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MESTRADO

ARQUITECTURA

Espaço Musas: licença para ocupar


João Miguel Silva

M
2019
Resumo

Na cidade contemporânea vive-se o regresso às reivindicações pelo direito


à cidade. A crise dos espaços públicos, demasiado controlados, e dos espaços pri-
vados, super especulados, afastaram dos habitantes a oportunidade de expressão
no meio construído. Pensar a cidade enquanto recurso comum tráz ao de cima a
proposta de espaços colectivos, onde se garante a apropriação do meio por parte
dos que nele participam.
Um destes lugares é a Quinta Musas da Fontinha, um projecto cultural e
social em torno de hortas urbanas, nascido da ocupação de terrenos abandonados
no miolo do quarteirão do Alto da Fontinha. Aqui faz-se uma aproximação à histó-
ria, contexto e processos específicos deste espaço autogerido de forma colectiva,
propondo uma compreensão do espaço físico através do seu espaço social, e vice-
-versa.
O contexto de transformação da morfologia espacial e social que hoje se
vive no Porto, intimamente ligado à gentrificação e à especulação, coloca uma
ameaça real a estas formas de produção do espaço. Identificada a qualidade in-
tersticial única do lugar, propõe-se um projecto de requalificação de parte do quar-
teirão que permita a persistência e o crescimento desta forma de ocupação através
da colectivização dos espaços hoje parcelados, integrando-os na estrutura de equi-
pamentos da cidade.
Abstract

The contemporary city lives a revival of the historical claims of the Right
to the City. The crisis of public space, supra controlled, and of private space, supra
speculated, removed from the inhabitants the opportunity for expression in the
built environment. Considering the city as common resource brings forward the
proposal of collective spaces, which ensures the appropriation of the environment
by those who participate in it.
One of such spaces is Quinta Musas da Fontinha, a cultural and social pro-
ject built around the idea of urban farming, born from the occupation of abandoned
land inside the city block Alto da Fontinha. Here lies an approach to the history,
context and specific processes of this collectively self-managed space, proposing
an understanding of the physical space through its social space, and vice versa.
The context of transformation of spatial and social morphology that is cur-
rently being felt in Porto, closely related to gentrification and speculation, poses a
real threat to these forms of space production. After identifying the unique inters-
titial quality of the place of study, a proposal for the requalification of part of the
city block is presented. This project serves the purpose of persistence and growth
of the present form of occupation through the collectivization of the spaces today
parceled, integrating them in the structural net of equipment of the city.
Espaço Musas
Licença para ocupar

João Miguel Carvalho Lopes da Silva


Orientador: Virgilio Borges Pereira
Dissertação de Mestrado em Arquitectura

Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

2019
Índice

Introdução 13

enquadramento 1. A crise dos espaços urbanos


teórico 1.1 A cidade: mediação, produção e ordenamento 17
1.2 Duas patologias do espaço urbano 19
1.3 A cidade como recurso comum 26

2. A produção colectiva do espaço


2.1 A intervenção política 34
2.2 A utilização criativa 36
2.3 A activação do interstício 39

3. Quadro Metodológico 46

contexto 4. O Alto da Fontinha


4.1 Desenvolvimento urbano 50
4.2 O quarteirão irresoluto 52
4.3 A influência da fábrica social 56
4.4 As transformações recentes 58

5. A construção social do lugar


5.1 Os movimentos operários 63
5.2 O SAAL e a Associação de Moradores do Leal 64
5.3 A ocupação da Es.Col.A. 69

especificidade 6. Espaços de sociabilização


6.1 A Rua do Bonjardim 74
6.2 A rede do Sobe e Desce 76
7. O Espaço Musas
7.1 Percurso fotográfico 80
7.2 O associativismo 96
7.3 A comunidade Musas 97
7.4 O início da quinta 98

8. A ocupação da encosta e as hortas


8.1 A organização e gestão da quinta 99
8.2 A solução das questões de propriedade 104
8.3 As estratégias da ocupação e seus indícios 106

síntese 9. Questões de intervenção


9.1 O plano de pormenor 114
9.2 A delimitação da intervenção 116
9.3 A preservação do meio 118
9.4 O utilizador construtor 118
9.5 O desafio da circulação 119
9.6 A relação com a gentrificação 120

10. O Programa
10.1 Agricultura 128
10.2 Construção 130
10.3 Cultura 134
10.4 Serviços 136
10.5 Parque 136

anexo 11. Operação


11.1 Os recursos e as ideias 142
11.2 O palco 145
11.3 O bar 150
11.4 O mobiliário 154
11.5 A ruína 158

Bibliografia 167

Referências de imagens 170


Introdução
Por dentro de um dos maiores quarteirões do centro do Porto esconde-se
uma das mais extensas áreas abandonadas da cidade. Numa história que começa
a ser contada com a liberalização dos terrenos urbanos, esta grande mancha verde
foi permanecendo isolada do resto do tecido à medida que o seu perímetro se con-
solidava. Devido às características geográficas e à falta de vias de acesso, tornou-
-se num lugar intersticial de muito difícil ocupação.
Em paralelo, a cidade do Porto sofreu nas últimas décadas uma transfor-
mação profunda das suas dinâmicas urbanas. A explosão do turismo e da reabilita-
ção trouxeram novos desafios à vida urbana, que agora se debate com a gentrifica-
ção, a museificação, o consumo e a especulação do seu habitat.
É neste contexto que o grupo de cidadãos organizados em Espaço Musas
decide ocupar parte dos terrenos abandonados do quarteirão. Indignados com a
situação em que estes se encontravam, resolvem limpar os espaços e começar uma
experiência de hortas urbanas. Não sem um percurso difícil, conseguem por fim or-
ganizar um modelo de autogestão estável e superar os obstáculos de propriedade
que, desde sempre, impossibilitaram o uso efectivo destes espaços.
A Fontinha é um pedaço de cidade especialmente rico. Começando por uma
história marcada pela organização popular na defesa dos seus direitos, muito en-
raizada num sentimento de pertença ao lugar e que hoje se reflecte ainda no fulgor
do tecido social. Passando pelo património, que retém as marcas de um Porto in-
dustrial, entretanto abandonado e hoje rapidamente recuperado. Chegando aos
novos desafios de hoje, que ameaçam a extinção de ambas as expressões.
Durante o último ano, no decorrer desta dissertação, a aproximação ao
projecto do Musas transfigurou-se numa participação activa nos seus processos,
sobretudo devido à amizade e disponibilidade dos participantes, mas também à
vontade pessoal incontornável de experimentar a dimensão empírica das interven-
ções no espaço.
Só com o Musas foi possível imaginar, mas também testar e ensaiar, uma
forma diferente de produzir cidade. Não só enquanto profissional, mas sobretudo
enquanto habitante. Da análise das formas de organização, às estratégias de ocu-
pação, às dificuldades operativas até à melhor maneira de calcetar a pedra de um
canteiro de flores, resultou uma percepção muito forte de que aquilo que o Musas
construiu poderia ser reproduzido em moldes que tivessem até em conta as suas
maiores imperfeições.
Desde o pressentimento de que qualquer dia a quinta seria obrigada a en-
cerrar até ao prenúncio real da intenção de aqui fazer mais um alojamento local,
fui ganhando a consciência de que muito em breve a ameaça se estenderá a todo o
quarteirão e a oportunidade para fazer algo diferente se perderá para sempre.
Surge enfim um plano de reabilitação urbana que parte do programa de
hortas para uma estrutura mais abrangente, pensada de forma a permitir a apro-
priação relativamente livre dos espaços, no seguimento daquilo que já hoje aconte-
ce, fazendo-se deste lugar aquilo que a vida urbana quiser que este seja.

13
enquadramento
teórico

15
1. A crise dos espaços urbanos

1.1. A cidade: mediação, produção e ordenamento

Compreender as transformações urbanas significa esclarecer como se pro-


duzem essas transformações, por iniciativa de quem e com que desígnio. É neces-
sário desmistificar o processo de produção do espaço urbano, que não ocorre sem
regra, mas onde operam várias forças, ainda que dissimuladas do olhar mais ime-
diato. É natural que não se compreenda a cidade enquanto lugar de habitar (e todas
as suas implicações sociais, ambientais, simbólicas) considerando-a tão-somente
um resultante morfológico da acção do tempo e da história, da vontade daqueles
que a habitam, ou do conflito entre diferentes actores urbanos. É necessário pensá-
-la também enquanto reflexo vivo das agitações sociais, reproduzidas no terreno,
para desbloquear outras dimensões que ajudam a explicar esse espaço morfológi-
co.
Talvez se possa afirmar que a cidade, enquanto produto de uma sociedade,
fixa um domínio que não só a transcende, mas envolve. Este domínio situa-a numa
teia de vínculos e relações de diferentes escalas que, observados em conjunto, es-
clarecem sobre a sua constante reinvenção. Em O Direito à Cidade, Lefebvre posi-
ciona a cidade num campo de forças com duas grandes escalas: a ordem próxima e
a ordem longínqua.

“A cidade situa-se num entre-dois, num meio-caminho entre o que chamamos


a ordem próxima (relações dos indivíduos em grupos mais ou menos vastos, mais
ou menos organizados e estruturados, e relações desses grupos entre si) e a ordem
longínqua, a da sociedade, regulada por grandes e poderosas instituições (Igreja,
Estado), por um código jurídico, formalizado ou não, por uma ‘cultura’ e por conjun-
tos significantes. A ordem longínqua institui-se a esse nível ‘superior’, isto é, dotado
de poderes. Ela impõem-se. Abstracta, formal, supra-sensível e aparentemente
transcendente, ela não é concebível fora das ideologias (religiosas e políticas). Ela
comporta princípios morais e jurídicos. Esta ordem longínqua projecta-se na reali-
dade práctico-sensível. Ela torna-se visível quando é escrita. Na ordem próxima, e
mediante essa ordem, a ordem longuínqua persuade, o que completa o seu poder de
constranger. Ela torna-se evidente pela e na imediatez. A cidade é uma mediação
entre as mediações. Contendo a ordem próxima, ela mantém-na; ela estabelece
relações de produção e de propriedade; ela é o lugar da sua reprodução. Contida na
ordem longínqua, a cidade sustenta-a; incarna-a; projecta-a num terreno (o local)
e num plano, que é o da vida imediata; ela inscreve-a, prescreve-a, escreve-a, texto
1
num contexto mais vasto e inapreensível em si mesmo sem o recurso à reflexão.” 1 LEFEBVRE, Henri - O Di-
reito à Cidade, Letra Livre,
Lisboa, 2012, p.56

17
Segundo Lefebvre, a cidade é um espaço de mediação onde se resolvem
as dinâmicas colocadas por forças que se lhe impõem e antecedem e fenómenos
ligados à sua especificidade, subordinados a um constrangimento superior, mas
derivados antes de mais da própria sociedade urbana.
Não é com esta formulação teórica que se desmascaram todos os proces-
sos que produzem cidade. Mas nota-se aqui a importância de conceber o urbano
enquanto parte integrante e resultante de um sistema complexo, por vezes apa-
2
“O contexto, que está rentemente ausente, mas que é afinal crucial para o modo como se reorganizam as
abaixo do texto por deci- formas e os espaços que compõem as cidades. 2
frar (a vida quotidiana, as
Assim, só concebendo a cidade sob um campo de análise vasto, que alcan-
relações imediatas, o in-
consciente do urbano, o ce para além do seu espaço físico, do planeamento urbanístico, da legislação e dos
que quase não se diz (…) e o códigos/normas, isto é, daquilo que opera directamente os actos de intervenção,
que está acima deste texto se consegue questionar o que está por detrás de tudo isso, e de que forma está a ser
urbano (as instituições, as
conduzida a urbanização. Sabe-se que esta é uma questão difícil, porque procura
ideologias) não pode ser
negligenciado num proces- uma explicação para um organismo tão complexo e evasivo quanto a cidade. É uma
so de descodificação.” ibi- questão que tem necessariamente de percorrer diferentes escalas, desde as rela-
dem, p.65 ções da vida quotidiana à actuação das grandes instituições.

Fig. 1 - Colagem do dólar


sobre a mão de Le Corbusier
publicada originalmente
em La ville radieuse.

Mas é evidente que esta “ordem superior”, ponderosa, tem a capacidade


de lhe dar um desígnio, isto é, manuseá-la com uma intenção. Na ordem superior
cogita-se um projecto de cidade. Não por acaso, desde que assistimos ao fim da ci-
dade tradicional, a concepção do urbano tem seguido, de forma geral, um projecto
ideológico facilmente identificável. Como não podia deixar de ser, o sistema econó-
mico sempre teve uma importante palavra a dizer no que diz respeito à construção

18
do habitat. David Harvey refere como, durante a história do capitalismo, o processo
de urbanização foi um dispositivo importante para solucionar alguns problemas
estruturais deste modelo:

“Urbanization, I have long argued, has been a key means for the absorption of
capital and labor surpluses throughout capitalism´s history. It has a very particular
function in the dynamics of capital accumulation because of the long working pe-
riods and turnover times and the long lifetimes of most investments in the build en-
vironment. It also has a geographical specificity such that the production of space
and of spatial monopolies becomes integral to the dynamics of accumulation, not
simply by virtue of the changing patterns of commodity flows over space but also by
virtue of the very nature of the created and produced spaces and places over which
such movements occur.” 3 3
HARVEY, David - Rebel Ci-
ties, Verso, Londres, 2012,
p.61
Para além de absorver grandes quantidades de capital, organizar o sistema
de movimentações de bens e serviços e de construir novos mercados, o processo
de urbanização é um instrumento fundamental para desenhar o território que lhe
apraz (propício aos movimentos de capital e mercadorias), constituído por espaços
de características específicas, capazes de perpetuar o seu domínio e satisfazer os
seus interesses. Hoje em dia deparamo-nos com uma ideologia ainda mais voraz, o
neoliberalismo, que tendo na mira a mercantilização de todos os aspectos da vida,
revolve a cidade para potenciar o consumo, reorganizar as actividades diárias em
torno desse exercício e despromover os comportamentos divergentes. A transfor-
mação urbana, como a temos visto, tem sido um exercício de dominação do capital e
do mercado sobre o nosso habitat. Mas quais são os mecanismos de actuação deste
projecto, e de que forma se fazem notar na vida urbana? 4 4
“A cidade é escrita e
prescrita, o que significa o
seguinte: que ela ordena
1.2. Duas patologias do espaço urbano e estipula. O quê? Cabe à
reflexão descobri-lo.” LE-
“The ethos of consumption has penetrated every sphere of our lives. As FEBVRE, Henri - O Direito à
Cidade, Letra Livre, Lisboa,
culture, leisure, sex, politics, and even death turn into commodities, consumption 2012, p.58
increasingly constructs the way we see the world. (…) Consumption hierarchies, in
which commodities define life-styles, now furnish indications of status more visible
than the economic relationships of class positions. Status is thus easy to read, since
the necessary information has already been nationally distributed through adverti-
sing. Moreover, for many, the very construction of the self involves the acquisition of
commodities. If the world is understood through commodities, then personal iden-
tity depends on one´s ability to compose a coherent self-image through the selection
of a distinct personal set of commodities.” 5 5
CRAWFORD, Margaret -
Variations on a Theme Park,
A vida urbana oferece um estilo de vida regulamentado, acima de tudo, pelo Hilll and Wang, Nova Ior-
que, 1994, p.29/30
poder de compra do indivíduo. Segundo Crawford, os estilos de vida estão de tal for-
ma associados às posses, segundo uma visão materialista e consumista, que a pró-

19
pria identidade de cada um deles depende. Este fenómeno reflecte-se intensamen-
te também à escala urbana e na identidade da cidade. Um pouco por todo o lado,
vemos surgir negócios montados na oferta de experiências únicas e/ou autênticas,
quando na verdade capitalizam a cristalização da obra urbana, construída pelos
habitantes ao longo do tempo, e que pode agora ser vendida de volta, desvirtuada
e acessível apenas àqueles que a podem pagar. Vemos isto acontecer, com espe-
cial intensidade, no fenómeno do turismo que, numa cidade como o Porto, passa a
tomar ferozmente os espaços e os domínios que eram antes reclamados pela vida
quotidiana, pelos pequenos negócios familiares, pelos tascos e pelas mercearias,
etc. Através do processo de gentrificação, o neoliberalismo destrói o tecido social
precedente para aí colocar, em sua substituição, uma captura mercantilizada da-
quilo que ele naturalmente oferecia. No decorrer desta transformação urbana, um
importante mecanismo a operar a construção do espaço de consumo é o consumo
6
LEFEBVRE, Henri - O Di- do próprio espaço. 6
reito à Cidade, Letra Livre, A mercantilização do espaço urbano não é um fenómeno novo, mas a di-
Lisboa, 2012
mensão especulativa com que se compromete, sem consideração pelas conse-
quências sociais, ambientais ou políticas, parece assumir hoje proporções inédi-
7
“The traditional city has tas7. Desde a cidade industrial que se tem assistido à progressiva degradação do
been killed by rampant
valor qualitativo do espaço e do seu uso e à ascensão da especulação financeira e
capitalist development, a
victim of the never-ending
do valor de troca8. O espaço urbano, entregue às lógicas do mercado, é valorizado
need to dispose of over acima de tudo enquanto activo financeiro.
accumulating capital dri- Enquanto se assistem a estas mudanças, sobretudo, nas lógicas de ges-
ving towards endless and
tão do espaço privado, também as características do espaço público se alteram
sprawling urban growth
no matter what the social,
profundamente. No que diz respeito àqueles espaços que costumavam ser os lu-
environmental, or political gares de encontro, de jogo, de expressão e de revindicação, o valor de uso também
consequences.” HARVEY, se perdeu. Tornaram-se lugares abstractos e desubjectivados. O espaço público,
David - Rebel Cities, Verso, forçado à ultra-higienização (à imagem de um espaço limpo, puro e inalterável) e a
Nova Iorque, 2012, p.17
um regime de controlo fortíssimo (de normas sociais inibidoras, de policiamento e
8
LEFEBVRE, Henri - O Di-
de vigilância) tornou-se vazio, desprovido de significado comum (talvez só reste o
reito à Cidade, Letra Livre, património histórico) e inapropriável. É um espaço de usos condicionados e agen-
Lisboa, 2012 dados, cuja ocupação é agora o resultado de uma decisão superior.
Os dois fenómenos estão interligados, e são os sintomas de um ataque à
vida urbana como a conhecíamos, talvez, no século vinte. De acordo com Lefebvre,
“a vida urbana tenta apropriar-se do tempo e do espaço evitando as dominações,
desviando-as dos seus objectivos, auspiciosamente. Ela intervém, igualmente,
mais ou menos, ao nível da cidade e do modo de a habitar. O “urbano” é, assim,
9
ibidem, p.75 em maior ou menor grau, obra dos citadinos (…)” 9. Ora, investindo sobre o seu
espaço e os seus ritmos, o projecto neoliberal rasteira a vida urbana, forçando-a a
adaptar-se e a aceitar novos modos de organização da experiência quotidiana.
Um outro autor, Stavrides, explicita de que forma, neste ataque à capaci-
dade de produzir o urbano, está implícito um projecto de ordenamento que limita
as capacidades de resistência desta ordem próxima, através da manipulação do
carácter dos espaços urbanos onde ela se desenrola:

20
“What appears as an incoherent and fragmented locus of human activities is
characterized, however, by forms of spatiotemporal ordering that are meant to be
compatible with each other. The city must be controlled and shaped by dominant
power relations if it is to remain a crucial means for society’s reproduction. True, the
city is not simply the result of spatiotemporal ordering, in the same way as the socie-
ty is not simply the result of social ordering. Order, social or urban, is a project rather
than an accomplished state. (…) We could say that urban order is the impossible
limit towards which practices of spatial classification and hierarchization tend in
order to ensure that the city produces those spatial relations that are necessary
for capitalism’s reproduction. It appears as obvious that ordering mechanisms are
mechanisms of control: the city can indeed be depicted as a turmoil of activities and
spaces that need to be controlled.” 10 10
STAVRIDES, Stavros -
The City as Commons, Zed
Embora a sua interferência na cidade não ofereça uma explicação suprema Books, Londres, 2016, p.13

para a situação urbana, o ordenamento existe enquanto dispositivo de controle


sobre essa situação, que mesmo em constante mudança reflecte as directrizes de
uma visão estratégica. Desta imposição fazem parte mecanismos de normalização,
isto é, operações no espaço físico e social que definem aquilo que é aceitável, legí-
timo, permissível, e no limite, legal.

