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O Beijo do Incubus
Copyright © 2016 R. B. MUTTY
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução não autorizada.

Capa:
© Can Stock Photo / artofphoto
Design da capa:
R. B. Mutty

Os modelos da capa são meramente ilustrativos e não correspondem a nenhum personagem da


história.

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Sumário

Sumário
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 2.5
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Outros títulos por R. B. Mutty
O Amante do Tritão – Amostra
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 01
Miguel

Eu apertei meus olhos, irritado com as luzinhas piscantes. Aquela boate estúpida com
certeza não era meu lugar.
Evitando a pista de dança como se fosse a morte, eu me escorei no balcão do bar e pedi
qualquer coisa, desde que fosse bem forte.
Um cara bêbado se aproximou de mim com aquele olhar de quem me comia com os
olhos. Eu o dispensei e desci o copo de vodka no segundo em que o bartender me serviu.
Só bebendo para aguentar essa desgraça de lugar.
Eu bati o copo na mesa, tossindo para o cheiro horrível e gosto pior ainda. Droga, como
eu queria ir embora. Duas da manhã de sábado e eu ali, me embebedando como um
adolescente enquanto meu Netflix e meu sofá macio me esperavam, em casa. Nunca mais
deixaria Rosier me convencer de nada. Eu precisava superar o Érico, mas esse não me parecia
o jeito certo.
Mais um cara veio babar pra cima de mim. Que saco. Eu nem era tão atlético assim, e
sentei justamente para esconder minha bunda, que diziam ser a melhor parte do meu corpo.
Talvez fosse meu cabelo? Rosier sugeriu que eu escovasse as mechas ruivas para trás e
expusesse meus olhos verdes, e eu obedeci como um cachorrinho. Que diferença fazia a cor
dos meus olhos naquele subsolo escuro fedendo a gelo seco?
Eu fechei os botões de cima da camisa e me levantei, deixando o novo pretendente
falando sozinho. Esses caras não eram feios mas... O Érico talvez voltasse, não é? Nós
terminamos há apenas três meses. Nesse tempo eu hibernei na mansão do Rosier como um
imprestável, até ele me convencer, sei lá como, que amassar uns caras era a chave da
felicidade.
Não sei porque eu ainda escutava o Rosier, mas pelo menos entrei na única boate que
ele me proibiu de frequentar. Eu conseguia ser um pouquinho rebelde.
Eu vasculhava meus bolsos pela minha carteira, quando bati o ombro em um cara e
quase me arrebentei no chão. O cara segurou meus braços antes que eu caísse.
"Cuidado aí, bonitão." Ele lambeu os lábios, deixando os longos cabelos loiro escuro
caírem sobre o rosto. Seus olhos se afiaram para mim como agulhas, brilhando azuis mesmo
naquela escuridão multicolorida. "Ei, te vi no bar, antes. O da bunda gostosa. Posso dar umas
mordiscadas, lá no fundo?"
Eu abri a boca em indignação. De todas as cantadas, essa foi de longe a mais rude.
Ainda assim, meu coração disparou. O rosto do cara era lindo, talvez o mais bonito daquele
lugar, mas a calça jeans enorme e o capuz do moletom preto sobre a cabeça lhe davam um
aspecto de meliante. Um estudante de Direito não se envolvia com gente perigosa.
"Talvez depois" Respondi, chocado comigo mesmo. Eu deveria ter empurrado esse
idiota e livrado meus braços que, pensando bem, ele não havia soltado desde que tropecei.
Suas mãos firmes nos meus bíceps faziam meu peito disparar, algo em mim desejava que ele
me puxasse contra o corpo dele, e me apalpasse todo.
O cara desceu os olhos por mim e subiu de novo, me encarando sedutoramente. Um
olhar lindo, do tipo que arqueava acompanhando o sorriso. A forma como ele lambeu os dentes
brancos e perfeitos me aqueceu de um jeito estranho. Talvez fosse a bebida. Sim, com certeza
era a bebida.
Quando meu coração já relampejava, ansioso por um contato mais próximo, o cara
soltou meus braços e recuou alguns passos, me mandando uma piscadinha.
"Me procura, quando mudar de ideia." Ele desapareceu na pista de dança, em meio à
multidão.
Meu corpo pareceu pegar fogo, e eu senti o instinto primal de perseguí-lo e me jogar
aos seus pés. Mas assim que ele desapareceu de vista eu percebi a estupidez em tentar isso.
Confuso e assustado com minhas próprias atitudes, eu esfreguei os braços onde ele
havia me segurado. Certo, isso foi estranho. Um motivo a mais para eu desaparecer dali.
Empurrei a multidão em direção à saída e entrei na fila para pagar.
Quando chegou minha vez, qualquer fogo que ainda houvesse no meu corpo tornou-se
gelo.
"Sérgio?" Perguntei, meu estômago borbulhando em um nervosismo insuportável.
"Não acredito." Atrás do caixa, Sérgio abriu um sorriso sincero, mas meio
desconfortável. Ele estendeu o braço pelo buraco de passar o dinheiro e tentou apertar minha
mão, mas eu recuei. "Miguel, não te vejo há meses. Que bom te ver saindo, depois que..."
Vencido pelo desconforto, Sérgio recolheu a mão, baixou a cabeça e me entregou o
troco. Eu não consegui nem pegar as moedas. Meu coração latejava mais alto que a música.
Sérgio. Esqueci que ele e Érico pretendiam abrir uma boate. Nunca imaginei que fosse
essa.
"Como está o Érico?" Perguntei, minha voz tremendo de um jeito patético. Eu devia ter
sumido dali, com troco ou sem. Mas como eu poderia? Eu não via o Érico desde que ele me
trocou por esse empresário ridículo.
Alguém apareceu pelos fundos do balcão.
"Ei docinho, já repus as caixas do estoque, então quando..." Ele ergueu os olhos pra
mim e seu lindo sorriso se desmanchou, assim como qualquer traço da minha auto-estima. "Oi,
Miguel." Ele me disse.
Cabelos bagunçados, olhos castanho-claros, quase dourados, e um irresistível sotaque
hispânico. Meu Érico, por quem jurei meu amor tantas mil vezes. Meu Érico, que agora
chamava o moreno sem sal de 'docinho'. Ele nunca me chamou de nada além de 'Miguel'.
As luzes piscantes se misturaram na minha visão borrada pelas lágrimas. Eu recuei
enquanto Sérgio e Érico trocaram um olhar de constrangimento. Só podia ser um pesadelo.
Quando eu acordasse, Érico estaria ao meu lado me dizendo coisas lindas.
Exceto que não. As alianças douradas nos dedos dos dois me lembravam que eu era um
idiota. Um idiota que aos vinte anos se embebedava em boates enquanto o ex já noivava com
outro cara, e realizava o sonho de ter seu próprio negócio.
Érico tentou falar alguma coisa, e eu corri. Corri para fora e pelas ruas úmidas e vazias
da madrugada até as pernas doerem, e meu coração não aguentar mais.
Arfando e soluçando, eu me escorei na parede de um prédio, ao lado de um beco
escuro.
Droga, eu estava tendo uma recaída. Tentei pegar o celular no bolso da calça, mas
minhas mãos tremiam, e eu chorava tanto que não conseguiria achar o número do Rosier.
Passos solitários ecoaram pela calçada. Desconfiado sobre quem seria àquela hora, eu
me virei na direção do som, secando as lágrimas com as mangas da camisa. Meu peito doía
como se bombeasse vinagre e ainda assim eu desejava que fosse o Érico. Desejava vê-lo
correndo para mim, implorando pelo meu perdão e prometendo que tudo seria diferente.
Mas claro que não era o Érico. Conforme se aproximava na ruela escura, eu reconheci
sua silhueta. Calças largas demais, capuz do moletom preto sobre a cabeça. O grosseirão de
antes.
"O quê você quer?" Perguntei. Só faltava esse cara me assaltar, depois de tudo isso.
Alto e sensual, o cara parou na minha frente e baixou o olhar para o meu.
Eu recuei alguns passos até perceber que adentrava o beco escuro. Eu me apoiei na
parede deixando ele se aproximar, meu peito acelerando a cada passo dele na minha direção. E
não era pelo medo.
Depois de ter visto o Érico, como esse cara ainda conseguia mexer comigo?
O cara puxou algo do próprio bolso e bateu com ele na minha testa. Eu apertei os olhos,
mas era algo macio e pequeno.
"Sua carteira. Você esqueceu." Falou ele, com uma voz macia e bonita que eu não havia
percebido, naquela barulheira.
Eu tomei a carteira das mãos dele e meu rosto se aqueceu. Droga, minha primeira saída
em meses, e eu só estava me envergonhando.
"Me agarra." Sussurrei, como se minhas cordas vocais tivessem vida própria.
"Como assim?" Perguntou ele, com um tom confuso. Mas o passo que ele deu à frente
demonstrava que ele havia entendido, e muito bem. O peito dele pressionou de leve contra o
meu.
"Me agarra. Beija. Sei lá. Não me importo mais." Eu encostei a cabeça na parede e
deixei que visse meu rosto, mesmo sabendo que as lágrimas voltaram.
Rosier estava certo. O amor era uma ilusão estúpida. Estava na hora de eu abandoná-lo.
O cara baixou o rosto, e seus lábios tocaram os meus, tão macios e quentes.
Eu arqueei as costas, me deixando envolver por suas carícias. As mãos do cara
passearam por mim, esfregando-se aos lados da minha cintura e subindo minha camisa,
enquanto sua língua ameaçava penetrar minha boca, sem forçar. Para um bandido grosseirão,
esse cara sabia respeitar meu ritmo.
E nossa, como beijava bem. Meu primeiro beijo em alguém que não fosse Érico, e eu
precisava me conter para não gemer. Eu relaxei a mandíbula e deixei sua língua me invadir,
explorando cada canto da minha boca. Se esse cara continuasse me beijando assim, eu
começaria a me despir.
Meu corpo ardia em tesão e calor. Era tão inexplicável quanto delicioso.
Eu erguia as mãos para desabotoar a camisa quando o cara afastou os lábios e sorriu
para mim. Ele tocou os lábios molhados no ouvido.
"Você quer se apaixonar de novo?" Ele me perguntou.
Eu franzi a testa. Que raios de pergunta era essa?
"Um mês. É tudo o que preciso." Ele continuou. "Em trinta dias serei o amor da sua
vida."
O quê?
Finalmente percebi a situação patética em que me encontrava. Aquele não era eu. O
Miguel estudante sério de Direito nunca estaria numa ruela escura, às três da manhã, trocando
beijos com um cara mal-educado e vestido como um bandido.
"Obrigado pela carteira." Eu empurrei ele para o lado e segui no meu caminho para
casa.
Trinta dias para me apaixonar? Que ridículo. O amor não era para mim.
Eu nunca mais conseguiria amar alguém.
Capítulo 02
Miguel

Após dar um longo depoimento da noite anterior, eu mergulhei na piscina do Rosier até
o pescoço e tentei me acalmar.
"E é por isso que eu nunca mais vou te ouvir." Completei, estapeando água sobre ele.
Em sua espreguiçadeira, Rosier esfregou as gotas d'água pelos gomos de músculo em
sua barriga, não querendo estragar seu bronzeamento impecável. Mesmo que os óculos escuros
escondessem sua expressão, um sorrisinho discreto mostrava o quanto ele se divertia.
"Não vá ao Estrela da Noite, eu disse, e o quê você fez? A culpa não foi minha, mon
ami. Você precisa sair mais. Ou pelo menos voltar para sua casa."
"Está me mandando embora?" Perguntei.
"Você sabe que não." Ele ergueu o óculos e piscou para mim, com seus olhos cinza de
longos cílios. Eu sabia que ele estava implicando comigo. Rosier carregava no sotaque francês
quando estava sendo um idiota. "Você precisa sair dessa, Mi. Estou preocupado."
Eu me debrucei na borda da piscina e bufei, aborrecido. Odiava quando Rosier estava
certo, e ele geralmente estava. Ele sempre foi como um irmão, desde que éramos crianças. Nós
costumávamos brincar juntos, e escalar árvores, e essas coisas, até Rosier herdar uma fortuna
do avô, aos quinze anos. Por esse motivo e outro que não quero lembrar, ele transformou sua
personalidade. Mas eu o aceitava do jeito que era.
Rosier era mais que um francês elegante, loiro e promíscuo. Ele era meu melhor amigo.
"No próximo sábado vou com você." Falou Rosier, exatamente como eu temia. "Você
ficou muito tempo longe do jogo, Mi. Vamos passar o rodo em qualquer festa que formos.
Você vai beijar até sua boca cair, e quem sabe até..."
"Teve esse outro cara." Eu encostei a testa na parede da piscina, escondendo o
vermelhão no rosto. Contar a Rosier seria uma péssima idéia. Mas quando consegui manter
segredos com ele?
Rosier demorou a responder, e eu sabia que estava abrindo um sorriso de orelha a
orelha, com os olhos cintilando em fascínio e as mãos tremendo de expectativa.
"Quem?" Perguntou ele, sem disfarçar a empolgação extrema na voz.
Quem? Como assim, quem? Meu Deus, eu nem sabia o nome do cara. Rosier riria de
mim até o fim dos tempos. Miguel, o ruivo quietinho, corrompido pelo bad boy misterioso.
"Esquece o que eu disse." Falei, como se isso fosse ser possível. "Ele era estranho."
"Estranho como? Ele te beijou? Quero cada detalhe."
Meu corpo ferveu com a palavra 'beijou', e eu me senti atordoado. Sempre que pensava
no beijo a lembrança vinha nublada como em um sonho, e então vinham os espasmos de calor.
Droga, eu não devia mesmo ter contado. Por quê meu peito disparava, só de pensar
nele? Aquela voz grossa e provocativa ainda ecoava nos meus ouvidos. Em trinta dias serei o
amor da sua vida. Só podia ser um lunático.
"Foi... bom." Sussurrei, sentindo o rosto arder. "Bom e... gostoso, eu acho? Não me
faça contar."
Um estouro molhado me fez encolher em surpresa. Eu olhei para trás, ondulando para
cima e para baixo pela água agitada.
"Rosier, avise antes de saltar na piscina!"
Rosier emergiu e agitou os cabelos molhados. Ele nadou até mim e apoiou as mãos na
borda, uma para cada lado dos meus ombros. Seu sorriso era tão largo quanto eu previa.
"Onde ele mora? Chegou a conhecer a casa dele, ou o levou para a sua?"
"O quê? Não! Nós nos beijamos por uns dois minutos, e eu fui embora. Não vou voltar
pra a minha casa, Rosier. Os quadros estão por todas as paredes."
"Eu já me ofereci para jogar tudo fora. Você é fofo, Mi. Se quiser morar comigo para
sempre, precisa apenas me pedir." Rosier acariciou o lado do meu rosto, encolhendo o sorriso
para uma expressão mais caridosa.
Eu revirei os olhos, e observei a mansão logo adiante. Quinze quartos, e nenhum deles
isolado dos gemidos escandalosos do Rosier e seus muitos amantes. Uma orgia por noite,
como ele podia aguentar disso? Eu deixaria a mansão imediatamente, se tivesse coragem de
voltar.
Percebendo o quanto Rosier continha sua empolgação, resolvi jogar mais um osso.
"O cabelo do cara era como uma cascata cor-de-palha, que deslizava do capuz ao peito.
E eu nunca vi um sorriso como o dele, tão afiado e travesso, e ao mesmo tempo tão bonito. E
as roupas eram enormes, mas ele parecia ser magro. O Érico é tão musculoso, não faz sentido
eu gostar de um magricelo, não é?"
Rosier soltou uma risadinha, e eu percebi que eu também estava sorrindo. Eu
desmanchei meu sorriso, mas Rosier já havia retornado ao modo empolgação total.
"Precisamos reencontrar esse cara." Falou ele, feliz como uma criança na manhã de
Natal. "Qual o nome dele? Onde ele trabalha? Pegou o número?"
Eu cobri o rosto com as mãos e balancei a cabeça. "Não me faz voltar na boate, por
favor."
Rosier apertou a mão molhada no meu ombro, mas nada me convenceria após aquela
noite de pesadelo. Eu só beijei o cara estranho por simples desespero. Rosier devia saber. Não
valia a pena esbarrar no Érico apenas para reencontrá-lo.
"Vou manter o casalzinho idiota bem ocupado, caso eles apareçam. Você volte lá
sábado que vem, e consiga o nome daquele cara." Rosier deu um peteleco no meu nariz.
Eu massageei o nariz ao som das risadas do Rosier. Mesmo fisicamente, nós éramos tão
diferentes. Anos de academia com personal trainers e tratamentos cosméticos caros deixaram
Rosier como um modelo de cuecas. Peito pronunciado, barriga seca e firme, bíceps saltados,
coxas fortes e bunda redonda e empinada. O corpo de um bilionário com tempo demais para
cuidar da aparência. Nem a enorme cicatriz em seu peito reduzia sua beleza.
Enquanto isso, meus músculos murcharam nos meses de depressão e eu era branco
demais, com sardas nos ombros. Talvez devesse frequentar a academia da mansão mais vezes.
Meu único atributo positivo parecia ser minha bunda, e eu odiava isso.
Você quer se apaixonar de novo? Em trinta dias, serei o amor da sua vida.
Eu massageei a testa, sentindo a tontura voltar. Precisava esquecer aquele cara, não
correr atrás dele.
Eu mergulhei para escapar de Rosier, bati as pernas em torno da piscina e deitei sobre a
água, assistindo as nuvens passarem sobre mim. Todos os eu-te-amo do Érico não foram nada.
Meu amor incondicional não foi nada. Ninguém poderia mudar essa realidade.
"O amor não serve pra nada." Falei.
"É isso aí." Rosier coçou a cicatriz vertical em seu peito, me assistindo nadar. "O amor
é apenas uma mentira."
Capítulo 2.5
Prólogo - Thanos

Quilômetros de nada à esquerda. Quilômetros de nada à direita. Acima de mim, o céu


vermelho iluminava o deserto infinito com sua luz difusa, sem estrelas nem sol.
Nunca pensei que o Inferno fosse tão chato.
Cansado de vagar sem rumo eu sentei no chão arenoso, tentando pensar apesar daquela
ventania horrível, que insistia em soprar areia na minha boca e nos olhos.
"Alguém me ouvindo?" Gritei de novo. Sério, quem projetou esse maldito lugar? Meses
vagando sem uma roupa no corpo, avistando apenas areia numa paisagem perfeitamente plana.
Onde estavam os diabos gostosos, e as orgias fenomenais? Eu não podia viver a eternidade
aqui. Eu iria enlouquecer.
A ventania incessante chicoteava meus longos cabelos loiros contra as minhas costas e
empurrava areia nos meus ouvidos. Eu me encolhi como uma bola, tentando me proteger. Se
eu dormisse minha energia estaria recuperada ao acordar, mas eu não queria dormir. Eu queria
uma eternidade normal. Maldito anjo que não me deixou entrar no céu.
Você não foi bom, o idiota me disse. Uma vida manipulando o coração de outros
homens, e cedendo às tentações carnais. Você será julgado lá embaixo.
Eu gritei de raiva, socando e esperneando na areia seca. Minha sanidade começava a
escapar, e eu sabia disso. Que eu fiz de tão errado para merecer esse pesadelo?
Uma risada misturou-se ao som do vento. Puta merda, eu estava enlouquecendo
mesmo.
A risada tornou-se mais clara, e eu ergui o rosto.
Minha surpresa em ver qualquer coisa após tanto tempo me fez gritar. E não era uma
coisa qualquer, era um homem alto e esbelto, em um longo casaco vermelho que escorria aos
pés.
Eu me levantei e observei o homem como um animal assustado. Íris vermelhas, rosto
fino e cabelo preto impecável, escovado a gel para trás. O vento não o afetava. Mesmo sua
roupa excêntrica permanecia imóvel enquanto ele me observava, com os braços cruzados e um
sorriso fascinado nos lábios finos.
Meus olhos só podiam estar enganados. Chifres longos e pretos brotavam de seu
cabelo, curvando-se para trás como os de um bode. Asas de penas negras descansavam em
suas costas, e ele abanava seu longo rabo pontudo, como um gato curioso.
"Você é o demônio?" Perguntei, lutando para me erguer apesar da ventania.
"Não é óbvio, meu querido Thanos?" Ele empurrou minha testa com a cauda, me
derrubando de cabeça no chão. "Curve-se. Não reconhece Lúcio? O príncipe da mais alta casta
de demônios?"
Eu massageei minha cabeça e me ergui nos cotovelos. Meses vagando para encontrar
um demônio imbecil. Que sorte. "O quê você quer, seu palhaço?".
"Direto ao ponto. Perfeito. Papai abomina que eu interaja com a plebe. Então não posso
ser visto por aqui."
Lúcio estalou os dedos e o vento parou. A areia congelou no ar por alguns segundos e
caiu na minha cabeça, desviando graciosamente da vestimenta aveludada de Lúcio.
Com os modos de um burguesinho ridículo, Lúcio sentou ao meu lado. Ele me entregou
um tubo de papel.
Eu abri o tubo, mas só haviam uns desenhinhos esquisitos ao redor de um pentagrama.
Pareciam traçados à sangue.
"Que porra é essa?" Perguntei alto demais, desacostumado ao silêncio do ar parado.
"Tenho te observado, Thanos. Um belo humano, morto aos vinte e cinco anos e enviado
para cá sem chances de defesa." Lúcio passou os dedos alongados no meu peito exposto,
analisando meu corpo com seu olhar avermelhado e perverso. "Você me atrai."
Eu arqueei uma sobrancelha, deixando aquele cara subir em mim como se eu fosse uma
coisa. Era isso? Se eu comesse esse cara ele me tiraria daqui? Porque para um principezinho
fresco, o demônio era bonito. Na seca como eu estava, pegaria ele com acordo ou sem.
O demônio sentou nas minhas pernas, e apontou para o papel na minha mão.
"O que você tem nas mãos é um pergaminho que roubei do papai. O Pergaminho de
Incubus."
"Escuta, príncipe de sei-lá-o-quê. Foda-se essa coisa de inferno e nomes idiotas. Eu
como essa sua bundinha nobre e você me manda pro céu, pode ser?" Perguntei.
O demônio riu, abanando sua longa cauda. "Gosto da sua cooperação, Thanos. Você
será o favorito do meu harém."
Harém? Eu arqueei uma sobrancelha. Como assim, harém?
"Investigei sua vida no plano do meio." Continuou Lúcio. "Um vigarista profissional,
que roubava suas vítimas após encontros românticos. Tantos corações feridos, e um final tão
trágico."
"Eu… eu morri salvando gatinhos de um incêndio." Gaguejei.
"Thanos, por favor. Não está me enganando." Lúcio riu de novo, e ainda mais quando
me viu avermelhar. Eu começava a odiar as risadas desse cara.
"Para completar minha humilhação, vou ser sequestrado e estuprado por um demônio
egocêntrico. É isso?" Apesar do meu tom de desprezo eu abracei meus joelhos, estremecendo.
Maldição, entre uma eternidade nessa ventania e outra como escravo sexual, eu não sabia
escolher a pior.
"Um príncipe não usa métodos tão crassos, Thanos. Você é lindo, e eu te quero pra
mim, mas você quer ascender, como todos." Lúcio lambeu os lábios e afinou os olhos de forma
perversa. "Demônios nobres não ameaçam. Eles fazem acordos. E apostas."
Eu observei o tubo de papel nas minhas mãos. Leve, delicado, e com aparência de
novo. Meu peito latejou em terror. Esta poderia ser minha única oportunidade. "Quais são os
seus termos?"
"Torne-se um íncubus, e retorne ao mundo dos vivos." Lúcio se levantou num salto,
agitando as asas em satisfação. "Cumpra meu pequeno desafio, e você se tornará um anjo.
Falhe, e você será todinho meu, para sempre."
"O que é esse pequeno desafio?"
"Eu explico depois. Levante-se logo, preciso começar o ritual."
Capítulo 03
Thanos

Eu vasculhei a pista de dança, verifiquei cada banco do bar, e até espreitei as cabines
dos banheiros.
Maldição, que perda de tempo!
Eu soquei a cabine do banheiro e voltei à pista de dança, chutando o que encontrasse
pela frente.
Trinta dias para apaixonar algum cara e eu desperdicei sete deles, esperando que o
ruivinho voltasse naquela boate, sábado seguinte.
Eu sentei num desses sofás grudentos e fedendo a cerveja e deitei o rosto nas mãos.
Calma, Thanos. Ainda haviam três semanas. Eu podia conquistar outro cara e enfim me
tornaria um anjo, ao invés do escravo sexual de um príncipe dos demônios.
Nesse ritmo eu perderia mesmo a aposta.
Puta que o pariu! Miguel parecia ser um alvo tão fácil. Quieto, tímido, e com uma aura
triste que era tão provocadora quanto sensual. Os documentos na carteira me revelaram apenas
seu nome.
Eu não sabia o que fazer. Meu bom senso me mandava desistir, e algo desconhecido
insistia em me fazer esperar. Eu até deixei meu endereço entre as notas de dinheiro dele, como
um adolescente estúpido.
Como eu era idiota. Claro que Miguel não visitaria minha casa, ele era fácil, não burro.
O dramalhão que ele fez ao encontrar o gerente confirmava o quanto seria simples seduzí-lo.
Eram nos corações vazios que eu encontrava meu espaço, e atacava.
Ainda assim, era estranho que eu pensasse tanto nele. Eu poderia encontrar outros
corações desamparados se procurasse, mas depois de conhecer Miguel eu simplesmente
desisti.
"Oi, misterioso." Um moreno de voz afetada piscou pra mim, girando o martini em seu
copo. "Tá sozinho?"
"Sai." Falei, emputecido demais para lidar com essas bichas mal-comidas.
Indignado, o cara jogou o martini na minha cara, empinou o rosto e foi embora.
Eu gritei de dor nos olhos, secando a bebida com as mangas do moletom. Filho da puta.
Fodam-se esses caras, e foda-se esse maldito bar. Caçar homens era muito mais divertido
quando não havia um prazo, e quando eu não precisava me vestir como um delinquente dos
anos noventa.
A sensação dos lábios do Miguel nos meus voltou à minha memória. Ainda me
surpreendia que tivesse sido ele a me provocar e seduzir. Não parecia combinar com sua
personalidade. Mas nem a pau que eu reclamaria. Foi um dos meus melhores beijos, e eu
geralmente tô pouco me fodendo pra preliminares.
Eu deitei a testa nas mãos. Calma, Thanos. Miguel é apenas um alvo, dos tantos que
você já teve. Você estava apenas nervoso com a aposta, e o tempo no deserto de vento te
desorientou. A falta de sexo te fez ver coisas que não existem.
Isso mesmo, trouxas que entregavam o coração aos outros nunca teriam meu respeito.
Eu precisava apenas aceitar minha derrota com o ruivinho trágico e pescar um novo alvo.
Meu peito apertou, como sempre apertava ao pensar em novos alvos. Odiava admitir,
mas algo no beijo desesperado e cheio de necessidade do Miguel mexeu comigo. E se o prazo
acabasse sem que nos reencontrássemos?
O batidão funk que estremecia o salão diminuiu, e o apito de um microfone me fez
eriçar os lábios. Merda, eu precisava de música, não do discurso idiota de algum DJ.
"Atenção cara sexy de capuz." Falou um homem de sotaque francês "Se estiver aí, meu
amigo quer ter uma palavrinha com você."
"Rosier, eu vou te matar!" Falou uma segunda voz, que eu reconheci. Os sons de sopro
e batidas no microfone ecoaram pelo salão, assim como as risadas do primeiro cara. Houve um
bipe agudo, e a música voltou ao normal.
Eu arqueei as sobrancelhas, e me virei para a plataforma do DJ, que ficava sobre um
mezanino contornado por luzes neon. O DJ reclamava com dois homens, e eu definitivamente
conhecia um deles.
Meu coração bateu tão forte que eu segurei o peito do moletom. Miguel. Miguel estava
aqui.
Eu corri em direção às escadas. Quando subi o primeiro degrau ele já estava descendo,
e nossos olhares se cruzaram.
O tempo pareceu parar e o único som passou a ser o do meu coração, tentando saltar
para fora do peito.
Ridículo, eu sei.
"É esse o tal cara gostoso?" O francês loiro acotovelou Miguel, rindo travessamente.
"Que é isso, Mi? Desde quando você tem bom gosto?"
Miguel não respondeu. O olhar dele manteve-se no meu de tal forma que meu corpo se
aqueceu, como se cada célula minha ansiasse por seus lindos olhos verdes e cabelo ruivo, que
ele agora usava bagunçado para o lado, o que só o deixava mais sexy.
Se Miguel não aceitasse ser meu alvo, eu não sei o que eu faria.
Percebendo nosso congelamento mútuo, o Francês riu e deu uns tapas nas costas do
Miguel. "Estarei na pista de dança. Não me decepcione." Ele desceu as escadas, passando por
mim.
Mesmo sozinhos, nós continuamos travados. Eu abri a boca para falar algo, e Miguel
falou junto e nós dois silenciamos de novo.
Miguel sorriu para mim com seus lindos dentes brancos e lábios tão rosados que eu
ansiava por beijá-los ali mesmo.
"Você gosta mesmo dessa boate." Ele brincou com o cabelo.
A música trocou para outra, ainda mais alta. Estávamos ao lado das caixas de som do
DJ, conversar ali seria estúpido.
"Quer ir lá fora?" Perguntei.
"Quero, por favor." Respondeu ele, com ansiedade na voz..

****

No fim nós não só deixamos a boate como caminhamos algumas quadras, até a ruela
solitária e fria da última vez.
Miguel andava alguns passos à minha frente, e a visão fervia meu sangue. Ele não
vestia calças tão apertadas, da última vez. Aquela bundinha empinada e firme parecia coisa de
filme. Não combinava com o nerd sofredor e deslocado que bebia sozinho na semana passada.
A idéia de que ele se vestiu assim para me encontrar ferveu meu sangue ainda mais.
Miguel apoiou as costas na entrada do beco, me fitando com um olhar brilhante e
envergonhado.
"Me desculpe pelo microfone. Eu tentei parar o Rosier, mas ele..."
"Você tem um bom amigo." Eu toquei o pescoço de Miguel e afaguei suavemente,
testando meus limites com todo o cuidado.. "E aquela boate é uma merda. Só voltei para
esperar alguém."
Para minha surpresa, Miguel inclinou o pescoço e me deixou acariciá-lo livremente. "E
quem é o homem de sorte?" Perguntou ele, com um sorrisinho que tentava ser travesso.
Como resposta, eu desci as mãos até seu quadril e o beijei nos lábios, esperando pouco
até invadí-lo com a língua. Os gemidos de Miguel ameaçavam me enlouquecer. Seu perfume
de amêndoa invadia minhas narinas, me convidando a descer beijos pelo seu pescoço. E foi o
que eu fiz.
Gemendo alto quando passei a língua na curva do seu pescoço, Miguel ergueu uma
perna e laçou por trás da minha coxa. Eu arfei de surpresa e prazer, embora estivesse
apreensivo. Não queria Miguel percebendo minha ereção, mas desse jeito seria impossível.
Cedendo aos meus impulsos, eu colei meu corpo ao dele e o segurei pelas nádegas
durinhas e perfeitas, deixando que passasse as duas pernas ao meu redor. Eu o ergui até nivelar
nossos lábios, e quase gemi eu mesmo ao percebê-lo tão duro quanto eu.
Eu afastei nossos lábios, arfando pesado. "Quer ir pra outro lugar?"
Vermelho e ofegante, Miguel discordou com a cabeça e voltou a me beijar.
Enlouquecido pelo tesão e também bastante confuso, eu me deixei levar por sua língua
faminta. Beijar Miguel de novo foi meu único pensamento dos últimos sete dias. E isso estava
sendo muito melhor que qualquer imaginação.
Eu acariciei seus glúteos e o beijei perto da orelha. Seu queixo arredondado, sua pele
alva e macia, tudo em Miguel parecia projetado a me provocar.
A qualquer momento algum de seus beijos seria o de amor verdadeiro.
A qualquer momento eu me livraria do inferno, e me tornaria um anjo.
A qualquer momento Miguel morreria.
"O que é isso?" Perguntou Miguel, olhando para cima.
Fervendo demais para raciocinar, eu demorei a entender. Meu capuz estava quase
caindo.
Na minha pressa para cobrir a cabeça, eu soltei as nádegas do Miguel, e ele caiu.
"Ai!" Ele se agarrou na parede, quase caindo de bunda no chão. "O que houve?"
"Desculpa." Falei, tentando esconder o nervosismo com um sorriso confiante. Eu puxei
o capuz até quase cobrir o rosto. "É melhor eu ir."
"Tão cedo?" Perguntou Miguel. Os olhos dele cintilaram em uma tristeza contida.
"Perdão, eu não quis ir tão rápido, eu só..."
Eu dei um passo para trás, sentindo desaparecer o aroma gostoso de amêndoas. Eu iria
matar Miguel. Precisava fazer isso. Eu só... não queria terminar tudo agora.
"Não sou nenhum assassino." Falei. De certa forma, era uma completa mentira. "Pode
me visitar quando quiser. Eu te espero de novo, lá em casa."
Miguel franziu a testa. "Te visitar? E como assim, me esperar de novo?"
Eu contraí as pálpebras e ri, percebendo o quanto fui idiota.
"Verifique a sua carteira." Falei. “Estarei livre amanhã à tarde.”
Enquanto eu me afastava, Miguel gritou por mim. "Meu nome é Miguel Bellomi! Eu
ainda não sei seu nome!"
Eu ri e me virei para ele. "Meu nome é Thanos Desipio. Espero te conhecer melhor,
Miguel."
Capítulo 04
Thanos

Jogado no meu sofá, eu percorria os filmes do Netflix em nervosismo quase histérico.


Um olho na televisão, o outro na porta de entrada. Talvez eu devesse verificar a campainha? Já
eram quatro da tarde, e Miguel não havia aparecido. Sim, a campainha devia estar quebrada.
Maldição, e se veio e já foi embora? Eu deveria ter pedido o celular, mas eu mesmo não tinha
mais telefone. Meio que cancelam essas coisas, quando você morre.
Eu destranquei a porta, só pra ter certeza que ele apareceria.
O som da geladeira batendo me fez saltar.
"Miguel?" Impossível. Eu morava sozinho, e não vi ninguém entrar.
Eu contraí a testa, em profundo aborrecimento. Só podia ser uma pessoa.
"Lúcio, por que raios você voltou?" Perguntei, flagrando-o beber o que restava do meu
leite. Da próxima vez eu envenenaria a caixa.
Com gestos elegantes, Lúcio tirou um lencinho do bolso e enxugou o bigode de leite.
Ele sorriu para mim. "Como assim, por quê? Vim acompanhar o progresso do meu futuro
escravo."
Eu me escorei na porta e revirei os olhos. Não bastava o prazo apertado, e meu avanço
em apaixonar alguém ser basicamente zero. Lúcio aparecia a cada dois ou três dias para
zombar de mim, esvaziar minha geladeira, e ser insuportável.
"Encontrei o cara da outra vez. Ou melhor, ele me encontrou."
Ao invés de se preocupar, Lúcio sorriu com ainda mais satisfação.
"O ruivinho de sorriso tímido? Conseguiram conversar dessa vez, ou ele só te agarrou
de novo?"
Eu apertei os lábios em uma linha. Pela confiança na voz de Lúcio, ele sabia
exatamente o que aconteceu.
"Eu não entendo. Ele parece tão quieto e recatado. Como vou conhecê-lo melhor e essa
baboseira toda, se ele me agarra sem pensar duas vezes?"
Lúcio gargalhou, parecendo se divertir imensamente. "Estranho, mesmo. Ele parece
enfeitiçado?"
"Sim. Exatamente. No começo ele é tímido e doce, e no momento seguinte..."
"...está te agarrando, como se hipnotizado. Nossa, que situação chocante. É quase como
se o parceiro fosse um demônio do prazer."
Eu abri a boca para concordar, e a ficha caiu. Eu afinei meu olhar para o Lúcio, que
gargalhou ainda mais alto, até chorar. Merda, eu demorei tempo demais a perceber isso! Eu era
a porra de um incubus. Não sei o que eu estava fazendo com o Miguel, mas não era minha
intenção!
Percebendo que eu espremia meus punhos fechados, Lúcio se aproximou e afagou o
espaço entre meus chifres, através do capuz.
"Por que tanta raiva? Isso facilita as coisas. Faça-o se apaixonar por esse corpaço
delicioso. Atenda ele pelado, e vá direto à parte divertida."
Meu rosto queimou de raiva.
"Miguel não é assim!" Eu gritei, e dessa vez sim Lúcio se surpreendeu comigo. Eu
cobri meus lábios, tão surpreso quanto ele. Por quê isso me incomodava? Miguel era apenas
uma presa fácil. Meu caminho expresso aos portões do céu. Os meios de seduzí-lo não
deveriam me importar.
Após alguns segundos em choque, Lúcio abanou o rabo como fazia quando estava
intrigado. Ele alisou o cabelo para trás, entre os chifres muito maiores que os meus.
"Interessante. Vou me divertir muito mais que o previsto." Lúcio deixou a cozinha,
esfregando a asa emplumada na minha cara ao passar por mim. "Você piscou pra ele, não
piscou? Pisque de novo, ele vai sair do transe."
Eu arregalei os olhos, surpreso com a rara cooperação do príncipe metido. Certamente
ele planejava algo, mas a oportunidade de consertar as coisas aquecia meu peito de um jeito
assustador. Nunca me senti assim nos vinte e cinco anos em que estive vivo. Por que agora?
O som da TV se alternou em diferentes canais, e eu corri para a sala, revoltado.
"Sai daí, porra! Miguel vai aparecer, como eu explico penas pretas pelo sofá?"
Assim que me aproximei, Lúcio fez um gesto com o dedo e eu tropecei no nada, caindo
sobre ele. A fragrância de orquídeas em seu casaco vermelho inebriou meus sentidos, e me fez
ver em tons cor-de-rosa.
Para alguém com asas gigantes, Lúcio era deslumbrante. O calor de seu peito firme sob
minhas mãos aquecia meu corpo de forma quase sobrenatural.
"Meu querido Thanos, não tema o poder que lhe dei." Ele sorriu para mim, e desceu a
mão até minhas calças, afagando a saliência ao fim da minha coluna. "Deixa eu demonstrar.
Comigo você pode tirar tudo, ficar bem confortável."
Um arrepio na cauda me fez morder o lábio para não gemer. Esconder minha cauda por
dentro da calça era um desconforto insuportável. Eu queria soltá-la. A idéia de deixar Lúcio
tocá-la borbulhava meu sangue, por motivos que eu desconhecia.
"Miguel logo vai chegar. Pare com isso." Eu falei, sem a menor convicção. Nossos
rostos estavam tão próximos que eu considerei beijá-lo e dominá-lo ali mesmo.
Lúcio passou a mão por dentro da minha calça, e seu simples toque na minha cauda me
fez arfar e gemer, empinando a bunda para cima e me esfregando contra os dedos dele.
"Está vendo? É um feitiço gostoso." Lúcio riu, me assistindo rebolar contra a mão dele.
"Eu usaria o tempo todo nos bonitinhos como você, mas pra que estragar minha diversão?"
O aroma de orquídeas desapareceu, e eu me vi deitado sobre o príncipe estúpido, perto
demais de seu sorriso igualmente estúpido. Eu estapeei o braço dele, fazendo-o recolher a mão.
"Eu te odeio." Falei pra ele, enquanto minha visão recuperava as cores normais e Lúcio
matava-se de rir.
"Thanos?" Uma voz tímida e assustada sobressaltou nós dois. Eu levantei, ajeitei meu
cabelo todo despenteado, e olhei para a porta de entrada.
Minhas pernas estremeceram. Há quanto tempo Miguel estava ali? O sofá ficava de
costas para a porta, eu podia apenas implorar que Miguel não tivesse visto Lúcio. Por muitos e
muitos motivos.
"Miguel, você veio." Eu abri um sorriso, mais feliz em vê-lo do que eu gostaria de
admitir. "Entra, eu estava te esperando."
Eu me aproximei de Miguel estendendo-lhe a mão, e ele recuou a mesma distância,
com um brilho desconfiado no olhar.
"Quem é o outro cara?" Ele me perguntou. "Posso voltar outro dia."
Meu sangue gelou. Ele viu. Como explicar um demônio chifrudo e alado no meu sofá?
Aliás, como explicar que eu estava me esfregando nele? Puta merda, esse encontro não
começou bem.
"Meu nome é Lúcio." Falou ele. "Não entenda errado, eu e meu primo deitamos juntos
desde crianças. Somos como irmãos."
Eu me virei pro Lúcio tão indignado quanto revoltado. Esse imbecil podia mentir fácil,
mas como explicaria os...
Lúcio acenou polidamente para Miguel, debruçado no encosto do sofá. Seu cabelo
negro brilhava em gel sobre a cabeça perfeitamente humana. Suas asas haviam desaparecido.
Para meu alívio, Miguel sorriu e aceitou a mentira idiota do Lúcio sem pensar duas
vezes. Na verdade ele parecia feliz em conhecê-lo.
"Thanos não me contou que tinha um primo. Muito prazer." Ele estendeu a mão ao
Lúcio, que a apertou como o mais educado dos príncipes. "Desculpe aparecer assim, mas a
campainha não tocou, então eu..."
Eu abracei os ombros do Miguel, sentindo-o arrepiar sob meu toque. "Meu primo
precisa ir agora, não é primo?" Falei, sorrindo nervosamente para o Lúcio. Por favor, não
arruine minha única chance de subir aos céus.
"Você mora muito longe?" Perguntou Miguel.
Lúcio riu e foi até a porta. Sua cauda também havia sumido. "Ah, Miguel, você não faz
idéia." Ele saiu, e nos deixou a sós.
Capítulo 05
Miguel

Eu não sabia o que esperar da casa do Thanos, mas não imaginava um lugar tão...
normal. A entrada dava direto para a sala de estar, com um sofá branco e uma TV de tela
plana, algumas pinturas genéricas nas paredes e um balcão na parede oposta, dando vista à
cozinha americana. Duas portas adiante indicavam o que deviam ser o banheiro e o único
quarto.
Eu absorvi cada detalhe daquele lugar, tentando me distrair da pessoa bem à minha
frente.
Uma semana inteira pensando em Thanos. O interesse inicial do Rosier já havia se
tornado horror, pois eu não conseguia falar de outra coisa. Os cabelos escorridos e longos, os
olhos azuis e penetrantes... Isso sem contar no nosso reencontro. Meus lábios ainda
formigavam só em lembrar de seus beijos.
Nunca imaginei que Thanos tivesse escondido seu endereço entre meus cartões de
crédito. Quando contei ao Rosier ele quis me bater, eu não havia lhe contado a parte da carteira
esquecida, então ele não tinha como desconfiar.
Agora que estávamos sob o mesmo teto eu apenas suava frio e mexia os dedos como
um neurótico, sem saber o que fazer com as mãos.
Mesmo em casa, Thanos usava o mesmo moletom preto e calças largas. Que preguiça
de comprar roupas novas. A camisa cor de vinho e calças embaraçosamente justas que Rosier
me fez vestir me faziam sentir inadequado para a ocasião.
"Hum... senta aí, ou sei lá" Thanos coçou o pescoço. "Vou fazer um café."
Assim que ouvi sua voz, o calorão voltou. Uma onda elétrica intensa e selvagem nublou
minha visão e me fez querer uma única coisa. O corpo de Thanos colado ao meu, nossos
suores se misturando numa paixão infinita e ardente.
Meu peito disparou, e eu corri para Thanos jogando-me em seus braços. Ele me olhou
assustado quando eu segurei seu pulso e selei meus lábios nos dele. O calor de Thanos era
como oxigênio. Eu precisava provar dele, sentir sua língua contra a minha, ou eu iria sufocar.
Thanos gemeu na minha boca, mais parecendo um resmungo. Afagando meu pescoço
com a mão livre, ele afastou os lábios.
"Por quê quis saber onde Lúcio morava?" Ele me perguntou, em um tom aborrecido.
Eu franzi a testa, precisando de um tempo para entender. Quando percebi o mal
entendido, comecei a rir.
"Rosier me trouxe de carro. Ele ia me esperar alguns minutos, para caso tudo desse
errado. Perguntei, porque talvez Rosier lhe desse uma carona."
Thanos baixou os olhos para os meus, fazendo a exata expressão de quem havia sido
estúpido, e sabia disso.
Quanto mais Thanos corava, mais eu ria. Me agradava saber que a energia intensa e
misteriosa entre nós dois não afetava apenas a mim.
"Esquece o café, vamos pro sofá." Falei, com uma voz erótica que eu não sabia ter. Eu
beijei a curva quente de seu pescoço cheio de desejo incontido, movendo meu corpo em gestos
tão promíscuos que não me reconhecia. Eu queimava por dentro, ansiando continuar de onde
paramos ontem. Na casa de Thanos não haveriam limites.
Eu vim com a intenção de me desculpar pelo exagero de ontem, e agora isso me parecia
absurdo. Como eu pude querer conversar com ele? Apenas seu corpo forte me importava. "Me
segura como fez ontem. Quero mais." Falei, já arfando em expectativa.
Com o corpo colado ao meu, Thanos alcançou meus lábios outra vez, me fazendo
relampejar por dentro. Os lábios dele curvaram em um sorriso.
Ele me observou com seus lindos olhos azul-celestes e piscou para mim. Uma onda
elétrica arrepiou meu corpo.
Meu rosto ardeu de vergonha quando me percebi na ponta dos pés, esfregando minha
virilha contra a dele e ainda segurando seu pulso agressivamente. Ah, meu Deus. Eu apareci
para pedir desculpas e o ataquei de novo, qual era o meu problema?
"Perdão, perdão!" Eu me afastei, com os olhos molhados de vexame e horror. "Não sei
porque faço isso, juro que não sou assim, eu só..."
Thanos riu, se aproximou do meu rosto e me deu um selinho. "Eu acredito."
Com o coração saindo pela boca, eu assisti Thanos passar o café e nos servir. Eu lacei
meus dedos na xícara quente, tentando me acalmar com o calor e o aroma gostoso de café.
Minha libido com Érico nunca saiu do normal. Podíamos transar uma vez por semana
ou cinco, e eu não morreria de falta nem me enjoaria pelo excesso. Três meses sem sexo não
pareciam o suficiente para me transformar num ninfomaníaco. Eu nem pensava em outros
relacionamentos antes de encontrar Thanos pela primeira vez.
"Quando você disse que me apaixonaria..." Falei, pensando alto. A proposta de Thanos
ecoava na minha cabeça como um disco riscado.
Escorado na bancada da pia, Thanos apertou os lábios, pensativo. Seus olhos cintilaram
para mim como duas safiras.
"Falei sério. Antes que novembro chegue ao fim, vou te fazer me amar." Ele engoliu
seco, e o café ondulou com o tremor de suas mãos. "Se quiser, é claro."
Eu sorri com o canto do lábio. Algo em Thanos me parecia diferente, mas a palavra
amor queimava meu peito de forma horrível. No que dependesse de mim, a desilusão que tive
com Érico não se repetiria.
Precisei desviar o olhar do lindo semblante de Thanos, ou tive certeza que aceitaria sua
proposta absurda. Que péssima idéia tocar nesse assunto. Se eu começasse a chorar, Thanos
me jogaria para fora.
Uma coisa escura presa na porta da geladeira distraiu minha angústia. Uma pena negra?
Eu puxei a pena e a observei. Nunca vi uma tão grande e bonita. O reflexo avermelhado
cintilava conforme a girava entre os dedos.
"Você faz macumba?" Perguntei brincando, mas o pavor na expressão de Thanos me
fez considerar se não acertei em cheio.
Percebendo que ele congelou no lugar, eu abri a porta da geladeira, torcendo para não
encontrar o resto da galinha. Não encontrei nada. Literalmente nada. Aliás, havia uma caixa de
leite que eu sacudi, e estava vazia. "Alguém precisa fazer compras."
"Não preciso comer." Falou ele, com a voz tremida e engasgada. "Deveríamos nos
conhecer melhor, não acha? Por quê não vemos um filme?"
Eu murchei os lábios em um asterisco, e beberiquei meu café. Agora que parei de me
esfregar no Thanos, quem estava sendo estranho era ele.
"Olha, Thanos. Você me encontrou num momento vulnerável, e isso lhe causou uma
impressão errada de mim. Não costumo ser chorão e carente." Falei, tentando parecer calmo.
Por mais que o convite me agradasse, meu coração não aguentaria assistir filmes com outro
homem. "Café, diversão e palavras macias não vão abrir meu coração." Não uma segunda vez.
Thanos murchou os lábios e estalou a língua nos dentes. Ele deixou a xícara na pia e
retornou à sala, a passos ríspidos.
Confuso, eu deixei minha xícara sobre a dele, guardei a pena no bolso da camisa e o
segui.
"Thanos..." Eu o encontrei andando em círculos pela sala, apertando as mãos atrás da
cabeça, em frustração absoluta.
"Tenho apenas mais vinte e dois dias! Quero dizer... posso te fazer me amar em vinte e
dois dias." Thanos veio até mim e segurou minhas mãos contra seu peito, me fitando cheio de
ansiedade e uma pontinha de... pânico? "Me deixe tentar, por favor."
Meu coração deu um salto, e eu quase disse sim na hora. Eu não podia deixar meus
sentimentos me traírem. Thanos e eu mal nos conhecíamos, era impossível que ele estivesse
apaixonado, não era? Eu só iria me machucar de novo.
Ainda assim, que um homem tão lindo me desejasse dessa forma... Eu podia ceder só
um pouco. Não. Eu queria ceder.
"Podemos apenas sair?" Perguntei, tentando não ronronar de prazer ao toque macio de
Thanos nas minhas mãos. Eu me aproximei um passo, querendo sentir seu calor. "Vamos ter
encontros. Nos conhecer fazendo coisas juntos."
Thanos soltou o ar devagar, e passou uma mão por trás dos meus ombros, colando meu
rosto em seu peito quente. "Por quanto tempo?" Ele me perguntou.
Eu dei de ombros. Como se isso importasse. As carícias de Thanos me faziam desejar
que fosse para sempre, mas eu não seria trouxa.
Tudo termina.
"Acho que não tenho escolha." Ele beijou meu ouvido, evitando, sem perceber, que eu
tivesse outra crise de choro. "Onde quer ter nosso primeiro encontro?"
Meus lábios se esticaram, e eu ri contra o peito dele. Eu ergui meus olhos para Thanos e
lambi os lábios, travessamente.
"Você tem uma chance de adivinhar."
Capítulo 06
Miguel

