviei o olhar para a janela, tentando esconder meu
medo. Ele pegou em meu queixo e me fez olhar em seus olhos. —
Acha que eu te colocaria em uma enrascada? Não confia em mim?
Engoli em seco e neguei com a cabeça – sem muita
convicção.
— Por que acha que minha bunda vai me render gorjetas,
então? — despejei de uma vez, confiante que aquele frio na espinha
me deixaria.
— Por que você vai estar rebolando pelo salão, querida,
enquanto serve as mesas, é assim que as coisas funcionam. Isso
não quer dizer que terão acesso à sua bunda, entende? Só tem que
sorrir e deixar eles sonharem com ela, assim as gorjetas virão como
cachoeira.
Soltei o ar dos pulmões de forma dramática. A explicação dele
deveria ter me tranquilizado, mas o efeito foi o contrário. Prendi os
lábios nos dentes e fiquei encarando meu amigo, sem saber o que
responder. Depois de alguns segundos, quando percebi que ele
segurava minha mão, esperando que eu dissesse algo, decidi mentir:
— Tudo bem. — Minha voz quase não saiu.
— Não está tudo bem, Yasmin. Poxa, quero te ajudar, gata,
mas não tem outra maneira, a não ser essa. — Soltou minha mão e
passou as mãos pelos cachos dos cabelos.
Alcancei novamente sua mão e apertei.
— Eu vou conseguir — garanti, mais para mim do que para
ele —, certeza.
§§§§
Todas as peças de roupas que comprei foram escolhidas pelo
Enzo, pensando em como eu deveria me vestir para o trabalho.
Nunca fui muito tradicional, nem muito moderna. Talvez um
contemporâneo clássico. Às vezes, para provocar minha madrasta –
que era extremamente tradicional –, eu exagerava em algumas
peças. No entanto, jeans e camisetas básicas sempre foram minhas
peças favoritas.
Nem preciso dizer que não pude comprar nada básico.
Segundo meu amigo, o clube, no qual eu trabalharia, as pessoas não
tinham nada de tradicional, a não ser os homens que iam direto de
seus trabalhos, vestidos de terno e gravata.
Naquela noite, usei um tubinho preto, com um decote “V” nas
costas, que chegava até a lombar; curto o suficiente para quase
aparecer a poupa da minha bunda. Não estava muito confortável
com aquela roupa, mas não queria que meu amigo me achasse
careta.
— Uau! Está linda! — elogiou, assim que apareci na sala, com
minhas sandálias meia pata pretas com o solado vermelho,
altíssimas, os cabelos caídos sobre os ombros e a maquiagem
carregada.
— Nem sei porque estou vestida assim, afinal, você disse que
as garçonetes usam uniformes — argumentei e ele deu uma
risadinha.
— Não você, querida. As que usam aqueles shortinhos
minúsculos, fazem parte do catálogo. Você é uma outra categoria.
Franzi o cenho.
— Que categoria, não vou servir mesas do mesmo jeito?
— Como eu posso explicar. — Bateu com o indicador na
têmpora e ficou me olhando sério. — Falei com o meu gerente, hoje,
enquanto você se arrumava.
— Falou?
— Sim, fiquei preocupado com você. Não se empolgue, mas
acho que ele vai te colocar em outro patamar, por mim, sabe?
— Hum, se você não me explicar, não vou saber.
— Olha só, tem umas meninas lá que não servem mesas, elas
dão assistência às mesas. Como se fossem hostess, sabe aquelas
garotas que nos recebem nos restaurantes chiques?
Meneei a cabeça, como se tivesse começando a entender.
— Mas, então, não vou com essa maquiagem carregada,
quero ser eu mesma.
— Calma, aí, garota, tudo bem que não vai precisar usar top e
shortinhos, mas continua sendo uma casa noturna, gata. Acha que
pode ir vestida e maquiada para uma missa?
Sorri de nervoso, cada vez que Enzo tentava amenizar a
situação, me assustava mais. Tentava esconder, mas sentia meus
nervos pulando.
— De qualquer maneira — continuou — o uniforme das
garotas que dão assistência às mesas é preto, muito parecido com
que está vestindo. Isso é bom, Antônio vai ficar feliz em te ver pronta
para o ataque. — Arregalei os olhos. — Pare de me olhar assim,
Yasmin!
— Assim como?
— Como se tivesse indo para um abatedouro.
Era exatamente como eu me sentia.
§§§§
Assim que Enzo estacionou, na vaga privativa, estremeci. O
lugar era exuberante, a começar pelo nome: Paradise Club.
Desci apreensiva, passando as mãos pela saia do vestido.
Tudo o que eu menos queria era demonstrar insegurança, mas era
tudo novo. E o novo sempre me assustou. Por mais descolada que
eu seja, nunca me imaginei trabalhando em um lugar como aquele.
Não estava sendo preconceituosa, longe de mim. Só que era
muito diferente de tudo o que eu já tinha vivido.
Fui criada na alta-sociedade, frequentando eventos
beneficentes. Jantares de gala – com muito requinte. Nunca tinha
entrado em uma casa noturna. Nem sabia o que me esperava lá
dentro. E olha que nunca fui cheia de pudores. Todas as maneiras
que encontrei na adolescência em desafiar minha madrasta, eu fiz. A
começar pela minha formação, no qual esperavam que eu fizesse
medicina, como meu pai. Gosto de esportes radicais como:
motocross, paraquedismo, rapel, etc. De testar meus limites.
— É isso, testar meus limites — falei para mim mesma e ergui
o queixo, pronta para enfrentar mais um desafio.

Se fora do lugar eu fiquei impressionada, dentro, meu queixo


só faltou se deslocar. O luxo imperava. Luzes coloridas. Muitos
espelhos. Diversos espaços com decoração diferenciada, uns mais
acalorados, outros mais light. Sofás aveludados por todos os lados.
O palco, nem saberia descrever, até a passarela era espelhada. Por
onde eu olhava, tinha gente se divertindo e muitas – muitas mesmo
–, mulheres lindas. Todas vestidas de shortinhos minúsculos, como
Enzo havia dito. Seus sorrisos eram encantadores, sem deixar
dúvidas de o porquê estarem ali.
— Vamos, bombom, vou te apresentar ao meu gerente. —
Enzo pegou no meu braço e foi me levando com ao fundo do local.
Fui observando cada detalhe, pensando o quanto aquele lugar
realmente testaria meus limites. Meus pés empacaram,
imediatamente, no momento que o vi. Não acreditei que um cara
como ele pudesse estar ali. Estreitei os olhos e olhei direito, para ter
certeza de que não era coisa da minha cabeça.
— Ô, garota, não tenho a noite toda, não, tenho que assumir
meu posto. — Meu amigo tentava fazer com que meus pés
continuassem e eles teimavam em ficar ali, como se tivessem sido
cimentados.
Uma virada de rosto e uma pontada no peito. Nossos olhos se
cruzaram. O calor permeou novamente minha pele.
Em Cena

Gabrielle

Escondi-me atrás de uma parede, sem reboco – com a arma em


punho –, e sinalizei com a cabeça para o meu parceiro – que daria
cobertura.
Estar de volta à ativa, depois de tanto tempo, senti-me
revigorada. Bento sabia como me “acordar”. Não me deu tempo nem
de arrumar as coisas na minha mesa.
João Pedro correu e, antes que eu pudesse reorganizar meus
pensamentos, um tiro disparou e eu gritei:
— Abaixa! Pow... pow... pow! — Meus dedos tremiam –
segurando a Glock. Não sei como consegui ter coordenação para
disparar os três tiros. E o melhor, nenhum que matasse o nosso
suspeito.
Corremos em direção ao cara caído e João levou dois dedos
em seu pescoço, testando os batimentos cardíacos.
— Ele não vai cair morto com tiros nas pernas, João! —
censurei-o – bufando.
— Precisava atirar três vezes? — repreendeu-me com a
expressão fechada.
— Ele atirou em você — justifiquei-me —, sem contar que só
o derrubei. — Não esperei a réplica do meu parceiro. Peguei o rádio
pendurado na cintura e comecei a pedir socorro. — Central, preciso
dos paramédicos aqui, urgente. Suspeito baleado e desacordado.
Passei o endereço e me afastei – sentido os nervos pularem.
Mesmo que o indivíduo no chão fosse acusado de tráfico de drogas e
homicídio, João tinha razão, um tiro só seria o suficiente para o
derrubar. Não queria admitir, mas ainda estava abalada com tudo
que estava acontecido e perdi a mão.

João Pedro dirigia calado – concentrado na avenida


movimentada de São Paulo. Embora o trânsito estivesse caótico –
como sempre –, estava andando – um milagre. Fixei o olhar nos
pedestres da calçada – cheia de camelôs, sem coragem de me
comunicar com meu parceiro. Seu silêncio dizia muito mais do que
muitas palavras. Claramente estava preocupado.
— O cara está bem, João — disse, por fim.
— Não é isso que me preocupa, Gabi.
Virei o rosto para ele e ele fez o mesmo para mim, assim que
o semáforo fechou. Ficamos nos encarando por um tempo, até João
respirar fundo e balançar a cabeça – indignado.
— Sabe que pode pedir para te darem outro parceiro, não
sabe? — sugeri, sabendo que seria um alívio para o meu amigo não
acompanhar minhas atitudes que, certamente, seriam muito ruins,
quando eu partisse para cima dos Bennett.
João Pedro virou o rosto bruscamente – com os olhos
faiscantes.
— É isso que você quer? — inquiriu – cerrando os dentes.
Bufei e desviei o olhar.
— Acho que seria muito bom pra você, afinal, cadê aquele
cara divertido que era meu parceiro? Veja o que estou fazendo com
você! — despejei o que sentia, sem coragem de olhar nos seus
olhos. A verdade das minhas palavras doeu muito mais em mim,
tinha certeza.
João não respondeu. Assim que pegamos uma rua menos
movimentada, acelerou o que pôde – precisei me segurar firme.
§§§§
Entramos no distrito e João não me esperou para subir as
escadas do nosso departamento. Encostei-me ao balcão e Ângela
franziu o cenho, apontando com a cabeça ao meu parceiro.
— Estou fazendo mal pra ele — confessei – enquanto
assinava o documento de entrega da viatura.
— Tss... tss... isso é impossível, Gabi. Aquele menino te
venera.
— Por isso, mesmo. Está deixando de viver, por minha causa.
Ângela colocou a mão em cima da minha sobre o balcão e me
olhou com uma expressão indulgente.
— Não se cobre tanto, menina.
Dei de ombros e forcei um sorriso. A sargento não merecia ter
que me ouvir. Eu sabia que não era uma boa companhia, há muito
tempo.
Perdendo o Controle

Enrico

Pisquei várias vezes, imóvel. Aquilo parecia coisa de novela. Ou,


no mínimo, suspeito, afinal, quem era aquela garota?
Primeiro, a louca entra no meu carro vestida de noiva, depois,
aparece vestida como uma prostituta no clube. Quase me levantei e
fui embora, mas fiquei intrigado demais, teria que desvendar aquele
mistério.
— Ei, Enrico. — Miguel estalava os dedos à minha frente.
Chacoalhei a cabeça e me concentrei no meu amigo. — O que foi
que você viu? Está atônito.
Meu amigo olhou na mesma direção no qual eu estava
vidrado, mas ela já tinha saído, puxada por um rapaz. Alcancei o
copo com uísque duplo que tinha pedido e tomei todo o líquido
âmbar de uma vez. Minha garganta ardeu e eu cerrei os olhos, antes
de respirar fundo e sorrir de canto para o Miguel.
— Achei que conhecia uma pessoa — desconversei. De
maneira alguma, contaria a ele minha aventura do dia do casamento
da minha irmã. Seria um prato cheio para ele me infernizar.
Miguel abriu um sorriso largo, demonstrando que não
acreditava em mim. Tomou sua bebida e meneou a cabeça em
desistência.
— Tudo bem, Enrico. Sei que te trazer aqui já é um triunfo,
não posso querer que você se abra comigo. Seria muita sorte —
desdenhou e fez sinal para uma das garçonetes, com seu jeito
malandro.
Acompanhamos com o olhar o rebolado da garota, até chegar
à nossa mesa. Seu sorriso e olhar eram pura malícia. Nós sabíamos
que eram treinadas para aquilo e faziam muito bem, porém,
sabíamos que as melhores recebiam gordas gorjetas.
— Em que posso ajudar, Miguel? — ofereceu a moça,
debruçando-se sobre a mesa – deixando os seios à mostra. De onde
estávamos, conseguíamos ver os bicos.
Institivamente, senti meu membro dar sinal de vida. Claro que
daria, nem sabia qual tinha sido a última vez que “meu amigo” tinha
entrado em algum “orifício” quente, macio e, de preferência –
apertado. Me remexi e Miguel sorriu, sabendo que tinha atingido seu
objetivo.
— Venha aqui, doçura — chamou a garota – com o indicador.
Toda faceira, ela chegou bem pertinho dele. — Meu amigo vai
precisar de uma atenção especial, hoje. Posso contar com você?
Enruguei a testa e ergui uma sobrancelha – encarando-o.
Miguel tem a triste mania de querer me empurrar para as mulheres.
O sorriso que a garota abriu a entregou. Miguel tinha dito as
palavras mágicas, que significavam: dinheiro. Com poucos passos, a
garota estava ao meu lado. Passou a língua pelos lábios – de forma
libidinosa, e tentou sentar-se no meu colo. Endureci o corpo e ela
percebeu que não seria uma boa ideia.
— Olha só — iniciei, tentando sorrir. — Vou te recompensar,
por causa do Miguel, mas não preciso de atenção especial. Só faça o
seu trabalho de servir. — Parei e esclareci: — Bebidas, talvez
alguma coisa para eu comer... — Ela sorriu. — Comida para o meu
estômago — concluí e ela olhou para o Miguel, que fez um gesto
para ela ter paciência.
— Fique por perto — avisou Miguel e ela concordou com um
aceno. Em seguida, passou a mão pelo meu rosto e saiu rebolando.
Olhei feio ao Miguel.
— Se continuar assim, vou embora — ameacei e ele ergueu
as mãos em rendição.
— Só quero te ajudar, cara — defendeu-se.
— Eu sei me cuidar sozinho — rosnei e ergui o copo, pedindo
mais bebida à outra garota que passava por nós.
Logo meu copo foi preenchido com mais uísque. Fiquei
balançando a bebida na mão, ponderando a velocidade que tomaria
aquela segunda dose. Se tem uma coisa que não gosto é de perder
o controle. Muito álcool nos deixa propenso a isso. Pelo olhar do
Miguel, era exatamente essa a intenção dele.
— Soraia queria vir comigo, disse que você nunca a convidou
para sua casa — comentou Miguel, como quem não quer nada.
— E nunca vou convidar — grunhi, sem dar mais satisfações.
— Qual é, Enrico, seja mais maleável. — Olhei-o enviesado.
— Fico me perguntando até quando vai levar essa situação adiante.
— São negócios — lembrei-o, porque eu sabia sobre o que
ele me acusava.
— É ridículo isso, Enrico, não pensa na sua felicidade?
— E o que isso tem a ver com a minha felicidade?
Miguel chegou com o corpo para frente e falou um pouco mais
alto, pois a banda tinha acabado de iniciar uma música.
— Como assim? Não pode achar que aquela sua...
— Miguel... — berrei, interrompendo-o. — Chega desse
assunto, está cansativo. Não me faça me arrepender de... — Parei
subitamente, sem conseguir completar a frase, assim que ela surgiu
novamente no meu campo de visão.
Meu amigo virou o corpo imediatamente, na direção que eu
olhava. A garota andava toda imponente pelo salão, como se fosse a
dona do lugar. Ela sabia que eu estava ali. Só que nem fez menção
de olhar para o meu lado. Apertei com tanta força o copo de uísque
que não sei como não quebrou. Algo muito contraditório se formava
dentro de mim. Não queria seguir os conselhos do meu amigo, no
entanto, olhar para ela fazia meu corpo transbordar testosterona.
Miguel voltou para sua posição anterior, com um sorriso largo.
Eu continuava vidrado nela. Senti meu peito se apertar, não sabia se
era pela falta de controle das reações do meu corpo, ou o fato de vê-
la tão acessível a todos.
— Puta que pariu! — exclamou meu amigo – despertando-me
de um transe incomum para mim. Limpei a garganta e o olhei sério.
— Você não perde tempo, mesmo, cara. Eu aqui, achando que está
na seca.
— Do que está falando?
— Do quê? Tá maluco!? Precisa ver sua cara, nem conseguiu
terminar a frase. Quem é aquela deusa? Nunca a vi aqui.
— Já bebeu tanto assim, Miguel? — desconversei, tomando o
líquido âmbar de uma vez. Não precisava ser muito inteligente para
saber que a garota me desestabilizava e isso não era nada bom.
Miguel riu para valer – jogando a cabeça para trás. Fez um
sinal para a garçonete que tinha pedido para ficar por perto e ela
logo estava ao seu lado.
— Querida, preciso que me faça um favor.
— É só pedir, sou toda sua — desmanchou-se, alisando o
rosto do meu amigo.
— Aquela garota ali. — Apontou para ela.
— Miguel! — vociferei – fuzilando-o com o olhar. Eu não
queria que ela se aproximasse. Uma mulher que me desafiava? Não
gosto de desafios. Minha rotina é minha segurança – me deixa no
controle.
Ignorando-me por completo, meu amigo continuou. A
garçonete estreitou os olhos na direção da noiva-sedutora e voltou a
olhar para o Miguel.
— Não sei quem é, acho que é o primeiro dia dela.
Miguel sorriu e me olhou, tentando entender o que estava
acontecendo. Seguramente, soube que eu já a conhecia. Ele tirou
uma nota de duzentos reais do bolso e colocou na mão da garçonete
– provocando-lhe um sorriso de satisfação.
— Dá um jeito de ela atender a nossa mesa, docinho —
concluiu e eu desaprovei com um olhar sanguinário.
Ficamos observando a garçonete caminhar até ela. As duas
se cumprimentaram e, assim que a garçonete falou no ouvido dela, vi
quando seu olhar fitou nossa mesa. No cruzamento dos nossos
olhos, tive certeza de que precisava correr. Como dois mais dois são
quatro, aquela garota tiraria minha vida do lugar, e isso era o que eu
menos queria.
A passos lentos, sem desviar o olhar – claramente me
desafiando –, ela veio até à nossa mesa.
— Boa noite, senhores, em que posso ajudá-los? —
perguntou, toda recatada – contrastando completamente de sua
aparência.
Miguel a olhou de cima abaixo e abriu um sorriso maroto.
— Como se chama, gatinha?
Ela olhou para mim e hesitou. Ergui uma sobrancelha –
tentando esconder que meu controle estava por um fio.
— Yasmin — respondeu baixinho.
— Yasmin — repetiu Miguel. — Docinho, acho que já conhece
meu amigo, então vai ser mais fácil atender aos caprichos dele.
Seu corpo endureceu de imediato.
— Não estou aqui pra isso! — esquivou-se e nos deu as
costas.
Antes que eu pudesse pensar em minhas atitudes, já estava
em pé, correndo atrás dela. Segurei seu braço, ela me olhou
assustada.
— Se está aqui, tem que me servir — alertei – cerrando os
dentes.
Ela arregalou os olhos e engoliu em seco.
— Me solta.
Soltei seu braço e recuei um pouco – aturdido. Não sabia o
que estava acontecendo comigo. Mulher nenhuma tinha me feito
perder o controle daquela maneira.
— Desculpe — balbuciei e ela meneou a cabeça.
— Não sou prostituta — continuou, olhando diretamente nos
meus olhos.
— Está fazendo o que aqui, então?
— Isso é uma casa noturna, não um prostíbulo — argumentou
– cruzando os braços e erguendo o queixo. Quando pensei em
rebater, um rapaz chegou perto e passou o braço pelo seu ombro.
— O que tá acontecendo aqui? Esse cara tá te assediando?
Ri de nervoso e balancei a cabeça.
— Era só o que me faltava — resmunguei.
Yasmin ficou me analisando, ponderando o que responder ao
rapaz que nos interrompeu.
— Tudo bem, Enzo — afirmou e sorriu. — Já nos
conhecemos.
O rapaz enrugou a testa e olhou de mim para ela, algumas
vezes.
— De onde conhece um Bennett, bombom?
Fechei os olhos e cerrei os punhos ao lado do corpo. Pronto, o
nome da família era o que sempre vinha à frente. Parecia que o resto
não tinha importância nenhuma. Mesmo eu sendo um gênio da
tecnologia, sempre carregaria o carma de ser valorizado pelo meu
nome, não pelo meu trabalho.
Não esperei que aquele assunto continuasse, a menção do
nome da minha família foi a gota d’água. Voltei enfurecido para a
mesa. Até aquele momento, o barulho e aquele mar de pessoas não
tinham me incomodado, porém, não ficaria ali nenhum minuto a
mais.
Acolhida

Yasmin

Fiquei vislumbrada com a imponência do escritório do gerente,


assim como o resto. Cores quentes; espelhos por todos os lados;
sofás e poltronas; no meio da sala, uma mesa robusta de madeira
escura. Com iluminação neon embutida no gesso do teto – deixando
o ambiente sensual.
Antônio ergueu o rosto da tela de seu laptop e abriu um
sorriso, ao nos ver entrando em sua sala. Assim que ficou em pé e
veio até nós, comecei a entender o porquê estava sendo privilegiada.
Qualquer um podia notar os olhares entre ele e o Enzo.
— Seja bem-vinda, Yasmin.
Meu sorriso em resposta foi bem nervoso. Gostaria de não me
sentir insegura, mas toda a segurança que eu construí no caminho,
foi derrubada com o olhar dele.
Teria que descobrir quem ele era e por que frequentava
aquele clube. Não que não fosse um lugar luxuoso – à altura dele,
mas me pareceu tão sério no carro. Passamos quase uma hora
juntos e trocamos meia dúzia de palavras. Sentia que, a qualquer
momento, ele me largaria à beira da estrada, de tão incomodado que
estava. Tive medo até de me mexer, em tudo que eu tocava, ele
respirava fundo.
— Sentem-se — ofereceu o gerente – contornando a mesa e
voltando à sua cadeira – que mais parecia uma poltrona de rei.
Acomodados à frente de sua mesa, Enzo, percebendo que eu
espremia as mãos no colo, tomou à frente.
— Como eu te disse, Antônio, Yasmin vem de uma família
nobre, então, não tem experiência alguma nesse ramo.
Antônio ficou me observando calado. Coçou a nuca e puxou
uma boa quantidade de ar. Temi que me dispensasse, antes de eu
começar.
— Mas eu aprendo rápido, não se preocupe — defendi-me
rapidamente, sem dar a chance de ele desistir.
— Esse não é o problema — começou e parou novamente.
Levou seu corpo até a beirada da cadeira e ficou tamborilando os
dedos sobre a mesa.
— Sabe que estarei aqui com ela, o tempo todo, me conhece,
dou conta do meu serviço e ainda fico de olho nela — argumentou
Enzo – alcancei sua mão e apertei de leve – lançando-lhe um olhar
condescendente.
— Tenho certeza — afirmou o gerente, com um sorriso
preocupado. — Olha só, Yasmin, nossas meninas não são obrigadas
a fazer nada que elas não queiram, mas... — Parou um pouco e
olhou para o Enzo que meneou a cabeça – para que ele continuasse.
— O Enzo já me antecipou algumas coisas — adiantei-me.
— Ótimo, assim fica mais fácil. — Soltou o corpo no encosto
da cadeira – aliviado. — Você tem razão, Enzo, ela é muito bonita —
elogiou e sorriu de verdade.
— Obrigada.
— Acho até que não fez jus à aparência dela. Vai ser difícil
segurar os homens, teremos problemas, Enzo.
— Não se preocupe, eu sei me cuidar sozinha — garanti,
erguendo o queixo. Mesmo que por dentro estivesse desesperada,
eu não tinha outra escolha. Se amolecesse, teria que confrontar-me
com minha madrasta. Isso eu não faria – não mesmo.
— Te garanto que ela sabe — reforçou meu amigo, passando
o braço pelo meu ombro. Virei o rosto e beijei o dorso de sua mão.
Passamos poucas e boas, quando éramos mais jovens. Por
vezes, acudi meu amigo e vice-versa. Cada um lidando como podia
com seus monstros. Mesmo depois de sairmos da clínica, não nos
separamos. Isso que nos manteve no eixo. Enzo sabia muito bem o
que falava.
— Sendo assim, — prosseguiu Antônio, batendo com as mãos
nos braços da cadeira — vamos acertar os detalhes. — Meneei a
cabeça concordando.
Antônio me passou todas as instruções de como a casa
funcionava, quase tudo Enzo já tinha me dito. Aos poucos, fui ficando
segura. O gerente demonstrou uma grande confiança em mim, teria
que fazer jus.

— Bombom, vou te apresentar às meninas e ir para o meu


posto. Tudo bem? — Enzo avisou-me, assim que saímos da sala do
gerente.
— Claro que sim. Está me tratando como uma criança —
repreendi-o. Ele deu beijo na ponta do meu nariz e passou o braço
pelo meu – carregando-me para onde estavam algumas garotas que
trabalhavam ali.
— Meninas, essa é minha amiga, Yasmin. Vai trabalhar com a
gente, a partir de hoje — iniciou Enzo – chamando à atenção do
grupinho que se arrumava para iniciar a noite. — Quero que vocês a
tratem muito bem, hein! Assim como fizeram comigo, quando
cheguei, posso contar com vocês?
A maioria abriu um sorriso em concordância, outras nem se
deram ao trabalho de parar o que estavam fazendo. Não sou uma
pessoa que depende de aprovação dos outros para atingir meus
objetivos. Não passo por cima de ninguém, no entanto, não deixo
que passem por cima de mim. Ou seja, embora o Enzo estivesse me
enturmando, não seria aquele ato que mudaria meu comportamento.
Uma garota loira, com um sorriso encantador, veio até mim.
— Seja bem-vinda, querida, o Enzo já te mostrou o seu
espaço? — perguntou, sem tirar o sorriso do rosto – alisando meu
braço.
— Clara, vou deixá-la sob seus cuidados, já estou atrasado.
— Olhei feio para o meu amigo, que entendeu que não precisava de
todo aquele circo. Ele assoprou um beijo e saiu.
— Muito obrigada, Clara, estou bem, não precisa se
incomodar.
— Imagina, não é incômodo algum, venha aqui que vou te
mostrar tudo.
Fiquei constrangida, com toda a atenção recebida. Clara não
mediu esforços para me apresentar cada pedaço da casa e,
enquanto me mostrava tudo, ia me dando dicas. Me recriminei, com
o meu primeiro pensamento, quando Enzo me apresentou a elas.
Mesmo que as outras não fossem nem metade da Clara, só ela, já
era suficiente para me sentir em casa.
Ao terminarmos o tour, sentia-me completamente segura,
sabia que lidaria bem com qualquer situação.
Antes de eu finalmente começar a trabalhar, nos juntamos
novamente com o grupo de meninas, que faziam a distribuição dos
espaços da casa que cada uma atenderia naquela noite.
— Vocês viram que o Bennett voltou? — disse uma delas.
Bennett? Eu sabia que tinha ouvido aquele nome, mas não
me ocorreu no momento ao que elas se referiam. Com toda a
certeza era uma família importante.
— Nem se empolgue, ele fica no canto dele e não deixa
ninguém se aproximar.
— Então vou atender a mesa dele.
— Não viu que já tem gente lá, maluca? O amigo dele é o
oposto dele e, logo que chega, escolhe quem vai atendê-los.
As duas estavam brigando para atender uma mesa, por causa
de um homem? Franzi o cenho e fiquei curiosa, deveria ser um deus.
— De quem elas estão falando? — cochichei perto do ouvido
da Clara.
— Não sabe quem são os Bennett? — Fiz que não com a
cabeça. — Menina, de que planeta você é!? — Dei de ombros. —
Venha aqui. — Clara me puxou para um canto, onde conseguíamos
ver a mesa que elas disputavam. — Ali, aqueles dois, tá vendo?
Engoli em seco e estremeci.
— Qual deles é um Bennett e quem são esses Bennett? —
indaguei, torcendo para o meu instinto estar errado. Porque eu sabia,
desde o momento que caí na besteira de entrar no carro luxuoso,
que o cara era alguém importante. Afinal, tinha um segurança o
escoltando.
— É uma das famílias mais ricas do Brasil, Yasmin. Como
nunca ouviu falar deles?
— Sei lá. Não acompanho notícias.
— É, percebi. Tudo bem, eu te entendo — ponderou, voltando
a alisar meu braço. — Eles são donos da maior empresa alimentícia
do país.
— Ah, agora sim, associei o nome. — Sorri.
— Aquele ali, o mais sério. — Apontou para ele e eu gelei.
— Como ele se chama — perguntei, quase engasgando.
— Enrico. Faz um tempo que vem aqui, mas só o amigo se
diverte. Acho que só vem para beber, sei lá.
Concordei com a cabeça e respirei fundo. Sem saber o que
pensar. Aquele calor que permeou minha pele, quando o vi
novamente, transformou-se em frio na espinha. Ele, certamente,
fugiria de mim, assim que percebesse que eu trabalhava no local.
— Yasmin, está tudo bem? — interpelou Clara – tirando-me da
minha súbita letargia.
Chacoalhei de leve a cabeça e abri meio sorriso.
— Sim — afirmei, arrumando a postura. — Estou pronta.
— Já gostei de você.
— Eu também, de você.
— Aqui, somos uma grande família, Yasmin. Claro que, como
em todas as famílias, têm aquelas mais chatinhas, mas é só ignorar.
— Fico feliz em saber, Clara. Enzo é como um irmão pra mim
e, estar com ele em um lugar onde vou poder considerar como
família, me deixa mais segura.
— Você pode contar comigo, sempre — prontificou-se e,
dessa vez, fui eu a alisar o braço dela.
— Obrigada.
— Sabe, cada uma de nós tem uma história, poucas têm vida
fora daqui. Nos apoiamos, umas nas outras. — Meneei a cabeça e
pensei o quanto aquilo seria minha realidade, afinal, assim que meu
pai faleceu, eu soube que teria que seguir sozinha. Mesmo que, não
muito tempo depois, fiquei sabendo das exigências dele em seu
testamento, no meu íntimo, sabia que não conseguiria cumprir. —
Sei que tem o Enzo, mas não hesite em se apoiar na gente, vamos
compreender, qualquer que seja sua história.
Meu sorriso expandiu-se e, de supetão, Clara me puxou para
um abraço. Inicialmente, endureci o corpo, mas logo relaxei e me
deixei ser aceita – sem julgamentos e preconceitos.
— Agora, você está pronta — atestou Clara – soltando-me de
seu abraço apertado. Concordei sem nada a dizer, sentindo-me
acolhida.

Antônio já tinha me dado as coordenadas da noite, Clara só


me passou segurança – o que foi muito bom.
Depois de nossa interação calorosa, cada uma das meninas
foi assumir seu posto, assim como eu.
Andei confiante pelo salão, que estava relativamente vazio –
segundo a Clara, pois era cedo. A noite estava apenas começando.
No meio do caminho, uma das garçonetes me parou.
— Oi, é o seu primeiro dia?
— Olá, sim.
— Que legal, nossa, você é bonita pra caralho!
— Oh! — Fui pega de surpresa, pela sinceridade da garota. —
Você também — devolvi o elogio, sendo sincera. Para falar a
verdade, não tinha ninguém que não fosse, ali.
— Obrigada, mas, sério, você é acima da média. — Sorri de
canto e baixei um pouco os olhos. Não era a primeira vez que ouvia
aquilo, no entanto, nem sempre, foi algo bom. — Olha só —
continuou —, tá vendo aquela mesa ali? — Apontou para a mesa
dele e o calor tomou conta da minha pele novamente. Fiz que sim
com a cabeça. — Eles querem que você os atenda. Aliás, eu sou a
Lili e você, como se chama?
— Yasmin — respondi no automático, porque continuava com
os olhos fixos nele. Que também não desviava o olhar de mim.
— Eu sei que tem uma função um pouco diferente da minha,
mas podemos atender juntas, você só me dá assistência, o que
acha? Antônio deve ter te dito que, mesmo que delimitamos os
espaços que vamos trabalhar na noite, quando o cliente solicita,
temos que atendê-lo. — Lili não parava de falar e eu tentava
assimilar.
Sua beleza era diferente da Clara, mas seu carisma parecia
ser o mesmo. Seus cabelos pretos e lisos, até a cintura, sua pele
branca como leite e seus olhos azuis como o oceano, lhes garantiam
uma beleza acima da média – assim como ela tinha dito da minha.
— Claro — concordei e ergui o queixo – pronta para me
posicionar. Se o gerente confiava em mim, mostraria que merecia
sua confiança.
Caminhei até a mesa e o que aconteceu me deixou
apavorada. Porque, se fosse daquela maneira, com todos os
clientes, seguramente, não estaria apta ao trabalho.
Graças ao socorro do Enzo, consegui me recompor para dar
continuidade à noite. Só me senti completamente aliviada e, ao
mesmo tempo, apreensiva, quando o vi saindo apressado da casa.
Mil coisas passaram pela minha cabeça e a que mais me
atormentou, o resto da noite, foi que o Antônio, certamente, me
despediria – assim que soubesse que seu cliente VIP-famoso tinha
se desentendido comigo.
O Embate

Gabrielle

O dia não poderia ficar pior. Ponderei se tinha sido a melhor


escolha sair do “casulo”. Respirei fundo e continuei – sabendo que
não teria como escapar daquele embate. Já tinha obtido tempo
demais. Sentei atrás da minha mesa, como quem não quer nada e
João Pedro sentou-se à beirada dela – com uma expressão
provocativa.
— O que foi? — indaguei – querendo socar a mão nele.
— Melhor você levantar essa bunda daí e entrar na sala,
antes que o Bento venha te buscar, com aquele jeito todo “carinhoso”
dele. — Ergui o dedo do meio ao meu parceiro. João Pedro riu e foi
para a mesa dele – balançando a cabeça.
Olhei em direção à sala e o olhar do sargento foi de arrepiar
todos os pelos do corpo. Sem escolha, levantei-me e fui, a passos
lentos – tentando adiar ao máximo o confronto com o imbecil.
— O que está fazendo aqui? — vociferei, assim que fiquei de
frente com Henry.
O sorriso sarcástico que surgiu em seus lábios elevou ao
máximo meu ódio. Senti meus nervos pularem. Enfiei as unhas nas
palmas das mãos e cerrei os dentes. Queria entender o porquê de
ele me desestabilizar tanto. Naquele momento, não conseguia
distinguir o que era mais assustador nele: a beleza estonteante; a
postura imponente; o terno exorbitantemente caro ou o sorriso que,
não fosse o fato de termos o mesmo sangue, mexeria com partes
indecentes do meu corpo. Para dizer bem a verdade, mesmo esse
fato estar gritando aos meus ouvidos, ele conseguia mexer comigo –
inevitavelmente.
— Olá, pra você também, detetive — respondeu com
sarcasmo à minha agressividade.
Me aproximei mais – ficando praticamente no meio de suas
pernas grossas – que estavam escancaradas, totalmente à vontade.
Cruzei os braços e ergui o queixo.
— Fala logo que porra tá fazendo aqui! — insisti entredentes.
As batidas do meu coração quase me ensurdeciam. Precisava
encontrar o equilíbrio – rápido.
Não podia deixar que o imbecil me tirasse a razão daquela
forma.
— Uma mulher tão linda, vestida e falando como macho...
Argh! — censurou-me e ficou em pé – fechando o botão de seu
paletó. — Teremos muito trabalho para te transformar em uma
Bennett.
Como não me movi, ficamos a milímetros de distância, podia
sentir o seu perfume masculino e o calor de sua pele bronzeada.
Fiquei me perguntando quando ele tinha ido para praia, afinal, o cara
só sabia trabalhar. Foi só eu pensar nele, na praia, me veio – sem
que eu pudesse impedir –, a visão do imbecil de sunga. Me segurei
para não soltar um gemido. Caralho, Gabrielle, se controle, porra! Ele
é seu irmão!
Ergui os olhos e me assustei com o olhar dele. Não precisava
de bola de cristal, para saber que estava pensando algo muito
parecido com o que eu pensava. As pupilas se dilataram e a boca
ficou semiaberta. O que isso, meu Deus!?
Eu precisava e ele, certamente, também – urgentemente –,
fazer sexo. Aquela tensão sexual entre nós tinha que parar por ali.
— Que merda vocês estão fazendo? — grunhiu Bento, ficando
em pé – bruscamente – tirando-nos daquele momento
tremendamente inadequado.
Limpei a garganta e dei uns passos para trás – balançando a
cabeça. Henry respirou fundo e voltou sua atenção ao sargento.
— Preciso levar sua detetive, sargento — comunicou e eu
retesei de imediato.
— Tá maluco? Não vou com você a lugar algum.
O sorriso irônico voltou aos seus lábios. Lentamente, veio até
mim e pegou em meu braço – aproximando-me dele. Inclinou seu
rosto até meu ouvido.
— Bem-vinda ao jogo, detetive, agora, você é uma Bennett —
sussurrou e eu encolhi os ombros – com o arrepio que seu hálito
provocou no meu pescoço.
Fechei os olhos e segurei os lábios nos dentes – apavorada
com aquela verdade. Queria gritar, dizer para ele sumir dali. Que
nunca mais aparecesse na minha frente, mas sabia que esse dia
chegaria. Me preparei, por trinta anos, para aquilo.
Chegara a hora de fazer justiça, pela minha mãe e por tantas
outras.
Controlando-se

Enrico

Meus nervos pulavam e meu coração disparava. Meu autocontrole


se perdia entre meus dedos. Apertava os punhos ao lado do corpo e
cerrava os dentes, enquanto aguardava meu motorista chegar. Não
dei satisfação ao Miguel e deixei claro, com o olhar que lhe lancei,
que não era para vir atrás de mim. Mesmo correndo o risco de ser
visto, pedi ao Francisco que me buscasse e me tirasse dali o mais
rápido possível.
Passei a mão pelo pescoço, na tentativa de aliviar a pressão
no local. Ver o domínio escapar de mim fez com que, até mesmo
engolir, se tornasse um trabalho árduo. Podem me achar sistemático,
complicado, metódico, como quiserem, mas eu preciso estar à frente,
caso contrário, meu corpo começa a dar sinais de alerta.
O Bentley[2] parou próximo e, antes que Francisco pudesse
sair para me abrir a porta – como de costume –, entrei exasperado
no banco detrás.
— Senhor, precisa de ajuda? — questionou – virando seu
corpo para mim. Sua expressão denunciava a minha. Seguramente,
assustadora.
— Me tire daqui — ordenei e apoiei a cabeça no encosto do
banco – fechando os olhos e respirando fundo.
Agradeci por ter ido com camiseta de gola “V” e calça jeans,
se estivesse de terno e gravada, teria morrido sufocado.
§§§§
Assim que me vi dentro da minha cobertura, onde cada item
estava em seu devido lugar: os quadros na parede perfeitamente
alinhados, os porta-retratos distribuídos simetricamente nas
bancadas, tapetes e cortinas ornando e vidraças milimetricamente
limpas, senti meu corpo tomando sua forma novamente.
Puxei uma boa quantidade de ar e abri e fechei os punhos
algumas vezes. Fui até a cozinha e peguei uma garrafa de água
mineral na geladeira. Tomei, praticamente em um gole só.
— Enrico, o que aconteceu? — Cida questionou, aparecendo
de penhoar na cozinha – com o cenho franzido.
Abri a geladeira novamente e peguei outra garrafa de água.
Ao invés de tomá-la, coloquei no pescoço e fechei um pouco os
olhos – buscando o controle total da minha respiração.
O clima de Curitiba, na maior parte do ano, é frio. Quando
não, está fresco, dificilmente faz um calor exaustivo. No entanto, meu
ato, naquele momento, era como se estivesse fazendo uns trinta
graus de madrugada.
Minha governanta encostou-se à ilha da cozinha e cruzou os
braços – esperando alguma explicação.
Cida tem um espaço só dela na cobertura, em geral, passa a
semana sem voltar para casa e, aos finais de semana, fica com sua
família. Na verdade, visita sua irmã e sobrinhos. Ela é sozinha,
quando mais jovem, teve algumas desilusões amorosas e preferiu
não se casar. Esse fato a fez se apegar a mim, às vezes, me
incomoda, pois pega muito no meu pé.
— Estou bem — afirmei, por fim – arrumando a postura. Abri a
garrafa de água e tomei de uma vez todo o seu conteúdo. O olhar da
Cida foi ameaçador, ela não deixaria passar – nunca deixa. — Não
tinha que estar com sua família? É final de ano — cobrei-a, tentando
desfocá-la de mim.
— Digo o mesmo — rebateu – sem recuar.
— Manu está em Lua de Mel — justifiquei-me e fui até o lixo
reciclável descartar as duas garrafas de água que tinha tomado.
— Não vai passar com a Leandra?
A olhei feio e ergui uma sobrancelha.
— Você e o Miguel estão muito incomodados com a minha
vida — rosnei e fui andando em direção ao meu quarto. Senti que
minha governanta vinha atrás.
— Até o dia que começar a levar a sério sua felicidade —
insistiu, parei no meio do corredor e fiquei de frente com ela.
Minha altura a intimidou um pouco – fazendo-a dar uns
passos para trás.
— Sou prático.
— Ser prático quer dizer...
— Chega! — interrompi-a —, estou cansado e vou dormir.
— Onde ela está, agora? — Bufei e meneei a cabeça.
— Com meu pai, sabe o quanto eles se amam.
— Isso é cômico, não sei por...
— Pare! Agora, vá dormir. Antes que eu faça você pegar suas
coisas e ir para sua casa — ameacei sério.
Ela viu que eu não brincava e concordou com a cabeça.
Ergueu as mãos em rendição e foi para o seu quarto.
Entrei na minha suíte e rastreei o local – vendo todos os itens
em seus devidos lugares. Fui até as portas de vidro que dão acesso
à piscina e saí no terraço. Encostei-me ao parapeito de vidro e fiquei
olhando a cidade de cima. Embora seja uma capital, naquele horário,
estava quieta. Como se tudo conspirasse para que minha mente
retornasse a ela.
Muitas perguntas rondavam minha cabeça:

“Por que ela estava ali?”


“Por que fugiu de seu próprio casamento? Ou será que estava
em alguma orgia maluca que precisava estar vestida de noiva?”
“Por que mexeu tanto comigo?”
“O que ela tinha de diferente das outras?”

— Que merda está acontecendo comigo? — praguejei


baixinho e me afastei do parapeito.
Indo contra todos os meus princípios, me vi tentado a entrar
na piscina. Embora fosse aquecida, a brisa da madrugada estava
bem gelada. Mesmo assim, eu soube que entrando ali aplacaria um
pouco de todo aquele calor que a Yasmin deixou dentro de mim.
Tirei rapidamente toda a roupa, colocando-a dobrada em cima
de uma das espreguiçadeiras e entrei de uma vez na água.
Mergulhei e sentei no fundo da piscina. Fiquei ali, de olhos fechados,
soltando lentamente o ar que tinha tomado antes de submergir.
Numa busca insana de me encontrar novamente. De saber que sairia
dali e teria o total controle sob meus atos e sentimentos.
§§§§
O dia seguinte foi bem-vindo. Não fosse o fato de ser
madrugada, teria ido para a empresa trabalhar.
— Bom dia, Márcia — cumprimentei minha assistente, que me
respondeu e seguiu-me até minha sala com o tablet nas mãos.
Cumpri com a minha rotina de tirar o paletó e pendurá-lo no
mancebo. Abri o primeiro botão da camisa e afrouxei um pouco a
gravata; para completar, dobrei as mangas da camisa até os
cotovelos. Em todo o processo, Márcia permaneceu em pé, em
frente minha mesa – aguardando que eu me sentasse e fizesse um
sinal para que se acomodasse.
Nenhum dos meus colaboradores quebra os protocolos que
foram estabelecidos implicitamente comigo. Eles sabem o quanto
sou ordenado quanto a isso.
— O que temos pra hoje? — indaguei, ligando meu iMac
branco.
— Pouca coisa, a maioria das empresas está de férias. —
Assenti e fiz um gesto que continuasse. — Seu irmão ligou duas
vezes, disse que é urgente.
— Henry?
— Isso.
Cocei a nuca e senti uma pontada na têmpora de imediato.
Lidar com o Henry é a tarefa mais complicada de ser um Bennett. Às
vezes, até mais do que lidar com o Isaac Bennett. Isso porque,
comigo, ele pega leve. Sou muito bom no que faço e ele sabe que,
nem mesmo ele, poderia assumir o meu posto.
Márcia passou o restante da minha agenda do dia e se
levantou para sair, antes que continuasse, a chamei de volta.
— Sente-se — pedi e ela atendeu ressabiada. — Tire essa
semana de folga. — Me vi dizendo e estremeci, em pensar que
bagunçaria toda minha vida. Só não podia perdê-la, seria muito
complicado ter que começar tudo de novo com uma nova pessoa.
Seus olhos brilharam e o sorriso dominou sua face.
— Tem certeza, senhor?
— Não — confessei e ri de nervoso —, mas sei que precisa —
esclareci e passei as duas mãos no cabelo – desviando o olhar.
— Posso pedir para o RH enviar um temporário.
— Nem pensar — rebati na lata —, imagine a bagunça que
viraria minhas coisas. Esquece essa possibilidade. — Respirei fundo.
— Preciso ver meu pai, talvez eu devesse aproveitar...
— Ótima ideia, assim...
— Não — respondi alto, quando pensei o quanto me chatearia
indo até São Paulo para ver o senhor Isaac Bennett em uma cadeira
de rodas. Ele, certamente, estaria mais intragável do que o normal.
— É melhor então deixar para uma outra ocasião — sugeriu
minha assistente, demonstrando claramente sua decepção.
Sorri, mesmo sem vontade, tentando ser empático, afinal, nem
todas as pessoas são práticas e necessita dessa coisa de família
reunida aos finais de ano.
— Vou dar um jeito — garanti e fiz um gesto de que ela podia
ir.