“In terms of urban ordering, normalization includes attempts to establish spa-


tial rela-tions that will encourage social relations and forms of behavior which will
be repeatable, predictable and compatible with the taxonomy of the necessary so-
cial roles. Normalization shapes human behavior and may use space (as well as
other means) to do so.” 11 11
ibidem, p.14/15

A normalização do espaço significa uma forma de controlo social. É um


mecanismo que dita a forma como nos comportamos e experienciamos a cidade
(porque internalizamos na nossa relação com o sítio e com os outros o seu dis-
12
curso) e que reproduz as regras da futura dinamização urbana (enraizando-se nas “He who is subjected to
a field of visibility, and who
operações das instituições de poder civil e autárquico). Enquanto ferramenta do
knows it, assumes respon-
ordenamento urbano, está a esculpir a vida quotidiana apoderando-se do seu meio sibility for the constraints
físico, monitorizando-o; a eliminar os comportamentos desnecessários, como a of power; he makes them
apropriação espontânea dos espaços; a orientá-la para práticas que o potenciam, play spontaneously upon
himself; he inscribes in
como o consumo organizado; e tornando os usuários nos próprios opressores da
himself the power relation
sua quotidianidade. 12 in which he simultaneously
A normalização do espaço é uma fórmula que garante homogeneidade plays both roles; he beco-
social (contra a diversidade), sensação de segurança (através da previsibilidade), mes the principle of his own
subjection.” FOUCAULT, Mi-
conforto consumível (não um que se construa) e marginalização da informalidade.
chel – Discipline & Punish:
Nos espaços normalizados, isto é, espaços despidos de especificidade e de uma The Birth of the Prison, Vin-
identidade construída colectivamente, as minorias são segregadas, os indivíduos tage Books, Nova Iorque,
policiam os próprios comportamentos, limitam as suas interacções e o valor de uso 1995

21
é calculado por um leque de ofertas comerciais e não pelo usufruto livre e criativo
do espaço.

“On a larger scale, capitalist space is ever more limited and controlled: by a
permanent decrease in the field of possible actions within an urban space, by the
superimposition of numerous regulations and norms. (…) This impoverishment of
urban space can be seen via the gradual disappearance of space devoted to public
uses and that of space likely to be appropriated for informal uses based on respon-
13
PETCOU, Constantin; sibility and reciprocal trust.” 13
PETRESCU, Doina - Acting
Space, aaa-PEPRAV, Paris,
Por culpa desta injunção, o espaço público, da forma como o sustemos
2007, p.320
hoje, já dá pouco ao imaginário da vida quotidiana. Muitas vezes reduzidos a vazios
urbanos (espaços como as praças, os largos, os parques), preservam um papel fun-
cional na morfologia da cidade (de circulação, de encontro, de serventia às formas
excepcionais, etc) e no universo simbólico/histórico, mas já não são das pessoas,
nem de uma forma individual nem colectiva. Estão de tal forma monitorizados, su-
jeitos a convenções/regras e desequipados (propositadamente) que os usos possí-
veis que conseguimos imaginar são muito reduzidos. Para muito é necessário licen-
ça: sessões de gravação, colocação de pequenas estruturas, afixação de cartazes,
performances musicais, venda de artesanato, etc. Outros usos são logo à partida
considerados ilegais: fazer churrascos, grafitar, consumir álcool, pernoitar, plan-
tar árvores, etc.
Os poucos espaços públicos que se vêem participar activamente na vida
quotidiana são aqueles que foram ocupados por um uso colectivo, mais ou menos
especializados e mais ou menos legais. Assim acontece no Passeio das Virtudes
nos fins de tarde, onde o pôr-do-sol e a cerveja convocam à reunião uma centena de
pessoas, no Jardim de S. Lázaro, aos fins-de-semana, quando os reformados tra-
zem cadeiras e mesas para jogar as reformas nas cartas ou, numa lógica diferente,
na Rua de Santa Catarina, onde é o exercício de consumo que atrai as massas. Mas
por regra, a grande parte dos espaços que têm maior significado para a sociedade
urbana (por razões de escala, localização ou história) vêem-se mais vezes toma-
dos de assalto para servirem de palco momentâneo a eventos culturais/recreati-
vos como expressão de alguma dinamização, para rapidamente regressarem à sua
inércia controlada.

22
Fig. 2 - (à esquerda) O gran-
de movimento de pedestres
na Rua de Santa Catarina ao
fim de semana.

Fig. 3 - (à direita) O Jardim


de São Lázaro, onde acon-
tecem os torneios de sueca.

Fig. 4 - Passeio das Virtudes


nos fins de tarde.

23
Estas “privatizações” momentâneas do espaço, que o reclamam para ini-
ciativas comerciais (assim o são o AirBull Air Race ou o Porto Street Stage, por exem-
plo) são os poucos momentos de mostra de alguma vitalidade. Infelizmente, esta
vitalidade não é um produto do usufruto livre da cidade pelos seus habitantes, mas
fruto de uma iniciativa organizada que consome estes espaços para gerar algum
tipo de lucro. Não são poucas as vezes em que são mesmo tomados por iniciativa
autárquica, que se vale do espectáculo como forma de marketing (assim esclarece
Rui Moreira, “como vim do sector económico privado, entendi que a cidade deve ser
14
Durante a sua interven- vendida como um produto” 14).
ção no 1.º Summit Shopping
Tourism & Economy Lis-
bon, 2018, disponível em
https://www.ambitur.pt/
rui-moreira-uma-cidade-
-deve-ser-vendida-como-
-um-produto, acesso em
fev. 2019

Fig. 5 - Avenida dos Aliados


durante o Porto Street Sta-
ge, evento de rally urbano,
em 2018.

Fig. 6 -Concentração de
pessoas na Ribeira para as-
sistir à corrida de aviões do
AirBull Air Race, em 2017.

24
Outras vezes, deparamo-nos até com espaços aparentemente públicos
mas que são, na verdade, geridos por iniciativa privada. Nestes casos o efeito da
normalização é ainda mais profundo porque subentende dispositivos de controlo
geralmente inaceitáveis num espaço público mas que aqui são acriticamente acei-
tes. Assim acontece, por exemplo, na Praça de Lisboa, onde a patrulha constante
dos seguranças, o ambiente protocolar e a publicidade quase passam despercebi-
dos num espaço que tenta passar por público.

Fig. 7 -Vista aérea da cober-


tura ajardinada da Praça de
Lisboa, Porto.

A maior parte das utilizações colectivas foram remetidas para lugares para
isso especializados15 : o desporto pratica-se nas instalações desportivas, a dança 15
“Functionalism stresses
e a festa atiradas para as zonas nocturnas, e as crianças que brincam só estão à function to the point where,
vontade nos parques infantis. Nos lugares que fazem de uma cidade muito daquilo because each function has
a specially assigned place
que ela é, onde se constrói os laços do tecido social e activa o político, a iniciativa es-
within dominated space,
pontânea para os utilizar está inibida e a previsibilidade de comportamento é pre- the very possibility of mul-
ferida. Confrontados com a impossibilidade de nos apropriar dos espaços públicos, tifunctionality is elimina-
em que é que se tornou a cidade? De tal a força deste ambiente urbano, Crawford ted.” LEFEBVRE, Henri – The
Production of Space, Bla-
compara-a ao parque temático:
ckwell, Oxford, 1991, p.369

“This is the meaning of the theme park, the place that embodies it all, the ageo-
graphia, the surveillance and control, the simulations without end. The theme park
presents its happy regulated vision of pleasure – all those artfully hoodwinking for-
ms – as a substitute for the democratic public real, and it does so appealingly by
stripping troubled urbanity of its siting, of the presence of the poor, of crime, of dirt,
16
of work. In the ‘public’ spaces of the theme park or the shopping mall, speech itself is CRAWFORD, Margaret -
Variations on a Theme Park,
restricted: there are no demonstrations in Disneyland. The effort to reclaim the city
Hilll and Wang, Nova Ior-
is the struggle of democracy Itself.” 16 que, 1994, p.17

25
1.3. A cidade como recurso comum

Fig. 8 -Marcha pelo direito à


habitação, organizada pelo
Movimento Direito à Cida-
de, Porto, julho de 2018.

17
“Paradoxalmente, neste
período em que a cidade se
dilata desmesuradamen-
te, desintegra-se a forma
(morfologia prático-sen-
sível ou material, forma
da vida urbana) da cidade
tradicional. (…) É em torno
deste ponto crítico que se
situa a problemática actual
da cidade e da realidade
urbana (do urbano).” LE-
FEBVRE, Henri - O Direito à No Porto, a contestação social face à maciça turistificação dos espaços
Cidade, Letra Livre, Lisboa,
urbanos e à violenta pressão imobiliária tem reivindicado um direito que remete,
2012, p.81
originalmente, ao período em que se assiste à desintegração da forma da cidade
18
“(…) homem urbano para tradicional 17. Passados mais de cinquenta anos desde a sua primeira proposição,
quem e por quem a cidade as razões que hoje conferem relevância ao mote direito à cidade são outras, mas
e a sua própria vida quoti- os problemas relacionados com a participação na vida urbana persistem. Quando,
diana na cidade se tornam
em 1968, se reclama o direito à cidade, está-se longe de exigir a musealização dos
obra, apropriação, valor
de uso (e não valor de tro- modos de vida ou a restituição morfológica da cidade pré-industrial, mas o direito
ca) servindo-se de todos os de continuar a reinventar a cidade, efectivando-se assim a própria condição de ha-
meios da ciência, da arte, bitante 18. Participar do direito à cidade significava o “direito à obra (à actividade
da técnica, do domínio so-
participante) e o direito à apropriação” 19, isto é, a partilhar uma realidade urbana
bre a natureza material.”
ibidem, p.141 que não remete ao lugar de espectador aqueles que aí inventam o seu quotidiano.
Reflectindo sobre esta definição, Harvey sublinha a importância da obra enquanto
19 resultado da prática colectiva sobre o meio construído:
“O direito à cidade mani-
festa-se como forma supe-
rior dos direitos: direito à li-
“The right to the city is, therefore, far more than a right of individual access to
berdade, à individualização
na socialização, ao habitat e
the resources that the city embodies: it is a right to change ourselves by changing
ao habitar. O direito à obra the city more after our heart’s desire. It is, moreover, a collective rather than an
(à actividade participante) individual right since changing the city inevitably depends upon the exercise of a
e o direito à apropriação
collective power over the processes of urbanization.” 20
(bem distinto do direito à
propriedade) implicam-se
no direito à cidade.” ibidem, Não me parece, contudo, que seja para aí que se caminha em termos de po-
p.135 lítica do espaço urbano. Os agentes dominantes são o órgão autárquico (hoje gerido
20 como uma empresa) e os fundos imobiliários (que têm como objectivo o lucro céle-
HARVEY, David - Rebel
Cities, Verso, Nova Iorque, re). A participação dos habitantes neste processo é encurralada 21 em orçamentos
2012, p.4 participativos e concursos de ideias que, depois de explorarem essa cidadania, logo

26
regressam à operação habitual. Desta forma, torna-se muito difícil organizar um 21
“Na prática, a ideologia
movimento reivindicativo pelo direito à obra, especialmente ao mesmo tempo que da participação permite
esses habitantes, os únicos que o poderiam conduzir, são excluídos da própria e obter por um custo mínimo
a aquiescência das pessoas
gentrificados para as periferias. interessadas e preocupa-
Mas não é assim que acontece necessáriamente em todo o lado. Por exem- das. Após um simulacro
plo, em Valparaíso, no Chile, encontramos um modelo diferente. A municipalidade, mais ou menos dilatado de
por não ser capaz de actuar em todas as frentes urbanas, constitui fundos de finan- formação e de actividade
social, elas regressam à
ciamento que são atribuídos a grupos organizados de cidadãos, sejam eles as juntas sua passividade tranquila,
de vizinhos ou associações, para que se recuperem os espaços públicos abandona- ao seu recolhimento. Não
dos ou desqualificados. Com este modelo, embora a precariedade e outros proble- será claro que a partici-
mas específicos ao contexto chileno, a cidade acaba por ser muito mais o resultado pação real e activa já tem
um nome? Ela chama-se
da vontade colectiva daqueles que a habitam, acautelando-se o direito a pensar, a autogestão. O que suscita
propor e a tomar iniciativa. outros problemas.” LEFE-
BVRE, Henri - O Direito à
Cidade, Letra Livre, Lisboa,
2012, p.105

Fig. 9 -Huerto Comunitário


construído pelo colectivo
RE em conjunto com a Jun-
ta de Vizinhos, num terreno
anteriormente ocupado por
lixo, Cerro Cordillera em
Valparaíso, Chile, 2018.

27
22 Em Almere, na Holanda, a Câmara Municipal não entregou o projecto de
“Our program took pla-
ce in a context of a process construção do parque habitacional no distrito de Oosterwold à iniciativa de inves-
of “scaling up” amongst
tidores imobiliários, que até à data tinha resultado numa oferta muito limitada em
commercial developers
and contractors, which termos de habitação 22. Ao invés, dividiu o terreno em parcelas de áreas variadas, o
created a situation without que promoveu a mistura de diferentes estratos sociais 23. Absteve-se de interferir
real competition, leaving decisivamente no objecto construído 24, e o seu papel passou muito mais por infor-
only a limited choice be-
mar e dar apoio aos habitantes nas decisões que os próprios tomaram acerca das
tween standardized hou-
sing types.” The idea that suas futuras casas.
privatization would serve Fig. 10 -Vista
the buyers better hardly aérea do novo
proved a reality. This failure parque habi-
of the market to offer a wide tacional de
variety of choice coincided Oosterwold.
with Duivesteijn´s amend-
ment, which reflects the
political ideal that people
should be able to take ma-
tters into their own hands.”
TELLINGA, Jacqueline –
Building your own, Volume
43, Amesterdão, 2015
23
“We didn´t have any am-
bitions that we could con-
trol or force people within
certain income brackets to
Fig. 11 -Anún-
settle down in any specific
cios de par-
locations. The thing we did,
celas para
however, was to make a mix
venda, atra-
of both very small and the-
vessando vá-
refore affordable plots, as
rias catego-
well as large and therefore
rias de preço
more costly plots.” ibidem
e áreas dis-
24
“We decided that it poníveis.
should not be an urban de-
sign based on aesthetics; it
should be about giving peo-
ple freedom of choice. (…)
So in that sense, we more or
less forgot about urban and
architectural aesthetics on
purpose. It was not an easy
request for an urban desig-
Estes são exemplos de experiências diferentes que, por mais fáceis, di-
ner to embrace, as they are fíceis ou oportunas de transportar para o nosso contexto nacional, representam
generally trained to create pelo menos uma forma mais propícia de estabelecer um ambiente construído por
and control aesthetics. In
todos.
fact, this is one of the rea-
sons why in the field of ar-
Enquanto se persiste num contexto de fortíssima especulação financeira
chitecture and urbanism em torno dos espaços privados e de uma desubjectivação consentida dos espaços
people were initially quite públicos, onde se pode ainda, na cidade, conceber um tipo de espaço alternativo?
cynical about our approa-
Um espaço que se entregue à apropriação colectiva, que não revolva em torno do
ch.” ibidem
consumo de bens ou de ele próprio, que possibilite outras formas de socialização?
Sola-Moráles aponta uma possibilidade, que passa por reconsiderar o es-
paço público e o espaço privado sob um novo modelo, focado na utilização colectiva
dos mesmos. Não se reduzindo a questões de propriedade, o modelo de espaço
colectivo reclama a capacidade destes espaços para hospedar a diversidade da
experiência urbana pelos vários grupos sociais:

“El espacio colectivo es mucho más y mucho menos que el espacio público, si
limitamos éste al de propiedad administrativa. La riqueza civil y arquitectónica,
urbanística y morfológica de una ciudad es la de sus espacios colectivos, la de to-
dos los lugares donde la vida colectiva se desarrolla, se representa y se recuerda.
Y. quizá, cada vez más, cada día más, éstos son espacios que no son ni públicos ni
privados, sino ambas cosas a la vez. Espacios públicos absorbidos por usos parti-
culares. O espacios privados que adquieren una utilización colectiva.
(…) Ésta es la tarea de los diseñadores públicos en la proyectación moderna de
la ciudad: hacer de estos lugares intermedios – ni públicos ni privados, sino todo lo
contrario- espacios no estériles, no solamente dejados a la publicidad y el benefi-
cio, sino partes estimulantes del tejido urbano multiforme.
(…) Los espacios colectivos son la riqueza de las ciudades históricas y son tam-
bién, seguramente, la estructura principal de la ciudad futura. Quizá si que, en
nuestras ciudades, sean los espacios ambiguos en su titularidad, cada día más
significativos de la vida social cotidiana, pudiendo usarse y apropiarse de muy di-
versas maneras por las diferentes tribus urbanas. Quizá si que las formas de ciudad
“distópica” de las que habla el sociólogo Frederic Jameson caractericen a nuestro
alrededor la pérdida simultánea del espacio público y de la autoridad privada.” 25 25
SOLÁ-MORALES, Ma-
nuel– Espacios públicos/
Espacios colectivos, texto
Deste modo, o espaço colectivo aqui proposto pode ser tanto um espaço
publicado em La Banguar-
público como um espaço privado, desde que reclamado para uma utilização colec- dia, Barcelona, 12 de Maio
tiva. A sua validade reside nos usos que permite, que não integram uma lógica de de 1992
mercado, mas aquela da vida urbana em toda a sua multiplicidade, tomando con-
tornos específicos (associados a pequenos grupos de indivíduos) ou abrangentes
(actividades transversais aos grupos sociais). A proposta do espaço colectivo pode
ocupar o vazio abstracto a que foi submetido o espaço público e conquistar para a
esfera pública alguns espaços privados que poderiam participar directamente na
construção da identidade da cidade.
É em relação à problemática do direito à cidade que reside a importância
de conceber espaços com lógicas diferentes. Não que estes devam tomar conta
de tudo aquilo que é público ou privado, porque esses espaços continuam a de-
sempenhar um papel vital na dinâmica urbana. Mas talvez seja tempo de conceber
outros espaços com valor de uso e valor social que exploram modelos alternativos
de gestão (que não passam pelo Estado nem pelo privado). Esta pode não só ser
uma forma de resistência, mas começar a experimentar uma alternativa viável ao
modelo actual.

