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CDD: 843
CDU: 821.133.1-3
Ao Castor
“É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo.”
L.-F. Céline
L’Église
Nota dos editores
Dez e meia[3]
É bem possível, afinal, que se trate de uma pequena crise de
loucura. Já não há vestígios dela. Meus estranhos sentimentos da
outra semana me parecem hoje bastante ridículos: já não me
identifico com eles. Essa noite, estou muito à vontade,
burguesmente instalado no mundo. Esse é meu quarto, virado para
o nordeste. Embaixo, a rua dos Mutilés e o canteiro de obras da
nova estação. De minha janela, na esquina do bulevar Victor-Noir,
vejo a flâmula vermelha e branca do Rendez-vous des Cheminots.
O trem de Paris acaba de chegar. As pessoas saem da antiga
estação e espalham-se pelas ruas. Ouço passos e vozes. Muita
gente espera o último bonde. Devem formar um grupinho triste em
torno do lampião de gás, bem embaixo de minha janela. Ainda terão
que esperar alguns minutos: o bonde não passa antes das 22h45.
Tomara que não cheguem caixeiros-viajantes essa noite: desejo
tanto dormir e estou com o sono tão atrasado!... Com uma noite
bem-dormida, uma só, todas essas histórias seriam varridas de
minha cabeça.
Quinze para as onze: nada mais a temer, eles já teriam chegado,
se fosse o caso. A não ser que seja o dia do senhor de Rouen. Vem
todas as semanas, reservam-lhe o quarto nº 2, no primeiro andar, o
que tem um bidê. Ainda pode chegar: muitas vezes toma um chope
no Rendez-vous des Cheminots antes de ir se deitar. Aliás, ele não
faz muito barulho. É baixinho e muito asseado, com bigodes pretos
encerados e uma peruca. Aí está ele.
Pois bem, quando o ouvi subindo a escada, meu coração bateu
mais forte, tal a tranquilidade que isso me proporcionava: o que se
pode temer num mundo tão regular? Creio que estou curado.
E eis o bonde 7, Abattoirs-Grands Bassins. Chega com a
barulheira de suas ferragens. Torna a partir. Agora, carregado de
malas e de crianças adormecidas, desaparece na escuridão do
leste, em direção aos Grands Bassins, em direção às fábricas. É o
penúltimo bonde; o último passará dentro de uma hora.
Vou me deitar. Estou curado, desisto de escrever minhas
impressões dia a dia, como as meninas, num bonito caderno novo.
Somente num caso poderia ser interessante fazer um diário:
seria se[4]
Diário
***
Terça-feira, 26 de janeiro
Nada de novo.
Trabalhei de nove à uma na biblioteca. Organizei o capítulo XII e
tudo o que diz respeito à estada de Rollebon na Rússia, até a morte
de Paulo I. É trabalho terminado: só terei que retomá-lo quando for
passar a limpo.
É uma e meia. Estou no café Mably comendo um sanduíche,
tudo está mais ou menos normal. Aliás, nos cafés, tudo está sempre
normal, particularmente no Mably, por causa do gerente, o sr.
Fasquelle, que traz estampada no rosto uma expressão velhaca
muito positiva e alentadora. Está quase na hora de sua sesta, e
seus olhos já estão avermelhados, mas continua a se movimentar
com vivacidade e decisão. Passeia entre as mesas e se aproxima
dos fregueses com ar confidencial:
— Está a seu gosto, senhor?
Sorrio ao vê-lo tão vivaz: nas horas em que seu estabelecimento
se esvazia, também sua cabeça se esvazia. De duas às quatro o
café fica deserto; então o sr. Fasquelle dá alguns passos, como que
idiotizado, os garçons apagam as luzes e ele mergulha na
inconsciência: quando fica sozinho, esse homem dorme.
Há ainda uns vinte fregueses, celibatários, modestos
engenheiros, empregados de escritórios. Almoçam rapidamente em
pensões familiares que chamam de suas cantinas e, como têm
necessidade de um pouco de luxo, vêm aqui após a refeição, tomam
um café e jogam pôquer; fazem um pouco de barulho, um barulho
inconsistente que não me incomoda. Também eles, para existir,
precisam estar reunidos.
Quanto a mim, vivo sozinho, inteiramente só. Nunca falo com
ninguém; não recebo nada, não dou nada. O Autodidata não conta.
É verdade que existe Françoise, a dona do Rendez-vous des
Cheminots. Mas falo com ela? Algumas vezes, após o jantar,
quando me serve um chope, pergunto-lhe:
— Dispõe de tempo essa noite?
Ela nunca diz não e eu a sigo até um dos quartos grandes do
primeiro andar, que ela aluga por hora ou por dia. Não lhe pago:
fazemos amor au pair.[6] Ela sente prazer (necessita de um homem
por dia e tem muitos outros além de mim) e me purgo assim de
certas melancolias cuja causa conheço muito bem. Mas raramente
conversamos alguma coisa. Para quê? Cada um por si; a seus
olhos, aliás, continuo sendo, antes de mais nada, um freguês do
café. Ela me diz, enquanto tira o vestido:
— Diga-me uma coisa, você conhece um aperitivo chamado
Bricot? Porque dois clientes pediram isso essa semana. A menina
não sabia o que era, veio me avisar. Eram caixeiros-viajantes,
devem ter bebido em Paris. Mas não gosto de comprar sem saber.
Se não se incomoda, vou ficar de meias.
Em outras épocas — até muito tempo depois de ela ter me
deixado — pensei por Anny. Atualmente já não penso mais por
ninguém; nem sequer me preocupo em procurar palavras. Isso flui
em mim, mais depressa ou mais devagar, não fixo nada, deixo
correr. A maioria das vezes, por não se ligarem a palavras, meus
pensamentos permanecem nebulosos. Desenham formas vagas e
agradáveis, submergem: esqueço-os imediatamente.
Esses jovens me maravilham: bebendo seu café, contam
histórias inteligíveis e verossímeis. Se lhes perguntamos o que
fizeram ontem, não se perturbam: informam-nos em duas palavras.
No lugar deles, eu gaguejaria. É verdade que faz já muito tempo que
ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, já
nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece
junto com os amigos. Também os acontecimentos deixamos correr;
vemos surgir bruscamente pessoas que falam e que se vão,
mergulhamos em histórias sem pé nem cabeça: seríamos
testemunhas execráveis. Em compensação, não nos escapa tudo o
que é inverossímil, tudo a que não dariam crédito nos cafés.
Sábado, por exemplo, por volta das quatro da tarde, na ponta da
calçada, sobre a passagem de tábuas do canteiro de obras da
estação, uma mulherzinha vestida de azul-celeste corria de costas,
rindo e sacudindo um lenço. Ao mesmo tempo um negro, com uma
capa creme, sapatos amarelos e um chapéu verde, dobrava a
esquina, assobiando. A mulher, sempre de costas, chocou-se com
ele sob um lampião pendurado na paliçada e que é aceso à noite.
Havia então ali, ao mesmo tempo, essa paliçada com forte cheiro de
madeira molhada, esse lampião, essa mulherzinha loura nos braços
de um negro, sob um céu flamejante. Se fôssemos quatro ou cinco,
creio que teríamos notado o choque, todas essas cores suaves, o
bonito casaco azul que parecia um edredom, a capa clara, os vidros
vermelhos do lampião; teríamos rido da estupefação que se
estampava naqueles dois rostos de criança.
Raramente um homem sozinho sente vontade de rir: a cena toda
assumiu para mim um sentido muito forte e até violento, mas puro.
Depois se dissolveu; só ficaram o lampião, a paliçada e o céu: ainda
era bastante bonito. Uma hora depois o lampião estava aceso,
soprava o vento, o céu estava escuro: já não restava mais nada.
Nada disso é novo; nunca rejeitei essas emoções inofensivas; ao
contrário. Para experimentá-las, basta que se esteja um pouco
sozinho, o suficiente para se livrar, no momento adequado, da
verossimilhança. Mas eu me mantinha bem perto das pessoas, na
superfície da solidão, decidido, em caso de alarme, a me refugiar
em meio a elas: no fundo, até aqui, eu era um amador.
Agora, em toda parte, há coisas como este copo de cerveja aqui
em cima da mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: “Alto lá,
estou fora do jogo.” Sei perfeitamente que fui longe demais. Creio
que não se pode “dar um espaço” para a solidão. Isso não significa
que olhe embaixo da cama antes de me deitar, ou que tema ver a
porta de meu quarto se abrir bruscamente no meio da noite.
Simplesmente, mesmo assim, me sinto intranquilo: faz uma meia
hora que evito olhar para esse copo de cerveja. Olho para cima,
para baixo, para a direita, para a esquerda: mas ele — o copo —
não quero ver. E sei muito bem que todos os celibatários que me
rodeiam não podem me ajudar: é tarde demais, já não posso me
refugiar entre eles. Bateriam no meu ombro, dizendo: “Então, o que
é que há com esse copo de cerveja? É igual aos outros. É bisotado,
tem uma asa, um pequeno escudo com uma pá onde se lê
Spatenbräu.”
Sei de tudo isso. Mas sei que há outra coisa. Quase nada. Mas
não posso mais explicar o que vejo. A ninguém. É isso: deslizo
suavemente para o fundo da água, para o medo.
Estou só, em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos
esses sujeitos passam o tempo se explicando, reconhecendo com
satisfação que têm as mesmas opiniões. Deus meu, que
importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas! Basta ver
a cara que fazem quando passa por eles um desses homens com
olhos de peixe que parecem olhar para dentro e com os quais não é
mais possível, de forma alguma, se conciliar. Quando eu tinha oito
anos e brincava no Luxembourg, havia um desses que vinha se
sentar numa guarita junto à grade que ladeia a rua Auguste-Comte.
Não falava, mas de quando em quando estendia a perna e olhava
para o pé com ar apavorado. Nesse pé usava uma botina e, no
outro, um chinelo. O guarda disse a meu tio que se tratava de um
ex-inspetor de colégio. Fora aposentado porque comparecera às
salas de aula, para ler as notas trimestrais, usando traje de
acadêmico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos
que era um homem sozinho. Um dia sorriu para Robert,
estendendo-lhe os braços de longe: Robert quase desmaiou. Não
era o aspecto miserável do sujeito que nos assustava, nem o tumor
que tinha no pescoço e que roçava a beira de seu colarinho: mas
sentíamos que ele formava em sua cabeça pensamentos de
caranguejo ou de lagosta. E o fato de que alguém pudesse formar
pensamentos de lagosta a respeito da guarita, de nossos arcos, das
moitas de arbustos, nos aterrorizava.
É isso então o que me espera? Pela primeira vez me incomoda
estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me
acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a
assustar os garotinhos. Gostaria que Anny estivesse aqui.
Quinta-feira à tarde
“O sr. de Rollebon era muito feio. A rainha Maria Antonieta
chamava-o habitualmente de sua ‘querida macaquinha’. No entanto,
ele possuía todas as mulheres da corte, e não por bufonear como
Voisenon, o macaco: por um magnetismo que levava suas belas
conquistas aos piores extremos da paixão. É maquinador, tem um
papel bastante suspeito no caso do Colar e desaparece em 1790,
depois de ter mantido um intercâmbio regular com Mirabeau-
Tonneau e Nerciat. Tornamos a encontrá-lo na Rússia, onde é um
pouco responsável pelo assassinato de Paulo I, e de lá viaja para os
países mais longínquos, para a Índia, para a China, para o
Turquestão. Trafica, conspira, espiona. Em 1813 retorna a Paris. Em
1816 torna-se todo-poderoso: é o único confidente da duquesa de
Angoulême. Essa velha caprichosa, obcecada por terríveis
recordações de infância, tranquiliza-se e sorri quando o vê. Graças
a ela Rollebon manda e desmanda na corte. Em março de 1820 ele
desposa a srta. de Roquelaure, que tem 18 anos e é muito bonita. O
sr. de Rollebon tem setenta; está no auge das honrarias, no apogeu
da vida. Sete meses depois, acusado de traição, é preso, jogado
numa masmorra, onde morre após cinco anos de cativeiro, sem que
seu processo tenha sido instruído.”
Reli com melancolia essa nota de Germain Berger.[7] Foi através
dessas poucas linhas que vim a conhecer o sr. de Rollebon. Como
me pareceu sedutor, e como gostei dele logo, só por essas poucas
palavras! É por causa dele, desse homenzinho, que estou aqui.
Quando voltei de viagem, poderia perfeitamente ter me instalado em
Paris ou Marselha. Mas a maioria dos documentos referentes às
longas permanências do marquês na França está na biblioteca
municipal de Bouville. Rollebon era castelão de Marommes. Antes
da guerra, ainda havia nesse burgo um descendente seu, um
arquiteto chamado Rollebon-Campouyré e que, quando morreu, em
1912, deixou um importante legado para a biblioteca de Bouville:
cartas do marquês, um fragmento de diário, papéis de toda espécie.
Ainda não examinei tudo.
Estou contente por haver encontrado essas notas. Faz dez anos
que não as relia. Parece-me que minha caligrafia mudou: escrevia
com letra mais apertada. Como gostei do sr. de Rollebon naquele
ano! Lembro-me de uma noite — uma noite de terça-feira: tinha
trabalhado o dia inteiro na biblioteca Mazarine; acabava de
perceber, por sua correspondência de 1789-1790, a maneira
magistral pela qual ele lograra Nerciat. Era de noite, eu descia a
avenida do Maine e, na esquina da rua da Gaîté, comprei
castanhas. Sentia-me feliz! Ria sozinho pensando na cara que
Nerciat devia ter feito quando retornou da Alemanha. A figura do
marquês é como essa tinta: esmaeceu desde que me ocupo dela.
Em primeiro lugar, a partir de 1801 já não entendo seu
comportamento. Não é por falta de documentos: cartas, fragmentos
de memórias, relatórios secretos, arquivos de polícia. Ao contrário,
tenho quase excesso disso. O que falta em todos esses
testemunhos é firmeza, consistência. Eles não se contradizem, mas
também não se conciliam; não parecem se referir à mesma pessoa.
E no entanto os outros historiadores trabalham com informações do
mesmo tipo. Como fazem? Serei mais escrupuloso ou menos
inteligente? Aliás, colocada assim, a pergunta não me perturba. No
fundo, o que procuro? Não tenho ideia. Durante muito tempo o
homem Rollebon me interessou mais do que o livro por escrever.
Mas agora o homem... o homem começa a me entediar. Estou preso
ao livro, sinto uma necessidade cada vez mais intensa de escrevê-lo
— à medida que envelheço, diriam.
Evidentemente, é admissível que Rollebon tenha participado
ativamente do assassinato de Paulo I, que a seguir tenha aceitado
uma missão de alta espionagem no Oriente para o czar e que tenha
traído constantemente Alexandre em benefício de Napoleão. Pode
ao mesmo tempo ter mantido uma correspondência ativa com o
conde de Artois e passado a ele informações pouco importantes,
para convencê-lo de sua fidelidade: nada disso é inverossímil; na
mesma época, Fouché representava uma comédia muito mais
complexa e perigosa. Talvez o marquês fizesse por conta própria o
tráfico de fuzis com os principados asiáticos.
Muito bem: ele pode ter feito tudo isso, mas não há provas:
começo a achar que nunca se pode provar nada. Trata-se de
hipóteses honestas que explicam os fatos: mas sinto tão claramente
que provêm de mim, que são simplesmente uma maneira de unificar
meus conhecimentos!... Não vem lampejo algum da parte de
Rollebon. Lentos, preguiçosos, enfadonhos, os fatos se acomodam
ao rigor da ordem que quero lhes dar, mas lhes permanecem
exteriores. Tenho a impressão de estar fazendo um trabalho
puramente imaginativo. Além do mais, estou convencido de que
personagens de romance pareceriam mais verdadeiros. Seriam pelo
menos mais agradáveis.
Sexta-feira
Três horas. Três horas é sempre muito tarde ou muito cedo para o
que se quer fazer. Um momento da tarde bastante peculiar. Hoje
está intolerável.
Um sol frio clareia a poeira das vidraças. Céu pálido, mesclado
de branco. De manhã os córregos estavam congelados.
Estou digerindo pesadamente, perto do calefator; sei de antemão
que será um dia perdido. Não farei nada de bom, a não ser talvez ao
cair da noite. É por causa do sol; ele doura vagamente umas
brumas brancas sujas, suspensas no ar, por cima do canteiro de
obras; penetra no meu quarto, muito louro, muito pálido, espalhando
em minha mesa quatro reflexos baços e falsos.
Meu cachimbo é revestido de um verniz dourado que de início
atrai o olhar por uma aparência de alegria: quando se olha para ele,
o verniz se desfaz e fica apenas um grande rastro esmaecido sobre
um pedaço de madeira. E é tudo assim — tudo —, até minhas
mãos. Quando faz um sol desses, o melhor seria ir me deitar. Mas
dormi como uma pedra a noite passada e estou sem sono.
Agradava-me tanto o céu de ontem, um céu estreito, negro de
chuva, que se encostava nas vidraças como um rosto ridículo e
comovente. O sol de hoje não é ridículo, muito pelo contrário. Sobre
todas as coisas que amo, sobre a sucata do canteiro de obras,
sobre as tábuas apodrecidas da paliçada, cai uma luz avara e
moderada, semelhante ao olhar que damos, após uma noite sem
dormir, às decisões tomadas no entusiasmo da véspera, às páginas
que escrevemos sem rasuras e de um só fôlego. Os quatro cafés do
bulevar Victor-Noir que resplandecem durante a noite lado a lado e
que são muito mais do que cafés — aquários, navios, estrelas ou
grandes olhos brancos — perderam sua graça ambígua.
Um dia perfeito para a introspecção: essas frias claridades que o
sol projeta, como um julgamento sem indulgência, sobre as
criaturas, entram-me pelos olhos; estou iluminado por dentro por
uma luz empobrecedora. Tenho certeza de que bastariam 15
minutos para que atingisse a suprema repugnância de mim mesmo.
Muito obrigado. Não estou interessado nisso. Também não relerei o
que escrevi ontem sobre a estada de Rollebon em São Petersburgo.
Permaneço sentado, balançando os braços, ou então escrevo sem
entusiasmo algumas palavras, bocejo, espero o cair da noite.
Quando estiver escuro, os objetos e eu sairemos do limbo.
Rollebon participou ou não do assassinato de Paulo I?
É essa a pergunta do dia: cheguei a ela e não posso prosseguir
sem ter decidido.
Segundo Tcherkoff, ele era pago pelo conde Pahlen. A maioria
dos conspiradores, diz Tcherkoff, se teria contentado em depor o
czar e prendê-lo. (Alexandre, efetivamente, parece ter sido partidário
dessa solução.) Mas Pahlen teria querido acabar de vez com Paulo.
O sr. de Rollebon teria sido encarregado de pressionar
individualmente os conspiradores para que se decidissem pelo
assassinato.
“Foi visitar cada um deles e fez, com força incomparável, uma
representação da cena que ocorreria. Dessa maneira provocou ou
desenvolveu neles a psicose do assassinato.”
Mas não confio em Tcherkoff. Não é uma testemunha sensata, é
um mago sádico e um semilouco: transforma tudo em demoníaco.
Absolutamente não vejo o sr. de Rollebon nesse papel
melodramático. Teria representado a cena do assassinato? Ora
vamos! É um homem frio, normalmente não empolga: não faz ver,
insinua; e seu método, pálido e sem cor, só pode ter êxito com
homens de sua espécie, conspiradores sensíveis a ponderações,
políticos.
“Adhémar de Rollebon”, escreve a sra. de Charrières, “não
representava quando falava, não fazia gestos, não mudava de
entonação. Conservava os olhos semicerrados e mal se podia
surpreender entre seus cílios a orla das pupilas cinzentas. Faz
poucos anos que ouso confessar a mim mesma que ele me
entediava ao extremo. Falava um pouco como o abade Mably
escrevia”.
E foi esse homem que, por seu talento para representar... Mas
então como cativava as mulheres? E há também a história curiosa
que Ségur relata e que me parece verdadeira:
“Em 1787, num albergue perto de Moulins, estava à morte um
velho, amigo de Diderot, formado pelos filósofos. Os padres das
redondezas estavam extenuados: tinham tentado de tudo,
inutilmente; o homenzinho se recusava a receber os últimos
sacramentos, era panteísta. O sr. de Rollebon, que passava por ali e
não acreditava em nada, apostou com o pároco de Moulins que não
precisaria nem de duas horas para converter o doente aos
sentimentos cristãos. O pároco aceitou a aposta e perdeu: entregue
a ele às três da manhã, o doente se confessou às cinco e morreu às
sete. ‘É tão forte assim na arte da argumentação?’, perguntou o
pároco. ‘É melhor do que os nossos!’ O sr. de Rollebon respondeu:
‘Não argumentei: fiz com que sentisse medo do inferno.’”
Mas terá ele tomado ou não parte ativa no assassinato? Aquela
noite, por volta das oito horas, um oficial amigo seu acompanhou-o
até a porta de casa. Se tornou a sair, como pôde atravessar São
Petersburgo sem ser incomodado? Paulo, meio enlouquecido,
ordenara que a partir das nove horas da noite fossem presos todos
os transeuntes, exceto as parteiras e os médicos. Haveria que
acreditar na lenda absurda segundo a qual Rollebon teria tido que
se disfarçar de parteira para chegar até o palácio? Afinal, era capaz
disso. De qualquer maneira, não estava em casa na noite do
assassinato, isso parece provado. Alexandre devia suspeitar muito
dele, já que um dos primeiros atos de seu reinado foi afastar o
marquês sob o vago pretexto de uma missão no Extremo Oriente.
O sr. de Rollebon me enfada. Levanto-me. Mexo-me sob essa
luz pálida; vejo-a mudar em minhas mãos e nas mangas de meu
casaco: é indizível a que ponto ela me desagrada. Bocejo. Acendo a
lâmpada sobre a mesa: talvez a sua claridade possa combater a do
dia. Mas não: a lâmpada faz apenas uma poça lamentável em torno
de sua base. Apago-a; levanto-me. Na parede há um buraco branco,
o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa
cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho para
ela: já não posso mais ir.
É o reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos,
fico a contemplá-lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros
têm um sentido. O meu, não. Sequer consigo decidir se é bonito ou
feio. Acho que é feio, porque me disseram. Mas isso não me
impressiona. No fundo, até me choca que se possam atribuir a ele
qualidades desse gênero, como se chamassem de bonito ou feio um
pedaço de terra ou um bloco de rocha.
Ainda assim, há uma coisa que dá prazer ver, por cima das
regiões flácidas das faces, por cima da testa: é a bela chama
vermelha que doura meu crânio: são meus cabelos. Isso sim é
agradável de olhar. É uma cor nítida pelo menos: gosto de ser ruivo.
Está aí no espelho, faz-se ver, brilha. Ainda tenho sorte: se minha
testa carregasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não
conseguem se decidir entre o castanho e o louro, meu rosto se
perderia no vago, me deixaria tonto.
Meu olhar desce lentamente, com tédio, para essa testa, para
essas faces: não encontra nada de firme, encalha. Evidentemente
há um nariz, olhos, uma boca, mas nada disso tem sentido, nem
mesmo expressão humana. No entanto, Anny e Vélines achavam
que eu tinha um ar vivaz; é possível que eu esteja excessivamente
habituado ao meu rosto. Quando era pequeno, minha tia Bigeois me
dizia: “Se você se olhar demais no espelho, vai acabar vendo um
macaco.” Devo ter me olhado ainda mais tempo: o que vejo está
muito abaixo do macaco, na fronteira do mundo vegetal, no nível
dos pólipos. Não digo que não tenha vida; mas não era a esse tipo
de vida que Anny se referia: vejo uns leves estremecimentos, vejo
uma carne insípida que se expande e palpita com abandono.
Sobretudo os olhos, assim de muito perto, são horríveis. São algo
vítreo, mole, cego, margeado de vermelho; pareceriam escamas de
peixe.
Apoio-me com todo meu peso no rebordo de faiança, aproximo
meu rosto do espelho até encostar nele. Os olhos, o nariz e a boca
desaparecem: não resta mais nada de humano. Rugas
amarronzadas de cada lado da tumescência febril dos lábios, gretas,
montículos. Uma penugem sedosa e branca cobre os grandes
declives das faces, dois pelos saem das narinas: é um mapa
geológico em relevo. E, apesar de tudo, esse mundo lunar me é
familiar. Não posso dizer que reconheço seus detalhes. Mas o
conjunto me deixa uma impressão de coisa já vista que me
entorpece: mergulho suavemente no sono.
Gostaria de recuperar o controle: uma sensação viva e abrupta
me libertaria. Espalmo a mão esquerda em minha face, puxo a pele;
faço uma careta para mim mesmo. Toda uma metade de meu rosto
cede, a metade esquerda da boca se torce e aumenta de volume,
deixando aparecer um dente, a órbita se abre sobre um globo
branco, sobre uma carne rosa e sanguinolenta. Não é o que eu
procurava: nada de forte, nada de novo; uma coisa suave,
imprecisa, já vista. Vou adormecendo de olhos abertos; já o rosto
cresce, cresce no espelho, é um imenso halo pálido que desliza na
luz...
O que me acorda bruscamente é o fato de perder o equilíbrio.
Estou escarranchado numa cadeira, ainda estonteado. Será que os
outros homens têm tanta dificuldade em avaliar seus rostos?
Parece-me que vejo o meu como sinto o corpo, por uma sensação
surda e orgânica. Mas e os outros? Rollebon, por exemplo?
Adormecê-lo-ia também o fato de olhar nos espelhos o que a sra. de
Genlis chama de “o seu rostinho enrugado, asseado, marcado de
varíola, onde havia uma malícia singular, que saltava aos olhos, por
mais esforço que fizesse para dissimulá-la. O marquês”, acrescenta
ela, “cuidava muito de seu penteado e nunca o vi sem peruca. Mas
as faces eram de um azul que puxava para o preto, porque a barba
era espessa e ele gostava de se barbear pessoalmente, coisa que
fazia muito mal. Tinha o hábito de se pintar com alvaiade à moda de
Grimm. O sr. de Dangeville dizia que ele parecia, com todo esse
branco e todo esse azul, um queijo Roquefort”.
Acho que devia ser uma pessoa bem divertida. Mas afinal não
era essa a impressão que ele dava à sra. de Charrières. Creio que
ela o achava bastante apagado. Talvez seja impossível
compreender o próprio rosto. Ou talvez seja porque sou um homem
sozinho? As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver
nos espelhos tal como aparecem a seus amigos. Não tenho amigos:
será por isso que minha carne é tão nua? Dir-se-ia — sim, dir-se-ia
a natureza sem os homens.
Não sinto mais vontade de trabalhar; não posso fazer mais nada, a
não ser esperar a noite.
Cinco e meia
As coisas não vão bem! Não vão bem de modo algum: estou com
ela, com a sujeira, com a Náusea. E dessa vez é diferente: me veio
num café. Até agora os cafés eram meu único refúgio, porque estão
cheios de gente e são bem iluminados: já não haverá nem isso;
quando me sentir encurralado em meu quarto, já não saberei aonde
ir.
Vinha para trepar, mas mal empurrara a porta e Madeleine, a
empregada, gritou:
— A patroa não está, foi à cidade fazer compras.
Senti uma viva decepção no meu sexo, uma titilação longa e
desagradável. Ao mesmo tempo sentia a camisa roçando em meus
mamilos, e era envolto, tomado por um lento turbilhão colorido, um
turbilhão de névoa, de luzes na fumaça, nos espelhos, com os
bancos que brilhavam ao fundo, e não via nem por que aquilo
estava ali, nem por que era assim. Estava no umbral da porta,
hesitante, e depois houve um remoinho, passou uma sombra no teto
e me senti empurrado para a frente. Flutuava atordoado pelas
brumas luminosas que me penetravam de todos os lados ao mesmo
tempo. Madeleine veio flutuando para tirar meu sobretudo e notei
que puxara os cabelos para trás e colocara brincos: eu não a
reconhecia. Olhava suas faces, que se estiravam cada vez mais em
direção às orelhas.
Sob as maçãs do rosto havia duas manchas cor-de-rosa isoladas
que pareciam se entediar naquela carne pobre. As faces se
estiravam, se estiravam em direção às orelhas, e Madeleine sorria.
— O que vai tomar, sr. Antoine?
Então fui acometido pela Náusea, me deixei cair no banco, já
nem sabia onde estava; via as cores girando lentamente em torno
de mim, sentia vontade de vomitar. E é isso: a partir daí a Náusea
não me deixou, se apossou de mim.
Paguei. Madeleine levou meu pires. Meu copo esmaga contra o
mármore uma poça de cerveja amarela onde flutua uma bolha. O
banco está quebrado no lugar em que me sentei e, para não
escorregar, sou obrigado a apoiar com força as solas de meus
sapatos no chão; faz frio. À direita, algumas pessoas jogam cartas
sobre um pano de lã. Não as vi ao entrar; senti apenas que havia
um pacote morno, meio sobre o banco, meio sobre a mesa do
fundo, com pares de braços que se agitavam. Depois disso
Madeleine trouxe-lhes os baralhos, o pano e as fichas numa tigela
de madeira. São três ou cinco, não sei, não tenho coragem de olhá-
los. Estou como uma mola quebrada: posso mover os olhos, mas
não a cabeça. A cabeça está mole, elástica: parece apenas
pousada em meu pescoço; se a giro, deixo-a cair. Ainda assim, ouço
uma respiração curta e vejo de quando em quando, com o canto do
olho, um clarão rubro coberto de pelos brancos. É uma mão.