Assim que a Márcia fechou a porta em suas costas, alcancei o


celular e liguei para a pessoa que eu menos queria ouvir, mas que
não tinha alternativa.
— Henry falando — atendeu imponente, mesmo que o meu
número estivesse aparecendo em seu identificador.
— Sou todo ouvidos — respondi, seguindo seu exemplo de
“educação”.
— Papai está com amnésia pós-traumática — comunicou,
com sua voz severa.
— Isso implica em quê?
— Ele não se lembra de quem o atacou, nem sabe o porquê
de estar em uma cadeira de rodas. Está todo esquisito, não estou
gostando das atitudes dele.
— Esquisito como?
— Quando soube da detetive, pediu que eu fosse atrás dela,
quer que eu a traga para a empresa.
— E por que isso é esquisito? Se ela é filha dele, tem o
mesmo direito que nós.
— Porra nenhuma, não vou deixar “aquelazinha” se meter nos
meus negócios — vociferou na linha e eu bufei, balançando a cabeça
em discordância.
— Não são seus negócios, Henry, são os negócios da família
que ela faz parte. Nem sei por que está todo nervoso com isso, a
empresa é bilionária, não vai mudar em nada sua vida.
— Claro que vai, imagine aquela mulher aqui, comigo... —
Ouvi sua respiração pesada na linha. — Todos os dias, não posso
deixar.
Franzi o cenho e fiquei pensativo uns minutos, ponderando se
estava interpretando corretamente as reações dele.
— Está apaixonado por ela? — questionei por impulso,
torcendo para estar errado.
— Enlouqueceu, Enrico? Ela é nossa irmã — berrou e eu
afastei o aparelho do ouvido.
— Só sabemos disso agora — esclareci.
A linha ficou muda, um tempo, comprovando minha tese.
— Preciso que venha pra cá — continuou Henry, mudando
completamente de assunto.
— Por quê?
— Não aguento mais a Leandra lambendo o saco do papai,
como você aguenta?
— Ele gosta.
— Sim, mas eu não, então, por favor, venha buscar aquele
encosto.
— Não posso sair da empresa, a maioria do pessoal está de
férias coletivas, tenho que manter as coisas funcionando, você sabe
disso.
— Me esqueço que você é o mandante de todas as máquinas
dessa potência. Pelo menos um é páreo pra mim. Porque os seus
outros irmãos são todos inúteis.
— Não está sendo justo. Primeiro, são nossos irmãos e todos
são importantes para a empresa. Já sabe qual o departamento a
detetive vai assumir? — provoquei, gostando de saber que alguém
estava conseguindo desestabilizar o Henry, peito de aço.
— Nenhum, porra! Ouviu tudo o que eu disse? Ela não pode
ficar aqui — grunhiu —, ao meu lado, todos os dias. — Quando
terminou de falar, estava ofegante.
— É mais grave do que achei — aticei e sorri. Dificilmente eu
sorrio, mas ver Henry em uma situação difícil, conseguiu arrancar um
sorriso genuíno de mim.
— Vai vir quando, Enrico?
— Vou ver na minha agenda, até mais.
Não esperei que ele continuasse, desliguei a ligação e joguei
o aparelho em cima da mesa. Fechei os olhos e a primeira imagem
que apareceu foi a dela: vestida com aquele vestido preto que mal
cobria sua bunda.
A Invasão

Yasmin

Meu relógio biológico estava uma bagunça total. Abri os olhos e


não sabia que horas eram e nem em que dia da semana estávamos.
Alcancei o celular na pequena cômoda ao lado da cama e, assim que
visualizei as horas, sentei-me rapidamente. Inclinei a cabeça e apoiei
na cabeceira – bufando. Demoraria para eu me acostumar com
aquela nova rotina – trabalhar à noite e dormir de dia.
— Sai da minha frente, seu boiola do caralho.
Meu corpo quase colapsou ao ouvir a voz do cretino. Charles
nunca gostou do Enzo, em todas as oportunidades que teve, o
agrediu verbalmente.
— Só por cima do meu cadáver, homofóbico do cacete —
retrucou meu amigo.
— Isso é fácil de resolver — ironizou a voz da pessoa que me
atormentou por muitos anos: Gabriel.
Claro que os dois se uniriam para me levar de volta. Mesmo
que não se suportassem, eram dois cachorrinhos adestrados da
Adélia.
— Vou chamar a polícia — berrou Enzo e, pelo som dos
passos, soube que vinham até o quarto em que eu estava.
Respirei fundo e fiquei em pé. Caminhei até o closet para me
vestir, usava apenas uma camiseta comprida, mais nada. Um
estrondo da porta batendo na parede provocou um salto do meu
corpo. Involuntariamente, puxei a camiseta para baixo, assustada.
— Aí está você, noivinha — desdenhou Charles – com um
sorriso amedrontador.
Apesar de um frio cortar minha espinha, ergui o queixo e o
afrontei:
— O que quer aqui, Charles?
— Tá zoando com a minha cara?
— Nunca falei tão sério.
— Vim te buscar, porra! — avisou e veio para cima de mim –
pegando em meu braço.
— Me solta, idiota. Não ficou claro que não te quero?
Ele me puxou para o seu corpo. Nos encaramos por uns
minutos. Seus olhos se estreitaram e um sorriso de canto surgiu em
seus lábios.
— Achou que me deixaria no altar e ficaria por isso mesmo?
— Vai fazer o quê? — aticei-o – começando a ficar com medo.
Seus dedos apertavam meu braço; o peito subia e descia com força;
as narinas se expandiam; os olhos fumegavam. — Afetei seu ego,
não foi?
Charles levantou a mão para mim e seu braço foi segurado no
ar.
— Solta ela — ordenou Gabriel.
— Vocês têm um minuto pra sair, estou ligando pra polícia —
ameaçou Enzo – atrás deles.
Charles me soltou – sem deixar de me encarar. Gabriel se
aproximou e me olhou de cima a baixo – com cara de nojo.
— Perdeu a vergonha na cara?
— Vai se foder! — praguejei – fazendo careta.
Ele se aproximou ainda mais.
— Coloque uma roupa que vou te levar pra casa — sussurrou
– olhando dentro dos meus olhos.
Ri com vontade – jogando a cabeça para trás.
— O que colocaram na bebida de vocês? Não me conhecem?
Acharam que chegariam aqui e me levariam de volta?
Dessa vez, Gabriel quem pegou em meu braço e travou o
maxilar.
— Yasmin, faça o que estou mandando — rosnou e eu ri mais
ainda – quase engasgando-me.
— Por favor, meu apartamento foi invadido, preciso de
socorro. Eles estão agredindo minha amiga. — Enzo falou ao
telefone.
Gabriel me soltou e olhou para o Charles – fazendo um sinal
com a cabeça para irem embora. Os dois se aprumaram e
caminharam para a porta. Antes de saírem, Charles olhou para trás e
continuou com as ameaças:
— Isso não vai ficar assim, vai me pagar, Yasmin.
Dei de ombros e fiz um bico com o lábio inferior. Demonstrava
segurança, mas sentia as pernas bambas. Não esperava que eles
fossem tão agressivos. Tanto um, quanto o outro, tinha muita
influência. Para inventarem uma história e se safarem, não custava
nada.
Aguardamos, até ouvirmos a porta da sala fechar. Soltei os
ombros – aliviada.
— Me desculpe, Enzo.
— A culpa não é sua.
— Não deveria ter te enfiado nessa história.
— Está me ofendendo.
Por um tempo, fiquei olhando para ele, sem saber o que dizer
– mordendo os lábios.
— Você chamou mesmo a polícia?
— Claro que não, né! Só precisava que aqueles dois
“trogloditas” sumissem daqui.
Sorri e respirei, mais uma vez, aliviada.
— Obrigada.
— Disponha, bombom. Venha aqui. — Em poucos passos,
estava de frente para ele. Enzo esticou o punho entre nós e eu
coloquei o meu ao lado do dele. — Encaixe as peças e fiquei mais
forte.
— Peças encaixadas. Juntos somos mais fortes — repeti o
nosso lema, desde quando entendemos que poderíamos lutar juntos.
Uma “laranja” se formou na minha garganta. Ergui os olhos e
meu amigo não estava diferente. Nos jogamos nos braços um do
outro e nos apertamos.
— Te amo, encrenqueira — confessou e beijou o topo da
minha cabeça. Funguei em seu ombro.
— Eu mais ainda, meu protetor.
Ficamos naquela posição por um bom tempo, até nos
sentirmos melhores. Enzo não admitiria nunca, mas, sem sombra de
dúvida, ficou com medo do que os dois malucos pudessem fazer.
— Temos um assunto pendente — comentou, soltando-se de
mim e sentando na beirada da cama. Franzi o cenho.
— Do que está falando?
— Deixa de ser cínica, Yasmin. De onde conhece o gostosão
do Bennett?
— Ah! É isso? — Fiz um gesto com a mão de não ter
importância e lhe dei às costas – indo ao banheiro da suíte.
Coloquei pasta na escova de dentes e comecei a fazer a
higienização da minha boca. Enzo encostou-se ao batente da porta.
— Vai mesmo me deixar no escuro? Tem ideia do quanto
aquelas meninas tentam roubar a atenção do cara e você, no
primeiro dia, o tira da mesa pra correr em sua direção? O que foi
aquilo, por sinal? Ele te puxou pelo braço, foi isso mesmo que eu vi?
Enzo não desistiria e não seria justo com ele não lhe contar a
verdade. Quando ele me pegou no posto, contei-lhe sobre ter pego
uma carona, mas não detalhei. Não achei que fosse rever o bonitão.
Cuspi a espuma no lavatório e enxaguei a boca – com Enzo
no meu encalço. Terminei de me lavar e, enquanto enxugava o rosto,
buscando uma versão resumida do fatídico dia do meu quase
casamento, desviei o assunto:
— Como o Gabriel e o Charles entraram no prédio? — Enzo
cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas – sem me dar passagem
para sair do banheiro. — Vou te contar, Enzo, não precisa apelar. Só
estou preocupada com os dois que acabaram de sair daqui... Sabe
que eles vão voltar, não é mesmo!?
Meu amigo bufou e assentiu.
— Vou ter que ter uma conversa séria com o porteiro. Sabe-se
lá onde o indivíduo estava quando aqueles malucos entraram. Na
certa, aproveitaram a passagem de algum morador.
— Preocupante — comentei —, sai da minha frente, estou
com fome. — Cutuquei suas costelas e ele se encolheu. — Enquanto
encho o “bucho”, te conto.

Já passava das duas da tarde e tomávamos café da manhã.


Uma rotina na qual eu teria que me adaptar, principalmente, meu
estômago. Há algum tempo que eu vinha lutando para não ter uma
recaída. Cada vez que sentia náusea de algum alimento, lembrava-
me do quanto foi difícil minha recuperação na clínica.
— E só agora que me conta um babado desse? — recriminou-
me, Enzo, assim que terminei de relatar sobre a carona no carro do
bonitão complicado.
Mastiguei, pela milésima vez, o pedaço de pão que tinha
enfiado na boca – tentando fazer com que descesse. Se Enzo não
estivesse na minha frente, já tinha o tirado da boca e jogado fora.
Mesmo com fome, bastou apenas uma mordida para eu sentir-me
saciada. Engoli na marra, fechando os olhos e respirando fundo.
— Bombom?
Abri os olhos e Enzo me olhava com uma expressão de
preocupação.
— Estou bem — menti, para não o preocupar.
— Não minta pra mim, Yasmin? Sabe que se tiver uma
recaída o risco de não se recuperar é muito grande. Quer voltar pra
clínica, é isso?
Engoli em seco, sentindo meu estômago se revirar. Enzo
verbalizou o meu maior medo. Porque, sem o meu pai, certamente,
seria muito mais difícil de eu ficar bem novamente.
— Já disse que estou bem — repeti baixinho – desviando o
olhar.
Ele esticou o braço e alcançou minha mão – apertando-a.
— Estou aqui, bombom. Não precisa se preocupar, vamos dar
um jeito, ok?
O olhei novamente e sorri com os lábios fechados. Meneei a
cabeça – concordando. Precisava me firmar naquela promessa.
— Bom. — Fiquei em pé. — Vou dar uma arrumada no
armário do quarto que estou dormindo.
— Do seu quarto, você quis dizer.
— Do meu quarto — corrigi-me – revirando os olhos.
Virei-me e ele me segurou pelo antebraço.
— Te amo, malcriada — ciciou e eu joguei-lhe um beijo.
§§§§
Me arrumava, no vestiário da casa noturna, e parei – ouvindo
a conversa de duas garotas que se preparavam para assumirem
seus postos.
— Disseram que ele a pegou pelo braço — disse uma delas.
— Será que é verdade?
— Claro que sim. Acredita que ela se fez de difícil? O que a
gostosa está pensando? Acha que pode esnobar um Bennett? Aqui,
não vai durar nem um mês.
Estremeci e umedeci os lábios. Elas falavam de mim. Não
sabiam que eu estava do outro lado dos armários e escutava toda a
conversa. O pior é que não estavam erradas. Assim que o Antônio
percebesse que o cliente dele foi embora e não voltou mais, me
mandaria embora, sem titubear.
Alguns dias tinham se passado e o assunto continuava em
alta. Não sabia se torcia para ele voltar ou que desaparecesse de
vez.
No Trajeto

Gabrielle

Um misto de sensações me dominava. Ao mesmo tempo em que


meus nervos tencionavam, uma onda de coragem, de poder fazer o
que sempre quis, invadia meu cérebro. Quando Henry me disse que
o velho asqueroso queria me ver, fiquei na dúvida se aceitava ou
adiava, mais uma vez, o embate. A vontade de jogar na cara dele
sobre a condição em que se encontrava foi maior do que qualquer
outro sentimento. Ouvir o idiota do Henry dizer que teria que me
transformar em uma Bennett, atiçou mais ainda minha vontade de
fazer tudo ao contrário do que eles estavam acostumados. Mostrar-
lhes que sei jogar melhor.
Encostada à porta, no banco de trás do carro luxuoso, oposta
à que o Henry estava, eu olhava pela janela e evitava cruzar os olhos
com os dele. Só entrei no mesmo carro, porque o Bento,
praticamente, me obrigou. A porta do departamento policial
continuava com alguns repórteres e surgiram, num passe de mágica,
assim que o imbecil do Henry colocou os pés para fora do carro
imponente, uma quantidade incontável dos “abutres”. Não arriscaria
ir com o meu carro e ser perseguida.
— Sim, Lucca, estou levando a detetive — falou ao telefone e
eu não me dei ao trabalho de virar o rosto para ele.
Saber que o Lucca nos aguardava, deixou-me mais segura. O
impossível aconteceu: me apeguei ao Narciso. Embora, se ele
pudesse – se comeria –, é uma pessoa sensata. Sem contar sua
esposa, Valentina, que me tratou muito bem. Gostaria que todos
fossem como eles, mas, infelizmente, a pessoa que estava ao meu
lado é a mais intragável de todas e, mesmo assim, só o fato de estar
ao seu lado e sentir o seu cheiro, colocou meu corpo em alerta.
— Preciso sair mais — murmurei em pensamento.
— Como?
Olhei rapidamente para ele e balancei a cabeça negando.
— Nada, pensei alto.
O sorriso sarcástico voltou... controle-se Gabrielle.
— Posso te dar umas dicas de onde ir — continuou, como se
estivéssemos tendo um diálogo.
— Não comi cocô — rebati na lata.
Sua gargalhada estrondou dentro do carro. Vi pelo retrovisor
quando o motorista franziu a testa. Provavelmente, um fato histórico:
Henry gargalhando, mesmo que fosse de deboche.
O encarei, até que se recompusesse.
— Qual o seu problema, detetive?
— Os Bennett.
— Você é uma de nós.
— Fazer o quê, não podemos escolher nosso sangue. Tenho
que suportar esse carma.
— E o que pretende, já que decidiu expor ao mundo sua
identidade secreta? — ironizou e ergueu uma sobrancelha –
passando a língua pelos dentes superiores.
— Acabar com vocês, esse sempre foi o meu objetivo.
— Por isso, colocou nosso pai em uma cadeira de rodas?
— Tem prova de que fui eu?
— Não, mas vou conseguir, pode apostar.
— Boa sorte.
Segurei os lábios nos dentes e apertei as unhas nas palmas
das mãos – controlando-me para não voar no idiota. Nem sabia mais
o porquê de querer voar nele. Se para socar a cara dele ou para
fungar no pescoço; tocar a pele; senti-lo de verdade.
— Porra! — praguejei e virei novamente para a janela – com
os nervos pulando. Sentia as palmas das mãos queimarem.
Eu precisava, mais do que tudo, arrumar um namorado. Assim
desviaria o foco do meu meio irmão. Não podia ter deixado isso
acontecer, caralho!
— Você tem a boca muito suja e se veste muito mal. Vai ter
que mudar, se quiser fazer parte da empresa.
— Tô cagando para o que você acha. Vou mudar merda
nenhuma. E você não tem opção, tenho o seu sangue, sendo assim,
se eu quiser, farei parte da empresa e ponto final.
— Sabe, quando sou desafiado, jogo melhor ainda. Estou
louco para que comece logo, porque, até agora, você só ameaçou.
Respirei fundo e o encarei – pronta para o ataque.
A Proposta

Enrico

Detestei o fato de a Manu estar em lua de mel em plena passagem


de ano. Não me importo com datas, no entanto, esse ano é diferente
– preciso da minha irmã para conversar. É a única com quem
consigo me abrir. Ela me conhece, sabe o quanto estar no controle
da minha vida – em todos os âmbitos – para mim, é primordial.
Faz uns dias que saí daquela casa noturna e meu cérebro
ainda não se reorganizou. Por mais que eu seja racional, sei o
quanto um relacionamento é somente uma negociação, meu corpo
está me desestabilizando – tirando a ordem das coisas.
Já tinha ido até a empresa e adiantado o que podia; malhado,
por horas na academia da minha casa; tentado ler um livro;
procurado um documentário na TV; nada conseguiu prender minha
atenção. O silêncio da cobertura, que sempre me passou segurança,
me incomodava. Todos estavam com suas famílias.
Andava de um lado para o outro, ponderando se ligava ou não
para o Miguel. Meu amigo não me deixaria em paz, se soubesse o
quanto aquela maluca estava mexendo comigo. Me joguei no sofá,
inclinei a cabeça sobre o encosto e coloquei as duas mãos no rosto.
Conferi as horas: nove da noite.
— Miguel deve estar com a família — falei comigo mesmo. —
Afinal, hoje é dia trinta e um de dezembro. — Antes que eu
desistisse, levantei bruscamente e decidi ir sozinho. — Até os
“abutres” comemoram a passagem do ano, vou passar
desapercebido — tentava me convencer de que fazia a coisa certa.
Eu precisava, como precisamos de ar para respirar, vê-la
novamente. Nem que fosse de longe.
— Por que entrou no meu carro, Yasmin? Estava tudo
programado dentro do esperado. Não gosto de mudanças...merda!
§§§§
Foi a primeira vez que vi o clube tão vazio, embora ainda
fosse cedo. Não achei que a virada do ano fosse tão importante para
as pessoas. Nunca entendi essas coisas, o que muda? É um dia
como qualquer outro.
A Hostess me encaminhou à mesa de costume. Agradeci e
esperei que outra garota fosse me abordar. Torcia para que não
fosse ela, porque queria admirá-la de longe. Tentar entender o que
ela tinha de tão especial. Tirá-la de vez dos meus pensamentos e
voltar com a minha rotina. Com a minha segurança.
— Olá, que bom que você voltou, achamos que não voltaria —
cumprimentou, a mesma garota que tinha me atendido na última vez.
Franzi o cenho e a encarei.
— E por que eu não voltaria?
— Er... — gaguejou —, não, é que... — Mordeu os lábios e
olhou para os lados. Se aproximou. — Sei lá, você foi rejeitado —
confidenciou, toda sem graça.
Fechei os punhos em cima da mesa e não desviei o olhar dela
– com a expressão fechada.
— É isso que você acha?
Ela deu de ombros.
— Todo mundo acha.
Meneei a cabeça.
— Quero ser atendido pela Yasmin — ordenei – sem titubear.
Quem ela pensava que era para deixar que todos achassem que
tinha me rejeitado? Eu sou um Bennett, cacete!
— É que ela não atende mesas, sabe, posso...
— Chame seu gerente.
A garota empalideceu e engoliu em seco. Concordou com a
cabeça e saiu.
Meus dedos tamborilavam sobre a mesa e minhas pernas não
paravam de balançar. Não tinha certeza do que realmente estava
fazendo ali. Minhas atitudes estavam completamente fora do normal
e o diferente me assusta.
Não demorou muito para que a moça retornasse com um
homem.
— Boa noite, senhor Bennett.
— Enrico — o corrigi de imediato. Odeio que as pessoas
apenas vejam um cifrão na minha testa e, me chamar pelo
sobrenome, deixa isso evidente.
— Claro, Enrico. Sou o Antônio, gerente da casa. A Lili me
disse que gostaria de ser atendido pela Yasmin, é que...
— Não quero saber se não é a função dela.
— Não — Deu um sorrisinho nervoso. — É que ela ainda não
chegou. Embora, realmente, não seja função dela. Mas esse não é o
problema, podemos abrir uma exceção.
— Que horas ela... — Perdi a linha de raciocínio, assim que
ela apareceu no meu campo de visão. Mais linda do que me
lembrava. Andava completamente alheia ao que acontecia ao seu
redor, com um sorriso maravilhoso enfeitando seu rosto – abraçada
ao mesmo rapaz que nos interrompeu na noite em que fui embora.
Apertei os punhos e estreitei os olhos – acompanhando os dois. Será
que são namorados?
O gerente desviou seu olhar para onde estava o meu e
alargou o sorriso.
— Yasmin, querida — chamou-a e ela virou o rosto em nossa
direção. Seu sorriso desapareceu imediatamente. O rapaz cochichou
algo ao seu ouvido e a deixou.
Seus olhos se fixaram nos meus e eu não consegui disfarçar o
quanto estava vidrado nela. O vestido preto, marcando suas curvas,
com um decote que deixava pouco para imaginação e curtíssimo,
provocou um reboliço no meu âmago. Nunca fui ciumento, na
verdade, nunca nem prestei a atenção às roupas das mulheres, mas
com ela, tudo é diferente. Quero tomá-la para mim e escondê-la do
mundo. Sem nem mesmo a conhecer.
— Oi — disse, receosa.
— Esse cavalheiro gostaria que você atendesse a mesa dele,
tudo bem pra você?
Ela me encarou e umedeceu os lábios. Meu peito se expandiu
com as batidas violentas do meu coração. Que merda essa garota
tem?
— Sim — respondeu baixinho e ergueu o queixo –
demonstrando que não seria tão fácil como eu esperava.
— Ótimo, querida. Tenha uma boa noite, Enrico.
Meneei a cabeça, sem desviar o olhar dela. Ficamos numa
batalha de olhares por “intermináveis” minutos. Até ela quebrar
nossa conexão.
— Estou à disposição, senhor — ironizou.
Sorri de canto, adorando saber que minha noite seria
divertida.
— Você gosta de jogar? — indaguei e um vinco se formou no
meio de suas sobrancelhas. — Os Bennett jogam como ninguém e
não jogamos para perder — completei, já que ela não respondeu
minha pergunta.
— Olha só, não sei o que você quer de mim, mas não...
— Me traga um uísque duplo com duas pedras de gelo —
interrompi-a – sério. Mostraria a ela quem é que mandava ali.
Nitidamente, controlando-se, assentiu e saiu para buscar
minha bebida.
Enquanto Yasmin não voltava, meu pensamento viajou.
Buscava o momento exato em que a garota tinha mudado algo
dentro de mim. Porque qualquer um poderia ver que tudo nela soava
como um perigo iminente. Nem era preciso fazer uma análise
minuciosa da situação, para entender que nós dois não tínhamos
nada em comum. Uma mulher, para estar ao meu lado, tem que
aceitar que sou metódico, respeitar todas minhas rotinas e se portar
como uma mulher da alta sociedade. Obviamente, àquela garota não
era esse tipo de mulher. Em todas nossas interações, ficou notório
sua rebeldia.
— Aqui está, senhor. Algo mais? — Colocou o copo à minha
frente e bateu continência – provocando-me.
— Você não tem amor ao seu emprego? — inquiri, cruzando
os braços e olhando dentro dos seus olhos.
Ela exalou uma boa quantidade de ar e o soltou pela boca
devagar. Umedeceu os lábios e fechou, por uns minutos, os olhos.
Acompanhei cada movimento, chegando a triste conclusão de que
teria que tê-la em minha cama. Mesmo sabendo que seria apenas
por diversão. Aplacaria a tempestade que ser formou dentro de mim
e voltaria à minha vida normal – sem surpresas, segura.
— Desculpe — sussurrou e eu assenti – segurando o lábio
inferior nos dentes.
A banda contratada começou a tocar me impedindo de
continuar ouvindo a sua respiração totalmente alterada. Estava difícil
de discernir a garota. Precisava descobrir o motivo de seu incômodo
ao meu lado.
— Sente-se. — Apontei com a cabeça para o lugar vago no
sofá ao meu lado. Ela respirou fundo e o fez. Estiquei o braço atrás
dela e coloquei minha mão em seu ombro, sentindo uma eletricidade
passar pelos meus nervos – no momento em que toquei sua pele
quente e macia, seu corpo encolheu-se um pouco e eu não recuei.
Levei minha boca à sua orelha e, antes de dizer o que pretendia,
fechei os olhos e aspirei seu cheiro inebriante. — Por que te
incomodo? — sussurrei e comecei a alisar seu braço com a mão que
passava por suas costas.
— Você não me incomoda — afirmou e ergueu os olhos.
Ficamos com nossos rostos a milímetros de distância.
Não resisti, levei a mão até seus lábios e os contornei com o
polegar. Peguei seu lábio inferior e o abri – louco para enfiar a língua
dentro da sua boca. Só não poderia assustá-la.
— O que... quer... de mim? — Sua voz falhava –
demonstrando que estava tão mexida quanto eu. Foi o sinal que eu
precisava.
— Vou te fazer uma proposta. — Alisei seu rosto com as
costas da mão e umedeci os lábios – examinando minhas opções.
Yasmin não desviou o olhar do meu e seu peito subia e descia com
força. Se eu não fosse controlado, na certa, estaria como ela. —
Quero fazer sexo com você — despejei de uma vez. Ela arregalou os
olhos e foi querer falar. Coloquei o dedo em frente sua boca. — Shiiii,
eu pago o que for preciso. Mais do que qualquer um que você já foi
pra cama.
A garota fechou os punhos; mordeu os lábios; negou com a
cabeça e levantou-se bruscamente.
— Já disse que não sou prostituta! — bravejou e levantou-se.
Em segundos, eu estava em pé – segurando-a pelo braço.
— Não vai me deixar falando sozinho de novo, não, garota.
Esqueceu-se de quem eu sou?
— Acha que eu me preocupo com quem você é? Estou
acostumada com tipinho como você — desafiou-me, deixando-me
mais duro do que já estava.
Nem em sonhos, um desafio era uma coisa boa para mim.
Controle é tudo o que preciso. Um desafio só nos leva por um
caminho obscuro, sem sinalização do certo ou do errado. Mas
Yasmin estava colocando em check minha racionalidade.
— Olha ali. — Peguei em seu queixo e mostrei uma de suas
colegas de trabalho sentada no colo de um cara, com uma das mãos
dentro da calça dele, masturbando-o. A boca dos dois estavam
grudadas e as línguas iam e vinham em uma dança erótica. — Está
no lugar errado, garota.
Ela soltou-se da minha mão e me encarou – estreitando o
olhar e cerrando os dentes.
— Não sou como ela — insistiu e eu sorri de nervoso, minha
vontade era arrastá-la até um canto e fazê-la me obedecer – calando
sua boca com a minha, ou meu melhor, com meu pau.
— Entendi, seu negócio é com mais de um. Gosta de orgias
vestida de noiva, não é mesmo? Devo lembrá-la de que na última
você não se deu muito bem. — Seu braço levantou-se para me dar
um tapa e o segurei no ar – trazendo-a para o meu corpo. — Escuta
bem o que vou te dizer, garota — rosnei – com a testa colada à dela
– sentindo meus nervos saltarem —, nunca tente me bater.
Detesto imprevistos, prefiro estar preparado para qualquer
situação, no entanto, lidar com aquela garota estava completamente
fora do meu convencional. Nunca precisei implorar a atenção de
mulher alguma.
— Vou gritar — ameaçou e eu travei o maxilar, odiando aquele
joguinho em que ela dava as cartas.
— Quer chamar a atenção, é isso? Acha que vou deixar você
sair por cima, de novo? Dizer que me rejeitou? Não mesmo, garota.
Vou ter o que quero, porque não jogo pra perder, sou um Bennett,
porra!
Nossas respirações ficaram completamente alteradas. A
guerra de olhares era intensa. Eu podia sentir seu coração disparado
em seu pulso, onde meus dedos não davam trégua. Qualquer um
que olhasse de longe, se assustaria com a cena.
Quando achei que ela faria um escândalo, como mulheres do
tipo dela fazem, a expressão da garota mudou e um sorriso irônico
enfeitou seu rosto perfeito.
— Sempre tem a primeira vez, Bennett — disse e quase me
aleijou – dando uma joelhada no meu saco.
Soltei um gemido alto e levei as mãos para o meio das pernas
– desacreditando na ousadia da garota. Antes que eu pudesse me
recuperar, ela já tinha desaparecido da minha frente.
Encurralada

Yasmin

— Desculpe-me, Antônio, não consigo — disparei, assim que


invadi a sala do gerente do clube.
Inclinei o corpo para frente e coloquei as mãos nos joelhos –
ofegante. Minha garganta queimava e a boca estava seca. Tremia
como uma vara verde. Ao mesmo tempo que sentia calafrios, o suor
escorria pelas minhas costas.
Antônio saiu detrás da sua mesa e veio até mim. Alisou
minhas costas e aguardou que eu me recuperasse.
— Nunca fui tão humilhada, em toda a minha vida —
confessei e as lágrimas, que tinha evitado até aquele momento,
despencaram pelo meu rosto. — Olha só... — funguei —, não
precisa... me pagar, se não... quiser — continuei —, ele... vai
querer... processar o clube. Não queria, mas... vou ter que...,
merda..., pedir ajuda à minha madrasta. — Eu não parava de falar e
soluçar.
Antônio me pegou pelos ombros e me fez o olhar nos seus
olhos.
— Calma, Yasmim. Me conta o que aconteceu.
Apertei um lábio no outro e fiquei negando com a cabeça.
— Desculpa, eu não podia ter perdido a cabeça — prossegui
na minha fala, sem saber como contar a ele o tamanho do problema
que eu tinha acabado de criar para ele.
Ouvimos um barulho na porta e olhamos em conjunto para
ela. Como um furação, o Bennett entrou acompanhado do Enzo.
— Ele não me deixou opções — justificou-se Enzo,
rapidamente.
Segurei a respiração e ergui o queixo – demonstrando uma
segurança inexistente. Jamais eu deixaria o idiota-bonitão-Bennett
descobrir minha fragilidade. Antônio franziu a testa e examinou
nossos rostos, antes de tomar à frente da situação.
— Alguém pode me dizer o que está acontecendo, aqui? —
questionou – colocando as mãos nos quadris.
— Seu cliente acha que sou uma prostituta — defendi-me de
cara.
Antônio empalideceu e passou a mão pela nuca – negando
com a cabeça.
— Eu disse que não daria certo, Enzo — comentou com o
meu amigo – como se somente os dois estivessem ali dentro.
Meus olhos não desgrudaram do Bennett. Tentava ler o que
passava pela mente dele, porque não tinha aberto a boca e sua
postura era altiva – como se fosse o dono do clube e não estivesse
fazendo nada de errado. De certa forma, clientes como ele,
certamente, são. Afinal, são eles quem pagam mais caro.
— Enzo, pode voltar ao seu posto, eu resolvo — ordenou
Antônio – apontando a porta. Meu amigo me fez um sinal para saber
se estava tudo bem e eu confirmei com a cabeça – mesmo que fosse
a maior das mentiras.
A verdade é que, mais uma vez, agi por impulso. Porque, se o
Antônio me dispensasse, seria com toda a razão e eu não teria como
ficar na casa do Enzo. Minha única opção seria enfiar o rabo entre as
pernas e voltar para a casa da minha madrasta. O pior dos meus
pesadelos. Ela imporia suas regras e a primeira seria: que eu me
casasse com o Charles.
— Podemos nos sentar? — sugeriu o gerente e o fizemos
calados. — Agora, me contém o que aconteceu — pediu
calmamente. Fui falar... — Yasmin, querida, vamos ver o que o
Enrico tem pra nos dizer.
Assenti e me recostei à poltrona aveludada – espremendo as
mãos no colo.
— Antônio, seu nome, correto? — iniciou o Bennett –
completamente seguro e calmo. Esperou que o gerente confirmasse
e continuou: — Há um tempo que frequento o clube, junto com o
meu amigo.
— É um prazer tê-los aqui, Enrico.
— Obrigado — agradeceu e olhou para mim —, desde o
primeiro dia, Miguel – meu amigo – me incentiva a ficar com uma das
garotas. Ficar sabe... — Fez um gesto com as mãos.
— Compreendo.
— Nunca me interessei por nenhuma delas, exceto, hoje. Não
vejo onde foi que cometi o erro que sua funcionária me acusa. Muito
pelo contrário, fui agredido. Poderia, inclusive, abrir um processo
contra a casa, o senhor sabe disso, não é mesmo?
— Claro — concordou Antônio e limpou a garganta – olhando
de esguelha para mim. — Desde já, peço que releve as atitudes da
Yasmin, ela é nova aqui e ainda não está familiarizada com as regras
do clube.
Enruguei a testa e olhei para o gerente – desesperada pelo
rumo da conversa. Por mais que o meu corpo estivesse entrando em
colapso com a proximidade do bonitão, porque o cara sabia ser
cheiroso e, sem sombra de dúvida, gostoso, não poderia, jamais,
aceitar àquela proposta. Como me olharia no espelho depois?

“— Querida, cuidado como se veste, daqui a pouco, vai estar


como a sua mãe... não se esqueça de como ela ganha a vida.” — A
voz melosa, preconceituosa e hipócrita da minha madrasta surgiu
imediatamente na minha cabeça.

Não achei que o cara, todo certinho e complicado, teria


coragem de me propor sexo na cara dura. Nem um beijo ele tentou,
foi direto ao assunto, como se eu fosse um vaso sanitário que ele
descarregaria suas necessidades.
— Me desculpe por ter te agredido, fiquei nervosa — adiantei-
me, antes que a situação ficasse pior para o gerente.
O Bennett ergueu o canto dos lábios em sinal de vitória e eu
me segurei para não sair correndo dali. Se a intenção dele era me
desestabilizar – tinha conseguido.
— Obrigado, querida — agradeceu o gerente e eu forcei um
sorriso. — Enrico, tenho uma solução — disse e levantou-se –
contornando sua mesa e abrindo uma gaveta. Acompanhei os
movimentos dele sentindo o olhar do Bennett me queimar. Antônio
voltou e abriu um catálogo com fotos de algumas das meninas que
trabalhavam na boate – colocando-o em cima da mesa de centro. —
Escolha qualquer uma delas, é por conta da casa.
— A Yasmin está no catálogo? — O gerente negou. — Então
nem vou me dar ao trabalho de olhar.
A voz dele foi mais grossa do que o normal e seu olhar,
brasas.
— Não obrigamos nossas meninas a saírem com clientes,
senhor Bennett — esclareceu Antônio – soando mais sério. Soltei o
ar que nem sabia que segurava – sentindo um peso enorme sair das
minhas costas.
Enrico ficou em pé e passou as mãos pelos cabelos
castanhos claros, expondo seu corpo esculpido – acentuando sua
beleza.
— Virei todos os dias, até que ela ceda, não tenho pressa —
avisou e nos deu às costas – deixando-nos de boca aberta.
Assim que a porta da sala foi fechada, olhei para o gerente e
levei a mão à boca – sem acreditar no que tinha acabado de
acontecer.
— Eu avisei, Yasmin, que teríamos problemas para segurar os
homens.
§§§§
Depois do ocorrido no clube, Antônio pediu para que eu
voltasse para casa. Não questionei, embora precisasse de dinheiro,
ele fez pouco pelo estrago que causei. Peguei um Uber – acatando
às ordens.
Ao me aproximar do prédio em que Enzo morava, avistei o
carro imponente da minha madrasta, parado à frente
— Hoje, não, último dia do ano, cacete! — resmunguei, pediria
ao motorista para voltar para trás – não fosse o cansaço que sentia.
Desci do carro e vi quando o motorista da Adélia abriu a porta
detrás para ela descer. Revirei os olhos e esperei na calçada. Se
tínhamos que ter aquela maldita conversa, que fosse logo – cortaria
o mal pela raiz. Seu andar arrogante me deu náuseas. Se
aproximando, mediu-me de cima a baixo e verificou as horas em seu
Rolex – já passava das onze da noite.
— Vejo que seguiu o caminho da sua mãe. Tss... tss... seu pai
deve estar se revirando no caixão — destilou seu veneno com um
sorriso maléfico. — Tantos anos e não aprendeu nada comigo,
Yasmin — continuou – fazendo uma careta.
Minhas forças foram sugadas no clube. Para falar a verdade,
eu toda fui sugada. Reuni o pouco de energia que me sobrou e a
enfrentei:
— O que quer de mim, Adélia?
— Como pode ser tão ingrata? Não foi pra isso que te criei.
Estudou nos melhores colégios, sempre esteve no meio da alta
sociedade, pra quê? — Apontou para o meu corpo. — Virar uma
mulher da vida? Bem que dizem que um fruto não cai longe do pé.
A alusão à minha mãe fez meu corpo estremecer. Cruzei os
braços e engoli em seco. Literalmente, não devia ter levantado da
cama naquele dia. Cada segundo dele, consumiu com o meu
cérebro, a ponto de, praticamente, o derreter.
— Se veio pra me ofender, cumpriu sua missão. Se me der
licença, preciso de banho e de cama — avisei e fui me virando. Senti
suas unhas apertarem meu braço. Olhei para elas e, em seguida,
para o seu rosto. — Está me machucando — murmurei –
controlando-me intensamente.
— Só vim te dar um recado — alertou – soltando o meu braço.
— Sou toda ouvidos.
— Você tem uma semana pra voltar e terminar o que
começou, caso contrário, farei de tudo pra que você não fique com
um centavo do dinheiro do seu pai. Ele me apoiaria, se visse o que
se tornou.
Meu nervosismo foi tal que caí na gargalhada. Quem ela
achava que era? Eu tinha o sangue do meu pai correndo nas veias.
Me encurvei de tanto que ri. Depois, aos poucos, fui me recompondo
– encontrando-a com sua carranca.
— Esse sempre foi seu plano, broaca — acusei-a entre risos.
As veias do seu maxilar pulsaram e as pupilas pareciam que
saltariam dos seus olhos.
— Do que foi que me chamou?
— Broaca, quer que eu desenhe?
— Yasmin, se retrate, agora, não foi isso que te ensinei.
— Ah, me erra. Estou muito cansada pra ficar discutindo.
— Me erra? Que vocabulário é esse? Meu Deus, estão
destruindo o meu trabalho.
Revirei os olhos, mais uma vez, e bufei.
— Acabou?
— Está avisada, uma semana — ameaçou e saiu andando em
seus saltos e sua arrogância.
Enfiei as mãos no rosto e fiquei pensando como eu faria para
pagar um ótimo advogado. Porque, todos sabemos que, infelizmente,
no nosso país, tem tantas brechas na lei, que, com a influência da
infeliz, poderia até me tirar do testamento do meu pai.
Eu só precisava de um advogado da mesma laia que ela.
O Encontro

Gabrielle

A imponência do lugar quase me intimidou. Por onde se olhava,


tinha algo para ostentar. A começar pela frente da casa, que mais
parecia um castelo – com vários carros de luxo estacionados.
Desci do carro receosa, arrependida de ter aceitado ir no carro
do Henry. Estava no território do inimigo – sozinha. Por mais que
Lucca se afeiçoasse a mim, não deixava de ser um Bennett. Foi
criado para ter todos ao seu dispor.
— Poderia ter desfrutado disso tudo, detetive, se não tivesse
negado sua origem — disse Henry, parando ao meu lado e
encostando-se no carro – cruzando os braços e os tornozelos.
— Acha que estou impressionada?
— E não está?
— Tô enojada em saber que tudo isso vêm de negócios
obscuros.
O rosto do Henry transfigurou-se em segundos. Ele
desencostou-se do carro e cresceu para cima de mim – fazendo-me
recuar e espalmar a lata às minhas costas.
— Só faça acusações que possa provar, detetive, caso
contrário, vou te colocar atrás das grades por difamação e perjúrio.
O homenzarrão conseguiu me fazer engolir em seco e menear
a cabeça em concordância. Não seria tão burra em enfrentá-lo
naquele momento. Estava em desvantagem.
— Sai — vociferei colocando a mão em seu peito –
empurrando-o. O choque que senti, no momento que toquei seu
corpo, mesmo que por cima da camisa de linho, fez-me tirar
subitamente, a mão.
A reação dele foi muito parecida com a minha. Nem precisei
insistir – Henry se afastou e saiu andando em direção à porta, sem
me convidar para acompanhá-lo.
— Cavalheiro, como sempre — desdenhei e fui atrás dele.
Ao colocar os pés para dentro, fiquei na dúvida se era uma
casa ou um palácio. Afinal, quantas pessoas moravam ali? O lugar
era imenso e coberto de luxo. Como uma estátua, permaneci
ponderando a possibilidade de voltar para trás.
— Veio até aqui para ficar parada à porta, detetive? —
pressionou Henry – com uma boa distância de mim.
Forcei meus pés a caminharem, obrigando meu cérebro a
entender que fazia parte do processo, de que o momento de colocar
as cartas na mesa tinha chegado.
Entramos em um corredor comprido, com paredes de vidro –
dando uma visão perfeita de um jardim muito bem cuidado. As
pernas longas do Henry coagiram meus passos a se apressarem.
Aos poucos, vozes começaram a surgir – não eram poucas. O
som de uma música clássica invadiu meus ouvidos. O cheiro de
comida foi dominando minhas narinas. Não queria sentir-me acuada,
mas as sensações indesejadas começaram a dar às caras.
— Respira, Gabrielle — murmurei e fechei um pouco os olhos
– sentindo um zunido agudo nos ouvidos. Meu coração parecia
querer saltar do peito. Apertei as unhas nas palmas das mãos e
gemi.
— Olha eles aí. — A voz dos meus pesadelos foi direto para o
meu cérebro, acionando o gatilho que eu tentava evitar a todo custo.

“— Venha aqui, minha garota. Papai vai te dar um trato, assim


como fez com a gostosa da sua mãe.
Corri sem direção. Olhava para trás e, mesmo que eu
apressasse meus passos, ele continuava muito próximo. Sentia seu
hálito no meu pescoço. Seu cheiro embrulhava meu estômago.
— Vamos, minha garota, sua mãe gostava, tenho certeza de
que vai gostar do que seu papai vai fazer com você.”

— Não... Não... consigo respirar — murmurei e senti as


pernas fraquejarem – levando a mão ao pescoço – numa tentativa de
aliviar a pressão na minha garganta.
Eu precisava ser forte...
Fazê-lo pagar por tudo o que tinha feito com a minha mãe...
Precisava mostrar que não tinha nada dele em mim, a não ser
o sangue...
— O que você fez com ela, Henry? — Ouvi a voz do Lucca
longe e, em seguida, só escuridão.
Surpreendido

Enrico

Você controla o que pode para lidar com o que não pode. Não
quebro as regras do jogo – nunca. Leandra faz parte do jogo,
Yasmim é apenas uma diversão. Tenho os passos planejados e,
embora Yasmim tenha sido, no início, um acidente de percurso,
passou a ser parte dos meus planos. No momento em que me
rejeitou, transformou-se em um jogo e os Bennett não jogam para
perder, muito menos, desistem.
Meu foco sempre será na minha carreira, até porque, se tem
uma coisa que aprendi com Isaac Bennett, é que o amor nos deixa
fracos. Razão é o meu nome do meio.
Se no dia trinta e um as pessoas tinham sumido, no primeiro
dia do ano, as ruas pareciam sofrer de um ataque aéreo e todos
tinham se escondido em abrigos subterrâneos. Nenhuma viva alma.
A parte boa é que passei horas dirigindo pela cidade sem
necessidade de escolta. Achava até que a história do meu pai já
tinha sido suprida por outra e agradecia.
De volta à cobertura, encostei-me ao parapeito de vidro – da
área da piscina –, e fiquei pensativo. Cheguei à conclusão de que o
chute de Yasmin não foi ruim, afinal, me tirou do torpor que ela me
causava. Pude voltar ao controle e mostrar que teria o que eu
quisesse, mesmo que demorasse um pouco. A garota precisava
entender que não se nega nada a um Bennett e que dinheiro compra
tudo.
Quando se tem dinheiro e poder, não tem nada que nos pare.
Sorte que a minha irmã não podia ler pensamentos, porque
arrancaria minhas bolas. Foi bom lidar sozinho com a situação. Manu
me influenciaria com a sua mania de achar que tenho que encontrar
o amor. Ela nunca compreendeu minha forma de pensar, porque não
tem ideia do quanto é difícil estar à frente de todas as máquinas de
uma potência como as empresas Bennett. Um vacilo e tudo vem a
baixo.
— Demorou pra ligar — atendi o celular em tom descontraído.
— Pelo jeito, está se divertindo bastante.
— Oi, gostosão, aqui é maravilhoso. Graças a você, estou
realizando meu sonho. — A alegria da minha irmã é contagiante. Até
mesmo de mim, ela consegue tirar alguns sorrisos.
Ajeitei os óculos no rosto e entrei à sala – evitando que o
barulho do vento forte me impedisse de ouvir Manu corretamente.
Assim como a recepção de primeira classe, não abri mão de dar a
melhor lua de mel que minha irmã pudesse ter. Ela escolheu A
Cidade Luz,, claro que escolheria. Manu não poderia ser mais clichê.
— Como foi a passagem do ano em Paris?
— Nenhuma palavra faria jus a descrição, Enrico. Perco o
fôlego só de me lembrar.
— Imagino. Fico feliz que esteja aproveitando.
— E você, onde ficou ontem à noite?
Limpei a garganta buscando uma desculpa, de modo algum
Manu poderia saber da existência da Yasmin. Certamente, quando
voltasse me faria apresentá-la e viraria sua melhor amiga, ela
detesta a Leandra.
— Você sabe que não ligo pra essas coisas.
— Aff, quando vai começar a viver, Enrico? Não está ficando
mais novo, sabia?
— Está me chamando de velho?
— Entendeu o que eu disse. E aquelazinha, estava aí com
você?
— Manu... — grunhi.
— Deixa pra lá, ela não merece meu tempo, interesseira de
merda.
— Maldição, Manu. Quando é que vai parar de se meter na
minha vida?
— Quando vai acordar, Enrico. Não vê que ela te suga?
— São negócios, quantas vezes tenho que te explicar?
— O cacete!
— Manu, a boca! – vociferei na linha e ouvi seu bufar.
— Não foi pra isso que te liguei. Só quero desejar um feliz ano
novo e que, de verdade, você encontre o amor. Porque você merece.
— Sabe que minha perspectiva é outra, mas agradeço. Mande
um abraço ao Carlos.
— Te amo, gostosão. Logo estaremos de volta e vou te encher
o saco de novo. — Manu mandou um beijo e desligou.
Passei um tempo olhando o visor do celular com várias coisas
sobrevindo à minha mente, a mais preocupante: Yasmin. Deixar que
uma mulher dominasse meus pensamentos, não fazia parte dos
meus planos.
§§§§
Estratégia era tudo o que precisava para conseguir ter Yasmin
na minha cama. Passei a tarde elaborando uma forma de deixá-la
sem opção. Se eu consigo fechar negócios milionários na empresa,
levar uma garota para cama não seria tão complicado. Mesmo
porque, eu estava no lugar certo. Só bastava fazê-la entender isso.
Entreguei a chave do meu Maserati ao manobrista e entrei no
clube. Cumpriria com a promessa de abordá-la todos os dias, porque
não volto atrás de uma decisão. A Hostess me olhou espantada e me
cumprimentou – levando-me ao mesmo lugar de sempre.
Assim que a garota designada a me atender me viu, nem se
aproximou. Certamente, o gerente já a tinha instruído. Me ajeitei no
confortável e luxuoso sofá vermelho e aguardei Yasmin aparecer.
No momento em que ela apontou, suguei o ar entredentes e
soube que precisaria buscar um controle anormal para estar à frente
da situação. A noiva-sedutora sabia fazer um homem perder a
cabeça. Estar ciente, deixava-me com os nervos à flor da pele.
Sentia-os endurecidos.
— Diversão, Enrico — ciciei a mim mesmo – lembrando-me
do motivo de estar ali.
— Boa noite, senhor Bennett — cumprimentou-me sorridente,
eu franzi o cenho – sem entender toda aquela expansividade
repentina.
Estreitei os olhos e entortei os lábios. Inclinei a cabeça para o
lado e fiquei a escrutinando.
O vestido parecia mais curto; mais justo; o decote maior do
que o outros. Não era só a entrada dos seios que estava à mostra, o
tecido só cobria os bicos. A fenda da frente ia quase até a cintura. Eu
podia estar enganado, mas parecia que ela tinha emagrecido. As
pernas, quase inteiras de fora, incluíam um vão grande as
separando. Sem contar os braços, estavam finos. Podia ser que,
somente naquele momento, que realmente estava observando com
cuidado seu corpo.
Ergui os olhos para o rosto dela e notei as bochechas mais
secas. Mesmo com maquiagem, pude ver olheiras. Queria não me
importar, entretanto, aquele anseio de escondê-la e protegê-la quis
me dominar. Apertei os punhos e cerrei o maxilar – controlando um
lado meu desconhecido. Assustador.
— Apenas Enrico — corrigi-a – sério.
— Perdão, Enrico. Posso te trazer a mesma bebida? —
ofereceu, ainda com o sorriso largo enfeitando seu rosto.
Meneei a cabeça em concordância e ajeitei a frente da minha
calça jeans – que sufocava uma ereção fora de hora.
— O que essa garota tem, merda! Ela me rouba o ar e a
razão, porra! — retruquei baixinho.
Nunca fui a favor de falar palavrões, acho muito baixo. Prezo
pelo meu vocabulário, mesmo porque lido com empresários do alto
escalão. Só que, perto dela, me transformo em outra pessoa. Uma
que começava a me deixar em alerta. Porque sei muito bem lidar
com o planejado, o inesperado é amedrontador. Yasmin se afastou e
olhar para o seu rebolado piorou o meu estado, a bunda, sem
sombra de dúvida, é a melhor parte do seu corpo.
A banda saudou as pessoas e agradeci por começarem a
tocar, assim me distrairia dos sons incertos da minha respiração
impulsiva. Fechei os olhos, inclinando a cabeça e a encostando ao
sofá, na busca insana do controle. A voz atraente me fez voltar à
posição anterior.
— Prontinho — avisou e inclinou o corpo sobre a mesa –
deixando os seios próximos ao meu rosto ao colocar o copo à minha
frente. Franzi mais ainda o cenho.
— O que mudou? — questionei de imediato. A garota
continuava inclinada, praticamente em cima de mim.
— Por quê? — indagou melosa. Segurei seu punho, quando
tentou se afastar e a fiz me olhar dentro dos olhos.
— Me provocando — sussurrei com a boca a milímetros da
dela.
Um sorriso maroto cresceu em seus lábios e eu soube que
não precisaria mais lutar. Yasmin estava disposta a aceitar minha
proposta, ela nem precisou abrir a boca para eu ter certeza. Soltei
seu punho e a garota se acomodou ao meu lado, sem que eu
pedisse. O vestido subiu e consegui ver a renda da sua calcinha
preta. Senti o coração disparar e o pau latejar. Yasmin olhou para o
meio das minhas pernas e sorriu – sabendo exatamente que estava
no domínio.
Mesmo que tentasse, de forma alguma, reaveria a razão. O
desejo emotivo já comandava meu cérebro: a razão tinha perdido a
batalha. Levei a mão à uma de suas coxas e fui subindo lentamente
– sem tirar os olhos dos dela. Nossas respirações foram ficando
descontroladas, à medida em que minha mão chegava mais perto do
meu alvo. De repente, Yasmin impediu-me de continuar – cravando
suas unhas no meu punho – provocando um gemido rouco no meu
peito.
— Não tão rápido, Bennett. Temos que negociar.
Tirei rapidamente a mão e fiquei ereto – detestando saber que
ela tinha entendido que era uma negociação. Confuso, afinal, era
exatamente o que eu buscava. Passei as mãos pelos cabelos –
inclinando a cabeça para trás e respirando fundo.
— Você tem razão — afirmei – recuperando o fôlego.
— Nunca fiz isso — iniciou e eu assenti —, só que estou sem
opção. — Disse e baixou os olhos para o colo. Tirou um fio invisível
de seu vestido e voltou a me olhar. Permaneci calado, tentando
decifrar a mulher que estava conseguindo me desestabilizar. —
Antes, preciso saber de uma coisa.
— Estou ouvindo — incentivei-a, já que prendeu os lábios nos
dentes e ficou me encarando.
— É porque sou negra que acha que sou prostituta?
Recuei o tronco e enruguei a testa – sem compreender onde
ela queria chegar.
— Do que exatamente está me acusando? — defendi-me,
porque, por mais que meu corpo quisesse muito aquela garota,
entrar nessa de preconceito e discriminação, não valeria a dor de
cabeça.
Ela deu de ombros e desviou o olhar.
— Sei lá, só eu sou negra por aqui e... — suspirou —, nunca
se interessou pelas outras.
Negociando

Yasmin

Seu levantar brusco me assustou. Sem dizer uma palavra, Enrico


começou se afastou – indo embora. Eu não poderia deixar, era
minha única saída. Em uma semana, não conseguiria arrumar
dinheiro de outra forma. Fiquei em pé e corri atrás dele – segurando
seu braço. Nem mesmo a banda conseguiu chamar mais a atenção
das pessoas do que meu repentino interesse no Bennett.
Os olhares das garotas me fuzilaram. Eu sabia ser inveja. Era
a primeira vez que alguém roubava a atenção do bonitão-Bennett na
casa.
— Não precisa ficar nervoso — fui falando sem soltar seu
braço. Ele me olhou por cima dos ombros e me analisou com uma
expressão indecifrável. O medo de perder a oportunidade – mesmo
que não estivesse medindo as consequências – fez com que eu
insistisse: — Você é branquelo, não tem ideia das coisas que já
passei. — O som da minha voz era estridente; primeiro: a música
estava alta; segundo: o nervosismo já tinha tomado conta do meu
corpo.
O bonitão olhou para o lugar onde eu continuava segurando,
em seguida, para o meu rosto. Soltei seu braço e dei um passo para
trás. Ele se aproximou e encostou a boca em meu ouvido –
provocando um arrepio no meu corpo. Involuntariamente, encolhi-
me.
— Me chamar de branquelo não melhora as coisas —
sussurrou. Afastou o tronco e me enfrentou. — Não achei que,
segura e imponente, você deduziria que te quero, porque acho que é
inferior às outras.
— Não foi o que eu disse — defendi-me abruptamente.
— Sua fala mostra insegurança. — Baixei os olhos e umedeci
os lábios arrependida. Ele tinha razão. — E tem outra — continuou
—, me chamar de branquelo demonstra que a preconceituosa é
você.
Não foi minha intenção deixá-lo alterado. Só que, anos de
convivência com a alta sociedade, deixou-me arisca. Perdi a conta
das vezes que fui ofendida indiretamente. Minha madrasta, a vida
toda, fez questão de me tratar como uma caridade. Expôs, por
vezes, minha história. Todos me olhavam com pena – como se eu
fosse um cão abandonado.
— Podemos voltar? — indaguei – apontando para o local de
onde tínhamos saído. Ele meneou a cabeça e me acompanhou.

