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As lágrimas embaçam minha visão enquanto meus pés batem com força
no piso do aeroporto, fazendo um barulho que parece alto demais em meus
ouvidos, chamando a atenção de todos à minha volta. Corro com urgência,
como se o fato de chegar logo pudesse mudar a realidade. Não me preocupo
com os olhares que estou recebendo, e continuo esbarrando nas pessoas, sem
acreditar que isso está realmente acontecendo. Ouço alguns gritos de
repreensão e até umas palavras feias, mas sequer me atento a isso. A única
coisa que passa pela minha cabeça é que ele mentiu para mim. O desgraçado
mentiu para mim!
Lorenzo está indo embora.
Está indo embora do país sem me falar nada, sem fazer um único
comentário, e não é como se ele não tivesse tido tempo para isso. Ontem
mesmo, enquanto eu lhe entregava minha virgindade, sei muito bem que ele
poderia ter mencionado o mero detalhe de que seus dias no Brasil estavam
contados.
Meu Deus, isso só pode ser mentira.
Ele jamais faria isso comigo.
Quando finalmente chego ao embarque, o reconheço de longe. Os
ombros largos, os cabelos castanhos que eu tanto adoro acariciar, os braços
fortes que ontem me seguraram com tanta delicadeza. Ele está de costas, com
as malas ao lado. Além de seus pais, vejo que estão ali os pais de Phelipe e
também Maria Luíza, a amiga que ele disse que sempre foi apaixonada por
ele. Respiro fundo e percebo do que se trata: é uma despedida.
Uma grande despedida para a qual eu não fui convidada.
Conto até três e então suspiro, criando coragem para enfrentá-lo. Por
mais que eu queira nutrir uma esperança infantil de que tudo isso é um
— Ei, você é nova por aqui? — pergunto uma segunda vez, sem entender
se ela não quer me responder ou se é surda mesmo.
Ela ergue os olhos para mim, visivelmente surpresa ao perceber que a
pergunta é para ela. Ainda confusa, pisca, entre nervosa e quase petrificada.
Ela tem olhos lindos, castanho-esverdeados, em um tom meio mel, e o
cabelo castanho-claro, quase loiro, cai de lado em seu ombro, em um rabo
de cavalo preso bem alto.
— Na verdade não... — Ela finalmente esboça uma reação, sorrindo um
pouco tímida, de um jeito magnífico, e volta a abaixar a cabeça, servindo
meu café sem falar mais nenhuma palavra.
Como assim não é nova aqui? Eu não posso estar ficando louco.
— Mas eu nunca te vi — Viro-me surpreso e seguro o bule em sua mão,
impedindo-a de continuar colocando mais café onde notoriamente não cabe.
Ela acabará me ensopando desse jeito.
Coitadinha, está nervosa. Acho que posso entendê-la.
— Bom, eu trabalho aqui há dois anos — Ela se vira com o bule e volta
em direção ao balcão, mostrando que essa será sua única resposta e me
deixando com cara de bobo.
Ah, não tão rápido, gatinha assustada.
Levanto-me e vou atrás dela, me apressando em alcançá-la e me
colocando na sua frente, impedindo a passagem. Situações desesperadas
pedem medidas desesperadas, e eu preciso saber o nome dela.
Observo sua delicada mão tremer enquanto ela segura o copo de suco
que pedi para ela. Por mais maldoso que isso possa parecer, eu não consigo
evitar rir por dentro, porque chega a ser engraçadinha a sua reação, quase
fofa.
Pergunto-me se é esse o efeito que eu causo nas pessoas ou se ela está
apenas fingindo uma docilidade que julga capaz de me prender.
Se for a segunda opção, só tenho uma coisa a dizer: doce inocência.
Sou imune a isso. Imune a toda essa merda relacionada a amor, e
sinceramente, mesmo que ela seja linda, legal, divertida ou qualquer outra
coisa que eu descobrir nos próximos minutos de conversa, ela ainda será a
presa. A minha presa. E ela ainda acabará no banco de trás do meu carro de
luxo essa noite, no máximo no dia seguinte, se ela for muito difícil.
