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Índice

Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Acho que ele vai me beijar hoje à noite.
Se ele não beijar, sou capaz de morrer. Esse é o nosso segundo
encontro e estamos estacionados em um cinema drive-in, fingindo
assistir a um filme e ao mesmo tempo trocando olhares furtivos. O
filme tem duas horas e cinco minutos de duração. Passamos uma
hora e cinquenta e cinco minutos sem nos beijar. Não quero parecer
desesperada, mas não contornei um terço do meu corpo com
tamanha quantidade de iluminador para não deixar sequer um
pouco do pó na camisa dele. Se tudo correr conforme o planejado,
ele voltará mancando para casa esta noite, com o cabelo todo
desgrenhado e uma quantidade suficiente de iluminador nas roupas
que irá fazê-lo refletir a imagem dos carros que estiverem passando.
Ele vai ficar com o cheiro dos meus feromônios por uma semana,
não importa o quão forte ele se esfregue no banho.
Não tenho sido discreta com as insinuações. Estou lambendo,
mordiscando e tocando meus lábios preguiçosamente para chamar
atenção para eles – conselho que li na revista Cosmopolitan. Meu
gloss brilhante foi fabricado em um laboratório, com a função de
atrair as bocas masculinas, tão eficaz quanto o abrir das penas de
um pavão. Os instintos primitivos de Nicholas não serão capazes de
resistir. O gloss também é como um ímã para o meu cabelo, pois
continuo sentindo o gosto de laquê extra-fixador em minha boca, é
que às vezes a beleza exige sacrifício. Além de todas essas coisas,
minha mão esquerda está descansando distraidamente sobre o meu
assento, a palma para cima, para dá-lo o máximo de acessibilidade
caso ele queira pegar minha mão e me levar para sua casa.
Minhas esperanças começam a murchar quando ele olha para
mim e rapidamente desvia os olhos. Talvez ele seja o tipo de pessoa
que vai a um cinema drive-in para realmente assistir ao filme. Talvez
ele simplesmente não esteja no clima, por mais que eu odeie cogitar
isso. Não seria a primeira vez que um galanteador charmoso se
despediria de mim com um beijo de boa noite e desapareceria da
minha vida bem quando eu achei que as coisas estavam ficando
boas.
E então eu vejo: um sinal de que ter mastigado o meu cabelo
durante toda a noite não foi em vão. O sinal chega na forma de uma
embalagem de balinha vazia colocada no porta-copos. Eu
sutilmente farejo o ar e, caramba, é definitivamente cheiro de
amoras-pretas. Verifico o porta-copos novamente e é ainda melhor
do que eu pensei. Duas embalagens vazias! Ele comeu duas! Um
homem não chupa duas balinhas a menos que esteja se preparando
para tomar uma pequena atitude.
Meu deus, esse homem é tão bonito que estou metade
convencida de que, de alguma forma, eu o manipulei a fazer isso.
Gosto de cada detalhe sobre Nicholas. Ele não esperou três dias
para ligar após o primeiro encontro. Todas as mensagens dele são
escritas de forma gramaticalmente correta. Ainda não recebi uma
nude não solicitada do pau dele. Já quero reservar um salão de
baile para nossa recepção de casamento.
— Naomi? — ele diz, e eu pisco.
— Sim?
Ele sorri. É um gesto tão adorável que eu sorrio também.
— Você me ouviu?
A resposta é não, porque estou aqui, admirando o perfil de seu
rosto e apaixonada demais por essa parte dele, mesmo ainda
estando bem no início do nosso... eu não posso nem chamar isso de
relacionamento. Só tivemos dois encontros. Controle-se, Naomi.
— Costuma viver muito no mundo da lua? — ele supõe.
Eu me sinto corar.
— Sim. Desculpa. Às vezes as pessoas falam comigo e eu sequer
percebo.
Seu sorriso se alarga.
— Você é fofa.
Ele me acha fofa? Meu coração palpita e se acende. Eu faço um
discurso de agradecimento mental aos meus cílios postiços e para a
blusa decotada (mas elegante) que estou vestindo.
Ele inclina a cabeça, me estudando.
— Eu estava dizendo que o filme acabou.
Ergo minha cabeça na direção do telão. Ele tem razão. Não faço
ideia de como o filme terminou e não conseguiria dizer quais foram
os principais pontos da trama. Acho que era um romance, mas
quem se importa? Estou muito mais interessada no romance
acontecendo dentro deste carro. O estacionamento agora está
deserto, garantindo a nós dois privacidade suficiente para fazer
minha imaginação ir à loucura. Qualquer coisa pode acontecer.
Somos apenas eu, Nicholas, e...
O cardigã rosa perfeitamente dobrado no banco de trás, que
obviamente pertence a uma mulher, e essa mulher não sou eu.
Meu estômago embrulha e Nicholas acompanha o meu olhar.
— Isso é para minha mãe — ele diz rapidamente. Não fico muito
convencida até que ele me mostra um cartão que diz “FELIZ
ANIVERSÁRIO” embaixo da peça de roupa, o qual ele assinou e
adicionou uma mensagem pessoal. Te amo, mãe! Eu desmaio por
dentro.
— Isso é muita gentileza sua — digo a ele, perfeitamente ciente
do clima isolado e íntimo dentro do carro. Estou uma bagunça,
sentindo borboletas no estômago, e as embalagens de balinhas
descartadas continuam atraindo o meu olhar. O filme acabou, então
o que ele está esperando? — Obrigada por me trazer aqui. Não há
muitos cinemas drive-ins sobrando hoje em dia. Provavelmente
apenas uns dois em toda a região Meio-Oeste.
É ainda mais raro encontrar um que funcione durante todo o ano.
Felizmente, recebemos um aquecedor elétrico de cortesia para
compensar a insanidade de fazer algo assim em pleno janeiro. Há
alguns cobertores estendidos sobre nós e, para um encontro
inusitado no inverno, tem sido surpreendentemente aconchegante
até agora.
— Na verdade, restam oito no estado — diz ele. O fato de ele
saber essa curiosidade de cabeça é impressionante. — Está com
fome? Tem uma barraca de iogurte congelado aqui perto que vende
o melhor iogurte congelado que você já tomou na vida.
Eu não sou muito fã de iogurte congelado (especialmente quando
o tempo está frio), mas de jeito nenhum vou ser nada menos que
agradável. Ainda não nos conhecemos muito bem, e se eu quiser
conseguir um terceiro encontro, precisarei parecer o tipo de pessoa
fácil de agradar. Sou a Naomi tranquila, divertida de se ter por perto
e definitivamente divertida de se beijar. Talvez depois do iogurte
congelado ele me beije. E possivelmente desabotoe a camisa.
— Parece uma ótima ideia!
Em vez de colocar o cinto de segurança e ligar o carro, ele hesita.
Mexe nos botões do rádio até que o barulho de interferência
sintoniza em uma animada música indie chamada “You Say It Too”.
Me dou conta de que ele ficou tão quieto assim porque está
nervoso, não desinteressado, o que me surpreende, porque até
agora ele não demonstrou nada além de confiança. Há um certo
clima no ar e minha pulsação acelera com a intuição do que está por
vir. O ritmo da minha corrente sanguínea se torna um canto. Sim!
Sim! Sim!
— Você é linda — diz ele com seriedade, virando-se para me
encarar por completo. Seus olhos parecem hesitantes enquanto ele
morde a bochecha, e eu fico surpresa ao notar que ele é quem está
nervoso. Meu coração saltita quando ele se inclina dois centímetros
para mais perto de mim. Então, mais outro. Seus lábios se abrem, o
olhar desce para a minha boca, e, simples assim, eu não consigo
mais lembrar de nenhum outro homem que já namorei, Nicholas os
ofuscou completamente. Ele é inteligente, charmoso e perfeito,
absolutamente perfeito para mim.
Meu coração agora está alojado firmemente na garganta. Seus
dedos acariciam meu cabelo, inclinando minha cabeça para
encontrar a dele. Nicholas se aproxima mais um último centímetro e
ilumina meu mundo como uma estrela cadente; ansiedade e
admiração e uma sensação de tremenda certeza correm em minhas
veias. Ele me beija e eu me torno um caso perdido, como eu sabia
que aconteceria.
Que noite mágica e extraordinária.
Que dia feio e horrível. A chuva escorre pelo para-brisa do carro
(também horrível) do meu colega de trabalho, carro esse que cheira
a batatas fritas frias do McDonald's e a pinheiros. Leon tamborila as
pontas dos dedos no volante, inclinando-se um pouco para a frente
para olhar a estrada. Seus limpadores de pára-brisa estão
balançando de um lado a outro com todo o vigor, mas a chuva está
caindo como se alguém tivesse partido o céu ao meio e um oceano
tivesse começado a rugir.
— Mais uma vez, obrigada pela carona.
— Sem problemas.
Pressiono meus lábios e inalo o aroma de pinheiro
desabrochando. Seja lá qual for a essência que ele tenha borrifado
aqui dentro antes de eu entrar, vai ficar grudada em mim pelo resto
do dia. Não sei muito sobre Leon, então é perfeitamente possível
que haja um cadáver no porta-malas e que o spray de pinheiro
tenha sido usado para disfarçar o cheiro.
— Está chovendo bem forte — eu digo. Brandy não pôde me
levar para casa porque a irmã dela passou mais cedo para buscá-la.
Zach foi de moto hoje, coisa pela qual aposto que ele se arrepende
de ter feito. Melissa se ofereceu para me dar uma carona,
claramente esperando que eu recusasse, e foi por isso que recusei.
Eu meio que me odeio por ainda querer que ela goste de mim. Ela
tem agido de forma irracionalmente antipática comigo desde que eu
a arranjei com o amigo do meu noivo, que no fim das contas era um
infiel em série. Ela acha que Nicholas e eu sabíamos que ele era o
tipo de homem infiel desde o começo, e que nós dois destruímos a
confiança dela nos homens de propósito.
— Sim, parece que vai chover a semana toda.
— É uma lástima para quem planeja sair para pedir “doces ou
travessuras”.
Leon se vira para mim por um instante, antes de seus olhos
voltarem para a estrada. Ou para o que ele consegue enxergar dela
– francamente, não sei como ele ainda está dirigindo, porque eu não
consigo ver nada. Até onde sei, poderíamos estar passando por
cima da grama de alguém. É fim de outubro e faz quatro graus. Na
semana passada, eu estava de shorts. Na anterior, estava tão frio
que quase nevou. Outonos em Wisconsin são uma maravilha.
— Você vai distribuir doces? — Leon pergunta.
A resposta deveria ser óbvia. Eu amo doces e amo crianças,
especialmente garotinhos irritantes, porque os acho engraçados. Eu
também adoro o outono. Durante todo o mês tenho usado as cores
marrom-alaranjadas cintilantes da minha paleta de sombras, na
tentativa de dar às minhas pálpebras o mesmo brilho de um sol se
pondo suavemente sobre um canteiro de abóboras.
O chão do meu quarto está uma bagunça de suéteres macios que
fazem eu me sentir como uma capitã da marinha, botas de cano alto
e infinitos cachecóis. Cada refeição minha contém um toque de
tempero feito com abóbora. Quando não estou ingerindo abóbora,
estou inalando-a como uma viciada, revestindo todas as superfícies
livres da minha casa com velas aromáticas que cheiram a comida.
Torta de maçã, torta de abóbora, tempero feito com abóbora,
abóbora com maçã.
Minha beleza é assumida e determinadamente básica. Parte
dessa afirmação veio de uma senhora que estava no caixa de uma
loja da MAC e me disse que eu sou como um outono, por causa dos
meus olhos cor de âmbar e cabelos longos e lisos da cor de nozes,
mas sei – bem no fundo da minha alma admiradora de folhas secas,
apaixonada por gorros e por se empanturrar de abóbora – que
mesmo que eu tivesse um subtom neutro de pele, eu continuaria
sendo o tipo de garota básica e nada original. Está no meu DNA.
E ainda assim, não estou a fim de distribuir doces no Halloween.
Nem decorei a casa, o que costumava ser uma das minhas coisas
favoritas para se fazer no início de uma estação. É provável que eu
acabe passando a noite sozinha, de moletom, assistindo a
programas ruins na TV, enquanto Nicholas estará jogando Gears of
War na casa de um amigo, ou então iremos para a cama antes das
nove da noite, depois de distribuir fio dental e escovas de dente
baratas para crianças desapontadas.
— Talvez — digo por fim, porque não me importo mais com as
coisas que eu faço. Eu poderia estar andando de montanha-russa
ou escrevendo uma lista de compras e meu nível de entusiasmo
seria o mesmo. Pensar nisso me deprime, mas o que me deprime
ainda mais é que não vou fazer nada para mudar isso.
— Eu distribuiria se morasse em uma rua mais movimentada —
ele responde. — Onde eu moro não aparece nenhuma criança
pedindo doces ou travessuras.
Não existe isso de rua movimentada em Morris. Somos um lugar
tão pequeno que seria difícil nos encontrar em um mapa com todas
as cidades de Wisconsin. Temos apenas dois semáforos.
Faróis piscam, pneus cospem ondas de água como se fossem
Moisés abrindo o Mar Vermelho. Se eu estivesse dirigindo,
definitivamente teria parado há muito tempo em algum
estacionamento e esperado a chuva passar. Mas Leon parece
completamente tranquilo. Eu me pergunto se ele mantém essa
mesma expressão agradável quando corta as pessoas em pedaços
e desliza seus restos gotejantes de uma tábua de cortar para o seu
porta-malas.
Não que Leon tenha me dado algum motivo para ficar
particularmente desconfiada dele. Eu deveria fazer perguntas
educadas sobre onde ele mora ou algo assim, mas estou de olho
nos números brilhantes do relógio digital dele e me perguntando se
Nicholas já chegou em casa, porque espero desesperadamente que
não. A Ferro Velho abre às dez e fecha às seis todos os dias, exceto
aos sábados, dia em que funciona das onze às sete.
Nicholas é dentista e trabalha em uma clínica odontológica
chamada Rise and Smile, situada na Langley, a estrada principal em
que estamos agora, e sai do trabalho às seis. Normalmente eu
chego em casa primeiro, porque ele passa na casa dos pais para
entregar um café à mãe ou ler alguma carta confusa que ela
recebeu pelo correio, ou para resolver seja lá qual for a reclamação
que ela tenha para fazer a ele em um dia qualquer. Se ela passar
mais de vinte e quatro horas sem vê-lo, o sistema operacional dela
falha.
Essa manhã descobri que um dos meus pneus estava
completamente vazio. Parada ali, olhando para a peça, fui
transportada a um ano atrás, quando Nicholas comentou que
precisava me ensinar a trocar pneus. Ofendida por sua suposição
de que eu não sabia como trocar um pneu, esclareci os fatos e o
informei que eu já sabia fazer isso há anos. Sou uma mulher
moderna, responsável e autossuficiente. Não preciso de um homem
para me ajudar na manutenção de veículos.
A questão é que, na verdade, eu não sei como trocar um pneu. O
tempo hoje de manhã estava agradável e eu não tinha ideia de que
iria chover, então decidi vir andando – o que me traz de volta à
minha situação atual, no carro de Leon, porque de jeito nenhum eu
voltaria andando para casa. O suéter que estou usando é feito de
caxemira.
Minha pequena mentira sobre saber trocar pneus saiu um pouco
do controle quando o pai de Nicholas, que tem crenças
deploravelmente antiquadas, comentou que mulheres não sabem
como trocar o óleo de automóveis. Em resposta, eu disse: “Pera lá!
Eu troco o óleo do meu carro o tempo todo”. Eu disse isso pelo bem
do feminismo. Ninguém pode me culpar. E então talvez eu tenha me
gabado de que uma vez eu mesma coloquei os amortecedores e
pastilhas de freio no meu carro e que nunca precisei da ajuda de um
mecânico, nunca. Sei que Nicholas está desconfiado e tem tentado
me pegar no flagra sempre que meu carro precisa de reparos.
Convenientemente, sou uma mecânica especialista apenas quando
ele está no trabalho, então ele nunca me vê em ação. Eu vou
sorrateiramente à Morris Auto, como se fosse uma criminosa, e
pago Dave em dinheiro. Dave é gente boa. Ele prometeu nunca me
dedurar e me deixa levar o crédito pelo trabalho dele.
Com toda essa chuva, todos os prédios na estrada Langley
parece uma mancha fria e azulada. Passamos pela Rise and Smile
e é como se o lugar fosse uma pintura do Claude Monet, e rezo para
que Nicholas não tenha uma visão de águia que milagrosamente o
possibilite de me ver no banco do passageiro de um carro estranho.
Se ele ficar sabendo que eu não fui dirigindo para o trabalho hoje,
vai perguntar o porquê. Não tenho uma desculpa legítima. Ele vai
descobrir que eu estava mentindo sobre os meus conhecimentos
sobre carros, e sua presunçosa cara de “Eu sabia!” vai me deixar
tão puta que vou ter uma crise de acne. Seja como for, ele não tem
nada que suspeitar das minhas habilidades de mulher faz-tudo. É
machismo presumir que eu não saberia consertar tubos com
vazamentos, manusear lixadeiras de cinta e qualquer outra coisa
que faça um carro andar a todo vapor. Ele precisa aceitar que todas
as minhas mentiras são verdadeiras.
Quero que Leon vá mais rápido, embora a estrada esteja
escorregadia e eu prefira não morrer nesse carro que cheira como
se alguém tivesse colocado uma floresta inteira de pinheiros dentro
da grade dianteira. Eu me pergunto como posso formular esse meu
pedido de querer que ele coloque a própria vida em perigo mortal
para que eu tenha tempo de assistir tutoriais no YouTube antes de
Nicholas chegar em casa. Vale a pena derrapar para fora da estrada
para manter essa mentira? Sim. Sim, vale. Não a tenho cultivado há
tanto tempo para simplesmente vê-la explodir na minha cara por
causa de uma chuva.
Pego um copo descartável do chão e o viro.
— Dunkin 'Donuts, é? Não deixe a Brandy descobrir.
A irmã da Brandy é dona de uma cafeteria chamada Blue Tulip
Café, e Brandy é a representante dela na Ferro Velho. Ela não deixa
ninguém no trabalho se safar quando agem de forma complacente
com grandes companhias de Café.
Leon ri.
— Ah, eu sei. Preciso esconder isso como se fosse um segredo
sujo. Mas o café da Dunkin 'Donuts tem um gosto melhor, e você
precisa levar em conta a minha aliança com o nome da marca.
Quando se compartilha um sobrenome com a Dunkin 'Donuts, é
com eles que sua lealdade precisa estar.
— Seu sobrenome é Donuts? — respondo feito uma completa
idiota, uma fração de segundo antes de perceber meu erro óbvio.
— Meu sobrenome é Duncan, Naomi.
Leon me encara, e a expressão que ele deseja me lançar é uma
que diz Tá falando sério?, porque esse é um detalhe que eu
provavelmente já deveria saber, uma vez que trabalho com ele
desde fevereiro na Ferro Velho, que não é necessariamente um
ferro-velho. É uma loja que possui um ambiente familiar. Mas a
educação de Leon é infinitamente superior à minha, então, em vez
disso, sua expressão parece falar Ah, isso é uma coisa
perfeitamente compreensível de se dizer, suponho.
Quero abrir a porta e rolar para fora, mas resisto. Há uma monção
acontecendo lá fora e, se eu sair, vou acabar com sombra de cor
acobreada e cintilante escorrendo pelo meu rosto. Enxergando do
jeito que estou, vou vaguear pelo congestionamento e ser
atropelada. Minha foto de noivado, em preto e branco, aparecerá no
jornal com um aviso dizendo que em vez de flores, a família do meu
noivo pede que sejam feitas doações para a instituição de caridade
com fins lucrativos deles, a Rows of Books, que envia livros
didáticos sobre higiene dental para escolas carentes.
Fico furiosa por um momento porque é exatamente isso que
aconteceria, e sou rancorosa o suficiente para pensar que prefiro
receber flores.
Finalmente, finalmente chegamos à minha rua. Já estou tirando o
cinto de segurança quando aponto para a pequena casa branca
com meu velho e confiável Saturn e uma Maserati dourada
estacionados na frente, tão incompatíveis quanto possível.
Nicholas está em casa, droga.
Parado na varanda, segurando a correspondência de hoje e com
uma pasta de couro debaixo do braço, destrancando a porta da
frente. Na única vez em que preciso que ele vá mimar a mãe dele
depois do trabalho, ele dá uma de babaca e volta direto para casa.
Eu verifico meu carro e chio; o pneu está tão murcho que o
automóvel está todo inclinado para o lado. Vai ser um milagre se
Nicholas não tiver notado. O meu Saturn parece miserável ao lado
do carro chamativo de Nicholas, tão incompatível com Morris que
todos já sabem quem é o dono do veículo sempre que ele
ultrapassa o semáforo quando fica vermelho.
Por outro lado, o carro de Leon é um monstro, um Frankenstein
com peças japonesas. A maior parte possui uma cor azul-
acinzentada opaca, exceto pela porta do motorista, que é vermelha
e corroída pela ferrugem, e o porta-malas, que é branco e não fecha
direito. Deu solavancos durante todo o trajeto, o que provavelmente
explica minhas imaginações de ter alguém amarrado e amordaçado
lá atrás. Pobre Leon. Sei que dizem que é preciso tomar cuidado
com os quietinhos, mas ele nunca foi nada além de legal comigo e
não merece que eu o olhe de soslaio. Ele provavelmente não é
Jack, o Estripador.
— Vejo você hoje à noite — diz ele.
Brandy hospeda noites de jogos quase todas as sexta-feiras. Ela
convida Zach, Melissa, Leon e eu, sempre com um convite extra
para nossas cara-metades. Nicholas nunca foi a nenhuma das
noites de jogos da Brandy, ou aos churrascos de Zach, ou aos
passeios com idas aos minigolfes da Melissa, e por mim tudo bem.
Ele pode fazer as próprias coisas com os amigos dele, de quem ele
nem gosta, mas com quem sai mesmo assim, porque é difícil fazer
novos amigos quando se tem trinta e dois anos.
Estou no meio do jardim quando Leon grita inesperadamente:
— Ei, Nicholas!
Confuso, Nicholas acena para ele. Meus colegas de trabalho
tendem a ignorá-lo sempre que entram em contato com ele, e vice-
versa.
— Oi?
— Você vai para a noite de jogos? — Leon pergunta a ele.
Uma risada que soa como “Até parece” me escapa, porque é
claro que Nicholas não vai. Ninguém lá gosta dele e ele só ficaria na
defensiva e emburrado o tempo todo, o que para mim arruinaria
toda a diversão. Se ele fosse, meus amigos (ainda estou contando
Melissa como amiga, mesmo ela preferindo o contrário, porque
tenho esperança de que um dia ela voltará a ser legal comigo)
podem perceber que não somos yin e yang, os pombinhos
apaixonados que venho fingindo que somos nos stories do meu
Instagram. De certa forma, é conveniente que Nicholas evite meus
amigos e não chegue perto o suficiente para lhes dar brecha para
inspecionar nossa vida. Saber que nosso relacionamento parece
invejável para quem vê de fora é a única coisa que temos a nosso
favor, já que na realidade o que temos juntos não é nada invejável.
— Por que você deu essa risada? — Nicholas pergunta,
parecendo ofendido.
— Você nunca vai à noite de jogos. Por que ele sequer
convidaria? — Para Leon, eu digo: — Não, ele vai estar ocupado.
— É uma pena — Leon responde. — Você sabe que é bem-vindo
para dar uma passada lá caso ache um espaço na sua agenda,
Nicholas.
Os olhos semicerrados de Nicholas não deixam os meus quando
ele responde:
— Quer saber? Acho que eu vou.
Leon gesticula alegremente, o que fica em total desacordo com o
choque em meu rosto, o que me apresso para disfarçar.
— Legal! A gente se vê, Naomi. — Então, ele vai embora.
Alguém acabou de dizer uma coisa muito simples, “A gente se vê,
Naomi”, e um pensamento estranho me atinge.
Já faz muito tempo que ninguém me vê, já que mantenho tantas
coisas sobre mim escondidas. Eu, a pessoa que realmente sou, um
indivíduo que viveu vinte e oito anos, vinte e seis dos quais foram
passados sem saber da existência de Nicholas Rose. Estive me
esvaindo aos poucos das partes Westfield de mim a fim de me
tornar pré-Naomi Rose. Quase Sra. Rose. Sou a metade de um todo
há quase dois anos e, ultimamente, não sei se posso me considerar
como essa metade.
Mas quando alguém me chama de Naomi com gentileza na voz,
me sinto como aquela garota de antes. Durante o breve tempo que
o carro de Leon leva para desaparecer na rua, volto a ser a Naomi
Westfield.
— Você não quer que eu vá — Nicholas diz de modo acusador.
— Quê? Não seja ridículo. Claro que eu quero.
Eu dou a ele o meu maior sorriso. Para ser convincente, preciso
fazer o sorriso viajar até meus olhos. Um sorriso verdadeiro. Sempre
que faço isso, gosto de imaginar que estou olhando para Nicholas
pelo espelho retrovisor do meu carro, enquanto dirijo para fora de
Morris, para nunca mais vê-lo.
Estou no sofá assistindo a algo que vai apodrecer o meu cérebro,
mal ouvindo Nicholas reclamar do amigo de um amigo que
frequenta as partidas de futebol que ele joga no parque algumas
vezes por mês. É o cara que pensa ser um jogador melhor do que
Nicholas, o que acha que sabe mais sobre o esporte do que
Nicholas, e um dia desses, Nicholas vai falar umas verdades na
cara dele. Ele diz isso desde o dia em que o conheci. Bem, pelo
menos ele aceitou minha explicação do porque eu fui andando para
o trabalho: estou adotando medidas para conseguir ter um estilo de
vida mais saudável, e fazer caminhadas é a minha mais nova
paixão. Nicholas deveria seguir meu exemplo e ir andando para o
trabalho também, em vez de destruir nosso planeta com gases que
colaboram para o efeito estufa. Honestamente, ele poderia aprender
uma coisinha ou outra comigo.
Eu o deixo desabafar. Aceno e concordo feito a noiva boazinha
que sou, mas não sou nem de longe uma boa noiva, porque sinto
que posso desmoronar a qualquer momento.
Sou uma boa atriz. É algo que me faz sentir orgulho. O algo pelo
qual Nicholas sente orgulho é o fato de ele pensar que sabe tudo
que há para saber sobre mim. Ele diz o tempo todo para as pessoas
que eu não consigo esconder nada dele. Que sou transparente
como o ar e que, intelectualmente, sou tão substancial quanto. O
fato de ele poder olhar nos meus olhos e acreditar que estou
totalmente apaixonada por ele é a prova de que sou uma atriz
fantástica e que ele não sabe tudo sobre mim, nem mesmo grande
parte das coisas.
Falando em termos de proporção, eu diria que estou quarenta por
cento apaixonada por Nicholas. Talvez eu não devesse dizer que
estou apaixonada. Existe uma diferença. A sensação de se estar
apaixonado é frenética. Inquietante. É como estar caindo. É um
conjunto de transpirações de nervosismo e batimentos cardíacos
acelerados e uma sensação tremenda de certeza, pelo menos foi o
que me disseram. Eu não sinto essas coisas. Eu o amo quarenta
por cento.
Não é tão ruim quanto parece, quando você para pra pensar nos
casais que conhece. A real é que, se eles estivessem sendo
honestos, muitos deles diriam uma porcentagem muito mais inferior
do que a que declarariam em voz alta. A verdade é que não acho
que duas pessoas consigam se sentir cem por cento apaixonadas
uma pela outra ao mesmo tempo e o tempo todo. Eles podem
revezar, enquanto um está setenta e cinco por cento apaixonado, o
recorde, o outro atinge o pico de sessenta por cento.
Sou uma cínica infeliz (algo que desenvolvi recentemente) e uma
romântica sonhadora (coisa que sempre fui), e é uma combinação
tão terrível que não sei como me tolerar. Se eu fosse apenas uma
dessas coisas, talvez estaria assentindo e concordando com
Nicholas, sorrindo intensamente, em vez de alimentando um dos
meus devaneios favoritos para manter a concentração quando não
quero viver no mundo real. Neste devaneio, é o dia do meu
casamento e estou de pé no altar, ao lado de Nicholas. O padre
pergunta se alguém tem algo contra essa união e uma pessoa no
meio dos convidados se levanta, proclamando corajosamente: “Eu
tenho”. Todos suspiram. É o Jake Pavelka, uma celebridade
polêmica da 14ª temporada de The Bachelor.
Na vida real, Jake Pavelka não vai interromper meus votos
matrimoniais, e Nicholas e eu teremos de ficar presos um ao outro.
Eu revisito meu calendário mental e me sinto mal com o pouco
tempo que me resta. No momento, a ideia de dizer “Eu aceito” faz
minha pulsação disparar feito um trem desgovernado.
Estou desmoronando e Nicholas sequer percebe.
Isso vem ocorrendo com regularidade, em um efeito bola de neve.
Bem quando penso que a sensação estranha se foi e que estou
novamente satisfeita com a minha situação atual, quando penso que
todos os sentimentos de insatisfação foram reprimidos, tudo volta a
desmoronar. Às vezes, a sensação me atinge quando estou prestes
a adormecer. Acontece quando estou voltando do trabalho para
casa e quando janto, o que significa que perco o apetite no mesmo
instante e preciso inventar uma desculpa aceitável para não comer
mais.
Por causa dessas minhas desculpas, Nicholas acha que eu tenho
um estômago sensível e que minha TPM dura três semanas.
Discutimos frequentemente sobre minha ingestão de glúten e eu
finjo considerar a ideia de cortar o açúcar da minha dieta. Isso é o
que acontece quando você namora um cara por onze meses e fica
noiva seis horas antes de finalmente irem morar juntos e dar conta
de quem a outra pessoa realmente é no dia a dia. Comprar o
Nicholas versão namorado e mais tarde herdar o Nicholas versão
noivo é como ter caído numa propaganda enganosa, vou te contar.
Achei que tinha ganhado uma bolada quando o consegui, mas
depois de deslizar um anel em meu dedo, ele rebaixou minha
posição em sua vida e me colocou como Eterno Segundo Lugar.
Quando estou sozinha, ou em momentos em que é como se eu
estivesse – porque ele está me ignorando em favor de passar um
tempinho com o computador dele – ao menos nesses momentos
tenho o privilégio de poder desfazer meu sorriso. Não preciso gastar
energia fingindo que estou bem. Eu não me deixo afundar em
pensamentos obscuros e intrusivos por muito tempo, mesmo que eu
queira, porque tenho medo de começar a fazer isso e virar o próprio
Stephen Morrissey, mantendo um olhar fixo na parede enquanto
reflito sobre o que exatamente me faz infeliz, porque então será
impossível dobrar esses pensamentos e guardá-los ordenadamente
em uma gaveta para poder examiná-los mais uma vez em algum
outro dia.
Me sintonizo na conversa desconexa de Nicholas por tempo
suficiente para captar algumas palavras-chave: Stacy, calça cáqui,
marcador de combustível. Ele encontrou um jeito de combinar suas
três queixas favoritas em uma só reclamação cheia de raiva. Ele
odeia a nova política sobre o uso de uniforme que sua colega de
trabalho, a Dra. Stacy Mootispaw, está tentando implementar: os
funcionários devem usar apenas calças pretas largas, as queridas
calças cáqui de Nicholas serão proibidas. Ele odeia Stacy. Odeia o
marcador de combustível do carro luxuoso dele, peça que foi
injustamente culpada por não o avisar que ele estava sem gasolina
na semana passada, enquanto ele dirigia para fora da cidade.
Faço uma cara de compreensão e garanto a ele que Stacy é a
escória da humanidade e que proibir o uso da calça cáqui é uma
discriminação. Sou uma noiva leal, indignada por ele, pronta para
entrar em guerra contra todas as suas queixas.
Eu penso em como atriz é outra maneira de dizer mentirosa
profissional.
Tenho mentido para nós dois o tempo todo e não sei como parar.
Nosso casamento é daqui a três meses e se eu desabafar e contar
tudo a Nicholas sobre essas pequenas explosões de pânico que
sinto, ele vai dizer que é nervosismo, o que é considerado normal.
Ele vai descrever tudo que eu estou sentindo com essa única
palavra. Estou desanimada com esse casamento desde que o
tomaram de mim, desde que todas as decisões foram arrancadas
das minhas mãos, e saber que não estou animada me deixa
ansiosa. Se não estou animada para me casar, o que diabos estou
fazendo?
Mas meu problema atual é maior do que a mãe intrometida dele;
maior do que a velha discussão sobre onde passar a nossa lua de
mel e qual será o tamanho do bolo – coisa com a qual eu não me
importo mais, porque não me deixaram escolher limão como sabor.
Ninguém gosta de limão, Naomi. Passei tanto tempo remoendo
todas as maneiras pelas quais eu fui injustiçada, que meu
ressentimento fervilhante transbordou e contaminou tudo que
envolve Nicholas, até mesmo as partes inocentes. Apesar de tudo,
sou uma pessoa tão atenciosa que reprimo meus sentimentos
negativos e não os compartilho com ele. Ele nunca entenderia, de
qualquer maneira.
Se ele me perguntar o que há de errado e meu problema não for
algo que ele possa resolver com algumas palavras tranquilizadoras,
Nicholas ficará frustrado. Isso me faz lembrar da minha mãe quando
ela certa vez me disse que não podemos contar sobre nossos
problemas não solucionáveis aos homens, porque eles vão querer
consertá-los e a possibilidade de não conseguir fazer isso frita o
circuito neural deles.
Será que meu problema não pode ser resolvido? Eu nem sei qual
é o meu problema. Eu sou o problema, provavelmente. Há muitas
coisas boas sobre Nicholas, coisas que eu digitei em um documento
protegido por senha em meu computador. Eu leio sempre que
preciso ser lembrada de que tudo está bem.
Quero engolir uma pílula mágica que me faça sentir perfeitamente
contente. Quero olhar com amor para Nicholas quando ele estiver
vasculhando o interior dos nossos armários de cozinha. Moramos
juntos há dez meses e ele ainda não sabe onde guardamos nada.
No papel, nossos nomes parecem tão românticos juntos. Nicholas
e Naomi Rose. Você já ouviu algo mais adorável? Daríamos a
nossos filhos nomes românticos que também começariam com a
letra N, e faríamos disso um costume. Um filho chamado Nathaniel.
Seus avós vão chamá-lo de Nat, o que eu vou odiar. Uma filha
chamada Noelle. O nome do meio dela terá que ser Deborah, em
homenagem à Sra. Rose, porque aparentemente é uma tradição
que perdura há exatamente uma geração. Disseram a mesma coisa
para a irmã de Nicholas, então, se todos nós seguirmos a tradição,
algum dia haverá uma dinastia de pequenas Deborahs.
Fecho meus olhos e tento me imaginar crescendo como filha
biológica daquela mulher, e a imagem é tão horrível que eu tenho
que apagá-la com pensamentos felizes sobre outro pretendente do
meu coração – Rupert Everett interpretando Dr. Claw, no filme
Inspetor Bugiganga – irrompendo pelas portas da igreja Sta. Mary e
lutando com Jake Pavelka para decidir quem vai se casar comigo.
Um deles tem uma garra robótica, então não é uma luta justa. “Não
tão rápido!” grita outra voz. Eu olho para cima e me deparo com Cal
Hockley, o herói incompreendido de Titanic, descendo do teto com o
colar Coração do Oceano preso entre os dentes. “Isso aqui é para
você, Naomi! A única mulher digna disso!”. Nicholas grita em
protesto, afastando-se do altar e imediatamente cai dentro de um
alçapão.
Com um esforço consciente, olho para Nicholas e tento me fazer
sentir borboletas no estômago. Ele é responsável. Gostamos dos
mesmos filmes. É um bom cozinheiro. Eu amo essas coisas sobre
esse homem.
— Naomi — ele diz agora, abrindo e fechando as portas dos
armários. — Onde guardamos as Tupperwares? Vou correr até o
mercado e comprar alguns cookies para deixar no escritório
amanhã. Isso não é legal? Eu nem vou trabalhar amanhã. Nenhuma
outra pessoa aparece para simplesmente deixar lanches. — A Rise
and Smile geralmente fica fechada nos fins de semana, mas uma
vez por mês, em um sábado determinado, alguns deles precisam ir
para a clínica. Para aliviar a dor de ter que trabalhar em um dia de
folga, todos levam lanches. — Quero fazer com que pareça que eu
mesmo assei — continua ele, — ou nunca mais vou parar de ouvir
sobre isso. Stacy diz que eu nunca faço um esforço adicional. Vou
mostrar a ela um puta de um esforço adicional.
De onde estou, faço uma coisa imperdoável e concordo
mentalmente com Stacy. Nicholas não faz esforços adicionais,
especialmente quando se trata de mim. Ele não me deu flores no
último Dia dos Namorados, e tudo bem porque flores são estúpidas,
creio eu. Ele me fez lembrar de que elas vão simplesmente morrer.
No Dia dos Namorados, nos sentamos em cômodos separados e
marcamos um ao outro em muitos posts no Facebook. Não
precisamos dizer palavras doces pessoalmente, porque sabemos o
que o verdadeiro amor é.
Temos coisas mais inteligentes com as quais gastar nosso
dinheiro do que joias caras (se as joias forem para mim) e plantas
que murcharão lentamente ao longo de uma semana antes de virar
lama (de novo: se forem para mim). Poderíamos investir esse
dinheiro em algo melhor, como uma pulseira tennis e um jardim
inteiro para a mãe dele.
Ele também não me deu flores no nosso aniversário de namoro, e
tudo bem, porque sabemos o que o amor verdadeiro é e não temos
que provar nada um para o outro. Ele compra flores para a mãe dele
quando ela está se recuperando de uma cirurgia plástica, porque ela
espera que ele faça isso, mas eu sou sensata. Eu compreendo. Sei
que não preciso de flores, enquanto a Sra. Rose precisa delas. Ele
fica tão feliz em saber que nunca seremos como os pais dele.
No nosso aniversário de namoro, não precisamos nem sair para
um encontro de verdade ou tirar um dia de folga para ficarmos
juntos, não fazemos nada para tornar a ocasião especial. Somos
relaxados e tranquilos, não somos nada como os pais dele. Nosso
amor é tão real que podemos sentar no sofá e assistir a partidas de
futebol americano como se a data não fosse grande coisa, como se
fosse um dia qualquer. Todos os dias são iguais. Todo dia é como se
fosse nosso aniversário de namoro.
As palavras borbulham na minha garganta. Eu as empurro para
baixo, lutando para encontrar outras.
— No armário acima do microondas.
— Obrigado. Aliás, você está com tempo livre para fazer cookie
hoje à noite? Stacy vai saber detectar se eu os fiz ou não. Eu não
quero ouvir a ladainha dela.
Dou-lhe um olhar de desprezo que ele não vê.
— Não. Eu vou para a casa da Brandy.
— Eu também, mas temos muito tempo até a hora de ir, não é? E
eu preciso ir correndo para o chuveiro, você não está fazendo nada
aí sentada no sofá. Será que não pode simplesmente preparar
alguns cookies bem rápido?
— Você não pode simplesmente fazer isso amanhã? Por que
precisa deles nesse exato minuto, afinal?
Ele está pré-aquecendo o forno. Não tem nem certeza de que
temos todos os ingredientes necessários. Ele presume que eu vou
improvisar tudo do zero, que nem os ratinhos da Cinderela.
— Não vou levantar de madrugada para fazer três dúzias de
biscoitos. É mais fácil fazer isso hoje à noite. — Sua voz diminui
para um tom de resmungo. — Stacy tem é sorte de eu estar fazendo
tanto, já que nem estou na escala de amanhã... vamos ver se ela vai
gostar de passar o sábado trabalhando, pelo menos uma vez.
Olho para Nicholas e meus intestinos fervem porque ele pensa
que eu não sei o que está fazendo. A única razão pela qual ele
decidiu tomar banho agora é para ter uma desculpa para pedir que
eu faça isso por ele. É tipo quando chegamos em casa de uma ida
ao supermercado e ele finge que recebeu um telefonema importante
para não ter que ajudar a guardar as compras.
Ele está tirando tigelas do armário, e esse homem é ainda mais
iludido do que eu se acha que vou encher uma pia com tigelas, que
eu mesma terei que lavar, para alimentar alguém que ele despreza,
enquanto ele leva o crédito. Stacy que se engasgue com cookies
açucarados comprados em mercados, como o resto de nós. Por que
ele sequer vai levar cookies? Eles são dentistas. Deveriam comer
aipo.
Penso em tentar persuadi-lo a ficar em casa hoje à noite, mas me
ocorre que preciso que ele me leve à casa da Brandy. Só vou
conseguir trocar meu pneu quando Nicholas ficar fora de casa por
um período considerável de tempo. Estou irritada com ele por ser o
tipo de pessoa que faz questão de dizer “Eu te avisei”, o que me
impede de confessar a verdade. Sou forçada a ser teimosa na
mesma medida em que ele é irritante.
— Aposto que se você dissesse à sua mãe que precisa de
cookies, ela os faria para você em vinte minutos — respondo
preguiçosamente. — No formato de grandes corações vermelhos,
com suas iniciais escritas com a cobertura.
— Falando na minha mãe — ele diz, limpando a garganta. — Ela
estava me contando que conversou com a costureira sobre o
vestido da daminha que vai levar as flores, para se certificar de que
as medidas estavam certas. E eu disse que nós dois estamos muito
felizes, simplesmente muito felizes, por eles poderem nos ajudar. —
Eu sinto minha alma encolher feito poeira e desaparecer. — Todo
mundo sabe que geralmente são os pais da noiva que pagam por
tudo, então temos sorte de os meus pais serem tão prestativos.
Sim, muito prestativos. Uma imagem do meu vestido de noiva
surge na minha mente, um tamanho menor do que o normal, porque
a minha futura sogra quer que eu seja ambiciosa, quer um vestido
que seja justo até os quadris e feito com um tecido rígido, mais
branco que a nova dentadura do marido dela. Eu queria um vestido
silhueta império nas cores creme e rosa, o que ela disse que me
fazia parecer grávida de quatro meses. Nicholas disse a ela que só
vamos ter relações sexuais depois do casamento, porque ela é
ridiculamente antiquada e precisa que a mimem e que mintam para
ela, e quando ela me disse que eu parecia estar grávida, fiquei
muito tentada a dizer que era de gêmeos.
Saí da loja de noivas naquele dia traumatizada e sem dinheiro,
com três mil dólares cobrados do meu cartão de crédito. Para
manter minha integridade, insisti em dividir os custos, então a Sra.
Rose pagou os outros três mil. Seis mil dólares por um vestido. Sou
assombrada pela palavra em cor vermelho escarlate estampada em
negrito no saco plástico que sufoca seis mil dólares em material que
me impossibilitará de comer durante a recepção da festa (que era a
parte que eu mais queria): NÃO-REEMBOLSÁVEL.
Além disso, ofereceram à filha deles, Heather – que mora fora do
estado e que conhecerei pela primeira vez no dia do meu
casamento – o posto de madrinha principal. Quando fiquei chateada
por causa disso, me disseram que ela seria minha cunhada, então,
para quem mais o posto deveria ir? Brandy, minha melhor amiga,
ficou arrasada quando contei a ela.
Outra coisa que Heather ganhou com o meu casamento foi um
vestido silhueta império nas cores creme e rosa, assim como todas
as outras madrinhas do lado dele da família.
Nicholas quer que eu supere isso e aguente ser pisoteada como
ele aprendeu a ser, e, para ele, armar um barraco para me defender
seria inconveniente. Eu suportei tantas coisas terríveis para manter
tudo em paz que deveria me eleger para ser canonizada. Não
manifestei minha contrariedade ou raiva, mas sei que ele consegue
as sentir, porque com certeza adora me evitar ultimamente. Ele
permanece no trabalho depois do expediente. Fica mais na casa
dos pais do que na nossa. Quando está em casa, é como se mal
pudesse esperar para que nosso tempo mínimo de convivência
juntos acabe para que ele possa correr para o escritório e se
debruçar sobre o computador até a hora de dormir. Na minha
cabeça, nomeei o computador dele de Karen, em homenagem à
esposa computador do Plankton, do Bob Esponja.
Os pais de Nicholas têm muito dinheiro e gastaram boa parte
nesse casamento. Não interessa o que Nicholas diz, eles não estão
fazendo isso para serem legais ou porque gostam de mim. Eu sou o
útero que carregará os futuros Roses, igual as ex-namoradas de
Nicholas eram.
O tempo todo seus pais me lembram de como sou sortuda por ter
a ajuda deles e de como os custos têm sido altos. Não preciso que o
melhor champanhe do país seja servido no meu casamento. Eu
ficaria contente com vinho de caixa. Mas nem pensar, apenas o
melhor para o Nicky deles.
Não se preocupe, Nicky. A mamãe e o papai cuidarão disso. Eu
sei que os pais da Naomi não podem. O Sr. Westfield foi demitido do
trabalho, não foi? E a Sra. Westfield é só uma professora! Que
pitoresco. O Sr. e a Sra. Westfield mal podem bancar a gasolina e a
comida que colocam no prato, pobrezinhos. Agora lembre-se,
Naomi, ajeite a postura. Encontre uma expressão diferente para pôr
no rosto, por favor. Talvez você deva mudar seu rosto
completamente. É com essa cor de olhos que você vai? Tem
certeza? Você está de salto, não está? Não, não esses saltos.
Esses são os saltos que uma stripper usaria. Você vai ser uma
Rose, querida. Esse nome é importante. Sente-se direito. Não mexa
no seu anel. Você é como uma filha para nós, te amamos muito.
Fique logo atrás de nós nessa foto de família e murche a barriga.
Há uma grande variedade de merda para eu detestar, mas acho
que o que mais odeio no Sr. e na Sra. Rose é que eles ainda
chamam o próprio filho de Nicky. Ele sequer me deixa chamá-lo de
Nick. Quando não o estão chamando de Nicky e beijando as
bochechas dele como se ele tivesse cinco anos, estão chamando-o
de Dr. Rose e fazendo uma cópia dos certificados de odontologia
dele para pendurar no escritório deles. Eles são dentistas vicários e
dão lições aos amigos sobre doenças gengivais.
Não posso voltar atrás agora. Todo mundo iria fofocar e espalhar
boatos sobre mim. Eu pareceria um fracasso e uma idiota. Perderia
milhares de dólares. Não há uma saída, então estou apenas
prendendo a respiração e improvisando.
Olho para Nicholas e percebo que vou realmente me casar com
esse homem. Quarenta por cento porque o amo e sessenta por
cento porque tenho muito medo de desistir. Todos, incluindo os pais
dele, disseram que nunca conseguiríamos chegar ao altar. Sou tão
orgulhosa que farei isso apenas para provar que estão todos
errados.
— Tudo bem, então, não me ajude. — Nicholas bufa, lançando
um olhar irritado para mim. Eu arruinei sua noite. Estupendo. — Eu
terei que correr contra o tempo e já estou estressado, mas qual é a
novidade?
— Amém, irmã — murmuro baixinho. Ele resmunga e abre mais
portas de armários, o que me dá uma sensação estranhamente
satisfatória. Afinal, a infelicidade adora companhia. Se vou ser
atingida por pensamentos rancorosos durante toda a noite, posso
muito bem arrastá-lo para a fossa comigo.
Quando estacionamos em frente à casa da Brandy, Nicholas vê
Zach na entrada da residência e me olha de soslaio.
— Ótimo. Esse cara está aqui — murmura Nicholas. Ele sabe o
nome dele, mas está fingindo que não. Essa noite ele vai fingir que
não sabe o nome de ninguém, como se meus amigos não
merecessem sua atenção, uma forma de vingança por não
gostarem dele.
Zach não está fazendo nada além de acariciar um gato sobre o
parapeito de barras de ferro, mas eu já reclamei dez mil vezes dele
para Nicholas por roubar comida da minha marmita e regularmente
escapar sem aviso prévio de seus turnos no trabalho, então por
mais que eu queira discutir contra cada palavra que sai de sua boca,
olho para as cartas imaginárias que tenho em mãos e decido não
fazer nenhuma jogada.
— Por quanto tempo teremos que ficar? — ele resmunga. — Vai
ter comida? Eu não comi antes de sair. E não quero voltar tarde.
Tenho coisas para resolver amanhã.
Quem vê até pensa que eu o forcei a vir. Tento me lembrar de
como foi a sensação de me apaixonar e não consigo. Deve ter sido
bem passageira.
Acho que ele sente que estou perdendo a paciência porque,
quando bato a porta do carro, ele não diz uma palavra, apenas enfia
as mãos nos bolsos e me segue devagar, como se estivesse indo
para uma cadeira elétrica.
Nunca me comporto assim quando os papéis são invertidos e
estamos passando um tempo com os amigos de Nicholas. Eu tenho
olheiras arroxeadas permanentes sob meus olhos e toda vez que
eles me veem, perguntam se estou doente. Toda. Vez. Entre esses
amigos está a ex de Nicholas, então sei que ela só faz isso para me
sacanear.
O olhar de Zach fica afiado quando seus olhos se fixam em
Nicholas, que está com uma carranca no rosto e pisando forte na
entrada. Zach para de acariciar o gato e toma um longo gole de
cerveja, um dedo curvado em volta do gargalo. Enquanto esvazia a
garrafa inteira, seu olhar não deixa Nicholas.
— Ora, ora, ora — diz ele com um sorriso. — Olha só quem nos
agraciou com a sua presença.
Nicholas tenta não quebrar o contato visual primeiro, porque eles
estão fazendo algum tipo de duelo masculino, mas ele parece um
pouco nervoso. Zach mantém a porta aberta para mim – a primeira
coisa cavalheiresca que já o vi fazer. Ele entra logo atrás de mim,
antes que Nicholas consiga subir o último degrau, e deixa a porta
bater na cara dele.
Olho feio para Zach e abro a porta para meu noivo magoado, que
nunca foi tratado tão rudemente em toda sua vida. Ele certamente
ligará para a mãe mais tarde e contará tudo a ela. Zach faz aquela
habitual expressão hostil com o rosto, me olha, dá de ombros e
entra na cozinha sem olhar para trás.
Nicholas não pertence a essa parte da minha vida, e nós dois
sabemos disso. Ele está aqui porque considerou a risada que eu dei
mais cedo como um desafio e porque é tão rancoroso quanto eu. A
noite de jogos perdeu a graça para mim, e sei bem no fundo da
minha alma que isso vai acabar mal.

DÊ O FORA DAQUI, AGORA, é o que digito e mando por mensagem


para Nicholas. Só se passou meia hora e ele fez cinco idas ao
banheiro para acariciar o gato de Brandy, que ela colocou lá porque
eu sou alérgica. Suas excessivas fugas para o banheiro estão
atrapalhando o ritmo da nossa partida do jogo “Cartas Contra a
Humanidade” e as pessoas estão começando a se irritar. Quando
ele escapa do esconderijo, está tão ocupado me olhando com uma
cara feia que acidentalmente pisa em uma das máscaras de parede
da Brandy, que havia caído, e quebra o enfeite.
No corredor dela há uma fileira de lindas máscaras de parede
esculpidas com rostos de animais em madeira, para celebrar as
origens Yup'ik dela. A maioria é de animais que você encontraria no
Alasca, como ursos, focas e lobos. Tem sido o sonho de toda a vida
dela se mudar para o sudoeste do Alasca, lugar de onde seus pais
são, e nós duas frequentemente navegamos por sites de imobiliárias
em busca do tipo de casa em que queremos que ela more.
Enquanto isso não vira realidade, ela tem tentado dar à própria casa
um clima alasquiano, decorando-a com móveis de cedro e uma
lareira artificial.
— Parabéns — diz Zach.
Nicholas enrubesce, passando a mão pelo cabelo para segurar a
nuca.
— Eu sinto muito. O que, hm, o que é essa coisa? Vou comprar
outra para você.
Se Brandy ficou chateada, ela esconde bem.
— Sem problemas. Com um pouco de cola de madeira, ficará
como se fosse nova! — Ela recolhe a máscara quebrada do chão e
corre para a cozinha.
— Eu posso pagar por outra. Quanto custou?
— É, deixe ele pagar por uma nova. — Zach encoraja. — É o
mínimo que ele poderia fazer. Uau, doutor, você realmente quer ir
embora, hein? Vindo até aqui e quebrando as coisas assim.
— Foi um acidente — eu protesto, massageando o ombro de
Nicholas. O corpo dele tensiona e ele se afasta. Percebo que
Melissa notou, então me aproximo de Nicholas novamente.
— Sem problemas! — Brandy cantarola outra vez, parecendo um
pouco frenética. — Está tudo bem. Vamos voltar ao jogo. — Ela leva
o trabalho de anfitriã muito a sério, então está ansiosa para
apaziguar a situação. Nicholas poderia pisar em todas as máscaras
de parede que ela tem e ainda assim ela sorriria e se desculparia
por deixá-las nas paredes, onde qualquer um poderia pisar. — Estão
todos se divertindo? Sim? Está divertido!
Os olhos de Nicholas voam entre Zach e Melissa, que trocam
sussurros e sorrisos largos. Não estou perto o suficiente para ouvir o
que dizem, mas Nicholas sim. Ele cerra a mandíbula.
Melissa dá uma risadinha. Seus olhos descem para os sapatos
lustrados de Nicholas e ela faz um comentário baixinho para Zach.
Não ouço a resposta completa dele, mas ele garante que as últimas
três palavras sejam audíveis. Se esforçando demais.
— Como está aquele dente? — Nicholas pergunta a ele em um
tom de voz nada agradável. Zach uma vez foi ao consultório de
Nicholas por causa de uma dor de dente, e quando ele disse que
um tratamento de canal seria necessário, tudo desabou em um
completo escarcéu de frases como “Dentistas só querem o dinheiro
das pessoas!” e “Dentistas transformam pequenos problemas em
coisas grandes para fraudar planos de saúde!”. Alguém na sala de
espera gravou seis minutos do discurso de Zach e colocou na
internet, em seguida, vinculou o vídeo à página do Yelp da Rise and
Smile. Meu noivo e meu colega de trabalho agora são inimigos de
baixo nível.
Zach dá a ele um sorriso falso.
— Bem melhor. — Não é verdade. Zach se recusou a voltar ao
dentista e não pode mais mastigar do lado direito da boca. — Eu fui
para a Turpin, a clínica que recomendo a todos.
— Ei, tenho uma ideia — digo. — Vamos voltar a jogar.
Melissa me ignora.
— O pessoal da Turpin é mais profissional — diz ela.
Zach acena com a cabeça.
— E não são charlatães presunçosos.
Brandy está começando a suar.
— Vamos... hm... vamos tentar ficar numa boa. Nada de
problemas, ok? Quem é o próximo a jogar? — Sua voz soa como se
ela fosse uma professora do prézinho aflita.
— Não há problema nenhum da minha parte — Melissa diz
docemente. Seu olhar se volta para Nicholas. — E quanto a você?
Zach parece eufórico. Ele adora um drama e definitivamente quer
que alguém tenha alguma reclamação a fazer.
O rosto de Nicholas se enfurece conforme ele vai ficando mais
quieto. Acima da minha cabeça, uma nuvem de tempestade começa
a rodar, sugando toda a minha energia. Quando eu o quero por
perto, ele nunca fica. Quando não o quero por perto, ele se torna o
diabinho nos meus ombros. Se ele brigar com meus amigos, minha
vida no trabalho vai virar uma merda. Ele vai se importar com isso?
Não.
Estamos jogando Detetive na mesa da cozinha quando Nicholas
faz sua próxima jogada. A essa altura, o ego dele está todo ferido e
espancado, então era apenas uma questão de tempo até que ele
revidasse.
Ele se vira para Melissa. Inclina a cabeça.
— Você não costumava sair com o Seth Walsh?
Ele sabe muito bem que Melissa namorou Seth. Ele também sabe
que Seth a traiu com uma dentista casada que trabalha com ele. A
Rise and Smile é um ninho de escândalos.
Melissa lança um olhar mortal para ele, depois para mim.
— Sim.
— Hmm. Qual foi mesmo o motivo de vocês terem terminado?
Nem mesmo o olhar do Ciclope dos X-Men poderia ser
comparado à fúria ardente no olhar de Melissa.
— A gente terminou — ela diz cheia de ódio — porque eu estava
saindo do Shopping West Towne um dia e vi o carro de Seth no
estacionamento. Quando eu fui lá, ele estava no banco de trás,
transando com outra mulher. — Ela não acrescenta o restante, mas
todos nós lembramos: em cima do suéter da Universidade Lawrence
de Melissa.
Eu me lembro vividamente do dia em que ela descobriu. Naquela
época, eu já trabalhava na Ferro Velho, uma loja de achados
ecléticos, há cerca de três meses, e Melissa e eu éramos amigas.
Nós tínhamos nosso ódio mútuo pela playlist de Zach em comum,
playlist a qual ele nos sujeita toda quarta-feira, quando é a vez dele
de escolher as músicas, além de possuirmos a mesma camisa
xadrez e calça jeans vermelha, que costumávamos usar
propositalmente no mesmo dia.
Não uso minha camisa xadrez com meus jeans vermelhos desde
nossa briga, porque não quero que ela pense que anseio pelos bons
e velhos tempos, quando ela não tremia de fúria ao me ver. Como
você poderia não saber? O melhor amigo de Nicholas transando
com a colega de trabalho do próprio Nicholas! Ele devia saber, e
deve ter te contado. Você me deixou fazer papel de boba por aquele
cara e não disse nada. Eu realmente não sabia que Seth estava a
traindo e ainda me sinto culpada por tê-los apresentado um ao
outro. Nicholas diz que também não sabia, mas quanto a isso não
posso prometer nada.
— Seth é um babaca — Zach diz, rolando o dado e movendo seu
pino para um quadradinho na porta da cozinha do tabuleiro. A arma
do crime tem que ser a corda, foi a única pista que descobri. Zach
vai adivinhar tudo corretamente. Ele tem um talento sobre-humano
para esse jogo e venceu as duas rodadas anteriores assim que
colocou seu pequeno pino do Coronel Mostarda dentro de um
cômodo do tabuleiro.
Nicholas, que se recusou a jogar a menos que fosse o Professor
Black, olha feio para Zach.
— Você nem conhece o Seth, então não fale sobre ele. Ele é meu
amigo.
— Isso diz muito sobre você, então. — Zach é honestamente
destemido e diz exatamente o que pensa de você, bem na sua cara.
É uma qualidade que acho irritante quando é para mim que é
direcionada, e agora estou em algum lugar entre me deleitar por ver
alguém enfrentar Nicholas e o constrangimento de que meu
convidado está prestes a estragar a festa. Eu me esqueço de ser
uma atriz que finge ser cem por cento apaixonada, e Nicholas olha
para mim, notando meu silêncio, antes de voltar seu olhar para
Zach.
— O que isso deveria significar?
Zach é como um tubarão.
— Significa que você escolhe amigos babacas, e isso reflete mal
em você.
Do outro lado da mesa, Brandy mexe sua estatueta de Srta. Rosa
e os olhos de Leon fixam-se nos meus.
— Obviamente, Melissa ainda está chateada com a traição do
Seth — Zach continua. — Você poderia facilmente manter a boca
fechada, já que sabe que ela tem todo o direito de estar chateada,
mas em vez disso, corre em defesa dele. Há uma razão para você
ter empatia pelo babaca, e é porque você se vê nele. Logo, você
também é um babaca.
Daria para ouvir até uma mosca pousando na parede agora.
Eu deveria pegar a mão do meu pobre noivo. Mandar Zach calar
a boca. Dizer que vamos embora. Mas a expressão no rosto de
Nicholas me faz parar.
Seus lábios estão franzidos enquanto ele prepara uma resposta, e
olha ao redor da sala com um desdém palpável. Ele está se vendo
como o filho bem-sucedido dos dois alicerces ricos dessa pequena
comunidade, como a pessoa que resgata a população que exagera
no consumo de açúcar de Morris, ajudando-os com uma
restauração de cárie por vez. Ele está vendo meus colegas de
trabalho como vermes inferiores a rastejar por entre os detritos no
fundo da pilha de lixo. Eles trabalham na Ferro Velho, lugar que
vende cabeças de crocodilo e inéditas almofadas de pum com o
rosto da Whoopi Goldberg gravado nelas. Feijões mexicanos
saltitantes e canecas que dizem palavrões quando você as enche
com água quente. Quando ele julga meus colegas e os considera
necessitados, ele se esquece de que eu sou um deles. Para
Nicholas, somos Nós contra Eles.
Brandy parece ansiosa. Ela é tão doce e alegre que duvido que
alguma vez na vida tenha discutido seriamente com alguém, e ver
pessoas não se dando bem é a pior coisa que poderia acontecer
bem na frente dela.
— Zach — alerto tardiamente por entre os dentes cerrados.
— Você poderia tentar se dar bem com todo mundo? — Brandy
implora a ele. — Alguém quer mais rolinhos de pizza? Eu também
tenho cupcakes. Todo mundo está satisfeito? — Ela meio que se
levanta da cadeira. — Água? Refrigerante?
Zach a empurra de volta para o assento ao colocar dois dedos no
ombro dela.
— Estou me dando muito bem com todo mundo. Sua vez.
A mão de Brandy treme quando ela joga o dado, e Nicholas
acabou de decidir qual coisa grosseira ele quer dizer para Zach.
— Eu entendo o porquê de você ser tão emotivo. Não ter uma
verdadeira estabilidade no emprego deixaria qualquer pessoa
ansiosa. Sua loja não recebe mais de, o quê, três clientes por dia?
Você deve estar perdendo muito dinheiro. — Ele abre o mesmo
sorriso falso que Zach deu a ele durante toda a noite. — Quando
você estiver pronto, conheço um cara da agência de empregos
temporários que pode ajudá-lo.
Zach ergue duas sobrancelhas para mim, como se estivéssemos
compartilhando uma piada interna da qual Nicholas não gosta, então
diz a ele:
— Você sabe que sua namorada trabalha no mesmo lugar que
eu, certo? Se o local fechar, não seremos os únicos
desempregados.
— Eu ganho muito dinheiro. Naomi não precisa de um emprego.
Raiva exala de mim como raios ultravioleta.
— A loja está indo bem — digo, o que é uma grande mentira. A
loja está nas últimas. Existe desde sempre, desde que o Sr. e a Sra.
Howard se casaram nos anos setenta, e um dia foi muito popular,
porque somos especialistas não apenas em presentes divertidos,
mas também em curiosidades bizarras. As pessoas costumavam
fazer de nossa loja um destino de viagem. Mas, desde o surgimento
da Amazon e do eBay, você não precisa mais sair de casa para
encontrar bugigangas estranhas e cultas. Com apenas um clique,
consegue recebê-las diretamente na sua porta.
O Sr. e a Sra. Howard sabem que não podem competir com o
comércio online, e é por isso que nossas horas de trabalho têm
reduzido progressivamente e eles finalmente venderam sua amada
estátua do Homer-Simpson-vestido-de-Elvis, que cumprimenta os
clientes na porta desde 1997. Eles são tão bondosos que não
suportariam reduzir o tamanho da equipe, embora pudéssemos
administrar a Ferro Velho muito bem para eles se fossemos apenas
dois em vez de cinco.
Quase não há trabalho suficiente para todos, e estamos
desesperados por mais horas. A frase último a ser contratado,
primeiro a ser demitido me persegue por aí como se fosse o
Fantasma do Natal Futuro.
— A loja está à beira do colapso — diz Nicholas levianamente,
acenando com a mão. — Não vai te afetar, Naomi. Você vai ficar
bem.
Brandy faz um barulho sufocado.
— O que você quer dizer com não vai afetá-la? Naomi adora a
Ferro Velho.
Nicholas não diz nada, apenas ajeita as próprias cartas em uma
pilha organizada. É a gota d'água que faltava no copo.
— Se a Ferro Velho fechar, posso perguntar aos Howards se eles
querem me contratar para trabalhar na lanchonete deles. — O Sr. e
a Sra. Howard administram uma casa mal-assombrada durante o
ano todo em Tenmouth, bem como uma lanchonete que serve
comidas estranhas inspiradas em filmes de terror, chamada
Comidos Vivos.
Todo mundo me encara. A veia na testa de Nicholas pulsa.
— Isso não fica muito longe daqui?
É o momento perfeito para jogar o dado enquanto respondo
dramaticamente:
— Duas horas de viagem.
Sua voz é inexpressiva.
— Você teria que dirigir por duas horas para ir trabalhar. Em uma
lanchonete. Depois, mais duas horas para voltar pra casa, todos os
dias.
— Hmm. — Eu finjo considerar. — Se eu me mudar para
Tenmouth, levarei apenas cinco minutos de carro. Eu poderia ir até
com a minha bicicleta.
Meu olhar captura toda a sala e a sensação é magnífica. Uma
centelha da velha Naomi Westfield surge, sugando de mim uma
poeira que se acumula há dez meses. Quer dizer, eu acho que é
ela. Já faz tanto tempo que essa Naomi e eu não ficamos juntas em
um mesmo lugar, que não tenho certeza se a reconheceria, mesmo
se nos cruzássemos na rua.
Meu pino minúsculo da Sra. Branca está na biblioteca agora, ao
lado do pino do Sr. Marinho, de Leon, pronta para acusar alguém de
assassinato. Ela tem uma miniatura de corda (parte das peças do
jogo) e eu avalio minhas opções para ver quem vou enforcar com
ela.
Meus olhos caem sobre o merdinha presunçoso perambulando no
salão de jogos.
Bingo. Professor Black.
Esse Professor Black é uma encarnação particularmente hipócrita
que adverte as crianças a não comerem alimentos açucarados,
enquanto deixa uma montanha de Skittles ao lado dele na cama
todas as noites. Ele é um vilão foragido do jogo Candy Land. É o
ladrão da minha alegria e futuro pai dos meus filhos. Nesse
momento, eu o amo vinte por cento.
O tom de voz de Nicholas é frio como gelo.
— Minha vida é aqui. Não vou me mudar para Tenmouth e desistir
da minha vida para que você possa servir queijo-quente para
caminhoneiros, Naomi.
Quando ele me chama de Naomi, definitivamente se refere à Sra.
Nicholas. O anel de diamante na minha mão esquerda aperta
demais, impedindo minha circulação. Os vinte por cento diminuem
para dez, a porcentagem mais baixa de todos os tempos que faz
minhas sirenes de autopreservação dispararem. Elas estão
piscando e girando, Alerta vermelho! Alerta vermelho!
— Quero fazer uma acusação — digo no exato momento em que
ele diz com uma autoridade suave, — Acho que deveríamos
terminar por hoje. — Mas meu palpite pode encerrar o jogo, então
ele espera e escuta.
Eu falo bem devagar, apenas para contrariá-lo. Ele odeia quando
eu deixo duas pontas de uma frase soltas.
— Eu acuso...
Nicholas se inclina para frente.
Eu pego o pino dele e levo para a biblioteca. Ele vai gostar do
lugar, lá ele poderá estocar as prateleiras com livros sobre a
necessidade de escovar os dentes em movimentos circulares em
vez de de um lado para o outro.
— O Professor Black.
Brandy engasga. Melissa rabisca furiosamente em seu bloco de
notas de investigador. Os olhos de Zach brilham com uma alegria
maléfica. Nicholas apenas parece irritado. Mas Leon, eu noto, está
sorrindo. Apenas um pouco, mas o suficiente porque, quando meus
olhos pairam nele, ele me dá um olhar de interesse.
Um olhar que diz então é aqui que você tem estado.
Com uma voz forte e ousada, prossigo:
— Eu acuso o Professor Black de assassinato! Ele cometeu o
crime na biblioteca, feito um idiota pretensioso, com o castiçal. — Eu
sei que não foi com o castiçal porque eu mesma tenho essa carta,
mas faço essa jogada mesmo assim porque: — É a arma mais
estúpida possível.
Nicholas me encara profundamente durante uma eterna espiral de
tempo, e é perfeitamente possível que terminemos nosso
relacionamento por causa de um jogo de tabuleiro, o que seria um
motivo de término incrível pra caramba. A mãe dele terá uma fortuna
quando recuperar todos os depósitos dela. A oportunidade de poder
ligar para proprietários de pequenas empresas e gritar que é melhor
eles não cobrarem por uma escultura de rosas em gelo será a
cereja do bolo do ano dela.
— Vá em frente, então. — Seus olhos não deixam os meus
enquanto ele empurra o queixo para o centro do tabuleiro. Percebo
que não prestei atenção na cor dos olhos de Nicholas, que por
algum motivo pensei que fossem cinzas. De perto, intensos com o
desafio, eles são de todas as cores do arco-íris.
Alheio ao fato de que estou tendo uma epifania, ele me encara, e
suas íris, como um anel de humor, escurecem de um tom prata claro
para um verde floresta.
— Verifique as cartas.
Faço isso o mais lenta e dramaticamente possível, começando a
me animar com a velha Naomi. Ele quer tanto derrubar sua
estatueta de Professor Black e cruzar os braços, mas está tentando
permanecer civilizado. Dentistas já têm uma má reputação com
quem tem fobia a eles e ele não vai conseguir suportar mais
nenhum comentário negativo, mesmo vindo dos vermes rastejantes
que são o pessoal da Ferro Velho.
Eu verifico as cartas e assobio. Zach me olha com conhecimento
de causa.
Elas dizem: Sra. White, na cozinha, com a corda.
— Ora, quem diria! Parece que eu sou a assassina — digo
alegremente. — Não achei que eu fosse capaz disso. — Nicholas
me lança um olhar desconfiado. Acho que ele vai dormir com um
olho aberto esta noite.

A pior parte de toda noite é a rapidez com que Nicholas a esquece.