"...e então nós adicionamos uns cinco potes diferentes de maionese e fomos buscar um
terceiro carrinho, porque os primeiros dois..."
Eu interrompi meu discurso e joguei água na cara do Rosier, que já estava olhando pro
céu de novo, sorrindo como um besta.
Rosier resmungou quando os respingos molharam a pena que dei à ele. Ele debateu os
pés na borda da piscina, tentando me afogar em um mini-tsunami.
"Eu estou te ouvindo!" Falou ele, agitando a pena para secá-la. "Um encontro no
supermercado. Eu ri tanto que minhas costelas ainda dóem."
Eu fiz um biquinho e continuei. "Enfim. Quando enchemos o terceiro carrinho o
Thanos me prensou de novo, dessa vez na prateleira de sopas. Uma senhorinha flagrou nosso
beijo e nós tivemos que..."
O olhar de Rosier já estava no céu azul e brilhante do final de outubro. Ele suspirou
longamente e jogou os cachos loiros para o lado, como num ensaio fotográfico.
Eu também suspirei. Em frustração.
"Está bem. Me conta sobre sua maldita transa de ontem." Resmunguei.
O olhar de Rosier se iluminou e ele se dependurou na borda da piscina, quase caindo
sobre mim. Seu sorriso brilhava de uma orelha à outra.
"Não foi uma transa, Mi. Foi o melhor sexo de toda a minha vida. Onde aquele homem
esteve, todo esse tempo? Ele transa como um demônio."
Eu arqueei a sobrancelha, levemente curioso. A intensa vida sexual do Rosier não me
interessava em nada, mas eu nunca o vi tão empolgado sobre sexo. Ou sobre qualquer coisa.
"Um demônio, é?" Perguntei, instigando-o a continuar logo. Eu queria falar sobre o
Thanos, sobre o quanto me diverti com ele ontem à tarde. Sobre como ele foi gentil e não
tentou me forçar a nada, nem quando nos enroscamos sob as cobertas e assistimos três
temporadas de Breaking Bad, até o sono nos derrotar.
Mesmo lavado no cloro da piscina eu ainda sentia o cheiro de Thanos em mim. Um
aroma de desodorante masculino comum, mas que se misturava ao cheiro natural dele de um
jeito tão único, que eu não conseguia esquecer.
Opa, agora quem não estava ouvindo era eu.
"...cinco vezes, Mi. Cinco vezes, numa única noite, e a energia dele não dava sinais de
esgotar. E eu implorava, como nunca implorei antes. Aquele aroma de orquídeas parecia
penetrar minha pele, como um feromônio que me fazia continuar para sempre." Rosier
observou a pena com um olhar deslumbrado, e deu uma longa fungada na ponta. "Quase sinto
o cheiro dele, nessa coisa. Acha que pode ser dele? Uma caneta-pena, como daquelas antigas?"
Eu sorri com o canto do lábio. "Quem usaria uma caneta-pena nos dias de..." Um
arrepio percorreu meu corpo. "Espera, você está falando do primo do Thanos?"
Rosier riu, admirando o brilho sobrenatural da pena, sob o sol.
"Então eles são primos? Quando Lúcio me encontrou te esperando cheguei a pensar
mesmo que ele só queria conhecer a cidade. Em meia hora estávamos no meu quarto e..."
Rosier estremeceu em um calafrio intenso. "...ai, mon ami. As coisas que ele sabe fazer..."
Rosier riu de novo, mas eu não achei graça alguma. Ele vivia pelo prazer sem
consequências, e quebrava corações como um confeiteiro quebrava ovos. Quando ele sabotasse
o primo do Thanos, o problema com certeza respingaria em mim.
"Rosier, você precisa terminar com ele." Falei, afundando na piscina até o queixo para
esfriar minha raiva.
Rosier saiu de seu estado aéreo por um segundo, percebeu minha expressão de
incômodo e desatou a gargalhar.
"Relaxa, Mi. Você sabe que não transo duas vezes com o mesmo cara. Foi uma noite
sensacional, mas que ficará na memória, como todas as outras."
Eu torci meu lábio, não muito convencido, mas Rosier estava certo. Para alguém que
não queria um relacionamento com Thanos, eu me preocupava demais.
Você quer se apaixonar de novo?
Eu mergulhei e exalei sob a água, soltando uma cortina de bolhas. Quando eu me
esqueceria disso?
Thanos era tão diferente de Érico. Érico nunca veria diversão em empilhar caixas de
macarrão como um castelo de cartas e depois apostar corrida de carrinho de compras, num
supermercado, às onze da noite. Érico estudava administração, e tinha horários regrados até
para transar. Meia noite já estaria dormindo. Mas ele também me conhecia como ninguém,
sabia o que eu pensava antes mesmo de eu falar, e eu também lia a mente dele.
Menos na parte do estou te trocando por outro mais competente e esperto. Essa parte
me pegou de surpresa, completamente.
Eu emergi e joguei mais água no rosto, disfarçando minhas lágrimas. Thanos nunca me
conheceria como Érico conheceu. A atração inexplicável dele por mim o faria se divertir com
qualquer coisa, provavelmente. Dando a chance, em dois meses ele me acharia um completo
tédio. Thanos era diferente demais.
Talvez tão diferente, que não me largasse como Érico fez.
Ridículo. Eu não podia estar mesmo considerando a proposta dele.
"Ele me disse que nunca se apaixonou." Pensei em voz alta e, para meu azar, dessa vez
Rosier me ouviu.
"Ainda bem. Digo, é disso que você precisa agora, Mi. Diversão, risadas e muito, muito
sexo. Qual o tamanho dele, falando nisso? Porque o Lúcio, mon Dieu, eu nunca pensei que..."
Eu mergulhei minhas orelhas, escolhendo proteger a inocência que me restava. O
excesso de informação de Rosier entrou como um borbulhar difuso nos meus ouvidos, e eu
refleti sobre as primeiras palavras dele.
Tudo bem mesmo, alguém nunca se apaixonar? E por quê Thanos me contou isso? Pela
proposta dele, eu o imaginava como um delinquente rude por fora, e um romântico incorrigível
por dentro. Talvez ele fosse mesmo cem por cento delinquente, e quisesse apenas brincar com
meus sentimentos, por diversão.
Estranhamente, por mais plausível que essa teoria fosse, nenhuma célula dentro de mim
acreditava que Thanos fosse capaz de me magoar.
Meu coração bateu forte, como quando Thanos me beijou sob os cobertores macios, e
como quando ele alisou meu cabelo e elogiou minha aparência, entre um episódio e outro de
Breaking Bad.
Posso te fazer me amar em vinte e dois dias. Por favor, me deixe tentar.
Eu esfreguei meus cabelos molhados, gritei embaixo d'água e emergi, à beira de
sufocar.
Droga, eu estava prestes a cometer um erro, não estava?
Capítulo 07
Thanos

Eu vasculhei as duzentas sacolas que se erguiam da minha mesa de jantar até quase o
teto. Minhas mãos percorreram algo frio, e eu encontrei um pacote de salsichas.
Puta merda, cinco horas guardando compras, e eu ainda encontrava comida refrigerada.
Suspirando em cansaço, eu contornei o balcão até a cozinha e abri a porta da geladeira,
derrubando uma quantidade absurda de laticínios, legumes e potes de iogurte.
Eu lutei para socar tudo de volta, como num jogo de Tetris. Devia ter aceitado a ajuda
do Miguel, mas não. Eu precisava ter sido um cavalheiro e dito que guardaria tudo depois.
Um sorriso involuntário se formou nos meus lábios ao lembrar da nossa maratona de
Netflix. Miguel se encaixava tão perfeitamente contra o meu peito que parecíamos duas
metades de uma coisa só. Eu nunca dormi de conchinha quando era vivo. Pensei que dormir
sem transar me deixaria insuportável hoje, mas eu não conseguia desmanchar meu sorriso.
Infelizmente, um estalo familiar atrás de mim me lembrou que sim, eu conseguia
desmanchar meu sorriso muito bem.
O familiar turbilhão de penas, fumaça e sombras se formou atrás de mim. A fumaça se
dissipou e Lúcio apareceu em seu lugar.
"Você não cansa de voltar?" Rosnei, forçando as costas contra a porta da geladeira.
Lúcio bateu uma pena solta de seu impecável casaco vermelho. "Papai está
insuportável. Subindo pelas paredes, por causa do pergaminho que desapareceu." Ele soltou o
ar, aborrecido, e logo retornou ao modo sorridente e idiota que eu detestava desde o começo.
"Além do mais, preciso contar a alguém sobre meu encontro de ontem. Humanos são fracos e
inferiores, eu sei, mas o homem com quem saí..."
"Não quero saber." Eu passei pelo Lúcio de volta à sala.
Lúcio me seguiu e se aterrorizou com a pilha de compras.
"O que é isso?" Ele esganiçou a voz, em choque.
"Resultado do encontro mais esquisito da minha vida."
Eu sorri de novo. Lembrando dos amassos que trocamos, e da alegria do Miguel ao me
detalhar o uso de ingredientes que eu nunca havia visto. Tudo sobre ontem foi tão estranho,
quanto perfeito.
"Como pagou tudo isso? Posso ter hipnotizado o síndico para manter sua casa
disponível, mas o banco não cancelou sua conta?"
"Sou um demônio, Lúcio. Posso passar alguns cheques sem fundo." Além do mais, eu
logo desapareceria do plano dos vivos. Para sempre.
E meu poder de sedução decidiria se eu iria para cima, ou para baixo.
"Preciso mesmo matar um humano?" Perguntei, sentindo meu peito espremer.
"Se um mortal apaixonado beijar um incubus, ele morre. É como funciona."
"E se eu apaixonar um imortal, ainda posso me tornar um anjo?" Perguntei.
Lúcio vasculhou as sacolas até encontrar as maçãs. Ele deu uma larga mordida e gemeu
de prazer, ainda mais alegre que o normal. "Não tente, Thanos. Você é gostoso, mas minha
atração por você é apenas física."
Eu avermelhei de raiva. "Não estou insinuando isso, seu príncipe estúpido! Só quero me
tornar um anjo e esquecer sua cara, de preferência sem matar ninguém." Especialmente o
Miguel.
Lúcio terminou sua maçã, com um bom humor inabalável.
"Se te consola, ao tornar-se um anjo, não nos veremos mais. Os bastardinhos
branquelos são invisíveis às criaturas dos outros planos." Lúcio sorriu para mim, todo
arrogante e contente. "Como eu ia dizendo, o humano de ontem era fenomenal. Vinte e dois
incubus e seis succubus no meu harém, e foi este humano quem me fez ver estrelas. Ele
suplicava por mais tão sedento e necessitado, que o meu corpo..."
Uma música tocou no meu bolso, no celular que comprei ontem. Meu peito disparou
porque só podia ser uma pessoa. Eu tomei o celular nas mãos e apreciei aquele lindo ruivo de
olhos verdes, que fazia um vê para a foto com uma expressão tão tímida quanto feliz.
"Quem é?" Lúcio se jogou sobre mim, tentando ver a tela. Suas asas abanando batiam
pelos meus móveis, esvoaçando as sacolas vazias por toda a sala. "É o Rosier?"
Eu revirei os olhos e atendi o celular. "Oi, Miguel."
Miguel gaguejou alguma coisa, e eu ri através do meu largo sorriso.
"Thanos, oi. Você atendeu, mesmo." Ele disse, enfim. Eu podia até imaginá-lo
encolhido em sua cama com o celular grudado no ouvido e um vermelho intenso em seu
rostinho alvo. "Eu, hum, o quê está fazendo?"
"Guardando compras, e suportando o meu primo." Falei, empurrando Lúcio para longe
e ignorando os recados que ele tentava me passar. "Como foi sua aula?"
"Terminou agora pouco." Miguel riu, gradualmente mais relaxado. "Quer fazer alguma
coisa?"
Meu coração pulsou. Miguel, me chamando para sair? Não o imaginava com tanta
iniciativa.
Eu engoli seco, e tentei conter a alegria no meu interior. Manipular o coração dos
homens era minha profissão. Se Miguel decidiu me convidar, era porque confiava demais no
meu sim. Eu precisava me fazer de indisponível para mantê-lo interessado.
"Não sei, hoje fica difícil." Me forcei a falar. "Verei na minha agenda, e talvez
amanhã..."
Lúcio arrancou o celular da minha mão e correu antes que eu pudesse entender o que
aconteceu.
"Miguel, oi! O Rosier está com você?" Perguntou ele. Eu me joguei no celular e Lúcio
me interceptou, metendo a asa na minha cara. "Ótima idéia! Claro que vou. Sim, estaremos lá!
Manda um beijo pro Rosier. Pare de rir, eu falei sério."
Quando eu enfim me livrei daquelas malditas asas, Lúcio me entregou o celular, já
desligado.
Ele sorriu para mim, agitando a cauda como um cachorro histérico.
"Arrume-se decentemente. Teremos um encontro duplo."
Eu arregalei os olhos, paralizado. Lúcio baixou meu capuz e cobriu meus chifres com
um fedora preto.
Embora estivesse indignado, eu agradeci Lúcio internamente. Graças a ele eu
reencontraria Miguel. Meu peito trepidou numa expectativa que eu não sabia ser capaz de
sentir.
Lúcio tirou uma escovinha do bolso e penteou o cabelo. Suas asas, chifres e cauda
desapareceram como ontem, o deixando indistinguível de um humano comum.
"Como você faz isso?" Perguntei, apertando a cauda que eu mantinha enrolada ao redor
da perna.
"Isso o quê?" Pelo sorriso travesso, era óbvio que Lúcio sabia muito bem.
"Me ensina. Miguel não pode me ver assim." Pedi, engolindo meu orgulho.
Lúcio jogou a escova em algum lugar do sofá e passou a mão por trás do meu ombro,
me empurrando até a porta.
"Que diversão haveria nisso?" Perguntou ele, com a voz distorcida pelas risadas.
"Vamos, não podemos deixar nossos rapazes esperando.”
Capítulo 08
Thanos

Eu imaginei que o encontro no supermercado seria o mais estranho de todos.


Eu não sabia o que me aguardava.
Meus passos e os de Lúcio chiaram na grama recém regada, que emanava seu aroma
característico. À nossa frente se estendia um vasto lago, contornado por um caminho de
cascalho por onde crianças corriam e casais de idosos passeavam. O gramado no entorno era
colorido por arbustos de hibiscos e azaléias. A luz do crepúsculo tingia o parque em tons
alaranjados, e o reflexo no sol da água tremulava ao movimento de um casal de cisnes, que
nadava com seus filhotinhos.
Puta merda, eu comi uns cinquenta caras ao longo da vida, e esse lugar conseguia ser
mais gay que eu.
"Olha, Thanos! Um pavão!" Lúcio me puxou pelo braço. Havia até uma harpa, tocando
ao fundo. Como um lugar tão ridículo poderia existir?
E se o paraíso fosse exatamente assim? O pensamento revirou meu estômago. Eu queria
um palácio de nuvens macias, rock a todo o volume e uma fila de anjos virgens esperando para
serem deflorados por mim.
Para conseguir isso, eu precisava matar Miguel.
Lembrar disso me fez estremecer ainda mais que da última vez. Meu nervosismo
tornou-se enjôo de verdade e eu corri para os arbustos, manchando aqueles crisântemos
ridículos com o conteúdo do meu estômago.
"Tudo bem?" Perguntou Lúcio, com uma preocupação que eu estranhei. "Um demônio
de média hierarquia não pode exagerar na comida humana. É venenoso."
Eu sequei a boca na manga do moletom, me sentindo patético. Eu já deveria ter aceito o
destino do Miguel. Se não fosse ele, seria qualquer outro cara dramático e fágil.
"Vai mesmo me escravizar, se eu falhar?" Perguntei, erguendo os olhos para Lúcio e
flagrando um olhar preocupado que ele apagou bem rápido, substituindo-o por um sorriso
inseguro.
"Claro que vou." Ele riu, nervoso. "Você é lindo, Thanos. Será meu melhor brinquedo.
Ficará acorrentado na minha cama por semanas, vestindo apenas o que eu te deixar vestir."
Eu segui o príncipe metido de volta ao caminho de cascalho. Ele era arrogante demais
para uma resposta tão gaguejada e sem convicção. Não era impressão minha, havia algo de
diferente nele.
Algo que eu poderia explorar em meu favor, talvez?
"Eu entendo como se sente." Sussurrou ele, como se pensasse alto.
Eu apertei meus punhos, tentando me acalmar. Como se esse idiota pudesse entender.
Por causa dele me enfiei nessa situação horrível.
Em poucos minutos, avistamos um lindo ruivo de olhos verdes, camiseta estampada e
calças ainda mais justas que da última vez, a ponto de formar um triângulo entre as pernas e a
virilha. Meu corpo se aqueceu no mesmo segundo.
Ao lado do ruivo lindo, um francês de cabelos loiros tagarelava euforicamente até os
dois nos avistarem. O sorriso de Rosier se apagou e ele puxou Miguel, reclamando com ele de
forma agressiva. Miguel riu e dispensou a bronca com um gesto da mão.
Quando nos aproximamos eles se interromperam e sorriram para nós, Miguel com tanta
doçura que meu coração saltou.
O amigo dele não demonstrava o mesmo entusiasmo.
"Thanos, Lúcio. Que surpresa enorme." Rosier fuzilou Miguel com o olhar, rosnando
longamente as últimas duas palavras."
"Vocês vieram, mesmo." O sorriso de Miguel ameaçava me derreter. O colorido
escandaloso das flores moldurava sua silhueta como se ele pertencesse àquele lugar. Assim que
o vi, este parque tornou-se imediatamente o lugar mais incrível do mundo.
Puta merda, dez minutos nesse parque e eu já estava confabulando como uma bicha
alegre.
Concentração. Agora que estava ali, eu precisava focar em seduzir Miguel. Vinte e um
dias seria tempo o bastante, se eu não entrasse em pânico. Eu só precisava me livrar do francês
loiro e do Lúcio, que infelizmente...
Uh, o príncipe estúpido já conversava animadamente com Rosier, que sorria sem graça
e recuava a cada passo dele, como se planejasse sair correndo. Vai entender.
A mão perfeitamente macia de Miguel tocou a minha. Meu peito saltou quando ele
ergueu-se nas pontas dos pés, beijou meu pescoço e sussurrou.
"Vem, vamos deixá-los sozinhos."
Eu concordei e o acompanhei em torno do lago, apertando minha mão na dele sem me
importar com o espanto das famílias.
"Você fica bem de chapéu." Miguel ergueu seus olhos verdes para mim, me conduzindo
pelo trajeto à beira do lago. O alaranjado do pôr-do-sol tornou-se um violeta frio e tranquilo, e
os cisnes e patos já haviam se recolhido para dormir. "O moletom continua o mesmo, mas é
um começo."
Eu passei os dedos pela aba da fedora, adicionando vergonha à minha lista de
desconfortos. Ou Miguel queria me agradar, ou seu mau-gosto era assustador.
O que ele pensaria, se lhe mostrasse meus chifres? Eles eram levemente curvos e
pretos, muito menores que os do Lúcio. Talvez Miguel achasse fofo. Ele era excêntrico o
bastante para isso ser uma possibilidade.
Quando percebi, já estávamos no lado oposto do lago. Miguel nos afastou do caminho
de cascalho e sentou à beira da água. Eu me sentei com ele, sentindo a grama macia contra
minhas nádegas e minha cauda, que eu mantinha exaustivamente enroscada na minha coxa.
Por uma fração de segundo imaginei Miguel descobrindo minha cauda e querendo tocá-
la. Meu corpo reagiu quase imediatamente, mas Miguel não percebeu. Ele sorria tranquilo e
melancólico, observando o ondular da lua sobre o lago.
"Fico feliz que tenha me chamado." Falei, tentando ver graça naquela paisagem boba.
Miguel ainda segurava firme a minha mão, descansando-a no gramado frio.
"Mentiroso." Miguel riu. "Você já estava inventando uma desculpa para não vir."
Eu ri junto, apreciando a forma como a lua brilhava nas mechas ruivas de Miguel, e se
refletia como dois pontos brancos em seus olhos de esmeralda.
Desde a adolescência sempre tive pelo menos três namorados. A adrenalina em mantê-
los afastados um do outro me excitava mais que cada relação, em si. Após ganhar um presente
aqui e ali, descobri que podia viver disso. Passei a descartar aqueles de quem já havia sugado
tudo, substituindo-os por novos namorados, ainda mais ricos. Foi um deles quem me deu a
casa em que eu vivia. Cada mobília e cada centavo recebi de idiotas apaixonados, que se
dobravam por mim a cada 'eu te amo' que eu lhes dizia, em minha voz mais sedutora.
Milhares de eu-te-amos vazios. Incontáveis lágrimas alheias que eu não me importava
em enxugar ou não. Para mim, o amor era um negócio. Uma forma de enriquecer às custas de
trouxas.
Este deveria ser apenas meu golpe final, então por que meu peito ardia tanto?
"Escuta, Miguel. Preciso te contar uma coisa." As palavras escaparam dos meus lábios.
Eu pus a mão no chapéu e comecei a levantá-lo quando ele puxou minha mão, entusiasmado.
"Olha, vai começar."
Eu ergui meu rosto na mesma direção, e meus olhos cintilaram em surpresa. No lado
oposto do lago, centenas de pontos dourados ondulavam pela água, iluminando a noite escura
como uma constelação em movimento.
As velas se espalharam pelo lago, algumas se aproximando de nós, sobre pequenos
barquinhos de papel. A água refletia as minúsculas chamas, as estrelas, e o luar. Era lindo.
Miguel riu da minha expressão embasbacada, mas seu olhar tornou-se úmido e triste.
Ele dobrou os joelhos e apoiou o queixo neles, tentando alcançar uma vela que se aproximava.
"Eu vim com o Érico, na Cerimônia das Velas do ano passado. Naquela época nosso
namoro já estava desabando, e essa noite foi a primeira em vários dias que nós não brigamos.
Eu me sentei com ele exatamente aqui e deitei no peito dele, assistindo o ondular das chamas."
Miguel enfim alcançou o barquinho, e tomou-o nas mãos. O dourado do fogo refletia em seus
olhos úmidos, e numa lágrima que descia de seu rosto. "Lembro que imaginei o amor como
cada uma dessas chamas. Tão pequenos e frágeis. Eu me vi como esses barquinhos, lutando
para manter a chama viva, enquanto a água derretia o papel aos poucos."
A voz de Miguel tornou-se aguda e soluçada. Incerto sobre o que dizer eu apertei a mão
dele, e Miguel laçou os dedos nos meus. Como ele disse, as pequenas velas desabavam uma a
uma de sua proteção de papel. Retornando à superfície frias e sem brilho.
Quando quase todas as velas haviam apagado, Miguel soltou novamente o barquinho.
Eu não dava a mínima para poesia, e para mim velas eram apenas velas. Mas, por algum
motivo, assistir aquele barquinho navegar até o centro do lago apenas para afundar apertou
meu coração.
"Vinte de novembro." Falou Miguel, com a voz mais calma.
Eu arqueei a sobrancelha. "O que tem vinte de novembro?"
"Em vinte e um dias será vinte de novembro. Véspera do meu aniversário, e também o
fim do seu prazo." Miguel secou o rosto e, após certa hesitação, deitou a cabeça no meu
ombro. "Não quero mais ser o barquinho de papel."
Eu me virei para Miguel, espantado, e ele ajoelhou-se no gramado e selou os lábios nos
meus.
Uma mistura de prazer, tristeza e terror me fez gemer dentro de sua boca, mas Miguel
continuou vivo, pelo menos dessa vez.
Ele afastou seus lábios em um estalo molhado, e encostou a testa na minha.
"Me apaixone, senhor Thanos Decipio. Quero aprender a amar de novo."
A honestidade de Miguel me fez sorrir, apesar da culpa insuportável que eu sentia. O
calor gostoso de seu corpo preencheu meu peito com uma felicidade tão agradável quanto
angustiante.
"Não vou falhar. Farei o melhor que eu puder."
Ignorando o tremor nas pernas, eu lacei minhas mãos atrás dos cabelos de Miguel e
devolvi um beijo intenso e sincero. Eu deitei sobre ele à beira do lago e eu explorei sua língua
com a minha, em busca dos gemidos doces que mexiam com a minha alma.
Miguel sorriu contra os meus lábios e cravou as unhas no chão, arrancando tufos de
grama enquanto tentava acompanhar o ritmo dos meus beijos.
Pela primeira vez eu desejei que o tempo parasse e eu pudesse ter Miguel exatamente
assim, para sempre.
Capítulo 09
Miguel

Uma semana se passou desde a Cerimônia das Velas.


Seria exagero dizer que estou vivendo um conto de fadas? Acho que sim, mas não
conseguiria me explicar de outra forma. Thanos era como um anjo. O cara grosseiro e ácido
que conheci na festa tornou-se leal, carinhoso e companheiro muito mais rápido do que eu
imaginaria.
Estranhamente, aquela minha obsessão pelo corpo dele diminuiu, não que eu o
desejasse menos. As roupas enormes que ele sempre vestia me instigavam a imaginar a forma
do seu torso. Thanos tinha ombros estreitos, então eu não o imaginava muito musculoso. Eu
gostava de visualizar o peito dele como saliente, firme e liso. A barriga não precisava ser
sólida, mas um par de gominhos ou dois me deixaria nas nuvens.
Eu não tinha pressa em descobrir. Nesse momento eu queria conhecer a alma de
Thanos, seus gostos e desgostos. Aliás, desgostos eu já conhecia vários, como parques floridos
e pedir para tirar o chapéu.
Thanos era fechado de um jeito misterioso e intrigante, e eu também, por motivos que
prefiro não comentar. Mas um de nós precisava ceder, e claro que seria eu.
Eu queria tanto quanto Thanos que ele vencesse o próprio desafio. E para isso, eu
precisava ser muito forte.
"Prefere que eu abra a porta?" Perguntou Thanos, e eu percebi que estávamos na minha
varanda há mais de dez minutos, olhando para a amaldiçoada maçaneta. Eu apertava a chave
na minha mão com tanta força que certamente ficaria carimbado. Minhas pernas e braços
recusavam a se mover.
"Por favor." Pedi, humilhantemente. A paciência de Thanos comigo era inacreditável.
Ele apenas tomou o chaveiro da minha mão, beijou meu rosto, e passou a chave em um
estalido que eriçou os pêlos do meu corpo.
A porta da minha casa estava aberta. A casa que dividi com Érico por três anos.
A silhueta dos móveis tão familiares se revelou para mim, fracamente iluminados pelo
poste da calçada. Meus olhos esquentaram, e Thanos tocou os lados do meu rosto, me
afagando com seus dedos quentes.
"Podemos tentar isso outro dia." Seus lindos olhos azuis brilhavam em preocupação.
Eu respirei fundo, me estiquei para beijar o rosto dele, e forcei um sorriso determinado.
"Vem. Desculpe se estiver tudo empoeirado." Falei, dando meu primeiro passo porta
adentro, em mais de três meses. Eu cliquei o interruptor e as lâmpadas piscaram até acender.
A casa que ganhei dos meus pais antes deles viajarem era maior que a de Thanos, mas
não tanto assim. A porta de entrada também dava para a sala, mas haviam uma suíte, dois
quartos, e uma cozinha várias vezes maior que a dele. Thanos não suspeitava o quanto eu
gostava daquela cozinha, mas Érico dizia que culinária era um hobby estúpido. Era melhor eu
não contar nada.
Eu deslizei os dedos pela linda capa de renda que Dona Cinara fez para o sofá. Minha
querida ex-sogra que eu nunca mais veria. Embora empoeirado, o móvel da televisão ainda
estava coberto de bonequinhos coloridos, que eu e Érico colecionamos em nossas viagens. Ele
não levou nada ao ir embora, por pena de mim. Agora eu desejava que ele tivesse levado tudo.
Meu olhar se mantinha baixo o tempo todo. Se eu olhasse para as paredes, não iria
suportar.
"Porra, que casal brega vocês eram. Olha quanta foto." Falou Thanos, jogando no chão
o caixote vazio que trouxemos. "Existem álbuns, sabia? E computadores com HDs espaçosos.
Puta que o pariu."
Eu exalei uma risadinha triste. Se Thanos soubesse quantos HDs de fotos eu guardava
do meu dia-a-dia com Érico, ele me internaria. Os duzentos e sessenta e dois quadros na parede
eram a pontinha do iceberg.
Érico também achava exagero, mas eu gostava de olhar para ele, onde quer que eu
fosse.
Eu baixei meu rosto ainda mais, para Thanos não perceber que eu estava chorando.
Pelos clique-claque vindos da parede, ele estava removendo os quadros um por um. Na
minha cabeça, eu mesmo retiraria eles, quebraria no pátio dos fundos e tacaria fogo. Mas eu só
conseguia chorar enquanto Thanos fazia tudo por mim.
Por que eu era tão fraco?
"Acho que esse era o último. Têm mais nos outros cômodos?"
Eu ergui o rosto para a parede, vendo a tinta amarela toda quadriculada, marcada onde
os quadros costumavam estar. Thanos batia a poeira das mãos uma na outra em frente ao
caixote recém fechado, com uma expressão ilegível.
"Desculpa." Solucei, cobrindo o rosto com as mãos.
Os braços de Thanos me envolveram em um abraço quente. Ele aninhou o rosto no meu
pescoço e eu me esforcei muito para não desabar no ombro dele. Se eu começasse a chorar
agora, não pararia por uns três dias e Thanos poderia entender errado.
A verdade é que, se não fosse por Thanos, eu não poria meus pés ali nunca mais. Mas
que raios de relacionamento eu teria com ele, se não conseguisse me livrar do primeiro?
Eu exalei um longo suspiro e dei um passo para trás, me sentindo bem melhor. Eu e
Thanos trocamos um sorriso, sabendo que não havia nada a ser dito. Meu coração acalmava só
de olhá-lo nos olhos e eu me enchia de esperança.
Talvez eu fosse mesmo capaz de amá-lo.
"Que tal assim: Vamos arrumar seu quarto e, quando terminarmos, lhe dou alguma
recompensa." Falou Thanos.
"Recompensa?" Pelo sorrisinho travesso de Thanos, eu fazia noção do que ele queria
dizer. Meu rosto se aqueceu intensamente. Eu deveria me horrorizar em me imaginar com
outro, na cama que dividi com Érico. Mas Thanos e eu nunca passamos dos beijos, e a ideia
me agradava profundamente.
Seria uma forma divertida de exorcizar a presença daquele desgraçado, e eu sentia que
era exatamente essa a lógica do Thanos.
"Eu vou buscar a vassoura e uns panos." Tentei devolver o mesmo sorriso devasso, mas
a timidez me venceu e eu fiz uma expressão esquisita que fez Thanos rir.
Enquanto eu chegava na cozinha, a porta de entrada escancarou e bateu na parede,
sobressaltando a nós dois.
O primo do Thanos correu para dentro, com os olhos enormes e suor vertendo pelo
rosto. Ele se jogou no Thanos e agarrou os braços dele.
"Escondam-se. Vocês dois. Escondam-se no armário." Falou ele, arfando como se
tivesse corrido uma maratona.
"O que houve?" Perguntou Thanos.
"O pergaminho. Meu pai. Não posso explicar." Lúcio nos puxou pelo braço e jogou no
chão, atrás do sofá. "Entrem aí. Não respirem."
Confuso e assustado, eu me arrastei para baixo do sofá com Thanos e desci a capa da
Dona Cinara, espiando a porta através dos buracos no crochê.
Um turbilhão de fumaça e penas pretas se formou no centro da sala, em frente a um
Lúcio que tremia, pálido e nervoso. Eu inflei os pulmões para gritar e Thanos cobriu minha
boca.
A fumaça esmaeceu e em seu lugar estava um homem musculoso e enorme, o dobro do
tamanho do Lúcio, que já era bem alto. Mas aquele cara não era humano. Seis asas negras
abanavam em suas costas, um longo rabo com ponta de seta brotava da calça de seu conjunto
vermelho, e em sua cabeça haviam grandes chifres escuros, espiralados como os de um
carneiro montês.
Pelas ruguinhas e fios brancos no cabelo preto, o cara devia ter uns cinquenta anos, e
não parecia nada, nada feliz.
"Onde ele está?" Sua voz rouca ecoava como se fossem várias vozes em coro.
"Não sei do pergaminho, papai. Sumiu. O vento deve ter..."
"Estou falando do Incubus!" A sala estremeceu. "Eu sei que você transformou mais um.
Me entregue ele."
Lúcio engoliu seco. A mão de Thanos tremia sobre a minha boca, cada vez mais fria.
"O que vai fazer com ele?" Perguntou Lúcio.
"Vou dissolver a alma, como disse que faria, após o último! Faz ideia da dificuldade em
elaborar cada pergaminho? Eu, Lúcifer, incapaz de ampliar meu exército porque meu filho
incompetente insiste em multiplicar seu puteiro particular!"
Eu arregalei os olhos. Lúcifer? Tipo, o Lúcifer, aquele da Bíblia? Lúcifer, o cara que
governava o inferno? Eu nunca acreditei em religiões, mas pelo chacoalhar do rabo e bater
violento das seis asas em suas costas, aquilo não podia ser um cosplay.
"Eu não sei onde ele está, papai." Lúcio ergueu as mãos, protegendo-se do... pai dele?
O quê?
Lúcifer bateu o pé no chão, fazendo sacudir as lâmpadas e levantar toda a poeira do
chão.
A poeira entrou no meu nariz, que começou a coçar. Ah meu Deus. Eu torci meu nariz,
e a coceira só aumentou.
"Quero aquele incubus no nosso palácio o quanto antes. Os anjos estão inquietos.
Preciso arrancar a essência do seu brinquedinho e transferir a um soldado decente. Ouviu?" Ele
rugiu a última palavra.
"Sim, papai." Lúcio se encolheu contra a parede, olhando baixo.
"E desmanche seu disfarce, quando falar comigo." Lúcifer estalou os dedos, e as
mesmas asas, rabo e chifres apareceram no corpo de Lúcio, embora levemente menores. "Não
sei o que te ocupa tanto, no plano dos inferiores, mas comece a agir como o príncipe que você
é!"
Lúcio baixou a cabeça e espremeu os punhos, rangendo os dentes.
"Sim, papai."
"Me entregue o incubus. Não pedirei de novo." Lúcifer estalou os dedos de novo, e o
turbilhão de fumaça retornou por alguns segundos e desapareceu, levando-o consigo.
No segundo em que ele desapareceu, eu espirrei na mão do Thanos. Droga. Oh, bem,
pelo menos não morremos.
Lúcio deslizou as costas pela parede, dando um longo suspiro. Logo depois ele
recuperou a postura e sorriu para nós, alisando o cabelo para trás, pelo meio dos chifres.
"Foi bem mais tranquilo do que eu havia imaginado."
Thanos soltou minha boca, limpou a mão na calça e se arrastou para fora.
"Lúcifer. Lúcifer! Seu pai é a porra do Lúcifer!" Thanos agarrou Lúcio pela gola e
bateu ele contra a parede, distorcendo o rosto em uma expressão furiosa.
"Pensei que fosse óbvio!" Ele devolveu.
Eu me arrastei às pressas e corri até Thanos, segurando seu pulso quando ele já se
preparava para fazer uma besteira.
"Me solta, eu vou arrebentar esse imbecil!" O grito de Thanos me assustou. Ele nunca
gritou comigo.
Eu recuei, com o peito dolorido e os olhos molhados. Thanos soltou Lúcio e veio me
abraçar, pedindo mil desculpas. Eu até deixei, mas a avalanche de acontecimentos estava sendo
demais para mim. Eu solucei e deixei as lágrimas virem, sentindo minha pressão despencar.
As fotos com o Érico, depois Lúcifer na minha sala, depois Lúcio sendo filho dele... E
ainda assim a parte mais devastadora estava por vir.
Com as mãos tremendo, lentamente eu ergui os braços e removi o chapéu da cabeça do
Thanos, derrubando-o para trás.
As lágrimas vieram com ainda mais força. Chifres. Um pequeno par de chifres pretos
brotava de seus cabelos loiros, como os de um carneirinho.
"Foi tudo mentira?" Eu fitei o olhar aterrorizado e choroso do Thanos e minha visão
borrou.
Tudo ao meu redor se escureceu.
Capítulo 10
Miguel

Eu abri os olhos para o teto do meu quarto, e logo me lembrei do pesadelo horrível que
eu tive. Fotos do Érico por toda a parte, Lúcifer estremecendo minha sala, e Thanos se
revelando um demônio.
Um toque no pescoço me fez engasgar em susto. Thanos estava deitado ao meu lado.
"Você está melhor?" Ele perguntou.
Eu ergui os olhos até o topo da cabeça dele, e uma lágrima desceu ao longo do meu
nariz. Era verdade, mesmo.
Contendo uma crise de choro, eu ergui a mão até aquelas coisas. Os olhos de Thanos
acompanharam meu movimento hesitante mas, assim como quando tirei seu chapéu, ele não
tentou me impedir.
Eu deslizei os dedos por um dos chifres. Era muito duro, áspero e frio. Eu desci até a
base, confirmando que ele surgia da pele, provavelmente ligado ao crânio. No fundo eu queria
acreditar que fosse uma tiara, mas realmente não era.
"Deixa eu ver o resto." Pedi.
"O resto?" Thanos virou na cama, ficando de frente para mim. Seu olhar tremulava,
mas eu não entendia o medo dele. Eu quem deveria estar aterrorizado. O demônio era ele, não
eu.
Talvez fosse o estado de choque, mas eu sentia apenas curiosidade e um pouco de raiva.
"Seu rabo e asas. Você é como eles, não é?"
Thanos suspirou, e levantou da cama. "Sou um incubus há pouco tempo, não sei se
posso brotar asas, mas..."
Thanos soltou os botões e as largas calças jeans cederam aos tornozelos. Ele virou de
costas, revelando uma longa cauda que escapava por um furo na cueca branca.
Eu sentei para observar aquela coisa, que Thanos abanava para demonstrar que era de
verdade. Meu senso comum me mandava gritar, arremessar coisas e ligar para um exorcista,
mas eu só conseguia pensar que, hum, a bunda do Thanos era mais gostosa do que eu
imaginava.
Quando estiquei a mão para tocar a cauda, Thanos contraiu os ombros, enrolou a cauda
da perna e subiu as calças, num movimento rápido.
"Se nunca mais quiser me ver, eu entendo." Falou Thanos.
"Você tem poderes, também?" Eu já não sabia se estava curioso, se queria questioná-lo
por desconfiança, ou se simplesmente havia enlouquecido.
Thanos deitou ao meu lado como antes, sobre os lençóis brancos e limpos que ele
provavelmente havia arrumado para mim.
"Fui transformado um dia antes de te conhecer, eu não sei." Thanos torceu o lábio,
talvez vasculhando a memória, talvez escolhendo como me enganar.
"Thanos, por sua culpa Lúcifer quebrou meus bibelôs importados e meu melhor amigo
está transando com o príncipe do inferno. Você pode responder melhor que isso."
Thanos enterrou a cara no travesseiro. "Eu te enfeiticei, tá bom? Não foi de propósito.
Eu consertei as coisas assim que descobri como. Ok, eu deixei você se esfregar em mim um
pouquinho mais, mas te desenfeiticei no mesmo dia, eu juro."
Eu abri a boca, em choque. A memória da primeira semana voltou com força, e tudo
começou a fazer sentido.
"Seu... seu safado!" Eu apertei a orelha dele, o fazendo olhar para mim. "Eu pensei em
você por uma semana inteira, e não foi tipo 'ah, que cara bonito eu beijei na festa'. Não! Uma
semana inteira tendo dez ereções por dia, a maioria durante a aula! Eu passava mais tempo no
banheiro da faculdade do que..."
Quando percebi as besteiras que estava falando, meu rosto queimou de vergonha e eu
calei a boca.
Inicialmente assustado, Thanos relaxou os músculos e esboçou um sorriso.
"Eu também pensei em você. Pensei de um jeito normal, claro, mas eu voltei praquela
boate horrorosa por um motivo."
Thanos corou suavemente, e qualquer traço de raiva desapareceu de mim.
"Fico feliz em ter voltado lá, também." Eu me aproximei e roçei meus lábios nos dele.
"Não esconda mais nada de mim."
Ao invés de responder, Thanos se virou para cima, desviando os lábios dos meus.
"Você têm aula amanhã, e eu preciso ter uma longa conversa com o Lúcio. É melhor
dormirmos."
Eu murchei os lábios, frustrado. Depois de tudo o que aconteceu, Thanos não ia nem
contar por que Lúcifer queria a alma dele? Ele pensava que poderia me desconversar e dormir?
Eu parecia ser tão bonzinho assim?
"Quero mexer na sua cauda." Falei. Pelo menos essa migalha eu merecia ter.
Thanos reabriu os olhos num instante e me fitou com o canto do olhar. "Não."
O nervosismo dele apemas me atiçou. "Por favor."
Thanos pensou por alguns segundos e bufou, descendo as calças e virando de bruços.
Ele abraçou o travesseiro e deitou o rosto nele.
"Não aperte e não tente dobrar." Falou ele, como se eu fosse capaz de machucá-lo.
Ele desenrolou a cauda da perna e a deixou esticar.
Eu resolvi me deixar à vontade, e sentei sobre as coxas de Thanos, com um joelho para
cada lado. Minhas mãos suavam em expectativa e ansiedade enquanto eu aproximava a ponta
dos dedos.
E então eu segurei, apertando perto da ponta triangular.
Thanos estremeceu e arfou contra o travesseiro, mas meu fascínio por aquela coisa me
fez ignorá-lo. A cauda era tão longa quanto as pernas de Thanos, e tinha sua mesma
temperatura corporal. A textura era muito macia e agradável, como um bastão de veludo.
Aos poucos eu consegui relaxar, e quase me acostumar à ideia de que eu estava saindo
com um demônio. Eu segurei próximo à ponta com uma mão, e com a outra eu desci de cima a
baixo ao longo da extensão, brincando com a textura.
Thanos tremia sob mim, os músculos fortes de suas coxas se contraíam e eu podia ouvir
sua respiração abafada.
Heheh, o que aconteceria se eu tocasse a ponta?
Eu subi a mão que mantinha a cauda erguida, até tocar o triângulo final. Eu deslizei
meu polegar sobre a superfície achatada percebendo que era tão aveludada quanto o resto. A
ponta era afiada e dura. Eu girei o indicador sobre ela, sem conseguir dobrar.
Só então percebi o quanto Thanos se debatia, sob mim. Ele ainda estava de cuecas e
com aquele moletom ridículo, e abraçava meu travesseiro com força, pressionando-o contra o
rosto. Eu só podia ver o vermelho em seu pescoço, quase oculto sob as mechas longas.
"Isso é bom?" Perguntei, ainda alisando a longa cauda de cima a baixo. Era viciante
como estourar plástico-bolha. A textura fazia cócegas nas minhas mãos.
Thanos balançou a cabeça, tremendo cada vez mais. Eu ri. Ele não parecia estar
odiando.
Eu baixei os olhos para as nádegas dele e meu rosto aqueceu. Eu queria tocar, mas
Thanos já parecia no limite de sua paciência, e eu ainda queria me vingar por ter me enganado
sobre seu 'primo'.
Discretamente, eu levei a ponta triangular aos meus lábios, e dei uma longa lambida. A
sensação do veludo na minha língua era esquisita, e não tinha gosto de nada. Mas o triângulo
pareceu tremer, me instigando a lamber de novo.
"N-não." Thanos gemeu, arqueando as costas e esfregando as pernas uma na outra.
Eu abri um sorriso travesso, me divertindo demais. Prestes a rir, eu soprei contra a
ponta molhada, fazendo toda a cauda extremecer, como em um arrepio violento.
Thanos gemeu alto, e ainda mais quando eu voltei a lamber, passando a língua pela
borda afiada.
Eu me endireitei sobre as coxas dele, antes que ele percebesse meu corpo reagindo. Os
gemidos desesperados de Thanos causavam ondas de calor dentro de mim. O que aconteceria
se eu colocasse a cauda dentro da boca?
Tão excitado quanto me divertindo, eu abri a boca e puxei a ponta para dentro.
Antes que eu fechasse meus lábios, Thanos arrancou a cauda das minhas mãos e girou o
corpo, me derrubando para o lado. Eu nunca vi ele tão vermelho e envergonhado.
Thanos envolveu a cauda nas mãos como uma mãe protegendo o filhote.
"Vai. Dormir." Ele rosnou, ainda estremecendo. Assim que baixei os olhos para a frente
da cueca dele, Thanos virou para o outro lado, soltando um grunhido frustrado.
Eu torci o lábio, levemente indignado, e deitei virando para o lado oposto. Poxa, eu só
estava brincando.
Quando eu estava quase apagando, Thanos virou para mim e me abraçou, de conchinha.
Um sorriso enorme se formou nos meus lábios, e eu fingi continuar dormindo. Não demorou
muito para que a respiração quente de Thanos e suas pernas laçadas nas minhas me
adormecessem em um sono confortável e feliz.
Capítulo 11
Miguel

Foram dois dias de trabalho intenso após o fim das aulas, mas a casa finalmente estava
limpa.
Eu sequei o suor da testa e joguei o pano na pia, apreciando o reluzir do meu fogão de
oito bocas e da mesa metálica onde eu costumava passar horas inventando pratos. Parecia uma
cozinha daqueles dos programas de culinária. E o melhor: Nenhuma foto, bilhetinho ou fio de
cabelo do Érico em lugar algum. Thanos inspecionou cada canto e se livrou de tudo, como um
detetive profissional.
Minha casa finalmente era só minha, e a sensação era bem menos agoniante do que eu
esperava. Na verdade, eu não conseguia parar de sorrir.
Thanos não parecia tão tranquilo.
"Três pias. Vinte e oito panelas. Um forno de pizza!" Thanos circulou os olhos pela
cozinha, ainda embasbacado com a quantidade de equipamentos.
"Meus pais quiseram me agradar." Sorri, acariciando meu liquidificador profissional
como um filho que eu enfim reencontrei. "Mas eu larguei a Faculdade de Gastronomia. Preciso
me tornar alguém mais sério."
Thanos sentou na bancada da pia, abanando a cauda por um furo atrás da calça. "O que
uma coisa tem a ver com outra?" Ele me perguntou.
"Cozinhar é estúpido, não é? Érico insistiu numa carreira mais respeitável. E Direito
nem é tão ruim assim. Eu talvez seja um bom advogado, um dia."
Os lábios de Thanos se afinaram em uma linha. Ele balançou as pernas, pensativo.
Droga, talvez eu devesse mesmo vender essas coisas. Ele devia achar tudo isso tão ridículo.
"Quando eu era criança, minha mãe sempre fazia meus bolos de aniversário." Ele disse.
"Bolo de morango, daqueles com camadas de leite condensado e chantili, e um monte de
merengue e chocolate granulado em cima. Era meu bolo favorito."
Eu franzi a testa, sem saber onde ele queria chegar.
"Eu adoraria provar um bolo assim de novo" Ele continuou. "Você sabe fazer?"
"Se eu sei fazer?" Eu sorri com o canto do lábio e segurei os lados da cintura,
orgulhoso. "Eu era o melhor da turma, nas aulas de sobremesa. Faço qualquer bolo de olhos
vendados."
“Então faça.” Thanos riu e enroscou a cauda no meu pulso, me puxando para seus
braços. "Eu mal posso esperar."
Eu deixei ele me abraçar, e aninhei a cabeça em seu peito, sentindo a ansiedade me
engolir. Ele queria mesmo que eu cozinhasse pra ele? Érico sempre brigava pelo tempo que eu
passava na cozinha. Ele ganhava o bastante para vivermos de tele-entrega e restaurantes.
Droga, quando eu esqueceria aquele desgraçado?
"Vamos buscar as compras na sua casa, e passar no mercadinho aqui perto. Farei o
melhor bolo que você já provou."
Thanos concordou com um sorriso sincero, mesmo ao perceber o quanto minhas mãos
tremiam.

****

A visita ao mercadinho ocorreu sem transtornos. O lugar era pequeno demais para
Thanos agarrar minha bunda, mas ele bem que tentou quando me abaixei para alcançar os
morangos.
Não sei se foi intencional da parte do Thanos, mas quando voltamos para minha casa eu
já estava feliz e tranquilo.
"Conseguiu encontrar o Lúcio?" Perguntei, enquanto organizava as latas sobre a mesa.
"Rosier não para de falar nele. Primeiro brigava comigo por tê-lo chamado ao parque, e agora
por não saber onde ele está."
"Desapareceu. Deve estar no tal palácio dele. No inferno." Thanos suspirou. "Você está
lidando bem demais com essa situação."
"Você não é uma pessoa ruim, Thanos. Se Lúcio é seu amigo, tenho certeza que tudo
vai se resolver." Falei, encontrando o tubo de chantili e o pacote de morangos. As frutas
reluziam vermelhas e frescas sob o filme plástico.
"Eu não seria tão otimista."
Eu fui até Thanos e cutuquei um morango em seus lábios rosados e lindos. "Não
entendo o quê você viu em mim, Thanos, mas eu quero corresponder seus sentimentos."
Thanos mordeu um cantinho do morango e eu mordi o outro, dando-lhe um beijinho
adocicado. "Você ainda tem doze dias, mas acho que vencerá sua aposta ainda antes."
Minhas palavras fizeram Thanos estremecer. Eu engoli minha metade do morango e
lambi os lábios, assistindo ele fazer o mesmo. Thanos era tão fofo.
Eu esperei Thanos me abraçar e cobrir de beijos, como ele fazia ao ser provocado, mas
Thanos se manteve estático. Será que falei algo errado?
Oh, bem, já eram quase dez da noite. Eu precisava pelo menos por o bolo para assar.
"Por quê Lúcifer quer te levar de volta, afinal?" Eu medi a farinha e o fermento e bati
com com os ovos e o açúcar, numa tigela. O aroma doce me encheu de nostalgia. "Digo, eu já
entendi que Lúcio te transformou, mas nunca ouvi falar em outros demônios morando entre os
vivos. Como você veio parar aqui?"
"Eu... eu tenho assuntos a resolver."
"Assuntos pendentes, tipo nos filmes? Você resolve seu problema e vira um anjo, ou
coisa assim?"
Thanos demorou alguns segundos. "Precisa de ajuda com o bolo?"
Um arrepio de nervosismo esfriou minha espinha. "Por que mudou de assunto? Você
pretende me abandonar, é isso?"
Thanos estremeceu. "Não, claro que não! Como você disse, tudo vai se resolver."
Em meu nervosismo, o batedor escorregou da minha mão e uma gota de massa
respingou no meu rosto. Eu devia estar sendo louco. Thanos era um incubus e eu aqui, agindo
naturalmente. Eu não podia nem determinar a idade dele, ou por que ele foi parar no inferno, e
também não tinha coragem de perguntar.
Enquanto eu batia o bolo na tigela sobre a mesa, Thanos envolveu os braços no meu
peito, por trás de mim. O corpo dele pressionou contra minhas costas me fazendo arfar.
"Eu vou dar um jeito. Prometo." Thanos inclinou o pescoço sobre meu ombro e lambeu
a gota no meu rosto.
Eu virei o pescoço para beijá-lo, e ele se afastou.
"Está gostoso?" Perguntei, meio sem graça.
"Uma delícia." Thanos desceu as mãos até minha cintura e subiu minha camisa,
alisando diretamente a minha pele. "Não quer ajuda mesmo?"
Eu gemi baixinho, prensado entre a borda da mesa e o quadril dele. "Você podia bater
pra mim." Eu avermelhei. "o bolo, quero dizer."
Ao invés de se afastar, Thanos tomou o batedor e a tigela das minhas mãos e passou a
mexer de um jeito desajeitado, com o torso ainda colado às minhas costas.
Ah, meu Deus. Meu sangue parecia prestes a ferver. Por algum motivo Thanos nunca
tentou nada comigo, e isso sensibilizava meus nervos a cada dia.
"Mais rápido, com delicadeza." Instruí, ciente do duplo sentido em tudo o que eu
falava.
Thanos girou o batedor rapidamente contra a tigela, revirando a massa amarelada e
inundando a cozinha num aroma delicioso de baunilha. O movimento agitava seu corpo atrás
de mim, roçando sua virilha contra a minha bunda.
"Assim está bom?" Perguntou ele.
"Continua." Eu fechei os olhos, sem saber para o que estava respondendo.
Thanos respirou pesado no esforço de bater o bolo e me prensou ainda mais, fazendo
meu volume esfregar contra a borda da mesa. Algo duro cutucava a base das minhas costas. O
safado estava mesmo me torturando.
"Já chega." Miei, deitando os cotovelos na mesa. Meu corpo inflamava, e minhas
pernas começavam a perder as forças.
Thanos soltou a tigela mais adiante, mas continuou atrás de mim. Ele desceu as mãos
pelo meu quadril e apertou minhas nádegas, empinando-as até algo duro roçar entre elas,
através das nossas calças.
Eu gemi alto e deitei a cabeça nas mãos, rebolando contra ele. Não sei como chegamos
nisso, mas eu queria. Ah, meu Deus, como eu queria.
Enquanto se esfregava atrás de mim, Thanos deitou o peito nas minhas costas e tocou
os lábios no meu ouvido.
"Não mexa mais na minha cauda." Ele sussurrou, e se afastou de mim logo depois.
Com os olhos do tamanho da cara e o volume nas calças enrijecido como pedra, eu
assisti Thanos deixar a cozinha, segurando-se para não rir.
Mas que filho da puta.
Capítulo 12
Thanos

Assim que deixei a cozinha eu disparei para fora da casa e continuei correndo, só
parando para descansar duas quadras adiante.
Com o rosto queimando e o corpo ainda mais quente, eu sequei o suor que vertia da
minha testa, arfando pesado e lutando para pensar em qualquer coisa, qualquer coisa que não
fosse Miguel suplicando por mim, rebolando sua bundinha perfeita no meu pau.
Acho que consegui disfarçar bem, mas puta merda, eu quase não resisti dessa vez.
"Lúcio!" Eu gritei para o ar, vagando pela rua vazia que nem um louco. "Lúcio, eu sei
que você pode me ouvir! Apareça, seu desgraçado!"
Para minha surpresa, um tornado negro realmente se formou logo adiante, num espaço
estreito entre dois prédios.
"Não tenho tempo agora!" Falou Lúcio, apressadamente. "Você tem dez segundos."
"Você precisa cancelar a maldição." Falei, ainda tentando me acalmar. "Não posso
matar ele. Você sabe que... que roupas são essas?" Perguntei, percebendo um casaco vermelho
cravejado de distintivos dourados e faixas, botas de couro preto e um quepe militar com
buracos para os chifres. Ele parecia quase respeitável.
"Estou tentando limpar sua barra, então me agradeça." Sussurrou Lúcio, como se
alguém fosse nos ouvir. "Papai me encarregou como Sub-General. Vou agradá-lo um tempo, e
ele vai esquecer essa história."
Eu arqueei uma sobrancelha, surpreso. O príncipe arrogante, me ajudando?
"Miguel tá louco por mim, o quê eu faço? Outro dia foi minha cauda, e hoje... você
precisa resolver isso."
Lúcio baixou o olhar para a barraca armada entre as minhas pernas e eriçou o lábio. "Se
você me invocou pra resolver isso aí, vou quebrar seu pescoço."
Eu corei e cobri minha ereção com as mãos. "Você sabe do quê estou falando! Um
único beijo de amor, e ele morre! Conserte isso!"
Lúcio andou em círculos, quase histérico. "Escuta, o ritual é complicado, tem partes
que..." Lúcio segurou a cabeça e gemeu. "Ele percebeu, preciso ir."
"Não, espera!" Eu estiquei a mão no turbilhão escuro, mas já era tarde. Lúcio havia
desaparecido.
Eu chutei o cascalho do chão, urrando de raiva. Maldição!

