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Uma possibili
Uma dade infinita de conexão e informação nos torna
possibilidade
verdadeiramente livres? Partindo
sujeitos verdadeiramente
sujeitos Partindo dessa questão, Han
delineia a nova sociedade do controle psicopolít ico, que não se
psicopolítico,
proibições
impõe com proibiçõ es e não nos obriga ao silêncio: convida-nos
incessantemente a nos comunicar, a compartilhar, a expressar
opiniões e desejos, a contar nossa vida. Ela nos seduz com um
rosto amigável, mapeia nossa psique
psique e a quantifica através dos
¿(g data, nos estimula a usar dispositivos de automonitoramento.
No pan-óptico digital do novo milênio - com a internet e os
smartpliones - não se é mais torturado, ma mass tuitado ou postad o:
postado:
produtores de massas de dados
psique se tornam produtores
o sujeito e sua psique
pessoa
pessoaisis que são constantemente monetizados e comercializados.
te ensaio, Han se concentra na mudança de paradigma
Neste
Nes paradigma que
estamos vivendo, mostrando como a liberdade hoje caminha
para uma dialética fatal transformando-a em constrição: para
para a livre
redefini-la, é necessário tornar-se herege, voltar-se para
para a não conformidade.
escolha, para
BYUNG-CHUL
Psicopol ___ _ _ _ _ _ _HA
itica _ HAN
_ _ _N
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
0 neoliberalismo e a s novas técnicas d e pod
p odee r
_ Maurício Liesen
tradução _
preparação _ _ Ligia A
Az
zevedo
revisão _ Ana Martini, Fernanda A
_ An Alv
lva
ares
SUMARIO
9 CRISE DA LIBERDADE
2 5 PODER INTELIGENTE
2 9 A TOUPEIRA A SERPENTE
E
3 3 BIOPOLÍTICA
3 7 DILEMA DE FOUCAULT
O
45 A CURA COMO ASSASSINATO
4 9 CHOQUE
5 5 AMÁVEL GRANDE IRMÃO
O
59 CAPITALISMO DA EMOÇÃO
O
6 9 GAMIFICAÇÃO
7 7 BIGDATA
1 0 5 PARA ALÉM DO SUJEITO
1 0 9 IDIOTISMO
Proteja-me do que quero
Jenny Holzer
CRISE DA LIBERDADE _ _ _ _ _ _ _ _
A exploração d a liberdade _
___ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
A liberdade terá sido episódica. Um episódio no senti
do de entreato, de conexão entre partes.
partes. Esse sentimento de
liberdade se instaura na pa
pass
ssagem de uma forma de vida à
agem
outra até que esta também se mostre como um modo de
coerção. Assim, uma nova forma de submissão sucede à li
uma
berta
bertação. E esse o destino do sujeito, qu
ção. e literalmente signi
que
fica «estar submetido».
Hoje, acreditamos qu
Hoje, e nã
que o somos sujeitos submissos, mas
não
projetoss livres, qu
projeto que
e se esboçam e se reinventam incessante
mente. A pas passa
sagem do sujeito ao proje
gem to é acompanhada
projeto
lo sentimento de liberdade. E esse mesmo
pelo
pe mesmo proje já não
to já
projeto
se mostra tanto como uma figura de coerção, mas sim como
uma
um forma mais eficiente de subjetivação e sujeição. O «eu»
a forma
como proj eto, qu
projeto, acreditava ter se libertado das coerções
e acreditava
que
externas e das restrições impostas por outros, submete-se
agora a coações internas, na forma de obrigações de desem-
o e otimização.
penho
penh
Vivemos em um momento histórico par
partic
ticular, no qual
ular,
a própria liberdade pro
própria provoca coerções. A liberdade de poder
voca poder
10
(Können) pro duz até mais coações do que o dever (Sollen)
produz
disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem tem um
limite; o poder
poder não. Portanto, a coerção provenient
proveniente e de po
po
der é ilimitada e, por
por esse motivo,
motivo, encontramo-nos em um umaa
liberdade é a antagonista da coerção.
situação paradoxal. A liberdade
Ser livre significa estar livre de coerções. Ora, mas essa liber
dade ququee deveria ser o contrário da coação também produz produz
ela mesma coerções. Doenças psíquicas, como depressão ou
burnout 1 são expressões de um uma a pro
profunda crise da liberda
funda
de: são sintomas pat
patol
ológ
ógico hoje ela se transforma
icoss de que hoje
muitas vezes em coerção. O sujeito do desempenho, qu e se
que
julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na
medida em que, sem um senhor, explora voluntariamente a
si mesmo. Nenhum senhor o obriga a trabalhar. O sujeito
absolutiza a vida nua e trabalha. A vida nua e o trabalho
trabalho são
dois lados de um
umaa mesma moeda: a saúde representa o ideal
da vida nua. A esse servo neoliberal a soberania é estranha,
ou melhor, a liberdade daquele senhor que, segundo a dialé
tica hegeliana servo-senhor, não trabalha e apenas goza. Essa
soberania do senhor consiste em elevar-se além da vida nua e,
consequentemente, em aceitar até mesmo a própri a morte.
própria
I _ Também conhecido como síndrome
síndrome do esgotamento profissional
rN.T,].
11
Esse excesso, essa forma excessiva de vida e gozo, é estranha
ao servo trabalhador, preo
preocupado co
cupado m a vida nua. Ao con
com
trário da suposição hegeliana, o trabalho não liberta o servo:
no obriga também o senhor a trabalhar: a dialética hegeliana
servo-senhor conduz à totalização do trabalho.
O sujeito neoliberal como empreendedor de si mesmo
é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito.
propósito. Entre
empreendedores não surge amizade desinteressada. Co
Con
n
tudo, ser livre significa originalmente estar com amigos.
Liberdade (Freiheit) e amigo (Freund) possuem a mesma
possuem
raiz indo-europeia. Fundamentalmente, a liberdade é uma
palavra relacionai. Só no noss sentimos realmente livres em um
relacionamento bem
relacionamento bem-su-suced ido, em um feliz «estar junto».
cedido, junto».
O isolamento total para para o qual conduz o regime neoliberal
noss torna livres de fato. Assim, nos dias de hoje, coloca-
não no
-se a pergunta para escapar à fatídica dialética da liberdade
pergunta:: para
que
qu e a transforma em coerção, não deveriamos
deveriamos redefinir ou
reinventar a liberdade?
O neoliberalismo é um sistema muito eficiente diria até
-
inteligente - na exploração da liberdade: tudo aquilo que
perte nce às pr
pertence práticass às e formas de expressão da liberdade
ática
(como a emoção, o jogo e a comunicação) é explorado. Ex
plorar
plora própria vontade não é eficiente, na
r alguém contra sua própria
12
medida em que torna o rendimento muito baix
que o. É a explo
baixo.
ração da liberdade qu
ração produz o maior lucro.
e produz
que
define a liberdade
É interessante notar que Marx também define
a partir
partir de uma relação bem-su
uma bem-sucedida com o outro:
cedida
E somente na comunidade (Gemeinschaft) [com os outros
que
qu e cada] indivíduo possui os meios de desenvolver suas
faculdades em todos os sentidos; é somente na comunida
de que a liberdade pessoal é possível.
possível.2*
Ser livre, portanto,
portanto, não significa nada mais do qu
não e se rea
que
lizar conjuntamente. Liberdade é sinônimo de comunidade
bem-su
bem-suced
cedid
ida.
a.
Para Marx, a liberdade individual representa um
umaa astúcia,
a malícia do capital. A «livre concorrência» baseada na
uma
um
ideia da liberdade individual é apenas «a relação do capital
consigo mesmo como outro capital, i.e., o comportamento
do capital como capital»3. O capital intensifica sua re
real do
produçã
prod ução meio da livre concorrên
o na medida em que, por meio
cia, relaciona-se consigo mesmo como outro capital. Graças
2 Karl Marx e Friedrich Engels. .4 ideoloaio alemã. Trad, de Luís
('¡audio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes. I99S. p. 92
92..
3_ Karl Marx. Gnmdi isse: XLiimsclilos econômico.' de /X57-/<S'5X —
da irífna da economia polílica. 1 rad. de Mario I hiaver e Nélio
Schneider. São Paulo: Boitempo. 2() 1 I. p.
p. 524.
13
à liberdade individual, copula com o outro de si mesmo.
O capital se multiplica enquanto competimos livremente
uns co m os outros. A liberdade individual é uma servidão
com
na medida em qu e é tomada
que tomada pelo capital para sua próp
pelo ria
própria
multiplicação. Assim, o capital explora a liberdade do indi
indi
*
I
víduo para se reproduzir: «Na livre concorrência, não são
para
os indivíduos que são liberados, mas o capital».4 A liberdade
do capital se realiza por meio da liberdade individual. Des
sa maneira, o indivíduo livre é rebaixado a órgão genital
do capital. A liberdade individual concede ao capital uma
subjetividade «automática», que o incita à reprodução ativa.
que
Assim, o capital «pare» continuamente «filhotes».5 A liberda
de individual, que atualmente assume uma forma excessiva,
é nada mais nada menos do qu e o excesso do próprio
que próprio capital.
A DITADURA DO CAPITAL
De acordo com Marx, a partir
partir de determinado estágio do
seu desenvolvimento, as forças produtivas (força de trabalho
produtivas
humana, modo de trabalho e meios de prod produçã o) entram
ução)
I Ibid.. p. 31 3.
reinpo. 20 j 3, p. 2( »3.
14
em contradição com as relações de produção dominantes
produção
(de pro
proprie
prieda de e dominação). Isso ocorre porqu
dade porquee as forças
produ
pro tivass se desenvolvem continuamente. Logo, a indus
dutiva
trialização gera novas forças pro
produt ivass que contrariam as
dutiva
relações de pro
proprie
priedade e de dominação típicas do feuda
dade
lismo. Essa contradição pro
provoca crises sociais qu
voca e impelem
que
a mudanças nas relações de produç ão. A antítese é elimina
produção.
da pela luta do proleta
pela luta proletariad o contra a burgu
riado esia,, que produz
burguesia produz
uma
um a ordem social comunista.
Diferente da suposição de Marx, a contradição entre as
forças prod
produti vass e as relações de pro
utiva produç
dução pode ser su
ão não pode
pera
pe da através de um
rada a revolução comunista: ela é de fato in
uma
superável. E exatamente por
por causa
causa dessa contradição intrínseca
e perman ente que o capitalismo escapa para
permanente para o futuro. Assim,
o capitalismo industrial se mutacionou em neoliberalismo e
em capitalismo financeiro com modos de produç ão imateriais
produção
e pós-i
pós-ind
ndus
ustri
triais, em vez de transformar-se em comunismo.
ais,
O neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o
Não é a revolução comunista,
trabalhador um empreendedor. Não
e sim o neoliberalismo qu que exploração alheia da
e elimina a exploração
classe trabalhadora. Hoje, cada um é um trabalhador que ex
plora a si mesmo para
para a sua própria
própria empresa. Cada um é senhor
e servo em umumaa única pessoa. A luta de classes também se
transforma em um
uma
a luta interior consigo mesmo.
15
Os modos de produção contemporâneos não são consti
produção
pela «multitude» colaborativa que Antonio Negri
tuídos pela Negri ele
va à sucessora pós-ma
pós-marxista do «proletariado», e sim pela
rxista pela so-
litude do empreendedor qu e luta consigo mesmo, enquanto
que
explorador voluntário de si. Logo,
Logo, é um erro acreditar que
cooperante derruba o «império parasitário» e
a «multitude» cooperante
produz
prod uz um
uma a ordem social comunista. O esquema esquema marxista
Negri se prende
ao qual Negri prende se mostra novamente uma ilusão.
Com efeito, no regime neoliberal não existe um prole
tariado ou um uma a classe trabalhadora que seria explorada pe lo
pelo
propri
pro prietá rio dos meios de pro
etário produ
duçã
ção. Na prod
o. Na produçã
uçãoo imaterial,
de um jeito
ou de outro, cada um possui
possui seu próprio
próprio meio de
prod
produç
uçãoão.. O sistema neoliberal não é mais um sistema de clas
ses em sentido estrito. Ele não se constitui por
por estratos antagô
nicos da sociedade. E aí que reside a estabilidade do sistema.
A distinção entre prol
proleta
etariad o e burg
riado burguesi
uesia já não se sus
a já
tenta. Literalmente, o pro proletá rio é aquele que tem como
letário
única prop
propried ade a próp
riedade própria
ria pro le. A sua autoprodução se
prole.
restringe à reprodução biológ Hoje, no entanto, é disse-
ica. Hoje,
biológica.
se esboça livremente, é capaz de uma autoprodução
A «ditadura do pro
prole
leta
taria
riado
do» noss dias qu
» é, no e correm, estru
que
turalmente impossível. Somos todos dominados por uma
ditadura do capital.
16
regime neoliberal transforma a exploração imposta po
O regime r
por
outros em uma autoexploração que atinge todas as «classes».
uma
Essa autoexploração sem classes é completamente estranha a
Marx e torna a revolução social impossível, já
que esta é basea
basea
da na distinção entre exploradores e explorados. E, por causa
do isolamento do sujeito de desempenho explorador de si mes
mo, nã o se forma um Nós
não Nós político
político capaz de um agir comum.
Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho,
em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si
mesmo como responsável e se envergonha por por isso. Aí está a
inteligência pe
pecu
culiar do regime
liar regime neoliberal: nã
não
o per
permite que
mite
emerja qualquer resistência ao sistema. No regime de explo
por outros, ao contrário, é possível que os ex
ração imposta por
plora
plo doss se solidarizem e junto
rado s se ergam contra o explorador.
juntos
Essa é a lógica que fundamenta a ideia marxista da «ditadura
do proletariado», que pressupõe, po rém,, relações repressivas
porém
de dominação. Já no regime neoliberal de autoexploração, a
agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela nã o transforma os
não
explorados em revolucionários, mas sim em depressivos.
Atualmente, já não trabalhamos por causa de nossas
rias necessidades, e sim pe
próprias
próp lo capital. O capital gera
pelo
suas pró priass necessidades, qu
própria quee erroneamente perc
percebemos
ebemos
como se fossem nossas. O capital representa uma nova
transcendência, uma nova forma de subjetivação. Uma ve
uma z
vez
17
mais, somos arremessados pa ra fora do plan
para o imánente da
plano
qual a vida se relaciona consigo mesma em vez de
vida, no qual
se sujeitar a um fim extrínseco.
A po
políti ca moderna é caracterizada pe
lítica la emancipação da
pela
ordem transcendente, ou seja, das premissas fundamentadas
na religião. Uma po política,, um
lítica umaa poli
politiz
tizaçã
açãoo completa da so
possível na Modernidade, na qual os recur
ciedade, só seria possível
sos transcendentes de fundamentação já já não têm
têm nenhuma
validade. Assim, as normas de ação poderíam
poderíam ser livremente
negociáveis. A transcendência cedería lugar ao discurso imá
nente à sociedade. Logo, a própria
própria sociedade teria qu
quee se er
guer uma vez mais a partir
partir de sua imanência. Entretanto, essa
liberdade é novamente abandonada no momento em que o
capital ascende a uma nova transcendência, a um novo senhor.
Com isso, a po
política acaba se convertendo novamente em
lítica
servidão: se torna serva do
do capital.
Queremos ser realmente livres? Acaso não inventamos Deus
Queremos
para não termos qu quee ser livres? Diante de Deus, estamos
sempre em dívida, somos sempre culpados6. Mas a culpa
da o I
LI signiíic a tanto ■ culpa” qmmu• -dí\ i •
() () substantivo alemã«> .S'« I I h i LI
forma malogi. seu adjetivo derivado pode <o :radu-
culpado ou endividado l.ssa ambiguidade do e
zido tanto como culpado
comparação entre o- capitalismo e a retipão
explorada por Man em sua comparação
¡Ni.].
18
(Schuld) destrói a liberdade. Os políticos de hoje responsabi
políticos
lizam o endividamento elevado (Verschuldung) pela extrema
limitação de sua liberdade de ação. Se não temos dívidas
(schuldenfrei), ou seja, se somos completamente livres, preci
preci
samos açir seriamente. Talvez nos endividemos perman en
permanen
temente para
para qu e não preci
que precisemoss agir, ou seja, para
semo para não ser
para não termos que assumir responsabilidades. As
os livres, para
mos
dívidas elevadas não seriam a prova
prova de qu e ainda não conse
que
Não seria o capital um novo deus, que nos
guimos ser livres? Não
torna novamente devedores? Walter Benjamín concebe o
torna
capitalismo como uma religião. É o «primeiro caso de culto
uma
não expiatório, mas culpabilizador». Já que não existe ne
não ne
nhuma po
poss
ssibi
ibili
lidade de quitar as dívidas, o estado da falta
dade
de liberdade se per
perpe consciência de
tua:: «Uma monstruosa consciência
petua
culpa que não sabe como expiar lança mão do culto não para
mão para
expiar essa culpa, mas para
para torná-la universal». 7
A DITADURA DA TRANSPARÊNCIA
No início, a rede digital foi celebrada como um médium
de liberdade ilimitada. O primei
primeiro
ro slogan public
publicitário da Mi
itário
crosoft, «Aonde você quer ir hoje?», sugeria um
umaa liberdade e
der. São p. 22.
São Paulo: Boitempo. 2013. p.
19
uma mobilidade sem fronteiras na internet. Hoje, essa eufo
já se mostrou um
ria já umaa ilusão. A liberdade e a comunicação
ilimitadas se transformaram em monitoramento e controle
total. Cada vez mais as mídias sociais se assemelham a pan-
pan-
-ópticos digitais que observam e exploram impiedosamente
o social. Mal nos livramos do pan-óptic
pan-ópticoo disciplinar e já
já en
contramos um novo e ainda mais eficiente.
