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Contents

Bem Vindo ao Jogo – 01


Sinopse
Prólogo
Marcação Cerrada
O Caçula
Primeiro Dia
Testemunha
Acidentalmente
Amigas
Motivos
Prioridades
Ladeira A Baixo
Meta de Vida
Difíceis Decisões
Desistindo
Determinação
A Oferta
Vamos Jogar?
A Testemunha
O Jogo
Encaixando-se
No Limite
Impondo-se
Se Adaptando
Agindo
Confundindo
Manipulador
Chegando Perto
Controlando-se
A Tentativa
Infiltrada
Tomando à Frente
O Reencontro
A Fuga
Decepcionado
A Verdade
Sem Escolha
As Cartas
Cedendo
Voltando à Ativa
Quebrando as Barreiras
Apreensiva
O Esquema
Assumindo
O Convite
Epílogo
Continua...
Books By This Author
Bem Vindo ao Jogo – 01
Série Bem Vindo ao Jogo
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de
19/02/1998.
Nenhuma parte desse livro, sem autorização prévia da autora por
escrito, poderá ser reproduzida ou transmitida, seja em quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros.

Esta é uma obra fictícia, qualquer semelhança com pessoas reais


vivas ou mortas é mera coincidência.
Revisão: NEIDE MENDES
Capa: FABIANE MENDES BUENO
Sinopse

“A vida é um jogo” – é a máxima da “Família Bennett”.


Você entraria despreparado em um jogo? Se jogar fosse tudo
o que conseguisse fazer, o que pensaria? E se, as regras mudassem
no meio do jogo?

Bem-vindo ao jogo é uma série na qual se relata a história de


uma família com uma estrutura diferente do tradicional. A disputa
entre eles é a chave de tudo. O amor fraternal e paternal foi
substituído pela corrida ao poder. A “Família Bennett” é dona de uma
das maiores empresas alimentícias do país e administrada pelo
patriarca, Isaac Bennett.

Isaac Bennett tem uma vida obscura e a investigadora


Gabrielle, tem como meta de vida – desmascará-lo. Seu passado
ignorado está diretamente ligado às falcatruas do patriarca.

Lucca, o caçula – dos cinco irmãos, é o mais descolado.


Embora esteja acostumado a jogar, não se sente bem à vontade e
recrimina as atitudes do pai. Sua rotina é relativamente tranquila,
ainda que trabalhe ao lado do irmão mais velho – que pega muito em
seu pé, na sede da empresa da família. Responsável pelo
departamento de marketing, ele é a “cara da empresa”, seu rosto
está sempre exposto nas mídias. Por esse motivo, sabe que a
aproximação da maioria das pessoas é por interesse.

Valentina foi criada em uma fazenda no interior de São Paulo,


onde seus pais moravam. Determinada a mudar seu estilo de vida,
lutou até conseguir uma bolsa de estudos na universidade da cidade
que fica a oitenta quilômetros de onde vive, no curso de marketing.
Sendo seu maior desejo, se formar e trabalhar na empresa Bennett.
No meio do caminho, um incidente quase a leva a perder tudo.
Praticamente fugida, vai para a capital paulista em busca de seu
sonho. Só não esperava ter que lidar, de novo, com seus
julgamentos errôneos.

A “Série Bem-Vindo ao Jogo” será composta por cinco livros,


no qual, cada um, contará a vida de um dos filhos da família Bennett.
Embora sejam livros independentes, estarão interligados pela
presença da investigadora Gabrielle que vai tendo sua história
exposta e completamente desvendada no último.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o


mesmo ao final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
Prólogo

Ao longe, era quase palpável a ira da pessoa que exalava altivez.


Moribundos julgariam a cena como atroz. Miseravelmente, o autor de
tais atos não sentia a consciência pesar. Suas ações tinham
justificativas.
A vítima, se é que tinha alguma, implorava por clemência e
não encontrava uma gota sequer de compaixão em seu oponente.
Sentia na pele o que praticava com exatidão. Sabia que o jogo tinha
chegado ao fim. Que nada do que ele dissesse mudaria o seu
destino cruel.
— Cara, quantas vezes já fez isso? Como pôde cometer um
erro desses? — cobrou o que o tinha em cativo.
— Por favor, eu imploro, não me mate, minha esposa acabou
de ter um bebê! — suplicou, mais uma vez, na esperança de que, em
algum momento, fosse atendido.
Uma risada rouca e sarcástica exacerbou pelo ambiente com
cheiro de mofo. Das paredes escorriam água, apenas um fio de luz
mostrava o rosto diabólico daquele que detinha o poder.
— Com quem pensa que está falando? A quem quer
enganar? Sei muito bem que não tem esposa. Não fosse eu, já teria
morrido há muito tempo. E como me retribuí? Me apunhalando pelas
costas.
— Eu nunca seria capaz de te trair, por que não acredita em
mim? — Antes mesmo de concluir a frase seu corpo foi arremessado
contra a parede cheia de lodo.
Os gemidos de dor transcenderam aos sons insuportáveis de
gotas espatifando-se no chão de concreto. Não houve nada que
amortecesse a colisão da cabeça com a parede úmida, provocando a
dor instantânea.
Vencido e convencido de que nunca sairia vivo dali, afundou o
rosto entre os joelhos e rezou, buscando um ser superior que nunca
acreditou existir. Suplicou pela mulher que acabara de encontrar, que
mesmo que seu agressor duvidasse, tinha recentemente lhe dado
um filho. Pediu ao ser superior que perdoasse todos os seus crimes,
pois foram eles que os sustentaram, por muitos anos.
Um silêncio estranho tomou conta do recinto e a cabeça do
agredido levantou-se, desacreditando ainda estar respirando. E lá
estava ele, imponente, sentado em uma pilha de tijolos velhos,
fumando um cigarro. Seu escrutinar dava arrepios naquele que já
não tinha tanta certeza se queria manter-se vivo. Talvez, uma morte
rápida seria a melhor opção.
A fumaça saiu em círculos e os olhos, cada vez mais,
estreitaram-se. Os pensamentos do, então, agressor era o maior
desejo, naquele momento, de quem estava sendo torturado. Se
houvesse uma maneira de fugir, sem sombra de dúvida, encontraria
forças para correr. Embora suas pernas não estivessem em
condições de tal façanha.
— Podemos fazer um jogo, quem sabe você consegue sua
vida — sugeriu o agressor, com ar de desdém.
Uma risada amarga surgiu no canto dos lábios de quem se
mantinha espremido contra a parede. Ele conhecia muito bem quem
o atacava. Nunca dava um passo em falso. A vida dele era um jogo,
na qual ele sempre ganhava. Que vantagem ele teria em prolongar
seu sofrimento?
— Mete logo uma bala na minha cabeça — rosnou e voltou a
mergulhar o rosto entre as pernas.
Passos, seguidos de respiração ofegante, se aproximavam.
Ele não se intimidaria, era melhor acabar logo com aquilo. Um
chumaço de cabelos foi puxado para cima e o hálito de cigarro
demandou seu rosto. Aqueles dentes brancos e impecáveis, mesmo
sendo de um fumante assíduo, estavam escancarados e o olhar
fumegante demonstraram que, sim, sua hora havia chegado.
— Sabe o quanto gosto de jogos, que graça teria se eu
apenas te matasse? — ironizou e o fez ficar em pé.
Que opção teria aquele que já tinha praticado tal ato por
diversas vezes? Como imaginaria que suas ações seriam cobradas
na mesma moeda?
— Roleta russa, que tal? — sugeriu o agressor, com ar
vitorioso. Abriu o cilindro da 38, que pegou do refém, retirou as balas,
deixando uma, e girou o cilindro, sem tirar o ar vitorioso do rosto.
A sorte estava lançada, apenas um disparo e tudo estaria
acabado.
Marcação Cerrada

— Filha, coma alguma coisa antes de sair — alertou meu pai,


preocupado com as minhas costelas ficando aparentes.
Beijei o topo de sua cabeça e, em seguida, da minha mãe,
sentados em volta da mesa da cozinha simples.
— Estou atrasada paizinho, prometo comer, assim que eu
chegar na delegacia — garanti, somente para o deixar tranquilo,
afinal, sabia que não teria tempo, muito menos, apetite. Como de
costume, fui tropeçando em Oliver, que teima em se enrolar em
minhas pernas todas as manhãs. Agachei-me e o peguei, cheirando
seu pescoço peludo. — Eu também te amo, gorducho. — A resposta
veio em forma de ronronar, na esperança de me convencer a ficar
mais um pouco. No entanto, o deixei no chão e segui para a
garagem.
Entrei no meu carro, relativamente novo, embora de modelo
popular, e abaixei o quebra-sol para passar um batom nude. Apesar
de ter quase cem por cento de homens no meu trabalho, e minha
profissão não ser considerada de uma lady, procuro manter as
aparências.
Morar distante do trabalho na capital paulista é complicado.
Estamos sempre atrasados, infelizmente. O trânsito é de tirar
qualquer pessoa de seu estado normal. Por mais que tente dia-a-dia
me acostumar, sempre que me vejo perdendo tempo em um mar de
carros, tenho vontade de sair e gritar. Na verdade, lembro-me do
filme “Um dia de fúria”. Michael Douglas demonstra bem o que
sentimos.

Estacionei na minha vaga privativa e juntei meus pertences


dentro do carro. Saí com tantas coisas nas mãos que não conseguia
apertar o alarme para trancá-lo.
— Que porcaria — resmunguei e logo senti braços passando
pelo meu corpo, por trás.
— Deixa comigo, dona braveza — brincou meu parceiro e
tirou a chave da minha mão. Esperei o sinal do alarme e sorri,
virando a cabeça para trás.
— Bom dia, madame — prosseguiu João Pedro – salpicando
um beijo na minha bochecha.
— O que seria de mim sem você? — diverti-me e ganhei um
lindo sorriso como agradecimento.
— Nós dois sabemos que você não precisa de ninguém, não
tente ser gentil, porque não é o seu melhor número — ironizou, meu
amigo, e fez uma careta. Empurrei meu quadril contra o dele e saí
andando esperando que ele me seguisse.
O barulho de pessoas já não me incomoda como antes. Entrar
na delegacia em que trabalho é como entrar em um manicômio.
Sorte a minha que, depois de um tempo trabalhando, fui promovida
para a divisão especial que fica no andar de cima.
— Bom dia, gata — cumprimentei a sargento dos policiais
civis. Ela acenou com sua carranca natural.
Chegando à porta de acesso à divisão especial, olhei
novamente ao meu parceiro, pois não teria como pegar o cartão de
liberação.
— Fico me perguntando como faria se eu não estivesse aqui
— reclamou, em tom de brincadeira, enquanto passava o cartão pela
fechadura.
Joguei-lhe um beijo e entrei, subindo os poucos degraus de
acesso ao nosso setor.
— Bom dia, pessoal — cumprimentei no geral e não esperei
respostas. Fui diretamente à minha mesa e despejei todo o conteúdo
de meus braços em cima dela.
Sentei-me e, antes que ligasse o computador, o sargento
Bento surgiu à porta da sua sala, próxima à minha, com a cara nada
amigável e fez um sinal com a cabeça para eu acompanhá-lo.
Não precisei encarar meus colegas de trabalho para saber
que estavam debochando, afinal, segundo eles, sou a preferida do
chefe. Coisa que não concordo, só eu sei o quanto sou cobrada.
Depois de fechar a porta da sala, sentei-me em frente sua
mesa e esperei que ele fizesse o mesmo. Claro que Bento não fez.
Não conheço pessoa mais agitada do que ele.
O sargento foi até a janela e enfiou as mãos nos bolsos da
calça jeans. Ficou se balançando sobre os calcanhares, sem dizer
nada.
— Está me deixando nervosa — declarei e logo seu olhar me
fulminou. Ele assusta a todos, menos a mim. Nossa história vai muito
além do profissional.
Seus olhos estreitaram-se e a distância que nos separava foi
eliminada rapidamente. Rente a mim, Bento ergueu meu rosto pelo
queixo e ficamos nos encarando por longos minutos.
— Está brincando com fogo, Gabrielle — advertiu-me,
apertando meu queixo. Desvencilhei-me de seus dedos e abaixei a
cabeça, negando e sorrindo sem vontade.
— Não vou desistir, você sabe disso. Deveria ser a pessoa
que mais me apoia, não o contrário — cobrei e ergui os olhos
novamente.
— Está te faltando alguma coisa? Seus pais não te dão
carinho necessário? — acusou-me e eu senti o peito doer, só em
pensar o quanto meus pais me amavam.
— Sabe que sim, Bento — afirmei trancando os dentes. —
Colocar em questão o amor dos meus pais por mim é golpe baixo até
pra você — ataquei-o, sem hesitar.
— Você precisa de um choque de realidade, garota —
continuou; ignorando minha indignação.
— Acho que já sou bem grandinha, sem muito bem me cuidar
sozinha — rebati e fiquei em pé.
Seus dedos me empurraram para baixo – obrigando-me a
ficar onde estava. Bufei e revirei os olhos.
— Não se esqueça de que sou seu chefe — vociferou e deu a
volta à mesa – sentando-se em sua cadeira.
— Você me lembra a todo instante — desdenhei.
Bento preferiu aceitar que eu não desistiria de lutar e
conseguir meu objetivo.
— Tem certeza de que é isso mesmo que quer? — insistiu e
eu assenti. Seu peito subiu e desceu com vigor. Ele recostou-se na
cadeira e ficou batendo a caneta no tampo da mesa – sem tirar os
olhos de mim.
Eu não desistiria, nem – muito menos, daria alguns passos
para trás. Estava muito perto de conseguir, mais algumas peças e o
quebra cabeça estaria completo. Não escolhi ser investigadora por
um acaso. Àquela família é minha meta de vida. Quero ver todos
atrás das grades. Bandos de filhos das putas.
— O que tem pra mim? Se me chamou aqui pra me dar
sermão é porque tem merda. Não perderia seu tempo tentando me
convencer, sabendo que não teria sucesso.
Mais alguns minutos de olhares cheios de significados até que
Bento arrastou seu corpo para a ponta da cadeira e apoiou os
cotovelos na mesa – cruzando os dedos das mãos.
— O nosso caso de hoje, pelo que tudo indica... — Respirou
fundo e se calou – encarando-me.
Ergui apenas uma sobrancelha e fiquei em pé, já sabendo
qual seria meu próximo passo.
Abri a porta e, antes de sair, falei sobre os ombros:
— É tudo o que eu preciso — assegurei e segui porta à fora.
Nem me dei ao trabalho de sentar-me, cada vez que eu
chegava mais perto, meus olhos sangravam. Anos a fio, buscando
uma maneira de mostrar a que vim. Provar o quanto sou boa no que
faço.
Infelizmente, embora estejamos no século XXI, algumas
profissões ainda são consideradas para homens. Só os mais –
mentes abertas – que me veem de igual para igual. Precisei de muito
tempo para ser respeitada.
Vasculhei o local e identifiquei a maioria dos meus colegas na
copa, tomando café e contando suas piadinhas sem graça. Quase
todas envolvendo bunda e pau grande.
Com poucos passos, estava dando soquinhos no batente da
porta, chamando à atenção de João Pedro.
— Aí, João, sua mulher está te chamando — provocou Ítalo, o
mais idiotas de todos.
No setor em que trabalho, só tem eu de mulher. Minha sorte é
que, no andar de baixo, onde ficam os civis, têm uma meia dúzia.
Não que mude alguma coisa para mim, afinal, não me importo, nem
um pouco, com a grosseria e idiotice de alguns.
Virei as costas, encaixei minha Glock na cintura e saí – sem
olhar para trás. Eu sabia que João me seguiria.
Em poucos degraus, estava de frente à sargento dos civis,
Maria Ângela, também responsável pela liberação dos carros.
— Mari, preciso das chaves — pedi, e ela, rapidamente, me
entregou – sem pedir explicações.
Ter uma reputação que nos precede, abrem muitas portas.
Enquanto a maioria não pode escolher o carro, nem se apropriar de
algum – tendo que usar o que estiver disponível – Mari sabe de qual
eu gosto e o reserva, todos os dias... para mim.
Pisquei para ela e continuei minha caminhada. Logo senti o
corpo másculo ao meu lado – de um metro e oitenta e cinco. Não sou
considerada uma mulher de estatura baixa, no entanto, perto do
João, sinto-me pequena. Meus, quase um e setenta, não fazem
muita diferença ao lado dele.
Abri a porta do motorista e fui impedida de entrar. Ergui os
olhos – com uma ameaça estampada.
— Sua braveza não me assusta mais — avisou e tomou a
chave da minha mão. — Ontem você quem dirigiu. Hoje sou eu. —
Fui tentar argumentar e ele só ergueu o indicador.
Bufei e me afastei. Algumas batalhas temos que admitir que
não temos chance de ganhar. Contornei o carro e me acomodei no
banco do passageiro – com cara de poucos amigos.
— Pra onde vamos, chefe — questionou, João – com um
sorriso de canto.
— Bennett — respondi sem o olhar – já conhecia o olhar
acusatório.
— É sério isso, Gabi? — rosnou, sem ligar o maldito carro.
— Vai ligar essa merda ou vou ter que pedir outro veículo? —
ataquei-o, sem titubear. Estava cansada de tantas pessoas ditando
regras na minha vida. Logo eu, que sempre me virei sozinha.
— Porra! — praguejou e ligou o carro.

O caminho foi silencioso. Sentia meus nervos reclamarem.


Antes mesmo de chegar àquele lugar, meu corpo se retesava inteiro.
Nada no mundo faria com que eu recuasse. Apenas um passo em
falso e, bingo... Estaria com todos atrás das grades. Sabia que ainda
tinha um longo caminho a percorrer, não estava lidando com peixe
pequeno. No entanto, as informações que eu tinha eram só minhas e
de mais ninguém.
Meu parceiro parou o carro na guarita e abriu o vidro para se
apresentar ao segurança:
— Bom dia, somos investigadores do trigésimo distrito,
estamos aqui para falar com o senhor Bennett — comunicou ao
homem negro e vi o enrugar da testa do senhor.
O Caçula

Acordei e senti um corpo quente em cima de mim. Com dificuldade,


abri os olhos e analisei a linda mulher que não se importava de estar
comigo, apenas por diversão. Um acordo que vinha dando certo.
Tirei alguns fios de cabelos loiros de seus olhos e aguardei
que as duas esmeraldas me encarassem, logo pela manhã. Não fui
agraciado tão facilmente. Sorri e bati com o indicador na ponta de
seu nariz.
— Acorda, bela adormecida — brinquei e um resmungo a
denunciou. Dois anos de “relacionamento” e minha secretária ainda
não tinha se acostumado com meus horários.
Sim, Andressa servia-me de dia e em algumas noites. Meu
irmão não poderia nem sonhar com o nosso arranjado. A demitiria de
imediato e eu teria de aguentá-lo, por um bom tempo, com seus
sermões insuportáveis.
Ser o mais novo de cinco irmãos, às vezes, é irritante. Tratam-
me como se eu precisasse de babá. Mesmo que eu já tenha vinte e
sete anos. A pior parte é todos trabalharem na mesma empresa. Não
que eu esteja reclamando, afinal de contas, sou um Bennett.
Meu pai, aos sessenta e cinco anos, está em pleno vigor,
mantém todos nós na linha. É o CEO da gigantesca empresa que ele
fundou. O único que tem algum poder de barganhar com ele é seu
filho mais velho. Nós, os demais, temos que acatar suas ordens e
agradecer pela fortuna que vamos herdar.
Senhor Isaac Bennett, dono da maior empresa alimentícia do
país. Ninguém tem coragem de desafiá-lo. Ele tem muitos aliados
nas mãos. Principalmente, alguns políticos.
Minha mãe foi uma de suas funcionárias e, assim que soube
que estava grávida, pediu demissão. Ele, o senhor todo poderoso,
investigou e descobriu a minha existência – quando eu tinha dez
anos. A partir daí, nada o fez parar. Sangue para ele é sagrado.
Na época, não entendia muito bem como as coisas
funcionavam na família Bennett. Fiquei muito feliz em saber que meu
pai me queria. Até perceber que, na verdade, passava a maior parte
do tempo com seu motorista. Ele nunca tinha tempo. Era um beijo na
testa e muitos presentes e tudo estava resolvido.
Sebastião tornou-se meu pai de verdade, desde o dia em que
o senhor Bennett me tirou da minha mãe. Até hoje, mesmo que o
senhor, de quase setenta, pudesse se aposentar, prefere ficar ao
meu lado. Segundo ele, preciso de proteção. Nunca questionei,
afinal, como diria a pessoa que mais cuida de mim: “Eu é quem tem
que protegê-lo”.
Ergui meu corpo e encostei-me à cabeceira da cama,
espreguiçando-me. Ao fazer esse movimento, o corpo relaxado caiu
ao meu lado e decidiu abrir os olhos.
— Poxa, Lucca, você sabe ser chato — reclamou e puxou a
coberta, deitando-se em posição fetal e cobrindo a cabeça.
Bufei e terminei de me levantar.
§§§§
Sebastião abriu a porta para eu sair e fiz uma careta. Já tinha,
praticamente, implorado para ele parar com esse hábito. No entanto,
um costume de anos é complicado mudar. Decidi não me preocupar
mais, se ele se sente bem dessa maneira, farei à vontade dele.
Abotoei o blazer, ajeitei os óculos de sol no rosto e adentrei o
prédio da empresa – pela porta giratória. Com minha marca
registrada estampada no rosto – um largo sorriso – caminhei em
direção aos elevadores privativos.
— Bom dia, senhor Lucca — cumprimentou a recepcionista.
— Bom dia, gata, o senhor pode deixar para o meu pai —
brinquei e continuei andando. — Ah... — segui, virando um pouco o
rosto e erguendo o indicador — para o chato do meu irmão também,
sei que ele faz questão.
A garota meneou a cabeça e abriu um tímido sorriso.
Assim que as portas do elevador se abriram, fiz outra careta.
— Bom dia, querido irmão — ironizei e entrei, mantendo uma
distância segura. Não estava com vontade de iniciar meu dia ouvindo
suas ladainhas.
— Bom dia — limitou-se a cumprimentar-me e continuou
olhando o painel luminoso – com os andares passando. Respirei
fundo, pois faltavam muitos andares para o da diretoria.
O prédio da empresa tem vinte e cinco andares e, para o meu
desespero – naquele momento –, toda a diretoria fica no último.
Isaac Bennett faz questão de ostentar: “O que tiver de luxo e
tecnologia de última geração, a empresa Bennett sai na frente”.
Gosto da parte da tecnologia, facilita muito o nosso trabalho. Porém,
um pouco de informalidade cairia bem. Coisa que, dificilmente,
acontece com meu pai.
São tantas regras e compromissos que, às vezes, tenho
vontade de largar tudo e sumir. Não o faço, porque, embora eu seja
bem mais descolado do que meus irmãos, não sou irresponsável.
— Às oito, teremos uma reunião, tente ser pontual — rateou
Henry, assim que as portas do elevador se abriram – sem olhar para
mim. Seu foco era seu Rolex. Fiz um sinal de cruz com os
indicadores às costas dele e entortei o nariz.
Emanuela, a coitada da sua secretária, soltou um sorrisinho
de canto – sem que ele percebesse. Lancei uma piscadela a ela e
segui para a minha sala.
Joguei-me na minha confortável cadeira e liguei meu iMac.
Antes mesmo que eu lesse o primeiro e-mail, Andressa entrou na
sala, com uma saia tão agarrada que eu não tinha a menor ideia de
como ela estava conseguindo andar.
— Bom dia, chefinho — cumprimentou e sorriu – limpando o
canto dos lábios com suas unhas vermelhas.
— Acho que já nos cumprimentamos hoje — resmunguei, sem
erguer os olhos da tela do computador.
— Credo, nem parece que passamos a noite trepando...
— Que tal pegar um megafone, assim todos vão poder ouvir
melhor — recriminei-a – estreitando os olhos e a encarando.
Ela revirou os olhos e fez um gesto de deixa para lá.
— Tenho que repassar seus compromissos — avisou-me e
apontei a cadeira para que sentasse.
Andressa tocou na tela do iPad e começou a ditar cada
detalhe da minha agenda. Recostei-me à cadeira e comecei a me
preparar para o dia – lotado de compromissos. O primeiro do dia
seria o pior: enfrentar a reunião maçante da diretoria. Sorte a minha
que acontecia mensamente. Ter todos Bennett em uma mesma sala
nunca foi uma boa ideia.
A ânsia por poder exala pelos poros das pessoas com sangue
Bennett. Eu, por ser o mais novo, procuro manter-me na linha.
Mesmo sabendo que tenho o mesmo direito que os outros, não jogo
como eles. O jogo deles é perigoso. Um jogo imposto pelo senhor
Isaac Bennett – que tem sede de uma boa disputa.
§§§§
A sala suntuosa de reuniões estava completa com toda a
diretoria. Composta, a maior parte, pelos filhos do CEO. Fui o último
a ocupar meu lugar. Meneei a cabeça – em cumprimento – e
aguardei que iniciasse a tortura mensal.
A empresa Bennett é uma empresa familiar, meu pai nunca
teve a intenção que fosse diferente, contudo, alguns de nós – da
diretoria – acha que chegou o momento de abrir o capital – IPO
(Oferta Pública Inicial) – distribuir as ações na Bolsa de Valores.
Segundo meu pai, não precisamos de dinheiro para sair dividindo a
empresa dele. Já usamos muitos argumentos para lhe provar que
não é só questão de dinheiro. Se dividirmos a empresa, a
possibilidade de crescimento é muito maior. Sem contar que, a
diversidade favorece, não ficaríamos somente nas mãos do senhor
Isaac.
— Emanuela, podemos começar, tudo pronto para fazer a
ata? — inquiriu, Henry – com toda a sua simpatia. Meu irmão mais
velho precisava acertar sua vida, porque seu humor estava cada vez
mais macabro. A secretária assentiu e ele arrumou a gravata –
limpando a garganta: — Senhor Bennett, pode começar, está tudo
pronto — avisou ao pai – sentado ao seu lado.
O velho sorriu – deixando à mostra seu canino de ouro.
Sempre achei um pouco assustador aquele brilho em sua boca. Seu
sorriso nunca foi sincero e o dente de ouro piora.
— Bom dia, família Bennett — cumprimentou o CEO e todos
responderam com um aceno. Nem todos que estavam à mesa era
seu filho, mas sua fala é: “Uma vez dentro da Bennett, passa a fazer
parte da família.”
Os colaboradores podiam achar aquilo lindo e acolhedor, a
mim ele não enganava: pura hipocrisia.
— Como todos sabem, estamos disputando algumas
licitações nas prefeituras das cidades de onde temos uma atuação
maior. Com a troca de governo, com toda a certeza, vamos
conseguir coisas boas. Afinal, a Bennett apoiou os filhos das putas
para estarem no poder. Claro que vou querer o retorno dos meus
investimentos.
Não era novidade, para nenhum de nós, que a empresa fazia
parcerias com pessoas influentes. Ainda estou tentando descobrir
qual das duas coisas mexem mais com a cabeça do ser humano:
dinheiro ou poder. Tudo bem que, na maioria dos casos, um vem
acompanhado do outro.
Ficar descrevendo como a empresa da minha família age,
definitivamente, não faz meu estilo. Honestamente, sei que pode
parecer egoísmo o que vou dizer, mas não estou muito preocupado.
Gosto do que ela me proporciona. Meu departamento é de
marketing, não tenho que ficar me preocupando como são feitas as
trocas de favores. Deixo isso para o Henry, deve ser por isso que ele
é tão estressado. Não me lembro qual foi a última vez que o vi sorrir.
Já tinha bocejado umas quatro vezes, enquanto a discussão
decorria. O olhar que Henry me dirigia era puro fogo. Assim que ele
desviava, eu dava de ombros. Estava mais preocupado com minha
agenda de clientes a serem atendidos. Aquela reunião, para mim,
era perda de tempo. Quando teríamos poder de decidir alguma coisa
diante de Isaac Bennett? Mais uma formalidade inútil do velho.
Mesmo que poucos reconhecessem, eu dirigia um dos
principais departamentos da empresa. Aquele ditado: “A propaganda
é a alma do negócio” – é um dos mais verdadeiros. Pena que nem
todos pensem assim. De qualquer maneira, minha confiança no que
faço sempre me garante bons resultados. Não preciso de confete
para produzir melhor. Tenho formação e determinação suficientes
para fazer o melhor para a empresa.
Primeiro Dia

Pulando com uma perna só, tentando enfiar a calça jeans e, ao


mesmo tempo, escovar os dentes, praguejava todas as palavras de
baixo calão existentes.
— Valen, cadê você? — gritou Mia, da cozinha.
Tirei a escova da boca e, com apenas uma perna vestida,
apareci no corredor.
— Por que não me acordou, Mia? — cobrei-a, com a boca
cheia de espumas.
— Eca, que nojo, vai enxaguar essa nojeira — recriminou-me,
vindo ao meu encontro. — Coloca essa calça logo, garota! — Bateu
na minha bunda e terminou de me vestir – enquanto eu enxaguava a
boca.
Puxei a toalha do suporte e enxuguei meu rosto. Meus peitos
pareciam maiores do que o normal. Não sei se pelo fato de eu ter
perdido alguns quilos nos últimos meses, ou por estar usando um
sutiã surrado. Quem tinha dinheiro para repor lingerie?
— Tem certeza de que vai assim para o primeiro dia de
trabalho? — inquiriu minha companheira de apartamento.
Andei até o quarto e abri a porta do armário, procurando uma
blusa que não estivesse com aparência de ter passado umas mil
vezes pela máquina de lavar roupas. Bufei e me sentei na beirada da
cama, levando as duas mãos ao rosto. Estava quase desistindo,
embora não fosse do meu perfil. No entanto, já não foi fácil conseguir
um estágio na maior empresa alimentícia do país, como chegaria
parecendo uma pedinte, no primeiro dia?
— Aqui, vista esse.
Ergui a cabeça e sorri. Mia tinha um tubinho preto, não curto
demais, nem comprido o bastante para me acharem uma freira. As
mangas japonesas colaboravam com o calor que fazia.
Rapidamente, estava vestida e penteada com um coque meio
bagunçado. Olhei no espelho e estranhei um pouco, afinal,
dificilmente usava vestidos. Meu estilo era mais um jeans e camiseta
surrados.
— Obrigada, amiga — agradeci e a abracei, beijando sua
bochecha. — Agora preciso ir, estou muito atrasada. E o pior, nem
sei se a Penélope vai pegar. Ontem tive que fazê-la pegar no tranco.
— Já disse que te empresto dinheiro pra trocar a bateria.
— Sabe que não posso ficar pegando seu dinheiro, nem sei
se vai dar certo esse estágio.
Mia revirou os olhos e me jogou um beijo.
§§§§
Sorte a minha que morávamos em uma rua íngreme, assim
pude deixar Penélope no jeito de dar um tranco, porque, é claro, que
ela não pegou.
— Desculpa, minha bebê, prometo que assim que receber o
primeiro salário, vou comprar uma bateria novinha — avisei minha
companheira de todas as horas, alisando o volante.
Como de costume, o trânsito estava de doer. Mas, não
deixaria me abater, estava muito feliz com a conquista, para me
estressar com buzinas e fumaças de escapamentos. Teria mesmo é
que me focar em outra coisa, já que seria minha rotina, dali para
frente.
Liguei o som e aumentei o volume o máximo que pude, não
mudou muita coisa, o som do carro era original, ou seja, nada
potente. Nem sabia como ainda conseguia sintonizar as rádios.
Precisava comprar um som melhorzinho para minha bebê se
quisesse me distrair, naquele trânsito, sem perder a compostura.
Penélope é mais velha do que eu, mas está muito bem, diga-
se de passagem. Sempre dei o meu melhor a ela. Nosso amor foi à
primeira vista. Assim que completei dezoito anos, meus pais
conseguiram me presentear com ela. Na verdade, já tínhamos um
caso de amor, antes mesmo de ela ser minha. Fazia anos que a
bichinha estava parada na oficina do nosso vizinho. Seu dono a
deixou para consertar e, logo em seguida, faleceu. Ninguém foi atrás,
o dono da oficina a vendeu para os meus pais.
— Nossa, bebê, não sei como vamos nos acostumar à essa
loucura — continuei dialogando com meu carro. Há tempos que
éramos íntimas. Não tinha nada que a Penélope não soubesse de
mim, até os pensamentos mais estranhos eram compartilhados com
ela.
Quem poderia me julgar? Fazia menos de um mês que estava
morando na capital paulista. Nascida e criada no interior do estado,
em uma cidade que, comparada à capital, era minúscula. Embora, a
maioria das cidades do estado seja minúscula comparada com a
capital. Mesmo que já tivesse criado uma boa relação com minhas
colegas de apartamento, ainda não tinha intimidade o suficiente para
compartilhar meus sentimentos.
Com o celular encaixado no suporte, seguia o GPS com
cuidado, pois, mesmo que já tivesse ido à empresa, durante o
processo seletivo, ainda não tinha certeza do caminho. Até, porque,
tenho certeza de que meu GPS interno foi desligado no meu
nascimento. Se me virarem três vezes no mesmo lugar, quando me
soltarem, não terei a menor ideia de onde estou.
Entrei em uma rua relativamente calma e fiquei mais aliviada.
Cheguei até soltar o ar, sem nem perceber o quanto o segurava.
Verifiquei as horas e me deu um certo pânico, pois, seguramente não
conseguiria chegar no horário. Acelerei, aproveitando que naquele
trecho podia aumentar a velocidade.
— Não entendo porque os paulistas ainda querem carros
potentes, Penélope, já que não conseguimos passar de cinquenta
quilômetros por hora — desabafei e engatei a quarta e última marcha
do meu carro. Coisa que eu não tinha feito, desde o momento que
tinha saído de casa.
Estreitei os olhos em direção ao celular, tentando enxergar a
previsão de chegada que o aplicativo estava marcando. Ainda tinha
esperança de não perder o horário, logo no primeiro dia.
— Wow! Que merd... — Screeech! iééé! Crash! Praaa!
Bati com a testa no volante e senti uma dor horrorosa no
pescoço.
— Cacete! — praguejei e levei a mão à testa. — Merda... — O
vermelho nos meus dedos sinalizou a situação que deveria estar
meu rosto.
Virei o espelho retrovisor em minha direção e enruguei o nariz,
assim que vi o estrago. Tinha um talho na minha testa, nada bonito.
— Era tudo o que eu precisava, pra terminar de perder o
estágio que lutei tanto pra conseguir — resmunguei.
Toc... toc... toc...
Olhei para a janela e quase me engasguei. Puta que pariu!
Quem é esse deus? Na mesma hora que pensei, analisei direito e
caí na real – era o dono do BMW que tinha colidido comigo. Mesmo
que fosse um deus, sua feição não era nada agradável. Passei as
costas da mão na testa e me aprumei. Não me rebaixaria, tinha
certeza de que havia prestado atenção ao trânsito, se alguém fosse
culpado do acidente com toda a certeza não era eu.
Abri a porta do carro e ela simplesmente não me obedeceu.
— Ei, Penélope, ajuda aí. Não vai me fazer passar vergonha
bem agora, né! — pedi a ela, para que não piorasse a situação. Pela
freada, o tranco e o barulho, temia sair e ver o estrago na minha
bebê. Bom, de qualquer maneira, o culpado teria que arcar com os
prejuízos.
Depois de dar um empurrão na porta, consegui sair do carro –
meio cambaleante. Dei uma rápida olhada em volta e engoli em
seco, a fila de carros que tinha se formado era gigantesca. As
buzinas não demoraram a começarem.
Voltei minha atenção ao meu carro e, automaticamente, as
lágrimas inundaram meu rosto. Fiquei de joelhos e entendi a
dificuldade de ter saído, a minha porta tinha um enorme amassado.
— Olha o que você fez com a Penélope! — gritei entre
lágrimas, erguendo meu rosto ao agressor de carros.
O deus franziu o cenho e sorriu de canto, um sorriso
claramente sarcástico. Passou as mãos pelos cabelos castanhos e
balançou a cabeça – inconformado.
— É sério isso? — perguntou e eu, mais uma vez, engoli em
seco.
Penélope, você pegou pesado, hoje. Não consigo me
concentrar no real problema. Que voz é essa, céus!
O agressor de carros inocentes, além de maravilhosamente
lindo, era rico, com toda a certeza, afinal, quem anda com um carro
daqueles? E a roupa? Tudo bem que não conheço muito de moda,
mas não precisa ser entendedor para saber quando um artigo custou
caro. Tudo nele exalava dinheiro.
Fiquei em pé e funguei, controlando as lágrimas:
— Por sua causa vou perder meu emprego e pior, nem sei
como vou fazer sem minha Penélope. Oh, meu amor, mamãe não
teve culpa, foi esse agressor de carros inocentes. Mas, não se
preocupe, ele vai ter que deixar você novinha em folha! — garanti –
passando a mão na parte amassada.
— Garota, acho que você precisa de ajuda, não pode ser
normal uma pessoa agir como você por causa de uma lata velha.
Nem fez nada no seu fusca. Dá uma olhada no estrago do meu
carro, não sai do lugar. Não sei como não quebrou o pescoço, com
essa lata dura.
— Lata velha é você, seu imbecil. Tirou carta por
correspondência? Não sabe o que é preferencial? Olha só, isso é um
balão, eu tenho preferência, não você — acusei-o, indo em sua
direção – com o punho fechado. Quem ele pensava que era, para
ofender Penélope daquela maneira? — Sua gargalhada me fez
recuar uns passos. — Não estou vendo graça nenhuma — segui,
começando a odiá-lo, mesmo que seu perfume fosse muito bom...
bom mesmo!
— Primeiro, de que planeta você veio? O que é um balão?
Isso é uma rotatória, e se você fosse uma motorista de verdade,
saberia o significado daquela placa — disse e apontou à placa.
Ergui o rosto e gelei. Como assim? A preferência não era
minha? Voltei meu olhar a ele e seu ar era de vitória. Cruzei os
braços e empinei o queixo defendendo-me:
— De onde eu vim, a preferencial é minha. — Realmente era.
— De Marte? País das Maravilhas? Ou... deixa-me ver,
estrada com tijolos dourados? — ironizou e meu choro veio com
força total.
Naquele instante, caiu minha ficha, nada do que eu dissesse,
me salvaria daquela situação. A placa estava diante do meu nariz.
Onde eu conseguiria dinheiro para arrumar a Penélope, e pior, o
carro dele? O dia que prometia ser o melhor da minha vida, o
recomeço de tudo, tornara-se o pior.
Sentei-me no chão e afundei o rosto entre as mãos, deixando
as lágrimas seguirem seu curso, sem nenhum impedimento.
Testemunha

A sala luxuosa, cercada de seguranças, era nova para mim. Já tinha


estado na empresa, mais de uma vez, mas ali, naquela mansão,
nunca. Estava curiosa para saber quem morava lá, aparentemente,
ninguém. O espaço parecia um local de eventos sociais.
Conhecia a vida do CEO da Bennett como a palma da minha
mão, confesso que fiquei decepcionada comigo mesma, quando o
segurança nos direcionou àquele lugar. Como nunca tive
conhecimento? Que displicência a minha!
Os passos pesados na escadaria, do meio da sala,
anunciaram que o nosso alvo se aproximava. Tanto eu, quanto João,
nos viramos em direção ao som. Não demorou para o rosto com
sorriso sarcástico apontasse no último degrau.
— Ora, que grata surpresa! — exclamou a razão da minha
insônia. Apenas o som de seus passos já havia embrulhado meu
estômago, vê-lo diante de mim, estendendo aquela mão asquerosa,
quase me fez correr... quase.
João Pedro é meu parceiro há três anos, não precisamos de
palavras para saber o que cada um está pensando e sentindo.
Apenas um olhar e ele tomou à frente.
— Boa tarde, senhor Bennett, precisamos fazer algumas
perguntas — iniciou João, à minha frente. Apesar de não ter gostado
muito, afinal, não era o momento de demonstrar fraqueza, soltei um
pouco o ar que estava prendendo – aliviada.
Estar diante dele mexia demais comigo, teria que conversar
com Melanie – minha terapeuta. Desviava o pensamento de que
tinha sido em vão todo o tempo de conversa franca. Precisava
acreditar que aquele pesadelo acabaria. Que todos aqueles anos de
sofrimento seriam recompensados. Eu sou forte, não vou deixar que,
mais uma vez, ele leve a melhor.
Isaac Bennett, embora tivesse sessenta e cinco anos, parecia
um playboy. Dava para entender o porquê de seus filhos serem tão
bonitos. Toda semana, era um que estava na capa de alguma
revista. Claro que tinha o rosto da empresa, por incrível que pareça –
o caçula. Aquele, se pudesse, se comeria. Nem precisava visitar sua
cobertura para ter certeza de que deveria ser cercada de espelhos.
Narciso perderia feio para ele.
Bennett ergueu a mão e estralou os dedos, imediatamente,
uma senhora estava ao seu lado.
— Pois não, senhor!
— Traga água, suco e... — Virou para nós. — Querem beber
algo mais forte?
Negamos em conjunto, erguendo a mão – agradecendo à
senhora.
— Vamos nos sentar, não gosto de deixar minhas visitas
desconfortáveis — convidou-nos e caminhou em direção a outro
cômodo. Não tivemos chance de recusar, o seguimos.
A sala que entramos era tão, ou maior, do que a anterior. No
entanto, continuava parecendo um lugar de eventos e não uma
residência.
— Quem mora aqui? — escapou dos meus lábios sem que eu
pudesse controlar. João me lançou um olhar de aviso e eu respirei
fundo – sorrindo sem vontade.
— Meu lugar especial, minha cara. Aqui a diversão é
garantida.
— Posso imaginar — murmurei e entortei o nariz.
O homem asqueroso chegou bem próximo de mim e esticou a
mão para me tocar. Dei um pulo para trás e fechei a cara.
— Uau! Gatinha arisca, essas é que são as boas — externou
– sem tirar o sorriso irônico dos lábios.
Se é que era possível, meu estômago embrulhou mais ainda.
Temia que, a qualquer momento, colocasse os bofes para fora.
Nos acomodamos em confortáveis poltronas de veludo
vermelho. E, logo em seguida, a senhora voltou com uma bandeja
repleta de opções. Rapidamente, aceitei água e, praticamente, engoli
tudo na primeira golada. Tinha a impressão de que alguém tivesse
jogado um quilo de areia na minha boca.
— Bom, sou todo ouvido. — Se dispôs o senhor, tão arrogante
quanto os filhos.
João ameaçou falar e eu o impedi – colocando a mão em seu
joelho.
Limpei a garganta, cheguei com o corpo na beirada da
poltrona e fiz o que sempre planejei.
— Temos uma testemunha que alega que o senhor alicia
mulheres — cuspi de uma vez e sorri satisfeita. Quanto tempo
aguardei por soltar aquela frase? Era como se eu estivesse
atravessando o primeiro obstáculo de uma maratona.
Bennett jogou a cabeça para trás e gargalhou – batendo
palmas.
Fechei os olhos e ameacei ficar em pé. João me segurou no
lugar e me lançou aquele olhar de aviso, novamente. Jamais eu
poderia deixar minhas emoções atrapalharem uma investigação de
tanto tempo.
— Já sei o que aconteceu, foi o meu antigo motorista —
argumentou e meneou a cabeça —, devia ter dado o que ele queria,
tenho esse problema, trato todos como da família, quando me pedem
algo que não dou, querem se vingar.
O pior é que ele acertou. Era o que tínhamos. Depois de
quase ser morto, escapou de uma roleta russa, o antigo motorista
nos procurou e estava sob proteção policial. Passou todos os
detalhes do esquema da empresa Bennett e da vida pessoal do
CEO. Um esquema podre, que já tínhamos conhecimento, só não,
dos detalhes.
— Temos que averiguar a acusação — continuei, sem me
intimidar.
— Sem problema, minha cara. Desde que tenha um mandado,
vocês poderão revistar tudo — desdenhou e sorriu – me encarando.
— O senhor entende que dificultando pode estar se
complicando?
— Gosto da minha privacidade, garota. Tenho certeza que
vocês tenham alguma prova, para entrar na minha casa com
acusações tão sérias. — Dessa vez sua voz engrossou e o corpo
retesou. Não sei o que me assustava mais, o sarcasmo ou a
ferocidade dele. Para falar a verdade, ele me assombrava de
qualquer maneira – há anos.
As palavras dele vieram como um balde de água fria. Senti
meu corpo gelar. O rosto do sargento veio na minha mente. Ele me
avisou, disse que antes de começar, eu tinha que ter provas. Fui
teimosa, apenas com uma testemunha. O fato de o motorista estar
disposto a depor me deu tanta esperança que quis me arriscar.
Esquecendo-me do poder do homem que enfrentaria – a qualquer
custo.
Acidentalmente

Fiquei sem saber o que fazer, diante do quadro que tinha à minha
frente. Não achei que, logo pela manhã, em plena terça-feira, teria
que lidar com uma bizarrice daquelas.
Pensei que estivesse tendo um pesadelo, quando aquela lata
rosa – com cílios – entrou na minha frente e, mesmo que eu tenha
afundado o pé no freio, ainda acabou com a frente do meu
conversível. O fato de o airbag abrir, demonstrou o quanto foi forte a
pancada. Não sei como a garota não quebrou o pescoço.
Eu sabia que a lata do fusca era dura, mas não tinha ideia do
quanto. Enquanto a frente do meu carro afundou, a garota estava
sentada no chão aos prantos por causa de um pequeno amassado
na porta. O pior, o carro da maluca tem nome. A lata velha deve ter
mais de vinte e cinco anos. Acho que nem ela tem essa idade.
Respirei fundo e me agachei, punindo-me mentalmente por ter
dado folga ao Sebastião. Podia ouvi-lo: “Eu digo que o senhor
precisa de proteção.” Só podia ser carma.
— Garota — chamei com cuidado, pertinho de seu rosto. O
trânsito já tinha tomado conta de tudo. Ela não podia simplesmente
ficar sentada chorando, tínhamos que tomar uma providência.
No momento em que ela ergueu o rosto cheio de lágrimas,
com sangue grudado na testa – um calafrio passou pela minha
espinha –, como um presságio. Não saberia explicar. Foi como se
alguém estivesse me avisando de algo. Meneei a cabeça –
desviando qualquer que fosse o sentimento estranho que tinha
passado por mim.
— Levante-se, venha, vou te ajudar — falei calmamente,
estendendo a mão para que ela pegasse.
Outro calafrio, só que em ondas bem maiores, assim que seus
dedos tocaram os meus. Meu instinto foi puxar a mão – assustando-
a.
— O que foi isso? — A pergunta veio dela, o que me deixou
completamente aturdido.
— Você também sentiu? — murmurei e passei as mãos pelo
cabelo, achando tudo aquilo muito bizarro.
— Tira essa lata velha do caminho, porra! — gritou um
estressado. Foi o gatilho para a garota ficar em pé, rapidamente.
Ela enxugou as lágrimas e me olhou, esperando que eu
dissesse o que fazer.
— Vamos tirá-los do meio da rua, o seu eu sei que sai, agora
o meu... — Olhei para o meu conversível e quase me deixei levar em
lágrimas como a garota.
— Não vamos chamar a polícia?
Neguei e abri a porta para que ela entrasse.
— Não tem vítima, a não ser que... — Apontei para o seu
rosto, onde alguns fios de cabelos grudaram no sangue seco.
— Ela passou a mão pelo machucado e suspirou. Mas...
— Não se preocupe, não vai precisar pagar o meu carro. Você
quer que eu chame uma ambulância? — ofereci e sua recusa foi
imediata. Assenti e caminhei até o meu carro – na esperança de
conseguir encostá-lo.
Após um tempo, com os dois carros devidamente
estacionados, acionei o seguro do meu e fui até a garota. A mesma
continuava com lágrimas nos olhos e de cabeça baixa – encostada
em seu fusca rosa.
— Você pode ir, acho que não afetou muito seu carro —
comuniquei, tentando confortá-la.
Ela ergueu os olhos e foi aí que consegui ver a cor deles. Era
um pouco amarelo, misturado com verde, e tinha uma transparência,
permitindo que víssemos o seu interior, bem... felinos. Não teria outra
definição para o que tinha diante de mim.
— Obrigada — balbuciou e forçou um sorriso.
Assenti e sorri também.
Atrás do volante, a garota abriu o vidro e me encarou. Franzi o
cenho, sem saber como agir. A verdade é que queria sentir raiva da
falta de atenção dela. Por estar me fazendo perder uma reunião
importante com um cliente, no entanto, minha vontade era de colocá-
la no colo e consolá-la. Precisei apertar os punhos para não tirar os
cabelos grudados em seu machucado e saber o tamanho do estrago.
Embora ela fosse a culpada pelo acidente, queria dizer que eu
arcaria com os prejuízos do seu carro. Mas, honestamente, eu não
conseguia nem me mexer. A beleza dela era desconcertante. Toda
minha ousadia me deixou na mão.
— Ei — chamou-me e obriguei meus pés a se aproximarem.
— Posso te levar, quer uma carona?
Escrutinei o carro minúsculo e me imaginei apertado ali
dentro. A primeira reação foi negar, contudo... não tinha reparado o
quanto o vestido dela era curto. Ao sentar-se, subiu, o bastante para
deixar boa parte de suas coxas à mostra. Bom... no fim das contas,
não seria uma má ideia ficar apertado... com ela. Seguramente,
minhas pernas compridas iriam, o caminho todo, roçar naquelas
coxas. Isso foi um ótimo motivo para eu não recusar.
— Só um minuto — pedi, erguendo o indicador.
Liguei para o Sebastião.
— O trânsito está pesado, patrãozinho — justificou-se de
prontidão.
— Não precisa mais vir, Sebastião. Arrumei uma carona —
avisei-o e o ouvi limpar a garganta. — Volte pra sua folga, não se
preocupe — tranquilizei-o, sabendo que não seria fácil o convencer
de que estava tudo bem.
— Por que ouço o senhor? Agora, está aí, sozinho —
resmungou e eu sorri – involuntariamente.
— Sebastião, já tenho vinte e sete anos, sabe que posso me
virar — garanti e ouvi um grunhido de confirmação. — Até amanhã,
vá se divertir um pouco.
Virei de volta à garota e encontrei um rosto diferente do
anterior – divertido.
Com muito trabalho, me encaixei dentro da lata velha. Assim
que ela começou a andar, me arrependi. Como alguém conseguia
conviver com aquilo? Não dava para saber o que era pior: o
tamanho, o barulho, o tanto que chacoalhava, ou o fato de estar calor
e o carro, obviamente, não ter ar condicionado.
Já tinha tentado de tudo com minhas pernas, como eu previa,
estava praticamente em cima da garota. Embora estivesse gostando
da sensação de sentir o calor de sua pele, mesmo que tivesse o
tecido da calça entre nossas peles, começava a temer pela minha
vida. A garota era uma péssima motorista.
— Quer dizer que tem babá? — provocou e me olhou de
esguelha – com um sorriso brincalhão.
— Olha só, eu adoraria te mostrar quem tem babá e tal, mas,
não estou nada confortável — admiti – segurando-me com força no
puta-que-pariu.
— Sinto muito se eu não posso te proporcionar o conforto que
você está acostumado — atacou-me, sem hesitar.
— Antes só o desconforto que estivesse me deixando
apreensível — retruquei e freei, automaticamente, quando a lata
velha lambeu a traseira de uma camionete. Cheguei a segurar a
respiração. Os nós dos meus dedos estavam esbranquiçados, de
tanto que apertava o suporte à minha frente.
— Não entendi — refutou e me olhou, enquanto dirigia, como
se estivesse no país das maravilhas. Com toda a certeza, a garota
não era da capital paulista. Nem sabia quanto tempo duraria ali.
Rapidamente, seria engolida. Deveria ser modelo, ou algo do tipo.
— Olha só, melhor você não conversar comigo, enquanto
dirige — alertei, tentando não ser grosseiro.
Ela fez uma cara engraçada, como se eu fosse um alienígena,
e continuou, como se fosse a melhor motorista da face da terra. De
uma coisa eu tinha certeza, independentemente do que a garota
fazia, era confiante. Mesmo que tivesse se desfeito em lágrimas, em
nenhum momento, recuou.
— Qual é o seu nome? — perguntei, assim que paramos em
um semáforo.
— Agora posso falar?
Dei de ombros e sorri de canto. Ousadia, outra característica
que me atraí.
— Valentina — respondeu, sem me olhar.
— Prazer, Valentina, sou o Lucca. — Soltei a mão da borracha
que me deixava mais seguro, e estendi a mão a ela.
Ela pegou e assentiu, sem dizer uma palavra. O semáforo
liberou e, durante alguns minutos, um silêncio incômodo dominou o
ambiente.
— Quer que eu te deixe em uma estação de metrô?
Enruguei a testa e neguei.
— O que te faz pensar que ando de metrô?
— Sei lá, as pessoas dizem que andar de metrô é moderno,
você me parece ser bem antenado — argumentou e eu sorri
abertamente.
— Você, com toda a certeza, não é da capital — afirmei e
continuei sorrindo. — Se puder me deixar na Paulista, minha
empresa fica lá.
— O que te faz pensar que não sou da capital? — A pergunta
saiu em um tom divertido. Seria estranho dizer que estava gostando
daquilo? E pior, que eu poderia me acostumar facilmente com a
companhia dela?
Ergui as sobrancelhas e espremi os lábios, segurando uma
gargalhada. Não queria ofendê-la, ela, apesar de não conseguir
esconder que era do interior, mostrava-se determinada a me provar
que era capaz de qualquer coisa.
Antes que eu respondesse, o trânsito andou e logo avistei o
prédio da empresa.
— Ufa, acho que sobrevivi — desabafei e soltei o corpo, que,
até então, estava tenso. — Ali. — Apontei o prédio e seu rosto
enrubesceu completamente. Achei estranho, e deduzi ser vergonha
por comparar à sua condição financeira.
— Não tem onde estacionar, acho que terei que parar um
pouco longe.
— Entre naquela garagem.
— Mas...
— Faça o que estou dizendo.
Ela concordou e embicou o carro. Joguei o corpo em cima
dela para que o segurança pudesse me reconhecer. A pior e a
melhor decisão do dia. Nossos corpos estremeceram
simultaneamente. Recuei e limpei a garganta, sem saber como
esconder as reações do meu corpo.
— Senhor Bennett, está tudo bem? — perguntou o segurança,
com uma ruga de preocupação na testa.
O olhar assustado que a garota me lançou, assim que ouviu
meu nome, demonstrou o quanto não foi uma boa escolha de
palavras do homem. Detestava saber que as pessoas se
aproximavam de mim por interesse. Fechei a cara e abri a porta,
querendo sair logo dali, assim, não correria o risco de criar qualquer
expectativa.
— Obrigada pela carona — agradeci e desci do carro. — Pode
me chamar de Lucca, deixa o senhor para o meu pai e o chato do
meu irmão — pedi ao segurança e bati de leve em seu ombro, indo
em direção à entrada principal do prédio.
Amigas