Ainda acho que ela deveria agradecer: ser comida em uma BMW não é
pra qualquer garota, ainda mais no caso dela, que provavelmente só terá essa
chance de chegar perto de uma na vida.
Forço-me a não pensar mais nessas coisas até o momento certo. Uma
coisa de cada vez, Lorenzo. Você é um Leone, e os Leone não se desesperam
nem no jogo, nem nos negócios e muito menos no amor.
Não que isso tenha qualquer chance de ser amor um dia.
— Mas me diz — Me estico mais para frente, tentando encontrar seus
olhos com os meus. Lá estavam eles: grandes, brilhantes e assustados. —
Você trabalha aqui há muito tempo?
— Dois anos, como eu te disse. Eu te vejo aqui há dois anos, Lorenzo.
— Ela ri e balança a cabeça, de um modo que eu acho bonitinho. — Não que
Acordo assustado, molhado de suor e sem ar, mais uma vez. Com a
respiração ofegante e o coração acelerado, tateio o lado vazio da cama, e
como sempre, rezo para estar no Brasil. Rezo para isso ser um sonho louco,
para ter uma nova chance de desfazer o erro que cometi, mas sei que não é.
Essa é minha realidade agora: Berlim é meu lar há oito longos anos.
No começo, eu me sentia livre e feliz. Sentia que tinha feito o que era
preciso para garantir o futuro que eu sempre quis, sem me importar com o
fato de ter quebrado alguns corações para alcançá-lo. Aproveitava as
melhores baladas ao lado dos amigos que fiz aqui e também de Maria Luiza,
a filha de alguns amigos influentes do meu pai que veio comigo para estudar.
Eu não pensava na vida que havia deixado. A verdade é que não havia muito
em que pensar. Eu achava aquilo tudo um marasmo sem fim, uma chatice e
uma breguice sem tamanhos. Eu amava minha nova vida.
Porém, com o passar dos meses, as coisas começaram a se tornar
repetitivas. A faculdade começou a tomar muito do meu tempo, e eu fui
amadurecendo com isso, mesmo que a força, mesmo sem querer amadurecer.
Lutei contra o que comecei a sentir, mas a cada dia que se passava, o
sentimento de vazio crescia dentro de mim.
A princípio, eu pensei que se tratava de uma depressão, mas com o
passar do tempo eu entendi que, na verdade, eu só estava caindo em mim e
Se existisse uma coisa que eu pudesse mudar em minha vida, essa coisa
seria meu passado.
Se há um arrependimento em mim, foi ter conhecido Lorenzo.
Não que eu possa mudar esse fato; eu sei que não escolhemos quem
conhecemos em nossa vida. É como o curso de um rio, cheio de curvas,
pedras, galhos... Coisas que são imprevisíveis de se encontrar pelo caminho.
Mas o desague desse rio é sempre no mesmo lugar, e isso é imutável. E foi
exatamente assim com ele: mesmo que eu tentasse não enxergar, eu sabia
muito bem aonde aquele rio iria desaguar. Eu só tentei não ver. Fiz-me de
cega porque era cômodo para mim. Achei que talvez, por um milagre, o fim
seria diferente.
A questão é que não escolhemos quem vamos conhecer, mas escolhemos
com quem vamos nos relacionar. Foi nessa parte que eu escolhi errado.
Não, extremamente errado. Vamos ser enfáticos aqui.
Mas é preciso ser justa: o tombo que levei conhecendo-o me fez ter
novos olhos para a vida. Eu não acredito mais em príncipes encantados que
se apaixonam à primeira vista, nem em plebeias que viram princesas.
Eles não existem. Nunca existiram.
O que existem são homens canalhas como Lorenzo e meninas idiotas
como eu.
Berlim
Quando você passa mais horas do dia do que se pode contar com
pessoas doentes ou à beira da morte, você aprende coisas que nunca
aprenderia de outra forma. Trabalhar na oncologia do hospital, mais
precisamente com os pacientes terminais – aqueles que nunca voltarão para
casa, que nunca mais se sentarão à mesa com a família ou que nunca mais
irão à missa no domingo – me fez entender algumas coisas sobre a vida.
