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Imagem: @CanStock
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos
ou situações da vida real terá sido uma mera coincidência.
Índice
Índice
Prólogo
Capítulo 01 — Doce Lar
Capítulo 02 — Distância
Capítulo 03 — Miss Girassol
Capítulo 04 — Festa
Capítulo 05 — Peão
Capítulo 06 — Traumatizada
Capítulo 07 — Calmaria
Capítulo 08 — Tempestade
Capítulo 09 — Ao Pôr do Sol
Capítulo 10 — O Retorno do Anel
Capítulo 11 — Trilha
Capítulo 12 — Deslizes
Capítulo 13 — Rotina no Sítio
Capítulo 14 — Climão
Capítulo 15 — Convite
Capítulo 16 — Jantar
Capítulo 17 — Traumas do Passado
Capítulo 18 — Bruto
Capítulo 19 — Café da Manhã
Capítulo 20 — Ficando Sério
Capítulo 21 — Festival do Girassol
Capítulo 22 — Espinhos
Capítulo 23 — Natal
Capítulo 24 — Conflito
Capítulo 25 — Sintomas
Capítulo 26 — Segredos
Capítulo 27 — A Penúltima Noite
Capítulo 28 — O Acidente
Capítulo 29 — Revelação
Capítulo 30 — Despedida
Epílogo
Conheça os Meus Outros Trabalhos
Anne Miller
Prólogo
— Então, sabe qual é o meu segredo para ser a melhor? É não permitir
que pessoas que não entendem do assunto interfiram no meu trabalho —
tornei a dizer, já não me importando com a maneira que ele interpretaria. —
Se a minha equipe te apresentou uma campanha, é porque eu mesma a
analisei e aprovei cada um dos detalhes. O objetivo nunca foi transmitir todo
o conservadorismo que você e a sua empresa representam, mas vender
sapatos. — Antes que ele pudesse contra-argumentar, finalizei: — Então, se o
senhor ainda estiver interessado em vender sapatos, dê mais uma olhada em
tudo o que te enviamos… Se quiser mostrar o quanto são conservadores,
podemos bolar uma nova campanha, só não espere que ela aumente as suas
vendas.
A minha mãe.
Obviamente, eu não iria cozinhar. Sempre fui péssima nisso, mas nada
que uma comidinha de aplicativo não conseguisse resolver, principalmente a
dos restaurantes da região, que nunca conseguiram uma reclamação minha ou
do Diogo.
A música clássica tocando alto foi a primeira coisa que notei ao cruzar
a porta. Isso fez com que eu percebesse que a minha surpresinha havia ido
para o ralo, que Diogo estava em casa.
Ele trabalhava em um escritório de advocacia no centro e os horários
dele eram tão flexíveis quanto os meus. Então, não era nada incomum que já
estivesse em casa antes das seis horas da tarde. Mas o simples fato de termos
um programinha juntos, sem que um de nós dois estivesse preso trabalhando
até tarde da noite, já seria bem especial.
No momento em que avistei meu pai, foi como se toda aquela saliva
que havia cuspido para cima há dez anos tivesse caído bem no meio da minha
testa. Era capaz de senti-la escorrendo pelo meu rosto enquanto me
aproximava dele com um sorriso desajeitado nos lábios, tentando maquiar o
quão desconfortável eu estava com o nosso tardio reencontro.
Entramos em sua velha caminhonete azul, uma que ele possuía desde o
tempo em que eu ainda morava com eles, e seguimos em direção ao sítio da
minha família, o “Paraíso”.
Durante toda a minha adolescência, sempre levei esse nome como uma
espécie de deboche universal — uma maldita piada interna —, pois, para
mim, aquele pedaço de terra estava longe de ser algo divino. Enxergava-o
mais como um inferno, como se ele fosse uma prisão que me impedia de
conhecer todas as coisas boas que o mundo tinha a me oferecer.
Ao menos, era isso o que a minha mente adolescente e imatura
costumava pensar.
Diferentemente daquilo que pensei, o meu pai não ficou calado atrás do
volante, perdido em seus próprios pensamentos. Ele tocou em todos os meus
calos, em apenas vinte minutos de estrada rodada. Questionou sobre a minha
vida na cidade grande, sobre o meu trabalho e, como era de se esperar, sobre
a minha tão repentina decisão de tirar férias.
Conhecia-o bem o suficiente para saber quando ele não engolia uma
das minhas mentiras. Minha percepção quanto às suas reações havia se
aperfeiçoado bastante durante a minha adolescência, quando eu me obrigava
a inventar desculpas esfarrapadas para que ele me deixasse sair de casa.
Seu João não era desses que cortam a mentira no segundo em que a
identificam, ele gostava de deixar a pessoa alimentá-la e ir se enforcando
sozinha, limitando-se a observar até onde ela conseguiria levar aquilo. E,
infelizmente, alguma coisa me dizia que eu não iria muito longe com aquela
história de saudade e trabalho sufocante.
Meu olhar tentando fugir do seu foi o suficiente para que João ligasse
uma coisa à outra e resolvesse aquelas palavras cruzadas. Depois disso,
finalmente chegou o silêncio pelo qual eu tanto ansiava. Contudo, isso tornou
o clima ainda mais tenso do que durante a aplicação de seu interrogatório.
Quase não reconheci a minha mãe quando ela saiu da casa e se colocou
ao lado da porta, esperando-nos com aquele seu olhar enigmático e crítico.
Ela estava muito enrugada e parecia ainda mais magra do que já era, bem
acabada mesmo. Os anos a encontraram de uma maneira que realmente me
assustou, mas não que dona Sofia Medeiros se importasse com uma coisa tão
fútil quanto a sua aparência.
Em vez de algo acolhedor ou gentil, ela optou por uma frase carregada
de deboche:
— Então, você finalmente lembrou que tem uma família aqui no
Inferno, Patrícia?
Esse era bem o tipo da minha mãe: atirar palavras que eu havia
pronunciado no passado — coisas como “Inferno” — de volta na minha cara.
Diferente do meu pai, dona Sofia não conseguia manter certas coisas para ela
mesma.
— Eu também adorei te ver, mãe — respondi, tentando não abalar o
sorriso animado que carregava em meus lábios. Interrompi o nosso abraço e
completei: — Estava morrendo de saudades.
Passei pela sala, que era decorada com uma espingarda pendurada na
parede, e segui o homem com a mala até o meu antigo quarto.
Quando o adentrei, ao observar os detalhes daquele lugar, que
continuava exatamente da forma que o havia deixado quando, aos vinte e
quatro anos de idade, decidi ir embora, a nostalgia atingiu-me em cheio.
Caminhei até a cama e toquei a colcha lilás que a cobria, sentindo a sua
textura e a maciez. Foi impossível não sorrir, lembrando-me de todas as
vezes em que havia chorado embaixo dela, amaldiçoando o nosso sítio e
sonhando com o dia que eu finalmente o deixaria para trás.
— Isso aí? Ah, você sabe, é só por segurança — meu pai prontificou-se
em responder. — Nós nunca sabemos quando vamos precisar de uma.
Detestava armas, quase tanto quanto detestava o interior, e não via
sentido em possuir algo tão mortal ao alcance da mão. Em minha opinião,
que claramente não era partilhada pelos meus pais, aquele objeto só servia
para criar ainda mais problemas.
A minha mãe riu daquela sua forma nada sutil de ser, como se eu
estivesse lhe contando uma piada.
— Até a polícia chegar aqui no sítio, todo mundo já vai estar morto —
ela argumentou. Depois de passar a mão por seus cabelos dourados, que eram
mesclados com mechas grisalhas, prosseguiu: — Não sei se percebeu, mas
não moramos num apartamento de luxo no centro da cidade, Patrícia.
Aquele soco na minha cara foi tão forte que o meu pai precisou mudar
de assunto para diminuir a tensão que se criou.
— Que acidente?
— Ela não...
— Eu só disse que você não ligou tanto assim nos últimos anos — ela
se defendeu, cortando o meu pai e me colocando como a errada da história, o
que infelizmente não estava muito longe da verdade, se eu fosse sincera
comigo mesma. — E eu não menti.
Tive que me segurar para não lhe responder com “vocês também não
foram me visitar”, como se isso fosse uma justificativa boa para o tempo em
que passei longe do sítio da minha família.
— Nós podemos continuar com essa briga outra hora? Estou cansada
demais pra...
— Podemos sim, só espero que não demore mais dez anos — ela me
interrompeu, claramente vencendo aquele primeiro round.
Eu estava de volta.
E como já dizia Dorothy — e os estagiários incompetentes da minha
empresa —, não há lugar como a droga do nosso lar.
Capítulo 02 — Distância
Estava em casa.
Fiquei longe por dez anos — mais de 3650 dias —, porém, conseguia
lembrar nitidamente de quando parti, do dia um, do momento em que
coloquei a minha mala violeta na caminhonete do meu pai e olhei para trás,
dando-me conta de que aquela seria a última vez em muito tempo que
observaria a fachada da casa em que havia crescido. Levei comigo apenas um
punhado de roupas surradas e sonhos inalcançáveis que estava disposta a
realizar.
Voltei o meu olhar para o lado, tornei a encarar a fotografia da minha
amiga mais antiga, e não demorou muito para que as lembranças começassem
a bombardear a minha mente, levando-me de volta ao passado que tanto lutei
para esquecer.
A parte mais irônica era que a sua amizade — aquilo que me ajudou
suportar toda a infância e adolescência confinada no Inferno — era uma das
únicas coisas que eu estava disposta a levar do lugar em que cresci. E, mesmo
assim, eu não fui capaz de carregá-la comigo.
***
Respeitei a sua decisão e não cortei nossa amizade. Inclusive, fora ela
quem me dera a brilhante ideia de viajar para “esfriar a cabeça” e dar
“tempo ao tempo”.
— Eu acho que você devia viajar pra algum lugar, amada — dissera-
me ela, no dia seguinte ao término do meu relacionamento com Diogo. —
Esfrie a cabeça e descanse um pouco... Tenho certeza de que quando você
voltar pra cá, as coisas já estarão melhores.
Lembro-me de rir, como se a ideia de deixar o meu trabalho fosse
ridícula.
Fiquei com tanto ódio que minha vontade era a de tirar um print da
foto e mandar para ela, exigindo explicações. Eu precisei me controlar para
não brigar, xingando-a dos piores nomes que conseguia pensar.
No final, tudo o que eu fiz foi excluí-los das minhas redes sociais e
agradecer a distância por me impedir de quebrar a cara daquela traíra, que
não teve a decência de esperar nem ao menos duas semanas antes de festejar
com Diogo, encorajando-o a cercar-se de mulheres. Fez isso mesmo depois
de me garantir que, talvez, as coisas ainda não tivessem realmente terminado
entre a gente.
Capítulo 03 — Miss Girassol
E eu não queria sentir isso — não com ela —, não com alguém que já
tinha sido tão especial para mim. Eu não queria ficar desconfortável a ponto
de desejar que nosso reencontro, que havia demorado muito tempo para
acontecer, acabasse de forma tão rápida. Não queria olhar para a minha amiga
mais antiga e perceber que, naquele momento, nós não passávamos de duas
estranhas, de pessoas que já tinham significado muito uma para a outra, mas
que não se conheciam mais.
