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Copyright © 2020 CÁSSIA CARDUCCI;


EDITORA PONTO LITERÁRIO

EDITORA CHEFE: ELAINE CARDOSO


CAPA: I.N.S DESIGN EDITORIAL
DIAGRAMAÇÃO DIGITAL: ELAINE CARDOSO
REVISÃ0: REBECCA PESSOA

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência. Esta obra segue as
regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento e/ou a
reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios —
tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora.

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SUMÁRIO
Sinopse
Dedicatória
Prólogo
Parte Um
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Parte Dois
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26

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Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Bônus
Nota da autora:
Agradecimentos:

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SINOPSE
O rapaz bonito, rico e interessante. A menina simples e humilde da
cafeteria da cidade.
O cenário digno de contos de fadas foi suficiente para Nina se jogar de
braços abertos em um relacionamento com Lorenzo, mesmo com todos os
avisos ao seu redor de que a vida real era diferente. E bem, foi: seu amor
perfeito não teve o final feliz que esperava e, abandonada, decidiu que
deveria repaginar toda sua vida. Lorenzo, anos depois, percebe o erro que
cometeu, e decide que é hora de voltar para casa para retomar o que lhe
pertence, mas sequer imagina que não encontrará a garota que deixou.
Uma história que mistura amor, ódio, idas, vindas e um segredo capaz de
mudar o rumo do final feliz que todos almejam.
Até que ponto alguém merece uma segunda chance?

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PRÓLOGO

As lágrimas embaçam minha visão enquanto meus pés batem com força
no piso do aeroporto, fazendo um barulho que parece alto demais em meus
ouvidos, chamando a atenção de todos à minha volta. Corro com urgência,
como se o fato de chegar logo pudesse mudar a realidade. Não me preocupo
com os olhares que estou recebendo, e continuo esbarrando nas pessoas, sem
acreditar que isso está realmente acontecendo. Ouço alguns gritos de
repreensão e até umas palavras feias, mas sequer me atento a isso. A única
coisa que passa pela minha cabeça é que ele mentiu para mim. O desgraçado
mentiu para mim!
Lorenzo está indo embora.
Está indo embora do país sem me falar nada, sem fazer um único
comentário, e não é como se ele não tivesse tido tempo para isso. Ontem
mesmo, enquanto eu lhe entregava minha virgindade, sei muito bem que ele
poderia ter mencionado o mero detalhe de que seus dias no Brasil estavam
contados.
Meu Deus, isso só pode ser mentira.
Ele jamais faria isso comigo.
Quando finalmente chego ao embarque, o reconheço de longe. Os
ombros largos, os cabelos castanhos que eu tanto adoro acariciar, os braços
fortes que ontem me seguraram com tanta delicadeza. Ele está de costas, com
as malas ao lado. Além de seus pais, vejo que estão ali os pais de Phelipe e
também Maria Luíza, a amiga que ele disse que sempre foi apaixonada por
ele. Respiro fundo e percebo do que se trata: é uma despedida.
Uma grande despedida para a qual eu não fui convidada.
Conto até três e então suspiro, criando coragem para enfrentá-lo. Por
mais que eu queira nutrir uma esperança infantil de que tudo isso é um

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grande engano, eu já sinto minha alma morrer. É mais do que óbvio que toda
a visão que construí sobre Lorenzo em minha cabeça está prestes a ser
despedaçada, e eu sequer posso dizer que foi por falta de aviso.
— Lorenzo? — o chamo, com a voz vacilante. Quando ele se vira,
consigo ver a surpresa em seus olhos por me ver ali, quilômetros longe da
nossa cidade. Com certeza ele não esperava por isso, mas Mariah me salvou
mais uma vez, me alertando sobre o que estava acontecendo e me trazendo
até aqui, para ver com meus próprios olhos. No momento em que ele me vê
chorando, é possível ter um pequeno vislumbre do menino que esteve
comigo ontem, mas isso some de sua feição em um estalar de dedos, e como
se nunca tivesse me visto, ele apenas me encara com uma expressão vazia e
tediosa. Uma expressão que eu nunca vi sendo direcionada a mim.
Sem pensar muito bem no que estou fazendo, vou em sua direção, aflita.
Quero abraçá-lo, quero que ele me diga que isso é mentira, um grande
engano, porém, antes que eu consiga sequer tocá-lo, ele segura meus pulsos,
me afastando delicadamente. Pisco repetidas vezes, assimilando que ele me
afastou, como se sentisse nojo ou vergonha de mim, e procuro
desesperadamente em minha cabeça o motivo para que ele esteja fazendo
algo assim. Eu lhe fiz alguma coisa? Algo aconteceu?
Malu dá um sorriso de canto, debochado, e encosta-se a ele, encaixando
a cabeça em seu ombro, deixando claro que eu não sou bem-vinda ali, entre
a nata da sociedade. Olho para baixo e vejo várias malas coloridas ao seu
lado, com seu nome escrito em letras douradas, e então eu finalmente
entendo: ela também está indo.
Está indo com ele.
Um dia depois de nossa noite de amor. Um dia depois de ele dizer que
me amava pela primeira vez, ele está indo embora do país com outra pessoa,
e eu não mereci sequer uma explicação. Sequer um “adeus, otária”.
Todo mundo me avisou, eu só fui iludida demais pelo conto de fadas que
eu queria viver e me deixei levar. E nesse momento, parada com meu
uniforme de trabalho no meio do aeroporto, percebo enfim a verdade que é
inegável e sempre esteve bem rente ao meu nariz: eu fui apenas um joguinho
divertido e passageiro para o menino rico e entediado.
Em minha cabeça, mudo todas as perguntas agora que finalmente enxergo
com clareza. Apenas o encaro, secando as lágrimas com os pulsos, e
constato, com os dentes cerrados:
— Você disse que me amava, e agora está indo embora.

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Ele vacila um pouco quando vê a tristeza e a decepção em meu rosto, e
isso quase me dá esperanças dele estar arrependido do que está me fazendo.
Quase me dá esperanças dele ser quem eu imaginava que era, ou no mínimo,
um ser humano. Porém, ao virar para o lado e ver o olhar de sua mãe, ele dá
de ombros e assume uma frieza assustadora, quase programada, como se não
pudesse sentir.
— Eu não tenho culpa de você ter acreditado, Nina — é a única coisa
que ele diz, mas é o suficiente para quebrar meu coração em mil pedacinhos.
Um soluço escapa de minha garganta, contudo, me obrigo a engoli-lo, apenas
para não lhe dar mais esse gostinho.
— Você me dá nojo, Lorenzo. — As palavras saem atravessadas. —
Esqueça que eu existo.
— Nina... — Ele dá de ombros, quase como se aquilo fosse uma
justificativa — Você teve muito tempo para ver quem eu sou. Você se
enganou porque quis. Você queria essa fantasia tanto quanto eu, mas acabou,
e no momento em que eu entrar nesse avião, eu já terei esquecido — Ele se
engasga no final, como se algo estivesse preso em sua garganta — Só... Fica
bem, Nina.
Fica bem? Isso é inacreditável.
— Para você é Catarina, a partir de hoje.
— Que seja. Você sabe que isso não me fará mudar de ideia.
Quando seu voo é chamado, ele aponta a entrada e acena, depois vira as
costas para mim, sem mais nenhuma palavra. Sem nenhum adeus, sequer um
pedido de desculpas por me fazer de idiota, por ter me enganado friamente,
por ter feito eu me entregar para ele como nunca havia feito com ninguém.
Quando ele faz isso, percebo o que preciso fazer: ergo a cabeça e enxugo as
lágrimas com as pontas dos dedos. As primeiras lágrimas que eu derramei
por ele.
As últimas também.
E quando ele some do meu campo de visão sem olhar uma única vez
para trás, eu tenho certeza de duas coisas, como eu nunca tive certeza de
nada antes: a primeira é que eu nunca mais serei a mesma pessoa, e a
segunda – e mais importante – é que nesse momento eu sei, sem sombra de
dúvidas, que odiarei Lorenzo Leone para sempre.

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CAPÍTULO 01
Nina

Deus, ele é lindo.


Não. Lindo sequer começa a descrever Lorenzo Leone.
Alto, ombros largos, barba rala em um maxilar quadrado. Olhos verdes,
cabelo castanho-claro cortado da melhor forma que um cabelo pode ser
cortado. Roupas de marca, provavelmente muito mais caras que um mês do
meu salário, e o perfume? Bem, eu nunca senti nada igual na vida.
Deveria ser proibido alguém ser tão cheiroso.
Lorenzo é do tipo que arranca suspiros por onde passa. Ele quase nunca
sorri, mas quando o faz, é quase como um tiro certeiro em quem estiver
prestando atenção, porque é um sorriso despretensioso, preguiçoso, quase
uma constatação óbvia de que ele é o dono do mundo, porque é exatamente
assim que ele age: como se pudesse ter tudo. Um sorriso de quem acaba com
esperanças e derruba calcinhas na mesma velocidade.
De uma família rica e influente, ele sequer trabalha, mesmo já tendo
idade para isso. Passa seus dias entre frequentar o clube, jogar tênis, fazer
esgrima e ir às melhores festas, onde a nata da nata se junta. Ele faz parte da
elite, daqueles que não se misturam e nem olham para os lados.
Quase tão inalcançável quanto o céu.
E eu...
Eu sou a plebeia que trabalha na cafeteria onde ele toma café da manhã
todos os finais de semana após essas festas. Nada de interessante no
currículo que mereça qualquer destaque. Trabalho aqui no período da tarde
para ajudar nas contas de casa, e de manhã estudo em uma das escolas
públicas do estado. Sou filha única. Minha mãe é empregada doméstica na

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casa de um dos maiores advogados da cidade e meu pai trabalha como
segurança à noite, mas mesmo com toda a luta dos dois, as contas no final do
mês ainda pesam por causa dos remédios do meu pai, do financiamento do
terreno onde estamos, aos poucos, levantando nossa casa, e também de
alguns empréstimos que meu pai fez para garantir que tivéssemos pelo menos
um telhado em cima de nossas cabeças.
Desde muito pequena, eu nunca senti o gosto de ter uma vida fácil, nunca
pude ter o que todas as outras crianças da minha idade normalmente tinham,
e apesar de isso me machucar muitas vezes, eu nunca externei o que sentia
para não deixá-los tristes. Mesmo criança, eu tinha a noção de que eles me
davam tudo o que podiam, e que faziam o melhor com o que tinham em mãos.
O amor deles por mim bastava, e isso eu tinha de sobra. Nunca tive dinheiro,
mas sempre fui muito rica do que ele não pode comprar, e, para mim, é o
suficiente.
Então, como é fácil perceber, nada de clube ou festas na minha vida.
Não que eu esteja reclamando, longe disso. Apenas deixando claro o fato de
que eu sou de uma realidade completamente distante da dele. Somente fatos.
Lorenzo nunca me notou. Na verdade, só sei qual é seu nome e toda a
sua história porque sua família é quase como a realeza desse lugarzinho
perdido no mapa, além do fato de sempre ouvir as meninas com quem ele sai
o chamando. Cada semana é uma diferente, e elas sempre acham que serão as
escolhidas.
Cada uma acredita piamente que mudará Lorenzo e o fará se apaixonar.
E eu assisto menina após menina ir embora dessa cafeteria chorando ao
final de cada manhã, porque ele sempre as deixa no café, e como uma música
colocada no repeat ou um remake de um filme clichê, eu já sei o final.
É clássico: ele entra na cafeteria logo de manhãzinha acompanhado da
coitada da vez; daquela que terá seu coração destruído. Pede um café, um
suco e, algumas bolachinhas de canela depois, elas saem chorando pela
enorme porta de vidro enquanto ele continua observando o mundo do alto de
seu pedestal. Nenhum arrependimento no rosto, nenhuma reação de tristeza.
Apenas mais um dia comum na vida da monarquia.
Todas as vezes.
Depois de um tempo, virou até um jogo entre os funcionários: apostamos
diferentes coisas, como, por exemplo, se a sorteada da vez entenderá e sairá
chorando discretamente e com dignidade ou se fará um escândalo e tentará
pedir para não ser deixada. Acredite em mim, a cena toda pode ser bem

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humilhante, mas eu até consigo tirar uma graninha com isso de vez em
quando. Sei que é errado, mas nós nunca podemos deixar uma oportunidade
passar.
Voltando ao fato de não nos conhecermos, é meio lógico que eu não seja
notada por ele... Sou mais nova, moro em um bairro pobre muito longe da
burguesia e de seu castelo dourado, estudo em um colégio público e, até
pouco tempo atrás, era mirrada como uma rã desnutrida.
Uma tábua com avental.
Só que isso não me impede de suspirar e sonhar acordada toda vez que
ele entra por essa maldita porta. Ele é um sonho, e se eu não puder sequer
sonhar, o que será da minha vida?
Mas eu sou apenas a menina do café para ele. Inclusive, é assim que ele
me chama quando quer pedir algo: "Ei, menina" e lá vou eu anotar seu
pedido.
Às vezes eu ganho um bom dia quando as garotas com quem ele termina
não saem tão bravas; mas quando elas ferram com o humor dele, que pelo
visto já não é muito bom, eu sou como um ser invisível.
Um grande nada com um bloco de anotações.
Foi assim que me senti durante meses, até que hoje, algo mudou.
Depois de passar as férias de verão na casa da minha tia e voltar ao
trabalho, algo aconteceu.
Ele me notou.
Nesse mês fora, mudei o cabelo, acho que meus seios cresceram um
pouquinho, aprendi o poder da maquiagem com a minha prima
superdescolada e parei de usar roupas tão largas e folgadas. Nada que possa
ser considerado um milagre, mas considerando como eu me apresentava
antes, todo mundo se surpreendeu positivamente com a mudança.
Dirijo-me até sua mesa sem nenhuma pretensão, como sempre.
Normalmente eu o admiro de longe, mas quando estou perto dele, mantenho
meus olhos baixos, como se até olhar para ele fosse errado e fora de
alcance. A verdade é que Lorenzo Leone é o brinquedo caro na estante alta,
e eu sou a criança pobre e baixinha. A vida tem dessas, fazer o quê?
Sirvo seu café como de costume – creme, sem açúcar e forte – até que o
ouço falar comigo. Como isso é completamente fora da realidade, continuo
com minha cabeça baixa, crente de que estou tendo uma alucinação, até que
ele me pergunta pela segunda vez, com a voz mais alta e limpa, decidido a
me fazer olhar para ele:

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— Ei, você é nova por aqui?

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CAPÍTULO 02
Lorenzo

— Ei, você é nova por aqui? — pergunto uma segunda vez, sem entender
se ela não quer me responder ou se é surda mesmo.
Ela ergue os olhos para mim, visivelmente surpresa ao perceber que a
pergunta é para ela. Ainda confusa, pisca, entre nervosa e quase petrificada.
Ela tem olhos lindos, castanho-esverdeados, em um tom meio mel, e o
cabelo castanho-claro, quase loiro, cai de lado em seu ombro, em um rabo
de cavalo preso bem alto.
— Na verdade não... — Ela finalmente esboça uma reação, sorrindo um
pouco tímida, de um jeito magnífico, e volta a abaixar a cabeça, servindo
meu café sem falar mais nenhuma palavra.
Como assim não é nova aqui? Eu não posso estar ficando louco.
— Mas eu nunca te vi — Viro-me surpreso e seguro o bule em sua mão,
impedindo-a de continuar colocando mais café onde notoriamente não cabe.
Ela acabará me ensopando desse jeito.
Coitadinha, está nervosa. Acho que posso entendê-la.
— Bom, eu trabalho aqui há dois anos — Ela se vira com o bule e volta
em direção ao balcão, mostrando que essa será sua única resposta e me
deixando com cara de bobo.
Ah, não tão rápido, gatinha assustada.
Levanto-me e vou atrás dela, me apressando em alcançá-la e me
colocando na sua frente, impedindo a passagem. Situações desesperadas
pedem medidas desesperadas, e eu preciso saber o nome dela.

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— Então eu devo pedir desculpas, não? — Me aproximo, encostando
mais meu corpo no seu, em uma tentativa frustrada de lhe arrancar um
suspiro, o que não acontece. A única coisa que eu ganho é um levantar alto
de sua sobrancelha natural. Em seu cabelo não há um pingo de tintura, e de
perto como estou agora, consigo ver que não há um pingo de maquiagem em
seu rosto, e mesmo assim, não consigo enxergar falhas ali.
Ela é claramente diferente das garotas com quem eu saio.
Não sei se fico triste ou feliz por isso.
— Desculpas? — Ela balança a cabeça e tenta se desvencilhar de mim,
que continuo parado em sua frente como um dois de paus. Ela dá um passo
para o lado, mas eu a acompanho, então ela ergue os olhos, decidida a se
livrar de mim, mesmo que fosse com toda a educação do mundo — Imagina.
Desculpas pelo quê?
— Por nunca ter reparado em você — Coloco minhas mãos nos bolsos,
balançando o corpo para frente e para trás, tentando parecer tímido. Elas
sempre caem na combinação: envergonhado + carinha de gato de botas.
— Imagina. Que bobagem — Acena com a mão no ar, sinalizando que eu
deixe isso pra lá — Eu só estou aqui para servir o café.
— A Cinderela também só estava lá para limpar a casa da madrasta —
solto, sem realmente saber se a merda do conto de fadas é assim mesmo e
percebendo o quanto essa frase soou ridícula. Será que ao menos acertei a
droga da princesa?
Ela sorri, e não é qualquer sorriso. Esse me desmonta.
Um sorriso é bom. Um sorriso é algo, não?
Isso aí, Lorenzo! Acho que acertei a princesa.
Ela volta a caminhar em direção ao balcão e eu a sigo, tentando pensar
em algo legal para falar. Pelo amor de Deus, ela é só a menina do café. Deve
ser muito mais fácil de pegar do que as patricinhas com quem eu saio. Eu só
preciso descobrir qual é o caminho.
— Como você se chama, Cinderela? — Encosto-me no balcão,
insistente, e até eu me surpreendo com isso. Paciência para charminho é algo
que não veio em meu pacote.
Ela balança a cabeça, envergonhada, e com um olhar mais atento,
percebo que é uma reação natural ao elogio, não charme como eu pensava
até segundos atrás. É como se ela deixasse transparecer todas as suas
verdades apenas no olhar, e isso atiça minha curiosidade.
Interessante.

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— Catarina — finalmente diz, depois de pensar um pouco —, mas todos
me chamam de Nina.
Nina... Combina com ela: seu longo cabelo dourado cai pelos ombros
mesmo preso, o que me faz pensar em quão comprido ele é, seus olhos
castanho-esverdeados parecem duas pedras cristalinas e seu corpo é, na falta
de outra palavra, lindo. O uniforme da cafeteria estraga um pouco toda a
magia, confesso, mas nada que umas roupinhas novas não resolvam.
— Nome encantador, como a dona. — Mesmo sabendo como essa frase
saiu brega, lhe dou meu melhor sorriso de príncipe perfeito e me adianto,
estendendo a mão. Às vezes minha cara de pau vai longe, mas acho que ela
compensa o teatrinho todo: — Me chamo Lorenzo. Ao seu dispor.
Sua pequena mão macia toca a minha e eu sinto um calor inexplicável. É
um toque firme, porém delicado, diferente de tudo o que eu já experimentei.
É como se ela soubesse seu lugar no mundo, mesmo sendo só a menina do
café. Há uma confiança implícita em seus gestos, mesmo que ela baixe o
olhar toda vez que a encaro com mais firmeza, e então eu tenho um pequeno
vislumbre dessa situação: não tem nada a ver com nossas posições na
sociedade. Ela só está tímida comigo como qualquer outra menina ficaria
pelo carinha de quem está a fim. Eu só a notei hoje, mas ela trabalha aqui há
dois anos. Algo me diz que Catarina me notou bem antes.
E eu seria muito idiota se não aproveitasse essa oportunidade, não é?
— Bom, quanto ao seu nome... — Ela ri e cora — Eu já sabia. Na
verdade, é difícil alguém nessa cidade que não saiba, não é?
A Cinderela sabe onde está pisando.
E isso vai ser mais fácil do que pensei.
A garota pobre que é cantada pelo cara rico e bonito. Já está no papo.
Não vai demorar muito para conseguir o que eu quero, e eu nem vou precisar
me esforçar tanto. Olhando-a melhor, percebo que qualquer coisa irá
surpreendê-la.
Observo enquanto ela limpa o balcão freneticamente, numa tentativa tola
de desviar minha atenção. Quantos anos será que ela tem? Será que ainda é
menor de idade?
Não sei por que me preocupo com isso. É mais do que sabido que em
uma cidade pequena no Brasil, essa terra sem leis, qualquer coisa é
resolvida com dinheiro. E dinheiro para mim não é problema, é solução.
— O senhor precisa de mais alguma coisa? — Ela me tira dos meus
pensamentos perversos e me dá uma chance de descobrir sua idade.

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— Você acabou de me chamar de senhor? Foi isso mesmo, eu entendi
direito? — Rio, fingindo estar ofendido — Você nem deve ser tão mais nova
do que eu, Cinderela. Eu tenho vinte anos, e você?
— Quase dezoito, mas eu usei o senhor por questão de respeito. É assim
que tratamos os clientes aqui. Todos eles. E você é um cliente, então...
Ela sorri quando fala isso, de uma maneira muito gentil. A danada é
mesmo bonita. Muito bonita. Um diamante não lapidado.
— Por que você não senta na minha mesa comigo e me deixa te conhecer
mais um pouco, hein, Cinderela? — Decido continuar usando o apelido. Isso
a faz sorrir e eu gosto disso. Gosto quando ela sorri.
— Não sou autorizada a me sentar com nenhum cliente, desculpe — ela
é sucinta, mas não parece desapontada por isso. É nítido seu senso de
respeito pelo trabalho que tem.
E já que ela não pode ficar de conversinha comigo por aqui, decido
partir para o ataque de uma vez por todas, afinal, eu não tenho tempo para
perder. Os dias estão passando, e muito em breve eu deixo esse fim de
mundo sem olhar para trás.
— Bom, sendo assim, que horas você sai daqui? — pergunto e ela para
de esfregar o balcão, me encarando, sem palavras.
— As seis da tarde, por quê? — Ela me olha intrigada, como se não
acreditasse no que está acontecendo.
— Às seis da tarde estarei de volta, então, Cinderela. Você estará fora
de seu horário de trabalho e nós tomaremos um café, combinado?
Não dou tempo para que ela responda, mesmo sabendo que eu não
ganharia uma negativa, de jeito nenhum. Tiro uma nota de cinquenta reais do
bolso e jogo sobre o balcão como pagamento pelo meu café sem me
preocupar com troco. Depois, pisco em sua direção e saio rodando a chave
do carro importado nos dedos, sabendo que de hoje ela não me escapa.

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CAPÍTULO 03
Nina

Viro-me, ainda sem reação, para Mariah, a outra funcionária do café.


Ela me olha de boca aberta, em um sinal claro de que está entendendo menos
do que eu.
— Aconteceu o que eu acho que aconteceu? — me pergunta, estupefata.
— Eu o ouvi te chamando para sair ou tem alguém colocando droga nos
cafés que eu tomo escondida aqui?
Dou risada de sua espontaneidade. Mariah é mais velha que eu. Trabalha
no café pra sustentar o filho de nove anos, que teve quando ainda era
adolescente. O fato de ser mais velha não impede que tenhamos uma amizade
sincera e incrivelmente deliciosa. Ela me aconselha e fala para mim coisas
que eu deveria escutar dos meus pais. Eles são maravilhosos, mas
extremamente religiosos e um pouco retrógrados, e se dependesse deles, eu
ainda estaria acreditando que os bebês são trazidos por cegonhas ou que o
papai plantou uma sementinha na barriga da mamãe.
Eu realmente acreditei nisso por um tempo, aliás. Quando mamãe me
disse que eu era uma sementinha que papai havia plantado dentro dela,
passei alguns dias tentando entender como mamãe não morreu com uma
árvore dentro dela e alguns outros tentando achar indícios de raízes em mim.
Depois que eu cresci e aprendi como a plantação ocorre, tudo fez muito
mais sentido.
Mas voltando à Mariah. Quando ela me conheceu e percebeu que, apesar
do meu tamanho, eu era uma pateta em relação à vida, decidiu que cabia a
ela me ensinar que a vida não é cor-de-rosa como eu pensava; que as
pessoas têm maldade, que o mundo é um perigo e que ficar na defensiva é

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sempre a melhor escolha. A vida a fez acreditar em tudo isso e eu não posso
culpá-la. Minha amiga foi forjada na dor do abandono e da pobreza, e eu sei
que esse tipo de coisa é capaz de mudar alguém drasticamente e de fazê-la
desacreditar que coisas boas podem acontecer às vezes.
Eu a amo. Para mim, ela é a mais linda das mulheres: negra dos olhos
castanhos, um corpo de dar inveja a qualquer ricaça que frequenta esse lugar.
Seus longos cabelos enrolados chegam à cintura; cabelo esse que por vezes
está cheio de dreads, em outras está black power ou trançado e, nos raros
momentos em que ela está com mais preguiça, está amarrado em um coque
simples, que valoriza seu rosto bonito como nenhum outro penteado.
Apesar de todas as nossas diferenças, ela é uma figura em quem eu me
espelho.
— Mariah, eu realmente não sei o que deu nesse rapaz. — Olho para ela
sem entender, tentando disfarçar o sorriso no canto da boca. Por mais que eu
saiba que há algo estranho em um cara rico e desejado convidar a moça da
cafeteria para um encontro, a parte inocente que mora em mim, aquela que
acredita que príncipes e cavalos brancos existem, está feliz com isso. Fui
notada. Para ser notada por ele, eu devo ser bonita, não? Nunca vi Lorenzo
com nenhuma garota que fosse menos do que linda.
— Ele quer te comer — E assim Mariah manda – com um chute – para
longe o sonho de princesa que estava sorrateiramente se formando dentro da
minha cabeça inocente. — Ele quer te comer e acha que vai ser fácil porque
você é a menina da cafeteria, Nina. Acorda!
Mariah e sua sinceridade mortal.
O pior é que eu sei que ela está certa. Provavelmente é a única coisa que
ele quer de mim. Além de tudo, sou virgem. Não posso arriscar dormir com
alguém que provavelmente me dispensará no dia seguinte, como faz com
todas.
— Você acha que eu devo desmarcar? — pergunto, incerta, mesmo com
tudo dentro de mim torcendo para que ela diga que não. Torcendo para que
ela diga para eu aproveitar a única chance que eu provavelmente teria de me
aproximar do cara mais bonito que meus olhos já viram na vida.
Mariah puxa a bandeja da cafeteira, onde se guardam os grãos, e
continua a limpar, enquanto conversa comigo. Seus olhos ganham uma nota
de raiva, quase como se sua própria história estivesse se repetindo em minha
vida.

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— Desmarcar o que, minha filha? Ele nem te deu chance de aceitar ou
recusar. Ele não marcou nada com você, ele só te comunicou que vocês iam
fazer alguma coisa, e isso só prova o quanto ele está acostumado a ter o que
quer. Esse menino é perigoso, Nina. O que sobra em beleza falta em caráter,
e eu consigo ver isso de longe, acredite em mim. — Ela me olha com
piedade, porque sabe o quanto eu já suspirei por esse garoto. Sabe que está
praticamente tirando o doce de uma criança, e eu sequer posso argumentar
que ela está errada, pois sei que está fazendo isso para o meu bem. Ela quer
me poupar de coisas das quais ela, infelizmente, não foi poupada.
— Você tem razão — jogo o guardanapo no balcão e apoio meu rosto no
braço, em uma postura de desânimo. A cafeteria está vazia, e não ter o que
fazer me enlouquece, principalmente agora, que minha cabeça não para de
girar em um único assunto: Lorenzo Leone.
— Olha, se ele vier aqui hoje — ela enfatiza o "se", deixando claro que
ele pode muito bem desistir desse joguinho quando perceber que eu não
valho a pena. Ouvimos a sineta tocar enquanto um casal entra e se senta na
mesa seis, mas ela continua falando, como se nosso assunto fosse mais
importante —, você se senta e toma um café com ele, mas aqui, nas nossas
vistas. Saca qual é a dele, e, dependendo do que for, você já tira isso da sua
cabeça de uma vez por todas.
Ela está certa mais uma vez. Aliás, quando ela não está?
Eu quero ao menos sentar-me com ele, conversar dez minutos e, enfim,
me convencer de que ele é um riquinho babaca, como tantas vezes eu tive a
impressão. Se eu fizer isso e me certificar de suas más intenções, com
certeza não pensarei mais nele e seguirei em frente.
Só preciso ter certeza.
— Tudo bem, farei isso. Se ele vier, claro.
Ela sorri, mas não posso deixar de notar uma pitadinha de piedade em
seu sorriso.
— Boa menina. — Passa por trás de mim, me bate de brincadeira com o
guardanapo e aponta para uma mesa — Agora vá servir a mesa seis. Se eles
ficarem mais um pouco plantados ali, vão brotar.
[...]
Pontualmente às seis da tarde, ele está de braços cruzados na frente das
portas de vidro da cafeteria. Quase não posso acreditar no que vejo.
Desamarro meu avental tentando esconder o sorriso e passo a mão por minha
camiseta rosa, com o intuito de desamassá-la da melhor forma possível.

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Ajeito meu cabelo em um rabo de cavalo mesmo e vou em direção a ele,
totalmente sem graça, desviando o olhar das pessoas à nossa volta.
Permito-me admirá-lo mais atentamente, e vejo como os pequenos
detalhes o fazem imponente: a calça jeans de lavagem escura e a blusa de
manga longa de linho, o – provavelmente caríssimo – relógio prata em seu
pulso, sua estatura... Tudo nele exala grandeza, e, de perto, é ainda mais
assustador e excitante.
E ele está aqui por mim.
— Cinderela — Ele me dá um sorriso torto e faz uma reverência, como
se estivesse na frente de uma princesa, o que me faz rir. — Eu disse que
viria e aqui estou.
Torço as mãos em nervosismo.
— Lorenzo, eu não quero ser mal-educada, mas eu ainda não entendi o
que você quer comigo, porque não faz sentido — praticamente sussurro em
sua direção e ele ri alto, totalmente convencido.
— Te conhecer, ué. É isso que eu quero: te conhecer. Agora faz sentido
para você? — Quando ele sorri, duas covinhas se formam em seu rosto e eu
tenho a impressão de que estou no paraíso.
Ser tão bonito assim deveria ser errado.
— Lorenzo... — suspiro, revirando os olhos e quase me batendo por
estar prestes a falar o que vou falar: — Não sei, sinceramente, o que
podemos ter em comum. Como você pode ver, não sou como as meninas com
quem você sai, não tenho a mesma elegância, a mesma beleza, o mesmo
estudo e muito menos o mesmo nível social.
Sim, eu me coloquei abaixo do fundo do poço para o cara mais gato da
cidade. Tragam-me um Oscar!
— Cinderela, vamos lá. Você acabou de falar uma bobagem sem
tamanho. Nas outras coisas eu posso até concordar, mas beleza? Em beleza
você ganha delas disparado — ele diz, e não sei se é pelo sorriso de canto
ou pelos olhos sedutores, que eu não consigo perceber que isso sequer
passou perto de um elogio.
— O... Obrigada — sussurro, chocada. Não sei mais o que dizer.
— Não por isso, minha Cinderela. — Ele sorri, mostrando seus dentes
brancos e perfeitos — Vamos tomar um café aqui ou prefere uma sorveteria?
O que você decidir, está decidido.
Olho para trás, e meus olhos encontram os de Mariah. Lembro-me de seu
conselho, e por mais que eu não aguente ver mais um mísero copo de café no

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fim de cada dia, decido seguir sua orientação.
— Vamos ficar por aqui mesmo, pode ser? — pergunto, ansiosa, e ele
sorri concordando, deixando claro que está disposto a fazer o que eu quiser.
— Ótimo, tem uma mesa ali no fundo — Ele indica uma mesa com a
mão, e eu o sigo nervosa, como se não conhecesse cada mínimo pedaço
desse lugar, enquanto meu coração martela meu peito em um ritmo frenético.

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CAPÍTULO 04
Lorenzo

Observo sua delicada mão tremer enquanto ela segura o copo de suco
que pedi para ela. Por mais maldoso que isso possa parecer, eu não consigo
evitar rir por dentro, porque chega a ser engraçadinha a sua reação, quase
fofa.
Pergunto-me se é esse o efeito que eu causo nas pessoas ou se ela está
apenas fingindo uma docilidade que julga capaz de me prender.
Se for a segunda opção, só tenho uma coisa a dizer: doce inocência.
Sou imune a isso. Imune a toda essa merda relacionada a amor, e
sinceramente, mesmo que ela seja linda, legal, divertida ou qualquer outra
coisa que eu descobrir nos próximos minutos de conversa, ela ainda será a
presa. A minha presa. E ela ainda acabará no banco de trás do meu carro de
luxo essa noite, no máximo no dia seguinte, se ela for muito difícil.
Ainda acho que ela deveria agradecer: ser comida em uma BMW não é
pra qualquer garota, ainda mais no caso dela, que provavelmente só terá essa
chance de chegar perto de uma na vida.
Forço-me a não pensar mais nessas coisas até o momento certo. Uma
coisa de cada vez, Lorenzo. Você é um Leone, e os Leone não se desesperam
nem no jogo, nem nos negócios e muito menos no amor.
Não que isso tenha qualquer chance de ser amor um dia.
— Mas me diz — Me estico mais para frente, tentando encontrar seus
olhos com os meus. Lá estavam eles: grandes, brilhantes e assustados. —
Você trabalha aqui há muito tempo?
— Dois anos, como eu te disse. Eu te vejo aqui há dois anos, Lorenzo.
— Ela ri e balança a cabeça, de um modo que eu acho bonitinho. — Não que

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eu seja memorável, mas caramba... São dois anos! Sou eu que te atendo na
maioria das vezes.
Sua espontaneidade em falar aquilo me faz rir. Ela não parece brava do
tipo "você não me nota"; na verdade, ela está achando graça da situação
toda.
Eu sou a piada sem memória.
Não há a mínima chance de eu me lembrar dela, por mais que eu tente.
Tudo bem que na maioria das vezes eu mal olho para o lado, sempre
entediado com essa cidade e essas pessoas comuns. O que me fez olhar para
cima e notá-la foi a minha total e completa falta de companhia.
Provavelmente eu iria reclamar de algo, mas quando vi seu rosto, resolvi
perguntar se ela era nova aqui.
Seus olhos castanhos são amendoados, e sua beleza é única. Não é
aquela coisa óbvia, mas dessas, honestamente, estou cansado. A beleza dela
é um conjunto do físico com algo que brilha em sua íris. Algo que eu não
entendo, mas que me atrai como um imã. Seu nariz pequeno e afilado
combina perfeitamente com seu rosto de linhas suaves. Há nela uma
inocência que me faz, por alguns segundos, duvidar que o plano da BMW
dará certo.
— Me desculpa, sério — Olho divertido para ela —, é que normalmente
eu entro aqui sempre tão ocupado...
— Eu sei — ela me interrompe rindo. — Muitos namoros para terminar.
Merda! Claro que ela sabe o que eu faço; como eu sou burro.
— Não que eu tenha algo a ver com isso, de qualquer forma — ela diz
rápido, tentando consertar, ciente de que talvez tenha ido longe demais. —
Por favor, não entenda mal, a vida é sua.
— Tudo bem, tudo bem — tento acalmá-la sacudindo as mãos. — Eu sei
que faço isso, mas não é tão canalha quanto parece ser, de verdade. Elas só
não correspondem às expectativas, e eu não sou de enrolar ninguém. Se não
dá, não dá.
Ela me olha como se não acreditasse em uma palavra do que eu digo, e
eu fico em dúvida se é isso mesmo. De repente, fica muito claro que esse
nosso joguinho virou e eu não sei como lidar, porque nunca estive na posição
que estou agora.
— Como eu disse, não que eu tenha algo a ver com isso — Ela revira os
olhos, em sinal de insignificância, deixando muito claro que, mesmo que eu

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seja quem sou, ela tem sua personalidade, e não está disposta a abrir mão
dela para me agradar.
É, isso é novo.
Nunca fui tratado assim. Quer dizer, eu nunca precisei me esforçar mais
do que quinze minutos para ter qualquer menina que eu quisesse, e aqui estou
eu, algumas horas e um suco de laranja depois, descobrindo quão delicioso é
o joguinho de sedução.
Sua atitude só me deixa mais determinado.
— Que tipo de música você gosta? — Decido mudar o assunto, para não
piorar a situação.
— Hummm, rock clássico, pop rock, MPB... — Ela apoia o rosto em
uma das mãos, enquanto mexe o canudinho dentro do suco
despreocupadamente.
Estranhamente, eu acho isso lindo.
— Eu curto as eletrônicas. Alok, Tiesto, Afrojack... — falo abertamente
sobre meus gostos musicais, animado em falar sobre mim para ela, mesmo
sem saber por quê. — Adoro raves, você gosta?
— Nunca fui a uma — Ela sorri, um pouco desconcertada. — Na
verdade, nunca fiz muitas coisas.
— Por quê?
Ela ri, como se a resposta fosse óbvia.
— Falta de dinheiro, porque sou pobre, e falta de tempo, porque preciso
trabalhar para ter dinheiro porque sou pobre — ela responde ironicamente, e
eu entendo. Ela está deixando muito claro que, diferente da minha, a vida
dela não é só festa.
— Desculpa, eu não quis ser indelicado — digo, meio fora do ar. Eu
realmente não quis ser grosseiro, e sua resposta, surpreendentemente,
incomodou algo dentro de mim.
Ela sorri, dessa vez sem o ar de zombaria na expressão.
— Você não foi, não se preocupe.
Respondo com um sorriso, tentando me livrar desse sentimento
esquisito, e me preparando para o primeiro bote.
— Sabe, eu gostei de você — Deslizo minha mão pela mesa e roço meus
dedos nos seus, até que consigo entrelaçar nossas mãos — Você é diferente.
— Diferente nem sempre é bom — ela me diz, enquanto olha nossos
dedos entrelaçados. Não fez menção de soltar, mas apesar de eu saber que
ela quer isso, vejo que ela também está insegura sobre.

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— No seu caso, é ótimo — Aperto meus dedos nos seus mais uma vez, e
me sinto como se tivesse treze anos novamente, e aquele fosse meu primeiro
flerte. Sensação gostosa e estranha de sentir. Eu sei o que quero e espero
dela, mas não há problema em aproveitar mais da sua companhia já que ela
parece legal, não é?
Ficamos assim por um tempo, de mãos dadas, sem dizer nada, até que
ela coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha, e fala, um pouco sem graça:
— Lorenzo, foi ótimo conversar com você, mas preciso ir para a casa.
Já está tarde e eu moro longe. Não quero preocupar meus pais.
Olha aí a minha deixa.
— Entendo, linda. Eu te levo, vamos lá. — Levanto-me da mesa,
recolhendo a chave e a carteira.
— Imagina, obrigada. Mas não precisa não. Eu vou de ônibus mesmo. —
Ela sorri e sei que não é charminho. É medo mesmo.
— Faço questão — Me movo, mas ela continua parada no mesmo lugar,
travada.
— Não, de verdade. Prefiro ir de ônibus. Me desculpa a indelicadeza
Lorenzo... Eu juro que não quero parecer mal-educada, e você está sendo
muito gentil, mas eu não te conheço, entende?
Por mais que eu quisesse me dar um chute por isso, eu respondo, enfim:
— Claro que entendo. Vou te acompanhar até lá fora, então.
Encosto minha mão levemente sobre sua cintura e a conduzo para fora da
cafeteria, em um gesto de delicadeza que quase nunca me vi fazer.
O vento bate em nós ao sairmos, e seus cabelos loiros esvoaçam em seu
rosto, formando uma grande confusão de mechas claras. Coloco uma para
trás de sua orelha, numa tentativa vã de que ficassem menos bagunçadas, e
nossos olhares se encontram por alguns breves segundos.
Seu olhar doce quase faz com que me sinta culpado, porque eu sei que
ela pensa que eu sou um príncipe em um cavalo branco, e eu não passo nem
perto disso.
— Olha, vou te chamar um táxi — digo para ela, de repente. Eu havia
feito a menina ficar até tarde no café, e já que não vou conseguir levá-la
mesmo, pelo menos que ela chegasse em casa logo. — Está muito frio, e eu
te atrasei, então, nada mais justo.
— De verdade, não precisa! — Ela ri com a minha insistência, e me
parece tão pura ao fazer isso. — Já saí daqui muito mais tarde do que isso,

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eu estou acostumada. E eu tenho uma blusa aqui! — Ela ergue uma sacolinha
e, por um momento, reparo que ela não tem uma bolsa.
— Não tem conversa. — Pisco pra ela e saco o celular, discando o
número do taxista conhecido da família, que me busca nas piores noites de
bebedeira, quando eu não consigo dirigir de volta para casa.
Minutos depois, pouco antes de colocá-la dentro do taxi, ganho um
abraço apertado e um beijo no rosto, me provando que, talvez, minha teoria
esteja errada: talvez nem todas as mulheres do mundo sejam iguais.
Mas hoje é apenas hoje, e isso não me impedirá de continuar
tentando.

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CAPÍTULO 05
Nina

Chego em casa mais tarde do que o habitual, e minha cachorra Lilica já


me espera no portão, como sempre, abanando seu rabinho de vira lata e
fazendo festa com meu retorno. Afago sua cabecinha amarela e sorrio com
sua felicidade genuína pela minha presença. Realmente, os cães são os
melhores amigos do homem, e minha Lilica é a prova disso.
Entro despreocupadamente e vejo minha mãe encostada na pia,
cantarolando "Águas de Março" enquanto lava a louça. Beijo suavemente seu
rosto e ela se vira para mim, finalmente se dando conta da minha presença,
mesmo depois da porta de alumínio da sala ter feito um enorme barulho ao
ser aberta. Ela é sempre tão distraída, mas não posso falar nada porque essa
característica passou para mim. Eu sou mais parecida com ela do que posso
explicar.
— Cadê o papai? — pergunto, tirando a franja dos olhos e abrindo a
geladeira em busca de algo para beber, mas lá dentro só há água, como quase
sempre. Final do mês a barra pesa aqui em casa.
Ela dá de ombros, visivelmente chateada.
— Trabalhando. Ele conseguiu um bico de segurança noturno naquela
empresa nova perto do cemitério, sabe? Acho que é uma fábrica de
bolachas.
Meu pai sempre trabalha mais do que pode, coitado. Somos somente nós
três em casa, mas o orçamento vive mais do que apertado na maioria das
vezes, porque não são apenas as contas habituais. Tem a parcela do terreno
onde construímos nosso modesto sobradinho, o material de construção que
meu pai compra todo mês um pouquinho para ir melhorando nossa casa, a

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parcela do empréstimo que eles fizeram para dar o ponta pé inicial na
construção até podermos sair do aluguel, além de todos os remédios que meu
pai toma para sua diabetes e também sua pressão.
Então, todos nos esforçamos muito para melhorar as coisas por aqui.
— Aquela dor que ele estava sentindo ontem, melhorou? — pergunto, e
minha mãe dá de ombros. Nós sabemos como meu pai pode ser teimoso
quando quer. E ele sempre quer.
— Ele disse que sim, mas não sei não. Ele saiu daqui meio estranho —
responde e eu respiro fundo, preocupada. Ele tem trabalhado demais para
dar conta de tudo, e isso o está esgotando.
Decido mudar de assunto para não deixar minha mãe ainda mais
preocupada.
— Você chegou agora, mamis? — Deixo o copo na pia e pego um pano
de prato, para ir enxugando o que ela vai lavando.
— Cheguei faz pouco tempo. Estou tão cansada, que vou terminar isso e
cair na cama. — Ela sorri, mas o sorriso não chega aos seus olhos, então eu
sei que ela só está tentando disfarçar sua tristeza. — Queria que seu pai
tivesse alguns momentos de descanso também.
— Eu sei mãe — Beijo seu ombro e fecho os olhos, inspirando seu
cheiro. Um aroma tão familiar, um misto do seu perfume com produtos de
limpeza, já que é com isso que ela trabalha.
Minha mãe chama-se Branca, e trabalha de empregada doméstica em
uma casa no mesmo bairro nobre em que Lorenzo mora. No alto de seus
quarenta e três anos, ela continua incrivelmente bonita, mesmo com as
marcas que o trabalho pesado deixou nela. Minha falecida avó dizia que lhe
dera esse nome justamente por sua feição branca e seus olhos verdes. Seu
cabelo loiro, longo, idêntico ao meu, está hoje em uma trança, e seus olhos
parecem mais cansados do que o normal. É uma beleza simples e singular, e
mesmo que hoje em dia ela não se arrume tanto quanto antes e não se ache
mais bonita, para mim, ela sempre será a criatura mais linda da face da terra,
simplesmente porque minha mãe é puro amor.
— Estive pensando em pegar algum serviço extra também, mãe —
começo a dizer e já sei que ela negará de pronto. Um serviço a mais
significa estudar à noite, e ela não quer isso. Sabe que, por ser meu último
ano, eu preciso estar bem preparada para o vestibular, e estudar a noite não
me dará isso. Na minha escola, há de tudo no turno da noite, menos aulas.

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Drogas, bebida e até prostituição se vê nos portões, menos pessoas
interessadas em estudar.
— Você sabe o que eu penso disso — ela diz, balançando a cabeça. —
Por enquanto, nós conseguimos nos virar. Na verdade, nem na cafeteria você
deveria estar trabalhando. Lugar de adolescente é dentro de casa, estudando,
se preparando para ter um futuro.
Ignoro sua última frase porque sei que ela se culpa pelo meu trabalho na
cafeteria. Mas essa foi uma decisão minha, e eu me viro em dez, se precisar,
para não me prejudicar em nada. Se eu conseguir ajudar meus pais, está
ótimo para mim.
— Não, mãe, estive pensando em fazer alguns bombons para vender na
escola, na parte da manhã. O seu Jaime disse que compra os ingredientes
para mim com o CNPJ da cafeteria, porque sai bem mais em conta, e ele vai
descontando do meu salário. — Para muitos adolescentes, isso poderia ser
motivo de vergonha, mas para mim é motivo de orgulho poder ajudá-los,
simplesmente porque eles merecem.
Ela pensa por uns segundos, até que finalmente sorri.
— Se é seu desejo ajudar, meu benzinho — ela beija minha testa. — Já
disse o quanto nós somos abençoados por ter você como filha? Deus nos
mandou só uma, mas essa vale por todas. — Olho para ela e vejo seus olhos
marejados. Sempre que ela fala sobre mim, se emociona. Antes de me dar à
luz, minha mãe engravidou várias vezes, mas ela sempre perdia o bebê. A
única criança que nasceu com vida, morreu dias depois, por conta de um
problema cardíaco que, segundo os médicos, era hereditário. Mas,
contrariando os médicos e tudo o que eles falavam, ela continuou tentando,
até que eu nasci perfeita. Ela sempre me chamou de “meu milagre”.
Sempre tão exagerada.
— Não faço mais do que a minha obrigação, mãe — Jogo o pano de
prato na mesa, após finalmente enxugar o último copo, e pego as minhas
coisas para ir para o quarto. Nossa casa é um sobrado pequeno, com a sala,
a cozinha e um banheiro em baixo e dois quartos em cima, tudo ainda sem
acabamento e por terminar. O terreno era pequeno e meu pai quis aproveitar
todos os cantos que podia, e mesmo com todos os detalhes por fazer, somos
felizes aqui, porque é nosso e foi construído com muito esforço. É algo que
ninguém pode tomar de nós.
Começo a subir as escadas de cimento com Lilica logo atrás, quando
mamãe finalmente se dá conta do horário que cheguei.

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— Aliás, por que você chegou tarde? — Me olha interrogativa —
Perdeu o ônibus ou veio andando de novo para economizar a passagem?
Sorrio, sem conseguir esconder minha felicidade.
— Nem um, nem outro. Conheci alguém e ele me chamou para um café,
mamis. — Percebo seu olhar de preocupação e a acalmo rápido. — Ele
frequenta a cafeteria, então só tomamos um café ali, bem debaixo dos olhos
de águia da Mariah, não se preocupe.
— E o que você sabe sobre ele? — ela pergunta. Sua superproteção, às
vezes, chega a ser sufocante.
— O suficiente para ter certeza de que não é um serial killer, muito
menos um cara casado, mãe. — Reviro os olhos, achando graça de seu
interrogatório, mas já impaciente. Quero subir logo para o meu quarto. —
Ele é só três anos mais velho que eu, e é conhecido do pessoal da cafeteria.
Fica tranquila!
— Tudo bem, depois você me conta melhor. — Ela percebe minha
inquietação e decide me liberar do interrogatório. — Mas você vai me
contar, hein? Agora vai dormir, porque você tem aula amanhã cedinho.
— Foi só um café! — Coloco as duas mãos no quadril, deixando claro
que não tinha mais o que contar.
— Mas eu quero saber mesmo assim, ué — Ela ri e eu desisto de
demovê-la.
— Boa noite, mãe — Lhe sopro um beijo e volto a encarar as escadas.
Elas são meu exercício diário, junto com as longas caminhadas que eu faço
para a escola e para o trabalho. Eu só posso me dar ao luxo de pagar uma
passagem de ônibus na volta, quando já está de noite e é perigoso demais
para andar sozinha por aí.
Deito na cama e fecho os olhos, numa busca frenética pelo rosto de
Lorenzo. Ele sempre habitara meus pensamentos, mas nunca tão intensamente
como hoje. Sua voz parecia mais doce, seus olhos brilharam em minha
direção e toda a sua atenção foi somente para mim.
Senti como se meus pés tocassem as nuvens quando ele colocou sua mão
sobre minha cintura e me levou até o táxi, sendo tão cavalheiro.
Ele é um príncipe.
E me chamara de Cinderela o tempo todo.
Como eu gostaria de ser sua princesa.
Senti-me meio infantil de repente, mas sonhar é tão bom, e não me custa
um real sequer, então me permito fechar os olhos por um momento e fingir

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que sou finalmente dele. Que sou sua namorada e que vivemos um lindo
romance, como aqueles de cinema. O cara rico que se apaixona pela menina
pobre e enfrenta o mundo para ficar com ela.
Suspiro. Sonhos podem ser reais, às vezes.
Ser pobre nunca foi uma vergonha para mim, mas, pela primeira vez na
vida, penso que, se não fosse minha condição, ter Lorenzo seria algo tão
simples.
Sou bonita, inteligente e, na maioria das vezes, engraçada.
Mas eu não tenho nada a ver com as dondocas com quem o vejo se
relacionar ou sair abraçado nas colunas sociais. Ele sempre está nas
matérias sobre hipismo, esgrima, jantares sociais ou clubes que a sociedade
mineira frequenta.
Quase uma celebridade local.
Sempre bem vestido, radiante em seus ternos caros, em seu cabelo bem
penteado e seus dentes perfeitamente brancos. E, claro, sempre com uma
patricinha pendurada a tiracolo. Eu olhava aquelas notícias e sabia, com
toda a certeza do mundo, que eu nunca seria como elas.
Mas talvez seja isso o que ele busca. Alguém diferente. Ele fora tão
gentil, querendo saber sobre mim, meus gostos, minha vida. Se oferecendo
para me trazer e, até mesmo depois da recusa, me pagando um táxi, que eu
sei que ficou os olhos da cara. Ele sabe tão bem quanto eu que não tenho
nada a ver com o mundo dourado dele, e isso não pareceu ser um problema
durante a conversa que tivemos hoje.
Talvez seja isso que tenha feito ele finalmente olhar para mim.
Talvez.

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CAPÍTULO 06
Lorenzo

Acordo do meu sono agitado extremamente irritado. Olho para o lado,


tateando meu criado mudo até achar meu celular. O visor desfocado no
Iphone me faz piscar algumas vezes até finalmente conseguir ver o horário
no celular: oito e quinze da manhã.
Ah, tá de sacanagem.
— Merda! — xingo baixinho, enquanto me viro e abraço o travesseiro,
afundando o rosto nele e bufando. Por que diabos estou acordado tão cedo
em uma terça-feira?
Não tenho qualquer compromisso na vida além das festas que eu vou aos
finais de semana ou as aulas de hipismo, esgrima e alemão que eu faço
durante a semana. O combinado com meus pais é que eu irei trabalhar
somente depois de concluir minha faculdade, mas eu só decidi o que queria
realmente fazer no final do ano, de modo que isso demorará a acontecer. O
curso que eu escolhi é uma graduação fora do país e aos poucos eu me
preparo para as mudanças que ocorrerão em minha vida.
Novo país para viver. Novas pessoas, novos lugares.
Nova e fresca vida.
Estou tão animado.
Decido, enfim, levantar da cama. Já perdi o sono mesmo, então o melhor
a fazer é aproveitar o dia de alguma forma. Penso nas possibilidades: posso
ir até o clube dar um mergulho – mesmo tendo piscina em casa, é muito mais
interessante com companhia. Posso também chamar Phelipe para uma partida
de tênis, mas lembro-me que, desde novo, ele já se mata no escritório da

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família, trabalhando como estagiário para adquirir experiência enquanto não
termina a faculdade.
Que piada.
O cara é tão rico quanto eu. Não entendo por que certas pessoas
preferem sofrer sem razão, sinceramente. Mesmo que a gente nunca trabalhe
na vida e gaste rios de dinheiro, nossa fortuna não acaba antes dessa geração
mudar, então por que isso?
Dirijo-me até o guarda-roupa vestindo apenas minha boxer branca, e,
antes de abri-lo, me analiso no espelho. Sei que muitos consideram o
narcisismo um defeito incorrigível, mas eu não tenho motivos para me
envergonhar por me amar. Na verdade, eu simplesmente me adoro. Adoro
ser Lorenzo Leone. Sou um cara de sorte. Nasci rico e bonito, o que faz
minha vida ser fácil em tantos níveis que sequer posso começar a descrever.
Visto uma calça jeans clara e uma camiseta, calço meus tênis e tento
descer as escadas de mármore em silêncio. A casa toda deve estar
dormindo, então tento ser o mais cuidadoso possível. Não quero ouvir um
dos muitos sermões da minha mãe sobre o seu sono de beleza e do porquê
não posso atrapalhá-la nesse momento. Mal dou dois passos, e Kola, o Lulu
da Pomerânia da minha mãe, aparece no pé da escada com seus latidos
estridentes, me fazendo querer esganá-lo. Misericórdia, que bichinho do
mal!
— Kola, shiu! — Coloco o dedo na boca, como se, por um segundo, ele
fosse me entender. — Kola, quieto! Pelo amor de Deus, cachorro dos
infernos!
De nada adianta. Com certeza toda essa barulheira acordou a casa
inteira. Dou um suspiro mal-humorado e derrotado, e ouço os passinhos pelo
piso fino da casa. Não preciso me virar para saber quem está logo atrás de
mim. O barulhinho dos seus saltos pela casa é tão inconfundível quando
insuportável.
Ensaio meu melhor sorriso falso e me viro, dando de cara com minha
mãe.
— Lorenzo, você está irritando o Kola de novo? — Vejo dona Liana
parada no começo da escada, com os braços cruzados em reprimenda e cara
de poucos amigos. Ela se agacha e abre os braços, chamando Kola, que vai
contente até ela, como se não fosse o pequeno capetinha que é. — Ele está te
importunando, bebê? — Ela aperta o nariz do cachorro e eu reviro os olhos.
Seu salto com plumas que combina com o penhoar rosa e seu cabelo loiro

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platinado que parece ter acabado de ser feito, me fazem desconfiar que ela
acorda muito mais cedo do que realmente diz, somente para ter essa
aparência sempre impecável.
— Eu nunca irrito esse diabo da tasmânia, mãe. Ele que é um serzinho
insuportável. — Paro onde estou e espero que ela me alcance.
— É Lulu da Pomerânia, eu já disse mil vezes — Ela me beija no rosto,
com seu sorriso doce, mas plastificado. — Bom dia, meu amor. O que faz
acordado tão cedo?
Acordou de bom humor? Uau, isso é novo. Talvez papai não tenha saído
com a amante ontem e chegou cedo em casa. Isso normalmente a deixa feliz
no dia seguinte. Ela finge, eu finjo e, principalmente, papai finge, mas todos
nós sabemos o que acontece: ele sai com a secretária quinze anos mais nova,
mas ninguém é louco de questionar qualquer coisa.
A verdade é que nosso castelo de ouro não é tão reluzente assim, visto
de perto.
— Perdi o sono, mãe. — Beijo seu rosto de volta. Ela é linda, e eu,
sinceramente, não sei o que meu pai busca fora. Coisa de homem, suponho.
— Você vai tomar café comigo, então? — Seus olhos brilham em
expectativa, e eu odeio desapontá-la, mas já tenho outros planos. Finalmente
decidi o que farei na parte da manhã, e isso envolve uma certa gata
borralheira que eu chamo de Cinderela.
— Desculpa, mãe — digo com a voz pesarosa, pois sei que ela se sente
extremamente sozinha, e isso só vai piorar quando eu for embora. — Vou
tomar café na cafeteria do centro. Eu já havia combinado com uns amigos —
minto com a maior cara lavada, e ela faz um biquinho triste.
— Ah, tudo bem então. — Ela sorri, mas há uma tristeza inexplicável em
seu olhar. Não é algo que eu entenda, porque não somos nada próximos, mas
é algo que me incomoda, e muito — Eu já estou acostumada.
— Sem drama, Dona Liana Albuquerque Leone — digo rindo, tentando
fazê-la ficar mais feliz. Ela é excêntrica e totalmente perua, mas é minha
mãe. Ao nosso modo, nos amamos muito. De um jeito meio torto, às vezes,
eu confesso. Mas é o jeito que sabemos amar. — Eu almoço com você,
minha rainha.
Ela concorda feliz, me assoprando um beijo na sequência, e Kola
começa a latir de novo.
Maldito cão que me detesta.
[...]

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Entro na cafeteria fazendo aquele sininho irritante tocar. Olho para cima,
incomodado, mas volto meu foco ao alvo rapidamente. Ela está atrás do
balcão, limpando a máquina de café. O esforço que ela faz com o pano e o
movimento de vai e vem, me dão uma bela visão de sua bunda, e eu me
inclino levemente para apreciar melhor a paisagem. Seu corpo é lindo, eu
devo admitir. Dentro de duas semanas ela fará dezoito anos e eu irei embora
do país, então preciso armar rápido algo que me coloque na dela.
Quero ir para a Alemanha com seu gosto na boca, e eu vou conseguir
isso de qualquer jeito, nem que eu tenha que jogar ainda mais sujo do que de
costume para conseguir.
Nem que eu tenha que fingir que sou a porra do príncipe que a
Cinderela tanto esperou.
— Bom dia, minha Cinderela. — Me encosto ao balcão e vejo a outra
funcionária me lançar um olhar de escrutínio, o que me faz entender que
preciso tomar cuidado para que ela não frustre meus planos. Ela é mais
velha, muito mais experiente, e provavelmente alertará Nina sobre o que eu
quero. Seu olhar carregado de avisos não deixa muito para a dúvida. Mas eu
não me importo. Tenho a faca e o queijo na mão e não deixarei Nina pensar
muito a respeito. Quando ela se der conta, já estará na minha cama.
— Lorenzo — Ela arregala os olhos e limpa as mãos no avental,
totalmente envergonhada. — Bom dia! O que faz aqui tão cedo?
— Não aguentei e vim te ver. — Pisco o olho e ela sorri, tímida. Uma
coisa eu não posso negar: a danada é linda de morrer.
— Deu sorte, então. Eu estudo pela manhã, mas hoje não tivemos aula.
Greve dos professores, de novo — ela diz, e eu não sei bem do que ela está
falando. Na escola particular em que estudei, os professores nunca fizeram
greve.
— Que sorte a minha então, Cinderela — Debruço no balcão, encarando
seus profundos olhos castanhos que brilham com a aproximação. — Quero te
fazer um convite.
— Um convite... Outro café? — Ela ri e volta a limpar, sem deixar que
minha presença impeça suas obrigações. Mesmo que esteja totalmente na
minha, ela não para um segundo, nem deixa qualquer uma das coisas que
precisa fazer de lado só porque estou ali. Se eu me importasse com isso,
acharia essa uma qualidade admirável.
— Acho que eu fui bem idiota no nosso primeiro encontro — admito,
porque sei que fui mesmo, e ela cora ao ouvir a palavra encontro. — No

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final do dia, você mal deve aguentar ver uma xicara de café pela frente, e o
mané aqui te chama justamente pra isso.
Ela dá um sorriso aberto e totalmente sincero, que capta minha completa
atenção por um segundo. É tão real e genuíno que faz meu lábio subir de
canto, em um sorrisinho completamente verdadeiro e involuntário.
Posso até ser um babaca na maior parte do tempo, mas sei reconhecer
quando algo é precioso. E esse sorriso é.
— Imagina! Foi ótimo, de verdade. Adorei conversar com você e você
foi muito gentil me pagando um táxi. — Ela ergue os olhos e me encara,
sendo uma fofa. — Além do mais, você me pagou um suco. Nada de café em
nosso encontro.
— Aquilo não foi nada. — Literalmente, para minha carteira, uma
corrida de táxi não é nada. — Você me disse ontem que não sai muito e
quase não vai à festas. Gostaria de te convidar para uma, que eu irei no
sábado. Vai ser no clube. O que me diz? Vou adorar te levar comigo. Vou ter
a acompanhante mais bonita da noite.
Vejo seus olhos brilharem de excitação por um segundo, para logo em
seguida seu rosto murchar um pouquinho.
— Eu agradeço muito o convite, muito mesmo. É uma honra, Lorenzo,
mas eu não posso.
Ela me disse um não? Eu nunca recebi um não na vida. Que porra é
essa?
— Você vai recusar um convite meu sem nem me dizer o motivo? —
digo, com a voz falhando pela surpresa nada agradável. Eu sequer sei reagir
a isso.
— É que... — ela começa e para, como se não devesse continuar. Fico
ainda mais curioso, porque ela parece envergonhada pelo que ia dizer.
— O que foi? Pode me dizer, Cinderela.
— Sabe o que é... — Ela torce as mãos e abaixa a cabeça — Eu não
tenho roupa para ir, Lorenzo. É um lugar muito chique, eu vejo nas colunas
sociais. Se eu vestir uma das minhas roupas, é perigoso me barrarem na
entrada. —– Ela ri e tenta fazer piada, mas eu percebo que ela fica
subitamente chateada com esse empecilho. O pior é que ela tem razão.
De repente, me sinto mal por ela.
— Nina... — Ergo seu queixo com a ponta dos dedos, fazendo-a olhar
em meus olhos. — Seu vestido será entregue na porta da sua casa. Seu

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sapato, tudo. O cabelereiro vai te atender lá também, se você quiser. É tudo
por minha conta, estamos combinados?
Ela arregala os olhos e espero o sorriso de agradecimento, mas ele não
vem.
— De jeito nenhum! Não vou aceitar isso — ela diz, com uma expressão
impassível.
As palavras saem da minha boca antes que eu consiga detê-las.
— Meu Deus, qual a dificuldade dessa vez? — me exaspero, mas
percebo que deixei escapar um pouco de rispidez na voz, então decido
consertar rapidamente: — Eu quero tanto que você vá comigo, Nina. Fico
nervoso só de pensar que você não vai, tá vendo? — Seu olhar muda de
curioso para compadecido, e eu vejo que consegui reverter a situação. —
Por favor, aceite meu presente. Ir a uma festa sem você, depois de te
conhecer, vai ser um tédio. — Minha encenação é tão boa que, por um
segundo, eu me pergunto se isso realmente não é uma verdade. Depois de
conversar com Nina, talvez as outras meninas sejam mesmo muito tediosas.
Primeiro ela entorta os lábios, e depois sorri, finalmente, e nesse
momento sei que ganhei esse jogo, o que me faz comemorar internamente.
— Tudo bem então! — Percebo sua felicidade por conta de uma simples
festa e, momentaneamente, meu coração se contorce. Não sei por que estou
fazendo isso, mas decido não pensar muito a respeito. Balanço minha cabeça
e volto a olhar em seus olhos, em busca de uma nova perspectiva sobre mim.
E já que ela vai à uma festa e ganhará roupas caras, acho que eu mereço
algo em troca, para me deixar feliz também.
— Acho que eu mereço um beijo, Cinderela. Nem que seja no rosto,
você não acha? — Arrisco, me encostando mais ao balcão, sustentando meu
olhar no seu. Percebo sua boca tremer enquanto seu olhar cai sobre mim,
denunciando todo o desejo que ela sente em fazer o que eu pedi. Nesses
poucos segundos de hesitação, vejo como as pintinhas em seu rosto fazem-na
ainda mais bonita, e sorrio, porque eu poderia passar a tarde inteira
contando cada uma delas e não ficaria entediado.
— Aqui? Eu não posso, é meu trabalho, Lorenzo! — Ela vacila, mas não
dou tempo para que pense muito. Aproximo-me ainda mais, e, depois de
olhar para os lados, sussurro em seu ouvido, de forma provocante:
— Não tem ninguém aqui. Somos as únicas testemunhas do nosso crime,
Cinderela.

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Ela para por um momento, observando se não há mesmo mais ninguém
na cafeteria. O local está vazio e a outra funcionária está dentro da cozinha,
deixando-nos completamente á sós. Ela se inclina sobre o balcão,
direcionando sua boca delicada ao rosto que eu ofereço, mas eu me viro
rapidamente, fazendo o beijo chegar à minha boca. Abro um pouco os lábios
e sinto levemente o seu gosto. Ela se assusta e faz menção de se afastar, mas
eu seguro seu pulso com delicadeza e busco seus lábios novamente com os
meus. Quando ela decide finalmente ceder, eu invisto devagar, explorando
cada pedacinho deles, e o tempo parece parar, me fazendo sentir algo que eu
nunca senti antes.
Seu gosto é maravilhoso, e sua boca é ainda mais macia do que eu
imaginava.
Sorrio contra seus lábios, antes de finalmente me afastar e vê-la corar,
totalmente nas nuvens, ainda com os olhos fechados. Posso estar
completamente enganado, mas algo me diz que esse foi o primeiro beijo da
minha Cinderela, e eu me sinto o príncipe fajuto mais sortudo da terra.
Porque, só por esse simples beijo, sei que encontrei algo em que me
concentrar no pouco tempo que me resta nesse lugar. Por esse simples beijo,
sei que essa menina vale a pena.
E o que eu gastarei com ela, já está bem pago.

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CAPÍTULO 07
Lorenzo

Berlim, oito anos depois.