29
Assim aconteceu em Budapeste, onde o estúdio ÚJIRÁNY , responsável por
um grande número de intervenções paisagísticas em parques da capital, tomou
a decisão de envolver os moradores dos bairros onde intervia desde o inicio dos
processos. Assim, conseguiu garantir que, passados alguns anos, estes parques se
mantivessem utilizados (com a organização de actividades e eventos pelos mora-
dores) e em boas condições (com os trabalhos de manutenção a serem realizados
de forma voluntária pelos próprios residentes), que os viam como uma obra sua, ao
contrário daqueles em que o processo de construção os excluiu e que passado pou-
co tempo estavam degradados e vandalizados. Um modelo de produção do espaço
como este dá tanta importância ao processo como ao resultado a que ele dá forma,
porque se acredita que pela associação colectiva em torno do projecto se garante
a construção de uma identidade que estará para sempre protegida.
Fig. 12 -Cartaz concebido
pelo estúdio ÚJIRÁNY para
incentivar a participação da
população na concepção do
novo parque em Teleki, Bu-
dapeste.

30
Fig. 13 e 14 -Reuniões entre
arquitectos e moradores,
tanto no local como no es-
túdio, para desenhar a in-
tervenção em conjunto.

Fig. 15 -As crianças que


moram em redor do parque
envolvidas no processo de
construção.

Fig. 16 e 17 -Vistas do par-


que já terminado.

31
26 Partindo mais ou menos dos mesmos pressupostos de Solá-Moráles, al-
“If we accept that com-
mon space is a type of space guns autores têm aplicado o conceito de comum (trd: commons) ao espaço urba-
that simply has a different no26. Emprestando-se do termo que é relativo àquilo que está no domínio e acesso
ownership status than
public and private space,
de todos e que ninguém tem o direito de reivindicar para si só. De forma corrente,
we miss the potentiality aplica-se a coisas como o conhecimento científico, as florestas, a água da chuva,
inherent in the process of entre outros. Mas, quando aplicado ao universo espacial, a definição de lugares
space-commoning. More comuns está intrinsecamente ligada a uma prática social:
than an ownership status,
space as commons is a set
of social relations which “There is, in effect, a social practice of commoning. This practice produces or
potentially challenges the establishes a social relation with a common whose uses are either exclusive to a
very foundations of owner- social group or partially or fully open to all and sundry. At the heart of the practice
ship. (…) In order for com-
mon space to be radically
of commoning lies the principle that the relation between the social group and that
different from public and aspect of the environment being treated as a common shall be both collective and
private space it needs to non-commodified – off-limits to the logic of market exchange and market valua-
overspill the boundaries tions.” 27
of any spatial taxonomy,
whether this taxonomy is
based on legal criteria (ow- Portanto, trata-se de uma relação que implica um grupo social e o seu re-
nership, accessibility, etc.), curso comum (leia-se: espaço) em termos que não empregam as lógicas do mer-
political criteria (forms of cado, do valor de troca ou da mercantilização das práticas. Esta relação implica
authority which control
space) or economic criteria
definir três aspectos: aquilo que é comum, isto é, de que recursos ele se compõem;
(value attributed to space por quem é gerido, e sob que regras/princípios; e finalmente a actividade social que
by a certain historically em- o produz:
bedded system of market
relations). Common space
can possibly best be descri-
“Commons are not simply resources we share—conceptualizing the commons
bed when it is contrastingly involves three things at the same time. First, all commons involve some sort of com-
compared to private and mon pool of resources, understood as non-commodified means of fulfilling people’s
public, but common space needs. Second, the commons are necessarily created and sustained by communi-
is essentially incommensu-
rable with public and priva-
ties—this of course is a very problematic term and topic, but nonetheless we have
te. Common space remains to think about it. Communities are sets of commoners who share these resources
common when it keeps on and who define for themselves the rules according to which they are accessed and
destroying the boundaries used. (…) In addition to these two elements—the pool of resources and the set of
between public and private
not by absorbing one into
communities—the third and most important element in terms of conceptualizing
the other (as in the privati- the commons is the verb “to common”—the social process that creates and repro-
zation of public or the en- duces the commons.” 28
forced erosion of private
realms, as in statist ideolo-
gies and practices), but by
Neste processo de tornar comuns os espaços de utilização colectiva, o
transforming their histori- arquitecto tem um papel sui generis que vai implicar uma consciência (política)
cally shaped antithesis into daquilo que é trabalhar e organizar um espaço físico que traduz um determinado
a myriad of new syntheses.” espaço social. Para além da relevância do pensamento lefebvriano, anteriormente
STAVRIDES, Stavros - The
City as Commons, Zed
referida, sobre a relação íntima entre a prática social e a sua morfologia espacial
Books, Londres, 2016, p.261 para o tomar desta consciência no arquitecto, é também fundamental o pensa-
mento de Bourdieu sobre o espaço social:

32
“Social space is an invisible set of relationships which tends to retranslate itself, 27
HARVEY, David - Rebel
in a more or less direct manner, into physical space in the form of a definite distri- Cities, Verso, Londres,
butional arrangement of agents and properties (eg. opposition between downtown 2012, p.73
28
and suburbs).” 29 Massimo de Angelis, An
Architektur, Journal #17 -
On the Commons: A Public
De acordo com Bourdieu, o espaço social enquadra os vários agentes num Interview, 2010
campo estruturado por duas dimensões: o capital económico e o capital cultural. 29
BOURDIEU, Pierre - Phy-
Quanto mais próximos neste espaço, mais terão em comum em ambas dimensões,
sical Space, Social Space
e vice-versa. É a partir desta observação que decorre a ideia de habitus, que ajuda a and Habitus, Instituto de
esclarecer a correspondência directa entre a comunidade e o seu espaço social e a Sociologia e Geografia So-
sua práctica na construção do seu espaço comum (na apropriação do espaço físico): cial, Universidade de Oslo,
1996, p.10

“Habitus, which are the products of the social conditioning associated with the 30
Ibidem, p.14/15
corresponding condition, make a systematic set of goods and properties, united by 31
“In questioning the role
an affinity of style, correspond to each class of positions. One of the functions of the of architectural practices
notion of habitus is to account for style unity, which unites both the practices and in revalidating everyday life
goods of a singular agent or a class of agents. (…) Habitus are these generative and activities and giving back
value to existent places,
unifying principles which retranslate the intrinsic and relational characteristics of maybe a ‘stealth architec-
a position into a unitary life-style, that is, a unitary set of persons, goods, practi- ture’ could also exist : an
ces.”30 architecture which would
deal with architecture-
-related activities, rather
Porque é na sobreposição do espaço físico e do espaço social que uma than architecture-specific
comunidade gere o acesso e a exploração do comum sob uma lógica colectiva, e ones, which would consi-
porque esta sobreposição implica uma prática, o papel do arquitecto passa certa- der architecture in terms
mente por informar e facilitar essa prática, mais do que lhe dar forma 31. Tal papel of its specific means (tools,
competences, processes),
implica tarefas que visam fortalecer os laços de comunidade, explorar a sua relação rather than its specific ends
com o espaço e trabalhar o próprio espaço para o tornar mais acessível a essa rela- (constructions and buildin-
ção. gs). What would it be, this
architecture which ‘crops
up in the everyday’ not to
“We don’t need your patronizing help, you designers. If you’ve come here to help give it a form, but to inform
us, you’re wasting your time; we don’t want to be helped, thanks just the same. Yet it?” PETRESCU, Doina - How
we do have some interesting observations to make about our daily lives, about our to make a community as
lifestyles, about our communication, and about all of their attendant dysfunctions. well as the space for it, PE-
PRAV, Paris, 2007
If you could kindly change your attitude and help us explore how we will live, then
32
perhaps we can do something together.” 32 THACKARA, John - An
unusual expedition, em:
Presence: New Media for
Older People, Netherlands
Design Institute, 1995, ci-
tado em LEE, Yanki – Design
Participation Tactics: Re-
defining user participation
in design, Design Research
Society, Conferência Inter-
nacional em Lisboa, 2006,
p.4

33
2. A produção colectiva do espaço

2.1. A intervenção politica

“How is it possible to regain ownership, to resubjectivate the city? How does one
act being a professional of space issues; by what approach and by what political
1
PETCOU, Constantin; PE- measure? How is it possible to act being a regular inhabitant? 1
TRESCU, Doina - Acting
Space, PEPRAV, 2007, p.320
Toda esta narrativa levanta inevitavelmente questões sobre a práctica ar-
quitectónica no contexto urbano, e em especial numa situação de espaço colecti-
vo. O modelo tradicional de encomenda – projecto – obra, subentendido na relação
cliente – arquitecto, compactua, por norma, com o ordenamento, os mecanismos e
as lógicas que desenharam o contexto em que vivemos a cidade.
Se o que se pretende é conceber novos espaços para novos possíveis, gera-
dos por pressupostos diferentes, a procura de uma alternativa no modo de actua-
ção dos “técnicos do espaço” é indispensável. Se é necessário gerar um processo
diferente de produção do espaço é também preciso, com ele, reconsiderar a função
do arquitecto nesse processo.

“Architecture is immanently political because it is part of spatial production,


and this is political in the way that it clearly influences social relations. The extent
and form of this influence is open to debate (…), but what is common to them all is
an acknowledgment that the production of space is inherently political and that to
participate in its production entails not only the taking into account of momentary
2
AWAN, Nishat; SCHNEI- social responsibilities but also the appreciation of long-term consequences.” 2
DER, Tatjana; TILL, Jeremy
- Spatial Agency, Other A arquitectura está sempre num campo político. Afinal, trabalhar o espaço
ways of doing architecture.
e as suas associações significa manusear o meio onde a vida encontra o possível.
Routledge, Nova Iorque,
2011, p.21 Este exercício implica relações muito particulares com o poder e com o projecto
de ordenamento urbano e por isso merece uma reflexão sobre os seus métodos, as
suas ferramentas e as suas práticas. A arquitectura que estiver verdadeiramente
comprometida com a construção de um ambiente onde a sociedade pode pros-
perar não pode reduzir-se a uma reflexão que se esgota no objecto produzido. A
arquitectura envolve mais do que a construção de um edifício: envolve também a
3
CUFF, Dana - Architec- construção de uma realidade social 3. Porque tantas vezes esse facto é menospre-
ture: The Story of Practice,
zado, encontramos o “domínio da estética, estilo, forma e técnica na discussão
MA: MIT Press, Boston, 1996
corrente de arquitectura, e com isso a supressão dos aspectos mais voláteis dos
edifícios: os processos da sua produção, a sua ocupação, a sua temporalidade, e
4
AWAN, Nishat; SCHNEI- as suas relações com a sociedade e a natureza” 4.
DER, Tatjana; TILL, Jeremy Perceber o significado político do gesto arquitectónico passa necessaria-
- Spatial Agency, Other mente pela sua dimensão de quotidianidade. Enquanto morfologia social 5, dife-
ways of doing architecture.
rentes modelos de espaço permitem ou negam determinadas relações entre aque-
Routledge, Nova Iorque,
2011, p.4 les que lhe participam e isso é algo que se começa a definir antes da experiência

34
daquilo que é visível. Os próprios contornos desse processo de produção do espaço 5
“Space is a social mor-
devem ser abertos e abrangentes se se pretende gerar espaços para uma realidade phology: it is to lived expe-
social saudável. O domínio da produção do espaço deve tentar obedecer a alguns rience what form itself is
to the living organism, and
princípios. just as intimately bound up
Antes de mais, o desenho/organização do espaço não pode ser um domínio with function and structu-
exclusivo do arquitecto, com risco de cair numa tentativa de provar o seu valor so- re” LEFEBVRE, Henri – The
cioeconómico ou num exercício meramente autoral6 . Para ser verdadeiramente re- Production of Space, Bla-
ckwell, Oxford, 1991, p.94
presentativo, o processo tem de ser informado por outras áreas de conhecimento e
6
tirar partido das suas ferramentas (por exemplo, a teoria dos sistemas ecológicos7 AWAN, Nishat; SCHNEI-
DER, Tatjana; TILL, Jeremy -
informa a dependência do espaço de intervenção a dimensões mais complexas; o
Spatial Agency, Other ways
interaccionismo simbólico 8 ajuda a compreender a importância do encontro e da of doing architecture. Rout-
sua capacidade produtiva para o significado do espaço; a psicologia ambiental 9 põe ledge, Nova Iorque, 2011
à vista a autoridade do espaço sobre os comportamentos, etc). 7
Teoria desenvolvida por
Para além disso, não pode ser um domínio descontextualizado ou trabalha- Urie Bronfenbrenner, onde
do em abstracto, algo que hoje se nota especialmente no discurso arquitectónico se definem cinco sistemas
sobre o contexto de uma proposta, que muitas vezes se esgota na “envolvente pró- de interacção do indivíduo:
microsistema; mesosiste-
xima” e na geometria daquilo que está perto. Tem de ser prático-sensível, formado
ma; exosistema; marcro-
no contacto directo e insistente com a realidade e o seu conteúdo social: as rela- sistema e cronosistema.
ções, os hábitos, os conflitos e as aspirações. O papel do arquitecto aqui é tornar-se 8
“Blumer (1969) declared
o facilitador da expressão colectiva no espaço. that symbolic interactio-
Desta forma, deve ser um processo perene, conduzindo a uma configura- nism rests on three premi-
ção espacial aberta e adaptável. Isto significa o próprio ser manipulável e estar ses. First, human beings act
toward things on the basis of
disponível para negociar as mudanças impostas pela vontade de usos e utilizadores
the meaning that the things
múltiplos. Esta é uma questão que tem especialmente a ver com a capacidade em have for them. Second, the
aprofundar as relações que se estabelecem entre os ocupantes e o espaço. Uma meaning of things is derived
arquitectura que se importa com o significado subjectivo do espaço que desenvolve from, or arises out of social
interaction. Third, meanin-
para os seus utilizadores deve envolver-se de forma profunda nas relações entre
gs can change over time as
lugar e indivíduo antes de fechar a sua proposta objectivada10. Se se tomar especial interpretive processes are
atenção a coisas como os indícios de uso (às pistas que informam da evidência) modified.” SMITH, Ronald;
ou ao património pré-existente (e isto vai desde os recursos naturais, aos laços do BUGNI, Valerie - Designed
physical environments as
tecido social, aos símbolos e significados que foram construindo o lugar), o gesto
related to selves, symbols,
arquitectónico estará a ajudar na construção de um espaço activo e significativo, and social reality, Huma-
querendo com isso dizer que aí pode florescer uma consciência cívica e política nity and Society, Volume 6
daquilo que é viver a cidade, através do exercício da ocupação e da dinamização (4), 2002, p.7

autónoma dos seus espaços. 9


A análise das inter-rela-
Limitar as ferramentas de intervenção na metodologia convencional do ar- ções entre as pessoas e o
ambiente físico (incluindo
quitecto é definir um gesto algo totalitário e redutor, muitas vezes até desnecessá-
aquele construído).
rio. Existem outras formas de transformar o espaço11, que só se tornaram visíveis 10
“The architecture of sub-
com um questionamento profundo, não só da realidade espacial, mas também so-
jective meaning elevates
cial: the architectural process
by providing an opportunity
“What is the building’s primary purpose for being? How will the building’s design to probe more deeply into
place-self relationships
support the core mission, vision, and evolutionary process of the organization and
prior to the formation of the
design solution.” ibidem,
p.10

35
11 its people? How will the design help the organization and its people transform? How
“Architecture can, for
example, be found in the can the culture of the organization be reflected in the space plan, interior design,
incisions of a surgeon, the and form of the building? How will the building’s design support and enhance the
instructions of a choreo-
grapher or the actions of
organization’s operational processes?” 12
a user. Anyone wanting to
produce architecture shou-
ld discard the preconceived 2.2. A utilização criativa
boundaries of the discipline
and learn from architecture
wherever it is found, wha- “Poderá a vida urbana recuperar e intensificar as capacidades de integração e
tever it is made of, whoever de participação da cidade, quase inteiramente desaparecidas, e que não podemos
it is made by. Architecture estimular nem pela via autoritária, nem por prescrição administrativa, nem pela
can be made of anything
and by anyone.” HILL, Jona-
intervenção dos especialistas?” 13
than - Actions of Architec-
ture, Routledge, Londres, A questão de Lefebvre sublinha que só a prática social pode restabelecer a
2003, p.131 vida urbana a todo o seu potencial (de emancipação, de cidadania e de participação
12
SMITH, Ronald; BUGNI, transformadora). Mas mesmo que o arquitecto não tenha o poder de prescrever o
Valerie - Designed physical
espaço social das suas operações, pode, pelo menos, desenvolver uma estratégia
environments as related to
selves, symbols, and social de intervenção que sugere um tipo de utilizador que o potencie. 14
reality: A proposal for a
humanistic paradigm shift “I suggest three types of use: passive, reactive and creative. The passive user is
for architecture, Humanity
pre-dictable and unable to transform use, space and meaning. The reactive user
and Society, Volume 6 (4),
2002. p.11 modifies the physical characteristics of a space as needs change but must select
13 from a narrow and pre-dictable range of configurations largely defined by the ar-
LEFEBVRE, Henri - O Di-
reito à Cidade, Letra Livre,
chitect. The creative user either creates a new space or gives an existing one new
Lisboa, 2012, p.106 meanings and uses. Creative use can either be a reaction to habit, result from the
knowledge learned through habit, or be based on habit, as a conscious, evolving
14
“Lefebvre believes that deviation from established behavior.” 15
design cannot engage is-
sues of use. But, contrary to
Hill classifica o utilizador do espaço em três categorias: o passivo, o reac-
his argument, it is essential
that architects understand
tivo e o criativo. O primeiro e o segundo inscrevem-se em tipos de uso que não
the type of user a design subvertem as directrizes espaciais que lhe antecedem 16. Os seus comportamentos
strategy and building sug- estão subordinados às regras impostas pela configuração e organização pré-de-
gest.” HILL, Jonathan - Ac-
terminada dos espaços. O mesmo não se pode dizer do utilizador criativo: a sua
tions of Architecture, Rout-
ledge, Londres, 2003, p.87
designação evoca uma dimensão inventiva, mas também uma perspectiva crítica
da sua participação no espaço. O aspecto mais interessante deste utilizador é que
15
ibidem, p.27 transforma activamente os espaços a que dá uso (sem um atravancamento rela-
cionado com propriedade), desde um ponto de vista morfológico a um simbólico,
16
“The passive and reac- reclamando uma capacidade reformadora que normalmente só atribuímos ao ar-
tive users are dependent quitecto:
upon existing conditions,
which they are unable to
fundamentally transform.” “With a role as important in the formulation of architecture as that of the archi-
ibidem, p.86 tect, the creative user either creates a new space or gives an existing one meanings
and uses con-trary to established behavior. I identify five types of user creativity,

36
which can be accidental or intentional, and occur singly or in combination: mental,
a change in understanding, such as renaming a space or associating it with a par-
ticular memory; bodily, a movement or series of movements, independent of or in
juxtaposition to a space, such as a picnic in a bathroom; physical, a rearrangement
of a space or the objects within it, such as locking a door; con-structional, a fabrica-
tion of a new space or a physical modification of an existing form, space or object,
such as removing the lock from a door; conceptual, a use, form, space or object
intended to be constructed, such as a door. Creative use can either be a reaction to
habit, result from the knowledge acquired through habit, or be based on habit, as a 17
ibidem, p.86
conscious, evolving, deviation from familiar behavior.” 17

É importante frisar que embora não se imponha no processo original de


produção do espaço, o utilizador criativo reforma-o. Desta forma consegue realizar
o direito à participação activa no meio construído, mesmo que não tenha lugar na
mesa de decisões técnicas ou burocráticas. Por isso não se pode dizer que resolva
a questão do direito à cidade, mas aproxima-se de um modelo de interacção com
o espaço que o torna cada vez mais consequente daqueles que lhe participam. Se-
gundo Hill, existem cinco tipos de utilizador criativo, que se definem por dimensões
de actuação bastante diferentes. A sua insubordinação às convenções impostas, se
assim interpretarmos aquilo que o demarca do utilizador passivo e reactivo, pode
tomar proporções menos profundas, como é uma ocupação funcionalmente impre-
vista de um lugar (o tal exemplo de um pic-nic na casa-de-banho), ou ser um acto de
verdadeira guerrilha (demolir os muros de um espaço). A sua actuação monta uma
crítica espacial que nasce da reflexão do seu quotidiano, mas que levanta com ela
também um significado político e activista.
Mesmo que a maior parte da produção arquitectónica seja feita tendo em
vista uma ocupação passiva, existem variadíssimos exemplos que colocam o utili-
zador no centro do processo de produção e construção do espaço, invocando a sua
condição criativa. Isto pode ser feito de diversas formas.
Uma experiência-bandeira deste tipo de abordagem foi feita nos anos oi-
tenta, em Inglaterra, pelo arquitecto Walter Segal. O projecto foi comissariado pela
autarquia de Lewisham, que ofereceu o terreno para a construção de casas a pes-
soas que se encontravam na lista de espera para apoio à habitação, no pressuposto
de que seriam as próprias a construí-las. Segal desenvolve um sistema construtivo
de pilares e vigas de madeira com dimensões standard, que não requer mão-de-
-obra especializada ou o recurso a ferramentas de difícil manuseamento e reduz
os custos tipicamente associados à construção da moradia. Assim, monta-se uma
estrutura que se adapta ao desenho espacial que interessa a cada um. A facilida-
de na execução permitiu que nela participassem famílias inteiras, desde crianças
a idosos, desenvolvendo o sentimento de comunidade daqueles que futuramente
iriam constituir o bairro. O trabalho de Segal, enquanto arquitecto, passou por edu-
car e guiar as pessoas ao longo do processo construtivo, e não por lhes desenhar as
casas. Para além disso, porque utilizam os materiais nas suas medidas de fabrico e

37
Fig. 18 -A construção de
uma das habitações, envol-
vendo os seus futuros habi-
tantes e vizinhos.

Fig. 19 -O esqueleto estru-


tural em madeira de uma
das casas.