No instante em que a vi deixando a casa para me receber, todos esses
meus pensamentos pessimistas desapareceram.
Eu nem tive tempo de formular uma resposta ácida, pois os seus braços
me envolveram com tanta força que me deixou sem ar e palavras.
— Você está ainda melhor do que nas fotos do seu Facebook —
continuou ela, como se a minha aparência realmente a tivesse surpreendido.
— Sempre pensei que você exagerava nos filtros e por isso as suas fotos
ficavam tão perfeitas, mas aqui está você, ao vivo e em cores… É oficial, eu
te odeio, sua cretina.
— Nem conseguimos falar muito por telefone ontem… Quando foi que
você chegou? — questionou ela, convidando-me para me sentar no sofá. —
Pra falar a verdade, demorei pra acreditar que você realmente estava aqui no
Inferno.
— Ele só fez isso porque ficou do lado da mãe dele em uma de nossas
discussões — revelou-me ela enquanto me entregava a xícara com o café. —
Aquela velha sempre me irritou, mas nos últimos dias está passando dos
limites.
— Pelo menos, ele ainda tentou te agradar, outros nem isso fazem… —
disse, lembrando-me do traste do meu ex-noivo e do quanto ele havia me
decepcionado.
— O meu problema com esse agradar de macho é que sempre vem com
uma segunda intenção — continuou ela, dessa vez, fazendo-me concordar. —
Fred mesmo só me agrada em duas ocasiões. Uma delas é quando faz alguma
coisa errada, tipo ficar defendendo a vaca da mamãezinha dele.
Não tive nem tempo de rir da resposta, pois, logo em seguida, uma
garotinha loira surgiu de surpresa e aproximou-se de onde nós duas
estávamos sentadas.
Eu ainda não conhecia a segunda filha de Clarisse; tudo o que tinha
visto eram fotos nas redes sociais. Depois de eu cumprimentá-la com um
abraço, a garotinha voltou toda a sua atenção para a mãe.
Droga.
Dizer que não existia mais noivado, que estava solteira depois de levar
um chifre seguido por um baita pé na bunda?
Ou mentiria, dizendo que ainda não havíamos planejado nada disso?
— Me diz que você, pelo menos, deu uma surra nos dois safados?
Fiquei em silêncio.
— Desisto…
— Eu já achei uma tremenda burrice você não ter quebrado a cara dos
dois… Mas tentar perdoá-lo depois de ser chifrada? Isso é ser trouxa demais,
Paty... Até pra você, amiga!
Olhando através daquele ângulo, eu realmente aparentava ser a mulher
mais burra do universo.
Além disso — por mais que eu não quisesse admitir —, ainda havia a
questão da minha idade. Em apenas cinco anos, estaria quase chegando aos
quarenta, solteira e sozinha. Infelizmente para uma mulher, de acordo com
aquilo que cresci ouvindo, era um claro sinal de fracasso.
Felizmente, a minha amiga não se importou com isso, ela até entrou na
brincadeira.
— Agora nós também temos festas, exatamente como na cidade
grande, querida… Só que a nossa é no meio do mato, o que torna tudo ainda
mais divertido, pois nem precisamos de quartos. — Antes que eu pudesse
chamá-la de nojenta, Clarisse continuou: — E eu fiquei sabendo que a
próxima acontecerá na sexta-feira.
— Eu não…
— Vamos sim, você mesma disse que veio pra cá esfriar a cabeça e
nada melhor do que em uma festa com a sua velha amiga — respondeu ela,
interrompendo-me antes que eu pudesse enumerar os vários motivos pelos
quais aquela não parecia ser uma boa ideia. — Vai que você encontra um
peão gostoso por lá, se casa e mora em um sítio aqui perto, já pensou?
Quase fiz um sinal da cruz e rezei um pai-nosso para me proteger
daquela maldição que Clarisse estava jogando pra cima de mim.
E como eu sabia bem que ela não desistiria tão fácil, resolvi apelar para
a família dela.
Nos dois dias seguintes, a minha resposta foi um “não, eu não vou ir a
essa festa estúpida” e “eu não preciso disso”. Mas quando a sexta-feira
chegou, dirigi até o local em que a festa ocorreria, pensando “você merece se
divertir, Patrícia!”, como se estivesse justificando para mim mesma o
motivo de ter aceitado participar daquela loucura.
A idade.
Eu ainda não tinha visto ninguém que aparentasse ter mais de vinte e
cinco anos e isso me deixou bem desanimada, pois, ao lado deles, jovens e
agitados, acabei me sentindo uma idosa.
E depois de ser substituída por um modelo mais novo, não era nem um
pouco legal se sentir um produto vencido. Por mais que a minha autoestima
fosse boa, era impossível não me sentir mal depois do que havia acontecido
com o meu noivado, do que Diogo havia feito comigo.
— Por que você não me avisou que seríamos a terceira idade daqui, sua
vaca? — continuei a questioná-la e, dessa vez, quase gritando. Havia
pronunciado até um “sua vaca”. A minha paciência estava desaparecendo
rapidamente. — Não pensou que seria legal, sei lá, me avisar?
“É claro que não”, pensei, odiando-me ainda mais por ter aceitado a
porcaria do convite.
Ela só tentou passar a impressão de que ainda era tão descolada quanto
no tempo da escola, de que ainda frequentava festas e se divertia, mesmo
sendo casada e mãe.
No fim das contas, estávamos incessantemente tentando mostrar o
quanto a nossa vida era incrível e deslumbrante, ainda que isso não fosse
verdade. Tudo o que importava eram as aparências, as fotos que postávamos
e as curtidas que recebíamos.
Com certeza, algo bem mais produtivo do que a festa do dia das
crianças que estava rolando naquele barracão. Mas ela agarrou o meu braço,
impedindo-me de voltar para a caminhonete azul.
— Você vai mesmo desperdiçar a oportunidade de se divertir e
esquecer o babaca do seu ex? — questionou ela como se estivesse atirando
uma isca pra me fisgar. Depois de perceber a minha hesitação, a morena
continuou: — Vamos entrar e se só tiver crianças lá dentro, nós vamos
embora. Combinado?
Eu não tinha ideia de qual era a resposta correta, mas depois de ter isso
em mente, foi impossível deixar de balançar a minha cabeça, concordando
com a sua proposta.
Estava deitada em uma cama dura e coberta com uma colcha verde
desgastada, que parecia ser o cobertor de algum animal de estimação e não
algo adequado para o uso de um ser humano, entretanto, a parte mais
assustadora era que eu estava vestindo apenas roupas intimas.
Isso fez com que eu, no mesmo segundo, olhasse para o chão, a
procura do restante das minhas coisas.
Não encontrei nada; nem roupas, nem bolsa e nem sapato.
Só não me senti ainda mais atraída porque ele não parecia possuir mais
de vinte e poucos anos e eu já era madura demais para ficar brincando com
crianças.
Não tinha como não ficar apavorada com algo assim, independente da
aparência do sujeito.
Sem nem pensar, apanhei o cobertor velho e me enrolei nele, antes de
me levantar da cama, ficando de frente com o desconhecido.
— Seu nome é Patrícia, né? — A sua voz soou de forma mais pacífica.
— Acalma um pouquinho...
Antes que ele pudesse abrir a boca e despejar mais daquela conversa
fiada, eu completei: — E você não tem vergonha na cara, não? Trazer uma
mulher completamente bêbada pra sua casa e se aproveitar dela?
O desconhecido ficou extremamente sério e, logo em seguida, começou
a rir, como se eu estivesse lhe contando uma piada engraçada ou falando algo
estúpido e sem sentido.
— E, ainda assim, me arrastou para a sua casa e pra sua cama, não é
mesmo seu cachorro? — rebati, pegando nojo daquela expressão sarcástica
que ele mantinha estampada no rosto.
Naquela fração de segundos, eu me detestei por, em algum momento,
já tê-lo achado bonito.
— Como sua amiga já tinha dado no pé, eu achei melhor trazer cê pra
cá e evitar que dirigisse bêbada igual uma gambá por essas bandas.
O olhar dele fez com que eu engolisse todas as palavras que tinha
pronunciado mais cedo, junto com a razão que eu pensei possuir.
Sim.
Eu precisava da ajuda do peão.
Por mais que eu fosse uma mulher de convívio complicado, não tinha
muitas desavenças e eu não odiava quase ninguém. Mas aquele cara, com
toda a certeza, já estava ocupando uma ótima posição na minha listinha do
ódio, o seu nome permaneceria por muito tempo sublinhado na cor vermelha.
Mesmo detestando a ideia de vestir a roupa brega e suada que aquele
inútil havia acabado de tirar do corpo, fui obrigada a fazer isso.
Mas se existia alguém que eu estava odiando mais do que o caipira mal
educado, era Clarisse — a pessoa que deveria ter agido como a minha amiga.
De acordo com aquele babaca, ela foi embora e me deixou lá sozinha e
bêbada, completamente exposta a todo tipo de perigo.
Eu podia me considerar uma pessoa sortuda por ter ido parar na cama
de um cara só insuportável. Sabia que a situação podia ter sido muito pior, ele
poderia ser insuportável e assassino.
Ao deixar o quarto do caipira, que provavelmente trabalhava de caseiro
na fazenda, avistei a caminhonete do meu pai estacionada ao lado de uma
árvore.
No fim das contas, pelo menos, o caubói idiota serviu para alguma
coisa. Ele havia buscado o carro no local da festa, guardou em segurança no
quintal, escolheu até um lugar que não pegasse muito sol e devolveu a chave
para dentro da minha bolsa. Por mais que eu nunca, em hipótese alguma,
fosse assumir algo do tipo, realmente estava grata pelo gesto.
Observei por uma última vez a propriedade e dei partida, torcendo para
nunca mais ter que cruzar com aquele imbecil.
Capítulo 06 — Traumatizada
Como eu não estava com muita paciência para isso, nem lhe dei a
chance de começar a falar. Passei por ela e limitei-me a um simples “bom
dia, mãe”, enquanto seguia em passos bem apressados para dentro de casa.
“Se quiser, vai usar a camisa xadrez ridícula que tanto desprezou”.
Ele havia me dito com aquele sotaque de roceiro, junto com um sorrisinho
desprezível.
Depois dessa minha dose diária de infantilidade, fui para o banheiro
terminar de me purificar. Necessitava, urgentemente, me sentir limpa outra
vez e isso não aconteceria até que me lavasse, esfregando a minha pele com a
esponja mais grossa que os meus pais tinham.
A simples sensação da água quente caindo sobre minhas costas fez com
que voltasse a me sentir como eu mesma: uma mulher decidida e forte. A
água levou com ela todo o constrangimento que tinha passado pela manhã e
praticamente toda a raiva que ainda estava sentindo.
Não queria tornar a me lembrar daquela festa idiota e, principalmente,
do caubói com quem havia tido o desprazer de acordar, mas ainda existia
uma pessoa que me devia explicações — explicações muito boas por sinal.