Com fins disciplinares, os internos do pan-ópt
Com ico ben-
pan-óptico
thaminiano eram isolados uns dos outros, de modo que não
conversassem. Os internos do pan-ópti
pan-óptico
co digital, por sua
vez, comunicam-se intensivamente e expõem-se por von
comunicam-se intensivamente
tade própria
própria.. Participam assim, ativamente, da construção do
pan-óptic
pan- o digital. A sociedade digital de controle faz uso
óptico
intensivo da liberdade. Ela só é possível graças à autorreve-
lação e à autoexposição voluntárias. O Grande Irmão digital
repassa, por assim dizer, seu trabalho aos internos. Assim, a
acontece por coação, mas a partir
entrega dos dados não acontece partir de
a necessidade interna. Aí reside a eficiência do pan-óp
uma
um pan-óp
tico digital.
A transparência também é reivindicada em nome da liber
dade de informação. Na Na verdade, ela não é nada mais do que
um dispositivo neoliberal. Ela vira tudo violentamente par a
para
fora, para qu
para quee possa produzir Noss modos atuais
produzir informação. No
de produç
produção ão imaterial, mais informação e mais comunicação
20
significam mais prod
produtividade,, aceleração e crescimento. A
utividade
informação é uma positi
uma positivid
vidade que, por
ade por carecer de interiori-
dos os limiares, os muros e os abismos são eliminados. As
porque a interiori-
também são «desinteriorizadas», porque
pessoas também
dade atrapalha e retarda a comunicação. Contudo, a desin-
teriorização da pessoa
pessoa não
não acontece de forma violenta, mas
sim como exposição voluntária de si mesmo. A negativi-
dade da alteridade ou do estranhamento se transforma na
positiv
pos itividade da diferença ou da diversidade comunicáveis,
idade
consumíveis. O dispositivo da transparência obriga a uma
exterioridade total com o objetivo de acelerar a circulação
de informação e comunicação.
comunicação. No final, a abertura serve à
comunicação sem limites, qu e é oposta ao fechamento, à
que
reserva e à interioridade.
Uma
Um a conformidade total é outra
outra consequência
consequência do dispo
sitivo da transparência. A supressão de divergências faz parte
parte
da economia da transparência. A conexão e a comunicação
totais já
possu em em si um efeito nivelador. Geram um efeito
possuem
21
dor. A liberdade do cidadão cede diante da passi
passivid
vidad
ade
e do
consumidor. Atualmente, o eleitor enquanto consumidor
consumidor.
não tem nenhum interesse real pela
pela polític
política, pela formação
a, pela
ativa da comunidade. Não está disposto
disposto a um comum agir
polític
polí o, tampouco é capacitado par
tico, a tal. O eleitor apenas
para
reage de forma passiva à política,, criticando, reclamando,
política
exatamente como faz o consumidor diante de um produto
produto
ou de um serviço de que não gosta. Os polític
não os e os par
políticos par
lógica do consumo. Eles têm que
seguem a mesma lógica
tidos seguem
fornec
forn er. Com isso, degradam-se a fornecedor
ecer. fornecedores,
es, que têm que
satisfazer os eleitores como consumidores ou clientes.
A transparência que hoje se exige dos políti cos é tudo me
políticos
nos um
uma política. Não se reivindica a transparên
a demanda política.
para os processos políticos
cia para políticos de decisão, nos quais nenhum
consumidor está interessado. O imperativo da transparência
serve, acima de tudo, para
para desmascarar ou expor a classe do
doss
22
polít
políticos, para transformar individuos em objeto de escán
icos,
dalo. A reivindicação por transparência press
pressup
upõe
õe a posi
posiçã
ção
o
de um espectador a ser escandalizado. Nã
Nãoo é urna deman
da de um cidadão engajado,
engajado, mas de um espectador passivo.
passivo.
A pa
partic
rticipa
ipaçã
çãoo ocorre em forma de reclamação e queixa.
Povoada por espectadores e consumidores, a sociedade da
Povoada
transparência funda urna democracia de
de espectadores.
A autodeterminação informacional é urna parte
parte essencial
da liberdade. Já na deliberação do Tribunal Constitucional
Federal da Alemanha sobre o censo nacional em 1984, lê-se:
O direito à autodeterminação informativa não seria com
patível com um
umaa ordem social e seu respectivo sistema le
gal nos quais, aos cidadãos, na permitido saber
o lhes fosse permitido
nao
quem, que, quando e sob quais circunstâncias se obtêm
algumao informação a seu respeito.
No entanto, isso foi num momento em que se acredita
que
va que era necessário confrontar o Estado como instância
que
de dominação que arrancava dados dos cidadãos contra a
vontade deles. Essa época passou
passou há muito tempo. Hoje nos
expomos voluntariamente sem qualquer coerção, sem qual
decreto. Colocamos na rede todo tipo de dados e infor
quer decreto.
mações pessoais, sem avaliar as consequências.
pessoais, consequências. Esse caráter
incontrolável representa uma gravíssima crise da liberdade.
uma
23
Tendo em vista a quantidade de informação que se lança
voluntariamente na rede, o próprio
próprio conceito de proteção de
proteção
dados se torna obsoleto.
Hoje, caminhamos para a era da psic
para psicopo
opolítica digital,
lítica
que avança da vigilância passiva ao controle ativo, empur
rando-nos, assim, para um
umaa nova crise da liberdade: até a
até
própria é atingida. Os big data são um instrumento
vontade própria
psicopolí
psicopolítico muito eficiente, que perm
tico ite alcançar um co
permite co
nhecimento abrangente sobre as dinâmicas da comunicação
social. Trata-se de um conhecimento de dominação que permi
permi
te intervir na psique e que pod
psique e influenciá-la
pode influenciá-la em um nível
pré-re
pré-reflex
flexivo
ivo..
A abertura do futuro é constitutiva par para a a liberdade de
ação. Contudo, os big data tornam possíveis
possíveis prognó
prognóststicos so
icos
bre o comportamento humano. Dessa maneira, o futuro se
previsível e controlável. A psico
torna previsível psicopol
políti ca digital transfor
ítica
ma a negatividade da decisão livre na positividade
positividade de um estado
de coisas. A própria pessoa se posit
própria pessoa positiv
iviz que é quan-
a em coisa, que
iza
tificável, mensurável e controlável. Nenhum
Nenhuma porém é
a coisa porém
livre: todavia, é mais transparente do que um pessoa.. Os big
a pessoa
uma
data anunciam o fim da pessoa
pessoa e do livre-arbítrio.
Cada dispositivo, cada técnica de dominação, produz
produz
próprios objetos de devoção, que são empregados para
seus próprios para
a submissão, materializando e estabilizando a dominação.
24
Devoto significa submisso. O smartphone é um objeto digital
de devoção. Mais ainda, é o objeto de devoção do digital por
por
excelência. Como aparato de subjetivação, funciona como
o rosário, e a comparação pode
pode ser estendida ao seu manu
manu
envolvem autocontrole e exame de si . A do
seio. Ambos envolvem
minação aumenta sua eficiência na medida em qu quee delega a
vigilância a cada um dos indivíduos. O curtir é o amém di
gital. Quando clicamos nele, subordinamo-nos ao contex
to de dominação. O smartphone não é apenas um aparelho
to
de monitoramento eficaz, mas também um confessionário
móvel. O Facebook é a igreja ou a sinagoga (que literal
mente significa «assembléia») do digital.
25
PODER INTELIGENTE
O poder tem formas de manifestação bem diferentes. A
poder
mais direta e imediata se expressa como negação da liber
dade. Ela habilita os pod
poder ososs a impor sua vontade, por
eroso
meio da violência contra a vontade daqueles submetidos ao
er. Contudo, o poder
poder.
pod poder não se limita a quebrar a resistên
cia e compelir à obediência: não
não tem que necessariamente
assumir a forma de um
uma a coerção. O pode r que depende da
poder
poder máximo: o simples fato de
violência não representa o poder
que um
uma vontade contrária surja e se oponha àquele que o
a vontade
detém é a pro
prova va da fraqueza do seu pod er. O pod
poder. er está
poder
precis
precisam
ament
ente e onde não é posto
posto em evidência. Quanto maior
é o pod er,, mais silenciosamente atua. Ele se dá sem ter que
poder
apontar ruidosamente para para si mesmo.
O pode
poder pode se expressar como violência ou repressão,
r pode
mas não se baseia nisso. Não é necessariamente excludente,
proibitiv
proi o ou censor. E não se opõe à liberdade: po
bitivo de até
pode
mesmojusá-la. Apenas em sua forma negativa é que o poder
poder
se manifesta como violência negadora que verga as vontades
e nega a liberdade. Hoje, o poder
poder assume cada vez mais uma
26
forma permissiva.
permissiva. Em sua perm
permiss
issiv
ivid
idade, ou melhor, em sua
ade,
afabilidade, o pode põe de lado sua negatividade e se pass
r põe
poder passaa
por liberdade.
O poder disciplinar ainda está completamente domina
poder
do pela negatividade. Ele se articula de forma inibitória, nã
do o
não
permissiva. Devido à sua negatividade, nãonão po de descrever
pode
o regime neoliberal qu e reluz na posit
que positiv
ivid
idad
ade. técnica de
e. A técnica
poder do regime neoliberal assume um
uma a forma sutil, flexível
e inteligente, escapando a qualquer visibilidade. O sujeito
con
con
texto de dominação perma
permanece inacessível a ele. É assim qu
nece e
que
ele se sente em liberdade.
Ineficiente é todo poder
poder disciplinar que, com grande es
forço, aperta violentamente as pessoas com um espartilho
de ordens e proibiç ões.. Muito mais eficiente é a técnica de
proibições
poder qu
quee faz com ququee as pessoas se submetam ao contex
to de dominação por si mesmas. Essa técnica bu sca ativar,
busca
motivar e otimizar, não obstruir ou oprimir. A parti cula--
particula
ridade da sua eficiência está no fato de qu
ridade e não ag
que agee através
da proib
proibiçã
içãoo e da suspensão, mas através do agrado e da
satisfação. Em vevezz de tornar as pessoas
pessoas obedientes, tenta dei
xá-las dependentes.
O poder inteligente e amigável não ag agee frontalmen
frontalmen
te contra a vontade doss sujeitos subjugados, controlando
vontade do
27
suas vontades em seu próprio ben
benefício. É mais afirmador
efício.
que negador, mais sedutor que repressor. Ele se esforça
em produzir emoções pos
positivas e explorá-las. Seduz, em
itivas
vez de proibir. Em vez de ir contra o sujeito, vai ao se
proibir. u
seu
encontro.
O poder inteligente se pla
plasma à psi
sma que,, em vez de dis
psique
cipliná-la e submetê-la a coações e proi
proibições.. Nã
bições o nos
Não
nenhum silêncio. Ao contrário, ele nos convida a
impõe nenhum
compartilhar incessantemente, parti
participando,, dando opi
cipando
niões, comunicando necessidades, desejos e pre
prefe
ferên
rências,
cias,
contando sobre nossa própria poder afável é, por
própria vida. Esse poder por
assim dizer, mais poderoso do que o repressor. Ele escapa
a toda visibilidade. A atual crise da liberdade consiste em
em
estar diante de um
umaa técnica de poder que não rejeita ou
oprime a liberdade, mas a explora. A livre escolha é extinta **
prol de uma livre seleção entre as ofertas disponíveis.
em prol
Com a aparência liberal e afável que estimula e seduz, o
er inteligente é mais efetivo do que qualquer um que
poder
pod
ameace pr
pres
escre
creva
va..
ordene, e O curtir é seu signo: enquanto
consumimos e comunicamos, ou melhor, enquanto clica
mos curtir, nos submetemos ao contexto de dominação. O
neoliberalismo é o capitalismo do curtir. Ele se diferencia fun
damentalmente do capitalismo do século XIX, que operava
com coações e proibições disciplinares.
proibições
28
O poder inteligente lê e avalia nossos pensam
poder inteligente pensamentos cons
entos
cientes e inconscientes. Baseia-se na auto-organização e na
otimização pessoal voluntárias. Assim, não precisa superar
pessoal
nenhuma resistência. Essa dominação não necessita de ne
não ne
nhum grande esforço, de nenhuma violência, porque sim
porque
plesmen
plesm te acontece. Deseja dominar busca
ente ndo agradar e ge
buscando ge
rando depe Assim, o seguinte aviso é inerente ao
capitalismo do curtir: «Proteja-me do que
29
podem
pode m ser distribuídos no espaço e ordenados no tempo. A
toupeira é o animal da sociedade disciplinar.
Em seu «Post-scriptum sobre as sociedades de controle»,
Deleuze diagnostica uma crise geral de todos os ambientes
de reclusão.1 Seu fechamento e sua rigidez, no entanto, não
são apropriados pa ra formas de produç
para ão pós-
produção pós-indus
industriais,
triais,
imateriais e em rede, qu
quee insistem em mais abertura e disso
lução de fronteiras. A toupeira, entretanto, não pode
pode tolerar
essa abertura. Em seu lugar assume a serpente, o animal da
5 (jiiles I k*leuzc. -Posr-s< riprum sob?e i icdade dc on¡ri-<
rsiicêts, 1072-/VMP. [ rad.
In:
rad. de Petcr Pá! Peiban. São Paula: 1 d. 34
34..
i pp, 2 i 9-26.
30
sociedade neoliberal do controle, que sucede a sociedade
disciplinar. Ao contrário da toupeira, a serpente não se mo
não mo
vimenta em espaços techados; é a partir do movimento que
abre espaço. A toupeira é trabalhadora. A cobra, por
por sua vez, é
empreendedora. É o animal do regime neoliberal. A toupeira
se move em espaços pré-in
pré-insta
stalados, e por
lados, por isso se submete a
restrições. É um sujeito submisso. A serpente é um projeto,
projeto,
na medida em qu e cria espaço a parti
que r de movimento. A
partir
passa
pa ssage
gem para a serpente, do sujeito ao projeto,
m da toupeira para projeto,
não é um
uma para urna forma de vida completamente
a irrupção para
diferente, mas uma mutação, um agravamento do próp
próprio
rio
capitalismo. A reduzida capacidade de movimento da tou
ra coloca limites à prod
peira
pei produti
utividade. Mesmo qu
vidade. e trabalhe
que
com disciplina, ela não pode ir além de determinado nível
pode
de prod
produti
utividade. A serpente anula essas limitações através
vidade.
de novas formas de movimento. Assim, o sistema capitalista
passaa do modelo-toupeira para
pass para o modelo-serpente, aumen
tando a produtivi
produtividad
dade.
e.
De acordo com Deleuze, o regime disciplinar se organiza
como «corpo». É um regime biop biopolítico.. Por sua vez, o re
olítico
gime neoliberal se comporta como «alma».2 Desse modo, a
psicopolí
psic forma de governo. Ela «introduz o tempo
tica é sua forma
opolítica
2_ IbicL. p. 221.
todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, [como]
uma
excelente motivação». A motivação, o proj eto,, a competi
projeto
ção, a otimização
otimização e a iniciativa são inerentes à técnica psi-
copolítica de dominação do regime neoliberal. A serpente
encarna acima de tudo a culpa (Schuld), as dívidas (Schulderí),
que o regime neoliberal emprega como meio de dominação.
33
BIOPOLÍTICA
Segundo Foucault, desde o século XVII o poder
nã
já
poder o se
não
manifesta como poder de morte nas mãos de um soberano
poder
semelhante a Deus, e sim como poder disciplinar. O poder
soberano é o poder da espada, qu
poder e ameaça com a morte.
que
Toma para si «o privilégio de se apoderar da vida para
privilégio para supri
mi-la».1 O pode
poder
r disciplinar, ao contrário, não é um poder
não poder
não é matar,
poder de vida, cuja função já
de morte, mas um poder
n sim afirmar completamente
mas completamente a vida.2 A antiga potên cia
potência
de decidir sobre a morte cede lugar a urna cuidadosa «ad
ministração dos corpos» e à «gestão calculista da vida»? A
pass
passagem do pode
agem r soberano ao pode
poder r disciplinar se deve
poder
à alteração das formas de prod
produçã
ução;
o; mais prec
precisa
isamente,, da
mente
pass
passag em da produção
agem produção agrária à industrial. O avanço da in-
í_ iMiclit) hnic citilc. Ih'tóiid dd 't \ uaiidddr. í.¡n\> /:
J
/: ¡-r-niddí dc -j-
7.
hci. 17. ed. \. í. liad. d< Maria 1 ¡¡c!cza da ( osra A1 bt iquc: <|i ¡ ■ - c
\
G IL Albuqik rcjnc. Kio dc ¡aiieiii’: Giaai. 2*p>. í 4>>.
2_ iDid.. p. I 52.
dustrialização torna necessário disciplinar o corpo e adap
tá-lo à pro
produção mecânica. Em vez de torturar o corpo, o
dução
er disciplinar o insere em um sistema de normas. Um
poder
pod a
Uma
coerção calculada perpassa todas as partess do corpo até a
parte
automação dos hábitos e a transformação
transformação do corpo em umumaa
máquina de prod
máquina ução.. Um
produção a «ortopedia concertada»4 forma
Uma
a «máquina» a partir
uma
um partir de uma «massa informe». De acordo
uma
com Foucault, disciplinas são
métodos que perm item o controle minucioso das opera
permitem
ções do corpo, que realizam a sujeição constante de suas
forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade.5
uma
O poder disciplinar é um poder
poder poder normativo que submete
que
o sujeito a um conjunto de regras, obrigações e proibiç
proibiçõe s,
ões,
eliminando desvios e anomalias. A negatividade do adestra
mento é constitutiva para disciplinar e nisso se parec
para o poder
poder disciplinar e
parece
ao pode r soberano, que tem como base a negatividade da
poder
poder soberano quanto o poder
absorção. Tanto o poder poder disciplinar
colocam em ato um uma a exploração que prod
produzuz o sujeito da
obediência.