Estamos em casa agora, ainda estou irritada e ele não. O homem
está assando cookies e prometeu lavar todos os pratos, e agora não
tenho para onde direcionar minha raiva, porque ele já esqueceu, o
que significa que ele venceu.
Ele me oferece uma espátula para lamber, o que eu recuso
porque talvez seu truque seja usar salmonela para me matar, dá um
beijo molhado no meu cabelo e se afasta sorrindo para mim como
se eu fosse uma criança inocente.
Ele sabe que não posso discutir com ele agora, porque se eu
desenterrar algo negativo, vou parecer mesquinha. Por isso, fico na
minha velha e habitual posição no sofá (na extrema direita do
móvel), onde passei mil horas fingindo assistir televisão e fingindo
ouvir Nicholas e fingindo estar feliz.
Eu tiro uma foto dele de costas para mim e posto no meu
Instagram com um filtro rosado. Coloco três corações na legenda ao
lado de um “Noite de jogos com o meu amor! Não existe jeito melhor
de encerrar um dia incrível, e não há mais ninguém com quem eu
prefira passá-lo. Beijinhos. #AproveitandoAVida
#VouMeCasarComMeuMelhorAmigo
#BeijosDeAmorVerdadeiroDeUmRose”
#BeijosDeAmorVerdadeiroDeUmRose é a nossa hashtag de
casamento, e se você procurá-la no Pinterest, encontrará um milhão
de fotos de buquês, talheres e vestidos de madrinhas dos quais
gosto (mas que não me deixam ter). A dopamina surge em meu
corpo quando vejo a primeira resposta ao meu post: mds, vocês são
tão fofos; mas a sensação macia como pelúcia e travesseiro,
transforma-se em uma de metal contra metal quando Zach responde
com kkkkkk até parece. Excluo o comentário dele.
A culpa de eu ainda estar nessa confusão é minha, e sei disso.
Sou a maior covarde que já conheci. Não estou fazendo um favor a
nenhum de nós ao me recusar a desistir. Se Nicholas tivesse
metade de um cérebro, ele desistiria também, então talvez
estejamos os dois presos em algum empate silencioso, esperando
para ver quem vai ceder primeiro.
Eu sei por que razão ele não vai. A mãe dele tem insistido para
que ele se case e dê a ela netos para que ela possa classificá-los do
mais favorito ao menos, dependendo de quem nossa prole azarada
herdar as características físicas. Se Nicholas abandonar o barco
agora, Deborah voltará a importuná-lo com a ideia de que ele
procrie usando os óvulos congelados de dez anos de uma amiga
dela do tênis, Abigail, que morreu há um ano, e por seja lá qual for o
motivo descomunal, deixou seus óvulos para a família Rose.
Heather, a irmã de Nicholas, será a incubadora dessa abominação
de criança.
Eu também não posso abandonar o barco. Tenho gritado para o
mundo que estou perfeitamente feliz com meu relacionamento
perfeito e, se eu desistir agora, vou parecer uma fraude.
Além disso, a Sra. Rose deu a entender mais de uma vez que, se
eu desistir, ela vai me mandar a conta de todos os problemas que
ela tiver. Se eu deixar o filho dela, ela sem dúvida me levará a um
juizado de pequenas causas a fim de ser reembolsada pelos
castiçais de cristal da marca Swarovski, personalizados com a letra
R (tudo foi encomendado para ser customizado com a letra R), coisa
com a qual eu não fui envolvida na escolha. Não tenho uma
tonelada de economias, mas tenho um pouco de dinheiro guardado
e vou defendê-lo com unhas e dentes.
— Minha mãe ainda fala sem parar sobre o acordo pré-nupcial —
Nicholas diz do cômodo ao lado. Talvez tenhamos passado a noite
toda aqui e minha imaginação inventou nossa ida à casa da Brandy.
Estou sentada no mesmo lugar, enquanto olho para o mesmo ponto,
e aquela minha agitação desconfortável na boca do estômago é um
terceiro membro invisível do nosso grupo. Ela se materializa de
forma confiável sempre que falamos sobre o casamento.
— Eu disse a ela que de jeito nenhum — ele prossegue quando
eu não respondo. — Ela e o meu pai nunca tiveram um. Por que nós
deveríamos? Não é como se você fosse me deixar.
Nicholas adora se parabenizar por não ter feito um acordo pré-
nupcial. Ele pensa nisso o tempo todo, e eu sei disso porque ele não
para de tocar no assunto. Ele espera que eu me junte a ele e dê um
tapinha em suas costas, mas eu o deixo esperando.
— O corte de cabelo da Mandy está horrível — observa Nicholas,
lançando um olhar sagaz para mim. — Aquela franja. Credo.
Ele sabe que o nome dela é Brandy. Eu a menciono pelo menos
uma vez por dia. Estou soltando fumaça pelas orelhas não só por
causa disso, mas porque eu tinha franja quando Nicholas e eu nos
conhecemos. Ele diz o tempo todo como eu era bonita e como ele
se apaixonou por mim imediatamente, e mesmo assim, há cerca de
um ano, sempre que ele vê uma mulher com franja, ele me lembra o
quanto as detesta.
— Fica bonita nela — eu digo na defensiva. É verdade. Brandy
tem uma franjinha excêntrica com mechas mais definidas e
afastadas para combinar com o corte de cabelo repicado e curto
dela, e a franjinha lhe assenta muito bem. Seu cabelo está sempre
espetacular. Ela experimenta muitas cores nele, e o estilo do mês é
uma mistura fascinante de preto e granada. Quando ela está do lado
de fora, o efeito que a luz solar provoca em seu cabelo
deslumbrante parece coisa de comercial. Ela nunca sai de casa sem
antes encher o rosto com uma maquiagem impecável, e é a única
pessoa que conheço que consegue ficar bonita com uma
combinação de delineador azul elétrico, sombra laranja e batom
fúcsia.
Ele assobia uma melodia baixa e inocente. É como se estivesse
dizendo se você diz.
Estou perdendo a cabeça tão silenciosamente que quase nem
estou mais aqui. Em minha mente, clico no arquivo em meu
computador que tem uma lista das qualidades de Nicholas, e
percorro cada linha memorizada. Elas perderam o poder de me
impressionar, acho que porque as reli tantas vezes que me tornei
insensível a elas.
Nicholas segura o guarda-chuva para mim e se certifica de que eu
não me molhe. Quando está chovendo e estacionamos, ele vira o
carrro de modo que a porta do passageiro abra para a calçada e
não para a parte cheia de grama lamacenta do meio-fio. Ele sabe de
cor todos os meus pedidos em todos os nossos restaurantes, para
que assim possa dizer exatamente o que eu quero para o garçom
enquanto estou no banheiro.
Ele tem um cabelo castanho-chocolate, espesso e lindamente
desgrenhado, e ele é olhado por muitas mulheres sempre que
saímos. Ele diz que meus olhos são da cor de champanhe, bebida
que se tornou sua favorita depois que nos conhecemos, por esse
exato motivo, e eu sentia algo maravilhosamente borbulhante e
efervescente percorrer minhas veias sempre que ele sorria para
mim.
Ele gosta de cachorros. Não o suficiente para adotar um, mas o
suficiente para soltar uma risada quando eu me ajoelho para
acariciar o cachorro de outra pessoa, antes de dizer de modo
brincalhão: “Nem pense nisso”.
Ele não assiste escondido nossas séries favoritas sem mim. Se
toca no rádio do carro uma música que ele odeia, ele não muda
automaticamente a estação, primeiro pergunta se eu gosto. Ele
ainda usa um par de meias com estampa de poodles, que comprei
para ele quando estávamos namorando, embora tenha sido um
presente de zoação.
Isso pode soar como qualidades insignificantes, ou mesmo
atributos que eu não deveria valorizar, mas eu me agarro a eles
como se fossem coletes salva-vidas.
Eu amo essas coisas sobre o homem. Mas não amo o homem.
E sei disso com todo o meu coração, sentada aqui na casa em
que moramos juntos, com a contagem regressiva para o nosso
casamento tiquetaqueando cada vez mais alto a cada dia que
passa. Como um relógio do dia do juízo final. Ele e eu seremos um
desastre, mas sempre que penso em tomar medidas proativas para
evitar esse desastre, minha língua enrola e meus membros
paralisam. Eu não consigo falar. Não posso ser a pessoa que vai
terminar isso.
Se ele tem uma lista sobre mim, tenho certeza de que é muito
mais curta. Não faço ideia da contribuição que dou ao nosso
relacionamento agora, a não ser o fato de que estou mantendo os
óvulos congelados da falecida Abigail à distância.
Pensar nisso é cutucar a ferida, torná-la maior, torná-la pior,
porque estou cada vez mais consciente da dimensão da minha
ansiedade, da profundidade da minha insatisfação. É tanto terapia
como tortura. Algo não está certo. Algo está faltando. Eu estou
desesperada.
Não tenho o direito de me sentir tão infeliz assim e gostaria que
Nicholas fosse indiscutivelmente horrível para que eu pudesse
justificar minha decisão de deixá-lo. Eu fantasio sobre pegá-lo no
flagra com uma dentista na parte de trás do carro dele, em um
shopping.
Ele acha que nosso relacionamento é perfeito, pelo menos é o
que ele diz. É o que digo às pessoas também. Ele diz a todos que
eu sou fantástica. Ele acha que eu o adoro. Somos os únicos que
sabem o que o amor verdadeiro é.
— O que você quer jantar amanhã? — pergunto em um tom que
faz parecer que eu o amo. É um esforço e estou exausta.
— Você escolhe.
— Tacos de frango.
— Eu estava pensando em pedir vegetais salteados — ele
responde, e eu sei que é totalmente injusto, mas meus dez por
cento caem para nove. Nesta fase do jogo, não é preciso nadinha
para descontar pontos. Se ele respirar muito alto durante o sono
esta noite, vai acordar com uma pontuação de menos cinquenta por
cento. Cultivar pontuações como essa é terrível. Eu sou terrível.
Nosso relacionamento pode ser a pior coisa que já aconteceu
comigo, mas quando eu o analiso enquanto estou em um estado
positivo de espírito, não parece tão ruim assim, então fico insegura.
Como eu me apaixonei por Nicholas? Como nos conhecemos?
Não consigo me lembrar de nada de bom, porque tudo foi ofuscado
pela intensa antipatia que sinto por ele agora. Talvez tenhamos nos
conhecido em um aplicativo de namoro. Talvez eu estivesse
colocando uma coroa no dente. Talvez nós dois estivéssemos
caminhando rapidamente em uma esquina de uma rua, de lados
opostos, e acabamos por nos esbarrar, tipo algo saído de um filme,
com papéis soltos e copos de café para a viagem e minha bolsa
voando no ar. Tudo que sei é que há alguns meses acordei de um
longo sono e descobri que estava noiva de alguém que eu mal
suporto.
— Docinho — diz ele, é a forma como me chama quando é dia de
pagamento ou seu time favorito ganhou ou ele sabe que pisou na
bola e precisa me bajular. — Eu esqueci de dizer. Minha mãe
marcou uma hora com a florista e queria que eu lhe dissesse que
ela vai trocar as delfínio por cravos, ou algo assim. — Ele gesticula
a mão em um círculo. — Você provavelmente saberia mais sobre
isso do que eu. As flores são mais importantes para as mulheres.
— Você não acha que eu gostaria de poder opinar sobre o tipo de
flores que teremos no nosso casamento? — respondo. — E quanto
a você? Não quer opinar?
Nicholas pisca para mim. Há uma emoção escondida em seus
olhos, e tento identificá-la antes que ele vire a cabeça para um
ângulo mais agudo e ela desapareça.
— Já está resolvido. Ela escolheu cravos, já que você foi tão
ridiculamente inflexível ao dizer que não queria rosas. Ou acha que
não é tarde demais para fazer algumas mudanças? Pense bem,
Naomi. Alguma coisa da qual você queira desistir?
— O que você quer dizer com isso?
— O que acha que quero dizer com isso?
Meus olhos se estreitam.
— Você está sugerindo que eu desista dos cravos, embora tenha
literalmente acabado de dizer que já estamos decididos sobre os
cravos?
— Talvez eu não esteja de maneira alguma falando sobre cravos.
Endireito totalmente a minha coluna e seguro o olhar dele,
trazendo aquela sua emoção de volta à superfície. E eu percebo.
Ele está desfiando minhas cordas.
— Hum?
Nicholas ergue o ombro. Abaixa de novo.
— Podemos conversar sobre qualquer coisa. O que me diz,
Naomi? Quer desabafar sobre algo? — Ele espera pacientemente
por uma resposta, mas tudo que posso fazer é olhar para ele. Minha
mente está indo a um zilhão de quilômetros por hora, zumbindo a
cada revelação. Não posso acreditar que fui tão estúpida.
O tempo todo pensei que a Sra. Rose era quem estava mexendo
os pauzinhos, mas tem sido Nicholas, tem sido ele usando os
poderes de Deborah, irritantes como unhas arranhando uma lousa,
para me levar ao ponto de decidir terminar tudo. Serei a ex-
namorada surtada que explodiu; serei culpada por tudo e
responsável pelos altos custos de um noivado rompido e de uma
cerimônia de casamento luxuosa. Todos vão se sentir mal por ele
por causa do que ele teve que passar ao ser rejeitado no altar.
Consigo até vê-lo daqui, de queixo erguido. Só quero que ela seja
feliz, ele dirá. Um jardim de membros da família Rose suspirará sem
fôlego e se perguntará como um anjo poderia estar tão sereno em
uma situação terrível como aquela. Ele vai fechar os olhos com
força e pensar naquela vez em que um cara em um caminhão bateu
no carro dele e vai forçar uma única lágrima a cair.
Por questão de segundos, vejo nossa situação através dos olhos
dele. Se eu terminar tudo e ele fingir que está de luto pela morte do
nosso relacionamento, ele poderá facilmente usar essa desculpa por
pelo menos um ano. Um ano sem Deborah enchendo a paciência
dele para dar-lhe netos, porque “as feridas ainda estão frescas”.
Todos ao redor dele se dobrarão em mil para ajudá-lo. Se ele
terminar tudo, por outro lado, sairei dessa parecendo radiante. Eu
não serei culpada; ninguém vai me chamar de fraude. Se possível,
vou ganhar comentários cheios de compaixão. As pessoas vão
dizer: Como ele pôde te deixar? e Se precisar conversar com
alguém, estou aqui.
Quando você constrói uma vida com alguém, muitos dos seus
próprios tijolos também sustentam o seu parceiro, e você é
sustentado pelos deles, até que seus alicerces se fundem e ir
embora vira risco de desestabilização para vocês dois. Temos
contas correntes e contas poupança conjuntas. Nossas linhas
telefônicas estão no mesmo plano. Ambos os nossos nomes estão
no contrato de aluguel, e é lógico que a pessoa que decidir terminar
tudo perde a casa. Seus pais investiram em mim, me preparam para
ser digna ser uma Sra. Rose. Temos obrigações juntos. Planos de
longo prazo. Não posso partir a linha que me liga a Nicholas e sair
flutuando livremente por aí, porque temos vários nós.
Sim. Eu olho para ele e, pela primeira vez, consigo enxergar além
da minha própria nuvem de ressentimento por tempo suficiente para
ver que ele tem uma que é só dele. Ele é perceptivo, ok. Já faz
algum tempo que ele sabe o que estou sentindo. No fim das contas,
não sou uma boa atriz.
Nossa porcentagem de amor cai para zero e um tremor faz o
chão estremecer. Azulejos e móveis caem em uma fenda que
serpenteia até o centro da terra, separando a cozinha e a sala de
estar, ele e eu. A verdade é clara, e se revela diante de nós, mas,
como de costume, estou atrasada para perceber as coisas porque
tenho segurado tudo e tentado racionalizar minhas intuições. Estive
focada em mim mesma, tão envolvida em tentar guardar tudo para
mim que nem percebo quais passos ele está dando.
Meu noivado com Nicholas Rose é um jogo de dois teimosos que
se recusam a ceder.
É o meu primeiro dia consciente de que estou presa em um conflito
de ideias e que estou ficando para trás. Nicholas desfrutou de um
período ininterrupto de calmaria ao inspecionar nosso campo de
batalha, enquanto eu lutava cegamente, como um personagem de
videogame preso em um buraco. Ele tem caminhado ao longo do
campo, as mãos cruzadas atrás das costas, enterrando minas
terrestres com sutileza. Ele vai vencer esse conflito, assim como
vence tudo. Eu penso em seu Maserati dourado e no meu Saturn
compartilhando o mesmo espaço na calçada.
Dou um gemido e quase me entrego quando sento na cama e
arranco da pele balinhas Skittle meio derretidas, que ele deixou no
meu braço, o que deixa para trás uma mancha que lembra escamas
de sereia coloridas. Nicholas não trabalha hoje, mas foi a outro lugar
após deixar aqueles biscoitos idiotas na clínica, provavelmente foi
trançar o cabelo de sua mãe. Será que ele sequer come os Skittles
ou simplesmente os larga aqui, na tentativa de me irritar?
Estou tentada a fazer minhas malas e ir embora agora mesmo,
mas isso seria jogar com o que ele quer. Se alguém vai pagar a
Deborah o dinheiro que ela gastou com trezentas taças de
champanhe personalizadas com N & N, vai ser ele, por culpa,
depois que me largar. E então, vou arrancar meu anel de noivado e
sair sozinha em uma merecida lua de mel, como forma de
comemoração. Uma lua-de-solteira.
Estou pensando em formas de fazê-lo decidir terminar, negando
sexo, por exemplo, mas, na verdade, não acho que isso o
perturbaria. Já se passaram nove semanas desde a última vez que,
sem entusiasmo, ele transou comigo. Se não fosse pelas vantagens
de ter períodos menstruais mais curtos e infrequentes, minha
adesão estrita a um rotina de controle de natalidade seria inútil.
Talvez eu possa criar uma conta fake para seduzi-lo e enganá-lo.
Quando ele cair no meu jogo, poderei apontar para meu próprio
feitio e ficar com raiva, tendo toda razão. Irei embora cheia de ódio.
A mãe dele vai começar a chorar. Vou tirar uma foto do momento e
emoldurar.
Vou culpar os Skittles pelo que acontecerá a seguir.
Corro para o banheiro com uma tesoura, puxo uma mecha de
cabelo sobre a testa e corto-a antes que eu perca a coragem. Os
olhos do meu reflexo estão arregalados e maníacos, e eu amo o que
vejo. Amo a Naomi que pode fazer coisas assim sem dar a mínima.
Nicholas não gosta de franjinhas? Fantástico. Eu não gosto de
Nicholas.
Percebo que minha nova franja está ligeiramente torta, então dou
uma aparada para nivelá-la. Acabo consertando demais, então
preciso cortar de novo, e o que me resta na testa não é nada
parecido com o estilo de cabelo fofo da Brandy.
O que vejo no espelho quando termino me faz murmurar:
— Carambolas!
É ainda pior do que quando se é criança e sua mãe casquinha,
que só vai ao salão para fazer o próprio cabelo, coloca uma tigela
na sua cabeça e corta o que restou abaixo da borda. Parece que eu
me aproximei demais de uma trituradora de papel e acabei cortando
o cabelo. E de alguma forma há duas mechas na franja. Se eu
tentar nivelá-las mais, vão parar quase no couro cabeludo.
Eu fico em minha casa vazia por um minuto e ouço o barulho de
pneus de carro passando sob a chuva que restou e esguichando a
água, fico fazendo estimativas sobre o quão à frente de mim
Nicholas está, sobre quantos passos eu preciso dar para alcançá-lo.
Olho para fora e noto uma revelação suspeita: meu pneu furado
voltou à vida. Ou alguém trocou para mim ou todo o sofrimento foi
coisa da minha imaginação. No momento, a última opção parece
mais provável.
Vejo que ele não lavou a louça como prometeu fazer e quase
admiro sua jogada maligna. Negligenciar a lavagem de pratos é uma
coisa. Dizer voluntariamente que você vai fazer isso e depois não
fazer é um ato de hostilidade.
Ele lavou a cafeteira, no entanto, porque é o único que a usa.
Mais uma prova de que está sendo um idiota de propósito. Coloco a
cafeteira de volta na pia e a decoro com xarope de bordo. Então
escrevo um recado para ele no quadro branco, dizendo que mal
posso esperar para me casar com ele. Eu o chamo de Nicky, o que
nunca fiz antes, e depois que supero a ânsia de vômito que fazer
isso me causa, desenho dois corações entrelaçados.
Vamos ver o que você vai achar disso.
Sorrindo, entro no meu closet e saio de lá vestida com o traje anti-
Nicholas mais glorioso que consigo encontrar: um moletom dos
Steelers, que pertenceu ao meu ex-namorado. Encontrei a peça de
roupa na minha gaveta há dois meses e acho que foi a observação
que Nicholas fez sobre eu não saber nada de esportes e, sendo
assim, não tinha motivo para ficar com o moletom, que me levou a
guardá-lo para poder usar em uma tarde chuvosa.
Usar esse moletom é basicamente mostrar o dedo médio para
ele, mas para piorar a situação, visto uma legging que ele acha
constrangedora porque a calça é tão velha e gasta que chega a ser
transparente em alguns lugares e há um buraco do tamanho de uma
moeda de vinte e cinco centavos em uma das nádegas. Essa
legging e eu passamos por muita coisa juntas. Términos. Encontros
ruins. Aquela vez em que a Tyra Banks gritou com a Tiffany no
America’s Next Top Model. Por momentos em que meus pais/irmãos
cancelaram os planos de vir me visitar, sempre e sem falta, mesmo
todos tendo tempo para dirigir de bom grado até a Flórida para
assistir às corridas da NASCAR. Essa legging é como comida
reconfortante e eu nunca vou desistir dela.
Completo o look com o tipo de maquiagem que a mãe dele
chamaria de “imprópria” ou “inconveniente”. Meus lábios estão da
cor de sangue fresco, tornando minha boca mais chamativa que a
do Babadook. Meu delineado é um traço espesso e preto que se
estende para além de onde deveria terminar, e minhas pálpebras
brilham até as sobrancelhas como uma participante de concurso de
beleza. Não é o suficiente. Acrescento quilos de blush e bronzer até
meu rosto ficar indistinguível de um carro alegórico de carnaval. Eu
ultrapassei o “impróprio” e me joguei de cabeça no pesadelo de
Deborah. Estou parecendo exatamente com a primeira esposa do
marido dela, a famosa Magnolia Rose.
Dou a mim mesma uma salva de palmas e envio um beijo de
agradecimento a Magnolia Rose, minha maior heroína, por se
recusar a deixar de ser chamada de Sra. Rose após o divórcio,
embora seu casamento com Harold tenha durado apenas um ano e
não tenha gerado frutos. Atualmente ela mora em Key Largo com o
marido número cinco, que é vinte anos mais novo e sobrinho do
cara que inventou os marshmallows em formato de animais. Ela cria
quinze papagaios em um aviário do tamanho do meu quarto, e todos
eles têm nomes de assassinos da série Law & Order. Eu sei disso
porque ela me adicionou como amiga no Facebook, provavelmente
para provocar Deborah, que por duas vezes tentou processar
Magnolia por estresse emocional causado por “arruinar o Harold”.
Quero ser Magnolia Rose quando eu crescer.
Nicholas ficará obcecado em saber para quem estou usando esse
tipo de maquiagem, até ficar com uma úlcera. Meu reflexo no
espelho inclina a cabeça para trás e ri como se sua pele estivesse
prestes a se abrir e liberar uma centena de demônios voadores.
Ontem eu estava apática e minha coisa favorita para se fazer era
me deprimir, mas hoje estou crepitando com uma energia perversa.
Tudo mudou agora que tenho um plano.
Nosso casamento está marcado para vinte e seis de janeiro,
então tenho três meses para deixar Nicholas exausto e sem vida.
Vou adotar dez cachorros e transformar o escritório de Nicholas no
quarto dos meus cães. Vai ser bom evitar o incômodo de ter de
mudar meu endereço no correio ou de configurar a Internet e a TV a
cabo em alguma casa nova, como Nicholas terá que fazer. Que
saco ser ele! O proprietário fez um bom acordo conosco e o aluguel
é barato o suficiente para que eu consiga pagar por conta própria,
mesmo com a Ferro Velho pagando uma merreca. A economia está
piorando e eu preciso de toda a ajuda que puder conseguir.
Em minha mente, ouço-o zombar: a loja está à beira do colapso, e
sinto uma agitação desconfortável em meu abdômen. Ele está
errado. Meu trabalho não está em risco e eu vou ficar bem. Se
alguém vai perder o emprego, é ele. Uma nova clínica odontológica
foi aberta na rua do primeiro semáforo, Clínica Odontológica da
Família Turpin, e eles aceitam tantos planos de saúde que a Dra.
Stacy Mootispaw os chamou de “grotescos”.
Não tenho seguro de saúde, mas pagar do meu próprio bolso
pode valer a pena, pois Nicholas terá de me ver indo até a Turpin
para fazer uma limpeza. É um cenário com o qual sonho enquanto
reviro o macarrão vegano e assado dele em uma caçarola.
Com a finalidade de criar coragem para o que estou prestes a
fazer, ouço três músicas raivosas do Eminem e, em seguida, disco
um número que salvei em meus contatos como “666”. Nunca ligo
para esse número. Meu celular tenta me salvar ao desligar e
reiniciar espontaneamente, mas não há como me parar agora. Estou
a pelo menos cem passos atrás de Nicholas em nosso campo de
batalha. Estou cercada por explosivos indetectáveis e ele está
brincando entre as flores silvestres, sem medo do mundo. Ele tem
me provocado há tanto tempo que não sei quanto das merdas que
ele faz é calculada e quanto é involuntária. Não tenho certeza se
sequer o conheço. Mas com certeza conheço a mãe dele.
— Alô? — diz a Sra. Rose.
— Deborah! — Amanso meu tom de voz para soar tão doce
quanto açúcar e mel, girando na cadeira giratória de Nicholas. Estou
no escritório dele, lugar onde ele não gosta que eu fique, porque
precisa de privacidade para conversar com a mãe por ligação. Os
dois deveriam administrar uma pousada juntos.
— Naomi? — Ela soa incerta. A terceira sílaba do meu nome é
cortada; ela se afastou do telefone para verificar o identificador de
chamadas e se certificar de que minha voz não é uma alucinação
auditiva.
— Espero que você não esteja ocupada — digo com um sorriso
enorme no rosto. É sábado de manhã. Deborah tem mais atividades
marcadas na própria agenda do que o presidente, e com certeza
estou interrompendo algo. — Eu queria falar sobre as mudanças
que foram feitas nas flores do meu casamento sem meu
consentimento.
Dá pra ver que ela não esperava nenhum contra-ataque sobre
essa decisão, mas se recupera rapidamente. Sua voz é a calma
canção de ninar que ela usa para lembrar Harold de tomar o
comprimido de óleo de peixe dele.
— Espero que você não se importe, querida. A florista não
conseguiu marcar outro horário, e eu não queria incomodar você. Eu
sei o quão ocupada você é no... hm, eu não consigo me lembrar o
nome do lugar para onde você vai todos os dias. O Lixão, é assim
que se chama?
— Sim — digo em uma voz intensa. — O Lixão. — Eu me enterro
sob pilhas de lixo feito um roedor. — Você nunca me passou o
número daquela nova florista, depois que trocou a fornecedora pela
terceira ou quarta vez. Você tem o número em mãos? Quero alterar
algumas coisas.
— Alterar? — Ela parece assustada. — Tenho certeza de que é
tarde demais para fazer isso. Está tudo pronto e inalterável agora.
— Deborah. — Eu rio. Deborah, Deborah, Deborah. — Você falou
com a florista ontem! Tenho certeza que ela estará aberta a ouvir a
noiva. Que sou eu. Eu sou a noiva. — Torço meu bigode de vilão
imaginário. Nunca estive tão contra ao fato de ser uma noiva. Eles
teriam que arrastar meu corpo inconsciente até o altar, uma
ventríloqua teria que usar a própria voz para simular meus votos
matrimoniais. — As flores que você escolheu simplesmente não são
minha preferência.
— Não estamos em época de delfínios. Cravos ficarão tão lindos
em um casamento em janeiro.
— Cravos estão fora de moda. — Todos os meus instintos me
dizem que Deborah e Harold usaram cravos no casamento deles. —
Estou pensando em… — Vejo meu reflexo sem cor no vidro de uma
foto emoldurada na mesa de Nicholas. Nela ele tem seis anos e há
um peixinho pendurado em sua mão. Um bluegill. Ele está sorrindo
tanto que seus olhos estão apertados, o topete no cabelo muito
mais predominante do que agora, com dois dentes da frente
faltando. A mãe dele está por trás de seu ombro, as unhas
compridas em uma cor rosa-melancia cravadas nele. Eu a imagino
fazendo o mesmo em nosso casamento, sussurrando no ouvido
dele.
— Magnólias — finalizo.
Espuma gorgoleja da minha boca de Babadook pintada de batom
vermelho-sangue, e uma vertigem toma conta de mim. É o mais
próximo da alegria que cheguei em muito tempo. Vou seguir esse
sentimento diretamente para o inferno.
Ela está tão quieta que tenho que verificar se a ligação não está
no mudo.
— Deb? — digo de prontidão, mordendo os dedos para não
surtar.
— Eu não acho que o Nicky concordaria com essa escolha — ela
finalmente se força a dizer.
— Nicky me disse que tudo bem. — Giro minha cadeira
novamente, com os joelhos no queixo. O assento é de um couro
luxuoso e maravilhosamente confortável, é como se eu estivesse
afundando em uma banheira de hidromassagem. Minha cadeira de
escritório é cinco centímetros menor do que eu gostaria e é feita de
madeira. Eu comprei em uma venda de garagem. Coloquei uma
almofada de tamanho irregular sobre ela para deixá-la mais
confortável, mas a disparidade aqui é ultrajante. Esta cadeira agora
é minha.
— Além disso — acrescento — é o meu casamento, não é? Eu
deveria escolher o que eu quisesse.
— É o casamento do Nicky também.
Por que Nicholas se importaria? Ele vai se casar pelo menos três
vezes na vida. Quando eu tiver sessenta anos, vou dar de cara com
ele usando um penteado que homens calvos usam para disfarçar a
calvície, de braços dados com uma mulher de vinte e poucos anos,
porque homens são terríveis e podem escapar impunes de
situações assim.
— Você sabe o que eles dizem — respondo alegremente. —
Esposa feliz, vida feliz! Ele fará o que for preciso para me deixar
feliz. Aprendeu com o exemplo que teve, observando como seu
marido é bom com você.
Nunca fui contra as ordens de Deborah, nem mesmo
educadamente. É mais fácil deixá-la fazer o que quer. Esta é uma
experiência totalmente nova para Deborah, e provavelmente para
seu clube do livro que está ouvindo a conversa. Ela está sentada em
frente ao prefeito e toda a irmandade dela, se esforçando para
manter um sorriso colado no rosto enquanto espiritualmente me
sufoca e tira de mim o meu sopro de vida. Seu péssimo hábito de
colocar as pessoas no viva-voz para que todos os presentes
possam compartilhar risadas saiu pela culatra.
— O número, Deb? — Eu instigo, cruzando os pés sobre a mesa
de Nicholas. Uma pilha de arquivos cai, espalhando-se pelo chão
como cartas de baralho.
— Hum. Sim. Deixe-me ver. — Ela está se debatendo. Não pode
me dar um número falso, mas não pode me dar o verdadeiro. Isso
não é um blefe meu e com certeza encomendarei um bilhão de
magnólias para decorar a igreja Sta. Mary. Imagine só a cara de
Harold ao ver a fatura.
Deborah hesita enquanto folheia o aparelho que usa para guardar
cartões de contato comerciais. Eu ouço o ranger de seus dentes.
Fico completamente em silêncio até ela voltar para mim e dizer cada
número.
— Obrigada! — eu murmuro. — E já que estou aqui, pode me
passar o número da confeitaria também? Eu sei que originalmente
sugeri a Drury Lane, em Hatterson, mas acredito que você escolheu
uma de outro lugar? Correto? Tenho certeza que você sabe mais do
que eu. De qualquer forma, gostaria das informações de contato
deles, por favor.
Ácido escorre da boca de Deborah.
— Por que isso seria necessário, minha querida? Já cuidei do
bolo.
— Quero te agradecer por isso. Você tem sido ótima!
Simplesmente ótima. Dando seu tempo, seu dinheiro. Por que não
tirar um pouco do fardo das suas costas? Você merece relaxar e
aproveitar seus anos dourados. Eles passam tão rápido. Vou
apenas substituir algumas coisas aqui e ali, não se preocupe com
nada, Deb.
— Mas...
— Tudo o que você precisa fazer é comparecer ao casamento. Eu
quero que você se divirta lá. Não dá para se divertir se você estiver
ocupada organizando tudo! — Se minha voz subir mais oitavas, vai
virar um apito.
— Eu não acho que o Nicky...
Eu a interrompo.
— O número, Deb? Muito obrigada. — Ninguém nunca se atreveu
a encurtar o nome dela para Deb e estou abusando do privilégio não
merecido enquanto a espuma escorre pelo meu queixo,
encharcando a frente do meu moletom favorito dos Steelers.
Quando Deborah recita com raiva o número de contato da
confeitaria, cada dígito que ela diz de forma atropelada é um código
para a frase: se não for bolo de baunilha e chocolate marmorizado,
eu te mato. Isso me inspira a mudar a cobertura do nosso saboroso
bolo salpicado por pétalas de flores. A miniatura dos noivos que
representará Nicholas será uma cópia do Homem-Aranha da loja
que vende tudo por um dólar, a Tarantula-Boy. Serei representada
por uma vela cilíndrica metade derretida, com olhos esbugalhados,
e todos que Deborah conhece e ama terão que ver. Quando
Nicholas cortar o bolo, um dos meus olhos esbugalhados vai
deslizar para fora como um presságio. Vou sorrir para ele com
minha boca vermelha e horrorizada e com meu olhar selvagem que
o fará detestar a cor de champanhes para sempre, e o sangue dele
vai coagular.
— Obrigadaaaa — eu digo. — Deb, você é a melhor.
— Espero que Nicky esteja de acordo com isso — ela diz
sombriamente.
— Não se preocupe com ele. Tenho o nosso Nicky sob controle. E
logo ele terá a nova sogra para cuidar dele também. É tão fofo, um
dia desses ele estava me dizendo que vai passar a chamá-la de
mãe depois do casamento. Minha mãe vai ama-a-ar.
Uma mão fantasma atravessa o telefone e envolve minha
garganta.
— Que bom — ela murmura.
— Não é? Vamos passar o Dia de Ação de Graças com ela. E o
Natal. Nada é mais importante que a família, você sabe.
Deborah está abalada, mas é uma profissional. Ela me faz
lembrar que dominou A Arte De Ser Uma Vaca décadas antes do
meu nascimento ao responder:
— Ah, sim, concordo plenamente. Mas eu reconsideraria esses
planos, porque o feriado de Ação de Graças seria o dia em que eu
iria pagar a vocês dois o cheque do bufê, e acontece que o Natal é
no mesmo dia em que minha costureira vai precisar conferir suas
medidas de novo. Se você não aparecer, quem sabe o que pode
acontecer? Eu me sentiria péssima se você andasse até o altar com
um vestido que não pudesse ser fechado totalmente.
Em minha mente, vejo as peças centrais do candelabro cheio de
adornos na recepção explodindo feito uma névoa de aerossol. Vou
substituí-los por confetes de papel alumínio e pombas de plástico de
dez centavos. Todo mundo vai pensar que a elegante Sra. Rose,
vestida com roupas da Louis Vuitton e Marc Jacobs, escolheu aquilo
e se perguntará por que a decoração parece lembrancinhas de Dia
dos Namorados de uma casa de repouso. Eles vão fazer fofocas
sobre ela ter declarado falência.
Dou uma risada curta.
— Isso seria um desastre! Que bom que meu véu é comprido. —
Estou me comportando da melhor maneira nos últimos minutos, mas
não consigo resistir e digo: — Vejo você no jantar de domingo, D.
Encerro a chamada e admiro minhas unhas quebradas e
desiguais. Dou outro giro na cadeira. Uma mina terrestre no final do
campo de batalha de Nicholas explode.

É domingo e Nicholas não consegue acreditar que eu não troquei de


roupa e ainda estou vestindo o meu melhor moletom com capuz
para jantar na casa de seus pais. Dou a ele um olhar de
desaprovação quando ele murmura baixinho. Sou uma fã leal dos
Steelers. Eles são o meu time de esportes que usam bola favorito e
eu morreria por eles.
Ele ainda está bravo por causa das magnólias. A Sra. Rose me
dedurou, chorou para ele em meio a um mar de lencinhos
encharcados, e ele a acalmou ao prometer manter os cravos e
defender o nome da família. Magnólias são totalmente indignas. Eu
sou totalmente indigna. Ele franze a testa para mim para dizer Você
é uma vergonha, mas eu sei que a verdadeira carranca dele se deve
aos estilhaços em sua perna. Eu sou um soldado motivado agora,
abastecido com um equipamento de combate completo. Eu
transformei sua mãe desprevenida em uma arma contra ele: ela tem
o ligado sem parar o dia todo em busca de consolo, e toda vez que
o telefone toca, eu o vejo morrer um pouco mais por dentro.
— Você é inacreditável — ele diz.
— Não sou, não. — Pareço muito mais feliz do que ele, embora
essa geralmente seja a parte em que ele abre aquele sorriso de
Bom Menino e eu tento ir para o mundo da lua a fim de que os
comentários rudes da família dele tenham menos poder sobre mim.
Estamos no carro a caminho da casa de Debberoni e Harry. Eles
moram no único bairro quase exclusivo que Morris tem a oferecer,
assim eles podem ser os peixes grandes em um pequeno lago, do
jeito que gostam. Eles não habitam áreas onde seria permitido que
qualquer pessoa entrasse. Eles têm “um homem” para cuidar do
jardim e “uma mulher” para cozinhar. O Sr. e a Sra. Rose não os
consideram importantes o suficiente para os chamar pelo nome. Os
dois são tão nariz empinado que na primeira vez que eu os visitei,
esperei ver barras de ouro sendo usadas como batentes de porta.
Parecia até que o Harold tinha sido secretário de Estado em vez de
banqueiro de investimentos.
Ouço um barulho de plástico e olho de soslaio para o local, me
deparando com um buquê de flores descansando no banco de trás.
Por um instante estúpido e miserável, meu coração vai parar na
boca e penso que elas são para mim – mas então eu vejo.
Claro. São rosas.
Eu não consigo evitar.
— Uau, obrigada pelas flores. Você é tão fofo.
— Ah. — Suas bochechas ficam rosadas. — São para a minha
mãe, na verdade.
— Qual é a ocasião? É o aniversário dela?
O aniversário dela foi em janeiro, igual ao de Nicholas. Ele
comprou para ela uma esteira que ela havia marcado com um
círculo para ele em um catálogo e, além disso, ele orgulhosamente
a presenteou com um pequeno pergaminho que dizia que ele havia
dado o nome dela a uma estrela.
— Não. As flores são... porque eu quis.
Eu não deveria me deixar ser afetada por isso, mas sou. Este
homem já é péssimo como noivo. Imagine só o quanto ele será uma
merda como marido.
— Seria legal se você me tratasse como trata sua mãe — digo
olhando para o para-brisa, porque não sou corajosa o suficiente
para dizer isso na cara dele. Na minha cabeça, repito o que acabei
de dizer a ele e meus olhos saltam. Alexa, toque “Coisas Que Eu
Nunca Pensei Que Diria”.
— Você quer que eu te dê presentes porque faz eu me sentir na
obrigação de fazer isso, não porque eu quero?
Eu considero o que ele disse.
— Sim. Ao menos assim eu ganharia flores. Se eu esperasse que
você sentisse vontade me dar flores, receberia o tanto que estou
recebendo agora. Ou seja, nenhuma.
— Meu Deus, Naomi. — Ele balbucia. — Há um tempão você me
disse que não sentia vontade de ganhar flores. Você disse que não
precisava.
— Ora, eu não estava falando sério! Obviamente quero ganhar
flores. Que garota não quer? Mal posso esperar até ter um filho
adulto para finalmente ganhar alguma.
Posso sentir seu olhar fixo e ardente em mim.
— Se eu dissesse que não queria algo, você compraria para mim
mesmo assim?
Eu me viro para ele.
— Por que você iria querer flores?
Sua risada é fria.
— Sim, por que ocorreria a você me dar alguma coisa? Uma
demonstração de afeto? Claro que você não pensa sobre isso.
Eu estou dando-lhe alguma coisa. Paciência. É um presente.
Estou dando a ele um milagre por não me jogar em seu assento e
estrangulá-lo por todas as vezes em que ele insistiu para nós dois
sairmos com os amigos dele no meu aniversário e para que eu os
agradasse com batatas fritas com queijo e asinha de frango; por
ficar até tarde no trabalho no dia 4 de julho, quando eu quis ir a um
parque aquático, mas mesmo assim ter comprado uma enorme bola
de fogo para a mãe dele – logo ele, rei da das palestrinhas sobre a
impraticabilidade de se dar presentes. Se a galáxia implodisse
amanhã, meu último pensamento inteligível seria Ha ha, lá se vai
sua maldita estrela, sua vaca!
— Há quanto tempo você vem remoendo nisso? — Ele exige
saber.
Uma eternidade.
— Eu não estou remoendo nada. Estou bem.
— Claro. — Outra risada sem humor. — Com raiva de mim por
não te dar presentes. Ao mesmo tempo em que me ignora em casa,
olhando para a TV. Você fica lá sentada como se fosse uma boneca
na prateleira. Faz cara feia quando vamos a esses jantares na casa
dos meus pais, mas não tem nenhum familiar que more por perto, e
eu estou lutando para nos dar algum tipo de base familiar aqui. É
incrível o fato de ainda sermos convidados, francamente, porque
você vive dentro da sua própria cabeça o tempo todo. No segundo
em que entramos em casa, não sobra nenhum vestígio de animação
em você. — Ele balança a cabeça. — É como se eu estivesse lá
sozinho.
Por um momento, fico chocada, porque ele não deveria saber que
faço cara feia por dentro nesses jantares. Do meu ponto de vista,
tenho fingido estar feliz e contente de forma convincente. Se ele
sempre soube que eu fingia, por que não me questionou antes?
Passo o resto de nossa ida até Sycamore Lane pensando em
como meu próximo noivo vai ser o oposto de Nicholas. Ele terá
longos cabelos loiros de hippie e barba, será um artista que esfrega
balinhas que explodem na boca nos dentes. Seu nome é Anthony,
mas ele escreve assim: & thony. Ele é incontestavelmente órfão.
Então já estamos na garagem, presos juntos no que com certeza
vão ser duas horas terríveis. Não consigo me lembrar da última vez
em que Nicholas e eu nos divertimos na companhia um do outro.
Ensaiamos os sorrisos que damos quando estamos na frente de
outras pessoas e ele se apressa para chegar no outro lado do carro,
me fazendo lembrar do único traço redentor dele: há algo
hipnotizantemente gracioso na maneira como ele move o próprio
corpo quando não está ocupado batendo os pés para provar um
ponto de vista.
Seus olhos se fixam nos meus pela janela, e sua mão alcança
minha porta.
Em seguida, ele sorri e decide abrir a do banco de trás, pegando
as rosas. Ele caminha sozinho até a entrada. Sigo atrás dele como
um cão de rua e desejo poder latir e rosnar feito um.
Uma placa com uma frase do Shakespeare está aparafusada ao
revestimento de tijolos: AQUILO A QUE CHAMAMOS DE ROSA, MESMO
COM OUTRO NOME, AINDA CHEIRARIA IGUALMENTE BEM. Não era para
ter um ainda nessa citação. Eu pesquisei uma vez para ter certeza
de que era um erro de digitação, mas nunca disse isso para o Sr. e
a Sra. Rose porque não quero que eles comprem uma nova com a
citação correta. Tenho um grande prazer em saber que a placa
deles está escrita errada.
Penso sobre a primeira vez que estive nesta porta, nervosa e
otimista, desejando tanto me encaixar perfeitamente no mundo
deles e que eles me tratassem como parte da família. Nicholas
passou o braço em volta dos meus ombros e beijou minha
bochecha, sorrindo de orelha a orelha. Eles vão te amar, ele disse.
A porta se abre. Deborah arreganha todos os dentes para mim
em um sorriso que ela não quer dar, e eu desejo enfiar o dedo na
garganta bem na frente dela.
Nicholas e eu trocamos um último olhar de ódio mútuo antes de
sorrirmos e darmos as mãos. Ele aperta a minha. Eu aperto a dele
de volta com mais força, mas acabo machucando meus próprios
dedos.
O covil deles cheira a uma loja do Bath & Body Works coberta de
poeira há dez anos, em um cenário pós-apocalíptico, com as notas
de base da fragrância do spray de cabelo Aqua Net. O odor de
poeira sempre me confundiu, pois nunca consegui encontrar
nenhuma poeira de verdade. Todos os cômodos são grandes e
luxuosos, tentando ao máximo criar uma aparência de castelos
franceses com cadeiras estilo Luís XV, mas ao mesmo tempo
esperando que você não note o tapete rosa manchado. Se você tem
menos de vinte anos, é esperado que tire os sapatos antes de
entrar. Há uma única televisão no “salão” – uma relíquia dos anos
1970 que nunca é ligada e cujo único propósito é refletir sua cara de
choque ao saber que tal aparelho de televisão imenso ainda existe
na casa de alguém.
Um silêncio absoluto se fecha sobre seu corpo como um capuz
quando você cruza a soleira da porta e entra nesse cenário de
assassinato da Agatha Christie, e te faz querer falar baixo, o que é
traduzido pelo processador de emoções humanas da Sra. Rose
como admiração.
É o poema lírico dela em homenagem a Era Dourada que já se
foi, época em que as crianças suprimiam todos os próprios
pensamentos e emoções para tornar a vida dos pais embriagados
mais fácil. Madeira de cerejeira, tecidos grossos, papel de parede
damasco nas cores preto e grafite. Uísque de mil dólares com as
rolhas intactas e potes de cristal feitos para guardar doces, mas sem
nada dentro. Quadros ornamentados com cordões de ouro e
cinzeiros do século XVIII que você pode ver, mas não tocar,
entesourados por trás de um vidro iluminado. Um museu da história
dos Rose, uma que ninguém liga, exceto pelas Roses* velhas e
murchas que crescem aqui, e talvez até eu, a erva daninha
indesejável e feia, caso acabe tendo que me casar e me tornar uma
parte dessa confusão.
As medalhas de honra do ensino médio de Nicholas estão
emolduradas na parte principal da sala de jantar. As evidências de
que eles têm uma filha foram apagadas de todos os lugares, exceto
por uma pequena sala que eles chamam de “O paaah-lah”, que
contém um piano de cauda, um bando de estatuetas de gato de
porcelana e um porta-retrato com uma foto do anuário do último ano
escolar de Heather. Há raios laser ao fundo da fotografia e ela está
usando aparelho fixo com elásticos pretos. Sua mãe às vezes fala
sobre ela como se ela estivesse morta. Nicholas me disse que
Heather é DJ de música eletrônica e, só por causa disso, ela é o
meu membro favorito desta família.
— Naomi! Minha querida! É tão bom te ver — Deborah exclama,
virando-se para frente para soprar um beijo em uma bochecha
minha, depois na outra. Ela aprendeu a ser fria e passivo-agressiva
com a própria sogra (uma pessoa verdadeiramente aterrorizante
que vi apenas uma vez antes de Satanás chamá-la para casa).
Honestamente, essa mulher não faz ideia de onde está. Moramos
em Morris, pelo amor de Deus. Metade da nossa população tem
pelos e sobrevive de beliscar frutas silvestres na floresta.
Conhecer Deborah pessoalmente pela primeira vez foi chocante.
Ela escrevia constantemente tantas reclamações sobre a vida em
geral para o jornal Beaufort Gazette, que deram a ela uma coluna
para publicar conselhos, chamada Querida Deborah, onde ela
distribui pérolas de sabedoria para leitores leais em todo o condado.
Eu conheço as pérolas de Deborah pelas bijuterias que são, porque
ela nunca enfrentou um problema sem antes correr para Nicholas
resolver. A foto que acompanha os discursos dela foi tirada há pelo
menos quinze anos. Ela ainda tem o mesmo cabelo curto, agora
com mais luzes, mas a pele ao redor dos olhos está bem esticada,
embora os olhos em si pareçam ter encolhido metade do tamanho
original. Os brincos que usa são tão pesados que os lóbulos de sua
orelha chegam a cinco centímetros de comprimento.
Ela aperta meu rosto entre as mãos macias e frias. Não tenho
certeza se ela tem sangue. Às vezes fica com o rosto um pouco
vermelho, mas isso é só porque ela ficou ligada à tomada por tempo
demais e o plugue superaqueceu.
— Meu Deus, Naomi, você cortou o cabelo! E bem antes do seu
casamento! O que diabos estava pensando? Me diga o nome da
sua cabeleireira e eu vou fazer com que a demitam pelo que ela fez
com você.
Eu acaricio minha franja lamentavelmente curta e Nicholas
esconde um sorriso, satisfeito por sua mãe me insultar no lugar
dele.
— É um estilo. Como a Amélie. — Amélie Poulain vai ser minha
referência para esse meu trabalho mal feito. Vou fazer comparações
sempre que puder.
Deborah parece estar segurando várias abelhas na boca.
— Realmente não combina com o formato do seu rosto. Embora
eu tenha certeza que você já saiba disso. Tem um horário marcado
para você fazer extensões no cabelo. — Ela não espera ouvir uma
confirmação, já ansiosa para mergulhar na análise que faz sobre a
minha aparência. É o que ela faz toda vez que me vê. — Você está
com uma cara péssima, minha querida. Tão cansada e inchada.
Está doente?
— Sim — respondo alegremente. Eu a abraço, o que nunca fiz
antes (olhe só para mim tentando todas essas coisas novas e
divertidas!), e os ossos dela se deslocam e contraem sob a roupa
formal. Sua clavícula é tão saliente, é como se alguém tivesse
enterrado os ossos dela sem antes cavar.
Ela recua, coberta pelos germes imaginários da minha doença.
— Naomi está brincando — diz Nicholas melancolicamente. —
Ela disse que estava bem no carro.
Deborah dá um tapinha no peito como se estivesse sofrendo de
palpitações, e nós a seguimos até a sala de estar para ver o novo
cabideiro dela (feito de madeira de sequoia gigante, e que custou
mil e duzentos dólares) e elogiá-lo. Sinto o cheiro de comida sendo
preparada, e a promessa de uma refeição grátis é a única razão
para eu não me empalar imediatamente no cabideiro.
Quando a Sra. Rose vai ver com “a mulher” como anda o jantar,
eu pego meu celular e começo a digitar.
— Pot-pourri — digo em voz alta. — Pinturas feitas com rabiscos.
Estatuetas de Hummel assustadoras de crianças camponesas
fazendo tarefas domésticas.
Nicholas me lança um olhar desconfiado.
— O que você está fazendo?
— Fazendo anotações sobre como tornar nossa casa mais
atraente para você. Você adora tanto essa aqui que nunca quer sair
dela, então estou tentando descobrir como recriar a magia. — Volto
a digitar no celular. — Buquês de flores concedidos por entes
queridos. Hmm, terei que encontrar alguns entes queridos.
Ele aponta para um buquê marrom e seco, o presente que ele
deu porque quis da semana passada.
— Você quer isso? — ele sussurra sarcasticamente. — Um monte
feio de quarenta dólares? — Em seguida ele aponta para um broche
de esmeralda espalhafatoso em uma vitrine de vidro. — Que tal
isso? Joias inúteis te deixariam feliz, querida? — Se eu ouvir mais
uma palavra dele sobre coisas inúteis, vou enfiá-lo no porta-malas.
— Roube e veremos.
Seus lábios se comprimem. Saber que estou o irritando faz meu
coração cantarolar.
A Sra. Rose já está ao alcance da nossa voz outra vez, então
pego um vaso que pertencia à mãe de Harold e digo:
— Eu gosto desta urna.
— Isso é um vaso, querida. — Ela pronuncia “váz”. É impossível
ela não odiar este vaso, pois reza a lenda que certa vez ela e a
sogra entraram em uma briga física para decidir onde Harold seria
enterrado – ao lado da esposa ou ao lado da querida mamãe.
Nicholas herdou os problemas da família.
— Fico surpresa em ver que uma urna tão adorável já não esteja
ocupada — digo como se não tivesse ouvido-a. — Embora eu
suponha que um dia estará. — Dou a Deborah um olhar
contemplativo e lento, de cima a baixo, do topo de sua cabeça até a
ponta dos sapatos brancos imaculados. — Você tem as melhores
relíquias de família. Me faz sentir muito humilde pensar que um dia
eu terei todas em minha própria casa. Nick, você não consegue
simplesmente imaginar essa urna bonita em cima da nossa
geladeira algum dia?
Seu olhar fica afiado quando o chamo de Nick, mas ele não tem
tempo para responder, porque a Sra. Rose diz:
— Nicky, o que você acha do novo corte de cabelo da querida
Naomi?
A única razão pela qual ele mantém uma cara séria é porque está
parado bem na frente de uma janela. Seria muito fácil para mim
empurrá-lo de lá.
— Naomi sempre parece ótima. — Em seguida, ele dá três
passos para o lado antes de acrescentar: — Ela tem uma testa
grande o suficiente para poder usar uma franja curta.
Os dois cobrem os sorrisos maliciosos com as mãos em gestos
idênticos. Nicholas percebe e abaixa a mão. Parece um pouco
trêmulo. Eu sorrio para ele para confirmar seus piores medos.
Sim, Nicky, você está se transformando na sua mãe.
— Essas rosas não são lindas? — eu digo para Deborah,
gesticulando para as flores marrons e mortas da semana passada.
— É muito atencioso da parte do seu filho adulto te trazer flores o
tempo todo.
— Não é? — ela cantarola. — Nicky me mima tanto; é um menino
tão maravilhoso. Ele faz o mesmo por você, tenho certeza.
Meu sorriso se curva nos cantos da boca, Nicholas encontrou
algo no tapete para atrair a própria atenção.
— Venham ver essas novinhas em folha! — ela me diz, acenando
para que a sigamos até o salão. Outros quarenta dólares do
arrependimento de Nicholas me encaram zombeteiramente de uma
pequena mesa. Ele tirou o adesivo do posto de gasolina do
embrulho de plástico, e imagino que, com o tempo frio se
aproximando, será mais difícil encontrar rosas. Ele vai ter que
desembolsar cem dólares por semana para comprá-las na 1-800-
Flowers.
— Elas não são preciosas? — Deborah enfia o buquê embaixo do
meu nariz. Eu me inclino e inalo.
— Então esse é o cheiro de flores! Nunca tive a oportunidade de
vê-las de perto, então eu não fazia ideia.
Nicholas suspira, olhando para o teto.
— Olhe só o que mais o meu Nicky me deu. — Deborah abre a
tampa de uma caixinha preta aveludada, exibindo uma pulseira
brilhante de diamantes chocolate. Nunca entendi o fascínio por
diamantes marrons. Não quero uma monstruosidade dessas. Se
alguém me desse, eu nunca usaria. E mesmo assim, estou quase
enjoada de inveja.
— Você é uma senhora de sorte. — Mantenho meu olhar fixo em
Nicholas. Minha voz soa tão falsa que sei que todos nós
conseguimos perceber. — Qual foi a ocasião?
— Meu aniversário de casamento com o Harold. — Harold cochila
em uma cadeira, o corpo encurvado e inclinado para o lado. Ela o
acorda, puxando o colarinho dele até ele estar endireitado. — O que
foi que ele deu para você, querido? Tacos de golfe?
Harold se sobressalta e bufa. Ele é adepto à linguagem falada
pelo nariz.
— Sortudos, sortudos, sortudos — eu cantarolo. — Vocês são tão
sortudos por terem um filho adulto que os presenteia com diamantes
e tacos de golfe em comemoração a um aniversário de casamento
que nem dele é! Mal consigo imaginar até que ponto ele iria com o
próprio aniversário de relacionamento. — Desta vez, não ouso olhar
para Nicholas. Ele vai querer que nossos olhares se cruzem para
que eu saiba que ele está explodindo, e não olhar para ele o priva
disso.
Conversas com a Sra. Rose são cinquenta por cento sobre ouvi-la
se derreter por Nicholas e cinquenta por cento sobre ouvi-la
reclamar, então é hora de ela mudar a direção da conversa. Ela
pergunta por que ninguém recebeu o convite de casamento ainda,
uma vez que ela já deixou o tipo de convite que queria e o conteúdo
do texto prontos para serem enviados. Eu fico em silêncio enquanto
Nicholas formula uma resposta, deixando-o sozinho nessa.
A verdade é que Nicholas e eu não concordamos sobre qual foto
de noivado anexar aos convites. A maioria dos casais anexa fotos
de noivado para salvar a data, mas, como não os enviamos,
Deborah diz que devemos incluí-las nos convites.
A foto que eu quero usar me capturou em um ângulo mágico. Dá
a ilusão de que eu tenho cílios longos e lábios mais carnudos. Meu
peito parece maior. Absorvi toda a magia fotogênica e não deixei
nada para Nicholas, cujo olho direito está totalmente fechado e o
esquerdo metade aberto. Tiramos as fotos em um dia frio e a
primeira coisa que dá para notar são os mamilos dele apontando
através da camisa. Eu rio toda vez que vejo.
A foto que Nicholas quer usar o faz parecer um modelo da GQ, e
meu cabelo está voando por todo o rosto. Nicholas responde para a
mãe:
— Ah, pensei que já tivéssemos enviado. Foi mal.
— É melhor enviar — Deborah diz em advertência. — Ou
ninguém vai aparecer.
Os ouvidos de Nicholas aguçam e se animam com isso. Ele
parece inspirado. Esses convites nunca vão ser enviados pelo
correio. Não tenho o direito de ficar ofendida por ele não querer se
casar comigo, já que também não quero me casar com ele, mas
fico. Eu me consolo com a consciência de que minha vontade de
não me casar com ele é ainda maior do que a dele de não se casar
comigo.
Mas quando somos deixados sozinhos por um minuto, os sorrisos
desaparecem e ele murmura no meu ouvido:
— Por que você nunca me apoia? Você sempre me abandona.
— Você sempre me abandona primeiro — eu protesto.

“A mulher” preparou vitela. Vitela me deixa enojada e a Sra. Rose


sabe; é por isso que, até agora, ela sempre oferecia um prato
alternativo caso carne de vitela estivesse no cardápio do dia. Mas
essa noite não. É uma vingança criativa, admito.
Ela me observa atentamente, desejando uma reação, então eu a
olho bem nos olhos e dou uma mordida enorme. Não me importo
com minhas convicções morais esta noite. Comerei um feto de vaca
semiformado e sangrento com minhas próprias mãos, se isso fizer
com que Nicholas termine comigo na frente da mãe dele feito um
completo idiota. A que ponto chegou minha vida, se esse é meu
objetivo atual?
Nicholas me lança um olhar furioso. Quanto mais irritado ele fica,
mais tenho vontade de dançar. Ele está me dando muitas dicas não-
verbais e elas são um ótimo incentivo que confirmam que estou indo
na direção certa. Contrações musculares. Mandíbula cerrada. Mãos
fechadas em punhos. Alguém precisa ensinar sobre dicas de pôquer
a esse homem ou vão deixá-lo de bolsos lisos. Provavelmente eu,
no nosso inevitável divórcio. Meu brilhante advogado e eu
partiremos em direção ao pôr do sol em posse de tudo o que
Nicholas tem.
— Nicky ama vitela — a Sra. Rose ronrona.
Nicky não ama, mas não vai discutir com ela.
— O que mais o seu filho adulto ama? — pergunto. — Você
passa mais tempo com ele do que qualquer outra pessoa, então é a
pessoa certa para se perguntar isso. — Solto um dramático suspiro.
— Mesmo depois de todo esse tempo juntos, ainda há tanta coisa
que eu não sei. Nosso Nicky é surpreendentemente misterioso.
Com isso, o olhar dele se fixa no meu, e há um brilho de diversão
espreitando lá.
— Não se subestime, Naomi — ele responde. — Acho que você
está começando a me entender.
— Sim, acredito que estou. Demorou um pouco.
— Nem todos nós podemos aprender rápido.
Eu giro meu copo de suco de cranberry enquanto nos
observamos com os olhos estreitos.
— Você deveria contar aos seus pais nossa novidade especial —
finalmente digo, um canto da minha boca tremendo.
As sobrancelhas dele se juntam e sua mãe fica toda agitada. Ela
provavelmente não pode acreditar que algo aconteceu na vida dele
e ela não foi a primeira a saber.
— Novidade? Que novidade? Conte-nos, Nicky.
— Conte a eles, Nicky — repito.
Deborah divide um olhar chocado entre nós dois. Claramente,
está com medo de que eu esteja grávida. Um bebê fora do
casamento! O que o pastor Thomas diria? Só para assustá-la um
pouco mais, distraidamente coloco a mão no estômago. Ela produz
um som seco e áspero, como a perna de uma cadeira raspando em
um chão de madeira.
Nicholas saca meu jogo.
— Querida, acho que não sei a que novidade você se refere.
— É uma novidade inesperada. — Estou saboreando isso. — Não
estávamos planejando que nada de interessante acontecesse por
agora, mas é assim que a vida funciona.
— Se você realmente tem uma novidade — ele resmunga — eu
sei que minha não é.
Eu inclino a cabeça.
— Nada de interessante tem acontecido entre nós há um bom
tempo, não é?
— Falando em novidades! — Deborah interrompe, morrendo de
vontade de colocar os holofotes de volta em si. — Estou chegando
ao meu quinto aniversário no jornal.
— Nós sabemos — murmura Harold, cobrindo o colo com um
guardanapo de pano. Deborah o encara incisivamente até que ele
enfia um segundo guardanapo na gola da camisa. Dou um ano
antes que ela o force a usar um babador. — Todos nós sabemos.
Deborah coloca mais corações de alcachofra no prato dele, para
o desespero de Harold.
— Eles podem não saber.
Ela mandou mensagem para Nicholas três vezes esta semana
falando sobre, insinuando que, se ele quisesse levá-la para um
almoço de comemoração, ela aceitaria boicotar o almoço que teria
com Ruby na terça-feira, na Applebee's, a fim de forçá-la a deixar o
grupo delas por causa de brigas com a equipe.
— Parabéns — diz Nicholas automaticamente.
— Sim, é uma grande conquista, não é? Acho que resolvi mais
problemas do que o prefeito! Ultimamente, tenho resgatado
casamentos a torto e a direito, mas quando você ler a coluna de
amanhã, verá que nem eu posso salvar a senhora que escreveu
recentemente implorando por minha ajuda. — Deborah sorri como
se fosse a última coca-cola do deserto. — Ela está tendo um caso
com o faz-tudo que realiza os trabalhos manuais da casa.
— Eu gostaria que Nicholas tivesse mais habilidades manuais...
quero dizer, mais habilidades com trabalhos manuais — digo,
roubando o holofote de volta. — Tenho consertado tudo por conta
própria. Mas tenho obtido resultados melhores, o que é bastante
interessante.
O olhar de Nicholas é fulminante.
— Parece improvável.
— Trabalhos manuais? — Deborah repete, voltando-se para ele.
— Alguma coisa quebrou? A Naomi não deveria estar tentando
consertar nada. Ela pode piorar a situação.
— Eu não tenho escolha — digo para ela em uma voz baixa e
conspiratória. — É uma situação desesperadora, e Nicholas não
quer usar as ferramentas dele. — Toco minha boca com a unha,
observando-o ficar rígido.
— Nicholas não usa ferramentas — Deborah diz enfaticamente,
sem saber que estamos falando em uma língua de ódio
criptografado. — Se algo não estiver funcionando, chame um
profissional.
— Bem pensado. Você sabe quem é o faz-tudo que aquela
senhora escreveu sobre?
Nicholas está de saco cheio.
— Ter habilidades com trabalhos manuais não é satisfatório
quando sua noiva está tão obviamente distraída e mal colabora —
ele me diz, nuvens de tempestade cobrindo sua expressão facial.
As mãos dele estão quentes e suando. Percebo isso pela forma
como o garfo em seu punho está embaçado. Isso é o que ele ganha
por me chamar de boneca na prateleira. Eu não interajo com os pais
dele o suficiente no jantar? Ele vai se arrepender de ter dito isso.
— Harold — Deborah vocifera.
Harold se sobressalta.
— O quê?
— As crianças estão morando em um casebre destruído. Faça-os
chamar um técnico.
A ideia de Harold obrigar Nicholas ou eu a fazer qualquer coisa é
ridícula. Ele não consegue nem ficar acordado durante um
comercial. Harold só se levanta da cadeira se isso significar ir até
outra cadeira. Ele e a esposa estão usando suéteres cor vinho
combinando, a pele de suas costas e ombros caindo em volta da
gola Peter Pan da roupa, de uma forma que me deixa desconfiada
de como Nicholas vai envelhecer. Harold deixou de ter opinião
própria em 1995 e vive para o momento em que o dizem que ele
pode ir para a cama.
Acredite nisso: você não quer saber mais nada sobre Harold. Ele
é como uma lasanha de três meses deixada no fundo da geladeira.
A cada camada fica pior.
Ele bebe água com gás em todo jantar e seu cabelo branco brota
do topo da cabeça em curtos tufos de algodão, assim como as
sobrancelhas indomáveis. Se você estiver sentado em frente a ele,
a sensação é que o cabelo dele é transparente, tingindo tudo que
está atrás dos fios com uma penugem excêntrica. Ele se comunica
principalmente por bufadas, grunhidos e arrotos. Uma vez, eu o
peguei no flagra enquanto ele folheava uma Playboy, e ele disse:
— Você já ficou com um homem mais velho, Nina?
Meu chefe, o Sr. Howard, diz que conheceu Harold quando eles
eram mais jovens e que as “viagens de trabalho” de Harold para
Nevada nos anos 80 foram na verdade passagens pelo Clube de
Cavalheiros da Bella. Como o raio de sol inocente e ingênuo que
sou, as palavras clube de cavalheiros evocavam imagens elegantes
de homens jogando cartas e fumando charutos. Então Zach me
disse o que realmente era o lugar, me deixando igualmente
traumatizada e encantada.
Ainda não contei a Nicholas essa descoberta. É o golpe certeiro
que estou guardando para depois que eu já tiver o derrubado, mas
ainda preciso ter certeza de que ele não vai conseguir se levantar
novamente. Vou ter o meu maldito bolo de limão e sua mãe não está
convidada para o casamento. E então vou dar-lhe um chute circular.
Estou de smoking e vamos casar sem ninguém saber. Um soco na
garganta. Nunca iremos dar a nossa filha o nome de Deborah. Um
chute alto. Eu não uso fio dental há um ano. Um nocaute com o
gancho. Seu pai frequenta bordéis.
— Liguem para o rebocador — aconselha Harold. — Diga a ele
que ele não vai levar nada a menos que tenha um mandado. Em
seguida, o escondam na casa de férias de vocês.
Eu gostaria de poder existir em seja lá qual for o mundo em que
Harold está agora, mantendo uma conversa totalmente diferente e
paralela à nossa.
— Na verdade — eu digo. — Nossa novidade é que estamos
pensando em adotar um cachorro.
— Nós não estamos, não. — O aperto de Nicholas no garfo fica
mais forte.
Eu bebo meu suco de cranberry. É revoltante.
— Algo pequeno, que lata muito. Talvez um terrier ou um
chihuahua.
Um músculo na bochecha dele salta.
— Talvez consigamos adotar um gato também — ele sugere.
Deborah olha para mim com a testa franzida.
— A Naomi não é alérgica a gatos?
— Ela é? — Ele sorri para o prato limpo dele. Comeu toda a
comida, até mesmo os pedaços de cogumelo cremoso que eu sei
que ele não gosta. Que bom menino. Aposto que o rabo dele está
balançando na expectativa de ser acariciado.
Nicholas finge considerar.
— Dois gatos, talvez, para que um não fique sozinho.
— Eu estive pensando — interrompo. Nossa disfuncionalidade
está ficando cada vez mais evidente. Até Harold está prestando
atenção agora. — Em manter meu nome de solteira. É o que muitas
mulheres fazem ultimamente.
Isso não incomoda Deborah nem um pouco. Ela fica feliz em ouvir
isso, tenho certeza. Menos mulheres com quem compartilhar o
sobrenome dela. Imperturbável, mudo a direção do assunto.
— Na verdade… — Deixo a informação no ar. — Hoje em dia, às
vezes é o homem que muda de sobrenome. O nome Nicholas
Westfield tem um certo charme.
— Ele não pode mudar o nome dele! — Deborah choraminga.
— Por que não? As mulheres fazem isso o tempo todo. O que
vale para um, vale para o outro.
Nicholas sequer diz algo em resposta, apenas sacode a cabeça
para mim.
— Isso é ridículo. — A mãe dele bufa. — Ele tem um sobrenome
adorável. Não que o seu não seja... bom... mas não é tão especial
quanto Rose, é? Dr. Rose é como ele é conhecido nesta
comunidade. Ele não pode mudar isso agora. E tenho certeza de
que ele vai querer que os filhos dele mantenham o nome da família
também.
— Não vamos ter filhos — declaro. — Eu sou estéril. Perdi meu
útero em um esquema Ponzi.
Nicholas joga o garfo na mesa, provocando um ruído, e se
levanta. O jeito como ele se move é barulhento, mas não é alto o
suficiente para abafar o grito assustado da mãe dele.
— Está ficando tarde. — Ele franze a testa para mim. — Vamos,
Naomi.
Gesticulo com a mão sobre o meu prato, fingindo
incompreensão.
— Mas eu ainda não terminei.
Ele agarra minha mão.
— Ah, terminou sim.
Nicholas praticamente me joga por cima do ombro dele para me
tirar da casa. Posso sentir que meu rosto está corado de triunfo e
sei que meus olhos estão iluminados e brilhantes. Um completo
caso perdido. É com essa aparência que quero estar na foto que
usaremos para os convites. Gostaria de poder cair e rir até minhas
costelas quebrarem, mas ele me arrasta porta afora. Cada músculo
do corpo dele está tenso.
— Obrigada pelo jantar! — eu grito ao virar-me. — O filho adulto
de vocês e eu estamos muito gratos!
— Pare de dizer isso — ele rebate, puxando meu braço quando
tento enfiar o calcanhar em uma das flores do jardim.
— Parar de agradecê-los pelo jantar? Isso é falta de educação,
Nicky.
Ele e eu sofremos um com o outro em silêncio na viagem de carro
de volta para casa, preparando nossos argumentos em nossas
cabeças. Assim que paramos sob a luz do poste, saímos e
contornamos o carro, batendo as portas com a força de um furacão.
— Não bata a porta do meu carro. — Como se ele não tivesse
feito o mesmo.
Ele é apaixonado pelo símbolo de status que é o carro dele, e
provavelmente se casaria com o automóvel, se fosse socialmente
aceitável.
— Seu carro não é tão bonito assim e nem ganhou o prêmio JD
Power. Tomara que um pássaro cague nele todos os dias por toda a
eternidade. — Bem no para-brisa que fica na frente do rosto dele,
deixando uma mancha branca enorme.
— Você só está brava porque dirige um mamute peludo.
— Não há nada de errado com o meu carro.
— Tenho certeza de que ele já esteve em sua melhor forma. Em
1999.
Veja só o privilégio deste homem. Ele provavelmente nunca dirigiu
um carro que tinha mais de dois anos.
— Eu compro o que posso pagar. Nem todos nós temos pais ricos
que pagaram mensalidades em faculdades chiques na região da
Nova Inglaterra.
— Você quer ir para a faculdade? Então vá para a faculdade! Não
me castigue por ser bem sucedido o suficiente para comprar um
bom veículo.
E chegamos ao ponto crucial da coisa. Naomi não tem um
diploma universitário. Naomi não tem um carro luxuoso. Como
poderemos medir o valor dela sem esses itens indispensáveis?
Penso em meus pais dizendo que eu deveria ter trabalhado mais e
me candidatado a bolsas de estudo. Penso no comentário de
Nicholas na noite de jogos, quando ele disse que eu não preciso de
um emprego, e em como ninguém acredita em mim. Eu gostaria de
poder voltar no tempo e bater a porta do carro duas vezes.
Deixo que ele caminhe mais rápido que eu para que assim eu
entre em casa por último; dessa forma, consigo fechar a porta com a
força que quero. As paredes vibram, as tábuas do piso se mexem
como placas tectônicas. O teto racha em fraturas que formam um
mapa de linhas pretas irregulares. Ele e eu nos colocamos em
posição de combate, prontos para a batalha, a sala fica vermelha e
pulsa com a animosidade.
— Não há nada de errado com o seu marcador de combustível —
digo a ele. É uma das coisas mais cruéis que eu poderia dizer. —
Você que não consegue admitir que não percebeu que o
combustível estava acabando.
Seus olhos estão vidrados. Na noite de jogos, percebi que eles
mudam de cor, e agora estão da cor de quatro cavaleiros
anunciando o Armagedom, cavalgando bestas sendo chicoteadas
por nuvens de tempestade. Posso praticamente ver o clarão do
relâmpago, iluminando uma chuva de gafanhotos. Ele passa a mão
pelo cabelo e bagunça tudo. Uma roleta colorida de insultos gira por
sobre cabeça dele e para em um que eu não esperava.
— Eu não gosto do seu espaguete. Não tem gosto de nada.
Tanto faz. Ele está apenas me dando uma desculpa para não
cozinhar.
— Eu não gosto da sua gravata idiota de Como Treinar o Seu
Dragão.
Ele tem tanto orgulho dessa gravata, porque a estampa é do
dragão Banguela. Um trocadilho inteligente quando você trabalha na
profissão de dentista.
A raiva faz uma mancha vermelha surgir nas maçãs do rosto
dele.
— Retire o que você disse.
Encolho os ombros, sorrindo por dentro. É um sorriso malicioso
que dou só para mim, mas acho que ele vê, por causa do olhar que
me lança.
— Às vezes nem sei por que continuo tentando com você.
Concordo.
— É, por que você continua tentando?
Ele entra em combustão.
— Você me enche o saco por causa da minha mãe
constantemente, como se eu já não soubesse o quanto ela dificulta
nossas vidas. Insistir em reclamar sobre isso para mim e me jogar
para os lobos o tempo todo não ajuda em nada! Você também não é
nenhum doce, Naomi. Acha que não há coisas sobre você que me
deixam louco? Acha que não me sinto impedido de crescer e
perceber meu verdadeiro potencial?
O peito dele está se movendo para cima e para baixo e parece
que ele vai correr porta afora e nunca mais voltar. Para deixá-lo
ainda mais irritado, solto uma gargalhada.
— Por favor, esclareça para mim, Nicholas, explique como eu
estou impedindo você de crescer.
Ah, ele está furioso. As mãos nos quadris, o nó da gravata solto
por um puxão, tão chateado que posso ver sua pele encolhendo e a
sombra da barba por fazer irrompendo. Sua boca agora é uma linha
de desprezo. Os olhos descem para o logotipo dos Steelers no meu
moletom e ele cerra a mandíbula com tanta força que sei que
provocou uma pequena fratura com o formato do meu nome. Um
dia, algum técnico em radiologia ficará surpreso ao ver a palavra
Naomi gravada nos ossos de Nicholas.
— Para começar, eu odeio esta casa.
Minhas sobrancelhas se erguem tanto que quase tocam minha
franja.
— Você que escolheu.
Após onze meses de namoro, empacotamos nossas vidas solo e
viemos morar aqui a fim de virarmos uma unidade. Foi a primeira
casa disponível para alugar que entramos para ver. Estávamos
cheios de vitalidade e borboletas no estômago, fazendo grandes
planos. Vamos construir prateleiras. Talvez o proprietário nos deixe
reformar o banheiro. Fazer projetos juntos vai ser tão divertido!
Relembrar de momentos em que éramos mais felizes é como tentar
lembrar de um sonho que eu tive cem anos atrás – tudo parece um
borrão distorcido que não faz mais sentido.
Quando visitamos a casa, estávamos tão sonhadores sobre o
nosso ninho de amor que não levamos em consideração que o
estacionamento limitado na rua tornaria difícil acomodar dois carros.
Não notamos que o piso não era nivelado, o que significa que
sempre que deixo meu hidratante labial cair, tenho que persegui-lo
antes que role para baixo dos móveis. Não pensamos no fato de
que havia apenas um quarto livre para ser transformado em
escritório.
Que ficou para ele, obviamente.
— Às vezes eu faço julgamentos precipitados — ele rebate,
deixando claro que está falando sobre ter me pedido em casamento.
— Não gosto da rua em que moramos, nem deste bairro. Na
verdade, Morris chega até a ser uma cidade pitoresca se você viver
no lugar certo, e nós nos mudamos justamente para a parte mais
feia. Não tem nada aqui.
Ele consegue ver o ponto de interrogação em meu rosto.
— Eu preferiria estar mais perto da natureza! — ele deixa
escapar. — Há tantos bosques, tanta paisagem ao nosso redor, e
aqui estamos nós, com um quintal tão pequeno que se você cuspir,
a saliva chega do outro lado.
— E daí? — eu rebato. — Você quer ser um daqueles caras dos
anúncios da Nature Valley? Sentado em uma montanha, ao lado de
seu labrador retriever, ficando de pau duro com o cheiro das
árvores?
— Sim! — Ele quase grita. — Eu quero isso. Acho que é assim
que eu conseguiria prosperar. Mas você não vai me deixar
prosperar, Naomi. Já posso até ver. Você está contente aqui, em
sua prisão de cimento...
— Meu Deus. — Rolo meus olhos com tanta força que vejo o
reino espiritual. — Comece a fazer trilhas.
— ....implorando para ter uma depressão sazonal ao se trancar
em um quarto escuro e nunca sair de casa. Ir para o trabalho não
conta, porque você continua sentada no carro durante o trajeto. E te
vejo, Naomi. Vejo que você nunca olha para o céu ou tira um tempo
para fazer uma pausa e sentir o cheiro.... — Ele vê o quanto estou
animada para que ele termine essa frase e a corta abruptamente. —
Você mal está vivendo, sabe.
— Eu não fazia ideia de que você estava com tanta sede de estar
em comunhão com a natureza. — Faço aspas no ar quando digo em
comunhão com a natureza. Ele odeia quando as pessoas fazem
aspas no ar. — Que tipo de vídeos do YouTube você tem assistido
na sua esposa computador? Sério, de onde está vindo isso?
— DO MEU CORAÇÃO — ele ruge, e é com tanta sinceridade e
agitação que eu me dobro em um ataque de riso. — Cala a boca!
Pare de rir. — Ele está andando de um lado a outro agora. Ele está
pensando profundamente sobre isso. Quem é este homem na minha
sala de estar com olhos de Armagedom e um desejo ardente de
atirar pedras em um lago?
— Eu quero um capacete com uma lanterna. — Ele delira. —
Quero uma lareira. Uma espingarda, caso coiotes apareçam. Quero
pás e um galpão para guardá-las. Quero uma canoa.
— Não me deixe impedi-lo de comprar uma canoa — digo,
falando sério. — Nicholas, estou aqui para apoiar todos os seus
sonhos. Por favor, vá comprar uma canoa. Não há nada que eu
amaria mais do que assistir você remar no meio de um lago.
— Eu preciso me sentir vivo!
— Acho que o que você precisa é de uma barrinha de granola e
talvez um teste com os escoteiros da Eagle Scouts.
— Eu sabia que você não iria me levar a sério. É por isso que eu
não disse nada. Mas não vou mais guardar isso para mim, Naomi,
juro por Deus. Vou começar a viver da maneira que quero. Vou ter a
vida que eu quero, tudo que eu quero, custe o que custar. Eu não
tenho todo o tempo do mundo; já estou na casa dos trinta.
— Você está certo, é praticamente um velhote. Sua hora é agora!
Comece a viver o melhor da vida.
— Estou falando sério. — Ele pega uma moeda de cinco centavos
que está no suporte da TV. — Se der cara, começaremos a fazer as
coisas do meu jeito. Se der coroa, continuaremos como estamos.
— Você quer planejar nossas vidas com base em “cara ou
coroa”? Não estou sequer surpresa. — Eu gostaria que ele jogasse
uma moeda para decidir o destino de nosso relacionamento
também. Cara, nós terminamos. Coroa, jogamos a moeda
novamente. Poderíamos terminar agora e colocar a culpa de tudo na
moeda.
Ele vira os cinco centavos. Pousa a moeda nas costas da mão.
Nicholas encara o vislumbre prateado.
— Então?
— Creio que você irá descobrir.
— Fabuloso, certifique-se de me manter a par de tudo. — Me
esparramo em nosso sofá de três assentos, dando um sorriso
preguiçoso para ele. — Boa noite.
— Boa noite? Se você quer que eu vá dormir, terá que sair daqui.
Vou ficar com o sofá esta noite.
— Não, pode ficar com a sua cama cheia de Skittles. Vou ficar
bem aqui.
Ele vai cheio de ódio para o quarto e fecha a porta com um blam
quase inaudível que de alguma forma é ainda pior do que se ele
tivesse fechado violentamente. Ouço a fechadura girar, e então sou
apenas eu, sozinha no silêncio.
Nunca gritamos um com o outro antes. Normalmente temos tanto
medo de balançar o barco que talvez sejamos apenas oitenta por
cento honestos um com o outro. Nós dois aumentamos essa
honestidade para cem de uma vez, e logicamente sei que não
deveria me sentir melhor agora, mas meio que me sinto. Conforme
os minutos passam e eu ouço as gavetas da cômoda dele fechando,
nossas molas do colchão comprimindo enquanto ele se mexe sobre
elas tão furiosamente quanto pode, sou atingida por uma revelação
intrigante.
Estamos juntos há quase dois anos e essa é a primeira vez que
brigamos de verdade.
São necessários oito grampos de cabelo estrategicamente
colocados para fazer parecer que não tenho uma franja. O disfarce
leva vinte e seis minutos para ficar perfeito, e na segunda-feira, eu
me esgueiro para a Ferro Velho, dando um suspiro de alívio porque
não dá para perceber que eu cortei meu cabelo.
Brandy percebe imediatamente.
— Você fez uma franja.
— As coisas estão tão ruins assim em casa, é? — Zach
acrescenta.
— Eu costumava ter franja. — Toco minha testa conscientemente.
Ela é a primeira coisa que critico quando me olho no espelho. O
tamanho dela é normal? É mais oleosa que a maioria? Testas são
tudo que vejo agora. No fim de semana, me deparei com nada além
de fotos de mulheres bonitas online e nenhuma delas tem franja. Só
vejo fotos de mulheres bonitas com franja quando não tenho uma
franja.
Pesquisei no Google como fazê-la crescer mais rápido e
encomendei um envio emergencial de xampu e condicionador da
linha Mane 'n Tail. Estou tomando vitaminas para gestantes porque
um fórum as indicou para quem quisesse um rápido crescimento
capilar.
— Gosto da minha franja — anuncio. — Esta é minha nova eu.
— Cuidado, mundo — diz Brandy, minha co-pilota nesta aventura
em direção à ilusão.
Melissa olha para mim e morde o lábio para reprimir um sorriso.
Zach cutuca o ombro dela e eles compartilham risadinhas idênticas.
Pela milésima vez, desejo que Melissa e eu ainda fôssemos amigas.
Adoro trabalhar aqui, mas adorava ainda mais antes de apresentar
Melissa ao homem que partiu o coração dela. Ela nunca vai parar de
me punir por isso.
Apesar dela, ainda me sinto sortuda por ter conseguido este
emprego. Eu me candidatei a vagas por todo o condado, mas não
tive retorno de ninguém, exceto do Sr. e Sra. Howard. Nicholas vivia
dizendo que eu não precisava trabalhar, mas depois de ser demitida
do meu antigo emprego na loja de ferragens (que fechou), fiquei
entediada de passar o dia todo vagando pela casa e precisava de
um propósito. Precisei de um canal através do qual eu poderia
canalizar toda a minha energia flutuante antes que ela começasse a
disparar aleatoriamente nas paredes e acabasse ricocheteando de
volta para me explodir.
O Sr. e a Sra. Howard ficaram aqui no meu primeiro dia, para
supervisionar meu treinamento. Isso me fez acreditar que eles
estariam aqui todos os dias, e depois que eles quase nunca
apareceram novamente, fiquei confusa sobre de quem eu deveria
receber ordens. Então perguntei a Zach, que parecia amigável, e ele
me convenceu de que era meu chefe por três meses seguidos.
Aquele idiota me fez esfregar banheiros para o seu próprio
entretenimento sórdido.
Sem os proprietários aqui para nos manter na linha, o clima é
relaxado e descontraído. E mesmo que Melissa possa ser fria às
vezes, nosso estranho grupo se diverte junto, fazendo bobagens e
não fazendo nada. E digo, nada mesmo, porque os negócios estão
afundando. Sempre que um cliente chega, acabamos olhando para
a pessoa tão intensamente que ela se assusta e vai embora. Teve
uma semana em que o lugar ficou assustadoramente cheio e todos
nós trocamos um toque de mão um com o outro quando o
expediente terminou com uma caixa registradora cheia, pensando
que o navio estava dando meia-volta. Mas não, há icebergs em
todos os lugares que olho. Existem buracos no navio. Estamos
afundando.
Eu sei que os Howards não podem aguentar por mais tempo. Eles
vão se endividar só para garantir que nós cinco recebamos o
pagamento. Todos nós nos sentimos mal com isso, mas também
queremos manter nossos empregos pelo maior tempo possível,
então ninguém está disposto a pedir demissão, mesmo que isso
signifique aumentar a expectativa de vida de outros quatro
empregos. Isso já foi mencionado algumas vezes, geralmente por
Brandy, e nesses momentos todos nós ficamos inquietos e evitamos
fazer contato visual.
Na escala de hoje somos eu, Zach, Melissa e Brandy trabalhando.
Leon trabalha sozinho amanhã, já que ele é o único que prefere
trabalhar só. Ele não é de falar muito e se envergonha facilmente.
Acho que talvez nós o sobrecarregamos, brincando de cavalinho
com animais que foram atropelados na estrada e depois
empalhados e questionando uns aos outros para descobrir Qual
Posição Sexual Você É no BuzzFeed.
Cerca de trinta minutos depois de entrar, estou provando meu
valor para esta empresa ao fazer colares de clipes de papel para
todos (eu faço muitas joias com bugigangas aqui para ocupar o
tempo) e ouvindo Melissa e Brandy negociar o calendário que indica
qual pessoa vai escolher as músicas no dia. Brandy geralmente
escolhe as músicas às segundas-feiras, mas Melissa não vai estar
aqui na vez dela na sexta, então está tentando fazer Brandy trocar
de lugar com ela. Para seu próprio crédito, Brandy não está
cedendo. Gosto de pensar que tenho sido o tipo certo de má
influência para ela.
O sino da porta da frente toca e todos nós viramos boquiabertos
para ver quem quer que esteja entrando. É um bilionário excêntrico
que vai nos salvar. Ele vai comprar tudo que tem em nossas
prateleiras e exigir que os Howards as reabasteçam. Ele vai nos
pagar o dobro do que estamos pedindo.
Na verdade, é um garoto desengonçado e cheio de espinhas que
não tem mais de vinte anos e está empurrando um carrinho de
flores. Há pelo menos dez buquês em vasos de vidro simples, com
uma embalagem vermelha os protegendo da chuva.
— Naomi Westfield? — ele pergunta, consultando uma prancheta.
Brandy pega minha mão e a segura no alto. Eu não consigo falar.
Estou com uma sensação ruim na boca do estômago e não sei por
quê.
— São para você.
Quando não me movo, ele hesita um pouco e começa a colocar
os buquês no balcão. O rosto de Melissa desaparece atrás de uma
floresta de folhagens verdes e pétalas brancas.
O entregador saiu e mesmo assim nenhum de nós se moveu
ainda. Vejo um cartão branco apontando para fora de um buquê e o
examino. Ele deveria conter uma mensagem do tipo EU TE AMO ou
PERDÃO, FUI TÃO TERRÍVEL E EQUIVOCADO.
Está em branco. Mas sei de quem são, e entendi o recado, tudo
certo. Ele poderia muito bem ter colocado uma placa neon dizendo:
AQUI ESTÃO AS MALDITAS FLORES QUE VOCÊ TANTO PRECISAVA.
APROVEITE.
— Qual é a ocasião? — Zach pergunta.
Minha boca está seca.
— Porque ele quis.
— Isso é... ah. — Melissa procura por palavras.
— Exagerado — finaliza Zach. — Para um presente dado só
porque a pessoa sentiu vontade.
— Que adorável! Que tipo de flores são? — Brandy me pergunta
como se essas fossem as minhas favoritas. Não tenho um tipo de
flor favorito. Eu definitivamente tenho um menos favorito, no
entanto.
— Não faço ideia.
Exploramos nosso novo jardim botânico, mas não há qualquer
informação anexada. Nem mesmo uma daquelas pequenas guias
que eles colocam na terra do vaso informando com que frequência
você tem que regar.
— Parece um pouco com oleandros — diz Melissa com cautela.
Zach inclina a cabeça.
— Oleandros não são venenosos?
De repente, as flores fazem sentido. É uma tentativa de
assassinato. Todos nós pegamos nossos celulares e começamos a
procurar fotos de oleandros, e é verdade, consigo ver uma
semelhança. Cinco pétalas brancas, ligeiramente em formato de
cata-vento, em um aglomerado de folhagem verde.
— Por que uma floricultura venderia plantas venenosas? — eu
pergunto. — Isso é legal?
Melissa ressalta que não sabemos ao certo se elas vieram de
uma floricultura regulamentada. Nenhum de nós consegue se
lembrar se o entregador usava algum um tipo específico de
uniforme. Ele poderia ser qualquer um. Talvez Nicholas o tenha
contratado através da página oficial de anúncios do estado.
PROCURADO: CÚMPLICE DE ASSASSINATO.
Desgastamos nossos dedos em pesquisas frenéticas no Google.
Ao meu ver, minha entrega sinistra com certeza parece oleandro,
mas também se parece com um milhão de outros tipos de flores.
Todas elas parecem iguais. Descobrimos que seria muito fácil matar
alguém com esse tipo de planta e, de acordo com a IMDb, esse
mesmo plot aconteceu em um filme estrelado por Michelle Pfeiffer. O
personagem da Michelle as usou para matar seu amante, um
homem chamado Barry. Estou sofrendo um Barrycídio.
Oh, céus. Eu ouço o trocadilho e quase desmaio.
— De acordo com a linguagem das flores — diz Melissa —
presentear alguém com oleandros é uma forma de dizer a ela para
tomar cuidado. Tipo, de uma forma ameaçadora.
— “Tomar cuidado” no sentido de dizer que nós vamos morrer? —
Minha voz está excepcionalmente alta.
— Estou surtando — Brandy choraminga, torcendo as mãos. —
Estou surtando, gente. Tem certeza que são do Nicholas? Digo, ele
parece... — Ela me dá um olhar envergonhado. — Tenho certeza
que ele é uma pessoa legal.
— Claro que são do Nicholas — Zach alfineta. — E não, ele não é
uma pessoa legal. Dentistas são monstros. Ele provavelmente ainda
está chateado por eu ter vencido todas as rodadas de Detetive.
Quando você é um monstro, não é preciso absolutamente nada para
ativar seu lado sombrio.
— Você ter gritado com ele no consultório aquela vez pode ter
sido o gatilho — diz Melissa, que não precisa ser convencida de
nada. — É por isso que você está na lista dele.
— E você é a ex do amigo dele. Você sabe como as pessoas são
com ex-namorados de amigos. — Ele aponta para mim. — Você é
uma ponta solta. Talvez ele esteja te traindo.
— E quanto a mim? — Brandy pergunta.
— A essa altura ele já deve ter um gosto insaciável por cometer
assassinatos. Você é um dano colateral.
Brandy parece um pouco desapontada por sua morte não ter um
motivo mais pessoal.
Eu deveria estar alarmada por termos evoluído para Nicholas é
um assassino de sangue frio tão rápido assim, mas tardes estranhas
e melodramáticas são o nosso normal. Quando você nunca tem
nenhum cliente para atender, o tédio se instala e teorias de
conspiração brotam de qualquer pequeno evento, que partilhamos
um com o outro até que uma histeria coletiva assuma o controle da
situação. Zach é sempre o instigador, e no fim das contas sempre
acaba por estar errado, mas a histeria ainda faz a gente se envolver
nas teorias, todas as vezes. Quando ele acena com as mãos para
gesticular, com os olhos arregalados e entusiasmados, ele
consegue fazer qualquer teoria maluca parecer plausível.
— Oleandros — eu sussurro. — Na Ferro Velho. Por Dr. Rose.
Esse é o significado! É algum tipo de cartão de visita, como todos os
serial killers de grande porte usam. Ele é o assassino do Detetive.
— Inspeciono o cartão de recado em branco novamente. Não há
nenhum logotipo de floricultura. Pode muito bem significar o sorriso
insano do Professor Black.
— Ele quer matar todos nós porque perdeu em Detetive? —
Brandy diz duvidosamente. — Isso não pode estar certo.
Nós mergulhamos de volta em nossa pesquisa.
Um site diferente afirma que oleandros significam aproveite o que
está à sua frente e deixe o passado no passado, o que é uma
alternativa melhor que tome cuidado, mas então Zach encontra um
site que parece bastante legítimo. Nele informa que o oleandro é
universalmente interpretado como tenha cautela no mundo da
linguagem das flores. Eu ouço os sinos lentos e sombrios do meu
funeral e espero que alguém competente faça minha maquiagem
caso usem um caixão aberto. Me ocorre que eu sou um pouco
mórbida.
— Uma pessoa pode morrer apenas por ser exposta a ele pelo
ar? — eu pergunto. — Você precisa tocá-lo ou estar perto o
suficiente?
Zach, curvado sobre o celular, murmura:
— O Yahoo Respostas é uma fossa.
— O entregador estava usando luvas? — Melissa pergunta.
Nenhum de nós consegue se lembrar. Neste ponto, não me lembro
de um único detalhe sobre o entregador. Talvez fosse uma mulher.
Uma invenção da minha imaginação. Estou alucinando no pronto-
socorro.
— Talvez seu noivo seja um maníaco — Brandy me diz. — Volte
para casa comigo. Espera. Eu tenho um encontro hoje à noite. —
Ela faz uma pausa. — Você poderia ficar na casa da minha irmã!
Entretanto, ela tem cinco gatos, o que pode te fazer espirrar muito.
É uma oferta gentil, mas de jeito nenhum vou dormir com gatos. O
pelo deles gruda em tudo e eu ficarei com olhos vermelhos que vão
fazer parecer que eu estive comendo brownies de maconha. E
também não quero ficar com minha própria irmã, que mora a
quarenta e cinco minutos a leste. Descobrimos que essa é uma boa
distância intermediária, e é por isso que meu irmão mora quarenta e
cinco minutos a oeste. Meus irmãos e eu não temos muito a dizer
um ao outro e interagimos mais em feriados na casa de nossos pais,
que fica uma hora ao norte.
— Na verdade, acho que devo confrontá-lo. — Estou agindo de
forma tão corajosa que me impressiono. — Sim, é o que devo fazer.
Não posso deixá-lo se safar me intimidando assim.
Brandy engasga.
— Não!
— Você tem que terminar o relacionamento. — Os olhos de
Melissa estão escuros e predatórios. Ela se inclina para tão perto de
mim que eu consigo revisitar a toranja que ela comeu no almoço. —
Naomi. Você tem que terminar com ele. Não há outra escolha. Faça
isso agora. Mande uma mensagem para ele.
— É, não termine com ele cara a cara — Zach aconselha. —
Certa vez, namorei uma cirurgiã e cruzei as fronteiras estaduais
antes de deixar uma mensagem de voz dizendo que estávamos
terminando. Sua situação é a mesma merda; Nicholas está bem em
casa segurando ferramentas afiadas. Aqueles cortantes
odontológicos podem servir como um bisturi na jugular, se você
souber o que está fazendo. Ele pode vir a ser o Sweeney Todd dos
dentistas.
Sei que Zach não acredita em uma palavra do que diz, mas sou
atingida por um lampejo do filme de terror que seria Nicholas em
seu jaleco branco, os olhos vermelhos brilhando sobre uma máscara
facial hipoalergênica, empunhando armas do tamanho de bonecas.
Ele está drogado de gás hilariante sabor tutti-frutti e, na névoa de
seu cérebro zumbificado, tudo que ele consegue lembrar é que eu
insultei a gravata dele.
— Se vocês não me verem amanhã, é porque estou morta —
digo.
Zach me lembra que não trabalhamos amanhã, e sim Leon.
— Se vocês não me verem na quarta-feira, é porque estou morta.
— Ok. Vamos esperar até quarta-feira para chamar a polícia,
então.
Eu roo as unhas. Mexo nos buquês de flores, mesmo que talvez
elas sejam venenosas. São tão bonitas que é difícil não fazer isso.
Nicholas também é bonito. Seu lindo rosto será o último que verei
antes de partir desta vida. Tenho apenas vinte e oito anos e mal fiz
ou vi nada ainda. Eu ouço a voz dele, minha memória gradualmente
a transforma em um tom de provocação. Você mal está vivendo,
sabe.
Tenho que destruir essas flores assassinas.
Estamos andando para lá e pra cá feito animais fugidos do
zoológico, tentando descobrir como tirá-las da loja sem tocá-las.
Melissa, Brandy e eu somos feministas convictas, mas hoje viramos
as costas à igualdade, jogando a carta do me-ajude-eu-sou-apenas-
uma-garota, e votamos para que Zach se sacrifique pela equipe.
Ele fecha a boca em uma linha severa e decide arriscar tudo feito
um soldado. Envolvemos os braços dele em sacos plásticos, até os
ombros, e prendemos os plásticos no lugar com elásticos. Puxamos
o colarinho dele de modo que cubra-lhe o nariz e a boca.
Ele corre de um lado para o outro do balcão e vai até um barril
destinado à queimas que o Sr. Howard usa para se livrar de folhas e
galhos, e acho que talvez Zach seja um pouco piromaníaco quando
ele despeja um frasco inteiro de fluido para isqueiro sobre as flores
e atira nelas um fósforo. Ele fica lá e observa as chamas,
hipnotizado, enquanto Melissa grita com ele que a fumaça pode ser
venenosa também.
Eu sei com toda certeza que ele não acredita em nada do que
estamos fazendo aqui quando ele a ignora e começa a jogar outras
coisas no barril para vê-las queimar também. Jornais antigos. Uma
garrafa de Dr Pepper. Recibos que estavam no bolso do casaco
dele. Quando Zach começa a derreter moedas, desistimos dele e
nos afastamos da porta dos fundos.
Brandy e eu esfregamos o balcão e o chão com alvejante,
parando de vez em quando para verificar as pupilas e os batimentos
cardíacos uma da outra. É uma pena que não pude ficar com as
flores. Eles eram aromáticas, quase como loção ou perfume. Até a
fumaça delas cheirava bem antes de Zach cobri-las com lixo.
Uma hora depois, ele se cansa e despeja água sobre um monte
fumegante de detritos antes de empurrar o barril para o outro lado
do estacionamento com a ajuda de um taco de hóquei. Passamos o
resto do nosso expediente brincando de jogos da velha que
desenhamos na areia de um jardim japonês em miniatura. Fazemos
alguns testes no BuzzFeed e descubro que, se eu fosse uma
criatura sobrenatural, seria um poltergeist. Brandy seria uma fênix.
Eu respondo o questionário mais algumas vezes, testando minhas
respostas, até que o meu também dá fênix. Quando batemos o
ponto para ir embora, já não lembramos mais da nossa quase-
morte.
Então, ouço o toque do meu celular.