Então, eu me dei conta de que havia acabado de saber que a filha dela
estava internada e questionei o óbvio: — mas e a Beatriz, como ela está?
— Já está melhor... Às vezes, ela tem essas crises e precisamos correr
para o hospital — explicou, despreocupando-me e fazendo com que me
sentisse menos culpada por pensar em um discurso ridículo antes de ligar. —
Ela ainda ficará em observação, mas acho que vão dar alta ainda hoje.
A primeira coisa que fiz, depois de engolir toda a razão que pensava
possuir e aceitar que não existia mais ninguém para transferir a culpa além de
mim mesma, foi colocar a porcaria do meu celular para carregar. Eu queria
ver as mensagens que Clarisse havia-me enviado, para conferir se não havia
mais algum detalhe que eu precisava saber.
Após fazer isso, eu fui para a cozinha pegar uma xícara de café, pois
precisava desesperadamente despertar e a cafeína podia me ajudar com isso.
Chegando lá, eu descobri que a minha mãe já não estava mais lá fora
encarando o horizonte com o seu olhar julgador, agora ela estava acampada
na mesa, provavelmente esperando eu aparecer por ali para dar início a sua
segunda tentativa de comentar sobre o quanto eu estava sendo irresponsável e
imatura por dormir fora de casa sem avisá-los.
Ela ficou tão grogue com o meu pedido de desculpa — algo que
realmente não era fácil de acontecer — que perdeu até o restante do sermão,
que também devia ter passado horas planejando.
Essa frase era aquele “bem-vinda de volta, filha” que eu tanto esperei
no momento em que a vi, quando cheguei ao sítio. E, ainda que ela estivesse
um pouquinho atrasada, foi ótimo ouvi-la.
Capítulo 07 — Calmaria
Mas, dessa vez, o máximo que eu conseguiria fazer era mentir, dizendo
“eu dormindo no quarto de um peão na sua propriedade? Eu acho que não,
hein”.
Ela, que nunca deixava barato, retrucou com “farei mesmo ou vamos
acabar espantando o convidado”.
Apenas mais um momento normal entre mim e minha mãe.
Pensei em ajudar com os pratos, mas mudei de ideia. Não queria correr
o risco de discutir com ela em frente ao nosso “convidado de honra”.
Como eu não ouvi nenhuma resposta da parte dela, dona Sofia não
devia ter ouvido minhas queixas.
Como dona Sofia não me acompanhou na risada, devo ter sido a única
a achar graça naquilo — ainda que fosse uma piadinha de muito mau gosto,
assumo. Mas isso era estranho, já que a minha mãe nunca ligou para o
“politicamente correto”, principalmente quando isso se referia à própria filha
dela.
Alguns segundos mais tarde, como se tivesse demorado a processar a
informação, minha mãe questionou: — De que velho você está falando,
Patrícia?
Minha mãe estava comentando alguma coisa sobre lasanha ser o prato
preferido dele, algo que não dei muita importância. Todo o meu foco estava
no carro e na pessoa que sairia dele.
A única coisa em que conseguia pensar era que Cristóvão, por algum
motivo — talvez por não conseguir mais dirigir —, havia mandado o peão
dele trazê-lo. No entanto, parecia não haver mais ninguém dentro do veículo
e isso se confirmou quando meu pai se levantou da cadeira e, aproximando-se
dele, deu-lhe um abraço.
Droga.
Droga.
Droga.
Não tive tempo para responder com um “da próxima vez, seja mais
específica”. Meu pai e o provável filho de Cristóvão Rocha já se
encontravam bem a nossa frente.
Antes que ele pudesse revelar aos meus pais as exatas circunstâncias
em que nós dois havíamo-nos conhecido — e me matar de vergonha alheia
—, apertei sua mão com força e levantei o meu olhar, encarando os olhos
esverdeados que tanto me intimidaram naquele sábado de manhã.
Sô?
Tive que me segurar para não soltar um “isso se você já não estiver,
não é?”. Mas, ainda que a minha língua estivesse sedenta pelo comentário
venenoso, não podia nem pensar a me arriscar e atacá-lo dizendo o quer que
fosse. Se o projeto de caubói quisesse, com uma simples frase, poderia
facilmente me destruir de forma cruel e muito humilhante.
Mas é claro que esse meu gostinho não durou por muito tempo.
— Eu falei sim, querida. Contei até das vezes em que nós pescamos
juntos, lembra? — retrucou o meu pai, mostrando-me que realmente havia
falado sobre o cretino.
Em todas essas nossas conversas, eu pensei que o seu João estava se
referindo ao pai de Beto, o Cristóvão — o velho que agora, depois de eu
saber quem era o seu filho, não parecia mais tão insuportável.
Eu sempre detestei isso, mas vê-la colocando comida para Beto antes
de colocar a minha, fez com que eu sentisse um ciúme bobo e vergonhoso.
Quando chegou a minha vez, ela exagerou no pedaço de lasanha.
Eu queria me beliscar para ter certeza de que não estava presa em uma
espécie de pesadelo, daqueles em que você acorda completamente aliviada
por se dar conta de que tudo não passou de um sonho. Não conhecia outra
palavra que pudesse descrever aquela situação em que eu me encontrava.
Eu tinha certeza de que ela não tinha dito isso em relação ao gênero
masculino, ela basicamente estava dizendo que ele era tudo o que eu nunca
fui para eles.
Sabia que tinha a minha dose de culpa nisso tudo, e que não era tão
pequena assim. Afinal, tinha passado muitos anos sem visitá-los, limitando-
me a conversas telefônicas e mensagens de texto em determinadas datas.
Depois de me tornar adulta, ausentei-me quase completamente da vida deles.
No entanto, era muito baixo da parte dela jogar tudo isso na minha cara, num
jantar com um dos caras que mais me intimidavam.
Voltei o meu olhar para o caipira.
Qualquer pessoa em seu lugar não daria mais que um sorriso tímido,
continuando a aproveitar a comida dentro do prato. Mas — como ele já tinha
me provado — o desgraçado não se enquadrava nesse “qualquer pessoa”.
Ele era irritante demais para isso.
E, sem dúvida alguma, a sensação que passava pelo meu corpo era a de
que um massacre estava bem próximo. Ou, talvez, fosse apenas toda a culpa
por ser uma péssima filha finalmente me alcançando. Eu era ausente e isso os
obrigou a criar uma relação com estranhos, precisaram transferir o amor deles
para outra pessoa, pois a verdadeira filha nunca estava por perto.
Não queria saber das pescarias dele com o meu pai e nem das vezes em
que ele consertou algo na casa para a minha mãe. Não queria ouvir nada que
provasse o quanto ele era melhor do que eu como filha.
Quando terminei de ajudar minha mãe com a louça, fui para o banheiro
e tranquei a porta, como se isso me livrasse completamente do caubói.
Observei o meu reflexo no espelho e respirei fundo, tentando não surtar com
o que estava acontecendo fora dali.
“Você é uma mulher crescida, Patrícia” disse a mim mesma, tentando
enxergar a situação de outra forma. “Você tem trinta e quatro anos. Dê a
outra face... Seja uma adulta”.
Respirei fundo uma vez mais, coloquei um sorriso no meu rosto, abri a
porta do banheiro…
— Patrícia?
Então, ele se despediu dos meus pais, piscou pra mim — com um
sorrisinho provocador nos lábios — e se preparou para deixar a casa.
Como o meu pai já estava indo para fora junto com ele, eu me
antecipei, dizendo-lhe: — Deixa que eu acompanho o Beto.
A única pessoa que estranhou a minha atitude foi a minha mãe, mas,
por sorte, manteve-se em silêncio.
Ali no quintal, longe de todos, eu também não precisava ser gentil com
ele. Na verdade, estava com muita raiva para conseguir tratá-lo bem. Roberto
— pelo que eu pude notar durante o jantar — era amigo dos meus pais há
bastante tempo, o que também significava que ele sempre soube quem eu era,
que tinha reconhecido a caminhonete azul do meu pai.
— Mulherzinha metida é a vaca da sua mãe! — disparei com fúria nos
olhos, cansada de precisar tratar aquele idiota com cordialidade. — Os pais
são meus e eu não quero que os meus momentos com eles sejam manchados
com a sua presença repugnante. — Antes que ele pudesse me responder,
ainda completei: — Como você provavelmente não deve saber o que é
repugnante, significa uma coisa nojenta... Bem parecida com você.
Eu estava com tanta raiva dele que nem pensei para responder com
uma mentira: — Eu joguei aquela coisa horrorosa fora.
— Você, o quê?
— Eu só não vou dizer o que ocê é por respeito aos seus pais, de quem
eu gosto muito...
— Cala essa boca, seu caipira idiota — rebati, imaginando o que
aquele desgraçado achava que eu era. Tinha certeza de que a palavrinha em
sua mente começava com “P”. — Quem é você pra pensar em achar alguma
coisa sobre mim?
Beto não parecia ser o cara que perdia a paciência com muita
facilidade, mas, naquele momento, ele perdeu. O caubói não disse mais
nenhuma palavra, simplesmente entrou em sua Hilux e tentou me ignorar.
— Como é que você pôde me deixar lá com ele, sua vaca? — perguntei
a Clarisse pela centésima vez. — Não havia ninguém mais desagradável,
não?
Depois de sua crise de riso — uma consequência do meu relato sobre o
dia em que acordei na cama do caipira e do jantar horrível que fui obrigada a
participar —, ela começou a se defender.
Sem a mínima ideia do que fazer, optei pelo mais óbvio — e, talvez, o
mais estúpido — gastando todo o extintor em cima do capô. Quando
terminei, dei-me conta de que, talvez, devesse ter aberto o capô primeiro,
antes de desperdiçar todo o pó do extintor no metal azul descascado.
Por sorte, a fumaça parou. Ainda assim, fiquei com medo de girar a
chave e aquela porcaria velha pegar fogo. Se acontecesse novamente, não
teria mais nada para apagar o incêndio.
Abri a minha bolsa e peguei o meu celular, antes de me dar conta de
que aquilo era completamente inútil no lugar em que estava.
O quê?
— Meu filho, eu nunca pedi a sua ajuda pra nada — disse a ele,
realmente possessa de ódio. — Se eu soubesse que aquele carro horroroso era
seu, nunca teria pedido ajuda. E naquela festa, você me levou pra sua casa
porque é um galinha nojento... Queria é se aproveitar de mim, isso sim.
Eu sabia que não tinha acontecido nada daquilo, mas esse era o meu
último recurso para não sair por baixo naquela discussão.
— Eu, um aproveitador? — Ele me fuzilou com aquelas lanternas
claras e isso fez com que eu me preparasse para o que estava por vir. E, ainda
assim, eu não estava pronta: — Cê ficou se oferecendo pra mim igual a uma
cadela no cio, eu só não te comi porque não quis, porque sou um cavalero...
Nunca precisei.
Eu tinha certeza de que aquilo — “não é meu tipo” — não era algo que
pudesse ser aplicado a Beto. Pelo menos, não em relação à sua aparência. A
sua casca era perfeita, mas o recheio, com toda a marra, falta de educação e
grosseria, tornava o restante podre.