Acordo assustado, molhado de suor e sem ar, mais uma vez. Com a
respiração ofegante e o coração acelerado, tateio o lado vazio da cama, e
como sempre, rezo para estar no Brasil. Rezo para isso ser um sonho louco,
para ter uma nova chance de desfazer o erro que cometi, mas sei que não é.
Essa é minha realidade agora: Berlim é meu lar há oito longos anos.
No começo, eu me sentia livre e feliz. Sentia que tinha feito o que era
preciso para garantir o futuro que eu sempre quis, sem me importar com o
fato de ter quebrado alguns corações para alcançá-lo. Aproveitava as
melhores baladas ao lado dos amigos que fiz aqui e também de Maria Luiza,
a filha de alguns amigos influentes do meu pai que veio comigo para estudar.
Eu não pensava na vida que havia deixado. A verdade é que não havia muito
em que pensar. Eu achava aquilo tudo um marasmo sem fim, uma chatice e
uma breguice sem tamanhos. Eu amava minha nova vida.
Porém, com o passar dos meses, as coisas começaram a se tornar
repetitivas. A faculdade começou a tomar muito do meu tempo, e eu fui
amadurecendo com isso, mesmo que a força, mesmo sem querer amadurecer.
Lutei contra o que comecei a sentir, mas a cada dia que se passava, o
sentimento de vazio crescia dentro de mim.
A princípio, eu pensei que se tratava de uma depressão, mas com o
passar do tempo eu entendi que, na verdade, eu só estava caindo em mim e

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entendendo que as coisas eram muito maiores do que eu imaginava. Comecei
a ver que a vida não se resumia somente a baladas, bebidas e festas.
E aí os sonhos começaram. Não, sonhos não. Pesadelos.
No começo tímidos, vez ou outra, nada que me assustasse.
Mas eles foram se tornando cada vez mais frequentes e angustiantes. Até
que algo entrou em jogo: ela. Aquele par de olhos castanhos, bonitos, gentis
e calmos, tirou de vez a minha sanidade. Nos meus sonhos, eles vinham
sempre marejados de lágrimas, como da última vez em que os vi
pessoalmente.
Eu comecei a pensar em Nina todos os dias e, principalmente, todas às
noites.
Meus sonhos não eram tranquilos.
Eles vinham carregados dos nossos momentos bons. De como, em
poucos dias de convívio, ela me ensinou a ser menos arrogante, e de como
ela me mostrou que aproveitar pequenas coisas poderia ser legal. De como
ela me fez experimentar pastel de feira e me apaixonar por isso,
principalmente quando acompanhado por um delicioso caldo de cana.
Lembrava-me de sua cachorra vira lata, Lilica, que a princípio eu olhei
torto, mas depois virou a minha festa todas às vezes em que eu ia à sua casa.
Lembrava-me dos seus pais, simples, que apesar de serem contra a filha
namorar um cara rico como eu, me acolheram bem em sua humilde casa, me
tratando como se fosse da família.
Em semanas, Nina me ensinou coisas que eu nunca aprendi em anos de
vida, apenas com seu exemplo e seu jeitinho simples. Ela tratou as
empregadas da minha casa com respeito e dignidade. Recolheu o próprio
prato da mesa, quando isso era totalmente desnecessário, mesmo com minha
mãe a olhando de cima à baixo por isso, e, ainda assim, ela não se deixou
afetar, mesmo que aquilo a tivesse magoado profundamente, como eu sabia
que havia. Ela agradeceu as roupas novas que eu lhe dei de presente, como
uma criança que ganha um brinquedo no Natal, e, naquele dia, meu peito
doeu pela primeira vez com um sentimento esquisito, quase de
arrependimento, porque, na verdade, eu só não queria que ela me
envergonhasse com suas roupas velhas quando saíssemos juntos.
Nos pesadelos, eu me lembrava de ocasiões como a festa no clube, onde
tudo foi novo e lindo para ela. Os passeios na praça, o picolé no carrinho do
seu João e de cada abraço e beijo quente que eu recebia ao me despedir dela
depois do seu trabalho.

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Mas, principalmente, como um carma ou um castigo, eu sempre me
lembrava da nossa primeira noite de amor. Diferente de todas as outras
meninas, eu preparei uma noite especial para ela: teve flores, jantar e
música. Teve a melhor suíte de um hotel na cidade vizinha, para que ninguém
soubesse do que tinha acontecido entre nós. Eu não queria manchar sua
reputação. Minha BMW nunca chegou a vê-la nua, pois entendi que ela
merecia muito mais do que aquilo.
Eu apenas torcia para que ela valesse a pena e o esforço.
E como valeu.
Naquele dia, ela entregou sua inocência de bandeja para mim. Enquanto
eu a tomava, seus olhos brilhavam marejados, num misto de emoção e amor
tão puros e genuínos que, até hoje, eu não sei como tive coragem de fazer o
que eu fiz.
Porque depois dessa lembrança, vem aquela que eu tento esquecer todos
os dias para seguir em frente na vida que eu escolhi: seus olhos suplicantes,
me pedindo para que fosse mentira o que eu estava dizendo.
Um dia após a nossa noite maravilhosa, eu a deixei. Despedi-me com as
malas prontas e com Maria Luiza ao lado.
A minha intenção nunca foi me despedir. Não sei quem lhe contou que eu
estava indo embora, só sei que ela apareceu no aeroporto no uniforme da
cafeteria, me envergonhando na frente dos meus amigos e da minha família.
Por mais que eu gostasse dela – e eu realmente gostava – eu nunca
deixaria um futuro como o que eu tinha pela frente pela menina da cafeteria.
Ela era especial, mas ela precisava ser muito mais do que isso para que
eu deixasse meus planos para trás, porque aqueles planos foram construídos
e moldados pela minha família ao longo de toda a minha vida. Eu tinha um
nome para levar adiante. Eu tinha um sobrenome a zelar. E meus pais
deixaram muito claro que, na minha vida, Nina não poderia, em hipótese
alguma, passar de uma mera diversão.
A forma como eu a deixei foi covarde, eu sei disso. Nunca tentei
defender meus atos, porque sei que eles não têm defesa.
Lembro-me de como ela correu em minha direção para me abraçar e eu
segurei seus pulsos, afastando-a de mim. Lembro-me de seu olhar assustado,
sem entender muito bem a minha reação, e de Malu encostando-se em mim e
sorrindo maldosamente. Acho que nunca vou conseguir esquecer sua
expressão quando ela finalmente entendeu que eu a estava deixando.

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Eu estava indo embora um dia depois de ter dito que a amava pela
primeira vez.
Primeira e última vez. Às vezes, para ter o que se quer, é preciso mentir
um pouquinho.
Naquele dia, eu senti a minha primeira pontada de remorso, mesmo
sendo insuficiente para me parar.
E, até hoje, suas últimas palavras ainda ecoam na minha cabeça, dia
após dia.
"Você disse que me amava, e agora está indo embora".
"Eu não tenho culpa de você ter acreditado, Nina”.
"Você me dá nojo, Lorenzo. Esqueça que eu existo.".
"Você teve muito tempo para ver quem eu sou. Você se enganou porque
quis. Você queria essa fantasia tanto quanto eu, mas acabou, e no
momento em que eu entrar nesse avião, eu já terei esquecido. Só... Fica
bem, Nina”.
"Para você é Catarina, a partir de hoje"
"Que seja. Você sabe que isso não me fará mudar de ideia."
Eu fecho os olhos e vejo suas mãos tremendo e sua expressão furiosa. A
dor em seu olhar, mesmo após oito anos, ainda é palpável para mim. A
imagem de seus olhos vermelhos de tanto chorar, enquanto seus pulsos
insistiam em enxugar as lágrimas que rolavam por seu rosto delicado, nunca
vai sair da minha mente.
Porque foi assim que eu soube que ela me odiaria para sempre.
[...]
— Insônia de novo, amor? — Olho para a porta do quarto e Malu está
encostada no batente, com uma taça de vinho na mão, vestindo apenas uma
camisola preta, aberta em todos os lugares certos.
O que ela está fazendo aqui? Achei que já tivesse ido para casa.
— Sim — Suspiro e ergo-me na cama, ajeitando os travesseiros e me
encostando à cabeceira, pendendo a cabeça para trás e fechando os olhos. —
Muitos problemas no hospital — minto.
Não que não haja problemas no hospital. Eles existem e são muitos. Mas
eles não são o motivo das minhas frequentes crises noturnas.
Eu nunca achei que, deixando aquela menina pobre e simples para trás,
minha vida viraria o que é hoje. Eu nunca imaginei que descobriria aqui em
Berlim, que quando eu disse que a amava, eu dizia a verdade.

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Eu a amava de verdade, e só fui perceber isso do outro lado do mundo,
simplesmente porque, no Brasil, eu não sabia o que era o amor. Lá, eu não
soube reconhecer o sentimento que me atingiu, e o ignorei para seguir com
meus planos, porque parecia o mais certo a se fazer.
Junto com o sentimento de amor que eu descobri, eu também vi o quanto
eu fui babaca e fútil toda a minha vida, e me doí muito não poder consertar
nada disso. Já passou tempo demais. Eu perdi tudo.
— Vou me deitar com você e você vai dormir rapidinho... — Ela me dá
um sorriso quente e malicioso e vem em minha direção, mas eu rapidamente
me esquivo do que ela quer, simplesmente porque não tenho cabeça para
isso, não depois de ter tido mais um dos meus pesadelos.
— Isso, deita aqui comigo... Vamos tentar dormir — Bato a mão na
cama, deixando claro que só quero dormir, e ela se deita, decepcionada.
Abraça meu corpo e afunda o rosto em meu peito. Em poucos segundos, sua
respiração se torna cadenciada, e eu sei que ela dormiu.
Eu continuo de olhos abertos, fixos na imensidão do nada, tentando
entender meus sentimentos. Tentando encaixá-los e fazê-los terem sentido,
mas sei que não vou conseguir.
Malu sempre foi uma boa amiga. Ela me acompanhava em todas as
baladas e todas as bebedeiras. Livrou-me de vários problemas e tirou muitas
garotas erradas da minha vida aqui em Berlim, sempre tendo paciência com
minhas fases ruins. Quando ela finalmente se declarou para mim, resolvi dar
uma chance, na esperança de que, tendo alguém, fosse mais fácil esquecer a
Nina.
Ledo engano. A coisa só piorou.
Agora eu sinto que traio as duas.
Minha vida só piora a cada dia que passa, e eu acredito cada vez mais
que o tal do carma existe, e que o meu é muito, muito grande.

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CAPÍTULO 08
Nina

Minas Gerais, oito anos depois.

Se existisse uma coisa que eu pudesse mudar em minha vida, essa coisa
seria meu passado.
Se há um arrependimento em mim, foi ter conhecido Lorenzo.
Não que eu possa mudar esse fato; eu sei que não escolhemos quem
conhecemos em nossa vida. É como o curso de um rio, cheio de curvas,
pedras, galhos... Coisas que são imprevisíveis de se encontrar pelo caminho.
Mas o desague desse rio é sempre no mesmo lugar, e isso é imutável. E foi
exatamente assim com ele: mesmo que eu tentasse não enxergar, eu sabia
muito bem aonde aquele rio iria desaguar. Eu só tentei não ver. Fiz-me de
cega porque era cômodo para mim. Achei que talvez, por um milagre, o fim
seria diferente.
A questão é que não escolhemos quem vamos conhecer, mas escolhemos
com quem vamos nos relacionar. Foi nessa parte que eu escolhi errado.
Não, extremamente errado. Vamos ser enfáticos aqui.
Mas é preciso ser justa: o tombo que levei conhecendo-o me fez ter
novos olhos para a vida. Eu não acredito mais em príncipes encantados que
se apaixonam à primeira vista, nem em plebeias que viram princesas.
Eles não existem. Nunca existiram.
O que existem são homens canalhas como Lorenzo e meninas idiotas
como eu.

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Quando ele me deixou, eu tive a impressão de que o mundo pararia. E o
mais difícil de tudo foi o fato de que eu queria apenas ter tempo para
recolher os pedaços do meu coração partido e, com eles, tentar ao menos
reconstruir algo parecido com o que eu fui um dia.
Infelizmente isso não foi possível. O turbilhão que virou minha vida a
partir do momento em que ele se foi me sugou para uma onda de dor muito
maior do que sua partida. Uma dor que me consome dia após dia, que me
corrói a alma e que me transformou em quem sou hoje. Talvez, uma mulher
fria demais.
Lorenzo, para o bem ou para o mal, me mudou.
Com ele, aprendi que ninguém realmente se parece por fora com o que é
por dentro. Que julgar pela aparência física é perda de tempo. Minha avó
tinha uma frase que definia isso perfeitamente: "Por fora, bela viola. Por
dentro, pão bolorento".
Lorenzo foi o pão bolorento da minha vida.
Tudo o que eu quis, no alto dos meus dezessete anos, foi ele. Não seu
dinheiro, não sua popularidade.
Eu o quis. Quis seu amor.
Eu quis ser a escolhida. Quis ser diferente para ele.
Mas eu não fui.
Falei tantas vezes das meninas com quem ele rompia no café da manhã, e
eu fui apenas mais uma delas. A diferença é que, comigo, nem o término
houve. Aparentemente, nem isso eu merecia: ele iria me deixar sem
explicações.
Ele simplesmente iria embora sem olhar para trás. Acompanhado, diga-
se de passagem. Acompanhado por uma daquelas meninas que eu sempre
quis ser.
Ele foi embora e eu fiquei. Mas quando eu voltei para a cafeteria
naquele dia, com o coração doendo e o rosto banhado por lágrimas, eu jurei
a mim mesma que nunca mais ninguém me enganaria. Eu conquistaria meu
lugar naquela cidade. Eu calaria a boca de todos que riram de mim ao me
ver derrotada e abandonada, mesmo depois de ter sido tantas vezes avisada
do caráter inexistente dele.
E quando o pior aconteceu, e mais uma vez eu pensei que algo poderia
fazê-lo ser alguém um pouco melhor e novamente me decepcionei, eu entendi
que eu tinha ainda mais motivos para lutar. Ainda mais motivos para mudar.

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E as minhas juras foram mais fortes, mais intensas e mais dolorosas, porque
elas não foram por mim.
Eu nunca mais seria a mesma Nina, boba e inocente. Eu jurei, jurei mil
vezes, jurei até não ter mais pelo que jurar.
E eu consegui.
[...]
— Dr. Phelipe, são esses relatórios que o senhor precisa? — Enfio a
cabeça no vão da porta da sala do meu patrão, Phelipe de Medeiros. Ele
trabalha no escritório do pai há anos, e agora, já formado, comanda tudo com
maestria. É apenas alguns anos mais velho do que eu, mas muito do que sou
hoje, devo a ele, que me ensinou praticamente tudo o que eu sei em minha
área.
Quando eu pedi as contas da cafeteria, minha mãe, que já naquela época
trabalhava como empregada doméstica para os pais dele, comentou que eu
precisava de um emprego. Eles abriram as portas do escritório para mim, e
eu comecei a servir café nas reuniões e fazer pequenas arrumações no
ambiente, mas sempre muito atenta a tudo o que ele fazia e falava.
Observava seus modos, seu vocabulário, sua postura, e, pouco a pouco, fui
me corrigindo, tentando ser um pouquinho melhor a cada dia. Com tudo o
que me aconteceu, perdi algum tempo e comecei a trilhar meu caminho um
pouco mais tarde do que pretendia, mas eu tinha um objetivo e iria cumpri-
lo.
Quando finalmente decidi que queria fazer Direito, batalhei e consegui
uma bolsa integral na Universidade, o que me incentivou a concluir o curso
como primeira da sala. Os Medeiros, como sempre, me abriram as portas, e
hoje eu sou uma das estagiárias do escritório com grandes chances de ser
efetivada e começar a fazer meu nome.
A verdade é que eu nunca poderei ser devidamente grata por tudo o que
fizeram por mim. Eles nunca fizeram por piedade ou interesse. Eles fizeram
porque acreditavam em mim.
E, dia após dia, eu tento me manter digna dessa confiança.
— Nina, quantas vezes eu vou te dizer para me chamar só de Phelipe? A
gente tem quase a mesma idade, pelo amor de Deus! — Meu patrão ri
enquanto pega os relatórios da minha mão e volta para sua cadeira, sentando
confortavelmente e piscando para mim.
Reviro os olhos, porque sei que ele começará essa discussão mais uma
vez. E eu ganharei mais uma vez. Meus argumentos são plausíveis e ele sabe

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muito bem disso.
— Não faz essa cara de quem comeu e não gostou, Nina, eu já te disse
várias vezes — Ele ri com sarcasmo. — Você é linda, e essa careta aí não
combina com você.
Apesar de todo o respeito com que o trato, Phelipe e eu somos muito
amigos. Dentro do escritório, faço muita questão de que as coisas sejam
formais entre nós, para evitar qualquer tipo de comentário maldoso e sem
noção, mas fora dele nos damos muito bem. Ele me faz rir quase sempre, e
eu o faço comer de forma saudável, o que é raro. O homem vive de
audiências e processos, tudo isso regado com uma boa dose de álcool aos
finais de semana. Sinceramente, não sei como ele consegue manter-se de pé
nas duras audiências que enfrenta todos os dias. Dentro de um tribunal, o
rapaz de aparência angelical é simplesmente um carrasco, o que faz dele o
melhor entre os melhores.
— O senhor é meu chefe, Dr. Phelipe — Sorrio para quebrar o clima
chato — Tem certeza de que precisamos discutir isso novamente?
Ele sorri de canto e deita seu corpo no encosto da cadeira, de uma forma
sensual e despretensiosa, me olhando de forma engraçada. Seu corpo esguio
e seus cabelos e olhos castanho-escuros combinam perfeitamente com sua
boca rosada, que é apenas uma linha reta, harmonizando de forma impecável
com seu rosto fino. Quase sempre está vestido de maneira social, embora sua
gravata sempre esteja desalinhada, o que acaba dando um ar informal a ele,
mesmo que não propositalmente.
Um ar informal e sexy, diga-se de passagem. Phelipe é bonito de se
olhar, definitivamente.
Ele balança os ombros e ergue as mãos em sinal de rendição, depois de
alguns segundos testando minha paciência com seu olhar impenetrável.
— Tudo bem, Nina, eu desisto — Ele pega, sem qualquer esforço, uma
enorme pilha de processos no chão e os ergue até que caiam pesadamente na
mesa. — Tenho tudo isso para analisar hoje. Você se importa de ficar até
mais tarde e me ajudar, pelo menos, a classificá-los? Eu sei que é sexta, mas
eu prometo que depois te levo para casa e você pode sair com suas amigas.
Ele me olha com cara de sofrimento e eu não resisto. Não tenho lugar
algum mesmo para ir, ainda que ele não precise saber disso.
Essa é a minha vida em toda a sua glória de zero emoção.
— Claro que sim, Doutor. — Puxo uma cadeira e pego um bom montante
de papéis da pilha, trazendo-os para perto de mim — Vamos começar,

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porque esses processos não se classificarão sozinhos.
[...]
Abro a geladeira e analiso cuidadosamente os itens lá dentro. Viro-me
para Phelipe, que está sentado na bancada de madeira da nossa humilde
cozinha, e, muito séria, digo:
— Temos água natural, água gelada e água de torneira — dou risada e
ele bufa, rindo junto. — E, ah! Temos cubos de gelo também. Eles vão muito
bem com a água de torneira.
Depois de ficarmos até quase dez da noite no escritório, Phelipe me
trouxe para casa junto com milhões de pedidos de desculpas por ter,
supostamente, estragado minha sexta-feira. Eu até poderia tê-lo tranquilizado
contando que não tinha qualquer lugar para ir, mas a verdade é que eu gosto
de vê-lo me bajulando.
Tiro a garrafa de vidro de dentro da geladeira e estendo o copo em sua
direção, enquanto encho-o. Phelipe bebe calmamente, até que finalmente me
diz o que ele sempre diz nesses casos:
— Você sabe que se estiver te faltando algo, qualquer coisa, você pode
me pedir, não é? — Ele coloca o copo delicadamente na mesa e olha dentro
dos meus olhos, me mostrando o quanto está sendo sincero, mas ele nem
precisa desse esforço. Do fundo do meu coração, sei, sem sombra de
dúvidas, que sempre posso contar com ele, ainda mais agora, que meu pai
está doente e não pode mais trabalhar.
Sorrio para ele, deixando evidente toda a minha admiração. O carinho
que tenho por esse homem é grande demais, e, às vezes, transborda em
minhas expressões.
— Claro que eu sei, mas o aumento que você me deu, junto com o
aumento que sua mãe deu a minha mãe, já estão de bom tamanho, você sabe.
— Guardo a garrafa no lugar. Eu sei que eles fizeram isso apenas para não
ofender nosso orgulho. — Dá pra gente ir se virando. Fora o fato de você
estar pagando o tratamento do meu pai, né?
Ele me olha ainda em dúvida.
— Está tudo sob controle, acredite em mim.
— Tudo bem, mas me deixe saber se você precisar mesmo de alguma
coisa, Nina.
Aliso a saia preta que combina perfeitamente com o terninho que estou
usando. O bom do escritório é que Phelipe disponibiliza uniformes para
todos os funcionários, o que me faz economizar muito em roupas. Mesmo que

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pareça uma besteira, pelo momento que estamos passando, pequenas coisas
como essas fazem toda a diferença.
— Obrigada. — Sorrio genuinamente.
Ficamos em silêncio por um tempo, mas algo me diz que ele precisa me
falar alguma coisa, apenas não está achando o momento certo. Pergunto o
que há, e ele enrola um pouco antes de finalmente falar, mas quando o faz,
sinto um soco no meu estômago. O tempo passa, mas esse assunto ainda me
corrói por dentro, como uma ferrugem destruidora, que faz tudo ficar preto e
feio no meu interior. Arrisco-me a dizer que já estou oca depois de tantos
anos remoendo isso.
— A Malu ligou hoje... — Ele mal levanta os olhos, e eu penso um
pouco antes de responder. Odeio falar sobre sua irmã, odeio a última
lembrança dela que tenho em minha cabeça.
— Você sabe que não gosto de falar disso, Lipe.
— Não te entendo — ele ri alto. — No escritório sou Doutor Phelipe e
fora dele sou Lipe.
Dou a volta no balcão e envolvo os braços ao redor do seu ombro,
apertando carinhosamente. Depois me inclino e beijo seu rosto, dando um
estalinho.
— Simples. No escritório você é meu patrão e fora dele você é meu
amigo. É aí que reside a diferença.
Ele ri, balançando a cabeça em concordância.
— Você fala como uma doutora.
— Eu aprendi com o melhor — Pisco para ele, elogiando-o.
Ele concorda com a cabeça e toca minha mão, afetuosamente.
— Tudo bem. Mas voltando a Malu...
— Lipe... — Fecho os olhos, pronunciando seu nome como um aviso.
— Ela é minha irmã, Nina.
O fato de ela ser irmã dele não necessariamente me faz amá-la, entende?
Argumento inválido, doutor.
— Ela foi embora com quem, supostamente, deveria ser meu namorado,
e não teve um pingo de empatia naquele aeroporto, quando debochou
claramente de mim.
— Aquilo já estava combinado há muito tempo. Anos, talvez. O Lorenzo
nunca te contou porque sempre foi um idiota de marca maior. Se eu já te
conhecesse, com certeza teria te alertado.

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— Ele é seu amigo — Arqueio a sobrancelha porque, pelo que me
lembro, eles eram próximos antes de Lorenzo ir embora para a Alemanha.
— Corrigindo — Phelipe ergue o dedo indicador e faz cara de nojo total
— Nossos pais são amigos. Eu era obrigado a andar com ele e com o bando
de animais que ele chamava de turma.
Afasto-me e procuro algo a minha volta que me tire desse momento
incômodo. Phelipe, de novo, está entrando nesse assunto e ele sabe, tanto
quanto eu, que isso é caso encerrado para mim. Não sei o que ele pretende
com mais essa conversa. Eu só quero esquecer essa parte da minha vida, mas
é impossível quando tem alguém para me lembrar todo santo dia.
— Você nunca o esqueceu — ele diz, em um tom que mistura tristeza e
deboche.
— Eu o esqueci no dia em que ele entrou naquele avião com a sua irmã,
Phelipe. Lorenzo Leone é um caso encerrado para mim.
Ele levanta da cadeira e se aproxima de mim com as duas mãos no
bolso, me encarando de forma séria até finalmente soltar algo que faz minhas
pernas bambearem e meu corpo todo tremer.
— Que bom que é um assunto encerrado, então, porque a Malu me ligou
para contar que ele está voltando para o Brasil.

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CAPÍTULO 09
Lorenzo

Berlim

— Doutor Lorenzo, por favor, dirija-se à oncologia. — Termino de


assinar mais uma receita e ouço meu nome sendo chamado novamente.
Apesar de ter acabado de me formar, eu trabalho no Charité, um dos maiores
hospitais universitários da Europa, e já sou um nome muito reconhecido
pelos meus superiores e pelos outros médicos da área. Minha oportunidade é
quase única para um brasileiro do interior de Minas Gerais, e mesmo
sabendo que meu dinheiro teve muita influência para me fazer chegar até
aqui, eu sei também que estudei muito, batalhei como um louco e fiz tudo o
que podia para ser o melhor, nada menos do que isso. O fato é que, apesar de
reconhecer minhas oportunidades e meu esforço, a cada dia que passa, eu
quero mais e mais voltar para o meu país.
Meus pais, meus amigos e Malu não aceitam isso. Eles dizem – nada
mais do que o óbvio – que meu nome será construído aqui, entre os melhores
do mundo, e, sendo completamente sincero, eu sei disso. Sei também que
amo o que faço. Amo fazer parte de uma equipe tão competente e que tem
tanto para me ensinar. Adoro o hospital e gosto muito das pessoas com quem
convivo, mas, antes de qualquer coisa, eu também gosto de paz. Eu quero ter
paz.
Preciso ter paz.
E eu só conheço um jeito de ter a minha de volta: chegou a hora de
voltar para o lugar de onde vim. Não que eu não tivesse que ter vindo para

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Berlim. Esse sempre foi o plano e isso construiu o médico que sou hoje, mas
eu deveria ter saído de lá com a minha cabeça erguida, ao invés de ter
deixado mágoas e um coração partido para trás. Eu deveria saber que, para
ser um médico decente, eu deveria ser um humano decente antes, mas eu só
aprendi isso na raça, sentindo na pele o que a falta de compaixão me trouxe.
Quando eu finalmente aprendi a cuidar da dor do outro, eu entendi o quanto
eu havia pensado somente em mim por toda a minha existência sem sentido.
Naquela época, eu não era homem o suficiente, mas hoje eu sou.
Eu mudei. O Lorenzo de hoje merece a Nina, não o Lorenzo de oito anos
atrás.
Chegou o momento de eu assumir o controle da minha vida de novo. De
consertar os erros do passado e de construir um futuro sendo alguém muito
melhor do que um dia eu já fui, nem que para isso eu deixe um mundo de
possibilidades para trás.
[...]
— Lorenzo, não fode comigo! — Higor se levanta irritado, passando por
trás da mesa, lívido de raiva. Ele sufoca um xingamento enquanto passa a
mão nos cabelos, andando de um lado para o outro. Eu sabia que ele teria
essa reação, então apenas espero o que virá. Passo as mãos por todo o meu
rosto e espero o sermão que sei que vai chegar.
Higor e eu nos tornamos amigos íntimos quando eu comecei a trabalhar
no Charité. Ele é o médico responsável por nosso setor e, coincidentemente,
também é brasileiro. Nosso amor pela medicina e nossa terra mãe em comum
nos juntou de forma rápida e sincera. O respeito como médico, como
exemplo, como pessoa, mas sei que ele jamais entenderá minha decisão, e eu
sequer espero isso. Só espero que, ao menos, ele a respeite. Olho para cima
rapidamente, tentando identificar se sua expressão suavizou, mas a
incredulidade ainda está lá, estampada.
— Me desculpa, Higor, mas eu preciso fazer isso — Dou de ombros,
mas sei que ele está bravo. Eu acabo de arranjar um enorme problema para
ele resolver.
— Você precisa? — Ele coloca o jaleco branco por cima de sua roupa e
nele consigo ler Higor Barreto e as três línguas que ele fala – português,
inglês e alemão – vinham em destaque ao lado, caso algum estrangeiro
precisasse de ajuda. — Quem precisa de você sou eu! Preciso de você na
oncologia, porra. Preciso de você nesse hospital. Aliás, preciso de você no
plantão de hoje também, se vira.

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Sei que ele não precisa de mim no plantão, mas ele me colocará lá só de
birra, e, bom, se isso vai ajudá-lo a aliviar a frustração, que seja. Eu estarei
nesse plantão. O conheço o bastante para saber que ele está tentando desviar
o foco, como se isso fosse me fazer esquecer o motivo pelo qual eu estou na
sala dele.
Que merda, achei que esse filho da puta respeitasse um pouco mais a
minha inteligência, rio por dentro.
— Eu fico no plantão de hoje, Higor. Com o maior prazer do mundo.
Mas eu ainda quero a minha demissão. — Olho firmemente para ele e seu
olhar desmorona.
— O que eu vou fazer sem você aqui, seu filho de uma puta? Você não é
o mais velho, mas a oncologia é praticamente dirigida por você, Lorenzo.
Você tem pacientes que sentirão sua falta. Pacientes que não voltarão a ver
sua casa. Pacientes que sequer têm família, e você sabe disso. O que eu vou
dizer a eles? Que até o médico deles os abandonou?
No fundo, eu sei que ele tem razão. Alguns dos meus pacientes não
voltarão a morar em casa e para eles, qualquer perda é significativa, mesmo
que seja a do seu médico.
— Eu vou falar com eles, Higor. Com cada um deles. E eu não vou
agora, calma! Ainda tenho assuntos a tratar, ainda tenho os pacientes para
conversar, pretendo te ajudar a encontrar alguém bom para colocar no meu
lugar antes que eu volte para o Brasil... São muitas coisas para fazer até lá.
— A Maria Luíza já sabe disso? — Ele levanta a sobrancelha,
indagador, mas sei que ele já sabe a resposta para sua própria pergunta.
Suspiro, porque sei que, de todos os problemas que enfrentarei para
voltar, esse será o maior deles.
— Ainda não, mas vou falar com ela hoje mesmo. — Procuro seus
olhos, buscando um pouco de compaixão, mas acho que ele fica com mais
raiva ainda.
— Eu tô é fodido! — Ele ergue as mãos, irritado, como se bradasse
contra o céu — Eu vou perder a Malu também! Ela nunca vai ficar aqui em
Berlim sem você, e ela é a melhor pediatra que eu tenho no setor. Você
acordou decidido a ferrar com a minha vida, foi?
Não suporto e começo a rir. Seu desespero chega a ser engraçado.
— Isso não tem graça, Lorenzo! — Ele me aponta o indicador, em tom
de aviso. Engulo a risada na hora, tentando respeitar seu momento de ira.

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— Prometo que vou falar com ela. A vontade de voltar é minha, não
dela. Talvez ela coloque na balança e veja que tem muito a perder se me
seguir.
— Duvido que ela aceite ficar, mas tente ser convincente. Eu realmente
preciso pelo menos dela aqui, e sei que esse relacionamento de vocês é tão
firme quanto prego na areia, então, por favor, tente me ajudar. — Higor olha
para mim por uns segundos, até que finalmente solta: — Você tá voltando por
causa dela, né?
Dela? Do que ele está falando?
— Do que você está falando?
Ele ri.
— Da tal Nina, a menina que você deixou lá. — Agora quem ri de canto
é ele, como quem diz: te peguei.
Como ele sabe sobre minha Nina? Eu nunca falei sobre isso com
ninguém.
— Como você sabe disso? — Sou simples e sucinto, não preciso mentir
para ninguém sobre o que eu quero.
— Na última vez em que saímos, você bebeu todas e me contou. Disse
que a amava, que amava a sua "Cinderela". Me contou toda a história — Ele
dá ênfase no toda, deixando claro que eu também havia contado como fui um
idiota com quem não merecia.
Abaixo a cabeça, não acreditando na minha babaquice.
— A Malu não ouviu isso, né? — pergunto, receoso. Por mais que eu
não a ame da forma como ela deve ser amada, não significa que eu queira
magoá-la. Já basta uma canalhice no meu currículo amoroso.
— Não, ela estava na pista de dança com a Stelle, mas foi por pouco. —
Seu olhar de compreensão me ataca pela primeira vez desde que entrei por
essa porta, e eu sei que contei tudo a ele. — Os sonhos. Eles têm piorado?
Bufo, odiando falar sobre isso.
— Os pesadelos, você quer dizer, né? — Quando ele balança a cabeça,
continuo: — Sim, tem piorado cada dia mais.
— Não seria o caso de você conversar com a psicóloga do hospital,
Lorenzo? É uma decisão mais sensata do que ir atrás de uma garota em outro
país. Você não a vê há anos, sequer sabe se ela ainda está lá, ou se está com
alguém, sei lá. Ela pode estar casada, com filhos. Ela provavelmente seguiu
a vida, então, não estrague a sua por algo que pode não ter mais conserto.
Certas coisas a gente precisa apenas esquecer.

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Não suporto pensar nas opções que ele listou, mesmo sabendo que todas
são plausíveis. Olhando de fora, eu tenho absoluta convicção de que isso
parece uma loucura, mas meu coração me implora para não desistir.
E eu não vou desistir.
— Eu preciso vê-la de novo, Higor. Preciso saber se tudo o que eu sinto
é verdadeiro ou se foi minha cabeça e meu remorso que criaram ao longo
desses anos. Eu não posso mais viver assim. Esse retorno é mais por mim do
que por ela — Engulo em seco. — Devo isso ao meu novo eu.
— Bom, você quem sabe. A minha opinião de amigo e diretor eu já dei,
agora é com você. — Ele enfim parece desistir de me demover.
— Obrigado por respeitar minha decisão, Higor — sou sincero, e ele
suspira, dando de ombros.
— Espero que tudo dê certo, e que a Malu respeite isso também.
— Ela vai. Confio no bom senso dela.
[...]
— Malu! — Desvio do vaso que vem em minha direção, me virando
para trás para ver o estrago que ele fez na janela do apartamento. Os
estilhaços estão por todos os lados, e eu olho para a cena, estupefato. Penso
em reclamar, mas quase não dá tempo de me desviar do outro objeto que ela
joga em mim. Eu mal consigo identificar o que é.
Ah, merda. É meu Ipad.
Quando ela pega meu MacBook em cima da mesa de mogno, eu me
adianto, roubando-o de suas mãos.
— Você tá destruindo meu apartamento, Malu, porra! Para! — peço,
mas sei que ela não está ouvindo absolutamente nada. Seu ódio a deixou
surda para qualquer explicação.
— Você não vai precisar dele mesmo, não é? Você tá indo embora! —
ela grita, com algo em punho, mas desiste e encosta-se à parede, chorando
copiosamente. — Você tá indo embora. Está me deixando. Você só sabe
deixar todo mundo que entra na sua vida; é seu dom.
Meu coração se contorce. Parece que tudo o que eu faço é errado de
alguma forma. Deixar Nina foi errado, deixar Malu será errado também.
Meu Deus, ela tem razão. Como eu posso sempre destruir tudo assim?
— Malu — Eu me aproximo e a abraço, usando minha voz mais doce.
Não quero enganá-la, só quero que ela se acalme. — Eu estou com saudade
do Brasil, da minha família... Da vida que eu tinha lá. Você não sente
também?

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— Você está com saudade dela, Lorenzo. Pelo menos seja sincero uma
vez na sua vida! Eu sei disso. Você pensa que eu não sei que você pensa nela
desde o dia em que chegou aqui? É com ela que você sonha. Eu ouço o
maldito nome dela toda noite! — ela se exaspera e se solta do meu abraço.
Eu deixo, porque não tenho uma resposta para isso. E se eu não tenho
nada para falar, é melhor que eu fique quieto.
— Não espere que eu vá entender, Lorenzo. E nem ache que eu vou
implorar para você ficar como ela fez, porque eu não vou. Eu sou uma
médica conceituada, agora. Eu tenho brio e amor próprio! Não vou te seguir
por aí enquanto você vai atrás daquela pobre brega que você deixou para
trás. — Ela pega sua bolsa na poltrona da sala e se dirige até a porta.
Depois, se vira para mim e lança um olhar quase tão ruim quanto o que
recebi de Nina oito anos atrás: — E não espere que eu vá desejar boa sorte
para você. Eu quero é que você se foda naquele fim de mundo! Você e ela,
que se lasquem!
Dito isso, ela bate a porta com toda a força, fazendo um quadro que
estava na parede ao lado cair com no chão, estilhaçando-se. Mais um item
que iria para o lixo depois dessa pequena guerra particular que tivemos.
A única coisa boa de todo esse circo é que eu não precisarei convencê-
la a ficar. Ela sequer pensou em ir.

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CAPÍTULO 10
Nina

Eu já havia lido, relido, "trelido" o processo que está em minhas mãos


há meia hora, mas na segunda linha meus pensamentos sempre se
dispersavam, e por mais que eu odeie isso, eles iam até um lugar que eu não
queria que eles fossem: Lorenzo.
Eu sei o que qualquer pessoa pensaria sobre isso. Eu sei que é fácil
achar que eu ainda o amo; que sou a mesma menina idiota e apaixonada que
eu fui um dia, mas não.
Eu não sou mais.
Eu só odeio saber que eu terei que, eventualmente, trombar com ele por
aí vez ou outra, visto que a cidade é um ovo, de tão pequena, e que meu
patrão é amigo da família dele, e agora, pelo que sei, também cunhado.
Phelipe me disse que Maria Luíza não virá junto; ela decidiu que o melhor
seria ficar em Berlim e terminar sua residência por lá; mais estabilidade,
mais prestígio e mais chances de crescer na profissão. Mas não sei se a
relação deles em si acabou. Pelo pouco que Phelipe me falou de sua irmã,
ela não é de desistir assim tão fácil das coisas que quer.
Quem pode julgá-la? Ela está certíssima. E no fundo, no fundo, eu adoro
saber que Lorenzo havia sido deixado de lado, pelo menos por enquanto.
Com certeza ele imaginou que ela largaria tudo para acompanhá-lo.
Qual a sensação de ser deixado para trás, hein, babaca?
— Nina? — Me assusto e olho para trás, apenas para ver Phelipe
encostado na porta da minha sala. — Você quer ajuda? Faz um tempão que
você está analisando esse processo e ele é tão simples.

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Um sorriso gentil brota em sua boca. Eu sei que ele sabe exatamente o
que está acontecendo comigo, mas a discrição e a amabilidade de Phelipe
nunca deixarão que ele fale isso de forma clara e aberta.
— Não, Doutor Phelipe, eu só me distraí, mas já te entrego. — Sorrio de
volta, agradecendo sem palavras por sua compreensão.
Ele pisca para mim e sorri, sendo lindo como normalmente é.
— Tudo bem, Doutora Catarina, mas não demore. Eu preciso dele para
hoje.
Abro minha boca para responder, mas paro e olho para ele desconfiada.
Ele me chamou de Doutora Catarina? Eu ouvi direito? Ele já havia saído da
sala, mas com dois passos para trás e um sorriso ele voltou, colocando a
cabeça no vão da porta com uma expressão travessa nos olhos.
— Do que você me chamou? — pergunto, sem entender muito bem. Eu
sempre fui Nina para ele.
— Doutora Catarina — ele diz devagar, como se saboreasse o título.
— Doutora? — repito, tentando não criar falsas esperanças, mesmo
sabendo que elas haviam nascido em mim repentinamente.
— Isso mesmo — Ele coloca as duas mãos no bolso, me olhando
fixamente, esperando o momento em que minha ficha cairá. — E eu não vou
repetir de novo, porque a brincadeira já está ficando sem graça.
Olho para ele, quase sem acreditar. Será que é o que estou pensando?
Ele se aproxima de mim, me puxa pelas mãos e olha em meu rosto, divertido.
— Estou quase arrependido de ter te efetivado. Você demora para
entender as coisas, mulher!
Lanço-me em seus braços completamente embasbacada. Mal posso
acreditar! Não sou mais uma estagiária do escritório. Não ficarei mais
analisando processos e ajudando em coisas simples. Eu vou trabalhar como
advogada de verdade! Eu vou para os tribunais!
Meu sonho está finalmente se realizando, e tudo porque ele sempre me
ajudou.
— Eu não acredito, Lipe! — O abraço forte e esqueço completamente os
modos que tenho no escritório — Obrigada, obrigada... obrigada por essa
chance! — Beijo seu rosto, completamente entusiasmada, e ele me aperta,
segurando minha cintura com suas mãos fortes.
— Você mereceu! Não fiz porque somos amigos, antes que você pense
qualquer coisa. Fiz porque você é uma ótima profissional. E eu estou mesmo

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precisando de ajuda nos casos mais difíceis. Você é a pessoa certa para isso.
É a chave para as minhas tão sonhadas férias.
Me solto de seu abraço e limpo as lágrimas de alegria que rolam por
minha face, rindo um pouco por sua piada. Ele sempre sabe o que dizer.
— Você não faz ideia do que isso significa para mim! — consigo
finalmente dizer, com a voz embargada.
— Significa muito para mim também, Nina. Eu não via a hora de te dar
essa notícia. — Ele engole em seco, e então pergunta, um pouco receoso: —
Vamos sair para comemorar hoje?
— Claro que sim! — Volto para minha cadeira e me sento enquanto vejo
Lipe tirar do bolso algo dourado. É uma pequenina placa de porta, e meu
coração vai à mil. Ele delicadamente a gruda na grande porta de madeira
maciça do meu escritório, e penso em como uma simples plaquinha pode ser
a materialização de um tão batalhado e aguardado sonho. Nela vejo escrito:
Doutora Catarina Nascimento – Direito da Família.
A surpresa foi completa, pensada nos mínimos detalhes para me fazer
feliz.
Olho para meu amigo sorrindo para mim e meu coração se contorce de
amor, ficando quentinho como há muito tempo não ficava.
Constato que, mesmo que o mundo tenha me feito sofrer demais em tão
pouco tempo, nele eu sempre terei com quem contar. Minha admiração por
Phelipe de Medeiros cresce cada dia mais e mais.
[...]
— Nina. Nina, para — Lipe tira o copo das minhas mãos e o coloca no
centro da mesa, enquanto eu reclamo qualquer coisa com minha voz
embriagada. — Por mais que eu adore álcool, e você sabe que eu gosto... —
Ele ri, constatando o óbvio —... Acho que está na hora da gente parar. Você
não está acostumada a beber e vai passar mal. — Ele junta minhas mãos em
um aperto, deixando claro que só está fazendo isso para o meu bem, mas eu
não quero saber seus motivos. Eu só quero continuar.
— Eu nunca bebo, Lipe! Não seja chato! Eu quero comemorar! — grito
extasiada, chamando a atenção de algumas pessoas à nossa volta, mais
bêbada do que feliz, na verdade.
— Eu sei, meu anjo, mas estou começando a achar que não devia ter te
convidado para um barzinho. Um restaurante teria sido melhor — ele diz,
tirando novamente da minha mão o copo que eu havia recuperado.

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— Eu nunca tomei um porre na vida, acredita? Nunca fiz besteira por
estar bêbada. E eu tenho vinte e seis anos, Lipe! Eu não vivo de acordo com
a minha idade, você já percebeu? — Faço beicinho e encosto minha cabeça
em seu ombro — Eu estou tão cansada de ser a responsável, a que nunca faz
besteira...
— É porque você foi obrigada a se tornar adulta muito cedo, minha
linda — ele diz de forma doce, e eu sei exatamente do que ele está falando.
Antes que eu me entristeça por isso, ele rapidamente desvia o foco: — E foi
exatamente pela sua responsabilidade que te contratei definitivamente hoje,
Nina. Por essa sua qualidade de nunca fazer besteira — Ele sorri para mim,
sempre gentil.
Balanço a mão no ar, deixando claro que eu achava aquilo uma ladainha
sem tamanho.
— Você é um excelente advogado e toma os maiores porres da história
da humanidade! Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Lipe — Minha
mão instintivamente faz um carinho em seu braço e o vejo se arrepiar. Acho
graça disso. Por mais que Lipe disfarce, eu sei que mexo com ele de uma
forma além da profissional. Eu nunca deixo transparecer que sei sobre seus
sentimentos para não nos colocar em uma situação complicada, já que
trabalhamos juntos, mas estando bêbada isso é muito mais difícil. — Quero
viver de acordo com minha idade. Quero ter novos amores, Lipe — minha
última frase sai quase como uma súplica: — Quero ser feliz de novo.
Subo meu olhar e encontro seus olhos fixos em mim. Por mais que ele
tente se mostrar relaxado, ele mal respira. Minha última frase paira entre
nós, como algo que deveria ser subentendido, e nós dois sabemos o que
estamos pensando. Continuo encarando-o e sinto seu perfume maravilhoso
entrar em meu nariz, me fazendo perder o sentido. Ele é tão lindo, gentil,
educado e bom.
Parece tão certo.
Motivada pelo álcool, e por um desejo que eu não sabia que existia até
agora, aproximo meu rosto do dele com a clara intenção de beijá-lo e, por
um momento, ele vem de encontro a mim, com a mesma intenção. Porém, no
último segundo, ele segura meu rosto e sussurra junto à minha boca, antes de
finalmente tocá-la:
— Por mais que eu queira isso, e eu realmente, realmente quero de uma
forma que você não faz nem ideia, não faça nada do que você vá se
arrepender amanhã, Nina. Eu não suportaria... — Ele engole em seco, e sua

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suplica é tão sincera e tão específica que eu quase recuo. — Isso me
destruiria.
Penso por um segundo, colocando os prós e contras disso numa balança,
porque entendo o seu medo. Então respiro fundo, sabendo o que fazer. Eu
estou bêbada, mas sei muito bem o que estou fazendo.
Eu quero isso. Eu o quero.
— Eu não vou me arrepender, Phelipe.
Levo meus lábios de encontro aos seus e ele delicadamente corresponde
às minhas investidas. Seu gosto é uma mistura de hortelã com álcool, e eu
devo admitir, é maravilhoso. Não demora mais do que um segundo para
nosso contato ser urgente, como se os dois precisassem disso mais do que de
ar. Há muito desejo reprimido nos envolvendo, principalmente dele, mas
agora, de mim também. Quem diria que estar com ele poderia ser tão bom?
Sorrio, ainda beijando-o, embriagada de vodca, felicidade e desejo.
Eu nunca havia pensado em Phelipe de outra forma, mas agora que isso
está acontecendo, me pergunto por que não pensei. Talvez pelo fato de ele
ser rico, bonito e interessante como Lorenzo. Meu trauma fez com que eu me
afastasse de todos os homens que se aproximaram durante esse tempo, por
achar que todos seriam iguais. Mas Phelipe é diferente, e eu sei disso. Ele
me provou que é diferente em todas as suas ações ao longo desses anos. Não
há nada nele que eu não goste. Não há nada de Lorenzo nele.
Está na hora de me permitir ser feliz novamente.
— Você ainda vai se lembrar disso amanhã, Nina? — ele pergunta
quando nosso beijo termina. Abro finalmente os olhos, devagar, porque eles
estão pesados de desejo, e então ele acaricia meu rosto levemente, enquanto
sei que sua cabeça está criando um milhão de teorias sobre como isso vai
acabar. Ele tem medo, o mesmo medo que eu tive durante todos esses anos.
Mas ele não precisa ter medo. Eu o quero. Eu acabara de descobrir isso, mas
eu o quero.
Bendito álcool que me abriu os olhos.
Sorrio junto a sua boca, antes de reclamá-la novamente.
— É só você não parar de me beijar até amanhã, Lipe.

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CAPÍTULO 11
Lorenzo

Quando você passa mais horas do dia do que se pode contar com
pessoas doentes ou à beira da morte, você aprende coisas que nunca
aprenderia de outra forma. Trabalhar na oncologia do hospital, mais
precisamente com os pacientes terminais – aqueles que nunca voltarão para
casa, que nunca mais se sentarão à mesa com a família ou que nunca mais
irão à missa no domingo – me fez entender algumas coisas sobre a vida.
Infelizmente, é uma dura realidade: eles estão ali para morrer. Apenas
esperando seu momento, que, rodeado por profissionais capacitados, virá
com o máximo de dignidade e respeito.
Eu vejo pessoas morrerem todos os dias bem debaixo dos meus olhos e
ouço mais confissões do que muitos padres por aí. Ouço todos os tipos de
arrependimentos daqueles que não podem fazer mais nada além de falar.
Foram esses arrependimentos que me fizeram repensar a vida que eu
levava.
Eu ouvi de muitos homens de negócios, ricos e importantes, que o
dinheiro e o trabalho nunca valeriam a família que eles perderam ao buscar
o sucesso. Muitos me confessaram, no leito de morte, que almejaram o topo,
mas ao chegar lá e olhar para trás, perceberam que estavam sozinhos.
Eu ouvi de muitas mulheres bonitas que o orgulho por ser bela nunca
seria páreo ao orgulho de ter saúde. Eu vi pessoas chorando de saudade, de
remorso... Eu vi pessoas morrerem segurando minha mão por não terem mais
ninguém além do médico para fazer isso por eles.
Ninguém queria estar lá por eles no final da vida, e isso é mais comum
do que se pode pensar.

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Eu ouvi o sofrimento por não ter os amigos por perto.
O sofrimento por, simplesmente, não ter amigos.
Eu vi todo tipo de dor e de reclamação. Mas a pior delas sempre foi: eu
gostaria de ter lutado por quem eu amava.
E, em um desses dias, eu me questionei: eu vou querer ter esse fim?
A resposta foi imediata: não, eu não quero ter esse fim.
Por isso eu estou retornando ao Brasil, para buscar o que eu deixei para
trás: a minha alma.
[...]
Eram dez e quarenta e cinco da manhã quando eu finalmente cheguei à
Monte Sião. Eu havia desembarcado no aeroporto de Pouso Alegre e vindo
de táxi até a pequena cidadezinha, com pouca bagagem nas mãos e muito
receio no peito. Uma garoa fininha descia do céu, e o tempo gelado me
acolheu, me trazendo a nostalgia de alguns bons momentos que tive aqui e
que só percebi depois de estar longe demais. Sair do frio de Berlim para
chegar a um tempo escaldante no Brasil não seria muito fácil, então agradeci
silenciosamente pelo clima gostoso. Acho que Deus quis me ajudar na
readaptação.
— Moço, cê vai ficar onde? — o motorista do táxi se vira para mim e
eu sorrio. Senti saudade dessa informalidade do brasileiro, mais
precisamente do mineiro interiorano.
Estou de volta ao lar.
Pondero minhas opções. Não quero voltar agora para minha casa,
simplesmente porque sei o que me espera lá. Meu pai estará para o almoço e
eu terei que ouvir não só da minha mãe, mas também dele, como eu fui
irresponsável e burro por deixar todo meu futuro para trás. Não me lembro
de nenhum momento em que ele tenha me elogiado durante toda a vida, mas,
para criticar os meus atos e apontar o dedo para as minhas falhas, meu
poderoso pai está sempre a postos. É quase como uma mania doentia de me
fazer ver que não importa o quanto eu tente, jamais serei tão bom quanto ele.
O que pareceu nunca me abalar, agora me faz pensar que, talvez, eu tenha
tido uma infância cheia de abuso psicológico e negligência.
Penso em almoçar com algum amigo, mas me recordo que eu não tenho
mais amigos na cidade. Alguns conhecidos, talvez, mas eu não colaborei
muito na minha adolescência para ser querido por nenhum deles, então não
dá pra esperar uma recepção calorosa. Quando penso nessas coisas, tenho
uma vontade absurda de me espancar. Como eu pude ser tão insuportável?

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A única pessoa que é o mais próximo de um amigo para mim é Phelipe.
Ele havia sido meu cunhado durante esses anos também, apesar de não
termos mantido contato. Malu ligava para ele uma vez por semana, mas eu
quase nunca estava por perto, então ela sempre me contava as novidades,
que eu fingia ouvir vez ou outra. A única coisa que sei é que agora ele
comanda o escritório de advocacia dos pais, e certamente eu o encontraria
por lá. Será um pouco complicado explicar por que deixei a irmã dele para
trás, e tenho quase certeza de que ela fez minha caveira para ele, mas com
um pouco de conversa e muito jogo de cintura, ele acabará me entendendo.
Esse sempre foi o dom de Phelipe: entender as pessoas. Ajudar quem
precisa. Ser compreensivo. Quase um monge.
Por vezes, eu achava que ele tinha algum problema, de tão legal que ele
era com todo mundo. Não distinguia classe social, credo, cor ou idade. Acho
que já era o espírito de advogado que falava mais alto nele.
Tirando alguns probleminhas de ordem pessoal – que eu nem sei mais se
ele ainda enfrenta – o cara é fantástico, e eu devo admitir isso.
— Moço? — Me volto para o motorista, que me encara sem entender
qual é a minha — Eu já tô rodando essa cidade tudin, vai ficar caro procê
pagar. Onde eu te deixo?
— Conhece o escritório do Doutor Medeiros?
— Doutor Phelipe? Nossa, se conheço. Ele sempre chama meu táxi
quando precisa entregar documento importante lá no fórum. Sou de confiança
dele — o homem fala, cheio de orgulho.
Pelo jeito, Phelipe não mudou nada. Ainda é o cara de quem todos
gostam genuinamente.
Diferente de mim. Hoje eu percebo que as pessoas gostavam de mim por
status, não por quem eu era.
A única pessoa que me enxergou de verdade, eu abandonei do jeito mais
vil possível. Mas nela eu pensaria mais tarde, com calma e paciência. Nosso
reencontro precisa ser perfeito.
Um reencontro perfeito para apagar um adeus tão horrível.
— Isso, lá mesmo — suspiro, pensando no que havia de vir — Pode me
deixar lá, por favor.
[...]
— O Doutor Phelipe não se encontra no momento — ouço a moça de
cabelos castanhos encaracolados responder com certo tédio. — Ele está em

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uma audiência no fórum, e acho que só retorna depois do almoço. Seria só
com ele?
Suspiro irritado. Terei que chamar o táxi novamente, e, provavelmente,
enfrentar um almoço sozinho, porque ir para a casa agora é uma
possibilidade inexistente. O mínimo que eu preciso para enfrentar a jaula
dos leões é um estômago cheio.
— Sim — bufo — seria só com ele mesmo. — Quando faço menção de
me afastar, a insistente secretária volta a falar.
— Nós temos a Doutora Catarina também. Na ausência dele, ela fica
responsável por ver os casos novos que chegam. Se você esperar um
minutinho, ela já te atende.
Catarina.
O primeiro nome que eu ouço ao retornar para essa cidade tem que ser o
dela? Se eu não soubesse como Nina é, chegaria a pensar que se trata dela.
Mas claro que não é.
Lorenzo, não seja burro. Há milhões de Catarinas pelo mundo, e dentro
de um escritório, sendo uma advogada, é o último lugar onde a sua estará.
Nina sempre foi acomodada. Esse era seu mal. Em grande parte, isso me
fez desistir dela também. Ela usava sua pobreza como um motivo para não
lutar e crescer. Dizia que não poderia largar aquele emprego na cafeteria
para estudar, pois precisava ajudar os pais. Eu nunca disse isso a ela, mas eu
sabia, com todo o meu coração, que ela viveria assim sua vida inteira: sendo
a menina da cafeteria.
Destino triste para uma menina tão linda.
Para a sorte dela, eu voltei. Voltei por ela, e não vou mais deixá-la
sofrer por coisas que não pode ter. Vou ajudá-la agora, e ela poderá evoluir.
Eu estou disposto a isso de todo meu coração: a passar por cima de sua
classe social e ajudá-la a crescer, a ser alguém na vida.
A ser alguém para mim. Logo ela estará à minha altura, e ninguém mais
poderá ser contra o nosso relacionamento.
— Não, eu não preciso de outra advogada. Eu só queria falar mesmo
com o Phelipe. É um assunto pessoal. Sou amigo dele e cheguei de viagem
há pouco.
— Tudo bem, vou anotar seu nome e peço para ele entrar em contato —
Ela sorri de forma afetada, obviamente me paquerando, mas eu finjo que não
percebo sua atitude clara. Minha vontade é dizer a ela que eu já sou
perdidamente apaixonado por uma pobre. Mais uma no currículo não dá.

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Encaminho-me até a porta depois que ela pega meus dados, mas algo me
faz parar assim que meus calcanhares encontram a saída.
Uma voz.
Uma voz que eu reconheceria a léguas de distância.
— Elaine, você poderia arquivar esses processos, por favor? E transfira
qualquer ligação dos clientes do Phelipe para a minha sala. — Me viro
rápido, e antes que ela volte para dentro, meus olhos encontram os seus, e o
mundo simplesmente para por um segundo.
Aqueles mesmos olhos que eu deixei para trás, cheios de lágrimas, de
dor, de tristeza, estão agora vívidos e bem maquiados, adornados por um
sexy óculos de armação dourada. Os olhos que me visitavam todas às noites
em meus pesadelos. Os olhos que me acusaram durante oito longos anos.
Percebo o choque em seu rosto ao me ver também. Percebo seu corpo se
enrijecer ao notar minha presença e, por alguns segundos, decido ignorar
esse sinal. No momento, eu só quero olhá-la.
Céus, ela está linda. Perfeita.
Na grande porta de madeira atrás dela lê-se: Catarina Nascimento —
Direito da Família.
Eu quase não posso acreditar.
Vestindo um terninho preto e um salto alto, percebo como seu corpo,
antes juvenil, agora é escultural, com as melhores curvas nos lugares mais
certos possíveis. Seu longo cabelo loiro não existe mais, dando lugar a um
moderno corte chanel que emoldura seu rosto, que, mesmo com o passar dos
anos, continua tão angelical quanto antes. Uma maquiagem leve deixa seus
grandes olhos castanhos ainda mais expressivos e sua boca, aberta ainda em
surpresa, continua carnuda como sempre, me fazendo ter memórias do dia em
que esses lábios percorreram meu corpo com adoração.
Que saudade dessa boca.
Desses olhos.
Que saudade dela, meu Deus.
— Nina? — Minha reação é instintiva, e eu vou ao seu encontro, porém,
ela se afasta com dois passos, ainda sem falar nada. Percebo seu movimento
e paro atordoado, sabendo que eu deveria ir mais devagar. Decido outra
abordagem: — Nina, há quanto tempo! Você está... está... linda!
Seu olhar se torna duro, e eu sinto um gelo na espinha quando ela, enfim,
ironicamente, resolve me responder, com toda a frieza do mundo na voz e
uma mágoa que continua tão viva quanto no dia em que eu fui embora:

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— Me desculpe... Por acaso, eu te conheço?

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CAPÍTULO 12
Nina

Vejo sua boca se abrir em surpresa quando pergunto se por acaso o


conheço. Uma sombra de dúvida passa por seus olhos, mas eu continuo na
mesma posição: não falo nada, apenas mantenho meu olhar firme no seu, com
a cabeça erguida, cheia de um orgulho que eu nunca tive quando ele ainda
estava aqui.
Eu nunca mais fraquejarei diante dele.
— Nina, eu não... — ele começa, mas eu não o deixo terminar. Ergo a
mão, fazendo ele se calar, com o olhar atordoado.
— Catarina, por favor. Meu nome é Catarina. — Seu queixo literalmente
cai dessa vez, e eu me forço a não sorrir de satisfação. Ergo meu olhar, e
com o peso de oito anos nas costas e muita dor, eu deixo claro quem agora
ele é na minha vida: ninguém — Nina é uma coisa para os íntimos, apenas.
Ele tenta se aproximar, mas eu dou um ligeiro passo para trás, deixando
claro o limite que haverá entre nós a partir de hoje. É um buraco que ele
mesmo cavou. Ele pode ter voltado, mas nunca encontrará a Nina que deixou
aqui.
Aquela tonta morreu.
— Achei que nós fossemos íntimos — ele retruca, com a expressão
claramente humilhada.
— Desculpe, pensou errado — Coloco o processo calmamente na mesa
de Elaine, que assiste a tudo sem entender, como se a cena que acabara de se
desenrolar não fosse absolutamente nada. — Elaine, como eu estava
dizendo, arquiva esse processo, por favor. Eu e o Doutor Phelipe já
terminamos com ele. E pode transferir as ligações.

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Viro-me de volta para a minha sala, decidida a dar esse encontro
desagradável por encerrado, mas sua mão segura meu braço em um aperto
forte e decidido, me fazendo virar. Dou de cara com um Lorenzo grande e
forte, definitivamente mais homem do que eu vi sair daqui oito anos atrás.
Sinto seu cheiro ao redor de mim e tenho vontade de me esmurrar por
lembrar tão rapidamente desse detalhe seu: oito anos se passaram, mas o
perfume ainda é o mesmo. Eu sempre amei esse perfume.
A diferença é que, agora, o rosto de Lorenzo está mais marcado pela
idade e seu corpo muito mais definido. Pena que caráter é algo que não se
molda em academias.
— Por gentileza, o senhor pode me soltar? — Tento fingir educação
para não criar uma cena perto de Elaine, mas praticamente rosno em sua
direção, o que não parece afetá-lo de forma alguma. Mas eu deveria saber:
poucas coisas afetam Lorenzo Leone.
— Nina, eu não sei por que você está fingindo que não me conhece, mas
olha para mim... Eu sei que eu errei, mas eu voltei por sua causa — ele fala
entredentes, tentando soar entre amoroso e decidido, como se isso fosse o
suficiente para me fazer esquecer todo o mal que ele me causou e que ainda
me machuca, todo santo dia. Como se mentir que voltou por mim fosse fazer
com que me jogasse em seus braços agradecendo pela maravilhosa nova
oportunidade.
Que postura mais ridícula.
Lentamente, desço meu olhar para onde sua mão ainda me segura e
constato uma coisa que me faz suspirar em alívio: meu corpo não
corresponde mais aos seus toques. Eu sempre tive medo de que, um dia, esse
reencontro acontecesse. Sempre tive medo de que meu corpo traísse meu
cérebro e meu coração, mas não. Graças a Deus, não! Tudo o que eu sinto é
asco.
— No momento em que eu entrar nesse avião, eu já terei esquecido —
recito suas últimas palavras para mim e sei que ele se lembra. O horror toma
seu rosto e sua pele fica vermelha, como se tivesse recebido um tapa, o que
não deixa de ser verdade. — Você se lembra, não lembra, Lorenzo? Sinto
muito se aquilo foi da boca para fora para você, porque em mim, suas
palavras entraram de verdade. Você não é absolutamente nada para mim, do
mesmo jeito que você me garantiu que eu não seria para você. — Saio do
seu aperto com um puxão, desistindo da compostura que estava tentando
manter até agora, e ajeito meus cabelos que bagunçaram no rosto. Olho em

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sua direção e vejo uma expressão de dor em seus olhos. Uma expressão
ridícula, diga-se de passagem.
Não adianta. O teatrinho havia funcionado uma vez comigo, mas não
funcionará de novo. Nunca mais.
— Eu era um moleque, Nina... — Eu ainda não entendo o que ele está
tentando me explicar, mas eu, definitivamente, não quero saber. Ele não
voltou por mim antes, quando eu mais precisei dele, e não havia voltado por
mim agora também. Sei que essa é apenas mais uma de suas mentiras.
— E eu era uma menina, Lorenzo. Uma menina que ficou aqui, largada
após a primeira noite de amor da vida dela, enquanto o moleque entrava em
um avião com outra pessoa a tiracolo. Eu jurava que você era o amor da
minha vida, quando, na verdade, você era apenas o babaca que todo mundo
tentou me avisar que era. E, mesmo a distância, você só continuou provando
isso.
Dessa vez, vejo o queixo de Elaine cair. Ela está adorando o showzinho
particular, então decido que é hora de dar fim a essa palhaçada. O escritório
do Phelipe não é circo para isso.
— Agora, se você me der licença... — Arrumo minha postura e ergo a
cabeça, deixando claro que nossa conversa está terminada.
— Nina, a gente precisa conversar. Eu preciso te contar algumas coisas,
te dar explicações... Vamos almoçar em algum lugar, por favor — Ele
praticamente implora, mas não me comove em nada seu showzinho.
Não quero suas explicações, como também nunca lhe daria as minhas, de
nada. A época de fazer isso já passou.
Eu perdi metade da minha vida quando ele decidiu me abandonar. Mas
eu nunca lhe darei acesso a isso. Nunca lhe darei acesso à dor que ele me
causou por puro egoísmo, por pura maldade. Eu nunca darei a ele o poder de
me magoar de novo.
Lembrar que, por culpa dele, eu perdi um pedaço de mim que nunca
mais voltará já é tortura o bastante para todos os dias da minha vida.
— Eu nunca mais vou a lugar algum com você. Quando eu precisei de
você ao meu lado, você não esteve. Quando eu precisava de explicações,
elas não vieram através de você, e sim de terceiros. Então, essa história está
encerrada, Lorenzo. — Sorrio ao dizer isso, talvez o sorriso mais diabólico,
mais cruel e mais satisfatório que eu já dei na vida, enquanto vejo sua
expressão se transformar em dúvida, como se ele não soubesse do que eu
estou falando. Fingir que não sabe do que estou falando é ridículo demais até

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para ele — Agora, se você me der licença, eu tenho muito a fazer. Eu não
sou mais a menina da cafeteria, como você pode ver.
Faço menção a isso porque, depois que ele se foi, descobri que ele se
referia a mim dessa forma. Eu sempre achei que fosse sua namorada, mas
para os amigos do clube, os pais ou qualquer pessoa que perguntasse, eu não
passava disso.
A menina da cafeteria. A diversão do menino rico.
Viro-me para voltar à minha sala sem olhar para trás.
Ele não merece que eu o faça.
[...]
— Doutora Catarina — Elaine entra mais uma vez na sala, aflita e
totalmente sem graça. — Eu não sei mais o que dizer a ele — Ela torce as
mãos, em preocupação.
— Você não deve explicações a ele, Elaine. Apenas diga que eu não vou
atendê-lo. Acredite, o motivo ele já sabe — respondo, sem nem me dar ao
trabalho de levantar os olhos do processo que estou analisando.
— Mas ele disse que não vai embora até você sair e falar com ele. Ele
está plantado naquela sala até agora — Ela me olha suplicante, quase
implorando por ajuda.
— Então deixe que ele crie raízes, droga! — eu me exaspero, mas me
arrependo em seguida, porque ela não tem nada a ver com meus problemas
nem minhas mágoas. Eu não estava sendo nem um pouco profissional, e eu
odeio ser assim. — Tudo bem, Elaine. Isso é uma briga pessoal. Desculpe-
me por te envolver nisso — Levanto enquanto ela parece aliviada — Eu vou
dar um jeito.
Caminho em direção à saleta da recepção. Quando entro na sala, fecho
os olhos de raiva, pois seu cheiro está em tudo. A sala parece inundada por
seu maldito perfume. Eu odeio as lembranças que esse cheiro me traz.
— Vá embora, Lorenzo — Reviro os olhos para ele e cruzo os braços.
— Não, até você falar comigo. — Ele se levanta, me encarando, como
se fosse uma disputa de titãs. Se ele acha que vai me intimidar com essa
postura, realmente não sabe mais nada sobre mim.
— Eu estou no meu local de trabalho e você está me atrapalhando.
Entenda, eu não vou falar com você, então vá embora.
Ele finca os pés no chão, como se deixasse clara sua resposta. Deus, que
inferno! Esse homem tinha mesmo que voltar justamente quando tudo parece
finalmente estar dando certo para mim?

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— Eu não vou embora. Eu larguei tudo, Nina: emprego, casa e
pacientes. Eu larguei tudo para voltar e consertar o que eu fiz, então eu não
atravessei o oceano para ir embora da primeira vez que você manda.
Bufo baixinho e abaixo a cabeça, pensando no que fazer. Ele não me
derrotará, mas eu preciso saber. Um olhar triste é lançado para mim e, se eu
fosse um pouco mais fraca e muito mais tola, eu cairia nessa história. Graças
a Deus que eu não sou mais.
— O que eu preciso fazer? Te enxotar como você fez comigo? —
Percebo a dor transpassar sua feição, mas não me apiedo. Ele nunca teve
piedade de mim. Ele não teve piedade nem do próprio sangue.
— Eu não te enx... — ele começa, mas para, porque sabe que eu não
menti.
— Quando você vai desistir? — pergunto, irritada.
Ele vai até a porta e, quando eu suspiro aliviada, imaginando que me
livrei dele, Lorenzo se vira e diz, com os olhos cheios de uma emoção que
eu não sei reconhecer, mas que eu sei, com toda a certeza do mundo, que é
tão falsa quanto ele:
— Nunca — ele decreta, decidido. — Eu já desisti uma vez, e venho me
arrependendo disso há oito longos anos.