Quando a patroa sai para as compras, é seu primo que a
substitui no balcão. Chama-se Adolphe. Comecei a olhá-lo ao me
sentar e continuei a fazê-lo, porque não podia virar a cabeça. Está
em mangas de camisa, com suspensórios cor de malva; arregaçou
as mangas da camisa até acima do cotovelo. Quase não se veem
os suspensórios sobre a camisa azul, estão apagados, perdidos no
azul, mas trata-se de uma humildade falsa: na verdade, não passam
despercebidos, me irritam por sua obstinação de carneiros, como
se, destinados a serem roxos, tivessem parado no meio do caminho
sem abandonar suas pretensões. Dá vontade de lhes dizer: “Façam
isso, tornem-se roxos, e assunto encerrado.” Mas não, eles
permanecem em suspenso, obstinados em seu esforço incompleto.
Às vezes o azul que os envolve os recobre inteiramente: fico um
momento sem vê-los. Mas é apenas uma onda: logo o azul
esmaece aqui e ali, e vejo reaparecer ilhotas de uma cor de malva
hesitante, que aumentam de tamanho, se juntam e reconstituem os
suspensórios. O primo Adolphe não tem olhos: suas pálpebras
empapuçadas e levantadas deixam ver apenas um pouco do branco
do olho. Sorri com ar sonolento; de quando em quando se sacode,
gane e se agita um pouco, como um cachorro que sonha.
Sua camisa de algodão azul sobressai alegremente contra a
parede cor de chocolate. Também isso me dá a Náusea. Ou antes, é
a Náusea. A Náusea não está em mim: sinto-a ali na parede, nos
suspensórios, por todo lado ao redor de mim. Ela forma um todo
com o café: sou eu que estou nela.
À minha direita, o pacote morno começa a fazer barulho, agita
seus pares de braços.
“Pronto, aí está seu trunfo. — Qual é o trunfo?” Grande espinha
preta curvada sobre o jogo: “Ha, ha! — O quê? Aí está o trunfo, ele
acaba de jogá-lo. — Não sei, não vi... — Sim, agora, acabo de jogar
o trunfo. — Ah, bem, então o trunfo é copas.” Cantarola: “Trunfo de
copas, trunfo de copas.” Falando: “Como, senhor? Como? A vaza é
minha!”
Novamente o silêncio — o gosto de açúcar do ar no fundo da
boca. Os odores. Os suspensórios.
O primo se levantou, deu alguns passos, colocou as mãos atrás
das costas, sorri, levanta a cabeça e se inclina para trás, na ponta
dos calcanhares. Nessa posição ele dorme. Está ali, oscilando,
sempre sorrindo, as bochechas tremendo. Vai cair. Inclina-se para
trás, inclina-se, inclina-se, o rosto inteiramente virado para o teto;
depois, no momento de cair, segura-se destramente na beira do
balcão e recupera o equilíbrio. Em seguida, tudo se repete. Estou
farto, chamo a garçonete:
— Madeleine, ponha uma música no gramofone, por favor. Sabe,
aquela de que eu gosto: “Some of these days.”
— Sim, mas talvez incomode esses senhores; esses senhores
não gostam de música quando estão jogando. Ah! Vou perguntar a
eles.
Faço um grande esforço e viro a cabeça. São quatro. Ela se
debruça sobre um velho rubro que usa um lornhão com aro preto na
ponta do nariz.
Ele esconde seu jogo contra o peito e me olha por baixo das
lentes.
— À vontade, senhor.
Sorrisos. Seus dentes são podres. A mão vermelha não é dele,
mas do vizinho, um sujeito de bigode preto. Esse sujeito de bigode
tem narinas imensas, que poderiam sorver ar para toda uma família
e que lhe cobrem a metade do rosto, mas, apesar disso, ele respira
pela boca, ofegando um pouco. Há também com eles um rapaz com
cara de cachorro. Não consigo distinguir o quarto parceiro.
As cartas rodopiam ao cair sobre o pano de lã. Depois, mãos
cobertas de anéis as recolhem, arranhando o pano com suas unhas.
As mãos formam manchas brancas sobre o pano, parecem
poeirentas e inchadas. Continuam a cair outras cartas. As mãos vão
e vêm. Que ocupação estranha: não parece um jogo, nem um rito,
nem um hábito. Acho que fazem isso simplesmente para encher o
tempo. Mas o tempo é muito longo, não se deixa encher. Tudo o que
mergulha nele amolece e se estira. Por exemplo, esse gesto da mão
vermelha que recolhe as cartas vacilando: é inteiramente frouxo.
Seria preciso descosê-lo e cortar por dentro para reduzi-lo.
Madeleine gira a manivela do gramofone. Espero que não tenha
se enganado, que não tenha colocado, como no outro dia, a grande
ária da Cavalleria Rusticana.
Não, está certo, reconheço a melodia já nos primeiros
compassos. É um antigo ragtime com estribilho cantado. Ouvi os
soldados americanos assobiando-o em 1917, nas ruas de La
Rochelle. Deve ser de antes da guerra. Mas a gravação é bem mais
recente.
Mesmo assim, é o disco mais antigo da coleção, um disco Pathé
para agulha de safra.
Logo virá o estribilho: é dele que mais gosto, e da maneira
abrupta pela qual se lança como um penhasco para o mar. No
momento é o jazz que toca; não há melodia, apenas notas, uma
miríade de curtas sacudidelas. Elas não param, uma ordem
inflexível as origina e as destrói, sem nunca permitir que se
recomponham, que existam por si. Elas correm, se apressam, de
passagem me dão um golpe seco e se obliteram. Gostaria muito de
retê-las, mas sei que, se conseguisse deter uma, só me ficaria entre
os dedos um som apagado e vulgar. Tenho que aceitar sua morte;
tenho até que desejar essa morte: conheço poucas impressões mais
ásperas ou mais fortes.
Começo a me reanimar, a me sentir feliz. Ainda não é nada de
extraordinário, é uma pequena felicidade de Náusea: ela se espalha
no fundo da poça viscosa, no fundo de nosso tempo — o tempo dos
suspensórios cor de malva e dos bancos quebrados —, é feita de
instantes amplos e frouxos, que se alastram pelas bordas como uma
mancha de azeite. Mal nasceu e já parece velha, tenho a impressão
de conhecê-la há vinte anos.
Há uma outra felicidade: fora há essa faixa de aço, a curta
duração da música que atravessa nosso tempo de um lado ao outro,
e o recusa e o dilacera com suas pontas secas e aguçadas; há um
outro tempo.
— O sr. Randu joga copas, você coloca o ás.
A voz se insinua e desaparece. Nada morde a faixa de aço, nem
a porta que se abre, nem a lufada de ar frio que passa por meus
joelhos, nem a chegada do veterinário com sua neta: a música
penetra essas formas vagas e as atravessa. Mal se sentou, a
menina foi tomada por ela: fica rígida, os olhos totalmente abertos;
escuta, esfregando o punho na mesa.
Mais alguns segundos e a negra vai cantar. Isso parece
inevitável, tão forte é a necessidade dessa música: nada pode
interrompê-la, nada que venha desse tempo no qual o mundo
despencou; ela cessará por si mesma no momento exato. Se amo
essa bela voz é sobretudo por isso: não é nem por seu volume, nem
por sua tristeza; é porque ela é o acontecimento que tantas notas
prepararam, de tão longe, morrendo para que ela possa nascer. E
no entanto estou intranquilo; bastaria muito pouco para que o disco
parasse: uma mola que se quebrasse, um capricho do primo
Adolphe. Como é estranho, como é comovente que essa rigidez
seja tão frágil. Nada pode interrompê-la e tudo pode aniquilá-la.
Extinguiu-se o último acorde. No breve silêncio que segue, sinto
intensamente que houve algo, que alguma coisa aconteceu.
Silêncio.
Três horas
Abandonei Eugénie Grandet. Pus-me a trabalhar, mas sem
entusiasmo. O Autodidata, que vê que estou escrevendo, me
observa com uma concupiscência respeitosa. De quando em
quando ergo um pouco a cabeça, vejo o imenso colarinho de onde
sai seu pescoço de frango. Sua roupa está puída, mas a camisa é
de uma brancura impecável. Acaba de pegar outro volume, na
mesma prateleira, e consigo decifrar o título às avessas: La flèche
de Caudebec, crônica normanda, de Julie Lavergne. As leituras do
Autodidata sempre me desconcertam.
De repente voltam à minha memória os nomes dos últimos
autores cujas obras consultou: Lambert, Langlois, Larbalétrier,
Lastex, Lavergne. É uma iluminação; entendi o método do
Autodidata: instrui-se por ordem alfabética.
Contemplo-o com uma espécie de admiração. Que vontade
precisa ter para realizar lentamente, obstinadamente, um plano de
envergadura tão vasta! Um dia, faz sete anos (ele me disse que
estudava havia sete anos), entrou com grande pompa nesta sala.
Percorreu com o olhar os inúmeros livros que cobrem as paredes e
deve ter dito, mais ou menos como Rastignac: “Agora nós, Ciência
Humana.” Depois foi pegar o primeiro livro, da primeira prateleira da
extrema direita; abriu-o na primeira página, com um sentimento de
respeito e terror, acompanhado de uma decisão inquebrantável.
Atualmente está na letra L. K depois do J, L depois do K. Passou
brutalmente do estudo dos coleópteros para o da teoria dos quanta,
de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o
darwinismo: em momento algum se desconcertou. Leu tudo;
armazenou em sua cabeça a metade do que se sabe sobre a
partenogênese, a metade dos argumentos contra a vivissecção.
Atrás dele, diante dele, há um universo. E se aproxima o dia em que
dirá, fechando o último volume da última prateleira da extrema
esquerda: “E agora?”
É a hora de seu lanche; come, com ar cândido, pão e uma barra
de Gala Peter. Baixou as pálpebras e assim posso contemplar à
vontade seus belos cílios recurvos — cílios de mulher. Exala um
cheiro de tabaco velho, ao qual se mescla, quando expira, o
perfume doce do chocolate.
Sábado, meio-dia
O Autodidata não me viu entrar na sala de leitura. Estava sentado
bem na ponta da mesa do fundo; colocara um livro à sua frente, mas
não lia. Olhava com um sorriso para o vizinho da direita, um colegial
de aspecto sujo que vem com frequência à biblioteca. Este se
deixou contemplar um momento; depois, subitamente, lhe mostrou a
língua, fazendo uma careta horrível. O Autodidata enrubesceu,
enfiou precipitadamente o nariz no livro e ficou absorto na leitura.
Voltei às minhas reflexões de ontem. Estava inteiramente frio:
era-me indiferente que não houvesse aventuras. Simplesmente
estava curioso em saber se não poderia haver.
Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se
torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo.
É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de
histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos
outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver
sua vida como se a narrasse.
Mas é preciso escolher: viver ou narrar. Por exemplo, quando
estava em Hamburgo, com aquela tal de Erna que tinha medo de
mim e em quem eu não confiava, levava uma existência
extravagante. Mas eu estava dentro dessa existência, não pensava
nisso. E depois, uma noite, num café de San Pauli, Erna me deixou
um momento para ir ao toalete. Fiquei sozinho, havia um gramofone
tocando “Blue sky”. Comecei a narrar para mim mesmo o que
ocorrera depois de meu desembarque. Disse-me: “Na terceira noite,
ao entrar num dancing chamado Grotte Bleu, minha atenção foi
despertada por uma mulher grandalhona, meio bêbada. E é essa a
mulher que estou aguardando nesse momento, a ouvir “Blue sky”, e
que vai voltar a se sentar à minha direita e me enlaçar o pescoço
com seus braços.” Senti então com violência que vivia uma
aventura. Mas Erna retornou, se sentou ao meu lado, me enlaçou o
pescoço com seus braços e detestei-a sem saber bem por quê.
Agora compreendo: é porque era preciso recomeçar a viver e a
impressão de aventura acabava de se dissipar.
Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as
pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se
sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e
interminável. De quando em quando se procede a um total parcial,
dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville.
Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma
cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou,
Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos —
raramente — avaliamos a situação, percebemos que nos
envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão.
Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as
contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio,
junho. 1924, 1925, 1926.
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda;
simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se
fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias
verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os
narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: “Era
uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião
em Marommes.” E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está
ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a
pompa e o valor de um começo. “Estava passeando, saíra do
vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro.”
Essas frases, tomadas simplesmente pelo que são, significam que o
sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura,
exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam
passar os acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma
tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história.
Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais
preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.
E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se
empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim
da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante
que o precede: “Era noite, a rua estava deserta.” As frases são
lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no
logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor
compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói
viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como
promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram
promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura.
Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava
numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada
suas riquezas monótonas, e ele não escolhia.
Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e
uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou
quase, que tentar capturar o tempo.
Domingo
Essa manhã esqueci que era domingo. Saí e andei pelas ruas como
de hábito. Levara comigo Eugénie Grandet. Depois, subitamente, ao
empurrar o portão de ferro do jardim público, tive a impressão de
que alguma coisa me fazia sinal. O jardim estava deserto e nu.
Mas... como dizer? Não tinha seu aspecto habitual, sorria para mim.
Fiquei um momento apoiado na grade e depois, bruscamente,
compreendi que era domingo. Isso se via nas árvores, na relva,
como um leve sorriso.
Era algo que não se podia descrever, seria preciso pronunciar
muito depressa: “Trata-se de um jardim público no inverno, numa
manhã de domingo.”
Soltei a grade, voltei-me para as casas e as ruas burguesas e
disse a meia-voz: “É domingo.”
É domingo: por trás das docas, junto ao mar, perto da estação de
cargas, em volta da cidade, há depósitos vazios e máquinas
paradas na escuridão. Em todas as casas homens se barbeiam por
trás das janelas; inclinam a cabeça para trás, olham ora o espelho,
ora o céu frio para saber se fará bom tempo. Os bordéis recebem
seus primeiros fregueses: camponeses e soldados. Nas igrejas, à
luz das velas, um homem bebe vinho diante de mulheres
ajoelhadas. Em todos os subúrbios, entre os muros intermináveis
das fábricas, longas filas negras se puseram em movimento,
avançam lentamente para o centro da cidade. Para recebê-las, as
ruas assumiram seu aspecto dos dias de tumulto: todas as lojas,
exceto as da rua Tournebride, baixaram suas portas de ferro. Dentro
em pouco, em silêncio, as colunas negras invadirão essas ruas que
se fingem de mortas: virão primeiro os ferroviários de Tourville e
suas mulheres que trabalham nas saboarias de Saint-Symphorin,
depois os pequeno-burgueses de Jouxtebouville, depois os
operários das Fiações Pinot, depois todos os biscateiros do bairro
de Saint-Maxence; os homens de Thiérache serão os últimos a
chegar, no bonde das 11 horas. Dentro em pouco vai surgir a
multidão dos domingos, entre lojas aferrolhadas e portas fechadas.
Um relógio bate dez e meia e me ponho a caminho: aos
domingos, a essa hora, há em Bouville um espetáculo digno de ver,
mas é preciso não chegar muito depois da saída da missa cantada.
A ruazinha Joséphine-Soulary está deserta e cheira a adega.
Mas, como todos os domingos, está invadida por um ruído
suntuoso, um ruído de marulho. Dobro na rua do Président-
Chamart, cujas casas têm três andares com longas persianas
brancas. Essa rua de tabeliões está inteiramente tomada pelo rumor
volumoso do domingo. Na galeria Gillet, o ruído aumenta ainda mais
e posso reconhecê-lo: é um ruído que os homens fazem. Depois, de
repente, à minha esquerda, há como que uma explosão de luzes e
sons. Cheguei: eis aqui a rua Tournebride, só tenho que tomar lugar
entre meus semelhantes para ver os senhores distintos trocando
cumprimentos com seus chapéus.
Há apenas sessenta anos ninguém se atreveria a prever o
miraculoso destino da rua Tournebride, que os habitantes de
Bouville chamam hoje de Pequeno Prado. Vi um mapa datado de
1847 no qual ela sequer figurava. Devia ser nessa época uma
passagem estreita, escura e malcheirosa, com uma vala por onde
corriam, entre as pedras do calçamento, cabeças e entranhas de
peixes. Mas, no final de 1873, a Assembleia Nacional declarou de
utilidade pública a construção de uma igreja sobre a colina de
Montmartre. Poucos meses depois a mulher do prefeito de Bouville
teve uma visão: santa Cecília, sua santa padroeira, de quem lhe
vinha o nome de batismo, vinha recriminá-la. Era admissível que a
elite tivesse que se enlamear todos os domingos para ir a Saint-Ré
ou a Saint-Claudien ouvir a missa com os lojistas? A Assembleia
Nacional não dera o exemplo? Bouville tinha agora, graças à
proteção do Céu, uma situação econômica de primeira ordem; não
convinha construir uma igreja para dar graças ao Senhor?
Tais argumentos foram acolhidos: o Conselho Municipal reuniu-
se numa sessão histórica e o bispo concordou em receber
subscrições. Faltava escolher o local. As velhas famílias de
comerciantes e armadores eram de opinião que se erguesse o
edifício no cume do Coteau Vert, onde moravam, “para que santa
Cecília velasse por Bouville como o Sagrado Coração de Jesus por
Paris”. Os novos-ricos do bulevar Maritime, ainda pouco numerosos,
mas bastante opulentos, resistiram: dariam o que fosse preciso, mas
a igreja seria construída na praça Marignan; se pagavam por uma
igreja, achavam que deveriam poder utilizá-la; agradava-lhes
mostrar sua força a essa burguesia altaneira que os tratava como
arrivistas. O bispo arquitetou uma solução conciliatória: a igreja foi
construída a meio caminho do Coteau Vert e do bulevar Maritime, na
praça da Halle-aux-Morues, que foi batizada de praça Santa Cecília
do Mar. Esse edifício monstruoso, que ficou pronto em 1887, não
custou menos de 14 milhões.
A rua Tournebride, larga, mas suja e mal-afamada, teve que ser
inteiramente reconstruída, e seus moradores foram energicamente
rechaçados para trás da praça Santa Cecília; o Pequeno Prado
tornou-se — sobretudo nas manhãs de domingo — o ponto de
encontro das pessoas importantes e elegantes. Uma a uma, bonitas
lojas foram inauguradas com a chegada da elite. Permanecem
abertas na Páscoa, na noite de Natal, em todos os domingos até o
meio-dia. Ao lado de Julien, o charcuteiro, cujos patês são famosos,
o doceiro Foulon exibe suas especialidades renomadas, admiráveis
petits-fours cônicos, de manteiga cor de malva, recobertos por uma
violeta de açúcar. Na vitrine da livraria Dupaty, estão expostas as
novidades da editora Plon, alguns livros técnicos, tais como uma
teoria do navio ou um tratado do velame, uma grande história
ilustrada de Bouville e edições de luxo elegantemente dispostas:
Kœnigsmark, encadernado em couro azul; Le livre de mes fils, de
Paul Doumer, encadernado em couro bege com flores púrpuras.
Ghislaine, “Alta costura, modelos parisienses”, separa Piégeois, o
florista, do antiquário Paquin. O cabeleireiro Gustave, que emprega
quatro manicures, ocupa o primeiro andar de um prédio novo
pintado de amarelo.
Há dois anos, na esquina do beco Moulins-Gémeaux com a rua
Tournebride, uma lojinha impudente ainda exibia um anúncio do Tu-
pu-nez, um produto inseticida. Ela florescera no tempo em que se
ouviam os pregões de bacalhau na praça Santa Cecília, e era
centenária. Os vidros da fachada raramente eram lavados: era
preciso fazer um esforço para distinguir, através da poeira e do
embaçado, uma quantidade de pequenas figuras de cera vestindo
gibões cor de fogo, que representavam ratos e camundongos.
Esses animais desembarcavam de um navio de alto bordo apoiados
em bengalas; mal pisavam em terra e uma camponesa,
graciosamente vestida, mas lívida e negra de sujeira, punha-os em
fuga, aspergindo-lhes Tu-pu-nez. Eu gostava muito dessa loja, tinha
um ar cínico e obstinado, lembrava com insolência os direitos dos
vermes e da sujeira, a dois passos da igreja mais cara da França.
A velha herborista morreu ano passado e seu sobrinho vendeu a
casa. Bastou derrubar algumas paredes: agora é uma pequena sala
de conferências, a Bonbonnière. No ano passado, Henry Bordeaux
fez aí uma palestra sobre o alpinismo.
Na rua Tournebride não se pode ter pressa: as famílias
caminham lentamente. Às vezes se avança uma fileira, porque uma
família inteira entrou na loja de Foulon ou na de Piégeois. Mas em
outros momentos é preciso parar e marcar passo, porque duas
famílias, pertencentes uma à coluna que sobe, outra à coluna que
desce, se encontraram e se agarraram firmemente pelas mãos.
Avanço a passos curtos. Sobrelevo-me às duas colunas e vejo
chapéus, um mar de chapéus. A maioria deles é preta e rígida. De
quando em quando um voa na ponta de um braço, deixando
aparecer o brilho suave de um crânio; em seguida, após alguns
instantes de um voo desajeitado, torna a pousar. No número 16 da
rua Tournebride, o chapeleiro Urbain, especialista em quepes, faz
planar como um símbolo um imenso chapéu vermelho de arcebispo,
cujas borlas de ouro pendem a dois metros do chão.
Faz-se alto: acaba de se formar um grupo sob as borlas. Meu
vizinho espera sem impaciência, balançando os braços: creio que
esse velhinho pálido e frágil como uma porcelana é Coffier, o
presidente da Câmara de Comércio. Ele parece intimidante, pois
nunca diz nada. Mora no alto do Coteau Vert, numa grande casa de
tijolo aparente, cujas janelas estão sempre escancaradas. Terminou:
o grupo se desmanchou, recomeça-se a andar. Acaba de se formar
outro, mas esse ocupa menos espaço: tão logo se formou,
encostou-se na vitrine de Ghislaine. A coluna sequer para: faz
apenas um ligeiro desvio; desfilamos diante de seis pessoas que se
dão as mãos: “Bom dia, senhor, bom dia, meu caro senhor; como
vai; mas ponha o chapéu, senhor, vai se resfriar; obrigado, senhora,
realmente não faz calor. Minha querida, quero lhe apresentar o dr.
Lefrançois; doutor, muito prazer em conhecê-lo, meu marido sempre
me fala no dr. Lefrançois que o tratou tão eficazmente, mas ponha o
chapéu, doutor, esse frio pode lhe fazer mal. Mas o doutor se curaria
logo; não creia, senhora, os médicos são sempre os que menos se
tratam; o doutor é um músico notável. Meu Deus, doutor, eu não
sabia disso, toca violino? O doutor tem muito talento.”
O velhinho ao meu lado é certamente Coffier; uma das mulheres
do grupo, a morena, devora-o com os olhos, ao mesmo tempo em
que sorri para o doutor. Parece estar pensando: “Lá está o sr.
Coffier, o presidente da Câmara de Comércio; como seu aspecto é
intimidante, dizem que é tão frio!” Mas o sr. Coffier não se dignou a
ver nada: essas pessoas são do bulevar Maritime, não pertencem à
sociedade. Com o tempo que venho a essa rua para ver os
cumprimentos de chapéu aos domingos, aprendi a distinguir as
pessoas do bulevar e as do Coteau. Quando um sujeito está usando
um casaco novo em folha, chapéu de feltro flexível, camisa
resplandecente, é muito espaçoso, não há o que errar: é alguém do
bulevar Maritime. As pessoas do Coteau Vert se distinguem por um
não sei quê de lastimável e deprimido. Têm os ombros estreitos e
um ar de insolência nos rostos gastos. Juraria que o senhor
grandalhão que está segurando uma criança pela mão é do Coteau:
seu rosto é inteiramente cinza e ele dá o nó na gravata como se ela
fosse um barbante.
O senhor grandalhão se aproxima de nós: olha fixamente para o
sr. Coffier. Mas, um pouco antes de cruzar com ele, desvia a cabeça
e se põe a brincar paternalmente com seu garotinho. Dá mais
alguns passos, inclinado para o filho, os olhos mergulhados nos
dele, imbuído de seu papel de papai; depois, de repente, virando-se
lentamente para nós, dirige um olhar vivo para o velhinho e faz um
cumprimento amplo e seco, com um movimento circular de braço. O
garotinho, desconcertado, não esboça um cumprimento: isso é coisa
de gente grande.
Na esquina da rua Basse-de-Vieille, nossa coluna esbarra com
uma coluna de fiéis que estão saindo da missa: uma dezena de
pessoas esbarram umas nas outras e se cumprimentam rodopiando,
mas os cumprimentos de chapéus são muito rápidos para que eu
possa detalhá-los; por cima dessa multidão gorda e pálida, a igreja
consagrada a santa Cecília ergue sua monstruosa massa branca:
um branco de giz sobre um céu escuro; por trás dessas paredes
resplandecentes, ela retém em seus flancos um pouco do negrume
da noite. Retoma-se a caminhada numa ordem ligeiramente
modificada. O sr. Coffier foi empurrado para trás de mim. Uma
senhora de azul-marinho colou-se a meu flanco esquerdo. Vem da
missa. Pisca os olhos um pouco ofuscada ao se deparar com a luz
da manhã. O senhor que caminha à frente dela, e cuja nuca é muito
magra, é seu marido.
Na outra calçada, um senhor que dá o braço à sua mulher acaba
de lhe sussurrar algumas palavras ao ouvido e se pôs a sorrir.
Imediatamente, ela elimina qualquer expressão do rosto cremoso e
dá alguns passos como se fosse cega. Esses sinais não enganam:
eles vão cumprimentar alguém. Efetivamente, um instante depois o
senhor ergue a mão. Quando os dedos estão próximos de seu
chapéu de feltro, hesitam um segundo antes de pousarem
delicadamente na copa. Enquanto levanta lentamente o chapéu,
baixando um pouco a cabeça para facilitar a remoção, a mulher dá
um pulinho, inscrevendo no rosto um sorriso jovem. Uma sombra
passa por eles, inclinando-se, mas seus dois sorrisos gêmeos não
se apagam no ato: permanecem alguns instantes em seus lábios,
por uma espécie de remanência. Quando o senhor e a senhora
cruzam comigo, já retomaram sua impassibilidade, mas permanece-
lhes ainda um ar alegre ao redor da boca.
Terminou: a multidão é menos densa, os cumprimentos de
chapéu se tornam mais raros, as vitrines das lojas já não têm o
mesmo encanto: estou no fim da rua Tournebride. Vou atravessar e
subir a rua pela outra calçada? Acho que já me fartei, já vi o
bastante desses crânios rosados, desses rostos miúdos, distintos,
apagados. Vou atravessar a praça Marignan. No que estou me
separando, com precaução, da coluna, uma cabeça de verdadeiro
cavalheiro brota de um chapéu preto bem ao meu lado. É o marido
da senhora de azul-marinho. Ah! Que belo e longo crânio de
dolicocéfalo, coberto de cabelos curtos e bastos; que belo bigode à
americana, semeado de fios prateados! E sobretudo o sorriso, o
admirável sorriso cultivado. Há também um lornhão algures num
nariz.
Ele estava voltado para a mulher, dizendo-lhe:
— É um novo desenhista da fábrica. Pergunto-me o que estará
fazendo aqui. É um bom rapazinho, um tímido; me diverte.
Junto à vitrine do charcuteiro Julien, o jovem desenhista que
acaba de recolocar seu chapéu, ainda corado, os olhos baixos, o ar
obstinado, conserva toda a aparência de uma intensa volúpia.
Sem dúvida alguma é o primeiro domingo em que ousa
atravessar a rua Tournebride. Seu aspecto é de alguém que está
fazendo a primeira-comunhão. Cruzou as mãos atrás das costas e
virou o rosto para a vitrine com um ar pudico positivamente
excitante; olha, sem vê-las, quatro linguiças brilhantes em meio ao
gelo e desabrochando em sua guarnição de salsas.
Uma mulher sai da charcuteria e toma seu braço. É sua esposa.
Ela é bastante jovem apesar da pele consumida. Por mais que
ronde pelas imediações da rua Tournebride, ninguém a tomará por
uma dama; ela é traída pelo fulgor cínico dos olhos, pelo ar sensato
e previdente. As verdadeiras damas não sabem os preços das
coisas, gostam das belas loucuras; os olhos delas são belas flores
cândidas, flores de estufa.
Ao dar uma hora, chego à Brasserie Vézelize. Lá estão os
velhos, como de hábito. Dois deles já começaram sua refeição. Há
quatro jogando manilha, tomando aperitivos. Os outros estão de pé
e observam o jogo, enquanto esperam que lhes preparem uma
mesa. O mais alto, que tem uma barba interminável, é corretor de
valores. Outro é comissário aposentado da Capitania do Porto.
Comem e bebem como se ainda tivessem vinte anos. Aos domingos
o prato escolhido é chucrute. Os últimos a chegar interpelam os
outros, que já estão comendo:
— Então, o chucrute dominical, como sempre?
Sentam-se e dão um suspiro satisfeito.
— Mariette, minha querida, uma cerveja sem colarinho e um
chucrute.
Mariette é brejeira. No que me sento numa mesa do fundo, um
velho escarlate começa a tossir furiosamente enquanto ela lhe serve
um vermute.