Eu deveria ter imaginado que ele era uma pessoa importante. Como
sou burra! E agora? Não tem a menor possibilidade de eu conseguir
o estágio novamente. Eu não só causei um acidente, como a vítima
foi, nada menos, do que o dono da empresa.
Bati a testa no volante e me arrependi imediatamente.
— Ai, merda! — praguejei, no momento em que levei a mão à
testa e meus dedos tingiram novamente de vermelho. Tinha me
esquecido.
— Moça, você está sangrando, vou chamar o socorro. — O
senhor simpático foi ligar e o impedi, não teria a menor chance de eu
causar reboliço na porta da empresa que eu pretendia trabalhar. Se
eu conseguisse convencer a pessoa que me entrevistou de que sofri
um acidente...
— Está tudo bem. — Sem dar a chance de ele prosseguir,
engatei ré e arrancei com o carro, provocando algumas freadas atrás
de mim.
— Sua louca! — Um rapaz colocou a cabeça pra fora de um
carro importado e gritou.
Dei de ombros, engatei primeira e continuei.
— Bem que me disseram que os paulistas eram estressados,
Penélope — resmunguei e meu carro deu um pequeno engasgo.
Tomei aquilo como resposta.
§§§§
Estacionei a Penélope em frente ao prédio de quatro andares
onde morava e desci ajeitando o vestido – cabisbaixa. Não tinha
ideia do que fazer. Me arrastei pelas escadas.
— O que aconteceu? — berrou Mia, vindo ao meu encontro –
dando um pulo do sofá.
Minha colega de apartamento trabalhava em um bar noturno,
o que lhe dava a liberdade de poder descansar durante o dia.
Assim que senti seu toque, desabei novamente. Tinha tanta
coisa passando pela minha cabeça, não sabia nem por onde
começar. Era muito azar para uma pessoa só.
— Amiga, está me assustando, vem aqui, vamos limpar esse
sangue e ver se não precisa de pontos.
Às vezes, parecia que nos conhecíamos há muito tempo.
Quem visse aquela cena, jamais imaginaria que fazia um mês que eu
tinha visto um anúncio na internet para alugar um quarto.
Mia me sentou no banco alto, que fica em frente ao balcão da
cozinha americana. Foi até a pequena lavanderia e voltou com um
pano limpo e uma bacia de água.
Enquanto limpava o sangue, eu gemia um pouco e soluçava,
as lágrimas pareciam não terem fim.
A verdade é que tinha pavor de pensar em voltar à minha
cidade. O que eu faria lá? Absolutamente, nada. Depois de tantos
anos ajudando meus pais em casa e lutando para pagar a faculdade
de marketing, não poderia, simplesmente, voltar. Foram anos,
viajando cento e sessenta quilômetros por dia, para estudar. Se eu
não tentasse, estaria jogando tudo fora.
— Estraguei tudo — confessei às lágrimas.
— Seja o que for que aconteceu, o importante é que está aqui
pra me contar. Com toda a certeza, não foi tão grave assim.
— Isso porque não te contei que entrei na frente do carro do
dono da empresa que eu, até então, começaria a estagiar, agora... —
solucei — esquece. Pela maneira que saiu do meu carro, nunca mais
vai querer me ver na frente dele.
Mia parou com o pano no ar e franziu o cenho – me
encarando.
— Como assim, saiu do seu carro? O que um Bennett estava
fazendo dentro da Penélope?
Respirei fundo.
— A história é longa. Se alguém me contasse, diria que era
uma baita invenção. Porque, seguramente, eu sou a pessoa mais
azarada da face da Terra.
— Desculpe-me, amiga, não sei – se tivesse tido um Bennett
dentro do meu carro – se me consideraria uma azarada, acho que
seria bem o contrário.
Mia continuou seu trabalho na minha testa. Pegou curativos
no banheiro e só parou quando teve certeza de que eu estava bem.
Durante seu cuidado, relatei os fatos a ela. Até para contar estava
difícil, parecia uma mentira deslavada para eu não chegar a tempo
no primeiro dia de estágio.
— Então quer dizer que ficou um tempão com o chefão dentro
do seu carro e não contou a ele que está na capital por causa de sua
fixação em trabalhar na empresa dele?
— Acha mesmo que eu tinha ideia de quem ele era?
— Coisa muito estranha, diga-se de passagem, Valen. Me
disse que era o Lucca, o rosto dele está toda semana na capa de
alguma revista. Sem contar que ele é o garoto propaganda da
Bennett.
— Não sei o que aconteceu, comigo — murmurei e enfiei o
rosto entre as mãos. — Fiquei passada, quando vi a Penélope
machucada.
Mia sorriu e balançou a cabeça.
— Você é inacreditável.
A porta da sala foi aberta bruscamente e olhamos em
conjunto, sabendo quem seria. Afinal, quando que a Betina era
discreta?
Nossa companheira entrou correndo, sem nem olhar para nós.
Não precisamos tirar muitas conclusões, era de praxe Betina
esquecer algo importante. Sorte a dela ser autônoma, se tivesse que
bater cartão, seguramente, seria demitida na primeira semana. Bom,
eu não sou a pessoa mais indicada a julgá-la.
Na mesma velocidade que Betina correu para o quarto, voltou.
Já estava com a mão na maçaneta quando nos viu.
— Que merda aconteceu com sua testa?
— Delicada, como sempre! — desdenhou, Mia e foi para a
lavanderia levar os itens que tinha usado para fazer meu curativo.
— Nada para alardes — garanti e limpei o restante de
lágrimas do rosto.
Sem se contentar, Betina se aproximou e ergueu meu rosto,
analisando o curativo.
— Devia ter colocado gelo nisso aí, já está inchando —
comentou e virou meu rosto —, o sangue está descendo, está
ficando tudo roxo em volta de seu olho esquerdo. Qualquer um vai
achar que levou uma porrada.
Desvencilhei-me dela e revirei os olhos.
— Não está atrasada, mamãe? — ironizei e ela estreitou os
olhos, me encarando.
— Se cuida, pequena caipira.
Quase nem terminou de falar, já tinha saído, só senti o vento
da velocidade que seu corpo provocou.
A questão é que, das três, sou a mais nova. Mia tem trinta e
Betina trinta e três, enquanto eu tenho vinte e três. As duas sentem-
se responsáveis por mim, muito mais a Betina. O fato de eu estar
longe dos meus pais e ter vindo do interior, só as deixou mais
neuróticas, nesse sentido. Isso que não contei a elas pelo que
passei.
— Então — continuou Mia, voltando a ficar ao meu lado. — O
que pretende fazer?
Dei de ombros, completamente desnorteada. Como ela frisou,
desde que comecei a faculdade de marketing criei uma fixação pela
empresa Bennett. Acredito que seja por ser a maior empresa
alimentícia do país. Sua política de marketing também foi um fato
predominante. Gosto de como eles se expõem. Mia tem razão
quanto a eu não reconhecer o Lucca. Ainda não consigo entender o
que aconteceu com a minha cabeça.
— Quer minha opinião?
— Vai dar de qualquer maneira — brinquei e pulei do banco
alto – indo em direção à cozinha. Alcancei um copo no armário e o
enchi com água.
— Ligue para o RH e explique que sofreu um acidente.
— Hum — murmurei, enquanto engolia uma boa quantidade
de água. — E conto que a vítima é o chefe dela? — desdenhei.
— Por que faria isso? Uma empresa daquele tamanho, acha
mesmo que o Lucca vai saber quem é você? Os chefões devem
passar longe da ralé — simplificou, minha amiga.
Lavei o copo que usei e refleti sobre o argumento de Mia.
Seria muita burrice minha pensar que poderia cruzar com Lucca
novamente. Pelo que deu a entender, até babá ele tem.
— Você tem razão — concordei e sequei as mãos no pano.
Me aproximei novamente de Mia. — Vou ligar.
— Essa é minha pequena caipira, bate aqui — ergueu a mão
e fizemos o nosso toque especial – terminando com nossas bundas
se chocando.
Antes que eu pudesse pensar nos prós e contras, peguei meu
celular dentro da bolsa e disquei o número da empresa. Enquanto
ouvia o toque, fiquei muito inquieta – andando de um lado para o
outro.
— Bennett, bom dia.
— Bom dia, poderia me passar para o RH?
— Com quem precisa falar?
— Vanessa.
— Só um minuto.
Meu coração acelerou, assim que a musiquinha começou a
tocar ao meu ouvido.
— RH, bom dia.
— Bom dia, por favor a Vanessa.
— Quem gostaria?
— É a Valentina, estive aí ontem e fiquei de começar o estágio
hoje. — As palavras saíram um pouco atropeladas.
— Me lembro, então, a Vanessa teve um problema familiar e
vai se ausentar por uns dias. O diretor de marketing que assumiu a
contratação dos estagiários. Como você não veio, chamamos outros
que estavam na lista de espera, para que ele possa entrevistar.
Uma laranja se formou na minha garganta, imediatamente.
Claramente, eu tinha perdido a oportunidade da minha vida. Respirei
bem fundo.
— Valentina? — chamou-me, após uns segundos em que a
linha ficou muda.
— Gostaria de poder explicar o que aconteceu — pedi,
controlando a voz para não sair embargada.
Ouvi seu suspirar na linha e, novamente, houve um silêncio.
— Olha, posso tentar, mas não garanto que vá conseguir. Se
fosse a Vanessa, tenho certeza de que seria mais fácil, mas... enfim,
não é tão simples quando a diretoria vem a campo. Eles são bem
exigentes.
— Que horas posso te ligar? — insisti.
— Daqui umas duas horas, se tiver sorte, encontrarei uma
brecha na agenda dele e tento convencê-lo a te atender.
— Muito obrigada, qual é mesmo o seu nome?
— Mariana, e não me agradeça, ainda.
— Só o fato de você tentar, já tenho que te agradecer,
Mariana. Daqui a duas horas te ligo. Mais uma vez, obrigada e até
mais.
— Até.
Desliguei o aparelho e o coloquei no peito – fechando os olhos
e inclinando a cabeça para trás. Fiquei um bom tempo na mesma
posição, sem saber o que fazer. Até sentir Mia me pegando pelos
braços e me levando para sentar no sofá.
— Vai dar tudo certo — garantiu.
— A pessoa que me contratou não está lá, Mia. Vou ter que
começar tudo de novo e com vários agravantes.
— Não seja pessimista, Valen.
— Estou sendo realista. Estou concorrendo a uma vaga muito
disputada. Agora, tenho que convencer o diretor de marketing de que
sou boa e que, realmente, sofri um acidente. Por isso que não
cheguei a tempo.
— Venha aqui, pequena caipira — convidou e me puxou para
deitar a cabeça em seu colo. Aceitei e aproveitei para fechar os olhos
e relaxar – enquanto Mia tirava os grampos que seguravam meu
coque e alisava meus cabelos. — Você é uma das pessoas mais
corajosas e determinadas que eu conheço. Qualquer um que te
entrevistar vai perceber isso, você é autêntica. Tenho certeza de que
a pessoa vai reconsiderar e permitir que fique com a vaga.
— Primeiro ele tem que aceitar me entrevistar — retruquei e
bufei.
— Bom, até que isso aconteça, é hora de você trocar de
roupa.
Mia levantou e me fez acompanhá-la.
— Por que preciso trocar de roupa? Escolheu a dedo esse
vestido pra mim — argumentei, enquanto era puxada para o quarto.
— Acho que ele deu azar, vamos deixar você mais despojada,
afinal, você é da área de marketing.
Sentei na beirada da cama e fiquei observando minha amiga
tirar todas as minhas poucas peças de roupas das gavetas e
cabides.
— Caraca! Ainda bem que você tem a mim e a Betina pra te
ajudar, quanta cafonice em um guarda roupa. Não nega que é
caipira. Sem contar que... — Ergueu uma peça de roupa. — Estão
muito surradas. Valen, vou te emprestar uma grana pra você comprar
umas coisas decentes.
Fui retrucar, meu celular tocou na sala. Saí em disparada para
atendê-lo.
— Alô — atendi sem olhar o identificador de chamadas.
— Valentina, consegui um horário pra você, consegue chegar
em uma hora?
Motivos

Entrei correndo no hospital e acenei para as recepcionistas,


apontando o corredor que me levaria à habitual sala.
Ofegante, parei na porta e coloquei a mão no peito –
respirando com dificuldade.
— Desculpe-me o atraso. — O olhar da minha mãe foi
inquisidor.
— Filha, por que está aqui? — O questionamento era sempre
o mesmo. Claro que ela não admitiria que precisava de mim.
Nos meus trinta anos, não me lembro, um dia sequer, que Ana
Maria – minha mãe –, tenha cedido. Embora seja nova – quarenta e
nove –, já passou por muita coisa na vida.
Minha mãe tem uma vivacidade incrível. Sua altura e beleza
lhes proporcionaram atuar como modelo, desde muito jovem, por um
bom tempo, até que...
Depois de ter sua vida arruinada e com o meu nascimento,
precisou refazer seus planos. Não fosse o apoio do meu pai, e de
seu amigo de infância, não sei o que teria sido dela.
Sentei-me ao seu lado e trouxe uma de suas mãos para o
meu colo. Sorri de canto e beijei o dorso de sua mão.
— Não adianta me expulsar, doninha — descontraí, mesmo
que o ambiente não tivesse nada que colaborasse.
— Você faz parecer que estou morrendo — reclamou e
encostou a cabeça à cadeira alta.
— Sabe que não é isso, mãezinha — defendi-me e tirei uns
fios de cabelos de sua testa. — Quero estar ao seu lado nos
melhores e piores momentos — esclareci e sorri novamente.
Ao contrário de mim, minha mãe é extremamente vaidosa.
Seus cabelos loiros, agora, têm mechas bronze – escondendo os fios
brancos. Os grandes olhos azuis – como os meus – estão sempre
contornados com lápis e os cílios aumentados com máscaras
especiais. O costumeiro batom de cor forte realça seus lábios.
Vendo-a sentada, com fios ligados a ela e o sangue sendo filtrado, é
inacreditável como sua aparência continua ótima.
— Detesto saber que está atrasando sua vida por minha
causa.
Bufei e neguei com a cabeça. Já tínhamos tido aquela
conversa um milhão de vezes. O medo de acontecer comigo, o que
aconteceu com ela, despertou a superproteção que chega a me
sufocar. Quero retribuir, de alguma maneira, mas é complicado. Ana
Maria jamais se mostra fraca. O fato de eu estar ali, no meio do dia,
lhe é uma afronta.
— Sabe que não vou perder meu emprego — lembrei-a, pois
ela, melhor do que ninguém, sabia como cheguei até ali.
— Não quero que as pessoas pensem que você tem
privilégios, Gabrielle. Conheço seu potencial, merece cada
pedacinho que conquistou.
— Mãezinha...
— Chega disso, é o último dia que sai do trabalho pra vir aqui.
Não sou inválida — decretou, com um tom imperialista.
Não discutiria com ela, não ali, enquanto estava em uma
sessão de hemodiálise.
Preocupava-me o fato de minha mãe ter que fazer
hemodiálise. Começou com uma sessão por semana, só que já
estava em três vezes. Vê-la, mesmo que não demonstrasse – frágil,
cortava minha alma. Era como se estivessem metendo a marreta no
meu alicerce.
Ela quem me fortaleceu. Encorajou-me a seguir meus sonhos.
Lutou para pagar meus estudos. Acompanhou-me em todos os
estágios da minha vida. É minha melhor amiga. Não tem nada que
eu não conte a ela. Até mesmo minhas primeiras vezes, foi a ela que
confessei. Não podia nem pensar na possibilidade de perdê-la.
— Tudo bem, mãezinha, não vamos mais falar sobre isso —
concordei e me acomodei melhor na cadeira. Cada sessão durava,
em média, quatro horas. No entanto, cheguei com uma hora de
atraso.
— Seu pai vem me buscar, já combinamos. Pode voltar ao
seu trabalho — continuou insistindo.
— Não vou te deixar sozinha — limitei-me a negar, embora
não quisesse discutir, não cederia facilmente.
Ana Maria respirou fundo e entortou o nariz. Espremi um lábio
no outro – contendo a vontade de rir. Se o fizesse, cutucaria a onça
com vara curta.
— Como estão as coisas no trabalho? — perguntou, como
quem não quer nada, mas eu sabia qual era o seu objetivo.
Por mais que eu não a deixasse a par dos meus planos com
aquela maldita família, ela pressentia.
Comecei a procurar uma revista em uma pilha, na mesa de
canto – tentando mudar de assunto. Mentir para minha mãe nunca
foi fácil. Ela me conhece.
— Nada de novo — desdenhei. Peguei uma revista e fiz uma
careta para a imagem da capa. A coloquei de volta e peguei outra,
fazendo outra careta. — Esses editores precisam de criatividade, só
tem esse idiota nas capas.
Senti sua mão segurar meu braço com força. Ergui os olhos e
estremeci.
— Vingança não leva a nada, Gabrielle. O que passou,
passou — advertiu-me, apertando seus dedos em meu braço.
— Meu trabalho é acabar com os bandidos, só estou
cumprindo com a minha função — justifiquei-me e desviei o olhar.
Seus dedos afrouxaram-se. Soltei os ombros e decidi ler a
revista com o imbecil na capa. Seria bom, afinal, quanto mais
informação eu tivesse deles, melhor seria minha investigação. O
cerco estava se fechando a eles, logo aquela arrogância toda
acabaria.

Empresários do Bem: Bennett doa mais de 35 mil toneladas


de alimentos para comunidades carentes.
"Cada doação realizada nos dá ânimo e motivação em fazer
mais pela população, pois sabemos o quanto esses alimentos têm
feito a diferença na vida de milhares de pessoas. Essas ações são
uma forma de reafirmamos o nosso compromisso social com o
estado e auxiliar as famílias", declarou Lucca Bennett –
representante da empresa.

— Só esqueceu de mencionar a quantidade de drogas que


fornecem, também. Governo de merda, que beneficia quem molha
sua mão, filhos da puta — praguejei e joguei a revista de volta.
— Filha, pelo amor de Deus! — repreendeu, minha mãe.
Olhei em volta e me dei conta de que tinha me exaltado.
Todos da sala estavam me olhando assustados.
Puxei uma longa lufada de ar e fechei os olhos – negando
com a cabeça.
— Desculpe-me — sussurrei e apoiei a cabeça no encosto da
cadeira.
— Isso está te consumindo, Gabrielle. Tem ido à terapia?
Só assenti com a cabeça – sem olhá-la.
O som do meu celular vibrando quebrou os longos minutos de
silêncio.
— Gabrielle — atendi e aguardei.
— Gabi, filha, não vou conseguir buscar sua mãe, estou preso
no trabalho.
— Tudo bem, paizinho, estou com ela, não se preocupe
— Que bom, até mais tarde, filha, um grande beijo. Te amo.
— Também te amo, paizinho.
Considero-me uma pessoa sortuda, com a minha idade, não
tenho a menor intenção de sair da casa dos meus pais. Até, porque,
sendo filha única, me sinto na obrigação de cuidar deles.
Meu pai é quase vinte anos mais velho que minha mãe. Tem
sessenta e cinco. Mesmo assim, está em pleno vigor, nem pensa em
se aposentar. Trabalha em uma empresa há mais de quarenta anos.
Todos o admiram. Cuida de nós duas como se fossemos seus bebês.
Assim que tudo aconteceu na vida da minha mãe, mesmo
com a diferença de idade, meu pai não hesitou em acolhê-la.
Enfrentou muitos julgamentos, mas não recuou. Sem ninguém, já
que sua família a rejeitou – quando soube de tudo –, minha mãe só
pode contar com ele e seu amigo.
— Viu só, doninha, papai não vai poder te buscar. Quem é
que precisa de mim, agora, hein!? — brinquei e cutuquei de leve
suas costelas.
— Pra isso existe Uber e Taxi — rebateu de imediato.
— Ingrata — falei sorrindo.
— Vou com você na próxima sessão de terapia — voltou ao
assunto, sem pestanejar.
Enchi a boca de ar e revirei os olhos.
— Não preciso de babá.
— Nem eu, estamos quites. — Içou as sobrancelhas e
estreitou os lábios.
— Me pegou. Ponto pra você.
Prioridades

O departamento de marketing da empresa Bennett está sempre à


frente dos outros. Boa parte disso é mérito da responsável por ele:
Vanessa.
A mulher segura e influente sempre manteve tudo em ordem.
Nunca precisei me preocupar com prazos e qualidade do trabalho do
departamento. Embora, eu sempre fizesse questão de acompanhar
tudo de perto. O fato de eu e a Vanessa seguirmos a mesma linha de
raciocínio contribuiu com o sucesso do nosso trabalho.
Em anos, Vanessa nunca faltou ou, sequer, chegou atrasada.
Por vezes, a peguei trabalhando após o expediente. A primeira a
chegar a e última a sair. No entanto, hoje, certamente, não é um bom
dia.
Como se não bastasse um fusca com nome e cílios destruir a
frente do meu conversível, assim que cheguei à empresa, fui
informado que meu braço direito precisou fazer uma viagem de
urgência. Seus pais moram no interior e, ao que parece, um deles
sofreu um enfarte.
— Andressa, cancele meus compromissos de hoje — anunciei
à minha secretária, antes de entrar na minha sala.
Não esperei seus comentários que, seguramente, viriam. A
parte chata de você transar com a secretária é que ela se acha no
direito de controlar seus passos. Mesmo que você insista em lembrá-
la de qual é o seu lugar e o seu papel.
Mal entrei e me acomodei, ela estava atrás – como eu previa.
Tirei o blazer o pendurei nas costas da cadeira, em seguida, dobrei
as mangas da camisa até os cotovelos. Andressa acompanhou todos
os meus movimentos, parada como uma estátua em frente à minha
mesa.
— Pode falar, eu sei que não consegue se conter —
provoquei, enquanto me sentava.
Ela relaxou um pouco os ombros e se sentou, também.
— Não vai me dizer o que aconteceu?
Ergui as sobrancelhas e sorri de canto.
— É sério, isso?
Seu rosto ficou como um pimentão e o sinal de alerta acendeu
imediatamente na minha cabeça.
— Fiquei preocupada, demorou muito pra chegar, liguei
algumas vezes e você não atendeu e aí chega e pede pra cancelar
todos os compromissos.
Absorvi uma boa quantidade de ar e o soltei devagar, coçando
a cabeça.
— Estou bem — limitei-me a dizer.
Ficamos nos olhando por uns minutos, o suficiente para eu
perceber que teria que acabar com o nosso acordo. Esperava não
precisar demiti-la, porque ela fazia um ótimo trabalho. Conhecia toda
a minha rotina.
— É só isso?
— Andressa — suspirei —, podemos conversar em outro
momento? De preferência, fora da empresa?
Ela assentiu e passou a língua pelos lábios. Ficou em pé e
saiu da sala. Respirei fundo e joguei o corpo na cadeira.
Quando pensei em ligar meu computador, o telefone tocou.
— Hoje o dia promete — resmunguei. Nem mesmo meu
habitual bom humor conseguiria me ajudar. Afinal, definitivamente,
tinha levantado com o pé esquerdo. — Lucca.
— Bom dia, senhor...
— Sem o senhor, por favor — interrompi a Mariana, secretária
da Vanessa.
— Desculpe-me, Lucca, é complicado não ser formal com
você, já que os demais nos cobram esse comportamento —
justificou-se e assenti, mesmo que ela não pudesse me ver.
— Do que precisa?
— Estamos com problemas.
— Claro, como não estariam? — pensei alto, pois, na certa,
todos que se direcionassem a mim, me trariam pepinos. — Como
posso ajudar?
Ouvi Mariana puxar o ar com força e deduzi que meu dia seria
bem longo.
— Temos alguns estagiários iniciando hoje, no entanto, a
principal, que a Vanessa mais gostou, sofreu um acidente e não
conseguiu chegar a tempo.
— Sabe que...
— Eu sei, Lucca, conheço a política da empresa, talvez, se a
Vanessa estivesse aqui, ela mesma quebraria essa regra.
— O quer que eu faça? Que vá atrás da estagiária? Quantas
pessoas temos na lista de espera? É uma vaga muito concorrida pra
nos preocuparmos com uma pessoa que nem sabemos se vai dar
certo.
— Concordo, mas... — A linha ficou muda, não fosse sua
respiração, acharia que tinha caído a ligação.
— Mariana, não tenho o dia todo — apressei-a.
— Ela ligou aqui, praticamente, implorando pra vir se explicar.
Tenho certeza de que a Vanessa a ouviria. Gostou muito da garota.
— Uau! O que a garota tem? Mel? Se está me dizendo que a
Vanessa abriria uma exceção, fiquei curioso.
— Vai gostar dela — acrescentou e eu franzi o cenho.
— Como assim, vou gostar?
— Esse é o motivo que te liguei, precisa entrevistá-la. Como a
Vanessa não está aqui, não posso assumir o risco. Está em suas
mãos.
Pensei um pouco e quase pedi para a Mariana dizer à garota
que não tinha como, ou que aguardasse a Vanessa voltar.
— O quanto precisamos dela?
— Muito, tivemos um grande desfalque essa semana. Uma
das nossas melhores se casou e se mudou pra outra cidade.
Vanessa acha que a garota vai assumir rapidinho a vaga. Só não
ofereceu o cargo oficial, porque não tem experiência.
— O que disse a ela?
— Que conversaria com você.
Precisei analisar mais uns instantes. Se a responsável pelo
departamento abriria uma exceção, provavelmente valeria a pena.
Vanessa é exigente demais para quebrar regras. Sem contar que, eu
teria que assumir o comando até ela voltar. Manter a qualidade do
serviço com uma equipe desfalcada é muito mais difícil.
— Tudo bem — concordei e pude ouvir o suspirar de alívio
que Mariana soltou na linha.
— Pode atendê-la ainda hoje?
— Sim, daqui a uma hora.
— Mas...
— Se ela realmente quer a vaga, vai dar um jeito.
— Obrigada, Lucca.
A luz do monitor quase não tinha acendido por inteiro a porta
da minha sala foi aberta. Ergui os olhos e sorri. Pelo menos uma
coisa boa para o meu dia.
— Oi, tio — cumprimentou, Theo – vindo ao meu encontro.
Afastei a cadeira e o abracei com força.
— Oi, garotão, como chegou aqui? — Baguncei seus cabelos
betume.
— Mamãe me trouxe.
Roberta entrou em seguida, com um sorriso largo no rosto –
confortando meu coração. Quanto tempo que não via aquele sorriso
no rosto da minha amiga.
Nos conhecemos na faculdade. Eu e Rodolfo éramos
inseparáveis. Roberta juntou-se a nós e logo meu amigo estava
apaixonado. Os dois namoraram por todo o tempo do curso. Ao
terminar, decidiram morar juntos. Theo chegou para completar a
felicidade do casal.
— Olá, garanhão — brincou, como sempre fez, e inclinou o
corpo para me beijar no rosto.
— Uau! Você me parece melhor do que nunca.
Após sentar-se, Roberta abriu um sorriso tímido.
— Um passo de cada vez.
— Sim, dia após dia — reforcei nosso pacto silencioso de
superar a perda de Rodolfo.
Mais de um ano se passou e a dor parece só aumentar.
Somente quem perde um ente querido para compreender o quanto é
dilacerante o que sentimos por dentro. É como se pegassem o nosso
coração e fragmentassem.
Rodolfo nos lembrava, todos os dias, o quanto teríamos que
ser fortes e ajudar um ao outro. Nos primeiros meses, nenhum de
nós tinha força, o que nos fez sermos fortes e nos manteve otimistas
foi o Theo. Com apenas seis anos, tínhamos que ser o alicerce dele.
Apesar de ter sido muito difícil ver meu amigo definhar em
uma cama, por meses, a dor de perdê-lo foi pior.
— Tio, sábado é a final do campeonato, você vai, né?
Desviei o olhar da minha amiga e me concentrei no garoto,
que fuçava no meu celular, descaradamente.
Theo completara sete anos e contava comigo para
acompanhá-lo ao futebol. O garoto herdou do pai sua habilidade de
zagueiro. Não só a habilidade, a aparência física, também.
— Não perco por nada — garanti e tocamos nossos punhos.
— Vou baixar meu jogo aqui, tio. Meu celular está muito lento
— comunicou e sentou-se no sofá da minha sala. Sorri e meneei a
cabeça.
— Pegue esse pra você, compro outro pra mim.
— Ei, Lucca, tem que parar de fazer tudo o que esse menino
quer. Depois sou eu quem tem que administrar sua arrogância em
casa — repreendeu-me, Roberta. Dei de ombros e fiz um beiço.
— Pra isso que servem os tios. Traga o celular aqui, deixa-me
formatá-lo.
— Eu sei fazer isso, tio. — Veio até mim. — Coloque sua
digital aqui e deixa o resto comigo.
Fiz o que me pediu, sentindo o peito inflar de orgulho. Rodolfo
confiou sua família a mim, jamais o decepcionaria.
— Está indo às compras?
— Mais ou menos.
— Existe a possibilidade de ir mais ou menos às compras? —
diverti-me – abrindo um sorriso largo à minha amiga.
— Estava com saudades de você.
— Mentira, você nem gosta de ficar comigo, sempre disse que
sou um tonto que se acha.
— Continuo achando, mas não impede que eu sinta sua falta.
Sem contar que o Theo estava me deixando louca com essa história
de campeonato.
— Então quer dizer que atravessou a cidade só pra me ver?
— Começou... Deixa de ser convencido, garanhão. Sou
vacinada contra os encantos dos Bennett.
Joguei a cabeça para trás e gargalhei. Senti que as coisas
estavam voltando ao normal. Ver minha amiga acabando com minha
autoestima era a prova disso.
Conversamos mais um tempo sobre como andavam as coisas
e deixamos combinado o horário em que nos encontraríamos para o
jogo do Theo. Logo o garoto me mostrou o celular formatado. Não
ficaram muito tempo.
— Andressa — chamei minha secretária pelo ramal interno.
— Sim.
— Preciso que venha até minha sala.
Rapidamente Andressa estava na minha sala com uma cara
fechada e eu sabia o motivo, mas não falaria a respeito.
— Pode comprar um aparelho celular pra mim, agora? Tem
uma loja aqui perto. Compre o último modelo do Iphone. Assim que
chegar, me avise pra eu colocar minha conta e meu chip.
— O que aconteceu com o seu?
Ergui apenas uma sobrancelha, com a esperança de que ela
entendesse que eu não precisava lhe dar satisfação.
— Apenas compre, por favor.
— Garanto que fez mais um capricho daquele moleque
mimado. E aquela mãe dele? Acha que pode chegar aqui e ir
entrando.
— E pode — afirmei —, cuidado como fala do Theo. O que eu
faço ou deixo de fazer não é da sua conta.
— Lucca, não acho...
— Chega! Faça o que te pedi.
Ela mordeu os lábios, segurando para não continuar suas
críticas.
— Se é assim que prefere — retrucou e virou-se.
— Andressa — chamei-a, antes que saísse da sala.
Sua feição mudou, como se eu estivesse arrependido e fosse
me desculpar.
— Oi — disse melosa, voltando uns passos.
— Quero conversar com você hoje, depois do expediente.
— Na sua casa?
— Não — neguei mais rápido do que pretendia. Seu rosto
voltou a ficar sisudo, assim que ela percebeu que a nossa conversa
não seria como ela pensou.
— Não pode me usar e me jogar fora, Lucca. Foi aquela uma
que se faz de sua amiga. Ela usa o filho pra te prender, não
percebe?
Fechei os olhos e respirei fundo. Não queria brigar com ela,
principalmente, dentro da empresa.
— Já conversamos sobre isso. Tenho que ficar te lembrando
que minha vida particular não é da sua conta. Vamos acabar logo
com isso, depois do expediente, na Starbucks. Agora... — Apontei a
porta. — Preciso de um celular.
Seus lábios começaram a tremer e ela balançou a cabeça
com indignação.
— Vai me dispensar em uma cafeteria?
— Prefere que seja por mensagem?
— Idiota presunçoso!
Recostei-me à minha cadeira e sorri sem vontade.
— Quer mesmo seguir por esse caminho?
Andressa não respondeu. Virou as costas e bateu a porta ao
sair.
§§§§
Entrei no departamento de marketing e senti o corpo relaxar.
Ali é o meu lugar, onde me encontro. Detesto essa coisa de diretor.
Eu sei que meu cargo me beneficia em vários aspectos,
porém não nego a necessidade de estar atuando diretamente na
minha área. Embora eu a acompanhe de perto e o contato com os
clientes seja meu, quem comanda de perto o departamento é a
Vanessa.
— Olá, Mari, a sala de reuniões já está preparada?
— Oi, sim, senh... desculpa, Lucca. A Valentina já o aguarda.
Assenti e ajeitei o blazer que havia colocado de qualquer jeito
na minha sala.
Antes de seguir para a sala de reuniões, a porta do banheiro
abriu e a garota que saiu de lá acelerou meu coração. Franzi o cenho
e a encarei. Ficamos congelados por longos minutos.
— O que faz aqui? Não vai me dizer que quer que eu pague o
conserto daquela lata velha?
Seu rosto virou um pimentão e a Mariana ficou em pé,
imediatamente, sem entender o que estava acontecendo.
Ladeira A Baixo

Eu até entendo que as pessoas me achem estranha para os


padrões da capital paulista, tenho consciência de que tenho muito o
que aprender. Só não posso permitir que me julguem incapaz de
realizar o que batalhei tanto para conseguir.
O que eu temia estava diante dos meus olhos. Sabia que
havia uma minúscula possibilidade de cruzar com ele, mas, ao que
tudo indicava, a sorte não estava a meu favor.
Não mencionei à Mariana que a vítima do acidente que tinha
sofrido era o chefe-mor. E quanto digo vítima, não é porque eu
concorde, afinal, não tenho culpa de que na minha cidade a
preferencial de um balão é diferente. E sim, porque a bendita placa
me colocou em maus lençóis.
Foi um deus nos acuda para eu chegar dentro do tempo que
me foi concedido. Mia foi minha salvadora.
Assim que estava pronta, não reconheci meu reflexo no
espelho. Vestida completamente diferente de como saí pela manhã,
ainda assim, mesmo que estivesse mais próximo do meu estilo, não
era eu.
Meus pais nunca tiveram condições de me encher de luxo. Fui
criada em uma área rural. Conheci de modernidade quando comecei
a cursar marketing. Se me pedissem para ordenhar uma vaca, eu
tiraria de letra.
De certo modo, sou um desgosto para os meus pais. O sonho
deles é que eu fosse veterinária. Não que eu não goste de animais,
mas não nasci para ser médica. O fato de eu não ter tido irmãos só
piorou tudo. A pressão que jogaram em mim quase me fez desistir.
Vir para a capital paulista foi um desafio. Sem o
consentimento dos meus pais e sem dinheiro, mesmo depois de tudo
o que aconteceu, a única opção é fazer dar certo. Juntei, por meses,
dinheiro. Quando vi o anúncio no jornal do quarto para alugar, não
acreditei que estaria dentro do meu orçamento. Claro que o valor que
juntei não foi muito, mas supre uns três meses.
— Er... — gaguejei e limpei as palmas das mãos nas pernas
da calça jeans de marca. Eu tinha acabado de sair do banheiro e
lavado as mãos, pois, para completar meu dia, Penélope decidiu
parar e não queria pegar nem com reza forte. Tive que abrir o capô e
fuçar nos cabos, deixando minhas mãos cheias de graxa.
— Vocês se conhecem? — Mariana olhava de mim para o seu
chefe, com um ponto de interrogação na testa.
— Não vai me dizer que essa é a candidata? — Ele apontou
para mim com desdém.
Cerrei os dentes e ergui o queixo – estufando o peito. Uma
coisa é você precisar, outra é mendigar. Se fosse para ser
humilhada, preferiria voltar à minha cidade e ordenhar vacas, até
mesmo encarar o lixo que tinha deixado lá. Não fui criada para ser
capacho.
— Eu te disse que tinha me feito perder o emprego — lembrei-
o e seus lábios se ergueram no canto – deixando-me com mais raiva.
— Mariana, qual foi a desculpa que ela te deu pra não
conseguir chegar a tempo?
Vi quando a assistente engoliu em seco e olhou para mim,
buscando uma saída. Ela não estava entendendo nada.
— Que sofreu um acidente.
— E sofri mesmo, a prova está no meu rosto. Um carro me
acertou em cheio em um balão. Nem sei como a Penélope conseguiu
chegar até aqui.
Meu sangue ferveu e quase voei nele, quando sua cabeça
inclinou para trás e a gargalhada reverberou pelo ambiente.
— Quem é a Penélope? Estava com você no acidente? —
Mariana estava cada vez mais confusa.
— É a lata velha que destruiu a frente do meu conversível —
vociferou o imbecil, que já estava fazendo eu me arrepender de ter
voltado àquela empresa.
— Tem coragem de falar isso? Você não tem freio? Acho que
não está acostumado, afinal, tem babá que te carrega — ataquei-o,
sem medir as consequências.
Aos poucos, as pessoas que estavam em seus postos, nas
salas envidraçadas, pararam o que faziam e nos observavam. Eu
faria a mesma coisa, nossas vozes só aumentavam, proporcionando
um espetáculo.
Achei que meu ataque o deixaria raivoso e me mandaria
embora, mas não foi o que aconteceu. Seus lábios tinham um sorriso
de satisfação. Eu é que comecei a ficar confusa.
— Lucca, me desculpe, não sabia que o acidente tinha te
envolvido — justificou-se Mariana, desesperada. — Olha só,
Valentina, acho melhor você esperar a Vanessa voltar. Vou passar o
que aconteceu e deixar que ela decida.
Os nervos do meu corpo estavam tremendo. Precisei segurar
os lábios com os dentes para não demonstrar o quanto estava
abalada com tudo aquilo. Eu queria muito trabalhar na Bennett,
desde que comecei o curso. Admirava a empresa e não conseguia
pensar na possibilidade de tentar outra corporação. Pode parecer
uma grande loucura, já que na capital paulista a gama de opções é
enorme, mas fiz um propósito e me sentiria frustrada se recuasse no
primeiro obstáculo. Tudo bem que não era qualquer obstáculo,
estava lidando com um dos donos da empresa.
— Tudo bem, Mariana, vamos ver se a Valentina me convence
de que merece uma segunda chance — decretou Lucca e tanto eu,
quanto Mariana, arregalamos os olhos.
Não sabia se ficava feliz ou preocupada. Se ali, com plateia,
ele não se importou em expor sua indignação comigo, o que faria à
porta fechada?
— Não precisa...
— Estou dizendo que tudo bem. — Lucca interrompeu a
assistente, erguendo as sobrancelhas. Apontou com a cabeça para
um corredor, para que eu o seguisse.
Respirei fundo e assenti. Estava em minhas mãos. Teria que
dar um jeito de começar do zero. Fazê-lo enxergar meu potencial. Só
não tinha ideia de como.
Por todo o trajeto, senti os olhares das pessoas. Claro que
estavam curiosas, quem não estaria? Com muito esforço, mantive a
postura firme, mesmo que minhas pernas estivessem como gelatina.
Durante o processo seletivo, não havia reparado o quanto era
intimidador aquelas salas todas rodeadas com vidros. Comecei a me
sentir em um aquário.
— É aqui — avisou, assim que chegamos à uma sala gigante.
Uma mesa oval, na cor amarela, com muitas cadeiras
coloridas em volta, não contei, mas devia ter mais de dez. Tudo tão
moderno e minimalista. Mesmo que o tamanho da sala fosse
intimidador, meus lábios sorriram sozinhos, em pensar que poderia
fazer parte daquele lugar.
Distraída, admirando o ambiente, dei um pequeno salto com a
voz dele.
— Não vai se sentar?
Sorri sem graça e meneei a cabeça, sentando-me à sua
frente.
Por alguns eternos segundos nos encaramos. Eu não queria
demonstrar insegurança, mas, definitivamente, não tinha causado
uma boa impressão. O que duplicava o meu trabalho.
— Então, era para ser o seu primeiro dia na Bennett?
Assenti, mordendo a parte interna das bochechas. Não tive
tempo de observá-lo, antes. Ali, tão perto, comecei a ter sensações
inapropriadas para a ocasião. Meu corpo reagia de forma indecente,
a começar pelo cheiro que ele exalava.
Mia tinha razão quanto a eu não o ter reconhecido. Penélope
realmente roubara meu foco. De frente para ele, minha mente voltou
à várias capas de revistas. Tudo bem que meu interesse era nas
reportagens, apesar de admirar a beleza do representante.
Seus olhos tinham uma cor exótica, castanhos com nuances
de verdes. E o formato deles, amendoados. Poderia dizer que era a
parte mais bonita de seu rosto, mas estaria mentindo, porque a
boca... Meu pai!... Eu precisava voltar à sala, pois minha mente
estava me carregando para lugares perigosos. Aquele maxilar firme,
com a barba por fazer, estava lançando faíscas para a região sul do
meu corpo.
Lucca era o mais novo, claro que eu sabia disso, afinal, o que
eu não sabia da empresa Bennett? Quatro anos mais velho do que
eu, ou seja, vinte e sete anos. Seu modo de se vestir, com jeans e
blazer, sem gravata, acompanhado de seus cabelos castanhos
bagunçados e um sorriso maroto, demonstravam o quanto era
despojado. Ninguém, jamais, acharia que fazia parte da diretoria da
maior empresa alimentícia do país. E, mais, era um dos donos.
Embora fosse seu rosto que representasse a marca, claramente, não
se importava com a posição.
— O gato comeu sua língua? Lá fora estava tão valente, o que
aconteceu? — pressionou-me, com o canto dos lábios erguidos.
— Você que é o entrevistador, oras, só respondo o que me
perguntar — rebati e dei de ombros.
Seu sorriso aumentou. Lucca chegou com o corpo à beirada
da cadeira e apoiou os cotovelos na mesa.
— É corajosa, gosto disso — confessou. — Quantos anos
tem?
— Vinte e três.
Assentiu e pegou meu currículo para analisar. Até então, nem
tinha percebido a folha à sua frente. Segurei a respiração por uns
instantes, não tinha nada atraente no meu currículo – nem – ao
menos, experiência.
— Agora entendo — comentou baixinho, esboçando um
sorriso e um aceno com a cabeça, avaliando a situação.
— Estou ficando nervosa — revelei e ri, completamente sem
vontade. — O que você entende?
— O porquê de tantas cagadas em um curto espaço de
tempo. — Ergueu o rosto da folha e içou apenas uma sobrancelha.
— Olha só, eu realmente preciso desse emprego...
— Estágio — corrigiu-me, levantando o indicador.
Engoli em seco.
— Estágio — ratifiquei —, seu vocabulário está me
ofendendo.
Espremi as mãos no colo e suguei o lábio inferior, com o
aumento de seu sorriso zombeteiro. Se a intenção dele era que eu
desistisse, estava a um passo de conseguir.
— Estava me perguntando — prosseguiu, sem se abalar com
minhas palavras. — De onde será que essa garota surgiu, com esse
sotaque estranho e atitudes desastrosas?
Fiquei em pé e arrumei a bolsa no corpo.
— Chega, não vou aceitar ser insultada. O que você tem
contra meu sotaque? Seu riquinho de merda. Não tem a mínima
ideia do quanto foi difícil para eu chegar até aqui.
Eu sabia que estava decretando o fim do meu sonho de
trabalhar na Bennett, mas não tenho sangue de barata. O que o
pessoal da capital tem contra o sotaque do interior? Um bando de
arrogantes que se sentem superiores.
Não esperei resposta. Virei as costas e saí da sala
marchando.
— Valentina...
Sem dar atenção à assistente, que foi tão prestativa comigo,
entrei no elevador e soquei o botão do térreo. Assim que as portas
se fecharam, as lágrimas vieram como uma enxurrada.
Meta de Vida

Abri uma fresta dos olhos e sorri. Ergui a mão e afaguei a cabeça de
Oliver. Miauuuu...
— Já sei, tenho que levantar, não precisa fazer esse
escândalo.
Sentei na cama e Oliver se acomodou nas minhas pernas,
ronronando e se contorcendo inteiro.
— Assim fica bem difícil, né, bebê.
— Estou começando a me preocupar com você, seu maior
dialogo é com um gato — acusou-me minha mãe, parada à porta do
meu quarto.
Coloquei meu gato amarelo de lado e levantei-me – ignorando
seu comentário sagaz.
Fui ao banheiro sentindo sua presença atrás de mim.
— Mãe, eu dialogo com várias pessoas, o dia todo, até
demais — retruquei e sentei no vaso sanitário.
De braços cruzados e com uma carranca, continuou me
encarando:
— Quais dias está indo na terapeuta?
Limpei a garganta e desviei o olhar. Se contasse a ela que
fazia algumas semanas que não aparecia na terapia, certamente me
carregaria até lá. Mesmo estando doente, minha mãe não se deixou
abater. Sua força e determinação são minha inspiração. Aliás, tudo
nela me inspira.
Dei descarga e fui até a pia para escovar os dentes – com
seus olhos me seguindo.
— Por que está se sabotando, Gabrielle?
— Hum... Eu não xei do que voxê... — Cuspi a espuma da
boca e me virei para ela. — Do que você está falando? — Fiz-me de
desentendida.
— Acha que pode me enganar? Esqueceu-se de que sou sua
mãe?
Bufei e revirei os olhos. Como é irritante o fato de eu não
conseguir esconder-lhe nada.
Dei-lhe às costas e voltei ao quarto. Peguei um jeans e uma
camiseta e comecei a me trocar. Ela não desistiria, caso contrário,
não seria minha mãe.
— Não estou me sabotando, só estou sem tempo. — Até certo
ponto, não mentia. Os casos no departamento tinham aumentado
bastante. Claro que não contei a ela sobre ter colocando o todo-
poderoso na berlinda. A deixaria mais preocupada.
— Olhe pra mim, Gabrielle Mantovani — exigiu.
O fiz, porque, quando minha mãe me chama pelo nome
completo, a coisa está feia. Deixei as botas de lado e respirei fundo –
encarando-a.
— Mãe, não sei por quê está se preocupando com isso. Estou
bem, não vê? Você é quem está precisando de uma atenção maior.
— Faz-me rir, Gabrielle. Você nunca esteve tão mal. Não
percebe, filha? Não tem vida social, aos trinta e ainda mora com
seus pais...
— Não vou deixar vocês sozinhos.
— Não me interrompa.
— Desculpe-me — murmurei e abaixei a cabeça.
— Isso é uma tremenda muleta que você usa para se
esconder, Gabrielle. — Ergui a cabeça para rebater e seu olhar me
fez recuar. — Somos perfeitamente capazes de nos cuidar sozinhos.
A quem nos toma? Velhos inúteis?
— Sabe que não, mãezinha.
— O que eu sei é que aquele filho de uma puta roubou minha
filha. O que está te faltando aqui, Gabrielle? Eu e seu pai não somos
suficientes?
Fiquei em pé e fui ao seu encontro. Ameacei abraçá-la e ela
negou.
— Não faz assim, mãezinha, conhece meus motivos.
— O que não te dá o direito de se sabotar. Essa vingança está
acabando com sua vida. Não percebe, Gabrielle? Ninguém aqui está
ficando mais novo.
Não tinha mais argumento. A verdade é que, quando minha
mãe coloca algo na cabeça, é perda de tempo fazê-la reconsiderar.
Assenti e voltei a sentar-me, calçando minhas botas de cano
curto.
— Falei com o Bento.
Cerrei os dentes e os olhos.
— É por isso que está assim — concluí.
— Não tome conclusões precipitadas.
— Já falei pra ele parar de te preocupar com bobagens.
— Acha bobagem ter ido à toca do leão, Gabrielle? — gritou,
com o dedo em riste no meu nariz. — Estou pedindo pra você parar,
filha! — ponderou e sua respiração deu uma oscilada.
Teria que amenizar aquela situação, não queria ser
responsável pela piora da saúde da minha mãe.
Voltei a ficar em pé e, dessa vez, minha mãe me deixou
abraçá-la. Ficamos um tempo abraçadas. Alisei suas costas e beijei
sua têmpora.
— Preciso ir — avisei e afastei o corpo.
Seus olhos estavam marejados, eu me senti um lixo. No
entanto, não poderia parar. Era minha meta de vida. Se ninguém
fizesse nada, ele continuaria destruindo a vida das pessoas. E, pior,
suas proles seguiriam o mesmo caminho. Um círculo vicioso de
merda. Família desgraçada.
— Prometa, filha — suplicou, alisando meu rosto.
Inspirei forte e fechei um pouco os olhos.
— Desculpe-me.
— Estou te perdendo, Gabrielle. Não vê que está só piorando
a situação?
Coloquei seu rosto entre as mãos e beijei sua testa.
— Te amo, mãezinha, mais que tudo. Não me peça o
impossível, por favor.
— Pelo menos, prometa que vai voltar à terapia.
— Isso eu posso fazer — garanti e sorri de lábios fechados
— Deixa-me te acompanhar...
— Mãe...
— Na primeira consulta.
Assenti e a abracei novamente – respirando fundo. Como
explicaria para ela que terapia nenhuma consertaria o que ele tinha
feito com ela? Que o seu cheiro era muito melhor do que qualquer
remédio?

O caminho até o distrito foi excruciante. Repassava a


conversa que teria com Bento, assim que chegasse. Quantas vezes
pedi para ele não perturbar minha mãe? Ele que não viesse com a
desculpa de que eram amigos, eu não aceitaria. O fato de ele ter
sido um dos salvadores da minha mãe não lhe dava o direito de se
meter na minha vida.
Difíceis Decisões

Odiava a arrogância e prepotência do meu irmão mais velho.


Recriminava boa parte das atitudes do meu pai, também. Henry, na
verdade, é uma versão mais nova do senhor Isaac Bennett.
Entretanto, ser chamado de riquinho de merda, fez-me pensar se eu
realmente sou diferente deles.
Mariana apontou na porta com a cara assustada. Sorri e
balancei a cabeça – analisando novamente o currículo da garota com
sotaque caipira. É inacreditável como têm algumas regiões do
interior de São Paulo que o sotaque é tão arrastado. Não tinha a
intenção de ofendê-la, talvez, provocá-la, um pouco. Estava
gostando do nosso joguinho. Só não esperava que a garota fosse me
xingar e me deixar a ver navios.
— Entendo o porquê de a Vanessa ter gostado dela — admiti
e a feição de Mariana mudou para confusa.
— Você a contratou? Porque me pareceu ao contrário.
Dei de ombros e alarguei o sorriso.
— Gostei dela — confessei e fiquei em pé.
— Lucca, estou confusa, pode me atualizar? Estamos
desfalcados e a garota passou como um furacão por mim.
— Vou ficar com isso. — Ergui a folha. — Não se preocupe,
Mari, daremos um jeito — assegurei e bati em seu ombro. Ajeitei o
blazer e saí da sala.
Caminhei em direção ao elevador, com a Mariana me
seguindo. Ainda não sabia o que faria a respeito, mas tinha certeza
de que não deixaria aquilo ficar daquela maneira.
Apertei o botão para chamar o elevador e Mariana parou ao
meu lado – com a testa franzida.
— O que eu faço, agora?
— Continue o seu trabalho, deixa o resto comigo.
§§§§
Andressa entrou na minha sala e jogou a caixa com o celular
novo em cima da mesa. Sem dizer uma palavra, virou as costas e
saiu.
Ergui uma sobrancelha e fiquei encarando a porta. Não era
daquela maneira que eu queria que terminassem as coisas entre a
gente. Nos divertimos bastante, uma pena. Às vezes, achava que
Henry tinha razão. Sempre deixou claro que o envolvimento com
funcionários é só para causar problemas.
Pressionei o botão do ramal da minha secretária e aguardei
que atendesse.
— Fala — atendeu seca.
— Se sua intenção é ser demitida, está prestes a conseguir —
alertei-a e ouvi seu suspirar na linha.
— Sim, senhor Lucca, do que precisa, estou à disposição?
— Ligue para a Ágatha e peça pra ela me fazer aquela
perfeição de lanche. Vou almoçar na sala, hoje. Estou cheio de
pepinos pra resolver.
— Argh! Não sei como consegue comer aquele monte
gordura.
— Consegue fazer o que te pedi?
— Sim, chefe — desdenhou e desligou.
Novamente, ergui uma sobrancelha e balancei a cabeça.
— Deixei isso ir longe demais. Agora estou fodido, como vou
arrumar alguém pra substitui-la, tão rápido? — Enfiei o rosto entre as
mãos e uma ideia surgiu na minha cabeça. — Não, eu
enlouqueceria, sem contar que a tensão sexual entre a gente é
palpável. Seria trocar seis por meia dúzia.

