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Copyright © Jessa Hastings, 2021

Copyright da tradução © 2023 by Editora Intrínseca Ltda.

O direito moral de Jessa Hastings de ser identificada como autora desta obra foi assegurado.

título original
Magnolia Parks

copidesque
Stella Carneiro

preparação
Iuri Pavan

revisão
Thais Entriel

design de capa
Emily Pappas, 2021

adaptação de capa
Henrique Diniz

geração de e-book
Pablo Silva | Intrínseca

E-ISBN
978-65-5560-742-0

Edição digital: 2023

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Intrínseca Ltda.
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22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
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Sumário
[Avançar para o início do texto]

Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória

Epígrafe

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68

Agradecimentos
Sobre a autora
Para a minha versão de 2018 que sentiu vontade de jogar a
toalha e virar professora de história porque a rejeição criativa
dói demais.

E para aquela sua versão que quase desistiu daquilo que você
nasceu para fazer porque criar tem um custo altíssimo.

Mas cá estamos… Como diz Glennon… conseguimos fazer


coisas difíceis.
Quantos amores se tem em uma vida?

Quantas pessoas podemos chamar de parceiras? Existe todo tipo de


amor no mundo, a maioria deles lindos, mas não todos. Alguns são
antigos, alguns enobrecedores, alguns corajosos. Outros são indignos e
fracos, e assim nos tornam indignos e fracos, por associação. Alguns
são um sussurro baixo numa noite sombria, outros nos fazem perder a
cabeça. Alguns são impossíveis de ignorar — ardem em fogo baixo
dentro de nós, sem nunca apagar por completo, mas temos medo
demais para ousar atiçar a chama. Alguns amores fingimos não sentir,
mesmo quando sabemos que estão lá, mesmo se ele for a primeira coisa
em que pensamos de manhã, mesmo se ele for um fósforo no quarto
escuro do nosso peito — porque amar algo como amamos esse alguém
dói, nos puxa para baixo e deixa uma melancolia no nosso olhar, e, se o
tempo nos ensinou alguma coisa, é que isso não importa. Ainda assim
o amaremos para sempre.
UM

Magnolia

— Curti — diz ele, puxando meu vestido e chegando por trás de mim.
Calça jeans preta Amiri Thrasher (com rasgos nos joelhos, óbvio), tênis
Vans pretos e a camiseta branca de mangas pretas da Givenchy.
Me olho no espelho do quarto dele. Inclino a cabeça, estreito os olhos e
finjo que sou a única garota que esteve aqui recentemente. Me certifico de
que o colar com o anel dele está escondido por dentro da roupa, onde
ninguém além de mim, e provavelmente ele mais tarde, verá, e ajeito a gola
arredondada do meu vestido de jacquard acetinado de estampa floral
vermelha, azul e branca.
— Miu Miu — digo, encontrando seu olhar no espelho.
Amo os olhos dele.
Ele assente, descontraído.
— Transei com uma modelo da Miu Miu na semana passada.
Odeio os olhos dele. Faço cara feia por um instante, engulo em seco e me
recomponho antes de sorrir, despreocupada.
— Não ligo.
Nos encaramos, e, por um segundo, não odeio só os olhos dele, mas ele
inteiro — por me conhecer como conhece, por ver a verdade por trás de
tudo o que eu digo, por não fazer isso apenas comigo. Ele dá de ombros,
indiferente.
Ele, no caso, é BJ Ballentine, meu primeiro… tudo, para falar a verdade.
Meu primeiro amor, minha primeira vez, minha primeira dor de cotovelo. O
garoto de cabelo castanho e olhos verdes, o garoto de ouro. O garoto mais
lindo de Londres, dizem — e provavelmente concordo. Quando ele está num
dia bom. Mas por que estou falando dele para você? Você já sabe quem ele é.
— Eu sei que você não liga.
Ele passa a língua pelos dentes, distraído. É o que faz quando está
irritado, e eu noto que está mesmo, mas só por um segundo, porque ele logo
suaviza o olhar, como sempre faz comigo.
— Você estava namorando, Parks…
Ele tenta olhar nos meus olhos, mas não retribuo, porque gosto de fazer
ele achar que precisa se esforçar pela minha atenção.
— Tá — respondo, piscando. — Não ligo.
— Sei — suspira ele, fingindo tédio. — Sempre na defensiva, né? — diz
baixinho.
É o que os garotos falam quando me veem entrar nesse modo.
Ele me encara outra vez, porque sabe que estou mentindo, e nossos
corações entram em um impasse através dos nossos olhos.
Saudade de você, pisco em código Morse.
Ainda te amo, dizem os cantos virados para baixo da boca perfeita dele.
O lábio superior é maior, como se estivesse permanentemente inchado
por causa de uma picada de abelha. Antigamente, ele equilibrava meu
coração inteiro naquela boca.
— Quando foi, afinal? — pergunto e dou meia-volta para olhá-lo de
frente, pegando seu punho para dobrar sem permissão a manga da jaqueta
jeans preta com retalhos de lenço, também da Amiri.
Consigo sentir seu olhar. Ele me observa, espera que eu erga o rosto, e,
quando faço isso, sinto uma dor profunda, como toda vez que nos olhamos.
Um peixe de volta à água. Um alívio imenso.
— O que houve? — pergunta Bê, franzindo as sobrancelhas e me fitando.
Ajeito a jaqueta dele, tentando decidir se fica melhor aberta ou fechada.
Resolvo abotoar. Ele inclina a cabeça, ainda procurando meus olhos, e,
como não retribuo, levanta meu queixo com o polegar e o indicador.
A distância entre nós é mínima, mas, ainda assim, cresce uma floresta
nesse espaço. Pinheiros feitos de erros, tão altos que não dá para enxergar o
outro lado; rios feitos de coisas que não dissemos, tão largos que é
impossível contornar. Não estamos nem perto de onde achamos que
estaríamos, saímos completamente da trilha, e por um momento me sinto
perdida e sozinha, mas estou perdida e sozinha com ele.
— Só me perguntando quando é que foi.
Eu pisco várias vezes. Ajuda a reprimir as lembranças. Desabotoo a
jaqueta.
— Porque você passou a semana passada quase toda comigo — continuo
—, então estou aqui me perguntando quando é que teve tempo para transar
com uma garota extremamente branca que com certeza tem olhos separados
demais.
Ele sorri, achando graça. Como é alto, esse BJ Ballentine. Um metro e
oitenta e oito.
— O que foi? — pergunto, dando de ombros, pagando de inocente. —
Branca que nem fantasma com olhão de alienígena é exatamente o tipinho
do Fabio Zambernardi.
O sorriso de BJ some.
— Você estava namorando, Parks — repete ele, e eu ignoro, porque uma
coisa não tem nada a ver com a outra.
Ajeito mais uma vez a jaqueta, abotoando.
— Mas eu passei a semana quase inteira com você, então só fiquei sem
entender, tipo, literalmente quando…
— Quer que eu te mostre a minha agenda?
— A sua agenda de sexo? — pergunto, incisiva.
Mas será que eu não deveria aceitar logo essa oferta? Provavelmente seria
útil para organizar as noites da semana em que pretendo lavar o cabelo, e
também saber por onde ele anda, o que eu gostaria de saber sempre, mas
não posso de forma alguma admitir. Então só fico encarando BJ.
Ele semicerra os olhos.
— Não tenho uma agenda de sexo.
Eu o observo com ceticismo.
— Agenda de trabalho é que você não tem…
— Eu trabalho, sim. — Ele revira os olhos.
— Ah, é? Tirando a camisa para as suas tietes no Instagram?
Ele coça o pescoço e sorri, tímido.
— Preciso pagar os boletos — diz, dando de ombros. — Nem todo
mundo tem oitocentos milhões guardados, Parks.
— Justo, justo — cedo. — Falando nisso, como anda aquela ilhazinha da
sua família ali perto de Granada?
Ele passa a língua de leve pelo lábio inferior, sorrindo.
— Precisava chamar de ilhazinha…
— É menor do que a minha — replico, e ele ri.
BJ me fita da cabeça aos pés, me percorrendo com os olhos como antes
fazia com as mãos, inspira profundamente e expira de amor por mim. Ele se
olha no espelho às minhas costas, passando as mãos pelo cabelo.
— Como é que vão ficar esses botões?
Eu os desabotoo de novo, e ele me olha, um sorriso no rosto.
— Sempre tentando tirar minha roupa…
Reviro os olhos, mas coro mesmo assim.
— Vai sonhando.
Pego a bolsa Le Chiquito Noeud de couro nobuck azul-celeste na quarta
prateleira da minha estante de bolsas.
— Sonho mesmo — admite ele, e olha para trás de mim. — Precisa que
eu desabotoe alguma coisa aí?
Dou um tapa de leve nele, rindo.
— Não fode.
— Vem — diz ele, enganchando o braço no meu pescoço e me puxando
para a porta. — A gente vai se atrasar.

* * *

— Então, Parks — diz BJ, com um sorrisinho, os olhos semicerrados —, qual


é sua implicância máster da semana?
— Da semana?
Franzo a testa. Estamos sentados com a Panelinha, nossos amigos mais
íntimos, mas, ainda assim, às vezes alguma coisa acontece e o mundo inteiro
desaparece, e conseguimos ver só um ao outro.
— É que a implicância máster de todos os tempos eu já conheço —
responde ele, dando de ombros.
Arqueio as sobrancelhas.
— É mesmo?
Ele assente, e eu tamborilo na mesa, à espera.
— Fala aí — digo.
Estamos no Annabel’s, e, da próxima vez que você estiver lá, recomendo
que peça uma garrafa do Dom Pérignon rosé de 1995.
Não é isso que BJ está bebendo. Ele pediu um negroni. É a única coisa
que ele bebe, a não ser que a noite esteja saindo do controle, aí ele passa para
um Don Julio 1942.
— Sua implicância máster de todas… é com outras garotas me dando
mole. É óbvio. — Ele torce a boca um pouquinho, como se dissesse “pronto”.
Eu faço um murmúrio de desprezo e balanço a cabeça.
— Não. Não passou nem perto.
Passou, sim, está cem por cento certo.
Ele revira os olhos e ignora a mentira.
— Então a dessa semana, manda aí…
— Garotas dizendo que não estão usando maquiagem no Instagram,
sendo que tá na cara que não estão usando maquiagem…
— Ai — interrompe Paili Blythe, minha melhor amiga. — Eu odeio isso!
Ela ajeita uma mecha de cabelo platinado atrás da orelha e franze o
narizinho arrebitado, frustrada.
— O que elas querem — continua —, uma medalha?
Faço um gesto de agradecimento a ela antes de voltar a falar.
— Não consigo entender por que alguém se gabaria de ser descuidada de
propósito.
— Que tal um pouquinho de corretivo? — sugere Paili. — Um bom blush
cremoso?
— O que você disse, Charlotte? Que não passou maquiagem hoje? —
pergunto para ninguém. — Pois é, eu percebi… só não vê quem não quer.
BJ passa a língua nos dentes de trás, sorrindo. Ri bufando e balançando a
cabeça.
— Nem todo mundo acorda parecendo o Bambi, Parks…
— Quê?… — digo, franzindo a testa. — Isso… era para isso ser um
elogio?
— Lógico — confirma ele.
— Fala sério — responde Henry Ballentine, meu amigo mais antigo no
mundo.
De aparência, ele lembra muito o irmão mais velho, com o cabelo
castanho e o sorriso capaz de engravidar qualquer uma, mas com olhos
azuis no lugar dos verdes de BJ, e às vezes usa óculos, que nenhum de nós
sabe bem por quê. Ele estica a cabeça para se meter na conversa.
— Todo mundo sabe que foi com Bambi que o BJ entrou na puberdade
— acrescenta.
— Ei, o Bambi é menino — avisa Christian Hemmes, o sotaque de
Manchester ficando mais acentuado, como sempre acontece quando está
achando graça.
Eu e o Christian já namoramos. Mais ou menos. Não chamaríamos de
namoro hoje em dia, mas namoramos, sim, eu acho. E foi ruim. Ruim para
mim, ruim para ele (especialmente para ele), ruim para o Bê (pior ainda
para o Bê) — ruim para todo mundo, na verdade.
Mas o Christian é lindo. Cabelo dourado, olhos cor de mel, boca sensual.
Quase divino — em aparência, não atitude. Em atitude, ele é apavorante,
para ser sincera. Tento não pensar no que ele e o irmão fazem… Eles acham
que não sei. Mas eu sei. Sei tudo desses meus meninos.
Tanto Henry quanto BJ parecem ao mesmo tempo confusos e
perturbados com a revelação de Christian.
Dou uma olhada rápida para ele antes de me voltar para Bê e perguntar:
— Então, se eu sou um veado, você é o quê?
— Um lobo — responde sem hesitar.
Reviro os olhos.
— Do tipo solitário?
Ele balança a cabeça, o olhar se suavizando de um jeito que não deveria
numa mesa cheia de gente conhecida numa sala cheia de gente
desconhecida.
— Do tipo que encontra na floresta uma veada que não alcança a última
prateleira do armário sozinha, ou não sabe trocar o óleo do carro, ou…
— Que veada avançada — cochicha Henry para o irmão.
— É, com certeza é uma veada bastante complicada — diz BJ.
Eu franzo a testa enquanto ele sorri.
— Sem o lobo, a veada provavelmente não teria conseguido fechar o zíper
desse vestido aí — continua BJ, apontando para mim com a cabeça. — Não
teria comido nada desde 2004… Então o lobo fica pelas redondezas, por
pura bondade.
— Acho que os lobos devoram os veados — comenta Henry, sem
cerimônia.
BJ revira os olhos, mas acho que o irmão dele está certo.
Do outro lado da mesa, Perry Lorcan balança a cabeça — cabelo
castanho penteado para trás, olhos castanhos bem grandes, sorriso maior
ainda, maçãs do rosto marcadas, completamente lindo e completamente
fabuloso.
— O Henry se confundiu. Fui eu que entrei na puberdade com Bambi. A
do BJ foi com a Ariel… — diz, apontando para o próprio tronco. — O sutiã
de conchas. Ele é fascinado por peitos.
Sem querer, olho de relance para os meus, e, quando ergo o rosto, BJ me
observa. Ele me dá uma piscadela sutil e sorri, irônico.
Faço o que posso para não pegar fogo aqui mesmo.
— E aí — diz Bê, se aproximando e tirando um cílio solto que
obviamente não caiu no meu rosto, só como pretexto para encostar em mim.
— Nós dois sabemos a sua implicância máster de verdade… mas qual é a
sua de mentira, então?
Tento não sorrir para ele.
— Essa você também conhece.
— Também?
Ele sorri, e eu reviro os olhos. Ele para um segundo para refletir.
— Rosas e ranúnculos no mesmo buquê?
Faço que sim.
— Nojento demais. Mau gosto da porra.
Ele solta uma gargalhada do fundo da garganta, e eu adoro quando ele ri
de alguma coisa que falei. Quero fazer ele rir para sempre, mas não posso,
porque ele estragou o para sempre, e ainda assim preciso me segurar para
não beijá-lo. O irmão mais velho de Christian, Jonah, se espreguiça do outro
lado da mesa. Ele está sempre todo de preto — hoje, jaqueta jeans preta,
camiseta preta, calça jeans preta, tênis preto —, mas, por dentro, ele brilha,
exceto pela natureza precária de seu trabalho. O cabelo dele talvez seja loiro,
mas acho que é castanho, e os olhos talvez sejam verdes, mas acho que são
castanhos, de repente mel? Tudo nele é cortante: a mandíbula, o nariz, a
língua. Só não comigo, porque sou a sua preferida.
Jo inclina a cabeça na minha direção.
— Ela está falando de Monty Python de novo?
BJ balança a cabeça para o seu melhor amigo, e eu empino o nariz,
indignada.
— É uma mancha na história do cinema britânico e ponto final.
— Já sei o que vamos assistir hoje — diz Bê, com uma piscadela.
— É — respondo, olhando para ele. — Eu também. Deixamos Jack Bauer
em uma situação muito tensa ontem.
Jonah abana a mão antes de pegar minha bebida.
— Aquele coitado vive em situações tensas…
Ele prova meu drinque e faz uma cara de nojo. Doce demais.
Henry dá uma cotovelada no irmão.
— Ontem? — pergunta em voz baixa, achando que não vou escutar. —
Quantas noites já nessa semana?
— Todas, ué — replica BJ, semicerrando os olhos. — E daí?
Henry ergue uma das sobrancelhas.
— Ela tá levando na boa esse término, hein…
BJ tensiona o maxilar, na defensiva.
— Sim, tá levando.
Henry olha para ele de um jeito incisivo.
— E isso é porque você está dormindo lá todo dia durante essa semana?
— Eu dormi lá todo dia na semana passada — diz BJ, em desafio —, e
eles ainda estavam juntos, então…
— Não foi todo dia — interrompo. — Só três.
Os dois me olham, um pouco surpresos, como se tivessem esquecido que
estavam conversando bem na minha frente.
— Quatro — sussurra BJ, apenas para mim.
O rosto dele está tão próximo que fico tonta e perco o fôlego, preso a um
caco do meu coração partido.
Quatro? Não é surpresa que Brooks Calloway tenha terminado comigo.
Não sei por que isso me machuca, mas machuca. Feito uma flechada no
peito.
Esse negócio de quatro noites?
Ele é o único homem cuja perda me doeu, o único amor que já tive.
Antes mesmo de perceber, me afasto da mesa, zonza e em pânico — mas
não é um ataque de pânico, porque não tenho essas coisas. Isso é coisa de
gente que não controla a própria vida, e eu controlo tudo, absolutamente
tudo, ainda mais meu coração. Só vem e vai em ondas, a dor de perdê-lo.
Aparece em horas aleatórias, em lugares curiosos.
Tipo agora, três anos depois do acontecimento, no Dorchester, com ele
bem ali do meu lado na jaqueta Amiri que escolhi para ele uma hora atrás,
toda aberta, que nem meu cérebro fica perto dele.
Achou que eu estivesse falando do meu namorado da semana passada?
Que tolice da sua parte. Que otimismo quanto à minha capacidade de
largar o barco todo precário ao qual meu coração é acorrentado.
“É a Magnolia Parks?”
“Cadê o namorado dela?”
“Ela veio com o BJ Ballentine?”
“Eles voltaram?”
“Eles nunca se largam.”
“Ela não tem namorado?”
“Gostei do vestido dela.”
“Odiei o vestido dela.”
“Eles estão se pegando de novo?”
Essas são algumas coisas que escuto enquanto abro caminho para o
banheiro, tentando não desmaiar antes de chegar lá.
Essa coisa das quatro noites — não foi por isso que eu e Brooks Calloway
terminamos, aliás. Brooks nem sabe disso. Ou provavelmente sabe, porque
todo mundo parece saber mais sobre mim do que eu imagino. Brooks não
dá a mínima, nunca deu. A verdade nua e crua é que, secretamente,
implicitamente, eu e Calloway tínhamos um relacionamento em que os dois
saíam ganhando.
Eu era a porta de entrada dele para uma vida na qual ele não nasceu, e ele
era minha última defesa. Um disfarce excelente e uma artimanha frágil para
explicar por que eu e BJ não somos o que eu e BJ somos de fato. Uma
barreira atrás da qual eu podia me esconder quando ser apenas melhor
amiga do meu melhor amigo parasse momentaneamente de preencher o
vazio que amá-lo deixou em mim.
Eu me olho no espelho do banheiro, ajeito o cabelo atrás das orelhas e
mexo nas argolas Mizuki de ouro e pérola como um tique. Molho um
pedaço de papel-toalha e aperto no rosto, mais escuro do que de costume
depois de uns dias em Pentle Bay com Bê, e minha cabeça está a mil, porque
ele só passou três noites da semana passada longe de mim, e ainda assim
conseguiu arranjar tempo para uma modelo da Miu Miu? Onde eles se
conheceram? Eu estava lá quando isso aconteceu? Quantas vezes? E onde
transaram? Num hotel? Na casa dele? Qual casa? Não seria na dos pais, a
mãe o mataria. Na casa dele com o Jonah? Ela esteve lá depois de mim? Ele
trocou o lençol? A ideia de dormir na roupa de cama na qual BJ transou
deixa meus olhos marejados de um jeito que não entendo, mas já conheço
muito bem, porque acontece sempre. É isso que ele faz. Fica com outras
mulheres.
Por sinal, nós não estamos transando — apesar do que pode ter saído na
imprensa. Você não deve confiar em tudo que lê por aí, mas numa coisa
pode acreditar: um dia, BJ Ballentine foi o amor da minha vida.
Ele não é mais. E, por enquanto, isso é tudo o que você precisa saber.
— Tá tudo bem? — pergunta Paili, aparecendo atrás de mim no espelho.
— Hum? — Me viro. — Sim. Tranquilo.
Ela faz uma careta, sem acreditar.
— Tudo bem se não estiver, sabe.
— Eu sei — respondo e dou de ombros, despreocupada. — A gente
acabou de terminar… Leva um tempo para eu me acostumar…
— Estava falando da modelo da Miu Miu.
Eu franzo a testa.
— Como você sabe disso?
Ela abre um sorriso triste, cheio de pena.
— Perry? — diz.
Franzo ainda mais a testa.
— Como ele sabe?
Paili parece perdida.
— Seja lá quem for, ela não é nada perto de você…
Desvio o rosto e volto a olhar meu reflexo.
— Óbvio — digo, fazendo beicinho. — Eu praticamente tenho olhos de
diamante.
Paili reprime um sorriso.
— E eu não tô nem aí — continuo, balançando a cabeça.
Dá para ver que ela não acredita. Merda.
Tiro o batom coral perfeito da minha bolsa-carteira Alexander McQueen
de couro texturizado com fecho de caveira; o batom coral perfeito que deixa
minha pele ainda mais marrom e faz meus olhos se destacarem. Quando
permito, BJ Ballentine ama meus olhos.
Minha melhor amiga me olha, entendendo a situação, e a expressão dela
se suaviza. Ela parece triste por mim, e eu detesto que as pessoas fiquem
tristes por mim, mas ela é uma das pessoas que menos me irritam com isso.
Ela pega minha mão, me puxa para fora do banheiro, e a gente esbarra
imediatamente em BJ.
— Oi — diz ele, com um sorriso grande e esquisito.
Eu faço uma cara estranha.
— Oi?
Ele cruza os braços, bloqueando meu caminho como quem não quer
nada.
— Tá fazendo o quê?
Olho dele para Paili, confusa.
— Voltando para a mesa? — respondo.
Ele faz um biquinho.
— Não — diz, balançando a cabeça como se eu estivesse sendo boba. —
Não, não. Vamos voltar para o banheiro.
Ele começa a me empurrar para trás.
— O que você…? — começa Paili, mas para no meio. — Ah.
Ela para de andar. Vê algo que eu não vejo.
— É — concorda ela. — Banheiro.
BJ acena com a cabeça para mim.
— Você… viu… o novo… secador de mãos da Dyson que instalaram
nesses banheiros?
Ele assobia.
— Uau — concorda Paili, assentindo com entusiasmo.
— Vi — respondo, concordando com a cabeça, como se estivesse falando
com gente que perdeu o juízo. — Vi, sim. Acabei de ver, na real. — Olho
para ele com atenção. — Você também tem o mesmo secador na sua casa.
— Pois é — concorda ele. — É meio esquisito, né? Será que eu devia dar
um sumiço no meu?
— Assim, é melhor mesmo, se você não se incomodar, porque faz uma
barulheira e o Jonah tem uma bexiga minúscula… ele levanta umas quatro
vezes por noite e eu escuto até do outro lado da parede. Além do mais, eu
prefiro aquelas toalhinhas descartáveis tipo de pano, sabe, não de papel, mas
podemos continuar falando sobre isso na mesa, porque, agora que tocamos
no assunto, tem algumas outras coisas que eu adoraria mudar no seu
banheiro…
É então que vejo meu ex-namorado, com quem terminei na semana
passada, de mãos dadas com uma garota que nunca vi, sentado a poucas
mesas da nossa.
— Mas que merda é essa? — solto, muito mais alto do que pretendia.
Vou até ele antes de notar o que estou fazendo. Que nem uma mariposa
masoquista vai atrás do fogo. Brooks Calloway vira na minha direção, seus
olhos castanhos enormes, ridículos e tontos bem surpresos e arregalados.
— Tá fazendo o que aqui? — pergunto, as mãos na cintura.
— Hum — começa ele, olhando para mim e depois para a garota que o
acompanha. — Jantando?
Olho de relance para a garota.
— Oi, foi mal, Magnolia, prazer… — digo a ela antes de me voltar para
Brooks. — E que porra é essa? Você veio aqui com outra garota?
Ainda nem deu nos tabloides que a gente terminou, e ele já está em
público com outras garotas?
— Vim — confirma ele, endireitando os ombros.
— Caralho! — protesto, praticamente batendo os pés. — Que escroto.
Ele olha para trás de mim, na direção de BJ, que está bem perto. Avalia
Bê com o olhar e me encara por um bom tempo.
— É mesmo? — pergunta, semicerrando os olhos. — Oi, BJ.
BJ acena com a cabeça, dando um sorriso tenso. Nunca foi muito com a
cara dele, sendo honesta.
— Calloway.
— Hum — digo, voltando a olhar para ele, incrédula. — Licença, mas as
pessoas ainda acham que nós estamos juntos. E você aparece aqui com outra
garota.
— Beleza. Mas você também apareceu aqui com outro cara?
— Vim com vários caras — rebato.
— Que bonito — diz ele, mas não acho que esteja sendo sincero.
— Estou aqui com os meus amigos.
— Você está aqui com o Ballentine — devolve ele, com um olhar que me
faz pensar que talvez estivesse menos satisfeito do que eu imaginava com o
nosso acordo, e pigarreia. — Enfim. Essa é a Hailey…
— Ele faz as unhas, sabia? — aviso a ela.
Hailey olha para ele de relance, em dúvida.
— É uma manicure masculina — explica Calloway.
— Dá na mesma…
— Não dá! — interrompe ele. — É diferente.
Balanço a cabeça.
— Lixa, corta…
— E completa com base transparente — diz Calloway, dando de ombros
inocentemente.
— Por que precisa completar com a base? — pergunto, o olhar afiado.
— Minhas unhas são frágeis.
— Aaaah — digo, fingindo estar impressionada. — Que sexy.
Ele revira os olhos.
— Hailey e eu já estamos juntos faz uns três ou quatro meses.
Eu o olho por alguns instantes.
— Mas a gente namorou cinco meses.
Calloway confirma com a cabeça, animado.
— Fala sério, cara — diz BJ em reprovação.
É então que Calloway se levanta de um pulo, quase como se estivesse
esperando por isso.
— E aí, você hoje é o quê, o cachorrinho ou o namorado dela?
BJ passa um pouco para a minha frente e abre um sorriso tenso.
— Sou o que ela precisar que eu seja.
— Ah — diz Brooks, com um gesto seco. — Então é o pau-mandado.
BJ recua a cabeça, surpreso.
— Quer resolver isso lá fora?
Bê dá um passo adiante, e Brooks fica nitidamente nervoso. Já não é uma
boa estar do outro lado de uma briga com BJ, muito menos se for por minha
causa. Jonah diz que ele não pensa direito quando eu estou envolvida. Levo a
mão ao peito de BJ, tentando afastá-lo levemente, mas ele grita com Brooks
por cima da minha cabeça:
— Vem tentar, seu merda!
— Ô! — digo, balançando a cabeça para os dois, atenta ao ambiente,
vendo que as pessoas estão começando a pegar o celular.
Honestamente, não sei bem qual é o plano de Calloway. Ele parece ter
perdido o juízo.
— Vem falar isso na minha cara! — grita para Bê, e sua postura de briga
me lembra o Leão Covarde de O Mágico de Oz.
O coitado do Brooks é meio engomadinho, e, apesar de não estar
literalmente erguendo os punhos e dizendo “vambora!”, é como se estivesse.
Enquanto isso, Baxter James Ballentine poderia ser descrito como algo entre
um jogador de rúgbi e um dos Vingadores — não consigo imaginar por que
Brooks tentaria entrar numa briga com ele e, de qualquer forma, fico
incomodada. Incomodada com a possibilidade de BJ dar um soco em
alguém por minha causa. De novo. Incomodada com as manchetes do dia
seguinte. De novo. Incomodada com o que vão falar sobre nós, sobre mim.
Às vezes não são nada gentis comigo.
— Eu falei na porra da sua cara, seu brocha — grita BJ, e vejo flashes de
câmera e os garçons, nervosos, por perto.
— Meu pau é duraço, e sabe quem adorava? — rebate Calloway,
arrogante, me deixando boquiaberta.
Aponto um dedo para ele.
— Nem se atreva…
BJ faz uma cara nada boa. Sei que não é boa porque, de repente, os outros
garotos estão nos cercando.
Já vejo as manchetes: “Ballentine é preso no Dorchester”, “Parks
enlouquece os homens!”, “Magnolia Parks adora um brocha” (essa vai ser no
The Sun). Brooks nunca aparece nos tabloides sem mim. Será que é por isso
que está agindo dessa maneira? Ele gosta de estar nos tabloides.
Bê olha diretamente para Brooks, o desafiando a terminar a frase. Fica
um silêncio. Por um segundo, tenho a esperança de Calloway ter o bom
senso de voltar atrás…
— Ela — completa e aponta para mim.
— Mentira! — anuncio em voz alta, para todo mundo, porque parece ser
isso o mais importante a ser corrigido. — Não é verdade! Quer dizer…
assim, desculpa, mas, para ser sincera, sempre achei meio decepcionante.
Olho para a nova namorada dele como quem diz “sinto muito”.
— Eu já vi — revela ela.
— Imagino. Meus pêsames.
— Ei! — diz Brooks, franzindo a testa.
Eu o ignoro e me viro para BJ. Ele está de maxilar retesado e mãos
fechadas, pronto para cair na porrada por minha causa a qualquer
momento.
— Vamos — digo, mas ele nem se mexe.
Bê continua olhando para Calloway, então eu seguro o rosto dele entre as
mãos e o viro para mim, ignorando os flashes que pipocam ao nosso redor,
e, por um segundo, nem estou me importando se o Daily Mail vai publicar
uma matéria sobre a gente, porque é tudo besteira. Tudo. Aí, todo mundo
some. Eu só enxergo ele.
Tento fazer BJ olhar nos meus olhos. Quando consigo, sua expressão se
suaviza.
— Me leva pra casa, Bê — digo, com uma cara que ele não vai poder
ignorar. — Jack tem uma bomba para desarmar.
Ele pega minha mão e a beija.
— Foda-se o David Palmer. Jack Bauer para presidente.
DOIS

BJ

Meu pai vai surtar. A reputação é tudo para um homem, segundo ele. E meu
pai pode falar isso, porque a dele é boa. Não sei qual é a minha reputação
hoje em dia, mas meu pai com certeza não se gabaria dela.
“Outra briga, BJ?”, ele diria.
Eu ficaria em silêncio e reviraria os olhos.
“Quantas brigas você precisa comprar antes de entender que já é tarde
demais? Que perdeu a Magnolia faz muito tempo?” É isso que ele vai me
dizer amanhã de manhã.
Provavelmente por mensagem de voz, porque não vou dormir em casa
hoje.
Não sei como ele sabe que eu perdi a Magnolia, e que não foi ela quem
me perdeu — mas está certo. Ele não sabe que está certo, só supõe estar, o
que me irrita pra caralho, porque a verdade é que ele está mesmo. Mas já me
acostumei. Estou acostumado com ele estar certo, e também com as longas
mensagens de voz recheadas de conselhos que eu não pedi e que não
adiantam nada, mas que ele manda mesmo assim. Acho que o sonho dele
devia ser que eu fosse diferente. Que eu fosse melhor, uma porra qualquer
dessas. Parks diz que não é bem assim, que meus pais me amam muito. E
amam mesmo, mas isso não quer dizer que meu pai não sonhe que eu me
torne um homem melhor.
Porra… até eu queria ser um homem melhor.
A mensagem que ele vai deixar para mim é o que ele sempre fala depois
de toda briga em que eu entro por causa dela. É sempre por ela. A parada é
essa — não só porque eu amo essa mulher e porque ela é quem é, mas
porque ela é da família. São todos da família. O internato faz isso — nos
obriga a formar a nossa própria família —, e, quer eu a ame ou não, ela faz
parte da minha.
E quer saber? De todos os motivos toscos para eu me meter em brigas ao
longo dos anos, o ex brocha da Parks anunciar em público no Dorchester
que ela amava o pau dele parece ser um dos melhores.
Tecnicamente eu nem briguei, mas as revistas de fofoca estão pouco se
lixando para isso. Vão publicar de qualquer jeito que eu briguei.
Parks disse que vai ligar para Richard Dennen de manhã para conter o
que poderia sair na Tatler.
O carro para na frente da casa dela em Holland Park.
“Uma casinha modesta de dez quartos em Holland Park”, ouvi ela
explicar para alguém na semana passada. “Tem uma piscina interna, mas
não externa, o que é uma pena, mas a gente se vira”, declarou, solene, à
vendedora, que não tinha perguntado nada. Atravessamos a porta preta e
pesada contra a qual a beijei um milhão de vezes, e não consigo conter o
efeito que essa casa tem em mim. Eu a amei em cada canto. Eu a despi em
cada cômodo. A casa me derrete todo. Nostalgia elevada à milésima
potência toda vez que entro nesse hall — memórias preciosas de vê-la descer
a escadaria curva de mármore, o coração na boca, ela nas minhas mãos…
Amar alguém como eu amo a Parks fode a nossa cabeça. Fazer merda que
nem eu fiz também.
Ela fecha a porta com cuidado, bem devagar, levando o dedo à boca para
me mandar ficar quieto.
— Por que esse silêncio? — cochicho para ela, mais perto do seu ouvido
do que é necessário, mas exatamente como eu quero.
— Porque, se a gente acordar a Marsaili, ela vai gritar comigo por trazer
você pra casa…
— Ah.
Faço que sim, como se não fosse um soco no estômago o fato do adulto
mais importante na vida de Parks me achar um lixo. Marsaili MacCailin é de
colocar medo em qualquer um. É a babá dela, cuidadora, responsável — ela
sempre foi tudo para Parks. Está presente desde o primeiro dia e, até onde eu
sei, pode tê-la tirado direto do útero da mãe. Aparece em todas as fotos da
família, a mãe que os pais de Parks não foram. Ruiva, de mais ou menos um
metro e meio, bonitinha, mas sempre carrancuda — pelo menos comigo. Ela
um dia foi a minha maior fã, mas agora provavelmente acende uma vela
para limpar o ambiente sempre que eu vou embora.
— E também porque, se minha mãe aparecer, provavelmente vai tentar
montar em você, sei lá.
Parks revira os olhos, e eu sorrio. Principalmente porque é piada, e um
pouco porque não é.
Arrie Parks, essa grande designer de bolsas, não é uma mãe comum.
Superdivertida, superdescontraída, sempre achou fofo quando me via
com a mão por baixo da saia da filha, nunca se irritou quando nos pegava
com contrabando na adolescência (às vezes até vinha se juntar a nós). A
maior qualidade dela, na minha opinião, é ainda ser minha maior fã apesar
das minhas transgressões.
— Cadê seu pai? — pergunto, olhando ao redor.
Gosto da sensação de estar sozinho com ela nessa casa.
Parece que voltamos a ser adolescentes, entrando de fininho depois de ter
saído de fininho.
— Atlanta — diz ela, dando de ombros. — Volta amanhã.
O pai dela… você sabe quem é. Harley Parks? O produtor? Treze
Grammys nos últimos vinte anos, e indicado mais umas trinta e cinco vezes.
Porra, o cara é uma lenda. Meio assustador.
Sabe como é namorar a filha de um cara negro enorme e fortão que é
amigo do 50 Cent? É uma tensão do cacete, cara.
Passei a festa de aniversário de dezessete anos dela suando em bicas de
tanto nervoso porque tenho quase certeza de que o pai dela mandou o
Kendrick Lamar e o Travis Scott ficarem de olho em mim. Parks estava
tentando me apalpar sempre que dava, porque ela fica toda saidinha depois
de tomar umas, e eu tinha que ficar afastando ela, então ela se emputeceu
comigo e eles acharam graça — foi uma confusão só.
Para ser sincero, fico feliz de o pai dela não estar aqui — se Parks e eu
estivéssemos nos pegando, eu transaria com ela na cama dele só de afronta,
mas não estamos, então vou só dormir na cama dela, que nem já faço quase
toda noite.
Ainda é uma certa afronta, imagino.
Quando chegamos ao quarto, eu tiro a camisa e vou direto para o
banheiro. Ela é toda paranoica com os lençóis. Não pode deitar na cama sem
tomar banho.
Sabe como essa regra é uma merda quando a gente tá bêbado? É chato
pra caralho. Já devemos ter discutido um milhão de vezes por causa disso, e
eu perdi absolutamente todas as discussões.
Ela entra no banheiro enquanto estou no chuveiro. Pega a escova de
dentes e dá meia-volta, descalça, me olhando. Só o meu peito, porque, da
cintura para baixo, fico escondido pela muretinha de ladrilho escrota que
todo dia eu queria que não existisse. Sei o que você está pensando: que porra
é essa? É estranho. Sei que somos estranhos.
Mas eu sou apaixonado por ela. E esse é o único jeito de Parks me deixar
ficar com ela, então, foda-se, vai assim mesmo.
— Quer entrar aqui comigo? — pergunto, só de provocação.
— BJ — resmunga ela, mas é inútil.
Ela revira os olhos, fingindo irritação, mas fica corada. Vira, se olha no
espelho, mexe no rosto que não precisa de mexida.
— Posso pelo menos ficar assistindo enquanto você toma banho?
Ela franze a testa.
— De jeito nenhum.
Eu inclino a cabeça.
— Meio hipócrita da sua parte.
Parks fica toda derretida com uma inclinadinha de cabeça. Ela engole em
seco, e eu odeio isso. Odeio o que nós somos. Odeio não poder
simplesmente ir em sua direção, beijá-la e arrastá-la comigo para o banho.
Odeio essa caixinha na qual ela me enfiou, odeio esse muro que ela
construiu para se proteger. Odeio esse esqueleto de relacionamento, mas é o
que sobrou. E é a melhor parte do meu dia.
— Me passa uma toalha — digo, saindo do chuveiro.
Ela cobre os olhos com as mãos, mas está tentando conter um sorriso.
— Nossa senhora.
— Não é? — suspiro, orgulhoso, só para provocá-la.
— BJ! — exclama ela, o rosto corado exatamente como ficava logo antes
da gente... você sabe.
Ela sacode a mão sem olhar, ao mesmo tempo me passando a toalha e
tentando me bater.
— Cuidado com essas mãos, Parks.
Ainda de olhos fechados, ela me empurra para fora do banheiro,
descendo as mãos pelo meu corpo. Nós dois sabemos que é de propósito,
mas ela juraria de pés juntos que foi sem querer. Em outra vida, eu largaria a
toalha, pegaria ela pela cintura, a beijaria até não poder mais e a carregaria
até a cama, mas, nessa vida, ela bate a porta na minha cara.
Visto a calça de moletom que Parks comprou para mim essa semana e
guardou na gaveta que ela diria a você que não é “minha gaveta”, mas é, sim,
minha gaveta, e nós dois sabemos. Sento no lado dela da cama, para ela
fingir irritação ao sair do banho e precisar me tocar de novo para me
empurrar para o meu lado, porque sou viciado nas mãos dela.
Ela sai dez minutos depois, com uma camisola de seda rosa-claro La
Perla. Sei que é de lá porque fui eu que comprei. Não é sexy. Não tem renda
nem nada. Ela acabaria comigo se eu comprasse lingerie sexy para ela. Na
verdade, comprei esse ano, no Valentine’s Day. Valia a pena, porque meu
aniversário cai nesse dia. Falei para Parks que era um presente para nós dois
e que ela devia me fazer aquele favor. Ela jogou o presente na minha cabeça.
Mesmo assim, usou no dia seguinte. Não que ela tenha me contado isso, mas
usou por cima uma blusa fininha e transparente para o brunch, no dia 15 de
fevereiro mais frio de Londres em uma década.
Acontece bem como eu imaginei.
Ela faz cara de irritada… vem andando e me empurra com toda a força,
que é quase nenhuma. Eu rio, ela empurra ainda mais forte, e eu a puxo para
cima de mim. Por alguns segundos, ela fica ali deitada, fingindo me
empurrar para o meu lado, mas, na verdade, estamos só tentando nos
abraçar das maneiras que nos restam, e dura três, quatro, cinco, seis... seis
segundos antes que ela arregale os olhos, lembrando como eu a magoei há
uns anos. Ela rola para sair de cima de mim, fazendo um biquinho que não é
justo quando não posso beijá-la para melhorar.
— Tudo bem? — pergunto, olhando para ela.
Ela me olha de volta, e as engrenagens na minha cabeça giram em busca
de um jeito de fazer ela se sentir melhor, mas não dá. Preciso de uma
máquina do tempo.
Ela me olha, pressionando o dedo na tatuagem no meu polegar. É um
lacinho amarrado. Comprei para ela um colar da Tiffany’s com um pingente
igual no nosso aniversário de um mês de namoro — uma celebração ridícula
que nem existe pra valer, mas acho que existe quando, aos quinze anos, se
conquista a garota dos sonhos. Enfim, ela amou o presente. Perdeu depois
de uns dois anos, e o colar tinha saído de linha. Essa foi a primeira tatuagem
que fiz por ela.
E são todas por ela — exceto por…
— Essa é nova.
Ela aponta para uma tatuagem pequena que eu fiz há uns dois dias no
peito. Uma baleia. Por causa da história de Jonas. Jonah achou engraçado.
Tanto faz… é do tamanho de uma moedinha.
Faço uma careta.
— Perdi uma aposta com o Jo.
Ela me olha meio irritada, soltando um murmúrio de frustração.
— O que foi?
— Nada — diz, empinando o nariz. — Só acho que você não se preocupa
com o seu corpo.
Ela dá de ombros, como se não ligasse, mas sei que liga.
— Você não pensou isso das outras 22.
— É porque são todas por mi…
Ela se segura antes de completar a frase, abrindo um sorriso tenso.
São todas referências mitológicas e profundas ao nosso relacionamento,
símbolos e coisas que ela reconhece e eu reconheço, mas ninguém mais
sabe, e eu adoro ter marcas dela em mim. Ela costumava me marcar de
outros jeitos antes, porém não mais. Ela fecha a boca bem apertado, se
recompõe e pigarreia.
— É porque as outras 22 tem a ver com alguém que se preocupa com o
seu corpo.
Reviro os olhos. Não só para ela, mas para nós, para a merda que estamos
fazendo da vida.
— É por isso que faz três anos que eu fico morrendo de tesão?
— BJ… — diz ela, me olhando, incrédula. — Você literalmente transa
mais do que qualquer pessoa que eu conheço. Se ainda continua com tesão,
então é melhor procurar um médico.
Aí eu começo a rir, e ela começa a rir, mesmo que não tenha graça,
porque ela odeia isso, então eu odeio isso, mas ela namora e eu transo e é
isso que a gente faz, então a gente ri.
A porta do quarto se abre, e a irmã dela aparece no batente.
— Olha eles, o casal mais transtornado de Londres.
Bridget Parks sorri para nós dois, cruzando os braços. Ela é dois anos
mais nova do que Parks, tem olhos castanhos e cabelo cacheado, e é mais
bonita do que acha, mas não se importa. Bridge é a melhor amiga da minha
irmã mais nova.
— Fridget — diz Parks, cumprimentando-a com a cabeça e se
endireitando. — Como foi mais uma noite emocionante de estudos?
— Adoro como você faz a faculdade parecer uma coisa ruim — rebate
Bridget, retribuindo o desdém.
— Eu também fiz faculdade — responde Parks, de nariz empinado.
— Você é bacharel em artes — retruca Bridge, com desprezo. — Todo
mundo sabe que isso é só o nome oficial para “não sabe o que faz da vida”. E
que você pagou uma boa grana pra Imperial College oficializar isso no
papel.
— Pode ser — digo, semicerrando os olhos —, mas ela entrou pra
Imperial College…
A irmã mais nova revira os olhos.
— Até parece que o papai não comprou a vaga dela…
— A faculdade precisava de um prédio novo — argumenta Parks, dando
de ombros, sem se incomodar com a acusação. — É o ciclo da vida.
Bridge a encara.
— Será que é?
Eu bufo, rindo.
— Mas fala, então, Bridget, como é não ter nada pra fazer além de
faculdade, artigos e trabalhos acadêmicos? — pergunta Parks, e se vira para
mim. — Não é deprimente? Você não acha isso deprimente?
Eu suspiro.
— Não me mete nisso.
— E vocês estão nessa… — diz Bridge, apontando para a cama — … de
novo? Preciso dar aquele sermão?
— Você não tem moral para dar esse sermão, Fridget…
— Eu transo — resmunga Bridge.
— Com quem?
— Com pessoas.
— Pessoas? — repete Parks, piscando os olhos de maneira exagerada, em
zombaria. — No plural? Jura? — Ela me olha. — Você acredita numa coisa
dessas?
— E quem é você pra falar de plural? — retruca Bridget. — A única
pessoa com quem você já transou foi ele.
Parks fica corada.
— De penetração, talvez, mas…
— Ah, puta que pariu — reclamo.
É assim que elas são. Desde pequenas.
E não há ninguém no mundo que Parks ame mais do que a irmã, exceto,
talvez, eu.
— Bê — diz Bridge, fazendo um sinal com a cabeça na minha direção. —
Mais uma vez sem camisa. — Ela dá uma piscadela forçada. — Valeu
mesmo.
— Você piscou pra ele? — pergunta Magnolia, sabendo perfeitamente
que sim. — Ou sua lente de contato tá com defeito?
— Ô, Bê — continua Bridget, ignorando a irmã. — Pode fazer um favor
pra todo mundo e fazer essa garota aí ter um orgasmo e deixar de ser
escrota?
— Você não sabe como eu estou tentando, Bridge — digo, sorrindo.
Magnolia me bate com seu braço comprido e magrelo, e sei que dói mais
nela do que em mim. Bridget revira os olhos e vai embora, fechando a porta.
Olho para Parks e ela retribui, e acontece de novo a mesma coisa de todas as
noites. Nós nos encaramos. Meus olhos quase tão arregalados quanto os
dela, nós dois congelados no que fomos um dia enquanto tudo o que já
fizemos nesse quarto flutua e dança ao nosso redor, como fantasmas de
outra era.
Alguma pessoa já te lançou um olhar que carrega tudo o que você fez
para magoá-la? É intenso pra caralho. Mas, quer saber, ela também me
magoou.
Ela bate palmas duas vezes. As luzes se apagam e ela me olha por mais
alguns segundos no escuro. Eu amo vê-la nas sombras. Na verdade, foda-se
— eu amo vê-la em todos os espectros da luz, até no breu.
Ela se enfia debaixo da coberta, deixando apenas a cabeça de fora. Nós
dois ficamos virados para o teto. Sua respiração é silenciosa. Parks tem
alguns tipos de silêncio diferentes. O silêncio pensativo, o silêncio cansado,
o silêncio seguro.
Esse silêncio é pesado, meio irritado. Mas ela vive meio irritada comigo.
Tudo bem, sério. Eu entendo. Eu me odeio pelo que fiz cem por cento do
tempo, não é uma merda dessas “que vai e vem”, é constante. Só me esforço
para abafar.
Ela abafa melhor do que qualquer coisa. Até respirando em silêncio.
É aí que faço a nossa pergunta.
— Como tá o tempo aí, Parks?
Ela me olha, e vejo que tenta reprimir um sorriso.
— Até ameno — diz e se aproxima de mim. — Como tá o tempo aí, Bê?
Eu me viro de lado, de frente para ela.
— Céu limpo.
TRÊS

Magnolia

Eu acordo antes de BJ quase todo dia, desde que a gente era pequeno.
Eu conheço ele faz todo esse tempo. Desde que éramos pequenininhos.
Henry e eu fomos colocados na mesma turma no primeiro ano na
Dwerryhouse Prep e estudamos juntos até mudarmos para a Varley no
sétimo ano.
Não me lembro muito de BJ antes do ensino médio, só que ele estava
sempre por ali.
Uma vez, quando éramos crianças — acho que eu devia ter uns sete anos
—, nossas famílias dividiram um iate enorme em Capri. Quando
ancoramos, os pais foram para um barzinho na orla, e nós, crianças, ficamos
brincando na praia, até que eu caí do quebra-mar. Me machuquei toda por
causa das cracas. Teve muito sangue. É uma das minhas únicas lembranças
realmente vívidas de Bê antes da adolescência — ele mergulhou e me puxou
para a superfície. Era mais loiro na época. “Te peguei”, falou, me puxando
para fora da água, e me carregou até a orla. Tive que levar uns 22 pontos.
BJ foi comigo para o hospital. Não sei o motivo. Séculos depois, ele me
disse que já era apaixonado por mim, mas, na época, eu não dava muita
atenção a ele, porque era só o irmão mais velho do Henry, e eu tinha a maior
queda pelo Christian. Isso provavelmente é uma questão meio sensível para
todos nós hoje em dia.
Enfim, Henry, Paili, Christian e eu éramos da mesma turma, estávamos
sempre nós quatro juntos. Nunca andávamos com os irmãos deles; a
diferença de idade parecia grande demais na época. BJ e eu nos beijamos
uma vez quando eu tinha treze anos. Brincando de verdade ou
consequência. Foi numa festinha na casa dos Hemmes, e o beijo foi bom,
mas, ainda assim, para mim ele era só o irmão mais velho do meu melhor
amigo.
Contudo, quanto mais o tempo passava, mais difícil ficava ignorar Baxter
James Ballentine. Aos quinze anos, ele era um dos caras mais populares da
escola. Não o melhor aluno da turma, mas um jogador de rúgbi renomado
no circuito escolar (tão bom que foi convocado para jogar em dois times
profissionais depois da formatura, até que arrebentou de vez um tendão no
joelho durante um treino). Ele era federado em natação, jogava hóquei e
também era meio-campo de futebol, mas não era apenas por isso que atraía
olhares. BJ era conhecido pelo cabelo castanho-claro desgrenhado que
emanava sex appeal adolescente e pelo sorrisinho torto que faria até as
professoras ficarem tentadas se não corressem o risco de perder o emprego.
Lembra como na escola as coisas mais atraentes do mundo são cabelo
desgrenhado, ombros largos e skate?
Ele tinha os três.
Além do mais, tinha olhos sedutores, como se pudesse despir qualquer
uma só de olhar — e sei que parece meio errado, mas é só porque ele nunca
fez isso com você. Se tivesse feito, você saberia como é a sensação e passaria
a vida desejando que ele te olhasse dessa maneira de novo.
Não tinha como não saber quem BJ Ballentine era em Varley.
Não tinha como não saber quem ele era em Londres.
Foi na primeira semana de volta às aulas, depois das férias de verão — os
Ballentine nos levaram todos às ilhas Canárias para passar algumas
semanas, porque Lily sempre dizia que, depois de três filhos, ela já perde a
conta, e mais seis não fazem diferença. Eu tinha catorze anos, e foi nessas
férias que parei de gostar de Christian e comecei a gostar de BJ. Me
perguntei se ele talvez gostasse de mim também, mas, naquela época, ele já
era BJ Ballentine, e provavelmente não passava de um sonho meu.
Eu estava com Paili perto do meu armário na escola, quando ele veio
andando direto até mim e apoiou a mão no armário, me encurralando, que
nem o bad boy clássico de qualquer filme adolescente. Só que ele não era um
bad boy. Podia até querer acreditar que fosse, mas não era. Ele nunca
esqueceu o aniversário da mãe e levava flores para ela toda vez que voltava
para casa da escola nos fins de semana. O filme preferido dele é Mary
Poppins, e ela foi também sua primeira paixonite. Eu fui a segunda.
Já naquela época, os ombros dele eram tão largos e fortes que a simples
silhueta dele já passava a impressão de um bad boy, mas era tudo pose.
Quando o avô morreu, ele começou a levar a avó para passear toda semana.
E ainda leva.
Além de Henry, ele tem três irmãs, duas delas mais novas, e Bê era
megaprotetor com elas. Nem Allison nem Madeline tiveram namorados na
escola, porque ninguém queria se meter com os garotos Ballentine.
Ele passou a mão pelo cabelo e me olhou, com uma confiança estranha,
nova. Como se tivesse acordado naquele dia e percebido que era o garoto
mais gato do mundo.
— Oi, Parks — disse ele, acenando com a cabeça daquele jeito descolado.
— Oi — respondi, sustentando seu olhar, porque era o que as revistas
femininas ensinavam.
— Quero levar você pra sair — declarou ele.
— Ah.
Foi só isso que falei. Pestanejei algumas vezes.
— Por quê? — perguntei.
Ele riu, todo calmo e despreocupado, e acho que, se a gente pudesse
espiar os bastidores do céu naquele momento, teríamos visto as velhas
moiras darem um nó nos nossos fios, o meu e o de Bê, de um jeito puro,
ensolarado, inexorável, eterno. Falei nó, não laço. Porque não sei se dá para
desatar. Não é fácil, pelo menos.
— Posso? — insistiu ele. — Esse fim de semana?
Franzi os lábios.
— Não.
Paili me olhou como se eu tivesse perdido o juízo, e a expressão dele
murchou. Eu balancei a cabeça.
— É a festa de aniversário de casamento dos meus avós, no Four Seasons.
Tenho que ir. Minha vó disse que vai tirar o meu celular se eu não for…
— Ah, cacete — disse ele, rindo. — Eu também tenho que ir nesse evento.
Com os meus pais.
— Ah — falei, corando.
— Então vamos juntos?
Concordei timidamente com a cabeça, mas achei importante ressaltar:
— Mas vai ser bem chato, tá?
Ele abriu um sorriso, os olhos cintilando e prometendo encrenca.
— Vou fazer ser bem legal.
O que ele fez, por sinal. Ser bem legal. Ele faz isso com tudo.
Fomos à festa, e nossas famílias ficaram nas nuvens de nos ver juntos.
Que sonho, a união de nossas famílias perfeitas. Escrito nas estrelas,
imaginem o casamento, a coisa toda! Era uma pressão estranha para o
primeiro encontro entre dois adolescentes que não são aristocratas sauditas.
Juro que ouvi minha mãe falar de “prometidos” várias vezes, mas nem me
abalei, porque só conseguia pensar no instante em que ele me olhou quando
eu desci a escada de mármore.
Ele engoliu em seco. Desceu o olhar pelo meu corpo que nem faz hoje em
dia — mas hoje é pior, porque ele já me viu pelada.
— Uau — falou e sorriu, tímido, olhando para o chão.
Naquela noite, à mesa na Trinity Square, enquanto meu tio Tim fazia um
discurso embriagado sobre meus avós (“A Linus e Annora, meus amigosss e
sogrosss, uma inspiração para todosss”), achei que BJ estivesse sendo fofo,
mexendo na minha mão, até que notei que ele estava aos poucos enchendo
meu colo de pão. Não consegui parar de rir, e ele me pareceu a melhor
pessoa do mundo. Como se eu tivesse encontrado um segredo só meu.
Lembro que tocaram “I’ll Be Seeing You”, da Billie Holiday, e meu avô se
levantou e convidou minha avó para dançar. Depois de um tempinho, BJ me
ofereceu a mão, e, ao me levantar, deixei cair um milhão de pedacinhos de
pão. Ele começou a rir, pegou minha mão e me puxou para perto — eu amo
quando ele me puxa para perto —, dançando daquele jeito que todo garoto
que nasceu rico sabe dançar, porque crescem indo a bailes e casamentos da
realeza. Naquela noite, ele valsou com meu coração até sair do peito.
Normalmente, quando acordo cedo, digo a BJ que é para meditar sobre as
coisas mais bonitas da vida, mas, na verdade, eu só observo ele. Ele é uma
coisa bonita da vida, eu diria. Coisas que doem ainda podem ser bonitas,
caso você não saiba.
A postura dele dormindo hoje, com a cabeça jogada para trás, o pescoço
esticado e exposto, o maxilar para a frente… afasto da cabeça tudo o que eu
faria com ele se estivéssemos juntos, porque não estamos. Ele pisca até
acordar e me olha por alguns segundos.
— No que você estava pensando?
— Billie.
Ele esfrega o olho, cansado, e abre um sorrisinho.
— Eu adoro ela.
Paira no ar. O verdadeiro assunto de que estamos tratando.
— Eu também.
Bê veste a calça de moletom azul-marinho, listrada, de perna estreita e
detalhe em gorgorão da Thom Browne — uma calça diferente da que ele
usou para dormir, mas não dê muita bola para isso; não é que como se ele
tivesse mil roupas aqui, só uma gaveta. Ou duas. Ou três. Nem são
realmente dele as gavetas, são gavetas minhas que, por conveniência,
permito que ele use para guardar alguns objetos. Calças de moletom,
camisetas, cuecas, essas coisas, além do perfume Ombre Leather do Tom
Ford, que eu com certeza nunca passo no travesseiro nas noites em que ele
não dorme aqui. E acho que vale comentar que também guardo um cacareco
ou outro numa dessas gavetas, então elas mal são dele. Enfim, ele veste uma
camiseta, e eu, um robe, e descemos para tomar café.
Minha família está à mesa na sala de jantar e nos olha.
— BJ — diz meu pai, com um breve aceno de cabeça, enquanto toma seu
açaí.
— BJ — diz minha mãe, sorrindo, como se não fosse o sétimo dia
seguido em que ela toma café da manhã com ele.
— BJ — diz Marsaili, num tom muito diferente. Mars não é muito de
perdoar.
Eu me sento, irritada.
— Vocês não me viram, não?
Minha irmã abre um sorriso sarcástico.
— Muito pelo contrário... estamos vendo até demais de você. Que roupa é
essa? É lingerie?
— Não, Bridget. Isso seria extremamente inadequado.
Bridget aponta para BJ.
— E isso aí é…
— É uma roupa bem bonita, na verdade, Bridge… — diz Bê, e eu me
sinto satisfeita, mas Mars parece irritada.
Meu pai olha para BJ, fingindo ficar bravo com o comentário.
Isso assustava BJ quando éramos mais novos, mas hoje ele é o auge da
arrogância, então apenas sorri. Meu pai gosta dele. Às vezes finge que não
gosta. Imagino que seja porque, como pai, sente que deveria fingir que não
gosta do homem que leva a filha dele para a cama… mas o BJ não me leva
para a cama. Mesmo que, tecnicamente, leve. E meu pai quase não é um pai,
apesar de ser o meu.
— Harley — digo, com um sorriso seco para ele. — Como foi a viagem?
— Magnolia. — Ele suspira. — Já pedi milhões de vezes para você me
chamar de pai.
— E eu já pedi milhões de vezes para você agir que nem um pai, mas aqui
estamos.
Abro um grande sorriso, e BJ me chuta por baixo da mesa, com uma cara
de quem pede que eu não arranje briga.
— Magnolia — diz Marsaili, me lançando um olhar sério.
Meu pai se ajeita na cadeira, irritado.
— Foi boa a viagem.
— Com quem você foi trabalhar?
Meu pai pega meio maracujá.
— Chance.
— Chance quem? — pergunta Bridget, completamente ignorante.
— O carteiro — respondo, revirando os olhos. — O rapper, sua idiota.
— Sem grosseria — rebate Mars, revirando os olhos também.
Marsaili é a única adulta responsável que conheço. É uma mulher
pequena, escocesa, e uma vez ganhou de Jonah na queda de braço. Também
é do tipo fiel escudeira e agressivamente maternal, o que se mostrou útil ao
longo dos anos, visto que, como família, nos faltou uma presença mais ativa,
tanto materna quanto paterna. Os dois receberiam nota baixa se dependesse
de mim, e olha que eu tento.
Minha mãe se mandava para passar um final de semana fora com a
Fergie (a aristocrata, não a dos Black Eyed Peas) e às vezes acabava levando
uma semana pra voltar. Já meu pai provavelmente perdeu vários momentos
importantes da minha vida porque estava com os Black Eyed Peas.
Bushka entra, arrastando os pés, e larga uma tigela de borche bem na
minha frente.
— Licença? — digo, olhando para ela como se ela tivesse enlouquecido.
— Esse robe é de cetim com plumas e custou duas mil libras.
Minha avó, imigrante russa. Já deve ter uns cinquenta mil anos e subsiste
à base de caviar e legumes em conserva. Minha mãe a trouxe para uma visita
após ter se casado com meu pai, e ela se recusou a ir embora, não sei por
quê.
Meu tio Alexey é muito mais atencioso com ela do que minha mãe jamais
foi. Ele e a família têm um quarto para ela na casa de Ostozhenka. A casa é
bonita, parte do Noble Row, com vista para o Kremlin e a Catedral de Cristo
Salvador, mas ela insiste em ficar aqui com a gente. Ela se recusa a ir para
um lar de idosos (ou para a reabilitação), e Marsaili precisa carregar ela para
um bando de atividades para idosos todo dia, porque ela não pode estar em
casa durante o horário comercial, senão fica tentando se meter nas reuniões
do meu pai — ela jura de pés juntos que tem um dedinho naquele hit do
One Direction.
— Faz bem pra você — diz minha avó, apontando para o prato e se
sentando ao meu lado.
— É um nojo e um perigo total.
Ela me olha, irritada.
— É vergonha de ser Rússia?
— Não tenho vergonha de ser russa — digo, com um tapinha na mão
dela. — Eu não sou russa. Você é russa. Eu nasci em Kensington.
Olho para minha mãe em busca de ajuda, mas ela está distraída —
secando BJ. Não a culpo. Aquela boca ridícula dele está ainda mais
chamativa hoje, toda cheia, como se tivesse sido beijada a noite inteira, mas
não foi, ela simplesmente é desse jeito. Eu mordo um morango com força.
Ele me nota e reprime um sorriso.
— Tudo bem aí, Parks?
Eu o ignoro.
— É nosso legado — diz Bushka, empurrando o prato perigosamente
perto de mim.
— Caldo frio de bife e beterraba é nosso legado? — comenta Bridget.
Meu pai segue olhando para o celular, mas faz uma careta.
Bushka assente, convicta.
— E o ingrediente especial — completa, com uma piscadela.
— É vodca — anuncia Marsaili. — Caso alguém ainda tenha dúvidas.
— Ah, legal — diz Bê, então pega o prato e cheira o caldo. — Que nem
um Bloody Mary russo?
Ele toma um pouco e sorri para Bushka, levantando um polegar. Quando
ela desvia o rosto, satisfeita, ele engasga em silêncio.
(— É o bife — sussurra, rouco.)
— Então — diz Marsaili, e pigarreia. — Vocês saíram no jornal hoje.
— Aaah — cantarolo. — Eu saí bonita?
Bridget revira os olhos.
— Porque é isso que importa…
— Muito elegante, meu bem — responde minha mãe, confirmando com
a cabeça. — O decote está fenomenal. Use apenas tomara que caia nesta
semana.
Estalo os dedos em concordância.
— Magra demais. Coma borche — exige Bushka.
— “O casal vaivém Magnolia Parks e BJ Ballentine causou uma cena e
tanto ontem à noite no Dorchester, quando encontrou um dos muitos ex-
amantes de Parks, não identificado…”
— Quantos são muitos? — pergunta meu pai, sem sair do celular.
— Vários — diz Bridget, sem ajudar em nada.
— Tá escrito “não identificado” mesmo? — pergunto, puxando o jornal,
exultante. — Brooks vai morrer com isso.
Mars me ignora e continua a ler:
— “Ballentine, enciumado, parecia pronto para uma briga e tanto, mas a
situação foi interrompida antes de chegar a tal ponto.”
Bê dá de ombros.
— Não é tão grave.
— Uma briga e tanto — comento.
— E tem várias fotos em que vocês dois parecem estar juntos…
— Eles estão mesmo — comenta Bridget.
Eu reviro os olhos, e BJ joga um bagel nela.
— É o trauma! — anuncia Bridget, como se não fosse capaz de se conter.
— É o quê? — pergunta meu pai.
— É uma explicação que ainda não exploramos na nossa busca
interminável pelo motivo de esses dois serem como são — continua ela, e eu
reviro os olhos. — É o vínculo do trauma compartilhado!
— Certo — diz meu pai —, e que trauma esses dois teriam?
Bê e eu nos entreolhamos, por um breve segundo.
Bridget não tem nenhum problema em expor o quanto considera tudo
isso doentio. Ela acha que sabe de tudo, porque está no terceiro ano de
psicologia em Cambridge. Mas errada está ela. Eu só tenho um diploma
inútil e mesmo assim sei que nós dois somos no máximo mal ajustados.
— Sexta é o lançamento do meu perfume novo na Harrods — avisa
minha mãe. — Os dois vão, né?
— Quando você diz “os dois”, quer dizer um — respondo, apontando
para mim, e depois para BJ — e dois? Não o número dois óbvio e sempre
presente aqui?
Bridget me ignora.
— Estou te chamando de número dois, Fridget — insisto. — Que nem
um cocô.
Bridget me olha, entediada.
— Se precisa explicar, Magnolia, então a piada é ruim.
— Vamos, sim — Bê se dirige à minha mãe.
— E vou garantir que os seguranças não deixem ela entrar — digo,
apontando para minha irmã, que joga uma maçã em mim. — Ai, vou ficar
roxa! — exclamo, fazendo biquinho.
— Só porque está desnutrida — retruca ela.
Bushka empurra o prato para mim.
— Borche.
QUATRO

BJ

Quando chego ao Hide, na Piccadilly, o pessoal começa a comemorar.


Passou um pouco da hora do café da manhã, e nem sei que dia é.
Os paparazzi estão lá fora. Eles adoram pegar nós quatro de uma vez.
O Bando Bilionário, foi esse o apelido que nos deram. Mas é uma
idiotice, porque nenhum de nós é bilionário. Talvez se a gente somasse as
heranças.
— Ei! — chama meu irmão.
— O homem, a lenda… — começa Christian.
Jonah me dá um tapa nas costas quando me sento ao seu lado.
— Chocado que ela deixou você sair, cara — diz, e eu reviro os olhos. —
Está de tornozeleira? — brinca ele, olhando meu pé.
Chamo a garçonete. É bonitinha. Cabelo curto, nariz arrebitado.
— Oi, licença — cumprimento, sorrindo. — Podemos pedir umas
bebidas?
— Café?
Rio diante de tamanha bobeira e balanço a cabeça.
— Não, meu bem — responde Jo, sorrindo. — A parada boa.
— Dois Bloody Mary — começo, apontando para os irmãos Hemmes. —
Um Screwdriver — peço para Hen. — E um Greyhound — concluo,
apontando para mim mesmo.
— Pode deixar.
Ela sorri para mim de um jeito que indica que eu poderia cair na cama
com ela mais tarde, se quisesse.
Jonah percebe e dá uma piscadela.
— Então — diz, olhando ao redor da mesa. — Só quero esclarecer: nosso
BJB não dorme na cama dele na nossa casa há mais de duas semanas.
Balanço a cabeça.
— Mentira.
— Sem a Parks — acrescenta ele.
Isso talvez seja verdade. Não tenho a intenção de admitir.
Meu irmão passa as mãos no cabelo.
— Muito interessante… porque a Allie soube pela Bridget que vocês dois
quase se beijaram outro dia.
Reviro os olhos. Eu e Parks vivemos quase nos beijando.
— Tem mais — continua Henry —, nossa mãe me contou hoje mesmo
que você e Magnolia dormiram na casa deles duas vezes na semana
retrasada.
Solto um suspiro. Esses palhaços estão fazendo uma contagem, por
acaso?
— Ela também comentou — prossegue ele — que Magnolia não dormiu
no quarto dela, e sim no seu.
— Ok — digo, abanando a mão. — Então a conclusão aqui é que você,
nossa mãe, Al, Bridget e Jo são muito desocupados.
Reparo que Christian está quieto. Apenas me observa, sem revelar nada
na expressão — o que não é incomum. Ele é bem estoico. Especialmente
quando se trata de Parks.
A garçonete traz as bebidas e me dá o número dela, que eu guardo por
puro hábito.
— Vai ligar pra ela depois? — pergunta Christian.
Coço o nariz.
— Nah.
Olho de novo para ela. É bem gata.
— Talvez — corrijo.
Faço questão de não olhar para ele, porque não quero ver sua expressão
— não quero que me faça sentir que estou fazendo algo de errado. Sei lá qual
é o problema dele. Ele não é nenhum exemplo de moral, considerando o que
a família dele faz. E, assim, todos eles têm essa postura protetora com a
Parks. Teriam arrebentado a cara daquele bosta do Calloway se eu desse um
sinal, mas Christian é diferente de Henry e Jonah. Ele é desse jeito com a
Parks por causa daquela… parada entre eles.
Uma vez caímos na porrada por isso. Uns três anos atrás. Nós íamos
passar um final de semana em Praga, só os quatro, mas Christian desistiu de
última hora, falou que tinha um evento de trabalho, uma merda dessas — os
irmãos Hemmes administram boates. Enfim, acabou que o nosso voo foi
cancelado, então fomos para a balada em Londres mesmo.
Foi pouco depois de eu e Parks terminarmos. Era recente. Tipo, uns três
meses.
Fomos à The Box, lá no Soho — eu, Hen e Jo —, e, juro por Deus, no
segundo em que entramos, senti meu coração despencar uns cinquenta
andares.
Ela estava no canto mais escuro da boate, mas eu a vi mesmo assim,
minha garota, aos beijos e sendo apalpada por um filho da puta qualquer.
Fiquei furioso. Incrédulo.
Fui empurrando as pessoas pelo caminho e arranquei o cara de cima dela
— por reflexo. Joguei ele para o lado, mas demorei para notar que era o
Christian. Essa parte toda da história ainda é meio nebulosa — lembro que
Parks parecia triste, talvez um pouco envergonhada. Eu a olhei como se ela
estivesse me traindo, e, mesmo que não fosse verdade, era. Lembro da
sensação no meu peito — tipo, caralho, foi isso que você fez com ela, mas
cem vezes pior.
Aí o cérebro pegou no tranco. Christian mentiu sobre a viagem para
encontrar… a Parks? Mentiu para mim? Para ficar com ela? Minha garota?
Repassei imediatamente o beijo deles na memória — porra, não era o
primeiro beijo.
Por dentro, fui de arrasado a destruído.
Eu me virei para Christian, que mal tinha se levantado do chão, e parti
para cima dele. Agarrei ele pela gola da camisa, o arrastei pela multidão,
derrubando gente e copos. Vidro estilhaçado, gritos — não estava nem aí, eu
não conseguia parar. Pressionei ele contra a parede, o olhei nos olhos —
queria que ele estivesse bêbado, chapado, alguma merda desse tipo, mas ele
estava completamente sóbrio, então dei um soco no queixo dele.
O som foi alto, mas não o suficiente para abafar os gritos de Parks.
Olhei para trás. Jonah estava segurando ela.
— Bê… — começou Christian, mas não aguentei, então soquei ele de
novo.
Ele não revidou, o que foi estranho, porque Christian é o melhor de briga
entre nós todos, e não fez nada. Apenas olhou para Jonah, esperando que ele
interferisse, mas Jonah só balançou a cabeça e empurrou Parks para meu
irmão.
Joguei ele na parede outra vez.
— Para! — gritou Christian, me empurrando para se endireitar, mas ele
não queria brigar comigo.
— É o quê? — disse Jonah, o rosto bem perto do irmão mais novo.
O olhar de Christian ficou abalado e magoado.
— Vai deixar ele me espancar, Jo?
— Não — respondeu Jo. — Vou é ajudar ele.
Eu e Jo, né? Unha e carne. Irmãos.
Minha mãe ficava um pouco nervosa por eu e Hen andarmos com os
Hemmes, porque, mesmo que não se fale muito disso, todo mundo sabe o
que a família deles faz, né? Mas, sério, trinta segundos de chá com a mãe
deles, e Rebecca Barnes acaba com qualquer preocupação. Por isso ela é boa
no que faz.
Jonah e eu somos amigos desde o começo da escola, jogamos nas mesmas
equipes e tal, mas, no sétimo ano, voltamos do treino de sábado para a casa
dele e encontramos a irmã dele afogada na piscina.
A gente tinha doze anos. Ela tinha quatro. Mergulhamos e tiramos ela de
lá, e tentei ressuscitá-la enquanto Jonah pedia por socorro. Ela estava azul.
Morta. Muito antes de chegarmos.
Os meninos passaram um mês morando na nossa casa. Bridge estava
certa sobre aquela história de trauma.
Então, né, Parks — no meio da The Box, gritando comigo e com Jonah
para soltarmos Christian, deixarmos ele em paz… Só fez piorar tudo, para
ser sincero, escutar ela preocupada com alguém além de mim.
— Hemmes — disse a voz retumbante de um segurança atrás da gente,
balançando a cabeça. — Fora.
Jonah puxou Christian da parede, o jogou na direção da porta e o
empurrou o caminho todo, com tanta força que ele chegou a tropeçar na
rua.
E aí não sei mais o que aconteceu. Eu estava simplesmente chutando um
dos meus melhores amigos na boca do estômago.
— É ela o seu compromisso de trabalho? — gritei com ele, Parks
soluçando ao fundo, e eu nem conseguia me concentrar para escutar.
Jonah ficou na dele, de olho. Deixando a gente se resolver.
— Bê — disse Christian, tossindo e secando sangue do rosto. — Você
não…
— O quê? Entende? — rosnei. — É a Parks. Ela é minha.
Eu o levantei do chão para empurrá-lo de novo.
— Ela vai ser sempre minha — continuei.
— Não! — disparou ela, se desvencilhando de Henry e apertando meu
braço, me girando para me encarar. — Vai se foder.
Olhei para Henry, atrás dela.
— Leva ela pra casa.
Eu nem conseguia encará-la, minha vista estava embaçada com as
lágrimas, e ela não parava de gritar:
— Você não pode me mandar embora. Vamos lá, Christian. Vem…
Ela parecia assustada. É isso que me deixa mal quando penso naquela
noite — a gente ter assustado ela.
— Ele não vai com você, Parks — disse Jonah.
— Vai, sim.
Ela fungou, tentando alcançar Christian, mas Jonah o empurrou para
longe dela.
— Leva ela pra casa, agora — gritei de novo para Henry, com um olhar
de advertência.
— Pode ir, Magnolia — disse Christian, e o jeito como ele olhou para
Parks me deixa puto até hoje. — Amanhã eu te ligo.
Jonah soltou um grunhido, mas Christian o olhou, e algo em sua
expressão fez Jonah se segurar.
— Amanhã eu te ligo — repetiu Christian.
Henry pegou Parks pelo braço e a puxou em direção a um carro.
— Eu te odeio — disse ela, engasgada, mal conseguindo olhar para mim.
Acho que ela nunca tinha me odiado antes, nem mesmo quando eu fiz o
que fiz. Tensionei o maxilar e soquei Christian na boca do estômago. Meti a
porrada nele até ele acabar vomitando no beco atrás da boate na qual estava
beijando a minha garota, e o deixei lá. Sinto as minhas entranhas se
revirando quando me lembro dessa merda toda. A cara arrebentada do
Christian, minhas mãos machucadas, todas as perguntas que eu queria que
respondessem para descobrir como voltar a respirar. Eles tinham transado?
Ele tinha visto ela pelada? Onde ele tinha tocado nela?
Eu ainda não sei, na real.
— E aí, Bê — diz Jonah, com um soquinho no meu peito. — Fala sério.
Está pegando a Parks?
Faço um gesto com a mão.
— Não, cara.
— Jo — diz Christian, rindo —, no segundo em que a Magnolia Parks
deixar ele subir na cama dela de novo, esse daí vai dar a porra de uma festa.
Abro um sorriso entediado.
— Eu não saio da cama dela desde os quinze anos.
— É — diz meu irmão, me olhando —, mas ele ainda daria uma festa se
ela deixasse ele subir nela de novo…
— Olha a boca — aviso, apontando para ele.
Provavelmente é verdade. Jonah ri. Christian, não. Tenta sorrir, mas não
consegue.
— Qual é a programação de hoje, galera? — pergunta Jonah, olhando ao
redor.
— Faculdade — suspira Henry.
— Vou jantar com Baby Haites hoje — anuncia Christian, bocejando.
— Eeeei — digo, sorrindo para ele, genuinamente feliz, tanto por ele,
quanto por mim. — Eu gosto dela.
Ele me olha com uma expressão ao mesmo tempo bem-humorada e
desinteressada.
— É, ela também gosta de você, na real.
Henry olha de mim para ele.
— Ah, caralho. Podem parar com isso aí.
Jonah se recosta na cadeira, bocejando.
— E você, cara?
Levanto a camiseta e exibo a barriga, dando dois tapinhas nos músculos.
— Tá ganhando? — pergunta Jonah. — Tá puxando quanto?
— Tá puxando é modelos da Miu Miu — brinca Christian.
Meu irmão se aproxima, curioso.
— Ei, como foi isso? — pergunta.
Reviro os olhos.
— Sério — insiste ele.
— Ah, não enche o saco — digo, virando minha bebida.
— Foi no banheiro? — cochicha Jonah.
Rio, bufando.
— No carro.
CINCO

Magnolia

Lançamento do perfume da minha mãe hoje: Veludo Sedutor. Pois é,


nojento. Um pouco de informação demais sobre a vida sexual dos meus
pais, que eu tinha bastante certeza de que era inexistente desde a concepção
da Bridget, mas beleza. Fico feliz que ela esteja trabalhando com perfumes.
Primeiro, porque dá muito dinheiro e, segundo, porque acho perfumes
importantes.
Deixam uma marca na memória de um jeito que outras coisas não
deixam.
Livros usados. Minha irmã.
Chá com leite e açúcar. Marsaili.
Hoyo de Monterrey. Meu pai.
Cigarro mentolado. Bushka.
Chanel Nº5 e óleo de rosa-mosqueta. Minha mãe.
Cardamomo e couro. Um tal de Baxter James Ballentine.
Almíscar e flor de laranjeira? Um dos piores dias da minha vida.
O lançamento é na Harrods, e eu chego sozinha, o que detesto e amo
fazer. Detesto porque, socialmente, me deixa vulnerável a conversas das
quais não quero fazer parte, mas amo porque tenho certeza de que todo
mundo está olhando apenas para mim. E está mesmo. Coloquei o vestido
verde-musgo bordado de camadas de tule e decote fundo da Marchesa, e
desafio qualquer um a não me encarar.
É decotado demais para eu usar o colar que sempre uso escondido, então
precisei tirar, e, sem ele, meu coração parece estar com um pedaço faltando.
Pego uma taça de champanhe de um garçom e viro de um gole só — é o
único jeito de sobreviver a essas coisas. Então começo a procurar alguma
pessoa de quem eu goste — só existem umas seis, dependendo de como BJ
anda se comportando.
Era para eu chegar com Paili e Perry, os dois Ps, mas o trânsito de
Londres atrapalhou.
Eu me esquivo de um cara que namorei um tempo atrás, chamado
Breaker. Novo-rico, dinheiro de fazenda de gado leiteiro nos EUA.
Namoramos por uns três meses, no máximo. Ele era superinfiel, e com
certeza estava me usando como trampolim para a alta sociedade, mas não
me incomodei, porque BJ podia dormir na minha cama sempre que eu
quisesse, e, sinceramente, essa é a única qualidade que busco num
relacionamento hoje em dia.
Dou uma andada, procurando um rosto conhecido, quando esbarro justo
em Hamish Ballentine.
— Magnolia — ele me cumprimenta, se abaixando para me dar um beijo
na bochecha. — Você está linda, meu bem.
Aperto a mão dele, porque o amo mais do que amo meu próprio pai.
— Adorei sua matéria de viagem, querida. Sobre aquele pequeno spa nas
Dolomitas? Vamos visitar, sem dúvida.
— Ah! — Bato palmas de animação. — Lil vai amar. Me avisa quando
forem, que eu dou uma ligada para lá e peço para darem tratamento especial
para vocês.
Ele me dá uma piscadela agradecida.
— E cadê meu filho?
Ele olha ao redor. Mesmo que os pais dele possam pensar o contrário, eu
e BJ não passamos o tempo todo juntos. Cada um tem as suas
responsabilidades. Quer dizer, eu tenho um emprego. Ele tem uma… coisa.
Tem contrato com uma agência enorme, recebe patrocínio, é sexy, passa o
dia postando besteira.
Ele não gosta de se chamar de modelo, e eu prefiro não chamá-lo de
influencer, porque é muito vergonhoso e, francamente, não é uma carreira
duradoura — mas ele não deixa de ser… um influencer.
Ele tinha uma sessão de fotos hoje — uma pra valer, não só umas fotos
biscoiteiras numa linha de trem, sem camisa e com um cachorro aleatório.
Acho que o trabalho era para a marca Fear of God.
E eu? Ah, passei umas duas horas no escritório e fui para George
Northwood fazer o cabelo.
— Ele ficou de me encontrar aqui — conto ao pai dele.
— Ainda não estão juntos?
— Ainda não, Hamish — respondo, brincalhona.
— Tá, tá bom. — Ele revira os olhos, cético. — Mas ainda apaixonados?
Seguro a saia do vestido e o olho com irritação exagerada.
— Valeu a tentativa — digo, antes de me afastar.
Me dirijo à presença mais segura de August Waterhouse. Ele é uma das
figuras mais promissoras do ramo da música em Londres e produziu cinco
sucessos que foram para o topo das paradas no Reino Unido ano passado.
Gus é um pouco mais velho do que eu. Deve ter uns trinta, talvez? É um
crush improvável, digno e duradouro de Perry, e um homem muito fofo, até
um pouco sábio. Ele trabalha com meu pai.
— Gus — digo, sorrindo. — Que máximo te encontrar. Não sabia que
você viria.
— Seu pai me arrastou.
Ele indica meu pai, que está no canto da sala com Marsaili, os dois
parecendo igualmente rabugentos por estarem ali.
Solto uma risada.
— Ele podia pelo menos fingir que está dando apoio. Minha mãe fingiu
gostar daquele lixo de música que ele fez para a Dua Lipa ano passado.
— Ei — repreende Gus, me olhando. — Eu escrevi uma parte dessa…
Solto um murmúrio baixo, e Gus solta um ruído de reprovação.
— Estava na cara que você viria, Parks… Tommy talvez tivesse saído de
casa por uns vinte segundos, se soubesse.
Por mais lisonjeada que eu fique de saber que poderia tirar Tom England
de casa por alguns instantes, ainda franzo a testa. Não é de propósito. Mas é
tudo tão triste…
Tom é o melhor amigo de Gus. O irmão dele morreu bem do nada alguns
meses atrás, por conta de um aneurisma cerebral.
— Enfim — continua ele, dando de ombros. — Soube que o término do
seu namoro saiu na imprensa?
Faço um gesto de desdém.
— Novidade.
Ele ri.
— Tá levando na esportiva, pelo visto.
— É muito fácil levar um término na esportiva quando o namorado é um
babaca.
Ele ri mais uma vez.
— Vou lembrar dessa dica.
— Gussinho — exclama meu pai, dando um tapinha nas costas dele. —
Que bom que você veio. Magnolia…
Ele se abaixa para me dar um beijo na bochecha. Eu permito.
— Harley — cumprimento, acenando para ele com a cabeça, e abro um
sorriso tenso.
Ele revira os olhos para Gus, e eles trocam uma expressão que insinua
que eu às vezes sou um pouco cansativa; na sequência, Gus pede licença
para conversar com um rapper promissor com quem ele gostaria de
trabalhar.
— Querida, me escute… — diz meu pai, cruzando os braços, porque não
sabemos conversar um com o outro. — Preciso participar de um retiro de
escrita. No interior dos Estados Unidos…
— Parece perigoso — comento, assentindo.
— Não estou muito animado, para ser sincero, querida. Estou tentando
convencê-los a vir para cá, mas querem ficar num lugar tranquilo e discreto.
Tem alguma sugestão?
Primeiro, apesar de detestar admitir, fico feliz por ele pedir minha
opinião profissional. Querer aprovação do pai é um clichê terrível, eu sei…
mas é tão raro sentir isso que, quando acontece, fico empolgada.
— Hum — reflito. — Heckerfield Place, em Hampshire?
Ele balança a cabeça.
— Se eu conheço, é famoso demais.
Faço biquinho, pensando.
— Pensando bem, acabou de abrir um lugarzinho em Toms Holidays…
— Ele parece confuso. — Perto de The Towans, sabe?
— Ah — ele faz que sim com a cabeça, intrigado.
— O nome é Farnham House. Ainda não fui, mas preciso. É lindo, e
contrataram um dos chefs do Le Gavroche. Tem um spa incrível. É pertinho
da água, uma beleza. Mas é muito recente, ninguém conhece ainda…
Ele se abaixa para me dar mais um beijo na bochecha, mas dessa vez eu
me irrito menos.
— Perfeito, querida. Obrigado.
Ele se afasta, mas o chamo.
— Quem é o artista?
— Oi?
— O artista. Com quem você vai trabalhar.
— Ah. Hum. Qual é o nome mesmo? Aquele cara que você curte…
Não faço ideia de quem ele está falando.
— Sabe — continua ele, gesticulando em direção ao próprio rosto. —
Com as… e a…
— Post Malone? — arrisco.
— Isso — confirma, indo embora em seguida.
Perry e Paili finalmente chegam. Ele, com um paletó ajustado de veludo
laranja-escuro com detalhe em cetim e calça social de lã preta e angorá, no
estilo Eggsy, as duas peças da marca Kingsman; ela, com um vestido de
tafetá azul-real da Molly Godard, de saia curta, barra de veludo, cintura
elástica e camadas.
— Era o Gus Waterhouse? — pergunta Perry, procurando-o com os
olhos. — Eu amo ele. Ele me ama? Tô gato? Será que falo com ele?
Conto as respostas nos dedos.
— Era, sim. Sim, eu sei. Acho que não… ainda! Hum… tá gato, sim. Fala
com ele, lógico.
Pego a taça de champanhe da mão dele e viro num gole só.
Paili me olha, animada.
— Você está perfeita. Que vestido é esse, puta que pariu!
Uma opinião bastante tendenciosa vindo da minha melhor amiga, mas
fico nas nuvens mesmo assim.
— E cadê a convidada de honra? — pergunta Paili. — A gente vai dar oi?
Faço um gesto de negativa com a mão.
— Da última vez que vi, ela e a viscondessa de Hinchingbrooke estavam
tentando tirar uma selfie com um pavão. Muitas plumas… e nenhuma das
duas é lá especialista em aves.
— Qual é a relação entre pavões e veludo sedutor, aliás? — pergunta
Perry, e é uma dúvida bem legítima.
Franzo os lábios.
— Nunca caguei tanto para uma resposta.
— E aí — diz Paili, olhando ao redor —, cadê seu boy?
— Não sei — suspiro. — Falou que vinha me encontrar aqui… —
respondo, mas me dou conta. — E, como assim, que boy?
Perry e Paili reviram os olhos.
— Vocês só andam juntos agora — diz Paili, sorrindo e levantando as
sobrancelhas.
— Nada fora do normal — respondo, empinando o nariz.
É verdade. Tirando os primeiros meses depois do nosso término, toda a
parada com o Christian e as consequências de BJ bater no Christian, a gente
nunca deixou… de andar juntos o tempo inteiro.
— É — concorda ela —, mas agora você não tem mais um namorado de
mentirinha para jogar na cara dele quando lembrar que está apaixonada.
Olho com irritação para ela por conta daquelas palavras. Namorado de
mentirinha? Apaixonada? Que absurdo. Mais ou menos.
— Falando do diabo… — diz Perry, indicando a porta.
E lá vem ele.
Paletó de veludo ajustado, bordô, com calça social preta de lã pura e
camisa social de popelina branca, com painel na frente e punho duplo, tudo
Giorgio Armani, exceto pela gravata-borboleta Tom Ford.
Henry, Christian e Jonah vêm atrás, e, com um milissegundo
programado de atraso, surge o vestido de veludo Alaïa, também bordô. Não
sei o que mais me irrita — BJ ter trazido ela ao lançamento da minha mãe
ou meu medo de eles terem escolhido as roupas combinando. Taura Sax. Ela,
infelizmente, é lindíssima. E muito diferente de mim, o que talvez seja o
pior.
Eu tenho pele marrom, cabelo escuro e olhos claros, enquanto Taura Sax
tem a pele mais clara, cabelo castanho-claro, sardas e olhos cor de mel. Acho
que a mãe dela é de Cingapura. Literalmente temos aparências opostas.
Lógico, talvez neste momento seja justo contar que o tipo de BJ é
qualquer mulher que esteja disponível sexualmente, mas Taura Sax é a única
figurinha repetida na lista que ele alega não existir.
Também foi com Taura Sax que ele me traiu, por sinal. Foi a conclusão a
que cheguei. A segunda pior noite da minha vida ressurge na memória —
flor de laranjeira. Tinha mais alguma coisa… o que era? Vamos lá, Magnolia.
Apago os pensamentos como se fossem fogo.
Não posso me lembrar disso. Não agora. Sinto um aperto no peito, e meu
coração cede sob o peso de tudo o que sinto e que não posso sentir na frente
dele, porque ele não pode saber que ainda tem esse efeito sobre mim.
Percebo que estou boquiaberta, então faço questão de fechar a boca bem
rápido.
Não quero que ninguém saiba que isso me pegou de surpresa, que isso —
BJ, com ela aqui — não foi planejado e confirmado comigo, não foi
exatamente o que eu esperava dele, que nunca, em um milhão de anos, achei
que talvez, uma só vez, ele fosse agir de outra forma, que uma vez na vida
talvez ele tentasse não nos jogar do penhasco.
Mas eles veem na minha cara, eu sei que sim. Perry faz uma careta, e
Paili, aquele olhar triste de sempre de quando me vê com BJ. Ela engole em
seco, apreensiva, e toca meu braço.
— Tudo bem?
— Quê? — pergunto, pestanejando sem parar. — Comigo? Não. Tudo!
Tudo bem… só é… falta de educação, né. Trazer ela pra cá. Não acha? A
garota com quem ele me chifrou?
— A gente não sabe disso — ameniza Paili, gentil.
Perry olha para ela.
— A gente sabe — diz ele, com uma pausa. — A gente sabe, sim.
Não é de conhecimento geral, aliás. Que foi esse o motivo do nosso
término. Agora nossos amigos sabem, porque com o tempo foi se
espalhando para os Ps, para os meninos, para minha irmã, só que mais
ninguém sabe.
Não sei por quê.
Acho que eu tinha medo do que aquilo diria sobre mim, que ele tenha
jogado tudo fora por uma noite de merda com Taura Sax. Encaro BJ de um
jeito irritado, e nossos olhares se encontram, como sempre fazem quando
estamos no mesmo ambiente.
O rosto dele se ilumina em um meio-sorriso, e ele se aproxima.
— Oi.
Ele se abaixa para me dar um beijo na bochecha, mas me afasto
sutilmente. Voltamos a nos entreolhar, e ele parece confuso, magoado e
irritado, tudo ao mesmo tempo.
Perry murmura baixinho e aponta para alguma coisa do outro lado do
salão.
— Selfie com o pavão? — sugere, levando Pails com ele.
BJ os observa ir embora antes de voltar a me olhar, o maxilar tensionado
de apreensão.
— O que foi?
— O que você fez hoje à tarde? — pergunto, mas é uma armadilha, e ele
sabe muito bem. — Fez alguma coisa depois da sessão de fotos?
— Hum — diz ele, rindo baixinho. — Nada de mais, só saí…
— Sozinho?
Ele passa a língua no lábio inferior, se preparando. Não diz nada.
— Com a Taura Sax — concluo por ele.
Ele está cheirando a Tom Ford recém-aplicado. É mau sinal. Está com
cheiro de banho, banho bem tomado, mas não com o sabonete Malin &
Goetz Rum que normalmente usa, e sim com outra coisa — e você deve
estar pensando que, lógico, ele só tomou banho para o evento, mas não.
Esses eventos não são importantes pra gente, e ele só toma banho quando
levanta, a não ser que vá se deitar na minha cama, ou seja obrigado, mas
tomou banho agora. Às cinco da tarde de uma sexta-feira. Sei o que isso
quer dizer.
Ele me olha.
— Com a Taura, sim.
Levanto uma sobrancelha.
— E você achou adequado trazer a Taura Sax aqui, para o lançamento da
minha mãe, considerando nosso histórico?
Ele suspira, cansado. Já passamos por isso antes, mil vezes. É um
território escuro e sombrio, e um de nós sempre sai com um braço ferrado,
com um osso quebrado, com um coração partido.
— Parks — diz ele, passando a mão pelo cabelo. — Já falamos disso. Não
é ela… não foi com ela…
— Então você não transou com ela?
Ele tensiona o maxilar.
— Transei.
— Quando?
Os olhos dele ficam sérios.
— Parks.
— Hoje?
Ele afasta o olhar. E eu o encaro, me sentindo mais traída do que gostaria,
mais traída do que deveria. Ele está arrasado. Arrasado por me arrasar. É
uma dança conhecida nossa. Quase um ritual. Dilacerando o coração no
altar que temos um para o outro.
— Parks — começa ele.
Balanço a cabeça, em desprezo.
— Não, eu sei, eu entendo, eu estava namorando… — digo, e paro a frase
no meio, olhando-o com raiva. — Pera, não, não estava.
Ele parece arrependido.
— Parks…
— Mas vou estar — corto.
Ele parece preocupado e irritado.
— Magnolia…
— Magnolia? — interrompo, porque ele quase nunca me chama assim. —
Sou eu o problema agora?
Ele segura meus braços, tentando me manter perto.
— Parks, para de fazer cena.
Dou um tapa nas mãos dele e me desvencilho. Encaro BJ com raiva.
— Tira essas mãos de mim.
Noto que o mundo se apagou, mas de um jeito ruim. O salão inteiro está
nos olhando. As taças param de tilintar, os garçons param de servir, as
pessoas param de respirar. Perry está prestes a ter um troço por conta de
todo esse drama lá no canto. Esse negócio que eu tenho com BJ, de fazer o
resto do mundo sumir, pode até parecer romântico — escrito nas estrelas,
duas pessoas tão focadas uma na outra que mais ninguém parece existir —,
mas, para pessoas como nós, quando brigamos em público, esse talento
aparece nas notícias.
Fico constrangida por alguns instantes com tantos olhares. O que será
que podem ter escutado?
Dou meia-volta, me afastando dele, e tudo no salão volta a se mexer.
Vou até o bar, pego outra taça de champanhe e viro em um gole. E aí
pego mais uma, para beber mais devagar.
— Bom papo? — pergunta Henry.
Viro o resto da taça em um gole só.
— Fantástico.