Infelizmente, é uma dura realidade: eles estão ali para morrer. Apenas
esperando seu momento, que, rodeado por profissionais capacitados, virá
com o máximo de dignidade e respeito.
Eu vejo pessoas morrerem todos os dias bem debaixo dos meus olhos e
ouço mais confissões do que muitos padres por aí. Ouço todos os tipos de
arrependimentos daqueles que não podem fazer mais nada além de falar.
Foram esses arrependimentos que me fizeram repensar a vida que eu
levava.
Eu ouvi de muitos homens de negócios, ricos e importantes, que o
dinheiro e o trabalho nunca valeriam a família que eles perderam ao buscar
o sucesso. Muitos me confessaram, no leito de morte, que almejaram o topo,
mas ao chegar lá e olhar para trás, perceberam que estavam sozinhos.
Eu ouvi de muitas mulheres bonitas que o orgulho por ser bela nunca
seria páreo ao orgulho de ter saúde. Eu vi pessoas chorando de saudade, de
remorso... Eu vi pessoas morrerem segurando minha mão por não terem mais
ninguém além do médico para fazer isso por eles.
Ninguém queria estar lá por eles no final da vida, e isso é mais comum
do que se pode pensar.
Entro em casa descalça, cansada e irritada pelo fim horrível que uma
noite tão boa teve. Subo para o meu quarto, me sentindo humilhada e
vulnerável. Por que ele tinha que voltar? Por que ele tinha que me procurar?
Por que ele tinha que existir?
Faz oito anos!
Oito malditos anos desde que ele foi embora sem olhar para trás! Nunca
recebi um telefonema, uma carta, um e-mail, nada. Sequer um recado, um
gesto mínimo de humanidade e condolências por uma perda que,
teoricamente, também deveria ser dele. Então, por que ele tinha que voltar
logo agora e querer se enfiar na minha vida assim, como se nada tivesse
acontecido? Como se o lugar dele ainda estivesse aqui, guardado e seguro?
Arrasto-me até o banheiro, tiro minha roupa e entro no chuveiro quente.
Ergo o rosto para a água e fecho os olhos, esperando que esse banho lave de
mim essa sensação de vazio que nunca foi preenchida desde que tudo se
perdeu. O problema é que o ditado popular é verdadeiro: água e sabão lava
praticamente tudo, menos a maldade humana. E essa, está impregnada na
minha pele, como uma tatuagem que eu odeio e não aguento mais ver em
mim.
Esfrego-me com força, quase com raiva, enquanto penso em tudo o que
aconteceu hoje. Preciso tirar de mim esse cheiro de álcool misturado com
cigarro e perfume. Perfume de Phelipe e de Lorenzo. Por mais que pareça
loucura, eu sinto o cheiro dos dois ao meu redor, como um lembrete de que
eu estou em um lugar onde não deveria estar. Um lembrete igual ao que me
deram quando me aproximei de um Leone anos atrás, e eu ignorei.
Phelipe me pergunta pela segunda vez se minha comida está ruim, mas
eu demoro a entender suas palavras. Por mais que eu esteja aqui, na sua
frente, meus pensamentos não conseguem ficar alinhados. A volta de Lorenzo
tirou qualquer estabilidade que havia debaixo dos meus pés, e eu sinto uma
profunda raiva de mim por isso. Quero, de toda forma, tirar essa questão da
cabeça e dizer a mim mesma que não tem importância alguma, mas eu sei que
é mentira. Não que ele em si tenha qualquer importância, porque não tem.
Trata-se muito mais da bagagem emocional que ele trouxe junto consigo. Tê-
lo por perto me faz lembrar de tudo o que aconteceu. Ver seus olhos verdes
só me faz pensar em uma coisa: os olhos da minha filha eram exatamente
iguais.
Desde que ele foi embora, eu tenho tentado levar minha vida da forma
mais correta possível. Queria apenas esquecer tudo o que aconteceu e seguir
em frente. Mas como apagar a perda de um filho? Quem, em sã consciência,
após ver ultrassons, ouvir o coração e escolher um nome, simplesmente finge
que aquele ser nunca existiu dentro de si? Quem, após acolher em seus
braços um corpinho frágil, não sente que uma parte de seu coração bate fora
do peito?