Fig. 20- Desenho da organi-


zação dos espaços do Lycée
David d’Angers, de acordo
com a linguagem desenvol-
vida por Friedman.

38
de maneira a que se possa desmontar, permitem que com a passagem do tempo os
utilizadores possam expandir ou adaptar a sua habitação conforme surgem novas
necessidades.
Uma abordagem diferente, que ao contrário da anterior não recorre à auto-
construção, foi desenvolvida por Yona Friedman, ao longo da sua carreira. Friedman
apercebe-se da dificuldade de comunicação entre o arquitecto e o utilizador, que
não partilha a mesma linguagem ou expressão gráfica excessivamente técnica, o
que dificulta o diálogo e o debate de ideias entre as duas partes. Para o resolver,
desenvolve um sistema de linguagem gráfica simples, uma espécie de gramática
composta por pontos (que significam espaços), linhas (que significam acessos) e
etiquetas (que significam funções), que servem ao usuário para esclarecer as suas
aspirações para o espaço (mesmo que de forma, ainda assim, limitada). Ao desen-
volver manuais de instrução em como utilizar este sistema linguístico, Friedman
está, também neste caso, a promover no futuro utilizador um maior controlo sobre
o meio a ser construído, dotando-o de novas ferramentas para pensar o espaço.
Ambos os exemplos subentendem o dissipar da distância entre arquitecto
e utilizador, porque reconhecem que o arquitecto é também um utilizador, e que o
utilizador também é capaz de fazer arquitectura.

“Architects are possessors of both specialized knowledge and conditioned, evol-


ving, understanding as they move between the roles of expert and user - because
we are all users in the end as well. It is an acknowledgement of this combination of
knowledge and understanding that is central to any reformulation of practice which 18
TILL, Jeremy – Archi-
has the potential to empower the user.” 18 tecture of the Impure Com-
munity em Occupations of
Architecture, Routledge,
Londres, 1998, p.16
2.3. A activação do interstício

“To stimulate a democratic engagement of the biggest number of citizen, we


need tools, knowledge and places to test new practices and collective initiatives,
and to showcase the results and benefits of a resilient transformation of the city.
Here, the architects have a role to play. Rather than merely building designers, they
can be initiators, negotiators, co-managers and enablers of processes and agen- 19
PETCOU, Constantin; PE-
cies.” 19 TRESCU, Doina - Strategies
and Tactics for Resilient
Practices, R-URBAN, Paris,
Depois de situar a actividade do arquitecto na complexidade da produção 2011
espacial urbana e de realçar a importância de potenciar o utilizador criativo, é pre-
ciso definir o lugar que servirá de abrigo à experiência do espaço comum para prá-
ticas colectivas. Para isso, exige-se uma abordagem mais pró-activa por parte do
arquitecto, na qual se proponha a descobrir lugares com a capacidade para tal.
Os interstícios são espaços sobrantes e adormecidos, ignorados pelo de-
senvolvimento urbano. Isso torna-os especialmente disponíveis para explorar ou-
tras formas de actuação.

39
“Interstices represent what is left of resistance in big cities – resistance to nor-
mativity and regulation, to homogenization and appropriation. They embody, in
a sense, what is still “available” in the city. Their provisional and uncertain status
allows for hint, a glimpse of other ways of creating a city that are open and collabo-
rative, responsive and cooperative. The importance of the interstitial experiment
is born out in this very register, in methodological, formative, political, as well as
20
STRAT, Pascal Nicolas heuristic terms.” 20
- Interstitial Multiplicity,
aaa-PEPRAV, Paris, 2007 ,
O conceito de interstício chega da necessidade de dar nome àqueles espa-
p.314
ços que, por razões várias (geográficas, topográficas, administrativas, políticas,
etc) passaram por entre as redes dos interesses imobiliários e ficaram esquecidos
no tecido urbano. Precisamente porque não integram as dinâmicas de urbanização
convencionais, os espaços intersticiais oferecem a oportunidade de experimentar
as formas do espaço comum: podem ser espaços para usos colectivos, espaços
para novas formas de socialização, espaços para a produção de recursos, etc. En-
fim, espaços em que de forma geral se pode ainda salvaguardar um direito à apro-
priação e à transformação directa do meio, mesmo que a uma pequena escala, sem
sofrer das pressões que cada vez mais limitam o usufruto do resto do meio urbano.

“The interstice constitutes itself on a political level; it wants to break with the
classical organization of the city. But it also confronts its own everyday limitations,
integrating rhythms and rituals, habits and familiar practices. (…) It encompasses
21
ibidem, p.314 a critique of the political by everyday social practice and vice-versa.” 21

Porque permite formas livres de associação, adaptar-se às aspirações dos


habitantes e providenciar um ambiente de experimentação, é um lugar propício
para investigar a prática do dia-a-dia de formas que são normalmente clandesti-
nas, incomportáveis ou até mesmo inexistentes. Com a activação de um interstício,
o que significa acima de tudo construir a sua ocupação social, colocam-se em mar-
cha os múltiplos processos de vivência e conquista, por vezes até contraditórios,
deste mesmo espaço. Cada indivíduo transporta consigo maneirismos diários, in-
22 clinações políticas e interesses díspares, e é na intersecção de toda essa complexi-
“The undetermined cha-
racter of these interstices dade que se constrói o significado do interstício. É essa sobreposição do múltiplo,
is structural, by including esse exercício de mediação, que lhe dá significado e gera a sua estrutura (no sentido
each person´s specific dif- em que se define aquilo que é ou não possível num espaço que deve estar, acima
ferences and availabilities
de tudo, ao serviço da colectividade). Porque sofre de causalidade, os próprios
and by allowing anyone
to actually get involved in fundamentos da experiência estão disponíveis a uma renegociação 22. Assim, a es-
democratic territoriality trutura é o produto do questionamento e da experimentação quotidiana de quem é
projects.” PETCOU, Cons- presente. 23
tantin; PETRESCU, Doina -
Esta mutabilidade estabelece uma diferença considerável para a produ-
Acting Space, aaa-PEPRAV,
Paris, 2007, p.325 ção do espaço convencional. Não é possível tratá-lo como um objecto agenciável
no plano abstracto do planeamento urbanístico com uma visão programática da

40
cidade 24. Será necessário assumir a dimensão de imprevisibilidade que advém de o 23
“(...) a movement that
entregar à vida urbana, até porque é isso que o afasta da lógica produtivista do mo- establishes itself at the
pace of its own experimen-
delo económico. Não se quer com isso dizer que estamos perante um espaço sem
ts, that increases in inten-
regras, mas sem dúvida sem a determinação de uma autoridade externa 25, porque sity thanks to the modes of
é esse tipo de controle que se pretende evitar. life and desire it liberates,
O potencial da activação dos interstícios de uma cidade realiza-se na sua and that enters into oppo-
sition only to the degree
plenitude quando se consegue desenhar uma estrutura urbana de interligação dos
that it is capable of inven-
vários lugares. Ao constituir uma rede de espaços onde circulam pessoas, conheci- ting and creating.” STRAT,
mento e actividades, começa a construir-se um circuito cultural e uma economia à Pascal Nicolas - Interstitial
escala local muito própria, específica à cidade onde esta teia se instala. Esta capa- Multiplicity, aaa-PEPRAV,
Paris, 2007 , p.317
cidade transformadora, a uma escala que em muito ultrapassa a singularidade dos
interstícios, ilumina uma possível ideia para o urbano, de novo, ser o produto dos 24
“It is a space of subjec-
seus habitantes: ts and not of calculations.
Therefore we are looking
to set the conditions of a
“(…) ‘the only possible way to think about radical change in society is within
non-predetermined expe-
its interstices’ and that ‘the best way of operating within interstices is to organize rience, of a subjective ex-
them’. This is also what R-Urban does: it organizes a series of interstices (spatial, perience which produces
temporal, human) and transform them into common facilities; it sets up another a collective narration of
urban space through daily
type of urban space (neither public, nor private) hosting reinvented collective prac-
activity.” PETCOU, Cons-
tices and collaborative organizations: a network of interstices to reinvent the com- tantin; PETRESCU, Doina -
mons in metropolitan contexts.” 26 Acting Space, aaa-PEPRAV,
Paris, 2007, p.322
25
“The critical rela-
tionship the experiment
maintains with itself is not
primarily determined by
an external authority that
would give it meaning (an
ideal) or from which it wou-
ld distinguish itself (a form
of domination). It is rather
as undecided, open, he-
terogenous, and plural as
the dynamics it itself sets
in motion.” STRAT, Pascal
Nicolas - Interstitial Multi-
plicity, aaa-PEPRAV, Paris,
2007 , p.314
26
PETCOU, Constantin;
PETRESCU, Doina - Strate-
gies and Tactics for Resi-
lient Practices, R-URBAN,
Paris, 2011, p.11

Fig. 21 - A rede urbana dos


espaços intersticiais tra-
balhados no projecto R-Ur-
ban, Colombes, Paris.

41
Um exemplo notável de um projecto que actua nos interstícios urbanos foi
desenvolvido nos arredores de Paris, em Colombes, pelo estúdio Atelier d´Archi-
tecture Autogerée (AAA), a partir de 2011. Os arquitectos explicam de que formas
trabalharam um processo co-organizado com a comunidade local que visava inte-
grar várias unidades operativas num sistema fechado (onde as unidades se alimen-
tam mutuamente sem desperdiçar recursos), dependente da ocupação e autoges-
tão de espaços residuais:

“R-Urban is a bottom-up strategy that explores the possibilities of enhancing


the capacity of urban resilience by introducing a network of resident-run facilities
27
Descrição do projecto to create complementarities between key fields of activity (economy, housing, ur-
R-Urban, disponível em
ban agriculture, culture). R-Urban initiates locally closed ecological cycles that will
r-urban.net, acesso em
Fev. 2019
support the emergence of alternative models of living, producing and consuming
between the urban and the rural.” 27

Fig. 22 - As hortas da Agro-


Cité, a unidade de agricul-
tura urbana do projecto
R-Urban, com o edificio
para eventos culturais e pe-
dagógicos ao fundo.

42
Até à data, foram desenvolvidas três de quatro unidades em torno das quais
se constituiu uma comunidade local interessada em coisas como a produção e dis-
tribuição local, a reciclagem, a autoconstrução, a agricultura urbana ou a habitação
colectiva, entre as quais: AgroCité, dedicada à produção agrícola, constituída por
hortas, jardins, estufas e espaços de aulas, onde se realizam actividades pedagógi-
cas e oficinas relacionadas com a compostagem, a recolha de águas ou a produção
de energias renováveis; RecycLab, equipada com oficinas de trabalho e maquinaria
para reciclar materiais e resíduos urbanos posteriormente utilizados para constru-
ção sustentável; EcoHab (não construído), unidade residencial de lógica coopera-
tiva e acessível que recorre à autoconstrução e à experimentação das formas de
habitar; AnimaLab, loja e quinta de exploração de recursos animais cuja produção
é distribuída localmente. Estas unidades interligam-se numa rede à escala urbana,
partilhando recursos e produtos num sistema organizado pelos seus participantes.

43
Tão importante quanto a renovação destes espaços (de uma situação de
abandono à vivência quotidiana) foi a activação do tecido social de Colombes.
Chamando os habitantes a participar e tomar iniciativa, desde o planeamento das
28
“We want to produce actividades, à construção das estruturas, às propostas educativas, o R-Urban foi
self-managed architectu- capaz de instituir uma comunidade previamente inexistente nas rédeas do projec-
re – a kind of architecture
to, até que a mesma se tornou capaz da sua gestão sem necessitar mais do apoio do
which continues to evolve
after the architect leaves, AAA. 28
an architecture whose use
is understood as a creati- “R-Urban aims for an urban environment which can adapt itself to the aspira-
ve component and who´s
tions of every city dweller. This should be constituted progressively, by welcoming
users are welcome to trans-
form and enrich it through the most varied range of activities proposed by all kind of residents, including acti-
their activities of use and in vities developed in free time. In a second time, these free time activities could evolve
habitation.” Reflections on into economic, cultural and ecological initiatives that will gradually replace the
practice, uma entrevista a
current productive and re-productive relations and will fundamentally define more
Doina Petrescu por Ramia
Mazé, Maio de 2009 democratic and more sustainable ways of working and living.” 29
29
PETCOU, Constantin;
PETRESCU, Doina - Strate-
gies and Tactics for Resi-
lient Practices, R-URBAN,
Paris, 2011, p.19

Fig. 23- Vista aérea do lote


da AgroCité.

44
Fig. 24- O espaço de ofi-
cina e armazenamento de
materiais da AgroCité. O
material mais utilizado é a
pallette, de fácil acesso,
que aqui se desmonta para
a reutilização da madeira.

Fig. 25- Construção dos


compostores colectivos da
unidade de agricultura.

45
3. Quadro metodológico

Este trabalho acontece no decorrer de uma comunhão progressivamente


intensa com o Espaço Musas, a associação que o representa e grande parte dos
seus membros activos. O contacto começa ainda antes de estar decidido que seria
o objecto de estudo desta dissertação. No entanto, a participação cada vez mais
activa e o crescente envolvimento com as questões relacionadas com a Quinta Mu-
sas da Fontinha fizeram com que me começasse a aperceber da riqueza muito espe-
cífica deste quarteirão, a todos os níveis. Por um lado, o tecido social que o habita,
as suas relações de proximidade e os antecedentes de resistência na luta pelo seu
direito ao lugar. Por outro, as qualidades únicas no contexto urbano de um grande
quarteirão consolidado na periferia, construído num acidente geográfico único que
o preservou quase inacessível numa grande mancha verde. Por outro lado ainda, a
experiência social e comunitária que se está ali a experimentar, tocando em aspec-
tos que sempre tiveram muito a ver com a minha forma de pensar a arquitectura: a
autogestão do espaço, o design e planeamento colaborativo, a autoconstrução.
A observação passiva foi especialmente importante no início, para des-
vendar questões relacionadas com os usos e as operações quotidianas implicadas
no principal programa da quinta, as hortas urbanas. Passei muito tempo no local a
tomar notas, a esquiçar e a organizar pequenos mapas que procuravam evidenciar
a forma como os espaços estavam a ser utilizados, como se serviam e apoiavam uns
aos outros, como se estruturavam as principais circulações entre eles, etc. Essa
observação foi complementada com recurso à etnografia visual, com a criação de
um grande arquivo fotográfico de toda a quinta, construído durante vários meses,
por diferentes dias da semana e a horas diferentes do dia. Este recurso foi especial-
mente eficiente para fazer manifestar aquelas pistas que, porque algo elusivas, só
se tornam visíveis através da comparação a diferentes momentos temporais. Por
exemplo, é costume a fogueira da terra das crianças ser aprimorada (reposicio-
nadas as pedras que fazem o seu limite) sempre que volta a ser utilizada. Só com
as fotografias tiradas ao longo do tempo me consegui aperceber que esta estava
a ser ligeiramente reposicionada a cada vez, ora chegando-se mais para o centro,
ora fugindo à árvore, etc. Só com este recurso pude induzir uma certa hesitação ou
indecisão em relação à sua implantação.
No entanto, estes métodos não seriam suficientes para compreender to-
das as dimensões do objecto de estudo, especialmente questões relacionadas com
a prática, a vivência e a actuação nos espaços. Esta atitude de observação passa
então a uma atitude participativa, passando a integrar o grupo de hortelãos da
quinta e a trabalhar numa pequena horta individual, a organizar pequenos momen-
tos de construção de mobiliário, a representar o clube nas competições de xadrez,
a fazer parte dos quadros da associação, a ajudar nos preparativos das festas, a
tomar iniciativa na intervenção nos espaços e a fazer programação cultural.
Para além disso, porque as potencialidades do lugar saltam à vista, não
só a um aluno de arquitectura, e porque havia já muito interesse na oportunidade

46
de experimentar no próprio acto de construir, foi necessário fazer um trabalho de
levantamento mais rigoroso do que aquele que já existia pela própria associação.
Embora servisse as suas necessidades de organização interna e se tenha tornado
um recurso importante para compreender as diferentes aspirações e estratégias
para a ocupação dos espaços, não era suficiente para pensar o espaço com o rigor
necessário a uma intervenção mais ponderada. Assim aconteceu, logo no início,
com o espaço onde se instala o banco de materiais, para o qual chegou a ser pensa-
da e esboçada uma cobertura; ou mais tarde com as ruínas onde acontece a exposi-
ção de arte. Este trabalho de levantamento acaba mais tarde por se expandir a uma
grande porção do quarteirão, cruzando as plantas do Plano Director Municipal e as
imagens aéreas com uma análise presencial da situação existente, com algumas
medições métricas mas também comparadas, tendo em conta a vegetação densa,
os limites construídos, a irregularidade e dimensão do terreno e a consequente im-
possibilidade de tomar medidas exactas em vários locais.
A área de intervenção tem uma história muito rica. Devido à falta de biblio-
grafia e documentação sobre vários aspectos específicos que importava desven-
dar, desde questões relacionadas com a política urbana e o subdesenvolvimento da
zona, com a rede de relações sociais muito fortes entre vizinhos e diferentes agen-
tes culturais, com as várias ruínas que vão surgindo um pouco por todo o lado ou
com a evolução atribulada da própria associação, entre outras, recorri a algumas
entrevistas semi-guiadas (Luís Chambel, Aurélio Simões, Rui Mealha, Salne Buciu-
te, Arnaldo), para as quais parti com uma temática em vista, critério para o qual
escolho determinada pessoa, mas sem impedir que a entrevista se desvie do tema,
procurando o conhecimento que se expõem da forma mais natural. Foram também
muito importantes várias conversas informais, decorrentes do encontro natural e
casual com as pessoas nos espaços, que me deram um conhecimento mais profun-
do acerca da sua própria experiência na quinta (Texas, Luís, Idalina, Andreia, Hugo,
João, etc). Estas foram acontecendo esporadicamente e sem qualquer pretensão
além da partilha desinteressada, em situações completamente distintas, desde a
conversa que se faz durante jornadas de trabalho na horta a convívios em situações
de festa em volta da fogueira.
Fig. 26- O autor na constru-
ção de uma cama onde se
instalará uma nova horta.