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CAPÍTULO 13
Lorenzo

Paro no começo das grandes escadas de mármore e olho para cima. No


primeiro degrau, minha mãe me encara com um sorriso de canto torto, quase
chateado. Sei o que ela está pensando, mas temo tocar no assunto ou me
explicar, porque não quero que o sermão venha antes do abraço. Subo
devagar e, sem falar qualquer coisa, me jogo em seus braços. Em oito anos,
ela não envelheceu quase nada. Continua linda e loira, e, infelizmente, triste
como sempre. Seu rosto não nega.
— Como foi a viagem? — Ela passa suas mãos por meu cabelo claro e
beija minha testa — Cansativa?
— A viagem nem tanto — suspiro alto e recolho minhas malas do chão,
tentando dar esse assunto por encerrado antes que rendesse mais —, mas a
chegada à cidade não foi nada do que eu imaginava.
— Eu ainda não entendi por que você voltou, Lorenzo. — Os olhos de
minha mãe procuram os meus, inquisitivos, numa tentativa vã de achar o
motivo pelo qual eu abandonei todo o investimento que eles fizeram em mim,
mas é inútil, porque eu simplesmente não quero falar sobre isso. Pelo menos,
não agora. Talvez quando Nina me perdoar. — Essa cidade não tem mais
nada para te oferecer, meu filho.
Passo por ela com as malas, mas ela se vira junto comigo, sem desistir.
— Mãe, eu estou cansado. Vou me deitar um pouco, tudo bem? — Ela
demora um pouco, mas finalmente assente com a cabeça, porque sabe que
discutir comigo será perda de tempo. Infelizmente, apesar de saber que ela
me ama muito, principalmente por eu ser seu único filho, minha mãe e eu

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nunca tivemos diálogo algum. Eu nunca poderia abrir meu coração para ela e
contar o que me aflige. Ela não me entenderá.
Diferente de mim, ela não aprendeu com a sua vida triste e sem amor
que o dinheiro nem sempre é tudo. Pelo menos eu estou tentando mudar,
né?
Quando estou quase entrando em meu quarto, ela me chama e eu olho
para trás. Seus olhos estão marejados, e isso é algo muitíssimo raro de se
ver. Não sei se é tristeza ou alívio por me ter de volta, afinal, ela vive
completamente sozinha nessa mansão sem vida. Meu pai disfarça cada vez
menos seus casos extraconjugais, e mesmo estando longe por todos esses
anos, sabia de todas as suas puladas de cerca. Sei que isso a mata por
dentro.
— Senti sua falta, filho — Ela sorri e enxuga os olhos.
Sorrio em direção a ela.
— Eu também, minha rainha — Penso em continuar andando, mas antes
eu preciso dizer algo. Algo que eu disse poucas vezes, mas que eu sei que
precisa ser dito pela menos uma vez na vida para a mãe da gente: — Eu te
amo, mãe.
E eu a amo mesmo, muito. De um jeito bem torto e talvez até errado, mas
do jeito que me ensinaram a amar.
Ela apenas sorri em resposta, pois sei que não está acostumada a expor
seus sentimentos assim.
Ninguém nessa casa está.
[...]
Desço do carro sem vontade e travo as portas do Ford Fusion que
estacionei no meio-fio. Ainda não consegui comprar um carro para mim
desde que cheguei, então peguei o do meu pai emprestado por hoje, me
aproveitando do quase milagre dele estar em casa, e não farreando com uma
de suas amantes. Cheguei há dois dias, e Ruan, meu primo, finalmente havia
conseguido me convencer a sair com ele para checar as novidades da
cidade. Eu não queria sair de jeito nenhum, mas a encheção de saco foi
tanta, que me rendi e acabei vindo, mesmo à contragosto.
Encaro a entrada da Hexágono e suspiro. A fila dobra a esquina e as
meninas parecem cópias em série umas das outras: todas com o mesmo tipo
de cabelo, roupa, maquiagem e comportamento, como um bando de Barbies
sem personalidade. Nada de novo no front. Acho que estou ficando velho.
Essa mesma boate fez meus finais de semana felizes há oito anos, mas agora,

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só de ouvir o barulho daqui de fora, minha cabeça já dói. Acostumei-me a
ser o médico que dorme tarde e acorda cedo, e acho que precisarei de mais
oito anos para por meu sono em dia.
Ruan já me espera na frente do local, com uma expressão feliz ao lado
de seu Sonata cinza chumbo. Ele havia conseguido a última vaga do
estacionamento VIP, e eu estou um pouco irritado de ter que deixar o meu
carro na rua, sendo que eu sequer queria vir para cá.
Passamos por um grupo de meninas com copos de vodca em uma mão e
cigarros na outra, e minha vontade é parar e dar uma breve aula sobre o que
aquilo pode fazer aos seus frágeis órgãos, mas Ruan me apressa, cortando a
fila e nos fazendo ouvir xingamentos de toda espécie. Muitas coisas haviam
mudado, mas a nossa entrada ainda é VIP. Essa cidade ainda é comandada
pelos Leone, e isso é algo difícil de ser mudado.
— Falaê, Jorjão! — Ruan cumprimenta o segurança do local como se
fossem velhos amigos — Nosso camarote tá reservado como eu pedi?
— Claro, né, Ruan. Você tá ligado que você é VIP — Jorjão dá um
passo para o lado, rindo sarcasticamente, e Ruan discretamente desliza
algumas notas em seu bolso. Atravessamos a grande porta preta na entrada
principal e o som que vem ao meu encontro quase me joga no chão, de tão
alto e forte. Uma loira alta nos dá um enorme sorriso de boas-vindas, e eu
viro o pulso para que ela coloque a pulseira do camarote, que significa que
podemos pegar o que quisermos no bar. Coloco as duas mãos nos bolsos e
começo a entrar no embalo da música, mesmo que inconscientemente.
"... Boom clap, the sound in my heart
The beat goes on and on and on and on and
Boom clap, you make me feel good
Come on to me, come on to me now ..."
Encosto-me ao balcão de madeira maciça e estendo os braços,
alongando o corpo e me apoiando ali totalmente. A verdade é que mal
cheguei e já estou meio irritado. Por mais louco que possa parecer, sinto
falta da rotina doida do hospital, e meus pacientes já me fazem falta. Balanço
a cabeça, tentando tirar isso da mente pelo menos por um instante. Por mais
que eu sinta falta deles e sinta falta de ser verdadeiramente útil em algum
lugar, eu sei que o motivo que me fez voltar é igualmente importante. Eles
têm outras pessoas competentes que podem olhar por eles, mas eu, nesse
momento, só tenho a mim mesmo para tentar me tirar do vazio em que me
coloquei.

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Lembro-me de Nina, e do modo frio e duro com que ela me tratou dois
dias atrás. Lógico, eu sabia que ela não me receberia com flores e uma
banda de música, mas ela simplesmente não pensou duas vezes antes de
pisar em mim sem dó nem piedade. Eu sei que eu fiz o mesmo com ela, mas
eu era jovem e estúpido. Nós dois crescemos. Será que não podemos tratar
desse assunto como os dois adultos que somos agora?
Peço ao barman um refrigerante e Ruan me olha engraçado, como se um
alienígena tivesse me abduzido. Dou risada e me explico antes que ele
pergunte, porque não estou a fim de conversinha:
— Eu vou dirigir. Não me olha assim, babaca — O barman chega com
meu refrigerante e eu o viro na boca, enquanto Ruan ainda digere o que eu
falei.
— Você sempre dirigiu e sempre bebeu, Enzo — ele fala meu apelido de
família enquanto tira do bolso um cigarro e o acende. Algumas pessoas
reclamam, mas Ruan não dá a mínima. Ele se acha o dono do mundo, assim
como eu me achava antes de ir embora.
Acho que é um mal do sangue que corre em nossas veias.
— Sempre bebi e sempre dirigi até ir trabalhar em um hospital. A
oncologia é bem ao lado da traumatologia, então eu vi acidentes horríveis o
bastante para saber que essa combinação não dá certo, Ruan. Nunca deu. Se
toca.
Uma ruiva passa e pisca em nossa direção, dando seu melhor sorriso
sensual e batendo seu cabelo de lado em uma atitude cheia de charme, mas
eu, francamente, não me interesso. Não que ela não seja linda, mas, no
momento, meu único pensamento tem nome e sobrenome.
E me odeia, mas isso é um detalhe que eu contornarei com o tempo.
Enquanto analiso se a cantada é para mim ou para Ruan, vejo Phelipe
descendo as escadas do camarote da frente com dois copos na mão.
Surpreendo-me ao ver que ele continua da mesma forma; nada mudou. Ele e
a Malu são parecidos apenas fisicamente, e, por um segundo, penso que
talvez seja melhor que ele não me veja aqui. Ele provavelmente contaria
para a irmã, e tudo o que eu menos preciso é ela me ligando de madrugada
dizendo que eu sou um canalha por deixá-la em Berlim e já estar solto nas
baladas aqui do Brasil.
— O Lipe continua na mesma? — pergunto à Ruan e aponto com a
cabeça na direção de Phelipe, até que ele vê nosso amigo no meio do mar de
corpos, tentando a todo custo não derrubar suas bebidas. — Achei que ele

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tivesse melhorado desse probleminha. Sempre que a Malu perguntava, ele
dizia que estava tudo bem.
Enfatizo o probleminha porque sei que Ruan irá entender, e ele ri
debochadamente.
— Melhorar, até parece... Ele só piora, mano. Ele é um ótimo advogado,
mas todo mundo sabe dessa fraqueza dele — eu sei que é mais do que uma
fraqueza, porque além de ser médico, eu também namorei a irmã do cara.
Quando se está inserido no contexto familiar, é mais fácil descobrir certas
coisas que as pessoas não sabem. E, no caso de Phelipe, a fachada é muito
sólida, mas o interior é tão complexo quanto montar um castelo de cartas: um
deslize, e todas elas vão para o chão.
— Só espero que isso não atrapalhe a vida dele. Essas coisas só tendem
a piorar, e ele é um cara legal — digo com sinceridade, porque ele
realmente é.
— E só tem piorado, mas fiquei sabendo que ele tá namorando.
Começou há poucos dias, na verdade... O pai dele contou para o meu lá no
clube. Disse que a menina é de família, uma boa pessoa... O velho tá cheio
de esperança de ela ser a salvação dele. Talvez ela o coloque na linha, né?
Reflito sobre isso.
— Seria ótimo se isso acontecesse. O Phelipe é um cara gente boa
demais. Eu devia ter seguido mais os passos dele e menos os seus, Ruan —
digo, tirando o sarro, e lhe dou um peteleco na cabeça, mas ele ri e nem liga.
Ruan adora ser considerado um bad boy. O que para uns é ofensa, para ele é
elogio.
— Mas falaê — meu primo me pergunta distraidamente, enquanto repara
no decote de uma garota que passa como se fosse a oitava maravilha do
mundo: — Seu namoro com a irmã dele acabou mesmo?
— Difícil namorar alguém que está na Alemanha, né, Ruan? E, ah, nada
a ver mais — falo a verdade. Não tenho motivos para mentir — Ela é gente
boa também, do jeito dela, claro. Mas tínhamos objetivos diferentes.
Viro-me para pegar mais um refrigerante que havia pedido e Ruan cutuca
minha costela com o cotovelo, chamando minha atenção para algo. Quando
eu finalmente me viro, ele aponta uma cena que eu com certeza ainda não
estava preparado para ver.
— Olha lá a tal namorada do Lipe. — Ruan bate palmas, boquiaberto,
enquanto sinto todo o meu sangue congelar no corpo. — Caralho, ele tá de
parabéns, hein? Que gata!

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Por um segundo, meu coração para de bater. Enroscada no pescoço de
Lipe, a minha Nina usa um vestido preto com uma manga só, colado ao
corpo, mas não muito curto. Seu cabelo chanel está solto e ela fez alguns
cachinhos nas pontas. Sua franja está adornada por uma tiara vermelha, que
combina perfeitamente com seus sapatos vermelhos de salto.
Ela está incrivelmente maravilhosa.
Elegante e bem vestida. É, sem dúvidas, a mais linda da boate.
E não está comigo.
Percorro seu corpo com os olhos, estudando cada detalhe dela. Ela não
se parece nem um pouco com a Nina que eu deixei para trás, mas, mesmo
assim, eu a quero como um louco. Eu a quero como antes.
Mentira.
Eu a quero muito mais agora. É como me apaixonar perdidamente pela
mesma pessoa, pela segunda vez.
— Caralho, Enzo — Ruan tira sarro, me dando um tapa no pescoço —
Eu disse pra você olhar, não comer com os olhos. Respeita a mina, namorada
do seu cunhado, pô!
Afasto seu braço, quase lhe dando um soco pela burrice.
— Ruan, você não se lembra dela? — Algo dentro de mim se contorce
ao pensar no nosso passado e em como eu a escondi de todos, quando, na
verdade, eu devia era ter tido orgulho dela.
Ele olha mais um pouco e balança a cabeça, negando.
— Não faço a mínima ideia.
— É a Nina! A minha Nina! — Esmurro com força o balcão e sou
fuzilado com os olhos pelo barman, mas eu não quero nem saber. Estou em
um misto de ódio e ciúme, dor e agonia. Quero ir até lá e arrancá-la dos
braços dele. Quero ir até lá e mostrar porque eu voltei para esse fim de
mundo.
— A menina da cafeteria? — Ruan aperta os olhos e finalmente os
arregala em reconhecimento — Caralho, é ela mesmo! Como ela está
diferente...
— Esse corno só pode estar de brincadeira comigo. Essa mulher é
minha.
Ruan ri baixinho e aponta o copo em direção aos dois, no exato
momento em que suas bocas se encontram. Phelipe passa os braços pela
cintura fina de Nina, e eu quero morrer por dentro quando ela ri de algo que
ele falou em seu ouvido, jogando a cabeça para trás.

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Ruan dá um sorriso debochado antes de levar o copo à boca. Depois, se
vira para mim e diz uma verdade que eu não quero ouvir:
— Não é querendo ser chato não, mas... Pelo jeito, primo, era sua —
Ele enfatiza o era e isso dói nos meus ouvidos — Agora ela é dele.

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CAPÍTULO 14
Nina

Dou risada de alguma besteira que Phelipe falou e me agarro ao seu


pescoço, aproveitando seu toque que eu tanto aprendi a gostar. Ele
cambaleia um pouco e eu seguro seu braço, enquanto ele ri também. Tento
tomar o copo de vodca de sua mão duas vezes, mas ele simplesmente me
enrola, e quando vejo, já está bebendo de novo.
— Você não acha que bebeu um pouquinho além da conta, Lipe? —
Abraço suas costas carinhosamente e deposito um beijo em sua bochecha,
deixando claro que não é uma bronca, e sim uma observação. Ele me
devolve o carinho, parecendo não se importar com a minha preocupação, e
balança a cabeça em negação.
— Ah, não, linda. Não seja estraga prazeres. É sexta, a gente pode se
divertir. Na verdade, a gente merece — Ele pega no meu ponto fraco — Nós
trabalhamos pra caramba essa semana!
Prefiro desistir. De toda forma, ele tem razão: é sexta e nós estamos em
uma boate! Nunca fui de sair muito, mas agora que estamos juntos, quero
aproveitar todos os momentos bons que eu puder ter ao lado dele. Nós nos
damos tão bem, e apesar de eu ainda não poder dizer que o amo, meu carinho
cresce cada dia mais e mais, e eu torço para chegarmos lá. Torço para que,
um dia, eu possa finalmente sentir de novo. Para que eu possa amar alguém
sem medo.
Shut up and dance começa a tocar nas caixas de som e Lipe me roda em
seu braço, todo feliz. O som contagia meu corpo, e quando dou por mim, já
estou dançando animadamente ao lado dele, mesmo sendo totalmente tímida.

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É incrível essa sensação de liberdade total que eu estou sentindo depois de
muito tempo, e eu quero, de alguma forma, colocar isso para fora.
"... Oh don't you dare look back
Just keep your eyes on me
I said you're holding back
She said shut up and dance with me!
This woman is my destiny
She said oh oh oh
Shut up and dance with me..."
— Essa mulher é meu destino... — Lipe fala em meu ouvido um trecho
da música em português, me fazendo sentir pequenos arrepios pelo corpo. É
ótimo ouvir coisas desse tipo vindo de alguém como ele, e eu nunca me senti
tão feliz assim.
Enquanto eu balanço meu quadril da melhor forma que consigo, Lipe me
roda em seu dedo, me fazendo girar em volta de seu corpo. Somos,
definitivamente, um casal que não sabe dançar, mas que não está nem aí.
Queremos apenas nos divertir e dar boas risadas, e isso é o suficiente. Dou
uma volta de olhos fechados, e na segunda volta, quando meus olhos
finalmente se abrem, eles encontram com um par de olhos zangados bem à
minha frente. Sinto meu coração pular dentro do peito, mas antes que eu
deixe essa sensação tomar conta de mim, repasso mentalmente todas as
merdas que o dono desses olhos já me fez passar até hoje. Minha boca se
fecha em indignação ao perceber que ele me olha extremamente irritado,
como se tivesse qualquer direito sobre mim.
Lorenzo.
Sustento seu olhar e fecho meu rosto, mostrando a ele que o tinha visto e
não gostei nada disso. Volto-me para Lipe e envolvo meus braços em seu
pescoço novamente, beijando sua boca levemente. Ele tem gosto de vodca, e
apesar de eu não gostar muito, nesse momento, eu só quero desviar a atenção
dos olhos de Lorenzo de mim. Talvez, mostrando com quem eu estou, ele vá
aproveitar essa noite bem longe de nós.
Mas estou enganada, extremamente enganada.
Apenas alguns segundos depois, ele e Ruan, o primo idiota com quem
conversei pouquíssimas vezes, estão ao nosso lado. Ruan chega sorrindo e
cumprimentando Lipe com um toquinho no ombro, enquanto Lorenzo se
mantem impassível, apenas segurando seu copo e olhando para os lados.

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Vejo a expressão de Lipe mudar e seu rosto se fechar em uma carranca
discreta, mas que eu conheço muito bem. Ela quase nunca aparece, a não ser
em momentos em que ele sente muita raiva de algo. Meu namorado é um cara
controlado, então eu sei que, apesar de não gostar nada do que vê, ele tentará
ser educado tanto quanto possível.
— Não sabia que você já tinha chegado, Lorenzo — Lipe o cumprimenta
com um meneio de cabeça.
Lorenzo também não sorri, apenas acena em concordância.
— Pois é, cheguei faz dois dias. Nina não te contou? — Ele olha para
mim como se quisesse gravar minha expressão — Nós já nos encontramos,
não é Nina?
— A minha namorada não me disse não — Lipe me olha desconfiado e
enlaça minha cintura, me puxando para perto dele, marcando seu território.
Eu não acredito que o Lorenzo está fazendo esse joguinho estúpido, e o pior:
Lipe está caindo!
Ele desce cada vez mais baixo, meu Deus. Esse cara é sujo.
— Lipe, com você eu só compartilho coisas importantes — Olho
irritada para Lorenzo e volto minha atenção para meu namorado de novo,
que agora sorri aliviado e com um certo sarcasmo. — Ele só passou lá no
escritório para falar com você e nos esbarramos, infelizmente. Nada demais
para ser contado.
— Entendi, linda — Lipe me dá um selinho na frente dos dois, sem se
importar com a presença indesejada deles. Logo em seguida, ele se vira para
os eles e, com um sorriso no rosto, diz: — Agora, se vocês nos derem
licença, eu e minha gata vamos ali beber mais alguma coisa. Bom ver vocês!
Penso em retrucar. Na verdade, abro a boca, mas a fecho logo em
seguida. Engulo em seco, pois não quero chamar a atenção de Lipe por causa
da bebida exagerada na frente desses dois, mas Ruan faz questão de soltar
algo que me deixa com a pulga atrás da orelha, e eu sei que foi
propositalmente, talvez como um aviso velado:
— Cuidado, hein, Lipe? Dá uma segurada no álcool aí — Ele ergue a
sobrancelha — Você sabe que isso sempre acaba mal para você.
Lipe, que já me puxa pelos dedos a caminho do balcão, para e olha para
trás, irritado.
— Ruan, eu curto você, mas não seja um babaca de merda e cuida da
porra da sua vida, pô.

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Por um segundo, me assusto com essa frase. Apesar de ser uma resposta
merecida, não é de seu feitio falar assim com ninguém. Lipe sempre fora de
respostas curtas, mas nunca grossas. É estranho vê-lo agindo desse jeito.
Nem parece o meu Lipe.
Porém, quando eu olho para Ruan, ele não parece nenhum pouco
abalado. Muito pelo contrário, ele ergue o copo e dá uma risadinha
sarcástica, quase como se estivesse acostumado a ver meu namorado agir
assim.
[...]
Depois de alguns copos a mais, eu quero ir embora para casa. Eu havia
parado de beber há muito tempo, mas Lipe não, e eu simplesmente não
consigo proibi-lo, porque ele é um adulto consciente do que faz, e eu não sou
a mãe dele. Eu sempre soube que ele exagerava um pouco na bebida aos
finais de semana, mas nunca cheguei a presenciar nada, e falando com
sinceridade, isso está me assustando um pouco.
Tento a todo momento desviar meus olhos e minha atenção de Lorenzo,
mas confesso que gosto de seu olhar de ciúme para mim e de ódio para
Phelipe. Se ele realmente está sofrendo – o que eu duvido muito – ele
merece. Se eu pudesse, o faria sofrer em todas as oportunidades que eu
tivesse em mãos, de várias formas diferentes.
Esse homem apodreceu tudo o que havia de bom em mim, e nem foi
quando me deixou. Foi depois. É o depois que eu não perdoo de jeito
nenhum.
Ele não saiu nenhum momento do bar, e todas às vezes que meus olhos
iam até ele, ele estava me encarando profundamente. Ruan havia saído uns
minutos com uma morena, mas já havia voltado como o bom cão de guarda
que é. Sempre fora assim e, pelo visto, continuará sendo.
Os Leone pelos Leone.
Família desgraçada.
[...]
Toda vez que eu tento convencer Lipe a ir embora, ele me puxa para
mais uma música, e assim vai me enrolando e as horas vão passando. Vez ou
outra, o pego olhando na direção de Lorenzo, como se deixasse claro o seu
lugar agora, e mesmo que pareça infantil da minha parte, eu gosto disso.
Depois que a última música acabou, eu já havia entrado no clima, e acabo
rindo da situação e da cara de fuzilamento com que Lorenzo nos encara.
Ele claramente entendeu o recado.

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— Quer alguma coisa, linda? Vou buscar algo para beber — Meu
namorado sorri e me beija, animado, mas eu o paro, segurando seu braço
delicadamente.
— Lipe, a gente tinha combinado de ir embora — Faço cara feia. — Eu
já estou cansada. São três da manhã!
Ele revira os olhos como uma criança contrariada.
— Linda, só mais uma música, vai — Ele faz a mesma cara que está
fazendo para mim desde que comecei a pedir para ir embora, porém, decido
ser firme. Eu já havia feito concessões, mas agora eu realmente quero ir.
— Lipe, não dá, sério. Você já me prometeu umas três vezes que seria a
última música. Não quero chegar de manhã em casa. E você já bebeu
demais... — mal consigo terminar de pronunciar a frase e ele se irrita.
— Eu não bebi demais! Para de falar isso! Tá tudo sob controle — sua
voz se altera, mas ele logo abaixa o tom, percebendo o que fez — Eu sei o
que eu estou fazendo, Catarina!
Olho assustada para ele. Definitivamente, não é meu namorado que está
ali – é como se houvesse dentro dele uma raiva que eu não sabia existir.
— Lipe, eu vou embora, você indo ou não — decido avisar, e não mais
pedir, e meu coração se aperta um pouquinho, porque não sei o que está
acontecendo. Ele segura meu braço com firmeza quando eu tento me afastar,
e olhando nos meus olhos com uma expressão que eu nunca vi antes, me diz
nervoso:
— Você não vai sozinha para casa, é perigoso. Você vai quando eu for,
Nina. Assunto encerrado.

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CAPÍTULO 15
Lorenzo

Um sensor dispara dentro da minha cabeça, como se emitisse um sinal


de perigo. Meu coração acelera e nesse momento, nesse exato momento, eu
tenho absoluta certeza: eu amo essa mulher.
Se havia alguma dúvida, ela acaba de ser sanada.
Quando eu vejo Phelipe segurando-a daquela forma pelo braço, sinto
todos os meus sentidos se aguçarem. Ninguém pode fazer isso com a minha
Nina, ninguém.
Dou um tapa no braço de Ruan, que se assusta, e me olha bravo.
— ‘Cê tá louco? — Ignoro sua careta e falo, tentando controlar a raiva
na voz:
— Ele vai fazer merda — aponto com a cabeça Lipe e Nina discutindo e
Ruan faz cara feia — Vamos lá resolver isso.
Ele faz uma cara de dúvida e eu o fuzilo com o olhar.
— Agora, Ruan.
Encaminhamo-nos até os dois e Ruan segura Lipe pelo braço e o afasta
um pouco de Nina, enquanto eu me prostro atrás dela em uma atitude
protetora. Ela me fuzila com o olhar, como quem diz "deixa que eu me viro",
mas eu simplesmente a ignoro. O momento não é para discussões.
— Amigão, já deu por hoje, não acha? — Ruan bate nas costas de Lipe,
de um jeito amigável — Como você não tá podendo dirigir, vamos lá, eu vou
te levar para casa.
— Eu não quero ir pra casa, Ruan. Eu estou tentando explicar isso para
a Nina.

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Olho para Phelipe e sinto pena. Ele é novo, e principalmente um cara
super do bem, além de ser um excelente profissional. Mas existem algumas
questões que o fazem descontar tudo na bebida, e quando isso acontece, ele
se transforma completamente. É meio impossível prever como suas crises
vão acabar, e eu não quero Nina perto dele quando isso acontecer. Não sei o
quanto ela já viu dessa parte da vida dele, mas simplesmente não posso
deixá-la à própria sorte.
— Por favor, Lipe — Nina suplica com os olhos — Vamos pra casa. Eu
vou com você.
Sinto uma pontada no peito. Ela quer ir com ele.
É aí que eu tenho a ideia mais idiota da noite.
— Não — eu falo e puxo Nina para perto de mim. — Ruan, leva o Lipe
para casa. Eu levo a Nina.
Ela se solta com um puxão e me olha, raivosa e cheia de nojo, como se
minha mão estivesse pegando fogo ou pior, como se eu fosse capaz de passar
uma doença para ela.
— Eu não vou com você à lugar nenhum! Nunca!
Ruan se intromete.
— Nina, me ouve. O Phelipe fica meio difícil quando bebe, achei que
você soubesse disso. Eu moro perto dele. Vou levá-lo para casa e o Lorenzo
te deixa na sua. Amanhã eu venho aqui com o seu namorado pegar o carro
dele. É o melhor a se fazer.
— Eu não vou com o Lorenzo para lugar algum. Eu não quero! — Ela
bate o pé como uma criança mimada e isso me irrita. Meu Deus, quando ela
ficou assim tão teimosa?
Talvez nesses oitos anos em que você ficou longe, seu idiota — penso
comigo mesmo.
— Minha mulher... Minha mulher não vai com esse cara — Phelipe
balbucia, mas logo em seguida apaga. Com sorte, Ruan o segura rápido e o
apoia, passando seus braços pelo ombro.
— Merda! Isso sempre termina assim! — ele pragueja e vai em direção
à saída, seguido por mim e por Nina. Sem entender porque estamos fazendo
isso, ela está furiosa, mas eu não estou nem aí para a sua raivinha. Só quero
tirá-la daqui o mais rápido possível e deixá-la em segurança. Com a birra eu
lido depois.
Ruan para ao lado do seu carro, e depois que eu abro a porta de trás, ele
coloca Phelipe – que se ajeita como se estivesse em uma cama – lá dentro,

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batendo a porta com raiva em seguida.

— Da próxima vez, eu vou deixar seu namoradinho por aí, tá me


entendendo? — Ele aponta o dedo no rosto da Nina, mas eu lhe dou um tapa
na mão, fazendo-o abaixá-la.
— Não fala assim com ela, Ruan, você está louco? Ela não tem culpa,
pô! — Me viro em sua direção — Vamos embora Nina, eu te deixo em casa.
Amanhã você fala com o Phelipe e põe isso em pratos limpos. — Ela me
olha impassível, então decido continuar. Não sabia quando eu teria a chance
de falar com ela novamente, e qualquer chance é uma oportunidade de
mostrar que eu voltei por ela: — Avisa ao seu namorado que eu gosto muito
dele, só que da próxima vez que ele te segurar daquele jeito de novo, ele vai
perder todos os dentes da boca de uma só vez.
Vejo sua expressão cair por alguns segundos, tomada pelo susto de ouvir
algo que não esperava e por um milésimo de segundo eu reconheço a Nina
que deixei aqui quando fui embora, mas logo em seguida a marra volta a
tomar conta de sua postura e ela se fecha para mim novamente.
— Eu não vou a lugar nenhum com você — Ela cruza os braços e me
olha, desafiando minha pouca paciência. — Eu prefiro pegar fogo, Lorenzo.
— São três da manhã, Nina. Tá tarde, tá frio — eu bufo, irritado. Alguns
hábitos são difíceis de perder, e eu não sou um príncipe. Nunca disse que me
tornei um — Não ferra com meu humor.
Ruan se irrita e dá a volta em seu carro, assumindo o volante, decidido a
deixar que eu e Nina resolvamos nossos problemas sozinhos.
— Briguem o quanto quiserem. Eu estou indo entregar a encomenda.
Puta merda viu! Essa noite tinha tudo para ser boa! — O vejo acelerar o
carro, sem dar a chance de Nina retrucar.
Quando o carro de Ruan desaparece ao virar a esquina, os olhos de Nina
se enchem de lágrimas. Sei que posso parecer um filho da puta me
aproveitando disso, mas cruzo os braços e digo, resoluto:
— Agora você vai ter que ir comigo. Seu namorado desmaiado já está a
caminho de casa.
Ela me olha ultrajada, quase com nojo, como se eu tivesse uma doença
incurável e contagiosa.
— Eu vou de Uber. Eu não vou com você e acabou!
Definitivamente, eu perco a paciência, e num súbito rompante de raiva,
passo meus braços por suas pernas e a jogo por cima de meus ombros,

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tentando acabar com essa discussão ridícula de uma vez por todas.
— Você vai. Ah, você vai sim! Uma merda que você vai entrar em um
carro com um desconhecido, essa hora da madrugada, com essa roupa
provocante Catarina! Poupe-me, caramba! — Ela esmurra meu ombro com
seus punhos frágeis e bate os pés e pernas, como uma criança de três anos.
Ela pode me bater o quanto quiser, eu não vou deixá-la a mercê dos perigos
assim, só porque ela quer.
A princípio, acho até engraçadinho e dou risada, mas percebendo que
sua atitude não está fazendo efeito, ela morde meu ombro. Com toda a
maldita força que ela tem na boca.
Merda!
— Eu vou te matar, Catarina! — Seguro com a máxima força minha
vontade de jogá-la no chão. Ao invés disso, abro o carro e a coloco no
banco do passageiro. — Fica quieta aí, porra!
Travo a porta do carro para ela não escapar e dou a volta rapidamente,
entrando no lado do motorista. Travo as portas e ela tenta abrir
freneticamente, gritando impropérios a plenos pulmões, inventando
palavrões para me ofender.
Seguro seus pulsos e, mesmo com sua resistência, consigo olhá-la nos
olhos, falando muito sério:
— Para, Catarina! Eu estou tentando te ajudar! Eu não vou te estuprar, te
sequestrar, nem nada disso! Eu só quero deixar você em casa, em segurança!
— Ela para de se debater e parece, pela primeira vez, me escutar. Seus
olhos marejados e cheios de dor me encaram e, nesse segundo, eu sei que há
esperanças.
Se eu não fizesse nenhuma diferença, como ela mesma diz, sua reação
seria de descaso, não essa. Qualquer mínimo toque meu parece matá-la por
dentro e todo ser humano sabe o que isso significa.
Eu ainda tenho uma ficha nesse jogo.
Ela para de me esmurrar, mas eu permaneço olhando dentro de seus
olhos, até que, enfim, ela desiste. Encolhe-se em um canto do banco e
protege o rosto entre os braços, sem dizer uma palavra. Tudo bem. Posso
conviver com isso.
Melhor o silêncio do que os xingos.
Fazemos o caminho todo em silêncio, até parar em frente à humilde casa
em que ela ainda mora. Não mudou muita coisa durante esse tempo em que

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fiquei fora, mas senti falta da Lilica no portão, com seu rabinho abanando e
sua alegria, sempre à postos para nos recepcionar.
Nina continua encolhida no canto do banco, abraçando as pernas e
escondendo o rosto entre os braços. Toco seu ombro levemente, chamando-a.
— Nina, chegamos.
Ela ergue o rosto e leva a mão à maçaneta, mas eu ainda não a destravei.
Ela me encara, esperando uma atitude, então eu solto a primeira coisa que
me vem à cabeça, em uma tentativa desesperada de fazer esse momento durar
mais:
— A Lilica, ela...?
Nina dá de ombros.
— Morreu ano passado.
— Sinto muito — digo, verdadeiramente entristecido. Sei o quanto
aquela cachorra era importante para Nina, e sei que ela deve ter sofrido
bastante com sua partida. Minha Nina sempre fora sentimental demais.
— Tudo bem, eu já me acostumei com a falta dela — Ela volta a olhar
para a maçaneta. — Você pode destravar agora? Eu quero entrar logo.
Essa é uma guerra perdida, então destravo a porta e a observo descer.
— Ah, que ótimo — ela ri sarcástica ao pisar no chão — Eu perdi meu
sapato novo por sua culpa.
Ela retira o que sobrou no pé e o joga no meio fio, irritada.
— Me desculpa. Eu te compro um novo amanhã — Tento me redimir.
— Não quero — Ela dá a volta no carro e vai até o portão, destrancando
e fazendo um enorme barulho por causa das grades antigas.
— Eu faço questão — insisto, mas ela não parece disposta a ceder tão
fácil.
— Eu já disse que não quero, Lorenzo. Eu não quero nada vindo de
você, nada! — Quando ela finalmente consegue abri-lo, entra e me encara,
com uma mágoa e um rancor tão grandes que meu peito se contrai, quase
como se ela tivesse conseguido me atingir fisicamente. Como um estalo, ou
uma luz, eu finalmente entendo: esse ódio não é apenas por tê-la deixado no
passado. Tem algo muito maior por trás de tanta raiva, eu sei. Eu só não sei
o que é, mas eu vou descobrir. — Eu perdi coisas muito mais importantes do
que um sapato por sua causa, e eu ainda estou de pé. O seu maldito dinheiro
não compra o mundo, entenda.
Dito isso, ela entra e eu fico parado, com essas palavras ecoando em
minha cabeça, me dando ainda mais certeza de que minha desconfiança está

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certa. Desço do carro, recolho o sapato atirado com tanto ódio na rua e sigo
para minha casa, disposto a descobrir o que aconteceu com Catarina depois
que eu deixei o Brasil.
A minha luta só está começando.

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CAPÍTULO 16
Nina

Entro em casa descalça, cansada e irritada pelo fim horrível que uma
noite tão boa teve. Subo para o meu quarto, me sentindo humilhada e
vulnerável. Por que ele tinha que voltar? Por que ele tinha que me procurar?
Por que ele tinha que existir?
Faz oito anos!
Oito malditos anos desde que ele foi embora sem olhar para trás! Nunca
recebi um telefonema, uma carta, um e-mail, nada. Sequer um recado, um
gesto mínimo de humanidade e condolências por uma perda que,
teoricamente, também deveria ser dele. Então, por que ele tinha que voltar
logo agora e querer se enfiar na minha vida assim, como se nada tivesse
acontecido? Como se o lugar dele ainda estivesse aqui, guardado e seguro?
Arrasto-me até o banheiro, tiro minha roupa e entro no chuveiro quente.
Ergo o rosto para a água e fecho os olhos, esperando que esse banho lave de
mim essa sensação de vazio que nunca foi preenchida desde que tudo se
perdeu. O problema é que o ditado popular é verdadeiro: água e sabão lava
praticamente tudo, menos a maldade humana. E essa, está impregnada na
minha pele, como uma tatuagem que eu odeio e não aguento mais ver em
mim.
Esfrego-me com força, quase com raiva, enquanto penso em tudo o que
aconteceu hoje. Preciso tirar de mim esse cheiro de álcool misturado com
cigarro e perfume. Perfume de Phelipe e de Lorenzo. Por mais que pareça
loucura, eu sinto o cheiro dos dois ao meu redor, como um lembrete de que
eu estou em um lugar onde não deveria estar. Um lembrete igual ao que me
deram quando me aproximei de um Leone anos atrás, e eu ignorei.

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Escorrego no vão entre a parede e o box, e me encosto ali, desanimada e
confusa. As lágrimas tímidas chegam aos meus olhos, e eu me deixo chorar,
como há muito tempo não chorava. É um grito de dor que está entalado em
minha garganta há anos. Eu choro não só pela volta dele, mas por tudo que eu
passei quando ele se foi.
Por tudo que eu passei sozinha.
Eu nunca o perdoarei por não estar ao meu lado no pior momento da
minha vida. No momento que era para ser o pior momento da nossa vida.
Saio do chuveiro e coloco meu pijama quente. Penteio meus cabelos
quase curtos e os enxugo bem com a toalha. Sento-me na beirada da cama, e,
depois de alguns minutos pensativa, abro a última gaveta da cômoda. Tiro de
lá a pasta branca e a abro. Olho todos os papéis, todos os exames e todas as
receitas. Analiso todos os custos de uma operação que nunca chegou a ser
feita, passando o dedo por cima de cada número, me lembrando do que me
motivou a estudar e ser quem eu sou hoje, e, principalmente, quem eu ainda
pretendo ser. Mesmo que ela não esteja mais aqui, um dia eu ainda terei
condições de ter tudo o que lhe foi negado. Será por ela, e apenas por ela.
Coloco a pasta de volta na gaveta e puxo de lá a caixinha de plástico
amassada. A caixinha que nunca chegou a ser aberta.
Aperto-a contra meu peito e choro. Choro principalmente por todos os
momentos que me foram roubados. Choro por hoje não ter nada mais do que
uma caixa em minhas mãos, onde eu deveria ter outra coisa e não tenho.
Não tenho por culpa dele.
[...]
— Nina! — minha mãe grita ao pé da escada — Ninaaaaa, desce aqui!
— Mãe, calma! — Desço correndo, pulando de dois em dois os degraus,
e me deparo com um rapaz na porta de casa, segurando uma caixa vermelha
com um laço branco. Ele sorri, imaginando que ficarei feliz ao ver o enorme
pacote de presente debaixo de seus braços, mas meu sorriso morre no
mesmo segundo, porque sei do que se trata.
— Esse moço disse que a entrega é para você — Minha mãe sorri,
ansiosa como uma criança. Ela adora surpresas, principalmente as
românticas. Não posso julgar, eu já fui como ela um dia — Será que é do
Lipe?
Minha mãe adora o Phelipe, e quando contei que estávamos juntos, foi a
glória para ela. Ela nunca gostou do Lorenzo, não por ele ser rico, mas por
ele ser rico e arrogante. Com o Lipe, ela sabe que as coisas são diferentes.

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Seus pais são pé no chão e muito humildes, e criaram o filho para ser da
mesma forma.
Desconfio o que seja esse presente, e sei que não é de Phelipe. É da
última pessoa que eu quero ver na face da terra.
— Não, mamis. Acho que sei de quem é — Tiro o cartão que está preso
ao laço e leio, com uma raiva inexplicável tomando conta de mim. Não
posso acreditar na falta de noção desse ser.
"Comprei um sapato igual ao que você perdeu por minha causa, minha
Cinderela. Não preciso procurar a dona dele para declarar meu amor, só
preciso fazê-la acreditar em mim novamente.
Com todo meu amor,
Lorenzo”
Pego uma caneta em cima da estante e viro o cartão, deixando o meu
recado lá. Sorrio de forma maquiavélica ao fazer isso, porque sei que irei
irritá-lo ao extremo, além de deixar claro o meu mais sincero foda-se para o
seu falso arrependimento. Se ele acha mesmo que, depois de oito anos, irá
me comprar com palavras doces e presentes, ele está muito, muito enganado.
Nem todo dinheiro do mundo irá me fazer confiar novamente em
Lorenzo Leone.
Dobro o cartão e enfio de qualquer jeito entre o laço novamente. Minha
mãe me olha assustada, sem entender nada. Depois eu penso em como vou
explicar para ela essa história.
— Moço, pode devolver ao remetente, por favor? — Jogo a caixa
vermelha nos braços do entregador e fecho a porta, sem cerimônia.
Volto para meu quarto a fim de me arrumar. Preciso ver como meu
namorado está depois da noite terrível de ontem.
Ele tem algumas explicações a me dar.
[...]
— Me perdoa, Nina — Lipe me abraça e enterra seu rosto em minha
cintura. Afasto-me e olho em seus olhos, com pena. Lipe não é ruim, de
forma nenhuma. Ele é ótimo, incrível.
Ele só teve um mal dia.
— Tudo bem, mas não faça isso de novo. Nunca mais, está me ouvindo?
— Suspiro e mexo em seu cabelo, que eu tanto amo. Ele está acabado, e
quando cheguei, sua mãe me avisou que ele estava se sentindo muito
culpado. Resolvi dar uma chance, porque eu conheço a pessoa incrível que

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ele é — Eu realmente me assustei com a sua atitude, Lipe. Com o modo
como você falou comigo...
Ele me abraça mais forte.
— Eu sei. Eu acho que nunca vou poder pedir desculpas o suficiente —
diz, beijando minha mão. — Prometo que vou me controlar da próxima vez.
Só Coca-Cola, linda. E água, muita água.
Dou risada de seu desespero em tentar me convencer de que a noite de
ontem não se repetirá.
— Tudo bem, eu acredito em você. Mas só porque é você, Lipe. Eu te
conheço, mas, por favor, não me decepcione.
— Nunca mais! — ele enfatiza com tanto desespero, que, por um
segundo, eu fico intrigada. É como se ele já estivesse acostumado a ter que
prometer coisas desse tipo. — O Ruan te deixou em casa direitinho? — ele
me pergunta, mudando de assunto. Engulo em seco, sem saber como dizer a
ele sobre como voltei para casa ontem à noite, mas eu não posso mentir
sobre isso.
— Não foi o Ruan quem me levou, Lipe... — começo, testando o
terreno, e ele me olha sem entender — O Ruan só trouxe você. Quem me
levou em casa foi o Lorenzo.
Seu rosto muda de cor imediatamente, deixando claro como isso o
deixara irritado.
— Ele fez o quê? — Phelipe se levanta irritado e me olha, inquieto,
como se buscasse algum resquício de mentira na minha resposta — Nina, ele
não tentou nada, não é?
Por mais que eu o odiasse, eu devo admitir que ele foi um completo
cavalheiro. Fingido e mentiroso, mas, ainda assim, um cavalheiro. Não
tentou nada.
— Não, ele só me deixou em casa. Trocamos poucas palavras, e,
acredite, a maioria foram de puro ódio — Eu rio, e Lipe não aguenta, me
acompanhando e achando graça da situação desconfortável. — Ele só não
queria que eu pegasse um táxi com a roupa que eu estava. Achou perigoso.
Lipe balança a cabeça, dando um sorriso sarcástico, quase venenoso.
— Às vezes, Deus exagera no castigo. Não acredito que vou ter que
agradecer aquele mané por isso.

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CAPÍTULO 17
Lorenzo

— Ela devolveu a caixa? — pergunto, incrédulo, ao entregador,


enquanto seguro a caixa com o sapato escolhido a dedo nas mãos. Nunca na
vida eu escolhi algo pessoalmente, e, na primeira vez que eu faço isso, sou
recusado com louvor. Essa mulher quer me enlouquecer, só pode! — Ela só
pode estar de sacanagem comigo!
O entregador se assusta com a raiva latente na minha voz.
— Ela deixou um recado no cartão, seu Lorenzo — o rapaz me avisa,
um pouco amedrontado. — Escreveu na minha frente. Parecia bem irritada.
Retiro o cartão do meio do laço e o abro. Leio atentamente cada palavra
e, no fim, não sei se rio ou se choro. Imagino-a irritadinha e extremamente
linda escrevendo isso, e parece uma visão maravilhosa, mas, ao final,
concluo que as palavras realmente me magoaram. Que mulher rancorosa,
meu Deus. Faz oito anos!
"Gaste seu dinheiro com quem precisa ou o quer. Já te avisei uma vez
e não vou avisar de novo: seu maldito dinheiro não compra tudo, e não irá
comprar sentimentos, muito menos os meus. Se ele comprasse, te diria
para comprar um pouco de caráter. Entenda: de você, a única coisa que eu
quero é distância”.
Amasso o cartão e, ainda desacreditado de sua atitude, o deixo escapar
de minhas mãos até cair no chão. O que ela quer de mim, meu Deus? Sangue,
suor e lágrimas? Se for isso, ela terá, então. Eu não vou medir esforços. Eu
não voltei de tão longe para morrer na praia quando eu sinto que ainda há
algo entre nós. Nenhum dos dois seguiu com a vida e há um motivo para isso.
Só preciso fazê-la enxergar.

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— Ei, você tem namorada? — pergunto ao entregador.
— Tenho sim, seu Lorenzo, por quê? — ele responde, meio
desconfiado.
— Acha que servem nela? — Abro a caixa e ele olha lá dentro, curioso.
— Servem sim, é o número dela.
Devolvo a caixa para seus braços.
— Então, aproveita que eu estou seguindo o conselho que recebi no
bilhete e leva para sua namorada. Finja que foi você quem comprou e vai
ganhar uns pontinhos. São caros, ela vai amar.
O rapaz sorri, agradecido.
— Ela vai adorar mesmo! Obrigado! — Ele sai pela porta, todo feliz. —
Até mais, seu Lorenzo. Precisando de mim, é só chamar.
Ele sai e eu bato a porta, frustrado.
A coisa será mais difícil do que eu pensei.
[...]
— Parece que você está sendo perseguido, primão — Ruan me cutuca
com o cotovelo e ri, apontando a direção em que Nina e Phelipe estão. Sigo
com os olhos o local em que o dedo de Ruan aponta sem nenhum pudor e
respiro fundo. Quando Ruan me convidou para vir ao clube, achei que seria
uma boa oportunidade de espairecer e colocar as ideias em dia, talvez
esquecer um pouco o ódio que ela insiste em sentir por mim e pensar em
novas formas de tentar uma aproximação. Encontrá-la ali só me faz querer
gritar a plenos pulmões e pedir uma explicação plausível do destino diante
dessa palhaçada toda.
Não basta agora ela ser a namorada do meu amigo, ela também tem que
estar em todos os malditos lugares grudada nele para me lembrar disso?
Observo-a colocar os óculos escuros e pequenas mechas de seu – agora
– cabelo curto e loiro caem graciosamente em seu rosto. Phelipe diz algo que
a faz rir discretamente e lhe entrega o óleo de bronzear, que ela lambuza em
todo o corpo. Vejo-a se recostar na esteira e jogar a cabeça para trás,
esticando o longo pescoço branco para que pegue algum sol. A mão de
Phelipe busca a dela entre as duas esteiras e vejo um sorriso de canto se
abrir em seu rosto.
Ela gosta dele. Ela gosta dele de verdade, como um dia gostou de mim.
E isso me mata por dentro.
Puxo Ruan para um quiosque do outro lado da piscina. Um local que me
permite observá-la sem ser visto. O que eu menos quero é que ela pense que

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eu a estou seguindo.
Alguns colegas do meu primo se aproximam e iniciamos uma conversa
agradável. Um deles é médico e disse que me apresentaria à clínica onde
trabalha. Quero muito voltar a trabalhar em um hospital público, mas sei que
logo de início não conseguirei, mesmo com o meu currículo. As coisas no
Brasil tendem a ser mais difíceis, e eu tenho que conquistar um lugar aqui,
mesmo que na Alemanha esse lugar já fosse meu.
Estou começando do zero em todas as esferas da minha vida, e me
pergunto, pela primeira vez desde que cheguei aqui, se eu realmente havia
tomado a decisão certa.
Tento me concentrar na conversa, mas vez ou outra meus olhos vão
instintivamente até ela. Penso na noite passada, e em como ela me olhou com
um ódio genuíno, quase físico. Dói saber que aqueles mesmos olhos
maravilhosos olham para Phelipe com carinho e admiração. Em um certo
momento, ele se inclina e a beija levemente, e isso quebra meu coração,
então eu percebo o quanto ela ainda é importante para mim.
O quanto nunca deixou de ser.
Ela foi o primeiro passo para eu ser o ser humano melhor que sou hoje.
É uma pena que ela não acredite nisso, mas eu sei o quanto isso é culpa
minha. Eu destruí o que ela sentia por mim, e nada mais justo do que ter que
reconstruir tudo, tijolinho por tijolinho, se eu quero que ela sinta novamente.
Seu sorriso é lindo, quase viciante de olhar. Sua pele, sua voz... Tudo
me faz enlouquecer, e cada vez que olho para os dois juntos, tenho a
sensação de estar morrendo aos poucos.
E a sensação só piora quando ela finalmente me vê e lança um olhar
mortal, carregado de raiva e frustração, como se me dissesse, mesmo sem
palavras, que eu venho estragando todos os seus melhores momentos desde
que cheguei.
Decido ir embora do clube, mas não sem antes ter a certeza dolorosa
de que ela vai me odiar para o resto da vida.

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CAPÍTULO 18
Nina

Phelipe me pergunta pela segunda vez se minha comida está ruim, mas
eu demoro a entender suas palavras. Por mais que eu esteja aqui, na sua
frente, meus pensamentos não conseguem ficar alinhados. A volta de Lorenzo
tirou qualquer estabilidade que havia debaixo dos meus pés, e eu sinto uma
profunda raiva de mim por isso. Quero, de toda forma, tirar essa questão da
cabeça e dizer a mim mesma que não tem importância alguma, mas eu sei que
é mentira. Não que ele em si tenha qualquer importância, porque não tem.
Trata-se muito mais da bagagem emocional que ele trouxe junto consigo. Tê-
lo por perto me faz lembrar de tudo o que aconteceu. Ver seus olhos verdes
só me faz pensar em uma coisa: os olhos da minha filha eram exatamente
iguais.
Desde que ele foi embora, eu tenho tentado levar minha vida da forma
mais correta possível. Queria apenas esquecer tudo o que aconteceu e seguir
em frente. Mas como apagar a perda de um filho? Quem, em sã consciência,
após ver ultrassons, ouvir o coração e escolher um nome, simplesmente finge
que aquele ser nunca existiu dentro de si? Quem, após acolher em seus
braços um corpinho frágil, não sente que uma parte de seu coração bate fora
do peito?
É impossível.
Desde então, eu venho trazendo minha vida em piloto automático.
Programei-me para sair do meu antigo emprego e eu consegui. Programei-me
para estudar, batalhar e conseguir um bom cargo na minha área. Consegui.
Coloquei na minha cabeça que tentaria seguir em frente e ter uma vida
amorosa, consegui também.

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Então, por que a volta dele tira qualquer esperança de felicidade que eu
pudesse ter em vista?
Phelipe levanta o braço, chamando a garçonete. Ela se aproxima e seus
olhos brilham em direção a ele. Saio do transe em que estou a tempo de ver
a cena e sorrio irônica, porque isso é habitual. Phelipe não é um modelo de
beleza convencional, como Lorenzo, por exemplo, apesar de também ser
muito belo. Mas o que mais chama atenção nele é o fato dele ser cativante,
quase encantador, eu diria. O modo como ele sorri para as pessoas é
enigmático, e seus dentes perfeitos fazem metade do trabalho. Busco sua mão
pela mesa e enlaço meus dedos nos seus, mostrando, de uma forma clara e
direta, que ele não está disponível. Phelipe percebe meu joguete e sorri com
o canto da boca, completamente divertido. Após pedir um uísque, ele se
volta para mim, ainda rindo.
— O que foi isso, meu amor? — ele pergunta, não porque não saiba a
resposta. Ele apenas quer ouvir de mim. Confesso que às vezes, eu não sou
tão carinhosa quanto deveria ser, e ter ciúme de Phelipe é uma forma dele
ver que, mesmo que eu não demonstre tanto, eu me importo, e muito.
— Apenas um aviso de que você não está sozinho. A bonita ali se fez de
cega para isso. — Reviro os olhos, o que faz o sorriso dele triplicar de
tamanho.
— Eu adoro não estar sozinho. Por mim, andaria com um aviso no meio
da testa de que já tenho dona — Ele beija os meus dedos, depois os acaricia
em um movimento delicado, e eu sorrio por sua última frase, mas então me
lembro do que ele pediu.
— Lipe, você vai beber uísque na hora do almoço? — Uma pequena
ruguinha se forma em minha testa. Odeio saber que, a cada dia que passa, ele
se torna mais dependente do álcool, mesmo que ele negue isso com
veemência. Apesar de querer muito pedir que ele não beba nada, não quero
parecer controladora, então eu só pergunto mesmo, torcendo para ele
entender meu incômodo.
— É só uma dose, Nina. Eu tive uma manhã estressante no fórum. Não
vou ficar bêbado. Você tá parecendo minha mãe — Ele revira os olhos pra
mim, de uma forma quase grosseira. Em anos de convivência, essa é a
primeira vez que ele desdenha de um conselho meu, o que me dá uma
sensação horrível de vazio.
— Tudo bem, eu só fiz um comentário — Retiro minha mão da sua e
volto a mexer em minha comida, que já está quase fria.

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Ele suspira, visivelmente perturbado, e enfim me diz:
— Nina, me desculpa, amor. Não quis que saísse assim. Mas eu tenho
controle sobre mim, ok? O que aconteceu naquela noite foi um erro, mas não
vai se repetir. Eu prometi, não prometi? — Ele ergue meu rosto, insistindo
em me olhar nos olhos.
Dou de ombros, resignada. Não adianta discutir, ainda mais com um
advogado como Lipe. Ele me convenceria de que a terra é quadrada se ele
realmente quisesse.
Após alguns minutos em silêncio, meus pensamentos se voltam
novamente para o retorno de Lorenzo. Por que isso me perturba tanto, meu
Deus? O modo como ele me tratou na noite passada e a forma como me
olhou no clube fundiam meu cérebro. É como se eu visse de novo o Lorenzo
de vinte anos. Lindo, irresistível e incrivelmente falso. O dom de manipular
não havia mudado em nada, pelo jeito.
— Você está bem? — Lipe me olha intrigado, mas com uma pontada de
preocupação genuína nos olhos, e de repente, me sinto mal por estar
pensando nisso quando deveria estar de corpo e alma aqui, com ele.
— Estou sim, claro. Acho que ando pensando demais no trabalho — dou
uma risada sem graça, mas acho que ele compra a desculpa, pois quer saber
mais sobre o que ando fazendo.
— Você tá preocupada com o caso da Indústria Maxxis? — Ele se
recosta na cadeira, me olhando com atenção.
O caso da indústria Maxxis já está quase resolvido, mas como eu estou
cuidando sozinha dessa questão, decido que será isso mesmo que eu usarei
para justificar o fato de estar tão aérea.
— Sim, estou preocupada com alguns pontos. Mas acho que sou capaz
de resolver antes de enlouquecer. — Forço um sorriso.
Ele sorri de volta e acaricia minha mão por cima da mesa.
— Claro que é. Eu escolhi a melhor — Ele pisca e volta a falar sobre
alguns clientes do escritório. Em poucos segundos, deixamos de ser um casal
de namorados e passamos a ser colegas de trabalho. Na verdade, sempre
acaba assim, de uma forma ou de outra. Não importa onde estivéssemos ou
sobre o que falássemos, o assunto sempre acaba em trabalho, trabalho e
trabalho.
Após pagar a conta, Phelipe enlaça seu braço em minha cintura e nos
dirigimos até o carro.

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— Estava pensando... — Ele afivela o cinto e coloca os óculos escuros
enquanto fala animadamente: — Hoje tem a inauguração daquela boate nova
perto da estação de trem. Que tal irmos para dar uma conferida?
Dou uma leve torcida de nariz. Eu realmente não estou no clima, e como
também estou sem dinheiro, prefiro declinar do convite. Não que Lipe
realmente me deixe pagar qualquer coisa quando saímos, mas tenho meu
orgulho, e isso já está ficando um pouco chato.
— Acho que não. Estou um pouco cansada — Peço desculpas com o
olhar e ele dá de ombros, um pouco chateado, mas compreensivo.
— Então você poderia dormir em casa hoje, né? Quero ficar um pouco
com você — novamente, a minha vontade é recusar. Por mais que eu adore
dormir com Lipe – ele é carinhoso, cuidadoso e faz as coisas serem
mágicas – hoje não estou com clima para sexo, definitivamente.
— Lipe, hoje eu vou ficar em casa. Meu pai não está bem, e eu já fiquei
o dia todo fora. Eu quero estar lá se ele precisar. — Não é mentira, de
qualquer forma. A saúde do meu pai vem ficando cada dia pior, e eu sei,
mesmo que seja uma verdade difícil de engolir, que eu preciso aproveitar
cada momento que eu puder ao seu lado, antes que seja tarde demais.
Ele suspira, mas sei que entende.
— Tudo bem, linda. Seu pai em primeiro lugar sempre. Eu te entendo —
Beija minha boca suavemente e sorri. Ele dirige em silêncio até a minha
casa. Despeço-me com um habitual beijo no portão e, antes de entrar no
carro, Lipe diz a frase de todos os dias, que eu amo ouvir e que me dá a
sensação de que, por mais que o mundo seja difícil e as pessoas más, eu
sempre terei um lugar seguro para estar:
— Eu te amo, minha Nina. Se você precisar, me liga. Eu venho
correndo.

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CAPÍTULO 19
Lorenzo

Raul é um homem com cara de poucos amigos. Loiro, alto e ossudo, o


jaleco lhe cai no corpo como uma luva. Já faz alguns minutos que estou em
seu escritório, esperando para ser atendido, mas só agora ele resolve
levantar a cabeça e finalmente me olhar nos olhos. Ele analisava prontuários
e fichas técnicas desde que entrei em sua sala, deixando bem claro que
minha presença ali não muda em nada sua atarefada rotina. Não posso julgá-
lo. Como médico, sei que certas coisas pedem urgência e nossa total
dedicação, e eu jamais atrapalharia um cara que salva vidas justamente por
também ser um cara que salva vidas.
— Você deve ser o Lorenzo — Ele estende a mão, apertando a minha de
uma forma firme — Ouvi falar de você. Boas coisas, claro. Residência na
Alemanha, hein?
Sorrio com a menção à minha residência. Apesar dos meus
arrependimentos pessoais, ter estudado onde estudei é um enorme motivo de
orgulho.
— Sim, eu voltei há pouco para o Brasil... Por motivos pessoais, nada
relacionado ao meu trabalho. Deixei meus pacientes com o coração partido e
uma ótima reputação onde trabalhei, mas era necessário.
— Espero que tenha valido a pena — Ele dá de ombros, como se
quisesse tacar em minha cara que a oportunidade de uma residência na
Alemanha fosse coisa para poucos. Novidade, Doutor, todos fazem isso
comigo desde que cheguei aqui. Já me acostumei.
— Valerá, eu tenho certeza — Sorrio em sua direção, confiante, e ele
aquiesce.

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Ele passeia comigo pelos corredores da clínica, me explicando a
história deles e como funcionam os tratamentos por aqui. Aparelhagem de
primeira, salas espaçosas, muitos profissionais, uma área de terapia
intensiva muito bem equipada, incluindo uma parte pediátrica e um ambiente
bem elaborado para amenizar o incômodo daqueles que já sofrem demais
com essa doença maldita.
— Nós somos uma das melhores clínicas oncológicas de Minas — Raul
diz orgulhoso, e eu compreendo seu orgulho. Com apenas uma olhada eu
consigo ver o quanto o trabalho deles é incrível. É fato que a estrutura deles
é comparável aos centros oncológicos da Alemanha, mas também é mais do
que óbvio que os tratamentos ali custam o que uma pessoa simples usaria
para viver durante toda uma vida.
Durante minha residência, eu aprendi que muitas pessoas morrem por
não terem direito à um tratamento digno, e isso me revolta, então é por isso
que decido tentar um acordo com Raul, que é o diretor e também dono da
clínica. Ele sabe muito bem que a minha família tem mais dinheiro do que eu
poderia gastar durante toda a minha existência, e eu explico a ele que quero
voltar a trabalhar apenas para ter uma ocupação na cabeça, então partimos
desse princípio e começamos uma negociação. Tenho um plano em mente, e
se não for com ele, eu conseguirei em outra clínica, com certeza.
Acordamos o seguinte: trabalharei de segunda à sexta totalmente de
graça, se ele me permitir abrir a clínica aos sábados para consultar pacientes
de baixa renda. Sendo assim, tudo que for gasto com aparelhagem, remédios
e outras coisas pela clínica será pago com o que eu deveria receber como
salário.
A princípio, ele achou que aquilo poderia afastar alguns dos seus
clientes, mas eu consegui convencê-lo de que filantropia está em alta, e que
muitas pessoas olhariam aquele gesto com bons olhos, sem contar o quanto
pessoas sem renda seriam ajudadas. Minha sorte, é que apesar da casca
grossa, Raul parece ser um cara do bem, e acaba aceitando a proposta. Saio
de sua sala com a sensação de realização e um alívio enorme no peito,
sensação essa que é trocada imediatamente por desespero quando vejo Nina
sentada na recepção da clínica, chorando.
O que ela está fazendo nessa clínica?
Aqui só se trata câncer.
Puta merda, o que ela está fazendo aqui?

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Antes que eu consiga me parar, corro até ela, com a voz denunciando
minha agonia.
— Nina? — Ela vira seu rosto em direção ao meu, com as lágrimas
descendo por seu colo. Seu cabelo loiro está grudado em algumas partes de
sua testa e sua expressão me mostra que, nem em casos graves, sua raiva por
mim diminui um milímetro sequer.
— Você tá me perseguindo, seu doente? — Ela afasta as lágrimas dos
olhos com as costas da mão e se vira pro outro lado novamente, respirando
fundo, como se tentasse não perder a paciência — Isso tá ficando ridículo,
Lorenzo.
— Eu não estou te perseguindo, para com isso. — Viro seu rosto com a
minha mão, de forma delicada — O que você tá fazendo aqui, pelo amor de
Deus?
Ela me encara por alguns segundos, como se estivesse ultrajada com
minha invasão à sua privacidade. No fundo, ela não deixa de estar certa.
Perdi o direito de fazer perguntas quando fui embora e a deixei, mas isso é
mais forte do que eu. Eu preciso saber.
— O que você está fazendo aqui? — ela me devolve a pergunta,
entredentes.
— Eu trabalho aqui agora — Viro novamente seu rosto, que ela insiste
em afastar de mim a todo custo. — Por favor, eu sei que não tenho direito de
nada, mas me fala. Eu tô ficando assustado.
— Ainda bem que você sabe. — Seu olhar de raiva é lançado sobre
mim, mas não me deixo abater. Apenas espero, e ela entende que eu não
desistirei, então coloca as duas mãos no rosto, escondendo os olhos, até que
por fim se entrega:
— Meu pai — ela solta, e de imediato volta a chorar desesperadamente,
como se, por um segundo, desistisse da nossa guerra particular. — Ele
acordou muito mal hoje, precisei correr com ele até aqui.
Sinto uma dor profunda me acertar bem no meio do estômago. Saber que
minha Nina está sofrendo por algo tão cruel me faz ter náuseas.
Talvez eu possa ajudá-la de alguma forma.
— Já é diagnosticado? — tento sondar, saber se ela ainda está no modo
trégua.
— Metástase Hepática avançada. — Ela me olha com aqueles olhos
grandes, suplicantes, e, por um mísero segundo, vejo minha Nina de
dezessete anos, tão vulnerável. — Ele descobriu há alguns meses.

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Fecho os olhos, respirando fundo, mas não a deixo perceber o quanto
essa informação me desanimou. Sinto um ódio muito grande de qualquer tipo
de câncer, mas esse, para mim, sempre foi o pior. O estado do paciente é, em
geral, muito triste.
— Dor abdominal? — Ajoelho-me e encaro seus olhos de frente,
aproveitando a mínima abertura que ela me deu.
Ela balança a cabeça, concordando, e não fala nada sobre estarmos tão
próximos.
— Vamos aguardar o médico — digo, tentando passar confiança.
— Vamos? — ela pergunta, surpresa pelo plural empregado na frase.
— Sim, tem alguém aqui com você? — Olho para os lados, à procura da
mãe dela ou até mesmo de Phelipe.
— Não. Não avisei minha mãe... Quero saber antes o que aconteceu.
Não dá pra preocupá-la à toa, ela já anda muito mal com tudo o que vêm
acontecendo. Minha mãe não aguenta mais tragédias — ela diz, e,
momentaneamente, me sinto por fora de sua vida. O que será que houve de
tão ruim enquanto estive fora?
— E o Lipe? — pergunto com um gosto amargo na boca.
— Ele não me atendeu, não sei por quê. — Ela baixa os olhos, mexendo
nas mãos, ficando, de repente, consciente de como estamos conversando sem
nos agredir. E, como se fosse necessário, levanta o muro novamente entre
nós: — Lorenzo, pode ir para casa. Eu me viro aqui.
— Para de ser assim, pelo amor de Deus, Catarina... — praticamente
imploro, me utilizando de uma paciência que eu sequer sabia que tinha, e ela
me olha assustada. — Eu quero ficar aqui. Sei que você tem todos os
motivos do mundo para me odiar, mas me deixa tentar te ajudar de alguma
forma. Eu não estou pedindo nada em troca, nada!
— Você sabe dos meus motivos, não pense que você está acima do bem
e do mal, Lorenzo — suas palavras saem acompanhadas de uma raiva
indescritível, e mais uma vez eu me pergunto o motivo real de tanto ódio
direcionado a mim. Não podia ser somente por eu ter ido embora, podia?
Esperamos alguns minutos em silêncio, até que a médica responsável sai
da sala com a prancheta na mão, analisando alguma coisa. Depois de alguns
segundos ela levanta o rosto, procurando por algum parente ou responsável.
— Catarina Nascimento? — Ela olha no prontuário e Nina praticamente
se joga da cadeira em direção a ela.

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— Sou eu, doutora. Como meu pai está? — Ela torce as mãos em
aflição, e meu coração se contorce por seu medo. Não consigo imaginar
estar perdendo alguém que amo assim, aos poucos.
A doutora nos olha com uma expressão que eu conheço muito bem, e
meu coração gela no peito.
Más notícias.
— Ele teve de ser entubado, Catarina. A dor abdominal forte que ele
sentiu se deve à uma ruptura do tumor. Isso acabou causando um sangramento
interno, por isso tivemos que tomar medidas rápidas.
— Ai meu Deus! — Nina se segura na parede, mas eu vou ao seu
encontro e a seguro. Passo seus braços em torno de mim e acaricio suas
costas. Ela enfim se rende e segura firme em minha camisa, chorando
convulsivamente, enquanto seus dedos torcem o tecido.
— Meu amor, calma — falo essas palavras inconscientemente, mas ela
nem se dá conta, tamanha sua dor. — Liga pra sua mãe, é importante vocês
estarem aqui nesse momento, perto dele.
— Você acha que ele vai morrer? — Ela me olha assustada, e eu quero
me dar um chute por meu modo tão profissional de dizer as coisas.
— Não, não é isso. Calma... Ele está sendo tratado. Só disse que é bom
vocês estarem juntas, para mandarem boas energias a ele.
Ela concorda silenciosamente, fazendo um gesto com a cabeça, e se
afasta para fazer a ligação, enquanto eu me dirijo à médica responsável.
— Choque hipovolêmico? — Peço permissão para ver a ficha e ela me
estende os papéis.
— Sim, mas já está sendo estabilizado. A sorte é que ela foi rápida.
— Quem paga o tratamento dele? — pergunto, já tendo ideia da resposta
— Porque eu sei que a família dela não tem condições de bancar uma clínica
como essa. Se for preciso, eu me responsabilizo.
— Isso é informação confidencial, me desculpe — ela me olha
desconfiada.
— Eu sou médico da clínica agora. Provavelmente estou na sua equipe.
Ela suspira e olha no papel que está ainda em suas mãos.
— Aqui consta como responsável Phelipe de Medeiros — Ela dá de
ombros e me entrega a ficha, para que eu analise também.
— Tudo bem — Devolvo-lhe os papéis. Por mais que eu deteste admitir,
Phelipe é importante para ela por motivos plausíveis — Posso dar uma
olhada no paciente?