— Encha mais, ora essa — diz a tossir.
Mas ela se zanga por sua vez: não tinha acabado de servir.
— Mas me deixe servir; por acaso eu disse alguma coisa? O
senhor se contraria por antecipação.
Os outros começam a rir.
— Touché!
O corretor de valores, ao ir se sentar, segura Mariette pelos
ombros:
— É domingo, Mariette. Vai ao cinema essa tarde com seu
namorado?
— Ah, sim!... É a folga de Antoinette. Namorado, é verdade...
Vou ter que aguentar o dia inteiro trabalhando!
O corretor de valores sentou-se diante de um velho muito
escanhoado, de ar infeliz. O velho escanhoado começa
imediatamente um relato animado. O corretor de valores não ouve:
faz caretas, puxa a barba. Eles nunca se ouvem.
Reconheço meus vizinhos: são pequenos comerciantes dos
arredores. Aos domingos dão folga à empregada. Então vêm aqui e
se instalam sempre na mesma mesa. O marido está comendo uma
bela côte-de-boeuf rosada. Examina-a de perto e de quando em
quando a cheira. A mulher lambisca seu prato. É uma loura
corpulenta de quarenta anos, as faces vermelhas e penugentas. Os
seios, sob a blusa de cetim, são belos e rijos. Em cada refeição ela
entorna, como um homem, sua garrafa de Bordeaux.
Vou ler Eugénie Grandet. Não que isso me dê muito prazer: mas
é preciso que faça alguma coisa. Abro o livro ao acaso: a mãe e a
filha falam do amor que está nascendo em Eugénie:
***
Segunda-feira
Como pude escrever ontem essa frase absurda e pomposa:
“Estava inteiramente sozinho mas caminhava como uma tropa
que irrompe numa cidade.”
Não preciso fazer frases. Escrevo para esclarecer certas
circunstâncias. Há que ter cuidado com a literatura. É preciso
escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras.
No fundo o que me desagrada é ter sido sublime ontem à noite.
Quando tinha vinte anos, me embriagava e depois explicava que era
um sujeito no gênero de Descartes. Sentia perfeitamente que me
inflava de heroísmo, mas não me continha: isso me agradava.
Depois, no dia seguinte, me sentia tão enojado como se tivesse
acordado numa cama cheia de vômito. Quando estou bêbado, não
vomito — antes o fizesse. Ontem não tinha sequer a desculpa da
embriaguez. Entusiasmei-me como um imbecil. Preciso me limpar
com pensamentos abstratos, transparentes como a água.
Esse sentimento de aventura decididamente não se origina dos
acontecimentos: isso ficou provado. É antes a maneira pela qual os
instantes se encadeiam. Eis, creio eu, o que ocorre: bruscamente se
sente que o tempo se esgota, que cada instante leva a outro
instante, esse a outro, e assim sucessivamente; que cada instante
se aniquila, que é inútil tentar retê-lo etc. E então se atribui essa
propriedade aos acontecimentos que nos surgem nos instantes;
transportamos para o conteúdo o que pertence à forma. Em suma,
fala-se muito dessa famosa passagem do tempo, mas não a vemos.
Vemos uma mulher, pensamos que um dia será velha, mas não a
vemos envelhecer. Mas por alguns momentos parece que a vemos
envelhecer e que nos sentimos envelhecer com ela: é o sentimento
de aventura.
Se bem me lembro, chama-se isso de irreversibilidade do tempo.
O sentimento da aventura seria simplesmente o da irreversibilidade
do tempo. Mas por que não o temos permanentemente? É possível
que o tempo não seja sempre irreversível? Há momentos em que
temos a impressão de que podemos fazer o que queremos, avançar
ou retroceder, que isso não tem importância; e outros em que
diríamos que as malhas se apertaram; nesses casos não há que
perder a chance, porque esta não voltaria a se apresentar.
Anny fazia com que o tempo lhe desse tudo o que era possível.
Na época em que estava em Djibouti, e eu em Aden, quando ia vê-
la por 24 horas, ela utilizava todos os recursos para multiplicar os
mal-entendidos entre nós, até o momento em que só faltavam
exatamente sessenta minutos para minha partida; sessenta minutos,
rigorosamente o tempo necessário para que se sintam passar os
segundos um a um. Lembro-me de uma dessas noites terríveis. Eu
tinha que partir à meia-noite. Tínhamos ido a um cinema ao ar livre;
ambos estávamos desesperados. Só que quem dava as cartas era
ela. Às 11 horas, quando ia começar o filme, ela segurou minha mão
e apertou-a entre as suas sem uma palavra. Senti-me invadido por
uma alegria amarga e compreendi, sem necessidade de olhar o
relógio, que eram 11 horas. A partir desse instante começamos a
sentir os minutos passarem. Daquela vez estávamos nos separando
por três meses. Em dado momento foi projetada na tela uma
imagem extremamente branca, a escuridão tornou-se menos
intensa e vi que Anny estava chorando. Depois, à meia-noite, soltou
minha mão, após havê-la apertado violentamente; levantei-me e saí
sem lhe dizer uma única palavra. Era um trabalho bem-feito.
Sete da noite
Dia de trabalho. Não correu muito mal; escrevi seis páginas com
certo prazer. Tanto mais que se tratava de considerações abstratas
sobre o reinado de Paulo I. Depois da orgia de ontem passei o dia
inteiro cuidadosamente abotoado. Não era indicado recorrer a meu
coração. Mas me sentia muito à vontade desmontando as molas da
autocracia russa.
Só que esse Rollebon me irrita. Finge-se de misterioso nas
mínimas coisas. Que terá ido fazer na Ucrânia no mês de agosto de
1804? Fala de sua viagem em termos velados:
“A posteridade julgará se meus esforços, que o sucesso não
podia recompensar, mereciam uma renegação brutal e as
humilhações que tive que suportar em silêncio, quando dispunha de
meios para calar os escarnecedores e amedrontá-los.”
Caí na armadilha uma vez: ele se mostrava cheio de reticências
pomposas a respeito de uma pequena viagem que fizera a Bouville
em 1790. Perdi um mês investigando suas atividades. Afinal ele
tinha engravidado a filha de um de seus rendeiros. Não se tratará
simplesmente de um cabotino?
Esse pretensiosozinho tão mentiroso me deixa irado; talvez seja
por despeito: encantava-me que mentisse aos outros, mas teria
gostado que abrisse uma exceção para mim; tinha imaginado que
nós dois nos entenderíamos às mil maravilhas, fartos de todos
esses mortos, e que a mim ele terminaria por dizer a verdade. Ele
não disse nada, absolutamente nada; nada mais do que dizia a
Alexandre ou a Luís XVIII, a quem enganava. É importante para
mim que Rollebon tenha sido uma pessoa de valor. Velhaco
certamente: quem não o é? Mas um grande velhaco ou um pequeno
velhaco? Não aprecio suficientemente as pesquisas históricas para
perder meu tempo com um morto cuja mão, se estivesse vivo, eu
não me dignaria a apertar. O que sei dele? Não se pode imaginar
vida mais bela do que a sua: mas a terá vivido realmente? Se pelo
menos suas cartas não fossem tão afetadas... Ah! Teria sido preciso
conhecer seu olhar, talvez tivesse uma maneira atraente de inclinar
a cabeça sobre o ombro, ou de colocar, com ar astuto, o indicador
ao lado do nariz, ou ainda, de deixar transparecer entre duas
mentiras delicadas uma rápida violência que ele logo abafava. Mas
ele morreu: o que sobra dele são apenas o Traité de stratégie e as
Réflexions sur la vertu.
Se me descontraísse, o imaginaria muito bem: sob sua ironia
brilhante, e que fez tantas vítimas, trata-se de um simplório, quase
um ingênuo. Pouco pensa, mas em todas as circunstâncias, por um
dom profundo, faz exatamente o que deveria fazer. Sua velhacaria é
cândida, espontânea, generosa, tão sincera quanto seu amor pela
virtude. E quando traiu seus benfeitores e amigos, relembrou os
acontecimentos com gravidade, para extrair deles uma moral.
Nunca achou que tivesse o menor direito sobre os outros nem estes
sobre ele: considera injustificadas e gratuitas as dádivas que a vida
lhe propicia. Liga-se fortemente a tudo, mas se desvincula com
facilidade. E suas cartas, suas obras, nunca foram escritas por ele:
um escritor público[8] as redigiu.
Mas se era para chegar a isso, mais valia que eu escrevesse um
romance sobre o marquês de Rollebon.
Onze da noite
Jantei no Rendez-vous des Cheminots. Como a patroa estivesse lá,
tive que trepar com ela, mas foi só por delicadeza. Ela me repugna
um pouco: é muito branca e também cheira um pouco a recém-
nascido. Num arroubo de paixão, me apertava a cabeça contra seu
peito: acha que isso é o que se deve fazer. Quanto a mim,
manuseava distraidamente seu sexo sob as cobertas; depois meu
braço ficou dormente. Estava pensando no marquês de Rollebon:
afinal o que me impede de escrever um romance sobre sua vida?
Deslizei meu braço pelo quadril da patroa e vi de repente um
pequeno jardim com árvores baixas e tufadas de onde pendiam
folhas imensas cobertas de pelos. Corriam por toda parte formigas,
centopeias e traças. Havia bichos ainda mais horríveis: seus corpos
eram feitos de uma fatia de pão tostado, como as que se servem
como canapé, com pedaços de pombo; andavam de lado com patas
de caranguejo. As folhas grandes estavam pretas de bichos. Por
trás dos cactos e dos nopais, a Véleda do jardim público apontava
para seu sexo com o dedo. “Esse jardim cheira a vômito”, gritei.
— Não queria acordá-lo — disse a patroa —, mas você estava
com uma dobra do lençol debaixo das nádegas e além disso tenho
que descer por causa dos fregueses do trem de Paris.
Terça-feira de carnaval
Açoitei Maurice Barrès. Éramos três soldados e um de nós tinha um
buraco no meio do rosto. Maurice Barrès se aproximou e nos disse:
“Está bom!” E deu a cada um de nós um buquê de violetas. “Não sei
onde enfiá-lo”, disse o soldado com a cara esburacada. Então
Maurice Barrès falou: “Enfie-o no buraco que você tem no rosto.” O
soldado respondeu: “Vou enfiá-lo no seu cu.” E pusemos Maurice
Barrès de bruços e tiramos suas calças. Por baixo ele tinha uma
veste vermelha de cardeal. Levantamos a veste e Maurice Barrès
começou a gritar. “Cuidado, minhas calças são de presilhas.” Mas
nós o açoitamos até que sangrasse e desenhamos em seu traseiro,
com pétalas de violeta, a cara de Déroulède.
De uns tempos para cá, lembro-me com frequência de meus
sonhos. Aliás, devo me agitar muito durante o sono, porque todas as
manhãs encontro minhas cobertas no chão. Hoje é terça-feira de
carnaval, mas em Bouville isso pouco significa; quando muito há em
toda a cidade umas cem pessoas que se fantasiam.
No que descia a escada, a patroa me chamou: “Há uma carta
para o senhor.”
Uma carta: a última que recebi foi do administrador da biblioteca
de Rouen no último mês de maio. A patroa me leva até seu
escritório; estende-me um envelope amarelo comprido e grosso:
Anny me escreveu. Há cinco anos não tinha notícias dela. A carta foi
me procurar em meu antigo domicílio de Paris; a data do carimbo é
1º de fevereiro.
Saio; estou com o envelope na mão, não me atrevo a abri-lo;
Anny não mudou seu papel de cartas; pergunto-me se continua a
comprá-lo na pequena papelaria de Piccadilly. Imagino que
conserva o mesmo penteado, os bastos cabelos louros que não
queria cortar. Deve lutar pacientemente diante dos espelhos para
salvar seu rosto: não se trata de vaidade nem de medo de
envelhecer; ela deseja se manter como é, exatamente como é.
Talvez fosse isso o que eu preferia nela: essa fidelidade intensa e
severa ao menor traço de sua imagem.
A letra firme do endereço, escrita com tinta roxa (ela também
não mudou de tinta), ainda brilha um pouco.
Sorrio: claro que não, claro que Anny não escreveu “meu querido
Antoine”.
Há seis anos — acabávamos de nos separar de comum acordo
— decidi partir para Tóquio. Escrevi-lhe um bilhete. Já não podia
chamá-la de “meu amor querido”; comecei, muito inocentemente,
por “minha querida Anny”.
“Admira-me o seu desembaraço” — respondeu-me ela —;
“nunca fui e não sou sua querida Anny. E quanto a você, peço-lhe
que acredite que não é meu querido Antoine. Se não sabe como me
chamar, seria melhor que não me chamasse de nada”.
Pego sua carta em minha carteira. Ela não escreveu “meu
querido Antoine”. No fim da carta não há também nenhuma fórmula
de cortesia: “Preciso vê-lo. Anny.” Nada que possa me informar
sobre seus sentimentos. Não posso me queixar: reconheço nisso
seu amor pelo perfeito. Ela sempre queria realizar “momentos
perfeitos”. Se o instante não se prestava para isso, se
desinteressava de tudo, a vida desaparecia de seus olhos, ela se
arrastava preguiçosamente como uma meninona na idade ingrata.
Ou então provocava uma discussão:
“Você se assoa como um burguês, solenemente, e tosse em seu
lenço com satisfação.”
Era preciso não responder, era preciso esperar: de repente, a
algum sinal que me escapava, ela estremecia, endurecia suas belas
feições lânguidas e começava seu trabalho de formiga. Tinha uma
magia imperiosa e encantadora; cantarolava entre dentes olhando
para todos os lados, depois se endireitava com um sorriso, vinha me
sacudir os ombros, e, durante alguns instantes, parecia estar dando
ordens aos objetos que a rodeavam. Explicava-me, em voz baixa e
rápida, o que esperava de mim.
“Escute, você está disposto a fazer um esforço, não é? Foi tão
tolo da última vez. Vê como esse momento poderia ser belo? Olhe o
céu, olhe a cor do sol no tapete. Botei justamente o vestido verde e
não estou pintada, estou pálida. Chegue para trás, vá se sentar na
sombra; entende o que tem que fazer? Então? Como você é tolo!
Fale comigo.”
Eu sentia que o êxito do que se empreendia estava em minhas
mãos: o instante tinha um sentido obscuro que era preciso elucidar
e completar: determinados gestos tinham que ser feitos,
determinadas palavras pronunciadas: o peso de minha
responsabilidade me esmagava, eu arregalava os olhos e não via
nada, debatia-me em meio aos ritos que Anny inventava na hora e
esgarçava-os com meus grandes braços como teias de aranha.
Nesses momentos ela me odiava.
Irei vê-la certamente. Estimo-a e ainda gosto dela do fundo do
coração. Desejo que outro tenha tido mais sorte e mais habilidade
no jogo dos momentos perfeitos.
“Seus malditos cabelos estragam tudo”, dizia ela. “Que se pode
fazer com um homem ruivo?”
Ela sorria. Perdi primeiro a lembrança de seus olhos, depois a do
seu corpo esguio. Guardei, o mais que pude, seu sorriso, e
finalmente, há três anos, perdi-o também. Ainda agora,
bruscamente, no que pegava a carta das mãos da patroa, ele
retornou; julguei ver Anny sorrindo. Tento lembrá-lo novamente:
preciso sentir toda a ternura que Anny me inspira; essa ternura está
presente, está bem perto, pedindo para nascer. Mas o sorriso não
retorna: terminou. Permaneço vazio e seco.
Entrou um homem, friorento.
— Bom dia a todos.
Senta-se sem tirar o sobretudo esverdeado. Esfrega as mãos
compridas entrelaçando os dedos.
— O que vou lhe servir?
Ele estremeceu, os olhos inquietos.
— Hem? Traga-me um Byrrh com água.
A empregada nem se mexe. Seu rosto no espelho parece dormir.
Na verdade, os olhos estão abertos, mas são apenas duas fendas.
Ela é assim, não tem pressa em servir os fregueses, fica sempre um
momento como que abstraída, pensando no que pediram. Deve
estar pensando na garrafa que vai pegar em cima do balcão, no
rótulo branco com letras vermelhas, no espesso xarope preto que
vai servir: é um pouco como se ela própria bebesse.
Enfio a carta de Anny em minha carteira: ela me deu o que
podia; não posso remontar à mulher que a teve nas mãos, dobrou-a,
colocou-a no envelope. Será possível pensar em alguém no
passado? Enquanto nos amamos, não permitimos que o mais ínfimo
de nossos instantes, a mais leve de nossas dores se desligassem
de nós e ficassem para trás. Os sons, os odores, os matizes do dia,
até os pensamentos que não nos dissemos, tudo isso nos
acompanhava e tudo permanecia vivo: não cessávamos de
desfrutá-los ou de sofrer por eles no presente. Nenhuma lembrança;
um amor implacável e tórrido, sem sombras, sem recuo, sem
refúgio. Três anos presentes ao mesmo tempo. Foi por isso que nos
separamos: já não tínhamos forças suficientes para suportar esse
fardo. E então, quando Anny me deixou, de repente, de uma só vez,
os três anos, como um todo, desmoronaram no passado. Sequer
sofri: me sentia vazio. Depois o tempo recomeçou a passar e o
vazio aumentou. A seguir, em Saigon, quando decidi regressar à
França, tudo que ainda permanecia — rostos estranhos, praças,
cais à beira de longos rios —, tudo se aniquilou. E aí está: meu
passado é apenas um enorme buraco. Meu presente: essa
empregada de corpete preto entregue a seus devaneios perto do
balcão, esse homenzinho. Parece-me que tudo o que sei de minha
vida foi aprendido nos livros. Os palácios de Benares, o terraço do
Rei Leproso, os templos de Java com suas grandes escadarias
quebradas, refletiram-se um instante em meus olhos, mas ficaram lá
longe, onde estavam. O bonde que passa em frente ao hotel
Printania não leva consigo à noite, no vidro de suas janelas, o
reflexo do anúncio em néon; inflama-se um instante e se afasta com
as vidraças negras.
Esse homem não para de me olhar: me incomoda. Faz-se de
muito importante para o tamanho que tem. A empregada se decide
finalmente a servi-lo. Ergue preguiçosamente seu grande braço
escuro, pega a garrafa e a traz com um copo.
— Aqui está, senhor.
— Sr. Achille — diz ele com civilidade.
Ela serve sem responder; de repente ele retira rápido o dedo do
nariz e espalma as duas mãos na mesa. Inclina a cabeça para trás e
seus olhos brilham. Diz com voz fria:
— Pobre moça.
A empregada estremece e eu também: há nele uma expressão
indefinível, talvez de espanto, como se fosse outra pessoa que
tivesse acabado de falar. Os três estamos constrangidos.
A empregada gorda é a primeira a recuperar a presença de
espírito: não tem imaginação. Olha o sr. Achille de alto a baixo, com
dignidade: ela sabe perfeitamente que com uma só mão poderia
arrancá-lo de seu lugar e botá-lo para fora.
— E por que seria eu uma pobre moça?
Ele hesita. Olha para ela, embaraçado, depois ri. Seu rosto se
franze em mil rugas, ele faz pequenos gestos com os punhos.
— Isso a ofendeu. É algo que se diz por dizer. Diz-se: pobre
moça. Não é por mal.
Mas ela lhe vira as costas e vai para trás do balcão: está
realmente ofendida. Ele ri novamente.
— Ha, ha! Saiu sem querer. Está zangada? Ela está zangada —
diz, dirigindo-se vagamente a mim.
Desvio a cabeça. O homem ergue um pouco o copo, mas não se
decide a beber: pisca os olhos com ar surpreso e intimidado; parece
que está procurando se lembrar de algo. A empregada sentou-se na
caixa; pega uma costura. Tudo retornou ao silêncio: mas já não é o
mesmo silêncio. Começou a chover: a água bate de leve nas
vidraças; se ainda houver crianças fantasiadas nas ruas, a chuva vai
amolecer e borrar suas máscaras de papelão.
A empregada acende a luz; são somente duas horas, mas o céu
está inteiramente escuro e já não há claridade suficiente para
costurar. Suave luz; as pessoas estão em casa, certamente também
acenderam as suas. Leem, olham o céu através da janela. Para
eles... é outra coisa. Envelheceram diferentemente. Vivem no meio
de legados, de presentes, e cada um de seus móveis é uma
recordação. Relógios de sala, medalhas, retratos, conchas, pesos
de papel, biombos, xales. Têm armários cheios de garrafas, de
tecidos, de velhas roupas, de jornais; guardaram tudo. O passado é
um luxo de proprietários.
Onde poderia eu conservar o meu? Não se pode colocar o
passado no bolso; preciso ter uma casa, arrumá-lo nela. Só possuo
meu corpo; um homem inteiramente sozinho, só com seu corpo, não
pode reter as lembranças; elas passam através dele. Não deveria
me queixar: tudo o que quis foi ser livre.
O homenzinho se agita e suspira. Está enroscado em seu
casaco, mas de quando em quando se endireita e assume um ar
altivo. Tampouco tem ele um passado. Procurando bem, certamente
se encontraria, em casa de primos que já não o frequentam, uma
fotografa dele num casamento, com colarinho de pontas viradas,
camisa de peitilho e bigodes esticados de rapaz. De mim creio que
não resta nem isso.
Ele ainda olha para mim. Dessa vez vai falar comigo, me sinto
enrijecer. Não é simpatia o que há entre nós: somos parecidos, só
isso. Ele está só como eu, porém mais enterrado na sua solidão do
que eu. Deve estar à espera de sua Náusea ou algo no gênero. Há
agora, portanto, pessoas que me reconhecem, que pensam, depois
que me encararam: “Esse é dos nossos.” E então? O que ele quer?
Deve saber que nada podemos fazer um pelo outro. As famílias
estão em suas casas, em meio às suas recordações. E nós aqui,
dois destroços sem memória. Se ele se levantasse de repente, se
me dirigisse a palavra, eu daria um pulo.
A porta se abre com estrépito: é o dr. Rogé.
— Bom dia a todos.
Entra, arisco e desconfiado, vacilando um pouco sobre as pernas
compridas que mal conseguem sustentar seu torso. Vejo-o com
frequência, aos domingos, na Brasserie Vézelize, mas ele não me
conhece. Tem o físico dos antigos instrutores de Joinville: braços
que parecem coxas, 110 centímetros de tórax, e não se aguenta em
pé.
— Jeanne! Jeanne!
Caminha a passos miúdos e rápidos até o cabide para pendurar
o chapelão de feltro. A empregada dobrou sua costura e vem sem
pressa, dormindo, tirar o doutor de seu impermeável.
— O que vai tomar, doutor?
Ele a examina gravemente. Eis o que chamo um belo rosto de
homem. Gasto, vincado pela vida e pelas paixões. Mas o doutor
compreendeu a vida, dominou suas paixões.
— Não tenho a menor ideia do que vou querer — diz com voz
profunda. Deixou-se cair no banco em frente a mim; enxuga a testa.
Quando já não está apoiado em suas pernas, sente-se mais à
vontade. Seus olhos intimidam, uns grandes olhos pretos e
imperiosos.
— Vai ser... Vai ser, vai ser, vai ser... um Calvados, minha filha.
A empregada, sem fazer um movimento, contempla aquele
enorme rosto enrugado. Está pensativa. O homenzinho ergueu a
cabeça com um sorriso aliviado. E é verdade: esse colosso nos
libertou. Havia aqui algo de horrível que ia se apoderar de nós.
Respiro com força: agora estamos entre homens.
— Então, esse Calvados vem ou não vem?
A empregada estremece e vai embora. Ele estendeu os braços
grandes, agarrando a mesa pelas bordas. O sr. Achille está todo
contente; ele gostaria de chamar a atenção do doutor. Mas, por mais
que balance as pernas e pule no banco, é tão miúdo que não faz
barulho.
A empregada traz o Calvados. Com um movimento de cabeça
mostra ao doutor seu vizinho. O dr. Rogé gira o busto com lentidão:
não pode mexer o pescoço.
— Ora vejam, é você, velho imundo — grita ele. — Então não
morreu?
Dirige-se à empregada:
— Recebe isso em sua casa?
Olha para o homenzinho com seus olhos ferozes. Um olhar
direto, que põe as coisas em seu devido lugar. Explica:
— Um velho maluco, é isso que ele é.
Nem sequer se dá ao trabalho de mostrar que está brincando.
Sabe que o velho maluco não se zangará, que vai sorrir. E é o que
ocorre: o outro sorri com humildade. Um velho maluco: ele se
descontrai, se sente protegido contra si próprio; nada lhe acontecerá
hoje. O curioso é que também eu me tranquilizo. Um velho maluco:
então era isso, era só isso.
O doutor ri, me lança um olhar insinuante e cúmplice: certamente
por causa de meu tamanho — e também porque estou com uma
camisa limpa — consente em me associar à sua brincadeira.
Não rio, não respondo às suas investidas: então, sem deixar de
rir, ele dardeja sobre mim o fogo terrível de suas pupilas.
Examinamo-nos em silêncio durante alguns segundos; ele me olha
de alto a baixo, se fazendo de míope, me classifica. Na categoria
dos malucos? Na dos vagabundos?
Apesar de tudo, é ele quem desvia a cabeça: um pequeno
fraquejo diante de um sujeito sozinho, sem importância social, nem
merece ser comentado, se esquece logo. Enrola um cigarro e o
acende, depois permanece imóvel com os olhos duros e fixos, como
fazem os velhos.
Que belas rugas! Ele as tem todas: os riscos transversais na
testa, os pés de galinha, os vincos amargos de cada lado da boca,
sem mencionar os cordões amarelos que pendem sob seu queixo.
Eis um homem de sorte: mesmo vendo-o a distância, dizemo-nos
que deve ter sofrido e que é alguém que viveu. Aliás, merece o rosto
que tem, porque nem por um instante se iludiu quanto à maneira de
reter e utilizar seu passado: simplesmente empalhou-o, converteu-o
em experiência para uso das mulheres e dos jovens.
O sr. Achille está feliz como certamente não deve ter se sentido
há muito tempo. Está boquiaberto de admiração; bebe seu Byrrh em
pequenos goles, inflando as bochechas. Muito bem, o doutor soube
levá-lo. Não seria o doutor que se deixaria fascinar por um velho
maluco, a ponto de ter sua crise; um bom empurrão, algumas
palavras bruscas e fustigantes: é disso que precisam. O doutor tem
experiência. É um profissional da experiência: os médicos, os
padres, os magistrados e os oficiais conhecem o homem como se o
tivessem feito.
Sinto vergonha pelo sr. Achille. Somos da mesma espécie,
deveríamos nos unir contra eles. Mas ele me abandonou, passou
para o lado deles: acredita honestamente na Experiência. Não na
sua, nem na minha. Na do dr. Rogé. Ainda agora o sr. Achille se
sentia estranho, tinha a impressão de estar inteiramente sozinho;
agora sabe que houve outros como ele, muitos outros: o dr. Rogé os
conheceu, poderia contar ao sr. Achille a história de cada um deles
e lhe dizer como terminou. O sr. Achille é simplesmente um caso —
e que se deixa reduzir com facilidade a algumas noções comuns.
Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo
dos importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas
vidas num torpor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente,
por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros
homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em
quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem
compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta
começou e terminou fora de sua vista; longas formas obscuras,
acontecimentos que vinham de longe roçaram-nos rapidamente e,
quando eles quiseram olhar, tudo já terminara. E depois, por volta
dos quarenta anos, batizam suas pequenas obstinações e alguns
provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer de
distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis
que saem anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis
na fenda da direita e recebem-se preciosos conselhos que grudam
nos dentes como caramelos pegajosos. Também eu, por esse
mesmo processo, poderia ser convidado pelas pessoas e estas se
diriam, entre elas, que sou um grande viajante diante do Eterno.
Sim: os muçulmanos mijam de cócoras; as parteiras hindus utilizam,
à guisa de ergotina, vidro moído na bosta de vaca; em Bornéu,
quando uma moça menstrua, passa três dias e três noites em cima
do telhado da sua casa. Vi em Veneza enterros em gôndola, em
Sevilha as festas da Semana Santa, vi a Paixão de Oberammergau.
Naturalmente tudo isso é apenas uma pequena amostra de meu
saber: poderia me recostar numa cadeira e começar entretidamente:
— Conhece Jihlava, prezada senhora? É uma curiosa
cidadezinha da Morávia onde passei uma temporada em 1924...
E o presidente do tribunal que presenciou tantos casos tomaria a
palavra no fim de minha história:
— Como isso é verdadeiro, caro senhor, como é humano! Vi um
caso semelhante no início de minha carreira. Foi em 1902. Eu era
juiz-substituto em Limoges...
Mas sucede que me aborreceram demais com esse tipo de coisa
em minha juventude. No entanto eu não pertencia a uma família de
profissionais. Mas existem também os amadores. São os
secretários, os empregados de escritórios, os comerciantes, os que
ouvem os outros no café: sentem-se inflados, ao se aproximar dos
quarenta anos, por uma experiência a que não podem dar vazão.
Felizmente fizeram filhos e obrigam-nos a consumi-la ali mesmo.