Em pouco tempo, coloquei em ordem as pendências de cima


da minha mesa. Enquanto terminava de responder os e-mails, senti o
estômago roncar. Conferi as horas e quase não acreditei, passava
das quatro eu só tinha tomado café da manhã.
Fui apertar o ramal da Andressa e minha porta foi aberta
bruscamente.
— Não sabe bater?
— Desde quando preciso de permissão para entrar na sua
sala?
— Só o que faltava pra terminar de arruinar o meu dia é você
invadindo minha sala com sua prepotência.
— Se fizesse seu trabalho corretamente, eu não teria que
parar o meu para vir aqui.
— Do que está falando, Henry?
Meu irmão sentou-se de frente para mim, abriu os botões de
seu paletó e colocou os pés no tampo de vidro da minha mesa –
cruzando-as na altura dos tornozelos.
— Claro, fique à vontade, a sala é toda sua — ironizei e me
joguei no encosto da cadeira, desistindo de discutir. Com ele, sempre
é perda de tempo.
Antes que ele respondesse, a porta foi novamente aberta, só
que a pessoa era muito bem vinda.
— Entre, Ágatha — convidei a pessoa que trazia o que mais
eu desejava naquele momento.
— Atrapalho? — questionou, olhando diretamente ao meu
irmão.
— Quantas vezes tenho que dizer que não quero pessoas
estranhas aqui em cima, Lucca? — esbravejou, Henry – arrumando
sua postura.
— Ágatha não é estranha — rebati e fui até a ela. — Não ligue
pra ele, linda. Henry precisa transar.
Ela segurou a risada e balançou a cabeça.
— Está cutucando a onça com vara curta — cochichou ao
meu ouvido, enquanto nos abraçávamos.
— Achei que a prefeitura já tivesse tirado você da frente da
minha empresa, com aquela gerigonça. Vejo que terei que continuar
com as denúncias — atacou Henry.
Ágatha retesou o corpo e ficou séria imediatamente.
Detestava saber que tinha o mesmo sangue que aquele
imbecil. Como ele conseguia ficar cada vez mais intragável?
Meu irmão se referiu à Kombi que Ágatha tem seu negócio –
Food truck. É o melhor lanche da região. Com o tempo, depois de
algumas vezes que fui atendido fora do horário, descobri o quanto
Ágatha penou para conquistá-lo.
Em nossos momentos de bate-papo, ela me contou sobre sua
família. É mãe solteira e sua mãe sofre de Alzheimer. O estágio está
bem avançado e precisa de acompanhamento o tempo inteiro. Todo
o seu esforço é para manter a enfermeira e garantir a escola
particular do seu filho de quatro anos.
— Deveria cuidar mais dos seus negócios e esquecer do meu
— enfrentou meu irmão, se aproximando dele.
— É o que estava tentando fazer, antes de você vir, mais uma
vez, atrapalhar. — Henry levantou-se e se aproximou mais dela. A
distância dos dois era perigosa.
— Tudo bem, pessoal — ponderei, entrando entre eles e
empurrando de leve meu irmão. — Muito obrigada, Ágatha. Depois
passo lá pra acertar, tudo bem?
— Esse é por conta da casa, Lucca. Você deveria receber o
prêmio Nobel, por aguentar esse troglodita — atacou-o e saiu
rebolando.
Vi o maxilar do meu irmão se contorcer. No entanto, seus
olhos não se desviaram do traseiro da mulher. Ágatha tem um corpo
de babar. Olhando para ela, ninguém diria que já é mãe e tem um
trabalho pesado. Sem contar seu rosto, linda. É uma mulher incrível.
Henry me lançou seu olhar fulminante. Ergui as mãos –
rendendo-me.
Voltei à minha cadeira e comecei a abrir o lanche, precisava
comer, começava a sentir tremor. Abri a lata de Coca-Cola e Henry
entornou o nariz.
— Você não é normal, Lucca. Como pode chamar isso de
almoço? É suicídio.
Mordi o lanche e gemi, fechando os olhos. O sabor dos
deuses. Tomei um gole do refrigerante e estendi o lanche em sua
direção – oferecendo-o.
— Nem sob tortura, argh, que nojo! — Fechou o paletó e saiu
da sala, balançando a cabeça e fazendo careta. Sem dizer o que
tinha ido fazer ali, além de perturbar minha vida e ofender minha
amiga.
§§§§
Fiz o pedido e sentei-me em um canto reservado da
Starbucks. Enquanto tomava meu Frapuccino, terminava a
configuração do meu Iphone. O dia tinha começado e terminaria
muito mal. Estava com medo do que ainda poderia acontecer, além
de eu ter que dispensar Andressa e perder a secretária.
A presença do Henry na minha sala foi um sinal de alerta de
que eu tinha que terminar com tudo aquilo, o mais rápido possível.
Não queria uma reunião extraordinária com a diretoria, para tratar de
meus assuntos pessoais. Porque, seguramente, se a informação
chegasse aos ouvidos do Henry, isso aconteceria, sem sombra de
dúvida.
Andressa entrou me procurando, acenei e logo estava
sentando-se à minha frente.
Seus olhos estavam inchados e esse fato acabou comigo.
Detestava me passar por cafajeste. No entanto, nosso acordo era
mais claro do que águas cristalinas, e, mesmo assim, ela ultrapassou
os limites estabelecidos.
— Oi, o que vai querer? — perguntei e fiquei em pé.
— Só uma água, não estou passando bem... — disse
cabisbaixa.
Assenti e fui pegar sua água.
Voltei e Andressa continuava na mesma posição, nem parecia
a mulher ousada e atrevida que eu conhecia. Entreguei-lhe a água e
me sentei. Aguardei que terminasse de tomar.
— Andressa...
— Não precisa fazer rodeios, Lucca. Vou facilitar pra você, eu
me demito — vociferou e ficou em pé. Jogou o crachá da empresa
em cima da mesa. — Vou aguardar o RH entrar em contato comigo.
Tchau, Lucca Bennett. Tenha uma droga de vida, se é que isso é
possível a um Bennett. — Deu às costas e saiu.
Algumas pessoas ficaram me olhando, como se eu fosse o
pior ser humano da face da Terra. Talvez tivessem razão. Naquele
instante, sentia que era. O nome nunca me pesou tanto, quanto nos
últimos dias. Era como se fosse um castigo, ser um Bennett.
Quando meu pai me tirou da minha mãe, as palavras dela
nunca saíram da minhas cabeça:
“Não se deixe corromper pela podridão dessa família, filho.
Quando tiver a oportunidade, se liberte. Pode acreditar, um dia, vai
descobrir que ser um Bennett é um castigo.”
Chacoalhei a cabeça e levantei-me. Não tinha tomado nem
metade da minha bebida favorita. Abri o aplicativo do Uber e digitei o
endereço que me deixaria calmo, que faria com que eu recordasse
quem eu era de verdade – o da minha mãe.
Desistindo

As lágrimas escorriam pelo meu rosto sem controle. Meus soluços


estavam cada vez mais altos, enquanto eu tirava do armário as
poucas peças de roupas que tinha trazido comigo.
Joguei a mala grande – a única que tinha na casa dos meus
pais – em cima da cama e fui socando as roupas dentro, de qualquer
jeito.
Quando cheguei em casa, Mia tinha saído, resolveria algumas
coisas na rua e, depois, iria direto para o seu trabalho noturno.
Betina ainda não tinha chegado.
Calculei o tempo e comecei a arrumar todas as minhas coisas
para ir embora, antes que elas chegassem. Não queria que me
achassem fraca, elas não entenderiam. Por mais que eu explicasse,
ninguém entenderia. Se não fosse para trabalhar na Bennett, não
havia sentido para eu ficar ali.
Pensei com a razão, não tinha tanto dinheiro. Quanto tempo
eu demoraria para encontrar outro estágio? E, pior, tinha certeza de
que o salário não chegaria nem aos pés do que a Bennett oferecia.
A cidade onde fiz faculdade é relativamente grande. Fica a
oitenta quilômetros da cidade onde nasci e fui criada. Enquanto dirigi
de volta ao apartamento, esquematizei tudo. Ao invés de ficar na
capital, alugaria um apartamento lá. O valor, sem sombra de dúvida,
seria menor. Conseguiria um estágio, de repente, até um cargo fixo.
Mesmo que o risco de cruzar com o meu passado negro fosse maior.
— Por que... es... tá cho... ran... do tan... to, sua idi... ota! —
resmungava entre os soluços, comigo mesma. Eu sabia o motivo,
mas não admitiria, nem mesmo para mim.
O riquinho de merda tinha mexido comigo. Eu não queria, juro
que não. Como poderia? Nunca passou nem a sombra da ideia de
estar perto de um Bennett, imagine sentir o que senti?
Principalmente, depois de tudo que tinha acontecido comigo.
Quando ele saiu do meu carro, tive certeza de que tinha
estragado tudo, mas não achei que seria tão insultada, por ele.
Mesmo que de cara tenha visto o naipe dele, o achei paciente,
mediante o que tinha acontecido. Geralmente, os homens perdem a
razão, quando se trata de seus carros. Sua atitude na empresa me
pegou de surpresa.
Voltei minha atenção ao que fazia, buscando controlar as
emoções contraditórias. Tenho certeza de que, se minhas novas
amigas presenciassem aquela cena, me dariam um sermão dos bem
grandes.
Eu mal acabei de pensar, ouvi a porta da sala sendo aberta.
Engoli o choro e corri para o banheiro para lavar o rosto. Tranquei a
porta e fiquei, um tempo, controlando a respiração.
— Caipira, cadê você? — berrou, Betina, da cozinha.
Num apartamento pequeno, com três quartos, sala e cozinha
conjugadas, não precisava elevar muito a voz. Fiquei quietinha,
quem sabe, ela só tivesse entrado para pegar algo e sair correndo,
como costumava fazer... Ouvi seus passos pelo corredor.
— Que porra é essa aqui? — bradou e eu me encolhi.
Certamente, se referia à mala em cima da minha cama. E a bagunça
do quarto.
Seus passos se aproximaram e eu sabia que ela estava na
porta. Tentou a fechadura e viu que estava trancada, coisa que
dificilmente fazíamos.
— Eu sei que está aí, caipira. A Penélope está estacionada na
porta do prédio. Não mandei ter um carro pouco chamativo.
Silêncio...
Eu não tinha ideia do que lhe dizer. Não esperava que
voltasse tão cedo.
— Abra a porra da porta, cacete, está me deixando
preocupada!
Respirei fundo e criei coragem para abrir a porta.
Depois de um escrutínio, de uma eternidade, me puxou para
um abraço apertado. Não deveria ter feito isso. As lágrimas, que
achei terem acabado, voltaram com força total.
— Cara, seu rosto está uma catástrofe. — Afastou-me de seu
peito e colocou meu rosto entre suas mãos. — O sangue desceu
tudo para o seu olho. Cristo! Pavoroso! — Passou os polegares
pelas minhas lágrimas.
— Obri... ga... da por me ani... mar. Me sin... to bem me... lhor
a... go... ra. — Não sei como, mas ainda consegui ironizar o
momento.
— Venha aqui, me conte o que aconteceu. — Levou-me até o
sofá e nos sentamos de frente, com as pernas dobradas embaixo de
nossos corpos.
— Estou bem — funguei —, só chateada.
Betina sorriu sem vontade e balançou a cabeça negando.
— Está indo viajar pra onde?
— Vou embora.
— Sério? Deixa de ser covarde! — vociferou, estreitando os
olhos.
— Isso aqui não é pra mim.
— Sabe o que vejo? Uma garotinha do interior, que inventou
uma porcaria de fantasia e agora, diante do primeiro obstáculo, está
desistindo.
— Fala isso porque...
— Não importa o que aconteceu, a vida é assim, meu amor.
As pessoas só avaliam a pinga que a gente toma, mas não, os
tombos que levamos. Só vence quem cai e se levanta, quantas
vezes for necessário.
Baixei a cabeça e comecei a virar o anel de formatura no
dedo. Meus pais tiveram que juntar dinheiro, por alguns meses, para
poderem me presentear. Era uma forma de me conectar com eles.
Mesmo que tenha feito tudo contra a vontade deles, respeitavam
minha decisão.
— Vou tentar em uma cidade menor — justifiquei-me.
— Tudo bem, não quero te pressionar, só quero que decida as
coisas de cabeça fria. Tome um bom banho, coloque um daqueles
seus pijamas bregas e vá se deitar. Amanhã, prometo que eu mesma
te ajudo a arrumar as coisas. Terá tempo pra pensar.
Assenti. Embora soubesse que uma noite de sono não
mudaria minha decisão, Betina estava certa quanto a eu descansar.
Minha cabeça latejava, e meu rosto realmente estava assustador.
— Ok — concordei e sorri timidamente.
— Preciso ir, promete que estará aqui quando eu voltar?
Balancei a cabeça concordando.

Deixei a mala no chão e segui o conselho da minha amiga.


Enquanto a água escorria pelo meu corpo, pensava em tudo o que
tinha acontecido naquele dia. Como um pequeno acidente de carro
pode alterar os planos que você fez para uma vida? Não queria ser
dramática, mas quando consegui o estágio na Bennett, vislumbrei
todo o meu futuro. Daria o meu melhor, e, seguramente, conseguiria
ser efetivada.
Sempre fui muito dedicada, melhor aluna da sala, oradora da
turma. Não conseguia entender em que ponto tinha perdido o
equilíbrio com Lucca. Eu tinha que tê-lo deixado falar.
Puxei o cobertor e cobri a cabeça. Meu corpo implorava por
descanso, mas ainda era muito cedo para eu dormir.
Levantei-me e fui na cozinha procurar um analgésico, a dor de
cabeça não me dava trégua. Alcancei a caixa de primeiros socorros
que mantínhamos na parte de cima do armário da cozinha, tirei um
comprimido da cartela. No momento que joguei ele na boca e fui
beber água, ouvi o som de mensagem do meu celular.
Conferi as horas, quase oito da noite. Para os padrões dos
meus pais, tarde. Terminei de engolir o comprimido e voltei para o
quarto. Provavelmente era a Betina, preocupada.
Sentei na beirada da cama e peguei o celular em cima da mini
cômoda. Franzi o cenho e cheguei o corpo para trás.
— Quem é você? — verbalizei o que passou pela minha
cabeça.
Era um número desconhecido, porém a mensagem era de
uma pessoa que me conhecia.
“Olá, como está sua cabeça? Achei que seu rosto estava com
muito sangue, deveria ter dito. Como estava com curativo, deduzi
que foi ao hospital.”
Encarei o aparelho por uns segundos, sem saber o que
responder. E se fosse mais um louco na minha vida? Não bastava...,
mas, também, como poderia, ainda não inventaram formas de as
pessoas atravessarem os aparelhos celulares. Era só eu não
responder.
Coloquei o celular de volta onde estava e me deitei. A pessoa
era insistente, quase não deu tempo de eu me cobrir e chegou outra
mensagem.
“Se quer ignorar as pessoas, devia tirar o recibo de leitura. Eu
vi que leu.”
Dessa vez eu sorri, mas de nervoso. Decidi responder, mas só
para dispensar quem quer que fosse. Assim que enviasse a resposta
o bloquearia. Problema resolvido.
“É deselegante uma pessoa ficar mandando mensagem sem
se identificar.”
Já ia bloquear o número quando os pontinhos de digitando
apareceram. A curiosidade foi maior.
“Gosto dessa sua boca atrevida. Ass. Riquinho de merda.”
Chacoalhei a cabeça e reli a mensagem umas dez vezes.
Como assim? Eu só podia estar sonhando. Meus dedos começaram
a tremer. Comecei a achar que era alguém que soubesse da nossa
conversa e estava querendo brincar comigo.
“Olha só, não sei quem você é, não costumo falar com
estranhos. Vou te bloquear.”
Iniciei o processo de bloqueio o número ligou. Parei e hesitei
em atender. Ao mesmo tempo que era arriscado, se atendesse,
saberia se realmente era ele. Sem pensar muito, toquei no botão e
ataquei:
— Quem quer que seja, não estou num bom dia — fui
avisando, para deixar claro minha posição.
— Estamos quites, eu também não. Meu dia foi bem fodido,
não fosse uma garota linda cruzar o meu caminho, diria que foi o pior
em muito tempo.
Meu Deus... Meu Deus... Meu Deus... Meu Deus! É ele
mesmo. O que eu falo? Jesus, Maria e José!!!
Limpei a garganta, engolindo em seco e buscando retornos.
— É você mesmo? — inquiri sem conseguir acreditar.
— Ainda duvida? Vou te chamar por vídeo, espera aí.
— NÃO! — gritei, nervosa.
— Nossa, que medo, eu não vou te morder, não por telefone.
— O que quer?
— Não me disse como está.
— Uma droga — confessei.
— Posso ajudar de alguma maneira?
— Não estou entendendo o motivo da ligação. Sei que tem
meus dados no currículo, mas, se fui dispensada, por que está
ligando?
— Não me lembro de ter te dispensado. — Podia ser
impressão minha, mas sua voz tinha um tom divertido.
— Ok, mas não me tratou de maneira adequada, o que é a
mesma coisa.
— Quem disse?
— Está me deixando confusa e nervosa. Pode me dizer por
que me ligou?
— Fiquei preocupado, eu te disse, quero saber como está.
Respirei fundo e persisti:
— Continuo achando muito esquisito, mas, preciso dormir,
amanhã saio cedo e o caminho é longo. Então — suspirei —, vou
responder. Minha cabeça não para de latejar.
— O que o pessoal do hospital disse?
— Hum — gemi —, não fui no hospital.
— O quê? É sério? Não pode brincar com essas coisas.
Revirei os olhos. Para ele era fácil falar, iria ao melhor hospital
de São Paulo e teria o melhor atendimento. Queria ver se fosse em
um hospital público, só com um pequeno corte na testa. Não dariam
a mínima atenção. Não verbalizei o que passava pela minha cabeça,
era muito drama para um dia só.
— Se queria saber sobre minha saúde, estou bem. Nada que
um analgésico e uma boa noite de sono não resolvam.
— Vai viajar? — continuou, sem hesitar.
— Sim — limitei-me a dizer. Não devia satisfação a ele.
Principalmente pelo fato de ele ser a razão dos meus sonhos terem
ido por água abaixo.
— Volta quando?
— Estou voltando pra minha cidade.
— Uau! Superestimei você.
Tirei o fone do ouvido e olhei para a tela, desacreditando no
que tinha acabado de ouvir.
— Oi? Quem é você, mesmo? Acho que sei o que é melhor
pra mim e, agora, tenho certeza de que é voltar pra minha cidade —
afirmei convicta. Embora fosse uma baita mentira.
— Certo, achei que gostaria de trabalhar na Bennett, mas vejo
que o trabalho não é tão importante como eu pensava.
Quase engasguei ao ouvir o que ele disse. Não podia ser
verdade. O próprio Bennett me ligando, oferecendo emprego?
Determinação

Fazia algumas horas que eu havia chegado. Depois da conversa


com a minha mãe, não estava com vontade de interagir com
ninguém. Bento teve sorte de eu não ter ido diretamente à sua sala,
me segurei, pois, embora eu seja importante para ele, não muda o
fato de ele ser o meu chefe.
Tinha uma pilha de pastas na minha mesa, escondendo-me
de todos. Já tinha analisando várias vezes aqueles arquivos, em
busca de uma brecha, e não conseguira. Minha única saída seria a
testemunha que permanecia sob custódia da polícia.
Mesmo que a possibilidade de pegarmos o velho nojento
fosse quase nula, eu precisava me apegar a algo. Não podia perder
as esperanças.
Todas as vezes que eu chegava perto, Bennett encontrava
uma maneira de eliminar a ameaça. Até mesmo, o antigo funcionário
disposto a entregá-lo, estando debaixo de nossos narizes, eu temia
que o infeliz encontrasse uma maneira de acabar com ele. Não seria
a primeira vez, afinal, o que o salvou foi uma maldita sorte em uma
roleta russa.
Fechei a última pasta com força e me debrucei sobre ela.
Estava cansada, mas não admitiria. Talvez minha mãe tivesse razão,
eu deveria deixar o passado no passado, mas como se... Bufei.
— Ei, madame, seu servo trouxe seu combustível.
Ergui o rosto e meus lábios abriram-se involuntariamente. Meu
parceiro podia ser um pé no saco, na maioria do tempo, mas, tenho
que admitir que cuida de mim. É um dos poucos que me deixa falar,
sem dizer o que fazer. Mesmo não concordando, sempre me
acompanhou.
— Sabe que eu te amo, não é mesmo? — Essa é à nossa
maneira de demonstrar o quanto somos importantes um para o outro.
— Eu sei, só não deixa minha atual ficante ouvir, senão,
teremos problemas. Ela é um pouco, sabe... — Deu de ombros. —
Ciumenta.
— O quê? — Fiquei em pé e peguei em seu queixo, beijando
de leve seus lábios. — Sinto muito, por ela. — Sorri e o soltei,
pegando meu café e indo para a copa.
Nunca fui fã do café da cafeteira do distrito, por isso, João
Pedro sempre me traz meu preferido da StarBucks. Eu sei, é um luxo
desnecessário, mas não o obrigo. Aceito de boa vontade.
Encostada à pia da copa, tomando meu café e comendo um
sequilho, Bento parou à porta e ficou me encarando, com as mãos
no bolso.
Fingi demência e continuei curtinho meu momento. Sabendo
da persistência dele e do meu orgulho, alguém teria que ceder.
— Fiquei imaginando quanto tempo demoraria pra me
procurar — comecei e me virei, para organizar os itens que tinha
usado.
— Temos outra testemunha — comunicou com sua voz grave,
às minhas costas.
Soltei o que tinha nas mãos e virei-me bruscamente. Minha
respiração acelerou no mesmo instante.
— Desde quando?
— Ontem.
— Cacete! Gosta de me torturar. Por que não estamos
interrogando essa pessoa?
Seu habitual olhar sanguinário me fuzilou, enquanto
permanecia parado, com as mãos no bolso.
— Eu vou interrogá-la, não você.
— Quer mesmo me foder?
— Temos um caso novo, você e o Pedro têm que investigar.
— Esse é meu caso, Bento, não vou a lugar nenhum —
recusei-me e cruzei os braços, emburrando.
— Esqueceu-se quem manda aqui? — bradou e virou-se. —
Vocês têm dez minutos pra saírem da minha frente — decretou por
cima dos ombros, enquanto voltava à sua sala.
— Porra! — praguejei e saí da copa marchando. João Pedro
me esperava com um sorriso bobo nos lábios, sabendo que somente
Bento tinha aquele poder sobre mim, mais ninguém. Nem mesmo,
meu pai.
§§§§
No trajeto até o local do caso, João Pedro dirigia e cantarolava
a música que tocava no rádio – batucando os dedos no volante. O
humor dele, às vezes, me irrita. Não pode ter uma pessoa que
trabalha com algo tão estressante, ter um astral nas alturas.
Dificilmente, algo abala meu parceiro.
— Sabia disso? — interrompi sua cantoria e João Pedro
franziu o cenho, desviando a atenção da estrada para mim. — Não
faz essa cara de que não sabe do que estou falando.
Ergueu o canto dos lábios e fingiu não ter entendido,
continuando o que fazia.
Estiquei o braço e desliguei o som do carro. Sem me olhar, ele
fez o mesmo e o ligou novamente. Repeti o processo e ficamos
nessa luta de quem pode mais, por alguns minutos.
Claro que foi ele quem desistiu. Poucas pessoas conseguem
irritá-lo, eu sou uma delas. João Pedro soprou uma lufada de ar.
— Precisa desfocar dessa merda, Gabi. Quanto mais mexer
mais vai feder. O cara tem muito poder, vai se machucar, só estamos
tentando te proteger.
Dei um murro no painel e cerrei o maxilar.
— Quem pediu alguma porra de proteção, cacete? Quando
vão entender que só vou parar quando todos estiverem atrás das
grades?
— Você coloca todos no mesmo pacote, Gabrielle. Já
investigamos o suficiente pra saber que, provavelmente, os filhos
não têm conhecimento das atitudes do pai.
— Nem fodendo que eu acredito nisso!
O carro parou e João Pedro se virou para mim.
— Detesto quando você fica nesse estado. Parou a terapia,
não é mesmo?
Afundei o rosto entre as mãos e controlei a respiração, sentia
o coração bombar nos meus ouvidos. Segurei os lábios com os
dentes e esperei me acalmar, para erguer a cabeça novamente.
— Desculpe-me — sussurrei.
Meu parceiro meneou a cabeça e alisou meu antebraço.
— Precisamos descer e ver o estrago aí dentro. — Apontou
com a cabeça para uma fábrica que parecia abandonada.
Assenti e o acompanhei para fora da SUV.

Tampei o nariz e senti o estômago revirar com o mau cheiro.


O lugar estava pior dentro do que fora. Pela degradação, fazia muito
tempo que tinha sido abandonado.
— O que estamos procurando? — questionei João Pedro, que
andava na espreita, com a mão no coldre, pronto para pegar sua
Glock, se necessário.
— Shiiiii — repreendeu-me e deu mais uns passos. Apontou
com o indicador para o lado oposto dele, para que eu desse
retaguarda.
Não precisamos adentrar muito para ouvirmos gemidos. O
cheiro ficava cada vez pior, carniça misturado com sangue, estava
ácido demais – queimando as narinas.
Descobrindo o foco dos gemidos, deixamos nossas armas em
punhos e nos aproximamos. Meu parceiro fez um gesto para eu dar
cobertura, pois chutaria a porta para entrarmos.
O barulho foi estrondoso, com a força que João Pedro colocou
em seu pé. Assim que a porta foi aberta, embora eu já esteja
acostumada com cenas horripilantes, aquela conseguiu superar
qualquer outra.
Mulheres e crianças amontoadas em um canto, sujas e
algumas machucadas. Colchões no chão junto com baldes cheios de
fezes.
Levei o antebraço ao nariz e controlei a onda de náuseas.
As pessoas nos olhavam assustadas e se agarravam mais
ainda uma nas outras. Eram muitas e o espaço era pequeno demais.
— Fiquem calmas, vamos tirar vocês daqui — apaziguou,
João Pedro e foi se aproximando delas. Deixando-as mais
apavoradas. — Olhem só, vou guardar minha arma — avisou e
colocou sua Glock de volta ao coldre, com uma das mãos
levantadas. No entanto, não pareceu deixá-las seguras.
Enquanto meu parceiro tentava acalmá-las, eu vasculhava o
local em busca do cheiro fortíssimo de sangue e carniça. Não
precisei procurar muito para achar o cerne do odor, afinal, a sala que
estavam não era tão grande.
Prendi a respiração e fechei um pouco os olhos, sentindo as
lágrimas escorreram nos cantos dos olhos.
Têm coisas na vida que, mesmo que presenciarmos várias
vezes, nunca vamos nos acostumar.
— João — chamei, com muita dificuldade.
Ele se aproximou e entortou o nariz, virando um pouco o
rosto.
— Ele não estava sob custódia?
Meu amigo não respondeu, balançou a cabeça e chutou uma
lata vazia para o canto da sala.
A Oferta

A garota não saiu da minha cabeça o dia todo. Cada vez que me
lembrava de seu rompante, me xingando de riquinho de merda, eu
sorria.
Ainda não tinha decidido o que fazer com ela. Li seu currículo,
e, mesmo não tendo experiência, cursou uma excelente
universidade. Fiquei admirado, pois a instituição é paga e cara. Das
duas uma: ou ela estava se passando por menos favorecida; ou era
muito inteligente e conseguira bolsa de estudos. Eu apostaria na
segunda opção.
Honestamente, Valentina deixou-me intrigado. Teria que
encontrar uma maneira de trazê-la de volta. Estando por perto,
descobriria por que ela me chamou tanto à atenção. Claro que a
beleza da garota é um fator predominante.
Desde o momento em que ela desceu daquela lata rosa, eu
soube que era diferente. Nenhuma garota da capital senta no chão,
no meio de uma avenida movimentada, na cidade de São Paulo, e
chora por causa de uma porta amassada de um carro velho. Foi ali,
no meio da rua, vendo-a determinada a acusar-me, que me encantei
por ela.
— Não vai comer, filho?
A voz doce e melódica da minha mãe tirou-me dos meus
devaneios. Nem tinha percebido que só cutucava a macarronada
com o garfo. Sorri e estiquei o braço, alcançando a mão da minha
mãe por cima da toalha de mesa – apertando-a.
— Adoro sua comida — elogiei e ela respondeu com outro
sorriso. Voltamos a comer em silêncio.
Minha mãe mora em um condomínio fechado na grande São
Paulo. Fica um pouco longe da minha cobertura, mas foi escolha
dela. Ela gosta do conforto e calmaria do bairro, além de se deliciar
com suas plantas. Segundo ela, quanto mais perto de prédios e
carros, pior para suas preciosidades.
Meu padrasto é tranquilo, tem um trabalho em casa, o que
proporciona aos dois ficarem juntos a maior parte do tempo. Acabo
visitando-os pouco, pela distância e os compromissos da empresa.
Entretanto, quando posso, no pouco tempo que fico com eles,
consigo resgatar o que tem de melhor em mim.
Sou proibido de falar de trabalho com minha mãe, tocar no
nome do meu pai é o mesmo que ser desconsiderado seu filho. Ela
respeita minha decisão em permanecer com ele, sabe o quanto é
importante para mim estar trabalhando na empresa. Mas continua o
detestando.
— Como é nome da garota? — questionou de repente.
Eu estava levando uma garfada à boca e parei no meio do
caminho.
— O quê?
— Mãe sabe das coisas.
Bufei e ri, chacoalhando a cabeça.
— Não sabe não.
— Quer que eu pegue as cartas? Elas vão me contar tudo.
Odeio a crença estranha dela. Mesmo que respeite, sempre
tive um certo medo. Essa coisa de invocar coisas do além não me
deixa muito confortável. Não seria mais fácil se ela simplesmente
fosse uma beata?
Fiquei em pé e levei meu prato à pia – desconversando.
Quando me virei, dei um pequeno pulo, ela já estava virando aqueles
troços e sorrindo.
— Sabe o quanto esse negócio me assusta, mãe.
— Ela bonita e... — Virou outra carta. — Ingênua. — Respirou
fundo e ergueu o rosto, com um sorriso de satisfação. — Gostei dela,
quando vai trazê-la pra me conhecer?
Passei os dedos pelos cabelos e ri sem vontade, balançando
a cabeça.
— Achei que tivesse parado com essa bruxaria — recriminei-a
e caminhei até à sala. Peguei meus pertences. — Preciso ir. — Fui
até ela e beijei sua testa.
— Ela é especial, filho, não a machuque — sussurrou ao meu
ouvido, enquanto me abraçava.
Decidi por não responder, não valeria a pena. Nada do que eu
dissesse mudaria o que as malditas cartas tinham enfiado na cabeça
da minha mãe. Até porque, era sempre a mesma coisa, elas, de
alguma maneira bizarra, acertavam o que estava acontecendo na
minha vida.
§§§§
Verdade seja dita, Sebastião fez muita falta. Detestei ter que
andar de Uber para cima e para baixo. Não achei que ficaria sem
carro, quando decidi lhe dar folga. Eu nunca admitiria para ele, caso
contrário, não poderia mais ir à esquina sem que ele estive no meu
encalço.
Entrei na minha cobertura e me joguei no sofá, tirando os
sapatos e os jogando longe. Inclinei a cabeça no encosto e fechei os
olhos. Fiquei um bom tempo na mesma posição, em silêncio, se é
que morar na região da Paulista tenha algum momento tranquilo.
Quando menos esperava, lá estava o rosto dela, novamente
dominando minha mente. Algo que nunca havia me ocorrido, estava
prestes a acontecer. Lutava contra a necessidade pavorosa de entrar
em contato com ela. Ouvir sua voz. Saber quais eram seus próximos
passos. Eu precisava, e nem sabia o porquê.
Ergui o tronco e passei as mãos pelos cabelos, ponderando
se ligava ou não. Eu tinha ficado com o currículo dela, porque já
sabia que, em algum momento, entraria em contato. Só não
esperava que fosse no mesmo dia, nem – muito menos, àquele
horário.
Alcancei o celular e fiquei brincando com ele entre os dedos,
pensando o que eu falaria para a garota. Não queria parecer
pessoal, no entanto, naquele horário, seguramente seria o que
pareceria.
Depois de criar coragem e trocar algumas mensagens, fui
obrigado a ligar, no fim das contas, a garota não era tão ingênua
como as cartas a descreveram.
— Ainda está aí? — balbuciei na linha, tentando não
demonstrar o quanto me decepcionou saber que ela estava partindo.
Se nem eu mesmo estava entendendo nada, como lhe explicaria?
— Você me ligou... — Limpou a garganta. — Pra me pedir pra
voltar?
Ri, um pouco mais alto do que pretendia.
— Você é pretenciosa.
— Eu sou? — A voz dela já não estava tão segura como
antes. Isso é bom — pensei.
— Como posso te pedir pra voltar de onde você ainda não
tinha ido? — provoquei, pois estava gostando do lado agressivo dela.
— Acho que deveria se informar melhor, o estágio já era meu
— afirmou, voltando a ter a voz segura.
Meus lábios se expandiram. Era daquela garota que eu
gostava.
— Não estou falando de estágio. — Valentina começou a
tossir na linha, compulsivamente. Aguardei uns minutos. —
Valentina?
— Desculpe-me.
— Então?
— Está me oferecendo uma vaga de emprego?
— Vou ter que desenhar?
— Nossa... não precisa... — suspirou — esquece.
— Está com medo de falar a verdade e perder o emprego? —
Eu não conseguia parar de provocá-la. Queria passar a noite ali,
ouvindo sua voz com o sotaque arrastado.
— Você é bem arrogante e atrevido.
Me acomodei no sofá e decidi mudar o rumo da conversa.
Precisava saber se teria qualquer chance com ela. Eu sabia que
estava indo pelo caminho mais perigoso. Mas os Bennett adoram
jogar, é o que sabemos fazer de melhor.
— As mulheres costumam gostar — comecei o jogo.
Silêncio.
Respiração pesada.
— Devo voltar amanhã? Procuro a Mariana? — desviou o
assunto, atiçando-me mais ainda. Com sangue Bennett correndo nas
veias, jamais que eu recuaria.
— Me procure. — Aguardei uns instantes. — Estarei à sua
espera — sussurrei, propositalmente.
— Olha só, o que vou ter que fazer pra conseguir esse
emprego? Não estou gostando do rumo que a conversa está
tomando. E, sinceramente, é muito estranho você me ligar a essa
hora pra me oferecer emprego. Que tipo de pessoa você pensa...
— Ou... ou... ou... Devagar aí, garota, só estou brincando —
cortei-a. Não queria pagar para ver o que mais poderia sair daquela
boca.
— Certo, eu vou, mas prefiro falar com a Mariana —
determinou, sem hesitar.
— Uau! Você quem dá as cartas, agora?
— Só pra deixar claro, não fui eu quem te ligou — rebateu de
imediato.
— É justo.
Silêncio novamente.
— Bom, preciso dormir, amanhã começo em um emprego
novo. — O tom de sua voz demonstrava que sua guarda tinha
baixado um pouco.
— E seu chefe é exigente.
— Não espero menos.
— Fico feliz em saber.
Mais silêncio.
Estava ficando estranho aquilo, as palavras, que nunca me
faltaram, resolveram sumir. Tudo que pensava em dizer parecia
banal. Não queria que ela me achasse fútil. Embora fosse a imagem
que eu passasse. Por algum motivo incógnito, queria que ela me
enxergasse de verdade. Não o Bennett riquinho de merda, como ela
disse.
— Então... boa noite, acho — quebrou o silêncio, com a voz
bem baixa.
— Passou sua dor de cabeça?
— Qual o seu problema?
— No momento?
— Ah, deixa pra lá!
— Ok, Valentina, boa noite, até amanhã.
Não esperei a resposta, desliguei, antes de puxar outro
assunto, só para ficar ouvindo a voz dela.
Deitado no sofá, fechei os olhos e coloquei o antebraço sobre
eles. O sorriso teimava em ficar no meu rosto. O dia tinha sido, no
mínimo, interessante.

Um som alto e irritante soava ao longe, não conseguia


identificar. Abri os olhos e me contorci:
— Ai!
Sentei-me e estralei o pescoço, em seguida, estiquei os
braços à frente do corpo. Tinha dormido no sofá. Nem banho tomei.
— Alô — atendi logo o maldito celular, o barulho irritante
parecia estar dentro da minha cabeça.
— Você demitiu sua secretária? — bradou Henry na linha.
Respirei fundo e bufei.
— Que horas são, cara?
— Garanto que já amanheceu, o suficiente pra eu saber que
continua fazendo merda na empresa.
— Vá se foder! — xinguei e me levantei, caminhando em
direção à suíte. Verifiquei que ainda eram seis da manhã.
— Como vai fazer sem secretária?
— Vou dar um jeito.
— Sei bem o jeito que vai dar.
— Quando foi que não cumpri com meus compromissos na
empresa, Henry?
Meu irmão poderia me acusar de não gostar de formalidades,
de não frequentar reuniões insuportáveis, entretanto, no meu
trabalho, nunca dei motivos para tal acusação. O problema é que ele
sempre gostou de pegar no meu pé.
— Que seja, Lucca. O que aconteceu com a Andressa?
Limpei a garganta e pensei no que responder. Se eu dissesse
o verdadeiro motivo, Henry faria uma tempestade em um copo de
água.
— Não sei ao certo, algo a deixou descontente, chegou pra
mim e disse que não viria mais.
— Estranho, vou investigar.
— Se meta com a sua vida, deixa que dos meus assuntos
cuido eu — vociferei. Ouvi seu suspirar na linha.
— Espero que saiba o que está fazendo, Lucca. Não quero
nada respingando no nome da empresa.
— Tchau, Henry! — Mal acabei de me despedir, já tinha
desligado e jogado o celular em cima da cama.
Dormir no sofá não tinha sido uma boa ideia, porém, acordar
com o meu irmão torrando minha paciência – foi muito pior.
Enquanto tomava um banho, pensava o quanto minha vida
está vazia, sem propósito. Tudo que faço é em função dos
compromissos da empresa. Não me lembro qual foi a última vez que
tive uma noite descontraída, em um lugar bacana. Tirando as
reuniões sociais, cheias de formalidades, que fui obrigado a
frequentar, tudo o que fiz, foi trabalhar. Claro que tive minhas
diversões com a Andressa, mas todas em meu apartamento.
Valentina... Ah, Valentina... A chave de tudo!
Vamos Jogar?

Dessa vez, não cometeria o mesmo erro. Acordei bem mais cedo,
me arrumei de acordo e tomei um rápido café. Conversei com a
Penélope e combinamos de ela colaborar. Acho que entramos em
um acordo, pois, logo de cara, ela pegou, sem que eu precisasse dar
um tranco.
Prestei mais atenção às placas de trânsito, principalmente nos
balões. Ou, seja lá, qual for o nome daquele negócio redondo, onde
os carros quase se batem quando estão tentando entrar. No meu
caso, se bateram.
Ainda bem que cheguei bem mais cedo, porque não encontrei
lugar para deixar o carro. Os poucos estacionamentos que perguntei
o preço da diária, quase engasguei. Quem consegue comer,
pagando esses valores para estacionar o carro? Meu Deus, que
coisa de louco! Acabei deixando o carro umas três quadras de
distância e, ainda assim, bem fora do meu orçamento.
— Entendi porque vocês andam espremidos nos metrôs —
resmunguei, a caminho da empresa. Sorte o clima de São Paulo ser
uns bons graus abaixo do que na minha cidade, caso contrário,
chegaria molhada de suor.
Parei diante da porta e ajeitei a roupa. Segui o conselho da
Mia e coloquei uma de suas roupas, assim que receber o primeiro
salário, terei que comprar algumas peças de roupas. Não sei como
farei, prometi aos meus pais que mandaria um pouco de dinheiro
para eles. Não consigo pensar neles trabalhando naquela fazenda,
sozinhos. Sei que, no começo, não vou poder ajudar muito, mas farei
o meu melhor.
Não deixei o prédio imponente, com vidro espelhado, me
intimidar. Não era a primeira vez que estava ali e não seria a última.
Ergui o queixo e entrei pelas portas giratórias. Chegando ao
balcão de atendimento, me identifiquei e logo me entregaram um
crachá provisório. O sorriso teimava em enfeitar meu rosto. Não
queria parecer caipira, embora minhas atitudes e sotaque me
denunciassem.
As portas do elevador se abriram e abri mais o sorriso para as
pessoas que estavam ali.
— Bom dia! — cumprimentei toda alegre e recebi olhares de
esguelhas. Uma, ou duas, menearam a cabeça. Credo, que gente
triste!
A caixa de aço era enorme, maior do que a lavanderia do
apartamento que divido com minhas amigas. Estava quase repleto
de pessoas. A maioria concentrada na tela de seus celulares. Eu
nem sabia onde que o meu estava, esperava que o tivesse colocado
dentro da bolsa, não tenho muito o hábito de usá-lo.
Em cada andar que o elevador parava, descia uma leva de
pessoas. Saíam inquietas, sem se despedir. Aquilo era ruim. Se
estavam todos os dias ali, na certa se conheciam, mesmo que só de
vista.
Finalmente, chegou no andar que eu desceria, ainda ficaram
algumas pessoas. Antes de sair, virei o rosto e me despedi, mesmo
que as pessoas me achassem caipira, era melhor do que sem
educação. Meus pais não ficariam nada felizes se soubessem de
uma atitude feia daquela vinda de mim.
— Até logo — disse sorrindo. Mais uns meneios de cabeça.
Dei de ombros e segui. — Pelo menos a minha parte eu fiz —
resmunguei para mim mesma.
Diante das portas duplas, com letras pratas, respirei fundo e
entrei. A primeira pessoa que me viu foi a Mariana, arregalou os
olhos e levantou-se rapidamente, vindo ao meu encontro.
— O que faz aqui? Não disse pra esperar a Vanessa voltar?
— Sua expressão estava aflita, como se eu estivesse cometendo um
crime.
— Nossa, que costume feio que os paulistas têm de não falar
bom dia — recriminei-a sem pensar.
Mariana franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado, sem
entender nada.
— Bom dia, Valentina — corrigiu-se. — Não temos esse
costume e somos bem-educados, por sinal, é que você me assustou,
confesso.
— Bom dia, achei que o seu chefe já tinha avisado, ele...
— Bom dia, Mari, vejo que a nova integrante da equipe já
chegou.
Estremeci, sem mesmo me virar para confirmar de quem era
aquela voz. Puxei uma lufada de ar e segurei o lábio inferior nos
dentes. Eu não poderia estar tendo aqueles tipos de sensações, não
ali, ouvindo a voz de ninguém menos do que um dos donos da
empresa. Seria muita burrice minha. Se quisesse ganhar espaço ali,
mostrar meu potencial, teria que controlar meus instintos. Já os
deixei me prejudicar uma vez.
— Bom dia, Lucca, nova integrante? — inquiriu, Mariana –
franzindo mais sua testa.
— Sim, contratei a Valentina para o cargo que estava vago.
— Como assim? Ela não tem experiência, e... — Algo fez com
que Mariana parasse. Deduzi que fosse a feição de Lucca. Ela
recuou, meneou a cabeça e calou-se – permanecendo no mesmo
lugar.
Até então, eu continuava de frente para a Mariana e de costas
para ele. Me preocupei com a expressão da Mariana quando soube
que eu tinha sido contratada e não iria apenas estagiar e me virei.
Não sei se foi uma boa ideia. O que é isso? Meu paizinho do céu!
Se no dia anterior, a beleza dele tinha me encantado, não
saberia descrever aquele momento. Os cabelos estavam úmidos e o
cheiro almiscarado quase me tirou a capacidade de respirar. A barba
por fazer tinha crescido um pouco, deixando seu rosto bem...
másculo. Abri a boca para cumprimentá-lo e a voz não saiu. Sem
perceber, estanquei com a boca meio aberta.
O erguer de apenas uma sobrancelha e o sorriso torto, deixou
claro que eu não estava conseguindo disfarçar o que ele estava
provocando em mim.
— Bom dia, Valentina, como está sua cabeça, hoje? —
cumprimentou e se aproximou, olhando mais de perto o curativo na
minha testa.
Engoli em seco e tentei não surtar, sentindo o calor de sua
respiração no meu rosto. Estava tão perto que poderia tocá-lo. Não
tive controle dos meus olhos, quando desceram exatamente para os
poucos pelos do pedaço de peito que os primeiros botões da camisa
abertos me presentearam. Uma vontade insana de baixar o rosto e
passar o nariz ali, poder absorver melhor o seu cheiro. Cristo!
Chacoalhei a cabeça, desvencilhando qualquer pensamento
inapropriado.
— O gato comeu sua língua novamente? — sussurrou,
aproximando sua boca do meu ouvido. Instantaneamente, dei um
pequeno pulo para trás, apavorada com o que meu corpo estava
aprontando comigo. Traidor.
— Er... Bom dia, Lucca... desculpe-me, senhor. — Me
embananei toda nas palavras.
— Achei que já soubesse o quanto odeio que me chamem de
senhor. Apenas Lucca, linda! — alertou-me e bateu com a ponta do
dedo na ponta do meu nariz. Assenti e segurei a bolsa – que
transpassava meu corpo – mais forte.
— Lucca, podemos conversar um instante? — pediu, Mariana.
Ele estreitou os olhos e ficou pensativo, por uns segundos, na certa
ponderando se deveria aceitar o convite.
— Mari, eu sei o que vai me dizer e você tem razão, Valentina
não tem experiência, no entanto, vou apostar. — Virou-se novamente
para mim. — Gosta de jogar, Valentina?
Olhei dele para a Mariana, uma três vezes, tentando entender
que espécie de pergunta era aquela. Seu rosto tinha um ar de
malandro, não queria pensar que ele estava brincando comigo,
porém, era exatamente o que estava parecendo.
— Depende — respondi por fim, com a voz um pouco falha.
Um sorriso de canto dançou em seus lábios, mostrando-me o
quanto seria difícil controlar as reações que cada gesto dele causava
em mim. Sorte a minha que a sala dele era na diretoria.
Com dois passos, ele estava a milímetros do meu corpo.
Prendi a respiração e nossos olhos travaram uma luta silenciosa de
quem pode mais.
Sempre soube o que os homens buscam em uma mulher,
principalmente uma como eu: sozinha, almejando crescer na
carreira. Meu sinal de alerta precisava se manter ligadíssimo. Por
isso, comecei a me detestar, por estar demonstrando fraqueza a um
homem que claramente só estava querendo me levar para cama.
Precisava demonstrar firmeza, pois, não era só minha decência que
estava em jogo e sim, minha carreira. O que tinha deixado para trás
já era o suficiente para me aporrinhar pelo resto da minha vida.
— Depende do parceiro? — murmurou e sorriu de verdade,
sem tirar os olhos dos meus. Ele não me tocou em momento algum,
mas só o fato de estar muito perto, a ponto de eu sentir o calor do
seu corpo, estava me desestabilizando. Recuei.
As pessoas em seus aquários, já começavam a se levantar,
esperando por outro espetáculo. Não daria aquele gostinho a elas.
Estava ali para ser profissional e o faria.
— Se está se referindo a parceiro de trabalho, sim. Gosto de
desafios, a adrenalina nos mantém em alerta — elucidei com
clareza, cuidando para que nenhuma palavra tivesse sentido duplo.
Abri um sorriso tímido e dei mais um passo atrás, mantendo uma
distância segura.
— Ótimo, que comece o jogo! — afirmou e saiu andando, sem
dizer se eu deveria acompanhá-lo.
Mariana fez um sinal com a cabeça para que eu o seguisse.
Respirei fundo e acelerei o passo. Paramos em frente a um dos
aquários e ele abriu a porta, fazendo um sinal para eu entrar.
A sala era espaçosa, com uma vista perfeita para a avenida
Paulista. Assim como o restante do andar, a decoração minimalista e
moderna, com cores vibrantes misturadas com muito branco.
Uma mesa com pés cromados e tampo de vidro, ocupava a
maior parte da sala. Uma cadeira confortável atrás dela e duas, uma
amarela e a outra azul celeste, em frente. Ao lado da mesa, um
móvel com vários casulos, intercalando as cores das cadeiras com
branco. Em cima da mesa, um monitor enorme com o símbolo da
maçã. Segurei a voz para não dizer “Uau!”. Só tinha visto um
daqueles na faculdade, na sala do reitor.
— Sente-se. — Apontou à sua frente e sentou em uma
confortável poltrona de couro branco, que até então eu não tinha
visto, no canto da sala.
Me acomodei em uma poltrona, como a dele, e ficamos de
frente. Fiquei um pouco incomodada com o seu olhar. Era muito
intimidador, parecia que estava lendo minha alma. Fiz o possível
para não alterar a respiração. Sentia o retumbar acelerado do meu
coração em meus ouvidos.
— Bonita sala, é da Vanessa? — perguntei aleatoriamente,
olhando em volta – na tentativa de aliviar aquela tensão. Se
continuasse daquela maneira, em qualquer teste que ele decidisse
fazer comigo, eu falharia vergonhosamente.
— Pode ser sua, só depende de você.
Olhei rapidamente para ele, com os olhos arregalados e a
boca escancarada.
— Minha? — Apontei para o peito, formando várias linhas de
expressão na testa.
— Não disse que gosta de jogar? Faz parte do jogo. — Sua
postura estava tão relaxada, que comecei a achar que era um teste.
Ri de nervoso e chacoalhei a cabeça.
— Qual é a pegadinha? O que espera que eu faça? É um
teste, confessa? — despejei o que passava pela minha cabeça, sem
hesitar.
Esse é o meu maior defeito, não costumo pensar antes de
falar. Minha espontaneidade beira à ingenuidade. Só pioro as coisas.
Já tenho que enfrentar preconceito por ser do interior, com sotaque
forte, agindo impetuosamente, não vou muito longe. Bufei, só em
pensar.
— Você é incoerente, sabia? — Lucca chegou com o corpo
mais para frente, inclinou o tronco e apoiou os cotovelos nos joelhos
– cruzando as mãos na frente do corpo. Não respondi, esperei que
se explicasse melhor. — Tem momento em que tenho certeza de que
venceria um leão e, em outro, como esse, até mesmo um gatinho te
faria sair correndo.
— Estou... — suspirei e organizei os pensamentos — estou
pronta — assegurei e ergui o tronco – demonstrando segurança.
— Essa é minha garota — comemorou e alcançou minha mão
– colocando-a entre as dele.
Era tudo que eu precisava para voltar a ficar instável. Droga!
Pense na merda que te aconteceu lá atrás... pense... pense! Eu tinha
que desviar meu pensamento daquele momento. Se me focasse no
fato de a minha mão estar entre as dele, de seu polegar estar
fazendo círculos em meu punho, de o contato de nossas peles estar
enviando sinapses elétricas contínuas ao meu cérebro, de o meio
das minhas pernas começarem a formigar, sairia correndo, como ele
disse.
— Ei, está tudo bem? — Fiquei em pé de uma vez e me
aproximei da janela, sentindo meu rosto queimar.
De costas para ele, me abanei discretamente, respirando com
dificuldade. Droga... Droga... Droga! Que merda de sensações eram
aquelas que estavam me tirando do meu cerne.
Um frio na espinha me avisou de que ele estava próximo
novamente. Começava a me assustar com o que estava sentindo.
Mantenho distância dos homens, apenas uma vez abri a guarda e o
resultado foi péssimo. Escorregar de novo, seria o fim.
— Vou diminuir a temperatura do ar condicionado — avisou às
minhas costas. Senti o resvalar de seu corpo no meu, quando foi
pegar o controle do ar condicionado que estava sobre a mesa. Não
sei se foi de propósito. Não quis me arriscar olhar para ele para
descobrir.
Uns segundos se passaram e o calor de seu corpo estava
aquecendo minhas costas.
Meus cabelos escorridos foram colocados de lado e, no trajeto
desse movimento, as pontas de seus dedos tocaram meu pescoço,
terminando de me desmanchar. Seria impossível me concentrar com
ele ali. Esperava que terminasse logo, assim, raríssimas vezes o
veria.
— Acho melhor tirar essa jaqueta, está quente hoje — ciciou
ao pé do meu ouvido.
Cerrei os olhos e suspirei. Ok, tenho que reagir!
— Diga-me o que tenho que fazer e termina logo com essa
tortura — cuspi, virando-me em sua direção.
Lucca não recuou nem um milímetro, o que só piorou a
situação para mim. Estar diante daquele pedaço de peito à mostra,
juntando com o cheiro tentador que exalava dele, meu fim estava
decretado.
Ergui o rosto lentamente, descobrindo que sua altura é uns
bons centímetros a mais do que a minha, e olhei em seu rosto. O
sorriso maroto estava ali e a sobrancelha questionadora o
acompanhava.
— Estou te torturando? — inquiriu com tom divertido.
Engoli em seco e não soube como responder. Todas as
palavras do meu vocabulário foram surrupiadas. Nada...
simplesmente nada, me ocorria naquele momento. Qualquer coisa
que saísse da minha boca me denunciaria. Não tinha a menor
possibilidade de eu me safar do que tinha deixado escapar.
Neguei com a cabeça, porque era minha única saída.
Ele inclinou o rosto em minha direção e meu corpo virou
gelatina, queria dar uns passos para trás, mas o comando do cérebro
foi ignorado pelas minhas pernas.
— Hora do jogo — ciciou com o rosto bem próximo do meu.
— Não sei... o que quer dizer com isso — declarei, prevendo o
meu fim, antes mesmo de começar. Porque, certamente, se o teste
era que eu fosse forte a ele, estava reprovada. Não precisava ser
muito inteligente para constatar.
— Vai descobrir — afirmou e se afastou, caminhando até a
porta. Antes de sair, virou-se para mim e concluiu: — Vou pedir pra
Mariana te passar o serviço, nos vemos por aí.
Como estátua, permaneci, assimilando o que tinha acabado
de acontecer.
A Testemunha

Meus pés praticamente afundavam o piso do distrito. Passei como


um foguete por todos. Meu alvo era ele: Bento. Se pela manhã tinha
me controlado, depois do que acabara de presenciar, nada me
seguraria. Ele teria que me dar explicações. Por que estava
dificultando tanto as coisas?
— Cadê ele? — inquiri, assim que cheguei à sua sala
escancarando a porta, não o encontrando.
Meus colegas de trabalho pararam o que faziam e me
encararam com vários pontos de interrogação em suas testas.
— Está interrogando uma testemunha — avisou-me um deles,
com ar desconfiado.
Ele mal terminou de falar, corri para o local onde poderia ouvir
e ver o que acontecia dentro da sala, através do espelho e da caixa
de som que reproduzia o que o microfone da sala transmitia.
Me acomodei na sala escura. Controlei a respiração e me
foquei na testemunha.
Uma mulher muito bonita. Estava sem sua ficha, porém
aparentava ter uns trinta anos. Alta, loira, com o corpo esbelto.
Cabelos e unhas longas. O mesmo estereótipo que o filho da puta
fisgava.
— Vou te pegar, miserável, nem que custe minha vida —
garanti, achando que era somente para mim.
— Isso nunca vai acabar, não é mesmo, Gabi?
A voz grave do João Pedro me assustou. Principalmente pela
seriedade com que as palavras saíram.
No momento em que chegaram os reforços, peguei uma das
viaturas e voltei ao distrito, como um avião. Nem o comuniquei.
Estranhei o fato de ele já estar ali, ao meu lado, me recriminando –
como todos adoram fazer.
— Não é problema seu, tem total liberdade de pedir pra trocar
de parceira — ataquei-o sem olhá-lo. Meus olhos não se desviariam
da cena à minha frente.
Era a primeira vez que uma delas estava tendo coragem de
abrir a boca. O dinheiro sempre as calou, mesmo que o desgraçado
tenha destruído a parte psicológica de todas elas.
As mais fracas cometeram suicídio, mas quem conseguiria
provar? O velho asqueroso tinha argumento para todas as
acusações. Mas não existe crime perfeito, em algum momento, ele
vai cometer um deslize e eu estarei em posição de ataque para o
trancar atrás das grades.
— Vi em sua ficha que não é de São Paulo — questionou,
Bento. A mulher assentiu e espremeu sua bolsa ao peito. — Pode
colocar a bolsa em cima da mesa — sugeriu e ela acatou. O tremor
de sua mão era visível, mesmo para quem estava atrás do espelho.
— Olha o que ele faz com elas, João. Como quer que eu
desista de pegá-lo? Sei do poder que ele tem, alguém tem que pará-
lo e esse alguém sou eu — argumentei e olhei para o meu parceiro,
parado ao meu lado.
João Pedro não respondeu, nem me olhou. Passou a mão
pela barba baixa e meneou a cabeça, sem desviar os olhos da sala.
Ainda estávamos atordoados com a cena que encontramos na
fábrica abandonada. Inacreditável, porém, o Bennett conseguiu
exterminar nossa testemunha e, mais uma vez, sair impune. Isso
porque o cara estava sob custódia da polícia. Imagine o que ele seria
capaz de fazer com uma pessoa sem a proteção da polícia?
As mulheres que encontramos eram venezuelanas. Vieram
para o Brasil em busca de trabalho e foram escravizadas. Como
estamos em ano de eleição, a prefeitura colocou os fiscais nas ruas
para mostrar serviço. Foi preciso escondê-las naquele local, no qual
nem um animal seria capaz de sobreviver.
Ninguém precisou me explicar o que aconteceu. Bennett
aproveitou a oportunidade de eliminar uma ameaça e ainda sair de
benfeitor. O próprio fez a denúncia. Alegando que o seu antigo
motorista era quem as escravizava. Que tinha sido morto em uma
troca de tiros com rivais.
Quem prova o contrário? Ele tem muitos políticos nas mãos.
Tenho certeza de que alguns grandões da polícia, também. O
dinheiro dele compra tudo e todos... menos eu.
— O que te trouxe pra São Paulo? — continuou, Bento.
A mulher baixou o olhar e espremeu os lábios um no outro.
Seguramente, ponderando o que responder. Quem poderia condená-
la? Só o fato de ela estar ali, já era um ato heroico.
— Uma... amiga... — Respirou fundo e fechou os olhos.
Mesmo de longe, vi uma lágrima escorrer pelo canto de seu olho.
Travei o maxilar e cerrei os punhos.
— Filho da puta! — praguejei entredentes.
— Melhor sair daqui — disse João, com cautela.
— Me erra, João!
— Você quem sabe — grunhiu e saiu, deixando-me sozinha
na sala escura.
A postura de Bento, que normalmente é altiva, estava branda.
Até mesmo seu olhar era de compaixão. Queria entender o porquê
de ele estar me afastando do caso, quando estamos chegando tão
perto. Na certa, é coisa da minha mãe, os dois são muito amigos.
Claro que, nem sob tortura, qualquer um dos dois, admitiria.
— Leve o tempo que precisar, tome mais água — acalmou,
Bento – empurrando a garrafa de água para perto dela.
Depois de alguns goles de água e esfregar, várias vezes, as
mãos pelas pernas, a testemunha tomou fôlego para continuar.
— Uma amiga indicou uma agência de modelo — esclareceu
e Bento recostou-se novamente à cadeira, cruzando os braços e
meneando a cabeça. Fez um gesto com a mão para que ela desse
continuidade. — Juntei dinheiro e vim... — Baixou os olhos e negou
com a cabeça. — Foi burrice minha — murmurou.
— Tenho certeza de que você é a vítima na história, não a
vilã.
Só quem conhece o Bento, como eu, para perceber o quanto
ele estava indignado. O pulsar da sua veia no pescoço, juntando com
o movimento de forçar o maxilar, são os sinais. Ele pode parecer
controlado, mas todos nós do distrito conhecemos seu lado
enfurecido. Nenhuma criatura nessa terra quer ficar ao lado dele
nesses momentos.
— Fiquei na casa dessa amiga durante os testes na agência.
Achei que estava indo bem, fui passando em todas as fases. Quando
chegou na última, fui reprovada. Entrei em pânico... Foi quando me
fizeram a proposta.
Estremeci. Eu conhecia bem a proposta.
O Jogo

Entrei na sala de reuniões e sentei no mesmo lugar de costume.