Você não recebeu as flores?


A mensagem de Nicholas me faz lembrar que ele é o vilão
malvado da minha história e que eu deveria dirigir por quarenta e
cinco minutos em qualquer direção para me recuperar desse trauma
na casa de algum irmão meu. Aperto meus lábios e respondo.

Se está perguntando se estou viva, a resposta é sim. Bela tentativa!


Eu as incinerei.

Ele responde imediatamente.

PQP VOCÊ REALMENTE AS QUEIMOU

— Claro — grito para ninguém, sozinha no meu carro. As saídas


de ar ainda estão soprando um vento frio, mesmo eu estando com o
aquecedor ligado há dez minutos. O maldito Maserati dele tem
assentos aquecidos que fazem você sentir como se estivesse
sentado no colo do diabo.

O que mais eu faria com oleandros?

Ele responde: Você não fez nada com oleandros, já que eu te dei
jasmins.
Olho para minha tela, tentando decidir se vou acreditar nele. Até
pouco tempo atrás eu não sabia que Nicholas era um ator talentoso,
então é difícil saber a verdade.
Após um intervalo de dois minutos, ele acrescenta: Se tivesse
sido oleandros, queimá-los teria sido uma ideia realmente estúpida.
Só para constar. Oleandros são tóxicos. Ele também pesquisou no
Google. Não há como ele saber isso de cabeça. Nicholas gosta de
pesquisar coisas e fingir que todas as curiosidades obscuras que ele
descobre são de conhecimento geral. Ele assiste Jeopardy! para se
exibir (e porque ele é um homem de oitenta anos preso no corpo de
um príncipe da Disney), e ganhar um toque de mãos toda vez que
ele dá a resposta correta antes de um competidor. Depois disso,
olha de lado para mim para ter certeza de que estou impressionada.
Se eu me levanto para sair da sala, ele pausa o programa até que
eu volte para que eu não perca um segundo da genialidade dele.
Outra mensagem ilumina minha tela. É ridiculamente exagerado,
até mesmo para você, ir de “Oh, meu namorado me mandou flores”
para “Oh, meu namorado está tentando me envenenar”. Só para
constar, se eu realmente fosse envenenar você, eu poderia
encontrar um método mais barato.
“Só para constar” é o jeito dele de dizer “dã” para as pessoas sem
levar um tapa. Se eu o destruir antes que ele me destrua, vou
garantir que o epitáfio dele diga: Só para constar, idiotas, isso de
que cabelos e unhas continuam crescendo depois que você morre é
mito.
Sou a única que sobrou no estacionamento da Ferro Velho,
assistindo minha respiração sair com dificuldade dentro dessa
geladeira de metal e temendo voltar para casa. Para protelar,
procuro o significado de jasmins na linguagem das flores e caço por
subtextos ocultos feito uma amante sentimental da era vitoriana.
Existem muitos tipos diferentes de jasmim. Eu não sei exatamente
qual variedade ele comprou para mim. A maior parte do simbolismo
dessas flores é tipicamente romântica. Duvido que Nicholas sequer
saiba que flores têm significados, ou que ele escolheria uma
deliberadamente a fim de me mandar uma mensagem simbólica que
eu não saberia a menos que pesquisasse. Ele provavelmente fez
com que as recepcionistas da Rise and Smile encontrassem a
floricultura mais próxima e disse-as para escolher qualquer coisa
que estivesse à venda hoje.
Consigo imaginar a carranca dele. Um aceno de cabeça. Inúteis.
Ele sabe exatamente quanta gasolina poderia colocar no tanque do
carro dele com o preço que pagou por aquelas jasmins. Sabe a taxa
de conversão do preço das flores em mantimentos ou em nossa
conta de telefone celular.
Eu me pego lamentando por não ter guardado pelo menos uma
flor antes de lembrar que não faz sentido. Eu nunca deveria ter
falado tudo aquilo sobre não ganhar flores dele. Não estou nada
grata pelas jasmins, porque tive que reclamar para consegui-las, e
ele não mandou entregá-las para mim por amor. Ele as mandou
porque se sentiu obrigado, assim como faz com a mãe dele. Mas
enquanto Deborah consegue de alguma forma ainda assim ficar
satisfeita com isso, eu não consigo.
É um gesto vazio, uma condenação sombria. Em todas as partes
que deveria me agradar, em vez disso, causa dor.

É terça-feira e há algo de errado com Nicholas. Ele ligou para o


consultório para dizer que não iria, e então saiu de casa sem me
dizer uma palavra. Ele passou o dia todo fora. Enquanto verifico
meu celular em busca de ligações ou mensagens e espero ele voltar
para casa, perambulo de cômodo em cômodo. É um tour curto,
porque nossa casa é pequena. Acomoda duas pessoas se essas
duas pessoas se amam e não se importam de ficar perto uma da
outra. Num futuro próximo, caberá uma pessoa confortavelmente.
Meu celular toca e eu pulo, esperando ouvir que Nicholas se
rendeu e nunca mais vai voltar, mas é a Sra. Howard.
Me preparo antes de responder. Eu amo a Sra. Howard, mas ela
tem a voz de dois tijolos ralando um contra o outro por conta de
cinquenta anos passados fumando um cigarro Virginia Slims atrás
do outro.
— Oi, é a Naomi.
Digo isso especificamente porque ela sempre pergunta – e
mesmo assim ela pergunta, de qualquer maneira:
— É a Naomi?
— Sim.
— Querida, é Goldie Howard que está falando.
Eu sorrio.
— Olá. Como você está?
— Querida, estou ótima. Na verdade, não tão ótima. Você tem um
minutinho?
Meu coração afunda no meu estômago. Último contratado,
primeiro a ser demitido. Acabou pra mim.
— Hmm, sim. Apenas, hm... — Por algum motivo, pego um bloco
de notas e uma caneta. Meu cérebro começa a zumbir. Paranoia,
ansiedade e náusea me puxam para seu amontoado familiar e me
apertam. — Sim, o que houve?
Ela começa de imediato.
— Tenho certeza de que você sabe que os negócios na Ferro
Velho não são o que eram há vinte anos.
— Não está... tão ruim assim — eu digo alto.
— Querida, está tão ruim assim. Melvin e eu estivemos fazendo
as contas, e parece que não temos escolha a não ser limpar a
casa.
Eu não posso chorar. A Sra. Howard tem sido tão boa para mim e
não vou fazê-la se sentir mais culpada por fazer o que precisa ser
feito.
— Você vai me mandar embora.
— Vou mandar todos embora. Vamos mover algumas coisas,
realocar o que sobrou nas prateleiras para nossos outros negócios,
mas estaremos fechados em meados de novembro. Eu venderia a
Ferro Velho do jeito que está para um novo proprietário, mas o setor
imobiliário de Morris está em declínio.
Ela está certa. Depois que ela fechar a loja, o lugar
provavelmente ficará vazio por muito tempo até que algum otário
otimista a transforme em uma padaria que não durará nem seis
meses. Todos os nossos pequenos negócios estão fechando, e em
dez anos, Morris será uma cidade fantasma.
— Estamos tentando ver o que mais podemos fazer por vocês,
crianças — a Sra. Howard diz gentilmente. — Sempre estivemos
envolvidos em diferentes tipos de trabalhos. Eu faço burlesque,
Melvin é um ministro ordenado. Nós vamos a um monte de feiras no
Meio-Oeste no verão e fazemos essa coisa de trabalhar em
barracas em festivais. E então tem a Comidos Vivos e a Casa dos
Gritos. — Ela limpa a garganta, me fazendo pensar em uma poeira
de tijolo caindo solta por uma chaminé. — Eu sei que Tenmouth fica
longe para aquele seu namorado, mas se você quiser se mudar
para cá, nós arranjaremos algo para você.
Eu me imagino com uma máscara e uma serra elétrica, pulando
nos clientes em uma casa mal-assombrada. Ou com uma máscara e
serra elétrica na Comidos Vivos, penso em sobremesas gelatinosas
inspiradas em A Bolha Assassina. Penso na minha decisão de não ir
atrás de um diploma universitário e em Nicholas me dizendo que
não preciso trabalhar.
É nisso que minha vida se tornou.
— Obrigada, Sra. Howard. Essa é uma oferta realmente
generosa.
— Pense nisso, ok? Você não precisa me responder por agora.
Não tenha pressa, converse com seu namorado. Se você decidir
que não, mas eventualmente mudar de ideia, me ligue. Acho que
Melissa está interessada em ser cozinheira de linha na Comidos
Vivos, então lá vai ter alguém que você já conhece.
A opção de trabalhar na lanchonete se dissolve diante dos meus
olhos. Casa dos Gritos, então.
— Eu sinto muito — ela diz. Sua voz está ainda mais grossa do
que o normal, e acho que ela pode estar chorando. — Fizemos tudo
o que podíamos. Está muito difícil. Não há muitos empregos
estáveis e com salários decentes disponíveis, e eu sei que não
podíamos oferecer a vocês nenhum benefício ou horas extras, mas
pelo menos tinha alguma coisa. Você deveria ter nos visto há vinte
anos. O estacionamento ficava lotado, todos os dias.
Tento imaginar isso e não consigo. Nunca vi o estacionamento
ocupado até a segunda fila de vagas. Os quatro ou cinco veículos
dos funcionários ocupando espaço dão a ilusão de que estamos
semi-cheios.
— Está tudo bem, eu entendo — apresso-me em dizer. — Sou
grata por você ter me contratado em primeiro lugar. Eu me diverti
muito lá. — A nostalgia toma conta de mim e minha voz se
desintegra como a da Sra. Howard. — Obrigada pelo aviso.
— Se cuida, querida.
Encerramos a ligação e eu não tenho ideia do que vou fazer
agora. Tenho um, talvez dois pagamentos chegando, que precisarão
ser esticados em fibras invisíveis. Sei o que faria se não houvesse
Nicholas nesse cenário: começaria a fazer as malas para ir morar
em Tenmouth e me dedicaria a uma carreira de sangue falso e
trilhas sonoras de gritos, e luzes estroboscópicas na escuridão.
Limpando vômitos e pichações. É uma perspectiva deprimente, mas
não posso me dar ao luxo de ser exigente.
Mesmo que eu consiga fazer Nicholas terminar comigo e eu
acabe ficando com a casa, não terei como pagar o aluguel. Preciso
desesperadamente encontrar um emprego perto de Morris. Vou
arranjar uma colega de quarto. Duas colegas de quarto – nos
tornaremos melhores amigas e tudo ficará bem, muito bem. Esse é
o meu plano A.
Me mudar para Tenmouth é o plano B. O plano C é impossível
com o estado nocivo de meu relacionamento com Nicholas, então
não chego nem a considerá-lo. Eu o jogo fora. O plano C é roubo de
identidade. Vou aproveitar algumas semanas relaxantes fingindo ser
Deborah Rose em minha casa de praia em Malibu antes que os
agentes do FBI me localizem.
Ainda estou aflita com a minha crise dos vinte anos quando
Nicholas entra em casa com um grande sorriso no rosto. Se eu já
não o odiasse, aquele sorriso seria o suficiente para selar o acordo.
— Olá, Naomi — ele diz cheio de si. Talvez já tenha ouvido falar
da Ferro Velho.
Eu viro as costas. Ele vai até a geladeira e a abre, assobiando. Eu
penso em empurrá-lo lá dentro. Ele fecha a geladeira sem tirar nada
dela e olha na minha direção; sei disso porque posso vê-lo na minha
visão periférica, uma mancha marrom e bronzeada. Ele espera até
que eu olhe para ele, então começa a rir.
— Que é? — eu digo.
Meu comportamento o entusiasma. Ele lança um sorriso malicioso
para mim, e é insuportável. Ele sabe algo que eu não sei. Eu sei
algo que ele não sabe também. Coloquei um pouco de molho de
pimenta no creme de barbear dele.
— Que é? — eu repito, desta vez em um rosnado. Ele ri mais alto,
apoiando a mão no batente da porta como se eu fosse tão
engraçada que ele mal consegue se segurar. Este homem é um
lunático. Como vim parar aqui?
O pensamento é tão alto na minha cabeça que acaba saindo pela
minha boca. Nicholas leva um momento para refletir sobre.
— Se não me falha a memória, fiz uma pergunta e você disse
sim.
E assim começou minha história de sofrimento. Pelo menos a
memória só não falha para um de nós – felizmente, a minha foi
apagada com amnésia.
— Como é que sequer nos conhecemos? — Eu fico maravilhada.
Ele limpa um olho com o nó do dedo, sorrindo torto.
— Eu te peguei em uma feira. Do topo da pilha você parecia boa.
Mas foi só depois que eu te trouxe para casa que descobri que você
era completamente podre por dentro.
Minha boca está em formato de um beijo, o que envia a
mensagem errada. Eu franzo os lábios e digo:
— Vou contar para sua mãe que você xinga. Ela vai te fazer ir à
igreja.
Ele joga a cabeça para trás e ri mais um pouco.
— Onde você esteve o dia todo?
Ele pisca.
— Sentiu minha falta?
— Não mesmo. — Meu olhar vai para a janela, onde noto um
Jeep Grand Cherokee estacionado na vaga dele. — As visitas dos
vizinhos bloquearam você novamente. Que pena. — Não vejo o
carro dele, então ele deve ter estacionado no final da rua. O pobre
Dr. Rose teve que andar na chuva.
Ele invade o meu espaço pessoal para verificar o lado de fora.
Seu cabelo está um pouco úmido e cheira a frutas, como o meu
condicionador. Vou começar a esconder meus cosméticos.
— Não — ele diz.
— Hã?
Ele enfia um dedo sob meu queixo e o ergue para que minha
boca se feche.
— Tão linda — ele murmura, os olhos brilhando. Estão da cor de
uma nevasca matinal e rindo às minhas custas.
Meu coração começa a bater de forma irregular com a maneira
como ele está olhando para mim. Eu estive desligando minha
atração por ele e de repente ela volta com força total e cheia de
vingança, até que tudo que eu vejo são os adoráveis cachos de seu
cabelo, a curva sensual de seu sorriso, a deliciosa fragrância da
colônia que ele usa. Ele é lindo e eu o odeio por estragar isso com a
personalidade que tem.
Ele prossegue:
— Tão linda quanto o momento em que nos vimos pela primeira
vez, do outro lado do cômodo. No dia de visitas, na prisão.
Engulo em seco.
— Voltarei para a prisão em breve, tenho certeza.
— Ouvi dizer que eles oferecem aulas lá. Você teria a chance de
finalmente aprender o que a palavra independentemente significa.
— Dormir no mesmo cômodo que o meu vaso sanitário valerá à
pena, porque saberei que você não estará por perto para arruinar a
vida de ninguém. Independentemente. — Faço uma pausa. Quero
deixar isso pra lá, mas não consigo. — Me diga onde você esteve o
dia todo.
— Dê um palpite.
— Me traindo, espero. Certifique-se de deixar evidências para eu
encontrar.
O sorriso dele cede. E paralisa dessa forma. Pego uma pilha de
correspondências inúteis e folheio os produtos com desconto,
murmurando “hmms” em aprovação para os itens em promoção.
Meu sabonete favorito está de dois por um esta semana. As pizzas
congeladas, cinco por dez dólares. Nicholas vai me estrangular com
sua gravata do Banguela.
— O que você vai fazer para o jantar? — ele pergunta. Não o que
vamos jantar. É o que você vai fazer. A risada sumiu de sua voz.
Eu não olho para cima.
— Está no forno.
Eu o ouço se virar. Não há um cronômetro ativado. Nenhuma luz
vermelha acesa. Ele abre a porta do forno e é como suspeitava.
— Não há nada aqui.
Eu me permito dar um pequeno sorriso. Eu mereço, depois do dia
que tive. Não saber o que meu noivo está tramando. Ter sido
demitida do melhor emprego que já tive. A franja horrível que não se
parece em nada com a da Amélie.
— Isso é o que eu fiz. Um banquete inteiro de vários nadas, só
para você.
Ele vai resmungando até o escritório dele. A fechadura faz um
clique. Trinta minutos depois, ele emerge e para na porta da frente.
— O que você está fazendo?
Nicholas me lança um olhar desdenhoso, como se eu tivesse
acabado de fazer a pergunta mais intrometida do mundo. Ouço a
porta de um carro fechar e, segundos depois, ele está com uma
caixa de pizza nas mãos. Pizza para uma pessoa só. Mandou bem,
Nick.
Ele fecha a porta com um chute e volta para o escritório. Eu me
apresso para esconder todos os pratos de papel, na esperança de
incomodá-lo, mas ele não liga. Ele pega um dos pratos bons do
armário e sorri para mim enquanto enrola uma fatia de pizza e come
metade em uma mordida só.
Quando termina, ele deixa o prato não utilizado na pia para eu
lavar.
Meu placar com Nicholas está um a dois. Ganhei no domingo
estragando o jantar dos Roses. Ele ganhou na segunda-feira,
quando me fez pensar que eu ia morrer, mesmo que não tenha sido
sua intenção. Ele venceu de novo ontem, ao me forçar a sentir o
cheiro da pizza dele através da parede e não se oferecer para dividi-
la comigo.
É apropriado que hoje seja justamente Halloween, porque estou
tão focada em destruir o ânimo desse homem, que meus olhos
assustadores hoje estão como aquelas pequenas bolas de
eletricidade que ficam em centros de ciência e fazem seu cabelo
arrepiar quando você as toca. Vou eletrocutar todo mundo em um
raio de alcance de quinze metros.
Quando um Jeep Grand Cherokee para na vaga de
estacionamento de Nicholas, estou sentada na varanda, segurando
um caldeirão de plástico com guloseimas dentro para as crianças
que virão pedir doces ou travessuras. Nicholas desce do jipe e
esbanja uma expressão presunçosa enquanto vem saltitando pelo
passeio. Ele espera que eu pergunte o que diabos ele está
tramando, mas estou empenhada em descobrir por conta própria.
Ontem à noite eu encontrei o molho de chaves dele e percebi que a
chave eletrônica do Maserati não estava lá. Conectei uma chave
desconhecida ao jipe experimentalmente e, sem dúvidas, o carro é
de Nicholas. Que aquisição bizarra ele fez. De acordo com o
relatório do histórico do veículo no porta-luvas, o jipe nem novo é –
tem dez anos e já teve dois proprietários anteriores. Harold deve
estar rolando na câmara de bronzeamento artificial dele.
Onde está o Maserati? Não faço ideia. Estou morrendo de
vontade de saber, mas prefiro lamber um pirulito de fibra de vidro do
que perguntar-lhe e dar a ele a satisfação de não me responder.
Há algumas coisas de errado com Nicholas hoje. Por exemplo,
ele está usando o óculos antigo, em vez de lentes de contato. Eu
gosto do óculos porque se ajustam bem ao rosto dele e o faz
parecer sofisticado e ao mesmo tempo uma pessoa pé no chão.
Sempre que digo isso, ele torce o nariz e balança a cabeça,
constrangido.
Além disso, está usando calça jeans e tênis, que são proibidos na
Rise and Smile.
— Faltou ao trabalho de novo? — Eu suponho.
Ele apenas me dá um tapinha na cabeça e me contorna para
entrar em casa. Que legal. Não faço ideia do que meu noivo passou
os últimos dias fazendo. Ele está usando esses segredos para agir
como se fosse melhor do que eu, feito um personagem pão-duro de
filmes. Temos um relacionamento funcional e totalmente normal.
Penso em Seth e uma dentista transando na parte de trás do
carro dele e meus olhos se estreitam.
Nicholas se junta a mim na varanda da frente assim que as
crianças fantasiadas começam a chegar, e não diz uma única
palavra em relação ao meu último esforço para irritá-lo: Coloquei
seus cartões de visita em cada saquinho de doces com o maior teor
de açúcar que consegui encontrar. Bala em pó. Sour Patch Kids.
Pipoca doce. Fun Dip.
O conceito de um dentista distribuindo substâncias que
apodrecem os dentes para crianças parecerá grosseiro para os pais
que forem vasculhar as sacolas e baldes dos filhos esta noite. Que
atitude grosseira, eles murmurarão. Clínica Odontológica da Família
Turpin, aqui vou eu.
Mas Nicholas não parece pertubado ao entregar os doces em
mãos minúsculas, curvando-se para as princesas e fingindo ter
medo dos monstros. Talvez ele não tenha notado os cartões de
visita porque está ocupado demais se lembrando de uma travessura
que fez com uma dentista no banco de trás. Na minha cabeça, ela
parece a enfermeira gostosa da capa de um antigo álbum dos Blink-
182.
Olho para ele e penso: eu vou te matar. Minha cara demonstra o
que estou pensando.
Ele ergue as sobrancelhas e sorri. Eu imediatamente reconheço o
gesto como o educado sorriso de mentiroso dele, aquele que ele
exibe quando visitamos meus pais duas vezes por ano e eles
perguntam se nós estamos gostando de viver em pecado. O sorriso
que ele dá ao meu irmão quando Aaron o encurrala para aquele
teatrinho de “Por favor Me Dê Dinheiro Para o Aluguel; Eu Gastei
Meu Salário Em Outro PlayStation”. O sorriso que ele dá à minha
irmã, Kelly, quando ela fica perto demais e o encara por muito
tempo, enrolando uma mecha de cabelo em volta do dedo de uma
forma que ela imagina ser sedutora.
Quero perguntar: Onde você esteve o dia todo? Cerro meus
dentes para manter as palavras presas. Não pergunte, não
pergunte, não pergunte. É o que ele espera que eu faça, recostado
na cadeira, com calça jeans e óculos, as mãos entrelaçadas atrás
da cabeça. Esse é o princípio e o fim do foco atual dele: pergunte,
pergunte, pergunte. Consigo ouvir o canto telepático.
As crianças vêm e vão em grupos pequenos, lambuzadas de
maquiagem, com metade das fantasias cobertas por casacos e
chapéus. A temperatura cai quando o sol se põe, e eu entro para
pegar um cobertor. Quando passo por Nicholas, traços de algum
aroma que já cheirei antes me cumprimentam. A resposta para o
meu déjà vu está em uma gaveta trancada, simplesmente vaga e
desbotada o suficiente para que eu não consiga identificar onde foi
que senti esse cheiro no passado. Eu não perguntaria a ele nem
mesmo se ele me torturasse. Quando volto, ele exala uma
respiração alta, então entra para pegar o próprio cobertor.
O que você fez com o Maserati.
Onde diabos você esteve.
Nós nos ignoramos. Eu avalio com bastante interesse cada
homem viril que passa por ali e me pergunto o que mais há por aí.
Certamente estou me acomodando.
Acho que talvez eu tenha ganhado essa rodada, porque decidi
por conta própria apenas entregar os doces em vez de perguntar se
ele quer ir à festa de um dos seus amigos. Mas Nicholas está tão
em paz bem aqui ao meu lado, sentado em sua cadeira, dizendo a
cada criança que adorou as fantasias e aumentando as chances dos
pais delas o pagarem para fazer furos em suas bocas pequenas,
que você pensaria até que esse plano foi dele, e não meu. Ele tem
esse jeito de me fazer sentir assim, como se eu estivesse o
acompanhando sem ser convidada.
— Eu tenho uma surpresa para você — ele finalmente diz. Olho
em volta e noto que seus olhos estão fechados. As pontas de suas
orelhas e nariz estão vermelhas de frio, e vejo seu pomo de adão
engolir em seco.
Ele vai dizer algo desagradável em seguida, então não respondo.
— Você me ouviu?
— Aham. — Levanto. Não quero ouvir qual é a surpresa dele. É
uma cabeça de cavalo nos lençóis da cama. Ele colocou amianto no
sanduíche que vou levar para o trabalho amanhã. Ele engravidou a
dentista. Vai terminar comigo. Eu ganhei, mas ele ainda vai me
expulsar de casa. Tenho cinco minutos para juntar minhas coisas
antes que ele chame a polícia.
— Vou te mostrar a surpresa sexta-feira depois do trabalho.
Entro sem responder. De jeito nenhum vou voltar para casa na
sexta-feira depois do trabalho.

É dois de novembro. Sexta-feira.


— Me mande mensagens de hora em hora — recomenda Brandy.
— Se eu não tiver notícias suas, vou presumir o pior, então mande
mensagens. Não. Esqueça.
Hoje somos só eu, Brandy e Leon. Zach saiu do emprego. Ele
olhou para a própria bola de cristal semanas atrás e viu que o fim
estava próximo, então já tinha um novo trabalho em vista e pronto
para contratá-lo. Melissa tirou o dia de folga e aposto que é por
causa de uma entrevista de emprego. Sou uma idiota por não ter
tomado nenhuma medida de precaução.
O clima hoje está fraco. Estamos vasculhando anúncios de vagas
de emprego e prometendo indicar uns aos outros para nossos novos
chefes, caso encontremos algo bom. Morris é uma cidade morta,
comercialmente falando. Não é ruim para morar, mas você precisa
se deslocar até uma cidade melhor para literalmente ganhar a vida.
Metade de nós vai acabar se mudando para Beaufort, a cidade
vizinha, para trabalhar em uma fábrica de ração para cães. A outra
metade vai voltar a morar com os pais. Nenhum de nós consegue
decidir em qual cenário preferimos entrar.
Brandy está muito emotiva. Preocupada com a possibilidade de
todos nós nos afastarmos depois disso, e provavelmente está certa.
Vou manter contato com Brandy, mas não estou triste por deixar
Melissa agora que não somos mais amigas. Zach provavelmente
superará isso com uma rapidez ofensiva e esquecerá que qualquer
um de nós sequer existiu. Ele é engraçado e esperto, mas é tambén
um idiota na metade do tempo e usa as melhores qualidades que
tem para ser maldoso. Ele brinca de bobinho com a minha bolsa e
passa horas imitando tudo que eu digo, mesmo que eu esteja
tentando lhe perguntar algo importante. Sempre que deixo meu
celular desbloqueado no balcão, ele envia mensagens para a minha
mãe, dizendo que eu entrei para o exército ou que estou grávida e
não sei quem é o pai.
Leon manifestou interesse em comprar a loja dos Howards e
transformá-la em um restaurante com uma temática de natureza.
Ele vai colocar um urso-pardo empalhado na entrada, onde Homer
Elvis costumava ficar de sentinela.
— Se alguma de vocês quiser um emprego, vou contratá-las —
ele nos diz. — Quero que o restaurante já esteja pronto e
funcionando na primavera. — Nós acenamos com a cabeça e
dizemos: “Certo, certo”, sabendo que isso não acontecerá.
— Se eu tivesse dinheiro, mergulharia de cabeça na ideia de me
mudar e iria — lamenta Brandy, brincando com a própria
gargantilha. — Eu nem levaria nada comigo. Simplesmente iria.
— Quando eu ganhar na loteria, comprarei uma ilha na costa do
Alasca para você — prometo a ela. — Com uma suíte de hóspedes
para eu ficar quando te visitar.
— Ganhe na loteria assim que puder, por favor. Metade das
minhas economias secou neste verão quando minha geladeira
quebrou, e tive que emprestar dinheiro para minha irmã comprar os
livros acadêmicos dela.
Apoio minha cabeça em seu ombro.
— Você vai conseguir. Antes que possa perceber, estará
tremendo em um clima de cinquenta graus negativos, usando
sapatos de neve e falando comigo ao telefone enquanto dirige uma
equipe de cães de trenó ao supermercado.
— Ouvi dizer que todos vocês acharam que iriam morrer na
segunda-feira — Leon anuncia, colocando frascos com ovos de
cascavel em conserva e larvas de besouro para churrasco em
caixas para o Sr. Howard buscar mais tarde. O Sr. Howard vai
transportar metade da mercadoria para Tenmouth e liquidar
dramaticamente o restante. Há placas azuis fluorescentes coladas
em todos os postes telefônicos da estrada Langley: LIQUIDAÇÃO DE
FALÊNCIA. TUDO NA FERRO VELHO PRECISA IR EMBORA! Incluindo as
pessoas que fizeram uma vida aqui.
— Foi por pouco. — Eu fungo.
— Morte causada por jasmins.
Brandy e eu lançamos olhares questionadores em sua direção,
por ele saber que minhas flores eram jasmins, mas ele dá de
ombros e sorri. Maldito seja Zach. Isso é exatamente o tipo de coisa
que ele faria. Eu gostaria que ele estivesse aqui para que eu
pudesse gritar com ele por saber que as flores eram jasmins e
mesmo assim nos deixar acreditar no contrário. Em vez disso, ele
está em outro lugar, garantindo a própria segurança financeira feito
um completo idiota.
Penso em me mudar para Tenmouth, o que seria uma merda.
Penso em ficar em Morris e não conseguir encontrar outro emprego,
o que seria uma merda. Olho miseravelmente para o bote salva-
vidas cheio de ursos-pardos de Leon, que já está se enchendo de
água. A única coisa que poderia piorar este dia é se minha
menstruação descesse do nada, então é exatamente isso que
acontece.
— Vou sentir tanta falta de vocês — Brandy diz ao assoar o nariz
em um lenço de papel. — Eu odeio isso.
— É o fim de uma era — digo seriamente. Faz dois dias que as
luzes da loja estão com defeito, mas não nos incomodamos em
trocar as lâmpadas. Quase não há mais nada para vender, então
seria um milagre se as coisas durassem mais uma semana. Eu
examino meus arredores e espero acordar deste pesadelo. As
prateleiras vazias são particularmente deprimentes.
Uma das minhas partes favoritas do trabalho era reorganizar a
forma de apresentação dos nossos produtos, montar quadros vivos
de marionetes jogando Frisbee ou recriar cenas icônicas de filmes
usando estatuetas da cultura pop. Eu vestia Toby, nosso fiel
guaxinim de pelúcia, com suéteres e boinas para cachorros e o
colocava em uma nova posição todos os dias: perto do caixa, lendo
uma revista; fumando um cachimbo em cima da jukebox; no
parapeito da janela, olhando para fora com um par de pequenos
binóculos. Brandy e Leon adoram procurar por Toby quando chegam
e dizem que meu talento para inventar cenários completos usando
mercadorias está sendo desperdiçado em um lugar onde nunca
conseguimos clientes. Esse talento é inútil agora, já que toda a
mercadoria se foi.
— Não acho que estou pronta para a próxima era. — Suspira
Brandy.
Nem eu.
— Você já vai ter esquecido completamente de mim em janeiro e
não vai me convidar para o casamento.
— Claro que você está convidada para o casamento! — Nunca
haverá um casamento.
Ela assoa o nariz novamente. Seu cabelo está fantástico e eu me
odeio por não ter perguntado-lhe há uma semana que salão ela
frequenta. Se não fosse pela minha impulsividade, agora eu poderia
estar com uma franja tão linda quanto a de Brandy.
— Estou esperando o seu convite — ela me diz enquanto
colocamos nossos casacos. Ainda não são seis horas, mas ficar
aqui por mais tempo é inútil. — Talvez tenha se perdido no correio?
— Ah. — Tento não me contorcer. — Não os enviei ainda.
— Mas você não precisa fazer isso? Para dar às pessoas tempo
de confirmar se irão? Seu serviço de bufê vai querer saber quantas
cabeças esperar.
Leon me salva de ter que responder.
— Ela ainda tem tempo. Enfim, qual você acha que é a surpresa,
Naomi?
Abro a boca e não consigo pensar em nada de bom que essa
surpresa possa ser. Seja o que for, Nicholas está com vantagem
sobre mim. Estou muito nervosa.
— Um jantar — eu digo. — Ele vai me fazer de banquete para
uma onça-parda. — Em um caldeirão fervente de alface e cenoura,
como se eu fosse um pedaço do Pernalonga.
Leon ri.
— Acho que isso é um pouco dramático.
Talvez sim, mas Nicholas também tem uma tendência dramática.
Ele a adquiriu no ensino fundamental, enquanto ficava em casa
assistindo televisão durante o dia, fingindo estar doente para poder
faltar aula e evitar os valentões que o chamavam de Quatro-olhos e
zombavam da echarpe que sua mãe o fazia usar. Nicholas sabe
exatamente o que diria aos valentões de sua infância se algum dia
encontrasse um deles atualmente. Ele aperfeiçoou o discurso que
daria no chuveiro, que ele deve achar que é à prova de som. Ter
passado tanto tempo assistindo à novela One Life to Live nos anos
de formação dele o transformou em uma diva vingativa.
Para ser honesta, espero que ele tenha a oportunidade de dar
esse discurso algum dia. É incrível.
— Vou adiar a volta para casa o máximo possível — digo a eles.
Brandy acena sabiamente. — Talvez eu vá assistir a um filme. E
então comprar algo para comer. E depois ver outro filme. Quando eu
chegar em casa, a onça-parda terá ficado tão impaciente que já terá
comido Nicholas. Assistiremos Netflix juntas no sofá. Um
documentário sobre a vida selvagem.
Eu rio da minha própria piada, mas o barulho se aloja na minha
garganta quando a porta se abre e uma versão de um Nicholas do
Mundo Invertido entra na Ferro Velho. Ele está usando botas de
trilha e um casaco de segunda mão da cor de uma floresta. A roupa
parece tão estranha nele que demoro dez segundos inteiros para
processar que é um tecido de camuflagem. Nicholas Rose está
usando um casaco de tecido camuflagem.
Meu queixo cai quando meus olhos alcançam o topo da cabeça
dele. Seu cabelo está enfiado sob um daqueles gorros antiquados
de inverno com protetores de orelha forrados de lã. É de uma
estampa xadrez, nas cores laranja feio e marrom. É horrível. Todo o
conjunto provou ser fatal para um punhado de células do meu
cérebro e talvez para minhas retinas.
— Ah, meu Deus — eu digo em um sussurro rouco. — Você vai
me arrastar para a floresta e atirar em mim, não é?
Não estou sendo dramática. Ele está vestido como um dos muitos
caçadores ávidos de Morris.
Nicholas revira os olhos, mas sinto uma mudança em seu humor.
Há uma calmaria nele que me incomoda.
— Eu vim te buscar. Lembra daquela surpresa que falei?
Brandy agarra meu braço, e quase posso ouvi-la pensar: É mais
oleandro!
Não sei por quê, mas minto.
— Não. Que surpresa?
Ele franze a testa, e deve ser por isso que menti para ele. Meu
subconsciente é cruel e quer que ele pense que eu não ouço nada
do que ele diz, o que só é verdade na metade das vezes. Eu me
sinto mal pelo que fiz até lembrar que ele desistiu completamente de
planejar nosso casamento no segundo em que sua mãe enfiou o
nariz intrometido dela, e ele não a impediu de sair atropelando cada
uma das minhas opiniões. Estamos todos convidados para o
casamento de Deborah em janeiro.
Fui ensinada a não entrar em carros com estranhos, por isso digo
sabiamente:
— Meu carro está aqui. Vou simplesmente ir dirigindo para casa.
— Não. — Ele me pega pelo braço e me leva para fora antes que
eu possa enviar um pedido de socorro por meio de uma piscadela
em código Morse para Brandy e Leon. Ando devagar de propósito,
mas ele me segura contra a lateral de seu corpo e se inclina para
poder meio que me deslizar por sobre o asfalto. Dou chutes com
meus pés pendurados para deixar as marcas dos meus sapatos no
chão. É assim que vou morrer: levemente relutante, mas, no fundo,
preguiçosa.
Lanço um olhar suplicante para o meu carro do outro lado da rua,
mas ele não ganha vida como Christine, o Carro Assassino e me
vinga. Em pouco tempo, estou presa no banco do passageiro do jipe
dele, o que ele ainda não explicou por que comprou, e estou dividida
entre estar puta ou curiosa.
— Você é insistente quando quer conseguir algo.
Ele trava meu cinto de segurança e liga o motor. O jipe cheira
como se fosse o tio maluco do Maserati de Nicholas. Um tio que
bebe muito e atropela caixas de correio. Almoçou comida mexicana
hoje.
— E quanto ao meu carro?
A pergunta vem em um choramingo, e ele recompensa minha
rendição de dignidade com um sorriso indulgente que não chega
aos seus olhos.
— Voltaremos para pegá-lo.
— Mas por que eu simplesmente não...
Não vale a pena concluir minha frase. Ele é uma pessoa osso
duro de roer e não vai me dar uma resposta clara. Seu traje
estranho derrubou irrevogavelmente o controle que eu tinha sobre
ele. Eu não conheço esse homem. Estou em grande desvantagem.
Se essa tática de me espantar for uma vingança pela minha
maquiagem artística e moletom dos Steelers, está funcionando.
— Você está tendo uma crise de meia-idade? — Ele é um pouco
jovem para ter uma, mas lê todas as partes chatas do jornal e
geralmente há balas de caramelo em seus bolsos. Ele menciona o
próprio plano de aposentadoria um montão de vezes.
O canto de sua boca se inclina.
— Talvez.
Passamos pelo retorno que dá na rua em que moramos, mas não
paramos. Espero desesperadamente que Deborah passe por aqui e
veja o que o filho dela está vestindo. Na verdade, ela não o
reconheceria. Diria que estou tendo um amante, o que, tenho que
admitir, é o que estou começando a sentir também. Não tem como
este homem ser Nicholas. Uma bruxa de mil anos se apoderou do
corpo dele.
A linguagem corporal tranquila de Nicholas é bizarra perto da
apreensão que escoa pelos meus poros. Não conheço nem um
pouco esse carro. Eu sabia onde ficava tudo no Maserati,
guardanapos e óculos escuros e um mini frasco de Advil. Por
alguma razão, fico obcecada com uma garrafa de chá doce no
porta-copos mais próximo do painel, em vez do que está perto do
console central. Isso é retrógrado para ele. É um detalhe minúsculo,
mas me fascina. Por quê? Além do mais, ele nunca bebe chá
gelado. Apenas quente.
Dou um tapinha na tampa da garrafa.
— De quem é isso?
— Meu.
Minha mandíbula se contrai. Ele sente que estou o encarando
boquiaberta e não consegue conter um sorriso. Ele tenta, porém,
afundando os dentes no lábio inferior.
Há um guarda-chuva no chão que nunca vi antes. Abro o console
e encontro Tic Tacs, uma caixa de CDs velhos e um garfo de
plástico da Jackie’s ainda na embalagem. A Jackie's é uma pequena
lanchonete sem drive-thru e quase nenhum lugar para sentar, então
os clientes precisam entrar e pedir a comida para viagem. O único
item do menu que vale a pena dar uma segunda olhada são as
batatas fritas, mas as batatas fritas de lá são lendárias. Sem dúvida,
as melhores que eu já comi, e nós dois costumávamos passar lá e
comprar o jantar antes de ir ao drive-in para assistir filmes. Não
como na Jackie's há quase um ano, desde que Nicholas e eu
deixamos de ser um casal perfeito. É uma blasfêmia que ele ainda
seja capaz de saborear nossa comida favorita para comer em
encontros sem mim.
O porta-copos que não abriga o chá anômalo está ocupado com
uma correspondência amassada, um envelope endereçado
incorretamente a nós dois: Nicholas e Naomi Rose. Sinto vontade
de jogá-lo pela janela. O casaco habitual dele agora é um
amontoado de cor marfim no meio do banco de trás, tem a mesma
cor de sua pele. Isso me faz pensar na bruxa que o tirou da própria
pele e agora está o vestindo como maiô.
Ele acabou de comprar este carro e já viveu uma vida inteira aqui,
uma a qual eu não fiz parte. Acho que não gosto disso.
Reprimo a exigência para saber aonde estamos indo. Do lado de
fora da minha janela, as casas pararam de se mover rapidamente
em borrões espessos e se reduziram a borrões ralos a cada
quatrocentos metros. Campos marrons vão ficando mais altos e
selvagens. O céu agora é uma névoa branca que se estende pela
eternidade, com um brilho anormal, visto que é noite. A estrada se
inclina para a direita, engolindo-nos entre paredes de árvores Bordo
enormes, as folhas vermelhas como fogo. O carro faz barulhos
baixos e contínuos quando passamos sobre uma ponte esburacada
e meus dentes rangem.
É isso, então. Ele vai nos atirar de uma ponte. O dilema de
Voldemort e Harry Potter surge na minha cabeça: nenhum poderá
viver enquanto o outro sobreviver.
Nicholas desacelera e se inclina apenas um tiquinho, prestando
muita atenção. Eu sequer vejo a estrada até depois de fazermos a
curva, de tão obscurecida pela floresta. O cascalho estala sob os
pneus do carro que pertence ao Nicholas do Mundo Invertido,
levando-nos por um caminho tortuoso até uma casa em uma colina.
É cercada por uma floresta de abetos azuis e pinheiros brancos
do leste, que aposto que deve parecer um lindo paraíso natalino
quando neva. O jardim da frente não é limpado há um século, há
camadas e mais camadas enormes de folhas mortas de Bordo
alinhadas a uma pilha de madeira cortada e cuidadosamente
empilhada. Há um carro antigo com uma lona por cima, os pneus,
metade enterrados na terra.
— Isso vai sumir em alguns dias — Nicholas me diz quando vê o
que estou olhando depois que saímos do carro. — Ele precisa
encontrar alguém que tenha um reboque para ajudá-lo a tirar o carro
daí.
— Quem?
Acho que ele não me ouve por causa do barulho das folhas secas
sob nossos pés. Estão bem compactadas em algumas áreas e
soltas em outras, então tenho que escolher meus passos com
sabedoria ou quebrarei o tornozelo. Recupero meu equilíbrio ao
chegar em uma pequena muda de uma plantinha perenifólia. É uma
coisa minúscula, desnutrida e torta.
— Aww. — Eu acaricio as folhas. — É uma árvore Charlie Brown.
Nicholas faz um ruído condescendente. Hum. Sinto vontade de
beliscá-lo. Ele está fazendo aquela coisa de novo: menosprezar o
que eu digo, mesmo se eu estiver certa.
— Antes de entrarmos — diz ele, interrompendo meus passos ao
colocar a mão na manga da minha camisa. — Pelo lado de fora, o
que você achou?
— Quê? — Eu pisco para ele.
Seu braço aponta para a casa. Eu sigo o gesto. É… uma casa.
Velha, provavelmente. Há tiras marrom-escuras de madeira
dispostas na horizontal e venezianas de cor verde-claro, uma delas
pendurada de modo torto. Uma varanda frontal extensa com
degraus feitos para derrubar qualquer pessoa bêbada iluminados
pela centelha de uma campainha luminosa. A chaminé é uma
coluna de pedras redondas irregulares e as janelas são como os
quadrados laranja brilhante de uma lâmpada Tiffany. Uma maré alta
de folhas cresce contra o revestimento da parede da direita, e vai
até uma ampla janela de vidro com acabamento em chumbo, que
deve ser a sala de estar.
— É agradável, eu acho. De quem é?
— Nossa.
Nossa. A palavra ecoa. Como uma baboseira insensível.
Inegavelmente falsa.
Estalo meus dedos e congelo o tempo. Viro-me para encará-lo de
frente. A criatura que habita o corpo de Nicholas me olha com a
mais peculiar mistura de prazer e solenidade, e tenho a sensação
de que ele está bem, bem acordado, ao passo em que estou apenas
começando a despertar da minha hibernação. Ele não está usando
lentes de contato de novo, os olhos brilham com intensidade por trás
da armação cinza-ardósia do óculos. As pontas de seu cabelo que
saem em cachos para fora do chapéu são tão suaves que quase
sinto vontade de tocar, mas puxo minha mão de volta porque o
gesto pareceria muito precipitado. Ele é meu noivo, mas não é. Eu
não sei o que somos. Quem somos.
Descongelo o tempo e ele sorri.
— Bem-vinda ao lar.
Uma pintura renascentista de nós dois ganha vida no ar, capturando
minha perplexidade e o triunfo de Nicholas. A tinta do quadro de
segunda mão escorre em um lento gotejamento de dois milhões de
anos, e então...
— Como assim “nossa”?
— Eu a comprei. — Seus olhos não deixam os meus.
Isto...
Mas...
Eu...
!!!
O mundo gira conforme Nicholas vira nosso jogo mental de
cabeça para baixo. Estou perdida. Não faz sentido nenhum ele
comprar uma casa e esperar que eu me mude com ele. Temos
lutado pela custódia do nosso esconderijo branco alugado. Temos
lutado para forçar o outro a levantar bandeira branca e sumir para
sempre.
— Deu pane no seu sistema? — ele pergunta, levemente
entretido.
Está doze passos à minha frente. Doze degraus acima. Atrás. Em
toda parte. Não sei para onde me virar e não sei qual é o objetivo
dele. Ele está certo, deu algum pane no meu sistema. Minha placa
de circuito está soltando fumaça. Eu tenho uma casa.
Não, eu não tenho. Apressadamente, lembro a mim mesma de
que não tenho nada que envolva Nicholas. Ele não pertence a mim,
então essa casa também não. Ele é um rei Midas versão cupim.
Tudo que ele toca apodrece.
A única coisa lúcida que consigo pensar é:
— Presumo que você ganhou no cara ou coroa.
— Sim.
— Mas. — A fala não vem facilmente. Meu cérebro está
continuamente rejeitando mensagens que chegam de meus olhos e
ouvidos, considerando-as como algo impossível. — Uma casa
inteira?
— Eu tentei comprar metade de uma, mas não consegui
encontrar nenhuma que fosse totalmente aberta na lateral ou sem
telhado.
Eu mal ouço a piada.
— Como. Por quê. Eu não...
— Eu comprei de um dos caras que trabalham com você. Leon.
Encontrei-o há alguns dias e começamos a conversar sobre o tipo
de lugar em que eu queria morar, e ele me contou que queria sair do
lugar em que está agora, e percebemos que ambos queríamos a
mesma coisa e poderíamos ajudar um ao outro. No fim das contas,
ele é muito legal. Me deixou mexer com o arco de serra dele e
temos planos de construir algumas cadeiras.
— Leon? — É nisso que estou presa agora. — Você comprou
esta casa na mão do Leon? Leon Duncan?
Ele ri.
— Vou dizer a ele que você ainda não esqueceu o sobrenome.
Ele ficará chocado.
Ótimo, eles têm trocado historinhas sobre como eu sou rude.
Talvez esquecer o sobrenome de Leon seja o motivo pelo qual ele
não me disse uma palavra sobre isso o dia todo. Que baita Judas.
— Ele sabia que essa era a surpresa e me deixou pensar que eu
estava prestes a ser assassinada!
— Você realmente precisa parar de dizer aos seus colegas de
trabalho que eu quero te matar. — Irritação percorre por sua feição.
— Isso não me deixa com uma boa reputação.
— Nós nunca discutimos o tipo de casa que iríamos comprar
juntos — explodo. — Eu não estive nem um pouco envolvida na
decisão.
— Eu queria que fosse uma surpresa.
— Você queria.
Ele apenas me encara, sem entender.
— Este não é o tipo de surpresa que se faz do nada à própria
noiva! Casais fazem essas merdas juntos, Nicholas! Um deles não
age pelas costas do outro para fazer algo dessa magnitude.
Primeiro você se livra do seu carro e traz para casa aquele, aquele
brutamonte ali. — Ele ri, o que me exaspera ainda mais, mas
prossigo: — Eu perguntei onde você esteve. Você se recusou a me
responder. Tem alguma ideia de como é isso?
— Sim! — ele grita. — Tenho. Eu não sei onde você esteve o ano
todo, Naomi. Seu corpo está aqui, mas sua cabeça, em outro lugar.
Você foi embora e me deixou completamente sozinho.
Se alguém foi deixado sozinho, fui eu, lutando sozinha a Guerra
dos Roses. Mas de jeito nenhum vou entrar nessa poça de lava,
então escolho um assunto mais ameno para reclamar.
— Estamos no meio do nada.
Ele dá de ombros.
— E...?
Procuro outra coisa para reclamar. O que sai da minha boca
confunde até a mim.
— Sempre quis uma porta da frente roxa. A cor da magia.
— Essa é uma razão terrível para se rejeitar uma casa. Naomi, eu
comprei uma casa para nós dois! Pare e pense um pouco sobre.
Quantas de suas amigas podem dizer que o namorado comprou
uma casa para elas?
1. Ele não é meu namorado, é meu noivo. (Mais ou menos.)
2. Ele não comprou esta casa para mim. Comprou para si mesmo,
sem perguntar ou querer que eu fizesse parte do processo. Devo
ser grata por ele me deixar acompanhá-lo depois de ter tomado
todas as decisões? Se devemos passar a nossa vida juntos como
parceiros iguais, isso não é um bom presságio.
3. Minha única amiga de verdade é a Brandy e, neste momento,
ela acha que estou sangrando em uma cova.
Isso é loucura. Agora que ele aparentemente mora aqui, eu
deveria voltar para a casa branca alugada, mas ainda não posso me
render. A guerra ainda está de pé. Ele está tentando me passar a
perna, mas sei que apenas nos mudamos para um campo de
batalha diferente. Não vou dizer a mim mesma o que venho
repetindo internamente há meses: poderia ser pior.
É isso que tenho feito. Tenho dado justificativas para continuar
com ele, fico lembrando a mim mesma que poderia ser pior. Olhe
para ela. Olhe para ele. Olhe para essas pessoas. Eles estão
sozinhos e não têm ninguém. Aquelas estão em relacionamentos
terríveis. Aqueles são tão infelizes. Poderia ser pior. Poderia ser eu.
Exceto que sou eu. Eu tenho estado infeliz.
— Ok. — Ele bufa. — Exceto pela porta da frente, que não é roxa,
o que você achou?
Sinceramente? Há um monte de folhas mortas e sujas e a casa
fica localizada no meio do nada, e eu quero tanto que seja minha.
Mal percebi que havia uma casa aqui quando estacionamos, mas
depois de ouvi-lo dizer a palavra nossa, foi como se as luzes de um
palco tivessem tomado conta do cenário e tornado tudo tão lindo
que eu poderia até chorar.
É o tipo de lugar onde eu gostaria de me estabelecer com meu
único e verdadeiro amor – ou seja, alguém que não é Nicholas.
Quero que Leon pegue a casa de volta e guarde-a para que eu
possa comprar um dia, quando eu estiver em um relacionamento
amoroso e saudável. Com um homem que amo no mínimo oitenta
por cento. Dividir essa casa com Nicholas vai estragar tudo, da
mesma forma que alguns dos meus filmes favoritos que assistimos
juntos agora estão contaminados, assim como a banda que
costumávamos ouvir juntos, a Generationals. Uma das músicas
deles tocava na rádio durante nosso primeiro beijo, e depois disso,
virou a “nossa banda”. Nós até os vimos ao vivo em um show. Agora
eu mal consigo ouvir as músicas deles sem ressuscitar mil
sentimentos indesejáveis.
Esta propriedade será para sempre conhecida como a casa que
meu ex-noivo comprou sem a minha participação. É a futura casa da
Sra. Rose, não minha. O que me irrita um pouco.
— Eu não quero morar aqui.
Ele está perdendo a paciência.
— Eu realmente não me importo com o que você quer, para ser
honesto. Ainda não voltei a gostar de você. Mas irei. E você vai
voltar a gostar de mim também. Esta casa vai nos salvar.
— Nos salvar? — Não me preocupo em minimizar o horror de sua
afirmação. — Achei que estávamos tentando matar a relação?
Sua expressão é tão desdenhosa que me encolho.
— Naomi, se a questão da história toda fosse que havia um
meteoro com o poder de destruir todos nós voando direto para a
terra, você ainda assim daria um jeito de perder o acontecido. — Ele
me dá as costas e marcha decididamente para dentro da casa. Ele
vai virar um homem das montanhas, aconteça o que acontecer, e eu
estou aqui apenas por estar.
Acho que entendo a nova perspectiva dele. É ainda mais
perturbadora do que tentar fazer com que eu o deixe.
É mais barato e mais fácil me transformar no tipo de mulher com
quem ele suportaria casar, em vez de terminar comigo. Se ele
terminar, terá que lidar com cem encontros surpresa para os quais a
mãe dele o enviará a fim de encontrar a próxima candidata à égua
reprodutora.
Meu forno para bebês e eu fomos preparados e avaliados. Já sou
familiarizada com os pais detestáveis dele, que ainda não
conseguiram me botar para correr. Há um compartimento do meu
cérebro que hospeda relutantemente um glossário com um
vocabulário específico de odontologia. Eu tolero o ritual satânico
dele de tirar uma banana por completo da casca e colocá-la na
mesa vazia, sem usar um prato, tocando tudo com os dedos e
colocando a banana de volta na mesa a cada mordida.
Sou um investimento. Se ele mexer nas próprias economias
agora, vai perder dinheiro e tempo em todas as áreas. Terá que
recomeçar; dois anos de sua juventude terão ido pelo ralo. Mas eu
tenho uma novidade para Nicholas Benjamin Rose: se ele acha que
eu não sou a maior perda de tempo que já o aconteceu, está muito
enganado.
Por longos segundos, fico apenas olhando para a parte da casa
que o engoliu. Detalhes que ainda não olhei direito estão vindo à
tona para receber atenção – as telhas de madeira, todas arqueadas
para os próprios centros; o sujo tapete de boas-vindas com um
Terrier escocês estampado; a silhueta andando de um lado a outro
atrás da ampla janela com acabamento em chumbo. Nicholas queria
natureza? Ele conseguiu. Ramos de Hera inglesa tomam toda a
chaminé, tentando abrir caminho para chegar dentro da casa. O ar é
fresco e puro. Não ouço nenhum tráfego, nenhum som da civilização
humana.
A casa que ele comprou sozinho – garantindo que nunca vai
parecer que é nossa – fica no topo de uma montanha entre dois
vales suavemente inclinados, e acho que ele escolheu uma bela
colina como lugar para morrer. Nós dois seremos enterrados aqui.
Nossos fantasmas irão assombrar o local, irão torturar um ao outro e
quaisquer compradores de casas equivocados que desejam uma
experiência no campo.
Ainda estou tentando orquestrar o plano A, e Nicholas está
arruinando meus esforços para o plano C. Apenas um de nós pode
vencer, mas não tenho mais certeza do que o vencedor mantém e o
que ele perde.

O que mais gosto na casa que é minha, mas não minha, é que ela é
escura, pequena e aconchegante, o que não soa agradável falando
dessa forma, mas cada cômodo tem um aspecto muito singular, o
que faz minha imaginação enlouquecer.
A sala de estar é exatamente o lugar onde você gostaria de
relaxar em uma poltrona confortável, com seus netos espalhados
aos seus pés em um semicírculo enquanto você lê histórias antigas
sobre terras distantes. Piratas aventureiros e trens voadores,
bandidos mascarados e realeza élfica. Os livros possuem uma
encadernação em couro, as lombadas fazem estalos em suas mãos
envelhecidas. Você se senta em silêncio na sala com sua alma
gêmea, diante de um fogo crepitante, enquanto gotas de chuva
batem no vidro, e se sente mais contente do que um gato
espreguiçado no parapeito de uma janela.
A sala de estar é onde as melhores lembranças que seus netos
têm de você nascerão, e é nesse lugar que eles sempre irão te
imaginar mesmo bem depois de sua partida. Cada vez que eles
sentirem o cheiro de fumaça de lenha ou chocolate quente, isso os
fará recuar no tempo para a lembrança do som de sua voz
aumentando e diminuindo como uma melodia enquanto você lia
para eles.
— O que você achou? — Nicholas pergunta.
— Hmm. — Passo por ele na cozinha, dissolvendo-o com meus
poderes mentais para que eu possa observar tudo sem sua
presença me cercando.
A cozinha é arejada e iluminada, com vigas de madeira expostas
atravessando o teto. Panelas, frigideiras e regadores de cobre
pendem das vigas como sinos dos ventos. Explosões verdes de
hera brotam de vasos de plantas. O aroma de pão recém-assado e
roupas de cama ensolaradas em um varal perfuma o ar. No verão,
esse é o lugar onde você morde uma amora e sente os sabores da
fruta amadurecida explodirem em sua língua. Na primavera, você se
inclina sobre a pia e rega as tulipas cultivadas na floreira de janela.
Uma bruxa da cozinha mora aqui. Ela deixa um caldeirão na
lareira e coloca feixes de ervas secas nas vigas do teto. Há uma
mesa de madeira gasta e cadeiras descombinadas de todas as
cores da Catedral de São Basílio. As unhas das patas do cachorro
da família fazem clac-clac-clac contra o piso de madeira de pinheiro
e tudo neste cômodo faz seu coração disparar em um sorriso.
— Não vem com nenhum móvel ou utensílio — diz Nicholas —
mas não tem problema. — Eu paro de andar e ele acidentalmente
esbarra em mim por trás. — Opa. Desculpa.
— Quer me dar um pouco de espaço?
— Bem, você não está dizendo nada.
— Estou falando comigo mesma no momento. Nos dê um
minuto.
É a vez dele de murmurar um “Hmm”. Fico feliz quando ele entra
no (único) banheiro, me dando uma folga.
A sala de estar contém três janelas altas e magníficas voltadas
para a floresta nos fundos. O quintal se estende para além dos
declives íngremes, proporcionando uma excelente vista de um lago
com um longo píer. Este é o melhor cômodo para se observar as
estrelas. Você abre as luxuosas cortinas de veludo vermelho e
assiste a uma lua em formato de foice sobre a floresta, refletindo no
lago. É nesse lugar que você coloca sua árvore de Natal e uma
família de quebra-nozes na prateleira da lareira. As paredes são
revestidas de papel de parede azul escuro com estrelas feitas de
papel laminado e bétulas. Tudo fica dourado como ouro quando o
fogo é aceso.
Uma réplica do relógio do Grand Central Terminal está instalado
no corrimão da escada que fica do lado de fora da sala de estar e,
no meio da noite, quando você caminha pela casa silenciosa para
se aconchegar em uma cadeira de balanço sobre um tapete de
tecido grosso, você passa pelo mostrador luminoso do relógio e
ouve o tique-taque dos ponteiros. O mundo está em silêncio, exceto
pelo tique-taque do relógio, dos roncos suaves de seu único e
verdadeiro amor a dormir no andar de cima, do farfalhar de seus
filhos pequenos rolando na cama e do sussurro dos galhos na
floresta.
É.
Mágico.
Consigo imaginar tudo isso de forma vívida e quero isso. Eu
quero tanto.
Nicholas entra na sala de estar enquanto estou mentalmente
avaliando onde meu esconderijo de biscoitos de açúcar e velas com
aroma de hortelã ficariam e me arranca de meu próprio mundinho
com sua voz.
— Acho que vou usar esta sala como escritório. — Ele abre os
dedos apoiados no batente das janelas cintilantes. — Vou colocar
uma TV de tela grande ali, assim não terei que dividir meu tempo
entre trabalhar e assistir futebol.
Os quebra-nozes da minha fantasia tombam da prateleira da
lareira e caem no fogo.
— Argh.
— Que foi? — Ele olha duas vezes para mim, depois para a
prateleira da lareira, que era onde meu olhar estava fixado. — Você
não gostou das lareiras? Achei que seria uma de suas partes
favoritas da casa. Tem um sistema de aquecimento a ar forçado
também. Não precisaremos acender fogo de verdade para
conseguir calor se não quisermos.
— As lareiras são legais — respondo suavemente. Fico surpresa
que meu nariz não tenha crescido e atravessado a sala que nem o
do Pinóquio. Eu amo essas lareiras mais do que amo meus
parentes de sangue. Quero pendurar duas meias de Natal tamanho
adulto feminino e masculino por cima delas, ao lado de duas meias
de Natal infantis. Quero comprar uma imensidão de velas
eletrônicas e passar três horas arrumando-as tediosamente,
enquanto um Nicholas aflito me observa.
Nicholas me estuda e seja lá o que ele vê em meu rosto faz seus
olhos suavizarem.
— Vamos lá em cima?
— Claro, tanto faz.
Há três quartos no andar de cima, praticamente com o mesmo
tamanho e estrutura. Paredes lisas, chão em madeira. O do meio é
quinze centímetros mais estreito do que os outros dois, e uma
lâmpada se acende em meu cérebro antes que eu possa quebrá-la:
o quarto do bebê.
Nunca vou me perdoar por esse pensamento.
— Qual é o meu quarto? — eu pergunto, mais para provocá-lo.
Ele viu a casa inteira antes, então não está olhando nada agora, seu
foco se mantém preso em cada reação minha. É por isso que estou
me esforçando para não reagir: não posso deixá-lo ver o quanto
amei este lugar. Quando entro em um cômodo, penso que é ok. No
momento em que estou saindo, se torna o melhor cômodo que já vi.
Ficarei arrasada quando inevitavelmente tiver que ir embora. Tenho
vivido naquela casa branca alugada todo esse tempo feito uma
completa idiota.
— Pode escolher.
Não consigo discernir por seu tom de voz se ele está
concordando em dormir em quartos separados. Não durmo em
nossa cama desde o cara ou coroa, e não vou mudar isso agora.
Não sei o que seria pior: dormir com ele quando estou me
esforçando tanto para afastá-lo, ou fazer alguma investida nele e
depois vê-lo me rejeitar porque está tentando me afastar. Ainda
estou confusa sobre o objetivo de Nicholas. A estratégia dele é
confusa.
— Uma casa como essa deve ser cheia de histórias. Precisa de
um nome.
Ele me dá um sorriso maravilhado.
— Escolha um nome.
O vento golpeia o telhado como se estivéssemos no olho de um
tornado. Estamos tão distantes de tudo que já experienciamos como
casal. Eu não deveria amar essa casa. Somos os fantasmas de
Heathcliff e Catherine, abandonados nos confins de Morris. Deixo
escapar a única coisa que posso pensar.
— Desastre.
O sorriso dele desaparece.
— Eu não vou morar em uma casa chamada Desastre. Isso é
atrair má sorte.
— Meu chapa, já temos má sorte.
Ele suspira pelo nariz, uma característica que herdou de Harold.
Eu costumava achar todas as pequenas manias dele fofas até ver o
modelo mais vasto de onde todas elas foram copiadas e coladas.
Assistir Nicholas empurrar o próprio copo sete centímetros para a
direita do prato deixa de ser adoravelmente peculiar depois que
você vê a mãe dele fazer o mesmo. Conhecer Deborah matou muito
do que eu amava no filho dela.
— Vou trazer a empresa de mudanças para cá amanhã.
— Amanhã?
— Exato. — Ele parece tão satisfeito consigo mesmo.
Acho que está me testando. Tentando acabar comigo, talvez, com
todas essas mudanças inesperadas acontecendo ao mesmo tempo.
Decido testá-lo também.
— E se eu não quiser me mudar?
— A empresa de mudanças fecha aos domingos, mas se você
quiser alugar um caminhão na segunda, fique à vontade. Até então,
todas as nossas coisas virão para cá.
Aí está aquela palavra enganosa de novo – nossa.
Infelizmente, nenhum de nós dois ficamos com muitos pertences
de nossos dias de solteiros. Meus móveis antigos se foram, assim
como os dele. Queríamos escolher tudo juntos para nossa vida
conjunta, experimentamos todos os sofás do Furniture Outlet e
pulamos nos colchões até encontrarmos os perfeitos para nós. Há
exceções, como a mesa dele e a minha torradeira, mas em geral
nossas coisas foram escolhidas para pertencerem a um casal. Vai
ser uma merda dividir tudo.
Não posso me dar ao luxo de substituir esses bens. Ele pode. Ou
poderia, de qualquer maneira. Não sei qual é a situação financeira
dele agora que comprou uma maldita casa.
— E se eu ficar? — digo de prontidão. — Terei meu nome na
escritura, também? Ou este é o lugar que você vai compartilhar com
qualquer mulher com quem estiver? Não há garantia de que você
não vai me colocar para fora em um mês.
— Esta casa é nossa, Naomi. Por que eu colocaria você para
fora?
— Por que não colocaria? Eu faria isso, se estivesse no seu lugar.
Eu te deixaria na antiga casa e diria adeus.
Nicholas me encara, se vira e sai pisando forte, descendo as
escadas. Ainda estou de pé no quarto quando ele vem pisando duro
de volta, com a pele em um tom mais vermelho.
— Se você quiser ficar na casa antiga, tudo bem. Não vou forçá-la
a vir morar aqui. Mas eu sei que a Ferro Velho está fechando. O
Leon me contou. Então, boa sorte pagando o aluguel sem mim,
amor.
— Eu não quero o seu dinheiro. Prefiro vender meu próprio
fígado. Prefiro trabalhar em um dos bordéis que seu pai costumava
frequentar antes de sua mãe derreter o cérebro dele com os
suplementos do Dr. Oz.
É um tiro mortal, mas ele solta uma risada que é como um escudo
erguido e meu golpe passa despercebido.
— Eu deveria ficar chocado? Sei disso há anos.
Não tem nexo, mas estou brava por ele saber disso e não me
contar. É uma informação tão interessante para guardar só para si.
Eu deveria ser a noiva dele! Ele deveria compartilhar essas histórias
humilhantes sobre os pais dele comigo.
— Você é a razão de ainda morarmos em Morris — ele reclama.
— Se não fosse o seu apego ridículo a uma loja de presentes de
posto de gasolina tentando ser o museu Ripley’s Believe It or Not,
eu teria aceitado aquela oferta de emprego em junho. Cidade maior,
pagamento melhor. Mais oportunidades para nós dois. Mas nã-ã-o,
você não queria se mudar. Disse que seu emprego de salário
mínimo era tão importante quanto o meu. E imediatamente se
recusou a sequer considerar a ideia de se mudar. Me fez desistir do
que é basicamente o meu emprego dos sonhos, então agora estou
preso nesse lugar para sempre. Naquela época eu já sabia que a
Ferro Velho estava falindo, e abri mão de tudo por sua causa. Bem,
agora você vai abrir mão de algo por mim também. Vai abrir mão de
um pouco do seu orgulho e dar uma chance a esta casa por um
maldito minuto antes de tomar uma decisão sobre se quer ficar aqui
ou ir embora. Você vai pelo menos me dar isso.
O último fio de sentimentos civilizados entre nós se rompe.
— Então você está chateado desde junho por não ter aceitado
aquele emprego — rebato. — Eu só estava trabalhando na Ferro
Velho desde fevereiro e apenas começando a me sentir adaptada à
minha nova rotina. Eu amava meu trabalho. Por que eu deveria ser
a pessoa a se sacrificar?
Ele está soltando fogo pelas ventas.
— Por que eu deveria?
— Não entendo o que você está fazendo. — Jogo meus braços
para cima. — Por que me trouxe aqui?
— Achei que seria uma surpresa boa. Achei que você fosse amar.
Assim como as flores que reclamou sobre eu nunca te dar. Mas aí
quando eu te dou flores, você COLOCA FOGO NELAS.
— Isso são águas passadas! Como se atreve a trazer isso à
tona? Você já admitiu que não liga para o que eu quero.
Ele solta um rugido selvagem e animalesco e desce as escadas
cheio de ódio outra vez. Eu o ouço bater as portas e quase grito
para ele não bater as lindas portas da minha linda casa nova.
— Vamos! — ele grita depois de alguns minutos. — Temos que ir
buscar o seu carro! Que caralhos você quer jantar?
— Eu quero o caralho de uma pizza! — eu grito. Quero uma
desde que o filho da puta pediu por delivery.
— Excelente! Eu tenho o caralho de um cupom da Benigno's, de
qualquer forma!
— Ótimo! Eu amo a Benigno's pra caralho!
Nós nos enfiamos em seu carro o mais furiosamente possível e
não falamos nada até entrarmos na pizzaria. Quando uma senhora
vem para nos levar até uma mesa, uma Naomi e um Nicholas
diferentes abrem os sorrisos que damos na frente de outras pessoas
e nosso tom de voz é tão calmo que dá medo, mas nosso interior
ferve.
Quando vou ao banheiro, Nicholas pede uma Dr Pepper para
mim, que ele sabe que é a minha favorita.
Antes de sairmos, limpo todas as migalhas e guardanapos usados
da mesa em nossos pratos e os empilho, o que sei que ele aprecia
porque sempre tenta ajudar os garçons.
Quando voltamos para o carro, planejamos formas de arruinar a
vida um do outro.