00:39
Parks
Como tá o tempo aí, Parks?

Tempestade mt mt fiea

Tá bebendo?

im

Cadê você?

Tô bom

Bem

Não perguntei isso, perguntei onde você está

Atende

Atende o celular

Em casa bjjjjjjjjjssss

O bjjjjjjjsssss foi sem querwr ainda tá tempestade vsf


SEIS

Magnolia

Acordo um pouco acabada e rolo até a mesinha de cabeceira, rezando para


que, quando estava (bastante) bêbada, eu tenha tido o bom senso de deixar
ali um copo de água para aquele momento, em que estivesse (mais ou
menos) sóbria.
Eu tive, graças a Deus.
Não lembro como cheguei em casa, para ser sincera. Gostaria que tivesse
sido BJ quem tenha me trazido, mas não foi, porque ele não está aqui na
cama comigo. Já faz um tempo que não acordo sem ele do meu lado. Temos
dormido demais juntos, comecei a achar esquisito acordar sozinha.
Mas nunca gostei de ficar sem ele — passamos muito tempo juntos, nos
amamos de um jeito tão emaranhado que a ausência dele me deixa
incomodada. E ele não consegue ficar sozinho, então sei que, se não está
comigo, está com outra pessoa, e não quero pensar numa coisa dessas a essa
hora da manhã.
Não consigo deixar de imaginar se ele foi para a casa de Taura.
Provavelmente. É o que a gente faz. Passamos o tempo todo juntos, nos
aproximamos demais, ficamos assustados. Ele galinha por aí, eu arranjo
outro namorado. Ele vai odiar meu namorado novo, eu provavelmente
também vou, e aí eu e BJ voltamos à programação normal.
Normal é relativo, eu sei. Normal para dois corações despedaçados que
não conseguem se encaixar em mais ninguém.
A porta do quarto se escancara, e Marsaili entra, carregando uma
bandeja cheia de comida e chá. Ela larga tudo na mesa de cabeceira, fazendo
um barulho extremamente desnecessário extremamente de propósito, por
causa da minha ressaca. Lanço um olhar irritado para ela, e Marsaili abre
um sorriso bem-humorado.
— Alguém deve estar com dor de cabeça hoje — diz ela.
Jogo o cabelo para trás dos ombros e sirvo meu próprio chá, que nem
uma pessoa normal. Prefiro quando é Louisa quem traz meu café da manhã;
ela serve o chá.
— É, bom… — respondo, com um olhar meigo. — Não é todo mundo
que pode ficar emburrada num canto do lançamento do perfume da patroa,
né?
Ela revira os olhos e me encara.
— Veludo Sedutor?
Levanto a mão em um gesto para que não fale mais nada.
— Para, por favor.
Marsaili estremece involuntariamente. Então a porta do quarto abre de
novo e BJ entra, trazendo uma sacola de presente da Chanel.
Camisa de zodíaco preto e branca Valentino, calça jeans preta de boca
fina e muito esgarçada da Purple Brand e Vans preto e branco modelo Earth
Old Skool.
— Escuta, Parks. A gente… — começa BJ, parando ao ver Marsaili. — Oi,
Mars — cumprimenta, abrindo um sorriso grande.
— Oi, BJ — devolve ela, revirando os olhos. — Não dormiu aqui?
Ele sorri, animado.
— Achei melhor dar uma folga pra você. Melhor não encorajar essas
rugas…
Eu faço uma cara exasperada. Ela revira os olhos de novo, com tamanho
exagero que vai ficar com dor de cabeça, depois vai embora.
— Acho que ela tá gostando mais de mim — brinca ele, a observando
sair.
(— Não tô — retruca Mars, sem se virar.)
— Então — diz ele, me olhando. — Ontem à noite foi divertido…
— Ontem à noite e de dia também? — pergunto, levantando as
sobrancelhas. — Andou ocupado.
— Não foi isso que eu quis dizer — suspira Bê, passando as mãos pelo
cabelo.
É estranho, sério. Ele transa tanto, tanto — e fala disso sempre que quer
me irritar, mas não gosta quando sou eu que toco no assunto.
— Odeio brigar com você, Parks.
— Então não briga.
Dou de ombros, me perguntando por que ele não me dá logo aquele
presente.
— Não consigo — responde, e me demoro olhando a boca dele.
Bê pigarreia, e eu volto a erguer o olhar, sentindo o rosto corar um
pouco.
— Você é um pé no saco — reclama ele, o rosto também um pouco
corado.
Me pergunto se vamos nos beijar. Sempre me pergunto se vamos nos
beijar. Nunca nos beijamos. Nem deveríamos. Nossos olhares se encontram
como nossas mãos se recusam a fazer.
Eu te amo, pisca ele.
Então prova, suspiro.
Fico feliz por estar usando o pijama de cetim com renda Noelle Martine
da parceria Morgan Lane + LoveShackFancy, porque é curto e evidencia
minha cintura, que anda incrivelmente sarada. Espero que ele pense em
mim sem roupa, e acho que deve pensar, porque cobre a boca com a mão.
— Tá bom, Parks — diz, me avaliando. — De um a dez, qual é o seu nível
da raiva?
Eu o encaro.
— Dez! Dez pra cacete! Agora me entrega essa sacola da Chanel.
Ele ri e joga a sacola na cama.
— Qual é? — pergunto, pegando a sacola, animada.
Ele sorri, me olhando de um jeito que as pessoas poderiam considerar
íntimo e confortável demais para ex-namorados, mas prefiro não falar sobre
isso.
— A que você queria.
— Couro de cordeiro cor-de-rosa, com detalhes dourados e pedras
preciosas?
Ele confirma com a cabeça e se senta na cama, se recostando.
Abraço a bolsa e me deito ao lado dele.
— Obrigada.
Bê assente, encarando a cornija do teto como sempre faz quando tem
dificuldade para encontrar as palavras.
— Desculpa — pede, finalmente. — Pela Taura. Sei que a presença dela
deixa você triste.
Eu me afasto um pouco, engolindo em seco de nervosismo. Não sei por
quê.
— Você nunca se desculpa por essas coisas.
Ele parece um pouco abalado; volta a encarar o teto.
— É, mas… não gosto de te deixar triste.
Eu o imito e olho para cima.
— Também não gosto de te deixar triste.
Queria que a gente parasse. Não sei por que não conseguimos.
Volto a olhar para ele.
— Me leva pra fazer compras?
Ele sorri e concorda com a cabeça.
— Mas só se eu puder ver você tomar banho.
— Combinado — aceito.
Ele se endireita, sem acreditar.
— Jura?
— Não! — cantarolo e saio saltitando.
— Vou devolver essa bolsa! — grita ele.
SETE

Magnolia

Você está se perguntando (sei que está, todo mundo se pergunta): por que
não estamos juntos?
Tirando a infidelidade, ele parece perfeito. Parecemos perfeitos, e nada
neste mundo, passado, presente ou futuro, poderia ser grande ou grave o
bastante para justificar não estarmos juntos. Eu entendo, sei como é.
Também já pensei isso.
Teve uns meses, depois de tudo o que aconteceu com Christian, em que
eu e Bê começamos a nos aproximar de como éramos antes. Não foi
intencional nem consciente. Só era mais fácil estar com ele do que não estar,
e talvez isso não seja uma coisa boa, eu já nem sei mais. Não sou mais capaz
de ser objetiva sobre o que se passa entre mim e ele. Quando o assunto é BJ,
a lógica do meu coração é tão confusa quanto os limites que fingimos não
ultrapassar. Eu ainda estava arrasada, ainda estava triste, ainda não confiava
nele como confiei um dia, mas acho que, em certo momento, meu amor por
ele era maior do que minha mágoa e me parecia besteira amar alguém como
eu o amava e jogar tudo fora porque ele tinha transado uma vez com outra
pessoa.
Não estou tentando diminuir esse fato, por sinal. Nem criar desculpas.
Fico enojada até hoje de falar disso. Não é que não importasse. Acho que era
só que o amor que eu sentia por ele importava mais.
Mas Marsaili não engoliu. Nunca tinha visto ela reagir daquela maneira.
Quando BJ voltou a frequentar a minha em casa, ela praticamente se
esgueirava pelos cantos, fazendo cara feia para ele, procurando o momento
certo para fazer comentários sarcásticos, diminuí-lo, fazer um círculo de
contenção em volta dele, arremessá-lo embaixo de um ônibus. Quando ele ia
embora, ela fazia um chá bem docinho para mim na cozinha e me dizia que
o que ele tinha feito não podia ser desfeito, que ele não merecia minha
confiança, que, se tinha aprontado uma vez, aprontaria de novo, e que, se me
amava como dizia, não teria feito uma coisa daquelas. E eu chorava toda vez
e falava que achava que tinha sido um acidente, ao que ela respondia que
ninguém transa por acidente, que não acontece espontaneamente, que é
preciso querer que aconteça. Sempre tive dificuldade para aceitar isso.
Eu achava mais fácil me ater à ideia de que tinha acontecido por acidente,
que ele tinha escorregado e caído na cama com alguém, que não havia sido
de caso pensado, que acontecia como uma queda, um tropeço, em que a
gente cai do nada, sem querer, até bater no chão.
Eu precisava que fosse assim para a gente voltar, mas Marsaili me ajudou
a entender que não é assim que funciona a infidelidade.
A infidelidade acontece porque as pessoas são negligentes, insensíveis e
descuidadas com emoções e corações, e é perigoso se envolver com essa
gente, então, mesmo que você ame essas pessoas, não deveria — não vale a
pena sentir o que ele me fez sentir, e não havia como garantir que o que
aconteceu antes não se repetiria, porque a palavra de um traidor, segundo
ela, não vale nada.
Então BJ e eu não reatamos. Acho que foi o que nos colocou nesse trajeto
estranho. Aqueles meses em que obviamente estávamos nos encaminhando
para ficar juntos, antes de eu dar meia-volta e me mandar dali, começar a
namorar outros caras na tentativa de disfarçar o que eu sentia.
Acho que matou ele um pouco. Talvez até literalmente, uma vez.
Estávamos mais ou menos que nem agora, eu diria. Eu tinha acabado de
engatar um relacionamento — Reid Fairbairn, um australiano, herdeiro de
uma mineradora. Ele tinha acabado de chegar na cidade e era bem gato,
como a maioria dos australianos. Não durou muito — acho que passamos
uns dois meses juntos —, mas eu não precisava que durasse, porque ele já
tinha servido ao propósito. No início, magoou BJ, mas ele só precisou de um
fim de semana prolongado em Amsterdã para voltar ao normal.
Tínhamos passado a noite com meus amigos em uma boate, e Reid
contou uma piada que até que era engraçada, e eu ri pra valer. Foi uma das
raras ocasiões em que me diverti de verdade com a pessoa que supostamente
estava namorando.
Enfim, na noite seguinte, não sei por onde Reid andava, mas fui jantar
com Henry e Christian no Gauthier Soho e Jonah veio nos encontrar no fim
para a saideira.
— De novo isso — reclamou ele, apontando para mim e para Christian,
sentados juntos.
— Ela tá namorando — disse Christian, revirando os olhos, com uma
expressão cansada.
Jonah me lançou um olhar desinteressado.
— É de fachada.
— Não é! — bufei.
Henry fez uma cara que parecia querer dizer que ninguém ali era idiota, e
eu fiz questão de “provar” a sobremesa dele pela quinta vez.
— Cadê o Bê? — perguntou Henry a Jonah.
Jonah balançou a cabeça.
— Não vejo ele desde ontem.
Eles todos me olharam, nervosos.
— Gente! — soltei, revirando os olhos. — Eu sei que ele está comendo
Londres inteira! Não precisam me poupar. Além do mais — acrescentei,
entrando na defensiva —, eu tenho namorado.
— Você tá bem? — perguntou Henry, cauteloso.
— Tão bem quanto eu estaria se soubesse que você anda comendo
Londres inteira — respondi, fingindo indiferença.
— Ah — suspirou ele, contente. — Ando mesmo.
— Então que ótimo — repliquei, sorrindo para ele, mentindo até não
poder mais. — Que ótimo, porque eu estou ótima. Com toda a situação.
Porque é ótimo. Bom para ele. Fico feliz por ele, até.
— Tá — disse Jonah, com um sorriso irônico.
Abri um sorrisão para calar a boca dele, e ele balançou a cabeça,
reprimindo um sorriso enquanto me servia vinho.
O ingrediente mágico do nosso círculo social que nos permite ainda
funcionar depois de tudo que vivemos e fizemos uns com os outros:
negação. (E álcool.)
Até que meu celular começou a tocar.
— Falando no diabo… — disse Christian, indicando o telefone.
— Alô — atendi, tentando não sorrir demais.
— Parks? — disse ele, a voz esquisita.
— Bê?
Segurei o celular com mais força e cobri a outra orelha com a mão.
— Parks? — gritou ele, fungando.
— Bê, cadê você? — perguntei. Senti que o clima tinha mudado entre os
garotos. — Sua voz tá esquisita.
— Acho que… — respondeu ele, respirando rápido. — Meu coração tá
batendo estranho.
Eu ouvi alguém ao fundo. Não sabia com quem ele estava falando. Era
uma garota.
— Me dá o celular — disse a garota, com urgência.
Perguntei de novo:
— Cadê você?
— Me dá! — insistiu ela.
Escutei sons de briga.
— Não! — grunhiu ele, soando diferente, e foi aí que senti o coração
despencar, porque eu sabia.
Eu sabia o que tinha acontecido. Dava pra notar, mesmo que não fizesse
sentido. Mas eu já tinha visto muito daquilo no nosso meio, reconhecia os
sinais. Sabia como aquilo mudava alguém. Eu não tinha ideia de que ele
andava se drogando.
Mais barulho, mais discussão ao telefone. BJ estava falando arrastado, e a
garota parecia em pânico.
— Bê? — perguntei, nervosa.
Os garotos estavam me olhando, todos com a testa franzida.
— BJ? — chamei, mais alto.
— Alô? — disse a garota ao telefone, sem fôlego.
— Onde vocês estão?
— Magnolia, é… — começou ela.
— Eu não ligo pro que você é dele — interrompi, me esforçando para
manter a voz firme.
Eu me levantei, e os garotos fizeram o mesmo.
— Só me fala onde vocês estão.
Jonah arrancou o celular da minha mão.
— Porra, onde vocês estão? — gritou ao telefone, seguindo para a porta
do restaurante antes de ouvir a resposta. — Não deixa ele tomar mais nada,
entendeu? — ordenou, num tom de voz assustador. — Tô indo.
Jonah jogou um punhado de dinheiro para o maître e foi até o carro
estacionado na frente.
Ele abriu a porta do carona do Escalade e me empurrou para dentro,
fechando a porta atrás de mim.
— Porra, o que houve? — perguntei, a voz muito mais frágil do que
gostaria.
Jonah lançou um olhar sombrio para Henry e Christian, sentados no
banco de trás.
— Caralho — disse Christian, balançando a cabeça, nervoso.
Todos pareciam tensos. Eu nunca tinha visto nenhum deles assim, o que
foi a parte mais preocupante.
— Isso já aconteceu antes? — perguntei a Jonah.
Ele continuou a olhar para a frente.
— Uma vez.
— Quando?
Eu me virei para Henry, que me olhou por um tempo, todo nervoso.
Estava na cara que, seja lá quando tivesse acontecido, os quatro tinham
prometido não contar nada para mim.
— Quando? — insisti, incisiva.
Me virei para Christian. Ele comprimiu os lábios, sem querer trair o
amigo.
— Em Amsterdã — respondeu, finalmente.
— Porra, Christian! — reclamou Jonah, olhando para ele com raiva pelo
retrovisor.
Ainda não me recuperei por completo daquele dia. Fez com que eu
deixasse de confiar em céus azuis, porque o céu estava muito azul naquela
manhã, e, enquanto Jonah costurava pelo trânsito de Piccadilly Circus,
lembro que pensei que o céu daquele dia tinha mentido, tinha me dado uma
falsa sensação de segurança. Me fizera acreditar que seria um bom dia, mas
que estava se desenrolando à minha frente como o pior.
Eu sentia que estava a caminho da ruína. Que estava prestes a encontrar o
amor da minha vida morto. Lembro que apertei com tanta força o assento
do carro do Jo que rasguei o couro com as unhas. Lembro que Henry se
esticou do banco de trás e segurou meu braço, me firmando. Lembro que,
num sinal vermelho, Jonah se virou para mim e limpou as lágrimas do meu
rosto, sendo que eu nem tinha percebido que estava chorando.
E lembro, visceralmente, a sensação de que meu peito tinha sido aberto
com uma serra, expondo todos os nervos do coração.
O carro parou bruscamente, e Jonah saltou correndo, subindo depressa a
escada que levava à recepção do Courthouse Hotel, seguido de perto por
nós. Ele bateu no balcão para chamar a atenção da recepcionista.
— Ballentine — disparou. — O número do quarto do Ballentine.
— Senhor… — disse a mulher, agitada. — Não podemos dar o número…
— Ele teve uma overdose — respondeu ele, sem hesitar.
Ela piscou algumas vezes e assentiu, rápido, digitando alguma coisa no
computador.
— 305 — falou, e Jonah imediatamente deu meia-volta, correndo para a
escada, e não para o elevador.
— A gente chama uma ambulância? — perguntei para ninguém em
particular, correndo atrás dele.
Christian, que tem uma desconfiança intrínseca de qualquer tipo de
autoridade, como todo membro da família Hemmes, fez que não com a
cabeça. Olhei para Henry, que fez que sim sutilmente e pegou o celular.
Jonah saiu em debandada pelo corredor e se arremessou na porta 305. Na
segunda pancada, ela cedeu, e Jonah caiu no chão. Passei por ele, ignorando
a menina de lingerie preta de renda pairando sobre Jonah com cara de
preocupada, e corri até a cama, onde Bê estava recostado na cabeceira,
pálido, com a testa e o peito encharcados de suor.
Sentei no colo dele.
— Bê?
— Magnolia? — perguntou ele, arrastado, e se virou para mim, com as
pupilas completamente dilatadas, sem conseguir focar.
Ele abriu um sorriso tênue.
— O que você fez? — sussurrei, acariciando o rosto dele.
— Eu…
Ouvi Henry ao telefone no fundo.
— O que você tomou?
Minha pergunta era urgente, mas acariciei o cabelo dele, como por
compulsão. Ele apenas piscou.
— O que ele tomou? — perguntei para a garota, meus olhos já marejados,
finalmente reconhecendo a presença dela.
Quando olhei para ela, notei que éramos quase que amigas. Lila Blane, de
Cheltenham. Vivia metida em festas.
O olhar que ela me lançou era de culpa, pânico e confusão.
— Eu... eu não sei — respondeu, cobrindo o rosto com as mãos. — Acho
que só cocaína?
— Ele tá ardendo! — gritei, sem alvo específico, sentindo a temperatura
na testa de BJ.
— Mas ele está cheirando desde ontem — disse ela, assustada.
— E bebendo? — perguntou Jonah, levantando uma das dezenas de
garrafas de champanhe espalhadas pelo chão do quarto.
A garota confirmou com a cabeça. Christian me empurrou de cima de Bê
e o puxou para levantá-lo da cama, chamando o irmão. Jonah veio apressado
e ajudou a arrastar Bê até o banheiro, enquanto eu ia atrás, inútil. Eles o
puxaram para dentro do chuveiro e abriram a água morna. BJ abriu os olhos
de repente e se dirigiu para mim e Christian.
— Vocês estão juntos? — rugiu, furioso e incoerente.
— Não — repliquei, incrédula e arrasada.
— Então o que ele tá fazendo aqui?! — gritou BJ.
Olhei para os irmãos Hemmes, magoada e insegura. Jonah balançou a
cabeça.
— É só paranoia. A coca deixa ele agressivo.
Entrei no chuveiro ao lado de Bê, cujas pálpebras estavam pesadas, a
cabeça pendendo para trás.
— Bê! — falei, dando um tapa na cara dele. — BJ!
— Parks — sussurrou ele, com a voz trêmula. — Eu te amo.
Nem percebi que eu estava chorando, mas estava. Concordei com a
cabeça.
— Eu sei. Eu também te amo.
Ele começou a tremer, e eu olhei para Jonah, completamente em pânico.
— É da febre — disse Jonah.
— Ele vai morrer? — perguntei, nervosa, sem conseguir desviar o olhar
dele.
— Não.
Jonah balançou a cabeça rápido e cobriu a boca com a mão, tenso.
— Henry? — chamou.
Henry surgiu às pressas na porta do banheiro, com o celular na orelha.
— E a ambulância? — perguntou Jonah, sem nem olhar para ele.
— Tá chegando.
Bê começou a tremer mais.
— Tira ela daqui — ordenou Jonah, me indicando com a cabeça
enquanto desligava o chuveiro.
Fui tirada do caminho bem a tempo, e logo BJ vomitou e começou a
convulsionar. Christian correu para trazer um travesseiro e colocar debaixo
da cabeça de BJ. Henry tentou como pôde me proteger do que estava
acontecendo, me puxando para um abraço e cobrindo meus olhos.
Foi então que os paramédicos chegaram, gritando para abrirmos espaço e
trazendo a maca. É estranho como o nosso cérebro lida com o trauma.
Naquele momento, tudo se calou. Ficou tudo silencioso e lento. Billie
Holiday tocava na minha cabeça enquanto colocavam o corpo inerte dele na
maca. Lembro de Lila Blane encolhida na cama, chorando, tentando explicar
o que tinha acontecido a um dos paramédicos. Lembro de ver, de longe,
Jonah sair do chuveiro, coberto de vômito e ensopado, com as duas mãos no
cabelo, olhando para BJ, paralisado de tristeza. Lembro de Christian
ajoelhado no chuveiro, engasgando como se também fosse vomitar. Lembro
de me perguntar se aquele era o fim, se aquela seria a última vez que eu o
veria. Ele, com os olhos brilhantes e o cabelo em que eu adorava enfiar as
mãos. O garoto mais lindo em qualquer lugar, o amor da minha vida —
quantos amores se tem em uma vida? Lembro de me perguntar isso.
Quantas pessoas vão me olhar como ele me olha, não só como se eu fosse o
sol, mas como se eu fosse o universo? Lembro de odiá-lo por fazer isso com
a gente. Lembro de odiá-lo por morrer antes de termos a oportunidade de
voltar a ficar bem, porque sempre achei que voltaríamos. Achei que
ficaríamos bem, achei que um dia consertaríamos tudo aquilo — eu o
perdoaria por tudo que ele fez, envelheceríamos juntos e finalmente
compraríamos aquela casa em Tobermory, mas aí ele estava morrendo de
overdose de cocaína porque, na noite anterior, eu tinha ficado feliz com
outro homem para o qual não ligava a mínima. Lembro de ser tomada pelo
ressentimento e então me lembro, feito um soco no estômago, do quanto eu
o amava. Amava mesmo. Amava com todo o meu ser. Se me cortassem, era
ele que eu sangraria. Eu precisava dele, ainda precisava, sempre,
eternamente precisaria dele, nunca deixaria de precisar, mesmo tentando.
Lembro de sentir um medo profundo do que seria minha vida sem ele.
Dali, ele foi levado de ambulância ao hospital. Umas duas horas depois, o
médico veio e nos contou que o quadro dele era estável, mas que ele estava
hipoglicêmico. Christian apoiou a cabeça no ombro do irmão, suspirando de
alívio. Uma lágrima solitária escorreu de um dos olhos de Jonah, e ele secou
antes que mais alguém pudesse ver, mas eu vi. Nós nos entreolhamos, um
olhar carregado, porque, mesmo que o mundo todo fosse sentir a falta de BJ,
eu e Jonah sentiríamos mais. Os irmãos Hemmes ficaram na sala de espera,
aguardando a chegada dos pais de BJ, e Henry me pegou pela mão e me
levou ao quarto onde Bê estava.
— Vem.
Ele tentou sorrir, sem sucesso. Quando chegamos à porta do quarto, eu
parei, olhando para Henry.
— Jonah disse que isso já aconteceu antes, não foi?
Hen balançou a cabeça.
— Não assim.
— Então como?
Cruzei os braços, tentando me sentir no controle de alguma coisa, porque
ficou absurdamente óbvio que eu não tinha controle de absolutamente nada
em relação ao meu amor por BJ.
— Ele passou dos limites só uma vez.
— Quando?
— Uns meses atrás.
— Há quanto tempo ele está usando?
Dirigi meu olhar sombrio a ele. Hen franziu a testa e suspirou.
— Todo mundo usa às vezes.
— Eu não — rebati, e ele me olhou. — Há quanto tempo? — insisti,
coçando o olho para disfarçar as lágrimas.
Hen pigarreou, comprimindo os lábios.
— Desde Amsterdã.
Balancei a cabeça.
— Ele usa com frequência?
Ele inclinou a cabeça, pensativo.
— Recreativo.
— Isso aqui — apontei para o quarto — não foi recreativo.
— Não — admitiu ele, baixinho. — Não foi.
Abrimos a porta, e BJ estava dormindo. Tinha uma cadeira no canto, na
qual Henry desabou, exausto. Bê ainda estava um pouco pálido, os lábios
carnudos e macios entreabertos, o peito subindo e descendo num ritmo que
havia servido de trilha sonora da minha juventude, e nunca fiquei mais feliz
por ouvi-lo. Fui até a cama, cautelosa, como se ele fosse quebrar se eu fizesse
movimentos bruscos, e fiz carinho no cabelo dele.
— A visita é só para familiares — disse uma enfermeira de cabelo escuro,
jovem, bonita, que surgiu à porta.
Olhei para ela, sentindo como se tivesse levado um tapa.
— Eu sei quem ele é — continuou ela. — Você não é da família.
Henry se levantou, franzindo a testa.
— Se você sabe quem ele é, então também sabe quem é ela. Ela é da
família.
A enfermeira olhou para nós dois, assentiu e foi embora. Subi na cama
com BJ e o abracei, como se não houvesse tempo, namorados, nem
overdoses entre nós.
A gente acha que coisas grandes assim mudam imediatamente as pessoas,
mas as mudanças que aconteceram foram invisíveis. Para mim, ele era o
mesmo, assim como era abraçar e segurá-lo. O corpo dele era para mim
uma montanha que eu já tinha escalado e conquistado muitas vezes na vida,
e que, até aquela noite, me parecia vasta. Até que, de repente, me pareceu
pequena demais. Não conseguia parar de olhar os pulsos dele, os acessos nas
veias. Lembro que me aninhei junto ao pescoço dele, inspirei o seu cheiro—
escolhendo ignorar todos os chupões feitos por gente que não era eu. O
nariz dele estava machucado de tanto pó, e senti um aperto no peito, porque
não entendia como era possível eu conhecê-lo da maneira como o conhecia
e não saber que ele estava fazendo aquilo.
Ele acordou depois de umas dez horas. Os pais estavam sentados ao lado
da cama, onde eu ainda estava deitada. Não tinha me mexido sequer uma
vez. Senti ele se mover embaixo de mim, os cílios estremecendo antes de
abrirem. Eu me afastei e o encarei. Atordoado, BJ piscou algumas vezes.
— Parks.
Ele sorriu devagar. Meu coração bateu mais forte ao vê-lo acordado.
Lembro que a voz dele soava que nem a manhã de Natal, meu aniversário, o
Dia dos Namorados, meu lar. Eu o amava.
— Ele vai ficar bem? — perguntei ao médico.
Ele confirmou com a cabeça.
— Vai ficar ótimo…
O alívio veio tão rápido que dei um tapa na cara dele. Todo mundo na
sala soltou um suspiro e ficou sem reação. Os pais dele, Henry, Jonah e o
médico. Bê arregalou os olhos, confuso, ainda um pouco perdido.
— Se você — comecei, a voz trêmula — fizer isso comigo de novo, uma
vez que seja… — Balancei a cabeça. — Eu nunca vou te perdoar.
— Ok.
Ele pestanejou, os olhos marejados.
— Promete.
— Prometo.
Ele mal mexeu a cabeça.
Então saí da cama dele e do quarto.
Ninguém sabe disso, por sinal. Nunca tocamos no assunto, nunca
contamos para ninguém, nem para Paili ou Perry. Só minha irmã sabe, e é
porque eu cheguei do hospital aos prantos e ela não me deixou em paz até
saber o que tinha acontecido — fazia quase dois dias que eu estava sumida.
Eu nem tinha notado. Não tinha reparado que haviam se passado horas,
muito menos dias. Estava prestes a perder o amor da minha vida, e o tempo
estava em suspenso. Allie teria contado para ela, de qualquer forma.
Reid não notou — ou, se notou, não disse nada. Ele sabia, eu acho. Todos
sabiam — o que eles eram para mim. Ou, melhor, quem eles não eram para
mim.
Passei uma semana sem falar com BJ. Ele me encheu de mensagens,
ligações, DMs, tudo. Mas eu não conseguia.
Eu estava destruída. Arrebentada por dentro, sangrando.
Foi isso que a quase morte dele fez comigo.
Então o ignorei enquanto pude.
Era sábado, uma semana e meia depois, e nossos amigos iam ver uma
reprise de It: A Coisa na Leicester Square — não era bem a nossa cara, mas,
como Bê estava secretamente proibido de consumir entorpecentes, as
opções de programa eram limitadas. Quando entrei no saguão, todos os
garotos me olharam, como se eu tivesse uma bomba amarrada no peito.
Lembro que BJ se virou para mim de olhos arregalados, engolindo em seco
enquanto eu me aproximava. Aí aconteceu, e nem foi consciente — peguei o
rosto dele e apertei minha boca contra a dele. Ele estava com gosto de
pipoca. Nunca conseguia esperar o filme começar para comer.
Não foi um beijo sexy, nem cheio de desejo, mas de um amor
desesperado, intenso e indescritível, que tivemos e ainda temos, e do qual
não conseguimos nos desvencilhar. Eu me afastei um pouco, nossos rostos
ainda a meros centímetros. Piscamos um para o outro, sem nos mexer, o
coração em movimento, nossos amigos em choque. Então passei por ele,
peguei o braço de Henry e entrei no cinema.
Não conversamos sobre aquele beijo. Paili e Perry nunca perguntaram. E
ainda bem, porque como eu teria explicado? Eu já tinha relegado aquela
noite ao mesmo canto do peito onde mora nossa outra noite terrível.
Há três lembranças que moram lá, e todas eu evito. E, mesmo assim,
todas ainda me moldam. Todas envolvem BJ.
Ele é uma bomba-relógio para mim, entende? Ele vai me machucar.
Sempre vai me machucar. Nunca vou estar em segurança com ele, mesmo
que sempre me sinta segura ao seu lado.
Por isso, não importa que eu o ame — eu não amo, mas, se amasse, não
importaria, mesmo agora. Porque amá-lo é que nem dar as chaves do meu
coração a um manobrista sem carteira de motorista. Ele vai me fazer cair de
um penhasco.
OITO

BJ

As festas de Park Lane são lendárias. Para algumas, as meninas são


chamadas. Para outras, não. A de hoje é a segunda opção.
A casa que divido com Jo é foda. Um apê em Park Lane com quatro
quartos. Parks gosta daqui, mas às vezes acho meio estranho trazê-la.
Provavelmente por causa de noites como a de hoje. Christian estava
decidido a perder completamente a linha — acho que por causa de uma
garota, mas preferi não perguntar.
Jonah o ajudou dando a festa aqui porque Henry não quis organizar na
casa deles, pra não chatear a vizinha do lado, Blythe. É justo, eu também não
gostaria de chatear Blythe. Ela foi enfermeira na Segunda Guerra e tem
histórias maneiríssimas. É uma lenda viva e ainda tem uma energia no olhar,
então vamos dar um tempo das festas em Ennismore.
Fiquei um pouco no segundo andar, batendo papo com uma francesa.
Não sei como ela veio parar aqui, mas também não ligo. Sei que é escroto da
minha parte, mas é que todas as garotas são meio iguais — pelo menos pra
ficar. Olhar nos olhos, ser um bom ouvinte, tocar no rosto delas e, pronto,
caíram na rede.
— Você gosta de estrelas? — pergunto a toda garota na minha sala que
prefiro levar para o meu quarto.
Todas dizem que sim, acho que ninguém nunca me disse não, tirando
Parks.
A francesa diz que sim.
Gosto quando as mulheres não misturam sentimentos com sexo e tratam
mais como uma troca, sem fingir ser algo que não é. Tipo, a gente se
conheceu numa boate. Você estava rebolando no bar. Já pegou o meu amigo.
Não é um conto de fadas. Você não vai me levar para conhecer seus pais.
Vou ser só a história mais louca que você vai contar para suas amigas na
hora de trocar segredinhos.
A francesa está toda de preto. Magnolia nunca usa preto.
Desço com ela para o meu quarto, e tá tudo dentro do esquema para a
situação parecer menos programada. Ela vai olhar pelo telescópio, e eu vou
me aproximar por trás, abaixar a cabeça, apontar uma estrela que nenhum
de nós enxerga, porque mal dá para ver estrelas pelo nevoeiro de Londres.
Sem falar que hoje a noite ainda está feia.
— Uauuu — diz ela, o sotaque mais carregado do que eu tinha notado.
Está olhando para mim, e não para o telescópio. Eu me sento na cama e a
observo. Espero. Ela desce o olhar pelo meu rosto, pelo meu corpo, e sobe de
novo.
— Posso usar o banheiro? — pergunta, e eu confirmo com a cabeça,
indicando a porta.
Ela é bem gostosa. Pele de porcelana, cabelo escuro e repicado, curtinho,
olhos castanhos. Não parece a Parks. Ninguém parece. Esse é o problema
interminável da minha existência pós-Magnolia Parks. Ela é a única. A
única cujas merdas eu aguento, a única que pode me fazer de gato e sapato
sem eu me mandar, a única pessoa que já deu mata-leão no meu coração.
Eu me recosto na cama. O que será que Parks está fazendo hoje? Talvez
tenha saído com os Ps — Paili e Perry. Não gosto quando ela sai sem mim,
mas acho que estou prestes a transar com alguém que não é ela, então não
tenho muita moral para reclamar.
A francesa aparece na porta, encostando no batente.
— Você tem namorada?
O sotaque dela é fofo. A maioria das garotas que eu pego sabe quem eu
sou. Sabe que é melhor não perguntar. Será que a Tatler não chega na
França?
Semicerro os olhos.
— Não.
Ela me olha, em dúvida.
— Tudo bem se tiver…
Abro um sorriso tenso.
— Não tenho.
— Esse Foreo é seu, então?
Ela pega o aparelhinho cor-de-rosa de limpeza facial da Parks, rolando
pelas mãos.
Vou precisar comprar um novo para a Parks. Olho para a paradinha cor-
de-rosa dela, e não para a garota.
— Não.
A francesa inclina a cabeça.
— Então de quem é?
Eu a observo. Não sou muito fã de papo furado pré-sexo, especialmente
sobre Magnolia.
— Da minha melhor amiga.
Eu me levanto, pego o Foreo da mão dela e devolvo para a gaveta.
A francesa aponta a pia.
— Est-ce que c’est sa jolie brosse à dents rose aussi?
Confirmo com a cabeça.
— Sim.
Ela estica a mão.
— Posso usar? Ma bouche sent dégueulasse…
Ela pega a escova de dentes, e eu impeço o movimento.
— Não.
A francesa pisca, num misto de surpresa e irritação.
— Non?
Balanço a cabeça.
— Ela é meio noiada com outras pessoas mexendo nas coisas dela e com
germes.
E garotas com quem eu transo.
A garota revira os olhos.
— Elle a l’air géniale…
— É, sim — confirmo.
— Désolée, dois-je y aller? — Ela solta uma risada fria. — Prefere estar
com ela?
Lanço um olhar demorado para ela.
— Na real, prefiro. Mas ela não me quer, então…
— Pourquoi pas?
— Porque — respondo, passando as mãos pelo cabelo, abrindo para ela
aquele meu sorriso — eu sou um fodido do caralho.
Ela ri.
— Que sorte a minha.
— Você nem imagina.
Eu a puxo pela cintura. Aí você já sabe. É o que é, e vou te poupar dos
detalhes mais sórdidos. Basta dizer que envolve nudez, contato físico e
orgasmos. E não penso na garota que estou comendo nenhuma vez. É uma
merda, eu sei. Tem uma memória de Parks que não sai da minha cabeça, e é
sempre nisso que eu penso. Eu e ela no lago de Como, em um Riva
Aquamara de 1971. Em pleno dia. É raro para ela estar tão despreocupada,
sem temer que alguém fosse ver, nos reconhecer. Ela estava usando um
biquíni fio dental lilás — tenho uma tara por lilás nela —, e o sol refletia nos
seus olhos, deixando-os um verde gelado. Penso nisso sempre que transo
com outra pessoa. Não sei por quê. Acaba um pouco comigo.
Depois, a francesa pega a bolsa e tira um papelote. Joga um pouco de
cocaína no meu peito, usa o cartão de crédito para arrumar a carreira e
cheira. Coça o nariz e me olha.
— Quer?
Nego com a cabeça.
— Melhor amiga? — pergunta.
Eu rio.
— Porra, ela ia me matar.

10:09
Lil Ballentine

Oi, querida. Pede pro meu filho me ligar, por favor?

Ele não tá atendendo.

Não estou com ele :)

Ah!

Bobeira minha.

Brincadeira, ele está aqui.

Não se preocupe.

Estou bebendo demais.


Tudo bem, Lily.

Ele não é meu namorado.

Mas poderia ser

Não, não poderia

Te amo, meu bem.


NOVE

Magnolia

— O que você fez ontem? — pergunta minha irmã, olhando o cardápio do


Belvedere.
Não é meu lugar preferido, mas fica do lado de casa.
— Eu e os Ps saímos pra beber. Privee. 109. Callooh Callay…
Sacudo as mãos. Ela sabe o que quero dizer.
— O que foi isso, um aneurisma? — pergunta, seca, e eu reviro os olhos.
Eu e Bridget somos bem diferentes. Honestamente, com pais que nem os
nossos, só dava pra gente sair cada uma de um jeito. Eu sou da cabeça aos
pés a filha de um produtor musical absurdamente bem-sucedido e de uma
ex-supermodelo e atual designer de acessórios de luxo.
Bridget é, da cabeça aos pés... esquisita.
Que nem agora, por exemplo: ela tentou sair de casa só de calça jeans
vintage, do modelo 501 da Levi’s, e camiseta branca simples, sem grife. Eu
quase tive que vestir nela à força meu cardigã de jacquard vermelho, preto e
branco da Gucci e enfiar os pezinhos malcuidados nas sandálias com franja
que comprei semana passada para ela na Marni porque parecem combinar
com alguém que bebe leite de amêndoa e come muito trigo-sarraceno. Ela
não gosta de nada, não liga para a opinião de ninguém, não dá a mínima
para garotos. Sei que não é lésbica, porque pergunto sempre; caso ela seja,
quero que ela sinta que pode se assumir para mim. Ela não gosta de festas,
não liga para os jornais, está se lixando por nunca ser mencionada nas
revistas de fofoca. Ela é esquisita. Mas é muito inteligente. E ótima ouvinte.
É extremamente observadora, não muito sutil e muitas vezes é um pé no
saco. Mas, ao mesmo tempo, é doce e confiável e parece mais velha que eu.
Apesar de ser mais nova.
— Então só você com os Ps? — continua ela. — Nada de Bê?
Balanço a cabeça.
— Eles deram uma festa.
A expressão dela murcha.
— E não te convidaram? — pergunta. Eu volto a balançar a cabeça, de
nariz empinado. — E por você tudo bem?
— Uhum.
Cruzo as mãos educadamente em cima do cardápio, com o nariz ainda
mais empinado. Minha irmã se inclina para a frente, curiosa.
— Ele te convidou e você não foi, ou ele não te convidou?
Mexo distraidamente na pulseira Mini Flower By The Yard da Alison Lou
que Bê comprou para mim semana passada.
— A segunda opção.
Bridget fica horrorizada.
— Por que ele não te convidaria?
Lanço uma baita olhada para ela. Nós duas sabemos a resposta.
— Nenhuma garota encosta nele quando eu estou perto.
Dou de ombros para conter um calafrio involuntário.
— Porque você não para de encostar?
Dirijo a ela outro tipo de olhar.
— Bridget.
— Vocês dois… — murmura ela. — Um dia, vocês vão me matar.
— Tomara! — cantarolo.
Essas festas na Park Lane… sei lá. Sempre tenho medo do que acontece lá
quando eu não estou. Quando vou, BJ e eu passamos no máximo meia hora
com a galera antes de ir para o quarto dele e assistir a um documentário da
National Geographic. Quando não vou, não sei quem ele leva para o quarto.
E desconfio que a situação com Taura Sax naquela fatídica noite aconteceu
numa festa exatamente como a que eles dão por lá.
— Ei, não é a Daisy Haites? — pergunta Bridget, indicando a porta com o
queixo.
Daisy Haites. Haites, que nem Julian Haites. Sim, esse Julian. O chefão de
gangue que, de alguma maneira, ainda consegue aparecer na GQ e ser
mencionado na VICE. O outro melhor amigo de Jonah. Daisy é irmã dele.
Ela é um pouco mais nova do que eu, linda de morrer e meio apavorante:
cabelo castanho-escuro, olhos cor de mel brilhantes e pele um pouco mais
bronzeada do que a média das meninas brancas.
Ela é mordaz, direta e sempre pode estar armada, então faço questão de
me manter simpática.
— É.
Eu a observo. E então quem aparece atrás dela, se não Christian
Hemmes?
— Meu Deus! — exclamo, dando um tapinha enérgico no braço de
Bridget. — Eles estão juntos? Parece que estão. Ele me disse que não
estavam.
Vestido floral preto com tons outonais da Saint Laurent por cima da
camiseta de algodão bordado com logo da Fendi, além dos coturnos da
Prada com bolso no tornozelo, que estou louca pra comprar, mas é um
visual meio radical para mim.
Daisy não estudou com a gente. Acho que pode ter frequentado a
Elizabeth-Day Morrow? É uma escola aqui de Londres. Ela é um pouco mais
nova que a gente, mas vivemos nos cruzando. Mesmas festas, mesmas
boates, mesmos namorados — aparentemente?
Se for mesmo o caso… Christian ainda não me contou.
— Christian! — grito, acenando.
Ele ergue o rosto — está feliz de me ver, e, por um segundo, me pergunto
se foi o motivo de ter vindo aqui. Mas não deve ser. Ele me cumprimenta
com aquele aceno distante e masculino de cabeça, e eles vêm na nossa
direção. Daisy Haites não parece tão animada com a minha presença, e, se a
situação fosse outra, podia jurar que ela cochichou algo irônico para ele no
caminho.
— Oi, Parks — diz ele, se abaixando para me dar um beijo na bochecha.
— Oi, Bridge — cumprimenta, bagunçando o cabelo dela.
Bridget sabia sobre Christian e eu quando estávamos juntos. Apenas ela,
Henry e Paili, e ainda assim foi o suficiente para dar uma merda
generalizada.
— Oi, Daisy…
Eu me levanto para abraçá-la, mas Daisy apenas fica parada ali, rígida.
— Oi — responde com um sorrisinho.
Só isso. Só oi.
— Sentem aí — digo para eles, apontando para as duas cadeiras vazias.
Daisy olha de mim para Bridget.
— Ah, a gente não quer incomodar vocês.
— Imagina. Conversar com a Bridget é um saco. Por favor, faço questão.
Bridget revira os olhos. Christian ri e se senta.
Daisy faz o mesmo, relutante.
— Você conhece minha irmã? — pergunto, apontando.
— Já nos encontramos… — responde Daisy, com um aceno de cabeça. —
Oi.
Bridget retribui o cumprimento, e então se segue um silêncio tenso e
carregado. Christian e eu nos entreolhamos, e o clima parece pesado. Por
quê?
— Como tá a faculdade? — pergunto para ela, simpática.
Daisy Haites dá de ombros.
— Boa.
Eu insisto:
— Tá gostando?
Ela dá de ombros de novo, murmura algo baixinho.
— Tô.
Vou conquistá-la.
— O que você mais gosta de estudar?
— Procedimentos funerários.
Engulo em seco.
— Maneiro.
Tento sorrir. Christian parece achar graça, Bridget está fascinada.
— Isso é… o que você quer fazer da vida? — pergunto, cautelosa.
Ela me olha como se eu fosse idiota.
— Não.
— Como anda seu irmão?
Ela me lança um olhar irritado.
— Bem.
— E seus pais? — pergunto, distraída.
— Falecidos.
… Como eu acabarei, depois dessa conversa. Estou suando. Literalmente
suando. Comprimo os lábios.
— Legal — digo, mexendo a cabeça, nervosa.
Bridget solta um barulho, quase como um pio. Christian arregala os
olhos de prazer. Estou desesperada.
— Ok, ok — tento, erguendo a mão num protesto de brincadeira. —
Calma. É muita informação ao mesmo tempo.
Christian ri, mas Daisy não altera em nada a expressão fria. Bridget fica
boquiaberta. Ela não acredita no que está vendo. Francamente, nem eu. Eu
sou uma pessoa incrível embrulhada em Gucci e temperada com alegria e
boa vontade e estou sendo ignorada.
Dou uma risada curta.
— Que bom que vocês sentaram com a gente.
— Eu não queria — afirma ela, se levantando. — Foi ele quem me
obrigou.
Olho para Christian.
— Obrigou?
— Tchau — diz Daisy, e vai embora.
Franzo a testa para ela e volto a encarar Christian.
— Qual é o problema dela?
Ele dá de ombros.
— Sei lá — responde, saindo apressado atrás dela.
Bridget olha para mim.
— Ela sabe de vocês.

15:17
Christian H

Isso foi bizarro…

Foi?

Sério??

Ela só não é muito sociável.

Tem carcereiro em Guantánamo mais simpático do que ela.

Haha

Vocês estão mesmo namorando?


Nem

Mas você gosta dela?

Não desse jeito.

Que bom.

Ela é meio malvada…


DEZ

Magnolia

Jantar com a Panelinha no Seven Park Place. É um dos meus lugares


favoritos, apesar do papel de parede cafona. Hoje estou usando o suéter de lã
intársia Gucci, a minissaia de tweed vermelho com botões da Miu Miu e
sapatos de plataforma de couro, com franja e detalhes no logo do modelo
Marmont, da Gucci.
Me maquiei do jeito que o BJ gosta, ou seja, não passei quase nada (que
ele saiba). Rosto corado, uma corzinha na boca. Ele não percebe, mas gosta
porque fico com a aparência de que acabei de transar.
Estamos à mesa redonda, a de sempre, com Bê à minha direita. Calça
jeans preta rasgada Amiri Shotgun, camiseta cinza Zegna Fear of God, a
jaqueta esportiva Teddy de lã preta Saint Laurent e All Star preto de cano
alto. De braço apoiado na minha cadeira. Não em mim, na minha cadeira.
Não é pele com pele. Damos um jeito de nos tocar sem encostar um no
outro. É assim a maior parte do tempo, ainda mais em público. É difícil ir do
que fomos — amor adolescente intenso e pegando fogo — para o que somos
agora — seja lá o que for isso.
Mas senti saudade. Que bom que o braço dele está na minha cadeira.
Estou virada para ele. Se me recostasse — não vou me recostar, mas se me
recostasse —, estaria encostada nele.
O jantar vai bem, tudo seguindo às mil maravilhas. Até que começa a
música.
Sabe quando você escuta uma música e reconhece, mas não sabe de onde,
então olha para o lado, para longe, procurando a memória em vidas
passadas? Christian e eu fazemos isso ao mesmo tempo, e BJ percebe. Nada
que eu e Christian fazemos passa despercebido por ele.
Foi sem querer. O que aconteceu entre nós dois. Nunca foi minha
intenção que acontecesse.
Eu fiquei um desastre quando eu e BJ terminamos. Não um daqueles
desastres de fazer a gente diminuir a velocidade para ver o que aconteceu,
foi só… carnificina total, segue reto, cobre os olhos das crianças, esse nível
de desastre.
Não foi só o que aconteceu, mas a ausência dele, o jeito que minha vida
tinha crescido ao redor dele, que nem costelas ao redor do coração.
Minha vida inteira pareceu estar desequilibrada, e meu término com BJ
causou o tipo de confusão que se podia esperar num grupo de amigos como
o nosso. Ele ficou com os garotos; eu, com os Ps. Mas era difícil, porque os
garotos eram tão meus quanto dele. Eu os amava havia tanto tempo quanto
ele. Ainda mais, de certa forma.
Eu não perdi apenas BJ por não aguentar estar perto dele, perdi todos
eles.
Enfim, umas dez semanas depois do término, eu estava tomando café da
manhã sozinha no Papillion, quando Christian me viu pela janela e veio se
sentar. Ele pediu café, e acabamos passando o dia juntos.
Quando ele me deixou em casa à noite, tive uma sensação estranhíssima:
percebi que não tinha sentido tristeza nenhuma o dia inteiro.
Era inacreditável, sério. Desde o término com BJ, eu vivia arrasada, o dia
todo, todo dia. Até que, depois de passar sem querer um dia com Christian
Hemmes, me senti um pouco humana outra vez. Como se alguém tivesse
me resgatado.
Por isso, mandei mensagem para ele no dia seguinte, e saímos outra vez.
E outra, e mais outra.
Não sei quando passamos de amigos para mais do que isso; um dia,
acabamos numa chuva na rua Regent e nos protegemos numa cabine
telefônica. Eu estava congelando, o cabelo molhado e arruinado, grudado na
cara, e ele riu de mim enquanto afastava meu cabelo. Senti como se a mão
dele no meu rosto fosse a faísca que esperávamos, porque então ele desceu a
mão pelo meu pescoço e me puxou para mais perto. Nós nos olhamos antes
de ultrapassarmos esse limite, um acordo implícito de “Vamos fazer isso
mesmo?”, e ele me beijou.
Na hora, eu me senti culpada, mas foi bom. Foi um bom beijo. Um beijo
daqueles que a gente sente no corpo inteiro. Gostei do beijo, e gostava dele, e
sabia que provavelmente não deveria gostar dele, e sabia que gostar dele
destruiria Bê, e isso só aumentava meu desejo por Christian.
Ficou na cara desde o início que Christian se sentia bastante dividido.
Quanto mais tempo passávamos juntos, mais gritante ficava a situação.
Eu, ele e BJ, o fantasma que nos seguia para todo lado.
Às vezes, ele tentava justificar, dar todos os motivos para não estarmos
fazendo nada de errado: eu gostei de Christian primeiro. BJ tinha me
roubado bem debaixo do nariz dele. BJ havia me traído. Christian e eu
éramos amigos antes de eu virar amiga de BJ. Mas, às vezes, as justificativas
não bastavam, e ele terminava comigo. Ficava tomado pela culpa, não
acreditava que estava ficando comigo, logo comigo. Se BJ soubesse, mataria
ele. Christian me pedia desculpas e dizia que precisava encerrar aquilo, que
não podíamos mais sair. Na verdade, acontecia com tanta frequência que ele
terminava comigo quase toda semana; eu nem falava nada, só assistia a um
episódio de Outlander, e ele voltava antes de acabar.
Demorou mais ou menos um mês até BJ e os garotos descobrirem,
naquela noite horrível em que Jonah e BJ espancaram Christian e Henry me
carregou para casa e descobriu, no caminho, o motivo verdadeiro para o fim
do meu relacionamento com BJ.
Depois disso, Henry ajudou a nos acobertar. Era estressante e
emocionante, e Christian é tão lindo e tão forte e tão estoico que eu gostava
dele, e eu amava não estar sozinha. Amava passar o tempo todo com
alguém, preencher o espaço deixado por BJ com outra pessoa.
Terminamos depois de uns meses, apesar disso.
Christian era divertido e carinhoso, e eu gostava dele, talvez até o amasse,
mas ainda estava completamente apaixonada por BJ.
Christian sabia, e eu sabia. Ele não deveria ser substituto de ninguém, e
foi o que ele me disse antes de terminar.
Identifico a música bem quando Christian não disfarça o sorrisinho e
infelizmente reparo bem na hora em que BJ nota, o olhar ficando sério.
— Estão rindo do quê, vocês dois? — pergunta, olhando de mim para
Christian.
Todos à mesa ficam desconfortáveis. Eu dou de ombros.
— Nada.
— Nada, cara — diz Christian, abanando a mão.
BJ fica em silêncio. Franze as sobrancelhas e olha de Christian para mim.
— Nada? — repete.
Os Ps se entreolham, nervosos.
— Aham.
Dou de ombros, sorrindo para ele com tranquilidade, sem mostrar que
estou um pouco assustada. Ele me encara por alguns segundos e tira o braço
da minha cadeira.
BJ olha para Christian, ressentido.
— Esse sorrisinho não é por nada, porra…
— Bê… — digo, tocando o seu braço.
BJ me encara.
— Que porra de sorrisinho foi esse?
Ele fica ainda mais paranoico comigo e com Christian quando não está
sóbrio, o que é o caso.
— Quando a gente tava junto, a gente foi para Gwynedd. Estava
chovendo pra cacete. Ficamos atolados na lama. Só tinha uma lanchonete
por perto, então entramos. Estava tocando essa música lá. Só isso.
Foi a resposta de Christian, mas tem dois problemas.
Era só o esqueleto dos fatos, só a casca, sem a polpa, e todo mundo sabe
que a polpa é a melhor parte.
Naquela noite, nós dormimos no banco de trás do G Wagon dele, e até
hoje é uma das noites mais sexy da minha vida, e olha que nem transamos.
A gente nunca transou, na verdade. O que revela muita coisa, imagino.
Quase transamos, várias vezes. Mas, naquela noite… não sei se foi porque
dançamos juntos na lanchonete, ou porque estávamos congelando no carro,
embaçando os vidros e presos ali até de manhã, quando finalmente chegou o
reboque. Ele foi muito criativo, posso dizer isso.
O outro problema com o que Christian disse é que ele me encarou o
tempo inteiro enquanto falava. O que também não passou despercebido por
BJ. Ele olha com raiva para o irmão do melhor amigo. Hoje, eles dois não
são melhores amigos, isso eu garanto.
— BJ… — digo, segurando o braço dele e sacudindo, para ele me olhar.
— Faz o maior tempão…
— É, e você superou tudo que eu fiz já tem muito tempo, né?
Franzo a testa e balanço a cabeça.
— Não é a mesma coisa.
Ele se levanta da mesa, dividindo a atenção entre Christian e eu.
— Vão se foder vocês dois.
Ele volta a me olhar.
— Eu vou me foder também — afirma e vai até o bar.
Levo as mãos ao rosto, estressada e constrangida. Paili toca minha mão.
— Tá tudo bem? — sussurra, e eu não respondo.
Conto as doses que ele vira em sequência. Uma, duas, três, quatro.
Quatro. Merda. Sei o que acontece depois.
Ele leva vinte segundos para escolher uma garota. Cabelo loiro platinado
supercomprido (deve ser aplique), mega-alisado. Batom vermelho-escuro.
Olhos escuros. Vestido colado. Ele se aproxima, bêbado e charmoso, e vejo
nos olhos dela: está interessada. Óbvio. Como não estaria? Eles tomam mais
uma dose, dessa vez juntos.
Olho para Christian, angustiada.
— O que você vai fazer mais tarde? — pergunto, de brincadeira.
Ele me encara por um pouquinho mais de tempo do que deveria.
— Vai se foder — diz ele, furioso.
Eu não esperava raiva. Recuo, surpresa.
— Sério mesmo, vai se foder — repete.
Então ele pega a bebida e vira de uma vez. Em seguida se levanta, pega o
celular e vai embora. Jonah suspira, passando a mão pelo cabelo.
Henry me olha.
— Mandou bem.
Franzo a testa, confusa. Perry se seca com um guardanapo.
— Puta que pariu, o Daily Mail vai fazer a festa com essa.
Paili dá uma cotovelada nele.
Olho de volta para Bê no bar — o roteiro dele nunca muda. Ele aponta
para os olhos das garotas. “São de verdade?”, pergunta. Mesmo se for o par
de olhos mais sem graça possível, a maneira como ele olha para elas faz com
que acreditem que está sendo sincero. Então ele balança a cabeça, incrédulo.
Como olhos podem ser tão lindos assim?
Você já usou aparelho? Ele aponta a boca da moça. Mas ele faz isso para
olharem a boca dele, porque, depois de olhar a boca de BJ, já era.
Ele morde o lábio inferior e sorri, e aí pronto. Você vai dar pra ele no
carro ou no banheiro. Não vai nem chegar em casa. Não aguenta esperar.
Não tem essa força de vontade. Ninguém tem.
Ele chegou na parte do roteiro em que morde o lábio, e meu peito parece
que vai afundar, como se alguém tivesse sugado todo o ar lá de dentro. Não é
novidade. Ele galinha por aí. É o que ele faz. É por isso que não estamos
juntos, ele já fez isso antes, já fez um milhão de vezes, inclusive na minha
frente, e nunca é uma boa sensação, eu sempre sinto que vou morrer, mas
hoje é diferente.
Hoje me assusta que ele faça isso, aja dessa maneira. Como se ele
estivesse distante? À deriva? Ou talvez seja eu? E em geral não faz diferença,
estamos ancorados no mesmo porto. Não sei que porto é, só que sempre nos
encontramos lá, mas sinto saudade dele, fico de olhos marejados e, antes
mesmo de perceber, estou indo até ele e parando ao seu lado.
Ele me olha de relance, com o olhar já embaçado, muito bêbado.
— Oi, Parks.
— O que você tá fazendo?
— Você sabe o que eu tô fazendo — diz, com a voz arrastada.
— Bê… — começo e balanço a cabeça. — Para.
— Relaxa, Parks — responde ele, dando de ombros. — Eu e a…
Ele interrompe a frase. Toca o braço da garota.
— A… — insiste.
— Ivy — completa ela.
— Ivy — repete, concordando com a cabeça pesada. — A gente vai só
tomar mais uma bebida ou duas e vazar.
Balanço a cabeça.
— Você não precisa de mais uma bebida ou duas.
— E você lá sabe do que eu preciso? — pergunta ele, me olhando com
irritação.
Afasto o cabelo do rosto dele e deixo meus sentimentos estampados na
cara.
— Sei — digo, baixinho.
A expressão dele muda um pouco.
— Agora — continuo, me endireitando e ajeitando a gola da sua camisa.
— Quer ir pra casa com ela — pergunto, ignorando a menina —, ou
comigo?
Ele olha dela para mim e então aponta na minha direção com o queixo.
— Vem — digo, puxando ele.
Ele está um pouco tonto. Olho para nossa mesa, indico que vamos
embora e vou conduzindo ele para fora, até o carro.
— Vamos pra casa, Simon, por favor — peço ao motorista.
— Sim, senhora — responde Simon, assentindo.
BJ desaba no assento e fica olhando pela janela. Eu me sento no meio
para ficar mais perto dele, não porque ele precisa, mas porque eu quero. Ele
se vira para mim, os olhos cansados expondo todas as coisas que nunca diria
se estivesse sóbrio.
— Ele ainda olha pra você com desejo — diz BJ.
Nego com a cabeça.
— Não olha, não.
Porém, para ser sincera, eu não sei se é cem por cento verdade. BJ não
acredita.
— Eu não sinto nada por ele — garanto.
Bê volta a olhar pela janela, pensando com a mente embaralhada pela
bebida.
— Acabou comigo ver você com ele — confessa ele, olhando para fora.
Eu me aproximo, encostando a cabeça no ombro dele.
— Desculpa.
Ele pega minha mão, leva à boca e a beija, distraído. Continuamos assim.
Espero que continue assim para sempre.

09:42
Paili

Tá tudo bem?

Tudo certo.

Eu acho.

Acho que estamos bem?

Ficou meio parecendo que você & Bê estavam… juntos ontem?

Ficou meio parecendo pra mim também?

!!!!!!!!!!!
Para..

Puta merda. Acha mesmo?

Vai rolar?

Hahaha

Sei lá. Talvez.

Talvez não? Não sei?

13:02
Jonah

Cara. Que porra que aconteceu ontem?

Nada.

Fui pra casa com a Parks.

Depois de ela dar uma de empata-foda.

Ela empatou demais a foda mesmo.

Cara, e esse clima de casal???

Haha.

Talvez.

Vamos ver.

Você sabe como ela é. Se assusta fácil.

Por que você não tenta conversar com ela?

Em vez de pegar uma mina aleatória essa semana?

Ok vlw mãe bjs


ONZE

BJ

Não sei bem o que aconteceu comigo e com a Parks, mas alguma coisa foi. Já
fiquei com muitas garotas na frente dela ao longo dos anos, e ela nunca
interferiu… Mesmo que eu quisesse, esperasse que ela fizesse.
Somos teimosos pra caralho.
Não lembro muito de ontem à noite. Lembro de ficar de mãos dadas com
ela no carro. Meio bizarro pra gente, pra ser sincero… Às vezes eu pego a
mão dela para atravessar uma multidão, e até seguro um pouco mais do que
devia, mas nosso estilo é mais tocar sem encostar. Botões difíceis de fechar,
abotoaduras de camisa, zíperes que ela não alcança (mesmo que alcance),
fecho de colar — é essa a nossa rotina.
Mas isso foi diferente. Foi direto. Ela me despiu no banheiro. Tirou
minha jaqueta, puxou a camisa por cima da minha cabeça. Ficou nervosa e
colocou a mão no meu peito, me encarando por alguns segundos. Eu devia
ter beijado ela. Não sei por que não beijei. Não queria que ela se afastasse,
não queria que ela ficasse com raiva. Pegamos no sono abraçados. Eu estou
sempre dormindo na cama dela, mas a gente nunca se abraça. E eu beijei ela
na bochecha hoje antes de sair para a minha sessão de fotos, e pareceu algo
importante.
Tudo pareceu importante.
Por isso, quando liguei e chamei ela para sair comigo e com os caras hoje,
fiquei surpreso por ela recusar.
— Ah.
— É que… estou bem cansada.
Era mentira. Porra, a gente dormiu bem pra cacete. Além do mais, ela
mente mal demais, dá sempre pra perceber. Está assustada, sei lá.
— Saquei.
Dei de ombros, mesmo que ela não pudesse me ver.
— A gente se vê mais tarde? — perguntou ela, nervosa.
— É, talvez.
— Ok.
— Uhum — falei, mas o que eu queria mesmo dizer era “Eu te amo, e
você tá acabando comigo”.
Aí desliguei.
Estou saindo hoje com o único propósito de encher a cara. É meu estilo,
todo mundo já sabe. O pessoal já está na Raffles quando chego. Deve estar
estampado na minha cara o que rolou entre mim e Parks, porque Jo me olha
e diz:
— Eita.
— Tá na pista, irmão? — pergunta Henry, me olhando, e eu o ignoro.
Aí chegam as bebidas.
Sabe os momentos-chave da vida que se destacam — tipo, seu primeiro
beijo, a primeira vez que repara que seus pais são seres humanos comuns,
conhecer “The Scientist” do Coldplay, tropeçar e arrebentar feio o joelho,
primeira vez que vai parar no hospital, essas paradas todas? Conhecer Parks
está entre esses momentos para mim.
Ela devia ter uns quatro anos. Foi lá em casa brincar com Henry, e eu
estava jogando bola no quintal. Não sei como ela chegou do lado de fora,
mas chegou e ficou me observando. Era minúscula. Perninhas marrons
compridas, magricela. O cabelo dela era mais claro na época. Cabelo de
criança.
— Você é bom — elogiou, a poucos metros de mim.
— Valeu.
Sorri para ela, feliz de ter alguém prestando atenção em mim. Fiz uns
dribles que achava maneiros para me exibir.
— Eu podia ser melhor se eu quisesse — disse ela.
E, olha, eu tenho irmãs. De jeito nenhum ia falar para aquela garota que
ela não seria melhor do que eu. Mesmo aos seis anos, eu sabia que era
verdade. Ela era melhor do que eu. De todas as formas, em tudo…
— Provavelmente — concordei, pegando a bola e andando até ela. —
Meu nome é BJ.
— O meu é Magnolia Katherine Juliet Parks — falou e fez uma pausa. —
Henry é meu amigo.
— Henry é meu irmão — contei.
Ela me olhou, olhou pra valer.
— Gostei da sua cara.
Parks não se lembra de dizer isso. Mas eu lembro. Definiu a trajetória da
minha vida.
Eu passei o resto do dia nas nuvens. Provavelmente estou atrás desse
mesmo sentimento desde então. E às vezes queria voltar no tempo e dizer
para o meu eu de seis anos para dar no pé — essa garota vai acabar contigo,
você só vai conseguir pensar nela o tempo todo, ela vai assar biscoitos e
moer seu coração para usar de granulado, vocês dois vão se machucar, e
você nunca, nunca mesmo, vai superar. Mas não dá.
E, mesmo se desse, que partes eu mudaria? As partes em que estive com
ela? Jamais.
Mas, porra, essa dancinha nossa… Eu magoo ela, ela me magoa, eu
transo com alguém, ela namora outra pessoa — já é bem ensaiada. É a
minha vez. Imagine se eu não me rebaixasse… Imagine se eu já não tivesse
escolhido qual dessas garotas ao redor da nossa mesa vou levar pra casa.
Imagine se eu simplesmente telefonasse para a Parks, dissesse “eu te amo,
vamos nos resolver”. Queria ser assim. Não sou. Sou o cara na Raffles a uma
mesa lotada de garrafas, cercado por garotas que nunca vi. A maioria delas
não é daqui de Londres, acho. Uma delas está de olho em mim desde que
sentei. Pele clara, cabelo castanho, olhos azuis grandes. À medida que o
tempo passa, ela vai se aproximando mais e mais, e eu vou bebendo mais e
mais, porque é uma dessas noites. Quando ela já está do meu lado, descubro
que é de Surrey. Ela fala mais perto de mim do que é necessário, mas está só
deixando óbvio qual é a sua intenção. Bonitinha, na real. Bem elegante.
Então fico bastante chocado quando Surrey se levanta e praticamente
começa a rebolar no meu colo bem ali na frente de todo mundo.
Não é a primeira vez que isso acontece, não sou nenhum santo. Só não
esperava isso de alguém que parece andar exclusivamente de motorista.
Jo me olha de esguelha. A garota coloca a bunda na minha cara, sarra no
meu colo, beija meu pescoço, me beija, e eu fecho os olhos. Não me importo
de estar numa boate e ter gente me olhando, porque essa gente toda já me
viu — até que alguém me dá um tapa.
Jonah. Jonah dá mais um tapa no meu braço. Abro os olhos e, atrás de
Surrey, vejo um borrão cor-de-rosa: Parks decidiu aparecer, no fim das
contas.
Ela está boquiaberta. Pálida.
— Merda — xingo, empurrando Surrey para longe.
É a deixa para Magnolia se mexer. Ela dá meia-volta e começa a abrir
caminho pela multidão, mas eu a alcanço e a pego pelo braço, puxando-a de
volta.
Balanço a cabeça.
— Parks…
Ela me empurra, com um olhar furioso.
— Não encosta em mim.
— Você falou que não vinha…
— Ah, tá! Lógico! — exclama ela. — Foi mal! Por favor, pode continuar…
— Parks — suspiro, tentando segurá-la.
Ela se aproxima da minha cara, me olha bem nos olhos e bate no meu
peito.
— Você me dá nojo.
DOZE

Magnolia

Era madrugada de sábado, uns três anos atrás. Ele tinha ido a uma festa. Eu
estava doente, acho. Por isso não estávamos juntos. Ele e Jo tinham feito
planos, e ele disse que ia cancelar, mas eu respondi que não me incomodava
que ele fosse. Estava exausta e não queria que ele pegasse minha gripe.
Ele entrou no meu quarto, fechou a porta e começou a andar em círculos.
Estávamos juntos já tinha mais de cinco anos, e eu nunca o tinha visto
daquele jeito. Ele quase parecia chapado, mas não de um jeito divertido.
Maníaco.
— Parks — começou.
Ele estava respirando estranho. Dava para escutar.
— Parks.
Ele não parava de andar em círculos.
— O que houve? — perguntei, franzindo a testa.
Ele balançou a cabeça.
— Eu fiz uma coisa.
— Como assim? — perguntei. Levantei e fui até ele. — Tá tudo bem?
— Não é isso… — disse ele, passando a mão pelo cabelo. — Eu fiz uma
besteira.
— Tá…?
Minha voz soou frágil, mais do que eu imaginava ser capaz, e um buraco
começou a se abrir no meu estômago, que nem um sumidouro se
escancarado bem no meio de mim.
Senti o que viria antes mesmo que ele falasse.
— Eu transei com uma pessoa.
Acho que meu sangue gelou. Não consegui encará-lo. Ele cobriu a boca
com a mão. Parecia que ia vomitar.
— Quê? — perguntei, piscando sem parar.
Ele não disse nada.
— Como assim? — insisti.
Ele me olhou, ainda em silêncio, a expressão suplicando para eu não fazê-
lo repetir.
— Quando? — perguntei, baixinho.
— Agora — respondeu, tentando tocar em mim.
— Agora?!
Eu me desvencilhei das mãos dele e recuei, tropeçando.
— Foi sem querer.
Ele tentou me alcançar de novo, respirando ofegante.
— Como foi sem querer? — gritei, analisando o rosto dele, procurando
algo familiar em que me segurar.
— Só aconteceu…
Eu o empurrei.
— Como?! — berrei.
Cobri a boca com as mãos. Eu não reconhecia os sons que saíam da
minha garganta. Pareciam vindos de outra pessoa.
— Com quem você estava?
— A gente tava lá em casa, teve uma festa, aí eu bebi e…
— Cala a boca.
Balancei a cabeça, com urgência.
— Não era minha intenção…
— Para!
Joguei nele um vaso Lalique cheio de hortênsias que ele tinha comprado
para mim na véspera. Ele se esquivou.
O vaso caiu no chão.
— Parks... deixa eu explicar.
Ele tentou me tocar de novo, os olhos marejados.
Eu recuei bruscamente.
— Não encosta em mim. Você é nojento.
Pela cara que fez, vi o coração dele se despedaçar, e corri para o banheiro,
trancando a porta. Fiquei chorando ali por quatro horas, e ele ficou sentado
do outro lado da porta, também chorando sem parar. Ele chorou tanto que
começou a ter uma espécie de ataque de pânico. Estava respirando
engasgado, como se o ar ficasse empacado na garganta, sem chegar ao peito.
Como se fosse sufocar. Abri a porta e fui apressada para o lado dele, me
sentando no seu colo. Segurei seu rosto e respirei junto com ele, em silêncio.
Inspira, expira, inspira, expira. Fiz o que ele fez comigo todas aquelas vezes
em que tive ataques de pânico, dos quais nem gosto de lembrar. A respiração
dele acabou entrando no ritmo da minha, e ele não desviou o olhar de mim
nem por um segundo. Os olhos estavam ainda mais azuis por conta do
choro.
Que parada mais fodida é consolar a pessoa que acabou de arrebentar a
sua vida. Uma merda, um horror que não dá para descrever.
Mas a verdade é que, quando se ama alguém como a gente se ama, não
importava o que ele fizesse comigo — ele podia ter me atropelado com um
ônibus, e meio que atropelou —, porque instintivamente eu ainda teria feito
tudo que podia para ele não se sentir daquela maneira.
Por muitos anos, a dor dele era a minha dor. Mas aquela dor, a dor pela
qual ele estava chorando, era minha. Ele estava chorando as minhas
lágrimas, sentindo o que tinha feito comigo, arrasado pelas próprias
atitudes. Ele chorou junto ao meu pescoço e se desculpou tanto que as
palavras perderam o sentido, pararam de soar como palavras.
Ele me abraçou apertado, acho que nunca tinha me abraçado tanto. Falou
que tinha sido um erro, que nunca aconteceria de novo, que tinha sido só
daquela vez, e então tentou me beijar. Eu recuei e o encarei, a expressão
muito séria.
— A gente… — comecei e segurei o rosto dele para ele me olhar nos
olhos. — Me escuta... escuta. A gente acabou.
Fui direto para o quarto da Marsaili, e ela trancou a porta. Ela me
abraçou enquanto eu chorava, e eu caí no sono e só acordei 36 horas depois.
O resto você já sabe…
Minha devastação pelo que aconteceu e pelo que ele fez era pouca coisa
se comparada com a saudade que eu sentia e com a minha vontade de estar
com ele, porque ele é o tipo de pessoa com quem se quer estar a qualquer
custo — e acredite: era muito custo. Aprendi a encará-lo de novo, aprendi a
não chorar sempre que tínhamos que nos despedir, aprendi a respirar
enquanto ele flertava com outras pessoas, descobri que ainda conseguíamos
nos comunicar sem precisar de palavras e, no meio de toda aquela dor,
encontrei meu amigo.
Acho que é porque eu sou fraca. Era mais fácil ser amiga dele do que não
ser. Muito da minha vida, talvez até muito de quem eu sou, no fundo, pode
ser atribuído a ele, a nós.
Tudo de maravilhoso, tudo de mágico, tudo de doloroso, tudo de lindo,
de espetacular, de horrível e de transformador que já aconteceu comigo
aconteceu quando eu estava com ele.
E eu o odeio por isso.
TREZE

Magnolia

Eu só recusei porque queria tempo para pensar. Precisava… Não queria


estar numa boate no meio de todas essas outras garotas que querem pegar o
BJ enquanto tentava decidir se seria possível ficar com ele de novo, se
conseguiria, porque a noite passada me pareceu impactante.
Foi o mais perto que chegamos de estar juntos desde que terminamos, e
foi o mais feliz que me senti em anos. Quando percebi isso, fiquei com
medo. Medo de ele fazer tudo de novo, de ele estragar tudo. Por isso, quando
BJ ligou para me chamar para a Raffles hoje, eu recusei, porque não sabia
como estar com ele depois de ontem, de ficarmos de mãos dadas e de
dormirmos de conchinha, de afastar o cabelo do rosto dele — eu não podia
estar perto dele enquanto não tivesse ideia de como decifrar as coisas.
Só que, sentada no quarto sentindo saudade dele, querendo estar com ele,
frustrada por ele não estar lá comigo, decidi que a escolha responsável — a
escolha madura — seria encontrá-lo e contar isso tudo. Que eu gosto de
segurar a mão dele, que quero continuar a fazer isso. Que gosto de dormir
de conchinha com ele, que foi a minha melhor noite de sono sem remédios
nos últimos três anos. Que afastar o cabelo do rosto dele foi o mais próximo
que me senti de alguém desde que terminamos.
Por isso, coloquei meu vestido cor-de-rosa da Balmain, de decote
quadrado e saia curta, e as botas de camurça, cano alto e salto fino da
Casadei. Peguei um táxi até a Raffles e, chegando lá, a primeira coisa que
vejo é aquela garota horrenda se esfregando nele.
Ele recostado na cadeira, amando cada segundo, de olhos fechados, se
deleitando com a sensação… Segurando ela pela cintura, pegando naquelas
coxas ridículas. É assim que ele se comporta quando eu não estou por perto?
É assim que ele estava na noite em que destruiu a gente?
Ele me vê e vem correndo, e eu não enxergo mais nada. Acho que é um
ataque de ansiedade, e minha visão embaça. A música diminui, mas não tem
como diminuir, é uma boate. Talvez o sangue nos meus ouvidos esteja mais
barulhento? Vou vomitar? Estou chorando?
Aí o mundo se apaga. Nossos olhares se cruzam. E uma camada de vidro
impenetrável surge entre nós. Não podemos nos tocar, não podemos nos
falar, e não há nada a dizer além de ele gritar para o vidro que sente saudade
e eu gritar de volta que sinto também, e ele gritar que se arrepende e eu
gritar que isso não é o suficiente. Nosso rosto congela no que parece amor
desenfreado, mas não pode ser, porque eu não o amo mais. Não posso.
O momento passa. O vidro desce.
— Você me dá nojo — cuspo para ele e vou apressada em direção ao bar,
na esperança de obter alguma segurança e me sentir melhor do que indo
embora.
Se eu for embora, ele vai para casa atrás de mim. Se eu ficar aqui, pelo
menos há pessoas entre nós.
Sempre há pessoas entre nós.
Ele me encara do outro lado do salão, mas me recuso a encontrar seu
olhar. Os olhos dele estão caídos, tristes. Ele já está trocando as pernas. Ele
me observa, pega uma garrafa de Patron, arranca a rolha com os dentes,
cospe no chão e bebe direto da garrafa, então abre bem os braços, “fazer o
quê?”, desaba no sofá, e a garota volta a rebolar no colo dele, passando as
mãos por baixo da camisa floral amarela e marrom de manga curta da
Marni. A camisa está desabotoada demais. Quero ir até lá e abotoar. Não
quero que mais ninguém além de mim veja tanto o corpo dele.
Respiro pela boca, sopros curtos e superficiais demais para ajudar, mas
sentir o ar nos lábios ameniza um pouco a situação.
É então que sinto alguém ao meu lado.
— Magnolia Parks.
É uma voz que reconheço vagamente, mas não identifico na hora. Viro o
rosto, e é ótimo dar de cara com o solteiro mais cobiçado da Tatler desde
que Harry saiu da lista — dois metros e um milhão de centímetros, olhos
azuis-gelo, cabelo loiro jogado de lado, quilômetros de músculos e ombros
largos e um sorriso que só é páreo para o do meu ex-namorado.
— Tom England — cumprimento, sorrindo para ele, surpresa.
Além de ser um galã profissional em tempo integral, Tom é piloto. Quer
dizer… é óbvio que é. Ele não precisa ser, por sinal. O patrimônio dele vale
uns zilhões. Ele só gosta de voar. Gosta de ter um compromisso. Foi o que
Gus me contou, pelo menos.
— Veio fazer o que aqui? — pergunto, olhando ao redor, um tanto
impressionada com a sua presença.
— Resolvi passar um tempo mais perto de casa.
Ele abre um sorriso breve. A camada superior da sociedade britânica é
construída com base nesses sorrisos.
— Como você tá? — pergunta, com um gesto carinhoso.
— Bem — respondo, confirmando com a cabeça. — Tudo bem…
Ele hesita.
— Certeza? Eu vi… — diz, indicando BJ.
— Ah. — Rio. — Então não.
Eu devia ficar envergonhada. É uma vergonha Tom England ter visto isso.
Mas não fico. Ele sorri.
— Posso pagar uma bebida pra você?
Assinto.
— Quer saber, Tom England? Pode pagar várias.
Ele dá duas batidinhas no bar para chamar a atenção do barman.
— Deixa comigo.
Tom England não estudou em Varley. Acho que estudou em Hargrave-
Westman. É um pouco mais velho do que eu. Vinte e nove, acho? Talvez
trinta.
Quando a gente era adolescente, todo mundo tinha um crush nele, acho
que até os meninos. Ele é tão elegante, tão lindo, o príncipe-eleito da alta
sociedade londrina. Ele é charmoso, inteligente e faz a gente perder a noção
do tempo quando está por perto. Não tem nada de imaturo nele, o que é
uma delícia. Muito diferente do que estou acostumada com meu batalhão de
meninos perdidos piranhudos que tomam decisões terríveis, idiotas e
lamentáveis o tempo todo. Aparentemente. Aposto que Tom só toma boas
decisões.
Ele não aparece tanto na mídia. Costuma ser mais discreto, se manter
afastado de festas nas quais pode ser fotografado, e, por algum motivo, isso o
deixa um pouco mais sexy.
Pegamos uma mesa para dois. BJ já foi. Sabe-se lá para onde. Para uma
cabine no banheiro, provavelmente. Mas ainda vejo Henry e Jonah, que me
observam atentamente. Sinto o olhar deles em mim.
Ainda mais do que o normal…
Normal é: sem o BJ por perto, eles só ficam de olho na situação.
Anormal é: isso. Parece que estão prestes a pegar óculos de visão noturna
e um drone de controle remoto. Encaro meus amigos, tentando insinuar
com o olhar para eles vazarem e me deixarem em paz, mas eles não falam a
mesma língua telepática que eu falo com BJ.
Tom me observa por alguns segundos, semicerrando um pouco os olhos.
— Tá se sentindo melhor? — pergunta, mexendo o uísque no copo.
— Ah — reflito. — Vai levar uns dias pra tirar essa aí da memória.
Ele ri um pouco.
— O Ballentine sempre foi meio babaca — diz, depois para. — Eu gosto
dele, é um moleque simpático.
Mal contenho o prazer de ouvir Tom se referir a BJ como “moleque”. Bê
sempre disse — palavras dele, não minhas — que Tom England é “o Cara”.
Ele morreria se soubesse que Tom England o chamou de moleque.
— Mas ele é meio… burro. Especialmente com você.
Ele soa irritado com essa última parte.
— Comigo? — pergunto, sorrindo, me sentindo incrivelmente superior.
— Sim.
Ele confirma com a cabeça. Estou nas nuvens — quando era criança,
passei uma festa toda no Castelo de Windsor correndo atrás dele. Abro um
sorrisinho grato.
— Ei — diz ele, apontando a porta. — Quer sair daqui? Tomar a saideira
em outro lugar?
Aceito rapidamente, confusa. Tento passar uma imagem confiante e
decidida, mas acho que devo estar apenas parecendo perdida. Tom England
está me chamando para sair? Ele pega meu casaco, abre para que eu vista —
que charme — e me segura pela cintura, me virando de frente para ele.
— Espera… preciso fazer uma coisa.
Então ele levanta meu queixo e me dá um beijo suave. Nem retribuo o
beijo, de tão deslumbrada. Ele se abaixa um pouco e cochicha:
— Os garotos vão contar pra ele que eu fiz isso.
Então ele pega minha mão e me leva embora. Olho para Jonah e Henry
do outro lado da multidão, e, como previsto, os dois estão de olhos
arregalados, e Henry mal parece acreditar. Dou um tchauzinho.
Os dois acenam de volta, sem saber bem o que fazer, e Tom me leva até a
rua.
Olho para ele, esperando instruções.
— Alguma sugestão? — pergunta ele, sorrindo animado para mim, as
mãos nos bolsos da jaqueta.
Nego com a cabeça. Gosto que ele me diga o que fazer. Ele sorri, faz que
sim.
— Tem um lugar legal, fica a uns dez minutos daqui a pé…
Aí ele faz aquele negócio muito sexy, muito adulto, de botar a mão na
minha lombar, mas definitivamente não na minha bunda, para me conduzir.
É só por alguns segundos, mas me deixa fascinada, porque Paili recortou
uma foto do Tom na Tatler e botou na colagem de homens gatos na parede
do dormitório na escola, e agora cá estou eu, indo beber com ele depois de
ver o amor da minha vida se esfregar numa garota horrorosa que só posso
supor ser de Surrey, considerando as sobrancelhas agressivas.
— Espera — digo, parando, confusa. — Você falou a pé?

* * *

— Você não se cansa às vezes? — pergunta ele, se recostando na cadeira do


Barts e passando a mão pelo cabelo.
— Do quê? — pergunto, franzindo a testa.
— Dessa… merda? — diz ele, dando de ombros. — Da sociedade. Do
dinheiro?
Balanço a cabeça, rindo.
— Fico muito feliz com bens materiais.
— Bom saber — diz ele, com um sorriso irônico.
— O amor acaba, mas as coisas são para sempre.
Dou um tapinha na minha bolsinha de tricô da linha Devotion da Dolce
& Gabbana, que custou três mil libras.
— Não gosto das pessoas prestando atenção — admito. — The Sun,
revistas de fofoca, o Daily Mail… — Aponto para uma pessoa no canto. —
Faz umas semanas que aquele ali tá me seguindo, tentando tirar uma foto
feia minha.
— Impossível. Não tem como você ficar feia — diz ele, e pensa um pouco
a respeito. — Sabe, isso aí não acontece tanto comigo — revela, apontando
com a cabeça para o idiota no canto com a lente teleobjetiva.
— Eles acabam virando só mais um na multidão depois de um tempo —
afirmo, dando de ombros.
Ele me dá um tapinha no braço.
— Como você tá?
— Na verdade, estou me divertindo bastante.
Ele recua, fingindo estar ofendido.
— Na verdade?
— Olha, considerando que minha noite começou com BJ se esfregando
na próxima integrante do Little Mix… minhas expectativas eram bem
baixas. Mas estou me divertindo.
— Então redimi sua noite?
— Redimiu? — brinco, com uma risada baixa. — Estou num bar com
Tom England, e, um pouco antes, ele me beijou para provocar ciúme no
meu… sei lá, o que quer que ele seja.
Ele semicerra os olhos, achando graça.
— Por que você sempre fala meu nome completo?
Eu aperto os lábios.
— Quando a gente era menor, todas nós tínhamos crush em você. Em
você e no Sam. Eu era completamente leal a você, Tom, mas Paili se dividia
entre você e seu irmão… — revelo, sorrindo. — Na época, vocês pareciam
tão maiores do que a gente.
Ele me olha.
— Ainda sou muito maior do que você.
Não sei por que isso é sexy, mas é.
— Uma vez, nas férias — digo e fico corada só de pensar —, a gente
estava na Costa Amalfitana ao mesmo tempo que vocês e as garotas. E eu e
Paili fomos de Aquariva para a praia Tordigliano e…
Eu começo a rir, o rosto ardendo.
— Ah, não…
— Você e Erin estavam na praia — tento escolher as palavras com
cuidado — como vieram ao mundo.
Ele me olha, achando graça.
— Um jeito muito educado de descrever a situação.
— E acho que vocês não ouviram nem viram o barco, ou apenas não
ligaram, não sei, e a gente ficou morta de vergonha de ter visto, mas
também…
Desvio o rosto, exagerando os olhos arregalados e o biquinho.
Ele começa a rir.
— Porra! Que vergonha.
— Não! — exclamo, balançando a cabeça. — Foi muito…
— Ilegal? Sórdido? Algo que faria minha mãe chorar?
— Sim, tudo isso, mas ainda não é a palavra que estou procurando.
Ele sorri.
— Inspirador! — concluo, e ele ri alto, batendo o punho na mesa.
— E o que exatamente teve de inspirador?
— Ah — provoco, com uma piscadela. — Você bem que gostaria de
saber.
— Quero, sim. Quero muito — admite ele, com um sorriso travesso,
antes de sua expressão mudar. — Seu humor parece estar melhor.
Ele morde uma pimenta padrón.
— Tá, sim
— Então — diz ele, limpando as mãos. — Me conta: como é estar
apaixonada por alguém que te magoa o tempo inteiro?
Por um momento, fico completamente chocada. Pisco várias vezes e solto
uma risada de espanto.
— Horrível.
Ele confirma com a cabeça, frio.
— Imagino. Mas você também magoa ele.
Franzo a testa.
— Como você sabe?
— Com um rosto que nem o seu? — questiona, apontando para mim
com a cabeça. — Porra, dói até em mim. Estou sentado aqui, na sua frente,
sem esse histórico, sem estar apaixonado por você, aí você parece triste por
eu ter feito essa pergunta e já sinto vontade de cortar os pulsos.
Ele ri um pouco, parecendo também meio triste.
Eu penso por um instante.
— Não confio nele.
Ele assente.
— Justo.
— Eu tinha um namorado — começo. — Ele era meio que um disfarce?
Uma barreira que BJ não podia ultrapassar, porque tinha alguém no
caminho.
Não sei por que estou contando isso para ele. Nunca falei disso em voz
alta.
— E aí a gente terminou. Porque ele foi escroto. E, na real, eu também.
Ele abre um sorriso triste, como se entendesse.
— Mas agora estou em terra de ninguém — continuo —, no meio do
tiroteio, sem nenhuma trincheira à vista.
Ele me examina por muito tempo. Muito mesmo. Pelo menos uns dez
segundos, e eu vejo as engrenagens girarem na cabeça dele.
— Eu posso ser a sua trincheira — diz por fim.
Eu me recosto na cadeira, meio surpresa, e olho para ele sem entender.
Ele dá de ombros.
— É sério.
Continuo a encará-lo.
— Você pode ficar com qualquer mulher de Londres.
— Sim — concorda. — Mas, para ser sincero, eu sempre fui meio a fim de
você.
Eu morro. Ele continua:
— E não posso namorar ninguém agora. Depois do Sam… — diz,
balançando a cabeça. — Tem muita merda que preciso resolver e… muita
coisa rolando agora.
— Ah.
Fico triste por ele. Ele parece triste.
— Eu seria um péssimo namorado — afirma, sério, antes de voltar a se
animar. — Mas seria uma trincheira e tanto.
Apoio o queixo na mão e franzo a testa, curiosa.
— Tá falando sério?
Ele assente.
— Mas… como seria? — pergunto, remexendo distraída no meu brinco
de argola de diamantes Sydney Evan. — A gente fingiria estar juntos? Gostar
um do outro?
— Sim, que nem seu ex-namorado, mas agora os dois sabendo disso —
brinca, sorrindo para mim.
Olho desconfiada para ele, como se a mera ideia já não fosse
completamente incrível.
— Você tá tentando transar comigo? — pergunto, meio de brincadeira.
— Ah, com certeza. Se vamos ou não transar, fica por sua conta.
Faço uma careta.
— Não sou muito de… sexo casual.
Ele dá de ombros.
— Imaginei. Não custa tentar — diz, cruzando os braços no peito largo e
forte. — E aí, o que me diz? Topa uma trincheira sem sexo?
— Você topa? — Rio, confusa.
Ele confirma com a cabeça, tranquilo.
— Vai me acompanhar nos eventos? — pergunto, e ele faz que sim. —
Segurar a minha mão? Me levar pra fazer compras?
— Sim e sim.
Dou uma piscadela.
— Vai me beijar?
Ele ri.
— Passei a noite inteira tentando fazer isso.
— Ah — digo, me inclinando por cima da mesa. — Vou facilitar as
coisas, então.
Ele sorri um pouco ao se abaixar, roça a boca na minha e me beija, suave.
Há o flash distante de uma câmera no restaurante. Ele sorri, nossas bocas
ainda unidas.
Eu me afasto um pouco.
— Acho que isso vai dar muito certo.