É impossível.
Desde então, eu venho trazendo minha vida em piloto automático.
Programei-me para sair do meu antigo emprego e eu consegui. Programei-me
para estudar, batalhar e conseguir um bom cargo na minha área. Consegui.
Coloquei na minha cabeça que tentaria seguir em frente e ter uma vida
amorosa, consegui também.
Corrompida.
É assim que me sinto enquanto Lorenzo dirige em silêncio até a minha
casa. Sei que, a partir de hoje, meu modo de vê-lo mudará de alguma forma,
mesmo que eu não queira que mude, pois não posso simplesmente ignorar o
fato de que ele ficou o tempo todo ao lado do meu pai, e, principalmente, ao
meu lado. As últimas horas foram como se eu estivesse em um universo
paralelo, conhecendo um Lorenzo que eu não sabia que existia, porque essa é
a realidade: eu não sabia que esse Lorenzo existia. Profissional, ético, e,
principalmente... humano.
Algo que eu nunca achei que ele pudesse ser.
— Como você se sente? — ele me tira dos meus devaneios, me
assustando, à princípio, falando pela primeira vez desde que saímos do
hospital. Está cumprindo o combinado de "sem gracinhas", o que é
surpreendente para mim. O antigo Lorenzo nunca cumpria nada do que dizia.
Penso em responder algo como "não é da sua conta", mas, antes de
sequer abrir a boca, vi como seria infantil. Passei anos bradando aos quatro
cantos do universo que Lorenzo precisava crescer e amadurecer, mas talvez
eu precise também. Não que o que ele fez hoje apague qualquer coisa que ele
tenha feito no passado; a minha mágoa é enorme e minha dor maior ainda, e
talvez sejam coisas insuperáveis, mas o fato é: pessoas mudam. Situações
mudam.
O tempo, querendo ou não, passa.
Não tenho mais dezessete anos, então preciso passar a agir como uma
adulta, e não mais como uma garota.
Meus dedos correm livres pelos fios loiros de seu cabelo tão bonito.
São macios ao toque e o cheiro é agradável, uma mistura que parece ser
baunilha com morango. Não sei se esse cheiro vem de seu perfume ou de seu
shampoo, mas é bom, muito bom. Vejo-a fechar os olhos por uma fração de
segundo e eu sei, dentro de mim, que algum efeito ainda tenho sobre ela. Se
eu não tivesse, ela com certeza já teria se afastado ou gritado comigo; no
mínimo, me colocado para fora de sua casa debaixo de xingamentos.
Mas há algo aqui e é bom.
Quando ela abre novamente os olhos, eu sei que há dúvidas ali. Imagino
que ela esteja assustada com o que ela mesma sente a meu respeito, como se
não entendesse nossa relação conturbada, e, sendo completamente sincero,
nem eu mesmo entendo. Muitos anos se passaram desde o nosso término;
teoricamente, eu não tinha motivos para voltar para cá para tentar
reconquistá-la.
Na verdade, todos que sabem o motivo pelo qual voltei, me chamam de
maluco. No começo, nem eu mesmo entendi. Mas estando aqui, ao lado dela,
sei que há algo que nos une. Algo que desafia qualquer conhecimento que eu
tenha sobre a vida e o mundo. Eu apenas preciso estar aqui, com ela. Eu
apenas quero estar aqui. É como se eu nunca sequer devesse ter ido.
Aproximo-me mais um pouco e pouso meus braços em volta dela, um de
cada lado, prendendo-a junto de mim. Com o rosto cada vez mais próximo
do seu, vejo seus lábios rosados se entreabrirem, sem muita certeza do que
está fazendo. Quando penso em ir um pouco mais adiante, para enfim fazer o
que eu tenho vontade desde que voltei para esse fim de mundo, ela se afasta,
Minha garganta arde e meus olhos embaçam pelo choro contido. Mesmo
que doa, mesmo que me rasgue por dentro, a sensação de finalmente colocar
tudo o que eu sinto para fora justamente com a pessoa que me causou tanta
dor é impagável. Eu merecia esse momento. O momento de dizer a ele quanta
dor me causou. Se, para ele, ela não foi ninguém, para mim é a dor que
carrego em meu peito dia após dia. Se, para ele, saber da curta existência
dela foi apenas uma breve ocorrência em seu caminho cheio de glamour e
certezas, para mim foi a única coisa que me fez seguir em frente e lutar, lutar
com unhas e dentes para ser alguém de quem ela se orgulharia se ainda
estivesse comigo.