Não sei como Nicholas espera que eu o leve a sério.


Quero dizer...
É que...
Uma dose de gargalhadas irrompe da minha boca antes que eu
possa engoli-la de volta.
Acordei com três homens estranhos na minha sala de estar esta
manhã e dei um grito, correndo para me cobrir, mas felizmente um
cobertor pairou sobre mim enquanto eu dormia no sofá e ninguém
viu minhas pernas nuas em shorts masculinos. Quando me levantei,
mantive o cobertor enrolado em volta do meu corpo e quase
tropecei no tecido, e dei um gritinho quando Nicholas me deu um
tapinha brincalhão inesperado na minha parte traseira para que eu
me movesse.
— Se apresse! — ele disse alegremente. — Temos muito o que
fazer hoje!
Isso foi horas atrás, e ainda não sei com que humor eu deveria
estar. A mudança tem sido uma verdadeira merda, e estou evitando
ajudar o máximo que posso. Já gastei bastante tempo me
escondendo no banheiro, fingindo que leva dez minutos para trocar
um absorvente. Depois de minha terceira troca falsa de absorvente
em uma hora, saio do banheiro e descubro que Nicholas fez uma
ousada troca de roupa. Quando ele vê o sorriso maligno em meu
rosto, sua expressão fica irritadiça e defensiva, mas não posso ser
responsabilizada por essa situação.
Nicholas está usando um ridiculamente largo... Eu nem sei como
chamar. Macacão? Ele é cáqui da cabeça aos pés, o que ele deve
estar amando, e suas botas de trabalho novinhas em folha
provavelmente pesam nove quilos cada. Acho que sua intenção é
virar um homem robusto e rústico da selva, mas em vez disso, está
parecendo um caçador de fantasmas.
O chapéu xadrez com protetores de orelha está de volta, embora
ele deva estar com calor, depois de ter carregado a geladeira, as
prateleiras e qualquer outra coisa que eu esteja fingindo que não
seria boa fazendo porque sou uma mulher de ossos frágeis cujos
joelhos delicados cedem só de carregar uma caixa de lenços de
papel. Se ele quiser comprar uma casa sem minha ajuda, pode
muito bem colocar tudo nela sem minha ajuda também. Acho que
ele espera que eu jogue isso na cara dele, e é por isso que morde a
língua sempre que me vê sentada, sem fazer nada.
Este novo visual não parece nada normal em Nicholas. Ele está
se esforçando tanto para lutar contra os próprios genes, Deus o
abençoe.
Não importa o que ele use para disfarçar, Nicholas foi criado para
dar bailes em Pemberley. Ele tem um rosto aristocrático e bonitinho,
feições desenhadas, um charme discreto e a pele pálida, um cabelo
marrom escuro delicadamente desgrenhado, com um bico de viúva.
O olhar dele deveria ser perverso para refletir o tipo de homem que
espreita por baixo, mas em vez disso, seus olhos grandes projetam
inocência, uma característica predatória inata para permitir que o
lobo vagueie entre as ovelhas sem ser detectado.
A arquitetura de seu rosto é intrigante quando ele sorri: a pele se
estende por sobre as maçãs do rosto invejáveis com cavidades
esculpidas por baixo, fazendo-o parecer que está perpetuamente
sugando as próprias bochechas. É uma espécie de beleza
descontraída e puritana que grita: me coloque em uma
espreguiçadeira de couro para que eu possa contemplar o tédio. A
ideia dele entrando em uma floresta para cortar lenha me deixa
sufocada. Rústico este homem não é.
— Você é o gêmeo do mal do Nicholas? — pergunto. — Ou é o
bom?
Ele franze a testa.
— Sério, por que está vestido assim?
— Shh. — Ele olha para a porta do cômodo adjacente, onde os
ajudantes de mudança estão carregando a máquina de lavar em
carrinhos de carga. As botas de trabalho deles são gastas e sujas,
enquanto as reluzentes de Nicholas emitem um odor químico de
algo recém-saído da caixa. — Você pode apenas ser legal? Senhor.
— Não. Você está tentando impressionar aqueles caras ou algo
assim?
Ele muda de assunto antes que os caras legais nos ouçam.
— Por que você fica correndo para o banheiro toda hora?
Eu me demoro entre duas possibilidades nojentas, tentando
decidir qual ele achará mais repulsiva.
— Coisas de menstruação.
Ele parece cético.
— Você quer detalhes? Se preferir, não vou dar descarga da
próxima vez e você pode ver por si mesmo o que estou fazendo lá.
— O que há de errado com você?
— Você. Você é o que há de errado comigo.
Ele se afasta e eu me sinto muito bem, confesso. Um dos
ajudantes vem pisando forte em minha direção e eu repenso minha
estratégia de fugir para um esconderijo. O ar está cheio de
testosterona e estou faminta por uma dose disso. Já mencionei
como é excelente ter homens profissionais viris fazendo trabalhos
físicos bem na sua frente? Homens robustos com marcas de danos
causados pelo sol e mãos grandes e ásperas e antebraços cheios
de veias e pelos. Um deles tem uma tatuagem no antebraço rígido:
uma garota pin-up reclinada no capô de um conversível.
Supervisionar é uma tarefa difícil, mas alguém precisa fazer. Fico
em localizações onde a visão do levantar, agachar e grunhir deles é
mais privilegiada, observando seus músculos crescerem e se
tensionarem. Músculos das costas! Quem diria que poderia haver
tantos músculos nas costas de uma pessoa? Agora eu sei. Esqueça
o Tinder; depois que Nicholas jogar a toalha, vou contratar um grupo
de ajudantes de mudança e encontrar meu próximo namorado
assim.
Nicholas tem um corpo bonito. É elegante e tonificado – o tipo de
corpo que você pode imaginar dominando um piano, bem como
correndo em um campo de rúgbi. Atualmente, não tenho o privilégio
de desfrutar dos benefícios de seu corpo bonito e elegante, então os
homens que antes não faziam o meu tipo, agora são todos gostosos
para mim. Estou passando por uma fase difícil. Homens do tamanho
de pedrinhas, com barbas enormes e tatuagens no rosto. Cientistas
loucos e calvos. O Conde Chocula da embalagem do cereal. A
silhueta dos créditos de Mad Men. Se essa seca continuar por mais
tempo, estarei cobiçando as figuras sem traços característicos das
placas de banheiros masculinos.
Observo um dos homens com um pouco de interesse demais e
sinto o calor do olhar furioso de Nicholas. Limpo a garganta e peço
licença para sair do cômodo.
Mais tarde, ele me localiza e lança olhares feios em minha
direção até que eu desisto e suspiro.
— Que é?
— Você poderia ser um pouco menos óbvia, por favor? Como se
sentiria se me visse secando outras mulheres?
Presumo que ele seca outras mulheres diariamente. Eu sei que
elas o secam.
— Eu não estava secando ninguém. Não sei do que você está
falando.
Ele revira os olhos.
— Ah, faça-me o favor. Eu nunca vi um ser humano passar tanto
tempo sem piscar.
— Eu estava... observando — digo afetadamente. — Não faça
tempestade em copo d’água. De qualquer forma, ninguém poderia
me culpar se eu de fato estivesse os olhando, o que eu não estava.
Faz uma eternidade desde que eu fui adequadamente tocada por
alguém que desejasse me tocar.
A boca de Nicholas é uma linha fina. Seu olhar é inabalável.
Começo a ficar um pouco apreensiva e quebro o silêncio com outro:
— Que é?
O aceno de cabeça que ele dá é curto.
— Nada.
Nicholas está mentindo. Quando ele diz Nada, o que realmente
quer dizer é preciso de tempo para pensar em algo devastador para
dizer.
Estarei totalmente preparada para ouvir depois que os ajudantes
tiverem ido embora e estivermos do lado de fora de nossa nova
casa, que é na verdade a casa dele, e a qual eu ainda estou
chamando de Desastre.
Estou regando a árvore Charlie Brown porque tenho amor para
dar e nenhum lugar significativo para jogar esse amor. Esta árvore
precisa de mim. É um menino. Vou alimentá-lo e tirar suas folhas
mortas e ele se tornará a melhor e maior árvore do quintal. Ele vai
dar à luz, através de polinização, a cem novas árvores, que vou
adornar com enfeites. Ele será o patriarca e general do meu novo
exército de árvores.
Seu nome é Jason. No momento, ele é minha prioridade número
um na Terra.
Nicholas me observa atentamente enquanto eu faço carinho em
Jason e murmuro afirmações positivas. Ouvi dizer que, de acordo
com a ciência, falar com as plantas ajuda no crescimento delas.
Quando tenho certeza de que Jason está bem cuidado, vou até a
casa. Nem tirei os sapatos ainda quando Nicholas começa a me
atacar.
— Há uma diferença entre ser necessário para uma pessoa e ser
desejado. Em algumas coisas, gosto de ser necessário. Com sexo,
preciso ser desejado. Não posso ser apenas um cara na sua cama
dando conta do recado. Eu não irei ter relações sexuais mortas com
você, apenas pelo ato de fazer. Não com você. Você deveria ser a
pessoa com quem eu me conecto mais profundamente.
— Nós nos conectamos. — Meu deus, essa é a minha voz? Eu
soo tão blé. Minhas habilidades para mentir estão sendo derrotadas
com toda a honestidade brutal que temos praticado nos últimos dias.
— Você parou de me enxergar, Naomi. Parou de me desejar. Um
dia desses você vai descobrir que eu consigo perceber quando você
começa a entrar em estado de dissociação, e é a experiência mais
devastadora pela qual já passei. É ininterrupto. Acontece o tempo
todo. Tento trazê-la de volta para mim toda vez que você vai embora
para dentro da sua própria cabeça, onde eu não tenho permissão de
estar.
— Não sei do que você está falando. — Eu me sinto
profundamente desconfortável, e a intensidade com que ele fala faz
minha pele queimar.
Nicholas continua falando como se eu nunca tivesse o
interrompido.
— Não posso ter intimidades com você quando você entra em
estado de dissociação, porque não posso deixar que isso se torne
nosso novo normal. Mas ficar distante de você como punição por
você estar distante de mim não parece motivá-la a mudar. Portanto,
não sei aonde isso está nos levando. Tudo o que sei é que não é
uma boa ideia atender às suas necessidades físicas se você não
satisfaz as minhas necessidades emocionais.
Não vou nem chegar perto do tópico “necessidades emocionais”.
Cruzo meus braços e corro direto para a defensiva.
— Me motivar a mudar como? O que exatamente você gostaria
que eu mudasse em mim, Nicholas?
Posso ver que ele está se fechando de novo. Claro, agora que ele
disse a parte dele, quer dar meia-volta e fugir, mas eu não vou
deixar.
— Eu só quero que você se preocupe comigo — ele implora,
gesticulando com as duas mãos para o espaço entre nós. — Quero
que me ouça. Quero que você dê alguma mínima para os meus
sentimentos.
A culpa bate à minha porta, uma única batida, antes de eu me
lembrar sobre pelo que estávamos discutindo originalmente: Ele ter
agido pelas minhas costas para comprar uma casa. Ter
discretamente me culpado por ele não ter aceitado uma oferta de
emprego em Madison, presumindo que fosse uma decisão muito
fácil eu desistir do meu emprego aqui em deferência a sua profissão
e objetivos superiores. O fato de ele encher a mãe abominável dele
de presentes enquanto me negligencia; nunca levar o meu trabalho
ou os meus amigos a sério, e não me defender quando seus amigos
e familiares me menosprezam. Este homem que olha nos meus
olhos com tanto tormento agora, que parece tão genuinamente
magoado, por meses tem me impulsionado a deixá-lo.
Ele reformulou o diálogo para me tornar a vilã, e quase tropecei e
caí nessa.
— Dois podem usar essa tática — eu sibilo. — Acha que não há
nada que eu mudaria em você?
Ele hesita.
— O que você mudaria?
— Descubra — eu digo, virando, subindo as escadas e indo para
o quarto situado no lado direito. Deixei a base da cama box para ele
e levei o colchão para o lugar que será meu quarto durante a minha
estadia. — Você tem até vinte e seis de janeiro.
É domingo, o pior dia da semana. Ou costumava ser; agora os
domingos são a oportunidade perfeita para esfregar minhas mãos
uma na outra e ver até que ponto posso irritar os Roses. Domingo é
o novo “dia de fazer aniversário”.
Não é um exagero dizer que meu próximo passo é uma obra-
prima. Verifico o relógio e conto quarenta e cinco minutos até fazer
minha grande revelação. Quarenta e cinco minutos longos e
excruciantes no dia mais lento já registrado. Está ficando difícil me
segurar, especialmente porque não é coincidência que meu
moletom dos Steelers tenha “sumido” durante a mudança.
Não quero que ele espere o que está por vir, então não poupo
meus sorrisos hoje. Faço perguntas educadas para Nicholas, digo
“por favor” e “obrigada” como se eu fosse a personificação de um
presente de grego. Talvez isso tenha saído pela culatra para mim,
porque ele parece mais desconfiado do que nunca e todas as suas
suspeitas o deixaram de mau humor.
— Você ainda está de pijama — ele me diz. Eu verifico o relógio
novamente. Faltam quarenta e três minutos. Se o tempo estivesse
se movendo mais devagar, estaria retrocedendo.
— E daí? Eu tenho tempo.
— E daí que vamos encontrar meus pais no restaurante em
quarenta e cinco minutos.
— Quarenta e três.
— ...E você leva uma hora para se vestir. É uma conta simples,
Naomi.
Eu levo quinze minutos para me vestir, se ainda não tiver
escolhido uma roupa. Levo mais quinze minutos para arrumar o
cabelo, seguidos de quinze minutos para fazer a maquiagem. E
então tenho que levar em consideração outras coisas de última
hora, como ajeitar as sobrancelhas ou cortar as unhas. Trocar de
meia-calça porque a outra desfiou. Procurar um sapato que sumiu.
Ficar pronta me leva uma hora. Ficar pronta envolve mais do que o
simples ato de vestir uma roupa.
Decido ficar ofendida. Já faz um tempo que não faço isso e é
muito divertido, então eu o guio na direção certa para fazê-lo falar
alguma coisa que eu possa interpretar mal.
— Está tudo certo, vou me enfiar em um suéter e calça poucos
minutos antes de partirmos.
— Você não vai demorar uma eternidade para fazer o cabelo e a
maquiagem?
Perfeito. Obrigada, Nicholas, você é tão inocente.
— Você acha que eu preciso de maquiagem, então?
— Não foi isso que eu disse.
— Você está insinuando que eu não pareço apresentável em
público, a menos que esteja totalmente maquiada.
— Não. Eu absolutamente não insinuei isso.
— Suponho que eu deveria levar três horas para deixar o meu
cabelo ondulado também, certo? — Faço minha voz soar trêmula.
Sou vítima de atos horríveis. — Porque eu não sou bonita o
suficiente do jeito que sou? Suponho que você tenha vergonha de
me levar para perto de sua família, a menos que eu esteja em
conformidade com os padrões de beleza impossíveis que a
sociedade estabelece para as mulheres?
Os olhos dele se estreitam.
— Você está certa. Seu cabelo na forma natural é uma vergonha
e seu rosto possui uma beleza tão anti-feminina que, se saísse
assim, eu insistiria para que você caminhasse atrás e a três metros
de distância de mim. Quero que suba agora e se maquie para ficar
irreconhecível. — Ele arqueia as sobrancelhas. — Fiz direitinho?
Essas são as palavras que você gostaria de colocar na minha
boca?
Meu queixo cai. Ele desce o olhar para um jornal e vira a página.
Fez isso para causar um efeito dramático. Eu sei que ele não teve a
chance de terminar de ler o artigo da página em que estava antes.
— Na verdade, eu gostaria de colocar uma maçã na sua boca e
assar você em um espeto — digo.
— Vá em frente e vista um pijama para ir ao jantar, Naomi. Acha
que isso me incomodaria? Você poderia sair fantasiada de Papai
Noel e eu não me importaria.
Agora estou realmente insultada.
— Por que você não se importaria?
Ele ergue os olhos para mim.
— Porque eu te acho linda de qualquer jeito.
Argh. Isso é muito baixo, até mesmo para ele. Me afasto do
mentiroso e vou lavar mais outra remessa de roupas de cama.
Todos os nossos cobertores e travesseiros ficaram sujos no
caminhão de mudanças, então Nicholas passou o dia todo lavando
tudo enquanto eu esfregava o resto da casa com lenços. Não tenho
nada contra Leon e ele vivia de forma limpa, mas sinto que preciso
desinfectá-lo da casa. Os olhos dele estão nas paredes, nos
seguindo aonde quer que vamos.
Verifico a secadora de roupas e, santo deus, este homem vai nos
queimar até virarmos cinzas.
— Você tem que limpar o filtro da máquina! Deixá-lo acumulado
de fiapos desse jeito é um risco de incêndio.
— Você é um risco de incêndio. — Eu perfeitamente o ouço
murmurar baixinho.
— Eu sei que está acostumado a ter uma mulher fazendo todo o
trabalho doméstico para você, mas posso não estar sempre por
perto. Você deveria me ouvir. Estou tentando te educar e o ajudando
a crescer como pessoa.
— Que tal você colocar seu conselho em um panfleto e eu dou
uma olhada nele quando você finalmente for embora? — ele
responde.
Subo as escadas fazendo o barulho mais violento possível. Talvez
eu tenha exagerado um pouco, porque escorrego na borda de um
degrau e me salvo de uma queda ao me agarrar ao corrimão. Eu
olho para baixo, esperando que ele não tenha visto o que
aconteceu, mas é claro que ele viu. Sua risada silenciosa suga um
ano da minha expectativa de vida.
— Você está bem, querida? — ele indaga, doce como algodão
doce.
— Cala a boca. Vá preparar um banho de espuma para sua mãe.
— Você é obcecada pela minha mãe.
Tenho certeza de que traumatizamos a casa. Ela estava
acostumada com o calmo e sigiloso Leon. Provavelmente nunca
teve que lidar com esse nível de mordacidade antes. Hoje em dia
Nicholas e eu somos monstros e eu não gosto de nenhum de nós
dois, mas definitivamente não gosto de quem eu era antes, a Naomi
que mantinha a boca fechada e não falava a verdade, então não
tem mais volta. Nicholas e eu estamos em queda livre.
Resmungo obscenidades dentro do meu closet, puxando o pijama
com estampa do Snoopy e do Woodstock por cima do ombro. Fico
tentada a continuar vestida com ele, mas meus currículos estão
circulando e, conhecendo minha sorte, um gerente de algum lugar
que estou tentando ser contratada me veria. Ninguém vai a uma
churrascaria vestindo pijama com estampa do Snoopy e do
Woodstock, a menos que esteja Passando Por Uma Fase de Merda.
Eu, no entanto, escolho cuidadosamente uma camisa de cor
amarelo forte que me deixa apagada. Prendo meu cabelo em um
rabo de cavalo baixo nada lisonjeiro, penteio a franja para cima
como se eu tivesse sido eletrocutada. Não me preocupo em passar
corretivo sob os olhos. Na verdade, aplico um pouco de sombra de
cor roxo claro no local. Fico parecendo um peregrino com cólera. A
Sra. Rose vai fazer uma festa com a minha aparência, e punirei o
filho dela por isso quando chegarmos em casa. Meus sentimentos já
estão tão feridos que não posso deixar de sorrir para o meu reflexo.
— Se apresse! — Nicholas reclama do lado de fora da minha
porta. Ele mexe na maçaneta, que está trancada, obviamente.
Acabei de voltar ao luxo de ter um quarto só para mim depois de um
ano compartilhando, e ele não está convidado a entrar aqui. — Você
esperou até o último minuto, como eu sabia que faria. É
irresponsável chegar tarde! Vou ter que mandar uma mensagem
para a minha mãe e dizer a ela quais são os nossos pedidos de
bebida, porque você ficou para lá e pra cá o dia todo e não se
preocupou em tomar banho ou vestir roupas apropriadas até que
estivesse quase escuro lá fora!
— Estou basicamente pronta! — eu grito de volta. — Tudo o que
tenho que fazer é calçar os sapatos e… — Preencho o resto da
frase com uma bobagem que digo em um tom baixo.
— E o quê?
— Larga do meu pé! Chegaremos lá quando chegarmos lá.
— Não é assim que a sociedade civil funciona. Que tal você pegar
sua necessaire de maquiagem e passar todas as suas porcarias no
carro? — É adorável como ele assume que estou aqui me
embelezando, em vez de manchando o chão com um pentagrama
feito com meu próprio sangue e lançando feitiços sobre ele.
Eu me viro totalmente para encarar a porta.
— Que tal você ir passar a ferro nas suas meias feito um
completo psicopata? De qualquer forma, vá indo se quiser. Eu te
encontro lá.
Esse sempre foi o objetivo. Quero que ele vá embora sem mim.
— Se formos em carros diferentes, minha mãe e meu pai vão
pensar que há algo de errado.
— Seu pai provavelmente nem sabe em que ano estamos. Sua
mãe ficará grata por ter algo novo sobre o que falar. Ela está
batendo na mesma tecla do “Heather não mandou um cartão de dia
das mães” há séculos.
Ele hesita.
— Tem certeza?
É domingo à noite. A espera por uma mesa será ridícula. Eu
imagino uma fila de pessoas saindo pela porta, cercando o
estabelecimento. Duas delas estarão vestidas com suéteres
combinando, furiosas com o misterioso cancelamento de sua
reserva.
— Pode ir.
Eu vejo o jipe dele se afastar de casa antes de voar escada
abaixo e pegar minhas chaves. Leon disse que me encontraria na
Ferro Velho. Depois disso, tenho quinze minutos para correr até
Beaufort e fazer um papelão. Nicholas é um soldado bom demais
para se curvar ao meu plano A e desistir do próprio. Ele não se
submeterá a menos que o comandante dele imponha a ordem. Até
agora, sempre que eu alfinetava Deborah, era com o propósito de
irritar Nicholas. Eu sabia que ela reclamaria com ele sobre mim em
particular. Ficar se lamentando para ele simplesmente não vai ser
suficiente. Felizmente, posso ficar muito pior! Vou me tornar tão
obviamente inadequada para se ter por perto que a Sra. Rose vai
ameaçar tirar o nome de Nicholas do testamento se ele não
cancelar o casamento.
Minha estratégia é um lindo bolo de sete andares. Não preciso
cancelar o casamento, nem meu amado noivo. Vamos fazer com
que os pais dele façam nosso trabalho sujo para nós: plano D. Estou
casualmente colocando fogo em tudo e é incrível.

O Plano D é a coisa mais estúpida que já fiz, o que só percebo a


meio caminho de Beaufort. Em todas as minhas maquinações,
contente pela atração visual que sou eu chegando para o jantar
neste carro Frankenstein, falhei em lembrar que meu novo condutor
é um carro com câmbio manual.
Tive de fingir estar segura sobre isso para Leon, porque a essa
altura ele já estava com as chaves do meu Saturn e entusiasmado
com a troca. (“Tem certeza? Seu carro está em um estado muito
melhor do que o meu. Por que você o quer? Tem certeza?”) Na
minha cabeça era assim: Nicholas comprou a casa de Leon sem me
consultar, então eu fui lá e comprei o carro de Leon sem consultá-lo.
Eu surpreenderia o Sr. e a Sra. Rose, que são tão esnobes quando
o assunto é carros que fazem o jardineiro estacionar a picape
enferrujada dele na garagem para escondê-la dos vizinhos.
Eles verão o jipe de Nicholas e saberão que há algo de errado
com o cérebro dele. Quando virem meu carro, vão acreditar que
tudo que há de errado com o cérebro dele sou eu. Sou uma zé-
ninguém de classe baixa que não tem vergonha nenhuma e não
merece o filho deles. Sou uma mulher louca e vou rebaixá-lo ao meu
nível. Nenhum clube privado em Wisconsin aceitará o precioso filho
deles quando virem a que tipo de esposa ele está acorrentado.
Eu prestei atenção na mini aula de Leon, mas embora ele tenha
me dito que eu precisava tirar o pé da embreagem e acionar o
acelerador ao mesmo tempo, quando tentei dar a partida pela
primeira vez, não tirei o pé da embreagem rápido o suficiente e o
carro disparou para frente, derrubando uma lixeira no
estacionamento da Ferro Velho.
O mau começo me deixou atordoada, admito. Enquanto dirijo
desajeitadamente pela estrada, em um carro que ainda cheira a
uma floresta de pinheiros, apertando o volante e a alavanca de
marcha, meu nervosismo começa a se chocar com a onda de
endorfina que me atinge quando visualizo o rosto de Deborah
enquanto faço barulho para parar essa monstruosidade em uma
vaga de estacionamento.
Começo a pensar que cometi um grave erro de julgamento aqui.
Tenho certeza de que cometi quando chego fazendo uma
barulheira e em solavancos em Beaufort e o carro morre em um
semáforo. Esqueci de manter a embreagem pressionada ou de
colocar o veículo em ponto morto enquanto freava. Ou algo assim.
Não consigo mais me lembrar das instruções de Leon porque há
uma fila de vinte carros parados atrás de mim e o sinal está verde,
mas meu veículo está me estrangulando como se eu o devesse
dinheiro. Piso no freio e coloco o carro em ponto morto de novo,
mas estou estressada e meu outro pé pisa no acelerador. Está tudo
indo mal. Pânico se apodera de mim. É lutar ou correr.
Abandono o carro no cruzamento, deixando a porta escancarada.
As pessoas estão buzinando. Alguém abaixa a janela e grita. Quero
voltar e fechar a porta, mas a adrenalina está queimando minhas
veias e não posso voltar lá; pelo tempo que eu viver, nunca vou
voltar para aquele carro, ou para Morris, e tudo que sei fazer agora
é correr. Direto para uma vala e depois para o outro lado, em
direção ao estacionamento de uma Kmart fechada, estou correndo e
correndo, meu sistema nervoso está em chamas. Vou continuar
correndo até chegar na Califórnia. Vou mudar meu nome e começar
uma nova vida.
Esta é a perspectiva mais alegre que já tive em anos.
Só paro para recuperar o fôlego quando estou do outro lado da
Kmart, o ar de novembro se solidifica em cubos de gelo em meus
pulmões. Fico tão grata pelo estabelecimento grande e vazio me
protegendo de todos os meus problemas. Um dos motoristas que
buzinou para mim está, sem dúvida, ao telefone com um atendente
do 190. Dez testemunhas descreverão entusiasticamente a
situação para um policial que Não Tem Tempo Para Essa Merda, e
todos no local irão deduzir que estou chapada de sais de banho.
Eles vão chamar um caminhão de reboque enquanto um policial me
perseguirá com uma pistola de choque.
Frankenscarro ainda está registrado no nome do pobre e bem-
intencionado Leon e ele vai assumir a responsabilidade por mim. Eu
tenho que voltar. Eu nunca vou voltar.
Minhas coxas estão frias e esfoladas, então o zumbido em meu
bolso só chama minha atenção quando toca pela quarta vez. É
Nicholas, claro.

Você está MUITO atrasada. Onde você está??

Estou fora de seu alcance, Dr. Rose. Estou na terra de ninguém.


Boa sorte tentando me encontrar aqui, atrás da carcaça decadente
de um hipermercado.
É isso que sinto vontade de responder. Mas, de acordo com meu
celular, está fazendo onze graus, com sensação térmica de oito, e
não nasci para ser alguém que faz exercícios constantes. Estou tão
fora de forma que ainda ofego, meus sonhos de chegar na Califórnia
se dissolvem no vento. Vou ser esfaqueada aqui. Estou tão feliz por
estar usando roupas apropriadas em vez de pijama.
Me salve, é o que respondo no lugar. É o que lamento em voz alta
também.

Do quê?

De você. Da sua mãe. De congelar aqui.


Tiro uma foto do estacionamento e mando para ele.

O carro quebrou. Estou presa aqui.

Ele liga para mim e me corta no meio da frase que estou


digitando: Tenho jujubas no bolso do casaco. Vou deixar um rastro
com elas, que nem em João e...
— Naomi? — Ele parece estar com medo. — A que distância da
cidade você está? O que aconteceu?
— Esse carro é uma porcaria! — eu exclamo. — Ele tentou me
matar.
— Eu te disse um milhão de anos atrás para trocar o óleo e você
disse que não era da minha conta. — Em sua mente, ele está
rodopiando em um campo de “Eu te avisei”. Essa é a ideia de
paraíso dele.
— Não esse carro. Eu o troquei pela lata velha do Leon. É um
veículo com câmbio manual, Nicholas. Eu não sei dirigir um carro
com um maldito câmbio manual! Coisas ruins aconteceram e eu o
deixei no meio da rua. Agora estou em um estacionamento da
Kmart. — Chuto uma pedra e olho de soslaio para o edifício cinza,
depois para vários outros estabelecimentos escuros com
estacionamentos vazios ao longo da mesma faixa. Estou em um
cemitério de lojas. — Talvez seja uma Toys R Us.
— Jesus Cristo. — Consigo ouvir carros passando do outro lado
da linha. Ele está na calçada.
— Não me deixe morrer aqui. Quero estar em um lugar quente
quando eu for embora.
— Sim, é melhor você se familiarizar com as temperaturas mais
quentes. Vai fazer muito mais calor quando você chegar ao seu
destino final. — Estou prestes a chorar. — Você precisa me dizer
exatamente onde está.
Aperto minhas mãos. Nicholas está ao celular, o que o faz parecer
estar próximo de mim, então não há problema em surtar agora. Ele
vai permanecer calmo, não importa o que aconteça. Sempre fomos
equilibrados assim: quando um de nós perde o controle, o outro não.
Quem não é o primeiro a surtar não tem outra escolha a não ser
manter a calma.
— No primeiro semáforo da entrada da cidade. Eu corri por uma,
hã, por uma vala. Digo, não no carro. Vim a pé.
— Por que você deixou seu carro?
— Eu não sei! Tudo aconteceu tão rápido. Me dê tempo para
pensar em uma desculpa melhor.
— Estou indo para lá. Volte para o carro.
Não volto para o carro, mas saio na ponta dos pés de trás do
estabelecimento e fico na beira da estrada. Há luzes piscando – um
policial e um caminhão de reboque. Oh, senhor, eu vou para a
cadeia.
Alguém me vê e aponta, e meu instinto é me agachar. Não há
nada para eu me esconder por trás, então me agacho sem motivo
algum. Esqueça a prisão. Vou ser colocada em uma cela
acolchoada de um hospital psiquiátrico.
Por força do hábito, vasculho a estrada em busca de um lampejo
do Maserati dourado, então, quando Nicholas sai de um jipe,
demoro um segundo para me recalibrar.
— Nicholas! — eu digo em um sussurro alto. Não adianta. Sou
sufocada pelo tumulto de carros passando. Aceno com os braços
feito um controlador de tráfego aéreo. Ele não me vê, caminha direto
para o coração do caos a fim de assumir o controle da situação.
Ele verifica o veículo abandonado e balança a cabeça para si
mesmo, pegando minha bolsa do banco do passageiro antes de
fechar a porta do lado do motorista. Caramba, deixei minha bolsa lá.
Homens uniformizados vão até ele. Eu escondo meu rosto por
trás das mãos a uma distância segura, não querendo ouvir o que
com certeza será uma história humilhante da minha fuga depois de
parar o carro. Alguém acena em minha direção e Nicholas se vira
para me encarar. Mesmo de tão longe, percebo o brilho estranho em
seus olhos e leio a mente dele como se o pensamento estivesse
digitado em um balão sobre sua cabeça.

Ora, ora, ora. Como se sente sobre as nossas escolhas agora,


Naomi?

Nada bem, é como me sinto. Mas pelo menos estou do lado com
menos policiais da estrada.
Ele diz algo para o oficial, que olha para mim também. Identidade
confirmada. Vou sair daqui algemada, o que irá perfeitamente
cumprir meu objetivo de fazer a Sra. Rose me catapultar para fora
da árvore genealógica.
Nicholas liga para alguém do próprio celular e conversa por um
minuto antes de passar o aparelho para o policial. Eles conversam
por um minuto também; durante esse tempo, Nicholas fica apenas
olhando e olhando para mim, e não há onde me esconder dele. Ele
é o meu único aliado. Ele é o meu pior inimigo.
Ele atravessa a rua bem na minha direção, usando o casaco que
chamo de “casaco do Sherlock Holmes”. Foi caro e o melhor
presente que já dei para ele. Ele o usa desde que o outono começa
até o final da primavera, com um cachecol enrolado na gola larga. O
fato de ele ainda não ter queimado a peça de roupa e dançado em
torno das cinzas parece agressivamente gentil ao meu atual estado
de espírito.
Seu rosto não está sombrio ou presunçoso, mas sim neutro,
exceto pela pequena ruga entre as sobrancelhas. Ruga de
preocupação.
— O que aconteceu? — ele pergunta quando se aproxima.
Eu sacudo a cabeça. Não posso falar sobre isso. Já estou
fingindo que nunca aconteceu.
— Eu vou para a cadeia?
— Não. — Ele olha para minha bolsa em suas mãos. — Você
precisa pegar alguma coisa no carro?
— Não.
Dá pra ver que ele quer fazer mais perguntas. Nicholas me lança
um olhar longo e perscrutador, depois tira o casaco e o coloca sobre
meus ombros. Seus dedos brincam com o botão superior, como se
fosse fechá-lo, mas ele deixa a mão cair.
Ele me guia para o jipe sem dizer mais nada. Aumento a
velocidade dos meus passos quando passamos pelo carro da
polícia e pelo caminhão de reboque, meio que esperando alguém
estender a mão e me agarrar. Depois de dar uma espiada paranóica
por cima do ombro pela enésima vez, Nicholas dá um sorriso
pretensioso.
— Relaxa.
Essa única palavra destranca a fechadura da minha habilidade de
formar um discurso coerente.
— Leon está encrencado? Eu não transferi o título para o meu
nome ainda. O que vai acontecer com o carro? Não está quebrado
de verdade.
— Claro que não. Se estivesse quebrado, você simplesmente
consertaria — diz ele, me lançando um olhar malicioso de canto de
olho.
— Af.
— Ou talvez não. Você não iria querer que o Dave, da Morris
Auto, sentisse sua falta. — Ele observa meu rosto aflito e se vira
para que eu não veja seu sorriso, mas ainda ouço o gesto em sua
voz. — Quando Dave extraiu o siso, a primeira coisa que ele disse
ao sair do efeito da anestesia foi “Não conte ao dentista sobre o
carro da Naomi”. — Ele faz uma pausa para deixar claro que eu fui
enganada, e minha decepção ameaça me encolher e me
transformar em uma Naomi de bolso. Dave vai ouvir poucas e boas
de mim na próxima vez que eu receber um email de Avalie o nosso
serviço! da Morris Auto. — Enfim, uma empresa de reboque vai
levar o carro para nossa casa. Eu poderia dirigi-lo sozinho e te
deixar ir com o jipe, mas você parece um pouco em estado de
choque.
Minha boca está seca.
— É um carro com câmbio manual.
— Eu sei. Eu sei dirigir carros com câmbio manual.
O mundo se inclina.
— Quê? Tá falando sério?
— Aham. — Seu divertimento é leve, mas está presente.
Deslizo para o banco do passageiro e tranco minha porta para
impedir a entrada de qualquer policial que possa mudar de ideia no
último minuto.
— Sinto falta de assentos aquecidos.
— Achei que você odiasse o Maserati.
— Eu odeio. Odiava. Mas amava os assentos aquecidos. Era
como...
— Sentar no colo do diabo — ele diz antes que eu possa concluir,
deslizando um braço por trás do meu encosto de cabeça, enquanto
se vira para verificar a parte traseira do carro, e se afasta. Ele está
tão perto de mim que posso sentir o cheiro de sua loção pós-barba,
e meu coração se aperta com uma emoção que parece ser saudade
de casa. Não é a mesma loção pós-barba que ele tem usado
ultimamente. É uma da Stetson, que dei a ele como presente de
Natal. Embrulhado em papel laminado dourado que ele guardou por
tanto tempo, que ainda posso ouvir o barulho.
Eu amei, ele disse com um grande sorriso. O cheiro de Stetson
ficará para sempre ligado diretamente à memória daquele sorriso, e
à adoração que eu sentia por ele. E se a pessoa com quem eu
namorar no futuro usar Stetson e eu tiver que pensar em Nicholas e
em seu sorriso toda vez que olhar para o rosto de outro homem? Ele
invadiu tantos aspectos da minha vida, que não há como me livrar
dele.
Mais tarde, depois que ele abriu o presente, vi o tipo de produtos
de higiene que ele guardava no armário de remédios e corei ao ver
o quão bonitos e caros eram. O preço do perfume dele tornou meu
presente uma vergonha. Mas desde esse momento, ele passou a
usar o Stetson todos os dias, mesmo quando o sorriso dele
desapareceu e nosso relacionamento transitou de Antes para o
Depois. Ele usou o produto até a última gota e não jogou o frasco
fora.
— Você conseguiu terminar de comer? — pergunto timidamente.
— Nós literalmente tínhamos acabado de sentar quando eu
mandei a mensagem perguntando onde você estava. Eles perderam
a nossa reserva e minha mãe virou uma fera. Fez o gerente chorar.
Eu consigo imaginar. Deborah Rose nunca saiu de nenhum
estabelecimento sem antes se apresentar ao gerente.
— O que você disse à sua mãe?
— Que você estava tendo problemas com o carro e eu precisava
ir te buscar.
Essa não. Balanço minha cabeça de um lado para o outro.
— Não quero ir para o restaurante. Por favor, não me faça ir.
Estou com dor de cabeça. Estou com cólica. E coágulos
sanguíneos. Do tamanho de bolas de golfe. — Começo a listar mais
doenças, mas ele dá um tapinha no meu joelho.
— Tudo bem.
Eu me endireito no assento.
— Sério?
— Sim, eu também não quero voltar para lá. Meu pai nos deixou
para ir sentar ao balcão do bar porque não podia esperar por uma
mesa. E minha mãe... — Ele se ajeita. Um olhar sombrio surge em
sua expressão. — É melhor vocês duas não ficarem no mesmo
lugar esta noite. Ela teve tempo demais para ruminar
obsessivamente aquele comentário que você fez sobre nunca ter
filhos.
O fato de ter atingido um ponto fraco dela me deixa toda alegre e
entusiasmada por dentro. De qualquer forma, eu não me arrependo
do que disse. O DNA de Nicholas e o meu são incompatíveis para
procriação. A Mãe Natureza nunca permitiria isso.
Eu respondo com um evasivo:
— Hm.
Ele lança outro olhar para mim. É fugaz e o carro está tão escuro
que não tenho certeza, mas acho que ele está um pouco triste. A
ideia faz minha pele coçar.
— Nunca conversamos sobre ter filhos — diz ele por fim. — Isso
é provavelmente algo que deveríamos ter feito antes de ficarmos
noivos.
— Na época em que ficamos noivos, apenas um de nós estava
preparado para o pedido, então você vai levar a culpa por isso.
Ele sopra uma risada.
— Isso é justo, eu acho.
Não quero falar sobre isso. Só vai nos deixar mais tristes, porque
de jeito nenhum vamos ter filhos juntos. Gravidez para mim a esta
altura do campeonato indicaria concepção divina.
— Eu não sabia que você sabia dirigir carros com câmbio manual.
— Eu já tinha te contado isso. Você provavelmente simplesmente
não estava escutando.
Também não quero uma palestrinha. Você Nunca Está Escutando
é o título de uma história sobre meus muitos defeitos e falhas. Não
há terreno seguro nesse assunto.
Tento outra vez.
— É ótimo estar fugindo do jantar de domingo, não vou mentir.
Ele quase sorri. Posso ver o gesto tremendo nos cantos de sua
boca.
— É uma pena não termos mostrado aos meus pais o seu carro
novo.
— Você odiaria que isso acontecesse.
— Eu gravaria a reação deles no meu celular. Sacanear com a
cara deles pode ser divertido, Naomi, se eu também fizer parte da
brincadeira. Você esquece que eu sei melhor do que ninguém o que
é ser sufocado por Deborah Rose.
Eu estudo seu perfil. Ele mantém os olhos na estrada, mas deve
estar ciente do peso do meu olhar.
— Você sacanearia com a cara deles?
— Claro. Eles merecem. Digo, eles são meus pais e eu os amo.
Sou grato a eles por muitas coisas, mas também são uns grandes
pés no saco. Quando eu te pedi em casamento, eu meio que...
Seus lábios se apertam.
— O quê? — Eu invisto em uma resposta.
Nicholas engole em seco.
— Eu meio que tinha esperanças de que fôssemos ser tipo
parceiros de crime, mais ou menos. Quando minha mãe tentasse
cravar as garras dela em mim e eu não conseguisse fugir sozinho,
você iria me proteger. Nós dois, uma equipe.
— Eu queria isso também — digo baixinho. No pretérito. — Eu
não sabia que você queria isso. Há muito tempo tenho me sentido
em segundo lugar.
— Eu nunca quis que você se sentisse assim. Mas... você não
deu um passo à frente. Não se tornou minha parceira. Você deixou
eu me defender sozinho.
— Sim, tipo quando sua mãe insulta abertamente tudo sobre mim
e você não diz nada — digo irritada. — Aquele som que ela faz
quando digo sim para a sobremesa. Tsc-tsc. Olhando para mim com
desprezo por causa do local onde trabalho e pelo fato de que só
tenho o diploma do ensino médio. E um milhão de outras coisas.
Olho miseravelmente para fora da minha janela, mas tudo que
vejo é o reflexo de Nicholas, esticado e arredondado. As luzes de
Beaufort estão bem atrás de nós e agora estamos viajando por uma
extensão escura de nada que nos levará a Morris.
Falar gradualmente fez meu corpo relaxar. Os efeitos da brisa de
ter dado uma de Ricky Bobby fugindo de um incêndio inexistente me
deixou com uma dor de cabeça a qual não estou inventando desta
vez.
— Minha mãe é difícil — diz ele. — É complicado enfrentá-la; ela
deixa meus nervos à flor da pele desde a infância. Não sei fazer isso
sozinho.
Eu sinto dó ele, realmente sinto, então faço uma carícia com meu
polegar nas costas de sua mão. Apenas uma vez.
— Eu sei que deve ser difícil tê-la como mãe às vezes. Ela coloca
todas as suas namoradas para correr e depois pega no seu pé por
não estar casado e com cinco filhos. Você não está sozinho nessa
também. Imagine ser a pobre nora que precisará fornecer essas
cinco crianças.
Os faróis de um carro que passa iluminam o sorriso de Nicholas.
Outro carro vindo logo atrás passa também, e então o sorriso dele
desaparece. Eu sei que ele está se perguntando se algum dia serei
a nora de Deborah. Eu teria que ser louca para entrar
voluntariamente nesse circo, e ele sabe disso. Se isso der errado
como nós dois previmos, ele precisará de uma noiva por
conveniência. Sou a única mulher no país burra o suficiente para
tentar a sorte com a prole de Deborah.
Minha mente continua voltando ao incidente no semáforo. Eu me
vejo pelos olhos de Nicholas, de pé do outro lado da rua, com as
mãos no rosto. Joelhos dobrados. Uma rainha da encrenca. Eu ouço
o que ele vai dizer durante nossa próxima discussão tão claramente,
é como se já tivesse acontecido.
Você dá tiros no próprio pé. Se livrou de um carro decente, de
bom grado, e agora tem que dirigir por aí neste pedaço de lixo que
você não sabe como manusear. Você é tão contraditória que
tentaria colher mel usando abelhas. Uau, você com certeza me
pegou de jeito.
O verdadeiro Nicholas não disse nada disso. Mas o Nicholas
imaginário é uma fusão de previsões realistas baseadas em coisas
insensíveis que ele me disse no passado, então eu facilmente
consigo ouvir a voz dele moldando essas palavras. Não é justo ficar
magoada ou com raiva por algo que ele sequer disse,
especialmente porque as palavras que coloquei na minha cabeça
são todas verdadeiras, mas saber que ele poderia dizer isso – e
provavelmente vai – é o suficiente para me fazer afundar em um
silêncio obscuro do qual não saio pelo resto da viagem para casa.
Como nenhum de nós dois jantou, vamos direto para a geladeira
quando chegamos em casa. Ou alguma versão de casa. Ainda
estou vendo-a como a casa de Leon, só que com nossas coisas
dentro.
As prateleiras vazias da nossa geladeira piscam para nós.
Eu e ele corremos para culpar um ao outro.
— Você não foi ao mercado? — ele pergunta, como era de se
esperar.
— Você se esqueceu de ir ao mercado — eu digo ao mesmo
tempo, como se já tivéssemos decidido que ele iria ao mercado e
esqueceu de ir.
Então franzimos a testa um para o outro. Nossos métodos não
são mais secretos. Nossos radares que conseguem rastrear papos
furados se aperfeiçoaram.
Ele verifica o relógio do microondas.
— Ainda dá tempo de você correr até o posto de gasolina para
comprar pizza congelada. — Ele me entrega as chaves de seu
carro.
— Estou com fome. — Devolvo as chaves. — Quando você sair
para comprar burritos para nós, quero de frango e queijo, não carne
e queijo.
Iniciamos um jogo de encarar acirrado. Estou lhe fazendo um
grande favor ao ficar aqui com ele, nesta casa que provavelmente é
assombrada, salvando-o de jantares miseráveis com a mãe dele,
nos quais ela critica todos os funcionários do restaurante da maneira
mais devastadoramente individual possível.
— Vá comprar os burritos e serei legal com você para sempre —
digo.
— Vá comprar sozinha e eu vou ser legal com você para sempre.
Não vale a pena.
— Não.
— Você não quer ver como é dirigir o jipe? Irá gostar mais dele do
que do Saturn. — Seus lábios se curvam. — E muito, muito mais do
que… hã... por que tipo de carro você o trocou?
— É um monstro, e eu o amo como se fosse meu filho. Além
disso, não posso ir a lugar nenhum porque ainda estou em estado
de choque.
Não estou em estado de choque, porque ficar bem longe de
Deborah me revitalizou. Ele sabe disso.
— Beleza. — Ele cede, fazendo outra inspeção em nossa
geladeira. — Vou fazer algo para mim, então.
— Eu também. — Abro os armários e espero em deus que haja
um banquete de Dia de Ação de Graças inteiro lá. — Só para mim.
Ele pega farinha de rosca e ovos. Já vi esse ritual antes: ele vai
fazer palitos de muçarela. Parece uma ideia incrível.
Meu primeiro pensamento é fazer espaguete. Ele não gosta do
meu espaguete? Então vou cozinhar o suficiente para um banquete
e fazê-los transbordar de todas as vasilhas Tupperware que temos.
Nicholas me observa pegar um pacote de macarrão do tipo
espaguete.
— Vejo que ainda está brava com a história do espaguete.
— Não estou brava. — Apenas guardarei isso comigo para
sempre.
— Claro, claro. — Ele sorri, porque a ideia de me deixar puta com
sucesso o deixa tão alegre quanto vou me sentir quando ele
perceber que comi todo o queijo muçarela.
Procuro por um grande pote de molho de tomate e não encontro
nada. O que encontro são sobras de molho marinara da Benigno's,
dentro de uma vasilha de marmita, e bastante ketchup, então digo
“que inferno” e jogo tudo em uma panela. Descubro que o pacote de
espaguete contém apenas quatro macarrões, então preciso
complementar com pacotes pela metade de macarrão fettuccine
sem glúten e farfalle de arroz integral orgânico. Eu os coloco para
ferver e sinto vontade de morar com alguém menos preocupado
com nutrição quando se trata de carboidratos.
— O que você está preparando? — ele pergunta rindo.
— Farfaccine.
— Isso não existe.
— É a minha comida favorita de todas. Falo sobre ela o tempo
todo; não é culpa minha que você não presta atenção.
Ele revira os olhos e se vira para remexer na geladeira. Meu
corpo se enrola como um boneco de molas dentro daquelas caixas
surpresa, esperando. Finalmente:
— Você viu a muçarela?
— Não.
Seu olhar cai sobre a lata de lixo. Ele abre a tampa e vê as
embalagens amassadas de palitos de muçarela. Pega no flagra.
— Maldito Leon — eu digo. — Aposto que ele ficou com uma
chave reserva e entrou aqui escondido na noite passada. Devíamos
trocar as fechaduras.
Nicholas me encara e despeja o pão empanado na minha panela.
— Ei!
— Vai ficar uma porcaria, de qualquer maneira.
— Não vai, não.
— Seu macarrão está cozido além do ponto. E você esqueceu de
mexer.
— Carambolas. — Apresso-me para escoar a água. Há pedaços
presos no fundo da panela. Qualquer coisa sem glúten já é horrível.
Ferver só piora. Enquanto remexo a massa, o combo molho
marinara e ketchup começa a espirrar. Corro de volta para a outra
panela, mexo e acrescento um pouco de tempero. Sou uma Alex
Guarnaschelli autêntica.
— Escolha interessante.
— Hã?
Nicholas dá um tapinha em um dos frascos de especiarias que
acabei de usar. Canela.
— Ah. Sim. — Fico ereta. — É o ingrediente secreto.
Nicholas ainda está procurando um substituto para a muçarela.
Não vai adiantar. Não temos nada. Ele desiste e olha meu macarrão
com resignação.
— Farfaccine, hein?
— Um prato italiano tradicional passado de avó para avó. —
Cheira a esgoto não tratado.
— Talvez se ficasse mais cremoso? — ele diz prestativamente. —
Parece um pouco seco.
Não temos leite, então fazemos algo duvidoso e jogamos meia
xícara de creme para café na panela. Realmente fica com uma
aparência melhor depois, mesmo que o cheiro ruim se intensifique.
Nicholas fica atrevido e acrescenta uma pitada de sal rosa do
Himalaia.
Nossos estômagos roncam. Colocamos a gororoba em nossas
tigelas e a cutucamos com garfos para ter certeza de que não está
mais viva. Há tantas texturas estranhas em jogo. Nosso baixo
suprimento de alimentos reflete nosso descuido, e o único lugar em
Morris que faz entregas está fechado. Fico chocada com um
pensamento: pode ser que a Benigno's não faça entregas aqui.
Acho que a política deles é fazer entregas dentro dos limites da
cidade.
Morris é uma merda. Nicholas deveria ter aceitado aquele
trabalho em Madison.
Damos uma garfada quando contamos até três. Sinto vontade de
cuspir a minha, mas ele corajosamente mastiga a dele, então eu me
forço a fazer o mesmo.
Nicholas dá outra garfada.
— Esta é a pior coisa que já esteve na minha boca.
Nicholas acha que balinhas ácidas são alta gastronomia, então
ele não pode julgar o farfaccine.
— A couve-flor que você cobriu com molho para asinhas e me
disse que era uma asinha de frango — digo. — Essa é a pior coisa
que já esteve na minha boca.
— A próxima coisa vai ser uma broca odontológica, com todas as
barras de chocolate de manteiga de amendoim que você come.
Armazenando-as na bochecha como um esquilo e deixando-as
corroer lentamente seus molares. Você vai estar de dentadura antes
de chegar aos quarenta.
— Você estará na mesma, meu chapa. Você e suas balinhas
Skittles. — Não acredito que ainda estamos comendo. Vamos
acabar no pronto-socorro. — Minha língua está dormente. Isso é
normal?
— Consigo sentir o gosto disso em minhas cavidades nasais. O
gosto. Não o cheiro.
Pego uma lata de La Croix e dividimos. O gosto combina
horrivelmente, então é a escolha certa.
— Devíamos marcar o dia de hoje no calendário e comemorá-lo
comendo essa farsa todos os anos — observa ele.
— Vou copiar a receita. Canela, farinha de rosca com ovo. Deus,
nós realmente usamos creme de café?
— Somos artistas. Ninguém entende. — Ele lambe o molho, há
um anel vermelho em volta da boca.
Ouço o barulho de cascalho e damos uma espreitada na sala de
estar. O motorista do caminhão de reboque está aqui. Ele deve ter
tido problemas para encontrar a entrada da nossa rua, porque
estamos esperando por ele há quase uma hora. Tenho que correr
escada acima e me esconder se quiser preservar minha ilusão de
que aquilo nunca aconteceu.
— Até mais — digo, e desapareço.
— Covarde! — ele grita para mim.

Na segunda-feira de manhã, Nicholas me encontra na cozinha,


esquentando o farfaccine no micro-ondas. Ele cai contra o batente
da porta, rindo, endireitando os punhos das mangas da camisa. Está
indo trabalhar. Hoje, a Ferro Velho só ficará aberta do meio-dia às
três, e Brandy e eu somos as únicas na escala. Ela mandou uma
mensagem esta manhã para dizer que Melissa está indo embora, e
eu sinto como se fôssemos as crianças da fábrica do Willy Wonka,
sumindo uma de cada vez a torto e à direita.
— Você está comendo uma tigela de intoxicação alimentar,
Naomi.
— Estou com fome. Não julgue.
Ele pega uma tigela para si mesmo e tira uma bola congelada do
recipiente. O microondas apita, mas eu avanço e pressiono mais
três segundos no cronômetro. Quando apita novamente, pressiono
mais três segundos. Nicholas fica lá parado e me deixa continuar
com isso mais duas vezes antes de me empurrar para fora do
caminho com o quadril.
— Nós realmente precisamos ir ao mercado — eu o informo. —
Não há nada aqui para o jantar.
— Provavelmente irei jantar na casa da minha mãe e do meu pai
esta noite. — Ele admira o próprio reflexo na porta brilhante do forno
e alisa o cabelo. — Você não precisa ir.
Isso nunca foi opcional para mim antes.
Tento não ficar mal-humorada.
— Tudo bem, então.
— Achei que era isso que você iria querer.
— Jantar sozinha? Aqui, completamente sozinha? Claro, isso é
um sonho.
— Você não quer ir para a casa dos meus pais — ele salienta,
inexpressivo.
— Não, não quero. Mas acho que você deveria tentar ficar três
dias sem passar lá.
— Você sabe como minha mãe fica. Especialmente desde que
furamos com ela ontem à noite. Quero agradar a todos, mas não
posso, e aos olhos de alguém estou sempre sendo insuficiente. Não
me coloque nesta posição em que tenho que escolher.
Nunca o faço escolher, mas ele sempre escolhe, de qualquer
maneira, o que me coloca em uma posição em que sou forçada a
ser rabugenta. Pressiono o botão de desligar do micro-ondas para
abrir a porta trinta segundos antes de a comida dele estar pronta,
então vou embora.
— Que simpático.
Subo correndo para o meu quarto para não ter que me despedir
dele quando ele for embora, pensando no que vou fazer da minha
vida. Verifico meu celular em busca de chamadas perdidas de
empregadores em potencial, mas não tenho notificações porque
ninguém me ama e sou um fracasso. Sequer tenho emails de spam.
Percorro o Instagram por cinco minutos e depois tenho que
desligar meu celular porque a vida de todo mundo é incrível e a
minha é um buraco negro. Tenho um total de zero ofertas de
emprego e um noivo em excesso. Tenho um noivo detestável em
abundância. Como vou me livrar dele? Não posso me casar com
esse filhinho da mamãe.
Cada vez que imagino o casamento, fico com urticária. Deborah
vai querer sair em nossa lua de mel conosco, e vai trocar minhas
pílulas anticoncepcionais por placebos. Quando o bebê Nicholas
Deborah Jr. nascer, entrarei em casa um dia e encontrarei todos os
pertences dela enfiados no quarto do lado direito. Eu vim para ficar
com você, ela me ameaçará com um sorriso aterrorizante, a cabeça
girando totalmente. Para sempre!
Estou colocando um pino no plano D e retomando as forças
perdidas do plano A. Posso fazer isso. Posso convencer Nicholas a
desistir sem envolver a mãe dele. Nunca mais quero vê-la
novamente. Penso em mim jantando sozinha essa noite nesta casa
vazia enquanto Nicholas engole uma refeição de três pratos
preparada pela “mulher”, Deborah acariciando seu cabelo e dizendo
que ele é especial. Não tenho dúvidas de que em algum momento
da adolescência dele ela o submeteu a uma dança pública de mãe e
filho.
Você não pode escolher seus pais ou avós, mas pode escolher os
pais e avós de seus filhos. Ainda não tenho filhos, mas acho que dar
a eles Deborah como avó é desrespeitar algum tipo de teste de
moralidade. É particularmente importante que meus filhos tenham
parentes doces e atenciosos de um lado do altar, porque eles não
terão nenhum do meu. Meus pais são tão distantes e retraídos
quanto Deborah é sufocante e onipresente, e não expressaram
muito interesse nos desenvolvimentos da minha vida além de
“Casamentos não deveriam ser na primavera?”. Eles nem mesmo
apareceram quando eu estava sendo arrastada para dentro e para
fora de lojas de noivas com Deborah e suas quatro amigas mais
próximas, o que deveria ser uma importante experiência de mãe e
filha. Ingenuamente, eu esperava ter um relacionamento próximo
com a família de Nicholas, para me dar aquele sentimento de
pertença caloroso, solidário e fundamentado que há muito perdi.
Tenho tanto amor não utilizado dentro de mim, e nenhum lugar para
direcioná-lo.
Gosto do Nicholas que larga tudo e foge quando estou surtando
na beira da estrada. Aquele que enrola seu casaco em volta dos
meus ombros e come uma tigela de intoxicação alimentar comigo.
Mas não posso ficar esperando esse Nicholas aparecer uma vez ou
outra, deixando-me uma versão diferente dele para lidar
regularmente: o homem que me abandona de várias maneiras para
apaziguar a mãe exigente.
Esse é o Nicholas em que preciso concentrar minha energia. Não
posso me deixar esquecer.

É doze de novembro e tenho que reconhecer que Nicholas está


melhorando o jogo dele. Tenho um novo documento no meu
computador em que registro nossa pontuação. Às vezes me pego
considerando isso de maneira muito objetiva e, desse ponto de
vista, somos crianças imaturas que precisam resmungar desculpas
forçadas um ao outro e dar um aperto de mãos. Nem é preciso dizer
que tento ser o menos objetiva possível.
A semana passada ficou assim:

Ponto para Naomi: aniversário com tema de piratas, KKKKK


Ponto para Nicholas: foto no Instagram
Ponto para Naomi: Brownie
Ponto para Nicholas: Brownie
Ponto para Naomi: pasta de dente
Ponto para Nicholas: sapatos
Ponto para Naomi: sapatos
Ponto para Nicholas: roupa íntima

Se você parar para pensar, é tudo culpa de Deborah.