****

Quando voltei para a casa, um cheiro morno e delicioso de bolo penetrou minhas
narinas, me fazendo salivar. Era a primeira vez que cozinhavam qualquer coisa pra mim, e
Miguel acreditou mesmo que eu tive uma mãe que me fazia bolo, e que não era uma louca
drogada que foi presa aos meus dois anos de idade, me fazendo ir para um orfanato.
Por mais emocionado que eu estivesse, não podia parecer empolgado demais. Miguel
pensaria que eu estava fingindo.
"Você voltou." Miguel sorriu e correu para os meus braços. "O bolo está assando, mas
só vou decorar amanhã." Ele bocejou. "São duas da manhã."
A tranquilidade de Miguel comigo me fez torcer o lábio, desconfiado. No lugar dele, eu
estaria jogando coisas pela casa toda.
"Me desculpe por antes." Falei, afagando seus cabelos macios e sentindo o aroma doce
de baunilha impregnado em suas roupas.
"Não estou nada chateado, pelo contrário." Miguel beijou meu pescoço, e eu senti seus
lábios formarem um sorriso. "Você não deveria mexer com meu lado vingativo."
Meu sangue gelou.
"Vamos dormir, tudo bem?" Falei, com um sorriso nervoso.
"Vai na frente, preciso terminar a louça." O sorrisinho fino de Miguel me causou um
arrepio.
Assim que entrei no quarto eu apaguei a luz, me joguei no colchão macio e virei para o
teto, exausto e pensativo. Se Miguel gostasse de mim ainda mais, meus beijos acabariam por
matá-lo. Se eu continuasse o evitando, ele ficaria ressentido. Por um lado, era bom que ele
afastasse. Mas meu peito doía só de imaginá-lo decepcionado comigo.
Eu não sabia o quanto Miguel gostava de mim, mas o que eu mesmo sentia? A sensação
de querer protegê-lo e de sorrir só de ouví-lo dizer meu nome eram estranhas e novas. Ainda
assim, em nenhum cenário possível nós continuaríamos juntos, e faltavam apenas doze dias
para a inevitável separação. Eu não podia mesmo fazer nada?
A dor no peito me agoniava. Eu precisava resolver isso em partes. Se Lúcio não
estivesse mentindo, ele resolveria o problema com o pai dele, e poderia anular minha
maldição. Eu precisava apenas não beijar Miguel até tudo se esclarecer.
A porta do quarto se abriu, e a silhueta de Miguel apareceu contra a luz do corredor.
Eu apertei os olhos, me acostumando à claridade. Miguel estava nu? Não, ele vestia
cuecas, mas havia um objeto longo e grosso na mão dele, e seu sorriso estremecia meus ossos.
Um passo à frente do outro, Miguel se aproximou de mim, rindo macio e agitando o
objeto no ar. Um tubo de alguma coisa.
Eu recuei na cama, até sentar contra a cabeceira. "Miguel, vamos conversar sobre antes,
tudo bem?"
Miguel engatinhou sobre mim, e não pude evitar que meu corpo reagisse. Era a
primeira vez que o via sem roupas. Suas costas eram firmes e um pouco musculosas, formando
um vinco na linha da coluna.
"Vamos ver quem provoca quem, dessa vez." Miguel lambeu os lábios e balançou o
tubo em frente ao meu rosto. Chantili?
Eu suei frio, tentando me lembrar quando o enfeiticei de novo, por acidente. Não, eu
definitivamente não pisquei para ele. Miguel pressionava seu pau ereto nos meus joelhos por
conta própria.
Eu temi que Miguel tentasse me beijar, mas fiquei curioso demais para mandá-lo parar.
Independente da minha falta de reação, Miguel se manteve parado sobre mim, e eu
percebi que tremia. Preocupado, eu procurei o interruptor do abajur e acendi.
O sorriso de Miguel havia desaparecido. Ele me encarava tão vermelho e embaraçado
que eu estourei de rir imediatamente.
"Não banque o dominador psicopata se é tímido demais pra isso!" Falei, tentando parar
de rir, mas a risada escapava pelos meus lábios fechados. A cara de Miguel estava
inesquecível.
Petrificado sobre mim como um coelho assustado, Miguel deixou o tubo cair no
colchão e murchou o corpo. "Eu treinei minhas frases no banheiro, mas chegou na hora e eu..."
Ele deitou a cabeça no meu peito, como se prestes a chorar. "Desculpa."
Eu afaguei o cabelo do Miguel, profundamente aliviado. Esse realmente era o Miguel
que eu conhecia, e por quem eu... nutria sentimentos que não sabia o nome.
Mesmo aliviado, uma parte de mim gritava em profunda decepção. Chantili. Havia uma
criatividade em Miguel que eu adoraria explorar, se pudesse.
"Não estou bravo, só um pouco surpreso." Falei, acariciando o pescoço de Miguel e
apreciando seus arrepios. "Teria sido divertido."
Miguel enfim relaxou o bastante para deitar ao meu lado. Ele escondeu a ereção com o
travesseiro e me olhou com um tristeza.
"Tudo bem, eu sei que foi estúpido." Miguel forçou um sorriso. "Obrigado por não
brigar comigo."
Eu engoli minhas risadas, subindo e descendo os dedos pelo peito nu e liso de Miguel.
Como eu era um idiota. Isso não era apenas sobre fazer sexo, não é?
Deitado na cama, eu torci o corpo e me livrei do moletom e da camiseta por baixo.
Foda-se a maldição. Eu saberia me controlar.
"O quê está fazendo?" Perguntou Miguel.
Eu peguei o tubo e esguichei um arco de chantili no meio do meu peito, estremecendo
para a sensação gelada.
"Oh, droga, me sujei de chantili. Como sou desastrado." Falei, entoando a voz como um
ator dramático.
Adoravelmente confuso, Miguel subiu os olhos da listra de chantili para o meu rosto.
Ele sorriu ao entender onde eu queria chegar.
"Precisamos dar um jeito nisso." disse ele, ficando de quatro e engatinhando sobre mim.
Ele acariciou meu peito com os dedos antes de descer com o rosto.
Miguel pôs a língua para fora e limpou toda listra branca com uma longa lambida.
O calor e umidade da língua de Miguel me fez estremecer. Eu mordi o lábio para não
gemer e descobri que gostava, e muito, de vê-lo me lamber como um gatinho faminto.
Após mais duas lambidas, quando eu já estava bem limpo, Miguel ergueu o rosto e
engoliu o chantili bem devagar, me olhando nos olhos.
Eu teria que ser o cara mais hétero do planeta para não endurecer no mesmo instante.
Quando percebi eu já estava apertando o tubo de novo, criando uma segunda linha que ia do
meio do meu peito ao pescoço.
Miguel sorriu, cada vez mais à vontade em me tocar. Percebi que ele nunca havia me
visto sem camisa, e parecia gostar dos meus músculos pouco pronunciados, mas firmes. Às
vezes ele descia os olhos para o triângulo de pêlos loiros na borda da minha calça, mas seu
interesse, claro, estava no creme branco e doce.
Miguel subiu a língua pela parte menos sensível do meu peito, mas meu pescoço era
mais delicado. Quando Miguel me lambeu ali, eu gemi alto. Ele percebeu e se manteve na
curva entre o ombro e o pescoço, me beijando e chupando muito depois de já ter me limpado.
Com certeza eu ficaria marcado, mas foda-se. Eu abracei as costas despidas de Miguel e
respirei pesado, deixando que continuasse.
Desde que ele não beijasse meus lábios, ficaria tudo bem.
Quando percebi, Miguel já estava totalmente sobre mim, ajoelhado de cada lado da
minha cintura. Eu ergui o tubo sobre meu peito outra vez, mas ele tomou o chantili das minhas
mãos.
Com um sorriso cada vez mais devasso, Miguel fez duas espirais brancas sobre meus
mamilos.
Estremecendo para o frio e para o que estava por vir, eu engoli seco. Ok, a situação
estava meio que saindo do meu controle.
"Escuta, Miguel, acho que nós já--ah!" Miguel não só lambeu meu mamilo, como
mordiscou de leve. Por milagre eu consegui apenas gemer, porquê eu teria gritado. Meus
nervos se afloravam mais e mais a cada segundo, e eu sentia o volume do Miguel contra a
minha coxa sempre que ele se abaixava.
Eu precisava mandá-lo parar, mas puta que o pariu, aquela língua era ágil. Meu pau
latejava violentamente dentro das calças, implorando para ser solto.
Sempre que eu abria a boca para mandar Miguel parar, ele ia de um mamilo a outro e
arranhava meus lados com a força exata para me enlouquecer. Eu cravei as unhas os lençóis,
tentando falar algo que não fossem gemidos vergonhosos. Nós não podíamos ir adiante, eu não
podia deixar Miguel se apaixonar por mim.
Espremendo os olhos de prazer, eu ouvi o tubo de spray chiar, esfriando minha barriga.
Eu forcei uma fresta dos meus olhos a se abrir, tremendo apesar do calor febril na minha pele.
Miguel lambeu os lábios melados de creme, obviamente adorando minhas reações.
Uma nova listra branca ondulava pelos meus músculos abdominais e terminava logo abaixo do
umbigo, onde meus pêlos começavam.
Com um sorriso provocativo, Miguel cruzou seu olhar com o meu e engatinhou para
trás. Ele baixou o rosto e chupou meu primeiro gomo de músculo, fazendo um som molhado
de beijo.
Eu apertei a mão na boca, segurando um gemido. Se ele fosse fazer isso nos quatro
gominhos, eu iria gozar. Minha barriga era sensível demais.
Miguel seguiu lambendo os músculos da minha barriga, beijando e chupando as linhas
de chantili. Ele desceu uma mão sobre a minha calça e massageou centímetros ao lado da
minha ereção.
Eu arqueei as costas, vermelho e respirando cada vez mais raso. Queria aquela mão só
um pouquinho para o lado, mexendo no meu pau, mas era óbvio que Miguel queria me
torturar.
Aquela era a vingança dele, afinal.
Percebendo minha ansiedade, Miguel chegou ao último músculo esbranquiçado e
chupou o chantili, terminando com uma mordida. A mão dele moveu-se pertinho de onde meu
membro pulsava, esmagado sob a cueca.
"Faz. Por favor, faz." Eu supliquei, para minha própria humilhação.
Miguel riu travessamente, esquecendo qualquer timidez. Eu podia ver em seus olhos o
quanto se sentia libertado e feliz.
"Você acha que vai ser tão fácil?" Perguntou ele, desabotoando minhas calças. "Você
esfrega minha bunda, me faz arfar de tesão, e vai embora. Precisei me masturbar no banheiro,
sabia? Me masturbei pensando em como você iria pagar, e gozei tendo uma ideia muito
gostosa."
A confiança do Miguel ampliava tão rápido que era assustador e excitante. Eu deitei a
cabeça sobre as mãos e tentei relaxar os músculos, decidindo ver até onde ele iria.
Miguel desceu as minhas calças até os pés e jogou no chão, me deixando apenas de
cueca. Ele se ajoelhou entre as minhas pernas e segurou meu pau através do tecido. Seus olhos
brilhavam atentos, como se ele quisesse memorizar aquele momento.
Eu gemi macio, arqueando o quadril contra a mão dele, tentando que ele pelo menos me
masturbasse. Estava muito perto de gozar, não queria que fosse de um jeito humilhante.
Mas Miguel não me masturbou, ele soltou meu pau e desceu minha cueca devagar,
saboreando a visão.
Meu pau saltou pra fora, extremamente duro. Era maior que a média, e um tanto grosso.
A ponta avermelhada brilhava em pré-gozo, pulsando em expectativa enquanto eu tremia,
contendo meu orgasmo. Quando Miguel pararia de me estudar, e me entregaria o que eu
precisava?
Miguel me alcançou o tubo de chantili, com o sorriso mais devasso até então. "Faz uma
banana split pra mim."
Eu mordi o lábio e obedeci, traçando uma listra de chantili ao longo do meu pau e
espiralando ao chegar na glande, como num sorvete de casquinha.
"Tá bom assim?" Eu perguntei, espremendo as pernas uma na outra para não gozar. Os
olhos de Miguel no meu corpo nu me enlouqueciam.
Assim que ele cansasse dessa loucura, eu comeria sua bundinha perfeita por horas e
horas.
Sorrindo satisfeito, Miguel segurou a base do meu pau e desceu o rosto. Ele deu uma
longa lambida ao longo da base e engoliu o chantili devagar, me olhando nos olhos.
"Pode gozar, se quiser. Vou limpar tudinho." Ele lambeu os lábios esbranquiçados, me
provocando.
"E perder um boquete desses?" Perguntei, com a voz tremida.
Miguel pareceu gostar da resposta, porque me lambeu de novo e passou a língua pela
glande, chupando a grande bola de chantili e me mordiscando ao redor do orifício da ponta.
Ele também tremia de ansiedade, como se implorasse pra sentir meu gozo naqueles lábios cor
de rosa.
Eu gemi e gritei, me torcendo na cama enquanto assistia meu pau sumir e reaparecer de
dentro daqueles lábios ágeis. Minha glande roçava na textura do céu da boca do Miguel e batia
no fundo da garganta, indo e vindo sobre sua língua acelerada.
"Tô quase." Avisei, tendo espasmos.
Miguel curvou os lábios ao redor do meu pau, sorrindo. Ele afastou o rosto antes que eu
gozasse e agarrou minha cauda, com uma expressão de vitória.
"Você vai gozar assim."
Eu arregalei os olhos. "Você não pode estar falan... Aah!"
Segurando minha cauda pro alto, Miguel envolveu os dedos da outra mão e subiu e
desceu, firme e rápido como se me masturbasse.
Eu gemi como uma moça, tremendo e sem conseguir mandá-lo parar. Mas que
desgraçado, de novo isso? Ele não podia...
Miguel desceu a mão cada vez mais, até massagear a base, bem perto da minha entrada.
Eu gritei de prazer e mordi o lábio, tentando não me envergonhar ainda mais. Ele ria da minha
reação exagerada, como se fosse uma brincadeira. Não tinha como imaginar o que eu
realmente sentia.
As ondas de prazer eletrizavam minha espinha, passando direto pela minha bunda. Eu
odiava isso. Eu deveria estar arrombando aquela bundinha gostosa do Miguel, e não arfando e
implorando pelo contrário.
Miguel lambeu os lábios, passando a observar minha reação lá embaixo. Pelo sorriso
dele ao ver o quanto abri as pernas, ele já devia ter percebido o que estava acontecendo.
"Você é uma delícia." Falou ele, e desceu a mão ainda mais, tocando a ponta dos dedos
dentro das minhas nádegas.
Só o toque me fez gemer longamente. Eu enterrei as unhas no lençol, extasiado e
desejando demais ser preenchido por ele. Mas eu nunca dei pra nenhum cara, eu era ativo e
sempre fui!
Ainda assim, meu corpo pareceu ter vida própria. Eu encostei os joelhos no peito,
fitando o olhar desejoso de Miguel enquanto minhas pupilas dilatavam em expectativa. Mas
ele apenas girava o dedo pelo lado de fora, apreciando as pulsadas que isso causava no meu
pau.
"E-eu nunca fiz assim." Falei, envergonhado pelo tremor na minha voz, e pela situação
toda.
Miguel sorriu como se ganhasse uma aposta. Ele mordeu o lábio de baixo. "Tem
lubrificante na gavetinha da estante. Você decide como vamos usar."
Vermelho e respirando raso, eu me estiquei para abrir a gaveta.
Enquanto pegava o sachê, Miguel enterrou a pontinha do dedo, me fazendo tremer.
Pelo volume pulsante na cueca dele, ele já havia determinado os rumos daquela noite. E a
sensação elétrica e quente latejando pela minha bunda me deixava à beira de implorar.
Eu alcancei o sachê a ele, como um putinho bem dominado. Se vergonha matasse, eu já
teria morrido dez vezes. "Não me machuca muito."
"Do jeito que você está, não vou nem precisar te preparar." Miguel ajeitou-se entre as
minhas nádegas e desceu a cueca, revelando um pau clarinho de ponta rosada. Era um pouco
grande, mas não tanto quanto o meu.
Eu abracei meus joelhos, querendo chorar de vexame enquanto ele abria o sachê e
espalhava na mão. mesmo sem estímulo na cauda eu ainda pulsava estranho lá atrás, como se
estivesse prestes a gozar, mas precisasse ser preenchido pra isso.
Miguel espalhou o lubrificante no próprio pau, assistindo minha ansiedade com a
alegria de quem estava em um parque de diversões.
"Pede." Ele sorriu malvado.
"Eu não vou pedir nada!" Gritei, vermelho como um tomate.
"Tudo bem. Eu posso gozar apenas te observando nessa posição."
E ele começou se masturbar lentamente, como um psicopata sexual. Maldição, ele
falava sério? Eu duro como uma tora, estremecendo e expondo minha bunda da forma mais
humilhante possível, e ele ainda queria que eu pedisse? Nem pensar.
"Desculpa por antes." Falei, tentando fazer o Miguel não-sádico voltar.
"Eu te desculpo." Miguel acariciou minha nádega com a mão livre, arrancando um
gemidinho obsceno dos meus lábios. "Mas ainda não te ouvi pedir."
Mas que safado. Se ele contasse isso pra alguém, eu me enforcaria.
"Por favor." Sussurrei.
"Por favor o quê?" Ele baixou o pau e esfregou a glande lubrificada na minha bunda.
"...Por favor me come." Eu escondi o rosto com as mãos, queimando de vergonha.
Miguel soltou uma risadinha, também avermelhando enquanto erguia meu quadril.
Uma pressão morna alargou a minha entrada, lentamente. Eu contraí os ombros, me
contendo para não gritar de dor. Eu senti cada centímetro pulsar para dentro e me preencher,
até a virilha do Miguel esquentar minha bunda.
Miguel acariciou minhas coxas esperando eu me acostumar, gemendo de um jeito que
quase me deu um orgasmo. Eu não tinha coragem de ver, mas Miguel devia estar adorando, e
isso me enlouquecia.
"Ah, você é macio lá dentro." Ele ofegou, num tom de voz delicioso. “Você gosta
assim?"
"Não me envergonha ainda mais." Implorei, com as mãos no rosto.
Miguel enfim parou de falar e tirou o pau até metade do caminho. Ele meteu de volta
todo de uma vez, batendo a virilha na minha bunda.
Eu dei um grito daqueles que só existem em filme pornô. Puta merda, isso era bom. Eu
queria mais. Eu queria Miguel me empalando pra sempre.
Miguel continuou indo e vindo, com as mãos firmes no meu quadril. Seus gemidos de
êxtase me excitavam tanto quanto aquele pau quente roçando a minha próstata. Meu corpo
formigava, quente e elétrico ao mesmo tempo.
"Mais rápido." Supliquei, insaciável. Eu espiei por entre os dedos, e vi Miguel
aumentar o ritmo e me arrombar violentamente, fazendo seu pau sumir dentro de mim em sons
úmidos e eróticos.
Meu corpo se contorceu e eu gritei de prazer, gozando um jato intenso sobre a minha
barriga.
Miguel abriu um sorriso cansado e continuou me invadindo com uma virilidade que eu
nunca imaginaria existir nele.
Eu apertei a mão na boca tentando calar meus sons vergonhosos, e pra piorar meu pau
continuava duro. Se Miguel não terminasse logo, eu iria gozar de novo.
E claro que o Miguel percebeu isso, esse completo pervertido.
Sem parar de me comer, Miguel deitou-se sobre mim e me abraçou. Eu o abracei de
volta, laçando os dedos em seus cabelos macios e cheirando a baunilha. Naquela posição ele
me penetrava ainda mais fundo, e eu podia sentir sua respiração errática e quente contra o meu
pescoço.
"Isso é muito bom." Falei, abandonando minha dignidade. Eu queria gozar de novo, e
mostrar pro Miguel o quanto ele era bom em me satisfazer.
Miguel beijou e chupou meu pescoço, e desceu uma mão até o meu pau. Ele mexeu na
glande toda escorregadia de gozo, me fazendo espremer a bunda enquanto gemia seu nome.
Nós dois arfamos no mesmo ritmo e eu logo gozei de novo, descendo arranhões pelas suas
costas.
As mãos do Miguel se cobriram com meu gozo quente. Eu senti ele latejar dentro de
mim, liberando um jato bem lá no fundo. Nós nos abraçamos com força, estremecendo em um
prazer enlouquecedor.
Miguel reduziu o ritmo das investidas, até parar. Quando ele soltou o abraço, eu mal
conseguia respirar.
"Aposto que conseguiria te fazer gozar de novo." Miguel secou o suor da testa e saiu de
mim, apreciando meu pau a meio mastro.
Nublado pelo êxtase e pelo cansaço, eu cobri minha cara com o travesseiro. A vergonha
voltou toda de uma vez.
"Miguel, por tudo o que é sagrado, vai dormir."
Capítulo 13
Miguel

Eu desliguei a esteira elétrica passei a toalha na testa. Duas horas me exercitando na


sala de fitness do Rosier e minha regata ja grudava no meu torso suado. Nojento.
Pelo menos agora eu tinha um incentivo para me manter bonito e forte, e este incentivo
me fazia sorrir como um besta.
Ao perceber que eu havia parado, Rosier desligou a própria esteira. Ele vestia apenas
um shortinho e não havia derramado uma gota de suor. Nada desmanchava seu visual
impecável de bilionário playboy.
"Chega por hoje." Falou ele, se alongando enquanto observava o pôr-do-sol através dos
janelões da mansão. "Que milagre você não ter desistido, Mi. Há quanto tempo não corremos
juntos?"
Eu tentei disfarçar meu sorriso abobado. A noite com Thanos ainda estava fresca na
minha cabeça, e Rosier descobriria facilmente se eu continuasse rindo pro nada.
"Tenho algo para você." Falei, enquanto agachava na minha mochila e revirava os
bolsos. Eu entreguei um pote a ele, com um garfinho.
"O quê é isso?" Ele me perguntou, enquanto abria a tampa. Seus olhos se iluminaram
ao ver o conteúdo, e um cheiro adocicado de baunilha exalou pelo ar. "Bolo! Não acredito. Foi
você quem fez?"
Eu cocei atrás do pescoço, encabulado. "Eu falei que não cozinhava mais, mas Thanos
insistiu tanto, e você nem imagina o quanto ele gostou. Eu não podia deixar de trazer um
pedaço."
Rosier levou um pedaço à boca e gemeu de alegria. O sorriso que ele abriu para mim
me deixou desconfiado.
"O que foi?" Perguntei.
"Esse Thanos é muito mais legal do que eu imaginava." Rosier riu em plena satisfação,
e continuou devorando o bolo, deixando os morangos por último, como ele sempre gostava de
fazer, desde criança. "A pasta americana está uma delícia, mas você não costumava cobrir com
chantili?"
Eu respondi com uma risada, ainda mais embaraçado.
Perceptivo como um falcão, Rosier afinou os olhos pra mim, de um jeito travesso.
"Pode começar a falar mon ami. E não me venha com 'ai, não vou contar nada', porque você
me deve boas fofocas depois do Lúcio."
"Você não pode ainda estar bravo com isso." Dei um soquinho no ombro dele. "Era um
simples encontro duplo. Você transou com ele de novo porque quis."
"Você me fez quebrar minhas próprias regras!" Retrucou Rosier, e eu comemorei
internamente. Uma vez na vida eu consegui desviar o assunto. "Levei o desgraçado pra minha
cama quatro vezes apenas para ele sumir, do nada. Agora eu fico pensando nele, e a culpa
disso é toda sua!"
Eu ri, me sentindo levemente mal pelo Rosier. Nunca vi ele apaixonado por ninguém.
Era fascinante vê-lo pensar em outra pessoa, pra variar.
"Quando eu reencontrá-lo, direi que mandou um beijo." Eu provoquei.
Rosier riu, fingindo desprezo. "Miguel, por favor. Há muitos peixes no mar. Tritões
maravilhosos apenas aguardando um pouquinho da minha mágica noturna." Rosier vasculhou
o bolso, tirando o frasco de imunossupressores e virando dois na boca. Ele guardou o frasco e
sorriu pra mim, inabalável. "Posso ter parado de chamar outros homens desde o Lúcio, mas
não se engane. A vida deve ser vivida como se cada dia fosse o último, porque um dia vai ser."
"Não brinca com isso." Uma sensação amarga pulsou no meu estômago. Não pude
evitar olhar para a cicatriz vertical no peito do Rosier.
Rosier deve ter percebido minha tristeza, porque ele vestiu sua regata.
"Foi uma boa tentativa de distração, Mi, mas não esqueci onde estávamos." Rosier
afinou o sorriso em profundo interesse. "Como estão as coisas com Thanos?"
Eu ri nervosamente. Droga, minha cara era muito fácil de ler.
"Nós... passamos de fase, ontem." Meu rosto se aqueceu.
Rosier se jogou em mim e me abraçou pelos ombros com um sorriso estupidamente
largo. "Quero uma cobertura minuto-a-minuto. Agora."
"Não vou contar nada." Falei, como sempre falava dois minutos antes de contar tudo.
E não é como se eu não quisesse me gabar.
Rosier apenas ficou me olhando, sabendo que logo eu entregaria o jogo.
"Tá bom, tá bom. Foi incrível." Meus olhos brilharam e eu circulei a academia, com os
pensamentos no ar. "Ele é tão lindo, Rosier! Precisa ver aquela barriguinha seca. E as coxas
dele, e a forma como ele sorria pra mim, e aquela bundinha firme e gostosa... Ele gemeu tão
alto que pensei que acordaria os vizinhos."
O sorriso interessado de Rosier tornou-se uma expressão de espanto com a última parte.
Ele deixou o pote de bolo cair. "Espera aí, então foi você quem..."
Antes que ele terminasse, um tornado escuro surgiu dentro da academia. Um demônio
alto e jovem, com chifres espiralados e um enorme par de asas sorriu para nós.
"Lúcio, você voltou!" Cumprimentei ele, mas era óbvio que ele não apareceu por mim.
Lúcio correu para Rosier, e o envolveu em um abraço apertado. "Rosier, desculpe
desaparecer por tanto tempo. Senti tanto sua falta."
Pelo lado do abraço Rosier olhou para mim, sibilando 'socorro' silenciosamente.
Eu refleti se deveria ajudar, quando a parte absurda daquela cena caiu sobre mim, como
um balde de água fria.
"Rosier! Você sabe que ele é um demônio!" Exclamei.
Lúcio mordiscou a bochecha do Rosier, abanando a cauda em satisfação.
"Claro que ele sabe, desde nossa segunda noite de amor." Lúcio o apertou com mais
força. "Não tem nada que eu esconda do meu querido Rosier."
Eu abri a boca, sem decidir quem eu queria matar primeiro.
"Thanos te procurou como um louco." Falei. "Precisamos conversar, Lúcio."
Como se a ameaça à vida de Thanos não fosse nada, Lúcio me ignorou e tentou beijar
Rosier, que a princípio virou o rosto e tentou escapar do abraço, mas logo cedeu. Os dois
trocaram um selinho rápido.
Ver os dois se beijando apertou meu coração. Thanos não tentou me beijar nenhuma
vez enquanto transávamos, e também desviou o rosto quando tentei beijá-lo hoje. Talvez fosse
paranoia minha, mas Thanos parecia diferente comigo, quando me despedi no caminho à
faculdade.
Eu apareci na mansão do Rosier justamente para perguntar sobre isso, mas com a
chegada de Lúcio as prioridades se tornaram outras.
"Lúcio, vem comigo, por favor." Eu o segurei pelo braço, mas dessa vez foi Rosier
quem o manteve onde estava, laçando os braços ao redor do seu quadril.
"Deixa, Mi. Tenho meus meios de punir esse cara." Rosier sorriu para Lúcio com tanta
perversão que eu quis passar alvejante nos olhos. "Três dias sem dar notícias. Que demônio
mau."
Lúcio riu e beijou os lábios de Rosier, falando sussurado e macio. "Desculpa, meu
querido. Qual vai ser meu castigo de hoje?"
Eu bufei, passei minha mochila sobre os ombros e me apressei em dar o fora dali.
"Apareça na casa do Thanos amanhã? Por favor?" Pedi.
Pelos sons molhados vindos de trás de mim, eu pude apenas torcer que Lúcio tivesse
me ouvido.
Antes que eu brigasse com alguém, eu desci pelas escadarias e fui para a casa.

****

"Ele está no seu amigo? Por que não me ligou?" Thanos levantou do sofá num salto, e
vestiu os tênis.
"O que pretende fazer?" Perguntei, terminando a última das fatias de bolo.
"Não é óbvio? Vou arrebentar aquele cara até ele explicar o que está acontecendo."
Eu segurei a mão do Thanos antes que ele deixasse a casa. Descobrir os motivos de
Lúcifer era uma prioridade, mas arrancar Lúcio da cama do Rosier não nos ajudaria.
Além disso, algo nas reações de Thanos me incomodava cada vez mais.
"Thanos, tem algo que você não está me contando?" Perguntei.
Thanos parou de tentar fugir e virou-se para mim. Ele acariciou meu rosto com uma
delicadeza que, por algum motivo, quase me fez chorar.
"O que te faz perguntar isso?" Perguntou ele, com o olhar trêmulo.
Você não me beijou hoje, eu quis dizer. Mas como eu reclamaria de algo assim sem
parecer carente e neurótico?
"Se você é mesmo um Incubus, não deveria morar no inferno? Pelo que entendi,
Incubus são soldados de Lúcifer, mas você nem conhecia ele."
Thanos engoliu seco, e eu senti a mão em meu rosto estremecer. Ele abriu a boca como
se fosse falar algo, mas se manteve quieto.
"Se está mentindo pra mim, quero que me diga." Continuei, juntando toda a minha
coragem. "Eu não menti sobre estar me apaixonando, Thanos. Por favor seja sincero comigo, o
que te trouxe até mim?"
Desta vez o medo no olhar de Thanos fez meu sangue gelar, e eu me arrependi de ter
aberto a boca. Thanos me fazia tão feliz. Se eu pudesse ser feliz assim pra sempre eu não me
importaria de viver uma mentira.
No fundo eu só queria aqueles lábios macios nos meus.
"Quem me transformou foi Lúcio, já te disse isso. Eu não conhecia Lúcifer, e pelo visto
não sirvo como soldado. Talvez minha alma não seja do tipo certo, eu sei tanto quanto você."
Eu torci o lábio, percebendo o quanto ele desviou da pergunta. Mas se a alma de
Thanos realmente corria perigo, eu deveria me preocupar com isso antes dos meus
sentimentos.
"Se você não é um soldado, te tornaremos um." Sugeri, devolvendo as carícias em seu
queixo firme e suave. "Não quero obstáculos entre nós, Thanos. Quero que fique comigo para
sempre."
As últimas palavras meio que escaparam sem querer. O jeito ríspido como Thanos se
afastou de mim fez borbulhar meu estômago. Ah, meu Deus. Eu o conhecia há duas semanas e
já falava em para sempre, qual o problema comigo?
"Olha Miguel, sobre isso, tem algo que eu..."
Eu me joguei em Thanos e abracei apertado, meu peito trepidando tanto que eu me
continha para não chorar. Droga minha carência ia estragar tudo. Ele devia me achar um louco.
"Desculpa, desculpa!" Supliquei, enterrando o rosto no tecido macio do moletom.
"Esquece o que eu disse. Tive um dia cansativo, só isso."
Thanos soltou o ar bem lentamente. O alívio quando ele afagou minha cabeça fez meus
olhos molharem.
"Acha que consigo me tornar um soldado?" Ele perguntou.
Eu ergui o rosto e sorri para ele.
"Nós podemos tentar."
Capítulo 14
Miguel

Escolhi o pátio da minha casa como campo de treinamento. Havia um vasto gramado
com umas poucas laranjeiras nos cantos, e muros altos. Thanos não precisaria esconder os
chifres ali.
Aliás, precisávamos de privácidade por vários motivos. Motivos divertidos e deliciosos.
Vestir Thanos como os incubus dos livros famosos foi a melhor ideia que eu já tive.
Meu rosto se aqueceu tanto que eu precisei segurar o nariz, ou teria uma hemorragia.
No gramado verde, iluminado pelo por-do-sol, Thanos deu mais uma voltinha, exibindo
seu mini-shorts de vinil preto, meia-arrastão com salto plataforma, uma larga coleira com
espetos prateados e uma blusinha preta tão curta que revelava metade dos seus mamilos.
Ao ver o sorrisão no meu rosto, Thanos avermelhou ainda mais e encolheu a cauda
entre as pernas. "Por que estou vestido assim?"
"Pelo que pesquisei, Incubus são demônios do prazer. Não podemos treiná-lo como
incubus sem vestí-lo como um, não é?" Falei da forma mais convincente possível.
Thanos murchou os lábios, pouco convencido. "Não quero te assustar, mas temos
apenas dez dias. É melhor que isso funcione."
Eu concordei e abri o livro de demonologia que comprei pela internet.
"Incubus é a vesão masculina da Succubus. Também chamado de íncubo, seu nome
vem do latim incubare, que significa deitando por cima." Eu tentei não rir, mas foi impossível.
"Irônico."
"Podemos pular as apresentações." Resmungou Thanos, adoravelmente vermelho. Ele
se escorou numa das minhas laranjeiras e bufou, contemplando as primeiras estrelas.
Eu me contive para não puxar o celular e tirar mil fotos. Thanos parecia um modelo de
revista masoquista gay.
"...Os poderes de um Incubus variam entre diferentes mitologias, mas dentre os traços
comuns encontramos: Hipnose, alta capacidade de sedução..." A lembrança do nosso primeiro
encontro arrepiou meu pescoço. "...agilidade ampliada, fertilidade extrema... um, com essa não
precisamos nos preocupar... ah, aqui. Incubus podem voar, atacar com a cauda, chifres e asas, e
incinerar vítimas manipulando o fogo do próprio inferno."
"Quem escreve essas bobagens?" Thanos arqueou a sobrancelha.
Eu ri. Realmente parecia bobo, especialmente os últimos poderes. Beijo da morte?
Troca de almas? Quem acreditaria nisso?
"É o que temos, então vamos tentar." Eu apontei para a pequena árvore vinte passos
adiante. "Tenta incinerar aquela laranjeira."
Thanos revirou os olhos e pôs a mão na cintura, arrebitando ainda mais sua bundinha
semi-exposta. Ao perceber que eu não sairia dali até ele tentar, ele estendeu a mão com a
palma aberta.
"Eu me sinto muito, muito estúpido fazendo isso." Falou ele. "O que eu faço? Grito o
nome de algum golpe?"
"Sim! Grita algo do tipo 'bola de fogo'!"
Thanos revirou os olhos pela milésima vez e encarou a árvore por entre os dedos
esticados. "Bola de fogo!"
Eu fechei os punhos em expectativa, mas nada aconteceu.
"Bola de fogo!" Thanos tentou de novo, e a árvore continuou inteira.
Nós dois nos encaramos em um longo silêncio constrangedor. Thanos avermelhou tanto
que parecia um dos diabos clássicos, das pinturas medievais.
"Eu vou descer desse salto, vestir roupas normais, e nós dois vamos fingir que essa
noite nunca aconteceu." Disse ele, já desafivelando a coleira do pescoço.
"Acha que Lúcio pode nos ajudar?" Eu comecei a me sentir mal, não sei se por vestir
Thanos assim, ou por ele não ter gostado das roupas.
"Talvez, mas duvido que ele queira. Aquele príncipe arrogante só pensa na própria
diversão."
"Está me chamando de egoísta? Assim eu me ofendo." Falou uma terceira voz.
Trajando seu longo casaco vermelho, Lúcio sentava no topo do muro, nos observando
com um sorriso deliciado.
Thanos tentou cobrir o corpo com as mãos. "Há quanto tempo você está aí?"
"Amei as roupas." Lúcio desceu e deslizou um dedo ao longo do braço de Thanos. "Eu
pretendia te vestir exatamente assim."
"Pretendia, é?" Thanos fuzilou ele com o olhar.
A proximidade entre os dois me incomodava, mas após meu surto de ontem eu
precisava me manter na linha.
Lúcio alargou o sorriso e passou o braço pelos ombros de Thanos. "Ah, meu querido
Thanos. Acho que estou amando."
"Vou quebrar cada um dos seus dentes." Rosnou Thanos.
Lúcio parecia alegre como se andasse sobre nuvens. "Não falo de você. Falo do
verdadeiro amor. Estive conversando com Rosier, hoje. Resolvi desmanchar meu harém."
"Harém?" Perguntei, mas os dois me ignoraram.
"Como assim, desmanchar?" Os olhos de Thanos tremularam. "O que vai acontecer
comigo?"
"Relaxe, meus outros incubus foram realocados para novas... profissões. Rosier é tudo
o que eu preciso para ser feliz." Lúcio riu alto, dando tapinhas nas costas de Thanos. "É uma
pena, não é? Te vendo assim, eu quase quero mudar de ideia."
"Lúcio, em dez dias alguma coisa vai acontecer comigo, e eu preciso saber o quê."
Falou Thanos. "Como uso os meus poderes?"
O sorriso de Lúcio diminuiu um pouco.
"Almas diferentes possuem talentos diferentes. Não exijo poderes dos meus escravos,
mas você sequer brotou asas. Manipulação de fogo é um feitiço avançado."
"Alguém me explica o que está acontecendo, por favor?" Pedi, mas era como se eu
fosse invisível.
"Quais minhas chances como soldado do seu pai?" Perguntou Thanos.
Lúcio alisou o cabelo pelo meio dos chifres, reflexivo.
"Nossos inimigos são anjos. Capacidade de vôo é o requisito mínimo, e é improvável
que você brote asas em tão pouco tempo. Não se preocupe, a parte do harém que entreguei ao
exército do papai deve acalmá-lo o suficiente."
"Não sinto firmeza na sua voz, além do mais..." Thanos me abraçou, apertando meu
rosto contra seu peito de um jeito tão carinhoso que era suspeito. Pelo mover de sua respiração
era óbvio que ele sussurrava algo que eu não podia ouvir.
"Como eu já disse, o ritual é complicado..." Respondeu Lúcio, e em seguida sussurrou
alguma coisa?
Eu ouvi o bater de asas e me soltei de Thanos a tempo de ver Lúcio voar
graciosamente, tornando a pousar sobre o muro. Ele estalou os dedos, e com apenas isso um
clarão alaranjado ofuscou meus olhos.
A laranjeira ardia em chamas, envolta por uma esfera de fogo que queimava seu alvo e
nada mais.
"Adorei assistir seu treinamento, meu querido Thanos." Lúcio riu e esticou suas longas
asas negras, batendo-as até levitar do muro e desaparecer no céu escuro da noite.
Voltei a olhar para a laranjeira e havia ali apenas um torrão preto, no formato do tronco.
Nunca vi fogo consumir tudo tão rápido. E Lúcio o invocou com tanta facilidade.
"Você ainda vai me dizer que não está escondendo nada?" Eu solucei no meio da frase.
Thanos afagou o lado do meu pescoço, e demorou a responder.
"Não, não estou escondendo nada."
Eu sorri, e o salgado das lágrimas entrou na minha boca. Eu sabia que Thanos estava
mentindo, e também sabia que eu iria deixar passar, e fingir que estava tudo bem.
Por que o amor precisava doer tanto?
Capítulo 15
Thanos

Assim que acordei eu estiquei o braço para o lado, percebendo o espaço vazio.
As lembranças da noite anterior vieram, fazendo meu peito latejar.
Eu esfreguei os olhos tentando acordar, e o sonho gostoso que tive com Miguel aos
poucos se tornou uma realidade amarga. Até ontem eu apenas omitia algumas informações,
mas graças ao Lúcio agora eu estava simplesmente mentindo.
Não só fiz o Miguel chorar como ele me pediu para ir embora da casa dele. Droga,
como eu era um imbecil.
Eu me levantei, tomei um banho rápido e comecei a me vestir, enroscando a cauda na
perna antes de subir a calça jeans, e por último vestindo o meu chapéu sobre os chifres.
Por mais que Miguel estivesse certo em se ressentir, eu lhe devia desculpas. Se eu
corresse, poderia encontrá-lo no campus da faculdade a tempo de almoçarmos juntos.
Enquanto esperava o ônibus eu refleti sobre o tamanho da confusão de ontem. Certo,
talvez Lúcifer não consumisse minha alma, mas 'talvez' não era bom o suficiente. Eu só estaria
seguro ascendendo aos céus, e para isso precisava fazer Miguel me amar, e também conseguir
que Lúcio cancelasse a maldição sobre ele morrer ao me beijar.
Saber que em nove dias eu e Miguel nos separaríamos queimava meu coração, mas era
melhor assim. Um vigarista como eu apenas machucaria alguém doce como ele, e
tecnicamente eu havia morrido. Não pertencia mais ao plano do meio.
Por mais que eu quisesse tê-lo sempre comigo, eu podia apenas rorcer que Miguel
seguisse uma vida feliz, e me encontrasse no céu quando sua vida terrena se esgotasse.
O ônibus chegou, e em poucos minutos eu desci no campus da faculdade. O prédio do
Direito não devia ser difícil de encontrar.
Meu peito bateu forte e dolorido conforme eu me locomovia entre a multidão de
estudantes, desacostumado a sair durante o dia. E se Miguel não quisesse me ver? Ele nunca
me convidou para vir aqui, e comentava pouco sobre as aulas, ao nos reencontrarmos de noite.
Minhas pernas estremeceram. Eu conhecia esse truque. Para o namorado diurno, eu
trabalhava de noite, para o namorado da noite, eu estudava de dia. Eu sempre desconversava ao
me perguntarem, e mudava o assunto para algo do meu interesse.
Um medo horrível tomou conta de mim, e tive vontade de sair correndo.
Quando já me preparava para fugir, avistei um grupo de jovens de terno e gravata em
frente a um prédio alto e bonito, daqueles com pilares de mármore na frente. Eles conversavam
entre si animadamente, e eu reconheci um deles.
Miguel me viu ao mesmo tempo, e meu coração saltou. Ufa, ele não estava com um
amante, mas como ele reagiria a mim, no meio dos colegas?
Somado a isso, desde quando ele se vestia assim?
Miguel sorriu, pediu licença aos colegas e veio até mim sem hesitar, carregando sua
maleta de couro e mantendo uma postura reta e elegante. O terno cinza com gravata verde,
sapatos de verniz e cabelo escovado baixo lhe deixavam tão diferente. Sério, adulto e
infinitamente sexy.
Não que Miguel não fosse sexy de calça jeans e camisa, mas puta merda. Descobri um
fetiche novo.
"Thanos, o que veio fazer aqui?" Perguntou ele, com olhos brilhantes e um sorriso tão
contente que meu coração derreteu, levando embora qualquer preocupação.
Eu sorri, e percebi que o grupo de engomadinhos olhava para nós. "Despeça-se com
calma, eu posso esperar."
Miguel avermelhou. "Eu... um..."
Eu franzi a testa, e comecei a rir, mantendo uma distância respeitável entre nós. "Não
precisa me apresentar. Eu posso aguardar na parada. Ou voltar pra casa, se preferir."
"Não, não é isso." Miguel baixou a cabeça, falando engasgado. "Eu falei pra todo
mundo do meu namorado loiro e bonitão, e agora eles te viram, e nós... desculpa, eu sei que
não definimos nada, ainda."
Eu arregalei os olhos, mais do que surpreso. "Você quer me apresentar como seu
namorado?"
Miguel fez que sim com a cabeça.
Uma emoção desconhecida tomou conta de mim. Meu peito se aqueceu e eu quis rir, e
chorar, tudo ao mesmo tempo.
Eu ergui o queixo de Miguel com os dedos e beijei sua testa. "Me apresenta pros seus
colegas."
O sorriso de Miguel se iluminou ainda mais. Ele enlaçou seus dedos nos meus e me
puxou para o meio do grupo.
Eu apertei a mão deles e conversei enquanto Miguel repetia que sim, eu era o namorado
de quem ele tanto falou. Aparentemente alguns me consideravam um amigo imaginário.
Após alguns minutos socializando, eu e Miguel nos despedimos e ele me conduziu
pelos gramados verdes e floridos do campus, sempre de mãos dadas comigo.
"Você está lindo." Falei.
"Ah, isso." Miguel brincou com o nó da gravata, corando. "Assistimos uma audiência,
hoje. Precisei me vestir assim."
Seguimos andando em silêncio por mais algum tempo.
"Você me prefere como antes, ou assim?" Miguel me perguntou. Pelo tom de voz, eu
não podia responder qualquer bobagem.
"Gosto de qualquer jeito. E você, como prefere?"
Miguel apertou minha mão e a maleta que carregava na outra, baixando o rosto.
"Eu já deveria estar de férias. Aqueles meus colegas fazem estágio naquele fórum,
enquanto eu não consigo nem estágio, e estou sempre de recuperação."
Eu afinei os lábios, acariciando a mão de Miguel para animá-lo.
"É um curso dificil, vai dar tudo certo no final."
"Não, não vai. Já estou no quarto semestre, e olha isso." Miguel abriu a maleta e me
alcançou uns papéis.
Eu folheei cada um, me assustando com os números vermelhos de cima. Eu larguei a
escola no fundamental, mas sabia que C e C+ eram notas bem ruins. Algumas provas valiam
ainda menos.
"Érico dizia que eu era burro. Talvez eu seja, mesmo." Miguel sorriu para mim, com os
olhos molhados. "Desculpa te contar isso só agora. Te deixei pensar que namorava um futuro
advogado."
"Por quê você passa por isso? E por dois anos? Que merda, Miguel." Eu devolvi as
provas dele, queimando de ódio e tentando disfarçar. Não queria Miguel pensando que minha
raiva vinha dele. "Você pelo menos gosta desse curso?"
"Eu demorava porque ficava chorando, antes de voltar pra casa. Desculpa, eu sei que é
super ridículo."
Meu peito latejou. Até que ponto aquele ex imbecil estragou a cabeça do Miguel?
"Fico feliz que tenha me contado. E não é estúpido." Eu passei o dedo pelo seu rosto
molhado. "Vamos conversar com calma, tudo bem? Onde você costuma almoçar?"
Contendo-se para não chorar, Miguel apontou para um prédio de vidro e metal, logo
adiante. O prédio da Faculdade de Gastronomia.