23:46
Henry

Tudo bem?

Ótimo!

Haha
Chegou bem em casa?

… Você sabe que eu cheguei.

Haha

Por que você não me pergunta logo o que tá querendo


perguntar, intrometido?

Você foi com ele pra casa?

Quem quer saber?

Eu.

Seu amigo mais antigo no mundo.

Só você?

Uhum.

Não.

E se o Bê perguntar…?

Pode confirmar que transei com o Tom England.

Duas vezes já.

Combinado.
CATORZE

BJ

Eu acordo e tem uma garota do meu lado na cama, com as sobrancelhas


mais bizarras que já vi na vida. Foram pintadas? Tatuadas? Que porra é essa?
Eu tava tão bêbado assim? Eu nunca deixo garotas passarem a noite aqui. Ela
ainda está dormindo, então saio da cama de fininho, como um espião, com
medo de acordá-la e precisar ter uma conversa sóbria sobre sei lá o que
fizemos ontem à noite. Me esgueiro para fora do meu próprio quarto e vou
para o andar de cima.
O sol parece bem alto. Meio-dia, se tivesse que chutar.
— Eiii — cantarola Jonah quando vou em direção à geladeira para pegar
uma garrafa de água.
— Foi uma noite daquelas — comenta meu irmão, se endireitando no
sofá. — Como você tá, cara?
Lanço um olhar feio para ele, aquele babaquinha convencido. Bocejo e
me estico.
— Enferrujado. — Esfrego a cabeça. — O que rolou?
E então Jonah e Henry ficam imóveis e se olham.
— Você, é… — Jonah pigarreia. — O que você lembra de ontem à noite?
Esfrego as têmporas com a base da mão.
— Cheguei lá, bebi pra caralho. Acho que a garota lá embaixo meio que
rebolou no meu colo? Depois… — Jonah faz que sim. Até agora, acertei
tudo. Mas ele parece esquisito. Então eu me lembro. Congelo. — Porra.
Caralho! — Olho de um para o outro. — Parks.
Henry faz uma careta desconfortável e assente. Levo as mãos ao rosto e
tenho a sensação de que vou vomitar. Consigo ver a cara dela nitidamente
na minha cabeça. O quanto eu a magoei. Como é que eu poderia machucá-
la assim de novo? Solto um grunhido, enfiando o rosto no banco.
— É… — Jonah pigarreia de novo. — Não foi só isso.
Viro o rosto no mármore frio, desolado.
— Você ou eu? — pergunta Henry, andando até mim.
Jonah balança a cabeça.
— Essa é contigo, irmão…
Henry respira fundo e reflete por um segundo.
— Bê — começa ele. — Você se lembra do Tom England?
— Lógico! — Eu me endireito. É uma lenda. Provavelmente um dos caras
mais maneiros do planeta. — O que tem ele? — Começo a entrar em pânico.
— Ah, cacete, eu não bati nele ou algo do tipo, né?
(— Ainda não — suspira Jonah baixinho.)
— Então — diz Henry, coçando o queixo. — Magnolia saiu da Raffles
com ele ontem à noite.
— Quê? — Franzo os lábios, confuso. — Tipo, ele deu uma carona pra
ela?
(— Deu é outra coisa, talvez? — Henry sussurra para Jo.)
Jonah está sério.
— Hum — grunhe Jonah, alto demais. — Não foi bem isso. Eles, hum,
saíram… juntos.
— Não, mas, tipo, o cara só deixou ela em casa. — Dou de ombros. — Ele
tem namorada.
— Erin? — Henry franze a testa, balançando a cabeça. — Bê, eles
terminaram há mais de um ano.
— Espera… — Pisco devagar. — Você tá dizendo que ele e Parks
saíram… juntos. Tipo, juntos, juntos?
Aquilo não faz sentido. Tom England. Nós somos amigos.
Henry me lança um olhar, balançando a cabeça.
— Eles se beijaram, Bê.
Viro em direção a Jonah.
— Quê?
Jonah se retrai, assentindo.
— Como foi o beijo? — pergunto, em pânico.
— Ah, do pior tipo, com certeza. — Henry faz uma careta. — Carinhoso.
— Puta que pariu! — grito. Jonah assente, entendendo na hora. — Você
tá me falando que ontem, depois da merda colossal que eu fiz, a mulher dos
meus sonhos foi pra casa com o cara com quem ela fantasiava se casar desde
que tinha nove anos?
Eu encaro os dois, incrédulo.
— Bom, o cara é boa-pinta. — Jonah assente. — Ele estava na lista dela,
né? Tipo, a lista de quem ela estava liberada pra pegar.
Fico olhando para eles, sem reação.
— Foi mal. — Jonah coça a nuca. — Não sei por que eu… deixa pra lá.
Ele é um filho da puta…
— Puta que pariu! — grito de novo. — Merda! Cacete. Caralho!
Henry estreita os olhos.
— Que isso, um derrame?
— Por que você não impediu ela? — pergunto, os olhos desesperados.
— Tá, aham. “Ô, Magnolia, eu sei que você e o Bê tiveram um momento
muito fofo na outra noite, e aí você acabou de ver ele se roçando como se
não houvesse amanhã com uma mina aleatória, mas me faz um favorzão e
não sai daqui com o cara mais gato da Inglaterra.”
— Henry! — grito, enfurecido.
Enterro as mãos no meu cabelo. Estou suando.
— Bê. — Jonah toca meu braço. — Vai ficar tudo bem.
— Eu não sei. — Henry dá de ombros. — Ele tá certo. Parks e England?
Eles meio que combinam.
— Puta que pariu — grito de novo.
E então Surrey aparece.
— É… — Ela fica parada, nervosa.
Olho para ela, arregalando os olhos.
— Cacete!
— Você tá b…
Balanço a cabeça. Não tenho palavras coerentes sobrando no meu
vocabulário. Mas a resposta é não. Henry solta uma risada em forma de
desculpas, tentando amenizar a situação.
— Oi. Meu nome é Henry, esse é meu irmão. Ele acabou de descobrir que
ontem a mulher dos sonhos dele foi pra casa com o cara dos sonhos dela, e
ele só tá demorando um pouquinho pra processar…
Chuto a geladeira. Solto um palavrão. Chuto de novo.
— Hum. — Ela pisca, olhando para mim, provavelmente mais
preocupada consigo. — Posso… devo… fazer alguma coisa?
Henry assente.
— Ir embora, né?
— Mas eu… — Surrey começa.
— Escuta. — Henry abre um sorriso simpático. — Ele pegou seu
número? — Ele para. — Tá, tanto faz, ele não vai te ligar. Falta um palavrão
pra ele superar o Samuel L. Jackson…
Grito “porra” de novo. Jonah está rindo um pouco, tentando se conter,
acho. Não estou fazendo graça. Sinto meu cérebro derretendo. Isso é um
pesadelo. Parks e Tom England? O pior pesadelo de todos. Porque faz
sentido. Eles combinam. Mais do que nós combinamos. Ele nunca a traiu,
nunca a machucou. Ele não tem má reputação.
E ele é mais velho do que eu, é um piloto e parece a porra do Thor. Eu
pressiono as mãos na boca.
Surrey já não está mais ali. Henry se aproxima.
— O que você vai fazer? — pergunta tranquilamente, como se o céu não
estivesse caindo sobre a nossa cabeça.
— Ela foi pra festa. — Olho para eles. — Ela me disse que ia ficar na
cama.
— E aí você foi pra cama — diz Henry, com um olhar brincalhão. — Só
que com outra pessoa.
Eu o encaro.
— Será que o England também foi pra cama? — pondera Henry, só para
me zoar.
Jogo a garrafa de água nele.
— Vai se foder! Isso não é engraçado!
Jonah encara Henry.
— É um pouco engraçado, sim. — Henry dá de ombros.
— Hen… — Jonah acena na minha direção, como se eu não estivesse
vendo os dois.
— Que foi? — questiona Henry. — Tipo, é irônico. Considerando que BJ
foi pra casa com a Anti-Parks, e Parks foi pra casa com o BJ Premium.
Esfrego as mãos no rosto, estressado. Henry fica mais uma vez com uma
expressão pensativa.
— Ei, e se ela disse que não ia só porque estava pensando em tudo, e aí
decidiu ir porque ela queria tipo voltar com você e tal, e você, já que é um
escroto…
— Henry — diz Jonah, encarando-o.
— Já que você é um escroto… — continua Henry, mais alto. Ele gosta
mais da Parks do que de mim na maioria dos dias. É sua amiga mais
antiga… Ele nunca me perdoou pela traição. — … você estragou tudo no
primeiro problema que surgiu.
Jonah gesticula para mim. Estou encarando o vazio.
— Como é que isso vai ajudar?
Henry dá de ombros, ao mesmo tempo otimista e contraditório.
— Tá. — Jonah olha para mim. — A Parks não é assim. Ela não transaria
com ele só porque viu você… — Ele não termina a frase, parecendo
desconfortável. — Sabe.
Eu olho na direção dele, esperando.
— Só vai lá falar com ela, Bê.
QUINZE

BJ

Eu dirijo até lá. Gosto de dirigir. Não consigo dirigir para muitos lugares
porque ter um carro em Londres é irritante pra cacete. Mas eu tenho uma
Bugatti Chiron Sport 110 ANS, e é bom levar ela pra dar uma volta quando
posso.
Ir até lá parece que demora três vezes mais que o normal, e fico suando
igual a um porco o caminho todo enquanto me questiono se Jo está certo, e
acho que ele está. Parks não é de sair dando pra qualquer um. Ela não é
assim. Eu me pergunto por alguns segundos qual seria a sensação de entrar
no quarto dela e ver outro cara na cama. Odeio pensar nisso.
Chego entrando na casa em Holland Park. Tenho a chave. Não aviso a
ninguém que cheguei. Não estou com a menor paciência para afastar
Bushka, eu só preciso vê-la. Entro no quarto, e ela ainda está na cama,
debaixo das cobertas — sozinha, ainda bem —, encarando o teto. Ela olha
para mim. O cabelo está desarrumado de um jeito bem sexy, a boca corada
como sempre fica de manhã, sem maquiagem. Porra. Aquele rosto. Eu faria
qualquer coisa por esse rosto.
Ela franze a testa quando me vê.
— Como tá o tempo aí, Parks?
Ela me encara, pisca algumas vezes e volta a olhar para o teto. Frio pra
cacete. Merda. Isso não é bom.
Essa é nossa pergunta. Ela nunca deixa de responder.
Vou até a cama e me sento na beirada.
— Oi.
— Ah! — Ela se senta. — Que bom que aquela garota tirou a língua da
sua boca para você vir aqui me dar um bom-dia. Que legal da parte dela.
— Parks…
Ela olha para mim, e dá para ver que tinha chorado. Os olhos dela estão
meio vítreos. Como se fossem joias, ou alguma outra merda na qual eu já caí
um milhão de vezes — e vou cair de novo, porque olha só para ela. Não é
justo que eles consigam fazer isso, é de matar. O que dizer? O que eu posso
dizer?
— Você tá bem? — pergunto, um pouco hesitante.
Ela olha para mim. A resposta mais óbvia é não.
— Sim — responde ela, de nariz empinado, e afasta o olhar. — Tô ótima.
— Não parece.
— Por que não? Porque eu praticamente vi você transando em público
com uma garota sem-sal vestindo uma saia da coleção de outono de 2017 da
Padra, que, talvez você se lembre, parecia que tinha sido inteira baseada no
clipe de “Thrift Shop”, do Macklemore…
Tento não sorrir, porque sei que ela está falando sério.
— Já me acostumei com isso — diz ela, dando de ombros.
Suspiro.
— Você foi pra festa atrás de mim?
Ela me encara. Nos olhos dela, vejo que ela está chorando, gritando e me
batendo. Só que ela não diz nada, não faz nada, nem mesmo estremece
quando diz:
— Eu saí com o Tom England.
— Fiquei sabendo. — Assinto, frio. — E como foi?
— Vamos sair de novo mais tarde.
Porra.
— O que você tá fazendo? — Franzo a testa.
— Vou sair com o Tom England.
— Não, você entendeu a minha pergunta. O que você tá fazendo?
Ela desvia o olhar.
— Por que foi na Raffles ontem à noite? — insisto.
Os olhos dela parecem tristes, e fico preocupado que Henry esteja certo.
— Não importa. — Ela dá de ombros. — Tô com o Tom agora.
— Você não tá com o Tom. — Reviro os olhos. Ela é ridícula. — Vocês
saíram uma vez. Melhor segurar os convites de casamento.
Ela sai da cama praticamente pelada — usando um conjunto de
pijaminha amarelo-bebê minúsculo — e começa a fingir que está fazendo
coisas pelo quarto. Ela não gosta que lancem verdades na cara dela, e eu amo
fazer isso. Eu me sento na cama, e ela vem e me empurra para poder
arrumar. Arrumar de verdade. Sabe quantas vezes Magnolia Parks arrumou
a própria cama desde que saiu do internato? Um total de zero vezes. Ela até
pode empurrar o edredom sozinha de vez em quando — considerando isso
um dia árduo de trabalho ou alguma merda do tipo —, mas aqui está ela,
arrumando essa cama com a precisão de um oftalmologista e a
determinação de um atleta olímpico só para ter um motivo para me tocar
enquanto me empurra para longe.
Fico parado observando, os braços cruzados, fazendo o máximo para não
olhar a bunda dela enquanto ela se inclina usando aquela lingerie de renda
que eu sei que é da La Perla, porque fui eu que comprei. Fico aliviado que
ela esteja usando. Se ela me odiasse de verdade, não estaria. É como eu sei
que ainda não somos uma causa totalmente perdida.
Ela nunca devolveu o meu anel.
Nós estamos com os anéis sinetes das famílias um do outro desde que
éramos pirralhos. Eu dei o meu para ela no dia em que me formei na Varley,
para ela se lembrar de mim, ou alguma coisa do tipo. É engraçado pensar
nisso agora, já que eu estava definitivamente só marcando território. Mas ela
usava em todos os lugares. Nunca tirava. No Natal daquele ano, ela me deu o
anel da família dela.
Eu me lembro de abrir e olhar para ela — a garota poderia ter me dado
um chocolate sabor laranja, e eu teria achado o melhor presente do mundo,
mas o anel dela, o anel que ela devia precisar ter pedido para o pai… Era tão
pesado.
— Tá me pedindo em casamento, Parks? — perguntei na época,
brincando, os olhos semicerrados.
— Ainda não. — Ela sorriu.
— Um dia? — Ergui as sobrancelhas.
— Não são as meninas que pedem. — Ela franziu a testa, ofendida.
— Mas eu poderia?
— Você poderia. — Ela assentiu, resoluta.
— Eu vou — falei, tranquilo.
Ela nunca me devolveu, mesmo depois da traição. Ela tirou do dedo.
Agora usa numa corrente comprida ao redor do pescoço que ninguém
consegue ver, mas eu sei que está lá. Vejo às vezes antes de ela entrar no
banho. Magnolia veste mais um roupão felpudo ridículo.
— Nós estamos, aliás — diz ela, olhando para trás —, juntos.
— Porra nenhuma.
Ela me joga o telefone, e, na tela, há uma notícia de uma página de
fofocas:

ALERTA DE CASALZÃO
Pintou um novo casal na cidade! Foi relatado que o bilionário bonitão
Thomas England foi arrebatado pela encantadora e ridiculamente linda
Magnolia Parks.
Fiquem atentos para mais notícias!

— E daí? — Dou de ombros, mas sinto um aperto no peito. — Todo


mundo publica um monte de merda sobre a gente o tempo todo. Não quer
dizer que é verdade.
— Eu sei. — Ela anda até mim, puxando o telefone. A mão dela paira
acima da minha, roçando de leve. — Só que dessa vez não é mentira.
Eu a encaro.
— Que porra você tá fazendo?
— Eu não faço ideia do que você quer dizer. — O nariz dela está tão
empinado que ela definitivamente sabe o que eu quero dizer.
— Eu fiz merda! Acontece! Foi uma idiotice! Mas…
— Você sabe como é perder você do jeito como eu perdi? — interrompe
ela, baixinho. Ela me observa, depois desvia o olhar. — Naquelas primeiras
semanas depois do que aconteceu e do nosso término, toda vez que eu
fechava os olhos, eu via você com outra garota. Todas as garotas. Todas as
garotas no mundo tirando minha irmã e Paili, todas as garotas que
passavam por nós na rua, cada bartender que olhava para você mais do que
o necessário, cada garçonete que te encarava quando você dava o cartão para
pagar, a garota que trabalhava na Saint Laurent, as garotas da Varley, garotas
dos ensaios que você fez… Era uma montagem de você com elas de todos os
jeitos e todas as posições que minha imaginação era capaz de inventar,
tentando descobrir o que elas faziam por você que eu não estava fazendo.
Porque eu teria feito qualquer coisa por você…
Os olhos dela estão intensos demais para que eu consiga encará-los. Me
sinto enjoado.
— E eu pensei que você soubesse disso. E acho que você sabia, né? Com
certeza sabia. — Ela está querendo uma resposta que eu não posso dar. —
Esse tempo todo, pensei que o problema fosse eu, que era alguma coisa
errada comigo, alguma coisa que faltava em mim, algo que eu não podia te
dar, mas agora, vendo você, vendo como você é quando eu não estou por
perto… eu sei que não sou eu o problema. — A voz dela fica suave. — Não
sou eu, é você. Você é… depravado.
Ela fala isso com uma execução perfeita, o rosto sério.
Eu a encaro.
— Pede desculpa.
— Por quê? — Ela dá de ombros, insolente. — Vai fazer o quê? Transar
com mais uma? Me sacanear? Me deixar com fama de otária? — Ela engole
em seco, se recompondo. — Você já fez isso.
— Parks. — Agarro ela pelo pulso.
— Me solta. — Ela se afasta, se debatendo contra mim.
— Não.
— Me solta!
— Não consigo.
Sinto meu peito se comprimir. Ela me empurra para longe, e eu a encaro,
perdido.
— Acho que é hora de você ir embora, Bê — diz uma voz baixa da porta.
Bridget está lá no batente, observando, as sobrancelhas baixas.
Solto uma risada incrédula e saio do quarto da garota que eu amo,
passando pela irmã dela e andando o mais rápido que consigo para descer as
escadas.
— Tá ficando cansativo já, não tá? — Bridge diz atrás de mim.
Eu paro no meio da escada, me virando para ela.
— A fila de namorados da sua irmã? — bufo. — Aham.
Ela assente.
— E você metendo em qualquer buraco só para magoar ela… Já tá
cansativo.
Balanço a cabeça.
— Eu nunca faria nada para magoar ela.
— Você acha que engana quem? — Ela está irritada. — Ninguém precisa
do tanto de sexo que você faz, e, mesmo se precisasse, seria um vício. Você é
viciado? — Ela me lança um olhar demorado, que me desconcerta. — Mas
digamos, só para continuar a brincadeira, que você de fato precise. Você não
é obrigado a dizer a ela toda vez que faz isso. Você conta só para machucar.
— Ela cruza os braços. — Você transa com outras pessoas e conta pra ela
porque, quando você faz isso, ela fica triste, e ela ficar triste valida seus
sentimentos por ela. Ela ainda se importa. Se não, não estaria triste. “Ela fica
triste que estou transando com outras pessoas, então deve ser porque ainda
gosta de mim.” Você faz isso para ficar mais próximo dela.
Eu fecho a cara para ela, tão irritado quanto confrontado.
— Não preciso de uma aula de psicologia, Bridge.
— Não, Bê. — Ela me lança um olhar sério. — Você precisa é de terapia.
DEZESSEIS

Magnolia

Estou deitada na cama, ainda me recuperando dos acontecimentos dos


últimos dias. Na outra noite, saí de casa pensando que talvez, possivelmente,
potencialmente, hipoteticamente, poderia recomeçar tudo com BJ e, não sei
como, cheguei em casa horas depois com um novo namoro de fachada. O
novo namorado não ajuda com o buraco ardente no meu peito de ver BJ
agindo daquele jeito com alguém. Já o vi beijando outras garotas antes,
passando a mão em outras garotas, mas dessa vez pareceu diferente. Essa foi
quase que exatamente como eu imaginava que aquilo que rolou três anos
atrás tenha acontecido, e agora eu vi, com meus próprios olhos. Os olhos
dele fechados, a cabeça inclinada para trás, a mão na cintura dela, o pescoço
esticado e exposto — é essa parte que me incomoda. Não sei o motivo.
Ter um namoro de fachada com Tom England não me impede de
repassar a imagem na minha mente e deixar isso me consumir, mas ter um
namoro de fachada com Tom England me dá uma vantagem.
Eu não saio por aí transando. Não julgo garotas que fazem isso, é só que
ainda é algo importante para mim. Eu só transei com BJ, mais ninguém.
Nem com Christian. Já fiz outras coisas; já namorei diversos caras desde BJ.
Só que nunca senti que era a coisa certa para mim. Nunca quis transar com
mais ninguém. E ainda não descobri como superar essa sensação. Esse
sentimento de que deve ser algo só de nós dois.
Desço as escadas para o café da manhã e descubro que tem mais alguém
na mesa. Nossa vizinha, Sullivan Van Schoor — fofíssima, de uns catorze
anos. Cabelo loiro, pele não muito clara, olhos azuis. Nasceu na África do
Sul, mas mora aqui desde os três anos. O pai dela é um banqueiro durão que
tem um olhar muito intenso, como os homens da África do Sul costumam
ter. Ele é um pai muito presente, e ela dá trabalho — então bom pra ele, e
boa sorte.
— Ah — diz Mars, me lançando um olhar. — Olha só quem finalmente
resolveu dar as caras.
Dou um sorriso fraco e me sento ao lado da minha irmã. Não estava
esperando companhia, mas, por sorte, estou sempre muito gata. Eu acordo
muito bem. Acredito que o que me preserva é uma combinação de todo o
álcool que eu consumo e uma vida relativamente livre de estresse, que não
requer nenhum trabalho braçal. Estou usando um pijama Mimi Martine de
cetim com estampa floral da Morgan Lane que realça ainda mais a minha
pele marrom, me deixando ainda mais bonita. Pisco para Louisa, uma das
funcionárias daqui de casa, enquanto ela me serve chá.
— Oi, Sully. — Me certifico de lançar a ela um sorriso encantador, já que
a mãe dela me informou que Sullivan me segue no Instagram, e acha que eu
“sou tudo”. — O que você veio fazer aqui?
— Os pais de Sullivan viajaram para a África do Sul de última hora — diz
Marsaili. — Emergência familiar.
Ela sorri para mim, simpática.
— Os filhos… da irmã… do meu pai… podem ter os dois engravidado
uma menina aí.
— Eita. — Eu me inclino, intrigada. — Depois me conta mais disso! Deve
ser um bafo.
— Ela vai ficar com a gente por uns dias — me informa Marsaili,
passando a geleia para meu pai mesmo sem ele ter pedido.
— Sem BJ hoje? — pergunta minha mãe, animada.
Balanço a cabeça.
— Poxa. — Ela parece decepcionada. — Cadê ele?
Sullivan olha para mim, esperando uma resposta. Ela devia estar na
esperança de vê-lo por aqui hoje de manhã — e, sinceramente, eu também
—, mas é assim a vida, amiga…
— Como é que eu vou saber? — replico.
Pego um morango, e minha irmã me lança um sorrisinho.
— Porque você rastreia ele?
— Não rastreio.
Faço uma careta. Mas não seria ótimo se eu pudesse fazer isso?
— Vocês brigaram, meu bem? — pergunta minha mãe, inclinando a
cabeça.
Bufo, irritada.
— Já que você quer saber, brigamos, sim.
— Ah. — Mars solta um suspiro, fingindo empatia. — Que pena.
Meu pai lança a ela um olhar divertido. Marsaili adorava BJ, e muito. Ela
costumava afugentar ele do meu quarto com uma colher de pau quando
chegávamos da escola nos finais de semana, mas ela o adorava. Adorava o
quanto ele me amava. E confiava nele; não me deixava ir a lugar nenhum a
não ser que BJ me acompanhasse. Chega a ser chocante o quanto tudo
mudou.
A paciência que ela tem para ele agora é minúscula. Aquilo o consumia, e
ele passou um tempão tentando reaver a confiança dela, trazendo flores para
ela todos os dias durante meses. Uma vez ele apareceu com um buquê de
rosas, que ela prontamente jogou no triturador de lixo. Ele parou de tentar
depois disso.
— Magnolia… — começa ela. — O filho de uma amiga está vindo para a
cidade. Pensei que poderia ser legal se você fizesse um passeio com ele, que
tal?
Olho para ela, confusa.
— Tá me zoando?
Ela franze a testa.
— Não.
— Ah. — Também franzo. — Então não.
Dou um sorriso em sua direção.
Meu pai ergue o olhar.
— Por favor? — pede ela. — Já fiz várias coisas pra você.
Lanço um olhar confuso.
— Sim, mas você recebe pra isso.
Minha mãe abafa o riso.
— Magnolia… — começa meu pai. — Seria legal se…
— Ah, Harley. — Eu o chamo assim para irritá-lo. — Eu adoraria. Mas
não acho que meu namorado vai gostar.
— Namorado? — repete Mars, franzindo a testa. — BJ não, BJ não —
sussurra ela baixinho.
— Não é ele. — Reviro os olhos, impaciente. — É outro namorado.
— Quantos você tem? — pergunta minha irmã, e eu a fuzilo com o olhar.
— Que namorado? — pergunta Bushka, franzindo a testa do outro lado
da mesa. Ela fala tão alto e liga tão pouco para as normais sociais que não
consigo evitar um sorriso.
— Tom England! — grito de volta.
Gritar é desnecessário, mas vale a pena pelo anúncio. Meu pai ergue o
olhar do celular, intrigado.
Bridge me encara.
— O Tom England tá namorando com você?
Eu lanço um olhar irritado em sua direção.
— Como assim “você”? É lógico que sim, comigo. Quem mais ele iria
namorar?
— Eu sei lá. — Minha irmã dá de ombros. — A Kate Middleton.
Eu a encaro com uma expressão vazia por um segundo.
— Hum, acho que ela já tem marido, Fridget…
— Tom England? — interrompe meu pai. — O amigo do Gus? — Faço
que sim. — Aquele que perdeu o irmão?
Olho para ele, exasperada.
— Bilionário, filantropo, piloto, gato, mas, tá, beleza, pode ser “aquele que
perdeu o irmão”.
— Gus não disse nada?
Dou a ele um sorrisinho sucinto.
— Ele não sabe.
— Quem é Tom England? — questiona Sullivan.
— Ele era para a minha geração o que o BJ é para a sua — respondo
sabiamente.
— E você está saindo com os dois? — Sullivan fica ainda mais chocada.
— Sim! Quer dizer, porra…
— Magnolia — replica Marsaili, suspirando. — Sem palavrão.
Olho para ela com um ar desafiador.
— Ебать.
— Em russo também não. — Ela revira os olhos. — Então, perdão, só
para ficar claro, é o mesmo Tom England que você seguiu por todos os lados
durante um final de semana inteiro em Ascot?
— O próprio.
Abro para ela o meu melhor sorriso vitorioso. Mars se reclina na cadeira
como se não soubesse o que fazer com aquela informação.
— Caramba — diz ela, suspirando. — BJ deve estar nas últimas.
Meu pai dá um sorrisinho irônico, satisfeito.
— Hã? — Finjo estar confusa. — Quem é esse?
Marsaili revira os olhos.
— BJ Ballentine? — começa Bridge. — Mais ou menos dessa altura? —
Ela gesticula com a mão. — Cabelo bonito? Boca divina? O amor da sua
vida?
— Não conheço.
— Você pode ou não ter perdido a virgindade com ele no Maserati do
papai?
Nosso pai me encara, os olhos arregalados.
— Como assim?
— Ela tá brincando! — Fuzilo minha irmã com o olhar, jogando uma uva
nela quando ninguém está olhando. — É lógico que ela tá zoando! —
Balanço a cabeça rapidamente. — Harley, eu nunca faria isso. Nunca
mesmo.
Ele me lança um olhar sofrido antes de se virar para Bridge.
— Qual deles?
Disfarçadamente, dou um beliscão na minha irmã embaixo da mesa para
que ela fique de boca fechada, mas não funciona.
— O branco, com o teto preto.
— O MC20 não! — lamenta ele, magoado.
Sullivan Van Schoor está adorando tudo, os olhos brilhando.
— Eu não faria isso! Não fiz! Ela tá zoando! — Encaro minha irmã,
dando um beliscão com mais força. — Ela tá brincando! Ela não é muito
engraçada, todo mundo sabe disso. Péssima pra contar piadas.
Dou uma cotovelada nela.
— Tô zoando — diz ela, relutante.
Marsaili nos observa com uma expressão de suspeita.
Aliás, a verdade é que eu não perdi minha virgindade no Maserati do
meu pai. Talvez possa ter ocorrido uma leve penetração, mas BJ estava tão
distraído com o fato de que Marsaili poderia sair e nos ver que ele ficava
estragando o momento, então esperamos mais e essa é uma história para
outro dia.
— Tom England. Uau. — Minha mãe se inclina para trás, refletindo. — A
mãe dele é meio chata, não é?
— Charlotte England? — Pisco. — Não, sei lá? Acho que ela é só uma…
mãe normal? Vai pra almoços, faz eventos de caridade, um pouco de
jardinagem, tem uns cachorrinhos com os quais gasta tempo demais…
Minha mãe me olha, cheia de suspeita.
— Parece chata.
— Ao contrário de, vamos dizer, ligar pra sua filha mais velha às três da
manhã porque você ficou trancada num estábulo de cavalos com a marquesa
de Milford Haven?
Minha mãe aponta para si mesma.
— Nada chata.
Bushka berra do outro lado:
— Tom England é Tom England porque nasceu na Inglaterra, como eu
sou Bushka Rússia?
— Não. — Bridget abre um sorriso gentil. — É só um sobrenome.
— Mas ele é bastante britânico — comento.
— Ele é quase um príncipe — diz minha mãe.
— Que nem o de “Purple Rain”? — pergunta Bushka.
Todos ficamos em silêncio.
— Sim. — Assinto. É mais fácil. — Enfim. — Olho para Marsaili. —
Agora eu tenho um namorado, e é tudo novo. Não quero arruinar nada…
— Claro. — Mars revira os olhos. — Quem é que gostaria de chatear um
homem que é quase um príncipe?
— Açúcar, senhora? — Louisa oferece para o chá.
— Não, estou bem. — Sorrio para ela.
— Ela precisa de dois — informa Marsaili, e eu faço uma careta.
— Não — replico, fazendo biquinho. — Não é dia para dois cubos de
açúcar.
— Você está brigada com BJ — Marsaili me lembra, mas esse é um
problema que nem todos os cubos de açúcar no mundo seriam capazes de
resolver.
Eu faço que sim.
— Mas agora tenho Tom England, e de doce já basta…
— A boca não, a boca não — murmura minha irmã baixinho.
Lanço a ela um olhar.
— … o dedinho dele. Mas ele beija muito bem.
Meu pai solta um murmúrio de exasperação.
— Por que você e BJ Ballentine estão brigados? — pergunta Sullivan, de
repente.
Minha família inteira congela. Talvez porque sejamos britânicos e nunca
falemos diretamente sobre nossos sentimentos? Talvez porque seja uma
pergunta indelicada?
— É… — Pisco, sem muita certeza do que dizer. — Por quê?
— Sei que vocês brigam bastante — comenta ela.
— Então. — Inclino a cabeça, pensando a respeito. — Eu não diria que é
muito…
— Toda hora tem foto de vocês rosnando um pro outro em público.
— Tá, beleza — admito —, ele é irritante.
— Eu tenho o histórico do relacionamento de vocês no celular. — Ela
mostra a tela. — Um site que eu sigo fez um artigo.
— Ah, meu Deus — diz Mars baixinho.
— Me manda o link? — pede meu pai.
Pego o celular dela, e eu e Bridge nos inclinamos para olhar. Fotos
minhas e de BJ que nós postamos no Instagram e outras de momentos em
que não sabíamos que estávamos sendo observados, além de algumas fotos
de paparazzi, em vários encontros. Algumas eles acertaram em cheio.
Erraram a data do término e o motivo. Eles acham que fui eu. Eu nunca teria
terminado a não ser que ele tivesse forçado a situação.
Nem tudo é verdade naquela matéria. Mas também nem tudo não é
verdade.
— Muitas brigas — reitera Sullivan.
— Sim. — Olho para ela, distraída. — Muitas.
Ela suspira, frustrada. Ela é uma garota do Queen’s College. Os níveis de
autoconfiança são imbatíveis.
— Então — insiste ela —, tem um motivo?
Hesito de leve.
— É só que o site está fazendo um concurso. A pessoa que mandar a
fofoca mais quente ganha uma bolsa tiracolo da Chanel de estampa pied-de-
poule. Eu já tenho a preta, então papai não vai comprar pra mim, mas eu
preciso dessa.
Ela faz um olhar pidão.
Suspiro. Qualquer coisa pela Chanel, certo? É praticamente um ato de
caridade contar alguma coisa para ela. Não consigo imaginar como eu me
sentiria se alguém bloqueasse meu acesso a produtos Chanel de forma tão
implacável.
Além do quê, eu ainda estou puta em nível 5 com BJ sobre o que
aconteceu no outro dia, e a escala só tem 5 níveis.
— Ele me traiu — anuncio.
Assim que as palavras saem da minha boca, penso que provavelmente
não deveria ter falado isso. Sully fica de queixo caído.
— Há muito tempo atrás — continuo, para meu prato de ovos mexidos.
Não consigo olhar para ninguém. — Mas é por isso que estamos brigados.
— Quando? — pergunta minha mãe, parecendo triste.
Lanço um olhar para ela.
— Quando a gente terminou.
Ela franze a testa.
— Que foi quando?
Marsaili revira os olhos, irritada por minha mãe não saber a resposta.
— Quando ela estava com dezenove anos.
Sullivan está digitando rapidamente no celular, depois olha para cima.
Ela abre um sorriso brilhante quando diz:
— Bom, definitivamente vou ganhar a bolsa agora.

10:34
Marsaili

Tom England.

Ainda não acredito.

Pois é!

Maneiro, né?

Muito.

Meio… curioso. Você nunca falou que estava saindo com Tom
England.

E daí?
Nada.

Só que da última vez que Tom England te passou um


guardanapo no jantar, você praticamente escreveu um poema
sobre o assunto.

Sou mais reservada hoje em dia.

Dois dias atrás, apesar de eu não fazer questão, você


compartilhou uma história bem explícita sobre você e seu ex-
chaveirinho num barco no lago Como.

Fiz isso por você!

Porque não tem muita coisa acontecendo na sua vida.

Tipo, qual foi a última vez que você transou?

Qual foi a última vez que você transou?

Que grosseria, Marsaili.

Que baixaria.

E não chama ele de chaveirinho.


DEZESSETE

BJ

— Quer um pouco? — pergunta a garota que está comigo.


Cabelo loiro, olhos castanhos, boca grande. Grande demais,
provavelmente. Ela é de Bath.
— Oi?
Olho para ela, sem prestar muita atenção. Estamos na boate de Jo, a
Hampton Haus. Toda a equipe se veste como se fossem dos Hamptons, e
todas as garçonetes são saradas. É um dos dez espaços que os irmãos
Hemmes têm, e fico grato por isso, para não precisar mentir para Parks
sobre o que eles fazem. Posso apenas me desviar da pergunta.
— Vou no banheiro dar um teco. — Ela sorri para mim. — Quer um
pouco?
Balanço a cabeça.
— Não uso essa merda.
Bath parece surpresa. Talvez seja surpreendente. Eu gosto — gosto até
demais, esse que é o problema. Bath me olha de um jeito engraçado, os olhos
dela arregalados e um pouco ávidos demais, como os olhos de todas as
garotas que curtem pegar pesado.
— É só que você parece do tipo que… usaria. Sabe?
Dou de ombros. Ela não está errada.
— Já usei.
— Mas agora parou?
Balanço a cabeça, um pouco entediado pelas perguntas. Quem ela pensa
que é, porra?
— Por quê? — insiste ela.
Meu senhor. Reviro os olhos.
— Prometi pra alguém que ia parar.
É o máximo que posso oferecer.
— Quem? — Ela ri. — Sua mãe?
Aí eu fico irritado.
— Não. Pra garota que eu amo.
Aquilo a pega desprevenida, exatamente como eu queria.
— A garota que você ama? — repete ela.
— Isso. — Assinto, de volta ao tédio. — Vai lá cheirar. Não vou sair daqui.
Pego o celular e verifico as mensagens para ver se Parks mandou alguma.
Nada. Vejo se estou com sinal. Estou. Cacete.
Então, olho o Instagram, caso ela tenha decidido mandar uma DM por lá,
responder algum story ou uma parada dessas — os relacionamentos hoje em
dia são tão fodidos, com todos esses lugares para conversar. Não que a gente
esteja namorando. Não estamos. Ela está namorando outra pessoa.
“Namorando.”
Estou há quarenta segundos dissecando o quanto o namoro entre Parks e
Tom England é mesmo real quando percebo que os comentários do meu
Instagram estão bombando, e não param de chegar mensagens…
Quer dizer, sempre tem as duas coisas rolando, mas nunca nesse nível.
Abro minha foto mais recente, e tem centenas de pessoas comentando
com emoji de cobra, e mais um monte de merda do tipo “não acredito que
você fez isso” ou “você não merece ela”, alguns otários com “vai se foder, se
mata”. Não entendo o que está acontecendo, então faço o que nunca se deve
fazer: jogo meu nome no Google.
E lá está.

Uma fonte próxima confirmou que o motivo REAL por trás do término
público mais confuso e longo da história é que BJ Ballentine traiu
Magnolia Parks.

Porra. Acho que vou vomitar. Me sinto fora de mim. Não consigo ver
nada direito por um instante.
— Você tá bem? — pergunta um bartender.
Faço que sim. Não estou. Talvez eu desmaie.
— O que rolou? — Jonah aparece de repente, as sobrancelhas franzidas.
— Você tomou alguma coisa?
Balanço a cabeça. Mal consigo fazer isso. Mostro o celular.
— Porra. — Ele pisca, os olhos arregalados. — Dizem com quem?
Faço que não. Outra onda de náusea me atinge feito um caminhão.
Jonah se inclina por cima do bar, pega uma garrafa de tequila e passa
para mim. Tomo alguns goles. Dos grandes. Me sinto estranho, como se
estivesse caminhando embaixo da água em um sonho. O que, de certa
forma, foi exatamente como me senti quando eu a traí, conforme ia
acontecendo… uma caminhada lenta na direção de algo que eu não queria
fazer, mas que precisava fazer, e era como se minha cabeça estivesse acima
da superfície e o resto dentro da água, e eu andasse contra a corrente para
conseguir. Cada toque, cada carícia, cada beijo, cada movimento, a corrente
do universo inteiro me dizendo para não fazer aquilo, e eu fui lá e fiz mesmo
assim, e agora não apenas ela sabe, como todo mundo sabe, e eu não só
perdi a garota que todos nós sabemos que eu amo, mas a perdi por minha
culpa.
Vou para os fundos, para o escritório de Jo. Abro a porta. Uma garota sai
de cima de Christian no sofá. Demora alguns segundos para meus olhos se
ajustarem.
Daisy Haites. Acho que no fim aquele encontro deles deu certo.
Ela é muito gata. Muito perigosa. Não é uma garota com a qual eu me
meteria. O irmão dela é mais perigoso do que os garotos Hemmes.
A boca dela está corada e um pouco borrada.
— Ele tá bem? — pergunta Daisy, olhando para mim, a cabeça inclinada.
Eu me sento. Tomo outro gole. Ela se aproxima, semicerrando os olhos.
Estuda medicina, está no segundo ano. O que meu batimento cardíaco pode
dizer a ela que eu já não sei? Meu coração vive fora do peito, em Holland
Park, e acabou de se envolver com o cara mais cobiçado da Inglaterra.
— Descobriram — diz Jonah para Christian.
— Descobriram o quê? — pergunta o irmão, sério.
Imagino que eu tenha alguns segredos tensos a essa altura. Poderia ser
qualquer um deles.
Jo acena com a cabeça na minha direção, como se eu não pudesse ver.
— A traição.
— Você traiu a Magnolia? — Daisy pisca, os olhos arregalados enquanto
ela mede meus batimentos. — Cento e cinquenta por minuto — informa a
Jonah. — Ele tem ataques de pânico?
Jonah não responde.
— Porra! — Christian suspira, vindo se sentar ao meu lado. — Quem
vazou? —pergunta a Jonah, que balança a cabeça. — Bom, tá. — Christian
olha para mim, e de novo para Jonah. — Quem é que sabe?
— Nós. — Jonah dá de ombros. — Nosso grupo.
— Nenhum de nós faria isso — afirma Christian, listando com os dedos.
— Hen não. Perry também não. Pails definitivamente não.
— Por quê? — pergunta Jonah, talvez rápido demais.
— Porque ela morre de medo de ficar mal com a Magnolia.
— Bridget não teria dito nada — digo.
— A Taura sabe? — pergunta Jonah.
Faço que não.
Daisy está me observando, avaliando as minhas pupilas. Ela se endireita,
as mãos no quadril. Se vira para Christian.
— Provavelmente foi a própria Magnolia.
— Quê? — digo, atônito.
— Provavelmente foi ela mesma — diz ela, como se não tivesse acabado
de mandar um míssil na minha vida inteira. — Você deixou ela puta esses
dias?
— Se ele deixou ela puta esses dias? — Jonah ri, mas logo para. — Foi
mal, não é hora para isso.
Faço uma careta.
— Sim, talvez… mas ela não faria isso.
— Faria, sim… — replica Christian, pensando.
Franzo a testa para ele. Não é minha intenção, mas é a forma como ele
diz aquilo, como se soubesse, como se a conhecesse da maneira como eu
conheço. Toda aquela parada entre eles, e como isso me enfurece, me
domina, e aí recai sobre mim tipo um piano na cabeça: você fez a merda
primeiro.
— Nem fodendo. — Jonah revira os olhos. — Ela não faria isso.
Esfrego o rosto enquanto penso nos olhos dela naquela noite em que me
viu. Tristes, vítreos, o retrato de uma dor profunda demais.
— Será? — Ergo o olhar para Jonah, um pouco aterrorizado.
Jo pega a garrafa de tequila e toma um grande gole.
— Puta merda.
DEZOITO

Magnolia

Pego uma limusine para encontrar Tom.


Ele está parado do lado de fora da Cartier na rua New Bond. Veste uma
camiseta de listras horizontais em cores neutras da Jil Sander, calça de
algodão azul-marinho da Brunello Cucinelli com um All Star bege. Mesmo
quando está despojado o suficiente para se passar por um mero trabalhador,
ele ainda assim parece um sonho que se tornou realidade. Ele abre a porta
da minha limusine com um sorriso e me ajuda a saltar. Estou com uma
roupa fofa: um cardigã de lã grande da Jil Sander e um vestido xadrez da
Miu Miu (os dois azul-marinho), sapatos de boneca pretos clássicos da
Proenza Schouler e meias 3/4 brancas da Fendi.
Ficamos parados ali nos encarando na rua por alguns segundos e então
deixamos uma risadinha sem jeito escapar. Ele parece nervoso. Tom
England parece nervoso.
Ele inclina a cabeça, tentando descobrir o que fazer.
— A gente se beija?
Eu nunca tive um namorado de fachada que desde o início estivesse
ciente das coisas, então não sei.
— Provavelmente. — Assinto, incerta. — Né? Tá. Sim.
É um beijo rápido e estranho e constrangedor e engraçado, e aí ele me
olha, e começamos a rir de novo. A risada dele é incrível. Vem do fundo da
garganta, fazendo todo aquele peso que carrega no semblante desaparecer
brevemente.
A risada torna tudo mais fácil, como se quebrasse a tensão, aliviando a
estranheza no ar. Ele coloca de novo uma das mãos nas minhas costas, me
levando pela rua.
— Então vamos fazer compras hoje? — pergunto, olhando-o.
Como ele é alto. Um metro e noventa e cinco, talvez?
Ele faz que sim.
— Meio que preciso de um guarda-roupa novo inteiro.
— Onde está o seu guarda-roupa velho? — pergunto.
— Na casa do Sam.
— Entendi. — Pego no braço dele, porque não sei mais o que fazer. —
Um guarda-roupa novo inteiro, então.
— Tá pronta?
— Eu nasci pronta — afirmo, determinada.
Nós vamos na direção da Burberry, porque alguém com o porte e o
semblante de Tom deveria usar quase que exclusivamente tons de azul-
marinho e cores neutras. Vou andando pelos cabideiros, tirando peças para
ele — o suéter apertado de caxemira com o logo, o suéter de lã merino
xadrez, calças de algodão justas —, tentando não escolher nada que eu
escolheria para BJ, me esforçando para não pensar nas coisas que eu
provavelmente voltarei para comprar na semana que vem e dar a ele de
presente, quando o meu ódio tiver diminuído.
Eles nem se parecem. Além do quê, o estilo dos dois é completamente
diferente.
O estilo de Tom é… Burberry quando Christopher Bailey assinava a
coleção. O de BJ é Burberry durante a era de Riccardo Tisci. Sacou? Lógico
que sim.
Noto duas garotas — de uns dezessete anos — que estão rondando a
gente desde que saí da limusine. Elas nos seguiram até a loja e agora estão se
aproximando cada vez mais de mim.
(— Pergunta você — sussurra uma.
— Não, você — replica a outra.
— Não!
— Tá, beleza.)
Depois:
— Com licença — uma delas fala.
Olho para as duas, abrindo o sorriso mais simpático que consigo no
momento. Tom observa, curioso.
— Podemos tirar uma foto com você? — pergunta a outra.
— Aham. — Faço que sim. — Sem problema.
Eu não sei o motivo. Nunca entendi por que as pessoas querem tirar fotos
comigo, mas, mesmo assim, sempre aceito. Elas entregam o celular para
Tom — que hilário —, e ele tira algumas. Elas estão prestes a se afastar
quando a primeira garota se vira.
— Cadê o BJ?
Tom me olha, achando graça. Eu respiro fundo, solto o ar pelo nariz com
mais força do que deveria — é bem mal-educado da minha parte — e dou
um sorriso distraído.
— Não sei, mas esse é o meu namorado. Tom. — Gesticulo para ele.
— Ah, oi — diz a garota, que dá uma risadinha nervosa e se afasta.
(— Eles terminaram?
— Eu te falei! Eu sabia!
— Ele tá solteiro!
— Ela nunca tá solteira!)
Olho apreensiva para Tom, tentando fingir não ter ficado abalada. Ele
cruza os braços, entretido.
— Acontece bastante?
— Ah. — Eu finjo refletir. — Quanto é bastante?
Ele dá de ombros.
— Uma vez por dia?
Eu semicerro os olhos para ele.
— Minha resposta vai afetar o estado do nosso… — olho em volta, então
sussurro: — … relacionamento falso?
Ele se inclina um pouco (muito) e sussurra de volta:
— Não.
Eu me afasto e sorrio para ele.
— Então, sim, uma vez por dia.
Ele ri e ajeita o meu cabelo atrás da orelha, me olhando de um jeito que,
se eu não soubesse que não passava de encenação, talvez fizesse meu coração
dar um pulo, mas meu coração está muito bem, obrigada. De repente, só um
saltinho.
Nós vamos aos provadores, e eu espero do lado de fora enquanto ele
experimenta roupas para que eu veja.
Ele sai de lá com a calça de algodão azul-marinho e o suéter de lã de
manga comprida com detalhes nos fios. Sexy.
— Eu topo, aliás — diz ele conforme eu coloco a camiseta por dentro da
calça, depois tiro e aí coloco de novo.
— O quê? — Ergo o olhar para ele.
Ele ajeita meu cabelo mais uma vez.
— Isso aqui. Nós dois.
— O nosso teatrinho? — Dou um sorrisinho irônico.
Ele reprime um sorriso.
— Para o que der e vier.
Eu o viro para inspecionar a parte de trás das calças.
— Que bom ouvir isso, porque imagino que nem tudo vai ser um passeio.
— É mesmo? — diz ele, me olhando de cima.
Minha respiração parece presa no peito.
— Sim.
Solto a respiração, pego o moletom de algodão Vintage Check e o coloco
nas mãos dele, fechando a porta do provador rapidamente antes que eu fique
corada. Será que o moletom se parece demais com algo que BJ usaria?
Enfim.
— Por que você acha isso? — pergunta Tom do outro lado da porta.
— Porque BJ perde a cabeça quando o assunto sou eu.
— Ah. — Ele dá uma risadinha. — Ótimo.
Ele abre a porta e me mostra o moletom. Não combina com Tom, mas é
perfeito para BJ. Faço que não, e ele tira. Na hora. Na minha frente. Só vai e
tira e… meu Deus do céu.
Ele é uma obra-prima. Uma obra-prima total e indiscutível. Ele poderia
ser a peça central de qualquer coleção. Eu engulo em seco, desviando o
olhar.
Ele me olha, perplexo.
— O que foi?
— Nada. — Pisco, de repente muito interessada no tapete cor de café do
provador.
— Vou ficar com um olho roxo por causa disso? — pergunta ele, rindo.
Ergo o olhar com uma careta.
— Provavelmente.
Ele anda até mim, se abaixa para ficarmos frente a frente e roça os lábios
nos meus.
— Vai valer a pena.
DEZENOVE

BJ

Eu finjo que é um acidente quando eu e Jo aparecemos para um almoço no


Bellamy’s. Finjo que não sei que é onde ela almoça toda terça.
— Ei! — chama Jonah quando ele as vê. Parks e Paili. Ele olha para mim
rapidamente, parecendo achar graça. — Quanta coincidência.
Parks olha para mim de cara feia. Mas acho que noto nos olhos dela que
está aliviada em me ver. Não está feliz, mas aliviada. Eu sei que ela se sente
assim, porque é como eu me sinto.
Jonah se senta na mesa ao lado da delas, com um sorrisão. Magnolia
revira os olhos para nós dois. Paili dá um sorriso sem graça, daquele jeito de
amiga leal.
— Você contou que nós estávamos vindo aqui? — pergunta Parks,
enquanto ela mexe no colarinho da camisa azul.
— Não. — Paili franze a testa, fazendo um gesto com a cabeça na minha
direção. — Ele tá te stalkeando.
— Mentira. — Jonah faz que não, e fico grato por ter alguém em minha
defesa. — Ele só colocou um chip naquela pulseira que deu pra você.
Mostro o dedo do meio para ele sem muita vontade, e ele dá de ombros,
os olhos no cardápio, e não em mim. Eu a encaro por um segundo, depois
franzo a testa.
— Você tá de calça?
Ela franze a testa para mim.
— É uma calça Fumato. Da Max Mara.
— Mas é uma calça — replico.
— Cacete. — Jo balança a cabeça. — Você desconfigurou ela. Cadê o
botão pra dar reset?
Eu faço uma careta para ele. Eu também gostaria de saber, cara.
Parks está se esforçando para não me olhar, e eu a observo com atenção.
Dou umas batidinhas na boca algumas vezes enquanto a encaro.
— Queria falar com você — peço, por fim.
Ela ergue o olhar do cardápio que está fingindo ler. Os olhos dela estão
arregalados, as sobrancelhas erguidas. Ela está esperando.
Eu a encaro por mais alguns segundos.
— Você contou pras revistas que eu te traí?
Jonah solta um barulho estranho. Paili se remexe sem jeito na cadeira,
evitando o olhar de todos.
— Será? Não, não contei. — Ela faz uma pausa. — Mas eu conheço uma
garota de quinze anos que estava desesperada por uma bolsa específica da
Chanel que nenhuma alma bondosa ia comprar pra ela. Talvez ela tenha
usado essa informação como forma de conseguir a tal da bolsa? — Ela dá de
ombros, inocente. — Talvez.
Passo as mãos pelo cabelo. Não acredito. Puta merda. Ela está revoltada
mesmo. Tento não me sentir traído. Afinal, fui eu que traí. Ela tem esse
direito, acho. Eu não a fiz guardar segredo todos esses anos, mas ela
guardou. Pensei que ela tivesse feito isso por mim — mas pode ser que tenha
feito por ela. Esfrego a nuca e ergo a mão para chamar o garçom e pedir um
negroni extraforte. Então olho de volta para a chata por quem sou
apaixonado.
— Você manchou minha reputação por causa de uma bolsa Chanel?
— Ah, Bê… — Ela solta uma risada despreocupada, cheia de
preocupações. — Sua reputação já está manchada há muito tempo, e não
tem nada a ver comigo.
Tento não parecer magoado. Só a encaro, o maxilar tensionado.
— Tem uma foto sua passando uma mão boba numa Kardashian. — Ela
lança um olhar sério. — E não é nenhuma das irmãs boas.
Ela está sendo uma escrota, e eu não quero sorrir, mas não consigo evitar.
Balanço a cabeça para disfarçar.
— Qual é, Parks — gemo. — Hen não está falando comigo. Minha mãe
não está falando comigo.
— Que bom. — Parks abre um sorrisinho vitorioso. — Então somos três!
Dou uma olhada nela.
— Bridget falou com a Al, então ela também não está falando comigo.
Allison é minha irmã mais nova — quatro anos de diferença entre nós —,
e, por algum motivo, ela não falar comigo abranda um pouco a Parks. Ela
me olha de soslaio.
— E a Madeleine?
A segunda mais nova, com três anos de diferença. Inclino a cabeça,
constrangido.
— Ela nunca gostou muito de você.
E aí a perdi de novo. Ela empina o nariz no ar, o cardápio lá no alto, o
corpo virado para longe do meu.
— Magnolia — reclamo. — Já faz quatro dias, será que a gente não pode
só…
Ela bate o cardápio com força na mesa.
— Magnolia? — repete ela, as sobrancelhas erguidas.
(— Eita — sussurra Jonah baixinho.)
Eu nunca a chamo assim. Não sei por quê. Nunca chamei, a não ser
quando estou sendo um babaca com ela.
Eu me preparo.
— É o seu nome.
— Ah. — Ela cruza os braços, e eu já estou revirando os olhos. — Bem,
Baxter James David Hamish Ballentine…
(— Jesus Cristo — gemo de novo, baixinho. Sustento o olhar de Jo, que
está tentando ficar sério.)
— Sinto muito por não processar instantaneamente a imagem horrenda
que foi forçada nas minhas retinas na outra noite — diz ela. — Sinto muito
por estar um pouco perturbada ao ver você em meio a sua conquista
sexual…
— Você é ridícula — interrompo. — Você é uma pessoa ridícu…
Ela fala por cima de mim.
— … na paixão erótica de…
— Meu Deus do céu. — Respiro fundo, me preparando.
As mãos de Paili estão cobrindo a própria boca. Não sei dizer se ela está
entretida ou horrorizada. Também não sei o que eu mesmo estou.
— … garras venéreas de uma piranha rebolando a bunda na sua cara.
— Por que você se importa, Parks? — pergunta Jonah, movendo o queixo
enquanto se inclina para a frente.
— Como é que é? — Ela pisca, aturdida.
— Por que… você… se importa? — Meu melhor amigo dá de ombros, as
sobrancelhas erguidas. — Se você é só amiga do Bê. Se não sente nada por
ele, então não tem por que ficar magoada. — Ele gesticula para ela. — E, já
que você vive dizendo isso, não deveria se importar.
Ela encara Jonah com um ar de irritação. Eu não queria estar no lugar
dele no momento. Adagas invisíveis estão sendo lançadas apenas com os
olhos, amarradas a granadas. Aquele embate esquisito entre eles dura cerca
de cinco segundos. Ela não vai admitir nada, ele não vai admitir nada por
mim. Tudo o que eles podem fazer é bater em retirada, e, conhecendo meu
amigo, não vai ser o Jonah.
Então, ela endireita a postura.
— Beleza. — Ela dá de ombros. — Eu não me importo.
— Porque vocês são só amigos, não é isso? — insiste Jonah.
Os olhos dela se estreitam.
— Isso.
— Então por que você ficaria magoada, certo?
Ela abre um sorriso tenso.
— Exatamente.
— Só amigos — diz ele.
— Só amigos. — Ela assente de volta.
Porém, ela não olha para mim quando diz isso, e ainda bem, porque vejo
que está piscando bastante os olhos, sinal de que isso a está magoando, e eu
não consigo olhar para ela nesse estado.
Não sei se fico aliviado ou nervoso.
— Então estamos… bem? — pergunto.
— Superbem. — Ela assente, mas seus olhos ainda estão enfurecidos.
Passo a língua nos dentes.
— Ótimo.
— Ótimo. — Jonah abre um sorriso e bate palmas uma vez, bem alto. —
Então, vamos jantar com a galera esse final de semana? Vou fazer uma
reserva no Le Gavroche.
— Perfeito. — Paili relaxa, ansiosa para sair desse climão o mais rápido
possível.
— Não vejo a hora. — Parks sorri, mas o sorriso não chega aos seus
olhos. — Vou levar o Tom.
Eu solto suspiro, exasperado.
— Claro que vai.
Ela me encara.
— Algum problema?
— Nenhum, amiga. — Eu olho para ela. — E, como eu não sou imaturo,
não vou levar ninguém — aviso para Jonah.
— E, mesmo assim, não é impressionante que o fato de você não levar
alguém pro jantar não significa que você vai… estar sozinho depois?
Ela me lança um olhar doce demais, e Jonah ri dentro do copo.
Ela está mesmo puta. Eu mordo o lábio inferior, sem querer dar a ela a
satisfação de uma risada. Ergo o olhar, balançando a cabeça. Ela joga o
cabelo para trás do ombro e não desvia os olhos nem sorri, mas relaxa.
Então, eu vejo aquela corrente comprida no pescoço dela, aquela que ela não
quer que eu veja, mas também quer que eu veja, e todas as nuvens ao redor
da minha cabeça somem na hora.
Ela vê que eu notei e ajusta a roupa rapidamente. Não consigo evitar um
sorriso. Ela olha pela janela, mas, no reflexo, consigo ver seu sorriso a
quilômetros de distância.
VINTE

Magnolia

Eu planejo para que a gente chegue quinze minutos depois da hora da


reserva, porque quero que todo mundo nos veja entrar, e, nossa, como
veem. Tom está usando uma camiseta branca simples da Sandro Paris,
jaqueta bomber reversível da Burberry, calça da Gucci de popelina em
índigo e Vans clássicos brancos. Eu estou de vestido de cetim sedoso da
Magda Butrym com estampa floral, casaco de caxemira e lã vermelho-vivo
da Saint Laurent com abotoamento duplo e um salto de dez centímetros
com laços da Aquazzura para completar o visual. Somos o objeto de todos
os olhares — exceto de BJ — conforme entramos no Le Gavroche de mãos
dadas.
BJ não olha de propósito. O propósito é me deixar com raiva. Está
funcionando.
— England. — Henry fica em pé para lhe dar um aperto de mão.
Jonah faz o mesmo. Christian apenas o cumprimenta com a cabeça. BJ
fica em pé e o abraça.
— E aí, cara — diz ele, dando um tapinha no braço. — Bom te ver. — Ele
olha para mim e faz um sinal com a cabeça. — Oi, Parks.
Ele está bem bonito. Não sei por que ele está tão bonito. Está apenas com
um jeans skinny preto com retalhos de couro gasto da Amiri, uma camiseta
preta de algodão da Givenchy e Vans pretos.
É um visual que não diz nada. Mas, ainda assim, meu coração dá um
pulo.
Tom puxa a cadeira para eu me sentar. Paili murmura “meu Deus” para
mim. Eu olho para ela tipo “pois é”.
Aponto para os Ps.
— Você conhece Perry e Paili?
Tom nega, então aperta a mão dos dois.
— Ouvi falar bastante de vocês.
Ele se recosta na cadeira — o homem mais confiante no recinto, e está
numa mesa com homens que algumas pessoas poderiam chamar de
megalomaníacos, narcisistas e “uma lenda sexual”, então isso significa
alguma coisa.
Ele abre a carta de vinhos e aponta para o Latour 2005.
— Era desse aqui que eu estava te falando.
Jogo o cabelo por cima do ombro.
— Vamos nesse.
Tom faz o pedido e tem uma conversa animada com o maître.
Normalmente o BJ adora fazer isso, então ele parece ficar irritado. E está
evitando meu olhar.
— Então — diz Perry, se inclinando. — Vocês têm que contar. Como foi
que isso aconteceu?
Tom coloca o braço ao meu redor, me lança um olhar carinhoso e dá uma
piscadela íntima.
— Bom, eu estava num dos piores encontros da minha vida numa noite
dessas. Fui embora mais cedo pra encontrar o Gus na Raffles e, quando
entrei, eu vi ela no bar. Os olhos pareciam meio vidrados…
Ele toca meu rosto delicadamente. Ele é uma trincheira e tanto. Enquanto
isso, pela cara emburrada, BJ não parece estar curtindo a história. Ele
murmura coisas baixinho para Jonah, que de vez em quando dá umas
cotoveladas nele o mais sutilmente possível. Tom finge que não nota (ou não
nota de verdade, porque ele é um adulto).
— Nós bebemos um pouco, e eu reuni coragem, então dei um beijo nela.
Pra ser sincero, eu sempre tive uma quedinha por ela, mas ela sempre
pareceu… com a cabeça em outros lugares. — Ele olha de relance na direção
de BJ, só para irritá-lo. — Só que tudo se alinhou naquela noite.
Ele abre um sorriso agradável para Perry. BJ está tramando alguma coisa.
Consigo ver nos olhos dele. E então:
— Mas você tem 30 anos, ela tem 22 — comenta BJ. — É o quê, você
estava a fim dela quando ela tinha quinze e você já era maior de idade?
— Cala a boca — sussurra Henry, parecendo envergonhado.
— Não. — BJ dá de ombros, inocente. — Eu só tô comentando. É meio
esquisito.
— Você passou a mão nela quando ela tinha catorze, cara — anuncia
Jonah.
Minhas mãos vão até as bochechas.
— Jonah!
— Que foi? — Ele franze a testa. — Tô tentando ajudar.
Lanço um olhar irritado na direção dele.
— Tá mesmo?
Christian solta uma risadinha, achando graça. Tom lança um olhar sério
e sóbrio para BJ e diz:
— Desde que ela virou adulta. — Ele pausa para lançar outro olhar para
BJ. — Sempre gostei dela.
— Mas você tinha namorada naquela época — replica BJ, caso ele tenha
esquecido. — Então, de novo, meio esquisito…
— Tá, beleza. Mas desculpa… — Tom faz uma pausa. — Não foi você que
traiu ela?
Jonah emite um ruído, e Christian solta uma risada descarada.
BJ olha para mim, os olhos cheios de culpa, ressentidos, tristes. Ele
comprime os lábios e assente uma vez.
— Então! — diz Jonah, bem alto, tentando retomar a conversa e levá-la
para um lugar mais seguro. — Como é que é essa história de ser piloto?
Tom passa uma das mãos pelo cabelo.
— É maneiro. Divertido. Sempre foi. Nunca deixa de ser divertido pilotar
um avião, sabe? — Então ele me olha. — Aliás, eu vou fazer uma viagem
para as Américas daqui a alguns dias. Quer vir junto?
Eu sorrio para ele, e meus olhos encontram os de BJ, que está fixado até
demais em mim e parece levemente amedrontado. Quero acariciar o rosto
dele, mas não posso, então toco o braço de Tom em vez disso.
— Poxa, adoraria. Mas tenho um compromisso de trabalho que não
posso faltar.
Tom assente, compreensivo, e BJ reprime um sorriso.
— Então. — Tom olha para todo mundo. — Vocês todos se conhecem do
colégio?
Eu confirmo.
Ele aponta para Paili e eu:
— Colegas de quarto?
— Sim. — Paili assente, gesticulando entre nós. — Mas somos amigas
desde o primeiro ano.
Tom balança a cabeça, um pouco fascinado.
— Eu quase queria ter estudado num internato. Minha mãe nunca teria
nos mandado pra longe.
— Ah, fofinho. — Esfrego o braço dele com uma afeição sarcástica. —
Que horrível sua mãe ter te amado tanto que queria você perto dela.
Ele revira os olhos, entrando na brincadeira.
— É que sempre pareceu que poderia ter sido divertido.
— E foi — diz BJ, olhando para mim.
Sinto as bochechas corarem.
— Recebemos uma quantidade bizarra de independência desde cedo —
comenta Perry.
— Que se transformou numa codependência — acrescenta Paili, rindo.
Jonah dá de ombros.
— Você passa o tempo inteiro com aquelas pessoas.
— Meio que precisa passar mesmo — digo. — Porque você fica tão
separado da sua família que acaba criando a sua própria improvisada.
— Os pais da Parks esqueceram o aniversário de dezesseis anos dela —
comenta Christian, me indicando com o queixo.
Tom parece horrorizado.
— Sério?
Esqueceram mesmo. Foi deprimente, e fiquei de coração partido, porque
até Marsaili esqueceu, o que era muito inesperado da parte dela. Mas Bridge
lembrou, e, quando chegamos na escola, BJ e Paili tinham feito um plano B
maravilhoso: Jonah pegou emprestado o jatinho da família Hemmes (cujos
pais sempre faziam menos perguntas), e todos nós fomos para Paris.
Não consigo nem imaginar o quanto nós sete parecíamos ridículos, de
mochila da escola e uniforme, em pleno saguão do Le Bristol.
Bê se empertigara e fora direto para a concierge.
— A reserva é no nome Ballentine. Três quartos.
O olhar da mulher seguiu de BJ para todos nós atrás dele.
— Vocês estão… com um responsável? — perguntou ela, com um
sotaque francês.
— Não. — BJ abriu um sorriso, dando de ombros.
— Hã.... — Ela olhou em volta.
BJ depositou o cartão do banco Coutts platinado na frente dela.
— É seu? — Ela pegou, inspecionando.
— Tá dizendo que eu não tenho cara de quem tem um cartão do Coutts?
— perguntou ele, com um sorriso brincalhão.
Ela olhou para ele quase como alguém olha para um inseto — o que
nunca acontecia, porque, naquela época, ele parecia um ser divino.
— Não, eu acho que você tem cara de criança — respondeu ela.
— Aqui, pega o meu. — Ofereci meu cartão AMEX Centurion, mas BJ o
afastou.
— Posso pagar em dinheiro, se preferir.
A mulher nos olhou durante alguns instantes, cética, então começou a
digitar no computador.
— Ballentine. — Ela pronunciava bala-tín. — É, você requisitou… — ela
fez um estalo com a língua — duas suítes Junior e a suíte Saint-Honoré, oui?
— Oui.
A concierge passou o cartão dele, ergueu o olhar e sorriu com o máximo
de simpatia de que foi capaz.
— Bienvenue à Paris.
Naquela noite, todos se juntaram na nossa cama. Eu chorei um
pouquinho, ao mesmo tempo feliz e triste.
— Pais são uma merda, Parks — soltou Christian, balançando a cabeça e
me passando uma taça de champanhe.
— Mas esquecer o aniversário de dezesseis anos da filha mais velha? —
perguntei, as sobrancelhas erguidas.
— Todos os nossos pais nos mandaram pro internato — relembrou Paili.
— São todos uma merda.
— Nossos pais nem se falam mais — contou Jonah, olhando meio sem
graça para Christian. — Não se falam desde… desde…
A voz dele sumiu.
Desde que a irmã deles se afogou, cinco anos antes. Bê e Jonah se
encararam, sérios. Ela já estava na piscina da família fazia um tempo quando
a encontraram. Eles pularam na água e a tiraram de lá. Jonah estava
desolado demais, e BJ tentou reanimá-la, mas ela se fora.
Bê e Jonah já eram melhores amigos antes disso, mas depois se tornaram
irmãos.
— Não conseguem conversar. — Christian virou a taça de champanhe
antes de continuar: — Quando conversam, ficam jogando a culpa um no
outro.
— Nossa mãe até que ainda está normal, tipo… — Jonah deu de ombros.
— Meio louca, comprou um polvo semana passada, mas tudo bem. Ela
ainda sai de casa. Mas nosso pai…
Christian comprimiu os lábios.
— Ele só fica lá sentado no escritório olhando para as fotos da Rem.
— Meus pais ainda acham que eu sou hétero — disse Perry. — Não posso
nem contar. — Antes que pudéssemos falar algo, ele acrescenta: — Meu tio é
gay, e meu pai não fala com ele.
— Você é filho deles — relembrou Paili com gentileza.
— Eu não quero que ele me olhe que nem olha pro meu tio.
BJ deu uma batidinha reconfortante no braço dele.
Meus olhos recaíram sobre Henry, mas ele olhou para Bê.
— É… — Ele abafou um riso. — Não sei. Nossos pais são ótimos.
— Ah. — Christian revirou os olhos. — Então vai se foder.
Hen e Bê riram.
— Minha mãe só vive pegando geral — anunciou Paili, desanimada. —
Mas só caras mais novos.
— Novos tipo quanto? — perguntou Christian.
— Tipo, na faculdade. Calouros — respondeu, com um suspiro.
— Sua mãe é bem gata. — Jonah deu de ombros. — Acha que eu tenho
alguma chance?
Paili o acertou com um travesseiro na cabeça antes de dar de ombros.
— E faz um tempão que não vejo meu pai. Ele se mudou para Berlim
com a família nova.
Eu me lembro de ter olhado para aquele grupo de pessoas na minha
frente, empilhadas na cama de um hotel em Paris para o qual eu tinha
fugido com meu namorado, pensando: Talvez a gente seja mesmo uma
família. Talvez eles sejam a minha família. Talvez tenham sido essas pessoas
que me criaram esse tempo todo.
Foi Christian Hemmes quem me contou o que era sexo, quando eu tinha
treze anos e estávamos os dois numa escadaria. Foi ele quem disse que não
era só ficar rolando nos lençóis de um lado para o outro e trocando beijos.
Foi Jonah que, naquele mesmo ano, me deu álcool para experimentar e
ficou cuidando de mim a noite inteira enquanto eu passava mal.
Seria Perry que, quando saiu do armário para os pais, me ensinaria sobre
ter orgulho de quem sou, não importa o que aconteça.
Seria com Henry que eu aprenderia o que é ser leal e como é a sensação
de ter um irmão. Paili me ensinaria a ser altruísta (ainda estávamos
trabalhando nisso) e sempre estar do lado das pessoas que amamos.
Seria BJ que faria eu me sentir destemida, segura e esperançosa, tudo ao
mesmo tempo, e, em certa altura, seria BJ que tiraria todas essas coisas de
mim num dia em que voltou para casa cheirando a perfume de flor de
laranjeira.
Tom me lança um olhar melancólico, agora de volta ao presente em La
Gavroche.
— Não acredito que esqueceram o seu aniversário.
É fofo como essa ideia parece totalmente estranha para ele.
BJ me olha, os olhos tenros demais para essa mesa.
— Nós demos um jeito.
Tom lança a ele um sorriso breve, que talvez contenha certos toques de
gratidão genuína.

* * *

— Eu gosto dos seus amigos — diz ele mais tarde, a caminho de casa. — É
bem especial o que vocês têm.
Eu assinto, me sentindo orgulhosa.
— Até o BJ?
— Até o BJ — confirma ele. — O mais novo dos Hemmes tem algum
crush por você? Ele ficou te olhando bastante…
Passo as mãos no vestido, porque não posso lidar com isso agora.
— Ele só gosta de encarar.
Tom solta uma risadinha e olha para mim.
— Então, como a coisa da trincheira tá sendo pra você?
— Você foi superbem.
— Ah, é?
Ele sorri, e eu dou um beijo na bochecha dele quando chegamos.
— É.

00:14
Parks

Oi

Oi

Como tá o tempo aí, Bê?

Melhor agora.

Boa noite, BJ.

Boa noite, Parks, bj


VINTE E UM

BJ

Espero por ela do lado de fora do seu trabalho, recostado no capô do carro.
Tom está em algum lugar no exterior. Fiz Henry verificar com Parks que
ele não estava mesmo por perto, e não está. Ainda bem. Estou com
saudades. Preciso de um tempo junto com ela.
Parks sai, conversando com alguma garota do escritório, e, durante os
dois segundos antes que ela me veja, eu admiro a visão. Está usando um
vestidinho verde com mangas bufantes e sandálias de salto alto de tiras
combinando, que fazem as pernas parecerem ter quilômetros. A amiga me
avista antes e lhe dá uma cotovelada. Parks ergue a cabeça. Nossos olhares se
encontram, e é possível que o mundo entre nos eixos diante dela piscando.
Não sei.
— Oi. — Inclino o queixo em sua direção.
— Oi. — Ela anda até mim, chegando mais perto do que o necessário. —
O que você tá fazendo aqui?
Como se até quinze dias atrás eu não aparecesse para buscá-la todos os
dias em que ela vinha para o escritório.
— Achei que você poderia estar se sentindo solitária.
Ela me lança um olhar, e aquilo me faz soltar uma risada.
— Quer uma carona? — pergunto.
Ela comprime os lábios.
— Acho que meu motorista já está aqui…
— Manda ele embora — digo, dando de ombros.
Ela pensa por um instante, e eu amo como a sua boca fica quando ela está
pensando. Então Parks assente, e eu abro a porta do meu carro para ela.
É a hora do rush, e eu nunca fiquei tão feliz em ver milhares de carros
engarrafados. Ela é minha por pelo menos uma hora. Parks tira os sapatos.
Não faria isso perto de Tom, tenho certeza. Ela só se desmancha quando está
perto de mim.
— Ainda tá puta comigo? — pergunto, olhando em sua direção.
— Não — responde ela, encarando o horizonte.
Não sei dizer se está sendo sincera. Menos puta e mais triste? É bem pior.
— Precisa de reset? — mando, com um olhar atento.
Ela vira o rosto para me encarar.
— Provavelmente, na real.
— Então vai em frente. — Eu assinto. — Por quantos segundos?
— Quinze.
— Puta que pariu. — Eu rio. — Você nunca precisou de mais do que
doze.
Ela sorri.
— Tá, quinze — concedo.
Ainda estamos parados no trânsito. Aumento o volume da música. “Say
You Will”, de Kygo. Ela vira o corpo inteiro para mim, colocando os pés
debaixo de si.
Eu me viro também.
— Pronta?
Ela assente.
— Vai.
Nós fazemos isso desde a escola. Depois que brigávamos, nos
encarávamos por mais ou menos uns dez segundos — não sei o motivo.
Acho que ela viu alguém na Oprah falando sobre isso. Mas funciona.
Especialmente com ela. Eu não consigo ficar irritado por muito tempo,
mas ela consegue guardar rancor como ninguém. Mas, sério, quando a gente
faz isso, dá pra ver o rancor derretendo nela e sumindo.
Aqui está ela, presa comigo num trânsito infinito, e eu posso olhar para
ela descaradamente por quinze segundos. Fico pensando quase sempre a
mesma coisa todas as vezes. Um… dois… Puta merda, ela é linda. Isso é
sempre a primeira coisa que passa pela minha cabeça quando fazemos isso.
Ela é linda pra caralho. Não consigo acreditar que ela me ama.
As pálpebras dela estremecem. Ela sempre pisca mais quando estamos
fazendo esse exercício.
Três… quatro… Eu não tenho certeza se ainda é verdade. Ela ainda me
ama? Não sei. Costumava achar que sim. Às vezes ainda acho. Mas talvez
não importe, porque não dá para voltar no tempo depois que se estraga tudo
do jeito que eu fiz.
Ela inclina a cabeça para o lado. Ela só faz isso quando quer algo de mim.
Cinco… seis… Eu não sei como pude fazer aquilo com ela. Não sei. Não
sei o que tem de errado comigo ou como foi que aconteceu. Só aconteceu. E,
quando estava acontecendo, parecia pior parar. Mas eu não queria machucá-
la. Não tinha nada a ver com ela.
Ela descansa o cotovelo no meio do painel e apoia o queixo na mão. Seus
olhos não desviam dos meus, e meu coração dá um salto.
Sete… oito… Será que algum dia vamos superar isso? Nós daríamos
certo de novo? Seria diferente. Eu estou diferente. Acho que funcionaria.
Acho que a gente poderia fazer dar certo.
Eu consigo ver o nó se desatando dentro dela, o rosto começando a
relaxar.
Nove… dez… Olho para a boca. Porra. Amo essa boca. É meio louco
pensar que vivi sem esses lábios nos meus pelos últimos três anos. Ela
percebe que estou olhando para a sua boca e começa a esboçar um sorriso.
Onze… doze… Me lembro da primeira vez que eu fiz a Parks sorrir.
Parecia um desafio digno quando eu era criança. Ainda parece.
Embora o sorriso dela ainda não tenha aparecido de verdade, é tarde
demais. Os olhos dela denunciam, como sempre. Basta dar uma olhada
neles para saber qualquer coisa.
Treze… catorze… Ela nunca precisou de quinze segundos antes, isso é
novidade. Meu Deus, eu quero beijar essa garota.
E acho que ela também quer me beijar. Os olhos dela desviam dos meus
para a boca, o que é contra as regras — não deveríamos quebrar o contato
visual, mas não quero falar nada, porque prefiro que ela me beije. Sinto o
aroma do seu perfume. Ela tem o mesmo cheiro desde sempre, já que usa a
mesma fragrância desde os catorze anos. Gypsy Water. Espero que nunca
mude. Ela passa o perfume sempre que sai do chuveiro, e às vezes eu a
abraço, o que a faz se sentir estranha. Tipo, podemos dormir na mesma
cama, ela pode tocar no meu rosto quando acha que estou dormindo, mas,
se eu quiser abraçá-la quando o sol está brilhando e as luzes estão ligadas, aí
vem tudo abaixo. Mas tem dias em que eu faço isso de qualquer forma, e aí o
cheiro dela gruda tanto em mim que consigo senti-lo da mesma forma como
sentia antes de estragar tudo.
Quinze. Eu já era dela no primeiro.
Ela dá um sorrisinho, então vira o rosto para a janela.
— Como tá o tempo aí, Parks? — pergunto, encarando o retrovisor.
Está 21°C, quente, e mal tem uma nuvem no céu.
Ela olha para mim de soslaio.
— Bem agradável agora. Mas ouvi dizer que pode chover mais tarde.
— É mesmo?
Eu franzo a testa, e ela assente, focada na rua.
— Um tempo péssimo pra sair de carro. Talvez você precise ficar lá em
casa.
Eu reprimo um sorriso.
— Segurança em primeiro lugar.
VINTE E DOIS

Magnolia

BJ fica por perto quase o tempo todo em que Tom está nos Estados Unidos.
Nada acontece — mas nada nunca acontece. Nós ficamos em casa, assistindo
a documentários da National Geographic. Às vezes na minha cama. Às vezes
no cinema que temos em casa.
Na verdade, o cinema tem algumas complicações. A maior delas é que eu
sempre preciso inventar um motivo novo para eu e Bê termos que sentar na
cadeira dupla, apesar de existirem diversas outras opções. As desculpas vão
de “acho que tem uma abelha naquela cadeira” a “não, não senta aí,
acabaram de arrumar o estofado”.
Eu não preciso de uma desculpa para ele se sentar ao meu lado. Eu sei
que ele ficaria onde eu mandasse. Essas desculpas são para mim.
A National Geographic é o ápice do romance para nós dois — é uma
tradição do início do nosso relacionamento, desde a primeira noite em que
dormimos juntos. Do jeito que as pessoas dormem juntas de verdade.
Nossa primeira vez foi meticulosamente planejada. O que é engraçado
quando paro para pensar, porque, agora que cresci, sexo espontâneo parece
muito mais empolgante — não que eu tenha tido muitas experiências dessas
nos últimos três anos —, mas, naquela noite, os planos dele tornaram tudo
romântico e sério. E acho que foi.
Depois do fracasso do Maserati e da noite de Ano-Novo desastrosa em
Mykonos (deixa pra lá), tinha que ser tudo perfeito. Foi o que ele disse. Ele
estava irredutível nessa questão — sobre o romance, sobre os momentos
antes, sobre como tudo precisava ser perfeito. Não me importava como
aconteceria, porque eu queria BJ, só isso. Eu nunca quis ninguém antes.
Nunca tinha sentido essa vontade. Mas, quando se tem a vontade, ela vem
com tudo, e como eu não me sentiria desse jeito por BJ Ballentine? Subindo
pelas paredes — era assim que eu me sentia toda vez que BJ entrava num
lugar. Como se alguém tivesse acendido um fósforo na minha barriga e um
calor crescesse debaixo da pele. Eu teria transado antes, se ele quisesse.
Nós éramos umas crianças. Fazendo coisas de adulto, com o coração do
tamanho de um continente e um tesão tão intenso quanto o mar. Hoje em
dia, acho que a gente era jovem demais. Bridget concorda. Ela acha que eu
transferi minha dependência parental para ele e acabou ficando ali. Mas não
é bem minha culpa, né? Não fui eu que me despachei para o internato
quando tinha só onze anos. Não pedi para ter pais ridículos e ausentes, que
preferiam estar num iate com Jay-Z nos finais de semana em vez de comigo
e com minha irmã. O que eu poderia fazer? Não ficar desproporcionalmente
apegada ao garoto mais perfeito do mundo?
Enfim.
Ele reservou a suíte Knightsbridge no Mandarin Oriental.
Houve várias vezes em que nós quase, quase tínhamos transado, mas não
fomos até o fim. Tantas vezes que poderiam ter acontecido de maneira
natural… Mas foi tudo planejado, tudo discutido. Eu e Paili fomos às
compras para a ocasião.
Era a primeira vez tanto para mim quanto para BJ, o que é estranho, né?
Foi algo muito impactante para ele na época, mas agora ele transa com todo
mundo.
Nós combinamos de nos encontrar no hotel às oito da noite. Pulei o
jantar (obrigada, revista Cosmo!) e me lembro de entrar no saguão usando a
roupa íntima mais sexy e incômoda possível debaixo do meu vestidinho
Calvin Klein, carregando minha mala, e ele estava lá sentado num sofá,
lendo O sol é para todos pela milionésima vez.
O cabelo estava penteado para trás, os lábios apertados, o polegar nos
lábios, pensativo. Focado. Então, ele me viu. Um sorriso se abriu no rosto
dele primeiro, depois o vi engolir em seco, nervoso. Ele pegou a minha mão
e me puxou para perto.
— Oi — disse abafado no meu cabelo.
— Oi — respondi, mal encontrando os olhos dele antes de começar a
corar.
Por algum motivo, o meu desconforto o deixou mais à vontade — um
propósito para ser corajoso —, e ele sorriu e me levou até o quarto.
Ele tinha roubado algumas garrafas de Moët da adega dos pais, em casa.
Não era meu sabor favorito de champanhe, mas será para sempre a bebida
mais especial do mundo para mim, porque foi o que bebemos naquela noite.
Ficamos altinhos bem rápido, provavelmente por estarmos nervosos.
Colocamos roupões e ficamos longe um do outro por um bom tempo,
fingindo costume a respeito do que estava acontecendo, coisa que nenhum
de nós tinha admitido desde que tínhamos chegado.
— Trouxe UNO — falei para ele, enquanto vasculhava minha bolsa Marc
Jacobs.
Ele me olhou por alguns segundos, depois sorriu.
— Ah, é? Melhor de três?
Assim que assenti, nossas mãos se tocaram, e aí houve aquela faísca, igual
quando se está ligando um carro. Nossas mãos nos ligaram, e foi como se
algo tomasse conta dele: finalmente o champanhe fez efeito, e ele me puxou
para perto, confiante como sempre, uma das mãos no meu rosto e a outra na
base das minhas costas. Então me guiou de costas em direção à cama, como
se já fosse um expert no assunto, e me deitou.
Eu nunca tinha sentido luxúria. Me lembro da sensação do peso dele em
cima de mim. Foi um sentimento que associei a estar segura durante um
longo tempo. Ele deitado em mim era como o melhor cobertor, até ele se
deitar da mesma forma em outra pessoa e tudo mudar.
Ele conta que eu fiquei falando o tempo todo. Uma tagarelice nervosa
sobre grissinis serem uma comida pouco valorizada e sobre como eu gosto
da cor lilás porque realça meus olhos. Ele ainda me provoca sobre isso.
Porque aparentemente eu não fiquei tagarelando só no começo, mas o
tempo todo, até na hora do orgasmo. Segundo ele, em vez daquelas arfadas
de estrela pornô, rolou um segundo de silêncio — algumas respirações
espaçadas minhas enquanto eu me recompunha, engolindo nervosa, e então,
com as bochechas coradas e o coração mais preenchido do mundo, eu disse:
— Você sabia que é Victoria’s Secret e não Victoria Secrets? Não é plural,
é possessivo. Todo mundo fala errado.
Ele me segurou forte contra ele, rindo baixinho enquanto seu corpo
estremecia dentro de mim.
Eu lembro que em certa altura ele afastou o rosto do meu, suado,
grudento e sem ar, nossos corpos entrelaçados.
— Espera. As abelhas estão morrendo mesmo? — perguntou ele,
parecendo intrigado.
— Sim, tipo, muito, muito rápido. É preocupante — respondi, séria.
Então ele pressionou a testa suada na minha e riu de uma forma que eu
senti percorrer todo o meu corpo.
Passamos a noite emaranhados, pesquisando sobre abelhas no Google e
assistindo a documentários sobre elas, e aquele momento, na cama com ele e
as abelhas, virou um dos meus favoritos. Acho que é esse o momento para o
qual estamos tentando constantemente voltar. Para um lugar antes de
começarmos a nos matar para que nossos corações ficassem vivos.
E é no meio de um desses delírios de momentos que Tom England entra
no meu quarto e encontra meu ex-namorado na minha cama, sem camisa,
usando apenas uma calça de moletom justa e aveludada preta e caramelo da
Gucci e um par de meias da Anonymous ISM.
Tom espera no batente durante alguns segundos, avaliando a situação,
então dá mais alguns passos para dentro. É meio estranho, na verdade.
Como se tudo estivesse suspenso no tempo. E eu não sei o que nada disso
significa. O que aqueles segundos significam, o que vai sair disso. Sinto a
mudança de ares no quarto instantaneamente, tensa, mas não consigo
entender o motivo.
Parece que estamos fazendo algo errado. Talvez BJ ache que sim, mas
sinto que Tom pensa o mesmo. Ainda estou vidrada nele, e, na minha visão
periférica, vejo BJ boquiaberto, como se tivesse sido pego no flagra. Ele está
com uma cara de besta.
Salto da cama na velocidade da luz, e Bê também.
— Tom! — digo.
Eu vou rápido na direção dele. Ele hesita, mas me pega.
BJ se apressa, enfiando as pantufas da Ralph Lauren Dezi Bear na mala, e
pega um moletom da Celiné que nem sequer coloca.
— Até mais, Parks.
Ele se esforça para não sorrir de orelha a orelha. Ao passar por Tom, ele
junta as mãos e faz uma reverência rápida de agradecimento.
— Até mais, cara — diz Bê, a caminho da porta.
Tom só observa. Ele espera alguns segundos, me olhando. O tempo se
arrasta, e a sensação não é muito diferente de ser mandada para a diretoria
na escola. Ele fecha a porta. Respira fundo e me olha de soslaio.
— Você foi pra cama com ele?
— Não. Quer dizer, sim — confesso. — Mas não.
Ele não fica nada feliz com a minha fascinação repentina com a
semântica.
— Você transou com ele? — pergunta, com o maxilar tensionado.
— Não! — Balanço a cabeça rapidamente.
Tom me encara. Parece não acreditar em mim. E por que acreditaria? BJ
estava metade pelado. Eu estou de pijama. O que está prestes a ser meu
próximo argumento:
— Você acha que eu estaria usando isso aqui se estivesse tentando seduzir
alguém?
Gesticulo para o pijama estampado da Gisele, branco com coraçõezinhos.
— Não. — Ele tenta conter um sorriso. — Mas também não acho que
você precisaria se esforçar para seduzir alguém. Poderia estar com uma
cortina de box que ainda assim eu teria vontade de transar com você.
Ele está com ciúmes? Parece. A ponta do nariz de Tom England fica
rosada quando ele está com ciúmes. É bem fofo. Franzo a boca.
— Eu não fiz nada.
Ele semicerra os olhos, depois dá de ombros, como se não se importasse.
— Então, não tem problema se tiver feito, porque essa coisa… sabe, nós
dois…
Eu não gosto de vê-lo aflito. Dá um aperto no meu peito.
— Eu e ele não… — Balanço a cabeça e toco o braço de Tom, tentando
tranquilizá-lo. — Prometo.
Ele assente.
— Então por que ele estava na cama contigo?
Franzo a testa diante da pergunta.
— Ele sempre passa a noite comigo.
— Quê? — Tom pisca algumas vezes.
— Ele passa a noite comigo o tempo todo. — Dou de ombros. — Mas é
só pra dormir!
Tom pisca mais vezes.
— Ele passa a noite contigo o tempo todo, mas vocês… não transam?
— Isso.
— Você passa a noite com o seu ex o tempo todo, mas vocês não
transam? — repete.
— Correto.
— Que parada mais doentia.
Eu me afasto, revoltada.
— Como assim?
Ele ri.
— Isso é… doentio pra cacete.
— Não é, não.
Minhas bochechas estão coradas, mas estou feliz que ele esteja rindo. Não
quero Tom England triste enquanto eu estiver por perto.
Ele me lança um olhar que parece o de alguém que está ao mesmo tempo
confuso e achando graça.
— É esquisito — ele me fala, balançando a cabeça. — Você é esquisita. É
uma coisa esquisita de se…
— Ai, tá bom, tá! — Reviro os olhos. — Como se você fosse uma
maravilha, você tem essa… você é tão… com a sua… — Porra. — Esse seu
cabelo repartido é esquisito.
Ele passa a mão no cabelo, o sorriso confiante. Confiante demais. Sexy
demais. Tom desaba na minha cama, encarando o teto. Eu me deito, fixada
nele. Ele volta a olhar para mim com uma expressão séria.
— Eu não quero ser feito de otário. Não me faz de otário, tá?
— A gente está num namoro de fachada para eu superar meu ex. Nós
somos otários.
As bochechas dele fazem aquela coisa de novo. A coisa enciumada.
— Só garante que ninguém te veja sendo otária do lado dele — pede.
Ele rola na minha direção, dá um beijo na minha bochecha, afaga meu
cabelo e vai embora.
Afaga o meu cabelo!
Como se eu fosse a porra de um labrador!
Eu fico observando enquanto ele sai do quarto. Irritada, mas levemente
excitada.
Vou sugerir isso como novo nome de perfume pra minha mãe.

15:32
BJ

Te vejo mais tarde?


Aham bjs

Tá tudo bem?

Aham!

O tempo não tá bom?

Céu limpo, Parks

Promete?