47
contexto

49
1
A primeira referência que 4. O Alto da Fontinha
se conhece com o topónimo
Bonjardim está no testa-
4.1. Desenvolvimento urbano
mento do bispo D. Vicente
Mendes, de 1296.
2
“(…) esta Porta dos Car-
Ainda antes de podermos falar em desenvolvimento urbano, observava-se
ros liga-se com o traçado na zona que viria a ser a Fontinha, já desde a Idade Média(há um primeiro registo em
da Rua do Bonjardim que, 1296 1), uma via de circulação importante (não podendo ainda falar de arruamento,
ainda hoje, apesar de toda estando mais próxima do caminho), que fazia a saída da muralha fernandina (na
a urbanização sofrida (…)
mantém um sinuoso dese-
Porta dos Carros) em direcção a Guimarães. Esta via, que será posteriormente a
nho e varia notavelmente Rua do Bonjardim, vai marcar a organização morfológica desta zona da cidade, so-
de largura (…)” OLIVEIRA, brevivendo até aos dias de hoje com um certo carácter rural, de desenho irregular.2
J. M. Pereira – O espaço Contudo, o verdadeiro desenvolvimento urbano começa com aquela que
urbano do Porto, Centro de
Estudos Geográficos, Por-
será a grande intervenção para a expansão urbana da cidade medieval. Entre 1757 e
to, 1973, p.230 1804, João de Almada e Melo e Francisco de Almada Mendonça executam um plano
3
FERREIRA, Nuno ; ROCHA,
para o crescimento urbano que visa ordenar a expansão da cidade para além mura-
Manuel - Etapas de consoli- lhas:
dação da paisagem urbana
do Porto contemporâneo, “Tendo como foco o núcleo urbano antigo delimitado pelas muralhas medie-
CEM nº5: Cultura, Espaço &
Memória, Porto, 2014, p.192
vais, e as estradas que articulavam o Porto com as regiões periféricas – Matosi-
4 nhos, Guimarães, Penafiel – regularizou-se o traçado viário, e formaram-se ruas
“É de destacar que nas
ruas transversais e o no in-
estruturantes para o crescimento da urbe, que ainda no início do século XX eram
terior destas malhas con- referência para os arquitectos que projectavam a morfologia urbana do Porto.” 3
tinuavam a existir grandes No legado almadino contam-se quatro eixos estruturais (ora novos, ora
espaços por urbanizar.”
FERREIRA, Nuno ; ROCHA,
Manuel - Etapas de consoli- Fig. 27- Plan-
dação da paisagem urbana ta do Porto,
do Porto contemporâneo, com o quar-
CEM nº5: Cultura, Espaço & teirão da
Memória, Porto, 2014, p.193 Fontinha e
5 Carvalheiras
“Por outro lado, para
a s s in a l ado.
além da rectificação e ni-
Planta de Per-
velamento da Rua de Santa
ry Vidal, 1865.
Catarina, projectou o seu
prolongamento, para N
(Rua Bela da Princesa) até
ao lugar da Aguardente, de-
pois praça do mesmo nome
e actual Praça do Marquês
de Pombal, espécie de lar-
go irregular onde vinha dar
já nesse tempo a Rua do
Bonjardim e donde saía a
estrada para Guimarães
(…)” OLIVEIRA, J. M. Pereira
– O espaço urbano do Porto,
Centro de Estudos Geográ-
ficos, Porto, 1973, p.272

50
consequência do ajuste de antigos caminhos) de ligação do centro do Porto a outras 6
“Vemos, pois, que, em
regiões: a Rua de Almada, a Rua de Santa Catarina, a Rua Direita de St. Ildefonso e a 1785, a abertura do troço
Rua de Cedofeita. Estas novas vias organizam as entradas e saídas da cidade conso- da Rua de Santa Catarina
compreendido entre a ac-
lidada mas atravessam ainda vastas áreas de carácter rural. 4 tual Rua Formosa e a Rua da
Com o prolongamento da Rua Bella da Princesa até ao Largo da Aguardente Fontinha, leva a considerar
(actual Praça do Marquês 5) finaliza-se o percurso daquela que é hoje a rua de Santa a reestruturação da exten-
Catarina, e o quarteirão da Fontinha e Carvalheiras fica enfim balizado a nascente e sa área, a poente,
compreendida entre a nova
poente. Estão também presentes alguns caminhos que até hoje sobrevivem, como a rua e a Rua do Bonjardim,
Rua das Carvalheiras e a Rua da Fontinha 6. Pouco depois, em referência numa plan- atravessada por velhos
ta de 1838 7, também a sul pela Rua Gonçalo Cristóvão, chegando-se a um traçado caminhos – actuais ruas
idêntico ao que hoje reconhecemos na malha urbana muito mais densificada. das Carvalheiras e Fon-
tinha (cuja conservação,
Já nas plantas do início do séc. 19 é visível uma ocupação construída, ainda que mediante alinhamento, é
de forma algo irregular, das suas frentes de rua. Juntamente com as outras vias de aprovada) (…)” GUNTHER,
saída da cidade, assim se definia a principal estrutura de urbanização do território. 8 Anni - Porto 1763/1852: A
De facto, o Alto da Fontinha, como insinua a própria toponímia, é uma zona construção da cidade entre
despotismo e liberalismo,
edificada à cota alta de uma elevação geográfica significativa. Não por acaso, as Edição FAUP, Porto, 2002,
duas vias de circulação que delimitam o quarteirão evitam essas dificuldades alti- p.178
métricas do monte, contornando-o. Esta é a principal razão que ajuda a explicar a 7
Referênciada por J.M Pe-
dificuldade de urbanização desta grande área do território urbano, que hoje em dia reira: “399) Gabinete de
é um dos maiores quarteirões da cidade. Encerrado pelos dois grandes eixos norte- História da Cidade, Livro
de Plantas Antigas, livro 2º,
-sul, o declive acentuado (que não era propício aos empreendimentos da burguesia)
planta nº70, 1838”
desencorajou a abertura de atravessamentos transversais e, assim, o interior do 8
“Para além do núcleo cen-
quarteirão tornou-se inacessível, excluído dos processos de urbanização que, em
tral intramuros e de Mira-
seu redor, se tornavam cada vez mais enfáticos. gaia, a urbanização extra-
Contudo, especialmente com o decorrer do século 19, a situação demográ- muros iniciou-se em função
fica da cidade altera-se ainda mais significativamente: das estradas de acesso à
cidade: arrabaldes de San-
to Ildefonso – estrada de
Valongo e Penafiel; Bonjar-
dim – estrada de Guimarães
(…)” ibidem, p.282

Fig. 28- Quarteirão da


Fontinha e Carvalheiras,
já quase consolidado, mas
estando ainda muito pre-
sentes os grandes terrenos
agrícolas, a oeste da Rua do
Bonjardim. Planta de Teles
Ferreira, 1892.

51
“Enquanto que em meados do século, mais concretamente aquando do primeiro
recenseamento geral (1864) [o Porto] possuía 86.761 habitantes, em 1878 a popu-
lação ascendia aos 105.838, em 1890 atingia os 138.860 e em 1900 era de 167.955
habitantes. Este aumento demográfico deve-se, sobretudo, ao grande número de
população operária que migrou de vários pontos do norte de Portugal e que se fixou
na cidade, fruto do seu desenvolvimento industrial.” 9
9
Nuno ; ROCHA, Manuel -
Esta polarização regional do Porto acarreta consigo um período de forte
Etapas de consolidação da
paisagem urbana do Porto consolidação e de crescimento do edificado, que procurava dar resposta às neces-
contemporâneo, CEM nº5: sidades de uma população cada vez maior. De certa forma, o período iniciado pela
Cultura, Espaço & Memória, revolução industrial, que em Portugal se dá mais tarde e tem maior expressão na
Porto, 2014, p.198
segunda metade do séc. 19, será determinante para a caracterização deste grande
bloco urbano, que ganha um sentido essencialmente industrial e habitacional.

4.2. O quarteirão irresoluto

Fig. 29- Fotografia aérea


do quarteirão em estudo,
1940.

52
Para compreender a situação actual do quarteirão, composto por inúme-
ros lotes estreitos sequentes, é necessário esclarecer o processo de urbanização
inicial, que estabeleceu a lógica de propriedade que hoje está por trás de grandes
transformações sociais.

“Ponto fulcral de todas as políticas de valorização do território é a mercantiliza-


ção da terra e a sua liberalização. A eliminação dos direitos feudais sobre a terra,
a privatização dos espaços comunais, a expropriação da Igreja e de outras corpo-
rações de natureza civil, pelas motivações estruturais subjacentes, inserem-se na
mesma dinâmica do processo histórico que conduz a mercantilização da terra e a
sua liberalização, mas diferenciam-se pelo ritmo da evolução e pela sua própria
especificidade.” 10 10
GUNTHER, Anni - Porto
1763/1852: A construção da
cidade entre despotismo e
Antes de assumir o carácter urbano que já se começava a observar no sécu-
liberalismo, Edição FAUP,
lo 19, a periferia do centro consolidado era composta por vastas quintas de famílias Porto, 2002, p.50
abastadas, por terrenos de instituições civis e religiosas, e por baldios. De acordo
com Anni Gunther, a partir de 1796 assiste-se à apropriação sistemática desses
baldios, especialmente de terrenos confinantes com as grandes estruturas viárias
e seus caminhos de interligação. A intenção seria libertar os espaços de funções
agrícolas para a edificação, num processo de modernização da cidade e da sua ex-
pansão em área urbanizada. Este processo originou, também, o nascimento de um
grande mercado imobiliário, associado à subdivisão destes baldios em lotes propí-
cios à construção:

“Assim, tudo indica que, para além de um eventual aproveitamento agrícola


dos terrenos emprazados, a alienação dos baldios tenha contribuído, num período
relativamente curto de tempo, para a formação de um mercado imobiliário de ter- 11
ibidem, p.240
renos urbanizáveis e de talhões edificáveis situados à face das estradas e caminhos
que atravessam as freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Paranhos e Campa-
12
“Havia maior disponibi-
nhã, com o consequente aumento indiscriminado da edificação suburbana, já que
lidade de solos e os preços
o destino último de muitos dos terrenos emprazados terá sido o subemprazamento dos terrenos eram mais
(após a subdivisão em lotes).” 11 baixos, pelo que a cons-
trução de habitações indi-
viduais, de baixa altura, se
A liberalização do espaço e a chegada do mercado ao comando do processo
tornava aqui mais lucrativa
de produção do espaço, somado à inexistência de um plano urbanístico habilitado que noutras cidades. Uma
e efectivo, colocam a evolução urbana nas mãos do capital e das possibilidades que utilização mais extensiva
o próprio entretém. O grande objectivo é a mercantilização de lotes com frente de dos solos era compensada
pelo menor investimento
rua, ajustados a uma escala que permita a edificação pela iniciativa privada, o que
inicial necessário para a
no Porto era uma actividade especialmente lucrativa 12 : construção deste tipo de
habitação.” TEIXEIRA, Ma-
nuel - Habitação popular
na cidade oitocentista: as
Ilhas do Porto, Afrontamen-
to, Porto, 1996, p.73

53
“ (…) para as áreas não loteadas ou expropriadas estabeleceu-se o lote tipo
com largura de 5,5 metros (por vezes 6,0 metros) e comprimento variável. Este tipo
de lote estreito permitiu, para além da criação de lotes muito profundos, aumentar
o número de edifícios por rua, a um custo reduzido por unidade. A regulamenta-
ção dos lotes possibilitou também a «normalização de alguns componentes de
construção; e promovia o desenvolvimento de modelos arquitectónicos, baseados
13
FERREIRA, Nuno ; RO- nestas dimensões» .” 13
CHA, Manuel - Etapas de
consolidação da paisagem
Este parcelamento foi uma ferramenta decisiva para a organização dos
urbana do Porto contem-
porâneo, CEM nº5: Cultura,
quarteirões que, excepto os casos em que se seguiu um plano urbanístico mais efi-
Espaço & Memória, Porto, caz, que determinava inclusive o desenho de fachadas uniformes (por exemplo na
2014, p.193 Rua do Almada), se desenvolveu segundo a livre iniciativa privada, particularmente
da classe burguesa. Neste caso, procedeu-se com um sistema de divisão dos terre-
nos em lotes estreitos, de cinco ou seis metros, na frente dos quais se implantam os
casarios, constituindo uma frente de rua contínua mas heterogénea nas soluções
formais. Ao mesmo tempo, dada a imensa profundidade do logradouro, este sis-
tema deu origem a edifícios que escondiam por trás longuíssimos pátios, também
referidos como pátios góticos, devido à sua profundidade. Quebrados em vários
socalcos para vencer as diferenças de cota, estes poderiam variar entre dois, três,
quatro ou cinco patamares, sendo o seu uso cada vez mais reduzido à medida que

Fig. 30- Vista aérea de um


lote-tipo no quarteirão em
estudo, com o casario e as
várias plataformas nas tra-
seiras.

54
aumentava a distância para o casario. As dificuldades de acessibilidade a estas por- 14
“As sucessivas admi-
ções de terreno reservaram-nas a manchas verdes mais ou menos desempregadas nistrações municipais do
até aos dias de hoje. Porto nunca foram capazes
de se elevar acima dos pe-
Um lote típico seria constituído primeiro pela casa, junto à rua, à qual se quenos interesses privados
associava um pátio nas traseiras de serventia diária. O patamar posterior poderia e de os subordinar a um
ser utilizado menos frequentemente, mas ainda pertencer ao ritmo quotidiano ou plano global de crescimen-
a algum cultivo agrícola mais sistemático. O seguinte, já só alcançável por vários to urbano. Os interesses
dos proprietários urbanos
lances de escadas, serviria para uma prática agrícola mais autónoma, ou para aí ter eram dominantes dentro
o galinheiro ou o curral. Contudo, a partir daí as questões de acesso tornavam muito da municipalidade, e a in-
complicado dar uso ao espaço, e assim predominava a vegetação mais descontrola- fluência deste grupo social
da. sobre o desenvolvimento
da cidade manteve-se du-
Este sistema está na origem de um problema que é transversal à cidade do rante todo o séc. XIX. (…)
Porto, mas que aqui, devido à escala envolvida, se tornou particularmente compli- Isto explica, em larga me-
cado de resolver. O quarteirão acaba por se fechar por um perímetro construído que dida, a fragmentação da
encerra um miolo quase rural e extraordinariamente desaproveitado, sem que nun- estrutura urbana e a falta
de um plano coerente para
ca exista uma ideia clara para este grande bloco urbano 14. Ainda assim, contam-se o desenvolvimento da cida-
alguns elementos excepcionais que rompem com esta condição intersticial e têm de.” TEIXEIRA, Manuel - Ha-
um peso importante para a definição do lugar 15. bitação popular na cidade
oitocentista: as Ilhas do
Porto, Afrontamento, Por-
to, 1996, p.82

15
“Esta área foi desenvol-
vida desde o início do século
como zona exclusivamente
operária, para o que contri-
buiu com a localização, nas
proximidades, de numero-
sas unidades industriais de
pequena e média dimensão
e a sua topografia muito aci-
dentada, que a tornava ina-
dequada para a construção
de habitação burguesa.”
ibidem, p.275

Fig. 31- Outro exemplo em


que a organização do lote
se faz da mesma forma, gal-
gando a encosta.

55
4.3. A influência da fábrica social

Fig. 32- A ocupação cons-


truída do Alto da Fontinha:
Ilha do Padeiro, Fábrica So-
cial e Parque habitacional
originalmente associado à
fábrica.

Ilha do Padeiro

Fábrica Social

Parque habitacional

16
“Em 1881, a Real Fábrica É no Alto da Fontinha que se instala uma das mais importantes fábricas da cidade 16.
Social da Fontinha era, de
Esta unidade, que é responsável pelo início do processo de ocupação construída do morro,
longe, a fábrica de chapéus
mais importante da cidade,
é a antiga Fábrica Social da Fontinha. O topónimo, que inclui o adjectivo social, dá já pistas
empregando 253 trabalha- sobre a importância da fábrica para o seu contexto urbano. Edificada em 1830, a sua história
dores, o que, no contexto será marcada por diferentes proprietários e por funções distintas. No início serve ao fabrico
do Porto, era considerado
de porcelanas; em 1852 transforma-se em fábrica de chapéus, actividade pela qual se tornará
uma grande fábrica.” TEI-
XEIRA, Manuel - Habitação
mais conhecida; em 1940 passa a produzir acessórios para a indústria têxtil; no início dos anos
popular na cidade oito- 90 é reabilitada para o armazenamento de plásticos mas as obras nunca serão terminadas; fi-
centista: as Ilhas do Porto, nalmente, em 1998, passa a hospedar o atelier do escultor José Rodrigues, que em 2006 torna
Afrontamento, Porto, 1996,
o edifício na sede da Fundação José Rodrigues, que até hoje aí permanece.
p.276

“No começo da segunda metade do século XIX, o Porto era uma cidade de dimensão mé-
dia com cerca de 80 mil habitantes, uma economia em que predominavam as actividades
mercantis e uma indústria em lento desenvolvimento. No entanto, seria a indústria, embora
retrógrada e dominada por pequenas oficinas e modos artesanais de produção, que viria a
marcar mais decisivamente a economia, a estrutura social e a organização espacial do Porto
17 no final do século XIX.
TEIXEIRA, Manuel - Ha-
bitação popular na cidade A imigração maciça, para o Porto, de população rural, que atingiu o seu máximo nos anos
oitocentista: as Ilhas do que mediaram entre 1878 e 1890, gerou uma enorme procura de habitação. Cerca de um terço
Porto, Afrontamento, 1996, da população do Porto em 1900 consistia em pessoas de origem rural que tinham vindo traba-
p.85
lhar nas indústrias em desenvolvimento. (…) Após a sobreocupação dos edifícios existentes

56
nas áreas mais antigas da cidade, verificou-se a necessidade de construir habita- 18
TEIXEIRA, Manuel - Ha-
ção nova que respondesse especificamente a este tipo de procura.” 17 bitação popular na cidade
oitocentista: as Ilhas do
Porto, Afrontamento, Por-
A fábrica foi determinante para que a população vinda de zonas rurais se to, 1996, p.275
começasse a fixar na zona e consequentemente se desenvolvessem outros equi-
pamentos (oficinas, armazéns, habitação) na envolvente próxima. Os operários
deslocam-se diariamente para o espaço fabril e, juntamente com as suas famílias, 19
ibidem, p.276
habitam nas redondezas (algo impreterível tendo em conta as longas horas de tra-
balho e as dificuldades de mobilidade). Desta dinâmica quotidiana forma-se um
sentimento comunitário muito forte, de relações de vizinhança quase familiares,
um pouco à semelhança daquilo que acontecia no contexto rural de onde esta po- 20
Existe no arquivo da
pulação origina. A fábrica, enquanto polo agregador, tem um forte papel na cons- C-M. o seguinte requeri-
trução da identidade social da Fontinha. mento (14147/1934): Pe-
tição dos moradores do
Para que este cenário quotidiano fosse possível, foi necessário construir de
Bairro Vila Castro, na Rua
raiz, um núcleo de habitação para os operários, cujos números cresciam depressa: do Alto da Fontinha pedin-
do à Câmara a construção
“Numa altura em que as questões sociais começavam a adquirir grande relevo, de retretes para o referido
bairro, tendo este cerca de
os donos da fábrica empreenderam a construção destas habitações, a que mais
250 pessoas sem uma única
tarde seria acrescentada a ilha, proclamando a uma preocupação com o bem-es- retrete
tar social dos trabalhadores.” 18