Sentados, busquei controlar minha respiração. Pensar que


estava prestes a aceitar me prostituir, era surreal. Mesmo que fosse
com um cara que, desde o primeiro dia, tinha mexido comigo. Por
que ele tinha que fazer a proposta? Se fosse da maneira
convencional, provavelmente, eu ficaria com ele de qualquer forma.
A tensão sexual entre nós foi crescendo aos poucos.
No mesmo instante que pensei, lembrei-me do prazo ridículo
que a Adélia me dera. Para ela ter se deslocado, mais de cem
quilômetros, para me avisar, é porque estava com tudo no gatilho –
não blefava.
— Então — iniciei, já que o Bennett tinha erguido um “muro”
entre nós —, tenho algumas exigências — anunciei e ele balançou a
cabeça – fazendo um gesto com a mão para que eu continuasse. —
Não pode sair com outras garotas enquanto estiver saindo comigo.
Ele riu de canto e negou.
— Não quero um caso com você, Yasmin. Apenas uma noite
— afirmou categórico.
Dei de ombros e pensei em como responder, porque uma
noite só não pagaria o advogado que eu tinha em mente. Só para ele
analisar o caso, era uma fortuna.
— Preciso mais do que isso — falei de uma vez e segurei o ar
– receosa com sua interpretação. Afinal, que maluca diz que nunca
fez e exige mais de uma vez?
Ele passou um tempo me examinando, antes de responder.
— Estou confuso... Primeiro, faz um escândalo, e, agora, quer
mais de uma vez. Por que esse interesse súbito?
— Assuntos pessoais que não vêm ao caso. Então, tudo bem
com a primeira regra do jogo?
— É um jogo, então? — Sorriu de canto e ergueu uma
sobrancelha.
— Algum problema? Você se gabou dizendo que os Bennett
não jogam para perder, não deveria ser um empecilho.
Ele chegou com o corpo para frente e voltou sua mão para o
meio das minhas pernas – causando um alvoroço no meu âmago.
Subiu e desceu os dedos – chegando bem próximo da minha virilha.
— Quem disse que achei ruim? — Ele sussurrou e lambeu
minha orelha. Fechei um pouco os olhos e respirei fundo –
controlando um gemido constrangedor que queria sair da minha
boca. — Só deixou nossa negociação mais interessante, continue.
O calor do seu hálito no meu pescoço roubou minha linha de
raciocínio. Precisei inspirar uma boa quantidade de ar pelo nariz e
soltar lentamente pela boca antes de prosseguir.
— Ainda não concordou com a primeira regra, Enrico —
lembrei-o.
— Vale pra nós dois?
— Claro, já não disse que não sou prostituta?
— Mas pode ter um namorado, aquele rapaz que sempre está
se metendo entre a gente, por exemplo.
— Enzo? — Sorri um pouco mais alto. — Ele gosta da mesma
coisa que eu.
— Certo, se vale pra nós dois, pode ir para a próxima.
Empurrei um pouco sua mão, ofegante. Não conseguiria, se
ele continuasse com as caricias tão perto do ponto que pulsava em
meu corpo. Um sorrisinho malandro enfeitou o canto de seus lábios.
— Só ficarei uma hora, cada vez que nos encontrarmos. As
horas adicionais vão custar o triplo. — Dessa vez, consegui chamar
sua atenção. Tirou a mão da minha perna e ajeitou o meio da calça –
com os olhos estreitados – me encarando.
— Dinheiro não é problema, Yasmim — gabou-se sem
titubear.
— Ótimo. Próxima regra: eu digo quando parar. E quando
acontecer, não quero ser importunada.
O Bennett cruzou os braços e meneou a cabeça.
— Estou impressionado — comentou. — Deveria ser uma
advogada, ou coisa parecida, não uma...
— Uma o quê? — Ergui o queixo e o enfrentei.
— Me diz você.
A pergunta devolvida para mim me desarmou. Chacoalhei a
cabeça e não respondi, porque nem eu mesma sabia o que era. De
uma coisa eu tinha certeza, depois daquele dia, seria uma prostituta.
Mesmo que de um homem só.
§§§§
Me acomodei no mesmo banco que, dias atrás, tinha me
salvado. O carro continuava com as coisas milimetricamente
organizadas. Dessa vez, não colocaria a mão em nada, muito
menos, os pés. Enrico sentou atrás do volante – calado.
Já tínhamos andado um bom trecho e ele continuava sem
falar nada. De esguelha, via seus dedos apertarem o volante e as
veias do maxilar se contorcerem. Se estava incomodado, por que
tinha feito a proposta? Uma insegurança indevida começou a querer
me tomar. Respirei fundo e cerrei os olhos – mentalizando o motivo
de estar fazendo aquilo. Não fosse o fato de estar se vendendo, não
seria tão embaraçoso.
O percurso não foi demorado, o horário facilitou. Paramos em
frente a um hotel de luxo e me senti aliviada, por não me levar para a
casa dele – não queria intimidade.
Um rapaz abriu a porta para eu descer e me envergonhei com
a roupa que vestia. Na certa, saberiam a finalidade da minha visita.
Ergui os olhos e fiquei receosa, não fazia muito tempo que
tinha frequentado o lugar em um evento promovido por uma socialite
amiga da Adélia. Esperava que não me reconhecessem, porque a
vergonha seria maior. Sem contar que não queria que o Enrico
soubesse nada sobre mim.
— Boa noite, senhor Bennett — cumprimentou o senhor que
nos abriu a porta – batendo com os dedos na ponta do quepe.
Enrico meneou a cabeça em resposta.
— Senhorita. — Dei o sorriso mais nervoso da minha vida.
Senti a mão do Enrico às minhas costas – incentivando-me a
entrar. Ergui o queixo e estufei o peito – escondendo o pavor que
tinha se instaurado dentro de mim.
Pegamos o cartão na recepção e logo estávamos dentro do
elevador – um em cada extremidade da caixa de aço. Não tinha
coragem de olhar na direção dele. Pensei na possibilidade de
desistir. Provavelmente, depois daquela noite, meu pai, literalmente,
se viraria no caixão. Se estivesse vivo, seria sua maior decepção.
Nem mesmo eu, conseguiria me encarar no espelho.
A porta do elevador se abriu e eu estremeci. Estava
acontecendo de verdade.
— Yasmin? — Chamou-me, com uma das mãos entre o vão
da porta e a outra apontando à saída.
Engoli em seco e saí – sentindo as pernas bambas. Enrico se
matinha sério, embora fosse comum para ele, naquele momento,
esperava um pouco mais de interação. Ele abriu a porta da suíte e
esperou que eu entrasse. Mesmo que já estivesse acostumada com
todo aquele luxo e conhecesse o hotel, não deixei de parar na
vidraça, que ia do chão ao teto, e admirar os prédios iluminados. A
decoração de natal ainda estava por toda a parte deixando a dança
das luzes mais atraente.
O calor de seu corpo anunciou que tinha se aproximado. Ele
parou ao meu lado e colocou as mãos no bolso da frente da calça
jeans. Enrico é um daqueles caras que deixa qualquer mulher de
“quatro” só com um olhar. Daqueles que pode vestir um saco velho
que continua lindo. Ali, ao meu lado, todo elegante em seus jeans,
acompanhado de camisa, blazer e sapatênis, não negava sua
origem.
— Parece que você não se importa com a passagem do ano
junto com a família, assim como eu — comentou, finalmente,
interagindo comigo.
— Regra número quatro: sem perguntas. Não quero
intimidade.
— Quando vão acabar as regras?
Ficamos de frente, um para o outro. O silêncio tornou-se
inoportuno, naquele instante. Porque eu queria que fosse tudo
diferente. A verdade é que, nem queria estar naquela posição. Ele se
aproximou devagar e levou o indicador para o vão no meio dos meus
seios – olhando-me nos olhos. Subiu e desceu – sem mudar sua
expressão – escorregou para o bico de um dos seios – apertando-o.
— Hum — gemi e prendi um lábio no outro.
— Preste bem atenção, Yasmin. Não gosto que me ditem
regras — sussurrou – com o rosto a milímetros do meu. Seu hálito
quente lambia minha pele. — Principalmente, quando quem está
pagando a conta sou eu.
— Mas...
— Shiiiii... — Enfiou dois dedos na minha boca e eu arregalei
os olhos. — Chupa — exigiu e obedeci – sem titubear. — Daqui pra
frente, só eu mando, entendido? — Parei o que fazia na tentativa de
revidar. — Mandei chupar, porra! — praguejou entredentes e colocou
a outra mão em minhas costas – colando meu corpo no dele.
Meu coração pulsava dentro dos meus ouvidos. Nem sabia
mais o porquê. Uma mistura de sentimentos: medo,
constrangimento, desejo.
— Sente isso? — Esfregou seu membro duro em meu
abdômen e um tremor me dominou. Ele tirou os dedos da minha
boca e, sem que eu me preparasse, subiu bruscamente meu vestido
e os enfiou por dentro da minúscula calcinha que eu vestia.
Enrico não teve cuidado, simplesmente introduziu os dois
dedos de uma vez em mim.
— Abra — ordenou, afastando minhas pernas com o joelho.
Apoiei as mãos em seus ombros e fiquei olhando para ele. Não
parecia o mesmo. Seus olhos eram duas bolas de fogo. — Está
gostando, safada, toda ensopada pra mim. — Bem que dizem que os
mais “certinhos” são os mais quentes. O movimento frenético de
seus dedos me fez jogar a cabeça para trás e fechar os olhos. —
Olhe pra mim — determinou – parando o ir e vir dos dedos. Fiz o que
mandou e ficamos nos olhando – por alguns segundos – com as
respirações ofegantes. — Você entendeu, Yasmin?
— Sim, mas...
— Apenas responda o que eu perguntei, comigo não tem
“poréns” — interrompeu-me e tirou os dedos de dentro de mim –
baixando o meu vestido e se afastando. Soltei os braços ao lado do
corpo.
— Não vou ser seu capacho — avisei, me posicionando.
Seu olhar ficou perigoso. Ele chegou bem pertinho.
— Quem dá as cartas, aqui, sou eu. — Ameacei falar e ele me
lançou um olhar intimidante. — Você ditou suas regras do jogo e não
vou quebrá-las, de resto, querida... — Pegou em meu queixo e o
ergueu. — Eu determino como vai ser.
Engoli em seco e estremeci, porque ele parecia fora de si, ou,
talvez, aquele fosse ele, afinal, era um Bennett. Em um pouco de
pesquisa que fiz, ficou claro que o poder está sempre nas mãos
deles.
Impedida

Gabrielle

Achei que estava tendo uma visão quando abri os olhos e dei de
cara com o Dr. Kauê.
— Pelo jeito não seguiu meu conselho — comentou enquanto
enfaixava uma das minhas mãos.
— Não sou muito boa nisso — gracejei e sorri de lado.
— Percebi.
Olhei em volta e senti meu peito virar uma “ervilha”. Estava de
volta ao lugar que tinha roubado a pessoa mais importante da minha
vida.
— Quem me trouxe pra cá?
— Um dos seus irmãos.
— Não tenho irmãos — rosnei e ele desviou os olhos, do
curativo que fazia, para o meu rosto.
— Lucca Bennett e sua esposa, eles te trouxeram.
Assenti e ficamos nos encarando.
— Vai demorar pra terminar? — apressei-o, porque precisava
me afastar dali o mais rápido possível.
— Não vou te dar alta, Gabrielle. Não enquanto não passar
com a minha colega, Rita, psiquiatra.
Sentei bruscamente e o lancei um olhar temível.
— Nem fodendo que vou me consultar com uma psiquiatra,
não sou louca. — Ignorando-me, Kauê pegou novamente minha mão
e continuou fazendo o curativo. — Você ouviu?
— Sim, mas, aqui, você não dá ordens. Só vai sair quando eu
autorizar — comunicou – sem me olhar.
— Kauê... — suspirei —, por favor, estou bem.
— Prontinho. — Deu uma batidinha nas costas da minha mão
– colocando-a em cima das minhas pernas. As duas mãos estavam
completamente enfaixadas. — Você teve uma crise de pânico,
Gabrielle. Suas mãos vão demorar uns dias para cicatrizarem. Está
sob minha responsabilidade, não vou colocá-la em risco.
— Como assim, me colocar em risco? O que acha que posso
fazer?
Ele abriu um sorriso complacente e alisou meu rosto com as
costas das mãos. Nem sabia o quanto precisava daquilo. Há quanto
tempo ninguém cuidava de mim? Meus olhos se fecharam
institivamente e minha cabeça se inclinou em direção à sua mão.
— Aqui, você está segura, prometo — garantiu baixinho e eu
senti algo estranho dentro de mim. Um calor que só o idiota do Henry
conseguia despertar. Era a oportunidade que estava tendo para
desviar o foco. Fazer meu corpo entender que a tensão sexual com
meu meio irmão era algo inadequado e impraticável.
Interrompendo nossa interação, a porta do quarto foi aberta e
João Pedro, acompanhado de Bento – os dois com cara de poucos
amigos –, entraram.
— Boa noite, doutor — cumprimentou João e me olhou de
esguelha demonstrando que, mais uma vez, percebia o ocorrido.
Kauê cumprimentou as visitas, pediu licença e nos deixou.
Ele já tinha saído há alguns minutos e nenhum de nós tinha
dito algo. Eu sabia que Bento estava prestes a explodir, temia que
fosse ali. Porque, sinceramente, o médico tinha razão. Meu estado
psicológico era duvidoso. A raiva, que carreguei por trinta anos,
parecia ter quintuplicado dentro de mim. Tinha vontade, a todo
instante, de pegar minha Glock e sair atirando no primeiro que me
irritasse.
— Vai me dizer que porra pensa que está fazendo, Gabrielle?
— vociferou Bento – aproximando-se da cama.
— Fiz o que mandou — rebati.
— Mandei? Em qual momento fiz isso? Te avisei, a vida toda,
garota, que essa vingança só te destruiria. Quantas vezes tenho que
te dizer que precisamos ir pelos meios legais. Consiga as provas que
enfiamos todos atrás das grades, se é que é isso mesmo que você
quer — disparou a falar – com o dedo em riste.
— O que está insinuando? Que não quero colocar eles na
cadeia?
— Tenho minhas dúvidas. Depois do que vi essa manhã. —
Referiu-se ao confronto meu com o Henry no escritório dele.
Respirei fundo e desviei o olhar. Queria que tudo não
passasse de um pesadelo, no entanto, não tinha outra opção, a não
ser: enfrentá-los.
Descontrolado

Enrico

Vasculhei brevemente o quarto para ter certeza de estar à


maneira que me deixasse seguro. O hotel era o lugar onde me
escondia quando estava perdendo o controle de alguma situação.
Todos já estavam habituados com meu jeito metódico e o deixavam
como eu pedia: poucos objetos de decoração, só o necessário. Não
queria que algo roubasse o meu foco e, seguramente, um quadro,
que não estivesse milimetricamente colocado na parede, poderia ser
o vilão do meu momento de relaxamento.
Depois de avançar em Yasmin na sala, busquei um controle
fenomenal e a levei para o quarto, pedindo que ficasse parada à
porta. Não era a primeira vez que levava uma mulher ali, no entanto,
não fazia com frequência. O foco sempre foi o meu trabalho, nunca
sentira uma necessidade insana como estava acontecendo com a
noiva-sedutora. Abria e fechava os punhos – na tentativa de me
conter.
Tirei o blazer e o pendurei no mancebo. Dobrei as mangas da
camisa até os cotovelos e fiquei descalço – deixando meus calçados
embaixo do mancebo. Yasmin acompanhou meus movimentos
calada. Com poucos passos, estava de frente a ela. Seus olhos se
fixaram em meu rosto e eu não soube o que era melhor de se ver:
olhos submissos como aqueles ou desafiadores como de costume.
— Vire-se — pedi, ela não negou. Peguei na ponta do zíper
que cortava toda as costas de seu vestido e o desci lentamente.
Sentindo meu coração acelerar à medida em que sua pele sedosa
ficava exposta.
Arrastei a peça minúscula pelos seus ombros – salpicando
beijos pelo trajeto – levando um tempo maior na bunda durinha e
volumosa. Agachado em suas costas, bati de leve em seu tornozelo.
— Levante o pé.
Ela o fez e, em seguida, repetiu o processo do outro lado.
Peguei o vestido e fechei o zíper – colocando-o dobrado sobre a
poltrona. Voltei a olhá-la e umedeci os lábios – antecipando o gosto
que, certamente, era dos deuses. Yasmin só vestia uma calcinha fio
dental com a frente rendada. Seus peitos fartos e redondos tinham
os bicos apontados para o alto.
Seminua, em seus saltos altíssimos, que qualquer um poderia
ver que eram caros; cabelos soltos, muito bem cuidados; olhava-me
com o lábio inferior preso nos dentes – despertando um monstro
dentro de mim. Algo que eu achei que seria capaz de controlar – não
com ela.
— Deite-se e abra as pernas. — Minha voz saiu áspera. Meu
peito oscilava. Temia pôr as mãos nela – o controle desaparecera.
Segui com os olhos a garota acatar a ordem recebida sem me
mover. Ela encostou-se à cabeceira da cama e se abriu
completamente para mim. Com alguns passos, estava no centro da
cama podendo ver os lábios de seu sexo liso brilharem com a
umidade. Ela me queria, incontestavelmente. E, mesmo que eu
lutasse contra mim mesmo, sabia que também a queria muito.
Inclinei o corpo, peguei em seus tornozelos e a puxei para a beirada.
— Ah, puta merda! — praguejou. Algo que nunca me atraiu
em uma mulher: boca suja. Com ela, parecia sex.
— Olha a boca — rosnei e me ajoelhei – enfiando o rosto
entre suas pernas. Eu sabia que ela revidaria minha censura, mas
não deixei brecha para que o fizesse. Em um rápido movimento,
estava com a língua enterrada em seu centro.
— Caralho! — Berrou e agarrou o lençol – tentando fechar as
pernas. Cravei os dedos em suas coxas e as mantive separadas –
lambuzando-me de sua excitação. — Enrico..., porra... assim... não
vou... durar... nadaaaaa... Ahhhhh!
Chupei com força o clitóris inchado e o segurei firme entre
meus lábios – por um tempo suficiente para a deixar sob meu
domínio.
— Controle essa sua boca suja, porra! — grunhi – erguendo o
rosto entre suas pernas.
— Por que... só... eu?
Antes que ela pudesse reagir, estava com o corpo em cima
dela – empurrando-a para deitar-se. Ataquei sua boca, com o intuito
de fazê-la provar de seu próprio gosto –, e me arrependi no ato. Até
então, tudo o que sentira fora sexual. No momento em que nossas
línguas se tocaram, um choque elétrico passou por nós –
estremecemos juntos.
Afastei-me de imediato – ofegante. Não podia sentir nada,
além de tesão. Uma regra implícita entre nós.
— Sem beijos — ditou, com o peito oscilando tanto quanto o
meu. Não questionei, seria mais seguro.
Eu estava com muita roupa, precisava sentir sua pele na
minha. Tentar aplacar o furor que ela provocava dentro de mim.
Fiquei em pé e fui me despindo. Pendurei a camisa junto com o
blazer e dobrei a calça, colocando-a ao lado do vestido da Yasmin.
O olhar desconfiado dela demonstrava que estava achando
aquilo esquisito. Ao ficar de frente para ela, vi quando engoliu em
seco – admirando o meu corpo. Ninguém precisava me dizer que
estava em forma, porque eu me esforçava para que ficasse.
Engatinhei sobre a cama e logo estava em cima dela
novamente. Coloquei a mão entre a gente e espalmei seu sexo
ensopado – lambuzando meus dedos e trazendo-os para a sua boca.
— Sinta seu gosto. — Enfiei dois dedos em sua boca. —
Chupa, gostosa. Como se tivesse chupando meu pau.
Só a menção de ter os lábios dela no meu pau, fez-me quase
perder toda a razão. O latejar nele chegou a doer. Yasmin chupava
meus dedos e gemia. Não esperava que fosse ser tão ativa, já que
se mostrou resistente no início. Me enganei. As mãos dela
começaram a trabalhar. Ela fez o mesmo caminho que eu tinha feito
com a minha mão e abraçou meu pau – apertando-o.
— Porra! — praguejei – cerrando o maxilar.
Arranquei meus dedos da sua boca e puxei sua mão do meu
pau. Deitei-me na cama e a trouxe para cima de mim. O contato de
sua vagina lambuzada com meu pau latejante era o que faltava para
eu perder completamente o controle.
Sentei-me de súbito e apoiei as costas à cabeceira. Agarrei os
dois seios e abocanhei um.
— Enrico, cacete! — reclamou, inclinando a cabeça para trás.
Os palavrões começavam a me deixar mais maluco, não
deveria, mas estava gostando.
Mudei minha atenção para o outro seio, enquanto Yasmin se
esfregava em meu colo. Temia machucá-la com meus dentes,
porque sentia vontade de mordê-la, em cada pedacinho de seu
corpo. Deixar minha marca.
— Mais um palavrão e vai receber um castigo — ameacei –
apertando os bicos de seus seios.
Yasmin estreitou os olhos e enterrou os dedos em meus
bíceps – sem dúvida, controlando-se.
Empurrei seu corpo para trás – deixando-a totalmente aberta
para mim, suas pernas estavam presas às minhas, imobilizando-a.
— Suba os braços e fique com as mãos acima da cabeça.
— Enrico...
— Minhas regras, faça o que estou mandando.
Contrariada, obedeceu – me olhando com receio. Levei a mão
para o meio das suas pernas e comecei a estimular o ponto pulsante.
Abri os lábios da vagina e enfiei dois dedos – mantendo o polegar no
clitóris. Ela ergueu o tronco e ameaçou mover as mãos.
— Não tire as mãos de onde mandei — ordenei, com a voz
cada vez mais grossa. Nem sabia mais como estava conseguindo
me conter.
Lentamente, entrava e saia com os dedos de dentro dela e
fazia movimentos circulares com o polegar. Yasmin tentava fechar as
pernas, eu as afastava. Seu corpo começou a se contorcer e seus
olhos foram ficando vazios. Eu sabia que estava prestes a entrar em
ebulição e ansiava pelo momento. Aumentei o ritmo dos dedos e a
garota não pôde mais controlar seus instintos.
— Porraaaaaaa... — berrou e agarrou o lençol. A cabeça foi
jogada para trás, os olhos cerrados e o abdômen ergueu-se.
Achei que meu orgasmo viria antes mesmo de estar dentro
dela. Vê-la completamente entregue a mim abalou minhas
estruturas. Nem sabia mais se era só desejo que sentia. Temia que
não pudesse me recuperar, depois da Yasmin.
Aguardei que ela se refizesse sem tirar as mãos de seu corpo.
Era atrativo demais. Nada nela estava fora do lugar. O que me
deixava com a pulga atrás da orelha, afinal, quem era aquela garota
que ganhava a vida servindo mesas e andava, se vestia e se cuidava
como uma patricinha?
— Uau! Puta merda! O que foi isso, Bennett?
O canto do meu lábio se levantou involuntariamente. É
sempre bom ter seu ego massageado.
Peguei em seus braços e a ergui. Sua bunda voltou a se
esfregar em meu colo e eu respirei fundo.
— Continue a provocação e não respondo por mim — alertei e
afundei os dentes em seu ombro – chupando-o sem dó.
— Aiiiiii... que merda, Bennett, vai ficar marcado.
— Enrico, porra! — corrigi-a e a virei de uma vez, voltando a
ficar em cima dela – apoiado nos cotovelos.
Os palavrões deslizavam pelos meus lábios sem que eu
pudesse impedi-los. Era como se outra pessoa estivesse ali. Um
Enrico mais ousado. Menos metódico. Sem se preocupar se o
quadro estava fora do esquadro. Não se importando se a tela do
celular tinha marcas de mão.
Afastei seus joelhos com o meu. Estiquei-me sobre ela,
lambendo seu pescoço no caminho, e alcancei o preservativo dentro
da gaveta da pequena cômoda ao lado da cama. Destaquei um da
fileira e vi quando Yasmin franziu o cenho. Não daria explicações, até
porque, ela mesma estabeleceu a regra de não termos intimidade.
Rasguei a embalagem nos dentes e o entreguei a ela. Fiquei de
joelhos e a garota fez o mesmo.
Levei uma mão até sua nuca e juntei os cabelos – mantendo-a
cativa. Trouxe seu rosto bem próximo do meu.
— Chupa meu pau — ordenei e levei o rosto dela para o meio
das minhas pernas.
Ainda tinha minhas dúvidas se a garota não era prostituta de
luxo. Precisaria de muito dinheiro para se vestir e se cuidar como ela.
E, no momento em que ela abraçou meu pau, passou o polegar pela
glândula inchada e o levou à boca, minha dúvida elevou-se. A prática
leva à perfeição.
— Caralho — praguejei baixinho e forcei seu rosto em direção
ao meu membro suplicante.
Yasmin fez valer o dinheiro absurdo que tinha cobrado. Sugou
meu pau como se fosse o melhor prato de comida. Olhando para
mim, o levava até o limite de sua garganta – chegando a sair
lágrimas dos olhos. Afastei seu rosto rapidamente.
— Coloque a camisinha. — Meus nervos pulavam e eu sabia
que, assim que estivesse dentro dela, seria o meu fim.
Provavelmente, nunca mais ia querer outra mulher. Mesmo
consciente da possibilidade ser nula. Porque Yasmin não fazia parte
dos padrões da família Bennett.
Era apenas diversão – nada mais.
Gatilhos

Yasmin

Sentia-me uma marionete. Meu corpo era jogado de um lado para


o outro e as falas eram imperativas. Tentei encontrar a Yasmin que
não aceita ordens e não a encontrei. Não sei dizer se era o
momento, o desejo ou a necessidade do dinheiro.
Quando relatei ao Enzo sobre minha situação e a proposta
que tinha recebido, ele me incentivou, porque me conhece e sabe
que o bonitão-Bennett mexeu comigo. Sem contar que, nós dois,
sempre tivemos problemas em ficar muito tempo sem sexo.
Enquanto estava com Charles, mesmo que não fosse lá grandes
coisas, supria minha necessidade. Mas soube, assim que o Bennett
começou a me tocar, que seria muito difícil outro homem conseguir
superá-lo.
O modo executivo-mandão, que deveria me fazer revidar,
atiçou um lado submisso meu, que eu desconhecia, algo que gostei.
O tesão que senti compensaria qualquer moralidade que viesse pela
frente. Abracei seu membro duro e, antes de fazer o que mandou,
passei a língua pelas veias saltadas. A cabeça brilhava com o líquido
pré-ejaculatório. Ele segurou firme meus cabelos da nuca e afastou
novamente minha boca de seu pau.
— Vou encher sua boca de porra se continuar me lambendo
— alertou-me – com o rosto transfigurado.
Podia imaginar qualquer coisa, vendo o mocinho
engomadinho, menos que fosse tão selvagem na cama. As palavras
rudes e depravadas que saiam da sua boca estavam acabando com
o meu psicológico. Temia que o momento terminasse e eu lembrasse
que não era real. Que não passava de uma negociação. Encaixei o
preservativo em seu pênis e o deslizei na extensão avantajada.
Bastou pouco tempo para eu saber que o bonitão-Bennett não pede
– manda. Não avisa – faz. Empurrou meus ombros na cama, pegou
minhas pernas e me virou de bruços.
— Fica de quatro — rosnou e eu obedeci – ofegante.
Se os dedos dele já tinham me levado para outro universo, o
que faria seu pau?
As mãos encaixaram-se em meus quadris e os dedos
afundaram ali, no momento em que meu sexo foi invadido.
— Wou!!! — berrei, nem sei se de satisfação ou de surpresa.
Não esperava que fosse entrar de uma vez, não que eu não tivesse
gostado.
Ele inclinou o corpo sobre minhas costas, afastou meus
cabelos e encostou os lábios em minha orelha.
— Tudo bem?
Sorri e meneei a cabeça.
— Agora você pergunta? — ironizei.
— Posso ir mais devagar, se quiser.
A voz dele soou mais condescendente e me assustou mais do
que a anterior. Porque nada naquele momento deveria ser suave ou
coisa parecida. Era apenas uma transação. Preferia pensar nele
como um parceiro de negócio. Se começasse a soar suave, as
coisas poderiam caminhar para outro lado. Um lado que eu não
queria, porque conhecia muito bem as pessoas daquele tipo e queria
distância.
— Me fode logo, porra! — vociferei e desviei o olhar. Sabia
que veria decepção e desse olhar eu já estava saturada.
Segurei o grito, assim que seus dedos afundaram na minha
carne e seu membro estocou forte dentro de mim. Apertei o lençol e
enterrei o rosto ali. Queria poder aproveitar o momento, mas temia o
depois. Quanto menos eu gostasse, menor seria o sofrimento.
Enrico juntou novamente meus cabelos na nuca e puxou meu
corpo – colando minhas costas em seu peito. Levou a outra mão até
o meu seio e apertou o bico – enviando sinapses para todo o meu
corpo. Queria que ele parasse de me estimular, porque meu
parâmetro de comparação ficaria muito alto.
— Goza comigo — sussurrou ao meu ouvido e não tive tempo
de responder, porque sua mão desceu até o meu sexo e voltou a dar
atenção ao meu clitóris.
Todo aquele suor entre nós, as palavras torpes, as mãos
firmes, as ordens. Não precisaria de mais nada para que eu
chegasse ao clímax novamente.
— Agora, Yasmin — ordenou e aumentou o ritmo de seus
dedos.
A onda de calor e o tremor que dominou meu corpo foram
impossíveis de controlar o meu grito.
— Ohhhhhh... caceteeeeeee..., Bennett...
Seu corpo estremeceu e caiu sobre o meu. O urro que
escapou de seu peito foi gutural.
Me joguei na cama e o bonitão não se deu ao trabalho de sair
de cima de mim. Nossos corpos escorregavam de suor. O cheiro de
sexo invadiu o quarto – deixando tudo muito excitante.
Alguns minutos se passaram e, provavelmente, assim que a
consciência voltou, Enrico saiu rapidamente de cima de mim –
ficando em pé. Sem dizer uma palavra, caminhou até o banheiro.
Me sentei na cama e chacoalhei um pouco a cabeça –
lembrando-me de o porquê de estar ali. Ouvi o barulho do chuveiro e
me apressei em me arrumar. O senhor sistemático, deixou minhas
roupas mais organizadas do que no meu próprio armário. Vesti-me o
mais rápido que pude, assim, quando ele saísse, veria que
estávamos na mesma sintonia – sem intimidade.
Corri para sala, no momento em que o barulho da água
cessou. Seria melhor – mais profissional. Embora não tivesse
nenhuma experiência na área, assisti a muitos filmes relacionados
com o tema, tinha uma noção de como me comportar. Inquieta,
andava de um lado para o outro, torcendo para que ele saísse logo
do quarto e acabássemos de vez com aquele constrangimento.
Comecei a sentir vontade de vomitar, mesmo que fizesse horas que
não comia nada.
Respirei fundo e engoli em seco. Assim que ele surgiu à porta
– completamente vestido. O bendito é muito bonito. Olhar para ele
fez meu coração disparar. Eu sabia que não podia, mas estava fora
do meu controle. Enrico ficou me olhando – um tempo excruciante –
com a expressão fechada. Como ele não se manifestou, decidi tomar
à frente:
— Preciso ir, pode me pagar? — fui direto ao assunto.
Ele meneou a cabeça e foi até o aparador onde tinha deixado
a carteira e a chave do carro. Enquanto ele contava o dinheiro, fiquei
mordendo os lábios – aflita. Por mais que estivesse me pagando
muito bem, teria que repetir para conseguir pagar o advogado. Só
em pensar, minha mente dava uma bugada. Saber que o teria
novamente, quantas vezes eu quisesse, era assustador. Porque,
seguramente, meu coração não saberia diferenciar as coisas e eu
sairia muito machucada.
— Conta, veja se está certo — sugeriu, esticando a mão em
minha direção.
Me aproximei, peguei o dinheiro e comecei a contar as notas.
Minhas mãos estavam um pouco trêmulas – tentei disfarçar.
— Tem mais do que foi combinado.
— É para você pegar um taxi.
— Não custa tudo isso, sem contar que vou de Uber. —
Devolvi as sobras e ele se recusou a pegar. Era muito mais. — Isso é
uma forma de não precisarmos mais nos ver?
Enrico franziu a testa.
— Não entendi como chegou a essa conclusão.
— Oras, eu disse que precisava de mais de uma noite.
— E eu disse que o dinheiro não é problema pra mim.
Não discuti mais. Abri a bolsa e guardei o dinheiro.
— Bom, é isso, então... obrigada.
Desconcertada, caminhei até a porta e fui abrindo-a. Olhei por
sobre os ombros, quando ele me questionou:
— Hoje à noite nos vemos?
— Por mim. — Dei de ombros, passando uma mensagem de
que não tinha me abalado. Claro que mentia descaradamente.
Nem sabia o que seria de mim depois do bonitão-Bennett.
§§§§
Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi ir até a cozinha
e abrir a geladeira. Eu precisava desesperadamente de comer
doces. Peguei o pote de Nutella. No armário, o saco de pão de
forma. Sentei-me na banqueta alta, de frente ao balcão de mármore,
e comecei a comer. Enfiava o pão no pote e devorava.
Já estava na quarta fatia de pão, quando Enzo entrou no
cômodo – sonolento. Se aproximou e sua expressão mudou
imediatamente, quando percebeu o que eu estava fazendo.
— Enlouqueceu? — berrou e veio para cima de mim –
tentando tirar a fatia que eu levava à boca – lotada do creme de
avelã e chocolate.
O empurrei e enfiei a fatia na boca. Meus dedos e meu rosto
estavam todo sujos do creme.
— Me deixa — reclamei com a boca cheia, colocando a mão
em seu peito, afastando-o.
— Yasmin, quanto que você já comeu? — continuou gritando:
— Chega!
— Pare de drama — retruquei – ainda mastigando. Ele se
afastou, pegou o pote de cima da mesa e o guardou. Fechou o
pacote de pão e fez o mesmo. — Não acabei.
— Acabou sim. Por que não comeu comida? Pensa que eu
não sei o que vai fazer agora? Que merda, Yasmin, o que pretende
com esse comportamento? Voltar para a clínica?
Cerrei os dentes e os olhos – arrependida de ter cedido à
compulsão. Enzo tinha razão. Antes que a coisa ficasse pior, corri
para o banheiro. Tranquei a porta e me ajoelhei em frente ao vaso
sanitário. Comecei a provocar vômito – enfiando dois dedos na
garganta.
— Yasmin, abra a merda dessa porta, porra!
Enzo batia forte na porta. Ele sabia o que eu estava fazendo.
Anos lutando contra esse mal, com meu amigo ao meu lado. Não
demorou para que eu despejasse no vaso tudo o que tinha comido.
Fui ao lavatório e fiz gargarejo com enxague bucal. Era uma prática
muito conhecida para mim.
— Pronto, resolvi o problema — afirmei e passei pelo Enzo,
assim que abri a porta.
Fui para o meu quarto – sentindo a garganta arder e o corpo
tremer. Senti a presença do Enzo atrás de mim. Comecei a me
despir – ignorando seu olhar recriminatório.
— Já se olhou no espelho? — inquiriu e não respondi. — Está
começando de novo, bombom. Não pode se entregar, tem que lutar.
Qual foi a última vez que comeu?
— Não tive tempo.
— Por que não comeu algo saudável? Foi atacando os pães e
doces. Só pra depois colocar tudo pra fora. Por que está fazendo
isso?
— Não posso engordar e não tenho vontade de comer
comida.
— Meu Deus, Yasmin. Você está se ouvindo? Cadê minha
amiga forte, determinada que lutou contra isso e venceu?
Não respondi e nem tive coragem de olhar para ele. Fui para o
banheiro e entrei embaixo do chuveiro. Aumentei a temperatura da
água e comecei a esfregar minha pele com força. Lembrar que eu
tinha me prostituído, ativava todos os gatilhos ruins do meu
organismo. Mais de anos, que conseguira controlar a bulimia. O
tempo que fiquei na clínica foi crucial. Principalmente, porque foi lá
que conheci o Enzo.

Nos identificamos no primeiro encontro. Filhos de pais ricos


que jogam toda a pressão de uma sociedade hipócrita em nós. Eu
negra, estudando e convivendo só com brancos endinheirados,
sofrendo todos os tipos de bullings.
Com Enzo, não foi diferente, embora branco, o fato de ser
homossexual, fez com que sofresse muito. No meio em que estava
inserido, Enzo entrou em uma depressão profunda e tentou se matar,
mais de uma vez, até que seus pais o colocaram na clínica.

Enzo se aproximou do box e abriu uma fresta.


— Ele te maltratou? — Neguei com a cabeça. — Por que está
assim?

Não queria conversar. Queria tomar um remédio forte e dormir


por dias. Com a esperança de que, quando acordasse, tudo seria
diferente...
Que meu pai ainda estivesse comigo...
Que minha mãe nunca tivesse me deixado...
Que minha madrasta não existisse...
Que eu pudesse seguir com os meus sonhos de ter uma
escola de dança...
Que eu não tivesse entrado no carro no Bennett.

Finalmente, tive coragem de olhar para o meu amigo e me


arrependi, porque seu olhar indulgente abriu a torneira das minhas
lágrimas.
— Oficialmente..., sou uma... pros... ti... tu... ta — declarei
entre lágrimas. — Todos os... meus... sonhos... — prossegui e fui me
arrastando pela parede, até sentar-me no chão. Abracei os joelhos e
deixei a água caindo em minhas costas. — Agora... sim... Adélia
vai... ter... razão.
Enzo entrou, vestido mesmo, e sentou ao meu lado –
passando o braço pelas minhas costas. O abracei e afundei o rosto
em seu peito – deixando que as lágrimas limpassem a minha alma.
Confusa

Gabrielle

Dois dias trancada em um hospital estava quase enlouquecendo.


Kauê só me liberou, depois que conversei com a doutora Rita.
Mesmo que eu afirmasse que tinha uma pessoa que me
acompanhava, fizeram eu esperar. A única parte boa foi poder estar
com Kauê mais tempo.
Tinha me esquecido do quanto ele é bonito e simpático. E a
melhor parte é que demonstra um interesse em mim.
Se fosse há um tempo, não me preocuparia com isso, afinal,
não tenho tempo para namorados, no entanto, precisava urgente tirar
o Henry dos meus pensamentos.
— Bom dia, madame — cumprimentou João Pedro,
adentrando o quarto.
— Olá, garanhão. — Dei um pequeno soco em seu ombro.
— Vai ter que mudar esse apelido, não estou pegando nem
mosca.
— Ahahaha... Cadê a Andressa?
— A fila anda.
Arregalei os olhos – desacreditada. Cheguei a sentir ciúme da
intimidade deles.
— Como assim, o que aconteceu?
— A garota é fora da casinha, Gabi. Não é pra mim, não. Você
me conhece, não quero compromisso com ninguém.
Empurrei meu ombro nele e fiz uma careta.
— Garanhão.
— Vou te mostrar quem é o garanhão — avisou e me jogou
em seu ombro – deixando-me de ponta cabeça.
— João, me coloca no chão — berrei e, foi nesse momento,
que Kauê entrou. Franziu a testa e ficou parado na porta – tentando
decifrar a cena.
Meu parceiro percebeu e me colocou no chão. Cumprimentou
o médico e se afastou – já que Kauê não demonstrou nenhum
divertimento.
— Pode ir embora, Gabrielle, está liberada — comunicou sério
e assinou a alta – encaixando a prancheta na ponta da maca. — Se
precisar, sabe onde me encontrar. — Virou as costas e saiu.
Fiquei olhando para a porta fechada por um bom tempo, sem
saber como agir.
— Esse cara quer te comer — constatou João Pedro, ficando
ao meu lado.
Dei um tapa em seu braço e neguei com a cabeça.
— Ele não é do tipo que só quer comer.
— Só porque é médico? Bobinha essa menina.
Olhei para ele com uma carranca. Estreitei os olhos e respirei
fundo.
— Culpa sua, agora, vou ter que ir atrás dele.
João abriu mais as pernas e cruzou os braços – me
escrutinando.
— Acho que você é que está com vontade de trepar com ele.
— E se for?
— Não faz seu tipo.
— Falou o especialista em homens — zombei.
— Especialista em você — murmurou e me deu às costas –
indo até minhas coisas e as pegando. — Vamos, não tenho o dia
todo pra ficar de babá de marmanja. — Passou por mim e saiu para
o corredor – andando a passos largos. A única opção que eu tinha
era de segui-lo.
§§§§
O trajeto estava silencioso. João Pedro dirigia resmungando.
Como sempre, o trânsito de São Paulo estava o caos. Ele saía
cortando os carros e buzinando. Até que se irritou completamente e
ligou a sirene do veículo.
Fomos direto para o distrito, o dia estava apenas começando
e, certamente, tinha muito o que fazer.
Entramos no distrito e fui direto cumprimentar a sargento dos
civis.
— Olha quem está de volta, minha menina — comemorou e
saiu detrás do balcão – me abraçando forte. — Como está se
sentindo?
— Muito melhor, agora. — Sorri de canto e aproveitei o abraço
caloroso da minha amiga.
Depois de tantos anos juntas, a tinha como minha mentora.
A Noiva

Enrico

Parei em frente à garagem do meu prédio e, enquanto aguardava


a abertura do portão, observei um paparazzo no outro lado da rua –
tirando fotos. Respirei fundo e me conformei com o fato de eu ser
uma figura pública – mesmo odiando exposições.
Estacionei o Maserati e, assim que saí, dei de cara com
Francisco – me olhando feio.
— Bom dia, Francisco — cumprimentei-o e caminhei ao
elevador – ignorando o olhar repreensivo.
— Bom dia, senhor, não quero me intrometer, mas...
— Não se intrometa, apenas faça o seu trabalho.
— É o que estou tentando fazer... se o senhor...
— Saio daqui a meia hora — avisei e, dentro do elevador,
apertei o botão para as portas se fecharem – interrompendo sua fala.
Eu sabia que ele estava com a razão, depois do atentado
sofrido pelo meu pai, todos nós tínhamos ordens expressas de andar
com segurança. Só que eu precisava de um pouco de privacidade.
Entrei na cobertura e inspirei uma boa quantidade de ar, com
a pessoa que encontrei à minha espera.
— Onde você passou a noite, meu amor? — questionou
Leandra – vindo ao meu encontro e passando os braços pelo meu
pescoço.
Por cima dos ombros dela, vi quando Cida revirou os olhos e
balançou a cabeça.
— Estou atrasado, Leandra — comuniquei e fui empurrando
os braços dela.
— Nossa, nem um beijinho? Achei que estaria com saudades
da sua noiva, poxa!
Bufei e passei a mão na nuca – buscando palavras menos
agressivas.
— Não somos noivos — rosnei e a olhei – colocando as mãos
nos quadris.
— Ainda não, meu bem... ainda não! Isso está bem próximo
de acontecer. Seu pai acha que...
— Bom dia, Cida. Posso tomar meu banho, tudo em ordem?
Deixei Leandra falando sozinha e fui até minha assistente –
beijando sua testa. Ela nem terminou a frase – sabendo o quanto
aquele assunto me tirava do sério. Cida ajeitou meus cabelos e
beijou meu queixo – confirmando que estava tudo dentro dos
conformes.
— É inacreditável, a serviçal ganha beijo e sua noiva, nem
bom dia.
— Porra, Leandra! — berrei – jogando as mãos para cima.
Não bastava ter que deixar a única mulher que me fez sentir
alguma coisa de verdade, ir embora, ter que aguentar aquela
interesseira geladeira, era muito para o meu dia.
Leandra levou a mão à boca e arregalou os olhos.
— Enrico..., você... nunca te vi falando palavrões. O que...
aconteceu? Só pode ser aquele seu amigo pervertido. Eu disse pra
você parar de andar com o Miguel, ele não faz parte do nosso nível
social. — Virei as costas e saí andando pelo corredor que me levaria
até minha suíte – com Leandra em meu encalço – choramingando.
— Seu pai disse que agora é o melhor momento de ficarmos noivos.
Temos que falar com o Lucca, ele tem os contatos das pessoas
certas que vão espalhar a notícia... Será bom para os negócios, meu
bem. Parece que meu pai tem o que o seu precisa, amor...
Fui até o closet e comecei a me despir – ignorando
completamente a garota arrogante que gesticulava e falava às
minhas costas. Tirei toda a roupa e, antes de colocá-la no armário
basculante –próprio para roupas sujas –, as cheirei, com a
esperança de ter ficado um resquício de Yasmin.
— Por que está cheirando essas roupas? Com quem esteve à
noite, Enrico? Você está me traindo? — Joguei as roupas
rispidamente dentro do armário e o fechei – chutando-o. Uma prática
nada comum para mim. Entrei no banheiro e alcancei toalhas limpas
– deixando-as fáceis –, antes de ficar embaixo da ducha. — Fala
comigo, Enrico — exigiu Leandra – continuei meu banho –
esfregando os cabelos.
Ela sentou-se na beirada da banheira e esperou que eu
terminasse de me enxaguar.
Enquanto me enxugava, decidi por um fim na questão:
— Primeiro: tudo o que temos é uma negociação, portanto,
não te traí. Segundo: tudo bem, esse momento chegaria, pode cuidar
dos preparativos e falar com o Lucca. Ficaremos noivos.
Leandra deu um pulo e veio até mim – beijando todas as
partes do meu rosto.
— Te amo... te amo... te amo...
— Pare com isso, Leandra. Conhece muito bem os limites
desse relacionamento. Nunca envolveu amor.
Ela deu de ombros e passou a unha pelo meu peito nu.
— Fala isso para o meu coração.
Segurei sua mão, quando iniciou uma descida e quis invadir a
toalha que estava enrolada na minha cintura.
— Chega.
A empurrei de leve e voltei ao closet. Olhei no relógio e
comecei a ficar agitado. Leandra começava a bagunçar minha rotina
e isso me deixaria irritado o resto do dia.
— Então...
— Saia daqui, agora.
— Mas, não termina...
— Agora, saia.
Caminhei até a porta e a abri – fazendo um gesto para que ela
passasse.