Vejo você e Tom daqui a pouco bjs


VINTE E TRÊ S

BJ

O Baile de Gala da exposição Flores de Chelsea é provavelmente o evento


floricultural mais ridículo do planeta. Vão a família real, celebridades e
pessoas como nós e cada ingresso custa por volta de oitocentas libras — o
que é merreca pra mim, mas é uma merda, porque acabei de pagar
oitocentos paus pra ver o amor da minha vida perambular nessa porra de
jardim com outro homem. Taura me pediu para acompanhá-la, mas eu
recusei. Já estou na merda com a Parks, e provavelmente isso não ajudaria
em nada a situação. Além do mais, é o evento favorito dela, então não quero
arruinar nada.
Eu aparecer com a Taurinha não deveria arruinar nada, porque não foi
com ela que eu traí a Parks, embora ela não acredite. De qualquer forma,
não tem nada rolando entre mim e Sax. Já não rola nada há meses.
Ela com certeza está pegando o Jonah. Também me lembro de ver
alguma coisa entre ela e Hen no outro dia. Sei lá.
Eu chego atrasado. Parks chega ainda mais. Tom está de braço dado com
ela e parece cada vez mais confortável fazendo isso, e eu cogito — em pânico
por um segundo — que talvez eles já tenham transado.
Magnolia não transar com mais ninguém é tanto um alívio quanto um
pesadelo para mim. Um alívio porque tem algo nisso que ainda a torna
minha. Mais minha do que de qualquer outra pessoa. E um pesadelo por
causa da aparência dela. De vestido ou de pijama, tanto faz. Não tem
diferença para mim. São os mesmos olhos que vejo cada vez que fecho os
meus.
Ela está com um vestido que parece uma aquarela: verde e rosa e lilás —
porra, ela fez isso de propósito e está perfeita, e fico com a sensação esquisita
de que talvez ela vá destroçar meu coração hoje usando esse vestido.
Ela encontra meu olhar do outro lado da sala, me prendendo de uma
forma que nossas mãos não podem fazer.
Sem emitir som, ela fala “oi”.
Eu dou um sorrisinho, e ela desvia o olhar, as bochechas corando. Me
tranquiliza um pouco que eu ainda consiga causar esse efeito. Mexer com o
corpo dela com apenas um olhar. Fico onde estou, porque sei que ela vai vir
até mim. Ímãs. É isso que os moleques dizem que somos. Às vezes temos a
mesma polaridade, às vezes opostas, mas sempre somos capazes de mover
um ao outro. Nos empurrando ou trazendo para perto. Jonah parecia que
tinha ganhado a porra do Pulitzer no dia em que surgiu com essa metáfora.
Ela vem até mim fazendo parecer que era o intuito de Tom, mas não é.
Ninguém anda por uma sala como Magnolia Parks. O que é engraçado e
irritante, porque eu acho que ela não se dá conta do que está fazendo.
Quando estávamos juntos, eu não me importava que todos os olhos
estivessem nela, pois os dela estavam sempre fixos nos meus. Porém, desde
que terminamos, observá-la é uma tortura, porque ela não percebe como
mexe comigo. Ela fica tensa quando eu estou perto de mulheres mais velhas,
garçonetes e garotas aleatórias no bar, mas eu tenho noção disso. Eu sei o
que está acontecendo. Já a Parks não faz a menor ideia.
Durante uma das nossas longas viagens de carro há alguns meses, eu me
lembro de nos sentarmos num café de uma cidadezinha e todo mundo estar
olhando para ela. Todo mundo. E ela estava avaliando o cardápio,
completamente alheia àquilo. Nem notou até ver a minha expressão —
alguma coisa entre terror e diversão (não que eu tenha achado a população
inteira de Rye ameaçadora).
— Que foi? — perguntou ela na época, piscando.
Eu dei um pequeno sorriso.
— Todo mundo tá te olhando.
— Ah, é óbvio. — Ela se endireitou no assento. — Tô usando o casaco de
pele vintage de 1977 da Chanel.
— Aham. — Eu ri, tomando um gole da minha cerveja. — É isso mesmo
que eles estão olhando.
Agora, no presente, ela se aproxima.
— Oi, Bê. — Ela sorri, inclinando a cabeça para o lado e piscando.
— Oi, Parks.
Beijo a bochecha dela o mais próximo que consigo da boca sem passar do
limite, e ela revira os olhos num protesto falso e silencioso.
— Fala, Ballentine. — Tom me agarra pelos ombros, sorrindo. — Tá
bonito, hein.
Ele segura meu queixo com uma das mãos, mas é uma manobra de
poder, o que me desequilibra. Se outra pessoa fizesse isso comigo, eu
começaria uma briga na hora, mas Tom England? Sei lá. Não sei como esse
idiota que é um misto de pirata e deus grego faz com que eu me sinta foda e
um pirralho de cinco anos ao mesmo tempo. Babaca.
— Maneiro esse terno — me diz ele, e sei que está sendo sincero.
O que só piora tudo.
Parks me analisa por um segundo.
— É Tom Ford. Ajustado, alinhado com cetim, paletó com tecido de lã.
O olhar de Tom vai e volta entre nós, até parar nela.
— Você que comprou pra ele?
Ela pega uma taça de champanhe de uma bandeja próxima e toma um
gole, entediada.
— Não.
Me esforço para não deixar transparecer meu divertimento.
— É mania dela. — Dou de ombros. — Sempre foi.
Tom a encara, confuso.
— Você só… sabe… o que as pessoas estão usando?
Ela assente.
— Sim.
— O que eu estou usando? — pergunta ele.
Ela o observa por alguns segundos.
— Paletó de veludo e algodão ajustado fulvo, alinhavado com gorgorão,
com… — Ela semicerra os olhos e o faz virar. — Calças plissadas de algodão
da Prada. — Então aponta para os sapatos. — Sapatos Oxford de couro da
John Lobb.
Tom dá uma risada e aponta para uma mulher que passa por nós com um
vestido longo preto de glitter com ombros esquisitos.
— E ela?
— Vestido de veludo brilhante Houston do Alex Perry.
— E ela? — Indicando uma garota de vestido preto de bolinhas douradas
que não tem mangas nem faixas.
— Vestido de tule com lantejoulas douradas tomara que caia. Marchessa
Notte. — Ela mal precisa olhar. — Eu tenho um igual.
Tom aponta para uma mulher mais ao longe, num vestido estranho
coberto de criaturas silvestres ou algo do tipo.
Ela semicerra os olhos.
— Vestido de seda estampado assimétrico da Lanvin.
Tom bufa, parecendo estar achando graça.
— É como se ela fosse tipo um oráculo de roupas.
— Falando nisso… — Ela olha entre nós. — O que vocês acham da Taura
Sax com o vestido midi de aplique floral da Marchessa Notte pro baile da
Chelsea? Meio óbvio demais, né?
Olho para o vestido. É bonito, acho. Taura percebe que está sendo
observada e nos dá um aceno desconfortável, fazendo com que eu sinta uma
onda de culpa. Eu respondo com um aceno de cabeça. Ela sempre tentou ser
amigável com Parks, mas Parks não consegue superar o fato de que Sax já
me viu pelado. Justo, acho.
— Curti — digo, dando de ombros.
Parks revira os olhos.
— É claro que curtiu. Mas, sério, o que mais ela vai inventar? — Seu olhar
vai de mim para Tom. — Vai usar xadrez e tartã no Natal?
Encaro Parks.
— Você estava de xadrez no Natal passado… usou tartã na véspera…
Você disse que era uma escolha inspirada.
Ela olha para mim, um pouco boquiaberta e com os olhos semicerrados.
— E você virou algum expert de moda natalina, por acaso? Vai se ferrar.
Ela agarra a mão de Tom e o puxa para longe.
— Até mais, cara — diz ele.
Tom me lança um sorriso, e algo nisso acaba comigo. Como se ele
entendesse que ela está sendo irritante pra caralho. Como se ele a
entendesse.
Ela está puta por eu ter defendido a Taura.
Provavelmente não deveria ter defendido, provavelmente não valeu a
pena.
Vou pagar por isso depois com Parks, mas eu e Taura somos amigos
agora. Não posso deixá-la na mão.
Henry me vê e se aproxima, junto com a própria Sax.
— Vocês estavam falando de mim? — pergunta ela.
— Quê? — Me finjo de desentendido. — Não, Parks só estava falando que
gostou do seu vestido.
— Até parece — solta Henry, rindo.
Taura dá um tapinha no braço dele.
— Você tá bem? — me pergunta, indicando Parks com a cabeça.
— Tô, sim — respondo. — Por que não estaria?
— Talvez porque a Parks vai dar loucamente pro bilionário mais sexy do
mundo mais tarde?
— Henry! — replica Taura.
Ela pisca. Lanço um olhar feroz para meu irmão. Estou mais ferido do
que gostaria, e mais puto. Respiro pelo nariz, irritado, e sigo até o bar.
Se mais alguém falasse da Parks daquela forma, eu usaria a cara da pessoa
como pano de chão, mas Henry faz isso porque a ama e os dois são como
irmãos. Além do mais, ele está querendo me sacanear, e nada é mais eficaz
para isso do que lembrar que, na verdade, Parks não é mais minha.
Henry sempre ficou puto comigo pelo que eu fiz. Ele deixa transparecer
de jeitos estranhos de vez em quando. Fazendo comentários passivo-
agressivos, fazendo comentários agressivo-agressivos, colocando na minha
cabeça visões dos meus piores pesadelos numa festa… Coisa do tipo.
Peço um uísque no bar, viro o copo, então peço um negroni. Jonah
aparece ao meu lado.
— Fala. — Ele me lança um olhar cauteloso. — Tá tudo bem?
Viro outra bebida.
— Ele só está te sacaneando, cara. — Jonah balança a cabeça. — Além do
mais, a Parks é comportada demais pra dar loucamente.
Olho irritado para ele, porque não posso lidar com isso hoje. Ele franze a
testa.
— O que tá rolando contigo?
Vejo Parks no outro lado da sala.
— Você acha que eu estou perdendo ela?
Jonah me encara por alguns segundos, como se nunca tivesse pensado
nessa possibilidade. Então, a pior coisa do mundo acontece. Vejo isso no
rosto dele: ele se faz a mesma pergunta.
Ela está ali com Tom e os pais dele — Andrew e Charlotte England,
pessoas boas, pessoas legais, pessoas ricas, pessoas que têm um filho que não
atrapalhou a vida dela nos últimos três anos. E Parks é o tipo de garota que
todos os pais sonham em ter como nora; ela é um doce, e todo mundo quer
um pedaço.
Eu observo como ela age com Tom, as mãos no peito dele, a risada
quando ele fala algo para os pais, todos os olhares nela — e tudo bem,
porque há mesmo algo de encantador na personalidade dela que faz todo
mundo querer se aproximar. Mas são os pais dele.
Por que ela está com os pais dele? Ela nunca conhece os sogros. E todos
os caras que ela namorou até agora, se ela os tocava, fazia isso enquanto me
encarava; se ela os abraçava, fazia isso olhando nos meus olhos. Só que agora
ela toca o peito de Tom erguendo o olhar para ele, e os dois estão rindo, e
acho que eles são um casal pra valer, porque ela não me dá nenhuma bola.
Então Tom inclina o rosto de Parks para cima com um dedo — ele é tão
maneiro, odeio ele — e dá um beijo nela. Eu não tinha visto os dois se
beijarem antes. Fico com uma sensação estranha. Primeiro, nada. Só um…
nada… e então é como se alguém houvesse arrancado meu braço com um
facão. Nada, e então tudo. Tudo sangrando por toda parte, morrendo bem
ali na floreira de peônias enquanto o amor da minha vida está do outro lado
da sala com um homem que não sou eu, e que provavelmente é digno dela.
Aí o sangramento começa a parecer real. Sabe aquele alerta na cabeça de
quando a gente está mal? Está soando feito uma sirene. Não estou bem. É
como se eu tivesse caído numa fossa. Não tenho nada em que me agarrar,
não vejo fim, o estômago está pulsando na garganta, o coração está nas mãos
de uma garota que está segurando as mãos de outra pessoa. É como uma
queda infinita, essa queda suspensa no ar, que a essa altura é quase a
sensação de estar apaixonado por ela.
Agarro Jo, com um ar de urgência.
— Tem coca aí? — pergunto baixinho.
Jonah franze a testa.
— Quê?
Mantenho a firmeza.
— Tem um pouco?
— Bê. — Ele segue meu olhar e, ao ver o problema, fica nervoso. —
Melhor não. Meio exagerado…
Assinto.
— Aham.
— Você prometeu pra ela — ele me lembra.
— Aham. — Dou de ombros. — Já quebrei outras promessas pra ela,
então…
— Beleza, mas é com essa que ela vai se importar — replica ele,
balançando a cabeça.
— Jo, olha pra ela.
Eu encaro mais uma vez. A cabeça dela está repousando no braço dele.
Estão posando para uma foto.
— Ela tá feliz.
E meu coração está se partindo bem ali.
Jonah começa a me levar para longe.
— Vamos sair daqui…
Eu paro na hora.
— Você tem ou não tem?
— Tenho. — Ele me lança um olhar relutante. — Tenho, sim.
Gesticulo na direção do banheiro. Vou na frente, e meu melhor amigo me
segue, arrastando os pés. Entro numa cabine, e ele atrás. Jonah me entrega o
saquinho com um suspiro grande e uma expressão pesarosa, mas a noite
inteira está um horror, então que se foda. Faz uns dois anos que não cheiro
nada, desde que prometi a ela que não faria mais isso.
Cheiro só uma carreira, o necessário para me acalmar. Jonah fica me
encarando. Ele não concorda. Parece de uma puta hipocrisia, já que ele é
líder de uma gangue e tudo o mais, mas acho que, no fim das contas, não foi
ele que teve uma overdose…
Ele tira a bebida da minha mão.
— Chega de álcool por hoje.
Dou de ombros.
— Não preciso de mais.
Passo a mão no cabelo e volto para a festa, já me sentindo melhor. Vejo
Vanna Ripley do outro lado do cômodo. Cabelo penteado para trás, vestido
decotado, olhos de um gato. Eu gosto da Vanna Ripley. Ela é gostosa pra
caralho. Uma atriz horrível, e sabe disso. Mas isso faz com que ela seja
dedicada no quarto. E ela gosta de mim mais do que eu mereço. Acho que
até somos amigos agora.
De qualquer forma, acho que vou transar com ela.
01:15
BJ

Não consegui te dar tchau antes de ir embora hoje.

Tchau

Tá tudo bem?

Você tava com uma cara meio de bêbado quando eu saí.

Uhum td ben

Tá mesmo?

Som

Sim

Beleza.

Ô parsk como ta seu namirad

Você tá fazendo o quê?

Nads

To bwm

Dá pra atender o celular?

To c/ algem

Também tô com alguém.

Nao to falndo disos

Eu sei do que você tá falando.

É o.que emtao?

Para com isso.


Vc ta piya comg?

Vcta puta comogo

Tô.

Mas me liga quando chegar em casa.

Nao vou prs caza hje

Show.

14:06
Parks

Cacete

Caralho

Foi mal

Tava muito bêbado

Percebi…

Foi mal.

Você foi pra casa com quem?

Você quer mesmo saber?

Quero.

Vanna

Ripley?

Aham.

Tá.

Show.

Parks?
Que foi?

Foi mal.

Foi só bebida, né?

Que você tomou ontem? Foi só álcool.

Bebi negronis demais

Melhoras
VINTE E QUATRO

Magnolia

Tom não veio me buscar para jantar com a família dele mais tarde. Não teria
como, segundo Tom, vir da casa dele até a minha e chegar lá a tempo. Por
um instante, aquilo me incomodou, mas lembrei que, em primeiro lugar, ele
não é meu namorado de verdade e, segundo, é muito provável que eu esteja
sendo sensível demais simplesmente porque fiquei magoada por BJ ter
transado com uma subcelebridade na semana passada.
Vanna Ripley não é tão bonita quanto eu, mas ela está começando na
carreira de atriz e tem fama de ser boa de cama, de acordo com Christian,
que me contou muito mais do que o necessário ou solicitado.
Enfim, pego uma limusine para o Mandarin Oriental, e é como se eu
estivesse traindo BJ de alguma forma, porque esse é o nosso hotel. Acho que
ele morreria um pouco se soubesse que eu estava lá com Tom, porque eu me
sentiria da mesma maneira se soubesse que BJ tivesse levado alguém lá. Não
foi sugestão minha. Heston Blumenthal é amigo de Charlotte e é seu chef
favorito no mundo, então só torço para que eu não seja fotografada lá e Bê
nem fique sabendo.
Também tento lembrar: BJ traiu você de verdade.
Enquanto você estava gripada em casa, o amor da sua vida praticou
penetração, numa festa, na casa dele, numa banheira sem água, com alguém
que cheirava a perfume de flor de laranjeira, almíscar e… nardos (acho).
Então, é totalmente justo que você vá a um jantar do Heston no hotel onde
você perdeu a virgindade com ele há quase sete anos, já que ele perdeu o
direito ao hotel quando perdeu você.
É esse discurso motivacional que faço a mim mesma conforme me
encaminho até uma mesa que já está repleta de pessoas da família England.
Estou com uma roupa apropriada para a ocasião — camisa cropped com
gola escalopada da Miu Miu, saia evasê da Prada e suéter de caxemira com
gola V da Versace. Fofa, mas conservadora.
Não sei por que estou nervosa. Ou por que me importo em causar uma
boa impressão. E não é como se não os tivesse encontrado antes — claro que
encontrei, diversas vezes desde criança, mas agora não sou mais criança e
Tom England é meu namorado falso com pais reais que, aparentemente,
estou determinada a agradar com meus olhos de diamante e minha
afabilidade.
Eu nem sequer tinha pensado que Clara England poderia estar lá — que
bobagem, é claro que estaria. Só porque o marido morreu não significa que
ela não é mais uma England, eu só meio que esqueci esse fato. Ela tem 26
anos, acho. Imagina ter só 26 e já ser viúva.
Ela e Sam se casaram muito cedo. Logo depois da escola. Meio bizarro
para pessoas da nossa posição social. Houve bastante especulação se ela
estaria grávida, mas não acho que estava. Eles não tiveram filhos.
Tom se levanta quando eu me aproximo da mesa.
Ele está usando uma jaqueta bomber da Gucci, combinada com uma
camiseta apertada da Stedie Eddie e jeans stretch da Nudie, além de um All
Star preto de couro. Ele está bonito, e me pergunto se isso vai passar — essa
sensação que me arrebata quando ele me olha nos olhos, como se eu ainda
fosse uma garotinha. Aconteceu quando eu tinha sete anos e ele, quinze,
quando Tom me entregou aquele guardanapo numa festa no Castelo de
Windsor, e acontece agora da mesma forma, mesmo ele não tendo feito nada
a não ser respirar na minha direção.
Ele se afasta da cadeira, anda até mim e segura o meu rosto entre as
mãos. Então me dá um beijo um pouco mais profundo do que eu desejaria
na frente dos pais dele, porque eu quero que eles gostem de mim e me levem
a sério, ainda que tecnicamente eu não esteja levando o filho deles a sério.
Mas primeiras impressões são tudo! Ele me pega pela mão e me leva até a
mesa.
Recebo um beijo na bochecha dos pais dele e um abraço caloroso de
Clara que sinto não merecer.
— Que bom que você pôde jantar com a gente — diz ela, sorrindo para
mim.
— Ficamos muito contentes que você e Tom estejam juntos, Magnolia —
comenta Charlotte.
— Verdade. — Andrew assente. — É uma maravilha. Faz tempo que não
vemos Tom tão feliz.
— Só que… Posso perguntar…? — interrompe Clara, olhando para Tom
por alguns segundos antes de se virar para mim. — Me desculpa se eu
estiver sendo intrometida — ela olha para Tom brevemente —, mas pensei
que você ainda estivesse namorando BJ Ballentine.
— Ah. — Balanço a cabeça uma vez, deixando escapar um riso
constrangido. — Não. Mas não é uma confusão incomum, ainda somos
bastante próximos.
Tom coloca um dos braços ao meu redor, e, por um instante, parece que é
um escudo, como se ele estivesse me protegendo dos olhares curiosos da
família — e são mesmo curiosos, como a maioria das pessoas é quando se
trata de BJ e eu, já que a nossa história de amor parece uma novela. Mas
então olho para Tom, o maxilar tensionado e as sobrancelhas franzidas,
nada de protetor nem gentil, e me pergunto se eu talvez o esteja protegendo
de algo que não sei.
— Então me conte — retoma Clara, com um sorriso direcionado a Tom,
e não a mim, embora ela esteja se dirigindo a mim. — Como foi que vocês
se conheceram?
Tom lança a ela um olhar.
— A gente se conhece há anos.
Clara assente de leve e muda de estratégia.
— Ah, eu só não sabia que vocês estavam passando tempo juntos.
Andrew assente.
— Nós também não, mas é uma notícia muito bem-vinda mesmo assim.
Com um sorriso grato, conto a ele sobre aquela noite, deixando de fora a
parte de BJ e a dança erótica, além de trocar a balada por um restaurante e
tornar a história um pouco mais adequada para o público geral.
Tom não tirou o braço de mim. E também não me olhou nenhuma vez.
— E você é a editora de entretenimento da Tatler? — pergunta Andrew
ao mesmo tempo que responde à própria pergunta.
— Sou, sim.
— Como é que você conseguiu esse emprego?
— Bom, eu tenho muita experiência em entretenimento, e também… —
Dou a ele um sorriso brincalhão. — Um pouco de nepotismo descarado.
Ele dá uma risada.
— Quer dizer que Albert Read é seu padrinho?
— É só um velho amigo da minha mãe. — Dou outro sorriso para ele,
como se ele estivesse falando besteira. — Meu padrinho é o Elton John.
Aquilo finalmente chama a atenção do meu namorado falso. Finalmente.
— Fala sério. De verdade?
— Thomas! — Sua mãe parece surpresa.
— Elton John? — repete ele, boquiaberto.
— Aham.
— O Elton John? — indaga Clara.
— Não, o outro. — Reviro os olhos, sarcástica. — É claro que é ele.
Tom bufa, rindo.
— Como assim? E por quê?
— Bom, era 1997, e meu pai estava trabalhando com George Martin na
época, que era meio que o protegido dele. Elton estava se preparando pra
regravar “Candle in the Wind”, aí minha mãe ficou grávida de mim. Ele
estava sempre por perto, então só meio que aconteceu.
— Ele é um padrinho muito presente? — pergunta Clara, debruçada na
mesa, em deslumbre.
— Sim, bastante! Ele vai em todas as minhas festas de aniversário. E flerta
descaradamente com os Ballentine…
— Compreensível — comenta Clara. — Qual foi o melhor presente que
você ganhou dele? — quer saber, a mão no queixo.
— Quando eu fiz dezoito anos, ele me deu um château do século XII na
Aquitânia. Se bem que… — repenso —, quando eu fiz 21, ele me deu um
colar de diamantes de dez quilates que eu adoro.
— Ah, eu amaria ver qualquer hora — diz Charlotte, sorrindo para mim.
Antes de nossa comida chegar, peço licença para ir ao banheiro, e Clara
me acompanha. Não entendo o motivo de garotas gostarem de ir ao
banheiro juntas, porque eu prefiro ir sozinha. É muito mais difícil fazer xixi
se tiver alguém escutando.
Quando saio do cubículo, ela está esperando por mim na pia, se
arrumando no espelho. Sem graça, lavo as mãos e seco lentamente.
Não é como se eu fosse retocar a maquiagem e passar mais pó — eu sigo
um regime de skincare muito rígido, quinze passos, e meu rosto é
praticamente livre de poros. Ainda assim, continuo naquele teatrinho.
Coloco um pouco mais de batom, como se meus lábios já não fossem
naturalmente dessa cor.
Clara olha para mim no espelho durante alguns segundos, perdida em
pensamentos.
— Me desculpa se eu passei dos limites antes — diz ela.
— Por causa do BJ?
Ela assente, e eu dou de ombros.
— Tudo bem.
A verdade é que está tudo bem mesmo. Sempre fico feliz de ter uma
desculpa para falar dele.
— Vocês namoraram por quanto tempo?
Não é minha intenção, mas suspiro mesmo assim.
— Começamos quando eu tinha catorze.
Ela dá um sorriso melancólico.
— Agora tenho 22 — completo, antes que ela pergunte.
— É bastante tempo.
— Mas obviamente não estamos mais juntos.
— Entendi. — Ela assente. — Quando vocês terminaram?
— Há três anos.
— O que houve?
Eu aperto os lábios, curiosa.
— Você não lê as notícias?
Ela nega com a cabeça. Isso me faz gostar um pouco mais dela. O clique
abrupto do meu batom ultraintenso Hourglass Confession ecoa pelo
banheiro.
— Ele me traiu.
— Eita, que merda. — Ela suspira. — Sinto muito.
Clara balança a cabeça e desvia o olhar, parecendo estar magoada. Os
olhos dela estão lacrimejando?
— Tá tudo bem? — pergunto, observando com delicadeza.
Ela dá uma risadinha.
— Desculpa ser enxerida. É que vocês dois sempre me lembraram um
pouco de mim e do Sam.
Algo naquilo me amolece.
— Mesmo?
Ela confirma.
— Nós éramos novos que nem vocês quando nos apaixonamos, vivíamos
agarrados. — Está estampado na cara dela o quanto sente saudades, e aí ela
me olha nos olhos, muito séria. — Tem coisas piores do que uma traição,
sabe…
Sustento o olhar.
— Tipo morrer?
— Tipo morrer.
Ela pressiona uma das mãos na têmpora.
— Olha só pra mim, encurralando e dando conselho amoroso que
ninguém pediu pra namorada do irmão do Sam. — Ela balança a cabeça
para si mesma. — Sou muito sem noção.
— Não.
Balanço a cabeça, mas só estou tentando afastar da mente a ideia de BJ
morrer.
Não sei o que eu faria. Não sei o que o mundo seria sem ele.
Meu coração se quebra em mil pedaços por essa garota. Se Sam England
era o BJ dela e agora ele se foi de um jeito que acaba com toda a esperança
de que um dia as coisas iriam voltar a ficar bem e vocês iriam se resolver
quando ele parasse de transar com meio mundo e você conseguisse encarar
a ideia de confiar nele de novo… se tudo isso aconteceu, ela deve ser apenas
uma casca de pessoa, e seu coração deve estar completamente devastado.
Nós voltamos para a mesa, e, assim que me sento, Tom me dá outro beijo.
Mais uma vez, é mais do que necessário.
E é só quando ele se afasta que vejo Clara observando a boca dele na
minha. E, em seus olhos, percebo um ciúme peculiar, que suspeito que nem
ela entenda, porque posso afirmar que eu não entendo. Olho de Tom para
Clara, e há algo ali. Alguma coisa carregada. Talvez, se eu pudesse enxergar
coisas invisíveis, encontrasse uma corrente pesada entre os dois — mas
meus olhos não conseguem enxergar nada.
No entanto, eles conseguem ver os olhos de Tom, que enfim encontram
os meus. E ele parece… bem, ele não parece exatamente um animal
assustado no meio de uma estrada, e mais um cordeirinho perdido na
floresta. Eu não sei o que é, mas não sou idiota, sei que acabei de perceber
algo entre eles. Tento sustentar o olhar dele, dar uma chance para ele me
dissuadir. Não faço ideia de por que meu cérebro parece a mil, mas, para ser
sincera, de repente me sinto estranha. Meio tensa? Talvez exposta.
Então, a comida chega.
Depois que a conta é paga, os pais de Tom vão se levantando, prontos
para ir embora.
— Te levo de volta pra Holland Park? — pergunta ele.
Eu assinto com um sorriso, aliviada por termos um instante a sós.
— Ah — solta Clara. — Será que eu posso pegar uma carona?
— Ah — diz Tom.
Então rola uma pausa estranha. Olho para ele, aguardando o resto da
frase. Ele me encara, e aí percebo: ele está esperando que eu dispense ele de
me levar pra casa. Mas não faço isso.
— Eu posso deixar vocês duas em casa — diz ele. — Holland Park não é
tão longe, aí posso deixar você na Rosie.
Ela sorri de leve, tranquilizada.
Semicerro os olhos.
— Não, na verdade, não precisa. Tem uma limusine me esperando.
Esqueci.
— Tem? — pergunta Tom, ávido demais.
— Não deu pra você me buscar, lembra?
Ele desvia o olhar, culpado.
Me volto para os pais dele.
— Obrigada pelo jantar, estava uma delícia.
Eu me viro para Clara e lanço a ela um olhar discreto.
— Tem coisas piores — digo.
O rosto dela desaba. Tom se inclina para me beijar, mas eu desvio,
virando a bochecha.
— Depois te ligo — ele me diz.
Lanço um olhar por cima do ombro.
— Aham.
Não sei por que isso me deixa triste. Só que me deixou, e eu quase chorei
a caminho de casa.
Vou direto pro quarto, evitando minha família, mas em especial minha
irmã e Marsaili, porque não estou a fim de explicar sentimentos que não sou
capaz de explicar nem para mim mesma. Tomo um banho e pego um
moletom da gaveta de BJ — o da Ralph Lauren com estampa de ursinho.
Fica grande nele, e enorme em mim. Tem o cheiro e a sensação de Bê, e eu
só quero me sentir próxima dele, porque não entendi o que acabou de se
passar e odeio não entender as coisas, mas eu quase sempre consigo
entender BJ.
Então, meu celular toca. É Tom. Eu não atendo. Toca de novo.

23:53
Tom England

Atende.

Não.

Tô aqui fora.

Olho pela janela. Ele está na rua, ao lado do carro, a cabeça virada para
mim. Acena, me chamando para descer.
Eu faço um gesto para ele ir embora, mas ele só acena com mais afinco e
continua me ligando.
Reviro os olhos e vou até o andar de baixo.
Só estou de calcinha, moletom e meias da Gucci — nunca pareci tão
desarrumada na minha vida inteira. Fecho a porta da frente
silenciosamente, porque tenho certeza de que minha irmã está espiando e
desconfio que ela já desconfie que eu e Tom estamos fingindo, mas eu não
quero que ela saiba a verdade por inteiro.
Ele puxa a manga do casaco, os olhos pousando em mim.
— É seu?
Lanço um olhar irritado.
— Não.
Ele dá uma risada.
— Então ele está lá em cima?
— Não. — Franzo a testa, indignada. — Eu não posso usar, por acaso?
Agora é ele quem franze a testa.
— Claro que sim, é só que…
— Não me faz de otária — interrompo. — Foi isso que você falou pra
mim semana passada. Pra não fazer você de otário. Aí você me leva pra
jantar com a sua família e deixa um detalhe muito importante de fora.
— Qual detalhe? — seu tom parece desafiador, mas então ele engole em
seco, nervoso.
— Você também precisa de uma trincheira.
Ele evita meu olhar.
— Ela é a esposa do seu irmão… — digo.
— É complicado…
— Pra dizer o mínimo. Não vou ficar fazendo joguinho com uma viúva
de luto.
Ele tensiona o maxilar e balança a cabeça.
— Você não… A gente não vai.
— Então o que a gente tá fazendo?
Eu o encaro, impaciente.
Ele respira de leve, o peito largo se expandindo um pouco, depois solta o
ar pela boca, como se soprando uma vela invisível. A cara está tão pálida
quanto a de um fantasma.
— Eu tô apaixonado por ela.
— Tom! — dou um grito e tenho certeza de que só aparece o branco nos
meus olhos de tão arregalados. — Ela sabe?
Ele faz uma careta.
— A gente se beijou.
Fico em choque.
— Tom!
Não consigo acreditar. Encaro-o como se ele tivesse acabado de me
contar que faz parte de uma operação de tráfico internacional. Pisco várias
vezes.
— Não foi hoje à noite — explica ele, e devo admitir que isso me deixa
aliviada. Por que estou aliviada? — Foi uma semana antes de a gente… sabe?
Acho que foi do nada. — Ele balança a cabeça. — Preciso sair dessa.
Meu Deus, eu preciso de um martíni. Solto o ar pela boca e o analiso,
olhos semicerrados.
— E foi só um beijo?
Algo muda no rosto dele. É a primeira vez que o vejo parecendo com
medo.
— Eu preciso que seja só isso.
Assinto uma vez, cruzando os braços e me sentando no degrau diante da
porta de casa.
— Como aconteceu?
Ele suspira.
— É complicado.
Eu fecho a cara.
— Então descomplica.
Os olhos dele imploram.
— Não consigo. Você confia em mim?
— Não. — Dou de ombros. — Não exatamente.
Isso é mentira. Sei disso assim que solto aquilo. Tom England é uma
pessoa confiável, e eu de fato confio nele. Bastante, na verdade. Mas, por
algum motivo, sinto vontade de magoá-lo.
E dá certo. Percebo a expressão em seu rosto.
— Beleza. — Ele repete essa palavra algumas vezes, sem sustentar meu
olhar. Pressiono as mãos nos olhos e suspiro. — Você quer parar… — ele faz
uma pausa — … com isso?
Mantenho as mãos no rosto quando respondo.
— Não.
— Não?
Ele parece surpreso. Eu olho para ele.
— Não.
— Por que não?
A resposta verdadeira é porque não gostei da cara que ele tinha feito
alguns minutos antes. Não gosto de ver Tom com medo — deixa os guardas
do meu coração prontos para um ataque.
Em vez disso, digo:
— Porque eu ainda preciso de uma trincheira.
— Beleza. — Ele assente. — Mas a gente tá bem?
Ele olha nos meus olhos ao perguntar isso, com uma preocupação
genuína.
— Acho que sim — digo, desviando o olhar para ser petulante, só porque
gosto de ter homens ao meu dispor.
Ele se senta no degrau ao meu lado.
— Compro um sapato novo pra você amanhã?
Olho para ele de soslaio.
— Compra três.
Tom abre um sorriso.
— Combinado.
— Combinado.
Observo a rua. Ele acompanha meu olhar e fica ali por um minuto.
O clima entre nós é agradável. E eu me sinto segura com ele ali ao meu
lado, o que me parece estranho, porque eu só me senti segura perto de uma
outra pessoa antes. À medida que começo a refletir sobre isso, sobre o que
pode significar, Tom olha para cima. Sob o céu escuro da noite de hoje, o
cabelo loiro penteado para trás parece mais escuro do que é de verdade,
mas, de alguma forma, seus olhos parecem mais claros. Mais azuis, mais
nítidos. Quase como se um peso tivesse sido tirado das costas dele.
Ele olha para mim durante alguns segundos.
— Você ficou com ciúme? — pergunta ele. — Quando descobriu que eu
beijei ela?
Fico constrangida por ele ter percebido isso e grata de estar tão escuro
que não é possível ver que minhas bochechas estão corando.
— Fiquei — digo para as estrelas. — Mas não quer dizer muita coisa. Eu
sou muito possessiva, todo mundo sabe que não gosto de dividir.
Ele dá uma risadinha.
— Bom saber.
VINTE E CINCO

BJ

Parks levou a notícia de Vanna melhor do eu imaginava.


Não sei se é um bom sinal, mas estou contente por ela ter me pedido para
acompanhá-la num hotel novo que vai aparecer na seção de entretenimento.
É um lugar do qual eu nunca tinha ouvido falar. Farnham House? Acho
que fica perto da baía de St Ives. Ela simplesmente apareceu na minha porta.
É por isso que nunca deixo garotas ficarem para dormir. Ela tem uma chave,
mas nunca usa. Deve ter medo de entrar e estar acontecendo algo do outro
lado da porta que ela preferiria não ver. É justo. Provavelmente é mais
seguro tocar a campainha mesmo.
Abri a porta. Conheço aquela expressão como conheço todas as linhas da
palma da minha mão. Ela estava nervosa com alguma coisa. Não sei o que
nem o motivo. Só sei que fiquei feliz que ela veio até mim.
— Oi — falei, abrindo um sorriso conforme me afastei da porta para
deixá-la entrar.
— Tá livre? — pergunta ela. — Nos próximos dias?
Na verdade, não. Tinha um ensaio fotográfico de tarde e um encontro
com uma modelo americana amanhã, mas, com aquele rosto na minha
frente, estou livre como um pássaro. Fiz que sim.
— Posso me liberar.
— Tá a fim de me levar até a Cornualha? — oferece ela. — Coisa do
trabalho.
Inclinei a cabeça, curioso.
— Você não quer que o Tom te leve?
— Não. — Ela balançou levemente a cabeça. — Não quero.
Nossos olhares se encontraram, e senti que ela estava me dando uma
chance, como se pensasse que eu estava longe, mas nunca estive. Aquilo deu
um nó estranho na minha cabeça, na verdade, porque ela estar dessa forma,
sentindo que há uma distância entre nós que não é minha culpa, significa
que é culpa dela.
— Eu dirijo ou você dirige?
— Eu peguei o Mulsanne — disse ela —, mas você pode dirigir. Prefiro
quando você dirige.
Eu a puxei para dentro do apartamento.
— Me dá cinco minutos, vou arrumar as malas.

* * *

Parks me deixa dirigir, e eu adoro pegar a estrada com ela. Eu já a levei por
essa estrada específica um bilhão de vezes, e sempre fica a sensação de que
estamos de volta a exatamente como costumávamos estar.
A família dela tem uma casa em Dartmouth que é importante para a
gente. Às vezes vamos lá. Não sempre. Mas às vezes.
Essa estrada me lembra dela, daquela noite e de tudo o que aconteceu. Eu
suspiro mais alto do que deveria, tentando afastar a memória. Ela me encara,
e eu sei que sabe no que estou pensando. Ela pega meu celular, muda a
música para “I’ll Be Seeing You” e contempla a vista. Ela sabe. Parks já me
conhece, eu já conheço ela, e provavelmente não é nada saudável e até
bastante doentio, porque não é que eu não consiga superar ela, é que,
mesmo se eu descobrisse como fazer isso, acabaria não fazendo.
Porque os olhos dela agora, carregados com o peso das memórias que eu
também tenho, nos ancoram em seja lá o que nós somos, ou fomos, ou
seremos. E eu me pergunto como é o amor para as outras pessoas… se o
amor para todo mundo são conversas telepáticas e um milhão de
lembranças que acabam com você até não sobrar mais nada.
Ela se endireita um pouco conforme passamos por Plymouth. De lá, é um
caminho de mais ou menos uma hora e meia até Toms Holidays, e estou feliz
só de poder passar um pouco de tempo com ela.
Sem mais ninguém, sem olhares curiosos, sem gente ouvindo nossas
conversas, sem namorados — só eu e ela, e mãos roçando e olhares
roubados até nos recalibrarmos de volta ao que costumávamos ser.
— Sou uma garota de ideias — solta Parks.
Eu lanço uma expressão duvidosa.
— É mesmo?
Ela franze a testa, indignada.
— Óbvio.
— Tá, então manda a sua melhor ideia…
Ela se vira para mim, sentada em cima das pernas, e pigarreia. Então, faz
uma pausa dramática.
— Um parque aquático do Titanic.
Faço que não.
— Nem a pau.
— Quê? — Ela franze a testa de novo, revoltada. — Por quê?
Encaro ela de relance e dou de ombros.
— Talvez seja meio insensível?
— Para quem? — Ela pisca. — James Cameron? Relaxa, ele é meu
amigo…
— Nã…
— Tá, beleza — admite ela. — Nós estávamos sentados um do lado do
outro num jantar oficial até ele me pedir para trocar de lugar comigo, mas
não acho que era por minha causa, acho que era só porque ele estava
debaixo de uma saída de ar. Já pensou ser você a pessoa que colocou o James
Cameron sentado debaixo da saída de ar? Alguém foi demitido naquele dia!
Estou me esforçando para não rir. Ela não gosta quando rio dela. É uma
habilidade que levei anos para aperfeiçoar e provavelmente tirou alguns dias
da minha expectativa de vida. Fico em silêncio por alguns instantes antes de
perguntar cuidadosamente:
— Você contou pra ele essa ideia do parque aquático?
— Sim?
Minha boca estremece.
— Ele trocou de lugar por sua causa.
Parks faz uma pausa, pensando.
— Será que ele vai roubar a minha ideia?
— Com certeza não.
Balanço a cabeça. Ela semicerra os olhos até eles se tornarem filetes.
— Será mesmo?
Faço que sim.
— Por quê? — insiste ela.
Deixo escapar uma risada que parece um suspiro e não combina com a
felicidade que eu sinto de estar jogando conversa fora com ela.
— Porque seria tipo alguém fazer um parque espacial com o tema da
Apollo 11. Ou uma companhia de aviação com o nome da Amelia Earheart.
Ela me encara durante vários segundos, e acho que a ficha finalmente
caiu.
— Puta merda! Bê, isso é incrível. Genial! Um parque temático inspirado
em desastres! A gente vai ficar rico!
Agora estou rindo gostoso.
— A gente é rico.
— Mais rico — replica ela.
Nós chegamos à Farnham House.
O lugar parece um pouco com um château francês. Pedras velhas, talvez
arenito? Telhado inclinado, janelas enormes.
— Maneiro — comento.
Olho para ela conforme jogo as chaves para o valet com uma piscadela.
Então, indico um carro com a cabeça. Parece familiar.
— Parece o carro do seu pai.
Ela olha para o GranSport GTS preto de quatro portas.
— HP1977? — Ela olha para mim, confusa. — É o carro dele.
Franzo a testa.
— Sabe o que mais? Alguns meses atrás, ele me pediu indicação de um
hotel que fosse tranquilo para uma viagem de trabalho. Acho que era com o
Post Malone.
— Seu pai tá lá dentro com o Post Malone? — Eu pisco, então aponto
para a porta. — Vamos lá encontrar eles.
Quero fazer uma pausa aqui para dizer o seguinte: Parks e eu tivemos
infâncias muito diferentes.
Minha mãe é a melhor mãe do mundo: tem cinco filhos e não é católica.
Cinco filhos porque ela ama crianças, essa esquisitona. Ela chorou
quando nos mandou para o internato, mas era só uma coisa que todas as
famílias como a nossa fazem. E a relação com meu pai é um pouco mais
complicada, porque ele acha que eu sou uma decepção — que estou
desperdiçando minha vida, e ele provavelmente está certo, sei lá —, mas
nunca pensei que ele não me amasse. Porém, a infância de Parks e de
Bridget teve vários momentos esquisitos em que elas ficaram se sentindo
como se não fossem bem-vindas.
Como se os pais delas tivessem tido filhos porque era o que as outras
pessoas faziam, e não porque queriam. E eu não acho que eles não amam as
filhas. Eles amam, sim. Já vi a mãe da Parks lutar por ela uma vez — uma
única vez, mas foi por uma coisa importante. E o pai… Bom, quando Parks
e eu começamos a dormir juntos, meu pai ficou furioso, foi até a casa dela,
praticamente arrombou a porta. Eu me escondi debaixo da cama dela, e
Marsaili segurou a nossa barra e mentiu (dizendo que eu tinha ido para a
casa do Jonah). O pai de Parks não falou nada para ela, mas me puxou de
lado mais tarde naquela noite. “Eu mataria você se fosse necessário”, ele me
informou.
No geral, porém, eles são distantes. Ela poderia ser traficante de cocaína,
que eles nem saberiam. Os dois viviam zanzando pelo mundo. Faziam várias
escrotices, como esquecer aniversários, viajar no Natal sem as garotas,
desaparecer algumas semanas sem deixar rastros e sem atender ligações —
toda essa coisa que pais de merda fazem. Se você perguntasse a Parks, ela
diria que a única responsável por ela ser um ser humano minimamente
funcional (e, dependendo do dia, podemos todos concordar que há diversas
nuances nessa funcionalidade) é Marsaili.
Então, entramos no saguão e seguimos para o balcão — Parks guia a
conversa, e eu preciso me segurar para não empurrar o cara do check-in,
porque ele está olhando para ela como se eu nem estivesse do lado. Mas
Parks não nota. Ela nunca nota. Eu me aproximo mais dela do que me
aproximaria se estivéssemos em Londres, e ela não se afasta — ela nunca se
afasta quando não tem ninguém vendo.
É por isso que a gente ama as cidadezinhas inglesas. Ninguém dá a
mínima para quem nós somos. Eu posso tocar na cintura dela sem uma foto
nossa sair no The Sun e posso descansar o queixo na cabeça dela enquanto
esse otário de merda atrás do balcão evita meu olhar por ter flertado com a
minha garota.
— Nós temos uma suíte com duas camas de solteiro ou uma com cama
de casal. Qual é a preferência?
Semicerro os olhos para o sujeito.
— Qual você acha que é, parceiro?
A boca dele se comprime, e ele começa a digitar.
Ainda estão arrumando o quarto, e somos informados de que vão
precisar de mais uma hora — tenho certeza de que é algum joguinho que o
cara do check-in está fazendo, tentando atrasar todo o sexo que não vamos
fazer de qualquer jeito.
Vamos para o bar do hotel enquanto esperamos.
Estou atravessando o batente com minhas mãos nos ombros dela, e ela
está rindo quando, de repente, congela.
Sigo o olhar dela para o canto mais distante do bar.
O pai dela e… Marsaili?
Ela franze a testa.
— Que estranho.
E aquilo não parece entrar na cabeça dela, porque não entraria. Parks não
é desse jeito, ela não é do tipo que pensa nas piores emoções humanas. Ela
colocou Marsaili num pedestal a vida toda como a única adulta que nunca a
decepcionou, e fico com a sensação de que preciso tirá-la dali, impedi-la de
ver o que está prestes a ver…
— Vamos embora. — Agarro a mão dela, puxando-a para trás. — Vamos
ver como está o quarto.
— Não. — Ela se desvencilha. — O que eles vieram fazer aqui?
E, assim que a pergunta sai da sua boca, ela recebe a resposta: os dois se
debruçam sobre a mesa e se beijam daquela forma nojenta pra caralho e
sincera que pessoas velhas se beijam.
Ela fica boquiaberta.
— Parks. — Seguro o pulso dela. — Vamos embora.
Ela se vira para mim, os olhos arregalados de surpresa e alguma outra
coisa que não consigo decifrar. Um pouco magoados, mas ainda pior.
Dou um aperto na mão dela.
— Acho melhor irmos embora.
— De jeito nenhum.
Ela balança a cabeça, se vira e vai batendo os pés até lá.
— Mas olha só! — Parks junta as mãos num som estalado. — Olha quem
eu encontrei aqui!
— Cacete — diz o pai, se levantando com relutância.
— Magnolia! — Marsaili fica de pé num pulo, a cor se esvaindo do rosto.
Parks olha de um para o outro durante alguns segundos.
— Minha nossa, hein.
— Querida… — tenta Harley.
Ela ergue a mão para que ele fique em silêncio.
— Minha nossa, sério.
— Magnolia — começa Marsaili, olhando dela para mim, como se eu
pudesse oferecer alguma salvação. — Eu posso explicar…
— Pode mesmo? — pergunta Magnolia, num tom de voz agradável. —
Então, por favor, pode começar.
Harley balança a cabeça e dá um passo à frente.
— Querida, escuta…
Ela vira para o pai.
— Você fazer isso, beleza. Tanto faz. Já tem anos que você pega todas as
mulheres nos clipes de rap.
Ele recua a cabeça, indignado. É um cara grandalhão, de um metro e
noventa, provavelmente. Só uns centímetros menor do que eu, mas ele é
forte. Como um gladiador. Eu já o vi treinar com Dwayne Johnson e não
fazer feio. Parks tem tipo um metro e setenta e cinco, pernas finas, boca
grande e sangue nos olhos, e é incapaz de recuar em uma discussão com esse
homem.
Eu sempre me questionei se teria que brigar com ele um dia. Fico
pensando se esse dia vai ser hoje.
— Como é que é? — ele rosna para ela.
— Você acha que eu não sabia o que você estava fazendo com aquela
mulher em Britannia Row quando eu apareci na sala de som? Eu tinha treze
anos. — Ela balança a cabeça. — Já tô acostumada com uma babaquice
dessas vinda de você, Harley, mas de você? — Ela se vira para Marsaili, e eu
meio que adoro ver que minha Parks se transformou num dragãozinho. —
Você, com o nariz nas alturas, desdenhando da gente, falando dele com toda
aquela prepotência… — ela faz um gesto com o dedo na minha direção —,
sobre as falhas dele, sobre como o comportamento dele era imperdoável, e
tudo isso enquanto você tá dando pro meu pai, que é casado?
O rosto de Marsaili desaba. Comprimo os lábios.
— Magnolia… — Harley se coloca entre as duas. — Já chega.
— Faz quanto tempo? — pergunta Parks, ignorando-o.
O pai dela a encara com irritação, e eu fecho as mãos em punhos.
— Seis anos — diz Marsaili, um pouco rápido demais.
Até eu fico chocado.
— Seis anos — repete Magnolia lentamente.
Algo no clima entre elas muda. Muda de choque e um pouco de
deslealdade para… não sei. Analiso os olhos de Parks. Conheço todas as
suas cores e expressões, e meu melhor chute é… que parece uma espécie de
luto?
Parks parece magoada demais para aquele sentimento ser só raiva.
Mars e Parks se encaram, e há uma troca acontecendo nesses olhares. Os
olhos de Mars estão implorando, os de Park estão arrasados, e elas
sustentam o momento como se estivessem travadas. Eu gostaria de entender
o que estão dizendo, porque sinto que poderia ser algo sobre mim.
Magnolia aponta um dedo fraco para a mulher que a amou a vida inteira,
não diz nada durante alguns segundos tensos e enfim solta:
— Nunca mais fala comigo.
Então, ela agarra minha mão e me leva de volta para o carro.
VINTE E SEIS

BJ

Nós vamos embora. Ficamos apenas em silêncio por um tempo. O peito dela
sobe e desce. Ela está à beira das lágrimas. Vão chegar, agora ou mais tarde, e
não consigo notar tudo, com a minha atenção dividida entre ela e a estrada,
mas ela vai chorar, e eu vou fazer com que se sinta melhor.
— Pra onde você quer que eu te leve, Parks?
Ela olha para mim, aturdida. Dá de ombros.
— A gente não tá muito longe de St Ives, né?
Ela assente e olha pela janela. Vamos para Carbis Bay e paramos em um
hotel e spa. Consigo o melhor quarto possível de última hora e subo com ela.
Quantas vezes desde que terminamos eu já pensei em levar Parks pela mão
até um quarto de hotel? Não sei. Mais de um milhão de vezes, fácil, fácil.
Só que a cara dela é de desolada. Não só a cara, ela inteira. Acho que ela
acabou de ver sua heroína cair em um inferno.
Desde que eu a conheço, Parks sempre colocou Mars nesse pedestal.
Nunca me incomodou quando éramos mais novos, porque ela me amava
como se eu também pertencesse a ela, mas, depois de tudo que aconteceu —
o que é estranho agora, levando em conta o contexto atual —, talvez fosse
algo próximo demais da realidade? Como se um espelho tivesse sido
colocado bem na sua frente.
Seis anos.
O caso deve ter começado quando Parks tinha quinze ou dezesseis anos,
o que é bizarro de se pensar, porque Marsaili era incrível. Nos finais de
semana que passávamos em casa, quando saíamos bêbados das festinhas, ela
nos pegava e levava ao McDonald’s. Ela e minha mãe tinham um acordo —
as duas achavam que nós não sabíamos — de não nos interrogar desde que
voltássemos para casa em segurança. Isso quer dizer que nós sempre
ligávamos para uma delas. Quase sempre, no caso.
Ela costumava me botar pra correr da cama de Parks com uma colher de
pau — e uma batida daquilo dói —, e, agora que somos adultos e penso
nisso, tem um monte de merda da qual eu nem sei como Parks e eu nos
safamos quando éramos novos. Os pais de Magnolia não davam a mínima.
A mãe dela levou ela ao médico para tomar pílula um mês depois de
começarmos a namorar. Não tenho certeza, mas acho que Parks não foi uma
gravidez planejada. Fui desconfiando disso com o tempo. Pescando ao longo
dos anos informações e opiniões ruins que não deveriam ter sido
compartilhadas na nossa frente, mas eram mesmo assim, porque os pais dela
eram afetivamente negligentes.
Eu me pergunto se a mãe de Parks sabe do caso. Eu me pergunto o que
vai acontecer com Bushka.
Coloco Magnolia na cama e puxo uma cadeira para me sentar de frente
para ela.
— Quer alguma coisa, Parks? Faço o que você quiser.
Então, ela estica o braço e toca nas minhas mãos. Ela parece estranha.
Parece em conflito, talvez? E triste.
— Desculpa mesmo — diz ela, e sua voz falha um pouco.
Meu coração pula de uma ponte, e eu não entendo bem o motivo.
— Pelo quê?
— Nada. — Então, ela balança a cabeça. — Bê? — Eu a encaro. — Sabe
aquela vez que você teve uma overdose? Você não fez de propósito, fez?
— Quê? — Eu me afasto. — Não. Por que você pensaria…? Não fiz.
Ela assente, parecendo frágil.
— Foi por minha causa?
Eu suspiro e encaro o teto. Respiro fundo.
— Parks, não tem muita coisa na minha vida que não seja por sua causa.
— Olho para ela por um momento, depois para o teto mais uma vez. — Mas
eu não estava tentando me matar, se é isso que você quer saber.
— Tá.
Ela aquiesce. Então, aperta os olhos, balançando a cabeça, e se levanta.
— Preciso tomar banho.
Ela começa a andar até lá, e aí para, sem olhar para trás.
— Você vem?
Eu fico de pé sem dizer nada e a sigo. Não faço suposições. Isso é hábito
dela há muito tempo. Ela não gosta de ficar sozinha no banheiro. Não gosta
de ficar sozinha com seus pensamentos. A mente dela vai a mil no chuveiro.
Me sento na beirada da banheira, encarando minhas mãos — me esforço
para não ficar olhando de rabo de olho enquanto ela tira a roupa.
Só que dou uma espiadinha, e ela está me observando. Nossos olhares se
encontram, e ela me encara, parecendo até me desejar, então engole em seco
e entra no chuveiro.
Os nós dos meus dedos ficam brancos à medida que apertam os joelhos
para me estabilizar — e reprimir o quanto eu a amo, e todas as coisas que
gostaria de fazer em relação a isso.
Ela liga o chuveiro, e eu espero um minuto.
— Você tá reagindo bem mal a tudo isso — digo.
— E como é que eu deveria reagir?
Eu me levanto e me aproximo mais do chuveiro.
— Não sei.
— Tá.
— Em que você tá evitando pensar enquanto está aí?
— Hã? — murmura ela, mas sei que ela me ouviu.
O banheiro agora está cheio de vapor. O box está embaçado. Eu apoio as
costas nele.
— Qual é o problema, Parks?
Cruzo os braços. Ela está parada debaixo da água, que desce pelo seu
corpo da mesma forma que eu queria que minhas mãos descessem. Ela
suspira.
— Marsaili me falou uma coisa uma vez — diz ela.
— E o que aconteceu?
Ela me encara, os olhos arregalados e marejados.
— Eu escutei.
VINTE E SETE

Magnolia

— Cadê o Bê? — pergunta Bridget, se apoiando no batente da minha porta


antes de entrar e se sentar na cama, e preciso de todo o autocontrole possível
para não gritar de alegria por ela estar usando uma das roupas que separei
para ela.
São duas peças da Marni: cardigã listrado de lã felpuda e calça de
moletom com listras, combinados com os chinelos estampados com o logo
da Isabel Marant. Toda noite eu deixo looks para ela usar no dia seguinte. É
um trabalho meio ingrato, mas alguém precisa fazer — caso contrário, eu
teria uma irmã que fica usando Birkenstocks que não são edições especiais
da Proenza Schouler.
— Cadê o Bê? — repete, enquanto atiro outro biquíni na minha mala da
Chelsea Garden.
— Em Angler. — Eu a encaro. — É aniversário de casamento dos pais
dele.
— Você não foi?
Ela franze a testa. Lanço a ela um olhar sério.
— Seria algo meio estranho de se fazer agora, né? Além do que —
acrescento, dando de ombros —, Lil teria passado a noite inteira
preocupada. Teria acabado com a noite deles.
Lily Ballentine tinha acabado de ser oficialmente promovida a adulta
número 1 na minha vida, desde ontem.
Escrevi isso num cartão, acrescentei “Sinto muito, Hamish, você é o nº 2”
e mandei o cartão com BJ para o jantar em que eu deveria estar com eles —
o jantar que BJ tentou me convencer a ir e que ele também tentava evitar —,
pois o lema dele era “faço o que você quiser, Parks”. Foi o que ele me disse. É
o que ele sempre me diz.
— Acho que é uma boa ideia — diz Bridget.
Olho para trás.
— O quê?
— Isso. — Ela indica a mala que estou fazendo. — Você ir embora. — Eu
me viro de novo. — Vai pra onde?
— Monemvasia.
— Com quem?
Encaro minha irmã sem vontade de responder, porque ela sabe com
quem eu vou. Em vez disso, semicerro os olhos.
— Você sabia?
Ela respira fundo.
— Eu suspeitava…
— E você não me falou! — exclamo, horrorizada.
— É, eu sei. — Ela suspira. — Eu só tinha essa sensação de que você não
iria reagir muito bem.
Lanço um olhar feio para ela enquanto dobro a mesma blusa cropped da
Miu Miu com estampa rosa que dobrei um minuto atrás, porque não estava
prestando atenção.
— Você acha que a mamãe sabe?
— Acho que ela tá namorando um francês gato já tem um ano. Ela tá se
antecipando, acho que o divórcio é inevitável.
— Mas que porra! — rosno. — Desde quando infidelidade virou rotina
pra gente?
O rosto dela se suaviza.
— Não é isso, Magnolia. É só… é diferente. Eu não acho nem que eles
chegaram a se amar um dia.
— Então por que se casaram? — pergunto, as sobrancelhas erguidas.
A boca da minha irmã se comprime um pouco, e ela cuidadosamente
aponta para mim. Reviro os olhos, porque não tem como ser verdade. Elton
teria me contado.
Escuto uma batida na porta e nem me viro para ver quem é. Reconheço
pelo jeito de bater.
São duas batidas rápidas em sucessão, usando apenas o nó do dedo do
indicador, e ela nunca espera permissão para entrar.
— Posso falar com você um minuto, Magnolia? — pergunta Marsaili.
Eu a encaro, sem expressão.
— Não.
Ela está usando o vestido crepe de seda de poá da Valentino, e ela nunca
usava vestidos da Valentino antes. Ela não se importava com vestidos da
Valentino antes, então por que se importa agora?
— Magnolia, olha só…
— Eu mandei você nunca mais falar comigo — interrompo.
Ela parece achar graça, e eu a odeio por isso.
— Você achou que eu ia obedecer a esse absurdo?
Reviro os olhos diante daquela insolência. Não é à toa que ela está se
sentindo cheia de si ultimamente, já que está pegando o meu pai e tudo.
— Escuta, Magnolia — ela começa mais uma vez, vindo na minha
direção. O barulho dos sapatos de camurça da Gianvito Rossi me deixa
ainda mais irritada. — Parece que isso tem muito menos a ver comigo e seu
pai e, sei lá como, cada vez mais com você.
— Sabe lá como? — repito, piscando diversas vezes. — Sabe lá como?
Ela respira fundo, como se estivesse se preparando, o que é sábio da parte
dela, porque sinto como se a água tivesse recuado da praia da forma como
acontece antes de um tsunami destruir tudo.
Aponto para ela.
— Você sabia que, quando eu tinha vinte anos, BJ e eu iríamos reatar,
você sabia que era a minha vontade, mais do que tudo, e, sabendo disso,
você falou que ele era um traidor, que era um babaca e que não merecia
mais a minha confiança…
Ela balança a cabeça.
— Não vem colocar nas minhas costas as decisões que você tomou
sozinha depois de receber conselho…
— Sozinha? — pergunto. — Conselho? — Solto uma respiração curta,
incrédula. — Foi um conselho manipulador e hipócrita da pessoa em que eu
mais confiava no mundo, que me disse que o garoto que eu amava só iria me
magoar, que ele não era capaz de nada melhor porque tinha me traído uma
vez. E, todo esse tempo, você estava tendo um caso com meu pai…
— Magnolia…
— Ele quase morreu — digo baixinho, e não era minha intenção, mas
escapa porque sinto como se fosse culpa dela.
Mesmo que ela não saiba o que aconteceu, a culpa é dela. Dela e seus
conselhos de merda, que me fizeram sentir que nunca poderia ficar com ele
de novo e nem deveria querer isso. Aí de repente comecei a namorar Reid, e
BJ ficou tão abalado e atormentado por isso que ele… bem, você sabe o que
aconteceu — ela não sabe, mas você sabe.
Marsaili hesita.
— Como assim?
— Eu te odeio — sussurro.
— Magnolia…
— Sai daqui.
Aponto para o batente, no qual Tom está parado. Ele bate na porta,
apreensivo, me observando com cautela. Marsaili vai embora com os olhos
marejados, passando por Tom. Ele entra e seu olhar pousa em mim.
— Acabei de ouvir a notícia.
— Notícia? — repete Bridget. — Então todo mundo sabe?
Tom vem até mim.
— Você tá bem?
O rosto dele está sério, e eu queria que Bridget não estivesse aqui, porque
provavelmente nosso esquema está na cara, já que ele não está me abraçando
ou beijando, mas sendo superbritânico, com os braços cruzados.
— Acho que sim — respondo, dando de ombros.
— Quando você descobriu?
— Ontem — informo.
— Você não me ligou — diz ele, e me pergunto se ele não parece um
pouco surpreso.
Olho para Bridget, querendo que ela vá embora, mas ela não se mexe.
Franzo os lábios.
— Eu estava com o BJ.
Ele assente.
— Claro que estava.
Aquilo me parece uma afirmação estranha, considerando que, na última
vez que conversamos, ele estava apaixonado pela esposa do irmão falecido e
tudo o mais.
Ele indica com a cabeça a mala meio cheia.
— Vai pra algum lugar?
— Aham. — Assinto. — Tô pensando em sair daqui por um tempo.
Esperar os repórteres esquecerem um pouco. Deixar a poeira baixar…
Ele assente.
— Tô convidado dessa vez?
Sou pega de surpresa.
— Lógico?
Tom olha para Bridget, então para mim.
— BJ também vai?
Bridget olha para Tom e depois para mim, como se estivesse assistindo a
um jogo de tênis.
— Olha… — Coloco uma mecha do cabelo para trás da orelha. — Foi ele
que deu a ideia.
Tom parece sentir um misto de diversão e irritação com isso.
— Claro que foi.
Jogo o biquíni de lurex de cores diferentes da Oséree na mala e o observo.
— Você não precisa ir se não quiser.
Ele hesita de novo.
— Você prefere que eu não vá?
— Não — respondo mais rápido do que planejo.
— … não, você não quer que eu vá? — questiona ele.
— Não. — Balanço a cabeça. — Quero que você vá, sim.
Bridget olha para nós, a cabeça inclinada para o lado, um tanto fascinada.
— Nossa.
Reviro os olhos para ela.
— Vou chamar o Gus — ele me informa. — Vamos com o nosso avião.
Eu piloto até lá.
E, quando estou contemplando as maravilhas de ter um namorado de
mentira que é piloto, algo acontece, e acontece rápido demais. É um barulho
alto, parece algo meio caindo, e aí eu escuto Harley Parks rugir meu nome
como nunca fez antes. Meu pai irrompe no meu quarto, passando por Tom.
Ele está com um olhar enfurecido, um celular no ouvido e outro na mão, e
aponta para mim ameaçadoramente.
— Você vazou? — berra ele na minha direção. — Foi você?
Encaro meu pai, inabalável por fora, mas um pouco assustada por dentro,
porque nunca o vi desse jeito.
— Foi você, caralho? — grita ele, mais alto.
Não estou gostando desses xingamentos. Estão cheios de raiva.
— Não sei do que você tá falando — digo calmamente.
As narinas dele se inflam, e ele balança a cabeça.
— Sabe, sim, porra.
Eu endireito a saia de poá de seda com cristais do meu vestido da Miu
Miu e abro um sorriso tenso ao meu pai.
— Eu realmente não sei do que você tá falando.
— Saiu em todos os jornais — grunhe ele.
— Sua infidelidade, no caso? — questiono docemente.
Ele não responde, mas seu maxilar está tensionado.
— Minha nossa — solto, dando de ombros, delicada.
Meu pai se aproxima de mim, o maxilar cerrado e as mãos em punhos.
— Eu juro por Deus, Magnolia, eu juro. Se você tiver vazado, eu vou…
— Vai o quê? — pergunta Tom, se colocando entre nós e empurrando
meu pai um pouco para trás.
Meu pai é um homem bem grande, mas Tom é maior. Os olhos dele estão
ferozes, o maxilar também tensionado, e sua expressão não é a de alguém
que está a fim de brincadeira.
— Termina a frase — Tom o desafia, encarando-o.
Eu não sei qual seria o final daquela frase. Meu pai nunca me ameaçou
antes, mas ele também nunca esteve com tanta raiva assim, nunca pareceu
que queria me bater, ou até me matar, nem mesmo na vez que eu
acidentalmente vazei uma música do Kendrick Lamar no fundo de um
vídeo do Instagram.
— Você tá debaixo do meu teto, você sabe, né? — pergunta meu pai, se
preparando.
— Eu sei, sim. — Tom assente, tranquilo. — Mas posso te dar uma surra
em qualquer lugar.
— Valeu, campeão — rosna Harley, com um sorriso malicioso. — Quer
tentar?
— Na real, não muito. — Tom balança a cabeça e começa a arregaçar as
mangas. — Mas faço o que for necessário.
— Beleza.
Harley abre um sorriso meio sinistro, e me sinto um pouco mais nervosa
do que alguém deveria se sentir com o próprio pai.
— Eu não ligo de fazer um England sangrar — declara meu pai antes de
dar um empurrão em Tom, que cai em mim.
É um efeito dominó: Tom cai em cima de mim, eu caio na mesa de
cabeceira, e o abajur cai no chão.
Meu pai parece ter visto um fantasma. Tom está com cara de que vai
assassinar alguém. E minha mão está sangrando, mas só um pouco. Não foi
um corte profundo.
— Magnolia — diz meu pai, a voz de repente outra. — Querida, eu…
Tom dá um empurrão agressivo em Harley.
— Se chegar mais perto, você vai ver o que vai acontecer — ameaça ele,
então me levanta do chão.
— O que está acontecendo aqui?
Marsaili entra. Bridget arrumou um pano para a minha mão.
Tom indica minha mala com a cabeça.
— Essa aqui está pronta?
Faço que sim, aturdida.
Minha irmã me entrega o passaporte, que estava na mesa de cabeceira
caída, e dá um beijo na minha bochecha. Tom pega minha mala de trinta
quilos e tira da cama como se fosse um prato descartável, segura minha
outra mão e me leva em direção à porta.
Entramos no carro dele. É um Range Rover SVAutobiography cinza-
escuro. Tom está segurando forte o volante com uma das mãos e
mordiscando o dedo indicador da outra sem parar. Ele olha para mim.
— Ele já fez isso antes?
— Não. — Balanço a cabeça. — Nunca.
Ele continua dirigindo.
— Estamos indo pra onde? — pergunto.
Ele observa a rua por alguns segundos, o nervosismo estampado no
rosto. Se fosse um MacBook, estaria exibindo o arco-íris da morte no rosto.
— Cadê o BJ? — pergunta, me olhando.
— No aniversário de casamento dos pais.
— Onde? — pergunta com calma.
Franzo a testa, confusa.
— Angler.
Ele assente.
— Vamos para Angler.
20:32

Tom England

Estamos indo até você.

Quê?

Por quê?

Tá tudo bem?

Briga feia com o Harley

Deu ruim

Puta merda. Tá.

Ela tá bem?

Angler, né?

Isso. Hotel South Place.


VINTE E OITO

BJ

Estou esperando lá fora. Me sinto mal por causa de tudo, seja lá o que for…
Por ela ter tido uma briga e eu não estar presente. Deveria ter estado. Fico
grato por Tom ter estado lá — mais ou menos. Mas até isso me dá uma
sensação estranha. Por que ele estava lá quando eu não estava? Eu a tinha
deixado em casa só fazia algumas horas, e ele já tinha aparecido?
O carro dele para. Não é um Bentley.
Não é um Rolls Royce nem uma Lamborghini, nem um Porsche. É um
Range Rover, e me irrita que ele não fica colocando essas bancas. É um
SVAutobiography cinza, que é um carro de 140 mil libras que parece
idêntico a um carro de 35 mil libras. É uma manobra e tanto comprar um
carro de aparência normal que é quatro vezes o preço de um carro normal.
Parks abre a porta do banco do carona e se joga diretamente nos meus
braços. Eu a seguro contra mim, o rosto enterrado no meu peito, minhas
mãos no seu cabelo, e beijo a cabeça dela. Tom England fica parado ao lado
do carro, franzindo a testa enquanto observa a cena. Fico um pouco mal por
ele — gostaria de poder dizer que ele não está fazendo nada de errado, que
não é culpa dele, que nós somos assim.
Não sei por que ele a trouxe até mim.
Aí eu noto o sangue.
— Caralho, o que aconteceu? — digo, segurando a mão dela.
Ela balança a cabeça.
— Nada. Foi só um arranhão.
— O que aconteceu? — pergunto, mais alto e nítido enquanto olho para
os dois. — Seu pai fez isso?
Inspeciono a mão, e provavelmente ela não precisa de nada a não ser um
curativo, mas não a solto.
— Foi um acidente — me diz ela, triste.
Ela mentiria para mim se fosse para me impedir de fazer alguma besteira,
então ergo as sobrancelhas para Tom, perguntando com o olhar. Ele assente
e anda na nossa direção. Mas, sinceramente? Que cuzão. Por ser tão
tranquilo e maneiro assim e trazer a namorada dele para ver o ex no meio de
uma crise, e aí não agir feito um babaca inseguro quando o rosto da Parks
está enterrado no meu peito como agora.
— O que houve, cara? — pergunto, balançando a cabeça.
— O pai dela apareceu gritando… — Ele me lança um olhar. — Gritando
mesmo…
Franzo a testa.
— Por quê?
Tom dá de ombros, fazendo uma careta.
— Saiu nos jornais.
Eu me afasto e olho para ela nos meus braços.
— Foi você?
Ela não diz nada, mas está com aquele olhar de Bambi. Então foi ela.
Haha. Nenhuma fúria pode ser comparada à de Magnolia Parks quando
contrariada. Eu a cutuco no queixo.
— Minha garota.
Tom troca o peso de pé.
— Você tá bem? — pergunto a ele.
Ele dá de ombros, tranquilo.
— Sim. Só levei um empurrão.
Assinto e volto a encarar Parks.
— O que ele falou pra você?
Tom balança a cabeça.
— Fez umas ameaças.
— Mentira! — Faço uma careta, olhando de Tom para Parks. — Harley
fez isso?
Tom assente.
— Mas que porra é essa? — Me enfureço. — Caralho, ainda bem que a
gente vai embora…
Ela se afasta e ergue o olhar.
— Falando nisso… — Ela me dá um sorriso rápido. — Tom vai com a
gente.
— Ah — comento com um sorriso no final, e juro que consigo ver a boca
dele se curvar. — Show. É… é. Maneiro.
— A gente pode ir com o meu avião… — oferece ele.
Dou de ombros.
— Eu tenho um avião, ela tem um avião. Nós todos temos avião…
— Sim. — Parks me encara. — Só que ele é o único que tem licença para
pilotar.
— Beleza, então.
Assinto de forma casual, amaldiçoando o dia em que decidi não
frequentar a escola de aviação. Eu poderia ser piloto se quisesse.
Tom se vira na direção do carro.
— A gente sai amanhã à tarde — informa ele, esse babaca convencido. —
De Farnborough.
Ele aponta para mim e diz algo que eu odeio mais do que qualquer outra
coisa que alguém já me disse antes:
— Cuida dela.
VINTE E NOVE

Magnolia

É um voo de pouco menos de quatro horas de Londres até Monemvasia,


essa pequena cidade insular na costa leste da região do Peloponeso, na
Grécia. A conexão para a ilha principal é feita por uma travessia, então
obviamente não tem aeroporto lá, e costuma ser uma viagem de seis horas
de carro de Atenas, mas, muito convenientemente, Tom é um England e um
piloto, então não sei por que não comecei a namorar ele antes. Ah, espera,
sei, sim. Duas letras, uma boca fenomenal, fiquei na cama dele ontem à
noite, chorei pendurada no pescoço dele a manhã toda…
Percebi que Tom me levar até BJ deixou Bê meio abalado. Também me
deixou um pouco, para ser sincera. Tom é tão calmo, me defendeu sem
titubear e foi tão corajoso contra meu pai e, ao mesmo tempo,
supertranquilo de me levar até BJ quando ele achou que seria a melhor coisa
para mim…
Que tipo de pessoa faz isso, sabe?
Eu precisaria estar alucinada para levá-lo até Clara por qualquer motivo
que fosse, e ele é só minha trincheira. E é isso, eu acho. Nós somos só o
esconderijo um do outro até a tempestade passar e estar seguro para sair. É
provável que meu tempo com Tom esteja chegando ao fim, mas até mesmo
isso me deixa um pouco arrepiada. Eu não gosto da ideia de não estarmos
mais presentes na vida um do outro. Parece que nos aproximamos através de
todo esse fingimento.
Acho que, para mim, está passando. A tempestade BJ. Se é que algum dia
foi uma tempestade. Talvez tenha sido mais como uma pessoa que entrou
bêbada num noticiário e a deixaram fazer uma previsão do tempo
completamente errada, porém convincente, de um furacão mortal. Assim,
você se escondeu e continuou escondido, esperando aquilo passar, só que,
na verdade, nunca houve tempestade alguma.
Talvez não houvesse tempestade com BJ.
Talvez ele tenha me magoado de todas essas formas até agora porque eu o
magoei. Talvez agora vá ser diferente porque posso confiar nele?
Estamos esperando no saguão do Kinsterna. É um dos meus hotéis
favoritos. Uma mansão bizantina restaurada que fica virada para o mar. Já
estive aqui com minha irmã antes. Foi por isso que BJ escolheu esse lugar,
porque ele queria ter vindo comigo da última vez, mas acho que tinha
transado com Taura ou algo do tipo, e aí eu trouxe Bridget. É um grupinho
animado. Eu, Bê, Tom, Paili, Henry, Gus, Perry e Christian. Jonah não podia
vir por causa de alguma coisa do trabalho — espero que não seja nada de
ilegal, mas não tem como saber.
— Nós queremos oito quartos — Bê informa à mulher no balcão,
colocando as mãos no bolso da calça de corrida tie-dye da Bassike
Karamatsu.
— Na verdade, só sete, amigo — corrige Tom.
— Ah — diz BJ, se virando para nos encarar e olhando para mim em
seguida. — Vai dividir com a Pails?
— Hum.
Olho para Tom e balanço a cabeça.
— Ah. — BJ pisca. — Vocês vão dormir no mesmo quarto? Os dois?
Pressiono ainda mais os lábios. Christian está observando tudo,
provavelmente se divertindo um pouco demais.
— Tá — diz ele, assentindo. Ele faz o movimento diversas vezes. —
Lógico que vão, ele é seu… — BJ encontra meu olhar — … namorado. —
Ele continua assentindo. — Duas camas?
Tom parece se divertir.
— Uma cama king está ótima.
BJ tensiona o maxilar.
— Uma cama king está ótima — repete. — Beleza. Claro que sim. São
camas grandes… bastante espaço com…
— Ah, porra. — Henry empurra ele para o lado e começa a falar com a
atendente. — Sete quartos, por favor. E, se der, botem um calmante no
quarto dele.
Tom vai pegar as nossas bagagens, e BJ fica rondando por perto, me
observando.
— Você já foi pra cama com ele? — pergunta, os olhos semicerrados.
Franzo a testa e nego com a cabeça.
— Está falando de dormir ou transar? — questiona.
Provavelmente ninguém mais no mundo precisaria fazer essa distinção,
mas nós precisamos.
Dou de ombros.
— Nenhum dos dois.
Ele assente, pensativo.
— Mas vai ser você e ele. Numa cama. Num quarto. Sozinhos. Juntos.
— BJ — interrompo.
Ele me ignora.
— E eu vou ficar num… quarto diferente. Também com uma cama. Mas
você vai estar… na cama dele?
Ele me encara, os olhos alertas e tensos. Faço que sim uma vez,
cuidadosamente.
— Acho que sim?
— Tá. — Ele assente. — Isso é… — Ele assente mais uma vez. — Beleza.
Cerro os lábios.
— Beleza.
— O quarto está liberado — avisa Tom.
Eu me volto para ele e aceno com a cabeça.
— Tô indo.
Dou uma olhada rápida para BJ, e o rosto dele diz tudo. Quero fazer com
que ele se sinta melhor, consertar isso, fazer tudo desaparecer — mas eu não
sei como. Acho que poderia apenas chegar e falar para ele que, na verdade,
não passava de encenação, mas, quando BJ e eu chegamos no aeroporto de
Farnborough e Tom foi nos cumprimentar, ele colocou a mão no meu rosto
e me deu vários beijos, e eu comecei a me perguntar… O quanto ainda
estávamos encenando?
Eu me afasto alguns metros, antes de parar e me virar. Bê está me
observando, os olhos arregalados e mais magoados do que ele gostaria que
as pessoas vissem. Tom também está me observando, mas eu não me
importo tanto.
— Quer fazer alguma coisa amanhã? — pergunto para BJ.
Bê pisca algumas vezes.
— Como assim?
Ando até ele de novo, e talvez sobre menos de trinta centímetros entre
nós.
— Você quer fazer alguma coisa amanhã? Comigo. — Faço uma pausa.
— Só nós dois.
BJ observa Tom mais adiante, em seguida virando o olhar para mim.
— E o England?
Balanço a cabeça.
— Relaxa.
— Tá. — Ele assente uma vez, sorrindo um pouco. — Vamos fazer o quê?
— Ah, se vira. — Reviro os olhos, levemente irritada que eu praticamente
o estou chamando para um encontro, e ele teve a audácia de presumir que
eu também cuidaria dos detalhes. — Preciso fazer tudo? Você que planeje
alguma coisa.
Ele dá uma risada enquanto me afasto.
Tom está me esperando.
— Você tá bem? — ele me pergunta com um sorriso caloroso, e eu faço
que sim. — Ele tá bem?
Minha boca estremece quando ergo o olhar para ele.
— Já teve dias melhores.
Tom dá uma risadinha.
— Coitado.
— Amanhã vou passar o dia com ele. Tranquilo por você?
E eu me pergunto se estou realmente vendo isso — é minúsculo, quase
imperceptível —, mas talvez uma pontada de ciúmes transpareça no rosto
dele por um instante. Está lá durante um segundo, depois some.
Então, Tom dá de ombros, indiferente.
— Claro. Nem precisa perguntar.
Eu sorrio de um jeito que parece tanto forçado quanto desonesto.
— Eu sei o que eu sou pra você — acrescenta ele.
Eu paro e olho para ele.
— E o que eu sou pra você.
Ele assente.
— Isso.
Repito o gesto.
— Isso.
— Essa coisa nossa tá perto de acabar, não tá? — pergunta Tom, depois
de me observar por alguns segundos.
— Talvez.
É uma resposta inconclusiva, porque, por algum motivo, não me sinto
inteiramente pronta para concluir qualquer coisa. É possível que eu só esteja
com medo de ficar sozinha de novo.
— Não sei — completo.
O rosto de Tom é difícil de decifrar, sua expressão é enigmática, o que me
deixa frustrada. Nunca me importei em ler as emoções dos homens com
quem estive exceto por BJ e Christian, e eu sabia como lê-los, porque eu os
conhecia desde sempre, mas Tom é alguém que eu desesperadamente quero
entender, que eu morreria para compreender e saber o que pensa a meu
respeito. Para mim, é como se Tom tivesse um sotaque pouco familiar e
todas as falas estivessem com legenda em espanhol.
Acho que ele está irritado. Esse é meu melhor chute, a julgar pelas
sobrancelhas dele.
— Não sabe o quê? Você vai voltar com ele.
— Vou? — replico, surpresa.
A carranca dele se aprofunda.
— Não vai?
— Eu…
Dou de ombros.
— É isso o que você quer — diz ele.
Assinto.
— Acho que sim.
Ele assente de novo.
— Beleza.
Repito o gesto.
— Beleza.
Mas acho que nada está de fato uma beleza.
TRINTA

BJ

Ela me chamou para um encontro. Eu acho. Certo? Na frente do Tom. Sendo


sincero, achei que ia sair dessa pra melhor quando England pediu um quarto
com uma cama só, mas aí ela veio e me chamou para um encontro?
Passei a tarde inteira planejando tudo com Henry, que ficou se fazendo
de sofrido na hora de ajudar.
Segundo ele, seu nível de investimento pessoal no assunto se devia a estar
“pronto para essa novela terminar”, mas eu acho que é só porque ele ama a
gente mesmo.
Ele me ama, ama ela — ama nós dois juntos, como o resto da minha
família. Eu sou menos fodido da cabeça quando estou com ela. Mais realista.
É estranho, porque sei que, porra, ela é a pessoa menos realista de todas as
nações britânicas, mas ela mexe comigo — eu não sei bem como.
Nós descemos para ir ao restaurante, o de comida gourmet — eu
preferiria sair para comer alguma besteira, mas Parks adora um restaurante
de hotel, e ela é uma pessoa exigente e dominante nas nossas férias.
Autodeclarada Capitã de Atividades, autodeclarada Capitã Gastronômica
(palavras dela, não minhas) e, no geral, Gloriosa Imperatriz das Férias
(palavras minhas, não dela).
Ela já está lá com Tom quando Hen e eu chegamos. É uma mesa redonda.
Eu me sento do outro lado dela, fazendo o possível para não encarar sua
barriga no top Dolce & Gabbana que eu comprei para ela, para que apenas
meus olhos vissem. O resto do pessoal chega aos poucos, Lorcs sendo o
último a se sentar, porque está sempre atrasado pra caralho para
absolutamente tudo, mas especialmente atrasado quando está querendo
causar uma boa impressão — como em Gus Waterhouse. Que é um cara
muito maneiro, aliás. Nós ficamos escutando as histórias dele a noite inteira.
São divertidas, ridículas, e ele ama o que faz. O pai de Parks aparece como
maluco em todas elas, e eu ainda quero matá-lo pelo que aconteceu no outro
dia, mas as histórias sobre ele são muito engraçadas.
— Não dá pra acreditar nessa coisa do seu pai, Parks — diz Gus, em certa
altura.
— Sério? — Ela pisca. — Não dá? E aquela vez que eu e você fomos
almoçar, e ele ficou no estúdio para uma “reunião”, aí, quando voltamos,
tinha aquela atriz horrorosa saindo do prédio com o batom todo borrado?
— Não. — Ele balança a cabeça. — Nisso eu acredito, mas eu não
acredito que ele se descuidou a ponto de ser pego, em público, com a sua
babá…
Balanço a cabeça, medindo as palavras dele.
— Ser pego? Ou descobrirem por causa da filha vingativa? Difícil saber.
Ela me lança um olhar sério.
Tom olha para Parks.
— Por que você tem babá?
Ela o encara, confusa.
— Como assim?
Ele dá de ombros.
— Você tem… 23 anos.
De fato, Tom. É uma pergunta completamente legítima. Por que caralhos
Parks precisava de uma babá quando estávamos no internato na maior parte
do tempo? Por que Parks precisava de uma babá quando terminou o ensino
médio e Bridget estava no internato? Por que Parks precisava de uma babá
quando a babá nunca cozinhava, limpava nem fazia qualquer tarefa na
casa… pelo que a gente sabia? Pensando agora, daria para concluir que, na
verdade, diversas tarefas na casa podem ter sido… feitas, mas o valor
doméstico delas pode ser questionável.
— Na real, eu tenho 22 — corrige ela, e me sinto momentaneamente
aliviado por ele talvez não gostar dela tanto assim a ponto de nem saber a
idade certa dela. — Mas, sim, é uma boa pergunta, Tommy. Por que eu
tenho babá?
— Assim… acho que agora já temos a resposta. — Henry faz uma careta.
— E é uma resposta confusa, na melhor das hipóteses.
— Ah, até parece. — Perry revira os olhos. — Ela é a cara da Kate
Winslet. Não é uma grande surpresa. Quer dizer, ela se veste mal pacas, mas
ela alugou um triplex na cabeça do Jonah por anos. Ele imaginava todo tipo
de cenário com ela.
Parks fica boquiaberta, e Jonah tem muita sorte de não estar aqui, porque
o que Lorcs disse é cem por cento verdade, e Jo morreria de ter isso exposto.
Paili cruza os braços e se inclina sobre a mesa.
— Vocês lembram um ano atrás, quando a gente foi naquele evento,
alguma parada da sua mãe, e aí nós fomos no banheiro e a Marsaili saiu da
cabine de PCD toda corada…
— Meu Deus do céu! — Parks estremece.
— Você disse “parece que ela acabou de gozar”, e sua mãe estava andando
pelo lugar querendo saber onde seu pai estava — continuou ela. — Aposto
que eles estavam transando no banheiro.
Reprimo uma risada.
Henry me lança um olhar.
— O sujo falando do mal lavado. Você já transou várias vezes em
banheiro de PCD.
— Olha lá — eu brinco. — Não só nos de PCD. Em vários. Não faço
distinção.
Tom dá uma risadinha, e eu tento capturar o olhar de Parks para me
certificar de que aquilo não a incomodou tanto, mas ela não olha para mim.
Perry ergue a taça de vinho e propõe um jogo.
— Eu nunca transei em público.
Então todos os caras na mesa bebem. Eu, Tom, Henry, Christian, Lorcs e
Gus.
Christian ri e me indica com o queixo.
— Melhor você virar esse copo aí.
Eu o ignoro, tentando ganhar Parks de volta.
— E você — diz Christian, olhando para Parks do outro lado da mesa. —
Você deveria tomar um golinho.
Ela pisca, erguendo a cabeça, surpresa.
— Como é que é?
Eu sinto o meu pescoço ficar quente. Tom também enrijece.
— Todo mundo aqui sabe que você gozou em público uma vez — diz ele
para a mesa, e eu franzo a testa.
Todo mundo aqui sabe?
— Vocês todos sabem? — repete ela, olhando para ele de olhos
arregalados.
Christian assente.
— Aham.
— Cala a boca — sussurra Paili para ele, baixinho.
— Eu não fiz isso, não — rebate ela, o nariz empinado.
Então ela fez, sim.
Ele dá de ombros, indiferente.
— Lógico que fez.
— Eu nunca faria isso… — As bochechas dela estão coradas. — É uma
coisa tão sem-vergonha.
— Ah, tá — replica ele. — Você era superpreocupada com pudor na
época.
Christian olha para ela, e consigo ver que está um pouco bêbado. Ele
gosta de implicar com Parks quando está assim. Nunca dá certo para ele.
Ele não desvia o olhar.
— Aquele barzinho em Paris. Você e ele. — Christian me indica com o
queixo, e eu poderia acabar com a raça dele por isso. — No canto dos
fundos. A mão dele debaixo da mesa.
Cacete. Ele não está errado. Aconteceu mesmo. Foi bem pouco típico da
parte dela me deixar fazer isso. Foi uma noite e tanto.
Sinto Parks ficar tensa ao meu lado — e espero que seja só eu que note
isso, porque sou eu e ela, e nós notamos as coisas assim um com o outro.
— Christian — Paili tenta aliviar a tensão crescente, revirando os olhos
com desdém. — O que te garante que foi isso que aconteceu?
Então ele diz, olhando diretamente nos olhos de Magnolia:
— Eu conheço a cara dela quando ela goza.
Henry o encara boquiaberto.
— Que porra é essa, cara?
Balanço a cabeça, a boca apertada.
— Péssimo…
Tom encara a mesa.
— Sou obrigado a concordar….
Paili está incrédula, os olhos de Perry estão prestes a saltar do rosto, e
Gus observa tudo com um fascínio curioso. Eu deveria dar uma surra no
Christian. Sei disso. Se fosse outra pessoa, faria isso. Mas também me sinto
irritado com ela. Não é culpa dela, eu sei. Mas foi Parks quem também
gozou com um dos meus melhores amigos, então estamos quites.
Magnolia está paralisada, encarando a mesa, e existe esse conflito bizarro:
eu nunca quero que ela se sinta como Christian acabou de fazê-la se sentir,
exposta e constrangida, mas também nunca quero me lembrar do que
aconteceu entre eles dois. Quando me lembram disso, as regras parecem
desaparecer na hora, e isso provavelmente faz com que eu seja um merda,
mas não sinto vontade de defendê-la no momento.
Eu me afasto da mesa.
— Vou pegar uma bebida…
Tom encara Christian.
— Vou contigo.
England e eu vamos até o bar. Solto uma bufada. Peço duas doses de
tequila Casamigos Reposado, e ofereço uma para ele. Viro o shot em
silêncio.
Tom me encara durante alguns segundos.
— Que merda foi essa?
Dou uma espiada por cima do ombro e evito o olhar de Magnolia, que
me observa junto de England, nervosa.
— Eles namoraram.
Tom se afasta, surpreso.
— Tá. Quando?
Inclino a cabeça, pensando.
— Logo depois que a gente terminou.
— Nossa.
Ele pisca diversas vezes.
— É. — Encaro Christian, tensionando o maxilar. — Nossa mesmo.
Alguns minutos se passam até Parks vir até nós, cautelosa.
Tom dá um sorriso fraco.
— Tá tudo bem? — pergunta Tom.
E que se foda ele por se mostrar um cara melhor do que eu ao perguntar
isso. Eu deveria ter feito essa pergunta, mas ainda estou puto pra caralho
com ela por causa disso tudo. Enfim, ele não ama a garota como eu amo.
Ela faz que sim, mas não é nada convincente.
— Quer que eu dê uma porrada nele? — me ofereço, querendo ser um
cara tão bom quanto Tom.
Ela dá uma risadinha.
— Quero. — Ela franze a testa em seguida. — Não. Era uma piada. Não
faz isso, por favor.
Eu olho para ela.
— Ele merece.
Ela dá de ombros.
— Ele só tá bêbado. Você sabe como ele fica.
— Como? — zomba Tom. — Ranzinza e briguento?
Parks parece aturdida, e eu inclino o queixo para ela.
— Você deveria ir pra cama. O dia amanhã vai ser agitado.
— Ah, é?
Ela abre um sorriso para mim.
Assinto e olho para Tom, tentando não estremecer.
— Valeu por me emprestar sua namorada por um dia.
Ele dá uma risada.
— Sem problemas. Só traz ela de volta inteira.
Então ele passa um braço ao redor do pescoço dela, do jeito que eu faço, e
a leva na direção do quarto. Ela olha para mim. Eu dou uma piscadela.
Ela parece cansada de um jeito diferente agora, mas sorri para mim de
qualquer forma.
23:54

Christian

Por que você disse aquilo?

Porque é verdade, Magnolia.

Qual parte?

Tudo.

Foi o que aconteceu.

Você está tentando me magoar?

Não.

Você está tentando magoar ele?

Ele quem, Parks?

Nossa.

Você e Daisy estão brigados?

Vai se foder

Ah, que engraçado

Fiquei com a impressão de que era você que tinha me fodido.