A verdade é que durante esses dias sem vê-lo, esperava que ele
aparecesse. Como certas coisas nunca mudavam, o sítio dos meus pais
continuava não tendo nada que me interessasse. E brigar com ele, sem dúvida
alguma, foi a coisa mais interessante que havia feito nas últimas semanas.
Adorei ver aquela sua expressão de ódio quando insinuei que ele tentou se
aproveitar de mim ou então quando menti que joguei a sua camisa no lixo.
Um homem loiro, vestindo uma camisa branca e uma calça jeans preta,
estava parado ao lado da minha mãe — a última pessoa do mundo que eu
queria que o recebesse. Um sorriso simpático e encantador iluminava aqueles
lábios maravilhosos.
A impressão que eu tinha era de que tudo aquilo não passava de uma
grande piada, de que a qualquer momento alguém começaria a rir, dizendo
“você está no Te Enganamos TV”. E como ninguém riu, revelando uma
armação, estava mais do que confirmado que era eu mesmo a palhaça da
história.
— O que foi que você me disse quando eu tentei preservar o que nós
tínhamos? Deixe-me lembrar… — disse, buscando pelas palavras que ele
havia usado para me dar um fora. — Acorda Patrícia, eu traí você, porra! Fiz
isso porque esse nosso noivado estava um porre... Isso aqui, nós dois, não
tem mais salvação. E como você já descobriu tudo, eu acho melhor a gente
dar um fim aqui mesmo… O problema não é com você ou comigo, o
problema são as circunstâncias que levaram a isso...
Lembrei-me de cada palavra que aquele desgraçado havia usado. No
momento em que eu as ouvi, senti cada uma delas, como se estivessem sendo
tatuadas por todo o meu corpo, marcadas em mim a ferro quente. Eu nunca
me esqueceria de nenhuma delas.
— O problema não é com você, Diogo… — continuei dizendo da
forma mais sarcástica que encontrei. — Na verdade, o problema é com você,
sim!
Tirei as suas mãos de mim e me preparei para entrar na casa dos meus
pais e deixá-lo ali fora falando com o vento.
— Eu estou aqui te implorando…
Depois de lhe dizer aquilo, não dei chance para o loiro argumentar,
simplesmente caminhei na direção de Beto e gritei de forma animada: —
Você está dez minutos atrasado, caubói!
Quando me aproximei, abracei-o com força e beijei o seu rosto de
forma carinhosa, sentindo a sua barba áspera em meus lábios. Esforcei-me ao
máximo para agir como se nós dois fossemos extremamente íntimos ou, no
mínimo, bons amigos.
Como não respondi, ele fechou a porta e deu a volta em seu carro,
antes de se sentar no banco do motorista e voltar o seu olhar em minha
direção, com um sorrisinho irritante de vitória.
O som da sua risada fez com que o meu olhar fosse atraído em sua
direção.
— O que foi? — quis saber o motivo de toda aquela graça. — Eu disse
alguma coisa engraçada?
Por um curto instante pensei que fosse uma piada, que não existisse a
possibilidade de aquilo ser verdade. Até porque, tinha me comprometido a
fazer qualquer coisa — e tinha até me assustado ao fazer essa promessa no
momento do desespero.
— É uma droga ter que admitir, mas essa camisa fica mais melhor em
você do que em mim.
— Não existe “mais melhor”, é só “melhor” seu caipira burro —
respondi com um sorriso superior no rosto. — Mas obrigada pelo elogio.
Diferentemente do que pensei, ele não revidou aquela patada.
— Quer saber… Cê que sabe, se não quiser vir… pode voltar andando,
são só dez quilômetro... — disse ele, entrando no matagal, nem me dando
tempo de dizer alguma coisa.
Simplesmente detestava mato, e a ideia de andar no meio dele, com
todos os bichos me picando e aquela terra nojenta sujando meu corpo, era
como um pesadelo se tornando realidade. Mas, como saí de casa
desprevenida, não tinha celular e nenhuma outra forma de avisar meu pai. E
ainda que eu tivesse, não teria sinal. Dinheiro também era algo
completamente descartável, já que eu não encontraria algo parecido com um
Uber por lá.
Fiquei tão apavorada com aquele comentário que só não voltei atrás
porque nós dois já havíamos andado alguns metros e fiquei com medo de me
perder, já que não tinha certeza quanto à direção certa para a estrada.
Andamos por uns quinze minutos, tempo suficiente para que eu sujasse
todo o meu tênis branco. A parte mais triste era que eu sabia que aquela terra
nunca mais sairia dele, seria chegar em casa — na minha verdadeira e não na
dos meus pais — e jogá-lo fora.
— Você me fez andar no meio do mato por todo esse tempo pra ver
uma porcaria de cachoeira? — questionei de forma agressiva.
Finalmente tinha entendido por que ele havia cobrado a minha dívida
com um “simples” passeio.
O desgraçado, definitivamente, era um “gênio caubói do mal”.
— Pode falar a verdade, caipira... Confessa logo que tudo isso é uma
espécie de vingança — disse, limpando o suor da minha testa.
Ele revirou os olhos e rebateu: — Olha pra essa água, pra essas árvores
atrás de você ou pro chão que tá pisando… Cê não tem isso lá na cidade
grande.
— E é exatamente por isso que eu moro lá, né querido? — respondi,
imaginando ter que viver com toda aquela sujeira ao meu redor. — Deus que
me livre ter toda essa terra nojenta espalhada pelo meu piso branco.
Mas, ainda assim, admitia que o lugar em que estávamos era mesmo
muito bonito, provavelmente o mais lindo em que eu já havia estado.
Seu convite fez com que eu olhasse para a água e, em seguida, para o
rosto dele.
Ele começou a rir e não era uma risada de nervosismo por ter sido pego
no flagra. Beto realmente havia achado graça do que eu havia acabado de
dizer — ou era um ótimo ator —, como se fosse algo completamente ridículo
e isso fez com que eu considerasse a ideia de, mais uma vez, estar enganada a
respeito das intenções do peão.
— Não se mexa, tem uma cobra do seu lado… — sussurrou ele, com
uma expressão séria. O moreno foi se aproximando de onde eu estava
lentamente e isso me deixou ainda mais tensa. — Continue quietinha…
Irritada com o lance do “tem uma cobra do deu lado”, dei um tapa em
seu braço esquerdo.
Ele me sentou em outra pedra e, dessa vez, não fui capaz de ficar ali
por mais de cinco segundos. Levantei-me e, de forma paranoica, fiquei
olhando para o chão, como se eu estivesse cercada por cobras. E, durante
todo esse tempo, não fui capaz de largar o braço do caubói, que,
estranhamente, ainda não havia feito nenhum comentário maldoso a respeito
do meu estado de choque.
— Ei… Só vou ali pegar minhas roupas e já volto aqui, tudo bem? —
disse ele, olhando para a minha mão, que continuava agarrada ao seu braço
direito. Ele não conseguia desvencilhar-se de mim. — Prometo.
No mesmo instante, eu finalmente soltei Beto, totalmente
envergonhada.
Ele vestiu a roupa por cima do corpo molhado e voltou para onde eu
estava. Beto, sem dizer uma única palavra, entrelaçou os nossos dedos e
começamos a andar juntos, refazendo o caminho para casa.
Capítulo 12 — Deslizes
Antes que Beto pudesse finalizar aquela frase, escorreguei e caí dentro
de uma poça de lama. O meu corpo ficou todo coberto por uma mistura
gosmenta que me deu nojo só de olhar.
Ignorei a sua voz e apoiei a minha mão sobre o barro, buscando uma
espécie de apoio para me ajudar a levantar dali, mas sempre que eu tentava, o
meu pé tornava a escorregar e isso só serviu para me sujar ainda mais.
Quando percebi que não conseguiria fazer isso sozinha, voltei o meu
olhar para o caubói, rendendo-me e quase implorando por sua ajuda, ainda
que ele continuasse com aquele sorriso estúpido no rosto.
— Caso você ainda não tenha reparado, eu meio que estou precisando
de uma ajuda aqui — pedi pelo seu auxílio, daquele meu jeitinho especial de
ser.
Quando ele percebeu que eu não estava com graça e que continuava
dentro daquela poça maldita, finalmente estendeu a mão para me ajudar. Mas,
em vez de usar a sua mão de apoio e sair de lá, eu a puxei para baixo com
toda a minha força. Como ele não estava preparado para aquilo, não deu
outra. Beto também caiu na poça lamacenta em que eu estava.
Ainda que eu tivesse feito isso para impedir o que estava prestes a
acontecer, Beto não interpretou o meu gesto dessa forma.
Soube disso quando a sua mão enorme, também suja, acariciou o meu
rosto e me puxou para aquele beijo que eu tanto havia tentado evitar.
Conforme o seu rosto se aproximou, eu me senti dentro de um carro
desgovernado, prestes a colidir com outro veículo.
Foi estranho.
Foi sujo.
Foi bruto.
E foi muito, muito bom.
Nunca fiquei tão feliz por estar dentro de um carro. Abaixei o vidro e
voltei o meu olhar para o acostamento, enquanto absorvia tudo o que havia
acontecido. No final de todas as minhas somas, sabia exatamente o resultado
daquela equação.
— Obrigada pelo… — comecei a dizer, sem saber ao certo pelo que eu
estava lhe agradecendo. Eram tantas coisas que ficava difícil enumerar em
um mesmo comentário. Eu era grata por ele me salvar de Diogo e daquela
cobra, por ceder o seu peito quando eu precisei de um lugar para afagar o
meu rosto e pela sua proteção no momento em que fiquei aterrorizada. —
Obrigada por tudo.
Por mais que eu não fosse a maior fã do interior, não podia negar que o
cheiro da terra molhada era maravilhoso.
Terra.
Água.
Lama.
Eu nunca mais conseguiria pensar nessas três palavras sem me lembrar
daquele beijo que compartilhei com o caubói.
Ainda que o céu estivesse escuro, sabia que não devia ser muito tarde,
apenas mais um dos efeitos da tempestade que continuava a cair. Então, não
sabia se desejava um “boa noite” ou, simplesmente, se me despedia dele com
um sorriso.
Por fim, eu acabei não optando por nenhuma dessas duas opções.
Limitei-me a abrir a porta do carro e me preparar para deixá-lo, sem dizer
nada.
— Cê não tá se esquecendo de nada não? — O som da sua voz me
impediu de sair. Ao perceber que eu não sabia a que ele estava se referido, ele
apontou em direção a camisa xadrez em minha mão. — Acho que isso aí
costumava me pertencer.
Queria tanto tê-lo ouvido pronunciar essa mesma frase no dia em que o
confrontei sobre a traição. Tinha certeza de que, se ele a tivesse dito, da
mesma forma que havia feito naquele instante em que estava prestes a deixar
a casa dos meus pais, ela teria sido suficiente. Teria sido suficiente para
salvar aquele “nós” a que ele se referia.
Agora, já era tarde demais. Esse mesmo “nós” já estava morto, morreu
no instante em que Clarisse fez com que eu percebesse o quanto estava sendo
idiota por esperar migalhas de um homem, quando poderia ter o pão inteiro,
vindo de outro muito melhor.