Se, para ele, ela nunca foi nada, para mim, ela sempre será tudo.
Tudo o que mais sinto falta. Tudo pelo que ainda sigo em frente.
Olho estupefata e desacreditada para a falta de reação em que se
encontra o rosto de Lorenzo. Como se ele realmente não soubesse de nada. O
teatro que ele desenvolve na minha frente é quase convincente. Digno de
palmas, até. Tão digno de palmas, que eu involuntariamente começo a
aplaudir.
— O que porra você tá fazendo? — Ele segura minhas mãos, nervoso,
mas eu ainda tento continuar. O ódio me move nesse momento. — Para!
Nina, para, porra!
— Tô aplaudindo essa sua atuação digna de Oscar, Lorenzo de
Alcântara Leone. Se você não fosse médico, deveria ser ator. Já pensou
nessa possibilidade? — sibilo as palavras enquanto praticamente sinto o
veneno escorrer pelo canto da minha boca, porque é assim que me sinto ao
Acordo com uma maldita dor nas costas e demoro alguns segundos para
me localizar. Uma dor de cabeça latejante rapidamente me traz ao ponto
principal: eu descobri coisas, briguei com meus pais, bebi e vim parar na
frente da casa de Nina.
E nós havíamos nos beijado. Um beijo que eu anseio desde que cheguei
a essa cidade.
Meu coração dá um salto dentro do peito, e internamente comemoro essa
pequena conquista. Sei que ela é realmente pequena; um beijo muitas vezes
pode não significar nada. Mas também sei que, se eu não fui expulso, é
porque ela também queria o que aconteceu.
Levanto-me devagar, tentando fazer o mínimo de barulho possível para
não acordá-la. Abro as portas dos armários em busca dos apetrechos para
fazer um café, e quando finalmente acho tudo, coloco as mãos à obra. Passo
um café bem forte e, depois de fuçar sem qualquer vergonha todos os seus
armários, acho algumas bolachas, que eu disponho em uma bandeja ali
mesmo, no balcão. Depois disso, vou para o banheiro e me arrumo da
melhor maneira que posso com o que tenho em mãos, pois meu primeiro
turno médico começa em menos de uma hora, e estando eu morrendo por
dentro ou não, preciso enfrentá-lo. Levando em consideração que é meu
primeiro dia de trabalho na nova clínica e que um dos pacientes é o pai de
Nina, não posso sequer pensar em me atrasar ou chegar de qualquer jeito lá.
Quando estou quase terminando de organizar tudo, ouço seus saltos
descendo a escada de cimento e olho para cima. Ela usa uma calça jeans de
lavagem clara, uma blusa azul marinho e um salto na mesma cor. Parece tão
Respire.
Apenas respire.
Olho para o lado e vejo a mãe de Phelipe sorrir para mim; um sorriso
cansado, mas com um leve toque de alívio por me ver aqui, e eu imagino o
motivo. Para ela, me ter próxima do filho é importante.
— Vou pedir para trazerem um suco para vocês — ela diz com aquela
habitual calma que eu já conheço, e eu sorrio, complacente. — E qualquer
coisa me chame. Ele está no quarto há dois dias, esperando você vir. Ele
disse que você havia prometido. — Ela dá de ombros e eu concordo com a
cabeça, entendendo muito bem seu sofrimento e seu cansaço.
— Eu só estava reunindo forças — me explico, mesmo sabendo que não
preciso disso, não com ela. — E pode ficar tranquila. O Lipe jamais me
machucaria.
Ela concorda, me dá um abraço e, quando se afasta, respiro fundo,
tomando coragem. Dou dois toques na porta, esperando uma resposta.