Gostariam de nos fazer crer que o passado deles não se perdeu,
que suas recordações se condensaram, convertendo-se
suavemente em Sabedoria. Cômodo passado! Passado de bolso,
livreto dourado cheio de belas máximas. “Acredite-me, estou falando
por experiência, tudo o que sei foi a vida que me ensinou.” Teria a
Vida se encarregado de pensar por eles? Explicam o novo pelo
antigo — e o antigo, eles o explicaram pelos acontecimentos mais
antigos ainda, como esses historiadores que fazem de Lenin um
Robespierre russo e de Robespierre um Cromwell francês: no fim
das contas, nunca entenderam nada de nada... Por trás de sua
importância adivinha-se uma preguiça melancólica: veem desfilar
aparências, bocejam, acham que não há nada de novo sob o sol.
“Um velho maluco” — e o dr. Rogé pensava vagamente em outros
velhos malucos, sem se lembrar de nenhum em particular. Agora,
nada do que o sr. Achille fizesse nos surpreenderia: já que é um
velho maluco!
Não é um velho maluco: tem medo. De que tem medo? Quando
queremos compreender alguma coisa, colocamo-nos diante dela,
sozinhos, sem auxílio; todo o passado do mundo de nada adiantaria.
E depois ela desaparece e o que pudemos compreender
desaparece com ela.
As ideias gerais são mais agradáveis. Depois os profissionais, e
até os amadores, sempre acabam tendo razão. Sua sabedoria
recomenda que chamemos o mínimo de atenção, que vivamos o
mínimo possível, que nos deixemos esquecer. Suas melhores
histórias se referem a imprudentes, a tipos originais que foram
castigados. Pois muito bem: é assim que as coisas se passam e
ninguém pode negá-lo. Talvez o sr. Achille não tenha a consciência
muito tranquila. Talvez diga a si mesmo que não estaria como está
se tivesse ouvido os conselhos de seu pai e de sua irmã mais velha.
O doutor tem o direito de falar: não falhou na vida; soube se tornar
útil. Sobreleva-se, calmo e poderoso, a esse pequeno destroço; é
um rochedo.
O dr. Rogé bebeu seu Calvados. Seu corpo grande relaxa e suas
pálpebras caem pesadamente. Pela primeira vez vejo seu rosto sem
os olhos: dir-se-ia uma máscara de papelão como as que se
vendem hoje nas lojas. Suas faces têm uma terrível cor rosada... A
verdade me surge bruscamente: esse homem vai morrer dentro em
breve. Certamente sabe disso, basta que se tenha olhado num
espelho: a cada dia se parece um pouco mais com o cadáver que se
tornará. Eis o que é a experiência deles, eis por que disse a mim
mesmo, tantas vezes, que ela cheira a morte: trata-se de sua última
defesa. O doutor bem gostaria de acreditar nela, gostaria de
esconder de si mesmo a realidade insustentável: que ele está
sozinho, sem cabedal, sem passado, com uma inteligência que se
embota, um corpo que se desfaz. Então ele construiu muito bem,
arrumou muito bem, acolchoou muito bem seu pequeno delírio
compensatório: diz a si mesmo que vai progredindo. Tem lapsos de
pensamento, momentos em que sua cabeça fica oca? É que seu
julgamento já não tem a precipitação da juventude. Já não
compreende o que lê nos livros? É que está tão afastado dos livros
agora. Já não pode fazer amor? Mas fez amor. Ter feito amor é
muito melhor do que fazê-lo ainda: com a distância, julga-se,
compara-se e reflete-se. E quanto a esse terrível rosto de cadáver,
para poder suportar sua imagem nos espelhos, esforça-se para
acreditar que as lições da experiência estão gravadas nele.
O doutor vira um pouco a cabeça. Suas pálpebras se
entreabrem, ele me olha com olhos avermelhados de sono. Sorrio-
lhe. Gostaria que esse sorriso lhe revelasse tudo o que tenta
esconder de si mesmo. Ele despertaria se se pudesse dizer: “Eis aí
alguém que sabe que vou morrer!” Mas suas pálpebras tornam a
baixar: ele adormece. Vou embora, deixo o sr. Achille a velar o sono
do doutor.
A chuva parou, está um ar agradável, o céu faz girar lentamente
belas imagens negras: é mais do que o suficiente para o quadro de
um momento perfeito; para refletir essas imagens, Anny faria com
que surgissem em nossos corações pequenas marés sombrias. Mas
não sei aproveitar a ocasião: vou ao acaso, vazio e calmo, sob esse
céu inutilizado.
Quarta-feira
É preciso não sentir medo.
Quinta-feira
Escrevi quatro páginas. A seguir um longo momento de felicidade.
Não refletir muito sobre o valor da História. Corre-se o risco de
perder o gosto por ela. Não esquecer que o sr. de Rollebon
representa hoje em dia a única justificativa de minha existência.
Daqui a oito dias vou ver Anny.
Sexta-feira
O nevoeiro está tão denso no bulevar da Redoute que achei
prudente caminhar rente aos muros do quartel; à minha direita, os
faróis dos automóveis projetavam uma luz molhada e era impossível
saber onde terminava a calçada. Havia gente à minha volta; ouvia o
ruído de seus passos, ou às vezes o leve zumbido de suas palavras:
mas não via ninguém. Uma vez um rosto de mulher se delineou à
altura de meu ombro, mas logo a bruma o engoliu; outra vez alguém
me roçou arfando muito. Eu não sabia para onde ia, estava muito
absorto: era preciso avançar com precaução, tatear o chão com a
ponta do pé e até estender as mãos para a frente. Esse exercício,
aliás, não me proporcionava prazer algum. No entanto não pensava
em voltar para casa, estava como que seduzido. Finalmente, depois
de uma meia hora vislumbrei ao longe uma névoa azulada.
Guiando-me por ela, alcancei logo a borda de um grande clarão: no
centro deste, traspassando a bruma com suas luzes, reconheci o
café Mably.
O café Mably tem 12 lâmpadas elétricas; mas só duas estavam
acesas, uma sobre a caixa, outra na luminária do teto. O único
garçom me empurrou à força para um canto escuro.
— Aqui não, senhor, estou limpando.
Estava de casaco, sem colete nem colarinho postiço, com uma
camisa branca de listras roxas. Bocejava e me olhava com ar
aborrecido, passando os dedos pelo cabelo.
— Um café e croissants.
Esfregou os olhos sem responder e se afastou. Eu estava
mergulhado até os olhos na sombra, uma desagradável sombra
glacial. O radiador certamente não estava ligado.
Não estava só. Em frente a mim estava sentada uma mulher de
tez cor de cera que não parava de agitar as mãos, ora para alisar a
blusa, ora para compor o chapéu preto. Estava acompanhada de um
louro alto que comia um brioche sem dizer palavra. O silêncio me
pareceu pesado. Sentia vontade de acender meu cachimbo, mas
me seria desagradável chamar a atenção deles riscando um fósforo.
O telefone tocou. As mãos se detiveram: ficaram agarradas na
blusa. O garçom não se apressava. Acabou de varrer calmamente
antes de levantar o fone. “Alô, é o sr. Georges? Bom dia, sr.
Georges... Sim, sr. Georges... O patrão não está aqui... Sim, já devia
ter descido... Ah! Com esse nevoeiro... Normalmente desce por
volta das oito... Sim, sr. Georges, darei o recado. Até logo, sr.
Georges.”
O nevoeiro se adensava sobre os vidros como uma pesada
cortina de veludo cinza. Um rosto colou-se por um instante na
vidraça e desapareceu.
A mulher disse com voz queixosa:
— Amarre meu sapato.
— Não está desamarrado — disse o homem sem olhar. Ela se
enervou. Suas mãos percorriam sua blusa e seu pescoço como se
fossem grandes aranhas.
— Está sim, amarre meu sapato.
Ele se abaixou com ar irritado e lhe tocou levemente no pé por
baixo da mesa:
— Pronto.
Ela sorriu satisfeita. O homem chamou o garçom.
— Garçom, quanto é?
— Quantos brioches? — disse o garçom.
Eu baixara os olhos para não parecer que estava observando-os.
Após alguns instantes ouvi rangidos e vi surgir a fímbria de uma saia
e duas botinhas maculadas de lama seca. Seguiram-se as do
homem, envernizadas e bicudas. Avançaram para mim, se
imobilizaram e deram meia-volta: ele estava colocando o sobretudo.
Nesse momento, uma mão começou a descer ao longo da saia,
uma mão na ponta de um braço rígido; hesitou um pouco, roçava a
saia com as unhas.
— Está pronta? — perguntou o homem.
A mão se abriu, veio tocar uma grande estrela de lama na
botinha direita, depois desapareceu.
— Ufa! — disse o homem.
Tinha pegado uma valise que estava perto do cabide de pé.
Saíram, vi-os penetrar no nevoeiro.
— São artistas — diz o garçom, trazendo meu café. — Foram
eles que fizeram o número de entreato no Cine Palace. A mulher
venda os olhos e lê o nome e a idade dos espectadores. Vão
embora hoje, porque é sexta-feira e os programas mudam.
Foi buscar um prato de croissants na mesa que os artistas
tinham ocupado.
— Não é preciso.
Não tinha a menor vontade de comer aqueles croissants.
— Tenho que apagar a luz. Duas lâmpadas para um único
freguês às nove da manhã: o patrão brigaria comigo.
A penumbra invadiu o café. Uma leve claridade, manchada de
cinza e marrom, descia agora dos vidros altos.
— Gostaria de falar com o sr. Fasquelle.
Não vira entrar aquela velha. Uma lufada de ar gelado me
arrepiou.
— O sr. Fasquelle ainda não desceu.
— Venho da parte da sra. Florent — retorquiu ela. — A sra.
Florent não está passando bem. Não virá hoje.
A sra. Florent é a empregada da caixa, a ruiva.
— Esse tempo é ruim para a barriga dela — diz a velha.
O garçom tomou um ar importante:
— É o nevoeiro — responde —, é como o sr. Fasquelle; espanta-
me que não tenha descido. Telefonaram para ele. Normalmente
desce às oito horas.
A velha olha maquinalmente para o teto.
— Está lá em cima?
— Sim, seu quarto é lá.
A velha diz com voz arrastada, como se falasse consigo mesma:
— E se tivesse morrido...
— Essa agora — o rosto do garçom exprimiu a mais viva
indignação. — Essa agora, muito obrigado!
E se tivesse morrido... Esse pensamento me ocorrera. É bem o
tipo de ideia que o tempo de nevoeiro estimula.
A velha se foi. Deveria tê-la imitado: estava frio e escuro. O
nevoeiro infiltrava-se por debaixo da porta, ia subir lentamente e
afogar tudo. Na biblioteca municipal eu teria encontrado luz e calor.
Novamente um rosto gruda no vidro; estava fazendo caretas.
— Espere aí — diz o garçom furioso e sai correndo.
O rosto desapareceu, fiquei sozinho. Arrependi-me
amargamente de não ter ficado em meu quarto. Agora a bruma
certamente o invadiu; sentiria medo de voltar para lá.
Por trás da caixa, no escuro, algo estalou. Um ruído que vinha
da escada particular; teria o patrão descido finalmente? Mas não:
não apareceu ninguém; os degraus estalavam por si sós. O sr.
Fasquelle ainda dormia. Ou então estava morto por cima de minha
cabeça. Encontrado morto na cama, numa manhã de neblina.
Subtítulo: No café os fregueses tomavam suas bebidas sem
suspeitar de nada...
Mas estaria ainda na cama? Não teria caído, levando consigo os
lençóis e batendo com a cabeça no chão?
Conheço muito bem o sr. Fasquelle; algumas vezes perguntou
por minha saúde. É um gorducho alegre, com uma barba muito
cuidada: se morreu, só pode ter sido de um ataque. Estará roxo,
com a língua de fora. A barba eriçada; o pescoço violáceo sob os
pelos encrespados.
A escada particular se perdia na escuridão. Mal se distinguia o
corrimão. Era preciso atravessar essa escuridão. A escada rangeria.
Lá em cima encontraria a porta do quarto...
O corpo ali está, por cima de minha cabeça. Acenderia a luz:
tocaria aquela pele morna, para ver. Não aguento mais, levanto-me.
Se o garçom me pega na escada, direi que ouvi um barulho.
O garçom retornou bruscamente, esbaforido.
— Sim, senhor! — gritou.
Que imbecil! Dirige-se a mim.
— São dois francos.
— Ouvi barulho lá em cima — digo.
— Não é tão cedo assim.
— Sim, mas acho que há algo errado: como se fosse um estertor
e depois um ruído surdo.
Nessa sala escura, com o nevoeiro por trás das janelas, aquilo
parecia muito natural. Nunca esquecerei seu olhar.
— Deveria subir para ver — acrescentei maldosamente.
— Ah, não — disse ele.
E depois:
— Ele pode me repreender. Que horas são?
— Dez horas.
— Se ele não tiver descido, irei lá às dez e meia.
Fiz menção de ir embora.
— O senhor já vai? Não fica mais um pouco?
— Não.
— Era realmente um estertor?
— Não sei — digo-lhe já saindo —, talvez tenha sido imaginação
minha.
O nevoeiro se dissipara um pouco. Apressava-me em chegar à
rua Tournebride: tinha necessidade de suas luzes. Foi uma
decepção: havia luz realmente, banhando as vitrines das lojas. Mas
já não era uma luz alegre: estava tudo branco por causa do nevoeiro
e aquela luz nos caía sobre os ombros como uma ducha.
Muita gente, sobretudo mulheres: empregadas, faxineiras,
patroas também, daquelas que dizem: “Eu mesma faço as compras,
é mais seguro.” Farejavam um pouco as vitrines e acabavam
entrando.
Parei em frente à Charcuteria Julien. De quando em quando, via
através do vidro uma mão que apontava para as linguiças e os pés
de porco trufados. Então uma moça loura e corpulenta se inclinava,
o peito descoberto, e pegava com seus dedos o pedaço de carne
morta. Em seu quarto, a cinco minutos dali, o sr. Fasquelle estava
morto.
Procurava ao meu redor um apoio sólido, uma defesa contra os
meus pensamentos. Não havia nenhuma: pouco a pouco o nevoeiro
se dissolvera, mas alguma coisa de inquietante permanecia na rua.
Talvez não se tratasse de uma verdadeira ameaça: era algo
apagado, transparente. Mas era exatamente isso que acabava
dando medo. Apoiei minha testa na vitrine. Vi sobre a maionese de
um ovo à russa uma gota de um vermelho escuro: era sangue. O
vermelho sobre o amarelo me embrulhava o estômago.
Bruscamente tive uma visão: alguém tinha caído de cara e
sangrava sobre os pratos. O ovo rolara no sangue; a rodela de
tomate que o coroava se soltara, caíra, vermelho sobre vermelho. A
maionese escorrera um pouco: um charco de creme que dividia o
rego de sangue em dois braços.
— É tolo demais, tenho que reagir. Vou trabalhar na biblioteca.
Trabalhar? Bem sabia que não escreveria uma linha. Mais um
dia perdido. Ao atravessar o jardim público vi uma grande pelerine
azul, imóvel, no banco em que me sento geralmente. Aí está um que
não sente frio.
Quando entrei na sala de leitura, o Autodidata estava saindo.
Precipitou-se sobre mim.
— Tenho que lhe agradecer, senhor. Suas fotografias me
proporcionaram horas inesquecíveis.
Ao vê-lo, tive um momento de esperança: a dois talvez fosse
mais fácil atravessar o dia. Mas com o Autodidata só aparentemente
se está a dois.
Ele bateu num in-quarto. Era uma história das religiões.
— Senhor, ninguém estava mais qualificado do que Nouçapié
para tentar essa vasta síntese. Isso é verdade?
Parecia cansado e suas mãos tremiam:
— O senhor não está com bom aspecto — disse-lhe.
— Ah, senhor, não é de admirar! É que me aconteceu uma coisa
abominável.
O guarda vinha em nossa direção: um corso baixinho, irascível,
com bigodes de tambor-mor. Passeia horas inteiras entre as mesas,
batendo os calcanhares. No inverno cospe nos lenços que depois
põe para secar no calefator.
O Autodidata se aproximou tanto que sentia em meu rosto o
sopro de sua respiração:
— Não lhe direi nada diante desse homem — disse em tom
confidencial. — Se o senhor quisesse...
— O quê?
Enrubesceu e suas ancas ondularam graciosamente:
— Ah, senhor! Estou me precipitando. Aceitaria almoçar comigo
na quarta-feira?
— Com muito prazer.
Tinha tanta vontade de almoçar com ele quanto de me enforcar.
— Fico muito feliz — disse o Autodidata.
Acrescentou rapidamente:
— Irei buscá-lo se quiser.
E desapareceu, certamente com medo de que eu mudasse de
opinião se me desse tempo.
Eram onze e meia. Trabalhei até quinze para as duas. Trabalho
medíocre: estava com um livro à minha frente, mas meus
pensamentos voltavam incessantemente ao café Mably. O sr.
Fasquelle já teria descido agora? No fundo, não estava muito
convencido de sua morte e era precisamente isso que me irritava.
Era uma ideia flutuante da qual não podia nem me convencer nem
me libertar. Os sapatos do corso rangiam no assoalho. Várias vezes
ele veio se postar à minha frente, com ar de querer falar comigo.
Mas reconsiderava e se afastava.
Por volta de uma hora os últimos leitores foram embora. Eu não
estava com fome; sobretudo, não queria ir. Trabalhei ainda um
pouco; depois tive um sobressalto: sentia-me sepultado no silêncio.
Ergui a cabeça: estava sozinho. O corso certamente descera
para ir ter com sua mulher, que é porteira da biblioteca; eu ansiava
pelo ruído de seus passos. Ouvi apenas o do carvão caindo no
calefator. O nevoeiro invadira a sala: não o verdadeiro nevoeiro que
se dissipara fazia muito — o outro, o que ainda enchia as ruas, o
que saía das paredes, do calçamento. Uma espécie de
inconsistência das coisas. Os livros continuavam ali, arrumados nas
prateleiras por ordem alfabética, com suas lombadas pretas ou
marrons e suas etiquetas UP lf. 7996 (Uso público — literatura
francesa) ou UP cn (Uso público — ciências naturais). Mas... como
explicar? Normalmente, potentes e maciças, junto com o calefator,
as lâmpadas verdes, as grandes janelas, as escadas — tudo isso
forma um dique para conter o futuro. Enquanto permanecermos
entre essas paredes, o que ocorrer ocorrerá à direita ou à esquerda
do calefator. Se o próprio são Dionísio entrasse, trazendo sua chave
nas mãos, teria que entrar pela direita, caminhar entre as prateleiras
destinadas à literatura francesa e a mesa reservada às leitoras. E se
não tocar no chão, se flutuar a vinte centímetros do assoalho, seu
pescoço ensanguentado chegará exatamente à altura da terceira
prateleira de livros. Assim, esses objetos servem pelo menos para
fixar os limites do verossímil.
Pois bem, hoje já não fixavam nada: parecia que até sua
existência era discutível, que tinham a maior dificuldade em passar
de um instante para o outro. Apertei com força em minhas mãos o
volume que estava lendo: mas as sensações mais violentas
estavam amortecidas. Nada parecia verdadeiro; eu me sentia
rodeado por um cenário de papelão que podia ser bruscamente
transplantado. O mundo esperava, retendo a respiração,
encolhendo — aguardava sua crise, sua Náusea, como o sr. Achille
outro dia.
Levantei-me. Já não conseguia ficar quieto em meio àquelas
coisas desvigoradas. Fui dar uma olhada pela janela para o crânio
de Impétraz. Murmurei: Tudo pode se produzir, tudo pode acontecer.
Evidentemente, não o gênero de horror que os homens inventaram;
Impétraz não ia se pôr a dançar em seu soclo: seria outra coisa.
Olhei com terror para aqueles seres instáveis que, dentro de
uma hora, dentro de um minuto, talvez desabassem: isso mesmo;
eu estava ali, vivia entre aqueles livros cheios de conhecimentos,
alguns dos quais descreviam as formas imutáveis das espécies
animais, outros explicavam que a quantidade de energia se
conserva integralmente no universo; estava ali, de pé em frente a
uma janela cujas vidraças tinham um índice de refração
determinado. Mas que barreiras frágeis! Creio que é por preguiça
que o mundo parece o mesmo de um dia para o outro. Hoje parecia
querer mudar. E então tudo, tudo podia acontecer.
Não tenho tempo a perder: na origem desse mal-estar há a
história do café Mably. Tenho que voltar lá, tenho que ver o sr.
Fasquelle vivo; se necessário, tenho que tocar em sua barba ou em
suas mãos. Então talvez me liberte.
Peguei meu sobretudo às pressas e joguei-o sobre os ombros
sem enfiá-lo; estou fugindo. Ao atravessar o jardim público,
encontrei no mesmo lugar o homenzinho da pelerine; seu rosto era
enorme e lívido, entre duas orelhas escarlates de frio.
O café Mably cintilava ao longe: dessa vez as 12 lâmpadas
deviam estar acesas. Apressei o passo: era preciso acabar com
aquilo. Dei primeiro uma olhadela pela janela envidraçada; a sala
estava deserta. A empregada da caixa não estava lá, tampouco o
garçom — nem o sr. Fasquelle.
Tive que fazer um grande esforço para entrar; não me sentei.
Gritei: “Garçom!” Ninguém respondeu. Uma xícara vazia numa
mesa. Um torrão de açúcar no pires.
— Há alguém aí?
Um sobretudo estava pendurado num gancho. Numa mesinha
revistas estavam empilhadas em caixas de papelão preto. Agucei os
ouvidos para perceber o menor ruído, retendo a respiração. A
escada particular rangeu levemente. Lá fora a sirene de um barco.
Saí andando de costas, sem tirar os olhos da escada.
Bem sei: às duas da tarde são raros os fregueses. O sr.
Fasquelle estava gripado; certamente mandara o garçom em
alguma incumbência — procurar um médico talvez. Sim, mas
acontecia que eu precisava ver o sr. Fasquelle. No começo da rua
Tournebride me voltei, contemplei com repugnância o café cintilante
e deserto. No primeiro andar as persianas estavam baixadas.
Fui tomado de verdadeiro pânico. Já não sabia aonde ia. Corri
ao longo das docas, me enfiei pelas ruas desertas do bairro
Beauvoisis: as casas me viam fugir com seus olhos apagados.
Repetia para mim mesmo com angústia: aonde ir? Aonde ir? Tudo
pode acontecer. De quando em quando, com o coração batendo,
dava meia-volta bruscamente: o que estava acontecendo atrás de
mim? Talvez aquilo começasse às minhas costas e quando eu me
virasse de repente seria tarde demais. Enquanto pudesse fixar os
objetos, nada aconteceria: olhava o máximo possível o calçamento,
as casas, os lampiões de gás; meus olhos iam rapidamente de uns
para outros, para poder surpreendê-los e detê-los no meio de sua
metamorfose. Sua aparência não era inteiramente natural, mas eu
me dizia com força: é um lampião de gás, é uma bica, e tentava,
com a força de meu olhar, reduzi-los a seu aspecto quotidiano. Por
várias vezes encontrei bares em meu caminho: o Café des Bretons,
o Bar de la Marine. Parava, hesitava diante de suas cortinas de tule
cor-de-rosa: talvez aqueles lugares bem fechados tivessem sido
poupados, talvez ainda contivessem uma parcela do mundo de
ontem, isolada, esquecida. Mas teria sido preciso empurrar a porta,
entrar. Não ousava fazê-lo; prosseguia. As portas das casas,
sobretudo, me assustavam. Temia que se abrissem sozinhas.
Acabei andando pelo meio da rua.
Desemboquei bruscamente no cais das Bassins du Nord. Barcos
de pesca, pequenos iates. Apoiei o pé numa argola incrustada numa
pedra. Aqui, longe das casas, longe das portas, me desafogaria por
um momento. Uma rolha boiava sobre a água calma e salpicada de
manchas pretas.
“E debaixo da água? Não pensou no que pode haver debaixo da
água?”
Um animal? Uma grande carapaça meio enterrada na lama?
Doze pares de patas revolvem lentamente o lodo. De quando em
quando o animal se ergue um pouco. No fundo da água. Aproximei-
me, espreitando um remoinho, uma leve ondulação. A rolha
permanecia imóvel entre as manchas pretas.
Nesse momento ouvi vozes. Era tempo. Dei meia-volta e
recomecei a correr.
Alcancei os dois homens que falavam na rua Castiglione. Ao
ruído dos meus passos, estremeceram violentamente e se voltaram
ao mesmo tempo. Vi seus olhos inquietos se dirigindo para mim,
depois para atrás de mim, para ver se vinha alguma outra coisa.
Então estavam como eu, então sentiam medo? Quando passei por
eles, nos olhamos: um pouco mais e nos teríamos falado. Mas de
repente os olhares exprimiram desconfiança: num dia como esse
não se fala com desconhecidos.
Dei por mim na rua Boulibet, sem fôlego. Muito bem, a sorte
estava lançada: retornaria à biblioteca, pegaria um romance, tentaria
ler. Andando junto às grades do jardim público, vislumbrei o
homenzinho da pelerine. Continuava ali, no jardim deserto; o nariz
se tornara tão vermelho quanto as orelhas.
Ia empurrar o portão, mas a expressão de seu rosto me
paralisou: franzia os olhos, um meio sorriso de escárnio, um ar idiota
e meloso. Mas ao mesmo tempo fixava à sua frente qualquer coisa
que eu não via, com um olhar tão duro e de tal intensidade que me
voltei bruscamente.
Em frente a ele, um pé no ar, a boca entreaberta, uma menina de
uns dez anos examinava-o, fascinada, puxando nervosamente seu
fichu e avançando o rosto afilado.
O homenzinho sorria consigo mesmo, como alguém que vai
pregar uma boa peça. De repente se levantou, as mãos nos bolsos
de sua pelerine que quase lhe chegava aos pés. Deu dois passos e
seus olhos se reviraram. Pensei que ia cair. Mas continuava a sorrir,
com ar sonolento.
Subitamente entendi: a pelerine! Queria impedir aquilo. Bastava
que tossisse ou empurrasse o portão. Mas estava fascinado, por
minha vez, pelo rosto da menina. Suas feições estavam retesadas
pelo medo, seu coração devia estar batendo horrivelmente: só que
eu lia também, naquele focinho de rato, algo de potente e de mau.
Não era curiosidade, era antes uma espécie de expectativa segura.
Senti-me impotente: estava do lado de fora, à margem do jardim, à
margem do pequeno drama deles; mas eles estavam pregados um
ao outro pela força obscura de seus desejos, formavam um par.
Contive a respiração, queria ver o que se estamparia naquele rosto
de menina-velha quando o homenzinho, às minhas costas,
afastasse as abas de sua pelerine.
Mas, subitamente, liberada, a menina sacudiu a cabeça e se pôs
a correr. O sujeito da pelerine me vira: fora isso que o detivera. Por
um segundo permaneceu imóvel no meio da aleia, depois foi
embora, as costas encurvadas. Sua pelerine batia-lhe na barriga da
perna.
Empurrei o portão e alcancei-o de um pulo.
— Ei, você aí! — gritei.
Ele começou a tremer.
— Uma grande ameaça pesa sobre a cidade — disse
delicadamente ao passar por ele.
Entrei na sala de leitura e peguei A cartuxa de Parma que estava
sobre uma mesa. Tentava me absorver na leitura, encontrar um
refúgio na Itália luminosa de Stendhal. Conseguia-o por momentos,
em breves alucinações, depois recaía nesse dia ameaçador, em
frente a um velhinho que pigarreava, a um rapaz que devaneava
reclinado em sua cadeira.
As horas passavam, as vidraças tinham escurecido. Éramos
quatro, sem contar o corso que carimbava em sua mesa as últimas
aquisições da biblioteca. Estávamos ali aquele velhinho, o rapaz
louro, uma jovem mulher que prepara sua licenciatura — e eu. De
quando em quando um de nós erguia a cabeça, dava uma olhadela
rápida e desconfiada para os outros três, como se tivesse medo
deles. Em dado momento o velhinho começou a rir: vi a mulher
estremecer da cabeça aos pés. Mas eu decifrara, de trás para
diante, o título do livro que ele estava lendo: era um romance
cômico.
Dez para as sete. Pensei bruscamente que a biblioteca fechava
às sete horas. Mais uma vez ia ser atirado na cidade. Aonde iria? O
que faria?
O velho terminara seu romance. Mas não ia embora.
Tamborilava na mesa em pancadinhas secas e regulares.
— Senhores, já vamos fechar — disse o corso.
O rapaz estremeceu e me dirigiu um rápido olhar. A mulher se
virara para o corso, depois tornou a pegar no livro parecendo
mergulhar na leitura.
— Está na hora — disse o corso cinco minutos depois.
O velho sacudiu a cabeça com ar indeciso. A mulher afastou o
livro, mas não se levantou.
O corso estava surpreso. Deu alguns passos hesitantes, depois
desligou um interruptor. As lâmpadas se apagaram nas mesas de
leitura. Só o globo central permanecia aceso.
— Temos que ir embora? — perguntou baixinho o velho.
O rapaz se levantou lentamente, a contragosto. Cada qual
levava mais tempo para enfiar seu sobretudo. Quando saí, a mulher
ainda estava sentada com uma mão espalmada sobre seu livro.
Embaixo, a porta de entrada se escancarava para a noite. O
rapaz que ia na frente se voltou, desceu lentamente a escada,
atravessou o vestíbulo; deteve-se um momento na soleira, depois se
precipitou na noite e desapareceu.
Ao chegar embaixo da escada, ergui a cabeça. Passado um
momento, o velhinho deixou a sala de leitura, abotoando o
sobretudo. Quando já tinha descido os três primeiros degraus, tomei
impulso e mergulhei de olhos fechados.