TRINTA E UM

Magnolia

Estou deitada na piscina, e Tom foi correr. BJ ainda não acordou. Gus está
do meu lado, mas ele está de fone de ouvido e não está prestando atenção
em mim, o que significa que meu novo top de biquíni de algodão em
triângulo da Marysia, que eu combinei com a parte de baixo reversível de
recorte ondulado, está sendo completamente desperdiçado no homem gay
desatento ao meu lado.
Uma sombra recai sobre mim, e abro um dos olhos para ver o que é.
Christian Hemmes está me encarando, de camiseta de boliche de mangas
curtas e logo preta e branca da Palm Angels, desabotoada, combinada com a
sunga ajustável com a logo da Balmain. O rosto está sério como sempre. As
sobrancelhas, unidas numa carranca. O maxilar tenso, mas isso é comum
para ele.
“Por que essa cara de sério o tempo todo?”, perguntei a ele uma vez
quando estávamos juntos, e ele segurou o meu queixo e, por um segundo, o
rosto inteiro dele se iluminou.
“Te amar é um negócio sério.”
Só que essa não era a razão. Mesmo naquela época, eu já sabia. É o
trabalho dele, seja lá qual for. Todas as coisas que esses garotos mantêm em
segredo de mim, sussurrando sobre os Hemmes e achando que eu não sei de
nada. Todos os rumores são verdadeiros, e é por isso que ele é tão sério.
Christian me cutuca delicadamente com o dedão, indicando a
espreguiçadeira ao meu lado.
— Posso sentar?
— Claro. — Faço um gesto tranquilo. — Mas cuidado, já que eu tenho
fama de gozar do nada em público. Ah, espera, não tem problema. Você sabe
como é. Vai se virar.
Ele vira o pescoço para o céu e suspira.
— Para de ser escrota.
Eu olho para ele, as sobrancelhas arqueadas.
— Como é que é?
Ele se vira para mim.
— Foi mal.
Dou a ele um olhar sério, os braços cruzados.
— Foi mesmo.
Ele grunhe, se recostando na espreguiçadeira. Eu o observo durante
alguns instantes, então balanço a cabeça.
— Por que você foi fazer uma coisa dessas?
Ele passa as mãos pelo cabelo conforme tensiona o maxilar.
— Não sei.
Ele sabe, sim, e eu também. Esses pequenos exageros dele não são
novidade. Ele nunca me perdoou de verdade. Pode ter sido ele quem
terminou tudo entre a gente, mas a culpa foi minha, e isso ainda não saiu da
cabeça dele.
— É que eu me divirto, sabe… — Ele dá de ombros. — Te sacaneando.
— Ah, tá. — Eu assinto, olhos arregalados. — Maravilha.
Ele me lança um olhar.
— Você sabe o que eu quero dizer.
Eu o olho de cara feia.
— Não, Christian, não sei, na real. Eu não gosto de sacanear ninguém.
— Sério?
Ele pisca. Inclino a cabeça, e ele me encara, incrédulo.
— Você não gosta de sacanear as pessoas? — As sobrancelhas dele se
erguem, os olhos sérios, e consigo ver antes de abrir a boca que ele está
prestes a dar o bote de novo. — Você namorou cinco caras nos últimos dois
anos e meio, isso sem contar comigo, e você não estava sacaneando eles?
Faço menção de retrucar, mas ele me interrompe.
— Você estava me sacaneando.
— Não estava, não…
— Então estava fazendo o quê? — pergunta ele, se sentando e virando as
pernas para me encarar.
Sinto meus olhos arderem.
— Você sabe o que eu estava fazendo.
— Não. — Ele balança a cabeça. — Eu sei o que eu estava fazendo. — Ele
me fita de um jeito que me dá vontade de chorar. — Agora você… não tenho
a menor ideia.
Eu desvio o olhar, cansada. Não é uma luta que eu possa ganhar.
— Já terminou?
— Não. — Ele balança a cabeça em desafio. — E o Tom?
Reviro os olhos, cruzando os braços.
— O que tem ele?
— Você está com ele ou não?
Deixo escapar uma risada seca, balançando a cabeça. Eu deveria só
mentir. Porém, não sei mais qual é a resposta.
— E isso é da sua conta?
Christian recua a cabeça.
— E isso é da minha conta? — Ele arqueia as sobrancelhas. — Sério?
Meus olhos estão inteiramente semicerrados agora.
— Sim, sério.
Ele parece tenso.
— Você é foda, Parks. Tem noção disso?
— Qual é o seu problema? Eu nem fiz nada.
Ele solta uma risada sem graça e desvia o olhar, fazendo com que eu me
sinta um pouco culpada e exposta, mas acho que isso é culpa dele, e não
minha.
Ele se levanta, balançando a cabeça.
— É engraçado. A única pessoa que você acha que não está sacaneando é
o Bê, mas você está, sim. Você está fodendo com a vida dele, e ele com a sua.
Ele está fodendo no geral. Com todo mundo, o tempo intei…
— Melhor você ir embora, cara — diz Gus, em pé.
— É mesmo? — Christian dá um sorrisinho.
— É. — Gus assente. — Você gosta de pagar de machão e ficar falando
dela, mas é só porque seu irmão não está aqui para te colocar na linha.
Christian dá uma risada seca e desvia o olhar, porque o que Gus disse
tem um fundo de verdade.
— Vaza. — Gus indica com o queixo a direção oposta. — Vai pra outro
lugar e se acalma.
Christian não encontra meu olhar quando ele se afasta. Eu me viro e me
deparo com Gus em pé.
Ele volta a se sentar, me observando durante alguns segundos.
— Tudo bem?
— Tudo, sim. — Dou uma fungada e balanço a cabeça com força, porque
não estou bem, e minha boca vai dizer o contrário. — Ele já está puto
comigo há mais de dois anos. Isso não é novidade.
Ele assente algumas vezes, olhando na direção da piscina.
O cenário aqui é bem dramático, com galhos de oliveiras que se
derramam sobre as praias que vão dar direto no mar Egeu. Mas é um drama
mais suave do que a minha vida amorosa, que também é dramática e
provavelmente está repleta de coisas que eu deveria ter feito de maneira
diferente, rodeada de mares de medos e arrependimentos tão profundos que
rivalizariam com as fossas mais profundas.
— Então — diz Gus —, quantos desses homens aqui estão apaixonados
por você? — Ele analisa. — Pelas minhas contas, são três.
Eu reprimo um sorriso.
— Esse é seu jeito de dizer que não está apaixonado por mim, Gus?
Ele passa a língua pelos dentes, achando graça.
— Eu e o outro cara gay somos imunes, o irmão também é. O irmão
Ballentine, não o irmão da gangue. O irmão da gangue…
— Eu não acho que eles curtem esse termo — interrompo.
Ele dá de ombros.
— Então não deveriam ter virado donos de uma gangue. — Ele faz uma
pausa. — Ele gosta de você, não gosta?
— Não sei.
Dou de ombros, acanhada. Ele me observa.
— Sabe, sim.
Coço o queixo e semicerro os olhos, antes de responder com cautela:
— Já pensei sobre isso.
Gus reflete sobre a resposta.
— Ele sabe?
Comprimo os lábios.
— Ele quem?
— Qualquer um dos que você gosta de volta.
Eu respiro para me acalmar.
— Tom me perguntou… eu dei um perdido. Suspeito que BJ precisa
ignorar isso com todas as forças para o nosso grupo não desmanchar… na
medida do possível.
— E você? Como você se sente a respeito dele?
— Do Christian? — Faço uma pausa. A pergunta pesa no meu peito por
um momento, a verdade borbulhando dentro de mim como uma lata de
refrigerante. — Já amei ele um dia.
Nunca disse isso para mais ninguém além de Christian, na verdade. Não
sei por que estou confessando isso a August Waterhouse. Dou de ombros.
— Eu só nunca amei tanto quanto amei BJ.
— Você já amou alguma coisa tanto quanto amou BJ?
Eu me remexo, incomodada, cuidadosamente evitando os olhos dele e
observando a linda paisagem ao redor. Como o mar está azul hoje!
— Eu sei do Tom, aliás — avisa Gus. — O que vocês estão fazendo…
Eu me viro para ele, franzindo a testa.
— A gente prometeu que não ia contar pra ninguém!
Ele dá uma risada.
— Ele não me contou.
Puta merda.
Acho que Gus vê a expressão no meu rosto. Ele faz um gesto com a mão
para deixarmos isso de lado.
— Por favor. Tom beija a Clarinha, o que eu imagino que você deve saber,
né? — Ele não espera a resposta. — E aí, uma semana depois, do nada, ele
aparece namorando a it girl de Londres, que, por acaso, é uma namoradeira
inveterada que nunca cortou laços com o ex? É pra gente acreditar que é só
coincidência?
Eu franzo a testa.
— Como você sabe sobre a Clara e o Tom?
Ele dá de ombros.
— Peguei os dois no flagra.
Algo nisso me deixa abalada.
Algo em pensar que outra pessoa viu Tom tocar em Clara torna isso mais
real do que quando era uma coisa que aconteceu só uma vez de uma forma
hipotética, do jeito como Tom me contou, e eu nunca contaria a outra
pessoa. Alguém ter visto faz com que a cena tenha se tornado real de um
jeito que detesto e muito. Quero que seja abstrata, 2-D, no papel. Como a
Dora de Picasso. Verdadeira, mas estranha; real, mas não de fato.
Tom tocar em outra pessoa não deveria me causar nada, sei disso. Minha
boca não deveria estar seca, minhas mãos não deveriam estar suadas, e meu
batimento cardíaco deveria estar normal.
Isso é só uma performance. Estamos fazendo isso porque gostamos de
tocar em pessoas em quem não deveríamos, então aqui estamos, é por isso
que entramos nessa situação. Só que o que eu sou, nesse momento, é uma
mulher com ciúme.
Minha respiração parece mais acelerada do que eu gostaria. Espero que
Gus não note.
— O plano é excelente — me diz ele.
Fico contente e aliviada que o enganei.
— Só tem uma falha gritante.
— Ah, é?
— Ele está se apaixonando por você, e você por ele.
Cacete. Estou? Nós estamos? Não sei. Mas eu com certeza não quero que
Gus saiba que estou completamente perdida em relação a tudo isso, então
emito um ruído incoerente de “pfff ”.
Gus me ignora.
— Você está se apaixonando por ele, ele definitivamente está a fim de
você. Ao mesmo tempo, você ainda está apaixonada por BJ, e Tom ainda está
apaixonado pela Clarinha. Pelo andar das coisas, parece que isso vai ser
uma… — Ele bate uma palma. — Merda! Bem, bem ruim mesmo. Um
desastre épico. Nível Titanic.
Eu o olho de cara feia.
— Você se acha muito sabichão.
— Eu sei. — Ele dá de ombros, recolocando os óculos escuros. —
Péssimo, não é?
— E você está errado, aliás — informo.
— Ah, é? — diz ele, nem se dando ao trabalho de me olhar. — Sinto que
não.
— Está, sim.
Ele abre um enorme sorriso, as sobrancelhas erguidas.
— Vamos ver quando você sair do encontro com seu ex e voltar pro
quarto romântico do hotel romântico que você está dividindo com seu
namorado atual, que é supostamente de fachada, mas cada vez menos, pelo
que eu vejo…
Reviro os olhos.
— Um namorado que diz que não liga de você sair com o seu ex e está
correndo agora uma meia maratona “só pra se divertir”.
Eu dou de ombros.
— Ele gosta de correr…
— Tom odeia correr.
Ele não ergue o olhar do livro: Vai doer, de Adam Kay.
Eu suspiro alto.
— Não significa que é por minha causa.
— Ah, pelo amor. — Gus revira os olhos. — Todos esses caras são
malucos por sua causa.
Eu franzo a testa.
— Não acho que isso seja um elogio.
Ele ergue as sobrancelhas e finalmente me olha.
— Nem era pra ser.
TRINTA E DOIS

BJ

Estou agitado pra cacete, o que é bizarro. Passei mais tempo com Parks do
que com literalmente qualquer outra pessoa no planeta. Crescemos juntos.
Ela já me viu pelado; eu já a vi pelada. Ela me viu cair e quebrar os ossos,
chorar, vomitar e sofrer uma overdose. Ela me viu nos meus piores
momentos, e eu já saí com ela um milhão de vezes ao longo da vida — ainda
assim, esse encontro está me fazendo suar em bicas.
Porque acho que é importante. Sei lá, ainda não falamos disso. Mas
parece uma mudança. Que nem os “ventos do leste”, como diria o filme da
minha outra mulher preferida.
Talvez, não sei, talvez esteja rolando algo entre a gente de novo? Foi
estranho planejar isso para ela — porra, estamos na Grécia, viemos no
jatinho particular do namorado piloto dela. Quando éramos novos, eu a
levei à Espanha para nosso primeiro encontro de verdade, no nosso avião
particular. Algumas semanas atrás, a levei para fazer compras na Avenue
Montaigne, só porque eu estava a fim. Ela acha que Evian tem gosto de mijo,
mas “até que dá pro gasto para lavar o rosto, numa emergência”. Elton John
deu uma joia de aniversário para ela ano passado que parece até a porra do
diamante Hope...
Luxo não basta. Luxo, para ela, é rotina.
E o que quer que isso seja, o que quer que esteja prestes a acontecer, é
uma chance única, e eu sei.
Como se o universo tivesse me dado a máquina do tempo pela qual ando
rezando há anos e me oferecesse outra tacada. E a tacada é difícil.
Tenho que ricochetear o desastre que nos tornamos na luz cintilante do
que fomos e encaçapar a bola no que podemos voltar a ser. Com os dois
olhos fechados e uma das mãos para trás.
É minha última chance e precisa dar certo.
Eu a espero no saguão. Ela está atrasada. Sempre. Por isso, pego meu livro
e leio umas duas páginas, até que um par de pernas compridas surge diante
de mim.
Ela tira o livro da minha mão e vira a capa. O pequeno príncipe.
— De novo isso?
Ela está de cabelo solto, a pele parecendo ainda mais escura, os olhos
ainda mais brilhantes. Está usando uma blusa que só vestiria nas férias, por
cima de um biquíni lilás. Faço que sim com a cabeça, tentando não sorrir
que nem um bobo, porque, porra, adoro vê-la de lilás.
— Eu leio todo ano.
— Eu sei — diz ela, revirando os olhos de irritação. — E dessa vez, o que
o livro está dizendo?
— Que fui domado.
— Por quem?
Ela pestaneja, e eu sei que sabe.
Eu a fito, com os olhos mais firmes do que o coração.
— Por você.
Ela cora, e eu rio, satisfeito e achando graça. Eu me levanto.
— Vamos lá — digo.
E aí… paro abruptamente.
— Você está de jeans? — pergunto.
Não acredito. Conheço ela há quase vinte anos e jamais a vi de jeans. Ela
diz que é coisa de “proletário”.
— Short jeans, ainda por cima. E esfarrapado — diz, sorrindo de orgulho.
— Gostou?
Por um segundo, me sinto tímido, corando.
— Gosto de você com qualquer roupa — respondo, e ela parece satisfeita,
o que me deixa satisfeito, e avanço alguns passos antes de me virar para trás.
— Também gosto de você sem roupa nenhuma…
Ela engole em seco e vem atrás de mim, me alcançando depois de correr
um pouquinho.
Gosto de vê-la correr atrás de mim.
Equilibra o terreno por um segundo e meio.
Saímos juntos e entramos no banco de trás do carro que nos aguarda. Ela
se instala no meio do banco, e eu entro logo depois. Está nervosa. Sinto a
energia ansiosa que emana dela.
Parks está olhando para a frente, com a boca tremendo por nada. Ou por
tudo, talvez? Gosto que ela se sinta assim, gosto de conseguir fazer com que
ela se sinta assim.
— Tudo bem? — pergunto, olhando para ela.
Ela me olha, assentindo.
— Está nervosa? — pergunto.
Ela hesita e engole em seco. Confirma com a cabeça de novo, e eu abro
um sorrisinho.
— Eu também — digo.
Isso a deixa feliz. Ela puxa o colarinho da minha camisa preta, estampada
de flores vermelhas e rosa e folhas de palmeira. Comprei recentemente,
pensando nela a arrancando de mim.
— Gucci? — pergunta, mesmo que já saiba, e eu confirmo, tentando me
tranquilizar. — Popelina, estampa dream em preto e verde — diz, esfregando
o material com os dedos. — Seda mista com viscose.
Sei lá. Para mim, ela está falando russo. Não faço a menor ideia de que
merda é essa que está dizendo, mas sei que ela passa o indicador e o polegar
por baixo da minha camisa, e fica ali, com a mão no meu peito.
Engulo em seco, a olhando. Ela não desvia o olhar. A mão também não
vai a lugar nenhum, e eu deveria dar um beijo nela. Sei que deveria dar um
beijo nela. Quantas vezes vou deixar de dar um beijo nela?, você se
pergunta. É uma boa pergunta, e a resposta é difícil de determinar.
Penso em beijar Magnolia Parks mais do que penso em qualquer outra
coisa, literalmente qualquer outra coisa no mundo. É meu pensamento
automático, sempre que tenho um instante de pausa mental.
Beijos que de fato aconteceram, beijos hipotéticos que poderiam ter
acontecido, beijos que deveriam acontecer, beijos que inventei
completamente — todos aparecem na minha mente enquanto espero o café
ficar pronto. Já pensei em beijá-la tantas vezes desde a última vez que
realmente a beijei que, aqui, agora, quando provavelmente poderia beijá-la
mesmo… não consigo.
Porque o momento é importante demais. Não posso me apressar. Não
posso me descontrolar. Não posso pensar com o pau. Hoje preciso maneirar
o meu amor por ela. Deixar queimar a fogo baixo.
Ela pode tocar meu peito, afinal, já faz isso sempre que bebe demais.
Quando dormimos na mesma cama, é comum eu acordar de madrugada e
ela estar abraçadinha em mim, e nunca tocamos no assunto. Nem sei se ela
sabe que faz isso quando dorme e não quero contar, caso ela não saiba,
porque não quero que pare.
Já me treinei para viver dentro dos limites dos nossos toques estranhos —
é disfuncional pra caralho, eu sei, mas, se estar com ela é heroína, o que
temos agora é metadona. Não é o mesmo bagulho, mas segura a barra.
Se eu der um beijo nela agora, estou perdido. Estou perdido de qualquer
jeito.
O carro para, e saímos numa doca, ao fim da qual nos aguarda um
Rivamare. Não é o mesmo barco da outra vez — é mais novo, mais chique
—, mas faz efeito, dá pra ver na cara dela.
Admito que estou fazendo isso por mim também. É que foi o melhor dia
da minha vida.
Não vou transar com ela no barco, prometo. Mas não me incomodaria se
ela se lembrasse daquela vez no barco e tentasse dar pra mim…
Mas, na real, só quero ficar a sós com ela em algum lugar. Qualquer lugar.
Vamos aproveitar o barco. Trouxe mantimentos para o dia. Tem umas praias
por aqui que eu e Henry encontramos. É tudo secundário, o principal somos
eu e ela.
Subo primeiro no barco, seguro a sua mão e a puxo para mim. Nossos
olhares se encontram. O escudo de vidro que ela sempre ergue entre nós está
ausente. Ela não solta minha mão.
Engulo em seco, pigarreio e solto a mão dela. Ela nem se incomoda —
seu olhar se suaviza, e parece que ela achou graça.
Vou até o leme do barco.
— Eu não mordo, não! — grita para mim.
Olho para trás e balanço a cabeça, sorrindo.
— Não, só acaba comigo.
Ela coloca o cabelo atrás das orelhas e vem até mim. Desabotoa o próprio
short, abaixa, chuta para longe. Não para de me olhar nem por um segundo
enquanto faz isso.
Eu umedeço os lábios, olho para ela mais uma vez e acelero o barco pela
água. Paramos perto de uma prainha — acho que é Dhrimiskos, algo do
tipo. Areia branca, água da cor dos olhos dela, tudo vazio por quilômetros.
Ela está beliscando um queijo, porque ela sempre tem o apetite de um
passarinho, a não ser que esteja bêbada, quando tem o apetite de um dragão.
Parks me olha.
— Então é esse o seu programão romântico? Barco, lanche e champanhe?
— diz, dando de ombros. — Meio simples…
Balanço a cabeça.
— Barco, lanche, champanhe e sua coisa preferida no mundo…
Ela levanta as sobrancelhas, esperando a revelação.
— Ah, é?
Aponto para mim mesmo. Ela revira os olhos.
— E não sou? — pergunto, com o queixo erguido.
Ela sustenta meu olhar, virando a taça de champanhe. Estica a taça para
eu encher de novo.
— Sou, sim.
Ela revira os olhos novamente, mas se aproxima mais um pouco.
— Então é mesmo um encontro romântico? — pergunto, inclinando a
cabeça para ela.
— Não é?
Dou de ombros, mais tímido do que gostaria.
— Só não falamos com essas palavras.
— Quer dizer — diz ela, abanando a cabeça, refletindo —, não é um
encontro muito impressionante…
— Ei!
Jogo um figo nela, e ela ri.
Parks está feliz. Dá para notar. Ela come o figo que joguei e seca a boca
com a mão.
— O que Tom achou do nosso encontro possivelmente romântico? —
pergunto, sinceramente curioso.
Ela respira fundo e faz beicinho.
— Ele é bem mais velho do que a gente…
— Do que eu não — interrompo.
— Ele tem 31 anos.
— E eu tenho 25 — lembro. — Não é tanta diferença.
Ela revira os olhos, mas não discute.
— Na verdade, acho que, a essa altura, ele gostaria mais que eu me
entendesse com... a nossa situação.
Não consigo me conter e reviro os olhos, porque quero que ele se foda.
Sério. Sinceramente. Quero que ele se foda por ser um sujeito generoso,
cheio de compreensão, consideração e altruísmo, e quero que ele se foda por
me fazer parecer um babaca no meu próprio encontro com a garota que
talvez nós dois estejamos namorando, mas que eu amo mais.
— Você gostava dele — me lembra ela, gentilmente.
Eu bufo, rindo.
— Ainda gosto dele… esse filho da puta metido — digo e balanço a
cabeça, pensando. — Era muito melhor quando você só namorava gente
tosca.
Ela concorda.
— Tom não é tosco.
E isso dói um pouco, mas é no meu colo que ela joga as pernas, então foi
mal aí, England.
O dia se passa assim. Entrando e saindo da água, bebendo um bom
vinho, comendo um bom queijo. Se eu fechar os olhos, podemos estar
juntos como antes, bem longe, ainda perdidamente apaixonados um pelo
outro. Ela e eu vamos nos aproximando cada vez mais, até as desculpas para
nos tocarmos sumirem e começarmos a nos tocar abertamente. Abraço ela
pela cintura, ajeito o cabelo atrás das orelhas, apoio o queixo na sua cabeça.
De mãos dadas, sentados tão juntos que ela está quase no meu colo. Vamos
voltar a namorar, tenho certeza. Ela me ama, quer ficar comigo, dá pra notar.
Eu a vejo escalar as barreiras que construiu a seu redor, derrubar as
barricadas em busca de um lugar seguro para descansar, e, com a cabeça no
meu colo, ela me olha e me faz a pior pergunta.
— Bê?
— Oi — digo, olhando para ela.
— Por que você fez aquilo?
Eu pisco algumas vezes. Sei o que ela está perguntando. Não sei como
responder.
— Por que eu te traí, é isso? — pergunto, sem motivo.
Dói dizer. Dói ouvir. Eu devia ter previsto isso. Merda… por que
organizei um encontro com tanto tempo para conversar? Era óbvio que ela
falaria disso.
Será que ela vai perguntar com quem foi de novo? Odeio quando ela
pergunta. A relação dela com Taura já foi pro brejo, acho que não faz
diferença — por mais que eu diga que não foi com ela, Magnolia não
acredita, e não faz diferença, porque já passou.
Parks sustenta meu olhar.
— Porque você me amava… eu sei que amava…
Confirmo com a cabeça. Amava mesmo, ela está certa. Nunca deixei de
amar.
— E, quanto mais penso nisso, mais certeza eu tenho de que você não
teria feito isso sem motivo…
— Parks…
Eu balanço a cabeça. Me sinto enjoado.
— Sei que não teria — insiste.
Estou tonto.
— Então qual foi o motivo? — pergunta, com um olhar de desespero.
— Eu estava bêbado.
Ela balança a cabeça, insatisfeita.
— Isso não é motivo.
Dou de ombros, desamparado.
— É, sim.
Ela repete o mesmo gesto de antes, decidida. Se sentou e está me
encarando.
— Não. Você já encheu a cara sem mim em festas e nunca nem olhou
para outra garota. Tem que ter outro motivo.
Dou de ombros, me desculpando.
— Não tem…
Ela balança a cabeça.
— Não, você está mentindo pra mim.
— Não estou.
Estou.
— Está…
— Não estou… — insisto, porque não posso.
Gostaria de contar, mas não posso.
— Bê… — diz ela, procurando meu olhar. — Preciso entender por que
você fez isso, para eu absorver e seguir em frente, para isso não acabar
comigo toda vez, para eu não ficar guardando rancor de você para sempre…
Eu sei que você nunca me magoaria só por magoar, então me conta, por
favor — pede, a voz fraca, e acho que isso vai ser o meu fim. — Por quê?
Passo a língua pelo lábio superior e não consigo mais encontrar o olhar
dela, porque sei o que estou prestes a fazer. Sei que vai magoá-la, derrubá-la
por completo.
Ainda assim, é o que digo:
— Porque eu quis.
Isso a atinge como eu previa.
Como uma flecha no peito, ela em silêncio bem ali, no mesmo instante.
Parece que joguei uma pedra no meio do lago e agora me resta ver as
ondulações se espalharem.
Ela encolhe a barriga e tensiona os ombros em resposta ao golpe. De cara
fechada, abaixa o olhar e se vira para o outro lado. Escudo erguido,
armadura vestida, espada empunhada.
— Quero ir embora — diz, olhando para a água. — Agora.
— Parks…
Tento encostar nela, mas ela se desvencilha com tamanha violência que é
chocante.
— Agora — exige, alto.
E, com isso, acabou-se a minha chance.
A máquina do tempo que o universo me deu pega fogo e desmorona.
A tacada derrapa. O desastre do que nos tornamos passa direto pelo que
fomos, gira ao redor do que poderíamos ser umas duas vezes, antes de
deslizar para o lado e bater com tudo onde não queremos estar.
Fodi com a minha última chance.
E nada disso funcionou.
TRINTA E TRÊS

Magnolia

Fui humilhada. Completamente, totalmente, absurdamente humilhada.


Minha visão ficou turva assim que ele falou “porque eu quis”.
Senti um aperto no peito. Perdi o fôlego. Acho que tive um ataque de
pânico. Acho que ele tentou me ajudar… Posso ter empurrado ele? Acho que
o arranhei quando me debati para evitar ser tocada.
Não lembro bem. Agora tudo parece um pesadelo estranho. Lembro que
me sentei na outra ponta do barco, o mais distante possível, até chegarmos à
margem.
No carro de volta, me sentei no banco do carona. Quando chegamos ao
hotel, lembro que BJ chamou meu nome enquanto eu escancarava a porta e
saía correndo o mais rápido possível.
Parecia que meus olhos estavam sangrando, que meu coração ia cair do
peito.
É com esses olhos e esse ar de devastação absoluta que irrompo no
quarto.
Tom está na varanda. Vinho tinto — ele gosta de tinto, e eu, de branco. BJ
toma o que eu preferir, mas Tom compra os dois tipos.
Ele me olha e, em dois passos, encurta a distância entre nós. Franze a
testa, com os olhos brilhando de preocupação, uma gentileza que é quase
insuportável no momento. É o tipo de contato visual que acontece quando
uma estranha bondosa, com uma franja excelente, pergunta se eu estou bem
em uma loja da Cartier, duas semanas depois de eu ser traída pelo meu
namorado. E aí eu comecei a chorar descontrolada e histericamente, a ponto
de nem conseguir responder a Emma Thompson, e ela só me abraça e faz
cafuné. É meio assim que Tom está me olhando.
E não é só isso. Ele está preocupado comigo, dá pra notar. Está triste por
mim e quer machucar BJ. Não entende o que aconteceu. Precisa fazer com
que eu me sinta melhor.
Quando eu pensar neste momento no futuro, é aqui, bem aqui, que
marcarei — anotarei, dobrarei o canto da página do momento na memória
— como o instante em que a estrutura molecular de quem Tom England é
para mim começa a se alterar.
Não será daqui a pouco, no jantar, quando ele chegar perto de brigar com
BJ; nem quando entrar na minha frente para me proteger do cara que
destruiu e continua a destruir meu coração teimoso e indomável; nem
mesmo mais tarde, quando eu puxá-lo de volta para o quarto com as mãos
ávidas e vontade de esquecer e transar com ele; será aqui, agora, com os seus
olhos em mim dessa maneira, notando as rachaduras no meu verniz antes
que eu note, prevenindo que se expandam, com as mãos no meu rosto,
tentando juntar meus cacos, sem conseguir.
— Ei, ei, ei — diz, tentando me impedir de chorar. — O que houve?
Não respondo, apenas choro.
— Magnolia? — insiste, mas também não respondo, então ele só me
abraça.
Enquanto choro por outro homem. Homem, não — moleque. BJ não é
homem. É apenas um moleque.
Tom se afasta, procurando meu olhar. Usa os polegares para secar minhas
lágrimas, como se fosse um limpador de para-brisas. Faz uma careta.
— Não deu certo o encontro?
Consigo negar com a cabeça, então ele assente e me envolve — me cobre
como uma capa, me abraçando até meu peito parar de tremer.
Eu deveria dizer algumas coisas.
Devo a ele mais informações, mas não quero falar, por medo do que isso
diria sobre mim — que sou descartável até para a pessoa que eu achei que
me amasse mais do que qualquer um.
Só porque ele quis.
Tom balança a cabeça.
— Falei pra você que ele era um idiota de merda — diz, e eu concordo. —
Ele deixou você triste assim?
Não chega a ser uma pergunta, está mais para uma afirmação. A
aceitação de um fato que ele não entende plenamente, e, sendo sincera, eu
também não.
— Se quiser, eu acabo com a raça dele.
— Quero, sim — digo, seca.
Ele ri um pouquinho, e eu fungo, quase rindo. Pelo jeito que ele me olha,
pelo sorriso que me dá, eu poderia dizer, talvez — se eu fosse capaz de ler
sua mente —, que é neste momento que começo a virar outra coisa para ele
também, ao menos de uma forma da qual ele tenha consciência.
O sorriso se espalha pelo rosto dele, formando ruguinhas, mas o que me
afeta é o motivo para o sorriso: é ele ficar tão feliz de ter feito eu me sentir
melhor por um segundo sequer. Vejo crescer nele a necessidade de tornar as
coisas melhores para mim, de me afastar de tudo de ruim na minha vida. Vi
uma centelha disso naquele dia com meu pai, mas agora cá está, florescendo
em certa plenitude, passando de preferência a necessidade. Para ele ficar
cem por cento bem, eu também preciso ficar.
É uma mudança peculiar e silenciosa que ocorre entre nós, indescritível e
desconhecida para mim.
Será que estou apaixonada por esse homem? Ou ele só foi promovido a
meu principal lugar seguro? Será que essas duas possibilidades se anulam?
Não sei. Não sei se sei; não sei se é isso. Sei, porém, que me sinto mais
segura no abraço dele do que fora.
E sei que ele cheira a domingo de manhã. Calmo, simples,
descomplicado. A café recém-passado. A toalhas limpas e um quarto
ensolarado. A evernia, patchuli, tangerina, lavanda. E, se Tom cheira a
domingo de manhã, BJ cheira a um sábado à noite no pronto-socorro — não
pense em BJ —, e eu adoraria sair do pronto-socorro.
Ele indica a porta com a cabeça.
— Que tal eu te pagar uma bebida?
Abro um sorriso de leve.
— Pode pagar várias.

* * *

Descemos para o bar, bebemos um pouco. Nada exagerado, só até a poeira


baixar, e, neste momento, tem poeira para todos os lados.
Sinto um conforto com Tom, a quem me afeiçoei.
Também sinto um conforto com BJ — não pense em BJ —, mas agora é
diferente, porque esse conforto foi manchado por infidelidades, traições,
corações partidos, anos de ressentimento e um salgueiro do qual não
falamos.
— Então — começa Tom, me apontando com o queixo —, você beijou
ele?
Franzo a testa e balanço a cabeça.
— Não.
Ele ri, incrédulo.
— Não?
Minha boca estremece, quase sorrindo.
— Não podemos… nos beijar — digo.
Tom semicerra os olhos, intrigado, talvez um pouco perplexo. Mas não
podemos mesmo. Eu e BJ somos só paixão contida e escolhas conscientes,
tentando preservar o pouquinho que ainda resta entre nós. Somos cavalos
soltos, correndo penhasco abaixo. Não há galope nem trote tranquilo a
caminho do amor. É que nem se estivéssemos em Herança de um Valente,
galopando pelo penhasco, indo em direção ao inevitável. Não podemos
desacelerar. O peso da nossa relação é demais. A gravidade nos chama,
conspira contra nós…
— É um negócio meio bis? — pergunta, e eu o olho, confusa. — Quem
pede um, pede bis? — explica, e eu rio.
Mais uma vez, ele fica feliz por me fazer rir.
Ficamos no bar por mais ou menos uma hora, e, bem quando estamos de
saída, BJ aparece.
Henry e Christian o acompanham. Hen está tenso.
BJ está bêbado, dá pra ver na sua cara antes de sentir o cheiro do hálito —
que eu também sinto.
Ele faz uma careta de desdém e balança a cabeça para mim.
— Como sempre.
Desvio o olhar e o ignoro.
— A gente se desentende por meio segundo, e você sai com o rabo entre
as pernas pro colo de outro cara…
— Relaxa — cochicha Christian para o amigo, mas Bê só o olha com
raiva.
— Mas ela não relaxa fácil assim, né, England? — pergunta BJ, e Tom
apenas balança a cabeça.
— Pelo visto você exagerou na bebida, cara… Vai tomar um ar puro —
sugere Tom.
BJ balança a cabeça e franze a testa, com as narinas meio infladas.
— Não quero tomar ar nenhum… Quero falar de como a Parks não
relaxa nunca…
Ele ainda não disse quase nada, e já senti como se tivesse levado um tapa
na cara.
— Ela não dá fácil… — começa BJ.
— Para — diz Tom.
Bê o ignora.
— Ela é complicada pra caralho. É uma pirralha mimada…
— Para — repete Tom, endireitando a postura.
— Ela não sabe que porra ela quer… — continua Bê.
— Já mandei parar — diz Tom, balançando a cabeça, com o maxilar
retesado, e me bate uma sensação nervosa no estômago.
— Ela é infantil, é egoísta…
É então que Tom o empurra. É um empurrão daqueles. Bê cambaleia um
pouco, mas fica feliz por ter motivo para responder no soco, então se joga
em Tom, mas Christian logo puxa Bê, e Henry o enfrenta.
— Que merda você tá fazendo, cara?
BJ balança a cabeça e se desvencilha, correndo até mim de dedo em riste.
— Que merda você tá fazendo, Parks?
Nossos rostos estão próximos. Acho que não temos nem dez centímetros
entre nós. Ele ainda está usando a camisa debaixo da qual passei a mão, no
carro, no começo do dia, antes de ele estragar tudo outra vez. Porque ele
quis?
Dou de ombros de leve, sem desviar o rosto.
— Eu faço o que eu quiser — digo.
O tom em que falo me surpreende. Chega a ser afiado. Enfrento o cara
que amo e odeio.
— Quero estar aqui. Quero sair com Tom, é isso que eu quero…
BJ tensiona o maxilar, com uma expressão magoada, enquanto balança a
cabeça.
— Você é uma mentirosa do cacete — cospe, então eu empurro com a
mão o rosto dele para longe.
— Sai da minha frente.
Ele segura meus punhos, apertando com força, e não quero que ele solte,
porque tenho medo do que possa acontecer quando soltar.
— Ah, é isso que você quer, é? — grita, e a situação está piorando.
Todo mundo ao nosso redor está olhando. A coisa está saindo de
controle. Já caímos numa dessas uma ou duas vezes, em nossos piores
momentos. Quando descobri sobre a Taura. Quando ele descobriu sobre o
Christian. Quando tudo que resta do nosso amor é o ódio.
Tom me puxa para trás de si, me tirando da frente de BJ, o que só faz BJ
se sacudir com mais força enquanto os garotos o puxam para trás, para
longe de mim.
A cara dos meninos, de Tom, de todos, está entre choque silencioso e
pavor abafado, nos vendo perder as estribeiras.
— Puta que pariu, Parks, o que você quer de mim? Você sabe, por acaso?
— grita BJ.
Balanço a cabeça. Mal consigo enxergar.
— Não quero nada com você.
É mentira.
— Nem eu — responde ele, arrastado.
— Maravilha.
Mentira.
Ele aponta o dedo para mim, com os olhos semicerrados e marejados.
— Cansei dessas suas merdas.
Mentira. Dessa vez, dele.
Levanto as sobrancelhas e concordo com a cabeça.
— Então por que você não me esquece, porra?
Não é o que eu quero. Outra mentira. Todas essas mentiras que não
conseguimos parar de vomitar um no outro.
Ele levanta as sobrancelhas.
— É isso que você quer?
— É! — berro, e parece uma trovoada.
Ecos retumbam pelas montanhas antigas ao nosso redor, e os filósofos
gregos que discursavam poeticamente sobre amor verdadeiro e almas
gêmeas se reviram no túmulo, enquanto eu tento, pela zilionésima vez, me
separar da minha.
Tom se posiciona entre nós dois, me protegendo de BJ.
Ninguém nunca me protegeu de BJ antes. Acho que nunca foi necessário.
Tom parece genuinamente triste. Não comigo, mas por mim. Por BJ.
Ele balança a cabeça.
— Cara, dá pra ir embora logo?
TRINTA E QUATRO

BJ

Estou de volta no meu quarto. Não lembro como cheguei. Arrastado pelo
meu irmão, talvez? Ou trazido por Christian? Um dos dois.
Estou no banheiro. O reflexo é estranho. Sou eu, mas não sou.
Sou eu, mas transtornado.
Odeio brigar com ela. Brigamos até bem à beça, melhor do que qualquer
outra pessoa que conheço. Não éramos assim quando estávamos juntos,
quase não acontecia na época.
Marsaili dizia que o amor às vezes azeda que nem leite e vira ódio. Talvez
a gente tenha se esquecido de cuidar do nosso amor.
Meus olhos estão molhados. Minhas mãos tremem. Pressiono o punho
contra a boca com tanta força que corto o lábio nos dentes. Um. Só um. É só
isso que vou me permitir.
Sai engasgado e abafado. Rápido.
Parece preso no peito. Aperto as mãos nos olhos, respiro fundo e
longamente, até me acalmar.
Ajuda um pouco, mas não o suficiente; ainda me sinto estranho.
Enfio a mão no nécessaire e tiro um papelote. Enfileiro uma carreira com
o cartão Centurion, porque o titânio é melhor para o pó. Enrolo uma nota
de cem euros e cheiro.
Belisco o nariz depois, coço duas vezes, fungo. Cheiro mais uma, por
garantia. Jogo um pouco de água na cara, seco o nariz, só por via das
dúvidas. E aí vou encontrar os garotos.
Eles estão sentados ao bar, e eu desabo no assento ao lado. Henry e
Christian tem um relacionamento como o meu com Jonah, e, admito, não
curto muito estar aqui sem ele.
Me sinto meio abandonado, ninguém me apoia que nem o Jo. Ele teria
metido a porrada no England na hora. Ou talvez não. Merda.
Será que eu passei dos limites?
Christian levanta a mão, chamando a atenção da bartender. Ela é bonita.
Pele marrom-clara. Olhos cor de mel que consigo notar daqui. Sobrancelhas
grossas, mas daquele jeito sexy. Ele aponta para mim, fazendo sinal para ela
me trazer uma bebida.
Henry me olha e faz uma careta.
— Tudo bem aí?
Rio bufando.
— Claro, por que não estaria?
A expressão dos dois é hesitante. Eles se entreolham.
— Sei lá — diz Henry e dá de ombros, se fazendo de bobo. — Assim,
você acabou de ter a briga mais feia da sua vida com a sua paixonite desde os
seis anos... mas tá de boa. Tranquilo.
— A gente vive brigando.
Christian pisca.
— Desse jeito?
Bufo de novo.
— Vocês estão fazendo drama…
Henry me lança um olhar sério.
— Bê, ela meteu uma mãozona na sua cara. Assim, foi um espetáculo.
Uma vergonha pra você, mas, porra, um show daqueles pra gente.
Bufo outra vez.
A bartender grega gostosa traz uma rodada de bebidas, e, quando me
entrega o copo, nossas mãos roçam. Olho para ela, que me abre um sorriso
discreto.
Ela vai embora.
Eu observo a bartender andar e suspiro ao ver a bunda dela naquela
sainha preta esvoaçante.
Parks saberia a marca, o modelo, a porra do código de barras — não
pense nela. Na real, não saberia, porque Magnolia só entende de marcas que
a Harrods vende. Nada de Shein nem poliéster no vocabulário dela.
Ainda assim… dava pra dar um bom trato num rabo de saia daqueles…
Viro a bebida num gole só. Roubo a de Henry.
Christian semicerra os olhos, me observando.
— O que foi?
— Nada.
Olho para ele como se não fosse mesmo nada de mais.
Ele me observa por mais alguns segundos, então se aproxima e pega meu
queixo. Dou um tapa na mão dele, mas Christian ganha qualquer briga que
quiser, então me empurra e me segura outra vez, inclinando meu rosto para
que a luz recaia sobre os meus olhos. Ele suspira, a expressão irritada.
Balança a cabeça, ainda com meu queixo na mão.
— Ah, que se foda — diz e empurra minha cara, me soltando. — Pra
mim já deu por hoje, galera…
— Como assim? — pergunta Henry, piscando. — O que houve?
Christian morde o lábio e aponta para mim, esse dedo-duro do caralho.
— Ele tá cheirado.
Henry bufa, rindo. Só uma vez.
— Não tá, não — replica, até que me olha, inseguro. — Tá? — me
pergunta. — Tá, Bê?
Faço um barulho esquisito. É de desdém, mas também me incrimina.
Christian se afasta da mesa, levanta e ergue as mãos, se retirando da
situação.
— É pra fingir que você sair daqui não tem porra nenhuma a ver com a
Magnolia? — grito para ele.
Ele não se vira, nem volta, mas levanta a mão, mostrando o dedo do meio
e se mandando.
Henry me olha.
— Esqueci que, quando você tá cheirado, você não para de falar merda.
— Não falo, não.
Ele aponta Christian com o queixo.
— E isso aí foi o quê, então?
Olho para ele.
— Eu menti, por acaso?
Essa eu ganhei — sei que sim. Henry também sabe. Ele abaixa a cabeça e
respira fundo. Tento não arrastar ele pro meio dos meus problemas com o
Christian. Ele odeia toda essa parada, e entendo, porque também odeio.
Odeio que tenha acontecido, odeio que ele tenha feito isso, odeio ter brigado
com ele num beco por causa dela, e todo mundo saiu perdendo naquela
noite. Odeio isso tudo.
— O que você tá fazendo, Bê? — pergunta Henry, com a voz mais baixa.
Dou de ombros. No momento, não estou nem aí.
— Ela vai acabar com a tua raça — alerta ele.
Tento segurar a devastação que sinto no peito ao responder:
— Já tá acabando.
Henry se levanta. Ele parece furioso. Ou talvez seja triste? Me olha por
alguns instantes, e eu sinto que estou fracassando no papel de irmão mais
velho. Não costumo me sentir o irmão mais velho. Ele é mais responsável.
Não faz tanta merda. Está na faculdade. Nunca parece meu irmão mais
novo, só meu irmão. Mas agora, pelo jeito que está me olhando, sinto que o
decepcionei.
Ele derruba o copo quase cheio na minha frente, derramando pela mesa.
Eu me afasto, irritado, e o olho como se ele tivesse perdido o juízo.
— Mas que porra é…
— Você precisa tomar jeito, Bê — diz meu irmão, e aponta para mim.
Em seguida, se vira para a bartender, ainda apontando para mim, e passa
um dedo pelo pescoço.
— Chega de bebida pra ele — avisa para a garota antes de ir embora.
Fico ali sentado olhando para o nada. Levo uns dois minutos para notar
que a bartender está ali parada, me observando.
Aponto para ela, chamando-a com um dedo. Ela vem devagar. Não tem
ninguém por perto.
Ela para bem na minha frente e me olha por alguns segundos — e, na
real, ela é gostosa pra cacete. Pisca algumas vezes, se abaixa na minha
direção, pega a minha mão, me levanta e me puxa até o banheiro.
Assim que chegamos ao corredor, ela me empurra contra a parede —
quer isso mais do que eu. É difícil de expressar exatamente qual é a dela,
porque parece que ela está mais precisando desesperadamente fazer isso do
que querendo de fato. Talvez ela também tenha feito merda hoje.
A bartender bota a mão na massa bem rápido. Desabotoa minha calça
jeans antes mesmo de chegarmos ao banheiro.
Ela está faminta pelo meu corpo, e sua boca não para em apenas um
lugar. Desabotoa minha camisa. A camisa que comprei para Parks — não
pense na Parks. Ela beija meu peito. O peito no qual Parks passou o dia todo
encostada — porra, ela é meu pior vício.
Passo as mãos por baixo da saia dela, por baixo da calcinha.
Que bunda gostosa.
Ela me envolve com a perna, e me pergunto se chegaremos à cabine a
tempo.
Ela me beija, e meus pensamentos começam a vagar até Parks, como
sempre. A mesma lembrança, o barco, ela no lago, o biquíni lilás — nossa,
como eu amo ela de lilás —, e aí penso: Que se foda.
Não vou pensar nela.
Vou pensar na bartender, que é gostosa pra caralho e está com a mão
dentro da minha calça.
Então abro os olhos, me forço a encarar a mulher que estou prestes a
comer, e aí…
Eu a vejo.
No fim do corredor.
Olhos marejados. Boca trêmula. Coração na mão, e o meu no bolso dela.
Esticando as mãos à frente, parecendo que tem cinco anos e vê um
pesadelo se desenrolar.
Ela encontra meu olhar. E se vira…
Empurro a bartender para longe.
— Não! Não, não, não, não, não…
Parks corre. Corro atrás dela, mas ela é rápida, e eu a perco quando vira
num corredor.
TRINTA E CINCO

Magnolia

Voltei para buscar uma presilha. Tinha esquecido no banheiro na hora de


conferir se meu batom ainda estava no tom correto de cor-de-rosa para
destacar o brilho dos meus olhos. Eu tinha tirado a presilha para ajeitar o
cabelo e me esquecido de botar de novo. Normalmente, eu não voltaria atrás
de uma presilha, mas dessa vez fiz isso porque é um grampo de ouro branco
e diamantes da Suzanne Kalan que custou duas mil libras. Como ando
tentando economizar, o ideal seria voltar e pelo menos procurar a presilha
perdida antes de encomendar uma nova.
Por isso, voltei correndo para o banheiro.
Tom se ofereceu para ir comigo, mas eu disse que não precisava, era
tranquilo, levaria só um minuto.
Não fica mais fácil com o tempo ver BJ assim. Nem sei direito o que vi.
Até onde eu sei, eles poderiam realmente estar transando.
Ele estava apertando a bunda dela. Apertando de verdade, com as duas
mãos. Os dedos marcavam a pele dela.
E ela estava arrastando a boca — que era carnuda, por sinal — pelo peito
dele, como se estivesse lambendo sal, e as mãos não estavam à vista.
Ele estava com a cabeça encostada na parede, os olhos fechados, pescoço
exposto, músculos tensionados, e lembro que ele ficava dessa maneira
comigo. Não sei no que ele estava pensando, mas tenho certeza de que não
era em mim. Fiquei ali parada por sabe-se lá quanto tempo. Talvez
segundos, talvez minutos. Até ele me ver, e foi quando eu corri.
Não gosto muito de correr. Sempre achei uma atividade meio plebeia,
mas, ainda assim, sou mais rápida do que ele. Sempre fui. Ele diz que é um
desperdício. Eu digo que é uma habilidade pela qual não tenho interesse
nem apreço. Até hoje, quando se mostrou necessária.
Volto correndo para o quarto, escancaro a porta, entro, fecho com força e
me recosto. Aperto bem os olhos, tentando me controlar.
Tom me olha, do sofá.
— Você tá chorando? — pergunta, se levantando. — Outra vez?
Seco as lágrimas e procuro um jeito de parar de sentir que estou caindo
no fundo do poço.
Não sei o que estou fazendo.
Pensei muito pouco nisso.
Não pensei nada, na verdade.
Só que, quando Tom se levanta, franzindo a testa de preocupação por
minha causa, o jeito dele de se levantar, os ombros largos, tudo me parece
seguro, e agora eu não… sinto mais segurança nenhuma. E adoraria sentir.
Ando até ele, me fazendo de mais confiante e decidida do que realmente
estou. Passo os braços pelo pescoço dele e puxo a sua cabeça para baixo, o
que nunca fiz antes. Eu me pergunto se vou me sentir que nem uma
desconhecida quando nos beijarmos, que nem a garota que estava beijando
BJ, mas não. Quando beijo Tom, sinto apenas como se fosse eu mesma.
Uma versão perdida de mim. Uma versão meio atordoada. Mas sou eu.
O beijo começa devagar, mas fica mais e mais intenso, e sinto ele fazer
uma careta, confuso.
— O que você tá fazendo? — pergunta, com a boca ainda grudada na
minha, sem determinação para se afastar de vez.
Eu me afasto um pouco e olho para ele.
— Quando a gente decidiu sobre essa coisa de trincheira, você disse que
estava tentando transar comigo. Você ainda quer transar comigo?
Ele suspira, soltando todo o ar do peito, como se a pergunta fosse uma
pegadinha, e relaxa um pouco a mandíbula.
— Quero.
— Então tá.
Concordo com a cabeça e volto a me aproximar.
Ele engole em seco e se afasta minimamente.
— Isso… não parece uma boa ideia.
Apesar de dizer isso, ele não tira as mãos da minha cintura. Na verdade,
chega a apertar mais forte.
— Não é — digo, com um olhar teimoso.
Ele franze a testa de leve.
— Tudo isso é por causa do BJ?
Eu hesito.
— Faz alguma diferença pra você?
Ele pensa por um momento, respirando com mais intensidade, quase
bufando, apertando um pouco os lábios… e nega com a cabeça.
— Não.
Então ele me beija como se não quisesse mais me soltar.
Vou recuando, mas meus pés nem estão mais no chão.
Desabotoo a camisa dele, um modelo Cocoon largo, de popelina franzida
com logo bordado, da Balenciaga. São seis botões. No terceiro, me atrapalho
— passar a mão no peito dele é que nem acariciar um bloco maciço de
chocolate Cadbury.
Respiro fundo. Recupero o controle. Nunca fiz isso com outra pessoa. Só
com BJ. Não pense em BJ. Preciso mudar isso.
Até o momento, BJ provavelmente já transou com, o quê, umas cem
mulheres? Centenas? Sei lá. E aqui estou eu, ainda me guardando, para…
ele? Talvez? Mas por quê? Para o caso de ele mudar?
Acho que talvez ele já tenha mudado, e que, talvez, eu não goste.
Quando o vejo com outras mulheres, bom, primeiro eu fico confusa por
tanta gente gostar de pornografia, porque, até agora, as duas vezes que me
deparei com cenas eróticas só me fizeram querer arrancar os olhos da cara.
Mas, além disso, quando vejo Bê com outras mulheres, eu tenho a forte
sensação de que, na real, não o conheço de verdade.
Estou devaneando. Estou enrolando. Tentando me esquivar da situação
na qual me meti. Provavelmente é um mecanismo de sobrevivência.
Provavelmente não estou pronta para isso.
Provavelmente vai ser um erro.
Provavelmente preciso fazer isso de qualquer maneira.
Foco no objetivo, Parks.
Tom me coloca na cama e paira acima de mim, com a cabeça inclinada,
me olhando e apoiado em uma das mãos. Com a outra, ele abaixa a alça do
meu vestido curto de camadas franzidas de algodão voile com estampa floral
e detalhes em amarração no modelo Aya da LoveShackFancy.
O dedo dele se demora na minha pele, e fico surpresa pela facilidade de
afastar BJ dos meus pensamentos toda vez que Tom me toca.
— Seus olhos são muito bonitos — digo para ele.
Ele sorri, achando certa graça. Abaixa a outra alça do vestido. E ajeita
meu cabelo.
— Você não é egoísta — diz. — Nem infantil.
Abro um sorriso breve, agradecida, e tento não voltar a chorar.
— E acho que você sabe bem o que você quer — continua.
Engulo em seco enquanto ele sobe a mão pela minha perna, devagar pela
bunda, e para na cintura, me segurando com firmeza. Ele balança a cabeça.
— Não é uma pirralha mimada… — diz e me olha, como se ponderasse
algo. — Mas, confesso que, depois de uns meses contigo, às vezes você pode
ser mesmo um pouco difícil…
Começo a rir e, em vez de o rosto dele se iluminar, como normalmente
faz quando rio, ele fica sério. Abaixa o resto do meu vestido, me despindo, e
deixa a mão se demorar no caminho, antes de subir de volta até o meu rosto.
Seu olhar vai dos meus olhos à minha boca, aos meus olhos, à minha
boca, e então o puxo para cima de mim, porque preciso não ser mais de BJ, e
isso vai me separar dele de vez.
Esse gesto nos faz pegar no tranco. Ele rola comigo, para que eu fique por
cima. Desabotoo a calça jeans dele, e ele as remove por completo. Minhas
mãos estão ocupadas, e as dele também…
Faz tanto tempo que não faço isso… Quando foi a última vez? Não pense
nisso. Não pense nele. Ele rola comigo na cama de novo. Ele por cima, eu
por baixo. Prefiro assim.
Há certo conforto instintivo nessa proximidade com outra pessoa, e
talvez seja por isso que sexo casual faz tanto sucesso. O corpo dele no meu,
que nem um colete à prova de balas, me protegendo de todas as outras
coisas que eu normalmente sentiria neste momento, mas não consigo nem
sentir, porque a boca dele está onde meu sutiã estava momentos antes. É
difícil me concentrar em qualquer outra coisa depois que a gente põe a mão
na massa, não?
Ele acaricia meu cabelo. Seus beijos são intensos, coisa de abalar as
estruturas, de sacudir placas tectônicas, e isso porque ainda nem chegamos
nas partes mais grandiosas.
E como são grandiosas as partes dele.
Dói, mais do que lembro. Mas é uma dor gostosa, sabe? Uma dor
muscular profunda. Uma dor que dá vontade de forçar mais em vez de
parar. Que nem um nó no ombro, quando a massagem se aprofunda, em vez
de a gente se desvencilhar. E eu me lembro de sentir isso com BJ — só que
diferente, porque ninguém conhece meu corpo como BJ. Nossos corpos
cresceram juntos.
Não sei se um dia vou voltar a sentir isso com outra pessoa. Será que BJ
sentiu? Ou é uma dessas coisas que só acontecem uma vez na vida? Quantos
amores se tem numa vida? Não sei mais, honestamente — meu coração está
a mil, a represa enchendo —, e existem muitos tipos de amor no mundo, e
acho que o meu está me matando. Ainda assim, é o rosto dele que me vem à
cabeça — mesmo com o rosto perfeito de Tom e o cabelo dourado caído em
cima dos olhos, que, de tão azuis, fazem uma safira perder o brilho; mesmo
que Tom esteja bem aqui, minha cabeça volta correndo a BJ. A mão na
massa não consegue me fazer parar de pensar nele, e odeio o que isso diz
sobre mim, sobre ele, sobre a gente, porque talvez eu nunca fique livre.
E, quer saber, nem estou pensando em nada sexy, só nele escovando os
dentes no meu banheiro, com a escova pendurada na boca enquanto tenta
me ver por cima da muretinha do box. Só nele gritando comigo sempre que
eu derrubo minha garrafa de água durante a madrugada. Nele abraçando
Bushka por trás, como se fosse um casal posando para uma foto. Nos Vans
ao pé da minha cama.
E essa merda toda me dá uma rasteira, porque meus pensamentos vão
vagando até BJ como se meu coração estivesse ancorado lá. Me pergunto se
os pensamentos de Tom vagam até Clara e me questiono que porra é essa
que estamos fazendo — mas é tarde demais para parar, não consigo parar. E
nem sei se quero mesmo parar, porque penso nas mãos de BJ agarradas à
bunda daquela garota. Houve uma época em que ele não agarrava mais
ninguém desse jeito, só a mim.
Tom vai mais fundo, me puxa para mais perto, e penso em BJ deitado no
meu lado na cama para eu brigar com ele, ele me tocar, me segurar e abrir
aquele sorrisinho irônico que sempre abre quando faz isso. Penso no
caimento da calça jeans no corpo dele, na cintura da cueca Calvin Klein que
sempre aparece, por mais que eu e a mãe dele compremos cintos de
presente. Acho que Tom é muito bom nisso. Gostaria de me concentrar no
que está acontecendo com meu corpo, mas minha mente não permite.
Penso na boca de BJ quando ele fala, porque o movimento da boca dele é
uma espécie de poesia atemporal, sem palavras. Penso no rosto dele ao sol,
nos pontinhos dourados nos olhos verdes. Conto as tatuagens que Bê tem
no corpo e que ninguém chega a ver, porque ficam bem escondidas, mas que
são, em sua maioria, por minha causa.
Uma magnólia: peito.
O ano do meu nascimento: braço direito, na dobra do cotovelo.
O ano do nascimento dele: ao lado do meu.
National Geographic: antebraço.
Começo a arquear as costas.
Uma abelha: mão esquerda.
Outra abelha: ombro direito.
A carta Inverter do UNO: panturrilha esquerda.
Um veado: braço esquerdo.
Tom aperta minha mão na cama.
“Billie”: costela, lado esquerdo.
Um guarda-sol: braço esquerdo.
Coordenadas de Dartmouth: braço esquerdo, dobra do cotovelo.
A data do nosso primeiro beijo: polegar esquerdo.
Estou ofegante. Logo vou perder o controle.
Uma flor de lilás: dedo do meio esquerdo.
A data da primeira vez que transamos: antebraço esquerdo.
“In every lovely summer’s day”: antebraço direito.
“Se alguém ama uma flor”: antebraço direito.
Tom vai mais fundo, e eu começo a arfar.
Um gesso: alto da coxa esquerda.
A respiração de Tom no meu pescoço é acelerada. Ele roça a boca na
minha, e eu queria conseguir ler a mente dele para saber se ele está tão
fodido da cabeça quanto eu estou agora.
Um lacinho: polegar direito.
A progressão do sexo sempre me fascinou, essa escalada ao final. Estamos
subindo, quase no cume, dá pra sentir, ver na cara dele. E somos bem bons
nisso, na real. Levando tudo em consideração, como o fato de eu não estar
pensando nem um pouco em Tom England, o que é uma loucura, já que ele
é Tom England. Sabe?
Ventos do leste: peito.
Tom estica o pescoço, que nem BJ fez com a garota do corredor.
O ursinho Paddington: braço direito.
Sinto o ar ser arrancado de mim, puxado com tudo enquanto pressiono
os pés no colchão, procurando qualquer coisa que me dê firmeza.
O M da Maserati: pé direito.
Então, um som baixinho escapa da minha boca, e minha cabeça pesa
contra o travesseiro, de repente relaxada. Tom cai em cima de mim. Ele está
ofegante, eu também. Gosto da sensação do suor dele em cima de mim.
E fico muito confusa com o sentido disso tudo. Como posso ter acabado
de gozar enquanto contava as tatuagens do meu ex e ao mesmo tempo não
querer que Tom England saia de cima de mim? O que isso significa?
O que isso diz a meu respeito?
Acho que só quer dizer que não tenho mais jeito.
Não funcionou, por sinal. Não me separou de nada. Acho que, no fim, só
me amarrou a mais uma pessoa.
A vigésima segunda tatuagem de BJ: o DeLorean de De Volta para o
Futuro.
O que foi que eu fiz?
TRINTA E SEIS

BJ

Não sei o que eu esperava da batida na porta do meu quarto no hotel às duas
da manhã — mas com certeza não Magnolia Parks.
Não depois da cara dela quando me viu. Não depois de tudo que falamos
um para o outro. Mas aqui está ela, do outro lado do olho mágico.
Segurando o braço, vestida num suéter que roubou de mim uns quarenta
segundos depois de eu comprar na Gucci. Ela está franzindo a testa, com
uma tristeza no rosto que acho que nunca presenciei.
Abro a porta e, só de olhar para ela, já estou cagando para qualquer outra
coisa. Me pergunto se seremos sempre assim. Será que somos o tipo de
pessoas que sempre vão voltar correndo um para o outro, não importa o que
aconteça? Provavelmente.
Somos figuras esculpidas na proa de um navio velho naufragando.
Saio para o corredor e fecho a porta.
— O que aconteceu? — pergunto e a abraço.
Ela se afasta um pouco e me olha, e não sei o que entrega — se são os
olhos dela, o cheiro dele em Parks.
Ela nem precisa dizer nada. Eu já sei.
Estremeço de leve. E solto um ruído. Ela me ouviu, eu sei, porque me
abraça mais forte.
— Ah — é só o que digo, e faço um aceno com a cabeça, segurando-a
com mais força.
Porra, que dor.
É isso que eu faço com ela há anos? É isso que ela sente? Porque parece
que meu peito está machucado por dentro. Parece que minhas costelas estão
desabando, afundando devagar, e que talvez eu finalmente a esteja perdendo.
Talvez o navio já tenha afundado completamente. Talvez estejamos à
deriva no mar. Talvez a madeira do navio esteja começando a apodrecer e
nenhuma âncora do mundo possa nos salvar.
— Você tá bem? — pergunto, porque não sei o que mais dizer.
Isso só a faz chorar mais. Eu a abraço, passando a mão no cabelo dela, e
finjo não notar que evidentemente acabaram de ser puxados e bagunçados
por outras mãos.
O que estamos fazendo? Além de nos magoar. Não sei mais. Porque eu a
amo, de verdade. Eu a amo de um jeito imbatível, incontestável, invencível,
inabalável e conturbado. Mas sinto o cheiro dele em Parks, e seria capaz
de… Provavelmente vou fazer isso depois.
— Desculpa — diz ela, com a voz abafada pelo meu peito.
Levanto o seu queixo para que ela me olhe.
— Desculpa também.
Ela pisca de leve, e os olhos dela me lembram orvalho nas folhas em
manhãs frias.
— Eu te odeio — diz, engolindo em seco.
— Pois é — digo, concordando. — Eu também meio que me odeio.
Ela se afasta para me olhar, e eu seguro o rosto dela entre as mãos —
olhos claros e carregados, aquela boca corada, e as bochechas que sempre
ficam rosadas quando eu estou por perto. A pele marrom, as mãos que eu
seguro desde os quinze anos, as curvas que se encaixam em mim como se
fôssemos esculpidos a partir da mesma pedra. Como vou superar essa
mulher?
Não vou. Não dá. Não consigo.
Ela segura minha mão junto ao rosto, sem soltar, sem saber o que vai
acontecer com a gente quando ela soltar. Acho que nenhum de nós sabe.
Acho que soubemos um dia, mas não mais.
Ou ao menos achamos que sabíamos. Todos os caminhos levavam a
Tobermory — uma vida tranquila numa cidadezinha costeira ao norte —,
porque uma noite caímos num desejo fulminante e tomamos uma atitude
destemida e beligerante. Teríamos envelhecido lá. Dormiríamos no sofá
abraçados, deixaríamos cortinas abertas, e eu me afogaria na luz matinal do
amor dela todos os dias. E é o que deveríamos ter feito, até que aconteceu
aquele dia. Provavelmente deveríamos ter feito isso de qualquer maneira.
Deveria ter carregado ela para longe, para a vida que nós dois queríamos
ainda assim, mas não foi o que fiz. Se fosse, não estaríamos aqui.
Até que alguém abre a porta do meu quarto, e a bartender aparece,
usando apenas uma camiseta minha e mais nada. Magnolia congela nos
meus braços, e eu fecho os olhos com força, como se, ao apertá-los, pudesse
fazer a garota desaparecer. Porém, ela não desaparece, e eu sei o que está por
vir.
Eu me preparo.
Dessa vez, é um empurrão. Ela me empurra com uma baita força, mas eu
estava pronto e firmei os pés. Parks se movimenta mais do que eu, e acaba
jogando o corpo esguio contra a parede do corredor atrás dela, tropeçando.
Vou em sua direção para segurá-la, mas ela estapeia minhas mãos e me
olha como se fosse um bicho que tivesse levado um pontapé.
— Parks…
Tento segurá-la outra vez.
Ela se desvencilha.
— Não…
— Magnolia… — chamo, mas ela já se foi.

05:23
Parks

Oi

Como tá o tempo aí, Parks?

Uma merda.
TRINTA E SETE

Magnolia

Vou ao quarto de Paili e choro na cama dela por umas duas horas. Ela chora
comigo. Ela é uma ótima amiga. Paciente. É dessas pessoas que se
preocupam sempre com as pessoas que amam. Chorou comigo na noite em
que BJ me traiu. Chorou comigo na noite em que comecei a namorar o Reid.
Ela esteve presente em tudo. E não diz muita coisa.
Mas o que teria a dizer?
Eu deveria tê-la procurado depois de Tom, em vez de ir até BJ, mas não
consegui me controlar.
Para ser sincera, nem foi algo consciente, ir atrás de BJ. Eu estava
acordada olhando para o teto, com o coração a mil, e Tom dormindo ao
meu lado, tranquilo. Aproveito para dizer uma coisa pertinente: Tom
England é um espetáculo, de verdade. Eu ter pensado em BJ não tem nada a
ver com Tom. É o resquício de um hábito que tenho há metade da minha
vida e que não sei como romper. Queria ter pensado em Tom. Deveria ter
pensado em Tom. Enquanto ele dormia ao meu lado, me perguntei se
deveria acordá-lo e tentar outra vez, para pensar apenas em Tom, mas, em
vez disso, acabei indo até BJ, e acho que isso diz tudo.
Que estou presa.
Ele é a lua, e eu, a maré. Quando aquela garota saiu do quarto dele, foi
maré baixa. Fui empurrada para trás, para longe.
Ele me encarou, com os olhos arregalados de um jeito que conheço bem.
Do jeito que ficam sempre que nos perdemos, coisa que já aconteceu tanto
que não dá nem para contar nos dedos.
Foram vezes demais.
Tom estava dormindo quando saí de fininho atrás de BJ. Ele tem o sono
pesado, descobri nesta viagem. Vivo derrubando minha garrafa de água, e
ele nunca acorda, mesmo que o barulho lembre um gongo. Ele ainda estava
dormindo quando voltei para a cama algumas horas depois. Continuou a
dormir por horas.
Eu continuei desperta.

* * *

De manhã, tomo uma chuveirada longa e esfrego com força minha pele,
tentando me limpar dos erros que cometi, mas não funciona. Visto as
roupas mais confortáveis que trouxe — o cardigã largo com vários botões da
Vetements, com o shortinho e a blusa curta de caxemira da Loulou Studio.
Peço café da manhã para nós dois e sirvo na varanda para não acordá-lo,
mas, mesmo assim, ele desperta. Ele pisca e abre um sorrisinho cansado… e
sinto um soco no estômago. Uma surpresa. Uma espécie de desejo?
Ele sai da cama e vem até mim. Está só de cueca preta da Tom Ford, e
tenho um desejo breve e inexplicável de lambê-lo, só por um segundo, mas
logo se esvai, porque, ora, que desejo mais sem refinamento.
Estou com as pernas apoiadas na cadeira à minha frente, e Tom as
levanta, se senta na cadeira e as apoia de volta no colo.
É de uma intimidade estranha: minhas pernas esticadas no colo dele,
praticamente nu e com os olhos apertados para me enxergar no sol grego.
Outra emoção se agita no meu estômago, até eu engolir em seco, temendo
que meu rosto entregue algo que nem eu mesma entendo.
Ele me olha por alguns segundos, estoico e escultural.
— Você foi atrás dele depois — deduz, por fim.
Não é uma pergunta nem uma acusação. Apenas uma observação.
Abaixo os olhos, envergonhada.
— Só por um tempinho.
Ele faz que sim com a cabeça e não tenta encontrar meu olhar.
— Por quê?
Faço uma careta. Eu não sabia quando essa questão viria à tona, mas
imaginava que viria um dia, e eu tinha bastante certeza de que ele não ia
gostar, de qualquer forma. Inspiro fundo e expiro pelo nariz.
— Nunca tinha transado com ninguém além dele.
Tom pisca algumas vezes e recua, surpreso.
Hesita, e aí…
— Cacete. Magnolia!
Abro um sorrisinho tenso e abano a mão.
— Não é nada de mais.
Ele segura minhas pernas e puxa a mim e à cadeira para nos
aproximarmos, até eu acabar caída em cima dele que nem um jogo de pega-
varetas. Nem me mexo. Fico feliz de ficar que nem um jogo de pega-varetas
no colo dele. Tom me encara.
— É, sim.
É, sim. Ele está certo. Mas já transamos, então já foi, e eu dou de ombros.
— Pois é. Mas eu precisava que não fosse nada de mais, então…
Tom desce as mãos até meus tornozelos e os aperta de leve.
— Por que você não me contou?
Abraço os joelhos.
— Porque eu sabia que, se você soubesse, não ia querer mais.
Ele me olha com uma expressão nada impressionada, quase de
repreensão, que, por algum motivo, acho muito sexy. Provavelmente é por
alguma questão que tenho com meu pai.
— Foi enganação — diz.
— Não. Foi discrição — corrijo, enunciando bem a última palavra.
Ele revira os olhos, achando certa graça, e aponta o queixo para mim.
— Então você foi atrás dele?
Confirmo e mais uma vez desvio o olhar. Ele sabe que amo BJ. Ele sabe
mais da minha relação com Bê do que a maioria das pessoas, então por que
tenho tanta vergonha de que ele saiba que fui encontrá-lo?
— Sim — confirmo. — E ele estava com outra pessoa.
Talvez seja por isso.
— Caralho — solta Tom, recuando a cabeça, exasperado, e aperta meus
tornozelos com mais força. — Vocês dois são…
— Uma merda — concordo. — Pois é, eu sei.
Ele me olha, tentando dissecar o que eu e BJ somos — uma tarefa
impossível, e posso afirmar aqui mesmo que ele, assim como as inúmeras
pessoas que tentaram antes, fracassará completamente. Porque eu e BJ
somos imensuráveis. São as nuances de todos os jeitos que nos amamos, no
presente e no passado, e de como continuamos a nos amar por acidente, e os
fios em que nos emaranhamos de forma tão elaborada, e os segredos que
compartilhamos, e aquele único coração partido que compartilhamos.
— Por que vocês são assim? — pergunta ele, finalmente, estreitando os
olhos.
Eu adoraria dizer, adoraria explicar para fazer sentido, mas não consigo,
então fico em silêncio e dou de ombros de leve.
— Eu… A gente só se apaixonou cedo demais, eu acho… e não sabemos
mais viver separados.
BJ e eu… acho que somos que nem uma correntinha de ouro toda
embolada. Não é impossível desemaranhar, mas parece ser. De vez em
quando, dá para soltar a corrente, mas não é sempre. Na maioria das vezes, é
preciso abrir o fecho, ou arrebentar o colar, para os nós se soltarem.
— Vocês parecem o Sam e a Clarinha — diz Tom, balançando a cabeça,
com a expressão meio triste. — Merda — acrescenta, praticamente num
sussurro.
— Desculpa — digo e sinto como se estivesse prestes a chorar.
— Não precisa pedir desculpa — responde ele, acariciando
distraidamente meu tornozelo. — Sinto muito… Se eu soubesse desgrudar
vocês, faria isso.
Sinto uma pressão no peito e suspiro em vez de falar alguma coisa. Há
muitas coisas a serem ditas. Mas é tudo contraditório.
Eu amo o BJ, sim. E, não, não sei como parar. Mas, por favor, não me
deixe. Não quero que você me deixe. Eu sentiria medo sem você. Você faz
com que eu não me sinta sozinha. E talvez o Gus esteja certo.
É isso que eu diria, se pudesse, mas tudo fica entalado na garganta.
Ele pega o café das minhas mãos e toma um gole demorado.
— Então — diz Tom, franzindo a testa. — Em que pé nós ficamos?
— Sobre a questão da trincheira? — pergunto, limpando um pouco de
espuma de cappuccino do lábio dele.
Deixo minha mão se demorar. Ele fica corado e pigarreia.
— É…
— Não sei — digo e dou de ombros, as sobrancelhas franzidas. — Em
que pé você quer que a gente fique?
— Bom, eu ainda preciso de uma trincheira — argumenta ele. — Você
também. Ainda estamos esperando nossos sentimentos passarem. Então
melhor esperarmos juntos.
Concordo com a cabeça, sentindo um prazer inesperado. Fico até um
pouco tonta só de pensar que posso continuar a fingir namorar Tom. Ainda
mais alegre por não ter que enfrentar BJ sem minha versão de uma AK-47.
Tom aponta para a cama com a cabeça.
— Mas provavelmente é melhor a gente não repetir isso…
— Ah.
Assinto. Acho que meu rosto não disfarça nada minha decepção.
— É, não, acho que não… — acrescento.
Ele semicerra os olhos, brincando, tentando conter um sorriso. Parece
satisfeito.
Empino o nariz e o olho.
— Mas não seria o fim do mundo se a gente repetisse — comento, porque
algo dói em mim ao pensar que a possibilidade se foi por completo.
O olhar dele se suaviza, e Tom se aproxima.
— Escuta… A gente pode repetir, sempre que você quiser. É só que…
Parece que ontem você não queria. Acho que você pensou que tinha que
fazer isso — confessa ele, e balança a cabeça. — E não precisava.
— Eu sei — garanto, ainda de nariz empinado.
— Você tá com uma cara tão triste — diz Tom, com uma risada meio
confusa e frágil, antes de o rosto mudar um pouco. — Não quero te deixar
triste.
— Não deixou.
— Eu sei! — retruca ele, piscando. — Foi você mesma. Mas você me fez
de cúmplice.
Concordo com a cabeça.
— Desculpa.
Ele semicerra os olhos de novo, mais bem-humorado.
— Esse é um belo exemplo de como você é um pouco difícil.
TRINTA E OITO

BJ

Uma merda. Foi o que ela disse. É o que eu sou. É o que nós somos, acho.
Ainda assim, nada poderia me preparar plenamente para o que senti ao
ver Parks entrar no saguão com o único homem com quem ela transou além
de mim. Porra, e o pior é o seguinte: eles estão diferentes. Dá para ver.
Para ela, sexo é especial. Ela não teria transado se não quisesse, mesmo
que fosse em parte por despeito a mim. Com despeito ela já agiu mil vezes,
um milhão de vezes, e nunca transou com ninguém além de mim, mas o
Tom…
Com o Tom, é diferente. Mesmo que ela ainda não saiba.
— Ah.
Henry sorri para eles, porque ele não sabe.
Magnolia sorri um pouco para ele, e ele me olha, confuso. Perry e Gus se
entreolham, curiosos. Tom cochicha alguma coisa ao pé do ouvido de Parks,
ajeitando o cabelo dela atrás da orelha. Ele agora está com intimidade
demais, tocando nela como se ela fosse dele. Até que ele vai resolver alguma
coisa na recepção. Procuro o olhar dela, mas Parks propositalmente me
evita. Pails corre até ela, a pega pelo braço e se coloca de escudo entre nós
dois.
Tento não parecer tão magoado quanto estou. Porra, estou morrendo por
dentro. Christian olha de mim para Parks, franzindo a testa. Analisando a
situação.
Acho que ele sabe.
Tom volta para Parks, me nota, mal me cumprimenta com a cabeça e a
abraça, tranquilo. Dói. Ele a toca de um jeito distraído, assim como ela,
segurando dois dedos dele com a mão toda. Eles ficam ali parados… tipo…
que nem um casal. Que nem um casal de verdade. Com sentimentos e sexo
de verdade.
A intimidade discreta entre eles faz com que eu me sinta como se alguém
tivesse cavado minha alma com uma concha de sopa, e eu me viro, porque
não aguento mais olhar.
Henry repara e franze a testa.
— Tudo bem aí?
Confirmo rápido com a cabeça, porque é óbvio que é mentira.
— Um segundinho, já volto — digo.
Corro até o banheiro. Cheiro uma carreira. Saio. Tento encontrar o olhar
dela, mas Parks não me dá nenhuma bola. É só isso que ela tem para mim.
Nada. E “nada”, vindo dela, é alguma coisa, porque “nada” entre nós é raro, e
eu me sinto um pouco melhor com isso.
Nosso carro chega, uma limusine. Tom a acompanha, e ela passa o trajeto
quieta. Acho que não diz uma palavra sequer, para ninguém. Nem quando
falam com ela. Tom responde por ela, ou Paili. E ele não solta a mão dela. O
que é isso? Estão grudados com Super Bonder?
Chegamos à pista. Meu peito está apertado, e minha garota está distante.
Enquanto descarregam as malas, vou até ela.
— A gente pode conversar? — pergunto, baixinho.
Ela vira a cabeça para mim, mas não olha nos meus olhos.
— Não.
Ela se afasta e volta para Tom. Minha expressão murcha quando a vejo
com ele outra vez. Ela não fica confortável perto dele, não age como de
costume, não fala nada, não é irônica, nem engraçada, nem animada; ela
não está nenhuma dessas coisas hoje com ele — está magoada. Com ele, ela
se mostra ferida, e isso talvez seja ainda pior. Porque, até onde eu sei, a única
outra pessoa que já a viu tão exposta fui eu.
Eu os observo e sinto que estou vendo minha vida como se fosse um
acidente de carro. Embarcamos no avião de England, e eu me sento no
fundo, no mesmo lugar da ida. Deixo o assento ao meu lado livre, na
esperança de que ela venha se sentar comigo. Não é do feitio dela deixar
pontas soltas assim, não faz bem para a cabeça dela. Por isso, fico ali
sentado, esperando que ela suba no avião, esperando encontrar o seu olhar,
para chamá-la — mas, quando ela embarca, Tom a abraça pela cintura.
Ele aponta com a cabeça para a cabine. Ela concorda e vai atrás dele, e
eles fecham a porta. Mal consigo olhar.
Henry solta um assobio demorado. Paili dá uma cotovelada nele.
Ela estava certa. O tempo tá uma merda.
10:12

Christian

E aí

O que rolou com você e Bê?

Sei lá do que você tá falando.

Mentira

Ele falou alguma coisa?

Não

Também não quer tocar no assunto.

O que rolou?

Nada

Me conta

A gente só brigou feio.

??

Eu vi ele com uma garota

Vi mesmo

Tipo…

Hã?

Sério?

Acho que sim. Sei lá.


Saí correndo.

Pra onde?

Pro Tom

Eu estava lá também

Eu sei.

Podia ter me procurado.

Eu sei.

Mas não dava.

Você sempre pode me procurar.

Você sabe disso.

Eu sei.

Obrigada bjsss

Bjs
TRINTA E NOVE

Magnolia

Tom insiste em me levar para casa depois do voo. Desta vez, pousamos em
Luton. Um pouquinho mais de uma hora de distância, neste horário. Falei
que não era necessário, mas ele insistiu. Desde a conversa no café da manhã,
ele virou uma espécie de cão de guarda por decisão própria. Não me deixou
sozinha um instante e não soltou a minha mão.
Não sei se foi só pelo que aconteceu com o BJ e pela minha tristeza ou se
teve outro motivo — porque, além da a coisa da trincheira, senti um alívio
peculiar ao segurar a mão de Tom.
Quando ele me chamou para voar com ele na cabine, eu sabia que
magoaria o Bê, então foi o que fiz, e estava certa. Vi que ele estava sentado
no fundo do avião, esperando que eu ficasse ao seu lado, mas não sentei lá.
Apesar de parte de mim querer. Porque acho que parte de mim sempre
vai querer. Sei que parece hipócrita que eu esteja com tanta raiva dele por
transar com alguém, sendo que eu também transei. Não sei por que sinto
esse peso no pescoço, como se estivesse me esganando, e por que sinto que
ele me traiu, mas que eu não o traí.
Ou talvez eu sinta que o traí, mas que talvez fosse necessário?
O lugar ao lado de BJ era para mim, era óbvio pela cara dele, mesmo que
eu tenha me recusado a olhar em sua direção. Não precisava, porque dava
para sentir que ele me olhava, à espera, na esperança.
Então entrei na cabine com Tom.
Parte de mim esperava que Bê sentisse o que eu sinto quando o vejo com
outras garotas, esperava que isso o consumisse durante o voo, pelo que
acontecia atrás da porta fechada.
O que aconteceu foram beijos.
— Tenho permissão pra entrar aqui? — perguntei, quando ele fechou a
porta da cabine.
Ele me olhou.
— Eu sou o piloto.
— Da última vez você não me convidou.
— Vi o Ballentine no fundo do avião, o lugar vazio do lado — explicou
ele. — Você parece o tipo de mulher que acharia irresistível um lugar nos
fundos com o amor da sua vida.
— Dá licença — falei, piscando de indignação. — A única coisa
irresistível nesse mundo é a Gucci.
— Então vai lá pros fundos — disse ele, rindo.
— Não — respondi, empinando o nariz. — É mais garantido ficar aqui,
só porque ele está de cinza e eu amo cinza, e ele sabe, então fez de propósito.
Tom olhou para a própria roupa, uma camiseta branca simples da Tom
Ford.
— E branco, que tal?
Percorri o corpo dele com o olhar. Estava dando mole para ele, eu sei,
mas é que é divertido dar em cima de Tom England.
— Dá pro gasto.
Ele sorriu, semicerrando os olhos, sem dizer nada, apesar de, ao mesmo
tempo, dizer tudo.
Eu me sentei na cadeira do copiloto. Flertamos mais. Tom me mostrou o
que fazer, os botões que precisavam ser apertados, explicou a decolagem no
processo, e, quando nos estabilizamos no ar, perguntou se eu queria pilotar.
— Talvez? — perguntei e o olhei, nervosa, até ele dar um tapinha no
próprio colo. — Ah, entendi.
Revirei os olhos, e ele riu, mordendo o lábio.
— Vem cá — pediu.
Fui até ele, cautelosa e bem-humorada. Ele me puxou para o colo e me
posicionou do jeito certo para a pilotagem, me abraçando e segurando
minhas mãos no manche do avião. Depois, apoiou o queixo no meu ombro,
conduzindo o avião pelas minhas mãos. Eu não estava fazendo nada, óbvio,
mas não me mexi, porque gostava de sentir Tom England colado em mim.
Parecia que eu estava à deriva, e ele era o único resto do naufrágio ao
qual podia me agarrar.
A respiração dele no meu pescoço me deixou arrepiada, então me virei,
olhando dos olhos à boca dele, e de volta.
Tom England faz um negócio com a boca inacreditavelmente sexy —
uma espécie de sorriso, mas sem mostrar os dentes, quase com ironia, mas
sem ser atrevido. Ele faz isso quando quer alguma coisa, ou quando diz
alguma coisa espertinha, e, no momento, ele não estava dizendo nada
espertinho, portanto queria alguma coisa: eu.
Ele engoliu em seco.
Em seguida, rocei a boca na dele. Rápido e leve, mais tímida do que
gostaria de ser.
Não sei por que fiz isso. Não é muito do meu feitio, na verdade. Só quis.
Ele sorriu, talvez surpreso, definitivamente satisfeito, e se aproximou
outra vez, com a boca logo acima da minha, tão próximo que eu sentia o
toque antes do toque, e minha respiração foi pro espaço, até que nossas
bocas se tocaram, de início devagar, e depois nada devagar, com muita
pressa, o tempo correndo por nós e em nós.
Ele me virou toda de frente para ele, e começamos a nos beijar pra valer.
Só paramos por causa de uma perda de sustentação, que fez o avião descer
alguns metros e eu quase sair voando, mas ele me segurou, rindo, e pediu
desculpas para as pessoas pelo alto-falante, explicando que a copilota o
estava distraindo um pouco e não prestava muita atenção a coisas de
aviação.
Eu não sabia se ele tinha dito isso por mim, ou por ele, mas, de qualquer
forma, esperei que magoasse BJ.
Porém, depois disso, paramos de nos beijar. Ele ficou no seu assento, e eu,
no meu, mas, vez ou outra, me olhava pelo canto do olho e inflava as narinas
um pouco, tentando não sorrir, até que começava a rir, e eu ria junto. Acho
que ele se tornou um dos meus melhores amigos.

* * *

Tem um caminhão de mudança na frente da minha casa quando chego.


Olho para Tom, confusa. Entramos, e, menos de cinco segundos depois,
minha irmã vem se jogar nos meus braços.
— Graças a Deus — grita. — Isso aqui tá parecendo um hospício.
— Hã? — solto. — Por quê? O que aconteceu?
Bridget se afasta, apertando as têmporas. Ela está usando o cardigã
listrado em bordô e amarelo-claro da Miu Miu que deixei no armário dela e
apoia as mãos na cintura, olhando de mim para Tom.
— Tudo — diz, balançando a cabeça. — Tudo!
Abano as mãos, impaciente, querendo mais informação. BJ teria me dado
um peteleco por fazer isso com Bridge.
— Então, a mamãe vai sair de casa — começa, e eu reviro os olhos.
Uau.
— Ok.
— Eles vão se divorciar.
Nossa. Assinto.
— Ok.
— Mars vai se mudar para cá.
Franzo a testa.
— Ela já mora aqui.
Bridge me olha.
— Vai se mudar pro quarto dele.
Faço uma careta e solto um murmúrio enojado.
Tom me olha de relance e está fazendo um bom trabalho de reprimir o
sorriso, mas BJ teria coberto minha boca para me calar.
— Eu ouvi isso — comenta Marsaili, entrando na sala. — Magnolia…
Ela vem me dar um beijo, e eu me esquivo. Não só por petulância (apesar
de ser isso também), mas porque nosso relacionamento não é de dar beijo.
Não era assim antes do caso dela com meu pai. Não vai ser depois.
— Que beleza… — diz, e pigarreia. — Ainda está de criancice, né?
Ela cumprimenta Tom com a cabeça.
— Oi, Tom.
Ele responde com um sorriso seco.
— Oi, Marsaili.
Minha mãe surge de uma das salas, empunhando uma espada carolíngia
do século XII.
— Isso é meu! — grita meu pai. — É meu, devolve.
— Vou levar — retruca ela.
— Você odeia essa espada… sempre disse que era um desperdício de
dinheiro!
— Pois é, mas, olha só, você ama jogar dinheiro fora, não ama, querido?
— pergunta minha mãe, pestanejando. — Aquele terceiro silicone que eu
botei foi dinheiro jogado fora, né? Jogado bem no lixo! Nem olhar pros
meus peitos você olhou.
— Mãe, não fala de silicone na frente do Tom England — diz Bridget.
Tom olha para Bridget, achando graça.
— Ah! — Minha mãe nos olha. — Oi, Tom! Oi, Magnolia, que surpresa.
— Jura? — pergunto, franzindo a testa.
— Oi — diz Tom, com um sorriso sem graça.
Dou uma olhada em volta, avaliando tudo aquilo.
— Assim, eu moro aqui…
— E eu não mais — retruca minha mãe, com um aceno indelicado de
cabeça.
Subo alguns degraus, querendo ficar mais alta do que o resto da sala,
apesar de nem assim conseguir passar da altura de Tom.
Olho minha mãe por alguns segundos.
— Você tá de vestido de baile?
Ela olha para si própria, com um vestido de algodão preto, manga
bufante e renda Chantilly da Dolce & Gabbana.
— Estou.
— Por quê?
— É meu vestido de mudança.
— Muito prático — comenta minha irmã, assentindo em aprovação.
— Então, eu ia usar na nossa cerimônia de renovação de votos —
responde minha mãe, olhando com irritação para o meu pai. — Mas esse
plano foi pelo ralo.
— Nunca pedi para você se casar comigo de novo — devolve ele, sem
pestanejar.
— Harley… — repreende Marsaili, dando um tapinha no braço dele.
Olho de relance para ela.
— Que momento estranho para você se pronunciar…
Por um segundo, quero que BJ esteja aqui. Ele é ótimo em situações
bizarras como essa. É ótimo em desarmar a loucura da minha família.
Minha mãe cruza os braços.
— Ela está certa, Harley, nossos votos podem ter ido pro brejo, mas não
tem motivo para seus modos fazerem o mesmo.
Olho apenas para minha irmã.
— Odiei isso tudo.
Ela devolve meu olhar.
— Bem-vinda de volta.
— Bom… — digo, olhando para todos com uma careta. — Vou subir e…
chamar um empreiteiro pra deixar meu quarto à prova de som.
Marsaili revira os olhos.
— A gente já transou aqui na casa antes.
Enfio os dedos nos ouvidos imediatamente.
— La-la-la-la-la-la-la-la.
— Marsaili — diz meu pai, olhando para ela.
Ela parece irritada.
— Ela não ouviu a gente antes…
— E não vou ouvir agora! — grito.
— Por favor, manda fazer no meu quarto também, tá? — pede Bridge, e
aponto para ela com uma piscadela.
Eu me viro para subir a escada, e Tom me acompanha.
— Na verdade, meu bem — diz meu pai, avançando um passo —, a gente
pode conversar a sós rapidinho?
Paro de andar e olho para ele. Tom entra no meio e diz:
— Não.
Meu pai tensiona o maxilar. Ele está irritado, mas também um pouco
triste.
— Não? — pergunta Mars, incrédula.
Tom balança a cabeça, indiferente.
— Escuta, Tom — suspira Marsaili. — É muito, muito gentil da sua parte
querer proteger Magnolia assim, mas ela está em segurança com o pai dela.
E, francamente, você não tem nada a ver com isso, então…
Eu balanço a cabeça.
— Não fala desse jeito com ele.
— Magnolia, com todo o respeito, Tom é novo por aqui e está se metendo
em assuntos familiares…
— Você não faz mais parte da minha família — digo, apontando para ela
e balançando novamente a cabeça. — E ele — acrescento, indicando Tom —
é meu namorado.
Tom me olha e sorri com o canto da boca, e parece que, por um segundo,
talvez ele não seja meu namorado só de mentira.
— Que pena que você se sente assim, Magnolia — suspira Marsaili. —
Sempre tratei você como se fosse minha filha…
— Ah! — Concordo com a cabeça, refletindo. — É por isso que estava
dando pro meu pai esse tempo todo?
Meu pai suspira, contendo um resmungo.
— Por favor, filha…
— Não sei o que vocês querem de mim — digo, olhando para eles dois.
— Minha bênção? Pois não vão ter.
— Meu bem — insiste meu pai, se aproximando. — Faz muito tempo que
eu não sou apaixonado pela sua mãe.
— Tudo bem — replico. — Tudo bem, não tem problema. O problema é a
covardia da traição. Que você sempre faz — insisto, apontando para ele. —
Você trai, isso eu sei. Mas com ela? — indico Mars. — Que era nossa? A
única adulta que nos amou, cuidou de nós, nos criou… Você tinha que
estragar ela?
— Magnolia — diz Mars, a voz soando um pouco aguda, esperançosa. —
Não estou estragada, só…
— É hipócrita — completo.
QUARENTA

BJ

Levou mais alguns dias para eu ir à casa dela, e, porra, que dias arrastados
que foram esses. Não me dou bem com dias arrastados, e não me dou bem
sem Parks. Tenho a tendência de preencher com merda o espaço que ela
deixa, como disse Henry ontem à noite, quando levei para casa uma garota
de Madri.
Não que a garota fosse uma merda. Ela era legal, gostosa. Estava noiva, o
que é um pouco merda, mas não é problema meu. Nem pensei mais nisso
depois de dar uns tecos.
Porém, Parks não me mandou mensagem, o que é estranho. Estranho pra
gente. Sempre que as coisas estão estranhas entre nós, um de nós cede,
tentando reequilibrar a situação. Mando um emoji de abelha. Ela me manda
um artigo da Nat Geo. Dessa vez, não fizemos nada disso, e fico tenso de me
permitir pensar no que isso quer dizer.
Paro diante da porta do quarto dela e tento escutar. Bridge está lá dentro
com ela.
— Que vestido merda — declara Bridget.
Ouço uma página virar.
— Vestido merda. Vestido merda.
Outra página.
— Vestido merda.
— Tá com merda na cabeça? — pergunta Magnolia, bufando.
Eu sorrio. Ela pegou essa frase do meu pai.
— É Valentino no seu auge — insiste.
— Ainda é merda. Esse aí também.
— Eu tenho esse — diz Parks, soando irritada.
— Então é ainda mais merda — replica Bridget, e imagino a expressão
dela.
Contenho uma risada enquanto as escuto. Sinto saudade das duas,
mesmo que de maneiras muito diferentes, e sei que a conversa delas pode
continuar para sempre, então avanço um passo. Bato na porta e espero no
batente. Parks me olha da cama. Pisca os olhos. Engole em seco. O rosto
perfeito dela mostra um misto de alívio e nervosismo. Ela sustenta meu
olhar por alguns segundos e cobre com a mão aquele colarzinho de B que
dei pra ela de presente, e que ela está usando. Bom sinal.
— Posso entrar?
A expressão dela murcha.
— Você nunca pediu permissão antes…
Dou de ombros e ponho as mãos nos bolsos.
— Nunca achei que precisasse.
Magnolia e eu nos encaramos, e apenas duas vezes na vida a situação
entre nós foi tão ruim. Primeiro, quando eu a traí. Segundo, na outra vez
que ferrei com tudo, feio — aí entrei pela janela dela às onze da noite num
dia de semana para me desculpar, inventei o plano de Tobermory e nos
beijamos até de manhã.
Porém, agora não tenho cartas na manga, nem posso beijá-la.
Parks faz um gesto esquisito com a mão, me convidando a entrar. É ao
mesmo tempo uma permissão e uma dispensa. Bridget solta um assobio
baixo e demorado e toma um gole de café, nos observando com atenção.
— Ok — diz Magnolia, revirando os olhos. — Dá pra você vazar?
— Quanta grosseria — bufa Bridget.
Ela sai da cama, passa por mim e, pulando na ponta dos pés, beija minha
bochecha.
— Saudade, feioso — diz, me cutucando na barriga, antes de ir embora.
Parks se senta na beirada da cama, abraçando os joelhos. Eu paro na
frente dela e cruzo os braços.
— Oi.
Ela ri um pouquinho e dá de ombros.
— Oi.
— Você não ligou.
Ela me olha com certa irritação.
— Nem você.
— Você tem namorado.
— E você andava bem ocupado…
Estreito um pouco os olhos. Ela me deixa exausto.
— Você fugiu de mim.
— Fugi — admite ela, de nariz empinado.
— E depois transou com ele.
Ela faz que sim, devagar.
— Transei.
Encontro o olhar dela, e sua expressão fica mais triste. Ou será
emocionada? Merda. Espero que seja triste. Quero brigar com ela, sentir a
proximidade do momento, de quando falamos coisas que não deveríamos e
passamos dos limites, que nem na outra noite, quando ela me empurrou e
fiquei ao mesmo tempo arrasado e extasiado, porque ela só pode me odiar
como me odeia porque me ama como me ama.
— Você tá bem? — pergunto.
Uma gargalhada frágil escapa, engasgada.
— Não sei.
Não está.
A cabeça dela está tão agitada que dá pra ver. Parece um livro de Richard
Scarry.
— Tá triste?
Ela torce as mãos.
— Estou muitas coisas.
Quero me aproximar, tocar o rosto dela. Abraçá-la, apertá-la… Uma
semana atrás, eu teria feito isso, mas agora não sei se posso. Ela parece
distante demais para ter conserto. Sei o motivo, e, se pensar nisso demais,
vou vomitar.
— Você gosta dele? — pergunto, em voz baixa. — De verdade?
Ela bufa e puxa o brinco. Fui eu que comprei esses brincos para ela, na
minha última viagem a Nova York. São argolinhas de diamante. Não sei de
que marca. Ela saberia.
— Não sei o que você quer dizer com isso — responde ela, por fim.
Eu a olho.
— Sabe, sim…
Mas ela só continua a me olhar, piscando.
— Merda — digo e aperto os olhos com as mãos fechadas.
Ela se levanta, pega meu punho e procura meu olhar, mas não diz nada.
Só continua me encarando, parecendo meio assustada. Ajeito o seu cabelo
atrás da orelha, porque a mão dela no meu punho me indica que tenho
permissão para isso.
Balanço a cabeça para a mulher dos meus sonhos.
— Que merda é essa que está acontecendo com a gente?
— Sei lá — suspira. — Você sabe?
Isso me irrita, e eu me afasto, franzindo a testa.
— Como você quer que eu saiba? Você guarda tudo pra você.
Ela expira fundo, e me olha de um jeito irritado.
— Isso não é bem verdade, né, Bê? É você que está escondendo
informações que podem mudar essa situação…
Isso me abala, e me pergunto se é verdade. Se eu contasse, será que ela
superaria?
— Teria mesmo mudado alguma coisa?
Ela se empertiga, em uma postura desafiadora.
— Eu acho que sim.
Merda.
Mas não posso. Então insisto.
Passo as mãos no cabelo.
— Já dei a minha resposta.
Parece quase que bati nela, pela expressão em seu rosto. Parks engole em
seco, com os olhos marejados.
— Se a resposta for aquela, a minha é: acabou.
Sinto como se tivesse levado uma tacada no estômago.
A boca de Parks treme, e algumas lágrimas escorrem. Fico ainda pior do
que ela, porque ela não vê o próprio rosto enquanto chora, mas eu vejo.
Caralho, esses olhos de esmeralda. Eu venderia meu fígado no mercado
clandestino para impedir que ela chorasse, venderia tudo que tenho,
arrancaria o coração do peito… mas acho que isso eu já fiz.
Balanço a cabeça, tentando conter a respiração.
— Você não está falando sério.
Ela seca as lágrimas com cuidado e me olha, com orgulho no rosto e
ressentimento no olhar.
— Não estou, não — diz, e pigarreia. — Por isso que eu te odeio.
16:42
Jonah

E aí

O que tá rolando com você e com a Parks?