Olhei em volta da mesa para confirmar as mesmas figurinhas de
sempre. Exceto que todos meus irmãos estavam presentes. Embora
todos façam parte da diretoria, nem sempre conseguem estar juntos.
Eu e o Henry trabalhamos na sede, os demais, ficam
espalhados pelo Brasil, nas filiais.
Na verdade, somos todos meio irmãos, nenhum de nós tem a
mesma mãe. Cada um tem uma história para contar. Apenas com a
mãe de Henry que o nosso pai foi casado. Todas as outras, foram
casos.
A mãe de Henry morreu há uns anos de câncer. Dizem por aí,
que foi de desgosto. O velho Bennett nunca foi fiel. Talvez, seja esse
o motivo de Henry sentir-se mais dono da empresa do que os
demais.
Cada um de nós tem uma personalidade e pouca afinidade.
Fomos criados em casas separadas com o nosso pai nos ensinando
a disputar, ou melhor, a jogar. Uma busca insana por poder. Ele está
sempre nos colocando à prova, nos desafiando. Afastando, cada vez
mais, um do outro. É como se o velho sentisse prazer em ver os
filhos em discórdia.
Depois de toda as formalidades ridículas que o meu pai insiste
em seguir, Henry passou a palavra para ele.
— Chamei todos aqui porque tenho um assunto importante a
tratar com vocês — iniciou e o silêncio reinou. — Tem uma
investigadorinha do caralho no meu pé. Não fossem meus contatos,
a filha da puta já teria me fisgado.
Um riso rouco escapou do meu peito. Espremi os lábios e
ergui a mão – me desculpando, para os olhares fuzilantes do meu
pai e do Henry.
Não fosse trágico, seria cômico. Teria que conhecer essa
mulher, na certa era a Mulher Maravilha quem, em sã consciência,
ficaria no pé de Isaac Bennett? Só mesmo uma louca, que nunca vai
conseguir pegá-lo, para ter coragem. É mais liso do que sabonete
molhado.
— Provavelmente, terei que me ausentar um tempo, sair do
país. Vocês sabem que nesse país, com essas leis de bosta, não dá
pra trabalhar certinho. Ela está chegando muito perto, não quero me
arriscar.
Ninguém se manifestou diante de seu discurso hipócrita. Claro
que ele tem culpa no cartório, e muito. E não estou falando de coisas
da empresa, tem algo obscuro nele. Ainda não descobri o que é, mas
tenho certeza de que é coisa muito pesada. Se estivesse falando
somente de coisas do governo, ele não estaria com medo. Porque,
seguramente, ele está recuando. Não fugiria dessa maneira.
— Na minha ausência, farei um rodízio de quem ocupará
minha cadeira. Foi o modo que encontrei de saber quem está apto a
assumir meu posto. Estou prestes a me aposentar.
— Eu passo — comuniquei e todos os rostos se voltaram para
mim, com uma expressão de espanto.
— Não foi uma sugestão — vociferou o velho à ponta da
mesa. — Encarem como um jogo, quem se sair melhor, fica com o
posto.
— Não quero sua cadeira — repeti, agora com mais
convicção. Se estar na diretoria já me incomodava, muito mais na
cadeira do CEO.
— Sangue meu não é frouxo. Quando chegar a sua vez, vai
assumir o posto e ponto final. Quer desfrutar dos benefícios de ser
um Bennett sem assumir os riscos? Só petisca quem se arrisca. Ou
acha que ganhei esse império? Não, foi muito suado.
Bufei e neguei com a cabeça. Estava cansando de ouvir
aquele monte de baboseira. Só um idiota para não saber o quanto
ele trapaceou para chegar onde está. Sem contar que ele não
menciona que não começou do zero. Seu pai lhe deixou uma bela
herança.
A reunião continuou, se é que se pode chamar de reunião, já
que só o senhor Isaac Bennett detinha a palavra. Poderíamos mudar
para monólogo do dia.
Depois que impôs minha participação naquela patifaria, não
ouvi mais nada. A voz dele passou a ser somente um zunido
insuportável aos meus ouvidos.
Meu pai ficou de pé e esperou que todos fizessem o mesmo.
— Bennetts, bem-vindos ao jogo! Que vença o melhor —
comemorou e bateu palmas. As feições eram variadas. Porém, a que
mais assemelhava ao do velho era a de Henry. Confiante de que o
jogo para ele já estava ganho.
§§§§
— Onde você estava com a porra da sua cabeça, Lucca? —
Henry entrou gritando na minha sala e apoiou as palmas das mãos
no tampo da minha mesa, espumando pelos cantos da boca.
Recostei-me à cadeira e cruzei os braços.
— Depende, se me disser do que se trata. Primeiro, preciso
saber a qual das cabeças está se referindo — ironizei e abri um
sorriso provocativo.
Achei que explodiria de raiva, sua mandíbula endureceu e os
olhos fumegaram.
— Eu sabia que alguma coisa estava errada quando ficou sem
secretária — prosseguiu e meu sorriso sumiu imediatamente.
— Do que está falando?
— Não se faça de trouxa! — berrou e ficou ereto. Começou a
andar pela sala passando as mãos pelos cabelos, só faltando
arrancá-los.
— Se continuar nesse ritmo, seus irmãos não vão precisar se
preocupar com você, no jogo idiota que seu pai inventou — adverti,
pois, certamente, se Henry não se acalmasse, não demoraria para
enfartar.
Henry sempre foi estourado, mas depois que sua esposa o
largou, levando sua filha, ficou muito pior.
Ele ficou de frente para mim, novamente, com as mãos nos
quadris e estreitou os olhos.
— São seus irmãos e seu pai, também, e não desvia o
assunto. O departamento jurídico acabou de me informar que a
Andressa está processando a empresa por assédio sexual.
— Porra! — Dessa vez fui eu quem praguejou. — É uma vaca,
aproveitou enquanto pôde e agora, que perdeu a mamata, quer se
vingar. — Fiquei em pé e fui para as vidraças.
— Você estava trepando com ela, Lucca?
Não respondi, até porque a resposta era óbvia. Continuei de
costas para ele, olhando para os arranhas céus da avenida Paulista.
— Quantas vezes tenho que te avisar para não se envolver
com as funcionárias, Lucca? — Ele continuava berrando e aquilo
estava começando a me irritar.
Virei-me para ele e estreitei os olhos.
— Não foi assédio, estávamos tendo um caso — admiti, pois,
naquele momento, era a melhor saída.
Henry bufava como um touro bravo à minha frente. Ele nunca
me assustou, o que o deixa mais puto da vida.
— E agora?
Dei de ombros.
— Ela tem que provar — esclareci. — Tenho certeza de que
não tem provas e, se tentar testemunhas, não vai conseguir. Meu
relacionamento é ótimo com todos, o que não era o caso dela.
Sentei-me novamente e voltei a fazer o que fazia antes de a
minha sala ser invadida por um rinoceronte.
Henry permanecia em frente à minha mesa, com cara de
poucos amigos.
— Não tem o que fazer, aspirante a CEO? — provoquei e
soltei uma risada alta, da piadinha que tinha saído espontânea.
Ele abotoou o paletó e meneou a cabeça – indignado.
— Torça para ela não ganhar, senão, vou cortar suas bolas.
Isso que dá pensar só com a cabeça de baixo.
Naquele momento, ele conseguiu o que queria, desde que
entrou na minha sala – me deixar com ódio. Henry sempre fez
questão de menosprezar o meu trabalho. Nunca deu valor ao
departamento de marketing. Eu ser a cara da empresa estampada
em todas as mídias o deixa possesso. Provavelmente, porque, na
cabeça dele, só ele tem o direito de ser reconhecido como um
verdadeiro Bennett.

Já fazia um tempo que meu irmão tinha saído da minha sala e


eu continuava perdido em meus pensamentos.
Nunca imaginei que Andressa pudesse fazer aquilo. Apesar
de ter passado segurança ao Henry, lá no fundo, tinha uma ponta de
medo. Só em pensar o nome da empresa envolvido em um processo
de assédio, minha espinha gela. Seria um prato cheio para a
imprensa e uma péssima repercussão. O departamento de marketing
teria que rebolar para conseguir encobrir. Principalmente por eu ser a
cara da empresa e o próprio departamento.
O telefone da minha mesa tocou e vi o ramal do departamento
de marketing piscar.
— Lucca — atendi, ainda meio atordoado.
— Lucca, orientei a Valentina em alguns pontos, mas não
conversamos direito, ainda não sei o que você tem em mente pra
ela. — Mariana foi descarregando e eu fechei os olhos, coçando a
nuca.
Com toda aquela confusão da manhã, tinha conseguido tirar
um pouco a garota da minha cabeça.
— Daqui a pouco, vou até aí pra conversarmos — confortei a
única pessoa que estava conseguindo me ajudar no meio do
vendaval.
Eu nem sabia por onde começar. Tinha que esperar o RH me
mandar outra pessoa para ocupar o lugar da Andressa e Vanessa
tinha tirado licença por tempo indeterminado. Só me restava a
Mariana.
Afundei o rosto entre as mãos e suspirei.
— Não faz merda de novo, Lucca — murmurei para mim
mesmo.
A ligação da Mariana reacendeu Valentina no meu organismo.
Só em pensar nela meu corpo acorda, principalmente, a parte que
tem que ficar adormecida em local de trabalho.
Estremeci em lembrar o quanto tinha avançado o sinal com a
garota. Desde o dia anterior, ligando àquela hora da noite. Depois, na
sala que pretendia que ela ocupasse. Não deveria ter me
aproximado tanto. Nem a conheço. Ela sim, poderia me acusar de
assédio.
— Estou fodido — exclamei em voz alta o que gritava dentro
da minha cabeça.
A garota tem algo que me atrai, algo que não consigo
controlar. Não sei explicar. É como se tivesse um imã me puxando
para ela.
— Tenho que acabar com isso. — Decidi e fiquei em pé,
ajeitando meu blazer.
Peguei o celular, coloquei no bolso da calça jeans e saí da
sala. Minha agenda estava uma baderna completa. Nem sabia se
tinha algum cliente. Se o RH demorasse muito, perderia clientes com
minha inabilidade de organização. A não ser que eu mudasse...
§§§§
Entrei pelas portas duplas do departamento de marketing e
logo Mariana veio ao meu encontro, explicando como tinha lidado
com a Valentina.
— Onde ela está, agora? — Eu tentava disfarçar, mas estava
difícil não demonstrar o quanto meu interesse era vê-la novamente.
Mesmo sabendo que estava colocando a mão em um vespeiro.
— Foi almoçar.
— Onde? — respondi mais rápido do que pretendia. Mariana
enrugou um pouco a testa, mas não falou o que eu sabia que estava
passando pela sua cabeça.
— Dei alguns endereços para ela. Valentina não é daqui, está
um pouco deslocada, e...
— Quais endereços? — interrompi-a, sem titubear. Precisava
encontrar a garota fora dali. Provar para mim que aquilo era só uma
bobeira, veria que era uma mulher como qualquer outra, que não
vale o risco.
— Er... aqui perto, não sei bem, Lucca, fui falando
aleatoriamente — explicou-se, Mariana, um pouco confusa com meu
questionamento.
Respirei fundo e sorri.
— Tudo bem, Mari. — Bati em seu ombro. — Só estou
preocupado, a tirar pela maneira que a garota dirige... — Ri de
nervoso, não querendo que minha colaboradora percebesse meu
interesse exagerado.
— Quer que eu peça pra alguém ir atrás dela? Não faz muito
tempo que saiu.
A frase quase não terminou de sair da boca dela eu já estava
acenando e saindo para o corredor. Apertei o botão do elevador e
fiquei esperando impaciente. Não fosse o fato de estarmos no
vigésimo andar, teria descido de escadas.

Depois de entrar em alguns restaurantes próximos, e ligar


umas quinhentas vezes para ela, avistei Valentina sentada dentro de
uma lanchonete simples. As cadeiras e mesas de plásticos
vermelhas e brancas. As paredes revestidas de um azulejo antigo. O
piso bem gasto. Sem garçons, apenas dois atendentes no balcão,
com aventais surrados.
Demorei um tempo para criar coragem de entrar. Quando dei
o primeiro passo, um dos atendentes gritou a Valentina e meu
estômago embrulhou, com o cheiro de fritura em óleo velho.
Encaixando-se

Quando saí de casa não tinha a mínima ideia do que aconteceria.


Só tinha uma certeza: “Lucca me ligou e pediu que eu voltasse”.
Após o teste de resistência que fui submetida, consegui
respirar melhor. Fiquei firme na presença da Mariana. Fiz um
propósito de mostrar o quanto a empresa estava ganhando em me
contratar, mesmo que eu não tivesse nenhuma experiência
comprovada.
A faculdade que frequentei é uma das melhores da região
onde meus pais moram. Foi suado terminar o curso, pois, quem tem
bolsa de estudos, é muito mais cobrado do que os outros, mesmo
que os professores não admitam.
Já no segundo ano, com meu desempenho e dedicação, fui
reconhecida. Qualquer um que ligar na instituição pedindo referência,
vai ter as melhores, sobre mim. Exceto, se me relacionarem a um
fato...
Passei a manhã com a Mariana me apresentando à equipe e
me mostrando o local. Me passou poucas informações do que vou
fazer. Fiquei com a impressão de que estava sem saber o que me
dizer. No entanto, a pouca informação recebida me deixou ansiosa
por começar.
— Nossa, a hora passou muito rápido — comentou, Mariana,
sorrindo um pouco sem graça e olhando em seu relógio de pulso. Ela
não estava tão à vontade comigo, como da primeira vez que estive
na empresa.
Assenti e sorri, também.
— Se quiser me passar mais sobre quais serão minhas
responsabilidades, posso começar e você fica livre de mim — sugeri,
sem tirar o sorriso do rosto – tentando amenizar aquele clima
estranho que ficou entre nós.
— Não... não, temos que comer. Já é quase uma da tarde.
Meneei a cabeça concordando, espremendo os lábios um no
outro. Eu não tinha levado nada para comer, e se os preços dos
estacionamentos eram estrondosos, imaginei dos restaurantes. Só
que, também, não conseguiria ficar o dia todo sem comer nada.
Principalmente, eu que, como diz meu pai: “Filha, os pratos dos
trabalhadores da construção perdem para o seu.”
— Certo, então...
— Você não é daqui, não é mesmo? — Assenti. — Olha só,
não se preocupe, tem muitos lugares pra comer aqui na redondeza.
Vou te indicar alguns, o que gosta de comer?
— De tudo — confessei e ri, dando de ombros.
— Assim é mais fácil.

Ela tinha razão, a gama de opções que me passou era


grande, entretanto, logo nos primeiros endereços que passei em
frente, vi que estavam muito fora do meu orçamento. Eu nem sabia
qual seria meu salário. Mesmo que a empresa pagasse bem, além
das minhas contas, tinham os meus pais.
Por fim, encontrei, em uma rua um pouco afastada, uma
lanchonete. Entrei, mesmo sem ter certeza de que era o melhor lugar
para se comer. Não sabia se saberia voltar depois, perdida do jeito
que sou.
Rastreei o local e vi que, embora fosse simples, estava muito
limpo. Encostei no balcão e fiquei olhando o cardápio pregado na
parede.
— Posso ajudar?
— Sim, quero um X-Burger e uma Coca-Cola.
— Vai demorar um pouco, quer se sentar? Eu chamo quando
estiver pronto.
Balancei a cabeça confirmando e sentei-me em um canto
mais reservado. Apesar de não ter lugares muito reservados, ali. O
ambiente era um pouco apertado.
Enquanto aguardava o lanche, fiquei observando a
movimentação da rua. Apesar de ser adjacente à avenida Paulista,
tinham muitas pessoas apressadas andando por ali. Quase não se
via gente conversando, todos correndo, com seus celulares em seus
ouvidos. Tão diferente de tudo que tinha vivido. Suspirei, pensando
em quanto eu precisaria me adaptar.
— Moça, seu lanche está pronto — avisou a atendente,
depois de um tempo.
Levantei-me e fui até o balcão. Dei um pulo, quando uma mão
pegou o prato com o lanche antes que eu – ele.
— Embrulha pra viagem, por favor? — pediu, sem me olhar.
Vi a atendente, que até então, estava sisuda, abrir o sorriso
mais largo de todos e confirmar com um “sem problemas” todo
meloso.
A mulher entrou e ele resolveu olhar para mim.
— Que diabos pensa que está fazendo? — inquiri, cruzando
os braços.
— Ia mesmo comer aquilo? — Apontou para o local que a
mulher tinha entrado.
— Ia não, vou comer, aliás, você está me atrasando e estou
com fome.
— Aqui, precisa de mais alguma coisa? — perguntou a
atendente, entregando o pacote a ele, como se eu não estivesse
mais ali.
— Muito obrigada, senhorita, você foi muito atenciosa. —
Lucca agradeceu com um sorriso maroto e, piscando para a mulher,
pegou o saco com o lanche e a lata de Coca-Cola e entregou-lhe
uma nota de cem reais. — Fica com o troco.
Arregalei os olhos, desacreditando. Como assim? Ele tinha
acabado de dar oitenta reais de gorjeta?
— Vamos?
— Onde?
A mulher continuava vidrada nele, sem se mover. Lucca olhou
para ela e sorriu. Pegou no meu braço e me puxou para mais perto.
— Pegue suas coisas, querida, temos um compromisso —
mentiu entredentes, descaradamente.
Revirei os olhos e fui até onde tinha deixado minha bolsa.
— Obrigada — gritou a mulher quando já estávamos na
calçada. Lucca olhou para ela e lançou-lhe outra piscada.
Andamos um pedaço calados, até porque, mesmo que
quiséssemos nos comunicar, seria difícil. A poluição sonora estava
insuportável – ao menos para mim.
De repente, Lucca parou e se agachou. Olhei para baixo e vi
ele entregando a um mendigo meu lanche e refrigerante.
Ergueu-se e pegou em minha mão, fazendo com que eu
apressasse o passo.
— Quer comer um lanche de verdade?
— Acho que é obvio, já que você acabou de doar o meu —
ironizei.
— Por que não atendeu minhas ligações?
Fiz um bico e chacoalhei os ombros.
— Não tenho muito costume de usar celular.
Ele parou e franziu a testa, me encarando.
— Vai ter que aprender, se quiser ter sucesso por aqui —
decretou e continuou andando, carregando-me com ele.
Não andamos muito para estarmos diante de uma Kombi toda
equipada e bem cuidada, exalando um cheiro maravilhoso. Meu
estômago soltou um ronco vergonhoso.
— Olá, gata! Trouxe uma cliente pra você. — Lucca
cumprimentou uma mulher muito bonita.
Ele foi até ela e a abraçou, beijando sua face. Os dois
cochicharam alguma coisa e sorriram. Me remexi no lugar, sem
saber o porquê de aquilo estar me incomodando. Claro que um cara
como ele teria muitas mulheres. Eu tinha que tomar cuidado para
não acontecer de novo... confundir as coisas é o meu ponto fraco.
— Que cliente mais linda essa, Lucca — elogiou e veio até
mim, puxando-me para um abraço apertado. No início, fiquei sem
saber onde colocar as mãos, mas logo me senti à vontade em
retribuir. — Me chamo Ágatha, e você? — apresentou-se, assim que
se desvencilhou de mim.
Sorri, sentindo-me acolhida.
— Valentina, adorei seu Food Truck, a Penélope adoraria
conhecê-lo — comentei, olhando os detalhes do carro antigo.
— Está esperando o quê pra trazer a Penélope?
Lucca soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás.
Ergui as sobrancelhas e esperei que ele se acalmasse.
— Conta pra ela quem é a Penélope.
Ágatha olhava de mim para ele, sem entender nada. Meu
silêncio fez a dona do lugar entender que tinha que mudar de
assunto.
— Bom, que modos os meus. Posso te sugerir a
especialidade da casa, Valentina?
Assenti e me sentei. Lucca sentou-se à minha frente, com ar
de deboche. Naquele momento, eu queria socar-lhe a cara de deus
da beleza. Porém, me dei conta de algo que me deixou
envergonhada. Estávamos em frente ao prédio da empresa. Minha
cabeça estava tão perturbada que não tinha visto. Nem sei como,
porque a pintura do carro era incrível. Uma mistura de cores
impressionante. Um lugar pitoresco.
— Vai gostar daqui. — Foi ele quem quebrou o silêncio.
— Cansou de rir da minha cara?
— Não ri da sua cara. Só acho engraçado você tratar sua lata
velha como se fosse uma pessoa.
— Ela não é uma lata velha — rebati, indignada.
Lucca ergueu as mãos em rendição.
— Vou me controlar, prometo. — Balancei a cabeça
concordando. — Como foi sua manhã?
— Normal.
Apenas uma sobrancelha dele se ergueu e eu entendi que
tinha entrado no modo chefe. Limpei a garganta e fiquei ereta. Me
preparei para iniciar o relatório, Ágatha chegou com nossos lanches.
— Aqui, Lucca, seu preferido. — Colocou o prato em frente a
ele. — Esse á pra você, assim que terminar, quero a nota. Se não
gostar, não paga — disse, com seu sorriso encantador.
— Tenho certeza de que vou adorar.
— O que vão beber?
— Valentina gosta de Coca-Cola — adiantou-se, Lucca.
Ágatha foi buscar os refrigerantes e fiquei observando o brilho
dos olhos de Lucca ao olhar para o lanche. Não imaginei que ele
pudesse gostar, muito menos, estar tão à vontade em mesas de
ferro, praticamente na calçada.
A primeira mordida no lanche me levou ao paraíso. Fechei os
olhos e gemi de satisfação. Depois de um tempo saboreando meu
lanche, abri os olhos e me deparei com dois olhos amendoados me
encarando.
— O que foi? — perguntei e olhei ao meu redor. Lucca estava
com a boca entreaberta e paralisado.
— Maldição, garota. Você bem que poderia colaborar comigo.
— O que eu fiz?
— Não tem ideia, não é mesmo?
Alcancei um guardanapo de papel em cima da mesa e limpei
o canto da boca.
— Não sei do que está falando — confessei, porque o
comportamento dele estava me deixando cada vez mais confusa.
Desde o dia anterior, me ligando naquele horário. E pior, apavorada.
Não queria passar por tudo, outra vez...
Lucca chacoalhou a cabeça – desvencilhando algum
pensamento.
Ágatha voltou com os refrigerantes e sentou-se conosco. Ela e
o Lucca pareciam muito íntimos. Não quis demonstrar que estava
incomodada. Mantive um sorriso amarelo no rosto durante a
conversa acalorada deles.
— Então vai trabalhar com esse mala sem alça?
Olhei para ele e vi o quanto estava à vontade, antes de
assentir e alargar um pouco o sorriso.
— Está tranquilo, estamos a cinco andares de distância —
brinquei.
— Doce ilusão — murmurou, Lucca.
— Como assim?
Lucca levantou-se e ajeitou o blazer. Ágatha ficou em pé,
também, deixando-me sem alternativas.
— E aí, qual a nota? — Ágatha me perguntou, mudando
completamente de assunto.
Suspirei e ri sem graça.
— Acho que vai ter que me aguentar todos os dias.
O abraço que recebi foi a prova de que eu tinha ganhado uma
amiga. Além de um excelente lugar para fazer minhas refeições.
Para minha sorte, os preços não eram exorbitantes e, com a gama
de opções, poderia comer um lanche diferente por dia. Desde os
mais “gordos” até os mais “magros”.

Voltamos à empresa desconcertados, pelo menos eu, não


estava sabendo como me comportar ao lado dele. Pela manhã, ele
disse que eu descobriria sobre jogar e, até então, não tinha
conseguido entender o que aquilo significava.
Entramos no elevador e ele apertou o andar do departamento
de marketing. Muitas pessoas entraram conosco, impedindo que eu
lhe perguntasse qualquer coisa.
Assim que desembarcamos no vigésimo andar, ele colocou a
mão em minha lombar provocando um leve estremecer em meu
corpo.
— Mariana, posso assumir a sala?
— Sim, Lucca, já fizeram as mudanças solicitadas.
Eu entendi certo? Ele mudou-se para cá? Me socorre, Senhor!
No Limite

— Qual foi a proposta? — questionou Bento. Sabendo exatamente


qual seria a resposta.
Não existia pessoa melhor do que ele para conhecer os
detalhes sórdidos daquela história nojenta. No qual o protagonista
era um homem poderoso, que tinha muitos políticos nas mãos,
garantindo que saísse ileso da maioria das acusações. No entanto,
era a primeira vez que chegávamos tão perto.
Após um longo suspiro e uma tomada de fôlego, a testemunha
ergueu os olhos, pronta para continuar.
— Eu seria exclusiva de um empresário, teria aulas de balé,
piano e etiqueta. Moraria em uma mansão, com um quarto só para
mim. Meu guarda roupa seria totalmente novo e... — Fechou os
olhos e baixou a cabeça. Um soluço dolorido escapou de seu peito.
Pude sentir sua dor. Apertei mais ainda os punhos, sentindo as
unhas entrarem na minha carne.
— Podemos fazer uma pausa — sugeriu Bento e ela negou.
— Preciso terminar. — Inclinou a cabeça para trás e respirou
fundo. Depois de alguns segundos buscando forças, arrumou a
postura e continuou: — Eu teria apenas que o acompanhar em
eventos sociais, nada mais. Além de todas essas mordomias, ainda
receberia um salário por semana. Pensei em recusar, mas quando
ela me disse o valor, quase caí para trás, era muito dinheiro. Fiz as
contas rapidamente na cabeça, eu não precisaria ficar por muito
tempo. Uns meses e já teria feito uma boa grana pra voltar... —
Parou de falar e espremeu um lábio no outro.
— Mas... — incentivou, Bento, ansiando que ela completasse,
tudo estava sendo gravado. Dessa vez, o desgraçado não escaparia.
— Não foi tão fácil quanto achei que fosse — admitiu, com a
voz muito baixa. Não fosse o microfone da sala ser potente, não teria
entendido.
— Ele te prendeu? — prosseguiu Bento.
Ela negou e enfiou o rosto entre as mãos, desabando em
choro. Não aguentei, saí de onde estava e adentrei à sala de
interrogatórios, ajoelhando-me em frente a ela. Peguei em sua mão e
a apertei.
— Está tudo bem, não foi culpa sua — confortei-a, com uma
laranja na garganta. Eu sabia muito bem o que ele fazia com a mente
das pessoas.
— É sim..., ele nun... ca me impediu de ir...— contestou, entre
lágrimas.
— Não, não é, olhe pra mim — exigi, pegando em seu queixo,
obrigando-a me encarar. — Ele é um filho da puta manipulador.
Nada, simplesmente nada disso, é culpa sua.
— Gabrielle... — advertiu Bento, com sua voz grave.
— Me passa o nome da agência, vamos começar por aí —
pedi e ela arregalou os olhos, desesperada. — Você estará protegida
aqui. Vamos colocá-la no programa de proteção à testemunha, não é
mesmo? — inquiri e olhei ao Bento, encontrando um olhar indeciso.
— Não me diga que...
— Vamos conversar lá fora — ordenou e ficou em pé.
— Fique calma, vou resolver isso — garanti à mulher e me
levantei, acompanhando o sargento para fora da sala.
Mal fechei a porta, Bento pegou no meu braço e me carregou
à sua sala, sem nenhuma delicadeza. Eu já previa que teria essa
reação, entretanto, estava disposta a enfrentar tudo e todos,
inclusive, ele.
Entramos em sua sala e ele me empurrou para a cadeira de
frente à mesa. Bufei e revirei os olhos, aguardando que ele
contornasse a mesa e se sentasse.
— Vai tirar uns dias de folga — começou e eu fiquei em pé de
supetão.
— Nem fodendo!
— Prefere uma suspensão?
Segurei os lábios com os dentes e me aproximei da mesa,
apoiando as mãos no tampo.
— Não vai fazer isso comigo. Você teria que ser o primeiro a
me apoiar.
— Não quando você está fora de controle, vai colocar tudo a
perder, Gabrielle, não percebe? Não deveria deixar você trabalhar
nesse caso, é pessoal, você...
— Nem pense em verbalizar a minha desgraça — cortei-o,
antes de ter que pedir transferência para outro distrito. Só em
imaginar que as pessoas pudessem saber da minha história
esdruxula, meu sangue gelava.
Bento trincou a mandíbula e estreitou os olhos.
— Então, o que vai ser?
— Não pode me obrigar — rebati.
— Posso e vou.
— Puta merda, Bento. O que vou fazer fora daqui?
— Está dramatizando a situação. Serão alguns dias, assim
poderá voltar à terapia.
O encarei e balancei a cabeça.
— Foi sugestão da minha mãe — afirmei e virei-me. Caminhei
até a porta, marchando. Saí e bati a porta, chamando à atenção de
todo o andar. — O que foi? Não tem nada pra vocês fazerem? —
berrei e fui até minha mesa. Peguei uma caixa e comecei a jogar
todos os meus pertences dentro dela.
Se tinha que sair, seria do meu jeito. Nada me impediria de
continuar. Eu já tinha informações suficientes para seguir, sem a
necessidade de um distintivo. Talvez, até seria bom, enquanto
estivesse afastada, poderia me passar por uma pessoa normal e
descobrir muito mais.
Abri uma gaveta e tirei do móvel despejando o conteúdo
dentro da caixa. Tinha um silêncio absurdo no local. Levantei a
cabeça e todos desviaram rapidamente os olhos de mim.
— Estão gostando do espetáculo? — Ninguém reagiu, exceto
João Pedro, que se aproximou e tirou o que tinha em minhas mãos
me puxando para o seu peito.
Foi a pior coisa que ele poderia ter feito, afundei o rosto ali e
senti as lágrimas virem sem controle. O abracei e cerrei os punhos
em suas costas. As unhas cravadas nas palmas das minhas mãos foi
uma dor bem vinda, como na maioria das vezes. Queria poder tirar
aquela dor insuportável do peito, a melhor maneira que encontrei, foi
transferindo a dor para outras partes do meu corpo.
Ele era o culpado por todas as minhas angústias. Por toda a
minha dor e da minha mãe. Ele pagaria, sim, mais dias, menos dias,
eu o colocaria em seu lugar merecido.
Impondo-se

Mudar-me para o andar no departamento de marketing pode não ter


sido a melhor opção, entretanto, quando peguei o telefone e pedi que
levassem as coisas do meu escritório para lá, a única coisa que
pensei foi que só teria vantagens estando ali. Além de eu poder
voltar a fazer o que mais gosto, ficarei perto da Valentina.
Impressionante o fato de, em apenas dois dias, eu querer
ficar, o maior tempo possível, ao lado dela. A garota é diferente. Não
saberia explicar. Mesmo que não seja ingênua, caso contrário, não
estaria trabalhando na maior empresa alimentícia do país, ainda
assim, sinto como se, a todo momento, ela estivesse fazendo
descobertas. Constatar isso despertou um interesse quase
incontrolável em mim, algo meio primitivo. Como se eu quisesse ser
o seu precursor.
— Venha até minha sala — determinei, assim que entramos
no departamento. Acenei à Mariana e continuei andando, esperando
que Valentina me acompanhasse.
Todas as salas do departamento são rodeadas de vidro, nos
dando privacidade zero. Claro que na destinada a mim foram
instaladas persianas. Adentrei a sala e segurei a porta aberta para
que Valentina fizesse o mesmo.
Tanto eu, quanto ela, entramos no modo profissional, assim
que pisamos no ambiente da empresa. Mais um fato que me agradou
nela, saber o momento certo. Embora eu goste muito de seu
atrevimento, quando não estamos na empresa, sua ousadia me
intriga...
— Sente-se. — Apontei a cadeira em frente a mesa suntuosa
da sala.
A sala não deixa nada a desejar da minha, tanto na vista para
a Avenida Paulista, quanto na decoração moderna. A diferença é que
no departamento de marketing usamos muitas cores, deixando o
ambiente mais descontraído. Coisa que não acontece nos demais
departamentos, que apesar de modernos, são mais formais, como
exige o senhor Isaac Bennett.
Me acomodei na confortável cadeira e acionei o botão que
fecha as persianas. Valentina assustou-se, sem esperar que
ficaríamos tão privados.
— Está com medo de mim? — provoquei e ela engoliu em
seco. Sorri, adorando aquele joguinho que tinha se instaurado
naturalmente entre nós.
— Claro que não — respondeu rapidamente, arrumando a
postura – tentando passar segurança – e falhando
vergonhosamente.
— Vamos tratar do seu contrato — iniciei e ela assentiu. —
Tenho certeza de que a Mariana já apresentou você à equipe. —
Esperei que confirmasse para continuar. — A Vanessa, que você
conheceu, está com sérios problemas com seus pais. Eles moram no
interior, ela tirou licença por tempo indeterminado, sendo assim, a
partir de hoje, assumo o controle do departamento.
A garota deu um longo suspiro. Franzi o cenho e fiquei
analisando os movimentos de seu corpo. Ela estava inquieta. Pelo
tampo de vidro, vi suas pernas chacoalhando e suas mãos sendo
espremidas em seu colo.
— Vai sentar no chão e chorar? — continuei provocando-a,
resgatando a garota descontraída e um pouco atrapalhada, que me
roubou à atenção.
— Como?
— Não foi o que fez, quando atingiu meu carro?
— Só pra constar, foi você quem bateu na Penélope, tadinha,
sabe Deus quando vou conseguir curá-la.
— Não fui eu quem não viu a placa: “Dê a preferência” —
rebati, com um sorriso no canto dos lábios.
— Vai me lembrar disso todos os dias?
— Se for pra eu te ver assim, relaxada, sim. — Seus lindos
olhos felinos reviraram-se e meu sorriso ficou mais largo. — Viu só,
agora não parece que vai sair correndo, ou sentar no chão e chorar,
a qualquer momento.
— Que jeito estranho de descontrair uma pessoa —
murmurou, quase que só para ela.
— Bom, retomando, minha decisão de assumir o controle do
departamento não foi só pela ausência da Vanessa, perdemos uma
pessoa importante da equipe. Ela casou-se e mudou-se para outro
estado, preciso repor essa vaga.
— Acha que posso? — adiantou-se, um pouco insegura.
— Não pode?
— Não... foi isso... quer dizer... ai, você me deixa confusa —
gaguejou e eu arrastei o corpo para a beirada da cadeira, apoiando
os cotovelos na mesa e cruzando os dedos à frente. Inclinei a
cabeça ao lado e observei seu desconforto.
Seria muito maluco dizer que eu estava adorando saber que a
deixava desconcertada? Não deveria ficar preocupado? Afinal, minha
intenção era realmente colocá-la na vaga em aberto.
— Então?
Valentina passou a língua pelos lábios e eu quase gemi, com
a fisgada que deu no meio das minhas pernas. Limpei um pouco a
garganta e, disfarçadamente, ajeitei a frente da minha calça.
Amaldiçoei a pessoa que tinha decorado o ambiente. Estava difícil
esconder as reações involuntárias do meu corpo com aquele tampo
de vidro.
— O que tenho que fazer?
— Vou te passar as regras do jogo.
— É um jogo?
— Sempre é.
Não sabia o que sentir naquele momento, era um misto de
frustração e satisfação. É detestável saber que a única maneira que
eu sei lidar com tudo é jogando. Foi assim que aprendi, mesmo
abominando o fato de o meu pai estar nos colocando um contra o
outro, a todo tempo.
— Certo, estou pronta — garantiu, antes mesmo que eu
passasse como seria. Ela realmente estava disposta e esse fato,
para a empresa, era mais do que suficiente para que ela crescesse.
— Estamos com alguns projetos em andamento, vamos nos
sentar com a Mariana pra que ela nos coloque a par de todos os
detalhes. Um deles, faremos uma programação pra você entregar,
por etapas. Cada etapa vencida, vou te apresentar uma parte da
cidade como prêmio.
Seu cenho franziu, como eu esperava. Valentina não parece
ser uma pessoa fácil, mesmo que se mostre ingênua em vários
aspectos. Jogar com ela será o maior desafio, pois não sei o quanto
resistirei aos seus encantos. Seguramente é diferente de todas as
mulheres que já me relacionei. Todas se aproximaram por interesse,
deixando-me sempre na defensiva.
— E porque acha que sair com você por aí é considerado um
prêmio? — rebateu de imediato e eu sorri, jogando meu corpo no
encosto da cadeira.
— Porque muitas dariam a vida para estar no seu lugar.
— Acho que precisamos rever os propósitos de eu estar aqui,
senhor Lucca. — Sua voz ganhava confiança, aos poucos,
enchendo-me de tesão.
Mesmo que eu estivesse me arriscando, afinal, já tinha um
processo em andamento por assédio, nada tirava da minha cabeça o
quanto jogar com Valentina traria um pouco de leveza à minha vida
cheia de formalidades.
Cruzei os braços e estreitei os olhos. Mordi o canto dos lábios
e observei as reações do corpo dela. Meu escrutínio voltou a deixá-la
desconfortável.
— Não quer jogar comigo? — insisti, pois que graça teria se a
garota só o fizesse para não perder o emprego?
Uma longa lufada de ar foi solta de seus lábios e sua cabeça
balançou – em uma luta interna da razão contra o prazer. Eu sabia,
mesmo que ela nunca admitisse. Sou especialista no assunto de
lidar com essa maldita luta.
— Honestamente?
— Por favor.
— Além de confusa, estou com medo — confessou e baixou a
cabeça.
— Do que tem medo, já que veio pra cá para uma vaga de
estagiária. Estou te dando a oportunidade de ser efetivada.
— Não é isso que me assusta — murmurou, sem levantar a
cabeça.
Voltei para a beirada da cadeira e estiquei o braço sobre o
tampo da mesa.
— Ei — chamei e seus olhos felinos ergueram-se, lançando
fagulhas por todo o meu corpo. Comecei a sentir mais medo do que
ela. Jogar com ela não seria tão simples. — Daqui sua mão — pedi e
ela atendeu. A coloquei entre as minhas. — Não vou te prejudicar,
tudo bem? Só quero te conhecer melhor, te apresentar os lugares
legais da cidade. Que mal há em sermos amigos, hum?
Valentina assentiu – segurando os lábios entre os dentes.
— Tudo bem. Só quero... — começou e parou.
— Pode falar, estou aqui pra te ouvir.
— Deixa pra lá, não é problema seu — cuspiu e puxou a mão
– ficando em pé. Sua segurança voltou, na verdade, era mais como
um escudo.
A postura dela acendeu um sinal de alerta na minha cabeça:
algo a tinha colocado em alerta. Mas que meu toque a deixava
completamente perdida, isso era fato.
Seu ímpeto foi a deixa para eu levantar-me e começar o que
tinha ido fazer ali: comandar o departamento.
§§§§
Reuni toda a equipe do departamento na maior sala de
reuniões e, após todos estarem acomodados, dei início:
— Pessoal, como vocês sabem, a Vanessa está de licença por
prazo indeterminado. Por esse motivo, no tempo em que ela ficar
fora, assumirei o posto dela.
— Mas já não faz isso lá de cima? — inquiriu um rapaz bem
apessoado, com um ar arrogante.
Ergui as sobrancelhas e o encarei.
— Como é o seu nome?
— Augusto — respondeu altivo. Ergui o canto dos lábios com
um sorriso forçado. Tudo bem meus colaboradores serem corajosos,
mas petulantes, já é demais.
— Está incomodado com a minha presença aqui?
Ele foi responder, Mariana interviu:
— Não, Lucca, ele só está muito preocupado com a Vanessa,
não é mesmo, Augusto? — Olhou para ele entortando o nariz.
O rapaz concordou e calou-se. Deixei passar, afinal, já
estávamos desfalcados, não poderia simplesmente sair demitindo
qualquer um que me desafiasse.
— Retomando — prossegui —, Mariana vai nos apresentar
todos os projetos em andamento e vamos ver quem ficará
responsável por cada um. Tenho que passar a programação e os
detalhes do que precisamos para a agência de publicidade que nos
atende, o mais rápido possível. Já estão no meu pé.
Passamos as próximas duas horas analisando os detalhes de
todas as pendências do departamento. Valentina estava mais à
vontade no final da reunião. Mostrou-se entendida do assunto,
surpreendendo, tanto a mim, quanto ao resto da equipe. A garota
escondia seus talentos atrás daquele sotaque arrastado do interior
paulista.
As pessoas começaram a sair da sala e segurei o braço da
Valentina, provocando-lhe um pequeno salto. Franzi as
sobrancelhas, intrigado com as suas reações. De início, estava
gostando de seu desconforto, mas comecei a me preocupar... Não
era normal.
Soltei seu braço e meneei a cabeça, para que se sentisse
segura. Não queria que a garota estivesse sempre na defensiva
comigo.
— Parabéns — disse e ela assentiu, saindo com os outros.
Só estavam eu a Mariana quando meu querido e amado irmão
invadiu a sala, acompanhado de uma senhora baixa, usando uns
óculos fundo de garrafa, com uma agenda grudada ao peito. Achei a
cena, no mínimo, engraçada.
Parei o que estava fazendo e Mariana fez o mesmo,
esperando que os dois se aproximassem. Segurei para não rir, pois a
cara dele não estava nem um pouco de bons amigos. Não que,
normalmente, fosse diferente.
— Posso saber o que está fazendo aqui? — vociferou, sem
cumprimentar a Mariana.
— Boa tarde, pra você, também, irmão — ironizei. — Não sei
se você se lembra, mas essa é a Mariana, secretaria da Vanessa,
por longos anos, por sinal.
Mariana estremeceu quando os olhos vorazes se voltaram
para ela. Rapidamente, Henry os voltou para mim e continuou,
ignorado completamente a alfinetada que eu tinha lhe dado.
— Responda minha pergunta, porra!
Ri sem vontade e chacoalhei a cabeça.
— Estou trabalhando — respondi, abrindo os braços –
mostrando o espaço a ele.
— Não se faça de idiota, Lucca, embora você realmente seja
— disse, entredentes.
Brigar com ele, ali, na frente das duas mulheres, não era a
melhor opção, mas meu irmão estava passando dos limites. Até
onde eu sabia, eu tinha o mesmo direito que ele e o mesmo poder.
Só que ele não via dessa maneira.
— Olá, eu sou o Lucca, a senhora é? — perguntei à senhora,
me aproximando e estendendo a mão – sorrindo abertamente –,
tentando ignorar a arrogância insuportável do meu irmão.
Ela olhou de mim para o Henry e gaguejou um pouco para
responder.
— Sou sua nova secretária, Vânia — pegou em minha mão e
a apertou, sorrindo, também.
Beijei o dorso da mão da senhora e encarei meu irmão,
desacreditando naquilo. Só podia ser coisa dele, contratar uma
senhora, que, visivelmente, tinha mais de sessenta, para ser minha
secretária. Eu sabia o porquê.
— Seja bem vinda à empresa, Vânia. Temo que terá que ser
realocada, já tenho secretária. Venha aqui, Mari.
Mariana deu alguns passos e riu nervosamente, Henry deixa
qualquer um amedrontado, menos eu.
— Prazer, Vânia, sou a Mariana, seja bem-vinda —
cumprimentou Mariana.
— As duas, retiram-se, por favor — ordenou Henry e eu as
lancei um sorriso de conforto.
Sozinhos, na sala, ele abriu o blazer caro e colocou as mãos
nos quadris.
— Começo a achar que você não tem o que fazer, irmão —
provoquei-o e sentei-me, cruzando as pernas – confortavelmente.
— Por que está aqui embaixo? Na certa é outro rabo de saia
— berrou, sem nenhum pingo de preocupação se as pessoas
estavam ouvindo.
Fiquei em pé e me aproximei dele, colocando o dedo em riste
em seu nariz. Se ele é alto, eu também sou. Pudemos ficar cara a
cara, sem nenhum milímetro de diferença.
— Baixa o tom pra falar comigo, imbecil! Não sou seu
empregado. Estou cansado de aguentar seus ataques. Não venha
descontar suas frustações em mim. Arrume uma mulher pra foder e
saia do meu pé, caralho!
Dito o que queria, virei-me e saí da sala, deixando-o sozinho. Ele
que desse um jeito de se acertar com a senhora contratada. A
coitada caiu de paraquedas na situação, infelizmente, eu não tinha
como ajudá-la.
Se Adaptando

A semana passou rápido. Fiquei completamente envolvida com o


projeto que me foi confiado. Totalmente realizada, pois era
exatamente o que eu buscava e esperava da empresa.
Uma empresa muito bem administrada, departamentos
sincronizados. Tudo com muita dedicação e qualidade.
Ficava pouco à vontade com a equipe, procurei me manter o
mais afastado possível do Lucca, sabendo o quanto sua presença
me alterava e desconcentrava. Sem contar que, não queria que as
pessoas percebessem que existia uma tensão entre nós, claramente
– sexual.
Me punia mentalmente, cada vez que me lembrava de como
me comportei como uma adolescente ao lado dele. Parecia que
nunca tinha visto um homem na vida. Logo eu, que já escorrei nesse
tipo de envolvimento e só me dei mal. Não fossem meus amigos,
tinha perdido tudo que tanto lutei para conseguir.
— Ei, dorminhoca, pode ir levantando, temos planos pra hoje
— avisou Mia e arrancou o cobertor de cima de mim.
Minhas amigas não se conformavam quando me viam
dormindo com cobertor em pleno verão. Disse a elas que precisavam
passar uma semana na minha cidade para elas verem o quanto era
quente. A capital tem um clima agradável, só que, para mim, é frio.
— Estraga prazeres — resmunguei e me espreguicei.
— São quase dez da manhã, caipira. Vai passar o final de
semana todo na cama?
— Se você deixasse, provavelmente — retruquei.
— Não mesmo, vamos, tira essa bunda magra daí e vá se
arrumar. O café está na mesa. Sabe como a Betina é ocupada e
separou o dia só pra sairmos, as três — disparou a falar e eu revirei
os olhos, levantando-me. Mesmo que eu quisesse, não teria
escapatória. Elas me arrastariam, sem sombra de dúvida.

Sentadas em volta do balcão da cozinha americana, comia


tranquilamente meu pão francês, quando Betina me olhou de
esguelha. Eu sabia que vinha bomba.