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— Desculpe. Você ainda não foi apresentado à equipe — Passo a mão
no rosto, desesperado, e com meu lado de médico gritando em meu ouvido.
A médica parece perceber e então suspira, abrindo uma brecha: — Só com a
autorização dela. — Ela aponta Nina com a cabeça, que, do outro lado da
recepção, ouve a conversa. Ela me olha por alguns segundos, ponderando se
deve ou não confiar em mim, e então finalmente responde:
— Tudo bem. Deixe que ele entre — sua expressão de mágoa não mudou
sequer um milímetro, mas algo acontece quando ela diz isso: — Ele pode ser
tudo nesse mundo, mas sei que é um ótimo médico. Ele deixou tudo para trás
para ser um, afinal.
Isso não passa nem perto de ser um elogio, mas eu estaria mentindo se
dissesse que não me fez feliz, e, porque não dizer, esperançoso também.

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CAPÍTULO 20
Nina

Fecho os olhos por alguns segundos e tento me encontrar. A sensação


que tenho é de que meu pulmão me deu adeus, porque eu simplesmente não
consigo respirar. Minhas mãos tremem, e sinto uma fina gota de suor
escorrer por minha nuca e descer por minha coluna, me causando um arrepio.
Quando parece que o chão vai simplesmente me engolir e vou desfalecer,
sinto uma mão tocar meu ombro e respiro fundo, tentando controlar as
emoções que gritam dentro de mim.
Eu sei quem é.
Jamais esqueceria essas mãos, mesmo sendo a coisa que eu mais quero
no mundo: esquecer.
Viro-me devagar, dou um meio sorriso triste e me sento de frente para
ele, desistindo. Ao menos uma vez, não quero transformar nosso diálogo em
uma guerra. Por mais que meu esporte favorito seja odiá-lo, devo ser madura
o suficiente para admitir que ele está me ajudando muito nessas últimas
horas aqui no hospital. Ele tem entrado e saído do quarto incansavelmente,
falado com médicos e enfermeiras, pedindo atualizações e agindo como se
meu pai fosse seu paciente. Ele amparou minha mãe e explicou-lhe todas as
complicações do caso do meu pai, com uma postura respeitosa por nossa
dor, mas com a capacidade de um profissional que também tem uma família,
e eu quase rio pela ironia dessa situação, porque sua família é o que há de
pior sobre a terra. Será que alguém que tem aquele sangue correndo nas
veias é capaz de amar? Eu duvido muito.
Em nenhum momento ele nos enganou; a situação do meu amado pai é
crítica, mas ele ainda nos mantém ligadas à um fio de esperança, e, por mais

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que eu dissesse que isso nunca voltaria a acontecer, e por mais incrível que
pareça até mesmo para mim, eu acredito nele.
Subo meus olhos para o seu rosto e ele devolve meu meio sorriso triste.
Quando cheguei aqui ele estava de camisa social e gravata. À essa altura, a
gravata havia sido mandada pelos ares e a gola da camisa está aberta, como
se ele buscasse ar durante todo o tempo em que correu pelo meu pai hoje.
— Como ele está? — pergunto, incerta entre querer a verdade ou
alguma mentira que me conforte. Não sei o que é pior, então deixo essa
decisão nas mãos dele.
— Ainda estável. — Ele dá um toquinho em minha mão, e eu sinto a
eletricidade correr por minhas terminações nervosas, me relembrando como
é sentir seu toque. — Mas a boa notícia é que o quadro não está se
agravando, o que é raro em casos assim. Seu pai é um guerreiro, Nina.
— Ele é — Assinto com a cabeça e mais uma lágrima escorre. Tenho a
impressão de que vou secar a qualquer momento, de tanto que já chorei hoje.
Será que é possível o corpo humano produzir tantas lágrimas assim?
Lorenzo dá um suspiro e fala com os olhos para que eu me acalme. Por
mais que tenha se passado oito anos, ainda me considero capaz de ler nas
entrelinhas quando o assunto é ele. Sei decifrar cada olhar, gesto ou atitude,
e me odeio por isso.
— Você não vai comer nada? — Seus olhos claros inundam os meus, e
nesse mísero segundo, me sinto estremecer. Sei que não deveria estar dando
essa brecha, mas eu me sinto tão sem forças para brigar, que apenas sacudo a
cabeça em sinal de negação. — Vamos lá, Nina, você já está aqui há horas.
Você precisa se alimentar, se hidratar. Eu fico de olho nele, prometo.
Seu olhar me escrutina, e, por um momento, me sinto nua, mas não nua
de corpo. Nua de alma. Sinto como se Lorenzo pudesse ler tudo o que se
passa em minha cabeça. Em seus olhos, eu não vejo nenhum sentimento
carnal, apenas solidariedade, e isso mexe comigo muito mais do que eu
imaginei que pudesse mexer.
— Não sinto fome. — Sei que estou pálida como um fantasma, e minha
blusa de alça amarela não ajuda muito na aparência, provavelmente. Meu
cabelo curto está desgrenhado e eu acabei com todas as minhas unhas,
movida pelo nervosismo.
— Tudo bem, não adianta forçar nada, eu sei como é. — Ele coloca
suavemente uma mecha de cabelo que está solta atrás de minha orelha, e
rapidamente tira suas mãos de mim. Parece que ele tem medo de que a

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qualquer momento eu reaja mal à sua furtiva aproximação, e, honestamente,
nem eu sei como ou quando eu desisti de gritar com ele e mandá-lo ao
inferno.
Talvez no momento em que eu percebi, com toda a certeza do mundo,
que seu chamado de médico falou mais alto do que qualquer coisa que houve
entre nós. Sua preocupação com meu pai é nitidamente real e genuína, e por
mais surreal que isso possa parecer, me senti aliviada de alguém conhecido
estar cuidando dele.
O que está acontecendo?
Sinto uma leve palpitação no peito e um calafrio percorre meu corpo,
mas decido ignorar esse sentimento bobo. Eu sei, com toda a certeza do
mundo, que eu estou curada dessa doença chamada Lorenzo Leone.
Eu sei, não sei?
Claro que sei. Oras.
— Obrigada, Lorenzo. — Fecho os olhos e solto as palavras devagar.
Elas queimam meu peito, mas precisam ser ditas. O homem que está dentro
daquela sala, entre a vida e a morte, me ensinou algo chamado justiça. E eu
preciso ser justa com Lorenzo, mesmo que tenha que passar por cima de tudo
o que sinto em relação a ele.
Seus olhos se arregalam e vejo seu cenho franzido. Mas logo em
seguida, essa expressão é tomada por um discreto sorriso. Balanço minha
cabeça para que as ideias voltem ao lugar correto e ajeito minha postura.
Meu estômago está revirado por esse momento.
— Por favor, entenda que estou te agradecendo como qualquer ser
humano agradeceria a outro. Nada entre nós mudou e nem vai mudar —
Tento parecer firme, mas, pela primeira vez desde que ele voltou, ouço
minha voz vacilar.
Sinto seu sorriso morrer um pouco, mas seus olhos ainda estão acesos
pela esperança.
— Tudo bem, eu compreendo — ele diz, engolindo em seco.
— Preciso ver a minha mãe — digo de uma vez, para não deixar que
essa conversa me afete. Eu estou vulnerável e qualquer coisa pode me
desestabilizar, e o que eu menos preciso agora é que Lorenzo pense, nem que
seja por um segundo, que ainda tem qualquer espaço em minha vida, porque
ele não tem.
— Eu pedi que um funcionário a levasse até a cantina. Ela precisa
comer, está fraca e pálida como você — Me dirige um olhar de reprovação

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por eu não me alimentar e se levanta rapidamente, retomando o tom
profissional. — Vou dar mais uma conferida no seu pai. Vá ficar com ela.
Ela precisa de você, Catarina.
Saio em direção ao corredor e enxugo minhas lágrimas tímidas. Preciso
acordar desse sonho ruim, preciso do meu pai aqui, preciso que Phelipe
atenda a do telefone.
Preciso colocar meus sentimentos em seus devidos lugares novamente.
Preciso me lembrar do porquê eu odeio Lorenzo Leone.
Ele me chamou de Catarina. Não Nina, como de costume.
De um minuto para o outro, ele ficou extremamente profissional.
E por que raios isso me incomoda? Eu não deveria estar incomodada, eu
deveria estar aliviada. A simples hipótese de que tudo o que eu construí
nesses oito anos caia por terra com um meio sorriso me deixa apavorada.
Desorientada, na verdade. Preciso colocar na minha cabeça que ele é um
médico, mas não precisa ser a melhor pessoa do mundo para isso. Eu não
preciso nem gostar dele, aliás.
Ainda preciso me vingar dele e de seu rostinho bonito. De seu ego
maior do que tudo e da sua insensibilidade que me tirou a razão de existir.
De sua postura ridícula de dono do mundo.
E o mais importante: eu preciso lembrar que ele está sim ajudando a
salvar uma das pessoas que eu mais amo nesse mundo, mas que,
conscientemente ou não, ele ajudou a matar outra. Com esse buraco que ele
cavou em mim, eu convivo há anos, e não há nada que me faça odiá-lo menos
por isso.
Mesmo que ele me devolva meu pai, ele nunca trará de volta minha
filha.

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CAPÍTULO 21
Lorenzo

Sabe quando o cara é um cretino sem escrúpulos? Prazer, eu.


Fico com os pensamentos borbulhando em minha cabeça enquanto ajeito
o cano de medicação do pai de Nina. A médica dele já havia desistido de me
mandar deixar seu paciente em paz, então ela simplesmente chamou Raul
para resolver a situação. Depois de uma longa conversa e muitos argumentos
a meu favor, Raul concordou que eu a ajudasse nessa situação, alegando que
sou um médico competente e novo funcionário da Clínica Vitta, portanto,
meus conhecimentos seriam bem-vindos, e seria bom me familiarizar com a
rotina dos pacientes. Ela não gostou muito, mas eu não dei a mínima atenção
para suas reclamações. Nunca abro mão do que eu quero por ninguém, e não
será por ela, que eu nem conheço, que farei isso. A única coisa que passa
pela minha cabeça é como Nina me tratou melhor hoje.
E é aí que entra a parte do "sem escrúpulos"
Você sabe, nem tudo são flores, e eu não tenho o melhor currículo de
vida. Eu admito que não eu sou um anjo, mas eu venho tentando, e isso já é
algo, não é?
Claro que é.
Sei que não deveria estar me aproveitando de uma situação como essa
para me aproximar dela. Quer dizer, eu estou realmente preocupado com o
pai dela, que sempre foi bacana comigo, mesmo sabendo que, lá no fundo,
não era muito fã do nosso relacionamento. Realmente quero salvá-lo por ele,
claro, mas principalmente para que ela não sofra, pois eu sei o quanto esse
homem é indispensável em sua vida. Ele é seu herói sem capa.

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A porra do problema é: se a única coisa capaz de fazê-la dar uma
brecha para mim foi o infortúnio de hoje, sendo cristão ou não, isso será
usado ao meu favor.
Não me olhe assim, eu não estou prejudicando ninguém.
Coloco a quantidade exata de medicação na solução de soro, confiro sua
temperatura e checo todas as informações: batimentos cardíacos, pressão,
coagulação do sangue, possível febre.
Constato, feliz e animado, que houve uma pequena melhora em seu
quadro, e meu coração se enche de alegria. Ver um paciente melhorar sempre
resolve meu dia, não importa o que de ruim aconteça ao longo dele. E hoje
meu dia está sendo bom, de uma forma geral. Nina mais próxima, o pai dela
um pouco melhor, um novo emprego e um projeto de ajuda a quem precisa,
totalmente livre de interesses egoístas.
Lorenzo Leone enfim está crescendo, constato, feliz por mim mesmo.
Saio da sala retirando o jaleco e dou de cara com Nina e a mãe voltando
da lanchonete. Observo-as se aproximarem e me sinto feliz por dentro: ela
não me lança nenhum de seus costumeiros olhares mortais e sua postura está
um pouco mais branda. Normalmente ela me olha como se eu fosse o
causador do derretimento das calotas polares ou um matador cruel de pandas
indefesos, então, receber um olhar neutro já é algo a se comemorar, e se isso
é parecer que estou rastejando por qualquer migalha, que seja, é isso mesmo
que estou fazendo. O velho ditado “chora agora e ri depois” nunca foi tão
verdadeiro.
— Comeram algo? — pergunto, enquanto me desvencilho do
estetoscópio que enroscou em meu pescoço. Devo estar parecendo um idiota
agora; no mínimo, acabando com toda a minha credulidade de médico
competente.
— Não consigo, Doutor — Branca, a mãe de Nina, me responde, como
se estivesse respondendo a um patrão. Ela é totalmente serena, uma pessoa
calma e sensível. Pena que eu só vejo essas qualidades agora. Quando ela
era minha sogra, eu apenas via uma mulher pobre que trabalhava de
empregada por aí. Eu devo assumir: eu já fui muito babaca na vida. O
estoque de xingamentos que eu tenho para mim mesmo é quase infinito.
— Dona Branca, eu já disse pra me chamar de Lorenzo, por favor. —
Algo passa por seu olhar, mas não consigo identificar o quê. Algo muito
parecido com o olhar que a Nina me lança às vezes, me culpando, me
julgando e deixando claro que eu não sou confiável.

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Quase me convenço a perguntar o que há de tão errado comigo, porque
não é possível que tantas pessoas ainda me odeiem por um erro que cometi
praticamente na adolescência, mas sou barrado pela voz de Nina.
— Lorenzo — ela me desperta das minhas divagações —, a gente só vai
conseguir comer ou dormir quando meu pai melhorar. — Seus olhos estão
vermelhos e inchados, como os de Branca. Percebo então, que esse tempo na
lanchonete serviu para muito choro e oração. Decido tentar acalmar o
coração das duas, mesmo que elas fiquem nesse eterno "odeio Lorenzo / sou
grata a Lorenzo".
— Então acho que vocês deveriam descansar um pouco. Acabei de sair
do quarto dele. Houve uma pequena melhora. Nada muito grande, mas é
melhor do que uma piora, não? Se o quadro dele continuar assim, eu sei que
logo teremos boas notícias.
O que eu vou falar agora pode parecer uma bobagem sem tamanho,
porque sei que a amo desde que a perdi. Eu não tenho dúvidas disso há
muito tempo. Mas eu acredito que há um ou mais momentos em nossa vida –
momentos comuns, rotineiros – em que nós realmente temos certeza do amor
que sentimos por determinada pessoa. Um olhar, um toque, um sorriso,
qualquer coisa. Aquele momento em que algo se acende dentro de você, e a
única coisa que te vem à cabeça é: é ela que eu vou levar para o resto da
vida.
É nesse momento que eu sei, com absoluta certeza, que eu a amo mais do
que tudo nesse mundo. Que por ela eu me reinventaria, eu mudaria toda a
minha vida errada, todas as minhas atitudes babacas, toda a minha futilidade,
todo o meu egoísmo de menino rico e mimado. Porque eu assumo que sou
tudo isso, mas ela é capaz de tirar qualquer coisa ruim de mim. Porque, no
momento em que ela sorri e me abraça emocionada, eu desabo.
É o sorriso mais grato e mais incrivelmente sincero do mundo. Um
enlace apertado de seus braços em mim, como se eu fosse a tábua de
salvação de seu pai.
Fecho os olhos, aproveitando o momento. Recito uma breve oração,
pedindo a Deus que permita que eu sinta essa sensação para sempre. Essa
sensação de ser capaz de protegê-la do mundo, de tudo e todos. De todos os
males que existem. Implorando para que Ele permita que eu seja quem ela
precisa, e eu nunca mais pedirei nada durante o resto dos dias que eu tiver
sobre a terra.

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É, simplesmente, a melhor sensação do caralho que existe, e eu nunca
vou saber explicar em palavras.
Quando seus braços finalmente se soltam de mim, eu sei que ela percebe
que meus olhos estavam fechados em uma prece. Sei que ela percebeu que eu
suspirei, sentindo seu perfume que não havia mudado. Sei que, nesse
momento, nesse exato momento, ela sabe que eu a amo, sem sombra de
dúvidas. Certos sentimentos só podem ser provados quando sentidos.
— Obrigada, Lorenzo — ela fala, totalmente atordoada e sem graça pelo
seu próprio movimento, quebrando rapidamente nosso contato.
— Você não tem que me agradecer. Ele tem uma médica que é ótima
também, e ele é forte. É um mérito totalmente do seu pai estar se
recuperando, e eu estarei aqui se ele precisar de mim — respondo, sendo
totalmente sincero.
— Deus é bom, minha filha! — Sua mãe pega em suas mãos, em
lágrimas.
— Claro que Ele é, mamãe. — Ela sorri e volta-se para mim: — E sim,
eu tenho que te agradecer. Você entrou e saiu dessa sala mais vezes do que eu
pude contar, sempre correndo, sempre perto dele...
Corto-a no meio da frase. Não quero ouvir elogios por algo que é minha
obrigação. Fiz um juramento de médico e eu o sigo à risca. Sou fiel a tudo o
que prometi quando recebi meu diploma.
— Por favor, Nina. Para com isso. Vamos fazer assim: me agradece indo
para casa e tomando um banho, se alimentando. As duas, aliás — Aponto de
mãe para filha, alternadamente. — Ficar aqui não vai resolver nada. Se ele
acordar amanhã, vai precisar das duas com boa aparência para recepcioná-
lo.
— Eu quero ficar com ele — Dona Branca se adianta. — Mas você
precisa mesmo de um banho e descanso filha. Por favor, vai — Sua mãe
suplica com o olhar. — Eu fico aqui com ele. Quando você voltar, a gente
troca.
Nina pensa um pouco, mas enfim decide. É mais do que óbvio o quanto
ela está esgotada pelo dia que teve.
— Tudo bem, mãe. Vou chamar um táxi para me levar. Tô cansada
demais para enfrentar ônibus há essas horas. — Franzo o cenho, sem
entender. A médica disse que ela tinha trazido o pai, supus que ela estaria de
carro.
— Como você veio com seu pai? — pergunto.

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— Chamei a ambulância da clínica. A sorte é que eu estava em casa —
ela responde mecanicamente, e eu sinto que está voltando ao seu estado
normal de me detestar. Não posso deixar a oportunidade passar, então,
aproveito-me da situação para tentar conversar com ela a sós e com a guarda
baixa. Preciso disso. Preciso entender muitas coisas.
— O Lipe ainda não te ligou? — Dona Branca pergunta, entre assustada
e incrédula, e me pergunto se ela nunca disse a Nina sobre os hábitos do
Phelipe ou se ela também não sabe, mesmo trabalhando na casa dele. — Que
coisa mais estranha.
— Não, e não atende a droga do celular — Nina passa a mão pelo rosto,
claramente cansada e irritada. — Mas eu tenho problemas maiores para me
preocupar agora, mamãe. Eu resolvo com o Phelipe depois.
Olha aí. A torcida vibra pela oportunidade do namoradinho engomado
ganhar um chute na bunda. Não que eu não goste dele, mas eu gosto mais de
mim. Amigos, amigos, amores perdidos à parte.
Oremos.
— Posso te levar, se você quiser — me adianto, com meu melhor
sorriso galanteador estampado no rosto, mas claro que não será tão fácil
assim, nem sei por que, ainda que brevemente, me deixei acreditar que seria.
— De jeito nenhum, Lorenzo, você deve estar cansado, e, por favor, não
vamos confundir as coisas, ok? — Ela me lança um daqueles olhares que
diz: tá indo rápido demais. Volto para minha posição inicial de derrotado,
mas acho que ela percebe e se sente mal, talvez em dívida por tudo que
compartilhamos hoje, então suspira e diz, claramente esgotada: — Não
quero te cansar, só isso. Rapidinho eu pego um táxi e chego em casa. É
melhor para todo mundo.
Todo mundo quem? Eu que não.
— Não vai me cansar, Nina — insisto.
— Não é caminho, Lorenzo — ela retruca, impaciente, tentando achar
argumentos para que eu desista, mas ela não me conhece o suficiente para
saber que não vou desistir dela nunca mais.
— Eu te ofereci uma carona porque quero ajudar, não porque é caminho.
— Ela abre a boca para uma resposta à lá Nina raivosa, mas sua mãe a
recrimina com um olhar e ela abaixa a bola. Rapidamente passo a gostar
mais de Dona Branca, mesmo sendo claro que ela me detesta tanto quanto a
filha. — Vamos, vai. Eu te deixo lá e vou pra casa, você estará segura,
prometo.

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Ela pensa por alguns segundos, até que finalmente cede.
— Nada de gracinhas, ok? Apenas uma carona — Aponta um dedo
ameaçador em minha direção e eu me esforço para não rir. Não posso me dar
ao luxo de perder todo o progresso que consegui hoje, então coloco a
expressão mais séria em meu rosto e levanto as mãos, me rendendo.
— Apenas uma carona e nada mais.
Ela respira fundo e revira os olhos, saindo na frente, e eu vou atrás, me
sentindo o cara mais feliz do mundo.
Um passo de cada vez, Lorenzo. Um passo de cada vez.

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CAPÍTULO 22
Nina

Corrompida.
É assim que me sinto enquanto Lorenzo dirige em silêncio até a minha
casa. Sei que, a partir de hoje, meu modo de vê-lo mudará de alguma forma,
mesmo que eu não queira que mude, pois não posso simplesmente ignorar o
fato de que ele ficou o tempo todo ao lado do meu pai, e, principalmente, ao
meu lado. As últimas horas foram como se eu estivesse em um universo
paralelo, conhecendo um Lorenzo que eu não sabia que existia, porque essa é
a realidade: eu não sabia que esse Lorenzo existia. Profissional, ético, e,
principalmente... humano.
Algo que eu nunca achei que ele pudesse ser.
— Como você se sente? — ele me tira dos meus devaneios, me
assustando, à princípio, falando pela primeira vez desde que saímos do
hospital. Está cumprindo o combinado de "sem gracinhas", o que é
surpreendente para mim. O antigo Lorenzo nunca cumpria nada do que dizia.
Penso em responder algo como "não é da sua conta", mas, antes de
sequer abrir a boca, vi como seria infantil. Passei anos bradando aos quatro
cantos do universo que Lorenzo precisava crescer e amadurecer, mas talvez
eu precise também. Não que o que ele fez hoje apague qualquer coisa que ele
tenha feito no passado; a minha mágoa é enorme e minha dor maior ainda, e
talvez sejam coisas insuperáveis, mas o fato é: pessoas mudam. Situações
mudam.
O tempo, querendo ou não, passa.
Não tenho mais dezessete anos, então preciso passar a agir como uma
adulta, e não mais como uma garota.

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Não pretendo ter qualquer relação com ele. Não serei amiga, e jamais
voltarei a ser namorada ou qualquer coisa que o valha, mas eu posso, ao
menos, ser educada.
Educação é superioridade, sempre.
Apenas me incomoda – e muito – o fato dele não comentar qualquer
coisa sobre minha filha, como se ela nunca tivesse existido, como se fosse
apenas uma poeira no universo, e não alguém que um dia carregou o sangue
dele também. Eu também não comentei, eu sei, mas porque dói demais.
Claro que não dói nele. Não doeu naquela época e não dói agora, é
muito claro. Respiro fundo, tentando fazer minha cabeça voltar ao lugar.
Lorenzo me confunde.
Viro-me para ele, que ainda espera uma resposta, pacientemente. Sei
que devo estar com uma aparência horrível, pois sua feição se compadece
quando olho em seus olhos.
— Sinto como se um trator tivesse passado em cima de mim... Oito
vezes, ida e volta — solto, sem pensar muito sobre estar começando uma
conversa, e ele sorri. Simplesmente não resisto, sorrindo junto e balançando
a cabeça. Não que haja qualquer graça nisso, mas estou tão ridiculamente
cansada, que não há forma melhor de descrever como me sinto.
— Eu sei como é — ele suspira, sem tirar os olhos do caminho à sua
frente, e, depois de olhar no retrovisor para fazer uma conversão, ele
continua a falar, calmamente: — Não que eu saiba como é ter um pai doente,
mas eu trabalho com pacientes da oncologia há tempo suficiente para
entender o sentimento que passa no coração de cada pessoa próxima.
Não falo nada, e sei que ele se surpreende ao perceber que eu quero que
ele continue a falar. Quero entender o que ele guarda. Quero tentar achar
qualquer resquício de arrependimento em seu discurso. Qualquer coisa que
remeta ao nosso anjo.
— Sem contar que muitos pacientes não têm a sorte de ter pessoas
preocupadas como você e sua mãe. — Ele dá de ombros, visivelmente
chateado. — Fiz papel de família para muitos pacientes abandonados, Nina.
Quando ficaram doentes, foram largados pelos seus como se fossem trapos
velhos, sem serventia. É triste demais.
Exatamente como ele fez. Como ele pode falar de algo que ele mesmo
fez? Qual o sentido disso?
— Eu nunca o abandonaria. Não abandono as pessoas que eu amo,
Lorenzo. Não abandono minha família — Sinto uma lágrima tímida se formar

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no canto do meu olho. Até pensar em algo assim está totalmente fora dos
planos. Meu pai é minha vida, minha referência, meu tudo.
— Eu sei que não, Nina — ele apenas diz, assim, como se não fosse
nada. Como se não fosse uma acusação a si próprio.
Quando penso em questioná-lo sobre falar de algo que não praticou,
percebo que o carro para, então olho pela janela e vejo que estou em casa.
Lorenzo se vira para mim, com os olhos tristes. Eu nunca o vi assim, e aquilo
me surpreende.
— Eu sei que você nunca faria isso. Abandonar é mais do meu perfil,
não é? — ele ri sem humor, nitidamente envergonhado pelo que fez no
passado. Não sei por que raios ele está tocando nesse assunto em um
momento como esse. Na única vez em que eu não quis enforcá-lo desde que
ele voltou para cá, ele simplesmente toca na ferida.
Que babaca.
Decido não responder nada, e abro a porta do carro. Isso já está indo
longe demais. Não quero que ele pense que eu esqueci o que ele fez comigo,
mas não estou em um momento de respostas curtas e grossas, então
simplesmente deixo para lá. Quando desço do carro, ele me olha
profundamente. Sei que ele vai falar algo e espero.
Estranhamente ansiosa, aliás. Espero que ele fale algo sobre isso. Sobre
nosso passado.
Sobre nós.
Percebo, pela primeira vez em anos, que eu quero uma explicação.
Eu mereço uma. Nossa filha merece.
Ele abre a boca, mas claramente se arrepende. Ao invés disso, fecha os
olhos, pondera um pouco e fala, mudando de assunto:
— Você tem os exames do seu pai aí? Gostaria de analisá-los hoje à
noite, para amanhã ter mais conhecimento do estado dele. Com um bom
estudo, sei que eu posso fazer mais por ele do que fiz hoje.
Qualquer coisa em que eu estava pensando some no momento em que
ouço "posso fazer mais por ele". Preciso que alguém faça mais por ele, nem
que seja Lorenzo.
— Claro! Estão no quarto da minha mãe. Vou buscá-los.
— Tudo bem, eu te espero aqui. — Ele balança a cabeça, concordando
em me esperar, e eu giro nos calcanhares para entrar em casa. Quando estou
destrancando o portão, me sinto boba e infantil, fazendo esse joguinho inútil
de "minhas regras". O cara está ajudando meu pai, está tão cansado quanto

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eu, fez um caminho totalmente diferente do seu para me trazer e ainda
passará a noite lendo os exames que eu lhe entregar. Preciso, no mínimo, ser
cortês.
— Lorenzo! — Vejo seu rosto se levantar do celular em que ele mexia
distraidamente e me olhar com surpresa. — Entra, vai. Eu ainda preciso
procurar esses papéis.
[...]
Largo as chaves na estante e me curvo para tirar meus saltos altos. Jogo-
os como de costume pela sala, e atravesso o cômodo, passando os pés pelo
tapete macio do centro. Sinto Lorenzo logo atrás de mim, observando tudo à
sua volta. Nada mudara desde que ele se foi, somente eu.
A casa ainda é igual. Os móveis, os cômodos, tudo. O pouco dinheiro a
mais que ganho como advogada, gasto no tratamento do meu pai. Lipe me
ajuda muito, pagando hospital e várias despesas, mas eu não posso, e nem
quero, abusar. É uma questão de orgulho usar meu salário para ajudar meu
pai.
Ele sempre fez tanto por mim. Meu eterno protetor.
— Fica à vontade — Olho para trás e o pego analisando meu porta-
retratos da formatura, mas não digo nada. — Vou subir e procurar a pasta
com todos os exames dele.
— Tudo bem — Ele sorri, com as duas mãos no bolso, enquanto
continua analisando tudo com muita curiosidade não disfarçada.
Uma coisa devo admitir: Lorenzo é lindo como ninguém. E cheiroso
também, droga. Seu cheiro havia rapidamente se espalhado pela sala, do
mesmo modo que estava impregnado em seu carro. E sei que sentirei esse
cheiro por dias a fio, como senti quando ele se foi.
Subo as escadas de cimento rapidamente, não sem antes vê-lo admirar
minhas fotos com um sorriso no rosto. Tem algo parecido com satisfação e
orgulho em seu olhar.
Tento com todas as forças não pensar sobre isso.
[...]
— Quer um café? — pergunto após entregar-lhe a pasta azul clara com
tudo o que podia ser útil sobre meu pai. Exames, consultas e histórico. Tudo
o que venho juntando desde que começou sua saga contra essa doença
terrível.
— Quero sim — suspira. — Vou ficar acordado até mais tarde lendo
tudo isso — Ele ergue a pasta e a balança. — Quanto mais cafeína, melhor.

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Aquiesço.
— Tudo bem, vou fazer um novo. — Me viro em direção à cozinha, mas
ele me alcança com dois passos largos e me segura pelo braço. Uma corrente
elétrica passa por meu corpo inteiro e eu quase desmonto, tanto pelo contato
quanto pelo choque em tê-lo me tocando novamente. Puxo meu braço
rapidamente, mas ele nem percebe meu movimento e começa a falar.
— Não precisa ser novo, não! Não quero te dar trabalho — Ele se
adianta na minha cozinha, como se fosse dono de tudo. Lorenzo sempre teve
essa mania de assumir situações, e, pelo visto, isso não havia mudado. Ele
balança a garrafa de café e, ao perceber que está cheia, se vira para mim, já
abrindo a tampa — Pode ser esse aqui mesmo.
Arqueio uma sobrancelha, incrédula. Lorenzo sempre fora extremamente
chato a respeito do seu café. Lembro ainda: forte, passado na hora e com
pouco açúcar, desde que seja mascavo, claro.
— Você detesta café requentado, Lorenzo. — Cruzo os braços,
esperando uma resposta.
— Eu morei sozinho enquanto era universitário, Nina. Qualquer coisa
parecida com café já me agrada. Na verdade, me deixando acordado, já está
ótimo. O gosto é o de menos — Ele se adianta novamente e abre os
armários, onde ficam as canecas — Você realmente não me conhece mais,
mas acho que, até certo ponto, isso é bom.
Sim. Realmente não o conheço mais.
E isso me amedronta.
Ele se vira para mim, com uma caneca na mão e uma expressão de
felicidade quase infantil nos olhos. Rapidamente entendo o motivo: Em sua
mão, está a caneca com dois elefantezinhos se beijando. No meio, a frase
"Meu amor por você é enorme".
— Não acredito que você ainda tem essa caneca! — Ele sorri, virando-
a e analisando-a — Cara, quanto tempo ela durou!
Quem não acredita que ele se lembra dessa bobagem sou eu. Ele me deu
essa caneca junto de alguns doces e flores em uma cesta. Foi seu primeiro
presente para mim, junto com as roupas para a festa no clube.
— É. Minha mãe não quis que eu jogasse fora — Dou de ombros, como
se isso não fosse nada, e tento esconder minha expressão aturdida. Não
posso contar a ele que, na verdade, eu só tomo café nessa caneca, e ninguém
mais na casa tem permissão para usá-la. Afinal, ela é a única lembrança do
Lorenzo bom e carinhoso que ele foi um dia para mim.

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Melhor ficar quieta.
Na tentativa de mudar o foco, ajeito meu cabelo em uma presilha,
prendendo a franja e soltando os cachos pequenos que se formam atrás.
Percebo que estou torcendo demais as mãos e entregando meu nervosismo de
bandeja, quando ele claramente não merece isso. Quando ele claramente
não merece nada mais vindo de mim.
— Sabe... — Ele se aproxima mais de mim, pegando a outra presilha
que ainda sobra em minhas mãos e curvando seu corpo grande sobre o meu,
perto demais para o meu próprio bem. Ele tem mesmo o dom de acompanhar
as coisas. Puxa outra mecha da minha franja que havia ficado solta com
cuidado e a empurra pra trás, prendendo, enfim, com uma delicadeza que
poucas vezes o vi ter. —... Eu amava seu longo cabelo loiro, mas esse corte
caiu muito bem em você. — Ele passa os dedos pela curta extensão dos fios
de trás, ajeitando-os em seus devidos lugares. Sinto seu peito próximo a mim
e ele sorri, satisfeito com o resultado, totalmente alheio à bagunça que se
forma dentro de mim.
Ele não pode fazer isso. Não tem sequer o direito.
E é meu dever não deixar que ele se aproxime dessa forma.
Lorenzo não é mais nada para você, Nina, lembre-se disso. Fecho os
olhos mentalizando esse mantra, mas quando os abro novamente, ele parece
estar mais próximo ainda.
Muito próximo.
Não é uma distância segura.
Droga, não é uma distância nada segura.

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CAPÍTULO 23
Lorenzo

Meus dedos correm livres pelos fios loiros de seu cabelo tão bonito.
São macios ao toque e o cheiro é agradável, uma mistura que parece ser
baunilha com morango. Não sei se esse cheiro vem de seu perfume ou de seu
shampoo, mas é bom, muito bom. Vejo-a fechar os olhos por uma fração de
segundo e eu sei, dentro de mim, que algum efeito ainda tenho sobre ela. Se
eu não tivesse, ela com certeza já teria se afastado ou gritado comigo; no
mínimo, me colocado para fora de sua casa debaixo de xingamentos.
Mas há algo aqui e é bom.
Quando ela abre novamente os olhos, eu sei que há dúvidas ali. Imagino
que ela esteja assustada com o que ela mesma sente a meu respeito, como se
não entendesse nossa relação conturbada, e, sendo completamente sincero,
nem eu mesmo entendo. Muitos anos se passaram desde o nosso término;
teoricamente, eu não tinha motivos para voltar para cá para tentar
reconquistá-la.
Na verdade, todos que sabem o motivo pelo qual voltei, me chamam de
maluco. No começo, nem eu mesmo entendi. Mas estando aqui, ao lado dela,
sei que há algo que nos une. Algo que desafia qualquer conhecimento que eu
tenha sobre a vida e o mundo. Eu apenas preciso estar aqui, com ela. Eu
apenas quero estar aqui. É como se eu nunca sequer devesse ter ido.
Aproximo-me mais um pouco e pouso meus braços em volta dela, um de
cada lado, prendendo-a junto de mim. Com o rosto cada vez mais próximo
do seu, vejo seus lábios rosados se entreabrirem, sem muita certeza do que
está fazendo. Quando penso em ir um pouco mais adiante, para enfim fazer o
que eu tenho vontade desde que voltei para esse fim de mundo, ela se afasta,

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dando uma pequena pausa em nosso mínimo contato, sobressaltada. Por uma
fração de segundo, eu a vejo hesitar e pensar sobre o que raios está
acontecendo.
Merda.
Na tentativa de reverter isso para o meu lado novamente, olho para
baixo e encontro seus olhos brilhantes. Ela é tão pequena perto de mim que
chega a ser engraçado, quase fofo. O instinto de proteção que sinto estando
ao seu lado chega a ser assustador até para mim. Levanto minha mão,
passando ao redor de seu rosto delicadamente, e estranhamente ela deixa,
mesmo que ressabiada.
— Eu sei que você não acredita em mim, mas droga, eu senti tanto sua
falta, Cinderela — minha voz sai sussurrada, quase como uma confissão.
Ela fecha os olhos novamente, mas com uma expressão diferente, como
se sentisse dor ao ouvir esse apelido. Durante nosso curto namoro, era só
assim que eu a chamava, e ela simplesmente amava isso. Dizia-me que se
sentia especial, como se fosse uma princesa de verdade. Como se eu fosse
seu príncipe.
No fim, eu fui apenas o sapo. Talvez menos do que isso.
Seus olhos perfuram os meus, e neles eu posso ler um misto de desejo e
raiva. Prendo a respiração, esperando para ver qual lado irá ganhar a
batalha que ela está travando dentro de si, e meu lado todo errado, que ainda
não se foi completamente, torce para que ela fraqueje, mesmo que seja por
apenas um segundo. É tudo o que eu preciso: um segundo. Seus lábios se
entreabrem apenas o suficiente para ela molhá-los, como se tomasse uma
pausa para si, e eu busco todo o autocontrole que há dentro de mim para não
puxá-la e beijar sua boca exuberante, da qual eu senti tanta falta.
Uma das responsáveis pela minha volta a esse lugar.
— Acho melhor você fechar a boca antes que eu esqueça o
cavalheirismo que eu nem tenho e te beije de uma vez — digo, me
controlando e me afastando dela. Por mais que eu queira beijá-la agora, sei
que se fizer isso, queimarei um cartucho antes de reconquistar sua confiança,
e isso será um caminho sem volta. Demorei tanto para conseguir esse pouco
contato, e não posso desperdiçá-lo por uma besteira que, eu sei, será
momentânea.
Muito, muito desejada, mas momentânea.
— Você é muito insolente, sabia? — Ela se levanta bruscamente,
praticamente jogando minhas mãos para longe dela — Não sei onde eu

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estava com a cabeça para deixar você entrar na minha casa. Você não tem
mais lugar aqui há anos, Lorenzo.
Suspiro. Lá vamos nós.
— Hey, eu não fiz nada — digo, meio indeciso entre indignado e
divertido. Essa mulher confunde tudo dentro de mim — Eu me controlei! —
Abro os braços, como se merecesse um cumprimento por isso, mas me toco
da idiotice no segundo seguinte. Certas atitudes são difíceis de mudar da
noite para o dia, e eu não tenho a ilusão de dormir um sapo e acordar um
príncipe, porque eu sei que não será assim. Muitas coisas ainda precisam ser
trabalhadas dentro de mim. Há muita desconstrução a se fazer.
— E eu devo te agradecer por isso? — Ela me olha estupefata — Ora,
não seja ridículo! — ela praticamente bufa, prestes a voar em meu pescoço.
O ódio chispa em seus olhos, e mais uma vez eu me pergunto o que tem ali
além do meu abandono. Porque eu sei que tem mais.
— Nina... Nina... — Me aproximo devagar — Hey, calma... Eu não fiz
nada porque eu sei que você não quer. Olha... — Aperto a ponte do meu
nariz, procurando as palavras certas, e suspiro, buscando dentro de mim a
minha parte mais sincera, mesmo ela sendo ainda muito pequena: — Eu sei
que eu não sou o príncipe que pintei para você oito anos atrás. Eu não sou
nada perfeito, mas eu tô tentando, eu realmente tô tentando mudar. Eu ainda
sou mesquinho, infantil, egoísta e tudo aquilo que você sabe que eu sou...
Mas poxa vida. Me dá uma nova chance, vai. Todo mundo merece uma, pelo
amor de Deus — eu solto de uma vez só.
— Eu te dei uma chance, Lorenzo! Oito anos atrás! — Ela se distancia
de mim, com a raiva e a mágoa chispando em seus olhos bonitos — Não há
novas chances. Não há nada. Não há amizade, não há amor, nada! Eu apenas
sou grata por sua ajuda com meu pai hoje, mas apenas isso e nada além. Eu
tenho um namorado, Lorenzo! O mínimo que você me deve é respeito.
Tá de brincadeira, universo?
— Ah, é? E cadê ele? — Desafio. Talvez se eu levá-la ao limite, ela
finalmente me diga o motivo de tanto ódio — Cadê ele quando você mais
precisou hoje? Vamos combinar, Nina... O Lipe é incrível, e eu sei disso
porque ele é meu amigo... Ou já foi meu amigo, sei lá! Mas ele é um ser
humano como qualquer outro. Tira ele dessa merda desse pedestal onde você
nem devia tê-lo posto, vai! Eu tenho minhas merdas, mas ele tem as dele
também, acredite em mim. Uma hora ou outra, elas vão aparecer... Pode
acreditar.

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— Não me diz como eu devo ver meu namorado! — ela altera a voz —
Você não estava aqui quando eu precisei durante esses oito anos Lorenzo...
Ele esteve! Ele esteve onde você deveria estar, e você sabe muito bem
disso. Onde era sua obrigação estar, seu babaca de merda! — Seus olhos
se enchem de lágrimas e meu coração se contorce. Não é possível que meu
abandono ainda a machuque tanto assim.
Tento me aproximar, mas sem sucesso. A cada passo que eu dou em
direção a ela, ela recua dois.
— Nina, do que você está falando? Você sempre fala como se eu te
devesse algo... Algo que eu realmente não sei o que é, porra! — falo na lata,
de uma vez por todas. Isso já está beirando o ridículo.
— Não se faça de desentendido, Lorenzo! — Ela me empurra quando eu
tento me aproximar dela — E não encosta em mim!
— Nina, para com isso! — eu grito mais alto, realmente irritado com o
surto em que ela se encontra. De repente, sua expressão havia mudado
completamente, e a Nina há pouco calma e serena havia sumido, dando lugar
agora a uma Nina desesperada e cheia de ódio. É como se, de uma hora para
outra, ela tivesse lembrado que precisa me odiar.
— Eu nunca vou te perdoar, Lorenzo! — Seu choro explode, enfim,
dando lugar a uma dor que eu nunca havia visto antes em seus olhos.
— Nina — Eu me aproximo, abraçando-a, mesmo contra sua vontade.
Ela se debate um pouco, mas eu uso minha força a meu favor, pelo menos até
ela ouvir minha voz. Pelo menos até ela ouvir minhas explicações. Não é
possível continuar assim. — Nós éramos dois adolescentes! Eu nunca achei
que você me amasse tanto. Eu nunca achei que eu te amasse tanto. Se eu
soubesse, eu nunca teria ido embora. Ou eu teria te levado junto, não sei!
Mas eu não te deixaria. Acredite em mim, se eu soubesse tudo o que sei hoje
sobre a vida, eu jamais te deixaria para trás. — Ela funga em meu aperto, e
quando ela não diz nada, tomo isso como uma deixa e continuo: — Você
precisa esquecer isso e seguir. Nós podemos recomeçar...
— Para! — Ela enfim se solta de mim, se debatendo, com os olhos
cheios de raiva. — Por que você ainda insiste em me pedir perdão por isso,
quando você fez coisa muito pior? É só isso que te importa? Realmente? Ela
não te importa nenhum pouco? — Eu arregalo os olhos, sem entender porra
nenhuma do que ela está falando. Ela? — Eu não estou nem aí se você me
abandonou, se você me amava, se não me amava. Você ter me deixado sem
ao menos um bilhete de despedida foi uma canalhice sim, mas era algo

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perdoável. — Nesse momento, ela me diz algo que toma meu fôlego por
completo e faz meu coração parar de bater por um segundo. A mudança em
sua feição foi como ver uma barragem de águas turbulentas finalmente se
romper diante dos meus olhos: — Mas eu nunca, nunca vou te perdoar por
não ter me ajudado a salvar a nossa filha, seu monstro.
Eu só não imaginava que a força dessas águas pudesse me destruir
por completo.
[...]
— O quê? — pergunto, ainda sem entender o que aquelas palavras
querem dizer, simplesmente porque eu só posso ter ouvido errado. Não há
nenhuma fodida maneira disso ser sério. Não tem como. — Do que você está
falando? — pergunto mecanicamente, as palavras saindo pesadas da minha
boca. — O que você quer dizer com nossa filha?
A sua expressão vai de raiva para incredulidade em segundos.
— Ah, Lorenzo, não seja ridículo! — Ela limpa uma lágrima do rosto e
sai andando pela sala em direção à porta, seus passos pesando no chão do
cômodo como chumbo. Até o modo como ela se movimenta exala ódio, mas
eu ainda não consigo entender claramente nada do que está acontecendo
aqui, caralho! — Sai da minha casa. Eu já perdi tempo demais com você. Eu
tô perdendo tempo com você há oito longos e malditos anos! Quando isso
vai ter fim, meu Deus? — ela diz, apontando a porta com o ódio emanando
de seus olhos. De repente, eu me tornei o pior dos seres humanos para ela,
como se algo houvesse despertado em seu coração, lembrando-lhe quem de
fato eu sou.
E a pergunta que fica é: quem de fato eu sou para essa mulher? Porque
é nítido que eu estou no escuro com alguma coisa aqui.
— Não saio não. Não saio enquanto você não me explicar que história é
essa, Nina — falo, ainda em choque. Os pensamentos vão e voltam em minha
cabeça e nada, absolutamente nada se encaixa.
Ela gargalha. É uma risada histérica, quase maldosa.
— Que história é essa, Lorenzo? — Ela limpa o rosto molhado com o
dorso da mão. — A história que você conhece desde que saiu dessa merda
de cidade, seu cretino sem escrúpulos!
O quê?
— Agora, sai já da minha casa! — Ela mantém a porta aberta para mim
— Eu sabia que você tinha todos os defeitos do mundo, mas se fazer de

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desmemoriado para mim já é demais. Você é muito cínico — ela ri sem
humor.
Para mim já chega. Vou descobrir que história é essa agora.
— Eu não vou sair daqui porra nenhuma, eu já disse, Nina! — Vou até a
porta e a bato com força, fazendo seus olhos se arregalarem pela minha
atitude irritada. — Não enquanto você não me explicar que merda de história
é essa! Filha? O que você quer dizer com filha? — Aproximo meu rosto do
seu e consigo sentir sua respiração forte e ruidosa reverberar em mim.
Nossos troncos sobem e descem pelo embate, pelo nervosismo, pelos gritos.
Seus olhos me varrem de cima abaixo, mas eu não mudo de posição um
mísero segundo. Quero saber do que ela está falando. Tenho esse direito! —
Vou perguntar de novo: O que você quer dizer com nossa filha?
Parece que meu peito vai explodir diante da expectativa, mas meus
olhos não abandonam os seus.
Ela me olha estupefata, vasculhando minha expressão como se
analisasse minha pergunta. Ao se dar conta de que eu poderia estar falando
sério sobre não ter ideia do que ela está falando, ela apenas exala e então
diz, devagar, mas não com menos ódio:
— A filha que você nunca quis conhecer. Aquela com quem você não se
importou nenhum segundo enquanto estava longe, vivendo sua vida e seu
sonho. A que nós teríamos se você tivesse me ajudado a tentar salvá-la,
Lorenzo. — Seus olhos se tornam escuros de dor, e antes mesmo dela
completar a fase, eu já sei o que ela tem para dizer, e dói. Dói, mesmo que
eu não entenda. Dói de um jeito que nada nunca doeu em mim — Nós
teríamos uma filha, se você tivesse sido um pai. Mas ela está morta. E eu
nunca vou te perdoar por isso.

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CAPÍTULO 24
Nina

Minha garganta arde e meus olhos embaçam pelo choro contido. Mesmo
que doa, mesmo que me rasgue por dentro, a sensação de finalmente colocar
tudo o que eu sinto para fora justamente com a pessoa que me causou tanta
dor é impagável. Eu merecia esse momento. O momento de dizer a ele quanta
dor me causou. Se, para ele, ela não foi ninguém, para mim é a dor que
carrego em meu peito dia após dia. Se, para ele, saber da curta existência
dela foi apenas uma breve ocorrência em seu caminho cheio de glamour e
certezas, para mim foi a única coisa que me fez seguir em frente e lutar, lutar
com unhas e dentes para ser alguém de quem ela se orgulharia se ainda
estivesse comigo.
Se, para ele, ela nunca foi nada, para mim, ela sempre será tudo.
Tudo o que mais sinto falta. Tudo pelo que ainda sigo em frente.
Olho estupefata e desacreditada para a falta de reação em que se
encontra o rosto de Lorenzo. Como se ele realmente não soubesse de nada. O
teatro que ele desenvolve na minha frente é quase convincente. Digno de
palmas, até. Tão digno de palmas, que eu involuntariamente começo a
aplaudir.
— O que porra você tá fazendo? — Ele segura minhas mãos, nervoso,
mas eu ainda tento continuar. O ódio me move nesse momento. — Para!
Nina, para, porra!
— Tô aplaudindo essa sua atuação digna de Oscar, Lorenzo de
Alcântara Leone. Se você não fosse médico, deveria ser ator. Já pensou
nessa possibilidade? — sibilo as palavras enquanto praticamente sinto o
veneno escorrer pelo canto da minha boca, porque é assim que me sinto ao

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lado dele. — Eu quase acreditei que você não sabia que tinha uma filha, seu
desgraçado.
Seus olhos se arregalam e ele empalidece, de repente. Vejo sua
expressão passar de atônita para lívida. Em poucos segundos, ele
praticamente voa para cima de mim, tamanha sua rapidez, segurando meus
pulsos e colando seu rosto ao meu, falando tão próximo a mim que nossas
respirações se confundem. Seu hálito de hortelã entra em meu pulmão e eu
quase caio para trás, tamanha a intensidade com que ele me ataca. Sua raiva
é genuína.
— Olha aqui, Catarina — ele fala devagar e baixo, separando as
palavras com ódio: — Desde que eu cheguei nessa merda de cidade perdida
no quinto dos infernos, eu venho aguentando cada patada sua. Cada desaforo.
Eu voltei para um lugar que eu odeio por você, ciente do que eu passaria, e
venho aguentando calado tudo porque eu mereço! Eu sei que eu mereço! Mas
isso? Dizer que eu sabia disso? Que eu ignorei um pedaço de mim? Você só
pode estar de brincadeira, caralho! Eu sou uma porrada de coisa ruim, eu já
fiz um monte de merda na vida. Mas eu não sou um monstro! Não esse tipo
de monstro.
— Não seja ridículo... — começo, pronta para despejar mais verdades
em sua cabeça, mas ele não me deixa terminar.
— Não, nem termina. Eu só quero saber sobre nossa filha. Eu só quero
saber o que você pensa que eu já sei, e eu quero cada detalhe disso. — Ele
me olha triste. — Você realmente não sabe quem eu sou. E eu realmente não
sei mais quem você é. Eu sou apaixonado por uma completa estranha.
Ele me solta com tudo, e eu cambaleio para trás, assustada com a força
das suas palavras. Ele se volta para o outro lado da sala, passando as mãos
pelo cabelo, nervoso, descontrolado. Anda de um lado para o outro,
enquanto sua respiração se torna mais intensa, mais dolorida, e um soluço
dolorido escapa de sua garganta, me fazendo arrepiar. Parece um animal
enjaulado, tentando descobrir como quebrar as grades de sua prisão e ganhar
o mundo. É uma dor genuína. Palpável.
Uma dor que eu sei reconhecer porque já senti.
Um segundo de entendimento é o que eu levo. Um segundo apenas.
— Lorenzo? — chamo seu nome baixinho, com o peito batendo
acelerado contra minha caixa torácica. Rezo a Deus para estar entendendo
tudo errado, mas quando ele se vira devagar, olhando dentro dos meus olhos,
eu consigo enxergar enfim. Dentro dos olhos vermelhos, marejados de

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lágrimas que estão prestes a escapar, eu consigo ver a verdade que me
negaram durante oito anos.
Ele nunca chegou sequer a saber.
Ele está dizendo a verdade.
Meu Deus, ele nunca soube!
— Ela nasceu? — ele me pergunta com a voz embargada, deixando
finalmente as lágrimas caírem, rolarem pela camisa branca, pelo rosto
pálido. Não preciso falar que agora acredito no que ele me diz, porque
nossos olhos conversam sem palavras.
Balanço a cabeça em afirmação, cruzando os braços e passando as mãos
sobre eles, tentando inutilmente me aquecer. De repente, sinto frio. Durante
tanto tempo eu nutri por ele um ódio descomunal, lhe atribuindo culpas que
não eram totalmente dele. Não que ele estivesse certo em me virar as costas.
Ele jamais estaria. Mas em sua visão, pelo que consigo entender agora, ele
havia apenas virado as costas para mim, não para nossa filha. Nossa
pequena filhinha. Fruto da nossa única noite juntos.
Em sua cabeça, ele foi apenas um adolescente fazendo besteira, nada
além.
— Fica aí — eu falo, por fim —, já volto. — Ele me olha sem entender,
mas se senta no sofá, enquanto eu subo as escadas rapidamente em direção
ao quarto. Volto alguns minutos depois, com algumas pastas nas mãos e uma
pequena caixa transparente. Sento-me ao lado dele e, com as mãos trêmulas,
abro a primeira pasta, tirando alguns papéis de lá.
— Você é médico, vai entender essas coisas melhor do que eu —
Entrego uma ecocardiografia em suas mãos. — Na décima oitava semana,
eu fiz uma ecocardiografia fetal, onde foi constatada uma obstrução da saída
do ventrículo direito. Na época, eu me desesperei, mas meu médico disse
que não adiantava muito, e que nada poderia ser feito enquanto ainda
estivesse grávida. Eu teria que esperar ela nascer, para só então ela começar
a medicação e fazer a cirurgia de correção.
Ele fecha os olhos, assimilando minhas palavras, absorvendo as
informações. Segura a ponte do nariz com os dedos, respirando fundo, talvez
em uma tentativa de assimilar tudo o que está acontecendo. Até alguns
minutos atrás ele sequer sabia dela, e agora está aqui, descobrindo como ela
morreu.
— Nina... — sua voz já está mais mansa, mas não menos triste quando
ele enfim pergunta: — Ela se foi durante a cirurgia?

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Essa é a pergunta que mais me dói responder, mas eu preciso reviver
aqueles dias para que ele possa entender.
— Não, Lorenzo. Ela não suportou sequer esperar — minha voz falha,
mas eu consigo colocar essa informação para fora.
Ele abaixa a cabeça entre as pernas e, segundos depois, seu choro
explode. Penso muito antes de fazer o que quero, porque quando eu precisei
que ele estivesse ao meu lado para me afagar, ele provavelmente estava em
baladas, curtindo a vida, saindo com mulheres e enchendo a cara.
Mas aí que está: eu não sou como ele. E eu já senti essa dor.
Eu a sinto todos os dias, e sei como é importante ter alguém ao lado.
Relutantemente, levanto minha mão e a pouso devagar sobre suas costas
largas. Meus dedos trêmulos demoram a se firmar sob sua pele, mas respiro
fundo e passo minha mão livre por toda a extensão de seu corpo, indo de
seus braços até suas costas e voltando, afagando-o, sem dizer uma palavra.
Apenas o deixo chorar sua dor, que de fato eu não entendo. Ele não a
conheceu. Ele nem sabe o nome dela. Ele nunca viu seus olhinhos verdes,
seu cabelinho loiro e seus pés gordinhos. Ele não a viu naqueles aparelhos
todos, nem a sentiu junto ao peito com aquela respiraçãozinha sôfrega,
difícil. Aquela respiração que me rasgava o peito dia e noite, me fazendo
querer estar no lugar dela, até mesmo no dia em que ela morreu. Porque
Deus sabe o quanto eu quis trocar de lugar com ela. Sem pensar duas vezes,
eu daria minha vida pela sua, e nesse dia, mesmo que brevemente, eu senti
toda a imensidão do que é ser mãe.
Mas a questão é que ela é tão dele quanto minha, então eu simplesmente
me calo e respeito sua dor. Melhor do que isso: eu acolho sua dor.
Seus dedos trêmulos por fim pegam a outra caixa da minha mão sem
permissão, e ele a abre, revelando o conteúdo. Depois, estende
milimetricamente a saída de maternidade sobre as pernas, observando a
roupinha. As lágrimas caem sobre ela e ele passa os dedos sobre os detalhes
do bordado. Observo essa cena com o peito dilacerado de dor, pois nunca
imaginei tal reação na vida. Achei que quando esse encontro finalmente
acontecesse, eu jogaria esses exames em seu rosto, exigindo explicações e
dizendo barbaridades, mas nunca imaginei que seria um momento tão difícil
como agora. Enxugo minhas próprias lágrimas com cuidado, e levo minha
mão que está em suas costas para o seu cabelo, esquecendo completamente
do meu ódio, pelo menos por alguns minutos. Nesse momento, sou apenas um
ser humano consolando outro ser humano.

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— Como ela se chamava? — ele me pergunta, fungando e limpando os
olhos.
Sorrio ao pronunciar seu lindo nome, mesmo em meio à tanta dor:
— Lorena.
— Porra — Seus olhos brilham com o entendimento: — Uma mistura
perfeita de Lorenzo e Catarina. É um nome perfeito, Nina. Eu amei.
Balanço a cabeça, concordando.
— Sim — Estendo a certidão de nascimento dela e ele a segura,
analisando os campos.
— Lorena Nascimento — ele repete seu nome, abafando um soluço.
— Eu não podia registrá-la sem você aqui, Lorenzo.
Ele fecha os olhos, como vem fazendo sem parar durante toda a nossa
conversa. É como se, assim, ele conseguisse, de alguma forma, internalizar
as coisas que vem descobrindo.
— Nina, eu me sinto exatamente um ninguém agora. Um nada. Durante
todos esses anos eu me culpei por te deixar pra trás, por deixar nossa
história para trás. Mas agora? Nina... Eu deixei minha filha para trás! Eu
não acompanhei minha filha se formar dentro de você, eu não vi minha filha
nascer, eu não a vi sequer morrer! Quem eu sou? O que eu sou, meu Deus?
— Seu choro convulsivo se mistura aos soluços e a minha dor aumenta. Eu
me vejo nele, oito anos atrás, quando foi a minha vez de passar por tudo
isso. A dor é lancinante, e somada à culpa, deve ser muito pior.
Suspiro, tentando encontrar as palavras corretas, mesmo que nem
mesmo eu as conheça.
— Lorenzo, ouça: eu achei que eu nunca diria isso, mas você não tem
culpa. Você tem culpa de muitas coisas, muitas. Você não é a melhor pessoa
do mundo, mas eu não posso te culpar por algo do qual você não fazia ideia,
e você não pode se culpar também.
Em poucos minutos, a visão da pior tragédia da minha vida havia
mudado drasticamente. Tudo o que eu acreditei por oito anos é mentira, e eu
ainda preciso aprender a lidar com a verdade. A vida é uma caixinha de
surpresas.
Seus olhos, de repente, ganham uma nova mistura de cores, e como se
lembrasse de algo, ele pega no meu pulso e me olha sério.
— Espera aí. Você disse que eu sabia. Na verdade, você tinha absoluta
certeza de que eu sabia. Pra quem você contou, Nina? Quem deveria ter me
contado sobre minha filha? — Há ódio em sua voz, e eu sei que ele já sabe a

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resposta para essa pergunta enquanto balança a certidão de nascimento
próximo ao meu rosto. — Eu quero saber de quem é a culpa por ter um
espaço em branco no lugar onde deveria haver meu nome, porra.
Abaixo minha cabeça, ponderando sobre tudo. Por mais que eu saiba
que ele merece a verdade, eu sei, do fundo do meu coração, que ela vai
destruí-lo ainda mais.
O problema é que ele já havia sido enganado por muito tempo. Tão
enganado quanto eu.
— Seus pais, Lorenzo. Quando eu soube, fui até sua casa pedir seu
telefone e contei a sua mãe o motivo. E eu nunca fui tão maltratada em toda a
minha vida. Ela me enxotou de lá como uma cachorra de rua. Disse que
nunca seria avó de uma criança que, segundo as palavras dela — nesse
momento eu rio com amargor — nasceria favelada e catarrentinha. Uns dias
depois, seu pai foi ao café dizendo que ela havia se arrependido do modo
como havia falado comigo e que eles haviam te ligado, mas que você havia
dito que não queria assumir uma responsabilidade dessas agora, por conta
dos seus estudos, e que isso tudo atrapalharia o futuro que você havia
escolhido, e que nesse futuro não havia espaço para uma criança bastarda.
Disse que você arcaria com todos os custos desse filho, mas que não seria o
pai dele, de fato. Acho que para calar minha boca, não é? Agora faz muito
sentido: dizer que você não nos queria para que eu nunca sequer tentasse te
procurar. Então eles me ajudaram por um tempo durante a gravidez, com um
dinheiro para as coisas mais básicas. E quando nossa filha morreu, seu pai
foi ao hospital, olhou por dez segundos o corpo dela, fez o sinal da cruz, e
nunca mais olhou no meu rosto. Sua mãe nunca sequer chegou a vê-la.
Ele fecha os olhos por um momento. Quando os abre novamente, eu só
enxergo ódio. Um ódio que eu nunca vi estampado em seu rosto, mas que eu
entendia perfeitamente, porque o senti durante todos esses anos.
Ainda sinto.
— Por isso eles se desesperaram tanto quando eu disse que estava
voltando. Por isso tanto medo, tanta angústia. Meu Deus, nunca foi
preocupação comigo! Era medo! — Ele se levanta do sofá bruscamente,
dobrando a certidão de nascimento dela e a enfiando no bolso. Não pergunto
o motivo, mas imagino. Ele precisa dela para o que vai fazer. — Eu vou
matar aqueles dois! Eu juro por Deus, eu vou matar aqueles dois!
Seguro seu braço com força.

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— Lorenzo! Se lembre que eles são seus pais — eu tento dizer, mas nem
mesmo eu consigo acreditar em minhas palavras, porque eu não me preocupo
com eles. Por mim, que ardam. E que paguem com muita culpa pelo que
fizeram, não só a mim e à minha filha, mas também ao próprio filho.
— E ela era a neta deles, Nina! Não era favelada, não era catarrentinha.
Era a neta deles! Ela era a minha filha! E eu tinha o direito de saber, porra!
Eu tinha o direito de escolher voltar, de estar aqui! Eles me tiraram isso! —
Ele vai até a porta da sala, mas, antes de abri-la, se volta para mim, dizendo
palavras que mais parecem uma promessa: — E eu vou até o inferno, mas
eles vão me pagar por terem me tirado o direito de conhecê-la.

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CAPÍTULO 25
Lorenzo

Enquanto dirijo, batuco meus dedos no volante em um ritmo frenético,


talvez uma tentativa inútil de aplacar a ansiedade e a dor que me corroem.
As lágrimas escorrem por meu rosto, caindo na calça jeans e embaçando a
visão. Acelero cada vez mais, e não me importo com a velocidade que o
carro atinge. Eu só quero chegar logo em casa.
Não, aquele lugar não é mais a minha casa. Tão logo eu exija
explicações, vou comprar um apartamento para mim e sumir daquele lugar.
Se a minha filha "favelada e catarrentinha" não era boa para eles, eu também
não sou.
No rádio, One last breath, do Creed, toca baixinho, e um risinho irônico
brota em meu rosto, mas não há qualquer humor nele.
Sério, universo? É uma conspiração do mal, é isso? É o dia de afundar o
Lorenzo na merda? Puta que me pariu, viu.
Sei que eu já fiz muita coisa indecente na vida. Já menti, já enganei, já
desdenhei de coisas e pessoas e feri sentimentos. Eu fiz tudo o que eles
mesmos me ensinaram a fazer ao longo da vida, coisas que eles me
mostraram, com suas atitudes, serem completamente normais. Mas poxa
vida, esconder uma criança? Ainda mais sendo essa criança neta deles? Até
eu sei que isso é sério demais.
Ruim demais.
Chega a ser repugnante, porque é simplesmente desumano.
Estaciono meu carro na garagem e entro pela porta dos fundos da casa
enorme. Tudo está escuro, mas sei que eles estão em casa, pois os dois
carros estão na garagem, o que é um milagre. Meu pai quase nunca chega

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cedo, então, é agora ou nunca. Preciso confrontar os dois, tirar essa história
à limpo, perguntar o motivo de me esconderem algo tão importante durante
todo esse tempo. Preciso entender em que momento nossa família se perdeu
assim, se é que um dia houve uma.
Subo as escadas rapidamente e ignoro o maldito Lulu da Pomerânia
que ainda late sem parar para mim.
Esse cachorro nunca se cansa, pelo amor de Deus.
Sem pensar, entro no quarto de minha mãe sem bater. Por sorte, ela está
deitada em sua cama, de camisola, lendo um livro. Assustada, abaixa os
óculos e me olha sem entender nada. Quando vê meu rosto inchado pelo
choro, seu rosto se contorce e ela rapidamente larga o livro, levantando-se
rapidamente e vindo em minha direção.
— Lorenzo, meu amor, o que houve?
Quando ela chega próximo o suficiente para me abraçar, eu seguro seus
pulsos, afastando-a de mim. Observo-a por um instante e, por alguns
segundos, eu vejo algo. O que sempre foi motivo de orgulho para mim, agora
não é mais. A beleza de minha mãe agora só deixa claro uma coisa: ela é
assim porque nunca foi minha mãe. Não há uma ruga sequer em seu rosto
porque ela nunca perdeu uma noite de sono por minha causa. As babás
sempre se encarregaram disso. Ela nunca me amamentou por medo de seus
seios caírem; ela nunca me esperou até tarde, como todas as mães comuns
fazem, porque, para ela, não era importante. Nunca trabalhou para prover
meu sustento como Dona Branca, mãe da Nina fez a vida toda. Suas mãos
são bem-feitas e macias, pois ela nunca as usou a meu favor, nem mesmo
para um carinho ou afago. Eu não duvido que ela me ame, de verdade, eu
realmente não duvido. Mas ela me ama de uma forma extremamente torta e
mesquinha, provavelmente a forma como ela foi ensinada a amar.
Exatamente a forma como me ensinou a amar.
A forma como eu ensinaria os meus filhos, se a vida não me desse todas
as chacoalhadas que vêm dando, dia após dia, desde que eu conheci
Catarina.
— Filho? — Ela tenta novamente se aproximar, mas eu não permito.
— Não toca em mim — Limpo desajeitadamente as lágrimas dos meus
olhos, e mantenho a distância segura entre nós. — De você, Dona Liana, eu
só quero explicações. Aliás, de você e do seu marido.
Seus olhos se arregalam.