Podemos datar no século 19 os bairros de habitação económica onde resi-


21
dem os operários. A sua construção foi levada a cabo pelo próprio empregador que, “Em 1905, Mariana Gon-
çalves e a sua filha Alice
no contexto de falta de habitação, caso generalizado no Porto, promove a constru- hipotecaram todas as suas
ção de pequenas casas, perfiladas na rua da Fábrica Social, na rua do Alto da Fon- propriedades, incluindo
tinha e na rua Bela da Fontinha, constituindo assim o primeiro bairro habitacional da a ilha (…). Assim, a Ilha da
zona, organizado em dois pátios. É precisamente dentro de um destes que aparece Fábrica Social da Fontinha,
construída pelo dono da
a ilha da Fontinha, de entrada na Rua da Fábrica Social. 19 fábrica, era agora uma ilha
Outro caso que importa referir é a ilha do Padeiro, uma peça ímpar no con- como todas as outras. O
texto portuense no que diz respeito à sua implantação. É difícil precisar a data de nome caiu no esquecimen-
construção, mas tudo aponta para que tivesse servido ainda necessidades de ha- to, e os seus habitantes já
não eram exclusivamente
bitação próxima da fábrica. Trata-se de um conjunto de cerca de 40 casas, com um trabalhadores da Fábrica
complexo sanitário ao centro, e onde a circulação é feita pelo perímetro, estando as Social da Fontinha mas,
costas das casas encostadas umas nas outras. Delimitando o complexo fabril pelo consoante as forças do
lado oeste, nas traseiras do palacete do proprietário da fábrica, estende-se ao lon- mercado, quem calhasse ir
viver ali. Hoje, mesmo en-
go de cem metros à cota mais alta do morro, naquela que seria uma espécie de pro- tre os seus habitantes mais
longamento da rua do Alto da Fontinha, tendo vistas sobre toda a cidade ocidental, idosos, não há memória de
até ao mar. Evidentemente, esta qualidade não se sobrepunha às más condições de a ilha ter, em tempos, per-
vida que marcavam a habitação económica da Fontinha. 20 tencido à fábrica.” TEIXEI-
RA, Manuel - Habitação
Esta associação entre a vida laboral e as formas de habitação na Fontinha popular na cidade oito-
mantém-se até meados do séc. 20. Mas, por esta altura, a actividade fabril dissolve- centista: as Ilhas do Porto,
-se e o bairro desvincula-se da tradição operária 21. Esta foi uma mudança no para- Afrontamento, Porto, 1996,
digma social bastante expressiva para a zona, que passaria, a partir daí, a pertencer p.278

57
muito mais à vida urbana generalizada do que ao micro-ecossistema que a fábrica
até então aí tinha gerado. Este fenómeno prende-se com a progressiva expansão do
território urbanizado e com o aumento da capacidade de mobilidade no espaço ur-
22
REMY, Jean; VOYÉ, Lilia- bano, que acaba por desassociar o espaço do trabalho do espaço da residência.22
ne - A Cidade: Rumo a Uma
Nova Definição?, Edições
Afrontamento, Porto, 1994
4.4. As transformações recentes

“Fontinha - É um sítio com história, característico pelo casario de um ou dois


pisos, parte deste com origem no bairro operário, residência de mão-de-obra das
fábricas e oficinas (indústria manual de pregos) existentes no alto da Fontinha.
(…) Na envolvente da rua das Musas e Carvalheiras, novas habitações sociais, tais
como, o Bairro da Fontinha e o Bairro do Leal, erigidos em terrenos de velhas ofici-
nas, denotam ainda marcas do modo de vida comunitário característico dos anti-
gos bairros operários. Em tempos recentes o lugar tem vindo a ser foco de atracção,
por novos residentes, em especial jovens, devido à sua envolvência única e à proxi-
23
Área de Reabilitação Ur- midade à Baixa do Porto.” 23
bana da Lapa: Projecto de
Delimitação , 2018, p.16
A generalidade das edificações da Fontinha foi construída até meados do
24 século 20 24 e é sobretudo lugar de residência para uma população envelhecida.
“Como seria de esperar
numa zona bastante con- Com o passar dos anos, a zona foi sendo abandonada, quer em preterência de ou-
solidada, o edificado apre- tras localizações, quer devido ao decreto de realojamento de parte dos moradores
senta uma estrutura etária em bairros municipais, deslocando-os para as periferias.
envelhecida (69% dos edi-
As duas últimas intervenções construtivas de iniciativa pública que procu-
fícios foram construídos
antes de 1945).” ibidem, raram uma solução para o desgaste nas condições de habitação desta área acon-
p.12/13 teceram durante o já longínquo processo SAAL, onde apenas uma parte dos planos
foram realizados, e em 2001, com a obra do Conjunto Habitacional da Fontinha,
inserida no âmbito do Plano Especial de Realojamento (PER).
Anos mais tarde, este fenómeno de abandono está particularmente à vista
no Bairro do Leal. Antes das demolições levadas a cabo nos anos 60, este era o lugar
de residência de várias centenas de pessoas. Hoje em dia, estas não chegam a meia
25
“O bairro está sozinho centena. 25
no meio de destroços, e
Mais recentemente, o processo de expropriação e demolição de casas,
das 600 pessoas que aqui
viviam agora há 16 fogos algumas das quais de onde se deslocaram residentes sob o pretexto de início de
ocupados na parte nova e 2 obras de requalificação para albergar os moradores do Aleixo, veio acentuar ainda
na parte velha: é o que resta mais a situação de degradação, visto que as mesmas nunca foram concluídas. Su-
do bairro.” Intervenção de
blinha-se que esta reabilitação do bairro já se previa em 2004, e no entanto nunca
Sérgio Fernandez. SERRAL-
VES, Ambulatório: Conver- se efectivou. O cenário chocante de escombros e entulho num lugar tão central na
sas abertas nos bairros do cidade tem sido recorrentemente assunto de interesse político, mas ficou-se sem-
SAAL-Norte: Sérgio Fer- pre aquém de encontrar uma solução.
nandez conversa com a As-
sociação de Moradores do
Leal, Porto, 2014

58
Fig. 33- O estado de degra-
dação do Bairro do Leal a 25
de Abril de 2019.

Um cenário parecido também se verificava nesta secção da rua do Bonjar-


dim, onde um número considerável de casas estavam vazias. Contudo, ao contrário
do que ainda se passa no Leal, nos últimos anos a situação tem-se vindo a alterar
rapidamente. A par das transformações impostas pelo processo de industrializa-
ção, a zona vive agora um novo momento de transição, desta vez por um processo
de gentrificação.

Fig. 34- O visível abandono


em que se encontram as
antigas casas do Bairro do
Cipreste em 2019.

59
Para ilustrar a escala de transformação actual, realizou-se um levantamen-
26
Em Novembro de 2018, to 26 desta secção da rua do Bonjardim, sobre o estado do seu edificado, categoriza-
pelo autor.
do na situação de devoluto, a sofrer intervenção ou já reabilitado.
Contam-se vinte e três unidades devolutas (de acesso vedado ou visivel-
mente degradadas); vinte e uma recentemente reabilitadas (sinais de melhoramen-
tos na fachada, caixilharia nova, etc) e nove em estado de obra (com andaimes ou
sinalizadas para o início dos trabalhos). Estes números, que embora cristalizem
apenas um momento passageiro, evidenciam o forte interesse imobiliário que se
tem feito sentir por esta zona da cidade, que não só é de localização central como
ainda reserva um grande número de casas desocupadas.
Ainda assim, observa-se que este não é um interesse que se reduza às casas
devolutas. São vários os casos de venda de imóveis até então vinculados a contratos
de arrendamento de famílias. Importa também frisar que este tipo de reabilitação
raramente é feito pelos próprios moradores, numa lógica de melhoramento das
condições de habitabilidade das próprias casas. É antes de mais um instrumento
de cariz imobiliário para valorizar economicamente o edifício, ou um sinal de que a
propriedade transitou de dono.
27
Entre Janeiro e Março de Dados estatísticos como a subida de rendas praticadas 27, o aumento do
2018, o preço das rendas
preço médio por metro quadrado 28 e a subida dos valores nas vendas de imóveis29
subiu em média 20% no
Porto, Jornal de Notícias, 9 expressam claramente uma tendência para a progressiva substituição do tecido
de Julho de 2018. social antigo através da acção do mercado. Há cada vez menos moradores de longa
28
Preço médio do metro
data, e em seu lugar surge uma população de características diferentes, em termos
quadrado no Grande Porto: gerais mais jovem, com maior poder de compra, não necessariamente de cidadania
1.350€ em 2009; 1.521€ em portuguesa, e sem uma ligação pessoal prévia ao lugar. O período de permanência
2017, disponível no Porda- no imóvel é também mais reduzido, sendo a casa muito mais facilmente um bem
ta, acesso em Fev. 2019
transaccionável do que seria para as famílias que aí se encontravam desde longa
29
Valor médio dos prédios data e que investiram um grande capital simbólico na construção da casa.
transaccionados no Grande Observa-se também a proliferação de acomodações turísticas, que na zona
Porto: 81.790€ em 2000;
de interesse ultrapassam as trinta unidades (desde hotéis, a hostels ou a aloja-
165.183€ em 2017, disponí-
vel no Pordata, acesso em mentos locais). Os dados que existem para o Porto indicam que, das 7671 unida-
Fev. 2019 des inscritas em plataformas de alojamento temporário de curta duração, 85% são
imóveis completos, e apenas 15% quartos em fogos ocupados por habitantes. Esta
situação reflecte a tendência para reabilitar os imóveis numa perspectiva de futura
ocupação turística, passageira e temporária, que é muito mais rentável. No reverso
da questão está, naturalmente, a diminuição do parque habitacional disponível a
moradores permanentes, os únicos aptos à construção da identidade social do lu-
gar.
Segundo Jean Remy e Liliane Voyé, este tecido social, característico da si-
tuação urbanizada, manifesta-se de forma muito mais deficitária, recolhendo mais
facilmente para o espaço privado os seus momentos de socialização. Assim se vai
30
REMY, Jean; VOYÉ, Lilia- perdendo essa capacidade de o fazer na esfera pública, limitando-se essas rela-
ne - A Cidade: Rumo a Uma ções a um nível superficial, pontual e comercial. 30
Nova Definição?, Edições
Afrontamento, Porto, 1994

60
Fig. 35 - Levantamento
do estado do edificado do
troço em estudo da Rua do
Bonjardim.

Espaço
Musas

Devoluto
Turismo
Reabilitado
Em intervenção
Espaço Cultural

61
5. A construção social do lugar

Fig. 36- Crianças fotogra-


fadas no local onde futu-
ramente se construiria a 1ª
fase do Bairro do Leal, no
âmbito da operação SAAL,
1975.

A história da Fontinha tem sido pontuada, desde o século 19 até aos dias
de hoje, por momentos de forte agitação social que reflectem dinâmicas da escala
urbana. Contudo, o que a tem diferenciado é a capacidade organizativa dos seus
habitantes que, de modo geral de forma apartidária e espontânea, se têm reunido
em torno de iniciativas que vêm reivindicar, através de expressões distintas, o seu
direito ao lugar. Esta é uma característica muito particular que dá sinais de um es-
paço social muito enraizado ao próprio lugar, o que será importante no desenvolver
de algumas ideias deste trabalho.
Existem três grandes momentos que o comprovam. O primeiro acontece
na sequência dos movimentos operários do século 19 que, mesmo que se insira
num plano internacional (os anos da Comuna de Paris, a disseminação das ideias
socialistas e anarquistas), se fazem particularmente, no caso do Porto, por per-
sonalidades e espaços pertencentes à comunidade da Fontinha, o que vale a pena
mencionar. O segundo inscreve-se no processo SAAL e na revindicação pelo direi-
to à habitação digna no local. Finalmente, os eventos recentes da ocupação das
instalações da Escola Básica da Fontinha, onde se concebe um espaço colectivo
autogestionado.

62
1
RAMOS, Luís A. de Olivei-
ra - História do Porto, Porto
Editora, Porto, 1995, p.445
2
5.1. Os movimentos operários “De 1852 a 1870 recensea-
mos 17 organizações asso-
ciativas criadas e constituí-
Como anteriormente referido, a ocupação da Fontinha originou de um con- das esmagadoramente por
texto marcadamente industrial, onde as condições de vida da classe operária que operários e trabalhadores
aí se instalou sempre possuíram graves problemas. Era também uma zona muito no Porto (…)” PEREIRA,
José Pacheco – A origem
povoada por pequenas oficinas, com actividades ligadas à produção de pregos ou
do movimento operário no
têxteis. Não será por isso surpreendente que a narrativa dos movimentos operários Porto: as associações mu-
no Porto, que se começam a organizar a partir do século 19, se registe na própria tualistas, Análise Social,
história da Fontinha. vo1. XVII, Porto, 1981, p.4
3
“Foi aí – recorda José
“O surto do associativismo operário de 1852-56 inscreve-se no movimento na- Martins Gonçalves Viana
- na Rua de Santa Catarina
cional e no despontar das ideias socialistas, na sequência dos acontecimentos de
que, na nossa juventude,
1848 em França, mas traduz sobretudo o dinamismo industrial que o Porto conhe- em Agosto de 1875, entrá-
ceu até então, com os problemas daí resultantes, tanto nas relações entre indus- mos nos trabalhos da As-
triais e operários, como entre o novo empresariado fabril e os velhos artesãos, num sociação dos Trabalhado-
res (…)” RAMOS, Luís A. de
momento de vazio legislativo no plano laboral e de agravamento das condições de
Oliveira - História do Porto,
vida das camadas populares.” 1 Porto Editora, Porto, 1995,
p.447
A parca qualidade de vida devida às más condições de habitabilidade das 4
SILVA, Germano - As tra-
moradias operárias (por exemplo, a inexistência de saneamento básico), aos baixos dições operárias do Bairro
salários pagos pelos industriais e à falta de direitos no trabalho, aliado à ameaça da Fontinha, Jornal de No-
tícias, 22 de Julho de 2007
crescente de novas tecnologias da produção moderna (como a máquina a vapor)
5
e à inexistência de legislação no plano laboral despoletaram a organização desta ibidem
6
classe social pela defesa dos seus direitos. “Por essa altura (1878)
funda-se, junto da Asso-
Embora os primeiros passos do movimento operário portuense aconteçam
ciação dos Trabalhadores,
no surto associativo 2 dos anos 50 e 60 do século 19, é por volta dos anos setenta que uma Cooperativa de Teci-
a agitação social reivindicativa ganha uma expressão maior na zona da Fontinha. dos de Algodão (…) A coo-
São vários os casos de associações ou jornais que se sediam na Fontinha perativa instalou-se no Lar-
go da Fontinha, facto pelo
para reunir e organizar trabalhos, o que permite uma leitura de vivacidade reivindi-
qual esse núcleo de socia-
cativa da sua população. listas passou a ser apelida-
O primeiro exemplo conhecido é o da fundação, em 1874, da Associação dos do por Grupo da Fontinha.”
Trabalhadores, no troço alto da Rua de Santa Catarina, no cruzamento com a Rua da RAMOS, Luís A. de Oliveira

Escola Normal 3, e que mais tarde se muda para o Largo da Fontinha. No ano seguin- - História do Porto, Porto
Editora, Porto, 1995, p.447
te aparece, na Rua do Bonjardim, o Jornal Artístico Social 4. Sabe-se que em 1876 7
“Outro grupo acompanha
várias oficinas da Rua das Musas e Rua da Fontinha fazem greve 5. Pouco depois, em
o serralheiro Ermelindo An-
1878, surge a Cooperativa de Tecidos de Algodão, instalada no Largo da Fontinha6, tónio Martins, em cuja ofici-
encostada à Associação dos Trabalhadores. Dois anos depois a Associação União na da Rua das Carvalheiras
dos Trabalhadores começa a reunir numa oficina da Rua das Carvalheiras. 7 se passou a reunir com a
designação de Associação
Seria também por ali perto, no Largo do Dr. Tito Fontes, que se realizavam
União dos Trabalhadores,
os grandes comícios operários da época. De frente para o largo estava o Salão da sob influência do colecti-
Laboriosa onde se reuniam publicamente vários elementos das associações operá- vismo anarquista (…)” ibi-
rias.8 dem, p.448
8
PEREIRA, José Pacheco
– A origem do movimento
operário no Porto: as asso-
ciações mutualistas, Aná-
lise Social, vo1. XVII,Porto,
1981
63
9 5.2. O SAAL e a Associação de Moradores do Leal
VILAÇA, Helena - As Asso-
ciações de Moradores en-
quanto aspecto particular
Avançando no tempo cerca de cem anos chega-se ao momento essencial da
do Associativismo Urbano história da democracia portuguesa, e com ele aos processos participativos do SAAL
e da Participação Social, em resposta ao problema de habitação, nunca solucionado pelo Estado Novo. Em
Provas de Aptidão Peda- 1974 vêm-se despoletar as mais variadas contestações sociais no campo da saúde,
gógica e Capacidade Cien-
tífica, Faculdade de Letras
do ensino, do exército, entre tantos outros.9
da Universidade do Porto, No contexto urbano em particular, o campo da habitação tem uma relevân-
1994, p.54 cia imediata, depois de várias décadas de uma política de habitação socialmente
inábil (com a solução de bairros económicos nas periferias) acompanhada de uma
realidade produtiva incapaz (em Portugal produzia-se um terço dos fogos estipu-
10
“Verifica-se, à época, lados a nível europeu 10) que leva a condições de insalubridade extrema para uma
uma fraquíssima produção fatia considerável da população do Porto.
de alojamentos. Portugal
Sob a orientação do Arq. Nuno Portas, o Serviço de Apoio Ambulatório Lo-
produzia anualmente cer-
ca de um terço da média de
cal actua sobre pressupostos bastante diferentes, baseados na participação activa
construção de fogos por ha- dos moradores implicados e na salvaguarda do seu direito ao lugar. Entre 74 e 76
bitante. Estava estipulado, o processo chega a envolver 150 operações e mais de 40 mil famílias 11. Contudo,
a nível europeu, 8 fogos por
aquela que era uma experiência que colocava os habitantes no centro de decisão
1000 habitantes e cá pro-
duzia-se, em média pouco
para a produção do espaço urbano e em particular do seu meio construído, rapida-
mais de três.” ibidem, p.59 mente é destruída pelo receio de perda de autoridade e controle do poder central.12
11 De acordo com Alves Costa, “a câmara municipal era o principal inimigo do proces-
PEREIRA, Gaspar Mar-
tins - SAAL: um programa so SAAL, e extingui-lo foi entregar o processo ao inimigo” 13.
de habitação popular no Uma das primeiras operações a ser iniciada com o SAAL/Norte acontece na
processo revolucionário, zona da Fontinha, acabando depois por se limitar ao Leal. O plano de intervenção
História: Revista da FLUP,
compunha-se por duas fases e procurava encontrar uma solução para os morado-
IV Série, vol. 4, Porto, 2014,
p.29 res do Bairro do Leal. Uma primeira, contemplando 16 fogos, começa a ser cons-
12 truída em Novembro de 1976 na Travessa das Musas, num terreno cuja adjudicação
“A oposição às opera-
ções SAAL/Norte, antes de
representou uma das grandes vitórias dos moradores: evitar que aí se construísse
surgir abertamente a opo- um parque de estacionamento, que em nada interessava ao bairro. Uma segunda,
sição política governamen- que previa a construção de mais 33 fogos na Rua das Musas mas que nunca seria
tal, proveio dos seguintes
concretizada. A situação é que, à data, o interior do quarteirão entre a Rua do Bon-
principais grupos de pes-
soas: (…) – sectores políti-
jardim e a Rua de Fonseca Cardoso estava em parte ocupado por escombros devi-
co-partidários (predomi- dos às demolições do Bairro do Cipreste e em parte por casas com a tipologia de ilha
nantemente de direita, mas (unidades com uma frente, área reduzida e alinhamento em corredor) que, devido à
não só) preocupados com a
sua reduzida dimensão e situação de ruína de alguns casos, exigia a construção de
influência social crescente
de um movimento que não
habitações novas, com maiores áreas, o que consequentemente levava a um menor
controlavam (ou que supo- número de fogos. Contudo, a densidade populacional era muito grande14, o que
nham controlado por for- levou a projectar um segundo bairro 15, na Fontinha, junto da Escola Básica.
ças adversárias) ou cujos
O processo do Leal foi particularmente participado, mais do que outros
objectivos não correspon-
diam aos seus interesses
processos que se passaram no Porto. O arquitecto responsável, escolhido pela po-
particulares; - autarcas pulação, foi Sérgio Fernandez, que no decorrer do processo16 estabelece fortes la-
temorosos de se verem es- ços de proximidade com a comunidade local, algo que se vai reflectir na intervenção
poliados das competências
cuidada aos hábitos e formas de vida dos moradores: na escala de proximidade, na

64
e atribuições próprias em
favor do SAAL/Norte e das
comissões e associações
de moradores, cuja activi-
dade lhes aparecia como a
de um contra-poder ou de
um autêntico partido po-
lítico concorrente.” COE-
LHO, Mário Brochado - Um
processo Organizativo de
Moradores, Revista Críti-
ca de Ciências Sociais nº
18/19/20, Universidade de
Coimbra,1986, p.662
13
Intervenção do Arq. Al-
ves Costa. SERRALVES,
Ambulatório: Conversas
abertas nos bairros do
SAAL-Norte: Sérgio Fer-
nandez conversa com a As-
sociação de Moradores do
Leal, 2014
14
“Era um bairro cons-
tituído por perto de 200
fogos, com à volta de 600
Fig. 37- Início da construção dos 16 fogos na Travessa das Musas, 1976.
pessoas, com uma densi-
dade brutal de 1100 hab/ha
e com casas com, em média
16m2.” Intervenção do Arq.
Sérgio Fernandez, ibidem.