35
A técnica disciplinar passa
passa da esfera corpórea àquela men men
tal. O termo inglês industry (indústria) significa também
pode significar casa de
«esforço». A locução industrial school pode
correção. Bentham também sugere que seu pan-ópticpan-óptico o me
me
lhoraria moralmente os internos. Contudo, a psique psique não está
não
poder disciplinar. A técnica ortopédica do poder
no foco do poder poder
disciplinar é muito grosseira para penetrar ñas camadas mais
para penetrar
profun
pro dass da ps
funda psique - com seus desejos ocultos, suas ne
ique
cessidades e seus anseios - e apoderar-se deles. Também o
Grande Irmão de Bentham observa seus internos apenas de
pan-óptico está ligado ao médium óptico. Não tem
fora. Seu pan-óptico
nenhum acesso a pensamentos
pensamento s ou necessidades íntimas.
O pode r disciplinar descobre a «população» como massa
poder
de produçã
produção o e reprodução que deve ser administrada meti
culosamente. A biopolí
biopolític a se ocupa dele. A reprodução, as
tica
taxas de natalidade e mortalidade, a qualidade da saúde e a
estimativa de vida se tornam objeto de controles regulató-
rios. Foucault fala expressamente da «biopolítica da popu
popula
la
ção».6 A biop
biopolítica é a técnica de governança da socieda
olítica
de disciplinar, mas é totalmente
totalmente inadequada para o regime
para
neoliberal, que, antes de tudo, explora a psique.
psique. A biopo
biopolílí
tica, qu
quee usa as estatísticas demográficas, não possuii acesso
possu
6_ Foucault, Hislária da sexualidade,
sexualidade, op. cir., livro I. p. Io2.
36
ao psíquico.. Ela nã
psíquico o fornece um psicograma
não psicograma da popula ção.. A
população
demografía nã o é um
não umaa psicografia; não explora a ps
não psique.. Aí
ique
reside a diferença entre a estatística e o ó/ç data. A partir
partir do
ó/ç d(7íi7 é possí
possível
vel extrair não apenas o psi
não psicog
cogram
rama a indivi
dual, mas o psicogra ma coletivo, e quem sabe até o psicograma
psicograma psicograma
do inconsciente. Isso per
permiti ría expor e explorar a ps
mitiría psiqu e até
ique
o inconsciente.
o DILEMA DE FOUCAULT
Após Vigiar e punir,
punir, Foucault claramente se deu conta de
Foucault claramente
que a sociedade disciplinar não refletia de forma exata seu
não
tempo. Assim, no final da década de 1970, ele se dedicou
à análise das formas de governo neoliberais. O pro
problema,,
blema
contudo, foi qu e per
que perman
manece
eceu ligado tanto ao conceito de
u ligado
popula
pop ção quanto ao de biopo
ulação biopolític
lítica:
a:
Só depois que soubermos o que era esse regime gover
namental chamado liberalismo é que poderem os, parec
poderemos, e-
parece-
-me, apreender o que é a biopolítica.
biopolítica.’
No decorrer do curso dado no Collège de France, Fou
Fou
cault não menciona mais a biopolítica. Tampouco fala so
biopolítica.
bre o conceito de pop
popula
ulação. Aparentemente, ainda não
ção.
lhe parecia
parecia claro que a biopolíti
que ca e a populaç
biopolítica ão,, como ca
população
tegorias genuínas da sociedade disciplinar, não são adequa
das para descrever o regime neoliberal. Logo, não realiza
para
38
a virada pa ra a psicopolí
para psicopolítica
tica que teria sido necessária.2 Em
que
portanto, Foucault não chega à análi
curso 1978-9, portanto,
seu deíticaa neoliberal. Ele até se mostra
se da bio
biopol
polític autocrítico a
esse respeito, sesemm ter, contudo, reconhecido o verdadeiro
proble
problema
ma::
Gostaria de lhes garantir que, apesar de tudo, eu tinha a
intenção, no começo, de lhes falar de bio
biopol
política, mas,
ítica,
sendo as coisas como são, acabei me alongando, me alon
gando talvez demais, sobre o neoliberalismo.3
Na introdução do seu Homo
Homo sacer, Agamben exprime esta
convicção:
A morte impediu que Foucault desenvolvesse todas as im-
2
d.
?’iiu l 'iop( >lít u a: \ . p. irrarao. a pdcoiecnk a pode - mm
mm mmda
governo biopoliruo- ^Alexandra Ram Ib'yJmpcdii dm .\Luhl, Snbh'b'1 mid
¡'•< »politicamente o regnm neolibcial Cf. 1 homas I cmkc (Oiyh ( mu-
( i ’icmmmdm'n dii C b nmm r. ''diidmn :m ( dmimiimici mm dm Smmilcii.
Frankfurt: .kuhrkamp, 2 <> .
? Foiicaulr. <> iimcimciim dü bmjnddicm op. cit.. p. 257.
ões do conceito de bio
plicações
plicaç biopo
política e mostrasse em que
lítica
4
sentido teria aprofundado ulteriormente a sua investigação.
No entanto, diferentemente da hipótese de Agamben, a
morte prem
prematura de Foucault, se muito, privou
atura -lhe da pos
privou-lhe
sibilidade de repensar sua ideia de bio
biopol
políti ca e abandoná-la
ítica
em favor de um
uma psicopo
a psico polí
lítica neoliberal. Tampouco a análi
tica
se agambeniana sobre a dominação fornece acesso às técnicas
poder do regime neoliberal. Os homines sacri de hoje não
de poder
são mais os excluídos, mas os incluídos no sistema.
Foucault vincula expressamente a biopol
biopolític
íticaa à forma dis
f
ciplinar do capitalismo, que, em sua forma
cializa o corpo: «Foi no bio
biológ
forma pro
produ tiva,, so
dutiva
ico,, no somático, no corporal
lógico
que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O cor
5
po é um
uma
a realidade bio
biopo
políti
lítica». Assim, a bio
ca». biopol
política está
ítica
fundamentalmente associada ao biol
biológico e ao corporal.
ógico
Em última instância, trata-se de uma política dos corpos em
uma
sentido amplo. O neoliberalismo como forma de evolução
ou mesmo como mutação do capitalismo não se pre
preocu
ocupa
pa
primari
primariamente com o «biológico, o somático, o corporal».
amente
Antes, descobre a psique
psique como força produ tiva.. A virada para
produtiva para
a psique
psique e, em consequência, para
para a psicopol
psicopolítica
ítica,, também está
relacionada à forma de pro produ
duçã o do capitalismo atual, pois
ção
ele é determinado por modos imateriais e incorpóreos. São
produ
pro duzid os objetos intangíveis, como informações e progra
zidos progra
mas. O corpo como força pro produt iva não é mais tão cen
dutiva
tral como na sociedade disciplinar bio biopo
políti ca.. Em vez de
lítica
superar resistências corporais, processos ps psíqu
íquic os e mentais
icos
são otimizados para o aumento da pro produ
dutiv
tivida
idadede.. O disci-
plinam
pli namen
entoto corporal dá lugar à otimização mental. Assim,
o neuro-enhancement 66 se diferencia fundamentalmente da dass
técnicas psiq
técnicas psiqui
uiát
átricass disciplinares. Hoje, o corpo é liberado
rica
do process
processoo imediato de pro
produç ão e se torna um objeto de
dução
otimização estética ou técnico-sanitária. Logo, a interven-
ção ortopédica dá lugar à estética. O «corpo dócil» pro propos to
posto
por Foucault já
já não tem lugar no pro proce
cesso de pro
sso produç ão. A
dução.
ortopedia disciplinar é substituída pelas cirurgias plástic as e
plásticas
academias. Todavia, a otimização corporal significa muito
mais do que mera prátic a estética. Os termos sexy e Jitness
prática tor-
nam-se recursos econômicos
econômicos qu quee devem ser multiplicados,
comercializados e explorados.
iilhiiiccmcHi descreve
descreve o aumento do rendimento psíquico
psíquico
nor meio de psicotropicos | N.’l
nor
Bernard Stiegler reconhece, com razão, qu
com quee o concei
to foucaultiano de biopo der já não é apropriado ao nosso
biopoder
tempo:
Tenho a impressão de que o biopoder,
biopoder, que Foucault des
creveu de forma tão convincente num sentido histórico
e geográfico, em relação à Europa, não é o mesmo poder
poder
que
qu e marca nossa época atual.7
De acordo com Stiegler, no lugar do biopoder entra
biopoder entra
riam as «psicotecnologias do psi
psico
copo
pode r», dentre as quais,
der»,
entretanto, ele inclui a «indústria telecrática», que produz
produz
progra
programa s, como a televisão, que nos colocaria sob a tutela
mas,
de um consumismo impulsivo e conduziria à regressão da
massa. A essa psic
psicoté
otécnic
cnica opõe as técnicas da escrita e
a ele opõe
da leitura. De acordo com Stiegler, o meio da escrita remereme
te ao Iluminismo. Ele se reporta, assim, a Kant: «D «Dee fato,
o próprio Kant pa
próprio rte de um dispositivo de leitura e escrita
parte
como o fundamento da maioridade». 8 E problem
problemátic o o peso
ático peso
excessivo qu e Stiegler dá à televisão. Ele a eleva a aparelho
que
psicoté
psicotécnic
cnico por excelência:
o por
42
Rádio, internet, celulares, iPods, computadores, videoga
mes e palm por nossa atenção, mas ainda é
topss competem por
palmtop
a televisão que domina o influxo de informações?
Entretanto, o antiquado esquema crítico-cultural de lei
tura e escrita em contraposição à TV não faz justiça à re
TV não
pouco se pre
volução digital. Estranhamente, Stiegler pouco preocupa
ocupa
com as mídias digitais de fato, como a internet, as redes
sociais e sua estrutura de comunicação, qu e diferem funda
que
mentalmente dos antigos meios de comunicação de ma mass
sa. Sua estrutura pan-óptica
pan-óptica quase não é notada. Assim, ele
não
negligencia por completo a psico
por completo psicopo
política neoliberal, qu
lítica e se
que
serve massivamente da tecnologia digital.
No início dos anos 1980, Foucault se dedica às «técnicas
de si», definindo-as como
práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens
somente se fixam regras de conduta, como
não somente como também
uram se transformar, modificar-se em seu ser singular
procuram
proc
e fazer de
valores sua vida
estéticos
uma obra que seja port
e responda a certos
portador
adoraa de certos
critérios de estilo.10
ibid., p. Í3-).
|O_ Miciie! Foucault, fhsiona ./</ scxiu/iihulc Livro. 2: O uso
Livro. dos
uso
.
prazeres. S ed. 1 rad. Maria Tliereza da Costa Albuquerque. Rio de
iro: Graal. 199X, p. 14.
Janeiro:
Jane
Foucault desenvolve uma ética de si historicamente fun
uma fun
dada e, em grande medida, desvinculada das técnicas de po po
der e de dominação. Por isso, admite-se com frequência que
ele empreende um
uma ética de si qu
a ética e se opõe à técnica de poder
que
e de dominação. O próprio
próprio Foucault menciona a pas passa
sagem
gem
das tecnologias do poder para as tecnologias de si mesmo:
poder para
Talvez tenha insistido demais no tema da tecnologia de
dominação e poder.
poder. Estou cada vez mais interessado na in
vez
entre si e os outros,
teração entre outros, bem como nas tecnologias
bem como tecnologias de
dominação individual, a história do modo em que um in
divíduo age sobre si mesmo, isto é, na tecnologia do
do eu.11
A técnica de pode r do regime neoliberal forma o ponto
poder ponto
cego da analítica do poder
poder de Foucault. Ele nã o reconhece
não
e o regime neoliberal de dominação se apropria completamen
que
qu
te das tecnologias do eu, nem que a otimização perman
que ente
permanente
de si como técnica de si neoliberal não seja nada mais do
não
que
qu uma forma eficiente de dominação e exploração.12 O
e uma
44
sujeito neoliberal de desempenho como «empresário de si
mesmo»13 explora-se voluntaria e apaixonadamente. Fazer
de si urna obra de arte é uma aparência bela
uma bela e enganosa qu e
que
para explorá-lo por inteiro. A
o regime neoliberal mantém para
técnica de pode
técnica r do regime neoliberal assume um
poder uma a forma
sutil. Não se apodera do individuo de forma direta. Em vez
disso, garante qu por si so, aja sobre si mesmo
e o individuo, por
que
de forma ququee reproduza o contexto de dominação
dominação dentro
de si e o interprete como liberdade. Aqui coincidem a otioti
mização de si e a submissão, a liberdade e a exploração. Esse
estreitamento entre liberdade e exploração na forma de ex
plora
ploração de si escapa ao pensam
ção pensamento de Foucault.
ento
de técnicas
— a< técnicas de dominação e as técnicas de d. F. preciso
outros recorrem aos processos pelos quais o indivíduo
\ íduos sobre os outros
age sobre si inestno. F: mversamente. é preciso
age preciso levar cm consideração
consideração
os pontos em que as técnicas de si são integradas em estruturas de coer-
cao ou dominação- (Foucault. «About the beginning of die herme
21. m 2, p 203).
13_ Foucault. () ihiseimenío (hi biopolilinL op. cit.. p. 311.
45
A CURA COMO ASSA
A SSASS
SSINA
INATO
TO
A psic
psicopol
opolíti ca neoliberal inventa formas de exploração
ítica
cada ve
vezz mais refinadas. Inúmeros workshops de gestão pes pes
soal, fins de semana motivacionais, seminários de desenvol
vimento pessoal e treinamentos de inteligência emocional
prometem
prome tem a otimização pessoal e o aumento da da eficiência
sem limites. As pessoa
pessoass são controladas pela técnica de do
pela
minação neoliberal qu
quee visa explorar não apenas a jornada
jornada
de trabalho, mas a pessoa por completo, a atenção total, e
até a própria vida. O ser humano é descoberto e tornado
própria
objeto de exploração.
O imperativo neoliberal de otimização pessoal serve
apenas a um funcionamento perfeito
perfeito do sistema. Bloqueios,
debilidades e erros devem ser removidos terapéuticamente
para melhorar a eficiência e o desempenho. Assim, tudo
é comparável, mensurável e está sujeito à lógica do mer
cado. Nenhuma preo
preocup ação com a boa vida impulsiona
cupação
a otimização pesso
pessoal.
al. Sua necessidade resulta apenas de
partir da lógica do sucesso mercantil
coerções sistêmicas a partir
quantificável.
46
A era da soberania é a era da absorção como priv
privação,, da
ação
subtração de bens e serviços. O pode
bens r soberano se expri-
poder
me como direito de dispor e tomar. A sociedade disciplinar,
ao contrário, aposta na pro
produção.. É um
dução a era de ativa pro
uma pro
dução industrial de valor. Mas essa era na qual se realizava
dução
uma
um verdadeira criação de valor é pass
a verdadeira passada.
ada. No
No capitalismo
financeiro atual, os valores são radicalmente eliminados. O
regime neoliberal introduz uma era do esgotamento. Hoje,
uma
explora-se a psique. Por isso, esta nova era é acompanhada
psique.
de doenças mentais, como a depressão ou o burnout.
A palavra mágica da literatura norte-americana de au-
toajuda é «curar» (healing). Ela designa a otimização pessoal,
pessoal,
curando terapéuticamente qualquer fraqueza funcional ou blo
blo
queio mental em nome da eficiência e do desempenho. A
queio
otimização pess
pessoal
oal permanen te, qu
permanente, e coincide em sua totali
que
otimização do sistema, é destrutiva. Ela conduz
dade com a otimização
ao colapso mental. Mostra-se como a autoexploração total.
neoliberal da otimização pessoal desenvolve
A ideologia neoliberal
características religiosas e até mesmo fanáticas; representa
uma
um a nova forma de subjetivação. O trabalho interminável
no eu se assemelha à introspecção e ao exame de si protes
protes--
tantes, que, por sua vez, representam um
uma a técnica de sub-
jetivação e dominação. Em ve
jetivação vez
z do pe
pecado,, proc
cado procura
ura-se
-se por
pensa
pensamentoss negativos. O eu luta um
mento a vez mais contra si
uma
mesmo como se lutasse contra um inimigo. Os pre
pregadoress
gadore
evangélicos de hoje atuam como gerentes e treinadores mo-
tivacionais, que pregam o novo evangelho do desempenho
pregam
e da otimização infinitos.
O ser humano não se submete inteiramente aos ditames da
posi
positiv
tividade.. Sem a negatividade, a vida se atrofia até o «ser
idade
morto».1 É próprio a negatividade que mantém viva a vida.
próprio
A dor é constitutiva para a experiência. Uma vida que fosse
para
constituída unicamente de emoções positivas e experiências
constituída
máximas2 nã
nãoo seria humana. É precis
precisam
ament e à negatividade a
ente
que o espírito humano deve sua profund
profunda
a tensão:
A tensão da alma na infelicidade, que lhe lhe cultiva a força
[...], sua inventividade e valentia no suportar, per persistir,
sistir,
interpretar, utilizar a desventura, e o que só então lhe foi
dado de mistério, profundi dade,, espírito, máscara, astúcia,
profundidade
grandeza —
— não lhe foi dado em meio ao sofrimento, sob
a disciplina do grande sofrimento?3
48
O imperativo da otimização sem limites explora até me
mess
mo a dor. O famoso treinador motivacional norte-america
no Anthony Robbins escreveu:
Quando vocé estabelece uma meta, está assumindo um
compromisso com a Melhoria Interminável e Constante!
reconheceu a necessidade que têm todos os seres hu
Você reconheceu hu
manos de melhoria constante, sem fim. Existe um umaa força
na pressão da insatisfação, na tensão do desconforto tem
porári
por o. Esse é o tipo de dor que você quer ter em sua vida.4
ário.