Alguma notícia boa?

Sei lá, cara. É uma bagunça do caralho.

Ela gosta dele.

Sério?

Tô achando que sim

Merda

Vai dar tudo certo, cara.

Você e a Parks sempre se resolvem.

Mas você tá de boa, né?

O pessoal falou que você tava pegando meio pesado na Grécia

Tô tranquilo.

Beleza

Quem tá tranquilo em geral não fica doidão sozinho.

Só pra… deixar registrado.

Pois é, verdade. Bom conselho.

E aí, como anda a máfia que você controla?

Tudo certo, cara. É um estresse, mas, pô, não tô cheirando


sozinho no hotel, então, né…
QUARENTA E UM

Magnolia

Volto para casa de um dia (mais ou menos) longo no escritório (no almoço)
e encontro o carro de Tom parado na calçada. Ele não está no meu quarto,
nem na sala de estar, nem na sala de visitas, nem na outra sala de estar, nem
na biblioteca, então começo a me perguntar se talvez ele tenha apenas
estacionado aqui e ido dar uma volta no parque.
Até que ouço Paili rir na cozinha.
Chegando lá, Tom, Paili e minha irmã me olham.
— E aí, o que tá rolando aqui?
Olho animada para eles, ajeitando a saia do meu vestidinho curto de
veludo verde-escuro da Khaites, no modelo Leona.
— Tom está ensinando a gente a fazer martíni — responde Paili.
— E a pedir — acrescenta Bridget.
— É mesmo?
Sorrio para ele, que abaixa o pote de azeitonas, se aproxima e me dá uma
piscadela discreta antes de me beijar.
— É, sim — diz ele, se afastando.
Como ele está lindo… De suéter de algodão canelado amarelo e calça fina
de linho e algodão com pregas, tudo da Brunello Cucinelli.
— Como foi seu dia? — pergunta.
Ele se volta para minha irmã e minha melhor amiga e analisa o trabalho
das duas.
— Sempre uma ou três azeitonas, Bridge. Nunca duas.
Ela concorda com a cabeça, obediente. Eu o observo e sinto o rosto corar.
Por que ele é tão legal?
— Tive um almoço de trabalho com a Kitty Spencer…
— Almoço de trabalho? — pergunta Bridget, piscando. — O que ela está
fazendo na sua editoria na Tatler?
— É que a gente se reuniu pra almoçar no horário de trabalho, então…
Minha irmã ri.
— Paili — diz Tom, apontando a geladeira —, pode pegar as taças no
congelador?
Ela obedece.
— Tá, agora… — continua ele, olhando os ingredientes: gim, vermute,
azeitonas. — Martíni sujo?
— Imundo! — declara Bridget, animada, sacudindo a cabeça. —
Brincadeira, é que eu sempre quis dizer isso.
— Vem cá — me chama Tom. — É bom você aprender também.
— Todo mundo deveria aprender a fazer um bom martíni — informa
Paili, e percebo que ela está só repetindo algo que Tom disse, o que acho
fofo.
Eu me empoleiro ao lado dele na bancada.
— Gelo até não poder mais na coqueteleira, por favor, Bridge — pede ele,
e minha irmã concorda, enchendo de gelo.
Paili passa a colher para ele, e Tom começa a mexer. Ele se encaixou
muito bem ali, o que me abala de um jeito que não entendo direito. Uma
mistura de suspiro de alívio e estômago revirado de tensão.
— Não vai sacudir? — pergunto, tentando afastar as partes mais confusas
das coisas na minha mente.
Ele nega com a cabeça.
— É para ficar lisinho — diz Bridge, com orgulho, e é visível que ela gosta
dele, o que me faz gostar dele mais ainda.
— Isso aí — concorda Tom, com um aceno de aprovação. — Vamos
mexer até quase dar… — Ele deixa a frase no ar, olhando para Paili.
— Um minuto! — completa ela, sorrindo.
— Perfeito.
Ele serve um martíni para cada um de nós, e Bridge acrescenta os
palitinhos de azeitona.
— Voilà! — cantarola ela, apontando as taças.
Eles comemoram, mas olho para Tom com uma expressão desconfiada.
— Você veio aqui ensinar minha irmã e minha melhor amiga a preparar
martíni?
— Não — diz ele, passando a mão pelo cabelo. — Vim te chamar para
sair.
Tomo um gole, achando graça.
— A gente já namora.
Ele balança a cabeça e me pega pela mão, me puxando da bancada, para
as meninas não ouvirem.
— É coisa de trincheira, na verdade — diz.
— Ah.
— Aniversário da Clarinha.
Concordo com a cabeça.
— Beleza.
— Você está livre na quarta?
Concordo mais uma vez.
— Vou estar.
Por um segundo, ele faz uma cara tensa.
— Acho que ela está namorando.
Penso por um instante.
— Ah.
A expressão dele vai de tensa a frustrada.
— Talvez. Não sei…
Seguro o braço dele e procuro seu olhar.
— Você tá bem?
Ele abre um sorrisinho.
— Pode usar um vestido que faça todo mundo olhar pra você?
— E todo mundo já não olha pra mim? — brinco.
Ele solta uma risada e me dá um beijo na bochecha.
— Obrigado.

19:13
Paili

Gata, então você e o Tom estão mesmo… sérios.

Pails, faz meses que a gente namora.

É, mas vocês estavam “namorando”…


Agora estão NAMORANDO

É porque somos um CASAL.

você entendeu.

Não entendi nada.

Como tá o Bê?

Sei lá.

Bem.

Deixamos as coisas num clima meio pesado no outro dia.

Ele vai superar. Sempresupera, com você.

E que fique registrado que vocês dois também são um CASAL.

22:26
Christian

Oi

E aí

Uma dúvida…

Diga

Bê anda pegando muita gente?

Haha

Bê tá sempre pegando muita gente

Mas quanta gente?


Fala sério

Não me faz responder isso

Tá.

Tá ruim assim?

Não falei porra nenhuma.


QUARENTA E DOIS

BJ

— Até que enfim você deu as caras! — diz Jonah, me apontando com o
queixo.
Ele não parece muito feliz. Jonah está um pouco chateado comigo, acha
que estou pegando pesado demais. Pode ser um sinal. Até porque o próprio
Jo não é nenhum santo.
Na real, acho que ele anda meio apaixonado pela Taura Sax. O que talvez
seja um pouco merda, porque acho que Henry também está
(relutantemente) a fim da Taura… Provavelmente é por isso que Jo anda
meio puto? Assim, fato que ele tá pegando ela. E Henry sabe e não parece se
incomodar, e Taurinha acho que fica quase intrigada por Henry não ligar…
Não sei direito. É uma zona. As pessoas acham que eu e Parks somos uma
confusão, mas eles estão criando uma bela de uma bagunça também.
Admito que essa semana anda meio foda. Bebi até cair, trepei até dizer
chega. E nem pergunte do pó. Admito, perdi um pouco o controle desde a
última vez que encontrei Parks, mas esse é só o jeito com que lido quando as
coisas desandam entre a gente.
Normalmente, em menos de duas semanas, ela me mandaria uma
mensagem inventando uma emergência, tipo um pneu furado ou medo de
alguém ter invadido a casa para matá-la, e eu apareceria para salvá-la, aí
voltaríamos ao normal.
Mas ela não ligou. Nem mandou mensagem.
— Você e Parks já se resolveram? — pergunta Jo, e eu subo no balcão
para comer cereal da caixa.
— Ainda não — digo enquanto mastigo.
— Já encontrou ela?
— Não.
— Ligou?
Faço cara feia.
— Vai se foder.
— Mandou mensagem?
Jogo um punhado de cereal nele, e, sem hesitar, ele arremessa o controle
remoto e me acerta bem no peito, com uma precisão assustadora.
Essa galera de gangue, vou te contar…
— Porra, cara! — resmunga ele.
Eu o encaro.
— Ela gosta do Tom.
— Pois é, e por que será, irmão? Você tá comendo cereal com a mão às
três da tarde de uma terça, e ele, se bobear, está levando ela de jatinho pra
Barcelona agora …
— Eu tenho jatinho — digo, coçando os olhos cansados e fazendo careta.
— Você também tem. Ela também. Grandes merdas, todo mundo aqui tem
jatinho.
Ele revira os olhos.
— E qual é a dele, chamando ela de Parks? — continuo. — Você não acha
esquisito?
— Ele chamar ela de Parks? — repete Jonah, franzindo a testa, e eu
confirmo. — Você quer saber se eu acho esquisito Tom chamar Magnolia
Parks de Parks?
— Isso — digo, impaciente.
Jonah me olha por um bom tempo, com uma expressão que faz com que
eu me sinta um babaca.
— Não, não acho esquisito Tom chamar Magnolia pelo sobrenome.
— É, mas é assim que eu chamo ela.
— É, mas também é o sobrenome dela…
Abano a mão, porque é ele o idiota que não entendeu nada. Jo continua
me encarando, e não gosto dessa cara. Só ele e Parks fazem com que eu me
sinta exposto.
— Bê, o que você tá fazendo? — pergunta ele, balançando a cabeça. — O
que rolou? Vocês estavam quase voltando, e agora ela tá transando com o
Tom.
— Transou uma vez — digo, porque preciso que seja verdade. — Foi um
evento único. Uma anomalia sexual…
Faço um gesto de desdém. Ele volta a me olhar com desconfiança. Eu
suspiro.
— Ela queria saber o que aconteceu — explico. — No nosso encontro.
— Ah — diz ele, comprimindo os lábios. — Seria bom você contar pra
ela…
Balanço a cabeça.
— Não posso.
— Pode, sim.
Balanço a cabeça outra vez.
— Já é tarde demais.
É tarde demais, e não posso. Repenso aquela noite pela milésima vez.
Sadie Zabala de vestidinho preto, me comendo com os olhos do outro lado
do salão. Comecei a suar frio… fiquei até tonto por um segundo. Todo
mundo sabia que eu namorava a Parks já fazia anos, então que joguinho era
aquele? Desci para o banheiro. Achei que fosse vomitar. Talvez eu estivesse
bêbado? Não estava. Não o suficiente para o que aconteceu depois.
Ela me seguiu para ver se eu estava bem.
Eu não estava.
E que diferença faria se Parks soubesse? Os pesadelos dela agora teriam
as cenas certas? Não tem nada que eu possa dizer que vá melhorar. Não
posso explicar do jeito que ela precisa.
Eu fiz merda e a magoei. Não dá pra voltar atrás.
Preciso que ela me queira mesmo assim. É o único jeito.
— E aí? — diz Jo, dando de ombros. — Vai jogar a toalha?
— Com a Parks? — pergunto, e ele confirma. — Não.
Balanço a cabeça.
Nunca.
— Então vai fazer o quê? Você já levou ela para sair e estragou tudo.
Reviro os olhos, porque não sei mais o que fazer. É a verdade. Ele lambe
os dentes, pensando.
— Acho que você devia só ir lá e beijar a garota — sugere.
Faço um som de desdém.
— Hã? — questiono.
Ele dá de ombros.
— Qual foi a última vez que vocês se beijaram de verdade?
Faço careta, fingindo puxar na memória, como se nosso último beijo não
estivesse gravado em mim, como se eu não o agarrasse como se fosse meu
suéter preferido sempre que meu cérebro tem um minuto de descanso.
Ajo como se aquilo não fosse nada.
— Tem uns dois anos.
Ele pisca.
— Como assim?
Eu recuo, meio constrangido.
— Como assim o quê? — retruco.
— Faz dois anos que vocês não se beijam?
Eu olho para ele.
— Você estava lá… Foi no cinema depois de…
— Essa foi a última vez que vocês se beijaram? — grita ele.
— Foi!
— Pera aí… Quer dizer que esses anos todos, quando vocês estavam
passando a noite juntos, vocês realmente estavam só dormindo?
— Quê? Sim, Jo — digo, balançando a cabeça. — Cara, eu te conto
tudo… você saberia se…
— Não, Bê, é a Parks — replica ele, negando. — Você nunca fala dela
como fala das outras minas, você guarda essas paradas bem pra você.
Ele está certo. Jonah parece confuso.
— Sério que não comeu ela nem uma vez? — insiste.
— Jonah.
— Nossa! — diz, passando as mãos pelo cabelo. — Cara, sério, nossa.
Ele está chocado com aquela revelação. Vejo ele reescrevendo a memória
dos últimos anos, os olhos agitados que nem um relógio enquanto alinha as
coisas, desfaz suas suposições…
— Foi mesmo o último beijo?
Concordo, a boca tensa.
— Por aí.
Teve mais uma outra vez. Eu e Parks não falamos disso.
— Mano… Beija ela.
Eu o encaro e reviro os olhos.
— Fala sério.
Jo se aproxima, meio estupefato, meio achando graça.
— Que foi, tá com medo?
Bufo com desprezo.
— Não.
— Cara, já te vi chegar em top model e beijar na caradura.
Balanço a cabeça.
— É diferente.
Ele olha para mim como se dissesse “exatamente”. Meu Deus, que pé no
saco.
— Ô, Bê, de homem para homem… — diz e me dá um tapa no peito. —
Beija ela, porra.
QUARENTA E TRÊS

Magnolia

É aniversário da Clara, e, como prometido, escolho um vestido que vai fazer


o mundo todo me olhar.
É o vestido curto e sem alça de ráfia trançada da Dolce & Gabbana, com a
sandália de tiras em estampa de oncinha.
Dessa vez, pelo menos Tom veio me buscar. Jaqueta de camurça da
Brunello Cucinelli, camiseta listrada preto e branca da Jil Sanders e calça
jeans da Rag & Bone, no modelo Fit 2 Slim-Fit.
Alugaram o restaurante do Adam Handling. Aquele na rua Sloane.
— Ele é nosso amigo — explica Tom a caminho da festa e me olha de
cima a baixo, com um sorrisinho. — Esse vestido…
Lanço para ele um olhar orgulhoso, como se tivesse feito muito mais do
que apenas me arrumar.
— Seus pais vão estar lá? — pergunto.
Ele nega com a cabeça.
— Não curtiram muito a ideia da Clara namorando esse cara…
Assinto. Fico triste por eles — acho que eu também acharia que foi
rápido demais. Também fico triste por ela, porque por quanto tempo é
esperado que uma pessoa continue de luto? Mais do que oito meses parece
ser o consenso da família England.
— E você? — pergunto. — Curtiu a ideia?
Ele franze a boca. Acho que pensa em deixar a pergunta pra lá.
— Não.
— Tem certeza de que eles estão namorando?
Ele me olha, com o maxilar tenso.
— Não.
Acho que estou aqui por via das dúvidas. Para o pior dos cenários.
Porque eu provavelmente não levaria Tom a um aniversário de BJ, a não ser
que achasse que BJ fosse me jogar uma granada.
Acho que vim para servir de escudo.
Quando chegamos, Clara parece feliz em me ver. Queria sentir o mesmo,
mas vê-la traz à tona várias emoções que não sou capaz de nomear.
— Uau! — solta ela, me abraçando. — Amei seu vestido!
— Também amei o seu! — digo, sorrindo.
É um modelo de jacquard com saia plissada e corpete da Dolce &
Gabbana. Cor de creme. Meio sem graça, mas até que é bonitinho.
Entrego o presente.
— E o que é isso aqui! — diz, maravilhada, como se nunca tivesse
ganhado um presente na vida.
Entendo por que Tom é apaixonado por ela, sério. Por que os dois irmãos
England são. Eram. BJ acha que eu sou fofa? Não sou nada comparada com
Clara England. Olha só a garota mais rica da Grã-Bretanha, que arregala os
olhos quando recebe uma caixa de presente da Net-A-Porter. Faço um gesto
de “não é nada”.
— São só uns brinquinhos de diamante da Maria Tash. O recibo está na
caixa…
Clara olha para Tom, sorrindo com uma alegria forçada.
— Ela é pra casar.
Ele devolve o sorriso, rígido e forçado.
— É, sim — concorda.
Fico triste de vê-lo assim. Quem não souber a verdade deve achar que a
dor entre eles é por causa do marido falecido dela, mas eu sei. E acho que o
cara que está com ela também sabe, então seguro a mão de Tom, porque
deveria, e também em parte porque quero. Clara pega minha mão e me
puxa na direção de seu talvez namorado.
— Sebastian, essa é a Magnolia… Magnolia, Sebastian.
Estico a mão para cumprimentar o cara inacreditavelmente sexy ao lado
dela: pele marrom, olhos castanhos, tatuagens de cima a baixo, boca sensual,
maxilar quadrado, cabelo desgrenhado. Não reconheço as roupas dele,
exceto pela calça social e reta da Levi’s, no modelo Black XX, e pelos tênis
Vans pretos, então ele provavelmente não é rico. Não que faça diferença,
tanto faz. Eu pegaria ele de qualquer maneira, com uma cara dessa. Só é
curioso. Diferente de Sam. E de Tom.
Falando nisso, Tom mal dá atenção à minha conversa com o cara gato,
pois só tem olhos para Clara.
— Oi — cumprimento.
— A famosa Magnolia Parks — responde ele, com sotaque americano, e
sorri.
— Ah — digo alegre, recuando. — Você já ouviu falar de mim.
— Já.
— Só coisas boas, tomara?
Sorrio, e ele também me abre um sorrisinho, com um olhar diabólico.
— Só boas não — retruca, antes de dar uma piscadela e se afastar.
Clara se desculpa comigo, mas nem sei se ele estava me ofendendo ou me
paquerando. Ela vai atrás dele; Tom me olha como se pedisse perdão e segue
Clara.
Suspiro, provavelmente de uma forma mais sincera do que planejava, e
vou ao bar pedir um martíni de limão.
Bebo rápido, então peço outro.
— Gata… — chama Gus, aparecendo do meu lado e puxando a saia do
meu vestido. — Amei, amei, amei…
Passo a mão no vestido — sinto uma farpa, mas persevero — e sorrio
para ele.
— Veio pro aniversário do grande amor do seu namorado de mentira…
Que namorada de mentira ótima! — diz.
Dou um peteleco no peito dele e um puxão no paletó de algodão
vermelho Kiton.
— Bom te ver também…
— Soube que você anda tocando o terror em casa? — comenta ele,
sorrindo.
Reviro os olhos e rio.
— Só para os infiéis.
Ele ri um pouquinho e começa a contar uma história sobre o artista com
o qual ele e meu pai estão trabalhando. Olho ao redor, procurando Tom, e o
encontro bem rápido, como acontece quando a gente procura nosso crush
em algum lugar, mas acho que, nesse caso, é só por ele ser meu namorado de
mentira.
Tom me olha de volta e acena com a cabeça, perguntando se estou bem.
Sorrio rápido e faço que sim, sem querer ser uma péssima trincheira.
Rio na hora certa da história de Gus, que certamente merecia mais
atenção do que a que não ofereci, e ele repara.
— Tá ficando mais complicado, né?
— Hum? — pergunto, confusa. — Não, não. Muito pelo contrário. Mais
fácil — minto.
— Aham.
Gus me olha com desconfiança.
— É sério — digo, assentindo para dar ênfase. — Estou tranquilíssima.
De boa, bem…
— Vocês transaram — diz ele.
Franzo a testa na mesma hora.
— Como você adivinhou?
Ele ri.
— Ele me contou.
— Ah.
Reviro os olhos, mas acabo rindo.
Tom dá uma corridinha até a gente. Não corre de verdade, mas anda
rápido, sabe, com propósito. Ele então apoia a mão na minha lombar.
— Tudo bem por aqui?
— Tudo! Ótimo! Tudo — digo, sorrindo muito. — Tô ótima — insisto,
assentindo. — Uhum.
Dou mais um sorrisão para completar.
(— Que porra é essa? — murmura Gus.)
— Tem certeza? — pergunta Tom, franzindo a testa.
— Uhum. Tudo certo — digo e indico Clara. — Pode ir.
Ele aperta minha mão com um sorriso, e me pergunto se sinto uma
pontada de tristeza por ele fazer o que eu digo, mas, não, não deve ser. Não
posso estar triste, porque não tem motivo.
Gus arqueia as sobrancelhas.
— Aperto de mão espontâneo. Quanta intimidade.
Dou um tapinha no braço dele, rindo. Aí Gus olha para trás de mim e
exclama de alegria, antes de ir abraçar alguém.
É um abraço de parça tremendo, com tapinha nas costas e tudo, para
tentar compensar a emoção que exibem — e, quando se afastam, vejo que o
outro parça é o Rush Evans.
O astro de cinema. O gostoso daquele filme adolescente, sabe? Do garoto
e da garota com vários dramas familiares, em que ele é o bad boy e ela é
meio pentelha, mas tanto faz, e eles se apaixonam mesmo assim? Foi um
sucesso. Fez o nome dele.
Ele está de jaqueta azul-marinho com estampa de logo da Off-White,
calça Ksubi azul de joelho rasgado e aquela camiseta estonada da Saint
Laurent com estampa clássica dos anos 1950, que Bê tem igual, só que preta.
— Magnolia, gata — diz Gus, me empurrando para a frente. — Conhece
o Rushy Evans? A gente estudou junto em Hargrave.
Rush balança a cabeça e segura delicadamente a minha mão.
— Não pessoalmente… mas conheço de nome — responde ele e me dá
um beijo na bochecha.
Solto uma risadinha que está mais para um suspiro.
— Prazer.
Ele acena com a cabeça e sorri, e esses olhos metem qualquer garota em
encrenca.
— É todo meu — devolve, antes de se virar para Gus. — Já conheceu o
boy novo da Clarinha?
Gus assente, fazendo uma expressão neutra. Rush balança a cabeça.
— Uma merda — diz, antes de se debruçar no bar e pedir uma rodada.
(— Rushy era o melhor amigo do Sam — me revela Gus, baixinho, para
Rush não ouvir.
— Ah — respondo, e assinto, ainda mais triste por todo mundo.)
Rush entrega um shot para mim e outro para Gus; brindamos, viramos e,
em seguida, ele me oferece mais um martíni de limão e mais um negroni
para Gus.
— Fala o que tá rolando entre você e o Tommy — pede ele, se recostando
no bar.
Rush Evans é mesmo bem charmoso. Bizarramente gato, sagaz e
engraçado, menos Hollywood do que eu esperava, mas, se você deixar, ele
vai partir seu coração, completamente, sem a menor dúvida.
Conto a história oficial do bar, do beijo, de sempre ter tido um crush nele.
Ele vai assentindo. Gus faz várias expressões nem um pouco prestativas
durante a conversa toda, mas Rush está prestando atenção só em mim.
— Mas achei que você estivesse com aquele fulano — comenta, estalando
os dedos duas vezes. — Porra. Aquele do Instagram, que as meninas ficam
babando em cima.
Minha boca treme, e eu engulo em seco, com saudade dele.
Por que ele não me ligou?
— BJ — digo e viro o resto da bebida.
Rush me olha, intrigado.
(— Garçom — chama e aponta para mim.)
— Tem alguma coisa pegando aí? — pergunta Rush, e Gus se aproxima,
levantando as sobrancelhas, atento que nem o chato que ele é.
— Nem um pouco — declaro, em desafio, infeliz e, acho, sinceramente.
— Enfim, então, Parks, me explica o seguinte… — diz Rush, apontando o
queixo para Tom.
Ele está praticamente seguindo Clara pelos cantos, e ela está sentada a
uma mesa sozinha com o talvez namorado gostoso. Tom está por ali,
tentando ser discreto e conversando com alguém, uma garota que parece
muito feliz de ter a oportunidade de falar com ele, tão feliz que está disposta
a ignorar o fato de que Tom parece estar pouco se fodendo para o que ela
tem a dizer.
— Se você e Tom estão pra juntar as escovas de dente…
— Não estamos. Sou bem-nascida, não junto escovas de dente.
Gus ri, e Rush levanta as sobrancelhas, achando graça.
— Então me explica…
Eu reviro os olhos e abano a mão para ele fazer a sua pergunta, enquanto
acabo de beber.
— Se você está com o Tommy — continua —, por que ele não para de
secar a Clarinha, hein?
Prendo o fôlego, mas me controlo e expiro mais devagar.
Gus ergue as sobrancelhas, esperando minha resposta.
— Sei lá — digo, dando de ombros. — Porque ele é protetor?
Rush olha de Tom para Clara, e de volta para mim.
— Protetor?
Confirmo, decidida. Rush semicerra os olhos.
— Acho de verdade que a vibe dele é menos sexual, e mais para… coisa
de mamãe pata — improviso.
Gus contém uma risada, enquanto Rush ri com vontade.
— Que tipo de pato você anda vendo por aí?
— Um pessoal que só faz pataquada — respondo, orgulhosa da piadinha
idiota.
Ele sorri para mim, e eu começo a rir. Rush parece satisfeito.
— Ah, cara — diz, balançado a cabeça —, se você não fosse namorada de
mentira do meu melhor amigo, eu estaria súper na sua…
— É o quê? — digo, franzindo a testa e corando ao mesmo tempo. —
Eu… não! Pff!
Rush Evans me olha.
— Sério? Acha que eu não sei reconhecer um namoro de fachada? Nem
vem — replica ele, apontando para si. — Eu estou em um também, porra.
Gus me olha, cheio de si, e eu suspiro, exasperada, bem quando ouvimos
um estrépito enorme do outro lado do restaurante.
Todos nos viramos, e o responsável pelo barulho foi Tom, que pegou o
talvez namorado gostoso pela lapela e o empurrou na parede.
Tom é um pouco maior do que Sebastian, mas o talvez namorado saiba
brigar.
Sebastian o empurra, se desvencilhando, e Gus e Rush vão correndo
ajudar.
Gus segura Tom, e Rush empurra Sebastian, gritando alguma coisa, com
o dedo em riste. Clara parece arrasada.
Fico ali parada, perto do bar. Estou meio tonta, além de confusa sobre
onde eu entro no meio disso tudo. Noto sangue na boca de Tom e sinto uma
vontade de protegê-lo.
Também me sinto triste por Clara, que parece dividida — acho que entre
o passado e o futuro.
Então fico triste por mim, porque estou na mesma.
Fico longe, esperando que a situação se disperse. Ouço gritos,
principalmente de Tom e Clara. Não consigo discernir as palavras, e minha
sensação é que não era mesmo para que eu ouvisse.
Clara está de olhos marejados.
O cara gato pega a mão dela e a afasta de lá.
Parece levar uma vida para Tom olhar ao redor do salão e se lembrar da
minha presença. A expressão dele murcha, e ele vem apressado na minha
direção com cara de arrependido.
— Desculpa — diz, balançando a cabeça.
Pego um guardanapo e seco o sangue da boca dele. Tom faz uma careta,
mas sua expressão se suaviza.
— Desculpa — repete, e não sei o motivo.
Não sei o que dizer, então balanço a cabeça e dou de ombros. Não sei o
que aconteceu. Não sei por que ele está se desculpando. Não sei por que se
desculpa comigo.
— Vamos embora, pode ser? — pergunto e ofereço minha mão.
Ele a pega, dá um beijo distraído no dorso e acena em despedida para os
amigos antes de irmos.
(— Ele beijou sua mão! — Gus faz com a boca dramaticamente,
apontando a própria mão.
— Cala a boca! — respondo apenas movimentando os lábios.)
Tom está de cara fechada quando entramos no carro.
— Direto pra minha casa, James — avisa ao motorista.
Então não estou indo pra casa? Tom fica olhando pela janela, e dá para
ver o que está sentindo. A cabeça dele é que nem uma bicicleta ergométrica
— pode até girar as rodas, mas não vai a lugar nenhum.
— Posso fazer alguma coisa pra ajudar? — acabo perguntando.
Tom me olha e suspira, e finalmente abre um sorrisinho.
— Não — diz, com um sorriso meio torto. — Nada.
Concordo com a cabeça, triste por ele, e sinto um desejo breve e fugaz de
beijá-lo, me perguntando se isso não o ajudaria a se sentir melhor.
Mas não beijo, porque sou covarde.
— Olha — digo, cutucando o braço dele. — Acho que seu amigo sabe da
gente.
Ele assente.
— É, o Gus? Você já me disse.
— Não — digo, balançando a cabeça. — O Rush.
— Rush? Jura? — pergunta, meio surpreso. — Como você sabe?
Faço biquinho antes de responder, mas decido ser honesta.
— Porque ele disse que, se eu não fosse namorada de mentira do melhor
amigo dele, ele estaria na minha…
Tom imediatamente tensiona o maxilar e aperta os olhos, mas um
sorrisinho ainda surge antes de ele rir.
— Claro que ele falou isso, filho da puta metido… — diz, balançando a
cabeça e rindo. — É, ele adoraria você. Você faz bem o tipo dele.
Ele parece um pouco irritado com a ideia, o que me deixa até feliz.
— Faço mesmo?
Tento conter um sorriso, sem muito sucesso.
Tom revira os olhos.
— Boca linda. Pernas compridas. Animada. Ridícula. Meio atrevida.
Minha expressão murcha um pouco.
— Desculpa, você está tentando ser escroto? — pergunto.
— Não. — Ele franze a testa e balança a cabeça. — Foi mal. Não. Você
só…
Ele me olha, pensativo, e suspira.
— Eu devia saber — conclui.
Eu olho para ele por alguns instantes.
— Tá com ciúme?
Ele hesita. Nos entreolhamos.
— Pois é. Para ser sincero, tô. — Ri. — Sei que é bem escroto, porque
passei a noite toda concentrado em outra mulher.
Ele me olha com um leve remorso.
— Ah — digo, com um sorriso irônico. — Então você estava ciente.
A expressão vai para remorso intenso.
— Desculpa.
Dou de ombros e finjo que não estou um pouquinho magoada.
— Foi pra isso que eu fui.
— Ainda assim, desculpa — repete ele, e eu faço que sim com a cabeça,
sorrio, e olho pela janela.
Tom continua a me observar. Sinto o seu olhar, então viro o rosto de
volta.
Ele faz uma expressão pensativa.
— Quer que eu arranje você com o Rush?
— Como assim? — pergunto, surpresa.
— Se você gostar dele… — Ele dá de ombros, antes de engolir em seco.
— Quer dizer… eu e você somos só… sabe. Tanto faz, né? Então, se estiver a
fim dele…
— Ele é mesmo bem gato — concordo. — Daquele jeito óbvio, sexy e
charmoso de playboy de Hollywood.
Tom solta uma risadinha.
— É, ser gato de um jeito óbvio é péssimo, né — replica ele e me olha.
Aperto os lábios um contra o outro, achando graça. Tom olha para a
janela.
— Sabe quem mais é gato de um jeito óbvio? — digo, querendo chamar a
atenção dele.
Ele me olha, levantando as sobrancelhas. Eu cutuco ele.
Tom ri um pouco e volta a assumir uma expressão séria.
— Quer que eu arranje? — insiste.
— Não, obrigada.
Ele pisca.
— Não? — pergunta, e eu balanço a cabeça. — Jura?
Reviro os olhos, com um suspiro.
— Onde eu arrumaria tempo para Rush Evans, tendo você e BJ?
Ele ri, mas acho que parece aliviado.
— Hoje foi difícil pra você? — pergunto.
— Foi. Eles estão mesmo juntos.
— Tom…
Eu toco o braço dele. Ele olha para minha mão e depois para os meus
olhos.
— Sinto muito — digo.
Ele balança a cabeça e dá de ombros.
— Não é como se ela pudesse ficar comigo, de qualquer jeito.
— Mesmo assim.
Ele assente e volta a olhar pela janela.
— Você está me levando pra sua casa de propósito? — pergunto depois
de um instante.
— Merda… — solta ele, negando, com uma expressão de desculpas. —
Não. Nem pensei… James, dá pra…
— Eu posso ir pra sua casa — interrompo.
Toda aquela bebida me deixou mais corajosa que o normal.
Ele se vira para mim, de olhos arregalados, e não diz nada.
— Se você quiser — acrescento, e ele concorda.
Paramos na frente daqueles prédios novos na rua Victoria, em
Westminster. Aqueles com projeto da Stiff + Trevillion, sabe quais são? Bem
angulares? De tijolo cinza?
Subimos sem nos tocar.
Ele abre a porta, ainda em silêncio, mas acho que só está triste. O
apartamento é uma cobertura de três quartos — um ótimo tamanho para
uma pessoa só.
O estilo é surpreendentemente minimalista. Muitos tons neutros. Um
pouco de palhinha. Toques de mármore.
— É aqui que você mora? — pergunto, surpresa.
— O que foi? — pergunta ele, me olhando. — Não gostou?
— Não, não… gostei. Só achei que… sei lá? — digo, dando de ombros. —
Você é o Tom England. Achei que talvez tivesse, tipo, um McDonald’s no
canto.
— Não sou o Riquinho.
— Um criado robô de última geração…
— Ele fica na casa de campo — brinca Tom.
Gesticulo para o apartamento.
— E aí, quantas visitas já vieram aqui?
— Tipo, pra jantar?
Ele faz uma cara confusa.
— Não, pra transar — digo, e ele ri. — Com quantas mulheres você já
transou?
— Aqui?
— Aqui — confirmo. — E em qualquer outro lugar?
Ele pensa a respeito.
— Aqui, a Erin e mais uma. Em outro lugar, foram três, além de você.
— Seis! — exclamo, incrédula. — Você só transou com seis pessoas?
Ele franze a testa, na defensiva.
— Você só transou com duas.
— Não — rebato, balançando a cabeça. — Sério, não acredito. Você é o
Tom England. E parece o Thor… — Ele ri. — Como é possível você só ter
transado com apenas seis mulheres?
Ele respira fundo e me serve uma bebida amarronzada e forte, de que não
gosto, mas beberico mesmo assim, porque quero sentir o calor que o álcool
oferece ao atingir meu estômago vazio.
— Tive uma namorada na escola, transei com ela. Conheci Erin na
faculdade, e ficamos juntos uns oito anos — comenta e dá de ombros. — Aí
me apaixonei pela esposa do meu irmão — explica, e minha boca se retorce,
escondendo um sorriso. — Tentei transar com algumas pessoas para
superar, e não funcionou. — Ele dá de ombros mais uma vez. — Aí… você.
— Aí eu — repito, com um sorrisinho.
— Por quê? — pergunta ele, me apontando o queixo. — Com quantas
mulheres o BJ já transou?
Engulo em seco.
— Ele não me conta.
A expressão de Tom fica hesitante.
— Mas acho que com certeza deve ser mais de cem — respondo.
Ele recua, surpreso.
— De duzentos pra cima?
Faço um gesto como se não fosse nada, mesmo que eu me sinta afogada
nas mulheres para as quais o perdi.
— Pelas minhas contas — digo e o olho rápido — Tento não contar.
— Porra — solta ele, com um suspiro. — Sinto muito, Parks.
Eu me aproximo e paro quando nossos pés se encostam. É mais perto do
que o necessário, mas é como eu quero estar.
— Você tá bem mesmo? — pergunto, olhando para ele.
Ele coloca meu cabelo atrás da orelha.
— Tô.
Faço biquinho, pensando por menos de um segundo antes de falar.
— Quer transar?
Com quantos martínis de limão se passa do limite?
— Ah — diz ele, um pouco surpreso. — Hum… talvez?
— Talvez? — repito, franzindo a testa.
Não passei dos limites na bebida, porque minha cara não está
formigando, sinto só o peito quente, a cabeça leve e o coração entorpecido o
bastante para talvez não pensar no quanto sinto saudade de BJ por meia
hora. Ele inclina a cabeça para mim e passa a mão no meu cabelo.
— Você bebeu, né?
— Só um pouquinho! — confirmo, e ele ri. — Nem estou bêbada.
— Jura? — pergunta ele, desconfiado.
— Alegrinha só.
— Alegrinha quanto? — Ri.
— Bastante — digo, levantando a camisa dele para dar uma olhada na sua
barriga. — Cada vez mais.
— Entendo — diz ele, pensativo. — Está com raiva do BJ?
— Não mais do que o normal.
Ele sorri.
— Ele transou com alguém nada a ver essa semana, e você está tentando
absorver isso transando comigo?
— Ah, com certeza transou — confirmo com um gesto enfático da cabeça
—, mas não tenho conhecimento definitivo desse caso.
Ele ri, bufando, e umedece os lábios.
— Vai sair de fininho no meio da madrugada pra correr atrás de ex?
Eu reviro os olhos.
— Vou fazer o possível para me segurar.
Ele semicerra os olhos, e me dá um olhadão.
— Isso é uma boa ideia?
Balanço a cabeça e dou de ombros.
— Sei lá. Pode ser uma péssima ideia…
Ele faz uma careta, pensativo.
— Mas provavelmente vai ser divertida…
— Provavelmente… — concordo.
QUARENTA E QUATRO

BJ

Jonah disse para eu dar um beijo nela. Não sei por que a sugestão me
pareceu tão absurda — não é como se eu não quisesse beijá-la o tempo todo,
como se nosso relacionamento até agora não fosse repleto de uma infinidade
de quase beijos. Talvez seja a permissão?
Alguém me dizendo para fazer isso, validando minha vontade de fazer
isso desde o início.
Passo uns dias ruminando a coisa.
Finjo que estou na dúvida, mas, na verdade, estou apenas juntando
coragem, porque sei que provavelmente vai ser o beijo mais importante da
minha vida.
Sei onde ela passa as sextas-feiras.
Ela gosta de fechar a semana com umas comprinhas na rua New Bond;
lógico que “inhas” é relativo. Pode variar de uma ou duas bolsas a comprar o
estoque inteiro da loja. Depende da semana, e provavelmente de mim — se
eu fui escroto, se estamos felizes…
Entro na Gucci — é a primeira loja que tento, e lá está ela, porque é
previsível. Paro perto do balcão, observando enquanto ela olha as araras.
Faço o possível para controlar a expressão e não parecer um otário
apaixonado demais. É difícil não sorrir, porém, porque ela está usando a
minha jaqueta preta. Da própria Gucci, que comprei tem um tempo. Foi ela
que escolheu. Tem detalhes vermelhos e azuis nos ombros, e eu estava
mesmo me perguntando onde tinha ido parar… Parece que encontrou um
propósito melhor, nos ombros da melhor garota que conheço.
Ela para diante do espelho, testando na frente do corpo uma calça jeans
azul de boca de sino e um cropped de estampa de cerejas. Ela nem está
vestindo essas peças, e eu já quero arrancá-las dela imediatamente, de tão
gata que ficou.
— Você nunca vai usar essa calça — digo, e ela se vira, arregalando os
olhos e corando assim que me vê.
Eu me aproximo, e ela se ajeita freneticamente, o que é uma besteira, já
que ela está uma loucura de gostosa.
— Mas compra o cropped — digo, passando o dedo sob a barra da roupa
e esfregando o tecido.
Não preciso estar tão perto dela, mas quero.
Ela se obriga a recuar. Parece agitada, e eu me esforço para não sorrir. Ela
joga o cabelo por cima do ombro, tentando se controlar.
— Então não gostou da calça? — pergunta, semicerrando os olhos para o
reflexo.
— Não, eu gostei, sim — digo. — Só que você não vai usar.
Ela vira a cabeça para mim.
— Vou, sim.
— Não vai.
— Vou! Você não me conhece — declara, de nariz empinado, e, mesmo
antes de acabar a frase, parece prestes a rir.
Ela não ri. É orgulhosa demais.
— Eu te conheço, Parks — replico e me aproximo mais, com o olhar mais
suave do que dou para qualquer outra pessoa.
Paro atrás dela.
Nossos olhares se cruzam no espelho, e ela engole em seco, nervosa.
Está agitada. O peito sobe e desce rápido.
— Veio dar sua passadinha semanal na Guxi? — pergunto.
Aceno para ela no espelho, e ela vira a cara rápido, franzindo a testa. Já
estou rindo.
— Já pedi várias vezes para você não pronunciar desse jeito… Alessandro
Michele também, por sinal — afirma, séria.
— Desculpa — peço, enfiando as mãos no bolso. — Cadê seu namorado?
Ela segue para uma arara diferente, pega meia dúzia de peças, entrega
para uma vendedora sem dizer nada e espera até não ter vendedores por
perto para falar.
— Ele está viajando, vai passar uns dias fora.
Parks inclina a cabeça ao ver a jaqueta que estou usando. Aperta os olhos.
— Jaqueta de flanela de algodão, quadriculada e larga?
Aponto o queixo para ela.
— De quem?
— Balenciaga — diz, sem me olhar. — E essa calça é da
TAKAHIROMIYASHITATheSoloist.
Rio um pouco e balanço a cabeça.
Ela se vira para mim de novo, semicerrando os olhos.
— Soube que você anda ocupado.
Hesito, surpreso.
— Soube, é?
Ela me observa.
— Muitas garotas…
Franzo a testa.
— Quem te contou isso?
Parks dá de ombros, distraída, e de repente fecha a cortina de veludo
pesada do provador. De tanta força que fez, deve ter machucado o braço. Ela
surge um minuto depois, usando um vestidinho curto azul e dourado. Não é
a melhor roupa que ela já usou, mas ainda assim a pegaria na mesma hora.
Engulo em seco e cruzo os braços.
— E você, anda ocupada?
Ela levanta as sobrancelhas.
— Menos do que você.
Franzo a testa um pouco.
— Mas um pouco ocupada?
Ela arregala um pouco os olhos e fica vermelha.
— Sim.
Eu a olho por alguns segundos, sem piscar, então grito, bem alto:
— Caralho!
Ela leva um susto.
— Foi mal… — digo, olhando para a vendedora, e balanço a cabeça. —
Foi mal — repito, me voltando para Parks, que está de olhos arregalados,
assustada. — Foi mal… mas caralho.
O lábio inferior dela está no limite. Ainda não está tremendo
completamente, mas está começando.
— Desculpa — pede ela, com a voz fraca.
Passo as mãos no cabelo e balanço a cabeça.
— Porra, não… é seu… Quer dizer, eu…
— É — diz ela, franzindo a testa, na defensiva. — Você…
— Você está acabando comigo, Parks — interrompo.
— Estou? — pergunta, a expressão carregada.
— Um pouco — concordo.
— Só um pouco? — retruca, com um leve sorriso. — Então não é tão
grave, né?
Rio de leve.
— Preferiria se você não estivesse acabando nada comigo, na verdade…
Nossos olhares se cruzam. Ela é a corça, e eu, o lobo, e há um caminhão
gigantesco vindo bem na nossa direção, no meio de uma noite escura.
Ela engole em seco.
— Eu também, na verdade — diz e fecha a cortina.
Suspiro profundamente, me recosto e bato duas vezes na parede para
chamar a atenção dela.
— Ei.
— O que foi? — pergunta ela, e, mesmo sem ver seu rosto, sei que está
impaciente.
— Posso entrar?
— Como assim? — diz, nervosa.
— Quero entrar — insisto.
— Por quê? — pergunta, tensa.
Agito a cabeça, tentando pensar em uma boa desculpa.
— Quero ver como você fica nessas roupas — minto.
— É… não! — gagueja.
— Por quê? — pergunto, dando de ombros, mesmo que ela não veja. —
Já vi você sem roupa.
— Achei que você quisesse me ver de roupa.
— Ah. — Rio. — Tá, era mentira.
— Não quer me ver nessas roupas? — questiona, resmungando.
— Quero ver você… sem… essas roupas.
— Bom, não dá — retruca Parks, bufando.
— Nada que eu não tenha visto antes…
— Mas era diferente!
— Por quê? — pergunto, revirando os olhos. — Além do mais, não dá
para ter uma conversa de verdade pela cortina…
— Estamos conversando agora!
Pausa. É a hora da verdade. Tenho que proceder com cautela, mas tenho
que ir.
— Parks, você não quer mesmo que eu entre ou está fingindo que não
quer porque gosta de se fazer de difícil, porque faz você sentir que tem
controle sobre mim e sobre a gente e sei lá que porra que nós somos, mas, na
verdade, ficaria feliz pra caralho se eu entrasse aí e te agarrasse na parede?
Uma pausa. Demorada.
Cacete.
Até que, do outro lado da cortina… vem uma voz baixa e triste.
— A segunda opção.
Entro no provador, e ainda resta um espaço entre nós. Eu a observo, mais
tímido do que gostaria por alguns segundos. Os olhos dela parecem janelas
enormes num dia de chuva; ela nitidamente está assustada. Eu também
estou.
Minha respiração está em frangalhos; vejo meu peito se mexer. E parece
que tem um animal cavando meu estômago.
Ela não para de piscar, mordiscando o lábio, algo que faz quando está
com medo, mas também quando me ama mais do que o normal.
Meu olhar percorre o corpo dela, e ela fica parada, me esperando.
Provavelmente nunca fiquei tão nervoso na vida. Balanço a cabeça.
— Foda-se.
Então eu avanço. Passo a mão no cabelo dela e, com a outra, a puxo e a
levanto do chão até minha cintura, antes de pressioná-la contra a parede. Ela
ri ao me olhar, fitando meus olhos e minha boca.
Abro um sorriso torto e não acredito que estou agarrado nela num
provador da Gucci.
Ela me olha, exasperada.
— Vai logo…
— Tá, tá — digo, revirando os olhos. — Vou quando quiser.
— E agora não quer? — pergunta ela, piscando. — Está falando sério?
Perdeu de vez…
— Parks — interrompo.
— Hã? — faz ela, com a testa franzida.
— Cala a boca — digo, e a coisa fica séria.
Desço a mão para o rosto dela, a puxo para mais perto, e nossas bocas se
tocam.
Então a beijo, começando devagar — devagar, como se bebesse um
uísque dos bons, sentindo na boca, saboreando por alguns segundos antes
de tomar mais um gole. Eu me deleito no gosto do meu antigo amor, do meu
eterno amor. Devagar, devagar, e finalmente mais. Beijo com mais força, e
ela perde o fôlego, e eu lembro como eu amava fazer isso acontecer, então
continuo.
É que nem uma torneira quebrada, com a água gotejando até jorrar com
força total — mas sempre fomos assim. Ela suspira, e estou tirando o vestido
dela. Pega minha camisa e começa a desabotoar, os dedos distraídos.
Eu a coloco no chão, e ela puxa minha camisa para cima, para tirá-la.
Somos bons nisso. Devem ser os anos de prática. E, mesmo que faça anos
que a gente não pratique, não parecemos ter perdido o hábito — só o tempo.
Eu a abraço, a empurro contra a parede, e ela desabotoa minha calça com
dificuldade. Assim que ela puxa o zíper e está prestes a enfiar a mão…
Uma batida na porta.
Abaixo a cabeça, derrotado, em cima de Parks, mas continuo a abraçá-la,
porque ainda não terminei.
— Hum — diz Magnolia, pigarreando. — Pois não?
— Oi, hã — começa a vendedora, com uma tosse nervosa. — Acho que…
hum… o que a senhora está fazendo aí é, acho, possivelmente proibido pelas
regras da empresa.
Estou a um segundo de cair na gargalhada, e Parks repara, cobrindo
minha boca com a mão para me calar.
— Hum, não estou fazendo nada — afirma Magnolia, arrogante.
— Sei que tem um cara aí — devolve a garota, um pouco mais confiante.
— Não — cantarola Parks, nada convincente. — Não tem…
— Eu vi ele entrar — insiste a vendedora.
Eu rio, sem querer.
Parks me olha feio e balança a cabeça.
— Era eu! Tá falando que eu tenho cara de homem?
— Eu consigo escutar ele! — rebate a outra, nervosa.
Eu me abaixo e beijo Parks com vontade, sentindo o corpinho tenso e
nervoso dela relaxar. O controle que tenho sobre ela sempre foi motivo de
amor e medo, tudo ao mesmo tempo. Mas acho que é esse o efeito geral que
ela tem sobre mim.
— Um segundo — murmuro para Parks, vou até a cortina e coloco a
cabeça para fora. — Olá — digo para a vendedora.
Abro para ela o que Parks chama de “sorriso mágico”. Mulheres fazem
coisas bem aleatórias quando eu abro o sorriso mágico. Uma vez, fiz uma
garota desmaiar.
— Oi — diz ela, tímida, corando de imediato.
— Só pra saber, por favor — começo, passando a mão pelo cabelo. —
Qual, exatamente, é a regra da empresa? É que só pode entrar um cliente por
provador? Ou que sexo é proibido no provador? Porque tem bastante
margem entre as duas coisas, se é que você me entende… Nesse caso, posso
passar a mão nela no provador? Podemos nos masturbar no provador? Qual
é o limite aqui?
Nem preciso olhar para Parks para saber que ela está vermelha — não há
dúvida de que sim —, mas a vendedora também está e acaba finalmente
conseguindo forçar um sorriso de desculpas.
— Infelizmente, a regra é que permitimos apenas um cliente por
provador.
— Merda — digo, franzindo a testa. — Que azar — acrescento, antes de
me virar para Parks e apontar com a cabeça. — Vou esperar aqui fora.
Ela toca a boca e assente, parecendo refletir enquanto pisca.
Fico sentado na frente do provador, a esperando, com um sorriso
enorme. Nem sei o que isso quer dizer. Não sei o que nada quer dizer.
Só sei que beijá-la foi que nem tomar um banho depois de um jogo de
rúgbi especialmente brutal.
Minha mãe me levava de carro para casa, e eu estava sempre tão acabado,
tão enlameado, tão dolorido e ferrado que o banho era a melhor coisa do
mundo.
Parecia que eu não tomava banho fazia anos.
Às vezes, Parks entrava no chuveiro comigo. Isso conseguia tornar tudo
ainda melhor.
Ao beijá-la agora, senti a lama escorrer.
Ela surge dez minutos depois, com a pilha de roupas que decidiu levar.
Pego as peças da mão dela e me encaminho para o caixa.
— Não precisa pagar — me diz.
Eu a olho e deixo as roupas no balcão.
— Como está o seu dia, tudo bem? — pergunto à vendedora.
Ela sorri, olhando de mim para Parks.
— Provavelmente pior do que o seu.
— Haha. Bom — digo, levantando uma sobrancelha. — Não se preocupe,
ainda tem tempo. Quem sabe um ex não aparece para dar uns beijos em
você no provador.
A vendedora cora e ri. Pego as sacolas, e Parks sai atrás de mim.
Ela para na rua, me encarando, de olhos arregalados e mordendo o lábio,
do jeito que eu gostaria de morder.
— Uma pena a gente ter sido interrompido.
Concordo com uma risada.
— Pois é.
Deixo as sacolas na limusine dela.
Ela aponta para as compras.
— Obrigada.
Abano a mão no ar, e ela para perto de mim. Nem é de propósito que a
abraço. Só acontece, como se abraçá-la fosse a coisa mais natural do mundo.
— Quer vir pra casa comigo agora? — pergunta ela, com a voz fraca.
— Na verdade, quero, sim — concordo. — Quero. Demais. Mas você
tem…
— Um Tom — responde ela, assentindo.
Abro um sorriso tenso.
— Nem sei o que isso quer dizer.
Ela solta uma gargalhada cansada, mas parece um pouco triste e confusa.
— Nem eu.
Seguro o rosto dela e encosto a sua boca na minha, beijando-a duas
vezes.
— Descobre e depois me conta — peço.
E então vou embora.

21:42

Oi
Oi

Tudo bem?

Tudo, e você?

Tudo.

O tempo tá bom por aí?

Tá ótimo.

E as abelhas?

Ah, excelentes.

Ah, é?

É. Acho que na real elas nunca vão entrar em extinção. Não sei
que papo é esse do Attenborough…

Nunca, é?
QUARENTA E CINCO

Magnolia

Entro a passos lentos, olhando irritada tanto para meu pai quanto para
Marsaili antes de desabar sem elegância na cadeira ao lado da minha irmã,
de forma dramática. Marsaili revira os olhos.
— Que roupa é essa? — pergunta minha irmã, franzindo a testa para meu
vestido de tweed metálico com monograma e cinto V clássico da Louis
Vuitton.
— Como assim? — pergunto, olhando para baixo. — Roupa bonita? Você
deveria experimentar um dia.
Ela me olha com arrogância.
— Foi você quem escolheu a minha.
Solto um palavrão baixinho, porque ela está certa, fui eu mesma. E ela
está absolutamente fantástica, de short de tricô listrado arco-íris da The
Elder Statesman com o suéter azul-marinho de amarrar da Michael Kors
Collection. Porém, vi que ela escolheu os próprios sapatos. Umas alpargatas
tristes, sem grife. Alpargatas! Em Londres! No outono! Nossa Senhora.
— Jantar com as minhas meninas — diz meu pai, e eu me ajeito à mesa
com relutância.
Fui obrigada a participar desse jantar com Bridget, meu pai e a má-drasta
— na nossa casa, lógico. Aparentemente, não estão dispostos a correr o risco
de eu gritar com eles em público, pois são delicadinhos. O jantar obviamente
foi comprado de um serviço de bufê, porque Marsaili não levanta nem mais
um dedo sequer para trabalhar na casa, de tão preguiçosa.
Será que é por isso que ela foi ficando descuidada com meu café da
manhã ao longo dos anos?
A obrigação ocorreu porque meu pai disse que não pagaria meu cartão
de crédito este mês se eu não jantasse com eles. Reforcei que a obrigação era
apenas a minha presença, e ele disse que sim, então, primeiro, ele é um
idiota, e, segundo, claro que passei o acordo pelas mãos dos meus advogados
e agora é um contrato amarradinho.
— Obrigada por ter vindo jantar com a gente, Magnolia — diz meu pai,
sorrindo.
— Hum — digo. — Ontem comprei uma prancha de surfe com
hidrofólio elétrico.
— Tá — responde meu pai.
— Por quê? — pergunta minha irmã ao mesmo tempo, franzindo a testa.
— Custou umas dez mil libras — acrescento, bebendo água.
— Claro que custou — diz ele, com um suspiro.
— Você nem surfa — retruca Marsaili.
— Mas posso decidir surfar.
— Onde? — pergunta Bridget, com desdém. — Vai pegar onda no
Tâmisa?
Eu a ignoro.
— Como vão as coisas com Tom?
— Tudo bem — respondo, empurrando pelo prato as cenouras refogadas
na manteiga com alho e mel. — Ele estava viajando esses últimos cinco dias.
Volta amanhã.
— Aconteceu alguma coisa interessante enquanto ele estava fora? —
pergunta minha irmã, com certa insistência.
Olho para ela com irritação.
— Não.
— Nadica de nada?
Faço uma careta.
— Não.
Tomo um gole de vinho.
— Você não chegou perto de transar com alguém no provador da Gucci?
Engasgo.
— Quem disse isso? — pergunto.
(— Com quem você quase transou no provador da Gucci? — pergunta
Marsaili.)
— Eu almocei com o BJ — responde minha irmã, dando de ombros.
— Quando? — pergunto, surpresa.
(— BJ? — reclama Marsaili. — No provador?
— Acho que estou ficando com enxaqueca — avisa meu pai, com a mão
na cabeça.)
— Costuma ser às quartas — informa minha irmã, pegando um pedaço
de frango.
Recuo, surpresa.
— Costuma ser?
Ela murmura em concordância, de boca cheia.
— Vocês conversam sobre o que nesses almoços? — pergunto, franzindo
a testa.
— Você — diz, apontando para mim. — Eles — acrescenta, apontando
para meu pai e Mars. — Ele… vocês dois. Você e Tom. Jonah e aquela tal de
Taura…
(— Jonah está namorando a Taura Sax? — pergunta Marsaili, de olhos
arregalados, pois sabe que foi com ela que BJ me traiu.)
Olho para Mars de um jeito irritado.
— Para de ser fofoqueira, Marsaili.
Marsaili me olha, farta e exasperada, e meu pai se serve de uma taça cheia
de vinho.
— Por que você não me contou? — pergunta Bridget, um tanto magoada.
Dou de ombros.
— É complicado.
— É o BJ — corrige ela.
Marsaili olha para nós duas, nem um pouco satisfeita.
Já eu? Estou nas nuvens por BJ estragar esse jantar em família sem nem
mesmo precisar estar presente.
— O quanto vocês chegaram perto de transar? — bufa Marsaili.
— Não muito — respondo, revirando os olhos.
(— Mão você sabe onde — cochicha minha irmã, alto o suficiente para a
mesa inteira escutar.)
— Ah, puta merda — exclama meu pai, piscando duas vezes.
Ninguém diz nada, então olho para a traidora residente.
— Marsaili — digo, erguendo dramaticamente as sobrancelhas, e aponto
a cabeça para meu pai —, acho que ele está falando com você.
Ao ouvir isso, Marsaili começa a rir, o que quase me faz rir junto, mas me
controlo antes de me deixar levar.
Marsaili me olha por alguns segundos.
— Me ajuda com uma coisa na cozinha?
— De jeito nenhum — nego, balançando a cabeça.
Bridget me dá um chute por baixo da mesa.
— Ai, tá bom — cedo, revirando os olhos, e vou atrás dela, arrastando os
pés.
Marsaili cruza os braços e me olha.
— Você vai mesmo me julgar pelo caso com seu pai, quando você está
traindo o Tom?
Eu olho para ela, irritada com suas suposições.
— Tom e eu temos um acordo.
— Ah, vocês têm um acordo? — diz ela, nada impressionada. — Muito
moderno da parte de vocês. Vamos lá, me explica que acordo é esse.
— Claro. Em resumo, ele está apaixonado por alguém que ele não pode
ter, e eu estou apaixonada por alguém que falaram para mim que me
magoaria, então não posso ficar com ele, e eu deveria ter ficado, e agora está
tudo uma bagunça do cacete.
— Porque você também transou com Tom.
Uma afirmação, não uma pergunta.
— E quem te contou isso? — pergunto, jogando as mãos para o alto e me
recostando na bancada.
Ela suspira.
— Adivinhei.
— Ah.
— Você nunca transou com mais ninguém.
— Eu sei.
Ela me olha.
— Nem com o Christian.
— Eu sei.
— Não gostei muito quando você namorou ele…
— Eu sei. — Reviro os olhos.
— Ele sendo mafioso, e tal.
— Só um peixe pequeno — replico, dando de ombros.
Mars ri e me olha com ar maternal.
— Você está se cuidando?
Bufo.
— E você, está?
Ela ri outra vez.
— Senti saudades — revela.
— Deve ter sentido mesmo — concordo. — Minha personalidade é
ótima.
Ela revira os olhos de um jeito exagerado.
— Pelo visto, na minha ausência, o seu ego saiu completamente do
controle.
— Não completamente — digo, balançando a cabeça. — A vida me deu
umas sacudidas… Semana passada, quebrei uma unha. Nas últimas duas
semanas, o barista usou o leite errado pro meu café três vezes. Minha irmã
aparentemente tem almoços marcados com meu ex-namorado. Eu estava
com o dente sujo de gergelim quando esbarrei no William na Harrods…
— Que William?
— O príncipe.
Ela ri.
— Ah, entendi… Esse com certeza é o seu pior pesadelo.
— Vi BJ transar com outra pessoa.
— BJ transou com outra pessoa?
Franzo a testa.
— Ele vive transando com outras pessoas.
Ela massageia as têmporas e parece prestes a dizer algo, mas muda de
ideia, remexendo na pulseira.
— O que você quis dizer quando falou que ele quase tinha morrido?
Eu a encaro por alguns segundos, me perguntando como me safar dessa
sem revelar nada, ou se é mesmo o certo a se fazer.
Suspiro.
— Ele teve uma overdose uma vez.
Ela arfa de choque.
— Logo depois que eu e Reid começamos a… namorar.
Se é que podemos considerar aquilo um namoro.
— Magnolia — diz ela, balançando a cabeça —, eu não fazia ideia.
— Ninguém sabe.
Ela assente, solene.
— Ele ainda usa drogas?
Balanço a cabeça com veemência.
— Ele me prometeu que nunca mais usaria.
Ela fica aliviada.
— E agora? — pergunta.
Dou de ombros, sem saber o que dizer.
— Não faço ideia.
00:51

Vanna Ripley

Oi, BJ

Oi

Saudades

Vou passar uns dias em Londres…

Ah, é? A trabalho?

E lazer.

Haha

Vem me ver…

Não posso

Como assim?

Não posso.

Não pode?

Desculpa bjs
QUARENTA E SEIS

Magnolia

— Ei — diz Tom, parado à porta do meu quarto.


Ele abre um sorrisinho e entra.
— Oi.
Levanto para abraçá-lo e me aconchego no seu suéter da SSAM de
algodão e lã com textura.
Fiquei querendo que ele voltasse desde o instante em que saiu para viajar.
Em parte porque agora sinto saudades, e em parte porque sei que tenho
que contar sobre BJ, o que me deixa meio nervosa.
Tom me entrega uma sacola de presentes da La Mer, transbordando de
coisas, e eu olho para ele, maravilhada.
— Dei uma fuçada no seu banheiro antes de viajar — explica.
Viro o conteúdo na cama.
— Como foi a viagem? — pergunto, olhando o frasco de Crème de la
Mer.
— Boa — responde. — Um pouco mais longa do que eu gostaria, mas
sempre curto Nova York.
— Também curto Nova York — concordo. — Se eu não morasse em
Londres, iria para lá.
— Londres sem Magnolia Parks? — brinca ele, sorrindo. — Não seria
Londres.
Ele se senta na cama e se recosta na cabeceira.
Não dormimos juntos do jeito que eu durmo com BJ.
Dormia? Durmo? Dormirei de novo?
BJ e eu também não andamos dormindo juntos, de qualquer forma, mas,
se fosse o caso, ele nunca se sentaria na minha cama antes de tirar os
sapatos.
BJ nunca faria isso. Mas faria várias outras coisas.
Tom pega o ursinho Paddington que tenho desde pequena.
Fico um pouco abalada com isso, porque a única pessoa que já deixei
mexer no Paddington é o Bê, e agora Tom está mexendo, o que talvez queira
dizer alguma coisa.
— Me diverti com você na outra noite — comenta ele, olhando o urso.
Mordo o lábio. Estou nervosa. Por que estou nervosa?
— Eu também.
Pego o Paddington das suas mãos e deixo na mesa de cabeceira. Olho
para Tom e contenho a vontade de passar a mão no cabelo loiro-escuro dele.
— E o rolo com a Clara, está se sentindo melhor? — pergunto.
Ele coça a barba por fazer e assente.
— Mais ou menos — diz, a cabeça em outro lugar, antes de olhar na
minha direção. — Nunca poderia rolar… eu sei. Não quis… sabe? É só
que… — ele deixa a frase no ar.
— Sei — concordo.
— É difícil — solta, dando de ombros. — Não só por mim, mas pelo
Sam… estou arrasado, mas…
Ele dá de ombros de novo. Parece que talvez queira deixar o assunto de
lado? Que não quer sentir agora o peso de todas aquelas preocupações.
Eu fico de joelhos na cama.
Ele abre um sorriso cansado, e sei que é o sorriso de quando está
pensando muito no irmão.
— O que você fez enquanto eu estava viajando?
Umedeço o lábio e respiro fundo.
— Hum — suspiro, e vejo que Tom se prepara. — Bê e eu nos beijamos
— revelo.
— Ah, nossa — diz, recuando e parecendo atônito. — Uau. Ok.
Ele assente e me olha, a expressão tensa.
— Fico feliz por você.
Minha expressão murcha.
— Fica?
Quase não quero que fique.
Tom ri um pouco.
— Não, na verdade, não.
Ele ri mais uma vez, e eu faço o mesmo. Sinto minha testa se franzir e
meu peito ficar apertado. E odeio a expressão que Tom está fazendo, mesmo
que não seja a sua intenção. É meio triste, meio perdida, meio solitária.
Ele suspira.
— Então provavelmente quer dizer que é o fim pra gente, né?
Torço a boca, e dou meio de ombros.
— Acho que sim?
Ele assente rapidamente e fecha a cara.
— Merda.
— O que foi?
Mordo meu lábio.
— Sei lá… — diz Tom, balançando a cabeça, e passa a mão no cabelo. —
Então estamos encerrando mesmo por aqui?
Suspiro, com as mãos no rosto.
— Não sei?
Ele pisca, surpreso.
— Não sabe?
Fico em silêncio, apenas franzindo a testa.
Ele joga as pernas para fora da cama e se levanta, coçando o pescoço.
— Você está com o BJ?
Eu fico de pé, mas me sinto pequena.
— Não sei.
— Quer estar?
Franzo ainda mais a testa.
— Acho que sim, mas…
— Mas o quê? — pergunta, rápido, parecendo muito tenso.
Eu olho para ele, que ergue as sobrancelhas.
— Vai me fazer dizer? — pergunto, piscando.
Ele faz que sim, decidido.
— Sim, acho que você precisa dizer…
— Por quê? — pergunto. — Porra, foi ideia sua.
— Ideia minha?
Ele aponta para si mesmo, arregalando os olhos.
— Foi literalmente ideia sua — grito. — No bar. Depois da festa. Na
esquina. Foi ideia…
Então ele segura meu rosto e me beija, e eu paro de falar. Eu teria caído se
ele não estivesse me segurando.
— Você ainda não falou — insiste Tom, a boca junto à minha.
Eu o beijo mais uma vez e me afasto.
Ele firma meus pés no chão, e eu nem tinha notado que havia sido
erguida no ar.
— Eu gosto de você — confesso, com um aceno breve de cabeça, e a
firmeza das palavras parece uma agressão a BJ.
Ele sorri para mim.
— Eu também gosto de você.
Cubro o rosto com as mãos.
— Cacete.
Ele me solta e se abaixa até estarmos na mesma altura.
— Eu não vou desistir — diz. — Só pra você saber.
Em seguida, me dá mais um beijo rápido e sai.
QUARENTA E SETE

BJ

Jonah está inaugurando uma boate hoje, e a galera toda vai.


Vou à casa de Parks buscá-la, porque é o que eu faria de qualquer forma,
ainda mais agora que nos pegamos na Gucci.
Fiquei meio noiado por ela não ter me ligado ainda para fazer juras de
amor eterno, mas acho que essas coisas demoram. Ela ainda me quer, isso
deu pra saber pelo beijo, pelas mãos, pelo toque.
Entro no quarto dela.
— Parks? — chamo, o cômodo vazio.
— Aqui — responde ela, do banheiro.
Ela me olha pelo espelho, e seu olhar se ilumina. Entro atrás dela, a
abraço pela cintura e pressiono meu nariz contra a nuca dela. Ela permite
por um segundo antes de se virar.
— Gostou do vestido?
Curto. De um ombro só. De bolinhas.
Faço que sim com o maior comedimento possível, fingindo que não
adoro vê-la de bolinhas, do mesmo jeito que adoro vê-la de qualquer
maneira.
— Vi na Saint Laurent outro dia — digo. — Ia comprar para você.
Ela puxa o colarinho da minha camisa.
— Amari, gola aberta, seda estampada.
— Tem passarinhos — digo, bobo, e ela sorri.
Ela passa o braço ao redor do meu pescoço, e mal consigo acreditar que
estou aqui, no banheiro dela, abraçado com ela desse jeito — estou
acordado, ela está sóbria, e está dando tudo certo. Eu me abaixo para beijá-la
— é lento e cauteloso, e ainda estou chocado de estar beijando Magnolia
quando ela diz:
— Podemos conversar sobre uma coisa?
Franzo a testa antes de me afastar, mas não a solto.
Nunca a solto.
Olho para ela, de testa e sobrancelhas franzidas que nem um coelhinho
de desenho animado. Ela nem precisa dizer. Sei o que vai ser antes mesmo
das palavras.
— Você gosta dele.
A pior coisa imaginável acontece a seguir. Ela não diz nada. Acho que
parte de mim esperava alguma reação. Negação, recusa, raiva… ofensa. Mas
não vejo nada disso, o que provavelmente é pior do que ela apenas gostar
dele.
Passo as mãos no cabelo e solto um longo suspiro.
— Merda.
Ela segura a minha cintura.
— Desculpa…
Cubro a mão dela com a minha, sem nem pensar, e balanço a cabeça.
— Não, eu… É o Tom England — digo, dando de ombros. — Eu entendo.
Você sempre foi a fim dele…
— Não era a fim de verdade — replica ela, o que não ajuda.
— Olha, se ele não estivesse tentando roubar você de mim, eu
provavelmente acabaria querendo dar pra ele também — brinco, me
forçando a rir, porque não sei mais o que dizer. — Então você escolheu ele?
— pergunto, como se não fosse o fim do mundo.
É aí que a expressão dela fica hesitante.
— Não.
— Então o que vai rolar?
Balanço levemente a cabeça, querendo uma resposta, e ela se desvencilha
de mim, triste e aflita.
— Não sei!
Eu a olho com irritação.
— Assim, não me pede pra escolher…
— Não pedi — dispara, como se eu a tivesse magoado. — Não ia pedir.
Ela abaixa a cabeça. Está triste. Merda. Odeio vê-la assim. Ela poderia ter
arrancado meu braço que, se ficasse meio triste, eu ofereceria o outro para o
caso de isso ajudar a alegrá-la.
— O que você quer de mim, Parks?
Ela dá de ombros, desamparada e exausta.
— Uma máquina do tempo?
— O que você quer que eu posso te dar? — pergunto, firme.
Ela pega a minha mão e a segura. Brinca com meus dedos, roçando nos
dela.
É um ato de recalibração entre nós — o toque sempre foi assim pra gente.
Até na Idade das Trevas, quando a gente estava fazendo merda e se
magoando, até aí a gente dava um jeito de se tocar, de voltar à essência do
que nós somos.
Não sei qual é a essência do que nós somos, por sinal.
Sei que parece romântico pra porra. Mas é mais que isso. E pior, também.
O problema comigo e com Parks é que acho que a gente ama um ao outro
mais do que a si próprio.
De novo, pode até parecer romântico, mas não é.
Porque, se ela se amasse mais do que me ama, teria se mandado já tem
muito tempo. Não mereço as oportunidades que ela tenta me dar.
E, se eu me amasse mais do que a amo, teria cortado os laços entre nós
antes que ela começasse a usá-los para me enforcar. Se eu me amasse mais,
teria me permitido ir para longe, para as sombras, para longe da luz dela,
mas não permiti, e não permitiria, e não permitirei, porque, quando a
questão é ela, não tenho o menor instinto de preservação. Vou morrer nos
braços dela, ou na porta tentando chegar aos seus braços, e não estou nem
aí.
Beijo a mão dela.
— Parks, o que eu tô fazendo de errado?
Ela coloca uma das mãos no meu rosto e suspira.
— Com você… não sei. A sensação de que eu não posso confiar em você
me atormenta em todos os momentos. Estou sempre me sentindo assim —
confessa, balançando a cabeça. — Fico com essa sensação o tempo todo.
Merda.
Suspiro.
— E nele você confia.
Ela confirma com a cabeça.
Dou de ombros, e parece que estou jogando a toalha. Não estou. A
verdade é que…
— Ele é confiável — afirmo.
— E você, é? — pergunta, piscando, cheia de esperança.
— Nós dois nascemos um pro outro…
Ela balança a cabeça.
— Não foi isso que eu perguntei.
— E eu vou estar sempre aqui…
Os olhos dela ficam marejados.
— Também não foi isso que eu perguntei.
Abaixo a cabeça e suspiro. Ela se volta de novo para o espelho e fica na
defensiva.
Ajeita o cabelo atrás das orelhas, retoca o rosto perfeito que não precisa
de retoque.
Eu a viro de volta e procuro uma segunda opção no seu rosto, qualquer
coisa além da porta em que ela quer que eu entre para ficarmos juntos. Sei o
que ela acha que é necessário para sentir que pode confiar em mim, mas está
errada.
— Me beija — peço.
Ela franze um pouco a testa, mas é visível que isso a abala.
— Como assim?
— Me beija — repito, dando de ombros. — Você vai se sentir melhor.
Surge um leve sorriso na boca de Parks.
— Vou, é?
— Vai, sim — confirmo. — Fala sério — insisto, cutucando as costelas
dela. — É o que a gente fazia quando brigávamos antes de sair…
Ela balança a cabeça.
— Não é, não. A gente se encarava.
— Encarar, beijar… Pode me encarar e ver se isso não vai acabar em
beijo.
Ela fica na ponta dos pés e beija minha bochecha. Viro o rosto para
encontrar sua boca, e ela sorri. Beijo a bochecha dela, o pescoço, e a levanto
do chão. Ela se remexe e se debate nos meus braços enquanto cheiro o seu
pescoço, porque ela sente cócegas…
Tudo que aconteceu antes disso não passa de uma soneca no despertador
do celular.
Logo vai tocar de novo, mas temos um tempinho.
— Mais uma coisa — digo, abafado pelo pescoço dela.
Ela se acalma nos meus braços.
— O que foi?
— Acho que a Taura vai à festa hoje.
Ela recua, e eu sem querer a solto.
Ela me empurra.
— Tá falando sério?
Jogo a cabeça para trás, já exausto.
— Parks, não foi com ela…
— Então com quem…
— Magnolia — digo, rangendo os dentes. — Dá pra gente parar com
isso?
Ela me olha com raiva, e eu balanço a cabeça.
— Me dá uma semana — imploro. — Só uma semana ou, porra, sei lá,
um mês, pra eu poder aproveitar pra te beijar sempre que eu quiser, antes de
a gente voltar a essa merda de acabar com o que a gente tem.
Ela engole em seco, dando de ombros com delicadeza.
— Ok.
— Ok? — pergunto, surpreso. — Jura?
— Juro — confirma, cruzando os braços. — Mas eu gosto mais do Tom.
Sorrio para ela, porque ela é uma boba, e seguro sua mão, porque ela
também é tudo.
— Você ainda vai?
Ela pensa no assunto.
— Promete que não foi com ela?
Faço que sim.
Ela pega minha mão e leva ao peito.
— Jura — diz. — Por mim. Jura pelo meu coração, que está na sua mão,
que você não me traiu com a Taura Sax.
Confirmo com a cabeça de novo e a encaro.
— Eu juro.
— Ok — diz ela, assentindo.
— Ok?
— Mas você transou com ela — acrescenta, sabe-se lá por quê.
— Sim.
Ela franze a testa.
— Não é minha informação preferida.
— Não. — Rio. — Imagino que não…
Eu a puxo em direção à porta e digo:
— Vem, vamos nos atrasar.

* * *

Nos atrasamos… Ainda mais porque pedi a Simon para pegar o caminho
mais longo, mais tempo para poder beijá-la no carro. Entramos de fininho
pelos fundos da boate, porque Parks quer evitar os urubus na frente. Eu a
abraço e a conduzo até onde Jonah está nos esperando, na área VIP. Sinto
uma onda de euforia por estar assim com ela em público.
Avisto meu amigo e o cumprimento.
— O lugar tá foda, cara. Mandou bem…
Ele me ignora.
— Parks! — exclama Jo. — Tá lindo esse seu batom… na cara do BJ.
Ele mal consegue terminar a frase antes de gargalhar.
Magnolia revira os olhos e vai abraçar todos os nossos amigos, ignorando
Taura de propósito, para quem eu dirijo um sorriso de consolação.
Taura está sentada com um amigo do Jonah, mas tenho quase certeza de
que ela veio com Jo, porque Henry não está. Meio estranho, né? Não quero
perguntar, porque acho que essa parada vai dar merda em dois segundos,
então peço uma rodada de shots pra todo mundo relaxar.
Já chegaram algumas celebridades, e Christian vem mais tarde, com os
Haites. E com o Hen também, talvez?
O clima da boate é bem maneiro. Parece uma mistura da Mansão Playboy
e do Viper Room nos anos 1990.
Sei que boates não são a parada principal do Jonah, mas mesmo assim ele
leva jeito pro negócio.
Parks passa a noite do meu lado, olhando de cara feia pra Taurinha e
segurando minha mão como se, caso soltasse, eu fosse sair andando e me
perder — acho que é assim que ela se sente.
Entendo. É como me sinto com ela também. A gente sai por aí, dá a volta,
se reencontra. Será que o Tom vai mudar isso?
Estou batendo papo com Jo, que tenta me convencer de que não está
caidinho pela Taura e lista todas as mulheres com quem transou nesse mês,
mas eu reviro os olhos para ele e indico Parks com a cabeça, tentando dizer,
sem precisar de palavras, que isso não significa porra nenhuma, porque eu
sou apaixonado por ela desde os sete anos, e ainda assim já fiquei com
centenas de mulheres.
É então que escuto Perry e o vejo apontar para Taura com o queixo e
sussurrar para Parks:
— O que ela tá fazendo aqui?
Uso a visão periférica para acompanhar a conversa.
Parks dá de ombros, meio sem jeito.
— Ele prometeu que não foi com ela…
Paili aperta os lábios.
— Será que não foi caô?
É então que me viro.
— Que porra é essa, Paili?
— Hã? — gagueja ela.
— O que você falou? — pergunto, me aproximando, carrancudo. —
Repete… o que você falou.
Ela engole em seco, nervosa.
— Nada…
Eu balanço a cabeça.
— Eu nunca menti pra ela.
— Ok — concorda ela.
— Vai se foder — digo, apontando para Pails com raiva.
— Bê — diz Parks, tocando meu braço. — Relaxa, ela só…
— Vai mandar ela se foder? — bufa Perry, falando mais alto do que Parks,
o que já me irrita. — Vai se foder você. Até parece que a Sax é toda
inocente…
Balanço a cabeça.
— E que régua moral é essa sua, Lorcs?
— Régua moral é o meu pau…
Taura se remexe, sem graça. Ela e Magnolia se olham de um jeito que
odeio. Eu recuo, surpreso com ele. Quase impressionado. Mas o timing foi
ruim.
— Cala a boca — sussurra Paili para Perry.
— Não. Ele não pode falar assim com você — retruca Perry, sem parar de
me encarar.
— Não posso? — pergunto, piscando e endireitando os ombros. — Vai
encarar, fortão?
— Bê… — diz Magnolia, puxando meu braço. — Para.
Taurinha está vendo a cena, prestando até atenção demais.
Merda. Se Parks olhar para ela agora, vai pro caralho de qualquer jeito,
mas ela não olha. Não consegue. Está focada em mim.
Com as mãos no meu rosto, afastando o cabelo. Tentando me acalmar —
e conseguindo, porque seus olhos me abalam. Se eu olhar bem para eles, a
qualquer momento, é como se fosse jogado num rio. Afundo bem rápido e
preciso me impulsionar para voltar à superfície, engasgo e tudo, à deriva na
água.
— Relaxa — insiste ela, acariciando meu rosto com o polegar. — Não foi
nada.
Balanço a cabeça e encaro Paili, com o maxilar tenso.
— Fui direto até ela depois — digo, e aponto para mim. — Posso ser um
escroto, mas não sou mentiroso, porra…
Jonah está sentado e observa tudo, incomodado e agitado.
— Ei, bora vazar — diz, apontando a porta.
— Não, tô de boa — respondo, balançando a cabeça e voltando a me
sentar. — Tô de boa…
Jonah dá outra olhada, indicando novamente a porta.
— Já deu pra mim — avisa, apontando para mim, Parks, Taura e si
próprio. — Nós quatro vamos para outro canto. Vocês dois — acrescenta,
apontando Paili e Perry — vão à merda.
Perry fica irritado.
— Sério, Jo?
— Sério — replica Jo, com um olhar afiado. — Você é um barraqueiro,
Lorcs…
Perry dá de ombros.
— Fazer barraco e dizer a verdade é tudo a mesma coisa para um
mentiroso.
Olho de Perry para Paili, carrancudo. Parks se despede deles com beijo
na bochecha, e saímos.
Estou de mãos dadas com ela, sem pensar direito, só refletindo sobre o
que aconteceu, puto, quando saímos pela frente e um bilhão de flashes
piscam, e começam os gritos.
— Magnolia! Cadê o Tom?
— Você e BJ voltaram?
— BJ, você e Magnolia estão juntos?
— Você e Tom terminaram?
Umas trinta variantes dessas perguntas nos agridem de uma vez, e
Magnolia congela.
Ela é pega completamente de surpresa, e ainda estamos de mãos dadas, e
estão saindo várias fotos que vão complicar a vida dela. Estou prestes a
esmurrar o fotógrafo ao meu lado, que está me empurrando só para tirar
uma foto de Parks, que, se eu fosse legendar, diria: Pega com a boca na
botija.
É então que Taura se solta de Jonah, pega o rosto de Magnolia e a beija.
Jonah arregala os olhos, chocado, enquanto as luzes piscam ainda mais, e as
vozes gritam mais, só que agora é diferente. Não estão se dirigindo à gente,
mas a elas.
— Magnolia! Quem é essa?
— É sua namorada?
— Tom sabe que você é lésbica?
Parks está paralisada, não se afasta, não recua, apenas deixa o beijo
acontecer e pestaneja para Taura, que finalmente a solta.
— Magnolia agora está comigo — afirma Taura, com arrogância, e as
câmeras a amam. — Ela cansou das merdas dele… — diz, apontando com a
cabeça para mim, e eu rio. — Não vamos mais esconder nosso amor —
anuncia, triunfante, antes de pegar a mão de Magnolia e puxá-la para o
Escalade de Jonah.
Jonah e eu nos entreolhamos, confusos e achando graça, antes de entrar
atrás das garotas no carro.
Dentro do Cadillac blindado e de vidro fumê de Jo, as duas se olham. Faz
um silêncio sepulcral por alguns segundos, até que Magnolia pisca e cai na
gargalhada.
— Você é maluca — diz, balançando a cabeça, para Taura.
Jonah e eu nos olhamos. Eu reprimo um sorriso.
— Isso é um obrigada em magnolês — explica Jonah.
— Foi uma decisão no pânico — admite Taura, dando de ombros.
Parks suspira, encostando a cabeça na janela.
Taura continua de olho nela.
— São agressivos com você, né?
— São invasivos — responde, ainda virada para a janela, antes de olhar
para Taura, se animando um pouco. — Mas isso deve satisfazer eles por uns
dias, pelo menos.
Magnolia abre um sorrisinho antes de desviar o rosto.
Taura me olha e, empolgada, murmura:
— Meu Deus do céu.
Eu rio e jogo um braço ao redor de Parks.

02:02
Perry

Foi mal, cara.

É, foi mal também.

Te amo, Bê. Não quis ser tão escroto.

Essas garotas…

Mexem com a gente.

Pois é.

19:45
Bê & Tom

Vocês dois estavam me mandando mensagem ao mesmo


tempo.

Tom
Ah, que bom.


E aí, Tom.
Tom
E aí, Bê.

Muito civilizados. Adorei.

Então: como vocês sabem, amanhã é o baile do Grand Prix, e


vocês dois me convidaram pra ser acompanhante, então não
vou com nenhum dos dois.


Bobagem.

A gente leva você junto.

Tom
Leva?


A não ser que você não queira, England.

Por mim, tranquilo. Levo ela sozinho.

Você quer que a gente vá… junto?


Isso.

Nós três?


De trisal, se quiserem colocar dessa maneira.

Tom
Não quero.

Hahaha


Topa, Parks?

Pode ser.


England?

Tom
Até amanhã bjs

Be
Durma bem, anjinho @Tom

Ok, tchau então?


QUARENTA E OITO

Magnolia

— Soube que rolou um tiroteio numa boate? — pergunta Bridget.


Olho para ela, surpresa.
— Não!
— Pois é. Na Clean Slate.
— Meu Deus — exclamo, franzindo a testa. — Alguém se machucou?
— Algumas pessoas foram baleadas — confirma. — Mas ninguém
morreu.
Balanço a cabeça.
— Londres tá o caos… — suspiro.
Estou me arrumando para o baile. Fiz cabelo e maquiagem — com
George Northwood e Ruby Hammer, respectivamente —, coloquei o vestido
da Rodarte de tule metálico em camadas e babados, vermelho e branco, e
estou chocada com o quanto estou gata. Pareço uma princesa de um conto
de fadas.
Bridget está me ajudando a me arrumar, porque, neste momento, sou
praticamente um marshmallow de tão linda. Implorei para ela ir comigo,
mas ela ainda se recusa.
— Odeio essas paradas — diz Bridget.
— Mas você me ama!
Ela balança a cabeça.
— Não a esse ponto.
— Eu vou — diz Bushka, da porta.
Bridget e eu nos entreolhamos antes de eu dizer, bastante incisiva:
— Hum… não.
Bushka franze a testa.
— Você nunca me leva pros lugares…
— Sim — concordo, enfática. — É de propósito. Você é
superinconveniente e bem racista…
— Os brancos acham que eles são melhores que todo mundo, mas não
tão bons.
Franzo os lábios, e minha irmã pigarreia.
— Bushka, você é branca.
— Sou Rússia.
Bridget e eu nos entreolhamos.
— Enfim — digo, revirando os olhos.
— Me leva — exige ela.
— Não — recuso, balançando a cabeça. — Na última vez que eu te levei,
você tentou comprar briga com a princesa Anne.
— Eu ganho.
Bridget concorda com nossa avó.
— Ela fugiu da União Soviética.
Semicerro os olhos.
— Faço tudo por você… — diz Bushka, melancólica.
— Você não faz nada — devolvo, olhando para ela como se tivesse
perdido o juízo. — Na verdade, é uma parente meio inútil…
— Dou dinheiro quando morro…
— É, mas ainda não morreu.
— Quanta simpatia — comenta Bridge.
Eu reviro os olhos. Bushka gesticula para mim.
— Ah — resmunga minha irmã. — Leva ela logo.
Solto um resmungo.
— Tá.
Bushka comemora e revira meu armário, tirando um vestido curtíssimo e
colado da Hervé Léger.
— Esse?
— De jeito nenhum.
Ela me ignora e sai do quarto com o vestido.
— Festa com dois namorados e a vovó…
Olho para Bridget, pedindo socorro.
— Bom — diz ela —, agora é óbvio que eu vou.
* * *

Tom chega primeiro à minha casa — previsivelmente.