****

Após um almoço agradável no restaurante da Gastronomia, eu e Miguel nos


despedimos e voltei para a minha casa. Escolhemos não falar sobre Lúcio, ou sobre a briga de
ontem. Miguel já sofria o bastante, por seus próprios motivos.
E eu precisava resolver meus próprios problemas.
Eu gritei por Lúcio algumas vezes e verifiquei a casa, sem conseguir encontrá-lo. Ou
ele estava brincando de general com o pai, ou de sadomasoquista com o amigo do Miguel.
Segundo Miguel, ele até revelou ser um demônio.
Que descuido idiota. Um príncipe egocêntrico como ele, se apaixonando por um
humano?
Mas eu não podia mais julgar o filho da mãe. Eu não sabia o que sentia por Miguel,
mas ouvir a palavra 'namorado' sair de seus lábios me fez sorrir, e eu ainda sorria ao lembrar.
Eu suspirei, me acomodei no sofá e passei os canais de TV.
O ritual é complicado. Algumas partes são obrigatórias e estas não sou capaz de
alterar.
O que Lúcio quis dizer com isso? Que partes eram essas?
Pelo que eu conhecia de Lúcio, ele podia estar usando o amigo de Miguel para me
despistar, assim se divertiria ainda mais quando me acorrentasse na sua cama, junto aos outros
escravos sexuais.
Estranhamente, a ideia não me perturbava mais tanto, se significasse que Miguel
continuaria a viver. Passar a tarde sem beijá-lo foi uma tortura, e me doía perceber a mágoa de
Miguel quando eu desviava meu rosto.
Sentindo o sono chegar, eu deixei num seriado qualquer e acabei adormecendo no sofá.
Acordei com batidas na porta, quando o céu já estava roxo.
"Miguel. Oi." Eu sorri ao vê-lo, e sorri ainda mais por ele vestir aquele terno sexy, que
emoldurava sua cintura estreita e delineava seu peito pronunciado.
Quando Miguel passou por mim, percebi que usava uma colônia que não senti mais
cedo.
"Pensei em fazer nossa janta, tudo bem?" Ele perguntou, com um sorriso que já vi
antes, na cama dele. "Não faltam ingredientes por aqui."
Eu concordei, meio nervoso. Seja lá o que ele tivesse em mente, eu esperava que
nenhum dos ingredientes deixasse a cozinha, dessa vez.
Meu corpo, por outro lado, já demonstrava aprovar os rumos da noite, não importavam
quais fossem.
"Precisa de ajuda?" Sentei no balcão da pia enquanto Miguel vasculhava a geladeira e
separava embalagens.
"Não exatamente. Você gosta de fusili ao sugo?"
"Se eu gosto do quê?" Uma parte de mim desejava que fosse uma posição sexual.
Miguel revirou os olhos, parecendo ter lido a minha mente. "Macarrão com molho de
tomate."
"Ah, sim. É uma delícia." Gaguejei, assistindo Miguel empinar a bunda enquanto
vasculhava as gavetas de baixo. O terno cinza apertava as partes certas.
Eu apertei as mãos uma na outra, girando os polegares. Se controla, Thanos. Miguel já
se apaixonou o suficiente. Não corra riscos até a maldição ser cancelada.
Miguel separou mais alguns pacotes sobre a mesa e bateu a porta da geladeira, bufando.
Ele me fuzilou com um olhar de profunda frustração.
"O que foi?" Perguntei.
"Eu quero cozinhar, e eu não como nada há horas." Resmungou ele, o que só me
confundiu mais. "E aí eu paro na sua frente, e sinto seus olhos na minha bunda e penso 'droga,
quando ele vai me agarrar?'. Mas você só fica aí, me deixando enlouquecer por ter te
expulsado ontem. Faz ideia de como foi dormir sozinho? Eu quero continuar com raiva, e não
consigo, e fico com raiva por isso!"
Eu abri a boca, incerto se Miguel queria dar uns amassos ou o contrário disso.
Minha confusão só frustrou Miguel ainda mais. Ele se aproximou de mim e ergueu
minha mão, me fazendo agarrar sua gravata macia de seda.
Ele aproximou os lábios do meu ouvido, corando.
"Quanto tempo eu preciso rebolar até acontecer alguma coisa?"
Miguel encaixou pelo meio das minhas pernas e colou nossos corpos, ofegando quente
no meu rosto ao pressionar o volume dele contra o meu.
Eu arqueei as costas em um espasmo involuntário, e ele aproveitou para começar a se
esfregar lá embaixo e beijar a curva do meu pescoço.
Enquanto Miguel acrescentava novos chupões no meu pescoço já marcado, eu desci a
mão por trás dele e agarrei aquela bunda perfeita e durinha, sentindo-a encaixar perfeitamente
na minha mão espalmada.
Os gemidinhos de Miguel contra o meu pescoço ferveram meu sangue ainda mais. Ele
se afastou para respirar mas eu o segurei pela gravata, puxando-o de volta e dando uma longa
cheirada na colônia de hortelã em sua nuca.
"Você se perfumou pra mim." Sussurrei, ainda o massageando lá atrás, cada vez mais
para dentro.
"Achei que... ah... você fosse gostar." Eu mal havia começado, e a voz de Miguel já
tremia, quase incompreensível. Ele me abraçou e desceu as unhas pelo meu moletom,
erguendo-se na ponta dos pés para que eu o alcançasse ainda mais fácil. "Você gostou do meu
terno, Não gostou?"
Eu sorri, surpreso que ele tivesse percebido. "Vou gostar ainda mais de te ver tirar."
O corpo de Miguel estremeceu nas minhas mãos, e seus gemidos aumentaram. Eu
mordisquei o pescoço dele logo acima do colarinho, me perguntando se ele estava quase
gozando, ou se a ideia de fazer um strip-tease o fascinava tanto assim.
Heheh. Provavelmente os dois.
"Ei, Miguel." Falei bem macio em seu ouvido, adorando enlouquecê-lo. "Nós vamos
voltar pra sala, eu vou sentar naquele sofá, e você vai tirar tudo pra mim. Peça. Por. Peça."
"E depois?" Ele arfou.
"E depois quem vai pro sofá é você." Eu belisquei a bunda dele com força, sem deixar
espaços para mal-entendidos.
Miguel inclinou o pescoço para os meus beijos e aumentou sensivelmente de tamanho
lá embaixo, gemendo alto para cada toque dos meus dedos e dos meus lábios.
Quando vivo eu enganei uma boa cota de ricaços, em ternos até mais elegantes que
aquele. Mas apenas Miguel me descontrolava daquela forma. Eu amava vê-lo de terno, e eu
amava vê-lo sem nada. Naquela noite, Miguel seria todo, todo meu.
Com o corpo trêmulo e corado, Miguel se afastou de mim e estendeu a mão. "Tudo
bem, eu faço isso." Ele me disse, de volta ao modo super-tímido. A forma como eu baguncei
sua gravata e seu cabelo impecáveis aceleravam meu sangue.
Eu entreguei minha mão ao Miguel, e retornamos à sala. Assim que chegamos ele me
empurrou sentado no sofá, e parou em frente a TV, já afrouxando a gravata.
"Você continua vestido, por enquanto. E não tente me tocar." Um sorriso perverso se
formou no rosto vermelho de Miguel. "Vamos ver por quanto tempo você aguenta."
Me divertindo com a confiança dele, eu mordisquei meus lábios e me preparei pro
show.
Miguel ligou a TV em um canal de música pop e afinou seus olhos para mim,
transbordando em desejo. Ele desceu o casaco do terno lentamente, quebrando os quadris ao
ritmo da música.
Obediente, eu sentei sobre as mãos e deixei minha ereção crescer sob as calças,
assistindo Miguel livrar-se da camisa e da gravata, que ele jogou em mim.
O corpo do Miguel era um pouco estreito, mas forte e delicioso. Ele dançava com a
experiência de quem já fez isso pelo menos algumas vezes, com a confiança de quem sabia que
agradava. E ele estava me agradando mesmo.
"Você tem algo por me torturar, sabia?" Brinquei, lambendo os lábios cheio de tesão.
Miguel livrou-se dos sapatos e abriu a calça, deixando-a cair no chão para revelar
pernas clarinhas e finas, mas musculosas. Seu pau apontava para a frente dentro da cueca
branca.
"É ruim que eu goste disso?" Ele perguntou, com uma pontinha de insegurança na voz.
"Nem um pouco."
Miguel deu uma risadinha e virou de costas, rebolando as nádegas volumosas e
redondas. A cueca branca penetrava de leve a cada movimento, salientando a fenda que eu
tanto desejava. Ele chegou pertinho de mim até pairar com as coxas a centímetros da minha
virilha, a ponto de eu sentir o calor e o aroma de perfume.
Meu pau esticou minha calça dolorosamente, fazendo meu sangue ferver. Eu queria
demais agarrar esse pervertidinho e cravar essa bunda macia no meu pau petrificado. Se eu não
estivesse sentado nas mãos, já teria feito isso.
Miguel virou-se de frente e encaixou-se entre às minhas pernas abertas. Dançando só de
cuecas e coberto por uma fina camada de suor, ele era como uma visão do paraíso.
"O que faria agora, se pudesse me tocar?" Ele estava adorando a ansiedade na minha
cara.
Eu lambi os lábios para a a ereção dele, tão, tão perto de mim. "Eu provavelmente
meteria seu pau na minha boca."
Acho que Miguel não esperava tanta sinceridade, porque ele engasgou e estremeceu,
todo sem jeito.
"Então faz isso." Ele me disse.
Sem esperar um segundo a mais, eu desci o elástico até os joelhos e fiz o pau dele saltar
para fora, úmido e ereto. Dei uma lambida na ponta, saboreando o gosto do Miguel e seus
gemidinhos fofos.
Eu ergui meus olhos para seu rosto e o abocanhei até os pelinhos ruivos tocarem meus
lábios. O êxtase no olhar do Miguel me fez molhar a cueca em pré-gozo. Seus gemidinhos
tímidos tornaram-se mais altos.
Miguel me agarrou pelo cabelo, arqueando o quadril contra a minha boca e respirando
rápido. Eu movi a cabeça indo e vindo, deixando seu pau bater contra a minha garganta.
Imaginar Miguel gozando na minha língua me endurecia além de qualquer limite.
Eu agarrei a bunda despida dele e o forcei contra a minha boca, sugando tão rápido e
intenso que Miguel soltou meu cabelo e me agarrou pelos chifres, gritando em êxtase.
"Acha que... ah... consegue gozar assim?" Perguntou ele.
Eu arqueei uma sobrancelha. Que obsessão Miguel tinha, em me fazer gozar de jeitos
estranhos?
Sem querer contrariá-lo, e até meio seduzido pela ideia, eu soltei sua bunda e desci
minhas calças até os joelhos, expondo meu pau rígido. Nunca gozei só de chupar outro cara,
mas o desafio me intrigava.
Eu só esperava que Miguel gemesse mais, porque puta merda, ouvir seus gritinhos
doces fazia loucuras com os meus hormônios.
"Você é bom nisso." Falou ele, movendo-se contra mim tanto quanto eu me movia
contra ele.
Eu gemi contra o pau dele, deslizando as mãos pelo seu corpo. Miguel era lindo e
gostoso, mas eu precisaria de concentração pra gozar desse jeito.
Miguel acariciou meu cabelo, e conduziu minha mão para o alto de seu corpo, até eu
sentir o biquinho duro de um mamilo entre meus dedos.
Eu apertei, e Miguel soltou um longo gemido.
"N-não to aguentando." Ele sussurrou, latejando quente na minha boca. "Tira, eu vou
gozar."
Ainda pinçando seu mamilo, eu o segurei com a virilha grudada nos meus lábios. Nem
pensar que eu o soltaria. Depois de tanta provocação, eu queria engolir.
Miguel cobriu a boca, abafando um grito enquanto gozava contra a minha garganta. Os
jatos quentes inundaram a minha língua, me fazendo engolir várias vezes para não engasgar.
Perto demais do meu próprio orgasmo, eu me concentrei nos sons pervertidos que
Miguel deixava escapar, e inclinei o quadril para o lado, deixando que ele assistisse o que tanto
queria.
Arfando abafado contra seu pau, eu tremi da cabeça aos pés e gozei logo depois. Meu
gozo acertou os joelhos do Miguel, e escorreu ao longo das pernas.
Eu recuei o rosto, exausto e extasiado, e encarei Miguel com um sorrisinho de vitória.
O prazer em seus olhos merecia ser transformado numa pintura.
"Isso foi demais." Falou ele, sentando-se sobre as minhas coxas. “Você é perfeito.”
Eu abracei Miguel, e deitei o queixo em seus cabelos macios. Não sabia nem definir o
que eu sentia naquele momento, mas queria apertar esse pervertidinho fetichista e cobrir de
beijos.
"Você ainda está duro. De novo." Miguel riu contra o meu peito. Só então percebi que
meu pau fincava entre as coxas dele, pronto pra mais. "Já descobrimos um dos seus poderes de
incubus."
"Acha que aguenta algo a mais?" Perguntei, rindo junto.
"Se eu aguento?" Miguel afastou a cabeça do meu peito e me encarou com um brilho
devasso em seus olhos verdes. "Vamos brincar."
Capítulo 16
Thanos

As cigarras ainda cantavam lá fora quando acordei, sentindo cócegas nos meus lábios.
Grunhindo de sono, eu abri uma fenda dos olhos, avistando o rosto adormecido do
Miguel quase colado no meu. Seus lábios roçavam contra a minha boca.
"Ah!" Eu gritei engasgado e recuei num salto, me enroscando nos cobertores e quase
caindo do sofá. O susto foi o bastante para me acordar completamente.
Isso foi perigoso.
"O quê foi?" Perguntou Miguel, todo amolecido. Ele tinha bons motivos para estar
cansado. "Tá cedo".
Eu olhei pro relógio do celular. Seis da manhã, mas depois de um susto desses eu não
dormiria mais. Já arrisquei a vida do Miguel muito mais do que deveria, ao longo da
madrugada.
Eu não sabia se Miguel me amava ou não, mas não pretendia descobrir da pior forma.
"Desculpa, volta a dormir." Sussurrei, subindo o corpo até aninhá-lo em meu peito. As
roupas do Miguel ainda estavam penduradas no encosto do sofá e espalhadas por todo o chão,
como as minhas.
Eu sorri e brinquei com suas mechas ruivas, me deleitando com o doce aroma de
perfume que se misturava ao seu cheiro natural. Os ombros brancos e sardentos de Miguel
brilhavam sutilmente, ainda cobertos de suor.
Passar a noite com outra pessoa teria sido algo impensável, antes de Miguel. Eu
migrava de um namorado ao outro, otimizando meu tempo e me deitando com vários por
semana. Eu vivia pela adrenalina em não poder ser descoberto. Nunca me imaginei sorrindo
por acordar ao lado de alguém.
Até as esquisitices do Miguel, como transar, cozinhar duas da madrugada e transar de
novo, só me faziam rir e desejar fazer outras vezes.
Não que a idéia do macarrão pós-sexo tenha sido ótima, como meu estômago dolorido
insistia em me lembrar.
"Já volto." Eu toquei os lábios na testa do Miguel e esperei pacientemente ele soltar
minha cauda e apagar de novo.
Eu deixei a sala em direção ao banheiro, apertando minha barriga que borbulhava em
espasmos de dor. Talvez eu tenha passado dos meus limites. Mas Miguel foi tão gentil e
paciente. Minha bunda não doía tanto quanto da primeira vez.
Meu rosto avermelhou ao lembrar. Fizemos todas as posições que eu conhecia, e outras
que tenho quase certeza que Miguel inventou no improviso. Meu corpo de incubus realmente
possuía virilidade infinita, e Miguel se aproveitou disso até desmaiar de sono.
Uma pontada violenta dobrou meu corpo, me fazendo conter um grito. Droga, essa dor
não era normal.
"Bom dia, meu querido Thanos."
A voz do Lúcio gelou meus ossos. Mas o que porra? Eu olhei para a cozinha e ele não
estava ali, então virei de costas. Ele deixava meu quarto, bocejando. Aquela calça de pijama
era minha?
"Lúcio, você não tem casa?" Perguntei, envergonhado a ponto de esquecer a dor. Eu
não vestia nada além das minhas cuecas pretas, e meu cabelo se espetava em todas as direções,
enroscado nos meus chifres.
"Papai me enche o saco. Comandar as tropas é chato demais, e ele ainda me perturba
sobre o pergaminho." Lúcio deu uma risadinha. "É agora que você me pergunta há quanto
tempo estou aqui."
Suor frio desceu pelo meu pescoço. "Você nos ouviu?"
"Eu te ouvi, mais precisamente." Lúcio tremia os lábios, segurando o riso. Ele virou de
costas e rebolou, esfregando os lados da cintura. "Oh, Miguel, mais fundo. Ah, sim, bem aí.
Ah!"
Eu abri a boca, querendo que aquilo fosse um pesadelo. "Não foi bem assim."
"Quando Rosier me contou eu achei estranho. Digo, eu adoro o melhor dos dois
mundos, mas nunca pensei que você fosse tão... passivo."
"Eu não sou passivo!" Eu cobri a boca, ao perceber que estava gritando. "Não sei como
continua acontecendo, mas Miguel muda de personalidade, durante a noite."
"Não estou julgando, meu querido. Pela minha experiência, os tímidos são os que mais
surpreendem. Os vizinhos, por outro lado, talvez precisem de terapia."
"Eu não gritei tão alto assim, gritei?" Meu rosto parecia pegar fogo. Maldito príncipe
estúpido. Não era culpa minha que Miguel soubesse ser tão perfeito. E eu também fui ativo...
deixar ele me cavalgar conta como ser ativo, não conta?
Lúcio deixou uma risada escapar, mas desmanchou o sorriso depois. "Deixando isso de
lado, voltei por um motivo, você sabe."
Eu engoli seco e avistei Miguel, que ainda dormia profundamente, no sofá. Eu puxei
Lúcio até a cozinha.
"Quase matei ele, agora pouco. Preciso que cancele sua maldição estúpida. Você não é
mau, Lúcio, e eu sei que não me quer mais no seu harém idiota."
Lúcio agitou sua cauda nervosamente.
"Presta atenção. Assim como outros demônios de média e alta hierarquia, incubus são
anjos caídos, e é por isso que podem visitar o plano dos vivos. A transformação é instável no
primeiro mês, o que permite que alguns se tornem anjos. É uma brecha no sistema que poucos
conhecem."
"Por quê está me contando isso?" Perguntei. A forma como Lúcio se escorou no balcão
e esfregou a testa me fez estremecer. Nunca o vi tão sério.
"Existe essa coisa chamada entropia espiriual. Uma alma não pode simplesmente deixar
o inferno. É preciso haver uma troca" Lúcio soltou o ar lentamente. "A possibilidade de não
matar Miguel nunca existiu. Você matará Miguel, e ocupará o lugar no céu que seria dele."
Eu arregalei os olhos, e senti minhas pernas enfraquecerem.
"O quê?" Perguntei.
"O Inferno é meu reino. Prometo que a alma de Miguel receberá o melhor tratamento."
Eu soquei a porta da geladeira, sentindo meu sangue ebulir.
"Você é ridículo! Acha que vou condenar a alma do Miguel por umas asinhas brancas e
uma auréola estúpida?"
"Papai vai aparecer a qualquer momento, e vai dissolver sua alma para obter um novo
pergaminho." Os olhos vermelhos de Lúcio cintilaram em tristeza. "Por favor, não corra esse
risco."
Eu baixei o rosto e ri, saindo de mim.
"Você me mandou apaixonar um humano, e eu fiz!" Gritei. "Um beijo de amor
verdadeiro, e eu cairia fora daquele seu maldito reino! E agora que o humano está babando por
mim eu não..."
"Do quê está falando, Thanos?"
A voz de Miguel congelou minha espinha. Eu me virei para a entrada da cozinha e o
avistei, vestindo apenas um lençol na cintura. Seu rosto estava pálido e aterrorizado, como se
acordasse de um pesadelo. Ou como se tivesse mergulhado em um.
"Você me enganou? Para se tornar um anjo?" Perguntou ele, com lágrimas nos olhos.
"Claro que não" Lúcio respondeu por mim. "Apenas discutíamos um filme em que..."
Eu estendi a mão, calando a boca do príncipe estúpido.
"Sim. É verdade. Fui trazido ao plano dos vivos para apaixonar um humano e matá-lo.
É como eu ascenderia aos céus."
O sofrimento no olhar de Miguel me fez querer morrer.
"Eu... hahah. Você é bom mesmo em enganar as pessoas. Pensei mesmo que você
gostasse de mim."
"Mas eu gosto, e muito!" Eu corri até Miguel e sequei suas lágrimas com os dedos. "Por
isso não posso te beijar, Miguel. Se eu..."
Um estrondo violento apitou nos meus ouvidos, e eu caí no chão. Uma queimação
violenta fez meu nariz latejar e sangrar, encharcando meus lábios com o gosto metálico de
sangue. Miguel havia me socado?
Com o punho fechado e a respiração pesada e rápida, Miguel eriçou os lábios para mim,
claramente considerando me chutar.
"Não me procura mais, seu mentiroso desgraçado! Eu te odeio!" Gritou ele, e correu
para fora da cozinha.
Minhas pernas tremiam demais para que eu levantasse. Eu não podia acreditar no que
estava acontecendo.
Mesmo que eu pudesse impedir Miguel, eu sabia que a razão era dele.
Apenas quando a porta de entrada abriu e bateu que meu corpo começou a reagir. Eu
apoiei as mãos no chão e solucei, sentindo meu coração rasgar-se ao meio. Minhas lágrimas
pingaram sobre as minhas coxas em meio às gotas de sangue do meu nariz, que ainda
sangrava.
"Miguel..." Chamei, em completo desespero.
Lúcio apertou meu ombro.
"Você ainda tem oito dias, nós ainda podemos..."
"Cala a boca!" Gritei, tentando me levantar. A maldita dor no estômago pareceu descer
às minhas pernas. "Cansei da sua aposta imbecil! Cansei de..."
Minha visão dobrou, e eu segurei minha barriga, gritando e me torcendo no chão
gelado. Meu estômago parecia querer se abrir.
"Thanos? Thanos, meu querido, o que houve?" Lúcio correu até o fogão, e verificou as
panelas do macarrão que jantamos de madrugada. "Vocês dois comeram isso? Thanos, quanta
comida humana você consumiu?"
Eu tentei responder, mas a dor não permitia. Miguel parecia tão feliz cozinhando, eu
não podia... deixar de...
Lúcio passou os braços por baixo de mim e me ergueu, deitando-me contra seu peito.
"Sua alma começou a descolar." Falou ele, com a voz tremendo. "É o oposto do que
deveríamos fazer, mas preciso te levar de volta."
Mal conseguindo manter os olhos abertos, eu avistei um turbilhão cinza se formar ao
nosso redor. No tempo de um piscar, estávamos em um lugar que eu nunca havia visto.
Capítulo 17
Miguel

"Mon ami, já são três da tarde. Deixa o mordomo trazer seu almoço, por favor?"
Eu abracei o travesseiro, me encolhendo em posição fetal como uma lagarta num casulo
de cobertores.
"Não estou com fome." Falei, conseguindo não soluçar dessa vez.
Rosier sentou ao meu lado e afastou minha franja, tentando ver meu rosto.
Eu me encolhi ainda mais. Devia estar todo inchado e grudento de lágrimas. Conter
minha choradeira na presença de Rosier fazia doer meus pulmões. Este podia ser o quarto dele,
mas eu precisava ficar sozinho.
Como fui idiota em acreditar em outra pessoa. Depois do que Érico fez, eu deveria ter
criado cérebro. E ainda por cima eu estava desabando de novo, encharcando o travesseiro com
Rosier bem do meu lado. Eu não queria preocupar seu coração frágil.
"Me deixa sozinho, Rosier." Pedi. "Quero chorar até morrer."
Rosier soltou o ar lentamente e arrancou minhas cobertas num gesto brusco, me
fazendo girar no colchão e cair no carpete fofo, tão surpreso que minhas lágrimas travaram.
"Qual o seu problema, Rosier?" Gritei, enraivecido. "Se não quiser ser meu amigo eu
posso ir para a minha casa!"
Ao invés de se revoltar, Rosier apenas cruzou os braços pacientemente, e esperou eu
me acalmar antes de responder.
"O Érico foi o Érico, mon ami. Thanos é um cara decente, você não vai se esconder
aqui até ele sumir."
Ouvir os dois nomes na mesma frase foi demais pra mim. Eu abracei meus joelhos e
deixei as lágrimas voltarem. Meu peito e meu rosto queimavam tanto que eu mal conseguia
respirar.
Se pelo menos Érico estivesse ali, me dizendo exatamente como reagir. Mas ele nunca
ia voltar, óbvio. Foi por ele ter me largado que eu entrei nessa confusão.
Desde que o Érico saiu pela minha porta da frente e entrou no carro do Sérgio, que eu
não me sentia tão sozinho.
"Não tem volta, eu bati nele, quebrei aquele narizinho fofo." Lembrar de todo o sangue
me fez chorar ainda mais. "E você não me entendeu? Ele só estava me usando para virar um
anjo. Ele pretendia me matar, Rosier!"
"Se ele pretendia te matar, já teria feito isso." Rosier sentou no chão ao meu lado e me
abraçou. "Tire o resto do dia para chorar, mas amanhã você vai atrás daquele homem, ou vou
beliscar sua bunda."
A ameaça ridícula quase me fez rir. Eu ergui os olhos pro Rosier, esperando que minha
aparência não o assustasse.
"Não está falando isso por causa do Lúcio, não é?" Eu confiava no Rosier como um
irmão, mas precisava ter certeza.
Compreensivelmente, Rosier se indignou tanto que ele de fato beliscou a minha nádega,
por cima do pijama.
"Não tenho nada com aquele demônio obsecado." Ele torceu os dedos e me fez gritar.
"Como pode pensar isso do seu amigo?"
"Desculpa, desculpa!" Gemi, até ele me soltar. "Eu quero ter entendido errado. Mas se
o objetivo do Thanos sempre foi tornar-se um anjo, ele nunca planejou continuar comigo."
"Você não pode ter certeza disso, e é por isso que vocês vão se reencontrar e conversar
como adultos. Se ele realmente queria te matar, eu mesmo faço ele em pedacinhos pra você."
Rosier sorriu de um jeito fraternal, tornando quase suportável a dor no meu peito. Ele passou o
braço atrás das minhas costas e me deitou no seu ombro. "Visitaremos ele amanhã e lidaremos
com essa história direito, tudo bem?"
Eu funguei pesado e fiz que sim com a cabeça antes de soluçar de novo, que nem um
desesperado. Eu machuquei o Thanos, mas eu amava ele tanto. Se ele realmente queria me
matar, eu não suportaria. Toda a minha energia foi gasta em superar o Érico, e agora eu já
considerava ligar pra ele, implorando que largasse o Sérgio e me aceitasse de volta.
Como eu podia ser tão patético?
"O que o Lúcio disse sobre isso?" Perguntei, sem evitar encharcar a camisa do Rosier.
"Ele é um espírito livre e selvagem como eu, mon ami, ainda não apareceu. Maldito
homem." Ele sussurrou a última parte, bufando.
Eu suspirei. Não aguentaria me lamentar por mais tantos meses, mas minhas forças
haviam se esgotado. Érico me largou, Thanos se aproximou por interesse... o que havia de
errado comigo?
Com Thanos eu descobri a felicidade em poder ser eu mesmo. Ele aceitava tudo, e
gostava de mim por quem eu era, sem nunca me julgar. Não podia ser só fingimento, eu queria
acreditar que não era.
"Talvez eu queira comer alguma coisa." Falei. Eu precisava ser forte, ou pelo menos
um pouquinho otimista.
Rosier riu, beijou minha testa e balançou o sininho dos criados.
"Você vai adorar. Escalopes à bechamel com purê de alho e ceviche. Os criados
conhecem o seu paladar."
Eu forcei um sorriso e sequei as lágrimas. "Na verdade eu preferia um potão de
sorvete."
Rosier riu, e me ajudou a levantar. O mordomo já aparecia com diversos pratos, sobre
um carrinho de metal.
"Pode levar de volta, Icanor. Eu e o Mi vamos à sorveteria." Disse ele ao mordomo.
"Prepararei imediatamente trajes de passeio aos patrões." O mordomo prestou
reverência e logo deixou o quarto.
Eu abri a boca para reclamar, mas pelo sorriso levemente ameaçador de Rosier ele não
aceitaria mais um pingo dos meus resmungos.
Droga, os freezers da mansão eram forrados de sorvete, ele precisava mesmo me fazer
sair?

****

Eu me mantive emburrado por todo o trajeto da limusine, mas, agora que estávamos ali,
naquela agradável sorveteria com mesinhas à beira do lago, eu podia entender as intenções do
Rosier.
Aquele era o parque que Thanos odiava, sim, mas para mim e Rosier aquela sorveteria
significava muito mais.
Eu suspirei o ar puro e aromatizado pelas árvores floridas, e saboreei outra colherada do
sundae de dez bolas que eu pedi. Horas depois da briga com Thanos, e eu já me sentia um
pouquinho menos péssimo.
Rosier pediu um sundae comum. Ele mastigava seu canudinho de biscoito com um
sorriso calmo, observando um grupo de crianças que ria animadamente, enquanto perseguia os
patos à beira do lago.
Eu também brincava de perseguir patos no dia em que conheci Rosier, quinze anos
atrás. Na época foi eu quem convenci meus pais a pagar um sorvete para ele. Pelos trapos que
ele vestia e pelo brilho maravilhado em seus olhos, talvez tenha sido o primeiro sorvete da vida
dele.
Desde o primeiro dia, Rosier e eu nos tornamos inseparáveis.
"Obrigado por ter me feito sair de casa." Falei.
Rosier riu, com um olhar perdido e nostálgico. "Não pode ser sempre você a ficar me
reerguendo."
Eu sorri, tomado pela mesma nostalgia. Muitas lembranças doíam, mas a maioria dos
meus momentos com Rosier eu guardava com carinho.
Rosier se espreguiçou em sua cadeira, claramente feliz em estar ali comigo.
"Quando herdei sozinho a fortuna do vovô, minha família me largou. Mas você ficou
comigo, Mi. Não saiu do meu lado, mesmo depois de tantas cirurgias."
Rosier esfregou o peito através da camisa, e eu abaixei o rosto. Era exatamente essa
parte que eu não queria lembrar.
"Não fiz isso esperando algo em troca. Você é meu melhor amigo, Rosier."
"E é por isso que você não precisa pedir desculpas, nem agradecer. Eu vou sempre te
ajudar, Mi. Se o Thanos é o cara certo, vou até o fim do inferno buscar aquele desgraçado, e
entregá-lo à você numa bandeja de prata."
Se eu ainda tivesse lágrimas, teria derramado algumas. Eu não merecia um amigo como
Rosier. Ele era o melhor dos melhores.
"Eu também arrastaria o Lúcio, se você soubesse ser mais sincero." Eu agitei minha
colher no ar, com um sorriso travesso nos lábios.
"Sincero?" Rosier riu alto "Estou sendo sincero, mon ami. A vida é muito curta para se
dormir com o mesmo cara duas vezes."
"Entretanto, depois do Lúcio, não vi mais ninguém frequentar sua mansão."
Rosier corou suavemente, e seu olhar tornou-se triste.
"Não posso me aproximar dele, Mi. Não seria justo." Ele forçou um sorriso. "Além do
mais, já viu quantos gostosões existem no Tinder? Essa cidade é como um menu degustação."
"Eu me aproximei de você e nunca me arrependi." Meu comentário dissolveu o sorriso
do Rosier. "E se Lúcio for sua pessoa certa? Tente uma vez na vida ouvir seu coração."
Rosier revirou os olhos. "Mi, por favor. Meu coração não é mais meu há muitos anos."
Meus braços arrepiaram em terror. Eu quase ouvia de novo o apito dos aparelhos
médicos.
"Não brinca com isso. Você sabe do que estou falando."
"É você quem não sabe do que estou falando, Mi. Você nunca soube." O olhar de
Rosier escureceu por uma fração de segundo.
Eu franzi a testa e tentei ler a expressão do Rosier, que recuperou seu sorriso perdido
para o nada. Ele era tão enigmático e confuso, às vezes.
"Faremos o seguinte. Eu ligo para o Thanos agora, se você prometer ter um encontro
normal com o Lúcio. Com direito a andar de mãos dadas, e trocar beijinhos."
Rosier alargou os olhos. "Você não está falando sério."
"Ah, eu nunca falei tão sério." Eu brandi meu celular no ar, estremecendo em
nervosismo. Ok, eu não queria fazer isso de jeito nenhum, mas pelo menos eu não seria o único
à beira de um ataque histérico.
Eu e Rosier ficamos nos encarando por um bom tempo, como num jogo de pisca-
último.
"Tá bom, liga pro seu maldito macho." Rosier bufou, como se não acreditasse nas
próprias palavras. "Mas você está me empurrando pro filho do próprio Satanás, e eu não vou
deixar isso barato."
"Como se Thanos não fosse um demônio, também. Não faz cara de surpresa, eu sei que
você sabe."
"Só liga pra ele. E sem chorar, não pareça desesperado."
"Sim, mamãe." Eu revirei os olhos e encontrei o número dele na agenda. A foto que
apareceu durante a chamada tamboreou meu coração. Thanos nem sabia que fotografei ele
dormindo, após a noite do chantili. Seu rosto parecia tão calmo e satisfeito que não pude evitar.
Ele era tão lindo.
Droga, Thanos nem havia atendido, e eu já estava chorando.
"Que demora." Rosier comentou, após um silêncio que parecia infinito.
No meu ouvido, o celular amplificava meu pânico a cada apito não atendido. Eu era o
único contato do Thanos. Ele sempre atendia rápido.
Sua ligação está sendo transferida para a caixa postal e estará sujeita à cobrança
após...
Eu desliguei a chamada com as mãos tremendo, e minhas lágrimas pingaram na tela.
"Ele já me trocou por outro." Falei, e imediatamente desabei a chorar.
Capítulo 18
Thanos

Se não fosse a cama no centro, eu nunca diria que aquele espaço enorme era um quarto.
Haviam diversos armários de madeira escura, quadros e esculturas de temática demoníaca,
equipamentos estranhos feitos de aço, correntes e couro e até uma piscina de água
avermelhada, com uma constante cachoeira de som calmo e relaxante. A luz avermelhada das
centenas de velas dava um ar promíscuo àquele lugar.
Lúcio me deitou naquela enorme cama. O cheiro de canela e orquídeas impregnado no
travesseiro me fez perceber que era a cama dele.
Eu tentei reclamar, mas minha voz tornou-se um grito agoniado, e eu voltei a apertar
meu estômago.
Maldição, nunca senti tanta dor.
"Avisei para se manter longe de comida humana. É venenosa para nós assim como
nosso ar é venenoso aos vivos." Lúcio vasculhou os milhares de frascos em sua penteadeira,
calmamente. "Agora que retornamos você vai melhorar logo, mas isso aqui acelerará o
processo."
Lúcio chacoalhou um pequeno frasco de cristal, com um líquido preto e translúcido no
interior. Ele sentou ao meu lado e cutucou meu joelho, sinalizando que eu tentasse esticar o
corpo.
"O que é isso?" Gemi, nada confortável em deitar seminu e vulnerável na cama no
príncipe estúpido.
"Óleo de Obelisco. Vamos recosturar sua alma no corpo de Incubus." Lúcio forçou
minhas coxas para baixo, expondo minha barriga que latejava, como se pegasse fogo.
Ele virou um filete do óleo negro próximo ao meu umbigo, deixou o frasco sobre a
mesinha de cabeceira, e começou a me massagear.
No começo eu urrei de dor, os dedos de Lúcio pareciam agulhas em minha pele
aflorada, mas em poucos segundos a dor tornou-se suportável.
Minha respiração começou a acalmar e eu relaxei os músculos, enfim percebendo o
conforto daquele colchão macio, e o geladinho gostoso dos lençóis de cetim vermelho.
"Sua barriga é tão durinha. Se não fosse meu amor pelo Rosier, eu me sentiria
torturado." Lúcio riu, admirando as quatro saliências de músculo enquanto alisava óleo por
entre cada uma.
Eu franzi a testa para o comentário. Preferia não pensar na esquisitisse dessa situação,
afinal eu também tinha o...
"Puta merda, o Miguel." Eu bati as mãos na minha testa, só então percebendo o quanto
minha cara ardia.
"Cuidado com o rosto. Seu nariz consertará em minutos, se parar de mexer." Lúcio me
alcançou o lencinho de seu casaco, e subiu a massagem da barriga para o meu peito. O calor
sobrenatural do óleo penetrou minha pele, transformando a dor num formigamento relaxante.
"Ele disse que me odeia." Solucei, limpando o sangue e as lágrimas com o lencinho. "O
quê eu faço agora?"
"Por enquanto você descansa. Seu corpo só estabilizará amanhã, e preciso pensar em
como distrair o papai."
"Amanhã?" Gritei, apalpando os lençóis. "Cadê meu celular? Preciso ligar pra ele."
"Acha que temos sinal por aqui?"
Meu coração apertou dolorosamente. Um dia inteiro sem ver Miguel? Eu precisava me
desculpar. Precisava que ele me abraçasse e perdoasse por tudo.
Eu te odeio, ele me disse, com lágrimas em seu rostinho lindo. Em poucas semanas fiz
ele chorar duas vezes. Que fracasso de namorado eu consegui me tornar.
"Me leva de volta. Agora." Eu falei, tentando me levantar da cama. Minha visão borrou
imediatamente, e Lúcio me empurrou a deitar de novo.
"Você fica aí. Eu mesmo volto, e esclareço tudo com..."
Alguém bateu na porta do quarto. Meu sangue gelou ao imaginar que fosse Lúcifer.
Pelo temor no olhar de Lúcio, essa possibilidade era bem real.
Mas quem entrou foi um demônio magrinho e baixo, com aparência de dezesseis anos.
Olhos azuis e cabelos loiro-platinados, quase brancos. Os chifres e cauda eram iguais aos
meus, mas ele também possuía asas negras. Suas minúsculas roupas de vinil preto me
lembravam a noite embaraçosa no pátio do Miguel. Ele também usava um aventalzinho rosa e
uma vassoura nas mãos.
"Mestre, Lorde Lúcifer exige sua presença na sala do trono."
Lúcio bufou, e secou a mão oleosa no lencinho que devolvi. "Aquele velho não sabe me
deixar em paz." Ele se levantou e entregou o frasco ao garoto. "Obrigado, Gideon. Por favor,
continue o tratamento por mim."
O garoto fez um beicinho irritado e bateu a vassoura no chão.
"Primeiro me deixa de faxineiro, agora sou garoto de recados e médico, também?"
Gideon grudou o corpo no de Lúcio e inclinou o pescoço para olhá-lo nos olhos, de um jeito
suplicante. "Sinto sua falta, mestre. Por favor, me aceite de volta."
Lúcio afagou os cabelos quase brancos de Gideon.
"Não existe mais harém, Gideon. Meu coração pertence ao Rosier, agora."
"O mestre entrega seu coração a quem merecer, mas meu corpo sempre será do mestre,
não é?" Gideon deitou a cabeça no peito de Lúcio.
"Eu preciso ver o papai. Conversamos depois, está bem?" Lúcio passou por ele. "Seja
gentil com Thanos. Ele é importante para mim."
Lúcio fechou a porta, me deixando sozinho com Gideon.
Eu deitei a cabeça nas mãos, incerto sobre como lidar com aquela situação. Eu nem
conhecia o garoto, e ele já me encarava em ódio profundo.
"Ótimo. Eu massageio o recém-chegado, também. Em uma semana estarei limpando as
latrinas com as mãos." Ele jogou a vassoura no chão e se aproximou de mim enquanto virava
óleo nas mãos. Ele parecia menos disposto a me massagear, e mais disposto a enterrar o punho
na minha bunda.
"Olha, Gideon, eu mesmo posso fazer isso." Falei, agitando as mãos e recuando na
cama.
"Deita quieto, ou eu te faço aquietar." Ele rosnou, subindo sobre mim com a agilidade
de um gato. "Nunca desobedeci uma ordem do mestre, e essa não será a primeira."
Eu considerei tentar sair correndo, mas assim que Gideon agarrou minha barriga, ele
passou a me massagear delicadamente. Sua postura e espressão facial não condiziam em nada
com a delicadeza de seus dedos. Era meio aterrorizante.
Mais confortável do que eu gostaria de admitir, eu relaxei nos travesseiros macios e
deixei ele continuar.
Eu vasculhei minha mente pensando em algum assunto, sem descolar os olhos daquele
par de asas emplumadas e escuras que ele abanava, para enfatizar seu desagrado. Talvez eu
devesse fazer amizade, antes de perguntar?
Antes que eu falasse, o garoto me interrompeu.
"Você é o novo brinquedo do mestre?" Ele perguntou.
"Não. Digo, eu iria ser, agora não sei mais."
"Como um cara como você conseguiu falhar na aposta? Digo, alguns não conseguem
apaixonar o humano, outros não conseguem matá-lo depois. Mas a maioria passa,
especialmente os mais bonitões."
"E em qual parte você não passou?" Perguntei.
O garoto riu, orgulhoso.
"Eu nunca tentei. Quando mestre Lúcio me resgatou do lago de sangue ele me ofereceu
o joguinho dele. Escolhi serví-lo." Ele alargou um sorriso confiante e abanou a cauda. "Eu fui
o primeiro do harém."
"Você escolheu ser escravo dele?"
"Você é cego? Não vê o quanto ele é lindo? E carismático? E bondoso?" Gideon
apertou as unhas na minha barriga, entretido com os próprios pensamentos.
Eu ri, começando a gostar desse tal de Gideon. Eu não precisaria manipulá-lo, mas
melhor ser cauteloso. Meu futuro com Miguel dependia do que eu conseguisse extrair dele.
"Ainda tenho sete dias, com meu humano. Sem o harém, não sei para onde iria se eu
falhasse. Um incubus sem asas não deve ser muito útil." Tentei, calculando cada palavra.
Gideon riu, me dispensando com um gesto da mão.
"Quanta bobagem. Metade do harém do mestre nunca brotou asas, e ainda assim estão
por toda parte. Uma das favoritas trabalha na cozinha e odeia cada minuto, mas o que posso
fazer? O mestre nos mimava demais."
"Você tem asas, e não parece estar muito melhor." Eu olhei para o avental, que não
combinava em nada com o resto da roupa.
"Nem me fale. Mas asas são o básico do básico. Apenas as almas mais fracas não
podem voar. Quando eu brotei as minhas..."
"Espera, você também não tinha asas, no começo?" Eu não podia perder essa brecha.
Arriscando ou não, era essa a parte que me interessava.
Para meu nervosismo, Gideon encolheu os ombros, e suas mãos tremeram na minha
barriga. Seus olhos cintilaram numa expressão de tristeza.
"Não quero falar sobre isso."
Como se pisasse em ovos, eu escolhi minhas próximas sílabas. Esse garoto era um
incubus, como eu. E conseguiu brotar asas. Eu precisava descobrir como.
"Eu adoraria poder voar, também. Deve ser divertido."
"Não, você não quer ter asas. É bom que não tenha, significa que você não tem
maldade." Gideon esticou as próprias asas e as observou como se fossem pedras amarradas no
corpo.
"Como assim, não tenho maldade?"
Gideon parou a massagem e sentou do meu lado, me estudando com seus olhos grandes
e juvenis.
Após um longo suspiro, ele acariciou os lençóis de cetim, e começou a falar.
"Quando o mestre me transformou em incubus e me trouxe, éramos só nós dois. Eu
servia o mestre. Realizava seus desejos mais bobos e os mais estranhos sem nunca hesitar. Mas
o mestre não se satisfez comigo, e começou a trazer outros. Logo eu me tornei só mais um, em
um harém que passava de vinte. O mestre não usava todos ao mesmo tempo, óbvio, e me
encarregou como líder do harém. Eu sabia o que o mestre desejava, antes que ele mesmo
soubesse. Eu planejava a programação da noite, e trazia os membros mais adequados à cada
atividade. Entende? Eu não organizava orgias, entende? Eu projetava arte."
Eu arqueei minha sobrancelha, tentando não transparecer o quanto achava isso
estranho.
Gideon baixou o rosto, entristecendo.
"Claro que, como líder, eu sempre participava. Eu queria dar prazer ao mestre, fazer ele
feliz com o corpo que ele me deu. Mas cada vez mais ele me ignorava. Os incubus mais novos
passaram a ser mais fortes, intensos, e musculosos. Os gostos do mestre mudaram e ele me
descartou como um brinquedo velho."
"Você já tinha asas, nessa parte?"
"Não. Eu era apenas um garoto tímido competindo com estátuas gregas espetaculares,
como você." Gideon coçou a nuca, encabulado. "O mestre simplesmente me esqueceu, então
bolei um plano. Numa das noites eu deveria ter chamado seis membros, conforme a
programação que escrevi, mas eu apareci sozinho. O mestre já aguardava despido em sua
cama, lindo e calmo como as ondas do rio Styx. Ele estranhou me ver desacompanhado.
Onde estão os outros? Ele me perguntou, mas eu apenas tranquei a porta, deixei cair
minhas roupas e sorri cheio de maldade. O mestre arregalou os olhos em surpresa, quando me
joguei em cima dele. Ele soube na hora o que iria acontecer."
Apesar do sorriso, o olhar de Gideon tornou-se trágico e sombrio. Eu não soube o que
pensar, nem muito menos o que responder. Algo naquela história não encaixava muito bem.
"O mestre nunca me puniu, pelo contrário, passou a me dar mais atenção. As asas
apareceram logo na manhã seguinte, pesando as minhas costas." Gideon agarrou um chumaço
de penas e arrancou, fazendo respingar sangue. "Meu castigo por ter violentado o mestre."
Eu abri a boca, assistindo-o soltar as penas ensanguentadas pelo colchão, com um olhar
vazio.
"Escuta, Gideon. Não me leve à mal, mas o Lúcio poderia te quebrar ao meio sem
nenhum esforço. Não acho que ele tenha interpretado da mesma forma."
Gideon secou uma lágrima e me olhou como se eu fosse um idiota.
"Por quê você quer ter asas?"
Eu suspirei lentamente. Se Gideon conseguia ser tão sincero comigo, eu precisava fazer
o mesmo.
"Lúcifer vai me matar. Ele pretende usar meu corpo de incubus numa alma mais forte."
"Mais soldados? Eles estão por toda a parte ultimamente, mas o inferno tem vivido em
paz há séculos!"
"Não sei sobre isso. Mas eu preciso de asas, e preciso ser forte como um soldado. Lúcio
vai sofrer muito se eu morrer, e meu humano também."
Gideon torceu o lábio, pensativo. "O quanto esse humano gosta de você?"
"Ele me ama e..." Minha voz engasgou. "...eu também amo ele, eu acho."
Gideon riu, dessa vez de forma sombria. Ele se curvou e deitou o corpo sobre mim,
serpenteando sobre a minha barriga oleosa até se acomodar, com o rosto pertinho do meu.
"Perfeito. Posso conseguir asas para você também." Ele disse, e uma sensação esquisita
me fez arfar, eletrizado por faíscas de prazer. Gideon enroscou sua longa cauda na minha e
atritou uma contra a outra. A sensação era indescritível. Minha pele se arrepiou.
"Não. Para com isso!" Supliquei, perdendo as forças. A carícia na minha cauda aflorava
cada nervo do meu corpo, especialmente lá atrás. Gideon subiu a mão oleosa para o meu
mamilo, e o simples toque me fez gemer.
"Você nunca fez com outro incubus?" Gideon soltou uma risadinha fascinada, e beijou
meu pescoço. "Vou lhe dar a honra de ser seu primeiro. Enquanto isso concentre-se em
lembrar do humano. No quanto vai destruir seu coração quando contar o que fizemos."
Eu tentei me debater, mas o óleo também anestesiava meus músculos. Me restava
apenas gemer, enquanto Gideon deslizava o quadril ossudo pela camada de óleo entre nós dois,
fazendo meu corpo pulsar contra a minha vontade.
"O poder de um incubus nasce da maldade. Quebre o coração do humano e talvez você
até consiga manipular fogo, como os nobres." Falou ele, também começando a ofegar.
Meu corpo inflamou, mais de raiva que de prazer. Gideon demonstrava fácil toda a sua
experiência. Ele mal havia me tocado, e eu já começava a me perder em sensações intensas.
Mas nem fodendo que eu iria tão longe por uns poderes estúpidos.
"Sai de cima de mim!" Eu reuni todas as minhas forças e empurrei Gideon para trás.
Pequeno e leve demais, ele caiu no lado oposto do quarto.
"Ai..." Ele massageou a cabeça, e me fuzilou com um olhar magoado. "Estou tentando
te ajudar, seu babaca!"
"Você é retardado? Eu amo o Miguel, eu disse! Não vou trair ele com ninguém!"
Gideon fez um beicinho indignado e ferido, e eu quase me senti mal por ele.
Esse incubus era meio idiota, mas não parecia ser ruim. Poderes demoníacos e
crueldade não dependiam um do outro tanto quanto Gideon imaginava.
"Vai reclamar de mim pro mestre?" Perguntou ele, cheio de medo na voz.
Eu sorri e apontei para a minha barriga brilhante de óleo. A dor havia desaparecido
completamente. "Direi que você é um excelente massagista."
Gideon abriu um sorriso brilhante e se levantou. As roupas dele também brilhavam,
completamente besuntadas após sua tentativa ridícula de me seduzir. "Eu faço massagens ainda
melhores, com o meu..."
"Não termine essa frase." Eu ri, levemente assustado. Se tudo desse errado e eu fizesse
parte do harém do Lúcio, eu podia imaginar Gideon e eu como bons amigos. "Ah, mais uma
pergunta. Como volto para o Miguel?"
"Não posso ajudar com isso. Apenas os nobres podem teleportar entre planos." Gideon
ergueu a vassoura com a cauda e deixou o quarto, todo contente. "Ah, como você é legal, vou
dar uma dica. Existe um meio de tornar-se anjo sem matar ninguém. "
Eu arregalei meus olhos, sentando na cama em um salto. "Existe?"
"Apenas mortais podem morrer, não concorda? Mas não tente me conquistar, bonitão.
Meu corpinho gostoso e a minha alma são todinhos do mestre Lúcio."
Eu suspirei em frustração, enquanto Gideon fechava a porta. Um conselho desses não
me ajudaria em nada.
Sozinho no quarto, eu me levantei e debrucei na janela, me assustando com a paisagem.
Pela altura e pelas torres vizinhas, estávamos em um castelo negro, com espetos e
gárgulas nos telhados. Iluminada pelo céu vermelho e sem sol, havia uma imensa construção
de pedra ao longe, com barras em todas as janelas e muros com arame farpado. Mais além
havia apenas chão de terra rachada, até onde a vista alcançava.
Que merda. Gideon não foi útil como esperava que fosse. O jeito era esperar Lúcio, e
reencontrar Miguel o quanto antes.
Capítulo 19
Thanos

Eu ajeitei os ombros do casaco em frente ao enorme espelho, um tanto encabulado. As


roupas de Lúcio serviam bem em mim, mas nunca vesti esse tipo de coisa. Casaco longo e
preto com apliques dourados, lenço de seda no pescoço e sapatos com detalhes em vermelho.
Não sei se eu parecia um príncipe das trevas ou um cosplayer.
"Se continuar fazendo essa cara, te levo de volta nas mesmas cuecas que veio." Lúcio
riu, terminando de comer um sanduíche preto enquanto se espreguiçava calmamente, em sua
cama.
"Como aguenta comer essa porcaria?" Eu torci o lábio, ignorando o roncar do meu
estômago. O purê de carne do jantar havia sido intragável, e o almoço conseguiu ser pior que
dividir a cama com o Lúcio.
Eu bufei em aborrecimento. Ok, Lúcio precisava me proteger de Lúcifer, e também não
tentou tocar em mim, mas minha estadia no inferno estava sendo um pesadelo. Passar um dia
inteiro longe de Miguel começava a me enlouquecer.
"Podemos ir, agora?" Eu passei minha cauda pelo furo da calça, ansioso.
"Claro, só preciso..."
"Mestre, você já vai?" Gideon apareceu na porta, dessa vez com um espanador e uma
tiarinha de empregada francesa.
Eu me contive para não gritar. Puta merda, não outro discurso sobre suas espetaculares
habilidades corporais.
Nem um pouco apressado, Lúcio sentou na cama e deixou Gideon subir em seu colo.
Ele acariciou seus pequenos chifres como se Gideon fosse um carneirinho de estimação.
"Preciso ajudar Thanos com o humano dele, e também reencontrar o meu. Cuide das
coisas por aqui, e me informe sobre qualquer problema com o papai."
"Eu faço tudo, tudo tudo, pelo mestre." Gideon cutucou dois dedos na testa. Eles
sabiam telepatia, também? "Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, não esqueça de mim.
Ninguém conhece o corpo do mestre como eu conheço. Só de imaginar o mestre sendo mal
servido eu... eu..." Os olhos de Gideon formaram lágrimas.
"São apenas alguns dias, não exagere." Lúcio levantou Gideon de seu colo e veio até
mim. "Prepare-se, Thanos."
Eu concordei com determinação e me agarrei no casaco de Lúcio, assistindo o tornado
se formar ao nosso redor.
"Boa sorte aos dois." Gideon acenou para nós.. "E Thanos, me desculpe por ontem."
Eu tentei dizer que tudo bem, mas instantaneamente apareci noutro lugar. A sala da
minha casa.