Vestido com meu terno, perfeitamente alinhado, cheguei à


copa e me sentei para tomar meu café da manhã. Precisei me
controlar para não colocar Leandra para fora do meu apartamento.
— O de sempre, Cida.
Cida me entregou uma xícara com o meu café, na medida e
temperatura que só ela sabia como eu gostava. Colocou um prato
com a minha omelete saindo fumaça em minha frente. Dei a primeira
garfada e gemi de satisfação – fechando um pouco os olhos.
— Vai ter que morar com a gente na mansão, Cida. Só você
pra fazer meu noivo gemer desse jeito.
Quase me engasguei, com a lembrança dos meus gemidos
guturais na madrugada. Sem contar o que acabava de sair da boca
dela.
Engoli rapidamente e passei o guardanapo na boca –
olhando-a.
— Não pretendo sair daqui — comuniquei, sem titubear.
— Como não, meu amor. Uma cobertura dessa não foi feita
pra crianças.
— Não viaja, Leandra — recriminei-a e joguei o guardanapo
de pano em cima da mesa – ficando em pé. Definitivamente, meu dia
estava destruído.
— Enrico, filho, não comeu nada. Beba pelo menos o seu café
— preocupou-se Cida.
— Perdi a fome.
§§§§
Leandra falou e gesticulou o caminho todo até o prédio da
empresa. Francisco me olhava pelo retrovisor desconfiado. Minha
cabeça estava tão longe que eu não tinha a mínima ideia o que ela
tinha dito. Só sabia o tema: noivado. Se tinha coisa com que eu não
estava preocupado, era com esse maldito relacionamento.
Assim que minha mãe faleceu, tomei meu lugar na empresa e
assumi meu sobrenome. Desde àquela época, o pai de Leandra faz
parceria com os Bennett. Temos a mesma idade e a garota é muito
bonita. Quando meu pai sugeriu uma parceria entre nós, não achei
que me prejudicaria – até passar mais tempo com ela.
Leandra não é uma pessoa má, só que nasceu rica e é filha
única. Não lida bem com limites. Dizer não para ela é o mesmo que
desafiá-la. Ela nunca desiste. No início, foi até divertido, até eu
descobrir que somos completamente incompatíveis.
O dia que acabei com tudo, ela propôs uma negociação.
Assim não prejudicaria a empresa de seu pai e eu ficaria numa boa
com o meu. Ficou claro que nenhum dos dois ficaria preso, no
entanto, o comportamento dela não condiz com o acordo.
— O que acha, amor?
Chacoalhei a cabeça e franzi o cenho – virando o rosto em
sua direção.
— Você não ouviu, não é mesmo? Vai me dizer com quem
passou a noite? Está agindo estranho, hoje. Você não é assim.
— Não te devo satisfação.
— Deve sim — falou um pouco mais alto – com a voz
embargada. Ergui as sobrancelhas. — Vai ser um prato cheio pra
esses tabloides baratos. Imagine a chamada: “Noiva de Enrico
Bennett é chifruda.” — Esboçou no ar – com as duas mãos – o
banner da notícia.
— Começou o teatro — murmurei e voltei a olhar pelo vidro.
— Estou cansada, Enrico, de ser tratada como um objeto.
Olhei bruscamente em sua direção e cruzei os braços.
— Podemos acabar com isso, agora. Você propôs essa
negociação. Não se lembra?
— Achei que você sentisse algo por mim — fungou e limpou
uma lágrima que escorreu no canto do olho.
Não respondi, porque não valeria a pena iniciar uma
discussão que não levaria a nada. Entramos na garagem da
empresa e, assim que o carro parou, desci rapidamente – pegando
uma boa distância de Leandra.
Para piorar a situação, a negociação que a empresa da família
dela estava fazendo com os Bennett, exigia que ela tivesse uma sala
no mesmo prédio – facilitando a comunicação. Sorte a minha que era
no departamento de criação – bem longe do meu.

O restante do dia foi no piloto automático. Somente meu corpo


estava na empresa, minha mente não saíra do hotel. O cheiro da
Yasmin tinha se infiltrado em mim. Podia sentir a textura de sua pele,
cada vez que fechava os olhos. Seu olhar indeciso era o que mais
me atormentava. A garota era uma caixa de Pandora e eu pretendia
abri-la.
Com esse pensamento, peguei o celular e disquei o número
que nunca achei que usaria.
— Rodolfo falando — atendeu o detetive.
— Boa tarde, Rodolfo. Aqui é o Enrico, filho do Isaac Bennett,
se lembra de mim?
— Quem esquece de um Bennett?
— Preciso de seus serviços.
— Às ordens.
Expliquei-lhe o que eu precisava e joguei meu corpo no
encosto alto da cadeira. Fechei os olhos e respirei fundo – buscando
o controle. Estar sem controle para mim é o mesmo que estar sem
ar. Eu precisava saber cada detalhe da vida da garota que estava
mexendo com a minha cabeça – atrapalhando meus planos.
Sem Saída

Yasmin

Enzo parou o carro em frente a mansão de seus pais e respirou


fundo – apoiando a testa no volante. Estiquei o braço e apertei de
leve sua coxa.
— Vai dar tudo certo, estou aqui — garanti ao meu amigo.
Ele levantou o rosto e alisou o meu – com um sorriso singelo
de canto.
— Eu te amo, bombom.
— Eu muito mais.
Os portões duplos de bronze foram abertos e um segurança
fez sinal para que ele entrasse com o carro. Mesmo contra a
vontade, Enzo obedeceu.
Saímos do carro apreensivos. Embora eu fosse frequentadora
assídua do lugar, não sabia como seria recebida, depois de todas as
coisas que tinham acontecido comigo. Assim que viramos amigos,
nossas famílias mantiveram contato. Certamente, Adélia tinha feito
um drama à mãe do Enzo.
— Querida, como você emagreceu — comentou Gorete, mãe
do meu amigo – vindo ao nosso encontro e colocando-me em seus
braços.
— Não começa, mãe — repreendeu Enzo, sabendo o quanto
me incomodava tocar no meu ponto fraco.
— Como a senhora está? — desviei o foco de mim e a olhei
de cima a baixo – constatando sua elegância de sempre.
Uma mulher na faixa dos cinquenta anos muito bem cuidada.
Assim como Adélia, Gorete faz parte da alta sociedade. A diferença é
que não é preconceituosa como minha madrasta. Sempre nos
apoiou, a mim e ao seu filho. O problema era o pai do Enzo.
— Melhor agora, querida, com vocês aqui. Vem aqui, meu
menino, dar um beijo na sua mãe. — Puxou Enzo e o abraçou
fortemente.
Entramos na mansão suntuosa da família e fomos direto à
piscina. Estávamos ali a convite de sua mãe, para um almoço.
— Achei melhor comermos aqui fora, está um dia lindo.
O espaço gourmet, ao lado da piscina, estava arrumado com
quatro lugares.
Nos acomodamos em volta da mesa e, quando comecei a
relaxar, o pai do meu amigo chegou, em toda sua imponência. Fiquei
em pé imediatamente e Enzo me puxou para baixo.
— Não precisa disso, bombom.
Desconcertada, sorri ao anfitrião da casa.
— Olá, Yasmin — cumprimentou e veio até mim. Fiquei em pé
novamente e estendi a mão. O homem ignorou minha mão e me
puxou para um abraço apertado. Sem saber onde colocar as mãos,
as deixei largadas ao lado do corpo.
Enzo ficou em pé e me puxou dos braços do pai.
— Que merda é essa, seu Lourenço?
O homem encarou o filho com os olhos estreitados e não
respondeu, indo sentar-se.
— Então, que ventos os trouxeram aqui? Fiquei sabendo que
a novinha aí largou o rapaz no altar.
Enzo bateu com as duas mãos na mesa e ficou em pé.
— Vamos, Yasmin, não vou ficar aqui e ver esse idiota te
incomodar.
— Está tudo bem, Enzo — murmurei envergonhada. Afinal de
contas, a mãe dele que nos convidou. Era só ignorar o pai.
— Querido, deixa as crianças em paz — interpelou Gorete –
colocando a mão sobre o antebraço do marido – que fuzilava o Enzo
com os olhos.
Lourenço ergueu os braços em rendição.
— Não abro mais a minha boca.
— Fará um bem para a humanidade — provocou Enzo e eu o
puxei para sentar-se novamente.
Passamos um tempo comendo em silêncio, até Gorete voltar
a puxar assunto.
— Querida, Enzo me disse que precisa de um bom advogado.
— Confirmei com um menear de cabeça e limpei o canto da boca
com o guardanapo – engolindo em seco. Qualquer assunto que
saísse sobre mim daria confusão.
— O que você aprontou, além de fugir de seu casamento? —
ironizou seu Lourenço, enquanto levava a comida à boca.
Pressenti que Enzo voaria no pai, com a mão em sua perna,
dei um apertão que ele chegou a gemer.
— Lourenço, está deixando a menina constrangida.
— Ué, não vejo o porquê. Se precisa de um advogado, é
porque fez algo errado.
— Não fiz nada de errado — defendi-me, erguendo o queixo.
— Só quero rever o que é meu por direito.
— Hum, interessante. Conta mais — instigou-me, sem parar
de mastigar – fazendo um gesto com o garfo para eu continuar.
O pai do meu amigo é um homem de presença. Mesmo
depois dos sessenta, provoca suspiros. As características do Enzo
são muito parecidas com as do pai – uma infelicidade aos dois – que
não se suportam.
— Ignora ele, Yasmin — bradou Enzo.
— Só quero ajudar, moleque.
— Ajudar porra nenhuma, quer espezinhar a minha amiga.
O pai dele ficou em pé bruscamente e bateu com as mãos no
tampo da mesa, como Enzo havia feito antes.
— Você está na minha casa, imbecil.
Enzo ficou em pé e me puxou. Eu já não estava conseguindo
comer, depois de tudo aquilo, nem pensar que alguma coisa passaria
pela minha garganta. Tinha um nó do tamanho de uma laranja.
Queria me sentir forte o tempo todo, mas estava complicado lidar
com todos aqueles obstáculos.
Enzo pegou no meu braço e começou a me puxar.
— Mãezinha, se quiser me ver, venha até a minha casa, aqui
não piso mais.
— Minha casa, você quer dizer, eu que paguei por aquele
apartamento luxuoso que você mora — gritou o pai dele, andando
atrás de nós.
Enzo travou no lugar e eu o empurrei para que continuasse.
Não era o momento de deixar o orgulho falar mais alto. Se ele
enfrentasse o pai, seriamos nós dois sem “teto”.
— Vamos, Enzo — ciciei e peguei em seu queixo – fazendo-o
olhar para mim. Seus olhos eram puro fogo e o maxilar se contorcia.
— Um dia, seu bandido de colarinho branco, vou te devolver
cada centavo que me deu.
— Quero estar vivo para ver esse dia chegar — desdenhou o
pai.
Enzo se soltou de mim e foi até ele. Colocou o dedo em riste
no nariz do pai e a mãe interpelou imediatamente:
— Parem, vocês dois! — gritou, enfiando-se entre eles.
A respiração dos dois estava completamente alterada. A
tensão era densa a ponto de poder ser cortada.
— Desculpe, dona Gorete — justifiquei-me, pois me sentia
culpada por toda aquela confusão.
— A culpa não é sua, Yasmin. Esses dois sempre se
estranharam, uma pena pra mim. Olha só, vou enviar o contato de
um advogado, amigo meu, para o Enzo. Procure ele e diga que fui eu
que te enviei. Tenho certeza de que ele vai resolver o seu problema.
Murmurei um agradecimento e fui puxando o braço do Enzo –
que continuava em uma batalha de olhares com o pai.
§§§§
Enzo não foi capaz de voltar dirigindo, tamanho o descontrole
emocional que o pai lhe causara.
— Feliz é você que não tem ninguém, Yasmin.
Estremeci, porque ele não tinha ideia da besteira que dizia. O
meu maior sonho era ter sido criada pela minha mãe. E, embora o
pai dele fosse um escroto, sua mãe compensava. Coisa que quase
tive com o meu pai, se ele não tivesse sido tão omisso.
— Você está nervoso — comentei e continuei com a minha
atenção à estrada.
Um som de mensagem chegou no celular dele.
— Já que perdemos o almoço, podemos, pelo menos, resolver
a questão do advogado, o que acha?
— Está com o endereço?
Ele ergueu o celular, mostrando a mensagem da sua mãe com
a localização.
— Ela já ligou, ele está nos esperando, vamos?
— Agora mesmo.

O lugar era suntuoso. As pessoas eram elegantes. Não me


senti incomodada, afinal, fui criada nesse meio. Agradeci,
mentalmente, ao Enzo por ter mudado o meu estilo de se vestir.
Com a desculpa de que iria trabalhar no clube, aboli as calças
jeans e camisetas. Atualmente, estou geralmente de saltos, calças
pantalonas com blusinhas de sedas ou vestidos. Não saio de casa
sem me maquiar, nem que seja apenas o básico. Essa é a vantagem
de morar com um cara vaidoso.
— Senhorita Yasmin, o senhor Morales vai te atender —
avisou a secretária do advogado.
Fomos encaminhados à sala do Morales e, assim que a porta
foi aberta, levei um susto – eu o conhecia. Era amigo do meu pai. Só
não tinha feito a ligação do nome à pessoa, afinal, estávamos longe
da minha cidade.
— Oras que mundo pequeno, então é essa Yasmin que
precisa dos meus serviços?
Veio até mim e me abraçou. Morales é um homem grisalho,
que deve ter, mais um menos, a idade que meu pai teria – na faixa
dos cinquenta.
Aceitei o abraço apreensiva, fiquei na dúvida se expunha ou
não o caso a ele. Apesar de me lembrar de ter ouvido, várias vezes,
Adélia falar mal dele ao meu pai. Segundo ela, o advogado queria
colocar coisas sobre ela na cabeça do meu pai.
— Como você está? — Dei de ombros e desviei um pouco o
olhar. — Deixa-me adivinhar: Adélia quer tirar seu direito na
herança?
Enzo colocou a mão na boca e sorriu, entendendo que
estávamos no lugar certo.
Morales cumprimentou Enzo e nos sentamos.
— Bom, vamos lá, em que posso te ajudar?
Tomei fôlego e contei-lhe todos os detalhes do testamento do
meu pai. Em seguida, relatei o fatídico dia do meu quase casamento.
E, por fim, as visitas “ilustres” que recebi – me pressionando.
— Tenho que ser sincero — iniciou e assenti —, não é um
processo fácil, contestar um testamento. Mas, te garanto que vamos
conseguir. Só que, infelizmente, demora.
— Quanto tempo?
Ele entortou os lábios e meneou a cabeça.
— Bastante. — Respirou fundo. — Mas vamos conseguir.
Baixei os olhos e espremi as mãos no colo. O sinônimo de
demorar era que custaria caro. Não sabia se conseguiria dar
continuidade ao arranjado que tinha feito com o Bennett. Dizer que
meu corpo não queria seria mentira, porque, só em pensar nele,
sentia o meio das pernas formigarem. No entanto, quem juntaria
meus cacos no final?
A quem eu queria enganar, achando que poderia fazer papel
de prostituta e não ter consequências? Longe de mim, ser
preconceituosa ou desmerecer minhas colegas de trabalho que
conseguiam cumprir com a função, sem reações futuras. Entretanto,
seguramente, minha mente entraria em colapso.
Quem explicaria ao meu coração a diferença de sexo e amor?
Apenas uma noite, foi o suficiente para dar um nó na minha cabeça.
Não estou dizendo que me apaixonei, não acredito em amor à
primeira vista, mas, se continuasse com aquele acordo, não
precisaria ser inteligente para saber que estaria totalmente envolvida.
Enrico me deu um beijo e não suportei – uma demonstração.
Sem contar que teria que esconder minha história. O senhor
metódico teria um enfarto, se soubesse a bagunça que minha vida é.
Mesmo sem o conhecer, tenho certeza de que tudo em sua vida está
no devido lugar. Basta olhar para ele, não tem um fio de cabelo
desalinhado. Até mesmo consumido de desejo, foi capaz de tirar
meu vestido e o dobrar. Quem faz isso, meu Deus do céu?
— Então, Yasmin, podemos dar andamento? — questionou o
advogado e eu o olhei confusa – saindo de meu estado de torpor.
— Não sei se posso pagar seus honorários — confessei logo,
assim não criaria uma falsa esperança.
Ele se recostou na cadeira; mordeu o canto do lábio;
tamborilou os dedos sobre o tampo da mesa.
— Quanto tem agora?
Abri a bolsa, peguei todo o dinheiro que o Bennett tinha me
dado e o coloquei sobre a mesa.
Ele alcançou as notas e as contou. Ergueu as sobrancelhas e
me olhou desconfiado.
— Tem bastante dinheiro aqui.
Enzo, que até então só observava, saiu na minha defensiva.
— Diga logo quanto ainda falta, porque precisamos nos
programar. — O olhei e ele fez um sinal para que ele assumisse.
Apenas uma palavra do advogado e eu soube que teria que
continuar cumprindo o papel de prostituta. Fechei os olhos e suspirei.
Questionada

Gabrielle

Os olhares estavam esquisitos, assim que coloquei os pés no


meu departamento. Cumprimentei a todos com um meneio de
cabeça e fui à minha mesa. Havia um silêncio fora do comum.
— O que está acontecendo? — inquiri ao meu vizinho de
mesa.
Seus ombros encolheram-se e ele fez um sinal – com o
queixo – em direção à sala do Bento. Estiquei o pescoço e pude ver
o porquê de tanta apreensão. Mesmo que não pudéssemos ouvir, a
discussão lá dentro, entre o Bento e o capitão Cesário, estava
calorosa.
Nossa unidade é mal vista, pois Bento tem um modo “peculiar”
de lidar com as situações. Embora os superiores não aprovem, a
taxa de solução dos casos do departamento é altíssima. Quando o
capitão se desloca de seu posto até nós, é porque algo saiu muito
fora do controle.
— Gabrielle, por favor — ordenou Bento, abrindo a porta da
sala.
Eu nunca vou me acostumar com sua voz altiva, por mais
firme que eu seja, sempre estremeço.
— Só podia ser com ela — ouvi o murmurar do João Pedro.
Levantei-me e, antes de seguir a ordem do meu sargento, fui
até a beirada da mesa do meu parceiro.
— Se tem algum problema comigo, é só dizer — provoquei
entredentes. A primeira reação foi apertar as unhas nas palmas das
mãos – o que não funcionou, já que o Kauê as deixou enfaixadas.
— Gabrielle — vociferou Bento – mantendo a porta aberta.
No instante, eu e o João Pedro entramos em uma guerra de
olhar. Fiquei pensando em qual momento deixei que nossa relação
chegasse a esse nível – onde ele achava que podia dizer o que
tenho que fazer.
Marchei até a sala do meu chefe-padrinho, com uma postura
firme. Entrei e Bento fechou a porta.
— Bom dia, capitão — cumprimentei-o e esperei em pé –
aguardando instruções.
O capitão ergueu seus olhos por cima da armação dos óculos
e fez um pequeno meneio com a cabeça. Em seguida, voltou sua
atenção a uns papéis que tinha nas mãos.
Bento sentou-se atrás de sua mesa e apontou a cadeira ao
lado do capitão – em frente à sua mesa. Fiz o que mandou – sem
perder a postura. Já imaginava qual era o problema, mas,
independentemente do que tinham decidido sem a minha presença,
não recuaria em meus propósitos.
— Temos um problema — iniciou Bento.
— Isso eu já sei, caso contrário, eu não estaria aqui, nem ele
— retruquei e apontei o capitão com o queixo.
Cesário fechou a pasta que tinha no colo, retirou os óculos e
me encarou.
— Por que ainda está aqui? — indagou – colocando uma
perna dos óculos no canto da boca.
— Como?
— Você entendeu — insistiu e eu ri de nervoso – praguejando
internamente.
— Acho que eu trabalho aqui, ou estou enganada — satirizei.
— Controle-se, Gabrielle — repreendeu-me Bento e eu o
fuzilei com o olhar.
— Como quer que eu me controle com esse tipo de pergunta?
— Fiquei em pé – pronta para sair da sala.
— Sente-se imediatamente ou nunca mais vai usar esse
distintivo — ameaçou o capitão e eu respirei fundo – voltando a me
sentar.
Cesário, com seu porte arrogante, me analisou por uns
minutos – estreitando os olhos.
— Pode, por favor, me dizer o que precisa? Fiquei dois dias
fora e tenho que colocar meu trabalho em ordem.
— Seu chefe não conseguiu esclarecer por que as
investigações do atentado ao seu pai estão paradas — despejou de
uma vez e, aí sim, ele conseguiu me desestabilizar.
— Se quando diz meu pai está se referindo aquele velho
asqueroso, se enganou redondamente. Meu pai está se recuperando
da morte da minha mãe em outra cidade.
— Gostando ou não, Gabrielle, o sangue dele corre em suas
veias. Ao ter uma atitude como essa, demonstra que a imprensa está
certa em achar que foi você — sentenciou o capitão, sem titubear.
Desestabilizado

Enrico

Buscava uma maneira de sair do meu prédio sem ser visto e não
encontrava uma saída. Não teria jeito, precisaria da ajuda do
Francisco com meu carro.
O chão da sala da cobertura furaria, se eu continuasse a
andar de um lado para o outro. Já passava das nove da noite e eu
não sabia o que fazer para despistar os paparazzis que acampavam
à minha porta. Só deram trégua nas festas de final de ano – uma
pena.
— Quando é que vão encontrar outra história mais
interessante? — resmunguei para mim.
Cida içou as sobrancelhas de onde estava – ignorei-a. Sentei
no sofá, inclinei o corpo – apoiando os cotovelos nos joelhos,
olhando para o celular. Os passos leves da Cida avisaram-me de que
começariam os questionamentos. Bufei, antes mesmo de ela iniciar.
— Vai me dizer o que está te desestabilizando? — indagou e
sentou-se ao meu lado – vestida com um robe – pronta para deitar-
se.
Cida soube me ler corretamente – estava completamente
desestabilizado. Ter consciência desse fato me tirava o sono. A todo
instante, buscava o equilíbrio das minhas emoções para ter o
controle das minhas ações. Uma busca sem sucesso. Coisa que
nunca havia me acontecido. As pessoas se irritam com o meu modo
metódico. Não entendem que meu cérebro é todo sistematizado,
quando saio da rotina, fico perturbado.
— Filho — continuou e passou a mão pelas minhas costas —,
fala comigo, não vou te julgar — insistiu.
— Em qual momento me deixei levar, porra! — praguejei e
ouvi Cida respirar fundo. Até mesmo ela, que está comigo há muito,
se espantou com meu vocabulário.
Ficamos em silêncio um tempo, enquanto Cida tentava me
ajudar com seu carinho em minhas costas.
— Foi depois que a Leandra voltou, que ficou assim —
deduziu e eu a olhei por cima dos ombros. — Por que não termina
logo com isso, Enrico?
— De novo, essa ladainha? Quantas vezes preciso explicar?
— Me chateei. Por que teimam em dizer que precisamos seguir o
coração?
Se antes de sentir algo por alguém, já achava um absurdo
essa história de coração, depois de Yasmin, tinha certeza. Minha
condição era a prova da minha teoria. Emoções só atrapalham.
— Você conheceu alguém — prosseguiu, mais uma vez, me
lendo corretamente. Nesses momentos, preferia que ela estivesse
em sua casa, assim não precisaria encarar a realidade. Voltei a olhar
para o celular e não respondi – incentivando-a. — Como ela se
chama? — perguntou divertida.
— Pare — murmurei, sem olhar para ela.
— Em todos esses anos, pedi à Nossa Senhora que
colocasse uma pessoa em seu caminho, que abrisse seus olhos.
Acho que ela me ouviu.
Bufei e balancei a cabeça – negando.
— Vocês e essa mania de achar que uma peça de gesso vai
atender a algum pedido — ironizei e recebi um leve tapa no ombro.
— Não seja rebelde, filho. Deus pode te castigar.
Novamente, me calei – ainda indeciso sobre o que fazer. Se
continuasse com o acordo que tinha feito com a Yasmin, me
satisfaria, mas correria muitos riscos – principalmente – o de me
apaixonar. Coisa que, até então, eu nem acreditava que poderia
acontecer comigo. Se desistisse... só em pensar em não vê-la mais,
meu corpo endurecia. Era um sinal de que tinha que recuar – só não
sabia como.
Levantei-me de supetão e cliquei no contato do Francisco.
— Vou acabar com isso, essa noite — garanti e Cida sorriu –
um daqueles risinhos que demonstram incredulidade.
Francisco atendeu e eu pedi que distraísse os paparazzi,
saindo com o carro – que tinha os vidros escuros. Assim que
pegassem uma distância, sairia com o meu.
§§§§
Quase não dei atenção à Hostess, que já foi me conduzindo
ao mesmo lugar de sempre. Me acomodei e logo uma garota se
aproximou – toda sorridente.
— Olá...
— Chame a Yasmin — interrompi-a porque queria resolver
àquela questão e sair logo dali.
— Ela não veio, hoje — comunicou, com o sorriso
desaparecendo do seu rosto.
Franzi o cenho e controlei a respiração – porque as batidas do
coração eu não podia equilibrar.
— Eu posso te atender.
Meus ouvidos costumam ser seletivos, principalmente, quando
preciso de algo e não tenho o poder de conseguir. Ignorando a fala
da garota, olhei por cima de seus ombros, na direção do barmen –
amigo dela. Ele atendia uma pessoa, prestando à atenção em mim.
Fiquei em pé e, sem me justificar à garota, caminhei até o
local da pessoa que teria uma explicação.
Sentei-me no banco alto de frente ao balcão e esperei que ele
terminasse o que fazia. Meus pés batiam no chão sem parar e, por
vezes, me vi passando as mãos na nuca.
Depois de “intermináveis” minutos, o rapaz veio até mim.
— Olá, o que vai beber? — perguntou, se fazendo de
desentendido.
— É sério isso? Cadê a Yasmin?
— E por que eu te diria? — enfrentou-me de cara – cruzando
os braços.
Travei o maxilar e me contive. Se eu perdesse o controle,
mais uma vez – naquele local –, seria constrangedor. Nunca, em
toda a minha vida, me expus como estava acontecendo ali.
Cheguei com o corpo perto dele e falei baixinho.
— Só me diz, porra!
Ele recuou um pouco e ergueu as sobrancelhas – deixando
claro que não me atenderia.
— Se não vai beber nada, com licença, algumas pessoas
querem suas bebidas. — Virou as costas e me deixou com os nervos
pulando.
Inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos. Eu realmente
precisava conversar com a Yasmin. Tirar a garota da minha mente,
de uma vez por todas. Naquele momento, tive uma ideia. Peguei o
celular do bolso e disquei o número do Rodolfo.
— A essa hora, cara!? — rateou, assim que atendeu a
ligação.
— O que já sabe sobre a garota?
— Eu mal comecei, meu! Não sei muita coisa, você está
furando com o prazo que me deu.
— Sabe o endereço?
— Isso sim, mas só.
— Me manda o link da localização, agora — ordenei e
encerrei a ligação – saindo do banco e caminhando à saída.
O trajeto até o meu carro foi rápido. Me vi ligando meu
Maserati com um pequeno tremor nos dedos. Parei o que fazia e
fechei os olhos – inclinando a cabeça e apoiando no encosto do
banco. Fiquei uns minutos respirando com dificuldade, até sentir que
estava voltando ao normal.
— Isso precisa acabar, hoje — decretei e peguei o celular,
para ver a localização que o detetive tinha me enviado.
§§§§
Estacionei o carro em frente ao prédio e analisei o local.
Yasmin não morava em um bairro menos favorecido financeiramente,
como imaginei. Muito pelo contrário, só pessoas da alta sociedade
poderiam manter os custos de moradia naquele bairro. Mais um
motivo para me deixar intrigado. Por que, no fim das contas, ela
trabalhava naquele clube? E do que estava fugindo vestida de noiva?
Será que era realmente do seu casamento?
Se eu imaginasse, na época, que teria algum tipo de
envolvimento com ela, teria feito um interrogatório, nas horas em que
passamos juntos.
Observei o funcionamento da portaria, por um tempo. Teria
que ter um bom argumento com o porteiro, pois, certamente, se ele
me anunciasse, Yasmin não permitiria minha entrada.
Passados alguns minutos, vi quando o porteiro saiu de sua
cabine e foi para dentro do prédio.
— Chega alguém — torci, assim entraria como morador.
Duvidava que todos se conhecessem, em um prédio com tantos
andares.
Saí do carro e, como se os deuses estivessem a meu favor, vi
uma pessoa se aproximar da entrada de pedestres. Fui em direção a
ela – todo simpático.
— Nossa, o porteiro não está em seu posto, novamente.
Temos que conversar com o síndico — disse, como quem não quer
nada.
A senhora me olhou desconfiada e eu abri um sorriso –
desarmando-a
— Tem razão — concordou e abriu o portão. Entrei junto,
puxando outro assunto, já que o porteiro vinha em nossa direção.
— De qualquer maneira — prossegui e abri a porta de vidro
da recepção – fazendo um gesto para que ela entrasse primeiro. —
É um bom lugar para se morar.
— Ah, sim. Só alguns detalhes e ficaria perfeito.
Entramos no elevador e fomos conversando até o andar da
senhora – que me agradeceu, quando saiu da caixa de aço.
Meu peito se encheu de ar – assim que me vi sozinho e me
conscientizei do que fazia. Balancei a cabeça – indignado. Se eu
contasse para qualquer pessoa que me conhece, diria que eu
enlouqueci. Ou, no mínimo, tinha sonhado com àquela loucura.
As portas do elevador se abriram e eu saí confiante. Verifiquei
que era apenas um apartamento por andar.

O toque da campainha fez meu corpo endurecer novamente.


— Enzo, esqueceu a chave, de novo? — berrou Yasmin
abrindo a porta.
No momento em que a vi, achei que meu peito explodiria.
Como aquilo podia ser possível? Meu coração estrondava em meus
ouvidos. Eu mal conseguia respirar.
Já tinha visto a garota de várias maneiras, mas despojada e
descontraída, era a primeira vez. Yasmin vestia regada e shorts, com
os pés no chão. Seus cabelos estavam presos em um coque
bagunçado e seu rosto não tinha nada de maquiagem. Não achei
que ela pudesse mexer mais ainda comigo – me enganei.
Nenhum dos dois conseguia pronunciar uma palavra sequer.
Paralisamos à porta.
— Seu prédio precisa de um porteiro mais atento — comentei,
por fim. O sentimento protetor, com relação a ela, estava de volta.
Quantas pessoas poderiam fazer o que eu fiz? — Sempre abre a
porta sem antes saber quem é? — inquiri – torcendo os lábios e
cerrando os punhos ao lado do corpo.
— O que quer comigo, Bennett?
— Enrico, por favor — corrigi-a de cara.
— Ok, bonitão. Comece a falar. — Encostou-se no batente da
porta – fechando a passagem.
Sorri de canto, com a forma que ela me chamou.
— Posso entrar? — Ela mordeu os lábios e hesitou. —
Deveria ter olhado antes de abrir, assim teria como me evitar.
Agora... — pressionei e ela sorriu sem vontade – abrindo espaço
para eu passar.
Meu corpo roçou no dela e estremecemos. Parei e a encarei –
pegando em seu queixo e o erguendo em minha direção.
Yasmin umedeceu os lábios e engoliu em seco.
— Precisamos acabar com isso, hoje — alertei, sentindo que
não duraria muito – se desse continuidade àquela insanidade. Ela
concordou com um meneio de cabeça e eu me afastei – enquanto
Yasmin fechava a porta.
Parei em frente a vidraça da sala e aguardei que se
aproximasse. Receava que meu coração nunca mais voltasse a
bater normalmente.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou, às minhas costas.
Me virei e encontrei uma Yasmin um pouco ofegante. Antes
que eu deixasse minha razão me dominar, dei vazão às emoções.
Em um nano segundo, estava com o rosto dela entre minhas
mãos e minha boca atacando seus lábios. Levei uma das mãos à
sua bunda e a apertei ao meu corpo. Uma leve mordida em seu lábio
inferior antecipou a entrada impetuosa da minha língua – provocando
gemidos sôfregos de ambos.
Yasmin cruzou os braços em meu pescoço – cedendo ao
momento que tínhamos combinado de não acontecer. Eu sabia que
sua boca seria minha perdição, mas não tinha ideia de quanto me
manipularia.
— Sobe em mim — sussurrei, enquanto impulsionava seu
quadril para que passasse as pernas pela minha cintura.
Eu não conseguia me desgrudar da sua boca. No momento
em que a língua dela decidiu entrar na brincadeira, eu soube que
tinha perdido a batalha. Se a intenção era terminar com aquilo, tinha
acontecido exatamente o contrário. Yasmin acabava de quebrar
todas as minhas barreiras.
— Quero você, agora — anunciei e fui andando em direção a
um corredor – deduzindo ser o caminho que me levaria a uma cama.
— Enrico... não... pode... mos... — Calei sua boca, afundando
mais ainda minha língua nela.
Última Vez

Yasmin

Eu tentava explicar que não podia continuar com o acordo...


Precisava questioná-lo de como descobrira meu endereço...
Precisava afastá-lo...
Meu cérebro me alertava do risco...
Meu corpo fervia de desejo.

Depois de chutar a porta do meu quarto, Enrico sentou-se na


beirada da cama – sem me tirar de cima dele.
Afastou nossas bocas e encostou a testa na minha – com a
respiração alterada.
— Desobedeci a sua regra — sussurrou e tirou um fio de
cabelo do meu rosto. Seus olhos me escrutinavam – como se fosse a
primeira vez que estivesse me vendo. — Você é linda. — Concentrou
o olhar na minha boca e umedeceu os lábios – antecipando o que
faria a seguir.
Deixá-lo me beijar, foi um erro. Porque a química foi perfeita.
Decididamente, assim que ele saísse, entraria em crise novamente.
Só em pensar que tudo aquilo não era real; que era apenas
uma negociação; todos os gatilhos do meu cérebro começaram a ser
ativados.
Limpei a garganta e tentei me afastar – sentindo o estômago
se revirar.
— Por favor — suplicou – segurando-me em seu colo.
— Não posso... continuar... com isso... não consi... go —
gaguejei e espalmei seu peito – empurrando-o de leve.
Ele segurou meus punhos – impedindo-me de levantar.
— Só mais uma vez — insistiu e eu hesitei.
Minha hesitação foi o sinal que ele precisava. Colocou a mão
em minha nuca e me levou de volta à sua boca. O beijo começou
lento e carinhoso. Enrico contornou meus lábios com a língua, em
seguida, mordiscou o lábio inferior – acompanhando com os olhos.
Seu olhar estava diferente, menos agressivo, mais... romântico,
talvez.
Estremecemos juntos quando ele voltou a tocar minha língua
com a dele. Era como se estivéssemos esperando por aquele
momento a vida toda. Algo que nunca tinha sentido com ninguém e
que, seguramente, não poderia estar sentindo com ele.
— Estou desprevenido — avisou, apoiando sua testa na
minha – ofegante. Meneei a cabeça – entendendo.
— Deixa-me ver se o Enzo tem. — Fui saindo de seu colo e
ele impediu.
— Enzo?
— Sim, moro com ele, meu amigo que você conheceu no
clube.
Enrico me analisou um tempo e assentiu – soltando-me.
Enquanto caminhava para o quarto do meu amigo, ponderei
se deveria continuar com aquilo. Uma vez, foi o bastante para me
levar de volta ao inferno. O que seria de mim se continuasse? A
probabilidade de cair no abismo e não conseguir sair mais, era
grande demais.
Encontrei o preservativo no banheiro do Enzo. Voltei, pronta
para desistir – doce ilusão.

Enrico tinha se despido, dobrado sua roupa e colocado em


cima da poltrona. Vestia somente a box e estava em pé – em frente a
porta de vidro que dá acesso à varanda. Meu corpo não resistiu à
tentação.
— Última vez — murmurei e ele se virou – com uma
expressão perigosa. Uma mistura de desejo e mistério. Por mais que
eu tentasse, não tinha conseguido discerni-lo. Ao mesmo tempo que
era sério, metódico; na cama, era um furacão. A pessoa mais
complicada que conheci.
Ele caminhou lentamente em minha direção. A milímetros de
distância, passou o polegar pelos meus lábios.
— Devia ter seguido a regra — comentou e respirou fundo.
Com as pontas dos dedos, foi arrastando as alças da minha
regata pelos meus braços. Os bicos dos meus seios saltaram para
fora da camiseta e, como se fosse possível, ficaram mais duros –
atraindo o olhar do bonitão. Enrico deixou a camiseta embolada em
minha cintura e abraçou meus seios com as mãos.
— Eles são perfeitos — sussurrou ao meu ouvido e beijou
atrás da minha orelha. Sua boca foi descendo – deixando um rastro
de beijos. Até chegar a um dos bicos entumecido. No momento em
que ele lambeu em volta, soltei um gemido obsceno.
Meus braços estavam soltos ao lado do corpo, porque eu não
tinha forças de reagir – mesmo que minha mente gritasse para eu
correr.
Um arrepio cortou minha espinha dorsal, assim que ele
abocanhou o bico do seio que dava atenção. A sucção era forte; as
mãos me mantinham em cativo – apertando minha cintura. Até
aquele momento, eu não sabia o quanto precisava daquela boca me
sugando. Assim que sugou o outro bico, me ficou nítido que nunca
me recuperaria. Enrico era especialista, enquanto eu só tinha lidado
com amadores.
O que mais me perturbava era o fato de ele estar me tratando
diferente. Na primeira vez, deixou evidente que era apenas uma
negociação. Foi sexo com uma prostituta, sem nada envolvido.
— Levante os braços — ordenou e eu o fiz – admirada com
sua precisão nos movimentos. Enrico tirou toda minha roupa e a
deixou organizada junto com a sua. Abracei o corpo e aguardei que
ele voltasse.
Ele parou em frente a mim e voltou meus braços ao lado do
corpo. Contornou meu rosto com o indicador e foi descendo até meu
umbigo. Segurei a respiração, me sentindo vulnerável. Era como se
ele estivesse me enxergando por dentro.
Somente as pontas de seus dedos alisavam meu corpo e seus
olhos acompanhavam. Ele voltou a sentar-se à beirada da cama e
me puxou pela bunda. Desceu lentamente o indicador até chegar nas
minhas dobras lisas. As afastou com cuidado e espalhou minha
umidade pelo meu clitóris.
— Você está... — Ofegou e me olhou fixamente nos olhos. —
Pronta pra mim.
Umedeci os lábios e foi um incentivo para ele voltar a pegá-los
com os dentes. Sem soltar minha boca, iniciou movimentos
circulares em meu centro pulsante – afastando minhas pernas com
os joelhos.
— Enrico... — gemi e joguei a cabeça para trás. Ele soltou
meus lábios e salpicou alguns beijos em meu pescoço. Dois dedos
me penetraram e foi o meu fim.
O calor começou nos dedos dos pés e subiu na velocidade da
luz. Todo o controle que eu tinha tido até ali, desceu ladeira abaixo.
Soltei um grito e desabei em seu colo – fazendo com seus dedos
entrassem mais fundo em mim. Apoiei a testa em seu ombro –
buscando, insanamente, um equilíbrio dos meus atos.
O galope do meu coração estrondava a caixa torácica.
— O que está fazendo com a minha cabeça, Yasmin? —
sussurrou, enquanto alisava minhas costas. Não sabia se era para
eu responder ou uma pergunta retórica. — Eu nem sei quem é você
— continuou e eu me mantive no lugar. Mesmo porque, eu não
responderia, nem que ele me implorasse.
Ergui meu tronco e o encarei, analisando suas expressões
sérias. Ele retirou os dedos de mim e voltou a alisar meu rosto.
— Precisamos...
— Shiiiii... Eu quero aproveitar nossa última vez.
Enrico levou sua mão à minha nuca e me puxou para um beijo
lento. Com lambidas; mordicadas; línguas dançantes; e o pior:
carinho. Um beijo que demonstrava o quanto eu teria que lutar para
esquecer. O quanto tudo aquilo acabaria com o pouco de
racionalidade que me tinha sobrado.
Ele ficou em pé e me deitou na cama. Desceu a box pelas
pernas – causando um reboliço no meu âmago. O pênis ereto, cheio
de veias saltadas, tão imponente quanto o dono, empinou em
direção ao umbigo. Engoli em seco e me contive, para não o enfiar
na boca e lamber a cabeça brilhante de excitação.
Enrico engatinhou sobre mim e me deu um selinho, antes de
alcançar o preservativo e o colocar. Sem uma palavra, afastou
minhas pernas e mergulhou fundo em mim.
— Porra! — praguejou baixinho – com as pupilas dilatas.
Cada estocada que dava, um gemido rouco escapava de seu
peito – como se estivesse doendo fazer sexo comigo. Ele parecia
sofrer – deixando-me confusa.
Enrico foi aumentando a intensidade do vai e vem e, como um
animal enjaulado, urrou e caiu sobre mim. Podia sentir as batidas
descompensadas de seu coração. A respiração oscilante e o suor
fazendo nossos corpos escorregarem.
Passados alguns minutos, ele saiu de cima de mim e
caminhou até o banheiro – calado. Me sentei e encostei na cabeceira
da cama – puxando a colcha para me cobrir. Estava em minha casa,
não me preocuparia em ter que me vestir.
Ouvi o barulho do chuveiro e franzi o cenho.
— Sinta-se em casa — ironizei a mim mesma.
Decidi colocar minha roupa e agir como se nada tivesse
acontecido. Receberia meu dinheiro do acordo e nunca mais o veria.
Já tinha conversado com o Enzo, no dia seguinte, procuraria um
lugar para dar aulas de dança. Por mais que eu respeitasse, não
conseguiria trabalhar no clube. Uma realidade muito diferente da
minha. Enrico foi uma pequena amostra do que tinha por vir.
Ele saiu do banheiro nu e foi até a poltrona. Começou a se
vestir – sem nem olhar para mim. Aquilo era ridículo, o cara que tinha
invadido minha casa, agia como se fosse o dono do mundo. Inspirei
uma boa quantidade de ar – controlando a vontade de dizer-lhe
poucas e boas.
— Aqui, como prometido. — Em pé e pronto para ir embora,
estendeu a mão com uma quantidade exorbitante de notas graúdas
na mão.
— Não foi isso que combinamos — contestei e cruzei os
braços.
— Garanto que precisa dele mais do que eu. É só deixar o
orgulho de lado e aceitar.
— Não me conhece, como sabe que preciso?
Ele olhou em volta e fez um gesto com o indicador –
apontando para o lugar em que estávamos.
— Tudo isso é muito caro, Yasmin. Se aceitou minha proposta
é porque está em alguma enrascada. Você mesma disse que não é
prostituta. Então...
— Ok, que fique claro que foi a última vez.
— Sem sombra de dúvida.
Aceitei o dinheiro e o guardei na pequena cômoda ao lado da
cama.
O acompanhei até a sala. Abri a porta e fiz um gesto para ele
passar. Ao estar de frente comigo, parou e me analisou por uns
instantes.
— Acho bom você falar com o porteiro, é perigoso qualquer
pessoa poder entrar no prédio — sugeriu e eu concordei, porque não
era a primeira vez. A entrada do Gabriel e o Charles tinha sido da
mesma maneira.
Caminhamos até o elevador e logo entramos. O clima estava
muito esquisito dentro da caixa de aço. Ele se manteve sério –
olhando o visor que marcava os andares passando. Eu não sabia
onde colocar as mãos e nem para onde olhar. Parecia que o lugar
era muito pequeno para nós dois.
Graças aos céus, chegamos ao térreo. Descemos e
caminhamos lado a lado até a portaria.
— Boa noite — cumprimentei o porteiro e, antes que eu
continuasse, ouvi uma voz alterada de mulher, no portão.
Voltei minha atenção a ela.
— Então, essa é a puta que você está pegando, Enrico
Bennett? — estremeci. Olhei para ele, estava pálido.
Enrico desceu rapidamente os poucos degraus e fez sinal
para o porteiro abrir o portão. Saiu e pegou firme no braço da mulher
– tentando afastá-la.
— Sabia que ele tem namorada? E a trouxa sou eu —
continuou falando por cima dos ombros dele. Levei a mão à boca e
senti a bílis na garganta. Se eu não corresse, daria um vexame maior
do que a mulher.
Meu cérebro me mandava correr, mas minhas pernas não
obedeciam. A mulher não parava de berrar. Por ser madrugada, seus
gritos ecoavam. Puta foi a palavra mais leve que ela disse.
— Entre, Yasmin — ordenou Enrico, sem conseguir controlar a
mulher que tinha nas mãos.
Minha mão continuava em frente minha boca e as lágrimas
empossaram-se na base dos meus olhos. Era o pior momento para
demonstrar fraqueza, mas cada palavra que ela dizia, me atingia em
cheio. Porque ela não estava errada. Eu deveria ter imaginado que
ele tinha namorada, provavelmente, não aceitaria fazer sexo por
dinheiro.
— Quanto ele está te pagando? Pago o dobro pra você sumir,
vadia! — gritou e foi o estopim para mim.
Foi só o tempo de correr para dentro, inclinei o corpo e, ali
mesmo na recepção luxuosa do prédio, despejei o pouco de
conteúdo do meu estômago.
O porteiro veio a passos largos e ofereceu ajuda. Pedi
desculpas, sem coragem de olhar para ele e entrei rapidamente no
elevador. Sentei em um dos cantos e enfiei a cabeça entre os
joelhos.
— Maldita hora que fui entrar em seu carro, Bennett. É tudo
culpa sua, paizinho, que me deixou aos cuidados daquele lobo
vestido de ovelha. Como foi enganado por tantos anos?
A Tocaia

Gabrielle

Parados em frente ao local onde o suspeito se escondia,


aguardávamos o sinal para entrarmos.