BJ é bem animado, o melhor beijo da minha vida, e provavelmente está
postando stories no Instagram com um cachorrinho ou alguma coisa do
tipo, mas Tom é um homem adulto, com relógio e noção de tempo e
responsabilidade.
Ele está com a calça preta da Brunello Cucinelli, paletó justo de veludo
com lapela curva, modelo Shelton, e camisa branca com detalhes em vinco,
as duas peças da Tom Ford.
Não é lá bem ousado, mas os olhos de Tom são de morrer e dão um tchã
a tudo o que ele faz.
Abre a porta para mim? Tchã.
Bebe da minha garrafa de água? Tchã.
Amarra os sapatos? Tchã.
Respira? Tchã.
— Oi — me cumprimenta Tom, me admirando. — Você está
maravilhosa.
Ele se aproxima e me beija de leve, me deixando vermelha.
— Sou o homem mais sortudo do mundo ou não sou? — pergunta,
sorrindo.
— Olha — começo, com uma careta —, BJ está a caminho… então diria
que não.
Tom ri.
— Vai ser divertido isso — comenta, com um aceno quase decidido. —
Vai ser legal. Hoje vai ser legal…
— Aham, vai repetindo isso — digo, olhando para ele. — Uma hora vira
verdade.
Ele ri justamente quando a porta se abre novamente e chega o outro.
Bê sobe correndo a escada, e Tom não me solta.
— E aí, cara! — diz BJ, indo até Tom e dando um tapinha de brincadeira
na bunda dele. — Que paletó! Puro estilo.
Tom solta uma risada de perplexidade.
— Você também, cara.
Então Bê olha para ele.
— Foi mal, mas você se incomoda de soltar a mulher da minha vida
rapidinho?
Tom obedece e se afasta.
— Oi, Parks.
BJ sorri para mim e me dá um beijo na bochecha, como se fosse dono de
tudo.
— Oi — digo, tímida.
— Você parece a herdeira de um império de doces.
— Isso foi um elogio? — pergunto, franzindo a testa.
— Óbvio. Acha que eu sou burro de te ofender sendo que tô tentando te
convencer a ficar comigo?
Penso a respeito.
— Acho.
Ele me olha antes de se virar para Tom.
— E aí, gente, qual é o esquema aqui? Nós dois podemos te beijar?
Nenhum de nós pode te beijar?
— Acho que vocês dois é que deviam se beijar — sugere Bridget, do alto
da escada.
— Não precisa nem pedir — responde BJ, saltitando animado até Tom,
que o empurra, rindo.
Bridge está usando um vestido sem manga azul-claro com estampa de
limão, que é lindo de morrer.
— Licença — digo, piscando. — Você tinha esse Oscar de la Renta dando
sopa por aí?
Ela olha para a roupa e dá de ombros, indiferente.
BJ olha para Bridge.
— Espera. Você vai mesmo sair de casa e ir pra um evento da alta
sociedade?
— Vou — confirma ela, empinando o nariz.
— Por quê? — pergunta BJ, fazendo uma careta. — Perdeu alguma
aposta?
Bridge lhe lança um olhar irritado.
— Você está linda, Bridget — elogia Tom.
Bridget sorri para ele, genuinamente satisfeita. Em seguida, diz:
— Não tão linda quanto…
Bem neste instante, Bushka aparece. Por sorte não está usando meu
Hervé Léger.
— Eu vou.
— Tá de sacanagem! — diz Bê, se virando de Bushka para mim, com os
olhos arregalados.
Ele está tão incrédulo quanto eu. Suspiro. Bê semicerra os olhos.
— Você tá bêbada? — pergunta para mim.
Eu o encaro.
— Pretendo ficar.
— Você vem! — grita Bê, animado, e sobe o resto da escada para ajudá-la
a descer. — Minha preferida de todas as Parks!
(— Ela nem é uma Parks — resmungo baixinho. — Mas tudo bem.)
— Você é minha Parks preferida — me diz Tom.
— Isso é porque você ainda não me conhece tão bem — se intromete
minha irmã, dando o braço a Tom e saindo com ele.
Bê acompanha Bushka para sair.
E eu fico ali parada, vendo minha avó com um dos meus namorados e
minha irmã com o outro.
— Então eu fico pra trancar a porta, né? — grito para eles, deixada para
trás.
QUARENTA E NOVE

BJ

Parks está zero curtindo tudo isso. Essa parada de namorar nós dois. Era
visível durante todo o percurso. Ela parecia nervosa. Nervosa com o que os
jornais diriam sobre ela, porque nem sempre são gentis.
Ou ela é a queridinha da imprensa, ou ela é uma piranha, e não dá pra
saber qual dos dois os jornalistas vão escolher em cada ocasião.
Num dia bom, ela poderia andar agarrada num de nós e aos beijos com o
outro que todo mundo a chamaria de evoluída, mas, quando estão a fim,
jogam a culpa de tudo nela, acabam com ela, escrevem coisas que a fazem
chorar nos meus braços como se estivesse sofrendo bullying no jardim de
infância.
Eu entrei de braços dados com Bushka, em parte por causa de Parks, em
parte porque a velha está no grau pra se divertir — ela sempre tem um
frasco de qualquer coisa a tiracolo, já deu em cima do David Beckham, já
bebeu mais do que o Jonah duas vezes e fez uma piada sobre nazistas para o
embaixador alemão no baile em que eu a acompanhei ano passado. A
mulher é imprevisível.
Além do mais, percebo que Magnolia está toda derretida ao me ver
acompanhando sua avó, que não é a razão pela qual estou fazendo isso, mas
pode ser considerado a cereja no bolo.
Assim que entramos, Parks se afasta na velocidade da luz. Segundo ela,
porque viu a Kate Middleton.
— Eu realmente apostei todo o meu dinheiro no cavalo errado em fazer
amizade com a Meghan Markle, né? — Ela balança a cabeça. — Agora
preciso ficar puxando o saco da duquesa de Cambridge…
— Eu sou amigo do Will — diz Tom.
Ela olha para ele, revirando os olhos.
— É claro que é.
— Eu sou o amor da sua vida — eu a lembro.
Nossos olhos se cruzam, e ela tenta não sorrir ao ouvir isso.
— Não acredito que eles abandonaram a monarquia. Que morte terrível
para todo mundo. Mas especialmente para mim — murmura Magnolia
baixinho, antes de ir embora. — E para Lilibet, provavelmente.
Olho para Tom, que está observando a garota que eu amo como se ele
também talvez a amasse.
— Caralho — suspiro.
Ele me encara e dá uma risada.
— Pois é.
Eu indico Parks com o queixo.
— Ela não está lidando bem com isso…
Ele olha para ela de novo, tentando ver aquilo que só eu enxergo. Deve
ser uma merda pra ele… querer ver uma coisa, mas não conseguir, porque
acho que não é algo visível aos olhos.
Eu consigo ver como as borboletas esvoaçam as asas na auréola acima da
cabeça dela, a forma como a luz reflete os pensamentos dela, como o
salgueiro estremece…
— É mesmo? — diz Tom, ainda fitando Parks.
Eu faço que sim.
— Ela está nos evitando.
— Assim. — Ele me lança um olhar. — É bem esquisito.
Eu o encaro e rio.
— Você acha?
Tom olha para mim de um jeito estranho. Balanço a cabeça.
— É, imagino que seja esquisito. — Dou de ombros. — Mas parece quase
que normal para mim.
— Isso é bem zoado — replica ele.
A expressão em seu rosto faz parecer que ele tem pena de mim, mas eu
não quero que ele sinta isso, porra. Ela foi minha durante toda a minha vida,
ela é minha, eu que fodi tudo, e agora ela é minha do jeito que ela me
permitir. Eu não preciso da pena dele. Não preciso nem que ele entenda. Eu
só preciso dela.
Eu a observo, a garota dos meus sonhos, o amor da minha vida, alfa e
ômega, início e fim, até que a morte nos separe, e mesmo depois disso vou
continuar esperando, e tudo que eu consigo dizer é:
— É mesmo.
— Ela já fez você sofrer bastante — me diz Tom.
Eu penso naquilo, franzindo um pouco a testa.
— Sei lá. Nunca dá pra saber se a gente está dançando num salão em
chamas ou se a gente está se alternando em arrastar pela montanha o corpo
inconsciente um do outro.
Tom ri e olha para mim como se eu fosse louco.
— As duas opções são bem merda, cara…
— Sim — admito enquanto observo Magnolia. — Um dos cenários
termina com uma vista bem boa, mas…
Tom me fita com mais atenção do que eu gostaria. Ele tem um olhar
intenso. Acho que é pior porque os olhos dele são muito azuis. Em tese,
deveria ser algo bonito, mas, sei lá — são azuis de um jeito meio agressivo.
Ele está apenas me observando, quase franzindo a testa, mas não por
minha causa.
— Vocês dois são coisa de outro mundo. — Ele balança a cabeça. — É
bizarro.
Nós somos, eu sei disso. Tudo que posso fazer é assentir e dar de ombros.
Ele dá uma olhada em Parks.
— Você acha que ela faz isso com todo mundo?
— Faz o quê?
Ele dá de ombros.
— Faz com que todo mundo se sinta… sei lá? Como se fosse o sol.
Eu fico mal por ele. Ele ainda não passou muito tempo com ela. Ele não
tem experiência em observar os outros homens ao redor dela, e Parks nem
sequer sabe que é o foco de todo mundo num ambiente.
Que ela é um raio de sol mesmo quando está sendo um pé no saco.
— Quase chega a dar medo, essa conexão que vocês têm — comenta ele,
voltando a me encarar.
Dou uma fungada.
— Quase, só?
— Quase — reforça ele. — Eu não sei da história toda e me recuso a ser
intimidado por algo que eu nem entendo completamente.
Assinto algumas vezes. É justo.
— Mas a química entre vocês… — acrescenta.
Tom me lança um olhar, e eu me pergunto por que ele ainda está aqui.
Que se fodam as metáforas sobre faíscas e relâmpagos, nós somos tudo
isso e nada disso. Parks e eu. Está escrito na porra das estrelas.
— É intensa — completa Tom e assente.
— Mas não intimida o bastante para te afastar — comento.
— Não. — Ele para. — É aquela coisa da pólvora de Shakespeare. A
química de vocês é o que torna tudo bom, sem dúvida, cara. Não tem como
negar. — Outra pausa. — Mas talvez seja isso que acabe matando vocês.
E eu odeio essa porra, porque não foi uma ameaça. Ele não está sendo
um babaquinha arrogante, ele só está pensando em voz alta. Ele só está ali
filosofando, cheio de ideias e sabedoria, e eu o odeio pra caralho, porque às
vezes tenho medo de que ele esteja certo.
— Ei. — Tom me cutuca com o cotovelo. — A gente só estava te
sacaneando antes…
Comprimo os lábios, assentindo.
— Fiquei na dúvida depois daquela história de levar ela até mim depois
da treta com o Harley…
Tom balança a cabeça.
— Não, eu já gostava dela nessa época. Mas ela não precisava de mim. —
Ele dá de ombros. — Ela precisava de você.
— Puta que pariu! — Franzo a testa. — Você é tão irritante.
Ele gosta dela, e aí mesmo assim a leva até mim, porque eu sou a pessoa
de quem ela precisa?
— Como você é tão tranquilo o tempo todo, porra?
Tom dá uma risada.
— Não sou. — Ele me olha por um segundo, então desvia o olhar. — Eu
vi quando você magoou ela naquela outra festa e pensei que poderia ajudar
ela a equilibrar as coisas com você. Mas agora eu acho que estou um pouco
apaixonado por ela…
Assinto. Eu entendo.
— Ela causa esse efeito nas pessoas.
— Eu sei — diz ele, solene. — Foi mal.
Eu me viro para ele.
— Pelo quê?
— Porque eu gosto de você, cara. — Ele me dá um tapinha nas costas. —
Mas, se eu tiver uma chance aqui, eu vou aproveitar.
Eu o encaro.
— O mesmo vale aqui, parceiro.
Tom assente e me olha de esguelha, um pouco nervoso.
— Ela não sabe.
Deixo meu copo de negroni na mesa.
— Sabe do quê? — pergunto.
— Que eu a amo.
— Ah.
Assinto. Faço o gesto de fechar a boca e finjo colocar a chave no bolso
dele.
Ele me dá outro tapinha nas costas.
— Valeu, cara.
Então me passa minha bebida e ergue a dele.
— Que vença o melhor homem.
Dou uma bufada, balançando a cabeça.
— Não, parceiro. Que se foda o piloto. Vou torcer pro cara que é o pior.
Ele é fodido da cabeça, mas tem um coração de ouro.
Tom ri, e eu também.
Ainda assim, dói, porque nós dois sabemos que é verdade.
17:41

Tom

Não quer mesmo vir pro aniversário do Julian?

Não.

Vai ser legal…

Sou velho demais para essa vida de festa.

Na verdade, acho que você e Jules são da mesma idade.

Ah, é “Jules” agora, é?

Somos velhos amigos.

Haha. Tá bom.

E, tipo, eu e você nos conhecemos numa festa há uns 5 meses,


então…

Na verdade, a gente se conheceu num evento de polo quando


você tinha 7 anos. Eu tinha 16. Você foi muito persistente.

Vem, pô!

Não, valeu.

Divirta-se bjs
CINQUENTA

Magnolia

Hoje à noite é o aniversário de trinta anos de Julian Haites. Eu e os garotos


vamos. BJ acha que estou indo como o date dele. Ele não sabe que o próprio
Julian me mandou um convite.
Vejo Daisy Haites antes de avistar seu irmão. Ela está empoleirada no
colo de Christian. Aceno para os dois. Christian não responde, o rosto dele
se contorce numa careta sem eu saber o motivo — Daisy ergue uma das
mãos, me cumprimentando meio mais ou menos.
Me esforço para não me estressar demais com aquela recepção morna e
procuro validação de outras formas, como ficar de mãos dadas com BJ. Ele
ergue minha mão até a boca, beijando-a distraidamente.
— Ballentine — exclama Julian, com uma bebida em cada mão quando
vem até nós.
Ele vira uma delas rapidamente e oferece a outra para mim antes de
erguer BJ, levantando-o de forma afetuosa.
— Feliz aniversário! — diz Jonah, o agarrando pelos ombros, e Jules
coloca as mãos ao redor do rosto dele.
Julian provavelmente seria o outro melhor amigo de Jonah, o que deixa a
situação um pouco mais tensa quando os olhos dele cruzam com os meus da
forma que fazem por cima do ombro de Jonah.
Julian está imponente, com a jaqueta de lã com apliques e logo da Amiri,
e me oferece um sorriso sarcástico.
— Magnolia.
— Jules.
Eu o cumprimento com a cabeça, a expressão idêntica à dele. E aquele ar
de intimidade entre nós faz os garotos tomarem um susto. BJ olha para mim,
o rosto franzido, preocupado.
Jonah e BJ sempre foram muito diretos comigo com relação a Julian: eu
deveria evitá-lo a qualquer custo. A não ser que alguém estivesse tentando
me matar, aí no caso eu deveria ir correndo direto para ele.
Eu fiz isso uma vez. Corri direto para ele. Ninguém estava tentando me
matar, mas eu estava morrendo. Aconteceu algumas semanas depois do meu
término com BJ. Sabe quando a adrenalina passa e você ainda não entrou
num estado de torpor, não está medicada e o seu coração está morrendo de
sede, completamente em chamas e sufocando, tudo ao mesmo tempo? E,
não sei por que isso passou pela minha cabeça, já que eu não saía de casa
havia duas semanas, mas fiz isso, e fiz Paili vir comigo.
— Não acho isso uma boa ideia — tinha dito minha amiga, mais ou
menos pela milionésima vez enquanto entrávamos. — Você só precisa ficar
um tempo de luto…
Balancei a cabeça.
— Já deu de ficar de luto.
Paili tinha me lançado um olhar. Lógico que eu não estava pronta para
cessar com o luto. Como é que poderia estar pronta? Até um leigo seria
capaz de declarar: eu nunca pararia de ficar de luto por aquele garoto.
No aniversário dele, no presente, Julian e eu estamos um do lado do
outro, com intimidade demais para o gosto do Bê. Ele dá uma risadinha que
é para parecer descontraída, e deve ser assim que soa para todos os outros
na sala, exceto Jonah e eu… Em nossos ouvidos, parece forçada.
— Não sabia que vocês dois se conheciam. — BJ olha entre nós.
Julian solta uma risadinha e dá de ombros, indiferente.
— Todo mundo conhece essa aqui.
— Aham. — Os olhos de BJ se estreitam e seguem para mim. — Como?
Julian coloca a língua na bochecha e me encara, ousado. As sobrancelhas
estão erguidas, esperando que eu lide com isso.
Nós fomos para uma festa. Acho que era na McQueen, e, de uma forma
horrivelmente inesperada (para mim), um garoto da nossa antiga escola —
Ed Bancroft, por quem Paili sempre teve um crush, mas nada nunca tinha
acontecido — estava lá. E ele estava muito interessado nela.
E eu não sei o que aconteceu, ou por que estava acontecendo — foi algo
nada a ver para ela, porque Paili nunca foi alguém que curtia pegar gente em
festas, que nem eu, mas era como se ela tivesse algo a provar, mesmo que
não fosse o caso —, só que, naquela noite, ela foi com tudo.
Do meu lado. Num sofá. E ela havia sido uma amiga tão boa nas semanas
anteriores, sempre ao meu lado… Tinha deitado comigo na cama, chorado
comigo, às vezes até chorado por mim.
Ela foi uma pessoa tão presente e estava de coração partido por minha
causa — eu não tinha como ficar chateada com ela naquela noite, quando a
arrastei para um lugar em que ela achava que nenhuma de nós duas deveria
estar, mas onde ela finalmente decidiu se divertir.
Então eu estava lá, muitíssimo bem-vestida e vagamente suicida
enquanto ela e Ed Bancroft estavam praticamente transando sem tirar a
roupa. Eu suspirei e virei shot atrás de shot para entorpecer os pensamentos
e diminuir meu desconforto evidente, quando um cara apareceu na minha
visão.
Cabelo castanho bagunçado, olhos azuis grandes, barba por fazer. Lindo
de morrer.
Ele sorriu para mim.
— Eu te conheço.
Dei um sorriso breve e o cumprimentei com a cabeça.
— Conhece.
— Você me conhece? — perguntou ele, com as sobrancelhas erguidas.
Lancei para ele um olhar entretido.
— Todo mundo te conhece…
— Assim, só me importa que você me conheça — disse Julian Haites,
sorrindo. — Você se lembra de mim da escola?
Lembrava, e também da matéria na Vanity Fair, das entrevistas à VICE,
dos ensaios fotográficos da GQ, e ele era (ainda é) o “traficante de armas”
mais famoso e lindo do mundo.
— Olha, eu tinha onze anos… — Dou um sorriso tímido. — Mas você
era bem rápido no campo.
Ele assente, agradecido.
— Mas não tão rápido quanto…
— Não! — interrompi, balançando a cabeça. — Não fala o nome dele!
Sério, não consigo acreditar que BJ não sabe de nada disso! Se BJ não
sabe, isso significa que Jonah também não sabe, e se Jonah não sabe é
porque Julian nunca contou nada, de propósito. Não sei o motivo. BJ está
me encarando, esperando que eu diga como o amigo dele me conhece, mas,
sendo bem sincera, tenho certeza de que ele não quer saber como Julian me
conhece, e de que forma específica se deu esse conhecimento.
Há mais de dois anos e meio, as sobrancelhas de Julian se ergueram
naquela festa, curiosas.
— Nossa, tá. Eles estão por aqui?
Balancei a cabeça.
Ele era inacreditavelmente gato. Ainda é, na verdade.
O maxilar é tão reto que chega a ser afiado. Os olhos são como as partes
mais escuras de uma geleira. Um metro e noventa. Tatuagens no corpo
inteiro. E também é o chefe da família mais notória de Londres. Não sei
exatamente o que eles fazem, mas eu sei que nada é dentro da legalidade.
— Tem um motivo pra não estarem aqui?
Eu assenti.
— Então você precisa beber — declarou ele, me tirando do sofá, pegando
minha mão e me levando até o bar.
A multidão se abriu diante dele como se fosse o mar Vermelho, ninguém
querendo ficar no seu caminho, mas ele nem sequer pareceu notar. Sei que
as pessoas estavam nos olhando — não do jeito que fazem hoje, na época era
menos. O fascínio real do público com relação a Bê e eu começou quando
paramos de ser algo que fazia sentido para eles.
Havia rumores na época de que BJ e eu estávamos passando por tempos
difíceis, mas nada definitivo, e, se eu estivesse com qualquer outra pessoa
que não fosse Julian, acho que as pessoas poderiam ter tirado fotos e vazado
para a imprensa, mas eu me lembro da nítida sensação de que ninguém
deduraria aquilo. Não se mexe com a família Haites.
Minha mão na dele me fez sentir uma onda de alívio, e também de
liberdade.
— Curte uísque? — me perguntou ele.
— Não. — Cerrei os lábios e me inclinei sobre o balcão.
— Me vê dois Johnnie Walker Baccarat — pediu ao bartender. — Pode
colocar na minha conta.
Ele me passou um copo de shot.
— Talvez você goste desse. Custa quinhentas libras.
Ele sorriu.
Brindamos e viramos o copo.
Ele me encarou, as sobrancelhas erguidas, na expectativa.
— Gostou?
— Não. — Sorri, pedindo desculpas.
— Cacete! — gritou ele, rindo e jogando a cabeça para trás. — Tá de
sacanagem comigo?
— Também posso dizer que eu amei — falei, com uma careta.
Ele me lançou um olhar desanimado.
Pegamos uma garrafa de vodca e levamos até uma mesa no canto, onde
rimos bastante, e aí bebemos mais, e eu não estava mais pensando em BJ ou
no que ele tinha feito, e tudo que eu estava fazendo era encarando a boca de
Julian Haites. Os lábios dele eram tão rosados, o inferior carnudo, como se
ele estivesse sempre fazendo bico, irritado, até mesmo quando está sorrindo.
Ele empurrou uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
— Posso te levar pra casa? — perguntou, inclinando a cabeça para que
pudéssemos nos encarar.
Os olhos dele eram firmes, e eu gostei deles.
Assenti rapidamente, sem me dar a chance de pensar duas vezes e dizer
não.
Ele pegou a minha mão de novo, me levando pela porta dos fundos para
uma limusine que estava esperando por ele. Preta, com as janelas de
insulfilm — blindada, assim como os carros dos Hemmes. Ele abriu a porta
para que eu entrasse primeiro e foi em seguida.
Nós ficamos parados ao lado um do outro durante alguns segundos,
olhando para a frente. Então, ele se virou para mim, e eu subi no colo dele,
beijando-o avidamente, com os lábios em chamas, e tirei a camisa dele por
cima da cabeça.
Ele deu uma risada, segurando meu rosto. E, posso dizer? Ele tem um
beijo espetacular. Foi tão arrebatador que não fiquei arrasada por estar
beijando outra pessoa que não fosse BJ — aquela sensação viria só depois,
como se eu estivesse traindo ele, como se estivesse nos separando, mas
Julian era tão bom e incrível e lindo que atrasou o inevitável.
Nunca pensei que diria isso sobre alguém além de BJ em toda a minha
vida, mas posso garantir que Julian Haites domina todos os lugares em que
está. Ele se deitou no banco, me levando junto. É habilidoso com as mãos,
isso eu posso garantir. Eu nem notei quando a limusine parou de andar.
Nós entramos na casa dele, enorme e exagerada. Tudo era de mármore
branco ou preto, tudo banhado a ouro. Ele me guiou escada acima, em
silêncio, ainda sem camisa, para um quarto. Eu o segui, e ele fechou a porta
e andou até a escrivaninha para esvaziar os bolsos. Por fim, olhou para mim,
a expressão inquisitiva. Eu me recostei na porta, pressionando os lábios com
força um contra o outro e segurando a bolsa na minha frente como se fosse
um cinto de castidade.
Ele riu sozinho, então se sentou na cama, coçando a cabeça.
— Então — disse e sorriu.
— Então — falei e assenti.
Eu não estava constrangida antes. Não sei por que tinha ficado assim de
repente. Talvez fossem as luzes?
Ele inclinou a cabeça e me olhou com serenidade.
— Tudo bem contigo?
— Comigo?
— Sim — respondeu ele, se inclinando um pouco para trás na cama.
— Eu tô ótima. — Assenti, enfática. — Ótima é pouco.
— Tá. — Ele repetiu meu gesto, e então hesitou. — Nenhuma garota diz
“tô ótima” quando tá realmente ótima…
— Bom, eu tô — informei, o nariz empinado. — Tô ótima.
— Tá. — Ele assentiu de novo, semicerrando os olhos. — Ótimo…
— Tá tudo ótimo mesmo. — Eu assenti mais uma vez. — Eu tô ótima,
você tá ótimo. Vamos fazer um ótimo sexo. E vai ser ótimo.
— Tá.
Ele sorriu, esfregando a mão na boca.
— E não vejo a hora — garanti, piscando várias vezes, parecendo muito
entusiasmada e sem pensar nem um pouco em BJ.
Eu engoli, nervosa.
Ele abriu um sorriso breve, então apertou os lábios, me observando com
atenção.
— Ok! — falei, unindo minhas mãos e respirando fundo enquanto me
aproximava dele. — Vamos lá. Você me ajuda com o zíper?
Eu me sentei na cama ao lado dele, oferecendo minhas costas.
Ele esticou a mão, mas então hesitou.
— Eu tenho uma irmã, sabe? — disse ele, procurando meu olhar.
— Que hora aleatória para comentar isso…
— Esquece. — Ele revirou os olhos. — Eu só conheço garotas.
— Não tenho dúvidas — afirmei.
Ele revirou os olhos mais uma vez.
— Você sabe do que eu estou falando.
— Não sei.
Ele coçou o pescoço, sorrindo com ironia.
— Você é linda, Parks. É muito, muito linda — acrescentou ele, franzindo
de leve a testa. Eu o olhei absorta, com a sensação de que viria um “mas”
pelo caminho. — Quer fazer mesmo isso?
— Quero. — Enfatizei com um aceno.
Ele se inclinou, segurando meu rosto, e me beijou suavemente, e então eu
comecei a me debulhar em lágrimas.
Ele riu e se afastou, balançando a cabeça.
— Magnolia — disse ele.
Ele me puxou para o colo dele, me segurou contra o peito e me deixou
chorar. Provavelmente não é um comportamento muito digno de um líder
de gangue, e talvez por isso ele nunca tenha contado nada a Jonah. Nossa
história não é de conquista sexual: eu só fiquei ali chorando em cima dele
durante duas horas. Aqueles choros cheios de ranho, com soluços enormes
que sacodem o corpo. O guarda-costas dele fez panquecas para mim, e aí eu
chorei mais. Ele acariciou meu cabelo. Passei a noite na cama dele, contei
tudo o que aconteceu, e ele se ofereceu para matar BJ, e acho que talvez
estivesse falando sério. Nós conversamos a noite toda até eu pegar no sono, e
foi só isso. Ele me levou para casa na manhã seguinte e me deu o número do
celular dele caso um dia eu precisasse.
— Você acreditaria se eu dissesse que estamos no mesmo clube do livro?
— digo para BJ, no presente.
Ele balança a cabeça perfeita.
— Julian adora… romance histórico, também gosta de biografia.
Julian começa a rir, o que não ajuda em nada.
BJ semicerra os olhos.
— Hum.
— Eu me ofereci para ajudar ela com uma coisa. — Julian sustenta meu
olhar. — Ela nunca aceitou. — Ele dá uma cotovelada brincalhona em BJ. —
Ela ainda está pensando no assunto.
— Se comporta — replico e lhe lanço um olhar sério.
Julian sorri de volta. Enquanto isso, BJ parece extremamente sem graça
com o que se passa entre nós.
— Mas, falando sério, Parks, se quiser curtir uma hora, com um bad boy
de verdade, e não esses fajutos aí que aparecem na Vogue, é só me ligar.
Reviro os olhos e tento disfarçar o meu entusiasmo com a atenção que
estou recebendo dele.
— Acho melhor eu me concentrar em superar esse meu triângulo
amoroso. Quando eu resolver isso, chamo você para substituir uma das
pontas.
— Tá, justo.
Julian assente e dá um tapinha em BJ, dando uma piscadela brincalhona.
BJ o observa se afastar, incrédulo.
— Tá de sacanagem? — diz.
Eu tento não rir ao ver a expressão no rosto dele e o puxo para o lado,
segurando suas mãos.
— A gente se beijou uma vez.
— Uma vez?
— Ok, a gente quase transou — admito.
— Quando?
— Hum. — Faço uma careta. — Um pouco depois que a gente terminou.
Ele se afasta.
— Quê?
— Uns quinze dias depois, por aí…
— Parks! Ele é um cara perigoso…
— Tá bom — digo, lançando um olhar impaciente. — Você sabe que a
gente está na festa de aniversário dele, né? Tipo, agorinha mesmo.
— A gente está aqui com o Jonah, e você é minha convidada.
— Na verdade… — Faço uma careta. — Foi ele mesmo que me convidou.
BJ suspira.
— Lógico que convidou.
Ele esfrega o rosto com as duas mãos.
— Você quase transou com ele?
— Bom, você transa de fato com pessoas que não são eu o tempo todo —
comento, para lembrá-lo. — O tempo todo.
Ele tenta não rir diante disso, mas de qualquer forma dá uma bufada.
Então me lança um olhar demorado.
— Por que foi quase?
— Hum. — Aperto os lábios. — Porque, quando ele me beijou na cama
dele, eu comecei a chorar. Por sua causa. — Ele reprime um sorriso. —
Chorei no colo dele, aí o chefe de segurança dele fez panquecas para mim,
depois Julian me levou em casa.
BJ assente, satisfeito com a resposta, e me puxa na direção dele, me
abraçando.
— E quem vai fazer panquecas pra você amanhã cedo?
— Sei lá? — Dou um sorriso brilhante. — Será que pergunto se o chefe
de segurança está disponível?
A noite segue, e tudo parece bom, tranquilo e normal — só o Christian
que está bebendo um pouco —, mas BJ e eu estamos ótimos.
Ele fica ao meu lado e paira como uma sombra ao sol do meio-dia. Eu
não sei se é por causa do que acabou de descobrir sobre mim e Julian, ou
apenas porque pode fazer isso, mas também não me importo.
Nós estamos bem.
Os beijos no pescoço quando não estou olhando, as mãos na minha
cintura em todos os instantes, e tudo meio que parece como eu sempre
pensei que seria antes que tudo desmoronasse — nós dois juntos, as mãos
entrelaçadas, ele falando com Jo e eu conversando com Henry. Sem me
olhar, sem dizer nada, ele passa um dos braços ao redor do meu ombro, me
puxa para perto de si, beija minha orelha e continua falando com Jo. É um
gesto de afeição tão pequeno, um acontecimento nada digno de cerimônia,
mas faz me faz sentir como se eu estivesse carregando um diamante no
bolso, e que nada no mundo — nem o tempo, nem a mágoa ou as
infidelidades — se colocou entre nós. Talvez seja assim que sempre vamos
ser — grudados um no outro, voltando um para o outro mesmo quando nos
afastamos. Eu espero que seja assim. Espero que sempre encontremos o
caminho de volta.
Então, ouvimos gritos. Altos e agressivos.
Jonah estica o pescoço, avaliando, então dá um pulo quando percebe que
é o Christian.
Ele faz um sinal com a cabeça para o irmão, e eu e os garotos vamos atrás.
— … que porra é essa que você tá falando, “o que eu tenho a ver”? A
gente tá junto — diz Christian para Daisy, os olhos arregalados.
Ela está com aquele cara, Romeo Bambrilla. Ele é bonitão.
— Tá mesmo? Para de mentira. — Ela o encara, irritada. — Eu nunca tive
nenhuma ilusão sobre o que eu sou pra você. Eu sou a garota que trepa
contigo enquanto você pensa na namorada do seu melhor amigo.
Isso deixa todo mundo tenso. Não apenas eu e os garotos, mas todos os
presentes. Meus olhos estão arregalados. O corpo inteiro de BJ se enrijece.
— Eu… — gagueja Christian, a boca aberta, e meu coração se aperta,
porque eu odeio vê-lo assim.
Ele parece magoado e triste, talvez um pouco traído? Eu não sei se Daisy
está falando de mim, mas acho que provavelmente está.
E que porra ela está fazendo, falando isso em voz alta na frente de todo
mundo?
— Ah. — Daisy Haites pisca, o retrato da inocência. — Você achou que
eu não sabia? Você está me confundindo com alguém que tem um pouco de
amor-próprio, porque eu sei o que sou pra você, e ainda assim fiquei
esperando você um dia me querer mais do que ela. Só que você nunca me
quis. Você nunca gostou de mim…
E Christian a observa como eu nunca tinha visto: os olhos arregalados,
balançando levemente a cabeça. Ele parece assustado.
— E pode ser que a gente seja um desastre… — Ela gesticula para Romeo
Bambrilla. — Mas quer saber? Uma coisa que eu sei com certeza é que,
quando eu levar Rome para casa hoje à noite, ele não vai estar pensando na
filha da puta da Magnolia Parks.
Todos ficam boquiabertos, e Daisy se manda da festa na velocidade da
luz, de mãos dadas com o garoto que não é Christian.
E Christian ainda está congelado, os olhos no chão. Ele não encontra meu
olhar e nem sequer ousa olhar na direção do irmão e de Bê.
Ele balança a cabeça e passa pela multidão, se afastando.
Então Jonah corre atrás dele, e aí BJ corre atrás de Jonah, e eu corro atrás
de BJ, e fico com uma estranha e peculiar sensação de que talvez eu tenha
amado garotos demais, talvez eu tenha feito garotos demais me amarem.
Existe todo tipo de amor no mundo, sei disso agora. Não sei ainda por
completo — não é um conhecimento completo, como uma lua cheia, mas
talvez eu esteja na fase crescente do entendimento de tudo que eu sei sobre o
amor. Dizem que o amor tudo supera, mas é verdade? Será possível? “Tudo”
parece ser um conceito muito vasto.
Eu perdi BJ centenas de vezes para centenas de mulheres diferentes, e ele
quase me perdeu duas vezes para dois homens que amei mais do que
deveria. Será que amo Tom? Imagino que sim, se estou pensando nele neste
momento. Mas o que isso significa? O que poderia significar? Porque não é o
mesmo que BJ, que é o único amor que importa para mim, eu acho. E,
mesmo assim, eu e Bê continuamos perdendo um ao outro, e não parece
importar que nos amamos dessa forma, por inteiro — meio como os
animais que se consomem até a morte, se forem deixados sozinhos. Eu vou
amar ele até eu morrer, até isso me consumir por inteira e me matar — então
talvez o amor não supere tudo, só algumas coisas. Porque tudo é vastidão, e
o amor é variação, como a luz de um prisma: se levá-lo por uma sala,
dependendo de como a luz bate nele, o resultado muda. Significa coisas
diferentes, e há tantas coisas diferentes que o amor pode ser para as
pessoas…
Eu sei que alguns tipos de amor são lindos e outros são libertadores.
Alguns destroem, alguns envenenam, alguns ofuscam, alguns elevam, alguns
quebram uma pessoa por meios invisíveis, que ninguém percebe, até que é
preciso se levantar do chão, e aí o peso do amor esmaga a pessoa. E eu fico
observando enquanto Christian grita “caralho” de novo e de novo e de novo
na viela dos fundos, socando uma parede, e me pergunto se sem querer o fiz
me amar daquela maneira.
— Me diz que a Daisy Haites tá falando merda — Jonah balança a cabeça
para o irmão.
Christian se vira para encará-lo, os olhos vermelhos.
Jo balança a cabeça para Christian, colocando um dedo ameaçador no
peito dele, e fico tensa. Odeio quando precisam se colocar um contra o
outro. É sempre por minha causa.
— Que porra é essa que ela tá falando? — pergunta BJ, as sobrancelhas
franzidas.
Christian não diz nada, mas finalmente me encara — só por um segundo,
antes de Jonah dar um empurrão nele.
— Não olha pra Parks. Olha pra mim.
Então, algo surpreendente acontece: Christian empurra Jonah para longe
dele. Com mais força e agressividade do que já o vi fazer com o irmão.
— Não fode. Não tô a fim hoje.
— Gente — diz Henry, parado ao lado de Christian, e fico feliz que ele
esteja ali servindo de contraponto.
Jonah não está recuando. Ele colocou Christian contra a parede e está
segurando o colarinho da camisa do irmão.
— Jonah. — Balanço a cabeça para ele, puxando o seu braço. — Solta ele.
O que você tá fazendo?
— O que você tá fazendo? — ruge Jonah de volta.
BJ olha de mim para Christian, então berra para os céus.
— Você só pode estar de brincadeira, caralho! — Ele me encara, os olhos
insanos, arregalados e magoados. — Dois de nós já não estava bom?
Eu estico a mão para ele, meu coração se partindo diante de mim.
— Bê…
— Você sabia? — pergunta BJ, o olhar tão despedaçado quanto seu
coração.
Meu rosto desaba.
— Claro que não sabia.
E eu me pergunto se estou mentindo para ele…
Isso é mentir para ele?
Eu não sabia de jeito nenhum.
Eu não queria saber. Não queria ter que mudar como eu sou com
Christian, não queria abrir mão de descansar minha cabeça no ombro dele
durante um filme se eu quisesse, não queria ter que perder o único garoto
que eu sabia que estava do meu lado, que me contava a verdade sobre BJ,
não importava o que acontecesse.
Eu sabia que ele me amava? Não.
Eu sabia com certeza que ele não me amava? De alguma forma, também
não.
BJ passa o braço ao redor do meu pescoço, me afastando da situação,
pressionando a boca na minha bochecha.
Não está fazendo isso porque está tudo bem, está fazendo porque não
está. Ele está tentando se controlar. Está respirando perto de mim como se
eu fosse um óleo essencial.
— Vou levar você em casa — me informa, e eu faço que sim.
Olho de volta para Jonah.
— Não bate nele, tá?
Tudo que Jonah faz é soltar um grunhido.
Meus olhos encontram os de Christian, e eu queria poder me certificar de
que eles não vão fazer nada com ele. Quero dizer que sinto muito e que
espero que ele fique bem, e que ele pode me ligar depois se precisar, mas
acho que nenhuma dessas coisas agora sejam possíveis.
Em vez disso, digo que sinto muito com meu olhar, mas ele não fala a
linguagem dos meus olhos. Só BJ fala. Então, Christian acha que eu não digo
nada.
BJ não fica para dormir. Ele não fala nada no carro enquanto me leva —
mas também não solta minha mão. Ele me guia até os degraus da frente,
beija minha cabeça, então se vira para ir embora.
— BJ! — chamo.
Ele pressiona a mão contra os olhos.
— Agora não dá. — Ele balança a cabeça. — Preciso pensar.

09:56

Como tá o tempo aí, Bê?

Não sei.

Você tá puto.

Não sei como eu tô.

Desculpa.

Pelo quê?

Não sei.

Por tudo?

Eu te ligo amanhã, tá

Desculpa.
Bj
CINQUENTA E UM

BJ

Fico aturdido depois. Minha cabeça está a mil, estou com um aperto no
peito como se houvesse um buraco lá. Tudo está desmoronando.
Ele ainda gosta dela? O que mais eu não sei? Ela está mentindo para
mim?
Parks nunca mente para mim, não sobre as coisas que importam.
Ela pode dizer que me odeia ou que já não quer mais nada comigo, mas é
o mais próximo que chega de uma mentira. Só que agora fico me
perguntando: por que ele está pensando em Parks enquanto está com Daisy,
se ele e Parks não transaram, porra? Certo?
Então ela está mentindo.
Eu a deixei em casa e fui direto para a minha. Cheirei uma carreira.
Esperei dez minutos. Cheirei outra.
Me ajuda a focar no que é preciso.
Esmiucei as brechas do nosso histórico, e me pergunto se ela as
preencheu com Christian.
Os dias que se seguem são assim: eu não ligo para ela. Não mando
mensagem. Respondo quando ela me manda mensagem, porque, se eu não
responder, ela vai entrar em pânico completo, e eu não consigo lidar com
isso agora — não vou conseguir entender que porra nada disso significa ou
como eu me sinto sobre o assunto se precisar ficar cuidando dela também.
Cancelo todos os meus ensaios da semana. Vou no cafezinho ao lado de
casa, peço comida à noite e, enquanto isso, cheiro algumas carreiras. Antes
eu me sentia mal quando cheirava, como se estivesse estragando as coisas
com Parks, mas agora acho que é ela que estragou tudo, então vamos nessa.
É tudo o que faço durante quatro dias. Leio um pouco. Tento ver algo na
TV, mas não consigo, porque tudo que eu quero assistir eu prometi assistir
com a Magnolia, então eu começo a rever Narcos.
No meio da segunda temporada, Christian aparece na minha porta, o que
me deixa nervoso. Ele desapareceu depois daquela noite. Nenhum de nós o
viu.
— Pra onde você foi?
Ele dá de ombros e fica parado do outro lado do cômodo com as mãos no
bolso.
— Precisava de um tempo.
Eu não digo nada. Não sei o que deveria dizer.
Ele solta a respiração, cansado e impaciente, me observando com cautela.
— Estou apaixonado por ela, Bê.
Tensiono o maxilar. Meu coração dá cambalhotas como se tivesse caído
cinco lances de escada. Ele está apaixonado por ela? Eu dou uma risada
incrédula.
— Que foi? — pergunta ele, nervoso.
Balanço a cabeça.
— Você não é a primeira pessoa a me dizer isso ultimamente.
— Que merda, hein.
Assinto. Ele balança a cabeça, contente com um ponto de conexão, acho.
— Ela é fodida da cabeça — ele me informa.
— Ei — rosno em reflexo, mesmo que não discorde por completo.
Mesmo que seja assim, ninguém pode falar nada dela exceto eu. Me irrita
ainda mais ele achar que pode fazer isso.
— Ela é… Cara, ela precisa que todo mundo ame ela — diz Christian. —
Você, eu, Tom, Jules… é uma merda. E ela…
— Para. — Fecho a cara. — O que você tá fazendo? Isso não tem a ver
com ela. — Mentira. Tem sempre a ver com ela. — Tem a ver com você ser
meu melhor amigo e estar apaixonado por ela…
— Não era minha intenção.
Solto uma outra risada de incredulidade.
— Você namorou ela. Pelas minhas costas.
— Bê… — Ele recosta a cabeça na parede atrás dele. — Foi sem querer. A
gente estava só saindo juntos, somos amigos há anos. Mais tempo até do que
você…
Eu dou um olhar de aviso. Foda-se ele.
— Eu estava com ela do mesmo jeito que já estive um bilhão de vezes
antes. E aí um dia a gente se beijou.
Ele dá de ombros. Como se não fosse nada. Como se não fosse a porra da
maior traição que já existiu na história da humanidade.
— Ah — respondo, assentindo, enfático. — Vocês se beijaram.
— Estava chovendo, era numa cabine telefônica…
Balanço a cabeça.
— Não estava pedindo detalhes, caralho…
— Então o que você está pedindo? — a voz dele fica mais alta.
— Por que logo ela?
Meu tom é idêntico ao dele.
— Porque ela é a Magnolia Parks, porra.
Eu desvio o olhar, balançando a cabeça. Quantas merdas ela vai poder
fazer na vida dela, só por causa disso?
— E ela estava triste. Eu queria fazer ela se sentir melhor. — Ele dá de
ombros, como se não tivesse tido opção. Talvez não tivesse. Eu mesmo não
tenho. — Mas ela estava triste por sua causa. Porque, pra ela, é sempre
você…
— Isso não é mais verdade.
— Claro que é, porra. Como que você não enxerga? Tudo que ela faz é
por sua causa, ou porque tem a ver contigo, ou porque ela quer ferrar
contigo por você ter ferrado com ela antes…
Cubro o rosto com as mãos, me sentindo estranho e exposto. Olho por
entre os dedos para o meu amigo de longa data.
— Por que você não me contou?
— Porque ela é sua. — Ele me encara com raiva. — E, mesmo quando
não é, continua sendo. — Ele abaixa o olhar, e depois volta a erguer. — E eu
não quero ela. Eu só… não sei como superar isso.
Sinto meus olhos se suavizarem aos poucos. Cacete.
— É. — Respiro pelo nariz. — Conheço bem a sensação.
Christian esfrega o maxilar, me observando por alguns segundos tensos.
— Bê, eu preciso falar com ela.
Bato o punho na cama, distraído.
— O que você vai dizer?
Ele me lança um olhar demorado. Não precisa colocar para fora, porque
eu já sei. Ele vai contar tudo a ela. Me sinto enjoado por um segundo. Me
pergunto se ele vai até lá falar que a ama. E questiono por um instante se ele
é mais merecedor dela do que eu. Em alguns aspectos, talvez seja.
De todos os jeitos imagináveis, Tom é mais digno do que nós dois.
Ele dá de ombros, derrotado.
— Eu preciso.
Lanço a ele um olhar cauteloso.
— Eu confio em você.
Ele assente uma vez, então vai embora.
CINQUENTA E DOIS

Magnolia

— … e desde então ele não fala direito comigo.


Minha irmã faz uma careta e se inclina na cadeira. Estamos comendo
brunch no Neptunes.
— Ele nunca fala com você — diz, como se eu já não soubesse, como se
isso não assombrasse todos os meus pensamentos todos os dias.
Contei ao Tom o que aconteceu. Ele não ficou muito chateado, comentou
que imaginava que algo do tipo aconteceria. Na verdade, ele disse que Gus
achava isso, então o avisou.
Tom apareceu e ficou por perto, ajudando a aliviar a ferida de um
Ballentine ausente.
Ele até passou a noite algumas vezes.
Não tenho certeza de que isso tranquilizaria BJ, mas me tranquilizou.
Acho que agora comecei a entender por que BJ transa o tempo todo.
Me deixa um pouco melhor, apesar de ser uma melhoria breve. Não dura
quase nada, mas há alguns segundos de euforia durante os quais não dá para
focar em mais nada a não ser naquela sensação ótima, e é tudo muito bom.
E por vinte segundos eu não penso em como BJ parece distante, ou como
tudo está uma bagunça, ou quem eu vou escolher — porque em breve
preciso escolher um dos dois —, e como eu estou preocupada de magoar
Tom quando não o escolher, porque não sei como escolher ninguém se BJ
for a outra opção, e como o relacionamento de Christian agora foi para o
espaço por minha causa, mesmo sem eu ter feito nada. É em tudo isso que
eu penso quando minha mente não é forçada a pensar em outra coisa, e,
portanto, Tom e eu temos transado com frequência.
Só que ele está ocupado com o trabalho por dois dias, me deixando numa
fossa com todos os meus pensamentos sobre o garoto que eu amo estar me
ignorando.
— É meio louco, né — reflete Bridget —, sua capacidade de causar treta
por causa de homem.
Eu lanço a ela um olhar cansado.
— Que foi? — Ela dá de ombros. — É verdade. Você tem muitos garotos
na mão.
— Eu tenho dois garotos — replico, alisando minha saia assimétrica
verde-escura plissada da Marni.
— Christian discorda disso.
Tomo um longo gole de champanhe, encarando-a com certa irritação. E
ela está fazendo essa coisa que sempre faz. É uma merda, e eu odeio. Está me
observando, pensando, processando, analisando. Ela se inclina para trás na
cadeira, semicerrando os olhos — costuma fazer isso comigo e com Bê,
tentando solucionar o que não tem solução.
Só que, quando é apenas comigo, ela consegue ler o que estou pensando
como se fosse um livro. Me abre e vai direto ao ponto.
— Não sei se é por causa do BJ ou do papai. Provavelmente os dois. —
Ela comenta. — Você pode ser viciada em receber atenção masculina.
— Vai se foder — retruco, horrorizada. — Não sou, não.
— Não é culpa sua. — Ela dá de ombros. — Olha só esse rostinho. Ele
provavelmente é uma parte do problema…
Eu franzo a testa, tocando meu rosto, distraída.
— O que tem de errado com ele?
— Nada — diz ela, rindo e tirando uma poeira do moletom de gola alta
da Saint Ivory. — Exatamente por isso é a origem dos problemas.
— Eu não gosto de ser analisada, Bridge.
— Azar o seu. — Ela se inclina. — Papai nunca prestou muita atenção na
gente. Não do jeito como filhas precisam, de qualquer forma. Mas o BJ… Foi
ele quem te salvou. Ele… olha pra você e vê o sol. Então você conseguiu o
que precisava. Você não precisava de um pai, já que tinha o BJ. Você ficou
ótima por anos. Por anos, os caras prestavam atenção em você, e você nem
notava, porque só via o BJ. Aí ele te traiu…
— Sei bem disso.
— E isso arruinou toda a atenção que ele tinha te dado até então.
Minhas sobrancelhas caem um pouco.
— Ele estragou as coisas. Fez com que a atenção dele não fosse confiável
nem valesse a pena. Então, agora eu acho que você talvez só fica
colecionando a atenção dos homens…
— Vai se foder…
— … e guarda para um dia em que você esteja se sentindo sozinha.
— Você tá delirando — retruco e balanço a cabeça.
— Será?
Ela arqueia uma sobrancelha.
E fico com medo de que ela não esteja, não. Cruzo os braços.
— Essa coisa com o Christian está deixando o Bê mais abalado do que eu
imaginava…
— Lógico. — Ela dá de ombros. — É o melhor amigo dele.
— Não é como se eu estivesse transando com o Jonah! — rebato, mais
para me fazer me sentir melhor.
— Aham. Só com o outro melhor amigo, que é quase um irmão de tão
próximo. Bem melhor.
Eu suspiro, desanimada.
— A gente não estava transando.
Ela me encara, desconfiada.
— Você e Christian nunca transaram?
— Não — respondo, empinando o nariz.
— Tudo bem se tiverem transado — garante ela, com um olhar.
— Não transamos.
Bridge continua me encarando.
— E por que não, cacete?
Dou de ombros, como se não houvesse motivo, como se também fosse
um mistério para mim, só que não é. Eu sei o motivo. E é muito mais
complicado do que posso expressar.
— Bê acha que transaram, sim — ela me informa, e eu sinto uma pontada
de ciúmes por minha irmã conhecer os pensamentos íntimos do garoto que
amo.
— Eu sei. Ele não acredita em mim.
— Isso é porque ele é incapaz de não transar com as pessoas.
Eu assinto, amarga.
— Muito bom.
— Você acha que vocês dois vão se resolver algum dia? — pergunta
Bridget, inclinando a cabeça enquanto me observa.
E, sinceramente, a pergunta me acerta feito um tapa.
A ideia de que existe uma chance de que a gente não consiga se resolver
nunca esteve no meu horizonte.
Só que tudo isso parece íntimo demais para dizer em voz alta, mesmo
para a minha irmã. Não quero que ela saiba que eu sempre presumi que
acabaríamos juntos, e também não quero que ela saiba que, até esse instante,
eu não tinha percebido que talvez isso não acontecesse.
CINQUENTA E TRÊS

Magnolia

Estou sozinha no quarto e me bate a sensação de estar sendo observada —


dura apenas um instante antes de eu erguer o olhar e vê-lo ali, parado no
batente. Está usando um moletom largo preto da Ksubi, o capuz erguido e as
mãos enfiadas nos bolsos da calça saruel da Rick Owens. Já faz quase uma
semana desde a festa de Julian. Eu não o vi nem falei com ele. Vou correndo
na sua direção, puxando-o para dentro do quarto, e abaixo o capuz.
— Eles te machucaram? — pergunto, olhando para Christian.
Os olhos dele descem para o meu vestido rosa-claro com capuz cheio de
pompons da Gucci, antes de ele balançar a cabeça. Eu suspiro, aliviada, e
Christian se afasta de mim, adentrando mais no quarto.
— Você me machucou, mas…
— Quê? — replico, piscando.
— Sinceramente, Parks, vai se foder. — O tom dele é agressivo. — Sério
mesmo, vai se foder. Só isso.
— Christian…
— Você é uma escrota, Parks.
Fico aturdida. Não acredito que ele está falando isso pra mim.
— Eu tô apaixonado por você — diz ele, franzindo a testa.
Ele se aproxima e passa uma das mãos pela minha cintura.
— Como assim?
Então, ele me beija.
Acontece rápido demais para que eu o impeça — ele agarra meu rosto e
me beija, e eu não o afasto, porque é estranhamente familiar, e a
familiaridade daquilo é a primeira coisa que eu registro, e não o fato de que
é errado fazer isso.
Na hora em que eu registro que o beijo deveria parar, ele já se afastou.
— E eu te odeio — informa, puto.
Eu engulo em seco, tentando não parecer arrasada.
— Por quê?
— Porque você deixou eu me apaixonar — grita ele, exasperado. — Tem
um motivo pra você me procurar, e não os outros caras…
— Sim, porque a gente…
— Não começa. — Ele balança a cabeça. — Você sabe o motivo.
Não é minha intenção, mas meu lábio inferior começa a tremer. Eu não
gosto quando alguém fica bravo comigo, mas, com Christian, é
especialmente ruim.
Eu dou de ombros, muito de leve.
— Os outros dois são leais demais com Bê. Todos eles mentem por mim
para proteger ele. E eu sei que você…
— Que eu faria qualquer coisa por você — completa ele. — Faria mesmo.
Mas, porra, por que você deixa? — A raiva dele volta a surgir. — Você
precisa que a porra do mundo inteiro fique apaixonado por você?
Meus olhos ficam marejados.
— Christian…
Ele vai na minha direção, pega meus pulsos e coloca uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha.
E isso é ruim, tudo isso é ruim.
Eu sei que é ruim.
É ruim que ele sinta que pode agir dessa maneira comigo, ruim que ele
possa me tocar sem nem precisar pensar, ruim que eu não faça nada para
impedi-lo.
Ele procura algo nos meus olhos.
— Acabou isso pra mim, tá?
— Christian…
— E eu preciso que você me deixe em paz, Parks. — Ele balança a cabeça,
sério. — Que você deixe eu te superar.
Eu faço que sim, com mais lágrimas do que deveria. Nervosa por o estar
perdendo.
— Você não vai mais ser meu amigo?
— Eu sempre vou ser seu amigo. — Ele olha para mim. — Mas tem muito
tempo que eu já não sou.
Eu desvio o olhar, me sentindo envergonhada. Não sei o que fiz de forma
ativa para que ele ainda continuasse me amando. Não é como se saíssemos
juntos só nós dois. Henry quase sempre está junto. Normalmente. Às vezes
trocamos mensagens, às vezes conversamos no telefone. Nossos olhos se
cruzam, lembrando coisas que provavelmente não deveríamos mais lembrar,
mas ele não pode ter achado que aquilo significava alguma coisa. Não sei —
talvez às vezes eu tenha tratado Christian como um porto seguro quando Bê
era uma tempestade descontrolada, o que ele sempre é. Com frequência.
— A partir de agora — diz, os olhos nos meus —, se você não sentir que
pode perguntar ao Jonah, não me pergunta.
Eu concordo, solene.
— Perdão. Eu não sei o que tem de errado comigo, eu…
— Eu deixei. — Ele dá de ombros. — A gente podia ter tido essa conversa
três anos atrás, mas não tivemos, porque eu não queria. Amar você era um
bom motivo pra não amar mais ninguém.
— Você ama ela? — pergunto, sem ciúmes.
Ele assente, sentando na minha cama.
— Amo.
Eu dou um sorriso breve.
— Ela tem sorte.
— Olha. — Ele aponta para mim, semicerrando os olhos de forma quase
brincalhona. — Sem essa agora. A gente agora é só na amizade.
— Eu falaria isso pro Jonah — replico, a testa franzida, na defensiva.
— Não falaria. Não tem motivo. — Ele dá de ombros. — O coração dele
morreu há tempos.
Eu o observo durante alguns segundos.
— Eu amo você — digo. — Você sabe disso?
Christian olha para o nada, assentindo duas, três, quatro vezes.
— Aham. — Ele finalmente olha para mim. — Mas infelizmente não da
mesma forma que eu amo você.
— Eu amei, uma época — lembro, sem entender o motivo.
Me sento na cama ao seu lado.
Ele assente mais uma vez, pensando naquilo.
— Mas não como você ama ele.
Christian coloca uma das mãos no meu joelho e dá uma apertada.
Há certo encerramento no ato. Como se estivéssemos enfim fechando o
capítulo do que nós costumávamos ser.
Quantos amores se tem em uma vida?, me pergunto de novo.
Alguns amores, como o nosso, são como bolas de demolição em casas de
vidro. E não dá para uma bola de demolição ficar em uma casa de vidro,
assim como não dá para eu amar Christian como já amei, só que, de vez em
quando, alguns amores são um ponto de apoio quando a gente está
afogando. Alguns amores podem enevoar uma cabine telefônica numa tarde
chuvosa de Londres e fazer você se sentir menos sozinha do que estava antes
de seus lábios se tocarem.
Ele está deixando o que tivemos para trás, como deveria. Como eu
deveria ter deixado há tanto tempo. Só que eu sinto falta dele nos dias
chuvosos.
Christian se levanta e vai na direção da porta, fazendo uma pausa antes
de olhar para trás.
— Não estraga as coisas, Parks. Vou ficar puto pra caralho se você fizer
isso.

11:16
Tom

Ele falou com você?

Não.

Você tá bem?

Você quer que ele tenha falado comigo?

Haha

Na verdade, não.

Mas eu quero que você fique bem.

Fofo.

Saudades.

Saudades também.
Vamos sair pra jantar hoje?

Sim, por favor.

Passo aí às 8 pra buscar você.

Não leva o BJ…

Foi mal.
CINQUENTA E QUATRO

BJ

Ela está sentada ali, empoleirada num dos muros, as pernas acomodadas sob
o corpo. Está vestindo alguma saia quadriculada vermelha com uma blusa
combinando, sei lá — parece a garota dos meus sonhos, seja lá o que está
vestindo. Tudo que ela veste me faz querer tirar a sua roupa. Pode parecer
algo relacionado a sexo, e até pode ser um pouco, mas eu também só quero
vê-la por inteiro. Não quero nada entre nós, nem mesmo roupas. E, porra,
temos tanta coisa entre nós ultimamente.
Eu me sento ao seu lado sem dizer nada. É engraçado, porque eu
honestamente não vim aqui para encontrá-la. Talvez estivesse com
esperança de esbarrar nela? Não sei. Não é um lugar só dela, é meu também.
É aonde nós íamos quando éramos adolescentes, se precisávamos de um
lugar para pensar. A igreja de St. Dunstan.
Não consigo ir até lá sem pensar nela, mas no que mais eu estaria
pensando, de qualquer forma?
Ela me encara, na expectativa. Acho que é minha vez.
É sempre minha vez. Balanço a cabeça.
— Você tem alguma noção do que é estar apaixonado por alguém e ter
que ficar vendo todo mundo apaixonado pela mesma pessoa?
Ela me lança um olhar demorado, sério.
— Tenho alguma noção.
Suspiro.
— Então por que não estamos juntos, Parks?
Ela não diz nada, apenas encara o horizonte enquanto ajeita as pernas,
tirando-as debaixo de si e deixando-as penduradas. Não é justo. Amo as
pernas dela. Me pergunto se ela faz isso de propósito para me distrair. Parece
algo que ela faria hoje em dia.
Se me dissessem que ela era mestra em manipulação ou, sei lá, uma
bruxa, eu provavelmente ficaria aliviado. Aliviado por ter um motivo para
não conseguir superá-la. Algo que fosse além desse amor que não sou capaz
de aguentar.
Da forma como estamos sentados — ombro a ombro —, um dos meus
braços está apoiado no concreto atrás dela, e ela está se inclinando contra
mim sem nem se dar conta.
É assim que nós somos.
É assim que sempre somos.
Eu a encaro, inspirando o cheiro dela. É o mesmo de sempre. Se algum
dia ela me deixar de vez, vou tomar banho com Gypsy Water para conseguir
dormir de noite.
— Christian disse que ia falar com você… — Ela assente. — Ele falou?
Olho para Parks, esperando mais, mas ela não diz nada.
— O que ele falou?
Ela dá de ombros. Eu franzo a testa.
— Como assim…?
Imito o gesto dela.
Ela dá de ombros mais uma vez.
— Não quero falar.
— Você não quer falar? — Pisco algumas vezes, e então tudo explode de
uma vez só. — Mas que merda, Magnolia. O que ele falou?
Então, ela fica com um certo brilho no olhar. Eu reconheço. É o mesmo
olhar com que ficava quando Mars enchia o saco dela por ter me levado para
a casa deles, porque ninguém pode falar nada para ela exceto eu.
Aquelas eram sempre minhas noites favoritas, porque ela agarrava minha
mão e me levava até o quarto, batia a porta com força e me jogava contra ela,
fingindo que estávamos nos pegando só para provocar Mars, mas sempre
significava que ela me tocaria no corpo inteiro, mais do que era o necessário,
e me deixaria ficar segurando-a contra mim sob o pretexto da provocação,
só que a provocação era o pretexto.
Todas as vezes que Mars brigava com ela, o brilho no olhar era sempre
um enorme “foda-se você, olha só o que eu vou fazer”, e agora ela estava do
mesmo jeito, balançando as pernas, chutando minhas inibições cada vez
mais, segundo a segundo.
Ela me avalia.
— Eu conto o que ele disse se você me contar o motivo de você ter feito o
que fez…
Puta que pariu.
Suspiro.
— Eu já disse por que fiz.
— E eu já disse que não acredito — retruca ela, rápida como a velocidade
da luz. — Eu não acredito.
Dou de ombros, tentando parecer indiferente, porque não consigo lidar
com isso agora.
— Isso não é minha culpa.
Ela balança a cabeça, tentando afastar a mágoa que sente por causa da
minha indiferença. Consigo ver quando percorre o seu rosto, acumulando-
se naqueles olhos que parecem lagos, e eu mergulharia neles para sempre se
ela me deixasse. Por que caralhos ela não me deixa fazer isso?
— Tá — diz ela, desafiadora. — Então me conta com quem foi.
Balanço a cabeça.
— Não vou te contar…
— Por quê?
Eu a encaro, os olhos arregalados, implorando.
— Porque vai piorar tudo.
Ela balança a cabeça, como se soubesse.
— Não pode ser pior do que não saber.
— Pode, sim — replico. — É saber qual é o rosto da pessoa. É quase
impossível ignorar. Eu vejo você e Tom na minha cabeça o tempo todo. Eu
costumava pensar em nós dois juntos para dormir, agora eu só vejo você
com ele.
Eu tento afastar aquela imagem da mente. O rosto dela desmorona com o
tom da minha voz, e os joelhos dela se encolhem por causa da minha
expressão. É rápida — como um relâmpago — a empatia que sente antes de
voltar para a postura teimosa e insistir.
— Eu não traí você.
O que, tecnicamente, é verdade — tecnicamente —, mas, porra, pesado
demais insistir nisso hoje.
— Você tá de brincadeira, Parks? Por que estamos falando sobre isso,
porra? De novo. Nós não vamos falar sobre como eu estraguei tudo, estamos
falando sobre você estragar tudo. Com o meu melhor amigo. Que agora está
apaixonado por você.
Ela franze a testa. Não sei o motivo.
Eu estou mesmo puto? Por estar no lugar dela? Porque ele a ama?
— Não é possível que você não soubesse… — Eu a encaro, cauteloso.
Procuro algo no rosto dela, para que seja impossível ela mentir para mim,
porque eu preciso saber. — Você sabia?
Ela me encara durante alguns segundos, e aí o olhar dela se torna mais
pesaroso. Ela assente. Parece culpada.
— Caralho, Parks.
Eu me afasto do muro e começo a andar em círculos.
Ela se levanta rapidamente. Porque, se eu me mexo, ela se mexe.
— Assim, eu tinha a sensação… — ela soa em pânico. — Eu não
perguntei…
— É, não precisava.
Ela estica a mão para me tocar.
— Ele é só meu amigo.
E — talvez pela primeira vez na história — eu me afasto dela, com um
olhar desesperado.
— Sim, mas você não é só amiga dele, é?
— Bê. Isso não é culpa minha! Eu não incentivei isso.
Eu a encaro.
— Eu não incentivei! — reforça, balançando a cabeça.
— Quando você não consegue falar comigo e está com problemas. Pra
quem você liga?
— Tom — responde ela, rapidamente.
— Não. — Balanço a cabeça. — Antes dele. Nos últimos dois anos. Pra
quem você liga?
Os olhos de Magnolia desviam dos meus, e ela afasta o olhar.
Eu aponto para ela.
— Henry é seu melhor amigo desde que vocês tinham quatro anos! É
errado, Parks. — Balanço a cabeça. — É errado você ligar pro Christian
antes de ligar pro Henry.
Eu me sinto vingado e balanço ainda mais a cabeça.
— Você não trata ele da mesma forma que trata o Henry e o Jo…
— Porque ele não é igual a eles. A gente tem uma história.
— Sim, e de quem é a culpa? — cuspo.
Ela me encara, os olhos muito arregalados.
— Sua! — retruca.
— Minha? — contesto, tão alto que outras pessoas estão olhando. Talvez
um celular ou dois estejam gravando. Sei lá. — Fui eu que fiz você transar
com meu melhor amigo?
— Nós nunca transamos!
Agora ela está gritando. Gritando de verdade.
— Nunca? — repito, mais alto.
— Nunca — afirma ela.
Eu a encaro com raiva.
— Então que merda toda foi aquela sobre gozar, hein?
Ela me lança um olhar estupefato.
— Bê, você tem muito mais experiência sexual do que eu. Você deveria
saber a resposta.
Eu passo as mãos pelo cabelo, tentando não rir do que ela acabou de
dizer, porque eu não quero que ela fique por cima. É tão raro conseguir ficar
do lado certo que ainda não estou pronto para me rebaixar.
— E como é que isso é minha culpa?
Ela me olha, a cabeça inclinada, parecendo triste.
— Você tá de sacanagem! — berro. — Eu te obriguei a fazer isso? Porque
você terminou comigo…
— Você transou com outra pessoa!
— Uma vez. Uma vez, Parks! E eu fui até você e disse na hora. Foi um
erro, eu errei. Mas foi só aquela vez.
— E agora, quantas vezes?
Solto um grunhido e a encaro. Estamos presos num ciclo.
— Tô falando sério — diz ela, com o nariz empinado. — Quantas vezes?
Balanço a cabeça.
— Não.
— Me conta.
Ela agarra meu braço para que eu a encare.
Eu me desvencilho dela.
— Não, Parks.
E já deu pra mim. Não consigo mais continuar com isso. Não tenho como
repetir mais vezes que o motivo pelo qual eu fiz aquilo foi porque eu queria.
Está acabando comigo, está acabando com ela, e ela quer respostas minhas
que eu nunca, nunca vou poder compartilhar.
Eu dou um passo para trás.
— Você sabe que, em algum momento no meio disso tudo, você vai
precisar encarar suas próprias merdas, Parks. Tá, eu estraguei tudo primeiro,
mas desde então você tá estragando tudo o tempo inteiro.
Ela se afasta como se eu tivesse acabado bater nela.
— Você namorou meu melhor amigo. Pelo visto, você se pegou com
Julian Haites — acuso. Ela revira os olhos. — Você ficou assustada porque
sua babá disse umas merdas sobre mim que você sabe que eram mentira, aí
começou a se envolver com todos esses caras aleatórios pra se sentir melhor
e eu ficar na merda, mas tudo isso foi você, não eu. — Balanço a cabeça para
ela. — Não te levei a fazer nada. Foi você que começou a namorar o Tom…
— Você estava com uma garota qualquer rebolando no seu colo no meio
da Raffles!
Estou tentando ler a expressão dela, tentando descobrir se ela está prestes
a chorar.
— Você sabe o quanto isso é vergonhoso? — exige.
Eu faço que sim, concedendo aquele ponto.
— Sim, eu estrago tudo, Parks. Eu sei. Eu posso ficar aqui parado e contar
todos os jeitos como eu estraguei tudo, mas não fui só eu. Eu não fiz você
correr até o Christian. Não fiz você correr até o Tom. Não fiz você correr
para nenhum dos outros brinquedinhos de merda que você fica balançando
na minha frente para me deixar com ciúmes…
— Você fez isso, sim, claro que fez. Você com o seu número absurdo de
peguetes, tão alto que passa até o Mick Jagger…
— Tá, Parks, eu entendi. Eu pego geral. É porque eu estou apaixonado
por uma idiota que não quer ficar comigo…
Ela parece brava, balançando a cabeça.
— Não é verdade, você sabe que não é…
— Beleza. — Eu assinto, o maxilar tensionado, os olhos vidrados. —
Talvez essa idiota ache que quer ficar comigo, mas foda-se. Talvez ela até
queira mesmo, mas ela não consegue, nem por tudo que há de mais sagrado,
fazer as pazes com o fato de que uma vez eu fiz uma escolha ruim e acabei
magoando ela, e agora não tenho como voltar atrás…
Ela está piscando diversas vezes, tentando não chorar.
— Mais de uma vez — diz ela, baixinho.
— Tá bom. — Dou de ombros. — Ela também já me magoou mais de
uma vez.
Nossos olhos se encontram, e ela me encara com raiva. Eu estou
encarando o cano de um revólver que está prestes a matar o nosso amor.
— E até você admitir que nós somos essa confusão também por culpa
sua, nada disso entre a gente vai funcionar.
O rosto dela fica vazio, e não sei se ela está me ouvindo. Se está me
ouvindo pra valer.
Então, os olhos dela ficam sérios.
— Então a gente nunca vai funcionar.
CINQUENTA E CINCO

BJ

Decido dar uma festa. Uma festa daquelas. Sem Parks, sem Paili, sem Perry.
Jo tentou me fazer mudar de ideia, aí eu falei para ele não vir então.
Já faz uma semana desde St. Dunstan, e não falei com Parks.
Já vi fotos dela com Tom andando pela cidade. Os dois de mãos dadas, ela
olhando para ele como costumava olhar para mim.
Então acho que ela fez a sua escolha, no fim.
Por isso a festa.
Todas as garotas gostosas que me mandaram mensagem nos últimos
meses, todas as garotas com quem eu transei e ainda tenho o contato, todas
as garotas com quem Parks ficava insegura na escola. Mando mensagem
para todas. Convido literalmente todas elas.
Definitivamente convido Alexis Blau, que está me sondando desde o
nono ano, mas tem estado mais presente nos últimos meses, sempre
tentando marcar de sairmos. Tinha evitado até agora. Parks viu o nome dela
aparecer uma vez enquanto usava meu celular. A reação dela foi dar play em
Diário de uma Paixão e pedir McDonald’s só para ela. Só voltou a falar
comigo na manhã seguinte.
Alexis Blau é um calo.
Não sei o motivo. Eu nunca nem toquei nela.
Mas pretendo fazer isso mais tarde.
Christian passa pela porta, dá uma olhada — provavelmente procurando
Hen, que está conversando com uma garota num canto, tagarelando sobre
algum livro para o qual ela não dá a mínima. Ela está apenas feliz de ter a
atenção dele, e a mão dele na sua coxa.
E ele está apenas feliz de fazer algo que deixe Taura com a cara que ela
está agora.
— Você veio com o Jo… — eu a informo.
— Eu sei.
Ela fica olhando para Henry com aqueles olhos redondos e magoados.
— Você está transando com o Jo.
Ela me lança um olhar.
— Eu sei.
— Porra, odeio garotas.
Balanço a cabeça para ela. Ela semicerra os olhos.
— Na verdade, acho que você está nessa confusão justamente por causa
do contrário.
Faço que não.
— Não estou em confusão nenhuma.
Christian se aproxima.
— Falando em confusão — diz Taura, abrindo um sorriso —, como está a
maior de todas?
Christian lança a ela um olhar irritado. Eu e ele nos encaramos. Então,
lhe passo uma cerveja. Ele se senta do meu lado e não diz nada. Fica
olhando o vazio durante um minuto. Depois, vira para mim.
— Tudo bem contigo?
Dou de ombros.
— Tudo, por que não estaria?
— Você e Jo só dão uma festa dessas quando um de vocês tá na merda.
— Seu irmão tá sempre na merda.
Christian ri. Eu puxo um saquinho. Taura se afasta, parecendo irritada.
Olho para Christian. Ele assente, mas está atento.
— Quantas já foram hoje?
Dou de ombros. Não estou sendo evasivo, realmente não sei. Foram
muitas.
— Quem se importa, caralho. Eu amo uma garota que não quer nada
comigo. Você ama uma garota que não quer nada contigo. Na verdade, você
ama duas, e nenhuma das duas quer…
— Valeu, cara.
— É louco que uma delas seja a mesma para nós dois.
Christian olha para mim.
— A gente tá de boas?
— Tá, cara. — Dou um tapinha nas costas dele. — Se alguém tem que
acabar na merda por causa dela…
Balanço a cabeça e cheiro uma carreira. Passo para ele a nota de vinte
enrolada.
Ele pega, cheira, joga a nota na mesa e se inclina para trás.
— Então essa é a nossa diversão hoje.
— E aquela. — Indico Alexis Blau com o queixo.
As sobrancelhas dele se erguem.
— Alexis Blau?
Faço que sim e pego uma bebida. É demais para o gosto de Christian,
acho, porque ele tira o copo da minha mão.
— Não vamos fazer isso hoje.
Reviro os olhos para ele.
— A gente tem uma overdose na vida e…
Ele fica sério, pega a bebida e vai embora com ela.
Eu me levanto, passo por Alexis Blau e aponto as escadas com a cabeça.
Ela pede licença da conversa que está tendo, segura a minha mão, e não
chegamos nem na metade das escadas, e já estou a apalpando por baixo do
vestido.
Christian provavelmente fez a coisa certa tirando a bebida da minha mão,
porque o mundo está começando a ficar borrado.
É exatamente como eu quero que o mundo fique, já que é um mundo em
que não tenho Parks. Borrado o bastante para que as curvas do corpo que
estou tocando possam ser as de Magnolia. E eu estou me enganando pra
caralho, porque eu reconheceria o corpo dela até vendado. Esse não é o dela.
Ela não se esfrega em mim desse jeito. Parks me faz trabalhar, como ela me
faz me esforçar por tudo — e essa garota está fazendo tudo por mim.
E eu não me importo mais. Eu me inclino para trás contra a cabeceira.
Me comportar exatamente da maneira como Magnolia espera que eu me
comporte me reconforta. Sinto que estou na minha razão, pela primeira vez
em anos, ao estar fazendo isso. Encaro o teto e respiro fundo enquanto
Alexis Blau desce pelo meu corpo.
Acho que estou mais chapado do que pensava, porque demoro cerca de
cinco minutos para perceber que tem outra garota na minha cama. Não sei
de onde ela surgiu.
E aqui estava eu pensando que Alexis Blau tinha mãos mágicas. Essa
outra também é da escola. Sei-Lá-o-Quê Talbot.
Também é da turma de Parks. Ela odiaria isso. Essa é a versão de mim
que ela detesta.
Fecho os olhos. Afasto ela da mente. Aproveito o momento. Estico a mão
para a mesa de cabeceira, monto mais algumas carreiras. Digo a mim
mesmo que não a estou perdendo, que já a perdi.
Agora é hora de me perder.
CINQUENTA E SEIS

Magnolia

É o aniversário do Perry. Eu não quero ir, mas Paili diz que eu preciso.
Segundo ela, Perry vai ficar muito magoado se eu não for, e, se é para
alguém não comparecer, deveria ser o BJ. Mas nós duas sabemos que o BJ
não vai faltar, então acho que vamos nos ver mais tarde.
Não nos falamos desde aquele dia na igreja.
Aquela conversa pareceu ser mais definitiva do que era a minha intenção.
Nós dois nunca vamos funcionar? É lógico que vamos, mesmo se ele for um
cravo e eu, a rosa — eu não me importo de me despedaçar para ficar com
ele.
Eu faria qualquer coisa por ele.
Não consigo me lembrar da última vez que ficamos sem nos falar por
tanto tempo. Já faz mais de quinze dias, e é como se tivesse se passado um
ano, um estado constante de ansiedade. Como se ele tivesse tirado meu
mundo dos eixos, um desbalanceamento inegável no meu universo, e esse
desequilíbrio é estranho, porque se manifesta de jeitos inesperados.
Meu coração está machucado — já há um tempo —, mas encontrou uma
muleta em Tom. Não só uma muleta, mas um tratamento hospitalar inteiro.
Se ele fosse um cirurgião, eu estaria em ótimas mãos. Só que ele não é, e eu
ainda assim estou em boas mãos.
Queria ter as palavras para definir Tom, erguê-lo num pedestal alto o
bastante, com um holofote brilhante o suficiente para mostrar como ele é o
homem perfeito…
E eu não sei mais o que somos, se você está se perguntando. Parei de
tentar definir, e ele não faz perguntas. Definitivamente não somos amigos,
mas, de alguma forma, é provável que ele seja o meu melhor amigo hoje em
dia. Fazemos sexo, e existem sentimentos. Sentimentos claros, como janelas
abertas, passarinhos cantando em galhos, e orvalho pela manhã — mas nós
dois sabemos que ele ama alguém que não pode ter, e eu amo alguém que eu
talvez não devesse.
Somos sinceros. Conto tudo para ele. De que adianta mentir?
Estamos juntos — é isso —, se for preciso nos rotular, e eu não deveria
fazer isso, porque é confuso demais tentar. Tudo que sei é que ele é um porto
seguro. Se BJ é a tempestade que está me afundando, Tom é o lugar onde o
navio do meu coração está sendo consertado.
Tom me levou às compras na Harrods de tarde.
— É para eu ir com você hoje à noite? — pergunta.
Acho que eu tinha mencionado de passagem há alguns dias.
— Ah.
Coloco a cabeça para fora do provador. Estou experimentando um
vestido curto de lã em tricô da Weekend Max Mara, que, na verdade, é
muito mais casual do que o meu estilo costumeiro, mas Tom e eu mal
saímos da cama hoje em dia, e usar tule é muito irritante em cima dos
lençóis.
— Achei que você não fosse querer — admito, surpresa.
Ele se recosta na parede.
— Parece uma tarefa de trincheira…
Eu saio do provador e vou até ele.
— Nosso status ainda é esse?
Ele pensa, afastando do meu rosto uma mecha de cabelo.
— Vou deixar você usar meu corpo por quanto tempo você quiser. — Ele
dá de ombros. — Como trincheira, escudo, trepa-trepa. Não ligo.
Eu franzo a testa.
— Talvez você devesse ligar um pouquinho…
— Eu ligo. — Ele franze o nariz e balança a cabeça. — Eu ligo muito pra
você, e você faz uma coisa com o rosto quando tá magoada, tipo um cervo
preso numa armadilha, aí eu preciso ajudar. — Ele diz isso como se fosse um
fato imutável. — E dá pra ver você tentando largar desse imbecil de merda
com quem você se enrolou por metade da vida. Um dia você vai ficar livre, e,
quando estiver, acho que eu sou o primeiro da fila.
Engancho o meu braço ao redor do seu pescoço e fico na ponta dos pés
para dar um beijo nele.
— Você é.
Vamos de carro até a festa, e Gus pergunta:
— Ele sabe que eu estou indo?
— Não — digo, balançando a cabeça. — Você é o presente de aniversário
dele.
Gus me lança um olhar.
— Sou caro demais pra você, querida.
— Eu sou muito rica. — Franzo a testa. — O Tom é mais rico. A gente
racha, né, Tommy?
Gus dá uma risada, e Tom dá uma fungada, achando graça.
Sinto uma onda de gratidão por Tom estar tão lindo. Ele usa um suéter de
lã penteada e caxemira cinza-claro da Incotex, jeans preto apertado da Dolce
& Gabbana e os coturnos de couro puro da Common Projects. Fica
brincando com a bainha da minha saia.
É a minissaia de lã e angorá plissada cheia de detalhes, muito bonita. BJ
comprou para mim. Ele também me deu o casaco que estou vestindo. O
casaco de lã com pelica sintética. As duas peças são da Gucci.
Estou usando a blusa sem manga decorada e canelada da Versace por
baixo (brilhante — literal e metaforicamente) e as botas de cano alto
Kronobotte 85 de Christian Loubotin. Eu pareço a garota dos sonhos de BJ,
e tudo foi pensado.
Eu sei que ele vai sacar que comprou a maior parte dessas roupas para
mim, e eu espero que imagine Tom as tirando do meu corpo mais tarde.
Chegamos no Dolce Kensington com uns quarenta minutos de atraso, e
eu me preparo para receber uma bronca de Perry quando entramos, mas ele
e Paili vêm diretamente até nós, os dois batendo palmas, sorrindo e quase
que formando uma parede de proteção.
— Meu Deus! — Perry agarra meu rosto. — Você veio! Eu te amo!
Eu me pergunto se Tom, sendo trinta centímetros mais alto que eu, está
vendo alguma coisa, porque os olhos dele pousam em algo, e ele se ajeita
para ficar perto da parede.
— Esse é o seu presente. — Eu empurro Gus nos braços de Perry. — Feliz
aniversário!
E Gus, abençoado, agarra o rosto de Perry e dá um beijo nele.
As bochechas de Perry ficam vermelhas, e eu também jogo uma sacola de
presente da Saint Laurent nos braços dele.
— O bar! — exclama Paili. — Vamos beber…
Lanço um olhar estranho para ela.
— Não tem garçom na mesa?
Ela faz um gesto com a mão.
— Claro que tem, mas o bar é legal. É melhor tomar shots na bancada.
Você não acha?
Ela olha para Tom em busca de ajuda.
Tom assente.
— Está certíssima.
Eles todos começam a me arrastar na direção do bar, para longe do que
eu presumo ser BJ fazendo alguma coisa que não querem que eu veja. Outra
garota rebolando no colo dele? Taura Sax? Não sei.
Tomamos alguns shots com um nome vulgar, e eu mal engoli quando
Perry já está batendo palmas dizendo:
— Mais um! Mais um!
Tom está fazendo o pedido, mas pra mim já deu. Eu saio de perto deles
para ver que porra está acontecendo.
São BJ e Alexis Blau. No sofá.
Eu nunca gostei da Alexis Blau. Eu a ouvi no banheiro da escola uma vez
dizendo que, se eu não tivesse um pai famosinho, BJ estaria com ela, o que é
ridículo, porque eu sou muito mais bonita.
Ela sempre teve crush nele e fica mandando mensagem o tempo todo.
Ele nunca me disse isso — ele não diria, porque sabe que eu ficaria com
ciúmes —, mas nem precisava, porque eu adivinhei a senha do celular dele.
(São nossos anos de nascimento de trás para a frente. Precisei de dois anos
para descobrir.)
Tento ignorar a cena. São coisas que prefiro não ver, como se eu estivesse
apunhalando meu próprio coração. Mas, verdade seja dita, ele nunca deu
muita bola para Alexis. Nem mesmo quando pensava que eu não estava
vendo. Agora ele está dando bastante bola para ela. Carícias prolongadas.
Pegação. As mãos dele estão bem para dentro da saia dela. Não consigo ver
todos os dedos.
Eu volto para os meus amigos, tentando parecer corajosa, e me deparo
com várias caretas.
— Tá tudo bem — digo, rindo. Nenhum deles acredita. Sorrio mais
ainda. — Gente, uma vez eu literalmente vi ele transando com outra pessoa,
se não me engano. A língua de uma garota nojenta na orelha dele.
Dou de ombros.
Paili está com as mãos nas bochechas. Como as mãos dela estão sempre
frias, ela está tentando dar um jeito no rosto corado.
— Eu não ligo — repito para todos.
Olho para Tom em busca de apoio, mas a cara dele é de tensão.
Suspiro, reviro os olhos e pego a mão dele para voltarmos à festa.
— Ei, ei — chama Christian, erguendo as sobrancelhas num
cumprimento bem qualquer coisa.
Henry sorri, se levantando para me abraçar. Também parece nervoso.
Eles acham que eu sou uma bomba-relógio? Ele me segura com mais força e
por mais tempo do que o necessário, e algo nesse gesto me deixa nervosa.
— Tá tudo bem? — pergunta enquanto se afasta, olhando para mim. Ele
não espera uma resposta enquanto aperta a mão de Tom. — Vamos pro bar?
Henry aponta.
— Não. — Franzo a testa, impaciente. — Eu não quero ir pro bar. O que
tá acontecendo?
— Nada.
Ele ri de um jeito que parece forçado.
Eu fico observando BJ durante alguns segundos. Não consigo dizer se ele
já me viu, e não sei o que é pior. A forma como ele está beijando Alexis é
meio desesperada e estranha, mas não é nada sexy. É como se uma pessoa há
dias no deserto encontrasse uma garrafa de água.
Ele parece suado. Corado, ou algo assim. Fico com uma onda de náusea.
Espero que eles decidam logo ir para o banheiro — que vergonha todo
mundo ter que presenciar isso.
— Por que ele tá tão bêbado? — pergunto a Henry, franzindo a testa.
São tipo nove da noite.
— Talvez por você estar aqui com Tom England, caralho — diz Jonah
alto, me olhando com irritação.
Nesse momento, BJ se afasta de Alexis e olha para mim. Seu rosto não
demonstra nenhuma emoção. Ele apenas pisca, o semblante vazio. Quanto
ele já bebeu?
Tom está parado atrás de mim e segura meus braços, me firmando no
lugar.
— Eu acabei de chegar — digo a Jonah, e gesticulo para Bê. — Isso não é
culpa minha.
— Tanto faz, pistoleira. — Jonah abana a mão, irritado.
BJ bufa e dá uma risada bêbada.
— Do que você acabou de me chamar?
Pisco aturdida para o meu amigo de longa data. Jonah fica em pé.
— Você ouviu.
— Ei — diz Christian, se levantando, a testa franzida.
Jonah coloca a palma da mão no peito do irmão.
— Você só pode estar de brincadeira, porra.
— E você tá? — Christian se coloca entre mim e Jo. — Se Bê não estivesse
tão transtornado, ele não deixaria ninguém falar com ela assim.
Com isso, BJ empurra Alexis para longe do colo dele. É um gesto
impensado. Ele a empurra como se ela fosse um cobertor e é a primeira
coisa que faz ao acordar. Ela nem sequer terminou de sair de cima quando
ele fica em pé. Ela meio que cambaleia no sofá, encarando-o, incrédula — e
eu também, honestamente. Nunca o vi tratar ninguém desse jeito. Como se
não fosse uma pessoa, apenas um brinquedo para se distrair.
Ele vem até nós e fica cara a cara comigo, me olhando.
Algo nele parece irreconhecível, mas também familiar. Há um
distanciamento nos seus olhos que eu não reconheço de imediato. A
distância é mínima entre nós.
Ele está com o maxilar tenso, as sobrancelhas rígidas, os olhos sérios.
Tom não me solta, mas BJ nem sequer dá atenção para ele. Ele apenas vê a
mim.
BJ franze o nariz. Dá uma fungada.
Eu o encaro demoradamente, meus olhos nos dele. Então me dou conta.
Congelo.
— Você tá cheirado? — pergunto baixinho.
Ele me encara por um segundo e dá uma risada.
— Não.
Eu me aproximo mais, só que está escuro demais. Não consigo ver.
— Tá? — pergunto, mais alto.
— Não — responde ele, mais rápido.
Meu coração está acelerado.
— BJ…
— Não estou — diz ele, alto demais, e dá de ombros. — Deixa de ser
chata, Parks.
Ele limpa o nariz com as costas da mão, inconsciente.
Olho para as pessoas ao redor dele — os garotos agora estão todos de pé,
pairando ou esperando, e algo naquilo é estranho — e, se eu fosse
especialista em linguagem corporal, teria enxergado antes: os olhos de
Christian evitando os meus, os punhos flexionados de Jonah, Henry com a
mão pressionada contra a boca. Só que eu não sou especialista em
linguagem corporal. Não ligo nenhum desses pontos, mas sinto algo mesmo
assim — sinto em meus ossos que alguma coisa está errada.
Eu espero alguns segundos, encarando o amor da minha vida, que mal
está piscando, mas, quando pisca, são movimentos lentos sobre os olhos
enevoados.
E o que acontece em seguida acontece com tanta rapidez que eu nem faço
isso de forma consciente. Estou parada cara a cara com ele num segundo —
e, no seguinte, estou empurrando-o para trás na direção da luz, agarrando o
cabelo dele e puxando o rosto dele na direção do teto.
— Você tá cheirado, porra? — exijo, fazendo com que eu consiga ver as
pupilas dele no ângulo certo.
— Sai de cima de mim!
Ele arranca minhas mãos com força, afastando meu braço, porque está
completamente drogado. E eu… estou em estado de choque profundo e, de
repente, batendo nele, e ele, cheirado, me empurra para longe. Eu caio para
trás, e Jonah me pega, dando ao melhor amigo um olhar arregalado. Bê me
encara, apavorado, e eu o olho de volta, incrédula. Então Tom chega e vem
com tudo.
Sinto como se a festa inteira estivesse agora nos observando.
Devia ter música tocando, mas juro por Deus que fica um silêncio
sepulcral.
O soco vem com um baque sólido, e BJ não faz nada para impedir. Deu
para ouvir o som de osso contra osso, o da mão contra o da mandíbula.
Tom parte para cima dele, então um segurança agarra o pulso dele, e
outro segurança agarra BJ, e eles empurram os dois na direção da porta — e
Jonah ainda está me segurando, mas eu o afasto. Esse maldito traidor.
— Parks! — me chama Jonah.
— Fica longe de mim — berro, afastando a sua mão conforme corro para
fora atrás de BJ e Tom.
CINQUENTA E SETE

BJ

Eu nem sei o que fazer. Sinto como se tivesse algo entalado na garganta.
Seria capaz de chorar, vomitar, me matar. Fico feliz que ele tenha me batido.
Eu precisava. Eu merecia, e era o que ele deveria mesmo ter feito.
É o que eu teria feito se não estivesse tão fora de mim, mas, como é o
caso, eu estou completamente fora de tudo. Fora de mim, fora do mundo,
pronto para estragar tudo e jogar aos quatro ventos. Pronto para perdê-la
finalmente para alguém que é digno de estar com ela.
Estamos na rua — um lugar ruim para eu e Parks estarmos, já que
sempre tem câmeras em algum lugar, mas eu não me importo.
Eu só quero que ele me bata de novo. Tire, por um instante que seja, a
dor do que eu acabei de fazer. Então, ela cambaleia para fora atrás de nós, Jo
em seguida — acho que está tentando agarrá-la para levá-la embora.
Provavelmente ele está tentando mantê-la longe de mim.
Porque eu empurrei ela. Puta que pariu — eu empurrei ela.
Ela, que eu amo mais do que qualquer outra coisa, a pessoa que eu passei
a vida inteira querendo, e quem eu magoei mais do que qualquer um.
Os garotos surgem às pressas. Gus aparece atrás de Tom. Magnolia ainda
está brigando com Jo, que está praticamente lutando com ela para mantê-la
longe de mim, então Henry intervém.
Jonah e Henry trocam um olhar, que, por mais chapado que eu esteja, sei
que não tem nada a ver com Magnolia. Porém, é mais fácil fingir que é isso.
— Larga ela, porra — diz Henry, tirando Parks do nosso melhor amigo.
Tudo está desmoronando. Ou será que sou eu que estou desmoronando
tudo? Não sei dizer.
Ela meio que desaba nos braços do meu irmão, e fico feliz por isso — está
segura com ele. Vejo Henry abraçá-la como eu gostaria de fazer e fico me
perguntando se algum dia vou poder fazer isso de novo, então levo outro
soco.
A multidão reunida ao nosso redor prende o fôlego.
Passo a língua nos lábios e sinto o gosto de sangue. Olho para England.
Ele balança a cabeça. Eu quero que ele me humilhe, mas não há nada que ele
possa dizer agora que eu já não esteja pensando sobre mim mesmo.
— Eu te odeio — diz Magnolia, segura nos braços do meu irmão.
— Quer saber, Parks? Digo o mesmo — cuspo. — Te odeio.
Ela sai dos braços de Henry e corre até mim, os olhos vidrados.
— Qual é o seu problema? O que você tá fazendo?
Coloco uma das mãos no peito dela e aumento a distância entre nós.
— Fica longe de mim — digo.
Parece ser o que eu quero, mas a verdade é que estou com medo de mim
mesmo.
O queixo dela está tremendo quando ela pergunta, baixinho:
— Por que você começou a usar de novo?
— Porque você está acabando comigo, Parks — grito. — Você está
acabando comigo, porra.
Eu esfrego os olhos. Não sei por que estão molhados.
Ela balança a cabeça, franzindo a testa.
— Você tá mesmo tentando me culpar por isso? — Ela respira fundo,
uma respiração chiada, e me olha como se eu fosse um inseto. — O que você
está fazendo, porra?
— Te perdendo — digo a ela.
Ela estica a mão para mim.
— Não está, não…
Afasto as mãos dela.
— Para com isso.
Ela pisca, confusa.
— Quer dizer, talvez agora você esteja.
— Ótimo! — grito, com um tom categórico que eu odeio.
Ela pisca.
— Ótimo? — pergunta ela.
Se eu tivesse óculos especiais, para ver coisas invisíveis — o que não é
necessário com ela, porque consigo ver coisas invisíveis de qualquer forma
—, eu chamaria isso de golpe fatal.
Não sei por que foi, o que tinha nessas palavras que aplicaram um golpe
tão duro, mas começo a ver as rachaduras aparecendo.
Esfrego o rosto de novo. Minhas mãos saem molhadas.
— Eu… caralho! O que você quer de mim, Parks?
Ela parece confusa.
— Nada!
— Você não quer nada de mim? — Eu afasto a cabeça. — Então por que
eu estou aqui, hein, caralho? O que eu estava fazendo nesses últimos três
anos?
— Não foi isso que eu quis dizer. — Ela balança a cabeça. — Eu não me
importo, Bê. Eu não ligo que você não faça nada da sua vida. Não ligo que
você se embebede no final de semana. Posso até relevar o fato de você ser
um puta safado…
— Eu que sou safado? — interrompo, balançando a cabeça e dando uma
risada cruel. — Você é uma piada, Parks.
Eu a encaro, dando à frase uma pausa longa o bastante para chegar nela
antes de atingi-la com o que vem a seguir.
— Você me ama. Todo mundo sabe que você me ama. — Gesticulo ao
nosso redor. — Eu sei que você me ama. Seu namorado sabe que você me
ama. Até mesmo você sabe que me ama. Só que é com ele que você está
trepando — grito, e soa horrível. — Então quem realmente é o safado aqui?
Tom balança a cabeça, puxando-a para trás de si.
— Já chega — diz ele.
Ótimo, cara, uma parte de mim pensa. Fico grato por ele ser para ela o
que eu não posso ser.
Ela olha para mim, a cabeça surgindo por cima do ombro dele.
— Você me prometeu…
Ela está chorando agora. Chorando de verdade. Ela não chora assim
desde a noite em que eu fui até ela com o cheiro do perfume de outra
pessoa.
— É, e daí? — Dou de ombros como se fosse indiferente. — Te prometi
um monte de coisa.
Ela me encara, assentindo de maneira quase imperceptível.
— Prometeu mesmo.
Os olhos dela piscam, implorando para que eu conserte isso antes que ela
precise dizer o que deveria ter dito esse tempo todo.
Não digo nada, não faço nada. Observo enquanto ela se afasta. Observo
enquanto eu a empurro para longe.
Ela assente com uma finitude que me assusta pra caralho.
— Cansei de ficar esperando você ser quem eu achei que você fosse.
— Cansou? — repito, respirando fundo.
— Sim — a resposta dela é baixa.
Balanço a cabeça.
— Não fala essas merdas quando você não está falando sério…
— Me escuta, tá? — Ela balança a cabeça para mim. — Acabou. A gente
acabou.
Pressiono meus lábios, coloco uma das mãos em cima e esfrego o muco
que eu nem percebi que estava lá.
Assinto.
— Finalmente — digo, fungando.
E ela começa a chorar, os ombros sacudindo como uma boia num mar
tempestuoso. Ela nunca chorou dessa forma na frente de ninguém exceto eu,
e está aqui chorando na Harrington Road para o mundo inteiro ver. Apesar
de estar mais drogado do que já estive em anos, começo a me perguntar
quantas pessoas numa vida alguém tem a chance de amar do jeito que eu a
amo. Não podem ser tantas assim. Quantos amores se tem numa vida?
Alguém me fala que são dois.
Puta que pariu.
Por favor, alguém me fala que são dois.
Jo me puxa para trás, me afastando dela, e acho que os laços que nos
unem se rompem. Sinto como se tivesse escutado o som deles arrebentando.
Não são dois.
Jo me arrasta para longe.
— Vamos, cara, já deu.
E eu me debato contra ele, porque não deu.
Nunca vai ter dado. Não há o bastante quando se trata dela. Nunca é o
bastante, e eu nunca vou ter acabado.
CINQUENTA E OITO

Magnolia

Não sei como chego em casa depois disso. Não me lembro. Eu me lembro de
BJ dizer “finalmente” e de Tom me abraçar e me puxar para longe, e me
lembro do cheiro dele — patchuli, bergamota, lavanda e carvalho. Devia
estar sentindo o cheiro dele enquanto chorava espremida em seu peito.
Tive uma daquelas noites de sono em que a gente deita a cabeça no
travesseiro e apaga na hora. Acho que foi por conta de todo o choro. Não
chorava desse jeito tinha anos. E o sono foi como uma borracha
momentânea, apagando tudo.
Então eu acordo, e já é manhã.
Já é quase de tarde, aliás.
Tom está deitado na cama ao meu lado, me observando. O rosto dele
parece bastante triste e sério.
— Oi — diz.
Ele me dá um sorriso que na verdade é uma carranca.
— Oi.
Ele afasta do meu rosto uma mecha do cabelo.
— Como você tá?
A pergunta parece estranha, e, por um segundo, eu me pergunto o que
aconteceu, o que foi que eu perdi, e por que eu estaria me sentindo mal?
Forço as memórias a voltarem, para além do sono profundo e da volta para
casa, para além do choro. Por que eu estava chorando tanto? Isso tudo não
leva mais do que alguns segundos. Por que eu estava chorando? BJ. A
resposta é sempre BJ.
O que isso diz sobre nós?
Não existe mais “nós”.
Pego a mão de Tom e a viro na minha para inspecionar. Ele deu dois
belos socos. Está com os nós dos dedos arranhados e um pouco inchados.
Eu suspiro.
— Desculpa.
Ele balança a cabeça.
— Vou pegar um pouco de gelo — ofereço.
— Não, eu tô bem…
Eu o ignoro e dou um beijo nele rapidamente antes de descer as escadas.
Estou usando uma camiseta de Tom, que tem o cheiro dele. Levanto o
colarinho até o nariz e inspiro, e me sinto um pouco mais calma.
Entro na cozinha, e minha família inteira olha para mim. Estão todos
reunidos ali — todos mesmo —, parados em pé ao redor do balcão de
mármore.
Até mesmo minha mãe, que nem mora mais aqui.
— Você tá bem? — pergunta minha irmã, vindo na minha direção.
— Como assim?
Franzo a testa.
— Os jornais, as revistas, a internet… tá todo mundo comentando.
Marsaili se aproxima com cautela.
— Disseram que você se envolveu numa briga que teve até agressão…
Fico em silêncio e me afasto da minha irmã para pegar gelo.
— E aí? — Bridget pisca. — É verdade?
Me mantenho calada, encontro um pano de prato e jogo diversos cubos
de gelo nele.
— Ele te machucou? — perguntou meu pai.
Não a olho nu.
— Eu tô bem — informo.
— E o gelo é pra quê? — pergunta Bushka, os olhos semicerrados.
Penso na pergunta.
— BJ não está tão bem.
Os olhos de Marsaili se arregalam.
— BJ está lá em cima?
Balanço a cabeça.
— Tom está lá em cima.
— Você acabou de dizer que BJ está lá em cima…
— Não, eu disse que BJ “não está tão bem”. Porque o Tom bateu nele, é o
Tom que está lá em cima, com a mão machucada. Então, licença… — Olho
para minha mãe, que está usando o vestido longo decotado com recortes
marrom da Cult Gaia. — Escolha curiosa para uma manhã de quase
inverno…
Ela olha para si mesma.
— Não gostou?
Analiso-a de cima a baixo.
— Não, eu amei, na verdade.
— Obrigada, mas espera… — Os ombros da minha mãe despencam
enquanto ela franze a testa para mim. — Você tá bem?
— Sim.
— Os jornais disseram que vocês terminaram…
Assinto.
— Terminamos.
Minha mãe parece confusa.
— Mas você tá bem…
Eu assinto mais uma vez, breve.
— Então pra que eu me dei ao trabalho de vir pra cá tão cedo?
Bridge olha o relógio.
— É meio-dia.
— E você agora não está morando do outro lado do parque? — pergunto.
— Alguns pais talvez considerem positivo ela estar bem… — sussurra
Marsaili.
Minha mãe revira os olhos para todos nós.
— Fico feliz que você esteja bem, querida. Sinceramente. Você e BJ vão se
resolver, como sempre se resolvem.
Abro um sorriso tenso.
— Não dessa vez.
Eu dou meia-volta e subo apressada as escadas até Tom. Bridge corre
atrás de mim.
— Não dessa vez? — repete. — O que isso quer dizer?
— Que acabou tudo.
Continuo subindo as escadas.
— Até parece.
Eu a ignoro.
— Estou falando sério.
— Não está, não! — diz ela.
Eu paro e olho para ela. Ela o ama, sempre amou. Ele sempre esteve por
perto, durante a vida dela inteira. Ela também cresceu junto dele. Ela tira
férias com os Ballentine, vive dormindo na casa de Allie. A traição de BJ foi
tão difícil para Bridget quanto para mim — em certos aspectos, até mais
difícil. Demorou mais tempo para ela perdoá-lo e aceitá-lo de volta. Acho
que aquilo a assustaria, se eu e BJ terminássemos de verdade. Ele é tão
importante para ela. E ela me escolheria, eu sei que sim. Só que prefere não
ter que escolher.
— Ele está se drogando de novo — revelo.
Ela arqueja e encara o tapete por alguns segundos.
— Tem certeza?
Faço que sim.
— Ele me empurrou.
Bridget mantém a cabeça baixa conforme sobe as escadas na minha
direção, e aí me dá um abraço apertado.
— Eu sinto muito…
— Para com isso — digo, sem me mexer.
— Você precisa disso — informa.
— Eu não…
— Estou aumentando seus níveis de dopamina e serotonina.
— Por favor, para agora mesmo.
Ela dá um grunhido e me solta, balançando a cabeça.
— Por que você está agindo como se estivesse tudo bem?
Encontro o olhar dela e sustento durante alguns segundos.
— Eu não tô bem.
Volto para o meu quarto, subo na cama e engatinho na direção de Tom.
Ele me coloca no colo dele e me abraça. Seguro o gelo contra a sua mão, e
ele descansa o queixo no meu ombro.
— Parks…
Eu olho para ele.
— A gente poderia ser de verdade — diz ele. — Isso aqui poderia ser de
verdade.
Penso no assunto.
— O que nós somos agora?
Ele dá uma risada curta e pressiona a boca contra o canto da minha.
— E eu lá sei?
— Mas não é real? — pergunto.
Tom beija meu ombro de uma forma distraída.
— Não sei — responde ele, a boca abafada contra a minha pele. — O que
eu sou pra você?
Eu me inclino contra ele, apertando nossos lábios no outro enquanto
reflito sobre a pergunta.
— A máscara de oxigênio — digo, encarando-o — que se solta do teto
quando o avião está caindo.
Ele me abraça com mais força.
— Tá de bom tamanho pra mim.