Sempre fui aquela mulher viciada em trabalho, que não encontrava
tempo para cuidar da própria vida. Conseguia resolver qualquer tipo de
problema na empresa, mas sempre adiava os meus próprios. Por muito
tempo, não consegui ter um relacionamento que durasse mais de três meses.
Diogo foi o cara que conseguiu mudar isso; fez com que eu olhasse para mim
mesma de outra forma; fez com que eu tivesse uma verdadeira noção do que
era um relacionamento.
Eu não tinha ideia se o que nós tínhamos era mesmo amor ou,
simplesmente, uma cumplicidade, algo que funcionou muito bem por anos.
Contudo, meu coração não acelerava — não da maneira como acontecia
quando estava perto do caubói —, meu estômago não se enchia de borboletas
e não me sentia nem perto de como havia me sentido ao beijar o Beto. Por
outro lado, não era ruim, possuíamos química e tínhamos intimidade,
conhecíamos os costumes um do outro e os anos nos trouxeram experiência
de convivência.
Talvez fosse apenas outra forma de amar — a única que eu conhecia na
época.
Mas acabou.
Eu tinha certeza.
A partir daquele momento, a única coisa pela qual ansiava era ter
novamente aquela sensação que havia experimentado com Beto e tinha
certeza de que era algo que Diogo jamais poderia proporcionar.
Foi a primeira atividade entre mãe e filha que tivemos em anos. Não
houve brigas, nem comentários maldosos. Pelo contrário, nós rimos bastante
e conversamos sobre coisas relacionadas ao sítio.
— Quer ir junto? — convidei-a realmente esperando que aceitasse e
me acompanhasse mais uma vez.
Fingiríamos?
Repetiríamos?
Dei dois passos, diminuindo ainda mais a distância entre nós dois,
antes de lhe responder: — Então, perdeu a viagem… Eu nunca considerei a
ideia de devolvê-la.
Ele não disse mais nada, simplesmente avançou sobre mim e, mais uma
vez, tomou os meus lábios para si. O impacto entre os nossos corpos foi tão
forte que eu bati as minhas costas no guarda-roupa, mas nem isso fez com
que interrompêssemos aquele beijo.
Assim que nos afastamos, abri os meus olhos para encarar aquele rosto
que devia estar tão próximo ao meu, entretanto, vi a imagem da minha mãe
por cima de seu ombro.
Pelo som das vozes, deviam estar todos na cozinha. Fui então para o
meu quarto, terminei de secar o meu cabelo e, encarando o espelho da porta
do guarda-roupa, questionei-me se aquele vestido não era exagerado demais,
realmente desnecessário da minha parte.
Como não tinha a mínima ideia sobre o que eles estavam falando, tudo
o que eu fiz foi me sentar e continuar ouvindo em silêncio.
Demorei a entender que eles estavam comentando sobre problemas no
maquinário de Beto e que isso poderia acabar dificultando a colheita. Como a
família dele era a que possuía a maior quantidade de terra na região, esse
“dificultar” também poderia significar “perder”.
Fiquei à mesa com eles por mais alguns minutos, tempo suficiente para
tomar uma xícara de café com leite e, em seguida, levantei-me, sem deixar de
encará-lo.
Nossos olhares se cruzaram e, nesse meio tempo, conversamos de
forma silenciosa, sem pronunciarmos uma só palavra.
Não esperei por mais nada, estava ansiosa demais para provar mais um
pouco daquela boca gostosa. Dessa vez, fui eu quem tomou a iniciativa,
agarrando-o e selando os nossos lábios. E, enquanto estávamos ligados pelo
beijo, arrastei-o para a minha cama, onde caímos e continuamos com o que
estávamos fazendo.
Por mais que a porta nem estivesse trancada, eu já estava preparada
para caso as coisas se intensificassem — havia colocado um conjunto de
lingerie maravilhoso —, mas depois de me beijar por alguns poucos minutos,
o roceiro levantou da cama e se afastou.
Ele piscou e sorriu, mostrando-me o que realmente era ser sexy, antes
de deixar o meu quarto.
Alguns minutos depois que o Beto foi embora, minha mãe entrou no
quarto. Seu olhar enigmático de quem ainda pensava exatamente no que me
diria, mostrou-me que, muito provavelmente, não tinha vindo perguntar o que
eu gostaria de comer no jantar.
Não estava esperando aquela visita, mas não podia dizer que estava
surpresa com sua aparição. Sabia que ela conversaria comigo sobre o beijo
que havia flagrado mais cedo, pois dona Sofia adorava dar a sua opinião
sobre tudo que se referia à minha vida, mesmo que, em momento algum, eu
tivesse lhe perguntado.
— Vocês dois…
Balancei a minha cabeça, negando antes mesmo que ela finalizasse
aquela pergunta.
Ainda que fosse difícil de acreditar, minha mãe estava bem ao meu
lado, defendendo o caubói de mim — como se fosse mesmo necessário — e
isso soava errado de mais formas do que eu conseguia contar.
Ao perceber o meu olhar, ela se preparou para dizer mais alguma coisa,
mas, no último segundo, hesitou e desistiu, deixando-me sozinha no quarto.
Capítulo 15 — Convite
Era oficial.
A verdade é que tinha sentido grande aversão por ele, quando nos
conhecemos naquele sábado em seu quarto. Beto me irritou mais do que
qualquer outro cara jamais tinha conseguido em tão pouco tempo. Mas, com
o passar dos dias, conforme fui conhecendo mais dele, todo aquele rancor,
talvez até um pouco de ódio, foi se transformando em outro tipo de
sentimento, um forte demais para que pudesse ignorar ou fingir não existir.
E tudo isso se confirmou quando ele ligou para o telefone fixo dos
meus pais.
Pensei que ele fosse jogar na minha cara que, na última vez, a iniciativa
do beijo havia partido de mim, mas tudo o que o projeto de caubói disse, foi
um “e cê gostou, não é?”, mais uma vez, colocando-me em uma situação
complicada.
— Passo te pegar aí daqui uma hora? — completou ele,
surpreendendo-me com toda aquela pressa e afobação de sua parte.
Sim, estava.
Dessa vez, fui eu quem quis brincar com o duplo sentido. Notei um na
frase de Beto — aparentemente cuja existência nem ele tinha percebido — e
não me segurei.
Quando constatei que ela realmente não estava ali, finalmente tive a
liberdade para sorrir da minha forma exagerada.
Diferente da última vez, eu não precisei revirar as minhas roupas no
guarda-roupa, tampouco espalhá-las em cima da minha cama, completamente
indecisa sobre o que vestiria. Eu já sabia exatamente o que usaria em nosso
jantar, foi algo automático. A ideia surgiu espontaneamente na minha cabeça.
Peguei minha toalha e segui para o banheiro, pois a hora que eu tinha
para me arrumar já estava passando. A chuveirada apressada — onde eu não
teria tempo nem de cantar uma música — foi a parte mais fácil.
O pior mesmo seria dizer para a minha mãe onde eu planejava jantar.
Não precisei nem chamar a atenção dela, a minha aparência fez isso
por mim.
— Eu vou jantar com o Roberto e não sei bem o horário que vou
chegar — disse, fazendo questão de usar o nome completo do roceiro. E antes
que ela pudesse comentar alguma coisa, completei: — Boa noite, mãe.
— Você também está lindo… — Antes que ele pudesse dizer alguma
coisa, completei: — Mas cuidado, caipira… Tá parecendo um playboy
engomadinho — brinquei, desviando o meu olhar para colocar o cinto de
segurança e, sem encará-lo, questionei: — Vamos?
Capítulo 16 — Jantar
Voltei o meu olhar em sua direção e novamente ele estava com aquele
sorriso idiota.
Ele começou a rir e isso fez com que eu desse um tapa de leve em seu
braço esquerdo.
Nunca.
— Cê tá com medinho de um sapo? A lenda da publicidade? —
continuou o caubói, aproximando-se de onde eu estava. — Deixa de frescura
e vem logo.
Sapão?
Como o caipira não tinha cara de quem cozinhava, eu não estava com
as altas expectativas quanto ao menu. Apostava em algo bem simples e,
muito provavelmente, feito por outra pessoa.
Não tive nem tempo de bater naquele cretino. O seu rosto foi se
aproximando lentamente para um beijo que eu queria muito conseguir
recusar, entretanto, eu não era tão forte e também desejava sentir os seus
lábios nos meus.
Dois pratos.
Dois copos.
E até mesmo os talheres estavam organizados, colocados na mesa de
forma errada, mas esse foi outro detalhe que não quis comentar.
Arroz de forno.
Reconheci pela camada de muçarela que cobria toda a extensão da
forma.
Tive a impressão de que ele falaria mais alguma coisa depois daquele
“e”.
— Ele… O seu pai mora aqui com você?
— Morava até uns tempo atrás, agora está na casa da minha irmã... Ela
se tornou a pessoa mais adequada pra cuidar dele. — Ele riu e completou: —
E também a gente não se dava muito bem.
Não existia uma resposta simples para ela; era tudo muito mais
complexo.
Com o meu silêncio, Beto tornou a falar: — Desculpa, é que... Quando
a gente se conheceu, eu achei que tinha entendido tudo. Pensei que cê tinha
abandonado os dois aqui porque era uma cascavel sem vergonha, que não se
importava com eles... — Ele riu de uma forma tão contagiante que me
arrancou um sorriso, mesmo com aquele assunto tão pessoal e difícil para
mim. O caubói ficou sério, antes de prosseguir: — Mas agora eu sei que isso
não é verdade... Cê é mimada e muito marrenta, mas não é ruim.
Tive que me controlar para não atacar, dizendo que ele não me
conhecia e não podia supor nada sobre a minha vida baseando-se no
pouquíssimo tempo em que nos conhecíamos.
— Vou te dar a resposta mais curta, O.K.? Porque eu sou uma vaca
egoísta — respondi assim, já que não consegui pensar em nada mais sucinto.
— E a longa? — Beto questionou, não se contentando com o que eu
havia lhe dito.
Por um curto instante, ele pareceu indeciso, como se não soubesse qual
das opções deveria escolher.
Sempre gostei mais da casa dos meus avós e isso não tinha relação só
com o luxo ou com o fato de eles me mimarem demais. Amava a facilidade
para fazer coisas tão simples quanto ir ao mercado.
Como consequência disso, sempre que as minhas férias terminavam,
era uma tortura ter que voltar para o sítio.
Sabia que parte disso se devia aos problemas que haviam tido no
passado, com os meus avós não aprovando o casamento dela e nem sua
mudança para o interior. Mas, ainda assim, foi demais para mim.
E, definitivamente, onde os nossos problemas começaram.
Desde então, tudo o que eu fiz foi trabalhar em função de deixar o sítio
dos meus pais e começar de novo em uma cidade grande, de preferência na
dos meus avós. Essa sempre foi a única verdade que eu conhecia, assim como
também o único plano que eu seguia fielmente. Dona Sofia, como era de se
esperar, nunca aceitou bem essa ideia e sempre se colocou contra todos esses
meus objetivos.