A conversa com o capitão não tinha sido nada agradável. Para


piorar a situação, ele tirou o caso dos Bennett do nosso
departamento, pelo motivo óbvio: faço parte dele. Não questionei de
imediato, pois os ânimos estavam exaltados, no entanto, todos
sabiam que eu não desistiria.
O capitão Cesário quase não concluiu o que foi fazer no
departamento. Um chamado chegou e tivemos que sair em
disparada. João Pedro saiu na frente sem me esperar, demonstrando
claramente que não me queria como parceira. Apesar de entendê-lo,
meu coração ficou despedaçado. Era a primeira vez que estava
sentada ao lado do Bento, de tocaia.
— Acho que seu parceiro se cansou — comentou Bento,
apertando os dedos ao volante – olhando para frente.
Dei de ombros calada. De esguelha, vi quando me encarou.
— Ele tem que fazer o que for melhor pra ele — rebati, por
fim.
Mais alguns minutos de silêncio até o som do rádio
interromper.
— Sargento, estamos entrando — avisou João Pedro.
Imediatamente, saímos do carro e fomos dar cobertura aos
nossos companheiros. Cercamos a casa e ficamos na espreita.
— Estão fugindo pelos fundos — gritou João no rádio.
Corremos para os fundos da casa e nos deparamos com dois
suspeitos correndo – com João Pedro e os outros atrás deles.
— Não encontramos o mandante — alertou João. —
Cuidamos deles. — Apontou para os caras que corriam, sugerindo
que entrássemos e terminássemos o serviço.
Fui na frente e Bento veio logo atrás. O lugar fedia. Por onde
andávamos, chutávamos latas de cervejas e seringas. Prendi um
pouco a respiração – já que não poderia levar a mão ao nariz. Com a
arma em punho, continuamos vasculhando o lugar.
— Aqui é a polícia, entregue-se — gritei e chutei a porta de
um dos cômodos.
— Se você se entregar, podemos fazer um acordo — insistiu
Bento.
Mais um cômodo e, dessa vez, foi o Bento quem chutou a
porta. Recuei um pouco, ao me deparar com o suspeito. Era maior
do que eu imaginava e não estava nem um pouco acuado. Bento
percebeu minha hesitação e ficou na minha frente.
— Está preso, vire-se — ordenou Bento e ele abriu um sorriso
sarcástico.
— Por qual acusação? — rebateu e deu um trago em seu
cigarro.
— Tráfico de drogas.
O cara soltou uma baforada de fumaça, jogou a bituca no
chão e pisou em cima. Com um ar sarcástico, nos olhou fixamente –
ignorando completamente as armas apontadas para ele.
— Acho que deveria conversar com seu paizinho — disse,
olhando diretamente para mim.
Minhas pernas fraquejaram de imediato. Ele se referia ao
velho asqueroso, com toda a certeza. Demonstrei desinteresse e não
respondi. Na certa, sua intenção era me desestabilizar.
— Coloque as mãos na cabeça e vire-se — vociferou Bento,
perdendo a paciência.
— Ou o quê? Vai atirar em mim? Meu chefe não vai ficar feliz.
Tenho certeza de que tira os distintivos de vocês em um estalo de
dedos.
— Cala a porra da sua boca e vire-se, agora! — Bento
começava a perder o controle.
O indivíduo não olhou nenhuma vez ao meu chefe. Tinha um
alvo fixo: eu. Ele queria que eu colocasse tudo a perder. Comecei a
ficar intrigada. Como ele sabia?
Não podíamos chegar muito perto, porque ele poderia ter uma
arma nas costas. No entanto, ele não estava colaborando.
— Faça o que ele mandou — ditei entredentes. A segurança
de que nada o afetaria estava tendo um efeito monstruoso em mim.
O cara avançou seus passos rapidamente em minha direção e
levou a mão às costas. Antes que eu pudesse raciocinar, atirei uma,
duas, três vezes. Até que ele caiu de joelhos na minha frente – com
os olhos esbugalhados.
A Notícia

Enrico

Eu empurrava a Leandra pela rua, com meus dedos massacrando


seu braço.
— O que estava pensando, Leandra? Quando foi que te dei o
direito de interferir na minha vida?
Ela parou e me lançou um olhar diabólico. Travou o maxilar,
antes de me responder – com uma prepotência exagerada.
— Fico imaginando o que seu pai vai dizer quando souber
disso — despejou sua ameaça velada.
Afundei mais meus dedos em sua carne e ela gemeu –
desviando o olhar para onde eu apertava.
Quando pensei em continuar minha inquisição, vi um clarão e
o barulho de flashes.
— Porra, Leandra, olha o que você fez. Trouxe esses
“abutres” pra cá.
— Enrico, amor, isso é bom, não é? — Sorriu e alisou meu
rosto – como se estivéssemos tendo um ótimo momento.
Soltei o braço dela e passei as mãos pelos cabelos – sentindo
cada nervo do meu corpo pular. Toda a tensão da noite se multiplicou
em meu organismo e eu ponderei meus atos. Respirei fundo e
busquei o autocontrole. Tinham câmeras voltadas para mim, torciam
para que eu desse material para eles.
Recomposto, inclinei o corpo e sussurrei ao ouvido da
Leandra:
— Vamos sair daqui, agora.
Aproveitando que eu estava refém dos paparazzis, ela ficou
na ponta dos pés e beijou minha boca – forçando a entrada da
língua. Peguei em sua cintura e apertei – como aviso. Sorrindo feito
uma criança que acaba de ganhar um brinquedo, acenou para as
câmeras e entrelaçou seu braço ao meu.

Leandra é o oposto da Yasmin, em todos os sentidos. Sua


pele parece leite; os cabelos são muito claros; os olhos de um azul
transparente; o corpo é esguio e comprido; o que ela não tem de
carne, tem de prepotência.

Sua alimentação é controlada por nutricionistas, afinal, ela faz


questão de se expor nas redes sociais – pagando de saudável.

Os pneus do meu carro, praticamente, saíam do chão – tal a


velocidade em que estava.
— Pra onde está indo, amor?
— Pare de me chamar de amor — berrei. — Estou te levando
pra casa, onde mais?
— Temos que conversar, Enrico, não pode simplesmente me
levar pra casa.
— Não temos não.
— Como não? Estamos a um passo de ficar noivos e você
passa a noite com uma prostituta?
Virei meu rosto para ela e cerrei os dentes. Diminuí a
velocidade aos poucos, até estar quase parando.
— Você não tem a mínima ideia do que está falando.
— Não? Se ela não for prostituta, é muito pior: amante.
Decidi parar o carro, ter aquela conversa, com o carro em
movimento, não acabaria bem.
Virei meu corpo para ela e cruzei os braços.
— O que você quer, Leandra?
— Que você me respeite. — Não respondi. Depois de um
tempo calados, Leandra continuou – mudando completamente de
assunto. — Está tudo certo, nesse final de semana, meus pais vão
dar um jantar para oficializarmos o nosso noivado — comunicou e
sorriu – inclinando o corpo em minha direção.
Antes que ela alcançasse meus lábios novamente, afastei o
tronco e bufei. A verdade é que não tinha o que fazer.
Quando procurei a Yasmin, naquela noite, foi para encerrar de
vez com aquilo. Não deveria ter deixado me levar pelos desejos do
meu corpo.
Ao invés de sentir-me aliviado, tudo o que eu sentia, era
desespero. Pensar que não a teria mais, saber que teria que levar
adiante aquele noivado.
§§§§
Comemorava internamente o fim do recesso de final de ano.
Trabalhar sempre me acalmou. Na minha empresa, tenho controle
absoluto de tudo. Diferente da minha vida, que tentava, a todo custo,
retomar o domínio. Tinha uma bagunça dentro da minha cabeça que
eu não conseguia reorganizar.
— Se está como gerente do departamento é porque acreditei
ter potencial. — Respirei fundo e encarei o gerente do departamento
de TI. — Acho que me equivoquei.
Vi o pomo de Adão dele subir e descer. Mantive minha postura
firme e aguardei qual seria sua justificativa para o trabalho mal feito.
— Senhor, fizemos o possível.
— Não quero que façam o possível, quero que façam o
melhor — grunhi, começando a perder a paciência.
Mal as coisas tinham voltado ao normal e os problemas
começaram.
— Enrico... — Ergui uma sobrancelha em aviso. — Senhor,
como podemos...
— Tenho certeza de que estabelecemos sua função quando o
contratamos. No entanto, vou reforçar e te dar uma chance de
contornar a situação. — Ele meneou a cabeça e expandiu o peito –
puxando o ar. — O líder da equipe de TI é encarregado pela
implantação, redesenho e racionalização de processos. Possui visão
ampla do negócio e é o mentor do desenvolvimento de novos
sistemas, sempre pensando em interligá-lo com as necessidades
estratégicas da empresa, tais como: redução de custos, otimização
de processos e aumento da eficiência operacional. — A última frase
fui numerando em meus dedos – deixando claro suas
responsabilidades.
— O problema é que estamos com um rapaz novo e...
— É sério que vai me dar essa justificativa? Isso não é
problema meu, você tem que ter um programa de treinamento para
novos colaboradores. Não pode deixar que entrem em ação sem ter
certeza de que estão preparados. Espero que esteja seguindo essa
norma da empresa.
Todos na mesa ficaram em silêncio, apreensivos com a
decisão final.
— Tem razão, vou cuidar para que seja resolvido, o mais
rápido possível — garantiu e eu assenti.
— Bom, próximo tópico.
Antes que déssemos continuidade à reunião, a porta da sala
foi aberta e minha assistente pediu licença – vindo até mim.
— Senhor, me desculpe por interromper, mas é importante —
falou baixinho – inclinando seu corpo em direção ao meu ouvido.
Fiquei em pé e abotoei o paletó.
— Senhores, por hoje, terminamos. Caso tenha ficado algo
pendente, falem com a minha assistente, que marcaremos uma
reunião individual.
Saí da sala apressado, para a Márcia interromper a reunião,
era algo muito sério. Entrei na minha sala e ela veio atrás – fechando
a porta.
— Sou todo ouvidos — apressei-a – fazendo o ritual diário,
antes de me sentar.
Ela acompanhou meus movimentos. Assim que me acomodei
e apontei que fizesse o mesmo, sentou-se e estendeu o tablet para
eu ver. O chamado da matéria e as fotos gelaram meu corpo todo.

“De gata borralheira à prostituta de luxo.


Yasmin Sampaio, filha do saudoso médico Álvaro Sampaio, foi
abandonada pela mãe aos três anos e, desde então, sua madrasta a
criou. A família Sampaio tem uma bela reputação, que acabou de ser
manchada pela noiva-fujona. Seu pai deixou um testamento que a
amarra à sua madrasta, a não ser que a bela se case. Ao que
parece, ela não está muito preocupada com a fortuna deixada pelo
pai, já que deixou o noivo Charles plantado no altar e fugiu –
roubando uma moto.
Tudo indica que Yasmin decidiu apostar em fortunas maiores.
Vejam as fotos e tirem suas conclusões. Tenho certeza de que
Enrico Bennett tem uma fortuna bem maior que a que ela herdou.
Mas será que ele sabe que sua prostituta de luxo não passa de uma
interesseira? Enrico tem um relacionamento de anos com a socialite
Leandra Morales que garantiu: em breve oficializarão a união.”
Pedro Augusto – Revista no Alvo.

Logo abaixo da notícia, tinham várias fotos da Yasmin saindo


do prédio – tampando o rosto. Rolei as páginas e vi algumas fotos
minha saindo do mesmo prédio. Uma foto dela com o tal Charles –
de não muito tempo atrás. E outras fotos com a Leandra me beijando
em frente ao prédio dela. Baixei o tablet e encarei minha assistente –
controlando minha vontade de esmurrar a mesa. Nunca perdi a
cabeça, não seria uma mulher que faria com que eu cometesse esse
erro.
Esfreguei as mãos no rosto e bufei.
— O que devo fazer, senhor? O telefone não para de tocar.
— Vou ligar para o Lucca e pedir para ele cuidar disso.
— Tem algo que eu possa ajudar?
— Não... — suspirei —, pode ir, Márcia.
Ela meneou a cabeça, pegou o tablet e foi saindo.
— Márcia — chamei-a e ela me olhou. — Obrigado.
— Só fazendo o meu trabalho, senhor.
Meu celular não parava de vibrar sobre a mesa. Fechei os
olhos e inclinei a cabeça – apoiando-a no encosto da cadeira.
Precisava recuperar meu fôlego. Enquanto lia a notícia bizarra, meu
coração saiu do compasso. Cada linha escrita foi capaz de arrancar
um pedaço de mim. Eu sabia que Yasmin não era como as outras do
clube. Foi exatamente por isso que contratei um detetive. Mas nem
deu tempo de ele descobrir, os “abutres” foram mais rápidos.
— Como nunca soube de você? — questionei-me, afinal, a
nota de rodapé dizia que a garota era da cidade em que fui criado.
Decidi olhar para o visor do celular e vi o nome do Miguel.
Atendi rapidamente. Naquele momento, tudo o que eu precisava era
de um amigo desencanado como ele.
— Cara, que porra foi àquela? — gritou na linha – com um
tom de voz divertido.
— Entrei numa enrascada — fui logo esclarecendo.
— Por que não me disse que estava saindo com a garota?
Frequentou o clube sem mim, seu filho da puta!
— Não foi bem assim, Miguel.
— Ah não? Me explica, então, porque sua cara está
estampada em todas as páginas da internet. Quem diria, o cara que
não gosta de exposição — desdenhou e caiu na gargalhada.
— Miguel, não brinca com coisa séria.
— Relaxa e goza, meu!
Bufei e neguei veemente com a cabeça, como se ele pudesse
ver minha indignação.
— Como não a conheço? — repeti a pergunta ao meu amigo.
— Fiz a mesma pergunta quando vi a notícia e fui atrás de
informação. Estou saindo daqui, logo chego aí.
— Não, me espera que eu vou até você.
Visita Inesperada

Yasmin

De todos os obstáculos que enfrentei na vida, não esperava ter


que lidar com tabloides baratos, sanguessugas esperando para dar o
bote. Depois de todo o escândalo, tornou-se impossível eu colocar
os pés para fora do apartamento. Tinha uma horda de “abutres”
acampados em frente ao prédio.
— E agora, bombom? — questionou meu amigo às minhas
costas – com a voz aflita.
Eu sabia qual era a preocupação dele, por mais que quisesse
me ajudar, não podia me manter – sem que eu contribuísse
financeiramente.
Abracei o corpo e continuei olhando pela vidraça da sala,
completamente perdida. Alguns instantes, foram suficientes para eu
tomar uma decisão: meu amigo não poderia “pagar o pato” por mim.
Virei-me e o encarei – mordendo os lábios.
— Vou te dar o dinheiro — comuniquei e ele franziu o cenho –
sabendo a que dinheiro me referia.
— Não pode, Yasmin. Como vai pagar o advogado? O prazo
está vencendo.
Dei de ombros e engoli em seco. Teria que encontrar outra
maneira.
— Vou falar com ele, talvez, pela amizade que tinha com o
meu pai, ele aceite que eu pague o restante quando ganhar o caso.
Enzo riu sem humor e balançou a cabeça.
— Sabe que não vai funcionar.
— Só vou ter certeza se eu tentar.
Não esperei que ele continuasse com os argumentos,
caminhei até o meu quarto e peguei o dinheiro – voltando à sala.
— Pegue. — Estiquei o braço e fiz com que aceitasse. Ele
ficou me olhando receoso, mas, por fim, assentiu.
Contou o dinheiro e meneou a cabeça.
— Isso aqui dá para pagar tudo e ainda sobra, pode ficar com
parte dele. — Estendeu algumas notas para mim e eu rejeitei –
empurrando-a de volta.
— Não posso voltar ao clube, Enzo. — Enchi o peito de ar. —
Sabe-se lá por quanto tempo vou ter que ficar aqui, te dando
prejuízo.
— Yasmin, você me ofende quando fala assim. Sabe que não
é o que penso. Se eu pudesse...
— Mas não pode, amigo. Aceite o dinheiro e fique tranquilo,
tenho certeza de que logo esses idiotas vão me deixar em paz e vou
sair pra procurar trabalho.
Mais uma vez, Enzo riu sem humor.
— Bombom, não pode ser tão ingênua. Qual criatura nessa
cidade vai ter a ousadia de te contratar, meu bem? Eu sei que
estamos em uma capital, mas você tem ideia de que é a notícia do
momento no estado inteiro, digo mais, no país. Se meter com os
Bennett é nisso que dá.
Apertei os braços em volta do corpo e cerrei o maxilar. Eu
precisava ser forte e otimista. Pensar no pior não facilitaria em nada.
— Posso...
O interfone interrompeu minha fala. Ambos olhamos na
direção do aparelho.
— O porteiro não pode estar achando que vamos atender
qualquer pessoa que esteja lá embaixo, não é mesmo? — inquiriu
meu amigo e foi atender. — Sim. — Ouviu o que senhor da portaria
disse e ficou pálido – olhando diretamente para mim.
— O que foi?
Enzo fez que não com a cabeça e espremeu os olhos com os
dedos.
— Minuto. — Colocou a mão no alto-falante. — Yasmin, senta.
— Fala logo, Enzo, está me deixando mais nervosa.
— Senta, se não vai cair de bunda no chão. — Meu coração
foi de zero a cem em milésimos de segundos. Coisa boa não era.
Sentei e aguardei. — Sua mãe está lá embaixo.
— Adélia? Todo esse drama pra isso? — Fiquei em pé e
comecei a gesticular. — Não vou atendê-la, na certa...
— Yasmin — gritou, fazendo-me se calar. — Sua mãe, não
sua madrasta.
Arregalei os olhos e minhas pernas ficaram amolecidas na
hora. Enzo tinha razão, sorte que estava rente ao sofá – caí sentada.
Sentindo a bílis na garganta.
— Co... mo? — gaguejei, enquanto digeria a informação.
— Mais um minuto — pediu Enzo ao porteiro. — O que eu
faço?
— Melhor que suba, não é mesmo? Eles... meu Deus, se eles
souberem...
— Pode subir — autorizou a entrada de Melanie.
— Enzo... — berrei e fiquei em pé de supetão, antes de ele
desligar o aparelho. — Pergunta o nome dela.
— Qual o nome dela? — Ouviu e meneou a cabeça. — Qual
sua aparência? — continuou, sem ter certeza do que fazia. A
verdade é que eu não tinha a mínima ideia de como ela estava. A
última vez que nos falamos, foi no meu aniversário de quinze anos.
Assim que Enzo terminou de falar com o porteiro, olhou para
mim e respirou fundo – desculpando-se em silêncio por não ter como
evitar o que estava prestes a acontecer.
Dei um pequeno salto no lugar, com o toque da campainha.
Meu amigo correu para a abrir a porta – sabendo que minhas pernas
não teriam capacidade de se movimentarem.
Por um breve momento, pensei que meu coração saltaria do
peito, assim que Melanie colocou os pés para dentro do
apartamento. Nosso olhar ficou preso um no outro e nenhuma de nós
tomava a iniciativa de se mover.
Melanie continuava tão linda quanto eu me lembrava. Sua
pele negra, muito bem cuidada, transbordava confiança. Os cabelos
longos, com cachos modelados, reluziam. As curvas do corpo
pareciam mais acentuadas, mesmo que estivesse chegando aos
cinquenta anos. Sua calça e jaqueta de couro, junto com suas botas
de saltos altos, somados à maquiagem carregada, lhes garantiam
uma segurança inquestionável.
— Bom, acho que vocês têm muito o que conversar —
comentou Enzo e se retirou.
Umedeci os lábios e me mantive firme – controlando as
náuseas que ameaçavam vir. Era muito para eu lidar em menos de
vinte e quatro horas.
— Por que não me procurou? — indagou e eu enruguei a
testa – sem compreender onde ela queria chegar, já que, por anos,
não se preocupou comigo.
— Do que está falando?
— Precisei ficar sabendo pela mídia, filha, que está com
problemas.
Meus lábios sorriram de nervoso. Estreitei os olhos e segurei,
por uns instantes, meu lábio inferior – olhando diretamente nos olhos
dela.
Mais de dez anos sem nos ver e nossa primeira interação
parecia mais com uma pedra de gelo. Estava claro que Melanie tinha
me procurado por sentir-se responsável. Provavelmente, culpa. Ou,
talvez, algum interesse desconhecido.
— Se ao menos eu soubesse onde te achar — ironizei —, não
que faria diferença.
Finalmente, com alguns passos, Melanie ficou próxima ao
meu corpo. Esticou a mão para tocar no meu rosto e recuei –
institivamente. Encolheu-se e baixou a cabeça.
— Eu errei, filha, admito, mas...
— Ah, claro, veio atrás de mim para tentar se redimir. Acho
um pouco tarde pra isso, não acha? Por que isso, agora? Depois de
tanto tempo? — Ela foi querer falar, ergui um dedo impedindo. —
Deixa-me adivinhar: Bennett. Perdeu seu tempo, deve ter visto que
eu fui apenas uma prostituta pra ele.
Por um momento, achei que ela viraria as costas e me
deixaria, mais uma vez. No entanto, Melanie parecia determinada a
me assediar. Ainda não encontrara o motivo.
— É verdade que a bruxa não quer te dar o seu dinheiro?
— Não a chame assim — repreendi de imediato.
Eu podia chamar Adélia do que eu quisesse, ela não. Negar
que minha madrasta me criou, tentando me transformar em uma
dama da alta sociedade, seria injustiça. Tudo bem que o fez pelo
meu pai e seus métodos foram bem peculiares.
— Vai defender àquela mulher?
— Melanie, você é a única aqui que não tem direito de abrir a
boca contra a Adélia. Não fosse ela, o que teria sido de mim,
quando...
— Foi isso que sempre te fizeram acreditar, não é mesmo?
— Meu pai não mentiria pra mim.
— Você tem razão, o renomado doutor nunca errava.
Travei o maxilar e engoli com dificuldade. Vê-la falar do meu
pai com tanto desprezo, formou uma “laranja” na minha garganta.
Fechei um pouco os olhos, inspirei e expirei, algumas vezes. Ao abrir
novamente os olhos, vi que ela continuava no mesmo lugar.
— Abra, de uma vez, o jogo, Melanie. Qual sua real intenção?
Mais um passo dela em minha direção e um meu para trás.
Tudo o que eu menos precisava, naquele momento, era sentir seu
toque. Um toque falso. Na tentativa de me persuadir.
— Estou bem, agora, filha. Não preciso mais... — Respirou
fundo. — Você sabe.
— Se prostituir? Pode falar, eu fiz o mesmo que você, afinal,
como a Adélia disse: um fruto não cai longe do pé.
— Aquela maldita, hipócrita.
— Então — insisti.
— Vem comigo, vou te ajudar. Tenho um marido que me
apoia. Ele sabe o quanto quero recuperar o tempo perdido com você.
Comecei a rir alto, sentindo meu corpo tremer. Eu sabia que
aquela risada era uma demonstração do meu nervosismo.
— Quantos anos acha que eu tenho?
— Você é minha única filha, Yasmin. Eu sei cada passo que
deu na vida. Acompanhei cada conquista, mesmo que de longe.
— Porque escolheu estar longe.
— Não escolhi, seu pai impôs que eu abrisse mão de você. Eu
tinha muito a perder e não tinha apoio de ninguém. O que queria que
eu fizesse? Deixasse você morrer de fome comigo?
O inevitável aconteceu. Algo que sempre detestei, que expõe
completamente minha fraqueza. Corri para o banheiro e me ajoelhei
em frente ao vaso. Foi uma mistura de lágrimas com líquido do meu
estômago.
Logo ouvi Enzo falando com a Melanie e não consegui
levantar a cabeça.
— Marcou seu ponto. Pode se retirar da minha casa, por
favor?

Meu corpo cedeu completamente. Caí sentada no chão.


Abracei os joelhos e afundei o rosto entre eles. Meus soluços
pareciam intermináveis. Ali, naquele estado deplorável, cheguei a
triste conclusão de que tinha feito a escolha errada. Devia ter me
casado com o Charles, o fardo teria sido mais leve.
O Segredo

Gabrielle

Bento se aproximou e colocou dois dedos no pescoço do homem


caído.

— Puta merda, Gabrielle. Você matou o cara — praguejou e


ficou em pé – levando as duas mãos à cabeça.
Meus sentidos foram roubados. Não conseguia ter um
pensamento coerente. Joguei a arma longe e levei a mão em frente à
boca – negando com a cabeça.
— O que eu fiz? Como pude? — Fui dando passos para trás –
desnorteada.

Quando decidi ser policial, tinha consciência de que teria que


matar – se fosse necessário. Mas eu sabia que, naquele caso,
apenas um tiro no braço, que estava nas costas, o impediria de nos
atacar. O fato de ele demonstrar segurança, calçado no velho
asqueroso, tirou minha capacidade de raciocinar. Deixei as emoções
dominarem minhas ações.
Cheguei à parede e me arrastei por ela, até estar sentada no
chão – diante de uma poça de sangue.
Bento virou o indivíduo e olhou para mim, meneando a
cabeça.
— Não tem arma — comunicou e fechou os olhos – jogando a
cabeça para trás.
Prendi os lábios nos dentes com força e tentei enfiar as unhas
nas palmas das mãos – sem sucesso. Desesperadamente, comecei
a tirar as bandagens que tapavam minhas escoriações das mãos.
— Pare com isso — vociferou Bento e se agachou à minha
frente – segurando minha mão. — Vai embora, eu cuido disso.
— Não..., não vou deixar você se ferrar por minha causa.
— Gabrielle Mantovani, estou mandando você ir embora,
agora — ordenou e eu neguei com a cabeça. — Porra! Levanta a
bunda daí e some daqui, caralho! — Pegou pelo meu braço e me fez
ficar em pé. Foi até a minha arma e a pegou – entregando-me.
Trêmula, encaixei a arma no cinto – com a respiração
oscilando.
— O que vai fazer?
— Não vai querer saber, só... desapareça daqui.
— Bento...
— Sai, agora! — berrou e apontou a saída.
Cambaleante, caminhei para fora e vasculhei a rua, à procura
de alguma testemunha – ninguém. Os moradores, assim que
chegamos, não se atreveram a saírem de suas casas. Meus colegas
de trabalho estavam atrás dos integrantes da gangue. Só restava eu
e o sargento.
Entrei em uma viatura, no automático, dei partida e saí em
disparada – sem rumo.
— Ele ia pegar a arma, não é mesmo? — justificava, enquanto
dirigia pelas ruas acidentadas da periferia. — É um traficante,
Gabrielle, deixou que crianças morressem — buscava, de qualquer
maneira, um argumento para dar sentido a morte daquele homem. —
Ele teria entregado o mandante, Gabi, porra! — A última frase saiu
esganiçada, eu perdia, a cada segundo, o controle dos meus atos.
Apertei o pé no acelerador e peguei o Rodoanel, ali poderia
aumentar a velocidade. Não era um trecho que costumava ter
congestionamento, sem contar que não estávamos em horário de
pico.
Minhas vistas foram ficando turvas e eu fui diminuindo a
velocidade – ciente de que poderia cometer uma loucura. Parei o
carro no acostamento e comecei a bater com a testa no volante.
Fiquei ali por meia hora, até o toque do meu celular me despertar
para a realidade.
— Sim.
— Cadê você? — questionou João Pedro.
— Voltando ao distrito. — De certa forma, não era mentira.
— Encontraram o cara?
Respirei fundo e avaliei o que contar ao meu parceiro. João
Pedro é o cara mais certinho que conheço. Certamente, me
entregaria no ato. E eu, para falar a verdade, não tinha ideia de qual
era o plano do Bento.
— Não — menti, sem hesitar.
— Ok, nos vemos no distrito, estou indo pra lá. — Assenti,
sem encontrar voz para responder. Soltei os ombros aliviada.
Pensar que João Pedro era só a ponta do iceberg. Tudo ficaria
muito complicado. Conhecendo Bento, ele daria um jeito de
desaparecer com o corpo. O fato me deixava tranquila e, ao mesmo
tempo, apavorada.
Respostas

Enrico

Márcia estava sentada na cadeira em frente à minha mesa e eu


lhe dava instruções, antes de pegar a estrada. Eu teria que entender
a fundo a história da Yasmin. Tudo estava muito confuso. Temia
pensar em como ela estava lidando com aquela exposição. Buscaria
uma maneira de amenizar a situação. Não queria ser a pessoa a
complicar mais ainda sua vida que, aparentemente, estava virada de
ponta cabeça.
— Posso reagendar para que dia, senhor?
— Deixa pendente, Márcia. Assim que tiver uma posição, te
aviso.
Minha assistente me olhou com um olhar estranho – como se
estivesse duvidando do que eu falava.
— A moça é importante para o senhor, não é mesmo?
— É só uma prostituta — grunhi, lutando contra um
sentimento intruso dentro de mim. Pensar nela como um objeto de
desejo, seria mais fácil de tirá-la de vez da minha vida.
— Não é o que parece, nunca o vi tão abalado. Em anos, é a
primeira vez que desmarca tudo sem data para remarcar. O trabalho
sempre foi prioridade para o senhor.
Ela falava e eu olhava fixamente para o seu rosto –
assimilando suas palavras. Mesmo que eu não quisesse admitir, ela
tinha razão. Jamais saio da minha rotina. Tenho meus horários
cronometrados.
— Mais alguma coisa? — A cortei, deixando evidente que não
era problema dela. Só esperava que as demais pessoas não
estivessem observando meu comportamento, como minha
assistente.
Márcia ficou em pé e, antes de sair, a porta da minha sala foi
aberta e uma Leandra descontrolada entrou – falando e
gesticulando.
— Viu isso, amor?
Revirei os olhos e gesticulei para minha assistente nos deixar
a sós.
Levantei-me e fui em direção ao mancebo. Comecei a vestir
meu paletó e guardar meus pertences nos bolsos.
— Estou com pressa, Leandra — alertei e ela chegou perto –
arrumando minha gravata.
— Sábado, ao meio dia, já está tudo certo. Conversei com o
Lucca. Achamos melhor deixarmos a imprensa fotografar, assim
desvia à atenção da prostituta. Achei uma ótima estratégia.
Cada vez que ela se referia à Yasmin como prostituta,
institivamente, cada nervo do meu corpo endurecia.
— É só isso? — indaguei – inexpressivo.
Leandra alisou meu rosto e beijou meu queixo. Recuei um
pouco o tronco e respirei fundo – controlando a vontade de empurrá-
la para longe.
— Eu sempre vou cuidar de você, meu amor.
Ergui o canto do lábio em ironia e a afastei com as mãos.
Peguei a chave do meu carro em cima da mesa e fui saindo.
— Onde vai?
Parei, com a mão na maçaneta da porta e a olhei –
estreitando os olhos.
— Não te devo satisfação.
— Não seja grosseiro, Enrico. Só estou preocupada.
— Sei me cuidar muito bem.
— Não foi o que pareceu.
A encarei e mordi o canto do lábio – me segurando. Não tinha
ideia de como conviveria com àquela pessoa dentro da mesma casa.
— Sábado estarei lá. É só o que precisa saber — ditei e
continuei meu caminho.
§§§§
Miguel estava a postos, em frente à delegacia – na qual seu
pai é o delegado. Ao lado dele, Soraia sorria.
Desliguei o motor do carro e respirei fundo – preparando-me
para um verdadeiro desafio. Coisa que sempre detestei.
Assim que saí do carro, Soraia veio ao meu encontro e pulou
no meu pescoço.
— E aí, gostosão, precisou sair na mídia pra visitar seus
amigos?
Bufei e beijei sua face – incomodado com o grau de intimidade
da melhor amiga da minha irmã.
— E aí, cara? Preparado? — Miguel veio até mim e bateu nas
minhas costas.
— Como vocês estão?
— Com você aqui, dirigindo o próprio carro, sem escolta? Nas
nuvens — zombou Soraia.
— O que aconteceu?
— Pelo jeito, Yasmin dá mais audiência do que eu — ironizei,
achando o fato um absurdo.
A sorte é que, o pouco que conhecia da garota, não baixaria a
cabeça facilmente. O ar prepotente dela espantaria metade das
pessoas que começassem a tirar sua paz. Sem contar a boca suja.
Na certa, escorraçaria todos de lá.
Os dois ficaram calados, vendo que minha ironia era coisa
séria.
— Vamos resolver isso, cara. Não se preocupe. Meu pai se
colocou à disposição.
— Não será necessário, tenho certeza de que a família dela
não vai querer mais escândalos.
— E a Manu, chegou? — inquiriu Miguel.
— Hoje. — Respirei fundo.
— Se prepara, meu. Sua irmã vai te bombardear.
— Estou ciente.

A casa era uma verdadeira mansão. Não deveria me


impressionar, no entanto, meu cérebro não conseguia assimilar o
fato de a garota estar se prostituindo por dinheiro.
Durante a viagem, aproveitei para ligar ao detetive e pedir que
me atualizasse de todos os detalhes. A notícia já tinha exposto boa
parte das informações, o detetive só se aprofundou.
Entendi o desespero da garota, ao ter ciência da visita de sua
madrasta, irmão e ex noivo. Seguramente, a pressionaram. Eles só
não contavam que, embora não quisesse um relacionamento com
ela, não a deixaria desamparada.
— Enrico Bennett, preciso falar com a senhora Adélia —
anunciei ao segurança da portaria.
Não demorou para que os grandes portões fossem abertos e
entrássemos com o carro.
Descemos, eu e o Miguel, e ajeitamos nossos paletós.
Fizemos questão de continuar vestidos formal. Miguel não estava ali
apenas como meu amigo, também, como meu advogado.
A porta imponente da casa foi aberta e uma senhora muito
elegante saiu – com um sorriso largo.
— Mais que honra receber um Bennett em minha casa. Sejam
bem-vindos, rapazes — cumprimentou-nos e pegou em nossas mãos
– toda simpática. Nos entreolhamos receosos, não esperava uma
recepção calorosa.
Fomos convidados a nos sentar em uma sala luxuosa e a
anfitriã fez o mesmo.
— Quitéria, querida, sirva um café aos nossos convidados,
vocês tomam café, não é mesmo? — Acenamos que sim e
aguardamos que a senhora se acomodasse em seu lugar. — Bom,
acho que sei o motivo de estarem aqui. Minha filha sempre foi muito
rebelde, sabem. Mas não é uma pessoa ruim, não tem culpa de suas
raízes — argumentou e esfregou a pele, como se o comportamento
da Yasmin fosse culpa da sua cor.
— Tss... tss..., começo a entender o porquê de a garota
preferir se prostituir — desdenhei e a olhei com nojo.
Seu sorriso alargou-se um pouco mais.
— Não me julgue, rapaz. Tenho certeza de que pagou para
levá-la para cama – pelo mesmo motivo.
— Que absurdo! Isso é baixo. A senhora deveria ser presa,
por tratar sua enteada com tanta discriminação. Miguel, estou
errado?
— Não, não está não. Podemos processá-la, senhora. Não
estamos mais no tempo da escravidão. Hoje em dia, isso é muito
grave.
A senhora ficou séria e esticou o corpo na poltrona.
— Digam logo o que querem.
— Aí está, a verdadeira face — ironizou Miguel e ela o lançou
um olhar faiscante.
— Queremos o contato do seu advogado. Preciso entender o
testamento do pai da garota — adiantou-se Miguel. Porque era o real
motivo de estarmos ali.
A notícia mencionou algo do testamento e pedi ao detetive
que investigasse melhor. Segundo ele, uma cláusula dava acesso
total à madrasta. Precisávamos entender quais eram as exigências.
A mulher ficou em pé e começou a andar pelo cômodo –
alterada. O café chegou e foi uma boa distração, até retomarmos o
assunto.
Adélia sentou-se novamente e me encarou.
— Não entendo seu interesse nisso. Já não tem dinheiro
suficiente?
— Acha que estou querendo seu dinheiro, senhora?
Ela deu de ombros e fez um bico com o lábio inferior.
— E por que seria?
— Já passou pela sua cabeça que quero ajudar sua enteada?
— Uma prostituta? Por quê?
Respirei fundo e apertei os punhos. Miguel percebeu que eu
me controlava e tomou à frente.
— Senhora, os motivos não importam. Só nos passa o contato
do seu advogado, porque, de uma forma ou de outra, vamos
descobrir. Afinal, temos um Bennett interessado nisso. Além do quê,
para o conhecimento da senhora, o delegado da cidade ficou
bastante interessado no assunto.
Ela arregalou os olhos e seu peito oscilou.
— Não cometi nenhum crime, por que o delegado estaria
interessado?
— Não sei, talvez por ter visto o Enrico crescer. Ter sido o
melhor amigo da mãe dele. Ah, e é meu pai, também. — Miguel era
a pessoa certa para lidar com aquela mulher. Seu sarcasmo tinha
conseguido a desestabilizar.
Adélia meneou a cabeça e espremeu as mãos em frente ao
corpo. Baixou o olhar e começou a fungar. Virei o rosto e mordi o
punho fechado, porque a mulher usaria a tática mais manjada de
todas: se faria de vítima.
— Quando ela tinha três anos, a mãe a abandonou. Não fosse
minha dedicação em criá-la, não sei o que seria daquela criança.
Yasmin estudou nos melhores colégios. Se formou em artes cênicas,
mesmo contra a vontade do pai. Nunca precisou trabalhar. Andava
com as melhores roupas, tinha tudo o que queria. Até o dia que seu
pai nos deixou. Ela enfiou na cabeça que eu quero tirar sua herança
e, na verdade, seu pai deixou na minha responsabilidade,
conhecendo bem o miolo mole da filha.
Ouvimos calados a versão da história pela boca da madrasta.
Claro que a mídia sempre enfeita tudo, mas, muito do que ela dizia
ali, batia com que tinha saído na fatídica notícia.
— Por que diz que ela é miolo mole? — inquiri, curioso.
— A garota nunca teve amor à vida. Só gosta de esportes
radicais. Por vezes, seu pai a buscou nesses campeonatos de
motocross.
Engoli em seco, só de imaginar Yasmin em um campeonato
de motocross. Nunca eu conseguiria lidar com uma situação como
essa.
Miguel sorriu, sabendo o quanto aquilo me era bizarro.
— Qual o problema de ela gostar de motocross?
— Não é apropriado pra filha de um renomado médico, não
acha?
— Quanto preconceito, nossa, coitada da garota — censurou
Miguel – balançando a cabeça.
— Não é só isso, tivemos que interná-la em uma clínica de
recuperação, foi lá, inclusive, que conheceu aquele amigo gay dela
— contou e fez uma careta – repugnando o fato de o amigo ser
homossexual.
— Senhora, acho que quem tinha que se tratar é a senhora.
Estamos no século XXI.
— Deixa-me terminar, rapaz — repreendeu Miguel e ele
ergueu as mãos em rendição. Minha atenção era toda dela, porque,
mesmo que eu estivesse mentindo a mim mesmo, sabia no íntimo
que Yasmin era importante para mim. Precisava conhecer sua
história a fundo. — Ela era gordinha quando criança, claro que os
coleguinhas da escola zombavam dela, isso é normal, não é
mesmo? — Ri sem vontade. A mulher era retrógada.
— Obviamente que não é normal. Admiro a mulher que
Yasmin se transformou, convivendo com esse tipo de mentalidade,
coitada. — Nunca tinha visto meu amigo tão indignado.
Infelizmente, Adélia não se intimidou, continuou, na tentativa
de nos convencer de que Yasmin não era capaz de se cuidar
sozinha.
— Ela começou a provocar o próprio vômito. Não sei como
não percebi.
— Por que será, né!?
— Miguel... — reprovei seu comentário, se continuasse, a
mulher poderia nos colocar porta à fora e eu precisava saber o final
da história.
— Só notamos quando ela começou a emagrecer demais.
Seus ossos começaram a ficar aparentes. Ao levarmos ela ao
médico, ele nos aconselhou a interná-la, o estágio estava avançado,
não conseguiríamos controlar.
Ficamos em silêncio por alguns instantes. Meu cérebro
parecia balançar dentro do crânio. Inclinei o corpo para frente e
apoiei os cotovelos nos joelhos – sentindo o peito virar uma ervilha.
Pensar que a garota ousada que invadiu meu carro, vestida
de noiva, tinha passado por tudo aquilo, sentia-me mal. Entendi o
porquê da pergunta, quando fiz a proposta. Ela tinha sofrido muito
preconceito, não confiava nas pessoas, sobretudo nos branquelos
como eu – segundo ela.
Miguel bateu palmas e ficou em pé – com uma expressão
irônica.
— Parabéns, senhora Adélia, sua história foi o maior incentivo
para eu querer entender cada detalhe desse testamento. E, sabe
mais, não vou cobrar um centavo. Terei o maior prazer em contestar
o documento.
A mulher levantou-se e ficou bem próximo dele.
— Ninguém está negando nada aquela ingrata. Se não tivesse
deixado o coitado do Charles no altar, não precisaria ter que se
prostituir para sobreviver, embora eu ache que ela gostou. — Foi a
vez de eu ficar em pé e ir para cima dela – com o dedo em riste.
— Entendo perfeitamente a atitude dela, senhora. Acho até
que eu teria aguentado menos tempo. Vamos embora, Miguel.
Abotoei o paletó e ele fez o mesmo.
— Vou conseguir o contato do seu advogado de qualquer
maneira — avisou a senhora e saímos da casa.
Nem sei como cheguei até o carro, sentia que teria um ataque
do coração a qualquer momento.
Joguei a chave do meu carro ao Miguel e fui afrouxando a
gravata. Ele fez uma cara de espanto – era a primeira vez que eu
deixava alguém dirigir minha máquina.
Acomodados dentro do carro, apoiei a cabeça no encosto do
carro e fiquei me punindo mentalmente em ser o responsável pela
última decepção da Yasmin. Por tê-la tratado como uma prostituta,
mesmo com todos os sinais indicando o contrário.
Tomando à Rédea

Yasmin

Olhei pela vidraça da sala e vi que os “abutres” não tinham


desistido.

— Vem tomar café, bombom. Esquece o que está


acontecendo lá fora. Não vai demorar de eles encontrarem outra
pessoa pra atazanarem.
Caminhei até a mesa posta do café da manhã e me acomodei
em frente ao Enzo.
— Assim eu espero — comentei e alcancei a garrafa térmica.
Alguns dias já se passaram e eu não coloquei o nariz para
fora. Sinto-me enjaulada.
Peguei o celular e fui verificar as redes sociais, coisa que
tenho feito muito, ultimamente. Travei e arregalei os olhos – com a
xícara de café no meio do caminho da minha boca.
— O que foi, Yasmin? — questionou Enzo e tomou o celular
da minha mão. — Ah, puta que pariu, tá vendo no que dá se meter
com essa gente filha da puta?
Coloquei a xícara na mesa e respirei fundo. Assim que vi a
foto do Enrico, abraçado com a mulher que causou todo o alvoroço
na minha vida, perdi a fome. Nem consegui ler sobre o que se
tratava – tal foi a minha surpresa.
Eu sei que foi idiotice minha achar que tivemos uma conexão,
na última vez que ficamos juntos. Mas, embora meu cérebro tenha
me alertado, meu coração quis acreditar no impossível. Mesmo que
a mulher tenha dito que era namorada dele, não achei que fosse algo
sério – até naquele momento.
— O que está dizendo aí — inquiri.
— Você não quer saber, vai por mim.
— Tudo bem, já esperava por isso — menti, mais para mim do
que para ele.
— Certo, já que insiste, vamos lá. Aqui está dizendo que o
casal Enrico Bennett e Leandra Nogueira oficializam a união tão
esperada pelas famílias, em uma cerimônia com poucas pessoas.
Até mesmo o patriarca da família – Isaac Bennett, que recentemente
sofreu um atentado, que o deixou na cadeira da roda, se fez
presente. O casal está junto há quase dez anos. A união vai
beneficiar os negócios das duas famílias.
Enquanto meu amigo lia, minha mente maquinava. Passava
da hora de retomar o controle da minha vida. Enfrentar os fatos de
frente – parar de fugir. Nunca fui fraca. Enfrentei muita coisa para
deixar tudo para trás.
— Yasmin? — Enzo estalou os dedos na minha frente e eu
chacoalhei a cabeça – procurando o que fazer dali para frente.
— Sobrou alguma coisa daquele dinheiro? — questionei de
supetão.
— O que está tramando, bombom? Conheço esse olhar.
Tenho medo dele. Sempre que fica assim, apronta alguma. Sabe que
não tem mais seu pai pra te socorrer, não é mesmo?
— Sobrou ou não, Enzo? — insisti.
Ele encheu o peito de ar e soltou aos poucos – balançando a
cabeça.
— Sabe que sim, e muito.
— Me empresta?
— Acho que a falta de comida está afetando seu cérebro, o
dinheiro é seu, criatura. — Sorri de canto. — O que pretende fazer?
—Tomar à rédea da minha vida.
— Isso é bom, só o que me preocupa é como vai fazer isso. E,
pelo seu olhar, não é nada convencional. Olha só, meus pelos
chegam a se arrepiarem. — Esfregou as mãos nos braços, com uma
expressão preocupada.
Fiquei em pé e fui até ele – beijando o topo da sua cabeça.
— Tem que confiar em mim.
— Se me contar, quem sabe.
Puxei a cadeira ao lado dele e ficamos de frente. Estiquei o
braço com a tatuagem e coloquei entre a gente. Ele fez o mesmo
com o dele.
— Juntos somos mais fortes — falamos em conjunto e
sorrimos. Um sorriso cheio de significados.
— Vou comprar uma moto e voltar pra casa — cuspi de uma
vez, sabendo o impacto que causaria no meu amigo. Embora ele já
me conhecesse bem, nunca concordou com alguns métodos meus.
— Não faça isso, bombom. Está regredindo. Vamos conseguir.
Se comprar essa merda de novo, vai começar a se punir como antes.
Se com seu pai vivo, não tinha amor à vida, agora — suspirou —,
meu Deus.
Cheguei mais perto do corpo dele e encostei a cabeça em seu
peito – o abraçando. Podia ouvir as batidas aceleradas do coração.
Enzo é a pessoa que mais se preocupa comigo. Acho até que,
depois da morte do meu pai, a única.
— Prometo que vou me cuidar, por você — garanti sem olhar
nos olhos dele. Eu sabia que, assim que entrasse naquela casa
novamente, minha vida viraria um inferno. Mas não podia continuar
fugindo.
— E o advogado? Já pagou uma boa grana pra ele, vai deixar
pra lá?
Desencostei de seu peito e o encarei.
— Não estou desistindo, Enzo. Muito pelo contrário, estou
encarando os fatos. Só assim vou conseguir vencer. Vou ligar para o
advogado e dizer que só posso pagá-lo quando ele ganhar a causa.
Se não aceitar... — Respirei fundo e desviei o olhar. — Vou pegar o
dinheiro de volta e pensar no que fazer.
Enzo ergueu meu queixo e olhou dentro dos meus olhos.
Meneou a cabeça.
— Nem vou perguntar se tem certeza, porque, pelo que
parece, já pensou em tudo. — Assenti. — Então, meu amor, levanta
essa bunda daí e vamos comprar sua máquina. Que Deus te proteja.
Jesus, Maria e José, não sei se meu coração aguenta. — Jogou a
cabeça para trás e fez em gesto dramático com as mãos.
Sorrindo, fomos para o quarto.
§§§§
Não foi só a moto que precisei comprar. Deixei as roupas que
tinha comprado para trabalhar no clube com o Enzo e comprei
algumas peças básicas – da maneira que me sinto melhor.
Montada na moto – de calça e jaqueta de couro e calçando
botas –, ajustava o capacete e Enzo terminava de amarrar minha
pequena bagagem no suporte de ferro. A moto não era uma
Ducati[3], como eu estava acostumada, mas me atenderia.
— Eu sei que já te perguntei isso um “zilhão” de vezes,
bombom. Tem certeza do que está fazendo? Estou aqui e não
precisa se arriscar dessa maneira.
— Venha aqui. — Estiquei os braços. Enzo se aproximou e eu
passei os braços pelo seu pescoço. — Já te beijei, mas, se quiser,
tiro o capacete e te encho de beijos novamente.
— Para com isso, Yasmin, eu sei que toda essa segurança é
fachada. Lá dentro, está morrendo de medo. Comigo no seu pé já
não comia, e o pouco que eu te obrigava, vomitava. Como vai ser,
agora?
Alisei seu rosto e sorri de canto. Não queria pensar no depois,
teria que viver com o agora, contando que as consequências seriam
boas. Afinal, se eu não retomasse o comando da minha vida,
fatalmente, Adélia conseguiria me deixar sem nada.
— Não se preocupe, ok! — garanti e me ajeitei no banco da
moto – fechando o visor do capacete.
§§§§
Antes de pegar a estrada, achei melhor conversar
pessoalmente com o advogado.
— O senhor Morales vai te atender, Yasmin. Pode entrar.
Agradeci a secretária com um meneio de cabeça e caminhei
até a sala do advogado. Ele me esperava na porta e fez um gesto
com a mão para eu entrar.
— Imaginei que me procurasse, depois de tanta evidência na
mídia — comentou, um pouco sem graça e sentou-se – apontando
para a cadeira em frente à sua mesa para eu fazer o mesmo.
Me acomodei e aspirei uma boa quantidade de ar, soltando
aos poucos, antes de iniciar a conversa.
— Pensei muito, esses dias — comecei e ele arrumou a
postura na cadeira – parecendo incomodado. — Essa exposição não
me beneficiou.
— Mais ou menos — murmurou.
— Não entendi. — Franzi o cenho e fixei meu olhar no dele.
— Estar envolvida com um Bennett nunca é uma exposição
ruim.
Ri sem humor e neguei com a cabeça.
— Não sei por qual perspectiva parece ser uma coisa boa —
censurei e endureci o corpo.
— Tem mais recurso, oras.
Prendi o lábio inferior nos dentes e estreitei os olhos,
entendendo onde ele queria chegar.
— Olha só — continuei —, acho melhor encerrarmos por aqui.
— Encerrarmos?
— Sim, estou voltando pra casa e vou fazer o que meu pai
pediu, assim acabo de vez com essa palhaçada — menti, porque o
advogado demonstrou claramente estar mais interessado em quanto
lhe renderia o caso do que na solução do mesmo. Seguramente,
demoraria muito mais tempo, para continuar recebendo.
— Temos um contrato.
— Tudo bem, eu pago a multa e você me devolve a diferença.
— Mas...
Fiquei em pé e lancei-lhe um olhar felino. O advogado ergueu
as mãos em rendição e suspirou.
— Se puder se apressar, agradeço. Não quero pegar a
estrada à noite.
Sentei novamente e aguardei que fizesse o contrato de
rescisão.