Senti em meu rosto uma leve carícia fresca. Ao longe alguém
assoviava. Descerrei as pálpebras: chovia. Uma chuva calma e
suave. A praça estava placidamente iluminada por seus quatro
lampiões. Uma praça de interior sob a chuva. O rapaz se afastava a
passos largos; era ele que estava assoviando: tive vontade de gritar
para os outros dois, que ainda não sabiam, que podiam sair sem
medo, que a ameaça passara.
O velhinho apareceu na soleira. Coçou o rosto com ar
embaraçado, depois deu um sorriso largo e abriu o guarda-chuva.
Sábado de manhã
Um sol deleitável, com uma leve bruma que promete um dia de
tempo bom. Tomei meu café da manhã no Mably.
A sra. Florent, a encarregada da caixa, me dirigiu um sorriso
amável. Gritei de minha mesa:
— O sr. Fasquelle está doente?
— Sim, senhor; uma gripe muito forte: vai ter que ficar alguns
dias de cama. A filha dele chegou esta manhã de Dunquerque. Vai
ficar instalada aqui para cuidar dele.
Pela primeira vez, desde que recebi a carta, me sinto
francamente feliz por rever Anny. O que terá feito durante esses seis
anos? Ficaremos constrangidos quando nos encontrarmos? Anny
ignora o que seja constrangimento. Vai me receber como se eu a
tivesse deixado ontem. Oxalá eu não me comporte como um tolo,
não a descontente logo de cara. Lembrar bem de não lhe estender a
mão ao chegar: ela detesta isso.
Quantos dias permaneceremos juntos? Talvez a traga a Bouville.
Bastaria que vivesse algumas horas aqui; que dormisse uma noite
no hotel Printania. Depois tudo seria diferente; eu já não poderia
sentir medo.
De tarde
No ano passado, quando visitei pela primeira vez o museu de
Bouville, o retrato de Olivier-Blévigne me chamou a atenção. Falta
de proporções? De perspectiva? Não saberia dizer, mas algo me
incomodava: esse deputado não parecia estável em sua tela.
Desde então vim vê-lo muitas vezes. Mas meu desagrado
persistia. Não queria admitir que Bordurin, que recebera o prêmio de
Roma, e era detentor de seis medalhas, tivesse cometido uma falha
de desenho.
Ora, esta tarde, folheando uma velha coleção do Satirique
Bouvillois, jornal de chantagem, cujo proprietário foi acusado de alta
traição durante a guerra, vislumbrei a verdade. Deixei a biblioteca
imediatamente e fui dar uma volta pelo museu.
Atravessei rapidamente a penumbra do vestíbulo. Meus passos
não faziam o menor ruído sobre as lajes brancas e pretas. Ao meu
redor, todo um povo de gesso torcia os braços. Ao passar por dois
grandes arcos, entrevi vasos de esmalte craquelê, pratos, um sátiro
azul e amarelo sobre um soclo. Era a sala Bernard-Palissy,
consagrada à cerâmica e às artes menores. Mas a cerâmica não me
atrai. Um senhor e uma senhora de luto contemplavam
respeitosamente esses objetos cozidos.
Sobre a entrada do grande salão — ou salão Bordurin-Renaudas
— haviam pendurado, recentemente sem dúvida, uma grande tela
que eu não conhecia. Estava assinada por Richard Séverand e
chamava-se La mort du célibataire. Tratava-se de uma doação do
Estado.
Nu até a cintura, o torso um pouco esverdeado como condiz com
os mortos, o celibatário jazia numa cama desfeita. Os lençóis e as
cobertas desfeitas atestavam uma longa agonia. Sorri pensando no
sr. Fasquelle. Esse não estava só: sua filha estava cuidando dele.
Na tela, a empregada, uma governanta de fisionomia marcada pelo
vício, tinha aberto a gaveta de uma cômoda e contava dinheiro.
Uma porta aberta deixava ver na penumbra um homem de boné que
aguardava, um cigarro grudado no lábio inferior. Junto à parede um
gato bebia leite com indiferença.
Aquele homem só vivera para si mesmo. Por um castigo severo
e merecido, ninguém viera lhe fechar os olhos no leito de morte.
Esse quadro me dava um último aviso: ainda era tempo, eu podia
retroceder. Mas se prosseguisse, que atentasse bem para isto: no
grande salão onde ia entrar, mais de 150 retratos estavam
pendurados nas paredes; excetuando alguns jovens arrebatados
prematuramente de suas famílias e a madre superiora de um
orfanato, nenhum dos que ali estavam representados morrera
celibatário, nenhum deles morrera sem filhos nem intestado,
nenhum sem os últimos sacramentos. Quites com Deus e com o
mundo, naquele dia como nos outros, aqueles homens tinham
deslizado suavemente para a morte, para ir exigir a parte de vida
eterna a que tinham direito.
Pois tinham tido direito a tudo: à vida, ao trabalho, à riqueza, ao
mando, ao respeito e, para terminar, à imortalidade.
Recolhi-me por um instante e entrei. Um guarda dormia perto de
uma janela. Uma luz amarelada que vinha das vidraças fazia
manchas nos quadros. Nada de vivo na grande sala retangular,
exceto um gato que se assustou com a minha entrada e fugiu. Mas
senti sobre mim o olhar de 150 pares de olhos.
Todos os que pertenceram à elite de Bouville entre 1875 e 1910
estavam ali, homens e mulheres, escrupulosamente pintados por
Renaudas e Bordurin.
Os homens construíram Santa Cecília do Mar. Fundaram em
1882 a Federação dos Armadores e dos Negociantes de Bouville,
“para reunir num feixe poderoso todas as boas vontades, cooperar
na obra do ressurgimento nacional e paralisar os partidos de
desordem...”. Fizeram de Bouville o porto comercial francês mais
bem aparelhado para o descarregamento de carvão e madeira. O
prolongamento e alargamento dos cais foram obras deles. Deram
toda a extensão desejável à estação marítima e aumentaram para
10,70m, através de dragagens perseverantes, a profundidade do
ancoradouro em baixa-mar. Em vinte anos, graças a eles, a
tonelagem dos barcos de pesca, que era de 5.000 tonéis em 1869,
subiu para 18.000 tonéis. Não recuando ante qualquer sacrifício
para facilitar a ascensão dos melhores representantes da classe
operária, criaram, por iniciativa própria, diversos centros de ensino
técnico e profissional que prosperaram sob sua proteção.
Dominaram a famosa greve das docas em 1898 e deram seus filhos
à pátria em 1914.
As mulheres, dignas companheiras desses lutadores, fundaram
a maioria dos patronatos, das creches, dos ouvroirs.[9] Mas, antes de
mais nada, foram esposas e mães. Criaram belos filhos, ensinaram-
lhes seus deveres e seus direitos, a religião, o respeito pelas
tradições que fizeram a França.
De um modo geral a cor dos retratos puxava para o marrom-
escuro. As cores vivas haviam sido banidas por uma preocupação
com a decência. No entanto, nos retratos de Renaudas, que pintava
preferencialmente velhos, a neve dos cabelos e das suíças
sobressaíam de fundos pretos; ele era magnífico na representação
de mãos. No que se refere a Bordurin, que tinha menos método, as
mãos eram um pouco sacrificadas, mas os colarinhos reluziam
como mármore branco.
Fazia muito calor e o guarda ressonava suavemente. Dei uma
olhada circular para as paredes: vi mãos e olhos; aqui e ali uma
mancha de luz escondia um rosto. No que me dirigia para o retrato
de Olivier Blévigne, algo me reteve: do cimácio, o negociante
Pacôme deixava cair sobre mim um olhar claro.
Ele estava de pé, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, e
segurava numa das mãos, contra as calças cinza-pérola, uma
cartola e luvas. Não pude evitar uma certa admiração: não via nada
de medíocre nele, nada que merecesse crítica: pés pequenos, mãos
finas, ombros largos de lutador, elegância discreta com um toque de
extravagância. Oferecia cortesmente aos visitantes a limpidez de
seu rosto sem rugas; aflorava-lhe aos lábios a sombra de um
sorriso. Mas seus olhos cinzentos não sorriam. Devia ter uns
cinquenta anos: mantinha-se jovem e cheio de viço como aos trinta.
Era bonito.
Desisti de lhe descobrir alguma falha. Mas ele não me largou. Li
em seus olhos um julgamento calmo e implacável.
Compreendi então tudo que nos separava: o que eu podia
pensar a seu respeito não o atingia; não passava de psicologia
como a que se faz nos romances. Mas seu julgamento me
trespassava como um gládio e questionava até meu direito de
existir. E era verdade, sempre me apercebera disso: eu não tinha o
direito de existir. Surgira por acaso, existia como uma pedra, uma
planta, um micróbio. Minha vida se desenvolvia ao acaso e em
todos os sentidos. Enviava-me às vezes sinais vagos; outras vezes
eu percebia apenas um zumbido sem importância.
Mas para aquele belo homem sem falhas, atualmente morto,
para Jean Pacôme, filho do Pacôme da Defesa Nacional, tudo tinha
sido diferente: as batidas de seu coração e os rumores surdos de
seus órgãos chegavam-lhe sob a forma de pequenos direitos
instantâneos e puros. Durante sessenta anos, infalivelmente, usara
do direito de viver. Que magníficos olhos cinzentos! Nunca a menor
dúvida os cruzara. Nunca também Pacôme se equivocara.
Sempre cumprira seu dever, todo o seu dever, seu dever de filho,
de esposo, de pai, de chefe. Também exigira seus direitos sem
tibieza: quando criança, o direito de ser bem-criado, numa família
unida, o de herdeiro de um nome sem mácula, de um negócio
próspero; como marido, o direito de ser bem cuidado, cercado de
terna afeição; como pai, o de ser venerado; como chefe, o direito de
ser obedecido sem contestação. Porque um direito é sempre
apenas o outro aspecto de um dever. Seu êxito extraordinário (os
Pacômes são atualmente a família mais rica de Bouville) certamente
nunca o surpreendeu. Nunca disse a si mesmo que era feliz e,
quando se entregava a um prazer, fazia-o com moderação, dizendo:
“Estou me distraindo.” Assim, o prazer, passando também para a
categoria de direito, perdia sua futilidade agressiva. À esquerda, um
pouco acima de seus cabelos de um cinza-azulado, vi alguns livros
sobre uma prateleira. As encadernações eram bonitas; eram
certamente clássicos. Pacôme, sem dúvida, relia à noite, antes de
dormir, algumas páginas de “seu velho Montaigne” ou uma ode de
Horácio no texto latino. Algumas vezes também devia ler uma obra
contemporânea para se informar. Foi assim que conheceu Barrès e
Bourget. Ao cabo de um momento largava o livro. Sorria. Seu olhar,
perdendo sua admirável vigilância, se tornava quase sonhador. Ele
dizia: “Como é mais simples e mais difícil cumprir o nosso dever!”
Jamais refletira retrospectivamente sobre seus atos: era um
chefe.
Havia outros chefes pendurados nas paredes: aliás, era só o que
havia. Aquele velho grande, cor de azinhavre, em sua poltrona, era
um chefe. Seu colete branco era uma evocação feliz de seus
cabelos prateados. (Esses retratos pintados sobretudo com fins de
edificação moral e cuja exatidão tocava as raias do escrúpulo não
excluíam a preocupação artística.) Sua mão fina e longa estava
pousada na cabeça de um menininho. Um livro aberto repousava
sobre os joelhos envoltos numa manta. Mas o olhar vagava ao
longe. Ele via todas essas coisas que são invisíveis para os jovens.
Seu nome fora escrito no losango de madeira dourada por baixo de
seu retrato: devia chamar-se Pacôme ou Parrottin ou Chaigneau.
Não me ocorreu ir ver: para os seus parentes, para aquela criança,
para si mesmo era simplesmente o Avô; em breve, se achasse que
era chegada a hora de fazer entrever ao neto a extensão de seus
futuros deveres, falaria de si próprio na terceira pessoa.
“Você vai prometer ao seu avô, meu querido, que será muito
ajuizado, estudará com afinco no próximo ano. Talvez no próximo
ano seu avô já não esteja aqui.”
No ocaso da vida ele espargia sua indulgente bondade sobre
cada um. Até eu, se ele me visse — mas eu era transparente ao seu
olhar — cairia em suas graças: se lembraria de que também eu
tinha tido avós outrora. Já não exigia nada: não se têm mais desejos
nessa idade. Nada, exceto que se baixasse ligeiramente a voz
quando ele entrava, exceto que houvesse à sua passagem uma
nuança de ternura e de respeito nos sorrisos; nada, exceto que sua
nora dissesse às vezes: “O pai é extraordinário; é mais jovem do
que todos nós”; exceto ser o único capaz de acalmar as fúrias do
neto colocando as mãos sobre sua cabeça, e poder dizer a seguir:
“Grandes desgostos como esses é o avô que sabe consolar”; nada,
exceto que o filho, várias vezes por ano, viesse solicitar seus
conselhos sobre questões delicadas; nada, enfim, exceto se sentir
sereno, em paz, infinitamente sábio. A mão do velho senhor mal
pesava sobre os cachos do neto: era quase uma bênção. Em que
estaria pensando? Em seu passado honrado que lhe conferia o
direito de falar sobre tudo e de dar a última palavra sobre tudo. Eu
não me estendera suficientemente o outro dia: a experiência era
bem mais do que uma defesa contra a morte; era um direito: o
direito dos velhos.
O general Aubry, pendurado no cimácio com seu grande sabre,
era um chefe. Um chefe também o presidente Hébert, fino letrado,
amigo de Impétraz. Seu rosto era longo e simétrico, com um queixo
interminável, pontuado, bem sob o lábio, por uma pera; avançava
um pouco o maxilar, com ar divertido, como se estivesse fazendo
um distinguo, meditando uma objeção de princípio, como um
discreto arroto. Estava pensativo, segurando uma pena de pato para
escrever: também ele tinha sua distração, que consistia em fazer
versos. Mas tinha o olhar de águia dos chefes.
E os soldados? Encontrava-me no centro da sala, ponto de mira
de todos aqueles olhos graves. Não era um avô, nem um pai, nem
sequer um marido. Não votava, mal pagava alguns impostos: não
podia me vangloriar nem dos direitos do contribuinte, nem dos do
eleitor, nem mesmo do humilde direito à honorabilidade que vinte
anos de obediência conferem ao empregado. Minha existência
começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples
aparência?
— Ei — disse a mim mesmo subitamente —, o soldado sou eu!
Isso me fez rir, sem ressentimento.
Um quinquagenário roliço me respondeu delicadamente com um
bonito sorriso. Renaudas o pintara com amor, não havia tintas
demasiado suaves para as orelhinhas carnudas e cinzeladas, para
as mãos sobretudo. Longas, nervosas, com os dedos delgados,
eram verdadeiras mãos de sábio ou de artista. Seu rosto me era
desconhecido: certamente passara muitas vezes diante da tela sem
reparar nela. Aproximei-me, li: “Rémy Parrottin, nascido em Bouville
em 1849, professor da Escola de Medicina de Paris.”
Parrottin: o dr. Wakefield me falara nele: “Encontrei uma vez na
vida um grande homem. Foi Rémy Parrottin. Cursei suas aulas
durante o inverno de 1904 (sabe que passei dois anos em Paris
para estudar obstetrícia). Ele me fez compreender o que é um
chefe. Tinha magnetismo, juro-lhe. Eletrizava-nos, com ele teríamos
ido até os confins do mundo. E além disso era um gentleman: tinha
uma fortuna imensa, boa parte da qual consagrava a ajudar os
estudantes pobres.”
Foi assim que esse príncipe da ciência me inspirou alguns
sentimentos fortes da primeira vez que ouvi mencioná-lo. Agora
estava diante dele e ele me sorria. Que inteligência e afabilidade em
seu sorriso! Seu corpo rechonchudo repousava molemente numa
grande poltrona de couro. O sábio despretensioso deixava
imediatamente as pessoas à vontade. Poderia até ser tomado por
um homenzinho qualquer, não fosse a espiritualidade de seu olhar.
Não era preciso muito tempo para adivinhar a razão de seu
prestígio: era amado porque compreendia tudo; podia dizer-se tudo
a ele. Parecia-se um pouco com Renan, em suma, mas com mais
distinção. Era desses que dizem: “Os socialistas? Muito bem, vou
mais longe do que eles.” Quem o acompanhava por esse caminho
perigoso logo tinha que abandonar, dominado pela emoção, a
família, a pátria, o direito de propriedade, os valores mais sagrados.
Duvidava-se até por um momento do direito de comandar da elite
burguesa. Mais um passo e subitamente tudo era restabelecido,
maravilhosamente fundamentado em sólidas razões, à antiga.
Voltando-se, quem o acompanhava distinguia atrás de si os
socialistas já longe, muito pequenos, agitando seus lenços e
gritando: “Esperem-nos.”
Eu aliás sabia, por Wakefield, que o Mestre gostava, como ele
mesmo dizia com um sorriso, de “dar à luz as almas”. Tendo
permanecido jovem, rodeava-se de juventude: recebia com
frequência jovens de boa família que se destinavam à medicina.
Wakefield almoçara várias vezes em sua casa. Terminada a refeição
passava-se para o fumoir. O professor tratava como homens adultos
aqueles estudantes que já não estavam muito longe de seus
primeiros cigarros: oferecia-lhes charutos. Estirava-se num divã e
falava demoradamente, os olhos semicerrados, rodeado pela
multidão ávida de discípulos. Evocava recordações, contava
anedotas, das quais extraía uma moralidade picante e profunda. E,
se entre esses jovens bem-educados, surgia algum de caráter um
pouco mais rebelde, Parrottin se interessava especialmente por ele.
Fazia-o falar, ouvia-o atentamente, fornecia-lhe ideias, temas de
meditação. Sucedia forçosamente que um dia o rapaz,
transbordando de ideias generosas, excitado pela hostilidade dos
seus, cansado de pensar sozinho e contra todos, pedia ao professor
que o recebesse a sós; então, balbuciando de timidez, contava-lhe
seus pensamentos mais íntimos, suas indignações, suas
esperanças. Parrottin apertava-o contra o peito. Dizia:
“Compreendo-o, compreendi-o desde o primeiro dia.” Conversavam,
Parrottin ia mais longe, mais longe ainda — tão longe que o rapaz
tinha dificuldade em acompanhá-lo. Com algumas conversas dessa
espécie era possível constatar uma melhora sensível no jovem
revoltado. Ele adquiria uma visão clara de si mesmo, aprendia a
conhecer os vínculos profundos que o ligavam a sua família, a seu
meio; compreendia, enfim, o admirável papel da elite. E para
terminar, como por encanto, a ovelha desgarrada, que acompanhara
Parrottin passo a passo, se encontrava de volta no redil,
esclarecida, arrependida. “Ele curou mais almas”, concluía
Wakefield, “do que eu curei corpos”.
Rémy Parrottin me sorria afavelmente. Hesitava, procurava
compreender minha posição, para modificá-la suavemente e me
levar para o aprisco. Mas eu não sentia medo dele: eu não era uma
ovelha. Olhei para sua bonita testa, tranquila e sem rugas, para seu
pequeno ventre, para sua mão espalmada sobre o joelho. Devolvi-
lhe o sorriso e deixei-o.
Jean Parrottin, seu irmão, presidente da S.A.B., apoiava-se com
as duas mãos na beira de uma mesa repleta de papéis; por toda a
sua atitude, fazia sentir ao visitante que a audiência terminara. Seu
olhar era extraordinário; era como que abstrato e brilhava de puro
direito. Seus olhos deslumbrantes devoravam-lhe todo o rosto.
Distingui sob esse fulgor dois lábios finos e apertados de místico. “É
engraçado”, pensei, “ele se parece com Rémy Parrottin”. Virei-me
para o professor: examinando-o à luz dessa parecença, fazia-se
surgir bruscamente em seu rosto suave um não sei quê de árido e
desolado, o ar da família. Voltei-me novamente para Jean Parrottin.
Esse homem tinha a simplicidade de uma ideia. Só restavam
nele ossos, carnes mortas e o Direito Puro. Um verdadeiro caso de
possessão, pensei. Quando o direito se apodera de um homem, não
há exorcismo capaz de expulsá-lo; Jean Parrottin dedicara toda a
sua vida a conceber seu direito: nada mais. Em lugar da ligeira dor
de cabeça que eu sentia despontar, como todas as vezes que visito
um museu, ele teria sentido em suas têmporas o direito doloroso de
ser bem tratado. Era preciso que não o fizessem pensar muito, que
não chamassem sua atenção para realidades desagradáveis, para a
possibilidade de sua morte, para os sofrimentos de outrem.
Certamente, em seu leito de morte, naquela hora em que é de
praxe, desde Sócrates, pronunciar algumas palavras elevadas, ele
dissera à sua mulher, como um de meus tios à dele, que o velara
durante 12 noites: “A você, Thérèse, não agradeço; só cumpriu seu
dever.” Quando um homem chega a esse ponto, há que se lhe tirar
o chapéu.
Seus olhos, que eu fixava com assombro, me indicavam que era
hora de me retirar. Não parti, fui resolutamente indiscreto. Sabia, por
ter contemplado longamente um determinado retrato de Filipe II na
biblioteca do Escorial, que, quando se olha de frente um rosto
resplandecente de direito, passado um momento, esse resplendor
se extingue, fica apenas um resíduo como que de cinzas: era esse
resíduo que me interessava.
Parrottin oferecia uma bela resistência. Mas de repente seu olhar
se apagou, o quadro se tornou baço. Que restava? Dois olhos
cegos, a boca fina como uma serpente morta e as faces. Bochechas
pálidas e rechonchudas de criança: espalhavam-se na tela. Os
empregados da S.A.B. nunca suspeitaram que existissem: não
ficavam tempo bastante no escritório de Parrottin. Quando
entravam, deparavam-se com esse olhar terrível, como se fosse um
muro. Por trás deste, as bochechas estavam protegidas, brancas e
flácidas. Ao fim de quantos anos sua mulher reparara nelas? Dois
anos? Cinco anos? Um dia, imagino, quando o marido dormia ao
seu lado e um raio de luar lhe acariciava o nariz, ou então, quando
fazia a digestão com dificuldade, na hora do calor, reclinado numa
poltrona, os olhos semicerrados, com uma poça de sol no queixo,
ela ousara olhá-lo de frente: toda aquela carne aparecera sem
defesa, balofa, babosa, vagamente obscena. A partir desse dia,
certamente a sra. Parrottin assumira o comando.
Dei alguns passos para trás, envolvi num só olhar todos aqueles
grandes personagens: Pacôme, o presidente Hébert, os dois
Parrottins, o general Aubry. Todos tinham usado cartolas; aos
domingos encontravam na rua Tournebride a sra. Gratien, a mulher
do prefeito, que viu santa Cecília em sonhos. Dirigiam-lhe grandes
cumprimentos cerimoniosos cujo segredo se perdeu.
Tinham sido pintados com grande exatidão; e no entanto, sob o
pincel, seus rostos haviam perdido a misteriosa fragilidade dos
rostos humanos. Suas faces, mesmo as menos vigorosas, eram
nítidas como faianças: em vão eu procurava nelas qualquer
parentesco com as árvores e os animais, com os pensamentos da
terra ou da água. Sabia que em vida não tinham tido essa
necessidade. Mas, no momento de passar para a posteridade, se
tinham confiado a um pintor de renome para que este operasse
discretamente em seus rostos aquelas dragagens, aquelas
escavações, aquelas irrigações, através das quais, em torno de toda
Bouville, eles haviam transformado o mar e os campos. Assim, com
o concurso de Renaudas e de Bordurin, haviam subjugado toda a
Natureza: fora deles e neles mesmos. O que aquelas telas escuras
ofereciam a meus olhos era o homem repensado pelo homem, com
a mais bela conquista do homem como único ornamento: o buquê
dos Direitos do Homem e do Cidadão. Admirei sem reservas o reino
humano.
Tinham entrado um senhor e uma senhora. Estavam vestidos de
preto e procuravam não chamar a atenção. Pararam extasiados na
soleira da porta, e o senhor tirou o chapéu maquinalmente.
— Oh! — disse a senhora, muito emocionada.
O senhor recuperou mais depressa seu sangue-frio. Disse em
tom respeitoso:
— É toda uma época!
— Sim — disse a senhora —, é a época de minha avó.
Deram alguns passos e se depararam com o olhar de Jean
Parrottin. A senhora continuava boquiaberta, mas o senhor parecia
constrangido: tinha ares de humilde; devia conhecer bem esses
olhares intimidantes e as audiências abreviadas. Puxou suavemente
a mulher pelo braço:
— Olhe este — disse.
O sorriso de Rémy Parrottin sempre deixara os humildes à
vontade. A mulher se aproximou e leu com atenção:
“Retrato de Rémy Parrottin, nascido em Bouville em 1849,
professor da Escola de Medicina de Paris, por Renaudas.”
— Parrottin, da Academia de Ciências — disse o marido —, por
Renaudas, do Instituto. Isso é História!
A senhora sacudiu a cabeça, depois olhou para o professor.
— Como é distinto! — disse. — E que ar inteligente!
O marido fez um gesto amplo.
— Foram todos esses que fizeram Bouville — disse com
simplicidade.
— Foi boa ideia terem reunido todos aqui — disse a senhora
enternecida.
Éramos três soldados em manobras na sala imensa. O marido
que ria com respeito, silenciosamente, me lançou um olhar inquieto
e parou bruscamente de rir. Virei-me para outro lado e fui me postar
diante do retrato de Olivier Blévigne. Um suave prazer me invadiu:
muito bem, eu tinha razão. Era realmente muito engraçado!
A mulher se aproximara de mim.
— Gaston — disse, subitamente ousada. — Venha cá!
O marido veio em nossa direção.
— Olhe — prosseguiu ela —, esse aí tem sua rua: Olivier
Blévigne. Sabe qual é? Aquela ruazinha que sobe ao Coteau Vert,
logo antes de chegar a Jouxtebouville.
Acrescentou passado um momento:
— Ele não devia ser muito ameno.
— Não! Devia ser um bom interlocutor para os rezingões.
A frase era dirigida a mim. O senhor me olhou de esguelha e
começou a rir, um pouco ruidosamente dessa vez, com ar
presumido e esmiuçador, como se fosse o próprio Olivier Blévigne.
Olivier Blévigne não ria. Apontava seu maxilar contraído em
nossa direção, e seu pomo de adão ressaltava.
Houve um momento de silêncio e de êxtase.
— Parece até que vai se mexer — disse a senhora.
O marido explicou amavelmente:
— Era um negociante atacadista de algodão. Depois fez política,
foi deputado.
Eu sabia disso. Há dois anos consultei a respeito dele o
Pequeno dicionário dos grandes homens de Bouville, do abade
Morellet. Copiei o artigo.
“Blévigne Olivier-Martial, filho do precedente, nascido e falecido
em Bouville (1849-1908), estudou direito em Paris e obteve o grau
de licenciado em 1872. Profundamente impressionado pela
insurreição da Comuna, que o obrigara, como a tantos parisienses,
a se refugiar em Versalhes sob a proteção da Assembleia Nacional,
jurou a si mesmo, na idade em que os jovens só pensam no prazer,
‘dedicar sua vida ao restabelecimento da Ordem’. Cumpriu a
palavra: tão logo retornou à nossa cidade, fundou o famoso Clube
da Ordem, que reuniu todas as noites, durante longos anos, os
principais negociantes e armadores de Bouville. Esse círculo
aristocrático, do qual se chegou a dizer, como pilhéria, que era mais
fechado do que o Jockey, exerceu até 1908 uma influência salutar
sobre os destinos de nosso grande porto comercial. Olivier Blévigne
desposou em 1880 Marie-Louise Pacôme, filha caçula do
negociante Charles Pacôme (ver esse nome) e fundou, por ocasião
da morte deste, a casa Pacôme-Blévigne e Filhos. Pouco depois se
voltou para a política ativa e se candidatou a deputado.
“‘O país’ — disse num discurso célebre — ‘sofre da mais grave
das doenças: a classe dirigente já não quer comandar. E quem
então comandará, senhores, se aqueles cuja hereditariedade, cuja
educação, cuja experiência tornaram mais aptos para o exercício do
poder, se afastam deste por resignação ou lassidão? Já o disse
muitas vezes: comandar não é um direito da elite; é seu principal
dever. Senhores, eu vos conjuro: restauremos o princípio da
autoridade!’.
“Eleito no primeiro escrutínio a 4 de outubro de 1885, foi em
seguida constantemente reeleito. De uma eloquência enérgica e
rude, pronunciou inúmeros e brilhantes discursos. Encontrava-se em
Paris em 1898, quando estourou a terrível greve. Transportou-se
com urgência para Bouville, onde foi o incitador da resistência.
Tomou a iniciativa de negociar com os grevistas. Essas
negociações, animadas por um espírito de ampla conciliação, foram
interrompidas pelos tumultos de Jouxtebouville. Sabe-se que uma
intervenção discreta da tropa acalmou os ânimos.
“A morte prematura de seu filho Octave, que entrara muito jovem
para a Escola Politécnica e de quem ele pretendia ‘fazer um chefe’,
foi um golpe terrível para Olivier Blévigne: não se recuperaria dele e
morreu dois anos depois, em fevereiro de 1908.