— Como está o chefe gostosão? Ainda no seu pé? — soltou,


soando blasé. Ela queria que a pergunta parecesse descontraída,
mas eu sabia que as duas estavam preocupadas comigo, só não
admitiriam facilmente.
— Está tudo bem, não se preocupem. Foi só no primeiro dia.
Depois, quase não o vi. Ele é muito ocupado, não seria diferente, né,
afinal, é um dos donos da empresa — esclareci, soando blasé,
também.
Não era de tudo mentira, porque, realmente, não tivemos mais
tempo de conversarmos. Todos os dias, ele dava um jeito de me
cumprimentar e perguntar se estava tudo bem e se eu precisava de
alguma coisa, nada além disso.
— Que bom — limitou-se a dizer e continuamos a comer.
Meu telefone tocou no quarto e eu sabia que era minha mãe.
Pedi licença e fui atender.
— Oi, mãe, tudo bem?
— Oi, filha, mais ou menos, as coisas não estão fáceis —
reclamou, como sempre fazia. Meus pais teimavam em querer que
eu ficasse com eles, mesmo sabendo o quanto era difícil para mim,
em vários aspectos.
— Estão com algum problema, precisam de dinheiro, ainda
não recebi, mas posso dar um jeito.
— Não, filha, já aprendemos a viver com pouco, têm as
criações e as plantações, não vamos passar fome.
— Então o que é, mãe? — Respirei fundo e fechei os olhos.
Passei a mão na testa e senti o risco do corte, que ainda não
estava totalmente cicatrizado. Não podia nem pensar em contar para
a minha mãe do pequeno acidente que tinha sofrido, ela teria um
ataque do coração.
— Hoje eu vi no noticiário a quantidade de desgraceira que
têm nesse maldito lugar que você está.
— Ah, não, mãe. Continua assistindo aqueles programas que
só mostram desgraças?
— Fico com o coração na mão, filha. Não consigo entender
como pode querer ficar longe da gente... correndo perigo.
— Não precisei estar aqui pra acontecer uma desgraça na
minha vida — sussurrei e senti o peito apertar.
— Você fala como se não tivesse tido culpa — acusou-me,
como sempre fizeram.
— Se vamos por esse caminho, mãe, melhor eu desligar —
esquivei-me, cansada de discutir a mesma coisa com eles.
O fato de eu ter ido para outra cidade estudar, contra a
vontade deles, deu o direito de eles me culparem pelo aconteceu
comigo. Segundo eles, se eu tivesse ficado na cidade e me
comportado como uma moça de família, não teria passado pelo que
eu passei.
Minha relação com meus pais já não era grandes coisas, pois
sempre quis voar mais alto do que eles programaram para mim, só
que, depois de tudo, como me julgaram, ficou praticamente
impossível.
A linha ficou muda um tempo, a ponto de eu achar que ela
tinha desligado, não fosse sua respiração comprovar que ainda
estava lá.
— Quando vem nos ver? — mudou de assunto, entrando em
outra zona de confronto.
Ao sair da minha cidade, prometi que não voltaria, por muito
tempo. Quiçá, nunca mais. Um lugar onde as pessoas têm a mente
pequena, que julgam a todos, sem ter conhecimentos dos
verdadeiros fatos.
— Mãe... — suspirei. Queria evitar aquele tipo de discussão
com eles, mas era cada vez mais difícil. — Assim que eu receber,
darei um jeito de comprar passagens pra vocês virem pra cá.
— Deus me livre e guarde, filha. Nunca que vou pra um lugar
larazento como esse, seu pai morreria sufocado.
Me joguei na cama e coloquei o antebraço sobre os olhos.
— Valen... — chamou, Betina, entrando no meu quarto. Tirei o
antebraço dos olhos e a olhei, desconfiada. Na certa, tinha ouvido a
conversa com a minha mãe. Não entraria daquela maneira, se não
fosse para me socorrer.
— Tenho que ir, mãe — avisei, e balbuciei um obrigado à
minha amiga.
— Está trabalhando hoje?
Pensei um pouco, se eu dissesse que não, teria que arrumar
outro jeito de dispensá-la, pois não aceitaria desculpas,
principalmente a de que sairia com as minhas novas amigas. Seria
uma afronta.
— Sim — menti e fiz careta, detestando ter que fazer aquilo.
— Por que não me disse? Depois nos falamos, ainda não me
contou como é esse emprego. Espero que seja decente.
— Tudo bem, mãe, depois nos falamos. Dá um beijo no pai.
Amo vocês.
— Também te amamos, se cuida, filha. Cuidado pra não
provocar os homens, como...
— Chega, mãe! — gritei e sentei-me na cama, assustando
Betina.
— Não fale assim com a sua mãe, menina malcriada.
— Tchau mãe! — Sem esperar sua resposta, desliguei e cerrei
os olhos – espremendo um lábio no outro. Meu coração foi a mil por
hora, em questão de segundos.
Não basta o que tive que aguentar daquelas pessoas, ter que
ouvir sempre a mesma coisa dos meus pais – é demais.
Senti o colchão afundar e soube que Betina tinha sentado ao
meu lado. Logo seu braço passou pelas minhas costas, puxando-me
para o seu ombro. Deitei a cabeça e suspirei.
— Quer me contar o que aconteceu por lá?
Neguei.
— Desculpa, não estou pronta — expliquei e ela assentiu.
— Tudo bem, saiba que estamos aqui, eu a Mia — colocou-se
à disposição, demonstrando, mais uma vez, que eu tinha ganhado
duas irmãs.
§§§§
A quantidade de sacolas em cima da minha cama causou um
tremor no meu corpo. Não deveria ter deixado as duas malucas me
fazerem comprar aquela quantidade de roupas e sapatos. Eu sei que
minhas roupas só davam para serem usadas em casa, mas não
tinha condições para uma maluquice daquelas.
Passamos o dia no shopping, perto de casa, entrando de loja
em loja, comprando tudo e mais um pouco. Mia e Betina passaram
seus cartões de créditos, fazendo-me assumir várias parcelas.
Quando eu tentava argumentar que nem tinha certeza se passaria na
experiência do emprego, as duas riam e balançavam as cabeças.
— Você é tão ingênua. — Betina lançou, em uma das vezes.
Não queria pensar o que ela queria dizer com aquela frase.
Não era a primeira vez que ouvia àquela expressão. Só que, das
outras vezes, o final foi desastroso. Minha ingenuidade fez-me
confundir tudo. No fim, ainda saí com a pior e julgada por todos.
Comecei a desembalar as compras e guardá-las no armário.
Nosso apartamento, embora pequeno, é bem ajeitado. Betina e Mia
são primas, herdaram o lugar da avó. Como não são ricas, decidiram
alugar um dos quartos, para poder dividir as despesas da casa.
Os móveis são simples, mas sob medida – deixando-o com
mais espaço. Tudo é branco, desde o piso. Tem alguns espelhos,
bem aconchegante. Quando vim vê-lo, fiquei encantada. O sofá e as
cortinas são de uma cor neutra. Nada chamativo. Somente um dos
quartos é suíte, não sei qual é o acordo que elas têm, só sei que é
Betina quem o usa. Talvez seja pelo fato de a Mia trabalhar durante a
noite, ou a Betina ser mais velha, não sei.
— Que tal um pouco de diversão? — Dei um pequeno salto,
assustando-me, com Mia à porta do quarto.
— Que susto! — Coloquei a mão no peito e respirei fundo.
— Nossa, que moça sensível, onde estava essa cabecinha?
— brincou e veio até mim. Começou a olhar as roupas que eu já
tinha pendurado nos cabides. Tirou uma calça pantalona nude e uma
regata de seda branca, colocou em frente ao meu corpo. — Essa
aqui. — Arrumou as peças em cima da cama e foi para onde
estavam os sapatos. Pegou uma sandália de verniz, com salto
grosso e alto, da cor da calça. — Pronto, seu look está perfeito.
Agora, vá tomar banho que vou te fazer uma bela de uma
maquiagem.
Ri e entortei o nariz.
— Você me fez uma pergunta e não esperou resposta —
lembrei-a e ela fez um gesto com a mão – como querendo dizer: “E
preciso?” — Pra onde vamos? Você não tem que trabalhar?
— Sim, e vocês vão comigo. Betina já foi algumas vezes,
quero que você conheça o lugar.
— Quer que eu passe a noite em um bar?
Mia gargalhou e chacoalhou cabeça.
— Precisa aprender muito, pequena caipira. Não é um simples
bar, querida. É “o bar”. Só você indo pra ver. Não conhece bem São
Paulo, mas, depois de um tempo, vai saber o quanto o bairro de
Moema é famoso por ter ótimos lugares pra se passar as noites,
principalmente, os finais de semana.
Concordei, porque eu realmente não conhecia nada, não
cometeria o mesmo erro das pessoas de onde eu tinha escapado:
julgar. Uma noite não me mataria. Experimentaria o lugar, se não me
sentisse à vontade, confessaria a elas e não voltaria mais. Simples –
pensei.
§§§§
Estava me sentindo poderosa. Nunca imaginei que poderia
estar em um lugar como aquele. A primeira vez que Mia me disse
que trabalha durante a noite, em um bar, confesso que fui
preconceituosa. No entanto, fiquei calada. Por mais que eu tenha me
libertado de quase todas as manias da fazenda, durante o curso de
marketing – sempre lutava com coisas que surgiam em minha
cabeça –, por conta da minha criação conservadora e arcaica.
— Ali, meninas, separei um lugar especial pra vocês. — Mia
apontou uma mesa bem próxima ao palco.
Fiquei deslumbrada com o lugar. Luxo é a palavra apropriada.
Nunca imaginei que existia um bar como aquele. A começar pelo
tamanho: enorme. Pela decoração e iluminação, deduzi ser uma
danceteria. A banda já tinha começado a organizar seus
instrumentos. Em frente ao palco, tinha uma pista, que entendi ser de
dança.
Na verdade, o lugar era tão grande, que os espaços estavam
divididos. Uns mais descontraídos, com cara de bar e outros, mais
intimistas, oferecendo mais privacidade.
Enquanto nos acomodávamos, fiquei analisando os
frequentadores, visivelmente endinheirados. O lugar incluía
manobrista à porta. Por onde olhávamos, uma pessoa estava à
disposição, muito bem vestida e maquiada.
— Mama mia! — exclamei para Betina, assim que sentamos.
— Impressionada, pequena caipira?
— Quem não fica?
— Você tem razão, o lugar é muito legal. Vai ver daqui a
pouco, quando a banda começar a tocar, fica melhor ainda. Vai
querer voltar aqui todos os finais de semana.
Sorri e peguei o cardápio de cima da mesa, quase me
engasguei. Decididamente, não voltaria todos os finais de semana,
caso contrário, passaria fome. Misericórdia, não vou pedir nem água!
Mal acabei de pensar, uma moça muito educada e linda, chegou com
uma bandeja e duas taças com uma bebida rosa e pedaços da
laranjas espetados na borda.
— Olá, meninas, a Mia pediu que eu trouxesse pra vocês —
cumprimentou a garota, toda sorridente. — Sou a responsável por
esse setor, essa noite, qualquer coisa, é só me chamar. — Deixou as
bebidas e saiu.
Enruguei a testa e olhei para a Betina, em busca de socorro.
Minha experiência com bebidas não foi das melhores. O fim foi
trágico. Jamais que eu me arriscaria novamente.
— O que tem aí dentro? — perguntei, apontando o indicador à
taça.
Betina riu com vontade.
— Isso é um Cosmopolitan, é delicioso, pode beber —
garantiu e levou o canudo da sua taça à boca.
— Tem álcool?
— Claro, que graça teria não ter.
Neguei veemente com a cabeça, sentindo um calafrio na
espinha, em lembrar o episódio que quase me fez perder a bolsa de
estudos.
— Para de caipirisse, garota. Não vai ficar bêbada com uma
bebida fraca dessas. Só não pode misturar, vamos, estou aqui pra te
proteger, fique tranquila.
Respirei fundo e peguei a bebida, na primeira golada já subi
às alturas, era muito boa. Não poderia me acostumar, até porque,
não teria dinheiro para beber nada, mesmo.
— Eita, hoje a noite promete — comentou, Betina e apontou
com a cabeça para uma mesa.
Olhei na direção e gelei.
— Puta merda, Betina, vamos embora — fui me levantar ela
segurou meu braço.
— Nem pensar, ele está acompanhado, nem vai te ver aqui.
Agindo

Demorei a voltar para casa, fiquei rodando a cidade, arquitetando os


próximos passos. Teria que arrumar uma maneira de continuar sem
que ninguém soubesse, nem mesmo, João Pedro. Não queria
colocar meu amigo em uma enrascada, Bento o colocaria para fora
do distrito em um piscar de olhos. Não por João Pedro não ser bom,
mas por estar indo contra as suas regras.
Ao chegar em casa, procurei não alardear e fiz de tudo para
não cruzar com meus pais. Não queria brigar com eles,
principalmente com a minha mãe. Tenho certeza de que foi ideia dela
que Bento me tirasse do distrito, mas não poderia confrontá-la – não
com ela doente – mesmo que não admita, está muito debilitada.
Averiguei as palmas das mãos, enquanto tomava banho, e me
assustei um pouco. As marcas das unhas estavam profundas.
— Droga, como vou esconder isso da minha mãe? —
praguejei e esfreguei com a bucha, quase arrancando o restante de
pele que tinha sobrado. Tinha sangue seco por toda a palma das
minhas mãos.
Não faz muito tempo que comecei esse hábito. Certamente,
depois que parei de ir à terapia. Inclinei a cabeça para trás e deixei a
água atingir meu rosto, na esperança de que ela lavasse, não só
minha pele, mas minha alma.
Levantei mais cedo do que o habitual, na tentativa de não
cruzar com ninguém.
Coloquei uma cápsula de cappuccino na cafeteira e aguardei
que ficasse pronto. Encostada na pia.
— Nossa, onde vamos? Está toda produzida — comentou
minha mãe, entrando na cozinha.
Ri sem jeito, buscando uma desculpa. A verdade é que eu
queria descascar o abacaxi, dizendo que ela tinha que parar de se
meter na minha vida. No entanto, nem mesmo quando ela estava
bem, eu teria tido coragem. Apesar de odiar o que ela fez, tenho
plena consciência de que foi para o meu bem.
Dei de ombros e virei-me, pegando a caneca com o
cappuccino pronto. Engoli a bebida sendo escrutinada por ela. Por
cima da borda, pude ver seus olhos me lendo. Mais um pouco, e ela
saberia exatamente o que estava passando pela minha cabeça.
Decidi ir para o caminho mais seguro – mentir:
— Bento me deu folga, ele tem razão, preciso me divertir um
pouco, vou sair com uma amiga.
A risada que escapou de seu peito foi, no mínimo, irônica.
— Quando vai aprender a mentir? Desde quando tem
amigas? Só o coitado do seu parceiro pra te aguentar, filha,
desculpe-me, por estar sendo tão sincera.
Semicerrei os olhos e dei outra golada na bebida. Virei-me em
direção à pia e joguei o restante do cappuccino no ralo. Meu apetite
fica pior a cada dia. Talvez, só talvez... esse acerto de contas esteja
me consumindo. Lavei a caneca e a coloquei no escorredor de
louças.
— Preciso ir, mãezinha — desconversei, assim que voltei a
ficar de frente com ela. Me aproximei e beijei sua testa. — Se cuida,
te amo — concluí e saí, não lhe dando chance de continuar o
interrogatório.
Meu dia já estava programado e nada me faria mudar os
planos.
§§§§
Embiquei meu carro na entrada do estacionamento da
agência de modelos e logo um manobrista veio abrir a porta para
mim.
— Obrigada — agradeci, enquanto ele me aguardava sair.
— A senhorita vai falar com quem?
Abri o meu melhor sorriso e ajeitei o cabelo atrás da orelha.
Dificilmente uso meus cabelos loiros soltos. Me atrapalha em meu
trabalho. Mas hoje, em especial, os deixei naturais – soltos e
volumosos. Fiz uma maquiagem carregada e vesti algo mais
feminino. Nos pés, nada de coturnos, os sapatos de saltos
acabariam com eles, mas serviriam para o meu propósito.
— Valquíria — respondi naturalmente, como se tivesse
marcado horário. Claro que não o fiz, até porque, nem tive tempo.
Conseguir o nome da agência já foi um suplício.
O rapaz ficou me analisando, ponderando se deveria, ou não,
me deixar entrar. Não tirei o sorriso do rosto e comecei a enrolar uma
mecha de cabelo nos dedos, odiando ter que fazer aquela cena
ridícula.
— Tudo bem, fica no terceiro andar, por ali. — Apontou a
entrada da agência e eu o agradeci.
O lugar com luxo e glamour, exalando por todos os lados,
estava repleto de mulheres lindíssimas, tanto as que estavam
trabalhando como as que esperavam para serem atendidas. Fiquei
enojada, com tantas máscaras. Acostumada à autenticidade e
espontaneidade, cercada por homens “ogros”, teria que encenar
majestosamente, para conseguir chegar até a mulher que, na certa,
era a “cafetina”.
— Olá, meu nome é Gabrielle, estou aqui pra ver a Valquíria
— apresentei-me, com o máximo de simpatia.
— Olá, qual o horário que marcou?
— Desculpe-me, não sabia que precisava marcar, mas acho
que ela me atende, diga que venho da parte de Isaac Bennett.
A garota arregalou os olhos e engoliu em seco, olhando ao
redor, para ver se alguém prestava à atenção em nós.
— Olha só, pode sentar-se um minuto, vou subir e falar com
ela pessoalmente — disse baixinho, chegando com o corpo mais
próximo do balcão de mármore que nos separava.
Assenti e vasculhei o ambiente, em busca de um lugar para
sentar-me, não que eu quisesse, mas se não o fizesse, daria muito
na cara minha apreensão.
Logo que me sentei, uma bela moça saiu de onde estava e
sentou-se ao meu lado.
— Oi — cumprimentou baixinho. Franzi o cenho e a olhei de
esguelha. Por que ela está falando baixo?
Respondi e esperei que dissesse o que a levou ao meu lado.
— Você veio da parte do velho, mesmo?
— Por quê?
— É que... — Parou e olhou em volta, como se estivesse
cometendo um crime. — Podemos conversar lá fora?
— Por que eu deveria?
— Eu sei quem você é.
Estremeci. Se estivesse falando a verdade e abrisse o bico,
colocaria tudo a perder, não poderia arriscar.
Fiquei em pé e caminhei até a saída, sentindo que ela me
seguia.
— Meu nome é Andressa, fui secretária do Lucca por um bom
tempo. Até ele me descartar, como se descarta uma roupa surrada
— iniciou, assim que estávamos do lado de fora.
Aquela informação me interessou, só não sabia como ela
sabia quem eu era, afinal, meu alvo sempre foi o velho, não o
Narciso arrogante.
Analisei seu rosto por uns segundos, elaborando a melhor
maneira de arrancar o que eu queria. Se sabia quem eu era, na certa
me seguiu. Esse fato me deixou com a pulga atrás da orelha. O fato
de eu ser policial deixou-me esquiva com as pessoas, dificilmente
acredito no que elas falam, sem antes averiguar os fatos.
— Como sabe quem eu sou? — inquiri de cara, mesmo que
inicialmente tivesse pensando em ir por um caminho mais longo.
O desvio do olhar a denunciou. Seguramente havia me
seguido. Seria muita coincidência me encontrar no lugar certo e na
hora certa. Não acredito em coincidências.
Já que não me respondeu, decidi continuar com a inquisição:
— Qual o propósito de me seguir?
Olhando-me novamente, vi quando suas narinas se alargaram
e os olhos fumegaram. A raiva estava estampada ali.
— Estava na empresa quando esteve lá procurando pelo
velho e te encaminharam pra outro lugar. Mesmo sem conseguir
ouvir o que falavam, pela maneira que estavam vestidos, deduzi
serem policiais, você e seu amigo. — Assenti e esperei que
continuasse. — Quero ajudar — concluiu e eu estreitei os olhos –
escrutinando seu rosto.
— Tinha um caso com o Narciso? — Ela enrugou a testa e fez
uma cara de quem não tinha entendido. Aff, vou ter que desenhar, na
certa não sabe quem foi Narciso. — Seu patrão — esclareci e ela
enrubesceu – entregando-se. — Bom, nesse caso, não pode me
ajudar, não estou em um joguinho, garota. Isso é coisa séria, não
uma vingança por ser corneada.
Avisei e virei-me, voltando para dentro da agência. Sem dar
chance de a garota continuar tentando me convencer do contrário.
Confundindo

Logo pela manhã, Theo enviou uma mensagem me lembrando do


futebol. Sorri, em pensar o quanto o garoto é esperto como o pai.
Lembrar do Rodolfo é cruel, meu peito aperta e meus pulmões
parecem serem sugados, chega a doer para respirar. O que me
consola é ver seu filho continuar o seu legado.
Terminei de tomar meu café e saí. Aos sábados, costumo
aproveitar um pouco mais da cama. Não sou workaholic como Henry
que, mesmo aos finais de semana, continua indo à empresa.
Quando meu amigo era vivo, saíamos juntos. Embora tenha
passado mais de um ano, ainda consigo ouvi-lo ao telefone
marcando de nos encontrar. Estar com Theo é uma forma de
resgatar um pouco dele. Parei em frente ao prédio, tão familiar para
mim – e – antes que eu pudesse ter uma sessão nostálgica, Theo
veio correndo e abriu a porta do carro, sentando-se ao meu lado.
— Wow, rapazinho! Sabe muito bem que não pode vir na
frente — avisei-o, bagunçando seus cabelos.
— Tio, cadê seu conversível?
— Meu Deus, Theo, você está ficando muito mercenário —
repreendeu, Roberta, chegando logo atrás.
— Nem sei o que é mercenário, mamãe.
Ri e balancei a cabeça.
— Vá pra trás e coloque o cinto de segurança — ordenei e o
garoto pulou para trás pelo vão dos bancos.
Roberta entrou e inclinou o corpo – beijando meu rosto.
— Como vai, garanhão?
— Acho que vai ter que mudar meu apelido, nem saindo
estou, me virando sozinho há dias — terminei de falar e fiz uma
careta.
Roberta gargalhou e fechou a porta, colocando o cinto de
segurança.
— Posso te ajudar com isso — comentou, depois de um
pedaço que tínhamos percorrido.
Franzi o cenho e a olhei espantado.
— O que quer dizer com isso?
— Devagar aí, garanhão, não é o que está pensando —
justificou-se e eu soltei os ombros aliviado. Jamais eu teria algo com
ela, seria uma traição desmedida.
— Explique-se, então. Cheguei a sentir minha espinha gelar
— confessei e ela fez uma cara que me deixou confuso. Não sei se
de constrangimento ou decepção. Qualquer uma das duas era ruim.
— Hoje à noite, o Theo vai pra casa dos pais do Rodolfo.
Pensei que poderíamos sair, o que acha?
A olhei de esguelha, ponderando se seria uma boa ideia. De
qualquer maneira, sempre fomos amigos.
— Onde está pensando em ir?
— Conheço um bar legal em Moema, é bem tranquilo, na
verdade, mas tem uma pista de dança, caso você queira se
aventurar.
Bufei e neguei.
— Acho que não faz tanto tempo assim que saímos, nós três.
Conhece muito bem meu pé de valsa — satirizei, porque sempre fui
muito ruim de dança.
Roberta sorriu e assentiu.
— Só estou te provocando. Mas, sério, vamos?
Parei no semáforo e a olhei por um tempo. Roberta estava
diferente, mais arrumada. Não tinha reparado quando entrou no
carro. Mesmo quando estava com o Rodolfo, nunca foi de usar
maquiagem, e seus olhos estavam marcados com uma maquiagem
pesada. Os lábios pintados de vermelho.
Estiquei o pescoço e me olhei no espelho retrovisor,
conferindo meu rosto marcado com os lábios dela. Passei os dedos e
limpei. Voltei-lhe minha atenção e, mais uma vez, encontrei aquela
feição inédita para mim – constrangimento.
— Quando foi que começou a usar essa maquiagem pesada?
— indaguei e Roberta desviou o rosto para a janela.
— Não posso? Vou ter que passar o resto da vida guardando
a morte dele?
— Não foi isso que eu disse, mas entendi. Desculpe-me, está
certa.
Ficamos em silêncio. Por um tempo, o único som audível era
do jogo que entretinha o Theo.
— Cadê seu carro? — voltou a falar, aliviando, mais uma vez,
minha preocupação.
— Sofri um pequeno acidente, o seguro me mandou esse
como reserva — expliquei e ela assentiu. Voltei minha atenção ao
trânsito e o clima ficou estranho novamente. Decidi aceitar seu
convite, assim poderíamos aliviar aquela tensão horrorosa que
começava a se instalar entre nós. Sempre fomos amigos e sairmos
para nos divertir, resgataria tudo. — Que horas passo para te pegar?
Ela me olhou com um sorriso enorme. Pulou no meu pescoço
e beijou várias partes do meu rosto. Assim que parei o carro em
frente ao clube onde Theo jogaria.
— Está me lambuzando com essa tinta — reclamei e não
adiantou, pelo contrário, a incentivou a beijar-me em mais lugares.
Entre risos, saímos do carro com Theo pulando de felicidade.
O garoto grudou na minha mão e a mãe dele no meu braço, do lado
oposto. Quem não conhecia, acharia que éramos uma família. De
certa forma, sim, mas não como Roberta estava querendo aparentar.
A distração do jogo foi muito bem-vinda. O clima esquisito de
antes, entre mim e a Roberta, desapareceu. Pulamos, torcemos,
gritamos e, no fim, eles ganharam.
Theo veio ao nosso encontro não se contendo de felicidade,
com sua medalha de primeiro lugar pendurada no pescoço.
— Agora que ninguém mais vai aguentar esse garoto —
comentou sua mãe e ele olhou para mim estufando o peito.
— Parabéns, garotão, estou orgulhoso de você.
— Acha que meu pai viu? Lá do céu?
Respirei fundo e sorri forçosamente, mantendo o equilíbrio.
Agachei-me para ficar à altura de seu rosto e peguei em seu queixo.
— Tenho certeza que sim — afirmei sem olhar para Roberta,
não queria correr o risco de me desestabilizar. — Acho até que ele
vestiu a camisa do time — completei e fiquei em pé novamente.
— Ele tem a camisa do meu time, tio?
— Claro, onde ele está, ele estrala os dedos e tudo o que ele
quer aparece.
Meu trabalho estava feito. Minha invenção de momento
acalentou o menino.
Roberta trocou um olhar de agradecimento comigo e saímos
do clube – da mesma maneira em que entramos: como uma família.
§§§§
Roberta acertou na escolha do lugar, me agradou de imediato.
Embora tivesse alguns luxos, os ambientes eram bem descontraídos
e diversificados.
Escolhemos um lugar perto do palco para usufruir das
músicas. Apesar de ser um péssimo dançarino, gosto muito de boas
músicas.
Se durante o dia, minha amiga estava bem arrumada, não
conseguiria descrevê-la à noite. Senti medo de analisar, no entanto,
somente um deficiente visual para não reparar no vestido preto
grudado ao corpo e muito curto. Sem contar o decote nas costas,
praticamente a deixava toda exposta. Os saltos, a maquiagem
carregada e os cabelos soltos, fizeram uma transformação em minha
amiga. Nem a reconheci quando saiu.
Afastei a cadeira para que se sentasse, dei a volta na mesa e
sentei-me. Quase nem me acomodei e sorri..., será que o destino
estava brincando comigo? Já não bastava passar a semana inteira
lutando com uma vontade louca de estar com ela, de provocá-la,
de... tocá-la?
Já não aguentava mais mentir para mim mesmo. Controlar
algo que estava consumindo todas as minhas energias. Tinha que
acabar com aquela tensão, de alguma maneira.
Fiquei em pé e minha amiga ameaçou fazer o mesmo.
Segurei em seu ombro.
— Preciso de um minuto, tudo bem pra você?
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou e virou-se para
olhar na direção que me chamou à atenção.
Sorri mais abertamente.
— Não, está tudo bem, é só uma amiga — esclareci e
comecei a caminhar em direção à garota que roubava minha
concentração, nos últimos dias.
Meus passos pareceram mais pesados do que o normal. Para
cada um, era uma batida mais forte no meu peito. Suspirei e cerrei
os punhos, buscando não parecer um adolescente idiota diante da
primeira namorada. A garota, embora demonstrasse que eu também
mexia com ela, nunca sinalizou nada. Atribuí ao fato de eu ser o seu
chefe, mas torcia para que ela quebrasse as regras.
Ela estava sentada de costas para mim e a garota que lhe
fazia companhia começou a cochichar enquanto eu me aproximava.
A parte chata de estar com a cara estampada pela cidade é que você
não passa desapercebido em lugar nenhum.
A poucos milímetros de seu corpo, pude sentir seu cheiro, o
mesmo que invadira minha memória olfativa. Algo adocicado e, ao
mesmo tempo, fresco.
— Boa noite — cumprimentei e vi o retesar de seu corpo.
Franzi o cenho e aguardei que ela se virasse. A demora fez-me
duvidar se o faria.
Vi quando sua amiga fez um sinal para que ela reagisse.
Finalmente, Valentina ficou em pé e virou-se para mim. Uma corrente
elétrica passou por todo o meu corpo. Engoli em seco e dei um
passo para trás. Acostumado com uma garota descolada, sempre
vestida de jeans, camiseta e tênis, meu coração quase não resistiu
ao que viu.
Diferente da Roberta, Valentina usava uma maquiagem
elegante, com cores mais neutras, embora também fosse carregada.
Uma calça, que eu não saberia dizer o nome, afinal, não entendo de
moda, só enxerguei as duas fendas, uma em cada perna, expondo
boa parte de suas coxas. Regata branca e saltos altíssimos.
— Oi — balbuciou insegura e segurou os lábios nos dentes.
— Uau! — escapou dos meus lábios. Mesmo que eu quisesse
dizer algo a mais, não conseguiria. Minha boca secou
completamente. Sem contar as batidas do coração, estourando
minha caixa torácica.
O rosto da garota virou um pimentão. Ela baixou o olhar e não
soube onde colocar as mãos.
— Bom, vou deixar vocês conversarem — avisou a amiga e
levantou-se, nos deixando sozinhos.
Nesse momento, a banda começou a tocar, no entanto, eu só
conseguia ouvir sua respiração descompassada.
— Que coincidência — disse ela, sem jeito.
— Destino — corrigi-a e me aproximei. Peguei em sua mão e
trouxe para o meu peito. A garota arregalou os olhos e ameaçou
puxar a mão. Segurei mais firme e neguei com a cabeça – mordendo
o canto dos lábios. — Não consigo mais controlar isso — confessei e
dei mais um passo em sua direção. Ela tentou dar um passo para
trás, mas a mesa a impediu de se mover.
— Lucca — suspirou e baixou o olhar. — Não podemos.
Não resisti, juntei meu corpo ao dela e inclinei a cabeça até
chegar ao seu ouvido.
— Relaxa, não estamos na empresa.
Valentina puxou a mão e me olhou séria.
— Preciso do emprego..., não estou brincando de casinha.
— Tenho certeza disso. — Peguei novamente sua mão e
beijei a palma, voltando ao lugar de antes. — Preciso saber o que é
isso que estou sentindo — murmurei com o rosto a milímetros do
dela. Podia sentir seu hálito em minha boca.
Meu corpo virou uma massa de concreto seca, de tanto que
eu me contraía – contendo-me. Estava tão perto, que a qualquer
momento temia avançar em seus lábios carnudos.
Baixei o olhar e me arrependi no ato. Dali de cima, consegui
ver a entrada de seus seios fartos. Já tinha reparado nessa parte do
corpo dela, mas aquela blusa os acentuou muito mais. Passei a
língua pelos lábios, contendo a vontade insana de afundar o rosto ali
e lamber.
Ao voltar o olhar, encontrei duas pupilas dilatadas. Levei
minha mão à sua nuca, na intenção de suprir a necessidade que me
corroía. Vi o exato momento em que eu tinha ganhado a batalha.
Seus olhos se fecharam e os lábios entreabriram.
— Lucca. — Parei ao ouvir a voz da Roberta às minhas
costas.
Puxei uma lufada de ar e fui me afastando lentamente. Virei-
me e sorri sem vontade. Que diabo Roberta estava querendo?
Qualquer um podia ver que eu estava prestes a beijar a garota.
— Não vai me apresentar sua amiga? — cobrou, antes que eu
tivesse me recuperado..., me sentia dentro de uma caldeira fervente.
— Valentina, essa é Roberta – minha amiga — apresentei-as
e vi a mudança instantânea na expressão da Valentina. Apertei a
mandíbula e mantive um sorriso forçado no rosto.
As duas se deram as mãos e menearam as cabeças,
desconfortáveis. Tinha algo errado com a minha amiga. Desde cedo
estava agindo estranho. Não queria pensar que estava confundindo
as coisas, porque prometi ao meu amigo que estaria sempre por
perto.
— De onde vocês se conhecem? — Roberta continuou com
as perguntas, deixando Valentina completamente incomodada.
— No trânsito — adiantei-me, na esperança de que fosse o
suficiente à minha amiga.
— Como assim...
— Trabalho na Bennett — interrompeu, Valentina. —
Desculpem-me, preciso ir ao banheiro. — Saiu e me deixou
encarando minha amiga.
— Que porra foi essa? — praguejei entredentes, frustrado,
muito frustrado.
Roberta deu de ombros e desviou o olhar, deixando-me puto
da vida.
— O que está acontecendo com você, Roberta? — continuei e
peguei em seu braço, carregando-a de volta à mesa em que
estávamos.
Puxei a cadeira a fiz sentar-se, praticamente a empurrando.
— Nossa, Lucca, que desnecessário! — reclamou e esfregou
o braço onde meus dedos apertaram involuntariamente. Sentei e
fiquei olhando-a com os olhos estreitados. — Não sabia que comia
suas funcionárias — concluiu e eu joguei o corpo no encosto da
cadeira – passando as mãos pelos cabelos – sem saber o que fazer.
Tudo o que eu menos esperava, era ver Roberta tendo um ataque de
ciúme.
— Melhor você ir embora — avisei e enfiei a mão no bolso da
calça – pegando o cartão que o manobrista tinha me entregado. —
Vai com o meu carro. — Coloquei o cartão em cima da mesa e
empurrei para ela.
— Está me dispensando? Fui eu quem te convidou.
— Vou tentar consertar a merda que você fez.
Ela ficou em pé e puxou o mini vestido para baixo.
— Preciso usar o banheiro, antes — comunicou, com a voz
embargada, e saiu marchando.
Manipulador

Droga... Droga... Droga! Quando vou aprender, merda?! Depois de


tudo que passei, estou novamente abrindo à guarda.
Joguei água na nuca e apoiei as palmas das mãos no
mármore da pia do banheiro. Baixei a cabeça e controlei a
respiração, sentia-me esgotada. Como se eu tivesse feito horas de
esteira. Queria entender como ele conseguia mexer tanto comigo. A
porta do banheiro abriu-se bruscamente – assustando-me. Respirei
fundo e me preparei para retrucar. Por que o imbecil tentou me beijar
sendo que está acompanhado?
— Então presta serviços na cama do chefe? — A mulher
atacou-me sem hesitar. Encostou o quadril na pia, ficando ao meu
lado.
— Desculpe-me, você entendeu tudo errado — justifiquei-me,
afinal, ela não tinha culpa de o acompanhante não ter o menor
respeito pelas pessoas.
— Entendi, foi? — desdenhou e eu esquivei. Mesmo que
estivesse ofendida, sua raiva tinha que ser voltada ao Lucca, não a
mim.
Arrumei minha postura e ajeitei os cabelos ao espelho –
pronta para sair dali. Virei-me e, antes que eu pudesse dar um
passo, sua mão segurou meu braço e me puxou em sua direção.
Tropecei e quase caí em cima dela.
— Ei, o que é isso? Não sou eu que tem que atacar —
defendi-me e tentei me livrar de seus dedos que apertavam meu
braço.
— Fique longe dele — vociferou com a voz baixa.
Ri de nervoso e neguei.
— Durma tranquila, não tenho a menor intenção de roubar seu
boy — afirmei. — Agora, pode, por favor, me soltar? — Como ela
não se moveu, fui obrigada a apelar. — Vou ter que gritar — adverti e
ergui as sobrancelhas – comprovando que eu não brincava.
— Gente como você não me engana — prosseguiu e soltou
meu braço, virando-se para pia e lavando as mãos – fazendo
caretas. Como se eu tivesse uma doença contagiosa.
Era minha chance de sair e esquecer daquela maldita noite,
mas sempre detestei ser insultada.
— Gente como eu? — questionei, cruzando os braços e a
encarando.
— Caipira, com cara de santa, são tudo umas putinhas
baratas.
Custei a acreditar o que tinha acabado de ouvir. Senti vontade
de voar nela e, ao mesmo tempo, de chorar e sair correndo. Lembrei,
novamente, o quanto tinha sido difícil chegar até ali. O quanto sofri
para mostrar o meu valor. Não me rebaixaria a uma riquinha que se
achava melhor do que o resto da humanidade.
Sorri e balancei a cabeça, medindo-a da cabeça aos pés. Virei
as costas e saí, com todos os nervos do meu corpo pulando.
O trajeto até a minha mesa foi no automático, as pernas
estavam como gelatina e não enxergava um palmo à frente. Tudo era
um borrão. Empoçou-se rios de lágrimas em meus olhos e eu só
queria sair dali, o mais rápido possível.
— O que aconteceu? — indagou, Betina, levantando-se
rapidamente e vindo ao meu encontro.
— Me leva daqui — balbuciei e ela entendeu. Pegou em meu
braço e começou a me carregar para fora.
Um lugar tão bacana ficaria marcado, provavelmente, nunca
mais voltaria ali. As sensações, que tanto evito, voltaram com força
total. Quanto tempo evitando me relacionar, para não correr o risco
de me machucar e, na primeira vez que abro a guarda, tenho que
ouvir coisas que jurei nunca mais permitir que dissessem de mim.
— Ei, você está bem? — Minha fuga foi mal sucedida. Lucca
nos interceptou na metade do caminho. Betina, que não sabia de
nada, começou a explicar-lhe o que havia entendido. Eu não tinha
forças para xingar e nem para pedir que ela não falasse. Fechei os
olhos e apoiei a cabeça no ombro da minha amiga que tentava
explicar:
— Não sei o que aconteceu, ela voltou do banheiro
cambaleando, deve ter sido a bebida, não está acostumada.
— Deixa que eu cuido dela... — Lucca ofereceu e eu grudei
no braço da Betina pedindo:
— Me tira daqui, agora, por favor. — Ela enrugou a testa, sem
entender nada e assentiu.
Mal demos dois passos, Lucca parou à nossa frente e pegou
em meu queixo – fazendo-me olhar em seus olhos.
— Você vem comigo — ordenou sem titubear.
— Não estou em horário de trabalho pra receber ordens sua
— desafiei-o e ele sorriu debochado. Soltou meu queixo e voltou sua
atenção à Betina.
Achei que minha amiga, por ser a mais durona de nós três,
não cairia nos encantos do Lucca. Ledo engano.
Lucca abriu seu melhor sorriso e fez o que faz de melhor:
manipulou minha amiga. Fiquei de expectadora, ainda muito abalada
com o que tinha acontecido no banheiro. Esperava tudo, naquela
noite, menos resgatar os piores sentimentos, os que me
assombraram por muito tempo.
— Não me apresentei, que falta de educação — começou
Lucca e estendeu a mão à Betina. — Sou Lucca Bennett, como devo
chamar essa linda moça?
Betina derreteu-se e estendeu-lhe a mão. Claro que ele faria
com que minha amiga ficasse completamente a seu favor, e, para
isso, usaria todo o seu modo galanteador. Pegou a mão da minha
amiga e beijou o dorso. Revirei os olhos e balancei a cabeça.
— Eu sou a Betina, companheira de apartamento da Valen —
respondeu, com os olhos vidrados nele. O que ele tem, Senhor?
— Adorável seu nome, Betina. Vejo que Valentina está bem
acompanhada, uma amiga protetora. Isso é muito bom — exaltou o
EGO de Betina e eu soube que a tinha perdido para ele. — Você me
emprestaria sua amiga por essa noite? Tenho algumas pendências
com ela — solicitou, com a mão dela entre as suas e o sorriso
galante estampado no rosto. Betina reagiu como qualquer outra
mulher: assentiu e bateu com seu ombro no meu.
— Vai cair na lábia dele, Betina? Não acredito nisso! —
reclamei – indignada.
Ela tinha que me salvar, não me entregar ao predador. Estava
claro que ele só queria me levar para cama, como todos os homens
que se aproximam de mim. Sou uma presa de aparência fácil. Às
vezes, gostaria de não ser tão bonita. Tudo o que precisei enfrentar
foi porque os homens não conseguem pensar com a cabeça de
cima, quando estão comigo, chega a ser irritante.
No ensino médio, era até empolgante o quanto os garotos se
derretiam para mim. Mesmo que eu não fosse uma garota fácil.
Entretanto, ao chegar na faculdade, não tive o discernimento de
saber separar as coisas. Não tinha ideia do quanto os homens
podem ser inescrupulosos, quando se trata de atender ao que têm
no meio das pernas. Depois, quando a bomba estoura, quem sai de
sem vergonha somos nós, as idiotas que acreditam neles.
Betina tirou sua mão da dele e me pegou pelos ombros,
fazendo-me ficar de frente a ela.
— Não seja tão puritana, Valentina. Precisa se divertir, se
soltar. Não acho que seu chefe queira te fazer algum mal. Até,
porque, ele tem uma reputação a zelar. Tenho certeza de que todos
aqui dentro conhecem esse rostinho lindo que ele tem — terminou de
falar e sorriu.
Lucca ergueu uma sobrancelha e abriu um sorriso vitorioso.
Naquele momento, me arrependi de não ter contato a ela o
que tinha deixado para trás. Na certa, entenderia o motivo de eu me
fechar, de não querer abrir à guarda.
— Quero ir embora, por favor — balbuciei olhando dentro dos
olhos dela, na esperança de ela captar meus motivos. Ela era a
única que tinha ouvido parte da conversa com a minha mãe, deveria
ligar os pontos, com a minha reação exagerada.
Betina ficou séria e hesitou, percebendo que eu não estava
brincando. Nos olhou e respirou fundo – soltando os ombros.
— Bom, acho que vocês dois são adultos, não vou interferir —
avisou e saiu, me deixando desesperada. Com ela ao meu lado, eu
teria coragem de enfrentá-lo. Não que eu seja fraca, mas,
definitivamente, Lucca consegue me desestabilizar. Apesar de ter
total consciência de suas verdadeiras intenções.
Ele deu poucos passos e ficou de frente para mim. Pegou
novamente em meu queixo e seu toque fez meu corpo estremecer.
Me amaldiçoei de imediato.
— Quem te machucou? — questionou, sério. Neguei e baixei
o olhar. — Olhe pra mim — exigiu e o fiz, encontrando seus olhos
encantadores tentando me ler. — Vamos sair daqui.
Chegando Perto

Ao pôr os pés dentro da agência de modelos encontrei a atendente


mais assustada do que antes. Fez um sinal para que eu me
aproximasse e falou tão baixo que eu quase não ouvi.
— A dona Valquíria pediu que adiante o assunto, ela está com
a agenda cheia.
Estreitei os olhos e analisei uns o rosto da garota por alguns
segundos, odiando saber que não tinha meu distintivo e nem minha
Glock para fazê-la me atender. Bento, conhecendo-me muito bem, os
confiscou.
Antes de responder, olhei novamente em volta – estudando os
perfis das garotas que estavam esperando para serem atendidas.
Todas muito novas, ou seja, eu com trinta, claramente não poderia
fingir que estava ali para ser contratada. De repente, tive uma ideia,
perigosa, mas que me salvaria, pelo menos naquele momento.
— Um minuto, por favor — pedi, erguendo o indicador e saí
outra vez. Sorte a minha que a garota largada do Narciso,
permanecia ali. Me aproximei e a mesma enrugou a testa. —
Quantos anos você tem? — perguntei de cara, para ter certeza de
que minha artimanha daria certo.
— Vinte e quatro. — Meneei a cabeça e peguei em seu
ombro, fazendo-a ficar de costas.
A garota tinha todos os requisitos necessários. Não estava na
faixa dos dezoito anos, como as que estavam ali dentro, mas
serviria. Acho até que seria uma vantagem, sua idade, porque não
passaria nos testes e fariam a proposta a ela.
— O que está fazendo, por que quis saber minha idade?
— Está disposta a tudo?
Sua expressão fechou-se e eu duvidei um pouco se ela me
ajudaria, mas não demorou muito para que confirmasse.
— Ele vai me pagar pelo que fez comigo — garantiu, com a
voz embargando.
— Olha só, em outro momento, eu diria pra você se valorizar
mais, é muito nova e bonita pra se preocupar com um merda como
ele. Só que, agora, preciso que me ajude, então, vou deixar que sua
raiva te motive — elucidei minha opinião e comecei a arrumar-lhe, os
cabelos e a roupa. — Precisa convencer as pessoas ali dentro de
que você quer muito trabalhar com eles, consegue?
Ela arregalou os olhos e suspirou.
— Consigo — confirmou, depois de uns segundos
ponderando. — Mas acho que já passei da idade.
— Sim, não mais do que eu — esclareci e ri de ódio. Seus
olhos esmeraldas me encararam e a expressão mudou para
determinada. Ergueu o queixo e fez um sinal para entrarmos. — É
isso aí.
Entramos e todas voltaram suas atenções para nós, se a
intenção da atendente era que eu passasse desapercebida, não
estava funcionando. Provavelmente, daria um jeito de convencer a
“cafetina” a me atender.
— Essa é Andressa, minha prima, ela veio do interior e
precisa trabalhar — comecei e a atendente olhou-me desconfiada.
Saiu detrás do balcão alto de mármore e analisou a Andressa mais
de perto.
— É, acho que dá pra agendar um horário pra ela.
— Tem que ser agora — exigi e recebi um riso sarcástico de
volta.
— Não é assim que as coisas funcionam por aqui. Dona
Valquíria é muito requisitada.
— Imagino que sim — debochei e vi seu corpo endurecer. —
Disse a ela que é uma indicação do Isaac Bennett?
— Shiiiii... — Colocou o dedo em frente aos lábios e ficou bem
próxima de mim. — Pode falar mais baixo?
Sorri, achando aquilo divertido. O filho da puta não queria
chamar à atenção. Só não contava que eu estava na cola dele há
tempos. Não deixaria escapar mais nem um passo do infeliz.
— Então... — apressei a moça e ela deu a volta novamente no
balcão e usou o telefone, certamente para falar com a tal Valquíria.
Ficou de costas para nós e cochichou, foi impossível ouvir a
conversa. Depois de uns segundos, voltou a ficar de frente e colocou
o aparelho de volta no gancho.
— Ela vai — avisou e caminhou até nós —, me acompanhem.
Abri o meu melhor sorriso e fiz sinal para a Andressa para
seguirmos a atendente. Estou perto, filho da puta!
Controlando-se

Naquele momento, o que eu mais queria era poder ler os


pensamentos da Valentina. Se, antes eu achava que algo lhe tinha
ferido, tive certeza, assim que a vi nos braços da amiga. Sabia,
também, que, naquela ocasião, havia o dedo da Roberta. Na hora
certa, eu sentaria e colocaria os pingos nos “is” com a viúva do meu
amigo.
Recuperada, do quer que fosse que tinha acontecido no
banheiro daquele bar, Valentina voltou a ficar na defensiva. Esse fato
me assustava um pouco, devo confessar. Nunca precisei lutar pela
atenção de qualquer mulher, muito pelo contrário, sempre as
dispensei.
Eu precisava, de alguma maneira, entender o porquê meu
corpo reagia insanamente ao lado dela. Queria, de uma vez por
todas, colocar um fim naquilo. A garota tinha mostrado seu valor na
primeira semana de trabalho, seria muito ruim para a empresa perdê-
la. E, como ela mesma disse: precisava do emprego. Meus passos
teriam que ser cautelosos, só não sabia como fazer, afinal, ao lado
dela, só queria tocá-la... beijá-la e... caralho!... queria estar dentro
dela, loucamente, como nunca quis estar em ninguém.
Sebastião estava na porta do bar, mais rápido do que eu
imaginei. Assim que entreguei à Roberta o cartão que o manobrista
me deu, liguei ao meu motorista. Mesmo que eu lhe dissesse que
aos finais de semana poderia descansar, não me obedecia. E, para
piorar tudo, sempre que eu saía sozinho – acontecia algo – me
fazendo necessitar do seu socorro, estava constrangedor.
— Boa noite, senhor! — Ele cumprimentou e eu fiz uma
careta. Quem faria o indivíduo não me chamar de senhor?
— Boa noite, Sebastião, essa é a Valentina, vai conosco hoje
— apresentei-a e a garota deu um meio sorriso.
O motorista abriu a porta do carro luxuoso, que faz questão de
manter, cumprimentou-a e fez um gesto para que a mesma entrasse.
Ela olhou para mim e hesitou, ergui as sobrancelhas, comprovando
que não tinha escolha.
Entrei, no carro e me acomodei ao lado dela.
— Para onde, senhor?
— Minha casa.
— O quê? Não... — Valentina negou rapidamente, chegando o
corpo para frente. Bateu de leve no ombro do motorista. — Pode, por
favor, me deixar no meu apartamento? Se for incômodo, me deixa
perto de uma estação de metrô.
Joguei a cabeça para trás e gargalhei.
— Desde quando anda de metrô?
Ela cruzou os braços no peito e fechou a cara.
— Desde que descobri que os estacionamentos cobram,
praticamente, o que eu ganho para deixar o carro todos os dias —
confessou e colocou a mão na boca, arregalando os olhos.
— Estão te pagando tão mal assim? — diverti-me, com o
desespero dela em negar.
— Não, desculpe-me, não foi o que eu quis dizer. É que... —
suspirou. — Preciso trocar a bateria da Penélope e... arrumar a
porta, quase não estou conseguindo entrar — esclareceu e eu fiquei
olhando-a, pensando em como me seria fácil resolver àquelas
questões, em um piscar de olhos. Melhor ainda, comprar-lhe um
carro decente.
— Patrão? — chamou-me, Sebastião, sem saber o destino.
Encarando-a, com um olhar desafiador, repeti:
— Minha casa.
Valentina fechou os olhos e bufou. Arrumou a postura e virou
o rosto para a janela, grudada à porta, com medo de nossos corpos
se tocarem.
Depois de um tempo, que fiz questão de não me aproximar,
para que ela pudesse digerir, Valentina arrastou o corpo para perto
de mim e falou baixinho:
— Não vou pra cama com você — garantiu e eu segurei para
não dar outra gargalhada.
— Acha que é por isso que estou te levando à minha casa?
Ela balançou a cabeça para frente e para trás, rigorosamente.
Peguei em sua mão e beijei a palma, olhando-a dentro dos
olhos. Inclinei a cabeça até estar com o rosto entre seus cabelos e
mordiscar a ponta da sua orelha.
— Não vou negar que quero muito isso, mas não é só por
isso, quero estar com você. — Respirei fundo e afastei um pouco o
tronco para olhar novamente nos seus olhos felinos. — Nem sei o
porquê, mas quero muito estar com você... o tempo todo —
murmurei.
Valentina umedeceu os lábios e engoliu em seco. Retirou a
mão e voltou a se encostar na porta, sem me olhar.
O trajeto foi rápido, mesmo que a capital paulista não durma,
em alguns horários, conseguimos transitar sem ficar, a maior parte
do tempo, praticamente parados.
Desci e abri a porta, esticando o braço e oferecendo a mão
para que ela pegasse. Hesitante, Valentina aceitou minha ajuda e
saiu. Inclinou a cabeça para trás e olhou para cima, estudando o
prédio alto.
— Vamos? — Ela assentiu e suspirou. — Sebastião, pode ir
descansar — dispensei-o.
— Tem certeza, senhor? Posso esperar para levar a moça.
— Não se preocupe com isso — garanti.
— Eu posso pegar um Uber! — Valentina adiantou-se e o meu
motorista deu um sorriso de canto, negando com a cabeça.
— Moça, acho que ainda não conhece meu patrão, isso,
dificilmente vai acontecer — alertou-a e ela deu meio sorriso.
— Sei me cuidar sozinha — assegurou, estufando o peito.
— Boa noite, Sebastião. — Ele acenou e saiu sorrindo,
balançando a cabeça. Ele, melhor do que ninguém, me conhece.
Sabe que, quando é importante para mim, fico superprotetor.
Tenho certeza de que Sebastião viu no meu olhar o quanto
estou envolvido com a Valentina, sem nem mesmo ter a tocado
direito. Nem sei que gosto a garota tem. Como é sua vida; seu
passado; sua família.
Entramos no elevador privativo da cobertura e coloquei a
palma da mão na biometria, para que o mesmo nos levasse à minha
casa. Sim, minha casa, lugar onde me sinto confortável, seguro.
Dentro da caixa de aço, Valentina encolheu-se em um canto e
abraçou o próprio corpo, com os olhos fixos no painel luminoso.
Nenhum de nós falou nada. Um cara como eu, que nunca se sentiu
acuado, nem perdeu as palavras, ali, naquele pequeno espaço, junto
dela, vivia uma tremenda bagunça interna.
As portas se abriram, saí e convidei-a para que me
acompanhasse.
— Minha casa — gabei-me, abrindo os braços e sorrindo –
assim que entramos na sala de estar.
Ela segurou os lábios nos dentes e vasculhou o local.
— Uau! — murmurou e caminhou até as vidraças.
A segui, ficando rente ao seu corpo. Aspirei devagar seu
cheiro e fechei os olhos, absorvendo tudo o que eu podia dela. Fui
pego no flagrante. Ela virou-se, mais rápido do que eu pensava e
ficou me olhando – séria.
Eliminei a pouca distância que tinha entre nós, ajeitei seus
cabelos loiros atrás de sua orelha e rocei nossos narizes. Sentia que,
a qualquer momento, meu coração escaparia do meu peito.
— Seu cheiro é muito bom — ciciei, olhando dentro dos seus
olhos.
Valentina estava apreensiva, seus braços permaneciam ao
lado do corpo e, a cada toque meu, seu corpo estremecia. Gostaria
de pensar que era apenas tesão, infelizmente, tinha certeza de que
havia muito mais por trás daquela postura defensiva.
— Por que me trouxe aqui?
— Já te disse.
— E agora?
Dei de ombros.
— Quero te apresentar minha casa.
— Depois, posso ir embora?
— Do que tem tanto medo? — Mesmo inconsciente, pois não
planejei aquele momento, ele me foi propício para começar a
entender o que acontecia com ela.
Tive uma semana para estudar Valentina, não me aproximei
muito, na intenção de ver sua interação com as outras pessoas.
Embora muito simpática e carismática, manteve uma barreira
invisível, evitando que alguém chegasse muito perto e a lesse.
Ela desvencilhou-se do meu toque e virou-se novamente para
as vidraças.
Abracei seu corpo por trás e apoiei o queixo em seu ombro.
Depois de um tempo, ela sentiu-se mais confortável em alisar meus
antebraços. Meus lábios sorriam involuntariamente.
— Fala comigo — pedi baixinho, desejando algo que nunca
achei que desejaria de uma mulher, linda como ela – completamente
vestida na minha sala de estar – que ela fosse minha, para eu
protegê-la; poder proporcioná-la as melhores coisas da vida.
— Não vai cumprir sua promessa? — cobrou com a voz um
pouco mais leve.
— São tantas promessas a cumprir com você — flertei,
aproveitando que cedeu um pouco. — Qual delas quer primeiro?
Valentina virou o rosto e ficou com a boca muito próxima da
minha. Seus olhos se fixaram nos meus lábios por alguns segundos.
Ela claramente controlava-se, assim como eu. Só não entendia o
porquê. Esperava que fosse apenas por ser minha funcionária.
— Estou esperando o tour — explicou e o canto dos meus
lábios se ergueram.
— Ganho um beijo? — arrisquei. Estar ali, tão perto e, ao
mesmo tempo, tão distante, fodia com a minha cabeça e, pior, com a
parte suplicante do meu corpo.
A última vez que fiz sexo foi com a Andressa, logo conheci
Valentina e, desde então, a bagunça que se instalou na minha
cabeça impediu que eu ficasse com outra mulher.
— Lucca... — suspirou —, isso nunca vai dar certo. E, no fim,
a única que vai sair machucada e prejudicada serei eu.
— Por que acha isso? — rebati, mantendo-a cativa em meus
braços.
Seu peito subiu e desceu e o rosto voltou-se ao lugar de
antes.
— Eu sei como as coisas funcionam — prosseguiu, com a voz
baixa.
— E como é?
Valentina ameaçou desvencilhar-se de mim, não recuei,
mantive-a firme.
— Tenho muito a perder, Lucca. Você, não, é só mais uma
transa. As coisas não funcionam assim pra mim.
Quem tiraria a razão dela? Eu realmente buscava apenas
diversão, com todas as mulheres que me relacionei. Não sou como a
maioria dos homens, que ficam apenas uma vez com a mulher, mas,
também, não sou nem um puritano. Nunca quis um relacionamento
sério. Mesmo que fossem, relativamente longos e monogâmicos,
nunca prometi casamento.
— Você está certa — afirmei e ela me olhou de supetão, com
a testa franzida. — Com as outras, sim. Com você, é diferente —
confessei.
Ela riu debochada e balançou a cabeça.
— Não apela, Lucca, só pra me levar pra sua cama.
Soltei seu corpo e me afastei, ficando de costas para ela.
Passei as mãos pelos cabelos e inclinei a cabeça para trás –
aspirando a maior quantidade que consegui de ar e soltando-o
lentamente. Virei novamente e a encarei – com as mãos nos quadris.
— Tour? — ofereci e forcei um sorriso.
Abraçando o corpo, ela assentiu. Caminhei até o corredor, que
nos levaria aos outros cômodos, e a convidei para que me seguisse.
Apesar de não ter programado levá-la ao meu apartamento
naquela noite, não foi daquela maneira que imaginei que seria.
A barreira que Valentina ergueu é muito maior do que imaginei
e, por mais que ela diga que é por causa do trabalho, eu não
acredito. Meu instinto diz que tem muito mais.
— Você mora sozinho nesse apartamento imenso? —
questionou com os olhos brilhando.
As imagens que surgiram na minha mente fizeram com que eu
demorasse para responder. Foi como se eu estivesse sonhando
acordado. De repente, comecei a desejar o que meu amigo tinha
com a Roberta e o Theo: uma família.
Imagens de um pequeno correndo por aqueles espaços com
pouca vida; Valentina à vontade, vestindo apenas uma camiseta
minha e mais nada. Sem maquiagem, descabelada e descalça.
Aquilo me pareceu tão apropriado; a receita da felicidade.
Chacoalhei a cabeça e voltei à realidade, encontrando um
rosto com uma expressão interrogatória.
— Sim, por enquanto — respondi sorrindo – tendo plena
certeza de que queria aquele sonho realizado.
Ao chegarmos à suíte, Valentina deu uma rápida olhada e
saiu, nitidamente fugindo. Peguei em seu braço e a fiz voltar.
— Está com medo de mim ou de você? — diverti-me, assim
que seu corpo ficou próximo ao meu.
Ela virou o rosto para cima e ficou me estudando por um
tempo. Umedeceu os lábios e respirou fundo.
— Você tem bom gosto — desconversou. Assenti, sem forças
para contestar sua fuga. Cada vez que me aproximava, que sentia
seu cheiro, a maciez da sua pele, meu cérebro dava uma bugada.
Provando que estava segura de si, Valentina explorou todos
cantos do quarto. Preferi me manter encostado à porta, não
respondia por mim, tendo a mulher que estava mexendo com a
minha cabeça explorando meu closet, no meu banheiro, sentada na
minha cama.
— Sua casa é bem organizada, além de babá, quantos
empregados você tem? — provocou e eu sorri – cruzando os braços.
— Além de babá, tenho uma cozinheira, uma pessoa que
cuida das minhas roupas e outra que cuida da casa.
Seu sorriso foi meio debochado, como se aquilo fosse errado.
Por mais que eu quisesse contestar, estava adorando conhecer
todas as versões dela. Adorando ver que, aos poucos, a barreira
estava caindo.
Ela sentou-se na beirada da cama e pegou um porta-retratos
em cima da mesa de cabeceira. A foto é minha com a minha mãe,
estamos na cada dela, no meio das plantas. Estou abraçando-a por
trás e beijando sua face. Continuei encostado ao batente da porta
esperando pela pergunta, que eu sabia que viria.
— Vocês são parecidos — comentou e voltou o objeto ao seu
lugar. — Ainda bem que nunca vai precisar conhecer onde moro,
acho que se sentiria em uma caixa de fósforo. — Levantou-se e foi
até o banheiro.
Aguardei uns instantes e a segui. Analisei seu escrutínio,
como uma criança em um parque de diversões.
— Quem te garante que nunca vou conhecer onde mora?
Seus ombros encolheram-se, enquanto abria a tampa do meu
perfume e cheirava.
— Nunca vou te levar lá, até porque, por qual motivo levaria?
— falou com desdém.
Me aproximei devagar e tirei o vidro de perfume de suas
mãos. Virei-a e abracei sua cintura, apertando-a contra meu corpo.
Estava brincando com fogo, eu sabia, mas precisava fazê-la
entender que eu não mentia. Que não era só tesão o que estava
sentindo.
Ficamos nos olhando um tempo. Os nervos do meu corpo
começaram a saltar. Meu controle estava por um fio.
— Preciso te beijar — confessei e encostei a testa na dela.
A Tentativa

Estremeci e engoli em seco, com o olhar fixo em seus lábios.