****

"Seu escravo é dedicado demais." Falei, vasculhando as almofadas do sofá em busca do


meu celular.
Lúcio me ajudou a procurar.
"Gideon é um poço de energia infinita. Ele ainda age como um adolescente, mesmo
após duzentos anos."
"Duzentos anos?" Eu gritei, em choque. "Lúcio, quantos anos você tem?"
Lúcio não respondeu, mas enfim, foda-se. Eu abanei minhas roupas jogadas pelo chão,
e meu celular voou do bolso da calça. Eu o peguei no ar, e liguei a tela.
Eu não sabia se ria ou se chorava. Dez chamadas não atendidas do Miguel.
Com o coração na boca, eu retornei a ligação. Miguel quis falar comigo. Ele talvez não
me odiasse tanto assim.
Merda. O celular dele estava desligado. Tudo bem, ele provavelmente estava na mansão
do amigo.
"Lúcio, me leva até..." Eu olhei para trás, e o filho da puta já havia sumido.
Eu tentei acalmar minha respiração, e vi as estrelas através da fresta na cortina. Àquela
hora da noite Miguel devia estar dormindo. Eu precisava ser razoável, e aguardar até de
manhã.
Tremendo e com o peito saltando, eu aguentei uns dez segundos até correr para a porta.
Que se foda, eu nunca fui um cara razoável.
Eu abri a porta de entrada e, para meu espanto, Miguel caiu para trás, batendo a cabeça
entre as minhas pernas.
"Miguel? Você dormiu aí?"
Miguel contraiu as pupilas como se visse um fantasma.
"Eu... um..." Miguel sentou, e eu o ajudei a levantar. O vermelho embaixo de seus olhos
apertou meu peito. "Eu liguei e liguei, mas a bateria do meu celular acabou e você não atendia
a porta, então... desculpa, você deve me achar um psicótico."
Eu envolvi Miguel em meus braços e apertei, com força. O coração dele batia
acelerado, e seu corpo quente pressionava contra o meu, tremendo.
"Desculpa." Falei, beijando seus cabelos ruivos e macios. "Eu fui um completo
imbecil."
Miguel soluçou pesado contra o meu ombro, e me abraçou.
"Pensei que tivesse me deixado." Miguel chorou pesado. "Eu falei coisas horríveis e te
machuquei."
Eu sorri e alisei a ponta do nariz, que parecia intacta. "Precisa mais que isso para
derrotar um demônio."
Pensei que Miguel fosse rir, mas ele só chorou ainda mais.
"Você precisa mesmo me matar?"
Meu peito latejou dolorosamente. A verdade precisava ser dita.
"Vamos nos sentar. É uma longa história."
Eu e Miguel nos ajeitamos no sofá e eu respirei fundo, resolvendo começar do começo.
Contei sobre minha rejeição nos portões do céu. Sobre o deserto de vendavais infinitos e meu
primeiro encontro com Lúcio. Miguel se horrorizou com nossa aposta, mas garanti a ele que
Lúcio havia mudado de idéia, e que Rosier talvez fosse o motivo. Explicar que me aproximei
dele pela nossa aposta foi a parte mais difícil. Mas Miguel percebeu a mudança nas minhas
intenções. Ou pelo menos eu esperava que sim.
"Por isso não pode me beijar?" Miguel agarrou a barra do meu casaco, pensativo.
"Pensei que não gostasse de mim."
"Eu..." Eu não sabia como responder, sem complicar ainda mais nossa situação. "...Meu
plano era ascender como anjo e te esperar lá em cima. Mas descobri que é impossível."
Miguel arqueou a testa de um jeito fofo. "Mas restam apenas cinco dias. Como vamos
continuar namorando?"
Eu olhei para o teto, esperando que Miguel não percebesse meu desespero. Não havia
'continuar namorando'. Miguel viveria várias décadas até se tornar um anjo, e eu, na melhor
das hipóteses, serviria aos demônios nobres com Gideon e os outros incubus.
"Eu posso me tornar malvado." Miguel forçou um sorriso. "Eu posso... pisar na grama,
e atravessar a rua fora da faixa. E também deixo de avisar a senhorinha da padaria, quando
errar meu troco."
Eu teria dado risada, se não fosse triste.
"Você já mudou uma vez, pelo idiota do seu ex-namorado. Não mude por mim,
também."
"O que eu faço, então?" Miguel me agarrou pela gola, e nos derrubou no sofá. "Sento e
assisto você desaparecer da minha vida? Você não vai simplesmente voltar ao inferno, Thanos.
Se sua alma for dissolvida, não vai ser tipo morrer para sempre?"
Eu beijei a testa do Miguel, querendo tanto, tanto, sentir seus lábios macios nos meus.
No fundo, eu continuava um completo egoísta. Minha chance de sumir e deixar Miguel
ter uma vida feliz era agora, entretanto eu só conseguia mergulhá-lo nos meus problemas ainda
mais.
"Ninguém vai dissolver minha alma. Eu vou dar um jeito de continuarmos juntos, e
você vai me ajudar com isso."
Miguel me lançou um olhar tão esperançoso, que uma pontada de culpa alfinetou meu
peito. As chances do meu plano funcionar eram ínfimas, mas enquanto Miguel estivesse ao
meu lado, eu seria capaz de qualquer coisa.
"Vamos descansar por hoje." Falei. "Amanhã voltaremos ao seu pátio e treinaremos de
verdade. Quando Lúcifer me aceitar em suas tropas, terei muito tempo para planejar nosso
reencontro."
Miguel abriu um sorriso tranquilo e pareceu relaxar, acomodando seu lindo corpo
torneado sobre o meu. O aroma de hortelã em seu pescoço me inebriava e me fazia querer não
soltá-lo mais.
"Eu te amo." Ele me disse.
Ouvindo o pulsar violento dos nossos corações, eu abracei Miguel ainda mais apertado.
"Eu também te amo."
Capítulo 20
Miguel

Eu inalei o aroma gostoso do chá de cidreira, bebendo da minha xícara enquanto Lúcio
e Rosier provavam meus biscoitinhos de gengibre.
Montar a mesa de jardim foi uma boa idéia. Com o estresse dos últimos dias, um
lanchinho sob o vento fresco do fim da tarde me permitia descansar. E a companhia de Rosier
e Lúcio me agradava.
Passos adiante, em meio às laranjeiras do pátio, Thanos treinava socos e chutes no ar. O
casaco exagerado que Lúcio lhe presenteou esvoaçava a cada voadora e golpe de cauda.
Tadinho, ele já treinava há cinco horas e, até agora, nem sinal de asas ou faíscas.
"Não posso mesmo oferecer uns chocolates?" Perguntei ao Lúcio, apontando para as
trufas de avelã que preparei mais cedo. "Ele parece tão cansado."
"Já expliquei, ele não pode." Lúcio descansou sua xícara na mesa com a graciosidade
de um monarca. "Uma pena. Sua culinária humana é magnífica."
Percebendo o olhar distraído de Rosier, Lúcio deslizou dois dedos pelo lado da orelha
dele e cheirou seu cabelo macio. "Não concorda, amor?"
Rosier se arrepiou tanto que quase deixou a xícara cair. "Não me chama assim!" Falou
ele, vermelho como o pôr-do-sol.
Os esforços de Rosier em não ser abraçado me fizeram rir. Ele cumpriu mesmo sua
promessa em sair com Lúcio, mais cedo naquele dia. Não sei onde foram, mas percebi que
Rosier vestia um anel de rubi no dedo indicador, com padrão de caveiras na parte da argola.
Ele nunca vestiu acessórios antes.
Lúcio conseguiu arrancar um beijinho de Rosier, que simplesmente não conseguia
manter-se bravo. Ele começou a rir e abraçou o pescoço de Lúcio, deixando-se beijar várias
vezes. A cada beijo ele correspondia um pouquinho mais.
Sem querer distraí-los eu retornei à cozinha, e separei pratinhos de sobremesa. Ainda
havia o bolo de morango, e acho que me superei neste aqui. Chantili deixava tudo mais
interessante.
Ah, como eu queria que Thanos provasse. Mas saber que ele se envenenou comendo
meus pratos ainda me aborrecia. Ele devia ter me dito alguma coisa.
Enquanto eu ajeitava o morango central até ficar perfeito, Lúcio entrou na minha
cozinha, desacompanhado.
"Não precisam se interromper." Falei, eu mesmo um pouco corado. "Vim apenas buscar
a sobremesa."
Lúcio sentou na bancada da pia. Ele cruzou os braços e me encarou pensativo,
abanando a ponta da cauda.
"Sou um cara otimista, meu querido Miguel. Mais do que deveria..." Ele disse, com
uma expressão que eu não soube ler direito. "...mas minhas esperanças com o Rosier se
esgotavam aos poucos, até hoje cedo. Você fez alguma coisa, para ele me procurar."
Eu sorri, um tanto orgulhoso de mim mesmo. "Talvez. Como foi seu encontro?"
Lúcio se manteve sério e afinou seus olhos de íris avermelhadas.
"Eu pretendia escravizar seu querido Thanos. E não teria movido um dedo quando ele
tentasse te matar. Sem falar que sou o príncipe do inferno, filho do grandioso Lúcifer. Por que
me ajudou?"
Eu ri baixinho, enfim entendendo onde ele queria chegar.
"Você certamente já descobriu a cicatriz no peito do Rosier, e as pilhas de remédios."
Falei.
Lúcio estreitou os ombros e engoliu seco.
"Quanto tempo ele ainda tem?"
"Os médicos disseram cinco anos, seis anos atrás, então não sei." Eu ajeitei o morango
central de novo, que insistia em se inclinar. "Ele voltou à fila de transplantes esse ano. Espero
que tenha a mesma sorte uma segunda vez."
"Por isso nos juntou? Apaixoná-lo pelo filho de Lúcifer ainda é melhor que deixá-lo
morrer sozinho?"
Contendo a sensação amarga no meu estômago, eu sorri para ele e escondi minha dor
bem lá no fundo.
"Eu tenho esse dom estranho de ver boas intenções nas pessoas. Digo, não é um poder
mágico, nem nada assim, apenas algo que Rosier costumava me dizer. Quando eu te vi aquela
vez, no sofá do Thanos, eu soube na hora que você não era ruim, Lúcio."
"Ainda pensa isso agora, quando me recusei a treinar ele? Há quatro dias do fim do
prazo?"
"Rosier tem seus motivos para manter-se emocionalmente distante, e eu tenho motivos
para querer que Thanos sobreviva. Você também tem suas próprias motivações, Lúcio. Não te
acho ruim por isso."
Lúcio me encarou como se não acreditasse. Ele respirou fundo e olhou para o teto,
movendo os lábios como se pensasse muito bem no que iria falar. Mas ele se manteve quieto.
Eu toquei seu joelho, e sorri para ele.
"Thanos me contou tudo o que aconteceu. Sobre você tê-lo resgatado, e tratado o
envenenamento. Ele também contou que a maioria do seu harém não é alado, uma
característica dos incubus mais fracos. Mas é do inferno que estamos falando, então o que seria
essa fraqueza?"
Lúcio estremeceu, assustado como se eu penetrasse dentro de sua alma. Thanos não
percebeu quando me contou os discursos exagerados do outro incubus, mas para mim tudo se
tornou claro.
"Incubus e succubus costumavam ser criaturas de beleza e sensualidade." Falou Lúcio.
"Utilizá-los como armas é uma afronta à tudo o que o inferno representa. Desencadear uma
guerra é exatamente o que os anjos querem, mas o papai não percebe isso."
"Então você impediu a criação de soldados, transformando outro tipo de alma. Mas não
foi uma escolha aleatória, foi?"
Pelo temor nos olhos de Lúcio, eu estava certo. Talvez eu tivesse mesmo um dom
especial?
"Já conversamos o suficiente." Lúcio se levantou e apressou-se de volta ao pátio.
Eu o segurei pela mão.
"Você não quer ver Thanos como um soldado, e eu também não. Mas em quatro dias
seu pai dissolverá a alma dele. Você é o único que pode ajudá-lo."
Lúcio suspirou. "Nunca daria tempo."
Eu apertei a mão dele com força. "Pretende abandonar uma alma com chance de
salvação?"
Lúcio e eu nos encaramos por um longo momento.
Após o que pareceram vários minutos, Lúcio esfregou a ponte do nariz, suspirando.
"Posso ensinar o básico, mas..."
Meus olhos brilharam, e eu me joguei no corpo alto de Lúcio, abraçando sua cintura.
"Obrigado." Exclamei, sentindo que poderia chorar de alegria.
Posso ter me enganado sobre Érico, mas meus amigos mereciam toda a minha
confiança, e meu amado Thanos também.

****

Thanos caiu para trás e rolou pelo gramado.


"Chama isso de ataque? Você é um demônio, use todo o corpo!" Lúcio saltou na
direção de Thanos, mirando o calcanhar em sua cabeça.
Thanos desviou para o lado no último segundo e impulsionou-se com a cauda para se
levantar.
Antes que ele se reequilibrasse, Lúcio já torcia o corpo ágil num chute giratório,
acertando o ombro de Thanos com o cotovelo da asa e o fazendo cair de boca no chão.
Thanos deixou um rastro de lama no que costumava ser um lindo gramado.
Da minha cadeira, eu assistia à tudo com o coração na boca. Precisava de toda a minha
coragem para não correr até lá e abraçar Thanos.
"Seu namorado sabe como uma luta funciona?" Rosier servia-se de mais bolo enquanto
tentava manter o olho naquele combate que, eu precisava admitir, era meio frustrante.
"Ele fez caratê, na terceira série." Repeti o que Thanos me contou, mas até isso me
parecia difícil de acreditar.
Lúcio podia ser ágil e veloz como um... bem, como um demônio, mas acho que até eu
conseguiria vencer Thanos num combate corpo-a-corpo. Mesmo no auge de sua dedicação ele
desferia socos tortos, saltava ou muito cedo ou muito tarde, e não sei quantas vezes já tropeçou
na própria cauda.
"Você consegue, Thanos!" Falei, acenando a ele com meu sorriso mais fofo.
"Mostra pra ele quem manda, Lúcio!" Rosier imitou meus gestos perfeitamente.
Eu arregalei meus olhos pro Rosier. Não contei a ele o que estava em jogo, pelo bem de
sua saúde, mas Lúcio poderia levar o incentivo à sério.
E, de fato, Lúcio passou a atacar Thanos com o dobro da velocidade. Seus punhos
pareciam borrões de tão rápidos que eram seus socos. Thanos se defendia de um, desviava de
outro, e levava outros dez nos braços e ombros, sendo arremessado no chão pela centésima
vez.
Era inacreditável. A velocidade de Lúcio não só era absurda, como ele conseguia
facilmente mirar em pontos não vitais, usando o mínimo de força para derrubar Thanos sem
machucá-lo muito. Aquilo estava sendo uma brincadeira para ele.
Os gritos frustrados de Thanos eram como navalhas em meus ouvidos. Pelo menos sua
estamina parecia ser demoníaca, porquê ele se levantava vez após vez. Pelo peso em sua
respiração ele alcançava seu limite.
"Thanos, vocês estão nisso há duas horas. Façam uma pausa, por favor." Pedi.
"Não!" Thanos me fitou com seus olhos azuis, já meio inchados. "Não saio daqui até
quebrar esse... ah!"
Lúcio mergulhou em um ataque aéreo e chutou as costas de Thanos com a flexibilidade
de um leopardo, arremessando-o no chão antes de pousar graciosamente em suas costas.
"Seu oponente será alado. Não baixe a guarda." Lúcio deu um peteleco na orelha de
Thanos, com a parte chata da cauda.
"Então me faça ter asas também, seu desgraçado!" Rosnou Thanos, com o rosto
enterrado na grama.
"Asas mal treinadas são apenas um ponto fraco a mais. Um bom soldado torna sua
fraqueza em força." Ele equilibrou-se nos ombros de Thanos. "Agora pague trinta flexões e
vamos descansar. Acho que lasquei uma unha."
Obedientemente, Thanos tentou erguer-se nos cotovelos, com Lúcio ainda em cima. A
frustração em seus olhos era de cortar o coração.
Pelo sorriso enorme nos lábios de Rosier, ele vivia a maior diversão de sua vida.
"Meu namorado deu uma surra no seu namorado." Falou ele, contendo-se para não rir.
Eu franzi a testa, estranhando o sadismo de Rosier, mas na verdade ele estava certo.
Chorar e me angustiar não ajudaria Thanos em nada, apenas o faria sentir-se humilhado.
Tentando ver o lado divertido da situação, eu lancei um sorrisinho travesso ao Rosier.
"Namorado, é? O encontro de hoje foi tão bom assim?" Perguntei.
Rosier corou, mexendo no anel em seu dedo.
"Acredita que não existe cinema no inferno? Aquele idiota se divertiu tanto que eu...
tudo bem, você tinha razão. Ele não é um cara ruim." Rosier lambeu o chantili de seu morango,
e abriu um sorriso devasso. "Além do mais, acha que essa agilidade toda é novidade para
mim?"
Eu ri, e bebi o que era minha quinta xícara de chá de camomila. Nesse sentido Thanos
também era perfeito, mas... pena que adorava tanto ficar embaixo. Quem sabe um dia ele
quisesse inverter?
"Dezesseis, dezessete. Vai lá, Thanos!" Rosier levantou de sua cadeira, torcendo por
um pobre Thanos que mal aguentava se reerguer.
Eu me levantei e torci com ele, contando cada uma das flexões restantes com um
sorriso nos lábios. Thanos se esforçava para tornar-se um soldado, e até mesmo Rosier se
esforçava em expor seus sentimentos. Eu precisava me esforçar também, e me manter calmo.
Thanos precisava do meu apoio.
Capítulo 21
Thanos

O sol nem havia nascido, quando a porra do despertador tocou.


Eu tentei me espreguiçar, mas relampejos de dor me impediram até de erguer os braços.
Merda, era como ter sido atropelado por um caminhão.
Ao meu lado, Miguel também despertava aos poucos, ele abraçou meu pescoço ainda
mais apertado e pressionou o relevo de seus músculos contra os meus, um pequeno conforto
perto daquela dor horrível.
"Que horas são?" Ele resmungou, aninhando a cabeça entre o travesseiro e o meu
pescoço.
"Três da manhã." Respondeu uma terceira voz, na mesma direção do despertador.
"Levanta, meu querido discípulo. Você teve quatro horas para descansar."
Eu forcei lentamente meus olhos a abrirem, e então me sentei num salto.
"Lúcio! Sai da porra do nosso quarto!" Gritei, subindo os lençóis sobre o corpo seminu
de Miguel.
"Amanhã é o grande dia. Se prefere dormir, tenho um meio-francês espetacular me
esperando, no quarto de hóspedes." Lúcio desligou o apito irritante, e devolveu o despertador à
mesinha. "Vem, anda."
Eu esfreguei o rosto e olhei para meu corpo. Meus hematomas apareciam mesmo
naquela escuridão, roxos, pretos, e por todo o meu corpo.
Merda, dois de tortura e nem sinal das minhas malditas asas. Mas eu não podia me
desesperar, não ainda.
Assim que levantei, percebi Miguel fazendo o mesmo. Eu segurei seu ombro.
"Você tem aula, hoje. Volte a dormir." Eu disse.
"Acha que consigo estudar, assim?" Miguel bocejou, escondendo-se melhor sob o
lençol. "Bom dia, Lúcio. Já vou..." Ele bocejou de novo. "...preparar nosso café."
"Ótimo." Lúcio acendeu a luz, cegando a nós dois. "Pelo menos um de vocês tem força
de espírito."
Eu me vesti nos trajes de demônio nobre, me arrastando como um zumbi pelo quarto.
Meus pés inchados mal cabiam nas botas, minhas mãos não abriam totalmente, e eu não queria
me olhar no espelho.
"Maldito príncipe. Ele está adorando isso." Falei, tentando passar o casaco pelas costas.
Miguel me ajudou com o casaco e me abraçou por trás, suave o bastante para eu não
morrer de dor.
"Vai dar tudo certo. Eu acredito em você." Ele me disse.
Eu acariciei as mãos gentis de Miguel, e tentei tirar força das suas palavras. Mesmo
com a ajuda de todos, sabia que minhas chances eram nulas.
"Obrigado." Respondi, e arrastei meus pés até o pátio dos fundos. Mais um dia sendo
espancado pelo príncipe estúpido, sem conseguir sequer tocá-lo. Eu mal podia esperar.

****

Lúcio alisou seus cabelos para trás descontraidamente, e eu assumi a postura de


combate que ele ensinou. Um braço pronto para bater, outro encolhido para me proteger.
Cabeça baixa expondo os chifres, cauda pronta para interceptar golpes traseiros. E meus pés...
uh...
"Melhore essa postura!" Lúcio deslizou a cauda rente ao chão, me passando uma
rasteira.
Eu caí de cabeça no chão e gritei de dor. Se eu não fosse um demônio, acho que já
estaria morto. Meu corpo latejava tanto pelos outros dias que eu não conseguia me mover.
Em sua graciosa mesinha de jardim, Miguel assistia à tudo, bebendo uma térmica
inteira de café preto. Felizmente ele nunca tentou intervir. Eu não teria suportado a
humilhação.
"Vamos fazer diferente." Lúcio agachou e me estendeu a mão. "Tente me atacar
enquanto eu desvio."
Eu usei minhas últimas forças para bater na mão de Lúcio. Com as pernas tremendo eu
me apoiei nos joelhos, e lentamente me ergui por conta própria.
"Não. Nós vamos treinar de verdade." Eu arfava tão pesado que minha voz mal
conseguia sair.
"Você não está em condições." Lúcio segurou meu braço, com uma expressão
preocupada. "Faremos alguns exercícios leves, e mais tarde..."
"Mais tarde, nada!" Gritei. "De que adianta, afinal? Não vou conseguir asas, não vou..."
Eu calei a boca e me virei de costas, não querendo ver a reação de Miguel. Meus olhos
umedeceram, e eu tentei não chorar. Maldição. Eu nem queria ser um soldado.
Lúcio afagou meu ombro. "Ei, Miguel, poderia trazer algumas compressas de gelo?"
Miguel concordou, e correu para dentro da casa.
Assim que ele sumiu de vista, Lúcio me virou para ele, encarando-me com seriedade.
"Você está desistindo."
Longe de Miguel, pude deixar as lágrimas cairem. Meu peito doía tanto quanto meu
corpo destruído.
"Eu tentei! Não sou a porra de um soldado! O Miguel está sendo forte, mas... com asas
ou sem, amanhã iremos nos separar para sempre." Eu cobri os olhos, soluçando. "Miguel
continuará no plano dos vivos, e depois se tornará um anjo. Eu amo ele, Lúcio. Não vou
suportar."
Lúcio estalou a língua nos dentes, conflitado.
"Revelação." Sussurrou ele, com uma voz estranha que ecoou dentro da minha cabeça.
Eu olhei para o chão, espantado. Um círculo vermelho ondulava a partir de Lúcio,
fazendo brilhar o gramado em movimentos silenciosos e contínuos.
"O quê é isso?" Levantei os pés, assustado. O brilho cintilava pelas minhas botas, me
iluminando de baixo para cima.
"Um feitiço proibido, que pouquíssimos demônios são capazes de usar. Eu
secretamente aprendi a forma mais básica." A respiração de Lúcio acelerou, como se ele
escalasse uma montanha. "Demônios e humanos podem interagir entre si, mas anjos existem
em outra frequência. A Revelação permite que demônios e anjos possam se encontrar."
A luz vermelha inflamou e desapareceu como se nunca tivesse existido. Lúcio soltou
um gemido exausto e se escorou na laranjeira carbonizada de sua primeira demonstração.
"Demônios e anjos podem se encontrar?" Meu coração pulsou, e por um breve segundo
eu esqueci minha própria dor.
"Sou péssimo nisso." Lúcio riu, e secou o suor da testa com um lencinho. "Vou
aprimorar este feitiço por vocês, então faça sua parte e não decepcione aquele humano."
Meus lábios se curvaram em um sorriso. Se meu corpo não latejasse em dor extrema, eu
abraçaria o príncipe estúpido e meteria um beijo em seu rosto.
Eu reassumi a postura de combate com perfeição. "Espero que as compressas sejam pra
você, porque eu definitivamente vou te acertar!"
Lúcio pareceu gostar da determinação que ardia em meus olhos, porque ele saltou cinco
passos de distância e adotou sua própria postura de luta: ereto e elegante como um esgrimista,
sua cauda empinada fazendo o papel de espada.
Quando Miguel voltou e nos viu lutando, ele sorriu cheio de ânimo, o que só amplificou
minha energia. Eu errava um soco já preparando um chute. Foda-se que faltasse apenas um dia.
Lúcifer queria um soldado, e eu seria o melhor de todos.

****

Após dez horas de treino, Lúcio enfim me deixou descansar. Eu me estiquei na cadeira
de jardim entre Miguel e o amigo dele, recuperando o fôlego.
"Mais água, Thanos?" Rosier tentou me servir, mas eu peguei o jarro gelado e virei na
cabeça. "Oh, mon ami. Pelo menos temos sorvete."
"Você melhorou muito, hoje." O sorriso de Miguel acalmou meu peito. Ele me estendeu
uma colherinha do seu sorvete, mas, infelizmente, lembrou que eu não podia comer.
Maldição. Mesmo que eu nunca sentisse fome eu mataria por algo gelado, nesse calor.
Mas se Miguel podia aguentar o tédio em me assistir treinar, eu podia suportar o desconforto
do verão. Um demônio reclamando do calor seria simplesmente ridículo.
"Sim, fizemos progresso." O elogio de Lúcio me surpreendeu. "Você quase me acertou
umas... duas vezes."
"Uma delas porque você veio me beijar." Rosier fez um biquinho e Lúcio repetiu o ato,
todo satisfeito. "Tudo isso para Thanos conseguir asas, eu entendi bem? Me parece esforço
demais, não importa o tamanho dos seus fetiches, Mi."
Miguel engasgou no sorvete. "Não é fetiche meu. Thanos precisa de asas para
podermos nos reencontrar."
"Ah, ainda bem, pois eu lhe diria que asas só atrapalham." Falou Rosier, e logo
percebeu o olhar chocado e indignado do Lúcio. "Mas elas têm sua utilidade, como o guidão
de uma bicicleta." Ele deu um sorrisinho que revelou bem o que ele queria dizer.
Eu arregalei os olhos e corei. Miguel já me dominava completamente, na cama.
Imagina se tivesse onde se agarrar.
Lucio agitou suas asas, orgulhosamente. "Isso me lembra dos nossos planos de hoje,
amor."
Rosier concordou com a cabeça. "Se gostou do cinema, espere até conhecer a sala de
vídeo da minha mansão."
Os dois se levantaram e eu e Miguel nos entreolhamos, em choque.
"Vocês não podem ir! Lúcio, e o treinamento do Thanos? São recem três da tarde!"
Falou Miguel.
"Thanos precisa se recuperar." Falou Lúcio, erguendo o indicador quando tentei
discordar. "Sim, você precisa. Papai não vai querer um incubus que mal consegue se erguer."
Eu murchei os lábios, tentando não transparecer meu orgulho ferido.
"E minhas asas? Quando vou conseguir?" Eu tentei me levantar para impedir Lúcio,
mas minhas pernas não se moviam.
Lúcio olhou para mim e depois para Miguel, que aguardava ansiosamente a mesma
resposta.
"Amanhã conversaremos sobre isso." Falou ele, num tom de voz tão sério que me
torceu o estômago.
Merda! Com todo o meu esforço, eu realmente não iria conseguir?
Lúcio partiu com Rosier e eu espremi meus punhos sobre a mesa até esbranquiçarem.
Miguel os cobriu com suas mãos macias e sorriu para mim.
“Lúcio está certo. Se descansar agora, estará bem quando Lúcifer aparecer.” Falou ele.
"Posso preparar seu banho?"
Eu nunca quis tanto pedir desculpas e desabar em lágrimas, mas eu apenas sorri de
volta, e disse que sim. Miguel estava dando tudo de si por mim, ele não merecia ver meu
desespero.
"Vou encher a banheira." Miguel beijou minha testa. "Acha que consegue se lavar
sozinho?"
"Eu não sou um inválido só porque..." O sorrisinho de Miguel me fez engolir minhas
palavras. "...hum. Talvez eu precise de ajuda."
"Eu comprei uma lufa nova, daquelas importadas. E uns óleos aromáticos." Ele
sussurrou no meu ouvido.
Uma risada nervosa escapou da minha boca. Eu não iria sobreviver. Miguel detonaria a
única parte de mim que ainda não ardia.
E eu mal podia esperar.
"Acha que cabemos os dois, naquela banheira?" Perguntei, me levantando com esforço.
"Claro que sim." Miguel lambeu os lábios, com um sorriso pervertido. "A ideia é
justamente..."
Um súbito vendaval esvoaçou meu cabelo, e fez voar os guardanapos da mesa de chá.
Eu me virei para trás, estranhando a mudança de tempo. Não era um simples vento. Um
tornado negro se formava no centro do pátio, entre as laranjeiras sobreviventes e o gramado
semi-destruído.
Miguel segurou meu braço, tão surpreso quanto eu. "Lúcio?"
A escuridão espiral se dispersou, e meu sangue tornou-se gelo ao perceber quem era.
Alto e muito musculoso, queixo quadrado, três pares de asas e uma imensa espada no
cinto do casaco. Lúcifer virou-se para nós, com um olhar tão ameaçador quanto da primeira
vez.
Eu puxei Miguel para trás de mim, colocando-me entre ele e Lúcifer. Não fazia sentido.
Deveríamos ter um dia inteiro.
"Outro incubus sem asas." Lúcifer expôs os dentes para mim, em desprezo. "Meu filho
tolo insiste em transformar os mais medíocres."
Cada passo de Lúcifer em nossa direção parecia estremecer o mundo ao meu redor, ou
talvez fossem minhas pernas, ameaçando ceder.
"Thanos não é medíocre!" Miguel tentou passar por mim, e eu estendi meus braços para
bloqueá-lo. "Você quer um soldado, não quer? Ele será perfeito para o seu exército!"
A audácia de Miguel travou Lúcifer no lugar. Para meu horror, ele conseguiu mesmo
atrair a atenção do imperador dos demônios, que gargalhou alto e satisfeito.
"Este lixo, um soldado?" Lúcifer desembainhou a espada. A lâmina prateada brilhou
laranja sob os últimos raios de sol. "O bonitinho é apenas um capricho do meu filho tolo.
Afaste-se dele, humano. Vim apenas para buscá-lo."
Parecendo esquecer-se do bom senso, Miguel abraçou minha cintura por trás. Droga, o
que ele queria, ser morto comigo?
"Thanos não é fraco. Ele treinou muito." Eu diria que Miguel mentia muito bem mas, o
conhecendo, ele realmente acreditava nisso. O que só fazia meu coração doer.
"Ridículo. A alma dele será dissolvida num novo pergaminho, que criará um soldado
adequado." Lúcifer se aproximou casualmente e me puxou pelo braço. Eu me mantive no
lugar, precisava proteger o Miguel. "Não me teste, incubus. Lúcio teve seu tempo para brincar
de casinha no plano dos vivos. Agora você vem comigo."
Eu engoli seco, considerando enfrentá-lo. Miguel não merecia um fracote como eu, mas
que chances qualquer um teria contra o imperador do Inferno?
"Miguel será deixado em paz?" Perguntei.
"Que uso eu teria para um humano? Assistí-lo se envenenar nos gases do Inferno?"
Lúcifer tentou me puxar de novo, e dessa vez foi Miguel quem me segurou no lugar,
firmemente agarrado à minha cintura.
"Não encosta nele!" Gritou Miguel. "Eu amo o Thanos, e ele também me ama. A alma
dele continua onde está!"
A expressão embaraçada em Lúcifer me fez corar. Droga, Miguel enlouqueceu? Ou só
queria ganhar tempo até Lúcio me salvar ainda mais uma vez?
Lúcifer arqueou a sobrancelha para mim, como se eu fosse estúpido.
"Um humano apaixonado, e você ainda assim não se tornou um anjo. Meu filho
encontra cada perdedor..." Lúcifer soltou uma risadinha cheia de escárnio e largou meu braço.
"E ainda quer ser um soldado. Que piada."
Eu estremeci, gastando toda a minha coragem para não tomar Miguel em meus braços e
sair correndo.
Distraído pelo meu próprio medo, nem percebi Miguel me soltar. Antes que pudesse
impedí-lo, ele correu aos pés de Lúcifer e se ajoelhou em súplica, encostando a testa no chão.
"Senhor Lúcifer, eu imploro, dê uma chance à ele. Permita que ele continue vivo,
servindo ao seu exército."
"Miguel, levanta daí!" Eu rosnei, mais furioso comigo mesmo que com elle. Miguel não
deveria ter que passar por isso. Que merda de namorado eu era.
Lúcifer gargalhou de novo, e retornou para o centro do pátio, no ponto onde ele surgiu.
Por um minúsculo segundo pensei que ele partiria, mas ele ergueu sua espada aos céus, e nos
encarou com um sorriso de diversão que lembrava vagamente o sorriso de Lúcio.
"Um soldado, este pedaço de nada? Pois bem. Um imperador deve ser justo, lhe darei a
chance de tentar." Falou ele.
Eu ajudei Miguel a se levantar e nós nos abraçamos, observando o céu escurecer e um
novo tornado se formar ao redor da espada de Lúcifer.
"O quê é isso?" Perguntei, protegendo o corpo trêmulo de Miguel contra o meu.
O tornado se dissipou, e duas criaturas pousaram de cada lado de Lúcifer. Pela forma
eram uma mulher e um homem, mas a pele cinza e dedos longos e afiados como agulhas lhes
dava um aspecto monstruoso. Além de cauda e chifres pretos iguais aos meus, eles possuíam
longas asas negras, que eles debatiam em tom de ameaça.
Os demônios nos observaram com seus olhos completamente vermelhos e brilhantes,
expondo os dentes afiados através de um constante sorriso sem lábios.
"Alichino e Calcabrina." Falou Lúcio. "Almas cruéis e sombrias transbordando em
poder demoníaco, como deveria ser com qualquer demônio."
As criaturas chiaram como cobras e abanaram suas caudas, aparentemente contentes
com o elogio. O que parecia um homem, Alichino, aproximou-se de nós babando e farejando o
ar, como um cão de caça.
Eu arregalei meus olhos em horror absoluto. Essas coisas que mal lembravam pessoas
eram uma succubus e um incubus, como eu? Não, não podia ser.
"Aqui está sua chance, incubus." Lúcifer riu do terror em nossos olhos. "Derrote pelo
menos um deles, e você terá seu cargo em meu exército."
Meu peito saltou em doses iguais de esperança e terror. Como soldado, eu poderia
visitar Miguel no plano dos vivos.
Hesitante e ignorando as objeções desesperadas de Miguel, eu o empurrei para trás e
me aproximei dos dois oponentes. Eu assumi a posição de combate que Lúcio me ensinou.
"Thanos, não!" Miguel tentou correr até mim e eu ergui a mão, para que não viesse.
Eu fuzilei Lúcifer com meu olhar mais determinado.
"Uma vaga em seu exército, e a promessa de que Miguel ficará seguro." Falei.
"Perfeito." O sorriso de Lúcifer se afinou para os dois soldados, cheio de malícia.
"Destruam ele."
Os dois dispararam na minha direção, rápidos como um borrão de luz cinza.
"Cuidado!" Gritou Miguel.
Eu me abaixei e senti o vento do primeiro golpe flamular meu cabelo. Ok, foi um bom
começo, eu só...
A succubus pareceu surgir do nada. Antes que eu piscasse ela já havia cravado as garras
dos pés nas minhas costelas. O impacto me lançou contra a árvore chamuscada, partindo-a ao
meio. Eu segui voando e bati contra o muro de concreto, colando nele por alguns segundos
antes de cair no chão.
Eu gemi em profunda agonia. A dor me impedia de erguer a boca do gramado. O lado
do meu peito latejava violentamente, como se minhas costelas tivessem se esfarelado.
Nem pensar que eu seria derrotado assim.
Eu consegui erguer o rosto, mas não avistei ninguém, minha visão escureceu, eu via
apenas um borrão duplicado enquanto minha consciência se apagava.
"Thanos, acorda. Thanos! Lá em cima!" Os gritos de Miguel me devolveram à
realidade.
Reunindo forças não sei de onde, eu rolei para o lado e ouvi um estrondo onde eu
recém estava. A dupla de demônios havia mergulhado sobre mim com tanta agressividade que
abriram um buraco no chão, onde agora estavam entalados, até os tornozelos.
Eu me apoiei na parede, e de algum jeito me levantei. Eu precisava aproveitar a
oportunidade.
Enquanto Alichino debatia os pés para se soltar, eu desferi meu melhor soco de direita.
Ele inclinou a cabeça e desviou sem esforço.
Sem me deixar frustrar, eu soquei de novo e de novo. Mesmo preso, aquele filho-da-
puta era rápido. Minha pouca energia se gastava rapidamente, e eu sentia uma hemorragia se
espalhar, onde fui chutado.
Após uns dez socos, eu cedi meus braços, e tossi engasgado. Respingos vermelhos de
sangue pontilharam o rosto de Alichino, que riu de mim, nada impressionado.
Droga. Eu era tão fraco que morreria na frente de Miguel? Minha visão mal focalizava
no incubus, e a succubus... Espera, cadê a Calcabrina, ou sei lá o nome?
Uma pressão horrível envolveu meu pescoço e me ergueu no ar.
"Devo enfforcá-lo, messtre?" Sibilou a succubus, espremendo a cauda até afundá-la em
meu pomo-de-adão.
Eu tentei gritar, ou respirar, mas era inútil. Mesmo os gritos de Miguel tornaram-se um
zunido distante.
"Precisamos dele vivo, para o ritual de transferência." Lúcifer embainhou a espada,
tranquilo como se tivesse assistido a luta mais previsível do mundo. "Excelente trabalho.
Vamos voltar."
Calcabrina me arrastou pela lama até Lúcifer, onde Alichino já aguardava. O vendaval
de teletransporte elevou-se ao nosso redor.
Calcabrina afrouxou a cauda o bastante para que eu respirasse, e eu ergui os olhos, sem
conseguir avistar Miguel além da poeira escura. Maldição, eu nem consegui dizer adeus, mas
pelo menos ele ficaria bem.
"Vocês não vão levá-lo!" Gritou Miguel, saltando no centro do tornado e agarrando-se à
Lúcifer.
Nem a surpresa extrema impediu minha consciência de deslizar. Eu fechei os olhos e
apaguei, derrotado pelos meus ferimentos.
Capítulo 22
Miguel

Ajoelhado no chão de pedra, eu continuei massageando o ferimento nas costelas de


Thanos, cuidando para que sua cabeça não caísse do meu colo.
"Você desmaiou por algumas horas." Eu sorri para Thanos, que recém acordava.
Aquele óleo preto funcionava, mesmo.
Thanos fechou os olhos de novo. Tadinho. Eu queria tanto poder protegê-lo, mas pelo
menos continuávamos juntos.
Eu tentei avistar algo pela janelinha de grade no topo da cela, mas ajoelhado eu só
enxergava o céu vermelho e alguns demônios, que passavam voando.
A vista não melhorava, à frente. Apenas barras de metal, uma porta de aço e a parede
escura do corredor, três passos além. Um demônio gordinho de cauda curta e chifres pequenos
atravessava o corredor estreito seguidamente, nos vigiando enquanto girava um molho de
chaves.
Eu tossi, engasgado com o cheiro ácido de enxofre. Thanos me descreveu o inferno
durante horas, como nunca mencionou o fedor horrível?
"Onde estamos?" Thanos acordou de vez e tentou levantar, amolecido.
"Numa espécie de presídio." Respondi, segurando-o no meu colo. "Fomos teleportados
para cá."
Thanos concordava calmamente quando arregalou os olhos e sentou-se num pulo.
"Espera, estamos no Inferno? Nós dois?" Thanos segurou o lado do peito e gritou de
dor.
"Eu não podia te deixar sozinho." Eu agitei o frasco de líquido. "Deita. Não terminei
seu tratamento."
Thanos franziu a testa pra mim, confuso e aterrorizado.
Eu revirei os olhos e tentei manter minha paciência. Duas horas massageando seu peito
numa cela dura e fedida meio que esgotava meu bom humor.
"Esse frasco..." Thanos olhou para baixo e percebeu o brilho de óleo em seu peito
despido. Ele vestia apenas os trapos da calça de demônio nobre.
"Seu amiguinho falante me entregou, após um longo discurso sobre o mestre, e sobre
como não conseguia contatá-lo." Eu afinei meus olhos para Thanos. "Você me disse que foi
Lúcio quem o massageou. Com as mãos."
Ainda meio abobado, Thanos deitou a cabeça no meu colo novamente.
"Foi uma situação estranha." Ele abriu um sorriso enfraquecido. "Está com ciúmes?"
"Claro que não." Eu virei mais óleo nas mãos e voltei a massagear o grande hematoma
preto, que diminuia aos poucos. "Talvez um pouquinho."
Thanos riu baixinho, e eu ri com ele. Em poucas horas, o amor da minha vida seria
executado. Talvez fossem nossas últimas risadas juntos.
"Esse é mesmo o fim, não é?" Os lindos olhos azuis de Thanos encontraram os meus, e
umedeceram com o peso das lágrimas.
"Estamos aprisionados no Inferno, Lúcio desapareceu, e o próprio Lúcifer quer te
transformar num pergaminho." Eu ri e tossi, enjoado pelo odor. "Pelo menos nós tentamos."
A expressão de Thanos mudou para uma de preocupação e medo. Ele afagou meu rosto,
deslizando o polegar sob o meu nariz.
Quando ele recolheu a mão, havia uma marca úmida e vermelha.
Eu repeti o gesto, e olhei assustado para o borrão de sangue nos meus dedos.
"O quê é isso?" Minha tosse voltou, ainda mais violenta. Respingos vermelhos
cobriram as palmas das minhas mãos.
"Gases do Inferno." Thanos levantou às pressas, apertando o lado do corpo.
"Precisamos te tirar daqui."
"Me tirar? Tipo, fugir? De uma prisão do Inferno?"
Thanos pendurou-se nas grades. "Ei, alguém aí? Ei!"
O guarda gordinho se aproximou, profundamente aborrecido pela gritaria.
"Que bagunça é essa, rapaz?"
"Libertem o humano. Ele precisa retornar ao plano dos vivos." Falou Thanos.
O demônio riu, jogando as chaves de uma mão à outra.
"Rapaz, se tu soubesse quantos já tentaram isso. Qualquer demônio baixo nível aprende
a camuflar os chifres, hoje em dia." Ele cutucou a testa e fez os toquinhos de chifre sumirem,
para demonstrar.
"Estou falando sério!" Thanos mostrou a mão ensanguentada. "Ele respirou os gases!"
O guarda revirou os olhos e seguiu andando. "Desiste, novato. Se fosse um humano já
estaria morto. Ninguém aqui cai nessa."
Assim que o guarda desapareceu, Thanos socou as grades e urrou em frustração.
Eu engoli seco, sentindo o gosto metálico de sangue na base da língua.
"Tudo bem, Thanos. Eu quero estar aqui." Eu fui até ele e o abracei por trás. Nada me
importava além de uma vida com Thanos. Eu só retornaria se fosse com ele.
Thanos relaxou nos meus braços e deitou a testa nas grades, bufando em tristeza.
"Não me faça brigar com você, Miguel."
"O quê?"
Thanos virou-se para mim, enraivecido.
"Eu sei que está pensando em morrer comigo. Se fizer isso eu não vou te perdoar."
Eu entreabri os lábios em espanto, acidentalmente confirmando que sim, eu estava
pensando exatamente nisso. Mas o que ele esperava? Érico me largou, e Rosier não precisava
dos meus cuidados, agora que tinha Lúcio. Thanos era tudo o que eu precisava e queria.
A decepção nos olhos de Thanos fez meu peito apertar.
"Desculpa, tá bom?" Eu falei. "Eu sei que pareço um adolescente obsecado. Eu
literalmente te segui até o inferno, e por culpa minha você não está batendo asas entre as
nuvens brancas." Lágrimas desceram pelo meu rosto. "É só que eu te amo. Não sei como vou
reagir, quando você morrer."
A expressão de Thanos afrouxou e ele me abraçou, me deixando solulçar em seu
ombro.
"Eu também estou com medo." Ele disse. "Mas não desista. Preciso que confie no que
vou fazer, não importa o quanto seja revoltante."
Eu ergui meus olhos molhados. "Como assim, revoltante?"
Thanos me puxou até o canto da cela e retornou às grades. Ele gritou pelo guarda, que
reapareceu ainda mais azedo.
"Escuta, novato, eu não..."
Thanos sorriu travessamente, e mandou uma piscadinha para o guarda.
"Perdoe-me por antes, é que me sinto tão sozinho." Falou Thanos, com uma voz
açucarada e um rebolado que nunca vi ele fazer antes.
O guarda lambeu os lábios, apreciando o peito nu e brilhante de Thanos.
"Solidão é um problema, por aqui." Disse o guarda, com uma risadinha safada.
Thanos riu macio, esfregando-se como se a grade fosse um poste de dança.
"Esse tédio acaba comigo, ainda mais com um guarda tão gostoso, me provocando a
cada ronda."
O guarda estendeu a mão para tocar o peito de Thanos, mas Thanos recolheu-se no
último instante.
"Não, não. Entra. Te ofereço o serviço todinho. Você gosta de ser algemado?" A voz de
Thanos tornou-se sussurrada e excitada, como se estivesse perto do clímax.
Filho de uma puta! Como ele se atrevia, bem na minha frente?
Quase se babando, o guarda abriu a cela todo contente e entrou. Ele entregou suas
algemas a Thanos, rindo como um porquinho faceiro.
"Humm, seu safadinho." Thanos prendeu os pulsos do guarda nas barras de metal. "Fica
esperando aí, que vou me preparar pra você."
Thanos correu até mim e segurou minha mão, retornando ao modo sério.
"Vamos." Ele disse.
Sem saber como me sentir sobre o que presenciei, eu disparei com Thanos ao longo dos
corredores.
Thanos apontou para as janelinhas do corredor estreito. As torres altas e pontiagudas de
um castelo negro podiam ser vistas, muito adiante.
"Uma daquelas torres é o quarto do Lúcio. Se conseguirmos encontrá-lo, ele nos levará
de volta."
Eu concordei, surpreso que Thanos tivesse pensado tão longe.
A cada tantos metros os corredores bifurcavam-se em vários outros, nos forçando a
vagar aleatoriamente. Nós ouvimos passos e nos encolhemos contra a parede. Eu tentei não
prestar atenção nos esqueletos das celas, na parede oposta.
Os passos desapareceram e eu ofeguei pesado, sentindo o ar me faltar.
Thanos limpou o sangue sob o meu nariz, de novo.
"Escuta, sobre agora pouco..." Ele disse, encabulado.
"Não quero falar sobre isso. Nunca." Eu tentei não soar bravo mas, nossa, eu estava
puto. "Se sairmos vivos dessa, espero ser tratado com a mesma dedicação."
"Incluindo a parte de ser algemado?" Thanos sorriu com o canto do lábio.
Eu corei. "Especialmente a parte de ser algemado."
Os passos retornaram rapidamente. Ah, meu Deus, várias pessoas se aproximavam
correndo.
Thanos me puxou por onde viemos e encontramos uma passagem que não havíamos
visto antes. A luz vermelha do céu iluminava o caminho, logo adiante.
Nós corremos para a luz e eu deixei uma tosse escapar. Gotas grossas e vermelhas
escorreram pela minha boca e espirraram nas pedras no chão.
Eu sequei a boca na manga da camisa, antes que Thanos visse.
O corredor terminou em um espaço muito amplo e aberto, cercado por muralhas com
espetos e arame farpado.
Eu e Thanos diminuímos o ritmo e avançamos a passos desconfiados, quando um bater
de asas fez meu coração saltar. Alguém aterrisava bem à nossa frente.
Thanos tensionou-se em posição de combate até percebermos quem era.
"Gideon!" Thanos suspirou, abrindo um sorriso exausto.
O garoto de cabelos alvos sorriu para nós, ainda trajando as mesmas roupinhas de vinil
preto, que não escondiam quase nada.
"Como conseguiram escapar?" Gideon abanou a cauda em empolgação. "Quando Lorde
Lúcifer ficou sabendo da fuga, nossa, o castelo tremeu."
Thanos riu, e começou a resumir nossa pequena aventura.
Eu franzi a testa, acompanhando a conversa em silêncio. Havia algo errado. Algo que
eu não percebi antes, quando Gideon me entregou o remédio.
"Conseguiu encontrar o Lúcio, Gideon?" Perguntei.
"Sim, sim! O mestre veio salvar vocês, mas Lorde Lúcifer descobriu e nossa, tá o maior
caos." Gideon se abraçou em Thanos e abanou as asas em euforia. "O mestre vai me elogiar
tanto, por encontrar vocês. Venham, vou levá-los até ele."
Algo no olhar inocente do garoto não me permitia relaxar.
"Obrigado, Gideon." Thanos sorriu, livrando-se educadamente do abraço.
Gideon seguiu na frente, e nós três atravessamos o terreno vazio e quieto, na direção
dos muros.
"Thanos, é melhor voltarmos." Sussurrei.
"Gideon é o escravo do Lúcio. Podemos confiar nele." Thanos acariciou atrás do meu
pescoço. "Como está sua tosse?"
"Melhorei." Falei, dando tudo de mim para não tossir de novo. Meu peito ardia como se
tivesse inalado água. Eu precisava respirar no dobro da velocidade para não sufocar. "Que
lugar é esse?"
"Estamos no antigo pátio de execuções." Falou Gideon, com a empolgação de um guia
turístico. "O Presídio Negro é especial por não aprisionar almas, apenas demônios. Setecentas
mil celas espetaculares, com vista para o castelo do próprio Lorde Lúcifer. Aqui realizamos
transformações, torturas e os rituais de de dissolução, para produção de pergaminhos. É um
berço e um cemitério de demônios, ao mesmo tempo!"
"Rituais de dissolução?" Perguntei, estremecendo.
"Sim, dentro daquela redoma" Gideon apontou para uma enorme estrutura preta que
parecia uma esfera enterrada no chão. "Eu apresentaria pra vocês, mas não tem portas. Apenas
os nobres tem acesso ao interior."
Eu travei meus pés no chão, e segurei a mão de Thanos.
"Gideon, cadê o Lúcio?" Eu afinei os olhos para Gideon.
O garoto fez um beicinho, todo indignado.
"O mestre está vindo, eu já disse." Ele ergueu o rosto e abriu um sorriso enorme ao
avistar alguém chegando. "Ah, lá está ele! ...Mestre?"
Um demônio de pele cinza e dedos afiados pousou entre nós três.
Eu cobri minha boca em horror, e Thanos me puxou para longe, me protegendo contra
seu peito.
"Alichino, o quê está fazendo aqui?" Gideon bateu os pés, como um coelhinho
revoltado.
"Ssabia que o ffilho do lorde esstava tramando algo." Alichino alargou seu sorriso
demoníaco e se aproximou de mim e de Thanos. "Ssaia, Gideon. Eles sserão aprissionados até
o ritual começar."
"Fica longe!" Thanos recuou, tentando me esconder atrás dele.
Gideon correu e estendeu as asas entre Alichino e nós dois.
"Eles são importantes para o mestre Lúcio." Gritou ele, cheio de bravura para um
adolescente de dezesseis anos.
Alichino ergueu a mão e estapeou o rosto de Gideon violentamente, arremessando-o
vários metros adiante.
Gideon rolou pelo chão, e quando parou não se moveu mais.
Thanor rosnou furiosamente, me largou e saltou sobre Alichino.
"Ele é um adolescente, seu desgraçado! E você não vai tocar no Miguel!" Gritou ele,
desferindo um soco em pleno ar.
Tão rápido que eu mal conseguia acompanhar, Alichino desviou para o lado e
chicoteou com a cauda, mirando no estômago de Thanos.
Thanos arqueou as costas e desviou do golpe, saltando de novo e girando um chute no
ar. Inacreditavelmente, ele quase acertou dessa vez.
"Dessissta, incubuss. Ssua alma e fraca." Alichino deslizou uma rasteira no chão, que
Thanos desviou com um salto.
"Vou te fazer pagar por antes, e vou tirar o Miguel daqui." Os olhos de Thanos
brilharam em determinação. "Eu vou salvar ele, não importa como!"
Alichino riu em deboche, e disparou na direção de Thanos. Os dois trocaram chutes e
socos, e Thanos conseguiu se defender e desviar de cada um.
Eu assistia a luta embasbacado, tentando acompanhar os movimentos dos dois, quando
percebi uma coisa escura presa no peito da minha camisa.
Eu peguei a tal coisa, incrédulo. Uma pena preta?
Capítulo 23
Thanos