“Compilações de discursos: As forças morais (1894. Esgotado);
O dever de punir (1900. Os discursos dessa compilação foram todos
pronunciados a propósito do caso Dreyfus. Esgotado); Vontade
(1902. Esgotado). Depois de sua morte foram reunidos seus últimos
discursos e algumas cartas a seus íntimos sob o título Labor
improbus (Ed. Plon, 1910). Iconografia: existe um excelente retrato
seu, por Bordurin, no museu de Bouville.”
Um excelente retrato, seja! Olivier Blévigne usava um bigodinho
preto e seu rosto azeitonado se parecia um pouco com o de Maurice
Barrès. Os dois homens certamente se haviam conhecido:
ocupavam as mesmas bancadas. Mas o deputado de Bouville não
tinha a mesma despreocupação que o presidente da Liga dos
Patriotas. Era rígido como um pedaço de pau e parecia irromper da
tela como no brinquedo em que um diabo de mola pula de sua caixa
de surpresa. Seus olhos faiscavam: a pupila era preta, a córnea
avermelhada. Franzia os pequenos lábios carnudos e apertava a
mão direita contra o peito.
Como esse retrato me obcecara! Algumas vezes Blévigne me
parecera muito grande e outras muito pequeno. Mas hoje
compreendia o porquê.
Soube a verdade folheando o Satirique Bouvillois. O número de
6 de novembro de 1905 era inteiramente dedicado a Blévigne.
Representavam-no na capa, minúsculo, agarrado à juba de
Combes, com a legenda: O Piolho do Leão. E já na primeira página
tudo se explicava: Olivier Blévigne media um metro e cinquenta e
três. Escarneciam de sua pequena estatura e de sua voz coaxante
que mais de uma vez fizera morrer de rir a Câmara inteira.
Acusavam-no de introduzir saltos de borracha em suas botas. Em
contraposição, a sra. Blévigne, Pacôme de solteira, era um cavalo.
“É o caso de se dizer”, acrescentava o cronista, “que ele tem o
dobro de si por cara-metade”.
Um metro e cinquenta e três! Pois bem: Bordurin, com um
cuidado meticuloso, o rodeara de objetos que não deixam
sobressair a pequenez; um pufe, uma poltrona baixa, uma prateleira
com alguns livros de formato in-doze, uma mesinha persa. Só que
lhe dera o mesmo tamanho que o seu vizinho Jean Parrottin, e as
duas telas tinham as mesmas dimensões. Daí resultava que a
mesinha redonda de uma era quase tão grande quanto a imensa
mesa da outra, e o pufe teria chegado ao ombro de Parrottin. O
olhar fazia instintivamente a comparação entre os dois retratos: isso
explicava meu mal-estar.
Agora sentia vontade de rir: um metro e cinquenta e três! Se eu
tivesse querido falar com Blévigne, teria sido obrigado a me inclinar
ou a dobrar os joelhos. Já não me espantava que empinasse o nariz
para o ar tão impetuosamente: o destino dos homens dessa estatura
se decide sempre algumas polegadas acima de suas cabeças.
Admirável poder da arte. Desse homenzinho de voz esganiçada,
nada passaria para a posteridade, a não ser um rosto ameaçador,
um gesto soberbo e olhos sanguinolentos de touro.
O estudante aterrorizado pela Comuna, o deputado minúsculo e
irascível, eis o que a morte levara. Mas, graças a Bordurin, o
presidente do Clube da Ordem, o orador das Forças Morais, era
imortal.
— Oh! Coitadinho do Pipo![10]
A senhora soltara um gemido abafado: sob o retrato de Octave
Blévigne, “filho do precedente”, uma mão piedosa traçara estas
palavras:
“Morto na Politécnica em 1904.”
— Morreu! Foi como o jovem Arondel. Parecia inteligente. Como
sua mãe deve ter sentido. Também, eles têm que se esforçar
demais nessas escolas superiores. O cérebro não para de trabalhar
nem durante o sono. Gosto muito desses bicornes, são chiques.
Chamam-se casuares, não é?
— Não; os casuares são em Saint-Cyr.
Contemplei por minha vez o retrato do estudante da Politécnica
morto prematuramente. Sua tez amarelada e seu bigode
convencional teriam bastado para sugerir a ideia de uma morte
próxima. Aliás, ele previra seu destino: em seus olhos claros que
viam longe lia-se uma certa resignação. Mas ao mesmo tempo tinha
a cabeça erguida; com aquele uniforme ele representava o exército
francês.
Tu Marcellus eris! Manibus date lilia plenis...
Uma rosa cortada, um estudante da Politécnica morto: que pode
haver de mais triste?
Segui lentamente pela longa galeria, cumprimentando ao passar,
sem me deter, os rostos distintos que emergiam da penumbra: o sr.
Bossoire, presidente do Tribunal de Comércio; o sr. Faby, presidente
do Conselho de Administração do Porto Autônomo de Bouville; o sr.
Boulange, negociante, com sua família; o sr. Rannequin, prefeito de
Bouville; o sr. de Lucien, nascido em Bouville, embaixador da
França nos Estados Unidos e poeta; um desconhecido em trajes de
prefeito; a madre Sainte-Marie-Louise, superiora do Grande
Orfanato; o sr. e sra. Théréson; o sr. Thiboust-Gouron, presidente-
geral da Junta de Conciliação; o sr. Bobot, administrador da
Capitania do Porto; os srs. Brion, Minette, Grelot, Lefèbvre; o dr. e
sra. Pain; o próprio Bordurin pintado por seu filho Pierre Bordurin.
Olhares claros e frios, traços delicados, bocas finas, o sr. Boulange
era econômico e paciente, madre Sainte-Marie-Louise de uma
devoção industriosa. O sr. Thiboust-Gouron era duro para consigo
mesmo e para com os outros. A sra. Théréson lutava sem arrefecer
contra um mal profundo. A boca infinitamente cansada indicava bem
seu sofrimento. Mas nunca essa mulher devota dissera: “Estou
sofrendo.” Reagia: organizava menus e presidia sociedades de
beneficência. Às vezes, no meio de uma frase, baixava lentamente
as pálpebras e seu rosto tornava-se sem vida. Tal fraqueza não
durava mais do que um segundo; logo a sra. Théréson reabria os
olhos, retomava sua frase. E as pessoas cochichavam: “Coitada da
sra. Théréson! Nunca se queixa.”
Eu percorrera o salão Bordurin-Renaudas de ponta a ponta.
Voltei-me. Adeus, belos lírios tão delicados em seus pequenos
santuários pintados; adeus, belos lírios, nosso orgulho e nossa
razão de ser. Adeus, Salafrários.
Segunda-feira
Já não estou escrevendo meu livro sobre Rollebon; isso terminou, já
não posso escrevê-lo. Que vou fazer de minha vida?
Eram três horas. Estava sentado à minha mesa, tinha colocado
ao meu lado a pilha de cartas que roubei em Moscou; escrevia:
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais
sinistros. O sr. de Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já
que escreveu a seu sobrinho, em carta de 13 de setembro, que
acabava de redigir seu testamento.”
O marquês estava presente: enquanto aguardava instalá-lo
definitivamente na existência histórica, emprestava-lhe minha vida.
Sentia-a como um leve calor na cavidade do estômago.
De repente me apercebi de uma objeção que não deixariam de
me fazer: Rollebon estava longe de ser franco com seu sobrinho, de
quem queria se utilizar, se o golpe falhasse, como testemunha de
defesa junto a Paulo I. Era bem possível que tivesse inventado a
história do testamento para passar por ingênuo.
Era uma pequena objeção sem importância; uma coisinha à toa.
No entanto, foi suficiente para me mergulhar em devaneios
soturnos. Subitamente revi a empregada corpulenta do Chez
Camille, a cara esgazeada do sr. Achille, a sala onde eu sentira tão
nitidamente que estava esquecido, abandonado no presente. Disse-
me com lassidão:
— Como então, eu que não tive forças para reter meu próprio
passado, posso esperar salvar o de outra pessoa?
Peguei na caneta e tentei continuar a trabalhar; estava farto
dessas reflexões sobre o passado, sobre o presente, sobre o
mundo. Só pedia uma coisa: que me deixassem acabar meu livro
em paz.
Mas, quando meu olhar pousou sobre o bloco de folhas brancas,
seu aspecto me impressionou e fiquei com a caneta no ar,
contemplando aquele papel deslumbrante: como era duro e vistoso,
como estava presente. Não havia nada nele que não fosse
presente. As letras que acabava de traçar ali ainda não estavam
secas e já não me pertenciam.
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais
sinistros...”
Essa frase fora pensada por mim, fora primeiro um pouco de
mim mesmo. Agora estava gravada no papel, fazia parte de uma
coligação contra mim. Já não a reconhecia. Sequer podia repensá-
la. Estava ali, na minha frente; inutilmente teria buscado nela uma
marca de origem. Qualquer um poderia tê-la escrito. Mas eu, eu já
não estava seguro de tê-la escrito. Agora as letras já não brilhavam,
estavam secas. Isso também desaparecera: nada mais restava de
seu brilho efêmero.
Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além
do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente,
uma mesa, uma cama, um armário de espelho — e eu próprio.
Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e
tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De
modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento.
Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu me
escapara. Mas até então pensava que simplesmente se retirara do
meu alcance. Para mim o passado era apenas uma aposentadoria:
era uma outra maneira de existir, um estado de férias e de inação;
cada acontecimento, quando seu papel findava, se arrumava
sensatamente, por si próprio, numa caixa e se tornava
acontecimento honorário: é tão difícil imaginar o nada! Agora eu
sabia: as coisas são inteiramente o que parecem — e por trás
delas... não existe nada.
Esse pensamento me absorveu durante mais alguns minutos.
Depois fiz um movimento de ombros violento para me libertar e
puxei para mim o bloco de papel.
“... que acabava de redigir seu testamento.”
Uma imensa repugnância me invadiu subitamente e a caneta me
caiu da mão cuspindo tinta. Que acontecera? Estava com a
Náusea? Não, não era isso, o quarto estava com sua aparência
protetora de todos os dias. A mesa quase não me parecia mais
pesada, mais espessa, e minha caneta mais compacta. Só que o sr.
de Rollebon acabava de morrer pela segunda vez.
Ainda agora estava ali, em mim, tranquilo e quente, e de quando
em quando o sentia mexer. Estava bem vivo, mais vivo para mim do
que o Autodidata ou a dona do Rendez-vous des Cheminots. Tinha,
sem dúvida, seus caprichos, era capaz de permanecer vários dias
sem aparecer; mas muitas vezes, em misteriosos dias de sol,
botava o nariz de fora como o capuchinho higrométrico, e eu
distinguia seu rosto pálido e suas bochechas azuis. E mesmo
quando não aparecia, sentia seu peso em meu coração e me sentia
cheio.
Agora não restava mais nada dele. Assim como não restava nos
traços de tinta seca a lembrança de seu brilho recente. A culpa era
minha: havia pronunciado as únicas palavras que não deviam ser
ditas: dissera que o passado não existia. E, de repente, sem ruído, o
sr. de Rollebon retornara ao seu nada.
Peguei suas cartas, apalpei-as com uma espécie de desespero:
— Foi ele — disse a mim mesmo —, no entanto foi ele que
traçou esses sinais um por um. Apoiou-se sobre esse papel, colocou
seu dedo nas folhas para impedir que girassem sob a caneta.
Tarde demais: essas palavras já não tinham sentido. Nada mais
existia a não ser um maço de folhas amarelas que eu apertava nas
mãos. Havia na verdade aquela história complicada: o sobrinho de
Rollebon assassinado em 1810 pela polícia do czar, seus papéis
confiscados e transportados para os arquivos secretos; depois, 110
anos mais tarde, depositados pelos sovietes, que assumiram o
poder na biblioteca do Estado de onde os roubo em 1923. Mas
aquilo não parecia verdadeiro e, desse roubo que eu próprio cometi,
não me ficara nenhuma verdadeira lembrança. Para explicar a
presença desses papéis em meu quarto, não teria sido difícil
encontrar cem outras histórias mais admissíveis: todas, diante
dessas folhas enrugadas, pareceriam vazias e frágeis como bolhas.
Ao invés de contar com elas para me comunicar com Rollebon, mais
valia recorrer imediatamente às mesas que rodam.[11] Rollebon já
não existia. Se ainda restavam dele alguns ossos, existiam por si
próprios, totalmente independentes, já não passavam de um pouco
de fosfato e de carbonato de cálcio com sais e água.
Fiz uma última tentativa; repeti para mim mesmo as palavras da
sra. de Genlis com as quais — geralmente — evoco o marquês:
“Seu rostinho enrugado, asseado, marcado de varíola, onde havia
uma malícia singular, que saltava aos olhos, por mais esforço que
fizesse para dissimulá-la.”
O rosto dele me apareceu docilmente, o nariz pontiagudo, as
bochechas azuis, o sorriso. Conseguia formar suas feições à
vontade, talvez até com mais facilidade do que antes. Só que já não
era senão uma imagem em mim, uma ficção. Suspirei, deixei-me
cair para trás contra o espaldar da cadeira, com a sensação de uma
falta intolerável.
Soam quatro horas. Faz uma hora que estou aqui, os braços caídos,
em minha cadeira. Começa a escurecer. Afora isso, nada mudou
nesse quarto: o papel branco continua na mesa, ao lado da caneta e
do tinteiro... Mas nunca mais escreverei na folha começada. Nunca
mais, seguindo pela rua dos Mutilés e pelo bulevar da Redoute, me
dirigirei à biblioteca para consultar os arquivos.
Sinto vontade de dar um salto e sair, de fazer qualquer coisa
para me atordoar. Mas, se levanto um dedo, se não me mantiver
absolutamente imóvel, sei bem o que vai me acontecer. Não quero
que isso me aconteça ainda. Isso virá sempre cedo demais. Não me
mexo; leio maquinalmente, na folha do bloco, o parágrafo que deixei
inacabado:
“Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais
sinistros. O sr. de Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já
que escreveu a seu sobrinho, em carta de 13 de setembro, que
acabava de redigir seu testamento.”
O grande caso Rollebon terminou como uma grande paixão.
Será necessário descobrir outra coisa. Há alguns anos, em Xangai,
no escritório de Mercier, de repente saí de um sonho, acordei.
Depois tive outro sonho, vivia na corte dos czares, em velhos
palácios tão frios que no inverno se formavam estalactites de gelo
por cima das portas. Hoje acordo diante de um bloco de papel
branco. Desapareceram os archotes, as festas glaciais, os
uniformes, os belos ombros tiritantes. Em seu lugar, algo permanece
no quarto morno, algo que não quero ver.
O sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e
eu precisava dele para não sentir meu ser. Eu fornecia a matéria
bruta, essa matéria que eu tinha para dar e vender, da qual não
sabia o que fazer: a existência, minha existência. A parte dele
consistia em representar. Ficava em frente a mim e se apoderara de
minha vida para me representar a dele. Eu já não me apercebia de
que existia, já não existia em mim, mas nele; era para ele que
comia, para ele que respirava, cada um de meus movimentos tinha
seu sentido fora de mim, ali, bem em frente de mim, nele; já não via
minha mão que traçava as letras no papel, nem sequer a frase que
escrevera — mas por trás, para além do papel, via o marquês, que
solicitara esse gesto e cuja existência esse gesto prolongava,
consolidava. Eu era apenas um meio de fazê-lo viver, ele era minha
razão de ser, me libertara de mim mesmo. Que farei agora?
Sobretudo não me mexer, não me mexer... Ah!
Não pude impedir esse movimento de ombros...
A coisa, que estava à espera, alertou-se, precipitou-se sobre
mim, penetra em mim, estou pleno dela. — Não é nada: a Coisa sou
eu. A existência, liberada, desprendida, reflui sobre mim. Existo.
Existo. É suave, tão suave, tão lento. E leve: dir-se-ia que isso
flutua no ar por si só. Mexe-se. São leves toques, por todo lado,
toques que se dissolvem e se desvanecem. Suavemente,
suavemente. Há uma água espumosa em minha boca. Engulo-a, ela
desliza por minha garganta, me acaricia — e eis que renasce em
minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de
água esbranquiçada — discreta — que roça minha língua. E essa
poça também sou eu. E a língua também, e a garganta, sou eu.
Vejo minha mão que desabrocha sobre a mesa. Ela vive — sou
eu. Abre-se, os dedos se estendem e apontam. Ela está pousada de
costas. Mostra-me seu ventre gordo. Parece um animal de pernas
para o ar. Os dedos são as patas. Divirto-me fazendo-os mexer
muito rápido, como as patas de um caranguejo caído de costas. O
caranguejo morreu: as patas se crispam, vêm para o ventre de
minha mão. Vejo as unhas — a única coisa de mim que não vive. E
mesmo assim... Minha mão se vira, estende-se de barriga para
baixo, me oferece agora suas costas. Costas prateadas, um pouco
brilhantes — dir-se-ia um peixe, se não houvesse os pelos ruivos no
início das falanges. Sinto minha mão. Esses dois animais que se
agitam na ponta de meus braços sou eu. Minha mão coça uma de
suas patas com a unha de uma outra pata; sinto seu peso na mesa
que não sou eu. Essa impressão de peso persiste, não passa,
persiste. Não há razão para que passe. Com o tempo, isso se torna
intolerável... Retiro minha mão, coloco-a em meu bolso. Mas sinto
logo, através do tecido, o calor de minha coxa. Faço saltar
imediatamente minha mão de meu bolso; deixo-a caída junto ao
espaldar da cadeira. Agora sinto seu peso na ponta de meu braço.
Ela puxa um pouco, muito pouco, mole, maciamente ela existe. Não
insisto: onde quer que a ponha, ela continuará a existir e eu
continuarei a sentir que ela existe; não posso suprimi-la, nem
suprimir o resto de meu corpo, o calor úmido que suja minha
camisa, nem toda essa gordura quente que se move
preguiçosamente como se uma colher a remexesse, nem todas as
sensações que passeiam lá dentro, que vão e vêm, sobem de meu
flanco até minha axila, ou então vegetam silenciosamente, da
manhã à noite, em seu canto habitual.
Levanto-me de chofre: se pelo menos pudesse parar de pensar,
já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido.
Mais insípido ainda do que a carne. Prolongam-se
interminavelmente e deixam um gosto esquisito. E depois, dentro
dos pensamentos, há as palavras, as palavras inacabadas, os
esboços de frases que retornam constantemente: “Tenho que
termi... Eu ex... Morr... O sr. de Roll morreu... Não estou... Eu ex...” E
assim por diante... e não termina nunca. É pior que o resto, porque
me sinto responsável e cúmplice. Por exemplo, essa espécie de
ruminação dolorosa: existo — sou eu que a alimento. Eu. O corpo
vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou
eu que o continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh!
Que serpentina comprida esse sentimento de existir — e eu a
desenrolo muito lentamente... Se pudesse me impedir de pensar!
Tento, consigo: parece-me que minha cabeça se enche de fumaça...
e eis que tudo recomeça: “Fumaça... não pensar... Não quero
pensar... Penso que não quero pensar... Não devo pensar que não
quero pensar. Porque isso também é um pensamento.” Será que
não termina nunca?
Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo
porque penso... e não posso me impedir de pensar. Nesse exato
momento — é terrível — se existo é porque tenho horror a existir.
Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a
repugnância de existir são outras tantas maneiras de me fazer
existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem
por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha
cabeça... se eu cedo, virão para a frente, aqui entre meus olhos — e
sempre cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, me
enchendo por inteiro e renovando minha existência.
Minha saliva está açucarada, meu corpo está morno; sinto-me
insípido. Meu canivete está sobre a mesa. Abro-o. Por que não? De
toda maneira seria uma mudança. Coloco minha mão esquerda
sobre o bloco e me desfiro uma boa canivetada na palma. O gesto
foi muito nervoso; a lâmina escorregou, a ferida é superficial.
Sangra. E afinal? O que foi que mudou? De toda maneira olho com
satisfação na folha branca, por entre as linhas que tracei há pouco,
essa poçazinha de sangue que finalmente deixou de ser eu. Quatro
linhas numa folha branca, uma mancha de sangue, é assim que se
forma uma bela recordação. Terei de escrever embaixo: “Nesse dia
desisti de fazer meu livro sobre o marquês de Rollebon.”
Farei um curativo em minha mão? Hesito. Olho para o monótono
veiozinho de sangue. Está exatamente começando a coagular.
Terminou. Minha pele, em torno do corte, está como que
enferrujada. Sob a pele resta apenas uma pequena sensação
semelhante às outras, talvez ainda mais apagada.
Soam cinco e meia. Levanto-me, minha camisa fria se cola à
minha carne. Saio. Por quê? Bem, porque também não tenho razão
alguma para não fazê-lo. Ainda que fique, ainda que me encolha em
silêncio num canto, não me esquecerei de mim. Estarei aqui,
pesarei sobre o assoalho. Eu sou.
Compro um jornal no caminho. Sensacional. O corpo da
pequena Lucienne foi encontrado! Cheiro de tinta, o papel se
amarrota entre meus dedos. O ignóbil indivíduo fugiu. A criança foi
violada. Encontraram seu corpo com os dedos crispados na lama.
Faço uma bola com o jornal; meus dedos estão crispados no jornal;
cheiro de tinta; Deus meu, como as coisas hoje existem com
intensidade. A pequena Lucienne foi violada. Estrangulada. Seu
corpo ainda existe, sua carne pisada. Ela já não existe. Suas mãos.
Ela já não existe. As casas. Caminho entre as casas, estou entre as
casas muito teso sobre o calçamento; o calçamento sob meus pés
existe, as casas tornam a se fechar sobre mim, como a água se
fecha sobre mim sobre o papel em forma de montanha de cisne, eu
sou. Sou, existo, penso, logo sou: sou porque penso, por que
penso? Já não quero pensar, sou porque penso que não quero ser,
penso que eu... porque... bah! Fujo, o ignóbil indivíduo fugiu, seu
corpo violado. Ela sentiu aquela outra carne que penetrava na sua.
Eu... eis que eu... Violada. Um suave desejo sangrento de estupro
que se apodera de mim por trás, muito suave, por trás das orelhas,
as orelhas correm atrás de mim, os cabelos ruivos são ruivos em
minha cabeça, uma relva molhada, uma relva ruiva, isso ainda sou
eu? E esse jornal ainda sou eu? Segurar o jornal, existência contra
existência, as coisas existem encostadas umas nas outras, solto
esse jornal. A casa brota, ela existe; à minha frente passo rente ao
muro, ao longo do longo muro, existo, em frente ao muro, um passo,
o muro existe à minha frente, um, dois, atrás de mim, o muro está
atrás de mim, um dedo que coça em minha calça, coça, coça e puxa
o dedo da criança maculado de lama, a lama em meu dedo que saía
do riacho lamacento e torna a cair suavemente, suavemente,
amolecia, coçava com menos força que os dedos da menina que
estrangulavam, ignóbil indivíduo, raspavam a lama, a terra com
menos força, o dedo desliza suavemente, cai de cabeça e acaricia,
rolo quente junto a minha coxa; a existência é mole e rola e se
sacode, eu me sacudo entre as casas, eu sou, existo, penso, logo
me sacudo, sou, a existência é uma queda caída, não cairá, cairá, o
dedo raspa na lucarna, a existência é uma imperfeição. O senhor. O
belo senhor existe. O senhor sente que existe. Não, o belo senhor
que passa, altivo e suave como uma ipomeia, não sente que existe.
Desabrochar; minha mão cortada dói, existe, existe, existe. O belo
senhor existe, Legião de Honra, existe bigode, é só; como deve ser
feliz quem é apenas uma Legião de Honra e um bigode e o resto
ninguém vê, ele vê as duas pontas finas de seu bigode dos dois
lados do nariz; não penso, logo sou um bigode. Não vê nem seu
corpo magro nem seus pés grandes, vasculhando no fundo das
calças se encontraria um par de borrachinhas cinzentas. Ele tem a
Legião de Honra, os Salafrários têm o direito de existir. “Existo,
porque isso é um direito meu.” Tenho o direito de existir, logo tenho
o direito de não pensar: o dedo não se ergue. Será que vou...
acariciar na plenitude dos lençóis brancos a carne branca plena que
se inclina suave, tocar a umidade florida das axilas, os elixires e os
licores e as florescências da carne, entrar na existência de outrem,
nas mucosas vermelhas com o forte, doce, doce odor de existência,
me sentir existir entre os suaves lábios molhados, os lábios
vermelhos de sangue pálido, os lábios palpitantes que bocejam
todos molhados de existência, todos molhados de pus claro, entre
os lábios molhados açucarados que lacrimejam como olhos? Meu
corpo de carne que vive, a carne que fervilha e mexe suavemente
licores, que mexe creme, a carne que mexe, mexe, mexe, a água
doce e açucarada de minha carne, o sangue de minha mão, dói-me,
suave em minha carne pisada que mexe, anda, eu ando, fujo, sou
um ignóbil indivíduo com a carne pisada, pisada de existência contra
essas paredes. Sinto frio, dou um passo, sinto frio, um passo, viro à
esquerda, ele vira à esquerda, ele pensa que vira à esquerda, louco,
estou louco? Ele diz que tem medo de estar louco, a existência,
você vê a existência? Ele para, o corpo para, ele pensa que para, de
onde vem? Que faz? Recomeça a andar, sente medo, muito medo,
o ignóbil indivíduo, o desejo como uma bruma, o desejo, o nojo, ele
diz que está enojado de existir. Está enojado? Cansado e enojado
de existir. Está correndo. Que espera? Corre para fugir de si
mesmo, para se jogar no lago? Corre, o coração, o coração que
bate é uma festa. O coração existe, as pernas existem, a respiração
existe, eles existem correndo, respirando, batendo muito frouxo,
muito lento, perde o fôlego, perco o fôlego, ele diz que perde o
fôlego; a existência agarra meus pensamentos por trás e os
desenvolve lentamente por trás; me agarram por trás, me forçam
por trás a pensar, portanto a ser alguma coisa, atrás de mim, que
respira em leves bolhas de existência, ele é bolha de bruma de
desejo, no espelho é pálido como um morto, Rollebon morreu,
Antoine Roquentin não morreu, desmaiar; ele disse que queria
desmaiar, está correndo, o furão corre (por trás) por trás por trás, a
pequena Lucienne atacada por trás, violada pela existência por trás,
ele pede misericórdia, tem vergonha de pedir misericórdia, piedade,
socorro, socorro logo existo, entra no Bar de la Marine, os
espelhinhos do bordelzinho, está pálido nos espelhinhos do
bordelzinho, o ruivo grandalhão e mole que se deixa cair no banco,
o pick-up tocando existe, tudo gira, existe o pick-up, o coração bate:
girem, girem licores da vida, girem gelatinas, xaropes de minha
carne, doçuras... O pick-up.
Quarta-feira
Há um círculo de sol sobre a toalha de papel. No círculo uma mosca
se arrasta entorpecida, se aquece e esfrega uma na outra as patas
dianteiras. Vou lhe fazer o favor de esmagá-la. Ela não vê surgir o
indicador gigante, cujos pelos dourados brilham ao sol.
— Não a mate, senhor! — exclama o Autodidata.
A mosca rebenta, as tripinhas brancas emergem de seu ventre;
libertei-a da existência. Digo secamente ao Autodidata:
— Era um favor a prestar a ela.
Por que estou aqui? E por que não estaria aqui? É meio-dia,
estou à espera da hora de dormir. (Felizmente não perco o sono.)
Dentro de quatro dias reverei Anny: no momento é essa a minha
única razão de viver. E depois? Quando Anny me tiver deixado? Sei
muito bem o que espero sorrateiramente: espero que ela nunca
mais me deixe. No entanto deveria saber que Anny jamais aceitará
envelhecer diante de mim. Sinto-me fraco e só, preciso dela. Teria
gostado de revê-la em pleno vigor: Anny não tem piedade dos
destroços.
— O senhor está bem? Sente-se bem?
O Autodidata me olha de soslaio com olhos sorridentes. Está um
pouco ofegante, a boca aberta, como um cachorro esbaforido.
Confesso: essa manhã me sentia quase feliz por revê-lo, tinha
necessidade de falar.
— É um grande prazer tê-lo à minha mesa — disse ele. — Se
sente frio, podemos nos instalar perto do calefator. Aqueles
senhores já estão para ir embora, pediram a conta.
Alguém se preocupa comigo, pergunta se sinto frio; falo com
outro homem: há anos que isso não me acontece.
— Estão indo embora, quer que mudemos de lugar?
Os dois senhores acenderam cigarros. Saem: ei-los no ar puro,
ao sol. Passam pelas vitrines, segurando seus chapéus com as
duas mãos. Riem; o vento enfuna seus sobretudos.
Não, não quero mudar de lugar. Para quê? E depois, através dos
vidros, por entre os tetos brancos das cabines de banho, vejo o mar,
verde e compacto.
O Autodidata tirou de sua carteira dois retângulos de papelão cor
de violeta. Daqui a pouco vai entregá-los à caixa. Num deles decifro
de trás para diante:
À noite
Tomei uma decisão: já não tenho motivos para permanecer em
Bouville, posto que desisti de escrever meu livro; vou morar em
Paris. Sexta-feira, tomarei o trem das cinco horas, sábado verei
Anny; creio que passaremos alguns dias juntos. Depois voltarei aqui
para pôr algumas coisas em ordem e fazer minhas malas. Dia 1º de
março, o mais tardar, estarei definitivamente instalado em Paris.