Estar ali, em cativo, nos braços dele, queria sentir medo, sair
correndo, mas o que eu senti foi contraditório. Uma sensação de
estar no lugar certo... de segurança.
Tinha uma luta interna na minha cabeça. Meu corpo implorava
para que eu cedesse, enquanto minha razão gritava para que eu
fugisse. Sair machucada seria fatal. Provavelmente, muito mais difícil
de se recuperar do que da primeira vez.
Lucca não me esperou pensar muito, seu aviso de que
precisava me beijar quase não terminou. Levou seus lábios aos
meus e, lentamente, roçou nossas bocas, sem tirar os olhos dos
meus. Eu quase não respirava, sentia as batidas do coração nos
ouvidos. O tremor dos nervos do meu corpo quase me
desequilibrava.
O toque da sua língua nos meus lábios ativou uma corrente
elétrica por todo o meu corpo. Imediatamente, escapou um gemido
do meu peito. Foi o suficiente para que ele avançasse.
Entreabri a boca, fechei os olhos e inclinei a cabeça para trás.
Uma coisa era certa, dali para frente, o que ele quisesse fazer
comigo, certamente, conseguiria. Passei muito tempo me privando
de sentir aquelas sensações, sabia que, a pessoa que conseguisse
fazer com que eu abrisse à guarda, levaria vantagens.
Lucca foi devagar, como se soubesse o que tinha acontecido
comigo. Deslizou a língua para dentro da minha boca e, no momento
que tocou a minha, foi do seu peito que escapou um gemido. Ele
fechou os olhos com força e me apertou ao seu corpo. A
protuberância na minha barriga gelou-me a espinha. Desejava e,
temia.
Aos poucos, o beijo, que no início parecia simples, foi ficando
intenso. O aperto de suas mãos em meu corpo demonstrava o
quanto Lucca estava no limite. Meus lábios estavam sendo sugados,
despertando partes do meu corpo que estavam há muito
adormecidas.
Sem controle, Lucca arrancou minha regata de dentro da
calça e alcançou minha pele por baixo dela. O toque de seus dedos
no meu abdômen tirou-me de órbita. Queria impedi-lo e não
conseguia. Ele passou sua mão por baixo da minha perna e me
levantou, sentando-me na pia do banheiro. Rapidamente, sem que
eu pudesse reagir, puxou a regata pela minha cabeça, deixando-me
só de sutiã, que graças às minhas amigas, era novo. Um vento
gelado, como um aviso, despertou-me para a realidade.
— Lucca... — suspirei e o empurrei de leve.
Ele se afastou um pouco – respirando com dificuldade.
Segurou os lábios entre os dentes e me encarou – estreitando os
olhos.
— Você quer, tanto quanto eu, qual é o problema?
Abracei o corpo, tentando esconder meus seios e baixei o
olhar.
— Preciso ir — avisei e pulei da pia. Peguei a regata do chão
e a vesti, sentindo seus olhos sobre mim.
Ele não me impediu de voltar à sala de estar.
Quando entrei na casa dele, meus olhos não sabiam o que
olhar primeiro. Nos meus vinte e três anos, nunca tinha entrado em
um lugar como aquele. Só tinha visto algo parecido nas novelas. Um
sonho.
A casa do Lucca, como ele faz questão de chamar, é
elegante. Mesmo que eu tenha me formado em Marketing, continuo
sendo a garota que foi criada em uma área rural. A maioria das
coisas, eu nunca tinha visto, e nem sei como descrever.
O que posso dizer é que ele tem bom gosto. Um lugar que
quando você entra sente-se abraçada, não é frio. Achei que, pelo
perfil dele, todo despojado, andando de conversível, seu
apartamento seria cheio de frescuras, me enganei. Embora tudo seja
muito moderno, é aconchegante. Os quadros, porta-retratos, cortinas
e tapetes, despertaram um desejo de morar ali. Principalmente, pela
companhia.
Em cada cômodo que eu entrava, imaginava como seria nós
dois ali, tendo uma rotina. Claro que, na mesma hora que eu
pensava, jogava para o canto mais profundo da minha mente.
Obviamente um sonho impossível. Se eu cedesse, seria consciente
de que seria uma noite só. Podia ser normal para qualquer outra
pessoa, não – para mim.
Na primeira e única vez que tentei ser “moderna”, ter sexo
sem compromisso, me dei mal. Quase perdi a bolsa de estudos e
tive que sair, praticamente, corrida da minha cidade. Meus pais
quase morreram de vergonha.
— Você não precisa ir, está tarde. Podemos passar o domingo
juntos — sugeriu e eu neguei. — Você conheceu o apartamento,
Valentina, é muito grande, não vou tocar em você, se não quiser —
prosseguiu e eu continuei negando. A prévia que tive no banheiro, foi
suficiente para eu saber que não daria certo passar a noite ali.
— Obrigada, mas prefiro ir.
Ele assentiu e mordeu o canto dos lábios – me estudando.
— Meu carro está no conserto e o reserva ficou com a
Roberta.
Ao ouvi-lo pronunciar o nome dela, gemi e fechei os olhos,
involuntariamente. Mais um motivo para eu não ficar. Queria lhe
perguntar por que estava fazendo aquilo, já que tinha a Roberta. Até
mesmo o carro estava com ela. Mas não demonstraria interesse.
— Não se preocupe, vou pedir um Uber — avisei e fui
pegando minha bolsa.
— É muito perigoso, vamos pedir um Rádio Taxi, eu pago, não
se preocupe.
Mal terminou de falar e já foi ligando. Fiquei em pé, na frente
dele, enquanto pedia o carro. Ele apontou o sofá e esperou eu sair
para me seguir. Sentei-me na ponta, segurando a bolsa no colo.
— Pronto, daqui uns dez minutos — comunicou e colocou o
celular em cima da mesa de centro. Assenti e desviei o olhar. — O
que aconteceu no banheiro daquele bar?
Voltei-lhe rapidamente à atenção e tentei fazer uma expressão
de que não tinha entendido a pergunta.
— Como assim?
Ele riu sem humor.
— O que a Roberta te falou?
— Nada, nada mesmo, porque se tivesse falado alguma coisa,
teria razão. Se uma pessoa me levasse em um bar e me largasse
para flertar com outra, acho que eu a esganaria. — Ao me expressar,
procurei ser firme, erguendo o queixo, passando segurança.
— Roberta é minha amiga da faculdade, não temos nada,
estávamos ali para descontrair — defendeu-se.
— Não foi o que ela disse...
— Então ela disse — afirmou e ergueu uma sobrancelha.
— Tanto faz, não é problema meu.
Nos encaramos por um tempo maior do que eu gostaria.
Comecei a esquematizar uma maneira de sair logo dali e o interfone
tocou. Uffa!
§§§§
O toque do celular me despertou. Esfreguei os olhos e o
peguei – tentando enxergar as horas. Parecia que eu tinha acabado
de me deitar. Assim que a vista desembaçou, consegui ver: cinco e
meia da manhã, realmente, eu tinha praticamente acabado de me
deitar.
A ligação tinha parado, quase larguei o celular e voltei a
dormir, mas não é normal alguém me ligar àquela hora da manhã.
Sentei na cama e fui às chamadas perdidas: minha mãe.
Antes mesmo que eu retornasse à ligação, o celular voltou a
tocar.
— Oi, mãe — atendi apreensiva.
— Filha, seu pai — disse aflita.
— O que aconteceu?
— Enfarto, filha. — Senti a bílis queimar minha garganta.
Fechei os olhos e fiquei com medo de fazer a pergunta crucial. —
Está na UTI. — Naquelas alturas, eu quase já não a ouvia mais.
A palavra enfarto foi o gatilho para eu estar em pé, correndo
para o banheiro.
— Qual hospital? — perguntei, colocando pasta de dentes na
escova. Enquanto ela me passava os detalhes, eu escovava os
dentes.
Voltei correndo ao quarto e fui pegando as primeiras peças de
roupas que apareceram na minha frente.
— Fique calma, mãe, vai dar tudo certo — consolei-a, mesmo
sabendo que eu quem precisava ouvir aquelas palavras.
— Filha... — Soluçou. — Foi de desgosto.
Parei o que estava fazendo e meu corpo amoleceu
imediatamente. Sentei na beirada da cama, porque minhas pernas
perderam as forças.
— Não faça isso — murmurei e a garganta fechou
completamente.
— Sabe que é verdade.
— Mãe... — forcei a palavra e inclinei a cabeça para trás,
buscando forças do alto. — Chego aí, o mais rápido que conseguir.
Não esperei que continuasse, desliguei o telefone. As
lágrimas queimavam meu rosto. Joguei uma troca de roupa na
mochila, peguei meus documentos e saí do quarto, dando de cara
com a Mia.
— O que aconteceu, por que está chorando?
Balancei a cabeça e segurei os lábios entre os dentes,
cerrando os olhos. Se o meu pai morresse, minha mãe nunca me
perdoaria, provavelmente..., nem eu.
— Meu pai teve um enfarto — comuniquei à minha amiga.
— Oh, meu Deus! — exclamou e me puxou para um abraço.
— O que vai fazer?
— Estou indo pra lá.
— Sozinha? — assenti e me afastei, ajeitando a mochila às
costas. — Não se preocupe, sei me cuidar — assegurei e fui saindo.
Com a mão na maçaneta da porta ouvi Mia me chamar. Virei e
minha amiga estava abrindo sua bolsa.
— Pegue esse dinheiro, ainda não recebeu, depois me paga
— esticou o braço me entregando as cédulas.
O dinheiro para pagar o aluguel estava na bolsa, pois eu teria
que usá-lo, seria orgulho se não aceitasse a ajuda dela. Peguei o
dinheiro e a abracei novamente.
— Obrigada — agradeci chorando.
— Vai dar tudo certo, Valen, Deus é mais.
Concordei e saí. Enfrentaria outra batalha: Penélope. Desci as
escadas pedindo a Deus que ela pegasse sem precisar dar tranco e
que não desse nenhum problema na estrada. Tirando a bateria e a
porta completamente amassada, ela estava bem.
§§§§
Um trajeto de cento e sessenta quilômetros, que se gasta, em
média, duas horas, gastei quase o dobro. Cheguei ao hospital perto
das dez da manhã. Por mais que eu goste da Penélope, tenho que
admitir que na estrada ela deixa muito a desejar. Claro que não digo
isso em voz alta, para não a ofender. Foi agoniante saber que tinha
que chegar logo e ela não colaborar.
Ao entrar na cidade, onde fiz minha faculdade – onde tudo
aconteceu –, senti um frio na espinha e um filme passou pela minha
cabeça. Desvencilhei rapidamente aqueles pensamentos, pois teria
que estar preparada para enfrentar os olhares acusatórios,
principalmente, os da minha mãe.
Parei a Penélope no estacionamento do hospital e desci,
sentindo as pernas dormentes. Passei as mãos pelas pernas da
calça jeans surrada, ajeitei a camiseta com estampas de jornais e
conferi se os cadarços do All Star preto estavam amarrados. Cruzei a
pequena bolsa, com meus documentos e celular, no corpo, e entrei.
Passei o nome do meu pai para a recepcionista e logo fui
encaminhada à ala em que ele estava. No elevador, minhas mãos
começaram a suar. Mordia a parte interna da bochecha, olhando
fixamente para o painel luminoso. As portas abriram-se e respirei
fundo – preparando-me para o embate.
Com poucos passos, estava na sala de espera. Avistei minha
mãe em um canto, conversando com uma pessoa.
— Oi — cumprimentei, assim que cheguei perto delas.
A acompanhe da minha mãe levantou o rosto e eu recuei um
passo – sentindo um calafrio na espinha dorsal. Que merda minha
mãe pensa que está fazendo?
Imediatamente, virei e voltei pelo mesmo caminho que tinha
chegado. A passos largos, procurei o posto de enfermagem, na
intenção de buscar informações sobre o estado de saúde do meu
pai. Meu corpo foi puxado para trás por uma mão firme, que – com
toda a certeza –, não era da minha mãe. O cheiro; o toque; a
presença dele; não precisei virar-me para saber quem era. O mesmo
que habitou em meus piores pesadelos por meses.
— Solte-me — vociferei e ergui os olhos encarando-o.
Estremeci, sua beleza continuava ali. Os olhos de um azul
escuro profundo, cabelos loiros ondulados, na altura dos ombros e a
barba baixa revestindo seu rosto.
— Precisamos conversar — grunhiu e eu puxei o braço com
força, controlando-me para não dar escândalo em meio ao hospital.
— Não precisamos, não — refutei e dei-lhe às costas.
Continuei andando sabendo que ele me seguia.
— Valentina, não aja como uma criança mimada.
Ignorei a censura e apressei o passo, achando o que
procurava.
— Por favor, preciso ver o meu pai — fui dizendo à enfermeira
que ocupava o posto.
Enquanto eu lhe passava informações, Caleb permanecia ao
meu lado. Eu queria demonstrar força, no entanto, mantinha as mãos
ao lado do corpo, com os punhos cerrados, para que não vissem o
quanto eu tremia.
Infiltrada

A mulher, sentada atrás de uma imponente mesa, sem sombra de


dúvida, era a “cafetina”. Sua aparência a denunciava. Tudo nela era
extravagante: cabelos, roupas, unhas, maquiagem, sapatos. Mais
parecia uma Drag Queen.
— O que temos aqui? Duas belas mulheres, oras, Isaac não
me disse nada sobre isso, safadinho. — Levantou-se e veio até nós,
com um sorriso falso nos lábios.
Senti tanto asco, que temia ter náuseas e estragar tudo. Estar
ali, tão perto, provocava sensações adversas no meu corpo. O ódio
vinha misturado com medo e vingança. Um sorriso forçado se
instalou no meu rosto enquanto a mulher se aproximava. Ao chegar
ao nosso lado, começou a virar Andressa, analisando-a como se
fosse um objeto. Eu tinha que manter a calma. Precisava encarar
aquilo como qualquer outro caso, no qual precisamos estar
disfarçados. Já tinha feito aquele tipo de trabalho por diversas vezes,
só que nunca...
— Quantos anos tem, minha linda? — perguntou à Andressa.
— Vinte e quatro. — Andressa estava confiante. Pelo jeito, o
Narciso tinha aprontado poucas e boas com ela.
Valquíria coçou o queixo e estreitou os olhos.
— Acho que sei porque o Isaac a indicou, sabe que não pego
nessa idade. Bom... — Caminhou de volta à mesa e se acomodou
em sua cadeira. — Sentem-se lindas. — Fizemos o que pediu.
Eu segurava a língua para não acabar com toda aquela
palhaçada de uma vez. Por mim, ligaria ao distrito e mandaria vir
uma tonelada de viaturas para colocar aquele prédio luxuoso abaixo.
Claro que o meu querer não mudaria em nada. Teria que ter provas.
Como, se o filho da puta não deixa rastros?
— De onde conhecem o Isaac?
— Minha mãe trabalhou pra ele — adiantei-me, antes que
Andressa dissesse algo que pudesse colocar tudo a perder.
— Hum, interessante — comentou e digitou algo no laptop. —
Então, lindas, minha secretária disse que são primas e que você veio
do interior, está correto? — Assentimos. — Muito bem, qual o seu
nome? — questionou à minha acompanhante que prontamente
respondeu:
— Andressa.
— Andressa, minha linda — continuou e meu estômago deu
uma cambalhota. Aquela voz melosa dizendo minha linda com tanta
hipocrisia, estava abalando o meu sistema nervoso. — Sabe que não
posso te colocar com as outras, não é mesmo?
— Claro, dona...
— Ah, não, linda, sem o dona, apenas, Valquíria.
Andressa riu, com uma simpatia que eu não tinha intuído nela,
mesmo que tivéssemos acabado de nos conhecer. Acompanhei seu
sorriso, gostando da performance da garota, mesmo sem ensaios.
— Estou ciente, Valquíria, mas tenho certeza de que o senhor
Isaac não me mandaria aqui se não soubesse que tem algo bom a
me oferecer, não é mesmo, Gabi? — Olhou para mim alargando o
sorriso, como se fossemos melhores amigas. Assenti, sem dizer uma
palavra. Queria que aquele teatro idiota terminasse logo, para ouvir a
proposta e voltar para casa.
Não via a hora de tirar aquela parafernália que vestia. Voltar
ao distrito e esfregar minha conquista no nariz do Bento, sem
precisar da ajuda de ninguém.
— Assim que eu gosto, garota decidida. Você tem razão,
tenho algo bom a oferecer, na verdade, ótimo — comemorou e eu
precisei puxar um pouco de ar, recuperando-me.
A proposta, a que acabou com a vida da minha mãe, foi usada
e jogada fora, quando ela não tinha mais serventia. Perdida,
dependente química e cheia de dívidas, foi retirada da “equipe”. Nas
ruas, sem saber a quem recorrer – por ter rejeitado a família – ao
aceitar a proposta, sua única saída foi procurar o amigo: Bento.
— Bom, vamos ao que interessa — prosseguiu Valquíria,
abrindo um largo sorriso. — O quanto está disposta a servir Isaac?
— Andressa olhou para mim desesperada. Ergui as sobrancelhas
sem dizer uma palavra. Não foi ela quem se propôs a se vingar do
Narciso?
A garota limpou a garganta e voltou a olhar para Valquíria –
que a estudava com a testa franzida.
— Quer mesmo fazer isso? — questionou a mulher e
Andressa assentiu, engolindo em seco.
Tomando à Frente

Cada vez mais, detesto as segundas-feiras, principalmente, pelo


fato de começarmos com as intermináveis reuniões. Minha
esperança é que hoje seja mais amena, já que o senhor Isaac
Bennett se mandou do país.
Como de costume, sentei-me por último, ignorando o olhar
enviesado do Henry. Meu humor normalmente é ótimo, mesmo às
segundas. Contudo, passei o domingo remoendo os lances do
sábado, tentando descobrir onde errei. Fora a primeira vez que fui
rejeitado. Henry começou a reunião e sua secretária a digitar a ata.
— Bom dia — cumprimentou e todos responderam. — Hoje,
vamos fazer o sorteio de quem começa o revezamento da cadeira do
CEO, como o senhor Isaac estabeleceu. Ele viajou ontem à noite.
Por favor, preciso que todos meus irmãos fiquem aqui na frente.
Vamos fazer isso juntos.
Levantamos: Eu, Yan, Kaíque e Enrico. Juntos, os cinco, nem
semelhamos sermos irmãos, tanto fisicamente, quanto de
personalidade. Nosso contato é só profissional, além de cada um
estar em uma parte do país, estamos sempre jogando uns contra os
outros. A única coisa que temos em comum, é o pai.
Chega a ser estranho explicar isso às pessoas, mas, nem
mesmo com o nosso pai, não temos intimidade. Em todos esses
anos, ninguém sabe o que o velho faz fora da empresa. Se algo lhe
acontecer, certamente, respingará em nós, sem ao menos termos
conhecimento.
— Emanuela, inicie, por favor, para que todos possam
acompanhar o sorteio.
A garota obedeceu ao chefe e ficamos em pé esperando para
ver quem iria ao matadouro, pelo menos para mim, era como se
fosse.
Ao aparecer o nome do Kaíque, comemorei involuntariamente,
socando o ar acima da minha cabeça. Henry fuzilou-me com o olhar.
— Eita sô, que vou ter que assumir esse trem desgovernado
— rateou Kaíque – com seu sotaque mineiro.
— Não tem nada desgovernado aqui. Temos tudo sob
controle, não tenho culpa se você só sabe lidar com vacas e bois. Vai
ter que dar conta, ouviu o que o nosso pai disse — defendeu Henry.
Kaíque, de todos nós, é o que menos se preocupa em estar
em evidência. Como o Henry disse: ele gosta de estar no meio do
gado.
A Bennett faz questão de ter suas próprias fazendas, toda a
produção vem delas, que ficam em Minas Gerais, setor no qual
Kaíque é o responsável. Não entendo o porquê de Isaac Bennett
querer tirar as coisas de seus lugares, o risco de tudo desandar é
muito maior. O prazer dele é nos desafiar.
Depois de muita discussão entre Henry e Kaíque, a reunião
terminou. Soltei os ombros aliviado. Não via a hora de descer ao
departamento de Marketing, precisava ver Valentina, mesmo que não
pudesse tocá-la. Só de olhar e sentir seu cheiro, já acalmaria minha
necessidade de tê-la. Precisão essa que me assustou demais no
domingo inteiro. Nunca imaginei que sentiria falta de alguém como
senti dela. Sem contar a frustração de ter chegado tão perto e não
ter conseguido.
Minha agenda passou a ser responsabilidade da Mariana,
secretária da Vanessa. Já que que me mudei para o departamento
por tempo indeterminado. Os pais da Vanessa estão com sérios
problemas de saúde, ela decidiu ficar com eles, fez um acordo no
RH, prometendo voltar assim que sua vida entrar novamente nos
eixos.
Henry, ao saber, não ficou nada feliz, mas reconheceu a
necessidade de que eu assumisse o departamento, já que o tempo
para treinar alguém é quase inexistente. O departamento de recursos
humanos vai começar a seleção de um profissional do mercado, no
entanto, eu pessoalmente quero entrevistá-lo. Tenho consciência de
que isso leva tempo, enquanto isso, tenho o prazer de pôr a mão na
massa, especialmente, agora, que tem a Valentina.
§§§§
Ao descer do elevador no andar do departamento de
marketing meu sorriso alargou-se instantaneamente. Ajeitei o blazer,
passei as mãos nos cabelos e entrei.
— Bom dia, gata — cumprimentei Mariana que me olhou com
uma expressão estranha. Murchei na hora. — Está tudo bem?
Mariana negou e entortou os lábios.
— Estamos sem sorte, Lucca — iniciou e eu franzi a testa,
esperando que continuasse. — Mais um pai que enfartou —
esclareceu.
— Tudo bem, Mari, damos um jeito — confortei-a, pois, se
conseguimos lidar com a falta da Vanessa, qualquer outro
colaborador seria mais fácil.
Seu peito estufou e ela me olhou com uma careta. Gelei. Ela
nem precisava continuar para eu saber que não iria gostar do que
sairia de sua boca.
— O que foi, Mari?
— Foi o pai da Valentina — comunicou e eu coloquei as duas
mãos na nuca, balançando a cabeça.
— Porra! — praguejei entredentes.
Eu não poderia estar mais equivocado, substituir Vanessa eu
tirava de letra, agora, a Valentina, não. Como ficaria sem a garota, se
apenas em um dia eu não consegui? Mariana sabia disso, por isso,
hesitou tanto em me contar.
— Onde ela está? — questionei, com medo da resposta.
Mariana fez outra careta.
— Ligou avisando que precisou ir para a cidade dos pais.
Pediu desculpas e disse que vai entender se não quisermos que ela
volte, mesmo que vá sofrer muito — desatou a falar e minha cabeça
virou um balaio de gato.
Fechei os olhos e inclinei a cabeça para trás, colocando as
mãos nos quadris, completamente perdido. Como será que ela foi?
— Obrigada, Mari — agradeci —, cancele meus
compromissos de hoje — avisei e não esperei seus
questionamentos, que seguramente viriam. Eu sabia que minha
agenda estava abarrotada. Saí andando em direção à minha sala.
Joguei-me na cadeira, ponderando se ligava ou não à
Valentina. Se eu ligasse, provavelmente, ela não atenderia. Eu
precisava ajudá-la, mas como? A garota se mostrou orgulhosa e
teimosa. Uma ideia veio à minha mente. Caminhei de volta à
recepção.
— Mariana, preciso do endereço da Valentina — pedi e ela
assentiu, digitando as informações no computador. — Me envie um
link com a localização no celular.
Saí em disparada na direção do elevador. Minha cabeça
estava a mil por horas. Eu precisava fazer alguma coisa. Ficar
parado, sem ter a mínima ideia de onde Valentina estava, consumiria
minhas energias.
§§§§
Sebastião parou o carro diante de um prédio baixo, em um
bairro próximo ao centro e desci, torcendo para obter qualquer
informação que fosse da garota. Apertei o interfone do apartamento
e aguardei uns minutos. Não demorou para uma voz sonolenta
atender:
— Oi, quem é?
Sorri, achando graça de quem quer que fosse. Na certa,
estava dormindo.
— Bom dia, é a casa da Valentina?
— Quem quer saber?
Meu sorriso emitiu um pequeno som. Pelo jeito, era uma
característica das mulheres que moravam naquele apartamento:
ariscas.
— Lucca Bennett.
Ouvi a garota engasgar-se.
— É pegadinha?
— Se me deixar subir, vai saber que não.
— Peraí, vou olhar pela janela — avisou e desligou.
Saí do espaço coberto e fiquei na calçada, para que a garota
pudesse confirmar que era eu.
Assim que ela apareceu na janela, dei um tchauzinho sorrindo
e ouvi o barulho do portão sendo aberto.
Procurei um elevador e não encontrei. Ah, claro, escadas!
Não sou um cara que faz muitos exercícios, Henry fica
indignado, pois se mata de malhar e temos o mesmo tipo de corpo.
Tudo bem, não posso dizer que sou totalmente sedentário, faço
caminhada, aos finais de semana, no Ibirapuera. Mas,
honestamente, vou mais para paquerar do que para me exercitar. A
genética me ajuda.
Cheguei meio ofegante ao quarto andar. Nem precisei tocar a
campainha, uma garota mestiça, com os olhos amendoados e
puxados no canto, me esperava na porta.
— Olá — cumprimentei sorrindo.
Ela cruzou os braços e fez uma cara de desconfiada.
— O que faz aqui, a essa hora, procurando pela Valentina?
Ergui as mãos em rendição. Claramente a garota era
protetora.
— Só estou preocupado — defendi-me.
— Ela está bem, não precisa se preocupar — disse e foi se
virando. Quando ia fechar a porta impedi, pondo meu pé entre o vão.
— Pode me dizer como ela foi pra lá?
— Com a Penélope, oras!
Gemi e fechei os olhos – balançando a cabeça. Era o que eu
temia. Como alguém poderia chamar aquela lata velha de carro?
Valentina não tinha amor à vida.
— Como está o pai dela? — investiguei, não querendo ir
direto ao ponto. Normalmente, faço o joguinho de jogar meu charme,
mas só em pensar na Valentina, pegando uma rodovia movimentada,
dirigindo “bem” como ela dirigi e àquela geringonça, minha habilidade
de flertar foi por água abaixo.
— Na UTI, mas Deus é mais, tenho certeza. — Assenti e
mordi o canto dos lábios.
— Pode me passar o nome do hospital? — arrisquei, torcendo
para que ela não dificultasse as coisas.
A garota ficou me olhando um tempo.
— Sabe, a Valentina não é uma garota comum. Não quero
tirar conclusões precipitadas e nem te julgar, mas está difícil não
fazer isso. Vai machucar nossa pequena caipira e isso não é nada
bom.
Sorri com o apelido carinhoso. Ela não podia estar mais certa
e, ao mesmo tempo, mais errada. Valentina realmente não era como
as outras, mas, nem se eu quisesse, a machucaria. Um instinto
protetor se manifestou em mim durante o pouco tempo de
convivência com ela e, saber que estava, naquela situação, sozinha,
só se intensificou.
— O que eu preciso fazer pra acreditar que eu nunca vou
machucar sua pequena caipira? — Meu tom de voz foi divertido,
resgatando um pouco de mim mesmo.
— Deixá-la em paz? — Içou as sobrancelhas e eu neguei.
— Como é o seu nome?
— Mia.
— Valentina é especial pra você, não é mesmo, Mia?
— Com toda a certeza.
— Pra mim, também — garanti sério —, eu preciso estar com
ela, não posso deixar que enfrente uma situação complicada como
essa sozinha — acentuei com firmeza.
Mais uns segundos da garota me escrutinando:
— Olha só, não sei por que, mas vou te dizer o nome do
hospital, espero não me arrepender depois.
— Serei eternamente grato.
— Não prometa o que não pode cumprir, galã de outdoor.
Minha gargalhada estrondou no corredor sem ventilação.
— Fico lisonjeado, mas sou um homem de palavra.
— Assim, eu espero.
§§§§
Sebastião me levou ao meu apartamento e peguei o carro
reserva da seguradora. Roberta tinha deixado as chaves com o
porteiro. Não foi uma tarefa fácil dispensar meu motorista que,
contrariado, aceitou o dia de folga.
O trajeto foi rápido, em menos de duas horas, estava parando
o carro no estacionamento do hospital onde o pai da Valentina
estava internado.
Depois de jogar todo o meu charme à recepcionista, consegui
acesso à ala onde ele estava.
O elevador estava relativamente cheio, me encostei no fundo
e fiquei elaborando o que diria à Valentina. Seria constrangedor, se
eu não me explicasse direito. A deixaria mais arisca e assustada, se
não tivesse um bom argumento. As portas se abriram e desci com a
maioria das pessoas. Caminhei um curto espaço e estava na sala de
espera.
Meu coração foi à garganta e voltou em questão de segundos.
Esperava tudo, menos o que eu vi. Tudo o que eu tinha preparado
para não a assustar, foi jogado no ralo. O instinto protetor falou mais
alto. Apressei os passos e tirei o corpo de um imbecil que a prensava
à parede de cima dela.
— Ei, cara, quem você pensa que é? — grunhiu o idiota.
— Namorado dela — expeli e ela me olhou de supetão, com
uma expressão de espanto.
O Reencontro

Passei o domingo fugindo do Caleb. Mesmo porque, fiquei a maior


parte do tempo com o meu pai. Graças a Deus, ele se recuperou e –
logo pela manhã de hoje – segunda-feira, foi para o quarto.
Não dormi a noite toda, especialmente porque tive uma
discussão horrível com a minha mãe, do lado de fora do hospital.
Assim que Caleb foi embora, acompanhado de sua mãe,
aproveitei que a enfermeira faria alguns procedimentos no meu pai e
saí para tomar um ar. Logo senti a presença da minha mãe ao meu
lado. Abracei o corpo e respirei fundo, pedindo a Deus que ela
ficasse de boca fechada. Eu tinha chegado ao limite. Infelizmente,
ela não soube ler as reações do meu corpo.
— Sabia que ele largou a mulher por sua causa? — começou
e eu apertei o maxilar. Fiz uma tentativa de calar-me, esperando que
ela fizesse o mesmo. Não funcionou. — Essa é a chance de você
consertar o que fez, filha. Não pode estragar a vida de uma pessoa
dessa maneira, seu pai e eu estamos...
— Chega! — gritei.
Ela deu um passo para trás e me olhou assustada, com a mão
no peito.
— Olha como fala comigo — repreendeu-me com uma
expressão sisuda.
— Eu cansei, mãe, não aguento mais isso, merda! Por isso,
não queria voltar nesse maldito lugar.
— Olha a boca, e pare de gritar com a sua mãe, não foi essa
a educação que te demos. Minha Nossa Senhora, me ajude, onde foi
que errei com essa menina? — Fez o sinal da cruz e beijou o
crucifixo.
Revirei os olhos e fiz uma careta. Para quê tanta devoção, se
só sabe julgar e jogar pedras?
Um silêncio bem-vindo instaurou-se entre nós, por
pouquíssimos segundos.
— Se não tivesse estragado a vida de um homem de bem,
não precisaria estar passando por isso — insistiu e eu perdi
completamente a compostura. Não me importei, nem um pouco, com
o fato de estarmos em frente ao um hospital, no qual meu pai estava
na UTI.
— Homem de bem? Faz-me rir. — Ri com ironia. — Por que
teima em ficar do lado dele? Só por que você e a mãe dele viraram
melhores amigas, da noite para o dia? Já se colocou no meu lugar,
mãe?
— Claro que não, eu nunca sairia com um homem casado,
Jesus me guarde disso — exclamou e repetiu o processo de sinal da
cruz e beijar o crucifixo do pescoço.
Aquilo me dava náuseas. Começava a achar que nada daquilo
existia: Deus, Jesus, Nossa Senhora e todos os demais.
— Quantas vezes tenho que dizer que eu não sabia que ele
era casado, merda?!
— Se tivesse se guardado, como eu fiz...
— Ah, desisto, porra! — praguejei e a deixei falando sozinha.
Horrorizada com a palavra de baixo calão que eu tinha pronunciado.
O cansaço bateu forte. Me acomodei em um canto da
cafeteria do hospital e tomei o café que tinha comprado. Dei uma
mordida no croissant, sentindo gosto de papel. Para mim, que adoro
comer, empurrar o café da manhã goela abaixo é um crime. Isso,
porque passei o dia anterior beliscando uma coisa aqui e outra acolá.
Após certificar-me de que meu pai estava bem, acomodado no
quarto, decidi cuidar um pouco de mim.
Não falei mais com a minha mãe e temia o momento em que
passasse o efeito dos remédios que meu pai tinha tomado,
seguramente, também me acusaria, como fez minha mãe.
Fico me perguntando como não vi o quanto Caleb era
mentiroso e cretino. E, para piorar, se faz de vítima, sabendo o
quanto meus pais são conservadores com essa coisa de ter que
casar com o homem que tira sua virgindade. Eles não querem nem
saber como foi que aconteceu. O que lhes importa, é sua única filha
ter se deitado – antes do casamento – para completar, com um
homem casado.
As próximas horas passaram rápido, fiquei no quarto com o
meu pai, enquanto minha mãe foi na casa da mãe do Caleb tomar
banho e colocar roupa limpa. Eles moram a oitenta quilômetros do
hospital, não têm condições de pagar um hotel, no fim, a ajuda da
mãe do imbecil veio em boa hora.
Fui ao local onde tinha tomado café e comi um lanche natural,
tomando uma Coca-Cola. Eu também precisava de um banho, mas
nem que eu estivesse morrendo, iria na casa daquela mulher.
Preferia me jogar de cima de um prédio. Cascavel. Não fosse o
veneno daquela boca maldita, as coisas não teriam tomado à
proporção que tomou. A ponto de eu quase perder a bolsa de
estudos.
Avistei minha mãe adentrando ao hospital, acompanhada dos
dois indivíduos que eu desejei nunca mais ver. Engoli o resto do
lanche e subi. Me despediria do meu pai e iria embora. Ficar sem
tomar banho um dia não mata, e precisava acabar logo com aquela
tortura.
Assim que cheguei ao andar em que meu pai estava, vi que
os três estavam à porta do quarto dele. Respirei fundo e corri para a
sala de espera. Ficaria ali, até ter certeza de que não cruzaria mais
com eles.
Mal entrei, para o meu total desespero, Caleb entrou atrás.
Cerrei os punhos e mordi a parte interna da bochecha, buscando
forças do além, para o enfrentar.
Continuei em pé, esperando sua aproximação. Ele parou a
poucos centímetros de mim e colocou as mãos nos quadris,
medindo-me de cima abaixo. A sala estava vazia, quase não tinham
pacientes naquela ala, sem contar que não era horário de visitas. A
vantagem de cidades pequenas é que conseguimos algumas
exceções, quando nos conhecem.
— Você está mais linda do que nunca — sussurrou e deu
mais um passo em minha direção.
Dei um passo atrás e neguei com a cabeça, para que ele
parasse.
— O que pensa que está fazendo? — inquiri, sentindo a
garganta fechar.
— Estou livre pra você — disse, como se minha mãe já não
tivesse me comunicado.
— O que te faz pensar que quero ficar com você?
— Você me ama, assim como eu te amo, nossas famílias
querem isso. Vamos consertar tudo...
— Cala a boca, seu estuprador de merda! — acusei-o
entredentes. Controlando minha vontade de gritar.
Seus olhos estreitaram-se e ele se aproximou mais um pouco,
fazendo-me recuar novamente.
— Você queria, tanto quanto eu.
— Mentira, eu te disse que não era o momento — defendi-me.
— Mesmo assim, abriu as pernas pra mim.
— Você me forçou — engoli em seco, sentindo as lágrimas
empoçarem na base dos meus olhos. Não as deixaria cair, ele tinha
que ver que eu estava forte.
Seu corpo me prensou à parede. Espalmei as mãos nela e
ergui o queixo, demonstrando firmeza.
— Vai me estuprar de novo? — provoquei e vi quando seus
olhos viraram duas bolas de fogo.
— Você gostou — afirmou, com a boca a milímetros da minha.
— Só nos seus sonhos que uma mulher vai gostar de ser
forçada a fazer sexo — desdenhei. — Tem certeza de que quer
continuar isso aqui? Vai estragar sua reputação de bom moço —
continuei a provocação.
Ele entortou o nariz e se afastou um pouco. Desencostei da
parede e me aprumei. Cheguei um pouco mais perto do seu rosto e
fiz o que passei meses com vontade de fazer: destilei meu veneno.
— Eu detestei, precisam te ensinar a lidar com as mulheres,
principalmente, as virgens — cuspi e fiz uma careta, medindo-o de
cima abaixo. — Não adianta nada ter beleza e ter que forçar as
mulheres pra ter sexo — acrescentei e fui empurrada com força à
parede.
Senti minha cabeça latejar, fechei os olhos, gemendo. Sua
mão apertava meu braço e eu quase cedi. As sensações, as que me
assombravam, voltaram com força total. As pernas amoleceram, o
coração disparou e as lágrimas me cegaram. Respirei fundo,
algumas vezes, olhando diretamente dentro de seus olhos. Queria
que alguém entrasse ali, naquele momento, e conhecesse a
verdadeira face do homem de bem que Caleb era.
— Larguei tudo por sua causa, sua putinha, agora vai ficar
comigo, nem que seja à força.
Ri de nervoso.
— Estou contando com isso, me force, assim todos vão te
conhecer de verdade, professor. — As palavras saíram engasgadas,
por mais que eu tenha ficado forte, não controlei as malditas
lágrimas.
De repente, seu corpo foi tirado de cima de mim bruscamente
e eu arregalei os olhos, vendo o autor da minha libertação.
A Fuga

Somente quando cheguei em casa, percebi o quanto tinha enfiado


as unhas nas palmas das mãos.
Encerrei o dia com sucesso. Valquíria fez a proposta à
Andressa, e ficamos de pensar. Diferentemente de mim, Andressa
não tinha ideia de onde tinha se enfiado. Ficou assustada ao saber o
quanto Isaac Bennett era um velho nojento, que aliciava meninas.
Obviamente que Valquíria não disse a parte ruim da proposta.
Só relacionou as aulas que ela faria: música, teatro, línguas. Que
teria um espaço na mansão dela, com um guarda-roupas recheado.
E, claro, a cereja do bolo: o gordo salário semanal. Isso tudo, se
fosse exclusiva do velho.
Em nenhum momento, Valquíria mencionou que Andressa
teria que fazer sexo com o filho da puta. Enquanto ela fazia sua
apresentação, me contorcia na cadeira e apertava as unhas nas
mãos. Queria poder gravar toda aquela conversa, mas sabia que não
teria serventia alguma, já que não tínhamos autorização. Contava
com a persistência da Andressa. Se ela fosse até o final, seria mais
uma testemunha, corroborando com a que já tínhamos. Sem contar
as provas, que Andressa pegaria para nós.
Satisfeita, tomei meu banho e me esfreguei, o máximo que
consegui, tirando o cheiro daquele prostíbulo, disfarçado de agência
de modelos. Em especial, as palmas das mãos – com sangue
pisado.

Meus pais entraram na cozinha e eu me levantei para abraçá-


los.
— Como foi hoje? — perguntei, observando minha mãe.
Detestava não poder estar com ela em todas as sessões de
hemodiálise.
— Estou bem, Gabrielle — disse firme, nunca ela recuaria.
Assenti e apertei os braços em volta dela.
— O que está comendo? — perguntou, meu pai, vindo me
abraçar e beijar meu rosto.
— Um lanche — respondi e fiz uma careta, sabendo que viria
bronca.
— Meu Deus, filha, quando vai aprender a comer? Sabe que
essas porcarias só fazem mal.
Ergui os ombros e sorri. Mesmo eu tendo trinta anos, minha
mãe não perdeu o costume de me controlar em tudo.
— Como foi o passeio com sua amiga? — continuou, dona
Ana Maria, certa de que arrancaria alguma coisa de mim. Ela sabia
que não tinha tido passeio algum, mas eu continuaria me fazendo de
desentendida, mantendo minha mentira.
Não senti a consciência pesar, por estar mentindo à minha
mãe, pois fazia um bem a ela, não lhe contar o quanto estava perto
de pegar o responsável por tudo de mau que aconteceu em sua vida.
— Me diverti, como não fazia há tempo — respondi relaxada e
recebi um olhar invertido.
— Fico triste... que não confie mais em mim.
Suspirei e neguei.
— Você é o que tenho de mais precioso, mãezinha. Jamais
farei qualquer coisa pra te machucar — declarei e meu pai fez um
bico do outro lado da mesa. Estiquei a mão e alcancei a dele. —
Também te amo, paizinho. — Ele entendia, conhecia a fundo o tipo
de relacionamento que eu minha mãe tínhamos. Estava brincando
para descontrair o ambiente.

Ainda era cinco da manhã e eu já me remexia na cama.


Detestava o fato de não poder levantar e ir ao distrito. Bento teria
que aguentar, por um bom tempo, meu mau-humor, assim que eu
voltasse. Por causa dele, teria que fazer as coisas sozinha. Se João
Pedro estivesse comigo, facilitaria em muito.
Meu celular tocou e me sentei rapidamente, na esperança de
ser Bento pedindo para que eu voltasse. Não reconheci o número.
— Alô.
— Gabrielle, sou eu, Andressa.
— Ah, você — falei, desanimada.
— Me ligaram da agência, adiaram minha contratação, sem
data determinada. O senhor Isaac Bennett vai passar um tempo fora
do país.
Maldito! O filho da puta fugiu.
Decepcionado

Valentina tinha o rosto lavado de lágrimas e tremia como vara verde.


A puxei para o meu corpo e a abracei, apertando seu rosto em meu
peito. Seu corpo começou a pular, com os soluços.
Estreitei os olhos e encarei o indivíduo à minha frente. Ele
trazia um ar arrogante, cheio de razão.
— O que fez com ela? — questionei e ele riu debochado.
— Não acredito que essa putinha chegou em São Paulo e já
arrumou outra presa.
Fechei os olhos e apertei os lábios um no outro. Ergui o rosto
da Valentina e enxuguei suas lágrimas com os polegares.
— Shiiii, calma, estou aqui. Não deveria ter vindo sozinha, por
que não me ligou? — consolei-a, ignorando o que tinha acabado de
ouvir. Caso contrário, os tabloides de fofocas teriam muito o que
postar no dia seguinte. Porque minha vontade era socar a cara do
imbecil.
— Estou... bem... — afirmou entre lágrimas.
Ri sem vontade.
— Percebi. — Aguardei que se acalmasse. — Quem é esse
idiota? — perguntei sem olhar para ele – que continuava no mesmo
lugar.
— Foi meu professor na universidade — respondeu,
desviando o olhar. Peguei em seu queixo e a fiz me olhar
novamente.
— Por que ele estava te prensando na parede? — insisti e
ouvi o otário rir alto.
Olhei para ele, fuzilando-o.
— Não contou pra ele, amor? — falou debochado, e Valentina
estremeceu.
Ela tentou sair dos meus braços e impedi. Virei novamente
seu rosto para mim e fiquei encarando-a.
— Do que ele está falando? — Ela negou veemente, tentando
escapar dos meus braços.
— Ah, claro que ela não te contou — continuou o imbecil.
Senti uma pontada na boca do estômago, temendo saber o que eu,
com toda a certeza, não ia gostar.
— Preciso sair daqui — implorou Valentina e eu a soltei.
Ela deu poucos passos e duas mulheres entraram na sala,
nos olhando estranho.
— Sabia que sua filha tinha arrumado macho em São Paulo?
— vociferou o cara e eu gelei. Algo muito errado tinha acontecido ali.
A mulher, da qual Valentina herdara muitas características, me
olhou assustada e beijou um crucifixo do pescoço, fazendo o sinal da
cruz.
— Minha nossa Senhora! — exclamou e engoli em seco.
Valentina não reagia, permanecia com as lágrimas fluindo pelo rosto.
— Cara, sinto te dizer que você caiu numa cilada, garanto que
deve ser cheio da grana, porque essa aí é a pessoa mais
interesseira que eu conheço. Cuidado para ela não acabar com a
sua vida, como fez com a minha. Perdi minha mulher e fiquei um ano
suspenso do meu emprego, por causa dela.
Passei as mãos nos cabelos, confuso, sem saber o que
pensar. Como eu saberia quem estava falando a verdade, já que
tinham três pessoas na sala a acusando, inclusive, sua mãe? Em
questão de segundos, pensei no quanto de merda eu vinha
cometendo. Não bastava Andressa, que estava processando a
empresa, se eu me enfiasse em mais uma enrascada, colocaria o
nome da Bennett na lama. Não poderia correr aquele risco, mesmo
sentindo que Valentina era especial. Provavelmente, tinha me
enganado. Era igual as outras.
Não falei nada, saí em disparada da sala, em direção ao meu
carro. Me xingando mentalmente, por ter me deixado envolver-se
com um lobo em pele de ovelha. Eu que achei que a garota poderia
ser virgem. Nunca as cartas da minha mãe cometeram um erro tão
grande.
— Ingênua... — Bufei, lembrando-me das palavras da minha
mãe. — É, Valentina, você acaba de me provar que essa coisa de
amor não existe, pelo menos, não pra um cara como eu. A única
coisa que as pessoas sentem por mim é interesse pelo meu dinheiro.
Já estava chegando ao carro, ouvi Valentina gritando meu
nome. Parei e esperei que se aproximasse.
— Não foi da forma que ele disse, que aconteceu —
defendeu-se – ofegante.
— Mas aconteceu? — questionei e ela assentiu. — Já é o
suficiente. O que foi, precisava passar na disciplina dele e ignorou o
fato de ele ser casado? — ataquei-a e ela recuou, com cara de
espanto.
— Você é igual a ele — gritou e abraçou o corpo. — Como fui
idiota, achando que entenderia.
— Como posso entender isso, Valentina? Você deu pro seu
professor casado, pronto, o que mais tem pra entender nessa
história? O cara quase perdeu o emprego.
As lágrimas voltaram a desabar de seus olhos e eu me contive
para não a abraçar.
— Vai embora, Lucca — dispensou-me e eu sorri.
— Era o que eu estava tentando fazer.
Abri a porta do carro e entrei. Bati a porta com força e saí
cantando os pneus.
§§§§
A terça-feira amanheceu sombria para mim. Ainda não me
conformava com a minha falta de foco. Se Henry me acusasse de
não estar fazendo o meu trabalho, concordaria com ele. Quantos
clientes deixei de atender, nos últimos dias, achando que Valentina
era a mulher certa para mim. Que era diferente das outras.
Sebastião me olhava pelo retrovisor desconfiado. Fizemos o
trajeto até a empresa em silêncio. Assim que ele abriu a porta para
eu descer, me segurou pelo braço e ficou me olhando intensamente
por uns segundos, antes de expor o que passava em sua cabeça.
— Não sei o que aconteceu, mas tenho certeza de que foi
alguma coisa com a garota — começou e eu tentei pará-lo. Ele
ergueu o indicador e me contive. — Seja o que for, converse com
ela, conheço as pessoas, patrão. Ela não é como as outras
Ri com sarcasmo e neguei com a cabeça.
— Dessa vez, você se enganou, não te culpo, ela fez o
mesmo comigo. — Fechei o botão do paletó e ajeitei a gravata – que
raramente uso – e entrei na empresa.
Fui direto ao departamento de marketing. Minha vontade era
voltar minha sala para a diretoria e ficar o mais longe possível de
Valentina. No entanto, nunca agi com a emoção, não misturaria
meus problemas pessoais com os da empresa. Seria bem mais fácil
dispensar a garota e continuar minha vida.
— Bom dia, Mariana — cumprimentei minha secretária sério e
fui direto à minha sala. — Mariana percebeu meu humor e só
meneou a cabeça.
Ao passar pela sala que Valentina ocupava, não esperava vê-
la trabalhando – como se nada tivesse acontecido. Meu corpo reagiu
a presença dela imediatamente. Como se precisasse dela para
continuar funcionando. Parei à porta e ri sem vontade. Abri o botão
do paletó e coloquei as mãos nos quadris, chacoalhando a cabeça.
Ela ergueu os olhos e umedeceu os lábios – aflita.
— Bom dia, Lucca — cumprimentou e ficou em pé. — Se
quiser que eu vá embora, tudo bem. Só queria uma chance de...
— As regras do jogo mudaram — interrompi-a. — Você tem
uma semana pra me provar que vale a pena eu te manter aqui. Caso
contrário: Game Over! — Sem esperar resposta, continuei meu
trajeto.
Uma semana, eu suportaria, mais do que isso, teria que
arrumar uma maneira de voltar à diretoria. Valentina entrou no meu
sistema. Tirá-la dele seria mais fácil, se não a visse a cada instante.
Sentei na cadeira confortável da minha sala e apertei o botão
para fechar as persianas.
— Respire fundo, Lucca, e encare o fato de que as coisas não
são tão simples quanto parecem — falei comigo mesmo.
Tirei o fone, da minha mesa, do gancho e apertei o ramal do
RH. Cumprimentei a pessoa que atendeu e a apressei com a
contratação para a substituição da Vanessa. Aproveitei e pedi que
retomasse a seleção de uma nova secretária para mim.
Mariana bateu na porta e abriu uma fresta. Assenti e fiz sinal
que entrasse.
— Não sei mais o que dizer aos seus clientes — iniciou
receosa.
— Hoje, vou atender todos que puder. Sente-se, vamos
organizar esses horários.
Minha secretária fez o que eu pedi e eu voltei a ser o Lucca
Bennett, diretor de marketing da maior empresa alimentícia do país.
Divertido, descolado – de bem com a vida.
A Verdade

Por que vivemos em mundo tão machista? Estamos no século XXI,


meu Deus do céu!
Passe o tempo que for, não muda o fato de os homens terem
o poder de manipular as pessoas. Quando se trata de sexo, é pior,
porque são tidos como vítimas, já que não conseguem resistir à
sedução.
Caleb era meu professor na universidade. O mais querido por
todos: comunidade, alunos, colegas de trabalho. Simpático,
carismático, dedicado, atencioso. Tinha mudado a pouco para a
cidade, era seu segundo ano na universidade. Morava sozinho, nas
redondezas da instituição, no meio de muitos alunos de outras
cidades. De vez em quando, viajava para visitar seus familiares, essa
era a sua rotina.
No decorrer do meu terceiro ano, nos aproximamos, pois a
universidade tinha um programa de monitoria, no qual os escolhidos
recebiam ajuda financeira. Eu tinha que aproveitar todas as
oportunidades de ganhar algum dinheiro. Me candidatei e ele me
escolheu em sua disciplina.
Ingênua, criada em uma fazenda, não sabia distinguir as
coisas, o julguei errado. Nossa proximidade foi além da universidade.
Comecei a frequentar seu apartamento. Claro que eu não vou ser
hipócrita e dizer que não sabia que estava errada. Qualquer um sabe
que não está certo se envolver com um professor. Entretanto,
quando menos esperava, estava apaixonada – abri à guarda.
Aos poucos, ele foi conseguindo tirar um pouquinho de mim.
Um beijo no pescoço; um sussurrar ao ouvido; um roçar de corpo.
Como uma tola, inexperiente, sentia-me privilegiada. Acostumada
com os garotos imaturos do ensino médio, encantei-me com o
professor.
Até o fatídico dia.
Em seu apartamento, tínhamos bebido um pouco, ele mesmo
preparou algo diferente. Eu estava meio tonta, ele foi tirando minha
roupa e eu tentando me desvencilhar. Quando vi o quão longe
tínhamos chegado, me desesperei. Sei que errei, em deixar chegar
onde chegou. Pedi, por vezes, que ele parasse. Caleb não me ouviu,
parecia possuído. Infelizmente, não consegui fazer com que ele
parasse.
Caleb me jogou em sua cama e arrancou minha calça,
levando junto a calcinha. Meu desespero quase me fez gritar.
Pensava nos meus pais, na decepção que sentiriam. Ao mesmo
tempo, pensava que as pessoas estavam acostumadas a terem sexo
sem compromisso, que era só eu relaxar e deixar acontecer. Nem
conseguia enxergá-lo direito, minhas vistas ficaram turvas – com as
lágrimas, nem assim ele parou.
— Por favor — pedi, com a voz embargada.
— Qual é, Valentina, vai se fazer de difícil, quanto tempo que
está se insinuando pra mim.
Engoli em seco, negando.
— Desculpe-me, não estou preparada, não é o momento —
continuei implorando e ele não me ouviu.
A dor que senti, assim que seu pênis me penetrou, foi
inexplicável. Fechei os olhos e senti as lágrimas queimarem minha
face. Apertei o lençol e pedi a Deus que aquilo acabasse logo.
Para o meu completo desespero, quando achei que me livraria
dele. O quarto foi invadido por uma mulher, que arregalou os olhos e
colocou a mão na boca – chacoalhando a cabeça. Ele deu um pulo,
saindo de cima de mim. Pegou a calça e a vestiu rapidamente. Olhou
para mim, transfigurado.
— Olha o que você fez, putinha — vociferou.
Sentei-me na cama, sem entender nada. Vesti minha roupa e
saí da cama, querendo sumir dali.
— Amor, não é o que parece. Ela chegou aqui e se jogou em
cima de mim — suspirou —, eu sei que tinha que ter resistido, mas
não consegui, me perdoa.
— Mentiroso — gritei e me aproximei. — Você me forçou e
agora está se fazendo de vítima.
A mulher continuava atônita, feito estátua no meio da sala. Ele
alisava seus braços e ela não reagia.
— Amor, me conhece, sabe que eu nunca faria isso, ela é
uma aluna, acha mesmo que eu colocaria minha carreira em risco?
Quem era aquele homem? Como não o enxerguei antes? Eu
não o reconheci, desde o momento em que começou a tirar minha
roupa. Toda aquela postura de bom moço se desfez em segundos. E,
pior, ao que tudo indicava, a mulher era sua esposa. Como fui tola.
Apavorada, saí correndo, sem ter a menor ideia do que
aconteceria dali para frente. Achei que se guardasse para mim,
morreria o assunto. Não foi o que aconteceu.
Com medo de eu o denunciar, ou coisa parecida, Caleb foi até
a reitoria da universidade e contou a versão dele. Se eu não me
defendesse, perderia minha bolsa de estudos.
Os próximos dias do acontecimento foram excruciantes. Tive
que lidar com diversos julgamentos. Caleb foi suspenso e o assunto
repercutiu por toda a redondeza. Eu nem podia sair de casa. A vila
onde morava se voltou toda contra mim. Meus pais não falavam
comigo. Era como se eu fosse a vilã. A garota que seduziu o
professor bom moço da universidade. Para os meus pais: a filha
pervertida que fez sexo antes do casamento, com um homem
casado. Eu estava condenada ao inferno. Mesmo tendo certeza de já
estar nele.
§§§§
Cheguei tarde da noite e fui direto para o meu quarto. Mia
estava no trabalho e Betina dormia tranquilamente. Fiz o menor
barulho possível, não queria conversar. Por mim, deitaria e dormiria
para sempre. O pior é que sabia que deitaria na cama e ficaria me
virando de um lado para o outro, sem conseguir dormir.
Hoje pela manhã, agradeci por Mia estar derrubada na cama e
Betina já ter saído. Sabia que não fugiria por muito tempo delas.
Com poucas horas de sono, provavelmente, umas duas, não
consegui comer nada. Cada vez que me lembrava da decepção
estampada no rosto do Lucca, sentia uma pontada no peito.
Nem sei por que achei que – com ele – seria diferente. Um
playboy, acostumado a ter todas aos seus pés, por que se importaria
em me ouvir? Muito mais, me entender. Como todos os outros, era
só sexo, claro que sem complicações. Tenho certeza de que meu
passado atrapalhou seus planos. Mesmo sem conhecer a história
toda, tirou a conclusão mais fácil. Pra que complicações, não é
mesmo?
Entrei no metrô abarrotado pensando que provavelmente seria
a última vez que estaria fazendo aquele trajeto. Dificilmente, Lucca
me manteria na empresa. Mas tinha que tentar, até porque, voltar ao
inferno não era a melhor opção. Se ele me dispensasse, teria que
dar um jeito de arrumar trabalho na capital. Com tantos shoppings,
com toda a certeza, conseguiria me empregar como vendedora, até
me recolocar na minha área de trabalho.
Diferentemente dos dias anteriores, não saí sorrindo e
cumprimentando quem cruzava comigo. Malmente meneei a cabeça.
— Bom dia, Mariana — cumprimentei a secretária e aguardei
uns minutos antes de ir para a sala. Esperando pelo pior.
— Bom dia, Valentina. Que bom que já voltou, como seu pai
está?
— Está melhor. Obrigada por perguntar — agradeci, aliviada.
Acomodei-me atrás da minha mesa e liguei o imponente
computador. Segui a rotina normalmente, já estava na metade do
projeto que me foi atribuído. Agora, mais do que nunca, teria que ser
o melhor de todos.
Meu coração falhou algumas batidas, ao erguer os olhos e ver
Lucca parado à porta com uma postura altiva. Rapidamente fiquei
em pé e o cumprimentei, justificando-me. Assim como no dia
anterior, não me deixou falar e me deu um ultimato.
Na mesma velocidade que ele apareceu, sumiu. Demorei um
tempo para digerir o que tinha dito. Ponderei se deveria continuar e
cheguei à conclusão mais óbvia: ele já tinha tomado uma decisão.
Me deu uma semana só para que as pessoas não achassem que ele
agiu pela emoção. Afinal, qual diretor de uma empresa daquele
porte, toma uma decisão baseada em seus sentimentos?
Sem ponderar o que estava fazendo, juntei meus pertences e
fui direto ao departamento pessoal.
— Bom dia, quero assinar uma carta de demissão —
comuniquei à pessoa que me recebeu e logo ela me entregou uma
folha. Segui suas orientações e deixei minha carteira de trabalho,
para dar baixa, junto com o crachá da empresa. Ela me passou a
data para eu retornar e fazer o acerto.
Na calçada, minha ficha caiu. Eu tinha acabado de perder o
que lutei por anos para conseguir. Enfiei o rosto entre as mãos e
chorei copiosamente.
Sem Escolha

Sem ter escolha, tive que ceder e voltar à terapia. Melanie me olhou
com desconfiança, assim que apontei à porta de sua sala. Dei de
ombros e entortei os lábios.
— Entre, Gabrielle — convidou-me e eu sentei em frente sua
mesa.
— Achei que criaria raízes na porta — brinquei e ela balançou
a cabeça – com meio sorriso.
— Você entraria de qualquer maneira.
— Acho que sim.
Melanie apoiou os cotovelos na mesa, cruzou os dedos e
encostou o queixo neles – me estudando. Depois de alguns
segundos, decidimos falar ao mesmo tempo.
— A coisa deve...
— Desculpe-me...
Paramos e rimos.
— Comece você — ofereceu, recostando-se em sua cadeira.
Melanie é uma mulher bonita e elegante. Em seus cinquenta
anos, exala tranquilidade. Acredito que seja muito difícil fazer com
que a mulher saia de seu cerne. Seu consultório combina com sua
aparência e personalidade. As cores neutras e os móveis em mogno
transmitem paz.
Baixei o olhar e apertei as unhas nas palmas das mãos. Estar
ali era um grande avanço. É muito difícil verbalizar tudo o que passa
pela minha cabeça. Não consigo fazer com que as pessoas me
entendam. Mesmo que Melanie seja imparcial, fico sempre com a
sensação de que não concorda comigo. Não que ela tenha dado
algum indício disso, mas é como se fosse uma trava na minha
mente.
— Eu queria ter vindo antes — comecei e ergui novamente o
rosto. Melanie permanecia firme, inexpressiva.
Calei-me novamente. A terapeuta arrastou o corpo até a
beirada da cadeira e espalmou a mesa.
— Olha só, Gabrielle. Eu procuro entender os meus pacientes,
da melhor forma possível. No entanto, não podemos continuar, se
todas as vezes que tento fazer com que fale, você desaparece.
Percebe que estamos sempre começando do zero? Progredir dessa
maneira é quase impossível. Por mais apreço que eu tenha por você,
seus pais e seu padrinho, essa é a última vez. Se decidir sumir,
novamente, não vou te atender mais. — Deu o ultimato e eu só
assenti. Ela tinha razão.
— Onde quer sentar? — questionou-me, eu apontei o sofá. O
divã era muito para mim. Acho que nunca me sentiria à vontade nele.
Nos acomodamos, eu no sofá e ela em sua poltrona. Colocou
seus óculos e pegou seu tablete. Aguardei que me olhasse
novamente, dando o sinal para eu começar.
Honestamente, eu nem sabia por onde começar. O que dizer-
lhe? Que minha meta de vida era acabar com a dele? Que, enquanto
ele estivesse solto, eu não conseguiria seguir? Que eu amanhecia e
deitava pensando em uma maneira de pegá-lo? Que tudo aquilo
consumia minha mente; minhas energias? Mesmo assim, eu não
conseguia parar?
— Como está indo no trabalho? — perguntou, percebendo
que eu não conseguiria, se ela não desse o start.
Encolhi os ombros e entortei o nariz.
— Bento me suspendeu.
Melanie assentiu e sorriu.
— É duro ter o padrinho como chefe — comentou e anotou
alguma coisa.
— Ele é um pé no saco, nem meu pai pega tanto no meu pé
— desabafei e ela sorriu mais ainda.
— Acha que isso é ruim?
— Claro que sim, não posso fazer nada, que ele me poda.
— Já pensou que ele pode estar te protegendo?
— Do quê?
— De você mesma.
Cerrei os olhos e a boca – suspirando. Lá estava a Melanie
questionadora novamente. Quis sair correndo como das outras
vezes, mas temi que não pudesse voltar. Ela não pareceu brincar em
seu decreto. Procurar outra pessoa, estava fora de questão. Jamais
que eu conseguiria chegar ao estágio em que estávamos.
As Cartas

Passei o dia atendendo clientes. Ao final, sentia-me exausto.