— Vai embora — ouço a voz pesada de sono de Phelipe através da
porta e fecho os olhos. Eu conheço essa voz e sei que é porque ele está
bebendo sem parar. Apesar de toda a minha vontade de dar meia volta e ir
embora, eu sei, mais do que nunca, que eu preciso fazer isso.
— Lipe? — falo e encosto o rosto na porta, esperando uma reação. —
Lipe, sou eu, a Nina. Posso entrar?
— Nina? — ele responde rapidamente: — Entra... Desculpa, eu... Eu
achei que fosse outra pessoa. — Ele se ajeita na cama quando eu finalmente
entro, e a escuridão do quarto me incomoda um pouco, mas eu decido não
falar nada. Apenas uma fresta da janela está aberta e uma pequena faixa de
Nina
Aceito o café que Phelipe me entrega com um sorriso, e então o vejo se
sentar à minha frente, segurando a sua própria xícara. Ele está da forma
como eu sempre costumava vê-lo: impecável em um terno marrom, distinto e
elegante como somente o Dr. Phelipe de Medeiros consegue ser. Vim
encontrá-lo no escritório para irmos juntos à sua primeira sessão de terapia.
Havia prometido que estaria ao seu lado e não menti quanto a isso. Por mais
que eu saiba que Lorenzo se incomoda, eu jamais deixaria de ajudar quem
tanto me ajudou.
Eu sei que o caminho não será fácil. Phelipe sempre estará com um pé
atrás com tudo e suas crises sempre serão difíceis de lidar, além de serem
completamente repentinas, mas com o tratamento certo, as coisas entrarão
nos eixos, ou algo parecido com isso, eu tenho certeza. Há muitas pessoas
por aí com o mesmo transtorno, eu pesquisei, e sei que conseguem levar
muito bem suas vidas com o devido cuidado, e com ele não será diferente.
Ninguém é culpado de se sentir assim. Ninguém é culpado de não estar bem.
— Como você está hoje? — pergunto e descanso a xícara na mesa,
torcendo por uma resposta positiva.
— Com um pouco de medo, mas estou conseguindo lidar — ele suspira.
— E também estou me sentindo mal... — Ele olha para a porta da sala no
escritório, onde ainda havia meu nome. — Não acredito que te demiti por
puro ciúme. Eu sou um babaca.
— Ei, ei. Sem sentimentos depreciativos. Já conversamos sobre isso. —
Dou de ombros. — E foi melhor assim, Lipe. Não daria certo trabalharmos
Lorenzo
As últimas palavras de minha mãe me atingem como um soco no
estômago. Ela está certa. Odeio admitir, mas é verdade. Pode muito bem ser
mais um joguinho sujo dela, contudo, é uma verdade inconveniente, e eu
odeio verdades inconvenientes. Quem sou eu para achar que ela não merece
uma segunda chance quando eu tinha acabado de ganhar uma da pessoa que
eu mais magoei na vida?
Eu não sou nenhum pouco melhor do que ela.
— Eu sei que não é fácil, Lorenzo. Mas me escuta — Ela se aproxima e,
pela primeira vez, eu deixo que me toque. — Eu vim até o hospital ontem à
sua procura, mas como eu não te achei, conversei com Raul. Ele me contou
sobre o projeto que você faz aos finais de semana e agora eu sei... — Ela
torce as mãos. — Eu sei que você está sem salário, e eu mal dormi pensando
em como está sua vida agora, filho. Você, que sempre teve tudo o que quis...
Tudo de melhor que o dinheiro pode comprar. Você não vai conseguir viver
assim. — Ela pensa um pouco antes de falar, provavelmente temendo minha
reação, mas finalmente diz: — Eu queria que você aceitasse a parte da
herança que você tem direito. É o mínimo, depois de tudo.
— Eu não quero o dinheiro de vocês.