Sexta-feira
No Rendez-vous des Cheminots. Meu trem parte em vinte minutos.
O gramofone. Forte impressão de aventura.
Sábado
Anny vem abrir, usando um vestido preto longo. Naturalmente não
me estende a mão, não me cumprimenta. Conservei a mão direita
no bolso de meu sobretudo. Ela diz em tom amuado e muito
depressa, para se livrar das formalidades:
— Entre e sente-se onde quiser, exceto na poltrona junto à
janela.
É ela, é bem ela. Está com os braços caídos, com a cara
emburrada que antigamente lhe dava um ar de menina na idade
ingrata. Mas agora ela já não parece uma menina. Está gorda, com
os seios volumosos.
Fecha a porta, diz para si mesma com ar meditativo:
— Não sei se vou me sentar na cama...
Finalmente se deixa cair numa espécie de arca coberta com um
tapete. Seu andar já não é o mesmo: caminha com uma lentidão
majestosa não desprovida de graça: parece embaraçada com sua
gordura recente. No entanto, apesar de tudo, é bem ela, é Anny.
Anny solta uma gargalhada.
— Por que está rindo?
Ela não responde imediatamente, como é seu hábito, assume
um ar zombeteiro.
— Diga, por quê?
— É por causa desse largo sorriso que você ostenta desde que
entrou. Parece um pai que acaba de casar a filha. Vamos, não fique
de pé. Ponha seu casaco em qualquer lugar e sente-se. Sim, ali se
quiser.
Segue-se um silêncio que Anny não tenta romper. Como esse
quarto é nu! Antigamente Anny levava em todas as suas viagens
uma imensa mala cheia de xales, turbantes, mantilhas, máscaras
japonesas, estampas. Mal chegava a um hotel — e ainda que só
fosse passar uma noite nele — seu primeiro cuidado era abrir essa
mala e tirar dela todos os seus tesouros, que pregava nas paredes,
pendurava nas lâmpadas, estendia sobre as mesas ou no chão de
acordo com uma ordem variável e complicada; em menos de meia
hora, o quarto mais banal se revestia de uma personalidade
marcante e sensual, quase intolerável. Talvez a mala se tenha
perdido, talvez tenha ficado no depósito de bagagens... Esse
cômodo frio, com a porta que se entreabre para o banheiro, tem
algo de sinistro. Parece, sendo mais luxuoso e mais triste, com meu
quarto de Bouville.
Anny torna a rir. Reconheço perfeitamente esse risinho muito
estridente e um pouco fanhoso.
— Pois é, você não mudou. O que está procurando com esse ar
aflito?
Sorri, mas seus olhos me fitam com uma curiosidade quase
hostil.
— Estava apenas pensando que esse quarto não parece
habitado por você.
— Ah! Sim? — responde com ar vago.
Novo silêncio. Agora está sentada na cama, muito pálida em seu
vestido preto. Não cortou os cabelos. Continua a me fitar com ar
calmo, erguendo um pouco as sobrancelhas. Não terá nada a me
dizer? Por que me fez vir? Esse silêncio é insuportável.
Digo subitamente, lamentavelmente:
— Estou contente por ver você.
A última palavra se estrangula em minha garganta: se era para
isso, teria sido melhor que me calasse. Ela certamente vai se
zangar. Bem me parecia que os primeiros 15 minutos seriam
penosos. Antigamente, quando revia Anny, fosse após uma
ausência de 24 horas, fosse de manhã ao acordar, nunca sabia
encontrar as palavras que ela esperava, aquelas que combinavam
com sua roupa, com o tempo, com as últimas palavras que
tínhamos pronunciado na véspera. Mas o que quer ela? Não posso
adivinhar.
Levanto os olhos. Anny me fita com uma espécie de ternura.
— Então você não mudou nada? Continua tão tolo como
sempre?
Seu rosto exprime satisfação. Mas como parece cansada!
— Você é um marco — diz ela —, um marco à beira de uma
estrada. Você explica imperturbavelmente, e explicará a vida inteira,
que Melun fica a 27 quilômetros de distância e Montargis a 42. É por
isso que preciso tanto de você.
— Precisa de mim? Precisou de mim durante esses quatro anos
em que não nos vimos? Pois bem, você foi de uma discrição a toda
prova.
Falei sorrindo: ela poderia pensar que estou ressentido. Sinto em
meus lábios esse sorriso muito falso, estou pouco à vontade.
— Como você é tolo! Naturalmente não preciso ver você, se é o
que quer dizer. Sabe, você não tem nada de particularmente
agradável à vista. Preciso que você exista e que não mude. Você é
como esse metro de platina que é conservado em algum lugar, em
Paris, ou nos arredores. Não creio que alguém tenha tido vontade
de vê-lo algum dia.
— É aí que você se engana.
— Enfim, pouco importa. Eu nunca me interessei. Gosto de
saber que ele existe, que mede exatamente a décima milionésima
parte do quarto do meridiano terrestre. Penso nisso cada vez que
tomam medidas num apartamento ou que me vendem um tecido a
metro.
— Ah, sim? — digo friamente.
— Mas, sabe, eu poderia perfeitamente só pensar em você como
numa virtude abstrata, uma espécie de limite. Você pode me
agradecer que todas as vezes me lembre de seu rosto.
Aí estão outra vez as discussões bizantinas que no passado era
preciso suportar, quando meu coração tinha desejos simples e
banais, como o de lhe dizer que a amava, como o de tomá-la em
meus braços. Hoje não tenho nenhum desejo. A não ser talvez o de
me calar e olhar para ela, realizar em silêncio toda a importância
desse acontecimento extraordinário: a presença de Anny em frente
a mim. E para ela será esse dia semelhante aos outros? As mãos
dela não tremem. Ela devia ter algo a me dizer no dia em que me
escreveu — ou talvez se tratasse simplesmente de um capricho.
Agora há muito que isso não mais existe.
Anny me sorri de repente, com uma ternura tão visível que me
vêm lágrimas aos olhos.
— Pensei em você com muito mais frequência do que no metro
de platina. Não houve um só dia em que não tivesse pensado em
você. E me lembrava distintamente de sua pessoa até o menor
detalhe.
Levanta-se e vem apoiar suas mãos em meus ombros:
— Ouse dizer que você se lembrava de meu rosto, você que se
queixa.
— Isso não vale — digo. — Você bem sabe que tenho má
memória.
— Está confessando: você me esqueceu completamente. Teria
me reconhecido na rua?
— Naturalmente. Não se trata disso.
— Lembrava-se pelo menos da cor de meus cabelos?
— Claro que sim! São louros.
Ela começa a rir.
— Você diz isso orgulhosamente. Agora que os vê, não tem
muito mérito.
Passa a mão em meus cabelos.
— E seus cabelos são ruivos — diz me imitando —; a primeira
vez que o vi, você estava com um chapéu de feltro, nunca me
esquecerei, um chapéu mole de um tom meio malva, que destoava
atrozmente de seus cabelos ruivos. Era horrível de ver. Onde está
seu chapéu? Quero ver se continua com o mesmo mau gosto.
— Já não uso chapéu.
Ela assobia baixinho, arregalando os olhos.
— Você não chegou a isso sozinho. Não é? Pois bem, felicito-o.
Naturalmente! Só que tinha que pensar nisso. Esses seus cabelos
não toleram nada, destoam dos chapéus, das almofadas das
poltronas, até da tapeçaria das paredes que lhes serve de fundo. Ou
então seria preciso que você enterrasse o chapéu até as orelhas,
como aquele de feltro inglês que comprou em Londres. Você botava
as madeixas para dentro da copa e já nem se sabia se ainda tinha
cabelos.
Acrescenta no tom decidido com que se terminam velhas
querelas:
— Ele não ficava nada bem em você.
Já não sei de que chapéu se trata.
— Eu dizia que ficava?
— Claro que dizia! Aliás, só falava nisso. E se olhava
disfarçadamente nos espelhos, quando achava que eu não o estava
vendo.
Esse conhecimento do passado me oprime. Anny nem parece
estar evocando lembranças, seu tom não tem o matiz enternecido e
distante que convém a esse tipo de ocupação. Parece estar falando
de hoje, no máximo de ontem; conservou bem vivas suas opiniões,
suas teimosias, seus rancores de antigamente. Para mim, ao
contrário, tudo mergulhou numa atmosfera poética; estou disposto a
todas as concessões.
Ela me diz bruscamente, numa voz sem entonação:
— Você vê, engordei, envelheci, tenho que me cuidar.
Sim. E como parece cansada! Quando vou falar, ela acrescenta
rapidamente:
— Fiz teatro em Londres.
— Com Candler?
— Não, com Candler não. Isso é bem você. Meteu na cabeça
que eu faria teatro com Candler. Quantas vezes será preciso dizer
que Candler é um maestro? Não, num teatrinho da Soho Square.
Representamos Emperor Jones, peças de Sean O’Casey, de Synge,
e Britannicus.
— Britannicus? — digo surpreso.
— Pois é, Britannicus. Foi por causa disso que me afastei. Fui eu
que lhes dei a ideia de montar Britannicus; e eles quiseram que eu
fizesse o papel de Junie.
— Ah, sim?
— Ora, naturalmente, eu só podia fazer o papel de Agrippine.
— E agora, o que está fazendo?
Fiz mal em perguntar isso. Seu rosto fica inteiramente sem vida.
No entanto ela responde imediatamente:
— Já não represento. Viajo. Tenho um sujeito que me sustenta.
Sorri:
— Oh! Não me olhe com essa solicitude, não é trágico. Sempre
lhe disse que não me importaria de ser sustentada por algum
homem. Aliás, é um sujeito velho, não me incomoda.
— Inglês?
— Mas que diferença faz? — diz com irritação. — Não vamos
falar desse homenzinho. Ele não tem importância alguma, nem para
você, nem para mim. Quer um chá?
Entra no banheiro. Ouço-a andar de um lado para o outro,
mexendo em caçarolas, falando sozinha; um murmúrio agudo e
ininteligível. Na mesinha de cabeceira, ao lado de sua cama, há
como sempre um volume da Histoire de France, de Michelet. Sobre
a cama, noto agora que pendurou uma fotografia, só uma, uma
reprodução do retrato de Emily Brontë pelo irmão.
Anny retorna e me diz bruscamente:
— Agora fale de você.
Depois torna a desaparecer no banheiro. Disso me lembro,
apesar de minha má memória: ela fazia perguntas diretas assim,
que me constrangiam muito, porque sentia ao mesmo tempo um
interesse sincero e o desejo de encerrar rapidamente o assunto. De
toda maneira, depois dessa pergunta, já não posso ter dúvidas: ela
deseja algo de mim. Por enquanto estamos apenas nas
preliminares: ela já se livrou do que poderia incomodar; organiza
definitivamente as perguntas secundárias: “Agora fale de você.”
Daqui a pouco vai me falar dela. De repente já não sinto a menor
vontade de lhe contar nada. Para quê? A Náusea, o medo, a
existência... Mais vale que guarde tudo isso para mim.
— Ande logo com isso — grita através da divisória.
Retorna trazendo um bule de chá.
— O que é que você faz? Mora em Paris?
— Moro em Bouville.
— Bouville? Por quê? Espero que não tenha casado.
— Casado? — digo num sobressalto.
Desagrada-me muito que Anny tenha podido pensar isso. Digo-
lhe:
— É absurdo. É exatamente o gênero de imaginações
naturalistas que você me censurava antigamente. Lembra-se?
Quando eu a imaginava viúva e mãe de dois meninos. E todas
aquelas histórias que lhe contava sobre o que viria a nos acontecer.
Você detestava isso.
— E você adorava — responde ela sem se perturbar. — Você
dizia tudo isso para se exibir. Aliás, você se indigna assim em
conversa, mas é bastante traidor para ser capaz de se casar um dia
às escondidas. Durante um ano você protestou com indignação que
não iria ver Violetas imperiales. Depois, num dia em que eu estava
doente, foi ver o filme sozinho num cineminha do bairro.
— Estou em Bouville — digo com dignidade — porque estou
escrevendo um livro sobre o sr. de Rollebon.
Anny me olha com um interesse diligente.
— O sr. de Rollebon? Viveu no século XVIII?
— Sim.
— De fato você me tinha falado a respeito — diz vagamente. —
Então é um livro de história?
— Sim.
— Ha, ha!
Se me fizer mais uma pergunta, conto-lhe tudo. Mas ela não
pergunta mais nada. Aparentemente acha que já sabe o suficiente
sobre mim. Anny sabe escutar muito bem, mas só quando quer.
Olho para ela: baixou as pálpebras, está pensando no que vai me
dizer, na maneira como começará. Devo interrogá-la por minha vez?
Não creio que ela o deseje. Falará quando julgar que chegou a hora
de fazê-lo. Meu coração bate com força. _
Ela diz bruscamente:
— Eu mudei.
Aí está o começo. Mas ela se cala agora. Serve o chá em
xícaras de porcelana branca. Aguarda que eu fale: tenho que dizer
alguma coisa. Não qualquer coisa, mas exatamente o que ela
espera. É um suplício. Terá ela realmente mudado? Engordou,
parece cansada: certamente não é a isso que se refere.
— Não sei. Não acho. Já reconheci seu riso, sua maneira de se
levantar e colocar as mãos em meus ombros, sua mania de falar
sozinha. Você continua lendo a Histoire de Michelet. E uma porção
de outras coisas...
Esse interesse profundo que ela dedica à minha essência eterna
e sua indiferença total por tudo o que pode me acontecer na vida —
e depois esse preciosismo, ao mesmo tempo pedante e encantador
— e também essa maneira de suprimir logo no primeiro contato
todas as fórmulas mecânicas de cortesia, de amizade, tudo o que
facilita as relações entre os homens, de obrigar seus interlocutores a
uma perpétua invenção.
Ela dá de ombros:
— Mudei sim — diz secamente. — Mudei completamente. Já
não sou a mesma pessoa. Pensava que você perceberia desde o
primeiro olhar. E você vem me falar da Histoire de Michelet.
Posta-se em frente a mim:
— Vamos ver se esse homem é tão sagaz como pretende.
Procure: em que foi que mudei?
Hesito; ela bate com o pé no chão, ainda sorrindo, mas
sinceramente irritada.
— Há algo que era um suplício para você antigamente. Pelo
menos era o que dizia. E agora isso terminou, desapareceu. Você
deveria se dar conta. Não se sente mais à vontade?
Não ouso lhe responder que não; estou, exatamente como no
passado, sentado na ponta da cadeira, preocupado em evitar
ciladas, em esconjurar iras inexplicáveis.
Ela voltou a se sentar.
— Pois bem — diz sacudindo a cabeça com convicção —, se
você não compreende é porque esqueceu muitas coisas. Mais ainda
do que eu imaginava. Vejamos, já não se lembra de suas faltas de
antes? Você vinha, falava, ia embora: tudo inoportunamente.
Imagine que nada tivesse mudado: você teria entrado, haveria
máscaras e xales na parede, eu estaria sentada na cama e teria dito
(joga a cabeça para trás, dilata as narinas e fala com voz teatral
como que para caçoar de si própria): “Então? Que está esperando?
Sente-se.” E naturalmente teria evitado cuidadosamente lhe dizer:
“Exceto na poltrona junto à janela.”
— Você me preparava armadilhas.
— Não eram armadilhas... Então, naturalmente você teria ido se
sentar diretamente ali.
— E que me teria acontecido? — digo, virando-me e
contemplando a poltrona com curiosidade.
Tem uma aparência comum, um ar protetor e confortável.
— Só coisas ruins — responde Anny concisamente.
Não insisto: Anny sempre se rodeou de objetos tabus.
— Creio — digo-lhe de repente — que estou adivinhando algo.
Mas seria tão extraordinário. Espere, me deixe procurar: de fato
esse quarto está inteiramente nu. Essa justiça você me fará: notei
isso imediatamente. Bem, teria entrado, teria visto realmente
aquelas máscaras nas paredes, e os xales, e tudo o mais. O hotel
sempre acabava em sua porta. Seu quarto era outra coisa... Você
não teria ido abrir a porta. Eu a teria vislumbrado encolhida num
canto, talvez sentada no chão na moquette vermelha que sempre a
acompanhava, me olhando sem indulgência, aguardando... Mal
tivesse pronunciado uma palavra, feito um gesto, tomado fôlego,
você teria começado a franzir as sobrancelhas e eu me teria sentido
profundamente culpado sem saber por quê. Depois, de minuto em
minuto teria acumulado as gafes, me teria enterrado em meu erro...
— Quantas vezes isso aconteceu?
— Cem vezes.
— No mínimo! Você agora é mais habilidoso, mais aguçado?
— Não!
— Gosto que diga isso. Então!
— Então, o que já não há...
— Ha, ha! — exclama com voz teatral. — Mal se atreve a
acreditar!
Acrescenta com suavidade:
— Pois bem, pode acreditar em mim: não há mais isso.
— Acabaram-se os momentos perfeitos?
— Sim.
Estou estupefato. Insisto.
— Enfim, você não... Acabaram aquelas... tragédias, aquelas
tragédias instantâneas onde as máscaras, os xales, os móveis e eu
próprio representávamos, cada um, nosso pequeno papel — e você
um grande papel?
Ela sorri.
— Que ingrato! Dei-lhe algumas vezes papéis mais importantes
do que o meu: mas não percebeu. Pois bem, sim: terminou. Você
está surpreso?
— Ah! Sim, estou surpreso! Pensava que isso fizesse parte de
você mesma; que, se lhe tirassem isso, teria sido como se lhe
tivessem arrancado o coração.
— Eu também pensava — diz com ar de quem não sente
saudade de nada.
Acrescenta com uma espécie de ironia que me causa uma
impressão muito desagradável:
— Mas, como vê, posso viver sem isso.
Cruzou os dedos e segura um dos joelhos com as mãos. Olha
para o ar, com um vago sorriso que rejuvenesce todo o seu rosto.
Parece uma menina gorda, misteriosa e satisfeita.
— Sim, estou contente por você ter permanecido o mesmo. Se
tivessem mudado você de lugar, repintado, enfiado na beira de uma
outra estrada, eu não teria mais nada de fixo para me orientar. Você
me é indispensável: eu mudo; quanto a você, está estabelecido que
permanece imutável e eu meço minhas mudanças com referência a
você.
Ainda assim me sinto um pouco melindrado.
— Pois bem, isso é bastante inexato — digo com vivacidade. —
Pelo contrário, evoluí muito esses últimos tempos, no fundo, eu...
— Oh! — diz com um desprezo esmagador. — Mudanças
intelectuais! Eu mudei dos pés à cabeça.
Dos pés à cabeça... O que foi então que me perturbou em sua
voz? De toda maneira, bruscamente dei um salto! Deixo de procurar
uma Anny desaparecida. É essa moça, essa moça gorda de
aparência deteriorada que me toca e que eu amo.
— Tenho uma espécie de certeza... física. Sinto que não há
momentos perfeitos. Sinto isso até em minhas pernas quando
caminho. Sinto isso permanentemente, até quando durmo. Não
consigo esquecer. Nunca houve nada que fosse como uma
revelação; não posso dizer: a partir de tal dia, de tal hora minha vida
se transformou. Mas agora me sinto sempre um pouco como se isso
me tivesse sido bruscamente revelado na véspera. Sinto-me
deslumbrada, pouco à vontade, não me habituo.
Diz essas palavras com voz calma onde permanece uma sombra
de orgulho por haver mudado tanto. Balança o corpo na arca em
que está sentada com uma graça extraordinária. Em momento
algum, desde que entrei, se pareceu tanto à Anny do passado, a de
Marselha. Reconquistou-me, mergulhei novamente em seu estranho
universo, para além do ridículo, do preciosismo, da sutileza. Voltei a
sentir até aquela pequena exaltação que sempre me agitava em sua
presença e o gosto amargo no fundo de minha boca.
Anny descruza as mãos e solta o joelho. Cala-se. É um silêncio
planejado; como quando, na Opera, o palco permanece vazio
durante exatamente sete compassos de orquestra. Bebe seu chá.
Depois pousa a xícara e se mantém tesa, apoiando as mãos
fechadas na beira da arca.
Subitamente faz aparecer em suas faces o soberbo rosto de
Medusa que eu amava tanto, totalmente intumescido de ódio,
retorcido, venenoso. Anny não muda nada de expressão; muda de
rosto; como os atores antigos mudavam de máscara: de repente. E
cada uma dessas máscaras se destina a criar a atmosfera, a dar o
tom do que se seguirá. Surge e se mantém, sem se modificar
enquanto ela fala. Depois cai, se desliga dela.
Ela me fixa sem parecer me ver. Vai falar. Espero um discurso
trágico, alçado à dignidade de sua máscara, um canto fúnebre.
Ela diz apenas uma frase:
— Sobrevivo a mim mesma.
O tom não corresponde absolutamente ao rosto. Este não é
trágico, é... horrível: exprime um desespero seco, sem lágrimas,
sem piedade. Sim, há nela algo de irremediavelmente dessecado.
A máscara cai, ela sorri.
— Absolutamente não estou triste. Muitas vezes isso me
espantou, mas eu estava errada: por que ficaria triste? Antigamente
era capaz de paixões de uma grande beleza. Odiei
apaixonadamente minha mãe. Aliás, a você — diz num desafio —
amei apaixonadamente.
Aguarda uma réplica. Não digo nada.
— Tudo isso terminou, é claro.
— Como pode saber?
— Eu sei. Sei que nunca mais encontrarei nada nem ninguém
que me inspire uma paixão. Você sabe, não é tarefa fácil amar
alguém. É preciso ter uma energia, uma generosidade, uma
cegueira... Há até um momento, bem no início, em que é preciso
saltar por cima de um precipício: se refletimos, não o fazemos. Sei
que nunca mais saltarei.
— Por quê?
Ela me lança um olhar irônico e não responde.
— Atualmente — diz — vivo rodeada por minhas paixões
defuntas. Tento recuperar aquela bela fúria que me precipitou do
terceiro andar, quando tinha 12 anos, um dia em que minha mãe me
chicoteara. Acrescenta, sem ligação aparente, com ar distante:
— Também não é bom que fixe os objetos durante muito tempo.
Olho para eles para saber o que são, depois tenho que desviar
rapidamente os olhos.
— Mas por quê?
— Eles me repugnam.
Mas não pareceria que... De toda maneira, certamente há
semelhanças. Já uma vez, em Londres, isso ocorreu, pensamos
separadamente as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos,
mais ou menos no mesmo momento. Gostaria tanto que... Mas o
pensamento de Anny faz inúmeros desvios; nunca se tem certeza
de havê-lo compreendido inteiramente. Preciso ter certeza.
— Escute, gostaria de lhe dizer: você sabe que eu nunca soube
exatamente o que eram os momentos perfeitos; você nunca me
explicou.
— Sim, eu sei, você não fazia nenhum esforço. Era uma estaca
a meu lado.
— Só eu sei o que isso me custou.
— Bem mereceu tudo o que lhe aconteceu, você tinha muita
culpa; me irritava com seu ar sólido. Parecia dizer: eu sou normal; e
se dedicava a respirar saúde, você destilava saúde de espírito.
— Ainda assim, lhe pedi mais de cem vezes que me explicasse o
que era um...
— Sim, mas em que tom — diz com raiva — você condescendia
em se informar... É essa a verdade. Perguntava com uma
amabilidade distraída, como as velhas senhoras que me
perguntavam de que estava brincando, quando eu era pequena. No
fundo — diz com ar pensativo — me pergunto se não foi você quem
mais odiei.
Faz um esforço para se dominar, controla-se e sorri, com as
faces ainda inflamadas. Está muito bonita.
— Quero muito lhe explicar o que é isso. Atualmente já tenho
idade suficiente para falar, sem raiva, com as boas velhotas como
você, sobre as brincadeiras de minha infância. Fale, o que quer
saber?
— O que era aquilo.
— Falei com você sobre situações privilegiadas, não foi?
— Acho que não.
— Sim — diz com segurança. — Foi em Aix, naquela praça de
cujo nome já não me lembro. Estávamos no jardim de um café,
debaixo de guarda-sóis alaranjados, na hora do sol forte. Você não
se lembra: estávamos tomando limonada e achei moscas mortas no
açúcar.
— Ah! Sim, talvez...
— Pois bem, falei de tudo isso nesse café. Já o tinha
mencionado a você a propósito da grande edição da Histoire de
Michelet, a que eu tinha quando era pequena. Era muito maior do
que essa aqui, e suas folhas eram de uma cor pálida, como o
interior de um cogumelo, e também cheiravam a cogumelo. Quando
meu pai morreu, meu tio Joseph se apossou dela e levou todos os
volumes. Foi nesse dia que o chamei de velho porco e minha mãe
me chicoteou e eu pulei pela janela.
— Sim, sim... você deve ter me falado dessa Histoire de
France... Você não a lia num sótão? Como vê, me lembro. Vê que
estava sendo injusta ainda agora quando me acusava de ter
esquecido tudo.
— Cale-se. Então eu levava, como você se lembrou muito bem,
aqueles livros enormes para o sótão. Tinham muito poucas figuras,
talvez três ou quatro em cada volume. Mas cada uma delas ocupava
sozinha uma página inteira, uma página cujo verso ficara em
branco. Isso me impressionava ainda mais, porque nas outras folhas
o texto fora disposto em duas colunas para ganhar espaço. Tinha
um amor extraordinário por essas gravuras; conhecia todas de cor
e, quando relia um livro de Michelet, já as aguardava com cinquenta
páginas de antecedência; sempre me parecia um milagre tornar a
encontrá-las. E depois havia um requinte: a cena que elas
representavam nunca se referia ao texto das páginas imediatas, era
preciso procurar o acontecimento umas trinta páginas adiante.
— Suplico-lhe, fale-me dos momentos perfeitos.
— Estou falando de situações privilegiadas. Eram as que
estavam representadas nas gravuras. Fui eu que as chamei de
privilegiadas, dizia-me que deviam ter uma importância bastante
considerável para que tivessem consentido em utilizá-las como
assunto daquelas imagens tão raras. Tinham sido escolhidas entre
todas, entende? E no entanto havia muitos episódios que tinham um
valor plástico maior, outros que tinham mais interesse histórico. Por
exemplo, para todo o século XVI havia apenas três figuras: uma
referente à morte de Henrique II, outra ao assassinato do duque de
Guise, e uma à entrada de Henrique IV em Paris. Então imaginei
que aqueles acontecimentos eram de uma natureza particular. Aliás,
as gravuras confirmavam minha ideia: seu desenho era tosco, os
braços e as pernas nunca estavam bem ligados aos troncos. Mas
tinham uma imensa grandeza. Quando o duque de Guise é
assassinado, por exemplo, os espectadores manifestam seu estupor
e sua indignação, estendendo, todos eles, as palmas das mãos para
a frente e desviando a cabeça; é muito bonito, parecia um coro. E
não creia que tenham esquecido os detalhes engraçados ou
anedóticos. Viam-se pajens caindo ao chão, cachorrinhos fugindo,
bufões sentados nos degraus do trono. Mas todos esses detalhes
eram tratados com tamanha grandeza e também tamanha falta de
jeito, que se harmonizavam perfeitamente com o resto da figura: não
me lembro de ter visto quadros que tivessem unidade tão rigorosa.
Pois bem, foi daí que tudo se originou.
— As situações privilegiadas?
— Enfim, a ideia que fazia disso. Eram situações que tinham
uma qualidade totalmente rara e preciosa, estilo, se preferir. Quando
eu tinha oito anos, ser rei, por exemplo, me parecia uma situação
privilegiada. Ou então morrer. Você ri, mas havia tantas pessoas
desenhadas no momento da morte, e há tantas que pronunciaram
palavras sublimes nesse momento, que eu acreditava de boa-fé...
Enfim, pensava que entrando em agonia a pessoa era transportada
mais acima de si mesma. Aliás, bastava estar no quarto de um
morto: a morte era uma situação privilegiada, algo emanava dela e
era comunicado a todas as pessoas presentes. Uma espécie de
grandeza. Quando meu pai morreu, me fizeram subir a seu quarto
para vê-lo pela última vez. Ao subir a escada, me sentia muito
infeliz, mas estava como que embriagada por uma espécie de
êxtase religioso; finalmente entrava numa situação privilegiada.
Apoiei-me na parede, tentei fazer os gestos que se impunham. Mas
lá estavam minha mãe e minha tia, ajoelhadas junto à cama,
estragando tudo com seus soluços.
Ela disse essas últimas palavras com azedume, como se a
lembrança ainda fosse pungente. Interrompeu-se; o olhar fixo, as
sobrancelhas erguidas, aproveita a ocasião para reviver a cena uma
vez mais.
— Mais tarde, ampliei tudo isso; acrescentei-lhe primeiro uma
situação nova, o amor (refiro-me ao ato de fazer amor). Olhe, se
nunca entendeu por que me recusava a... algumas de suas
solicitações, agora é uma boa ocasião para entendê-lo: para mim
havia algo que tinha que ser salvo. E depois, então, disse a mim
mesma que devia haver muito mais situações privilegiadas do que
eu poderia contar; finalmente admiti uma infinidade delas.
— Sim, mas afinal de que se tratava?
— Ora essa! Já lhe disse — diz com ar de espanto —, faz 15
minutos que estou lhe explicando.
— Enfim, era preciso sobretudo que as pessoas estivessem
muito apaixonadas, arrebatadas pelo ódio ou pelo amor, por
exemplo; ou então o aspecto exterior do acontecimento tinha que
ser grande, quero dizer, o que se pode ver dele...