10:12
Henry

Ei

Oi

Eu te amo

Também te amo

Para sempre.

Eu sei.

Que saco.

Sinto muito, aliás. Que tudo isso tenha rolado.

É, eu também.

Mas você sempre vai ser meu melhor amigo, Henryzinho.

Mais do que a Paili?

Mais do que qualquer um.

Você tá bem?
Sei lá.

Posso fazer alguma coisa pra ajudar?

Não deixa ele ter uma overdose.

Prometo.
CINQUENTA E NOVE

BJ

O que acontece em Amsterdã fica em Amsterdã. Esse sempre foi o lema.


Estou me lixando agora se isso é verdade ou não. Já deu toda a merda que
poderia dar, e eu não tenho mais nada a perder.
Amsterdã é aonde eu e os moleques sempre vamos quando tudo vai pra
merda. E nunca vai ser demais enfatizar que: tudo deu merda de vez.
Eu e Christian resolvemos nunca mais amar ninguém. Henry e Jonah
podem ou não estar apaixonados pela mesma garota.
Que confusão.
E não podemos falar sobre isso. Não posso falar com Christian sobre
perder Parks. Henry está puto comigo porque ele está sempre do lado dela
automaticamente. E Jonah está sendo Jonah, não está falando nada pra mim
agora — está apenas observando, garantindo que eu vá ficar inteiro.
No momento, conversar é algo obsoleto para todos nós. Há um atraso
entre o que aconteceu e o tempo que demora para processarmos.
Eu nunca sei exatamente como me sinto sobre uma coisa até eu me
deixar levar por isso.
De quantas bebidas, quantas carreiras, quantas garotas eu preciso para
não sentir mais nada aqui dentro?
Então vamos para a Holanda, numa viagem só dos moleques.
Normalmente, quando fazemos essas viagens, eu volto para casa cheio de
arrependimento, preocupado que alguma foto possa vazar, que alguém vá
abrir a boca, que o que eu fiz de alguma forma chegue em Parks e ela me
veja exatamente como eu sou. O que é, infelizmente, um homem bem pior
do que ela acha. Porém, dessa vez, não me importo.
Eu só faço merda, e ela sabe disso. Eu sou o cara que só faz merda e a
pessoa que ela não aguenta mais, então só peço a Deus que seja lá o que eu
fizer hoje à noite seja o suficiente para amanhã estar em todas as notícias e
ela veja quando acordar e se sinta péssima.
Porque eu estou me sentindo péssimo.
Transo com a concierge do hotel uma hora depois de chegarmos.
Estou bebendo desde que entramos no avião. No início da tarde, já estou
caindo de bêbado, e vamos para uma daquelas boates 24 horas no
subterrâneo, famosas no mundo todo. Ficamos lá até amanhecer — só na
base da cocaína, porque os moleques estão dando uma de titia e tirando as
bebidas da minha mão.
Transei à noite também. Ou acho que era noite? Difícil dizer. Era fácil
perder a noção do tempo. E isso é exatamente o que eu quero, acho. Perder a
noção do tempo até ela me aceitar de volta.
O que, aliás, ela não vai. Ao menos não segundo Henry. Ele repete isso
algumas vezes.
Eu explicaria mais se fosse capaz, mas não sou. Não consigo me lembrar
dos primeiros quatro dias de viagem.
O que diz muito.
O quanto estou na merda?
Nota 11 de 10.
Christian está tão mal quanto eu. Pior, talvez. Eu já perdi a Magnolia
antes… mas a parada da Daisy pegou forte.
Ele a amava mais do que ele próprio sabia.
Na viagem de volta para a Inglaterra, Christian solta:
— Segunda rodada daqui a duas semanas?
Henry aperta os olhos, cansado.
— Quando é isso?
Christian dá de ombros.
— Primeira semana de dezembro?
Ergo os olhos, comprimindo os lábios.
Jonah assente.
— Tô dentro.
Henry despenca com o rosto para o lado.
— Tenho uma parada da faculdade, mas vou tentar. Tem ideia de lugar?
Praga?
— É. — Christian dá de ombros. — Ou Funchal?
— Não posso — respondo, olhando para o celular porque não tenho
coragem de olhar para eles.
— Por quê? — pergunta Christian.
Dou de ombros.
— Já tenho coisa marcada.
— O quê? — questiona Henry.
— Uma coisa.
— Tá, mas o quê? — repete ele. Lanço um olhar demorado para meu
irmão, e então decido encarar a janela. Henry se vira para Jo. — Você sabe?
Jonah balança a cabeça e dá de ombros.
— Coisa de trabalho? — insiste Henry, o chato.
— Aham — minto. — Trabalho.
SESSENTA

Magnolia

Tom nos leva para o Grand Resort em Bad Ragaz — fica só a uma hora de
Zurique, e nós não publicamos nada sobre eles na Tatler há algum tempo,
então eu nem preciso fingir que estou gripada para dar uma fugida.
Há uma tranquilidade aqui, e sinto como se estivesse mais distante de
Londres do que estou.
Viemos em grupo — Tom e eu, Paili e Perry. Ele insistiu nisso, na
verdade. Disse que não os conhecia tão bem e sente que deveria.
Durante o voo, Perry ficou sentado com ele na cabine, e Paili e eu ficamos
bebendo vinho nos fundos.
— Ele deve estar tentando tirar a sua cabeça da situação — disse ela, e eu
concordei. — Vocês estão transando?
Confirmei mais uma vez. Ela sorriu um pouco.
— Olha só! Transando. Meu Deus, talvez você esteja de fato superando…
Até mesmo em retrospecto, eu não sei dizer se essas palavras me fizeram
sentir alívio ou tristeza. Talvez as duas coisas.
— Como ele é?
— Comparado ao BJ? — perguntei.
Ela se mexeu sem jeito e deu de ombros, mas os dois são as únicas
pessoas com quem estive, então imagino que era disso que ela estava
falando.
— Assim, eu não transo com BJ há anos, desde a… sabe…
Sua expressão ficou melancólica, e a boca dela se franziu, triste por mim.
— Mas, pelo que lembro, é diferente. Eu aprendi a transar com BJ. Nós
sempre falávamos muito e ríamos, e… ele conhece meu corpo melhor do
que ninguém…
Afinal, meu corpo cresceu nos braços dele.
Ela me lançou outro sorriso tristonho.
— E o Tom?
— O Tom? — Sorrio. — Meio que parece um sonho o tempo inteiro. —
Sinto as bochechas corarem. — Não sei. Toda vez que a gente transa, pelo
menos uma vez eu abro os olhos e penso “Nossa! Olha a gente! Fazendo
isso! Como foi que aconteceu?”.
Ela riu.
— Ele faz jus à reputação dele, depois do que nós vimos no barco?
Fico ainda mais corada.
— Faz, sim.
O hotel é lindo, aliás. Lógico. Tudo que envolve Tom é lindo. Desde suas
escolhas até seus olhos, o cabelo, a voz, os ombros, o sorriso e até as mãos.
Eu não sei por que ele me levou até ali, se foi por qualquer outra razão
que não seja me levar para longe para que eu tivesse espaço. Mas, nesse
espaço que ele me proporciona, tudo que consigo pensar é no que minha
vida poderia ser, se eu conseguir fazer o que estou tentando.
Como seria minha vida se eu cortasse BJ dela de vez? Porque a vida que
eu penso que teria com Tom seria uma boa vida… e não tem a ver com
dinheiro. Eu tenho dinheiro. É o jeito tranquilo dele, a forma como ele anda
pelo quarto, a maneira como segura meu joelho quando estou sentada ao
seu lado, seus olhos atentos, o jeito como a minha mão inteira mal consegue
envolver dois dedos dele. E a consideração que ele tem.
E sei que ele não é meu por completo. Sei que ele ama outra pessoa, mas
eu também amo — e talvez esteja tudo bem, porque talvez exista, de fato,
mais de um amor numa vida. Talvez BJ seja o grande amor da minha vida,
não porque ele foi um grande amor, mas porque ele foi marcante. E talvez
Tom seja o amor que me redimirá em vida e, quem sabe, isso seja melhor
ainda…
É divertido viajar com Perry, Pails e Tom. Não temos dramas entre nós.
Paili e Tom se dão muito bem. Perry tende a ficar com ciúmes quando Paili
gosta mais de alguém do que dele, mas o charme de England novamente
prevalece.
Eu amo viajar com Perry, porque ele está sempre disposto a experimentar
coisas esquisitas comigo.
Tom ficou perplexo com a minha sugestão de ir numa massagem tibetana
com tigelas, mas Perry se animou na hora e não precisou de nenhum
suborno para me acompanhar.
— Algum deles falou com você? — me pergunta ele enquanto estamos
esperando na sauna.
Balanço a cabeça.
— Nem o Henry?
Dou de ombros.
— Eu sempre falo com o Henry, mas nunca sobre o irmão dele.
Perry fez uma careta.
— Eles fizeram a maior farra em Amsterdã.
— Não tenho dúvidas.
Mantenho o rosto impassível, e ele me observa durante alguns segundos.
— O que aconteceu antes que você não contou? — pergunta ele.
Eu o encaro.
— Você não estava nem aí quando uma garota estava com a língua no
ouvido dele, mas você se importou de ele estar se drogando. O que
aconteceu?
Eu o encaro por alguns segundos. Penso em mentir, despistá-lo da
verdade de que já deve desconfiar, mas no fim decido ser sincera.
— Ele teve uma overdose.
Não quero mais mentir por ele. Não quero mais saber de mais nada dele,
suponho.
Perry pisca algumas vezes.
— Quando foi isso?
Pressiono os lábios, fingindo que a data não está gravada na minha
mente, fingindo que eu não consigo ver a testa suada, os olhos esbugalhados,
o nariz machucado e os chupões no corpo inteiro ao menos uma vez por
semana, quando ainda tenho pesadelos com a cena.
— Há uns dois anos. Ou um pouco mais.
— Caralho.
— É.
Ele pensa um pouco.
— O beijo — diz ele. — No cinema, em Leicester Square. Paili e eu
sempre ficamos nos perguntando sobre isso.
Eu viro para ele, e meus olhos se suavizam diante da memória. A
sensação no meu peito e a vontade incontrolável de beijá-lo, não importava
o que custasse.
— Aliás, por que a gente estava no cinema? A gente vai em premières, e
não em sessões diurnas. — Perry faz uma careta de desgosto, e eu rio. —
Você vai mesmo cortar laços com ele? — pergunta depois de alguns
segundos.
Provavelmente não, mas estou sendo sincera quando digo:
— Espero que sim.
SESSENTA E UM

BJ

Estou aqui na expectativa de vê-la. É uma das paradas da mãe dela. O baile
de gala de uma associação cheia de letras na sigla. É para angariar fundos
para as crianças. Não sei que crianças são essas e posso ser meio babaca por
isso, mas não estou aqui pelas crianças. Estou aqui pela garota.
Tenho tanta certeza de que ela vai comparecer que, quando chego no
endereço, já estou na terceira carreira cheirada e preparado para vê-la entrar
de mãos dadas com o filho da puta do Tom England, num vestido que faz eu
querer me matar e, ao mesmo tempo, tirar a roupa dela.
Observo a porta fervorosamente.
— Querido — diz minha mãe, batendo no meu braço. — Espera um
pouco, ela vai chegar.
Ela ajeita meu cabelo, e eu despenteio mais uma vez, com um olhar
desolado.
— Mãe…
— Que foi? Está uma bagunça.
— Eu arrumei — replico, franzindo a testa.
— Eu sei — concorda ela. — De um jeito bagunçado. Parece que você
acabou de sair da cama.
Ergo as sobrancelhas para ela.
— Essa é a intenção.
— Uma intenção idiota — murmura ela baixinho, então olha para mim.
— Magnolia vem com aquele tal do Tom England?
— Provavelmente — digo, assentindo. — Estão namorando.
— Ele provavelmente nunca traiu ela — comenta minha mãe, pesarosa.
— Provavelmente não.
Lanço a ela um olhar exasperado e viro a bebida.
— Ah, enroladinhos! — diz ela, cantarolando e saindo às pressas atrás do
garçom.
Fico aliviado por ela ter ido embora, então olho para a porta mais uma
vez, e o pai de Magnolia entra com Marsaili.
Todo mundo os encara por alguns segundos, o ruído da sala diminuindo
de uma vez só — e então é como se todos percebessem juntos o silêncio que
se instaurou, e tudo volta à tona.
Meu coração está na boca enquanto espero. Não me importo que ela vai
estar ali com England, vou ficar apenas feliz em vê-la. Aqueles olhos que vão
me encarar com raiva, e a boca em biquinho. Posso provocar uma briga com
ela para que ela se dirija a mim, talvez.
Sinto saudades da voz dela.
Sinto saudades da forma como ela morde o lábio inferior quando faço
algo de que ela não gosta. Reflito sobre quem mais está aqui na festa que eu
poderia beijar na frente dela e deixá-la irritada.
E então uma Parks aparece.
É Bridget, e não Magnolia. Nossos olhares se cruzam, e sinto meu rosto
desmoronar. Ela me dá um sorriso triste e se aproxima, cautelosa. Está
parecendo um pouco a Cinderela.
— Dois eventos no mesmo ano? — Eu me espanto, beijando a bochecha
dela. — Foi você que escolheu essa roupa?
Ela me lança um olhar.
— Ela acha que eu sou a bonequinha dela.
Assinto algumas vezes.
— Ela está me evitando?
A boca dela se aperta.
— Ela está na Suíça.
— Me evitando.
— E ela tem culpa? — pergunta Bridget, as sobrancelhas erguidas.
Tiro o celular e verifico a data. É 1º de dezembro.
— Quando ela volta?
— Hum — murmura ela, tirando uma taça de champanhe da bandeja de
um garçom passando por perto. — Acho que amanhã.
Não é minha intenção, mas eu suspiro aliviado.
Bridget me observa durante alguns segundos.
— Com quem você veio?
— Com a minha mãe.
Dou um sorriso fofo. Ela assente, tranquila.
— Sua mãe sabe que você está cheirado?
Encaro-a por alguns instantes, irritado.
— Não.
Bridge ergue as sobrancelhas durante alguns segundos, então balança a
cabeça.
— Você está tentando afastar ela de propósito?
— Como assim?
— Isso aqui. — Ela gesticula para o nada. — Tem muita cara de
autossabotagem.
Tensiono o maxilar. Não estou nem um pouco a fim de ouvir Bridget
Parks me dar um diagnóstico que nem pedi.
— Não é — retruco.
Ela me ignora.
— É só que você fez a única coisa pela qual ela nunca vai te perdoar.
Balanço a cabeça, irritado.
— Se ela me ama, não deveria nem existir uma coisa pela qual ela não me
perdoe. — Eu dou de ombros, e estou falando sério. — O amor não deveria
ser o suficiente? “O amor supera tudo”, essas bobagens?
Ela se senta numa mesa que não é a nossa, o queixo apoiado na mão.
Eu me sento ao lado dela. Fico feliz pela sua presença. Faz com que Parks
pareça menos distante.
— Ela já viu você com o quê… — Ela dá de ombros. — Quantas outras
garotas? — Ela não espera uma resposta: — Garotas demais, na verdade. É
perigoso, você deveria fazer exames…
— Eu faço. — Dou a ela um sorriso convencido. — Com frequência.
— Eu não ficaria me gabando por isso, mas tá.
Reviro os olhos.
— Ela sabe da traição. Ela sabe como você é desde que vocês terminaram.
Vocês dois se magoam, é a parada de vocês, eu entendo. É o que vocês fazem
para ficar perto um do outro, mas ainda assim é doentio e idiota, e vocês são
imbecis por agirem dessa forma. Mas não é uma atitude rara para dois
imbecis codependentes…
Eu franzo a testa, apesar de que uma resposta igualmente apropriada
seria rir.
— A única coisa que ela acha realmente imperdoável é você ficar se
matando.
Reviro os olhos.
— Não tô me…
— Me deixa falar — me interrompe Bridget. — Você não estava lá. Você
não viu como ela ficou.
— Ela me bateu. — Lanço um olhar incrédulo para a irmã de Magnolia.
— Na frente dos meus pais e do meu médico. Num leito de hospital.
— Que bom. — Bridget assente, alegre. — Deveria ter batido mesmo.
Você teve uma overdose. Quase morreu. Você fez isso consigo mesmo…
Eu suspiro.
— Não de propósito…
Juro, não foi de propósito. Eu não faria isso com ela.
Bridget me encara, pensativa.
— Foi pior do que quando você traiu ela…
E eu não acredito nisso nem por um instante. Nem por um único
instante. Depois que terminamos, li os artigos que o Daily Mail e o The Sun
publicaram sobre ela. Um monte de merdas do tipo “fontes próximas dizem
que uma Parks de aparência sofrível está a caminho da reabilitação depois
que os pais começaram a se preocupar com a sua perda de peso excessiva”,
além de especulações sobre ela ter diabetes, estar com parasitose… Na
verdade, ela estava apenas triste.
Então Bridge está mentindo.
Não tinha como ser pior do que isso.
— Ela não tomava banho. Ela ficou sentada na cama dela quase uma
semana. Ela não comia. Ela não bebia.
— Ela quase não come, de qualquer forma — replico, dando de ombros,
como se nada disso estivesse me afetando.
— Ela desmaiou. Tivemos que levar ela no hospital, porque ela ficou
desidratada.
Meu coração desaba. Parks nunca me contou isso.
Puta que pariu.
Bridget balança a cabeça para mim.
— Não dá pra você fazer alguém te amar da maneira como ela ama e aí
agir dessa forma impensável igual você age. Não é justo.
Faço uma careta.
— E não dá pra ela me fazer amar como eu amo e viver me afastando
porque eu fiz merda uma vez três anos atrás…
Bridget bufa.
— Vamos combinar que você fez merda mais de uma vez. E ela também
— acrescenta Bridget, quando abro a boca para reclamar. — Não estou
dizendo que ela não tem culpa no cartório. Ela tem, sim. Tem dias em que
ela é mais babaca que você.
Eu sorrio, me sentindo validado.
— Mas o que ela está fazendo nessa história é se preservar — continua
Bridget. — Ela acha que vai morrer junto se você morrer.
Ela parece satisfeita com a conclusão.
— Bridget — digo com um sorrisinho, porque ela está sendo estúpida.
— Óbvio que isso é ridículo — retruca ela, alto, me ignorando. Ela é
confiante demais para alguém de 21 anos, se quer saber. — E não é verdade.
Mas dá pra imaginar: se você morrer mesmo, como seria isso pra ela?
Porque ela já imaginou. Foi tudo o que passou pela cabeça dela desde que
você teve a overdose. — Ela toma um gole da bebida. — Fica passando em
looping na cabeça dela.
— Isso não é verdade — replico, franzindo a testa.
— É, sim. Ela me contou. — Bridget tamborila os dedos na mesa. — E aí
você está aqui fazendo justamente a coisa que causou esse problema.
Abro a boca para dizer alguma coisa.
— Você está tentando magoar ela?
— Não — respondo, olhando-a com irritação.
— Você está tentando ver o quanto seu amor por ela aguenta?
— Não.
Só que aguenta muito mais do que você sabe, pequena Parks.
Ela me lança um olhar demorado e curioso.
— Então que porra é essa que você tá fazendo?
SESSENTA E DOIS

Magnolia

Volto para Londres bem a tempo do dia 3 de dezembro. Não que faça
diferença. Não importa mais. Bom, ainda importa, mas agora estou com
Tom, acho. Pra valer.
Ou pelo menos vou estar.
Foi o que decidi no carro, depois de me despedir dele mais cedo.
— Para onde você vai? — perguntou ele.
— Devon — respondi, dando de ombros. — A trabalho.
Ele pareceu confuso.
— Por que Devon?
Precisei pensar rápido.
— Pesquisa para uma daquelas matérias “aqui pertinho de casa”.
— Ah. — Ele assentiu, e então me deu um beijo. — Eu iria com você, se
não precisasse voar até…
Eu balancei a cabeça.
— Deixa disso. É Devon, nada de mais.
Dei um abraço muito apertado nele.
Ele é a pessoa com quem eu deveria estar. Tenho certeza disso. É o que
está passando pela minha cabeça durante todo o percurso até Devon. Seja
como for, não importa mais, porque, quando eu disse a BJ que estava tudo
acabado, ele respondeu “finalmente”, como se estivesse esperando isso de
mim. Há quanto tempo ele está esperando que eu enfim rompa relações?
Eu provavelmente deveria ter feito isso há anos, mas sempre vou ficar
preocupada sobre nunca mais amar outra pessoa da forma como eu o amo.
Destinados: era isso que eu achava que nós éramos um para o outro. Que,
não importava o que acontecesse, o quanto nos afastássemos ou
machucássemos, sempre encontraríamos o caminho de volta um para o
outro.
Agora que estou com 23 anos, agora que estamos nessa situação e tudo
que fizemos desde que nos perdemos um do outro foi nos perdermos de
formas diferentes de novo e de novo, voltar a ficar juntos parece um sonho
de criança. Uma história de contos de fada à qual eu me apegava e que
amenizava as dores de ter que deixá-lo no passado.
Deixá-lo no passado jamais seria uma coisa que aconteceria
passivamente, e eu sabia disso desde o princípio. Deixá-lo sempre envolveria
certo grau de dor, seria um ato de violência, como arrancar meu coração do
peito, deixando-o num banco em algum lugar, e torcer pelo melhor até
conseguir chegar a um hospital para me darem pontos, mas não acho que dê
para sobreviver muito tempo com o coração fora do peito.
Chego na casa da minha família em Dartmouth.
É uma mansão grande e antiga de 29 hectares. Tem uma piscina interna,
uma externa, um lago e um caminho até a praia, além de alguns cavalos e
ovelhas.
Eu amava esse lugar antigamente. Agora não tanto.
Procuro rápido pelo caseiro, o sr. Gibbs. Ele trabalha para a minha
família há anos — durante a minha vida inteira, na verdade. É um bom
homem. Fica na dele.
Ele é viúvo, se não me engano.
Várias vezes me pergunto se ele se sente solitário por aqui.
Ele e os dois são-bernardos que moram com ele no terreno.
Eu ajeito o cardigã de pelo de camelo canelado com botões que estou
usando e abraço a mim mesma, porque ninguém está fazendo isso. Ando de
volta até o jardim, seguindo o caminho mental até o lago, onde fica a árvore.
Sempre amei esse salgueiro, mesmo antes de tudo. Há algo de poético
nele, antes mesmo que poemas fossem escritos. Os galhos avançam por cima
da água e as folhas se movem perto do lago, os galhos se dobrando como se
estivessem se quebrando, mas nada disso deixa a árvore menos linda.
E agora… ainda amo esse salgueiro. Mesmo antes de ver BJ Ballentine
embaixo dele.
Eu o encaro por alguns segundos.
Ele está vestindo um casaco de moletom de caxemira preto da
colaboração da Fear of God com a Ermenegildo Zegna, calça xadrez da
Paccbet e Vans pretos antigos.
O cabelo dele está uma bagunça, os olhos pesados. BJ fica um tanto
boquiaberto enquanto me encara de volta.
Eu pisco, querendo dizer que estou com saudades, e os cantos da boca
dele voltados para baixo dizem o mesmo. É como se alguém tivesse me
aninhado na minha cama antes de eu dormir, uma certeza de que vou me
lembrar de cada minúsculo detalhe dele para sempre. Eu nunca vou
desaprender o formato da boca dele.
— Você veio — digo, baixinho.
— Claro que vim. — Ele parece um pouco irritado. — Eu prometi.
— Você já quebrou promessas antes.
Ele me encara.
— Mas não essa.
Eu ando até ele e paro ao seu lado, mais longe do que quero estar.
Há uma distância considerável entre nós — e quando não há, hoje em
dia? Minutos se passam sem que nenhum dos dois diga qualquer coisa com
palavras.
Naquele altar da árvore, faço milhares de rezas e promessas em silêncio,
imploro a quem quer que esteja escutando que as estrelas se alinhem e
deixem que ele seja quem eu penso que ele é. Rezo para que, se ele não
puder ser isso, eu possa estar livre dele e isso não me mate. Só que vale a
pena morrer por ele, e acho que isso pode ser parte do problema.
Ele está me observando como alguém que me conhece há tempo demais,
absorvendo coisas do meu rosto que ele não tem permissão para saber.
— Você tá bem? — pergunta.
Faço que sim, ainda que seja mentira.
— E você?
Ele dá de ombros.
— Esse dia sempre me deixa meio mal.
Eu assinto.
— Sim.
Ele encara a árvore, sorrindo um pouco.
— Eu penso naquela noite o tempo todo.
Sinto as bochechas corarem.
— É mesmo?
Ele pressiona o dedo indicador contra o nariz, achando graça.
— Aham. Você não?
A resposta mais honesta é que eu tento não pensar.
— Quem foi que interrompeu, mesmo? — pergunto, semicerrando os
olhos para ele.
— Thatcher — responde BJ, rindo. — Hendry.
Ele percorre o cabelo com os dedos.
— Sim. — Eu sorrio para ele. — Você ficou muito puto.
— É que… — diz ele, disfarçando o sorriso com as costas da mão. —
Você estava praticamente pelada.
Franzo a testa e sinto as bochechas arderem.
— Você também estava.
— Pode ser, mas eu não ligo se alguém estiver vendo a minha bunda…
Nossos olhos se cruzam. Eu engulo em seco, então balanço a cabeça para
tentar manter a compostura.
— Você nunca conseguia deixar aquela porta trancada.
— Parks, é uma tranca de mentira, porra. — Ele dá uma risada, e um
milhão de memórias passam pelo seu rosto. — Mas eu nunca vou ficar mal
por aquela porta não trancar…
Se houvesse um incêndio na minha mente e eu pudesse salvar apenas três
coisas, uma delas seria aquela noite — a colcha de penas que levamos até o
tronco sujo da árvore e os olhos impacientes e as mãos inquietas do BJ de
dezessete anos.
— Você lembra depois, quando uma família de patinhos apareceu de trás
do arbusto? — pergunto, e ele começa a rir.
— Você ficou muito chateada. Como se os patos entendessem o que a
gente estava fazendo.
— Entendiam, sim! — Balanço a cabeça. — Aposto que os patinhos estão
na terapia há anos depois de verem o que você fez comigo.
Ele me lança um olhar brincalhão.
— Eu não me lembro de você ter reclamado tanto na época…
Eu o encaro, erguendo o queixo.
— Eu não estou reclamando agora.
A boca dele estremece, e Bê desvia o olhar. Ele apoia a cabeça nas mãos,
balançando com força.
— Parks, como eu vou conseguir superar você com toda essa merda que
existe entre a gente?
Comprimo os lábios.
— Você está falando do trauma compartilhado, é isso? — pergunto.
Ele dá uma risadinha, irritado com a minha irmã mesmo tão distante
dela.
— Eu fico feliz por ele, na verdade — comento.
Ele me encara, com afeição.
— Foi a melhor coisa da minha vida, ter sido traumatizado por você.
Nós nos encaramos de um jeito que diz muito mais do que nossas bocas
poderiam.
O clima entre a gente começa a ficar mais carregado, como numa ilha
tropical antes de uma tempestade. Pesado e elétrico. Tangível.
E talvez essa árvore seja um buraco de minhoca no espaço-tempo, ou
talvez aquela sensação de que não posso confiar nele finalmente vá embora,
ou talvez eu só o ame de uma forma que não tem como ser desfeita.
Os olhos dele percorrem o meu rosto, parando na minha boca, e então
está acontecendo antes que eu me dê conta. Nós nos beijamos, como ondas
se chocando em um penhasco.
Eu não sei se eu sou a água e ele é o penhasco, mas as mãos dele passam
por todo lugar, por todo o meu corpo sob o vestido midi de algodão branco
da Bottega Veneta, e então estou andando para trás. Tiro o moletom dele,
passo as mãos pelo que costumava ser o meu terreno, e então sou
pressionada contra a árvore. A boca dele está no meu pescoço, a respiração
entrecortada que parece se enroscar na minha pele, e eu estou com as pernas
entrelaçadas na sua cintura. Nossos olhos se encontram. Sempre são mais
verdes do que lembro — quase da cor das folhas da árvore embaixo da qual
estamos prestes a fazer tudo de novo.
Ele me encara, piscando, o rosto sério de repente.
— Eu te amo — diz, a voz rouca e baixa.
Engulo em seco, nervosa.
— Também te amo — sussurro.
E então ele me penetra. Sinto uma arfada minúscula presa na garganta e
encosto minha testa na dele. Seguro o rosto dele nas mãos, beijando aquela
maldita boca que eu amo, passando as mãos pelo cabelo dele até tudo
emaranhar.
E o mundo desaparece até ficar preto. Somos apenas nós dois no
universo. As estrelas explodiram, o sol apagou. É apressado, e eu o amo, e é
urgente. Eu o amo, e é como se alguém colocasse um fogo debaixo de nós,
ou talvez nos nossos ossos, e precisamos apagar, mas talvez nenhum de nós
queira fazer isso. E eu o amo.
Vou queimar todas as minhas defesas, não me importo.
A boca dele na minha pele é como a neve caindo na água. E é
imperdoável da minha parte, na verdade, ter arrastado outros corações para
essa confusão. Só que eu fiz isso, e sinto muito, e minha mente está
delirando enquanto ele me segura contra ele, e talvez eu esteja cansada, ou
talvez seja por estar ali, novamente nos braços dele, mas meus olhos se
enchem de lágrimas. O mundo inteiro estremece no mesmo ritmo dos
nossos corpos, todas as flores desse mundo e outros que possam existir
florescem de uma vez, e as folhas dessa árvore que amamos sussurram que
eu estou finalmente em casa.
SESSENTA E TRÊS

BJ

Passamos a noite lá. Nenhum dos dois trouxe bagagem. Nada.


Só temos um ao outro, que é provavelmente como deveria ser.
Esse era o plano antes de toda aquela merda. A vida tranquila que
planejamos: as janelas abertas e frescas na casinha perto do mar, numa
cidade do outro lado do país, e não sentiríamos falta de Londres porque, na
verdade, o problema é Londres, e não nós dois.
Meu novo objetivo é fazer com que cheguemos até lá. Vou passar o resto
da minha vida focado nisso agora. Desembaraçando nós dois das nossas
vidas complicadas em Londres, então iremos para longe, para um lugar
onde somos versões melhores de nós mesmos, e seremos a melhor versão de
nós mesmos, porque é assim que somos quando estamos juntos.
Não saímos do quarto — aquele mesmo quarto cuja tranca não fecha de
jeito nenhum. Ficamos lá, conversando por horas, nos beijando, rindo. Ela
chora um pouco, eu também. Passo a mão no corpo dela, descanso meu
queixo no seu umbigo, encaro a única garota que já amei. Tento não chorar
de novo, porque estou segurando ela da forma como eu pensei em segurá-la
desde a última vez que fizemos isso.
É o melhor dia da minha vida.
Pedimos pizza e comemos na cama. Tomamos banho juntos. Fazemos
outras coisas juntos no banho. Voltamos para a cama.
Ela dorme deitada no meu peito, e eu respiro fundo, pela primeira vez
aliviado desde que a perdi.

* * *
Ela acorda no dia seguinte, e, provavelmente pela primeira vez na vida, estou
desperto antes dela. Isso nunca acontece.
Ela sempre acorda primeiro, mas acho que realmente a cansei ontem,
porque ela dorme até depois do meio-dia, e eu não mexo um músculo até os
olhos dela se abrirem.
Ela me fita durante alguns segundos, piscando, dando uma olhada no
quarto e então de volta para mim.
— Não é um sonho — diz ela, sorrindo.
Eu a beijo.
— Não é um sonho.
Ela se aconchega mais perto, encostando a testa na minha.
— Parks?
— Oi?
— É isso, não é?
E eu me odeio um pouco, porque sai mais nervoso do que eu gostaria.
— Tipo, agora é isso. Sem mais enrolação. Tá?
Ela assente.
— Vou parar com todas as outras garotas e as outras merdas. E você,
chega de Tom.
— Chega de Tom — repete ela, assentindo.
Ela quase parece um pouco triste ao falar isso. Não vou pensar demais no
assunto, porque sei que eles ficaram próximos.
— E você vai deixar no passado o que eu fiz? — pergunto, examinando o
rosto atentamente. Ela faz que sim de novo. — De uma vez por todas? — Ela
confirma. — Não pode trazer esse assunto de volta nas brigas que vamos ter
nos próximos anos. — Ela revira os olhos. — Mesmo se você nunca
conseguir as respostas que você quer de mim? — Eu aguardo a reação nos
olhos dela. — Porque as respostas que você quer não existem.
Ela reflete sobre aquilo.
— Tá — diz, assentindo uma vez.
Eu assinto de volta.
— Tá.
SESSENTA E QUATRO

Magnolia

Vamos embora de Dartmouth no dia seguinte e ficamos no telefone um com


o outro, rindo enquanto dirigimos lado a lado. Saímos da estrada principal
pouco antes de chegarmos em Lightwater.
Nos beijamos de novo e transamos mais uma vez, no banco de trás do
carro dele — porque há muito tempo para recuperar —, e então, quando
estamos quase chegando em Londres, sou tomada pela tensão.
O acúmulo de tudo que eu estou sentindo poderia me nocautear… É
uma mistura tão estranha.
Estou tão feliz, tão apaixonada, tão aliviada por finalmente estar com Bê,
como deveria ser, falando em voz alta, admitindo meu amor por ele.
Só que há algo ruim à espreita na minha mente: a questão de precisar
contar isso a Tom. Ter que deixá-lo para trás. Ele agora é importante para
mim, e eu o adoro.
A coisa com ele é diferente de com BJ. Não dá para fingir que é a mesma,
porque não é. Nem Tom pensaria que era.
Se BJ é água para mim, Tom é vinho. Não preciso dele para sobreviver,
mas o amo mesmo assim. O gosto é bom, faz com que eu me sinta melhor,
mais corajosa.
É bom tê-lo por perto, e, na verdade, deixando de lado as metáforas, não
sei como eu teria sobrevivido a esse ano sem Tom.
É uma coisa meio estranha, não é? A forma como nos apegamos às
pessoas.
A maneira como nossas intenções são deixadas de lado, a semente
adentra mais no solo do que planejávamos antes e o lugar que toma nas
nossas vidas faz as raízes crescerem. Acho que não deveríamos amar as
pessoas de forma leviana. Não acho que devemos amá-las só um pouco e
então seguir em frente. Tom deixou as raízes crescerem. Não foi culpa dele.
Eu permiti isso.
E fico com uma sensação horrível e nervosa de que talvez minha irmã
tivesse razão sobre mim, e, se ela estiver certa… que tipo de pessoa isso me
torna?
Peço para Tom me encontrar no parque ao lado da minha casa.
Ele está me esperando no banco.
Calças finas azul-marinho da Loro Piana, com camisa polo de lã marrom
e os tênis combinando da Fear of God com a Ermenegildo Zegna.
Está bonito como sempre. Billie Eilish escreveu a música em homenagem
aos olhos dele, tenho certeza disso.
Ando na sua direção, engolindo nervosa a saliva. Desconfio de que ele já
saiba do que se trata assim que me vê. Está provavelmente estampado na
minha cara, como BJ sempre está.
Tom England me observa — com a boca fechada de um jeito pouco
familiar, um sorriso melancólico.
Ele solta a respiração e desvia o olhar.
— Vocês voltaram.
Eu me sento ao seu lado, as mãos pesadas no meu colo. Assinto, a boca se
contorcendo num sorriso relutante. Ele balança a cabeça e dá de ombros de
leve. Os olhos dele parecem repletos de arrependimento.
— Nós meio que já sabíamos que isso ia acontecer…
— Talvez — respondo. — Mas não sabia que você se tornaria meu
melhor amigo.
Digo isso olhando para as mãos, porque não consigo encará-lo.
Ele olha na minha direção e pega minhas mãos, segurando-as com
firmeza.
— Não, isso eu também não sabia.
Ele coloca um braço ao meu redor, suspirando enquanto olha para o
parque.
— Então, vocês já voltaram, ou só estão ainda decidindo sobre isso?
Ergo o olhar para ele, e minhas bochechas ficam coradas.
— Ah — diz ele, com uma risadinha sem graça. — Vocês transaram.
Eu aperto a boca.
Então ele me olha, como se genuinamente se importasse comigo:
— E como foi?
Eu o fito.
— Quer mesmo saber?
— Não. — Ele sorri um pouco. — Não quero.
Eu me encosto nele.
— Obrigada — digo, sem encará-lo. — Pelo que você fez por mim.
— O que eu fiz por você?
Ele dá uma puxadinha no meu vestido azul-escuro plissado comprido da
Aje.
— Muitas coisas — respondo. — Mas o principal é que você me amou.
Ele comprime os lábios, parecendo um pouco envergonhado.
— Ele te contou isso?
Eu balanço a cabeça.
— Então como é que você sabe?
— Porque agora eu conheço você muito bem.
— Ah. — Ele me lança um olhar. — Faz sentido.
Eu o observo.
— Você tá bem?
— Vou ficar — diz, sem me encarar.
— Vai precisar de uma nova trincheira.
Ele deixa escapar outra risada sem graça.
— Acho que já deu dessa história pra mim por um tempo.
Dou uma risadinha.
— Acho que pra mim também.
Ele assente, a boca apertada, abaixa o braço que me segura e se vira para
mim. O rosto dele fica sério, as sobrancelhas baixando ainda mais numa
expressão séria.
— Preciso te falar uma coisa. E pode parecer meio egoísta, mas não é
nada disso.
Balanço a cabeça para ele.
— Você nunca foi…
— Ele vai te magoar de novo — avisa Tom, sem hesitar.
Meu coração vai à boca.
Balanço a cabeça.
— Não…
— Sim, ele vai — insiste ele, firme.
— Tom…
— Magnolia. — Ele balança a cabeça. — Não estou te dizendo isso pra
você mudar de ideia. Eu não conseguiria, de qualquer forma. Vocês dois
estão… — ele faz uma pausa, procurando a palavra certa — … ligados.
Ele diz isso como se fosse um caso perdido.
Só que ele está certo. Estamos mesmo.
— Não consigo mudar isso, e não estou tentando. — Ele dá de ombros. —
Só estou te dizendo porque alguém tinha que dizer. Ele vai te magoar de
novo, e eu não sei se vou estar aqui quando ele fizer isso.
SESSENTA E CINCO

BJ

Entro na casa dos meus pais em Belgravia sem avisar ninguém. É depois do
jantar, mas sempre tem algo para comer aqui. Minha mãe vive fazendo
comida demais e está em negação que Henry e eu não moramos mais aqui.
Mas às vezes nós aparecemos. Nós dois temos nossa própria casa agora, mas
de vez em quando é bom voltar para o lar.
Entro na cozinha, e minha mãe ergue os olhos da pia, o rosto se
iluminando.
— Meu amor, você está aqui! — Ela tira uma das luvas de borracha. —
Querido! — Ela chama meu pai: — BJ está aqui!
Há um murmúrio vago em resposta do meu pai, e minha mãe me abraça.
— Está com fome?
Faço que sim.
— Morrendo.
Eu me empoleiro no balcão de mármore que está coberto de coisas de
limpeza — porque, sabe-se lá o motivo, já que sempre tivemos uma
faxineira, minha mãe corre pela casa fazendo uma pré-faxina antes que ela
chegue. É meio redundante, meu pai odeia, mas ele ama minha mãe, e ela
nunca vai demitir Nel. Prefere pagar um salário anual para ela ficar sentada
comendo biscoito e lhe fazendo companhia três dias por semana.
Ela faz um prato para mim com comida demais. Dois tipos de carne
(frango e bife), quatro tipos de carboidrato e um pouco de brócolis, todos
cobertos com o mesmo molho. É comida demais, e, mesmo assim, devorei
tudo em menos de cinco minutos.
Ela fica parada ali, o queixo na mão, me observando.
— Qual é a ocasião especial para você vir aqui hoje?
Dou uma risada.
— Não dá pra um cara só ir visitar a mãe sem motivo nenhum?
— Um cara, sim, mas os meus caras não fazem isso. — Ela me lança um
olhar. — Henry está lá em cima. — Ela faz um aceno de cabeça na direção
do quarto. — O que está acontecendo entre ele e o Jo?
Olho em sua direção.
— Como você sabe que é algo com ele e o Jonah?
Ela semicerra os olhos.
— Porque não acontece nada entre ele e o Christian, e, se fosse entre
vocês dois, eu saberia o que houve.
Ela é observadora demais, de uma forma irritante.
Semicerro os olhos.
— Eles estão a fim da mesma garota.
— Ah — diz ela. — Ela é das boas?
Assinto.
— É, ela é maneira.
Ela me serve um pouco de vinho. Serve uma taça ainda maior para ela.
— E você, meu querido? — Ela inclina a cabeça. — Veio até aqui contar o
quê?
Tomo um gole e fico em silêncio só para irritá-la um pouco.
Ela franze a testa.
— É notícia boa ou ruim?
Tomo mais um gole, dando um sorriso.
— BJ! — ralha ela.
E me levanto, levo meu prato de volta até a pia e o enxaguo. Ela vai atrás
de mim e arranca o prato das minhas mãos, lavando-o de novo ela mesma
antes de colocar no lava-louça. Depois se vira para mim, as mãos nos
quadris.
— Baxter James Ballentine…
Abro os braços e me debruço sobre a ilha de mármore no meio da
cozinha. Olho para ela e sorrio.
— Que foi? — Ela franze a testa.
— Parks e eu transamos.
Um gritinho escapa quando minha mãe coloca as mãos sobre a boca. Eu
contaria que transei com qualquer outra pessoa para a minha mãe? Não.
Nunca. Nem em um milhão de anos, mas a reação foi merecida, e eu queria
falar, então contei.
Ela corre até mim, sacudindo os meus ombros.
— Meu Deus do céu! — Ela me dá outra chacoalhada. — Hamish! Meu
Deus…
Meu pai entra às pressas.
— O que aconteceu?
— BJ e Magnolia voltaram — ela praticamente se esgoela.
Arregalo os olhos para meu pai, ainda me divertindo, e o rosto dele se
abre num sorriso.
— Verdade?
Assinto.
Ele semicerra os olhos para mim, desconfiado.
— Ela sabe que vocês dois voltaram?
— Eles transaram! — berra minha mãe.
Tanto meu pai quanto eu a encaramos, constrangidos.
Então, o rosto dela se transforma numa carranca.
— Imagino que seja pela primeira vez na vida. Porque, até agora, você era
virgem.
Balanço a cabeça.
— Não.
— E ela foi a única garota com quem você já se envolveu.
— Não é — informa meu pai.
Ela faz uma careta para ele, então olha para mim.
— E a única com quem vai ficar…
Eu abro um sorriso. Estamos torcendo por isso, Lil.
— Vocês usaram camisinha, né? — pergunta ela.
— Mãe — solto, revirando os olhos.
Henry entra na cozinha.
— Mãe, eles transam desde que…
Jogo um pano de prato na cara dele. Ele ri.
— Desde que Magnolia tinha 23, e BJ, 24 anos — minha mãe informa a
Henry com a maior convicção do mundo.
— Lil. — Meu pai balança a cabeça. — Você pegou os dois no flagra no
chalé.
— De jeito nenhum. — Ela balança a cabeça com veemência.
Com certeza pegou. Tive vontade de me enfiar num buraco. Foi a coisa
mais constrangedora que já me aconteceu. Parks tinha dezessete anos, eu
tinha dezenove. Minha mãe ficou… horrorizada… aparentemente a ponto
de negar por completo que isso aconteceu.
— Ei — diz Henry, fazendo um gesto com o queixo. — E como foi a
parada do trabalho?
Dou um sorriso irônico.
— Foi boa.
Meu irmão ri.
— Aposto que foi…
Meu pai se aproxima mais, olhando para mim por alguns segundos, e me
abraça.
— Fico feliz por você.
Ouço um barulho de champanhe estourando. Minha mãe está segurando
uma garrafa e sorrindo no canto da cozinha.
Olho do meu pai para meu irmão.
— Nossa, que vergonha.
— Não é vergonha nenhuma! — cantarola ela.
— Foi mal — diz meu pai. — Espera, esse é o meu Dom Pérignon de
2002…?
Minha mãe dá de ombros.
— Achei uma boa ocasião.
Meu pai pensa a respeito.
— Será que é?
Henry começa a rir.
Relutante, meu pai pega algumas taças, e Henry vem até onde estou,
dando um tapinha carinhoso no meu rosto.
— É pra valer? — pergunta ele.
Eu assinto.
— Cara — diz Henry, me abraçando. — Caralho, foi uma novela…
— Henry. — Nossa mãe balança a cabeça. — Essa boca suja não vai fazer
você conquistar a garota de quem você está a fim…
Henry me lança um olhar exasperado e me dá um soco brincalhão no
estômago.
Eu estremeço, com um pouco de dor, mas mais rindo.
— Ela me encurralou — me explico, dando de ombros.
Henry aponta para mim.
— Ele e Parks transaram no avião da empresa do papai voltando de
Monte Carlo quando ele ainda estava na escola.
Mamãe fica boquiaberta. Faço uma careta.
— Foi superplanejado — continua meu irmão traíra. — Eles planejaram
por dias.
— Henry! — grito.
Olho para meu pai, nervoso. Como se eu pudesse ficar com problemas
por causa de algo que fiz quase uma década atrás.
Meu pai começa a rir.
— Duas vezes, tá?
Henry dá de ombros, bebendo a taça de champanhe e saindo da cozinha.
SESSENTA E SEIS

Magnolia

Desço as escadas na manhã seguinte e sigo com toda a leveza até a cozinha.
Minha irmã está inclinada sobre o balcão comendo uma tigela de cereal, e
Marsaili está apoiada nele bebendo chá, com uma saia preta e branca de
seda da Ecru que fica acima dos joelhos e parece superinapropriada, porque
não quero ver os joelhos de alguém de 45 anos.
— Bom dia — Bridget cumprimenta com um sorriso.
Ela está vestida da cabeça aos pés de Gucci. O conjunto de moletom azul-
claro. Preciso manter a calma. Não posso fazer movimentos bruscos. Não
quero assustar essa coisinha arisca que finalmente está se vestindo bem o
suficiente e fazer com que ela acabe fugindo das roupas boas… Pisco
algumas vezes, provavelmente dando a impressão de que meu cérebro deu
tilt, e me acalmo para que minha reação seja quase neutra.
— Ficou bonita — digo, e ela olha para o que está vestindo, não dando a
mínima para o elogio.
— Pra onde você foi essa semana? Você sumiu.
Dou de ombros.
— Seu celular estava desligado — insiste minha irmã, semicerrando os
olhos.
— Ah, sim. — Suspiro. — Acabei dormindo num lugar inesperado.
— Ah. — Ela assente, entendendo. — Você estava com BJ.
Eu franzo a testa.
— Pra onde você foi? — pergunta Bridget, enfiando bolinhas de cereal de
chocolate na boca.
— Dartmouth — informo, empinando o nariz.
Ela se afasta, confusa.
— Dartmouth?
— Foi até a casa? — pergunta Marsaili. — Por quê?
Abro a boca para dizer algo e percebo que, na verdade, não sei bem o que
falar.
Gesticulo com a mão como se não fosse nada de mais.
— Longa história.
As duas assentem de um jeito semelhante e parecem dramaticamente
desinteressadas no que tenho a dizer, o que me irrita. Elas voltam a
conversar sobre algo que passou no programa do Graham Norton ontem à
noite. Ele é um amigo próximo, adoro ele de morrer, mas estou usando a
saia de lã combinando com as botas de couro até o joelho da Fendi, que
ficam lindas, e meus olhos estão brilhando intensamente pelas ótimas noites
de sono, já que estou dormindo com o meu namorado, que é a notícia
espetacular que elas nem sequer sabem, e ainda assim não consigo uma
brecha no assunto.
Pigarreio para chamar a atenção. Elas duas me olham, nada animadas.
— Nenhuma das duas quer me perguntar nada? — tento, dando um
sorriso deslumbrante.
— Não — diz Marsaili, indiferente. — Na verdade, não.
— Nadinha?
Franzo a testa. Ela balança a cabeça. Franzo a testa ainda mais.
— Nadinha mesmo? — Bridget me lança um olhar estranho. — Nada
mesmo sobre… o tempo… que eu passei fora? — pergunto, erguendo o
pescoço e arranhando-o de uma forma dramática, expondo um…
— Isso aí é um chupão?! — Minha irmã se lança sobre mim, derrubando
a tigela de cereal e agarrando meu pescoço para inspecionar. — É ou não é?
— berra ela de novo, olhando para o meu rosto.
Faço que sim, muito de leve.
Os olhos dela se arregalam.
— Do BJ?
Confirmo.
Então ela dá um gritinho e se vira de olhos arregalados para Marsaili.
— É um chupão! Do BJ!
Marsaili revira os olhos um pouco, nada feliz, mas também não está
brava.
— E o que aconteceu com o Tom? — pergunta Marsaili, tomando um
gole de chá de maneira controlada.
Suspiro um pouco.
— Terminei com ele ontem.
Bridget franze um pouco a testa.
— E como ele ficou?
— Bem. — Pressiono os lábios. — Ele foi bem educado com tudo isso, na
verdade…
Mars assente.
— Ele é uma boa pessoa.
Bridge lança a ela um olhar tenso, então agarra minha mão.
— BJ também é.
Marsaili assente, diplomática.
— Eu não disse que não era.
— Está feliz por mim? — pergunto a Marsaili, sorrindo.
— Que você ganhou um chupão de presente do seu ex? — Ela me dá um
sorrisinho irônico, revirando os olhos. — Tô nas nuvens.
Bridget faz uma careta para ela e me leva até a sala de jantar, onde nós
duas sentamos à mesa.
— Então, como aconteceu? — Ela se inclina na minha direção. —
Quando aconteceu? Foi onde? Quantas vezes?
— Hum. Como… — Penso na pergunta. Odeio mentir para ela. — Foi
sorte? — Não é verdade, mas o que mais eu poderia dizer? — Mesma hora,
mesmo lugar?
Ela assente, aceitando aquela resposta meio mais ou menos.
— E quando? — Eu coloco a mão na orelha, distraída. — Anteontem.
Onde…? — Pressiono as mãos na boca, minhas bochechas corando. —
Debaixo do salgueiro, ao lado do lago.
Os olhos dela se arregalam.
— O sr. Gibbs poderia ter visto! — diz ela, horrorizada.
E eu não consigo evitar uma risada. Dou levemente de ombros. Além do
quê, o sr. Gibbs já viu coisa muito pior. Respiro fundo, aí solto o ar.
— E quantas vezes… — Dou um sorrisinho e ergo os ombros, sem
resposta.
Ela dá um tapa no meu braço.
— Piranha!
Reviro os olhos.
Então ela parece pensar um pouco.
— E as respostas que ele não quer dar?
— Já tem uns três anos…
— Sim, mas — insiste ela, suspirando —, foi uma coisa grande. Ele não
deixou você fechar esse ciclo.
E ela está certa. Ele não deixou. Parece que nunca vai deixar. E eu penso
que uma parte de mim talvez sempre fique se perguntando o motivo, mas
será que essa questão vai me impedir de ficar com ele?
Eu não sei mais qual é a resposta que estou buscando. E talvez ele esteja
certo?
O que exatamente mudaria agora se eu soubesse com quem ele me traiu?
Acabou. Aconteceu uma vez, e foi só uma vez.
E talvez eu seja idiota demais e estupidamente apaixonada demais para
pensar de um jeito lógico, mas, de repente, parece idiotice minha jogar fora
o que BJ e eu compartilhamos só porque uma vez ele transou com uma
garota qualquer numa festa quando estava bêbado.
Dou de ombros para minha irmã.
— Que ciclo melhor ele poderia me dar do que me amar do jeito que ele
ama?
— Magnolia — exclama Bridget, endireitando a postura, surpresa. —
Que maduro da sua parte.
Lanço a ela um sorriso convencido.
— Sabe, vai ter dias em que você vai precisar escolher o perdão — me
informa ela. — E o perdão nem sempre é um sentimento.
— Eu sei — digo, mesmo que não soubesse.
Puta merda.
Bom, é isso.
— E é oficial? — pergunta Bridget, e eu assinto, confiante. — Então
quando o mundo vai descobrir?
— Mais tarde, sem dúvida. — Dou um sorriso. — Vamos para o
Mandarin hoje à noite.
— Fofo.
— E vamos encontrar todo mundo no Rosebery antes para bebermos. —
Ofereço outro sorriso para ela. — Ninguém além do Henry está sabendo.
— Posso ir junto?
Pisco, surpresa.
— Você quer sair comigo e com meus amigos? — pergunto, e ela assente.
— Por vontade própria?
Ela confirma.
Fico boquiaberta, depois abro um sorriso enorme.
— Mas é lógico! — Franzo a testa de repente. — Você está morrendo?
— Hum. — Ela fecha a cara. — Por enquanto não.
Eu me levanto e vou até a porta.
— Tá, eu vou me arrumar…
— Você acha que ele vai pedir você em casamento mais tarde? —
pergunta minha irmã, empolgada.
Deixo escapar uma risada.
— Acho que não.
— Mas, quando ele pedir — diz Bridget, pensando em voz alta —, vocês
vão casar no Mandarin Oriental, não vão?
Eu lanço a ela um olhar, como se não tivesse pensado sobre isso um
milhão de vezes antes.
— Talvez?
— Quem vai ser sua madrinha de honra? Eu ou a Paili?
— Nós acabamos de voltar a namorar.
— É — diz ela. — Mas ele é o seu destino.
SESSENTA E SETE

BJ

Ela chega no Rosebery vestindo um casaco e um daqueles vestidos da Gucci


que comprei para ela. A Panelinha toda está reunida hoje, e ainda Bridget.
Estamos eu e os garotos na mesa — Pails ainda não chegou, e eu não falei
nada. Me levanto quando vejo Parks se encaminhando na nossa direção — e
nem sei bem o motivo, já que isso nos denuncia antes mesmo de termos
uma chance de contar a novidade. Ela joga os braços ao redor do meu
pescoço e fica na ponta dos pés para me beijar. Um beijo tipo desenho da
Disney. Ergue os pés do chão, coloca as mãos no meu cabelo, e é uma
entrada do caralho. Alguns flashes, o burburinho da multidão, mas era isso
que ela queria. Se não fosse, não me beijaria aqui dessa forma.
Ela se afasta e abre um sorriso quando eu a coloco de volta no chão.
Então se vira para os garotos, gesticulando na minha direção.
— Já conhecem o meu namorado?
Bridge dá um gritinho. Jo deixa escapar uma risada triunfante. Henry
abraça Parks, e os dois trocam algumas palavras entre si que não consigo
ouvir, mas as bochechas dela estão coradas e ele dá uma batidinha com o
dedo no nariz dela.
Christian se levanta, e nos encaramos. Me sinto mal por alguns instantes,
mas então ele me abraça.
Parks dá um beijo na bochecha de Perry quando passa por ele (ele está
boquiaberto e de olhos arregalados), então se empoleira no meu colo, e o
mundo volta para os eixos.
Esqueci que era assim com ela, e o que me deixa mais aturdido é que é
como se eu tivesse tirado um peso das costas, estando com ela dessa forma.
Como se não poder tocá-la, não poder segurá-la e não poder simplesmente
ficar com ela fosse como estar prendendo a respiração. Estava fazendo isso
até há pouco, mas agora está tudo bem.
Sem mais ter que ficar arrumando desculpas para nos tocar, há apenas o
toque. Tocar só por tocar o outro. Tocar nela porque posso fazer isso —
porque ela é minha, porque finalmente nos entendemos, porra. Finalmente.
Ela abotoa um botão da minha camisa.
— Quem você está tentando seduzir com todos esses botões abertos? —
Ela faz uma careta de brincadeira.
— Você — digo no seu ouvido, e ela engole em seco.
O corpo dela fica inteiro rígido, o aperto dela no meu braço fica mais
forte, e… caralho! Queria que mais ninguém estivesse aqui para podermos
subir sozinhos nesse instante. Por que caralhos a gente resolveu trazer mais
gente?
Porque vale uma comemoração, foi o que ela disse. Por isso.
E porque fizemos nossos amigos passarem por tantos altos e baixos
nesses últimos três anos que o mínimo que devemos a eles são várias
bebidas.
Então, Paili aparece.
Ela me olha de relance, como costuma fazer, e depois para Parks.
Parks está no meu colo, minhas mãos envolvendo a sua cintura. Os olhos
de Paili se arregalam, então ela abre um sorriso surpreso.
Ela aponta entre nós dois.
— Vocês…
Faço que sim com a cabeça, dando um sorriso tranquilo. E está tudo
bem. Magnolia sai do meu colo e vai saltitando até a melhor amiga, que
emitem juntas aqueles barulhinhos de garotas empolgadas, e joga os braços
nos ombros de Paili.
Paili coloca as mãos nas bochechas de Magnolia, segurando o rosto dela,
abrindo um sorriso largo.
— Eu fico tão feliz por você — diz, e está sendo sincera.
Parks coloca a mão em cima da mão da melhor amiga afetuosamente,
virando o rosto dela um pouco, beijando o dorso de uma das mãos.
— Você está com um perfume gostoso — diz Parks, sorrindo distraída
para Paili quando se vira.
— Ah, obrigada. — Paili coloca a bolsa no assento. — Faz um tempo que
não uso, é da…
Magnolia congela.
— Flor de laranjeira — diz Parks, a voz distante.
Então, tudo fica em câmera lenta.
Magnolia pega o pulso de Paili, erguendo até o nariz para cheirar.
Respira fundo.
— Almíscar.
Ela inspira outra vez. Magnolia ergue o olhar para Paili, sem piscar.
— Nardos.
— Magnolia… — Paili começa.
Parks larga o pulso dela e dá um passo para trás.
— Magnolia, escuta…
— Foi com você? — pergunta Parks, numa voz tão baixa e frágil que eu
me levanto na mesma hora.
Merda. Paili e eu trocamos olhares. Ela está em pânico.
— Parks.
Agarro Magnolia pelo braço, puxando-a para perto.
Ela se mexe quando eu toco nela, os olhos como um beija-flor que não
sabe onde pousar. Então me encara, boquiaberta, congelada num luto antigo
que tem um peso que ainda está para atingi-la.
— Foi com ela? — pergunta, sussurrando.
— Parks. — Balanço a cabeça.
— Foi com ela?
— Magnolia — sussurro.
Ela arranca o braço do meu punho.
— Você transou com a minha melhor amiga? — berra ela, e a sala inteira
fica em silêncio.
As pessoas param de falar, e o volume se esvai. Talheres são baixados nos
pratos. Todo mundo continua encarando.
— Sim — diz Paili, atrás de nós.

* * *

Sempre gosto de pensar que eu estava bêbado. E estava, mas não o


suficiente. Não como eu deveria ter estado para justificar o que fizemos. Eu
me sentia atordoado e estranho, por isso desci as escadas, e ela me seguiu.
Acho que sentiu que eu estava esquisito.
Nós já éramos amigos há anos naquela altura, óbvio — aonde Parks vai,
Paili vai junto. Sempre fomos próximos.
Ela me seguiu até o meu quarto.
— Você tá bem? — perguntou.
Eu a ignorei, entrando no banheiro. Água. Precisava de água. Liguei a
torneira, joguei água no rosto. Segurei com força a pia.
Eu me virei e olhei para ela, e ela franziu a testa.
— Ok, não está — informou. — O que houve?
Senti o cheiro dela.
— Perfume novo?
Ela assentiu, satisfeita por eu ter notado.
— Aham, comprei semana passada, é Frédéric Malle, Car…
Então, eu agarrei o rosto dela e a beijei.
Não sei bem o motivo. Nunca pensei em beijá-la antes, mas fiz isso. Não
fiquei muito surpreso quando ela me beijou de volta. Sempre achei que Paili
tinha uma quedinha por mim, a maioria das garotas tem. Só que ela era leal
a Parks, ela nunca…
Então é isso… nós nos beijando no meu banheiro. Estranho.
Eu me afastei, olhando para ela.
Tivemos um momento compartilhado de “Que porra a gente está
fazendo?”.
Eu estava respirando rápido, quase arfando. Não acho que ela estava
respirando. O olhar dela estava ávido. Eu já a vira olhar dessa forma para Jo
antes, mas para mim nunca, aí ela simplesmente se jogou em cima de mim.
E quer saber a verdade, a verdade nua e crua? Eu não estava pensando em
Parks. Tudo que estava pensando era que aquilo era o que eu queria fazer.
Estava escolhendo aquilo. Aquilo era o que eu queria fazer, então estava
fazendo, estava com uma garota nas minhas mãos e a queria ali, e estávamos
nos tocando, nos beijando, e era exatamente o que eu queria.
Estava sentado na beirada da banheira. Pails estava sentada no meu colo
— ela beijava bem melhor do que eu teria imaginado e sabia o que fazer com
as mãos.
Eu me lembro de cair para trás. Desequilibrei e fui direto para dentro da
banheira.
Ela caiu em cima de mim. Nós rimos.
Pails me olhou de cima com um meio sorriso, franzindo um pouco a
testa, e acho que é importante dizer isso, porque é verdade: nós poderíamos
ter parado. Bem naquela hora. Em toda transa, há diversas pausas. Pausas
para respirar, tirar as roupas, mudar de posição. Poderíamos ter parado em
diversos momentos.
Não paramos.
Então eu a puxei para cima de mim, e transamos na banheira. E foi… fico
até mal de pensar isso… foi bom. Foi ótimo, na verdade.
Eu sei que não é isso que ninguém quer ouvir. Você quer que tenha sido
uma merda, a pior experiência que eu já tive. Você prefere que eu não tenha
sentido nada, tenha odiado, não tenha gozado, ou tenha ficado pensando em
Parks o tempo todo. Nada disso aconteceu.
Eu queria.
E a única vez que pensei em Magnolia foi quando meu cérebro estava
travado, pensando que deveria estar pensando em Magnolia.
Mas depois…
Puta merda.
Foi como se um feitiço tivesse sido quebrado.
Ela pulou para longe de mim, segurando as roupas contra o corpo.
— O que a gente fez? — perguntou ela, pálida como um fantasma.
— Caralho. — Fiquei com a cabeça jogada nas mãos. — Caralho!
— O que a gente vai fazer? — perguntou ela, com mais urgência.
Balancei a cabeça.
— Precisamos contar pra ela…
— Quê? — Ela se afastou. — Não!
— A gente tem que contar! — Balancei a cabeça. — Eu preciso contar.
Não posso guardar segredo disso.
— Você precisa guardar segredo! — berrou Paili.
— Não consigo! — berrei de volta. — Eu vou contar…
Então, Paili começou a ficar em pânico. Sério. Não conseguia nem
respirar, estava arfando que nem num ataque de asma. Fui apressado até ela
e a segurei.
— Olha pra mim. Respira. Você precisa respirar…
E eu estava lá, tentando incentivá-la a respirar. Ela ainda não estava
vestida, apenas com a roupa de baixo. Eu estava sem camisa, e então a porta
abriu.
— O que tá rolando aq… — Jonah congelou. Ficou totalmente imóvel. —
Cacete.
Jo me olhou e colocou a mão na boca. Meus olhos baixaram para o chão.
Senti vergonha e culpa. Ele olhou para Paili, que estava tendo um ataque de
pânico, e cruzou a distância até ela em dois passos. Pegou um copo de água
na pia e jogou na cara dela.
Ela congelou, erguendo os olhos arregalados para ele. Estava petrificada.
— Vocês dois se pegam? — perguntou Jonah, entredentes.
— A-acabou de acontecer — disse ela, os olhos cheios de lágrimas.
Eu estava sentado na tampa da privada. As mãos tremendo.
— Que porra é essa, Bê? — gritou ele.
— Eu preciso contar pra ela. — Olhei para os dois. — A gente precisa
contar pra ela — falei com Paili. — É a coisa certa…
— Não! — Ela balançou a cabeça. — Ela nunca vai perdoar a gente.
— Eu não posso mentir pra ela…
— Mas pode trair, né? — cuspiu Jonah.
Eu o ignorei.
— Paili. — Balancei a cabeça para ela. — Foi um erro, ela pode… talvez
ela não…
Paili começou a chorar.
— Escuta, escuta — disse Jonah, me jogando minha camiseta. — Põe
isso. A gente vai dar um jeito.
Ele tirou o vestido de Paili das mãos dela e o colocou na garota. Vestiu-a
como se fosse uma boneca de pano. Ela ficou observando Jonah, os olhos
assustados e agradecidos.
— Usaram camisinha? — perguntou ele, o olhar indo de um para o outro.
Eu nem pensei em usar camisinha nenhuma. Estava transando apenas
com Parks, e ela tomava pílula desde os dezesseis anos. Neguei com a
cabeça.
Paili repetiu o gesto. Começou a chorar mais.
Puta que pariu.
Jonah bateu palmas para chamar a atenção dela, então colocou as mãos
nos seus ombros.
— Tenho pílula do dia seguinte no meu banheiro — informou ele. —
Você vai ficar bem. Está tudo bem. Nós vamos lá buscar agora. — Ele
começou a levá-la para longe. — E você, toma um banho…
Balancei a cabeça.
— Vou contar pra ela…
Paili começou a chorar de novo.
Jonah colocou as mãos na cabeça.
— Paili, cala a boca, porra. Estou tentando pensar.
A boca dela se fechou da forma como se esperaria quando um chefe de
gangue te manda calar a boca.
— Ela vai terminar com você, Bê — me avisou ele.
Balancei a cabeça.
— Não posso fingir que não fiz isso. Não vou mentir pra ela…
Os ombros de Paili estavam convulsionando. Ela chorava tanto…
— Tá, mas só não fala com quem.
— Ela tem que saber! — berrei.
— Ela não tem que saber — gritou de volta Jonah. — Você não deveria
ter feito isso, caralho. Mas agora você fez, e estamos na merda. Paili está
quase tendo um colapso. Ela está tão envolvida nisso quanto você. Você quer
contar pra Parks que você traiu ela, beleza. — Ele olhou para Paili. — E você
quer mentir pra sua melhor amiga, beleza também. — Ele apontou para
mim. — Você estava numa festa, ficou bêbado. — Ele agarrou uma cerveja
aberta que estava no meu quarto e a jogou nas minhas roupas. — Você fez
merda.
Eu assenti.
— E você — disse ele, olhando para Paili —, você e eu nos beijamos hoje
à noite, se alguém perguntar, tá?
Ela assentiu, obediente, os olhos vermelhos.
— Tá — completou Jonah, firme.
Você sabe o que aconteceu depois disso.
Fui até Parks. Contei a ela. Deixei de fora o detalhe mais importante.
Perdi ela de qualquer forma. Perdi ela na época como a estou perdendo
agora, vestindo Gucci no Rosebery.
— Parks — chamo, esticando a mão.
— Minha melhor amiga? — sussurra ela.
Estamos todos congelados. Suspensos na porra do tempo, no pior dos
meus pesadelos…
Christian está incrédulo. Os olhos de Perry estão no chão — finalmente a
confirmação que eu precisava de que ele sabia de tudo. Henry vai me matar,
está na cara dele. Jo está apenas de olho em Parks. Ele parece um pouco
assustado, na verdade.
— Você sabia? — pergunta Magnolia a Jonah, baixinho.
Ele assente.
Ela se vira para Perry.
— E você? — pergunta, rouca.
Ele também assente.
Essas revelações a deixam ainda pior, não sei bem por quê.
— Magnolia. — Estico a mão para ela, mas ela já está dando passos para
trás, para longe de mim, assustada.
Como se ela não me conhecesse. Como se eu representasse um perigo
para ela.
— Não encosta em mim.
Ela empurra minha mão para longe, e eu cambaleio para trás, colidindo
com um garçom que carrega uma bandeja de comida.
— Parks, por favor! — eu chamo, mas ela já está correndo.
SESSENTA E OITO

Magnolia

Saio de lá na hora em que Bê tropeça no garçom e corro para longe do


Rosebery como se o lugar estivesse pegando fogo. A sala abre caminho para
mim feito as águas do mar, todas as pessoas se movendo para o lado, como
se minha desolação fosse alguma doença contagiosa.
Fico grata por isso. Grata por me ajudarem na fuga, porque não consigo
enxergar direito, não consigo pensar direito. Há um buraco no meu âmago, e
eu estou desabando para dentro dele.
Minha melhor amiga? Minha melhor amiga, e meu melhor amigo.
É pior. Ele está certo. É mesmo pior. Saber o rosto da pessoa. Foi algo
planejado? Eles já gostavam antes um do outro? Ela viu ele sem roupa?
Usaram camisinha? Meu Deus do céu, espero que tenham usado camisinha.
Aquilo quase me faz desabar de joelhos, a imagem dele dentro dela sem
nada, sem nem uma camada fina de látex entre os dois. Acho que vou
vomitar. Quais partes do corpo dela ele segurou?
Será que ele pensou em mim? Por que ela? Por que ele? Onde ele a
beijou? Onde o cabelo dela caiu sobre o corpo dele? Será que ele segurou a
mão dela do jeito que segurou a minha quando transamos? Será que olhou
para ela? Os olhos abertos, para observá-la? Ele gozou? No que ele estava
pensando na hora do clímax? Como eu pude ser tão idiota a ponto de não
notar nada disso? Havia algo para notar? Como uma coisa dessas pode
acontecer?
Estou tão atordoada que talvez eu caia. Então, BJ me agarra.
Não sei de onde ele sai, e parece algo súbito, apesar de não ser — era
como se eu estivesse sozinha num oceano escuro, à deriva, e de repente
mãos estão me apoiando.
Ele está me segurando pelo braço e pela cintura, e está balançando a
cabeça sem parar.
— Parks, me escuta…
Faço que não, mas não luto contra ele, porque não quero fazer isso. É
difícil demais. É contra a minha intuição. Amo ser tocada por ele; quero ser
tocada por ele. E segurada por ele, e beijada por ele, e envolvida por seus
braços. Há três anos eu não tenho isso e, agora que tive por apenas três dias,
já perdi de novo. A traição me faz sentir que minha pele está sendo corroída
por ácido — precisei de tanto tempo para acalmar aquele incêndio que
sentia por ele no meu ventre, e agora ele voltou com força total, e não posso
sucumbir.
Preciso apagar esse incêndio da maneira como conseguir, porque nunca
mais vou tê-lo de novo. Esse é o fim.
— Parks, por favor…
— Ela é a minha melhor amiga!
— Magnolia, escuta. Já aconteceu, já foi. Você disse que tinha me
perdoado, continua sendo a mesma coisa.
— Não é.
— É, sim! Eu não fiz nada de novo, ainda é a mesma…
— Não, não é a mesma coisa, porque você transou com a minha melhor
amiga — retruco, enunciando bem cada sílaba. — Você me fez pensar todos
esses anos que foi com uma garota qualquer, uma estranha, um acidente,
uma coisa que aconteceu do nada… Mas você me traiu com a minha melhor
amiga.
— Parks…
— E estamos juntos o tempo todo! Estamos com ela o tempo todo! Você
fica de olho nela quando estamos viajando? Fica pensando em como já
entrou…?
Ele parece horrorizado.
— Parks, não. Não é nada…
Olho para ele como o estranho que ele parece ser.
— Como você foi fazer isso comigo?
Ele me agarra, me puxa na direção dele, me segurando com força contra
seu peito, e eu digo a mim mesma para me lembrar disso.
Me lembrar dessa sensação. De estar ali, nos braços dele. A sensação de
estar aninhada contra o peito dele, de ter os braços dele pressionados contra
as minhas costas, minhas pernas encaixadas entre as dele, o queixo dele um
pouco abaixado, para que eu possa estar segura ali. Que eu me lembre de
tudo isso, porque não vai acontecer de novo.
Sinto o cheiro dele mais uma vez.
Então o afasto de mim. Arranco tudo como se fosse um curativo.
Meu corpo inteiro sacode, as mãos tremendo, minhas pernas bambas…
— Você nunca mais vai encostar em mim — eu mal consigo dizer isso em
voz alta, mas ele ouve.
Tiro a corrente que uso ao redor do pescoço, onde o anel de brasão mora
há tanto tempo, durante os melhores (e piores) momentos da minha vida.
Arranco-a do corpo e jogo no chão.
Ele me olha, numa incredulidade silenciosa. Balança a cabeça, tentando
andar na minha direção, mas é empurrado para longe mais uma vez. Não
por mim, mas pelo irmão.
— Não — ruge Henry.
BJ balança a cabeça, enfurecido, tentando passar por cima do irmão.
Henry o empurra de novo.
— Fica longe dela.
Henry aponta para ele, os dentes cerrados.
Bê se lança na minha direção, mas Jonah o agarra por trás, segurando-o
feito um cinto de segurança, e Bê fica mole de repente.
Ele fica lá parado, me observando, envolto nos braços de Jonah. Respira
fundo, a cabeça balançando numa mistura de tristeza e culpa. Balança muito
pouco, tentando se endireitar, o peito arfando.
Quero tocar no rosto dele, beijar o canto da sua boca, sentir seu cheiro
até ele voltar ao normal. Só que nós nunca vamos voltar ao normal.
Henry olha para mim, muito pálido.
— Magnolia, do que você precisa? O que você quer que eu faça?
Qualquer coisa…
— Preciso ir — consigo dizer, engasgando.
Ele assente e me puxa na direção da escadaria principal.
— Um táxi — ele informa a um dos valets. — Agora. Um táxi para ela.
Um carro para na minha frente, e o valet abre a porta.
Henry me coloca para dentro.
— Sinto muito, Parks — me diz ele, os olhos cheios de lágrimas.
Assinto. Acho. Acho que faço isso? Talvez não faça nada.
Na verdade, não sinto mais meu corpo.
Henry fecha a porta, e eu consigo dar uma última olhada no irmão dele
na escadaria, observando enquanto o deixo para trás.
Ele está chorando agora, soluços engasgados nos braços de Jonah.
Nossos olhares se cruzam, e ele sopra o ar pela boca e desvia o olhar do
meu.
Alguém sabe se é possível morrer de coração partido?
E se eu morresse e me abrissem, será que eu sangraria esse amor por ele?
Quando tirarem o coração da minha cavidade torácica para pesá-lo, vai
pesar exatamente o mesmo que seus lábios? Será que o nome dele está
gravado na minha terceira costela à esquerda? Ele é parte de mim, carne da
minha carne. E está me matando. Amá-lo também está me matando, e eu
tenho medo, porque, de verdade: quantos amores se tem em uma vida?
Quantas chances se pode dar para algo antes de precisar abandonar?
Eu o estou abandonando.
— Para onde? — pergunta o taxista.
Olho para a cidade pela janela, repleta até a borda de beijos sonhadores e
más decisões perfeitas, todos contendo traços do homem que eu achava que
conhecia.
— Para o aeroporto, por favor.
Agradecimentos

Apesar de você ter verdadeiramente passado e muito do prazo que lhe foi
dado para ler meu livro, ainda assim vou agradecer a você primeiro.
Você não apenas acreditou em mim e me apoiou, mas também
pavimentou o caminho para mim. Pagou o caminho para se abrir. Você me
deu tempo e espaço para existir, muito antes de podermos arcar com os
custos. Ninguém acreditou em mim como você acreditou, e todas as minhas
coisas favoritas sobre ser uma pessoa posso dizer que têm a ver com ser sua.
Eu te amo, Benjamin William Hastings.
Emmy. Você estava escrita nas estrelas esse tempo todo. Precisou de uma
década para trabalharmos juntas, mas conseguimos, e, de qualquer maneira,
fico grata pela década. E eu sempre, sempre serei grata por você, minha lua
azul. É a capa dos meus sonhos. Acreditei na sua arte desde o instante em
que a vi e vou continuar acreditando nela, porque, na verdade, tem um quê
de divino. Muito obrigada por ser tão focada nos negócios.1
David Hedlund, sem o qual este livro jamais teria acontecido. Você me
ajudou mais do que eu consigo pôr em palavras. Você explicou as coisas, me
ajudou a encontrar o caminho de volta quando pensei que tinha perdido
tudo, continuou ao meu lado quando cortei seu personagem favorito
(descanse em paz, AVS) e leu versões demais desse livro para contar nos
dedos. Obrigada.
Uma rodada rápida de agradecimentos completamente necessários: a
Jesus, por todas as coisas boas. A Luke e Jayboy, por finalmente me darem
uma oportunidade de estar numa diretoria, mesmo se for de mentira e
apenas no nosso grupo de mensagens. Vocês entenderam o livro, fizeram
dele algo real e são duas das minhas pessoas favoritas, além de completos
gênios. A mamãe e Lis — por todas as vezes que me ajudaram com as
crianças de forma tão altruísta para que eu visitasse esse mundo que criei. A
Bronte e Rach, por serem os únicos que acreditam na vida pós-jatinhos. A
minha avó, por tudo. A meu avô, por todo o resto. Viv e Bill, por me darem
espaço e silêncio na minha casa favorita do mundo. A Maddi, por ser a
pessoa mais entusiasmada e empolgada do planeta. A AJ, por ser o leitor
mais rápido do Oeste. Jarryd e Mystique, muito dessa história se estruturou
na escrivaninha onde vocês permitiam que eu trabalhasse para escapar da
minha linda2 bebê quando éramos vizinhos. Amber, não poderíamos ter
feito essa temporada ridícula sem você. A Tori, por responder minhas
inúmeras perguntas. A minha editora, por enxergar através da nuvem de
vírgulas e perseverar em meio ao meu trauma gramatical. Estava muito
desanimada quando nos encontramos, obrigada por toda a sua gentileza e a
sua paciência comigo. Eu agora vou entrar para a reabilitação de vírgulas. A
Laura, minha diagramadora, e a minhas duas revisoras finais, Nikki e
Felicity. A Sarah,3 Karalee4 e Aodhan.5
Jackson Van Merlin: você me fez acreditar em mim mesma de uma forma
que eu nunca imaginei. Não sei onde você está hoje em dia, com essa
tendência estranha de desaparecer da face da terra. Com sorte, você está
vivo. E bem. Espero mesmo que esteja bem.
Alana Fragar, você me deu o livro6 que me fez querer ser escritora.
Joel Houston, você me disse que eu era uma boa escritora quando eu
tinha dezoito anos, e, porque você era um bom escritor, eu acreditei em
você.
Para meu professor de inglês do ensino médio, que ficou super-irritado
comigo por interpretar aquela pergunta discursiva sobre a Segunda Guerra
Mundial como um exercício de escrita criativa. Desculpa.7
À minha amada Helen, pela melhor livraria do mundo8 — você
alimentou minha mente por anos e anos, e, mesmo que agora estejamos
longe, penso em você sempre, e apenas com carinho.
E a Juniper Ruth Magnolia Hastings, provavelmente mais do que a todos.
Você foi a bebê de seis meses mais difícil do mundo e me testou mais do que
eu achei que poderia ser testada, e foi nesse teste que eu comecei a escrever
uma versão do que se tornaria este livro um dia. Então muito obrigada. E,
por favor, não faça isso de novo. Bellamy…9 você não fez muita coisa, vou
agradecer a você no próximo livro.
1 É sério. Isso foi muito útil mesmo, então obrigada.
2 (e às vezes impossível e maluca)
3 Porque ela nunca vai deixar passar se eu não mencioná-la.
4 Porque não posso mencionar minhas outras duas melhores amigas sem mencionar você.
5 Porque, se eu não mencionar você, nunca mais vou ter um segundo de paz.
6 Extremamente alto & incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer, então muito obrigada a
Jonathan também.
7 Porém, você foi bem grosseiro comigo.
8 Que, aliás, é a livraria Blues Point, que não tem Instagram ou Twitter, porque Helen nunca
faria isso, mas é mesmo um lugar incrível que você deveria visitar.
9 Desculpa. Eu ainda te amo.
Sobre a autora

© Anabel Litchfield

JESSA HASTINGS nasceu na Austrália, é apaixonada por palavras e uma


grande entusiasta de quebra-cabeças. Ela também acha que café da manhã é
melhor do que qualquer outra comida, a não ser assado de carne, e
provavelmente gosta mais de Friends do que a maioria das pessoas.
Atualmente, mora na Califórnia com o marido e os filhos. Magnolia Parks é
seu romance de estreia.

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