Depois que Nicholas me abandonou para ter uma Noite de
Diversão em Família na casa dos queridos Sr. e Sra. Rose, ele
trouxe para casa um feio conjunto de saleiro e pimenteiro que
Deborah lhe deu. Eles possuem o formato de bebês de porcelana.
Se você já tiver visto uma pintura medieval de um bebê, sabe que
eles parecem demônios autênticos. Possuem rostos pequenos e
assustadores de velhos e os pescoços são torcidos em ângulos não
naturais.
Os bebês saleiro e pimenteiro de Deborah são exatamente assim.
Estremeci quando os vi. Estava pronta para enterrar o presente no
fundo de um armário, mas Nicholas estava todo: “Eles são herança
de família! E se a minha mãe vier e perguntar onde os colocamos?
Temos que deixá-los sobre a mesa.” E eu estava toda: “Você está
de brincadeira com a minha cara? Esses troços são repugnantes.”
Seja como for, acabei enfiando um deles embaixo do colchão de
Nicholas. A elevação era simplesmente discreta o suficiente, eu não
pensei que ele perceberia que havia uma elevação, só que suas
costas doeram pela manhã. Se eu tivesse escondido os dois,
Nicholas saberia que algo estava errado, então eu mantive o
horrível bebê pimenteiro na mesa da cozinha e joguei um pegador
de panela sobre ele.
No dia seguinte, o saleiro estava de volta à mesa onde eu
claramente não o queria. Eu ainda estava fervilhando quando
saímos para jantar no Walk the Plank, um restaurante de frutos do
mar. Fingi que precisava ir ao banheiro, mas em vez disso chamei
um garçom e disse que era o aniversário de Nicholas. Perguntei se
a equipe poderia cantar parabéns para ele, o que eles fizeram,
enquanto ele usava um chapéu tricórnio de pirata de honra e quase
desmaiou de vergonha. Ao vivo no Facebook. (Foi INCRÍVEL – eles
colocaram em volta dele um babador estampado com uma lagosta
que tinha um papagaio de plástico na parte do ombro, e quando ele
assoprou a vela em cima de seu cupcake, todos gritaram “Aí ele
sopra!”. Rindo para sempre.)
Eu pensei: Ok, estamos quites agora. Nem tanto! Acordei com
uma notificação no Instagram. Ele postou uma foto minha enquanto
eu estava desmaiada no sofá. Brutalmente ampliada para você
conseguir contar todos os meus poros, e eu não pareço nem
minimamente fofa. Há um fio de baba de quinze centímetros
escorrendo da minha boca aberta, brilhando na meia luz. Ele postou
a foto em preto e branco e colocou uma legenda com três corações,
dizendo: Não sou sortudo? Posso contemplar esta obra de arte
absoluta todos os dias. #AproveitandoAVida
#VouMeCasarComMinhaMelhorAmiga
#BeijosDeAmorVerdadeiroDeUmRose
Essa foto acumulou mais comentários do que qualquer coisa que
já postei e, quando penso nisso, sinto vontade de ver o sangue dele
pingar em um penico. Quero que coagule e vire uma gelatina que
vou despejar sobre um bolo de limão, que consumirei com utensílios
esculpidos na pedra localizada onde deveria estar o coração dele.
Minha próxima jogada não foi premeditada. Eu estava dirigindo
para casa do trabalho, quando vi um cachorrinho marrom na vala da
estrada, lambendo a caixa de papelão de um Whopper Jr. Ele não
usava coleira e não havia nenhuma casa por perto, então presumi
que estivesse abandonado. Qualquer um pensaria isso! Quando eu
o peguei e dei a ele muitos carinhos e afagos, a voz de Nicholas
passou pela minha cabeça: Nem pense nisso.
Pensei muito nisso. Meus pensamentos tiveram outros
pensamentos.
Eu o trouxe para casa e preparei uma carne de hambúrguer
congelada para ele, já que não tínhamos ração para cachorro e ele
parecia gostar de hambúrgueres. Ele adormeceu no meu colo. De
acordo com a internet, é provavelmente uma mistura de Jack
Russell terrier e beagle. Decidi chamá-lo de Whopper Jr. e o amei
mais do que qualquer ser humano que já conheci. Quando Nicholas
voltou para casa, ele me encontrou carregando Whopper Jr. em uma
das belas camisas de trabalho dele, que eu tinha transformado em
um sling para carregar bebês. Ele disse “Meu DEUS, onde você
pegou isso?” E eu disse “Você é papai! Ele se parece com você”, e
Whopper Jr. espirrou no sling listrado. Foi tão fofo.
Nicholas não se importou com a fofura do cachorro. Tudo o que
importava era que teríamos que castrá-lo, vaciná-lo e implantar um
chip nele, e só para constar, comida de cachorro não é barata, blá
blá blá. Whopper Jr. fez xixi no casaco de Sherlock Holmes de
Nicholas (foi culpa dele por deixar no chão) e Nicholas S U R T O U.
Infelizmente, acabou que Whopper Jr. se chamava Brownie, que
escapou do quintal de casa. No dia seguinte (depois que o cachorro
e eu ficamos juntinhos a noite toda e eu tirei mais de uma centena
de fotos dele usando chapéus e óculos de sol, sentado em cestas)
Nicholas trouxe para casa um anúncio que arrancou de um poste
telefônico que exibia o rosto adorável do meu novo cachorro,
cercado por três crianças sorridentes. Ele reuniu Brownie com seus
donos por mim, porque eu estava emotiva demais para fazer isso, e
quando ele voltou para o carro seus olhos estavam vermelhos. Ele
já havia se apaixonado pelo cachorro.
— Deveríamos adotar um cachorro de um abrigo — eu disse.
— Agora não é o momento ideal para ter um animal de
estimação.
Algo chato sobre ser parte de um casal: seu parceiro tem poder
de veto e você não consegue simplesmente fazer o que quer sem
planejar. Não é permitido ter filhos ou animais de estimação, a
menos que vocês dois estejam de acordo. Você pode querer um
cachorro mais do que qualquer coisa no mundo, mas se seu
parceiro disser não, azar o seu.
O que nos leva à metade menor da lista.
Substituí nossa Sensodyne recomendada pelos dentistas por
pasta de dentes com carvão, o que me rendeu uma palestra
incrivelmente gratificante. Ele se atrasou dez minutos para o
trabalho naquele dia porque teve que me dar um sermão sobre
pasta de dente com carvão, a qual ele não acredita nos benefícios
do uso. É assim que ele fala: “Não acredito nisso”. Como se fosse o
coelhinho da Páscoa. Quando comecei a rir, ele ficou ainda mais
furioso. “HIGIENE BUCAL NÃO É UMA PIADA, NAOMI.”
Em retaliação, ele escondeu todos os meus sapatos, o que
significou que eu tive que usar chinelos quando Brandy e eu saímos
para o brunch. Para me vingar dele, peguei os sapatos sociais que
ele usa todos os dias para trabalhar e amarrei os cadarços em um
laço apertado, depois passei supercola no meio de cada laço. Vê-lo
tentar desamarrar os cadarços e ficar progressivamente mais e mais
puto alcançou o top cinco dos Pontos Altos da Vida de Naomi
Westfield. Não me arrependo, mesmo que ele tenha acabado
pregando todas as minhas calcinhas no teto do meu quarto com um
grampeador.
A Ferro Velho está oficialmente morta e eu oficialmente
desempregada, então não tenho mais razão para acordar de manhã
exceto para igualar a sabotagem de Nicholas. O esforço tem
absorvido cem por cento do meu foco. Honestamente, se não fosse
pela perspectiva de irritá-lo, eu provavelmente estaria mergulhada
em uma depressão profunda agora.
Contemplo isso enquanto coloco a mão do meu noivo adormecido
em uma tigela de água quente e saio do quarto na ponta dos pés.
Dez minutos depois, ouço um grito fabuloso. Sorrio e mexo meus
cereais de frutas. Vai ser um ótimo dia! Verifico meu celular pela
quinquagésima vez em uma hora, esperando uma chamada perdida
– uma mensagem de voz da Print-Rite, uma papelaria em Fairview
procurando por uma recepcionista para trabalhar quatro dias por
semana, seis horas por dia. O pagamento é uma piada, mas pelo
menos eles não exigem que eu tenha mais de quinze anos de
experiência como secretária e um diploma universitário. Não sei
dizer quantas vagas de nível básico andei circulando no jornal,
ficando esperançosa e ligando para eles para obter detalhes apenas
para ouvir que preciso de um doutorado e meio século de
experiência na área específica deles.
Basta dizer que a busca por um emprego não está indo muito
bem. De vez em quando, Nicholas faz um comentário baixinho
sobre uma miríade de oportunidades de trabalho em Madison, e
como nossas vidas seriam diferentes se ele tivesse aceitado aquele
trabalho, e isso me enche com o desejo teimoso de provar que ele
está errado. Eu vou arranjar trabalho aqui. Vou encontrar realização.
Vou ficar tão realizada que vai deixá-lo enjoado.
Nicholas entra na cozinha segurando uma tigela vazia. Ele parece
perturbado.
— Algo de errado? — eu ronrono.
— Eu não me mijei, se é isso que você estava esperando. Mas
derrubei a tigela durante o sono, e ela caiu no meu celular. — Ele
me mostra a tela do aparelho, que tem mais cortes do que o
diamante em meu dedo anelar.
Ah, merda.
— Eu não tive nada a ver com isso — digo rapidamente.
— Eu tinha tudo no meu celular! Todas as minhas fotos, meus
contatos. Informações importantes.
— Não está sincronizado com o seu computador? Você deveria
ser capaz de... — começo a perguntar, mas seu olhar obscurecido
me cala.
— Isso passou dos limites, Naomi.
— Esse é o limite? Creio que levar o animal de estimação de
alguém para casa comigo foi pior do que isso, para ser honesta.
Ele é como uma avalanche de pedras, quebrando a casa. Sobe
as escadas e pega algumas roupas limpas do cesto, que eu não
dobrei e guardei ainda porque estou Extremamente Ocupada
verificando meu telefone em busca de chamadas perdidas de
empregadores. Não tenho tempo para separar meias. Minha carreira
está em jogo.
Ele vai com tudo para o chuveiro, onde eu e todos os fantasmas
que moram aqui ouvimos metade de uma discussão que ele
provavelmente pensa que está ganhando. Alguns dos argumentos
que ele diz são válidos, mas eu grito de volta mesmo assim. Ele
está ainda mais irritado quando sai. É uma pena que nada divertido
aconteceu com o truque da água quente; morro de vontade de
experimentar esse desde que era criança e tenho que dizer, estou
decepcionada.
— Você é inacreditável — ele troveja, balançando a cabeça.
— Você está realmente bravo para alguém que não fez xixi nas
calças. Qual é o problema?
Ele acena com a tela quebrada do celular para mim. Ah, certo. Eu
já tinha esquecido. O fato de eu ter esquecido e estar calmamente
colocando cereais de frutas nos meus lábios é mais do que ele pode
suportar. Nicholas estende a mão e golpeia a caixa de cereal, como
um gato malvado. Cereais coloridos caem da mesa.
— Ei! — Eu me levanto. A cozinha está uma bagunça agora
(depois de eu simplesmente ter varrido quatro dias atrás) e tudo o
que resta dentro da caixa de cereal é um centímetro de farelos da
cor do arco-íris. — Você desperdiçou a caixa inteira! Como vou ter
um café da manhã equilibrado amanhã de manhã?
— Você não merece um café da manhã equilibrado amanhã de
manhã! Pode comer torradas sem manteiga e pensar no que fez. —
Seus pés são blocos de concreto enquanto ele marcha para pegar a
carteira e as chaves.
Ainda estou paralisada de surpresa, meio em pé, meio abaixada.
— Mas os meus nutrientes!
— Acha que eu me importo? — ele grita de outro cômodo. —
Você colocou minha mão em uma tigela de água quente.
Sério, isso não é tão ruim quanto pegar o cachorro de alguém. Eu
roubei uma criatura viva. Que faz parte da família de alguém. Eu
não fiquei transtornada assim quando tive que arrancar minhas
calcinhas do teto, embora ele tenha feito buracos em todas as
minhas favoritas. Nicholas é um bebêzão.
— Mas nem funcionou! — grito de volta. Pelo menos é o que ele
diz. Não estou totalmente convencida de que não obtive sucesso,
pela maneira como ele está reagindo. Eu me viro para ir tateando a
montanha de roupas sujas que se amontoam na lateral da máquina
de lavar. A porta da secadora está totalmente aberta e você
consegue ver o entupimento de fiapos até do espaço sideral.
Reconheço os fiapos cor turquesa de um suéter que ele usa apenas
para as Visitas à Mãe.
Puta que pariu.
— Limpe o filtro da máquina ou irei seriamente, literalmente,
matar você — ameaço. — Com um machado. Seu sangue espirrará
nas paredes. Há um milhão de lugares para esconder um cadáver
aqui.
— Oh, meu Deus, por favor — ele responde. — Me mate e acabe
com o meu sofrimento.
— Minha raiva é muito mais justificada do que a sua. Você só está
bravo com o seu celular, o que não é minha culpa. Faz uma
eternidade que eu te digo que é estúpido deixar o celular no chão a
noite toda, ao lado da cama.
Nicholas se materializa na cozinha, a um metro de mim. Parece
que ele quer me empurrar por um lance muito longo de escadas e
tenho certeza de que tenho uma expressão que combina com a
dele. Sinto-me viva e acordada, a adrenalina corre em minhas veias.
Tudo está desmoronando tão maravilhosamente, espero.
— Meu carregador é curto! É por isso que tenho que deixar o
celular no chão. Não alcança a mesa de cabeceira porque meu cabo
não é longo o suficiente.
Nem preciso fazer uma piada imatura, porque meu sorriso faz
isso por mim.
Ele joga as mãos para cima.
— Deus! Às vezes é como se eu estivesse noivo de uma criança
de dez anos.
— O que isso diz sobre você? — eu digo.
— Pare de me distrair. Estou atrasado. Novamente. — Ele me
encara como se fosse culpa minha o fato de ele ter grampeado
minha roupa íntima no teto e me forçado a revidar. — Pare de me
atrasar para o trabalho. Eu entendo que você está amarga pelo fato
de eu ainda ter um emprego quando você não tem um. Elimine sua
raiva de outra forma.
Me certifico de que ele me veja arrastar o olhar sobre sua bolsa
de marmita quando respondo:
— Pode apostar.
Rosnando, ele joga toda a comida pré-guardada (a qual eu nem
mesmo mexi, mas o fato de que ele não pode ter certeza é um
ponto para Naomi) no lixo e puxa o casaco sobre o corpo. Ele não
se barbeou e o cabelo está como um ninho de passarinho, pois se
esqueceu de pentear com pomada após o banho. A esperança mais
brilhante na minha vida agora é que ele não se lembre disso, para
que assim tenha um vislumbre de seu cabelo trágico no espelho do
banheiro depois do almoço e queira dar um soco na parede. As
duas recepcionistas intrometidas da Rise and Smile, Nicole e
Ashley, vão sussurrar que ele está tendo “problemas no paraíso”.
Kkkk.
Ele balança a cabeça, fechando os botões do casaco.
— Você é simplesmente… — Palavras não são adequadas para
transmitir seus sentimentos, então ele rosna pela garganta. Está tão
bravo que continua errando os botões, a pele queimando desde a
raiz do cabelo até o pescoço.
— Eu sou simplesmente o quê?
— Incrivelmente egocêntrica. — Ele caminha de volta para a sala
de estar, o olhar furioso. Ele ainda não percebeu que esqueceu de
passar os produtos de cabelo dele e seu penteado vai secar ao ar
como algo saído de um videoclipe dos anos oitenta. O ar frio e sem
umidade não será gentil. Eu sorrateiramente verifico o tempo lá fora.
Está ventando muito. Alguém lá em cima me ama.
— Egocêntrica? — Repito em meu registro mais alto. Que calúnia
total! — Você tem alguma ideia de quantas pulseiras de fundações
beneficentes eu tive? Ah, e parei de matar todas aquelas abelhas! O
que você já fez?
Eu o sigo até a porta. Ele a fecha com força, mas eu abro
novamente, sorrindo para ele enquanto ele aterroriza a pobre
calçada. As folhas nunca foram pisadas com tanta força. Ele
percebe tarde demais que uma poça se esconde sob algumas das
folhas e uma série de palavrões sai de sua garganta quando ele
inspeciona a bainha encharcada da própria calça.
— Se você tivesse usado o bom senso, não teria feito xixi na
cama, não é?
— Se eu tivesse usado o bom senso — grita ele, entrando no
carro. — Nunca teria te pedido em casamento!
A observação é um golpe direto no meu orgulho. É mais afiado do
que parece, surpreendendo-me ao rasgar o alvo e alojar-se alguns
centímetros mais fundo. Eu cruzo meus braços.
— Ah, cala a boca. Qualquer um seria um sortudo de me ter. Eu
sou um prêmio.
— Você é o troféu que eles dão aos perdedores que ficam em
último lugar.
Ele ouve o próprio tiro pela culatra e bate com a cabeça no
volante.
— Boa sorte! — eu grito acima do barulho da rotação de seu
motor. — Tenha um ótimo dia, amorzinho! Tente não pensar em
como todo mundo está olhando para essa espinha no seu queixo.
Pelo para-brisa, ele me mata com os olhos. Sua alma inteira está
comprimida contra suas íris e elas são da cor do ódio. Elas desejam
desesperadamente por poderes telecinéticos para que possam me
mandar para o céu, para além da estrutura de nosso universo e
então para outro. Espero que seja um universo paralelo com um
Nicholas e uma Naomi paralelos. Quero torturá-lo com duas de mim.
Estou tão ocupada sonhando em me juntar ao meu eu do
universo paralelo para propósitos malignos que não noto que ele
está de costas para o filhotinho de perenifólia se projetando de
forma torta da terra. A árvore Charlie Brown. Jason.
Ele avança sobre Jason e recua novamente. Galhos
enfraquecidos se quebram e estalam. Faz cinco graus negativos e
estou de pé no quintal com uma camiseta regata e uma boxer velha
de Nicholas que reivindiquei há muito tempo. O rímel de ontem está
grudado em meus cílios e minha bochecha tem as marcas do meu
relógio de pulso. Nós pertencemos ao Casos de Família. Eu inalo
metade do oxigênio em Morris e grito:
— NICHOLAS ROSE, SEU MERDINHA IMPERDOÁVEL.
Ele arqueia uma sobrancelha para mim. Então, para testar minha
paciência, coloca o carro em ponto morto e acelera. Tento transmitir
com meu olhar exatamente o quão morto ele vai ficar se atropelar
Jason mais uma vez. Pobre Jason. Ele está tão lamentavelmente
inclinado que outro golpe o matará.
Nicholas sorri. Em seguida, seu jipe avança, arrastando Jason
pelas raízes.
Nicholas e eu somos uma parábola sobre como reprimir
frustrações. Temos infligido uma violência silenciosa aos nossos
próprios sentimentos, confinando-os a espaços minúsculos com
apenas uma colher de chá de oxigênio, fermentando-os em uma
química feia que é incompatível com o amor. Sentimos o vidro
tremer com o aumento da pressão, mas continuamos sofrendo por
meio dos nossos sorrisos.
Olho para seu rosto presunçoso e estúpido, e BOOM. A garrafa
entra em combustão, liberando estilhaços de palavras na forma de
baboseiras gritadas.
— O que foi isso? — Ele coloca a mão atrás da orelha. — Isso
foi... o que você ganha por destruir os meus bens?
— Eu não quebrei seu celular de propósito! Você sabe o quanto
EU AMO ESSA ÁRVORE BOBA.
Ele inclina a cabeça para trás e ri, mais forte do que nunca: uma
risada afiada, surpresa e salpicada de suspiros necessários para
respirar. Acho que vejo uma lágrima escorrendo por seu rosto
rosado. Quero jogar uma pedra nele, mas não consigo me mover,
estou tão fascinada por esta nova risada estranha e magnífica. O
capô de seu carro brilha com o sol, que projeta o diamante
espalhafatoso na minha mão esquerda e ilumina meus olhos. Eu
odeio esse maldito anel. É um símbolo de posse, de amor e
eternidade, declarando ao mundo que fui dominada. O homem que
me deu ainda está rindo, refletido no espelho retrovisor enquanto
desaparece de vista, para fora de nossa fronteira sem lei e de volta
ao mundo real do qual estamos tão afastados.
Nicholas não está mais rindo quando entra furioso pela porta depois
do trabalho. Estou recostada no sofá com meias de pares diferentes
e um pirulito de cereja na boca, mudando os canais da TV com os
olhos vidrados. Ele está atento e pronto para golpes, enquanto eu
estou prestes a adormecer. Tenho meio segundo para alcançar o
número da pontuação que ele aumentou, se quiser ser boa nesta
luta que estamos prestes a ter.
Excelente. Está ficando chato por aqui.
Ele caminha para ficar entre meus pés, os olhos brilhando. Seu
cabelo deveria estar horrível, mas chove lá fora, então os fios estão
fazendo uma coisa infelizmente sexy ao cair sobre a testa dele em
ondas úmidas e brilhantes. Estreito meus olhos e mordo o doce com
força.
— E aí? — eu digo de modo arrastado.
— Me passa seu celular.
Faço um som que parece um “Pah!”.
— Quê? Não.
— Você arruinou o meu, então é justo que eu fique com o seu.
— Eu não arruinei seu celular, tolinho. Não tenho ideia de como a
tigela caiu sobre ele. Talvez você devesse parar de colocar tigelas
em sua cama.
Ele dá um tapinha nos meus bolsos, o que me faz dar uma
risadinha.
— Cadê?
Eu o empurro, mas ele simplesmente começa a agarrar as
almofadas do sofá. Fiz para mim um pequeno ninho de bombons de
chocolate com manteiga de amendoim, cobertores, embalagens de
Kit Kat, um prato de papel do Toaster Strudel que comi no almoço e
dois relógios de Nicholas. Tenho removido gradualmente os gomos
das pulseiras para deixá-los mais apertados, mas esqueci de
colocá-los de volta no quarto dele.
— O dia todo! — ele exclama. — O celular toca, mas não consigo
atender as ligações. Minha mãe não consegue mais falar comigo
pelo meu celular, então para quem você acha que ela liga em
seguida?
— Espera, deixe-me adivinhar.
Ele não me deixa adivinhar. Que grosseiro.
— Para o consultório! E não para o meu ramal pessoal, já que
tenho meu telefone configurado para correio de voz. Ela tem
telefonado sem parar para a recepção para falar sobre cada maldito
pensamento que passa pela cabeça dela. Não era tão ruim quando
eu tinha um celular funcionando, porque eu podia mandá-la para o
correio de voz e enviar mensagens de texto com minhas respostas.
Curtas e simples. Mas não! Em vez disso, tenho Ashley correndo
para me interromper a cada cinco minutos, chorando porque ela
sabe que não deveria me interromper por merdas sem importância
como essa, mas minha mãe não lhe dá escolha. “Dr. Rose, sua mãe
quer que eu envie para ela um PDF da sua agenda para que ela
possa anotar o horário que você a levará às compras neste sábado.”
“Dr. Rose, sua mãe está na linha novamente. Ela precisa que você
apareça lá depois do trabalho e diga ao seu pai que ele precisa
consultar um médico para ver um cisto nas costas.” “Dr. Rose, sua
mãe quer saber se você terá tempo na hora do almoço para
encontrar aquelas nozes que levou para a festa de Natal dela em
2011. A amiga Joyce precisa delas o mais rápido possível.”
— Parece que foi um dia agitado para o Dr. Rose. — Dou uma
risadinha provocadora.
— Fiz um papel nada profissional na frente de todos! Eu poderia
perder pacientes por causa disso.
— E ainda assim você está explodindo comigo em vez de,
digamos, com a pessoa que ligou para o seu consultório o dia todo?
— Coloco um bombom na minha boca e dou a ele um olhar que diz
Sim, eu faço muito mais sentido do que você.
— É que eu espero que você seja a pessoa mais madura! Você
sabe que a minha mãe não entende. Tentei dizê-la que ela não
poderia ligar para a recepção a menos que fosse uma emergência,
mas tudo é uma emergência para minha mãe.
Ele rosna, bagunçando o cabelo. Está usando o blazer azul
marinho hoje e, uau, o efeito é incrível. Seus olhos estão escuros
como os de um demônio, e eu não estou nada odiando essa coisa
de “dia que merece uma barba por fazer” dele. Nicholas tem uma
mandíbula muito bonita; quando está ligeiramente sombreada como
agora, junto com a armação cinza-ardósia do óculos, sua aparência
me lembra um atormentado professor de literatura inglesa que
acabou de chegar ao fundo do poço.
Estou aprendendo neste exato momento que o atormentado
professor de literatura inglesa que acabou de chegar ao fundo do
poço é o meu tipo específico de homem. Ele nem percebe que estou
o secando porque está ocupado procurando meu celular em meio a
um mar de embalagens de doces.
O momento inapropriado da minha epifania é algo clássico de
Naomi Westfield. Se Nicholas soubesse o que estou pensando
agora, ficaria tão frustrado comigo que provavelmente pegaria um
avião e deixaria o país.
— Seu primeiro erro foi esperar que eu fosse ser uma pessoa
mais madura — respondo. — Deborah enche o seu saco vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana e você a enche de
atenção. Isso dá resultados! Sabe o que não dá resultados? Ser
compreensivo o tempo todo e dizer “O que você precisar, amor. Pise
em mim! Esqueça que eu sequer estou aqui”. Ser a pessoa mais
madura dá a você permissão para colocar meus sentimentos em
segundo lugar sempre. Eu tenho que ser compreensiva. Tenho que
ser paciente e manter minha boca fechada enquanto você a mima.
Então, vou mudar de tática, porque continuar fazendo o que venho
fazendo enquanto espero resultados diferentes é estúpido. O
manual de estratégias da Debbie funciona. Ser uma pé no saco
chorona funciona. Talvez eu deva começar a ligar para a recepção
também.
Veja o quão bem eu virei o jogo contra ele. Umas das minhas
melhores improvisações! Acho que todo esse ar fresco da floresta e
horas ininterruptas livres para tramar a ruína dele aumentaram
minha capacidade para o mal. Sinto-me divina. Viver na selva é
realmente uma forma de auto-cuidado.
Sua boca se abre, pronta para rebater, mas ele é interrompido por
um zumbido baixo. Meu celular está no modo silencioso, mas acabei
de receber uma notificação. Nós dois olhamos para a prateleira da
lareira, onde meu celular está conectado a um carregador. Damos
um salto.
Estou envolta em cobertores e os dois segundos que preciso para
me desenrolar são cruciais. Quando consigo me libertar, ele está na
lareira e sua mão se fecha sobre a tela escura. Uma pequena luz
verde pisca. Um email? Uma mensagem? Pode ser a Print-Rite
respondendo ao meu pedido, e o conteúdo do meu estômago revira
violentamente quando eu traço meu histórico. Estou cem por cento
em nãos e zero por cento em sims. Você é promissora, mas apenas
não é o que procuramos neste momento. Você é boa, mas não o
suficiente.
Se estou a um milímetro de atingir meu objetivo, a sensação é
ainda pior quando eu falho. Prefiro ouvir um você não chegou nem
perto. Nós nunca consideramos você nem por um segundo. A
ansiedade entra em ação e meu cérebro se quebra, pensamentos
se fragmentam em centenas de direções. Estou me afogando no
meio do ar e meu corpo arde, uma reação física que tenho que
esconder. É um não. Sempre será um não.
As probabilidades não são de uma a cada dez ou cinquenta por
cento ou qualquer proporção que eu possa alcançar com otimismo.
As probabilidades são as seguintes: com certeza acabei de ser
rejeitada por alguém. Não posso deixar que Nicholas veja um email
de rejeição. Não posso deixá-lo contar meus fracassos e recitar o
número em voz alta. Ele não entende o que é não conseguir o que
deseja; ele é uma daquelas pessoas que acredita que se você
trabalhar bastante, pode ter qualquer coisa.
Para ele, eu sou uma preguiçosa irresponsável que não tem
ambições suficientes para começar, e quando eu deixo uma
ambição me atingir, rebaixo meu próprio nível para aliviar a dor da
decepção inevitável. Incompetente. Isso é um pecado mortal para
um Rose, e a raiz de todos os meus problemas. Tenho certeza de
que eles sussurram isso pelas minhas costas.
O que ele não sabe é que eu tento, mas escondo meus fracassos.
É uma das razões pelas quais não consigo odiá-lo completamente
quando ele reclama sobre eu não ir para a faculdade: ele não sabe
que eu já tentei entrar. Não estava lá quando rasguei as cartas de
rejeição, prova de que os meus pais estavam certos e eu deveria ter
me concentrado mais em estudar do que em trocar recadinhos em
sala de aula.
Isso foi antes de eu me fechar e mudar minha mentalidade com o
único mecanismo de enfrentamento disponível. Quem quer um
diploma, afinal? Eu não. Estou feliz por não ter ido. Veja todos esses
otários com empréstimos estudantis, com dívidas até o pescoço e
ninguém sequer os contratando.
— Me dê isso! — eu grito, chutando-o na parte de trás do joelho.
Ele segura o celular longe do meu alcance. Odeio quando ele faz
isso, quando usa sua vantagem de altura contra mim.
— Vou pegá-lo emprestado até conseguir um novo. É justo.
— Devolve! — Eu pulo, agarrando o aparelho ineficazmente. —
Isso é meu!
Sua boca franze, olhos desconfiados calculam meu rosto corado
e minha voz estridente.
— Por que você está com tanto medo de me deixar ver seu
celular?
— Eu não estou com medo. — Ele percebe a mentira, tenho
certeza disso. — Devolve. — Tento desesperadamente pegar o
celular, mas não adianta. Ele é muito alto e estou presa em algum
tipo de ciclo Benjamin Button – sinto que estou ficando menor a
cada salto que dou. — Estou falando sério, Nicholas. Lamento que
sua tela tenha rachado. Vou te dar um celular novo. Desculpa, ok?
Só me devolve.
Sua expressão se torna completamente letal. Assim de perto, vejo
meu próprio rosto apavorado impresso em cada uma de suas
pupilas, como dois espelhos pretos. Vejo o que ele está vendo e sei
o que essa situação parece dar a entender.
— Você acabou de receber uma mensagem de alguém? — Sua
voz é sedosa. O tom é tão afiado que poderia cortar sua artéria sem
pressioná-la.
— Não. Por que você diria isso? Me dê meu telefone. — Estendo
minha palma com expectativa e infundo o máximo de autoridade
possível no comando que digo. — Agora.
Suas narinas dilatam.
— É ele, não é?
— Quem? Do que você está falando? — Sacudo minha cabeça,
estalando. — Passe para cá! Estou falando sério. Isto é um bem
pessoal meu e me impedir de ter acesso a ele é ilegal.
O olhar de Nicholas desliza para o meu celular e seu polegar se
move, como se fosse tocar na tela e revelar minhas notificações. Eu
surto muito mais do que a ocasião exige e, quando dou por mim,
estou pendurada em suas costas. Meus braços estão em volta do
pescoço dele, o que me deixa mais perto do meu alvo, mas ele se
contorce para me tirar de cima de si.
— Me dá! — eu grito. — É meu! — Perco a noção de quais
palavras saem da minha boca e quais estão explodindo não
verbalmente em meu cérebro frenético. — Faça o que eu mando, ou
então!
Nicholas recua contra a parede. Mas também não faz isso
gentilmente. Puxo seu cabelo e ele gira, caindo de costas no sofá. É
um movimento que ele não deveria ter feito, porque eu prendo meus
braços e pernas em volta dele como um halter de ferro e agora ele é
uma tartaruga com o casco virado para baixo. Gasto uma explosão
de energia preciosa lançando-o para fora do sofá, de bruços no
chão, e me deleito no meu momento de triunfo antes que ele
comece a lutar.
— Sai de cima! — Ele nos rola, mas estou brigona e estive
armazenando minha energia o dia todo com bombons e Real
Housewives. Ele está estressado. Sua mãe ligou para o consultório
cinquenta vezes. Tenho uma vantagem sobre ele.
Estou montando nele agora e tenho minhas mãos em sua
garganta.
— Me dá meu celular!
Ele joga meu celular na poltrona do outro lado da sala. Penso em
ir atrás do aparelho, mas meu cotovelo ainda dói no local onde ele
me espremeu contra a parede, então puxo a camisa dele para cima,
sobre seu rosto, feito um valentão da quinta série, e belisco seus
mamilos. Nicholas grita.
Com os olhos obscurecidos, ele luta para usar os braços e entorta
o próprio óculos quando puxo sua camisa de volta para baixo.
— Não se mexa! — mando. — Eu mereço ganhar isso.
— Você merece tênias. — Seu rosto está vermelho e ele está
lutando mais do que gostaria de admitir. Sinto uma onda de poder
por saber que sou, na verdade, uma adversária decente.
— Você me bateu contra a parede de propósito.
— Não bati nada, sua pequena goblin. — Salto para cima e para
baixo, o que o faz estremecer. — Aliás, você não é um goblin. É
uma criança trocada. Você assumiu o corpo daquela garota legal
que conheci.
— O nome dela era Naomi, não era? — pergunto, inclinando a
cabeça. — Azar o dela.
— Sim. Azar o nosso.
— Você nunca mais a verá. — Me mexo para ficar em uma
posição melhor em seu colo contorcido, e um choque de surpresa
me eletrifica quando descubro que ele está duro.
Todo o ar sai dos meus pulmões quando eu começo a rir.
— Meu deus, por quê?
Suas maçãs do rosto queimam.
— A parte superior do seu corpo está para baixo e você se
contorcendo em cima de mim. O que esperava?
O que eu espero é que ele seja obstinado em sua missão para
acabar comigo, é isso que espero. Estou impressionada com a
capacidade que um homem tem de pensar em vingança e em
contato com o pênis ao mesmo tempo. O que considerei como um
confronto selvagem de luta livre foi mais como preliminares para
Nicholas. Eu deveria ter imaginado. Homens são lixos.
Quanto mais eu rio, mais sem querer me esfrego nele, e mais
fundo na escuridão seus olhos escorregam. Ele está incrivelmente
excitado e absolutamente furioso por causa disso. Neste momento,
tenho mais controle sobre seu corpo do que ele. O delicioso poder
sobe direto à minha cabeça.
Suas mãos disparam e me pegam nas costelas. Tenho
aproximadamente um segundo para me perguntar se ele vai me
beijar ou me matar quando ele puxa uma carta na manga e começar
a me fazer cócegas. Minhas mãos ainda estão em torno de sua
garganta, mas quando ele faz cócegas em todos os meus pontos
fracos, é como se tivesse apertado um botão de ejeção. Eu caio de
lado, me debatendo incontrolavelmente.
— Ahh, para! — Ofego. — Eu sinto muita cócega!
— Sente? Não percebi. — Ele está se vingando de mim por
deixá-lo com tesão e envergonhado.
Chuto sua canela e me afasto, escapando para pegar meu
celular. Ele agarra meu tornozelo e me puxa para trás, mas o
movimento suave de deslizar pelo chão contra a minha vontade é
como um passeio em um parque de diversões e, em vez de me
irritar, só me faz rir.
A risada morre quando Nicholas me imobiliza. Seu cabelo está
pendurado em cada lado do meu rosto, sua respiração soprando em
meus lábios. Ele fica muito quieto, apenas observando, mais perto
de mim do que já esteve em anos. Meu corpo se lembra dele e
treme.
Seus olhos estão tão escuros, acho que consigo ver o inferno
neles. Para alguém cujo olhar tem o poder de comprimir as almas
em diamantes e os diamantes em pó, sei que, se eu lambesse sua
língua, ela teria gosto de algodão doce. Ele é o garoto-propaganda
do xarope de milho com alto teor de frutose e sinto vontade de dar
uma mordida nele. De retirar sua embalagem brilhante. Contar
quantas marcas de meus dentes vou encontrar por baixo.
O ar é rarefeito no topo de uma montanha.
— Você é um demônio — digo a ele.
— E você tem sido um fantasma. — Ele respira. Preciso de uma
vantagem aqui, mas sou menor que Nicholas. Então uso uma das
únicas armas à minha disposição: surpresa.
Alcanço a região entre suas pernas e dou-lhe um aperto firme,
mas não desagradável. Seus olhos se arregalam e a reação
involuntária de dilatação da pupila é hipnotizante. No tempo que ele
leva para piscar, uma galáxia de cores dança em suas íris: verde-
jade e marrom e todos os tons de azul, da chuva de verão ao clarão
da meia-noite do luar nas ondas do oceano.
Eu o coloco de costas antes que ele possa registrar o que
aconteceu.
— Esta é a sua ruína, bem aqui — digo provocativamente. Aperto
minhas coxas de cada lado dele e ele morde o lábio. — Você
deveria estar puto, não excitado.
— Eu posso ficar as duas coisas. Você não é minha chefe.
— Eu poderia me acostumar com esse Nicholas — digo,
brincando com ele. — Você está realmente presente. — Ao contrário
do jeito que ele estava nas últimas vezes que dormimos juntos, mal
olhando para mim. Ele odeia o quão animado está agora e não
consegue descobrir que emoção quer deixar liderar o ataque. Para o
Nicholas lógico e prático, que precisa se manter concentrado em
todas as situações, o tesão é aterrorizante.
— Estou sempre presente — ele diz. — Você é que nunca está
presente.
Eu o ignoro, acariciando sua bochecha. A atmosfera estremece,
esticada com tanta força que eu poderia bater no ar e ouvir o baque
retumbante de um bombo.
— Você parece vivo — eu digo. E coloco minha palma sobre seu
coração a bater forte. — Sim, muito vivo, como um verdadeiro
homem humano. Eu não teria como saber disso, já que você nunca
me toca. Se esqueceu como?
Ele coloca a palma da mão em volta do meu pescoço e
simplesmente a deixa lá, me fazendo lembrar que ele poderia mudar
a pontuação a qualquer momento se quisesse.
— Me peça desculpas e eu te deixo descobrir.
— Desculpas pelo quê?
— Pela sua metade. — Seu peito sobe e desce profundamente.
Reconheço todos os sinais, mas é como se fossem de outra vida,
estão adormecidos há tanto tempo. Eu continuo me perguntando:
Quando foi a última vez que vi esse Nicholas? porque estou
esquecendo que esse Nicholas é novo para mim. Ele é um território
desconhecido. Quero explorar as partes que são uma surpresa e
puni-lo pelas partes reencarnadas que ele tenta trazer de sua antiga
vida com a velha Naomi. Elas não pertencem aqui.
— Minha metade — repito, sentando-me ereta. Eu o sinto
embaixo de mim e faz tanto tempo; tudo o que fizemos nos últimos
meses não conta. Na última vez que fizemos sexo, o espaço entre
nós era o ar morto, inquenbrantável por qualquer emoção, seja qual
for – nem amor, nem atração, nem tensão. No momento, duas das
três não seria nada mal. Meu corpo quer gotejar em líquido e se
derramar sobre ele, mas me arrisco a dizer:
— Metade do quê?
— Do que deu errado.
Engulo em seco. Parece que alguém arranhou minha garganta
com garras.
— Para começar, nunca fomos certos.
Ele arqueia uma sobrancelha.
— Não?
— Não. A Naomi Criança Trocada é a mesma pessoa que a
Naomi do Primeiro Encontro, só que sem toda aquela mágica das
primeiras impressões. Ficamos muito acostumados com a melhor
versão um do outro, então nenhum de nós conseguiu relaxar e
mostrar nosso eu normal. Estávamos nos escondendo.
Ele me encara do chão. Está de queixo caído, mas seus
músculos estão tensos. Quando ele finalmente fala, o que diz me
pega desprevenida.
— Quem mandou mensagem para o seu celular?
Antes que eu possa responder, ele gentilmente coloca a mão
sobre minha boca. Sua pele é quente e cheira a meu condicionador.
Já faz muito tempo desde que ele deslizou os dedos pelo meu
cabelo, tempo suficiente para o cheiro já ter saído dele. Já se
passou uma vida desde que ficamos com o cheiro ou o gosto um do
outro. Desde que tivemos fome um do outro.
— Me diz, por favor? — Sua voz é aveludada e convincente.
Perigosa. — Seja honesta e poderá ter o que quiser.
Ele deixa sua mão cair da minha boca. Estou cambaleando. Acho
que ele pode estar preparando uma armadilha. Ou eu que estou
paranóica depois de colocar tantas das minhas próprias armadilhas.
Armadilhas são tudo que vejo agora.
— Ninguém me mandou mensagem. Quem iria? Os únicos que
me enviam mensagens são você e a Brandy, e Brandy está ocupada
com o processo de orientação no novo emprego dela.
— Posso ver seu celular, então?
Eu me arrepio.
— Não. É privado.
— Mesmo para mim? Eu deixaria você ver o meu.
Não acredito nisso nem por um minuto.
— E...? Eu não pediria para ver o seu. Seu celular não é da minha
conta.
— Eu sou da sua conta. — Ele se senta, aproximando nossos
rostos. Deslizo de seu colo imediatamente e coloco uma quantidade
saudável de espaço entre nós. — Ou deveria ser.
— Você não confia em mim — eu digo.
— Você também não confia em mim.
Nós nos observamos. Estamos nos observando há tanto tempo
que sempre que eu mudo a direção do meu olhar, vejo uma sombra
tênue de sua silhueta lançada sobre todas as superfícies, como um
daqueles truques de imagem ótica em preto e branco em que você
continua a ver as imagens refletidas em espaços em branco mesmo
depois de desviar o olhar. O céu escureceu e não percebemos. Pela
janela da sala, posso ver um traço de estrelas, muito mais brilhantes
aqui do que em qualquer outro lugar do mundo. Estamos em nossa
própria bolha dentro do país.
Esta casa é um lugar fora do tempo. É tão fácil girar em torno de
nós mesmos e perder a noção das horas, dias, semanas. Há quanto
tempo estamos aqui? Deve fazer anos.
Eu me esforço para lembrar de como acabei dividindo um espaço
íntimo com esse outro ser humano. Acho que me lembro de um
zumbido na minha corrente sanguínea, um clique de ímãs. Risadas.
Esperança. O início é tão brilhante, tão fácil. Você pode imaginar a
outra pessoa sendo quem você quiser. Em todas as lacunas de seu
conhecimento sobre elas, você pode pintar as qualidades que
desejar como coisas possíveis de se substituir. Pode pintar a outra
pessoa em um sonho impossível de ela estar à altura.
Nós nos conhecemos em um triatlo beneficente e puxamos
conversa quando ele tropeçou e eu o ajudei a se estabilizar. Nos
conhecemos enquanto trabalhávamos como voluntários em um
abrigo para desabrigados. Nós nos encontramos em um banco,
depositando milhões de dólares em nossas respectivas contas.
Trançando fitas com jovens em situação de risco.
Ele está certo, eu não confio nele.
Ele está ajoelhado na outra extremidade da ponte de corda,
cortando minha corda de apoio com sua faca. Vai entrar em colapso
antes que eu possa passar por ela com segurança. Seus olhos
brilham enquanto me observam entrar em pânico. Ele mal pode
esperar para me ver cair.
Nicholas levanta e espia pela janela, surpresa percorre seu rosto
quando ele vê que já está escuro lá fora. Acho que ele se dá conta
de que estamos em um lugar fora do tempo também. Ele se enfia de
novo no casaco.
— Você vai sair? — pergunto, seguindo-o.
— Há alerta de geada para esta noite. Com a chuva forte que
está caindo, é melhor eu me adiantar e ir jogar sal na calçada da
minha mãe e do meu pai agora.
Suprimir a vontade de revirar os olhos é como tentar segurar um
espirro. Como eu poderia ter esquecido desse hábito particular do
filho de ouro? Sempre que há um alerta de geada e há precipitação,
Nicholas vai até a casa dos pais e joga sal na calçada. Quando
neva, ele limpa a entrada da calçada. Eles poderiam facilmente
contratar alguém para essa tarefa, mas o querido Nicky assume a
responsabilidade porque ele é um Filho Tão Bom e anseia por
aprovação como se fosse cocaína.
— Nós devíamos fazer isso na nossa calçada também — digo. E
com nós, quero dizer ele. Está muito frio lá fora e estou vestindo
meu pijama diurno.
— Nossa calçada não ficará tão ruim quanto a deles, já que não é
pavimentada. — Ele desliza as luvas nas mãos e flexiona os dedos,
admirando a qualidade do couro. — Tenho pneus para neve e tração
nas quatro rodas.
— Eu tenho… — Meu carro monstro pisca em minha mente.
Tenho medo de tentar dirigi-lo novamente, mas meu único outro
meio de transporte é uma bicicleta antiga que Leon deixou para trás.
— E se eu quiser ir a algum lugar?
Ele sabe que estou jogando verde para que ele diga algo errado,
ou que talvez eu esteja esperando que ele passe em meus testes
impossíveis e diga algo certo. Faça seu disparo e descubra,
Nicholas.
— Há um saco de sal no galpão.
Eu o sigo até a porta. Parece que ele está sempre indo embora
quando eu quero que ele fique. Quando preciso dele aqui e ele sai,
eu sempre perco algo, várias e várias vezes. Ele tira esse algo de
mim quando sai. Está sempre indo embora. Ele nunca vai pertencer
a mim. Nunca vai querer ficar comigo. Eu nunca vou ser o suficiente.
Mesmo quando não estamos juntos e estou fora fazendo outra
coisa, me incomoda quando aquele rígido senso de dever dele para
com os pais estala os dedos e ele sai correndo. É mais fácil se eu
decidir que não o quero por perto, porque pelo menos assim ele não
pode me decepcionar.
— Nicholas — digo quando ele sai da varanda da frente. Cada
folha de grama é um iceberg em miniatura, esmagando-se sob as
novas botas de trabalho dele. Serei o mais honesta que já fui com
qualquer um de nós, em voz alta. Agora mesmo. — Eu te amo
dezoito por cento.
Não é um número grande, mas já foi pior. Esse óculos e o cabelo
bagunçado ficam injustamente bonitos nele e ele tem sido mais
aberto comigo. E mais brutal. Matou um filhote de árvore por
maldade.
Ele para no meio do caminho. Vira o corpo.
— O que você acabou de dizer?
— Essa é a porcentagem. — Limpo minha garganta. — Dezoito.
Ele está tão parado que acho que um vento forte pode derrubá-
lo.
— Não existe essa coisa de amar alguém dezoito por cento.
— Sim, existe. Eu fiz o cálculo.
— Você não pode medir o amor. — Sua voz fica mais nítida na
última palavra, antes da ironia surgir. Há zombaria em todas as
sentenças agora. — Mas se vamos jogar o jogo dos números, então
acho que devo dizer que tolero você dezoito por cento, Naomi.
— Então você não me ama.
— Eu não disse isso.
Ele não disse o contrário. Cruzo meus braços e espero que ele
diga algo mais.
— Então?
Mas ele não responde. Sua expressão é tão tempestuosa que
minha pulsação salta e ele sai sem dizer mais nada. Eu entro, um
pouco cambaleante depois dessa nossa conversa. Tenho andado
cambaleante o tempo todo agora, mas é um passo à frente da
minha fuga de antes, meio vendo e meio ouvindo o que me rodeava.
Pego meu celular, meu coração é uma britadeira em meu peito. Mas
não é uma rejeição para uma das minhas candidaturas a um
emprego. É uma mensagem da minha mãe, o que é raro.

Vejo que ainda não recebemos nosso convite de casamento. Você


esqueceu nosso endereço?

Digito uma resposta: não os enviei. Não decidimos a foto a ser


incluída.
Mordendo minha bochecha, apago tudo isso e digito: Eles estão
prontos para serem enviados. Nós vamos mandá-los em breve.
Apago novamente. Depois, deleto a mensagem dela, sem
responder.
É sábado, o dia tem um novo significado agora que ainda estou me
acostumando.
Em nossa antiga vida, se eu não estivesse escalada para
trabalhar, nunca passávamos os sábados em casa. Eu iria passear
em feiras e brechós enquanto Nicholas saía com os amigos: Derek,
Seth e Kara – a ex de quem ele é “apenas amigo” e que adora me
dizer que pareço cansada. Não estou nem aí que ela seja casada e
felizmente devotada ao marido. Eu nunca, nunca vou gostar dela.
A indiferença de Seth em relação a mim evoluiu para ciúmes
quando Nicholas e eu ficamos noivos, como se eu fosse uma
usurpadora roubando Nicholas dele. Sozinho, ele é bom. Mas
coloque-o em um contexto onde há um grupo grande de pessoas e
ele tentará ser um comediante. Quando isso acontece, todas as
suas piadas são sobre Nicholas. Ele faz pequenas críticas a ele
constantemente, sorrindo enquanto o faz, o que disfarça as críticas
e as faz parecer zoação. A aparência de Nicholas sofre muitas
críticas. Bela jaqueta. Vai a um clube de country mais tarde? Cada
vez que ele zomba de uma peça de roupa de Nicholas, ela
desaparece de circulação do guarda-roupa dele. Ele parou de usar o
relógio Cartier que seus pais lhe deram como presente de formatura
e deixa os Ray-Bans no carro. Se ele usa uma palavra grande, Seth
ri e pergunta se ele se acha inteligente. Você acha que está em um
concurso de soletração ou algo assim?
Já que não tenho permissão para rasgar a garganta de Seth e fui
instruída a manter minha boca fechada sempre que ele “fazer
brincadeiras” (Nicholas nega que os comentários o incomodam),
parei de ir a eventos sociais se sei que Seth vai estar lá. Eu
perguntei várias vezes por que ele tolera isso e, lendo nas
entrelinhas de suas respostas idiotas, entendi a verdadeira
essência: Seth foi o primeiro cara que quis ser amigo dele na
faculdade, e agora ele sente que lhe deve lealdade eterna. Já que
Nicholas quer ser o tipo confrontante, mas definitivamente não é, ele
deixa todos os comentários passarem com um “Ah, qual é?!” e uma
risada envergonhada.
Ofender as pessoas que o tratam mal não é da natureza dele,
então sinto orgulho de Nicholas por ele ter ganhado coragem e
ignorado as mensagens recentes de Seth: Venha e me ajude a me
mudar, idiota. Traga sua própria bebida. Seth exigir que Nicholas o
ajude com a mudança é muita cara de pau, considerando que ele
não estava em lugar nenhum quando a situação foi o contrário e
Nicholas teve que contratar ajudantes de mudança profissionais. As
pessoas sempre o procuram quando precisam de algo, porque
sabem que ele não consegue dizer não. Estou surpresa que ele não
tenha cedido ao peso na consciência e dado um pulo na casa de
Seth com uma caixa de cerveja e uma pizza grande nas mãos.
Estranhamente, Nicholas se encontrou com Leon, entre todas as
pessoas. Para fazer trilha. Duas vezes. Ele não me diz sobre o que
conversam e me chamou de presunçosa porque acha que eu
presumo que falem de mim (o que é verdade, mas aposto que eles
falam).
Além de pegar uma carona com Brandy até o Blue Tulip Café
para falar sobre o novo namorado dela (um optometrista e pai
solteiro chamado Vance, por quem estou torcendo para que dê certo
porque ele é um doce e ela merece alguém doce), também não
tenho tido vontade de sair com ninguém ultimamente. Hoje estamos
nos sentindo particularmente antissociais. Nicholas e eu estamos
ocupados demais nos torturando para deixar nossa casinha de ódio.
Começa com a piada que eu não suporto.
Estamos em lados opostos do sofá, jogando em nossos celulares
(Ele comprou um novo.). Estou lendo uma notícia porque preciso
ficar por dentro das atualidades. Dessa forma, se Nicholas começar
a falar sobre um assunto que acabou de ouvir, posso dizer: “Ah, eu
já ouvi sobre isso”. É uma coisa excelente para se fazer com alguém
que você despreza quando o objeto do seu... desprezo? …é um
sabe-tudo pretensioso. Recomendo bastante.
Sussurro e murmuro sobre a notícia. Quando ele não pergunta
sobre o que estou lendo, simplesmente vou em frente com um
sufocado:
— Meu deus.
— Pois não? — Ele levanta as sobrancelhas interrogativamente,
como se eu tivesse acabado de falar seu nome. Costuma dizer isso
quando falo com uma divindade. Ele sabe que eu odeio, e acho que
isso lhe dá vida. Adiciono minutos à sua longevidade de vida com
meu aborrecimento.
— Eu odeio essa piada.
— Algumas pessoas acham engraçado.
— Ninguém acha isso engraçado.
— Sempre arranca uma risada de Stacy.
Dra. Stacy Mootispaw, defensora do não uso de calças cáqui e
acusadora de ele nunca fazer um esforço adicional. E com a
frequência com que Nicholas a menciona, não vou mentir para você,
quando a conheci pela primeira vez, esperava que ela fosse ter uma
aparência do tipo avó, com cheiro de talco de bebê. Com o dobro da
idade dele, vestida com suéteres tricotados com estampas de gatos.
Uma orgulhosa mãe de pet com um marido velho e alegre que ela
ama tanto que liga para ele em todos os intervalos.
Como você pode imaginar, Stacy não é nem um pouco assim.
O cérebro dela se move mais rápido do que o Usain Bolt. Ela tem
um milhão de diplomas universitários e basicamente pode fazer o
que quiser. Tem o mundo nas mãos. Se ela desistisse do ramo
odontológico, poderia facilmente ser modelo da J. Crew. Tem o
cabelo preto mais brilhante que já vi e um sorriso deslumbrante que
deve ser metade da razão de ela trabalhar nesta área em particular.
Um corpo perfeito. Uma pele brilhante tão livre de manchas, que é
como se ela tivesse sido pintada. Não usa nem um pingo de
maquiagem, mas parece incrível de qualquer jeito e eu a odeio por
isso. Pessoas que acordam com uma aparência glamorosa não são
confiáveis.
Revirando os olhos, saio e vou tirar um monte de roupas da
máquina de lavar e jogar na secadora, e então acabo limpando e
organizando um pouco a casa. Acho que sou uma mãe de família
agora. Ou noiva de família.
— Uau, está quente aqui. Vamos diminuir o aquecedor.
— Você só está com calor porque está de pé e se mexendo.
— Não, definitivamente está quente aqui. — Mexo no termostato.
Diz que está a vinte e dois graus, mas de jeito nenhum não está
pelo menos vinte e cinco. Essa coisa está quebrada.
Eu me sento novamente e ele me encara, parece um urso
irritado.
— Falando em Stacy — ele começa, e eu sufoco um estrondo no
meu peito. — Eu tirei ela no amigo secreto. Alguma sugestão de
presente?
— Pasta de dente.
Ele me lança um olhar sério.
— Só porque somos dentistas não significa que amamos pasta de
dente.
— Um vale-presente, então.
— Hmm, isso não é muito impessoal?
— Quem se importa? É para sua colega de trabalho, não seu
melhor amigo.
— Quero pensar bem no que vou comprar, no entanto.
— Se você quer pensar bem sobre, então por que me pediu
opinião? Eu mal conheço essa mina.
— Achei que você pudesse ser útil. — Ele bufa. — Vocês duas
são mulheres!
— Certo, e somos todas iguais. Todas nós gostamos das mesmas
coisas, assim como todos os homens gostam das mesmas coisas.
Acho que vou pegar o presente que tenho em mente para comprar
para o meu pai e dar a você no Natal. Surpresa, é uma miniatura da
casa da Família Brady! — Meu pai adora colecionar objetos de
coleção de programas antigos como A Família Brady e A Família
Dó-Ré-Mi.
— Você sabe o que eu quis dizer.
— Eu sei que você é machista. — Puxo um cobertor sobre mim.
— Está fazendo frio aqui.
Nicholas me encara.
— É isso.
— Isso o quê? — pergunto quando ele sai do sofá e vai em busca
de seu casaco e sapatos. — O que você está fazendo?
— O que eu deveria estar fazendo!
O que ele “deveria estar fazendo” é melhor não ter nada a ver
com Stacy Mootispaw. Eu o sigo até a porta e o vejo marchar para o
carro. Livrar-se do Maserati foi uma excelente escolha. Ele não
pertence a esse lugar de forma alguma, ao passo em que o jipe
parece ter sido fabricado pela natureza.
— Aonde você vai?
Ele não responde, sai sem dizer nenhuma palavra. Passo os
próximos vinte minutos mandando mensagens para ele. Se ele
estiver em um quarto de motel sujo com a Dra. Sensual, a vibração
persistente do celular dele vai ser um verdadeiro assassino de
clima.

Oi

Oi

Onde você está

Nicholas

Nicky

Nickster

Nickelodeon

Ooooooooooooooooooooiiiiiiiiiiiiiiiii
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
iiiiiiiiiiiiiiiiiii

Me dê atenção ou direi à sua mãe que você não voltou para casa
ontem à noite e pode estar desaparecido.
Sério? Nem assim?
Fico impressionada que minha ameaça não produziu nenhuma
reação nele, e começo a me preocupar que ele esteja incapacitado
em algum lugar, até que o jipe vem ruidosamente pela estrada
novamente.
É. Uma. Canoa.

Estou em uma espreguiçadeira na margem do nosso lago, tirando


fotos de Nicholas. Ele está a uns quinze metros de distância, com
seu chapéu com protetores de orelha xadrez, macacão de caçador
de fantasma, tentando colocar uma bóia em sua linha de pesca. Se
Freud estivesse sentado ao meu lado, provavelmente deduziria que
os fatores estressantes (isto é, eu) fizeram com que Nicholas
regressasse à infância para recriar o momento mais brilhante ao sol
que ele teve. Ele vai pescar o peixe bluegill novamente e segurá-lo
com orgulho para a câmera. Todo mundo vai bater palmas.
Eu ligo para o seu celular.
Ele olha para mim na minha cadeira, como se dissesse: Você está
estragando tudo. Poderíamos estar a dez mil quilômetros de
distância e eu ainda saberia o que ele está fazendo com o rosto.
Ondas telepáticas chegam até mim, ondulando a água como um
helicóptero decolando. Ele está pensando alto e em bom som: vá
embora. Estou me tornando Quem Eu Devo Ser. É um pouco
meticuloso e tão familiar que acho que estou começando a amar
isso nele.
Esse cara. Fala sério.
Ligo para ele novamente. Desta vez, ele atende.
— Que é? — ele diz de uma vez.
— O que você está fazendo?
— O que parece que estou fazendo?
Parece que ele não sabe o que está fazendo. Mas não posso
dizer isso ou ele desligará. Preciso monitorar esta situação tão de
perto quanto ele permitir, por uma questão de psicologia. De ciência.
De as videocassetadas, possivelmente. Ele ainda está lutando para
colocar a isca no anzol porque não quer tirar as luvas.
— Peixes não hibernam nesta época do ano?
Ele faz uma pausa.
— Isso não é... peixes não hibernam.
— Creio que eu ouvi falar que hibernam.
— Shh. Você está me fazendo falar e vou assustar todos os
peixes.
— O Leon disse que há peixes neste lago?
Seu silêncio me diz que ele não faz ideia, mas Nicholas é um
homem orgulhoso. Ele vai ficar aqui até a primavera e pegar um
sapo. Um magricela com menos de seis quilos, ele enfiará o sapo
na minha cara. Viu só!?
— Shh. Estou tentando pegar o jantar.
— Eu não vou comer nenhum peixe deste lago. Não sei se a água
é poluída.
— Em primeiro lugar, não me ofereci para compartilhar. Em
segundo, por favor, pare de falar. Por vários motivos. — Ele desliga
e não atende minha próxima ligação. A chamada depois disso vai
direto para o correio de voz. É altamente irresponsável da parte
dele. Eu poderia estar tendo uma emergência agora e ele estaria
fazendo de conta que não está disponível, o que é a primeira coisa
que direi às enfermeiras depois de acordar do meu coma.
Nicholas tenta lançar o anzol, mas não aperta o botão de
liberação no momento certo e a isca não sai de sua canoa.
Lançando um olhar furtivo por cima do ombro para ver se eu
testemunhei isso, ele se levanta e tenta novamente. O pobre
cordeirinho anda inseguro e sabe que tem público, o que sem
dúvida piora as coisas. Eu odiaria que Nicholas me observasse
tentando pescar.
É como quando eu me deparo com ele enquanto ele está fazendo
flexões e seu corpo desiste instantaneamente. O simples fato de eu
ficar ali observando transforma a situação em uma apresentação
pública e suas pernas e braços viram gelatina. Aposto que as
montagens de vídeo de suas contribuições para as peças do ensino
fundamental serão reproduzidas em um loop infinito quando ele for
para o inferno.
Nicholas finalmente lança o anzol a cerca de um metro e meio da
canoa e se senta com os ombros curvados. Eu sei o momento exato
em que ele se lembra da postura terrível do pai, porque ele se
endireita novamente. Ele veste tecido flanela xadrez por baixo do
macacão e tem tentado transformar a barba por fazer em uma barba
de verdade, mas não importa o quanto ele tente ser um lenhador
corpulento, ainda parece que pertence a uma boyband. O vento gira
lentamente sua canoa em um círculo até que, contra a própria
vontade, ele para de frente para mim, e precisa relançar.
Está morrendo de vontade de olhar para mim. Sou um espectro
em sua margem. Sou a culpada por ele não saber pescar. Ele
provavelmente já percebeu que o garotinho que pescou um peixe
bluegill teve alguém lá para colocar a isca em seu anzol e fazer todo
o trabalho braçal. O Nicholas adulto é uma diva. Usa minhocas de
borracha em vez de verdadeiras.
Para evitar contato visual, ele abaixa a vara e começa a remar
com o barco para a posição anterior. Sua bóia repuxa e ele solta o
remo por instinto para enrolar a linha. Quando o remo abandonado
começa a tombar pela borda da canoa, ele desajeitadamente
alcança a vara e o remo e perde ambos. Ambos. Só Nicholas
mesmo.
Meu. Deus.
(Pois não? Responde Nicholas, até na minha imaginação.)
Posso até imaginar esse pão-duro na loja se preparando para
atingir um estado de auto realização com equipamentos para
atividades ao ar livre, debatendo se deveria comprar um segundo
remo. Ele já está gastando tanto dinheiro com a vara de pescar de
última geração, sei exatamente como ele racionalizou a compra de
apenas um remo. Vou remar de um lado do barco, depois do outro.
Fácil.
Nicholas está de pé na canoa vazia, o vento o fazendo girar
lentamente, totalmente dizimado por esta reviravolta.
Me levanto também, colocando as mãos em volta da minha boca.
— Como está indo?
Nicholas tira o chapéu e o joga no chão da canoa em um acesso
de raiva, passando os dedos pelos cabelos. O remo está flutuando
em minha direção. Não consigo evitar. Minha risada se torna o som
mais alto do universo. Ela ecoa pela floresta, enviando para cima
choques de melros. Faz um estrondo pelas veias de Nicholas,
fazendo-o querer explodir.
Se não fosse o fato de eu rir da situação, Nicholas provavelmente
teria se sentado e formulado um plano que não envolvesse ele se
molhar. Mas eu consigo tirá-lo do sério tão bem que seus
pensamentos coerentes caem no esquecimento e o comportamento
dele toma um rumo sensacionalmente não-Nicholas.
Ele pega o chapéu de volta e o coloca com firmeza na cabeça,
depois mergulha na água gelada. Eu rio com mais força, causando
dores nas costelas, soluços.
— Que diabos você está fazendo? — exclamo entre explosões
viciosas. Ele deu um jeito de ficar encalhado. Realmente encalhado.
E agora tem que nadar de volta à margem. Esta é a melhor coisa
que já me aconteceu. Meu corpo quer desistir, está tão fraco de
tanto rir, e me inclino na cadeira para me apoiar.
Conforme Nicholas se aproxima, minha visão fica mais nítida e
percebo a ferocidade em seus olhos. Suas botas e roupas devem
parecer âncoras, mas ele nada em minha direção com uma rapidez
agressiva.
Ah, merda.
Vou voltar atrás.
— Eu teria te ajudado! — digo alto. — Você deveria ter ficado
parado.
É verdade, eu teria encontrado uma maneira de ajudá-lo. Depois
de deixá-lo plantado lá por uma hora e de ter postado um vídeo da
situação online.
Os dentes de Nicholas estão batendo quando ele sai do lago,
ensopado. Ele vem direto para mim.
— Ahh! — eu grito, esquivando-me e cruzando os braços como
um escudo na frente do meu rosto. Ele me pega e me joga por cima
do ombro, e meu primeiro pensamento é minha nossa. Ele é mais
forte do que parece. Talvez seja a força da adrenalina.
Ele se vira e volta para o lago. Quando eu percebo o que está
prestes a fazer, agarro-me com força a ele para salvar minha vida
enquanto chuto e me debato ao mesmo tempo.
— Não! Não se atreva! Nicholas, estou falando sério!
Ele me gira para me colocar debaixo do braço, plantando as botas
a meio metro de distância uma da outra na margem. Estou me
debatendo como uma cobra, mas ele não perde o controle, me vira
até meu rosto pairar a alguns centímetros da água. Nossos olhares
refletidos se encontram. Meus olhos estão apavorados, os dele
queimam.
— Nicholas Benjamin Rose, juro por deus que vou chamar a
polícia se você não me colocar no chão agora.
— Agora mesmo? — ele provoca, me deslizando um centímetro
para frente. Ele vai me afogar.
— Não literalmente agora! No chão! Me coloque no chão! — Eu
chuto, mas o movimento apenas me impulsiona mais para frente.
Ele vai me deixar cair de cara.
Nicholas hesita. Considera. Então faz uma impressionante
demonstração de força ao me virar como uma panqueca para que
eu fique com o rosto apontando para cima. Ele inclina o dele para
perto, e é como se estivéssemos dançando e ele acabado de me
agarrar, inclinando-se para um beijo. Meus pulmões esquecem
como funcionar e fico congelada, com os olhos arregalados de
admiração enquanto ele se inclina mais perto, e mais perto, e mais
perto. Seus lábios estão quase roçando os meus e a intenção se
solidifica em seu olhar. Aceitando meu destino, fecho os olhos
esperando por um beijo, e ele me inclina abruptamente para trás até
que meu cabelo fica submerso. Água gelada corre todo o percurso
até a minha raiz.
Eu grito.
Ele ri, me colocando de pé.
— Seu babaca! — grito, batendo em seu braço. Nicholas ri ainda
mais. Meu cabelo agora é o Pólo Norte e estou traumatizada para o
resto da vida. — Isso está congelante!
— Imagine como me sinto.
— Não é minha culpa que você pulou na água, seu idiota.
Ele se vira e vai embora.
— Você não deveria ter rido de mim.
Eu rosno e pulo em suas costas, derrubando-o no chão. Não
estou ciente do que estou fazendo, apenas de que devo destruir
este homem. Estendo as mãos de cada lado de nós e encho os
braços com folhas mortas, furiosamente jogando-as sobre ele.
— O que você está fazendo? — ele pergunta, de bruços enquanto
as folhas se espalham na parte de trás de sua cabeça. Seu peito
aperta, e então eu bato, bato e bato, empurrando-as para cima e
para baixo quando ele começa a rir. — Você está tentando me
enterrar?
— Cale a boca e pare de respirar.
Nicholas uiva de tanto rir. Estou tão chateada por ele não ter
medo de mim e nem levar o fim da própria vida mais a sério, que
pulo para cima e para baixo em repreensão.
Nicholas se vira e pega minhas mãos antes que elas possam
disparar para frente e estrangulá-lo. Ele entrelaça nossos dedos,
sorrindo torto.
— Você deveria ver como está sua aparência agora — ele me diz.
A de um Jack Frost assassino, provavelmente. Essa imagem
acende outro ataque de raiva, e eu luto pelo controle das minhas
mãos. Ele aperta os dedos e não as solta.
— Pare de me impedir de te destruir.
Lágrimas escorrem de cada lado de seu rosto enquanto ele ri, as
bochechas rosadas, a respiração subindo em baforadas brancas.
Cai a ficha do quanto eu gosto de sua risada. Do sorriso dele. Seu
sorriso é comum quando apreciado sozinho, mas combinado com as
adoráveis ruguinhas de riso, com a luz que brilha em seus olhos que
mudam de cor, é extraordinário.
Algumas das folhas que estive mexendo tinham agulhas de
pinheiro escondidas nelas, e espetaram minhas palmas, fazendo-as
coçar. Esfrego minhas mãos em cada lado da mandíbula dele,
usando sua barba como um arranhador. As sobrancelhas de
Nicholas se arqueiam em descrença, mais lágrimas escorrem do
canto de seus olhos. Ele me encara e me encara.
— Você é doidinha — diz ele, mas não de forma rude.
Eu bufo. Nunca o ouvi chamar nenhuma pessoa de doidinha. Ele
já me chamou de ridícula meio milhão de vezes, mas doidinha é um
termo tão bobo que começo a chorar de rir também.
Ele sorri mais amplamente.
— Que foi?
— Você é um bobalhudo.
Nós dois rimos.
— Vi essa em algum lugar na internet — insisto. — É uma palavra
verdadeira.
— Sua mãe é uma palavra verdadeira.
— Sua mãe é um verdadeiro palavrão.
Ele solta uma das minhas mãos para limpar os olhos.
— Touché. — Em seguida, pergunta: — O que significa
bobalhudo?
— Presumo que seja um bobo muito, muito bobo.
— Logicamente.
Eu saio de cima dele. Quando ele se senta, eu o empurro para
trás e corro para a casa, gargalhando por causa da minha trapaça
para ganhar vantagem e sair na frente. Sei que a primeira coisa que
ele vai querer fazer quando entrar é tomar um banho quente, então
vou chegar no banheiro primeiro. Começo a tirar minhas roupas no
segundo em que entro, tremendo como uma folha com meu cabelo
molhado, e me tranco no banheiro. Muah-ha-ha. Agora ele terá que
esperar. Vou tomar um banho de uma hora e usar toda a água
quente.
O chuveiro acabou de ficar quente o suficiente para causar uma
sensação agradavelmente escaldante quando Nicholas destranca a
porta do banheiro e entra de repente. Temos uma daquelas
maçanetas que você pode abrir enfiando uma moeda no encaixe e
girando-a. Eu uso esse truque sempre que preciso de algo do
banheiro e ele está trancado lá fazendo a barba ou se admirando no
espelho, mas acho que não aprecio estar do outro lado da situação.
— Ei! — eu grito, tentando cobrir todas as minhas partes
interessantes com as mãos. A porta de vidro do box está embaçada,
então eu provavelmente sou apenas um borrão da cor da minha
pele para ele. — Eu poderia estar fazendo o número dois.
— Com o chuveiro ligado?
— Nunca se sabe.
Meus olhos ficam grandes feito abóboras quando ele tira o
macacão ensopado e puxa a camisa de flanela pela cabeça.
Estômago. Peito. Braços. Há tanta pele nua em exibição aqui e eu
não vou reclamar de nada. Ser parceiro de vida selvagem de Leon e
mexer com machados e ferramentas elétricas tem sido bom para
ele. — O que você pensa que está fazendo?
— Indo tomar um banho.
— Já estou aqui.
— Bom para você.
Nicholas ignora completamente meu choque. Sou uma modesta e
inocente moça puritana, e ele quer roubar minha virtude. Minha
mente se lembra de episódios anteriores não usando roupas com
Nicholas e é bom que a água esteja tão quente, caso contrário, ele
seria capaz de perceber que estou corando. Lembro-me de como a
mãe dele se iludiu ao acreditar que ele era virgem e sorrio
maliciosamente antes de conseguir me conter.
Nicholas ergue uma sobrancelha para mim enquanto desliza a
porta e entra. Espero seu olhar descer, mas não acontece. Ele
balança a cabeça em diversão, provavelmente porque ainda estou
tentando me cobrir, então se vira e começa a se ensaboar.
Não me mexo. Preciso lavar o cabelo, mas isso exigiria o uso de
minhas mãos. Decido ficar numa posição contrária a dele,
minimizando o que ele pode ver. A parte de trás não é tão
interessante quanto a da frente, eu acho.
Estou errada sobre isso, o que se torna gritante quando vejo
nossos reflexos na porta do box. Ele está olhando para mim. Meu
olhar desliza para baixo de sua cintura sem minha permissão e fica
claro que ele encontrou algo para apreciar na vista que está tendo.
— Não olhe para mim — eu protesto.
Sua risada é profunda e cheia de som na acústica de nosso
banheiro cheio de vapor.
— Eu não estou olhando.
— Está sim.
— Como você poderia saber a menos que esteja olhando
também? — Ele pega meu condicionador.
Eu me viro e tomo de sua mão.
— Isso é meu e é caro. Compre um para você.
Ele sorri como se quisesse dar risada porque eu cometi um
descuido no posicionamento das minhas mãos, então rapidamente
cubro seus olhos. Ele aperta os olhos sob minha palma, franzindo o
nariz.
— Ainda consigo ver.
— Jesus. — Viro-me novamente.
— Pois não?
Sinto vontade de pisar em seu pé. Meu único caminho a seguir
aqui é me apressar para que eu possa fugir. Tento me curvar um
pouco para ficar menor, porque na minha cabeça isso dá a ele
menos de mim para ver, lançando-lhe olhares furtivos pela porta do
box. Ele está se lavando mais devagar do que já fez em toda sua
vida, encarando abertamente. Acho que está tentando me deixar
nervosa. Se esse for o caso, está funcionando. Deslizo uma mão
atrás de mim, tentando esparramar meus dedos sobre minha bunda
e bloqueá-lo de qualquer coisa prazerosa, o que só o faz rir de novo.
— Feche os olhos — exijo.
— Ok.
Ele não fecha os olhos.
— Feche-os!
— Eu fechei.
(Ele não fechou.)
Preciso enxaguar o cabelo, mas ele está de pé diretamente sob o
jato de água, dando-me muito pouco espaço para me manobrar.
Coloco uma mão em seu peito e ele imediatamente obedece, dando
um passo para trás. A pele de Nicholas é como cetim quente sob
meus dedos, respondendo ao meu toque com arrepios e uma
pulsação acelerada. Desejo afundar minhas unhas no menor
pedaço oferecido de sua carne, mas nesse exato momento cada
hesitação, cada passo e meia-volta e inclinação transmitirá uma
mensagem primitiva. Ele está esperando o sinal que diz Sirva-se do
que quiser. Não desperdice. Me lamba até a última gota.
Para me impedir de fazer um convite que sou muito covarde para
cumprir, mantenho meus olhos fechados enquanto enxáguo o
cabelo, a mão imóvel contra seu peito para ter certeza de que ele
não pode se aproximar. Quando abro meus olhos novamente, seu
olhar está flamejante, a mandíbula branca e rígida, e eu imagino
rachaduras subindo desse osso até o topo de seu crânio. Há pérolas
de vapor em seus cílios e sobrancelhas, o suor escorre ao longo da
ponte do nariz e das cavidades em suas bochechas. Ele é uma
onda de calor e com apenas um gesto meu ele vai me assar viva
com prazer. Meu coração bate forte: como uma criatura selvagem
com asas em minhas costelas. Parece que ele está prestes a
enlouquecer e, não vou mentir, estou um pouco nervosa com o que
ele pode fazer.
Já se passaram doze semanas desde que fiz sexo. Doze
semanas para Nicholas também, se ele não estiver me traindo.
A imagem dele dormindo com outra mulher, e eu o pegando em
flagrante, não inspira o mesmo sentimento vitorioso de antes. E sim
joga um balde de água gelada sobre todos os meus pulsantes e
zonzos pensamentos que dizem preciso de você, me pegue em
seus braços, enquanto a fúria líquida persegue por minha corrente
sanguínea, as sinapses entrando em curto. Se eu pegá-lo me
traindo no estacionamento de um shopping, vou parar no noticiário
da noite. É melhor Stacy Mootispaw ficar longe das calças cáqui
proibidas-pelo-código-de-vestimenta do meu noivo ou ela vai ter que
colocar os próprios dentes de volta na boca depois que eu os
arrancar.
Não posso me permitir pensar nele dessa forma, comigo ou com
qualquer outra pessoa. É perigoso demais e há muitos machados
que Leon deixou para trás no galpão. Se eu evocar memórias de
nós dois em posições íntimas e sobrepor o rosto de Stacy ao meu,
desmaiarei e recuperarei os sentidos fazendo buracos através de
todas as nossas paredes.
Me apresso para me lavar, como se pudesse fugir desses
pensamentos intrusivos, e praticamente caio fora do chuveiro
enquanto ainda há espuma no meu cabelo. Lanço um rápido olhar
para Nicholas enquanto pego minha toalha. Ele não fala uma
palavra, mas é como se tivesse um balão de pensamento acusador
acima de sua cabeça que diz: Covarde.
Correr parece entregar uma dose do meu poder a ele, mas eu
abraço meus métodos covardes e subo correndo para o meu quarto
a fim de me vestir. Quando me acalmo o suficiente para descer na
ponta dos pés, Nicholas está no sofá e o cabelo já está seco. É
extremamente perturbador a rapidez com que o cabelo de um
homem seca e fica perfeitamente bem.
— Olhe para fora — ele me diz.
Espio pela janela e meu coração dispara quando uma cascata de
flocos de neve passa e gruda no vidro. Eles derretem um por um.
— Neve!
Estamos em meados de novembro, mas para mim o Natal
começa com a primeira neve. Fico com um brilho no olhar durante
toda a estação, fazendo piruetas ao redor da casa enquanto espalho
artigos de decoração comprados na Hobby Lobby a torto e à direita.
Coloco todos os clássicos para tocar no som projetado para ser
ouvido por toda a casa e enfeito a árvore bem antes do Dia de Ação
de Graças. Eu sou aquela pessoa das redes sociais que você
absolutamente odeia porque eu digo coisas como FALTAM 224
DIAS PARA O NATAL, em maio. Toda a festividade do Natal, a
alegria e a magia dele, me deixam feliz, então tendo a esticá-lo o
máximo possível.
Viro-me para ver o que ele está assistindo na TV e dou uma
olhada melhor. A televisão está desligada. Ele está me olhando
através da tela preta.
Algo sobre a maneira como seus olhos estão me seguindo parece
íntimo, fazendo minhas pernas ficarem bambas. Tenho consciência
do jeito como meus braços balançam quando me movo e da
maneira como ando. É semelhante à maneira como às vezes me
movo nos sonhos, onde há uma resistência inexplicável. Quase
como se eu estivesse tentando andar debaixo d'água.
Vou para a sala de estar porque quero ver a neve através
daquelas três lindas janelas, mas a grande mesa dele me bloqueia.
Ele vê a mudança em minha expressão quando volto para a outra
sala.
— O que há de errado?
— Nada.
Ele não fala, mas seu olhar se estreita. Um dos tornozelos está
apoiado no joelho, as pontas dos dedos tamborilando no braço do
sofá.
Nada.
É a resposta de um autodenominado mártir. Ela garante que o
problema não seja resolvido e que eu sofra sozinha. O que eu
ganho por dizer nada?
— É só que… — Sento-me no outro braço do sofá, fora do
alcance do toque. — Quando você me mostrou a casa pela primeira
vez, uma das coisas que eu mais gostei foram as janelas de lá, hã...
de lá de dentro. — Ele chama o lugar de “meu escritório” ou “minha
sala de trabalho” e, na minha cabeça, ainda chamo de sala de estar,
porque em uma vida passada fui uma duquesa e nunca superei
totalmente o fato de ter renascido como uma plebéia nesta época.
— Eu pensei, uau, que vista bonita. Você seria capaz de ver todas
as estrelas por sobre a floresta. Imaginei colocar uma poltrona bem
ali, para poder sentar e admirar a vista. Gosto daquele cômodo. Eu
colocaria, sei lá, talvez um quebra-nozes na prateleira da lareira ou
algo assim. Sei lá. — Encolho os ombros para minimizar a situação.
Eu pareço uma louca. Um quebra-nozes? Fala sério? Estas são
minhas queixas? Tenho focado em detalhes tão minúsculos.
Fico imediatamente envergonhada por admitir isso em voz alta e
estou prestes a pedi-lo para deixar para lá a coisa toda quando
Nicholas se levanta e entra na sala de estar. De pé do outro lado da
mesa dele, ele desliza as mãos nos bolsos e olha para as janelas
como se nunca tivesse dado uma boa olhada na floresta para além
delas antes.
— Você está certa — ele diz. E vira o rosto em minha direção.
Seus olhos são da cor de um abeto prateado. São neblina e luar.
Não sei a que parte do meu discurso ele está se referindo ao
dizer isso, mas vou aceitar. Entramos em um padrão que é
completamente novo, mas de alguma forma já parece enraizado:
silenciosamente fazemos o jantar e sentamos em frente à televisão.
Nós não a ligamos. Comemos em um silêncio sociável enquanto a
neve cai continuamente ao nosso redor e a escuridão sufoca o
mundo.
Nosso cessar-fogo chega ao fim, previsivelmente, vinte minutos
depois do jantar, quando ele ouve meu celular, na prateleira da
lareira, tocar. Eu não me levanto.
Ele olha para a lareira e depois para mim. É um olhar longo e
pensativo.
— Não vai ver o que é?
— Não.
Sua suspeita é palpável, mas não estou mentalmente preparada
para olhar minhas notificações. Meu coração dispara apenas por
saber o que pode ser, e preciso me dar tempo para superar a onda
de ansiedade, me preparar para receber más notícias, antes de dar
uma olhada.
Uma das pessoas com que eu estive secretamente em contato
para falar sobre um emprego em uma loja de artesanato que eu
realmente, realmente gosto (e já comecei a criar expectativas sobre)
me disse há três dias, depois que eu fiz a entrevista, que ela levaria
três dias para verificar minhas referências e considerar os outros
candidatos antes de me enviar um e-mail com uma decisão. Passei
o dia alternando entre checar obsessivamente meu celular (e meu
computador, caso por alguma razão o e-mail não apareça no meu
celular) e fingindo que a internet não existe. Meus nervos estão em
frangalhos.
Quanto mais continuo fingindo que não tenho uma notificação,
mais pesado se torna o olhar de Nicholas. O gesto pesa sobre mim,
é desconfiado. Consigo ver claramente qual é o problema dele,
porque é um que eu mesma estou tendo: ele tem perguntas a fazer,
mas com o estado em que se encontra nosso relacionamento,
certas informações parecem privilegiadas. Não estamos em posição
de exigir respostas.
É como quando duas pessoas estão saindo casualmente, mas
ainda não oficializaram a relação. Nesta fase de ternura, eles não
têm o direito de saber tudo o que querem saber sobre o outro, por
isso não podem se comportar com uma familiaridade ainda não
conquistada. É essa sensação que nós dois temos.
Nicholas está frustrado com a restrição dele. Toda a situação é
uma dança irritante que gera ressentimento.
— Como foi o processo de orientação da Brandy?
Fico surpresa com seu interesse, especialmente porque ele nem
mesmo fingiu que não sabia o nome verdadeiro dela.
— Ela diz que o chefe é desprezível. Já está à procura de um
novo...
— Melissa está bem? — ele pergunta, me interrompendo.
— Hm… — Melissa e eu estamos gratas por podermos deixar
nossa convivência cair no esquecimento. — Eu não tenho falado
com ela.
— Ainda fala com o Zach?
Dou de ombros. Não ficaria surpresa se Zach e eu nunca mais
nos cruzássemos. Ele é o tipo de cara que você pode imaginar
fugindo para Los Angeles num impulso, onde inventará um aparelho
simples que se tornará um produto básico diário que você não vai
conseguir se imaginar vivendo sem. E em cinco anos, eu o verei na
Lista de bilionários da Forbes.
O olhar de Nicholas escurece. Seu pé se agita inquieto sobre o
joelho.
— Que tipo de hidratante de pele você usa? — ele me pergunta.
— Hã?
— Tenho pensado em ideias para o amigo secreto de Natal. Seu
hidratante tem um cheiro bom.
Se chama Doce Sedução, e eu aplico em minha pele depois de
cada banho. A ideia de ele dar a Stacy Mootispaw um presente
chamado Doce Sedução e, subsequentemente, aquela mulher ficar
com o mesmo cheiro que o meu, me faz querer arrancar os olhos.
— Acho que o que o cheiro que você está sentindo é o do meu
xampu.
— Não, não é isso.
Remexo em uma pilha de correspondências sem importância
porque preciso desesperadamente quebrar o contato visual. Não
sou uma mentirosa tão talentosa como costumava pensar, e não
quero que ele veja que isso me incomoda tanto assim. Não vou dar
a ele o nome do meu hidratante, mesmo que ele enfie brotos de
bambu sob minhas unhas. Stacy pode continuar cheirando a luvas
de látex e anti-séptico e ficar na porra do canto dela.
Meu celular vibra novamente. É o emprego na loja de artesanato?
Ou outra pessoa me dizendo não? Há zero por cento de chance de
que sejam boas notícias, sejam elas quais forem, então para quê
levantar? Do que adianta arruinar o resto da minha noite e ficar
deprimida amanhã? Nunca mais vou checar meu celular de novo.
Vou me tornar uma reclusa anti-tecnologia. Vou ser totalmente
dependente de Nicholas, o que ele vai adorar. Ele quer arrancar
todas as minhas redes de proteção antes de me jogar no mar.
— Acho que alguém está enviando uma mensagem para você —
ele diz baixinho.
Dou de ombros.
— Provavelmente é um e-mail de spam.
— E você não quer olhar? Pode ser a Brandy.
— Acho que não. Ela está em um encontro com Vance, o
optometrista.
Ele ouve o medo em minha voz, a recusa teimosa. Seus olhos
são lasers queimando através de mim; posso sentir o cheiro da
minha pele esquentando e começando a fumaçar. O fato de ele não
saber que todas as minhas notificações são rejeições significa que
ele não tentou bisbilhotar meu celular quando eu não estava
olhando, o que aprecio. Não importa o quanto isso o incomode, ele
não invadirá minha privacidade.
— Talvez joias — ele diz de repente.
Eu olho para cima. Não me candidatei para trabalhar em
nenhuma joalheria. Porém, ele não sabe o que está se passando
em minha mente. Não sabe que meus órgãos estão sendo
esmagados em uma prensa.
— O que tem “joias”?
— Para Stacy.
Este tópico é irritante. Estou completamente aborrecida e há
espinhos crescendo em minha carne. Quem se importa com o que
ela vai ganhar? Ele alguma vez já pensou tanto assim nos presentes
que compra para mim? Vou te dizer a resposta para essa pergunta:
não.
— Ainda não vejo nada de errado em dar a ela um vale-presente.
— Joias seriam mais legais.
— Joias caras seriam, mas não há um limite de quanto você deve
gastar? A maioria dos lugares que fazem amigo secreto de Natal
mantém o valor abaixo de vinte dólares ou algo assim.
— Não, não tem um limite — diz ele lentamente. Seus olhos
brilham, um canto de sua boca se curva para trás. Prendo a
respiração porque sei que ele está prestes a lançar uma granada. —
Além disso, quero que ela saiba que eu me importo.
— Ela não vai saber que veio de você — eu o lembro. — É um
amigo secreto em que as pessoas não sabem os remetentes.
— Acho que ela vai saber.
— Como? Como ela vai saber, Nicholas? — Senhor, é estúpido
pessoas adultas darem presentes de Natal umas às outras. Pelo
menos quando se trata de colegas. É humilhante. Pessoas que
trabalham juntas não deveriam ser forçadas a socializar
desnecessariamente. O que aconteceu com o profissionalismo no
local de trabalho?
É a vez de Nicholas dar de ombros, mas há algo de satisfeito em
sua postura.
— Nós nos conhecemos muito bem. Somos próximos. Acho que
ela vai ser capaz de sentir que fui eu assim... — Ele estala os
dedos.
— Dar joias para uma mulher com quem você trabalha é
inapropriado — digo friamente. — Um hidratante também. Compre
um par de meias e dê a ela, seu pervertido.
Ele vira o rosto para longe de mim, cobrindo a boca com a mão.
— Talvez um serviço de assinatura? Um serviço de entrega
mensal de flores.
Meu sangue vira espuma. A imagem dele presenteando-a com
flores me deixa homicida.
— Compre uma revista de viagens para ela. Ela deveria sair mais
do estado. Do país, até.
— Hmm, acho que estou mais inclinado com a ideia de dar joias.
Um par de brincos. Do que as mulheres gostam, Naomi? Você pode
ser útil aqui. Mulheres gostam de diamantes?
— Diamantes? — eu grito. — Para a sua colega de trabalho? Que
tipo de mensagem você está tentando passar?
— Não vejo nada de errado com diamantes — ele responde de
modo angelical, dando-me uma expressão de perplexidade falsa. —
Stacy é um membro valioso da nossa equipe. Acho que a Stacy
merece...
— Juro por deus, Nicholas, se eu ouvir o nome dessa mulher sair
da sua boca mais uma vez, vou colar seus lábios. Vou arrastá-lo
para fora e jogá-lo de volta naquele lago estúpido, nuzinho dos
santos dessa vez. Vou para o seu consultório e me acorrentar ao
seu pulso para que você nunca mais tenha nenhuma interação
privada com ela. Se você tentar dar a ela diamantes, vou roubá-los
de volta e colocá-los para cozinhar dentro da sua comida. Eu não
dou a mínima para o quão valiosos...
Faço uma pausa.
Nicholas está rindo.
— Isso é engraçado para você? — Estou soando estridente como
uma sirene.
— Um pouco — ele admite, tentando esconder um sorriso. — E é
nuzinho da silva. Essa é a expressão, só para constar.
— Se você der flores para aquela mulher — eu rosno. — Eu vou...
— Vai o quê? — Ele se levanta e vem em minha direção tão
rápido que não tenho tempo para reagir.
Suas palmas afundam no tecido do sofá, de cada lado da minha
cabeça, o rosto pairando sobre o meu. Tento recuar, mas não tenho
para onde ir. Meu sangue bombeia com tanta força que faz meu
coração doer.
Nicholas me lança um olhar selvagem, os olhos brilhando.
— O que você vai fazer, Naomi?
Há um frisson de antecipação e suspense em seu tom; algo que
ainda parece ter esperanças, apesar de nossos constantes ataques.
Procuro por uma arma afiada, mas não encontro nenhuma.
Encarando-o em nosso campo de batalha, largo toda a minha
armadura.
— Chorar — eu sussurro.
As cordas do nosso fundo de reserva se partem e ele cai sobre
mim, montado em meu colo, os joelhos cavando no sofá para
suportar o próprio peso. Seus dedos se enrolam no meu cabelo e os
lábios encontram os meus, macios, quentes e convidativos.
Ele não é gentil. A língua de Nicholas se lança ao longo da
abertura dos meus lábios em demanda, e eu os abro para ele
porque minha cabeça está girando e focar agora é um mito e ele
está me beijando assim. Ele já me beijou assim? Se sim, não me
lembro.
Demoro alguns segundos para acompanhá-lo, mas quando o
faço, fico chocada com o quão ansioso meu corpo está para trair
minha sensatez, esquecendo as coisas destrutivas que fizemos um
para o outro. Todos aqueles pensamentos escorregam água abaixo
enquanto eu arqueio contra ele e ele inclina os quadris contra os
meus, precisando de um contato mais próximo. Estamos nos
beijando com tanta força que continuamos renunciando à
necessidade de respirar. Nesta altura, não é importante. É um
detalhe mínimo.
Quanto mais nos tocamos, mais confusa eu fico, até que começo
a pensar que inverti meus dados. Acho que o odeio dezoito por
cento.
Nicholas nos reposiciona para que eu fique em seu colo, o que
me dá um dinamismo de poder emocionante. Eu poderia estragar
tudo agora, se quisesse. Ou poderia aumentar meu aperto em torno
de seus pulsos e beijar, morder, provar. Posso fazer o que quiser.
Sinto que ele vai deixar.
No entanto, uma coisa precisa ser esclarecida bem agora.
— Enquanto eu viver, você nunca vai dar nada a Stacy — eu o
informo. — Não me interessa se ela te pedir um chiclete. Não me
interessa se ela perguntar que horas são. Ela não vai receber nada
de você.
Sua risada perversa estremece contra meu pescoço.
— Não existe amigo secreto nenhum.
Eu me afasto para estudá-lo, meus dedos enrolando em torno de
seu colarinho.
— O quê?
Ele não responde, então eu bato em seu ombro com as costas da
minha mão.
— Não, sério. O quê?
Os olhos de Nicholas estão cobertos de luxúria e voláteis. Sua
voz sai da garganta em um arranhão.
— Me diga uma coisa, e não minta. Você está me traindo com o
Zach? Você já fez isso, em algum momento?
Até agora, tive algumas pistas de que estou presa em um sonho,
mas isso só confirma. Fico olhando para ele de perto, tentando
descobrir se está falando sério. Ele não pode estar falando sério.
— Você ficou louco?
— Por favor, não. Não me faça sentir que tudo isso foi coisa da
minha cabeça.
É a maneira atormentada como ele pronuncia “isso”, e o por favor,
que me influencia. Não tenho certeza se já fui carinhosa com
Nicholas antes, e quão lamentável isso é? Não sei como ser
vulnerável com ele, mas não há alternativa aqui. Tenho que agir com
cautela. Tento beijá-lo, mas ele não move os lábios contra os meus,
esperando pela verdade, a respiração saindo em arquejos curtos e
desconcertados. Ele respira tão irregularmente quanto eu.
— Não — eu digo, olhando em seus olhos para que ele saiba que
estou sendo honesta. — Não estou te traindo com o Zach ou com
qualquer outra pessoa. Eu nunca te traí. Por que você perguntaria
isso?
Sua resposta sai às pressas:
— Você não gosta que eu fique perto de nenhum de seus amigos
do trabalho. Zach me odeia. Sempre que o vejo, ele é hostil comigo
sem motivo. Você ri muito alto quando lê as mensagens dele. E
perdeu o interesse em mim, o que também não é coisa da minha
cabeça. Eu senti você indo embora.
O que ele diz realmente faz sentido, mas ao mesmo tempo é tão
absurdo que não posso evitar a risada que explode no meu peito.
É a reação errada. Os olhos de Nicholas queimam de raiva. Ele
tenta me empurrar, mas eu o surpreendo ao travar meus braços em
volta de seu pescoço. Ainda tremendo de tanto rir, digo:
— Desculpa. Estou apenas imaginando a expressão no rosto de
Zach se ele ouvisse você acusando-o de estar me pegando.
Ele está envergonhado e irritado e lutando a sério agora, então
me apresso.
— Ele não gosta de você porque você é um dentista bicho-papão
assustador e ele acha que você está em pé de guerra para
conseguir fazer vinte tratamentos de canais sem anestesia nele. Ele
iria amar saber que está vivendo na sua cabeça assim, porque isso
é simplesmente quem Zach é. Ele gosta de irritar as pessoas. Mas
não, não há nada acontecendo entre Zach e eu. Nunca aconteceu.
Se você não acredita em mim, pode ir perguntá-lo. Ele e o
namorado vão se divertir com isso, tenho certeza.
Nicholas fica imóvel, me olhando com ceticismo.
— Namorado?
— Sim. Acho que ele namora mulheres também, ou costumava,
enfim. — Dou de ombros. — Não é da minha conta. Nunca
estivemos interessados um no outro assim. — Estreito meus olhos.
— E você? Você já me traiu?
— Não.
Ele soa sincero. Ele parece sincero. Quero acreditar nele, mas...
— Nem com a Stacy?
Ele engole em seco e desvia os olhos. Meu estômago embrulha.
— Eu falei sobre a Stacy para mexer com você. Eu só queria uma
reação. Queria ver se você sequer se importaria se pensasse que
eu estava... — Ele está perdido, tentando pensar em uma
explicação decente. — Eu não deveria ter... ahh.
— Você deliberadamente tentou me fazer pensar que você
poderia estar interessado em outra mulher? Para me magoar?
— Não para te magoar. Foi para ver se você era capaz de se
sentir magoada por isso. Sei que soa ruim, mas tem uma diferença.
— Não tenho certeza se tem.
— Você está certo, isso soa ruim.
Mas não sou inocente em toda a situação. Há apenas alguns
dias, raspei um milímetro de madeira da perna da mesa dele para
que ficasse em falso. Também tentei enlouquecê-lo de propósito.
Com isso, eu me inclino e o beijo novamente. Sua surpresa dá
lugar ao desejo, as mãos agarram meus quadris. É eletrizante como
isso parece ilícito para mim. Eu não sou a mesma Naomi e ele não é
o mesmo Nicholas. É como se eu estivesse traindo o meu noivo. O
beijo continua mudando de nome e ganhando novos significados. É
rápido e ágil, forte; então devagar, explorador. Estamos em sincronia
em cada transformação, pacientes e depois não mais, curiosos,
degustadores e desesperados. Acima de tudo, cientes. Não
esqueço de quem estou beijando. Eu não me desligo.
Esse é o elemento que está se destacando para mim com tanta
força agora: o quão vivo este homem está. Cada pedaço dele,
vívido, comunicando-se com todos os meus sentidos. Não é que ele
nunca tenha sido assim, ou tido esse gosto, ou que sua pele nunca
tivesse tido essa sensação contra a minha. É que eu estive
dormindo. Me pergunto que tipo de revelação ele está tendo com o
nosso beijo. O que ele está descobrindo sobre mim agora.
É um alívio maravilhoso que, nesses momentos, estejamos na
mesma sintonia. Lutar com ele tem sido exaustivo e é bom embaçar
a sala com uma coisa diferente para variar. Eu quero gerar uma
névoa de luxúria tão densa que ele nunca será capaz de encontrar
uma saída.
Ele tem gosto de doce, o tipo que começa azedo e se dissolve em
uma doçura insuportável na língua. Estamos reduzidos às
necessidades básicas e nada mais. As peles quentes e
abrasadoras. Cílios abaixados. Respirações pesadas. Mãos em
todos os lugares. Quero que ele me toque sem imaginar o que estou
pensando – que tome o corpo, e esqueça o coração. Estar tão perto
ao ponto de ele não poder me estudar é uma benção, estou
escondida bem na frente dele, distraindo-o com minha boca em seu
pescoço toda vez que ele hesita e se inclina, à procura dos meus
pensamentos.
Lembro-me de que durante os beijos passados eu achava que tê-
lo perto demais ao ponto de não poder ver minhas expressões
proporcionava um bom disfarce. Não tenho certeza do que aqueles
beijos significaram para qualquer um de nós. Para mim, uma
satisfação insatisfatória. Para ele, acho que uma reconexão que
nunca aconteceu.
Ainda estou tentando decidir o que esse beijo significa quando
paramos. Nós nos afastamos lentamente, nos observando. Ele pode
ter armas nas costas, mas de alguma forma eu acho que não. As
minhas estão ao alcance do braço.
As emoções que correm por mim são tão desconcertantes que
fico grata quando ele se levanta para ajustar as configurações do
aquecedor. Geralmente não sou uma pessoa agitada, mas agora
estou me lançando em direção a um ataque de pânico completo.
Não sei o que está acontecendo e não sei o que está acontecendo
na cabeça de Nicholas nos últimos dias. Certamente não sei o que
está acontecendo na minha. Corro para o meu quarto, consciente
dele me observando enquanto subo as escadas. Mais uma vez, é
como se eu estivesse me movendo embaixo d'água, sob seu
microscópio, com o cérebro inteligente de Nicholas decodificando
mensagens que estou enviando sem nem saber com o modo como
ando, a distância entre cada dedo afastado meu, a cor em minhas
bochechas. Nunca esteve tão óbvio o quanto ele consegue enxergar
quem eu realmente sou. A questão é: há quanto tempo ele está
olhando?
Ainda posso sentir seu olhar fixo em mim, mesmo quando estou
deitada na cama, o coração batendo de forma irregular, os olhos
abertos para a escuridão absoluta.
Já é tarde da noite quando acho que estou ouvindo o barulho da
maçaneta. Eu tranquei por hábito. Talvez esteja imaginando o
barulho. Fecho meus olhos por um momento, com a intenção de me
levantar e ir olhar, mas quando eles se abrem novamente, um
segundo depois, já amanheceu.
Eu me visto sob a frágil luz da manhã e me arrasto pelo corredor. A
porta de Nicholas está entreaberta, então chego mais perto na ponta
dos pés. Sua cama está vazia, o edredom com estampa de folhas
de palmeira um pouco puxado para baixo. Sei como é a sensação
de ter esse cobertor contra minha pele nua. Eu o considero como
um velho amigo que não via há muito tempo, junto com a cabeceira
que escolhemos juntos. As cortinas que escolhemos juntos.
Naqueles primeiros dias, diríamos sim a qualquer coisa, nas nuvens
para fazer um ao outro feliz. Eu teria dormido em um saco de dormir,
se isso fosse o que ele queria.
Seu novo quarto é organizado da mesma maneira que o nosso
antigo. O colchão é novo, pois tirei o nosso outro. Lançando um
rápido olhar para a porta, me sento na cama e dou um pulinho. Este
colchão é muito melhor que o meu. Meu quarto contém as sobras –
as cortinas que costumavam ficar penduradas em nossa antiga
cozinha, o que significa que são muito curtas e não bloqueiam a luz
o suficiente. Minha colcha é uma manta de Natal para enfeitar sofás.
Estudo o espaço vazio ao lado de sua cômoda e imagino a minha
ali. Minha mesa de cabeceira deveria estar do lado direito da cama,
e a ausência dela torna todo o quarto errado. Ele mantém um de
seus travesseiros no espaço onde minha cabeça deveria estar.
É uma má ideia me demorar aqui, mas sou intrometida demais
para o meu próprio bem. Vasculho o armário dele, tocando todos os
seus moletons e ternos lavados a seco. A camisa cor marfim de
botões que ele usou em nossa desastrosa sessão de fotos de
noivado. Nossos sorrisos eram forçados em todas as fotos. Entre os
cliques, murmurávamos baixinho e acusávamos o outro de não
tentar, de não querer estar lá.
Uma dessas fotos deveria estar em uma moldura na mesa de
cabeceira dele. A mesa de cabeceira contém apenas um abajur.
Meu coração despenca, mas então vejo a moldura pendurada na
parede. Ele trocou a foto de noivado que nenhum de nós queria tirar
e a substituiu por uma memória que me leva de volta ao inverno
passado, dias depois de ele me pedir em casamento. É um pouco
borrada e meu braço está desproporcionalmente largo porque estou
o estendendo para tirar a foto.
De acordo com a tinta vermelha ao fundo, estamos na cozinha de
seu amigo Derek. É o chá de casa nova de Derek e, de zoação,
demos a ele uma arminha que atira marshmallows. Nicholas está
bem ao meu lado, a cabeça no meu ombro. No último segundo,
nosso contato visual abandona a câmera, percebendo que há um
marshmallow preso no teto acima de nós. Minha mão passa
inconscientemente pelo cabelo dele e segura sua cabeça no meu
pescoço, o que me parece um gesto afetuoso que não faço há muito
tempo. Simples assim, uma imagem posada torna-se espontânea.
Assim que o flash disparou, o marshmallow caiu na cabeça de
Nicholas e todos riram. Você capturou esse momento?
Não, eu capturei o momento um pouco antes.
É uma pena.
Eu me pergunto quando Nicholas mandou revelar esta foto. Por
que essa foto em particular, entre as centenas que tiramos de nós
mesmos? Por que ele iria querer isso em sua parede? Até este
momento, eu achava que essa foto existia apenas no meu
Instagram. Olhando-a agora, sentindo essas emoções, a foto se
solidifica em uma memória com vida própria.
Já passei tempo demais no quarto dele – dele, não nosso – e
tenho que sair antes de ser pega, mas preciso saber mais. Tenho a
missão de examinar de perto os pertences desse homem, as coisas
que ele toca diariamente. Já vi tudo isso tantas vezes que me tornei
insensível a elas, então preciso me concentrar. Preciso vê-las
através dos olhos da nova Naomi.
Remexo em sua mesa de cabeceira, tocando cada objeto. Seu
porta lentes de contato e o frasco da solução usada para limpá-las.
Um estojo para seu óculos. Lubrificante, que a essa altura é melhor
eu jogar fora. Um carregador antigo que não é mais compatível com
seu celular atual é o próximo objeto. Balinhas Skittles. Uma caneta e
um bloco de notas de uma rede de hotéis, a folha de cima contém
uma carinha feliz que eu desenhei. Pego uma embalagem de
canudo descartável e estou prestes a deixá-la lá quando vejo que as
pontas estão amarradas.
E eu me lembro.
Há alguns meses, Leon foi comprar comida chinesa para todo
mundo na Ferro Velho. Nicholas passou lá enquanto comíamos, um
homem estranho em seu blazer preto chique e sapatos de ponta de
asa. Acho que a provocação que ele recebe por conta de suas
vestimentas tipicamente Rose é o motivo de ele se agarrar às calças
cáqui: Olha! Posso ser casual também.
Ele planejava me levar para jantar como uma surpresa e não
entendeu que eu não queria deixar de lado uma comida barata que
não era nem tão boa assim em favor de dirigir por uma hora até um
restaurante de luxo. Eu fazia parte de algo naquela época, parte da
família Ferro Velho. Ele era o intruso, irritado por eu ter prejudicado
seus planos. Irritado porque eu tinha uma nova família e ele não foi
convidado a fazer parte.
Com o jantar surpresa frustrado, ele não tinha certeza se o
queríamos por perto. Ficou caminhando desajeitadamente pela loja
por alguns minutos, claramente tenso, nos lançando olhares sempre
que ríamos. Não me juntei a ele enquanto ele vagava pelos
corredores, dolorosamente ciente de que metade dos meus colegas
de trabalho não gostava dele. Eu não queria que eles achassem que
eu e ele éramos farinha do mesmo saco. Juntar-me a Nicholas seria
como declarar minha lealdade a ele, e então eu seria a intrusa
também.
Então, fiquei onde estava e não tentei aliviar seu
constrangimento. Não tentei trazê-lo para nossa conversa. Peguei
as embalagens dos canudos de todo mundo e as amarrei para
virarem pulseiras, que todos colocamos, até mesmo Melissa.
Nicholas se aproximou enquanto eu estava amarrando uma
embalagem de canudo extra, então entreguei a ele. Uma decisão
que só me ocorreu depois.
E ele guardou. Ele poderia facilmente ter jogado fora quando nos
mudamos, mas aqui está. O sentimentalismo secreto de Nicholas.
Minha garganta queima. Meus dedos se enrolam em torno do
pedaço de lixo, preservado nesta gaveta como um tesouro precioso.
Eu ouço uma crise de tosse vinda de lá de baixo e coloco a pulseira
feita com embalagem de canudo onde a encontrei, depois saio
correndo do quarto.
Quando desço as escadas, encontro Nicholas esparramado no
sofá, tossindo durante o sono. Lenços de papel usados amontoam-
se na mesa de centro e no chão. Ele está enrolado nos cobertores
como se estivesse se virando de um lado para o outro, a camisa
subindo e expondo um pedaço de estômago. Seu cabelo está uma
bagunça e o óculos está posicionado de forma torta no rosto. Ele
parece jovem, corado e doce.
Eu cuidadosamente removo seu óculos e o coloco sobre a mesa
de centro, então dou uma checada em sua testa. Ele está úmido,
mas sem febre. Não sabe que estou olhando para ele, o que me dá
passe livre para olhar mais de perto. Sua estrutura óssea é tão
elegante que quase o odeio por isso. Ele se desviou de todos os
genes de Harold enquanto se desenvolvia como um embrião e só
vai ficar mais distinto dele à medida que envelhecer.
A caixa de lenços de papel está vazia, por isso pego uma nova
em um armário. Então vejo que ele passou uma noite e tanto aqui
sozinho, há uma parafernália de remédios espalhada por todo o
balcão sob o armário onde guardamos antiácidos, comprimidos para
alergia e coisas do gênero. Há um copinho de remédio de plástico
na pia com uma gota de um líquido vermelho-cereja. Ocorre-me que
ele provavelmente dormiu no andar de baixo para que sua tosse não
me acordasse, e meu coração dá um pequeno salto, dando uma
volta.
Procuro nos armários e pego um pacote de pastilhas para tosse,
então as deixo na mesa para ele também.
— Você tinha que comprar aquela canoa, não tinha? — murmuro
para mim mesma, caminhando para a sala de estar. Eu me esgueiro
atrás de sua mesa para olhar para fora e quase suspiro.
Lá fora parece um país das maravilhas. Há uns bons dez
centímetros de um branco cintilante cobrindo tudo, até o lago, o que
significa que a canoa não vai a lugar nenhum. Está encalhada no
meio, rodeada por gelo. A floresta é incrivelmente bela, com o
nascer do sol brilhando sobre a borda do mundo, colorindo os
espaços entre os galhos como vitrais.
Gostaria que Nicholas estivesse acordado para ver isso, mas,
novamente, a neve não é tão mágica para ele quanto é para mim.
Para ele, neve significa que ele tem que sair e...
Ah, droga.
Minha alegria se transforma em pó. Nicholas uma vez me deixou
em uma livraria para ir de carro até a casa dos pais e tirar os
mantimentos do porta-malas de Deborah na chuva. Ele fez isso
porque ela ligou e pediu. Ele corta a grama e conserta as coisas da
casa dela e se preocupa com a memória, consultas médicas e
finanças deles. Ele é incuravelmente preocupado e cuidará deles
enquanto viver, mesmo que eles não precisem necessariamente
disso.
Fico olhando para o jeito como ele está miserável no sofá, as
costas convulsionando para fora das almofadas a cada crise de
tosse. Ele está tão exausto que a tosse nem o acorda. Este homem
está doente, mas isso não vai impedi-lo de ir para a casa dos pais
esta manhã e limpar a calçada deles. Isso é simplesmente quem
Nicholas é. Ele é Esse Cara.
Olho de novo para a neve lá fora, para o termômetro do outro lado
da janela que indica sete graus negativos, e penso com uma
veemência que me choca: Não.
De jeito nenhum.
Só há uma maneira de detê-lo, então é isso que preciso fazer.
Pego meu casaco e chapéu no armário, mas vejo seu macacão e
levanto uma sobrancelha em consideração. Pode não ser uma má
ideia usar algo um pouco mais resistente. Depois de vestir meu
equipamento de caçadores de fantasmas e arregaçar cerca de um
quilômetro de bainha de calça para que o tecido não se arraste
mais, decido ir até o fim e pegar seu horrível chapéu com protetores
de orelha também. Tem o cheiro dele, o que é estranhamente
reconfortante, embora ele esteja bem aqui, e a lã é tão macia e
confortável.
Eu preciso comprar um desse.
Assim que estou toda empacotada, pego as chaves de seu jipe e
jogo três pás diferentes na parte de trás. Três pás, porque são de
tamanhos diferentes e tenho vergonha de dizer que nunca tirei neve
da calçada antes, então não sei qual vou querer usar. Nicholas faz
todo o nosso trabalho. Eu não acho que seja algo que eu tenha
apreciado até agora: ele sempre abriu um caminho ligando a nossa
varanda ao meu carro quando morávamos na antiga casa. Ele
nunca me pediu para fazer isso, nem mesmo uma vez.
Na verdade, ele raspava o gelo das minhas portas e para-brisas
também. Ele faz isso antes de sair para o trabalho, antes de eu
acordar.
A vergonha queima meu rosto. Quando foi a última vez que o
agradeci por isso? Quando foi a última vez que percebi que ele fazia
essas pequenas coisas por mim e simplesmente deixei de dar
valor? Estive tão obcecada com o fato de ele fazer isso por sua mãe
e seu pai que meio que esqueci que ele faz isso por nós também.
Dirijo muito, muito devagar até a casa do Sr. e Sra. Rose em
Sycamore Lane. Só a estrada principal recebeu a visita de um
caminhão de sal, mas o jipe é um completo campeão e nunca
derrapa. Estou ao volante do jipe de Nicholas que ele comprou sem
me contar e tenho tempo demais sozinha com a revelação
perturbadora de que sou uma babaca.
As luzes estão acesas quando eu chego na calçada, o que
significa que Deborah está acordada. Harold tem pelo menos até o
meio-dia antes de rolar de cara no chão.
A neve linda e intocada cobrindo a calçada deles me deixa
irritada. Eles não veem problema em contratar pessoas para lavar a
casa, podar as roseiras e organizar estruturas rochosas nos
canteiros de flores. E no entanto, por qualquer razão arbitrária, eles
dependem de Nicholas para resolver esse problema específico. Eles
esperam por isso. Dizem que ele é tão bom, tão gentil, e essa
pressão pesa dez toneladas, garantindo que ele nunca pare de fazer
isso. Se ele parar, eles retirarão toda a aprovação que sentem. Não
será mais o filho bom e gentil. Ele ouve a maneira como eles falam
sobre Heather e sabe que, com um passo em falso, eles estarão
falando sobre ele da mesma maneira.
Eu rosno para a neve, para as janelas aquecidas e brilhantes e
para a silhueta de Deborah aparecendo. Seu prazer maternal
irradia.
Nicky está aqui para cuidar de tudo! Ele adora nos ajudar e se
sentir útil.
Hoje não, idiotas! Hoje vocês terão uma substituta que é, na
melhor das hipóteses, incompetente quando se trata de trabalho
manual, e vocês terão que simplesmente lidar com isso.
A calçada deles é pessoalmente cruel comigo de imediato, uma
crosta de gelo engole uma de minhas pás. Eu cavo para pegá-la de
volta, o nariz pingando como uma torneira, o rosto, um bloco
congelado de “Por que, deus, por que” enquanto o resto do meu
corpo derrete como uma vela dentro deste macacão. Este é o fundo
do poço. Isso é uma maldita idiotice. Chamo minha situação atual de
cada palavrão que consigo inventar. Às vezes, Nicholas vem para
este mesmo lugar bem antes de ter que ir trabalhar, e mentalmente
repasso essa linha do tempo. Para conseguir tomar banho e chegar
à Rise and Smile às sete, isso significa que ele precisa fazer esse
trabalho no escuro. Fico tão puta por ele que movo a pá mais
rápido.
É francamente incrível que ele ainda tenha alguma boa vontade
em seu coração para com os pais. Quero arrastá-los para fora e
enterrá-los com minha pá.
Há tanta neve para limpar que fico assustada demais para agir de
forma metódica e cavo aleatoriamente, jogando a neve por cima do
ombro. Deborah e Harold não vão receber bordas perfeitas de neve
dos dois lados da rua. Eles vão receber um massacre. Ocorre-me
que, se eu voltar da próxima vez que nevar e fizer outro trabalho
péssimo, Nicholas estará livre dessa obrigação. O Sr. e a Sra. Rose
vão me implorar para parar. Eles vão contratar um cara para limpar
a neve.
Quando estou quase na metade, a porta da frente se abre e
Deborah sai com um casaco de pele que provavelmente é feito
exclusivamente de filhotes de animais, com uma caneca fumegante
na mão. Ela se apressa, com um grande sorriso no rosto, até que se
aproxima e percebe que a pessoa de macacão e um chapéu horrível
sou eu.
— Ahh!
Seu horror é revigorante. Quero que se transforme em perfume.
Roupas. Esferas efervescentes para banho.
— Naomi — ela diz gravemente, como se tivesse acabado de
ouvir as notícias mais terríveis. — Eu não estava esperando...
— Isso é para mim? — Alcanço a caneca. É chocolate quente.
Antes que Deborah possa responder, eu pego da mão dela e tomo
um gole. Há mini marshmallows flutuando no topo, e eu apostaria
minha alma que ela colocou trinta e dois deles, um para cada ano
de vida de Nicholas. Este chocolate quente tem um gosto melhor do
que o que ela me dá durante as visitas de inverno, confirmando
minhas suspeitas paranóicas de que Nicholas recebe as coisas
boas enquanto para mim são oferecidas coisas de qualquer marca.
Sua boca é um “O” redondo enquanto ela me observa beber.
— Obrigada — digo quando termino, devolvendo a caneca.
— Nicholas está se sentindo bem?
Não vou o submeter a uma visita inesperada da mamãezinha
querida com canja de galinha preparada pela “mulher”.
— Ele está ótimo — digo a ela alegremente. — Bem, é melhor eu
voltar ao trabalho. Tenho muito a fazer!
O resto da calçada praticamente se limpa sozinha conforme eu
entro em transe, pensando em Nicholas. Da próxima vez que ele
vier aqui para limpar, é melhor eu vir junto para ajudar.
Terminaremos na metade do tempo.
Todos os músculos que não estão dormentes doem quando entro
no jipe. Estou aqui há duas horas. Tenho certeza de que Nicholas
não leva mais de uma hora para atingir os mesmos resultados, se
não melhores. Quando saio da calçada, buzino duas vezes para me
despedir, porque imagino que seja isso que Nicholas provavelmente
faz.
A viagem de volta pra casa é melhor do que a de ida, pois as
máquinas limpa-neve deram um jeito nas estradas. Mal posso
esperar para chegar em casa e tomar banho, mas penso na noite
difícil que Nicholas teve. Em sua crise de tosse e em como ele vai
acordar com fome e deplorável, sem motivação para cozinhar para
si mesmo.
A maioria das lanchonetes daqui fecha nas manhãs de domingo,
mas o Blue Tulip Café, a cafeteria da irmã de Brandy, fica
emocionado quando eu estaciono. Não há clientes em nenhuma das
mesas e nem espaços entre os lanches na vitrine, o que significa
que sou a primeira cliente do dia. Este lugar vai seguir o mesmo
caminho da Ferro Velho e todos nós sabemos disso, então eu
compro mais que um. Sanduíches de café da manhã, sopa, café.
Um dos funcionários me ajuda a transportar tudo para o meu carro.
Faço mais uma parada para reabastecer nosso estoque de
remédios para gripe e resfriado antes de ir para casa. Pela primeira
vez desde que nos mudamos, visualizo a casa na floresta quando
penso na palavra lar, em vez da branca alugada na Rua Cole.
Quando o jipe estremece na entrada da calçada, posso ver
Nicholas esperando por mim atrás da porta de tela. Quando começo
a pegar a comida e os remédios, ele sai correndo de chinelos.
— Volte para dentro! — eu ordeno.
— Você precisa de ajuda.
— Você precisa se sentar. Está doente.
Ele pega o café e a sopa da minha mão, mesmo assim. Eu me
divirto com a maneira como ele fica olhando para mim,
completamente pasmo. Deborah já deve ter ligado para ele com um
relatório completo. Há montes de neve por toda a entrada agora, ela
apenas saiu jogando em qualquer lugar. E então bebeu todo o seu
chocolate quente! O da marca boa!
— Você não precisava fazer isso — ele me diz quando entramos.
— Limpar a neve da calçada dos meus pais. Por que fez isso?
— Se ninguém aparecesse para limpar a calçada, sua mãe
poderia ser forçada a fazer isso sozinha. Os terninhos da Gucci de
Deborah? Nesta neve? — Dou uma risada seca. — Que catástrofe.
Então eu disse: “Não sob a minha supervisão, neve”.
Seus olhos estão enormes. Se ele pensava que eu era uma
criança trocada antes, estremeço ao pensar o que ele imagina que
sou agora. Eu o importuno para ele esperar no sofá e levo seu café
da manhã, em seguida, checo sua testa para ter certeza de que ele
não está com febre. É adorável como seus fios de cabelo estão
espetados em todas as direções, corro meus dedos por eles. Ele
está sem palavras e eu sou basicamente a Sra. Cleaver. Acho que
poderia me acostumar com essa coisa toda de surpreendê-lo e
deixá-lo sem palavras. É delicioso.
— Está bonito lá fora — ele consegue dizer depois de dar
algumas mordidas no seu sanduíche de café da manhã, com um
aceno de cabeça para a janela. Sua voz está um pouco rouca,
provavelmente agravada por Deborah o fazer falar ao telefone. Vai
demorar um século para desfazer todo o dano que ela fez a ele,
mas começarei com Vicks VapoRub e um umidificador. — Toda essa
neve. Parece um cartão postal de férias.
Ele pensaria isso mesmo, já que está todo aquecido e
aconchegado em sua roupa de tecido flanela e chinelos. Não tenho
opiniões positivas sobre neve no momento. Dane-se a neve.
Gostaria que o aquecimento global se apressasse e abolisse toda a
estação. Eu resmungo evasivamente e passo por ele, retirando
minhas camadas de roupa conforme vou andando.
— Vou tomar um banho e talvez tirar um cochilo rápido — digo. —
Você vai ficar bem?
Ele acena com a cabeça, ainda atordoado. Ele não deveria ficar
surpreso com um gesto simpático. Deveria ser algo mínimo, mas
não é, e a culpa é minha. Tenho evitado fazer gestos simpáticos
para puni-lo por não me fazer gestos simpáticos o suficiente, e veja
como essa atitude deu certo para nós.
Acabo cochilando mais do que pretendia porque meu alarme não
disparou. Talvez eu tenha imaginado que configurei o despertador.
Quando levanto meu corpo dolorido e o levo escada abaixo,
Nicholas grita de outro cômodo:
— Ainda não! Espera.
Ele aperta meus olhos com as mãos e me empurra para a
cozinha, onde sou forçada a esperar em um silêncio estupefato por
dez minutos até que ele grita com a voz rouca:
—Tudo bem! Pode entrar agora.
— Você precisa poupar sua voz — digo enquanto ando em
direção ao som de seu arrastar de pés. Paro na porta da sala de
estar.
Ele a reorganizou: tirou a TV e mudou sua mesa para uma parede
diferente. Minha mesa também está aqui, alinhada com a dele, em
vez de espremida em um canto frio da sala de estar. Não se parece
mais com seu escritório pessoal, mas sim um espaço compartilhado.
Meus sapatos empilhados ao lado dos dele. Minhas velas. Seu trem
em miniatura. Seu pequeno armário de arquivos. Minha estante de
livros, com uma mistura dos meus livros de ficção e os dele que não
são, sua coleção de canetas tinteiro e minha coleção de objetos da
Ferro Velho. Um casamento de personalidades.
Seus olhos me rastreiam, absorvendo cada mudança intrincada
na minha expressão, então ele percebe quando meu olhar pousa na
lareira e minha garganta se fecha. Sinto uma pressão em minhas
cavidades nasais, um soco no peito.
Há um quebra-nozes na prateleira da lareira.
Eu o imagino vasculhando nosso monte de decorações de Natal
armazenadas, lembrando-se do meu comentário descartável,
tirando a poeira do chapéu preto brilhante do Sr. Quebra-Nozes. Em
como sua boca se ergueu de satisfação... Aí está você. Que motivo
mais bobo para alguém ficar com os olhos cheios de lágrimas, um
quebra-nozes. Mas eu fico.
— Vou tirar o dia de folga amanhã — ele me diz. — Vamos
escolher um sofá para colocar bem aqui na frente da janela, para
que possamos olhar a vista. — Em seguida, ele acrescenta: — Se
estiver, hã, tudo bem para você?
Minha cabeça balança um sim. É a minha vez de ficar sem
palavras. Ele sorri e acho que gosta de fazer isso também. Me
chocar com um ato de bondade.
Nicholas está se sentindo muito melhor quando a noite chega,
mas ele decide que não quer abusar da sorte saindo com esse
tempo, então cancelamos o jantar com o Sr. e a Sra. Rose. Eu faço
queijo-quente, ele esquenta sopa de tomate e nós nos sentamos
lado a lado no sofá para comer e assistir The Office. É a melhor
refeição que já provei.