Diferente de mim, minha mãe sempre amou viver exatamente onde ela
estava, conseguia enxergar aquele pedaço de terra como um verdadeiro
paraíso — e daí que veio o nome do sítio. Sofia Medeiros não suportava a
ideia de que eu não fosse capaz de amá-lo tanto quanto ela e, principalmente,
de que permanecer lá não fazia parte do meu futuro.
Com o passar dos anos e os seus “nãos”, eu comecei a vê-la como uma
espécie de obstáculo para alcançar a minha meta, como algo que eu precisava
ultrapassar para poder avistar a linha de chegada e, em um determinado
momento, nós duas deixamos de agir como mãe e filha e passamos a nos
comportar como rivais.
Ela, assim como eu, era filha única, herdou tudo dos meus avós.
Ele ficou em silêncio, sem saber o que deveria dizer, então continuei,
cortando aquele gelo: — Minha mãe e todo mundo pensa que eu só apareci
porque a minha vida estava desmoronando com o fim do meu noivado... E
em parte, realmente foi por isso... — Pela maneira como aqueles olhos
esverdeados fugiram de mim, conscientizei-me de que Beto pensava a mesma
coisa. — Mas… — Foi impossível não rir de forma espontânea ao pensar em
todas as melhores opções de viagens que eu possuía — Eu… eu tenho uma
vida bem confortável, entende? Poderia descansar a minha cabeça em
qualquer outro lugar do mundo, dormir nos melhores hotéis, comer nos
melhores restaurantes, apreciar os melhores pontos turísticos…
— Com o fim do noivado, cê tinha um motivo pra voltar, algo que não
fosse só a saudade… — observou ele, completando a minha frase.
— E também tinha esperança de que se eles percebessem o quão mal
eu estava… Não fossem me julgar tanto — disse, notando que esse plano não
deu muito certo, já que eu e minha mãe discutimos logo no dia em que
cheguei. — Mas eu tenho consciência de que não existem desculpas para
ficar dez anos longe, nem as implicâncias dela comigo, nem a mentira sobre o
dinheiro... Passei os dez últimos Natais longe daqui, longe do meu pai e não
há perdão pra algo assim.
A nossa relação de mãe e filha tornou-se tão ruim quanto a que dona
Sofia tinha com a minha avó. E essa era a parte mais irônica. Elas se
afastaram porque a minha mãe quis se mudar para o interior, porque
abandonou a vida que tinha com ela na cidade. Comigo, foi exatamente o
oposto. Nossas brigas começaram porque eu não queria ficar no sítio com ela.
— Admite que você se arrependeu por não ter escolhido transar —
comentei, tentando aliviar um pouco o clima.
— E quem disse que a gente não vai? — ele brincou rindo. Depois de
alguns segundos com os olhos verdes queimando o meu rosto, ele completou:
— Obrigado por me contar. E, não, não acho que cê seja uma vaca egoísta.
— Você só está falando isso porque quer o meu corpinho, seu caipira
safado!
“Como se eu fosse lavar alguma coisa mesmo que não tivesse feito as
unhas” pensei.
Ele negou com a cabeça, respondendo: — Lavar louça? Não… Tenho
coisas bem mais interessantes pra gente fazer.
Capítulo 18 — Bruto
— Então, que coisa interessante é essa que você tinha pra gente fazer,
caipira? — questionei, usando o tom mais sexy que consegui.
— Eu acho que quis transar com você desde aquele dia — confessei
sem me envergonhar. — No início, talvez eu não quisesse admitir isso, que
me sentia atraída por um peão idiota... Acho que por isso dificultei tanto.
— Gosto assim... Quanto mais marrenta, melhor.
Beijei sua boca uma vez mais e, em seguida, fui descendo, em direção
ao seu peito e abdome. Iniciei com beijos e, lentamente, fui intensificando,
lambendo-o como se o seu corpo fosse um pedaço suculento de carne mal
passada. Depois de contornar os seus mamilos com a minha língua gulosa,
em um jogo de provocação, eu mordisquei levemente, enquanto continuava
explorando todo o restante com a minha mão direita, sentindo-o com aquele
contato de pele na pele.
— Sabia que cê era safada assim não... — ele disse, ainda sentindo os
meus seios por cima da peça da lingerie. — Ah, se eu soubesse... Tinha
chupado cê todinha lá naquela rua, quando a caminhonete do seu pai
quebrou.
Droga.
Estava tão excitada que nem consegui ligar para a minha insegurança,
para o medo de não ser tão boa quanto as novinhas que ele devia comer pela
cidade.
Ele não sabia fazer isso, Beto era selvagem — um bicho do mato — e
entregava-se instintivamente a todas essas sensações e as explorava,
extraindo o máximo de prazer.
Era doloroso.
Nem mesmo tive tempo de respirar fundo — mais uma vez ele não
avisou para atacar —, Beto mergulhou o seu rosto dentro de mim. Chupou-
me de forma voraz, extremamente intensa. Suas mãos apertaram as minhas
pernas, como se ele estivesse tentando prevenir que eu escapasse dele.
E eu gemi.
Depois de brincar dessa forma comigo por mais alguns minutos, ele se
levantou da cama e pegou sua carteira no bolso direito da calça.
Beto não fez cerimonia para tirar a última peça de roupa que vestia o
seu corpo.
Era grande.
Não, era enorme. Uma verdadeira anaconda, que chegou a me
intimidar. Nunca me importei com tamanhos, mas tinha certeza absoluta de
que sempre me lembraria daquele caralho grande e grosso, e do quanto ele
parecia imponente no momento em que escapou da cueca.
Estava louca por ele e isso era óbvio, não existiam motivos para
mentir.
E não me envergonhava disso.
Com a minha deixa, ele parou de brincar com a comida e invadiu o
meu corpo com aquela sua rola grossa. Seus braços caíram ao meu lado,
construindo uma prisão da qual eu nunca escaparia. Nossos olhares se
fixaram e a cada estocada, Beto era capaz de ver a minha expressão facial se
transformando, sendo manchada pelo prazer de tê-lo dentro de mim.
Beto me empalava com tanta força que eu era capaz de ouvir o barulho
dos nossos corpos se colidindo, era capaz de ouvir a dificuldade em sua
respiração, que já carecia de fôlego há bastante tempo.
A luz do sol clareando o meu rosto fez com que eu abrisse os meus
olhos e tentasse me espreguiçar, entretanto, assim que comecei a me esticar,
senti o corpo de Beto colado ao meu. Os seus braços musculosos agarravam a
minha cintura, como se quisesse me impedir de fugir no meio da noite.
Sua mão direita acariciou o meu rosto e foi impossível não rir da forma
como me encarava. O olhar de Beto era enigmático e intimidador, e isso me
fez desejar mais que tudo saber no que ele estava pensando enquanto
permanecia tão concentrado olhando para mim.
Abri a minha mão, deixando que o pau dele respirasse um pouco. Mas
não dei muito tempo e engoli seu membro mais uma vez, fazendo isso no
mesmo momento em que retomei os movimentos de vai e vem, masturbando-
o.
Merda.
Merda.
Merda.
“Ele mandou eu te avisar que tem uma festa das boas amanhã. E que
passa aí pra te pegar às sete”, respondeu como se já estivesse tudo decidido.
Meu primeiro impulso foi responder com “não”, ainda que ele
claramente não estivesse me fazendo uma pergunta.
Além disso, também havia a questão de que nunca tinha saído com
Beto em público. Até então, a nossa relação se resumia exclusivamente a
encontros na casa dele — onde acabávamos transando — ou na dos meus
pais, tanto que a única pessoa que sabia sobre a gente era a minha mãe. E,
ainda assim, porque ela era uma tremenda bisbilhoteira.
Antes de responder negativamente — provavelmente, com algum emoji
bonitinho para aliviar o “não” —, fingi interesse naquela festa, como se
realmente estivesse cogitando a ideia de ir com ele.
Isso me fez sorrir e me dar conta de que se não fosse por aquela festa,
não estaria num relacionamento com Beto, de que nunca estaria vivenciando
essa coisa estranha e maravilhosa. Ainda que eu fosse conhecê-lo
eventualmente — por conta da relação que ele tinha com os meus pais —,
seria completamente diferente, não teríamos as implicâncias que nos
tornaram tão próximos.
“É uma festa anual daqui, acontece há tanto tempo que acho que você
deve se lembrar dela”, ele completou por mensagem, esclarecendo um pouco
as coisas.
Eu realmente me lembrava.
Comecei pelo meu pai, que aceitou bem melhor do que eu imaginava.
Obviamente não lhe disse “então, eu estou dormindo com o seu amigo, o
Beto”. Foi algo como “Então, pai... Eu e o Beto estamos nos conhecendo
melhor. Na verdade, sinto-me um pouco estranha e envergonhada por dizer
isso. Espero que você não se sinta da mesma forma ao saber”.
— É claro que eu vou — respondi, optando por não lhe revelar que iria
de qualquer jeito, já que o Beto havia me convidado antes dela.
Capítulo 21 — Festival do Girassol
Antes que eu chegasse à caminhonete dele com o meu salto alto, que
parecia se jogar nos buracos do gramado, o caubói desceu do carro.
— Eu avisei que a gente já ia sa...
Sabia que ele estava se referindo ao fato de eu ter contado ao meu pai
sobre o nosso “relacionamento”. Ao revelar sobre a nossa relação, acabei
colocando-o numa situação meio complicada. Ele e o meu pai eram amigos
há bastante tempo, então não culpava o Beto por se sentir no dever de se
explicar.
Aproveitei que o carro estava destrancado e entrei. Como podia evitar
aquele momento constrangedor entre os amigos, não tinha motivos para
acompanhar o Beto.
Dez minutos depois, o peão retornou. Enquanto andava na direção do
carro, observei a sua calça jeans azul, as botas de couro de algum bicho —
algo que, com toda a certeza, reprovaria em voz alta — e o chapéu marrom.
Ele estava bem vestido para um projeto de caubói, mas, ainda assim, suas
roupas apenas evidenciavam o quanto tinha exagerado na minha produção.
Antes que pudesse começar a me pilhar com isso, ele entrou no carro e,
assim que se sentou no banco do motorista, disse: — Pronto.
Esperei por um “como você não foi lá comigo, não vou te contar”, mas
o Beto foi bonzinho, respondendo: — Disse que tinha boas intenções e que
queria pedir a bênção dele pro nosso namoro.
Eu sabia que havia sido uma brincadeira dele e que Beto tinha se
divertido com isso, entretanto, senti-me na obrigação de explicar o verdadeiro
motivo da minha reação, de que o problema não era com ele.
— Eu adoraria namorar um homem como você, mas... Eu acabei de
terminar um noivado e...
Ainda que muito improvável, não podia dizer que a ideia parecia ruim.
Ele estacionou o carro e descemos. E novamente o pensamento de estar
produzida demais tornou a pairar por minha mente.
Ela era muito bonita e não parecia ter mais de vinte e poucos anos. E se
isso já não fosse motivo suficiente para me deixar enciumada, a cena em que
ela se jogou em cima de Beto, abraçando-o deu conta do recado.