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— Lorenzo, isso é jeito de falar dos seus pais? — Ela ergue a cabeça
em sua habitual pose aristocrática, provavelmente tentando manter a
compostura. Honestamente, não sei se ela ainda não entendeu que eu já
descobri tudo ou se está tentando ganhar tempo, mas eu sei que eu quero rir
na cara dela e dizer para ela baixar a bola comigo. Por mais que ela seja
minha mãe, o que ela fez é algo sem perdão, e eu nunca, em hipótese alguma,
vou dever respeito a ela depois disso.
— Cala a boca. Pelo amor de Deus, cala a boca. Eu só quero ouvir a
sua voz quando eu mandar. — Pego-a pelo pulso e começo a puxá-la porta a
fora. Ela se desespera e tenta se soltar, fincando os pés no chão, assustada
com meu comportamento explosivo.
— Lorenzo, o que é isso? Para! — Seus frágeis dedos tentam se soltar,
mas é inútil, porque eu a seguro ainda mais forte.
— Você sabe o que é isso! Você sabe! — Eu finalmente grito, colocando
toda a minha raiva pra fora — Eu nunca te desrespeitei, mãe! Eu nunca gritei
com você, então você sabe o que é isso sim! Mas que porra, vocês acharam
o quê? Que eu nunca saberia? Que isso nunca viria à tona? Vocês não me
esconderam um cachorro, porra! — A pego pelo pulso novamente e a puxo,
mas dessa vez ela cede e se deixa levar, chorando baixinho. Por um segundo,
eu sinto pena dessa situação toda, mas quando eu lembro tudo o que ela fez,
o sangue volta a esquentar em minhas veias, e eu quero simplesmente
quebrar tudo o que eu vejo pela frente.
Desço as escadas, e vejo de longe a luz do escritório acesa e a porta
entreaberta. Meu pai está em casa não para ficar com minha mãe, mas para
trabalhar. É isso, afinal. Nunca houve uma família. Eles não deram valor
nenhum à minha filha porque nunca houve uma família aqui.
Há uma casa, há pessoas, há dinheiro, mas, definitivamente, não há uma
família, sequer um lar.
Não passa nem perto disso.
Abro a porta bruscamente e encontro o olhar assustado do meu pai. Ele
ainda veste seu terno cinza, sua camisa branca frouxa na gola e a gravata
roxa sem o nó, mas ainda pendurada em seu pescoço. Parece genuinamente
cansado, mas não chega nem perto do caco que eu estou.
Fisicamente e emocionalmente. Esse dia parece não ter fim.
Jogo minha mãe de qualquer jeito no sofá de canto do escritório, mas me
arrependo no mesmo instante. Por mais que ela tenha feito tudo o que fez, ela

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ainda é a minha mãe, e é uma mulher. Eu não posso consertar um erro com
outros.
— Desculpa — eu digo baixo —, eu não quis te machucar. Eu só estou
fora de mim. Completamente fora de mim, e foram vocês que me deixaram
assim. — Balanço a cabeça, atordoado, tentando recobrar minha consciência
médica e humana.
— Não machucou — ela responde, esfregando os pulsos, chorosa.
Meu pai se levanta nervoso de sua cadeira semipresidencial e me olha
com fúria.
— Lorenzo, que merda é essa? Andou bebendo, moleque? Tá usando
droga, porra? — ele diz alto, suas veias do pescoço se sobressaltando
enquanto seu rosto fica cada vez mais vermelho.
— Moleque? Tem certeza que o moleque aqui sou eu, Doutor Carlos?
Não sabe mesmo por que eu estou assim? — pergunto, com ódio faiscando
em meus olhos, e, após um breve momento de compreensão, sua expressão
muda de irritada para extremamente assustada.
Então é isso.
Ele havia simplesmente esquecido da minha filha. Como se ela nunca
houvesse existido, como se fosse um nada do qual eles tinham se livrado, um
problema resolvido e enterrado; ele só lembrou quando eu o confrontei.
Eles são piores do que eu pensava.
Vejo seu olhar cruzar com o de minha mãe. É como se conversassem em
silêncio, como se a maldade de um entendesse a do outro assim, sem
palavras.
Ainda tremendo, tiro a certidão da minha Lorena do bolso, e a
desdobro. Estendo-a na direção da minha mãe.
— Pega — eu digo, tentando manter a voz baixa e calma. Ela se demora
olhando o papel, mas não o segura — PEGA! — eu ordeno, gritando e
perdendo a paciência.
Ela segura o papel com as mãos trêmulas e eu determino:
— Lê em voz alta.
— Filho, para com isso. Sua mãe está nervosa... — Meu pai tentar
intervir e me segura, mas eu me solto dele com um puxão, deixando claro
que ele não está em condições de me pedir nada.
— Vou te falar o mesmo que eu falei para ela — praticamente rosno em
sua direção, como um cão bravo com uma ferida aberta: — Não toca em
mim e não me chama de filho. Eu não vou demorar aqui. Vai ser o tempo de

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colocarmos isso à limpo e o tempo de fazer minha mudança dessa casa. Eu
não fico mais um dia aqui! — Me volto para minha mãe, depois de dar meu
aviso: — Agora, leia.
Ela começa a chorar e eu choro junto. Pela minha dor, principalmente,
mas também pela dor de finalmente entender que eu nunca tive um lar. Eu
nunca tive pais. Eu tive progenitores, o que todos têm. Pessoas que me
colocaram no mundo e me sustentaram. Mas puxando agora em minha
memória, eu não me lembro de sequer um domingo no parque, não me
lembro de nenhum almoço em família que não fosse em datas especiais ou
jantares de trabalho, sabe? Aquele almoço de domingo, que todo mundo teve
com a família, que deveria ser normal? Eu nunca joguei bola com meu pai,
eu nunca fui ajudado no dever de casa pela minha mãe.
Eu sequer tenho um irmão. Eu sinto que eu sou aquele que veio ao
mundo para levar a linhagem adiante, nada mais.
Apenas e tão somente isso. Eu fui um incômodo necessário.
— LÊ! — eu insisto. — Em voz alta.
Ela demora alguns segundos, mas, vendo que eu não mudarei de opinião,
finalmente começa a ler a certidão da minha filha.
— Nome — ela começa e sua voz falha: — Lorena Nascimento — Ela
ergue os olhos para mim, suplicantes. — Não me obrigue a fazer isso, filho.
— Continua — eu apenas respondo, ignorando seu pedido.
— Filiação: Mãe: Catarina Nascimento. Pai: nada consta. — Seu
choro se torna mais intenso e eu olho para o meu pai, que nem pisca, como
se não acreditasse na cena que se desenrola à sua frente.
— Continua — eu mando, firme e decidido.
— Avós Maternos: Branca de Andrade Nascimento e José Nascimento.
Avós Paternos: Nada consta.
Tomo a certidão de sua mão de forma rude e a guardo no meu bolso. Ela
abaixa a cabeça, chorando, envergonhada.
— Eu só quero uma resposta de vocês dois. Por que há espaços em
branco na certidão de nascimento da minha filha?
— A gente estava pensando no melhor para você, Lorenzo! — meu pai
intervém. — Você estava estudando fora, com um futuro magnífico pela
frente! Não podia deixar tudo isso para trás por uma criança fruto de uma
noitada, pelo amor de Deus! — ele exclama, quase indignado, e eu juro por
Deus, eu vou surtar.

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— O quê? — eu pergunto, ainda incerto sobre o que eu acabara de
escutar.
— É isso mesmo — ele responde, como se fosse capaz de me
convencer. — E essa criança nem sobreviveu! Por que todo esse drama?
Acabou, passou. É passado, Lorenzo. Já faz quase oito anos.
Espera aí um pouquinho.
Ele está falando de uma criança ou de uma planta? Por que nem de um
animal se fala com tanta frieza assim.
Nesse momento, eu esqueço tudo. Esqueço que seu sangue corre em
minhas veias, esqueço que eu estou dentro de sua casa, esqueço que minha
mãe assiste à tudo. Eu simplesmente parto para cima dele, segurando seu
colarinho e pressionando-o contra a parede, de forma bruta. Minha vontade é
partir sua cara ao meio, fazê-lo sentir um terço da dor que está me rasgando
por dentro.
— Essa criança tem nome! E era sua neta, seu psicopata filho de uma
puta! E talvez, se não fosse o egoísmo de vocês dois, ela estaria viva! Eu
odeio vocês por isso. Não há perdão para o que vocês fizeram comigo e com
a Catarina, mas, principalmente, não há perdão para o que vocês fizeram
com a minha filha!
Afasto-me um pouco, recuperando meu bom senso e meu ar. Olho em
seus olhos assustados, e finalmente ele entende que não é uma briga de egos.
Eu sinto dor. Eu quero uma explicação. Eu preciso que alguém pague a conta
da morte da minha filha, da filha que eu nem cheguei a conhecer.
— Pai... Se é que eu ainda posso te chamar assim depois do que você
me fez — eu digo, finalmente cedendo à dor cruel que corrói meu peito: —
Eu sei que o dinheiro que você deu para ela era o que você carregava no
bolso. Algo que não te faria falta. Não era nada para você! Talvez com bons
médicos, um bom hospital... Se ela não tivesse que esperar uma cirurgia! Ela
não suportou esperar, entende? — Eu puxo o ar e continuo, sabendo que
preciso pôr para fora tudo isso, e que Catarina não seria a melhor pessoa
para ouvir, porque a dor dela é ainda mil vezes pior do que a minha. Eu
sequer sei como ela sobreviveu todos esses anos sentindo isso que estou
sentindo há poucas horas, mas que já me enlouquece. — A Catarina me
odiou esse tempo todo por isso. Por mais que ela não tenha falado, eu sei
que ela me culpou todos esses anos por achar que eu sabia que essa criança
existia... Ela sabia que, com meus recursos, a gente podia ter salvado minha

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filha. Vocês podiam ter feito isso por mim! Olha o que vocês poderiam ter
evitado se não fossem tão egoístas!
— Lorenzo... — ele tenta, mas não deixo. É minha vez de falar.
— Uma cirurgia, pai! — eu explodo. — Uma porra de uma cirurgia!
Eu sou médico, e era só o que minha filha precisava, e ela morreu! Porra,
isso é ridículo!
Ele olha em minha direção com uma frieza que não sei como não pude
notar em todos esses anos.
— Eu sei que nós erramos, Lorenzo. Mas eu achei que você não se
importaria com a existência dela. Achei que ela se curaria, eu a ajudaria às
vezes e tudo bem, vida que segue, assunto encerrado. Nós funcionamos
assim, Lorenzo. Nós solucionamos problemas e acabou. Os Leone são assim.
— Se for assim, eu odeio ser um Leone. Eu odeio esse sangue maldito
que corre nas minhas veias! — Bato em meus braços com ódio, enquanto
praticamente cuspo as palavras, me afastando dele: — Vocês não são
normais. Ela era sangue de vocês e foi tratada como um animal qualquer.
Vocês a rejeitaram por uma questão monetária, puramente social. Que
escória vocês são.
— Não fale assim de nós, Lorenzo! — Minha mãe surta e vem pra cima
de mim. — Eu sou sua mãe, eu te amo! Eu pensei na sua carreira, no seu
status, na sua vida social!
— Mas não pensou na minha felicidade! Nunca pensou em mim como
pessoa! Nunca reparou no monstro em que eu estava me tornando!
Enganando, mentindo, humilhando. Sempre aplaudiu, sempre apoiou as
barbaridades que eu fazia! Que tipo de mãe é você? Eu vou embora dessa
casa porque isso é contagioso, e eu já fiquei aqui tempo demais!
Saio, deixando os dois para trás, mas minha mãe me para antes que eu
atravesse a porta. Ela estende os braços e olho para ela mais um pouco,
entendendo um pouco mais esse quebra-cabeça que é minha vida. Seus olhos
manchados de rímel me encaram, e eu acabo por sentir pena. Os pulsos
lotados de joias e o rosto coberto por uma maquiagem pesada, emoldurado
por um cabelo penteado e platinado, me mostram o quão fútil é minha mãe e
a vida de fachada que ela leva. São mais de onze horas da noite, mas ela está
arrumada como se fosse para uma festa, talvez, numa tentativa fracassada de
chamar a atenção do meu pai.
— O que você queria de mim, Lorenzo? Eu só pensei no seu bem.
Talvez de uma forma errada, mas eu só quis o seu bem — ela ainda tenta me

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convencer, mas eu me esquivo.
— O que eu queria, infelizmente, nem você e nem seu dinheiro pode me
dar, Dona Liana. Eu queria poder ter nascido em outra família. — Faço
menção de sair, mas volto para um último recado: — E, ah, tenta ser menos
fútil e mais humana. Talvez seja isso que meu pai procure nas amantes que
ele tem espalhadas pela cidade. Não porque ele seja mais humano que você,
mas porque isso falta nele também. — Olho para meu pai e, antes de bater a
porta, digo: — Eu estou tentando mudar. Pelo amor de Deus, façam o mesmo
por vocês, antes que seja tarde demais.

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CAPÍTULO 26
Nina

Há um ponto estratégico da minha cabeça que lateja, pulsando sem


parar. É como se meu coração batesse ali, descompassado, apressado,
querendo sair, se libertar de mim. Não bastasse a carga emocional que eu
estou enfrentando com meu pai em um hospital, agora mais essa do Lorenzo
descobrir sobre minha pequena Lorena.
Nossa pequena Lorena. Por mais que eu odeie dividir o que foi meu por
tão pouco tempo, ela é dele também.
Agora que eu sei a verdade, mais ainda.
Devo admitir que uma grande parte do ódio que eu nutri por ele durante
todos esses anos se esvaiu de mim no momento em que olhei em seus olhos e
enxerguei a ignorância. Ele estava no escuro todos esses anos, tanto quanto
eu. Eu poderia me perguntar "E se ele soubesse, faria diferença?", mas essa
é uma resposta que eu nunca terei. E levando em consideração a reação que
ele teve nessa sala hoje, sim, eu acho que faria uma grande diferença.
No braço do sofá, meu celular começa a vibrar. Suspiro alto, porque eu
realmente não quero falar com ninguém, mas no mesmo instante me toco que
podem ser notícias do meu pai, então me apresso em chegar até ele. Quando
olho no visor, os olhos amendoados do meu namorado me encaram em uma
foto que eu deixo como identificador. Com todo esse turbilhão de coisas
acontecendo, eu me esqueci dele, mas, em um segundo apenas, toda a minha
raiva volta. Ele sumiu por um dia inteiro, me deixando sem notícias e
sozinha para lidar com as minhas dores. Penso em não atender e fazer com
ele o mesmo que fez comigo, mas eu conheço Phelipe, e sei como ele é
insistente quando quer, e, principalmente, quando é contrariado.

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— Oi — respondo quase com um resmungo. Não há nenhuma razão para
eu agir ou respondê-lo como se eu estivesse bem, porque eu não estou, e ele
precisa saber que, em grande parte, é culpado disso. Por mais cansada que
eu esteja para discutir, eu estou também muito magoada com ele.
— Nina, amor... Desculpa não atender suas ligações! — Tomo um
suspiro e sei que lá vêm explicações que eu não quero ouvir. —
Aconteceram tantas coisas, nossa eu realmente me enrolei...
— Phelipe — corto suas palavras no meio da frase —, perdoe minha
sinceridade, mas nada, absolutamente nada do que aconteceu com você hoje,
deve ter superado tudo o que houve comigo. Então, por favor, vamos deixar
essa conversa para amanhã?
— Nina, olha. Eu sei que você deve estar chateada, mas eu posso te
explicar... — ele começa, mas eu realmente não tenho interesse em saber.
— Não, Phelipe, você realmente não entende — suspiro, segurando as
lágrimas que brotam em meus olhos. — Meu pai está no hospital. Eu te liguei
milhões de vezes porque eu precisava de você lá, ao meu lado. Ele quase
morreu. Ele está realmente mal. Meu dia foi péssimo. E você sequer
percebeu que eu não fui trabalhar! Por favor, me deixa tomar um banho e
deitar. Amanhã a gente conversa.
— Nina, mas o que houve? — Sua voz ganha uma nota de desespero, e
essas suas oscilações de humor estão cada vez piores. Provavelmente é o
estresse do trabalho, mas, poxa vida, temos uma vida fora do escritório. E se
escolhemos seguir juntos nela, eu o queria ao meu lado. Não meu patrão, mas
sim meu amigo e namorado. — Está tudo bem com ele?
— Eu não sei como ele está agora. Minha mãe está lá. Eu vou voltar
amanhã cedo, então não me espere no escritório. Amanhã conversamos
melhor, tudo bem? — Não peço sua permissão, apenas aviso. Preciso
desligar logo, antes que essa conversa fique ainda pior.
Ele pode ter as melhores explicações, mas eu não as quero ouvir, pelo
menos não agora. Não hoje. Hoje eu quero apenas deitar e rezar pelo meu
pai. Rezar pela minha Lorena. Por mim e por minha sanidade mental. Foi um
dia pesado, pesado como poucos que eu tive nos últimos oito anos.
Eu só preciso de silêncio.
— Tudo bem, meu amor. Eu te amo, Nina. Liga para mim se precisar.
Quero rir. Juro, eu realmente quero rir, mas, ao invés disso, eu apenas
respondo, com uma nota de amargor na voz:
— Eu precisei, Lipe, mas você não me atendeu. Tenha uma boa noite.

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[...]
Saio do banho enxugando meus cabelos, lembrando de como Lorenzo os
elogiou. Meu rosto está inchado do choro contínuo e sem pudor que eu me
permiti ter debaixo do chuveiro. Com a água caindo sobre os ombros,
deixei-a lavar toda a minha dor e tristeza, e pensei muito sobre tudo o que
vinha acontecendo. Parece que, de certa forma, os papéis vêm se invertendo.
O Phelipe, que sempre foi o meu porto seguro, está se tornando instável e
difícil de lidar, o que eu justifico sempre que posso, enquanto Lorenzo, o
cara que eu sempre odiei com todas as minhas forças, se mostra cada dia
mais diferente, mesmo que eu ache que é tudo teatrinho e pura falsidade.
A verdade é que sinto que vou enlouquecer a qualquer momento.
Meu celular toca de novo. Corro para atender com medo de serem novas
notícias sobre meu pai. Há pouco havia conversado com minha mãe e ele
ainda se mantinha estável, do mesmo modo que estava quando Lorenzo e eu
deixamos o hospital. Meu peito se aperta com o pensamento de que isso
possa ter mudado.
No visor, um número desconhecido chama, e eu atendo com as mãos
trêmulas:
— Alô? — digo meio incerta, ainda com medo de serem notícias ruins.
Olho no relógio da minha cômoda e nele marca 00:35.
Quem, por Deus, liga para alguém nesse horário?
— Nina... — uma voz visivelmente embriagada chama meu nome do
outro lado da linha. — Quantos dias ela tinha quando se foi? — Um soluço
escapa de sua garganta. — Qual era a cor dos olhos dela?
Lorenzo.
— Lorenzo — suspiro. — Como você tem meu número? — Passo a mão
por minha fronte. Pelo jeito, esse dia está longe de acabar.
— Eu peguei na ficha do hospital — ele diz, sem qualquer rodeio ou
pudor. — Foda-se. Amanhã você pode me denunciar para eles. Diz que eu
te persigo e que eu sou um ex-namorado louco, faz o que você quiser. Mas
hoje eu preciso saber dela, Nina. Por favor, eu preciso saber... — Ele
soluça de novo e eu sinto pena.
Sento-me na beirada da cama e suspiro.
— Lorenzo, você não está bem. Você bebeu. Podemos falar disso
amanhã? — Tento, mas sei que será inútil. Se Lorenzo continua como antes,
sei que é teimoso como uma mula.

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— Não, eu quero falar sobre isso hoje, porra — ele fala mais alto, mas
eu relevo. É tudo muito novo para ele. Se há menos de um dia você me
dissesse que eu teria paciência com Lorenzo Leone, eu riria na sua cara, mas
agora eu simplesmente não posso evitar. Eu entendo a dor que ele sente, pois
eu já a senti. — Nina, eu tô bêbado mesmo, mas e daí? O que eu tenho na
vida? Eu perdi tudo Nina, tudo. Perdi porque eu sou um babaca. Eu perdi
você, perdi minha filha, e descobri que eu nunca tive a porra de uma
família normal. E agora eu saí de casa, e não tem um maldito hotel nessa
maldita cidade! Que inferno! — Ele está claramente alterado, esbravejando
seu ódio aos quatro cantos. Esfrego o ponto na minha testa que dói sem parar
e suspiro, tentando ordenar meus pensamentos.
— Lorenzo, onde você está? — Olho novamente para o relógio. Há
apenas um pequeno hotel na cidade, mas ele vive cheio, por ser o único, e a
essa hora não deve mesmo ter nenhum quarto disponível.
— Você vai achar isso patético... — Ele ri com amargor, embolando as
palavras, que, por um milagre, eu entendo —... Mas eu estou na frente da
sua casa.
Aproximo-me da janela, e puxo a cortina para ver melhor. O vidro do
motorista está abaixado e ele, debruçado sobre o volante, está com o celular
na orelha. Quando ele enfim ergue o corpo, consigo ver como sua expressão
está derrotada. A luz do poste está virada em sua direção, me dando uma
visão privilegiada. Ele ainda está com a mesma roupa, do mesmo jeito que
saiu daqui. Provavelmente, está cansado e esgotado como eu, e vai trabalhar
amanhã.
Fecho os olhos por um momento.
Sei que vou me arrepender disso.
Sei que vou me arrepender muito disso.
Droga, não há palavras para descrever o quanto vou me arrepender
disso, mas eu sei que preciso fazer. Pelo que tivemos um dia. Pela vida que
criamos juntos.
— Espera aí, estou descendo para abrir a porta.
[...]
Estendo a xícara de café bem forte que eu acabei de passar em sua
direção. Ele olha para ela por algum tempo, pensando se deve ou não
aceitar. Depois de alguns segundos, ele a pega, molhando os lábios com o
líquido quente.
— Forte, como eu gosto — ele sussurra, com a voz rouca.

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Eu sei. Eu sei tudo, por mais que eu não queira. Sei todos os gostos,
todas as preferências. Os cheiros, a voz. Eu sei tudo sobre Lorenzo Leone.
Eu só não sabia que ele tem um coração, e que se machuca às vezes.
— Toma isso, Lorenzo — digo, nervosa pelo que vou falar em seguida:
— Depois você pode tomar um banho. Vai te ajudar a melhorar. E se você
quiser, claro... — eu tomo coragem —... Se você quiser, pode dormir aqui.
Não é o luxo com o qual você está acostumado, mas, por uma noite, dá pra
se virar. Melhor do que dormir no carro.
Ele sorri para mim.
— Claro que é — Ele ri, talvez pela primeira vez na noite, tomando
mais um gole. — Eu sou um sem-teto, Nina. Mas eu sou um sem-teto livre.
Mandei os dois à merda, aqueles desgraçados... — Sua voz, mole pela
bebida, me soa quase engraçada. — Falei tudo o que era necessário. Pena
que nada disso traga nossa filha de volta.
— Lorenzo... — digo, finalmente tomando coragem para lhe pedir isso:
— Por favor, vamos esquecer isso por hoje? Eu sei que é difícil. Você
acabou de descobrir e isso tá aberto em você como uma ferida. Mas eu
preciso descansar e você também. Você está alterado, e vai lembrar pouco
de qualquer coisa que falarmos aqui. Então eu prefiro responder suas
perguntas amanhã, pois eu pretendo respondê-las uma vez só. Cada vez que
eu falo nisso, dói como se fosse a primeira vez, e sinceramente, eu não
aguento mais.
Olho em seus olhos e lá encontro entendimento. Ele entende meu pedido.
— Tudo bem — ele diz, balançando a cabeça, como quem tenta
desanuviar os pensamentos que circulam por sua mente. — O banho ainda
está de pé? Eu realmente preciso. — Ele sorri sem graça, e eu acho que é a
primeira vez que eu o vejo assim, tão desconfortável em sua própria pele.
— Claro. Vem cá, vou pegar uma toalha para você.
[...]
Eu achava que estava preparada para enfrentar qualquer situação que
envolvesse Lorenzo, mas eu descobri que não, que eu vivi todos esses anos
em uma mentira. Eu não sei qual é realmente o sentimento que tenho por ele,
mas definitivamente indiferença não é. É necessário admitir isso para mim
mesma antes de qualquer coisa. Admitir é o primeiro passo. É algo que está
ficando cada vez mais difícil de lidar desde que ele chegou, mas nada havia
me preparado para a situação que se desenrola agora em minha frente.

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Arrumo o sofá para ele dormir. Ajeito o lençol, alguns travesseiros para
ficar mais macio e busco uma de minhas cobertas também. Coloco ao pé do
móvel e espero que ele desça para que, enfim, cada um descanse do dia
terrível que tivemos. Mas quando ele desce as escadas de cimento da minha
casa humilde, sentimentos guardados há anos vêm à tona de uma forma
incrivelmente complexa. Um turbilhão de sensações percorre meu corpo,
sensações que eu nem mesmo sei distinguir. Ele ainda veste a mesma calça
jeans, mas está descalço e sem camisa. Com a toalha, seca o cabelo, e
algumas gotas de água escorrem pelo seu pescoço, parando em seu abdômen
perfeito. Os músculos do braço se flexionam quando ele seca algumas gotas
nas costas e eu quero morrer aqui e agora. Morrer por me sentir assim, tão
fragilizada por sua presença. O cheiro de sabonete invade o cômodo, mas
não mais do que o sorriso que ele me lança quando para na minha frente,
estendendo-me a toalha que eu havia lhe emprestado.
— Bem melhor assim — ele diz, com a voz já melhor. O café forte e o
banho frio haviam lhe ajudado consideravelmente. — E me desculpa por sair
assim, mas as roupas estão no carro. Eu juntei tudo e joguei no porta malas
de qualquer jeito, morrendo de pressa em sair logo daquele lugar — ele se
explica e se senta no sofá, dobrando a barra da calça.
— Tudo bem — consigo falar, torcendo a toalha em minhas mãos. —
Arrumei o sofá para você, ok? Vou subir para dormir, já está muito tarde.
Ele olha em volta.
— Obrigado, está perfeito. Amanhã vou procurar um apartamento para
mim.
Concordo com a cabeça, sem demonstrar qualquer reação, e começo a
me distanciar, mas ele me segura pelo braço, de uma forma firme, mas não
bruta. Uma corrente elétrica passa por meus músculos, chegando ao coração,
que acelera imediatamente.
— De verdade, Nina. Obrigado por tudo. Não só por me deixar dormir
aqui — Ele se levanta e diminui a distância entre nós —, mas por ter me
contado a verdade e por acreditar que eu realmente não sabia de nada. É
importante para mim tudo isso. É importante para mim que você acredite na
minha palavra, pelo menos uma vez que seja.
Assinto com a cabeça e tento me desvencilhar delicadamente desse
contato, mas ele não deixa. Seu aperto brando se torna uma carícia delicada
no meu braço, e por mais que minha cabeça grite para eu correr, meus pés

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não obedecem, e minha boca não consegue articular palavras que o façam
parar.
Sua mão sobe até o meu cabelo, ajeitando uma mecha atrás da orelha.
Depois, ela delicadamente pousa em minha bochecha. Apenas levanto os
olhos para seus olhos verdes, os encarando, e essa é minha única reação. Por
que tudo é tão difícil nesse momento? Eu aspiro seu cheiro e simplesmente
me esqueço de tudo. Esqueço que ele se foi quando eu precisei. Esqueço que
minha filha se foi. Esqueço que tenho um namorado. Um passado dolorido.
Eu apenas me lembro dos seus lábios, sempre tão macios nos meus. Da
sua delicadeza em nossa primeira noite de amor, mesmo com tudo o que veio
depois. Dos momentos felizes que eu bloqueei durante todo esse tempo,
alimentando apenas o ódio, que foi meu combustível principal desde então.
Eles existiram. Por mais que os ruins houvessem se sobressaído, os
bons momentos existiram, e foram muitos. Namorar Lorenzo me fez feliz
como eu nunca fui antes, e muito menos depois.
Antes que eu consiga reagir, sua boca está na minha. Ele delicadamente
abre meus lábios com os seus, e tudo volta a ser como antes. É como se eu
ainda fosse a Nina de dezessete anos. Sua língua quente envolve a minha e
meus braços instintivamente se erguem ao redor de seu pescoço. Sinto minha
cintura ser enlaçada e nossa distância diminuir. Seu peito encosta no meu,
fazendo meus batimentos cardíacos aumentarem ainda mais, e eu sinto seu
coração bater rápido junto ao meu. Seus dedos sobem por minhas costas,
acariciando toda a minha extensão.
Eu o quero.
Como se o passado houvesse sido apagado, ele me ergue em seu colo,
enlaçando minhas pernas em sua cintura e me encostando na parede mais
próxima a nós. Sem palavras, ele apenas me beija, e eu sinto como se eu
ainda fosse a menina da cafeteria e ele o garoto popular, quebrando todas as
regras da sociedade. Como se eu não houvesse passado por tudo o que eu
passei. Como se não houvesse sua família entre nós. Seu dinheiro. Seu
orgulho.
Como se não houvesse uma terceira pessoa entre nós.
Mas há.
E de repente, eu sei o que preciso fazer.
Bato delicadamente em seu braço, fazendo-o entender que deveríamos
cortar aquele contato. Ele cuidadosamente me devolve ao chão, e, em

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seguida se vira de costas para mim, passando as mãos pelo cabelo, nervoso,
enquanto eu retomo o ar, e principalmente, minha sanidade.
— Desculpa, Nina — ele suspira alto, com raiva. — Eu não quero que
você se sinta mal por uma atitude precipitada minha, por favor — Ele se
volta pra mim, com súplica nos olhos. — Você está sendo tão incrível,
passando por cima do seu ódio, me ajudando, e na primeira oportunidade eu
faço isso...
— Lorenzo — eu o corto, já nervosa com o arrependimento em seus
olhos, mesmo que nos meus haja o mesmo sentimento. — Eu sou adulta. Foi
errado e não vai se repetir, pode ter certeza. Mas não foi só culpa sua. Só...
Vamos esquecer isso, por favor.
Ajeito meu cabelo e, ainda meio perdida, vou em direção às escadas,
como se eu precisasse sair dali para conseguir respirar.
— Nina — ele me chama, e eu me volto mais uma vez — Eu só queria
que você soubesse que eu amaria nossa Lorena. Na verdade, eu já amo,
mesmo ela não estando mais aqui. E eu jamais cometeria com ela, o erro que
cometi com você — Ele fecha os olhos, triste. — Boa noite.
Guardo aquelas palavras em meu coração. Sei que elas são sinceras,
mas infelizmente, foram ditas tarde demais.
— Boa noite, Lorenzo.

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CAPÍTULO 27
Lorenzo

Acordo com uma maldita dor nas costas e demoro alguns segundos para
me localizar. Uma dor de cabeça latejante rapidamente me traz ao ponto
principal: eu descobri coisas, briguei com meus pais, bebi e vim parar na
frente da casa de Nina.
E nós havíamos nos beijado. Um beijo que eu anseio desde que cheguei
a essa cidade.
Meu coração dá um salto dentro do peito, e internamente comemoro essa
pequena conquista. Sei que ela é realmente pequena; um beijo muitas vezes
pode não significar nada. Mas também sei que, se eu não fui expulso, é
porque ela também queria o que aconteceu.
Levanto-me devagar, tentando fazer o mínimo de barulho possível para
não acordá-la. Abro as portas dos armários em busca dos apetrechos para
fazer um café, e quando finalmente acho tudo, coloco as mãos à obra. Passo
um café bem forte e, depois de fuçar sem qualquer vergonha todos os seus
armários, acho algumas bolachas, que eu disponho em uma bandeja ali
mesmo, no balcão. Depois disso, vou para o banheiro e me arrumo da
melhor maneira que posso com o que tenho em mãos, pois meu primeiro
turno médico começa em menos de uma hora, e estando eu morrendo por
dentro ou não, preciso enfrentá-lo. Levando em consideração que é meu
primeiro dia de trabalho na nova clínica e que um dos pacientes é o pai de
Nina, não posso sequer pensar em me atrasar ou chegar de qualquer jeito lá.
Quando estou quase terminando de organizar tudo, ouço seus saltos
descendo a escada de cimento e olho para cima. Ela usa uma calça jeans de
lavagem clara, uma blusa azul marinho e um salto na mesma cor. Parece tão

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sóbria e profissional nessas roupas, que mal reconheço a menina por quem
me apaixonei um dia, mas sorrio como um idiota ao constatar que eu posso
me apaixonar por essa versão rapidamente, simplesmente porque é ela. Seus
cabelos soltos e bagunçados captam minha atenção, enquanto assisto-a
descer degrau por degrau.
Ela está linda, mas seu rosto está extremamente cansado, o que é muito
justificável, depois das últimas vinte e quatro horas.
Despejo rapidamente café em duas xícaras, estendendo uma em sua
direção antes mesmo que ela chegue até mim. Primeiramente, ela estranha,
mas acaba aceitando com relutância a que eu lhe ofereço. Ficamos alguns
segundos assim, sem proferir nenhuma palavra, apenas nos olhando enquanto
bebericamos nosso café.
— Bom dia, Cinderela — finalmente quebro o silêncio e sorrio em sua
direção, levando minha xícara mais uma vez à boca. — Resolvi fazer o café,
já que você foi dormir tão tarde por minha causa. E também, claro, em sinal
de agradecimento pela hospedagem. Você foi muito gentil comigo ontem,
depois de tudo — digo, olhando em seus olhos e tentando captar qualquer
tipo de emoção ali. Qualquer coisa já é alguma coisa para mim.
— Bom dia, Lorenzo — ela diz, ainda sem reação — O-Obrigada —
sua voz sai insegura, e minha missão a partir de hoje será mudar isso.
O primeiro passo foi dado. Agora eu quero que ela volte a se sentir
confortável novamente comigo e que, por fim, recupere a confiança perdida.
Sei que haverá um caminho árduo pela frente, e que será um passo de cada
vez, mas foda-se, eu não desistirei. Eu já desisti vezes demais. Está na hora
de crescer e amadurecer.
— Você vai para o escritório ou para o hospital? — pergunto, já
sabendo a resposta. É lógico que ela irá ver o pai. Nina é ligada demais à
família para deixar que trabalho ou qualquer outra coisa venha à frente
deles.
— Para o hospital, lógico — Ela finalmente se senta. Está tensa, e sei
que é pelo que houve entre nós ontem, mas eu não tenho coragem de tocar no
assunto, e pelo que parece, ela também não. A impressão que tenho é que se
eu não falar, não vamos brigar, e as coisas continuarão relativamente certas
entre nós.
Eu gosto das coisas como estão, pelo menos por agora.
— Tudo bem, também estou indo para lá — Bebo mais um gole do meu
café e deixo a xícara na pia. — Começo oficialmente a trabalhar hoje.

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Depois, vou procurar um apartamento e buscar o restante das minhas coisas
que ficaram lá na casa... na casa daqueles dois — minha voz sai amarga. Eu
realmente não consigo mais chamá-los de pais.
Não quando eles me privaram de ser um.
— Olha, eu posso ligar para o Phelipe, Lorenzo. Você já fez o bastante
— Ela enfatiza o bastante, e sei que se refere não só a minha ajuda, mas
também ao beijo de ontem.
— Nina, é meu caminho. Pelo amor de Deus — não aguento e resolvo
soltar a ironia misturada com indireta. Pessoas mudam, mas não cem por
cento e da noite para o dia, e eu sou a prova viva (e sarcástica) disso: —
Sem contar que ele pode não te atender. A donzela já deu o ar da graça?
Ela bufa, irritada, mas eu sorrio.
— Desculpa, vai, não está mais aqui quem falou.
Há um segundo de dúvida em seu olhar, como se ela colocasse na
balança se deveria ou não me falar o que está pensando. Quando ela
finalmente começa, eu sei, não terminaremos isso de forma saudável: ou será
com uma briga fenomenal e gritos para todo lado, ou com nós dois nesse
sofá, colocando todo essa tensão de anos e anos para fora, finalmente.
— Lorenzo, sobre ontem: o que aconteceu entre nós, eu quero dizer... —
Deus, ela está extremamente nervosa. Eu só quero abraçá-la e dizer que tudo
bem, está tudo bem, mas eu simplesmente não posso. Eu daria um braço meu
para ouvir o que ela quer me dizer. — Enfim... Eu queria que as coisas
fossem diferentes, mas elas não são. Eu ainda carrego o peso do seu
abandono, eu ainda sofro pela morte da Lorena, e eu ainda quero namorar o
Phelipe. Eu gosto dele! Não dá pra mudar o imutável — ela fala como uma
advogada, mas sei que suas próprias palavras a machucam simplesmente por
não serem completamente sinceras. — De qualquer forma, eu queria que nós
encontrássemos um jeito de não nos odiarmos. Acho que não seremos
amigos, mas podemos ser cordiais, pelo menos agora que você trabalha no
hospital que cuida do meu pai e, enfim, nós temos uma história para dividir.
Tivemos uma filha, e agora que eu sei que você nunca soube sobre ela, não
tem mais por que eu continuar te detestando como acontecia antes. Apesar de
soar extremamente estranho depois de tudo o que houve, de todo o ódio, toda
a dor, todas as brigas... Acho que é o máximo, e também o melhor, que
podemos fazer.
Seus olhos refletem dor. Noites mal dormidas. Há tanta dúvida em sua
íris que chegar à conclusão que chego é muito fácil: essa mulher ainda me

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ama.
Ela só precisa descobrir isso, e não importa como, eu vou fazer com que
ela descubra.
— Nina... — Passo as duas mãos pelo rosto, na tentativa de formular
uma frase coerente, mas me interrompo. Paro, porque não importa o quanto
eu tente, não sairá verdades daqui. Não quero ser amigo dela, e não vou falar
isso apenas para agradá-la. Eu quero ser mais. Qualquer coisa que eu disser
nesse momento, será incoerente e, principalmente, falso.
Uma completa bagunça. É assim que me sinto.
— Eu vou ser o que você permitir que eu seja, Nina. Mas eu não vou
desistir. Quando eu estou com você, ao seu lado, eu sinto com cada célula do
meu corpo o quanto isso é certo. O quanto o que eu senti todos esses anos na
Alemanha é verdade. Somos perfeitos um para o outro. E o tipo de amor que
eu sinto por você pode mudar uma vida, assim como está mudando a minha.
Então, por favor, entenda: eu não vou desistir. Eu estaria mentindo se
dissesse que vou, e como eu estou tentando mudar, eu não minto mais. Pelo
menos não para você, Cinderela.
— Lorenzo! — Ela se levanta do balcão, completamente nervosa —
Não vai passar disso. Nós tivemos uma história e ela acabou. Você pode
achar que me quer, mas não é nada disso! Isso é orgulho, Lorenzo. É
vaidade, brio, chame como quiser. Você cismou que me quer de volta e fez
disso um objetivo, nada mais.
Não vou deixá-la fazer isso, não sabendo o que ela sente. Eu vi em seus
olhos e senti em sua boca o quanto ela também me ama, o quanto também me
quer. Nós tivemos problemas sim, eu sei. Eu fui o errado sim, assumo. Errei
para caralho, porque eu era um idiota mimado e egoísta. Mas é hora de
seguir em frente e passar por cima disso.
Nós somos adultos, porra.
— Você sabe que não é! Para de se enganar — Me aproximo e ela dá um
passo para trás, talvez com mais medo dela do que de mim mesmo. — Você
sente o mesmo, e tá morrendo de ódio de si mesma por isso, Nina. Você se
detesta porque também me quer de volta — Me aproximo mais e mais,
encurralando-a.
— Cala a boca, você não faz ideia da merda que tá falando — ela
finalmente solta, e eu não consigo sufocar a risada. Ouvir Catarina
Nascimento soltar uma resposta malcriada é quase impossível. Eu devo estar
tirando-a muito do prumo mesmo.

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Ela encara meu sorriso por um instante, tempo suficiente para que perca
a fala.
Então eu me aproveito. Sem aviso, sem permissão ou sem qualquer
palavra, eu a beijo de novo.
Eu nunca disse que sou um cavalheiro mesmo.
Um beijo de tirar o fôlego, que é correspondido com tudo dela. O mais
interessante é sentir como nossos corpos se conectam. Quando namoramos,
há oito anos, éramos jovens. Eu já tinha uma vida promiscua para minha
idade, mas ela era inocente. Nosso sexo foi calmo, gentil e cuidadoso. Eu
segui suas regras porque não queria assustá-la. Mas hoje, beijando-a aqui,
pressionada contra a parede da sala, sinto que agora ela é uma mulher. Como
ela aprendeu a reagir dessa forma, eu não quero nem saber. Só de imaginar
as mãos daquele playboy no que é meu, sinto meu coração fraquejar e perder
uma batida. Só de imaginá-la na cama com outro me faz ter calafrios. Isso
tem que acabar logo. Ela precisa voltar a ser minha. Eu não suporto saber
que outro homem tem o que é para ser meu.
Ela nasceu para estar comigo, não com outro.
Sua língua ávida se enrola na minha e sua respiração acelera. Desço
minhas mãos por suas pernas e subo de volta, pousando-a em sua barriga,
por dentro da blusa que ela usa. Sinto sua pele quente na palma da minha
mão e resfolego, ainda sem acreditar que estamos fazendo isso de novo.
Interrompo o beijo por um segundo, enfiando meu nariz entre seus cabelos
curtos, sentindo seu cheiro. Desço minha boca e beijo sua nuca. Eu poderia
tê-la aqui, encostada nessa parede, agora.
Na verdade, eu quero isso.
— Para — ela consegue dizer, e os sonhos que estavam se construindo
em minha cabeça ruem na mesma hora. — Para, Lorenzo. Para agora.
Droga!
Eu não vou me desculpar, não dessa vez. Ela quer tanto quanto eu, ela só
precisa assumir.
Talvez ela só precise de um tempo, e é isso que vou dar a ela. Um tempo
para pensar, mas não o bastante para que ela se afaste de novo.
— Vamos embora, Nina, eu te deixo no hospital. — Me afasto,
deixando-a com uma expressão confusa estampada no rosto. Quando ela
enfim se movimenta e concorda, apenas acenando com a cabeça, eu decido
que é o momento de responder a respeito do que ela me acusou mais cedo, já
que eu havia deixado aquela afirmação sem resposta: — Só uma coisa antes

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de irmos: você pode chamar de orgulho, vaidade, brio, o caralho a quatro.
Chame do que você quiser — Olhando em seus olhos, eu desejo com todas
as forças, que ela entenda o quanto eu estou sendo sincero. Sincero de uma
forma que eu nunca fui com ninguém, e que é tão assustador e novo para mim
quanto para ela: — Eu chamo de amor, Nina. Amor. Eu te amo, porra. Eu
não voltei da Alemanha pra desistir de você e eu não vou desistir de você.
Entenda de uma vez por todas.

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CAPÍTULO 28
Nina

Enquanto Lorenzo dirige em silêncio pelo caminho até o hospital, eu me


mantenho quieta e pensativa, apoiada na porta do carro, tentando, a todo
custo, ficar o mais longe possível dele, mais por medo de mim do que por
medo dele, sendo sincera. Uma frase que ouvi certa vez ecoa na minha
cabeça, e eu finalmente a entendo.
Mentiras são mais confortáveis do que a verdade.
Quando eu pensava que, além de ter me abandonado, o Lorenzo também
havia renegado nossa filha, odiá-lo era fácil. Era uma tarefa até prazerosa,
se você quer saber. Mas depois de ontem, meu coração simplesmente deu um
giro de 360 graus, e agora eu não sei mais o que pensar.
O fato de ele ter ido embora não é mais motivo para odiá-lo como eu
fazia antes. Claro, aquilo doeu muito na época, e se eu me esforçar para
pensar nisso, nas palavras que ele usou comigo, na forma como me olhou
naquele dia no aeroporto, ainda dói e muito. Mas não se compara ao que eu
sentia até ontem por achar que ele havia abandonado a própria filha também.
— Preciso te dizer uma coisa — começo a falar, sem saber exatamente
como continuar. Eu espero não me arrepender, mas ele precisa saber. Precisa
saber por um simples motivo: quando eu o odiei, ele soube. Eu disse com
todas as letras e com a boca cheia. Então é mais do que justo que eu lhe diga
que talvez eu não o odeie mais tanto assim.
— Claro, pode dizer — ele não tira os olhos da direção, mas sei que
está prestando atenção em mim. Limpo a garganta, tomando coragem, e
finalmente balanço a cabeça, rindo um pouco desse medo que eu tenho de
admitir isso, porque chega quase a ser ridículo.

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— Agora que sei que você não rejeitou a Lorena... eu meio que não...
não te odeio mais — suspiro e ele não se move, nem reage, então decido
continuar: — Bom, nós não somos amigos, nem nada disso, e nem quero que
você pense isso, mas você me ajudou muito ontem. E eu serei eternamente
agradecida. Apenas queria que você soubesse que eu não sou tão infantil
quanto pareço. Eu só estava machucada demais, Lorenzo.
Ele franze um pouco as sobrancelhas, e quando finalmente decide olhar
para mim, estuda meu rosto rapidamente, movendo os olhos para absorver
cada detalhe da minha expressão. Lorenzo sempre fez isso, desde que
namorávamos. Ele me estudava de um jeito discreto, mas extremamente
intenso, como se ele fosse ser o advogado um dia, e não eu.
Então ele faz uma coisa que me surpreende. Ele ergue sua mão em minha
direção, passando a ponta do dedo polegar em meu queixo, olhando
fixamente primeiro para meus lábios, depois para meus olhos.
— Eu fico muito feliz em saber disso, Nina. É como tirar um peso de
cima de mim — Ele respira fundo, como se estivesse puxando ar, e dá um
sorriso imoral de tão lindo, que mexe com tudo dentro de mim — É como se
eu conseguisse respirar pela primeira vez desde que cheguei aqui.
Essa frase me deixa balançada. Minha cabeça, que insiste em me dizer
que eu sou um ser racional, aponta para um caminho, me lembrando todas as
coisas ruins que Lorenzo Leone representou em minha vida um dia. Já meu
coração, quase certo do que nutre e sente pelo cara sentado ao meu lado,
aponta para outro, sem dó.
Sem o mínimo dó por tudo que eu precisaria enfrentar se decidisse um
dia confiar, mesmo que minimamente, nesse homem de novo.
Por um momento, decido afastar esse pensamento de mim. Não é o
momento para pensar nisso. Eu estou indo ver meu pai. Preciso focar minhas
atenções e energias somente nisso, pelo menos por agora.
Sei que ele percebe isso, pois não faz mais nenhum comentário sobre o
que acabamos de dizer um para o outro. Ele apenas volta a olhar para frente.
Somente algum tempo depois ele volta a falar, mas o assunto é outro, e me
pega de surpresa.
— Posso te pedir uma coisa? — ele finalmente diz, depois de pensar
alguns instantes em silêncio.
— Claro — Dou de ombros.
— Você me disse que nossa filha chegou a nascer. Então ela foi
enterrada. Há um túmulo, não há?

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— Sim, há. — Engulo a secura que de repente toma conta de minha
garganta.
— Eu quero que você me leve até lá — ele diz finalmente, ignorando o
terror em meus olhos. — Eu sei que deve ser difícil para você, Nina. Mas eu
preciso passar por tudo isso. Eu preciso ver, sentir que ela existiu, que foi
minha. Preciso sentir esse luto. Preciso tirar isso de dentro de mim, senão eu
vou sufocar.
Meu coração bate acelerado, porque ouvir isso dói demais, mas eu o
entendo. Eu ainda não me acostumei com Lorenzo chamando minha filha de
"nossa filha", mas eu entendo o que ele precisa. Ele precisa sofrer a perda
para seguir em frente.
Eu precisei um dia também.
— Claro, quando você quer ir? — mais uma vez a secura em minha
garganta, mas engulo à força, tentando disfarçar ao máximo.
— Hoje à tarde, depois que eu sair do hospital, pode ser? — ele
pergunta, batucando os dedos no volante, nervoso — Aí de lá eu vou
procurar um apartamento, mesmo sem ter a mínima ideia de onde conseguir
um assim, para ontem.
Lembro-me do condomínio onde Mariah fez seu financiamento. Ainda há
muitos apartamentos vagos lá. Mas claro que aquilo nunca seria nível
Lorenzo Leone de viver, não é?
— Claro, pode ser, então — Finalmente concordo sobre a ida ao
cemitério. — E, ah, eu sei de alguns apartamentos, mas eles são bem
simples, Lorenzo. Acho que não farão seu estilo.
Ele ri.
— Nina, o que eu preciso agora é de simplicidade mesmo. Quanto mais
simples, melhor. Não pretendo mais usar um centavo do meu pai, e sem
salário na clínica vai ser bem difícil manter o mesmo padrão de vida que eu
costumava ter. Mas fazer o quê, não? Crescer exige sacrifícios. Eu que
abrace os meus.
De repente, fico confusa.
Como assim, sem salário na clínica?
— Por que você trabalharia em uma clínica cara como aquela sem
salário, Lorenzo?
Ele fica em silêncio por alguns segundos, provavelmente arrependido de
ter falado sobre isso, mas finalmente decide me explicar:

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— Eu fiz uma troca com o Raul, dono de lá. Eu trabalho de graça para
ele e em troca ele me deixa usar a clínica, os aparelhos e as medicações de
graça no final de semana, para o público carente. Vou fazer um levantamento
de alguns pacientes que não podem pagar um tratamento aqui dentro da
cidade e oferecer gratuitamente, para que eles não precisem mais viajar para
fora para isso, já que viajar duas, às vezes até três vezes por semana estando
com câncer agride ainda mais o sistema imunológico do paciente, deixando-
o suscetível à piora do quadro. — E ele continua, como se aquilo não fosse
muita coisa, enquanto ouço tudo de boca aberta: — Eu pretendia usar a grana
do meu pai, já que não teria um salário, mas agora que saí de casa, acredito
que vou ter que fazer muitos plantões fora dos meus horários para poder
viver bem.
Por mais que eu esteja me esforçando, meu ceticismo em Lorenzo me
leva a fazer a pergunta que martela minha cabeça sem parar:
— A troco de quê?
Ele me olha confuso, como se minha pergunta não tivesse sentido.
— A troco de nada, oras. A troco de, sei lá, ver pessoas de bem, como
seu pai, tendo a chance de receber um tratamento digno. Eu, como médico,
sei como as pessoas sofrem sem ter acesso à dignidade na saúde. É triste
demais, e se na Alemanha isso já acontecia, imagina aqui, nesse fim de
mundo.
Ele continua a falar, mas não ouço mais nada. Só observo seu rosto, o
sorriso que ele dá enquanto fala sobre sua profissão, e me perco no mar de
sensações que é estar conhecendo Lorenzo novamente. Tento ignorar a voz
do meu coração, mas ela vai ficando cada vez mais forte. Sentir é mais do
que saber, isso é uma verdade indiscutível. E nesse momento eu senti, com
absoluta certeza: ele mudou. Talvez não cem por cento. Talvez não seja um
príncipe, talvez seja sem noção às vezes e ainda seja esnobe com algumas
coisas, mas ele mudou.
Seu coração mudou.
Agora ele tem um.
Olho para ele mais uma vez, a fim de confirmar minhas suspeitas. Nesse
segundo, como se não tivesse me contado nada demais, ele apenas sorri.
Um sorriu límpido, sincero e incrivelmente bonito. Um sorriso que
enche meu coração, como naquele dia, há oito anos, em uma cafeteria.
O cérebro confirma, ainda que relutante, algo que meu coração já
suspeitava desde que ele voltou:

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Eu nunca superei Lorenzo Leone.

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CAPÍTULO 29
Lorenzo

No hospital, verifico o pai de Nina e constato, aliviado, que ele está


melhor do que eu esperava. O quadro clínico dele ainda inspira cuidados,
mas com certeza a clínica dará conta disso; o lugar é de ponta, com os
melhores médicos e aparelhagem de primeira. E ele está em boas mãos
também, modéstia à parte. Ele já está acordado e conversamos alguns
minutos. A princípio, ele odiou me ver ali, mas depois, com muita paciência,
eu o convenci de que sou um médico especialista em seu problema e que
nossas questões pessoais não deveriam intervir nisso. Disse-lhe também que
mais tarde Nina conversaria com ele, explicando certas coisas que nós
tínhamos colocado em pratos limpos. Ele apenas acenou com a cabeça, mas
senti uma onda de alívio se instalar em seu corpo, e por mais difícil que
possa parecer, eu sei que ele entendeu sobre o que eu falava.
Vou até o quarto de medicamentos e, enquanto preparo o soro que eu
mesmo vou trocar, faço um balanço mental das últimas vinte e quatro horas,
e constato, com um sorriso indefinido no rosto, que elas foram as horas mais
loucas dos últimos anos.
Quiçá as mais loucas da minha vida.
Em vinte e quatro horas eu consegui um emprego – o que me lembrou
que eu precisava passar no RH e resolver mais isso ainda, afinal, nenhum
documento fora assinado e eu já estava trabalhando –, cuidei do pai da
mulher que eu amo, descobri que eu tive uma filha, que infelizmente Deus
levou de mim, beijei a mulher da minha vida duas vezes, briguei com meus
pais e saí de casa.

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E agora, eu sou um sem teto e sem salário, mas ainda assim, me sinto
estranhamente feliz.
Sorrio, lembrando-me das reações loucas que nossos corpos sentiram
no momento em que nos beijamos, e em como foi maravilhoso ouvi-la dizer
que não me odeia mais. Eu apenas assenti e acariciei seu rosto, mas no fundo
eu queria pular, gritar, agarrá-la ali, dentro daquele carro, e mandar o mundo
todo se foder com letras maiúsculas enquanto eu a fizesse minha ali mesmo,
dentro do veículo, sem regras, sem passado, sem nada.
Apenas eu e ela, colocando nossos sentimentos em primeiro lugar,
inconsequentes como há oito anos.
[...]
Depois que eu administro as medicações do pai dela, saio porta afora
sorridente, a fim de dar as boas notícias a Nina e sua mãe. Meu sorriso,
porém, morre no segundo em que coloco meus olhos na recepção.
Phelipe abraça Nina possessivamente, e somente por sua postura, eu sei
que ele pede desculpas em seu ouvido. Provavelmente, desculpas por ter
sumido sem dar explicações.
Ela apenas balança a cabeça, concordando, enquanto segura suas costas
com as mãos abertas, como se estivesse segurando uma tábua de salvação.
Sinto como se alguém apertasse meu coração tão forte que ele poderia
escapar pelos dedos ao ver essa cena, e toda a alegria de minutos atrás vai
embora, como num passe de mágica.
— Nina — Limpo a garganta e fecho minha expressão. Ela se vira
assustada para mim, como se minha presença fosse uma novidade. Ah, pelo
amor de Deus, eu não acredito que a estou vendo encenar esse teatrinho
ridículo só para agradar esse cara. Decido engolir essa e continuo, mesmo
puto por dentro: — Seu pai está bem melhor. Ele ainda vai ficar conosco por
mais alguns dias, apenas por precaução, mas a pior parte aparentemente já
acabou.
— Não sabia que você é o médico do meu sogro agora — Phelipe
comenta, com cara de poucos amigos.
— Aparentemente, você não sabe de muitas coisas — alfineto, porque
santo eu não sou mesmo. — Mas sim, sou, a partir de agora. Como eu sou
especialista no tipo de câncer que ele está em tratamento, Raul achou melhor
que eu cuidasse dele pelos próximos dias.
Ela suspira aliviada e sorri para sua mãe, que sorri de volta, me
agradecendo. Depois, se volta para mim finalmente, com aqueles enormes

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olhos e aqueles dentes brancos que eu amo. Quando eu penso em falar algo
encorajador, Phelipe a puxa pela cintura, depositando um beijo em sua boca,
bem ali, na minha frente, me tirando os pés do chão.
Bem ali, na minha frente, como se dissesse sem palavras: ela é minha.
Nem nos seus sonhos, babaca. Essa palhaçada está prestes a terminar.
E como eu sei que está prestes a terminar? Eu vejo que ela não
corresponde ao beijo dele como correspondeu ao meu.
Sim, pode me chamar de sadomasoquista com uma forte inclinação à
demência, mas eu fico ali, analisando o beijo deles sem piscar. Quero captar
os sentimentos dela em relação a ele. Quero poder colocar na balança as
diferenças que existem entre nós. E se para isso é necessário me torturar, que
seja.
E se ele soubesse como ela se entregou a minha boca ontem à noite?
Como ela derreteu em meus braços, exatamente como há oito anos? Se ele
soubesse que eu sei sobre nossa filha e que os maus entendidos entre nós
estão sendo resolvidos?
E se ele soubesse?
Você sabe, as pessoas não mudam de uma hora para outra. Às vezes,
elas ainda mantêm maus vícios enraizados em si.
O meu vício é ser um babaca. Lorenzo Leone nunca deixou de ser um, eu
admito. Mas em algumas situações, ser babaca é necessário. Os fins
justificam os meios.
— Nina? — eu chamo, já sabendo o que fazer.
Ela se vira para mim, inocente, cortando o contato com ele
imediatamente.
— Eu saio às 16h00, já conversei com o Raul — Meu olhar vai dela
para o rosto de Phelipe, e enquanto minhas palavras ganham vida, vejo o
rosto dele endurecer imediatamente. — Você me espera aqui ou te pego em
casa?
— O quê? — ele pergunta, ainda sem entender nada. O olhar de Nina
está petrificado — Pegar você em casa para quê? Do que ele está falando,
Catarina?
— Lipe... — ela começa a se explicar, mas eu a corto, com meu ar mais
tranquilo e cínico.
— Calma, Phelipe, não é nada demais. Ela só vai me levar para visitar
o túmulo da minha filha — Ele me olha horrorizado, como se eu estivesse

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falando de algo que eu não devesse saber. — Acho que é um direito meu,
não? Eu fiquei sem saber da existência dela por oito anos.
— Nina, o que esse babaca tá querendo dizer? — Ele olha para ela,
irritado de uma forma como nunca vi, e eu estou pronto para avançar nele a
qualquer momento. Se ele falar assim com ela mais uma vez, eu não
respondo por mim.
— Phelipe, depois a gente conversa e eu te explico com calma — Ela
apoia as mãos no peito dele, e eu juro que quero quebrar todos os dentes que
existem dentro daquela boca. Por mais que eu respeite Phelipe como pessoa,
ele vem me tirando do sério desde que descobri que ele e Nina estão
namorando.
— Como não é nada demais? — Phelipe explode, e eu vejo a raiva em
seus olhos sempre tão pacíficos. É como se, a cada dia que passa, eu
descobrisse um novo Phelipe, um cara bem diferente do que eu conhecia.
Uma coisa cutucou lá no fundo do meu cérebro, me fazendo entender que eu
deveria ficar mais atento aos passos desse cara, afinal, a Nina ainda está
com ele, e a cada dia que passa, eu sei menos quem ele é. Mesmo sabendo
de todos os seus problemas... digamos, de saúde, eu nunca imaginei que
chegasse a esse ponto. — Esse cara ignorou a sua existência e a da sua filha
durante oito malditos anos e assim que ele volta você já está engolindo todas
dele? Que merda é essa?
Vejo as lágrimas pinicarem os olhos de Nina e me aproximo mais dela,
puxando seu braço até que ela fique mais próxima a mim.
— Não fala assim com ela, perdeu a porra do seu juízo? — Encaro-o,
fazendo com que entenda de uma vez que é melhor que ele baixe a bola. Não
vou permitir que ele fale assim com ela nunca mais, pelo menos não às
minhas vistas.
— Gente, pelo amor de Deus, vocês estão em um hospital! — Dona
Branca tenta intervir, mas Phelipe não deixa, puxando Nina de volta para
perto dele. Ela não consegue reagir – nem a meu favor e nem a favor dele.
Ela apenas parece um boneco sendo jogado de lá para cá, assustada demais
para responder.
— Ela é a minha namorada. Será que é tão difícil entender que você
perdeu, Lorenzo? Você acha mesmo que eu vou deixá-la acreditar nessa
história da carochinha de que você não sabia sobre a Lorena?
Ele enche a boca para falar da minha filha. Como se ele fosse o
diferente por saber de sua existência desde sempre. Como se ele fosse

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especial por ter conhecido quem eu deveria conhecer. Mas Deus sabe que eu
fui impedido disso, e ele não levantaria essa culpa sobre mim, não mesmo.
— Eu nunca soube da minha filha, Phelipe — altero a voz, mas resolvo
baixá-la em respeito aos pacientes daquele lugar. — E outra coisa: nada do
que você diga me tira o mérito de ser o pai dessa criança. Nunca, nada te
ligará a Nina tanto quanto essa criança nos liga, entenda isso.
— Mérito? Mérito de quê? De ser o cara que a abandonou? O cara que
podia salvar a própria filha e não o fez? Você é um bosta, Lorenzo. Se sua
filha está morta, a culpa é sua! — ele cospe as palavras, morto de ódio, mas
não mais do que eu por ouvir tais barbaridades.
— Para, Phelipe! — a voz de Nina finalmente sai, como se ela
implorasse para ele não mais falar assim. Ele fala da morte da minha filha
como se fosse um troféu contra mim — Por favor, para!
Quem é esse cara, afinal?
Ignorando os pedidos suplicantes de Nina, ele continua, como se não
estivesse ouvindo nada nem ninguém. Como se só houvéssemos nós dois e
sua raiva do mundo:
— Milhares de vezes eu discuti sobre isso com a Malu ao telefone.
Milhares de vezes eu perguntei que tipo de monstro você era, por não ter
ajudado a própria filha. Milhares de vezes eu pedi para minha irmã não se
envolver com um tipo como você... E ela... Ela só justificava seus erros,
dizendo que você era muito novo para ser pai, que você tinha uma grande
carreira, que você era dela agora, e não queria que nada atrapalhasse o
relacionamento de vocês, nem mesmo uma criança... Uma criança que ela
dizia que você chamava de bastarda.
Ele simplesmente cospe as palavras e eu fico lívido. Nina me olha
aterrorizada, mas eu não me dou nem a chance de tentar decifrar os
sentimentos naqueles olhos. Eu vou em direção a ele, segurando-o pelo
colarinho de sua roupa, empurrando-o com todo o ódio que sinto percorrer
minhas veias.
— Nunca mais se refira à minha filha nesses termos. A sua irmã é uma
doente! Uma doente que também sabia sobre minha filha e escondeu de mim!
— O que tá acontecendo com o mundo, meu Deus? — Ela inventava tudo
isso, seu idiota! Se existe um monstro nessa história, é ela, porra.
Ele vem em minha direção, mas Raul entra na recepção seguido por dois
seguranças. Alguém o havia alertado sobre a confusão que se desenrolava ali

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e ele trouxe reforços. Enquanto um segurança prende os braços de Phelipe, o
outro me afasta para o outro canto do lugar.
— Foi por isso que ela não veio, seu demente! — eu grito, enquanto
Raul tenta nos conter. — Ela é idêntica aos meus pais. Ela teve medo de me
seguir e ser descoberta, do mesmo jeito que meus pais temiam ser
descobertos se eu voltasse. São todos da mesma corja, tudo farinha do
mesmo saco! — eu praticamente cuspo as palavras, que saem envenenadas
pelo meu ódio.
Eu olho para Nina, que está petrificada.
— Nina... Você acredita em mim, não? Você sabe o que passamos ontem,
você sabe! Você viu, sentiu. Eu sei que você sabe — Minha garganta se
fecha, e eu tento engolir o bolo que se formou ali, para continuar falando sem
engasgar.
Phelipe ri, cheio de amargor.
— Até parece que ela vai acreditar em você. Você é um imoral,
Lorenzo. Uma pessoa sem escrúpulo, sem amor, sem dignidade. Você é a
cópia da podridão dos seus pais. E se a Lorena tivesse sobrevivido, eu teria
criado ela como minha, para que ela nunca tivesse que conviver com um
filho da puta como você. Para ela não ter o desprazer de te chamar de pai.
— Para de falar da minha filha! — Consigo soltar uma das minhas mãos
e apontar um dedo na cara dele — Mais uma palavra sobre ela, Phelipe, e eu
esqueço qualquer consideração que tenho por você. — Me viro para Nina,
angustiado, porque preciso que ela saiba quem nessa história está falando a
verdade. — Nina... — não preciso dizer mais nada. Eu apenas preciso que
ela olhe para mim e ela saberá.
Ela olha em meus olhos, primeiramente confusa, enquanto o segurança
tenta me arrastar pra fora da sala.
— Nina, você não vai acreditar nele, vai? — Phelipe pergunta, mesmo
já tendo a resposta. Ele viu o olhar de Nina para mim.
Ele viu.
Eu sei que ele viu ali um olhar que ele nunca recebeu.
Antes de eu finalmente ceder e ser arrastado para fora da recepção, eu
consegui ouvir a frase que me fez voltar a respirar. A frase que me fez
acreditar que nós estávamos reencontrando, enfim, nosso lugar.
— Me desculpa, Phelipe, mas eu acredito nele. Eu realmente acredito
nele.

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CAPÍTULO 30
Nina

Viver é a coisa mais absurda que existe.


Não é engraçado como em um dia estamos cheios de certezas, opiniões
prontas e julgamentos concretos e no outro, simplesmente não sabemos de
nada? Nosso mundo vira de cabeça para baixo, e de repente nos damos conta
de que, na verdade, as coisas não são como parecem ser?
Conhecer Lorenzo me trouxe enormes ensinamentos.
Conhecer Phelipe também.
Depois que Raul conseguiu tirar Lorenzo da recepção, eu tive que
enfrentar o ódio nos olhos de Phelipe. E eu, sinceramente, não sabia lidar
com isso. Não sabia, porque eu nunca precisei lidar com o ódio de alguém
que teoricamente, em minha cabeça, não conhecia esse sentimento.
Alguém perfeito.
Phelipe sempre foi doce, gentil e compreensivo. Eu jamais achei que um
dia precisaria explicar as coisas para ele debaixo de gritos e acusações,
porque o único lugar onde ouvi sua voz um pouco mais alta foi nos tribunais.
Mas sim, eu precisei. Desde que começamos a namorar, parece que uma
nova personalidade assumiu o controle da vida do meu namorado, me
fazendo acreditar que ele não é mais o cara por quem eu achei que estava
apaixonada. Porque eu estava apaixonada pelo Phelipe, aquele que era meu
amigo, aquele que me ensinou a ser a advogada que eu sou hoje, aquele que
me ouvia, entendia e ria comigo das besteiras do dia a dia.
Não esse cara que grita absurdos na minha cara, enquanto eu nem faço
ideia de por onde começar a me defender.
— Lipe... — eu tento, mas ele simplesmente me corta, sem pausa, como
se precisasse expulsar todos os demônios que residem dentro de sua cabeça.

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— Mas que porra foi essa, Catarina? Dizer na minha cara que acredita
nesse cara? Desrespeitar nosso namoro na frente dele? Onde está a merda do
seu juízo, do seu respeito por mim? Esse cara te abandonou! Abandonou sua
filha! Esse cara não presta! — Parece que a cada vez que seu tom de voz
aumenta, eu me encolho mais e mais.
— Phelipe, calma! Vocês estão em um hospital e estão nervosos... Não
dá pra discutir isso em outro lugar? — Minha mãe, nervosa, tenta acalmá-lo,
com seu jeitinho simples e sereno, mas ele faz algo que me faz congelar em
descrença. E nesse momento, sei que isso tem que acabar.
Ele lança um olhar para minha mãe, de cima à baixo, como se ela não
tivesse que se intrometer em algo que não lhe dizia respeito. Arqueia a
sobrancelha e, com um sorriso irônico, simplesmente responde:
— A senhora deveria ser a primeira a ficar do meu lado, Dona Branca.
Depois de tudo que eu fiz por vocês. Vocês sabem que, sem mim, seu marido
não estaria em um hospital como esse. Eu deveria, no mínimo, ser respeitado
pela minha namorada e pela minha sogra.
Ela apenas abaixa a cabeça e, como se tivesse tomado uma bronca do
patrão, dá dois passos para trás. Como se, em outras palavras, ele lhe
dissesse para ela se recolher em sua insignificância.
Ah não, isso não.
Não com a minha mãe.
— Nunca. Mais. Fale. Assim. Com. A. Minha. Mãe — digo, apontando
um dedo em sua cara — Nós temos um problema, Phelipe. Eu e você. Ela
não tem nada a ver com isso.
Ele revira os olhos. Nenhum pedido de desculpa.
Quem é esse cara, afinal?
— Filha, deixa pra lá, ele está nervoso — Minha mãe tenta apaziguar a
situação.
— Deixa pra lá nada, mãe. Ele não é meu dono — aumento minha voz e
a mágoa chispa em meus olhos, deixando claro para ele que eu jamais
abaixarei minha cabeça para seus desmandos.
— Nós temos que conversar, Catarina. Eu não quis fazer isso, eu só
estou fora de mim com essa situação. É demais para minha cabeça — ele
tenta se explicar, mas eu não quero ouvir. Os últimos dias têm sido demais
para mim, e eu preciso me concentrar em um problema por vez. Meu pai é
minha prioridade agora, no entanto.