"Você consegue, Thanos!" Miguel gritou, e em seguida tossiu outro rio de sangue.
Maldição, eu precisava resolver isso logo.
No limite da minha velocidade, eu girei o cotovelo na cara daquele cinzento imbecil,
mas mais uma vez ele desviou, desaparecendo como um borrão de sombras.
Eu respirei pesado, sentindo o suor verter do meu rosto. Eu não conseguiria manter este
ritmo por muito mais tempo.
Aterrorizado, Miguel olhou para cima de mim. Eu acompanhei seus olhos, e avistei
Alichino sobrevoando, muito acima do meu alcance. Em sua mão havia um brilho alaranjado e
intenso. Fogo do inferno.
Eu expandi meus olhos em terror. Como eu o impediria, daquela distância?
Alichino riu, sibilante como uma cobra "Qual o problema, incubuss? Não conssegue me
alcançar?" Ele expandiu o fogo em sua mão, e mirou em mim.
Sentindo o estômago revirar, eu me afastei de Miguel. Pelo menos ele não queimaria
junto comigo.
Quando eu já fechava os olhos, me preparando para a dor, algo colidiu contra Alichino.
Algo tão rápido que parecia um trovão negro.
"Ele não consegue, mas eu consigo!" Bravou Gideon, desabando com Alichino contra o
chão de pedra.
Alichino rachou as lajotas com a cabeça, e soltou um grito dolorido.
Eu quase suspirei em alívio, quando percebi o estado de Gideon. Seu rosto adolescente
vertia sangue, através de vários cortes na testa. O corpo semi-exposto estava coberto por
arranhões e hematomas e um de seus chifres havia se partido. Ele não parecia capaz de se
erguer de cima de Alichino.
Pirralho desgraçado. Quantas vezes ele pretendia me salvar?
Antes que Alichino acordasse, eu disparei e peguei Gideon no colo, deitando seu corpo
leve contra meu peito.
Eu podia ser fraco, mas não permitiria que ninguém morresse por mim.
"Me solta!" Gideon se debateu no meu colo, enquanto eu corria com ele para junto de
Miguel. "Preciso proteger vocês, me deixa fazer isso!"
"Cala a boca! Acha que Lúcio iria querer você se suicidando por ele?"
"Cala a boca você!" Gideon debateu as asas, tentando se soltar. "Não tem nada, nada,
nada que eu não faça pelo mestre!"
"Essa luta é minha." Eu sentei Gideon no chão. "Proteja o Miguel enquanto eu termino
isso."
Alichino recuperou a consciência e se levantou. A forma como ele olhou para mim e
para Gideon gelou meus ossos, mas eu não estremeci. Desta vez, eu mataria esse desgraçado.
"Você tessta minha paciência, Gideon." Alichino revirou os olhos, e preparou uma
segunda bola de fogo. "Um ssimpless prosstituto deveria esstar na cama do ffilho do Lorde. É
ssua única sserventia."
Eu assumi minha postura de combate, e algo estapeou minha cara, me fazendo cair
sentado. Gideon bateu sua cauda no meu nariz, e agora avançava à minha frente, com um olhar
tão emputecido que ele quase parecia maior de idade.
"Sua luta não é com esse babaca asqueroso." Gideon secou o sangue da testa e
espreguiçou as asas, encarando Alichino como se não fosse um terço de seu tamanho. Ele
apontou para o lado, me fitando com o canto do olhar. "Aquele canto da muralha esconde uma
escada de manutenção. Não me façam fazer isso por nada."
Eu olhei para Alichino, e depois para Miguel, que parecia tão assustado quanto eu.
Miguel, Lúcio, e até Gideon... Todos me defendiam e me protegiam como se eu fosse
um inútil, e eu realmente era. Se pelo menos eu pudesse brotar asas, ou fazer qualquer coisa!
Qual era o problema com a minha alma, afinal?
"Vamos." Eu peguei a mão de Miguel, me prometendo que nunca mais precisaria ser
salvo.
"Não me faça te esspancar maiss, prosstituto." Alichino falou para Gideon. "O que um
incubuss fracasssado pode fazer?"
"Um só, não muita coisa." Gideon pôs os dedos nos lábios e assobiou alto. "Mas
experimente lidar com trinta."
Uma revoada negra escureceu o céu. Dezenas de incubus e succubus, todos vestindo as
mesmas mini-roupas de vinil.
Os trinta demônios de beleza exagerada e sorrisos determinados se alinharam aos lados
de Gideon, alguns pousando colegas que, como eu, não podiam voar. Eles estenderam os
braços e as asas em sincronia perfeita, formando uma parede entre Alichino e nós.
Entendendo o recado, eu e Miguel corremos em direção à muralha.
"Eless esstão fugindo, sseus prosstitutos glorifficados."
Gideon riu alto.
"Prostitutos? Eu sou o orgulhoso líder de harém do Mestre Lúcio. Nós somos muito
mais que um corpinho bonito." Gideon assobiou de novo, e o que se seguiu foi um barulho
ensurdecedor de gritos, explosões, e asas se debatendo.
Nem Miguel nem eu ousamos olhar para trás.
Miguel tossiu de novo, diminuindo o ritmo de seus passos. O rosto dele já estava como
papel, e ver seus lábios tão azulados me enchia de desespero.
Ele apenas protestaria se eu pedisse, então eu o forcei em meus braços, e segui correndo
com ele em meu colo.
"Eu estou bem." Ele resmungou, tossindo de novo.
Eu ignorei e corri no auge da minha velocidade. De fato, uma coluna de alças de ferro
brotavam da muralha de pedra, no canto que Gideon indicou.
"Sobe nas minhas costas." Eu deixei Miguel no chão, e escalei os primeiros degraus.
"São só uns vinte metros." Falou Miguel, sempre teimoso como uma mula. "Eu te sigo
logo atrás."
Eu bufei e comecei a escalar. Até Miguel parecia mais valente que eu. Se eu ainda não
me rendi, era porque ele valia mais que a minha própria vida. E ainda assim eu não conseguia
protegê-lo sozinho.
"Outra pena." Falou Miguel, num tom surpreso.
"O quê?" Perguntei, tentando olhar para baixo.
"Não, nada."
Eu dei de ombros, e continuei subindo.
O topo da muralha devia ter um metro de largura, e parapeitos bem baixos. Eu ajudei
Miguel a se erguer, e observei a vista impressionante. No pátio de onde viemos, Uma confusão
de corpos esbeltos e plumas erguia uma nuvem de poeira. Eu não queria pensar no que eram os
sons de explosões e flashes vermelhos, que vinham sempre seguidos de gritos.
No lado oposto, o castelo negro se revelava muito maior do que parecia ser, ao longe.
Pela vista da janela de Lúcio, ele morava em alguma daquelas torres, provavelmente na
segunda mais alta.
"Como descemos?" Miguel agarrou-se em mim para debruçar-se na beirada. Não havia
escada do outro lado.
Eu olhei ao redor, e avistei um trecho da muralha muito adiante, que se conectava com
o castelo. Seriam uns bons dois quilômetros andando nesse trecho estreito.
"Numa escala de um a dez, o quanto você tem medo de altura?" Perguntei.
Miguel me abraçou apertado. "Nove?"
Eu suspirei, lacei meus dedos nas mãos dele, e beijei seu rostinho lindo.
"Vou precisar que se esforce um pouco." Falei, me sentindo culpado. Miguel não
parecia nada bem.
Miguel sorriu e encostou o corpo em mim. Seus lábios gelados tocaram meu pescoço
em um beijo doce e frágil.
"Vamos dar o fora daqui." Ele forçou um sorriso.
Eu concordei com a cabeça, e nós dois seguimos pelo topo da muralha, tentando não
olhar para o chão de terra árida e pedra que nos esperava de cada lado.
"Alichino, aquele impresstável."
Uma voz feminina congelou meu sangue. Eu me virei para encontrar Calcabrina logo
atrás de nós. Ela observava o pátio de onde viemos.
Eu fiz o mesmo, e percebi que o combate havia encerrado. O corpo cinza de Alichino
jazia entre vários outros corpos, que eu não conseguia identificar daquela distância.
"Não quero lutar com você." Falei.
Calcabrina gargalhou, e expandiu as asas de forma ameaçadora. "Claro que não quer."
Eu engoli seco, e empurrei Miguel na direção do castelo.
"Miguel, uma vez na vida me obedeça, e corra."
"Mas..." Miguel tentou segurar meu braço, e se interrompeu. "Por favor, fica bem."
Eu ouvi os passos de Miguel se afastando e sorri para Calcabrina, forçando uma
expressão de autoconfiança. "Vou te mandar pra junto do seu colega."
"Tá certo." Calcabrina riu, e esticou seus dedos de agulha na minha direção. Sua cauda
tremulava como a de uma cobra prestes a dar o bote.
Eu não podia me deixar abater. Foram necessários trinta incubus melhores que eu para
derrotar Alichino, e naquele terreno estreito qualquer tropeção seria a minha morte. Mas
Miguel dependia de mim. Se eu morresse aqui, se eu deixasse Lúcifer me dissolver, Miguel
seria consumido pelo veneno.
Eu não permitiria que isso acontecesse.
Calcabrina disparou sobre mim, e eu sobre ela. Eu chutei mirando no pescoço, e ela
desviou facilmente, contra-atacando e metendo as garras no meu rosto. Eu pulei para trás,
conseguindo desviar.
Merda, a luta com Alichino havia me cansado. Eu nunca venceria na base da força
bruta. Eu precisava de um plano, o que aquele idiota do Lúcio faria, no meu lugar?
Calcabrina chutou minhas costelas no lugar da primeira vez. Eu bloqueei com o braço,
mas a dor me desequilibrou. Meus pés patinaram pela beirada, e eu girei os braços, tentando
me cair.
Assim que o segundo chute veio eu me impulsionei com a cauda, saltando por cima e
retornando ao topo. Como eu pensava, eu não me tornei muito mais ágil, desde o primeiro
confronto. Assim como Alichino, Calcabrina agora menosprezava minhas habilidades,
desinteressada em me combater com seriedade.
Meu peito disparava em adrenalina e medo. Pensa, Thanos. Lúcio não me treinou para
que eu brotasse asas, mas para que eu conseguisse lutar, apesar de não tê-las.
Um bom soldado torna sua fraqueza em força.
Como uma serpente dando o bote, Calcabrina se lançou sobre mim. Eu me abaixei e
rolei por baixo do ataque, usando a cauda para me levantar o mais rápido possível. Isso.
Calcabrina estava de costas para mim. Suas asas se agitaram enquanto ela se reequilibrava.
Gritando de raiva e exaustão, eu corri e saltei sobre ela, girando a perna para baixo.
Meu calcanhar bateu no cotovelo da asa, e eu ouvi um estalo.
Calcabrina urrou de dor, Segurando a asa que agora se dependurava, ao lado do corpo.
"Maldito! Desgraçado!" Ela berrou, apertando a asa em profundo sofrimento.
Ofegante, eu sabia que era cedo para comemorar. Calcabrina continuava sendo
imensamente forte, e agora ela estava emputecida.
Eu dei as costas para ela e corri, tentando não pensar na altura e na facilidade que ela
teria em me atacar, assim que se recuperasse.
Enfraquecido como estava, Miguel corria devagar o bastante para que logo eu o
alcançasse.
"Thanos!" Miguel abriu um sorriso surpreso e emocionado.
"Continua correndo." Eu agarrei sua mão e passei por ele, puxando-o comigo.
A parte da muralha conectando o presídio com o castelo foi se aproximando, revelando
um portão aberto. Talvez essa loucura desse certo. No quarto de Lúcio estaríamos seguros.
Uma explosão logo atrás de nós estremeceu o muro. Miguel tropeçou, e por pouco não
caímos os dois, lá embaixo.
Sentindo arrepios na espinha, eu me virei. Onde recém haviamos passado havia agora
um buraco, iluminado por brasas alaranjadas de Fogo do Inferno.
Arrastando uma asa, Calcabrina se aproximava de nós, suas mãos brilhando ao formar
mais duas daquelas malditas bolas de fogo.
Miguel gritou e se abraçou em mim. Naquela posição nunca conseguiríamos fugir, e
derrotar aquela succubus estava muito além da minha capacidade.
"Me beija, Thanos." Miguel ergueu seus olhos de esmeralda para mim.
"Não fala besteira, numa hora dessas."
"Falo sério. Se você virar um anjo, você pode fugir." Miguel curvou os lábios azulados
em um sorriso. "Você ainda pode se salvar."
Meu peito apertou, e meus olhos se encheram de lágrimas. Maldição! Essa era mesmo a
única saída? Eu me revoltei com Miguel antes, mas eu mesmo me recusava a viver, se
precisasse matá-lo para isso.
Se pelo menos minhas asas brotassem! Até aquele pirralho irritante havia conseguido,
mas como? Gideon pensava ser um castigo por violentar Lúcio, mas ele só podia estar
enganado. Lúcio sentia carinho por Gideon, e Gideon...
Não tem nada, nada, nada que eu não faça pelo mestre!
Assistindo Calcabrina mirar seu golpe, eu arregalei meus olhos. Seria isso? Eu não teria
outra chance, se estivesse errado.
"Miguel, você confia em mim?" Eu perguntei, olhando para os rochedos muito, muito
abaixo.
"Claro que confio. Eu te amo, Thanos."
"Então se agarre em mim, e pule."
Calcabrina lançou seu golpe e eu saltei para fora da muralha, na direção do abismo. A
explosão ensurdecedora lançou ondas de calor nas minhas costas.
Eu abracei Miguel com firmeza, enquanto ele gritava em desespero. O chão crescia sob
nós, revelando as pontas afiadas dos rochedos.
Apertando os olhos, eu desejei do fundo da minha alma que Miguel se salvasse. Tudo
bem que eu me arrebentasse nas pedras, mas ele precisava viver.
Pelo Miguel eu faria qualquer coisa, porque eu o amava mais do que tudo.
O vento pareceu soprar ao contrário, nos travando no meio da queda. Eu arfei de dor,
segurando Miguel com toda a força para que não escorregasse.
O chão aproximou-se cada vez mais devagar, e nós deslizamos para a frente, em pleno
ar. O som de asas batendo logo acima me aterrorizou, até eu notar que o som vinha das minhas
costas.
"Thanos, você..." Miguel olhou para cima, com seus olhos verdes e brilhantes. "Você
está voando!"
Eu o quê? Eu virei o pescoço para olhar e me desestabilizei, quase nos derrubando de
novo. Plumas negras agitavam-se e ventavam atrás de mim, nos erguendo no ar. Músculos que
eu nunca tive antes trabalhavam instintivamente, nos fazendo subir.
"Eu tô voando mesmo!" Eu sorri, e logo desmanchei o sorriso, em pânico. "Eu não sei
voar!"
Miguel me abraçou firme, e começou a rir, parecendo esquecer o medo de altura.
"Estamos voando!" Ele gritou, feliz como uma criança. "Uhuuul!"
Eu comecei a me acostumar com meus novos músculos, tornando o vôo mais macio. Eu
subi alto, nos afastando das pedras até nos erguer acima da muralha. A brisa fresca do céu
soprava contra a minha pele.
Calcabrina urrou de raiva, lançando mais uma pequena bola de fogo. O golpe passou
longe, já estávamos longe demais, e ela parecia exausta.
"Você é o melhor." Miguel mordiscou meu pescoço, fora de si de tanta felicidade.
Eu ri, e nos espiralei pelo ar, apreciando o vento e a liberdade. Mas o sangue nas roupas
de Miguel não me deixavam esquecer nossa prioridade.
Precisávamos encontrar Lúcio o quanto antes.
Capítulo 24
Miguel

Nós estávamos voando de verdade! Que nem nos filmes!


A paisagem do Inferno estendeu-se diante dos meus olhos. Quilômetros infinitos de
terra erodida e rochas afiadas, com um oceano negro ao longe. O céu brilhava sua luz difusa e
vermelha como se houvesse um incêndio distante e, atrás de nós, o presídio tornava-se cada
vez menor. O complexo de celas se extendia por tantas direções que era um milagre termos
alcançado aquele pátio.
À nossa frente, nos aproximávamos de um castelo bem alto, com gárgulas de pedra e
telhados afiados e pretos. O conjunto lembrava vagamente uma catedral gótica, só que muito
maior.
Eu lacei os braços no pescoço de Thanos, tentando não cair. As asas dele batiam
vigorosamente, soltando plumas aqui e ali. Tão lindo. Eu mal podia esperar para tocar.
Após pouco tempo, Thanos se aproximou de uma das janelas mais altas.
"Você sabe pousar?" Perguntei, um tantinho preocupado.
"Vamos descobrir."
Assim que passamos, as asas de Thanos engataram na janela e nós caímos para a frente,
rolando um contra o outro sobre o carpete macio.
Eu me levantei nos cotovelos e massageei a cabeça. Isso respondia minha pergunta,
sobre saber pousar.
"Tudo bem?" Thanos me ajudou a levantar.
Eu sorri e tentei concordar, mas a tosse voltou de repente, eu cobri a boca e jatos de
sangue quente encharcaram as minhas mãos.
Não sei por quanto tempo eu disfarçaria a dor no peito. Cada vez que eu tossia, me dava
vontade de gritar. Era como ter cacos de vidro nos pulmões.
"Onde estamos?" Perguntei, antes que Thanos viesse com alguma reação desesperada.
Aquele lugar parecia um puteiro preto e vermelho. Digo, eu nunca estive em um
puteiro, mas aqueles equipamentos de sadomasoquismo e correntes nas paredes me lembravam
o quartinho secreto que Rosier construiu nos porões da mansão.
"É o quarto do Lúcio." Thanos sorriu, aliviado. "Não vão nos incomodar aqui."
Meus olhos brilharam. Sério? Conseguiríamos mesmo voltar para a casa?
"Onde ele está?" Perguntei, lembrando da sensação estranha que tive com Gideon. O
garoto nos salvou mais de uma vez, eu me sentia horrível em desconfiar dele, mas meu
desconforto não ia embora.
Thanos jogou-se de bruços na cama macia de cetins vermelhos, exausto e satisfeito.
Suas asas abanaram algumas vezes e se dobraram em posição de descanso.
"Asas enormes e emplumadas. Posso me acostumar com isso." Eu ajoelhei na cama
sobre as coxas de Thanos e afaguei a cortina de penas. O brilho azulado lembrava as asas dos
outros incubus muito mais que o tom avermelhado nas asas de Lúcio. "O que sente quando eu
toco?"
"Faz cócegas." Thanos deitou o queixo nos braços, apreciando o carinho, mas seu
sorriso logo se apagou. Ele me fitou com o canto do olhar. "Miguel, quando você voltar,
prometa que vai ser feliz sem mim. Tudo bem?"
Eu fuzilei os olhos calmos de Thanos e apertei a ponta da cauda dele, fervendo de raiva.
"Chega de falar bobagem! Nós vamos sair daqui juntos!" Rosnei, torcendo um
pouquinho mais até ele gritar.
"Para! Tá doendo! Ok, nós dois juntos, eu já entendi!" Thanos se debateu sob mim.
Eu afrouxei a mão e beijei o triângulo da cauda, começando a rir. "Meu namorado
derrotou os soldados de Lúcifer. Isso é bem sexy."
"Pensei que minhas asas fossem ser sexy." Thanos virou-se sob mim e torceu o lábio,
num sorrisinho travesso. Ele me abraçou não só com os braços, como também com suas asas
negras. A sensação era estranha, e divertida.
"Eu te acho todinho sexy." Eu me deitei sobre seu peito ainda oleoso. "Uma pena você
estar machucado, ou eu demonstraria o quanto."
Eu e Thanos desatamos a rir, e logo depois a porta do quarto se destrancou.
Lúcio entrou com uma expressão severa, até nos avistar. Ele arregalou os olhos em
surpresa e... algo que eu não soube identificar.
"Miguel, Thanos. Vocês estão aqui mesmo." Lúcio trancou a porta atrás de si. Ele
estremeceu ao ver o sangue nas minhas roupas. "Papai foi longe demais, dessa vez."
Thanos me tirou de cima dele e levantou da cama. "Ele precisa de um médico. Tira a
gente daqui, Lúcio."
Eu acompanhei Thanos para perto de Lúcio, e o desconforto de antes alfinetou meu
estômago. Havia algo estranho, mas o quê?
"Venham, vou levá-los ao plano dos humanos." Lúcio estendeu as mãos, uma para cada
um de nós. O brilho em suas íris vermelhas tremulava, e havia tensão em seu rosto. Talvez o
problema comigo fosse realmente grave? Não, eu sentia que não era isso.
"Vem, Miguel." Thanos abanou suas asas, já segurando a mão de Lúcio.
"Lúcio, como sabia que viríamos aqui?" Perguntei, dando um passo para trás. Ele não
iria nem comentar as asas de Thanos?
"Quando vocês fugiram pedi que Gideon os encontrasse primeiro. Seria o mais seguro."
Lúcio se aproximou e tentou agarrar minha mão, e eu recuei.
Thanos e Lúcio se surpreenderam com a minha reação.
Eu tentei encontrar a peça que faltava. Quando Gideon me levou o remédio, ele e Lúcio
não haviam se comunicado, ainda. Só passei a desconfiar no segundo encontro, e agora Lúcio
também...
Uma crise de tosse ebuliu dos meus pulmões feridos. Eu não suportei e caí de joelhos,
engasgando no meu próprio sangue.
"Já chega, Miguel. Anda logo." Thanos me puxou pelo braço para junto de Lúcio, que
nos envolveu em seu tornado de névoa cinza e penas escuras.
Dominado por um pressentimento horrível, eu tentei impedir Thanos. Mas a tosse
incontrolável engolia minhas palavras.

****

Lúcio nos teleportou para um lugar que eu desconhecia.


Era como o interior de um templo. Um amplo salão circular, com teto de abóbada.
Velas amareladas iluminavam as paredes pretas e vermelhas. As únicas mobílias eram
uma jaula e uma mesa de pedra bem no centro, sobre um círculo vermelho no chão. Ao redor
do círculo haviam desenhos de estrelas e runas, como aquelas dos livros de magia.
"Que lugar é esse?" Perguntou Thanos.
Meus ossos estremeceram ao reconhecer o mesmo cheiro de enxofre. Ainda estávamos
no Inferno.
"Podemos fazer isso do jeito fácil, ou do jeito difícil." Lúcio se aproximou da jaula e a
destrancou. A sombra em seu olhar me aterrorizava.
"Lúcio, deixa o Thanos em paz." Minha voz tremeu. Só então eu percebi que não
haviam janelas, ou portas.
Lúcio abriu um sorrisinho trágico. "A jaula não é para ele."
Meu peito apertou em mágoa e confusão. Eu nunca me enganei sobre ninguém, e Lúcio
era uma pessoa boa. Eu incentivei meu melhor amigo a namorar com ele, e acreditei que ele
treinava Thanos com boas intenções.
Lúcio apontou para a jaula aberta e eu dei um passo hesitante à frente, espremendo
meus punhos até esbranquiçarem. A hostilidade no olhar de Lúcio o fazia parecer outra pessoa.
Alguém que eu não duvidava que machucaria Thanos.
Fomos mesmo enganados desde o começo?
"Que brincadeira é essa?" Thanos travou, ainda em negação. "Lúcio, sem tratamento, o
Miguel vai morrer."
Assim que entrei na cela, Lúcio trancou o cadeado. O espaço apertado mal permitia que
eu ficasse de pé, e eu não poderia deitar, se tentasse. Agarrando-me nas barras de metal, eu me
esforcei para entender. Eu não queria acreditar que errei sobre Lúcio.
Eu não queria acreditar, também, na pior parte daquele cenário. Naquela cama de pedra
seria realizado o ritual de dissolução. Lúcio mataria Thanos e me faria assistir? Só de pensar
nisso meu estômago se embrulhava.
"Você tem dez segundos pra soltar ele, ou eu vou te arrebentar." Thanos expôs os
dentes, aproximando-se de Lúcio com um brilho furioso no olhar. "Seu traidor."
Lúcio estremeceu para a última palavra, mas abriu um sorriso. "O que esperava do filho
de Lúcifer?" Ele soltou um riso forçado. "Este último mês foi divertidíssimo. Tanto quanto
todos os outros, em que acompanhei os fracassos hilários dos outros incubus. Uma pena que o
papai insista tanto em transformá-lo em pergaminho, eu teria adorado me servir desse seu
corpo gostoso."
Thanos urrou de raiva e saltou sobe Lúcio, impulsionando-se com as asas e desferindo
um chute no ar.
Rápido como um raio e calmo como um carneirinho, Lúcio desviou e deixou Thanos
colidir com a parede.
"Ah, a clássica luta do discípulo contra o mentor." Lúcio riu, desviando de uma
chicotada de cauda com igual facilidade. "Podemos mesmo chamar assim? Nossa brincadeira
de três dias mal pode ser chamada de treinamento."
"Por isso não me ensinou a camuflar os chifres? Nem me ensinou a usar meus poderes?
Você queria que eu falhasse?" Thanos aumentou sua velocidade. Seus socos e chutes
tornaram-se borrões, mas Lúcio era simplesmente rápido demais.
"Thanos, meu querido, por favor. Eu queria apenas seu corpão lindo, me serviciando
pela eternidade."
Derrotado pela tosse cada vez mais violenta, eu pude apenas assistir Thanos enfurecer-
se cada vez mais. Não fazia sentido. Lúcio amava Rosier. Eu via o brilho em seus olhos
quando estavam juntos, e Gideon confirmou que o harém havia sido desmanchado por ele. E o
treinamento, por mais breve que tenha sido, não sugeria nada além do nascer de uma grande
amizade.
Então por quê?
"Não se sinta mal, Thanos. Nenhum incubus pode me acertar, muito menos um como
você." Lúcio gargalhou, cheio de sadismo. "Vamos, pode continuar tentando."
"Thanos, não lute! Ele está tentando de cansar!" Minha voz saiu rouca e baixa demais.
Eu também não aguentaria por muito mais tempo.
Incapaz de me ouvir, Thanos alçou vôo, tentando surpreender Lúcio. Lúcio também
bateu asas, e a luta tornou-se um combate aéreo.
Ainda assim, Lúcio não tentou acertar Thanos uma única vez.
Em meio à luta, um tornado cinza surgiu próximo aos dois. Lúcio e Lúcifer pousaram e
o meu sangue congelou-se nas artérias.
Ah, meu Deus.
Capítulo 25
Miguel

O tornado se dissipou e Lúcifer apareceu, trazendo Gideon com ele.


"Ótimo, você trouxe eles." Lúcifer olhou de mim para Thanos, pouco impressionado.
"Seu michêzinho não calava a boca e me fez trazê-lo. Espero que tenha sido meu último
desgosto, Lúcio."
"Mestre!" Gideon correu para abraçar Lúcio. Apenas um chifre aparecia pelos cabelos
quase brancos, e os cortes maiores ainda sangravam, por todo o corpo. "Mestre, protegi seus
amigos como me pediu. Eu fiz tudo, tudo, tudo direitinho! Agora o humano do mestre pode..."
"É o suficiente, Gideon." Lúcio o interrompeu, com frieza. "Trouxe o necessário,
papai? Não quero perder mais tempo com isso."
"Muito menos eu." Lúcifer desembainhou sua espada, agora toda desenhada com os
mesmos padrões vermelhos do chão. "Já terminou de gastar energia do incubus?"
Lúcio olhou para Thanos, que apoiava as mãos nos joelhos e arfava pesado.
"Será uma dissolução fácil." Respondeu Lúcio. "Precisa que eu o acorrente?"
"Eu vou cooperar" Thanos se arrastou até Lúcio, com a expressão mais magoada que já
vi em qualquer um. "Destruam a porra da minha alma, ou sei lá, mas por favor, deixem o
Miguel ir."
"Vejam só. Como você previu." Lúcifer sorriu em satisfação e Lúcio baixou a cabeça,
tremendo. "Deite no altar, incubus. Será um procedimento rápido."
A cada passo de Thanos, meu coração trepidava mais. Ele caminhou ao altar tão
orgulhoso e digno quanto seu cansaço permitia.
"Thanos, não!" Eu gritei, da minha pequena prisão.
Thanos sorriu para mim, doce como no começo, antes dessa coisa de maldições e
ameaças e rituais satânicos.
"Eu te amo, Miguel. Adeus."
Não podia ser verdade. Eu não queria ver Thanos morrer.
Thanos deitou-se no tampo de pedra e fuzilou Lúcio com um olhar de ódio. "Prometa
pelo menos cuidar do Miguel, seu traidor imbecil. Ele não tem nada a ver com isso."
Lúcifer sibilou alguma coisa, e serpentes de luz brotaram do chão, enroscando-se no
corpo de Thanos. O rosto de Thanos distorceu-se em desconforto por um instante e ele
lentamente fechou os olhos, adormecendo.
"Patético. Nem tentou resistir à paralização." Lúcifer aproximou-se do altar e abriu um
pergaminho em branco sobre o peito de Thanos.
Com um ar entediado, Lúcifer ergueu a espada, com a ponta da lâmina mirando o peito
de Thanos e o centro do pergaminho.
Eu gritei tanto que a dor nos meus pulmões escureceu a minha visão. Eu queria viver
com Thanos. Eu queria tê-lo comigo para sempre.
Lúcio bufou em desdém e aproximou-se da minha cela, mantendo seu olhar gelado e
cruel.
"Volte aqui, Lúcio. Você vai assistir." Rosnou Lúcifer.
"Termine seu ritual estúpido você mesmo. Vou levar o humano de volta."
"O humano fica onde está." Lúcifer descansou a espada. "Você precisa aprender sobre
consequências."
O olhar de Lúcio mudou completamente, ele virou-se para o pai em profundo espanto.
"Não foi esse o combinado!" Gritou ele. "Papai, se um humano morrer aqui, os anjos
nunca ficarão quietos."
"Melhor ainda." Lúcifer abriu um sorriso cruel. "Com este pergaminho transformarei
uma alma apropriada, e meu exército estará completo."
Suor desceu pela testa de Lúcio. Ele olhou para mim como se pedisse socorro, mas o
que eu podia fazer? A dor não me permitia pensar direito.
"Ele é o melhor amigo do meu namorado." Lúcio agarrou o braço com que Lúcifer
erguia a espada.
"Não me lembre daquela criatura, ou pensarei duas vezes sobre não matá-lo!" Lúcifer
livrou o braço e golpeou o rosto de Lúcio com as costas do punho, fazendo-o cair no chão. "Eu
deveria arrancar as mãos dele, por ousar vestir o anel da sua mãe!"
"Mestre!" Gideon correu para Lúcio chorando, mas ele o dispensou com um gesto da
mão.
Lúcio levantou-se por conta própria, e cuspiu o sangue dos lábios.
"A mamãe nunca usaria aquele anel, e você sabe. Ela também não aprovaria nada
disso." Lúcio jogou uma chave para Gideon. "Solte o Miguel. Estamos indo embora."
Lúcifer grunhiu de raiva, e seu ódio tremulou até as chamas das velas.
"Você não cansa de me desafiar?" Ele gritou.
Assim que Gideon me soltou, Lúcio sorriu travessamente, e estendeu a mão para o alto.
"Pelo visto não."
Lúcio estalou os dedos, e uma explosão me derrubou para trás.
Capítulo 26
Miguel

Quando a luz diminuiu e eu consegui abrir os olhos, todo o interior do templo ardia em
chamas.
Meu queixo caiu em espanto. O fogo amarelo vivo queimava o chão e as paredes de
pedra como se fossem papel, transformando tudo em cinzas negras e mergulhando o recinto
fechado numa névoa enegrecida.
No centro do salão, o corpo imobilizado de Thanos era lentamente cercado pelo
incêndio.
"Thanos!" Eu gritei e corri até ele, mas Gideon segurou meu braço.
"Não é seguro. Confia no mestre." Falou o garoto.
Confiar no Lúcio? Depois dele tentar matar o Thanos?
Eu tentei fazer sentido daquela situação caótica, e minha tosse piorou. Eu caí e Gideon
me segurou em seus bracinhos finos.
"Seu filho tolo! Tem idéia do que destruiu?" Lúcifer gritou para Lúcio, que
concentrava-se em gesticular as mãos em frente ao corpo de Thanos.
"Construa um segundo altar de sacrifício, veja se me importo." Lúcio sussurrou algo
entre dois dedos, enfraquecendo o brilho sobre Thanos. "Mas com meu melhor amigo e meu
namorado você não vai se meter."
"Quanta audácia. Você continua igual a ela!" Lúcifer esbravejou.
Não sei do que eles falavam, mas o último comentário fez Lúcio sorrir. Ele estendeu as
mãos num gesto brusco, e as serpentes de luz sobre Thanos rasgaram-se ao meio.
"Traga o humano, Gideon." Lúcio tomou Thanos em seus braços enquanto Lúcifer
ainda gritava desaforos.
Gideon me ajudou até Lúcio. Nós nos agarramos em seu casaco extravagante e uma
cortina de vento e sombras nos envolveu.
Num piscar de olhos, nós quatro estávamos noutro lugar. Um lugar tão familiar que eu
sorri, querendo rir de emoção.
A mansão do Rosier.

****

"Não, espera, explica de novo."


Rosier coçou a testa de um jeito cômico. Ele sentava-se com Lúcio em duas poltronas, e
Thanos sentava na beira do colchão segurando minha mão o tempo todo.
Eu ri através da máscara de oxigênio. Com infinita paciência, Lúcio começou a explicar
tudo de novo, desde a transformação de Thanos até o motivo de termos desaparecido por um
dia inteiro. Ele pulou as partes mais assustadoras, é claro.
Me animava poder me reunir com todos, novamente. Quando os médicos tentaram me
internar, Rosier precisou usar sua influência e conseguir emprestado um home care da UTI
especialmente para mim. Agora nossas reuniões podiam acontecer em seu quarto.
Eu achava o balão de oxigênio e o soro um exagero, mas Thanos não me deixou
discutir sobre isso. Segundo os médicos, foi um milagre eu ter sobrevivido ao gás sulfídrico.
Após uma boa noite de sono e eu já me sentia como novo. Thanos se recuperou ainda
mais rápido, afinal, ele continuava sendo um demônio.
A cada explicação, Rosier só ficava mais confuso.
"Certo, em doze horas o Thanos ganhou asas com o poder do amor, o Miguel inalou
veneno o bastante para matar um cavalo e você destruiu um templo de execução de demônios."
Rosier arqueou uma sobrancelha. Eu não podia culpá-lo por não acreditar em nada. "Nada
disso explica esse garoto. Por quê ele está sentado no seu colo?"
Abraçado no pescoço de Lúcio, Gideon abanou a cauda, todo contente.
"Eu sou o orgulhoso líder do..."
Lúcio beliscou a barriga exposta de Gideon, fazendo-o gritar.
"Líder da equipe de faxina do nosso castelo. É meu funcionário mais dedicado."
"Ah, é?" Rosier sorriu travessamente. Ele era esperto o bastante para reconhecer o que
Gideon era. Ainda mais naquelas micro-roupinhas.
Conhecendo o Rosier, eu sabia que ele não poderia se importar menos.
"O mestre escolheu um humano bonito." Gideon tentou beijar o pescoço de Lúcio e foi
prontamente empurrado, pela milésima vez.
"Obrigado, mon ami." Rosier alargou o sorriso. Gideon com certeza era a novidade
mais interessante para ele. "Com a aprovação do meu namorado, você pode faxinar nosso
quarto de vez em quando."
Os olhos de Gideon brilharam. "Sério?"
Rosier lambeu os lábios para Lúcio, buscando sua aprovação. "Limpar a casa a dois
pode se tornar cansativo, em algum momento."
Lúcio abriu um sorriso meio surpreso. Ele concordou e Gideon gritou de alegria,
abanando as asas e a cauda euforicamente.
Eu e Thanos trocamos um olhar de confusão e eu acomodei a cabeça no travesseiro
macio, tentando sublimar o discurso de Gideon sobre meter seu espanador em cada uma das
mobílias.
Como eu estava feliz por ter todos ao meu lado.
Percebendo meu sorriso, Thanos entrelaçou seus dedos nos meus, ele deitou-se no meu
lado da cama e beijou meu rosto. Ele não parecia se importar com meu nada sexy tubo de
ventilação.
"O que acha que aconteceu com Lúcifer?" Ele perguntou baixinho para mim.
"Duvido muito que não tenha escapado do fogo. Lúcio não iria tão longe." Respondi.
"Acha que ele desistiu?"
"Improvável." Thanos se acomodou de vez ao meu lado, e me abraçou por cima dos
cobertores. "Eu não quero te perder."
Tentei controlar minhas emoções, mas meus olhos umedeceram. Eu quase perdi o
Thanos. Ele quase morreu bem na minha frente, e eu pude apenas assistir. Foi a pior sensação
da minha vida.
"Acho que esses dois querem privacidade." Lúcio riu, tirando Gideon de seu colo e se
levantando. "Que tal um banho de piscina, amor?"
"Claro." Rosier sorriu com tanta felicidade que nem o reconheci. Ele apertou o anel de
caveirinhas em seu dedo. Sempre fazia isso quando Lúcio o chamava assim.
Rosier e Gideon deixaram o quarto, Gideon sempre tagarelando, querendo saber o que
era uma piscina e não dando a espaço para Rosier responder.
"Espera, Lúcio." Chamei.
Já deixando o quarto, Lúcio virou-se para mim, curioso.
"O que é aquele anel?" Perguntei.
Lúcio fez-se de desentendido, o que fez Thanos apertar minha mão. Até ele sabia do
que eu estava falando.
"Você nos traiu para proteger o Rosier." Falou Thanos. "É o motivo de eu não ter te
quebrado em dez pedaços."
"E seu pai não tinha interesse no Rosier, em si. Apenas no anel que você deu pra ele."
Completei.
Lúcio olhou para nós como um coelhinho encurralado. Ele agiu da mesma forma
quando o intimei na cozinha lá de casa.
Por que realizar boas ações era um tabu tão grande?
"Papai fez esse anel para uma pessoa muito importante, e essa pessoa nunca quis usá-lo.
Eu guardei o anel por séculos, mas a magia do papai ainda persiste." Lúcio olhou para fim de
dia ensolarado através da janela, pensativo. "É um feitiço chamado Sorte do Demônio. Este
anel é único em todo o inferno."
Quando compreendi, uma culpa horrível esmagou meu peito.
"Você fez isso para Rosier conseguir o novo transplante." Falei.
Lúcio fez que sim com a cabeça, parecendo morrer de vergonha e ódio de si mesmo.
Pela olhar baixo de Thanos, ele também se sentia horrível. Lúcio tentou proteger minha
vida e a de Rosier até o fim, sendo forçado a trair o próprio pai. Ele provavelmente instruiu
Gideon a nos trair também, e eu não consegui ver por trás de suas intenções. Como eu pude
julgá-los tão mal?
"Não façam essa cara de defunto, meus queridos." Lúcio sorriu, tentando aliviar o
clima. "Vejam o sol começar a se por. Apenas mais cinco horas, e os trinta dias de Thanos se
encerrarão. Um incubus de alma estável é tão complicado de dissolver, que o papai não teria
paciência."
"E eu ainda poderei ver o Miguel?" Perguntou Thanos.
"Claro que sim. Você será como minha dama de companhia." Lúcio riu, com um
sorriso implicante.
A ideia de ver Thanos como escravo me incomodava, até porque Gideon seria o chefe
dele. Mas eu não podia deixar de rir junto. Este sempre foi o melhor cenário possível para
Thanos, e saber que eu poderia revê-lo me deixava imensamente feliz.
"Lúcio, seu escravinho juvenil se recusa a vestir uma sunga." Gritou Rosier, no andar
de baixo.
"É meu dever prover o mestre com o visual que melhor satisfizer suas necessidades
físicas. O humano do mestre deveria fazer o mesmo." Respondeu Gideon.
Lúcio revirou os olhos e correu escadaria abaixo. "Gideon, nós já conversamos sobre
isso." Reclamou ele, sua voz desaparecendo conforme se afastava.
Eu e Thanos ficamos sozinhos no quarto amplo e luxuoso de Rosier.
"Lúcio não parece bravo conosco." Falei, consumido pela culpa. No lugar dele eu talvez
fizesse o mesmo para proteger Thanos, ou Rosier.
"Não adianta sofrermos por isso." Thanos acariciou meu rosto, me apreciando com seus
deslumbrantes olhos azuis. "Concentre-se em se recuperar. Precisamos estar bem, caso Lúcifer
volte."
Eu concordei com a cabeça, e uma sentimento doce me fez rir como um bobo.
"Que foi?" Thanos me perguntou.
"Mais cinco horas, e eu finalmente vou poder te beijar."
Thanos corou, e também riu. Ele deu um peteleco na minha máscara. "Boa sorte
tentando me beijar com isso na cara."
"Não me tortura!" Falei, fingindo indignação. "E por que ainda estamos abraçados
assim?"
Thanos beijou minha testa, e lutou para entrar embaixo dos cobertores. Como Rosier
disse, as asas só serviam para atrapalhar, mas eu não reclamaria de ter o corpo quente e
protetor de Thanos todo grudadinho no meu.
"Você já tentou transar com um paciente de UTI?" Perguntei, segurando o riso. Não
custava tentar.
Thanos gargalhou.
"Vai dormir, Miguel."
Capítulo 27
Thanos

Miguel adormeceu mesmo, eu constatei, com certa decepção.


Temendo acordá-lo, eu acomodei meu rosto na curva de seu pescoço e tentei fazer o
mesmo. O horror pelo qual passamos ainda estremecia meus ossos, mas se Miguel lidava com
isso mais ou menos bem, eu teria que fazer o mesmo.
Quando aquelas serpentes de luz me envolveram, eu realmente pensei que seria o fim.
Abandonar Miguel me aterrorizou muito mais que ser executado naquele altar duro e frio.
Agora as coisas estavam tão calmas, que tudo parecia surreal. Eu podia abraçar Miguel
nesse colchão macio e cheirar o perfume gostoso de sabonete em sua pele delicada, afagando o
pijama fofo de flanela que Rosier lhe emprestou.
"Gideon, dá pra me soltar?" Lúcio gritou do quintal, entre sons de ondas d'água.
"O mestre em trajes de banho, eu nunca imaginei que viveria para esse dia." Gideon
gritou de volta, e os espirros de água se intensificaram.
Mesmo daquela distância, eu podia ouvir as risadas de Rosier.
Eu suspirei, observando a expressão serena de Miguel enquanto sua respiração
embaçava a máscara.
Apenas mais quatro, e eu seria um incubus completo. Eu nunca mais poderia me tornar
um anjo, mas quem liga? Eu poderia me encontrar com Miguel para sempre.
Eu sorri e bocejei, sentindo o sono chegar. Mal podia esperar para beijá-lo. Eu apertaria
meus lábios nos dele e não soltaria mais.
Eu dormia profundamente, quando Miguel cutucou minha barriga com força.
"Não acredito. Você não vai tentar nada, mesmo!"
Eu apertei minha barriga dolorida. Miguel inflava suas bochechas adoravelmente.
"O quê? Você tem noção de que quase morreu há tipo, umas doze horas atrás?"
Sem querer argumentar, Miguel laçou as pernas ao redor da minha cintura e me grudou
contra ele. Mesmo através do pijama macio eu sentia os gominhos de sua barriga atritando
contra os meus.
Embora eu tivesse tomado banho não tive a cara-de-pau de pedir roupas ao Rosier,
então ainda vestia aquelas calças arrebentadas e nada mais.
"Deveríamos comemorar que estamos vivos." Miguel deu um sorriso atrevido que me
fez corar. "Estou brincando. Eu sentia falta de ficarmos apenas assim."
Eu relaxei os músculos, tentando conter a óbvia reação do meu corpo. Miguel mexia
tanto comigo que talvez até me convencesse, mesmo com o soro e os adesivos dos monitores
cardíacos.
Nossa, como esquentou embaixo dessas cobertas.
"Não sei com que frequência poderei te visitar, quando eu retornar com Lúcio." Eu
beijei seu pescoço, e desabotoei a gola do pijama, expondo seu peito forte e bonito. "Você vai
ficar bem?"
Miguel arfou macio quando beijei a fenda no meio de seu peitoral.
"Não imagino Lúcio desaparecendo, com Rosier por aqui." Miguel se contorceu em
mim, como se me convidando a beijá-lo mais embaixo.
Desistindo de enfrentá-lo, eu abri o resto dos botões, e desci. "Fique quietinho, senhor
paciente terminal."
Miguel mordeu o lábio, me assistindo beijar sua barriga, e umbigo, e os primeiros
pelinhos ruivos no limite da calça. "Vai ser difícil."
Excitá-lo nessas condições não parecia certo, mas os gemidinhos convidativos de
Miguel não me deixavam parar. Eu desci a calça do pijama até os joelhos, tentando deslizar
sob as cobertas apesar das minhas asas.
A visão à minha frente fez meu sangue ebulir. Miguel vestia uma cuequinha vermelho
escuro, daquelas com detalhes em renda e corte justo, com espaço extra na frente. Pelo visto
era tipo fio-dental, e a vontade de confirmar me enlouquecia. Eu precisava virá-lo de costas.
"Não passei em casa, Rosier precisou me... ah. ...Me emprestar uma cueca. É nova,
estava na embalagem." Falou Miguel, gemendo a cada um dos meus toques.
Bendito seja, Rosier.
"Você está incrível." Elogiei, e baixei os lábios sobre as rendinhas delicadas. Eu dei um
beijo e subi a língua pelo tecido, sentindo Miguel crescer contra os meus lábios.
Houve um estouro distante, e a mansão estremeceu.
Eu e Miguel nos sentamos num pulo.
"O que foi isso?" Ele perguntou, tirando a máscara de oxigênio.
Com o coração disparando, eu ajeitei a máscara de volta em seu rosto.
"Não tente levantar." Falei, com um péssimo pressentimento. "Vou ver o que está
acontecendo."
Eu abri a janela e estendi minhas asas, ouvindo os gritos assustados de Gideon e dos
outros dois.
"Não importa o que aconteça, não saia daqui."
Eu saltei, e voei em direção à piscina.

****

Como eu previa, Lúcifer. Ele e Lúcio discutiam acaloradamente no gramado florido da


mansão, enquanto Gideon mantinha Rosier a uma distância segura.
Maldição, quando esse desgraçado nos deixaria em paz?
"Thanos, não venha!" Gritou Lúcio, assim que me viu.
Lúficer sorriu ao me ver, e desembainhou a espada. A lâmina estava limpa dos
desenhos de sangue, e cintilava ameaçadora sob os últimos raios do pôr-do-sol.
"Incubus insolente. Por culpa desse medíocre, eu..."
Eu pousei à frente de Lúcifer, e Lúcio colocou-se entre nós.
"Papai, ele não fez nada. Fui eu quem destruí o templo, eu mesmo construo outro, se..."
"Não vou discutir de novo, Lúcio."
Lúcifer estalou os dedos, e duas criaturas cinzas jogaram-se em Lúcio, o derrubando no
chão.
Com uma tala na asa, Calcabrina segurou os pulsos de Lúcio contra as costas, e
Alichino, coberto de hematomas e suturas, imobilizava suas pernas.
"Lúcio, o que está havendo?" Rosier tentou vir, mas Gideon o segurava com firmeza.
Lágrimas de medo desciam pelo rosto dos dois. "Quem é o das seis asas?"
Eu agitei minhas cauda em tom de ameaça, sabendo que provavelmente só faria Lúcifer
rir.
"Gideon, leva o Rosier pra mansão. Cuida dele e do Miguel por mim." Falei. Meus
olhos azuis brilhavam em raiva e medo.
Nem a pau que Miguel correria perigo por mim, duas vezes.
"Qual é o seu problema comigo?" Eu gritei, mas Lúcifer já prendia sua atenção em
outra coisa. No amigo do Miguel.
"O anel da sua mãe, no dedo de um humano." Lúcifer contraiu os lábios, como se
prestes a vomitar.
Lúcifer correu na direção de Gideon e Rosier, enquanto Lúcio gritava pateticamente,
imobilizado no gramado.
Puta merda, o que eu faço?
Como um kamikaze voando para a morte, eu disparei para a frente. Minha asa acertou
os olhos de Lúcifer acidentalmente, eu ainda não sabia controlar meu vôo muito bem.
Eu pousei meio que tropeçando entre Rosier e Lúcifer, que coçava os olhos irritado
pelo meu golpe acidental.
Agora a merda já estava feita.
"Como se atreve?" Bravou ele, recuperando a pose imponente e agitando suas seis asas.
A espada que empunhava refletiu a luz do sol nos meus olhos, me lembrando que sim, eu
estava ferrado.
Eu tremia, mas imitei o gesto do harém e estendi minhas asas, bloqueando Lúcifer
enquanto Gideon, aquele pirralho idiota, estava assustado demais para fugir com Rosier.
"Papai, já chega!" Lúcio parou de xingar e mudou para um tom de súplica. Alichino e
Calcabrina o mantinham muito bem preso. "Não machuca eles!"
Parado dois passos na minha frente, Lúcifer apontou a espada no meu pescoço. Suas
íris, vermelhas como as de Lúcio, brilhavam em ódio puro.
"Um dia, Lúcio, você perceberá que fiz o melhor por você."
Lúcio ergueu a espada e eu contraí meus músculos, reunindo uma bravura que eu não
sabia ter. Era minha vez de proteger Gideon, e Rosier era o melhor amigo de Miguel.
Ah, meu amado Miguel... pelo menos ele não estava ali, para me assistir morrer.
"Thanos, fuja. Ele vai te atacar!" Uma voz assustadoramente familiar ressoou, nas
portas da mansão.
Eu ergui meus olhos molhados em lágrimas de temor.
Não. Não podia ser.
Correndo em minha direção vinha Miguel, com seu semblante pálido e pernas tão
fracas que ele tropeçava a cada dois passos. Pelo sangue em seu braço. ele arrancara o soro por
conta própria.
Minhas pupilas se contraíram em terror, ao olhar dele para a lâmina sobre a minha
cabeça.
Não, eu não podia morrer. Não na frente do Miguel.
Capítulo 28
Miguel

O sol terminava de se pôr, tingindo o quintal da mansão em tons roxo-azulados.