“A pessoa que está com ele, sua vadia” a minha mente gritou.
Quando finalmente saí de lá, avistei uma pessoa familiar atrás de uma
das barracas.
— Olhando agora, desse novo ângulo, até que não está tão ruim as...
Eu não queria.
E se não soubesse o quanto aquela porcaria de festival significava pra
ela — a ponto de chegar e se esconder atrás de uma barraquinha —, teria dito
“não”.
— Quites?
— Esqueceu que fui eu quem te apresentou o gostosão? — ela se
explicou, fazendo-me revirar os olhos.
Soltei o meu cabelo — já que o meu visual ficaria ainda mais ridículo
com ele preso — e deixei o banheiro químico.
— Eu não sabia que você era tão popular assim, caipira — comentei no
instante em que Beto deu a partida e nos tirou daquela avenida movimentada.
— A gente não conseguia dar meio passo sem que alguém aparecesse para
falar com você.
Pensei que ele fosse rir e fazer alguma gracinha, destacando o quanto
era famoso em Girassol e que eu tinha muita sorte por ser a sua
acompanhante naquele festival. Mas, estranhamente, Roberto ficou sério,
como se eu tivesse acabado de pisar em um de seus calos.
Não entendi.
Conversavam com ele por obrigação? Não tinha nenhum sentido.
A foto ilustrava uma mulher morena, que não devia ter mais de vinte e
cinco anos. Seu olhar estava fixado na câmara e sorria — um sorriso que eu
nunca conseguiria replicar —, como se não estivesse posando graciosamente
para uma fotografia. Demorei um pouco para notar que conhecia o lugar em
que a foto havia sido tirada.
Era a cachoeira que Beto havia me levado; o mesmo lugar que marcou
o exato momento em que deixei de vê-lo como um caipira nojento.
E, só então, Roberto notou que eu estava mexendo nas coisas dele, que
era tão bisbilhoteira quanto a minha mãe. O moreno ficou tão surpreso que,
por um instante, foi como se tivesse se esquecido de que estava ao volante. E
isso rendeu uma freada brusca em uma elevação na estrada.
A expressão dele ficou tão feia que me preparei para ouvir muita
merda, para uma explosão que eu nunca havia presenciado com ele.
— Não sabia por que eu não contei! — ele continuou, ainda com os
olhos na rua. Antes que pudesse achar que tinha levado um soco dele,
Roberto completou: — Eu devia ter falado... É que... É complicado pra
cacete.
— Tudo bem se você não quiser falar sobre isso... — respondi, notando
o quanto estava sendo difícil para ele entrar naquele assunto. — De
complicações eu entendo bem.
— Eu quero falar... Eu quero, mas... — ele suspirou de frustração. — É
difícil.
Três segundos depois de ter dito essas palavras foi tempo suficiente
para que eu me arrependesse.
— Tem que ser muito idiota pra deixar uma marrenta dessas escapar —
Beto comentou, fazendo-me sorrir. — Ele não era homem pra você, Patrícia.
Por mais que, dessa vez, fosse me esforçar ao máximo para manter
contato com todos eles, visitando-os sempre que tivesse uma oportunidade,
sabia que não seria assim tão simples. Talvez funcionasse com os meus pais e
com a minha amiga, mas o caubói continuava sendo um enigma para mim.
Eu não tinha ideia do que aconteceria e, provavelmente, nem mesmo
ele, que também sabia qual seria o meu último dia no sítio. Evitávamos falar
sobre esse assunto, pois sabíamos que o clima seria prejudicado no mesmo
instante, exatamente como no dia em que eu revelei a data para ele.
Observei que, dessa vez, ele estava sem o chapéu. O seu cabelo estava
lambido para o lado e o cheiro forte de seu perfume amadeirado apenas
confirmou o que já suspeitava. E isso me fez rir, pois, ainda que o roceiro
nunca fosse admitir em voz alta — e talvez nem para ele mesmo —, eu sabia
que ele tinha passado a se arrumar melhor por minha causa.
— Como se você não tivesse merecido cada um dos meus insultos, seu
safado — rebati ainda em seus braços. Aqueles olhos verdes se fixaram nos
meus e isso me fez fraquejar. — E, de qualquer forma, eu já te achava lindo
naquela época.
Amanda Rocha.
Esse curto diálogo fez com que ficássemos em silêncio até o final do
trabalho na cozinha.
Tratava-se de um colar. Não era uma joia, a corrente não era feita de
ouro branco e, muito provavelmente, nem mesmo de prata. Mas a parte mais
estranha era o pingente, uma pedrinha branca, quase transparente.
Voltei o meu olhar para ele e, ainda sem graça, respondi: — Eu… eu
não tenho um presente pra você. — Depois de um instante em silêncio,
finalizei: — Nada pra se lembrar de mim.
Ainda que não fosse verdade, eu estaria mentindo se dissesse que não
gostei de ver a expressão no rosto de Diogo ao observar as nossas mãos
juntas, como se fôssemos mesmo um casal.
— Podemos conversar? — perguntou-me ele, no instante em que se
aproximou. — Prometo que não vai levar mais de cinco minutos.
— Mas eu…
“Isso torna tudo ainda pior” eu pensei, sem saber como aquele babaca
não se dava conta disso. Ele, basicamente, trocou todos os anos em que
passamos juntos por alguém que não significava nada para ele.
— Então, você trocou a gente por nada, Diogo — afirmei ansiosa para
encerrar aquela conversa.
Como eu não tinha mais nada para falar com ele, comecei a caminhar
para fora do quarto. No entanto, sua mão agarrou o meu braço esquerdo,
impedindo-me de cruzar a porta. Ele me puxou com força para perto de seu
corpo e, em seguida, me empurrou contra a parede e tornou a se aproximar,
prendendo-me ali.
E, sem dizer uma única palavra, Diogo inclinou o seu rosto em minha
direção, forçando um beijo. Tentei empurrá-lo, mas ele era bem mais forte do
que eu e não consegui afastá-lo para longe de mim.
Seus lábios continuaram a me tocar, dessa vez beijando o meu pescoço
e isso finalmente fez com que eu destravasse e superasse aquela inércia
constrangedora que me deixou completamente à mercê de sua vontade.
Dei-lhe uma joelhada no meio das suas pernas, fazendo com que o
babaca cambaleasse para trás.
— Nunca mais chegue perto de mim, seu porco nojento — gritei sem
me importar com quem pudesse nos ouvir.
Uma vez mais, não consegui deixar o quarto. Sua mão agarrou com
força o meu vestido e me puxou de volta para perto dele. Notei a expressão
raivosa de seu rosto, uma consequência da dor que ainda devia estar sentindo.
E, diferentemente do que acontecera há poucos momentos, quando
estava contra a parede, cercada por ele, realmente senti medo do que poderia
acontecer comigo naquele quarto.
— Se afasta da minha filha! — A voz da minha mãe soou alto, fez com
que o meu olhar voasse em sua direção. Ela segurava a espingarda do meu
pai e a apontava em direção a Diogo. — AGORA.
Diogo continuou parado, como se não estivesse levando aquela
situação a sério.
O barulho foi tão alto que o meu ex-noivo chegou a pular, tirando os
seus pés do chão.
Dona Sofia não precisou dizer mais nada, o “engomadinho” ergueu as
mãos e correu para fora da casa, como um cachorrinho amedrontado. Quando
chegou na porta da sala, reduziu a velocidade todo envergonhado e caminhou
apressado, provavelmente seguindo para o carro.
— É exatamente pra isso que essa arma serve — a minha mãe disse,
relembrando uma conversa que tivemos no dia em que cheguei à cidade,
quando questionei o motivo para manterem aquela espingarda dentro de casa.
Não demorou muito para que Beto entrasse correndo no meu quarto,
completamente afobado.
— Não deixe esse desgraçado acabar com o nosso Natal — pedi, quase
implorando. Voltei o olhar para o outro lado da casa, observando a minha
mãe, que ainda estava com a espingarda na mão. — Minha mãe já deu um
susto nele.
Talvez fosse nojo pelo que havia acontecido comigo naquele quarto —
eu não tinha ideia —, mas a semana seguiu acompanhada de muito enjoo, dor
de cabeça e um péssimo humor.
Também sabia que tudo isso devia estar relacionado com minha
ansiedade, ocasionada pelo simples fato de eu saber que o meu tempo em
Paraíso estava evaporando rapidamente.
A parte mais irônica era que eu tinha ficado tão assustada com a
possibilidade de deixar o peão e nunca mais vê-lo que o universo deu um
jeito de nos ligar para sempre. Ainda que não estivéssemos juntos, em um
relacionamento amoroso, sempre existiria uma ligação entre nós dois.
Como notei que aquela história seria grande, fui com ela para a cozinha
e nos sentamos à mesa.
— Ficamos sabendo por outras pessoas que estavam lá que uma mulher
e uma criança de um ano já estavam mortas — contou ela, deixando-me
apreensiva para o momento em que Beto entraria na história. E como se ela
estivesse lendo a minha mente, completou: — Então, chegou um rapaz
desesperado, dizendo que aquele era o carro de sua esposa e eu e o seu pai
ajudamos a contê-lo... Foi assim que o conhecemos.
Tudo isso me atingiu de uma forma tão intensa que eu não consegui
conter as minhas lágrimas.
Desabei.
porta. Visualizei uma vez mais o rosto da minha mãe, que ainda estava
Sabia que o meu rosto devia estar vermelho por conta do choro e que a
expressão de choque não devia ter me abandonado. Mas, ainda assim,
balancei a minha cabeça, negando.
— Nada muito importante, só mais uma briga idiota com a minha mãe
— respondi, esforçando-me ao máximo para fazê-lo engolir aquela mentira.
Ele se aproximou para me beijar e, assim que os nossos rostos se
afastaram, notei que ele estava sorrindo.
Eu não tinha ideia do que achava, era tudo novo demais pra mim.
Ainda não tinha digerido nada daquela história horrível.
— Sei que a vida que eu tinha não era saudável — ele me interrompeu.
— E foi por isso que eu pedi pra minha irmã ficar com o meu pai, porque eu
sabia que não tinha condição de cuidar de outra pessoa.
— Eu sinto muito — disse, sabendo que não teria uma hora boa para
falar aquilo. — Sinto muito que isso tenha acontecido com você.
— Quando a minha filha nasceu, acho que foi o dia mais feliz e
assustador da minha vida — ele comentou, com um olhar distante,
provavelmente lembrando-se da criança. — Ela era tão pequenininha e
parecia tão frágil que eu fiquei até com medo de pegar no colo.
Camille.
Esse era o nome da criança.
Ela tinha os olhos escuros da mãe, era gordinha e, até onde ele
conseguia se lembrar, pouquíssimos traços dele, o que o caubói considerava
como algo positivo. Beto contou-me que não tinha muitas fotos de Camille e
que as poucas que ele guardou estavam escondidas em lugares que nem
conseguia mais se lembrar, pois era difícil demais olhar e se dar conta de que
ele não havia aproveitado o pouco de tempo que teve ao lado da filha.