— As duas coisas... isso dependia — responde de má vontade.
— E os momentos perfeitos? O que têm a ver com isso?
— Eles vêm depois. Há primeiro sinais que os anunciam. Depois
a situação privilegiada, lentamente, majestosamente entra na vida
das pessoas. Então a pergunta que se coloca é de saber se
queremos fazer disso um momento perfeito.
— Sim — digo —, compreendi. Em cada uma das situações
privilegiadas há certos atos que é preciso fazer, atitudes que é
preciso tomar, palavras que é preciso dizer — e outras atitudes,
outras palavras são estritamente proibidas. É isso?
— Pode ser...
— Em suma, a situação é a matéria: é algo que exige ser
trabalhado.
— É isso — diz ela. — Primeiro seria preciso estar mergulhado
em algo de excepcional e sentir que se poderia organizar isso. Se
todas as condições tivessem sido cumpridas, o momento teria sido
perfeito.
— Em suma, é uma espécie de obra de arte.
— Você já me disse isso — diz com irritação. — Mas não: era...
um dever... Era preciso transformar as situações privilegiadas em
momentos perfeitos. Era uma questão de moral. Sim, pode rir à
vontade: de moral.
Absolutamente não estou rindo.
— Ouça — digo espontaneamente —, também vou reconhecer
meus erros. Nunca a entendi muito bem, nunca tentei sinceramente
ajudá-la. Se tivesse sabido...
— Obrigada, muito obrigada — diz com ironia. — Não espera
que me sinta reconhecida por esses remorsos tardios. Aliás, não lhe
quero mal; nunca lhe expliquei nada com clareza, estava atada, não
podia falar a respeito com ninguém, nem mesmo com você —
sobretudo com você. Sempre havia algo que soava falso naqueles
momentos. Então eu ficava como que perdida. No entanto, tinha a
impressão de estar fazendo tudo o que me era possível.
— Mas o que era preciso fazer? Que ações?
— Como você é tolo, não se pode dar exemplo, isso depende.
— Mas me conte o que tentava fazer.
— Não, não quero falar disso. Mas, se quiser, lhe conto uma
história que me impressionou muito quando estava no colégio.
Havia um rei que perdera uma batalha e tinha sido preso. Estava ali,
num canto, no campo do vencedor. Vê passar seu filho e sua filha
acorrentados. Não chorou, não disse nada. A seguir, vê passar,
também acorrentado, um de seus servos. Então começou a gemer e
a arrancar os cabelos. Você mesmo pode inventar exemplos. Está
vendo: há casos em que não se deve chorar — ou então somos
imundos. Mas se nos cai uma acha no pé, podemos fazer o que
quisermos, gemer, soluçar, pular num pé só. O que seria tolo era ser
o tempo todo estoico: ficaríamos esgotados por nada.
Ela sorri:
— Em outras ocasiões, seria preciso ser mais do que estoico.
Naturalmente você não se lembra da primeira vez que o beijei?
— Sim, muito bem — digo triunfalmente. — Foi nos jardins de
Kew, às margens do Tâmisa.
— Mas o que você nunca soube é que eu me sentara sobre
umas urtigas: meu vestido estava levantado, minhas coxas estavam
cobertas de picadas e, ao menor movimento, havia novas picadas.
Pois bem, nesse caso, o estoicismo não teria bastado. Você
absolutamente não me excitava, eu não sentia um desejo especial
por seus lábios, o beijo que ia lhe dar era de uma importância muito
maior, era um engajamento, um pacto. Então você compreenderá
que aquela dor era impertinente, eu não podia pensar em minhas
coxas num momento como aquele. Não bastava não demonstrar
meu sofrimento: era preciso não sofrer.
Ela me olha orgulhosamente, ainda muito surpresa com o que
fez:
— Durante mais de vinte minutos, durante todo o tempo em que
você insistia para receber aquele beijo que eu estava decidida a lhe
dar, todo o tempo que me fiz de rogada — porque era preciso dar o
beijo segundo as regras —, consegui me anestesiar completamente.
No entanto Deus sabe como minha pele é sensível: não senti nada
até nos levantarmos.
É isso, é exatamente isso. Não há aventuras — não há
momentos perfeitos... Perdemos as mesmas ilusões, seguimos os
mesmos caminhos. Adivinho o resto — posso até tomar a palavra
em lugar dela e dizer eu mesmo o que ela ainda tem a dizer:
— E então você se deu conta de que havia sempre
mulherezinhas aos prantos, ou um sujeito ruivo, ou qualquer outra
coisa para estragar seus efeitos?
— Sim, naturalmente — diz sem entusiasmo.
— Não é isso?
— Oh! Sabe, a longo prazo eu talvez pudesse ter me
conformado com as inadequações de um sujeito ruivo. Afinal me
interessava pela maneira como os outros representavam seu
papel... Não, é antes...
— Que não há situações privilegiadas?
— Aí está. Eu pensava que o ódio, o amor ou a morte se
abatiam sobre nós como línguas de fogo da Sexta-feira Santa.
Pensava que era possível resplandecer de ódio ou de morte. Que
erro! Sim, eu realmente pensava que isso existisse — “o Ódio” —,
que pousava nas pessoas e as erguia acima delas mesmas.
Naturalmente só existo eu, eu que odeio, eu que amo. E então essa
coisa, eu, é sempre a mesma coisa, uma massa que se estira, se
estira... é uma coisa tão semelhante a si mesma que é de admirar
que as pessoas tenham tido a ideia de inventar nomes, de fazer
distinções.
Pensa como eu. Parece-me que nunca a deixei.
— Ouça bem — digo-lhe —, faz um momento que estou
pensando numa coisa que me agrada muito mais do que o papel de
marco que você generosamente me atribuiu: é que nós mudamos
juntos e de maneira idêntica. Prefiro isso, sabe, do que ver você se
afastar cada vez mais e eu ficar condenado a marcar eternamente
seu ponto de partida. Eu vinha lhe contar tudo o que você me
contou — com outras palavras, é verdade. Encontramo-nos na
chegada. Não posso lhe dizer o quanto isso me dá prazer.
— Sim? — diz baixinho, mas com ar obstinado. — Pois bem, de
toda maneira eu preferiria que você não mudasse; era mais
cômodo. Não sou como você, me desagrada saber que alguém
pensou as mesmas coisas que eu. Aliás, você deve estar
equivocado.
Conto-lhe minhas aventuras, falo-lhe da existência, talvez me
alongando demasiadamente. Ela ouve com atenção, os olhos muito
abertos, as sobrancelhas levantadas.
Quando termino, parece aliviada.
— Pois é, mas você absolutamente não pensa as mesmas
coisas que eu. Você se queixa porque as coisas não se dispõem ao
seu redor como um buquê de flores, sem que você se dê ao
trabalho de fazer nada. Mas eu nunca pedi tanto: queria agir.
Lembra quando brincávamos de aventureiro e de aventureira? Você
era aquele a quem as aventuras aconteciam, eu a que as fazia
acontecer. Eu dizia: “Sou um homem de ação.” Lembra-se? Pois
bem, agora digo apenas: não se pode ser um homem de ação.
Aparentemente não pareço convencido, pois ela se entusiasma e
continua com mais força:
— E também há uma quantidade de coisas que não lhe disse,
porque levaria muito tempo para explicar. Por exemplo, teria sido
preciso que eu pudesse me dizer, no exato momento em que agia,
que o que estava fazendo teria consequências... fatais. Não consigo
explicar-lhe direito...
— Mas isso é inteiramente inútil — digo com ar bastante pedante
—, também eu pensei isso.
Ela me olha com desconfiança.
— A acreditar em você, teria pensado tudo da mesma maneira
que eu: você me surpreende.
Não posso convencê-la, só a irritarei se insistir. Calo-me. Sinto
vontade de tomá-la em meus braços.
De repente ela me olha com ar ansioso:
— E então, se pensou tudo isso, que podemos fazer?
Baixo a cabeça.
— Eu me... eu me sobrevivo — repete pesadamente.
Que posso lhe dizer? Sei de razões para viver? Não estou, como
ela, desesperado, porque não esperava muito. Estou antes...
surpreso, diante dessa vida que me é dada — dada por nada.
Conservo a cabeça baixa, não quero ver o rosto de Anny nesse
momento.
— Viajo — prossegue com voz sombria —; estou voltando da
Suécia. Fiquei oito dias em Berlim. Há esse sujeito que me
sustenta...
Tomá-la em meus braços... Para quê? Não posso fazer nada por
ela. Está sozinha como eu.
Anny diz com voz mais alegre:
— O que é que está resmungando?
Ergo os olhos. Ela me olha com ternura.
— Nada. Estava apenas pensando em algo.
— Ó personagem misterioso! Muito bem, fale ou cale-se, mas
decida-se.
Falo-lhe do Rendez-vous des Cheminots, do velho ragtime que
ponho para tocar no gramofone, da estranha felicidade que me
proporciona.
— Perguntava-me se por esse lado não se poderia encontrar ou
enfim procurar...
Não responde nada, acho que não se interessou muito pelo que
lhe disse.
Ainda assim reata, passado um momento, e não sei se
prossegue em seus pensamentos ou se é uma resposta ao que
acabo de lhe dizer.
— Os quadros, as estátuas, tudo isso é inutilizável: é belo em
frente a mim. A música...
— Mas no teatro...
— No teatro o quê? Quer enumerar todas as belas-artes?
— Antigamente você dizia que queria fazer teatro, porque no
palco deviam se realizar momentos perfeitos!
— Sim, realizei-os: para os outros. Ficava na poeira, na corrente
de ar, sob as luzes cruas, entre armações de papelão. Em geral
contracenava com Thorndyke. Creio que você o viu representar no
Covent Garden. Sempre tinha medo de cair na gargalhada na cara
dele.
— Mas nunca se sentia arrebatada por seu papel?
— Um pouco, por momentos: nunca muito intensamente. O
essencial para todos nós era o buraco preto, bem à nossa frente, no
fundo do qual havia pessoas que não víamos; a elas,
evidentemente, era apresentado um momento perfeito. Mas, sabe,
elas não viviam dentro dele: o momento se desenrolava diante
delas. E pensa que nós, os atores, vivíamos dentro? Afinal ele não
estava em parte alguma, nem de um lado nem do outro da ribalta,
não existia; no entanto todo mundo pensava nele. Então, entende,
meu querido — diz com voz arrastada e quase cínica —, mandei
tudo passear.
— Quanto a mim, tinha tentado escrever esse livro...
Interrompe-me.
— Vivo no passado. Recordo tudo o que me aconteceu e
ordeno-o. Assim de longe não dói, e quase nos deixaríamos
enganar. Toda a nossa história é bastante bela. Dou-lhe uns
retoques e o que fica é uma sequência de momentos perfeitos.
Então fecho os olhos e tento imaginar que ainda vivo dentro deles.
Tenho outros personagens também. É preciso saber se concentrar.
Sabe o que li? Os Exercícios espirituais de Loyola. Foi muito útil
para mim. Há uma maneira de colocar primeiro o cenário, depois de
fazer aparecer os personagens. Consegue-se ver — acrescentou
com ar maníaco.
— Pois bem, isso absolutamente não me satisfaria — digo.
— E acha que a mim satisfaz?
Ficamos um momento em silêncio. Cai a noite; mal distingo a
mancha pálida de seu rosto. Sua roupa preta se confunde com a
sombra que invade o quarto. Pego maquinalmente minha xícara na
qual restou ainda um pouco de chá e levo-a aos lábios. O chá está
frio. Sinto vontade de fumar, mas não me atrevo. Tenho a impressão
dolorosa de que já não temos nada mais a nos dizer. Ainda ontem
tinha tantas perguntas a lhe fazer: onde estivera, que fizera, quem
encontrara? Mas isso só me interessava na medida em que Anny se
tivesse dado inteiramente, de todo o coração. Agora não sinto
curiosidade: todos esses países, todas essas cidades por onde
passou, todos esses homens que a cortejaram e que ela talvez
tenha amado, tudo isso era inconsistente para ela, tudo isso, no
fundo, lhe era tão indiferente: pequenos clarões de sol na superfície
de um mar sombrio e frio. Anny está diante de mim, há quatro anos
que não nos víamos e não temos mais nada a nos dizer.
— Agora — diz Anny de repente — você tem que ir embora.
Estou esperando uma pessoa.
— Está esperando...
— Não, estou esperando um alemão, um pintor.
Começa a rir. Esse riso soa estranho no quarto escuro.
— Olhe, esse é um que não é como nós — ainda não é. Esse
age, se esforça.
Levanto-me a contragosto.
— Quando a revejo?
— Não sei, parto para Londres amanhã à noite.
— Por Dieppe?
— Sim, e creio que depois irei para o Egito. Talvez torne a
passar por Paris no próximo inverno, lhe escreverei.
— Amanhã estou livre o dia inteiro — digo timidamente.
— Sim, mas eu tenho muito que fazer — responde com voz
seca. — Não, não posso vê-lo. Escreverei do Egito. Basta que me
dê seu endereço.
— Sim.
Rabisco meu endereço, na penumbra, num pedaço de envelope.
Terei que dizer no hotel Printania que me remetam as minhas cartas
quando deixar Bouville. No fundo, sei muito bem que ela não
escreverá. Talvez a reveja dentro de dez anos. Talvez a esteja
vendo pela última vez. Não estou apenas arrasado por deixá-la;
sinto um medo pavoroso de voltar à minha solidão.
Ela se levanta; na porta, me beija de leve na boca.
— É para me lembrar de seus lábios — diz sorrindo. — Tenho
que rejuvenescer minhas lembranças para os meus “exercícios
espirituais”.
Puxo-a pelo braço e aproximo-a de mim. Ela não resiste mas faz
que não com a cabeça.
— Não. Isso já não me interessa. Não se recomeça... E também,
aliás, quanto ao que as pessoas servem, o primeiro rapaz atraente
que se apresente vale tanto quanto você.
— Mas então o que vai fazer?
— Já lhe disse, vou para a Inglaterra.
— Não, me refiro...
— Ah! Sim, nada.
Não soltei seus braços, digo-lhe baixinho:
— Então tenho que me separar de você depois de havê-la
reencontrado.
Agora distingo nitidamente seu rosto. De repente torna-se lívido
e consumido. Um rosto de velha, absolutamente pavoroso; esse,
tenho certeza de que ela não conjurou: está ali sem que ela tenha
consciência disso ou talvez contra a sua vontade.
— Não — diz lentamente —, não. Você não me reencontrou.
Liberta os braços. Abre a porta. O corredor está inundado de luz.
Anny começa a rir.
— Coitado! Não tem sorte. Pela primeira vez que representa
bem seu papel, não recebe o menor reconhecimento. Vamos, vá
embora.
Ouço a porta se fechar atrás de mim.
Domingo
Esta manhã consultei o guia ferroviário: supondo que não me tenha
mentido, ela partiria pelo trem de Dieppe às 5h38. Mas talvez o
sujeito dela a levasse de automóvel? Perambulei a manhã toda
pelas ruas de Ménilmontant e depois, à tarde, pelos cais. Alguns
passos, alguns muros me separavam dela. Às 5h38 nosso encontro
de ontem se transformaria numa lembrança, a mulher opulenta
cujos lábios haviam roçado minha boca iria ter, no passado, com a
menina magra de Meknès, de Londres. Mas nada ainda era
passado, já que ela ainda estava ali, já que ainda era possível revê-
la, convencê-la, levá-la comigo para sempre. Ainda não me sentia
sozinho.
Queria desviar meu pensamento de Anny, porque, à força de
imaginar seu corpo e seu rosto, caíra num extremo nervosismo:
minhas mãos tremiam e arrepios gelados percorriam meu corpo.
Pus-me a folhear livros nos mostruários de segunda mão,
especialmente as publicações obscenas, pois, apesar de tudo, isso
ocupa a mente.
Quando soaram cinco horas no relógio da estação d’Orsay, eu
estava olhando as gravuras de uma obra intitulada Le docteur au
fouet. Eram pouco variadas: na maioria um grandalhão barbudo
brandia uma chibata em monstruosos traseiros nus. Tão logo
percebi que eram cinco horas, joguei o livro no meio dos outros e
pulei num táxi que me levou à estação Saint-Lazare.
Passeei pela plataforma durante uns vinte minutos, depois os vi.
Anny estava com um pesado casaco de peles que lhe dava a
aparência de uma senhora. E um chapéu com véu. O sujeito, com
um sobretudo de pelo de camelo. Era bronzeado, jovem ainda,
muito alto, muito bonito. Um estrangeiro certamente, mas não um
inglês; talvez um egípcio. Subiram no trem sem me ver. Não se
falavam. Depois o sujeito tornou a descer e comprou jornais. Anny
abaixou o vidro de seu compartimento; viu-me. Olhou-me
demoradamente, sem raiva, com olhos inexpressivos. Depois o
sujeito voltou a subir no vagão e o trem partiu. Nesse momento vi
nitidamente o restaurante de Piccadilly onde almoçávamos no
passado; depois tudo ruiu. Caminhei. Quando me senti cansado,
entrei nesse café e dormi. O garçom acaba de me acordar e estou
escrevendo isso semiadormecido.
Regressarei a Bouville amanhã pelo trem de meio-dia. Basta que
fique dois dias lá: para fazer minhas malas e pôr em ordem os
assuntos de banco. Creio que no hotel Printania vão querer que
pague duas semanas a mais, porque não os preveni com
antecedência. Também tenho que devolver à biblioteca os livros que
me emprestaram. De toda maneira estarei de volta a Paris antes do
fim da semana.
O que lucrarei com a mudança? Continua a ser uma cidade: esta
é cortada por um rio, a outra é margeada pelo mar; afora isso,
parecem-se. Escolhe-se uma terra pelada, estéril, e empurram-se
para lá grandes pedras ocas. Nessas pedras estão aprisionados
odores, odores mais pesados do que o ar. Às vezes jogam-nos nas
ruas, pelas janelas, e eles lá ficam até que os ventos os tenham
dilacerado. Com tempo claro os ruídos entram por uma ponta da
cidade e saem pela outra ponta, após terem atravessado todas as
paredes; outras vezes rodopiam entre essas pedras que o sol
cozinha e o gelo fende.
Tenho medo das cidades. Mas é preciso não sair delas. Se nos
aventuramos até muito longe, encontramos o círculo da Vegetação.
A Vegetação rastejou durante quilômetros na direção das cidades.
Está à espera. Quando a cidade tiver morrido, a Vegetação a
invadirá, trepará nas pedras, irá encerrá-las, esquadrinhá-las,
despedaçá-las com suas longas pinças pretas; cegará os buracos e
deixará pender patas verdes por todo lado. É preciso permanecer
nas cidades enquanto estão vivas, não se deve penetrar sozinho
sob a grande cabeleira que está às suas portas: é preciso deixá-la
ondular e estalar sem testemunhas. Nas cidades, se sabemos como
fazer, se escolhemos as horas em que os animais digerem ou
dormem em seus buracos, por trás dos amontoados de detritos
orgânicos, quase só encontramos minerais, os menos apavorantes
dos entes.
Vou retornar a Bouville. A Vegetação cerca Bouville somente por
três lados. No quarto lado há um grande buraco, cheio de água
preta que se mexe sozinha. O vento assobia entre as casas. Os
odores permanecem menos tempo do que em outros lugares:
enxotados para o mar pelo vento, correm rente à água preta como
pequenos nevoeiros doidivanas. Chove. Deixaram crescer plantas
entre quatro grades. Plantas castradas, domesticadas, inofensivas,
de tão carnudas que são. Têm enormes folhas esbranquiçadas que
pendem como orelhas. Ao tato pareceria cartilagem. Tudo é gordo e
branco em Bouville por causa de toda essa água que cai do céu.
Vou retornar a Bouville. Que horror!
Acordo sobressaltado. É meia-noite. Faz seis horas que Anny
deixou Paris. O barco está no mar. Ela dorme numa cabine e, no
tombadilho, o belo sujeito bronzeado fuma cigarros.
Terça-feira em Bouville
Será isso a liberdade? Por baixo de mim os jardins descem
languidamente em direção à cidade e em cada jardim se ergue uma
casa. Vejo o mar pesado, imóvel, vejo Bouville. O dia está bonito.
Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver, todas as
que tentei cederam e já não posso imaginar outras. Ainda sou
bastante jovem, ainda tenho força bastante para recomeçar. Mas
recomeçar o quê? Só agora compreendo o quanto, no auge de
meus terrores, de minhas náuseas, tinha contado com Anny para
me salvar. Meu passado está morto. O sr. de Rollebon está morto,
Anny só retornou para me tirar toda esperança. Estou sozinho nessa
rua branca guarnecida de jardins. Sozinho e livre. Mas essa
liberdade se assemelha um pouco à morte.
Hoje minha vida chega ao fim. Amanhã terei deixado essa
cidade que se estende a meus pés, onde vivi durante tanto tempo.
Ela passará a ser apenas um nome, atarracado, burguês, bem
francês, um nome em minha memória, menos rico que os de
Florença ou de Bagdá. Chegará uma época em que me perguntarei:
“Mas, afinal, quando estava em Bouville, o que era mesmo que fazia
durante o dia?” E desse sol, dessa tarde, não restará nada, nem
mesmo uma lembrança.
Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo
sua forma e seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há
pouco a dizer sobre ela: é uma partida perdida, eis tudo. Faz três
anos que entrei solenemente em Bouville. Tinha perdido o primeiro
jogo. Quis jogar o segundo e também perdi: perdi a partida.
Concomitantemente aprendi que se perde sempre. Só os Salafrários
pensam que ganham. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver a
mim mesmo. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente,
suavemente, como essas árvores, como uma poça d’água, como o
banco vermelho do bonde.
A Náusea me concede uma trégua curta. Mas sei que voltará: é
meu estado normal. Só que hoje meu corpo está muito extenuado
para suportá-la. Também os doentes têm fraquezas bem-vindas que
lhes tiram por algumas horas a consciência de seu mal. Entedio-me,
isso é tudo. De quando em quando bocejo com tanta força que as
lágrimas me escorrem pelo rosto. É um tédio profundo, profundo, o
coração profundo da existência, a própria matéria de que sou feito.
Não me desleixo, muito pelo contrário: essa manhã tomei banho, me
barbeei. Só que, quando considero todos esses pequenos atos
diligentes, não compreendo como pude fazê-los: são tão inúteis.
Certamente foram os hábitos que os fizeram por mim. Estes não
morreram, continuam a se azafamar, a tecer silenciosamente,
insidiosamente, suas tramas; lavam-me, secam-me, vestem-me,
como amas-secas. Também terão sido eles que me trouxeram a
essa colina? Já não me lembro como vim. Certamente pela
escadaria Dautry: terei realmente subido, um a um, esses 110
degraus? O que talvez seja ainda mais difícil de imaginar é que
daqui a pouco vou descê-los. No entanto eu sei: dentro de um
momento estarei no sopé do Coteau Vert, erguendo a cabeça
poderei ver ao longe as janelas dessas casas que estão tão
próximas se iluminarem. Ao longe. Por cima de minha cabeça; e
esse instante, do qual não posso sair, que me prende e me limita
por todos os lados, esse instante do qual sou feito já não será senão
um sonho indistinto.
Olho aos meus pés as cintilações cinzas de Bouville. Pareciam,
sob o sol, montículos de conchas, de escamas, de esquírolas de
ossos, de saibro. Perdidos entre esses destroços, minúsculos
estilhaços de vidro ou de mica emitem intermitentemente leves
lampejos. Os regos, as valas, os sulcos estreitos que correm entre
as conchas, dentro de uma hora serão ruas, e caminharei por essas
ruas entre paredes. Dentro de uma hora serei um daqueles
homenzinhos pretos que distingo na rua Boulibet.
Como me sinto longe deles, do alto dessa colina. Parece-me que
pertenço a uma outra espécie. Eles estão saindo dos escritórios,
depois de seu dia de trabalho, olham para as casas e para as
praças com ar satisfeito, pensam que essa é a sua cidade, uma
“bela urbe burguesa”. Não têm medo, sentem-se em casa. Nunca
viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra
das lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças,
bastardas, sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes
por dia, que tudo se faz por mecanismo, que o mundo obedece a
leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vazio caem todos
na mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às
16 horas no inverno e às 18 horas no verão, o chumbo funde a 335°,
o último bonde sai da prefeitura às 23h05. Eles são sossegados, um
pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente num
novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna
igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos
domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus
rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances
populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos. No
entanto a grande natureza vaga penetrou em sua cidade, infiltrou-se
por todo lado, em suas casas, em seus escritórios, neles próprios.
Não se mexe, mantém-se quieta, e eles estão bem dentro dela,
respiram-na e não a veem, imaginam que ela está lá fora, a vinte
léguas da cidade. Mas eu vejo essa natureza, vejo-a... Sei que sua
submissão é preguiça, que ela não tem leis: o que acreditam ser sua
constância... Ela tem apenas hábitos e pode mudá-los amanhã.
E se acontecesse alguma coisa? E se de repente ela começasse
a palpitar? Então eles perceberiam que ela está ali e teriam a
impressão de que seus corações iam se quebrar. Então de que lhes
serviriam seus diques e suas muralhas e suas centrais elétricas e
seus altos-fornos e seus martelos-pilões? Isso pode acontecer em
qualquer momento, talvez imediatamente: os presságios aí estão.
Por exemplo, um pai de família, passeando, verá vir em sua direção,
através da rua, um trapo vermelho como que empurrado pelo vento.
E quando o trapo estiver bem perto dele, verá que é um pedaço de
carne podre maculada de poeira, que se arrasta saltitando, um
pedaço de carne torturada que rola nos riachos projetando, por
espasmos, jatos de sangue. Ou então uma mãe olhará para a face
de seu filho e lhe perguntará: “O que você tem aí? É uma espinha?”
e verá a carne empolar um pouco, fender-se, entreabrir-se e, no
fundo da fenda, um terceiro olho, um olho risonho surgirá. Ou então
sentirão suaves roçaduras por todo o corpo, como as carícias que
nos rios os juncos fazem nos nadadores. E perceberão que suas
roupas se transformaram em coisas vivas. Outro sentirá que há algo
arranhando sua boca. E se aproximará de um espelho, abrirá a
boca: e sua língua se terá tornado uma enorme centopeia viva, que
baterá com as pernas e lhe arranhará o céu da boca. Tentará cuspir,
mas a centopeia será uma parte dele mesmo e terá que arrancá-la
com as mãos. E quantidades de coisas surgirão, para as quais será
preciso encontrar novos nomes, o olho de pedra, o grande braço
tricorne, o artelho-muleta, a aranha-maxilar. E quem estiver
dormindo em sua boa cama, em seu tranquilo quarto quente,
acordará inteiramente nu num chão azulado, numa floresta de pênis
estrepitosos, vermelhos e brancos, erguidos para o céu como as
chaminés de Jouxtebouville, com grandes testículos meio saídos da
terra, peludos e bulbosos como cebolas. E pássaros esvoaçarão em
torno desses pênis e os picarão com seus bicos e os farão sangrar.
Escorrerá esperma desses ferimentos, lentamente, suavemente,
esperma misturado com sangue, vítreo e morno, com pequenas
bolhas. Ou então nada de tudo isso acontecerá, não ocorrerá
nenhuma mudança apreciável, mas as pessoas, uma manhã, ao
abrirem suas persianas, serão surpreendidas por uma espécie de
sentido terrível, pesadamente pousado nas coisas e que parecerá
estar à espera. Apenas isso: mas por pouco tempo que isso dure,
haverá centenas de suicídios. Pois bem; sim! Só desejo que tudo
isso mude um pouco, para ver em que dará. Ver-se-ão outros então
mergulhados bruscamente na solidão. Homens inteiramente sós,
sós com suas horríveis monstruosidades, correrão pelas ruas,
passarão pesadamente diante de mim, os olhos fixos, fugindo de
seus males e trazendo-os consigo, a boca aberta, com sua língua-
inseto batendo as asas. Então estourarei de rir, mesmo se meu
corpo estiver coberto de nojentas crostas suspeitas, que se abrem
em flores de carne, em violetas, em ranúnculos. Encostar-me-ei
numa parede e lhes gritarei ao passarem: “Que fizeram de sua
ciência? Que fizeram de seu humanismo? Onde está sua dignidade
de caniço pensante?” Não sentirei medo — ou pelo menos não mais
do que nesse momento. Não será tudo isso sempre existência,
variações sobre a existência? Todos esses olhos que devorarão
lentamente um rosto certamente serão demais, mas não mais do
que os dois primeiros. É da existência que sinto medo.
Cai a noite, acendem-se as primeiras luzes na cidade. Deus
meu! Como a cidade parece natural, apesar de todas as suas
geometrias; como parece esmagada pela noite. Isso é tão...
evidente daqui; será possível que eu seja o único a percebê-lo? Não
haverá em nenhum lugar nenhuma outra Cassandra no cume de
uma colina, olhando a seus pés uma cidade submergida no fundo
da natureza? Aliás, que me importa? Que poderia lhe dizer?
Meu corpo lentamente se volta para o leste, oscila um pouco e
se põe a caminho.
EDITORA RESPONSÁVEL
Maria Cristina Antonio Jeronimo
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Mônica Surrage
REVISÃO
Frederico Hartje
DIAGRAMAÇÃO
Filigrana