Assim que peguei a estrada, meu coração ficou pequenininho.


Sabia o que me esperava e temia não conseguir lidar racionalmente
com a situação. Anos me policiando, tentando ser uma pessoa à
altura do meio em que vivia. Lidando com comparações maldosas,
preconceitos implícitos, chegara a hora de me impor. Só que não
poderia colocar tudo a perder, precisava de uma estratégia.
Acelerei a moto e, sem perceber, estava a mais de cento e
quarenta por hora, o ronco alto da máquina me acalmava, dando-me
a sensação de estar no controle da minha vida.
No que dependesse de mim, não deixaria que o controle da
minha vida ficasse apenas em uma sensação, movida pelo ronco de
uma moto.
Acuada

Gabrielle

O clima no distrito estava tenso. Parecia que todos sabiam o que


eu tinha feito. Por mais que eu tentasse, não conseguia tirar, por
nenhum segundo, a imagem do rosto inerte do cara da minha mente.
Seus olhos esbugalhados e a boca escancarada me atormentavam
continuadamente.
— Gabi.
Dei um salto no lugar – derrubando metade da água que bebia
em meu peito.
— O que está acontecendo? — indagou João Pedro se
aproximando. Eu precisava disfarçar, porque, se tem uma pessoa
que é capaz de ler o meu pensamento, é o meu parceiro.
— Você me assustou! — O censurei – procurando por um
pano em cima da pia.
Nunca passei tanto tempo na copa do distrito, como acontecia
ultimamente. Quando estava em meu espaço de trabalho, sentia os
olhares em minha direção e temia que meus atos me delatassem.
João pegou nos meus ombros e me fez encará-lo.
— Está fugindo, há dias. — Dei de ombros e desviei o olhar.
Ele tinha razão, ficar próximo dele era um risco muito grande.
— Impressão sua. — Respirei fundo. — Preciso ir, estou com
a mesa abarrotada de coisas pra fazer.
Desvencilhei-me dele sem ter coragem de o olhar novamente.
Uma situação deplorável que me enfiara e não tinha a menor ideia
de como sairia dela.
Mal me acomodei no lugar, estremeci – com a entrada
rompante do capitão Cesário no departamento. Cumprimentou a
todos e parou em frente da minha mesa.
— Você que estava com o sargento na última operação,
correto? — Confirmei que sim, engolindo em seco. — Me
acompanhe.
Trêmula, fiz o que mandou. Logo adentrávamos a sala do
Bento, que ficou em pé imediatamente – pedindo, com um olhar,
para eu me calar.
— Capitão — cumprimentou Bento e apontou para que
sentássemos.
Precisei de um controle fora do normal, para não gritar, aos
quatro ventos, que tinha matado o infeliz. Que ele tinha me
provocado, sabendo o quanto desejo enfiar o velho asqueroso na
cadeia e não consigo provas. Que, por mais que eu não devesse ter
cometido o crime, o cara mereceu. Era traficante e estuprador.
Muitas meninas tinham sofrido nas mãos dele.
— Mais uma vez estou aqui, Bento. Começo a pensar na
possibilidade do seu afastamento. Assim, assumo de vez o
departamento. Estou farto de ter que consertar suas merdas —
vociferou o capitão e eu me encolhi involuntariamente na cadeira.
Bento lançou-me um olhar de aviso e eu fechei um pouco os
olhos – buscando me acalmar.
— Do que se trata, agora, capitão? — questionou Bento,
seguro em sua fala.
— Não se faça de desentendido, sabe muito bem o porquê da
minha visita.
— Desculpe-me, senhor, mas não sei — mentiu sem hesitar. A
segurança do Bento convencia até a mim, que sabia o que tínhamos
feito.
— O suspeito desapareceu, puff... — Fez um gesto de fumaça
com as mãos.
— A qual suspeito se refere, senhor. — Bento insistia em sua
encenação e eu comecei a me acalmar, diante da sua segurança. O
capitão estreitou os olhos e ficaram em uma guerra de olhares por
alguns instantes.
Minha boca secou e a garganta parecia ter um quilo de areia.
— Primeiro, você – simplesmente – ignora um caso com tanta
evidência como o do Bennett, claramente defendendo sua afilhada
— acusou o capitão e olhou para mim. — Agora, ao que parece, está
fazendo merda de novo, espero que não seja por causa dela,
novamente. Serei obrigado a tomar uma atitude mais drástica. Cadê
o suspeito, sargento?
Ameacei abrir a boca e Bento arregalou os olhos – travando o
maxilar. A fechei rapidamente e afundei as unhas nas palmas das
mãos.
O Noivado

Enrico

Quando Leandra disse que cuidaria de tudo, não achei que


usaria minha cobertura para aquele teatro. Cada objeto que as
pessoas esbarravam, eu me contorcia. Olhava, desesperado, à Cida
para que não deixasse que tocassem em minhas coisas. Minha fiel
companheira me garantiu que se encarregaria de que tudo estivesse
como antes, assim que todos saíssem.
— Sim, estamos muito felizes, não é mesmo, amor? —
Leandra disse a um rapaz com um celular estendido em nossa
direção – gravando. Assenti, sério. — Tire uma foto nossa, tem que
ser a de destaque do seu site, hein! — exigiu Leandra e passou os
braços pela minha cintura – beijando meu queixo.
Apertei sua cintura – em sinal de aviso. Ela sabe o quanto
detesto exposição. Só o fato de ter aquela quantidade de pessoas na
minha sala de estar, lugar onde me refugio, já era o bastante para
sentir-me sufocado. Ter que demonstrar felicidade com todo o arranjo
feito pelas nossas famílias, já era pedir demais.
— Mais uma...
— Chega, Leandra — rosnei e a afastei do meu corpo.
A passos largos, cheguei na área da piscina, onde esperava
que ninguém tivesse a coragem de invadir. Tomei o líquido âmbar,
que carregara comigo, de uma vez. Agradecendo o trabalho do
mesmo de rasgar o meu peito. Porque, na verdade, sentia-me em
pedaços. Pensar que Yasmin saberia da verdade pela mídia. Que
não tive a chance de me explicar, me destroçava por dentro.
— Devia ter parado com isso, há muito tempo.
Virei-me e dei de cara com minha irmã, com uma expressão
nada agradável.
— Você veio. — A puxei para um abraço apertado. Ficamos
grudados por um tempo muito maior do que o habitual.
— Ei, gostosão, não estou gostando disso. — Me empurrou e
me olhou séria. — Acabe com essa merda, Enrico, antes que seja
tarde.
— Já é tarde — admiti, porque não aguentava mais não poder
expor o que sentia. Não poder gritar para o mundo que, finalmente,
tinha me apaixonado.
— Você está vivo, Enrico. Seria tarde, se estivesse morto.
Volta pra sala e fala pra aquele bando de esnobes que você não quer
isso. Que você não é assim.
— Manu...
— Não me vem com discurso pronto, Enrico. Que merda,
cacete, não vê o que está fazendo com a sua vida? — gritou e
começou a soluçar.
A puxei novamente para o meu peito.
— Shiiii, estou bem, não fica assim — consolei-a, preocupado
em dar um pane nela.
— Pa... ra. Com is... so, por fa... vor, eu não aguen... to te ver
so... fren... do — implorou entre lágrimas.
Coloquei seu rosto entre minhas mãos e assoprei de leve. Ela
não estava errada, eu realmente estava sofrendo, mas não tinha
nada que eu pudesse fazer, pelo menos, não – naquele momento.
— Vou ficar bem, ok?
Manu negou com a cabeça e as lágrimas continuaram caindo.
Quando abriu a boca para falar alguma coisa, foi interrompida pela
chegada do meu pai.
— Aí está, meu menino inteligente.
Beijei a testa da minha irmã e pedi, em silêncio, que nos
deixasse a sós. Não era o momento de ela enfrentar meu pai, porque
Manu faria isso sem sombra de dúvida. Nunca teve medo de nada. O
fato de ele estar em uma cadeira de rodas não a impediria.
— Obrigado por vir, pai — agradeci por educação, como sabia
que ele não faria uma desfeita à Leandra – sua protegida.
— Seu velho precisa ter uma conversa com você, pode ceder
um pouco do seu tempo?
Assenti e apontei para um lugar onde eu poderia me sentar e
ficar de frente com ele. Ele me seguiu e nos acomodamos.
— Sou todo ouvidos.
— Sabe, filho, quando vi a notícia...
— Não quero falar sobre isso.
— Pode se desarmar, Enrico, estou aqui pra te orientar.
Fiquei em pé e arrumei o blazer.
— Passei da idade, pra isso, sei me virar sozinho.
O dente de outro do velho ficou aparente, com o sorriso largo
que deu. Dificilmente alguma coisa abala Isaac Bennett e, por saber
disso, sempre fico munido contra ele.
— Sente-se, rapaz. Ouça a voz da experiência.
Contrariado, voltei a me sentar e ouvir o que ele tinha a me
dizer, mesmo sabendo que nada do que saísse de sua boca me
serviria.
— Eu entendo que queira sair com prostitutas — continuou e
eu segurei a respiração por alguns segundos. — Só precisa ser
cuidadoso, não é bom que se exponha daquela maneira, sem contar
que, evite se envolver com aquele tipo de pessoa, filho. Não combina
com a gente.
— A que tipo de pessoa está se referindo? — Ele passou o
dedo pela pele e abriu um sorriso malicioso. Fiz uma cara de nojo e
voltei a ficar em pé. — Me recuso a continuar te ouvindo. Bem que
minha mãe dizia para eu tomar cuidado com o senhor. Acho que o
senhor quem precisa de orientação. Discriminação e preconceito,
hoje em dia, são passíveis de processo.
— Ah, filho, tem muito que aprender, ainda. Ninguém se mete
com um Bennett, garoto. Aceite isso e usufrua desse benefício.
Fiz uma careta e virei as costas – o deixando sozinho. De
todos da família Bennett que poderiam estar ali, o único que tinha se
dado ao trabalho foi meu pai. Talvez, se o Lucca estivesse ali,
colocaria um freio nele, afinal, é o que tem mais coragem de o
enfrentar.
Me escondi o quanto pude até terminar aquele noivado
arranjado. Não via a hora de me ver livre de todos. Poder tomar um
banho e desfrutar do meu espaço, da minha casa – lugar onde tenho
tudo do meu jeito e que me sinto seguro.
Manu não esperou que eu terminasse a conversa, foi embora.
Miguel se recusou a participar. Meu amigo soube, no momento em
que saímos da casa da Yasmin, que eu estava apaixonado. Deu seu
sermão, mesmo sabendo que nada mudaria.
Sou uma pessoa que cumpre com as obrigações e, casar com
Leandra, faz parte do acordo. O que é combinando não sai caro. Eu
sabia que demoraria um tempo para tirar a Yasmin da cabeça, mas
sempre fui racional, o tempo resolveria o meu problema.
§§§§
Depois do noivado, os “abutres” se acalmaram. No dia
seguinte, mesmo que meu cérebro me alertasse do perigo, passei
em frente ao prédio da Yasmin e fiquei um tempo parado – na
esperança de vê-la, nem que fosse pela última vez.
Sentia falta de sua boca atrevida. Do seu perfume adocicado.
Do seu olhar desafiador. A quem eu queria enganar? Sentia falta de
cada pedaço de seu corpo. De estar com ela. Não só por querer
fazer sexo, e sim pela sua companhia. Yasmin era inteligente e não
tinha nada de futilidade – como a Leandra –, que além de fútil, era
frígida.
Vi que os paparazzis tinham dado-lhe uma trégua. Fiquei
aliviado. Quando vi as fotos dela, com a mão no rosto, a culpa me
pegou de jeito. Não fosse minha insistência, Yasmin nunca teria se
prostituído.

Concentrado em ler e-mails, Márcia bateu de leve na porta:


— Senhor, posso interromper um minuto?
— Sim, sente-se. — Ela se acomodou e me olhou receosa.
Umedeceu os lábios. — Está com algum problema, Márcia?
Minha assistente negou com a cabeça e espremeu um lábio
no outro.
— Eu sei que estou sendo intrometida, mas... — Esticou o
tablet para mim. Respirei fundo, assim que vi do que se tratava.
“Yasmin Sampaio, que recentemente se envolveu com Enrico
Bennett, decidiu voltar à sua cidade. A garota assumiu sua paixão
por motos (veja a foto). Será que vai voltar para os braços de
Charles, seu antigo noivo, já que o noivado do Bennett deixou claro
que não há a menor possibilidade de ficarem juntos? No final das
contas, a garota voltou a ser gata borralheira.”

Abaixo da notícia, tinha uma foto da Yasmin vestida de couro,


em cima de uma moto potente, abraçando seu amigo – em frente ao
prédio que morava. Apertei os punhos em cima da mesa e fechei os
olhos – jogando a cabeça no encosto da cadeira.
— Quer que eu faça algo, senhor?
Abri os olhos e sorri sem humor.
— Ninguém pode fazer nada, Márcia.
De Volta

Yasmin

Me joguei na cama de bruços e abracei meu travesseiro. Não


sabia o quanto sentira falta do meu canto, até aquele momento.
Adélia manteve tudo do mesmo jeito, como se soubesse que eu
voltaria. Fiquei um tempo usufruindo da minha cama e do cheiro tão
familiar do meu quarto. Fui até o enorme closet e sorri, alisando as
minhas roupas. Uma quantidade quase incontável.
Entrei no meu banheiro e conferi cada produto de cosmético
que estava acostumada a usar, todos em seus devidos lugares.
— Quitéria se lamentou todos os dias da sua falta —
comentou Adélia – parando ao lado do batente da porta.
— Também senti falta dela — respondi sem a olhar.
A recepção da minha madrasta não me convencia de nada.
Com meu pai vivo, já não confiava nela, sem ele, a desconfiança só
aumentou.
— Ele veio aqui.
Ergui os olhos e a encarei, tentando entender de quem ela
falava.
— Ele quem?
— O Bennett.
Só de ouvir o nome dele meu corpo reage. Sinto um calor do
dedão do pé até as pontas dos cabelos. É como se ele tivesse
entrado no meu sistema. Disfarçando, evitando que Adélia
percebesse minha dependência, desviei o olhar e abri uma gaveta do
gabinete da pia do banheiro – como se o assunto não fosse tão
importante.
— O que ele queria?
— Veio com um advogado, disse que vai te representar de
graça, um cara bem arrogante, acho que Miguel. — Encolhi o
abdômen e cerrei os dentes – controlando-me. Por alguns minutos,
busquei na mente o nome Miguel, até lembrar-me do primeiro dia no
clube, era o amigo dele. — Não vai dizer nada?
— O que quer que eu diga?
— Se desculpar, é o mínimo. Olha o quanto expôs nossa
família, tem noção da vergonha que passamos? Perdi vários eventos
e nem sei quantos mais terei que perder, por sua causa.
Ergui os olhos e nos encaramos por uns instantes.
— Posso ter privacidade, pelo menos no meu quarto?
— Yasmin...
Cruzei os braços e continuei a encarando.
— Não tenho nada pra falar, agora, por favor, estou cansada,
preciso de um bom banho e minha cama.
Ela não saiu e me mediu de cima a baixo.
— Vai descer e jantar, Quitéria faz o que pedir. Está muito
magra e, se continuar assim, vou ter que te internar, novamente.
Ri de nervoso e balancei a cabeça.
— Cara, você me trata como se eu tivesse doze anos.
— Age como se tivesse, até uma moto você teve a
capacidade de comprar. Sabe o quanto seu pai odiava.
— Saia do meu quarto e pare de colocar meu pai no meio das
suas falas — proferi entredentes – apontando à porta.
Ela ergueu as mãos e saiu, ao notar que eu perdia a
paciência.

De banho tomado, vestida com um confortável pijama, desci e


fui até a cozinha. Não sentia fome, mas daria uma satisfação à
Quitéria.
— Minha menina, senta aqui, olha o que a Quitéria fez pra
você, uma sopa de legumes do jeitinho que você gosta. — Fui até
ela e a abracei, mesmo que tenha sido a primeira coisa que fiz
quando cheguei.
— Você é o meu anjinho, vou fazer um esforço.
Com muito trabalho, comi uma boa quantidade de sopa que
Quitéria colocou no prato. Estava acabando e Gabriel entrou na
cozinha.
— O filho pródigo à casa torna. E aí, irmãzinha, como é a
sensação de se prostituir? Foi pra isso que ficou um tempo fora,
confessa? Está no sangue.
Empurrei a vasilha para o meio da mesa e me levantei. Engoli
em seco e virei as costas.
— Não vai conseguir me ignorar por muito tempo — gritou e
eu subi os degraus até o meu quarto, de dois em dois.
Quase não tive tempo de entrar e me ajoelhei em frente ao
vaso – enfiando dois dedos na garganta.
Só parei de vomitar quando tive certeza de que não ficara
nada no meu estômago. Por um bom tempo, permaneci sentada no
chão – abraçando os joelhos – até passar a tremedeira.

O lugar era muito bonito e calmo. Sentia o calor do verão na pele.


Caminhava lentamente, admirando a paisagem e desfrutando do
cantar dos passarinhos. Uma paz recobria minha alma. Abri os
braços e inclinei a cabeça para trás – vislumbrada com o azul do
céu. Um céu límpido.
Deitei-me na grama aparada e fechei os olhos. Uma suave
carícia no meu rosto incentivou-me a ressonar.

— Senti muito a sua falta — sussurrou ao meu ouvido, abri os


olhos e sentei-me de supetão na cama, afastando os dedos de mim.
Puxei o lençol até o pescoço – garantindo que, nem mesmo
pequenas partes do meu pescoço, ficassem expostas.
— Como entrou aqui? — questionei e esfreguei os olhos –
para ter certeza de que Charles era real.
— Pela porta, oras — ironizou e eu revirei os olhos. —
Continua malcriada, minha noivinha.
— Não sou sua noiva.
— Ah, não? Quando foi que terminamos?
— Não se faça de tonto e saia do meu quarto.
— Se, não?
Bufei e balancei a cabeça – desistindo. Certamente, não o
faria mudar de ideia e me estressaria. Quando decidi voltar, foi para
ser inteligente em minhas ações e não continuar agindo por impulso.
— Você está certo, precisamos conversar, só que não agora.
O sorriso maroto desdenhou em seu rosto e eu me segurei
para não o empurrar. Charles estava muito próximo de mim. Ele
levou sua mão à minha bochecha e acariciou.
Endureci o corpo, mas deixei que continuasse. Sabia que ele
seria um dos meus desafios, só não tinha pensado ainda em como
vencê-lo.
— Eu entendo que não queira festa, meu amor. Mas o tempo
está passando e quero te ajudar. Um passarinho me contou que a
Adélia está fazendo de tudo pra te tirar a herança, nos casando, tudo
isso acaba. É bom pra mim e pra você. Você é inteligente, sabe que
estou certo. E, depois, já te disse antes, podemos ter um casamento
aberto. No início, até achei que você não tinha gostado da ideia,
mas..., agora... — Suspirou e abriu um sorriso sarcástico. — Pode
até continuar saindo com o Bennett, se pararmos para pensar direito,
pode até ser bom para os negócios.
Levei a mão em frente à boca e arregalei os olhos. Como ele
poderia sugerir algo do tipo? Ele me conhecia, sabia que eu não era
tudo aquilo que a mídia tinha pintado. Inspirei e expirei algumas
vezes, buscando um controle fora de mim. Meu estômago se revirou.
A bílis veio até a garganta e eu me contive.
— Como pude passar tanto tempo com você? — murmurei
sem controle.
Ele ficou em pé e passou as mãos pelos cabelos – assumindo
uma expressão agressiva.
— Deixa de ser hipócrita, garota. Não fui eu quem me
prostituí. Deveria estar me agradecendo de te querer de volta, não
me olhando com essa cara de nojo, como se eu fosse... um
cachorro.
— Não ofenda os bichinhos inocentes — ciciei entredentes.
Estava difícil segurar minha língua.
Em um nano segundo, Charles estava em cima de mim –
segurando meu queixo – obrigando-me a olhar em seus olhos.
— Olha aqui, Yasmin, até aqui, fui muito paciente. Agora,
chega! Pare com essa palhaçada. Amanhã mesmo, vou no cartório.
Tenho certeza de ainda conseguimos nos casar essa semana.
Cansei de esperar sua boa vontade. Vamos nos casar, você
querendo ou não, compreende? — falou atropelado – apertando meu
queixo.
Sabia que o racional era menear a cabeça e depois pensar no
que fazer, mas o instinto foi mais forte. Espalmei seu peito e o
empurrei com força – fazendo-o cair na cama. Levantei, caminhei até
a porta e abri.
— Fora daqui!
Ele riu novamente e colocou os braços para trás – apoiando-
se melhor no colchão.
— Você fica mais linda quando está brava — provocou-me e
eu fui para cima dele. Peguei em seu braço e comecei a puxar.
— Some da minha vida, porra!
Charles ficou em pé e segurou meus dois braços – me
chacoalhando.
— Com quem pensa que está falando, garota?
— Está me machucando.
— Essa é a intenção.
— SAIA DAQUI! — gritei e ele levou a mão em frente à minha
boca.
A primeira coisa que fiz, foi morder a palma da sua mão e, em
seguida, acertei o meio das suas pernas com o joelho. Assim que ele
tirou as mãos de mim, o empurrei – esmurrando seu peito.
— SUA CRETINA! — berrou e eu continuei o empurrando
para fora.
— ME DEIXA EM PAZ! — bradei e ele segurou um dos meus
punhos no ar – puxando-me para o seu corpo.
— Sua louca, chega dessa histeria.
— O que está acontecendo aqui? — questionou Gabriel – se
aproximando.
— Essa louca está me batendo.
— Me solta — grunhi.
— Solta ela, Charles — pediu Gabriel – chegando mais perto.
Charles fez o que Gabriel pediu e se ajeitou – gemendo um pouco ao
levar a mão para o meio das pernas. Gabriel começou a rir. —
Deixou Yasmin te golpear aí? Se tá mole, em cara.
Charles mostrou-lhe o dedo do meio e desceu as escadas –
em direção à saída. No meio do caminho, virou-se e determinou:
— Essa semana, noivinha. Se prepara.
Não esperei os comentários idiotas que o Gabriel faria, entrei
de volta no meu quarto e, dessa vez, tranquei a porta.
O dia estava terminando e eu esperava que, no dia seguinte,
minha mente clareasse e eu encontrasse uma maneira de resolver
tudo, sem a ajuda de ninguém.
No momento que pensei, lembrei-me da fala da Adélia,
dizendo que o tal do Miguel disse que me representaria de graça.
Seria de grande ajuda, porque, de tudo o que Charles vomitou, a
única coisa que eu tinha certeza, é que Adélia faria de tudo para me
tirar a herança.
— Como chego até você, Miguel?
Esperançosa

Gabrielle

Depois da tempestade sempre vem a calmaria. O problema é que


a tempestade tomou conta da minha vida. Ou, talvez, eu é quem a
procuro. Tomávamos o café da manhã com Oliver se enroscando nas
minhas pernas, decidi puxar o assunto que me atormentava nos
últimos dias.
— O que fez com o corpo? — questionei de uma vez.
Bento ergueu os olhos por cima da xícara e não respondeu.
Como se tivesse sentido o clima tenso, Oliver mudou de perna e foi
se esfregar em nosso anfitrião.
— Está muito tempo sozinho, né, garotão? — conversou com
o gato e o pegou no colo – ignorando completamente meu
questionamento.
— Não consigo mais dormir — prossegui, partindo para o
drama, na tentativa de comovê-lo, embora fosse verdade.
— Sua mãe nunca dormiu sem remédio, Oliver, agora vem
com esse migué pra cima de mim.
— Tenho o direito de saber — insisti.
Bento colocou o gato no chão e me encarou – ficando com
uma expressão pavorosa. Cheguei a me encolher.
— Você não precisa e não quer saber, porque, pode ter
certeza, de que vai piorar muito sua insônia.
— Está enganado.
Ele deu um tapa na mesa e se levantou – espalmando o
tampo com as duas mãos e colocando o rosto a milímetros do meu.
— O enterrei, satisfeita? — Neguei com a cabeça. — Que
porra, Gabrielle! Qual seu problema, caralho!?
— Preciso saber — afirmei erguendo o queixo – demostrando
uma segurança que estava bem longe de existir.
— Conhece meus métodos e, mesmo assim, insiste em
querer fazer parte disso. Sabe onde desovo os corpos.
Meneei a cabeça e engoli em seco. Bento é muito justo.
Quando se refere aos seus métodos, são os caras que conseguem,
de alguma maneira, se safarem. Ele encontra um jeito de dar fim
neles.
— É — resmunguei.
Só que isso está ficando perigoso, porque o capitão deixou
claro que está ciente. Claro que precisam de provas, no entanto, é
arriscado.
— Vai com seu carro — ordenou e virou às costas – deixando-
me com a tremedeira que se tornava habitual – cada vez que eu
fechava os olhos e via o olhar esbugalhado do infeliz que tirei a vida.
§§§§
Assim que coloquei os pés no distrito, João Pedro veio me
receber – com um sorriso que há muito eu não via.
Um alívio me tomou – meu amigo estava de volta. Estendeu
um copo com café em minha direção.
— Bom dia, madame.
— Alguém teve uma excelente noite — brinquei.
— Nem imagina o quanto — garantiu e abriu mais ainda o
sorriso. — Mas, não é só por isso que estou sorrindo.
— Hum... — Peguei o café e fui andando para a minha mesa.
No caminho, cumprimentei os colegas do departamento. Me
acomodei na cadeira e João à beirada da mesa, como de costume.
— Desembucha — incentivei-o e bebi o café, desceu como um
remédio para a minha alma – mesmo que não fizesse nem uma hora
que tinha tomado café em casa.
— Você não vai acreditar, as pessoas que estão com o Bento
na sala de interrogatório.
Parei com o copo no meio do caminho e ergui as
sobrancelhas.
— Pare com esse suspense, João.
— Conta comigo. — Ergueu as duas mãos na minha frente e
começou a baixar os dedos. — Uma, duas, três, quatro, cinco...
acabou os dedos dessa mão.
— João, está me matando — censurei-o.
— Calma, estressadinha. Seis, sete e... oito.
— Oito o quê? — Nessas alturas do campeonato, eu já tinha
colocado o copo de café na mesa e estava em pé.
— Oito mulheres que querem depor contra seu pai, ops...
Isaac Bennett. — Caí sentada novamente – sentido o coração
galopar no peito.
Mudança de Planos

Enrico

Leandra teve a triste ideia de me visitar todos os dias. Como se


não bastasse ter que vê-la na empresa, ao chegar em casa, lá está
ela, cada dia com algo sobre o casamento. Minha resposta é sempre
a mesma: “Faça o que for melhor pra você.”
Ela tinha acabado de ir embora e meu celular vibrou no bolso.
Pensei em desligá-lo e nem ver quem era, desisti, no momento em
que o nome do Miguel apareceu na tela.
— O que manda? — atendi e me joguei no sofá – exausto.
— Você precisa fazer alguma coisa — disparou de uma vez.
— Se me disser do que se trata, talvez, eu possa te ajudar.
— Não sou eu quem precisa de ajuda, é você.
Respirei fundo e inclinei o corpo, apoiando os cotovelos nos
joelhos. Massageei a têmpora, aliviando a dor de cabeça que não me
deu trégua nos últimos dias.
Desde que Yasmin invadiu meu carro, minha vida virou uma
bagunça. Não consigo recuperar o controle dos meus sentimentos.
Deixei que as emoções mexessem comigo, a ponto de eu ficar
transtornado. Passo o dia fazendo as coisas no automático. Não
tenho ideia do que vou fazer com a Leandra, após o casamento.
Cheguei a pensar em desistir, mesmo indo contra todos os meus
planos. Só que a razão me recaí e eu começo a calcular os estragos
que teriam com essa decisão emotiva. Volto atrás imediatamente.
— Miguel... — suspirei.
— Ela vai se casar obrigada, cara. Você conheceu a
madrasta, meu. Vai tomar cada centavo da garota, se não se casar.
— Yasmin é esperta, vai encontrar outra saída — verbalizei
algo que eu queria acreditar.
Mesmo que estivesse desesperado para ir atrás dela. Dizer
que não precisava de nada daquilo, se ficasse comigo. Que eu me
casaria com ela, se fosse o desejo dela, não por causa de um
testamento.
— Enrico! — berrou Miguel na linha e eu chacoalhei a cabeça
– saindo dos meus devaneios.
— Conseguiu falar com o advogado?
— É um filho da puta! — praguejou. — Vai dificultar. Vou ter
muito trabalho pra contestar esse testamento. Eles são todos
influentes. O tal Charles é filho do deputado mais corrupto do estado.
Nos esbarramos na rua e ele me garantiu que vão se casar essa
semana.
Todos os nervos do meu corpo endureceram, no momento em
que as palavras: casar e essa semana –, ecoaram nos meus
ouvidos. Fiquei em pé e comecei a andar pela sala – esfregando a
nuca – com a respiração alterada.
— Estou fodido — murmurei – engolindo em seco.
Fui até a geladeira e peguei uma garrafa de água – bebendo
quase que de uma vez.
— É sério isso, Enrico? Vai ficar se lamentando e não vai fazer
nada para impedir?
— Não posso.
— Enrico de bosta Bennett. Gostava mais quando não usava
essa porra de nome! Tudo que faz, desde então, é se preocupar com
esse caralho dessa empresa. Se vai se acovardar, vou ter que tomar
à frente dessa porra!
— Não se meta na minha vida — rosnei, sem sucesso.
— Me aguarde! — avisou e desligou na minha cara.
Apertei o celular na mão e encostei a testa na vidraça da sala
– fechando os olhos.
Ainda me recuperava da ligação do Miguel, o celular começou
a vibrar novamente. Ao olhar no visor quem era, hesitei em atender –
seguramente o Miguel tinha pedido reforço.
— Fala pra mim que o Miguel se equivocou — gritou na minha
orelha, antes mesmo de eu falar alô.
— Manu...
— Não vem com Manu, não, Enrico. Cansei desse jogo idiota
dos Bennett. Eles que enfiem no rabo essa arrogância de sempre
querer estar por cima. Quero meu irmão de volta, merda!
— Manu, melhor se acalmar e depois conversamos.
— Vou me acalmar porra nenhuma!
— Chega, Manu. Pare com esse monte de palavrões, não
gosto que faça isso — repreendi-a. — Eu que cansei de vocês
quererem cuidar da minha vida. Melhor se preocupar com o seu
marido, acabou de se casar.
— Enrico, você tem meia hora pra pegar o carro e vir pra cá,
caso contrário, eu que vou pra sua casa. Não me chamo Manuela, se
não fizer aquela interesseira sumir da sua vida. Eu já não gostava
dela quando você não tinha ninguém, agora, que temos certeza de
que está apaixonado, nunquinha que vou deixar você estragar sua
vida, por causa dessa merda de empresa.
Me sentei novamente e controlei a respiração, que estava
totalmente alterada. Mesmo que o clima estivesse ameno, sentia o
suor escorrer pelas costas. Sem sombra de dúvida, pela primeira vez
na vida, começava a entender o porquê de as pessoas cometerem
loucuras por amor. É muito mais forte do que você.
§§§§
Parei o carro e respirei fundo, desacreditando no que estava
prestes a fazer. O estacionamento do lugar estava lotado, quase não
encontrei vaga. Olhei pela janela e vi uma grande faixa na porta de
entrada do clube: “Bem-vinda de volta, Yasmin. Nós te amamos.”
Miguel e Manu se encarregaram de investigar cada passo da
garota. Ao ver a faixa, acreditei quando disseram que as pessoas
daquele lugar as amava. Que Yasmin tinha abandonado tudo para
fugir do casamento arranjado. E que, agora, estava prestes a ceder,
para poder ter paz e seguir com seus sonhos.
Já, fora do carro, buscando argumentos para minha
abordagem, escutei sua voz soar no microfone. Meu corpo deu sinal
de vida, como se reconhecesse seu lugar. Era a primeira vez que
permitia sentir algo. Primeira vez que estava com medo, pois não
tinha ideia de como seria a reação da Yasmin. Em momento algum,
ela demonstrou sentimentos, embora ficou claro que também
estivesse mexida.
— Vamos, cara, já começou — apressou-me Miguel,
chegando ao meu lado.
— O que está fazendo aqui?
— Garantindo que não vai fugir — divertiu-se e eu o fuzilei
com um olhar.
— Que ridículo, não preciso de babá. Por que acha que estou
aqui?
— Porque te ameaçamos.
Maneei a cabeça em discordância.
— Eu dito as regras, Miguel. Só faço o que quero.
— Tudo bem, senhor Bennett, se prefere acreditar que sim —
ergueu as mãos e deu um passo para trás – com um sorriso idiota no
rosto.
Ignorei a provocação e dei início à decisão que mudaria tudo
na minha vida. Que, literalmente, abalaria todas as estruturas.
Caminhamos em silêncio até a entrada, ouvindo Yasmin se
retratar e agradecer a recepção calorosa de seus alunos.
Assim que colocamos os pés na entrada do ginásio, me
espantei com a quantidade de pessoas. As arquibancadas estavam
repletas. Em um giro rápido com o olhar, pude ver, no mínimo, uns
quatro paparazzis.
— A mídia está aqui — comentei baixinho e Miguel se
aproximou.
— Achei que já imaginasse. É um prato cheio pra eles.
Entramos de fininho, com as cabeças baixas, e nos
acomodamos em um canto – torcendo para que a atenção
continuasse voltada ao palco, que fora montado no meio do campo
de futebol de salão.
— Bom, agora vou fazer o que realmente esperam que eu
faça — brincou Yasmin e entregou o microfone à moça ao seu lado.
Ela desceu do palco e começou a reunir várias crianças e
adolescentes – dando algumas coordenadas.
A garota tinha suas facetas. Estava conhecendo mais uma
delas. Em todas que pude conferir, Yasmin conseguia ser admirável.
Se perguntassem qual delas que eu mais gostava, não saberia
responder.
Ela era forte, determinada, ousada, corajosa, aparentemente,
nada a fazia recuar. Ali, diante de uma multidão, demonstrava uma
segurança invejável. Sem contar sua aparência. A mais linda de
todas.
Vestida de noiva; mulher fatal; motoqueira e agora, dançarina.
Todas elas estavam tirando-me da minha zona de conforto.
Conseguindo fazer com que eu quebrasse minhas rotinas. Mudasse
os meus planos. E, sem sombra de dúvida, aceitasse o desafio de tê-
la. Porque estava claro que ela não cederia facilmente.
— Cara, virei fã dessa garota — elogiou Miguel, o olhei feio.
— Acorda, meu, porque qualquer um queria estar no seu lugar. Olha
pra ela. — Ele tinha razão, a roupa de dança acentuava cada curva
de seu corpo – mesmo muito magra. Sua autoconfiança intensificava
sua beleza.
O Evento

Yasmin

Meu sorriso demandava todo meu rosto. Seria impossível


esconder o quanto me sentia realizada dançando e, melhor ainda,
ensinado crianças carentes. Realizando o sonho deles.
A música ecoou pelo ginásio e a contagem começou. Cada
passo dado era cronometrado – a coreografia ensaiada.
— Vamos lá, pessoal, sete, oito... — Minhas coordenadas as
deixavam seguras.
Ver minhas crianças sorrindo encheu meu coração. Clareou
minha mente. Cheguei à conclusão de que valia o sacrifício por elas.
Um sonho nem sempre vem completo. Gostaria de poder estar com
uma pessoa melhor, que nos amássemos, no entanto, se eu
continuasse insistindo em me safar do Charles, todos seriam
prejudicados.
Minha vida continuaria um inferno e eu não teria cabeça para
dar atenção às crianças. Não teria condições financeiras de ajudá-
las, porque, seguramente, Adélia dificultaria minha convivência
naquela casa. Principalmente, na parte financeira.
Casar com o Charles tinha suas vantagens. Ele não me
queria, tanto quanto eu não o queria. Seria só um negócio.
Moraríamos na mesma casa, mas, provavelmente, não nos
veríamos. Ele é um cara que se preocupa com sua carreira política e
está sempre na cola do pai. O nosso casamento seria só para
manter as aparências, pela influência que meu pai tinha e deixou
para a Adélia.
Eu teria a tão sonhada independência. Era só ser discreta.
Não era o melhor dos mundos, mas, pelo menos, estaria livre da
madrasta.
— Isso aí, pessoal, continuem assim, estão arrasando —
incentivei-os.
A música terminou e nos juntamos em uma fileira – fazendo
uma mesura de agradecimento. A plateia ficou em pé e nos
ovacionaram. As palmas preencheram todo o ambiente.
— Vocês foram demais.
— Não, Yasmin, você é que nos faz demais. Sem você, nada
disso acontece — agradeceu uma delas e nos abraçamos.
Depois dos cumprimentos e agradecimentos dos meus
alunos, eles foram se sentar e eu voltei ao palco, para dar
encerramento ao evento, que foi marcado especialmente para minha
volta. Peguei o microfone e, antes de falar, estremeci, vendo Charles
subir os poucos degraus do palco improvisado no campo. Ele me
lançou aquele sorriso maroto que abomino e me pediu o microfone.
— Ela é demais, não é mesmo, pessoal? — iniciou e a plateia
concordou com gritos e assovios. — E minha — completou e eu
respirei fundo – segurando o ar – com um sorriso forçado. Charles
passou o braço pelo meu ombro e me prensou ao seu corpo. Afastou
o microfone e sussurrou ao meu ouvido: — Se fugir, dessa vez, juro
que te mato. — Engoli em seco. — Minha noiva teve um pequeno
surto, no dia do nosso casamento, mas agora está pronta, não é
mesmo, meu amor?
Por mais que meu cérebro mandasse o comando para minha
boca, ela não obedecia em concordar com ele. Decidir que seria uma
boa ideia é uma coisa, colocar em ação é completamente diferente.
— Vai ignorar o fato de ela ter se prostituído? — gritou um
homem – enquanto se aproximava do palco – com uma pessoa
segurando uma câmera atrás dele e um microfone na mão.
Achei que fosse ter um enfarto, pela velocidade que meu
coração decidiu bater. Tentava controlar a respiração e não
conseguia. Tudo o que eu menos queria era envolver as crianças
naquele momento sórdido.
Charles olhou dentro dos olhos do rapaz, que já estava
próximo do palco.
— Quem deixou essa “corja” entrar em um evento particular?
— Esse ginásio é público. É só responder minha pergunta que
vou embora.
— Não te devo satisfação.
— Ela vai continuar com sua vida dupla? Se bem que ela foi
esperta, pegou um peixe grande — continuou com a provocação o
rapaz.
Quando achei que o Charles fosse ter uma reação, mesmo
que uma encenação, algo completamente inesperado emudeceu o
ginásio.
— Ela não se prostituiu, tivemos um caso — a voz imponente
e rouca do Enrico surgiu nas arquibancadas e todos – todos, mesmo
–, viraram seus rostos na direção dele. Ele foi descendo lentamente
os degraus e vindo em direção ao palco.
Um silêncio amedrontador tomou conta do lugar. O que
facilitou para que as batidas do meu coração soassem dentro dos
meus ouvidos.
Enrico ficou ao lado do rapaz que, obviamente, direcionou
toda sua atenção a ele.
— Teve um caso estando noivo?
— Sim, e vim aqui hoje impedir que Yasmin se case, porque
quero ter algo mais sério com ela.
Um ohhhhhhhh... ecoou pelo ambiente. Arregalei os olhos e
levei a mão à frente da boca – aturdida.
Em segundos, surgiram um monte de “abutres”, enfiando seus
celulares na frente do Enrico.
— Bennett, seu casamento está marcado...
— Enrico, vai contrariar seu pai?
— Como vai ser com a família da noiva? Ela já sabe?
Vi quando seu amigo, Miguel, chegou e foi tirando Enrico do
meio deles. Continuei estática – atordoada. Nem sabia se tudo
realmente estava acontecendo ou era um sonho.
— Vem comigo — ordenou Charles – pegando forte no meu
braço e me arrastando com ele.
A bagunça estava formada. Todos se alvoroçaram. No meio
de tudo, tentei me desvencilhar do aperto do Charles, mas ele é
muito maior do que eu. Fui arrastada para o seu carro. Ele me jogou
dentro e travou as portas. Assumiu o volante e saiu cantando os
pneus.
— O que está fazendo? — gritei, me segurando como podia.
— Acha mesmo que vai me fazer de trouxa de novo? Está
muito enganada — vociferou e continuou dirigindo como um louco.
— Pare o carro e vamos conversar — berrei, começando a
ficar com medo.
— Nós vamos conversar sim, sua puta, longe de todos. Vai se
casar comigo, nem que seja amarrada — ameaçou e eu tirei o cinto
de segurança – forçando a fechadura. Nem que eu me matasse, me
jogando do carro, estar ali era mais arriscado.
— Pare o carro, Charles — insisti e ele ignorou. — Charles,
vamos conversar, somos adultos.
— Agora somos adultos, vagabunda. Porque não pensou
nisso quando decidiu me humilhar diante de todos, hein!?
Charles pegou a rodovia e a velocidade foi aumentando.
Segurei os lábios nos dentes e tentei agir com a razão, coisa que
dificilmente eu consigo.
— Por favor... — implorei e ele começou a rir, adorando o fato
de me deixar com medo.
— Qual é, meu amor, você adora esportes radicais, não vai
me dizer que está com medo — disse e soltou as mãos do volante.
— Charles..., não faça isso, vamos conversar.
Ele olhou para mim e travou o maxilar apertando o pé no
acelerador. Vi de longe um caminhão e gritei:
— PARE COM ISSO!

Charles tinha enlouquecido, gargalhava e ameaçava jogar o


carro na pista da contramão. Quando o caminhão estava prestes a
cruzar com o nosso carro, ele ameaçou jogar o carro na sua direção.
Institivamente, me joguei em cima dele e virei o volante – de uma vez
– para o acostamento. Tinha uma vala funda de escoamento de
água, o carro entrou na vala e virou... caindo na ribanceira.
Tudo foi rodando... uma... duas... três...
— Charles! — gritei, quando minha porta abriu e me lançou
para fora. Sem cinto de segurança, não tive como me segurar. —
Meu Deus, me ajude! — supliquei sem saber a quem recorrer.
Meu corpo foi arremessado longe. Sentia que cada costela
estava sendo quebrada. Tentava me segurar nos galhos... na
grama... enfiava as unhas na terra... até que uma dor aguda na
cabeça me cegou... um zunido forte me deixou surda... e...
escuridão.
Comemorando

Gabrielle

“Ao menos 8 mulheres acusaram terem sido vítimas de abusos


sexuais cometidos por Isaac Bennett, empresário de 65 anos,
fundador das Empresas Bennett, maior empresa alimentícia do país.
Crimes de estupro, favorecimento de exploração sexual, drogas e
lesão corporal são alguns dos crimes relatados.
Os relatos são de um esquema meticuloso, envolvendo uma
agência que aliciava mulheres para trabalharem para Bennett.
Inicialmente, segundo os relatos, era oferecido a elas o trabalho
como modelo. Depois, elas descobriam que os serviços a serem
prestados iam além dos anunciados.
A ação envolvia agentes, motoristas e até médicos que
atendiam o grupo de mulheres, que deveria permanecer por dias em
uma "mansão", à disposição do empresário, onde eram realizadas
festas particulares. O perfil de mulheres era sempre o mesmo: muito
jovens, altas e magras. Em sua maioria, de baixo poder aquisitivo.
As vítimas procuraram ajuda por meio do Projeto Justiceiras,
fundado pela promotora de Justiça Nanci Almeida, que presta
atendimento multidisciplinar online para combater a violência contra
a mulher. As vítimas recebem apoio jurídico, médico, psicológico e
socioassistencial, prestado por profissionais voluntárias.
Segundo a defensora, há conhecimento de que o empresário
teria feito muitas outras vítimas, mas que, de tão fragilizadas, não
conseguiriam aderir ao processo: "Não é só coragem, a saúde física
e mental dessas mulheres está muito debilitada".[4]

— Te peguei, velho asqueroso. Quero ver você escapar, agora


— comemorei, assim que terminei de ler a matéria que tinha
acabado de ser publicada, por um importante jornal da cidade.
A comemoração foi interrompida, pela entrada abrupta do
capitão Cesário. Meu corpo estremeceu imediatamente, com o olhar
assassino que me lançou.
— Boa tarde, detetive. Precisamos conversar — avisou e fez
um gesto para eu o acompanhar.
A Busca

Enrico

Comecei a ter dificuldade de respirar com a quantidade de


pessoas que me cercavam. Miguel me pegou pelo braço e foi me
levando para o carro, empurrando quem nos abordava. Ele abriu a
porta do carro e me jogou dentro – batendo a porta com força.
— Mas que caralho foi aquilo? Enlouqueceu, Bennett? — Mal
entrou e já foi praguejando.
— Como assim? Afinal, por que mesmo estou aqui? Queria
que eu fizesse o quê?
— Cara, você tá fodido! Isso já deve estar em todas as redes
sociais. Nem falou com a Leandra e já foi chutando o pau da barraca.
Fechei os olhos e apoiei a cabeça no encosto do banco.
Miguel saiu com o carro e andamos um tempo sem falar nada. Eu
massageava a têmpora, porque, mais uma vez, a dor de cabeça me
atormentava.
— Ela estava desesperada ao lado dele, Miguel, acuada. Eu
tinha que fazer alguma coisa. Não podia deixar que aqueles
“abutres” detonassem com ela novamente. Não... não podia...
Miguel continuou dirigindo, calado. De repente, uma sirene
começou a soar atrás de nós e Miguel encostou para que passasse.
Não era só uma, tinham várias. Carros de bombeiro, de resgate,
ambulância.
— Aconteceu algo muito grave, Enrico. Essa cidade é
pequena demais pra todo esse estardalhaço. Vou atrás deles.
— Miguel... — Tentei impedi-lo, mas uma pontada forte no
meu peito me bloqueou. Levei a mão até ele e uma angustia fechou
minha garganta – como um aviso.
— Vou ligar para o meu pai — advertiu e foi discando –
seguindo o comboio que tinha passado por nós. — O que
aconteceu? — perguntou e ouviu o que o pai disse. — Tem certeza?
— Desligou e jogou o celular no console do carro – olhando para
mim com a expressão assustada.
— O que foi?
— O filho do deputado, foi o que meu pai disse — anunciou e
engoliu em seco.
Não demorou para que eu fizesse a conexão.
— Me diz que ele estava sozinho. — Miguel balançou a
cabeça.
Levei as duas mãos à cabeça e cerrei os dentes. No alvoroço,
não vi mais a Yasmin. Saí correndo sem conseguir falar com ela.
Pelo histórico do noivo, não seria difícil de ele ter cometido uma
loucura.
— Meu pai disse que caíram na ribanceira...
— Caíram... porra... não faz isso comigo, Miguel...
Comecei a suar frio e o arrependimento veio com força total.
— Calma, Enrico. Ninguém sabe direito o que aconteceu, o
caminhoneiro só disse que tinham duas pessoas.
— Que merda que fui fazer naquele ginásio, Miguel. Não fui
racional — lamentei e apertei novamente a têmpora – pedindo que a
sensação que tive não fosse um aviso.
Fomos nos aproximando do acidente e vimos uma quantidade
enorme de pessoas e carros. O caos tinha se instalado.
— Dá licença... sai da frente, porra! — Miguel tinha perdido o
controle – compreensível. Até mesmo eu, que dificilmente perco a
razão, me continha, para não agir como ele.
Finalmente, chegamos ao lado do pai do Miguel – que tentava
controlar o caos.
— Quem estava com ele? — indaguei – aflito. — O delegado
meneou a cabeça e espremeu um lábio no outro.
— Fala logo, pai! — apressou meu amigo.
— Não sabemos, ele foi tirado das ferragens do carro
inconsciente... sozinho. Se tinha alguém com ele, foi lançado pra fora
e... — Olhou para mim com compaixão. — Estamos buscando.
Apertei meus olhos com força e me afastei um pouco –
inclinando a cabeça para trás – na esperança de inspirar mais ar. No
meio da multidão, o ar parecia rarefeito. Andando em círculo,
ouvindo as ordens de toda a equipe que trabalhava no local, um
diálogo chamou minha atenção e me aproximei.
— Ele abriu os olhos e está gesticulando — mencionou um
deles.
— Parece que quer dizer alguma coisa — acrescentou o
colega.
Apressei os passos e fiquei ao lado do carro que mantinha o
Charles dentro. Arrumei a postura e decidi tomar à frente.
— Com licença, vou entrar e ver o que ele está querendo falar
— comuniquei e entrei – sentando-me ao lado da maca. O
paramédico que o ajudava me olhou assustado, quando pensou em
me colocar para fora, o delegado chegou na porta.
— Rapaz, precisamos que o paciente nos dê informações.
— Senhor, ele...
— Não vai demorar mais do que um minuto — insistiu e o
paramédico concordou – retirando um pouco a máscara de oxigênio,
que impedia sua comunicação.
— Yas... min... — ofegou e meu corpo endureceu —, caiu...
do... carro — comunicou e apagou novamente.