15
“Porque as casas eram
pequenas e nem toda a gen-
te podia ser realojada na
área dessas casas, foi ne-
cessário alargar a área de
intervenção para a zona da
fontinha.” Intervenção do
Arq. Alves Costa, ibidem.
16
“Entre os trabalhos
de contacto sistemático,
conta-se o levantamento
integral de todas as casas
do Bairro; a elaboração de
plantas que contavam, in-
clusivamente, com as mo-
bílias dos moradores nos
novos espaços; as reuniões
semanais com a Direcção
da Associação de Morado-
res e as reuniões quinzenais
com o resto dos morado-
Fig. 38- O projecto onde constavam os planos para uma segunda fase na Rua das Musas, Alto da Fontinha.
res.” Intervenção do Arq.
Sérgio Fernandez, ibidem.

65
17 intimidade dos espaços de acesso, na comunicação das frentes de fogos, na es-
“(…) as pessoas viviam
imenso na rua. A rua era pécie de rua interior semicoberta, etc. Estes são todos aspectos que decorrem da
uma espécie de sala comum observação atenta dos seus modos de vida, que transbordavam o espaço da casa
a toda a gente, local de re-
lação imediata. Sendo elas
para a rua, onde se convivia diariamente17. Na opinião do arquitecto, esta interven-
muito estreitas, tinham um ção não poderia seguir a abordagem de demolição tomada pelo regime ditatorial:
ambiente muito vivo, de “(…) não é que as casas fossem muito boas, mas a estrutura do bairro (…) permitia
sala ao ar livre.” Interven- um sentido de comunidade que tina de ser preservado, e não dispersar as pessoas
ção do Arq.Sérgio Fernan-
dez, ibidem.
para sítios a que elas não tinham nenhuma ligação” 18.
Ora, foram precisamente os moradores que não tinham sido recolocados,
18
Intervenção do Arq.Sér- mas que conheciam em primeira pessoa casos de experiências do género, o prin-
gio Fernandez, ibidem. cipal agente responsável por convocar uma intervenção que lhes garantisse ficar
no mesmo lugar, e de cuja organização dependeu a viabilidade das operações. O
encargo que assumiram em dinamizar, organizar e expressar a sua vontade é evi-
denciada numa nota do documento publicado pelo SAAL/Norte, oito meses depois
do início do processo:

“NOTA: 1. Como todos os moradores sabem não são os estatutos que dão vida e
força à sua associação e que resolvem por si só todos os problemas. É necessário
que todos contribuam com o seu entusiasmo e a sua vontade para levar a luta até
19
ao fim. A associação é apenas um instrumento de trabalho. 2. A associação de
COELHO, Mário Brocha-
moradores é sempre independente do SAAL e deve desenvolver uma actividade
do - Um processo Organiza-
tivo de Moradores, Revista autónoma que ultrapasse os limites da operação SAAL, sempre que os moradores
Crítica de Ciências Sociais o entenderem necessário.” 19
nº 18/19/20, Universidade
de Coimbra,1986, p.654
No mesmo documento faz-se referência aos diversos trabalhos que a po-
20
ibidem, p.654 pulação interessada terá de levar a cabo. Entre eles, conta-se primeiro criar uma
21
“Quanto ao Bairro do
comissão de moradores provisória; marcar uma reunião onde estejam presentes
Leal, pura e simplesmente elementos do SAAL para explicar e esclarecer os moradores sobre aquilo que é o
não tem qualquer tipo de processo; decidir por meio de reunião geral se existe ou não interesse em convocar
actividades como Asso-
o SAAL; e finalmente eleger uma comissão definitiva, representativa dos morado-
ciação de Moradores. Na
época de fundação cen-
res interessados, para constituir a Associação de Moradores e iniciar os trabalhos
traram-se muito na ques- com o SAAL20. No caso particular do Leal, para além das tarefas mais burocráticas,
tão da habitação; conse- contam-se outras um tanto curiosas, como a ocupação de dois edifícios para insta-
quentemente, hoje existe
lar a sede da associação e uma creche. Portanto, era sobretudo sobre a capacidade
uma direcção com o único
propósito de receber e ca-
organizativa inventiva e autónoma da população que recaía a eventualidade de
nalizar para as instituições ultrapassar as adversidades.
próprias as amortizações Os moradores do Leal organizam-se rapidamente. Depois de, logo em De-
mensais das casas.” VILA-
zembro de 1974, terem já manifestado um pedido de intervenção, constituem três
ÇA, Helena - As Associa-
ções de Moradores enquan-
meses após a Associação de Moradores do Leal, que até hoje continua a existir,
to aspecto particular do embora praticamente sem actividade 21. Estas associações de moradores foram
Associativismo Urbano e da constituídas em quase todos os bairros implicados, de forma a garantir um esta-
Participação Social, Facul-
tuto jurídico às populações organizadas, que se veriam envolvidas num processo
dade de Letras da Univer-
sidade do Porto, 1994, p.84
complicado, especialmente no que dizia respeito ao financiamento das obras.

66
Fig. 39- A rua do antigo Bair-
ro do Cipreste. É visível a in-
tensidade com que se vivia
o espaço da rua, enquanto
prolongamento do espaço
privado da casa.

Fig. 40- Reunião da Asso-


cialão de Moradores do Leal
com a presença dos técni-
cos do SAAL.

67
22
Mário Brochado Coelho
redige um modelo de esta- O principal colaborador para a constituição legal das associações 22, Bro-
tutos que é passado pelas chado Coelho, define-as nos seguintes contornos:
mãos de várias comissões
para constituírem associa-
ção, incluindo a do Bairro “Em tese geral poder-se-á dizer, com alguma segurança, que tais comissões e
do Leal, segundo Aurélio associações são organizações de moradores de uma zona, bairro, rua, quarteirão
Simões, na Conversa com ou edifício que têm por objectivo nuclear a melhoria das suas condições de habi-
moradores do Leal.
tação (em sentido lato), do seu equipamento social e do seu ambiente. Partem,
23
COELHO, Mário Brocha- portanto, de uma dada comunidade humana (delimitada espacialmente em ter-
do - Um processo Organiza-
tivo de Moradores, Revista
mos não formais nem administrativos) e de problemas concretos, comuns a todos
Crítica de Ciências Sociais os seus membros. A ideologia-base está intimamente ligada à prática quotidiana
nº 18/19/20, Universidade do jogo das necessidades insatisfeitas e à luta de classes nela dominante. Daí que
de Coimbra,1986, p.666 não seja de admirar que a sua constituição e actividade surjam com características
24
”(…) na generalidade, tacitamente (mais tarde, expressamente) unitárias e apartidárias.” 23
as organizações de mo-
radores eram compostas Uma das principais lutas da associação de moradores do Leal, à semelhan-
por estratos sociais insol-
ventes ou quase insolven-
ça do que aconteceu, de forma geral, no processo norte, ocorreu contra a intenção
tes, havendo nelas ainda a do poder central em implicar os recursos latentes dos moradores, o que para o
presença de sectores re- caso significaria a autoconstrução do bairro, já que a maior parte dos implicados
levantes tanto da pequena não teria recursos económicos para participar no seu financiamento 24. Tal modo
burguesia remediada como
de lumpemproletariado.”
de operação era considerado inaceitável para uma população empregada 25 que
ibidem, p.663 teria de, findado o horário laboral, executar a obra 26. A intenção do Arq. Nuno
25 Portas apoiava-se em experiências conhecidas na América Latina, que dessa forma
“Considera-se a auto-
construção uma dupla ex- ajudariam a contornar o encargo monetário de um Estado em muitos aspectos ins-
ploração, a somar à do seu tável depois do fim da ditadura. Contudo, o quadro de insegurança e a desconfiança
trabalho.” Intervenção do com que se via a acção do Estado no decorrer do processo levou a associação, em
Arq. Alves Costa. SERRAL-
conformidade com outras associações de moradores do Porto, a tomar uma posi-
VES, Ambulatório: Conver-
sas abertas nos bairros do ção de descomprometimento face ao sacrifício que lhes estaria a ser exigido 27.
SAAL-Norte: Sérgio Fer-
nandez conversa com a As-
sociação de Moradores do
Leal, 2014
26
Entrevista a Aurélio Si-
mões pelo autor, no Espa-
ço Musas,a 15 de Março de
2019
27
“Tais recursos latentes
só se tornarão uma reali-
dade interveniente após
o Estado ter cumprido as
suas promessas e ter torna-
do possível um justificado
sacrifício dos moradores.
Trata-se de uma comple-
mentarização a posteriori
e nunca a priori.” COE-
LHO, Mário Brochado - Um Fig. 41- Manifestação da Associação de Moradores do Leal em frente ao Bairro do Cipreste, em 1976.
processo Organizativo de
Moradores, Revista Críti-
ca de Ciências Sociais nº
18/19/20, Universidade de
Coimbra,1986, p.670 68
5.3. A ocupação da Es.Col.A.
“Não se pode despejar uma ideia” 28 28
Slogan escrito num car-
taz do Es.Col.A.
A história de um dos exercícios mais importantes no plano da cidadania
da história recente do Porto começa a ser contada em 2006, na Fontinha. Por essa
altura, a Escola Primária do Alto da Fontinha deixa de ter actividade, e as suas ins-
talações ficam devolutas. Passam-se cinco anos sobre esta situação, e em 2011 um
conjunto de cidadãos mobiliza-se para a ocupar “com o propósito de devolver ao
29
bairro o espaço público abandonado”. 29 Carta Aberta do Es.
Col.A, disponível em http://
Na sua essência, a experiência Es.Col.A. foi o produto de uma comunidade
escoladafontinha.blogs-
que se foi construindo na sua relação com um espaço. Reclamando-o enquanto re- pot.com, acesso em abril
curso comum ao bairro, foi utilizado para práticas colectivas que despertaram uma 2019.
nova dinâmica social em toda a zona envolvente.
O movimento compunha-se de um grupo social heterogéneo e aberto (as
pessoas eram livres de entrar e sair do projecto), constituído por voluntários que
partilhavam mais ou menos as mesmas ideias, e que incluíam, a princípio, sobre-
tudo habitantes de outras zonas do Porto que a Fontinha. Correndo o risco de ser
redutor, categorizam-se os modos da ocupação em três agências: espacial, social e
organizacional.
A primeira está ligada à reabilitação dos espaços para permitir o seu uso
colectivo, o que implicou a limpeza, o restauro, a autoconstrução e a reorganização
das salas, espaços exteriores, equipamentos (mobiliário, material educativo, cozi-
nhas, instalações sanitárias, etc) e recursos. Foi, portanto, um exercício criativo do
tratamento dos espaços para os adequar a novos programas e funções (por exem-
plo, a construção de um ginásio, de uma oficina, de uma horta, etc).

Fig. 42- Manifestação do movimento Es.Col.A. contra a acção de despejo.

69
A segunda relaciona-se com a activação social da escola, isto é, com a sua
dinamização mais ou menos quotidiana, através de actividades, reuniões e mo-
mentos de convívio onde a comunidade implicada se pode efectivamente construir
e aprofundar.
Finalmente, uma terceira vertente é relativa à organização do movimen-
to, estruturado por grupos de trabalho (“princípios do projecto, infra-estrutura,
30
Declaração de Princí-
logística, jardim, comunicação, media” 30) e assembleias abertas (as temáticas
pios e Funcionamento do
projecto Es.Col.A, disponí-
para discussão e as de decisão por voto consensual) onde se estabeleceram os
vel em http://escoladafon- princípios (“espaço autónomo, autogestionado, livre, não discriminatório, não co-
tinha.blogspot.com, aces- mercial” 31), os objectivos (“dar resposta às necessidades reais locais, da alfabeti-
so em abril 2019.
zação ao apoio educativo, passando pela música, pintura, xadrez, ioga, capoeira,
31
ibidem.
etc, proporcionando um lugar de convívio, com cozinha comunitária, cicloficina,
biblioteca, acesso à internet, teatro, cinema” 32) e as regras de funcionamento do
32 projecto (estrutura horizontal, livre de hierarquias, inclusiva, apartidária, transpa-
Carta Aberta do Es.
Col.A, disponível em http:// rente e aberta” 33).
escoladafontinha.blogs- Num primeiro momento, os habitantes da Fontinha, especialmente aque-
pot.com, acesso em abril les de mais idade, viram com desconfiança o movimento e a agitação nova que se
2019.
passaria em volta da escola, especialmente por este envolver pessoas que não
33 eram do bairro. Contudo, graças à transparência com que foi conduzido e ao cres-
Declaração de Princí-
pios e Funcionamento do
cente contacto com o movimento, a opinião alterou-se e os próprios começaram
projecto Es.Col.A,disponí- a participar mais activamente no projecto. Uma das grandes motivações para a
vel em http://escoladafon- mudança de opinião teve a ver com as actividades educativas organizadas depois
tinha.blogspot.com, aces-
do tempo escolar para as crianças do bairro, algo que foi visto com bons olhos pelos
so em abril 2019.
mais velhos. Este contacto sistemático construiu um ambiente de familiaridade
intergeracional, importantíssimo para activar novos laços entre os habitantes.

Fig. 43- Manifestação em


defesa do Es.Col.A. no pátio
da escola da Fontinha.

70
Ainda assim, as relações com a Câmara Municipal revelaram-se problemá-
ticas ao longo de todo o processo. Um mês depois da primeira acção de ocupação, o
projecto é despejado e as instalações vedadas, por esta ser considerada uma ocu-
pação ilegal. Um dos membros envolvidos explica as implicações que esta decisão
teve sobre a comunidade:

“O que veio a seguir foi a sensação de insatisfação que isso causou. Ocupou-se
a escola, começou-se a programar actividades, começou-se a ter a escola frequen-
tada, começou-se a ter as visitas dos vizinhos, começou-se a criar uma dinâmica
que se foi gerando praticamente sozinha. Evidentemente, estas coisas não podem
34
acabar de um momento para o outro.” 34 Testemunho de Hugo
Almeida no Documentário
Es.Col.A, Colectivo Viva Fil-
mes, 2013

Fig. 44 - A acção de despe-


jo à entrada do edifício do
Es.Col.A.

Fig. 45 - Estado em que se


encontrava a escola de-
pois da acção de despejo e
decorrente destruição das
instalações.

71
A nova dinâmica que o bairro experienciava não terminaria com esta acção
de despejo. O movimento volta a ocupar o edifício e parte para formas de luta, ma-
nifestações no espaço público e pressão sobre o poder central. No decorrer deste
clima de agitação e aperto, inicia-se o diálogo entra as duas partes:

“A Câmara diz ao Es.Col.A: nós estamos disponíveis para assinar um contracto


de cedência do espaço. Duas pessoas do colectivo foram mandatadas para assi-
nar esse contracto de promessa que tinha a duração de trinta dias para o Es.Col.A.
constituir associação e dez dias para ambas as partes assinarem um contracto. O
Es.Col.A. constituiu uma associação, notificou a Câmara de tal, e nunca chegou
um contracto de cedência do espaço. Até ao dia em que chega uma ordem de des-
35
ibidem pejo, cinco meses depois.” 35

O desfecho que se conhece deixou uma cicatriz profunda no tecido social


da Fontinha. Depois dos confrontos violentos durante o despejo final e a prisão de
alguns dos envolvidos, o movimento desmorona, dá-se como causa perdida e a
Fontinha perde a vitalidade que conheceu durante este período. Devido à forma
como a autarquia conduziu o processo, a população desenvolveu um sentimento
de aversão e descontentamento com o poder central, sentindo-se injustiçada com
a carga policial excessiva de que foi alvo. Uma iniciativa que pretendia libertar um
espaço público do abandono é tratada como uma actividade criminosa, o que ob-
viamente acarreta a alienação da população face ao poder eleito, que se supõem
representativo dos interesses públicos. Esta marca sente-se, de certa forma, no
projecto do Espaço Musas e na sua relativa desconfiança inoficial para com os ór-
gãos políticos, que conta com a participação de vários elementos envolvidos no
processo Es.Col.A.

72
especificidade

73
6. Espaços de sociabilização

6.1. A Rua do Bonjardim

Fig. 46 - Vista da Rua do


Bonjardim no encontro com
a Rua de Olivença à esquer-
da, onde se faz a entrada
para o Espaço Musas.