No centro do vasto gramado, próximo à piscina e aos arbustos florais, Thanos me
encarava com a surpresa de quem achava mesmo que eu não fosse vir.
Eu apertei o machucado no meu braço, causado pela agulha do soro. Longe do
respirador, eu precisava respirar no triplo da velocidade para não sufocar, o que devia ser um
tanto ridículo. Mas nunca que eu deixaria Thanos sozinho. Não com aquele fascínora do pai do
Lúcio.
Thanos era meu. Eu amava ele, e já havia decidido que viveríamos juntos até o fim.
"Se quiser o Thanos, me mate primeiro!" Eu gritei, ou tentei gritar. Minha voz soava
fraca e rouca após tossir tanto.
"Senhor Miguel, não provoque." Guideon puxou Rosier até mim e nos acolheu em suas
largas asas, como se eu precisasse ser protegido por um adolescente erotizado.
Minha preocupação mudou de foco quando notei o estado de Rosier.
"Rosier, está tudo bem?" Eu o segurei pelos braços pouco antes dele ceder o peso sobre
mim.
Com uma expressão dolorida em seu rosto, Rosier apertou o peito da camisa. As unhas
cravaram no tecido com força o bastante para rasgá-lo.
"Não se preocupa." Gemeu ele, tentando se manter de pé. "Seu boy precisa de mais
ajuda que eu."
Eu virei para Thanos, que tentava bancar o herói, posando todo viril entre Lúcifer e nós.
Droga. Rosier e Thanos precisavam da minha ajuda, mas o que eu podia fazer por
qualquer um?
Meus olhos passaram pelo rubi no dedo de Rosier, que brilhava fracamente em tons
vermelhos, de forma sobrenatural. Se Lúcio não estivesse mentindo, Rosier ficaria bem.
"Gideon, leva o Rosier. E se tentar me levar também, quebro a sua cauda." Falei.
"Mas... mas o mestre..." Prestes a chorar, Gideon olhou para Lúcio, que gastava suas
forças contra os desgraçados de antes.
"Você me disse para confiar no Lúcio. Preciso que faça o mesmo. Sua missão é
proteger o humano dele, não é?"
Gideon engoliu as lágrimas e correu com Rosier de volta à mansão. Rosier sempre se
fazia de forte na minha frente. Ele devia estar péssimo para precisar ser carregado.
Por dentro, eu queria gritar. Perder Thanos já me parecia inconcebível, mas Rosier? Sua
última falência cardíaca foi há seis anos, e a memória ainda me retornava como se fosse de
dias atrás.
Meu namorado e meu melhor amigo... Eu me recusava a perdê-los. Eu podia ser um
humano inútil, mas era a minha vez de fazer alguma coisa.
"Lúcifer, você é surdo?" Gritei, com a minha voz mais petulante. "Um mês inteiro
perseguindo um único incubus. Um imperador não tem nada de melhor a fazer?"
Thanos e Lúcio arregalaram os olhos pra mim, o que só aumentou minha confiança
estúpida. Eu finquei os pés ao lado de Thanos e pus a mão na cintura, verificando o horário no
meu celular.
Em doze minutos Thanos se tornaria um incubus definitivamente. Eu só precisava
enrolar Lúcifer até o prazo esgotar... eu acho.
"Não vai falar nada, seu brutamontes implicante?" Gritei, enfim conseguindo sua
atenção total. "Por que não aponta essa espada para mim? Eu também tenho pescoço, sabia?"
"Miguel, o que raios?" Thanos segurou meu braço como o machão que ele tentava ser,
mas eu o empurrei para o lado. Já estava cansado de fingimentos. Thanos não servia para
soldado nem muito menos poderia me salvar, se precisasse.
Eu não queria um herói. Eu queria viver ao lado do amor da minha vida.
Lúcifer se chocou tanto com a minha arrogância que congelou no lugar.
"Você se acha especial, ruivinho? Pelo menos sabe o que é um incubus e o que fazem?
Ele te manipulou para poder usar em ocasiões como essa. Saia da frente."
"Thanos me enganou no começo, é verdade, mas ele mudou. Ele é querido e importante
pra mim, então vai ter que me matar por ele." Eu envolvi meus braços nos ombros de Thanos,
o abraçando apertado.
"Papai, se matar o humano, os anjos..." Lúcio tentou falar qualquer coisa, e Calcabrina
pisou em seus chifres recurvados, enterrando seu rosto no chão.
Sim. Um líder como Lúcifer não arriscaria uma crise política por algo que para ele era
pequeno. Ele não iria me machucar.
Faltavam mais uns cinco minutos. Eu só precisava enrolar um pouco mais.
"E tem mais! O Thanos também me ama. Você pode ser o cara malvado de qualquer
história, mas você sabe o que é amar outra pessoa, não sabe? Você pode até disfarçar, mas se
importa demais com o Lúcio. Tanto que o deixou se divertir no plano dos vivos até agora. E eu
não sei qual é a dele com o meu amigo, exatamente, mas Rosier é importante para o Lúcio
também. Já parou pra pensar nisso?"
Agora sim, Lúcifer estava petrificado. Não só ele, mas Lúcio e Thanos também.
"Miguel." Thanos sussurrou para mim. "Você tomou os remédios na dose certa?"
Quatro minutos. Meus pulmões latejavam pelo esforço, mas eu precisava me manter
falando.
"E isso não é tudo, nós..."
"Chega!" O grito de Lúcifer me fez agarrar Thanos com força. "Danem-se os malditos
anjos. Se quer tanto ir junto, terei o prazer de exterminar os dois.
Lúcifer ergueu a espada para o alto, e só então percebi que estava limpa, sem os
desenhos ritualísticos.
Minhas pupilas se iluminaram pelo reflexo da espada, contraindo-se como pontos.
Como não percebi antes? Lúcifer não veio com a intenção de dissolver a alma de Thanos.
A espada chiou no ar, descendo com violência. Eu me abracei em Thanos e gritei. Não.
Eu não queria morrer. Eu e Thanos viveríamos juntos para sempre.
Um som molhado ecoou pelo ar, seguido de um gemido de dor.
Eu voei para o lado e caí no chão, rolando pela grama seca.
Percebendo que a dor insuportável não começava nunca, eu ergui o rosto, atordoado
pelo empurrão.
A cena que avistei fez minha visão tremer.
Diante de mim, Lúcifer enterrava sua espada em Thanos. A lâmina descia do lado do
ombro até o peito, atravessando-o de lado a lado e fazendo sangue jorrar em todas as direções.
Thanos agarrou a lâmina e tentou erguê-la, vertendo sangue pelos lábios. A cor em seu
rosto desaparecia rapidamente.
Não podia ser. Thanos me empurrou para longe do ataque, e agora ele... Meus olhos se
inundaram. Eu não queria acreditar no que estava vendo.
"Não... Thanos, por favor, não." Eu cobri a boca, com a visão borrando pelo horror.
Lúcifer ergueu a espada num único movimento, livrando-a do torso rompido de Thanos
em um segundo jato violento de sangue.
Thanos não tentou olhar para mim. Ele apenas pôs a mão no talho imenso em seu
corpo, viu o vermelho vívido em sua palma, e caiu de costas no chão.
Enfim solto, Lúcio saltou sobre o pai e agarrou a gola de seu casaco, o agitando
ferozmente.
"Eu não vou te perdoar por isso, eu não vou!" Ele gritou, chorando em desespero. "Ele
era meu amigo. O melhor que eu já tive."
Lúcifer limpou a lâmina no lencinho de bolso e a embainhou, com desdém.
"Que isso te ensine a tomar jeito." Falou ele, sem a menor emoção. "Preciso de um
general, não de um filho mimado e hedonista."
Lúcifer livrou-se de Lúcio e calmamente envolveu-se num tornado de sombras.
Calcabrina e Alichino o seguiram, e os três desapareceram.
Incapaz de me erguer, eu engatinhei até Thanos. Ele jazia imóvel, tingindo a grama
num lago cada vez maior de vermelho.
Em estado de choque, Lúcio se desesperava no lugar onde Lúcifer desapareceu,
socando o chão em uma fúria sentida.
Minhas pupilas tremulavam. Eu me apoiei no peito de Thanos, observando seus lábios
macios e bonitos se azularem aos poucos. Ele não respirava.
"Ele vai voltar, não vai?" Solucei, afagando seu rosto. "Ele já morreu como humano.
Ele vai voltar a ser uma alma, e você vai reencontrá-lo e vai lhe dar um novo corpo, não vai?"
"A espada do papai não é qualquer espada, ela..." Lúcio continuou chorando. Ele não
precisava terminar a frase.
De repente, um gorgolejo sombrio estremeceu o corpo de Thanos. Eu me sobressaltei,
pensando ver coisas quando ele voltou a respirar, muito fracamente.
Abrindo uma linha de seus encantadores olhos azuis, Thanos sorriu para mim.
"Desculpa, Miguel, eu fui tão..." Ele tossiu, cobrindo-se de ainda mais sangue. "Seja
feliz por nós dois, tudo bem?"
"Thanos, não diz isso, você vai melhorar." Eu sequei minhas lágrimas para não
assustá-lo. "Demônios se recuperam super rápido. Você mesmo já estava bem hoje, quando
ainda ontem..."
Thanos segurou minha mão. A dele estava gelada.
"Eu te amo." Ele me disse, e fechou os olhos.
A mão de Thanos afrouxou na minha, e sua respiração foi enfraquecendo.
Não. Thanos foi tudo pra mim. Eu não podia deixar ele morrer. Não entreguei meu
coração para ele me abandonar assim.
Era a minha vez de protegê-lo.
"Eu também te amo."
Eu me recurvei sobre seu corpo, e selei meus lábios nos dele.
Capítulo 29
Thanos

Eu acordei num espasmo, respirando engasgado como se tivesse passado horas sob a
água.
Onde eu estava? Eu amassei a grama vermelha e molhada entre meus dedos, logo
reconhecendo o quintal da mansão do Rosier. Minha memória voltava aos poucos, em flashes
rápidos e confusos.
Lúcifer esteve aqui. E algo sobre a espada dele. E os gritos de Lúcio, e Miguel...
Eu olhei para baixo e percebi uma imensa mancha de sangue, que ia do ombro ao peito.
A pele por baixo estava intacta, ainda mais saudável que quando voltamos do inferno.
O que estava acontecendo?
E então tudo voltou de uma vez.
"Miguel?" Eu me virei para trás.
Em meio aos arbustos florais de Rosier, Lúcio abraçava alguma coisa, ajoelhado no
chão. Ele chorava. Eu nunca vi Lúcio chorando.
"Lúcio, cadê o Miguel?" Eu me aproximei, querendo que minhas lembranças fossem
apenas um sonho ruim. Aliás, só poderiam ser. Lúcifer enterrou sua espada em mim, e eu
empurrei Miguel no último segundo. Mas eu estaria morto se fosse verdade, não é?
Quando percebi o quê - ou quem - estava nos braços de Lúcio, eu corri até ele.
"Miguel!" Eu caí de joelhos ao lado de Lúcio.
Os lindos olhos de Miguel estavam fechados, e sua pele tornou-se branca como papel,
exceto pelos lábios roxos.
Eu segurei sua mão inerte, e deixei as lágrimas caírem sobre seu rosto. Não podia ser
verdade.
Miguel estava morto.
"O que aconteceu, Lúcio? O quê?" Eu solucei. "Me deixa segurar ele. Por favor."
Lúcio me ignorou, ele acariciou o rosto gelado de Miguel enquanto chorava, tanto
quanto eu.
"Eu vou encontrar sua alma." Sussurrou Lúcio. "Vou lhe conseguir uma boa vida, lá
embaixo. Eu devo isso ao Thanos."
Eu fervi de raiva e de dor.
"Não me ignora, Lúcio! Me entrega o Miguel, me deixa sozinho com ele!"
Eu agarrei o ombro de Lúcio, e minha mão atravessou seu corpo.
O quê?
Um bater de asas se aproximou, e eu ergui o rosto. Gideon trazia Rosier com ele. Os
dois pousaram e Rosier correu para Miguel, completamente aterrorizado.
"Miguel!" Rosier cobriu a boca, tremendo. "O que aconteceu? Ele não está morto,
está?"
Os três falaram entre si, chorando muito.
"Rosier, amor. Me desculpa." Falou Lúcio.
Rosier abraçou Miguel e aninhou contra seu corpo, chorando desesperadamente.
"Eu confiei em vocês!" Ele gritou. "Eu confiei em vocês porquê o Mi confiou, e ele
nunca erra sobre ninguém. Cadê aquele desgraçado do Thanos? Eu vou matar ele, eu juro que
vou."
Lúcio tentou abraçar Rosier e levou um soco no peito como resposta. Lúcio ignorou os
socos e o envolveu em seus braços até Rosier ceder, chorando em seu ombro.
Eu assisti a cena, horrorizado e confuso.
"Alguém me explica o que aconteceu!" Gritei, e até Gideon me ignorou, lamentando
quieto a alguns passos de distância.
"Miguel fez o que fez pelo Thanos. Não odeie ele." Lúcio afagou o cabelo de Rosier,
que chorava de cortar o coração. "Miguel terá uma boa vida no meu reino. Te prometo isso."
"Dá pra alguém me ouvir?" Eu bati minhas asas com impaciência, e um brilho branco
chamou minha atenção.
Eu saltei com o susto e estendi minhas asas para a frente, percebendo uma camada de
penas brancas e luminosas. Sob elas, as últimas penas pretas terminavam de cair.
"Que porra é essa?" Gaguejei, enfim entendendo o que aconteceu. Eu passei a mão atrás
de mim, sem sentir a cauda, e ergui os dedos acima da cabeça.
Meus chifres haviam desaparecido, e havia uma argola flutuando. Uma auréola?
Não!!!
"O mestre não vai usar o poder dele?" Perguntou Gideon, enquanto Rosier deitava
Miguel sobre o gramado florido. "O poder de ver os anjos?"
Lúcio secou as lágrimas de Rosier com o dedo, e beijou-lhe o rosto.
"Esgotei minhas energias contra os soldados do papai. Por enquanto, não podemos nem
voltar." Ele suspirou em tristeza. "E não adiantaria, de qualquer forma. Thanos já deve ter
atravessado o portal."
"Você foi meu melhor amigo, Miguel. Não vou te esquecer nunca." Rosier afagou seus
cabelos ruivos, e descansou suas mãos cruzadas sobre o peito. "Me diz que vou poder revê-lo,
Lúcio."
"Eu o tornarei um demônio de baixa hierarquia. Papai não terá problemas com isso,
mas não serei capaz de sustentá-lo neste plano."
Rosier chorou sobre o corpo de Miguel, e eu ainda mais, assistindo tudo de longe.
Então era isso? Eu nunca mais veria ele?
Eu me ajoelhei entre todos e tentei erguer a cabeça do Miguel no meu colo, mas minhas
mãos o atravessavam. Eu já não podia sentir a textura de sua pele, ou o frio de suas mãos.
"Miguel, seu idiota!" Gritei, tomado pela raiva. "Você disse que viveríamos juntos, e aí
faz um sacrifício estúpido desses?"
Eu solucei, pingando lágrimas nas minhas pernas. Se pelo menos eu não fosse tão fraco.
Se eu tivesse me tornado um soldado, ou vencido Lúcifer, Miguel viveria feliz ao meu lado.
Mais uma vez tive que ser protegido. E Miguel precisou morrer pra isso.
Minha última pena negra ondulou até o chão e desapareceu, tornando minhas asas
plenamente brancas.
Um retângulo de luz branca iluminou a noite, bem alto no céu, conectando-se a mim
através de uma longa escada translúcida.
Nem a pau que eu subiria essa porra de escada. Eu não queria ser um anjo. Não quando
isso custou a vida do meu Miguel.
Independente da minha vontade, o portal de luz começou a me atrair como um ímã. Eu
forcei meu corpo a manter-se com Miguel, mas era impossível.
Eu bati minhas asas brancas e gritei de raiva, assistindo meus pés se arrastarem para
trás. Mesmo lutando com toda a minha força, o portal me sugava sem esforço algum.
Aquela energia incompreensível me elevou, afastando-me de Miguel cada vez mais. Ele
tornou-se um pontinho entre as flores do vasto jardim.
"Miguel, eu te amo." Eu gritei. "Eu vou te amar pra sempre. Esteja onde estiver, não
esqueça de mim!"
Lúcio pareceu ter um arrepio e virou o rosto, mais ou menos na minha direção.
"Eu prometo que ele será feliz!" Lúcio gritou para mim. "Tenha uma boa vida, lá em
cima!"
O portal me sugou e eu apertei os olhos, deixando a luz me engolir.
Capítulo 30
Thanos

O parque florido e ridículo foi crescendo na minha visão, conforme eu me aproximava.


Eu pousei à beira do lago e apertei a testa, tentando localizar o foco de perigo.
Uma sensação incômoda me levou ao parquinho infantil, e logo identifiquei meu
trabalho da tarde: Dois menininhos fugiram da vista dos pais, e agora escalavam uma árvore
alta, tentando alcançar uma maçã do topo.
Eu bufei, e alisei os lados da minha longa e cafoníssima túnica branca. Hora de
trabalhar.
Como meus instintos apontaram, o galho quebrou e os dois bastardinhos caíram. Eu os
envolvi em meus braços e amaciei sua queda, permitindo que não se machucassem.
Bom, na verdade um deles escorregou de mim e caiu de bunda, armando um berreiro,
mas ei, pelo menos ninguém quebrou o pescoço.
Eu revirei os olhos e assisti os pais aparecerem e meterem bronca nos pivetes. Não
bastava ter sido um incubus fraco, eu me revelei um anjo pior ainda, então me encarregaram de
anjo da guarda, uma das hierarquias mais baixas.
As duas crianças logo se recuperaram do susto, e fagulhas brancas partiram delas,
fazendo cintilar minhas asas de anjo. Energia de Boa Intenção, e o suficiente para eu tirar o
resto do dia de folga.
Sem querer perder mais tempo, eu alçei vôo na direção do cemitério. Meu tédio em
trabalhar como anjo logo deu lugar à tristeza.
Vinte de novembro. Hoje fazia um ano desde que Miguel morreu.
Localizar o túmulo do Miguel era fácil. Rosier não mediu dinheiro para lhe construir
uma cripta à altura do amigo que ele foi. Atrás do tampo dourado havia uma grande escultura
de mármore, no formato de um anjo de braços estendidos, em um eterno abraço não
correspondido. O rosto lembrava bastante o meu, o que era uma homenagem estranha.
Se não fosse por mim, Rosier ainda teria Miguel ao lado dele.
Eu pousei nos portões do cemitério e atravessei à pé. Quando cheguei, Lúcio e Rosier já
estavam lá. Os outros vários visitantes já estavam partindo. Eu reconhecia alguns deles como
os colegas de Direito do Miguel, eles também participaram do velório e do enterro.
Quando restavam apenas Rosier e Lúcio eu me aproximei, e me ajoelhei com eles.
Meus olhos percorreram o epitáfio de pedra, com escritos em dourado.
Aqui jaz Miguel Bellomi. Descanse em paz, querido amigo.
Eu sempre visitava Miguel quando meu trabalho terminava cedo, mas hoje seu lugar de
descanso estava especialmente bonito, coberto com flores, cartões com mensagens e
fotografias que me faziam quase chorar. Mas eu já chorei o suficiente. Precisava ser feliz.
Miguel não gostaria de me ver triste, e ele certamente já aprendeu a me superar.
Eu juntei minhas mãos, e fiz a única coisa que um anjo inferior pode fazer: rezei e
enviei boas energias.
"Eu salvei uns pirralhos, hoje." Falei. "Nada emocionante como o gatinho se afogando
na semana passada. Dessa vez ninguém se machucou muito, talvez o supervisor até me elogie.
Você adoraria conhecer lá em cima, Miguel. É tão cafona, que me dá enjôos."
Eu percebi que estava chorando e sequei as lágrimas. Droga, como eu sentia falta dele.
Um bater de asas atrás de mim me forçou a recuperar a postura orgulhosa de anjo. Eu
me ergui e estufei o peito, virando-me na direção do som.
Um anjo muito alto e esbelto pousou logo atrás de mim. Cabelo loiro e liso até a
cintura, olhos cor-de-mel, e a mesma túnica que eu vestia, branca e longa até os pés. Suas asas
cintilavam em pura luz branca, combinando com o dourado da auréola.
Saco, não podia nem visitar o Miguel em paz.
"O que você quer, Sandalfon?" Perguntei, sem disfarçar a aspereza. Meu supervisor
parecia não ter vida própria.
"De novo visitando o humano?" A voz calma e bondosa de Sandalfon escondia sua
verdadeira natureza. O toque de escárnio em seus lábios alfinetou meus nervos. "Apego à vida
carnal é considerado um pecado, canso de lhe repetir. Por isso suas asas sempre escurecem."
Eu olhei pras minhas asas, que podiam não brilhar como a dos outros, mas me pareciam
brancas o bastante.
"Acha que pretendo esquecer ele? Pra ganhar uns elogios de um anjo abestado como
você?"
"Nada me agradaria menos que precisar elogiá-lo." Sandalfon riu em deboche. "Estou
aqui para proteger meu novato mais problemático."
Eu vinquei a testa e olhei ao redor, tentando entender do que ele estava falando. O foco
dele estava em Lúcio, que agora abraçava Rosier, deixando que chorasse em seu ombro.
"Não pode estar falando sério." Revirei meus olhos, mas por dentro eu tremia.
Sandalfon podia ser um anjo da guarda como eu, mas já comentavam sua promoção a arcanjo,
muito em breve. Eu não compreendia o universo angelical o suficiente, não sabia se Sandalfon
seria uma ameaça a Lúcio.
Ele certamente era uma ameaça para mim.
Percebendo meu medo, Sandalfon jogou o cabelo para trás, todo cheio de petulância.
Será que os anjos eram idiotas assim de modo geral, ou só comigo?
"Vejo uma aura negra nesses dois. O loiro carrega uma relíquia das trevas no dedo, e o
de casaco vermelho oculta chifres e asas através de ilusão demoníaca. Mas creio que já sabe
disso, não é mesmo, meu precioso nephilim?"
"Foda-se" Respondi. Nephilim era como chamavam os de origem híbrida entre planos.
Anjos adoravam me chamar assim, como um insulto. "Não preciso ser protegido."
"Claro que não." Respondeu ele, sempre sarcástico. "Mantenha-se longe de influências
impuras, Thanos. Eu detestaria tanto precisar te punir de novo." Falou ele, com um sorrisinho
fino.
Sandalfon abriu bem suas asas brancas e puríssimas antes de alçar vôo. Qualquer dia
ele esfregaria aquelas coisas na minha cara.
Legal, outro encontro com o poste de penitência. Pelo menos me livrei daquele palhaço.
Eu voltei a me ajoelhar com Lúcio e Rosier, tentando imaginar que realmente estava ali,
com eles. Rosier já havia se acalmado, e agora organizava os buquês de flores sobre a lápide.
Lúcio e Rosier, óbvio, conversaram apenas entre si. Eles não podiam me ver, e Lúcio
não usaria sua Revelação, sem saber da minha presença.
Rosier enlaçou seus dedos nos de Lúcio. Fazendo brilhar o rubi em seu anelar.
"Ah, Mi, você já deve ter percebido, mas cirurgia deu certo, mesmo." Ele abriu os
botões de cima da camisa, revelando uma grossa camada de faixas e esparadrapos. "Olha só.
Um coração novinho! Deixei o hospital tão rápido que os médicos pensaram ser um milagre.
Mas acho que só tenho muita sorte."
Eu sorri. A parte do milagre não estaria tão errada assim. Rezei por Rosier todos os dias
de sua recuperação. Rosier era uma boa pessoa, e eu devia esse tanto ao Miguel e ao Lúcio.
"Acha que ele está aqui, nesse momento?" Rosier deitou a cabeça no ombro de Lúcio.
"Miguel?" Perguntou Lúcio.
"Thanos. Se ele esqueceu o aniversário do Mi, vou quebrar aquele anjo em dois."
Lúcio sorriu serenamente e olhou para o lado na minha direção, mas seu foco ia além
de mim.
"Se ele estiver aqui, gostaria que me encontrasse naquela sorveteria ótima que você me
apresentou, no parque. Amanhã, ao último raio de pôr-do-sol."
Rosier arqueou a sobrancelha pra ele, mas meu rosto se iluminou.
Eu bati minhas asas e subi de volta para casa, com um sorriso animado nos lábios.
Em apenas um dia, eu reencontraria aquele que se tornou meu melhor amigo.
Capítulo 31
Miguel

Com todo o cuidado do mundo, eu equilibrei as asinhas de choco-néter sobre cada


cupcake, enterrando-as até a metade no glacê preto e vermelho.
Eu bati palmas em satisfação, animado com o resultado final. Meus cupcakes-de-lava
não ficaram apenas deliciosos, mas lindos também.
Abanando minha pequena cauda como um cachorrinho feliz, eu organizei a sobremesa
da noite em uma travessa decorada.
A cozinha do castelo do Lorde Lúcifer era incrível. Haviam infinitas prateleiras com
todos os utensílios imagináveis, e a dispensa era a maior que já vi, embora todos os
ingredientes diferissem da culinária humana.
Demorei a aprender a culinária local, mas quando percebi que broto-de-néter tinha
gosto de açafrão e que orbeluz era basicamente um ovo de galinha, não havia como errar. Em
um ano, eu já me virava muito bem.
Eu tirei meu caderninho do bolso do avental e anotei a nova receita. Foi difícil, mas já
havia descoberto muitos pratos deliciosos. Lorde Lúcifer me promoveu a chefe de cozinha em
questão de meses.
Eu sorri, apreciando o belo cardápio da noite antes de serví-lo ao Lorde. Uma cozinha
desse tamanho só pra mim. Era como viver um sonho, todos os dias.
Uma succubus de cabelos longos e pretos apareceu na cozinha. Assim como outros
membros do ex-harém de Lúcio ela mantinha suas mini-roupas de vinil preto, em respeito a
ele.
"Que exagero você aprontou dessa vez, Miguel?" Ela torceu os lábios vermelhos. "Seis
comidas diferentes, pra quê? Faz ideia do porre que é lavar essa louça toda?"
Eu ri, espreguiçando meus músculos cansados. Salésia era a chefe de cozinha anterior,
mas trocamos de função e ela agora limpava a cozinha. Ela me ensinou as duas receitas que
sabia: sanduíche preto e uma coisa que lembrava purê de carne. Meu estômago embrulhava um
pouco ao lembrar.
"O nome disso é salada de entrada. Aqui tem a sopa, três pratos quentes, e a sobremesa.
Devem ser servidos nessa ordem."
Salésia revirou os olhos. "Ébiro vai adorar saber." Falou ela com sarcasmo, referindo-se
ao incubus que trabalhava na faxina, e que contratei como garçom. "Como pode? Um diabinho
de baixa hierarquia, achando que manda por aqui."
Salésia removeu meu chapéu de chef e agarrou meus toquinhos de chifre, que mal
apareciam pelas mechas ruivas. Ela me sacudiu por eles e tentei me soltar, dando risada.
Salésia era legal, mas se irritava com uma facilidade cômica.
Gideon apareceu do nada e deu um peteleco na bunda de Salésia, por baixo da
minissaia. Ela me soltou e levou as mãos para as nádegas, dando um grito.
"Incomodando o Miguel de novo, Sal?" Gideon deu uma reboladinha, todo indignado.
"Ele é o melhor chef que já tivemos, então comece a respeitá-lo."
"Eu respeito ele, quando não está sujando louça como um enlouquecido." Ela suspirou
em frustração e começou a empilhar as vasilhas sujas.
Gideon e eu nos víamos com frequência, mas raramente na cozinha. Percebendo o
brilho em seus olhos ao admirar meu cardápio para os nobres, eu lhe ofereci um dos cupcakes.
Gideon deu pulos de alegria e saboreou a sobremesa com lágrimas de emoção nos
olhos.
"O que te trás aqui, Gideon?" Perguntei, adorando ver o sucesso da nova receita.
"O mestre mandou te chamar." Disse ele, com a boca cheia e os dentes pretos pelo
choco-néter. "Ele tem uma novidade."
Eu arqueei minha sobrancelha. "Novidade?"

****

Devido à diferença de hierarquia, eu raramente encontrava Lúcio. Um lorde não deve


ser visto com um demônio inferior, até por uma questão de segurança. Se eu chamasse muita
atenção, poderia ser castigado por demônios invejosos.
Geralmente era Gideon quem me passava os recados dele, o que tornava essa
convocação ainda mais incomum.
Escoltado por Gideon, eu bati na ampla porta de madeira negra. Seria minha primeira
visita ao quarto de Lúcio desde aquela vez, quando eu ainda era humano.
Assim que Lúcio autorizou nossa entrada, Gideon se jogou nos braços dele e eu me
abaixei, apoiando em um dos joelhos e baixando a cabeça, como seria esperado de um
demônio como eu.
"Mandou me chamar, milorde?" Perguntei.
Lúcio conseguiu soltar-se de Gideon. "Eu juro, Miguel, se me chamar assim de novo,
vou torcer seu rabo."
Eu ri, e me levantei. Desde que Lúcio oficializou-se como Primeiro General, todos
curvavam-se para ele. Era muito estranho não precisar fazer o mesmo.
Desta vez Lúcio não vestia seu uniforme militar. O longo casaco vermelho me trouxe
uma nostalgia feliz, e ao mesmo tempo dolorida.
Eu rapidamente afastei a tristeza. Com certeza absoluta, Thanos não gostaria de me ver
triste. Me esforcei muito para encontrar felicidade longe dele, não podia ter uma recaída agora.
"Gideon, por favor retorne aos seus afazeres." Pediu Lúcio, e Gideon obedeceu sem
muita insistência.
Quando Gideon fechou a porta, Lúcio me apontou a poltrona ao lado da cama. Eu me
sentei.
"Como está o Rosier?" Perguntei, sorrindo ao lembrar do resultado da cirurgia. Apenas
uma fração dos pacientes sobreviviam a um segundo transplante cardíaco, mas nunca duvidei
que Rosier conseguiria.
"Não consigo fazer aquele homem descansar. Quando não está na fisioterapia, está
tentando... outros tipos de exercício, comigo. Os hormônios dele mereciam ser estudados."
Lúcifer riu, descontraído. E logo desmanchou o sorriso. "Visitamos seu túmulo, ontem. Ele
sente sua falta."
Eu baixei o rosto, dolorido.
"Não traga ele aqui. A saúde dele não aguentaria." Pedi. Por mais que quisesse revê-lo,
eu precisava ser forte. "Você tem dito que estou bem, não é? Aquele túmulo é só um corpo,
não faz sentido vocês irem lá."
"Rosier é um humano. Humanos têm seu próprio jeito de compreender a mudança de
planos." Falou Lúcio. "Mas não te chamei para contar isso. Adivinha quem encontrei hoje?"
Eu ergui os olhos para Lúcio. Um sorriso animadíssimo alargou-se em seus lábios. Eu
reconhecia esse sorriso.
"Você está brincando." Falei, sentindo meu coração pulsar.
"Não, não estou." Lúcio mordeu o lábio, todo orgulhoso. "Um ano de treinamento
intenso valeu à pena. Consegui manter a Revelação por uns dois minutos, e nossa, seu
namorado fica ridículo naquela túnica branca."
Tomado pela emoção, eu me joguei em Lúcio, agarrando o colarinho do casaco.
"Você viu o Thanos mesmo? Como ele está? O que tem feito? O que ele disse?"
Eu comecei a chorar e soltei o Lúcio, incapaz de me conter. Como eu queria ver Thanos
de novo.
"De rosto ele não mudou nada, óbvio. Auréola dourada, sandálias, o par de asas mais
cinza que já vi em um anjo. Pelo tipo de túnica, é um anjo-da-guarda de nível básico."
Eu sorri e chorei, voltando a me acomodar na poltrona. Não conseguia imaginar meu
amado Thanos sem aqueles adoráveis chifrinhos.
Lúcio riu. Como general ele precisava manter certa postura, mas era óbvia sua alegria
em ter reencontrado Thanos. Poucos além de mim sabiam o quanto ele sofreu sua perda.
"Contei um pouco de você, mas, como eu imaginava, ele já sabia através das minhas
conversas com Rosier. Havia pouco tempo, ele só pode contar o quanto o céu era um tédio
cheio de esnobes. Ele também deixou um recado."
"Que recado?"
Lúcio corou intensamente, e virou o rosto. Ele curvou os lábios num sorrisinho
encabulado.
"Me conta, por favor!" Eu insisti, à beira de um colapso histérico.
"'Penso em você todos os minutos de todos os dias. Tenho tentado ser um anjo que te dê
orgulho, para seu sacrifício não ter sido em vão, e tem sido bem difícil. Mas saber que você
está feliz me enche de energia. Eu te amo mais do que tudo, e vou te amar pra sempre'." Lúcio
suspirou, ardendo de vergonha. "Não me pergunte como decorei isso."
Meus olhos já encharcados se inundaram ainda mais. As lágrimas caíram no meu
uniforme de chef, e eu cobri os olhos, soluçando pesado.
"Obrigado." Falei, enquanto chorava em desespero e alegria.
"Não precisa agradecer." Lúcio coçou atrás da cabeça, ainda meio encabulado.
"Também tive tempo de combinarmos reencontros mensais, então logo trarei mais notícias."
"Mensais? Uma vez por mês? Por que não todos os dias?" Eu sabia que estava histérico,
mas queria saber tudo sobre Thanos, cada pedacinho da vida que ele teve, desde que subiu aos
céus.
"Thanos sugeriu o mesmo, mas seria cruel. Os anjos tem leis que..." Lúcio engoliu as
próprias palavras. "Eu sou o Lorde, eu faço as regras."
Eu torci o lábio, me perguntando o que Lúcio estava escondendo. Mas ele já havia me
contado mais que o suficiente, melhor não forçar.
"Nunca poderei agradecer o bastante." Eu levantei prestei uma breve reverência.
Lúcio cruzou as pernas graciosamente. "Não quero nada em troca. De qualquer forma,
você já faz o suficiente. O que foi o jantar de ontem?" Lúcio lambeu os lábios ao lembrar.
Desta vez eu quem sorri com orgulho.
"Se gostou do cardápio de ontem, espere até provar o de hoje, milorde."

****

Enfim, meu bolo de cinco camadas estava pronto.


Salésia e Ébiro ergueram os olhares até o topo da espetacular sobremesa, que decorei
com flores sanguíneas das ilhas de Styx. Seus olhos brilharam em maravilhamento.
Há cinco anos eu trabalhava como chef do castelo. Incrível o quanto aprendi nesse meio
tempo.
"Não fiquem só olhando. A festa começará em dez minutos." Falei.
A succubus e o incubus ergueram a travessa com cuidado, e levaram o bolo.
Eu sequei o suor da testa e me escorei ao lado do fogão. Era estranho ver as bancadas
vazias, após semanas preparando salgadinhos e docinhos para o aniversário do Lorde Lúcifer.
Mesmo daquela distância eu podia ouvir os aplausos e cantoria dos nobres. Segundo me
contaram, não haviam muitos aniversários ou festas até eu aparecer. Agora tudo era pretexto
para me fazer cozinhar.
Não que isso me incomodasse. Eu olhei para meu livro de receitas sobre a mesa, que
agora era um tomo de oitocentas páginas ricamente detalhado, com ilustrações. Acho que até
Salésia seria capaz de usar, se tentasse.
Eu olhei para o teto de abóbadas góticas da cozinha, como se pudesse olhar através dele
e muito, muito além. Até onde Thanos estava.
"Espero que esteja feliz, aí em cima." Falei. "Lúcio me contou que ainda está solitário,
e eu também estou. Não quero ninguém além de você, mas..." Minha voz engasgou. "...mas se
você quiser, tudo bem. Quero a sua felicidade, acima de tudo."
Minhas pernas tremeram. Talvez não estivesse tudo bem, no começo, mas eu saberia
lidar. Cinco anos de distância. Talvez eu devesse criar o estômago de olhar para os outros.
Alguns incubus certamente se interessavam muito por mim.
Só de me imaginar com outra pessoa eu queria vomitar. Meu amor por Thanos era tão
eterno quanto nossas almas. E eu nunca teria coragem de passar esse recado pelo Lúcio.
Mas justamente por sermos eternos, talvez precisasse chegar o dia do adeus. As notícias
mensais de Lúcio sobre Thanos deixaram de ser o suficiente há muito tempo. Algumas vezes
Thanos nem aparecia no local marcado.
Eu enxuguei uma lágrima no canto do olho. Não queria me deprimir no aniversário do
Lorde Lúcifer.
Tentando me distrair, eu varri a cozinha e guardei os potes de ingredientes. Após
algumas horas a cantoria no salão de baile foi diminuindo, indicando o fim da festa.
Me senti um pouquinho mal por Salésia. Não queria ser eu a lavar todos aqueles
cristais, depois.
Como esperado, assim que a festa acalmou as portas duplas da cozinha se abriram.
"Não puxe meus chifres dessa vez, Sal. As três taças por convidado foram ideia do..."
Eu me virei para a porta, e deixei cair a panela que terminava de polir. "Lorde Lúcifer?"
Perguntei, estarrecido.
Lorde Lúcifer encolheu suas seis asas para passar por entre as bancadas que, por sorte,
eu passei uma flanela há pouco. Ele trajava um elegantíssimo sobretudo de veludo negro com
padrões florais em minúsculos diamantes vermelhos.
Eu desci nos meus joelhos e encostei a testa nas mãos. O que o imperador estava
fazendo ali? Nenhum demônio insignificante como eu podia lhe dirigir a palavra.
"Milorde, é uma honra imensa. Feliz aniversário." Falei, incerto sobre como reagir.
"Então é aqui que você trabalha."
Arrisquei erguer o rosto. Lorde Lúcifer observava os cabides de utensílio com grande
fascínio. Ele passou o dedo pelo conjunto de facões que encomendei ao seu ferreiro particular,
o que me fez estremecer. O bolo não agradou, e agora ele veio me esfaquear, era isso?
"O quê é isso?" Perguntou ele, pegando alguma coisa de uma travessa lambuzada.
"É um batedor de bolo, eu... usei para... bater o bolo?" Falei, ainda de joelhos. Meu
estômago borbulhava em nervosismo.
Por mais que eu tentasse superar, meu sangue ainda fervia por ele ter matado Thanos
com tanto sadismo. Eu odiava essa parte de mim.
"Em meus dez mil anos de existência, seus pratos foram os melhores que já provei. Por
quê?" Perguntou ele, com uma expressão austera que eu não conseguia identificar.
"Perdão, milorde, do quê está falando?"
Lúcifer bufou. "Pelos meus atos você está aqui, longe daquele péssimo incubus. Não
lhe custaria nada cozinhar qualquer coisa, entretanto a cada dia você supera espectativas."
Eu tentei ler suas intenções, mas o imperador sempre foi ilegível para mim.
"Obrigado, milorde." Respondi, tentando não reagir ao insulto ao Thanos.
Meu coração já disparava em angústia, quando Lorde Lúcifer decidiu continuar
explorando. Certo, meu banquete de aniversário havia agradado, então talvez ele não me
ferisse muito.
"E isto, o que é?" Perguntou ele.
Precisei me erguer para ver sobre a mesa. Ele apontava para um calhamaço alto de
folhas pardas, grampeadas cuidadosamentes numa capa branca e rosa.
"É meu livro de receitas. Tudo o que já preparei está aí, com várias anotações." Falei,
me surpreendendo quando ele começou a folhear. Alguns dos desenhos eram apenas rabiscos,
eu precisava passar a limpo.
Lúcifer passou as folhas parecendo sinceramente fascinado, alguns dos esquemas ele
observava por vários segundos. Após um longo tempo ele fechou o caderno e suspirou, me
fitando com seus olhos de íris vermelhas.
"Ser um imperador é complicado. É preciso impor respeito, reconhecer oportunidades,
e também admitir erros. Mesmo com todo o meu poder, um pergaminho de incubus leva anos
para ser escrito. Com a guerra se aproximando, cada novo pergaminho possui valor
inestimável."
Eu baixei o rosto, evitando que ele visse as lágrimas de ódio em meu rosto. Lúcifer
podia ser meu imperador, mas se ele tentasse pedir desculpas, eu não sei o que faria com a cara
dele.
"Infelizmente, meu último pergaminho não pôde ser recuperado." Lúcifer abriu o
sobretudo, e vasculhou o lado de dentro. "Foi um processo longo conseguir produzir esse."
Eu ouvi o estalar de papel e olhei para o tubo branco que Lorde Lúcifer desenrolava.
Parecia o pergaminho que Lúcio usou para transformar minha alma, só que muito mais
detalhado. Minúsculas runas de sangue decoravam cada canto da página, encaixando-se em
torno de um pentagrama com precisão cirúrgica.
Acidentalmente deixei Lorde Lúcifer ver a fúria em meu rosto. Mas ele não pareceu se
importar.
Ele enrolou o pergaminho de novo e, para minha confusão e espanto, o entregou para
mim.
Eu arregalei meus olhos para ele, emudecido.
"Como eu disse, um bom imperador reconhece seus erros." Falou ele. "Sugiro que leve
isso ao meu filho. Ele sabe uma coisa ou duas sobre esse ritual."
Capítulo 32
Thanos

Eu sobrevoei a cidade, buscando o endereço que Lúcio indicou. O sol coloria os prédios
em tons alaranjados, anunciando o fim da tarde.
Felizmente, não demorei a encontrar o lugar. Eu pousei naquela ruela deserta, sentindo
que era vagamente familiar.
Logo no meu primeiro passo, uma pontada na coxa me fez gemer. Eu massageei a
marca do açoite, esperando que parasse de doer. Sandalfon pegou pesado comigo, dessa vez.
Geralmente eu encontrava Lúcio uma vez por mês, tempo o bastante para me curar dos
castigos. Comunicar-se com um demônio era considerada uma ofença grave, não importava
que Lúcio fosse meu amigo. Pelo menos os anjos nunca descobriram de quem ele era filho, ou
não sei o que fariam comigo.
Em cinco anos, era de se esperar que me acostumasse com as dez chicotadas mensais,
mas já ganhei fama como aquele anjo de asas cinzas que está sempre arrebentado.
Mesmo conhecendo as leis, Lúcio insistiu em me reencontrar no dia seguinte, ou seja,
hoje. Minhas nádegas ainda estavam listadas de vermelho, e eu não queria imaginar como seria
apanhar ainda machucado. Era bom que ele tivesse bons motivos. Não tive nem tempo de re-
clarear minhas asas.
Quando cheguei em frente ao lugar, meu coração deu um pulo. Foi nesse beco frio e
escuro que troquei uns amassos com Miguel, na noite em que nos conhecemos.
Eu toquei a parede gelada, mas para mim parecia quente como se Miguel ainda
estivesse ali. Meus olhos esquentaram e transbordaram. Por que Lúcio seria tão sádico em me
lembrar desse lugar?
O sol logo terminou de se por, e eu sequei o rosto ao ver alguém sair do beco.
Geralmente o príncipe metido aparecia em seu tornado de sombras, mas dessa vez ele veio à
pé.
Eu disfarcei minha dor ao máximo e me aproximei dele, esperando que usasse seu
feitiço.
Lúcio observou o sol, e quando o último raio se ocultou atrás dos prédios, ele estendeu
a mão para o alto.
"Revelação." Falou ele.
O chão se iluminou vermelho e vívido sob nós, e o olhar de Lúcio enfim encontrou o
meu.
"O que é tão importante?" Perguntei. Não esconderia meu incômodo em ser açoitado
duas vezes em dois dias.
O sorriso enorme nos lábios de Lúcio me deixou desconfiado. Com os anos nossos
encontros deixaram de ser aquele poço de emoções e recadinhos, e passou a ser mera troca de
informações e notícias. Nós ainda éramos melhores amigos, mas faz tempo que não via Lúcio
tão empolgado em me ver.
"Vai ficar só me olhando e rindo?" Cruzei os braços, agitando minhas asas cinza com
impaciência.
"Fica aqui, não se mexa. Volto em alguns minutos. Ou não." Ele correu de volta aos
fundos do beco.
Eu abri a boca, procurando palavrões fortes o bastante para gritar à ele. O desgraçado
me chamou aqui para sumir? Ele sabia o que Sandalfon iria fazer comigo!
Os passos de Lúcio ecoaram de volta. Ótimo, pelo menos ele não demorou tan...
Meus olhos se expandiram, e eu pensei estar vendo uma miragem. Aquele não era
Lúcio. Um demônio mais baixo que ele se aproximava de mim. Cauda longa, asas negras e
chifres medianos despontando dos cabelos cor-de-ferrugem.
Eu me aproximei de Miguel, tremendo e hesitando como se vivesse um sonho e não
quisesse acordar. Ele continuava igual, apesar das partes demoníacas. Seus lindos olhos verdes
cintilavam vívidos e lindos como eu me lembrava.
Miguel parou à minha frente e tocou meu rosto com seus dedos suaves e delicados. O
calor de seu carinho confirmou a realidade.
Com lágrimas descendo pelo rosto e incapaz de formar palavras, eu estendi meus
braços para abraçá-lo, mas ele me interrompeu, com um sorriso emocionado e feliz em seu
rostinho doce.
"Se eu te abraçar não consigo soltar mais, e temos pouco tempo." Ele disse.
Eu concordei, com o peito dolorido. Mesmo se esforçando ao máximo, Lúcio só me
manteria visível por uns três minutos.
"Você fica lindo como incubus." Eu disse, tentando me controlar. "Lindas plumas."
Miguel agitou suas asas, meio encabulado. "Você fica bem como anjo, também. Não sei
se consigo elogiar a túnica."
"Por favor, não elogie. Eu me assustaria com o seu mau gosto."
Nós dois rimos. Miguel mantinha a mesma voz, o mesmo cabelo sedoso, os mesmos
gestos delicados das mãos.
"Sabe, existe um boato estranho, sobre os incubus." Ele me disse, com um sorriso
humilde. "Dizem que se formos beijados pouco após nossa transformação, nos tornaremos
anjos. Mas precisaria ser um beijo de amor verdadeiro."
Eu contive o riso e dei de ombros, meu coração pulsando quente e intenso. "Já ouvi
falar. O apaixonado morre depois, não é?"
"Pois é, não é péssimo?" Miguel torceu o lábio num beicinho fofo. "Eu precisaria de
alguém que já morreu. Sabe onde encontro alguém assim?"
Eu dei um passo à frente e passei a mão pelos cabelos sedosos de Miguel,
aproximando-o de mim.
"Acho que conheço um cara." Eu roçei meus lábios nos dele, sentindo o calor de sua
respiração rápida.
Miguel laçou as mãos atrás do meu pescoço e ergueu-se nas pontas dos pés.
"Acho que eu também." Ele disse, e apertou seus lábios úmidos nos meus.
Epílogo
Thanos

Vinte anos depois

Ágil como um gavião, Miguel voou para o topo da sinaleira, suas asas brancas
cintilando sob a luz do sol.
"Thanos, é o caminhão vermelho!" Falou ele, apontando para o veículo que se
aproximava do cruzamento.
No sentido atravessado, um ônibus escolar também se aproximava.
Eu agitei minhas asas e voei até a janela do motorista do caminhão, que dormia com
uma garrafa de tequila sobre o colo.
"Moço, ei moço, acorda!" Eu gritei para o motorista bêbado, sem sucesso. Droga,
Miguel penetrava nos sonhos deles com tanta facilidade, quando eu conseguiria?
Esforçando-me para não cair, eu inflamei meu poder angelical, desejando que o idiota
pelo menos tirasse o pé do acelerador.
O motorista roncou, exalando um bafão de cachaça na minha cara. Não, isso também
não funcionou. Precisaríamos de uma solução drástica.
Eu me joguei para dentro da cabine, usando os limites do meu poder para conseguir
agarrar o humano idiota sem atravessá-lo. Gritando com o esforço, eu ergui a perna dele e
mudei do acelerador para o freio.
O solavanco me fez bater contra o vidro, mas ei, eu consegui parar o caminhão!
Eu me arrastei para fora, atordoado mas orgulhoso. Miguel enlouqueceria por mim,
dessa vez. Consegui salvar um ônibus cheio de criancinhas!
Estranhando a vista, eu procurei o cruzamento, meio confuso. Já haviamos passado por
ele, e em nenhum momento o caminhão colidiu com o ônibus, conforme Miguel viu em sua
Premonição.
O ônibus também havia parado, mas bem antes do semáforo. O motorista desceu para
verificar os pneus, gritando de raiva ao percebê-los todos furados.
De cima do ônibus, Miguel sorriu e acenou para mim. Ele voou até a calçada onde eu
estava com um sorriso empolgado nos lábios.
"Você parou o caminhão mesmo!" Ele me agarrou e beijou. "Estou orgulhoso."
"Orgulhoso? Foi você quem salvou as crianças!" Resmunguei. Não queria descontar
minha incompetência no Miguel, mas era difícil não me frustrar comigo mesmo.
Desde que tornou-se um anjo, Miguel revelou um poder assombroso. Ele possuía vários
feitiços angelicais avançados, e conseguia prever desastres com vários minutos de
antecedência.
"Você salvou o caminhoneiro de se chocar contra aquele hotel de luxo, isso não é
pouco." Falou Miguel, com a voz um pouquinho magoada.
"Desculpa." Eu tomei Miguel nos meus braços e o beijei, nossos corpos brilhando
suavemente enquanto absorvíamos as Boas Intenções do nosso resgate. "Você também foi
incrível. Estourar os pneus do ônibus? Eu não esperaria menos do nosso futuro arcanjo."
As asas cintilantes de Miguel estremeceram.
"Não me lembra. Só de pensar na cerimônia de amanhã, já fico todo arrepiado."
Eu ri, e afaguei o pescoço do Miguel para acalmá-lo. No fundo eu me sentia culpado
em vê-lo tanto tempo como anjo-da-guarda. Quando Miguel soube dos açoitamentos ele
insistiu em se tornar meu supervisor, assim poderia fazer vista grossa a todas as minhas
mancadas.
Mais uma vez, era ele quem me protegia.
"Vai dar tudo certo." Eu beijei sua testa e afaguei suas plumas brancas. "Você será um
excelente arcanjo e terá sua prória tropa de anjos da guarda protegendo essa cidade."
Miguel ronronou macio, abraçadinho em mim. Ele adorava uma boa massagem nas
asas.
"Sabe que só aceitei quando pude escolher meu assistente, não é? Eu não suportaria que
ficássemos longe."
"Mesmo Sandalfon demorou cem anos para tornar-se um arcanjo, e você conseguirá em
apenas vinte. Seja menos humilde."
Miguel deslizou os dedos nas minhas costas, logo abaixo das asas, e seu olhar tornou-se
escurecido e sombrio. As marcas de açoitamento desapareceram poucas semanas após a
chegada dele, e ainda assim Miguel traçava com os dedos onde cada uma costumava estar.
"Eles danificaram algo que é meu." O olhar dele tornou-se ainda mais opaco e frio.
"Eles não deveriam mexer com meu lado vingativo."
Eu ri, tentando não parecer nervoso. Cada vez que Miguel repetia isso, eu acreditava
um pouco mais que ele não estava brincando.
Não sabia o que me aguardava como assistente de arcanjo, mas com Miguel do meu
lado, eu me sentia capaz de qualquer coisa. Até minhas asas se mantinham mais ou menos
brancas, eu era quase um anjo decente.
Miguel mordiscou meu pescoço, todo manhoso, e olhou para o céu azulado, de poucas
nuvens.
"Ainda temos tempo." Disse ele.
"Tempo para quê?"
Miguel me largou e voou reto para cima, espiralando pelos céus com agilidade e graça.
Eu o segui e nós pousamos no terraço do hotel de luxo.
Já sobrevoei esse edifício algumas vezes. Havia uma piscina, um quiosque, e várias
daquelas cadeiras de praia e cabanas brancas com camas e almofadas. Não havia ninguém ali
naquele momento.
Miguel jogou-se numa das camas e sorriu para mim, todo devasso.
"Não. Nem pensar." Eu agitei as mãos, em protesto. "Sua cerimônia de promoção é
amanhã. O que os superiores vão pensar, se suas asas escurecerem?"
"A opinião deles não me interessa." Miguel me chamou com o dedo, acomodando-se
nas almofadas.
"Mas... mas o Sandalfon..." Eu estremeci. A proteção de Miguel só me ajudaria até
certo ponto. Os anjos já me fuzilavam com os olhos sempre que o magnífico Miguel aparecia
com asas escurecidas, o que pensariam se eu fizesse isso antes da cerimônia?
"Sandalfon que tente se meter com esse nephilim, aqui." Miguel afinou os olhos para
mim. "Venha, por favor? Há quanto tempo não cometemos um pecadinho?"
"...Dois dias?" Respondi, entrando na cabana com ele e suando frio ao entender a
situação.
Para Miguel isso não era sobre fazer sexo. Era sobre demarcar seu futuro território.
Não que eu tivesse objeções... eu acho.
Assim que estive ao alcance, Miguel puxou a gola da minha túnica e meteu a língua na
minha boca, já abrindo as pernas sob mim. Eu arfei contra os lábios dele ao perceber que não
vestia nada sob a túnica.
Eu deslizei a mão pela sua perna, até chegar em seu membro enrijecido. Os gemidinhos
de Miguel logo me deixaram tão duro quanto ele.
"Tira essa roupa." Eu sussurrei em seu ouvido, já fazendo o mesmo com as minhas.
Miguel passou a túnica pelo pescoço, revelando seu corpo clarinho e salpicado de
sardas. Demônios e anjos nunca envelheciam, então Miguel mantinha-se viril e delicioso, seu
peitoral brilhando sutilmente pelo suor da excitação.
Eu deitei meu corpo despido no dele, beijando-o intensamente. Meu Miguel. Desde o
minuto em que ele tornou-se um anjo, o céu se tornou literalmente o meu paraíso.
Arfando macio, Miguel circulou as pernas na minha cintura, chupando e lambendo
meus lábios cheio de provocação. Os pensamentos impuros escureciam as bordas de suas
penas rapidamente.
Eu lambi meus dedos e levei para a fenda nas nádegas dele, mas Miguel segurou minha
mão.
"Não. Quero assim mesmo. Me faz gritar."
"Vai doer." Eu recolhi a mão e lacei meus dedos nos dele, aos lados de seu corpo. Se
algo não mudou em Miguel, eram as esquisitices. Não havia uma vez em que ele não exigia
algo de mim, e isso me excitava demais.
Miguel esfregou a bunda na ponta do meu pau, impaciente, e eu o penetrei num único
movimento do quadril.
Eu gemi contra o pescoço do Miguel. Penetrá-lo sem preparo me fazia sentir cada
texturazinha do seu interior. Os gritos de dor me aterrorizaram um pouco nas primeiras vezes
em que ele quis brutalidade, mas agora eu entendia o quanto ele gostava. Só não entendia por
quê.
Algo quebrou em Miguel quando ele soube tudo o que fizeram comigo.
"Posso começar?" Perguntei, esperando-o se acostumar.
Miguel arqueou-se sob mim, mordendo o lábio de um jeito fofo. Seu pau rígido vertia
pré-gozo sobre a barriga e ele cravava as unhas nas almofadas, tanto pela dor quanto pelo
prazer.
"Começa." Ele gemeu.
Eu entrei e saí em ritmo rápido, abraçando-me nele e sentindo o suor de seu corpo me
umedecer. A colônia de hortências no cabelo de Miguel invadiu meus sentidos, era meu
perfume favorito, então ele usava sempre.
Miguel desceu as unhas pelos meus ombros, me fazendo ofegar e aumentar a
velocidade. "M-me faz gozar." Ele suplicou, com lágrimas de êxtase descendo pelo rosto
vermelho. Meu membro raspava áspero contra seu interior.
Eu inclinei o corpo, fazendo meu pau apertar naquele ponto que o faria gritar. E Miguel
gritou mesmo, além do prazer e da dor, alto como se quisesse ser ouvido por todos. Nem dois
movimentos depois, ele gozou contra a minha barriga, me fazendo deslizar sobre ele e espalhar
o líquido branco entre nós dois.
Minhas pernas estremeceram e eu também alcancei o clímax, incapaz de resistir aos
gemidos extasiados do Miguel. Lavado em gozo, meu pau saiu muito mais fácil do que entrou.
Eu deitei ao lado do Miguel, arfando pesado assim como ele. Pelo sorriso deleitado em
seus lábios, eu me lembrei que pelo menos isso eu sabia fazer direito.
"Nossa, isso foi... Eu te amo. Demais." Miguel riu satisfeito, abraçando meu corpo
suado.
"Você não vai nem andar reto, amanhã." Respondi, preocupado. Um pouco a mais de
força, e Miguel teria sangrado.
Miguel riu e beijou meu pescoço, nos cobrindo com suas asas que agora estavam
pontilhadas de cinza. Perto das minhas asas, que agora tingiam-se de cinza-escuro, aquilo não
era nada. Mas eu não entendia o esforço de Miguel em ferir a própria reputação.
Ignorando meus pensamentos, eu afaguei os cabelos ruivos de Miguel e beijei sua testa.
Eu não precisava entendê-lo para amá-lo. Ele sempre seria minha razão de existir.
Lá fora, o azul do céu escurecia em tons cor-de-rosa e laranja.
"Já está quase na hora." Ele nos lembrou.
Eu concordei, e o ajudei a sair da cabana. Como eu previa Miguel estava andando meio
torto, mas foi escolha dele. Eu lhe joguei sua túnica e vesti a minha.
"Escuta, se o Sandalfon perguntar sobre as suas asas..." Falei, hesitante.
"Vou dizer que você me fodeu no seco, e que foi uma delícia." Miguel passou por mim,
sério e determinado. "Vem, vamos nos atrasar."
Eu assisti Miguel alçar vôo, tentando compreender o que se passava na cabeça dele.
Mas este definitivamente não era o momento para questioná-lo.
Miguel aguardava este dia há muitos anos.