Nem sei como saí da ambulância. A confusão foi tão grande


que, quando me dei conta, estava descendo a ribanceira – à procura
dela.
Trinta e dois anos sem sentir nada e, quando encontro a
pessoa que faz com que eu questione as leis físicas, percebo que
estou prestes a perdê-la. As reações adversas do meu corpo,
naquele momento, eram completamente desconhecidas, para mim.
Nem saberia descrevê-las. Nada em mim tinha coerência. Nenhum
pensamento seguia uma linha racional. Eu só tinha uma coisa em
mente: encontrá-la.
— Enrico, calma, cara! — Miguel tentava puxar meu braço –
na tentativa de me parar.
Já estava com os braços todos arranhados dos galhos que
tirava do meio do caminho. A mata era quase fechada, mil coisas
passavam pela minha cabeça e, a pior delas, era que a única pessoa
que podia me fazer “viver”, estaria morta. Não me dei ao trabalho de
responder, cada minuto, significava a chance que Yasmin teria de
sobreviver. Por mais velocidade que estivessem, e o caminhoneiro
garantiu que era muita, não tinha como ela não estar naquela região.
O tempo é algo que não conseguimos controlar e, muito
menos, entendê-lo. Principalmente, em uma situação desesperadora.
Ele parece trabalhar contra nós, quando mais precisamos dele.
Minhas pernas doíam, dos arranhados brotavam gotículas de
sangue. O sol não colaborava, ardia em nossas peles. Muitas
pessoas já tinham desistido de ficarem à beira da estrada, pela
demora da conclusão. Já tinha descido um bom pedaço, quase
chegando ao local onde estava o carro destroçado e ainda não tinha
encontrado nem vestígios dela.
Não podia...
Não queria...
Não deixaria...
Que meus pensamentos me levassem a crer que não tinha
mais volta. Precisava seguir meus instintos e eles diziam que ela
estava em algum lugar, me esperando – viva.
Durante a busca, me distanciei de todos, para que
pudéssemos ter uma cobertura mais abrangente do local. Cheguei
em um canto mais aberto e me sentei em tronco grosso – caído no
chão. Inclinei o corpo e apoiei os cotovelos nos joelhos – enfiando o
rosto entre as mãos.
— O que eu fiz — lamentei completamente culpado. Uma das
únicas vezes que decidi agir pela emoção, fui o causador de um
terrível acidente. Inclinei o rosto para cima e olhei em direção às
nuvens. — Se existe um Ser superior, peço que ajude a Yasmin. A
garota não merece uma morte trágica como essa. E — suspirei —,
preciso dela. Não sabia o quanto, mas agora tenho certeza de nunca
mais sentirei nada, se perdê-la.
Voltei o rosto entre as mãos e respirei fundo – preparando-me
para continuar.
— Hum... hum... hum... — Gemidos me fizeram erguer a
cabeça e ficar atento. Segurei a respiração e agucei os ouvidos, para
ter certeza de que não era fruto da minha imaginação. — Hummmm.
— Yasmin... estou aqui... vou te achar... calma... — comecei a
falar com ela e fazer poucos movimentos para seguir o som dos
gemidos.
Com poucos passos, a encontrei. Precisei de um controle que
não imaginei que um dia teria. Estava toda rasgada e quase não se
via sua pele, de tanto sangue.
— AQUI! — gritei, gesticulando para que me vissem. Ajoelhei
ao lado dela e fui tirando as folhas que grudaram no sangue. — Te
achei... te achei... porra... você tá respirando... meu Deus, Você
existe.
Não mexi em seu corpo, com receio de piorar a situação. Em
questão de segundos, os paramédicos chegaram com a maca e me
afastaram.
— Você conseguiu, cara... caralho... conseguiu... vamos, ela
vai ficar bem, você vai ver. — Miguel me abraçou e foi me levando
para cima.
Eu não queria me afastar dela, mas não podia fazer nada, não
naquele momento.
§§§§
A horda de “abutres” cobria toda a entrada do hospital da
cidade. A notícia correu rapidamente, parecia que estava chegando
em um evento – tal o número de pessoas que tomavam a rua.
— Mas que filhos das putas! Ficam à espreita, esperando uma
desgraça. Vou colocar toda essa raça pra correr — praguejou Miguel
e foi abrindo a porta do carro. Segurei seu braço e o fiz me olhar.
— Não faça isso, é tudo o que eles querem, o melhor a fazer é
ignorar, vai por mim, estou acostumado — garanti e meu amigo,
contrariado, meneou a cabeça – aceitando.
— Espere aqui, vou procurar meu pai e pedir escolta. Esses
“abutres” vão voar em você.
— Vou ficar bem, Miguel. Vamos só entrar no hospital, por
favor. — Miguel olhou para mim e concordou, vendo o quanto eu
precisava de informações sobre o estado da Yasmin.
Como meu amigo previu, o trajeto até a entrada do hospital foi
sufocante. Precisei colocar o antebraço no rosto e baixar a cabeça.
Não sei de onde saiu tanta gente. Na recepção, respirei fundo e me
aprumei, pronto para tomar qualquer atitude que pudesse salvar a
vida da Yasmin.
Assim que o médico nos viu, veio até nós. Cerrei os punhos
ao lado do corpo, imaginando o pior – pela expressão dele.
— Senhor Bennett, prazer, sou o doutor Pedro, me avisaram
que o senhor estava vindo pra cá e esperei.
— O que tem pra mim, doutor — indaguei – sem delongas.
— Os pacientes chegaram em estado grave, o deputado vai
transportar o filho de jatinho para capital, ele queria levar a garota
junto...
— De maneira alguma — interrompi-o. — Vou cuidar disso,
agora mesmo — garanti.
Deixei Miguel com o médico e me afastei – fazendo uma
ligação. Pedi que providenciasse o jatinho da empresa
imediatamente para que pudéssemos transferir Yasmin ao melhor
hospital da capital. Assim que acertei os detalhes, liguei para o
hospital e deixei tudo certo com a equipe médica. Yasmin teria o
melhor.
Terminava de cuidar da transferência, a madrasta,
acompanhada de seu filho, entraram desesperados. Foram direto à
recepção. De longe, observei o drama que a senhora fazia. Cruzei os
braços e aguardei que viessem até mim, certamente o fariam.
A moça apontou em minha direção e os dois mudaram de
expressão no ato. Caminharam seguros de si até mim.
— Imagino que esteja querendo consertar o mal que fez à
minha filha — cuspiu seu veneno e eu não me alterei – como de
praxe.
— Boa tarde, senhora — cumprimentei-a e meneei a cabeça
ao seu filho.
O dia ficaria marcado como um dos piores da minha vida.
Apesar de manter a aparência firme e serena, dentro de mim tinha
um vulcão, prestes a entrar em erupção. Temia que a madrasta da
Yasmin fosse a pessoa que acionasse o gatilho.
— Pode voltar para o seu palácio, senhor Bennett, Yasmin é
responsabilidade minha — dispensou-me, erguendo o queixo.
Continuei olhando para ela com os olhos estreitados –
elaborando a melhor frase para colocá-la em seu devido lugar. Uma
senhora se aproximou e Adélia se transformou – dramatizando o
quanto pôde.
— Já está tudo certo, Yasmin será transferida para a capital, a
equipe médica de minha confiança vai cuidar dela. Não se preocupe,
senhora, sua filha estará em ótimas mãos — ironizei e sorri de canto.
Um sorriso que precisei mover quase todos os músculos do corpo
para conseguir dar.
Vi o momento em que Adélia perderia a compostura, não
fosse outra pessoa se aproximar.
— Querida, que coisa horrível, se precisar...
— Muito obrigada, mas minha filha tem bons amigos, não é
senhor Bennett. Esse bom homem, vai levá-la ao melhor hospital da
capital. — Aquela cena fingida começava a me provocar náuseas.
Ia pedir licença para me retirar, quando Miguel se aproximou e
fez um gesto para eu o seguir.
— O que aconteceu, Miguel?
— Se prepara, a coisa tá feia lá fora — avisou e foi me
levando em direção à porta que tínhamos entrado.
Não precisei chegar muito perto, para ver a silhueta da
Leandra, dando uma entrevista para a multidão.
— Que porra ela está fazendo, Miguel?
— Eu avisei, cara, a gente sabe como é a Leandra.
Me aproximei e gelei, ao ouvir a declaração que ela dava à
imprensa.
— Meu noivo é uma alma generosa. Ele ficou com muita pena
daquela pobre garota. Assim que soube do testamento do pai, quis
ajudá-la de alguma maneira. Na cabeça dele, tinha manchado a
honra dela. Vejam só, andou mais de cem quilômetros só para limpar
a imagem da garota na cidade. É uma atitude nobre, vocês não
acham?
— Leandra, e sobre o acidente, disseram que ele ficou
desesperado?
— Senso de justiça, meu amor. Ele jamais deixaria as
pessoas pensarem que ele foi o causador, afinal, pelo que eu vi nas
redes sociais, o noivo da garota ficou maluco, depois do Enrico
afirmar que tiveram um caso.
— Ele disse que quer algo mais sério com ela.
— Não, querido, era só pra despistar. Aquele homem me ama,
ou melhor, nos amamos. Estamos de casamento marcado.
Fiquei atônito, sem ter ideia do que fazer. De repente, as
pessoas começaram a serem empurradas e uma Manu apareceu
descontrolada.
— Tudo mentira o que essa interesseira está dizendo.
— Fodeu, cara, melhor a gente intervir — advertiu Miguel e
saímos.
Assim que coloquei os pés para fora, foram tantos flashes no
meu rosto, que eu não conseguia abrir os olhos.
— Enrico, toma uma atitude de homem e desmente o que
essa louca disse — exigiu Manu e eu explodi.
— CHEGA! — berrei e todos se calaram. Fechei um pouco os
olhos e respirei fundo. — Vocês podem nos dar privacidade, por
favor?
Leandra veio até mim e grudou no meu pescoço. Segurei o
lábio inferior nos dentes e, cuidadosamente, tirei os braços dela de
mim.
— Bennett, disse que vai largar sua noiva é verdade?
— Isso é um assunto particular. — Todos entramos, deixando
os “abutres” berrando.
Declarando-se

Yasmin

— Essa ganhou na loteria.

— Ele não sai daqui, praticamente, montou seu escritório no


quarto dela.
— E o amigo, misericórdia, a garota é cercada de homens
bonitos.
— Tá esquecendo do irmão.
— É bonito, mas muito arrogante.
— Aquela mãe dela que não me desce.

Ouvia longe uma conversa, sem entender o contexto. Tentava


abrir os olhos, mas sentia as pálpebras pesadas. Forcei e a claridade
me incomodou. Aos poucos, fui me acostumando e, piscando
algumas vezes, os mantive abertos. Vasculhei o lugar e não
reconheci. Não era meu quarto, nem o quarto da casa do Enzo. As
vozes que estava ouvindo vinham do canto. Duas moças vestidas de
branco – de costas para mim.
Ergui a mão e me dei conta que tinha um cateter. Segui o fio
que dava para o soro. Logo me dei conta de que estava em um
hospital. Tentei me mexer, no entanto, um gemido escapou do meu
peito. Doía tudo.
— Oi, você acordou. — Uma das enfermeiras ficou bem
próxima de mim e sorriu.
Tentei balbuciar algo e tive dificuldade em movimentar a
língua, parecia que tinha chumbo nela.
— Fique calma, vou chamar o médico — avisou e a outra se
aproximou – verificando o soro.
A porta do quarto foi aberta e eu quase tive um treco. Minha
mente, provavelmente, ainda não tinha voltado ao normal. Aquilo,
sem sombra de dúvida, era um delírio. Afinal, o que o bonitão fazia
ali? Mais lindo do que eu podia imaginar?
— Senhor, ela acordou — comemorou a moça e ele sorriu, um
sorriso que eu jamais achei que veria. — Vou chamar o médico.
— Espera — ordenou e ela parou. — Nos deem um minuto,
por favor.
— Senhor...
— Um minuto — imperou e as duas saíram, sem questionar.
Enrico sentou-se na beirada da cama e alisou meu rosto, com
as costas das mãos.
— Senti falta dos seus olhos — sussurrou e eu franzi o cenho,
completamente perdida.
Por alguns segundos, rebobinei a fita do meu cérebro, em
busca de respostas. Em flashes, me veio o acidente. Gemi,
institivamente.
— Está sentindo dor? — indagou pegando na minha mão.
Neguei com a cabeça.
— Por que... está... aqui? — balbuciei com dificuldade.
Ele sorriu novamente e eu começava a gostar de vê-lo
sorrindo. Parecia tão vulnerável. Seu olhar era gentil, quase...
apaixonado.
Enrico chegou bem pertinho do meu rosto e roçou nossos
narizes. Eu não conseguia desviar o olhar do dele. Queria muito que
fosse verdade, desconfiava estar sonhando. Não conhecia aquela
versão dele. Embora, em nossa despedida, ele tenha demonstrado
um lado mais leve.
— Há dias estou aqui — murmurou e beijou minha testa.
Se estava confusa, depois daquela fala, na certa, estava em
coma. Eu delirava, sem sombra de dúvida. No momento em que
pensei isso, um flash do evento veio à minha mente, com Enrico
dizendo que queria ter algo mais sério comigo.
Ele voltou a sentar-se na beirada da cama e fiquei admirando
sua beleza. Enrico tinha os cabelos molhados e seu cheiro era uma
mistura de sabonete com perfume amadeirado. Vestia uma camiseta
branca e calça jeans. Era a primeira vez que o via tão despojado.
Virei o rosto para o canto em que as enfermeiras
conversavam, anteriormente, e entendi o que falavam, tinha uma
mesa com um laptop em cima. Queria continuar conversando com
ele, tentar entender suas reais intenções, mas o médico entrou –
acompanhado de Adélia e Enzo.
— Oh, minha querida, você acordou, graças a Deus! —
dramatizou minha madrasta e eu revirei os olhos.
Enzo chegou perto e beijou minha testa.
— Ah, bombom, se me deixasse, juro que te ressuscitaria, só
para te dar uns tapas — brincou e eu sorri – pela primeira vez.
— Preciso que todos se retirem, vou examinar a paciente e
levá-la para fazer alguns exames.
Enzo e Adélia saíram e Enrico não se moveu.
— Senhor...
— Desculpa, doutor, prefiro acompanhar.
— Mas os exames...
— Só os que eu não puder entrar.
O médico meneou a cabeça e eu fiquei mais confusa. Era
uma atitude muito protetora. Algo muito estranho para uma pessoa
que nem me conhecia direito.
— Quantos... dias... estou aqui? — inquiri ao médico, assim
que começou a me examinar.
Ele olhou para o Enrico, como se estivesse pedindo
permissão e o bonitão acenou que sim.
— Treze dias. — Recuei o tronco – assustada. Era muito
tempo. Vendo a bagunça que estava minha mente, o médico
prosseguiu: — Foi preciso te colocar em coma induzido, seu estado
era muito grave.
§§§§
Enrico acompanhou os meus exames que pôde. Voltando ao
quarto, ele não estava mais. Mesmo que eu não estivesse
entendendo nada, senti-me decepcionada. Depois da morte do meu
pai, era a primeira vez que alguém se preocupava comigo – que não
fosse o Enzo.
— Como está se sentindo, bombom? — questionou meu
amigo, que me esperava fielmente no quarto.
— Já estive melhor — brinquei e me arrumei na maca, para
receber a bandeja de alimentação que a enfermeira entrava
carregando.
Comecei a comer e meu amigo puxou uma poltrona –
sentando-se ao lado da maca.
Duas colheradas da sopa rala, foram o suficiente para eu
entortar o nariz e não conseguir ingerir mais nada.
— Preciso sair daqui, logo.
— Mal abriu os olhos e já acha que está pronta pra ir embora,
só você mesmo — censurou-me e eu revirei os olhos.
— Esse soro vai me deixar inchada, gorda — reclamei e Enzo
me fuzilou com o olhar.
— Só pode estar brincando, Yasmin. Quanto tá pesando?
Quarenta e cinco? Nem se ficasse mais um mês aqui, ficaria gorda,
no máximo, chegaria a um peso aceitável.
— Nem cogite uma coisa dessas, Enzo. — Respirei fundo e
decidi entrar no assunto que, pelo jeito, era proibido. — Como está o
Charles?
Enzo baixou a cabeça e a balançou. O gesto foi o bastante
para eu sentir a bílis na garganta.
— Provavelmente, não vai sobreviver. E se acontecer, vai ficar
sem andar. Os ferros moeram os ossos das pernas dele. — Gemi
institivamente e fechei os olhos – jogando a cabeça no travesseiro.
— Bombom...
Virei o rosto em direção a ele e sua expressão me deixou um
pouco assustada.
— O que foi, Enzo?
Ele puxou uma boa quantidade de ar – certamente, tomando
coragem.
— A polícia vai te interrogar, o caminhoneiro, que chamou o
resgaste, alega que vocês estavam brincando na pista.
— Brincando!? Como assim? Ele quase me matou, Enzo.
— Eu sei, bombom, mas...
— Não deveria ter falado disso pra ela, agora — interrompeu,
Enrico, entrando de supetão no quarto. — Estou cuidando disso,
Yasmin, não se preocupe — garantiu e eu só concordei com um
aceno, porque perdi completamente a fala.
— Olha só, cara — prosseguiu meu amigo e foi, novamente,
interrompido.
— Não vou deixar que nada aconteça a ela. Assunto
encerrado — determinou Enrico e Enzo estreitou os olhos – pronto
para comprar briga.
— Enzo... — murmurei e peguei em sua mão, para que me
olhasse. — Eu sei me cuidar sozinha, ok. — Contrariado, ele
meneou a cabeça e saiu do quarto.
A hora da verdade tinha chegado, por mais que estivesse
adorando ter toda à atenção do bonitão, detestava pensar que ele
estivesse fazendo aquilo por caridade. Por algum tipo de culpa,
talvez.
— Senta — exigi, apontando à poltrona que Enzo tinha
liberado.
Enrico ergueu uma sobrancelha, pensou um pouco e decidiu
ceder. Esperei que se acomodasse para iniciar.
— Vou te perguntar mais uma vez: por que está aqui?
— Não está claro?
— Óbvio que não. — Ele ameaçou levantar-se. — Não faça
isso.
Enrico parou e estreitou o olhar.
— O que acha que vou fazer?
— Vir com aquele sorriso que eu nunca tinha visto. Me olhar
como se eu fosse a última mulher da face da terra. Me fazer
carinhos... — suspirei —, não sou essa pessoa que você pensa.
O canto de seu lábio se ergueu e eu franzi o cenho.
— E que pessoa é essa? — perguntou, sem alterar o tom de
voz, com a postura firme. Enquanto que eu disfarçava, ao máximo,
minha tremedeira e suadeira.
Eu soube, na primeira noite que passamos juntos – mesmo
que ele tenha me tratado como uma prostituta –, que seria difícil tirar
o Bennett da minha mente. No entanto, na segunda vez, eu tive
certeza de que seria praticamente impossível. Ele tem um
magnetismo que eu não sei explicar. Sua expressão séria, seu jeito
todo certinho, a fala controladora. Alguma coisa ou, provavelmente, a
junção de todas elas, o deixa irresistível. Mesmo que eu não tivesse
a menor intenção de admitir.
— Fácil, que se ilude com mudanças repentinas de
comportamento. Já deveria saber, pelo pouco tempo que nos
conhecemos, que tenho o controle da minha vida e das minhas
emoções. Só faço o que me é conveniente. Acho que ficou claro, já
que transamos por dinheiro — despejei de uma vez, querendo que
ele desaparecesse dali.
Sua presença começava a me deixar vulnerável. Se tem uma
coisa nessa vida que aprendi, é que não posso demonstrar fraqueza.
Estou sozinha no mundo. Eu achava que tinha o meu pai, mas o
testamento dele deixou claro que, nem ele, confiava em mim. Meu
amigo até tenta me ajudar, mas a verdade é que não consegue lidar
nem com os seus problemas.
Enrico cruzou os braços e colocou uma perna sobre a outra –
numa posição bem “macho alfa” que nunca me convenceu de nada.
Ele, na certa, tinha trabalhado, antes de voltar ali. Sua vestimenta o
denunciou. A roupa despojada foi substituída por um terno de alta
costura.
Analisei cada detalhe, enquanto ele elaborava uma resposta.
Nada nele era desalinhado. A gravata tinha o nó perfeitamente feito
e, se eu medisse, certamente me certificaria de que estava no meio –
nem um centímetro a mais de cada lado. Os sapatos brilhavam e a
manga do paletó subiu um pouco, mostrando as abotoaduras. Quem
usa abotoaduras em pleno século XXI, no dia a dia?
Percebendo meu escrutínio, sorriu.
— Tive uma reunião importante — esclareceu e eu dei de
ombros, desviando o olhar.
— Entendo — comentei, torcendo para que ele se desse por
satisfeito com minha fala e fosse embora.
— Conversei com o médico.
Voltei a olhá-lo, interessada no tema.
— Vou ficar muito tempo aqui?
Ele negou e me analisou por alguns segundos, antes de
continuar.
— Vai te dar alta em breve.
— Uffa! Ainda bem...
— Com uma condição.
— Qualquer uma, desde que eu possa daqui — adiantei-me,
sem a ideia do que seria. Achei que sair dali seria minha libertação
do bonitão.
— Precisa de acompanhamento constante, ele ainda não tem
certeza de como será a reação do seu cérebro... depois da pancada.
— Não tem certeza. — Bufei e emburrei. — Treze dias não foi
o suficiente?
— Você pode escolher, Yasmin.
— Escolho sair, pronto. Eu sei me cuidar, ele não pode me
impedir.
— Pode e vai, inclusive, vou incentivá-lo.
— Sério, o que você quer de mim? Se acha que é culpado de
alguma coisa? Relaxa, meu. Tá tudo certo. Sou bem grandinha.
Tenho que lidar com as consequências das minhas escolhas. Estou
te liberando de toda e qualquer responsabilidade que acha que tem
comigo.
— Então é isso que pensa?
— Tenho certeza. Pensa bem. O que um Bennett, todo
bonitão, que pode ter a mulher que quiser, estaria fazendo aqui?
Com uma mulher toda fodida. Com a vida numa bagunça total?
Ele ficou em pé e se aproximou. Colocou as mãos nos bolsos
da calça e ficamos em uma guerra de olhares, por longos minutos.
Eu não cederia, por mais que meu corpo quisesse. As
consequências seriam avassaladoras. Ainda me recuperava dos
recentes atos impensados que tinha cometido.
— Já pensou que estou aqui pelo simples fato de querer estar
com você?
— Improvável — rebati na lata.
— Você tem o péssimo hábito de julgar as pessoas.
— Nem me conhece e...
— E não sabe ouvir — interrompeu-me —, está usando a
tática de que a melhor defesa é o ataque. Se você julga primeiro,
elimina a possibilidade da pessoa te magoar — prosseguiu, abri a
boca para discordar, ele negou com a cabeça. — Quem convive
comigo, sabe que não costumo agir por dó, muito menos, perco
tempo com algo que não me trará algum benefício.
— Uau! Direto ao ponto. Entendi, está querendo
exclusividade. Achei que já tivesse entendido que não sou prostituta.
— Mas, que porra! — praguejou e, sem que eu pudesse
impedir, inclinou o corpo e me beijou. Um beijo desesperado –
sôfrego. Colocou sua mão em minha nuca e me apertou na sua
boca. Gememos juntos, quando nossas línguas se tocaram. Ele
afastou a boca da minha e senti como se tivesse arrancando um
pedaço de mim. Fechei os olhos e me recompus – sem demonstrar
minha súbita dependência. — Você tem razão — disse ofegante –
encostando a testa na minha. Abri os olhos e o fitei —, quero
exclusividade — acrescentou e eu me contive para não transparecer
minha decepção.
— Não sou...
— Ainda bem que não é prostituta, porque eu teria muito mais
trabalho para explicar. — Sorriu de canto.
— Bennett, está me deixando confusa — admiti de uma vez.
— Quero que seja só minha.
— Isso você já disse, embora eu não seja um objeto.
— Você é durona — constatou e salpicou um beijo nos meus
lábios. — Quero te conhecer, ter você comigo todos os dias, te
proteger.
— E o que isso quer dizer?
— O que quer ouvir, Yasmin?
— Só a verdade. Ainda não compreendi o porquê. Estou
tentando entender qual a vantagem que vai levar em toda essa
trama?
Enrico se afastou e passou as mãos pelos cabelos. Foi até as
janelas, abriu um pouco mais o paletó e colocou as mãos nos
quadris. Fiquei calada, observando seus movimentos. Meu coração
estava disparado e minha boca seca.
Não estava me fazendo de durona, só garantindo que ele não
queria brincar comigo. O que eu sentia estava claro, só queria ter
certeza de que era recíproco.
— Não precisa...
Ele virou e me encarou, fazendo-me calar.
— Na sua cabeça, sou uma pessoa entediada, querendo um
pouco de desafio, não é mesmo?
— Talvez.
— Você disse que não te conheço e tem razão. Assim como,
também, não me conhece. — Se aproximou novamente e sentou-se
na beirada da cama. — Se me conhecesse, saberia que odeio
desafios. Que tenho minha vida toda planejada. Gosto de rotinas,
elas me passam segurança. Estava tudo dentro dos conformes, até
você aparecer.
— Foi só uma carona.
— Bem inusitada, não acha? — Encolhi os ombros. — Sabe
porque quero ficar com você? — Suspirou. — Porque, pela primeira
vez na vida, vejo uma chance de ser feliz. De... sentir algo. — Parou
e baixou o olhar. Mordeu os lábios e voltou a me encarar. — Você me
faz sentir, Yasmin. Não tire essa chance de mim.
Pegou minha mão e a colocou entre as dele. Com o polegar,
começou a fazer movimentos circulares nas costas de uma delas.
Minhas vistas embaçaram e eu não conseguia saber o real motivo.
Tudo parecia tão surreal. Mordi o canto dos lábios e balancei a
cabeça, sem ter ideia do que responder.
— O que sugere? — indaguei – na esperança de ele ter um
plano, já que sua vida era toda projetada.
— Fica na minha casa, enquanto se recupera, é uma
oportunidade de nos conhecermos melhor. — Arregalei os olhos e
engoli em seco.
Mentindo

Gabrielle

— A homicídios já vasculhou cada canto dessa cidade e não


encontrou o cara. Ele não saiu daqui, as saídas estão todas vigiadas.
A não ser que tenha mudado de rosto, alguém deu fim no indivíduo.
Conhecendo os métodos desse departamento, sabendo que os
últimos a ter contato com ele foram vocês dois...
Cesário estava muito sério, relatando os fatos a mim e ao
Bento. Minhas unhas afundavam nas palmas das minhas mãos e o
Bento não tirava os olhos de mim. Por vezes, durante a fala do
capitão, pensei em me entregar. Não deixaria Bento ser prejudicado.
No entanto, se o fizesse, iria direto para a cadeia. Seria muito difícil
provar legítima defesa, afinal, ele estava desarmado. Sem contar que
Bento sumiu com o corpo.
— Por que estão tão interessados em um bandido? Deveriam
mudar o foco, tantas pessoas precisando serem salvas, ouvidas —
explodi – sentindo meu coração me ensurdecer.
Cesário estreitou os olhos e me encarou, por alguns
segundos.
— Está sugerindo que bandidos não merecem justiça,
senhorita?
Dei de ombros.
— Acho que deveriam esperar ele aparecer, só isso. Seu
padrinho, Isaac Bennett, na certa, arrumou um jeito de tirá-lo do país.
Aquele velho consegue tudo nesse país. Bom, pelo menos,
conseguia. — O olhar que Bento me lançou fez-me encolher-se.
Puxei uma boa quantidade de ar e o segurei – por uma “eternidade”.
— Como sabe que Isaac Bennett é o padrinho, detetive?
Conversaram, naquele dia?
Vi o punho do Bento se fechar sobre a mesa e a boca
praguejar baixinho. Pensei rapidamente no que responder.
— Sim, conversamos, na verdade, eu e o sargento. Tentamos
argumentar para ele se entregar, mas... ele...
— Fugiu — completou Bento e respirou fundo. — O cara foi
muito mais rápido do que a gente. Conhecia muito bem o local e se
embrenhou nos becos. O perdemos.
Cesário virou-se para o sargento e ficou o analisando um
tempo.
— Por que só agora mencionaram esse fato? Não consta no
depoimento de vocês que ele fugiu.
Bento chacoalhou a cabeça.
— Dissemos que não conseguimos prendê-lo, nada mais. Não
relatamos os detalhes.
— Pois deveriam, terão que fazer novas declarações. Com
esse fato, podemos procurar por câmeras de segurança do bairro.
Embora, segundo o departamento de homicídios, já verificaram
todas. Inclusive, as câmeras de trânsito da redondeza. Nem sinal
dele.
Respirei mais aliviada. O bairro em questão era muito pobre,
provavelmente, não haveria muito o que verificar, não tinham
câmeras.
O capitão ficou em pé e me olhou sério.
— Terei que comunicar essa nova versão de vocês — advertiu
e ficou parado – sem tirar os olhos de mim. — Soube que as
mulheres fizeram a declaração aqui, acusando seu pai, detetive.
— Ele não é meu pai.
— Ah, sim, o senhor Isaac Bennett. Conselho de amigo, saia
do caso. Só vai prejudicar essas mulheres. Qualquer juiz, verá isso
como vingança. Vão encontrar uma maneira de inocentá-lo.
— Com oito mulheres o acusando e uma promotora à frente?
— Ergui as sobrancelhas.
— As coisas nem sempre saem como esperamos. Estou
tentando ajudar.
— Se quer ajudar, consiga um mandado pra ele vir depor.
Cesário pensou um pouco e respirou fundo, antes de menear
a cabeça.
— Farei o meu melhor — garantiu e se despediu do Bento.
Antes de sair, fixou novamente o olhar no meu. — Vou ocultar o fato
de você dizer que seu pai é o padrinho do cara que desapareceu, só
vai te prejudicar. Só que... precisamos achá-lo, o mais rápido
possível.
Concordei com a cabeça e segurei os lábios nos dentes –
controlando minha vontade de socar o primeiro que me aborrecesse.
Aceitando

Enrico

O silêncio era perturbador, na sala da casa da minha irmã. Meu


cunhado foi fazer um café e Miguel o acompanhou – deixando-me
com as duas malucas.
— Fala pra ela, amor, que fez tudo aquilo porque quer ajudar
a moça — implorou Leandra e eu a olhei – buscando uma maneira
de não a ofender. Afinal, somos amigos há muito tempo.
Enchi o peito de ar e inclinei o corpo – alcançando uma de
suas mãos e a colocando entre as minhas.
— Leandra...
— Por favor... não faz isso comigo — suplicou e uma lágrima
escorreu pelo seu rosto.
Fechei os olhos e umedeci os lábios.
— Não começa com drama, Leandra, deveria ter pensado
nisso, quando bolou esse plano “infalível” de amarrar meu irmão à
força — provocou Manu, abrindo aspas na palavra infalível, e eu
lancei-lhe um olhar de censura.
— Manu, saia daqui — ordenei e ela negou com a cabeça. —
Não estou pedindo.
— Estou na minha casa.
— Manu... — insisti e ela bufou – ficando em pé.
— Espero que tenha se cansado de ser fantoche dessa aí e
daquela família maldita — frisou e saiu marchando.
O momento era complicado. Nem mesmo a reunião mais
difícil que já tinha realizado na empresa me deixou tão tenso. Nunca
achei que teria que fazer aquilo. Já tinha me conformado com a ideia
de dividir minha vida com a Leandra. Pelo menos, já nos
conhecíamos e nos respeitávamos – até aquele dia.
— Estive pensando — iniciou e eu agradeci mentalmente —,
nosso casamento é só de fachada, mesmo. Você pode continuar
vendo a garota, já que gostou tanto dela, assim. Só precisa ser mais
discreto.
Soltei sua mão e franzi o cenho – inconformado. Um riso
nervoso me escapou e minha cabeça balançou – indignado.
— Você está se ouvindo?
Leandra enxugou o rosto e ficou ereta – segura de si.
— Sim, não disse nada fora do nosso acordo, não sei porque
essa cara de espanto.
Entortei os lábios e coloquei os cotovelos nos joelhos –
ficando muito próximo a ela.
— Leandra, preste atenção, porque só vou explicar uma vez
— adverti e me preparei para verbalizar o que, até mesmo eu, tinha
dificuldade de acreditar estar acontecendo. — Quero ficar com a
Yasmin.
— Sim, meu amor, entendi que você curtiu a garota.
Compreensível, ela deve ser bem... quente... especialista... afinal, é
uma prostituta. Não tenho a mesma habilidade e... experiência, que
ela. Sem contar que... sabe... pessoas daquela cor...
— Pare — imperei – com o peito subindo e descendo. — Eu
sei o que está tentando fazer, Leandra. Não vai funcionar. Sabe
muito bem que ela não é prostituta. Não me faça pegar nojo de você,
sendo racista.
Sua mão veio para acariciar meu rosto, eu me afastei –
involuntariamente. Ela puxou rapidamente a mão e me olhou
assustada.
— Enrico, você está estragando tudo, seu pai não vai gostar...
— Foda-se! — vociferei e fiquei em pé – passando as mãos
pelos cabelos. — Entenda, de uma vez por todas, Leandra: acabou.
Leandra ficou em pé e me encarou – com os olhos faiscando.
— Idiota, não vê que aquela garota só quer seu dinheiro?
— É mais inteligente do que isso, Leandra.
Ela deu de ombros e respirou fundo.
— O que mais pode ser? Acabaram de se conhecer.
— Não tenho mais nada pra te dizer — avisei e fui saindo. Ela
segurou meu braço e me fez encará-la.
— O que ela tem de especial?
— Não vai querer ouvir.
— Você está confuso, só não quer admitir. Tudo bem, vai curtir
sua garota, quando perceber que ela só vai te trazer problemas,
estarei aqui, te esperando, amor.
— Isso não vai acontecer.
— Não vou a lugar nenhum. Sou paciente — garantiu
sorridente.
§§§§
Depois de toda a turbulência, Yasmin mantinha-se segura no
hospital – sob os cuidados da melhor equipe médica do estado.
Os dias foram passando e nada de ela se recuperar. Fui
obrigado a refazer minha rotina. Precisava ter certeza de que ela
voltaria para mim. Não aceitava a possibilidade de perdê-la, sem
nem mesmo expor meus sentimentos. Arruinando a chance de
construirmos uma vida juntos.
Eu sei que, antes dela, nunca tinha inserido na equação da
minha vida uma segunda pessoa. Era eu e o meu trabalho. Quem
estivesse a mais, seria parte do jogo ou diversão.
As pessoas do escritório me olhavam com desconfiança,
exceto minha assistente – que tinha o sorriso estampando, cada vez
que eu a apressava para voltar ao hospital.
Miguel e Manu comemoraram minha decisão. Meu amigo deu
andamento à contestação do testamento da Yasmin. Segundo ele, a
pessoa não pode ir colocando qualquer coisa no testamento, sem
consultar as leis do país. Ele faria de tudo para que Yasmin
conseguisse o que era dela por direito.
Minha irmã não via a hora de poder conhecer a Yasmin. Na
cabeça dela, se tornariam melhores amigas. A avisei que Yasmin
não era uma pessoa fácil, ela precisaria conquistar a confiança da
garota. Embora eu suspeitasse que Manu não teria muita dificuldade,
nesse quesito.
— Filho, come alguma coisa, antes de sair — insistiu Cida,
ajeitando um fio de cabelo meu que tinha caído sobre a testa.
— Não estou com fome e preciso voltar, só vim tomar um
banho e trocar de roupa — falei e caminhei em direção à porta da
sala.
— Olhe pra mim. — Pegou no meu queixo e virou meu rosto –
colocando-o entre suas mãos. — Eu sabia que minha Santa ouviria
minhas preces — disse às lágrimas. — Você merece ser feliz, filho.
— Não agradeça, ainda.
— Ela vai se recuperar, Deus é mais.
— Disso eu sei, está nas mãos dos melhores.
— Não seja incrédulo, Enrico. Deus é quem determina se ela
fica ou vai, não seus médicos caros.
— Está me atrasando — murmurei.
— Vai lá e traga a garota pra cá. Já preparei o quarto de
hóspedes — avisou e beijou meu queixo.
— Quarto de hóspedes?
— Ela não vem pra cá?
— Ela vai ficar comigo, na minha suíte — censurei-a e Cida
beliscou de leve minha bochecha.
— Devagar com o andor, filho. Está pulando algumas fases.
Se for com muita sede ao pote, a garota espana.
Balancei a cabeça – concordando. Eu teria que seguir os
conselhos da minha fiel escudeira. Se tratando de Yasmin, Cida
estava mais do que certa.
§§§§
Não achei que meu coração fosse capaz de bater tão
acelerado. No momento em que vi a Yasmin com os olhos abertos,
meu peito expandiu-se. Um alívio, misturado com um sentimento,
que eu não soube distinguir, me dominou. Contive-me, ao máximo,
para não a assustar. Queria que o momento fosse perfeito. Minha
única chance de ser feliz, tinha certeza. Meu corpo reagia de uma
forma inédita na presença dela.
Nossa primeira interação foi rápida e confusa. Yasmin parecia
um pouco área. Acompanhei alguns exames que fizeram nela e,
assim que me afastei, pois não poderia mais entrar, decidi ligar meu
celular.
Mal acendeu o visor, despencaram “milhões de mensagens” e
ligações perdidas. Me sentei na sala de espera e fui verificando as
mais importantes. Márcia me alertou de uma reunião urgente e
tinham quatro ligações que eu teria que retornar, dos meus irmãos.
— Mas, sô, o qui foi qui aconteceu, rapaz? Qué dizê qui cê
também teve qui ficá num hospital de tocaia? Comigo foi assim,
também, olha no qui deu. Laura está quase botando pra fora nossa
potranquinha.
Fui obrigando a sorrir, com o vocabulário engraçado do
Kaíque.
— Como você está, irmão?
— Melhor du qui você, imagino.
— Acredito, mas ela acordou. — Suspirei. — Agora a luta é
outra.
— Num desiste, não, rapaz. Mais fera du qui minha potranca,
duvido qui essa moça aí, seja.
— Não sei não, conheci a Laura e não achei que ela é tão
brava como você fala.
— Come um quilo de sal com ela, e depois cê mi fala. — Sorri
novamente. — Bom, vô deixá cê cuidá da sua moça. Só liguei pra
dizer qui tô aqui, se precisá, pego o jatinho e chego num tiro.
— Obrigado, Kaíque.
Respirei fundo e liguei para o próximo. Aquilo era muito
estranho, quase não interagíamos fora da empresa.
— E aí, cara, como andam as coisas?
— Um pouco melhores, Yasmin acordou.
— Nossa, que bom. Olha só, estou segurando a barra aqui, na
imprensa. Já soltei algumas notas de esclarecimentos. Precisa de
ajuda? Por que não pega uns dias de folga?
— Não posso, Lucca, estou me virando, conseguindo
conciliar. Obrigado, pelo apoio.
— Só não vou até aí, porque tem minha fera pra lidar. A
mulher passou na fila da teimosia umas dez vezes. A barriga está
maior que ela e ninguém a segura em casa. Disse que vai trabalhar
até o último dia.
— Valentina é uma guerreira, agradeça.
— Todos os dias, faço isso. Ganhei na loteria. Enrico,
mudando de assunto, assim que tiver uma posição mais acertada
sobre seu relacionamento, me posicione. Eu sei que não é da conta
das pessoas, mas, para acalmar a mídia, prometi uma nota, a
respeito do assunto.
Fechei os olhos e respirei fundo, odiando ter que fazer aquilo.
Lucca não tinha culpa, não poderia descontar nele.
— Certo, Lucca. Obrigado.
Pensei em fazer a próxima ligação ao Henry, e decidi deixar
por último, o cara, com toda a certeza, estaria bravo. Liguei para o
Yan, antes.
— Não é que o certinho decidiu chutar o pau da barraca.
Gostei de ver você saindo da caixa, Enrico — comemorou Yan, o
mais aventureiro de todos nós. Nunca se importou com nada. Sabia
que vibraria com a exposição da minha vida na mídia.
— Foi por isso que ligou, Yan? Para me lembrar dos meus
deslizes? — Tentei fazer uma voz de indignada, mas com Yan não
funciona. Ele não está muito preocupado com as reações das
pessoas.
— Isso foi um elogio, cara. Se solta, mermão. Vou ficar na
torcida pra essa Yasmin te virar do avesso. A propósito, que gata,
mano! Vê se não vai dar uma de vacilão e perder a mina, hein!
Ter um irmão em cada canto do país têm suas vantagens.
Embora Yan não tenha um lugar fixo, é nascido e criado no Rio de
Janeiro. Seu sotaque chiado é gostoso de ouvir. As gírias são um
pouco misturadas, pois Yan passa, a maior parte do tempo, viajando.
— Vou me lembrar disso, Yan.
— É isso, mermão. Sabe que pode contar comigo, não é
mesmo? Tamo junto. Precisar, é só gritar, que eu chego aí.
— Obrigado, Yan. É importante o apoio de vocês.
— Ah, posso te ensinar uns truques pra conquistar a mina.
— Está tudo sob controle, Yan.
— Se você tá falando, até mais, certinho.
Meu sorriso ficou um tempo no rosto, depois de falar com
meus três irmãos. Só faltava um que, com certeza, não me faria
sorrir. De qualquer maneira, ele era o único que eu não tinha como
fugir. Como CEO da empresa, de uma forma ou de outra, falaria
comigo. Conhecendo Henry, se eu demorasse muito a ligar, ele se
deslocaria de São Paulo à Curitiba, sem titubear.
— Fiquei me perguntando quanto tempo mais demoraria a me
ligar — foi falando, sem nem mesmo me cumprimentar, como de
costume.
— Qual é a urgência? — Me fiz de desentendido.
— Você não está normal, nesses últimos dias, Enrico. Que
porra foi aquela na mídia? Tem noção do quanto expôs o nome da
família? Qual é o seu problema, cara? Quer matar o papai do
coração? Eu nem gosto daquelazinha, mas todos sabemos que faz
parte dos negócios. Me diz que recuperou o juízo e voltou com a
Leandra.
— Henry... — suspirei e me contive, para não mandar meu
irmão à merda. — Respeito sua preocupação com a empresa, e
sabe que detesto exposição.
— Não foi o que pareceu, era melhor ser como o Lucca, que
está com a cara estampada, todos os dias, em toda a parte.
— Não vou sacrificar minha felicidade pela empresa —
comuniquei de uma vez.
— O QUÊ!? — gritou na linha e eu afastei um pouco o fone
dos ouvidos. — De que caralho de felicidade você está falando?
Andou assistindo filmes românticos? Isso aqui não é um conto de
fadas, não, Enrico. É vida real, não existe essa coisa de felicidade na
vida real, cara. Temos que matar um leão por dia. Não aprendeu
nada com o papai? Quantas vezes ele nos avisou que amor é para
os fracos? Nos deixa cegos, Enrico. Acorda, cara! Não vê o que
aconteceu comigo? Se tivesse ouvido o papai, não tinha me fodido!
— Isso é tudo? — desconversei, porque não perderia meu
tempo, tentando explicar ao Henry meus sentimentos. Ele já não era
fácil antes de ser largado pela esposa, depois, ficou insuportável.
— Preciso que se retrate com imprensa e retome os
preparativos para o casamento com a Leandra.
— Não vou fazer isso, Henry. Leandra é caso encerrado.
— Enrico, isso é uma ordem.
— Desde quando você manda na minha vida?
— Desde que você vai foder com a imagem da empresa.
— Foda-se, você e a empresa — explodi e desliguei, antes de
piorar mais a situação.
Cerrei os punhos ao lado do corpo, arrependido de ter ligado.
Deveria ter deixado ele se deslocar. Assim lidaria com ele
pessoalmente.
Verifiquei as horas e me apressei em voltar para casa. Meu
trabalho sempre foi prioridade. Mesmo que estivesse cuidando da
Yasmin, não deixaria de cumprir com meus compromissos. Isso que
o Henry e meu pai tinham que entender.
Yasmin estava, sem saber, modificando a maneira de eu
pensar. Lucca sempre me alertou sobre isso e eu não dei ouvido.
Temos uma vida fora da empresa e não precisamos renunciar nossa
vida pessoal para ser um ótimo profissional. O segredo é aprender a
conciliar.
— É isso, Enrico. Mostre, a única mulher que te fez sentir
algo, que está pronto pra aceitar mudanças. Mesmo que isso te
assuste pra caralho! — incentivei-me e saí do hospital, disposto a
renunciar o que fosse preciso – por ela.
Adaptações