Tarde da noite, acordo e preciso pegar algo para beber. Quando


passo pela porta dele, estendo o braço por impulso e toco a
maçaneta. Eu a giro – apenas para checar – e descubro que está
trancada. Não tenho certeza se entraria, se tivesse a chance. Não
posso culpá-lo por se proteger de mim, porque tenho feito o mesmo,
mas agora nosso sistema olho por olho não me enfurece ou me
energiza. Me decepciona, é um golpe mais forte do que qualquer
insulto.
A Rise and Smile não funcionará no Dia de Ação de Graças, sorte a
nossa, porque Nicholas e eu adiamos nossa saída para comprar um
arranjo de mesa até o último minuto. Quando Nicholas estava na
sexta série, sua turma de artes fazia arranjos de mesa com papel de
seda e candy corn – balas de gelatina em formato de milho – e
depois disso, virou uma tradição dos Rose ele fazer um novo arranjo
de mesa em dias de Ação de Graças todos os anos. Ele geralmente
sai de casa com grandes peças caseiras, mas passou o mês de
novembro inteiro se transformando no homem do rótulo dos pacotes
de papel toalha da marca Brawny, e se esqueceu.
Estou sentada à mesa da cozinha tomando café da manhã
quando Nicholas entra pela porta dos fundos. Está vestindo o
macacão, pelo qual tenho um recente respeito porque sei o quão
aquecido ele mantém as pessoas. Ele pega meu copo azul-
esverdeado favorito do armário, enche-o com uns cinco centímetros
de água e o coloca ao lado da minha xícara de chá. E deixa uma flor
silvestre dentro. Está um pouco murcha, uma vez que suportou
várias geadas e uma nevasca, mas a maioria de suas pétalas ainda
estão intactas.
— Aww. — Eu sorrio de surpresa.
— Estava crescendo dentro do celeiro, na parte de cima. Tive que
pegar uma escada para alcançá-la.
Eu não confio naquele celeiro. É torto e tem cerca de cinco mil
anos. Imaginar Nicholas subindo uma escada apoiada em madeira
podre é estressante.
— Obrigada. Você não deveria ter feito isso.
— Sim, bem. Achei que seria gentil.
— Eu realmente não preciso de flores.
Seu olhar é uma sentença de morte.
— Não importa. — Sou rápida em acrescentar. — Eu ainda as
quero às vezes, provavelmente.
Sua boca se contorce e ele come metade do meu burrito de
salsicha em uma mordida. Quando ele sai para tomar banho, admiro
minha flor meio murcha por motivos insondáveis. Não há nada de
particularmente interessante sobre esta planta. Em uma hora, estará
quase morta. Seja como for, acho que vou culpar a sociedade por
querer essas coisas.
As normas sociais me condicionaram a pensar que preciso
dessas plantas moribundas para me sentir amada e apreciada. Elas
são objetivamente inúteis e eu sei disso. Mas é a intenção por trás
que vou guardar, não a cor da flor ou quão bonita ela é. O gesto de
Nicholas vendo a flor, pensando em mim, e indo buscar uma escada
para colhê-la vai permanecer comigo. Vê-lo colocando-a no meu
copo azul-esverdeado favorito vai ficar na minha memória.
Quando termino de me vestir e ficar pronta, Nicholas está usando
uma camisa henley verde que acho que nunca vi nele antes, e isso
faz o jade em seus olhos que mudam de cor brilhar. A gola é larga o
suficiente para me dar uma boa visão de suas clavículas. Santo
deus. O homem tem um par de clavículas maravilhoso. Então eu
noto as pontas arredondadas de seus ombros. Deus deve ser de
fato muito santo para dá-las a ele.
Ele assobia enquanto enche a pia com água e sabão e começa a
lavar a louça pela primeira vez no ano. Fico boquiaberta com o
Nicholas Criança Trocada e me dou problemas cardíacos.
Ele penteou o cabelo de um jeito diferente, os cachos macios
caem livremente sobre sua testa em vez de estarem puxados para
trás. Eu me aproximo, é mais forte do que eu, até que estou
definitivamente invadindo seu espaço pessoal. É o cabelo? A
camisa? A flor? O fato de que ele está fazendo trabalho doméstico
sem ninguém pedir? Seja o que for, ele está cem vezes mais
gostoso hoje. Se começar a varrer o chão e limpar o filtro da
máquina, é capaz de eu precisar de sais de cheiro.
As mãos ocupadas de Nicholas na pia param quando toco seu
rosto.
— Você tem uma mandíbula bonita — digo a ele, ouvindo o tom
de admiração em minha voz.
Ele pisca enquanto desvia o olhar.
— Hum. Obrigado.
— Sua garganta também é. — É uma tragédia eu não ter
percebido como ele tem uma garganta bonita. Quem diria que
existia isso de gargantas bonitas?
Minha encarada descarada está mexendo com ele; sua garganta
fica vermelha e inchada diante dos meus olhos. Eu giro minha flor e
o assisto lavar a louça feito uma esquisita total até que me
recomponho. Sempre que interrompo meu olhar, sinto ele se afastar
de mim e chego mais perto. Ele continua me pegando olhando de
soslaio para ele, e tenho certeza de que me pegou balbuciando
silenciosamente um Meu deus. Quanto mais nervosa fico, mais
largo seu sorriso se torna.
Não analiso muito a fundo quando decido que preciso colocar
uma camisa melhor e retocar meu batom. É Dia de Ação de Graças,
e essa é a única razão pela qual camuflei minha micro-franja com
uma tiara e fiz cachos no cabelo. Você tem que estar no seu melhor
nos feriados. Tem que trocar seu sutiã bege por um de renda preta e
borrifar-se com um perfume chamado ME DEVORE. Não sou eu que
faço essas regras.
Me deparo com algo impossível no banheiro: ele limpou a pia
depois de se barbear. Não há um único fio de cabelo grudado na
torneira. É a invasão dos ladrões de corpos.
É esse detalhe que me deixa generosa o suficiente para ir ligar o
carro e já deixar o aquecedor ligado para nós. Enquanto caminho
pesadamente no frio para ligar a ignição, sou uma heroína. Sou a
noiva mais altruísta que já existiu. Quase escorrego em um pedaço
de gelo e, por uma fração de segundo, me imagino em uma cama
de hospital, a perna levantada em uma daquelas tipoias, Nicholas
todo nervoso me dando bastante atenção e afofando meu
travesseiro. Eu nem reclamo da minha perna quebrada. Não é nada,
digo com firmeza. Estou apenas grata por não ter sido você quem
caiu. Nicholas lacrimeja com a minha força. Ele nunca conheceu
uma mulher tão incrível assim.
— Obrigado — diz ele enquanto saímos da entrada da casa. —
Está bem quentinho aqui. — Ele me pega encarando seu perfil
novamente e sorri. Nicholas é realmente algo luminoso quando
mostra a própria felicidade, não é?
Preciso me controlar. Sim, ele me presenteou com uma flor meio
morta e seu cabelo está se comportando de forma bastante
sedutora hoje, mas dormimos em quartos separados, pelo amor de
deus. Não faz muito tempo que eu fantasiava sobre enrolar meu
vestido de noiva em uma bola e alegremente assisti-lo queimar na
lareira. Apesar de quaisquer desenvolvimentos aparentemente
positivos que certamente não durarão, preciso me concentrar na
minha estratégia. Assim que eu puder me lembrar qual é. Ele está
espalhando algum tipo de feitiçaria em mim para me deixar com
dificuldades para pensar com clareza.
— Para onde você vai? — pergunto quando ele aciona a seta
direita.
— Para aquela loja de artesanato que fica logo aqui em cima —
ele responde, confirmando meus medos. A Let’s Get Crafty é o lugar
onde eu realmente, realmente quero trabalhar e que supostamente
deveria ter me dado uma decisão três dias após a entrevista. Isso foi
na semana passada, e o gerente ainda não entrou em contato
comigo. Penso em pedir uma confirmação a eles todo minuto de
cada dia, mas pra começo de conversa, se eu preciso dar um
empurrãozinho, então já sei que eles provavelmente estão
inclinados a dizer não. Pelo menos no limbo eu posso alimentar
minhas ilusões.
— Achei que iríamos ao Walmart de Beaufort.
Ele me lança um olhar estranho.
— Você não tem me atormentado para que eu faça mais compras
aqui na região? Ir ao Walmart para comprar tudo é o motivo pelo
qual todas as nossas lojas em Morris fecharam. — Ambos
pensamos na Ferro Velho, o que ainda dói.
Sou uma traidora dos meus princípios quando respondo:
— Sim, mas lojas menores são provavelmente mais caras.
— Vai dar tudo certo.
Vou apelar para qualquer coisa.
— Agora vivemos com a renda de uma só pessoa.
— Relaxa, Naomi. — Ele estaciona e aperta minha mão, em
seguida, desliza para fora do carro. Não posso entrar nesta loja.
Eles vão pensar que estou os perseguindo. Irão me reconhecer.
Alguém mencionará que eu fiz uma entrevista, na frente de
Nicholas, que não sabe que ainda estou procurando emprego. Ele
presume que desisti porque não falo sobre. As únicas notícias que
tenho a relatar até agora são as más, que não estou ansiosa para
divulgar. Eu planejava contar a ele apenas quando recebesse uma
boa notícia, o que pode nunca acontecer.
Este dia é terrível. O céu está com cor de doença e faz frio, mas
toda a neve derreteu, deixando para trás uma lama escurecida por
escapamentos. Estou com batom demais e minha pele está quente
e coçando e eu odeio meu carro. Minha pulsação é um aríete.
— Qual é o problema? — Nicholas pergunta enquanto abre a
porta da Let's Get Crafty. Tenho uma relação de amor e ódio com a
loja. Se eu conseguir o emprego, vou amá-la mais do que qualquer
coisa no mundo. Se eu for rejeitada, irei comprar todos os
suprimentos de artesanato que o Walmart tem a oferecer e a levarei
à falência. Você não precisa me dizer que sou uma pessoa ruim por
pensar isso, porque eu já sei que sou.
— Dor de cabeça — murmuro.
— Tem algum Tylenol na bolsa?
— Meh. — Meus ombros se curvam enquanto caminho para
dentro, tentando me tornar menor e menos perceptível.
— Estava pensando em comprar uma cornucópia — diz Nicholas.
— Acha exagerado?
A resposta é sim, obviamente, mas não estou muito preocupada
com o arranjo de mesa da sala de jantar de seus pais neste
momento. Meus olhos estão correndo ao longo dos cantos do teto
em busca de câmeras escondidas. Penso em um homem em uma
sala dos fundos em algum lugar, comendo um sanduíche da subway
e me assistindo em uma pequena tela de televisão. Ela não é uma
das candidatas à vaga? Uau, isso não é triste? Está vindo aqui para
implorar pelo emprego, aposto.
— Naomi? — Nicholas diz. Tenho a sensação de que esta não é a
primeira vez que ele disse meu nome nos últimos trinta segundos.
Ele estala os dedos na frente do meu rosto.
— Shh! — eu sussurro, puxando a gola do meu casaco até o
nariz. Pareço um detetive particular de desenho animado. — Fale
mais baixo.
— Por quê? Não tem ninguém aqui. — Ele olha em volta. —
Imagine se tivéssemos ido ao Walmart. Os corredores estariam
lotados. Temos toda essa loja só para nós.
Nicholas me força a expressar opiniões sobre vegetais de
plástico, tentando determinar se eles têm uma aparência falsa
demais.
— Deveríamos usar vegetais reais em vez disso? Achei que os de
plástico seriam menos desperdício. Podemos reutilizá-los.
— Para fazer o quê?
— Talvez um diorama no consultório.
Certo. Comam seus vegetais, crianças! Bastante hipócrita, vindo
deste homem. Ele respira balas fini.
— Vegetais de verdade seriam melhores — eu digo. — Vem,
vamos ao supermercado.
— Quero ver tudo o que eles têm aqui primeiro. — Seus olhos
estão redondos e maravilhados ao verem tantas opções. Ele é a
Martha Stewart agora. Eu o perdi para as nuances entre as cestas
em forma de cornucópias e as de arame, e ficaremos aqui por duas
horas ponderando.
Sou implacável em minha missão de sair daqui.
— Cornucópias, Nicholas? Esse é o arranjo de mesa do seu
bisavô peregrino. Modernize um pouco. Faça algo mínimo com uma
simples maçã vermelha.
Ele torce o nariz.
— Isso não será impressionante. Vai parecer que nem tentei.
— Bem-vindo a minha vida. É mais fácil por aqui, prometo.
Eu não deveria fazer comentários autodepreciativos como esse,
porque eles reforçam o estereótipo de que não tenho aspirações e
sou uma vagabunda descuidada, mas se tornou um hábito estranho.
Ele arrasta um dedo ao longo da minha coluna, o que sabe que
me dá calafrios, e sorri quando eu me sobressalto. Ele continua
explorando o lugar a um quilômetro por hora. Cada vez que
dobramos para outro corredor, meu estômago se contrai de
preocupação, pensando que o gerente vai aparecer e perguntar se
precisamos de ajuda. É inevitável. Essas pequenas empresas são
amigáveis demais.
Vinte anos depois e sem nenhuma ajuda minha, Nicholas encheu
uma cesta com suprimentos para construir nossa própria casa de
pássaros na primavera, que mal posso esperar para vê-lo nunca
tocar, além de um monte de cacarecos aleatórios etiquetados com
cinquenta por cento de desconto. Ele não sabe o que vai fazer com
tudo isso, mas é louco por esses adesivos de desconto verdes
neon.
— Nunca se sabe — ele diz, assobiando enquanto joga um
pacote de botões azuis e apliques de rosas em bordado na cestinha.
Ele precisa de uma intervenção.
O próximo corredor é o de artigos de decoração para casamento.
Nós dois congelamos na entrada.
— Acho que vi pinhas naquele outro lado — digo, e ele acena
com a cabeça apressadamente.
— Sim, vamos dar uma olhada nas pinhas novamente.
Somos covardes trêmulos e sabemos disso. Acabamos pegando
quatro sacos de pinhas (que podíamos pegar no nosso quintal, de
graça) como justificativa para evitar o corredor de artigos de
casamento. Estou cansada. Meus nervos estão em frangalhos. Eu o
imploro para apenas escolher algo e pronto, então ele pega um pote
de biscoitos que parece um peru. Vamos recheá-lo com pinhas. É
uma escolha meia-boca e ele está com o coração partido por ter que
aparecer no jantar com um arranjo de mesa que não vai
impressionar a todos, mas estou com dificuldade para respirar e o
braço de Nicholas provavelmente está ardendo com as marcas
vermelhas do meu punho de ferro. Tenho dado beliscões nele para
fazê-lo agilizar.
— Certo, você vai lá e paga. Eu vou esperar no carro.
Nicholas não me ouve. Sou arrastada até o caixa e todo o sangue
do meu corpo foge do país quando vejo quem está atrás do balcão.
Melissa.
Sinto vontade de gemer, mas me forço a sorrir em vez disso.
Minha pele está a cem graus. Meus órgãos estão cozinhando como
uma caçarola.
— Olá, Naomi — ela me cumprimenta jovialmente.
Imediatamente, aquele tom agradável me deixa nervosa. Talvez o
chefe dela esteja por perto. Deus, espero que não.
— Olá, Melissa! Que bom te ver! Como tem passado? Emprego
novo, hein?
— Comecei segunda-feira! Eu tenho muita sorte, sabe? Nenhum
lugar está contratando. — Ela me dá um grande sorriso que parece
totalmente estranho em seu rosto geralmente rancoroso.
Quero sair correndo da loja. Comecei segunda-feira. O emprego
que ela agora possui é o emprego para o qual eu me candidatei.
Melissa estava no grupo de concorrentes. Melissa passou na minha
frente.
E ninguém me ligou para dizer que não consegui o trabalho. Dói
mais porque a mulher que me entrevistou foi tão legal e simpática.
Talvez ela tenha pensado em esperar até depois das datas festivas
para dar a notícia, para que eu não passasse o Dia de Ação de
Graças chorando em um armário.
— Parabéns. — Obrigo-me a dizer. — Espero que você goste
daqui.
— Ah, eu amo. Na verdade... — Ela toca as pinhas, sem pressa,
as mãos se movendo em câmera lenta. — Ouvi dizer que você se
candidatou para trabalhar aqui também. Não seria divertido, hein, se
nós duas trabalhássemos no mesmo lugar novamente?
Nicholas volta seu olhar penetrante para mim.
Minha voz é baixa.
— Acho que eles só tinham uma vaga.
Melissa sabe disso, é claro.
— Ah, é verdade. Boa sorte com a procura de emprego. — Um
sorriso exultante curva os cantos de sua boca enquanto ela passa
uma bugiganga sobre o scanner.
— Ela vai encontrar algo — Nicholas diz suavemente. — Estamos
esperando pelo lugar certo. Não podemos simplesmente aceitar que
um emprego qualquer a contrate, especialmente em empresas que
provavelmente serão fechadas dentro de um ano.
Os olhos de Melissa escurecem. Fico tão grata a Nicholas que
poderia chorar.
— Felizmente, não me encontro nessa posição — diz ela, toda
arrogante. — A Let’s Get Crafty está indo excelentemente bem.
Nicholas dá uma olhada ao redor da loja vazia.
— Claro.
O tom enérgico dela vacila, o gelo surge.
— É Dia de Ação de Graças. Claro que não estamos cheios hoje.
Nicholas nem precisa responder. Ele levanta as sobrancelhas,
sorrindo inocentemente. É mais eficaz do que um sorriso malicioso.
É uma expressão que conheço bem e geralmente me enche de
raiva, mas sendo usada como uma arma contra Melissa, tenho que
admitir que parece cada vez mais atraente.
— Então… — Ela finge ter problemas com uma etiqueta de preço,
fazendo a compra levar mais tempo. — Você tem queimado flores
venenosas ultimamente, Naomi?
Nicholas fica rígido. Eu vou esfaqueá-la com o broche do crachá
dela.
— Na verdade, não tive tempo. Tenho estado muito ocupada.
— Fazendo o que? Você não tem emprego.
— Talvez estejamos fazendo muito sexo — interrompe Nicholas,
irritado. — Talvez perdendo a noção dos dias porque não
conseguimos parar de transar. — Solto um bufo nada feminino,
porque o que ele disse é deliciosamente impróprio e também é tão
falso que meio que dói. — Não é realmente da sua conta, é?
Melissa abandona todas as gentilezas.
— Isso é mais ou menos o que eu esperava ouvir de você.
Bastante sexo acontecendo no seu consultório, e sei disso por
experiência própria. Não ficaria chocada se você estivesse
transando com aquela dentista também. Você e Seth. A pessoa com
quem anda diz muito sobre você.
— Ah, pelo amor de deus — eu disparo. Sempre fui rápida em
mostrar minha simpatia todas as vezes que ela queria reclamar de
Seth (o que acontecia com frequência), mas vê-la aqui neste novo
ambiente, vestindo um colete coberto de trilhões de botões
relacionados ao artesanato, é demais. Não vou me rebaixar e deixá-
la nos punir mais. — Isso de novo? Você namorou o cara por, tipo,
um mês e meio. Eu tive que ouvir sobre isso desde maio. Seu
rancor me esgota, Melissa.
— Oh, perdão! Eu não me recuperei do meu coração partido
rápido o suficiente para você?
— Se precisa de um desfecho com o seu ex, então vá falar sobre
isso com ele. — Sua boca se abre, mas eu levanto minha mão. —
Escute, sinto muito que o Seth seja um idiota que te traiu. Você não
merecia isso. Honestamente, você poderia conseguir coisa muito
melhor e ele não é digno da sua chateação. Mas nada do que
aconteceu com você é culpa nossa. — Ela lança um olhar feio para
Nicholas e abre a boca, pronta para disparar, mas eu passo na
frente. — Não haverá mais nenhum ataque a Nicholas, entendeu?
Não quero ouvir sobre essa merda nunca mais.
Quanto a Nicholas, não acho que ele já tenha ficado mais
surpreso em toda sua vida. Ele está me dando o mesmo olhar que
eu o dei esta manhã. Estou sendo possuída pelo efeito camisa
henley verde.
Os movimentos de Melissa ficam mais espasmódicos enquanto
ela enfia nossas compras em uma sacola.
— Você poderia embrulhar isso duas vezes? — Nicholas
pergunta, e nós dois obtemos um prazer sádico ao assistir Melissa
embrulhar duas vezes o pote de biscoitos.
— E depois colocar em duas sacolas? — Ele acrescenta.
A selvageria em seu tom é tão habilmente sutil que você quase
poderia chamar de arte.
Ela coloca três sacolas.
— Assim está bom o suficiente?
Ele abre um sorriso encantador.
— Perfeito.
O olhar dela vai direto para mim e, pela primeira vez, não faço o
que sempre faço quando ela e Nicholas estão tendo um conflito.
Não roo minhas unhas e peço desculpas com os olhos. Em vez
disso, dou a ela ares de “Sou Extremamente Importante e Tenho
Mais o Que Fazer”. Eu invoco minha Deborah Rose interior e me
assusto profundamente.
— Bem, boa sorte com sua vida — Melissa diz maldosamente
depois de pagarmos e pegarmos nossas sacolas.
Decido ser uma pessoa melhor.
— Você também, Melissa. Boa sorte. Espero que este trabalho
funcione para você.
Nicholas decide não ser uma pessoa melhor e tira um dos
centavos da caixinha que diz “pegue-um-centavo, deixe-um-
centavo” quando nos afastamos. Fico maravilhada com sua
maldade.
— Aproveite o seu Dia de Ação de Graças! — ele diz alto por
cima do ombro.
— Vocês dois são uns idiotas! — ela grita de volta. — Vocês se
merecem.
Faço um sinal positivo com os polegares para ela.
— Obrigada!
Mal passamos da porta quando não conseguimos mais segurar o
riso. Jogamos nossas coisas no carro e caímos para dentro, saindo
como se fôssemos fugitivos em fuga. Faço um high-five com ele.
— Você. Foi. Fantástico.
— Obrigado, obrigado. — Ele sorri. — Você também foi.
— Estou tão feliz por não ter mais que conviver com ela.
Ele olha de lado para mim.
— Ela está certa sobre Seth, no entanto. Estou realmente
cansado de defendê-lo. Eu me sinto... não sei. Nunca terminei com
um amigo antes.
Não sou exatamente fã do Seth. Ele é bom na metade do tempo,
mas na outra metade se fortalece colocando Nicholas para baixo.
— Você tem permissão para se defender quando as pessoas
ferem seus sentimentos. Merece estar perto de pessoas que são
boas para você. — Vindo de mim, entre todas as pessoas, esta
declaração é tão ultrajante que eu meio que espero que um raio caia
do céu e me mate. Mas estou certa: ele merece amigos que
realmente ajam como amigos. E eu também, a propósito. — Você
sabe disso, não sabe? Dê a si mesmo permissão para se colocar
em primeiro lugar.
— Não sei como fazer isso.
— Eu te ajudo. E se Seth não se endireitar, ainda tenho o número
daqueles ajudantes de mudança. Vou te juntar com eles. Vamos
colocar você em jeans rasgados e... ta-rã! Em um piscar de olhos,
serão BFFs.
Ele sorri.
— O que quer que você queira fazer sobre Seth é escolha sua —
eu digo — mas se precisar de ajuda, serei sua garota. Dê a ordem e
eu irei assustá-lo tanto que ele nunca mais sairá da linha.
Ele pega minha mão. Beija meus dedos.
— Obrigado — murmura.

Todas as coisas boas têm um fim.


É o decreto solene que ressoa em minha cabeça enquanto nos
sentamos à mesa de Deborah e Harold. Um banquete se estende
diante de nós, o que deveria encorajar um pouco de felicidade, mas
não faz isso, porque estamos todos prestes a ficar com as pernas
presas sob uma mesa de madeira durante uma refeição muito
longa, e isso significa participar de uma conversa muito longa.
Eu sei qual será o assunto. É o favorito de Deborah. Nicholas e
eu temos feito um ótimo trabalho em evitar o tópico quando estamos
sozinhos, prova disso foi termos amarelado no corredor de artigos
de decoração para casamento.
— Você já enviou os convites? — Deborah começa de imediato,
colocando pedaços de peru de carne escura no prato do marido. Ele
não tem permissão para fazer o próprio prato porque ele é “ruim em
controlar a quantidade da porção”. A dieta que ela está fazendo nele
agora proíbe recheios, carne branca e batatas, e ele parece que vai
chorar. — É quase dezembro. — Os olhos dela vão em direção a
Nicholas, depois para mim. Há acusação neles, clara como o dia.
Ela acha que é culpa minha os convites não terem sido enviados.
Nicholas faz exatamente o que eu faria. Ele finge que não a ouve.
Então, quando ela repete a pergunta, ele finge que não sabe do que
ela está falando.
— Convites? — ele pergunta, como se fosse uma palavra
estrangeira que ele não entende.
Eu coloco colheradas de purê de batata na boca. Sou uma dama.
Tenho bons modos. Ninguém pode esperar que eu fale de boca
cheia.
Deborah avalia Nicholas por cima da taça de vinho dela, os olhos
astutos.
— Seus convites de casamento, querido. Ainda não recebemos o
nosso.
— Vocês precisam de um oficial? — ele pergunta ligeiramente. —
Já sabem a data e o local.
— Preciso de três convites: um para meu livro de recordações,
um para seu álbum de bebê e um para os registros familiares. Além
disso, todos os outros também precisam dos deles. Todas as suas
tias e tios. Todos os dias, ao que parece, recebo uma ligação. Onde
está meu convite? Não fui convidado? Os homens do clube do seu
pai e todas as esposas deles estão fazendo um alvoroço! Eles se
sentem pessoalmente desprezados. Você não pode deixar ninguém
de fora, Nicky. É rude.
Não conheço nenhuma dessas pessoas a quem ela se refere.
Nicholas não conhece a maioria, e aquelas que conhece, não gosta.
Não acho que esteja realmente rolando um alvoroço; é mais
Deborah tentando avaliar o que está acontecendo, então está
inventando merda.
— Francamente, você está me colocando em uma posição ruim
— ela prossegue. — As pessoas sabem que estou orquestrando
toda essa operação e, quando você negligencia suas obrigações,
fica mal para mim. — Ela toca o próprio colar. É um coração com
quatro pedras zodiacais para representar cada membro de sua
família. — Então, se você não quer se comportar com
responsabilidade por sua causa, faça isso por mim.
Nicholas murcha. Não é um murchamento visível – para todos
que veem de fora, ele está bem. Seu rosto está calmo, sua postura
muscular suave. Mas sinto algo como um sexto sentido: ele está
odiando isso. Acabamos de nos sentar e ele gostaria de poder
correr porta afora, mas não pode. Está preso sendo Nicholas Rose,
o Filho Perfeito, e depois de todos esses anos o papel está o
desgastando.
— Harold — Deborah vocifera quando ele tenta roubar um
pãozinho. — Você sabe que não pode comer isso.
— Você me deu vagem demais — ele lamenta. — Não há nem
tempero nelas.
— O tempero faz seus intestinos discordarem de você. — Ela se
vira bruscamente dele e diz a Nicholas: — Você virá esta semana
com os convites. Eu mesma te ajudarei a endereçar os envelopes,
se ninguém mais o fizer. — Bela alfinetadazinha para mim. — Você
precisa enviá-los se espera receber as confirmações a tempo.
Alguns convidados têm que abrir espaço em seus horários de
trabalho para poder viajar até aqui para o casamento, e esperar até
o último minuto para fornecer esta informação é extremamente
imprudente. Eu não ficaria surpresa se minha amiga Diana da
faculdade não pudesse vir, agora que quase não há tempo nenhum
para se preparar.
— Você não disse recentemente a sua amiga onde e quando
seria? — ele pergunta. — Você sabe há meses que vai ser na igreja
Sta. Mary, dia vinte e seis de janeiro. Uma da tarde. Poderia
simplesmente ter dito a ela.
— Não é assim que as coisas funcionam! Você tem que enviar
convites adequados. Não estamos falando de um casamento inútil
em Las Vegas, Nicholas. Você irá se comportar de acordo.
Ela diz isso como se Nicholas tivesse falhado com ela e arruinado
o casamento ao não mover céus e terras por uma senhora chamada
Diana. Provavelmente, ele nunca conheceu Diana. Deborah apenas
quer exibir qualquer roupa de mãe do noivo que ela escolheu para si
mesma. Um vestido deslumbrante para ofuscar o meu.
— Estou cuidando dos convites, mãe — diz Nicholas
amavelmente. — Não se preocupe.
— Não me diga para não se preocupar, Nicky. É meu trabalho. E
não seja ridículo, irei ajudá-lo a resolver esse problema de uma vez
por todas. Venha na quarta-feira depois do trabalho. Tiraremos a
noite para fazer isso! Vou pedir à mulher para fazer aqueles
pequenos bagels de pizza que você ama, e vamos trabalhar até
meia-noite, se for preciso. — Perceba como ela não me convida
para vir, apenas ele.
Estou pronta para comer e esquecer onde estou quando de
repente sou transportada de volta para a Let's Get Crafty, e para a
forma como me senti horrível quando vi Melissa atrás do balcão.
Tive que processar a perda do emprego ao mesmo tempo em que a
odiosa Melissa estava o esfregando na minha cara, e isso poderia
ter matado o meu dia inteiro se não fosse por Nicholas me
resgatando. Em vez de sair da loja de mau humor, saí rindo.
— Na verdade, Nicholas e eu estaremos com a agenda lotada na
próxima quarta-feira — respondo por ele.
Deborah me olha com curiosidade.
— Fazendo o que? Endereçando os convites?
Não posso me comprometer com isso. Meu relacionamento com
Nicholas está por um fio. Enviar convites torna o casamento muito
real, e ainda não consigo me imaginar andando até o altar da Sta.
Mary. Não consigo visualizar as instruções monótonas e ecoantes
de um padre sobre como tratar um ao outro durante o matrimônio, e
não consigo me visualizar com aquele vestido justo até os quadris o
qual eu não amo. Não consigo me ver olhando para Nicholas e
ouvindo-o dizer Eu aceito. Não acho que Nicholas consiga imaginar
nada disso também, e é por isso que temos feito rodeios em torno
disso por tanto tempo.
— Pescando — eu improviso. — Em nossa canoa.
Deborah tosse na comida. A mão de Harold dispara, considera
dar um tapinha nas costas dela, mas em vez disso agarra um
pãozinho e o enfia na calça por precaução. Eu não o culpo. A
vagem está horrível.
— Você não tem uma canoa, Nicholas — ela diz, como se eu
tivesse acabado de dizer que estamos nos livrando de todos os
bens materiais e fugindo para entrar em uma seita.
Nicholas parece cansado, então respondo por ele novamente.
— Nós temos! É bem divertido. Nicholas a colocou no lago outro
dia.
Ela está chocada.
— Para quê?
Ela não se dirige a mim, sedenta por uma reação do filho. Estou
certa quanto ao meu palpite: este homem precisa de um resgate.
Requer uma estratégia diferente daquela que ele usou para me
resgatar na Let's Get Crafty. A Sra. Rose não é Melissa. Não dou a
mínima para o que essa mulher pensa de mim mais, mas Nicholas
sim, então tenho que abordar o assunto com sutileza. Vai me custar
pontos de orgulho.
— Para praticar canoagem, é claro — digo a ela sem nenhum
pingo, nem mesmo um sussurro, de insinceridade. Esta noite, sou
Shakespeare. — Existem vários estudos que dizem que a
canoagem é boa para a mente e para o corpo. Eles o chamam de
“esporte meditativo”. — Não sei se criei essa terminologia sozinha
ou se a ouvi em algum lugar e a mantive na memória
subconscientemente, mas de qualquer forma estou orgulhosa de
mim mesma por tê-la produzido de imediato. Esporte meditativo.
Parece legítimo pra caramba.
Estico as mãos para pegar o inhame, mas Deborah afasta o
prato.
— Não coma isso, querida. Seus futuros filhos vão nascer
laranjas. — Ela se inclina sobre o prato até que as pontas de seu
cabelo ficam perigosamente perto de entrar no molho de carne. —
Nicky. Você já fez a lista dos presentes de casamento? Eu preciso
incluí-la nos avisos da igreja. Vou pedir para que coloquem em
todos comunicados de domingo e estou pensando em pedir ao
jornal Beaufort Gazette para escrever algo sobre você também.
Nicholas respira fundo, mas eu dou um aperto leve em seu joelho
sob a mesa. Sou sua cavaleira de armadura brilhante. Esse é o meu
papel aqui. Estou entendendo aos poucos que esse sempre deveria
ter sido meu papel, mas não percebi e perdi minha deixa na primeira
vez que meu pupilo foi atacado por mães que cospem fogo. Tenho
algum tempo perdido para compensar.
— Deborah, este peru é tão delicioso. Qual é o seu segredo?
O segredo dela é que ela não cozinhou, outra pessoa o fez, mas
ela é pega tão de surpresa que precisa responder.
— Ah. Eu... hã... manteiga. E especiarias. E muito amor! — Ela
sorri afetuosamente. O gesto é completamente mentiroso. — O
amor é o ingrediente mais importante de todos.
— Concordo. O amor é tão importante. — Não vou deixá-la em
paz por um segundo sequer. Vou ocupar cada centímetro quadrado
de espaço nesta conversa e, pela primeira vez na vida, Nicholas
poderá terminar de comer a comida dele enquanto ainda estiver
quente. Ele não vai despejar mel no chá esta noite para acalmar a
garganta depois de duas horas inteiras falando, falando e falando.
— É uma pena que Heather não possa estar aqui. Adoraria
finalmente conhecê-la. — Heather saiu da cidade em seu
aniversário de dezoito anos e só volta para casa quando não
consegue dar outro jeito. Pelo que ouvi, ela e Deborah têm um
relacionamento extremamente tumultuoso desde que Heather era
adolescente e Deborah era o horror de todas as reuniões de pais e
professores.
— Heather! — Deborah quase se abana. Fui cirúrgica nessa. — É
mesmo uma pena. É uma pena ela não ter vindo para casa no Dia
de Ação de Graças. Eu implorei. O pai dela implorou.
Harold franze a testa enquanto enfia comida na boca,
provavelmente imaginando se ele de fato implorou. Ele desiste de
pensar nisso e rouba um pedaço de peru.
— É como se não fossemos nada para ela! — Deborah continua.
— Sempre a digo ao telefone que é uma sorte termos Nicky, senão
ficaríamos sozinhos. Nosso Nicky entende o valor da família.
Ela faz uma pausa e olha para ele, preparando-se para falar com
ele diretamente, então eu digo:
— Sim, ele entende. Nicholas é um bom homem e eu não poderia
sentir mais orgulho dele. Você fez um bom trabalho criando-o. Uau,
esse molho de cranberry é coisa de outro mundo! Faz uma
eternidade que não provo um molho de cranberry tão saboroso. A
maneira como minha mãe sempre preparava era sem graça. —
Faço uma expressão exagerada de desgosto.
Isso atrai toda a atenção dela. Deborah aproveita qualquer
oportunidade de se colocar acima da minha mãe. Ela odeia o fato de
que Nicholas vai ter uma sogra mais do que odeia a ex-mulher de
Harold. E ela literalmente fez um padre vir abençoar a casa de
Harold depois que eles ficaram juntos, para livrar o lugar da energia
de Magnolia.
— Obrigada. É verdade, muitas pessoas não sabem como
preparar corretamente.
— Incluindo você — Harold grunhe baixinho demais para ela
ouvir.
Dou uma mordida, em seguida, faço um barulho de quem
saboreia algo.
— Hmmm. Divino. Não sei se já te disse, mas esses móveis da
sala de jantar me lembram um castelo francês. Eu me sinto como a
Maria Antonieta quando me sento aqui, se me permite dizer.
Seus olhos se iluminam.
— Foi nisso que me inspirei!
— Não me diga! Que trabalho árduo. — Levanto minha taça e
simulo um brinde, que para meu espanto e horror misturados, ela
retribui. Não ouso olhar para Nicholas porque sei que, se o fizer,
tudo o que verei em seu rosto me fará rir.
Ela começa a me contar mais sobre sua mesa e cadeiras, o que
eu respondo com entusiasmo e muitas perguntas. Eu a encho de
elogios sobre ela, Nicholas e o talento dela para design de
interiores, em toda brecha que vejo.
Puxar o saco de Deborah era tão fácil quanto respirar quando
Nicholas e eu começamos a namorar. Eu queria impressionar e não
a conhecia muito bem. Tudo é fácil quando seus olhos são
inocentes e você não identifica os perigos ocultos. Mas meus olhos
não são mais inocentes. Sei exatamente quem é essa mulher. Agora
temos uma história. Os doces elogios ainda fluem como antes, mas
estou convocando-os por um canal diferente porque meu objetivo é
diferente. Minhas prioridades são diferentes. Nicholas merece um
feriado em que ele não seja incomodado até a morte.
Quando Deborah pede licença para ir à cozinha buscar a
sobremesa, respiro fundo e engulo todo o meu suco de cranberry, e
um copo d'água. Lanço um olhar corajoso para a minha direita e
meu coração dispara.
Os olhos de Nicholas estão pousados em mim. Estão calorosos
de gratidão, e essa gratidão faz meu esgotamento valer a pena. Vou
fazer mais dez rodadas de elogios com a Sra. Rose, se isso
significar que vou conseguir outro olhar assim no final.
Quando Deborah volta segurando um bolo do tamanho de uma
pequena ilha, já estou preparando a base para bombear seu ego.
— Hmm, isso parece incrível! — Nem tenho que mentir. Não comi
muito do jantar porque estava ocupada demais tagarelando, e esse
bolo tem um cheiro perfeito.
— Não é? — Ela está brilhando com o meu enaltecimento.
Deborah corta dois pedaços de bolo e os coloca em dois pratos
pequenos. Um ela fica para si mesma e o outro dá a Nicholas. —
Bolo de maçã com caramelo salgado. É uma receita da família
Rose, passada de geração em geração.
— Mal posso esperar para tentar fazer a receita sozinha.
O sorriso que ela dá é tenso.
— Algum dia, quando você for mãe, vou lhe contar o segredo.
Adorável. Usar uma receita como alavanca para conseguir netos.
Ainda assim, esfrego as mãos e digo:
— Até lá, acho que terei de me contentar em simplesmente comer
o bolo, e não em assá-lo! — Procuro outro prato na mesa.
— Eu também quero um pouco — insiste Harold.
— Shhh — Deborah o repreende. — Você sabe que não pode
comer tanto açúcar. Pense nos seus intestinos!
Gostaria que ela parasse de nos obrigar a pensar nos intestinos
de Harold.
Raspo a comida fria em meu prato para abrir espaço para uma
fatia de bolo. Mas quando pego a faca, a mão dela se fecha sobre a
minha. Sua pele está quente. Humana.
Mas seus olhos estão frios.
— Eu não acho que você deveria comer isso, querida.
— Não concorda? — ela continua quando eu não retiro minha mão.
— Você sabe… — Seus olhos descem para a minha cintura. —
Para o casamento. É tradição as noivas conterem o apetite até o
grande dia, assim não há surpresas grosseiras no que diz respeito à
prova do vestido. Normalmente eu não diria uma palavra, você sabe
que não, mas acabou de comer uma refeição excepcionalmente
grande. Se empanturrar não seria uma decisão sábia.
Minha mente gira, pisca e desliga. No vácuo escuro, existe uma
única expressão flutuando à deriva. O quê.
— Mãe — diz Nicholas friamente.
Ela coloca a outra mão sobre a minha também, acariciando-me
carinhosamente. Meu estômago se revolta com todos os
sentimentos educados e melosos com os quais tenho alimentado o
complexo de necessidade de receber elogios não merecidos dela
nos últimos quarenta e cinco minutos. Não importa o quão legal eu
seja. Nunca vai importar. Ela sempre será horrível.
— Quando eu estava noiva — ela me diz, ignorando o filho — a
gula também me tentou. Minha irmã adora cozinhar e a casa
cheirava a biscoitos e bolos todos os dias. Você nem imagina! —
Seu sorriso é assustador porque ela é sincera em cada palavra que
sai da boca dela. — Mas você tem que se controlar. Naquela época,
as meninas tinham um método para cuidar desse problema.
— O problema seria... fome?
Ela acena com a cabeça, sem ouvir a incredulidade em minha
voz.
— Exatamente. Não se pode comer como um porco se quiser
parecer elegante nas fotos do casamento. Beba água morna com
limão e manjericão, e você vai ficar tão cheia que vai jurar que
passou o dia todo comendo! Posso pedir à mulher que prepare um
copo para você, se ainda estiver com fome.
— Ela não vai beber essa porcaria. — Interrompe Nicholas. —
Deixe-a comer um pedaço de bolo.
— Não posso deixá-la comer bolo! — ela exclama. Até o torso da
Maria Antonieta que ela tanto admira rola no túmulo, como se
dissesse, Mulher, eu não faria isso. — Estou dizendo isso por amor,
Nicky. Você precisa acreditar nisso.
Ele não recua.
— Você não é a médica dela, e o que ela come não é da sua
conta. Se você traz sobremesa para a mesa, não tem direito de
decidir quem vai ganhar e quem não.
— Concordo! — Harold dispara.
As maçãs do rosto dela ficam vermelhas.
— Cale a boca, Harold.
— Não venha com essa de “cale a boca, Harold”. Eu pago o
salário da mulher que fez esse bolo. Tenho o direito de comê-lo. —
Ele estende o braço. Ela dá um tapa na mão dele, mas ele agarra a
bandeja inteira com uma agilidade surpreendente e a joga no colo.
— Aqui está, Natalie. — Ele me oferece um pedaço enorme
diretamente do meio.
— Não! — Deborah choraminga, correndo para interceptar. —
Não coma isso! Você vai ficar parecendo uma salsicha em seu
vestido. Depois da última prova, pedi à costureira que ajustasse o
vestido para o tamanho 34!
Eu deixo o bolo cair. Ele se espalha magnificamente na mesa.
— Você o quê?
Deborah entra em pânico. Torce as mãos.
— Eu vestia 34 quando me casei. Não é algo impossível, você
apenas precisa realmente começar a se esforçar. Chega de
sobremesas ou...
— Eu não visto 34. — Estou morta de vergonha. Odeio ter que
falar sobre isso na frente dos pais de Nicholas. — Não chego nem
perto disso. Você teria que remover meus órgãos! Eu não entendo…
por que você... por que isso... — Estou prestes a desabar porque
tenho tentado tanto ser gentil e deveria ter esperado isso. Meu
pescoço dói. Não há nenhuma parte de mim que deseja usar um
tamanho diferente do que eu uso, e absolutamente odeio Deborah
por tentar fazer com que eu me sinta mal por não cumprir um
padrão de merda que ela estabeleceu há mais de trinta anos.
— Como você pôde fazer algo assim? — Nicholas esbraveja. —
Tudo o que você disse à costureira, conserte. — Ele se levanta, tão
severo e impassível que fico um tanto intimidada. — Peça desculpas
a Naomi, agora mesmo.
Deborah não consegue fechar a boca. Seu rosto está da mesma
cor de sua blusa framboesa, uma combinação perfeita. A validação
de que ele ficou do meu lado passa por meu sistema como um raio
e, sem pensar, também me levanto e pego sua mão. Seus dedos
deslizam suavemente pelos meus, travando ali. Combinamos
exércitos e somos um campo de força sólido enfrentando a chuva
de balas da mãe dele.
— Não estou falando por mal — ela diz suavemente. — Como
posso ser a errada da situação? Estou cuidando da minha futura
nora. Eu sei como as pessoas podem ser desagradáveis. Imagine
como vai ser quando o vestido não couber direito.
— O vestido foi feito para caber na Naomi — ele rebate. — Ela
não foi feita para caber no vestido. Ela é minha noiva, é linda e
perfeita, e eu não vou permitir que ninguém fale assim com ela,
muito menos um membro da minha própria família.
— Nicky! — ela adverte em um sussurro alto, como se temesse
que os vizinhos pudessem ouvir.
— Peça desculpas.
— Mas…
Ela quer lamber os dedos e alisar o cabelo dele. Colocá-lo na
cama. Me empurrar de uma torre. Ela vai roubar nosso bebê do
berço e sumir para o México, para ter certeza de que ele vai ser
criado com um apego doentio por ela. Ele será batizado na igreja
Sta. Mary em um vestido branco com monograma de rosas.
Deborah gagueja, os olhos implorando, mas quando se movem
em minha direção, ficam afiados como os de uma águia. Ela nunca
esperou por isso. Nunca pensou por um momento sequer que ele
algum dia ficaria do meu lado, porque para ela eu não sou
importante. Apenas um aborrecimento necessário que a permite
fazer um casamento chique e conseguir os netos que tanto quer,
mas fora isso, sou invisível para ela. Nesta casa, sempre me senti
sem importância.
— Patético — Nicholas rosna. — Você não pode tratar minha
noiva dessa maneira e ainda esperar ser convidada para o
casamento.
Não tenho certeza de quem é o suspiro mais alto – o meu, o dela
ou o de Harold.
Na verdade, o barulho de Harold não é um suspiro. Ele está se
engasgando com o bolo.
— Ah, pelo amor de Deus — Deborah rebate, batendo nele na
região entre as omoplatas. — Mastigue! Você não sabe mastigar?
Harold está vermelho como uma beterraba, as bochechas e olhos
esbugalhados. Ele tosse pedaços de bolo que se espalham por toda
a toalha da mesa e faz um som de tosse que sai como “Cala a
boca”.
— Estou convidada para o casamento — declara Deborah
enquanto o marido ainda luta para sugar o ar para os pulmões. —
Claro que estou. Nem diga isso.
— Eu não estou dizendo, estou ameaçando.
— Não! — Harold choraminga, interrompendo o filho. Deborah
está tentando arrancar o bolo dele. — Você não me deixa ter nada
que me faz feliz! Mais vale eu estar morto. Eu sacrifiquei tanta coisa.
Te deixei ficar com a Beatrice, agora você pode muito bem me
deixar comer um pedaço de bolo ou que deus me ajude, vou pular
do telhado desta casa!
Ela o deixa ficar com o bolo.
— Quem é Beatrice? — eu pergunto. Este é o jantar mais bizarro
em que já estive.
— Um cachorro que ela teve quando eu era criança — murmura
Nicholas em meu ouvido.
— Como pode mencionar a Beatrice? — Deborah lamenta, os
olhos marejados de lágrimas. — Você sabe o que isso faz comigo,
especialmente nesta época do ano.
— Eu deveria ter jogado ela em um lago. — Harold pega o bolo
com as duas mãos e come feito um bárbaro. Isso é loucura. Essas
pessoas não tentarão se considerar melhores do que eu nunca
mais. — Quinze anos! Quinze anos sem poder dormir na minha
própria cama por causa daquela cadela.
— Ela era minha filha! — Deborah grita.
— E eu era seu marido, infelizmente! Tive que dormir no quarto
de hóspedes! Na minha própria casa! — Ele se inclina para mim. —
Minha ex-mulher não gostava de cachorros. A Magnolia. — Seus
olhos adquirem um tom sonhador. — Você não sabe o que tem até
que perde essa coisa.
— Não vou ficar aqui para assistir isso — diz Nicholas. — Sinto
muito, Naomi. — Para nosso espanto coletivo, ele vira as costas
para a mesa e me leva com ele.
— Nicky! — Deborah choraminga. — Não vá embora só por
causa do seu pai. Você não terminou sua sobremesa.
— Estamos indo. Feliz Ação de Graças.
— Você vem na quarta-feira, então? Com os convites? — A voz
dela é como um tapa na cara, é tão irreal.
Nicholas está furioso. Eu mal consigo acompanhar suas passadas
poderosas, mas estou amando. É o tipo de cenário com o qual
sonhei – ele essencialmente mandando a mãe se foder e me
levando embora. Ainda estou ofendida por Deborah ter tentado me
enfiar nas mesmas medidas que o Slender Man, mas isso está
rapidamente sendo ofuscado por como é maravilhoso ter Nicholas
me defendendo.
Nós saímos sem respondê-la, e a tontura que sinto está me
deixando com a visão embaralhada. Nicholas e eu voamos pelo
gramado escuro, de mãos dadas. Pela segunda vez hoje, estamos
fugindo da cena do crime, e nunca foi assim antes: Nicholas e eu
ficando do mesmo lado.
Quando chegamos ao jipe, ele apoia a mão na porta do
passageiro antes que eu possa abri-la e me prende contra o metal
frio com seu corpo. Seus olhos estão intensos enquanto me olham,
tão de perto que consigo sentir seu hálito. Ele segura meu rosto
entre as palmas das mãos e diz:
— Não dê ouvidos à minha mãe. Você é perfeita.
Eu desvio o olhar, engolindo em seco.
— Obrigada. — Ofereço a ele um pequeno sorriso. — Fizemos
uma boa equipe lá dentro.
— É assim que deveria ser — diz ele. E me observa por um
momento, parecendo debater algo. Então se aproxima antes que eu
possa me perguntar o que ele está pensando, e sua boca está na
minha.
Eu me derreto, recuando contra a porta. Mal tenho tempo de jogar
meus braços em volta de seu pescoço antes que ele me levante do
chão, as mãos em volta das minhas coxas. Ele me beija ferozmente,
é como o doce mais açucarado de todos, meu corpo esmagado
entre ele e o carro. Assim que a palavra céus flutua em minha
consciência, a porta da frente se abre e lá está Deborah, olhando de
boca aberta para nós.
Eu inclino minha cabeça para trás e me desato a rir. Nicholas abre
um sorriso largo, os olhos brilhando, e então gargalha também.
Acho que ele não consegue acreditar que foi capaz de fazer isso.
Não sei o que deu em nós, mas gosto disso. Do ponto de vista de
Deborah, as mãos de Nicholas desapareceram na barra da minha
saia, e a ideia de chocá-la assim quase me faz sentir pena dela.
Quase.
Quando Nicholas me solta, preciso admitir algo para mim mesma:
Não tenho mais ideia do que está acontecendo. É assustador.