E tolerada apenas a dor que possa ser explorada em favor
da otimização.
Entretanto, tão destrutiva quanto a violência da negativi-
dade é a violência da posit
positivi
ividade.5 A psico
dade. psicopo
polít
lítica neolibe
ica
ral, com a indústria da consciência, destrói a alma humana,
que
qu e é tudo menos umuma a máquina po
positiva.. O sujeito do re-
sitiva
perece com o imperativo da otimização de
gime neoliberal perece
si, ou seja, ele morre da obrigação de produzir cada ve
produzir z mais
vez
desempenho. A cura se torna assassinato.
R premecue h k \
(atado em Barbara Ehrenreich. V/m; ( \ >u i ( I
’
'e
■
me pm/t/re ciilniquctcu u .b/O/O. I rad. Maria 1 tícia de Oli
veira. Rio de janeiro: Rccord, 20 13. p. 90.
janeiro:
5 Cf. Bvung-Chul Han. íopeleqie dei (leu-ull. Berlim:
Berlim: Matthes X. Seitz.
Seitz.
2o 1 L Pnncipalmente o capítulo < (iovx alr der Positivitãrpp. 1 1S--27.
49
CHOQUE
Um dos pro
protag
tagonistass do livro teórico-conspiratório A
onista
Naomi Klein, é o «doutor do choque».
doutrina do choque, de Naomi
Com essa expressão, ela se refere ao psiquiatra canadense dr.
psiquiatra
Ewen Cameron. Ele acreditava que, através da administra
ção de choques elétricos, pode
humano e então produzi
ria erradicar o mal do cérebro
poderia
produzirr novas perso
personal
nalida des a partir
idades partir dessa
tábula rasa. Ele colocava seus pac
pacientes em um estado caó
ientes
tico, que deveria ser a base para seu renascimento como ci-
base para ci-
dadãos-modelo. Assim, concebia seus atos destrutivos como
a espécie de criação. A alma era entregue a um «apaga-
uma
um
mento» e a uma
uma «regravação» violentos. Deveria, por assim
dizer, ser reformatada e reescrita.
pan-óptico com câmaras de iso
Cameron construiu um pan-óptico
lamento, nas quais realizou experimentos humanos extre
mamente cruéis, que se assemelhavam a câmaras de tortura.
Inicialmente, os pacientes eram tratados com fortes choques
pacientes
elétricos ao longo de um mês, para
para apagar sua memória. Ao
mesmo tempo, eram administradas drogas que alteravam a
consciência. Suas mãos e seus braçoss eram colocados em
braço
50
tubos de pa
papelão pa
pelão ra impedir qu
para e eles tocassem os pró
que
os corpos, e se preo
prios
pri preocu
cupa
passem assim com a imagem de si.
ssem
Posteriormente, Cameron pri
privava sentidos
vava pacie
pacientes
ntes
de estímulos, colocando-os num longo dos
os sono induzido com
a ajuda de drogas. Eles só eram
eram despertados par
paraa comer e
defecar, perm
permanece ndo nessa condição por até trinta dias.
anecendo
A equipe do hospital era instruída a proibir
proibir os pacientess de
paciente
pan-óptico muito mais cruel
conversar. O hospital era um pan-óptico
que Bentham.
Aso pesquisas
de de Cameron foram financiadas pe la CI
pela CIAA e
ocorreram durante a Guerra Fria. Cameron, um antico
munista fervoroso, acreditava part
particip ar da luta com seus
icipar
experimentos. Ele comparava seus pa pacie ntess a pri
ciente prisio
sioneiross
neiro
de guerra comunistas sendo interrogados.1 Suas prátic as de
práticas
fato se assemelhavam às técnicas interrogatorio.
pesquisas estavam ligadas à lavagemde cerebral e à luta ideoSuas
lógica e eram baseadas em conceitos maniqueístas. O ma mall
devia ser erradicado, eliminado e substituido pe pelolo bem. A
bem.
negatividade da defesa imunológica do outro determinava
suas práticas.. Cameron foi um
práticas a manifestação da era imuno
uma
lógica. O choque, enquanto intervenção imunológica, diri-
l__ Naomi Kiuin. .4 domríiKJ do choque'. A dsceiisõo do copiIdlisoío de de-
sosar. Trad. de Vania (’ury. Rio de Janeiro:: Nova Fronteira, 2008. p. 53.
Janeiro
gia-se ao outro, ao estrangeiro, ao inimigo. Era preciso de
preciso de
para reescrever outra ideologia e narrativa em sua
sarmá-lo para
alma. O segundo protagonista de Nao
protagonista mi Klein, o segundo
Naomi
doutor do choque, se chama
chama Milton Friedman, teólogo do
neoliberal. Naomi Klein estabelece uma analogia
mercado neoliberal.
entre ambos. Para Milton Friedman, o estado social de cho
cho
que pós
pós-ca
-catás
tástrofe é de fato uma oportunidade, na
trofe na verda
de o momento supremo, pa ra a reprogramação neoliberal
para
da sociedade. O regime neoliberal, portanto, opera com o
choque; o choque apaga e esvazia a alma, tornando-a inde
inde
fesa, de modo quque e o indivíduo se submete voluntariamente
a uma reprogramação radical. Enquanto as pessoas ainda
estão paralis
paralisadas,
adas, traumatizadas
traumatizadas pela catástrofe, são subme
pela
tidas à nova articulação neoliberal.
A missão de Friedman, tal qual a de Cameron, repou
repou
sava no sonho de voltar a um estado de saúde «natural»,
quando tudo estava em equilíbrio, antes que as interfe
interfe
rências humanas criassem padrões
padrões distorcidos. Enquanto
Cameron sonhava em recuar a mente humana até aquele
estágio primitivo, Friedman sonhava em desmontar os
primitivo,
moldes das sociedades, fazendo-as retornar ao estado de
capitalismo puro, livre de todas as interrupções — re
gulação governamental, bar
barrei
reiras
ras comerciais e interes
ses entrincheirados. Na linha de Cameron, Friedman
acreditava que uma economia altamente desvirtuada só
acreditava
conseguiría alcançar o estágio anterior aos deslizes por
52
meio de choques dolorosos deliberadamente infligidos:
somente os «remédios amargos» podiam eliminar as de
podiam de
turpações e os maus princ
turpações ípios.2
princípios.
Com sua teoria do choque, Naomi Klein não consegue
Naomi
enxergar a verdadeira psicopo
psicopolítica neoliberal em ato. A te
lítica
rapia de choque é uma técnica genuinamente disciplinar, e
uma
somente na sociedade disciplinar tais intervenções psiquiá
psiquiá
podem se
tricas violentas podem r aplicadas. Elas pertencem
ser pertencem às me
me
didas coercitivas da biopolític a, que, como psico
biopolítica, psicodis
disci
cipli
plinas,
nas,
são de caráter ortopédico. Por outro lado, a técnica de popo
der neoliberal não exerce nenhuma coerção disciplinar: a
ação do eletrochoque difere fundamentalmente daquela da
psicop
psicopolí tica neoliberal. O eletrochoque deve sua eficácia
olítica
à pa
para
ralisia e à aniquilação dos conteúdos psí
lisia psíqu
quico
icos.s. A ne-
gatividade é sua essência. Por sua vez, a psicopol ítica neoli
psicopolítica
be pela positividade.
rall é dominada pela
bera positividade. Em ve
vezz de usar ameaças
negativas, ela trabalha com estímulos positivos. Não aplica
nenhum «remédio amargo», e sim o curtir. Lisonjeia a alma
em vez de estremecê-la e pa
vez para
ralisá-la.. Seduz a alma qu
lisá-la e a
que
ede,, em ve
precede
prec z de se opor a ela. Registra cuidadosamen
vez
te seus anseios, suas necessidades, seus desejos, em vez de
vez
«desgravá-los». Com a ajuda de prog
prognósticos,, antecipa-se
nósticos
às ações em vez de contrastá-las, atuando proativa
proativame nte. A
mente.
psico
ps icopol
política neoliberal é uma política inteligente que busca
ítica
agradar em vez de oprimir.
55
0 A
AMÁ VEL GRANDE IRMÃO
MÁVEL
«Novafala» é o nome da língua ideal no Estado de vigi
vigi
por George Orwell em 1984. Ela teria que su
lancia criado por
primir integralmente a «velhafala», com o objetivo claro de
primir
reduzir a liberdade de pensamento.. An
pensamento o após ano, o número
Ano
de palavras diminui e a liberdade de consciência se torna
palavras
menor. Syme, amigo do protagoni sta Winston, se entusias
protagonista
ma com a be
beleza da destruição das palavras. Os delitos de
leza
pensam
pens amento já que as palavras
ento são impossibilitados, já palavras necessá
rias para tanto estão ausentes do vocabulário. Assim, o con
para con
ceito de liberdade também é abolido. Próprio desse ponto
ponto de
vista, o Estado de vigilância de Orwell se diferencia funda
pan-óptico digital, que faz uso excessivo da
mentalmente do pan-óptico
liberdade. E a multiplicação
multiplicação de palavras a principa
principall caracte
rística da sociedade da informação atual.
pelo espírito da Guer
O romance de Orwell é dominado pelo
ra Fria e pela
ra hostilidade. O país
pela hostilidade. país em questão encontra-se em
guerra perm
permanente.. Julia, a quem
anente quem Winston ama, suspeita
até que as bomb
que as que caem diariamente sobre Londres são
bombas
pelo próprio
enviadas pelo próprio pa
partido do Grande Irmão para manter
rtido
56
o clima de terror. O «inimigo
«inimigo do se chama Emma-
nuel Goldstein. Trata-se do comandante povo» de urna rede sub
versiva e conspiradora qu e plan
que eja a derrubada do governo.
planeja
O Grande Irmão se encontra em urna guerra ideológica
com ele. O prog
program
ramaa Dais Minutos de Ódio, contrário a
Goldstein, é transmitido diariamente na «teletela». O Mi Mi
nistério da Verdade, ququee está mais para
para «ministerio da men
passado e adequa tudo à nova ideologia. As
tira», controla o passado
psico
ps icoté
técn
cnicas aplicadas no Estado de vigilancia são lavagem
icas
cerebral com eletrochoque, priv privaçã o de sono, isolamento,
ação
drogas e tortura física. O Ministério da Pujança (em nova-
fala, Minipuja) cuida par a qu
para quee não haja be ns de consumo
bens
suficientes, criando um
uma a deficiência artificial.
Esse Estado de vigilancia orwelliana, com suas teletelas e
as suas cámaras de tortura, diferencia-se fundamentalmente
do pan-ó ptico digital (com a internet, os smartphones e o
pan-óptico
Google glass), que é dominado pelapela aparência de liberdade e
comunicação ilimitadas. Nesse pan-óptico
pan-óptico nãnãoo se é tortura
do, se é tuítado ou ão há nenhum Ministério da
transparência e a informação substituem a ver
Verdade. A transparência
dade. O novo objetivo do poder não consiste na adminis
tração do passado,
passado, mas no controle psico
psicopo
polít
lític
icoo do futuro.
regime neoliberal não é proibi
A técnica de poder do regime proibi
tiva, protetora
protetora ou repressiva, mas prospe
prospecti va,, per
ctiva permi
missi va e
ssiva
tiva.. O consumo não se reprime, só se maximiza. É
projetiva
proje
gerada não umuma abundância, um excesso
a escassez, mas uma abundância,
de pos
positiv
itivida
idade compelidos a comunicar e a
de.. Somos todos compelidos
consumir. O princíp io de negatividade, que ainda define o
princípio
Estado de vigilância de Orwell, cede lugar ao de posi tivi
positivi
dade. As necessidades não são suprimidas,
suprimidas, mas estimuladas.
Em vez de confissões extorquidas, há exposição voluntária.
vez
O smartphone substitui a câmara de tortura. O Grande Ir
o tem agora um rosto amável, A eficiência da sua vigi
mão
mã vigi
lância está em sua amabilidade.
O Grande Irmão de Bentham é invisível, ma
mass é omni
presen
pre te na cabeça dos pr
sente presos, que o internalizaram. No
esos,
pan-óptico digital, por outro lado, ninguém se sente real
mente vigiado ameaçado. Por isso o termo «Estado de
vigiado ou ameaçado.
para caracterizá-lo. As pessoas
vigilância» não é apropriado para pessoas
se sentem livres, mas é exatamente essa sensação de liber
dade, inexistente no Estado de vigilância de Orwell, que
constitui um problem
problema.
a.
pan-óptico digital faz uso de uma revelação voluntária
O pan-óptico
parte de seus internos. A autoexploração e a autoexpo-
por parte
sição seguem a mesma lógica. A liberdade
liberdade é sempre explo
pan-óptico digital falta aquele Grande Irmão que
rada. Ao pan-óptico
contra nossa vontade. Em vez disso,
arranca informações contra
nóss no
nó por iniciativa própria
noss revelamos, expomo-nos por própria..
58
O comercial da Apple transmitido durante o Super Bowl
de 1984 tornou-se lendário. A empresa se apresentava como
a libertadora do Estado de vigilancia orwelliano. Em mar
cha, trabalhadores sem vontade e apáticos entram em um
grande salão para ouvir o discurso fanático do Grande Ir
mão na teletela. Então um
mão uma a mulher invade o lugar, per
seguida pe
pela dass Idéias. Ela continua a correr sem
la Polícia da
vacilar, carregando um grande martelo diante de seus seios
bambol
bam bolea
eante s. Determinada, segue em direção ao Grande
ntes.
Irmão e joga
joga o martelo com toda a força na teletela, que
explode violentamente. As pessoas despertam de sua apatia
pessoas
e um
umaa voz anuncia: «Em 24 de janeiro,
voz janeiro, a Apple Computer
apresentará o Macintosh. E você verá porque
porque 1984 não será
como 1984». Apesar da mensagem da Apple, o an anoo de 1984
marca o fim do Estado vigilante, mas o início de um
não marca
novo tipo de sociedade de controle, cuja eficácia excede em
muito o Estado de vigilância orwelliano. A comunicação
coincide inteiramente com o controle. Cada um é o pan-
pan-
-óptico de si mesmo.
59
O CAPITALISMO DA EMOÇÃO
Hoj e se fala em excesso de sentimento e emoção. Em
muitas disciplinas se desenvolvem pesquisas
pesquisas sobre o aspecto
emotivo. De repente, o ser humano não é mais um animal
não
rationale, mas sim umumaa criatura sensível. Poucos, porém, se
porém,
perguntam
pergunta m de onde vem esse súbito interesse pelas
pelas emoções:
as pesquisas científicas sobre as emoções não refletem sobre
próprio agir. Ignoram que a conjuntura da emoção é um
o próprio umaa
consequência do pr
proc
ocesso econômico. Além disso, pred
esso predo
o
mina uma confusão conceituai. Ora se fala de emoção, ora
de sensação, ora de afeto.
ora
exemplo, de sentimento linguístico (Sprachgefühl)1 , instinto
O autor articula rodo
o capítulo em paralelismos linguísticos -
impossíveis de sei em reproduzidos de maneira hei cm português - ba ba
seados nas variantes do termo alemão (ic/íilÁ, que st1 tentou traduzir
com ' Sentimento” ou ahns (ver o primeiro exemplo: liihl, sen
timento linguísticoliilIccfHhl. -instinto da bola”: A/11oc/iih\.
11oc/iih\.
■•■com
paixão”) e sobre termo da /:///m/e// (-emoção j
sobre a distinção desse termo e A[]ckl
gafeto-. no sentido de ser
gafeto-. ser afetado sensivilmente por algo■ |Nd:.j.
60
da bola (Ballegefühl) ou de compaixão {Mitgefühí); nã o di
não
zemos, por sua vez, emoções linguísticas, ou com-emoção.
Tampouco existem um afeto linguístico ou um com-afeto.
O luto também é um sentimento. Falar do afeto do do luto ou
de emoção do luto soa estranho. Tanto o afeto quanto a
emoção representam algo meramente subjetivo, enquanto o
sentimento indica algo objetivo.
O sentimento permite um
perm a narração: tem um
uma a duração
uma
ou um
umaa profun
profundid Nem o afeto nem a emoção
ade narrativa. Nem
didade
são narrdveis. A crise dos sentimentos, que podepode ser observada
no teatro atual, também é um uma a crise narrativa. Hoje, o teatro
narrativo do sentimento cede lugar ao bar o teatro do
narrativo barulh
ulhent
ento
afeto. Por falta de narrativa, um
umaa massa de afetos é levada ao
palco. Ao contrário do sentimento, o afeto nã não o abre nenhum
espaço. Ele pro
procu ra um
cura uma a via linear para ser descarregado. O
para
médium digital também é o meio meio do afeto. A comunicação
digital favorece umuma a descarga imediata de afeto. Já por
por causa
da sua temporalidade, a comunicação digital transporta mais
afetos do que sentimentos. Shitstorms são correntes de afetos
e são características da comunicação digital.