****

O cabelo do Miguel tremulava como fogo quando voávamos, o sol do crepúsculo


intensificando o tom avermelhado. Era lindo.
Acompanhando ao meu lado, ele sorriu para mim com uma pontinha de tristeza.
Eu segurei sua mão para confortá-lo e nós baixamos a altitude. O pontilhado escuro no
vasto gramado cresceu sob nós. Milhares de lápides, a maioria cinza e sem graça, algumas
outras bastante extravagantes.
Eu e Miguel curvamos nossas asas e pousamos em frente aos dois túmulos mais
chamativos.
Embora não tivesse mais flores, o túmulo do Miguel permanecia bem cuidado pela
família. Mas não estávamos ali pelo lugar de descanso do corpo dele.
Aqui jaz Rosier François. Que sua felicidade em vida tenha sido apenas o começo.
Miguel ajoelhou-se em frente ao túmulo coberto em flores e fotografias. A expressão
trágica em seus olhos apertou o meu peito. Eu me ajoelhei ao lado dele, esforçando-me para
dar o espaço que ele precisava.
Se não fosse por Miguel, eu nunca retornaria aqui. Ver o túmulo dele fazia queimar
meu coração, lembrando-me da época em que eu deitava sobre o tampo frio e chorava por
horas, até Sandalfon me arrastar para cima e me punir.
Tanto mudou desde então. Ainda assim, certas coisas se mantinham difíceis. O céu era
feito de regras, e preconceitos, e batalhas de egos. Miguel dizia que mudaria tudo, que
escalaria ao topo se fosse necessário. Com o poder dele, eu não duvidava que ele conseguisse.
Ainda assim, assistindo-o lamentar em frente ao túmulo do amigo humano, eu me
perguntava se não podíamos esquecer o passado, e simplesmente sermos felizes na companhia
um do outro.
"Rosier teve uma morte tranquila" Falei. "Os médicos fizeram o possível, ninguém
nunca sobreviveu a quatro transplantes."
"Só quarenta e oito anos." Miguel soluçou. "Você sabe o quanto ele amava viver,
sempre organizando festas filantrópicas e campanhas de direitos humanos, até doar quase tudo
o que tinha."
"O que eu me lembro eram das orgias esquisitas." Eu esbocei um sorriso. "Gideon se
tornou mesmo uma terceira ponta naquele relacionamento."
Miguel riu, deslizando a mão pelo tampo de mármore e metal dourado. Como Rosier
não tinha parentes vivos, Lúcio conseguiu que ele fosse enterrado ao lado de Miguel. Claro
que, encarregado da decoração, ele fez questão em fazer algo ainda mais escandaloso. O
túmulo do Rosier talvez fosse o único com uma estátua negra de dois demônios seminus se
beijando, e de uma forma bastante obscena.
"Acha que ele está sendo bem cuidado?" Perguntou Miguel, deixando algumas lágrimas
escaparem.
"Claro que sim. Mais bem cuidado do que quero imaginar. De qualquer forma, nós logo
descobriremos."
Assim que eu disse isso, o último raio de sol se ocultou por trás da colina no cemitério.
Um tornado de sombras surgiu à nossa frente, fazendo flamular nossas túnicas brancas.
Dois demônios apareceram à nossa frente. Lúcio, em sua farda militar de Primeiro
General, e Rosier, de mãos dadas com ele.
A surpresa fez os olhos de Miguel brilharem. Combinando com Lúcio, Rosier agora
também ostentava dois grandes chifres espiralados, cauda longa e grandes asas negras. Suas
íris cinza tornaram-se vermelhas e ele trajava um longo casaco de veludo preto e dourado, com
pedrarias vermelhas.
A maior diferença, óbvio, era sua idade. Ele retornou sua aparência aos mesmos 23
anos que tinha quando conheceu Lúcio. Acima do anel de rubi ele agora usava um segundo
anel, dourado com um diamante, muito parecido com o que Lúcio também usava.
“Miguel, o feitiço.” Lembrei ele, percebendo que Miguel estava em choque e rindo
como um bobo.
“Ah, é.” Falou ele, extasiado.
Miguel se levantou e estendeu a mão. Um vasto brilho branco-azulado emanou de seu
corpo, iluminando o cemitério e nossos corpos, de baixo para cima.
“Revelação” Entoou ele.
O brilho se intensificou. Revelação era um feitiço comum entre anjos, apesar de Miguel
ser o único anjo da guarda a saber usá-lo, pelo menos nas nossas tropas. Até mesmo o
Querubim se assustava com os extremos de seu poder. Miguel conseguia manter a Revelação
por duas horas.
Em poucos segundos, os olhos de Rosier cintilaram em alegria, e ele se jogou nos
braços de Miguel.
“Eu não acredito. Vocês estão rezando pelo meu corpo? Vocês são ridículos!” Ele
disse, rindo e chorando assim como Miguel.
“E essas asas, e esses chifres? Você está incrível, Rosier!” Miguel vibrava como um
adolescente eufórico.
“Vocês perderam o casamento do milênio! Nunca vi tanta comida na minha frente! A
succubus cozinheira disse que aprendeu com você, e nossa, estava incrível, Mi. Todos os
nobres do inferno estavam lá! Gideon levou as alianças e foi tão estranho vê-lo de terno!”
Miguel riu, e abraçou Rosier de novo, tão alegre que eu ria junto.
“Ele mudou de plano há um mês, e vocês já se casaram?” Eu dei uma cotovelada em
Lúcio, com um sorriso implicante. “O que Lúcifer pensou sobre isso?”
“Quem você acha que organizou a festa?” Lúcio sorriu orgulhoso, e acenando o anel
dourado na minha frente. “Rosier é amado por todos, lá embaixo. O príncipe do príncipe, como
gostam de chamá-lo.”
Eu sorri, muito feliz por Lúcio. Queria que no céu as coisas fossem tão simples.
“Parabéns pelo casamento.” Eu abracei Lúcio, sem evitar me sentir um pouquinho
invejoso.
Lúcio agradeceu, me abraçou apertado e girou no ar antes de me soltar. “E essas suas
asas? Tem certeza que não voltou a ser um demônio?” Ele perguntou, com um sorriso atrevido
de quem sabia o que aquilo significava. Anjos não possuíam a menor privacidade.
“Miguel vai me ajudar a clareá-las. Será simples, quando ele se tornar um arcanjo.” Eu
ri, meio constrangido. “Ou talvez ele só as escureça ainda mais. É difícil não ter pensamentos
impuros perto dele. Por que acha que deitar com outro homem as escurece tanto?”
Lúcio deu de ombros. “Não faço ideia. Escuta, não estamos atrasados?”
Eu olhei para o céu já estrelado, e percebi o quanto perdemos a hora. Nós quatro
interrompemos nossas conversas, e alçamos vôo em direção ao parque.

****

O último barquinho de papel afundou, escurecendo o lago completamente.


A cada ano passei a amar mais a Cerimônia das Velas. Não porque fossem velas em
barquinhos ou alguma bobagem poética, mas pelo que significava estar ali, com o meu Miguel.
Sentado à beira do lago, eu acariciei o cabelo de Miguel, que aos poucos adormecia no
meu colo. Rosier e Lúcio recém haviam retornado ao plano de baixo, nos deixando na
companhia um do outro, em meio à brisa fresca e aos sons das cigarras.
Miguel observava o brilho do lago, girando uma de suas penas soltas, entre dois dedos.
“E então, como foi rever seu amigo?” Perguntei, descendo o carinho para suas asas e
fazendo-o gemer macio.
“Ele fica bem melhor, com cabelo.” Miguel riu. Assim que passou dos quarenta, a linha
do cabelo de Rosier encolheu para trás, e seu desespero em consertar com perucas e cirurgias
plásticas virou uma piada interna entre todos nós. Deve ter sido difícil ser o único do grupo
afetado pelo tempo, mas Lúcio nunca se importou com isso.
“Esta é a semana das boas notícias. Você sendo promovido a arcanjo, Lúcio se casando,
Rosier tornando-se um príncipe... e segundo Lúcio a diplomacia com os anjos tem gerado bons
acordos. Talvez a guerra nunca aconteça.”
“Por quê isso seria uma boa notícia?” Miguel me perguntou.
“Como assim?” Eu franzi minha testa, confuso.
Miguel espremeu a pena branca em seu punho, quebrando-a em pedaços.
“Esquece. Não é nada.” Ele disse, jogando a pena destroçada no lago e assistindo-a
flutuar para longe.
Eu sorri, e continuei acariciando as asas emplumadas de Miguel até ele adormecer nas
minhas pernas.
Assim como as chamas das velas se apagaram contra a água, o reflexo das estrelas foi
desaparecendo. Uma a uma, as estrelas se apagaram enquanto o sol se revelava, em um novo
alvorecer. Eu deitei as costas no gramado e deixei a luz me envolver, querendo parar o tempo
naquele que seria nosso último dia como anjos da guarda.
Eu não sabia o que esperar, mas não haviam dúvidas no meu coração.
Enquanto Miguel me amasse, eu seria capaz de qualquer coisa por ele.
O Beijo do Incubus
Fim...?
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O Amante do Tritão – Amostra
Capítulo 01

Eu sentei sobre a prancha de surfe e assisti o cara da namorada ruiva tentar acender a
fogueira. Não lembrava o nome dele, nem da maioria daqueles surfistas.
Já faziam semanas desde minha mudança forçada para Orla das Sereias, e as coisas
não estavam indo bem. Eu era péssimo em fazer amizades, ainda mais com pessoas tão
diferentes de mim. Pela primeira vez nos meus dezoito anos de vida eu pisava numa praia, e ali
todos pareciam ser surfistas, ou namoradas de surfistas, ou donos de lojas de surfe.
Tentando me enturmar, meu irmão até emprestou sua famosa prancha amarela, com a
qual já ganhou dezenas de campeonatos. Eu apreciava a boa intenção, mas não teria coragem
de usar algo tão precioso.
Desistindo de participar da conversa, esperei que todos corressem para o mar e fiquei
na areia, assistindo meus novos amigos demonstrarem suas habilidades no surfe. Que coisa
mais chata.
O sol terminava de se pôr quando o loirão líder do grupo conseguiu enfim acender a
fogueira. Outro cara ajeitou o violão no colo e começou a cantar sertanejo, e todo mundo se
balançou lentamente ao ritmo da música, enquanto se passavam um baseado e baforejavam
uma fumaça esverdeada. As latinhas de cerveja se acumulavam pelo chão.
Nossa, aquelas pessoas não tinham nada a ver comigo. Mas que escolha eu tinha? Meu
irmão teve a bondade de me aceitar na casa dele quando nosso pai pai me expulsou por ser
gay. Não queria preocupar o Alisson parecendo um recluso desajustado.
“Aceita, Gabe?” A pergunta da garota ao lado me devolveu à realidade. Ele me
oferecia um cigarrinho de maconha já pela metade.
Eu forcei um sorriso e aceitei, dando uma curta tragada antes de passar adiante.
Odiava ficar chapado, mas se fosse para passar a noite com um bando de surfistas
maconheiros, eu preferia me anestesiar também.
A propósito, meu nome é Gabriel, mas me chamam de Gabe. Estou tentando dar
algum rumo à minha vida, ou pelo menos sair da fossa, como dizem. Nada em mim é
impressionante. Tenho cabelos castanho-claros, olhos azuis, peito estreito e poucos músculos,
embora me exercite todas as manhãs. Meu corpo não me orgulha muito, ainda mais
comparando com o meu irmão, então vestir apenas aquela bermuda me deixava meio
constrangido.
Digo, eu não estava fora de forma nem nada assim, mas aquelas pessoas eram tão mais
bonitas que eu. Todos bronzeados, com músculos duros e sorrisos radiantes. Surfe devia ser
um esporte divertidíssimo, porque todos riam animados após um domingo pegando ondas.
Todos, menos um. E era justamente aquele o cara que eu não conseguia tirar os olhos.
Dylan, o único que eu decorei o nome de imediato, era sensacional.
Dylan não parecia ser como os outros, talvez por isso me interessei desde o primeiro
luau. Cabelos cacheados pretos, queixo quadrado, peito largo e musculoso, e olhos de um
verde sobrenatural, quase iridescentes. Nunca vi alguém com um olhar tão incomum e tão
lindo. E ele sempre vestia apenas uma sunguinha azul, revelando a totalidade de suas coxas
grossas e firmes.
“Cala a boca, Michel. Deu problema da outra vez.” Uma das mulheres gargalhou, já
super chapada. A atenção do Dylan foi para a confusão na rodinha, então fiz o mesmo antes
que ele me percebesse babar por ele.
“Deu problema nada, foi divertido.” O tal de Michel era quem acendeu a fogueira. Ele
agitou o baseado no ar, gargalhando. “É o nosso ritual, e temos um recém-chegado. Porque
não?”
“Você é um idiota.” Outro cara riu, aquecendo os pés à frente das chamas. “Que acha,
Gabe? Vai mesmo jogar os dados?”
“Dados?” Perguntei, surpreso que soubessem meu nome. Geralmente me ignoravam, e
acho que só me deixavam ficar pois meu irmão era um surfista famoso na cidade.
“Carlos, não tem graça se perguntar. É um desafio. Ou ele aceita, ou para de andar
com a gente.” Michel afinou seus olhos avermelhados, com um sorrisinho felino.
Eu engoli seco e me inclinei para Dylan, que sentava ao meu lado. “Do que eles estão
falando?” Perguntei, comemorando por dentro ter conseguido falar com ele.
Dylan apenas baixou os olhos e estalou a língua nos dentes, com uma expressão
aborrecida. Poxa, eu me preparei para uma resposta estúpida, mas me ignorar era simplesmente
rude. Talvez os outros estivessem certos sobre Dylan ser um esquisitão.
“Esqueçam os malditos dados.” Falou Dylan, o que me surpreendeu. Seus olhos
cintilaram num brilho verde-esmeralda, iluminados pelo dourado da fogueira.
“Vejam só. A boneca muda sabe falar, quando é para defender o maridinho.” Michel
riu da própria piada, mas poucos riram junto. Eles sabiam pelo que passei para estar ali. “Você
nem surfa, Dylan. Na verdade, nunca te vi entrar no mar, e você também não cumpriu o
desafio. Por que raios anda com a gente?”
Dylan baixou o rosto e abraçou os próprios joelhos, com um olhar bravo e angustiado.
Eu não entendia o que estava acontecendo, mas se jogar dados fosse importante para continuar
no grupo, eu faria isso. Não podia preocupar meu irmão, e algo em mim dizia que aceitando o
desafio, eu conseguiria me aproximar de Dylan.
“Eu vou jogar.” Falei, o que fez os mais chapados me aplaudirem.
“Não aceite.” Uma mão quente e firme apertou meu braço.
Os olhos de Dylan cintilaram lindamente para mim, seus lábios avermelhados
apertados em uma linha. Como ele era lindo. Era impossível vê-lo tão de perto sem querer
provar sua boca e abraçar seu torso coberto de areia.
Nosso momento foi interrompido por Michel, que empurrou Dylan e o fez me soltar.
Michel pegou algo na coxa dele e observou à frente da lareira, rindo.
“Outra escama. Sério, Dylan, como consegue estar sempre coberto delas? Você é filho
de pescador?” Michel riu em deboche e jogou a coisa na areia. “Se nossa brincadeira te
incomoda procure outros amigos, seu palhaço.”
Eu peguei a coisa que Michel jogou, e bati a camada de areia. Era uma escama mesmo,
tão grande que eu não conseguia imaginar o tamanho do peixe. O brilho verde e iridescente me
lembrava alguma coisa.
Dois cubinhos foram jogados à minha frente, distraindo meus pensamentos.
“Estes são os dados.” Michel apontou para eles, orgulhoso como se estrelasse um
espetáculo. “As regras são simples. Você joga os dois, e precisa fazer o que é dito.”
“Michel, o garoto é um adolescente. Deixa ele em paz.” A garota ruiva riu, se
esfregando nos braços do namorado.
Todos me confundiam com um menor de idade pela minha altura e rosto liso, então
não me importei em corrigí-la. Mas eu não podia ser tímido para sempre.
“Já disse que vou jogar.” Eu fechei os dados nas mãos e agitei, ignorando a repreensão
no olhar do Dylan.
Ninguém nem respirava enquanto eu agitava as mãos. Quando lancei os dados a
rodinha jogou-se ao meu redor, ansiosa pelo resultado.
CHUPAR dizia o primeiro dado.
PÊNIS dizia o segundo.
Todos gargalharam, comentando que era o pior resultado possível. Dylan, o único que
não participava da histeria coletiva, suspirou tristemente.
Só então fui ser inteligente, e verificar os lados dos dados. O primeiro continha seis
ações, como beijar, lamber e morder, e o outro continha partes do corpo.
Meu sangue gelou. Não sabia no que me meti, mas sabia que estava fudido.
“E agora?” Perguntei, enquanto todos brindavam, bebiam e se chapavam, rindo de se
matar.
Michel Sentou ao meu lado na prancha do meu irmão, e passou o braço ao meu redor
como um amigo de longa data.
“Agora, meu querido Gabe, você vai fazer justamente isso. O pessoal se reúne aos
domingos. Até lá vamos querer o selfie.”
“...selfie?” Gaguejei, me encolhendo. Michel era alto e atlético, com longos cachos
loiros e pele muito bronzeada, mas já passava dos vinte e tantos anos. Eu preferia caras da
minha idade, como Dylan.
“Exatamente.” Michel alargou o sorriso. “Um selfie chupando o pau de alguém. Pode
ser qualquer um. Se conseguir isso, você será um membro oficial do grupo, que nem o
Alisson.”
Eu engoli seco ao ouvir o nome do meu irmão.
“Ok.” Eu disse. Tive a impressão de ouvir Dylan suspirar, ao meu lado.
“Você é o cara.” Michel me ofereceu o baseado de novo, e dessa vez eu aceitei com
um sorriso.
“Sou mesmo.” Falei, e dei uma longa tragada.
Capítulo 02
Acordei com a água salgada batendo no meu rosto. A fogueira havia se apagado,
inundada pela subida da maré.
Eu apertei minha cabeça dolorida e me levantei, atordoado e vendo o mundo girar.
Droga, eu fumei muito mais do que estava acostumado e nem imaginava o quanto havia
bebido. Dezenas de latinhas vazias flutuavam ao meu redor e eram carregadas para o mar.
“Michel? Dylan?” Eu olhei ao redor, cambaleando na areia encharcada.
Nada, além de umas gaivotas terminando de comer nossos salgadinhos. Pelo céu limpo
e acobreado já era madrugada.
Eu esfreguei atrás do pescoço, tentando acordar direito quando percebi algo que
arrepiou cada pelo do meu corpo. Me virei num salto e olhei para a areia.
A prancha do Alisson havia sumido.
Ai, que merda. Com o coração na garganta eu percorri os arredores. Meu irmão
ganhou um torneio nacional naquela prancha, ele iria se desesperar.
Eu já segurava o peito prestes a ter um infarto, quando avistei um pontinho amarelo
muito ao longe, em meio ao oceano de ondas calmas.
Puta merda, a prancha do Alisson. Sem pensar duas vezes eu me joguei no mar e
nadei. Nadei o mais rápido que conseguia, o que era quase nada. Eu nunca tive aulas de
natação, mas não podia ser tão difícil.
Não demorou até meus músculos queimarem pelo esforço. Eu tentei descansar os pés e
não alcancei o fundo. Atrás de mim a cidade era uma linha distante, e à minha frente a prancha
do Alisson ainda era só um pontinho, muito mais distante do que eu havia previsto. Ela
ondulava na direção de um rochedo preto.
Ofegando pesado, eu continuei nadando, mas a água começou a entrar na minha boca,
e eu perdi a força de vencer as ondas, sendo arrastado para trás mais do que avançava para a
frente.
A prancha ainda se afastava quando minhas forças se esgotaram. As ondas me
carregaram para o fundo, e meus pulmões queimaram com a água salgada.

****

Despertei aos poucos, sentindo algo macio contra os meus lábios. Eu abri uma fenda
dos olhos e me sobressaltei.
Um cara estava me beijando.
Eu tentei me afastar, mas uma alfinetada horrível no peito fez eu tossir pesado,
cuspindo litros de água nos pedregulhos onde eu estava deitado. Minha respiração chiava de
tão rápido que eu buscava ar, e todo o meu corpo tremia. Não foi um sonho? Eu realmente
afundei no oceano?
Meu pensamento logo voltou à prancha do Alisson. Eu ergui o rosto dolorido e em
pânico, e percebi que a bela prancha de estampados amarelos descansava ao meu lado, com o
cordão amarrado nas pedras.
“Você é meio louco.” Falou uma voz atrás de mim, que eu reconhecia. “Que humano
se jogaria nas ondas, sem saber nadar?”
Eu sentei com esforço e me virei para Dylan. A pressão quente ainda estava carimbada
nos meus lábios, o que me fez avermelhar.
Na verdade não avermelhei, eu peguei fogo. Dylan estava sentado à beira d’água, sem
vestir absolutamente nada. Ele retirou uma escama do tornozelo e jogou no mar, como se fosse
a coisa mais normal do mundo.
Um pensamento horrível passou na minha cabeça. Eu murchei os ombros, escondendo
o corpo atrás das mãos como se estivesse tão despido quanto ele.
“O que fez comigo, enquanto eu dormia?” Perguntei.
Dylan me fitou com seus lindos olhos iridescentes, e alisou os cachos para trás com os
dedos. “Te salvei, talvez? Você não estava exatamente dormindo.”
Eu baixei o rosto, envergonhado por pensar mal dele, e porque não conseguia parar de
olhar para aquele corpo rígido e dourado pelo sol. Seus mamilos castanhos me davam vontade
de morder, mesmo que eu nem soubesse a sensação. Nunca fiz mais que dar um selinho em
outro cara.
Só então percebi algo estranho. Digo, algo mais estranho que ter um homem delicioso
pelado na minha frente.
“Que lugar é esse?” Eu olhei ao redor. Haviam apenas pedras escuras e molhadas,
constantemente castigadas pelas ondas. O oceano se expandia à minha frente, iluminado pelo
céu azul, e um pontilhado minúsculo indicava uma cidade distante. Atrás de nós haviam
apenas mais pedras, que se apoiavam umas na outras e formavam uma caverna.
Dylan só ficou me olhando, descendo os olhos pelo meu corpo magrelo e voltando a
me encarar. Certo, ele realmente era meio esquisito. Não existia aquele ditado: beleza,
dinheiro, sanidade mental, escolha dois? Dylan devia ser rico, porque sanidade mental ele não
tinha muita, não.
“Escuta, Gabe...” Ele bufou e olhou pro nada, avermelhando. “Preciso que me
desculpe pelo que acontecer, eu não faço as regras. Te trouxe para cá porque não tive escolha.”
“Quê?” Eu abri um sorrisinho nervoso.
Dylan se levantou, e o sol do fim da tarde iluminou os gomos molhados de sua barriga.
Lambi os lábios involuntariamente, assistindo-o se aproximar de mim. Não queria
olhar para baixo, mas foi impossível agora que estávamos de frente. Minha primeira vez vendo
o pau de outro cara, e o do Dylan, mesmo flácido, era bem grande. Não havia nenhum pelinho,
assim como no resto de seu corpo.
Uma barraca se armou na minha bermuda, e minha posição não ajudava. Eu estava
sentado de pernas abertas, praticamente convidando Dylan a se ajoelhar entre elas. E foi o que
ele fez.
Dylan afagou meu rosto, mandando espasmos quentes pelo meu corpo.
“Eu te trouxe pra ilha. Desculpa, Gabe.” Seus olhos encontraram os meus, tão lindos
quanto doloridos. “Precisamos acasalar.”
“Quê??” Dessa vez eu gritei.
Só então lembrei do jogo dos dados e comecei a rir meio aliviado, mas não tanto
assim. Dylan já estava praticamente grudado em mim, e se aquele peito gostoso tocasse o meu,
virgem como eu era, eu passaria a maior das vergonhas.
“Eles te desafiaram, também?” Perguntei, querendo me afastar e ao mesmo tempo não
querendo. “Você precisa transar com alguém? Porque acasalar é uma escolha de palavras bem
estranha.”
“Entendo.” Os lábios de Dylan estavam tão próximos que sua respiração acariciava
meu rosto, quente e com o cheiro do mar. “Nesse caso, quer transar comigo?”
Meu coração saltou, e meu pau saltou, e meu corpo entrou em pane, parte dele
querendo correr, parte dele querendo me despir e gritar vem!.
Por algum milagre, meus instintos de fuga falaram mais alto e eu recuei, engatinhando
para trás até bater as costas num rochedo, encurralado. Não, não, não! Dylan podia ser
gostosíssimo, e misterioso, mas ele exalava um ar de insanidade que me fazia tremer. Nenhum
cara normal convidaria tão diretamente, não é? Ainda mais quando Dylan sabia que eu era
virgem, já havia contado a ele.
“Dylan, quando você diz transar...” Eu engoli seco, observando-o parado em meio às
pedras, como a mais linda estátua grega. “...você fala de fazer sexo, não é?”
Dylan soltou uma risadinha encabulada. “Falo de acasalar. É o nosso destino.”
Ceeeeerto. Hora de levantar e correr gritando pela vida. Ou era isso o que eu deveria
fazer mas meu pau já ardia dentro das calças, com seus próprios planos para aquela manhã.
Ai, e agora? Louco ou não, Dylan era gostoso demais, e eu já havia passado do prazo
para perder a virgindade. O meio das minhas pernas implorava por isso.
“Tudo bem.” Falei, tentado relaxar os músculos. “Mas vamos com calma, ok? Eu
nunca fiz isso.”
Dylan abriu um sorriso tão doce que meu coração acelerou. Ele sempre foi o cara
quieto e angustiado, vê-lo feliz ao se aproximar de mim e me estender a mão me fez querer
abraçá-lo e beijar seu corpo todo.
Eu alcancei minha mão à ele e deixei Dylan me levantar. Ele laçou seus dedos nos
meus e me conduziu para dentro da caverna.
“Serei tão gentil quanto quiser que eu seja. Você é meu predestinado, Gabriel.”
Ai, meu Deus. Eu estava com um péssimo pressentimento sobre isso.
Capítulo 03
A caverna era maior do que parecia ser, por dentro. Também haviam diversas
mobílias: um sofá-cama, estantes de livro, e diversos penduricalhos dourados nas paredes de
pedra escura, do tipo que pareciam resgatados de navios submersos. Havia também uma
piscina interna, que iluminava o interior num tom azul intenso e trêmulo.
Eu não esperaria um lar menos insano para um cara como Dylan.
Bem, pelo menos havia um clima aconchegante, e a mobília parecia confortável.
Talvez eu só estivesse nervoso em dar a bunda pela primeira vez.
Os braços do Dylan me contornaram por trás, envolvendo minha barriga. Eu soltei
todo o ar em um gemido excitado, sentindo seus biquinhos duros pressionarem as minhas
costas. Algo roçou na fenda da minha bermuda, e o ar me faltou completamente.
Minhas dúvidas sumiram. Eu queria demais dar, e precisava ser agora.
Dylan mordiscou minha orelha, me eletrizando por completo. “Onde prefere fazer?”
Eu rebolei contra a ereção dele, sentindo-a crescer até cutucar minhas bolas. Meu
corpo tremia e ardia em ansiedade.
“Onde quiser. Só me come.” Supliquei, sentindo o rosto queimar.
Dylan não me levou a lugar nenhum, só desceu a mão para dentro do meu calção. Seus
dedos envolveram meu mastro, e ele me masturbou devagarinho.
“Preciso de você prontinho pra mim.” Ele sussurrou no meu ouvido, com a voz úmida
e excitada.
Eu mordi o lábio, deixando gemidos altos escaparem. Aquilo era bom demais. Nunca
tive outro cara me tocando, muito menos um tão gostoso. Minhas pernas ameaçavam ceder,
mas Dylan me segurava firme, aumentando o ritmo aos poucos.
Não demorou e eu estremeci, gritando o nome do Dylan enquanto melava seus dedos.
Mesmo extasiado, senti o calor da vergonha quando Dylan tirou a mão toda suja de
dentro do meu calção. Eu não resisti nem meio minuto. Dylan devia estar rindo de mim, por
dentro.
Sem fazer comentários, Dylan apenas beijou meu ombro e brincou com o elástico do
meu calção.
“É a minha vez, agora.” Ele bateu na minha bunda com a virílha. “Deita ali. Vou fazer
bem gostoso.”
Com o coração na boca, eu deitei no sofá-cama, bagunçando os lençóis azuis sob as
costas. Não queria ser completamente submisso, então eu mesmo desci o calção... até metade
das nádegas.
Ah, eu estava morrendo de vergonha.
Dylan não pareceu ver meu desconforto, porque simplesmente livrou-me do calção
com um puxão e deitou sobre mim, já beijando meu peito.
“D-Dylan...” Eu arfei, sentindo a língua quente se aproximar do meu mamilo rosado.
Mesmo comigo empurrando sua cabeça para longe, Dylan continuava me mordiscando e meu
pau começava a reagir de novo. “...Dylan, mais devagar.”
“Posso te comer de quatro?”
“Não!” Eu o empurrei com força, até que sentasse sobre os meus joelhos. Meus olhos
umedeceram pelo medo. “Você disse que seria gentil.”
Dylan torceu o lábio, como se não fizesse ideia do que eu falava. Aquele cara também
era virgem? Não parecia ser. Dylan era lindo e muito confiante. Eu devia ser só mais um, entre
centenas de fodinhas rápidas.
Pensativo, Dylan observou os próprios dedos, ainda esbranquiçados e brilhando de
gozo, e pareceu ter uma ideia. Ele lambeu a mão com uma expressão tão extasiada que eu fervi
de tesão, assistindo. Ele chupou cada dedo até limpar bem, mas não parecia ter engolido. Ele
deu um sorrisinho safado e forçou minhas coxas para cima, até meus joelhos encostarem no
peito.
“Dylan, o que você... ah!!”
Dylan lambeu minha entrada, deslizou a língua para cima, e chupou minhas bolas
suavemente antes de descer de novo. Eu cravei as unhas no sofá, gritando e gemendo de
prazer. Recém havia gozado e meu pau já estava petrificado, apontando para cima enquanto
Dylan beijava lá atrás.
E então ele meteu a língua dentro, me alargando em movimentos molhados e quentes.
Senti escorrer algo molhado, e percebi que ele me preparava com meu próprio gozo, babando
minha entradinha enquanto circulava a língua lá no fundo.
Eu vi estrelas, torcendo os dedos dos pés enquanto Dylan me segurava firme naquela
posição vergonhosa. Aquilo era perfeito demais. A língua do Dylan roçava quente dentro de
mim, apertando um ponto que me fazia pegar fogo.
Quando pensei que não melhoraria, Dylan soltou uma das minhas coxas, e me fez
outra punhetinha, dessa vez já começando rápido.
Ai, meu Deus. Comecei a gritar como um ator pornô. Então isso que era transar?
Nunca senti nada tão bom.
E Dylan foi adiante. Ele soltou meu pau e tirou a língua de dentro. Antes que eu
reclamasse ele abocanhou meu pau com vontade, arranhando minhas ancas enquanto chupava
com dedicação.
Três chupadas. Foi o que eu aguentei antes de lavar a boca daquele gostosão louco
com outra leva de gozo.
Quando Dylan afastou os lábios do meu pau e olhou nos meus olhos, eu estava todo
desmontado.
“Melhorou?” Ele lambeu as gotas brancas do lábio, sorrindo travessamente.
Eu nem conseguia falar. Só fiz que sim com a cabeça, sentindo o suor escorrer do meu
corpo.
Dylan acariciou minha barriga, com um sorriso satisfeito. Ele observou meu umbigo, e
meu ventre magricelo.
“Fui agraciado com o predestinado perfeito.” Ele disse, com um brilho estranho no
olhar. O que ele queria dizer com predestinado, afinal?
“Continua.” Eu pedi, vermelho como um tomate. “Faz na posição que quiser.”
Dylan saiu de cima de mim, e eu entendi o recado, virando na cama e me apoiando nos
joelhos e nos cotovelos, com as pernas bem afastadas.
Eu espiei por cima do ombro, querendo ver a reação do Dylan ao me ver tão exposto.
Dylan me admirava como se eu fosse uma pintura numa galeria, com seus olhos
brilhando de forma tão empolgada quanto devassa. Naquela posição ele podia ver tudo, tudo
mesmo. Eu podia sentir minha entrada afrouxada pela língua dele, e a saliva escorrendo até
minhas bolas. Devia ser o cenário dos sonhos de qualquer ativo.
Ao invés de morrer de vergonha, enfim senti um certo orgulhinho. Se aquele deus
grego se encantava com meu corpo, eu não era tão sem-graça assim.
“Vem me tomar, vem.” Dei uma reboladinha, só pra ver o que ele faria. “Você vai ser
meu primeiro.”
Dylan afagou minhas nádegas, me arrancando um suspiro. Ele se encaixou entre as
minhas pernas e meteu um dedo lá dentro, brincando de me fazer gemer.
Eu abracei o travesseiro, gemendo abafado na fronha enquanto Dylan me fodia com o
dedo, indo e voltando de dentro do meu cuzinho virgem. Pelo tremor nas minhas pernas eu
logo iria gozar de novo, mas daquela vez queria um orgasmo de verdade.
Felizmente, antes que eu precisasse implorar, Dylan tirou o dedo e espaçou minhas
nádegas, agarrando com força até suas unhas afundarem deliciosamente na minha pele
aflorada.
Com a cara escondida na almofada, senti uma pressão alargando lá atrás. Meu anel
esticou dolorosamente, recebendo o pauzão do Dylan. Primeiro passou a glande arredondada e
lisa, depois o mastro, latejando grosso e quente. A cada centímetro da dolorosa invasão eu
sentia o ar desaparecer dos meus pulmões.
“Devagar.” Implorei, com a voz chorosa. Não imaginava que fosse doer tanto, eu me
sentia prestes a rasgar.
“Relaxe os músculos.” Ele disse, como se fosse fácil com aquela vara enorme me
penetrando.
“N-não consigo.” Dessa vez solucei no meio da frase. Droga, eu estava chorando, eu ia
estragar tudo.
Dylan se interrompeu, com metade do pau já dentro de mim. Ele inclinou até
pressionar seu peito quente contra as minhas costas, soltou minhas nádegas e deslizou as mãos
aos lados da minha barriga, subindo-as até o meu peito.
Eu gemi macio, dolorido e apreciando o carinho. Mas as mãos de Dylan seguiram
adiante, viris e firmes pela minha pele. Ele pinçou meus mamilos, e foi como tomar um
choque.
“Não...” Arfei, rebolando minha bunda dolorida enquanto Dylan brincava de puxar
meus bicos.
“Você não gosta?” Perguntou ele, bem pertinho do meu ouvido.
Se eu não gostava? Aquele machão deitou nas minhas costas pra beliscar meus
biquinhos sensíveis, tudo isso com o pau enterrado lá dentro. Eu me sentia numa tempestade
elétrica no centro de um vulcão.
Eu afastei os joelhos ainda mais para esfregar meu pau no sofá e conseguir aquele
prazerzinho que faltava. Eu acabava por me empalar no Dylan, fazendo isso, mas agora só
existia êxtase, e uma vontade imensa de ser arrombado à força.
Estremecendo todo, eu arrisquei tirar o rosto da almofada. Péssima idéia, porque tive
visão total das mãos do Dylan, ambas torcendo meus mamilos como se me ordenhasse. Aquela
visão dos sonhos era muito mais do que eu aguentava. Eu soltei um gemido gritado e ejaculei
nos lençóis, espremendo o mastro do Dylan num espasmo descontrolado.
Dylan também gemeu. Eu podia sentir o quanto ficar parado o torturava.
“Pode meter.” Falei, um pouquinho envergonhado. Minhas bolas doíam de tanto
gozar, mas eu sentia que estava só começando.
Ouvi a risadinha fofa do Dylan. Ele beijou meu ombro e tornou a agarrar minhas
ancas, erguendo-se das minhas costas.
“Eu não poderia desejar um predestinado melhor.” Disse ele, mas antes que eu
perguntasse ele retirou o pau até a pontinha e meteu todo de uma vez, com tanta força que
nossas peles estalaram molhado.
“Ai!” Eu gritei, mas não de dor. Eu... eu nem sabia o nome daquela sensação, mas ah,
meu Deus, eu queria mais.
E Dylan me deu muito, muito mais. Ele recuava e invadia cada vez mais rápido, se
enterrando dentro de mim quase que com brutalidade.
Eu gritei contra a almofada, alucinado pelas sensações tão intensas quanto
desconhecidas. Era como morrer de dor, e querer sofrer para sempre mesmo assim. Eu só
podia estar enlouquecendo. Queria que não parasse nunca, que Dylan me arrombasse até não
sobrar nada de mim.
“M-mais forte!” Não acredito que pedi isso em voz alta.
Dylan cravou as unhas nas minhas nádegas e as afastou ao limite. Ele mudou o ângulo
e me empalou de cima para baixo, enterrando-se tão profundamente que eu vi estrelas,
galáxias, e nem sei mais o quê. Eu gritei tanto que agradeci estarmos numa ilha isolada. Dylan
latejava dentro de mim cada vez mais quente, e meu desejo em ser preenchido por ele se
tornava insaciável.
Pensando bem, hum, não deveríamos estar usando camisinha? Aquilo podia ser
perigoso.
“Dylan... Dylan, por favor...” Miei, tentando mandá-lo gozar fora, mas só conseguia
soar como um putinho, implorando por mais surra de piroca.
Meus gemidos pareciam excitar o Dylan. Ele arranhou minhas nádegas e nós dois
arfamos juntos. Eu gozei uma quarta vez, sentindo seu líquido quente preencher meu interior,
até transbordar e escorrer pelas minhas coxas.
Quando Dylan saiu de mim, eu derreti nos lençóis. Eu queria mais. E eu não queria
nunca mais. Eu estava fora de mim.
Dylan deitou ao meu lado e deu um selinho em mim. Eu nem conseguia me mover,
não que eu quisesse evitar seus lábios.
“Espero ter satisfeito o meu predestinado.” Ele sorriu pra mim, com um brilho
reluzente e doce no olhar.
Eu tentei falar, mas o cansaço me derrotou. Adormeci abraçado em seu torso suado e
bem definido, mergulhado em um profundo relaxamento.
Capítulo 04
Eu agachei na piscina interna e lavei meu rosto. Segundo o bilhete que encontrei na
cama, Dylan precisava fazer compras no continente, então eu precisaria esperá-lo.
Aproveitei o tempo livre para observar sua casa, se é que podia chamar assim. Não
haviam equipamentos elétricos naquele lugar úmido, mas haviam muitos baús, alguns deles
com moedas de cobre e taças. Pensei brincando que todas aquelas tralhas fossem resgates de
navios, mas pela ferrugem e pelas cracas e algas secas, talvez fossem mesmo. A única fonte de
luz parecia ser a piscina, que refletia a luz do exterior. Como era pôr do sol ela brilhava em
tons cor-de-rosa. Era muito bonito.
Algo que não reparei antes, era o quanto o sofá-cama era novo. Diferente das
velharias, ele parecia nunca ter sido usado. Será que Dylan havia trocado de cama
recentemente? Senão, onde ele dormia? Quando acordei ele já havia partido.
Um borbulhar no meu estômago me fez correr para fora. Quase não tive tempo de
chegar no mar antes de avessar o conteúdo do meu estômago.
Droga. A cerveja e a maconha da festa realmente não me fizeram bem. Só podia
esperar que Dylan chegasse logo, de preferência com um lanchinho e...
Hum, pensando bem, como raios ele foi para o continente? A prancha do Alisson
continuava ancorada nas pedras, e eu com certeza não avistei nenhum barco. Dylan era muito
musculoso, mas será possível que tenha atravessado o oceano à nado? Orla das Sereias mal
podia ser vista, daquela distância.
Faminto e atormentado pelo enjôo incomum, eu sequei a boca e deitei nas confortáveis
pedras negras do exterior da caverna. Alisson devia estar à beira de um infarto, por eu ter
sumido. Assim que Dylan aparecesse eu pediria que me levasse pra casa.
Eu ouvi um estalo molhado e virei o rosto, me surpreendendo ao ver Dylan. Ele trajava
apenas sua sunguinha azul, e carregava uma bolsa de neoprene por cima do ombro.
“De onde você veio?” Perguntei, enjoado demais para me levantar. “Você trouxe
comida, espero.”
Dylan deixou a sacola ao meu lado e inclinou-se sobre mim. Ele deu um beijinho nos
meus lábios e sorriu com a doçura de um pão-de-mel.
Ok, ele era fofo, eu precisava admitir.
“Eu trouxe frutas e refrigerante. E uns remédios para enjôo. Logo volto com o jantar,
meu predestinado.”
Eu apenas concordei. Estava fraco demais para reclamar, e começava a me acostumar
com as insanidades do Dylan.
De repente percebi algo estranho e sentei rapidamente, virando-me para ele.
“Espera, como sabia que eu estava enjoado?”
Mas tudo o que ouvi foi o som da água reverberando contra as pedras. Dylan já havia
desaparecido.

****

Eu devia algumas explicações ao Alisson. Ok, muitas, muitas explicações.


Assim que entrei em casa, Alisson veio correndo me abraçar.
“Gabe, onde você se meteu? Liguei pro pessoal, ninguém sabia. Eu quase chamei a
polícia!”
Com o olhar nos pés eu lhe entreguei sua preciosa prancha, sem saber por onde
começar. Alisson me protegia demais desde que fui expulso aos chutes de casa, e então ele
tentava ser pai e irmão ao mesmo tempo. Meu irmão era quinze anos mais velho que eu, e
vivia a vida de lazer e glória dos surfistas profissionais. Eu não queria ser um fardo para ele.
Além do mais, como começar a explicar as últimas 24 horas? Eu quase me afoguei, fui
resgatado por um cara bonito e louco que me deflorou durante horas, e depois ele apareceu
com um arpão em uma mão e vários peixes frescos na outra. Para completar ele assou um
delicioso jantar que eu devorei como um morto de fome, embora o enjôo alfinetasse meu
estômago. No fim, Dylan chamou uma lancha da guarda costeira para me trazer de volta e eu
voltei ouvindo xingões sobre a marinha não ser um serviço de táxi.
“Desculpa, Alis.” Falei, com a culpa pesando o meu peito. “É complicado.”
Alisson cruzou os braços e bufou em desaprovação, mas depois sorriu.
“Na sua idade eu também tinha meus segredinhos. Fico feliz que esteja fazendo
amigos.” Ele afagou meus cabelos. “Agora vai tomar um banho, você está cheirando a peixe.”
Eu assenti, e fui para o chuveiro. A água quente aliviou a dor no corpo, ainda
dormente.
Alisson era o melhor irmão do mundo. Ele era baixo como eu, e nós tínhamos o
mesmo cabelo castanho claro, embora o dele fosse longo, e preso por um rabo-de cavalo.
Enquanto meus olhos eram azuis os dele eram pretos como os da mamãe, mas no geral éramos
muito parecidos. Nas fotos antigas do Alisson ele era igualzinho ao que sou hoje.
Exceto que Alisson era hétero. Mesmo divorciado, ele é o orgulho da família. Meu pai
até fez um quarto para expor as medalhas e troféus, mas Alisson parou de mandá-las quando a
mamãe morreu, e passou a manter suas conquistas para si mesmo.
Eu não possuía talento algum, e mesmo que possuísse não importaria nada. Ter
beijado um colega nos fundos da casa me tornou o pior ser humano da terra, ponto final.
Assim que terminei e me vestir, trancado no meu quarto, eu procurei o celular. Ainda
bem que o deixei em casa. Podia ser um celular à prova d’água, mas o que eu faria se ele caísse
no mar?
Não esperava encontrar mensagens, mas haviam cinco. As primeiras eram selfies do
Michel, sempre com uma cenoura na boca e o recado não esquece, você tem até domingo!.
Eu estremeci. Puta merda, a aposta dos dados. Eu precisava me fotografar chupando
um cara ou não seria aceito naquele grupinho de idiotas.
Assim que pensei em candidatos, lógico que Dylan veio à mente. Minha cueca esticou
para a frente, gostando da minha imaginação fértil.
Não, nem pensar. Dylan era divino como um Deus, e fodia de arrancar meus sentidos,
mas ele era louco da cabeça. Aceitava ter sido desvirginado por ele, mas nosso relacionamento
terminaria ali.
Enquanto tentava esfriar os pensamentos, verifiquei a última mensagem, e meu pau
saltou pra cima de novo.
Era um... nude. O primeiro nude que já recebi, e a virilha depilada e dourada de sol
indicava que só podia ser uma pessoa.
Eu sentei na cama, pensando em algum desaforo para responder ao Dylan, mas minha
mão já se movia para dentro da cueca. Aquele pau gostoso apontava para a câmera, tão grande
que mal acreditava que recebi dentro de mim. Uma pérola de pré-gozo cintilava no orifício.
Ah, eu queria demais saber o gosto...
O celular vibrou de repente e eu gritei com o susto, quase derrubando ele no chão.
Uma mensagem do mesmo número que enviou o nude.
Chegou bem em casa, meu predestinado?
Eu abri a boca em indignação. Eu queria xingar ele. Eu deveria mandá-lo à merda,
pelo bem da minha dignidade. Mas meus dedos pareciam ter vida própria naquela noite.
Obrigado pela tarde maravilhosa, eu respondi.
Ai, meu Deus. Me diz que não estava me apaixonando pelo louco da ilha.
“Gabe?” Alisson bateu na minha porta. “Você não vem jantar?”
Eu guardei o pau de volta nas calças, apressadamente. “Já jantei.”
“Desça, mesmo assim. Tem um cara vestindo apenas uma sunga te procurando, um tal
de Dylan.”

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