Ainda estou com fome, e milagre dos milagres: a Jackie's está


aberta.
— No dia de Ação de Graças? — exclamo para Nicholas depois
que ele volta para o carro com um saco de papel engordurado.
— Eles estão sempre abertos.
Eu olho de lado para ele. Compramos tantas refeições na Jackie's
no nosso primeiro ano de namoro, antes de ficarmos noivos e
começarmos a morar juntos e eu perder meu emprego na loja de
ferragens tudo de uma vez.
— Você ainda vem muito aqui, então?
— Ah, você sabe… — Ele encolhe os ombros. Mas não desvio
meu olhar do seu rosto, e ele acaba contando a verdade. — Às
vezes, quando as coisas não estão indo tão bem em casa, eu venho
aqui. Se fico preocupado que você vai dizer algo... hã... que eu não
quero ouvir, entro no carro e saio. Digo que vou para a casa dos
meus pais, mas na maioria das vezes só fico dirigindo ou venho
aqui. Veja. — Ele abre o porta-luvas, onde uma enorme pilha de
guardanapos extragrandes da Jackie's está entulhada.
— Você fica preocupado que eu vá dizer algo que não quer ouvir?
— Repito, aceitando uma embalagem de batatas fritas que ele me
entrega. — Tipo o quê?
Ele encolhe os ombros novamente e começa a dirigir para casa.
Já que parece que ele não quer responder a essa pergunta,
penso em outra coisa a dizer.
— A placa que tem na casa dos seus pais está errada. Aquela
que diz “aquilo que chamamos de rosa”.
Ele ri.
— Eu sei. Pesquisei uma vez. Não diga a eles, ok? Quero ver
quanto tempo eles vão levar para descobrir.
Nós compartilhamos um sorriso. Nicholas não é tão ruim assim,
talvez.
É essa bondade que me faz dizer:
— Quando chegarmos em casa, há algo que quero te mostrar.
Ele olha para mim. Sinto sua encarada na escuridão, dividindo-se
entre meu rosto e a estrada. Ele está quieto, mas ouço seu cérebro
martelar durante o resto do caminho para casa, se perguntando o
que vou mostrá-lo. Não consigo fazer uma leitura sobre qual pode
ser o seu palpite.
No momento em que estamos entrando pela porta da frente, já
estou me arrependendo de ter falado isso. Por que sou tão
impulsiva? Preciso retirar minha oferta. Esforço-me para pensar em
um segredo diferente para mostrá-lo, mas não consigo.
— Então — ele diz, se limitando a dizer pouco. — O que você
quer me mostrar?
Não tenho certeza se ainda iria mostrar, se não fosse pela
hesitação em seus olhos. Ele está preocupado. Acha que seja lá o
que for, envolve ele e eu, e que pode ser ruim. Não posso deixá-lo
sofrer, então me recomponho e invoco toda a minha bravura e mais
um pouco. Nunca em um milhão de anos eu pensei que
voluntariamente o mostraria isso.
Ele está encostado no balcão da cozinha quando lhe entrego meu
celular.
— Aqui. — Então, recuo para a outra parede, roendo minhas
unhas.
Ele está ainda mais preocupado agora.
— O que você quer que eu faça com isso?
— Verifique minhas notas.
— Por quê?
— Só vai.
Ele me estuda por alguns segundos como se isso pudesse ser
uma armadilha, então faz o que lhe foi pedido. Quero pegar meu
celular de volta. Meu rosto está vermelho e meu coração na boca, e
se ele rir de mim, vou chorar. Seu sentimento de pena seria ainda
pior. Tenho certeza de que ele vai pensar que sou uma perdedora
patética. Todas as evidências estão em suas mãos. Ninguém me
quer. Olhe só para a pessoa pela qual você jogou tudo fora. Uma
mulher que nem consegue ser contratada como garçonete do Olive
Garden.
Eu o vejo ler a lista que digitei em minhas notas, de cada
estabelecimento para o qual me candidatei. É detalhado: descrevo
se me candidatei online ou pessoalmente, se posso esperar uma
resposta deles por ligação, mensagem de texto ou e-mail. Os
lugares que eu mais esperava que me contratassem estão
marcados com emojis sorridentes. Os “nãos” são seguidos por Xs.
Os lugares dos quais eu não tive respostas ainda têm pontos de
interrogação ao lado. Não há nenhum sim.
É uma lista longa e cheia de Xs.
Quando vários minutos se passam e ele ainda não falou nada,
continuando a olhar para a minha tela enquanto sem dúvida
decodifica tudo, sinto como se estivesse sendo estrangulada.
Quando eu era a única que sabia de todas essas rejeições, eu era
capaz de lidar com elas. Agora que ele sabe, é uma humilhação
recente. Sei que não sou sem valor, mas deus, é difícil não se sentir
assim quando você está no meio de uma sequência interminável de
É difícil dizer isso, mas escolhemos outra pessoa. Lamentamos não
poder dar-lhe notícias melhores e desejamos-lhe boa sorte.
Estou com o rosto nas mãos, então, quando um par de braços me
envolve, sou pega de surpresa. Seu toque junta todas as minhas
pontas soltas, e eu começo a chorar em seu ombro.
— É estúpido chorar por causa disso. Desculpa.
— Ei — ele murmura, acariciando minha têmpora. — Não é
estúpido. Você não tem que se desculpar por nada. Esses
estabelecimentos são estúpidos.
— Não são, não. — Eu soluço.
— Se rejeitam você, são sim. Eu quero entrar no meu carro e
jogar ovos em todos eles. — Meu soluço se transforma em uma
risada, e a bochecha dele que está apoiada no meu couro cabeludo
comprime, o que me diz que ele está sorrindo. Mas quando ele se
afasta e me examina de perto, seus olhos estão sérios. — Eu não
fazia ideia de que você se candidatou para tantos lugares.
— Sim, bem… — Enxugo minhas lágrimas com a manga da
camisa, desviando o olhar. — É vergonhoso. Principalmente porque
você tem um emprego estável. Eu não sabia se você entenderia.
— Eu entenderia — ele diz suavemente. — E iria querer estar
aqui para você. Te apoiar e fazê-la se sentir melhor. Quero que você
me conte quando receber más notícias, para não ter que passar por
isso sozinha.
— É como se candidatar às vagas das universidades de novo —
confesso. — Eu não te contei sobre isso, mas cerca de dois anos
depois da formatura do ensino médio eu decidi que queria ir para a
faculdade, então me inscrevi para um monte de universidades em
todo o país. Eu estava tão esperançosa; tinha certeza de que pelo
menos uma delas me aceitaria. Então lentamente assisti todas as
cartas de rejeição chegarem. Meus pais sugeriram que eu me
inscrevesse em faculdades comunitárias em vez disso, porque elas
não se importariam com uma média de notas mais baixa, mas
naquela altura eu já estava ... não sei. Exausta, eu acho.
Ele não responde da maneira como acho que vai. Ele não age
feito um sargento e me instrui com uma lista de objetivos que
preciso estabelecer para mim mesma e cumprir, aconteça o que
acontecer, sem exceções. Ele não me diz que eu deveria ter me
esforçado mais no ensino médio e prestado mais atenção nas aulas,
ou que se eu tivesse sido mais focada, poderia ter um diploma de
bacharelado e um trabalho bem remunerado agora. Ele não diz que
planejei mal minha vida e passei meus vinte anos sem conseguir
nada.
Em vez disso, ele pergunta:
— O que você queria estudar?
— Honestamente, não sei. Achei que eu fosse descobrir à medida
em que prosseguisse. Nunca tive um curso específico em mente,
tudo que eu queria era um local de trabalho para o qual ansiasse
dirigir todos os dias. Um pequeno ambiente com pessoas amigáveis,
como se eu tivesse outra família. Algum lugar onde eu me
encaixasse.
Seus olhos estão tão calorosos de compreensão que eu derreto.
— Que nem a Ferro Velho.
— Sim. Eu nem me importava com o fato de o pagamento ser
ruim. A diversão faz toda a diferença. Melissa era péssima, mas eu
conseguia sair com Brandy todos os dias. Eu gostava do clima de lá
e… estava confortável. Era um ambiente familiar. Poderíamos ouvir
qualquer música que quisessemos. Eu adorava organizar os
displays e tornar a loja um lugar divertido para clientes que não
existiam. De mudar Toby, o guaxinim, de lugar. Nunca vou encontrar
um emprego assim novamente.
Ele não diz sim, você vai. Ele me abraça forte e me deixa fungar
em seu ombro.
— Eu sinto muito. Se eu soubesse, nunca teria feito todas
aquelas piadas sobre trabalho e faculdade. Não deveria ter feito, de
qualquer maneira. Se houver alguma forma de eu ajudar, você vai
deixar?
— Eu não acho que você possa ajudar de alguma forma.
Ele respira fundo. Enxuga uma lágrima minha com o polegar.
— Estou aqui, ok? — Ele agarra meu ombro e me aperta
suavemente. — Essas coisas não são banalidades. Estou bem aqui.
E quero ouvir. Sempre que você estiver triste, quero saber por quê.
Quero saber o que você está sentindo, o tempo inteiro, para poder
dividir esses sentimentos com você.
Preciso fugir das emoções em seu olhar, porque meu coração
está apertado em meu peito e Nicholas quebrando minhas
expectativas por ser gentil e compassivo está me sufocando tanto
que é como se eu estivesse usando um espartilho. Não consigo
respirar sob o peso de seu olhar. Quero confiar que ele está sendo
sincero, mas não posso.
No momento ele está sendo doce e empático, mas e daqui a uma
semana? E se eu estiver tendo um dia ruim e quando contar a ele
sobre isso, eu não encontrar essa variação doce e empática de
Nicholas, mas a outra? Aquela que ficou distante quando surgiram
questões que ele não queria enfrentar? Esse Nicholas vai voltar,
mais cedo ou mais tarde, e vai fazer eu me arrepender de ter sido
tão vulnerável com ele.
Não consigo esquecer o que ele disse no passado. Naomi não
precisa de emprego. Não me castigue por ser bem sucedido o
suficiente para comprar um bom veículo. Sua amargura por eu tê-lo
impedido de aceitar aquela oferta de emprego em Madison. Ele
pode se desculpar mil vezes, mas sempre me perguntarei se ele
falou com sinceridade. Se acredita em mim.
— Tudo o que você quiser fazer — ele me diz. — Eu te apoiarei.
Minha mente volta para a lanchonete em Tenmouth. A casa mal-
assombrada. Não digo nada.
— Sinto muito pela minha mãe.
— Eu também.
— E por meu pai.
— Sinto muito por seu pai e Beatrice.
Isso arranca uma risadinha dele.
— Beatrice. A filha favorita dela, era como minha mãe costumava
chamá-la. É um mistério o motivo de Heather nunca aparecer.
— Pobre Heather. — Talvez ela mereça o papel de madrinha
principal, no fim das contas. Enfio esse pensamento errante em um
triturador de madeira, porque não haverá uma madrinha principal.
Não haverá casamento. Nicholas e eu mal podemos caminhar por
um corredor de artigos de decoração de casamento, quanto mais
pelo corredor do altar do nosso casamento de verdade.
Tudo vai desmoronar e essa verdade não me traz nenhuma
satisfação. No momento, não odeio Nicholas. Posso identificar todas
as qualidades dele que vou sentir falta. Mas isso não pode
continuar. Seria muito mais fácil se ele não tivesse começado a
gostar de mim novamente, se não tivéssemos começado a ser
honestos um com o outro, a expor o que realmente pensamos e
sentimos. Quero ser capaz de ir embora no final disso com uma
forte determinação e o conhecimento de que estou fazendo o que é
melhor para mim. Para nós dois.
Acho que Nicholas vê minha confusão e turbulência interna, mas
interpreta erroneamente como decepção pelo emprego na loja de
artesanato, porque o sorriso que ele me dá não é um sorriso que ele
conseguiria colocar no rosto se soubesse que estou pensando em
como terei que deixá-lo.
— Há uma coisa que quero mostrar a você também — ele me diz,
e me leva pela mão para a sala de estar. Meus olhos passam pelo
quebra-nozes na lareira e meu coração aperta.
Ele se senta na beirada da mesa e faz um gesto para que eu me
sente na cadeira do computador.
— Quero que veja o que passo a maior parte do meu tempo
fazendo no computador. Não é relacionado ao trabalho.
Oh, céus. Se ele estiver prestes a clicar no Pornhub, eu realmente
prefiro não saber. Uma coisa é compartilhar assuntos, outra coisa é
compartilhar em excesso.
— Relaxa, não é ruim. — O que ele me mostra limpa toda a
minha melancolia, porque fico tão espantada que não há espaço
para nenhuma.
— Você está falando sério? — Fico olhando para ele.
Ele acena com a cabeça solenemente.
— Isto.
— Isso.
Eu pisco para a tela. Ele está no nível noventa e um de um jogo
de computador chamado Nightjar. Pelo que posso ver da página
inicial, é um jogo de fantasia com uma missão e possui todos os
tipos de criaturas míticas. O nome da conta dele é…
— Amor te chama?
— Não é amor te chama. Meu nome é amortechama, espertinha.
— Ele belisca meu braço. — A morte chama. Essas são as últimas
palavras de Cardale, e inicia toda a busca para encontrar o... não
ria!
Estou lutando contra um sorriso.
— Desculpa. — Isso aqui é conteúdo de primeira. — Quem é
Cardale?
Ele franze a testa para mim.
— Eu não estou brincando com a sua cara. — Fecho minha mão
sobre a dele. — Só estou surpresa, apenas isso. Mas quero saber
tudo sobre este jogo. Nível noventa e um? O amor deve realmente
te chamar enquanto você joga.
Ele revira os olhos, mas diz:
— Ok, Cardale é um antigo mago que estava extraindo uma
profecia do Território dos Sonhos quando foi atacado. É assim que
sua jornada como jogador começa. Todos estão em busca dessa
profecia, porque as últimas palavras dele foram “A morte chama”,
então as pessoas pensam que algo terrível vai acontecer, mas não
têm certeza porque a profecia se foi. Se você estivesse familiarizada
com o jogo, teria reconhecido logo de cara o que meu user
significa...
— Está bem, está bem. — Ele é tão sensível sobre esse jogo, é
meio que fofo. — Você está no nível noventa e um. Isso é muito alto.
Está perto de encontrar a profecia?
— Eu encontrei a profecia quatorze vezes. Cada vez que ganho,
reinicio o jogo e a profecia salta automaticamente para um local
diferente com um conjunto diferente de pistas, para que eu possa
encontrar tudo de novo.
— Quando você encontra, o que ela diz? — Estou realmente
entrando nessa.
— Muda toda vez. Mas nos fóruns, há fóruns onde falamos sobre
o jogo, achamos que todas se conectam. Recebemos uma frase
simples quando ganhamos, é meio vaga e parece a de um biscoito
da sorte e nem sempre tem um sentido contextual, mas quando as
compilamos em um banco de dados, encontramos padrões. Existem
várias teorias, mas pessoalmente acho que existem centenas de
possíveis profecias e se você organizá-las em uma ordem
específica, encontrará uma história sobre quem realmente matou
Cardale.
Ele fala com pressa enquanto explica tudo para mim. Não posso
acreditar que estive tão no escuro sobre este lado da vida dele.
Sempre me aborreceu o fato de ele desaparecer com tanta
frequência para ir mexer no computador, mas nunca pensei no que
ele estava fazendo. Ele tem todo um mundo próprio que eu nem
sabia da existência! Pensando bem, estou um pouco chateada
comigo mesma por não ter sido mais curiosa. O homem é dentista.
O que eu achava que ele fazia no computador noite após noite?
Que olhava os raios-X dos dentes das pessoas por horas? Céus,
Naomi. Você é desatenta.
— Quem é esse cara? — Arrasto o mouse sobre uma figura
animada que está girando no mesmo lugar em uma plataforma,
mudando a pose de vez em quando para parecer que está
flexionando os próprios bíceps, em seguida, plantando os punhos
carnudos nos quadris. Usa um capuz preto sobre o rosto e todo o
efeito me faz lembrar o Homem Raio de Bob Esponja. Eu não
verbalizo isso.
— Esse é o meu personagem, Grayson.
— Grayson? Esse nome tem um significado especial?
— Eu o nomeei em homenagem a um super-herói de quadrinhos,
o Dick Grayson. — Faço um barulho com o nariz e ele me cutuca. —
Muito madura. Nos anos quarenta, eles saíam por aí chamando as
pessoas de Dick porque não sabiam que um dia você iria rir disso,
só porque significa “pau”. De qualquer forma, também tenho outros
personagens, mas Grayson tem mais pontos de experiência, então
eu o uso para as missões mais perigosas.
Eu olho para ele.
— Quem é você?
Ele me dá um sorriso torto, que eu retribuo.
— Um baita nerd. — Acho que talvez eu tenha uma queda por
baita nerds.
— Me mostre como jogar.
Seus olhos se iluminam.
— Sério?
— Se você não se importar em dividir isso comigo. Eu entenderei
se não quiser. — Fico impressionada com minha própria maturidade
quando acrescento: — Se quiser mantê-lo para você, como uma
atividade que faz sozinho, eu entenderei.
— Não, eu amaria que você jogasse comigo!
Dá para ver que ele está falando sério. Não é segredo nenhum
que ele usa o computador como forma de escape, mas aqui está ele
me convidando para escapar junto com ele.
— Nesse caso, quero um avatar com cabelo roxo, três seios e um
capacete viking.
— É para já. — Ele sorri, depois se senta no meu lugar e me
coloca sobre seus joelhos. E começa a digitar no teclado, bem
focado em sua zona de conforto, e ao mesmo tempo dolorosamente
ciente da minha presença e das minhas reações, do meu
julgamento. Esta parte dele é nova para mim, mas de alguma forma
é tão Nicholas.
— Por que você não me contou nada disso?
Ele remexe um ombro.
— Achei que você fosse tirar sarro de mim.
Meu coração afunda.
— Eu não teria feito isso. Se você tivesse me mostrado que era
isso que estava fazendo, eu teria me juntado a você. Eu estaria no
nível noventa e um também.
— Nós vamos te fazer chegar lá num piscar de olhos. Prepare-se
para uma noitada, Naomi. Este jogo é seriamente viciante, você não
faz ideia. Vou voltar do trabalho amanhã e você estará pelo menos
no nível doze, garanto. Há muito para fazer, além das missões. Você
pode vagar pelas aldeias e se distrair fazendo um milhão de outras
mini missões, para acumular pontos. É um universo incrivelmente
detalhado e complexo. Eles tornam o processo de chegar à profecia
difícil porque há tantas distrações.
Ele me deixa livre com meu novo personagem e, nos primeiros
cinco minutos, eu caio em um portal e encontro aleatoriamente um
tridente brilhante que faz Nicholas ofegar tão alto que acho que fiz
algo de errado. Ele me diz que o tridente é raro, e quando você
apunhala uma criatura mítica com ele, absorve todos os poderes
dela. Ele me implora para apunhalar um dragão, mas eu
alegremente me desvio de um em prol de apunhalar os pequeninos
cogumelos que me dão a habilidade de pular muito alto, como se eu
estivesse andando na lua. Dez minutos depois, Nicholas está
absolutamente fora de si e tentando me subornar com uma ida à
Sephora se ele puder ficar sozinho com o tridente por meia hora. Eu
me curvo protetoramente sobre o teclado para mantê-lo afastado e
salto para uma fonte termal.
Eu também ignoro um semideus que pode duplicar o tesouro para
perseguir gnomos. Gnomos são maravilhosos! Quem se importa
com o tesouro quando você pode se presentear com um pequeno
chapéu azul? Sou incrível neste jogo e não fico nem um pouco
surpresa por isso. Nicholas passa as unhas pelo rosto e geme.
Ele acidentalmente minimiza a página, que para em sua área de
trabalho. Antes que ele possa clicar novamente, eu grito:
— Espera! — E aponto para o ícone de um documento do
Microsoft Word intitulado Querida Deborah.
Eu levanto uma sobrancelha para ele.
— Ah. Hum. — Ele enrubesce.
— Tá tudo bem. Você não precisa me dizer.
— Não, você pode ver. É, ah, um pouco infantil. Ou você pode
adorar, não sei.
É uma série de pequenas cartas enviadas para a coluna de
Deborah no Beaufort Gazette. Ele termina cada uma delas com
assinaturas como IRRITADO EM WISCONSIN ou FILHO DE SACO CHEIO.
Uma delas, pelo que vejo, está endereçada por engano a Deborah
Weiner em vez de Deborah Rose.
— Esse é o nome de solteira dela — ele me diz, mordendo o
polegar para impedir que o sorriso de orelha a orelha se transforme
em uma risada completa. — Achei que o erro de digitação seria
engraçado. Me vingar dela dessa maneira simples alivia minha
frustração e, até agora, ela não adivinhou que sou eu quem está por
trás.
— Bom deus! — Pressiono uma mão contra meu peito. — Como
você pôde me dar acesso a códigos nucleares assim?

Querida Deborah, minha mãe não sabe reconhecer os limites


pessoais. Estou na casa dos trinta. Como digo a ela para cortar o
cordão umbilical e parar de me ligar vinte vezes por dia?

Querida Deborah, minha mãe é autoritária e passa por cima das


decisões da minha noiva. Ela se intromete nos nossos assuntos
com mais determinação do que uma caçadora de lixo, mas sempre
que expresso isso na cara dela, ela parece não entender. O que vou
ter que fazer para que ela entenda o que quero dizer? Devo colocar
por escrito?

Querida Deborah, pretendo pedir a minha namorada casamento,


mas estou preocupado que minha mãe extremamente intrometida
possa tentar se apoderar dos planos de casamento. Espero que ela
entenda que isso seria inapropriado e tenho certeza de que você vai
concordar.

— O jornal costuma postar suas cartas? — eu pergunto.


— Eles postaram seis das sete que enviei.
— E sua mãe não ligou os pontos?
Ele balança a cabeça lentamente de um lado para o outro, um
sorriso irônico torcendo seus lábios.
— Não. Há uma dissonância cognitiva total nas respostas dela.
Ela me disse para dizer gentilmente à minha mãe que não a quero
envolvida nos meus planos de casamento, e que a mãe em questão
provavelmente diria “Ok!” e recuaria. Você deveria ter visto a minha
cara quando eu li. Escrevo essas cartas para desabafar quando
estou realmente chateado com ela, mas suas respostas só me dão
vontade de bater minha cabeça contra a parede.
— Nicholas, esta é a melhor coisa que já vi na minha vida. De
presente de Natal, quero que você escreva para ela contando que
seu pai costumava ir a bordéis.
Ele me puxa para perto dele em reflexo quando ri.
— Meu deus, sim. Com certeza vou fazer isso.
Depois de relermos suas cartas várias vezes, encontrando novas
partes para rir, voltamos para o Nightjar e ele me familiariza com o
jogo. Ele me balança involuntariamente em seu joelho, que não para
de sacudir, e seus dedos apertam minha cintura. Ele não está
consciente da própria linguagem corporal, absorto em sua narração
de histórias, dicas e opiniões. Está mais animado do que há muito,
muito tempo eu não o via, e amando tudo isso. Ele ama me
apresentar a um jogo que lhe dá tanta alegria.
Eu sorrio por dentro e presto muita atenção em cada palavra que
ele diz. Quando em seguida olhamos para o relógio, são duas e
meia da manhã, e fico surpresa ao perceber que meu noivo e eu
estamos nos tornando amigos de novo.
Na sexta-feira, Nicholas é o único na escala para trabalhar na Rise
and Smile, uma vez que fez a coisa mais Nicholas de todos os
tempos: se ofereceu para ficar com a carga de trabalho dos colegas
para que eles pudessem visitar as famílias no fim de semana de
feriado. (Que tal esse esforço adicional?! Posso ouvi-lo pensando
bem alto na direção da cadeira vazia de Stacy.) Eu o torturo
enviando mensagens alegres sobre todos os tesouros que descubro
no Nightjar por pura sorte, que posso ver, com base na conta dele,
que ele nunca encontrou antes, apesar de já ter passado um bilhão
de horas jogando. Ele me envia GIFs de pessoas com as cabeças
explodindo, e às cinco horas, não aguenta mais e sai mais cedo.
Quando ele chega em casa, saio de trás de uma pilha enorme de
folhas que juntei e pulo em cima dele, assustando-o tanto que ele
tomba em uma outra pilha de folhas. Ele me persegue e eu grito o
mais alto que quero, já que não temos vizinhos, subindo e descendo
a colina até a noite cair.
Estamos cobertos de sujeira e folhas. A gravata do Banguela de
Nicholas está arruinada. Ele a avalia com tristeza, mas dou um leve
puxão na gravata e digo:
— Vamos comprar uma nova. Como Treinar o Seu Dragão 2: a
próxima gravata.
Ele sorri para mim. Meu coração dá uma cambalhota e Nicholas
começa a se inclinar, mas nos afastamos assustados um do outro
por conta de um feixe de luz branca e fria e faróis altos subindo pela
calçada.
É o carro de Deborah.
O momento de diversão e felicidade se desintegra.
— O que ela faz aqui? — eu sibilo, recuando para a sombra da
casa. Encaro Nicholas, entrando em pânico. — Você a convidou?
Não tive tempo de limpar nada. A pia está cheia de pratos e sua
mãe vai... argh.
— Não, eu não a convidei. — Sua voz é firme.
O motor é desligado e as duas portas do carro se abrem como as
asas de um urubu. Se Harold foi trazido como reforço, as coisas
realmente devem estar prestes a ficar feias. Deborah escorrega
para fora pelo lado do motorista, a silhueta esguia avaliando a casa.
Mesmo no escuro, consigo ver que está com uma carranca horrível.
Ela vai dizer a Nicholas que ele precisa se mudar. Essa casa é
inaceitável para o meu filho. Inaceitável para os meus netos.
— Vamos — diz Nicholas com urgência, agarrando minha mão e
correndo para a porta dos fundos. — Não podemos deixá-los entrar.
— Não podemos?
— Nunca. — Fico surpresa com o quão cruel ele soa. Mas eu
entendo. Talvez a lógica seja absurda, mas se deixarmos as
sombras de Deborah e Harold entrarem por nossa porta, toda a paz
que estabelecemos aqui vai virar fumaça. Eles vão manchá-la com
pessimismo e julgamento. Quando partirem, levarão toda a magia
com eles, e aqui não mais parecerá nosso santuário encantado na
selva.
Corremos para dentro no momento em que Deborah começa a
bater na porta da frente.
— Nicky! — Ela tenta girar a maçaneta e bate novamente, muito
mais alto desta vez. É o som mais irritante do universo; ela não
pode acreditar que temos a audácia de deixá-la do lado de fora.
— Nicky, você está aí? Atenda à porta! — Lembro-me de
vampiros, que precisam de permissão para passar das soleiras das
portas, e depois que você os deixa entrar uma vez, eles ficam livres
para entrar e sair quando quiserem. Deborah vê nossas silhuetas de
sangue quente através da porta com a sua visão em infravermelho e
arreganha os dentes afiados como navalhas, as pupilas se
expandindo para preencher o branco dos olhos.
Nicholas e eu observamos a porta com cautela, nenhum de nós
se mexe.
— Sua mãe precisa aprender a ligar antes — eu sussurro.
— Ela me ligou três vezes enquanto estávamos lá fora — ele
admite. — Eu não respondi.
— Iiiiiih, alguém está encrencado.
Ele me cutuca com o ombro. Eu o cutuco de volta.
— Nicholas! — Deborah usa aquele tom de “Não estou de
brincadeira”. — Seu pai e eu estamos aqui! Destranque a porta. —
Harold resmunga distantemente. Deborah o fez se levantar à toa, e
ele não teve que ficar de pé por tanto tempo assim em cinco anos.
— O que você acha que ela quer? — murmuro no ouvido de
Nicholas.
— Ela precisa que eu diga ao meu pai que ele não tem permissão
para comer alimentos gordurosos.
Eu gargalho, então cubro minha boca para amenizar o barulho.
— É a sobremesa que você não terminou ontem à noite. Ela está
aqui para te dar o resto do bolo na boca.
Percebo a tensão em sua postura, como ele tenta se tornar
invisível enquanto espera, pensando quase que audivelmente Por
favor, vá embora. Apenas me deixe em paz. O estresse delineia
seus traços e eu sinto vontade de tocá-lo, de resolver seus
problemas com minhas mãos. Deborah é esmagadora, mesmo em
pequenas doses. Nicholas é exposto aos discursos incômodos e
emocionalmente exaustivos dela o tempo inteiro. Ele não tem
nenhum tempo livre para se recuperar.
— Eles não estão em casa — reclama Harold. — Vamos embora.
— O carro do Nicky está aqui e todas as luzes estão acesas. Eu
não vou a lugar nenhum até que ele abra a porta. Se quiser ir
embora, dirija de volta. Nicky vai me dar uma carona.
— Por que diabos ele mora aqui no meio do nada? — Nós dois
não temos consideração nenhuma por fazê-lo viajar dez minutos
inteiros.
Pela primeira vez, Harold disse um argumento com o qual ele e a
esposa podem concordar.
— Esta propriedade é inaceitável — diz ela vigorosamente. (Eu
disse!) — É muito longe de casa. O jardim é uma bagunça, vamos
precisar de um jardineiro aqui para cortar todas essas árvores. Nicky
mencionou a existência de um lago. Para que ele precisa de um
lago? É perigoso para crianças pequenas. Amanhã cedo, você vai
fazer uns telefonemas para pedir que construam uma cerca ao
redor. Está vendo aquelas persianas tortas? Elas também precisam
sumir. Honestamente, o que ele estava pensando? Deve ter deixado
a Naomi decidir. Não é à toa que ele não nos convidou, tem
vergonha disso aqui.
Quando começa a parecer que Deborah nunca vai ir embora,
Nicholas suspira e dá um passo em direção à porta. Não posso
deixá-lo desistir. Ele ignorou a mãe com sucesso por mais de quinze
minutos e quero manter o ritmo.
— Vamos. — Pego sua mão e corro em direção às escadas,
arrastando-o atrás de mim.
— O que vamos fazer?
Eu o levo para o quarto vazio do meio no andar de cima e abro a
janela, que dá para o jardim da frente. Deborah e Harold ouvem o
barulho da vidraça antiga e inclinam a cabeça para trás para olhar
boquiabertos para nós.
— E aí? — eu digo alto.
Ao meu lado, Nicholas cai no chão como um saco de batatas.
Tudo o que posso fazer é não rir.
— O que você está fazendo? — ele choraminga novamente em
um sussurro alto.
— Sou seu cão de ataque — digo a ele. — Vou latir para esses
intrusos até eles irem embora.
O olhar de Harold é confuso e perplexo. Ele aperta os olhos,
apontando para mim.
— Quem é aquela?
— Aquela é a Naomi, seu idiota — sua esposa rebate, e ele
apenas coça a cabeça. A confusão dele é compreensível. Harold
gosta de falar olhando diretamente para o meu peito quando se
dirige a mim, e graças a esta linda janela que esconde tudo, exceto
minha cabeça e pescoço, minha identidade se tornou um mistério.
Deborah coloca as mãos em volta da boca.
— Onde está o Nicky?
Eu coloco minhas mãos em volta da boca também.
— Nicholas não está disponível para conversar agora, mas você
pode deixar um recado! — Ser um cão de ataque é mais parecido
com ser secretária do que se poderia imaginar.
— Mas onde ele está? — ela exige saber.
— Ocupado! — Jesus, senhora. Se toca.
Ela apoia as mãos nos quadris.
— Você não vai me deixar entrar?
Penso em vampiros novamente e estremeço.
— Receio que não!
Nicholas faz um som estranho e agudo. Eu olho para ele em
alarme e, que surpresa agradável, ele está rindo. Isso me encoraja a
dar um passo adiante.
— Eu não posso te dizer o que Nicholas está fazendo porque é
um segredo, a propósito. Um segredo sinistro. É melhor você ir
embora agora enquanto ainda pode.
— Eu não vou embora até ver meu filho! — Ela faz uma pausa, a
voz mudando para um tom suspeito. — O que você fez com ele?
— Com Nicholas? — respondo questionadoramente. — Eu não o
vejo há dias. E essa é a história que vou contar para a polícia.
Verifico a reação de Nicholas e acho que ele pode estar morto.
Está tombado, a testa no chão, o corpo tremendo de tanto rir. Não
posso acreditar que ele está me deixando falar assim com a mãe
dele, mas depois do que ela me disse ontem, não tenho escrúpulos.
Estou sem coleira e irei o mais longe que ele me permitir.
— Ele não está aqui. Uma nave espacial decolou alguns minutos
atrás, então se você correr, poderá alcançá-lo.
Tenho quase certeza de ouvir Harold dizer:
— Não vou correr, nem mesmo se uma nave espacial tiver
realmente levado ele.
Ele volta para o carro, mas Deborah fica parada.
— Isso não é engraçado. Só vou te dizer mais uma vez para ir
buscar o meu filho.
Nicholas se senta, pensa por um momento e então grita:
— Não estou em casa!
— Nicky! — Deborah choraminga, juntando as mãos. Ele está
vivo! — Nicky, é você?
Ele aparece ao meu lado na janela.
— Não! Você pegou o endereço errado.
— Nicky, estou falando sério. Me deixe entrar.
— Nicky se foi para sempre. Um dinossauro o comeu.
— Perdão?
— Ele é uma criança trocada.
— Nicholas Benjamin Rose. Estou perdendo a paciência e não
acho isso engraçado. Está muito frio e vim aqui falar com vocês
como adultos. Eu vou contar até três...
— Ele foi arrebatado.
— Não fale assim comigo! Eu sou sua MÃE...
Nicholas nunca interrompeu a própria mãe antes e compensa isso
agora.
— Durante todo esse tempo, ele nunca foi real. Desde o início ele
era... o Shia LaBeouf! Em seu método de atuação!
O corpo de Deborah está mal iluminado, mas posso ver suas
mãos fechadas e o queixo proeminente. Quando a voz dela surge, é
tão gutural que faria Lúcifer trancar as portas do inferno.
— Nick...
— Eu o chutei para fora de um trem em movimento e ele está no
fundo de uma ravina em algum lugar, ocupado demais estando
extremamente morto. Não há nada para você aqui, então, vá
embora, você está expulsa. — Ele abre bem os dedos e os empurra
para frente como se estivesse lançando um feitiço. — Eu vos
expulso!
Acho que ele pode estar perdendo um pouco a cabeça, porque
sua risada vertiginosa abafa o que quer que Deborah esteja gritando
lá embaixo. Ela cospe as palavras feito louca, Nicholas jogou todas
as merdas no ventilador, e é glorioso. A mais bela demonstração de
comportamento infantil que já testemunhei.
— É, mostre a ela como se faz — digo incisivamente. Eu amo vê-
lo sendo corajoso o suficiente para dar àquela mulher uma fração do
inferno que ela merece. — Expulse a Deb-Mônia daqui.
— Eu te expulso daqui, Deb-Mônia! — ele diz aos berros. E eu.
Perco. Tudo. Não consigo respirar. Nem Nicholas, que desabou no
meio de seu feitiço de banimento e ri tão histericamente que
nenhum som sai, exceto por pequenos soluços ofegantes. Lágrimas
escorrem pelo nosso rosto.
— Olhe o que você fez! — Deborah grita, balançando o dedo para
mim. — Você corrompeu meu doce menino! Eu sei que isso é culpa
sua, Naomi!
Faço uma reverência.
O feitiço é um sucesso. Deborah desiste e volta para o carro.
Seus pneus guincham ameaçadoramente quando ela arranca o
carro noite adentro, o que provavelmente é muito próximo ao
mesmo som que ela está fazendo a trinta centímetros do rosto de
Harold agora.
Limpo as lágrimas dos meus olhos e faço um high-five com ele.
— Puta merda, cara!
— Eu sei! — Há um sorriso largo e enlouquecido no rosto dele, o
peito arfando profundamente. O “descontrole” é meu novo visual
favorito dele. Lembro-me da conversa que tivemos no carro depois
do meu fiasco de parar e sair correndo no semáforo em Beaufort, e
em como ele disse que sacanear com a cara dos dos pais dele
também poderia ser divertido, contanto que ele fizesse parte da
brincadeira. Ele realmente estava falando sério.
Deslizo minha palma sobre sua bochecha, dando um sorriso largo
que combina com o dele.
— Estou orgulhosa de você. Gostaria de poder ver o rosto da sua
mãe agora.
— Ela vai me matar. — Seu sorriso congela quando ele percebe o
que acabou de acontecer. — Meu deus, ela vai literalmente me
matar. — Ele se inclina, as mãos nos joelhos, respirando pelo nariz
e pela boca como uma mulher em trabalho de parto. Dou um
tapinha em suas costas e alguns ruídos ansiosos parecendo
buzinas saem dele. — Eu realmente disse tudo aquilo? Para minha
mãe? Será que podemos fugir para uma ilha deserta?
— Eu gosto de ilhas. Vamos nessa. Comeremos torta de coco
todos os dias.
— Não acredito que fiz isso. — Mais ruídos de buzinas. — Eu me
empolguei um pouco, não foi?
— Quero te ver se empolgar o tempo todo. — Recebo um sopro
de inspiração e toco no parapeito da janela. — Ei, você poderia
descer e ficar onde sua mãe estava? Só por um segundo? Quero
verificar uma coisa.
Ele arqueia uma sobrancelha para mim, mas obedece. Enquanto
desce as escadas, corro para o meu quarto e puxo um pacote de
balões debaixo da minha cama, que comprei quando ele e eu ainda
estávamos sabotando um ao outro. Corro para o banheiro, encho
um com água e volto para a janela.
— Ok, estou aqui embaixo — diz ele, a voz subindo em uma
espiral de respiração branca. — O que você precisa verificar?
— Isso — respondo, deixando a bomba cair. Não acerta a cabeça
dele, como planejado, mas respinga por seus sapatos.
Nicholas salta para trás, os braços abertos, olhando para as
manchas escuras na própria calça. Uma emoção percorre minha
espinha. Lentamente, lentamente, ele levanta a cabeça e rosna:
— Eu correria se fosse você.
Com um grito alegre, saio disparada.

Passei o fim de semana me acostumando por demais a ter relações


amigáveis com Nicholas. Ele me ensina a dirigir o Frankenscarro, ao
qual sou inicialmente resistente por causa do nervosismo. Mas pego
o jeito rapidamente e nos levo a Beaufort para comprar uma canoa,
que amarramos no teto do meu carro. Compramos três remos e
remamos para resgatar a canoa rebelde dele. Passamos o sábado
no lago, enfiando os remos em pedaços de gelo e brincando de
carrinho de bate-bate. Em seguida, sentamos no sofá da sala, lado
a lado, e assistimos a neve cair enquanto bebemos chocolate
quente. Ele joga Nightjar (na minha conta, para que assim possa
brincar de ser Deus com meu tridente, e exclama: “Ei, você tem que
vir ver isso! Sou um unicórnio! Olha, Naomi, eu tenho um chifre!”)
enquanto eu leio fanfic de Riverdale no Tumblr, e tudo parece
tranquilo, comum e dolorosamente perfeito. Me deixa tão triste saber
que todas as partes boas da nossa história estejam aparecendo só
no fim dela.
Uma perversa reviravolta do destino: não acho que quero que
seja o fim. Não mais. Mas, embora pareçamos estar aprendendo a
tratar os sentimentos um do outro com mais cuidado e fazendo
escolhas melhores, não somos o que um casal de noivos deveria
ser.
Quando ele volta para casa na segunda, tudo o que quero fazer é
juntar todos os meus fracassos em uma pilha e varrê-los para baixo
do tapete, mas, em vez disso, me forço a compartilhar as partes de
mim das quais não me orgulho tanto. Me obrigo a dizer:
— Hoje foi uma merda. Passei meia hora em uma inscrição online
antes de chegar à última página e eles dizerem que um mínimo de
cinco anos de experiência na indústria de alimentos era necessário.
— Para ocupar que tipo de posição?
— De subgerente. Era a única vaga para a qual eles estavam
contratando.
Ele olha para o tapete enquanto tira os sapatos, e me pergunto se
está pensando na Comidos Vivos. O Sr. e a Sra. Howard nem
mesmo me fariam sentar para dar uma entrevista; se eu dissesse
que poderia me mudar para Tenmouth, eles me dariam um emprego
sem hesitar.
— Eu sinto muito. Exigir um mínimo de cinco anos de experiência
é estúpido. Eles perdem muitos talentos limitando-se dessa forma. É
realmente azar o deles. — Não consigo evitar, meus olhos ficam um
pouco marejados ao ouvir um apoio tão forte vindo dele. — Se te
deixa mais animada, parei no supermercado e vi alguns anúncios de
“temos vagas” no mural de avisos. — Ele me entrega dois folhetos.
São para pequenas empresas locais pelas quais já passei de carro,
mas nunca frequentei. Seus estacionamentos estão sempre vazios.
Eles são o tipo de local de trabalho que eu sei que Nicholas acha
que está fadado ao fracasso porque não podem competir com os
grandes varejistas de hoje, mas ainda assim tirou tempo para trazê-
los pra casa para mim.
Começo a flutuar em direção ao sofá, querendo nada mais do que
encontrar refúgio em um programa de televisão até que minhas
pálpebras estejam tão pesadas que não conseguirei mantê-las
abertas, mas ele pega minha mão.
— O que está fazendo?
— Vou fazer o jantar. Vem comigo?
Eu levanto uma sobrancelha de modo intrigado para ele.
— Claro?
Ele me dá um pequeno sorriso, que retribuo, e não solta minha
mão, entrelaçando os dedos nos meus. Em que mundo é esse que
estou vivendo onde agora fico de mãos dadas com Nicholas para
andar de um cômodo para outro? Seu aperto é confiante e seguro, o
tipo que você gostaria de ter enquanto é conduzida por meio de uma
multidão.
— Você é um ótimo segurador de mãos, sabe — digo a ele.
— Apenas te fazendo lembrar de todas as coisas que o seu Dr.
Claw nunca poderia fazer.
Ahh, Dr. Claw. O vilão malvado dos meus sonhos. Com uma
limusine, suspensórios vermelhos e um rosto daqueles (no filme,
pelo menos), ele ainda poderia fazer isso mesmo se tivesse dois
ganchos de pirata.
— Ele ainda tem a outra mão.
— Shh. Eu ganhei.
— Sim, Nicholas, você é muito melhor do que um personagem de
Inspetor Bugiganga.
Nicholas ergue o queixo, apaziguado. Na cozinha, ele puxa um fio
que ativa um feixe de lâmpadas globo que percorrem o perímetro do
nosso teto, criando um ambiente animado. Em seguida, clica em um
aplicativo de rádio no celular e a música invade o cômodo enquanto
ele vasculha as panelas no armário.
— Onde está a... ah, aqui está. — Ele gira uma frigideira e pisca
para mim.
— O que vamos fazer?
— Panquecas de noz-pecã.
Mal é hora do jantar e o céu já está escuro. Se não fosse pelas
lâmpadas brilhantes no alto lançando nossos reflexos de volta para
nós na vidraça, conseguiríamos ver a floresta salpicada de estrelas.
Uma música familiar flui do celular dele. Generationals. Nossa
banda. A música que toca agora é “Turning the Screw”, que eu não
tenho ouvido ultimamente porque me faz lembrar de tudo de
adorável que desapareceu do nosso relacionamento. Já faz um
tempo que não ouvimos essas músicas juntos. Eu me pergunto se
ele já tinha favoritado essa música ou se é de uma playlist. A ideia
de ele ouvir nossa banda sozinho nos últimos tempos machuca meu
coração.
— Naomi.
Sua voz é aveludada. Não preciso me perguntar se a escolha da
música é uma coincidência, porque ouço isso em seu timbre
aprofundado. Vejo no músculo emplumado em sua bochecha. Sinto
seus átomos vibrando.
Ele olha de lado para mim e meu estômago embrulha.
— Vem aqui — diz ele, estendendo a mão.
Eu ando tão devagar que ele ri. Fico maravilhada com a
suavidade impossível do tom de voz, vindo dele, dirigido a mim; o
tremer de seus lábios, o fogo acolhedor em seus olhos. Quando
minha mão desliza na dele, nunca estive tão ciente da fisicalidade
de outra pessoa. Todos os meus sentidos aumentam, distinguindo
seus detalhes, a maneira como ele cheira, a sensação de sua pele,
o calor de seu corpo. Ele ocupa o cômodo inteiro.
Respirar torna-se um esforço.
A mão que ele não entrelaçou em meus dedos agarra levemente
minha cintura. O topo da minha cabeça repousa perfeitamente sob
sua mandíbula, o que torna a inclinação contra seu peito irresistível.
Eu não achava que éramos o tipo de casal que dançava em uma
cozinha no meio da floresta, mas acontece que esse é exatamente o
tipo de casal que somos. Dois meses atrás, teríamos feito algo
assim apenas se outras pessoas estivessem olhando. Uma
encenação.
Eu nunca quero que essa dança termine. Ele não me deixa ficar
pressionada contra ele para que eu possa esconder o rosto,
puxando-me suavemente para trás toda vez que tento desaparecer.
Ele inclina minha cabeça para cima e olha através de mim,
diretamente para o que está dentro. Seus olhos são mais azuis do
que um lago e brilham de felicidade. Percebo que não o vejo
genuinamente feliz há muito tempo. Tenho estado tão concentrada
em minha própria infelicidade que não notei a dele. Tenho me
enganado pensando que ele vive contente o tempo todo. Que
arrogância assumir que ele estava contente comigo quando eu
obviamente não estava contente com ele.
Nosso passado é uma série de memórias desconectadas pelas
quais posso me teletransportar. Todas as memórias de ouro, alegres
e leves como o ar, estavam escurecendo, o que permitiu que as
memórias amargas e venenosas dominassem os holofotes. Mas
quando Nicholas me encara assim, algumas dessas memórias
positivas voltam à vida e sobem ao palco. Quando sua palma
desliza sobre minha bochecha, os dedos desaparecendo em meu
cabelo, isso cauteriza uma ferida no meu coração, que vinha
infeccionando, sem cuidados.
Nicholas absorve minha atenção tão completamente que sei que
nunca vou esquecer o que isso me fez sentir. É uma paz e um
conforto que não consegui encontrar em lugar nenhum. É a forma
como meu coração bate tão forte que tenho certeza de que ele pode
ouvir. É a forma como sua proximidade deixa meus joelhos fracos, e
sua pele roçando a minha me abala como um spray de faíscas
quentes. É a forma como ele me conhece melhor do que ninguém, e
eu nunca tive a intenção de que ele conhecesse.
Tentei mantê-lo a uma distância segura, em um lugar onde ele só
pudesse ver as partes decentes de mim, e isso deixou nós dois
infelizes. Eu inadvertidamente o deixei entrar para ver as partes
feias, mas em vez de fugir como eu esperava que ele fosse fazer,
ele passou os braços em volta de toda aquela feiura e não me
soltou.

Estamos no chão e Nicholas está dormindo.


Fizemos um piquenique na sala de estar, o edredom com
estampa de folhas de palmeira da cama dele serviu como nossa
toalha de piquenique. Não consigo parar de correr minhas mãos
sobre o tecido, lembrando-me de como era dormir por baixo disso,
ao lado dele. Lembrando-me dele me segurando perto, sua
respiração agitando meu cabelo. As memórias me causam tanta dor
que meu peito dói e sinto vontade de chorar, mas não consigo parar
de lembrar. As comportas estão bem abertas.
É quente e confortável aqui em frente à lareira, então vou deixá-lo
dormir só mais um pouco antes de acordá-lo. E é boa, essa
sensação de normalidade, deitados um ao lado do outro. É o que a
maioria dos casais faz, especialmente noivos. Mas não tem sido
nosso normal.
Nicholas e eu não estamos nos tocando. Ele está deitado de
costas, um braço dobrado atrás da cabeça, e há uma leve ruga em
sua testa que me faz querer alisá-la, então é o que faço. Acho que é
nesse lugar que estamos agora: tenho permissão para tocá-lo
brevemente em locais inocentes. Com o propósito de cuidar.
Acalmar. Dar afeto. Não estamos em um lugar que nos permite
tomar algo sem permissão. A ganância não sobreviveria. Mover-se
rápido demais pode nos matar completamente.
Pairo meu dedo anelar acima de mim e assisto o brilho do
diamante. Seria ousado demais colocar minha cabeça no peito do
meu noivo. Quão absurdo isso é?
Não toco nele, mas penso em tocar. Acho que sua camisa seria
macia, perfumada com notas sutis de colônia que você só percebe
quando ele se move. Ele me daria a sensação de garantia. De uma
força tranquila. De segurança. Das brasas brilhantes de uma
fogueira. Seria como braços acolhedores em uma noite fria e
estrelada, de respirações ofegantes e brancas. Ele seria como uma
casa antiga e resistente na floresta e um chapéu xadrez de inverno.
Nicholas Benjamin Rose é um homem bom dos pés à cabeça, e
isso é verdade mesmo que ele e eu tenhamos sido algo impossível.
Acho que tocá-lo agora seria como arrancar uma flor do celeiro e
jogá-la dentro de um copo azul-esverdeado ao lado do prato de café
da manhã. Ele seria como abeto azul e fumaça de lenha. Luar e
nuvens cintilantes. Pinheiros, meu novo perfume favorito. Ele é raios
de sol caindo sobre um tapete tecido, quente ao toque, preguiçoso
como um beijo de tarde. Pernas nuas e emaranhadas, cochilando
juntos no sofá.
Ele é o ar frio e cortante do outono e o gelo afiado de uma lâmina
de pá na qual você passa a ponta do dedo quando está passando,
apoiada de cabeça para baixo ao lado de um celeiro em ruínas. Ele
está nas árvores. No lago.
Eu o imagino nadando no lago neste verão: a pele nua e
brilhante. Saltando do píer desgastado. Os músculos magros de
suas costas se contraindo, cada ligamento ganhando vida.
Algum dia, para alguma mulher, ele será como abrir as cortinas de
uma janela no alto, como partículas de poeira girando em uma sala
ensolarada, como espiar para baixo na direção das costas curvadas
de um homem construindo um balanço para seus filhos. Ele será
uma espessa aliança de prata maciça, o único lugar em sua mão
que não ficará bronzeado no verão. Ele será como duas árvores
antigas crescendo juntas, os galhos se entrelaçando em um abraço.
Gostaria de poder ver dentro da cabeça dele para saber o que ele
sente por mim. Não quero perguntar, porque vai que ele diz que as
últimas semanas não foram suficientes? E se ele achar que não
podemos ser salvos? Foi isso que eu pensei, mas não tenho mais
tanta certeza. Quero pensar que ele está aqui porque quer, não
porque está medindo todas as inconveniências de se separar e
decidiu que fazer isso funcionar é a opção mais fácil. Ele poderia
estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa, mas está aqui
comigo. Isso tem que significar algo.
Estou olhando para este homem e pensando na pulseira de
embalagem de canudo que ele guarda em uma gaveta.
Existem feridas. Eu as sinto por todos os lados, como facadas: a
distância que ambos permitimos estabelecer, arruinando o que
deveria ter sido o ano mais feliz de nossas vidas. O anel que de tão
grande me faz sentir uma fraude. Por mais ridículo que possa
parecer, na minha mente ele me deu um diamante tão grande como
uma forma de dizer Eu te amo ESSE tantão!; mas como ele poderia
ter me amado ESSE tantão quando ainda não nos conhecíamos por
completo? Quando nunca tínhamos discutido antes e não
morávamos juntos e tudo era um mar de rosas. É bom demais para
ser verdade.
Ele me viu tirá-lo algumas vezes. Eu o disse que o diamante é
muito chamativo, mas na verdade não me ocorreu que ele se
importava, porque eu não me importava. Aposto que ele se
importou, no entanto. Aposto que odiou o fato de eu tirar seu anel.
Eu o seguro sobre o meu rosto novamente, balançando da
esquerda para a direita para capturar o arder do fogo, e vejo o que
ele viu quando o comprou. Vejo minha mão do ponto de vista dele,
não do meu. Como esse anel teria brilho de promessas. Pergunto-
me que sensação ele acha que eu passo. Quais memórias e
possibilidades passam por sua mente quando ele quer me tocar,
mas sente que isso não é mais privilégio seu.
Pela primeira vez desde que ele me deu, estudo meu anel e o
acho deslumbrante. É exatamente o anel que ele deveria ter
escolhido. Nunca vou me perdoar pelos momentos em que o tirei.
Ele está radiante, deitado aqui. Cintilante e dourado. Nicholas é
um homem raro e maravilhoso, e ficarei tão triste se tiver que
devolver seu anel.
No início de dezembro, Nicholas e eu ainda estamos
milagrosamente nos dando bem. É difícil de acreditar, mas todas as
minhas razões para me sentir distante e ressentida no passado se
desfizeram à luz da recente atenção que recebo de Nicholas. Ele
está me colocando em primeiro lugar. Tem sido gentil e
reconfortante. Enfrentou Deborah no dia de Ação de Graças e, na
noite seguinte, literalmente a expulsou de casa.
Ainda não consigo acreditar que ele fez isso.
Quando essas verdades são assimiladas, não parece que ele é o
meu adversário ou o obstáculo em meu caminho para encontrar a
felicidade. Parece que é parte do caminho. Contra toda sabedoria,
eu me apaixono um pouco pela sensação de fingir que nada vai
desmoronar. E já que estou no espírito da coisa, faço algo muito
assustador.
Abro um novo documento protegido por senha no meu
computador e anoto ideias de provas de afeto. Se isso não for um
acaso, e se for para valer – se for – terei de fazer com que Nicholas
se sinta apreciado de maneiras pequenas, mas significativas. Digito
o elemento mais importante e mais desafiador no topo para que eu
não esqueça: Continue fazendo isso mesmo que ele não retribua de
uma maneira imediatamente óbvia. Preciso dar sem esperar nada
em troca; caso contrário, os gestos serão vazios. Espero não ser a
única tentando.
Uma manhã, após Nicholas tomar banho, desenho um coração no
espelho embaçado do banheiro. Ele volta para escovar os dentes e
depois que sai de novo, encontro outro coração, desenhado por ele,
entrelaçado no meu.
É o menor começo do mundo.
Dentro de sua bolsa de marmita, deixo um bilhete. Espero que
tenha um bom dia! Estou pensando em você.
Refletindo sobre isso, morro um pouco porque não temos sido
genuinamente sentimentais um com o outro há anos, então a mais
básica das gentilezas parece melosa. Estamos em uma seca de
sentimentos. Temos sido completos idiotas quando se trata de
entender quando o parceiro precisa de algo que não pede.
Ao meio-dia, ele me manda mensagem. Obrigado pelo bilhete.
Estou pensando em você também. Quando chega em casa, tem um
presente para mim: um chapéu com protetores de orelha xadrez
para combinar com o dele, porque tenho o usado com tanta
frequência que ele achou que eu poderia gostar de ter um também.
É da cor de champanhe e macio como pena de ganso. Dou-lhe um
beijo na bochecha e, onde meus lábios o tocam, a pele brilha num
tom rosa.
Posso estar no caminho certo aqui, então no dia seguinte coloco
outro bilhete em sua bolsa de marmita:
Bom dia! Eu te acho um ótimo fazedor de panquecas e você
sempre está bonito e cheiroso. Obrigada por me apoiar. Tenha um
ótimo dia de trabalho! Cáries de toda parte contam com você.
Meus neurônios são uma mistura incrível de gritos estranhos de
Cruzes! e de Simmms palpitantes, porque o que digo é verdade.
Espero por deus que ele não ache brega. Também deixo um pacote
de Skittles no banco do motorista, atitude sobre a qual estou menos
incerta porque Skittles são um tiro certeiro no quesito presentes
dados “só porque a pessoa quis”, e sei que ele esvaziará o pacote
bem antes de estacionar na Rise and Smile.
Quando chega o meio-dia, tenho cem por cento de certeza de que
meu bilhete era brega e sinto vontade de cair de cara em uma pilha
de neve. É seu horário de almoço, então ele já deve ter visto. Estou
roendo as unhas quando meu celular vibra, e abro uma mensagem
de texto dando de cara com a foto de um pedaço de papel que
tenho quase certeza de ser aquele em que escrevi meu bilhete. Ele
o virou para o lado em branco e desenhou a figura de um homem
com rabiscos nas bochechas. Nicholas Boneco de Palitinho está
com um grande sorriso e há três linhas onduladas saindo dele,
explicadas por uma seta direcionada a uma legenda: Minha
cheirosidade. Há um coração em seu peito de palitinho.
No dia seguinte, deixo este bilhete para ele: Eu amo a nossa
casa. Pode não parecer muita coisa, mas é algo importante. Nessas
cinco palavras, estou validando a decisão dele de comprá-la, e não
me refiro a ela como a casa dele. Aparentemente, ele verifica a
bolsa uma hora antes, porque às onze me manda uma mensagem
que diz: Eu amo morar em nossa casa com você. Olhe embaixo do
seu travesseiro.
Corro escada acima e jogo todos os meus travesseiros para fora
da cama. Ele escondeu um bilhete para mim! Meu coração se
ilumina como uma árvore de Natal e eu caio no colchão para
devorar cada letra da pequena mensagem. Nicholas me escreveu
um bilhete e tirou um tempo para subir as escadas e enfiá-lo
embaixo do meu travesseiro. Cada etapa da ação dele ressoa.
Bom Dia! Você tem um excelente gosto musical. (E para homens.)
Fico tão feliz por termos continuado em Morris. Eu acredito em você!
Você pode fazer qualquer coisa que colocar na cabeça e sei que
alcançará todos os seus sonhos. Você é, e sempre será, a pessoa
mais linda que já conheci.
Meu sorriso é tão largo que está machucando meus músculos
faciais, e eu deito na cama, chuto minhas pernas e dou um gritinho.
Tenho certeza de que os fantasmas que estão assistindo pensam
que sou uma lunática, mas não me importo. Eu coloco o bilhete de
volta sob meu travesseiro e corro uma volta pelo quintal para gastar
minha incansável energia.
Linda! Ele me acha linda. E acredita em mim. Ou é o que ele diz,
acrescenta o diabo no meu ombro, mas eu atiro o diabo para longe.
Vou me deixar ficar feliz por isso.
Tinha me esquecido de como é se sentir viva assim. As cores
ficam mais brilhantes, mais ousadas. Os sons, mais altos. Penso em
maneiras de agradecer a Nicholas por sua consideração e decido
mandar flores para ele no trabalho. Que eu saiba, em todos os anos
de vida de Nicholas, ninguém jamais lhe deu flores. Para ele, elas
são inúteis e provavelmente as associa à obrigação esmagadora
que sente em relação à mãe, então eu gostaria de mudar isso.
Depois de ligar para a floricultura local e nenhuma de suas
sugestões parecer particularmente inspiradora, pergunto se
poderiam montar um arranjo feito inteiramente de murtas. A murta é
geralmente usada como folhagem de enchimento em buquês,
simples demais para ser a atração principal, mas no mundo Nightjar,
coletar murtas dá aos personagens pontos de vitalidade. Acho que o
significado o fará sorrir.
O carro de Nicholas sobe ruidosamente pela estrada pouco
depois das seis, o que significa que ele não parou em lugar nenhum
depois do trabalho, e eu corro para cumprimentá-lo bem quando ele
está fechando a porta. Ele se vira e olha para mim, um sorriso
instantaneamente aparece em seu rosto. Os olhos estão brilhantes
e cintilantes como a luz do fogo, e um bando de borboletas ameaça
voar do meu estômago para fora da minha boca. Ele está segurando
meu buquê de murtas.
— Ei, você — diz ele, cutucando meu braço com o cotovelo.
— Oi. — Pego sua bolsa de marmita. (Olhe só, eu posso ser
cavalheiresca!)
— Obrigado pelo aumento de vitalidade — diz ele. — Foi útil
quando uma criança de três anos mordeu meu dedo. — Ele me
mostra uma marca de dentes minúsculos na ponta do dedo
indicador.
— Espero que você tenha mordido a criança de volta.
— A mãe dela não nunca se virava por tempo suficiente para que
eu escapasse impune.
Nicholas alguma vez pareceu tão feliz? Não. Que pena saber que
aceitei menos do que esse sorriso que ele está me dando agora.
Acho que ele quer que voltemos a nos tocar como costumávamos
fazer. Acho que quer me beijar. Mas está contido. Ele inclina a testa
para a minha.
— Você é fofa. — Ele dá uma meia risada, então se afasta e dá
uma batidinha no meu nariz.
Caminhamos até a casa e, se não me engano, ele está andando
de um jeito diferente, com mais energia.
Passamos nossa noite montando a árvore de Natal e fazendo
guirlanda de pipoca. Ele faz um colar de pipocas para mim, então eu
faço um para ele também. Nós nos revezamos jogando pipoca na
boca um do outro. Estou admirando como cada dia é melhor do que
o anterior quando ele verifica o celular e seu semblante muda.
— O que foi?
— Mensagem da minha mãe.
Empilho um monte de palavras desagradáveis em uma tábua e as
corto em pedaços minúsculos. Deborah não liga ou manda
mensagens há dias. Quando Nicholas lhe mandou uma para testar o
terreno, as respostas que obteve foram tão raivosas e cheias de
autocomiseração quanto você poderia esperar.
— O que ela disse?
— Hã... — Ele olha para mim e sua expressão é tão cheia de
arrependimento que recebo um aperto no estômago e me sinto
vagamente doente. — Eu esqueci que sequer concordei em fazer
isso. Eu disse sim a ela semanas atrás, e eles fizeram planos para
uma grande recepção de boas-vindas, ou então eu tentaria voltar
atrás.
— Voltar atrás com o quê? Com o que você concordou? —
Ridiculamente, o termo casamento arranjado surge na minha
cabeça e estou pronta para enfrentar uma mulher sem rosto com um
véu de noiva. Eu tenho um anel de noivado! Eu o vi primeiro!
— Uma viagem para Cohasset, Minnesota. Há cerca de quinze
anos, quando meu pai ainda era ligado ao mundo dos
investimentos, ele investiu uma boa parte do dinheiro na cervejaria
de um amigo, e ela se saiu tão bem que ele comprou uma
sociedade. Uma vez por ano, ele vai verificar a cervejaria e eles
revisam os números do ano em uma reunião e decidem como
querem fazer a empresa crescer. Este ano, porém...
Ele coça a cabeça.
— Bem, meu pai diz que não se importa mais com o que
acontece com a empresa e está cansado de viagens longas. Ele só
quer ficar em casa. Minha mãe está preocupada com a possibilidade
de perder oportunidades de investimento em potencial, então me
deu uma pilha de planilhas para examinar e me implorou para ir
como representante.
— Ah. — Pego uma linha do tapete. — Que dia é a reunião?
— Minha mãe disse que um homem chamado Bernard estará me
esperando às dez da manhã deste sábado.
— Dez da manhã? Quanto tempo leva para chegar a Cohasset?
Ele faz uma careta.
— Não sei. Acho que umas sete horas? Vou ter que sair mais
cedo. Eles vão me manter ocupado durante todo o sábado, e com
uma viagem de carro de sete horas, terei que ficar em um hotel e
voltar no domingo de manhã. — Ele verifica o app do tempo no
celular. — Neve e precipitação o dia todo no domingo. É claro. Não
tenho ideia de quanto tempo vai demorar para dirigir de volta. Posso
chegar tarde.
— Isso vai levar o fim de semana inteiro — respondo de cara
fechada.
— Você poderia vir comigo. — A esperança brilha em seus olhos.
— Não teria muito o que fazer na cervejaria, mas poderíamos
procurar outras coisas em Cohasset para te entreter. Vamos tocar
música no carro e comer uma tonelada de lanches na estrada.
Meu foco se concentra na parte do hotel dessa equação – isto é,
se dividirmos um quarto. Ele solicitaria uma ou duas camas? Uma
onda de empolgação me atinge, mas tudo fica escuro quando me
lembro:
— Tenho uma entrevista no sábado de manhã.
— Ah, verdade, no acampamento.
Ainda não tenho certeza do que o cargo se trata. Estou tentando
evitar cubículos ou pequenos escritórios, e a ideia de ser paga para
caminhar por trilhas naturais tem um certo apelo. Nossa casa na
floresta me transformou no Bear Grylls.
— Bem. — Puxo a linha até que se desprenda mais alguns
centímetros. Não consigo esconder minha decepção.
Nicholas também parece desapontado, mas a sombra de um
sorriso levanta sua bochecha e a pele ao redor de seus olhos se
enruga.
— Vai sentir minha falta?
— Não mesmo — murmuro. Não convenço ninguém. Para nos
distrair da tristeza repentina que caiu sobre nós, eu digo: — Então,
você vai tomar decisões financeiras em nome de seus pais? Você
pode investir o dinheiro deles por eles? Existe uma vaquinha online
para fazer um filme sobre aquele rato que ficou famoso por carregar
uma fatia enorme de pizza na calçada, chamado Ratachewy. Você
deveria dar uma olhada nisso.
Ele ri.
— Não, eu não posso fazer o que quero com o dinheiro deles.
Estarei lá mais para ouvir e tomar notas. Em seguida, informarei à
minha mãe e ela decidirá o que quer fazer.
Não me preocupo em perguntar por que Deborah não pode
simplesmente ir sozinha. O propósito de Deborah ter filhos foi ter
lacaios obrigados a cumprir as ordens dela.
— Serão apenas dois dias — ele diz suavemente. — Você terá a
casa só para si. Poderá desenhar bigodes em todas as minhas fotos
e pular na cama pelada.
— Parece com o que eu faria em um dia comum.
Antes, isso teria sido um sonho realizado. Nada de Nicholas! Eu
teria ficado feliz. É tão chato que agora vou ter que sentir falta de
seu rosto estúpido e adorável quando ele não estiver aqui.