O sentimento é constatativo. Por isso se diz: «tenho o senti
Não existe, por
mento de que...». Não por sua vez, um construto aná
para «afeto» ou «emoção». A emoção nã
logo para não o é constatativa,
mas performativa, remetendo a ações. Também é intencio-
performativa,
nal e finalista. O sentimento nãnãoo tem necessariamente
necessariamente um
umaa
estrutura intencional. A angústia, muitas vezes, não possui
difere-se do medo, que é es
concreto. Nesse sentido, difere-se
objeto concreto.
truturado pela
pela intencionalidade. Tampouco o sentimento da
língua é intencional. Sua não intencionalidade se diferencia
não
de um
umaa expressão linguística que é expressiva, ou seja, emotiva.
Também é possível
possível um
uma a compaixão (Mitgefühl) cósmica, um
sentimento oceânico do mundo (Weltgefühí) que nã
sentimento nãoo é diri
gido a um
umaa pessoa
pessoa em partic
particul
ular. Nem a emoção nem o afeto
ar. Nem
alcançam a amplitude qu quee caracteriza o sentimento. Eles são
a expressão da subjetividade.
O sentimento também tem uma temporalidade diferente
da emoção. Ele permite
permite uma duração. As emoções são essen
cialmente mais fugazes e mais curtas do que os sentimentos.
O afeto é muitas vezes limitado a um instante. Ao contrário
do sentimento, a emoção nã o representa um estado. A emo
não emo
ção não dura. Não pode haver uma emoção de tranquilidade,
pode
mas é, se m dúvida, pe
sem pens
nsáv el como sentimento de tranquilida
ável
doxa
l. A emo
de. A expressão estado emocional soa assim para
parado xal. emo
ção é dinâmica, situacional e perf perform
ormati va. O capitalismo
ativa.
da emoção explora exatamente essas características.
características. O sen
timento, por outro lado, é difícil de ser explorado devido à
sua falta de perfor
performa
mativ
tividade. Já o afeto é eruptivo. Falta-lhe
idade.
orientação performática.
performática.
62
A disposição2 (Stimmung) se distingue tanto do senti-
de que o sentimento, já
já que um espaço pod
que e se
pode r disposto
ser
etivamente de um ou de outro modo. Ela exprime um
no caso de desvios do ser assim. Um lugar, por exemplo,
pode propagar uma disposição amigável. E algo bem
bem ob
jetivo. Uma emoção amigável ou um afeto amigável não
existem. A disposição não é nem intencional nem perfor-
perfor-
mativa. E algo em que alguém se encontra. Representa um
estado de espirito. Por isso, é estática e constelativa, enquan
to a emoção é dinâmica e perfo performativ a. Não é o de onde
rmativa.
(Wbrin) do estado de ânimo, mas o para para onde (Wohin) qu e
que
caracteriza a emoção. E o sentimento é constituído pel peloo
para que (Wofür).
Em seu livro Intimidad
Intimidadeses congeladas: as emoções no capita
lismo, Eva Illouz nã
nãoo dá nenhuma resposta à pergunta
pergunta de por
por
que
qu por tal conjuntura na era do ca
e os sentimentos passam por
pital
pitalismo. Além disso, ela justap
ism õe os termos «sentimento» e
justapõe
«emoção» sem nenhuma diferenciação conceituai. E não faz
«atmosfera», «humor», «ambiente» ou «estado de espírito» [N.T.].
muito sentido colocar a questão dos sentimentos na época
capitalista em seus primord
primordios
ios::
A ética protestante de Weber contém no seu núcleo
protestante núcleo uma
uma
tese sobre o pa pell das emoções na ação econômica, pois
pape
é a angústia
angústia que provoca
provoca um a divindade inescrutável que
uma
está subjacente à atividade vertiginosa do empreendedor
capitalista. 3
«Angústia» como afeto é um conceito errôneo: ela é um
sentimento, ao qual corresponde uma temporalidade que não
é compatível com o afeto. O afeto não é um estado constan
te: falta-lhe a perma
permanên cia que caracteriza o sentimento. E o
nência
constante sentimento de ansiedade que leva a um umaa atividade
empresarial incansável. E o capitalismo qu quee Weber analisa é
um capitalismo ascético de acumulação, que segue a lógica
racional, e não a emocional. Por isso, Weber não tem acesso
ao capitalismo do do consumo que capitaliza emoções. Significa
vendidos e consumidos no capi
dos e emoções também são vendidos
talismo do consumo. Não Não é o valor de uso, mas o valor emo-
tivo ou de culto que é constitutivo da economia do consumo.
Illouz tampouco leva em conta o fato de que as emoções só
Buenos Aires: Katz. 2007. p. II.
importância no capital da pro
ganham importância produção imaterial. Ap
dução e
Ape
nas recentemente a emoção se tornou um meio de prod
produç
ução
ão..
Além disso, Illouz atenta para o fato de que o núcleo da
sociologia de Durkheim, a solidariedade, é um «feixe de
emoções» que liga os atores sociais aos símbolos centrais da
sociedade. Resumidamente, afirma que:
Os relatos sociológicos canônicos da modernidade con
têm, se não uma teoria desenvolvida das emoções, pelo
pelo
menos numerosas referências a elas: ansiedade, amor,
competitividade, indiferença, culpa; se nos esforçarmos
ra aprofundar as descrições históricas e sociológicas das
para
pa
rupturas que levaram à era moderna, po
podemos ver que
demos
todos esses elementos estão presentes na maioria delas.4
presentes
Essa enumeração de referências a várias teorias socioló
gicas sobre a emoção não explica de forma
não alguma a con
forma alguma
juntura atual da emoção. Além disso, Illouz não empreende
nenhuma diferenciação conceituai entre sentimento, emoção
e afeto. «Indiferença» e «culpa» não são afeto nem emoção. Só
o sentimento (Gefüht) da culpa faria sentido.
Illouz claramente ignora qu e a conjuntura atual
que
emoção se deve, em última instância, ao neoliberalismo.
O regime neoliberal emprega as emoções como recursos
65
ra alcançar mais produ
para
pa produtividade e desempenho. A parti
tividade r
partir
de certo nível de produção, a racionalidade, que representa
produção,
o médium da sociedade disciplinar, atinge seus limites. Ela é
percebi
perc da como um
ebida a restrição, uma inibição. De repente,
uma
a racionalidade atua de forma rígida e inflexível. Em seu
lugar, entra em cena a emocionalidade, que está associada
ao sentimento de liberdade qu e acompanha o livre desdo
que
nto individual. Ser livre significa deixar as emoções
bramento
brame
correrem livres. O capitalismo da emoção faz uso da li
berdade.. A emoção é celebrada como expressão
berdade expressão da subje
tividade livre. A técnica neoliberal de poder explora essa
subjetividade livre.
A objetividade, a universalidade e a estabilidade
estabilidade caracte
rizam a racionalidade. Logo, ela é oposta à emocionalidade,
e é subjetiva, situacional e volátil. As emoções surgem,
que
qu
sobretudo, com a mudança de estado ou de perc
percepção. A
epção.
racionalidade, por outro lado, está associada à permanên
cia, à constância e à regularidade. Prefere as relações es
táveis. A economia
economia neoliberal, que para aumentar a pro
para
dutividade reduz cada vez mais a continuidade e instala a
instabilidade, impulsiona a transformação emotiva do pro
pro
cesso de produ ção. A aceleração da comunicação também
produção.
favorece a transformação emotiva, porque a racionalidade
favorece
é mais lenta que a emotividade. Em certo sentido, ela não
que
tem velocidade. Por isso a pre
pressão da aceleração leva a um
ssão a
uma
ditadura da emoção.
(o| capitalismo do consumo, além disso, introduz emoções
para criar necessidades e estimular a compra. O emotional design
molda emoções e padrões para maximizar o consumo. Hoje,
em última análise, não consumimos coisas, mas emoções. Coi
sas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções
podem
sim. Emoções se desdobram para além do seu valor de uso.
Assim, inaugura-se um novo e infinito campo de consumo.
j^ocie
j^o cied^
d^ cujo funcionamento está ac acii
ma de tudo, as emoções representam em prim eiro lugar
primeiro
um estorvo, porta nto, devem ser erradicadas. A «ortopedia
portanto,
concertada» da sociedade disciplinar tem que formar um uma a
máquina sem sentimentos (gefühllos) a part ir de um
partir umaa massa
informe. As máquinas funcionam melhor quando emoções
e sentimentos estão completamente desligados.
Não menos importante, a conjuntura atual da emoção
se deve ao novo modo imaterial de prod
produçã o, em qu
ução, quee a
interação comunicativa está se tornando cada vevezz mais im
im
nte. A demandajitual não é apenas por competência
portante.
porta
cognitiva, mas também emocional. Por causa desse desen
pessoa é inteiramente aplicada no proce
volvimento, a pessoa sso de
processo
ução.. Neste
produção
prod pronunciamento de Daimler-
Neste sentido, um pronunciamento
-Chrysler é ilustrativo:
67
Uma vez que o componente comportamental também
que
desempenha um papel importante na pre
prestação de ser
stação
viços, a competência social e emocional do empregado
é cada vez mais levada em consideração ao avaliar seus
resultados.5
Agora se explora o social, a comunicação, até mesmo
o próprio comportamento. Emoções são utilizadas como
próprio
«matéria-prima» para otimizar a comunicação. A Hewlett-
para
-Packard é outro exemplo:
A HP é uma empresa qu quee respira comunicação e tem
inter-relação, em que as pessoas se
um forte espírito de inter-relação,
comunicam, em qu quee se vai até o outro. E uma
uma relação
afetiva.6
Uma mudança de par
Uma paradi
adigma está em andamento no ge
gma
renciamento atual de empresas. As emoções se tornam cada
vez mais importantes. No lugar do management racional,
surge o management emotivo. O manager atual se despede do
princíp
prin io do agir racional e se parece
cípio parece cada vez mais com um
um
treinador motivacional. A motivação está ligada à emoção. A
o_ Citado em André Gorz. 11 í c h , llerf imd Kiipiíiil:
Kiipiíiil: Z/// Kriiit der
11'isscnsek'ononiic. Zurique: Uotpunktverlag. 2004, p. 20.
Eva Illouz. op. cit.. p. 56.
6_ Catado em Eva
68
moção as uneJAs emoções positivas são o fermento para o
aumento da motivação.
As emoções são perfor
performa
mativas no sentido de que evocam
tivas
certas ações: como tendencia, representam a base
base energética
ou mesmo sensível da ação. As emoções são controladas
o sistema límbico, no qual também se assentam
pelo
pel assentam os im
pulsos. Eles formam o nível pré-refl
pré-reflexivo, semiconsciente e
exivo,
corporalmente impulsivo da ação, do qual frequentemente
não se tem consciência de forma expressa. A psi
psicop
copol
olítica
ítica
neoliberal se ocupa da emoção para influenciar ações sobre
esse nível pré-r
pré-reflexiv
eflexivo.
o. Através da emoção, as pessoas são
profundam
profu ente atingidas. Assim, ela representa um meio
ndamente
muito eficiente de controle psicopo
psicopolítico do indivíduo.
lítico
GAMIFICAÇÁO
Para gerar mais produ
produtividade, o capitalismo da emo
tividade,
ção também se apropria do jogo, daquilo que seria, na
jogo,
verdade, o outro do trabalho. Ele «gamifica» o mundo do
o trabalho, criando assim mais motivação. Através da rá
pida sensação de realização e do sistema de recompensas,
o jogo
jogo gera mais desempenho e rendimento. O jogador
jogador
com suas emoções está muito mais envolvido do do que um
um
trabalhador meramente funcional ou que atua apenas no
no
nível racional.
Uma temporalidade especial é imánente ao jogo, carac
terizado pela sensação de êxito e recompensas imediatas. O
e tem qu
que
qu que pode ser gamifica-
e amadurecer lentamente não pode
do. O longo e o lento
lento não são compatíveis com a tempora
não
lidade do game. Caçar, por exemplo, corresponde de certa
jogo, enquanto as atividades de um agricultor,
maneira ao jogo,
dependentes do amadurecimento lento e do crescimento si
lencioso, escapam à gamificação. A vida não se deixa trans
formar completamente em caça.
70
A gamificação do trabalho explora o homo luderis, que
se submete às relações de dominação enquanto jog joga.
a. Com
a lógica da gratificação por meio de «likes», «amigos» ou
«seguidores», a comunicação social também está submeti
da à modalidade do jogo.
jogo. A gamificação da comunicação é
acompanhada de sua comercialização. Entretanto, a ludifi-
cação destrói a comunicação humana.
domina a sociedade — o cadáver do traba
«Um cadáver domina
lho.» Assim começa o Manifesto contra o trabalho, publ ica
publica
pelo grupo Krisis, de Robert Kurz.1 De acordo com ele,
do pelo
como consequência da revolução microeletrônica,
microeletrônica, a produ
produ
ção de riqueza teria se desvinculado cada vez mais da apli
cação do trabalho humano. Contudo, nunca antes como na
nossa época pós-f
pós-ford
ordist a, na qual o trabalho se tornava cada
ista,
vez mais supérfluo, a sociedade é um umaa sociedade fundada no
trabalho. O manifesto sugere que a própria
que própria esquerda polít
política
ica
havia romantizado o trabalho, não somente elevando-o à
essência do homem, mas o mistificando como suposto con
traponto do capital. Para as forças polí
políticas de esquerda nã
ticas o é
não
o trabalho em si que escandaliza, apenas sua exploração pelo
pelo
capital. Por isso o pro
programa de todos os par
grama partidos operários
tidos
i i )isponível em português cm <www.krisis.org/1999/maniiesto-
-coiimi-o-trabalho > | N.T.j.
www.krisis.org/1999/maniiesto-
71
seria sempre a libertação do trabalho, mas nunca a libertação
de trabalho. Trabalho e capital, de acordo co m o manifesto,
com
seriam apenas dois lados da mesma moeda.
Apesar das enormes forças produ
produtiva s, não irrompe hoje
tivas,
nenhum «reino da liberdade», «onde cessa o trabalho de de
terminado pela necessidade e pe
terminado la adequação a finalidades
pela
externas».2 Em última instância, Marx não abdica do pri
mado do trabalho. Assim, «o aumento do tempo livre» como
a «maior força pro
produ
dutiv a» tem qu
tiva» quee retroagir «sobre a for
ça prod
produti va do trabalho».3 Com isso, o reino da
utiva da necessi
dade coloniza o reino da liberdade. O «ócio como tempo
pa ra atividades mais elevadas» transforma
para transforma seu po
possu
ssuido r em
idor
«outro sujeito», qu e possui mais força produ
que tiva do qu
produtiva que e o
sujeito qu
que
e apenas trabalha. O tempo livre como «tempo
ra o desenvolvimento
para
pa desenvolvimento pleno
pleno do indivíduo» colabora para
para
a «produção de capital fixo».
Assim, o conhecimento é ca
pital
pitalizado.. Para usar termos atuais, o aumento do
izado do tempo de
ócio multiplica o capital humano. O ócio, que po poss
ssibilitaria.
ibili
uma atividade casual e se m finalidade, é tomado pelo
sem pelo capital.
2_ Ixarl Marx. () uipihil: Gniu\i ihi Ixoiuwiid iGiiicj. Livro L (' ' pro-
(•<••<<() v/eAj/ de
de pivducíio cdpiKilisid,
2. I rad. de Regís Barbosa e Hávio
R. Kotlie. 2. ed.
ed. Sào Paulo: Nova Cultural. IW». p. 273.
Marx. Gminírissc. op. cir.. p. ?7U.
72
Marx fala do «... capital fxe
fxe being man himself». O homem,
com o se^geiieral intellect», transforma a si próprio
próprio em capi
tal. Uma liberdade real, no entanto, só seria possível
possível através
de um a libertação total da vida em relação ao capital, ou
uma
seja, um
umaa libertação de urna nova transcendência, qu quee blo
quearia o acesso à vida como imanéncia.
Contrariamente ao pre press
ssup
upost
ostoo de Marx, a dialética
dialética das
forças produt
produtivas e as relações de produçã
ivas o nã
produção o conduzem à
não
liberdade. Em vez disso, envolve-nos em um
vez a nova relação
uma
de exploração. Assim, teríamos qu
que com Marx e para
e pensar
pensar com para
além de Marx pa ra que po
para possamoss realmente no
ssamo noss apropriar
da liberdade, ou do tempo livre. Ela só poderia
ou melhor, do poderia ser
além da produç
produção.
ão.
O homem é umumaa criatura do luxo. Em seu sentido origi
nal, o «luxo» nã
nãoo é um
uma prática consumista, mas um
a prática uma a forma
de vida qu e está livre da necessidade. A liberdade é baseada
que
no desvio, no deslocar, na «luxação» da necessidade. O luxo
transcende a intenção de virar necessidade. Atualmente, o
73
pelo consumo. O consumo excessivo é
luxo é monopolizado pelo
uma
um a falta de liberdade, um
umaa coerção que corresponde a essa
falta de liberdade do trabalho. Assim como o jogo,
jogo, o luxo
para além do trabalho e
enquanto liberdade só é imaginável para
do consumo. Visto dessa maneira, é adjacente ao ascetismo.
A verdadeira felicidade se deve ao extravagante, ao exu- **
berant
ber e, ao abundante, ao esvaziado de sentido, ao exceden
ante,
te, ao supérfluo, ou seja, àquilo que desvia da necessidade, do
que
trabalho, do desempenho, da finalidade. Hoje, no entanto,
mesmo o excesso foi monopolizado pelo pelo capital e, com isso,
com
priva
pri do do seu poten
vado potencia jogo, que está
ciall de emancipação. O jogo,
desacoplado do proc
processo de trabalho e de produçã
esso o, também
produção,
ce ao luxo. A gamificação como meio de prod
pertence
perten ução
produção
destrói o pot
potenciall emancipatório do jogo.
encia jogo. O jogo
jogo possi
possi
bilit
bil a um uso completamente diferente das coisas, capaz de
ita
livrá-las da teologia e da teleologia do capital.
