Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sobre a obra:
Sobre nós:
eLivros .love
Converted by convertEPub
Copyright © Leandro Karnal, 2024
Copyright © Editora Planeta do Brasil, 2024
Todos os direitos reservados.
Karnal, Leandro
Para pensar e escrever melhor : pequenos textos [livro eletrônico] /
Leandro Karnal. - São Paulo : Planeta do Brasil, 2024.
ePUB
1. Crônicas brasileiras
2024
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Planeta do Brasil Ltda.
Rua Bela Cintra, 986, 4o andar – Consolação
São Paulo – SP – 01415-002
www.planetadelivros.com.br
faleconosco@editoraplaneta.com.br
Este livro é dedicado a Ava Prioli Mansur, minha
afilhada. Que sua trajetória seja interessante e que
escute sempre o vento (como queria Fernando
Pessoa) – e, só de conseguir ouvi-lo, já sinta o valor
total da vida.
Sumário
Prefácio
Apresentação
Gabriela Prioli
Apresentação
Diogo Arrais
bloco um
Costumes sociais
Polissemia: multiplicidade de significados de uma
palavra. Esse recurso é amplamente usado para dar
amplitude a uma sentença. Em um título como “A paz e
o trono”, o leitor é levado ao símbolo do poder
soberano; porém, mais adiante na leitura, verá que as
descrições tomam um rumo distinto.
“Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não
tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou
meu dia. Que bela tarde para não se escrever.” Quem
redige assim é Rubem Braga, um dos maiores nomes da
crônica nacional. O texto abre a coletânea brilhante que
Augusto Massi elaborou pela Editora Autêntica: Os sabiás
da crônica. A antologia reúne, além do homem sem
assunto, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos
Oliveira. Uma aula completa de escrita e de pensamento.
Para melhorar, o volume é precedido de um estudo no
qual Augusto Massi faz um panorama da crônica, da
cultura e da imprensa brasileira. Texto brilhante pela
síntese e pelas ideias.
Volto à falta de assunto. Braga confessa que deve ser o
Carnaval ou o calor. A busca de um tema também está no
texto inicial de Vinicius de Moraes. Diz o poeta:
“Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do
cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica ‘não
baixa’”. Parece mal coletivo, pois o primeiro texto
escolhido de Fernando Sabino trata do “estranho ofício de
escrever” e daqueles “condenados à crônica diária”.
Mais: o livro confessa que alguns dos grandes cronistas
citados chegavam a pedir texto de outro para
emergências!
Logo, vocês já perceberam, dileta leitora e estimado
leitor: nomes brilhantes e de primeira linha reclamam da
falta de assunto. Uma coisa é o literato bissexto que, um
dia, ao entardecer, senta-se ao computador e, tomado de
uma centelha divina, rabisca seu texto e depois vai
limando, escandindo, reequilibrando e, por fim, considera
terminada a obra. Aproveitou uma inspiração e teve muito
tempo para decantá-la. É a situação ideal: o texto flui
dentro do espaço amplo e cômodo do momento.
É provável que o escritor descrito nas linhas anteriores
não seja um escritor profissional. Pode até ser muito
bom, porém vive de outra fonte. Namora quando a libido
está em alta. O profissional namora porque chegou o
horário de beijar, independentemente do desejo.
A crônica da falta de assunto do capixaba Rubem Braga
é de 1934. O livro me impressionou por vários motivos,
inclusive pelas dificuldades confessadas de grandes
nomes da cultura brasileira. Outra coisa: mudou a
liberdade com o público. Talvez seja efeito da nossa
“felicidade tóxica” ou do “politicamente correto”. O
grande Braga pertencia a outra cepa e, notando o texto
emperrado, atacava… o leitor: “Eu quero, pelo menos
hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que, se eu os
aborreço, vocês me aborrecem terrivelmente mais.
Amanhã, eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso: posso
falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia.
Saibam desde já que eu farei isto porque sou cretino por
profissão; mas que, com todas as forças da alma, eu
desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste
bubônica. Até amanhã. Passem mal”.
Acho que estamos em outro momento. Não se pode
desejar que o leitor morra ou tenha doenças graves. O
escritor deve captar a benevolência do público, como
definem as normas da retórica clássica. Quando Bernardo
Carvalho disse, em mesa da Flip (2016), “não me
interessa o leitor”, causou um alvoroço. A demanda do
público e do mercado contaminaria a boa produção, e ele,
bom autor da chamada “alta literatura”, queria estar um
pouco distante das pressões. É um gesto ainda mais
elaborado do que o desejo cheio de fígado de Rubem
Braga.
Impossível não pensar com certa melancolia. Os
escritores reunidos na coletânea estavam juntos para uma
foto na cobertura de Rubem Braga, em Ipanema (RJ). O
ano era 1967. Um jovem estava junto do evento: Chico
Buarque. Ele já começava os preparativos da célebre peça
Roda viva. O evento da foto era a recém-fundada Editora
Sabiá. Muita gente talentosa e inteligente reunida. Talvez
seja a eterna melancolia do momento presente retratada
no filme Meia-noite em Paris (2011, Woody Allen): o
passado parece mais interessante e com gente mais
brilhante pela perspectiva que a distância nos oferece.
Retrocedo duzentos e cinquenta anos e vejo Thomas
Jefferson, John Adams e Benjamin Franklin discutindo
uma nova república. Analiso o jornal de hoje e noto o
embate entre Donald Trump e Joe Biden. Pior: vejo o
toque genial de autores que, se sentindo esmagados pela
falta de assunto, fazem ótimos textos sobre o vazio e,
hoje, ao passar os olhos pela internet, percebo que o vazio
virou ponto de honra, motivo de vaidade e até de exibição
orgulhosa.
Encerro com um toque dos velhos cronistas menos
voltados ao ibope: a culpa é sua, leitor/leitora, exclusiva e
totalmente sua. Trump, textos ruins, falta de gente
brilhante no mundo: tudo culpa sua. Se você fosse mesmo
agudo(a) e voltado(a) ao crescimento da espécie humana,
estaria relendo Rubem Braga e Fernando Sabino, e nunca
Leandro Karnal! Viu no que dá a falta de assunto? Hoje
estou sem esperança.
A dignidade dos mamíferos