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— Ah, mas com certeza nós temos, Phelipe. Só que não será nem aqui,
nem agora. Eu tenho coisas mais importantes para resolver, como a saúde do
meu pai. Amanhã eu passo no escritório — digo, ainda com a história de ele
jogar na cara da minha mãe o fato de pagar o tratamento do meu pai entalado
em minha garganta — Acho que está na hora de você ir embora.
— Você está me mandando embora? — Sua voz sai quase magoada, e
ele já está calmo novamente.
Suspiro, pegando sua mão e apertando, em um carinho que eu espero
que o acalme ainda mais.
— Não, Phelipe, eu estou pedindo que você vá para casa e se acalme.
Amanhã nós vamos conversar, eu te garanto. Eu só preciso de um tempo.
Ele levanta as mãos, como se estivesse se rendendo, soltando sua mão
da minha.
— Faça como quiser. — Dito isso, ele se vira e sai, sem ao menos me
dar tchau.
Não que eu estivesse esperando por isso.
[...]
Não falei mais nem com o Phelipe, nem com o Lorenzo. Achei melhor,
depois de toda essa confusão, dar um tempo. Eu poderia esperar para levá-lo
ao cemitério outro dia, quando tudo já estivesse resolvido. Aproveitei o
tempo que Lorenzo estava trancado na sala da diretoria do hospital e fui para
casa, para o aconchego do meu lar.
Decisões precisam ser tomadas de cabeça fria.
Já em casa, tomo um banho, janto a comida caseira da minha mãe, e,
como uma criança com medo de escuro, pego meu travesseiro e corro para o
quarto dela. Sem fazer qualquer comentário, ela abre um espacinho em sua
cama e eu me aconchego em seu abraço, enquanto ela acaricia minha cabeça.
Meus olhos se enchem de lágrimas e eu permito que elas escorram, porque
preciso aliviar essa sensação de peso dos sentimentos que me confundem.
Penso sobre o que fazer a respeito de Phelipe e deixo Lorenzo para depois,
porque agora não é momento para tentar entender o que sinto, e se ainda
sinto algo por ele.
Enquanto as lágrimas escorrem por meu rosto, minha mãe desliza seus
dedos calejados e frágeis por meus cabelos. Quando fecho os olhos
cansados e estou quase dormindo, ouço sua voz delicada me dizendo uma
verdade indiscutível:

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— Só o seu coração tem as respostas para todas essas perguntas que
estão te atormentando. Ouça ele, minha menina. Ouça ele.
[...]
No dia seguinte, coloco minha roupa de trabalho e vou para o escritório
preparada para ter uma conversa definitiva com Phelipe. Eu havia me
enganado sobre nosso namoro, mas pensei que, se conversássemos, haveria
uma chance de sermos de novo colegas de trabalho e amigos, como antes.
Não é porque um relacionamento não deu certo que todo o resto precisa
desmoronar, certo?
Errado.
Phelipe não aceitou minha decisão tão bem assim. E, outra vez, eu
descobri que as pessoas não são quem parecem ser, e principalmente, que
elas enxergam o que desejam, independente de qual seja a verdade.
— Você tá terminando comigo? — ele praticamente rosna em minha
direção, com as mãos nos bolsos do paletó, completamente transtornado. —
Você sabe a merda que você tá fazendo, Catarina?
— Phelipe, a gente tem tudo a ver. Nossos gostos, objetivos, nossos
sonhos. Eu te amo com tudo de mim. Mas eu não posso continuar com isso.
Você é uma pessoa completamente diferente para mim agora — eu digo,
criando coragem. Preciso que ele saiba o que nos trouxe até aqui, até esse
momento. Eu não aguento mais sofrer, eu não mereço mais uma bagagem
pesada em minhas costas, porque eu simplesmente não sei se suporto
carregar.
— O que você quer dizer com isso? — Ele engole em seco e eu posso
sentir sua respiração mais pesada, o sofrimento latente em cada movimento
de sua garganta.
— Eu sei que você fez muito por mim, Phelipe. Eu nunca vou esquecer.
Mas isso me fez criar uma imagem de você que não condiz com a realidade
— Seguro as lágrimas que insistem em querer saltar dos meus olhos. — No
fim das contas, eu pensava em você como alguém que nunca, jamais, me
magoaria. E você tem me magoado bastante — digo, e uma dor excruciante
passa por seus olhos diante da minha sinceridade crua.
— Eu te magoei? E você pode me dizer como eu fiz isso, Nina? Te
dando uma chance quando ninguém mais deu? Te amando a cada segundo da
porra da minha vida? Cuidando de você? Te dando uma carreira? Pagando o
tratamento do seu pai? Foi assim que eu te magoei? — Sei de tudo isso que
ele fez por mim, entretanto, é mais complexo do que isso.

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— Não, Phelipe. Você me magoa jogando tudo isso na minha cara em
qualquer oportunidade que você tenha. E eu não entendo, você se
transformou da água para o vinho. Parece que giraram uma chave e você...
— É porque esse maldito voltou! — ele explode, mas se arrepende e se
recompõe no segundo seguinte — Você não entende? Ele voltou para tirar
você de mim, e está conseguindo.
— Esquece o Lorenzo! — eu grito de volta, porque não aguento mais.
Não tenho mais forças.
— Como? Responde: como? — Ele vem até mim, parando bem na
minha frente e falando pausadamente: — Você não sabe me responder essa
pergunta porque você também não consegue esquecer ele.
Viro de costas, disposta a dar essa conversa por encerrada, mas ele não
deixa.
— É por causa dele, não é? — Ele segura meu braço com força e eu
tento me soltar, mas ele aperta mais ainda — Fala! É por causa dele, não é?
— Phelipe, você está me machucando! — Eu puxo o braço de uma vez
— Me solta!
— Não enquanto você não disser que isso é maluquice! — De repente,
seus olhos mudam, e ele se torna um cara desesperado, quase como se eu
visse meu Lipe ali novamente — Nina, eu amo você. Pensa no que você está
fazendo — Seus olhos marejam, e tudo o que eu mais quero é fugir dali. Ele
foi do ódio para a autopiedade em uma fração de segundos, e eu não quero
mesmo viver minha vida ao lado de uma pessoa tão instável assim.
— Phelipe, não dá — Reúno forças para dar um ponto final nisso,
enquanto as lágrimas descem sem permissão por meu rosto. Não porque
tenho medo, mas porque dói. Deixá-lo dói, mas preciso ser sincera comigo e
com ele. Preciso ser sincera com a boa relação que sempre tivemos — Acho
que devemos ser só amigos.
— Amigos? — Ele ri, desacreditado. — Amigos, Nina? AMIGOS? Até
parece que eu vou ser seu amigo — Ele vai para sua mesa e abre a porta de
madeira que fica abaixo das gavetas. De lá, ele tira uma garrafa de vidro
grossa de uísque e um copo. Bate os dois pesadamente na mesa e, enquanto
balança a cabeça em sinal de negação, como se falasse consigo mesmo, se
serve e vira o copo de uma vez na boca. Depois, ele ergue os olhos para
mim, com uma fúria medonha — Eu não vou ser seu amigo porcaria
nenhuma. Ainda mais sabendo que você só tá terminando comigo por causa
daquele filho de uma puta que te deixou para trás. É humilhante demais.

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— Eu não estou te deixando por causa dele, Phelipe! Eu estou te
deixando por sua causa! Você anda instável, possessivo... Bebe cada dia
mais. Eu não consigo ficar com você assim. Eu não suporto ter que pesar na
balança cada palavra que te falo, cada coisa que eu te peço. Não dá! Eu
tenho medo até de conversar com você, e não foi por essa pessoa que eu me
apaixonei! — digo, soltando tudo de uma vez. Se é a verdade que ele quer,
então ele que segure as pontas com ela, então.
Ele se aproxima de mim, com seu habitual perfume tomando conta de
tudo. Eu amo esse perfume, mas hoje, com essa carga de stress absurda, esse
cheiro só me dá náusea.
— Então olha nos meus olhos e diz que não aconteceu nada entre vocês,
Catarina. Olha bem dentro dos meus olhos e mente, se você for capaz disso.
Estremeço, porque eu não posso negar. Aconteceu um beijo. Um beijo
que eu pretendo esquecer. Dois, na verdade. Eu não posso negar, mas eu
posso omitir. Eu não quero que um erro deixe esse término pior do que já
está. Isso só iria dificultar tudo. E eu também não quero magoá-lo mais do
que já estou fazendo.
— Phelipe, para com isso — Desvio o olhar e pego minha bolsa — Eu
vou trabalhar e no final do dia nós retomamos esse assunto — decido e tento
sair da sala, mas sua voz me para imediatamente.
— Eu sabia! Eu achei que você era diferente... Mas você é só mais uma
vagabunda, como todas as outras. — Ele vira outro copo goela abaixo e eu
quase não acredito que esse é o Phelipe. O meu Lipe. Meu anjo protetor, meu
amigo, meu patrão. O cara que me ensinou a ser advogada que eu sou hoje. O
cara que me levantou todas as vezes que eu caí.
— Você está me ofendendo, Phelipe!
— E você estava me corneando, porra! O que você queria? Que eu
batesse palmas, que eu te desse uma estrelinha? Como você acha que eu
estou me sentindo? EU criei a advogada Catarina Nascimento. EU te ensinei
tudo o que você sabe, eu te ajudei, te acolhi nos seus piores momentos. E
porra, eu te disse para não começar algo que você fosse se arrepender no dia
seguinte. Mas não. Você quis. Insistiu, mesmo quando eu nunca te pedi nada
em troca, apenas sua amizade. E depois de me dar um monte de esperança,
você tá me virando as costas porque esse maldito voltou! Você é a culpada
de tudo isso! Você está acabando com meu juízo, inferno! — Ele passa as
mãos pelo cabelo, andando de um lado para o outro na sala, transtornado.

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Meu coração se contorce. Em parte ele tem total razão. Eu fiz isso.
Tenho sim minha parcela de culpa, mas tudo mudou. Ele mudou. Como
continuar com isso?
Além do fato de que eu não posso continuar com algo que todos os meus
instintos dizem estar errado. Eu não posso continuar com ele enquanto penso
em outra pessoa, porque eu realmente estou em dúvida.
Eu realmente estou desejando outra pessoa.
É um mal necessário. Mais tarde ele entenderá isso.
— Lipe, eu te amo — digo finalmente, e seus olhos se enchem de
esperanças, esperanças que eu destruo no minuto seguinte: — Mas eu não
posso continuar com algo que está me machucando, e te machucando
também. Eu te amo, mas não como meu namorado. Nós funcionamos muito
melhor como amigos, como colegas de trabalho. Eu amo estar aqui e
aprender com você, e eu quero que isso continue... — ele não me deixa
terminar.
— Nem que você me implore por isso, Catarina. Se eu não sirvo para
ser seu namorado, eu não sirvo para mais nada. Espero que o Lorenzo
compense tudo o que você vai perder me largando.
Por um minuto, eu fico sem entender essa sentença, mas logo tudo fica
claro.
Ele passa por mim com raiva e eu o sigo. Quero terminar essa conversa
de uma forma amigável, mas o que eu ouço a seguir abre o chão debaixo dos
meus pés, como se eu estivesse perdendo tudo o que eu lutei tanto para
conseguir, apenas porque o decepcionei.
— Elaine — Phelipe disca para a secretária na recepção, e depois me
olha, com os olhos cintilando rancor: — Peça pro RH preparar os papéis de
demissão da Dra Catarina. Ela não faz mais parte do nosso quadro de
funcionários.

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CAPÍTULO 31
Nina

Sento-me no banquinho de pedra da praça em frente ao escritório, com


os olhos vermelhos e inchados. Não posso acreditar no que está
acontecendo. Depois de ralar tanto para conseguir meu lugar ao sol, Phelipe,
o cara que me ajudou a ser tudo o que eu sempre quis, simplesmente está
destruindo isso por orgulho, por vingança.
Por crueldade.
Enxugo mais uma lágrima que insiste em cair e o senhorzinho do
algodão doce se aproxima, meio tímido. Eu o conheço desde os meus tempos
de criança, e ele sempre está aqui, nessa mesma praça, sempre por perto,
sempre sorrindo, com seus pedaços de nuvens coloridas na mão.
— Posso me sentar, minha filha? — ele pergunta com um sorriso, e eu
aceno positivamente.
— Claro que pode. — Dou um espacinho e ele se senta ao meu lado. Em
seguida, tira um algodão cor-de-rosa do meio de todos os outros e o estende
para mim, acompanhado de um cálido sorriso. Mesmo que eu não esteja com
vontade e nem com estômago para comer nada, pego o doce com as mãos
trêmulas, porque eu jamais recusaria uma delicadeza dessas.
— Cortesia da casa, minha querida. Não se pode ver uma jovem tão
bela chorar assim e não tentar mudar o dia dela. Já te disseram que meninas
bonitas não choram? — Balanço a cabeça e uma lágrima insiste em cair. Ele
a enxuga com sua mão calejada de tanto trabalho duro. — Nada é tão ruim na
vida que açúcar não possa melhorar, meu anjinho — Ele desembala o
algodão para mim, pacientemente. — Açúcar e amor, na verdade. — Ele
sorri novamente e eu pego um chumaço do doce, colocando-o na boca e o
sentindo derreter na língua. Tem gosto de infância. Gosto da época em que as
coisas não eram tão difíceis quanto são agora. Como eu queria voltar àquela
época.

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— Acho que só tenho o açúcar, no momento — Brinco, mesmo que
devastada por dentro. — Não se pode ter tudo na vida.
Ele sorri, como alguém que sabe de um segredo. Talvez, o segredo da
vida.
— Minha querida, eu te vejo passar por aqui desde criança. Eu sei tudo
o que você passou nessa vida. Essa cidade quase toda sabe. Você enfrentou
tudo aquilo e está de pé. Acredito que nada do que possa acontecer daqui
para frente vá ser pior do que o que você já sofreu. — Ele pega minha mão,
pequena entre as suas, e a aperta, e eu, por um segundo, me sinto acalentada,
ponderando que talvez ele tenha razão. Mas o quem vem a seguir com
certeza me deixa ainda mais emocionada: — Sabe, é uma coisa interessante,
pequena: quando a gente passa pela pior coisa que poderia nos acontecer na
vida, exatamente como você passou e sobreviveu, uma força recai sobre a
gente. É libertador. Se você sobreviveu à morte de um filho, meu anjinho,
você é capaz de aguentar qualquer coisa no mundo de peito aberto, porque
no mundo, não há dor igual. — Abaixo a cabeça e choro, sem reservas,
porque ele tem razão. Já sobrevivi a coisas piores. Já perdi muito mais do
que um emprego. Já fui decepcionada de todas as formas possíveis.
Eu aguento tudo. Eu consigo.
Ele sorri para mim e se levanta, tocando sua buzina do algodão mais
uma vez. Antes de partir, aperta minha bochecha, como um avô faria com sua
neta.
— O açúcar eu já te dei — Ele brinca e vai se afastando, calmamente
— Agora o amor, esse é por sua conta.
Sorrio diante do seu jeito simples de me dar uma lição. Talvez nem
tenha sido sua intenção, mas ele tem razão. Eu já enfrentei coisas piores. Eu
já sofri dores maiores. Não posso deixar um homem destruir minha vida
novamente. Eu já havia aprendido a lidar com isso.
Abro minha bolsa e pego meu celular. Analiso a tela durante alguns
segundos, apenas tomando coragem. Respiro fundo e disco, ainda tentada a
desligar a qualquer momento, sem saber se essa é a melhor decisão a ser
tomada. Levo o celular á orelha e, no segundo toque, ele atende.
— Nina? — a voz de Lorenzo ecoa em meu ouvido e eu sinto as
lágrimas se formarem novamente. Nós temos um passado para superar, e isso
precisa acontecer o quanto antes, porque eu preciso de paz. De um novo
recomeço, em todos os sentidos.
Não aguento mais tanta pedra no meu caminho.

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— Lorenzo, está ocupado? — pergunto, sem conseguir disfarçar o choro
na voz.
— Não, na verdade, eu ia sair para procurar os apartamentos que
você havia indicado. O Raul me suspendeu por dois dias do hospital, logo
no primeiro dia, que maravilha, não? Agradeça ao playboy do seu
namorado. Preciso aproveitar esse tempo para achar um lugar para mim
— ele suspira do outro lado e, sem conseguir segurar, eu soluço, então ele
parece finalmente notar que não estou bem e sua voz se torna preocupada: —
Você está chorando? Está tudo bem?
Soluço de novo, porque o choro se torna incontrolável.
— Não, não está. Você pode me buscar em um lugar? — Não sei o que
estou pensando. Acho que sequer estou pensando. Mas preciso disso.
Preciso falar com ele. Acabar com isso de uma vez por todas.
— Nina, pelo amor de Deus, o que aconteceu? — Ouço um barulho de
porta batendo — Estou saindo do hotel, onde você está? É algo com o seu
pai? Ninguém do hospital me ligou e... — sua voz se torna urgente.
— Não, não é nada com meu pai. Eu só preciso conversar. Não sei o
que eu preciso, na verdade.
— Eu vou — ele diz rápido. — Onde você está? — pergunta pela
segunda vez, e ao fundo, ouço seus passos apressados, descendo as escadas.
— Naquela praça em frente ao escritório do Phelipe. — Respiro fundo
e enfim peço, de uma vez por todas: — Eu não sei o que eu quero, mas eu
preciso sair daqui. Só me tira daqui, por favor.

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CAPÍTULO 32
Lorenzo

Quando estaciono o carro em frente à praça onde Nina está, minha


vontade inicial é sorrir. Não faço ideia do que está acontecendo, mas eu
tenho duas razões para justificar minha vontade:
Primeiro, porque ela me chamou. Não importa o quê, como ou por que,
foi para mim que ela ligou.
Segundo, ela está estranhamente graciosa sentada em um banco de
praça, vestida em suas roupas sociais de trabalho, enquanto puxa pedacinhos
de algodão doce e os enfia na boca, como uma criança de cinco anos. Seu
cabelo loiro está arrumado, mas um cachinho insiste em despontar em sua
testa, o que faz sua expressão ainda mais angelical.
Entretanto, minha vontade some no exato momento em que, ao descer do
carro e caminhar em sua direção, ela ergue aqueles grandes olhos pelos
quais eu sou perdidamente apaixonado e me olha diretamente. Ela ajeita o
cachinho solto em sua testa, revelando ainda mais sua preocupação e
tristeza. Eu devolvo seu olhar. Mesmo sem palavras, ela balança a cabeça e
encolhe os ombros, como se dissesse: "tá tudo desmoronando".
Eu conheço esse olhar.
Eu coloquei um olhar exatamente igual a esse em seu rosto há exatos
oito anos.
Hoje, quando eu vejo como é visível a devastação em seus lindos olhos,
eu me pergunto como eu não fui capaz de enxergar isso no momento em que
eu entrava naquele avião. Infelizmente, o tempo não volta atrás.
Deslizo ao seu lado no banquinho sem falar nada. Puxo delicadamente
um pedaço do algodão doce para mim – que já está meio derretido – e o
enfio na boca. Lambo os dedos e fico ali alguns segundos, olhando para a

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mesma direção que ela. Sem palavras, acho que foi a conversa mais
significativa que já tivemos na vida. Depois de um tempinho, bato meu
ombro delicadamente no dela e finalmente digo:
— Acho que você já pode me contar o que está acontecendo, Nina. Eu
estou aqui para você — falo isso sem a menor intenção de querer ser
romântico ou conquistá-la novamente. Não que eu não queira isso, mas, antes
de tudo, eu preciso ser amigo dela. Quero cuidar dela. Estar aqui para ela do
mesmo modo que eu deveria ter estado quando ela mais precisou. Eu sei que
eu disse que o tempo não volta atrás, e ele realmente não volta. Mas hoje eu
acredito piamente que sempre é um bom momento para fazer novas e boas
lembranças.
— Eu só quero sair daqui, Lorenzo, mas eu não tenho forças, não
sozinha. Acho que finalmente, depois de tantos anos, elas se esgotaram. Eu
não consigo reagir, justo eu, que sempre fui tão forte. Você pode me levar pra
algum lugar? — ela pergunta, e eu fico sem entender muito bem.
— Você não vai trabalhar hoje?
Ela balança a cabeça.
— Eu não tenho mais um emprego.
Como assim ela não tem mais um emprego? O namorado dela é o dono
do lugar, não é possível que ele tenha mandado a própria namorada embora.
A menos que... Ah, merda.
— Eu também não tenho mais um namorado, se é isso que você está se
perguntando.
Não penso mais nem um segundo. Eu quero que ela me explique com
detalhes tudo isso, mas depois. Quando nós estivermos bem longe. Agora eu
só preciso tirar ela daqui, das vistas dele.
Não quero que ele tenha a chance de voltar atrás. Também não quero
que ele pense mal dela por minha causa. Levanto-me e me coloco na sua
frente, estendendo minha mão. Um gesto pequeno, quase bobo, mas tão
importante para mim, para nós.
— Vem, vamos embora, Nina.
E quando ela aceita a mão que eu estendo, eu volto a acreditar que
nós ainda temos uma chance.
[...]
Levo-a ao hotel onde estou hospedado, pois ela não queria voltar para
casa e nem ir para um café. Mais tarde eu iria ver os apartamentos que ela
indicou, pois preciso urgente de um lugar para mim. Morar em hotel não é

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uma opção, e, bem, o orçamento agora não dá para tanta regalia. Sei que a
qualquer momento eu teria dinheiro na minha conta, se assim eu quisesse,
pois meu pai gastaria o mundo e o fundo para se redimir comigo. Não que
ele seja uma boa pessoa e pense no mal que fez para o filho, longe disso,
mas ficar brigado com o único herdeiro perante a sociedade é, para ele, no
mínimo constrangedor.
Abro a porta do quarto com meu cartão magnético e Nina entra um tanto
ressabiada. Inicialmente, percebo que ela fica tensa e não sabe muito bem
como agir, estando em um quarto sozinha comigo depois de tanto tempo.
Aperta firme sua bolsa nas mãos e fica de pé, sem se mexer, até eu sorrir
para ela, tentando de alguma forma tranquilizá-la.
— Eu juro que vou me comportar como um mocinho daqueles livros que
você amava e ser bonzinho — uso a ironia, pois ela ainda continua sendo
minha melhor forma de comunicação. O mundo não foi criado em um dia, e
Lorenzo Leone também não vai mudar em um piscar de olhos, isso é fato.
Mas pelo menos, agora não há maldade nas minhas ações.
Jogo as chaves no aparador, mas ela não muda de posição, então eu
continuo falando:
— Agora tira esse salto aí, joga essa bolsa na poltrona e senta aqui
comigo. Vamos conversar, Catarina.
Tiro meu tênis enquanto ela ainda me olha estupefata. Depois de jogá-
los de qualquer jeito pelo quarto, tiro meu relógio, a carteira e os coloco ao
lado das chaves no aparador. Jogo-me na cama com um salto, como uma
criança grande, ainda esperando uma reação dela.
— Senta, Nina. Eu prometi e eu vou cumprir — então eu me arrisco,
pedindo algo que eu sei que para ela ainda é difícil: — Confia em mim.
Ela demora ainda um tempo, até que finalmente tira os sapatos com
receio e coloca a bolsa na poltrona próxima a ela. Depois, se senta sem jeito
na ponta da cama, como se a qualquer momento eu fosse mordê-la. Não
posso culpá-la, então deixo que fique à vontade aos poucos.
— Desculpa atrapalhar seu dia. Eu só não queria ficar sozinha. Estou
meio esgotada — Ela me olha com os olhos assustados e eu sorrio diante
dessa imagem. Sei que ela está se perguntando se foi uma boa ideia ter me
ligado, e eu preciso fazer com que ela acredite que sim, foi uma boa ideia.
Foi uma ótima ideia. Ideia magnífica.
— Você nunca vai me atrapalhar, para com essa bobagem — digo
naturalmente, e continuo: — Ganhei dois dias de "gancho" lá no hospital,

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então vai dar pra pôr muita coisa em ordem. No fundo, foi até bom. Eu tenho
é que agradecer a minha especialização. Se não fosse por ela, ele tinha me
mandado embora sem nem pensar duas vezes. A questão é que ele realmente
precisa de um médico como eu no hospital, então resolveu fechar os olhos
para o nosso showzinho.
— Que bom que tudo deu certo. Eu realmente não queria te prejudicar
— Ela sorri sem jeito e puxa as pernas para junto de si na cama, relaxando
um pouco mais.
— Mas acabou se prejudicando, não é, Nina? — Puxo as mangas da
minha camisa para cima e cruzo os braços. Só de pensar no que aquele idiota
pode ter feito, eu já sinto arrepios. Só Deus sabe o que Phelipe é capaz de
falar quando entra em uma de suas crises.
Ela respira fundo, abaixando a cabeça, ponderando se eu sou alguém
com quem ela quer compartilhar algo tão íntimo. Depois de alguns segundos,
ela dá de ombros e diz, olhando para os lados:
— Acho que ia ser pior se eu continuasse com aquele namoro, Lorenzo.
O Phelipe anda muito instável. Em um momento ele me ama e é a pessoa
mais perfeita do mundo, no outro, ele grita comigo e se irrita facilmente. Eu
não suportava mais. Ontem, ele foi grosseiro com a minha mãe, uma pessoa
que ele sempre respeitou, assim, do nada. Eu simplesmente não entendo, por
que às vezes, nem parece ele, sabe?
Ela continua:
— Aí hoje, ele me ofendeu, disse um monte de absurdos para mim. Eu
senti, a todo momento, como se eu o tivesse decepcionado demais, mas eu
não fiz nada intencionalmente. — Seu rosto fica vermelho com as
lembranças, e sei que a machuca. — No meio de tudo isso, ele disse que me
amava, e quando eu me recusei a continuar com nosso relacionamento, ele
voltou a me ofender. É como se duas pessoas habitassem o mesmo corpo.
Ele me mandou embora em um rompante de raiva, por vingança. Vingança,
Lorenzo! Como, se ele sempre foi a pessoa mais doce que eu conheci na
vida? É demais para mim. Demais para minha cabeça tentar entender o que
está acontecendo com ele.
Respiro fundo.
Sei que preciso contar para ela algumas coisas que eu sei, mesmo que
isso signifique que ela poderá voltar para ele. Eu não posso enganá-la. O
Lorenzo de antes, com certeza tiraria vantagem dessa situação, mas se eu

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realmente quero tanto mudar, necessito entender que ela tem o direito de
estar a par de tudo que envolve Phelipe.
— Nina... — Passo a mão no rosto, me xingando internamente. A
vontade de não falar é enorme, pois isso pode significar uma segunda chance
para ele, mas eu devo fazer o certo, mesmo que isso me custe perdê-la
novamente. Perdê-la quando eu nem havia conseguido reconquistá-la. —
Uma vez ouvi a Malu conversando com a mãe dela ao telefone, sobre o
Phelipe — Seus olhos se apertam em minha direção, repletos de uma
curiosidade repentina — A Malu queria saber como andava o tratamento
dele, como andava a relação dele com a bebida, enfim, preocupações de
irmã. O Phelipe sempre foi inclinado a grandes quantidades de álcool, isso
eu imagino que você já saiba.
— Sei sim, mas eu nunca imaginei que isso o afetasse tanto, porque eu
mesma nunca presenciei nada tão diferente. Nunca achei que fosse um grande
problema.
— O problema é que eu as ouvi comentando várias vezes sobre um
tratamento. Um tratamento que ele deveria fazer e não faz. Depois de ouvir
sobre isso algumas vezes, questionei a Malu, e ela me contou que ele sofre
de um transtorno.
— Um transtorno? — Seus olhos ganham um quê de curiosidade
genuína, e percebo que não há mais volta. Preciso falar para ela, e deixar em
suas mãos a decisão de seguir com ele ou não.
— Um transtorno que colabora nessa atitude dele em beber além da
conta. Quando eu descobri sobre o Phelipe, estudei muito sobre isso, a fim
de ajudar a Malu a lidar com essa questão, e pedi ajuda aos meus colegas de
hospital, que são psiquiatras. Chama-se Transtorno de Personalidade
Limítrofe, e algumas pessoas conhecem como Transtorno de Personalidade
Borderline — vou soltando as informações aos poucos, esperando que ela as
digira e compreenda. — Em algumas pessoas é mais brando, em outras, um
pouco mais forte. E quando a pessoa se recusa a se tratar adequadamente, o
que é o caso dele, pois, de acordo com a Malu, ele se recusa a admitir que
tem isso, a coisa só tende a piorar, porque os comportamentos vão virando
um padrão.
Seus olhos arregalados me fitam demoradamente, enquanto ela tenta
processar as coisas que lhe falei.
— Ele faz tudo isso por que é doente? Por que então, em anos, é a
primeira vez que ele me trata assim? — Ela me olha como se tudo o que eu

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falei não fizesse o menor sentido. — Ele sempre foi perfeito comigo.
Busco meu lado médico e tento explicar da forma mais didática
possível, para que ela compreenda que, muitas vezes, as reações não são
culpa do paciente, e que é muito difícil e complicado separar a pessoa
doente da pessoa comum.
— É um problema de saúde que envolve as partes psicológica e
psiquiátrica de uma pessoa, e é muito difícil de ser diagnosticado. As
pessoas que têm esse tipo de transtorno alternam atitudes de forma
impulsiva, podendo ter surtos de ódio e, em casos extremos, elas até tentam
o suicídio — alerto, pois é necessário ficar de olho em Phelipe, agora que o
relacionamento idealizado dele com Nina acabou. — No geral, os surtos
relacionados ao borderline sempre tem a ver com as relações interpessoais
mais intensas.
— Como assim? — ela pergunta, curiosa.
— Situações de crise no trabalho, pressão da família e brigas com
amigos, ou no caso de um relacionamento, brigas com o cônjuge. O ambiente
muda muito o humor dessas pessoas, que, em geral, reagem mal quando são
contrariadas. E eu acho que foi isso que aconteceu entre vocês: algo deve ter
desencadeado nele uma raiva por você, ou um sentimento de medo, não sei.
É um transtorno complicado. Você sempre foi considerada ótima perante ele,
e ele reagia às suas formas de tratá-lo. Se você, de certa forma, o desafiou
ou recusou algo que ele queria, acontecem esses rompantes de raiva. É como
se quando você fizer algo que o desagrade, ele jamais vai se lembrar de
todas as outras coisas boas que você já tenha feito. Ele vai reagir de acordo
com o desagrado.
— Meu Deus, Lorenzo — ela diz, como se tudo fizesse sentido em sua
cabeça agora.
— Uma característica marcante dessa síndrome é a idealização da
imagem de algumas pessoas, que pode ir do amor intenso ao ódio. É comum
elas gritarem e ofenderem amigos e familiares, por exemplo, mas na
sequência, comportarem-se como se nada tivesse ocorrido.
— Então ele não é uma má pessoa? — Seus olhos ganham uma nota de
esperança que me mata por dentro. Olha só, eu mesmo destruindo o que eu
mais quero: separá-la dele.
— Não, ele em si não é. O Phelipe sempre foi bom, porque ele cresceu
e foi criado dentro de ótimos princípios e cercado de excelentes pessoas,
mas esse transtorno tende a piorar com a idade, porque, junto com a idade

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chegam também os problemas da vida adulta, que são formas de estresse. E
estresses desencadeiam crises. Você já viu o Phelipe em um tribunal?
— Já, claro — ela me responde, sem entender a pergunta.
— E como ele é lá dentro? — Ergo uma sobrancelha, esperando o
momento que ela entenderá onde quero chegar.
Seus olhos se arregalam.
— Extremamente duro. Frio. Ele se torna um animal — Ela me olha —
Eu nunca o vi perder uma causa, porque ele luta com unhas e dentes.
Balanço a cabeça em sinal positivo.
— Sim, porque algo se acende dentro dele, fazendo com que ele sinta
rompantes de raiva, de ódio extremo. O tratamento de qualquer transtorno de
personalidade é extremamente complicado, Nina. É também demorado, pois
em se tratando de mudanças de caráter, o indivíduo terá de mudar o seu
próprio "jeito de ser" para que o tratamento seja efetivo. E isso é muito,
muito difícil.
Seus olhos se enchem de lágrimas novamente.
— Ele não vai mudar, Lorenzo.
— Talvez ele mude, Nina. Se ele quiser assim, se ele se tratar, se fizer o
que precisa ser feito; isso não vai sumir, mas vai melhorar muito. Mas
acredite, eu não sei se a caminhada vale a pena — e dessa vez, não há
egoísmo em minhas palavras. Eu realmente não sei se ela suportaria toda a
carga que é lidar com Phelipe assim, não agora, que ela tem tantos outros
problemas com que precisa lidar. — Pelo menos, não com você ao lado dele
como companheira. Como amiga talvez, mas como companheira... Sem
contar que o próprio transtorno faz com que ele seja exagerado nas coisas
que faz. Com a bebida é assim. Ele bebe compulsivamente, mas alguns
comem compulsivamente, outros jogam compulsivamente. Alguns dormem
demais e outros de menos. Cada caso é um caso — Ela continua ouvindo,
como se quisesse saber mais, então puxo mais algumas informações da
memória, mas com um pouquinho de tempo, vou procurar fontes de
informações seguras para que ela tenha uma boa noção do que estamos
falando: — Algumas pessoas confundem o transtorno de personalidade
limítrofe com a bipolaridade, mas tem algumas diferenças, que com o tempo
vou te explicar melhor. A principal diferença é que a pessoa borderline vai
da depressão à euforia – e vice-versa – em um mesmo dia, ao passo que a
pessoa bipolar mantém o quadro de crise por dias, e até semanas. A pessoa
borderline tem mudanças mais rápidas de humor, e também mais intensas. É

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como viver em uma montanha-russa, vinte e quatro horas por dia, porque no
caso da personalidade limítrofe, ela está quase sempre relacionada também
à ansiedade e a depressão, por isso fazer terapia é tão importante quanto
tomar os remédios, e o Phelipe não faz nenhum dos dois.
— Isso tem cura?
— Não — Observo seu rosto cair em desanimo, então continuo a
explicação, lhe dando esperança de que nem tudo está perdido: — Mas com
o diagnóstico correto e o tratamento adequado, pode ser controlado, o que
geraria uma boa qualidade de vida para ele, sem dúvida. Ele só precisa
querer, Nina.
Ela cobre a boca com as duas mãos, completamente estupefata.
— Eu nunca te falei nada antes, porque é meio obvio que você não
acreditaria em mim. E também porque isso é muito pessoal, achei que, como
namorada, você sabia.
— Eu nunca sequer desconfiei.
— Mas pensa em todas as vezes que ele agiu estranho, Nina. Faz muito
sentido.
— Sim, faz. Faz todo sentido, Lorenzo.
Ela pensa por alguns instantes, sem nem piscar. Decido que lhe devo
esse tempo, para que ela possa digerir essa história toda, afinal, o cara era
namorado dela até algumas horas atrás, e a descoberta dele não ser
(somente) um imbecil pode fazê-la pensar melhor sobre a decisão de
continuar ou não com ele, e sobre isso, eu não posso e nem devo opinar.
Depois de alguns minutos assim, em silêncio – nosso dia hoje está
sendo cheio de silêncios que falam mais do que palavras –, eu tomo
coragem para enfim perguntar:
— O que você pretende fazer sobre isso? — Meu coração dispara,
como se a pergunta que eu acabei de fazer valesse um milhão. Na verdade,
ela vale mais. Vale a chance de tê-la para mim novamente.
Ela engole em seco, depois balança a cabeça, chateada.
— Não há o que fazer, Lorenzo — Ela puxa as duas pernas e envolve-as
com os braços, em uma pose – finalmente – relaxada. Aproveito e me
espreguiço na cama, depois me viro de lado, apoiando-me no braço
esquerdo e olhando diretamente para ela. — Eu quero muito ajudá-lo, e
provavelmente vou, mesmo que ele me repudie. Apesar de todas as
barbaridades que ele me disse, eu o amo, o amo tanto que nem consigo te
explicar o quanto. Ele foi meu melhor amigo durante muito tempo, e me

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ajudou em tudo o que eu precisei. Ele segurou a Lorena quando ela nasceu, e
me segurou quando ela se foi — Ouvi-la falar como ele conheceu minha filha
me mata por dentro, mas preciso reconhecer o quanto tê-lo por perto foi mais
fácil para ela. — Mas continuar um relacionamento assim é complicado.
Não é algo que eu tenha em mente. E não é porque eu descobri que ele tem
esse transtorno, de forma alguma. Se eu o amasse como ele merece ser
amado, eu enfrentaria o mundo, o que fosse, por ele e com ele. Mas eu
descobri que não o amo como homem. Eu o amo como amigo — Ela dá um
longo suspiro. — E como amiga, eu sempre estarei ao lado dele, mas é só.
Olho para ela, que me devolve o mesmo olhar cheio de significados.
Balanço a cabeça em sinal positivo, concordando com sua decisão. A um
palmo de distância, ela é realmente mais bonita do que eu me lembrava. Seus
olhos são penetrantes e intensos, límpidos.
Eu tenho vontade de mergulhar neles.
E sim, eu estou encarando-a.
Um canto de sua boca se inclina, trazendo ali um leve sorriso que ela
tenta disfarçar. Eu não sei por que ela está sorrindo, mas eu sorrio junto. Eu
sorrio junto simplesmente porque eu amo vê-la sorrir, mas principalmente
porque faz muito, muito tempo que eu não sou o causador de um sorriso em
seu rosto.
— O que foi? — enfim pergunto, ainda sorrindo.
— Nada — Ela balança a cabeça, tímida. — Só acho isso muito louco.
Há poucos dias eu te amaldiçoava, e agora estou aqui, deitada em uma cama
de hotel, conversando sobre a vida com você. Meus problemas, meus medos.
Eu liguei pra você quando precisei. É estranho pra mim. É estranho,
principalmente, porque eu me sinto à vontade aqui.
— Eu sei que é. Mas pra mim não é estranho, pra mim é mágico — Me
ajeito na cama e olho em seus olhos, assumindo uma postura séria. — Você
ligou pra mim por que não tinha mais ninguém disponível ou você realmente
quis ligar pra mim?
Ela pensa um pouco, mexendo no cantinho da unha, provavelmente
ponderando as palavras que soltaria a seguir, e quando elas vêm, meu peito
se enche de esperança.
— Eu não pensei em ligar para mais ninguém.
É isso. É demais para mim. Eu preciso tê-la de volta, mas dessa vez
será do jeito certo. Sem pressa, sem atropelamento, sem erros ou decepções.
Quero começar de novo. E é exatamente isso que eu proponho.

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Aproximo-me dela, e, com um sorriso no rosto, estendo minha mão e
digo, o mais sério possível:
— Prazer, Lorenzo de Alcântara Leone.
Ela não entende, e faz um cara entre confusa e engraçada.
— Eu sei o seu nome, tá doido? — Ri, achando que eu estou pirado.
— Te proponho começar de novo, moça. Do zero. Sem interesses, sem
maldade, sem planos mirabolantes. Eu apenas quero começar de novo. Duas
pessoas que se conheceram por aí.
— Por aí, num quarto de hotel? — Ela ergue a sobrancelha, mas um
sorriso brota no canto de seu rosto. Seu semblante triste finalmente foi
embora.
— Não dificulta, Catarina!
— Como você sabe meu nome? — E quando ela coloca as duas mãos na
boca, horrorizada, sei que ela aceitou entrar na brincadeira. — Um
perseguidor!
Caio de costas na cama, rindo da sua cara de boba, feliz como há anos
não me sinto. Como se eu finalmente estivesse onde precisava estar.
Acho que a história de conhecer de novo não vai colar, mas eu estou
feliz mesmo assim, só por estarmos nos dando bem, de qualquer forma.
Surpreendo-me, porém, quando ela se inclina sobre mim, ali mesmo naquela
cama, e estende sua mão com um enorme sorriso, que se via tanto na boca
quanto nos olhos. Um sorriso com jeito de recomeço.
— Prazer, Catarina Nascimento.

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CAPÍTULO 33
Nina

Lorenzo me puxa contra ele.


Quando estendo minha mão, entrando naquela brincadeira boba, ele me
puxa contra seu corpo. Caio em cima dele e nossas respirações ficam
ofegantes. O sorriso vai morrendo aos poucos dos nossos lábios, não porque
não achamos mais graça naquilo, mas sim porque o sentimento está sendo
substituído por outro.
Vontade.
Desejo.
Ah, chame do que quiser.
Sua mão desliza pela minha cintura, parando na curva da minha bunda.
Sua perna que está esticada sobe, me encaixando mais contra ele, fazendo
meu corpo tremer.
Como diabos isso acabou assim? Como um dia que tinha tudo para ser
absolutamente normal, começa com um namoro terminado, uma demissão e
eu aqui, nos braços quentes de Lorenzo Leone, o cara que eu jurei odiar pelo
resto da minha vida?
Dane-se a razão. A vida não é para ser explicada mesmo.
Eu apenas me inclino um pouco mais para frente, a fim de que ele
termine logo o que começou. Eu quero isso agora, e depois pensarei nas
consequências.
Ele percebe minha vontade e sorri, mas não de um jeito convencido.
Está mais para um sorriso de alívio e felicidade. E caramba! Que sorriso! Eu
não me lembrava que o sorriso do Lorenzo pudesse ser tão maravilhoso, e

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principalmente, que ainda fosse capaz de me fazer esquecer qualquer coisa,
exatamente como fazia antigamente.
Ficamos um tempo assim, nessa conversa sem palavras. Sua mão ainda
está no mesmo lugar, sua perna ainda me prende encaixada à dele e nossos
peitos estão colados. Quase posso contar as batidas que nossos corações
dão, freneticamente, e por mais impressionante que seja, eu também quase
posso dizer que eles batem no mesmo ritmo.
Encaro-o com meus lábios semiabertos, tão perto dos dele, pronta para
prová-los mais uma vez em menos de dois dias. Lorenzo Leone é como uma
avalanche: quando a coisa começa, é praticamente impossível detê-la.
Ele se ergue um pouco e coloca sua boca em meu ouvido, de um jeito
tentador, mas eu sei que não é intencional. Lorenzo exala sensualidade em
cada gesto, mas é tudo natural. Instintivamente fecho meus olhos, sorvendo a
sensação de sua respiração quente tocando meu pescoço. Sei que não estou
pensando racionalmente e que minha vida está desmoronando bem diante dos
meus olhos, mas surpreendentemente, estar com ele aqui e agora, faz tudo
parecer menos ferrado, nem que seja por apenas um momento de ilusão.
— Se você não fechar esses lábios, eu não me responsabilizo pelos
meus atos, Cinderela — sua voz fica mais rouca contra meu ouvido, fazendo
eu me arrepiar — Porque eu estou tão tentado a beijá-los.
Eu sou o tipo de mulher inteligente o suficiente para reconhecer minhas
próprias fraquezas, e esse homem está definitivamente entre elas. E nesse
momento, essa fraqueza torna-se mil vezes mais forte porque um par de
olhos verdes me encara, praticamente me despindo. Meu pulso acelera, e
antes que eu pense em qualquer coisa que me faça levantar e ir embora, ele é
mais rápido.
— Dane-se, seu tempo de pensar acabou — ele diz, antes de me puxar
de vez e me beijar profundamente. Sua boca é quente, exatamente como eu
me lembrava, e os seus lábios, tão macios.
Primeiro, ele me beija com uma provocação suave e sensual que me faz
gemer. Ele captura meu lábio inferior e então o morde de leve, antes de
brincar com a ponta da língua ao redor da minha boca. Seu gosto ainda é o
mesmo: um gosto adocicado de hortelã, e, por alguma razão, isso me faz
gemer novamente. Quando sua língua por fim desliza para junto da minha,
algo vibra pelo meu corpo e se instala dentro de mim, como uma parte que
faltava e que agora faz tudo ser completo. Nossas línguas se encontram, e ele

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deixa escapar um som baixo e rouco enquanto desliza uma das mãos por meu
corpo até envolver meu seio esquerdo.
Sua língua enrola na minha e eu sinto meu corpo inteiro pinicar. Sua mão
livre sobe por minha saia e eu ofego, querendo mais. A última vez que
estivemos tão íntimos foi na minha primeira noite de amor. Eu não sabia
nada, e ele, apesar de toda a experiência, era novo ainda. Agora, eu me sinto
uma mulher completa sendo desejada por um homem que sabe o que faz.
Que realmente sabe o que faz.
Seu beijo se intensifica, e quando nossas bocas se separam e ele suspira
contra meu pescoço, sei que ele está ponderando sobre o que está
acontecendo, assim como eu. Acho que tanto quanto eu, ele queria que nossa
história fosse mais simples.
A realidade é uma merda. Literalmente, uma porcaria.
— Lorenzo... — minha voz sai rouca, e então eu olho pra ele.
— Sim? — Sua voz também sai rouca, carregada de desejo. Desejo esse
que posso sentir em sua voz – e em outras partes dele que me tocam.
— Eu gostaria muito de dizer pra você que eu não sei o que eu quero,
que estou confusa. Isso me faria parecer mais decente, porque, afinal, eu
acabei de terminar um relacionamento. Mas a verdade, a verdade é que eu
sei o que eu quero.
Ele sorri. Um sorriso diabólico e delicioso. Tentador ao extremo.
Hipnótico.
— Nada que você fizer vai te fazer parecer indecente para mim, porque
eu te conheço, Catarina — Suas palavras me fazem sorrir. — Então me diz o
que você quer, minha Cinderela.
— Você — eu digo meio incerta, mas me sinto mais calma quando vejo
o já enorme sorriso se espalhar por sua boca, e principalmente por seus
olhos, tão verdes. — Eu te quero tanto que chega a doer, principalmente
dentro do meu coração, que não aceita esse sentimento. Te querer dói,
Lorenzo. No meu ego, na minha consciência, na minha alma. E eu ainda tenho
medo. Não dá pra esquecer tudo o que aconteceu de um dia para o outro —
finalmente digo. Se eu quero começar isso de novo, precisa ser da forma
correta.
Não posso mais me forçar a duvidar dos meus próprios sentimentos, eu
sei, mas também preciso ser sincera, comigo e com ele, de que as coisas não
são tão fáceis assim. Esquecer não é fácil. Perdoar não é fácil. Aceitar que
dar uma segunda chance é algo compreensível, muito menos. Quando se é

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abandonada como eu fui, é um longo e tortuoso caminho acreditar
novamente.
— Nina... — Ele me beija no pescoço e eu derreto, mas logo em
seguida ele volta a falar, de forma séria: — Eu sei que fui bem babaca e eu
voltei pra te provar que eu posso mudar. Eu não sou um cara perfeito e eu
ainda tenho muita coisa para corrigir. Eu sequer posso prometer que não vou
te magoar de novo, porque eu realmente não sei. Minhas atitudes às vezes me
parecem tão naturais, que quando eu vi, eu já fiz. Ser uma nova pessoa sem
qualquer resquício da antiga é complicado, quase impossível, mas eu
realmente quero ser digno de você, e é para isso que estou me esforçando.
— Ele me olha dentro dos olhos e diz baixinho novamente: — Eu realmente
quero ser digno de você, e agora, da nossa filha também. Eu quero ser
alguém de quem ela teria orgulho se estivesse aqui.
Essas palavras me desmontam, e eu não posso mais fingir que não quero
isso. Inclino-me sobre ele e o beijo novamente, dessa vez com mais vontade,
e não é só vontade sexual. É a vontade que eu guardei por anos a fio. A
vontade de quando eu era apenas a menina da cafeteria, cheia de amor e
sonhos. É aquela vontade de ter uma vida com ele, de ser amada de verdade,
de poder dar o amor que eu escondi à sete chaves por tanto tempo. Eu sei
que já disse milhões de vezes que eu o odiava, mas uma mentira contada mil
vezes torna-se verdade. Eu apenas quis acreditar no ódio que eu dizia sentir,
quando na realidade, sempre foi um amor muito mal resolvido.
Ele me aperta contra ele e eu suspiro, encaixando-me em seu corpo,
encostando meu rosto em seu ombro, tentando buscar abrigo em seus braços.
— Vamos começar de novo, minha Cinderela — ele me diz entre beijos.
— Prometo que tudo vai ser diferente.
Apenas concordo com a cabeça, porque agora eu quero senti-lo. Senti-
lo contra mim, em volta de mim, dentro de mim.
Eu quero Lorenzo Leone de volta.
Acho que eu nunca deixei de querer.
Sua mão sobe por minha perna, queimando tudo por onde passa. Seus
dedos me acariciam, depois sobem para meu pescoço e terminam em meu
cabelo, em uma carícia. Enrolo minha língua na sua e solto um gemido
baixinho.
— Não acredito que você está aqui... — ele diz, quase num sussurro.
Sinto meu ventre se contrair, e quando sua mão vai para o primeiro botão da
minha camisa social, eu apenas deixo, sem me permitir pensar muito.

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Sem avisar, ele apenas me segura pela cintura e, mudando totalmente
nossa posição, me puxa para o seu colo, me deixando de frente para ele.
Olha-me nos olhos profundamente, e ali eu vejo sinceridade. Uma
sinceridade que eu não vi no Lorenzo de anos atrás.
Minhas mãos vão para seu peito, subindo e descendo, acariciando seus
ombros. A sensação que tenho é que eu quero abraçá-lo em compensação
por todo o tempo que estive longe e que ficamos separados. Inclino a cabeça
para o lado devagar e ele beija meu pescoço, subindo para minha orelha.
— Esse cheiro me perseguiu por oito anos, Nina. Pode parecer loucura,
mas você não faz ideia de como eu sentia seu cheiro por todos os lugares. E
inacreditavelmente, ele ainda é o mesmo.
Sorrio com essa confissão. É como um prazer secreto saber que, de
alguma forma, ele foi torturado por minha lembrança assim como fui pela
sua.
Suas mãos descem dos meus ombros para os meus seios e eu fecho os
olhos, aproveitando o toque. Minhas mãos instintivamente vão para a barra
de sua camiseta e eu a puxo para cima, sem delicadeza, apenas me livrando
daquele tecido incômodo. Seu peito está mais rijo do que eu me lembrava,
mas é claro, agora ele é um homem, não mais um menino. Quando me ajeito
em seu colo e me agarro ao seu pescoço novamente, o clima é quebrado com
o barulho de seu celular tocando.
Ah, não!
— Droga — ele diz, irritado — Agora, sério?
— Não atende — sussurro quando ele tenta tirar o celular do bolso com
uma mão enquanto me acaricia com a outra.
— Nina, eu sou médico — ele me lembra de algo importante, e eu
concordo na mesma hora —, não posso deixar de atender meu celular — ele
fala quase sem fôlego, ainda tateando em busca do aparelho —, mesmo
afastado. Se um dos meus pacientes precisar, o hospital vai me ligar, com
certeza — ele conclui, e eu concordo que ele precisa atender. Afasto-me um
pouco, mas não saio de seu colo, apenas me ajeito, e quando ele finalmente
acha o aparelho, olha no visor e diz: — Não falei? Hospital.
Ele segura minha cintura com uma mão, fazendo pequenos círculos com
os dedos ali.
— Dr. Leone, pois não? — Sua feição vai ficando cada vez mais pálida
— Tudo bem. Não, tudo bem. Os primeiros procedimentos já foram
aplicados, Susana? Ótimo! Estou saindo daqui.

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Meu ventre se contrai novamente, mas dessa vez não é de desejo. É
medo. Susana é uma das médicas que cuida do meu pai.
Pode ser uma grande coincidência, afinal, são tantos pacientes. Mas o
que eu vejo nos olhos de Lorenzo me faz temer.
Ele joga o celular de lado e, diante da minha apreensão, demora alguns
segundos para finalmente me olhar nos olhos e dizer o que eu mais temia
ouvir:
— Precisamos ir para o Hospital, Nina. E eu preciso que você seja
forte.
O terror toma conta de mim.
— Lorenzo... não! — Eu saio de cima dele bruscamente — O que
aconteceu? É o meu pai, não é?
Seus olhos se apiedam de mim por um segundo e eu já sei a resposta:
— Sim... Ele teve uma recaída, Nina. Eu preciso ir para lá agora.
Quando eu levanto, procurando pelos meus sapatos, meio cambaleante
pelo dia que só piorava desde que eu acordei e pelo medo de algo pior
acontecer com um dos meus bens mais preciosos, Lorenzo segura meu braço,
me vira para ele e me aninha em seu peito, beija meu cabelo, e, sussurrando
baixinho, diz:
— Aconteça o que acontecer, eu estou aqui por vocês, Nina. Eu não vou
sair daqui.

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CAPÍTULO 34
Lorenzo

Uma semana depois.

— Como você se sente? — Puxo a coberta em que Nina se enrola e me


sento ao seu lado, na beirada da cama. Trago um copo de suco na mão junto
de um sanduíche em um prato, que eu sei, com absoluta certeza, ela recusará
de pronto mais uma vez. Já faz uma semana que ela come apenas o mínimo
para sobreviver, e eu não tenho mais ideia do que posso fazer para ajudá-la.
— Péssima — ela responde, com a voz fraca e chorosa, antes de
afundar o rosto no travesseiro mais uma vez. Desde que tudo aconteceu, ela
quase não sai mais do quarto. — Eu não consigo aceitar isso, Lorenzo.
Inclino-me sobre ela e beijo sua testa com delicadeza, depois, corro os
dedos por seu cabelo loiro, desfazendo delicadamente os nós que estão se
formando porque ela simplesmente se recusa a cuidar de si mesma há exatos
setes dias. É assim que venho tratando-a desde que seu pai não suportou a
última recaída e faleceu. Infelizmente, como médico, eu sei que nem todas
as batalhas se ganham.
Mas se eu, que sou médico e sei de tudo isso, estou sofrendo com essa
situação, tento imaginar o que ela, filha, está passando. É terrível de tantas
formas diferentes, que eu nem sei por onde começar. A velha história de “ele
descansou e não está sofrendo mais” pode até ser verdadeira – e é –, mas um
filho não precisa fingir que não está doendo apenas por esse motivo quando
perde um pai.
Dores reais precisam ser sentidas para, um dia, se tornarem apenas más
lembranças.

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— Olha, eu te trouxe um sanduíche — eu falo, esperançoso. Ela sequer
olha na direção dele, e eu não posso culpá-la, mas estou preocupado. Eu e a
mãe dela. Suspiro e coloco o suco e o sanduíche na mesinha de cabeceira ao
lado, antes de tentar uma abordagem que eu tento não usar mais: a
chantagem: — Sua mãe está preocupada, Nina. Você mal se alimenta desde
que ele faleceu. Já faz uma semana. Uma hora você precisa levantar e
encarar sua perda, por mais difícil que ela seja. Ele não iria querer te ver
assim.
Ela bufa, mas não muda de posição.
— Eu não quero comer nada. Eu só quero meu pai de volta.
Eu quero insistir, mas algo dentro de mim me diz que é preciso deixá-la
ter o seu momento. Então, eu simplesmente levanto a coberta em que ela está
enrolada e me enfio debaixo dela, tomando um espaçozinho ao seu lado na
cama. Nós ainda não definimos nossa situação: se reatamos, se somos
apenas amigos ou qualquer coisa que o valha. A única coisa que eu sei é que
eu estou aqui desde que seu pai faleceu, ao seu lado, dia e noite, tentando
absorver sua dor, tentando ajudar, tentando fazer com que ela fale qualquer
coisa, se abra de alguma forma para deixar esse sofrimento sair. Consegui
poucos resultados, mas vou continuar tentando.
Puxo-a para mim, arrastando-a para cima e aconchegando-a sobre meu
peito, e ela vem, como se fosse um boneco sem vida. É assim que ela reage
para tudo, desde o dia em que corri para o hospital para tentar salvar seu pai
e não consegui. Acaricio seu cabelo por algum tempo e finalmente começo a
falar:
— Olha... Eu sei que não deveria ser uma comparação a fazer, mas eu
vou fazer porque sou eu, não é? Eu nunca faço o que devo mesmo — Ela dá
um sorriso frouxo, mas já é alguma coisa para mim. — Seu pai se foi, mas
ele foi um pai com P maiúsculo enquanto esteve aqui, Nina. Cuidou de você,
te amou, te ensinou coisas especiais que você levará para o resto da vida em
seu coração. Não te deu coisas valiosas em questão material, mas te deu
amor. Antes, eu não via isso porque era egocêntrico demais, fútil demais,
babaca demais. Mas eu trocaria o meu pai pelo seu sem pensar duas vezes
— Ela olha para cima, encontrando meus olhos. Seu nariz está vermelhinho e
inchado, suas bochechas sem cor, seus olhos com grandes bolsas. Mas
quando eu digo que trocaria meu pai pelo dela, a sombra de outro sorriso se
deposita ali.

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— É... Ele era o melhor pai do mundo — sua voz chorosa se ameniza
um pouco e eu a aperto de encontro a mim.
— Então! O meu pai está aqui, vivo. Nina, eu não posso dizer que não o
amo, porque ele é meu pai. Ele fez muita merda, mas é meu pai. Sempre será
meu pai e nada vai mudar esse fato. Mas amor nem sempre significa orgulho,
e eu não me orgulho dele. Eu não levo nada do que ele tenha me ensinado
porque ele só me ensinou a ser aquele Lorenzo imbecil que você conheceu
há oito anos — Busco seus olhos para ter certeza de que ela está
compreendendo meu ponto. — Mas o seu pai... O seu pai criou a menina
mais doce e incrível. Amou a mulher, trabalhou mais do que podia pra dar a
vocês uma vida digna. Ele cumpriu o que precisava cumprir, então eu não
quero que você sofra, meu bem. Você sempre foi tão boa para ele, uma ótima
filha, e é isso que importa no fim das contas: a relação que vocês tiveram
aqui. É isso que ele vai levar com ele, e é isso que você precisa manter com
você.
Ela se aninha mais um pouco em meu peito.
— Eu só queria ter me despedido dele, Lorenzo. Não deu tempo. Queria
ter dito a ele que eu o amava. Sei lá, queria ter dito tanta coisa.
— Você viveu seu amor por ele, Nina. Nos gestos, o amor grita mais
alto do que nas palavras.
Ela concorda com a cabeça e eu prossigo:
— Eu queria ter me despedido da Lorena também. Queria tê-la amado,
queria ter pegado ela no colo... Mas às vezes, isso simplesmente não é
possível. Sabe, vendo os últimos momentos do seu pai, como médico, posso
dizer que foram abençoados. Sem dor, com a família por perto, em um bom
hospital e muito provavelmente sem remorsos sobre a vida que levou. Eu já
vi tanta coisa triste, Nina, tanta coisa que você nem queira saber.
Ela olha para cima de novo e timidamente ergue sua mão. Depois de
pensar alguns segundos, ela finalmente o faz. Acaricia meu rosto e me
pergunta:
— Foi por isso que você mudou tanto? Ver o fim dos outros te fez
pensar em como seria o seu?
Eu pego a mão que está em meu rosto e a trago para minha boca. Beijo
sua palma delicadamente em um carinho simples.
— Sem dúvida.
Ela apenas assente, e volta a se aninhar em mim.
— Obrigada por ficar aqui todos esses dias, Lorenzo.

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— Você não tem que me agradecer — digo, mas me arrependo logo em
seguida: — Na verdade, sim, você tem que me agradecer.
Seu rosto fica confuso.
— Você precisa levantar dessa cama e reagir um pouco, Nina. Não estou
pedindo para que você faça uma festa. Luto é uma coisa que deve ser
respeitada, até para ser mais facilmente superado. Mas reaja. Coma qualquer
coisa. Desça para a sala um pouco. Abrace sua mãe; ela precisa disso, Nina.
Ela está sofrendo tanto quanto você — Engulo em seco, sabendo que o que
vou falar agora a fará pensar melhor: — Você perdeu seu pai, mas ela perdeu
o companheiro. O pai da filha dela. O amor de uma vida inteira. Ver você
assim e não poder fazer nada é uma dor que ela não precisa no momento.
Ela afunda o rosto na minha camisa e suas unhas agarram minhas costas.
— Eu sou uma idiota, Lorenzo — ela bufa, nervosa consigo mesma. —
Eu estou tão concentrada na minha dor, que nem me lembrei da dela, meu
Deus! Que raiva de mim!
— Shhhhhh, não, nada disso. Nada de culpa — Entrelaço minha mão na
sua. — Você só está triste, Nina. Isso é normal. Mas agora que você
lembrou, vamos descer e cuidar dela também?
[...]
— Obrigada por estar ao lado dela nessa hora, Lorenzo — Dona Branca
segura meu braço com suavidade e uma expressão de gratidão se forma em
seu rosto. Nina está no banho e nós estamos na cozinha, enquanto ela passa
um café novo para nós. — Ela realmente precisa de alguém com ela, e agora
que o Phelipe simplesmente... — Ela para um segundo e balança a cabeça,
como se quisesse espantar o pensamento — Desculpa falar dele, Lorenzo,
que indelicadeza a minha.
Sorrio sem graça.
— Tudo bem, dona Branca — Coloco minha mão por cima da sua e faço
um carinho.
— Eu só não entendo, sabe? Ele sempre foi um menino tão bom — Ela
dá de ombros. — Ele sequer apareceu no velório, Lorenzo, mas mandou o
pai pagar todas as despesas funerárias.
— Ele é um cara legal, só tá meio perdido. E eu acho que ele não
apareceu por vergonha, sabe? — digo, porque sei que essa é a verdade.
Phelipe tem vergonha das coisas que fez, e para ele, é mais fácil se esconder
do que encarar a realidade. — Eu tenho certeza de que ele está sofrendo com

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a dor de vocês. Ele perdeu a razão com a Nina, mas ele ama vocês de
verdade.
— Sim, pensei nisso. Eu amo aquele menino também.
— Na melhor hora, ele vai se tocar de tudo o que fez e pedir desculpas.
— Tomara — Ela ensaia um sorriso que não chega aos seus olhos,
depois se vira para terminar de passar o café. Tomo alguns segundos de
coragem e toco seus ombros com delicadeza.
— Dona Branca, eu quase não tive oportunidade de falar com a senhora,
e eu confesso que não sou tão bom nisso porque não tive muita prática, então
lá vai: eu queria pedir desculpas por tudo que eu já fiz para vocês...
— Ah, filho, tudo bem. — Ela me corta antes que eu termine, porque
sabe que isso é difícil para nós dois, mas eu insisto:
— Não, eu realmente tenho que pedir desculpas. Eu sei que fiz coisas
horríveis, mas eu era um moleque. E quanto a Lorena, eu jamais a deixaria.
Não de propósito. Eu era irresponsável e imaturo, mas não ruim de coração.
Eu jamais viraria as costas pra minha filha, jamais a deixaria morrer quando
eu estava estudando para salvar vidas. Meu juramento seria inútil se eu
fizesse isso, e eu não mereceria vestir o meu jaleco.
Ela toca minha mão com carinho; um carinho que até então eu
desconhecia.
— Eu sei... Nina me contou da conversa de vocês. Confesso que no
começo eu não queria que vocês se reaproximassem, sabe? Mas eu sempre
fui cristã e sempre acreditei que devemos dar uma nova chance... E eu acho
que você merece a sua, como todo ser humano, porque é isso que Deus
espera de nós.
Concordo com a cabeça e sorrio.
— Só não a desperdice, Lorenzo. Não a desperdice e não decepcione a
Nina — Seus olhos se enchem de lágrimas. — Minha filha não merece
sofrer mais do que já tem sofrido.
[...]
Eu nunca tinha feito compras no mercado em toda a minha vida, então,
quando me vi escolhendo morangos na seção de frutas, abri um pequeno
sorriso.
Coisas novas são legais, no fim das contas.
Depois de ter convencido Nina a sair um pouco do quarto, eu a fiz tomar
um banho, colocar uma roupa leve e ir ao mercado comigo. Elas estão quase
sem nada na geladeira, e uma hora ou outra precisam reagir. Enquanto dona

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Branca vai preparando o jantar, decidimos comprar as coisas para o resto da
semana.
Depois de tudo escolhido e devidamente colocado no carrinho, Nina
encaixa seu braço no meu e vamos em direção ao caixa. Ela ainda está
abatida e completamente triste, mas a roupa fresca e o cabelo penteado já lhe
deram um ar melhor, e é isso que ela precisa: se sentir melhor. Quando
perdermos alguém, cada passo é importante, e ela começou a caminhar. Isso
é o que importa.
— Me sinto como se fôssemos um casal, andando assim no mercado, de
braços dados — ela solta, totalmente aérea.
Nos imagino como o casal que nunca fomos. Com uma casa, um carro na
garagem, compras, dois filhos e um cachorro, como Luan Santana gostaria
que fosse, e incrivelmente, sorrio diante disso.
Beijo seu cabelo e solto a pergunta, porque o mundo é dos atrevidos:
— E o que somos? — eu a desafio. — Nós somos ou não um casal,
Nina?
Ela pensa algum tempo, até que responde:
— Duas pessoas tentando se entender e se encontrar, eu acho.
Ela fica um pouco sem graça, mas por mim tudo bem. Eu nunca quis que
fosse fácil.
Eu sequer mereço que seja fácil.
— Está ótimo pra mim — eu digo e empurro o carrinho. — Desde que
eu esteja ao seu lado de alguma forma, está ótimo pra mim.

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CAPÍTULO 35
Phelipe

Rodo o copo entre os dedos novamente. Já fiz esse movimento umas


duzentas vezes, em contrapartida, eu mal pisco. Os pensamentos torturantes
não me deixam raciocinar direito, eu sequer sei qual a hora. Penso durante
alguns segundos, antes de finalmente encher meu copo de novo, mas é claro
que eu iria fazê-lo.
É o que eu sempre faço.
Eu bebo até perder os sentidos.
Exatamente como eu fiz quando o pai da Nina ficou mal na semana
passada e eu não atendi suas ligações. Exatamente como eu fiz quando ela
terminou comigo e eu a expulsei do escritório, me arrependendo
amargamente da merda que eu havia feito no mesmo instante. E o dia
seguinte veio com um adendo: o pai dela faleceu e eu sequer pude dar o meu
apoio, porque eu havia passado dos limites mais uma vez e destruído tudo de
bom que tínhamos. A vergonha e o cansaço físico e mental foram maiores do
que o meu senso e vontade de consertar as coisas.
Ela deve me odiar. Exatamente como eu me odeio.
Cada vez é pior. Eu não controlo mais minhas emoções. Os impulsos de
raiva são instantâneos e me cegam, me tirando completamente a razão, o
senso, o juízo. Quando eu menos percebo, eu já gritei, falei, quebrei coisas.
Já bebi até perder a conta...
É complicado, mas eu preciso admitir: não foi ninguém que me afastou
da Nina. Eu mesmo a afastei de mim.
Fecho meus olhos e penso nela. Aqueles olhos intensos queimam dentro
de mim, fazendo arder tudo, do cérebro até a garganta. Essa sensação ruim
desce um pouco mais, até o estômago, me fazendo querer vomitar, e eu não

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sei se é pela exaustão que sinto, pelo arrependimento que lateja em minhas
veias ou pelo tanto que eu ando bebendo sem comer e sem dormir.
Não sei o que mais pede socorro: meu corpo ou minha mente.
Nina é o tipo de pessoa que pode ver coisas que outras pessoas não
podem, e ela fazia isso comigo o tempo todo, desde que nos conhecemos.
Ela sempre sabia quando havia algo errado. Ela sempre sabia quando eu não
estava bem. Eu passei a vida toda encobrindo e escondendo coisas de todo
mundo, principalmente meus sentimentos, e até hoje, só ela e minha família
conseguiram ver através da fachada que eu cuidadosamente construí. Ela
pôde ver a verdade sobre mim, sempre.
E a verdade é que eu a amo tanto que simplesmente a coloquei para fora
da minha vida, porque não sei lidar com esse sentimento e com o que ele faz
comigo e com a minha cabeça.
O que deu em mim para tratá-la daquele jeito?
Até que demorou muito para ela ver quem eu realmente sou, e constatar,
por si mesma, que eu não sou de forma alguma uma boa companhia.
Sem pensar muito sobre isso, apenas me inclino o suficiente para jogar
o copo que eu segurava direto na parede. Vejo os cacos explodirem no ar e
se espalharem pelo chão, formando pequenos brilhos no escuro.
Eu estou perdendo o controle.
Novamente.
Isso nunca acaba bem.
E por mais que eu tente fugir disso que me cerca, eu sinto cada vez mais
forte. Mais intenso. Mais vivo dentro de mim.
Eu a amo porque ela é incrível. E eu a odeio7 pelo mesmo motivo.
E ela não me quer mais, que inferno!
Eu quero gritar.
Xingar.
Explodir.
Eu quero bater nela e dizer que seu lugar é comigo, que ninguém nunca
será tão bom para ela quanto eu. Quero fazê-la entender, de alguma forma,
que eu fui o que aquele outro nunca foi. Mas eu também quero acariciá-la e
dizer que está tudo bem, que eu vou cuidar dela.
Eu não sei o que eu quero, na verdade.
Eu só quero ficar bem novamente, exatamente como quando éramos só
eu ela. Mas ela simplesmente me virou as costas porque Lorenzo voltou.
Maldito Lorenzo dos infernos.