Tempos atrás, uma ocorrência bas
uma bastante incomum foi
tante
relatada na Grécia. Ela par
pareceu extraordinária exatamente
eceu
porque país que hoje sofre muito sob o jugo
porque ocorreu em um país
do capital. Trata-se de um acontecimento que possui um
caráter eminentemente simbólico, que age como um sinal
do futuro. Crianças teriam descoberto um enorme maço de
notas de dinheiro em um umaa casa abandonada. Elas fizeram
um uso totalmente diferente dessas notas. Elas brin
brincav
cavam
am
74
com elas e as rasgavam em ped
pedac
acinhos. Talvez essas crian
inhos.
ças tenham antecipado nosso futuro: o mundo está em ruínas.
Como aquelas crianças, brinca moss em meio a elas com notas
brincamo
de dinheiro, rasgando-as.
«Profanação» significa restituir ao livre uso do ser huma
no aquilo que per
perten
tencia
cia aos deuses e que por isso era proi
proi
o ao uso humano.4 Aquelas crianças gregas profanaram
bido
bid profanaram o
dinheiro na medida em que deram um uso completamente
que
distinto a ele. De súbito, a profanação transforma o dinheiro,
e atualmente é um fetiche, em um brinquedo
que
qu brinquedo profa
profano
no..
Agamben concebe a religião a partir do termo latino re
partir do
leyere, Ela signifca, portanto, estar atento, desperto, vigiar
portanto,
sobre as coisas que são sagradas e garantir qu e se mante
que
nham separadas do restante. Essa separação é essencial para
para
a religião. Profanação significa então prat
praticar um ato de
icar de
negligência consciente contra essa vigilância. Aquelas crian
ças gregas mostraram negligência simplesmente brincando
brincando
com dinheiro. Portanto, a profan
profanação é um
ação uma prática da liber
a prática
noss liberta da transcendência e de todas as formas
dade que no
de subjetivação. A profanação abre, assim, um espaço de jogo
da imanência.
da
4_ Ct. Giorgio Aganiben. I’m/aiianus. I rad. de Selvino |osc Ass-
niann. São Paulo: Boircmpo, 2<H)7.
Existem dois modos
modos de pen
pensam
samento: o que trabalha e o
ento:
que
qu joga. Tanto o pens
e joga. pensamento de Hegel como o de Marx
amento
é regido pe princípio do
lo princípio
pelo do trabalho. Da mesma maneira, O
ser e o tempo de Heidegger também é devedor do trabalho.
O «Dasein» em seu «cuidado» [<So/ve] ou «angústia»
não
nã joga. Somente o último Heidegger descobre o jogo
o joga. jogo
com base na «serenidade». Assim, ele interpreta o próprio
próprio
jogo. Ele investiga o «aberto de campo de
mundo como jogo.
jogo
jogo que mal presse
que pressentimoss e qu
ntimo e mal levamos em conta».5
que
O «espaço-de-jogo-temporab remete a um espaço-tempo
livre de qualquer forma de trabalho. E um espaço-aconte-
cimento, no qual a psicologia como meio de subjetivação é
psicologia
completamente superada.
5__ Marrin Heidegger.
5__ .¡iicsiôcs /11 //2\i//¡ci/ic,/? .Li /ibsoNd: 1'ivnicniih
<c/c/os da looiíAi. Trad, de Marco Antonio Casanova. Sào Paulo: \X Mb
Martins Fontes. 2o i T o 3<Sss.
B IG DATA
0 OVO DE COLOMBO
Bentham compara seu pan-óptico ao ovo de Colombo.
pan-óptico
Ele seria aplicado a todos os ambientes de confinamento
disciplinares e possi
disciplinares possibi
bilit
litaria um monitoramento muito mais
aria
eficiente dos internos.1 Bentham acredita qu e seu pan-ópti-
que pan-ópti-
co representaria um corte dramático na ordem social:
O que você diria se, pela gradual adoção e diversificada
que
aplicação desse único princíp io, visse um novo estado de
princípio,
coisas difundir-se pela sociedade civilizada?2
Os big data serão revelados o ovo de Colombo da socieda
de de controle digital, muito mais eficientes do que o pan-
-óptico bentha
benthami
minia
pan-
no? Os big data serão realmente capazes
niano?
o apenas de monitorar o comportamento humano, mas
não
nã
de sujeitá-lo a um controle ps
psico
icopo
políti
lítico? Distingue-se no
co?
; |ere-»w Bctuham. ( >/.’///-.p///'¡1
I ew Lidi-ii.
iímlo: Autentica. 2< p.
J ibid.. p. 3 ! 5.
ibid..
horizonte da sociedade civilizada mais uma vez um drama
uma
totalmente inesperado?
big data tornam possível um
Em todo caso, os big a forma de
uma
controle muito Oferecemos uma visão em 360°
uma
dos seus clientes» é o slogan da empresa de big data norte-
-americana Acxiom. De fato, o pan-óptico digital oferece
uma
um a visão em 360° dos seus internos. O pan-óptico
pan-óptico de Ben-
tham está ligado à óptica
óptica pe
persp
rspect
ectivi
ivista. Desse modo, são
sta.
inevitáveis pon tos cegos no
pontos noss quais os pri
prisi
sioneiross po
oneiro dem
podem
perseg
per uir seus pen
seguir pensam
samen tos e desejos secretos sem serem
entos
notados.
M A vigilância digital é mais eficiente porque
porque é
ta. Ela é livre de limitações pe
persp
rspec
ecti
tivi
vistas qu
stas e são caracte
que
rísticas da óptica analógica. A óptica digital poss
possib
ibilita a vi
ilita
partir de qualquer ângulo. Assim, elimina ponto
gilância a partir pontoss
cegos. Em contraste com a óptica analógica e persp
perspec
ectiv
tivista,
ista,
a óptica digital pode
pode espiar até a psiqu
psique.
e.
DATAÍSMO
New York Times David Brooks3 anunciou uma revo
No New
lução dos dados. Profeticamente, seu anúncio soou como
1 )isponívcl em: <\vww.nytimes.coin/2()13/()2/<b/opinion/
79
O fim da teoria, de Chris Anderson.4 O «dataísmo» traduz
essa nova crença:
Se você me pedisse para descrever a filosofia que está na
para
para entender o present
cional para presente
e e o passado..5
passado
O dataísmo surge com a ênfase em um segundo Iluminis-
com
mo. No primeiro Iluminis
Iluminismo,
mo, acreditava-se que a estatística
seria capaz de libertar o conhecimento do teor mitológico;
por isso, a estatística foi festejada com euforia pelo primeiro
pelo primeiro
Iluminismo. A luz da estatística, Voltaire almejava um umaa his
tória qu e fosse separada da mitologia.
que acordo com ele, a
mitologia. De acordo
estatística seria um «objeto de curiosidade para quem quer
r a história como cidadão e como filósofo». Apenas a histó
ler
le
ria qu
quee fosse reavaliada pela
pela estatística seria filosófica:
o Tlic \cir York Times. 4/2/2<H3.
80
Os números da estatística são o fundamento por meio do
qual Voltaire pode
pode articular sua desconfiança metódica con
tra cada historia que existe apenas como narrativa, contra a
i’clha historia, que, para beiram sempre o mitológico/’
para ele, beiram
Para Voltaire, estatística significa esclarecimento. À nar
rativa mitológica opõe-se o conhecimento fundamenta do con
fundamentado
duzido por
por números.
A transparencia é a palav
palavra-c
ra-chav
havee para o segundo Iluminis
para Iluminis--
mo. Os dados são um médium transparente: são, como tam
bém se pode 1er no artigo
artigo do New York Times, urna «lente
transparente e confiável». O imperativo do segundo Ilumi-
nismo é: tudo deve se tornar dados e informação. Esse totali
tarismo ou fetichismo dos dados marca o segundo Iluminis-
mo.. O dataísmo, qu
mo quee acredita que qualquer ideologia pode
pode
para trás, é em si mesmo um
ser deixada para umaa ideologia: conduz
a um totalitarismo digital. Assim, é necessário urçi terceiro Ilu-
Ilu-
minismo, ququee nos ilumine mostrando qu quee o Iluminismo
Iluminismo di
gital se converte em servidão.
Os big data devem libertar o conhecimento da arbitrarie
dade subjetiva. A intuição não representa
representa nenhuma forma
de conhecimento superior: ela é algo meramente subjeti-
6 Rüdiger Campe. /)</.< Spici dei
ahrscliciidicida n. Lili ¡alar and tte-
rcchiiuna zirPcheii Pascal and Kh ísi. Gõcringen: Wallstein. 2 )2,)2, p. 399.
81
vo, um recurso qu e compensa a falta de dados objetivos. De
que
acordo com esse argumento, em uma situação complexa, a
intuição é cega. Até mesmo a teoria ca caii sob suspeita de ser
ideológica. Quando dados suficientes estiverem disponí
veis, a teoria se torna dispensável. O segundo Iluminismo
é o tempo do puro
puro conhecimento movido a dados. Dito co m a
com
retórica profética de Chris Anderson:
profética
Esqueça toda a teoria do comportamento humano, da lin
lin
guística à sociologia. Esqueça a taxonomia, a ontologia e
a psi
psicol
cologia. Quem sabe por qu
ogia. quee as pessoas fazem o que
fazem? A questão é que fazem, e podemos
podemos rastrear e medir
isso com umumaa fidelidade sem prece
preceden tes. Com dados su
dentes.
ficientes, os números falam por
por si mesmos.7
O médium do primeiro Iluminismo é a razão. Em nome
primeiro
da razão foram suprimidos a imaginação, a corporalidade e o
desejo. Um
Uma por trans
a dialética fatal do Iluminismio acaba por
formá-lo em barbá rie.. Essa mesma dialética ameaça o segun
barbárie
do Iluminismo, ququee recorre a informações, dados e trans
parê
parência. O segundo Iluminismo prod
ncia. uz uma. nova forma
produz
de violência. A Dialética do Esclarecimento afirma que o
Iluminismo, ao começar a destruir os mitos, foi se emara-
i/j/c, v. X. Berlim, 2o 13.
nhando cada vez mais em uma mitologia.: «A falsa clareza
uma
é apenas uma outra expressão do mito»? Adorno diria que a
uma
transparência também é um
umaa outra expressão do mito e que
o dataísmo prom ete um
promete a falsa clareza. Essa mesma dialética
uma
transforma o segundo Iluminismo, que se opõe à ideologia,
em uma ideologia e em um
uma a barbárie dos dados.
uma
O dataísmo se mostra como dataísmo digital. O dataísmo
renuncia a todo nexo de sentido. A linguagem é
também renuncia
completamente esvaziada de seu significado:
Os acontecimentos da vida não têm nem começo nem
não
maneira idiota. Por isso tudo é
fim. Tudo transcorre de maneira
igual. A simplicidade se chama dada.9
Dataísmo é niilismo.10 Ele renuncia inteiramente ao sen
tido. Dados e números são aditivos, não narrativos. O senti
não
do baseia-se na narração. Os dados preenchem
do,, ao contrário, baseia-se preenchem
o vazio do sentido.
S_ Theodor W. Adorno e Mar\ Horckheimer. Dhilcliüi Jo
Jo cschucii-
: >
iu ' h í
mciiio: i c i iu
1 \ filosóficos. Trad. de Guido Antonio de Almeida. Rio
de janeiro: Zahar. 19S5, p. 14.
janeiro:
9_
Trisran 1 /ara. Sicbcii i ).¡ d.i-Lm i/o íc\ Hamburgo: Nautilus.
i 97o, p. i 2.
10 Ch Bvung-Chul Han. Diiijiuiius iiná Xiliilisiims. ZlilT Oiiliiie.
27/9/201 1.
Atualmente, os números e os dados nao são apenas ab-
solutizados, mas também sexualizados e fetichizados. O
Quantified Self autoconhecimento através dos números, é
pratic
pra ado,, por exemplo, a part
ticado ir de um
partir a energia libidinosa.
uma
O dataísmo desenvolve características libidinais, chegando a
traços por
porno
nográ
gráfic os. Os dataístas copulam com dados. As
ficos.
sim, fala-se entrementes de «datassexuais». Eles seriam «im
placa
placavel
velme
ment e digitais» e considerariam os dados «sexy».11 O
nte
digitus se aproxima do phallus.
phallus.
QUANTIFIED SELF
A crença na mensurabilidade e na quantificabilidade da
vida domina toda a era digital. O quantified self também
também
reverencia essa crença. O corpo é equipado com sensores
que registram dados automaticamente. São medidos a tem
tura corporal, os níveis de glicose no sangue, a ingestão
peratura
pera
e o consumo de calorias, os deslocamentos ou os níveis de
gordura corporal. Durante a meditação os bati
batimentoss car
mento
díacos são medidos. Até mesmo nonoss momentos de repouso
eficiência têm importância. Estados de
o desempenho e a eficiência
ânimo, sensações e atividades cotidianas também são regis-
84
trados. O desempenho corporal e mental deve ser melhora
do através da autoaferição e do autocontrole. No
No entanto, o
pergunta quem sou
puro acúmulo de dados não responde à pergunta
eu? O quantified self também é umumaa técnica dataísta de si que
o esvazia completamente de sentido. O si mesmo é desman
chado em dados até qu e se torne insignificante.
que
O lema do quantified self é: Self knowledge through num
bers («autoconhecimento através dos números»). Por mais
abrangentes que eles sejam, dados e números não produze
que m
produzem
autoconhecimento. Os números não contam nada sobre o
eu. Não há narrativa. Mas o eu se deve a um
uma a narrativa, Não
a contagem, mas a narrativa é que conduz ao encontro de si
e ao autoconhecimento.
O antigo cuidado de si está ligado às práticas de registro
práticas
sobre si mesmo. A publicatio sui (Tertuliano) é umuma a par
parte
te
essencial do cuidado de si mesmo:
Escrever também era importante na cultura do cuidado de
si. Uma de suas características mais significativas implica
va tomar notas sobre si mesmo qu e precis
que precisavam ser relidas,
avam
escrever tratados ou cartas para amigos pa
para ra ajudá-los e
para
carregar cadernos com o intuito de reativar pa ra si mesmo
para
as verdades necessárias.12
publicado sni se dedica a urna busca
A publicado busca pela
pela verdade. Os re
gistros sobre si mesmo servem a umuma a ética do eu. O dataísmo,
ao contrario, esvazia o automonitoramento (self-trackiny) de
qualquer ética e verdade e o transforma em mera técnica de
autocontrole. OsOs dados coletados também são pu publi
blicadoss e Z
cado
trocados. Assim, o automonitoramento se assemelha cada ve vezz z
mais à autovigilância. O sujeito contemporâneo é um em
preendedor
preende que se autoexplora. Ao mesmo tem
dor de si mesmo que
po, é um fiscalizador de si próprio
próprio.. O sujeito autoexplorador
traz consigo um campo de trabalhos forçados, no qual é ao
mesmo tempo carrasco e vítima. Como sujeito que
que expõe e
supervisiona a si próprio, ele carrega consigo um pan-óptico
próprio, pan-óptico
no qual é, de urna só vez, o guarda e o interno. O sujeito
digitalizado e conectado é um pan-óptico de si mesmo. Dessa
maneira, o monitoramento é delegado a todos os individuos.
0 REGISTRO TOTAL DAVIDA
cada dique que damos e cada termo
que termo que pesq
pesqui-
ui-
samos ficam
gistrado. No
Nossa vida é completamente reproduzida na rede
ssa
digital. Os nossos hábitos digitais proporcionam uma repre
proporcionam
sentação muito mais exata de nosso caráter, e nossa alma,
talvez até mais pr
prec
ecisa ou mais completa do qu
isa e a imagem
que
e fazemos de nós mesmos.
que
qu
86
Hoje, o número de endereços na we webb é praticam
praticamente ili
ente
mitado. Assim, é possível fornecer a cada objeto de uso un
possível uníí
endereço internet. As pró
próprias coisas se tornam emissoras
prias
ativas de informações: sobre a nossa vida, nosso fazer, nos-
sos costumes. A expansão da internet das pesso
pessoas
as (web 2.0)
para a internet das coisas (web 3.0) completa a sociedade de
controle digital. A we
webb 3.0 torna possíve
possívell um registro
registro total
da vida. Agora também somos monitorados pelas pelas coisas que
utilizamos cotidianamente.
Somos, por assim dizer, pris
prision
ioneiros de uma memoria
eiros
total de caráter digital. pan-óptico de Bentham, por
digital. O pan-óptico por ou
ou
tro lado, carece de um sistema de registro eficiente. Existe
apenas um livro das puniçõe
puniçõess disciplinares que lista os cas
que
tigos aplicados e suas causas. A vida dos pr
presos não é re
esos re
gistrada. De qualquer maneira, ao Grande Irmão também
permane
perm ce oculto o qu
anece e as pessoas pen
que pensam ou desejam.
sam
Em contraste com o Grande Irmão, que prov
que provavel
avelmente
mente
esquecido, os big data não esquecem nada. Já por
é muito esquecido, por
pan-óptico digital é mais eficiente
esse motivo, o pan-óptico eficiente do que o
que
benthaminia
benthaminiano.
no.