Cheguei em casa e me joguei no sofá. Ali mesmo, eu dormi.
De madrugada, acordei com o corpo todo dolorido. Levantei-
me e tomei um banho. A baderna na minha cabeça perturbou-me o
dia todo. Nem sei dizer como me concentrei.
Às três da manhã, estava sentando na cama, recostado à
cabeceira com o celular na mão. Por mais que eu tentasse, Valentina
não saía da minha mente. Não sabia mais o que fazer. A garota
devia ser algum tipo de bruxa, não havia outra explicação.
Joguei o aparelho no colchão e me deitei – colocando o
travesseiro no rosto. Virei-me de um lado para o outro por umas duas
horas. Até que o meu celular começou a tocar. Sentei rapidamente,
procurando-o entre os lençóis. Olhei no visor e gelei, ao ver o rosto
da minha mãe aparecer.
— Oi, mãe, aconteceu alguma coisa? — atendi apreensivo.
Eram cinco da manhã.
— Bom dia, filho, eu quem tenho que fazer essa pergunta.
Não consegui dormir a noite toda. O que está acontecendo com
você?
Bufei aliviado. Ela sim era uma bruxa, ou todas as mães
sentem quando os filhos estão com problemas?
— Estou bem, mãe — menti, e ouvi sua risada baixa na linha.
— Venha até aqui, meu filho, precisamos conversar. — Não foi
um convite. Quando minha mãe diz para eu ir até ela, é porque
aquelas malditas cartas lhe mostraram alguma coisa. Minha língua
coçou para dizer que as cartas dela estavam com defeito, mas
esperei para contar-lhe no momento propício.
— Prepare meu prato preferido, no almoço, estarei aí.
§§§§
Cumprimentei a Mariana e já estava indo para minha sala
quando ela me chamou. Voltei e fiquei de frente pra ela. Esperando
que dissesse o que queria.
— Precisamos contratar alguém pra colocar no lugar da
Valentina — comunicou e eu inclinei a cabeça para o lado, com uma
expressão de quem não tinha entendido. — Não está sabendo? Ela
pediu demissão, ontem.
— Que merda! — Passei as mãos pelos cabelos e mordi o
canto dos lábios, com sentimentos contraditórios.
Era para eu estar me sentindo aliviado, no entanto – um
aperto gigante – no peito, quase me tirou o fôlego. Disfarcei o que
sentia, mesmo assim, Mariana percebeu. Limpou a garganta e
continuou:
— Ela é boa, a Vanessa não estava errada. — Terminou de
acabar com o meu dia.
Péssima hora para a empresa. Estava sentindo-me como um
equilibrista. A qualquer momento, deixaria algo cair, reconhecer o
fato, me assustava.
— Chame os estagiários que estão na fila de espera. Marque
entrevistas de hora em hora. Até o almoço quero conversar com pelo
menos quatro. Vamos conseguir, Mari, ninguém é insubstituível —
afirmei, mais para mim do que para ela.
Sempre ouvi essa frase do meu pai e o abominei, pela
insensibilidade com a individualidade das pessoas. Todos somos
insubstituíveis, entretanto, Valentina conseguiu me tirar dos trilhos.
Precisava tomar algumas decisões rápidas e, provavelmente,
imprudentes. Qualquer passo em falso e o departamento não
conseguiria cumprir com os prazos.
Parei novamente na porta da sala que vi Valentina no dia
anterior e não resisti, entrei. Aspirei forte e ainda consegui sentir o
cheiro dela. Sentei na cadeira e abri as gavetas, na esperança de ter
algo da garota. Não queria admitir, mas a verdade é que eu tinha me
apaixonado. Seria muito mais difícil superá-la.

Depois de uma manhã conturbada, tentando encontrar alguém


à altura de Valentina – sem sucesso – finalmente, saí para almoçar
com a minha mãe. Seria bom para mim, conversar com alguém.
Principalmente, com a pessoa que mais me ama.
§§§§
Fui recebido de braços abertos pela mulher da minha vida.
Sua energia boa tomou conta de mim imediatamente. Até os nervos
do meu corpo relaxaram.
— Oh, meu bebê, por que você nunca ouve o que sua mãe te
fala? — repreendeu-me, colocando meu rosto entre suas mãos e
beijando minha testa – na ponta dos pés.
Sorri e balancei a cabeça.
— Acho melhor mandar suas cartas pro conserto, estão com
defeito — fui falando e entrando, seguindo o cheiro delicioso da
macarronada, que só ela sabe fazer.
— As cartas nunca mentem, filho — repetiu sua famosa frase
e sentou-se à minha frente.
Comecei a me servir com ela me examinando. Já tinha
comido umas duas garfadas e ela continuava calada.
— Você a julgou errado. — Quebrou o silêncio e eu parei com
o garfo no ar. Como ela conseguia? Aquilo era muito bizarro. Eu não
disse nada.
— Para com isso, mãe, está me assustando — reclamei e
continuei comendo.
— Vou te provar — disse e foi buscar a bizarrice das suas
cartas. Eu já teria que estar acostumado, mas sempre tive medo
daquilo.
A fome falou mais alto que meu receio. Enquanto ela
arrumava suas cartas sobre a mesa, não parei de comer.
— Essa noite, quando não consegui dormir, pedi pra elas me
mostrarem o que estava acontecendo — prosseguiu, eu apertei o
maxilar pronto para levantar e sair correndo. — Vire uma carta, filho.
— Não vou fazer isso, até porque, não acredito nessa
bobagem.
— Vamos, Lucca, estou mandando.
Revirei os olhos e bufei. Já que ela não me deu outra opção,
fiz o que mandou.
— Viu só, elas não mentem, foi a mesma que virei durante a
noite: a justiça.
Franzi o cenho e tomei um gole de água.
— E daí, mãe? O que essa justiça quer dizer?
— Você a julgou pelas aparências, não deixou que ela se
explicasse. Essa carta nos alerta, tem decisões que precisamos
tomar pelo coração e não pela razão. Não foi o que você fez, filho.
Magoou a moça. Isso me deixa muito triste.
Levantei de supetão, quase derrubando a cadeira.
— Pode parar com isso, mãe — esquivei-me.
— Está vendo, filho? Essa sua reação é a prova de que as
cartas estão certas. Vire outra, vamos. — Cerrei os punhos, ao lado
do corpo, e respirei fundo. — Se não estiver com pressa, eu tenho o
dia todo — desdenhou, com um sorriso meigo.
Novamente, contrariado, virei a maldita carta.
— Bingo — comemorou, com soquinhos no ar. — A mesma
carta: a morte.
Caí sentado de volta à cadeira, que tinha acabado de colocar
no lugar, e senti o coração disparar.
— Que porra é essa, mãe? Como comemora uma carta
horrorosa dessas?
— Calma, filho, ela só está dizendo que precisa encarar a
situação sem comparar com o seu passado. Mudanças, deixe morrer
o velho Lucca e renasça..., entregue-se a esse amor. Eu te garanto,
a moça vale a pena.
Foi a gota d’água para mim. Levei meu prato para pia e fui até
ela para me despedir.
— Preciso ir, mãe — avisei e beijei o topo de sua cabeça.
Com as pernas bambas.
— Atravessou a cidade por um prato de macarrão? — divertiu-
se às minhas costas, sabendo o que tinha me expulsado dali. Aquela
bizarrice.

Enquanto fui ver minha mãe, pedi que Sebastião fosse cuidar
da manutenção do carro, mesmo sabendo que estava tudo em
ordem. Ele sabia que eu precisava de um tempo e não questionou.
Portanto, eu mesmo dirigia.
No caminho de volta, fiquei pensando no quanto aquelas
malditas cartas poderiam estar certas. Eu realmente não deixei que
Valentina se explicasse. Fui pelo caminho mais fácil: julguei a
situação pelo que parecia. Sei que foi uma forma de escudo. Força
do hábito, já que estou acostumado que as pessoas só se
aproximam de mim por interesse.
Perdido em pensamentos, quando me dei conta, estava
parado em frente ao prédio dela. Encostei a testa no volante e fiquei
pensando no que falaria. Isso, se ela me deixasse subir. Mas eu
precisava, como precisamos de ar para respirar, estar com ela mais
uma vez. Eram tantos sentimentos confusos dentro de mim. Nunca
tinha sentido nada parecido.
Desci do carro decidido, arrumaria um jeito de fazê-la me
atender. Teria que ouvi-la, nem que fosse pela última vez. Somente
para ter certeza de que não estava cometendo um erro.
Toquei o interfone e reconheci a voz da amiga.
— Oi, Mia, posso falar com a Valentina?
— Você é muito cara de pau, cara. Depois do que fez? Claro
que não pode! — Antes que ela desligasse, gritei:
— Espera! — Pensei um pouco no que dizer. — Eu sei que fui
cretino, quero me desculpar. — Ela ficou muda, sabia que estava ali,
porque sua respiração estava oscilante.
— Ela não está — comunicou e cheguei a duvidar.
— Tem certeza?
— Por que eu mentiria, já que não vou abrir pra você subir?
— Faz sentido — murmurei. — Onde consigo encontrá-la?
— Ela saiu com um monte de currículos. Disse que procuraria
emprego de vendedora nos shoppings. Boa sorte na busca. — A
garota nem me esperou agradecer, bateu o interfone na minha cara.
Que merda que eu tinha feito. Um talento daqueles precisando
trabalhar em uma área que não era sua. Só por causa da minha falta
de sensibilidade. Claro que eu não sairia pelos shoppings
procurando-a, seria sandice minha.
Entrei no carro e fiz a única coisa que me restou: esperei que
ela voltasse.
Cedendo

Têm coisas na vida da gente que só aprendemos sofrendo. Acho


que a maioria delas, para falar bem a verdade.
Quando cheguei em casa, após ter pedido demissão do
trabalho, não tive escapatória: encarei as duas ao mesmo tempo.
Entre lágrimas, contei-lhes a minha história com Caleb desde o
início. Minhas amigas, diferentemente do Lucca, ficaram do meu
lado. Me apoiaram, inclusive, quando disse que tinha pedido as
contas da empresa. Garantiram que estariam comigo, que nunca
mais eu precisaria voltar para a minha cidade. Nem que elas
tivessem que me sustentar.
No fim, depois de muitas lágrimas, nos abraçamos e fizemos
um pacto de uma apoiar a outra, em todos os momentos. Nunca me
senti tão protegida como naquele momento.
Contei a elas sobre minha intenção de trabalhar como
vendedora, enquanto não conseguisse recolocação na minha área,
não gostaram muito da ideia, mas sabiam que não tinha outra saída.
Mesmo que quisessem me apoiar, todas nós tínhamos o orçamento
apertado.
Hoje pela manhã, refiz meu currículo e imprimi várias cópias.
Otimista de que voltaria à tarde empregada, me vesti bem e Mia fez
uma maquiagem bacana em mim.
— Com essa aparência, pequena caipira, vai ter mais de uma
loja te querendo — animou-me minha amiga.
Nos enganamos redondamente, não ter conhecimento de
como as coisas funcionam complica muito. Uma das disciplinas do
meu curso era vendas, mas eu não tinha ideia de como não é tão
simples quanto parece. Eu, toda cheia de mim, entrei nas lojas mais
imponentes e famosas do shopping, achando que me disputariam
como vendedora. Foi na primeira conversa com uma gerente que caí
na real: o buraco era bem mais embaixo.
Sorte a minha que a moça foi simpática e me explicou que eu
precisava, para trabalhar em lojas daquele porte: experiência, cursos
direcionados à venda (eu nem sabia que tinham tantas técnicas para
vender), disponibilidade total de horário, em qualquer dia da semana,
inclusive, aos feriados. E é claro, a aparência. Bom, pelo menos um
requisito eu tinha.
Depois de algumas recusas, com o pé doendo e o estômago
roncando, decidi voltar para casa. Buscaria alguns cursos de período
curto e tentaria novamente. Nem que fosse pelo Youtube, porque se
tivesse que pagar, eu estaria ferrada. Em paralelo, continuaria
tentando recolocação na minha área.
Desci na estação que fica próxima de onde moro e quase
chorei, pensando que ainda teria que caminhar uns três quarteirões
para chegar em casa. Meus pés não aguentariam.
O céu estava avermelhado – no crepúsculo da noite, verifiquei
se alguém prestava a atenção em mim e decidi tirar aquela porcaria
de sapatos de bico fino. Por isso, gosto tanto de usar All Star.
Cheguei a soltar um gemido de alívio, assim que libertei meus
dedos daquele cativo. Ergui o queixo e continuei minha caminhada –
segurando os sapatos na mão. Algumas pessoas passavam por mim
e me olhavam estranho, fiz de conta que não via. Se tivessem ficado,
à tarde toda – andando – com aqueles assassinos de pés,
entenderiam.
Virei a esquina do meu prédio e agradeci ao avistá-lo. Estava
quase chegando à portaria quando me dei conta do carro parando
em frente – do outro lado da rua. Estreitei os olhos e parei. Podia ser
coincidência, no momento que pensei, ele saiu do carro.
Os sapatos escaparam da minha mão e minhas pernas
viraram gelatinas, no mesmo instante.
Enquanto ele atravessava a rua, meus pés pareciam terem
sido cimentados no lugar. O coração disparou de tal maneira que
temi ter um enfarto. Queria poder reagir indiferente a ele, mas estava
acima da minha capacidade.
— Por que está descalça? — perguntou sorrindo. Como se
fossemos velhos amigos.
Aquele Lucca divertido e descolado parecia estar de volta.
Pena que o outro tinha me magoado tanto.
— Por que está aqui? — respondi com outra pergunta.
— Responde a minha que eu respondo a sua — brincou e eu
fechei a cara, cruzando os braços.
— Tenta procurar emprego a tarde toda, calçando sapatos de
bico fino – que vai saber o motivo de eu estar descalça.
Seu sorriso tomou todo o seu rosto. Meu coração galopou no
peito; fiquei com medo que ele ouvisse.
— Por que está procurando emprego se já tem um?
— Não tenho, não.
— Porque não quer.
Por longos minutos, ficamos nos encarando. Seu corpo não
parecia tão relaxado como ele queria demonstrar. Vi quando apertou
os punhos ao lado dele e forçou um sorriso – parecendo nervoso.
— O que quer comigo, Lucca?
Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça social e baixou a
cabeça.
— Me desculpar — confessou baixinho. Não respondi de
imediato. Seu rosto voltou a me encarar. Suspirei e assenti. —
Podemos comer alguma coisa? — sugeriu e meu estômago roncou
alto. Senti o rosto queimar. — Acho que a resposta é sim — brincou
e eu acabei sorrindo também.
— Vou... — Apontei para o prédio, atrapalhada com as
palavras.
— Já sei, trocar de sapatos. — Confirmei meneando a
cabeça. — Não vou sair daqui — garantiu.

Entrei correndo no apartamento e quase trombei em Mia se


arrumando para trabalhar.
— O cara ficou a tarde toda aí, Valen. Estou com dó —
contou-me enquanto eu caminhava para o meu quarto.
— Ele tem esse poder, de fazer com que as pessoas fiquem
do lado dele. Aliás, os homens têm, são manipuladores —
desdenhei, não querendo admitir que estava feliz com a atitude dele.
Mia parou à porta e ficou me olhando, durante o tempo que
troquei os sapatos de bico fino por sandálias plataforma. Pena que o
look não combinava com All Star. Sem contar que, pela primeira vez,
Lucca vestia terno e gravata. Tinha que estar à altura dele.
— Entendo que esteja magoada, Valen, mas não generalize.
— Ok, Mia, entendi, não tenho saco pra te ouvir defendendo-
o. — Fiquei em pé e beijei seu rosto. — Vou ouvi-lo, isso já paga o
tempo que ele esperou, não é mesmo. — Ela concordou e eu saí.
Lucca estava encostado no carro, mexendo no celular. Assim
que fechei o portão, ele ergueu o rosto e acompanhou meus passos.
— Gosto de ver você de saltos — elogiou e eu o ignorei. Se
ele estava achando que seria fácil me fazer ceder, estava enganado.
Concordei em ouvi-lo, só.
Ele abriu a porta para eu entrar e aproveitei para provocá-lo:
— Está sem babá, hoje?
O sorriso maroto, que gela minha espinha, enfeitou seu lindo
rosto. Lucca despojado é lindo, mas vê-lo de terno e gravata deixou-
me mais acessível a ele.
Ele sentou-se atrás do volante e me olhou por um tempo,
antes de ligar o carro. Não lhe dei o gostinho de retribuir o olhar,
continuei olhando para frente.
— Aproveitando que você está de saltos, vamos a um lugar
mais requintado hoje. Ou prefere lanche?
Virei o rosto para ele e deixei escapar minha fraqueza: comer.
— Com a fome que estou, comerei qualquer coisa. Se o lugar,
que deseja me levar, servir comida que mate a fome, não, aqueles
pratos cheios de frescuras, com apenas um ramo dentro, tudo bem,
eu topo.
Dessa vez, Lucca não conteve a risada, foi uma gargalhada
gostosa, fazendo-me acompanhá-lo.
— Entendi, você não é daquelas que só come verduras e
legumes.
— Achei que soubesse.
— Sim, só queria ter certeza.
— Te incomoda?
— Por que incomodaria?
Dei de ombros e desviei o olhar.
— Sei lá, ser visto com uma caipira que come coisas
gordurosas, pode manchar sua reputação de “pegador”. — Abri
aspas ao pronunciar o adjetivo que escolhi para ele.
— Achei que me conhecesse melhor — refutou sério,
demonstrando não ter ficado à vontade com a minha brincadeira.
— Eu também, até... — suspirei e não continuei. Ele
entendeu.
— Quer falar sobre isso, agora, ou prefere alimentar esse leão
que ruge dentro de você — divertiu-se, amenizando o clima chato.
Fiz uma careta e mostrei-lhe a língua. Provocando-lhe outra
gargalhada gostosa.
§§§§
Lucca entregou o carro ao manobrista e veio até mim,
oferecendo seu braço para eu entrelaçar o meu. Estava cuidadoso.
Ponto para ele.
Nos acomodamos em uma mesa mais reservada e ficamos
analisando o cardápio, calados. Tudo o que eu via era bom.
O restaurante era elegante. As pessoas que estavam ali
pareciam “normais”. Fiquei mais tranquila. Temia que me levasse
naqueles lugares cheios de etiquetas. Claro que eu passaria
vergonha. Não tenho a mínima ideia para que serve aqueles montes
de talheres, copos e pratos.
— Posso sugerir? — perguntou o maître – se aproximando.
— Por favor — respondeu Lucca, todo educado.
O senhor chamou o chefe da cozinha que nos apresentou sua
mais recente obra prima. Só de olhar minha boca salivou. Lucca
ergueu o canto dos lábios ao perceber que eu tinha gostado da ideia.
Os dois saíram e o momento que eu temia chegou.
Estávamos sozinhos. Certamente Lucca me questionaria sobre tudo.
Eu não tinha escapatória.
Ele chegou com o corpo para frente e alcançou minha mão
sobre a mesa. Beijou o dorso e sorriu deixando-a entre as dele.
— Me desculpa... por não ter deixado você contar a sua
versão — começou e eu tentei puxar a mão. Ele negou com a
cabeça. Seu polegar passou a fazer círculos no meu punho. Respirei
fundo e assenti.
— Conte-me o que aconteceu.
Ponderei um tempo, se deveria me abrir para ele. E se as
coisas ficassem piores? Na mesma hora que pensei, lembrei-me de
que não tinha mais nada a perder. A não ser lutar com aquele
sentimento que crescia dentro de mim.
— Ele me forçou, foi estupro — falei e segurei os lábios entre
os dentes.
— Confia em mim? — questionou, ao perceber minha
hesitação.
— Deveria?
— Sim. — Encolhi os ombros e desviei o olhar. — Olhe pra
mim, Valentina. — Fiz o que pediu. — Me conte desde o início.
Criei coragem e comecei a relatar toda a história, sem ocultar
nenhum detalhe. Via o rosto de Lucca mudar de expressão, cada vez
que lhe contava os avanços que Caleb teve comigo. Quando cheguei
na parte crucial e relatei o que senti, a falta de tato comigo e a dor
que cortou meu âmago, Lucca fechou os olhos e soltou minha mão,
recostando-se à cadeira e passando as mãos pelos cabelos.
— Ele sabia que você era virgem? — perguntou e eu assenti.
— Não cheguei a falar claramente, mas disse o quanto meus
pais eram conservadores e que era importante pra eles que eu
tivesse minha primeira vez com o meu marido... Achei que ela tinha
entendido.
— Só se for muito burro, coisa que sabemos que não é.
Continuei a história até o dia em que decidi ir para a capital.
Ele acompanhou pensativo.
— É isso — concluí e apertei os dedos no colo. Minhas mãos
tremiam e suavam. Sentia um fio do suor escorrendo entre meus
seios, mesmo que o clima estivesse agradável.
Nossos pratos chegaram no momento certo. Depois do meu
relato, não sabia o que passava pela cabeça dele. Ficou muito sério
e não fez nenhum comentário.
Comemos em silêncio, por um bom tempo.
— Ficou com outra pessoa, depois disso? — inquiriu e eu o
olhei, tentando decifrar o motivo de ele me fazer a pergunta tão
íntima.
— Faz diferença?
— Não entre na defensiva comigo, Valentina. Estou do seu
lado. Só preciso saber em que terreno estou pisando.
Ri sem vontade.
— Como acha que me sinto? Acha que é fácil pra eu ficar com
outro homem? — Minha voz saiu embargada.
Lucca rapidamente levantou-se e sentou-se ao meu lado,
passando o braço pelo meu ombro. Deitei a cabeça em seu peito e
as batidas descompassadas de seu coração me acalmaram.
— Estou sendo cretino de novo — sussurrou ao meu ouvido.
— Me desculpa.
— Tudo bem, estou exagerando.
Ele pegou em meu queixo e fez-me olhar em seus olhos.
— Não, não está. — Ele beijou a ponta do meu nariz e alisou
meu rosto. — Você é muito linda — murmurou, sem tirar os olhos de
mim.
— Não fiquei com mais ninguém. Tenho medo. Afastei todos
os que se aproximaram de mim, depois dele. Só não consigo... —
Baixei o olhar.
— Achei que só eu estivesse sentindo — admitiu, ainda com a
voz muito baixa.
Arrumei a postura e olhei para o prato pela metade.
— Ainda estou fome — confessei e apontei para a comida. Ele
sorriu e voltou ao seu lugar.
O restante do jantar foi mudo. Eu não queria confundir as
coisas, como da primeira vez. Mas o que ele quis dizer? Será que eu
tinha ouvido direito?
Após Lucca pagar, saímos do restaurante de mãos dadas. O
calor de sua mão enviava correntes elétricas ao meu corpo, que eu
queria ignorar e não conseguia.
O manobrista trouxe o carro e Lucca assumiu o volante. O
silêncio começou a me incomodar.
— Não tenho conseguido dormir — comentou e eu o olhei.
— Eu também, não.
— Pensei que pudéssemos... — começou e parou.
— Continue.
— Não quero te assustar.
— Não vai.
— E se tentarmos juntos? Talvez consigamos — sugeriu e eu
sorri.
— Está me convidando pra dormir com você?
— Me excedi? — Fez uma careta e eu achei aquilo fofo.
— No quarto de hóspedes?
— É um começo.
Assenti e vi ele mudar o trajeto para o seu apartamento.
Voltando à Ativa

Nem precisei ativar o alarme do meu celular, antes mesmo do


horário, pulei da cama. Sentia como se fosse o primeiro dia de
trabalho. Fiz tudo o que Bento e minha mãe exigiram, principalmente,
frequentar a terapia. Dizer que não me sinto melhor seria mentira, no
entanto, nada muito significativo.
— Como está se sentindo, filha?
— Melhor do que nunca — assegurei e sorri. Fui até minha
mãe e a beijei. — Não me olhe com essa cara, mãezinha.
Ela franziu o cenho e ficou me olhando séria.
— Espero que esse tempo serviu pra você colocar a cabeça
no lugar — alertou-me e eu meneei a cabeça, alargando o sorriso.
O tempo me serviu sim, para eu aprender a me controlar e
fazer as coisas com cautela. Assim, me deixarão em paz. Porém,
obviamente, que eu não desistiria. Já tenho tudo esquematizado.
Se o velho saiu do país para despistar e ganhar tempo,
perdeu tempo. Quando soube, minha vontade era ir atrás do
asqueroso e o matar. Entretanto, as conversas com a Melanie
acabaram me ajudando. Encarei o fato, de ele estar longe, como
uma oportunidade. A sua ausência me servirá de munição, vou mais
fundo do que nunca. Assim que pisar no país, terei todas as provas
que preciso.
— Você tinha razão, mãezinha, eu precisava mesmo desse
tempo. Voltar a conversar com a Melanie foi muito bom. — Seu olhar
continuou desconfiado. Coloquei seu rosto entre minhas mãos e
beijei sua testa. — Ele nem está no país, durma tranquila — acalmei-
a e seu sopro de alívio fez meu canto dos lábios se erguerem. —
Preciso ir.
§§§§
Entrei no distrito e recebi um caloroso abraço de Maria
Ângela.
— Oh, minha menina, falei tanto na orelha daquele cabeça
dura do Bento. Como pôde fazer isso, com você? — disparou a falar.
A sargento dos civis é a mulher mais durona que conheço e,
ao mesmo tempo, o coração mais mole de todos. Do distrito, tirando
Bento e João Pedro, somente ela quem conhece minha história.
Morre de medo que eu tenha uma recaída.
— Obrigada, minha amiga, estou bem, no fim das contas,
acabou sendo bom. Voltei renovada — garanti, ela anuiu soltando-
me.
Depois de subir os poucos degraus, até a divisão especial do
distrito, passei o cartão e entrei com uma caixa na mão. Assim que
apontei, meus colegas de trabalho levantaram-se e bateram palmas.
Mesmo que eu não quisesse, meu sorriso foi involuntário. Somos
uma família.
Fui cumprimentando todos e me desculpando, afinal, eu
realmente havia extrapolado com eles.
— Olá, minha serva, seu amo estava sentindo-se inútil —
divertiu-se João Pedro e me puxou para um abraço apertado.
— Nossa, parece até que fiquei uma eternidade fora.
— Pra mim foi, não sou o mesmo sem você.
Bufei e o afastei, começando a organizar meus pertences de
volta à minha mesa.
— Quem vê pensa que precisa de mim pra alguma coisa.
Conversamos enquanto eu terminava de guardar tudo.
A porta da sala do Bento abriu-se e eu respirei fundo. Desde o
momento em que entrei, tentei evitar me encontrar com ele. Tanto
ele, quanto minha mãe, me conhecem demais. Por mais planos que
eu tenha feito, me preocupo se conseguirei esconder deles.
— Papai chegou — sussurrou João Pedro e foi para a sua
mesa. Rapidamente, cada um estava fazendo alguma coisa.
Continuei o que estava arranjando, demonstrando
naturalidade. Queria mesmo ir até ele e contar-lhe os meus avanços
enquanto estava suspensa. Porque, por mais que ele não tenha dito
as palavras, obrigou-me a tirar folga, ou seja: suspendeu-me.
Seus passos pesados foram se aproximando e eu fingi que
estava tudo bem. Até que seu corpo parou à beirada da minha mesa.
Meu distintivo e arma foram colocados sobre ela. Ergui os olhos e o
olhei finalmente.
— Obrigada — agradeci baixo.
— Faça por merecer — avisou, virou-se e caminhou até o
painel com as fotos do caso que estavam trabalhando.
Quebrando as Barreiras

Entramos na cobertura receosos. Controlar as reações do meu


corpo, só em pensar que a teria uma noite toda para mim, mesmo
que nos termos dela, deixou-me perturbado.
— Fique à vontade, a casa é toda sua — tranquilizei-a,
ansiando que se soltasse. Detesto quando ela entra no modo
defensivo.
O fato e eu ter sido cretino e o idiota a ter machucado,
complicou bem as coisas.
Valentina abraçou o corpo e foi diretamente para as vidraças
da sala de estar. Com poucos passos, eu estava às suas costas.
Alisei seus braços e encostei o queixo em seu ombro. Vi quando os
pelos do seu corpo se arrepiaram. O canto dos meus lábios ergueu-
se e eu suspirei, instintivamente.
— A vista daqui é muito bonita — comentou baixinho, como se
não tivesse a intenção de expor o que estava sentindo.
— Eu gosto — concordei.
Silêncio...
Respirações alteradas...
Corpos trêmulos... pela primeira vez na minha vida, não soube
como agir.
Abracei-a por trás e esperei que seu corpo relaxasse um
pouco.
— Não fique com medo de mim — sussurrei, ainda com o
queixo apoiado em seu ombro.
— Não estou...
— O que é isso, então? — Novamente, silêncio... estava
ficando insuportável para mim. — Eu preciso que fale comigo,
Valentina — exigi e a virei.
Ela umedeceu os lábios e baixou o olhar.
— Não sei o que é isso — suspirou —, estou com medo, mas
não de você — confessou e ergueu os olhos.
— Do que, então?
— Do depois...
— O que acha que vai acontecer depois? — insisti. Eu
precisava saber o que passava na cabeça dela.
— Você vai seguir com sua vida e eu com a minha, só que pra
mim não é tão simples, eu sinto...
Ri de nervoso e balancei a cabeça.
— Está dizendo que eu não tenho sentimentos? — Valentina
fez um bico com o lábio inferior e deu de ombros. — Percebe o que
acabou de fazer? — censurei-a, sem titubear.
— O quer que eu pense? — desafiou-me, afastando-se.
— Está me julgando — continuei, sentindo-me magoado. Não
entendia o porquê, afinal, qual era o problema? Todo mundo tinha a
mesma opinião.
— E o que é que as pessoas fazem comigo, o tempo todo? —
rebateu – virando seu rosto bruscamente para mim.
Assenti.
— Tudo bem — prossegui, passando as mãos pelos cabelos.
— Está pagando com a mesma moeda, entendi.
Ela revirou os olhos.
— Lucca, estou cansada, de verdade. Passei à tarde atrás de
um emprego. Não vim aqui para brigar com você, aliás, nem sei por
que vim — desabafou. Ficamos nos olhando por alguns minutos. Sua
postura era altiva – na defensiva.
— Ok, vou te levar ao quarto.
Caminhei em direção ao quarto com ela me seguindo. Meu
coração martelava no peito, não sabia discernir por qual motivo.
Mesmo que não quisesse admitir, certamente era pelo fato de não
conseguir mostrar à garota o quanto ela era importante para mim. E
que, assim que eu estivesse dentro dela, nunca mais minha vida
seria a mesma. Que, sem sombra de dúvida, nem eu, nem ela,
seguiria com as vidas separadas.
Abri a porta da minha suíte e apontei para que ela entrasse.
Sua cabeça negou veemente.
— Assim você me ofende, Valentina. Acha mesmo que preciso
forçar alguma mulher a fazer sexo comigo? Estou te oferecendo
minha suíte porque é mais confortável, eu fico no quarto de
hóspedes — afirmei, sério.
— Não vou te tirar do seu conforto, pode ter certeza de que o
quarto mais simples que você tiver aqui, tem muito mais do que
qualquer quarto que eu já tenha dormido — explicou e sorriu,
amenizando um pouco a tensão.
Aproveitei que o momento tinha ficado mais ameno e me
aproximei. Inclinei o rosto até ela e falei perto de seu ouvido:
— Pra você, sempre o melhor, acostume-se — garanti e seu
corpo deu uma estremecida.
— Se você insiste — aceitou sorrindo.
— Encontre alguma coisa minha pra vestir, se estiver com
sede ou fome, sabe onde fica a cozinha. Têm muita coisa naquela
geladeira, não fique com receio. A casa é sua. — A última frase que
saiu da minha boca fez o meu corpo estremecer. Pareceu tão real –
apropriado.

Deitado só de boxer, olhava para o teto e buscava controlar o


impulso de correr para onde ela estava. Por mais que eu tentasse,
não conseguia parar de pensar o que ela poderia estar fazendo no
meu quarto. As perguntas estavam me enlouquecendo:
O que ela está vestindo?
Seu cheiro vai ficar no meu travesseiro?
Será que ela decidiu usar a banheira para relaxar?
Será que conseguiu dormir, ou está como eu?
Ouvi um barulho e me sentei rapidamente. Queria ignorar,
mas poderia ser uma chance de matar um pouco da minha
curiosidade. Levantei-me e enfiei a calça de moletom pelas pernas,
com pressa. Abri a porta e fui em direção à cozinha – seguindo o
rastro do barulho.
Congelei no lugar, quando avistei Valentina da maneira que eu
tinha vislumbrado, no primeiro dia que ela esteve em minha casa:
descalça, sem maquiagem, os cabelos bagunçados, vestindo uma
camisa minha, que só cobria parte de suas coxas.
Ela não me viu, continuou com a porta da geladeira aberta,
procurando algo. O momento em que se abaixou, a polpa de sua
bunda ficou virada para mim, demonstrando que usava uma calcinha
minúscula. Sem controle, gemi.
Na velocidade da luz, Valentina arrumou sua postura e me
reparou.
— Porra! — praguejei baixinho. — Não queria te assustar —
desculpei-me.
— Er... tudo... bem... — gaguejou —, é que... — Fez uma
careta e eu comecei a rir de seu descontrole. — Desculpa.
— Pelo quê?
— Estou fuçando na sua geladeira, é que... — Baixou o olhar
eu ri mais ainda. — Vai me achar gulosa, se eu disser que estou com
fome?
Inclinei a cabeça para trás e gargalhei.
Meus passos foram certeiros até ela e, antes que levantasse a
maldita barreira, passei os braços pelas suas pernas e a sentei sobre
a ilha da cozinha. Encaixei-me entre suas pernas e ajeitei seus
cabelos atrás das orelhas.
— Falei sério quando disse que a casa é sua — lembrei-a e
fiquei admirando sua beleza. Valentina baixou os olhos para o meu
peito nu e engoliu em seco. Segurou o lábio inferior entre os dentes e
respirou fundo. — Valentina... — suspirei e peguei em seu queixo,
para que me olhasse dentro dos olhos. — Se quer que eu fique longe
de você, não pode fazer essa cara quando olha pra mim, porra!
— Eu... você está... sem camisa — constatou, com uma
careta.
— Como acha que durmo? De terno e gravata? — brinquei e
ela sorriu de canto. — Você, também, não está muito vestida —
rebati e ela ruborizou. Cheguei próximo de seu ouvido. — Não pode
abaixar-se daquele jeito, quando está vestindo uma calcinha que não
cobre quase nada. — Eu mantinha minhas mãos apoiadas no
mármore, com medo de subi-las pelas coxas nuas dela.
— Ai, merda! — reclamou e desviou o olhar – mostrando-se
constrangida.
Trouxe seu olhar de volta para mim, pegando em seu queixo.
— Não estou reclamando, só não consigo... — Peguei sua
mão e a levei até o meu membro que chegava a doer de tão duro. —
Controlar isso aqui — concluí e sua respiração ficou entrecortada,
assim como a minha.
Não raciocinei muito. Instintivamente, ataquei seus lábios e
enfiei minha língua, buscando a dela. O choque elétrico, provocado
em nossos corpos, assim que nossas línguas se tocaram, deixou
minhas pernas bambas. Eu tinha que manter-me no controle da
situação, sustentar minha cabeça no lugar, para que Valentina não
se assustasse e saísse correndo, como da última vez. Ela fez algo
que despertou de vez meu pau: baixou o rosto e fungou em meu
peito, arranhando minhas costas com suas unhas.
— Ah, caralho! — Cerrei os olhos e os punhos, para não
ultrapassar os limites dela.
Abri os olhos e vi duas pupilas dilatadas; lábios entreabertos;
respiração ofegante; esperando que eu fizesse alguma coisa.
— Eu confio em você — balbuciou e eu soube que era o sinal.
— Vamos para o quarto, vou te mostrar o que é fazer amor —
garanti e a peguei no colo. — Cruze as pernas no meu corpo. — Ela
o fez e o passou os braços pelo meu pescoço.
Fizemos o trajeto até a suíte com nossos lábios emaranhados.
Mantinha uma das mãos em sua bunda, sustentando seu corpo – e a
outra – entre seus cabelos, mantendo-a grudada em mim.
A deitei na cama e coloquei um joelho de cada lado do seu
corpo, sem acreditar que a tinha ali, sob meu domínio. Depois de uns
segundos, admirando-a, inclinei o corpo e comecei a desabotoar a
camisa que ela vestia.
— Essa camisa nunca será lavada — descontraí, enquanto
via parte de sua pele sendo mostrada. Precisei de um controle
descomunal, enquanto seus seios ficavam expostos. — Está sem
sutiã — gemi e quase terminei de arrancar a camisa com um puxão.
— Durmo sem — disse baixinho e apertou um lábio no outro.
— Está com medo? — Sua cabeça negou. — O que está
sentindo? — Minha voz quase não saía, tal o controle que eu
mantinha.
— Estou... — hesitou —, pulsando — admitiu e fechou os
olhos.
— Porra, Valentina!
Acabei de desabotoar a camisa e não consegui tirar-lhe. Os
mamilos rosados apontados para mim terminaram de me
enlouquecer. Mesmo por cima da roupa, já tinha constatado o quanto
Valentina tinha seios grandes, só não esperava que fossem tão...
empinados... atraentes... suculentos... Os mamilos endurecidos
imploravam pela minha boca.
Segurei-os firme e baixei o rosto entre eles. Passei a língua ali
e o gemido que escapou do peito de Valentina provou que eu estava
no caminho certo. Fiz o que queria fazer desde o primeiro dia em que
reparei neles: abocanhei um após o outro. Minha língua contornava
os bicos, enquanto o corpo dela se contorcia. Seus dedos apertavam
o lençol e sua cabeça estava inclinada – com os olhos fechados.
Queria ver seus olhos, mas, primeiro, daria atenção à parte
que Valentina temia que eu me aproximasse.
Desci o corpo e coloquei um dedo de cada lado de sua
minúscula calcinha. Ela endureceu o corpo.
— Olhe pra mim — pedi com cuidado e esperei que ela o
fizesse. — Se quiser que eu pare... é só pedir — assegurei, mesmo
sabendo que se ela pedisse, eu estaria fodido.
— Continue — ciciou, apertando mais ainda o lençol.
Neguei e ri sem humor.
— Não assim.
Soltei as laterais de sua calcinha e deitei-me sobre ela,
apoiando o corpo nos cotovelos. Coloquei seu rosto entre minhas
mãos e fiquei olhando dentro de seus olhos.
— Solte o lençol — ordenei e ela assentiu. — Me abrace. —
Suas mãos tocaram minhas costas e vi o quanto estava gelada. —
Não vou te machucar.
— Eu sei — sussurrou, sem tirar os olhos de mim.
Mantive uma mão segurando seu rosto e a outra, fui descendo
entre nossos corpos.
— Não feche os olhos — solicitei, quando percebi que o faria.
Lentamente, invadi sua calcinha e gemi, ao perceber que
estava lisa, sem nenhum pelo. O corpo dela ergueu-se da cama,
assim que meu dedo avançou e encontrou seu centro ensopado.
Prendi os lábios nos dentes e sofri para manter os olhos abertos,
assim que introduzi um dedo nela.
— Meu Deus! — gemeu e não conseguiu cumprir com o
acordo de ficar com os olhos abertos.
— Você está pronta, só precisa confiar em mim.
— Eu confio — disse, com a voz falhando.
Devagar, soltei seu rosto e arrastei o corpo para baixo. Afastei
a calcinha para o lado e suspirei com a visão. Tudo nela era
diferente... puro. Mesmo sabendo o que tinha acontecido, as reações
de seu corpo e os olhares de Valentina, era como se fosse a primeira
vez. Encarei como se fosse, de alguma forma, teria que mostrar-lhe
o quanto era bom fazer amor – ainda que – eu mesmo nunca tivesse
feito, sexo era o que eu sabia fazer.
Apreensiva

As sensações de medo e prazer estavam me deixando maluca.


Queria poder relaxar e aproveitar ao máximo o momento, mas a
memória que eu tinha daquele ato não estava colaborando.
Eu sabia que seria diferente com Lucca, ele estava sendo
mais paciente do que eu podia imaginar, no entanto, mesmo que eu
quisesse, a todo momento, temia sentir àquela dor excruciante da
primeira vez. Eu não sabia o que era prazer. Embora meu corpo
buscasse por um alívio, minha mente teimava em barrar.
Antes que eu pudesse raciocinar, como seria quando Lucca
chegasse lá embaixo, seu dedo entrou, cuidadosamente em mim,
fazendo-me sentir algo que eu não conseguiria descrever – diferente.
Lucca garantiu que eu estivesse pronta para que ele
continuasse e desceu o corpo até o meio das minhas pernas. Só de
sentir sua respiração ali, meu corpo arrepiou-se inteiro. Respirei
fundo e lutei contra as lembranças ruim, para que dessem espaço
para novas.
— Misericórdia... — Quase gritei, no momento em que senti a
língua dele passear pelos meus lábios inferiores.
— Relaxa, meu amor.
Engoli em seco e, antes que eu pudesse digerir o que ele
tinha acabado de dizer, meu corpo contorceu-se sozinho. O que é
isso, Senhor?
Algo se formava dentro de mim, que eu não conseguiria
descrever. Um calor misturado com calafrio. Lucca estava... me
chupando, lá embaixo... Jesus, Maria e José, como assim? Meus
dedos dos pés se contorciam junto com o resto do meu corpo. Sem
perceber, mordia os lábios e apertava os punhos.
— Lucca... — suspirei, sem saber o que eu queria. Não queria
que ele parasse, mas sentia como se algo quisesse explodir dentro
de mim. — O que é isso... que... estou... ai... sentin... dooo! — O
grito foi incontrolável – vergonhoso.
Minha respiração ficou tão descontrolada que eu não
conseguia falar. Parecia que meu coração escaparia pela boca. Senti
minha vagina contrair-se junto com o abdômen. Um calor, que
começava da ponta dos pés, até o couro cabeludo, tomou conta de
mim. Sentia como se tivesse colocado os dedos em uma tomada e
estivesse levando pequenos choques. Minha cabeça inclinou-se para
trás e meu corpo ergueu-se do colchão involuntariamente. Os bicos
dos meus seios ficaram duros como pedra.
Ainda com ele entre minhas pernas, queria poder fechá-las,
para conter aquelas sensações que me levaram do céu ao inferno
em segundos. Sensações que eu nunca tinha sentindo. Que eu não
tinha a mínima ideia de como controlá-las. Eram... boas demais.
Como maria-mole, deixei o corpo esparramar-se pelo colchão
e fui controlando a respiração, sem conseguir abrir os olhos. Mesmo
sem ver, sabia que Lucca estava em cima de mim, com o rosto muito
próximo do meu. O calor de seu hálito estava ali, lembrando-me do
quanto era bom senti-lo.
Aos poucos, abri os olhos, ainda respirando com dificuldade.
Meu rosto era puro sangue, eu sabia, porque queimava. Claramente,
estava envergonhada. O que Lucca estaria pensando? Que eu era
tão caipira na cama como em todas as outras áreas? Isso porque ele
nem tinha tirado toda sua roupa. Imagine quando eu o visse
completamente nu?
— Tudo bem? — perguntou, com um sorriso malandro
enfeitando seu lindo rosto. Não tive forças de responder, só meneei a
cabeça que sim. — Você fica mais linda com essas bochechas
rosadas — elogiou e beliscou de leve uma delas.
— Não me deixe com mais vergonha, Lucca — despejei,
querendo que ele continuasse, temia perder a coragem.
— Vergonha? De mim? — Assenti. — Por que, meu amor?
— Por que está me chamando de meu amor? — inquiri,
recuperando a razão.
— Por que é o que estou sentindo, que você é o meu amor —
admitiu e eu franzi o cenho. — Não acredita? — Claro que eu não
acreditei. Ele entendeu, pela minha expressão. — Por que eu
mentiria, se estou com você embaixo de mim? Não preciso te
convencer de nada.
— Continua de roupa e ainda não..., sabe...
A risada gostosa que ele tem me encantou, mais uma vez.
Lucca é muito leve, descontraído.
— O que falta... eu fazer? — instigou-me, sabendo que eu não
conseguiria verbalizar.
— Engraçadinho, posso sair correndo daqui e te deixar na
mão — ameacei-o e ele fez um bico lindo.
— É assim que me agradece o orgasmo que acabei de te dar?
— Ri sem graça e desviei o olhar, constrangida. — Ei, não fique com
vergonha de mim, eu amei ver o quanto sentiu prazer. — Enfiou o
rosto entre meus cabelos e lambeu atrás da minha orelha, fazendo-
me encolher inteira. — Seu prazer é o meu prazer, gatinha.
Respirei fundo e comecei a sentir meu corpo ceder
novamente.
Lucca percebeu minha entrega e levantou-se. Tirou a calça de
moletom e ficou somente de boxer. Queria desviar o olhar, mas não
consegui. Meus olhos eram atraídos para o monte enorme no meio
das suas pernas.
Vi quando ele encaixou os dedos nas laterais da boxer e
começou a descê-las, lentamente. Minha mãe do céu! Eu já tinha
visto outros pênis, em fotos. Do Caleb, não tive o desprazer de ver,
só de senti-lo – e não gostei nadinha. Mas o do Lucca parecia... não
sei explicar... bonito? Seria normal achar um pênis bonito?
Completamente nu, Lucca voltou a ficar sobre mim. O contato
direto de nossas peles nos fez estremecer. Tanto eu, quanto ele,
respiramos fundo. Mordi os lábios e o olhei, encontrando seus olhos
soltando faíscas.
— Eu nunca fiz isso — disse eu não entendi. — Amor —
esclareceu.
— O que está querendo provar? — inquiri, voltando a erguer a
barreira. Não poderia entrar no jogo dele, claramente me
machucaria.
— Que com você é diferente — afirmou, sem hesitar.
— Diferente como?
— Eu sinto... — Assenti e não continuei. Receava estragar o
momento. Sabia que, depois que ele conseguisse o seu propósito,
mudaria de ideia.
Lucca baixou o rosto e tomou meus lábios com carinho.
Diferente dos beijos anteriores, ele saboreava minha boca.
Mordiscava meus lábios. Chupava minha língua.
— Você confia em mim? — perguntou, assim que soltou meu
lábio inferior de seus dentes. Dei de ombros.
— Nem nos conhecemos — fui sincera.
— Nunca senti nada parecido com o que estou sentindo —
declarou e um arrepio cortou minha espinha dorsal. Eu queria... ah,
como eu queria!... acreditar que era verdade.
— O que isso quer dizer?
— Que você é especial.
Nos encaramos por uns segundos.
— O que eu faço com essa informação? — perguntei, com um
tom meio divertido. Queria que ele voltasse para o ato em que
estávamos, assim não precisaria lidar com coisas muito piores,
depois que terminasse. Ele tinha que parar de complicar as coisas.
— Você, eu não sei, agora, eu...
Levou sua mão entre nós e chegou até o meu centro
novamente, encontrando-o pronto. Sorriu e, sem que eu pudesse me
preparar, encaixou-se entre minhas pernas – introduzindo seu pênis
avantajado em mim.
Segurei a respiração e esperei a dor me cortar. Fechei os
olhos e enfiei, involuntariamente, minhas unhas em suas costas.
— Valentina, abra os olhos — cobrou-me e eu obedeci,
apertando um lábio no outro. — Eu não vou te machucar, confia em
mim? — Assenti. — Não endureça o corpo, relaxe.
Fiz o que me pediu e permaneci olhando em seus olhos.
Seu corpo moveu-se devagar, com ele me encarando. O
primeiro impulso foi contrair, mas segui seu conselho – relaxei.
Completamente dentro de mim, parou.
— Tudo bem? — Confirmei. — Quero ouvir.
— Sim, estou bem.
O movimento de vai e vem começou devagar, tocando em um
ponto dentro de mim que começou a ativar as mesmas sensações de
quando ele me chupava. Lucca percebeu que meu corpo cedia e
aumentou as estocadas. Sem que planejássemos, gemíamos em
uníssono. Nossos corpos escorregavam-se em suores. Estava tão
molhada que o som me deixou mais excitada.
Cruzei as pernas e apertei as unhas em suas costas, assim
que o calor começou a tomar conta de mim novamente.
— Lucca...
— Eu sei, também não estou aguentando.
Como se nossos corpos fossem programados, nossos
gemidos declararam que tínhamos atingido o ápice.

Algo pesava muito em meu abdômen – em cima da minha


bexiga cheia.
— Ai — reclamei, ainda de olhos fechados. Os abri devagar,
buscando entender onde estava e o que pesava sobre mim.
Quase não acreditei quando me dei conta de onde estava e
que era a perna do Lucca que descansava em cima de mim. Não era
só a perna, seu braço, também. Comecei a tirá-los sem acordá-lo.
Dormia tão tranquilo. Com muito cuidado, tirei o braço e, em seguida,
a perna. Arrastei meu corpo para a beirada da cama e consegui sair.
Na ponta dos pés, fui ao banheiro. Era muito estranho tudo aquilo,
meio maluco, para falar a verdade.
Sentei no vaso sanitário e fiquei admirando o ambiente, que
deveria ser do tamanho do meu quarto. Olhei a banheira gigante e
pensei o quanto seria relaxante entrar ali e ficar algumas horas.
Chacoalhei a cabeça e ri sem vontade. Tinha que parar de sonhar.
Claro que tudo aquilo não era para mim. Apenas sexo, Valentina! Eu
tinha que me acostumar com a ideia.
Dei descarga e me virei para lavar as mãos, dando um pulo e
levando a mão ao peito.
— Quer me matar de susto? — deixei escapar, vendo Lucca
parado à porta – com parte dos cabelos tampando seus olhos.
Queria poder brigar com ele, mas, quando menos esperava, mordia
os lábios, admirando seu corpo nu à minha frente. Incrivelmente, ele
estava em ponto de bala.
— Não saia da minha cama sem me acordar, achei que tinha
ido embora — repreendeu-me e veio até mim, tomando meus lábios
nos dele.
Meu corpo amoleceu imediatamente. Sorri, com a boca na
dele, sentindo-me, realmente, especial. Nem que fosse só por aquela
noite, me permitiria. Enquanto me beijava, suas mãos faziam
milagres pelo meu corpo.
— Valentina.
— Hum.
— Fica comigo.
— Estou aqui.
— Pra sempre.
Ri de nervoso, ele, com toda a certeza, estava dormindo.
— Vamos voltar pra cama, Lucca — desconversei e peguei
em seu braço, puxando-o comigo.