Yasmin

Mais uma vez, estava dentro do carro do bonitão. E, para


completar, tinha aceitado ficar em sua casa. Senti que ele se
esforçava bastante para me convencer da importância de ficarmos
juntos. Mesmo com medo, decidi arriscar, afinal, desafio nunca me
foi um problema.
— Tudo bem? — indagou, percebendo minha inquietação.
Olhei para ele e pensei no que responder, se a proposta era
nos conhecer melhor, teria que ser eu mesma.
— Fico sem saber como me comportar em seu carro, imagine
na sua casa — confessei sem hesitar. Porque, era o que mais me
preocupava.
Enrico sorriu de canto e voltou a prestar à atenção na pista.
— É só uma questão de adaptações — disse, despreocupado.
— Você já procurou ajuda?
Seu olhar foi de surpresa.
— Por que acha que preciso de ajuda?
— Você tem toc, bonitão, ninguém nunca te disse isso?
— Bonitão? — Ergueu as sobrancelhas – com uma expressão
leve. Algo que gostei de ver e me fez relaxar. — Não tenho toc, só
gosto das coisas certas, sou um pouco... — Respirou fundo e fixou o
olhar na pista. — ...detalhista, sistemático, não sei... tenho minhas
manias.
— Metódico é isso que você é. E isso que chama de manias é
transtorno obsessivo-compulsivo.
O semáforo ficou vermelho e ele me encarou – segurando o
lábio inferior nos dentes. Um arrepio cortou minha espinha dorsal.
Enrico parecia tão mais leve, mais... quente. Bem parecido com o
Enrico amante, que conheci na última vez que fizemos sexo.
— Gosto de saber que está prestando atenção em mim. —
Baixei o olhar – desconcertada. Algo difícil de me acontecer. No
entanto, Enrico estava me provocando reações inéditas. — Você
pode me ajudar — continuou e eu olhei novamente – entortando um
pouco o nariz. — Só você tem o poder de me distrair, me tirar da
zona de conforto.
Trouxe sua mão até o meu rosto e o acariciou. Minha boca
entreabriu e meu coração entrou em um ritmo descompassado.
O semáforo abriu e ele se desvencilhou de mim – deixando-
me à beira de um colapso. O restante do caminho foi silencioso.
No momento em que começamos a entrar na garagem do
prédio, toda a tensão voltou. Por mais segura que eu seja, ficar na
casa do Bennett, estava acima de qualquer expectativa. Não tinha
ideia do que me esperava. Só o que eu sabia era que o médico tinha
me liberado porque Enrico garantiu que teria uma pessoa à minha
disposição, em sua casa. Que eu não ficaria nenhum minuto sem
acompanhamento.
Enrico desligou o motor e virou-se para mim – sério. Naquele
momento, queria ter o poder de ler pensamentos.
— Posso ficar no Enzo — adiantei-me, entendendo sua
expressão como um arrependimento.
O canto do lábio se ergueu levemente e a expressão se
suavizou. Minha mente estava tão confusa que em alguns momentos
ela mandava comandos de que eu tinha que tentar e, em outros, que
era maluca de achar que aquilo poderia dar certo.
— Espere que vou te ajudar a descer — avisou – ignorando
minha sugestão.
Ele contornou o carro e abriu a minha porta. Estendi a mão e
ele fez algo que eu jamais imaginaria: inclinou o corpo e passou os
braços pelas minhas pernas – pegando-me no colo. Soltei um
gritinho de susto.
— Não precisa, bonitão — descontraí, agarrando seu
pescoço.
— Eu quero, bonitona — devolveu o elogio com um sorriso
tímido.
— Senhor, precisa de ajuda? — perguntou um senhor, se
aproximando de nós.
— Sim, pegue a bagagem da Yasmin no porta-malas, por
favor.
Durante o tempo que fiquei no hospital, Enzo, deduzindo que
eu ficaria na capital, deu um jeito de ir à minha casa e trazer algumas
roupas. Não eram muitas, mas serviriam. Esperava não ficar muito
tempo.
Entramos no elevador e Enrico continuou comigo no colo. Ele
digitou um código que nos levaria à cobertura. Pensei em dizer que
eu poderia ficar no chão, mas seu cheiro fez-me acomodar melhor.
Enquanto subíamos, admirei seu perfil. Na maior parte do tempo,
Enrico usa óculos, ternos de alta costura e tem a barba muito bem-
feita. Ali, em seu colo, reparei que fazia alguns dias que a barba não
via uma lâmina. A armação dos óculos parecia mais jovial e a roupa
era casual.
Passei o nariz pelo seu pescoço – sem conseguir controlar
meus instintos. Sentia o meio das minhas pernas pegarem fogo. Ele,
que até então, não tinha olhado para mim, me encarou e umedeceu
os lábios – claramente se controlando.
Quando pensei em atacar seus lábios, as portas se abriram e
uma senhora muito simpática nos esperava.
— Oh, que cavalheiro, coloque a moça no sofá, filho — disse,
toda gentil.
Eu nem precisava de mais interação com a senhora, para ter
certeza de que me afeiçoaria a ela.
Enrico me colocou no sofá e eu sorri – um pouco sem graça.
Não me espantei com o tamanho, luxo e organização do lugar. Era
tudo que eu já esperava. Criada na alta sociedade, conheço muito
bem os estilos.
— Cida, essa é a Yasmin.
Fui me levantar e Enrico sentou-se ao meu lado – puxando-
me de volta.
— Estou bem, bonitão — garanti e sorri – alisando sua barba
por fazer. — Gostei disso — murmurei – sem pensar. O sorriso de
canto estava lá de volta – enviando sinapses para todas as partes do
meu corpo.
— Enrico tem razão, querida, é muito cedo para fazer esforço.
— Cida enfatizou e pegou em minha mão – colocando-a entre as
suas e dando um tapinha no dorso de uma delas. — As fotos não
fizeram jus à sua beleza, você é muito mais linda pessoalmente.
Constrangida, encolhi os ombros e abri um sorriso.
— Obrigada, a senhora é que muito gentil.
— Por que acha que não resisti a ela, Cida? — brincou Enrico
e colocou uns fios de cabelos atrás da minha orelha.
— Assim vocês vão inflar meu Ego — entrei na brincadeira.
Cida sentou-se em uma poltrona e Enrico se acomodou
melhor ao meu lado. Colocou minha mão em sua coxa e a dele sobre
a minha. Aquele gesto me provocou uma sensação de segurança.
Foi inevitável meu sorriso.
Se a intenção dele era me deixar à vontade, conseguiu atingir
o objetivo. Com um pouco de interação, já estava melhor do que na
casa da minha madrasta.
— Com licença, senhora — pediu uma moça uniformizada à
Cida. — Posso organizar as roupas da moça no quarto de
hóspedes?
Cida olhou ao Enrico e ele respirou fundo.
— Pode nos dar um minuto, Cida?
— Claro, Yasmin, você é muito bem-vinda, o que precisar, é
só me procurar. — Pegou minha mão e deu outro tapinha – antes de
sair junto com a moça.
Assim que ficamos sozinhos, Enrico virou-se para mim –
colocando uma perna embaixo do corpo, ficou muito sério. O encarei,
buscando entender a mudança de sua expressão.
— O que foi? — adiantei-me.
Ele voltou a pegar a minha mão e ficou alisando o dorso dela
– sem me olhar.
— Você pensou na minha proposta?
— Acho que está claro que sim, afinal...
— Yasmin... — Calei-me. — Você ouviu o que eu te disse no
hospital? — Assenti. — Entendeu que eu quero que fique comigo?
— Sim, não é por isso que estou aqui?
— Não quero que seja temporário.
Franzi o cenho e ri de nervoso.
— Bonitão, a proposta era para nos conhecermos melhor, está
mudando as regras do jogo — falei na língua dele, para ter certeza
de que entenderia.
Depois de um tempo escrutinando meu rosto, ele apertou um
lábio no outro e meneou a cabeça.
— Certo, Yasmin. Vamos fazer do seu jeito. Embora eu ache
que seja uma perda de tempo.
— Ei, Bennett, não estou entendendo onde quer chegar?
Como assim, do meu jeito? E tem outro jeito?
— Sim, do meu.
— Ok, vamos lá, bonitão, qual é o seu jeito?
Ele sorriu de canto e se aproximou um pouco mais. Levou
uma das mãos até minha nuca e encostou nossas testas. A
respiração dele estava alterada. Sentir o hálito lamber minha pele,
acelerou a minha.
— Achei que não teria a chance de te dizer como me sinto —
sussurrou.
— E como é — ciciei e mordi o canto da boca.
— Nunca senti isso, Yasmin. Nem sei dizer o que é. Só sei
que quero estar com você, o tempo todo. Tem alguma coisa aqui... —
Pegou minha mão e colocou em seu peito. O coração parecia querer
saltar para fora. — ...que arde, cada vez que olho pra você. —
Fechou um pouco os olhos e entreabriu os lábios. — Não consigo
controlar isso. — Arrastou minha mão até o meio das suas pernas.
Meu coração veio à boca – assim que senti o quanto seu membro
estava duro.
— Também... sinto desejo, por... você — declarei, com a voz
falhando.
— Não é só desejo, Yasmin.
— O que está tentando me dizer, Enrico?
— Que preciso de você.
Ele mal completou a frase e atacou meus lábios. Virei meu
corpo e o abracei – montando em seu colo. Meus cabelos foram
juntados na nuca e um aperto garantiu que eu não me afastasse. Em
um rompante, sua língua invadiu minha boca e a minha entrou na
brincadeira. Um calor foi subindo pelas minhas pernas – parando no
meio delas. Meu centro começou a pulsar e um gemido escapou do
meu peito. Enrico desceu a boca até a entrada dos meus seios
lambendo-os descontrolado. Com uma das mãos, começou a apertá-
los.
— Enrico... alguém... vai entrar — contestei e o empurrei
contra vontade. Saí de cima dele e me ajeitei no sofá.
Ele se afastou e jogou a cabeça para trás – controlando-se.
— Fica comigo — repetiu.
— Estou aqui.
— Na minha suíte. — Meu corpo endureceu imediatamente.
Uma coisa era nos conhecermos melhor. Outra, era chegar e
já se acomodar em sua suíte. O pouco que o conhecia, sabia que
não funcionaria. Ele mesmo confessou que era cheio de manias.
Dividir um quarto é algo muito íntimo.
— Não tão rápido, bonitão. Um passo de cada vez. Você nem
sabe se vai me aguentar aqui, bagunçando sua vida perfeitinha. Eu
nem sei se vou conseguir lidar com suas manias.
O sorriso tímido surgiu em seus lábios, balançando minhas
estruturas. Não tinha ideia do quanto ia gostar de vê-lo sorrindo,
mesmo que bem pouco.
— Gosto disso em você.
— Disso o quê?
— Você não tem medo, é autêntica, espontânea. Cansei de
lidar com mulheres que só querem me agradar, dizer amém a tudo,
sem personalidade.
— Fico feliz em saber.
— Gostei do bonitão, também — confessou e sorriu
novamente.
Levei a mão ao seu rosto e contornei o lábio inferior com o
polegar.
— Gosto do seu sorriso, deveria praticá-lo mais vezes. — Ele
virou o rosto e mordeu meu dedo. — Aiiii...
— Você é o motivo do meu sorriso.
Nos olhávamos como se estivéssemos nos vendo pela
primeira vez. Daquela distância, conseguia ver as sardas que ele
tinha no nariz. A pinta no lado direito no queixo. A pequena falha na
sobrancelha esquerda. O quanto seu nariz era simétrico. Cada
detalhe do seu rosto, desenhado.
Ele não parecia diferente comigo. Contornava meu rosto com
os dedos e registrava cada parte, minuciosamente.
— Enrico, acho melhor a Yasmin descansar — sugeriu Cida,
entrando na sala – nos tirando do nosso momento. — Decidiram
onde ela vai ficar?
— No quarto de hóspedes — anunciei rapidamente e ela abriu
um largo sorriso.
— Como eu previa. Está tudo arrumando, querida. Vou
preparar algo pra você comer, do que gosta?
— Estou sem fome.
— Ela gosta de tudo, Cida. Assim que estiver pronto, eu
mesmo vou me encarregar de que ela coma — comunicou Enrico,
ficando imediatamente sério.
Não questionei de imediato – para não estragar o momento
que tínhamos acabado de ter.
Saiu pela Culatra

Gabrielle

Ah não, de novo, não! Não acreditei no que via. A porta do distrito


estava repleta de repórteres. Assim que parei meu carro, vieram
todos na minha direção.
— Que porra! Maldita hora que meu pai teve a infelicidade de
me fazer doar sangue pra aquele velho asqueroso! Agora, toda
merda que ele fizer, terei que tolerar esse caralho!
Abri a porta com o corpo e saí do carro – com a mão na frente
do rosto. Eles não me deixavam andar. Fui empurrando e xingando.

— Detetive, qual sua participação no caso do seu pai?


— Você, finalmente, vai vingar o que ele fez com sua mãe?
— Acha que dessa vez, o pegou?
— E o fato de ele estar na cadeira de rodas? Já sabem quem
atirou nele?
— Onde está seu padrasto?
— Quando vai assumir seu lugar nas empresas Bennett?
— Vai continuar trabalhando como detetive?
— Por que está morando com o seu sargento, estão tendo um
caso?

A última pergunta me fez virar e empurrar com o cara força.


— Filho da puta, Bento é como um pai — gritei e o infeliz,
meio cambaleando, continuou com a provocação:
— Quantos pais você tem? — desdenhou e caiu na
gargalhada.
Continuei a subir os degraus até me ver dentro do distrito –
salva. Ângela me lançou um olhar complacente – passando-me
segurança. Mais alguns degraus, estava no meu departamento.
Ignorei os olhares e cochichos e fui direto à copa – precisava urgente
de café.
Só soube o quanto tremia, quando peguei a garrafa térmica.
Quase não consegui colocar o café no copo. Terminava a difícil
tarefa, João Pedro encostou-se à beirada da pia – ao meu lado.
Cruzou os braços e me encarou.
— O que foi?
— Acho que temos um X9 aqui dentro — sussurrou e eu franzi
o cenho.
— Por que acha isso?
— Tem algumas informações saindo na mídia que não
deveriam. Só alguém daqui de dentro para ter informações tão
precisas e rápidas.
Tomei um gole do café e me encostei ao seu lado – pensando
em seus argumentos.
— Tem algum palpite?
— Pior que não. Me recuso a pensar que um dos meus
colegas de trabalho está querendo te prejudicar. Mas não tem outra
explicação. Falei com o Bento a respeito, ele pensa como eu.
Assenti, enquanto bebia o restante do café. Eu e João
tínhamos um acordo velado. Não tocar mais no assunto do que tinha
acontecido no hospital. Achei ótimo, porque não me imagino com
outro parceiro.
— Bom, vamos ficar de olho — disse e joguei o copo
descartável no lixo.
Caminhamos para as nossas mesas e comecei a olhar para
os colegas de trabalho de outra maneira. Qualquer um ali poderia
estar tirando dinheiro por fora. Porque, seguramente, era coisa dos
Bennett.
Mal tinha me sentado, vi o capitão entrar novamente. Só que
dessa vez com um sorriso no rosto.
— Aqui está. — Jogou na minha mesa o mandado.
Quase pulei no pescoço dele e o beijei. Fiquei em pé e
coloquei minha Glock no cinto.
— Vamos lá, então, buscar o velho — avisei e João Pedro
ficou ao meu lado, imediatamente.
— Você não precisa fazer isso, Gabrielle — soou Bento, na
porta da sua sala.
— É claro que preciso, esperei por esse momento a vida toda.
§§§§
Meu coração teimava em bater acelerado. O trajeto até à mansão
do Bennett parecia mais comprido do que o normal. Enquanto Bento
dirigia, minhas pernas chacoalhavam-se e as palmas das mãos
sofriam.
O capitão foi criterioso, não conseguiu um mandado só para
que ele fosse depor, faríamos uma varredura na mansão, embora eu
soubesse que não era ali que ele praticava seus abusos. Porém, só
de poder esfregar na cara dele – que tínhamos conseguido passar
por cima de quem quer que fosse – que o protegia, já era uma vitória
para mim.
Claro que eu tinha consciência de que demoraria para
conseguirmos prendê-lo, talvez, nunca se concretizasse. Mas eu não
desistiria, mesmo que só para atormentar a vida do velho asqueroso.
Bento não estava muito diferente de mim, apertava o volante e
praguejava, cada vez que o tráfego aumentava. Ligou a sirene do
carro e começou a andar como um louco pelas ruas de São Paulo.
Viramos a esquina da rua em questão e avistamos uma quantidade
grande de viaturas à porta.
— O capitão pediu que o pessoal de outro distrito viesse? —
indaguei, sem entender, afinal, saímos todos juntos do distrito e
Cesário não mencionou nada.
— Por que ele faria isso? — Dei de ombros, me esgueirando
para ver melhor.
Bento quase não tinha estacionado o carro, fui descendo. Meu
nível de ansiedade estava nas alturas. Dei um passo e estanquei no
lugar.
— Que porra está acontecendo, aqui? — inquiri e um tremor
passou por todas as partes do meu corpo – como um aviso.
— Tem algo errado — comentou Bento e foi andando em
direção à mansão.
Umedeci os lábios e forcei minhas pernas a obedecerem ao
comando do cérebro. O idiota do Henry guardava a entrada com seu
corpanzão – as mãos no bolso e o olhar fixo em mim. Ao lado, na
cadeira de rodas, estava o velho asqueroso – com um sorriso
vitorioso.
Respirei fundo e peguei o papel que garantiria o começo da
minha vitória. Com poucos passos, estava diante do meu maior
pesadelo. Abri a boca para anunciar o motivo de estarmos ali e fui
impedida, no ato.
— Gabrielle Mantovani, você está presa por tentativa de
assassinato. — Minhas mãos foram puxadas para trás e uma algema
foi colocada em meus punhos. Perdi completamente a condição de
reagir. As vistas embaçaram e o estômago virou ao contrário.
— Eu avisei, detetive. Se quer jogar, que seja como uma
Bennett, senão, só vai perder — sussurrou Henry – jogando seu
hálito quente no meu pescoço.
Claramente avisaram eles que estávamos indo.
O Pedido

Enrico

Andava de um lado para o outro na suíte e não conseguia dormir.


Caminhei até a área da piscina e cheguei a pensar em dar um
mergulho – na tentativa de acalmar meu corpo, que queimava de
desejo.
Pensar que Yasmin estava a poucos metros de distância,
tirava-me a capacidade de racionalizar. Meu controle se esvaiu
completamente.
Encostei no parapeito de vidro e inclinei a cabeça para trás –
sentindo a brisa fria da noite. Fazia uns treze graus, eu só vestia uma
calça fina de pijama. Mesmo assim, meu corpo ardia em chamas.
Sem controle, decidi ir à sala e pegar uma bebida. Esperava
que o álcool me derrubasse. Embora ele costumasse fazer efeito
contrário.
A cobertura estava silenciosa, todos tinham ido para suas
casas – exceto a Cida, que dormia em seu quarto – afastado do meu
e do que Yasmin ocupava. Passei pela porta do quarto da Yasmin e
encostei o ouvido na porta – silêncio.
— Maldição, Enrico. Controle-se — praguejei e continuei o
caminho.
Coloquei duas pedras de gelo no copo e uísque até a metade.
Em uma golada só, tomei todo o liquido âmbar. Agradecei ao fato de
ele descer rasgando meu peito. Eu precisava sentir algo que não
fosse aquele desejo que me consumia. Queria arrancar aquilo de
mim, porque a falta de controle me deixa vulnerável e me assusta.
Fui até a pia e enxaguei o copo – colocando-o para escorrer
no suporte. Voltei para a sala e me sentei – jogando a cabeça no
encosto. Esperei alguns minutos, antes de decidir voltar ao meu
quarto.
Levantei-me bruscamente e entrei pelo corredor. Minhas
pernas se recusaram a continuar, assim que cheguei à porta do
quarto que ela ocupava.
Encostei a testa na porta e respirei fundo – lembrando-me das
palavras da Yasmin. Nenhuma tentativa racional me segurou. Levei a
mão à maçaneta, torcendo para que estivesse trancada –
destravada.
Abri devagar. As luzes estavam apagadas, apenas uma faixa
iluminava o quarto – entrando por uma fresta da cortina aberta.
Sorrateiramente, entrei e fechei a porta atrás de mim. Parei à beirada
da cama – hesitando se deveria continuar.
Vendo-a ali aninhada na cama que não era a minha, mas
estava na minha casa, o que derrubou qualquer convicção de
respeitar seu espaço.
Yasmin vestia um “trapinho” fino, transparente e curto – no
qual era possível conferir que não usava sutiã e a calcinha era
minúscula. Seu corpo esguio, esticado sobre a cama – deixava à
mostra tudo o que eu precisava para me acalmar.
Arfei e cerrei os punhos ao lado do corpo – buscando a razão,
para não ultrapassar os limites. Minha maior tarefa era ganhar a
confiança dela, se deixasse que meus instintos me dominassem,
poderia colocar tudo a perder.
Lentamente, me acomodei ao seu lado, cuidando para não a
acordar. Só precisava sentir sua pele na minha; seu cheiro; seu
gosto. Precisava dela, indiscutivelmente.
Yasmin virou de lado – ficando de costas para mim. Mesmo
que eu tentasse, jamais conseguiria deixar de tocá-la. Aproximei-me
e, cuidadosamente, passei o braço por baixo de sua cabeça. O outro
braço, levei por cima de seu corpo e espalmei sua barriga –
apertando-a a mim.
— Hum... — gemeu e remexeu a bunda – esfregando no meu
pau.
— Porra! — rosnei rouco e ela se contorceu. Esmaguei seu
corpo ao meu – sentindo meu pau pulsar.
Eu queria ir devagar, deixá-la descansar, mas a vontade que
sentia era muito maior. Yasmin ofegou, antes mesmo de eu começar.
Arrastei a alça de sua camisola e encostei os lábios em sua
pele sedosa. Esfreguei minha boca ali e salpiquei alguns beijos.
Afundei meu rosto entre seus cabelos e cheguei até sua nuca –
fungando seu aroma inebriante. Seu cheiro foi o mesmo que jogar
gasolina no fogo. Meus dedos invadiram o tecido fino e alcançaram a
curvatura dos seios volumosos.
— Ei... bonitão... — murmurou e empinou a bunda – ativando
todos os gatilhos perigosos do meu corpo.
Um som áspero escapou do meu peito – parecido com um
rugido de um bicho enjaulado.
Meus movimentos foram aumentando de intensidade. Espremi
o bico de um dos seios entre o polegar e o indicador – provocando
outro gemido nela.
— Caralho — praguejei e virei seu rosto para mim –
empurrando minha boca contra a dela. A sede de sentir seu gosto
era massacrante. Mergulhei a língua na boca molhada – recusando-
me a ir devagar. Era como se fizesse uma eternidade que não a
sentia. Nossas línguas duelavam vorazmente. Não era só eu que
estava no limite.
Em um rápido movimento, virei seu corpo para mim e
arranquei o “trapinho” que vestia. Sentir cada parte de suas curvas,
os seios sendo apertados pelo meu tórax, elevou ao nível máximo a
necessidade de estar dentro dela. De possuí-la; fazê-la só minha.
Percorri seu corpo com minhas mãos em um frenesi
alucinante. Nossas bocas não desgrudaram. A dança erótica de
nossas línguas enviava sinais para o meio das minhas pernas. Ao
chegar na lateral da calcinha, não hesitei em puxar a tira fina –
estourando o tecido frágil.
— Ai, cacete! — reclamou e desceu a mão até o cós da minha
calça de pijama – empurrando-a para baixo. Em movimentos
descontrolados, usando mãos, boca e até os pés, estávamos nus –
nos esfregando, como animais no cio.
— Vou te foder até você não aguentar mais — prometi
entredentes e segurei seus cabelos com força.
No quarto semiescuro, pude ver o sorriso de satisfação em
seus lábios. Nós dois queríamos, sem sombra de dúvida. Só restava
Yasmin entender que, para mim – era sério –, não era apenas sexo
casual e aleatório.
Escorreguei a mão entre nós e ultrapassei as dobras do seu
centro pulsante. Subi e desci o indicador – lambuzando toda a
entrada inchada.
— Puta merda — gemeu e tentou fechar as pernas. Enfiei o
joelho entre elas e as mantive escancaradas – ao meu dispor.
Retirei os dedos de suas dobras ensopadas e os levei até sua
boca.
— Chupa — ordenei e me vi em meio a um caos – ao ver sua
satisfação em sentir o próprio gosto. Sem nojo, sem cerimônia. A
garota foi feita para me satisfazer.
Não dava mais para esperar, empurrei o pau pela entrada
molhada de Yasmin e urrei – ao sentir pele com pele.
Estava totalmente consciente de que não usava preservativo e
não me importava. Tinha certeza de que Yasmin seria só minha e
nada, nem mesmo um pedaço de borracha, me impediria de tê-la por
inteiro.
A entrada estreita para o meu tamanho e, ao mesmo tempo,
esfomeada por mim, jogava para escanteio minha razão. Seu tesão
era evidente, meu pau escorregava sem dificuldade para dentro.
— Enrico — choramingou meu nome – ofegante.
— Quer que eu pare? — provoquei e estoquei forte.
— Continue...
Tirei meu membro de dentro dela e a virei de costas
novamente – enterrando o rosto em seu pescoço e afundando os
dentes ali.
— Bennett... por favor... — implorou e eu tive certeza de que
estávamos na mesma sintonia.
Espalmei sua barriga e fui descendo a mão. Separei suas
pernas e estimulei seu clitóris.
— O que você quer, bonitona? — aticei-a – usando o apelido
que ela criou. Eu precisava ouvir sua voz alterada de desejo me
suplicando prazer. Era uma maneira de ter certeza de que estava no
controle.
— Isso é tortura — lamuriou-se, assim que meus movimentos
aumentaram em seu centro pulsante.
— É só dizer do que precisa. — Minha firmeza era pura
fachada. Os nervos do meu corpo pulavam e meu pau latejava.
— Me come, porra! — esbravejou e eu sorri – com os lábios
grudados em seu ombro.
Empurrei seu corpo contra o meu e soquei meu pau dentro
dela – sem piedade. Soltamos um gemido sôfrego ao mesmo tempo.
O encaixe exato – como peças de um quebra-cabeça. Parei o
movimento, esperando que ela se apertasse contra mim. Nossos
corpos estremeciam em sintonia. A frequência dos corações era
sincronizada.
Afastei os cabelos suados de sua nuca e arrastei o nariz por
toda a extensão. Pressionei meu corpo ao dela – até que estivesse
de bruços. A posição favoreceu o aumento da profundidade da
penetração. Iniciei estocadas intensas – afundando meus dedos nas
laterais do seu quadril e segurando seus cabelos com força.
— Por que não facilita as coisas, Yasmin? — As palavras
saltaram da minha boca.
Os fluídos de sua vagina facilitaram o vai vem do meu
membro teso. O som que nossos corpos faziam era o mais erótico
que eu já tinha ouvido. Misturado com gemidos e grunhidos que
escapavam de nós, deixava-me à beira do abismo.
— Bennett... uau... vai... — implorou – apertando o lençol à
sua frente. Eu sabia que Yasmin não estava diferente de mim.
Vendo-a enlouquecer, deslizei a mão até o meio das suas
pernas e apertei o clitóris.
— Ai, porra... Enrico...
— Shiiii... quando eu quiser... bonitona... primeiro, me
responde. — Estava chegando ao limite. Estocava e parava,
recuperando o fôlego – adiando o prazer iminente.
— O quê?... cacete... — Ofegou e eu sorri, lambuzando meus
dedos com sua excitação. Aumentei o movimento dos dedos onde
suplicava por atenção e Yasmin afundou o rosto no travesseiro –
soltando gemidos guturais.
Tirei a mão do meio de suas pernas e esperei o protesto – que
veio rapidamente.
— Porra, Bennett, só continue... depois...
— Casa comigo — soltei de uma vez. Era algo que eu vinha
pensando nos últimos dias – enquanto esperava que ela se
recuperasse, no hospital.
Seu rosto virou bruscamente em minha direção – com uma
expressão assustada.
— O quanto você bebeu, bonitão? — inquiriu divertida.
— Um copo só não é o bastante pra me derrubar, bonitona —
entrei no jogo dela e estoquei de leve. O cheiro de sexo e suor
tinham invadido o ambiente – aumentando o grau do meu desejo.
— Não é o que parece, Bennett. Uau... — Fechou os olhos e
deixou a cabeça cair de volta no travesseiro. Não parei meus
movimentos, queria que ela entendesse que poderíamos ter aquilo
todos os dias.
— Você ia se casar, não ia?
Seus olhos me encararam novamente.
— Se eu quisesse aquilo... para... Enrico... não vou...
conseguir...
— Sei o que... vai... dizer... porra! — gemi e parei os
movimentos, mais um pouco me despejaria dentro dela. Relaxei o
corpo sobre o dela e beijei o canto de sua boca. — Não é a mesma
coisa — acrescentei.
— Não? O que é diferente?
— Isso aqui... — Estoquei de leve e lambi sua orelha. — Nos
completamos... desejamos... você vai poder ter sua vida... e...
Senti seu corpo endurecer e parei.
— Não complete a frase, Enrico.
— O que acha que vou falar?
— Que poderemos ser livres. Qual o problema de vocês?
— Do que está falando?
— Charles fez a mesma proposta.
Fechei os olhos e apertei a lateral de seu corpo – controlando-
me. Não respondi, apenas prossegui com as estocadas. Precisava,
mais do que nunca, me aliviar. Naquela condição, não conseguiria
pensar com a razão, muito menos argumentar.
Voltei meus dedos ao seu centro e, em sintonia, estocava e
massageava o clitóris pulsante. O tremor de seu corpo anunciou a
chegada do líquido nos meus dedos. Seu grito foi abafado. A segurei
firme e me permiti sentir. Esbravejei em seu ouvido, louco de tesão.
Tirei meu pau rapidamente e jorrei – lambuzando sua bunda
deliciosa.
Fiquei de lado e a trouxe para mais perto – sentindo seu
coração tão acelerado quanto o meu. Afundei o rosto em sua nuca e
salpiquei vários beijos molhados.
Recusei-me a soltá-la. Assim que nossos corpos se
recompusessem, retomaria nossa conversa. Mais uma vez, Yasmin
tinha tirados suas conclusões, julgado, sem nem mesmo me deixar
terminar.
— Yasmin...
— Oi.
— Sou muito egoísta, pra te dividir com qualquer pessoa —
confessei, desfazendo a ideia maluca que tinha se formado na
cabeça dela.
— Por que, então?
Levei a mão até seu seio e fiquei circulando o bico com o
polegar – deixando-os acesos. Os pelos de seu ombro se
arrepiaram.
— Tenho que te explicar de novo?
— Não é suficiente para um casamento, Enrico.
— Pra mim é. Nós íamos casar sem amor. Estamos no lucro.
Ela virou seu corpo e ficou de frente comigo. A pouca luz que
invadia o quarto permitiu que eu visse a confusão em seu olhar.
— Mas... — suspirou —, bonitão, não sei o que quis dizer com
isso.
— Isso! — Apontei para nós dois. — Não tive isso com
ninguém. Não posso dizer que é amor, mas é muito mais do que
qualquer outro sentimento que já tive.
— E porque não podemos esperar, pra ver onde vai dar?
— Menos trabalho para o Miguel.
Não estava agindo por impulso, não é do meu feitio. Mesmo
que eu estivesse tomado de desejo, dificilmente, tomaria uma
decisão como aquela sem pensar nos prós e nos contras. Já tinha
colocado em uma balança e nós dois só tínhamos a ganhar.
Yasmin começou a brincar com os poucos pelos do meu peito,
enquanto ponderava minha sugestão.
— O que vamos dizer à mídia, à sua família?
— Que vamos nos casar — brinquei e ela me olhou feio.
— Está muito engraçadinho, hoje. Sabe do que eu estou
falando.
Respirei fundo e alisei suas costas. Beijei de leve seus lábios
e admirei, por uns segundos, sua beleza.
— Yasmin, nunca me preocupei com o que as pessoas vão
pensar. Confesso que fiz muita coisa em benefício da empresa, só
isso. Não precisamos dar satisfação a ninguém. Podemos fazer da
maneira que achar melhor. Se quiser algo discreto, tudo bem. Uma
festa gigante, tudo bem, embora eu não goste muito da ideia.
— Nem nos conhecemos direito, Enrico.
— Vamos nos conhecer, Yasmin.
— Casados?
— Não é o que o seu pai decidiu no testamento?
— É só por isso?
— Sabe que não, só estou antecipando as coisas, pra facilitar.
Eu sinto que isso aconteceria, em algum momento.
— Você sente... — Sorriu.
— Isso é um sim?
— Talvez.
Epílogo

Yasmin

— Sete, oito... vamos lá, Angélica, está fora da contagem...


comigo, vamos lá.

Quase um ano se passou e minha vida ficou muito melhor do


que eu poderia imaginar. No fim das contas, Enrico tinha razão: só
ganhamos, nos casando. Aliás, ele sempre tem razão. Claro que não
admito isso a ele. Já se acha o cara mais inteligente e sensato da
face da terra, se ouvir isso da minha boca, nunca mais terei
argumento contra ele.
— Pedrinho, preste atenção ao ritmo.
Olhei para a arquibancada e meu sorriso foi inevitável. Como
um cão de guarda, lá estava ele, com seu terno absurdamente caro;
sua gravata extremamente alinhada; sapatos que conseguíamos nos
pentear em seu reflexo; falando ao celular – como sempre.

Uma vez por semana, me desloco cento e trinta quilômetros


para atender minhas crianças. Enrico me apoiou, desde o início. Sua
única exigência é de me acompanhar. No começo, me senti sufocada
com tanta proteção, aos poucos, fui compreendendo que o bonitão
precisa desse controle. Vi como ele ficou mal, quando não atendi a
seus pedidos. Achava que era falta de confiança em mim, no
entanto, entendi que não, é só um controle que ele precisar ter para
se sentir seguro.
Lutamos, por seis meses, contra as acusações do Charles,
que teve a ousadia de dizer que fui eu quem provocou o acidente.
Miguel foi brilhante em minha defesa. Algumas pessoas que nos
viram sair do evento foram cruciais para a sentença do juiz. Charles
achou que, por estar usando pernas mecânicas, comoveria o juiz.
Não fosse a influência do meu marido Bennett, na certa, o filho do
deputado teria ganhado a causa.
— Ei, cunhadinha, vai passar lá em casa, depois? — gritou
Manu, sentando-se ao lado do irmão – que a olhou com uma cara
feia. Enrico fica furioso com a “malocagem” dela.
— Combina com o senhor complicado, aí — gritei de volta e
recebi o mesmo olhar de reprimenda. Mostrei a língua e continuei o
que fazia com minhas crianças.
Minha conexão com a Manu foi instantânea. Ela e a Cida
viraram minhas cúmplices. Conhecem muito bem o Enrico, me
apoiam em tudo que ele acha que é perigoso. Não é uma tarefa fácil,
afinal, para ele, tudo que penso em fazer é perigoso.
Exceto o Enrico amante, que é ousado e faz coisas que eu
nem sabia que existiam, meu marido é sistemático, metódico e
pragmático. Como gosto de dizer: complicado. Por alguns meses,
sofremos, até nos adaptarmos. Precisei entender a cabeça dele e me
adequar às suas manias. Já pedi que procure ajuda profissional, mas
ele acha que é normal. Aprendi a respeitar.
A parte mais difícil é quanto aos meus gostos por esportes
radicais. Enrico quase teve um treco, em um dia que comentei sobre
voltar a praticar motocross. Miguel se divertiu às custas do amigo.
Pensei em insistir, até perceber que ele não brincava. Seguramente,
se eu continuasse com a ideia, o mataria.
— É isso, pessoal, por hoje é só. Semana que vem, quero
vocês mais sincronizados. Estão treinando todos os dias? — Se
entreolhavam e deram de ombros. — Pessoal, se querem entrar na
competição, precisam de dedicação. Não posso estar aqui todos os
dias, mas a Luiza acompanha vocês, não é mesmo, Luiza?
— Eles estão um pouco rebeldes — brincou a outra
professora.
Nos despedimos e caminhei até a arquibancada – com os
olhos fixos no meu Bennett – que me esperava em pé, com as mãos
nos bolsos.
Meu sonho de montar uma escola de dança foi concretizado.
Obviamente, quando mencionei ao Enrico, ele tratou de resolver a
questão. Segundo ele, foi a melhor maneira que encontrou de me
manter na linha. Enquanto ele se dedica no trabalho, faço o mesmo
na escola – que ele fez questão de montar no mesmo prédio da
empresa. Pensei em questionar, como disse: aprendi a respeitar sua
mania de controle.
— Oi, bonitão — cumprimentei e passei os braços pelo seu
pescoço – mordendo seu queixo com a barba rala. A meu pedido,
Enrico passou a usar barba – deixando-o mais atraente.
Ele cruzou os braços na minha cintura e sorriu de canto.
— Está pronta, bonitona?
— Vamos na Manu?
Enrico bufou e balançou a cabeça – indignado.
— Quem consegue se desvencilhar daquela maluquinha? Se
não formos lá, pode ter certeza de que ela pede uma viatura
emprestada com o pai do Miguel e vai atrás da gente – com a sirene
ligada.
Abri um largo sorriso e concordei com a cabeça.
§§§§
Sentada em uma confortável poltrona da sala da Manu,
observava a interação entre eles. Algo muito íntimo e saudável. Até
mesmo Soraya, que no início me causou um certo ciúme, parecia
fazer parte de uma grande família.
Em toda minha vida, cuidei com a maneira de me portar, de
falar, de comer, pois estava sempre diante de pessoas que me
julgavam – o tempo todo. Quando Enrico me acusou de julgar as
pessoas, me fez pensar. Cheguei à conclusão de que era verdade,
porque era assim que me sentia em relação às pessoas: julgada.
A convivência com a irmã e amigos do Enrico, me mostrou
que nem todas as pessoas são arrogantes e preconceituosas.
Principalmente as branquelas, como eu adorava classificá-las.
Acabei me casando com um branquelo, com mais dinheiro do que
estava acostumada a conviver. Tive que engolir minhas falas e
refazer minha forma de pensar.
Não posso dizer que tudo são flores. A família Bennett não me
aceitou, pelo menos, não a maioria. Ainda não tive o prazer, ou o
desprazer, de conhecê-los. Só o meu “amado” sogro que, assim que
soube que iríamos nos casar, me ligou. Com toda sua “simpatia”, me
ofereceu dinheiro para seguir meu caminho longe de seu filho. Eu,
como boa malcriada que sou – segundo o Enzo –, mandei ele se
foder.
Enrico ficou preocupado, mas me apoiou. Me garantiu que os
irmãos – exceto o tal de Henry – são pessoas “normais”. Que quando
eu os conhecer, vou concordar.
— Ela continua lambendo o saco dele? — questionou Manu e
seu irmão torceu o nariz. A fala engraçada da minha cunhada me
tirou dos meus devaneios.
— Nossa, Manu, precisa pensar antes de falar, é muito
deselegante uma moça, linda como você, usar esse vocabulário tão
baixo — repreendeu Enrico e eu sorri de canto, pois recebia o
mesmo tipo de reprimenda, todas as vezes que escapava um
palavrão da minha boca.
O todo certinho Enrico Bennett só gosta de ouvir palavrões da
minha boca, quando está em seu modo amante. Excita ele, mesmo
que nunca vá admitir.
— Ah, gostosão, deixa de ser chato, pra começar, vamos tirar
essa gravata que está apertando seu pescoço. — Manu foi até ele e
começou a arrancar a gravata. Levou a mão aos cabelos e os
bagunçou – deixando-o irresistível.
Ele olhou para mim e ergui uma sobrancelha – passando a
língua pelos lábios. Seu sorriso de canto o denunciou – estava
pensando a mesma coisa que eu. Levantei e fui até ele – cruzando
os braços em sua cintura. Ergui o rosto e, o pegando de surpresa,
dei um chupão em seu pescoço.
— Eita, porra! Manu, cede um quarto pra esses dois —
divertiu-se Miguel – passando por nós, com um copo de uísque na
mão.
— Yasmin... — repreendeu-me baixinho eu sorri – prendendo
o lábio inferior nos dentes.
— De quem vocês estavam falando? — indaguei, pois fui tão
longe em meus pensamentos que nem sabia qual era o assunto.
Ele franziu o cenho e afastou o tronco para trás – me olhando
intrigado.
— Não estava sentada ali? — Apontou com o queixo à
poltrona.
— Desculpa, me distraí.
— Com o quê?
— Deixa pra lá.
— Fala... sabe que tenho meus métodos de descobrir o que
passa nessa cabecinha.
Sorri e meneei a cabeça – desistindo. Enrico é um homem de
negócio. Tenho certeza de que não perde nenhum embate. Seus
argumentos são muito persuasivos.
— Estava refletindo sobre minha vida.
— Refletindo? Hum... e o que concluiu?
— Que sou feliz.
— Isso é bom. Espero ter contribuído pra isso.
— Você foi responsável, sabe disso, mas quer que eu diga,
não é, senhor Bennett? — Ele ergueu o canto dos lábios e deu de
ombros. — Acha que já consegue dizer as três palavrinhas? —
sussurrei para que só ele ouvisse.
— E você, está pronta pra dizer? E digo mais, pra ouvir?
Assim que Enrico fez o estranho pedido de casamento, não
demorou muito, para oficializarmos a união. Foi tudo discreto. Nos
casamos no cartório, com Enzo e seu companheiro Antônio, gerente
do clube, como minhas testemunhas e Miguel e Manu, do Enrico.
Carlos e Soraya, também estavam presentes.
Por causa dos nossos amigos, Cida fez um jantar em casa e
tiramos algumas fotos – só para termos certeza de que tinha sido
real. Essas pessoas tornaram-se minha família. Pessoas que cuidam
de mim. Agora, além do Enzo, tenho várias que me fiscalizam com a
comida.
Enrico e Miguel cuidaram da minha herança. Não precisei
mais ver Adélia e seu insuportável filho.
— Quando o velho Bennett vai aceitar que aquela interesseira
não tem mais chance? — seguiu Manu com o assunto. Enrico olhou
para mim e ergueu uma sobrancelha - entendi de quem falavam.
— A comida está na mesa, venham — chamou Carlos – o
cozinheiro da turma.
Enrico passou o braço pelo meu ombro e foi me levando com
ele. No trajeto, ficamos para trás, ele grudou a boca na minha orelha
e fez meu coração se desmanchar.
— Eu te amo, bonitona. Achei que não precisasse dizer.
Minhas pernas amoleceram de imediato e foi impossível
segurar o sorriso no meu rosto. O abracei forte e ergui o rosto –
alcançando sua boca deliciosa. Mordi o lábio seu inferior e o lambi,
em seguida.
— Eu também te amo, bonitão-Bennett-complicado.
— Eu sempre soube, desde a primeira noite, que você não
ficaria mais sem meu pau — murmurou e beliscou minha bunda.
— Seu tarado, estou falando de amor, não de sexo.
— Um vem acompanhado do outro.
— Nem sempre, bonitão.
— Com você, sim. Nunca foi só sexo. Mesmo que eu tenha
demorado para aceitar.
Me aninhei em seu peito – sentindo-me a pessoa mais sortuda
do mundo. À maneira Enrico Bennett, foi a mais linda declaração de
amor.

Fim

[1] A Maserati é uma tradicional fabricante de automóveis italiana fundada em


Bolonha.

[2] Bentley Motors Limited é uma empresa automobilística britânica de automóveis


de luxo

[3] Ducati Motor Holding é uma fábrica italiana de motocicletas.


[4] Baseado em um fato real, fonte:
https://www.migalhas.com.br/quentes/362711/em-relatos-chocantes-14-mulheres-acusam-
saul-klein-de-crimes-sexuais
Agradecimentos
Todas as vezes que termino um livro, sinto-me vazia, como se
estivessem arrancando um pedaço de mim. Só tem uma coisa que
me anima: saber que meus leitores gostaram.
Amores, escrevo pra vocês. Se não tenho um retorno, seja bom
ou ruim, fico no vácuo.
Estou bem envolvida nessa série, mal terminei esse livro e já vou
engatar no quarto.
Espero, de coração, que vocês gostem e deixem as avaliações
de vocês. É muito importante pra mim.
Só tenho a agradecer às minhas parceiras, que estão sempre me
ajudando com suas opiniões e me e a divulgar. Agradecer, sempre,
ao meu amado esposo, que me apoia e me incentiva. É claro que a
minha mãe que, além de revisar meus livros, é minha maior
apoiadora. Sem contar as ideias que me dá para acrescentar nas
histórias.
É isso, pessoal, antes de ir, quero lembrá-los, mais uma vez,
para deixarem suas avaliações. Isso nos ajuda bastante.

Beijinhos. Anny!
About The Author
Anny Mendes
Paulista – nascida em Santo André – SP, apaixonada pela cidade de
São Paulo.

Incentivada pela mãe, assim que aprendeu a ler passou a viajar nas
histórias. Os livros tornaram-se seu vício.

Pedagoga, enquanto dedicou-se a ensinar, alimentou a esperança de


um dia poder fazer o que sempre sonhou – escrever.

Em agosto de 2016, conseguiu organizar sua vida e deu início ao


seu primeiro livro. A história fluiu livremente, soltando da gaiola o que
ficou preso por anos.

Divide seu tempo em ensinar, ler e escrever. Nas horas vagas


assiste a filmes e séries, além de namorar o esposo, que tanto ama.
Bem-Vindo ao Jogo
Uma série composta por cinco livros que contarão a vida de cada um
dos filhos da família Bennett. Mesmo sendo livros independentes as
histórias estarão interligadas pela presença da investigadora
Gabrielle Mantovani, uma mulher que tem com um objetivo de vida
desmascarar e acabar com o império do poderoso Senhor Isaac
Bennett.

O Caçula
“A vida é um jogo” – é a máxima da “Família Bennett”.
Você entraria despreparado em um jogo? Se jogar fosse tudo o que
conseguisse fazer, o que pensaria? E se, as regras mudassem no
meio do jogo?

Como é estar em uma família que vive em uma disputa de poder? É


nessa família que nosso mocinho, o galante e belo Lucca Bennett,
está. Seu pai é um poderoso CEO da maior empresa alimentícia do
país – com segredos que nem seus próprios filhos tem
conhecimento. Lucca é o caçula, embora esteja acostumado a jogar,
não se sente bem à vontade e recrimina as atitudes do pai.

Valentina é uma garota do interior de São Paulo, que se muda para a


capital em busca de emprego, fugindo do seu passado e dos
julgamentos da sua cidade natal. Uma mulher bem decidida, um
pouco ingênua, bem desconfiada e divertida.

A vida deles se cruza em um acidente de trânsito que,


inacreditavelmente, torna-se divertido.

O Cowboy
Jogar é o que os Bennett fazem de melhor. Kaíque não tem nada
que o caracterize como um Bennett, a não ser o sobrenome. O belo
cowboy, de sotaque arrastado e o vocabulário peculiar do mineiro,
achou que usando seu "talento" conseguiria as terras da Laura, que
herdou uma fazenda em uma cidade do Sul de Minas, entre as das
empresas Bennett, com facilidade – ledo engano.

O homem forte, criado entre os peões, quando recebeu a missão dos


poderosos da família Bennett, não contava que encontraria uma
mulher valente que o desafiaria a jogar: uma potranca – segundo ele.

“— Capaz?! Ninguém me disse que era uma mulher, muito menos


que era linda. Cacete, agora fodeu!”

Laura fez uma promessa ao pai, em seu leito de morte, e vai lutar,
com todas as forças, para cumpri-la. Seu pai a preparou para ser
uma fazendeira forte, que não dependa de homem nem um. Diante
de um monte de dívidas, ela não tem outra escolha, a não ser jogar
com seu adversário: o cowboy de araque – segundo ela.

“— Você me subestima, cowboy de araque. Fui criada no meio do


gado e dos cavalos. Tenho prêmios de laço comprido. Eu me
garanto.”

Isaac Bennett, o fundador das empresas, tem uma vida obscura e a


investigadora Gabrielle, tem como meta de vida – desmascará-lo. Ela
segue os passos da família e quer cumprir seu objetivo, doa a quem
doer. Até a própria pele.

Nesse jogo, quem pode mais? Só lendo para saber.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o mesmo ao


final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
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OS ROMANCES DA AUTORA ANNY MENDES VÊM RECHEADOS
DE MISTÉRIOS E CENAS QUE FAZEM SEU CORAÇÃO
DISPARAR. UMA PITADA DE CENAS APIMENTADAS DEIXAM AS
HISTÓRIAS MAIS ATRAENTES.

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