Sem mais ninguém para culpar, Roberto começou a voltar toda aquela
raiva contra ele mesmo, condenando-o por não ter sido o melhor pai do
mundo, por não ter passado mais tempo com a esposa e aproveitado a vida
que tinha, por não ter dado o devido valor.
Eu nunca me esqueceria.
Foi quando ele se transformou pra mim, quando deixei de vê-lo como
um caipira ridículo e passei a enxergá-lo como o homem incrível que ele era.
— Eu...
— Soube no momento em que a gente se beijou que gostava demais do
cê — ele me interrompeu, prosseguindo. — Eu... eu acho que te amo. —
Segundos após me dizer aquilo, ele se corrigiu: — Não acho, eu tenho certeza
disso.
Ainda que fosse estranho — talvez nem tanto depois de tudo o que eu
havia acabado de ouvir —, fiquei feliz e extremamente tranquila. Beto me
passou tanta segurança que, por alguns segundos, a gravidez nem pareceu
mais tão aterrorizante assim.
Como não queria mais mentiras e omissões, confessei-lhe que havia
descoberto já fazia quase uma semana.
A única forma de Beto poder ficar perto da criança seria ter-me por
perto também, já que eu não tinha a menor intenção de me distanciar dela.
Então, basicamente, ele estava dizendo que eu teria que permanecer ali, em
Girassol.
— Não vou me mudar pra cá, abandonando o resto da minha vida —
deixei claro sem nem hesitar. — Isso não vai acontecer, Roberto.
— Eu amo você, mas não quero e não vou me mudar pra sua casa e
virar dona de casa.
— O problema é a mudança ou sou eu? — ele questionou. Antes que
eu pudesse lhe dizer que, obviamente, era a primeira opção, ele completou:
— Porque se for a mudança, eu vou embora com ocê.
Isso me fez rir, pois eu realmente não achei que ele estivesse falando
sério.
— Você realmente abandonaria toda a vida que tem aqui pra ir morar
comigo? — perguntei a ele, não conseguindo disfarçar o tom de descrença.
Isso me fez pensar por alguns segundos, questionar se nós teríamos nos
envolvido se eu soubesse que Beto havia perdido a família naquele acidente.
Se esse passado horrível dele não teria me intimidado a ponto de eu me
afastar.
Em toda minha vida, nunca achei que teria essas duas coisas ao mesmo
tempo. E isso era informação demais para digerir em apenas um dia.
— Tá pronta? — questionou o meu caipira preferido, gelando o meu
coração.
Não olhei uma última vez para o quarto e nem fiz nada que pudesse
caracterizar um tom de despedida.
Não.
Dessa vez, não faria isso. Não passaria anos sem visitar os meus pais e
o lugar em que cresci. Não desperdiçaria mais nenhum tempo com eles.
Foi impossível não sorrir e mais difícil ainda não olhar para o rosto dos
três, sentindo uma imensa vontade de ficar e criar mais momentos
maravilhosos ao lado deles, de estender ainda mais aquelas férias.
Mas como sabia que isso não era uma opção, caminhei em direção a
Hilux do Beto e, já próxima ao veículo, virando-me, acenei em direção aos
meus pais, que, mantendo-se em pé ao lado da porta, observavam a minha
partida.
Com um sorriso sacana, ele brincou: — Mas aí cê vai abrir mão do que
mais gosta em mim.
Essas suas palavras me mostraram que — ainda que aquilo tivesse sido
dito como forma de piada — eu realmente gostava do caipira que vivia nele.
Eu não precisava mudar nada.
Sem aviso prévio, Beto me puxou com força e tomou os meus lábios
daquela sua forma bruta de agir. Sua língua me explorou de maneira tão
intensa que eu quase fechei a porta da caminhonete e me joguei em cima
dele.
Mas sabia que cada segundo que prolongássemos aquela despedida,
mais difícil ficaria para que eu conseguisse deixá-lo.
Quando escapei de seus lábios, quase sem nenhum fôlego, voltei o meu
olhar para a sacola que havia trazido comigo, pois sabia que aquele era o
momento perfeito — o único que me havia restado — para entregar o que
tinha guardado ali.
Tirei a camisa xadrez dele de lá e, não resisti, levando-a até o meu
nariz e sentindo o seu cheiro, que continuava impregnado no tecido macio.
— Acho que você finalmente vai ter a sua camisa de volta, caipira —
sussurrei, esforçando-me ao máximo para não chorar na sua frente, tornando
aquele momento ainda mais difícil. Estendi a peça de roupa pra ele e sorri,
completando: — E, definitivamente, ela não é ridícula.
— Já?
Dona Sofia ligava para gente quase todos os dias. Obviamente, não era
para falar comigo ou com o Beto. Conversávamos por uns dois minutos e,
então, Gabriele aparecia e arrancava o celular da minha mão.
Elas eram próximas de uma forma que eu e a minha mãe nunca fomos.
Provavelmente, devia-se ao fato de as duas serem parecidíssimas. Diferente
de mim, Gabi detestava morar na cidade. A sua época preferida do ano eram
as férias de verão, quando íamos para o sítio dos meus pais e para a antiga
casa de Beto, que agora era ocupada pela irmã dele.
O universo era extremamente irônico, com um senso de humor podre.
A minha filha amava todas as coisas que eu um dia detestei. Evidentemente,
todo esse amor foi herdado de Beto, que nunca escondeu o quanto era
apaixonado pelo interior.
— Teve nem anel — ele me lembrou, rindo. — Acho que foi o pior
pedido de casamento do mundo.
Voltei o meu olhar na direção dele e balancei a minha cabeça, negando:
— Foi perfeito.
Estava em dúvida entre “em uma festa” ou “através de seus avós, que
já eram amigos de Roberto”. Mas antes que pudesse optar por uma das duas
— eliminando toda a parte pesada da história —, encontrei uma resposta
perfeita para aquela sua pergunta.
Infelizmente, não tive tempo de dizê-la, pois o meu esposo foi mais
rápido: — Foi no dia que a mamãe vomitou no papai.
Apontei em direção à cozinha e ordenei: — Vaza daqui e vai terminar
o seu café!
Não precisei dizer mais nada, o caipira sorriu e caminhou de volta para
a cozinha.
Narrei pra ela sobre como uma viagem de férias mudou a minha vida.
Contei como o pai dela — um caipira grosso e cabeça dura — transformou-se
diante dos meus olhos, no dia em que ele me salvou daquela cobra e, em
seguida, deslizamos sobre aquelas poças de lama, onde tivemos o nosso
primeiro beijo. Disse a Gabriele que brigamos tanto no início de nossa
relação, que tudo depois disso se tornou estranhamente fácil, que não
existiam mais conflitos que não conseguíssemos resolver. E que, no final,
Beto deixou o lugar que mais amava no mundo para viver comigo e com ela.
A parte da história que não contei — junto com todos os detalhes
indecentes, diga-se de passagem —, é que o casamento tem toda a sua base
fundamentada em sacrifícios. Você doa tudo de si mesma e torce para que a
outra pessoa faça o mesmo por você.
Eu encontrei a pessoa certa, alguém que não pegava tudo sem nada
restituir. A partir daquele sacrifício de Roberto, abandonando o interior por
mim — e era exatamente assim que eu entendia —, nós construímos uma
família linda.
Uma família que fez com que eu sacrificasse longas e lucrativas horas
do meu trabalho — e continuaria a sacrificar cada vez mais dele —, uma
família que passava todas as férias no Paraíso, uma família que nos consumia
completamente, mas que, de alguma forma, logo no início do dia, durante o
café da manhã, conseguia fazer com que tudo valesse a pena.
Conheça os Meus Outros Trabalhos
Dinastia King
Dinastia King é uma série de livros únicos, cada livro narra a história
de um casal.
LIVROS DA SÉRIE
Uma Babá Para James King (Livro 01)
Uma Babá Para Dylan King (Livro 02)
Trilogia Acompanhante de Luxo
Todos os volumes dessa trilogia já estão disponíveis na Amazon.
* LIVROS DA TRILOGIA
LIVROS DA TRILOGIA
No entanto, esse seu plano caí por terra no momento em que o seu
supervisor revela que a diretoria — leia-se o dono machista da revista —
nunca daria a ela o cargo de “editora chefe”, a posição que Gabriele sempre
almejou, simplesmente por ela ser uma mulher... Uma mulher solteira.
Com a ajuda de seu melhor amigo gay — que sempre fingiu ser o
namorado dela —, Gabriele decide contratar um acompanhante de luxo para
fingir ser o seu noivo e, desta forma, provar a todos que ela é a mais
capacitada para o cargo.
Em um jogo de prazer e sedução, ela se encontra completamente
encantada por esse misterioso cafajeste.
Mas talvez eu fosse mesmo estranha e isso nunca foi um problema pra
mim.
Era ridículo e totalmente injusto comigo, uma pessoa que passou anos
se dedicando a Global, esperando por aquele momento — um que,
aparentemente, nunca chegaria.
Não havia sido um “erro” meu, mas algo que eu simplesmente não
podia controlar. Estava sendo julgada por uma coisa que não tinha relação
com o meu trabalho ou com a minha capacidade para desempenhá-lo.
Por mais que escrever sobre coisas das quais eu não poderia publicar
fosse algo totalmente deprimente, eu não conseguia evitar.
Por mais que não aparentasse, eu não era a dona daquele lugar. A
pessoa que havia comprado o apartamento e todas as outras coisas dentro
dele não fui eu, mas a família de Eduardo. Foi ele quem me convidou para
morar ali e não o contrário, o que significava que, na verdade, o namorado
dele possuía muito mais poder dentro daquela casa do que eu.
O meu melhor amigo levantou-se do sofá e caminhou em minha
direção.
Após ver que eu não havia compartilhado do seu humor e que a minha
expressão continuou a mesma, Eduardo levantou as sobrancelhas e perguntou
totalmente surpreso: — Você não está falando sério, não é? — Como eu
estava falando, sim, com muita seriedade, permaneci calada. — Gabriele
Novais, por favor, diga que não!
Dessa vez, era oficial, eu estava mesmo sozinha, de uma maneira que
nunca estivera antes — não antes de ele aparecer na minha vida.
O meu melhor amigo não salvaria a minha pele, não dessa vez.
— E quanto à minha felicidade, Gabriele? — ele continuou dizendo,
mostrando-me que não cederia à minha pressão. — Como é que eu fico nessa
história toda?
O meu amigo estava sem camisa, trajando apenas uma fina bermuda
azulada. Olhando para o seu corpo, não pude deixar de notar novamente que
uma das coisas mais lindas em Eduardo, sem dúvida alguma, era o seu
abdome definido, onde os gominhos eram esculpidos perfeitamente.
Coloquei a minha mão em cima da sua coxa e suspirei enquanto virava
o meu pescoço em sua direção.
Não havia uma maneira de ele me ajudar, não sem aceitar ser o meu
noivo perfeito e isso, infelizmente, parecia estar totalmente fora de questão
naquele instante.
— Kauan me deu um ultimato mais cedo, dizendo que eu deveria
escolher entre você e ele. Acho que, no final das contas, ao ficar aqui, eu
acabei escolhendo você.
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