Dessa vez, o que me acordou foi o cheiro de café. Franzi o


cenho e confirmei se Lucca permanecia ali. Sim, ele estava. Quem
tinha feito café? O frio na espinha veio com força total, em pensar
que alguém poderia me ver ali, dormindo com ele. Tudo o que eu
menos queria. As pessoas me julgariam.
Sentei-me rapidamente na cama e o empurrei de leve. Lucca
abriu os olhos e ergueu o tronco, apoiando-se nos braços.
— O que foi? — perguntou, assustado.
— Tenho que ir embora, sem que ninguém me veja. Levante e
vá distrair quem quer que seja que está fazendo café — desatei a
falar, levantando-me – procurando minhas roupas.
Lucca espreguiçou-se e sentou na beirada da cama,
tranquilamente, como se eu não tivesse acabado de ter um surto.
— Que horas são?
— Sei lá.
Continuei procurando minhas roupas. Tinha certeza de tê-las
deixado no closet, só que não estavam lá.
— São seis horas, Valentina. Volte pra cá, vamos. Temos mais
meia hora pra aproveitar dela — disse, ignorando minha neurose.
— Lucca — falei um pouco mais alto. — Você ouviu o que eu
disse?
Ele não respondeu, levantou-se e veio até mim. Passou as
mãos pelas minhas pernas e me ergueu, como seu eu fosse uma
pena. Dei um gritinho, quando me jogou na cama e se colocou sobre
mim, nos cobrindo inteiros com o cobertor que tínhamos usado à
noite.
— Por que está com pressa? — perguntou, sorridente.
— Não quero que me vejam aqui.
Seu rosto ficou sério.
— Foi tão ruim assim? Achei que tivesse gostado.
Limpei a garganta e neguei. Mordi o lado de dentro da
bochecha e busquei a melhor maneira de explicar-lhe o quanto era
errado tudo aquilo – sem ofendê-lo.
— Foi ótimo — confessei e seu sorriso voltou. — Mas, foi só
sexo. Não quero que as pessoas me julguem, novamente. Isso... —
apontei para nós —, fica entre nós, ninguém precisa saber. E... —
suspirei —, não vai se repetir.
Sua risada foi de deboche, acendendo a ira dentro de mim. Se
ele achava que podia rir da minha cara, estava enganado.
Empurrei-o com força, sem sucesso.
— Preciso ir embora, Lucca.
— Você não vai a lugar algum.
Respirei fundo e estreitei os olhos.
— Já não teve o que queria? Por que está fazendo isso? —
ataquei-o.
— Acha que entrando na defensiva vai me assustar,
Valentina? Eu sei o que está fazendo, tentando se proteger. Não vai
funcionar comigo.
— Você não sabe de nada — defendi-me, desviando o olhar.
— Sabe o que vai acontecer, agora? — Olhei para ele e
esperei que continuasse. — Vamos levantar, tomar um banho
gostoso, nos arrumar, tomar o café da manhã delicioso, que a
Antônia faz, e seguir para a empresa. O departamento de marketing
nos espera. Têm muitas pendências por lá.
Fiquei olhando para ele, esperando que ele caísse na risada,
demonstrando que estava brincando, mas não aconteceu, ele falava
sério.

Achei que seria constrangedor encarar sua ajudante quando


chegássemos à cozinha, mas não foi, graças a Deus. Lucca me
apresentou e agiu tão natural que a mulher nem percebeu minha
insegurança.
Assim como prometeu, seguimos todos os passos. Ele só
pulou a parte de que faria sexo comigo no chuveiro, não que eu
esteja reclamando. Foi tão... especial. Carinhoso e... íntimo.
Antes de seguirmos para a empresa, Lucca me levou em
casa, para que eu pudesse trocar de roupa. Disse que ele poderia ir
para a empresa, que pegaria um Uber, claro que ele não me ouviu.
Quis, por toda lei, entrar comigo. Seu argumento foi de querer
conhecer meu quarto. Lutar com ele, seria em vão. E, de qualquer
maneira, não vi nenhum problema.
O Esquema

Meu celular começou a vibrar em cima da mesa e vi que era


Andressa. Disfarçadamente, o peguei e fui para a copa.
— Oi, sabe que não pode me ligar esse horário — censurei-a,
pois já tinha lhe explicado como as coisas tinham que ser entre nós.
Ninguém poderia saber. Eu não tinha autorização para fazer aquilo.
— É importante — sussurrou, demonstrando que também
estava em um lugar cercado de pessoas.
— Espero que sim.
— Lembra, que te falei, que tenho contatos dentro da
Bennett?
— Sim.
— Então, consegui um horário com o advogado do velho, pra
nós duas — avisou-me e eu quase pulei de alegria.
Depois que soubemos que o CEO da Bennett tinha se
mandado do país, começamos a pensar em como cercá-lo, antes
que ele voltasse. Andressa tinha trabalhado uns anos na empresa e
me garantiu que conseguiria algo, até porque, estava processando-
os por assédio. Eu duvidava que ganharia, afinal, foi um caso que
teve com o Narciso, mas não diria isso a ela.
— Te subestimei, garota — brinquei, mesmo que fosse
verdade.
O estereótipo dela não era comum ser astuto. Eu sei que
estava sendo preconceituosa, mas... fazer o quê!? Conviver com um
bando homens, no qual fazem questão de alardear ao mundo suas
conquistas. E, na maioria das vezes, o tipo da Andressa nos faz
pensar igual a eles.
— É hoje, daqui a uma hora — avisou-me e eu me preocupei,
teria que arrumar uma boa desculpa. — Vou te mandar a localização,
ele não quer que seja na empresa e acho que nem você, estou
certa?
— Nos vemos em uma hora — garanti e encerrei a ligação.
Voltei tranquilamente à minha mesa, assobiando, como se
nada estivesse acontecendo. Fiz algumas coisas e, como quem não
quer nada, levantei-me e fui à sala do Bento. Bati de leve na porta e
esperei que sua voz grossa me autorizasse a entrar.
Entrei e fiquei parada em frente sua mesa, olhando para suas
costas. Bento olhava pela vidraça, com as mãos nos bolsos,
balançando-se nos calcanhares. Coisa que faz com frequência.
Ele tem problemas para dormir, perdeu esposa e filho em um
acidente de carro, desde então, ficou perturbado. Raramente, o
vemos sorrir.
— Não vai se sentar? — disse, ainda de costas.
— Vou ter que falar com suas costas? — rebati e ele me olhou
por cima dos ombros, por alguns segundos.
Nossa batalha de olhares sempre foi feroz. Nenhum dos dois
cede. Quem olha de fora, acha que somos os piores inimigos, onde,
na verdade, ele é a pessoa que tenho mais apreço – tirando minha
mãe.
Ele sabia que eu não cederia e não poderíamos ficar ali por
muito tempo. Virou-se e sentou em sua cadeira. Esperando que eu
dissesse o tinha me levado até ele.
— Preciso sair por algumas horas, assunto particular —
comuniquei segura. Um vacilar meu e ele entenderia a situação.
Bento tem intuição de uma águia.
Sua cabeça balançou para frente e para trás, com os olhos
estreitados – me estudando.
Fiquei em pé e, já ia saindo, quando ele prosseguiu:
— Não use sua arma e distintivo quando estiver tramando
pelas minhas costas. Têm coisas que vão além da minha autonomia.
Não quero te ver em uma enrascada, sem poder fazer nada —
advertiu entredentes. E meu peito ficou apertado.
Como ele conseguia? Assenti e continuei meu trajeto para
fora da sala dele.
§§§§
O restaurante era bem localizado, com um ambiente
agradável. Logo que entrei, avistei Andressa acenando
discretamente para mim. Avisei a Hostess que era aguardada e
caminhei até a mesa.
Antes de seguir para o encontro, passei em casa e troquei de
roupa, sorte a minha, porque minhas calças jeans, juntando com a
jaqueta de couro e coturnos pretos, certamente não se encaixariam
ao local.
— Olá — cumprimentou-me Andressa sorridente. — Meneei a
cabeça e me sentei. — Você é sempre assim? — continuou.
Arrumei a bolsa na cadeira ao lado e ajeitei a postura, antes
de tentar entender que espécie de pergunta a Barbie estava me
fazendo.
— Assim como?
— Sombria — disse, entortando os lábios.
Icei as sobrancelhas e achei que não valeria à pena dar
continuidade ao assunto.
— Cadê o advogado?
— Está chegando.
Conferi as horas no relógio de pulso e, antes que eu
contestasse que estava atrasado, Andressa ficou em pé e expôs
mais ainda seus dentes extremamente brancos e alinhados.
— Caetano, que saudade — cumprimentou-o e o abraçou,
como velhos amigos. Espantei, imediatamente, o julgamento que
veio à minha mente. — Essa é a Gabrielle, a amiga de quem te falei
— apresentou-me e eu achei que ficaria muito chato, se eu não me
levantasse – também.
Com um sorriso forçado, estiquei a mão ao indivíduo, que não
precisava me fazer nada para eu já odiá-lo, só pelo fato de ele ser o
advogado do diabo.
Nos acomodamos à mesa e escolhemos nossos pratos, antes
de iniciarmos a conversa tão esperada por mim.
Aparentemente, eu estava lidando bem com aquilo, no
entanto, sentia meu interior se fragmentando. Por mais que eu
tentasse lutar contra as reações do meu corpo, era praticamente
impossível.
As imagens se despejavam como cachoeira em minha mente,
cada vez que eu chegava mais perto dele. Gostaria de ser racional, o
suficiente para não me abalar – impossível.
Andressa e o advogado conversavam sobre amenidades e
minha visão turvava, com a quantidade de imagens que vinham
sobre mim. Imagens de coisas que eu não precisei presenciar, até
porque, estava no ventre da minha mãe. Mas que ela descrevia
muito bem. Ela sendo escorraçada, xingada de inútil, por ter
engravidado e dormido em abrigos da prefeitura, enquanto procurava
pelo seu amigo. Era a que mais me atormentava. Sem contar as de
quando ela lutava, sozinha, contra as crises de abstinência – das
drogas que o asqueroso a fez viciar-se.
— Não é mesmo, Gabi? — perguntou, Andressa e eu a olhei
de supetão, sem ter a menor ideia do que eles falavam.
— Perdão — desculpei-me e vi as linhas de expressão que se
formaram na testa do advogado, acendendo um sinal de alerta na
minha mente. Eu não podia dar bandeira, tinha que agir
naturalmente.
— Caetano quer saber qual seu interesse nos negócios do
senhor Isaac Bennett. Eu contei a ele que já nos adiantamos indo até
a agência de modelos, que só queremos aproveitar dos luxos que ele
oferece.
Assenti e forcei um sorriso.
— Claro, só estamos com algumas dúvidas — esclareci, me
recompondo.
— Por que o interesse, agora, Andressa? Não está
processando a empresa? — questionou a garota e eu cerrei os
dentes – olhando-a firme.
A Barbie fez algo que eu não esperava.
— Na verdade, eu desisti. Percebi que estava magoada e quis
me vingar. O que eu preciso mesmo é pagar minhas contas e vi uma
oportunidade indo até aquela agência — explicou, com gestos
corporais insinuantes, quase me dando náuseas, me controlei para
não revirar os olhos.
A informação agradou o advogado. Ele tomou um gole de seu
vinho e nos olhou atento.
— O senhor Bennett saiu do país, sem data pra voltar —
comunicou algo que já sabíamos. Só não, o fato de ele não ter data
para voltar, demonstrando claramente que o filho da puta estava
fugindo.
— Tenho certeza de que quando voltar vai querer continuar
com seus... — hesitei, sem saber como nomear o que o velho
asqueroso tinha.
— Negócios — concluiu o advogado e eu assenti, sorrindo. —
Disse que estão com dúvidas, não sei se posso ajudar, mas, vamos
lá...
Arrumei minha postura na cadeira e fiz um sinal para que
Andressa deixasse por minha conta.
— Então, a Valquíria nos explicou como funciona, Andressa
ficou bem interessada, até eu fiquei... — Ri, para provar o quanto
estava à vontade com a proposta. — Pena que...
— Imagino que tenha passado da idade, mas, com todo
respeito, coloca muitas menininhas no bolso — interrompeu-me, o
advogado. Não discerni se me elogiou porque era educado ou
nojento como o seu patrão. Preferi não pensar naquilo, sendo que
estava tão perto de arrancar-lhe informações importantes.
Alarguei meu sorriso, sentindo meu estômago dar
cambalhotas. Seguramente, quando a comida chegasse, eu não
conseguiria comer.
— Obrigada — agradeci e continuei: — O que me preocupa é
se não estaremos infringindo a lei, sabe. Porque pode ser
classificado como prostituição, não quero que Andressa entre num
barco furado.
Caetano ficou muito sério. Limpou a garganta, achei que fosse
se levantar e nos deixar. Quase me arrependi da pergunta tão direta,
mas não tinha outra maneira de eu entender como eles classificavam
aquele aliciamento descarado de mulheres.
— Acho que a Valquíria não foi muito clara — disse, depois de
uns minutos ponderando. — Não envolve sexo. Ele é um Sugar
Daddy que procura por Sugar Baby, simples assim. Não tem nada
fora da lei, já que estamos falando de uma relação consensual, no
qual um homem mais velho sente prazer em presentear mulheres
lindas com dinheiro e luxos, e em troca, recebe atenção. Não
estamos falando de prostituição.
Segurei para não rir ironicamente. Então, encontraram um
nome para a safadeza que o velho fazia. Algo que, aparentemente, é
bom para os dois lados. Claro que ninguém menciona o fato de ele
ter relações sexuais com elas e as compartilhar com os amigos. Não
mencionam que, aos poucos, vai introduzindo drogas em seus
relacionamentos deixando-as dependentes. Não mencionam,
também, que as torturam psicologicamente, a ponto de algumas se
suicidarem.
Ninguém investigou a fundo o negócio paralelo do CEO da
maior empresa alimentícia do país. Quem seria louco, já que poderia
perder a mamata? O velho usa o termo Sugar Daddy para esconder
o que realmente faz com as mulheres: as alicia.
É um esquema muito bem elaborado. Não é para qualquer
uma que eles fazem a proposta. Eles estudam a vida delas. Pegam
as que perderam as famílias ou não têm o apoio delas, para não
correrem o risco de terem problemas.
Não me chamo Gabrielle Mantovani, se não desmanchar todo
esse esquema nojento.
Assumindo

Foi difícil esconder meu instinto protetor quando entrei no quarto de


Valentina. Não queria sentir-me arrogante, porém, por mais que o
apartamento fosse arrumado, aqueles cômodos minúsculos me
causaram um pouco de claustrofobia.
A começar pelo lugar, não me senti confortável em saber que
Valentina vivia ali. Um bairro na região central, muito perto de uma
cracolândia[1]. O prédio de quatro andares, sem segurança nenhuma,
nem mesmo porteiro.
No quarto, tão pequeno como o resto do apartamento,
malmente cabia nós dois. Ainda bem que não precisava daquele
lugar para ter qualquer relacionamento íntimo com ela, se
fechássemos a porta, certamente, não conseguiríamos se locomover.
Vi, em sua expressão, que não estava muito à vontade.
— Vou te esperar na sala — avisei e, com poucos passos,
estava no ambiente conjugado à cozinha.
Valentina me explicou que sua amiga Mia trabalha no bar
onde nos encontramos, por isso, estava dormindo. A outra, já tinha
saído para trabalhar. Parei diante de uma janela, que – comparada à
vidraça da minha sala de estar – era como se fosse uma fresta
aberta, e fiquei observando a rua.
— Prontinho, acho que podemos ir — comunicou, Valentina,
às minhas costas.
Com as mãos nos bolsos da calça, virei e fiquei um tempo
admirando-a. Não tem nada que Valentina use que fique feio. Ali
estava a garota de jeans, camiseta e All Star, que me conquistou
desde o início. Seus cabelos loiros estavam presos em um rabo de
cavalo e a bolsa, cruzada no corpo. Se usava maquiagem era muito
pouco, pois seu rosto tinha um ar inocente e singelo – sem retoques.
— O que foi? — questionou, com uma expressão preocupada.
Sorri e balancei a cabeça, indo até ela. Peguei em sua nuca e
inclinei sua cabeça para trás.
— Não canso de te admirar — declarei, sentindo o coração
martelar em minha caixa torácica. Valentina sorriu de canto e tentou
desviar o olhar. A trouxe de volta para os meus olhos. — Tenho
vontade de te beijar o tempo todo — sussurrei e seus dentes
capturaram o lábio inferior.
Não resisti, a trouxe para mim e avancei em sua boca, como
se avança em um pote de seu doce favorito. Seu gosto é tão, ou
melhor, do que qualquer doce. A textura aveludada da sua língua me
provoca reações incontroláveis. A carne quente dos seus lábios me
faz questionar como consegui viver sem eles, por tanto tempo.
Minhas mãos foram ganhando espaço pelo corpo delicado de
Valentina. Os dedos pareciam condicionados a chegarem ao bico do
seio. Apertei e Valentina gemeu, aumentando consideravelmente o
calor entre minhas pernas.
As pernas dela já estavam cruzadas na minha cintura.
Caminhei até uma parede livre e a encostei, com intenção de me
aliviar, ali mesmo. Não fosse uma miserável voz nos parar.
— Procurem um motel — reclamou, Mia.
Valentina pulou do meu colo e ajeitou a camiseta dentro da
calça, completamente sem jeito. Antes de me virar, arrumei a frente
da calça jeans e respirei fundo, tentando não parecer um
adolescente descontrolado.
— Bom dia, Mia — cumprimentei sorridente.
A garota descabelada, descalça, com cara de sono, sentou-se
em um banco alto e levou o copo de água à boca – sem responder.
Enquanto sorvia o líquido, me examinava.
— Então... conseguiu o que queria? — disse, por fim –
colocando o copo vazio sobre o balcão.
— Está tudo bem, Mia — adiantou-se Valentina, eu sorri,
achando a cena, no mínimo, irônica.
— O que acha que vou fazer com sua amiga? — inquiri –
cruzando os braços – adotando uma postura firme.
— Espero que não o mesmo que o outro — expôs, sem
titubear, sua preocupação. Achei louvável, no entanto, me comparar
com um estuprador foi um pouco demais.
— Acho que não preciso te dar satisfação — afirmei e peguei
na mão da Valentina – carregando-a em direção à porta.
— Ei... garoto de outdoor — continuou e, para não assustar
Valentina, parei para ouvi-la. — Só pra constar, se machucar minha
amiga, vamos ter problemas — advertiu, eu abri um sorriso
sarcástico.
Sem responder, continuei meu caminho – carregando
Valentina comigo.
Chegamos ao carro em silêncio. Posso ser divertido e
descolado, mas, se tem uma coisa que consegue me desestabilizar,
é que me julguem. Coisa que, infelizmente, acontece com
frequência. O fato de o meu rosto estar estampado nas mídias, faz
com que as pessoas achem que eu não tenho cérebro.
Sebastião nos esperava do lado de fora do carro e percebeu
que algo tinha acontecido. Abriu a porta traseira para entrarmos e
logo estava ao volante.
— Para empresa, senhor?
Peguei a mão da Valentina e levei à boca. Beijei a palma e
sorri – encostando meu rosto nela.
— Me desculpe...
— Ela só se preocupa comigo, por causa... — Parou e mordeu
os lábios.
— Eu sei, é que... — Pensei em como expor algo que sempre
me incomodou para que ela entendesse um pouco do meu
comportamento. — Sempre ouço esse tipo de crítica, nunca gostei,
mas não me importava tanto, para falar a verdade, mas... com você...
O carro continuava parado e Sebastião nos olhava pelo
retrovisor, esperando que eu dissesse o nosso destino.
— Tudo bem — murmurou, Valentina, abrindo um sorriso
sincero.
— Quero que conheça alguém — disse, ainda com o rosto
apoiado na palma de sua mão.
— Não temos que trabalhar?
— Acho que ser o chefe tem algumas vantagens — brinquei e
suas sobrancelhas içaram-se.
— Acho que ser uma funcionária que acabou de pedir a conta,
e estar voltando com o rabinho entre as pernas, não tem vantagem
alguma — contestou e meu sorriso tomou conta de todo o meu rosto.
— Adoro esse seu lado agressivo.
Não esperei que ela continuasse com seus argumentos
vazios, afinal, na minha cabeça, ela tinha tanta vantagem quanto eu.
— Sebastião, pra minha mãe — ordenei e ele acatou.
Valentina arregalou os olhos e negou com a cabeça.
— Não pode me levar pra conhecer sua mãe, Lucca.
— Por que, não?
— Nossa, poderia fazer uma lista de motivos, mas... —
Respirou fundo, com os olhos fixos nos meus. — Por que, sim,
Lucca?
— Faz dias que ela vem me pedindo pra te levar lá. Chegou o
momento — esclareci e sua expressão, de que não estava
entendendo nada, quase me fez gargalhar.
— Como assim, te pedindo? Falou de mim pra ela?
Neguei e sorri. Como explicaria que minha mãe tem aquelas
cartas malucas que lhes contam tudo?
— Quando a conhecer, vai saber — assegurei e, por ora,
Valentina pareceu convencida.
§§§§
Sebastião parou o carro em frente à casa da minha mãe e
senti Valentina retesar o corpo. Virei seu rosto pra mim e beijei de
leve seus lábios.
— Relaxa, minha mãe é a pessoa mais fácil da face da Terra,
tenho certeza de que vocês vão se dar muito bem — tranquilizei-a e
ela sorriu – assentindo.

Nem tentei a porta da frente, a tirar pelo horário, minha mãe


estaria cuidando de suas plantas – na parte de trás da casa. Como
tenho as chaves, peguei na mão da Valentina e fui levando-a comigo.
De longe, avistei minha mãe conversando com suas
preciosidades. Vestida em suas roupas Hippies.
— Aquela é a dona Aurora, que brilha como ouro, trazendo luz
para as nossas vidas. — Apontei à minha mãe e senti meu peito
encher de amor. Minha mãe tem esse poder sobre mim, enche minha
vida de luz – exatamente como diz o significado de seu nome.
Valentina ficou admirando minha mãe, por alguns minutos,
antes de me olhar com um lindo sorriso enfeitando-lhe o rosto.
— Ela é linda — elogiou, com os olhos marejando.
— Tem razão, muito mais por dentro.
Somente quando estávamos muito próximos, que minha mãe
ergueu os olhos. Paramos e esperamos que viesse ao nosso
encontro.
— Que surpresa maravilhosa, filho! Se bem que, eu já sabia.
— Foi até Valentina e, sem que ela esperasse, a puxou para um
abraço apertado. — Exatamente como eu imaginava: linda e
iluminada — bajulou Valentina e pelo sorriso, que tomou conta de
todo o rosto da garota, ficou claro de que ela gostou.
— Então quer dizer que, eu não ganho abraço? — brinquei e
fiz um bico — como se estivesse sentindo inveja.
Minha mãe veio até mim e me abraçou.
— Estou muito feliz, filho. Sabia que esse dia chegaria —
sussurrou ao meu ouvido. Fiquei um pouco confuso e, ao mesmo
tempo, satisfeito. Dificilmente minha mãe erra em suas análises. —
Vamos entrar, meus amores.
No trajeto, dona Aurora pegou no braço da minha garota,
deixando-me para trás. Balancei a cabeça – sorrindo. As duas
conversavam como velhas amigas. Valentina se apresentou e minha
mãe apenas sorriu, como se não precisasse de nenhuma daquelas
informações.
Adentramos à casa pela porta da cozinha, ouvindo os tilintar
de seus cristais pendurados. Geralmente, chego na casa da minha
mãe no horário do almoço, sentindo o cheiro do meu prato preferido,
no entanto, o que sentimos foi o cheiro de seus incensos.
Nos acomodamos em volta da mesa da cozinha e dona
Aurora alcançou a mão da Valentina. A olhei com as sobrancelhas
içadas. Temia que assustasse a garota, como costuma fazer comigo.
— Perdoe sua mãe, querida, um dia, ela vai compreender —
começou e eu fechei os olhos, respirando fundo.
A reação da Valentina foi completamente diferente do que eu
esperava.
— Eu sei — disse, Valentina. — Só fico... sabe... — Baixou os
olhos. — Chateada... queria que ela... — suspirou — fosse como a
senhora, compreensiva.
— Ela é mãe, querida. Te ama, só quer te proteger —
assegurou minha mãe, eu comecei a ficar com medo de novo.
— Chega, mãe, está me assustando, como sempre — pedi e
Valentina me olhou com a testa franzida. — Ela é meio bruxa, amor
— expliquei e Valentina negou.
— As cartas me contaram, filho — justificou-se, dona Aurora.
Valentina estava muito calada. — Não tenha medo, filha —
continuou, minha mãe. — Lucca demorou pra aceitar, mas tenho
certeza de que já entendeu que encontrou sua alma gêmea, não é
mesmo, filho?
Vi o olhar assustado de Valentina. Sorri e assenti. Nunca senti
tanta certeza em minha vida. Lidaria com qualquer empecilho que
aparecesse. Ter Valentina só para mim, passou a ser meu objetivo
principal. Só tinha que fazer com ela reconhecesse que também me
tinha só para ela.
— Ela é meu amor, mãe — garanti e trouxe a mão livre de
Valentina aos meus lábios – beijando a palma. A mantive ali, em
meus lábios, enquanto via sua respiração oscilar.
— Tenho medo — confessou, Valentina – voltando seu olhar à
minha mãe.
— Eu sei, querida, mas confie em mim, eu conheço meu filho,
não vai te magoar. Está apaixonado.
Vi quando Valentina prendeu o lábio inferior entre os dentes e
assentiu – claramente – insegura. Mas eu provaria que minha mãe
falava a verdade, e não esperaria muito.
Deixei Valentina na cozinha com minha mãe e liguei para
Mariana, avisando-a que só voltaríamos depois do almoço.
Comuniquei que Valentina estava de volta, deixando-a mais
confortável quanto aos prazos apertados do departamento de
marketing. Tanto eu, quanto Mariana, sabemos do potencial da
Valentina. Nós três, unidos pelo mesmo objetivo, seguramente,
vamos conseguir cumprir com todos os prazos. A equipe só precisa
de uma boa liderança.
Terminei de falar com a Mariana e, quando pensei em voltar
para a cozinha, a campainha tocou. Achei que pudesse ser o
Sebastião, avisando-me de algo. Ele, mesmo com a insistência da
minha mãe, persiste em ficar no carro.
Abri a porta e Theo pulou no meu pescoço. Sorri e olhei por
cima de seu ombro – vendo à sua mãe – gostando da oportunidade
de acertarmos as coisas.
O Convite

Não achei que meus sentimentos pudessem dar uma virada, tão
brusca, em poucas horas.
A conversa com a mãe do Lucca já tinha conseguido me
acalmar e, quase, me convencido de que ele não me machucaria. Há
muito que eu não me sentia tão à vontade e acolhida. Enquanto
Lucca resolvia as questões da empresa na sala, me prontifiquei em
ajudar sua mãe na cozinha. Tudo parecia bom demais para ser
verdade.
Aos poucos, fui relaxando e me deixando envolver com o
momento. Permitindo-me aceitar que estava tudo bem. Não posso
dizer que tudo na minha vida têm dado errado, seria ingratidão da
minha parte, no entanto, no quesito “homens”, sim.
— Se quiser chamar o Lucca, já está pronto — avisou, dona
Aurora, eu sequei as mãos no pano, antes de ajeitar os cabelos e
sair – em direção à sala.
Estava quase na porta da cozinha, um garoto entrou correndo.
— Vovó, que saudades — gritou e agarrou na cintura da mãe
do Lucca. A senhora abriu um lindo sorriso e o apertou ao seu corpo
– beijando-lhe o topo da cabeça.
Fiquei parada, uns segundos, buscando em minha memória
sobre os irmãos do Lucca. Pelo que tinha lido nas mídias, nenhum
era da mesma mãe. Então..., não precisei de muito tempo para juntar
as peças. Antes que eu me recuperasse, Lucca entrou na cozinha,
acompanhado da... Cristo, de novo, não! Estremeci e levei a mão à
boca – arregalando os olhos! Como que ele podia ter omitido que
tinha um filho e, pior, da mulher que quase me agrediu no banheiro
daquele bar. Bom, se eu tivesse um filho com ele, faria o mesmo que
ela.
Não esperei explicações, continuei meu caminho. Peguei
minha bolsa no aparador do corredor que levava à sala e caminhei
rapidamente – em direção à porta.
— Ei, onde pensa que vai? — Lucca berrou às minhas costas.
Apressei os passos e alcancei a fechadura da porta. Fui
impedida imediatamente.
Lucca pegou em meu braço e me virou para ele. Ergueu meu
queixo e me fez olhá-lo nos olhos.
— O que foi que a Roberta te falou àquele dia?
Neguei com a cabeça e segurei as malditas lágrimas que já
queriam cair. Quando eu aprenderia?
— Por que não me disse que tinha um filho com ela?
Lucca riu com vontade e colocou meu rosto entre as mãos.
— A única mulher que já pensei em ter filhos é você, meu
amor — declarou e eu fiquei mais confusa.
— Ela disse pra eu ficar longe de você e me chamou de
putinha — desabafei e funguei.
A expressão do Lucca mudou instantaneamente. Sem dizer
nada, pegou em minha mão e me arrastou à cozinha – parecendo
bravo.
Entramos no cômodo e os três acuaram, percebendo que
Lucca não estava em seu estado normal.
Paramos em frente a Roberta.
— Peça desculpa, agora, à Valentina — exigiu Lucca – com o
rosto transtornado.
Vi a cor do rosto da mulher desaparecer. A mãe dele se
aproximou e a criança ficou atrás da avó, com cara de assustada.
— Desculpa, eu... — começou e parou. — Estava confusa,
não achei que esse garanhão ia se acertar com alguém. — Tentou
parecer divertida e Lucca não amenizou para o lado dela.
— Explique-se melhor, Roberta. Nada te dá o direito de
chamar alguém de putinha. — Respirei fundo, ao ver a cara de
espanto que a mãe dele fez.
— Fez isso, filha? — perguntou dona Aurora à Roberta. Ela
baixou o olhar e abraçou o corpo — assentindo. — Nossa, isso foi
cruel — comentou a senhora e se afastou, carregando a criança com
ela.
— Estou esperando, Roberta — insistiu, Lucca.
— Desculpa, é que... — hesitou —, senti ciúmes —
confessou. Vi o olhar de Lucca amenizar um pouco.
— Está tudo bem, Lucca. Ela tem o direito de sentir ciúmes.
Às vezes, a gente age pela emoção — ponderei, querendo acabar
logo com aquilo. Na verdade, nem almoçar ali eu queria mais.
— Não, ela não tem direito de sentir ciúmes, nunca tivemos
nada. Somos amigos e nossa proximidade é por causa do Rodolfo,
que me pediu para cuidar dela e do Theo. Não quebraria a promessa
que fiz ao meu amigo. Só que... — Fechou os olhos e passou as
mãos pelos cabelos. — De agora em diante, Roberta, só darei
atenção ao seu filho, que considero como meu sobrinho.
Nossa, tudo me parecia cada vez mais confuso. Quem é
Rodolfo?
— Não, Lucca, não faça isso, eu errei, me perdoe —
continuou, Roberta, pegando no braço dele.
Lucca desvencilhou-se dela e me encarou, claramente sem
saber o que fazer.
— Quem é Rodolfo? — questionei, na esperança de poder
ajudá-lo.
— Era meu melhor amigo — disse e engoliu em seco –
inclinando a cabeça para trás. Depois de uns segundos, encheu o
peito de ar e continuou: — Faz um pouco mais de um ano que ele se
foi...
Não terminou a frase. Nunca tinha o visto tão transtornado.
Roberta arriscou se aproximar. Com os braços em volta do corpo e
um olhar cheio de súplicas, se direcionou a mim:
— Somos só amigos, estou muito sozinha, vulnerável... —
Baixou a cabeça e a balançou. — Confundi tudo, me desculpa... —
implorou, com a voz embargada.
De esguelha, vi quando dona Aurora se acomodou no canto
da cozinha, esperando para ver o término da situação. Olhei para
ela, que meneou a cabeça, garantindo que Roberta falava a verdade.
— Tudo bem, eu te entendo — assegurei e Lucca me lançou
um olhar de admiração. Veio até mim e beijou minha têmpora.
— Por isso, que me apaixonei por você. Você tem a mesma
luz da minha mãe — sussurrou, só para eu ouvir. Na certa, as outras
duas mulheres conseguiram ouvir, também – a tirar pela expressão
de felicidade de dona Aurora e de decepção, da Roberta.
Abracei meu homem. Sim, eu tinha que abrir à guarda.
Naquele dia, Lucca Bennett começou algo muito importante pra mim:
provar que eu podia dar uma chance ao amor.
§§§§
O acúmulo de trabalho, no departamento de marketing, e a
cobrança em cumprirmos os prazos, nos obrigaram a aumentar as
horas de trabalho. A semana voou. Mesmo que estivéssemos juntos,
quase todo o tempo, não tivemos oportunidade de conversarmos
sobre o que tinha acontecido.
No mesmo dia, quando voltamos da casa da sua mãe, Lucca
fez algo que me deixou numa situação comprometedora. Anunciou
ao departamento que estávamos juntos. Com essa atitude, a
responsabilidade de ser a melhor elevou-se ao nível máximo.
Mariana passou a me tratar diferente, como se eu fosse sua
superior. Tentei, por vezes, dizer-lhe que não era daquela maneira –
em vão.
Não podia me concentrar no comportamento da equipe, diante
do fato de eu ser a namorada de um dos donos da empresa, tinha
que continuar com o meu propósito: mostrar o quanto sou boa no
que faço. Queria que as pessoas continuassem a me ver como uma
funcionária nova, sem experiência – disposta a aprender com eles.
Concentrada na tela do computador, analisando com mais
calma o projeto que me foi atribuído, nem percebi a presença de um
homem imponente – de fronte à minha mesa. Ergui os olhos da
máquina e, rapidamente, fiquei em pé – reconhecendo a figura.
— Bom dia, senhor Henry — cumprimentei o irmão mais velho
do Lucca.
Ele não respondeu de imediato. Por alguns intermináveis
segundos, me analisou – com os olhos estreitados.
— Você é a tal Valentina? — questionou, por fim. Assenti –
receosa. Mesmo que fizesse pouco tempo que estava na empresa, já
conhecia sua fama de mau. Sem contar o quanto Lucca praguejava
quando estava falando com ele ao telefone. — Espero que seja tão
boa quanto dizem, pra valer a pena o esforço que o idiota do meu
irmão está fazendo. Detesto pensar que, mais uma vez, ele esteja
agindo de acordo com a cabeça de baixo. — Despejou sua ira e
virou-se. Antes que saísse, com risco de perder o emprego, não
segurei minha língua.
— Deveria conhecer melhor seu irmão — iniciei e esperei que
voltasse a me olhar. Henry virou-se e me encarou com um olhar
cheio de ódio. Senti um frio na espinha. Nossa, esse homem precisa
de Deus!
— Só porque abre as pernas pra ele, não quer dizer que o
conhece — destilou, mais uma vez, seu veneno.
Ri completamente de nervoso e não perdi a coragem.
— Não sei qual o seu problema, mas não vou deixar você
estragar o que temos de bom. Nem me abater pelo seu julgamento
cruel — cuspi e sentei-me novamente. Coloquei as mãos sobre o
teclado e vi o quanto tremia.
Ele continuava no mesmo lugar. Fiz-me de desentendida.
— O que está fazendo aqui, Henry? Espero que não esteja
chateando a Valentina. — Lucca entrou falando, soltei a respiração,
que nem tinha percebido que segurava. Parou ao lado do irmão e
ficou nos olhando, percebendo que o clima não estava dos melhores.
— O que ele te disse, Valentina?
Sorri e, sem tirar os olhos do infeliz – no sentido literal da
palavra –, respondi:
— Nada que eu já não tenha ouvido.
O riso sarcástico de Henry quase me fez desistir de desafiá-lo
com o olhar... quase.
— Você é corajosa, garota — disse, por fim. Assenti e
acompanhei seus passos para fora da minha sala.
Lucca ficou me olhando, querendo entender o que tinha
acabado de acontecer. Não achei que contar-lhe os detalhes mudaria
alguma coisa.
— Vai me contar o que foi isso?
Neguei e fiquei em pé, indo até ele e o abraçando – fungando
em seu pescoço.
— Deixa pra lá — desdenhei e alisei seu rosto, com a barba
por fazer – que passei a amar, muito rápido. — Meu Deus, seu irmão
precisa de ajuda — comentei e Lucca riu – negando com a cabeça.
— Ele precisa trepar — disse, sorrindo.
Bati de leve em seu ombro.
— Lucca!? — repreendi-o e ele deu de ombros.
— Vamos almoçar? — confirmei e alcancei minha bolsa.
§§§§
Achei estranho Lucca dispensar o Sebastião para irmos
almoçar. Já estava habituada ao senhor que me tratava como filha.
Entramos no conversível do Lucca e ele assumiu o volante,
todo cheio de si. Acabei rindo da ironia de estar dentro do carro que
tinha ferido minha Penélope.
— Está feliz assim, por causa da volta desse monstro, que
assassinou minha Penélope? — diverti-me e Lucca me olhou sério,
antes de ligar sua máquina potente.
— Precisamos conversar sobre sua lata velha — anunciou e
eu recuei com o tronco.
— Cuidado como fala dela! — alertei-o, para que entendesse
o quanto Penélope é importante para mim.
— Valentina... — suspirou —, entendo o quanto goste daquela
lata rosa, mas não é segura e você sabe que eu tenho razão.
Cruzei os braços e fechei a cara.
— Esse monstro fez o favor de deixá-la incapaz de andar, não
sei o porquê da preocupação, já que ando de metrô — retruquei,
mesmo não sendo de tudo verdade, afinal, a bateria dela tinha
arriado completamente e, o fato de eu andar de metrô, é porque os
estacionamentos são muitos caros.
Lucca negou com a cabeça e ligou o carro, ignorando-me.
Ficamos em silêncio um tempo, até eu perceber que
estávamos chegando em seu apartamento.
— Por que estamos indo pra sua casa?
Ele sorriu, sem tirar os olhos da estrada.
— Surpresa.
— Não sou muito fã de surpresas — admiti e me calei
novamente.

Ao chegarmos à porta de seu apartamento, Lucca parou e


pegou em meus ombros – virando-me de frente para ele.
— Confia em mim?
— O que foi, Lucca?
— Sim ou não?
— Acho que, nesse momento, não tenho muita opção — soei
blasé – escondendo um pouco meu receio.
Me arrependi no ato, assim que vi Lucca tirar uma gravata do
bolso e vir para as minhas costas.
— Feche os olhos — pediu e passou a gravata pelos meus
olhos – usando-a como venda.
— O que está fazendo, Lucca? — Não queria, mas sentia meu
receio aumentar.
— Disse que confiava em mim.
— Eu disse que não tinha opção, é diferente.
Lucca pegou em meu braço e abriu a porta. Foi me guiando
para dentro. Andamos um bom espaço dentro do apartamento, até
pararmos. Lucca encostou a boca em meu ouvido e o calor de seu
hálito me fez encolher-se.
— Vou tirar a venda, agora — sussurrou e beijou atrás da
minha orelha.
Aos poucos, abri os olhos – acostumando-me com a
iluminação do cômodo. Logo, reconheci que estávamos em seu
enorme closet.
— Por que me trouxe em seu closet?
— Venha, vou te mostrar — pegou em minha mão e me
carregou até uma parte completamente vazia – com as gavetas
abertas, também vazias.
Franzi o cenho e olhei para ele, torcendo para que eu
estivesse errada em minha dedução.
— O que isso significa, Lucca? — Minha voz saiu meio
falhada.
— Isso mesmo que você pensou, meu amor. Quero que venha
morar comigo — verbalizou exatamente o que eu temia. Era um
passo muito grande, em um espaço de tempo muito curto.
Fiquei olhando para ele por longos minutos, massacrando
meus lábios com os dentes. Eu não tinha ideia do que fazer.
— Lucca... é muito cedo...
— Eu sabia que você diria isso — interrompeu-me. — Não
estou te pedindo em casamento, Valentina, só quero que fiquemos
juntos — argumentou – passando as mãos pelos cabelos –
demonstrando que, também, estava nervoso.
— Passamos o dia todo juntos — lembrei-o e ele negou, com
um sorriso de lado.
Veio até mim e colocou meu rosto entre suas mãos.
— Não é a mesma coisa — censurou-me e prosseguiu: — Por
mim, seria um pedido de casamento, meu amor, mas eu sei que faria
você correr de mim.
— Você faz parecer tudo muito simples, Lucca — comentei e
respirei fundo.
— Você é que complica demais. Só quero que venha morar
comigo, nada mais. Não vejo qual o problema, já que divide
apartamento com duas pessoas.
Meu rosto continuava em cativo de suas mãos. Ele roçou
nossos narizes.
— É diferente, lá eu pago aluguel, aqui... — Ri e balancei a
cabeça. — Nem se eu guardasse, meu salário dos próximos seis
meses, pagaria.
— Vou fingir que não ouvi essa sua última frase. Então? Topa
dividir apartamento com seu namorado? Hum? Tenho uma lista de
motivos pra provar que é melhor aqui do que onde está.
Revirei os olhos e entortei o nariz.
— Claro que tem — desdenhei —, garanto que metade deles
tem você como prêmio — brinquei e ele abriu o sorriso, sentindo-se
vitorioso.
— Ótimo, hoje à noite, vamos buscar suas coisas — decidiu
por mim, sem hesitar.
Lucca não esperou que eu dissesse qualquer coisa, pegou
novamente na minha mão e foi me carregando de volta à sala.
Chegando à sala de jantar, coloquei a mão na boca e arregalei os
olhos.
— Meu Deus! Jantar à luz de velas, em plena luz do dia?
— Precisamos comemorar — explicou. — Obrigada, Antônia,
pode deixar que assumo daqui — dispensou a ajudante e afastou
uma cadeira para eu me sentar. Assim que me acomodei, ele sentou-
se à minha frente.
Enquanto nos servíamos, ainda me sentia atordoada. Como
aquilo era possível? Queria me beliscar para ter certeza de que não
era um sonho.
A comida estava maravilhosa, saboreamos por um tempo,
sem que nenhum dos dois falasse nada. Até Lucca quebrar o silêncio
com uma pergunta que quase me fez engasgar.
— Você quer filhos?
Ri, completamente nervosa. Eu nem sabia o que responder.
— Caramba, você é rápido — brinquei e limpei o canto dos
lábios com o guardanapo.
— É que... — hesitou — não usamos preservativo, sabe.
Como não disse nada, deduzi que... — Deu de ombros.
Dessa vez, fui eu quem gargalhou – jogando a cabeça para
trás.
— Tudo bem, então, se eu engravidar de um dos herdeiros da
Bennett? — provoquei-o.
— Sim, você pode, quero passar o resto da minha vida ao seu
lado. Um filho seria a cereja do bolo — afirmou, tão natural que parei
de rir.
— Está falando sério?
— Nunca falei tão sério, em toda minha vida.
Assenti e fiquei encarando-o, esperando que ele dissesse que
estava me testando – não aconteceu. Quando percebi que não
recuaria, decidi expor minha decisão, de anos antes.
— Tenho um implante em meu braço que impede que eu
ovule — contei-lhe e esperei sua reação.
— Por quê?
— Depois do que aconteceu... — Respirei fundo, preparando-
me para tocar no assunto que cutuca minhas feridas. — Fui ao
ginecologista, desesperada, com medo de ter engravidado. Sorte a
minha que não estava em meus dias férteis. O médico me indicou
esse método, para me deixar mais tranquila, nesse quesito. Não que
eu tivesse a intenção de sair por aí fazendo sexo, mas... enfim...
fiquei com medo de ter que passar pelo mesmo processo, preferi me
prevenir.
Lucca foi a primeira pessoa a quem contei sobre o implante.
Tirando meu médico, ninguém sabia. Não tinha um porquê de sair
anunciando minha decisão.
Ele encostou-se na cadeira e cruzou os braços, me
estudando.
— Então não quer filhos — resumiu e eu confirmei com a
cabeça.
— Por agora, não. Talvez, quando eu estiver mais estabilizada
em minha carreira — afirmei, sem olhar para ele. Peguei o copo de
água e tomei um gole, sentindo seu olhar sobre mim.
— Então está perto — comentou e voltou a comer.
Epílogo

Seis meses depois...

Encostei-me ao batente da porta e fiquei admirando minha garota


mergulhada na banheira – somente com o nariz de fora.
A correria do dia a dia nos deixa esgotados, segundo a
Valentina, a banheira consegue retirar todo o cansaço de seu corpo.
Quem sou para reclamar, já que todos os momentos de relaxamento
terminam com ela encaixada em mim?
Tomei um gole de café e me aproximei, sentando-me à
beirada da banheira. Ela percebeu minha presença e sentou-se –
sorrindo.
— Logo pela manhã? — brinquei e a entreguei a xícara que
estava em minhas mãos.
Valentina tomou um gole da bebida e soltou um gemido de
satisfação.
— A semana foi muito puxada, estou me preparando para
uma sexta-feira exaustiva — esclareceu o fato de estar dentro da
banheira naquele horário.
Inclinei o corpo e beijei de leve seus lábios.
— Eu entraria aí, mas... — suspirei —, temos que ir.
§§§§
Entramos no departamento de marketing e Mariana veio ao
nosso encontro.
— Bom dia — cumprimentou-nos. — Respondemos e
aguardamos o que diria, certamente, algo urgente. — Valentina,
desculpe-me te incomodar logo cedo, preciso de algumas
autorizações suas.
Valentina me olhou e bufou.
— Que saudade de quando você comandava tudo por aqui —
reclamou e sorriu.
Ela sempre fazia aquilo, tentando me convencer a voltar ao
departamento.
Não demorou muito para termos certeza de que Valentina era
a pessoa certa para assumir o lugar da Vanessa – que não voltou
mais.
Com o departamento em boas mãos, voltei minha sala à
diretoria. A senhora que havia sido contratada, para ser minha
secretária, voltou. Dessa vez, foi Valentina quem exigiu que fosse
ela. A garota é um tanto... possessiva, vamos dizer assim.
— Mariana, você tem duas horas pra resolver o que precisa
com a minha garota, depois, vou sequestrá-la — avisei e não esperei
os questionamentos da Valentina que, seguramente, viriam.
Há dias que eu vinha programando aquele fim de semana.
Estava tudo arranjado.

Acomodado em minha sala, revisava todos os compromissos


com a minha secretária – adiantando alguns e adiando outros –,
Kaíque entrou em minha sala. Diferentemente do Henry,
cumprimentou a secretária e sentou-se na poltrona, esperando que
acabássemos.
— E aí, o que te incomoda tanto? — perguntei e apontei a
cadeira em frente minha mesa – que tinha acabado de ficar livre.
Meu irmão sentou-se ali e começou a negar com a cabeça –
indignado.
— Véi não posso continuar assumindo esse trem, não —
começou e eu fui obrigado a rir. — Lucca, tem que me ajudar, véi —
continuou e eu fiquei analisando-o, sem responder nada. — Já
expliquei ao Henry que têm muitos negócios pendentes em BH, não
posso largar tudo, a empresa vai perder muito com isso.
Kaíque se referia às fazendas situadas em Belo Horizonte, na
verdade, nas redondezas. E ele estava coberto de razão. Uma ideia
me ocorreu e eu achei que seria a solução para todos nós.
— Acho que sei como te ajudar — afirmei e fiquei em pé. —
Vamos pedir uma reunião de emergência com a diretoria, agora.
— Uai, sô! Que jeito, se cada um tá num canto do país —
questionou e eu ri mais ainda. O cara é tão ligado às coisas das
fazendas que se esquece das tecnologias.
— Videoconferência — esclareci e chamei, minha secretária.
Passei o que ela precisava fazer e expliquei minha ideia ao Kaíque.

Sentados em volta da mesa de reuniões: eu, Kaíque, Henry e


sua secretária, esperávamos que os demais irmãos entrassem,
online. Assim que todos estavam a postos assumi à frente –
deixando Henry boquiaberto. O primeiro objetivo eu tinha alcançado:
impressioná-lo.
Após a secretária do Henry estar pronta para iniciar a ata,
comecei:
— Bom dia, pessoal — cumprimentei-os e esperei que todos
respondessem. — Convoquei essa reunião, por ter uma proposta. —
Henry franziu o cenho e cruzou os braços, com cara de descrença.
Ignorei sua falta de fé em mim e continuei. — Embora nosso pai
tenha determinado um jogo entre nós, sabemos que só tem uma
pessoa preparada pra assumir a cadeira do velho — joguei a bomba
e esperei a reação deles. Como eu esperava, só se via as cabeças
concordando. — Sendo assim, proponho que façamos uma votação.
Já que o senhor Bennett não está, não poderá contestar a decisão
da diretoria.
Vi o sorriso no rosto do Henry e soube que tinha pegado o
caminho certo. Era tudo o que ele queria, só não poderia assumir
para o velho, seria uma afronta.
— Eita, que esse garoto é esperto por demais — comemorou,
Kaíque, sabendo que estaria livre para seguir com seus
compromissos.
Estava claro que todos votariam a favor de Henry. Cada um
tinha seu compromisso com a empresa, fora da capital. Assumir a
cadeira do velho, seria o mesmo que modificar suas vidas. Sem
contar que, por mais que usei a bajulação para amolecer o Henry, ele
realmente era o único preparado ao cargo. Enquanto o velho
estivesse fora, estava tudo resolvido. Quando ele voltasse, teríamos
que assumir as consequências de nossas escolhas.
§§§§
Peguei Valentina no departamento de marketing, depois de
três horas. Voltamos à nossa casa... sim... minha cobertura passou a
ser a nossa casa. Estacionei o carro ao lado da Penélope e sorri.
Aquela lata velha tinha passado por uma bela reforma e se mantinha
em uma de nossas vagas do prédio. Mesmo que, cada vez que
Valentina decidia sair com ela, a convencia do contrário.
Comprei-lhe um carro decente e a convenci de que Penélope
é uma relíquia. Minha sorte foi a ajuda das amigas: Mia e Betina,
que, apesar de terem ficado com o pé atrás, no início, logo que a
Valentina veio morar comigo, depois de pouco dias, perceberam que
eu não faria mal a ela.
Encontrávamos atolados de trabalho, mas sempre que dava,
marcávamos um Happy Hour no bar em que Mia trabalhava.
— Está tão misterioso, namorado — brincou, Valentina, me
abraçando – dentro do elevador privativo.
— Vista algo confortável — avisei, pois Valentina, depois de
assumir a liderança do departamento de marketing, mudou sua
maneira de se vestir – mais sofisticada.
— Sim, chefe — brincou, batendo continência e indo à suíte.
§§§§
Assim que Valentina compreendeu que estávamos indo à
casa de seus pais, não soube se sorria ou chorava. Não fosse o fato
de eu estar dirigindo, coisa que eu vinha fazendo com mais
frequência, ela teria pulado no meu pescoço e me beijado.
Minha garota nunca mais voltou à sua cidade, depois do
último ocorrido. Porém, não deixou de amparar seus pais. Ligou
todas as semanas e enviou dinheiro todos os meses.
Os poucos meses que estamos juntos, foram suficientes para
eu conhecer bem Valentina. Em nenhum momento, ela contou aos
pais que estava comigo – e – eu sabia que era medo de não dar
certo. Como sempre tive certeza da minha escolha, sem que ela
soubesse, entrei em contato com eles e me apresentei, depois de
uns dois meses que estávamos juntos. Recebi um sermão enorme,
mas compreendi a preocupação deles.
Chegamos à cidade e vi seu corpo dar uma estremecida.
Peguei em sua mão e a trouxe para minha perna.
— Está tudo bem — garanti e ela negou.
— Você não os conhece, Lucca. Não são como sua mãe.
— Eu sei e conheço sim — afirmei e ela franziu o cenho. —
Faz meses que me apresentei, hoje, a apresentação será
pessoalmente — contei-lhe e ela assentiu – com uma expressão
meio assustada.
Parei o carro diante de uma casa desconhecida para ela e
desliguei o carro.
— Que lugar é esse, meus pais... — começou e parou, assim
que viu sua mãe abrindo a porta – com um sorriso estampado no
rosto. — Lucca... — suspirou —, ai meu Deus! Você fez isso? —
perguntou, com a mão no peito e os olhos cheios de lágrimas.
Assenti e alisei seu lindo rosto.
— Pra você o melhor, sempre — repeti a frase que faço
questão de lembrá-la, em todas as oportunidades.
Os pais da Valentina não são velhos, porém, o trabalho
pesado de fazenda fez com que suas aparências sejam
envelhecidas. Eu não podia saber que tinha como ajudá-los e não
fazer nada. Comprei-lhes uma casa na cidade e disse que não
precisavam mais trabalhar, que os manteria.
Descemos do carro e Valentina não me esperou. Foi ao
encontro de seus pais, com o rosto lavado de lágrimas.
Próximo a eles, enfiei as mãos nos bolsos da calça jeans e
esperei que se abraçassem e se reconciliassem. Os três pediam
perdão e choravam. Por mais que tenham julgado a filha, pela
criação que tiveram e o lugar onde sempre viveram, era
compreensível. A cobrança da igreja, também colaborou.
— Entre garoto, a casa é sua — convidou o pai dela e os
cumprimentei, antes de aceitar ao convite.
A casa não é uma mansão, mas também não é das mais
simples. Tudo novo, de muito bom gosto.
A mesa da cozinha estava posta com o café da tarde, cheia
de coisas deliciosas – caseiras. Nos acomodamos e, depois de ouvir
eles colocarem as conversas em dia, decidi colocar em prática o meu
principal objetivo de estar ali.
— Bom, senhor e senhora — comecei e fiquei em pé.
Valentina me olhou assustada, meneei a cabeça, mostrando que
estava tudo bem. Tirei do bolso a caixinha com o anel que tinha
comprado e, aí sim, achei que Valentina fosse desmaiar. — Como
prometi a vocês, vou consertar as coisas. Vim aqui, hoje, pedir a
permissão de vocês, para me casar com sua filha.
— Meu Deus! Não, Lucca, não precisa fazer isso — exclamou,
Valentina, e ficou em pé – tentando me impedir.
Peguei em seu queixo e a fiz me olhar dentro dos olhos.
— Você aceita se casar comigo? — Ela engoliu em seco.
— Sim — respondeu, com a voz embargada. Alcancei seu
dedo e encaixei o anel.
Os pais dela vieram até nós e nos abraçamos – como uma
família.

Fim
Continua...

A “Série Bem-Vindo ao Jogo” será composta por cinco livros, no


qual, cada um, contará a vida de um dos filhos da família Bennett.
Embora sejam livros independentes, estarão interligados pela
presença da investigadora Gabrielle que vai tendo sua história
exposta e completamente desvendada no último.
Nos próximos livros teremos pedaços da vida desse lindo
casal. Embora a história central será sobre a vida de outro Bennett.

Qual será o próximo irmão?

E Gabrielle, será que finalmente terá sua vingança completa?

O que você acha da atitude de Gabrielle, concorda, ou acha


que deveria seguir com a vida dela, deixando o passado no
passado?

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mim.

Até o próximo livro.

A vida é um jogo? Será que seu pensamento continuará o


mesmo ao final das histórias? Bem-vindo ao jogo!
[1] Cracolândia (por derivação de crack, crack+lândia = terra do crack)
Books By This Author
Loja da Autora
Paulista - nascida em Santo André - SP, apaixonada pela cidade de
São Paulo.

Incentivada pela mãe, assim que aprendeu a ler passou a viajar nas
histórias. Os livros tornaram-se seu vício.

Pedagoga, enquanto dedicou-se a ensinar, alimentou a esperança de


um dia poder fazer o que sempre sonhou - escrever.

Em agosto de 2016, conseguiu organizar sua vida e deu início ao


seu primeiro livro. A história fluiu livremente, soltando da gaiola o que
ficou preso por anos.

Divide seu tempo em ensinar, ler e escrever. Nas horas vagas


assiste a filmes e séries, além de namorar o esposo, que tanto ama.

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