Programei meu despertador para sábado de manhã a fim de acordar


cedo o suficiente para me despedir de Nicholas. É uma loucura eles
marcarem a reunião às dez da manhã, quando ele precisa dirigir
para chegar lá. Está tão escuro quanto o espaço sideral e frio
demais para viajar. Seu motor e pneus podem explodir. Além disso,
ele vai sair bem quando estou começando a ter uma dor de
estômago. Sinto um nó na garganta quando o vejo amarrar os
cadarços, uma bolsa de couro com uma muda de roupa e itens
básicos para a noite está aos seus pés.
— Não me sinto bem — murmuro.
Ele vira a cabeça, me examinando de cima a baixo.
— O que há de errado?
— Dor de estômago. Sinto que vou vomitar. Estou toda suada e
desconfortável. — Estou também andando de um lado para o outro.
Para ter algo para fazer, abro o zíper da bolsa dele e reviro suas
coisas. Passo um pouco de sua colônia em meus pulsos e os
esfrego, em seguida, levo o perfume ao nariz para inalar
lentamente. Isso acalma um pouco minha náusea. Então, levanto
meus olhos e encontro os de Nicholas me sondando, e meu coração
erra as batidas. — Que foi?
— Nada. — Há um tremor em sua voz e ele desvia o olhar,
amarrando o outro sapato. Quando ele levanta, quase grito.
— Espera! Você não pode sair ainda. Não comeu nada de café da
manhã.
— É cedo demais para eu estar com fome. Vou comprar algo na
estrada mais tarde.
— Quer mais café? — Vagueio em direção à cozinha, mas ele
sacode a cabeça, batendo em uma garrafa térmica.
— Tenho bastante aqui.
Talvez ele não devesse beber café. Isso o deixará ligado no 220 e
ele vai dirigir rápido demais. Vai voar de um viaduto e seu carro fará
dezesseis voltas no ar.
— Estou preocupada que você possa adormecer ao volante.
Nicholas ri.
— Fui para a cama cedo, então estou bem acordado. Vou ficar
bem.
— E se começar a nevar?
— Não vou adormecer, mesmo que comece a nevar. — Acho que
o estou divertindo.
Eu franzo a testa.
— Nicholas, estou falando sério. Fiz algumas pesquisas sobre
Cohasset e não ia dizer nada porque não queria assustá-lo, mas em
agosto houve três roubos de carros. Um cara abordou as pessoas
em um posto de gasolina e disse que a tampa do tanque dele havia
caído, e quando eles se viraram para verificar, ele apontou uma
arma para eles.
Ele segura meu queixo em suas mãos. Seu olhar está derretido e
quase parece que ele poderia me amar. Penso em todas as vezes
que quase me afastei e é assustador. Eu teria perdido isso.
— Então não vou colocar gasolina em Cohasset.
Eu sou patética. Uma gatinha recém-nascida indefesa.
— Você não pode me deixar aqui doente.
Ele põe a mão na minha testa. O gesto parece tão íntimo. Eu já
dormi com esse homem, mas esse gesto parece íntimo? Sou
contagiosa. Ele não pode ir para Cohasset ou infectará toda a
cervejaria e precisa ficar de quarentena aqui comigo.
— Acho que você está com a doença do amor — ele diz,
curvando a boca.
Meu estômago embrulha. O gato comeu minha língua em pelo
menos três mordidas. Não consigo pensar em uma resposta, então
ele se aproxima ainda mais, até que nossos corpos estão quase se
tocando.
— Está, sim. Acredite em mim, conheço todos os sinais.
Minha boca não funciona. Tento formar palavras e solto um
gritinho ininteligível.
Ele sorri e se inclina para beijar minha têmpora. Seus lábios
param na minha orelha, e eu estremeço tanto que sei que ele
sente.
— É uma doença que eu mesmo conheço bastante.
Eu agarro o braço do sofá para não tombar quando ele se vira.
Está de costas para mim, tremendo levemente, e eu juro que está
tentando não rir.
Estou tão confusa com sua acusação que mal consigo me
controlar por tempo suficiente para dizer tchau. Ele diz:
— Boa sorte na sua entrevista. Sei que vai mandar muito bem.
Estarei de volta antes que você perceba, menina bonita. — Ele dá
uma piscadela e então sai, em seu jipe que vai bater, com uma
doença contagiosa e cafeína em excesso ou insuficiente.
Eu mato as próximas horas pintando a porta da frente de roxo,
pedindo para Nicholas um novo carregador de telefone – um que
seja longo o suficiente para alcançar a mesa de cabeceira dele – e
configurando minha nova conta no Instagram dedicada aos horríveis
bebês saleiro e pimenteiro. Eu os dei os nomes de Frank e Helvetica
e vou posicioná-los em um novo local todos os dias para confundir
Nicholas. Será como o livro “Elfo na Prateleira”, e vou chamar de
“Demônio no Teto”. Minhas ideias favoritas envolvem suspendê-los
com a linha de pesca no nível do rosto de Nicholas. No banho! No
carro! Em seu consultório no trabalho! Vai ser muito mais divertido
do que meu antigo Instagram.
Meu celular toca com uma mensagem de Nicholas às 9:50 para
dizer que ele chegou em Cohasset em segurança.
Boa sorte! Eu respondo. Não sei por que desejo sorte. Ele não
está fazendo nada disso por si mesmo; está fazendo pelos pais.
Ele responde: Para você também! Para boa sorte extra, passe
pela Ferro Velho no caminho da entrevista. Encontrar uma velha
amizade pode ser o incentivo que você precisa.
Minha velha amizade teve uma morte lenta e agonizante.
Provavelmente ficará vazia por pelo menos cinco anos, ou talvez
seja demolida, o que só pode servir para me chatear. Mas Nicholas
está tentando ser doce e encorajador, então eu o respondo de volta
com um emoji sorridente. Ele é tão fofo mesmo quando está errado.
Penso sobre o que Nicholas está fazendo hoje. Sua devoção à
família sendo a rocha da qual todos dependem. Sendo o homem
que chamam para consertar o que quer que esteja errado, para
acalmar as coisas e tornar tudo melhor. Penso em como serão
essas qualidades quando forem transferidas para uma esposa e
filhos. Penso em como ele nunca vai perder uma apresentação de
escola, uma reunião de pais e professores, um jogo de futebol. Em
como ele vai querer que sua esposa saiba que ele é capaz de
sustentá-la financeiramente e que ela pode trabalhar se quiser, mas
não precisa, porque é assim que ele mostra seu amor –
proporcionando estabilidade.
É um gesto que interpretei completamente mal, já que é amoroso,
mas não necessariamente romântico. Você olha para uma carta de
amor e fica claro como o dia – você pensa: Esta é uma carta de
amor. Mas quando seu companheiro diz: Você não precisa
trabalhar. Não precisa de um emprego, pode ser que você ouça um:
Eu não acho que você encontrará um emprego significativo sem um
ensino superior. Eu não acredito em você.
Na minha cabeça, estive supondo que quando Nicholas diz que
não preciso trabalhar, o que ele quer dizer é que qualquer emprego
para o qual eu me qualificar será tão sem importância para ele que
mais vale eu nem trabalhar. Na cabeça de Nicholas, tudo o que ele
fez foi dizer: Estou aqui, estou aqui. Seja o que quiser! Não importa
se você não ganhar muito dinheiro, porque eu cuidarei de você. Te
deixarei precisar de mim. Serei sua rocha, aconteça o que
acontecer. Abra suas asas, você sempre poderá se apoiar em mim.
Nossa comunicação tem sido tão merda, não sei se devo rir ou
chorar.
Decido colocar o chapéu e o macacão de Nicholas porque usar
suas roupas é a coisa mais próxima de levá-lo comigo, e me
encolho ao lembrar de ter rido de suas botas grandes e duráveis e
da camisa de flanela de botão, dele querendo mudar quem era. Por
que ele não deveria ter permissão de mudar quem é? Ele pode fazer
grandes mudanças também, se quiser. Abro o armário e encontro
dois pares de macacões: o dele e um muito menor. É uma iniciação
à sua sociedade secreta.
No caminho para o acampamento, repito frases reconfortantes
que me lembram que não adianta me preocupar com decisões que
não estão totalmente sob meu controle. Se for para ser, será. Se
eles não querem me contratar, azar o deles. Tudo acontece por uma
razão. Estou mentindo para mim mesma, mas pelo menos me sinto
melhor.
Conforme a estrada se inclina, passando pela concha sem vida
da Ferro Velho, eu me preparo para a pontada de angústia usual,
mas ela é salpicada de surpresa quando vejo meu carro no
estacionamento. Ou o carro de Leon agora, suponho. Deus, sinto
falta daquele Saturn. Se eu fosse Nicholas, nunca me deixaria
esquecer isso. O fato de eu não assumir mais que isso é um golpe
fraco que ele está guardando para usar depois me dá esperança.
Estamos progredindo.
Talvez seja memória muscular, mas aciono a seta e entro no
estacionamento. Um rosto amigável aparece na janela e acena. Eu
aceno de volta.
— Oi! — Leon me chama da sala dos fundos quando entro na
loja.
— Oi para você também! — Eu giro em um círculo. A loja está
destruída. Existem fileiras de manchas onde as prateleiras
permaneceram sem se mover desde os anos 1970. Um fantasma da
Ferro Velho ainda permanece ali, em forma de uma placa de
alumínio na parede acima do caixa. Está lá desde antes de eu
nascer, tenho certeza: a foto de uma menina se curvando para
alimentar um rato com uma rodela de queijo. Embaixo está escrito
São as pequenas coisas. — Uau. Este lugar está vazio.
— Eu sei. — Ele sai da sala dos fundos. — É estranho, não é? De
alguma forma, parece ainda menor agora que tudo se foi.
— O que você ainda está fazendo aqui? — pergunto-lhe. — O Sr.
e a Sra. Howard te colocaram no serviço de limpeza até o espaço
ser vendido?
— Não! A partir das três horas da quarta-feira, este lugar está
oficialmente vendido. — Ele se inclina contra o balcão e balança as
sobrancelhas, dando-me um grande sorriso extravagante. — Na
verdade, eu ia mandar uma mensagem para você e perguntar se
gostaria de passar por aqui hoje ou amanhã para ver. Jurei segredo
ao Nicholas porque queria ver a sua cara quando soubesse quem
comprou. Eu sei que você duvidou de mim.
Eu suspiro.
— Sem chance!
— E aí está a cara. — Ele cruza os braços, assentindo. — Você
está no Buffet do Interior. Inaugura nesta primavera.
— Buffet do Interior? — repito com uma risada. Não posso
acreditar que Nicholas conseguiu manter isso em segredo. Há
alguns dias, Leon foi pescar no lago com ele e quando me aproximei
deles para dizer “oi”, eles se calaram, embora até aquele momento
estivessem tagarelando a mil por hora. Naturalmente, presumi que
falavam sobre mim e não estou totalmente errada.
Ele sorri.
— Eu tenho outros nomes se Buffet do Interior soar mal. O Urso
Pardo. Lareira. Madeira! Com um ponto de exclamação, tipo, sabe
como os madeireiros costumavam gritar... — Ele para porque ainda
estou rindo. — Ei, “Madeira!” é um bom nome.
— É sim. — Concordo. — “Lareira” também parece legal. — Eu
olho ao redor, tentando imaginar mesas e cadeiras cheias de
pessoas comendo. — Isso é tão incrível, Leon. Estou muito feliz por
você! Estou tentando imaginar como seria, e na minha cabeça é
como o Bass Pro Shop. Onde vai ser a cozinha?
— Tenho que ajeitar uma quando o anexo estiver construído.
Tenho alguns tios que têm a própria empresa de construção e vão
me ajudar nisso. No momento, estou trabalhando para reunir uma
equipe, e espero que você possa me ajudar com... — Ele abre uma
gaveta e tira um crachá de plástico laminado, colocando-o no balcão
com um leve baque. Quando eu leio, coloco minhas mãos sobre a
boca.
OI MEU NOME É NAOMI
— Você está falando sério? Realmente me daria um emprego aqui?
Leon sorri.
— Claro! Isso é, se você quiser.
— Pode crer que sim, eu quero! O que eu faria? Não sei muito
sobre restaurantes, mas posso aprender. Vou aprender a cozinhar o
que você quiser. Vou ouvir audiolivros de culinária e me tornar uma
chefe de cozinha. Ou posso ser uma hostess! Acho que gostaria
disso. Eu poderia mostrar às pessoas seus assentos e dar giz de
cera para as crianças colorirem os menus infantis e dizer: “Bem-
vindos ao Lareira, meu nome é Naomi!'”
— Você pode fazer o que quiser — diz ele gentilmente — mas
espero que ajude com a decoração.
Fico olhando para ele.
— Sério? Eu?
— Lembra daqueles recortes de Rocky Horror? — ele diz. —
Você fez parecer que eles estavam realizando uma sessão espírita,
o que foi tão estranho, mas também tão incrível? Tipo, é o tipo de
coisa que as pessoas se lembrariam se entrassem aqui e vissem. —
Eu bufo, lembrando de quantas horas passei organizando aquele
cenário, que na verdade ninguém entrou e viu. Tinha me esquecido
completamente disso. — Conto com você para tornar o lugar
divertido e memorável. Uma completa experiência.
Fico tão animada que poderia ricochetear nas paredes feito uma
bola de borracha.
— Eu posso fazer isso! Aaah, já tenho tantas ideias. Se você for
colocar árvores falsas aqui, podemos esconder passarinhos nelas e
reproduzir sons da natureza em minúsculos alto-falantes. Talvez
uma cachoeira em algum lugar? Não precisa ser grande. Espera,
precisa sim! Vamos colocar PEIXES nela! — Sacudo seus ombros.
— Peixes de verdade, Leon! — Estou tagarelando, mas então
penso... — Brandy! Espere só até ela ouvir isso! Você vai convidá-la
para trabalhar aqui também, certo?
— Eu ia, mas ouvi dizer que ela foi contratada por outro lugar.
— Ah, ela odeia aquilo lá. — Já até peguei meu celular. —
Brandy! — grito assim que ela responde. Leon ri enquanto eu digo a
ela para se apressar e vir para a Ferro Velho.
Minutos depois, ela entra pela porta. Está usando um pijama das
Supergatas e chinelos, os olhos estão perfeitamente esfumados.
Leon puxa mais dois crachás com nomes de uma gaveta: um que
diz BRANDY e outro que diz MELISSA.
Brandy prende o dela na camisa e joga o outro no lixo. Leon
arqueia uma sobrancelha.
— Não acredito que vamos todos trabalhar juntos de novo! — ela
exclama, os olhos começando a lacrimejar. — Meu chefe é tão
nojento, você não tem ideia. De acordo com meu plano de cinco
anos, ainda estou três anos longe de poder me mudar, então preciso
de uma vitória agora.
Leon parece satisfeito em saber que tem dois rostos familiares
embarcando junto com ele neste novo empreendimento.
— Eu preciso alertá-las, nunca dirigi um restaurante antes. Ou
qualquer tipo de negócio. Mas minha tia, sim, e ela vai se juntar a
nós. Sempre há a possibilidade de não fazer tanto sucesso quanto
eu espero, então vocês estarão se arriscando. E no começo, não
poderei pagar mais do que um salário mínimo...
— Eu não me importo. — Brandy interrompe.
Estou de acordo
— Eu amo esse lugar. Quero fazer parte de tudo o que você vai
fazer com ele. — Quanto mais penso sobre, mais forte fica a visão
em minha mente. Colocarei pedras grandes e cheias de musgo em
volta das janelas e pendurarei uma canoa na parede. Talvez
possamos dar ao lugar uma sensação de se estar ao ar livre no
Alasca, o que Brandy vai adorar. Amanhã cedo, vou ao meu quintal
apanhar gravetos, que vou transformar em árvores em miniatura
com barbante ou usar para enfeitar lâmpadas com tema de floresta.
Vou precisar de alguns guaxinins de pelúcia, com certeza.
— Não posso acreditar que você vai realmente fazer isso — eu
digo. — É tudo tão... uau. Que bom para você, Leon! — Bato em
seu ombro, em seguida, acrescento: — Duncan.
— Você lembrou!
— Sim, sim. — Eu o dispenso com a mão, mas ele sorri. — Como
está o carro?
— Melhor do que o seu — ele brinca. — Como está a casa?
— Maravilhosa. Você nem imagina o quão feliz estou por Nicholas
tê-la comprado.
— Funcionou?
Não tenho certeza se ouvi direito.
— Funcionou o quê?
— A casa — ele responde. — Nicholas me disse que iria te salvar.
Por ela a dor de tentar vale a pena, foi assim que ele falou. Que
valia a pena correr o risco de falhar.
Fico boquiaberta.
— Ele disse isso? Bem... sim. Suponho que funcionou. Ou pelo
menos, acho que sim. Espero que sim. — Quando Nicholas me
surpreendeu com a compra daquela casa e disse que ela nos
salvaria, eu estava pronta para desistir. Sinto uma onda de afeto e
apreço por Nicholas, que resistiu.
— Oi? — Brandy o cutuca. — Perdi alguma coisa?
— Nós gostamos do Nicholas agora — Leon a informa. Ela franze
a testa, mas ele acena com a cabeça solenemente. — Gostamos.
Ele é um cara bom.
Ela me olha com desconfiança.
— Tem certeza de que está feliz com ele? Às vezes eu me
questionava sobre isso, mas não queria dizer nada caso eu
estivesse errada.
— Eu estou feliz. — Pisco quando percebo como isso é verdade.
— Sério mesmo, genuinamente feliz — admito, e então digo “Ai”
porque Brandy me envolve em um abraço apertado.
— Tudo bem, então. Se gostamos de Nicholas agora, vou ser
legal. Vamos sair em encontros duplos e ir para aquelas festas com
vinho e pintura. — Esta é uma das razões pelas quais adoro Brandy.
Ela torce pela alegria das outras pessoas. — Nicholas vai gostar do
Vance. Eu disse que ele é optometrista?
Leon e eu sorrimos.
— Muitas vezes.
— Eles podem ter longas conversas sobre seguro de saúde e
pacientes ruins ou algo assim.
Leon me observa prender o crachá na minha camisa para poder
ficar igual a Brandy.
— Do jeito que você está vestida, é como se tivesse vindo hoje
sabendo que ia acabar trabalhando aqui. — Ele aponta para o
chapéu. — Muito Buffet do Interior. É difícil não suspeitar que
Nicholas te deu uma dica.
— Ele não deu, não. Mas me disse para passar pela Ferro Velho,
no entanto.
— Ahh. Que sorrateiro.
Não sei se devo enviar uma mensagem a Nicholas dizendo
COMO VOCÊ PÔDE MANTER ISSO EM SEGREDO ou DEUS
ABENÇOE SUA ALMA LINDA.
— Um gênio — concordo. — Na verdade, usei essa roupa hoje
porque achei que poderia servir para a entrevista de emprego para a
qual eu estava indo. Para a qual preciso ligar e cancelar... —
Alcanço minha bolsa e retiro um formulário preenchido. — Quando
foi mesmo que você disse que o trabalho vai começar?
— No máximo em abril. Talvez março, se eu conseguir. Você
ainda vai estar desempregada até lá?
— Estou completamente dentro — Brandy diz automaticamente.
Isso é daqui a alguns meses. Bem depois do dia vinte e seis de
janeiro, o que em minha cabeça está marcado como a data da
morte do meu relacionamento com Nicholas. Acho que não é mais o
caso. Acho que quando abril chegar, ainda estarei morando naquela
casa na floresta.
— Sim, vou esperar por este emprego.
Ele aperta a mão de Brandy, depois a minha.
— Bem-vindas a bordo.
Brandy olha para o formulário na minha outra mão, então franze a
testa e olha com mais precisão.
— Eu não usaria Melissa como referência se fosse você.
— Eu não estou.
Ela aponta para o número que listei como minha referência.
— Esse é o número da Melissa.
— Não, é… — Percorro meus contatos e fico em choque. Ela está
certa. Eu pretendia fornecer informações de Melvin Howard e acabei
confundindo Melvin com Melissa. — Ah, merda. Este é o número
que distribuo em todos os lugares em que me candidato.
Seu queixo cai.
— Não.
— Sim.
— Essa não, Naomi. — Ela cobre a boca com as mãos e dá uma
risadinha. — Me desculpe, eu não deveria rir. É terrível. Sinto muito,
muito mesmo.
A única razão pela qual consigo rir com ela é que agora tenho um
emprego.
— Rindo em meio às lágrimas. — Finjo soluçar. — Não quero
presumir que Melissa me sabotou, mas também quero realmente
pensar assim agora, porque seria tão bom culpá-la por todos
aqueles lugares que me recusaram.
— Melissa é a pior. Só por você, vou até a Let's Get Crafty depois
daqui e bagunçarei todas as prateleiras. Vai levar anos para ela
colocar tudo de volta no lugar.
Eu lhe dou um abraço.
— Minha doce e pequena pupila progrediu tanto.
Depois de ligar para a pessoa que iria fazer a minha entrevista no
acampamento para cancelar, brincamos de “Você prefere...” e “Que
mancha é essa?” – cuja resposta é quase sempre Zach, já que ele
gostava de sacudir secretamente nossos refrigerantes antes de
abrirmos. Brandy me disse que ele está ocupado formando uma
nova religião na Flórida. Isso soa absolutamente como algo que
Zach diria, mas se ele está mesmo dizendo a verdade é uma
incógnita. O homem é um enigma.
Brandy e eu saímos para comprar um almoço para nós três, e
então é como nos velhos tempos de novo, sem Melissa e Zach.
Estamos cercados por esboços de como a Ferro Velho vai ficar
nesta primavera, simulando logotipos e uma grande placa de
divulgação na estrada. Brandy usa um lápis para transformar uma
mancha de gordura de hambúrguer em um dos papéis em um
retângulo irregular.
— E essa será a máquina de karaokê.
— A máquina de quê? — Leon pergunta.
— Aaahh! — eu grito. — Karaokê! Brandy, é uma ótima ideia.
Cinco estrelas.
Ele encara a mancha de gordura com uma expressão de repulsa.
— Karaokê em um restaurante chamado Buffet do Interior?
— Sim, e faremos luaus! Vamos colocar colares e saias de palha
em seus ursos pardos. — Eu sorrio para ele. — Não minta. Você
amou a ideia. Esse é o meu gênio da decoração em ação, lembre-
se.
Ele geme.
— Certo, eu tenho que ir. — Brandy limpa os dedos salpicados de
sal em meu joelho e eu limpo os meus em suas costas. Leon
sacode a cabeça para nós. — Tenho que ficar sentada em um
depósito calorento pelas próximas oito horas enquanto Bob, meu
chefe, ficará no meu pé reclamando de sua ex-mulher porque ele
acha que as mulheres existem para ouvir os problemas dele. Mal
posso esperar para sair de lá. — Ela aponta severamente para
Leon. — Não se atreva a voltar atrás.
— Você nem imagina quanto dinheiro eu perderia se voltasse
atrás — Leon responde. — Se eu cair, vocês todos cairão comigo.
— Ótimo. Porque vou passar o resto do dia sonhando em como
vou me demitir. Acho que será bem dramático. Vou jogar uma
bebida na cara de Bob e dizer “Vá para o inferno!” e vai ser incrível.
— Todo mundo vai aplaudir — eu digo.
Quando ela chega à porta, eu digo alto:
— Me mande informações sobre aquelas festas envolvendo
pintura! Nicholas e eu vamos pintar bêbados com você e Vance, o
optometrista. Além disso, vocês irão jogar Dungeons & Dragons
com a gente algum dia. Nunca joguei antes, mas sinto que será uma
experiência fenomenal para aquele nerd com quem moro, coisa que
eu gostaria de testemunhar.
Leon parece animado.
— Eu gosto de Dungeons & Dragons.
— Claro que gosta, esquisito — Brandy diz, pouco antes da porta
se fechar atrás dela. Através do vidro, ela grita: — Brincadeira! Amo
você! Por favor, não me demita. — Então ela nos sopra um beijo.
Eu também vou embora, ainda sorrindo de orelha a orelha muito
depois de entrar no meu carro. O restaurante pode durar apenas um
ano, vai saber. Mas posso garantir que será um ano divertido. Eu
não poderia pedir nada melhor do que isso. Pela primeira vez em
muito tempo, meu futuro se desdobra diante de mim de forma
brilhante e promissora. Tenho sonhos e objetivos e vou concretizá-
los. Posso fazer qualquer coisa, até aprender a trocar um pneu.
Eu provavelmente deveria aprender como fazer isso, na verdade.
Amanhã vou abrir o velho YouTube e descobrir como fazer algumas
das coisas que eu supostamente sei fazer há anos. Vou adotar
simbolicamente um tigre em extinção e reciclar minhas latas de
alumínio. Vou pagar à biblioteca uma multa de sessenta e cinco
centavos que devo há dois anos. Vou fazer três flexões.
Chego em casa e encontro uma porta roxa e nenhum noivo. Ou
namorado, depende se ele ainda quiser ou não se casar comigo.
Não tenho certeza de como chamá-lo agora. Ele é meu amigo. Meu
parceiro. Um homem altruísta, mas complicado, disposto a dirigir por
sete horas porque os pais pediram, e ele sabe ser um filho melhor
do que eles sabem ser pais.
Ele manda mensagem às seis e meia.

Finalmente terminei. Vou jantar e encontrar meu hotel. Como seu


dia está indo, Srta. Buffet do Interior?

Ah, esse homem ardiloso. Vou beijá-lo com tanta força quando ele
chegar em casa.
Digito quatro respostas casuais e fantásticas, mas as excluo. Elas
não são a verdade. A verdade é esta:
Eu sinto tanto sua falta. Queria que você estivesse aqui.

Então é isso que mando para ele.


Estou acordada desde antes das três da manhã e está
começando a me afetar. No andar de cima, paro na porta de
Nicholas. Ele poderia ter trancado, mas não trancou. Poderia ter
fechado a porta, mas deixou-a bem aberta, e não posso evitar o
aperto no coração que me toma quando vejo as folhas de palmeira
em seu cobertor. Sinto uma profunda falta desse cobertor. Sinto falta
da nossa cabeceira e da luz do relógio digital dele. Sinto falta da
nossa cama. O móvel em que tenho dormido nunca pareceu minha
cama. Como poderia parecer? Não há nenhum Nicholas lá.
Vasculho a gaveta da mesinha de cabeceira dele para verificar se
a pulseira de embalagem de canudo ainda está lá. Está. Ele
também guardou os bilhetes que deixei junto com o almoço dele e o
colar de pipocas que o fiz, escondidos como um adolescente
apaixonado. Ele pressionou uma haste de murta aumentadora-de-
vitalidade entre as páginas de um livro para preservá-la para
sempre. O botão fechado e hibernante de uma flor dentro do meu
peito abre suas pétalas, ocupando todo o espaço até que a pressão
nas minhas costelas expandidas me deixa sem ar.
Algo não está certo. Alguém está faltando. Eu estou tensa.
Vou para o meu lado da cama e deslizo para baixo das cobertas.
Estarei bem longe daqui antes de ele voltar e ele nunca saberá.
As roupas de cama estão frias e não há nenhuma parte funda
onde outro corpo deveria estar, mas seu cheiro está aqui. Minhas
pálpebras parecem pesadas como portas de ferro e eu finalmente
as deixo fechar, respirando um milhão de memórias de Nicholas.

Estou dormindo quando percebo que não estou sozinha. Abro os


olhos para a escuridão, com o cérebro confuso e ainda não
totalmente acordada. Já é tarde, mais que meia-noite. Há um
homem deitado ao meu lado, exatamente no lugar que deveria
estar. Este é o lugar onde ele pertence, mas é como um raio
lançado diretamente no coração vê-lo aqui.
— O que você está fazendo em casa? — Pisco várias vezes,
esperando que ele desapareça. Ainda estou sonhando.
— Você estava sentindo minha falta.
— Você voltou para casa porque eu estava sentindo sua falta?
Ele está com o cotovelo dobrado no travesseiro, a palma da mão
embaixo da cabeça, me observando de modo incompreensível. Sua
outra mão cobre o estômago.
— Sim.
Minha pulsação acelera, porque estou em seu quarto e ele me
pegou no flagra. Ele dirigiu para casa a noite toda, na neve e no
escuro, e encontrou alguém dormindo na cama dele. Este é o lugar
onde ele pertence, mas pode não pensar o mesmo sobre quem quer
que ele veja quando olha para mim. Qual Naomi? Ele consegue
notar a diferença?
Nicholas se senta, inclinando-se sobre mim. Minha visão se ajusta
ao escuro o suficiente para limpar as sombras de seu rosto, e agora
posso ver que seu olhar é líquido. Seus lábios estão em uma curva
suave.
— Eu também senti sua falta — diz ele, e pressiona seus lábios
suavemente nos meus.
Coloco meus braços em volta do pescoço dele e o puxo para
mais perto, caso ele pretenda recuar depois de me dar um beijo. Ele
sorri contra minha boca, fecha os olhos, e eu me derreto com a
sensação dele contra mim. O beijo é uma força poderosa e faminta,
mas ele o quebra para poder descer e beijar meu pescoço. Meu
corpo reage, explodindo em um inferno de calor, sensibilizando,
sabendo que ele é o único que pode me dar o que eu quero. Na
minha pele, ele murmura:
— Senti sua falta em todos os lugares.
— Hmm?
— Aqui — ele diz enquanto os lábios roçam onde meu coração
bate, deixando a dor e o sofrimento sangrarem em sua voz. — Senti
sua falta aqui. — Ele beija minha boca. — E aqui. — Meus dedos
afundam em seu cabelo, e suas mãos se fecham em punhos que se
enterram no colchão, erguendo o corpo sobre o meu. Ele me encara
profundamente. — Aqui.
A palavra vem em uma respiração fraca.
— Eu também senti sua falta — respondo, os cantos da minha
visão ficando cinzas e embaçados. Nada mais existe agora. O
mundo começa e termina com este homem.
Não me dou conta de que estou chorando até que ele seca meu
rosto e seus próprios olhos brilham com lágrimas.
Aprofundamos o beijo, e o gesto diz o que não precisamos dizer.
Eu o puxo para mais e mais perto, até que estamos completamente
alinhados. Quando nos separamos para respirar, pergunto:
— Sabia que você é o meu melhor amigo?
— Eu sou?
Seus olhos são safiras diante de uma chama crepitante, brilhando
quando são viradas. Conheço todos os detalhes microscópicos de
seu rosto. Conheço o formato que suas sobrancelhas adquirem para
cada emoção. Ele é o homem mais bonito que já existiu, e em certa
época eu não poderia dizer com total certeza qual era a cor de seus
olhos. Ele não era mais memorável do que uma foto pendurada na
parede com a qual eu há muito havia me acostumado. Quantas
vezes meu olhar passou direto sobre ele, sem perceber que ele
estava olhando para mim? Sempre assistindo. Ouvindo. Esperando.
— Sim, você é. — Meu batimento cardíaco está dolorosamente
forte e meu torso é um trapo retorcido. Meus pulmões procuram por
oxigênio. Outra lágrima desliza pela minha bochecha, que ele beija.
Estou desmoronando e acho que Nicholas vê.
Sua mão está quente ao passar pelo meu cabelo. Seus olhos são
tão ternos que meus músculos relaxam involuntariamente, os dedos
se abrindo. Ele enterra o rosto na minha garganta e inala.
— Céus, eu senti sua falta. Naomi.
Meu nome treme no ar, e encontrar palavras para dizer nunca foi
tão difícil. Mas ele precisa disso. Ele precisa que eu dê voz aos
meus sentimentos, porque ele não lê mentes e não é certo eu
absorver o que ele dá sem me oferecer em troca. Não posso deixá-
lo pensar que está sozinho, nem por um segundo.
— Eu gosto daqui — digo a ele, embalando cada lado de seu
rosto entre minhas mãos. — Você me faz feliz. Fico feliz que você
voltou para casa porque eu senti sua falta; sou grata por tudo o que
você faz, por mim e por qualquer outra pessoa. Tenho sorte de estar
com um homem atencioso como você e sinto muito por não tê-lo
dado valor e agido como uma idiota. Sou grata por você ter
continuado no mesmo lugar até eu te encontrar de volta. Você me
dando apoio e me fazendo sentir valiosa é tudo.
Ele sorri e encosta a bochecha na minha palma. Minha garganta
se contrai, mais lágrimas brotam. Pisco e molho o travesseiro. Não é
mais assustador ser vulnerável assim na frente dele. Ele me tem.
Está bem aqui, e eu também o tenho.
— Reaprender você foi a melhor coisa que já me aconteceu.
Ele esfrega o polegar na minha bochecha, desce até o queixo.
— Sou grato por você ter me perdoado — diz ele. — Sinto muito
por todas as vezes que fiz você se sentir sem importância. Você é a
mais importante e estou trabalhando em demonstrar isso de uma
forma melhor. Você também é a minha melhor amiga. Eu me divirto
mais com você do que com qualquer outra pessoa e gosto de como
me desafia. Gosto de estar perto de você e quando não estou, estou
sempre pensando em você. Quero que saiba que penso em você o
tempo todo.
É tão bom ser bom um para o outro.
Estar tão perto e não arquear o corpo para ele é um exercício de
contenção. Estou faminta e posso sentir que ele também. Ele dá
uma olhada acalorada no meu corpo e seus olhos ficam
embaçados, o peito sobe e desce mais profundamente.
Tento não deixar minha voz tremer quando digo:
— Onde mais você sentiu minha falta?
Ele arqueia uma sobrancelha e um sorriso malicioso aparece em
seus lábios. Ações, não palavras, são sua resposta. Ele tira a minha
camisa e me mostra onde com as mãos. E então meus shorts e
roupa íntima, e ele me mostra com a boca. Cada pequeno toque é
ampliado mil vezes porque já se passaram cem anos ou mais desde
que estivemos pele a pele. Estou pegando fogo e isso deve ser
totalmente doloroso para ele, então eu o puxo para cima, de volta
para mim.
— Olá — ele diz suavemente.
— Meu. — Não tenho faculdades mentais para conversar. Sou
uma mulher das cavernas obstinada. — Eu preciso de você. Agora.
— Você ainda toma a pílula, certo?
— Sim.
Empurro sua boca contra a minha e enquanto nossas línguas
estão ocupadas, eu impacientemente puxo para baixo o cós de sua
boxer. Ele se inclina um pouco para trás para ajudar, rindo contra
minha bochecha. Sinto as vibrações bem lá embaixo e isso me
deixa louca; eu o sacudiria por sua habilidade de se divertir agora se
sua ereção extremamente urgente não contasse uma história
diferente. Ele virou multitarefa novamente, excitado e entretido ao
mesmo tempo. Não é justo que ele consiga dividir sua atenção e eu
não.
Eu o apalpo entre as pernas e sou recompensada com uma
tremulação de pálpebras, o pomo de adão subindo e descendo. Seu
hálito é açúcar, o gosto derrete na minha boca.
— Mais? — eu provoco.
Ele fecha os olhos e inclina a cabeça para trás, rendendo-se às
sensações.
— Sim.
— Sim, o quê?
Seus olhos se arregalam, me mantendo cativa. Ele range uma
palavra, baixa e gutural.
— Por favor.
— Hmm, veremos. — Puxo seu lábio inferior suavemente entre
meus dentes e arrasto minhas unhas em seu peito, terminando o
trajeto com uma carícia apertada. Gemo em seu ouvido e roubo seu
árduo controle. Nicholas geme quando eu me movo para cima e
para baixo contra ele. Seus murmúrios, baixos demais para eu
entender, percorrem minha garganta e peito até que ele encontra
algo que gosta.
Seu corpo é sombra, poeira estelar e luar. Ele inclina a cabeça de
forma estudiosa, dedos científicos explorando cristas e vales,
fazendo círculos lentos e quentes com seu toque. Eu choramingo
uma súplica e ele sorri, mas não se compromete. Ele não tem
pressa, o que não faz sentido nenhum para mim. Estou impaciente e
se dependesse de mim, já estaríamos indo para a segunda rodada.
Em vez de atender ao meu pedido, ele deixa seus dentes
passearem por toda a extensão macia do meu estômago. Sua mão
desce entre minhas pernas e aplica pressão, me acalmando com
uma única carícia. Seus lábios traçam uma trilha do meu ombro até
o osso do meu quadril em um processo dolorosamente lento e
lânguido, os cachos fazendo cócegas na minha pele.
Uma escuridão se fecha sobre mim e eu deixo meus outros
sentidos assumirem o controle, tonta com a pressa de seu desejo,
de seu peso delicioso me afundando no colchão. Suspiro seu nome
enquanto ele me toca e prova livremente, e ele se eleva sobre mim,
a respiração queimando em meu peito nu como a fumaça de um
incêndio.
Dizer seu nome é o que o leva ao limite. É a palavra mágica.
Ele bate os pulsos em cima dos meus e está dentro de mim antes
que eu possa piscar, engolindo meu suspiro garganta adentro. Ele é
incrível. E não para de me beijar enquanto se move em um ritmo
medido e sensual.
Nicholas desliza a mão em volta da minha cintura, descansando-a
na base da minha coluna para me segurar contra ele e fazer o que
quiser com perfeito controle. Seu rosto está tenso de concentração,
o suor acumulando-se nas têmporas pelo esforço de se conter. Ele
não me deixa apressá-lo. Cada vez que tento, sou castigada com
uma mordida, com a marca de sua mão. Suas punições são como
recompensas.
Beijo a carne macia de uma pulsação vibrante em seu pescoço,
abaixo da orelha, e um estrondo profundo estremece por ele. Pego
seu queixo na mão e o forço a me olhar com aqueles olhos
semicerrados que lutam por controle, para prolongar isso e nos
fazer sofrer. Seus olhos são escuros como a floresta noturna.
Ele avança, mas seus beijos são surpreendentemente suaves,
interrompendo o movimento de nossos corpos. Quero protestar, mas
ele se afasta e posso ver que está pensando muito sobre algo. A
preocupação causa rugas em sua testa. Ele levanta minha coxa e a
engancha na lateral do corpo, todos os músculos rígidos quando
começa a se mover novamente. Consigo detectar os tendões do
pescoço e dos braços dele.
— Nicholas?
Ele olha para mim.
— Diz que me ama? — ele sussurra.
Meu coração se arrebenta no meu peito, uma luz branca estoura
atrás das minhas pálpebras como fogos de artifício.
— Eu amo você — digo, e vejo o efeito disso explodir nele. —
Claro que amo você, Nicholas. — Suas estocadas encontram cada
movimento dos meus quadris, e nós dois desmoronamos juntos de
uma vez.
Meus pensamentos são impossíveis de classificar. Meu corpo me
causa uma sensação incrível. De satisfação. Nunca foi assim, ou se
foi, esqueci. Quando nossa respiração se equilibra, traço a forma de
um coração em seu peito. Seu cabelo é uma auréola escura no
travesseiro branco, e seus olhos ainda estão queimando quando
pairam no meu rosto.
Eu sorrio para ele.
— Essa pode ser a que iremos tentar superar na próxima.
— Foi melhor até do que a primeira vez?
Nós dois rimos, porque nossa primeira vez foi uma bagunça. Ele
veio me visitar no meu horário de almoço no meu antigo emprego na
loja de ferragens e acabamos transando na despensa. Ao se
levantar, ele tentou me posicionar contra a parede e quando
terminamos, descobri que penduradas do outro lado daquela parede
havia ferramentas, que agora estavam espalhadas pelo chão. Eu
esqueci de trancar a porta da frente e os dois clientes que estavam
na loja provavelmente ouviram tudo.
— Lembra daquela vez no meu carro? — Eu sorrio. — Você
derrubou...
— Café quente em cima de nós — ele responde junto comigo.
Nicholas geme. — Nada acaba mais com o clima do que líquido
escaldante na virilha.
— E ele nunca mais foi o mesmo — entoo gravemente. Ele sorri e
me dá uma cotovelada.
— Me senti péssimo por estragar seu suéter.
— Eu me esqueci completamente daquele suéter. Hm. Mas valeu
a pena.
Ele enrola uma mecha do meu cabelo em volta do dedo.
— Lembra de quando nos conhecemos?
Como nos conhecemos pela primeira vez é insignificante à luz de
como nos conhecemos novamente. Nós nos conhecemos
novamente enquanto cada um tentava o seu melhor para afastar o
outro. Se nos empurramos demais para longe um do outro ou não é
o que resta saber. Será que essas últimas semanas podem ser reais
e o ano passado um sonho? Ou este é o sonho? Temos sido
corrosivos e não podemos desfazer nada, apenas se recuperar
disso se nos esforçarmos mais do que jamais tentamos em qualquer
coisa. Ele está enterrado tão profundamente sob minha superfície,
não há como separá-lo dos tendões e ossos, não há como tirá-lo do
meu sangue.
É claro que eu me lembro. Essa lembrança tem estado lá nas
minhas memórias achadas e perdidas, esperando que, como o sol,
o amor dê uma volta e acenda-a novamente.
— Como eu poderia esquecer?
É uma memória de quase dois anos atrás, estou em uma pista de
boliche em Eau Claire para a festa surpresa do meu pai. Minha mãe
decorou uma das mesas com balões escrito “PARABÉNS” e “FELIZ
APOSENTADORIA” e um bolo com uma foto do rosto dele na
cobertura. Aaron e Kelly, meu irmão e minha irmã, estão ambos com
um humor aborrecido por terem tido que viajar até aqui. Kelly teve
que desfazer os planos que fez com amigos depois de esquecer que
concordou em vir, e Aaron não para de reclamar sobre o custo da
gasolina. É por isso que ele não trouxe um presente. Sua presença
é um presente. Antes de partir, ele vai extorquir vinte dólares do
papai.
Meu pai odeia festas surpresa e, para começo de conversa, não
queria nem se aposentar (sua empresa o forçou a sair,
basicamente), então quando ele finalmente aparece, está com um
mau humor à altura do de todos os outros. Mamãe tenta agir de
forma animada para salvar tudo, mas como ela odeia jogar boliche e
fica o tempo inteiro falando ao telefone com a irmã, isso só deixa o
meu pai mais rabugento e todos começam a brigar.
Um homem na pista à nossa direita joga boliche sozinho. Sei que
ele pode ouvir minha família discutindo, porque embora eu continue
dizendo-lhes para falar baixo, seus murmúrios acabam sendo tão
altos quanto. Além disso, ele olhou em nossa direção algumas
vezes.
— Posso fingir que estou aqui com você? — pergunto a ele,
brincando. Seguro nas mãos uma bola brilhante de quatro quilos
que peguei atrás do balcão. Eu uso bolas de boliche para crianças
porque minhas forças estão localizadas mais no campo mental do
que no físico. Também não me importo de solicitar bumpers.
— Claro. — Ele sorri para mim e meu estômago dá um saltinho.
Ele tem um lindo cabelo castanho ondulado que cacheia levemente
onde cai sobre a testa, e um sorriso honesto. Olhos gentis.
— Obrigada. Minha família nunca aprendeu a se comportar em
público.
Ele ri e balança a cabeça.
— Minha família consegue ser pior, acredite em mim.
Kelly está chorando. Eu a ouço chamar Aaron de idiota por roubar
cinco dólares da bolsa dela para comprar um saquinho de maconha
de alguém que ele acabou de conhecer no banheiro, e eu concordo
com ela. Ele a chama de idiota de volta porque ela uma vez o
denunciou à Receita Federal por não comunicá-los sobre os 125
dólares que ele ganhou ao envernizar o chão de madeira da
varanda de nosso tio, então concordo com ele também.
— Não consigo acreditar nisso, desculpa — digo de forma
inexpressiva, e nós dois rimos. Eu aponto meu polegar para meus
irmãos. — Eles provavelmente não têm sido ótimos para a sua
concentração.
— Tenho estado um pouco distraído — ele admite. Então me
lança um olhar demorado. — Mas não é por causa deles.
Acho que ele está flertando. Será? Eu me torno um clichê e me
viro para ter certeza de que na verdade ele não está se dirigindo a
alguém parado bem atrás de mim. Não há ninguém.
Seus lábios se curvam em um sorriso.
— Então, questões familiares à parte, você parece ser muito
simpática.
Eu?
— Eu sou ok.
— E eu sou simpático — ele diz, se esquivando.
Sou cautelosa ao responder:
— Talvez você seja.
— Também me disseram que sou muito fofo. — Sim,
definitivamente flertando. Meu corpo se ilumina por dentro e começa
a tocar músicas 8-bits como se eu tivesse ganhado uma partida de
pinball.
— Talvez você seja.
Ele sorri, porque estou flertando de volta.
— Você deveria sair comigo esta noite — ele diz casualmente,
não quebrando o contato visual enquanto arremessa a bola que vai
deslizando por sua pista. Eu a ouço bater contra um batalhão de
soldados de pinos, mas nenhum de nós dois verifica para ver
quantos pontos ele marcou. Estamos olhando um para o outro.
— Em um encontro?
— Sim.
Não há nada para fazer a não ser rir. Eu não conheço esse
homem. Não moro perto de Eau Claire. Nossos caminhos nunca
mais se cruzarão.
— Certo, vou sair com você — digo a ele. — Se você conseguir
derrubar todos os seus pinos agora mesmo.
Ele estuda os pinos que sobraram. Acabou de marcar um split.
Sua bola passou direto pelo meio, derrubando todos, exceto o da
extrema esquerda e o da extrema direita. A menos que ele seja
secretamente um jogador de boliche profissional que pode curvar a
gravidade, não há como derrotar os dois adversários que sobraram.
Estão distantes demais para ele conseguir bater em um pino e fazê-
lo derrubar o outro, então as chances de conseguir marcar um spare
são astronômicas.
Seus olhos brilham.
— Promete?
Faço uma pausa antes de responder. Eu teria que ser uma idiota
para torcer por ele, então é isso que faço.
— Claro, prometo.
Assim que a palavra sai da minha boca, ele começa a andar bem
no meio da pista e bate nos dois pinos com o sapato. Ele se vira de
modo audacioso, seu reflexo repercutindo sobre um chão encerado
e brilhante, e me dá um sorriso diabólico. Tenho de admitir que ele
me pegou. A tela acima de nossas cabeças explode com confetes
digitais e as letras da palavra SPARE! caem com o toque de uma
cacofonia feito um saco de cocos derramados.
Ele parece satisfeito consigo mesmo. Há uma química inegável
entre nós que me tenta a chegar um pouco mais perto. A explorar.
Eu deveria ir embora, mas não vou, porque há algo aqui. É uma
droga eu morar tão longe. Ele não vai se incomodar quando souber
que moro longe. Mas preciso deixá-lo saber.
— Eu não sou daqui.
— Eu sei — ele responde, piscando para um funcionário da pista
de boliche que testemunhou a façanha dele e está olhando-o com
uma carranca severa. — Você é de Morris.
— Quando eu te disse isso?
— Você não disse. Eu te vi lá há cerca de duas semanas,
guardando mantimentos em seu porta-malas. Eu moro em Morris
também.
Meu queixo cai.
Ele se encanta com meu choque.
— Eu queria ir até lá e dizer oi, mas imaginei que um homem
estranho se aproximando de você em um estacionamento escuro e
quase vazio enquanto você estava sozinha não era o jeito certo de
fazer isso. — Ele levanta um ombro como quem diz: O que se pode
fazer? — Mas eu pensei sobre isso depois, desejando poder ter
outra chance. Não seria ótimo ter uma segunda chance? Eu até
voltei para aquela loja algumas vezes, para o caso de eu conseguir
te ver novamente.
Estou boquiaberta e olho por cima do ombro para ver se minha
família está escutando. Eles foram embora. Foram embora sem se
despedir, e somos só nós dois – eu e este homem estranho e cada
vez mais deslumbrante cujo nome eu nem sei.
— Todos os anos, no meu aniversário, vou à casa dos meus pais
e a minha mãe coloca velas em um bolo — ele me conta. — Alguns
amigos da faculdade escrevem no meu perfil do Facebook para
dizer “olá”, e eu espero até que o dia esteja quase acabando para
responder, porque quero que pareça que tenho coisas melhores
para fazer o dia todo do que contar quantos “feliz aniversário”
ganhei. Eu nunca vou a outro lugar ou chego realmente a fazer
alguma coisa. Hoje acordei com vontade de jogar boliche. É o
primeiro aniversário que passo completamente sozinho. Não queria
ir a uma pista de boliche perto de onde moro porque não queria
encontrar ninguém que conheço, então procurei outros lugares
online e encontrei este. Escolhi aleatoriamente. Eau Claire.
Estou totalmente fascinada agora. A tela pisca no canto,
incentivando-o a ir para a próxima jogada, mas nossos olhos estão
colados um no outro. Estamos perto, mas não o suficiente para eu
conseguir discernir claramente a cor de seus olhos. Acho que
podem ser cinzas.
— Este é o primeiro aniversário na vida em que não apaguei uma
vela e não fiz um pedido — diz ele, dando um passo deliberado para
mais perto. Todo o oxigênio do estabelecimento começa a evaporar,
deixando-me duas arfadas insuficientes para cada pulmão. — Mas
seja como for, você entrou aqui hoje. Veio parar na pista ao lado da
minha e começou a falar comigo, iniciando uma conversa. Quais
são as chances? Duas pessoas de Morris, encontrando-se em Eau
Claire? E exatamente aquela que eu queria conhecer.
Não consigo respirar. Ele chega mais perto e meus sentidos
latejantes borram todas as as feições dele e as transforma em uma
névoa quente e cor de rosa. Meu cérebro liga e desliga, como se eu
estivesse intoxicada. É uma luta continuar de pé. É uma luta não me
inclinar e fechar aquele centímetro final que nos separa. Não sei
quem é essa pessoa e não sei o que ele planejou para esta noite,
mas há algo acontecendo aqui que preciso explorar. Se não o fizer,
acho que vou me arrepender.
— Pela primeira vez — ele conclui — meu pedido foi atendido.

Já faz tanto tempo que não dormimos juntos na mesma cama que,
quando acordo no domingo de manhã, tudo o que quero fazer é me
espreguiçar e desfrutar disso. Mas Nicholas dirigiu durante a noite
para estar comigo e quero fazer algo para que ele se sinta especial
também. O caminho para o coração de um homem é através do
estômago, então vou cortejá-lo com um café da manhã caseiro. E
por caseiro, quero dizer que vou comprar um pouco de tudo no
cardápio do Blue Tulip Café.
Certos músculos que se atrofiaram durante nosso período de
seca estão rígidos e doloridos desde a noite passada, e sufoco um
pequeno choramingo quando saio da cama. Olho para Nicholas, que
está deitado de costas com os tornozelos e pernas cruzadas,
dormindo profundamente. De nós dois, sou a que se esparrama. Ele
dorme em uma linha precisa como se tivesse sido colocado em uma
tumba, ocupando um espaço mínimo. Eu triplico de tamanho
quando estou na cama, braços e pernas espalhados, meu cabelo
entrando no nariz e na boca dele. Essas últimas semanas dormindo
separados provavelmente foram uma benção para ele, mas é a vida;
suas noites de descanso e relaxamento acabaram. Sinto falta de ter
alguém para chutar.
Por um minuto, simplesmente fico lá e admiro-o, com uma
emoção disparando pelo meu sistema nervoso.
Ele me ama. Ele não retornou as palavras de modo explícito
depois que eu as pronunciei, mas eu sei que ama.
Na mesa da cozinha, vejo um presente que ele trouxe de viagem:
um peso de papel de vidro com flores silvestres preservadas dentro.
Ele descobriu uma maneira de tornar flores úteis e rentáveis.
Sorrindo, deixo para ele um bilhete agradecendo.
Saio com o jipe de Nicholas para encher o tanque de gasolina
para ele, então completo tudo com uma ida ao lava-rápido. No
momento em que estaciono na calçada da frente com um enorme
carregamento do Blue Tulip no banco do carona, minha cabeça está
zumbindo com ideias de como vamos passar o dia. Está muito frio
para fazer atividades ao ar livre, então talvez brinquemos de laser
tag. Ou iremos ao cinema. Entro no meu carro bem rápido porque
acho que tenho um cartão-presente do Cinema Beaufort no porta-
luvas, e é quando noto que a pilha de sacos de lixo ao lado da pilha
de toras de madeira cresceu e a porta da frente está aberta. Parece
que Nicholas esteve ocupado desde que saí. É melhor ele não estar
preparando nenhuma comida.
Temos limpado constantemente o lixo que Leon deixou para trás
no galpão, o qual a maior parte já estava lá quando ele se mudou.
Olho para um dos sacos de lixo, há uma brecha na abertura porque
o nó está muito frouxo. A cor azul-clara lá dentro desperta meu
reconhecimento, e eu me aproximo. Meu coração bate tão forte, é
como se carimbasse meu esterno, mas meu cérebro luta contra o
que eu acho que é, então tenho que desamarrar o saco. Preciso ter
certeza
Pego a pequena caixa, uma de muitas. Há outras cinco delas no
saco, amassadas e esmagadas. Um prato descartável manchado de
ketchup se grudou a uma delas, e eu me curvo, os pulmões se
comprimindo até a metade do tamanho normal. Meus ouvidos estão
zumbindo com um barulho de interferência e meus olhos ardem. Eu
vou vomitar.
São os convites do casamento. Ele jogou todos fora.
Do outro lado do campo de batalha, Nicholas avança
graciosamente, a cabeça erguida. Ele gira a espada. Contempla.
Então, me espeta diretamente no coração.

Deixo a caixa no chão e volto para o carro sem processar ou


planejar nenhum dos meus passos. Estou no piloto automático. Sou
um soldado mortalmente ferido rastejando para se esconder a fim
de poder morrer sozinha em paz. Vagamente, registro Nicholas em
pé na varanda, e acho que ele pode estar chamando meu nome,
mas cada instinto de autopreservação que tenho está a todo vapor e
eu preciso sair daqui.
Em vez de dirigir em direção a Morris, saio às pressas da cidade.
As curvas e contracurvas que faço são como as de uma criminosa
paranóica fugindo de um carro de polícia. Paro de prestar atenção
aos sinais de trânsito e escolho o caminho ao acaso. A única coisa
que importa é que ele não me encontre. Não posso deixar ninguém
me ver assim.
Uma hora se passa até eu encontrar um lugar para estacionar –
um acostamento cercado por uma plantação de árvores; do meu
vidro dianteiro, a vista termina em um lago público. Há um trailer
com dez vagas no estacionamento, mas, fora isso, estamos
sozinhos e tenho muita privacidade. Pressiono a testa no volante frio
e inalo profundamente, liberando respirações desconcertadas. Dói.
Estou me sentindo tão magoada e gostaria de poder voltar para a
Naomi Westfield que queria que Nicholas jogasse fora os convites e
cancelasse o casamento. Ela estaria comemorando.
O lago e as árvores parecem se mover. É um dia nublado e
sombrio, e eu não ficaria surpresa se continuasse dirigindo e
dirigindo, para nunca mais voltar. Vou deixar Morris para trás,
vendo-a pelo meu espelho retrovisor, trazendo uma fantasia de
longa data à vida.
A luz de notificação do meu celular pisca. Com os dedos
trêmulos, jogo-o no banco de trás, onde espero que fique
irremediavelmente perdido. Fecho meus olhos, mas tudo que vejo é
aquela caixa de convites de casamento amassada em minhas
mãos. Quando ergo meu olhar para o vidro dianteiro, minha mente
conjura Nicholas parado na frente do meu carro. Um calor discreto
se acende e vem ondulando pelo meu corpo, minha raiva é como
um rugido trovejante. Você me machucou? Eu vou te machucar
mais. Nossa velha tática.
Seus pés estão afastados um do outro, como se ele esperasse
que eu fosse o atropelar, mas se mantém firme no lugar mesmo
assim. Eu murmuro uma única expressão em advertência. Sai da
frente.
Leio seus lábios. Não.
Nós nos encaramos. Deixo o carro avançar alguns centímetros.
Os olhos de Nicholas se arregalam, mas ele não recua, pagando
para ver. Não é uma escolha sábia. Eu buzino e ele ignora,
plantando a mão no meu capô como se apenas seu toque pudesse
me impedir. Para minha eterna frustração, sinto aquele toque. É
imperdoável.
Eu o amo, eu o amo. Não tenho que amar tudo nesse homem,
mas eu amo esse homem. Ele não disse eu amo você de volta. Diz
que me ama? Foi o que ele disse. Mas por que ele diria isso se não
me ama? E o bilhete que deixou me chamando de a pessoa mais
linda que ele já conheceu? E a pulseira de embalagem de canudo?
Ele ficou com ela. Que coisinha de nada eu fiz. Que coisinha de
nada ele guardou.
Recuso-me a acreditar que ainda estamos em lados opostos, mas
também tenho o hábito de ignorar a realidade.
A neblina se adensou e também está nublado, então eu ligo os
faróis enquanto saio do estacionamento. Não posso ficar aqui
parada por muito tempo ou vou entrar em combustão. Meu Nicholas
conjurado se dissipa na luz do farol alto, desaparecendo com o
movimento exagerado da minha mão.
Meu coração fraco e ferido continua apresentando alternativas
para o que está acontecendo. Mecanismos de defesa. Talvez ele
ame você, mas simplesmente não quer mais se casar. Isso não é
tão ruim. Vai ficar do jeito que está agora. Finalmente está sendo
bom de novo, mesmo quando nem sempre é fácil.
Mas então me lembro de Nicholas ajoelhado, e o resto do mundo
caindo no esquecimento. Olhando para mim ansiosamente, com o
coração na mão. Ser minha namorada não é o suficiente. Eu preciso
que você seja minha esposa.
Parece que não mais. Talvez ele só me ame oitenta por cento.
Não. Não existe essa coisa de amar alguém oitenta por cento.
Será que vou ficar bem em continuar com este homem se no fim
das contas ele me amar, mas não querer usar meu anel em seu
dedo? Talvez ele mude de ideia algum dia. Talvez ele não quisesse
jogar fora seis caixas de convites de casamento. Talvez a intenção
dele tenha sido colocá-las no depósito, mas confundiu os sacos. É
tudo um acidente, um mal-entendido, e vamos rir disso algum dia.
Ou isso ou em alguns meses Nicholas terá seguido em frente com
outra pessoa. Esta mulher misteriosa vai dormir no edredom de
folhas de palmeira que ele e eu escolhemos juntos. Ela terá a porta
da frente roxa e o quarto estreito do meio que um dia poderá ser um
quarto de bebê. Ela terá os sorrisos de Nicholas, sua pele na dela,
sua respiração balançando no cabelo dela enquanto ela dorme. Ela
terá Nicholas.
Eu poderia fingir que nunca olhei dentro do saco de lixo. Poderia
dirigir para casa agora e inventar uma desculpa. Direi que depois
que deixei o jipe dele na garagem com as chaves ainda na ignição,
a comida no banco do passageiro, fui tomada por um desejo
repentino e intenso de entrar no carro e dirigir até o shopping. Vou
dizer que meu celular descarregou. Vou ficar em negação sobre o
que vi no lixo e vai ser como se nunca tivesse acontecido. Não me
lembro se coloquei a caixa de volta no saco antes de sair ou se o
amarrei. Espero que sim. Se eu tiver simplesmente deixado-a lá, ele
saberá que descobri.
Suas ações na noite passada não fazem sentido hoje. Como pude
interpretá-lo mal de maneira tão equivocada? Talvez ele só tenha
feito amor comigo porque passou a noite inteira dirigindo e estava
cansado. Ele não era ele mesmo. Acordou arrependido do que
fizemos, possivelmente sentindo-se explorado. Ele está bravo
comigo. Acha que eu o enganei.
As horas passam enquanto dirijo, dirijo e dirijo. Está escuro
quando a estrada inevitavelmente me leva de volta a Morris, embora
eu implore para que não o faça. Ainda não tenho ideia do que vou
fazer. Não tenho mais dinheiro depois de reabastecer o tanque e me
manter ocupada o dia todo, o que me resta é só o meu cartão de
crédito. No segundo em que um hotel me cobrar por uma noite de
estadia, aparecerá no celular dele porque compartilhamos a conta e
ele receberá uma notificação sempre que uma cobrança é feita.
Estou com fome e não comi nada hoje, então estaciono na frente
da Jackie's e compro dois pedidos grandes de batatas fritas. Sento-
me no capô do meu carro e como, a comida é quente em meus
dedos frios. Eu sei o que está por vir. Sabia desde que entreguei
meu cartão ao caixa, e aceitei, é por isso que não movo um músculo
quando um Jeep Grand Cherokee para no estacionamento, ao lado
do meu carro.
Fico apenas olhando para a frente e como outra batata frita. Eu o
sinto me observando. É isso que ele queria? Ou eu o conheço
melhor do que qualquer pessoa neste mundo ou não o conheço
nem um pouco. Não há meio termo.
Nicholas sai do carro. Com o canto do olho, vejo que ele segura
uma caixa de convites azul amassada, e minha garganta queima
como se eu tivesse engolido ácido.
— Naomi — ele diz.
Não consigo fazer isso.
— Por favor, não. Você venceu, ok? Acabou. Vou terminar tudo
para que você não precise.
Ele se senta ao meu lado, o carro range sob seu peso. Equilibra a
caixa com cuidado no colo, e só de tê-la tão perto faz com que os
estilhaços do meu coração espetem as paredes do meu peito.
Nunca vamos sentar e endereçar os convites juntos. Nossos entes
queridos nunca os abrirão, sorrirão e dirão: Então eles vão
realmente se casar. Eles realmente vão fazer isso. Jamais iremos
nos encarar no corredor de um altar repleto de flores e nos prometer
um ao outro para sempre.
— O que você quer dizer com “acabou'”? — Nicholas pergunta,
baixo e gutural. — Não me diga que está tentando terminar comigo
depois de tudo que passamos. Isso não está acontecendo.
— Não é isso que você quer?
— Não. — Seus dedos deslizam sob meu queixo, colocando-me
no nível dos olhos dele. Seu olhar irradia uma emoção que estou
convencida de que ele não sente, e é uma agonia. — Amor...
Meus olhos vão para a caixa em seu colo e sinto vontade de jogá-
la fora.
— Pare. Eu não quero ouvir mais nada. Não é necessário.
— Ah, eu acho que é muito necessário.
— Acabou. Apenas me deixe em paz.
Seus olhos estão ardentes.
— Naomi, se você disser mais uma vez que acabamos, vou
perder a cabeça. Fiquei louco o dia todo, sem saber para onde você
foi. Você não atendeu ao celular e, quando foi embora, estava
dirigindo de modo irregular e desordenado. Você tem alguma ideia
do que isso fez comigo? Eu estava prestes a ligar para os hospitais
quando vi a cobrança no cartão de crédito.
É ridículo me sentir culpada por preocupá-lo.
— Eu quero que você vá embora. Por favor.
— Por causa disso? — Ele dá um tapinha na caixa azul e eu me
encolho.
— Porque meu coração me fez mudar de ideia.
Antes de entender o que aconteceu, estou fora do carro, presa
entre o metal frio do capô e Nicholas. Não há espaço para se
esquivar dele, nenhum lugar para ir. Meus sentidos vacilam,
dominados por ele, colapsando em seu toque para nos fundir
perfeitamente. Seu olhar escuro brilha com medo e fúria, e outra
coisa que levo meio segundo para traduzir. Necessidade. Profunda
e ardente. Se eu não estivesse presa, meus joelhos cederiam.
Ele coloca a mão sobre meu coração pulsante e traidor,
comandando cada terminação nervosa, cada desejo. Estou bem,
bem acordada. Ele estremece ao expirar e seu rosto se inclina para
tão perto que acho que o ato vai terminar em um beijo, e é por isso
que fecho os olhos.
— Seu coração é meu — ele diz.
Nicholas abre a caixa e tira um convite de dentro. Um cartão de
confirmação de presença cai e se rasga, voando pelo
estacionamento.
— Porque você parou de querer se casar comigo.
Ele me entrega o convite.
— Como você se sente quando segura isso?
— Triste — respondo com sinceridade.
— Leia. Depois me diga como se sente.
Estou tão vazia, você seria capaz de ouvir o vento soprando
através de mim. Mas sento outra vez no carro, Nicholas sobe e
senta ao meu lado, e é preciso ler o texto de fonte chique e toda
curvada duas vezes antes de digerir.

Não dei uma segunda olhada nesses convites desde que


chegaram pelo correio, e minha resposta é a mesma pontada de
aborrecimento que senti na primeira vez. Nicholas observa minha
reação e concorda.
— Exatamente. Esses convites parecem que deveriam ser
nossos? Essas palavras são nossas? Isso parece a representação
do nosso casamento? Seu nome do meio nem está aí.
— Não é o que eu teria escolhido — admito, ouvindo o tom
amargo em minha voz. — Mas não paguei por eles. Não dei a
palavra final.
— Isso não é loucura, entretanto? Que você não deu a palavra
final? — Ele examina o convite. — Nunca decidi sobre qual foto
colocar também. Ainda bem, já que aquelas fotos são memórias de
um dia infeliz. Lembro que você não estava se sentindo bem e eu
não gostei da minha roupa. Ficamos irritados um com o outro,
parados na frente do fotógrafo com sorrisos falsamente
apaixonados.
— Verdade.
— E essas fitas? — Ele toca um dos laços de seda marfim do
convite. Existem toneladas delas, com pérolas falsas no centro. —
Isso sequer chega perto de se assemelhar ao nosso gosto? Tive
muito tempo para pensar sobre isso e, quando olho para esses
convites, não parecem nossos.
— E não são. São da sua mãe. — Eu o olho diretamente dentro
dos olhos. — Se você não gostava das decisões que ela tomava,
deveria ter falado.
— Eu sei. Sinto muito por deixá-la assumir tudo... Eu sabia como
isso estava fazendo você se sentir e apenas a deixei fazer isso
porque na época era mais fácil ter você chateada comigo do que ter
a minha mãe chateada comigo. O que é muito errado.
— Sim, é. — Não adianta mais jogar isso na cara dele, então
acrescento: — Mas você está melhorando. Tem me defendido. Não
deixou nenhum dos insultos dela passar. E, para o seu próprio bem,
estou feliz que você não tenha ido lá todos os dias e atendido todas
as ligações dela.
— Ter você ao meu lado, me encorajando, ajuda. — Ele descansa
a cabeça em meu ombro. — Você torna isso mais fácil.
— Nem sempre tornei mais fácil.
Ele pega minha mão e aperta.
— Eu estava separando coisas para jogar fora esta manhã e
encontrei as caixas. Foi a coisa mais natural do mundo jogá-las
fora.
— Uau — eu observo, desacreditada. — Nem precisa se
incomodar em amenizar o golpe e tals.
— Amor, por que faríamos um casamento na Sta. Mary? Por que
usaríamos um salão de festas sufocante para nossa recepção?
Algum desses lugares tem algum significado pessoal para nós?
— Não, mas...
— Precisa ser sobre nós — ele continua com urgência, pegando
minhas duas mãos nas dele e nos virando totalmente para que
fiquemos um de frente para o outro. — E a lista de convidados! É
quilométrica. Não conheço a maioria dos nomes que estão lá. Por
que reuniríamos todos esses estranhos ao nosso redor para o
momento mais especial de nossas vidas? — Ele amassa um convite
em uma bola, e eu solto um suspiro. — Esses convites são para um
casamento falso. Eu os joguei fora porque não quero nenhuma
dessas pessoas lá.
Fico de olhos arregalados.
— Nenhuma delas?
— Por que eu deveria querer? Isso não é sobre ninguém além de
mim e você. As únicas pessoas que eu gostaria de ter em nosso
casamento são aquelas que nos trataram bem. Isso exclui quase
todas que conheço, incluindo a que elaborou esses convites.
Não consigo imaginar um casamento entre nós acontecendo sem
Deborah sendo a grande marechal. Ela nunca nos deixaria escapar
impunes por excluí-la. Para Deborah, nosso casamento é um evento
social no qual ela pode se exibir e andar ao redor do filho como uma
mãe aproveitadora. Ela mal pode esperar para ter todas as outras
mães de seu círculo de amigos parabenizando-a.
— E quanto às nossas famílias?
— Foda-se nossas famílias. Foda-se todo mundo. — Ele joga o
convite amassado em uma lixeira, a bolinha ricocheteia na borda.
Eu caio na risada. Sei que não foi isso que ele quis dizer, mas
talvez por um dia, ele está certo. Em um dia sagrado que tem como
significado colocarmos um ao outro acima de tudo e celebrar um
compromisso profundamente pessoal, talvez não devêssemos ter
que atender os desejos ou opiniões dos outros. Temos que fazer o
que parece certo para nós e mais ninguém.
— Faremos nossa própria família — diz ele com seriedade.
Eu sacudo minha cabeça e penso:
— Você perdeu a cabeça. — Pego um convite da caixa,
transformo em uma bola e atiro na lixeira. Não cai lá.
— Se eu tiver perdido a cabeça, então boa sorte para quem a
encontrar.
Amassar nossos convites de casamento e jogá-los para as
proximidades de uma lata de lixo é estranhamente catártico. Depois
que começamos, não conseguimos parar. Nós os empilhamos como
bolas de neve no capô e nos revezamos tentando arremessá-los
dentro da lixeira. Ele marca onze pontos e eu nove.
— Este é o da minha avó — digo a ele enquanto arremesso uma
bola de neve de papel e fitas. — Por me pressionar a usar o véu
dela mesmo percebendo que eu não gostei e por sugerir que eu
poderia estar muito velha para ter filhos. — Acerto meu alvo e
Nicholas aplaude. — Toma essa, Edith! Você oficialmente não está
convidada!
— Este é do seu irmão — ele responde, balançando o braço
como um lançador de beisebol e lançando o convite no ar. Ele erra o
alvo por um quilômetro de distância e o convite vai parar na estrada.
— Eu sei que você roubou meus óculos de sol, Aaron!
— Mal posso esperar para jogar o da sua mãe.
— Ah, por favor, me deixe jogar esse. Eu mereço.
Ele está certo, esta honra pertence a Nicholas. Entrego-lhe um
novo convite apenas para que ele possa ter a satisfação de amassar
um tendo o nome de Deborah em mente. Ele o esmaga com uma
ferocidade precisa e a bola passa por cima da lixeira, acertando
uma placa de “pare”.
— Se eu acertar essa — digo, jogando uma bola de convite de
uma mão para a outra. — Você vai ter que arrumar essa bagunça
sozinho enquanto eu observo e como batatas fritas. Não vou ser
multada por descartar lixo em lugar errado. — Aperto os olhos e
miro com cuidado, mas erro. Claro.
— Ahá! — ele cantarola. — Otária. Se eu acertar essa, você terá
que voltar para dentro e comprar um milkshake de chocolate para
mim.
Nicholas erra também.
— Droga.
Eu bufo.
— Sua mira é ainda pior do que a minha.
— Seu rosto é pior — ele murmura, e eu tenho que rir.
Há um último convite na caixa. Eu o amasso com uma lentidão
proposital.
— Se eu acertar essa tentativa… — Penso no desfecho mais
louco que posso imaginar. Faz todo o sentido. — Você vai ter que se
casar comigo. Não um dia, nem talvez. Faremos isso agora.
Balanço meu braço para trás e estou prestes a arremessar
quando Nicholas segura meu pulso. Ele arranca o convite dos meus
dedos, desce do carro e caminha até a lixeira. Muito
deliberadamente, deixa o convite cair lá dentro.
Levanto uma sobrancelha para ele enquanto caminha de volta
para mim.
Ele para a um passo de distância, as mãos deslizando para os
bolsos. Seu olhar não é mais provocador.
— Não vou deixar nosso destino ser decidido ao acaso.
Fico olhando-o. Ele está falando sério.
— Sério? Você quer se casar?
— Sério. Não há mais ninguém que eu queira torturar além de
você.
Não consigo parar de olhá-lo. Do jeito que ele fala, parece que
está me oferecendo tudo que eu quero. Estou morrendo de vontade
de confiar, mas há uma parte crucial de mim que dei a ele, parte que
ele ainda não deu em troca.
— Mas você ainda não disse que me ama.
— Isso não é verdade.
— Você não disse.
— Eu digo o tempo todo, só que muito, muito baixinho. Eu digo
quando você está em outro cômodo, ou logo depois que finalizamos
uma ligação. Digo quando você está com fones de ouvido. Eu digo
isso depois que você sai e fecha a porta. Digo mentalmente toda
vez que você olha para mim.
Ele se aproxima, até que estamos respirando o ar um do outro.
Não sei qual é a coisa certa a dizer, mas, felizmente, Nicholas sabe.
Ele me dá cobertura.
Segura meu rosto com as mãos e roça os lábios nos meus, seu
olhar é tão suave e há um sorriso curvando os cantos de sua boca.
— É claro que eu amo você, Naomi. Eu nunca deixei de te amar.

Depois de fazermos a solicitação, demora seis dias para que o


documento de habilitação de casamento seja concedido, e, por
enquanto, estamos apenas segurando-o até o momento certo
chegar.
Nicholas e eu estamos voltando de uma tarde de laser tag, graças
a ele ter tirado um dia de folga no trabalho ao dizer que estava
doente. Sua mão está apoiada na marcha e ele está de frente para
uma rajada de neve que atravessa a estrada. Não está nevando
agora, mas nevou o dia todo, há montes de neve de trinta
centímetros de cada lado de nós. Cubro sua mão com a minha e
sinto aquela flexão quase imperceptível, uma resposta automática
que parece segurança e união.
— Eu voto para que a gente convide seus pais da próxima vez —
digo, imaginando Deborah e suas unhas recém-feitas segurando
uma arma a laser feito uma aranha morta. Harold bufando e
soprando, tentando atirar nela.
Ele gargalha. Isso se encaixa perfeitamente em nosso plano de
mudar a forma como passamos o tempo com os pais dele –
encontrar uma maneira de tornar a situação divertida para nós, de
modo que a união familiar não pareça uma obrigação desgastante
pelo resto de nossas vidas. Temos uma longa lista de experiências
estranhas às quais vamos sujeitá-los, e na noite passada bebemos
muito vinho e caímos da cama (ok, talvez eu seja a única que caiu
da cama) rindo das sugestões um do outro enquanto passávamos o
bloco de notas de mão em mão.
Não dissemos uma palavra sobre o documento de habilitação de
casamento para eles. Daremos a notícia quando já estivermos
casados e faremos uma recepção em uma pista de boliche em Eau
Claire. Ou talvez escrevamos uma carta para a coluna Querida
Deborah no Beaufort Gazette e contemos a eles assim. Se ela não
tiver um colapso por causa de nossa cerimônia imperfeita,
definitivamente terá um quando souber que vamos combinar nossos
sobrenomes para criar um novo e exclusivo para nós. Rosefield.
Eu tremo e aumento o aquecedor. A papelada que diz que
Nicholas e eu temos permissão legal para nos casar nos próximos
trinta dias brilha no porta-luvas, e eu retomo a conversa de onde
paramos antes da partida de laser tag.
— As passagens aéreas nesta época do ano vão estar caras.
— Verdade. Não tenho certeza se quero viajar de avião com este
tempo, de qualquer maneira. Já sou um passageiro medroso, se
estiver nevando, vou pirar lá em cima.
— Então isso nos faz descartar Bridal Cave no Missouri e aquela
geleira no Alasca. — Estávamos pensando em casar no cartório,
mas então eu digitei destinos interessantes para casamentos em um
sistema de busca e os resultados nos inspiraram a ser mais criativos
no quesito casar em segredo. Casar em segredo é fantástico, a
propósito. Recomendo fazer isso se algum dia você tiver a chance.
Toda a diversão de se casar, sem o estresse de planejar um
casamento tradicional.
— Você tem um dia favorito da semana? — pergunto. — Por
exemplo, eu não gostaria de me casar em uma segunda-feira.
— Hã? — Ele me lança um breve olhar. — Por quê?
— Acho que aumentaria as chances dos aniversários de
casamento caírem em uma segunda. Que nunca são dias bons.
— Não tenho nenhuma preferência por um dia da semana — ele
responde. — Mas prefiro não me casar pela manhã. Meu cabelo fica
melhor depois que tem algumas horas para respirar. — Eu o cutuco,
e ele penteia as ondas marrons do cabelo com os dedos de modo
nada discreto. Está apenas metade brincando; seu cabelo fica
indiscutivelmente glorioso na última metade do dia.
Adoro falar sobre os detalhes do casamento. Adoro ouvir Nicholas
discutir casualmente sobre passar o resto da vida dele comigo. Não
me preocupo em esconder minha dança de felicidade e, embora não
olhe para ele, sei que minha alegria é contagiante e que ele sorri.
— Tenho a localização de algumas cachoeiras de Wisconsin
marcadas no mapa — sugiro. — Pode ser legal casar na frente de
uma cachoeira.
— Ou em uma trilha panorâmica. Há muitas dessas por aqui.
— Se vamos nos casar em uma trilha panorâmica, podemos
muito bem casar em nosso próprio quintal — brinco. Então nós dois
congelamos e olhamos um para o outro, porque é uma ideia
perfeita.
— Por que esse não foi o primeiro lugar em que pensamos? —
Nicholas diz maravilhado.
— Não é? — Estou pasma por termos demorado tanto para
pensar nisso. — As lindas árvores. O lago. Imagine o celeiro ao
fundo, todos aqueles sincelos descendo. E neve por toda parte! Ah,
vai ser um conto de fadas.
— Para chegar à nossa lua de mel levará trinta segundos. A
hospedagem será grátis. Não teremos que fazer as malas.
— Sim. — Eu bato palmas. — Sim, sim, sim.
— E pensar que estávamos pensando em pegar um avião e ir até
Juneau para ficar em uma geleira e sentir o mesmo frio que
sentimos aqui. E somos os donos do espaço! — Ele lança um olhar
para mim e abre um sorriso largo. — Naomi, nós vamos nos casar.
Passamos pela Ferro Velho e eu me viro no assento para espiar
pelo vidro traseiro.
— Espera! Dê meia volta.
— Quê? Por quê?
Dou tapinhas em seu braço repetidamente.
— Dê meia volta, dê meia volta!
— Primeiro se vire, moça maluca, e então eu dou. — Ele dá ré em
uma calçada. — Para onde iremos?
— Bem ali. — Aponto para a Ferro Velho. Há dois carros na frente
– o de Leon e o do Sr. Howard. Não sei de imediato por que razão
precisávamos dar meia volta, só sei que eu sei, e espero que o
motivo chegue à minha mente. Meus instintos estavam certos,
porque me lembro:
— Meu antigo chefe, o Melvin, é um ministro ordenado
Nicholas estaciona e me encara.
— Tá falando sério?
Estou tão animada que não consigo falar. Tudo o que consigo
fazer é acenar com a cabeça. Não é uma segunda-feira, não é de
manhã e a oportunidade está batendo à porta. O Sr. Howard sai da
loja carregando a placa que ficava acima da caixa registradora, São
as pequenas coisas, e para quando me vê. Eu aceno, abrindo a
porta do passageiro.
— Ei! Você tem um minuto?

Os melhores casamentos são os surpresa. Quando acordei esta


manhã, não fazia ideia de que me casaria hoje e espero que isso
seja um sinal. Espero que nosso casamento seja cheio de surpresas
espontâneas como esta e um plano C que dê espetacularmente
certo.
Vasculho o closet do quarto que virará quarto de hóspedes, agora
que não vou mais dormir nele. Cada peça de roupa que possuo está
engolindo a cama ou espalhada pelo chão. O que vestir para um
casamento espontâneo no quintal?
Meu vestido mais bonito não tem mangas e o tecido é tão fino
quanto papel de seda. Eu viraria um picolé.
Provo um suéter e imediatamente o arranco de mim. Tento
colocar uma blusa de gola alta e leggings sob um vestido diferente,
mas não combinam muito bem.
— Como está indo? — Nicholas diz alto através da porta. Aposto
que levou quinze segundos para se vestir, esse incivilizado.
— Não tenho nada para vestir!
— Vá pelada, então.
Jogo um sapato na porta e ele ri.
— Se apresse! — ele diz. — Eu quero casar com você.
— Sossega; vá embora. Eu te amo.
— Eu também te amo. Vejo você do outro lado.
Ouço o ranger da escada enquanto ele desce e resisto à tentação
de olhar pela janela para ver se ele já está lá fora. Abro a porta,
pensando em entrar na ponta dos pés em nosso quarto e vasculhar
o guarda-roupa dele em busca de algo melhor para vestir, mas piso
em um amontoado de tecido na frente da porta.
Um macacão. Eu pego e o sacudo. É o meu, o menor do
conjunto. Ele é prático e não é grande coisa, mas se você vai ficar
do lado de fora em um clima de oito graus negativos recitando seus
votos de casamento, camadas de roupa não são uma má ideia. Eu
sorrio e o visto por cima de roupas comuns. Então grito por Brandy,
que sobe as escadas com uma escova de cabelo e um modelador
de cachos. Brandy é uma das exceções à nossa regra de proibição
de convidados, já que ela é otimista e respeita nossas escolhas e
não vai tirar o brilho do nosso dia.
— Pronta? — ela pergunta alegremente.
— Boa sorte. Você vai precisar.
— Ah, calada. Você tem um cabelo lindo. — Ela me empurra para
uma cadeira e começa a mexer na minha franja, que cresceu um
pouquinho. Nicholas acha que não gosta de franja, o que só mostra
que ele não sabe do que fala, já que se apaixona por mim sempre
que estou de franja.
Ela faz uma coroa de trança que eu nunca conseguiria arrumar
sozinha e, quando termina, fico agradavelmente surpresa com a
Naomi que pisca para mim no espelho. Meu cabelo está realmente
muito fofo.
— Deslumbrante — ela diz, me abraçando enquanto pula para
cima e para baixo. — Aqui, eu trouxe isso para você. — Ela abre a
palma da mão e me mostra uma bala de hortelã.
— Uau, muito obrigada — respondo ironicamente.
— É o meu presente de casamento para Nicholas. Garota,
ninguém quer beijar uma quesadilla.
Eu coloco a bala na boca e passo um simples protetor labial para
dar um toque final. Leon, a outra exceção à nossa regra de
proibição de convidados, espera no andar de baixo. O Sr. Howard já
deve estar lá fora com Nicholas.
— Seu futuro marido fez isso para você — diz Leon, entregando-
me um buquê de ramos cortados de perenifólias. Eu seguro-os perto
do nariz e dou uma voltinha.
— Como estou? — Eu poso para eles.
— Como se estivesse indo pulverizar o porão de alguém para
matar cupins — diz ele.
— Excelente. É isso que eu queria.
Brandy me oferece o braço, que eu aceito. Achei que Brandy
estava aqui para ser minha madrinha, mas evidentemente vai me
levar ao altar.
— Está pronta?
— Estou mais que pronta. Preciso prender aquele homem antes
que ele tenha outras ideias e escape.
Todos nós saímos pela porta dos fundos, em direção ao
crepúsculo lilás, escolhendo nossos passos cuidadosamente para
descer a colina cheia de neve. Não há um corredor. Não há bandos
de madrinhas ou padrinhos, nenhum arranjo de flores, nenhum flash
de fotógrafos. É o mais diferente da Sta. Mary quanto possível.
A floresta recua ao longe em um borrão preto, o ar frio corre em
meus pulmões. O homem que amo espera por mim na beira do lago
e sinto sua pulsação como se fosse minha. Meus sentidos viram um
caleidoscópio, colecionando imagens e cheiros e sons para
preservar até o dia da minha morte. Estou prendendo a respiração
desde o segundo em que o conheci; que estranho que é agora,
finalmente poder expirar. O ato de respirar nunca mais será o
mesmo.
Tenho certeza de que o cenário é lindo, mas me ocorre que não
importa onde estamos. Nicholas poderia estar de pé em uma
tempestade, um deserto, um vácuo. Eu não saberia a diferença,
porque ele é tudo que vejo.
Ele me acerta em cheio com um sorriso tão lindo que me enche
com mais emoção do que meu corpo é capaz de suportar. A palavra
amor se parece com Nicholas. É completamente preenchida por ele.
Um dia essa palavra irá evoluir, enchendo-se com as pessoas que
traremos juntos a este mundo. Mal posso esperar para ver que tipo
de mágica nós faremos com essa palavra, quantas formas ela terá.
Mal posso esperar para ver quantas memórias vão emergir de
nossa decisão de estar aqui, agora, e aceitar um ao outro na alegria
e na tristeza. Quanto a isso, eu digo: manda ver.
Já conhecemos o pior um do outro. Nós lutamos dentro desse
pior e saímos do outro lado indestrutíveis. Haverá, inevitavelmente,
discussões, concessões e tratados de paz redigidos com sangue
derramado, suor e lágrimas. Teremos que escolher um ao outro,
repetidamente, e ser o campeão um do outro, nunca nos permitindo
esquecer as partes boas sempre que estivermos presos em um
caminho de partes ruins. Vai ser trabalhoso. Mas deixe-me dizer
uma coisa sobre Nicholas Benjamin Rosefield:
Ele vale a pena.
Os olhos de Nicholas brilham com lágrimas não derramadas e
seu sorriso é luminescente. Como eu, sei que ele não considera
nada disso como garantido.
Não seria ótimo ter uma segunda chance?
O sol desce sobre a curva da terra e mergulha o céu em um
espetáculo brilhante de tons de azul e roxo que brincam na neve
como uma aurora boreal. Ele pega minhas mãos nas dele,
examinando as pontas dos meus dedos vermelhos e gelados. E os
sopra suavemente para aquecê-los, então me puxa para mais perto
para compartilhar seu calor. Há um ramo de perenifólias no bolso
frontal do macacão dele, como se fosse uma flor na lapela, o que
me faz rir.
O problema dos casamentos é esse: você não se lembra dos
votos. Você os esquece no segundo em que sua boca pronuncia as
palavras sagradas, porque seu cérebro precisa de espaço para
catalogar cada detalhe do rosto do seu parceiro. Toda a minha
concentração está nele. Tudo é maravilhoso. Todo dia é o mesmo.
Todo dia é como o dia do nosso casamento.
As palavras do Sr. Howard são tão silenciosas em meus ouvidos,
é como se estivessem vindo de outro mundo. A boca de Nicholas se
contrai nos cantos, só um pouco, antes de ele se inclinar. Seu olhar
sobe dos meus lábios para os meus olhos, e algo sobre o jeito como
estou olhando para ele o faz parar para pensar no que estava
prestes a fazer. Faz com que ele beije minha testa suavemente
antes de abaixar para me dar o beijo que vai fazer de mim sua
esposa.
Diamantes cintilantes de neve caem ao nosso redor enquanto eu
enfio meus dedos em seu cabelo e o beijo de novo e de novo, este
homem que pertence irrevogavelmente a mim.
Como Nicholas e eu nos conhecemos?
Da segunda vez em que éramos desconhecidos, nos
conhecemos em uma casa chamada Para Sempre. E estou cem por
cento apaixonada pela nossa transformação.

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