Phelipe empurra meu café sobre a mesa, deslizando-o até mim. Logo em
seguida, se senta ao meu lado, pensativo. Depois de alguns meses de
tratamento intensivo com psiquiatras, psicólogos, sessões de terapia em
grupo e todo tipo de ajuda, eu já sinto uma grande mudança nele. Claro que
ainda há momentos em que lidar com sua condição é um pouco difícil; ainda
há rompantes de raiva, mas eles são bem menos frequentes e sempre vêm
acompanhados de um arrependimento quase imediato. Aos poucos, ele está
encontrando seu lugar, e eu me sinto extremamente feliz por isso.
Uma pena que hoje será nossa despedida.
Ele me dá um sorriso triste. Inclino-me em sua direção e aperto sua mão
com força, por vários minutos que na realidade parecem horas. Estar com
ele é sempre assim, uma eternidade que eu adoro. Ele é meu melhor amigo, e
apesar de todos os contratempos e de toda a confusão de sentimentos, eu o
amo.
Ficamos assim, olhando um dentro dos olhos do outro, até que ele
suspira e endireita o corpo, quando finalmente resolve falar:
— Vou sentir tanto a sua falta. — Vejo seus olhos brilharem por conta
das lágrimas que ele segura. — Porra, como eu vou sentir a sua falta, Nina.
— Como um bom advogado, você está exagerando nas emoções, não
está? — Eu pisco e sorrio, quando na verdade quero chorar também. Mas a
intenção é que ele sorria comigo.
Funciona.
Depois de rir do meu jeito bobo, Lipe esfrega as duas mãos no rosto, e
após um momento de silêncio, diz:
Coloco a mão para tentar cobrir o sol e olho para cima, enquanto
terminam de fixar o letreiro do Instituto. Parece que dentro do meu coração
há uma escola de samba, se levar em consideração o modo como ele bate
descompassado em meu peito. Um misto de euforia, alegria e realização.
Depois de meses de construção e muito planejamento, ele está quase pronto.
Leio as letras garrafais que se destacam em vermelho na fachada e sorrio.
Instituto Lorena de combate ao câncer e cardiopatias infanto-
juvenil.
Lorenzo
— Ei, para onde você está me levando? — Nina segura com força meu
braço livre enquanto, com o outro, da forma mais silenciosa possível, eu
abro a porta do quarto que reservei para nós. Sei que é besteira tomar tanto
cuidado, já que em menos de um minuto vou tirar sua venda, mas eu gosto de
vê-la curiosa. É uma das maiores características de Nina. — Lorenzo, eu
estou ficando nervosa... — Ela tenta mais uma vez, mas sei que não está
nervosa coisa nenhuma, porque o risinho no canto da sua boca, mesmo que
ela tente a todo custo disfarçar, entrega o quanto ela adora esse tipo de
situação.
— Alguma vez eu já te decepcionei? — pergunto, mas no mesmo
segundo me toco do quão idiota foi essa pergunta e nós dois gargalhamos
alto, em sincronia.
Sua risada faz cócegas em meu queixo, e eu sorrio junto, porque adoro
esse riso. É tão verdadeiro. Tudo a respeito dela é verdadeiro. Ela é tão
aberta e sincera. Quando está chateada ou irritada, me diz. Se estiver triste
ou magoada, não esconde. Gosto disso, porque é o que me faz crescer como
ser humano desde que a conheci. E até hoje, mesmo depois de tantos anos
juntos, eu ainda consigo aprender com ela, todos os dias.
— Eu sei, pergunta idiota. — Baixo a cabeça para lhe dar um beijo, que
ela corresponde imediatamente. Seus lábios se demoram nos meus, e eu
A duas pessoas muito queridas: Becca Pessoa, por ser minha revisora,
amiga, assessora e colo amigo quando eu mais preciso. E a minha amiga
Mari Vieira, por me inspirar no drama do Phelipe, e por depois de ler, dizer
o que eu mais precisava ouvir para respirar em paz. Meu respeito e gratidão
a vocês! Obrigada por ser quem são, e por estarem comigo em várias e
várias caminhadas que tive e que ainda terei.
A minha família e meus amigos que também são família, ao meu filho
que eu tanto amo e principalmente ao meu marido, por me mostrar o que uma
segunda chance pode significar na vida de alguém. Você me inspira todos os
dias.