Nass eleições norte-americanas, big
Na data e data-mining
de dados se revelam, de fato, o ovo de Colombo. Os can
didatos têm um
umaa visão em 360° dos eleitores. Gigantescas
quantidades de dados de diferentes fontes são coletadas, na
87
compradas e conectadas entre si, para que possam
verdade compradas
perfis eleitorais bem
duz perfis
produz
pro bem definidos. Com isso, também se
adquire uma visão da vida pri
uma privada e mesmo da psique dos
vada
eleitores. O micro-targeting é aplicado para abordar os elei
para
tores com mensagens direcionadas e perso
tores persona
naliz
lizadas,, e assim
adas
influenciá-los. O micro-targeting como
como prá
prática da microfísica
tica
do poder, é um
poder, a psicopolítica
uma dados. Os algoritmos
psicopolítica movida por
prognósticos sobre o
inteligentes também permitem realizar prognósticos
comportamento eleitoral e otimizar o discurso. Os discursos
muito das
eleitorais individualmente adaptados não diferem muito
propag
propagan
andas personalizadas. Cada vez mais, votar e comprar,
das personalizadas.
Estado e mercado, cidadão e consumidor se assemelham. O
micro-targeting se torna a prática geral da psic
prática psicop
opo
olíti
lítica
ca..
O censo demográfico, que representa uma prá
uma prática bio-
tica
política da sociedade disciplinar, oferece
oferece um material que é
utilizável demográficamente, mas nã o psicologicame
não psicologicamente.
nte. A bio-
bio- $
políti
po ca nã
lítica o per
não permit e um acesso sutil à ps
mite psique.. A psic
ique opo
psicopo
outro lado, é capaz de intervir de forma
lítica digital, por outro í/
prospe
pro spect
ctiva noss processos
iva no processos psíq
psíquicos.. Talvez ela seja até mais
uicos ¿
rápida do qu e o livre-arbítrio, podendo ultrapassá-lo. Isso
que ¿a
significaria o fim da liberdade.13
lou. die unser Leben wandern wird. Munique: Kedline. 2»H3. p. 203.
88
O INCONSCIENTE DIGITAL
Os big data talvez tornem legíveis aqueles nossos desejos
dos quais nós mesmos não estamos propri
propriam
amen te conscientes.
ente
De fato, em determinadas situações, desenvolvemos inclina
ções que escapam à nossa consciência.
consciência. Muitas vezes, nenemm se
por que de repente sentimos certa necessidade.
quer sabemos por
O fato de umumaa mulher em determinada semana de gravidez
desejar determinado produt o, implica um
produto, umaa correlação da qual
ela mesma não está consciente. Ela simplesmente compra
aquele determinado produt o, mas nã
produto, não por quê. E assim
o sabe por
mesmo. Esse «é assim mesmo» talvez tenha um uma a proxim
proximida de
idade
psíqu
psíquic a do id freudiano, que escapa ao eg
ica egoo consciente. Vis
tos dessa forma, os big data fari am um ego a partir
fariam
partir do id que se
deixa explorar psico
psicopo
polit
litica
icame nte.. Se os big
mente big data oferecessem
acesso ao inconsciente de nossas ações e inclinações, então
seria possível
possível imaginar um
uma a psic
psicop
opololít
ítica que interviria pro
ica pro
fundamente em nossa psique
psique para
para explorá-la.
De acordo com Walter Benjamín, a câmera de cinema
permi
per mitete o acesso a um «inconsciente óptico»:
plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o
Com o grande plano
movimento adquire novas dimensões. [...] Assim se torna
compreensível que a natureza
natureza da linguagem da câmera seja
diferente da do olho humano. Diferente, prin
princip
cipalm
almente,
ente,
ue em vez de um espaço preench
porque
porq ido conscientemente
preenchido
89
pelo homem, surge um outro pree preench
nchidoido inconsciente
mente. [...] Em geral, o ato de peg ar num isqueiro ou
pegar
numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se pas pas
sa entre a mão e o metal ao efetuar esses gestos, par a não
para
falar de como neles atua a nossa flutuação de humor.
humor. Aqui,
a câmera intervém com os seus meios auxiliares, os seus
«mergulhos» e subidas, as suas interrupções e isolamentos,
os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e
reduções. A câmera leva-nos ao inconsciente óptico, tal
como a psicanálise
psicanálise ao inconsciente da
dass pulsões.14
pulsões.
Poderia se estabelecer uma analogia entre os big data e a
uma
câmera de cinema. Como uma lupa digital, o data-mining
ampliaria as ações humanas e revelaria, por
por trás do espaço de
pela consciência, um campo de ação estru
ação estruturado pela
turado de maneira inconsciente. A microfísica dos big data
tornaria visíveis actomes, isto é, microações que escapariam à
consciência. Os big data também pod poderi am prom
eriam promove r pa
over
drões coletivos de comportamento dos quais não seríamos
conscientes como indivíduos. Com isso, o inconsciente co co
letivo ficaria acessível. Analogamente ao «inconsciente
«inconsciente óp
tico», a inter-relação microfísica ou micropsíquica também
I4_ Walter Benjamin. Sobre one, léciiho, liiioiioociii t politico. I rad.
rad.
de Maria Luz Moita. Mana Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa:
Relógio D'Agua, 1992. pp. 104-5.
pp.
90
pode
po ría ser chamada de inconsciente
dería digital. A ps
psico
icopo
polít
lítica
ica
digital seria então capaz de aproveitar o comportamento da
dass
massas em um nivel que escapa à consciência.
GRANDE NEGOCIO
Atualmente, os big data não se manifestam apenas na for
ma do Grande Irmão, ou seja, do Big Bro ther,, mas também
Brother
de um big deai. Antes de tudo, os big data são um grande ne
gocio: os dados pessoai
pessoaiss são completamente monetarizados
comercializados. Hoje, as pessoa
ezadas pessoass são tratadas e comerciali
como paco tess de dados qu
pacote podem ser explorados eco
e podem
que
nomicamente. Assim, elas pr própriass se tornam mercadoria.
ópria
Big Brother e big deal se aliam. O Estado de monitoramento
e o mercado se tornam um um..
A empresa estadunidense de análise dos big data Acxiom
pessoaiss de cerca de 300 milhões de
comercializa os dados pessoai
cidadãos norte-americanos, ou seja, de quase todos os ci
dadãos. Dessa maneira, a Acxiom sabe mais coisas sobre os
cidadãos norte-americanos do qu e o . Na Acxiom, as
que
pessoas são divididas em setenta categorias, e oferecidas em
um catálogo como mercadorias. Para cada necessidade há
para comprar. Pessoas com um valor econômico baix
algo para o
baixo
são denominadas com o termo waste («lixo»). Consumido
res com alto valor de mercado se encontram no grupo shoo-
91
ting star. São dinâmicos, casados, têm entre 36 e 45 anos,
sem filhos, levantam cedo par a correr, gostam de viajar e
para
veem Seinfeld.
Os big data inauguraram uma nova sociedade de classes di
gital. Quem está na categoria «lixo» pertenc em à classe mais
pertencem
baixa. Aos indivíduos com pontu ação ruim são negados
pontuação
junto ao pan-óp
empréstimos. Logo, junto tico surge um «ban-
pan-óptico
pan-óptico monitora os internos
-óptico».15 O pan-óptico internos incluídos no
sistema. O ban-óptico
ban-óptico é um dispositivo qu quee identifica como 4
estranhas ou hostis ao sistema e as ex
indesejadas as pessoas estranhas
clui (em inglês: to batí). O pan-óptico
pan-óptico clássico serve para
para dis
ban-ópticos garantem a segurança e a eficiência
ciplinar; os ban-ópticos
do sistema.
O ban-óptico digital identifica pessoas que são econo
ban-óptico econo
micamente inúteis como lixo. O lixo é algo que precisa ser
eliminado:
São todos redundantes. Dejetos ou refugos da sociedade.
Em suma, lixo. «Lixo» é, por definição, o antônimo de
«coisa útil», denota objetos sem utilidade possível. CoComm
efeito, a única habilidade do lixo é sujar e atravancar um
espaço que, de outro modo, pod eria ser pro
poderia provei
veitosa
tosame
mente
nte
!.•)_
Zvgmunr Bauman. I gil din ia haiiida: Dialog m/// Daeid Lyoii.
gil din
frad. de Carlos Alberto Medeiros. Bio de ¡aneiro: Zallar. 201 L pp. 52ss.
frad.
empregado. O princ
principal propós
ipal ito do ban-óptic
propósito o é garan
ban-óptico
tir que o lixo seja separado do produto
produto decente e identifi
cado a fim de ser transferido para
para um depósito adequado.16
ESQUECER
A memória humana é uma narração, um umaa narrativa para
para
a qual o esquecimento é essencial. A memória digital, por
outro lado, é uma adição e acumulação se m intervalos. Os
sem
dados armazenados são contáveis, mas não narráveis. Sal
var e recuperar é fundamentalmente diferente da memó
memó
ria, que é um proces
que processo
so narrativo. A autobiografia também
é um escrito narrativo de lembrança. A linha do tempo
(timeline), por outro lado, não narra nada. É uma simples
enumeração e adição de eventos ou informações.
A memória é um pr proc
ocesso dinâmico e vivo em qu
esso e di
que
ferentes pe
perío doss de tempo interferem e se influenciam
ríodo
mutuamente. Está sujeita a transcrições e reagrupamentos
considera a memória humana um orga
constantes. Freud considera
nismo vivo:
Você sabe, eu trabalho com a suposição de que nosso me
canismo psíquico
psíquico aparece através de camada sobre camada:
o material pre
presente na forma de traços de memória sofre
sente
lô__ Ibid.. p. 7.
de tempos em tempos um um rearranjo, um
umaa transcrição após
novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a
afirmação de que a memoria se apresenta não de urna
urna for
ma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços.
Assim, não existe o passa
passado
do qu
quee se mantém igual e é re
mesma forma. 17|A memoria
cuperável na mesma memoria digital se constitui
de momentos pr pres
esentes indiferentes ou, por assim dizer, de
entes
momentos zumbis. Falta-lhe esse horizonte temporal
temporal esten
constitui a temporalidade dos viventes. Com isso, a
dido que constitui
vida digital perde sua vitalidade. A temporalidade do digital
digital perde
é a dos mortos-vivos.
ESPIRITO
Os big data sugerem um conhecimento absoluto. Tudo
Tudo
é mensurável e quantificável. As coisas revelam suas corre
lações secretas, qu e até então estavam ocultas. Do mesmo
que
modo, o comportamento humano também deve se previsí
r previsí
ser
vel. Um
Uma a nova era de conhecimento é anunciada.
anunciada. As corre
lações substituem a causalidade. O é assim mesmo substitui o
por quê. A quantificação da realidade movida a dados afasta
completamente o espírito do conhecimento.
Para Hegel, o filósofo do espírito, o conhecimento total
prometi
pro do pelos big data pa
metido parec
receria um
eria um não saber absoluto.
não
A Lógic pode ser lida como a lógica do conheci
Lógicaa hegeliana pode
mento. De acordo com ela, a correlação representa o está
De acordo
gio mais primitivo do
primitivo do conhecimento. Um
Umaa forte correlação
entre A e B afirma o seguinte: quando
entre quando A se altera, também
ocorre uma alteração em B. Em um
uma a correlação, por mais
uma
forte que seja, não se conhece absolutamente o porquê
porquê dessa
alteração. É simplesmente assim. Trata-se de uma relação de
uma
probab
pro babili
ilidade, e nã
dade, não Na correlação, A ocor
o de necessidade. Na
re frequ
frequentement
entementee jun
junto
ponto que a correla
to com B. E neste ponto
ção se diferencia da relação causal. Já a necessidade é distinta
por essa relação causal: A causa B.
A causalidade não é o mais alto nível de conhecimento.
A reciprocidade é umuma a relação mais complexa do qu e a re
que
lação causai. Ela afirma: A e B se condicionam mutuamente.
Existe um
uma a conexão necessária entre ambos. Mas, mesmo no
reciprocidade, a conexão entre A e B ainda nã
estágio da reciprocidade, o
não
de ser concebida (begriffen):
pode
po
Quando se fica na consideração de dado conteúdo simples
ponto de vista da ação-recíproca, isso é de fato
mente sob o ponto
um comportamento inteiramente carente-de-conceito.18
Só o «conceito» prod uz o conhecimento. Ele é C, que
produz
conceitualiza dentro de si A e B, e através do qual ambos são
conceitualizados. É a ligação mais elevada, que abrange A e
B e a partir da qual a relação entre de A e B pode ser fun
partir
damentada. Portanto, A e B são «momentos de um terceiro,
damentada.
superior». O conhecimento só é possível
possível no nível do conceito:
por ele, as co
O conceito é o imánente às coisas mesmas; por coii
sas são o que são; e conceituar um objeto significa, por
por
isso, ser consciente de seu conceito.19
Só a partir do conceito C oniabrangente é possível uma
concepção integral da correlação entre A e B. Os big data co
locam à disposição apenas um conhecimento muito elemen
tar, as correlações, nas quais nada é concebido. Os big data
não têm conceito nem espírito. O conhecimento absoluto que
sugere coincide com a falta de saber absoluta.
O conceito é um a unidade qu
uma e envolve (ein-schließt) e con
que
cebe (ein-begreift) em si os seus momentos. Tem a forma de um
um
silogismo (Schluß), no qual tudo está envolvido (inbegreifen).
«Tudo é silogismo» significa «tudo é conceito».20 O co
absoluto é o silogismo absoluto. A definição
nhecimento absoluto
de absoluto é «silogismo».21 Só a adição continuada nã nãoo
produz nenhum silogismo. silogismo não é uma adição,
silogismo. O silogismo
mas umuma a narração. O silogismo absoluto é algo qu quee exclui
(ausschliefty umuma a nova adição. O silogismo como narração
é uma contrafigura da adição. Os big data são puramente
aditivos e não atingem nunca nenhum silogismo ou ou con
con
clusão. Ao contrário das correlações e das adições que os
produzem, a teoria representa um
big data produzem, uma a forma
forma
de conhe
cimento narrativa.
espírito é um silogismo, um
O espírito uma a totalidade em qu quee suas
tess são racionalmente suspensas (aufgehoben). A totalidade é
parte
par
uma
um a forma de silogismo. Se Sem m o espírito, o mundo reduzido
à mera adição se desintegra. O espírito forma sua interiorida-
de e o repositório ququee reúne tudo dentro de si. A teoria tam
bém é um silogismo qu e concebe em si as part
que es e as envolve.
partes
O «fim da teoria» anunciado por Chris Anderson implica,
em última instância, dar adeus ao espírito. Os big data deixam
que
qu e o espírito se atrofie completamente. A ciência do espíri
to movida apenas a dados já já não é, com efeito, um umaa ciência
20_ lbid., p. 31ó.
21__ lbid.,p. 315.
97
do espírito. O conhecimento de dados total é um
um não saber
absoluto no grau zero do espirito.
A ciencia da lógica, Hegel afirma: «O silogismo é o ra
Em A
cional e todo o racional».22 Para ele, o silogismo não é urna
categoria da lógica formal. Um silogismo ocorre quando
o começo e o fim de um pro
processo formam uma conexão
cesso
com sentido, um a unidade doadora de sentido. Portanto,
uma
ao contrário da mera adição, a narração é um silogismo.
O conhecimento é um silogismo. Os rituais e as cerimônias
também são formas de silogismo. Eles representam um
proce
processo narrativo. Assim, têm tempo, ritmo e compasso
sso
própri
pró os. Como narrativa, escapam à aceleração. Por outro
prios.
lado, onde todas as formas silogísticas se deterioram, tudo
escorre se
sem parar. A aceleração total ocorre em um mundo
m parar.
tornou aditivo e cada tensão narrativa, cada
onde tudo se tornou
tensão vertical, foi perdi
perdida
da..
Hoje, a própria
própria per
percep ção é incapaz de silogismo, ou seja,
cepção
de conclusão, porq
porque zapeando na rede
ue está zapeando rede digital infinita.
Ela se dispersa totalmente. Apenas um demorar-se contem
plativ
pla o é capaz de silogismo. Fechar os olhos é uma
tivo uma alegoria
ra o silogismo. A troca rápida de imagens e informações
para
pa
torna o fechamento dos olhos, o silogismo contemplativo,
Id.
98
impossível. Se tudo o ququee é racional é um silogismo, então a
big data é
era dos urna era sem razão.
ACONTECIMENTO
O método estatístico inventado no século XVII tirou o
poetas e filósofos. Eles re
fôlego de cientistas, apostadores, poetas re
corriam com grande entusiasmo à probabi
probabilidade e à regu
lidade regu
laridade estatísticas descobertas naquela época. Essa euforia
pode
pod
e ser comparada com a dos big data. Naqu ela época,
Naquela
levou as pessoas
pessoas a recuperar a confiança na providência di
providência
vina em frente à contingência do mundo. Assim se intitula
um tratado sobre as estatísticas pop
popula
ulacionais escrito por
cionais
John Arbuthnot no século XVIII: An Argument
Argument for
Divine
cidos do sexo masculino em comparação com os do sexo
feminino.
Immanuel Kant também se entusiasma pela
pela possibilidade
possibilidade
de cálculo estatístico, que per
que mite reconhecer um
perm a regula
uma
ridade, incorporando-a a sua visão teleológica da história.