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[...]
Lembro-me até hoje como foi a primeira visita ao psiquiatra. Eu já
vinha apresentando comportamentos estranhos dentro de casa, mas nada
muito alarmante. Com as pessoas de fora, eu era o doce e sensato Phelipe.
Isso nunca mudava. Mas dentro de casa, explosões de raiva, crises de choro
sem motivo aparente e o vazio constante eram coisas corriqueiras. Por mais
acompanhado que eu estivesse, eu sempre me sentia sozinho, de qualquer
forma. A bebida chegou cedo na minha vida, e muitas vezes eu bebia
escondido, mesmo sendo menor de idade. Eu apenas queria me livrar da
sensação de vazio.
Eu apenas queria me sentir normal.
Mesmo com tudo acontecendo debaixo dos seus olhos, meus pais nunca
pensaram que isso fosse algo preocupante. Para eles, era só uma fase que
passaria em breve.
"Muito estudo... ele está estressado" — meu pai justificava.
"Poucos amigos, ele quase não sai" — minha mãe completava.
E, para agradá-los, eu comecei a andar com os amigos imbecis do
Lorenzo e do Ruan. E como eu passava raiva por isso. Idiotas. Acéfalos.
Infantis.
Eles me irritavam em níveis extremos.
Mas eu sorria e concordava com tudo. Era meu papel.
"Piscina no clube, Phelipe?"
"Opa, claro... vamos lá!"
"Andar de Kart na sexta, Phelipe?"
"Sem dúvidas, estou ansioso"
E assim, por anos e anos, eu fui apenas o doce e pacato Phelipe, mesmo
que por dentro, eu estivesse completamente morto.
[...]
Quando tirei a carteira de habilitação, na mesma semana saí da cidade e
fui para uma festa sozinho, sem nenhum dos imbecis atrás de mim. Lá havia
toda a sorte de bebidas e eu me esbaldei. Era como o grito de liberdade.
Ninguém para me controlar, ninguém para dizer o que eu devia ou não fazer.
Apenas eu, podendo ser quem eu realmente era.
Em um determinado momento, observei uma moça sendo puxada pelo
braço no meio do salão. Continuei acompanhando-a com o olhar, até
conseguir ver que quem a puxava era um cara infinitamente maior do que ela.

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Larguei meu copo no balcão e me enfiei na multidão de corpos. Entre
cotoveladas e pisões, consegui chegar até eles.
— Solta ela — eu disse, já irritado. Quem esse cara pensava que era?
Por que ele não caçava alguém do tamanho dele? O olhar assustado da moça
loira se moveu do rapaz até mim.
— Tudo bem, ele é meu namorado. Estamos só conversando — ela falou
com calma, mas eu sabia que era mentira.
— Ele estava te puxando.
— Sim, ele estava. Aqui está muito cheio, ele só não queria me perder...
Tá tudo bem, moço.
Desci os olhos para seu braço que já estava marcado. Eu sabia que ele a
estava machucando. Eu sabia.
— Não mesmo — virei-me novamente para ele — Solta ela logo.
Ele riu.
— E quem vai me obrigar, você? Cara, ela é minha namorada. Ela já
disse. Vaza, playboy.
Foi nesse momento que eu descobri que havia perdido completamente
o controle de mim.
[...]
Meu pai me buscou na delegacia naquele dia. Pagou as despesas
médicas do garoto – que aparentemente era mesmo namorado da loira que
me fitava com medo do outro lado do hall da delegacia.
"Idiota" — eu pensei. "Continue com esse louco se quer morrer"
Odiava que me contrariassem. E o pior: ela mentiu. Disse que eles não
estavam brigando. Claro que estavam! Eu vi. Eu sei o que vejo.
E eu odeio que mintam para mim.
Depois de jogar toda a minha sujeira para debaixo do tapete, afinal, eu
era um futuro advogado e carregava o sobrenome Medeiros, meu pai decidiu
que era o momento de tomar uma atitude.
— Eu defendi aquela louca e o errado sou eu? Mas que inferno é esse?
Eu não vou à psiquiatra nenhum!
— Ah, mas você vai! Você vai mesmo! — meu pai rosnou, mas depois
suavizou o tom. Ele sabia que algo estava quebrado dentro de mim, e só
precisava de conserto. — Eu só lamento não ter percebido antes que você
precisava de ajuda profissional, Phelipe.
E então eu fui ao maldito psiquiatra. Odiei cada pergunta. Era tudo
ridículo. Ele não me conhecia. Não sabia o que eu passava. Quem era ele

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para dizer o que eu sofria ou deixava de sofrer?
Não tomei os remédios.
Nunca mais voltei lá.
Eu não preciso disso. Não preciso de ninguém.
E quando eu finalmente conheci Catarina, eu entendi: eu não precisava
de ajuda profissional, eu precisava dela.
Apenas dela.

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CAPÍTULO 36
Nina

Lorenzo puxa a cadeira para mim e eu me sento. Logo em seguida, ele


senta-se à minha frente, ajeitando-se e sorrindo. Depois de muito insistir, ele
conseguiu me tirar de casa. Desde que meu pai se foi, ele tem me ajudado
muito. Ele tem ficado comigo, me distraído e – pasmem – até ajudado nas
tarefas simples da casa, como cozinhar. Quem diria, não?
Claro, ele ainda tem reações involuntárias relativas à sua antiga vida.
Ele ainda repara em coisas que não são exatamente caras, às vezes faz algum
comentário maldoso sobre algo e vive reclamando da falta que o dinheiro
tem feito em sua vida, mas eu vejo, a cada dia que passa e a cada gesto dele,
que ele está tentando.
Ele está tentando muito, e é por vontade própria, uma vontade de ser
diferente de tudo aquilo que sempre foi.
Combinamos que hoje seria um dia para não falar sobre o meu pai e eu
concordei. Meus olhos estão cansados de chorar e meu corpo está fraco. O
vestido preto que coloquei para sairmos está sambando em meu corpo,
porque pelo visto, eu emagreci nesses dias.
O restaurante em que estamos serve massas e grelhados. Quando entrei,
me surpreendi com o clima intimista do local. Sempre passava por aqui, mas
nunca havia entrado. Não é caro, é realmente bem acessível, e me
surpreende que Lorenzo o conheça. Apesar da briga que ele teve com os
pais, os dois têm buscado contato. Ligam, imploram, pedem para vê-lo,
querem mandar dinheiro. Ele recusa de pronto, sempre. E cada vez que ele
faz isso, meu orgulho que começou pequenininho, cresce mais e mais.
Quando o pai fez uma transferência indevida, sem a autorização de
Lorenzo, ele foi devolver o dinheiro pessoalmente. Depois, cancelou a conta

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que os pais conheciam e trocou de banco.
Simplesmente não aceita mais nada que venha de lá.
"No dia em que eles mudarem, quem sabe? Mas por enquanto, eu
quero apenas distância." — repete incansavelmente.
Nós não estamos juntos, mas também não estamos separados. É
complicado explicar essa relação doida que estabelecemos. Aquele dia, no
hotel, foi o mais próximo que chegamos de ter algo concreto e carnal, mas
logo em seguida, o chão desabou debaixo dos meus pés e eu perdi
completamente a vontade de qualquer coisa. Eu apenas queria sofrer meu
momento.
E ele entendeu.
Beijamo-nos algumas vezes durante esses dias, mas eram beijos calmos,
com muito mais carinho do que paixão. Era como se ele dissesse, com seus
lábios nos meus, que ele estava ali por mim. Por mais que eu ainda tivesse
medo de que ele simplesmente virasse as costas e fosse embora um dia,
como fez no passado, meu coração, lá no fundo, me dizia que não.
Que ele havia voltado para ficar. E que eu realmente havia sido o
motivo.
— Como você se sente? — ele pergunta, com um sorriso maravilhoso
no rosto, depois de pedirmos nossos pratos. Sinto meu coração derreter
diante daquilo e eu sei que, mais uma vez, Lorenzo me tem.
— Estou bem — digo. — Graças a você.
Ele fica surpreso com essa frase. Acho que não esperava.
E é assim que eu consigo ver que seu carinho é genuíno. Ele não espera
reconhecimento em troca. Ele não espera nada, na verdade. Tudo o que ele
faz, faz porque quer e porque pensa em nós.
— Acho que é o mínimo, não? Depois de tudo que eu te fiz passar... —
ele começa, mas eu o interrompo. Houve uma época em que eu iria querer
relembrar, tocar na ferida até fazê-la sangrar. Fazer perguntas. Exigir
explicações.
Hoje, eu quero apenas superar. Seguir em frente. Estar com ele.
Certas coisas não precisam de explicações, mas sim de entendermos
com nosso coração. A volta de Lorenzo é uma dessas coisas.
— Isso ficou no passado, não temos que falar mais disso, Lorenzo.
Ele procura minha mão sobre a mesa e a aperta.
— Sim, nós temos. Nós temos que falar sobre isso. Eu, pelo menos,
tenho que falar sobre isso, senão vou explodir, Nina.

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Olho em seus olhos por um segundo e entendo. Falar o que é necessário
ser falado é importante para ele. É um ponto final para nossas versões
antigas e um novo começo para nós. E se isso significava um novo começo,
eu iria ouvir.
Porque eu quero um novo começo.
— Se é assim... Estou ouvindo — digo e seu rosto se ilumina.
Ele limpa a garganta antes de começar:
— Eu sei que o que você passou aqui foi mil vezes pior do que qualquer
coisa que eu já tenha passado em toda a minha vida. Mas na Alemanha, as
coisas também não foram fáceis pra mim, Nina. Não como as pessoas
pensam, sabe? Eu só tinha a Malu lá, eu não conhecia nada, ninguém. No
começo foi festa, curtição e eu realmente aproveitei, não vou mentir. Mas
depois de um tempo, seu rosto me visitava toda noite, e eu comecei a sofrer
dia após dia pelo mal que eu havia te feito. Eu não dormia à noite pensando
em como eu havia te deixado.
Não digo nada, apenas abaixo a cabeça.
— Eu sei que eu deveria ter sido homem e ter terminado com você de
uma forma decente, mas é aí que está a questão: eu não era um homem. Eu
aprendi a ser um homem lá fora, longe de tudo o que eu conhecia. Longe da
família, dos amigos, de você. Eu sempre te amei, Nina. Eu só não sabia
disso. Não soube reconhecer um sentimento que nunca me fora apresentado,
não antes de você. E eu precisei sofrer como um cão, sentindo a sua falta,
para entender.
Suspiro, tentando controlar a lágrima que quer descer pelo meu rosto.
— Quando eu decidi voltar para o Brasil, eu sabia tudo que eu deixaria
para trás. Eu só não sabia o que eu encontraria aqui, entende? E eu vim
mesmo assim, no escuro. Meus pais diziam não ter informações sobre você,
e eu sequer sabia se você ainda estava na cidade. Eu não sabia se você tinha
alguém, se estava casada... Mas Nina, eu precisava ouvir a voz do meu
coração.
— E o que seu coração dizia? — pergunto, a voz quase inaudível.
— Ele me dizia a todo instante que era de você que eu precisava — Ele
aperta de novo a minha mão. — Eu sabia que eu ia encontrar você. Eu não
sabia como, mas eu ia. E foi tão rápido. Como se o destino quisesse
finalmente colocar a gente frente a frente novamente. Como se ele dissesse:
"se resolvam logo!" — Ele ri, lembrando nosso primeiro contato depois de
tantos anos. — Eu até imaginava que iria te encontrar na defensiva, porque a

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maneira como eu te deixei foi horrível. Eu sinto nojo só de lembrar o que eu
te fiz. O modo como te tratei, as palavras que eu usei... Você me deu tanto
amor, tanto carinho. Você me deu sua inocência e eu te dei as costas quando
você mais queria que eu tivesse ficado. Mas Nina... — Ele olha dentro dos
meus olhos e eu seguro o ar por um momento. — Eu te amo. Eu te amo, e
hoje eu sei disso mais do que nunca. Eu jamais conseguiria continuar naquela
vida sem você. Porque nem todo luxo, nem todo o dinheiro, nem todo o
reconhecimento me fariam esquecer que um dia eu tive a pessoa mais
incrível do mundo comigo e não lhe dei o devido valor. Nada pagaria a
minha paz, Nina.
Deixo rolar a lágrima que estava presa em meu olho.
— Então... Eu... Eu queria apenas uma chance. Uma última chance de te
mostrar que eu posso ser diferente. Não perfeito, Nina. Eu nunca serei um
príncipe, não é da minha índole e eu fui criado de uma forma muito torpe. Eu
sempre terei resquícios em mim, mas eu sou sincero agora... E eu te amo o
suficiente para te garantir que eu vou tentar, mais do que tudo, e que eu
sempre vou ser sincero com você. Por você eu me transformo, eu me
reinvento. Nina, por você eu me reconstruo. Eu juro, por nossa filha, que não
vou te decepcionar.
— Não precisa... — eu começo a falar e ele se assusta, achando que
aquilo é um "não" da minha parte, quando, na verdade, é o maior "sim" que
eu poderia dar à alguém: — ...você não precisa se reconstruir, porque eu
gosto de você exatamente assim, Lorenzo. Acho que nunca deixei de gostar.
Eu sempre te amei incondicionalmente, mesmo que eu não admitisse isso
nem para mim mesma. Eu não admitia nem para minha própria sombra, mas,
nos meus momentos mais difíceis, eu desejava você ao meu lado... Do jeito
que você tem ficado agora.
Seus olhos se iluminam.
— Então isso é um sim? Um sim pra nós dois? — ele me pergunta,
quase sem acreditar.
Eu balanço a cabeça positivamente, e quando ele se inclina sobre a
mesa e me beija, eu falo entre seus lábios:
— Isso é um sim pra nós dois.
[...]
Voltamos cedo para casa. Eu queria estar com ele, e implicitamente, isso
ficou entre nós. No carro, ele me beijou com tanto amor e desejo que parecia

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que eu iria explodir. Minhas pernas viraram gelatina, e por um momento, eu
quase não consegui respirar.
Entramos em casa quietos. Minha mãe já dorme e a casa está toda
escura. A roupa de cama de Lorenzo já está arrumada no sofá da sala, como
minha mãe sempre deixa. Ela já o havia aceitado aqui, mas como não sabe
bem para que lado vai a nossa relação, ela sempre deixa assim. Ela não é
careta, é apenas reservada, e queria preservar nossa intimidade.
De mãos dadas, paramos ao pé da escada. Ele me enlaça pela cintura e
mais uma vez me beija, aquecendo meu corpo por dentro, despertando
sensações que eu não sentia há muito tempo. Elas são ainda mais fortes do
que no dia do hotel. É um misto de desejo, felicidade e amor.
Tudo tem um gosto de recomeço.
E, talvez pela primeira vez na minha vida, as coisas finalmente estão em
seu lugar. Meu coração, principalmente.
— Minha cama na sala já está arrumada — ele murmura contra minha
boca, mordendo o canto e me provocando —, acho que vou me recolher aos
meus aposentos.
Sorrio.
Eu sei o que ele espera que eu diga.
Mas eu não vou dizer, só pra ver sua carinha de cachorro que caiu da
mudança.
— Sim. Também vou subir — falo calmamente e vejo seu sorriso
morrer, mesmo que ele tente disfarçar. Cavalheirismo é uma das matérias
mais difíceis que o novo Lorenzo Leone está treinando, e ele está se saindo
muito melhor do que eu esperava. — Boa noite, Lorenzo.
— Boa noite... — ele responde, ainda meio perdido com minha reação.
Acho que ele não está entendendo nada.
Eu quero muito rir. Subo mais dois degraus, e quando me viro, ele está
indo em direção ao sofá, quietinho, sem reclamar.
Adoro a nova paciência que ele adquiriu, mas desisto da brincadeira,
porque, pelo jeito, a mais nova impaciente sou eu.
— Lorenzo? — eu o chamo e ele se vira, já começando a desabotoar a
camisa azul, deixando uma parte do seu peito definido à mostra.
— Oi, minha linda — seu sorriso e sua resposta são inocentes, e isso
faz meu coração arder com a certeza de que eu fiz a escolha certa. Nenhum
sorriso foi capaz de despertar tão boas sensações em mim como o dele.

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Eu pisco, sorrindo, me sentindo sensual como nunca me senti antes. O
sorriso que eu recebo em troca é tão grande, branco e maravilhosamente
quente que eu desisto de qualquer joguinho.
— Vem terminar de tirar essa camisa aqui em cima.

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CAPÍTULO 37
Lorenzo

Envolvo Nina em meus braços e subo as escadas assim, abraçando-a


por trás, enquanto minha boca inquieta beija seu pescoço desnudo.
Sua cintura fina cabe praticamente em minhas mãos e suas costas estão
grudadas ao meu peito. Somos praticamente um nessa posição, inteiramente
fundidos. Nossas peles se tocam, enviando arrepios pelas minhas costelas,
ombros e barriga. A necessidade que sentimos um do outro é tão grande que,
por todo o caminho – que apesar de curto, me parece uma eternidade – ela
se vira e nos beijamos diversas vezes. Minha boca se reveza entre seu
pescoço, seu ombro e sua orelha, onde eu mordo, lambo e provoco, fazendo-
a soltar gemidos baixinhos.
Ela está totalmente entregue, e sinceramente, não há sensação melhor no
mundo. Tenho vontade de tocar cada centímetro de sua pele, beijar sua boca,
sentir seu cheiro, puxar seus cabelos, tudo ao mesmo tempo.
Quando chegamos ao quarto, ela se afasta para tirar os sapatos. Pode
parecer uma besteira sem tamanho, mas a cena dela se desfazendo deles é a
coisa mais sexy que eu presenciei em anos.
Quando ela balança os pés, jogando os sapatos cada um para um lado,
eu baixo os olhos para suas coxas bem delineadas. Seu corpo está
espetacular, e muito diferente desde que nos amamos pela primeira e única
vez. Naquela época, apesar de linda, ela era ainda muito nova. Quase uma
menina.
Hoje ela é um mulherão.
E é minha novamente.
Dá pra ter mais sorte do que isso?

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Decido acabar com a distância entre nós e vou até ela. Puxo-a ao meu
encontro, enlaçando-a pela cintura novamente. Minha boca envolve a sua
num beijo que só pode ser descrito como tórrido.
Pertencimento.
É a única forma de descrever a onda de sensações que me invade
quando nossos corpos finalmente se juntam. Seus lábios pertencem aos meus,
e nunca deveria ter deixado de ser assim, nem mesmo por um único dia, que
dirá oito anos. Suas mãos seguram meu rosto e um calor me inunda, enquanto
seus polegares acariciam meu queixo. Nina me beija com um contraste
chocante de ternura e sede, muito melhor e maior do que eu jamais poderia
imaginar acontecer novamente. Minha boca devolve suas carícias, cada vez
com mais exigência. Ela corresponde grudando seu corpo mais e mais no
meu, soltando curtos gemidos e longos suspiros.
Catarina é simplesmente a perfeição.
Seu peito sobe e desce rapidamente, em uma respiração ofegante, e seu
olhar cai sobre minha boca, parando ali por alguns segundos.
Então ela morde os lábios, e todo meu autocontrole se esvai.
Encaixo com força uma das minhas mãos em sua nuca, prendendo meus
dedos entre seus cabelos. Fecho-os com força entre as mechas e puxo-a para
mim, beijando-a com mais força, com mais exigência, com mais vontade.
Preocupo-me se estou sendo bruto, mas não consigo tocá-la de outra forma
depois de tantos anos longe de seu corpo.
— Lorenzo... — ela geme de olhos fechados, entorpecida, e eu sorrio.
Saber que eu consigo deixá-la tão derretida assim depois de tudo o que
aconteceu entre nós é quase um prêmio para mim, mas não da forma ruim. É
quase como um prêmio que diz: parabéns, você venceu a si mesmo e à sua
babaquice. Você é, finalmente, um homem digno dela.
— Eu te quero tanto, tanto... — Mudo meus lábios de posição, tocando
seu pescoço, mordendo ali, então desço mais, empurrando de leve as alças
de seu vestido com minha própria boca. Vou descendo a boca junto com a
alça, contornando seu braço, fazendo a seda deslizar. Repito o processo dos
dois lados, até que o vestido não resiste e cai aos seus pés.
É a visão mais incrivelmente linda que eu já pude presenciar.
Sem sutiã, apenas com uma calcinha preta por baixo do vestido, minha
Nina parece a porra de uma deusa. Sua pele branca contrasta com a cor da
lingerie e seu cabelo loiro cai em mechas curtas e onduladas, tocando sua
nuca.

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Eu não precisaria ter ido para o céu nenhuma vez para saber que ela é a
própria visão dele.
— Eu também te quero — ela diz, olhando em meus olhos com um
sorriso mais do que sedutor. — Te quero dentro de mim.
Ao ouvir isso, eu não me importo com mais nada: não me lembro do
passado, não me lembro de onde estamos ou que estamos tentando
recomeçar. Eu só quero atender seu desejo, eu só quero estar dentro dela,
fazendo exatamente o que ela quer que eu faça. Sendo totalmente dela.
Eu nunca senti nada sequer parecido em toda a minha vida.
Ela termina de desabotoar minha camisa sem a menor paciência,
jogando-a pelo quarto. Suas mãos pequenas acariciam meu peito e descem
pela minha cintura até encontrar a barra do meu jeans. Então ela ri, desliza
por dentro dele e, com um único movimento, estou apenas em minha boxer.
Ela me olha com admiração por um breve segundo, mas é todo o tempo
que eu dou a ela.
Um segundo.
Um segundo, antes de puxá-la para o meu colo.
Encaixo suas pernas ao redor de minha cintura, conectando-a a mim.
Roço meu volume nela, deixando apenas o contato de nossas roupas de baixo
falar por si só. Seu pescoço pende para trás, me dando acesso livre à pele
delicada. Seus seios nus esfregam em meu peito e eu sinto o desejo crescer
em mim cada vez mais, enquanto continuamos nesse contato sensual.
Jogo-a na cama com um pouco mais de força do que eu esperava e me
arrependo logo em seguida. Eu estou perdendo a porra do controle.
— Nina, desculpa... — Me inclino sobre ela e ela ri, colocando o dedo
em minha boca, descendo-o em seguida pelo meu pescoço, traçando minha
pele com voluptuosidade.
— Sem desculpas — ela fala, me surpreendendo. — Não precisa ser
delicado. Eu te quero assim, sem controle.
E é o suficiente para, segundos depois, sua calcinha estar no chão junto
com todas as outras peças.
[...]
Segurando meus quadris, ela me puxa para cima de si, pedindo por
contato. Observo seu rosto rosado, seus cabelos espalhados no lençol, seus
olhos lindos, abertos e me encarando. Sinto a maneira como cada um de seus
dedos me aperta, o calor de sua boca e a vibração de cada gemido
encorajador.

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Isso é muito bom. Bom demais.
— Ainda não — digo ofegando, mas conseguindo me afastar de algum
jeito. Corro meus dedos por seus lábios, desenhando seus contornos,
pensando em mil coisas que farei com essa boca hoje e como eu quero fazer
cada uma delas, até não termos mais forças ao raiar do dia.
— Vire-se. Quero você de quatro — meu tom sai dominador, exatamente
como eu estou acostumado a ser, mas ela parece não se importar. Nina quer
de mim exatamente o mesmo que eu quero dela. Teremos várias e várias
noites para fazer tudo de todos os jeitos, mas hoje, o desespero, o tesão, a
vontade, e principalmente a saudade ganharam de lavada.
Ela faz o que pedi, olhando por cima do ombro enquanto eu me
posiciono atrás dela. Morde o lábio em expectativa e essa cena quase me faz
gozar. Tenho que pensar em todos os tipos de distrações enquanto pego a
camisinha e rasgo a embalagem, vestindo-a imediatamente.
Quando já estou pronto, aliso sua bunda perfeita, admirando sua pele
branca pouco antes de finalmente matar nosso desejo. Agarro seus quadris e
guio meu pau até sua entrada, entrando devagar, sentindo-a centímetro a
centímetro antes de penetrar fundo.
Quando isso finalmente acontece, depois de nos tocarmos por um longo
tempo, sinto o quanto ela está preparada. Tão entregue, suada, linda... e seu
cheiro paira sobre nós, me fazendo não querer parar isso nunca.
Sua cabeça cai para frente quando me sente inteiro dentro de si,
escondendo seu rosto da minha vista, mas isso não pode ficar assim. Estico
os braços, entrelaçando meus dedos em seus cabelos curtos como posso,
então puxo os fios, trazendo sua cabeça de volta.
Ela ofega, com olhos arregalados de surpresa e desejo.
— Que saudade — digo, recuando levemente e entrando de uma vez, o
choque do meu corpo fazendo o dela tremer. — Porra, isso é perfeito.
Ela lambe os lábios, assentindo o melhor que pode, enquanto aliso suas
costas com minhas mãos.
— Você gosta disso? — pergunto, entrando mais forte. — Eu só quero
fazer o que você gosta, então me fala.
Ela murmura um sim cheio de tesão, me fazendo fechar os olhos e
continuar, exatamente como ela pede.
Aumento a velocidade e abro os olhos novamente, porque não assistir a
isso é quase um pecado, então eu observo-a com admiração. Claramente, ela
está me deixando liderar, dominar, tomar o que quiser. Minha mente continua

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pensando, tentando imaginar como eu posso excitá-la mais e mais, como
posso deixá-la tão louca de desejo essa noite quanto eu me sinto em relação
a ela todo esse tempo.
E enquanto eu a admiro, percebo uma coisa: ela é perfeita.
Perfeita. Pernas perfeitas, barriga perfeita, bunda perfeita. Eu amo cada
mínimo pedaço dela.
E os seios...
Em meus sonhos, eu já havia feito de tudo com eles: beijado, tocado,
acariciado, mordido.
Porém, eu jamais imaginaria que apenas olhá-los me faria tão completo.
Mas ela não é perfeita só por isso; ela é perfeita porque eu a amo.
Porque eu amo todas as suas marquinhas e imperfeições; eu amo as
cicatrizes que sua gravidez deixou, eu amo a gordurinha na cintura que é
quase invisível, mas que ela reclama toda vez que coloca uma roupa mais
apertada. Eu amo as sardas em seu nariz e bochecha, amo seu quadril largo
que ela insiste em achar que é um defeito.
Eu amo e admiro o todo que ela é.
Minhas pernas começam a arder, e o prazer negado por anos começa a
se espalhar por todo o meu corpo, mesmo que eu tente com tudo de mim
desacelerar a sensação. Sinto uma pressão se acumulando em minha barriga,
então inclino-me para frente, envolvendo sua cintura com meus braços para
mudar nossa posição. Viro-a, colocando-a debaixo de mim e entrando
novamente nela, sem perder um segundo sequer. Sempre disseram que sexo
com amor e saudade é o melhor deles, mas eu nunca havia experimentado.
Não até hoje. E eu posso comprovar, por mim mesmo, que nunca estiveram
tão certos sobre algo: Essa é a melhor noite da minha vida.
Levo minha boca até tocar um de seus seios levemente. Ela arqueia as
costas e geme quando minha língua toca a pele sensível. Aprofundo o beijo e
me movo ainda mais rápido dentro dela.
Nossos corpos se encaixam com perfeição.
Com uma rápida olhada, vejo seu rosto corado. Seu corpo está trêmulo e
sua boca se abre e fecha quase involuntariamente, buscando por ar. Estamos
nisso há muito tempo e nenhum dos dois se cansa.
Ambos queremos mais e mais um do outro.
— Você é minha — digo, me afundando mais nela, exigindo sua boca
com a minha. — Você é só minha e eu sou seu, de corpo e alma. Eu nunca
mais vou te deixar. Eu nunca mais vou cometer esse erro.

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Ela não responde, mas sorri de olhos fechados. E eu sei que isso, mais
do que qualquer coisa, quer dizer que sim, ela sabe.
[...]
Nossos corpos cobertos por uma fina camada de suor denunciam como
estamos exaustos. Intensifico meus movimentos dentro dela e suas mãos vão
direto pro meu cabelo, apertando, puxando, exigindo.
Volto os olhos para seu rosto enquanto, em transe, ela diz meu nome,
várias e várias vezes. Tudo parece quente, elétrico e intenso demais, com
meu coração batendo violentamente dentro do peito.
— Por favor... — Nina pede, e eu sei exatamente pelo que ela implora.
Desço minha mão por sua barriga, lentamente, tocando-a em seu ponto
de prazer em seguida, louco para lhe proporcionar isso, talvez pela primeira
vez, já que em nossa única noite eu tirei sua virgindade, e a primeira vez não
costuma ser boa, principalmente para as meninas.
— Lorenzo — ela pede com a voz dolorida: — Por favor, amor, não
para.
Ouvi-la me chamando de amor é o suficiente para que eu perca o
controle e desista de prolongar mais essa tortura.
— Nunca, meu amor... Eu não vou parar nunca. Eu voltei e eu não vou te
deixar nunca mais. Eu te amo, Catarina. Porra, como eu te amo — sussurro
em seu ouvido, e toda a minha verdade é o suficiente para assisti-la se
quebrar debaixo de mim instantes depois.

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CAPÍTULO 38
Nina

O sol está começando a nascer, e um brilho quente entra pela janela do


quarto, me despertando. Mexo-me devagar, tomando cuidado para não
acordar Lorenzo, que dorme espalhado na minha cama como se fosse o dono
do lugar. Sorrio ao observar a cena, porque eu nunca quis tanto que alguém
fosse dono de tudo, inclusive do meu coração.
Com cuidado, me aninho em seu braço, encostando levemente minha
cabeça em seu peito. Quero apenas sentir seu calor, estar próxima a ele. Pela
primeira vez, me sinto feliz como não me sentia há meses. Instintivamente
seu braço me aperta, trazendo-me para mais perto, como se me protegesse.
— Bom dia, Cinderela — ele suspira, se virando para mim e beijando
meu cabelo.
Sorrio, porque isso é mais do que eu poderia esperar de nós dois.
— Achei que você estivesse dormindo — eu digo, levando minha mão
até seu cabelo. — Ainda é muito cedo, volta a dormir.
— E perder qualquer minuto com você? Não, obrigado, eu já perdi
tempo demais. Por mim, a partir de hoje eu acordo todo dia de madrugada.
Rio novamente.
— Exagerado.
— Só por você e com você. — Ele me beija na boca e me puxa para
ele, fazendo meu corpo relembrar cada mínimo toque da noite anterior.
[...]
— Vou tomar um banho. — Ele beija minha testa e se desvencilha de
mim, seu corpo grande ganhando o quarto. Sua silhueta se move e eu consigo
admirar essa cena de canto de olho, deitada em cima do meu próprio braço.

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Ele pega uma toalha em meu guarda-roupa, e caminha enrolando a mesma em
sua cintura, me privando da visão deliciosa de seu corpo. Ele é tão alto e tão
terrivelmente bonito que meu estômago se contorce e se embrulha, como se
um milhão de borboletas batessem asas dentro de mim.
Suas roupas estão todas espalhadas pelo meu quarto e eu me pego
sorrindo ao ver isso, enquanto me aninho ainda mais dentro dos meus
lençóis. Jamais pensei que viveria isso novamente, mas foi mil vezes melhor
do que a primeira vez, porque, dessa vez, eu senti que nós dois estávamos lá,
de corpo, alma e coração. Eu me senti completa, plena e incrivelmente
amada.
Eu sei que eu teria mais de um milhão de motivos para não dar uma
chance a ele, caso eu os procurasse.
Mas eu quis dar essa chance. Meu coração quis.
E se um dia eu me arrepender dessa decisão, eu terei que lidar com isso
sozinha, mas eu lidarei de cabeça erguida, sabendo que ouvi o meu coração.
Porque o amor é isso: é cair, levantar e cair novamente, aprendendo com
cada queda novas formas de se manter em pé.
O amor é um poço especialmente fundo, mas quem tem coragem de se
arriscar, encontra água cristalina lá embaixo.
Estou me arriscando, e espero não morrer de sede.
[...]
— Você tá preparado? — pergunto a Lorenzo. Estamos parados em
frente ao cemitério, de mãos dadas. Lorenzo traz na outra mão um pequeno
vaso de florezinhas amarelas que comprou a caminho daqui.
Depois de muito tempo, estou cumprindo minha promessa de trazê-lo ao
túmulo de Lorena. Ela está enterrada onde meu pai agora também descansa, e
ao mesmo tempo em que meu coração dói por saber que as duas pessoas
mais importantes da minha vida agora estão juntas nesse lugar, ele também se
aquieta pelo mesmo motivo. Sei que, em algum lugar e de alguma forma, os
dois me amam e olham por mim.
Apesar de Lorenzo ter visto o nome de nossa filha na placa no dia em
que enterramos meu pai, achei que ele deveria ter um momento apenas para
visitá-la, sem qualquer outra coisa como foco. Quando pegamos a viela em
direção ao local, meu coração se aperta a ponto de fazer as lágrimas
começarem a descer.
— Amor... — Lorenzo me para no meio do caminho. — Se você não
estiver bem, eu posso fazer isso sozinho, ou podemos voltar pra casa, você

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quem sabe. Teremos tempo para isso. Eu só não quero te ver mal. — Ele me
dá um olhar compassivo, cheio de sinceridade, mas eu nego rapidamente.
— Não. Eu realmente quero que você tenha esse momento. Você e ela
merecem esse encontro. — Sorrio de forma forçada e ele beija o topo da
minha cabeça, sabendo, no fundo, no fundo, o quanto eu estou me esforçando
para que ele possa fazer isso.
— Tudo bem, então — ele concorda, porque, de certa forma, sabe que
isso também é importante para mim. O encontro dos dois, mesmo que dessa
forma, será minha maneira de finalmente entender tudo o que houve e colocar
de vez uma pedra em nosso passado doloroso.
Quando finalmente paramos em frente ao túmulo, Lorenzo se ajoelha e
delicadamente coloca o vasinho na pedra de mármore. Faz o sinal da cruz e
por um tempo fica ali, apenas olhando para aquela pedra, como se
conversasse com ela. Uma lágrima escorre tímida pelo seu rosto, e por mais
que eu queira correr e colhê-la com a ponta dos dedos, sei que ele precisa
disso. Precisa sentir a dor. Precisa se resolver com seu eu anterior.
— Oi filha... — ele começa, depois de um tempo em silêncio, e eu me
surpreendo. — Eu sou seu pai. Eu sei que você não me conheceu quando
deveria conhecer — ele funga, tentando controlar as lágrimas —, e eu sei
que não te peguei no colo como todo pai deveria fazer quando seu filho
nasce, mas eu queria que você soubesse que não foi minha culpa, não
totalmente, pelo menos. Eu queria muito ter te conhecido. Queria muito ter
apertado seus dedinhos, queria muito ter beijado seus pezinhos... — Ele faz
uma pausa para limpar o rosto, mas logo continua: — Mas você teve a
melhor pessoa ao seu lado para fazer isso, e mesmo sem saber, eu escolhi a
melhor mãe para você...
Sorrio e me posiciono atrás dele, afagando suas costas, enquanto as
palavras saem de sua boca em torrentes de emoção. Por longas horas, ele
fala tudo o que precisa para ficar em paz com nossa filha e, principalmente,
consigo mesmo. Pede perdão, explica muitas coisas, faz uma oração, lhe
promete um irmão ou irmã. E também promete que nunca mais me
abandonará. Depois, ele conversa com meu pai e fazemos também uma
oração para ele, pedindo para que ele cuide de nossa Lorena com todo seu
amor de avô.
E por um segundo, eu me dou conta de algo: Deus, em sua infinita
bondade, me deu uma segunda chance de conhecer Lorenzo Leone.

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Eu estou conhecendo-o novamente, porque tudo nele é encantadoramente
novo.
E a cada gesto, eu me apaixono mais e mais.
[...]
Entramos no café onde eu trabalhava e Mariah corre ao meu encontro.
Quando ela vê Lorenzo, seu sorriso morre na hora, mas eu a acalmo com o
olhar e ela entende que depois conversaremos sobre tudo isso, tudo o que
está acontecendo entre nós. Mesmo mudando de profissão, vivo visitando-a,
e ela sempre soube de todos os detalhes da minha vida. Com certeza deve ter
um ódio mortal de Lorenzo, mas logo eu conserto essa situação, explicando a
verdadeira história. Provavelmente, vou ter que fazer isso com muita gente
que encontrarmos ainda.
— Acho que a Mariah ainda me odeia — Lorenzo ri, sem graça, quando
nos sentamos, praticamente adivinhando meu pensamento.
— Ela só sabe a metade da missa. — Dou risada e pego em sua mão. —
Depois eu a coloco a par de tudo e situação resolvida. Mariah sabe ser
muito compreensiva, Lorenzo.
— Tudo bem — ele concorda com um sorriso. — Se você está dizendo.
— Eu estou, confie em mim. — Junto meus lábios do jeito que eu faço
sempre que quero convencê-lo de algo.
— Sempre — ele se inclina e beija o bico que eu faço, como eu já
previa.
Pedimos nossos cafés e ficamos ali, jogando conversa fora, como um
casal de namorados qualquer. Quem nos vê agora, jamais imaginaria toda a
bagagem que carregamos, toda a história que já vivemos e todo o sofrimento
que compartilhamos.
Nós conversamos, fizemos planos, rimos um para o outro e
principalmente um do outro. E a cada vez que eu olho nos olhos dele ou o
ouço me chamando de meu amor naturalmente, eu tenho mais certeza de que
eu estou no caminho certo, mesmo esse caminho sendo longo e difícil.
Sei que é certo estarmos juntos. Sei que é certo seguir em frente com ele
ao meu lado. Sei que a segunda chance não será desperdiçada.
E como eu sei? Bem, eu não sinto mais vontade de olhar para trás. Não
sinto mais vontade de olhar para o passado. Não acho que o ódio me faz
falta, nem que ele me ajudou, nesses anos todos, a suportar a dor da falta que
minha filha me faz. Pelo contrário, ele me consumiu como uma ferrugem, e

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agora eu entendo que só o amor é capaz de curar feridas. O ódio só as piora,
só as abre mais e as faz sangrar.
Não é o tempo que cura a dor. É o amor, nada mais.
O problema é que depois de Lorenzo me beijar docemente nos lábios,
seu olhar se petrifica em direção às grandes janelas de vidro do café, e eu só
entendo depois de me virar e também encarar o que ele vê.
Eu não olho mais para o meu passado, mas meu passado olha
diretamente para mim, e não é de uma forma boa.
Na calçada, atrás das grandes janelas de vidro, eu posso ver a mágoa
naqueles grandes olhos castanhos, olhos que eu tanto amei e ainda amo, de
uma forma ou de outra. A mesma mágoa por algo mal resolvido que eu
carreguei por anos em meus olhos, agora se reflete na pessoa que eu ainda
vou lutar muito para que continue em minha vida, mesmo sabendo o quão
difícil será.
Parado ali, Phelipe me encara com ódio mortal.

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CAPÍTULO 39
Lorenzo

No momento em que vejo Phelipe parado do lado de fora da cafeteria,


eu tremo dos pés à cabeça. Um milhão de pensamentos surgem em minha
mente no mesmo segundo e eu fecho a cara na hora. Não que eu tenha medo
dele ou coisa que o valha, nada disso. A questão é que eu temo o que ele
pode tentar fazer contra Nina. O que Phelipe tem é algo que pode ser
facilmente controlado, desde que haja um tratamento adequado, mas não há.
Ele não aceita ajuda vinda de ninguém, e sua distorção, raiva e rancor do
mundo crescem cada dia mais.
Quando Nina se vira e o encara também, tenho certeza que ela pedirá
para irmos embora ou para o ignorarmos, já que desde o dia em que ele a
despediu eles não têm qualquer contato, e ele nunca se preocupou em ir atrás
dela, mesmo com a morte de seu pai, mas a reação dela me surpreende.
Antes que eu possa sequer pensar em qualquer coisa, ela se levanta, disposta
a ir até ele.
— Nina? Aonde você pensa que vai? — Eu a seguro pelo braço e
encaro seus olhos assustados, e ela me devolve o olhar, me dando um aviso
silencioso de que eu a deixe fazer o que precisa ser feito.
— Eu preciso falar com ele, Lorenzo — suas palavras saem calmas,
mesmo que ela mesma não pareça estar.
— Não! Você não precisa! — Me levanto, segurando seu pulso e
fazendo-a sentar-se novamente. — Você não vai chegar perto dele.
— Lorenzo... Você não entende! — Ela coloca as duas mãos no rosto,
chateada, irritada. — O que ele vai pensar? Que eu o traí! Eu não posso
deixar que ele pense que eu o usei, Lorenzo...

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— Nina, ele vai pensar o que ele quiser pensar, não importa o que você
diga! Você que não entende! Nada do que você fale vai mudar o que ele acha
que é verdade. — Olho diretamente em seus olhos, fazendo com que ela
entenda. — Ele precisa de ajuda médica, não de explicações.
Ela está completamente agoniada.
— Eu sei! Mas ele também precisa de amor, e não de julgamentos! Eu
quero tanto ajudá-lo... O Phelipe sempre foi tão bom para mim. O que ele fez
nos últimos dias só prova que ele precisa de ajuda. Ele não precisa da minha
mágoa ou do meu desprezo. Ele precisa de uma amiga — ela fala, e de todo
meu coração, entendo o ponto em que ela quer chegar. Apesar de eu também
pensar dessa forma, Phelipe nunca aceitará Nina apenas como uma amiga,
ainda mais ela estando comigo agora.
— Eu sei, Nina. Mas a gente precisa pensar em como vai fazer isso.
Não é qualquer abordagem que vai convencê-lo, entende?
Ela suspira, balançando a cabeça em sinal positivo.
— Você tem razão. — Ela olha para trás, em direção a ele novamente.
— É que... Pensar que ele está sofrendo, Lorenzo... Vai interferir diretamente
na minha felicidade, no meu sono, na minha vida toda. E isso inclui você. —
Seus olhos penetram nos meus como se ela se explicasse pelo que irá dizer
em seguida: — Eu não posso ser feliz sabendo que o estou fazendo infeliz.
Não posso e não vou. Eu preciso resolver isso.
— E nós vamos, amor. Eu vou te ajudar, tudo bem? Eu também sei que o
Phelipe é um cara legal, apesar de tudo. Vai dar tudo certo. — Antes que eu
consiga terminar a frase, Phelipe entra no café com a mesma expressão de
ódio nos olhos; ele nem disfarça. Ele vem em nossa direção, passando
apressado entre as mesas e chegando finalmente à nossa. Sua voz é alta e ele
chama a atenção das pessoas à nossa volta.
— Eu sabia! — Ele olha diretamente para ela, ignorando minha
presença. — Foi só esse filho de uma puta voltar para você não pensar duas
vezes em me largar e correr pros braços dele.
— Lipe... — ela começa, mas ele bate na mesa violentamente, fazendo
ela fechar os olhos de susto.
— Não me chama assim! — ele grita, assustando as outras pessoas. —
Você perdeu o direito de me chamar assim quando escolheu esse cara. — Ele
aponta o dedo para mim, mas sequer move seu rosto em minha direção.
Eu levanto e me posiciono ao lado dela, deixando claro que ela não está
sozinha e que ele não pode fazer o que quiser, como quiser. Sei que ele não

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está bem, mas ele ainda tem consciência do que faz. Ele precisa se controlar.
— Que merda você pensa que tá fazendo, Phelipe? — falo olhando em
seus olhos. — Gritar com uma mulher desse jeito? Porra, nem parece o cara
que eu conheço!
Ele mal me olha, mas gargalha, como se eu tivesse contado uma piada
muito engraçada.
— Olha quem tá falando! O sujo falando do mal lavado! Eu acho que é
disso que ela gosta, no fim das contas. — Ele se volta para Nina, cheio de
ódio. — Ela gosta de caras que a abandonam... Que a deixam com uma
criança morrendo nos braços...
— Chega! — Perco a paciência, o empurrando com força até ouvir suas
costas baterem no chão. Logo em seguida, aponto meu dedo com raiva em
seu rosto, me esquecendo do que tinha acabado de falar sobre ajudá-lo,
afinal, eu tenho sangue nas veias. — Eu já estou perdendo a porra da minha
paciência com você, Phelipe — praticamente cuspo as palavras enquanto
Nina tenta me tirar de cima dele. — Eu já te avisei uma vez, e eu juro por
Deus, essa vai ser a última: nunca mais fale da minha filha! Nunca mais, tá
entendendo?
— Para Lorenzo! Para! — ela finalmente consegue me tirar de cima
dele, me puxando para trás, tentando proteger não a mim, mas a ele —
Phelipe, vai embora daqui, por favor.
— A gente precisa conversar, Catarina — ele diz enquanto se levanta.
— Eu concordo — ela fala, se aproximando dele. Minha respiração
ainda está pesada, rápida, e eu posso muito bem quebrar a cara dele ao
mínimo movimento equivocado que fizer — Eu sei que precisamos. Mas não
assim, Phelipe. Não agora.
Com a proximidade dos dois, o olhar de Phelipe muda, indo do
completo ódio à tristeza profunda. Seu tom muda completamente quando ele
fala com ela novamente. Uma voz baixa, carregada de dor. É como se a
proximidade de Catarina emanasse alguma coisa capaz de mudar a postura
dele imediatamente, e isso me mata por dentro. Saber que, de alguma forma,
os dois tem uma conexão, me faz sentir o mais profundo e feio sentimento
que um ser humano pode sentir: ciúme, puro e cru. Porque eu sei que, não
importa o que ele faça, ele sempre terá uma parte do coração dela.
— Você não podia ter feito isso comigo, Catarina, não podia. — Ele
tenta se aproximar, mas eu a puxo para perto de mim e ele me encara com
raiva. — Porra, para de achar que você é o dono dela!

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Nina me olha praticamente implorando para que eu deixe aquilo em suas
mãos, e eu faço como ela pede, mesmo que isso me mate por dentro.
— Phelipe... — Ela se aproxima e delicadamente toca a mão dele, em
uma atitude apaziguadora. — Nós podemos conversar outro dia... Só nos
dois, tudo bem? O que você acha?
— Sem ele? — Ele me aponta com a cabeça e ela concorda.
— Sim, só eu e você. Vamos resolver isso. Eu não quero o seu mal,
Lipe. Eu gosto tanto de você, e eu sinto tanto a sua falta... — Seus olhos se
enchem de lágrimas, provavelmente esgotada daquela situação. Eu sei que
ela não aguenta ver Phelipe desse jeito, e sei o quanto quer ajudá-lo, vê-lo
bem e feliz como ele merece ser. Ninguém tem culpa da tempestade que faz
morada dentro de si, e eu também sei disso. Phelipe é apenas uma vítima de
si mesmo. Uma vítima de ser quem é, e nada mais.
Suas mãos vão para o rosto dela e eu penso em interferir, mas decido
não deixá-lo nervoso de novo. Agora que Nina o está acalmando, não é
momento para voltarmos à estaca zero.
— Eu também gosto de você, Nina, tanto. Eu te amo. Me perdoa pelas
coisas que eu falei, por não ter ido ao enterro do seu pai. Eu tenho tanta
coisa pra te falar, mas me perdoa. Eu não queria te fazer mal — ele começa
a chorar e delicadamente ela o abraça. Eles ficam alguns segundos assim, até
que ela olha para mim e balança a cabeça, dizendo sem palavras o quanto
aquilo é destrutivo. Phelipe só não está bem. Por mais que eu tenha raiva das
coisas que ele faz e diz, eu preciso entender que, muitas vezes, as pessoas
não escolhem quem são. Elas apenas são.
Phelipe está no pior estágio do seu transtorno, onde ele só enxerga as
coisas como quer enxergar. Isso não havia sido exposto antes porque tudo
corria bem, mas com a minha chegada, ele viu todas as suas certezas
desaparecerem e simplesmente sucumbiu. Não há como culpá-lo. Todos
temos nossas merdas na vida e temos que estar dispostos a entender e lidar
com as dos outros. Ele pode ser apenas um cara que não está bem para mim,
mas foi um amigo para ela durante todo o tempo em que eu deveria estar aqui
e não estive. Ele fez meu papel enquanto eu aproveitava minha vida, cuidou
de quem eu deveria cuidar, amou quem eu deveria ter amado. Me dói, mas
uma das coisas mais importantes que eu estou aprendendo nesse processo de
mudança é ser justo.
Phelipe não merece meu ódio. Ele merece justiça.

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Com calma ela o solta, depois passa as mãos por seu rosto, limpando
suas lágrimas com carinho e delicadeza.
— Tudo bem, Phelipe... Não tenho o que perdoar, tá? — Ela sorri,
mesmo sendo um sorriso muito triste. — Posso ir à sua casa essa semana?
— Sem ele? — ele não fala meu nome, mas é muito óbvio que é a mim
que se refere. É muito fácil perceber que eu sou uma pedra em seu sapato.
— Sem ele — ela afirma, tranquilizando-o.
— Tudo bem, eu vou esperar — ele fala, se afastando, mas ainda
mantendo os dedos presos nos dela. — Eu não posso deixar você ir embora,
Nina.
— Eu não vou à lugar algum, Lipe — ela diz, cheia de uma sinceridade
que quase me machuca, porque eu sei que ela está falando sério. — Eu sou
sua amiga. Eu nunca vou embora.
Então ele se solta do toque dela e se vira para ir embora, sem nem dar
tchau. Depois de ter certeza que ele se foi, Nina se vira para mim,
completamente destruída, e se joga em meus braços, soltando finalmente o
choro aprisionado.
— Eu preciso arranjar ajuda pra ele, Lorenzo. — Suas mãos grudam em
minha camiseta, me dando a certeza de que vê-lo mal faz mal para ela
também. — Eu preciso.

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CAPÍTULO 40
Nina

Respire.
Apenas respire.
Olho para o lado e vejo a mãe de Phelipe sorrir para mim; um sorriso
cansado, mas com um leve toque de alívio por me ver aqui, e eu imagino o
motivo. Para ela, me ter próxima do filho é importante.
— Vou pedir para trazerem um suco para vocês — ela diz com aquela
habitual calma que eu já conheço, e eu sorrio, complacente. — E qualquer
coisa me chame. Ele está no quarto há dois dias, esperando você vir. Ele
disse que você havia prometido. — Ela dá de ombros e eu concordo com a
cabeça, entendendo muito bem seu sofrimento e seu cansaço.
— Eu só estava reunindo forças — me explico, mesmo sabendo que não
preciso disso, não com ela. — E pode ficar tranquila. O Lipe jamais me
machucaria.
Ela concorda, me dá um abraço e, quando se afasta, respiro fundo,
tomando coragem. Dou dois toques na porta, esperando uma resposta.
— Vai embora — ouço a voz pesada de sono de Phelipe através da
porta e fecho os olhos. Eu conheço essa voz e sei que é porque ele está
bebendo sem parar. Apesar de toda a minha vontade de dar meia volta e ir
embora, eu sei, mais do que nunca, que eu preciso fazer isso.
— Lipe? — falo e encosto o rosto na porta, esperando uma reação. —
Lipe, sou eu, a Nina. Posso entrar?
— Nina? — ele responde rapidamente: — Entra... Desculpa, eu... Eu
achei que fosse outra pessoa. — Ele se ajeita na cama quando eu finalmente
entro, e a escuridão do quarto me incomoda um pouco, mas eu decido não
falar nada. Apenas uma fresta da janela está aberta e uma pequena faixa de

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luz entra, permitindo que eu enxergue seu rosto. Ele está visivelmente mal,
mas continua lindo como sempre.
— Como você está? — pergunto, quando finalmente me sento na beirada
da cama. Todos os meus movimentos são feitos com calma, como se eu
estivesse testando meus limites com ele. Eu nunca precisei de cerimônia
quando se tratava de Phelipe, mas claramente a situação mudou. Preciso me
adequar ao espaço que tenho em sua vida agora, e eu ainda não sei qual
espaço é esse, ou pior: se ainda o tenho.
— Eu estou bem. — Ele vira o rosto para a janela, desviando do meu
olhar. Essa sempre foi a resposta padrão de Lipe, mas eu nunca me atentei
que talvez ele não estivesse bem, apenas camuflando sua dor. Por que eu
nunca percebi antes?
Minha cabeça pesa diante da expectativa dessa conversa, e mesmo que
minhas mãos tenham parado de tremer, meu coração ainda bate
descompassado.
— Por que você sempre diz que está bem quando é visível que não está,
Lipe?
Ele me olha fixamente.
— Eu não sei de onde você tirou que eu não estou bem — ele apoia o
corpo contra a parede ao lado da cama, encostando as costas nuas. O seu
humor muda em questão de segundos e isso é extremamente difícil de lidar.
— Talvez do fato de você não ir trabalhar há dois dias, ou de ter
garrafas a cada metro quadrado desse quarto. — Eu passo os olhos
rapidamente pelo lugar, contando mentalmente todas as que vejo. — Ou pelo
simples motivo de você ser legal comigo em um instante e me afastar
bruscamente no seguinte, como se eu fosse uma completa desconhecida. Pior,
como se eu fosse uma praga.
E então ele me encara, olhando profundamente em meus olhos, com uma
frieza que eu nunca vira antes.
— Talvez porque eu percebi que eu passei a porra de uma vida
apaixonado por você, sendo tudo o que você precisava, quando eu sabia que
você me chutaria para o meio-fio assim que aquele projeto de filho pródigo
voltasse pra cá.
Engulo em seco.
— Você me pediu para vir aqui, Phelipe. Eu estou aqui. Eu sempre estou
aqui. Eu entendo seu ponto, de verdade, eu entendo. Mas antes de ser sua
namorada, eu sempre fui sua amiga. Então, por favor, me deixa continuar

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sendo sua amiga e me dê ao menos o benefício da dúvida, antes de me acusar
de algo que você não sabe como aconteceu.
— Eu não posso. E te pedir para vir aqui foi um erro. Um puta de um
erro, como sempre — quando ele pronuncia essas palavras, ele olha para
todos os cantos do cômodo e, por fim, para fora, menos para mim, como se
meu olhar queimasse sua pele, ou pior: como se meu olhar revelasse uma
verdade que ele prefere ignorar. — Acho melhor você ir embora, Nina.
Mas eu não vou deixá-lo escapar tão fácil assim. O que eu disse é
verdade. Antes de qualquer coisa, eu sou sua amiga, e eu preciso que ele
confie em mim. Aproximo-me dele e coloco as mãos nas laterais de seu
rosto, forçando-o a olhar para mim.
— Por quê?
Ele não responde.
— Por quê? — insisto, já com os olhos cheios de lágrimas. Eu sei o
motivo. Agora eu só preciso que ele admita para si mesmo, para então
termos um ponto de onde começar.
— Porque eu sou uma bagunça — ele sussurra com a voz entrecortada,
como se as palavras doessem. — A porra de uma bagunça — ele admite,
fechando os olhos nas últimas palavras, me fazendo tremer com suas
lágrimas. Só ele sabe a dor de ser quem é, e a mim, me resta acolhê-lo e
amá-lo como ele me amou quando a bagunça era eu.
— Eu sei — digo, me aproximando de seu corpo e o abraçando. — Eu
sei e estou aqui.
— Não, você não sabe. Você não sabe de nada. — Ele ri amargamente.
— Sim, eu sei. Eu sei do seu transtorno. E eu sei o que ele faz com
você. O que ele faz com as pessoas que te amam, como eu. Mas eu também
sei que você pode vencer isso. Você pode mudar isso, Lipe.
Depois dos primeiros segundos de entendimento, ele apenas balança a
cabeça, como se não acreditasse em nada disso.
— Você tá perdendo seu tempo, Nina. Igual a todos que tentam. Igual ao
meu pai, a minha mãe... Eu sou assim, não vou mudar. Esse sou eu.
Coloco meu dedo em riste na sua boca, calando-o na mesma hora.
— Eu nunca vou perder meu tempo quando se trata de você. Você nunca
desistiu de mim, então eu nunca vou desistir de você.
— Você sabe do que tá falando? São situações completamente
diferentes. Eu me arrastei para um buraco cada vez mais fundo, desde o
início disso tudo. Eu estou tão exausto, Nina. Tão cansado... — ele diz com a

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voz embargada, e eu consigo sentir verdade em cada palavra. — Estou tão
ferrado que nem sei por onde começar a me recompor. Eu nem sei se eu
quero me recompor. A sensação de se sentir vazio é a pior coisa do mundo.
Talvez seja melhor acabar com tudo isso de uma vez.
— Nunca mais repete isso — peço baixinho, enquanto o aperto com
mais força. — Nunca mais. Eu não sei viver em um mundo onde você não
exista.
Um longo silêncio se ergue entre nós, até que ele decide voltar a falar:
— Você fez certo em me deixar. Porque quando eu olho pra você, eu
vejo alguém que merece mais do que isso — ele faz um gesto com a mão
indicando a si mesmo. — Como eu vou te amar se eu não amo nem a mim
mesmo, Nina? Eu simplesmente odeio o cara que eu me tornei.
Quando eu não respondo nada, ele prossegue:
— Acho melhor você ir embora. Eu não vou mais te procurar. Prometo
que vou te deixar em paz, para viver sua vida como quiser. Agora vai, anda
logo. Vai embora de uma vez.
— Você não é mais meu patrão. — Ergo uma sobrancelha, desafiando-o,
e um sorriso de canto surge em minha boca. — Não me diga o que fazer.
Surpreendentemente, isso tirou um sorriso tímido de seu rosto.
— Você é terrível, porra. Quem te ensinou a ser teimosa assim? — ele
pergunta, e então eu acaricio seu cabelo, sendo completamente sincera:
— O melhor — seu sorriso se amplia, porque sabe que estou me
referindo a ele.
Então, ele bate a mão na cama, exatamente ao seu lado, fazendo sinal
para que eu me aproxime. Obedeço prontamente e encosto uma almofada na
parede, para apoiar as costas, então entrelaço nossas mãos, dizendo, de
forma silenciosa, que certos laços na vida são impossíveis de serem
quebrados.
Quando ele entende e aperta de volta meus dedos, sei que finalmente
vamos começar a conversar.
[...]
Ele fica em silêncio por um tempo, mas isso acaba sendo bom. Me dá
tempo para pensar.
— Eu nunca aceitei muito bem o diagnóstico de personalidade limítrofe
— ele começa, sussurrando para a escuridão do quarto. — Achava que era
apenas mais um blábláblá de psiquiatra que queria ganhar dinheiro.
— É por isso que você nunca quis se tratar?

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— Sim, eu achei que poderia dar conta disso sozinho. E de certa forma,
por um tempo eu pude. As coisas só saíam realmente de controle quando eu
bebia demais, mas eu também não conseguia parar de beber. Sem contar que
isso era uma cobertura, né? Nunca acharam que meu problema fosse
psiquiátrico, apenas um vício. O que realmente ferrou tudo foi a volta do
Lorenzo, e eu sei disso. Isso me tirou todas as minhas certezas. E ainda me
fez ver minha irmã sofrer, o que não ajudou em nada. — Isso faz muito
sentido.
— E agora que você sabe que precisa, o que te impede de procurar
ajuda, Lipe? — pergunto, acariciando seus dedos com os meus, com todo
meu carinho. Por mais que eu saiba que meu coração pertence ao Lorenzo,
Phelipe sempre será uma parte importante demais da minha vida para eu
simplesmente deixar para lá. Eu quero vê-lo bem.
Se ele não for feliz, eu jamais poderei ser.
E está na hora de nós dois sermos felizes.
— Vergonha, talvez.
— Você não tem que ter vergonha. E ninguém sabe disso. Na verdade,
ninguém precisa saber. Só eu, você e sua família. E nós podemos fazer isso,
Lipe. Nós podemos fazer isso juntos, se você quiser.
— Nós? — Ele me olha intrigado, como se não entendesse o plural em
minha frase.
— Nós — eu respondo com cuidado. — Eu não estava brincando
quando disse que eu sempre estive aqui por você. E eu sempre vou estar.
— Mas você ainda vai estar com ele, não vai? — sua pergunta soa
triste, mas eu preciso ser honesta com ele, antes de qualquer coisa. Não
posso enganar uma pessoa a quem eu quero ajudar. Isso seria baixo.
— Ainda está tudo muito indefinido, Lipe. Mas você sabe que eu e ele
temos uma história. Uma filha. Eu sei que ela não está mais aqui, mas eu
sinto que é uma ferida que temos que curar juntos.
Depois de um longo tempo, ele apenas fala:
— Você está certa. De qualquer forma, eu ainda amo você. E se nada
der certo entre vocês, eu ainda vou estar aqui.
— Eu também amo você. Só não é da forma como você quer que eu
ame, mas eu amo você, Lipe. Tanto.
Ele se vira para mim com o olhar cansado.
— Eu aceito qualquer coisa vindo de você.
— Qualquer coisa? — eu pergunto, tendo uma ideia.

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— Qualquer. Mínima. Coisa — ele diz entredentes, fechando os olhos,
como se tirasse isso de dentro do coração.
— Eu quero que você se trate, então — respondo com firmeza. — Mas
eu vou estar com você. Em cada sessão com o psiquiatra, em cada reunião,
em cada mínima crise. E também acho que podemos frequentar os alcoólicos
anônimos. Vai ser bom para você.
— Você não tem que se amarrar a um problema que não é seu por minha
causa, Nina.
— Eu não tenho mesmo — sou sincera quando digo isso —, mas eu
quero.
Olho profundamente dentro dos seus olhos, talvez como uma última
carta na manga. Preciso fazê-lo entender que eu realmente quero fazer isso.
Que não é uma obrigação, ou meras palavras jogadas ao vento. Eu quero
ajudá-lo porque ele é importante para mim.
Então ele sorri, entendendo o que meu silêncio quer dizer.
— Tudo bem, você ganhou. Eu vou me tratar.

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CAPÍTULO 41
Lorenzo

Eu estudei as cinco fases do luto no início da faculdade de medicina.


Apesar de ser um assunto relacionado diretamente à psicologia, a matéria
era de extrema importância, pois dessa forma, nós, como profissionais
médicos, poderíamos ajudar os familiares dos pacientes que eventualmente
perderíamos. Porque, por mais bonito que pareça a ideia de que somos
salvadores de vidas, a perda de algumas delas é inevitável. Pensar que
somos heróis em jalecos brancos pode ser muito lindo sim, mas é também
muito utópico. Não temos superpoderes, e Deus é prova de como eu gostaria
de tê-los. Iria me poupar um bocado de frustrações. O problema é que somos
apenas seres humanos comuns lutando com o que temos em mãos para fazer o
nosso melhor.
E acredite, é preciso muita coragem para isso.
Sinto um vazio no estômago ao percorrer a sala de quimioterapia
infantil. Eu havia voltado a trabalhar há poucos dias, e hoje será o primeiro
final de semana em que colocarei o projeto de assistência aos menos
favorecidos em prática. As fichas já haviam sido selecionadas e as
primeiras pessoas já haviam passado pela triagem e exames, e algumas já até
estão no tratamento efetivo. Meus olhos caem em uma garotinha loira de
olhos claros e assustados e eu sinto meu peito arder, sabendo exatamente o
motivo. Ela segura a mão da mãe, que tenta a todo custo conter as lágrimas e
manter o sorriso fraco de encorajamento nos lábios. Só Deus sabe o que se
passa no coração dessa mulher. Provavelmente, é sua primeira sessão e seus
cabelos compridos ainda não haviam caído, e será terrível quando
finalmente acontecer. É a primeira prova concreta de que o mundo ao seu

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redor está ruindo. Com crianças, é sempre tudo mais difícil, e eu sei tudo o
que está por vir. Eu sei que não será fácil, para nenhuma das duas.
Sei de cor e salteado cada pedra que estará no caminho dessa família de
agora em diante, e isso é doloroso para caralho.
Só que dessa vez, além do incômodo habitual de ver uma criança
inocente sofrendo por causa dessa doença maldita, eu também tenho outra
coisa invadindo minha mente: estou imaginando como seria minha filha se
ela ainda estivesse aqui. As perguntas que, por mais que eu não queira fazer,
se instalam dentro de mim em um estupor quase incontrolável. Ela teria
olhos claros e brilhantes como os da garotinha à minha frente? Teria longos
cabelos cor de sol também? Ela seria extrovertida e comunicativa como eu
ou mais tímida e doce, como Nina? É horrível sentir esse vazio no peito, no
lugar onde deveria haver memórias da minha filha. Porque é como dizem: a
única coisa que sobra no fim de sua vida, são as coisas que você guardou em
sua memória. A mim não sobrará nada.
E isso me leva de volta aos cinco estágios do luto. Esses cinco estágios
são: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Eu acho que muito
rapidamente passei por quase todos os estágios de uma vez só; talvez o
choque de descobrir de uma forma tão abrupta que eu tinha perdido alguém
cuja existência eu nem fazia ideia, me tenha feito sentir tudo ao mesmo tempo
naquela noite, de uma forma intensa e surreal. Foi como se, em uma única
pancada, eu tivesse visto todos os meus conceitos e todas as coisas que eu
considerava importantes caírem por terra, dando lugar apenas ao sentimento
de impotência. Impotência por estar longe quando eu deveria estar perto.
Impotência por ter sentido tão forte até onde nossos erros podem nos levar.
Mas agora, lentamente, eu sinto a aceitação tomando conta de mim. O
último estágio para finalmente seguir em frente. Por mais que eu queira
voltar atrás e fazer tudo diferente, eu tenho a consciência de que isso é
impossível. Aceitar é a melhor coisa que podemos fazer com o que não
podemos mudar. Sempre há um preço a se pagar pelos erros cometidos, e às
vezes, eles são altos demais. Agora, me resta apenas fazer o futuro diferente.
E por mais que esse futuro não inclua minha pequena Lorena, ele inclui Nina
e um novo Lorenzo, que eu estou tentando construir aos trancos e barrancos,
porque não é nada fácil se livrar de uma personalidade assim, do dia pra
noite.
E esse novo Lorenzo quer fazer por algumas pessoas o que ninguém
fez pela filha dele.