99
Por um lado, ele parte da liberdade da vontade. Po
parte r outro
Por
lado, restringe-a. De acordo com Kant, as manifestações
do livre-arbítrio, ou seja, as ações humanas, são determina
das - assim como qualquer outro fato natural - por
por leis ge
ge
rais da natureza. Quando se observa o jogo
jogo da liberdade da
vontade humana «em linhas gerais» pode-se
pode-se distinguir um
umaa
regularidade. Por mais irregulares qu e as ações dos sujei
que
tos individuais possam parec
parecer,
er, pod
pode-se reconhecer, no qu
e-se que
e
concerne à espécie, um «desenvolvimento continuamente
progre
pro gressivo,, embora lento, das suas disposições originais».
ssivo
Logo, Kant remete à estatística:
Porque a livre vontade dos homens tem tanta influên
cia sobre os casamentos, os nascimentos que daí advêm
e a morte, eles não pare cem estar submetidos a nenhu
parecem
ma regra segundo a qual se possa de antemão calcular seu
número. E, no entanto, as estatísticas anuais dos grandes
países demonstram qu
quee eles acontecem de acordo com leis
naturais constantes, do mesmo modo que as inconstantes
variações atmosféricas, que não podem ser determinadas
podem
de maneira particular com antecedência, no seu todo não
particular
deixam, todavia, de manter o crescimento das pla
plantas, o
ntas,
fluxo dos rios e outras formações naturais num curso uni
forme e ininterrupto. Os homens, enquanto indivíduos, e
mesmo povos inteiros mal se dão conta de que, enquanto
povos inteiros
guem pro
perseguem
perse propós
pósitos
itos par
partic
ticula
ulares, cada qual bus
res, buscando
cando
seu próprio
próprio provei unss contra os ou-
to e frequentemente un
proveito
100
tros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor,
o propós
propósito natureza, que lhes é desconhecido, e traba
ito da natureza,
lham para sua realização.23
O primeiro Iluminismo está essencialmente ligado à
primeiro
crença no conhecimento estatístico. A vontade geral de
Rousseau também é o resultado
resultado de uma operação estatísti-
uma
co-matemática. Ela se forma sem nenhuma comunicação24 e é
resultado de medias estatísticas:
Frequentemente se estabelece uma diferença entre a von
von
tade de todos e a vontade geral: esta só atende ao interesse
comum, a outra só escuta o interesse privado,, e não é
privado
mais do que a soma das vontades partic
que particula
ulares; mas retirai
res;
Immanuel Kant, hlt m du num liislmm ¡> i! Jc mu pomo Jc
¡'i-hi cosmmml ild. írad. de Rodrigo No\aes e Ricardo R. Ferra. 4. cd.
Paulo: Martins F'ontes, 2uHö. pp. 5-4. A regularidade do> marrinio-
Sao Paulo:
estatística
. I en/;?// dmiim nos inihldnrd< ãd míd hltiimim, dciimiisddild d p'irhr de >mi
dd:dínii’d!dt mmle c ivpivdiKdd. Cd. Rüdiger Campe. "Wahrscheinliche
Geschichte: poctologische Kategorie und mathematische Funktion
Im Joseph Vogl (Org.). Pncloloçicii des ll'issens nm
(Org.). ISIH), Miimque:
Wilhelm Fink. pp. 209-230.
nonifica
nonifica <a maioria decide-i], Manfred Schneider aborda o aspecto
aspecto
geral, (d. Ci. Vismaim e T. Weirin (Orgsj. I /-
estatístico da vontade geral,
leilen/Iziiiscliciik’ii. Munique: Wilhelm Fink. dono. pp. 154-74.
101
destas mesmas vontades os pró
próss e os contras que entre si
se anulam e restará a vontade geral,
como soma dessas
diferenças.2'
Rousseau enfatiza expressamente o fato de que a determi
que
nação da vontade geral não requer comunicação e tem mes
tem
mo que a descartar. A comunicação distorce a objetividade
estatística. Assim, Rousseau proí
proíbe
be a formação de pa parti
rtido
doss
polít
po líticos e associações. Sua democracia não po
icos poss ui discurso
ssui
e comunicação. Esse método estatístico produ
produzz uma sínte
se de quantidade e verdade.26 A pergunta
pergunta de como se pode
pode
reconhecer um bom governo, Rousseau dá uma resposta
biopolít
biop ica. Ele tem o cuidado de nã
olítica. nãoo abordar a questão de
propósito da união políti
forma moral: o propósito ca nã
política não
o seria mais do
que
qu e a prese
preserva
rvação e o bem-estar
ção bem-estar de seus membros. O sinal
mais óbvio disso seria o aumento da pop
populaç ão. O melhor
ulação.
governo seria, sem dúvida, aquele que pe
sem perm
rmiti sse que seus
itisse
cidadãos mais e mais «se multipliquem». Assim, Rousseau
exclama: «Homens dos cálculos, o assunto agora pertenc e-
pertence-
-lhes: contem, meçam, comparem».27
Was he i í a I )ie M eh i heir enrscl «eider ■. op. . p. i o2.
26 _ Schneider. >■ Was
27 R oiissea ii. < ) cdiiíidid: id I. op. air.. p. H ‘2.
A euforia atual em torno dos big data é muito par parecida
ecida
com aquela em torno da estatística do século XV1I1, que,
ém,, diminuiu rapidamente. A estatística corresponde,
porém
por
com efeito, aos big data da época. Logo surgiu
com surgiu um
umaa resis
tência contra ela, especialmente por
por parte
parte do Romantismo.
A abominação da média e da normalidade é o afeto funda
mental desse movimento. O singular, o improvável e o re
pentino se opõem ao estatisticamente prová
prováve l. O Roman
vel.
tismo cultivou o pec
peculiar, o anormal e o extremo contra a
uliar,
normalidade estatística.28
A repulsa à razão estatística também é compartilhada por
por
Nietzsc
Nietzsche:
he:
A estatística prova existem leis na história. Ela prova
prova que existem prova
inclusive a vulgar e repugnante uniformidade da massa.
Por que não vão praticar a estatística em Atenas?! Vo
praticar Vo
cês sentiríam logo a diferença! Quanto mais a massa é
vil e indiferenciada, mais a lei da estatística é rigorosa.
Mas logo que a multidão é de uma liga metálicametálica mais
fina e mais nobre, a lei vai para o diabo. E exatamen-
para
als Kn11iiiH’issciisehei
issciisehei/!
/!. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2005.
pp. 259-70.
te nos pínc
píncaro s, no mundo do
aros, espíritos, vocês
doss grandes espíritos,
podem mais contar: por
não podem por exemplo, com qu e idade os
que
grandes artistas se casam? Abandonem toda a esperan
ça, vocês qu e procu
que ram aqui uma lei! Assim, ainda que
procuram
existam leis na história, elas não têm
têm nenhum valor, não
mais do que a própr ia história, quer dizer, aquilo que
própria
aconteceu.29
aconteceu.29
A estatística não leva em consideração «os grandes perso
perso
nagens qu
que palco da história, mas apenas os figu
e atuam no palco
rantes».30 Nietzs
Nietzsche se volta contra o tipo de história
che
que faz dos grandes instintos da massa o fator histórico
primordial
primord ial e que vê em todos os grandes homens somente
a expressão mais clara destas forças, como pequenas bolhas
pequenas bolhas
de ar qu para a superfície das ondas.31
e sobem para
que
Para Niet
Nietzsche, os números estatísticos provam apenas
zsche,
que o homem é um animal gregário, que «os seres humanos
crescem tornando-se iguais”. Esse tornar-se iguais também
caracteriza a atual sociedade da transparência e da infor
mação. Se tudo tem que ser imediatamente visível, diver
que
gências são quase impossíveis. Da transparência surge uma
uma
pressão por
por conformidade que elimina o outro, o estranho,
que
o desviante. Os big data tornam visíveis sobretudo os pa
drões comportamentais coletivos. O próprio dataísmo re
próprio
força o crescer tornando-se iguais. O data-mining não é, em
princíp
prin io, distinto da estatística. As correlações qu
cípio, e ele ex
que
põe mostram o estatisticamente prová
provável. São calculados os
vel.
valores médios estatísticos. Assim, os big data não têm ne
ne
nhum acesso àquilo que é único. Eles são completamente
que
acontecimento. Não é o estatisticamente pr
cegos ao prov
ovável,,
ável
improvável, o singular, o acontecimento qu
mas o improvável, quee determi
nará a história, o futuro humano. Por isso, os big data tam
bém são cegos ao futuro.
105
A L ÉM DO SUJEITO
PARA AL
De acordo com Ni
Niet
etzs
zsche, à «naturalização» do homem
che,
pertenc
pertence para o absolutamente repentino e en
e a «disposição para
trecruzado».1 Esse acontecimento que entrecruza o que é vá
que
lido até o momento e a ordem existente é tão imprevisível e
repentino como um acontecimento natural. Está além de qual
quer cálculo e previsão.
previsão. Dá início a um estado completamente
novo. O acontecimento põe em jogo
jogo um fora qu
quee rompe o
sujeito e arranca-o de sua sujeição. Os acontecimentos apre
sentam rupturas e descontinuidades que abrem h p espaços
espaços
de liberdade.
Seguindo Ni
Nietz
etzsche, Foucault adere àquela ideia de his
sche,
tória qu
quee deixa «o acontecimento aparecer em susuaa singula
ridade radical». Por «acontecimento», Foucault entende «a
inversão de um
uma a relação de forças», a «queda de um poder, a
poder,
reconfiguração de um
reconfiguração a fala e seu uso contra o falante ante-
uma
’ íiicibiu! Nicrz^che. - iVich-.‘Lis<cii>
I SSi i -Soimnei ls<S2'. Krin><hc (HS-niífino^-ilh’.
I i ¡fu: ! ri
2. BerBiii. ¡975 p.
36
No acontecimento subitamente se fala outra língua. Há
rior».2 No
a quebra da certeza dominante que invoca um
uma
um a constelação
uma
do ser completamente diferente. Os acontecimentos são vi
radas nas quais se realiza uma inversão, um
uma a subversão da
uma
dominação. Um acontecimento dá lugar a algo que faltava
no estado anterior.
Ao contrário da vivência, a experiência se baseia em uma
uma
descontinuidade, significando transformação. Em um diálo
Foucault lembra qu
go, Foucault e a experiência em Nie
que Nietz
tzsche, Blan-
sche,
chot e Bataille serve para
para
rasgar o sujeito de si mesmo, de modo que não seja mais
ele próprio, ou que seja levado à sua destruição ou à sua
próprio,
dissolução.3
Ser sujeito significa estar submetido. A experiência arran
ca-o de sua sujeição. Ela se contrapõe à ps psic
icop
opolí
olítica neo
tica
liberal da vivência ou da emoção, que envolve o sujeito de
que
maneira ainda mais profunda
profunda em sua subjugação.
.?
do. I9s7. p. su.
Jci Siibncrrnm des II i<scns. Frankfurt: Fis-
Michel Foucault. I u/i Jci
kF. Dcr Menxli isi cm f:i¡nln im^.nicr. ( mgimcli mil Dinin iinmlhi-
>
Jmi. Frankfurt: Suhrkamp. 1990, p. 27.
107
Com Foucault, a arte de viver pode
pode ser concebida como
a prá
uma
um prática de liberdade qu
tica e prod
que uz um
produz a forma de vida
uma
completamente diferente. Ela se realiza como uma despsi-
uma
cologizaçao:
A arte de viver significa matar a psico
psicolog ia e criar, a partir
logia partir
de si mesmo e de outras individualidades, seres, relações,
qualidades que não tenham nome. Se não se consegue
isso, essa vida não vale a pena
não pena ser vivida.4
A arte de viver se opõe ao «terror psicológico» que é apli
cado na subjetivação.
A psicop
psicopolít neoliberal é a técnica de dominação que
ica neoliberal
olítica
estabiliza e mantém o sistema dominante através da pro
gramação e do controle psi
psico
coló
lógic
gicos. Com isso, a arte de
os. Com
viver como prá
prática de liberdade deve assumir a forma de
tica
uma despsicologização. Ela desarma a psi
uma psicop
copolítica como
olítica
meio de submissão. O sujeito é despsicologizado, esvaziado,
ra qu
para
pa e se torne livre pa
que ra aquela forma de vida que ainda
para
não tem nome.
109
IDIOTISMO
Em seu curso de 1980 sobre Espinosa, Deleuze observa
o seguinte:
Literalmente, eu diria que se fazem de idiotas. Fazer-se
que
de idiota. Fazer-se de idiota será sempre um função da
a função
uma
filosofia.1
Desde o início, a filosofia está intimamente ligada ao
idiotismo. Todo filósofo que produz
produz um novo idioma, uma
uma
nova linguagem, um novo pen
pensam
samento, terá sido necessa
ento,
riamente um idiota. Só o idiota tem acesso ao completamente
i__ (tifies 1 )ck-uze. /:/•■ T Ap.*/ j
p. 2s. Cf. P. Mengc. heiic ¡'idioi: Lt¡
j
de
<
j:e.: (
.:
ca, que põe tudo em dúvida. Cogito ergo surn é um idiotismo.
Uma contração interna do pe
Uma pensa
nsame
mento torna poss
nto possível
ível outro
pensa na medida em que pensa
começo. Descartes pensa pensa o pensamen
pensamen
to. O pen
pensa
samento recupera o estado virginal no qual ele se
mento
refere a si mesmo. Ao idiota cartesiano, Deleuze opõe outro
idiota:
O antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria
por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo [...].
O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências,
[...] ele quer o absurdo — não é a mesma imagem do pen
pen
samento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o novo
potência do pensam
quer fazer do absurdo a mais alta potência ento,,
pensamento
isto é, criar.2
Hoje, os tipos do excêntrico, do louco e do idiota pare
pare
cem ter desaparecido da sociedade. A conexão digital e a
comunicação totais aumentam significativamente a coerção
por conformidade. A violência do consenso reprime o idio
tismo. Botho Strauss está bem ciente da diferença entre o
bem
conformismo de hoje e a convenção burgue
burguesa:
sa:
Para ele, é como se todôs os outros falassem de maneira
finamente coordenada. Ajustados até o grau de concor
2, Gilk s I )ck-uze <. Félix («uarrari. ( ) <///<
Ld. 34. 2« HG. p. S4.
Paulo: Ld.
3 u //Uo/h-// 2. ed.
<///< ed. Sao
111
dância mais palatável. [...] Uma convenção muito mais
intransigente do que qualquer outra anterior.1
O idiota é um idiossincrata. Idiossincrasia significa li
teralmente um
umaa mistura pecu
peculiar dos sucos corporais e a
liar
hipersensibilidade resultante daí. Onde é necessário acele
rar a comunicação, a idiossincrasia representa um obstáculo
devido à sua defesa imunológica contra o Outro. Ela blo
blo
queia o intercâmbio comunicativo ilimitado com o Outro.
Portanto, a imunossupressão é necessária para acelerar a
para
comunicação. Ela é maciçamente suprimida para acelerar
a circulação da informação e do capital. A comunicação
atinge sua velocidade máxima onde o Mesmo reage ao
Mesmo. A resistência e a rebeldia da alteridade ou do estra
nhamento perturbam e retardam a comunicação plana do
Precisamente no inferno do Mesmo
Mesmo. Precisamente Mesmo a comunicação
atinge sua velocidade máxima.
Diante da coerção da comunicação e da conformidade, o
idiotismo representa uma prátic a da liberdade. O idiota, por
prática por
própria natureza, é o desligado, o desconectado, o desin
sua própria
formado. Ele habita o fora
impensável qu e escapa à qualquer
que
comunicação e conexão:
3 Botho Srrauss.
Botho i/r? hicir. l >(T ¡J¡i>! m-J :i hii Z:'*/. Muni
que: I )icciericlis. 2<H3. p. h'.
que:
O idiota se revolve como urna rosa arrancada no redemoi
nho de seres humanos determinados —
— seres humanos em
consenso. Incorporadas, pertencentes a urna concordancia
pertencentes
milagrosa?
O idiota é o moderno herético. Originalmente, heresia
significa escolha. Assim, o herético é alguém que dispõe de
livre escolha. Ele tem a coragem de se desviar da ortodoxia.
Corajosamente, livra-se da obrigação de conformidade. O
herege é urna figura de resistência à violência
idiota como herege
do consenso. Ele resgata o encanto
encanto do forasteiro. Em vista
da crescente obrigação de conformidade, aguçar a consciencia
herética seria hoje mais urgente do que nunca.
à comunicação e à vigilancia totais. O idiota não «comuni
ca». Ou melhor, se comunica através do não comunicável.
Assim, ele se recolhe em silêncio. O idiotismo erigeerige espa
ços abertos de silêncio, quietude e solidão no
noss quais é pos sí
possí
vel dizer algo que realmente merece ser dito. Já em em 1995,
Deleuze anunciava essa política do silencio. Ela é dirigida
contra a psicopo
psicopolíti ca neoliberal que obriga à comunicação
lítica
e informação:
à
Ib id.. p. II.
Ib
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A dificuldade hoje não é mais que não pod
podememosos expres
sar livremente nossas opiniões, mas criar livres espaços de
solidão e silêncio em que encontremos algo a dizer. As
torças repressivas nãnãoo nos impedem de expressar nossa
opinião. Ao contrário, elas até nos obrigam a isso. Qu Que e
libertação é ao menos um umaa vez nã
nãoo ter que dizer nada e
poder ficar em silêncio, porque
porque só então temos a possi bilii
possibil
dade de criar algo cada vez mais raro: algo que realmente
valha a pena
pena ser dito.3
O idiot savant tem acesso a um conhecimento completa
mente distinto. Ele se eleva sobre horizontal, sobre o estar
sobre o horizontal,
meramente informado e conectado:
O idiot savant, como anteriormente se chamava o autista,
deveria se libertar do conceito, qu pudesse ser apli
e talvez pudesse
que
cado àqueles aventureiros que estão ligados de maneira
que
diferente do que apenas entre si.6
que
O idiotismo inaugura um espaço virginal, a distância
que o pensame
pensamento para se pre
nto necessita para prepar
parar para um
ar para a fala
uma
inteiramente distinta. O idiot savant vive da distância, como