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[...]
— Lorenzo... Isso é... Isso é fantástico! — Nina me abraça pelo
pescoço, enquanto suas pernas curvilíneas enlaçam as minhas de uma forma
estratégica. Estamos deitados em uma rede, na área de sua casa, balançando
contra a brisa amena do verão.
Estávamos compartilhando as experiências de nosso dia um com o
outro, como um casal de filmes. Ela havia me contado como havia sido a
visita à casa de Phelipe, e por mais que eu não gostasse da ideia de vê-la tão
preocupada com ele, eu deveria entender que ele estava aqui com ela quando
eu não estava. Ela tem grande estima por ele, e sendo o ser iluminado que
Nina é, não ajudá-lo nesse momento é impensável, principalmente sendo a
única pessoa da qual ele aceita ajuda. Então, eu simplesmente engoli em
seco e deixei que ela fizesse sua parte, e do resto, a vida se encarrega. E
agora, após contar para ela a ideia que eu tive mais cedo, durante a visita ao
hospital, sou recompensando com essa chuva de carinhos deliciosos.
— Você pensou nisso... Sozinho? — Seus olhos se estreitam e sim, isso
dói, por mais que eu entenda suas razões para não esperar nada bom vindo
de mim. Dói saber que é difícil para ela acreditar que uma ação altruísta
possa sair da minha cabeça assim, por conta própria.
— Na verdade, eu tive ajuda de alguém... — Sorrio sem graça e ela me
olha curiosa.
— De quem?
— Da nossa filha. Foi pensando nela que eu tive essa ideia. — Inspiro,
e por mais que eu queira esconder, minha frustração se torna palpável. O
meu plano é lindo, na teoria, mas na prática um detalhe importante ainda
falta: recursos.
— O que foi, amor? — Nina busca meus olhos com os seus — O que há
de errado? Essa sua ideia é incrível! E é mais incrível ainda saber que você
pensou nisso tudo por causa do nosso anjo.
— Eu sei, Nina. Mas as coisas não são tão fáceis quanto parecem. — Eu
me ajeito embaixo dela, enlaçando sua cintura e fazendo um carinho tímido
com os dedos em sua barriga lisa. — A ideia é linda no papel, mas para
colocá-la em prática eu preciso de dinheiro. Parece que, por um segundo, eu
esqueci que agora eu sou um cara pobre.
Provavelmente deixo transparecer o desgosto em minha voz ao falar
essas palavras, dessa forma. Por mais que eu queira mudar e ser alguém
diferente para Nina e para mim mesmo, é difícil lembrar dessa nova

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realidade assim tão rápido. Eu sempre gostei de ter boas coisas e dinheiro à
disposição para o que eu precisasse, e me ver agora tendo que fazer contas
para passar os dias é, no mínimo, frustrante, para não dizer desesperador.
— Lorenzo... — Ela passa as mãos pelo rosto e sai do meu colo com
cuidado, ficando de pé na minha frente. — Nem todo mundo é rico como
você é... — ela encontra meu olhar de reprovação e se corrige rapidamente:
—... como seus pais são. Mas dá pra fazer as coisas mesmo assim. Se a
gente conseguir falar com as pessoas certas, essa ideia sai do papel. É só
querer. Eu posso te ajudar. — Seu sorriso ilumina meu pessimismo, dando
espaço para a esperança. Ela está animada com essa história muito mais do
que eu.
— Você acha mesmo? — pergunto, mas a resposta em seu sorriso
animado é óbvia. Ela tem certeza de que conseguiremos, e se ela acredita em
mim, eu também acredito.
— Eu tenho certeza.
Puxo-a de volta para o meu colo, sabendo que esse é o momento de
provar para nós dois que eu posso ser altruísta.
É hora de colocar meu plano em prática.

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CAPÍTULO 42
Lorenzo

Se eu puxar em todos os cantos da minha memória, vou encontrar


pouquíssimas lembranças de momentos com a minha mãe. É estranho pensar
– e é ainda mais difícil admitir para mim mesmo –, mas minha mãe só era
carinhosa comigo quando eu atendia aos seus interesses, e esses interesses
normalmente envolviam meu pai. Chantageá-lo para que ele ficasse em casa
aos finais de semana era a principal delas. Era como se eu só fosse seu filho
se eu estivesse fazendo exatamente o que ela queria que eu fizesse. Era como
se eu tivesse sido concebido com um único propósito: prender meu pai a ela.
Eu era um fantoche vestido com roupas de grife, e seu amor, bem, era
um amor completamente condicional.
Então, quando eu a vejo parada na minha sala, em frente à minha mesa,
com uma atitude completamente humilde, devo confessar que isso me assusta
um pouco. Ela ainda está impecável como uma boneca Barbie, mas há algo
diferente em seu olhar. Eu não sei dizer precisamente o quê, mas ela parece
mais... minha mãe.
— Achei que eu tivesse deixado claro que não queria mais ver vocês —
eu resmungo enquanto junto uma pilha de exames, em uma tentativa frenética
de não parecer angustiado com sua visita inesperada. Eu não me deixarei
afetar por essa máscara de boa mulher que ela está usando. Eu sei que não é
real.
— Achei que a gente pudesse conversar, agora que você está com a
cabeça mais fria. Talvez você consiga me ouvir se tentar, filho.
Cerro os dentes e guardo para mim todos os insultos e maldições. Eles
não vão me ajudar em nada agora, apenas tornar a coisa toda muito mais

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difícil.
— Eu não estou com a cabeça mais fria. — Lhe dirijo um olhar
carregado de mágoa. — Eu acho que eu nunca vou estar com a cabeça fria.
E, por favor, pare de agir como se você tivesse tirado um brinquedo de mim.
Será que um dia vocês vão entender a gravidade do que fizeram?
— Eu só queria te proteger! — ela diz desesperada, com os olhos
marejados, o que não me faz sentir pena dela. Eu só quero distância.
Distância de todo esse rastro de egoísmo que ela e meu pai deixam por onde
passam. Distância de toda essa frieza que consome a família Leone.
Eu sempre tive orgulho de ser um deles, hoje eu só tenho vergonha.
— Se seu trabalho era me proteger... Desculpe-me, mas você foi
péssima. — Eu me aproximo dela, olhando em seus olhos. — Mas nós dois
sabemos muito bem que, na verdade, você queria apenas proteger a si
mesma, proteger seu sobrenome, sua família de capa de revista... Nada mais.
Ela abaixa a cabeça e apoia uma das mãos em minha mesa. Vejo quando
uma lágrima escorre por seu rosto, parando no queixo antes de finalmente
pingar na madeira bem tratada do móvel. Por alguns segundos, esse momento
fica pendurado entre nós e o silêncio toma conta do cômodo, onde apenas
nossas respirações se ouvem. É um momento de reconhecimento, tanto dos
erros dela quanto dos meus. Ela sabe que eu estou certo, e parece que, pela
primeira vez na vida, ela admite seus erros para si mesma, mesmo sem
sequer abrir a boca.
E acredite, esse momento me convence muito mais do que suas palavras
vazias.
— Eu sei que nós dois erramos muito na vida, mãe — eu quebro o
silêncio e a chamo de mãe depois de tantos dias me referindo a ela apenas
por seu primeiro nome. — Mas a diferença entre você e eu é que eu errei por
sua culpa. Pela educação que você não me deu. Pelo amor que você não me
deu. Eu errei mãe... Por causa de toda a sua ausência... — Meus olhos se
enchem de lágrimas e eu sinto dor pelo que poderíamos ter sido, mas não
fomos. — E não menos importante, diferente de você, eu estou tentando
mudar. Eu acordei pra vida enquanto era tempo.
Um soluço engasgado sai de sua garganta, mas ela não levanta a cabeça.
Apenas enxuga os olhos com as mãos e diz baixinho:
— Eu larguei seu pai, Lorenzo. Se nós vamos atribuir culpas aqui, então
eu atribuo tudo o que eu sempre fui de ruim a ele. — Quando ela finalmente
me olha, eu vejo ali um lampejo de humanidade.

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— Você... Você fez o quê? — Eu quase não posso acreditar no que ouço.
Minha mãe sempre fora vidrada em meu pai, um amor quase doentio.
Acredito que era uma mistura de amor com interesses pessoais, mas não
deixava de ser amor. Ela era completamente presa a ele, como se todas as
suas ações dependessem da aprovação do meu pai.
— Eu o larguei. Eu dei o primeiro passo para mudar. — Ela se
aproxima de mim, e dessa vez eu não recuo. Eu busco seus olhos, tentando
encontrar ali a alma que eu achava que não existia. — E se a Nina te deu
uma segunda chance, se ela te perdoou, por que eu não mereço também?
[...]

Nina
Aceito o café que Phelipe me entrega com um sorriso, e então o vejo se
sentar à minha frente, segurando a sua própria xícara. Ele está da forma
como eu sempre costumava vê-lo: impecável em um terno marrom, distinto e
elegante como somente o Dr. Phelipe de Medeiros consegue ser. Vim
encontrá-lo no escritório para irmos juntos à sua primeira sessão de terapia.
Havia prometido que estaria ao seu lado e não menti quanto a isso. Por mais
que eu saiba que Lorenzo se incomoda, eu jamais deixaria de ajudar quem
tanto me ajudou.
Eu sei que o caminho não será fácil. Phelipe sempre estará com um pé
atrás com tudo e suas crises sempre serão difíceis de lidar, além de serem
completamente repentinas, mas com o tratamento certo, as coisas entrarão
nos eixos, ou algo parecido com isso, eu tenho certeza. Há muitas pessoas
por aí com o mesmo transtorno, eu pesquisei, e sei que conseguem levar
muito bem suas vidas com o devido cuidado, e com ele não será diferente.
Ninguém é culpado de se sentir assim. Ninguém é culpado de não estar bem.
— Como você está hoje? — pergunto e descanso a xícara na mesa,
torcendo por uma resposta positiva.
— Com um pouco de medo, mas estou conseguindo lidar — ele suspira.
— E também estou me sentindo mal... — Ele olha para a porta da sala no
escritório, onde ainda havia meu nome. — Não acredito que te demiti por
puro ciúme. Eu sou um babaca.
— Ei, ei. Sem sentimentos depreciativos. Já conversamos sobre isso. —
Dou de ombros. — E foi melhor assim, Lipe. Não daria certo trabalharmos

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juntos nesse momento. — Forço um sorriso. — Amanhã eu vou procurar um
novo emprego e tudo vai ficar bem.
— Você pode voltar pra cá quando quiser, Nina. Eu queria poder te
ajudar. Droga, eu queria poder fazer pelo menos metade do que você já fez
por mim. Acho que só assim eu vou me perdoar.
— Eu sei que eu posso, Lipe — Sorrio e aperto sua mão. — Mas eu vou
tentar outras coisas antes. — Eu iria terminar a frase, mas algo me vem à
mente. Uma ajuda para realizar a ideia que Lorenzo teve ontem enquanto
trabalhava com as crianças da quimioterapia. Quando eu lhe contar como
isso tem a ver com Lorena, a quem ele tanto amou mesmo que por pouco
tempo, sei que ele também gostará da ideia: — Contudo, tem algo em que
você pode me ajudar, Lipe. Claro, se você quiser.
Quando seus olhos se iluminam diante da possibilidade de me ajudar,
sei que posso contar com ele.
[...]

Lorenzo
As últimas palavras de minha mãe me atingem como um soco no
estômago. Ela está certa. Odeio admitir, mas é verdade. Pode muito bem ser
mais um joguinho sujo dela, contudo, é uma verdade inconveniente, e eu
odeio verdades inconvenientes. Quem sou eu para achar que ela não merece
uma segunda chance quando eu tinha acabado de ganhar uma da pessoa que
eu mais magoei na vida?
Eu não sou nenhum pouco melhor do que ela.
— Eu sei que não é fácil, Lorenzo. Mas me escuta — Ela se aproxima e,
pela primeira vez, eu deixo que me toque. — Eu vim até o hospital ontem à
sua procura, mas como eu não te achei, conversei com Raul. Ele me contou
sobre o projeto que você faz aos finais de semana e agora eu sei... — Ela
torce as mãos. — Eu sei que você está sem salário, e eu mal dormi pensando
em como está sua vida agora, filho. Você, que sempre teve tudo o que quis...
Tudo de melhor que o dinheiro pode comprar. Você não vai conseguir viver
assim. — Ela pensa um pouco antes de falar, provavelmente temendo minha
reação, mas finalmente diz: — Eu queria que você aceitasse a parte da
herança que você tem direito. É o mínimo, depois de tudo.
— Eu não quero o dinheiro de vocês.

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— Não é "nosso" dinheiro, Lorenzo. É seu. Seu por direito. E é apenas a
minha parte. A do seu pai está resguardada com ele. Por favor, não seja
teimoso e me deixa te ajudar. Me deixa ser sua mãe uma vez na vida — ela
praticamente implora, mas eu não quero ouvir.
— Eu achei que você já tivesse entendido essa parte, mas parece que
não — Eu me afasto e começo a pegar minhas coisas. Por mais que lá no
fundo eu saiba o quanto esse dinheiro resolveria meus problemas, ainda
parece errado aceitá-lo. É errado aceitar algo que poderia ter salvado minha
filha, mas não salvou. É como se, de alguma forma, eu tirasse dela.
E então, ao pensar nisso, eu paro.
"Algo que poderia salvar minha filha, mas não salvou".
Não a salvou.
Mas pode salvar outras pessoas.
Olho para minha mãe, que ainda espera que eu mude de ideia, o que
realmente está começando a acontecer.
Não seria errado aceitar esse dinheiro se eu o usasse para os fins certos,
afinal.
Um sorriso se abre em meu rosto pela primeira vez desde que minha
mãe entrara nessa sala. Eu já sei o que fazer, e eu não vejo a hora de
contar para Nina.

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CAPÍTULO 43
Nina

Encosto a porta atrás de mim já sentindo o delicioso cheiro que vem da


cozinha, o que faz meu estômago roncar. Estou faminta e cansada, muito
cansada. O dia com Phelipe foi difícil. Apesar de ter dado certo, vê-lo
sendo tão aberto com o psiquiatra me assustou um pouco. Ouvir certas coisas
me fez conhecer um lado dele completamente diferente do que eu estava
acostumada, o que me faz sentir arrepios toda vez que eu relembro suas
palavras.
Mas tudo dará certo, tenho fé.
Ele está no caminho certo. Logo ele estará melhor. Logo tudo estará
bem.
Entro na cozinha para ver não minha mãe, mas sim Lorenzo cozinhando.
Enquanto ele frita alguma coisa, assovia uma canção do Nickelback,
completamente absorto em sua tarefa. Sorrio em surpresa. Nesse momento,
ele se vira para pegar algo no armário e nossos olhares se encontram.
— Boa noite, Cinderela — ele diz e alcança o sal, completamente à
vontade em minha cozinha. — Chegou tarde.
Caminho até ele e enlaço meus braços em sua cintura, dando-lhe um
beijo no rosto.
— Boa noite. Sim, eu estava... — antes que eu consiga terminar a frase,
ele me corta.
— Com o Phelipe, eu sei. Podemos pular essa parte? É que eu não gosto
muito de imaginar a minha mulher andando por aí com seu ex-namorado
ainda apaixonado e descontrolado. Não é muito agradável. Você é teimosa

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demais. — Ele ergue a sobrancelha, me olhando daquele jeito. Esforço-me
para não rir, porque seu ciúme chega a ser fofo, apesar de ridículo.
— Não seja bobo. Ele não vai fazer mal para mim. Para de ciúme. —
Eu bato em seu peito, e quando faço menção de me afastar, ele enlaça minha
cintura e me puxa de volta para ele com força. Baixa a cabeça até que sua
boca esteja pairando em meu ouvido e, com uma voz rouca e carregada de
possessividade, fala:
— Não acho que eu seja bobo por cuidar do que é meu. — Quando
meus olhos se erguem e encontram os seus, meu corpo se arrepia inteiro. —
Eu já fui burro o suficiente por uma vida inteira.
Dito isso, ele me solta e volta aos seus afazeres, assim, como se não
tivesse tirado o chão debaixo dos meus pés com apenas algumas palavras.
Balanço a cabeça, tentando distrair meus pensamentos indecorosos e resolvo
mudar de assunto.
— O que você está fazendo na minha cozinha, eu posso saber? —
Sorrio, enfiando a cabeça no vão de seu braço, tentando bisbilhotar o que
cheira tão bem.
— O jantar.
— O jantar? Como assim o jantar?
— É, mulher, o jantar. Você acha que eu não sou capaz? — ele pergunta
na defensiva, mas com um pouco de sarcasmo no olhar. Antes que eu tenha a
chance de responder, ele assopra um pedaço de carne na colher de pau,
esfriando-a, e coloca delicadamente em minha boca.
Uau, está delicioso.
— Não é isso. Claro que eu acho que você é capaz — Ele certamente é
capaz, pelo gosto delicioso que eu sinto em minha língua. Onde será que ele
aprendeu a cozinhar tão bem? — Eu só acho... inusitado. Cadê minha mãe?
— Inusitado, sei — Ele ri, sabendo que a palavra seria outra. — Ela
estava com dor de cabeça, então eu lhe dei um remédio e falei para ela se
deitar. Ela estava preocupada com o seu jantar, então eu resolvi fazer, só
isso.
— Está tudo bem com ela? — Meu coração salta e Lorenzo percebe
meu olhar. Depois que meu pai se foi, até uma simples dor de cabeça é
motivo de medo para mim. Ainda é muito difícil pensar que eu não terei meu
pai de volta, e eu sequer posso pensar na possibilidade de algo ruim
acontecer à minha mãe. Ela é tudo o que me restou.

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— Fica tranquila — Ele sorri e beija minha testa. — Uma dorzinha de
cabeça à toa. Nada que um analgésico e cama não resolvam. Ela só trabalha
demais, Nina. Tá na hora dela dar uma desacelerada. — Eu rio, como se isso
fosse possível. Mais do que nunca, nosso orçamento está completamente
comprometido. — Agora vai lá em cima, tira essa roupa e relaxa. Já te
chamo para comer.
Obedeço ao seu pedido e me viro em direção às escadas. Mesmo com
todas as preocupações acerca da minha mãe e de nossa situação financeira,
um sorriso brota em meu rosto quando eu penso onde eu estou e com quem.
Por mais que eu pense nisso todos os dias, ainda é estranho perceber que o
cara que eu tanto odiei está trazendo minha alegria de volta depois de tantos
problemas que eu venho enfrentando.
Eu sei.
Não faz nenhum sentido. Não tem qualquer lógica. Mesmo assim, não há
qualquer outra pessoa ou qualquer outro lugar onde eu queira estar.
[...]
Depois do jantar, nos aninhamos em minha cama. Lorenzo apoia as
costas na parede e eu deito a cabeça em seu colo, enquanto seus dedos fazem
um carinho preguiçoso em meus cabelos.
— Preciso te contar uma coisa — ele diz, puxando o ar de uma forma
estranha, como se pensasse bem antes de começar a falar. Endireito meu
corpo de modo a olhar para ele, apreensiva.
— Fala. O que aconteceu?
— Minha mãe foi hoje ao hospital. — Ele passa uma das mãos no rosto
e antes que eu possa perguntar como foi, completa: — Cara, foi foda. Foi
realmente foda.
Meu coração se contorce. Eu nunca tive dinheiro ou luxo, mas sempre
tive pais que me amavam e cuidavam de mim com todas as forças, tanto
físicas quanto do coração. Lorenzo foi completamente o contrário: sempre
teve tudo o que quis, mas nunca teve atenção. Estar em problemas com seus
pais sempre foi uma constante em sua vida.
— Vocês brigaram? — pergunto apreensiva. Por mais que eu sinta um
ódio puro e vivo pelo que eles nos fizeram, eles ainda são os pais de
Lorenzo. Minha visão deles não pode ser a mesma que a dele.
— Por incrível que pareça, não. Ela chegou com uma postura humilde e
ouviu tudo o que eu tinha pra falar. — Ele dá de ombros. — Ela disse que se
separou do meu pai. Que quer, como eu, mudar. Não sei o que pensar sobre

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isso, de verdade. Ainda dói muito o que ela me fez. Nos fez. — Ele suspira,
irritado. — Ela me ofereceu a minha parte na herança. A parte que eu
receberia dela, no caso.
Essa informação me pega de surpresa.
— E você aceitou? — eu pergunto apreensiva. Ainda que eu saiba que
esse dinheiro é dele por direito, eu me acostumei com o Lorenzo mais
humilde. Acho que ele condiz mais comigo. Acho que nos damos melhor
assim. Não quero voltar àquela velha história de menino rico, menina pobre.
— Aceitei — ele fala baixo, como se segurasse essa palavra no ar.
Tento evitar, mas não consigo, então suspiro alto, desapontada. Eu não quero
me sentir assim, mas a decepção se arrasta por minhas entranhas de uma
forma muito rápida. É quase bobo, eu sei, mas é o que eu sinto. Quando eu
começo a me mexer em seus braços para me levantar, ele me segura mais
forte e, encostando a boca em meu ouvido, sussurra: — Não aceitei para
mim, Nina. Aceitei para o instituto. Ele vai sair do papel. Nós vamos
conseguir.
Viro-me de frente para ele, e olhando dentro de seus olhos, eu consigo
ver a satisfação. Apesar de saber que não será da forma como ele queria,
com um dinheiro que apesar de tudo ele não considera dele, seu projeto vai
finalmente se tornar real.
A ideia do instituto surgiu quando Lorenzo atendia os pacientes que não
tinham condições de pagar um tratamento caro e que necessitavam de
atendimento prioritário, visto que a doença já estava avançada demais.
Apesar de saber que era legal o que estava fazendo, Lorenzo sabia que
aquilo não resolveria o problema em si. Ele apenas taparia buracos, apenas
maquiaria um problema que de fato era muito maior. Ele sabia que atendê-
los somente aos finais de semana não seria o suficiente, então teve uma
ideia. Ele montaria um local onde principalmente as crianças seriam
atendidas gratuitamente, com direito a médicos, psicólogos e até lugar para
ficar durante o tratamento, caso morassem longe. Ele havia colocado tudo
isso no papel, com detalhes incríveis, e havia me mostrado tudo isso muito
animado, mas o dinheiro é o maior problema. Agora, com a herança de sua
mãe, esse sonho parece muito mais perto de se concretizar. Eu só não sei
como falar para ele que Phelipe se dispôs a ajudar também. Acho melhor
guardar a informação para outra hora.
Abraço-o diante de seu sorriso que ainda espera uma reação minha.

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— Parabéns, meu amor — sussurro baixinho, me permitindo chamá-lo
de amor, o que acontece cada vez com mais frequência e naturalmente. Em
alguns aspectos, ficar todos esses anos sem ele foi bom para mim: fez-me
reencontrar comigo mesma. Eu aprendi a valorizar as pessoas à minha volta,
aprendi que eu poderia ser mais e melhor do que já era, mas o melhor de
tudo é que eu aprendi que pessoas mudam, crescem e se renovam todos os
dias. Pessoas se arrependem e merecem uma segunda chance, e eu estou
finalmente disposta a dá-la de todo o meu coração a Lorenzo, sem nunca
mais pensar nos erros que já passaram. Ele já me provou que o antigo
Lorenzo ficou aonde deveria estar: no passado. Agora é uma nova vida, e eu
quero que seja ao lado dele. — Nossa filha teria muito orgulho de você.

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CAPÍTULO 44
Nina

Phelipe empurra meu café sobre a mesa, deslizando-o até mim. Logo em
seguida, se senta ao meu lado, pensativo. Depois de alguns meses de
tratamento intensivo com psiquiatras, psicólogos, sessões de terapia em
grupo e todo tipo de ajuda, eu já sinto uma grande mudança nele. Claro que
ainda há momentos em que lidar com sua condição é um pouco difícil; ainda
há rompantes de raiva, mas eles são bem menos frequentes e sempre vêm
acompanhados de um arrependimento quase imediato. Aos poucos, ele está
encontrando seu lugar, e eu me sinto extremamente feliz por isso.
Uma pena que hoje será nossa despedida.
Ele me dá um sorriso triste. Inclino-me em sua direção e aperto sua mão
com força, por vários minutos que na realidade parecem horas. Estar com
ele é sempre assim, uma eternidade que eu adoro. Ele é meu melhor amigo, e
apesar de todos os contratempos e de toda a confusão de sentimentos, eu o
amo.
Ficamos assim, olhando um dentro dos olhos do outro, até que ele
suspira e endireita o corpo, quando finalmente resolve falar:
— Vou sentir tanto a sua falta. — Vejo seus olhos brilharem por conta
das lágrimas que ele segura. — Porra, como eu vou sentir a sua falta, Nina.
— Como um bom advogado, você está exagerando nas emoções, não
está? — Eu pisco e sorrio, quando na verdade quero chorar também. Mas a
intenção é que ele sorria comigo.
Funciona.
Depois de rir do meu jeito bobo, Lipe esfrega as duas mãos no rosto, e
após um momento de silêncio, diz:

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— Não estou exagerando não. Eu realmente vou sentir sua falta — ele
pausa, certificando-se de que está tomando a decisão certa. — Mas eu
preciso desse tempo. Preciso mudar de ambiente, sentir novas coisas,
conhecer novas pessoas. Preciso muito, para mim e principalmente para as
pessoas que eu amo e isso inclui você.
Eu assinto com um meneio de cabeça. De qualquer forma, eu me sinto
exatamente do mesmo jeito. Vou morrer de saudade.
Há alguns dias, Phelipe decidiu se mudar para a Alemanha. Irônico que
Lorenzo tenha voltado de lá e agora Lipe esteja indo. A vida e suas loucuras.
Depois de se comprometer a continuar o tratamento lá, ele convenceu a mim
e a sua família que novos ares lhe fariam bem. Ele iria dividir o apartamento
com sua irmã, Malu, e já tinha um emprego quase certo em um bom
escritório, tudo organizado previamente.
— Você tem certeza de que ir embora é o melhor, Lipe? — eu pergunto
mais uma vez, apenas querendo ter certeza de que ele está fazendo o certo.
Apesar de entender suas razões, eu ainda preciso me acostumar com a ideia
de não tê-lo mais por perto. Um sorriso triste se espalha lentamente por seu
rosto e ele me encara, como se quisesse memorizar cada detalhe meu.
— Tenho Nina, tenho sim. — É claro que ele tem certeza. Ele sempre
tem certeza de tudo. Vem planejando isso há semanas e deixando tudo
preparado, então nada do que eu diga ou faça o demoverá, e eu também não
quero isso. Quero que ele seja feliz, não importa onde. — Eu quero que você
seja feliz, Nina. Mesmo que para isso, eu não seja. E eu sei que comigo aqui,
você nunca será completamente feliz. Você sempre vai ter cuidado com meus
sentimentos, mas para isso, você irá sempre esconder os seus, como vem
fazendo há meses. Você é boa demais para se permitir machucar alguém,
Nina, mas para isso você não está vivendo a sua felicidade completamente.
— Lipe... — eu começo, achando que posso convencê-lo do contrário,
mesmo sendo tudo verdade. Eu estou sempre tendo cuidado ao sair com
Lorenzo, ou falar dele, ou simplesmente demonstrar minha felicidade. Eu só
não quero machucar meu amigo, porque eu sei que ele ainda me ama, e isso é
culpa minha, por ter começado algo que eu não terminaria, mesmo quando
ele me alertou sobre. — Não é assim... — Então ele me impede de continuar
falando, e de repente eu tenho a sensação de que meu coração está se
partindo.
— Isso não é um adeus, Nina, se é isso que você está pensando — ele
diz — É só um até logo. E nós vamos manter contato, eu prometo. Vou

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mandar fotos de lá e vou te atualizar sobre meu tratamento... — Ele sorri
mais abertamente dessa vez, tentando me convencer. — Mas eu preciso ir
para que você viva plenamente com quem você escolheu. Apesar de eu não
gostar do Lorenzo, e eu realmente não gosto, acredite — Ele enfatiza essa
parte com ardor —, eu não tenho direito de estar entre vocês, e você anda
perdendo tempo demais comigo. Eu não quero ser um empecilho à sua
felicidade.
— Você não é um empecilho, não fala isso.
— Tá vendo? Boa demais. — Ele bate na mesa, em tom de brincadeira.
— Agora vamos parar com esse melodrama e tomar nosso último café juntos
antes da viagem. Não quero perder nosso tempo precioso com drama
desnecessário.
Eu concordo, e ficamos ali por mais alguns minutos, aproveitando a
presença um do outro antes dele finalmente olhar no relógio de pulso e ver
que já está quase no horário de ir para o aeroporto.
— Tem certeza de que você não quer que eu vá até o aeroporto com
você? — pergunto, torcendo as mãos.
— Tenho sim. Você só vai se cansar à toa indo até lá — Ele sorri e
ajeita uma das malas no ombro, enquanto puxa a de rodinha com a outra mão.
Nós dois suspiramos e, depois de alguns segundos, finalmente nos
abraçamos. — Seja feliz, Nina. Eu vou tentar ser também.
Eu apenas concordo com a cabeça enquanto as lágrimas finalmente
caem. Vejo-o se distanciar e por fim entrar no carro. Depois de algum tempo,
quando ele sai, vejo sua mão sair pela janela, em um último aceno antes de
virar a esquina.
— Até logo, Lipe. Vou sentir sua falta — sussurro para mim mesma
antes de sair andando pela calçada, pensando em como serão as coisas sem
ele por aqui.Lorenzo

Coloco a mão para tentar cobrir o sol e olho para cima, enquanto
terminam de fixar o letreiro do Instituto. Parece que dentro do meu coração
há uma escola de samba, se levar em consideração o modo como ele bate
descompassado em meu peito. Um misto de euforia, alegria e realização.
Depois de meses de construção e muito planejamento, ele está quase pronto.
Leio as letras garrafais que se destacam em vermelho na fachada e sorrio.
Instituto Lorena de combate ao câncer e cardiopatias infanto-
juvenil.

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Por mais que não tenha sido o câncer que tenha levado minha pequena
Lorena, é isso que eu mais quero combater, então juntei tudo em um mesmo
lugar. Eu conheço tudo sobre esse mal terrível, e salvar crianças é o
objetivo, de qualquer forma. Nenhuma criança merece sofrer com algo tão
destrutivo.
Continuo observando a construção em silêncio, antes das engrenagens
do meu cérebro se voltarem a Nina. Queria que ela estivesse aqui para ver
os últimos retoques, mas nesse momento ela está se despedindo de Phelipe.
Ele irá se mudar para a Alemanha, para morar com a Malu, e sinceramente,
estou aliviado com essa decisão. Apesar de ele ser um cara legal, ele
sempre estaria entre Nina e eu – isso é um fato que meu antigo eu insiste em
apontar sem parar.
Eu sei que ela me ama, mas ele a ama. E eu sei que na minha primeira
derrapada ele estaria lá para dizer a ela: "Eu avisei".
Por mais que eu tenha a intenção de nunca mais errar com ela na minha
vida – e ainda assim não seria capaz de pagar por todos os erros que já
cometi – isso é imprevisível. Seres humanos são exatamente isso: humanos.
E humanos erram.
Às vezes erram tentando acertar.
Volto novamente minha atenção à construção: ela foi erguida com o
dinheiro da herança da minha mãe, mas muitos equipamentos médicos ainda
faltam. Eu já havia pedido ajuda em todos os lugares possíveis, mas o valor
deles é exorbitante. A herança da minha mãe só havia dado para a
construção, então ali a fonte havia secado. A prefeitura se negou a ceder
verba para isso, mesmo com todos os meus argumentos de que seria um
benefício para a cidade. Eu não conhecia ninguém que tivesse dinheiro o
bastante para me ajudar, e pedir para meu pai está fora de cogitação, mesmo
ele sendo o único a poder resolver isso em um estalar de dedos, e eu sei que
é isso que ele está esperando.
Mas eu jamais pedirei qualquer coisa a ele novamente. Estar tentando
perdoar minha mãe é uma coisa, porque ela demonstra todos os dias que
quer essa mudança. Ele não. Ele ainda é o mesmo homem frio e calculista de
sempre, e sinceramente, o que eu menos preciso agora é de todo o drama
dele na minha vida. Eu estou muito bem sem pai.
Muito melhor do que já estive em anos.
Enquanto me perco em pensamentos, olhando para a fachada e
imaginando como eu resolverei tudo o que ainda falta, ouço um suspiro ao

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meu lado. Viro-me o suficiente para encontrar Nina olhando na mesma
direção que eu. Seus olhos estão um pouco vermelhos e assim eu sei que
Phelipe já viajou. Por mais que me incomode essa falta que ela sentirá dele,
eu consigo entender. Ele esteve com ela quando eu não estive. Ele a ajudou
quando eu virei às costas. E por mais que ele tenha seus demônios, todos nós
temos. Uns piores, outros melhores, mas todos, sem exceção, temos.
— Ficou lindo — Ela volta sua atenção novamente à fachada do prédio
e então sorri. — Não vejo a hora de ver tudo isso funcionando, Lorenzo. Vai
ser lindo.
Abraço-a por trás, beijando seu pescoço, e ela se aninha em mim.
— Eu também não vejo a hora — Deixo escapar um longo suspiro de
frustração. — Mas eu realmente não sei quando isso vai acontecer, Nina. Eu
ainda não consegui o suficiente para os equipamentos mais importantes, e
sem eles simplesmente não dá pra começar a trabalhar. Eu estou aprendendo
que dinheiro não traz felicidade, mas é incrível como em certos momentos
ele faça tanta falta.
E então, sem dizer nada, ela tira um envelope pardo de dentro da bolsa
com cuidado e o estende para mim. Eu franzo a testa e o pego, abrindo a aba
superior para olhar lá dentro. São diversos documentos e eu não entendo.
Olho para ela esperando uma explicação, mas com um balançar de ombros,
ela apenas diz:
— Abra.
Puxo as folhas e rapidamente começo a ler. São notas fiscais. Notas
fiscais dos equipamentos médicos que eu tanto preciso para colocar o
instituto para finalmente funcionar. Eu olho de novo e de novo e de novo
para os papeis, querendo me certificar de que eu realmente estou lendo
direito. Quando eu ergo meus olhos para Nina, esperando que ela me
explique de onde tudo isso veio, ela apenas sorri,u e eu entendo na hora.
— É por isso que eu vou sentir tanta falta dele, Lorenzo — ela diz com
a voz embargada e não disfarça mais o choro iminente. — Apesar de todos
os seus problemas, ele é um ser humano incrível. Ele é meu amigo, meu
melhor amigo. — Eu suspiro e então a abraço, lhe dando conforto. Eu
entendo, é claro que eu entendo. Acho que depois dessa, até eu vou sentir
falta dele.
— Agradeça ao Lipe por isso.

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CAPÍTULO 45
Lorenzo

— Você tem certeza de que não quer contratar um pintor? — Nina me


olha em dúvida, segurando o riso, e eu finjo não ter entendido sua indireta.
Viro-me na escada, olhando para ela com falsa indignação. Seguro o pincel
molhado e olho novamente para a parede, analisando meu trabalho com
muita atenção, como se ele estivesse perfeito.
— O que você está querendo dizer? Eu acho que está muito bom, sabe?
— eu digo e ela ri novamente. Já faz alguns dias que estamos pintando nossa
casa, a casa que compramos depois de vários meses de muito esforço,
plantões e audiências sem fim. Trabalhamos como dois condenados para
conseguir dinheiro suficiente para ela. Eu continuo no hospital, mas agora
divido meu tempo com o Instituto também. Nina está trabalhando como
advogada em um escritório na cidade vizinha, e as coisas vão bem para ela,
que cresce a cada dia mais lá dentro, mostrando sua competência e ganhando
clientes. Phelipe insistiu milhões de vezes para que ela assumisse seu lugar
no escritório dos Medeiros, mas ela preferiu não misturar mais as coisas. Na
verdade, eu desconfio que ela ainda tenha esperança de que ele volte e
retome seu lugar, por isso ela não quer ocupá-lo. Gostando eu ou não, ela
ainda sente falta dele por perto, e esse é um fato que preciso aprender a
lidar.
— Levando em consideração que você nunca pegou um pincel na vida...
— Ela balança a cabeça, analisando novamente meu trabalho e termina a
frase, enfática: — Não, nem assim. Isso está péssimo, amor. Vamos contratar
alguém.
Eu desço da escada rindo. Ela tem razão, isso tá terrível. Quando
compramos a casa, ela estava bem destruída. Foi por isso que o preço foi tão

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ínfimo. Achamos que seria uma ótima ideia nós mesmos a reformarmos, mas
na teoria a coisa é muito mais fácil do que na prática. Nós já havíamos
trocado o piso, as portas e janelas. Falta ajeitar o jardim e a frente da casa,
que ainda está aberta. Ela não pode continuar aberta, afinal, nós queremos
um cachorro, oras, e cachorro não nasceu para ficar em coleira. E ah, claro,
a pintura. Mas a pintura claramente ficará para outra pessoa fazer. Uma que
entenda disso, o que não é meu caso.
— Não vejo a hora de finalmente nos mudarmos pra cá — digo,
enquanto sento no chão e puxo Nina para o meu colo, para observarmos
melhor ao nosso redor. Ela enlaça os braços em meu pescoço e sorri,
concordando. Sujamo-nos de tinta, mas nem ligamos.
— Nem eu. Tá ficando bom, não é? — Ela olha admirada para tudo o
que já fizemos, e sei que isso dá tanto orgulho a ela quanto dá a mim.
— Tá sim. A gente fez um bom trabalho — eu digo.
— Tirando a pintura — completa. Ela não me dará paz por causa disso,
eu sei.
— Claro, tirando a pintura.
[...]
Eu queria muito me casar com Nina. Casar como manda o figurino, com
igreja, música, véu, terno e noivinhos no topo do bolo. Queria uma festa,
convidados e uma lua de mel em algum lugar paradisíaco, como eu poderia
ter tido há alguns anos, se tivesse feito tudo certo.
Mas eu não fiz nada certo.
Então, depois de conversarmos muito, decidimos deixar as convenções
de lado. De qualquer forma, nossa felicidade não depende disso. Com o
dinheiro que tínhamos, compramos a casa, reformamos e mobiliamos.
Mudamo-nos para lá, adotamos um cachorro e começamos uma nova vida,
mesmo sem sermos marido e mulher no papel. Não que esse sonho esteja
descartado, não, não está.
Ele só foi adiado.
Felicidade não se mede por certidões ou por convenções.
Felicidade se mede por sentimentos. E isso temos de sobra.
Com minha vida se transformando completamente em algo que eu jamais
esperei, eu preciso apenas da segurança de saber que eu a teria sob o mesmo
teto todos os dias. Que dividiremos cama, contas, problemas e sonhos. Eu
preciso saber que chegarei em casa e ela estará lá, me esperando. Preciso
saber que olharei dentro dos seus olhos todos os dias e lá encontrarei

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perdão, como eu encontro sempre que a olho. Se eu tiver isso, eu não quero e
nem preciso de mais nada.
Meu pai me procurou algumas vezes nos meses que se seguiram. Ele
tentou a todo custo me levar novamente para o seu lado, mas eu nunca sequer
dei a chance, porque no fundo de seus olhos, eu vi que ele não mudou. Ele
sequer tentou. Acho que jamais mudará. Não se arrependeu de ter me criado
da forma como criou, não se arrependeu das traições, não se arrependeu de
não ter ajudado a própria neta. Ele ainda é o mesmo ser humano desprezível
de sempre. Diferente da minha mãe, que está tentando. Mesmo ela agindo tão
errado, eu a amo. E eu sei que ela está tentando de verdade, porque também
me ama. Durante toda a nossa vida, sempre esteve ao lado do meu pai e
nunca pensou em mim, mas agora eu sei que ela era tão manipulada quanto
eu. Apenas um fantoche nas mãos de quem dominava o poder. Graças a Deus
ela acordou a tempo. Graças a Deus acordamos a tempo.
E agora, poderíamos começar juntos uma nova relação.
[...]
— Você pensa em ter outros filhos? — Nina me pergunta enquanto se
aninha em meu peito, em nossa cama de casal. Abraço-a, trazendo-a mais
para junto de mim enquanto penso em sua pergunta. Sua perna nua se
entrelaça na minha e o calor de nossos corpos se funde, reacendendo meu
desejo por ela, como sempre acontece quando estamos assim.
Eu ainda não havia parado para pensar sobre isso, mas com certeza iria
querer outros filhos com ela. Não sei quando isso irá acontecer, mas eu
quero. Lorena sempre será insubstituível em nossa vida, mesmo que eu não a
tenha conhecido. Mas só de pensar em ter uma criança com os olhos de Nina
meu coração se aquece. Isso se parece muito com a felicidade completa e eu
sei que minha filha ficará feliz com um irmão ou irmã, aonde quer que ela
esteja.
— Quero sim — Beijo o topo de sua cabeça. — Quero muito ter
também uma segunda chance em relação a isso.
Um grande sorriso se espalha por seu rosto quando eu digo isso, e ela
então ergue seu rosto, me olhando dentro dos olhos.
— Quer mesmo?
Eu não entendo sua pergunta, mas confirmo:
— Claro meu amor. Nós estamos juntos para termos uma família. Eu não
vejo a hora disso acontecer. — Beijo sua boca suavemente, selando minha
frase.

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Ela sai do meu abraço e, se esticando toda, alcança a gaveta do criado-
mudo. Puxa de lá algo que eu não identifico e guarda nas mãos, como se
escondesse um segredo. Logo em seguida, para na minha frente, animada, e
com um sorriso enorme no rosto, me estende o que tanto escondia. É uma
pequena roupinha de bebê, branca, com os seguintes dizeres: "Estou
chegando, papai!".
Ergo meus olhos para Nina, ainda sem acreditar no que vejo. Releio a
frase uma, duas, dez vezes e só então jogo Nina na cama, me deitando por
cima dela e enchendo-a de beijos por todos os cantos do corpo enquanto
repito sem parar milhões de "obrigados".
Obrigado por me dar uma nova chance.
Obrigado por me ajudar a reescrever minha história.
Obrigado por confiar que tudo poderia ser diferente.
— Obrigado por existir — Eu finalmente consigo dizer, antes de voltar
a cobri-la de beijos.
Demorei anos, mas finalmente entendi que eu não seria feliz com meu
dinheiro se eu não estivesse em paz comigo mesmo. E para estar em paz
comigo mesmo eu precisei cair muitas vezes. Precisei atravessar o mundo
para perceber que a felicidade sempre esteve tão perto. Que meu lugar era
dentro de um abraço. Que eu precisava não só do cheiro e do gosto de Nina,
mas também do seu coração. De sua luz. De sua humildade. Eu me fiz um ser
humano melhor por ela e por minha filha. E agora também pela nova criança
que chegará.
Eu renasci em mim mesmo só pra merecer estar ao seu lado.
Eu não sou o príncipe perfeito, eu sei. Confesso. Mas isso não é um
defeito. Somos seres finitos, limitados, falhos, humanos. Cometeremos erros,
faremos pessoas sofrerem. Não há nada de errado em perceber que o amor
não é perfeito.
Porque o amor é imperfeição.
Amor é loucura. Amor é falha. Amor é revés, é catástrofe.
E mesmo em meio a tudo isso, às vezes ele dá certo.
Mas o amor, principalmente, é para quem tem coragem. Coragem de se
arrepender, de perdoar, mas principalmente, o amor é pra quem tem
coragem de recomeçar.
E nós tivemos.

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EPÍLOGO

— Eu adorei essa ideia de festa à fantasia, amor — digo sorrindo,


enquanto arrumo a luva de seda, puxando-a até a altura do meu cotovelo.
Ajeito a longa barra branca do vestido de noiva que estou usando e moldo a
grinalda em volta do meu – agora comprido – cabelo loiro. Apesar de gostar
muito dele curto, senti saudade das madeixas longas como na época em que
conheci Lorenzo. — As crianças do instituto estão superanimadas! Não vejo
a hora de ver as fantasias!
Lorenzo ajeita a gravata e consigo ver seu sorriso satisfeito pelo reflexo
do espelho. Por um segundo, penso que ele me esconde algo, mas balanço a
cabeça, mandando esse pensamento bobo para longe. Ele havia escolhido as
fantasias de noivo e noiva para nós e eu havia achado o máximo. Sentia-me
uma noiva de verdade com toda essa produção. Exatamente do jeito que eu
sonhei tantas vezes em me sentir.
— Sim, elas estão eufóricas. Acho que você vai amar. Elas me ajudaram
com todos os detalhes — ele concorda. Paro atrás dele e, com delicadeza,
arrumo a gravata que está travando uma batalha com as mãos do meu marido.
Ou quase marido. Ainda não nos casamos oficialmente, mesmo depois de
quatro anos vivendo juntos. Primeiro vieram as despesas da casa, depois as
despesas com Eric, nosso filho, e quando finalmente sobrou dinheiro
suficiente para o casamento, não tocamos mais nesse assunto.
A ideia foi ficando cada dia mais distante.
Mas de verdade, eu não me importo. Apesar de ser um sonho, ainda não
é o sonho mais importante.
O meu sonho mais importante eu já estou vivendo: eu sou feliz.
Extremamente feliz com quem escolhi para amar e com o meu filho, minha
riqueza, fruto desse amor.

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[...]
Quando as portas do salão do Instituto se abrem, eu me preparo para
encontrar todas as crianças fantasiadas, conforme Lorenzo havia me dito.
Espero ver uma enorme mesa de doces e música. Espero ver palhaços e
brinquedos. É para isso que eu estou preparada. Lorenzo havia organizado
uma festa à fantasia para comemorar os quatro anos do Instituto e eu havia
achado a ideia o máximo. Eu estava tão animada quanto as crianças.
Então é para isso que estou fantasiada, mais especificamente de noiva.
Uma linda noiva de mentira.
Mas quando as portas finalmente se abrem, eu não encontro uma festa à
fantasia.
Eu encontro um altar. Um juiz. Meu filho Eric, tão parecido com
Lorenzo, lá na frente, segurando uma caixinha com um par de alianças,
mesmo meio perdido no alto de seus três anos, sem entender muito bem o
que está acontecendo. Vejo minha mãe vestida sobriamente com um conjunto
claro e muito bem maquiada. A mãe de Lorenzo também está ali, do outro
lado do altar, e depois que nossos olhares se cruzam, o canto de sua boca se
eleva em um sorriso gentil. Ainda não somos amigas e, sinceramente, acho
que nunca seremos, porque o que ela fez meu coração nunca aceitará, mas
nos respeitamos em consideração a Lorenzo.
Olho para o lado, ainda sem entender, e todas as crianças do Instituto
estão lá, sorridentes, mas ao contrário do que eu pensei, elas não vestem
fantasias. Elas estão vestidas para uma cerimônia.
Um casamento.
Um lindo casamento de verdade.
— Lorenzo, eu não... — começo a falar, mas volto a olhar tudo
novamente. As flores no corredor, os flashes de luz piscando, a marcha
nupcial. — O quê? Como...? — eu tento falar, mas minha voz não sai.
— Eu te disse que nós teríamos o casamento dos sonhos um dia, não
disse? — Ele se inclina até mim e sussurra: — Nosso dia chegou. Eu sei que
não teria melhor lugar para você do que aqui. Eu sei o quanto você ama tudo
isso.
Meus olhos se prendem aos dele e eu quase não consigo acreditar. Ele
havia planejado tudo isso sozinho. Foi por isso que ele fez questão de
escolher nossas fantasias, foi por isso que Eric estava na casa da minha mãe
e foi por isso que ele passou dias e dias no Instituto até à noite, alegando ter
milhões de coisas para resolver.

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— Mas você disse que era uma festa à... — eu tento recomeçar a falar,
finalmente me dando conta de tudo o que está acontecendo, mas ele não me
deixa terminar.
— Eu menti — Ele sorri faceiro. — Eu sei que eu disse que nunca mais
mentiria para você, mas dessa vez foi por uma boa causa. E eu sei que você
quer conversar, mas será que a gente pode se casar primeiro? — Ele ri mais
alto dessa vez, me fazendo rir com ele. — As pessoas estão esperando.
— Claro, meu amor. — Eu olho para frente, encarando maravilhada e
confiante o que nos espera. — É tudo o que eu mais quero.
[...]
Da grande janela de vidro do nosso quarto, consigo ver o céu estrelado.
A noite está especialmente linda hoje, e eu sinceramente não sei se são pelas
estrelas que parecem se destacar mais no manto negro ou se porque agora
finalmente realizamos um sonho por tanto tempo adiado. Aproveitando esse
momento de distração em que me encontro, Lorenzo rola por cima de mim,
me prendendo na cama, envolvendo seus dois braços ao meu redor. Seus
lábios rapidamente estão nos meus, quentes e cheios de desejo. Ele me beija
por um longo tempo, ávido de mim, até finalmente se afastar.
— Eu sei que você queria viajar amor, mas eu realmente não posso
deixar o hospital — ele fala em tom de desculpa, mas eu o calo com um
selinho rápido.
— Qualquer lugar com você, Lorenzo, sempre será o paraíso. Não
importa se é aqui ou do outro lado do mundo, o melhor lugar sempre será
onde você estiver.
— Você entende que está passando sua lua de mel em casa? — ele
pergunta, como se quisesse ter certeza de que não estou chateada.
— E teria lugar melhor? — Eu me inclino para beijar seu pescoço,
consciente do desejo que se apodera de mim. Mesmo depois de algum
tempo, Lorenzo Leone ainda me atrai como um imã. — É aqui que eu sou a
mulher mais feliz do mundo.
Seu rosto se ilumina e um grande sorriso se abre. Consigo ver todo o
peso da culpa saindo de seus ombros. Eu sei que ele quer me dar mais do
que podemos ter, mas o que ele não sabe é que nada disso faz diferença para
mim. Ele já me dá mais do que eu poderia querer. Eu jamais trocaria o
Lorenzo que tem um coração de verdade pelo Lorenzo que tinha dinheiro.
Confesso que ainda há dias em que o Lorenzo de hoje me lembra muito
o de ontem. Não há como negar que às vezes, lembranças dolorosas do

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passado ainda vêm me visitar, mas nesses momentos, eu apenas olho para ele
e meu coração se aquieta. Eu ainda vejo aquele menino por quem me
apaixonei perdidamente, dentro de uma cafeteria, sem grandes esperanças. O
sorriso ainda é o mesmo, mas os olhos haviam mudado completamente:
agora há bondade neles.
Nós somos um casal como qualquer outro. Há dias em que eu quero
matá-lo e há dias em que eu mataria por ele. Há dias em que ele é meu
príncipe no cavalo branco e há dias em que ele é apenas a droga do cavalo e
eu quero sair correndo e desistir de tudo. Há dias em que ele me surpreende
com sua completa e total compreensão e há dias em que basta um telefonema
do Phelipe para desencadear a terceira guerra mundial aqui em casa. Quatro
anos depois, e ele ainda tem ciúme de um cara que está na Alemanha, noivo
e muito bem de vida, obrigada.
Como eu disse, somos um casal normal.
Deliciosamente normal.
— Então, que tal começarmos nossa lua de mel logo, hein? — ele
provoca, mordendo minha orelha e delicadamente me puxando para seu colo.
Ofego, buscando o ar que perdi, como sempre acontece quando estou em
seus braços, mas apenas alguns segundos depois, sou obrigada a me
recompor, pois nós temos visita.
— Mamãe — Eric entra pela porta, arrastando seu pequeno cobertor
azul marinho. Convivi muito pouco com a minha pequena Lorena, mas foi o
bastante para saber que se ela estivesse entre nós, teria o mesmo olhar do
irmão mais novo. Eric era muito parecido com ela quando nasceu, e por
várias vezes me peguei imaginando como seria tê-la aqui também. Depois de
sofrer várias vezes com isso, eu compreendi que ela estava feliz com nossa
felicidade, onde quer que estivesse. Sabia também que ela olhava por nós,
juntamente com meu pai. Tínhamos todas as ricas bênçãos dos nossos anjos
protetores sobre nós.
Ele para na beirada da cama, esperando que Lorenzo o puxe para junto
de nós. Após um sorriso de concordância, nosso filho vem parar no meio da
cama, envolvido em nossos braços.
— Acho que nossa lua de mel vai ter que ficar pra outra hora — eu
sussurro, me aninhando aos dois homens da minha vida, sentindo o melhor
cheiro do mundo. É aqui que eu amo estar, independente de qualquer coisa.
Estar com eles é o meu lugar.

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— Sem problemas, meu amor — Lorenzo beija meu cabelo e faz carinho
até que eu comece a adormecer, realizada por acordar Catarina Nascimento
e ir dormir Catarina Nascimento Leone. Porém, antes que o sono finalmente
me vença, ouço uma frase que me faz sorrir e ter certeza de que eu fiz a
escolha certa ao escutar meu coração e perdoar quem eu achava que não
tinha perdão: — Você foi meu motivo para voltar, Nina... Mas o mais
importante: você é meu motivo para ficar.
Ficar para sempre.

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BÔNUS
Happy Valentine’s Day

Lorenzo

— Ei, para onde você está me levando? — Nina segura com força meu
braço livre enquanto, com o outro, da forma mais silenciosa possível, eu
abro a porta do quarto que reservei para nós. Sei que é besteira tomar tanto
cuidado, já que em menos de um minuto vou tirar sua venda, mas eu gosto de
vê-la curiosa. É uma das maiores características de Nina. — Lorenzo, eu
estou ficando nervosa... — Ela tenta mais uma vez, mas sei que não está
nervosa coisa nenhuma, porque o risinho no canto da sua boca, mesmo que
ela tente a todo custo disfarçar, entrega o quanto ela adora esse tipo de
situação.
— Alguma vez eu já te decepcionei? — pergunto, mas no mesmo
segundo me toco do quão idiota foi essa pergunta e nós dois gargalhamos
alto, em sincronia.
Sua risada faz cócegas em meu queixo, e eu sorrio junto, porque adoro
esse riso. É tão verdadeiro. Tudo a respeito dela é verdadeiro. Ela é tão
aberta e sincera. Quando está chateada ou irritada, me diz. Se estiver triste
ou magoada, não esconde. Gosto disso, porque é o que me faz crescer como
ser humano desde que a conheci. E até hoje, mesmo depois de tantos anos
juntos, eu ainda consigo aprender com ela, todos os dias.
— Eu sei, pergunta idiota. — Baixo a cabeça para lhe dar um beijo, que
ela corresponde imediatamente. Seus lábios se demoram nos meus, e eu

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adoro isso. Adoro como o fogo nunca se apagou, em como mantemos tudo
ainda incrível entre nós como casal, desde um simples beijinho até os
momentos mais quentes. É como se os dias não passassem na casa dos
Leone.
Hoje é uma data especial para nós dois. Há quatorze anos, nós tivemos
nossa primeira noite de amor. A noite em que Lorena foi concebida. E apesar
de me sentir redimido de praticamente tudo o que fiz no passado, uma coisa
ainda martela em meu coração, e é por isso que estamos aqui hoje, no dia
internacional dos namorados, e coincidentemente, a data da nossa primeira
vez.
Antes de retirar sua venda, paro na frente dela e seguro seus braços,
olhando-a com carinho. Sei que ela sabe disso, é a forma que eu olho para
ela todos os dias, e por isso ela sorri de volta, mesmo sem me ver.
— Desde que eu voltei, nós tivemos muitas segundas primeiras vezes,
em todas as esferas da nossa vida. — Ajeito seu cabelo, colocando uma
mecha atrás de sua orelha. Agora ele está comprido como eu sempre gostei,
o que me lembra ainda mais a garota por quem me apaixonei na
adolescência, e isso torna tudo ainda mais real. — Nós reconstruímos nossos
sonhos, nos reapaixonamos, criamos novas memórias e tivemos outro filho.
Nós nos reconstruímos juntos, e eu sou muito grato por isso. Mas tem algo
que eu quero refazer com você, como se fosse a primeira vez... — digo isso
e meus dedos vão até a venda que cobre seus olhos, tirando-a. Quando Nina
abre os olhos e olha ao redor, registrando exatamente onde estamos, sua
boca se abre em admiração.
— É o quarto onde... — Ela me olha sem entender onde quero chegar.
Até eu sei que isso é meio louco, mas tudo em nossa história é, de qualquer
forma.
— Onde nós transamos pela primeira vez, quatorze anos atrás. —
Facilito para ela.
— O que estamos fazendo aqui, seu doido? — Ela ri, andando pelo
cômodo. Seus olhos se erguem para as flores no criado mudo, para o
champanhe em cima da mesa. Tudo está exatamente igual ao dia em que ela
me entregou sua inocência. Tudo o que estava ao meu alcance eu fiz, para
que ficasse o mais próximo do perfeito, e sei que está, porque eu tenho cada
toque, beijo e detalhe daquela noite fresco em minha mente. Por anos, aquele
momento passou por minha cabeça, como um filme ininterrupto, me
atormentando e me dando força para ir atrás dela e refazer minha vida.

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Ando até ela e a abraço por trás, beijando seu pescoço, fundindo meu
corpo ao seu, enquanto seu calor me abraça, deixando claro o quanto me
sinto vivo quando estou ao seu lado.
A carreira que eu abandonei na Alemanha jamais me faria sentir assim.
Mesmo que eu ame meu trabalho com minha própria vida, todos os dias eu
agradeço ao Deus que aprendi a acreditar por causa dela por ter tomado a
decisão certa, no momento certo.
— Quero te dar uma nova primeira vez, amor — sussurro em seu
ouvido, fechando os olhos enquanto pronuncio cada palavra. — Uma com
tudo o que você tem direito. É a única coisa que falta para que tudo aquilo
fique para trás. Eu só demorei demais para entender o que ainda me
incomodava, e era isso.
Ela se vira para mim, franzindo o cenho, aparentemente sem entender.
Depois, ergue suas mãos e toca meu rosto, antes de me dar um beijo suave.
— Mas aquela noite não foi ruim, Lorenzo. Na verdade, eu me agarrei a
ela milhares de vezes, sempre que eu precisava de uma boa lembrança sua...
Você foi gentil e suave aquele dia. Tratou-me com respeito, com delicadeza.
O menino que me amou naquela noite me lembra muito o cara incrível que
você é hoje. Acho que foi o primeiro sinal que você deu de que poderia ser
alguém melhor, se quisesse, se apenas se esforçasse um pouquinho.
— Eu sei... — Abaixo a cabeça, com vergonha das palavras que vou
dizer a seguir, mesmo que eu saiba que elas não têm mais o poder de
machucar minha mulher: — Mas naquele dia, apesar de tudo isso, eu menti
pra você, dizendo que te amava, te fazendo acreditar em mim, quando eu já
sabia que não ficaria. Aquela noite me machuca mais do que você pode
imaginar, Nina. Eu não fui sincero com você, não fui sincero com meus
sentimentos. Sinto que uma das noites mais importantes da nossa vida foi
uma mentira por minha causa, e quero substituir esse sentimento ruim dentro
de mim por uma lembrança boa. Eu quero, de uma vez por todas, ser
alguém que merece você, sem qualquer resquício de passado em minhas
costas.
Ela sorri, e então fica na ponta dos pés, com olhos arregalados enquanto
cuidadosamente toma meu lábio inferior em um beijo erótico, chupando
levemente. Apesar de sensual, eu conheço cada reação do corpo da minha
mulher, e sei que ela está tentando me dizer para seguir em frente. Se, para o
nosso bem, eu precisar refazer nossas memórias uma a uma, ela me dá seu
aval.

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— Não quero mais sentir isso, amor. Quero deixar para trás, como você
fez. Me ensina — eu sussurro, em uma súplica sofrida, e ela entende, dando
o primeiro passo para isso.
Se o que eu sinto desde que voltei para sua vida for apenas uma fração
do medo que ela sentiu esse tempo todo em que eu a machuquei, então eu
repentinamente entendo por que ela demorou tanto para me perdoar e confiar
novamente.
Amar dessa maneira, a ponto de sentir a dor do outro em si mesmo, é
assustador.
— Ensino — ela responde, beijando-me e agarrando minha mão,
tentando me fazer abraçá-la. — Mas agora, depois dessa declaração linda,
eu quero tanto você dentro de mim que mal consigo respirar direito.
— Porra, eu te amo — digo, com toda a certeza do mundo, diferente da
noite em que eu disse apenas para comê-la. Agora, esse amor toma tudo,
queima meu peito, expande meus horizontes, e é tão forte que chega a doer.
Ofego e me abaixo involuntariamente, tendo melhor acesso aos seus lábios e
pescoço. Subo minha mão por dentro de seu vestidinho curto de verão e
agarro seu seio, passando o polegar em seu mamilo.
— Eu também te amo. Muito mais do que na primeira vez. Muito mais
do que todos os dias anteriores. Cada dia mais — ela sussurra, beijando
meu queixo e descendo pelo pescoço. Sorrio com suas palavras, sentindo
meu coração martelar em meu peito, pois minha resistência se despedaça
nesse instante.
Abro a boca, grunhindo quando sinto sua língua doce deslizando sobre a
minha. Ela geme e então eu pego suas mãos, levando-as em volta do meu
pescoço. Desço as minhas, apalpando sua bunda deliciosa, subindo seu
vestido.
Depois de longos minutos nos beijando como adolescentes, encaixo os
dedos nas laterais de sua calcinha e delicadamente a desço, tirando-a pelos
seus pés com sua ajuda.
Ergo-me e abraço-a, levando Nina de costas até a cama no meio do
quarto. Deito-a e subo por cima dela, cobrindo seu corpo com o meu.
Enquanto tiro seu vestido, vou distribuindo beijos em cada pedaço que
alcanço, sentindo meu desejo aumentar a cada segundo. Olho maravilhado
para a visão do seu corpo nu ali, me esperando ansiosamente, e me sinto
realizado ao perceber que, mesmo quatorze anos depois da primeira vez em

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que a vi nua, a desejo com cada vez mais ardor. A cada dia que passa, fico
cada vez mais louco pela minha mulher.
Nina ofega quando beijo seu pescoço, e arranha meus ombros cheia de
vontade, pressionando a barriga contra minha ereção. Ofega de novo quando
eu me abaixo e levo minha boca até seu seio delicioso, chupando com toda a
minha fome.
Em cada gesto nosso, cada beijo, cada toque, cada olhar hoje, há a
esperança de que nós vamos, de algum jeito, navegar cegamente por esta
alusiva primeira vez.
E que depois de hoje, tudo será novo, como eu tanto desejo que seja,
há tantos anos.
Volto para sua boca, mergulhando nesta loucura, perdido na febre dos
seus beijos. Quando minha boca encosta na pele do seu rosto, a sinto
molhada pelas lágrimas que eu sei que ela está derramando, mas não
comento nada, pois meus olhos estão marejados também. Sei que é estranho
isso acontecer depois de anos que estamos juntos novamente, mas é como se,
pela primeira vez, tivéssemos maturidade e entendimento do quanto
caminhamos por estradas ruins e difíceis até chegar aqui.
Até chegar ao amor puro, como deveria ter sido desde a primeira vez.
Sinto esse alívio redentor descer pelo meu rosto também e misturar-se
em nossos beijos, em nosso carinho, em suas próprias lágrimas.
Imediatamente sinto o desejo ardente de estar dentro dela, de senti-la
por inteiro, de fazer tudo novo, e é nisso que me concentro.
Baixo minha mão e agarro a parte de trás de suas coxas, erguendo-a até
que ela envolva minha cintura com suas pernas. Sinto o calor macio de seu
interior e finalmente estou dentro da minha mulher, pressionando lá dentro e
saindo devagar, cheio de desejo e amor, me apaixonando mais uma vez pela
única mulher capaz de me fazer sentir, ouvindo seus gemidos roucos e
impacientes.
— A primeira vez foi um pouco mais difícil — murmuro contra a pele
de seu pescoço, me afundando com mais força dentro dela, fazendo suas
costas arquearem pelo prazer. — Acho que prefiro essa versão.
Ela ri, mordendo meu pescoço e agarrando meus ombros com força,
pedindo por mais. Aumento o ritmo, descendo minha mão e estimulando-a no
lugar certo, enquanto ela geme mais alto. O barulho de nossos corpos
batendo um contra o outro é excitante. Seu corpo treme levemente, e eu sei

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que ela está prestes a se quebrar debaixo de mim, da maneira linda como ela
faz toda vez que eu a amo.
— Lorenzo — ela geme meu nome, e nada me faz mais satisfeito. Eu
amo o modo como sua voz sai entrecortada, como se ela implorasse por
mim. Por meu corpo. Por nosso prazer. O prazer que só o nosso amor é
capaz de gerar em nós dois. Invisto mais forte dentro dela, parando quando
nossos quadris se encontram com força, e sei que isto acabará num instante.
E por conhecer minha Cinderela como a palma da minha mão, mais duas
estocadas rápidas e sua cabeça cai para trás, enquanto suas costas arqueiam
e ela agarra a colcha com os dedos frágeis, apertando com força.
Seu peito sobe e desce com pequenas respirações entrecortadas, e é
minha vez de me derramar dentro dela. Antes que eu consiga recuperar a
respiração, ela solta a mesma frase de sempre, que me faz sorrir e acreditar
que nosso sexo só melhora com o passar do tempo:
Sexo com amor não tem comparação, afinal.
— Caramba, amor — ela fala, a voz ainda engasgada pelo prazer.
Saindo de dentro dela, sussurro, antes de lhe dar um beijo na boca:
— Você também sente isso?
Nina balança a cabeça, dizendo sem palavras que sabe exatamente do
que estou falando.
— Diferente da primeira vez, isto não é apenas sexo — falo, beijando
sua garganta. — Essa sensação é tão maravilhosa que até dói, e é ela que eu
queria que você tivesse sentido àquele dia. E é assim que eu te prometo, meu
amor, que você vai se sentir toda vez que estiver comigo. Como se fosse uma
primeira vez, cheia de amor.
Ela sorri com meu comentário e então diz, provavelmente se lembrando
de que dia é hoje:
— Como sua eterna namorada? — É impressionante como ela consegue
ler minha mente e como seu sorriso consegue iluminar tudo ao meu redor,
como uma estrela guia.
E então eu lhe dou a única resposta possível:
— Exatamente. Como minha eterna namorada.
E quando ela assente, me jogando de costas na cama e subindo em cima
de mim, já pronta para a segunda rodada, eu sinto tudo finalmente se aquietar
dentro de mim. Sinto, finalmente, que esse é o primeiro dia de nossas vidas,
tendo mais do que esperança dessa vez. Tendo certeza de que eu posso, de

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uma vez por todas, ser tudo aquilo que Nina merece: um novo alguém, um
marido apaixonado, e por que não, seu eterno namorado.

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NOTA DA AUTORA:

Transtorno de Personalidade Borderline ou Personalidade limítrofe:


Indivíduos instáveis em suas emoções e muito impulsivos, com esforços incríveis para evitar
abandono (até tentativas de suicídio). Têm rompantes de raiva inadequada. As pessoas a sua volta são
consideradas ótimas, mas frente a recusas tornam-se péssimas rapidamente, sendo desconsideradas as
qualidades anteriormente valorizadas. Costumam apresentar uma hiper-reatividade afetiva, em que as
situações boas são ótimas ou excelentes, e as ruins ou desfavoráveis são péssimas ou catastróficas.
Vão da depressão à euforia em um único dia. O tratamento desses transtornos baseia-se na
Psicoterapia (de orientação analítica ou comportamental na maioria dos casos) e Psicanálise. Algumas
vezes deve-se também tratar outros transtornos que se desenvolvem juntamente com esses, e na
maioria das vezes, por causa desses. Aparece comumente depressão e ansiedade associados a esses
transtornos. A procura pelo atendimento é geralmente estimulada pelos amigos e familiares, que são
muito mais incomodados pelo transtorno que o próprio indivíduo. Não se pode esquecer que muitas
dessas características fazem parte dos traços normais de muitos indivíduos, e somente quando esses
traços são muito rígidos e não adaptativos é que constituem um transtorno, e que claro, devem sempre
ser diagnosticados e confirmados por um médico especialista.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer à minhas queridas leitoras e leitores, sejam do


Wattpad, da Amazon ou dos meus livros físicos. Vocês fazem todo o esforço
valer a pena, sempre.

Agradecer à Denise, por ser a beta e a primeira pessoa a reler essa


história e me garantir que ela era coerente, mesmo sabendo que eu estava
morrendo de medo de ela não estar fluindo. Fui em frente porque você me
motivou!

A duas pessoas muito queridas: Becca Pessoa, por ser minha revisora,
amiga, assessora e colo amigo quando eu mais preciso. E a minha amiga
Mari Vieira, por me inspirar no drama do Phelipe, e por depois de ler, dizer
o que eu mais precisava ouvir para respirar em paz. Meu respeito e gratidão
a vocês! Obrigada por ser quem são, e por estarem comigo em várias e
várias caminhadas que tive e que ainda terei.

A minha família e meus amigos que também são família, ao meu filho
que eu tanto amo e principalmente ao meu marido, por me mostrar o que uma
segunda chance pode significar na vida de alguém. Você me inspira todos os
dias.

A vocês, todo o meu amor,

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Cássia Carducci

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