A Rua do Bonjardim vive com uma memória muito presente. Se por um lado
ainda lembra um Porto antigo, com o seu traçado sinuoso e apertado, o piso calce-
tado, o casario típico de um ou dois pisos (muito já levantado no século dezanove)
e uma população bastante envelhecida e de espírito bairrista (nas relações de vi-
zinhança de proximidade), dá já sinais de uma extensa transformação ao longo das
últimas décadas, vendo surgir à face da rua altos edifícios de habitação plurifami-
liar, ampliações dos imóveis característicos, o aparecimento de tipos de comércio
do sector terciário ligados a uma economia urbana global (num território que até ao
fim do século passado era dominado pelo secundário), como as lojas especializadas
em produtos locais, e a chegada de hostels e moradores estrangeiros. Esta diver-
sidade forte acaba por ser determinante para se constituir um ambiente saudável,
intergeracional e de proximidade que hoje se sente com muita vivacidade.
Em termos morfológicos, uma análise deste troço do Bonjardim encontra
imediatamente na diferença de pavimento para com a grande maioria das vias ur-
banas do Porto uma característica importantíssima. Não só se trata de uma rua es-
treita, pouco propícia a grande tráfego automóvel, como o empedramento do piso
faz reduzir a velocidade dos carros que por ali passam. A isto acrescenta-se a ine-
xistência de vias perpendiculares para este, lado para onde fica o grande quarteirão

74
encerrado, o que evita que esta se torne uma via de atravessamento. Isto tem impli-
cações óbvias que não devem ser menosprezadas. Existe muito menos ruído, pelo
que as vizinhas conseguem estar à conversa desde as janelas. Sendo a frequência de
carros menor, é possível aos miúdos andar de bicicleta e brincar no espaço da rua.
Esta simples variação no pavimento e ausência relativa do automóvel introduz um
ritmo muito diferente, mais lento, pausado, propício à suspensão da agitação diária
e a uma vivência do espaço da rua muito mais confortável, onde é agradável parar,
conversar e estar. É muito fácil comprovar esta qualidade de quietude numa rápida
visita à Rua de Faria Guimarães, a escassos 100 metros, imediatamente paralela,
onde de repente somos tomados de assalto pelo ruído da movimentação urbana.
Partindo das questões de morfologia para a observação directa das dinâ-
micas quotidianas, comprova-se a frequência de encontro de pessoas que não só
partilham uma mesma área de residência, como compartilham um mesmo espaço
social: situação cada vez mais difícil de encontrar no contexto urbano. Conhecem as
famílias uns dos outros, estão a par das situações de vida de cada um, cumprimen-
tam-se com um grande à vontade, entre tantos outros sinais de uma convivência
persistente. Estes moradores são os grandes responsáveis pela saúde da vida so-
cial do Bonjardim. Embora hoje a situação se esteja a alterar, uma parte considerá-
vel da população residente ainda é uma de longa data, mantendo-se no local duran-
te varias gerações. Aquilo que é especialmente interessante comprovar é como a
nova população que agora se instala na rua, com um perfil social bastante diferente
(por vezes de fora do Porto ou estrangeiros, por vezes com alto poder de compra ou
jovens artistas, etc) participa e se integra nesta situação, alimentando um tecido
social já tão estruturado mas extraordinariamente aberto e inclusivo.
De um ponto de vista ocupacional do edificado, evidentemente esquecen-
do a grande porção que está ainda ao abandono, a maioria está afecta à habitação,
sendo o comércio a segunda grande função. O primeiro é essencialmente marcado
pelas residências familiares, tanto em moradias como apartamentos, mas também
cada vez mais pelo alojamento local e arrendamento temporário. O segundo defi-
ne-se por uma escala reduzida, como as pequenas mercearias, os tascos e restau-
rantes familiares, as oficinas, as costureiras, etc. Os vendedores conhecem bem os
clientes já que estes são maioritariamente residentes próximos e por isso frequen-
tes. Ao mesmo tempo, a rua vai sendo pontuada por alguns espaços de excepção,
não já tão ligados a este tecido social local mas importantes para o estimular com
a presença de outros grupos sociais, como a escola de dança, a headshop, os três
espaços LGBT e as galerias e estúdios de artistas.
Estes aspectos são importantes porque constituem a estrutura sobre a
qual assentam as dinâmicas quotidianas. Contudo, existe ainda outra peça-cha-
ve deste espaço social. De certa forma, pode ser considerado um reflexo ou uma
ebulição da robustez desta estrutura diária: o Sobe e Desce, um evento que reúne
a massa social e evoca as suas capacidades próprias (artísticas, produtivas, peda-
gógicas, etc) para festejar a sua especificidade e proximidade num contexto urbano
onde estas características estão cada vez menos presentes.

75
1 6.2. A rede do Sobe e Desce 1
A partir de entrevista a
Salne Buciute, co-organiza-
dora do Sobe e Desce, pelo O Sobe e Desce é um evento bimestral que assinala as inaugurações simul-
autor. tâneas de vários locais na Rua do Bonjardim, activando uma rede de espaços de
produção e exposição cultural. Nasce em 2018, de forma relativamente orgânica,
a partir da iniciativa de algumas organizações já instaladas aí. Em parte, acontece
em espaços mais ou menos convencionais, desde galerias de arte, a oficinas ou a
estúdios de artistas. Por outro lado, explora espaços menos óbvios e residuais,
como as montras de alguns cafés e lojas, fachadas de prédios devolutos ou lotes
vazios. A apropriação das diferentes possibilidades espaciais da rua para a partilha
comunitária é a sua grande vitória.
As edições são fundamentalmente diferentes entre si. Por um lado, os vá-
rios espaços envolvidos reservam uma liberdade absoluta em relação à sua oferta
artística, não se instituindo um projecto de curadoria global que os possa remover
da sua especificidade, que se pretende protegida. No que diz respeito à programa-
ção colectiva, para a qual se podem organizar actividades específicas como janta-
res, concertos, performances, etc., é algo que nasce de um interesse espontâneo
por parte de alguns actores envolvidos, ou mesmo até fruto da iniciativa própria de
alguém que tomou conhecimento do projecto em edições anteriores. Ao contrário
das inaugurações simultâneas da Rua Miguel Bombarda, esta iniciativa não serve
uma estratégia de comercialização dos produtos artísticos. É antes um convite à
reunião e ao convívio em torno das práticas artísticas ligadas ao quotidiano do Bon-
jardim.
Esta vontade de sincronizar as inaugurações e dinamizar colectivamente
o espaço da rua reflecte uma lógica muito forte de cooperação e afinidade entre os
vários actores. O Sobe e Desce é esse exercício de partilha artística que extravasa
para a esfera da partilha social, a cada momento reforçando os laços de proximi-
dade que o possibilitam. Não fosse o contacto directo quotidiano entre os vários
agentes e a comunidade de forma geral, possibilitado pela estrutura anteriormen-
te referida, tão pouco se presenciaria a transformação momentânea do espaço
público por um ambiente tão familiar e comunitário.
Dos participantes recorrentes contam-se as galerias Sput&nik (nº1340) e
Poste (nº1176); os estúdios Extéril (nº1176), Qualquer Atelier (nº1306), Atelier Santo
Isidro (nº104) e Untitled (nº881); e outros espaços como a Casa Bonjardim (hostel,
nº956), Café Sara (nº839); Café Vitalina (nº1002) e Espaço Musas (nº998). Estes últi-
mos, por não serem espaços de produção artística, servem antes a função de apoio
ao convívio, onde comer e beber, e onde outros artistas desenvolvem trabalhos
específicos para o Sobe e Desce.

76
Fig. 47 - Cartaz da sexta
edição do Sobe e Desce, em
Julho de 2018.

Fig. 48 - Restaurante improvisado no passeio da Rua do Bonjardim.

Fig. 49 - Concerto num lote em obras. Recuaram-se as barreiras para permitir que Fig. 50 - A plateia, à qual os transeuntes se iam juntando.
o concerto acontecesse na rua. Alguns vizinhos assistem da janela.

77
7. O Espaço Musas

Fig. 51 - Planta da Quinta


Musas da Fontinha.
79
7.1. Percurso fotográfico

1 - Entrada para o Espaço


Musas, a partir da Rua do
Bonjardim. Ao centro, o por-
tão de acesso à quinta, à sua
esquerda, a porta de entra-
da na sede da associação.

2 - Corredor de acesso à
quinta entre o edificado.

80
3 - Ruina em frente, inutili-
zada.

4 - Ruina junto da porta tra-


seira de entrada na sede da
associação, utilizada para
armazenar materiais.

81
5 - Vista da casa do Arnal-
do e respectivo pátio, onde
o mesmo vai depositando
materiais de construção
que recolhe.

6- O pátio do Arnaldo visto


de cima, com o edifício da
sede em frente

82
7 - Primeira chegada à cota
alta, onde começa a quinta.

8 - Os miradouros sobre a ci-


dade e as hortas aromáticas
comunitárias.

83
9 - Vista do miradouro sobre
a Igreja da Lapa e o Atlânti-
co, ao fundo.

10- O primeiro núcleo de


hortas após a subida à cota
alta.

84
11 - O anexo da Vitalina, onde
se armazena lenha e, numa
parte posterior, está um ga-
linheiro.

12 - A terra das crianças, o


grande espaço recreativo
da quinta.

85
13 - O acesso à terra das
crianças.

14- Passagem da terra das


crianças para um núcleo de
hortas.

86
15 - Núcleo de hortas em
nome colectivo da Casa da
Horta.

16 - A estrutura para projec-


ção de filmes.

87
17 - Depois de uma peque-
na descida saindo da terra
das crianças, chega-se ao
corredor mais a norte da
quinta.

18- A oficina com o banco de


sementes e armazenamen-
to de ferramentas e outros
utensílios ligados às activi-
dades nas hortas.

88
19 - Vista do interior da ofi-
cina.

20 - Zona de hortas aban-


donada, encontrando-se à
direita a zona de composta-
gem comum.

89
21 - Acesso à cota mais alta
da quinta, onde está a Agro-
floresta.

22- Outro núcleo de hortas,


ao longo da subida para a
Agrofloresta.

90
23 - Vista sobre parte da
Agrofloresta.

24 - A garagem onde termina


a Rua do Alto da Fontinha

91
25 - Estrutura abandonada
na garagem.

26- Núcleo das quatro ruí-


nas de antigas casas.

92
27 - Ultima casa em ruínas
e a forte relação com a pai-
sagem.

28 - Núcleo de hortas ins-


talado num terreno com
muitas pedras das antigas
casas, entretanto desapa-
recidas. As hortas vão-se
adaptando e recorrendo à
pré-existência para se or-
ganizar.

93
29 - O fim da quinta no extre-
mo sul.

30- Núcleo de hortas com


árvores de fruta.

94
31 - Os galinheiros.

32 - O acesso desta parte da


quinta, de propriedade do
vizinho, à sua casa.

95
1
A partir de entrevista a 7.2. O associativismo 1
Aurélio Simões, sócio fun-
dador do Sport Musas e “O Espaço Musas funciona como um departamento autónomo dedicado à arte,
Benfica e ex-presidente da
cultura, lazer e conhecimento, dentro do Sport Musas e Benfica, associação des-
Associação de Moradores
do Leal, pelo autor. portiva sediada no mesmo local (…). A Quinta Musas da Fontinha, por sua vez,
funciona como um departamento autónomo dedicado à agro-ecologia e perma-
cultura, que anima um conjunto de hortas urbanas em modo biológico situadas na
2
Descrição do projecto colina a montante da sede do Musas.“ 2
Espaço Musas disponível
em www.musas.pegada.
O Sport Musas e Benfica 3 é uma associação desportiva e recreativa funda-
net, acesso em jan.2019
da em 1951, mas a sua origem remonta a 1944, altura em que se organiza uma equipa
de futebol amador: os Leões das Musas. Começa como equipa muito jovem, com
membros de 15 e 16 anos, mas que vai crescendo, ao longo dos anos, até se orga-
3 nizar em associação com equipa federada. Em 1968, porque seria necessária uma
Não posso deixar de
esclarecer o porquê da sede para participar no Campeonato de Futebol Amador do Porto, o Musas (assim
nomenclatura Benfica conhecido popularmente) arrenda o edifício nº998 na Rua do Bonjardim, onde até
num território tão noto- hoje permanece instalado.
riamente portista. Parece
O seu percurso é marcado fundamentalmente pela actividade desportiva.
que a escolha deste nome
foi motivada por uma sus- No virar para os anos setenta, esta zona (Lapa, Fontinha, Musas, Leal, etc) conta
peição de que, na situa- com uma grande densidade populacional, e o futebol é uma actividade especial-
ção de um clube do Porto mente capaz de mobilizar a população, como o comprava a existência de várias
escolher o emblema do
outras equipas por ali perto, como o Nautilus Clube da Fontinha, o Futebol Clube
Benfica para o represen-
tar, o mesmo ofereceria os da Lapa, o Camões, ou o Paraíso, entretanto extintos.
equipamentos em sinal de Mas importa também mencionar que, durante esse percurso desportivo,
agradecimento. Contudo, desempenha um papel recreativo importante na comunidade, organizando os fes-
esta situação nunca se ve-
tejos do São João e outros momentos de convívio com jogos populares (que por
rificou.
vezes aconteciam nos terrenos onde hoje está a quinta).
Até hoje o Sport Musas e Benfica foi capaz de conservar a sua existência,
embora não sem um percurso conturbado que nunca se pode dissociar do contexto
que o encerra. É isso que leva Aurélio Simões, presidente da associação durante
muitos anos, a afirmar que “o Musas conheceu já várias vidas”. Poder-se-á dizer
que uma existe até ao 25 de Abril, marcada sobretudo pelo futebol competitivo e
amador. Uma outra far-se-á depois deste ponto de viragem, que leva parte impor-
tante dos membros para a Associação de Moradores do Leal, levando a associação
a perder força. Ao longo das décadas seguintes a sua actividade vai-se reduzindo,
acompanhando o decréscimo de população, até que perto do virar do século está
às portas da extinção. Será ao longo da década seguinte que conhece uma fase de
reinvenção.

96
7.3. A comunidade Musas 4 4
A partir de entrevista a
Luís Chambel, actual pre-
Por volta do ano 2000 a associação já se encontra sem actividade, quase sidente do Espaço Musas,
todos os membros até então envolvidos afastam-se e torna-se impossível continuar pelo autor.

a pagar as rendas. Contudo, surge a possibilidade do Centro Social e Cultural Ilhéus,


uma pequena associação fundada por jovens estudantes que desenvolviam traba-
lho com crianças, se mudar para aí, passando as duas associações a compartilhar o
espaço, conseguindo-se assim preservar a sede do Sport Musas e Benfica.
Assim corre a situação até 2004, até que o próprio Centro Social e Cultural
Ilhéus se extingue. É nesta altura que, para ocupar o seu lugar, se junta o GAIA (pro-
jecto que dará origem à Casa da Horta, actual parceira do Musas), uma associação
direccionada para as áreas ambientais. Esta será uma mudança relevante, porque
assim se introduz a disposição para as questões ecológicas, ponto fundamental do
projecto do Espaço Musas de hoje em dia.
Finalmente, em 2005, começa-se a utilizar o nome Espaço Musas para de-
signar o departamento cultural e recreativo do Sport Musas e Benfica 5. É por esta 5
“(...) departamento au-
altura que se inicia o Xadrez (actividade que substituirá o futebol enquanto princi- tónomo dedicado à arte,
pal prática desportiva), fazem-se alguns debates políticos ligados a movimentos li- cultura, lazer e conheci-
mento (...)”, Contactos,
bertários, começa a biblioteca de acesso a software livre, entre outros. Começa-se,
musas.pegada.net
assim, a desenhar a identidade desta nova fracção, e tanto a forma de operar como
os valores que conduzem o associativismo alteram-se, se pensarmos na história
desportiva que até então se tinha conhecido. É também nesta altura que acontecem
as primeiras jornadas de limpeza daqueles que serão os futuros terrenos da quinta,
embora ainda com um esforço controlado, apenas com o intuito de aí começar uma
pequena horta.
Ao longo dos próximos anos o Espaço Musas continua com as suas activi-
dades na sede, ao mesmo tempo que, gradualmente, vai vencendo as silvas no lote
associado ao imóvel. Mas em 2011 dá-se o grande ponto de viragem na situação
dos terrenos da encosta, quando se estabelece o contacto com a Associação Mo-
vimento Terra Solta (hoje com vários projectos, incluindo uma quinta comunitária
em Campanhã). Em parceria com esta associação nasce o projecto público Quinta
Musas da Fontinha, que dará, com o envolvimento de muitas pessoas novas (sobre-
tudo de fora da Fontinha) e grande exposição mediática 6, continuação ao trabalho 6
“Cidadãos criam espaço
já iniciado durante os anos anteriores. Este surto de envolvimento da comunidade para agricultura não con-
passa a garantir ao Musas uma situação mais estável, já que o número de associados vencional no centro do
Porto”, Jornal Público, 17
duplica e se torna mais fácil assegurar financeiramente o projecto.
de Janeiro de 2011.
Até hoje, o leque de propostas à comunidade desenvolvido pelo Espaço
Musas é verdadeiramente impressionante. Desde projectos estruturais como a Bi-
blioteca e a Ludoteca, o Banco de Sementes, a Escolinha de Xadrez (actividades com
crianças) ou a Universidade Livre (com acções de formação), a ciclos como o ROMP
(Recitais Ociosos do Musas – Poesia), as Tertúlias Filosóficas ou os Ciclos de Cinema,
a acções mais ou menos pontuais como exposições, oficinas ligadas à agricultura
(como a poda ou a compostagem), os concertos ou os almoços comunitários, entre

97
tantos outros. Por outro lado, também disponibiliza o seu espaço para iniciativas
externas, desde que concordantes com os seus princípios e valores, como o Encon-
tro Anarquista do Livro.
Ao longo destes anos vai estabelecendo parcerias como entidades institucio-
nais como a Porto Lazer, a Junta de Freguesia de Santo Ildefonso e de Campanhã,
a Universidade do Porto, a Escola Básica da Fontinha ou a Quercus, até projectos
portuenses independentes como a Associação José Afonso, a Casa da Horta, o
Rés-da-Rua ou o Gato Vadio, para apenas mencionar alguns.

7.4 O início da quinta

Como já referido, em 2011 formaliza-se o projecto da Quinta Musas da Fon-


tinha. Inicia-se com as jornadas de limpeza, de participação aberta, dos terrenos
na encosta do morro, agora expandindo-se por áreas cedidas pelos vizinhos. Em
tempos, estes teriam sido usados e mantidos pela comunidade da ilha do Padeiro
7
De acordo com o Sr. Ar-
ou da Vila Castro, mas à medida que as casas foram deixadas 7, o silvado proliferou
naldo, que aí terá vivido, os e aí se começou a depositar entulho. O Espaço Musas movia-se já por um desagrado
últimos moradores terão compartilhado com a vizinhança face à situação de lixeira a céu aberto em que se
deixado o local em 1957. tinham tornado, e o Movimento Terra Solta começa a idealizar as directrizes para
o funcionamento futuro da quinta. Com a injecção de novos sócios, começa a de-
senhar-se uma experiência social e comunitária em torno da agricultura urbana. A
intenção seria possibilitar a exploração de hortas, individuais e colectivas, numa
lógica de entreajuda entre os participantes, quer para os trabalhos agrícolas e de
manutenção dos espaços colectivos, quer para a partilha de conhecimento em tor-
no de métodos sustentáveis e ecologicamente responsáveis como a permacultura
e as técnicas da agricultura biológica.
Depois deste primeiro período de actividade intensa, o projecto esmorece
organicamente. Deixa de ser necessária a quantidade de mão-de-obra envolvida
nas limpezas, pelo que muitos dos que até aí participaram, não estando interessa-
dos em ficar com uma horta, se afastam. O Movimento Terra Solta deixa o projecto
e a quinta passa a ser autogerida, com o apoio do Espaço Musas.
É de notar que as duas estruturas se sobrepõem intensamente, não só pela
partilha dos espaços físicos como pelo envolvimento dos associados em ambas.
Passa-se então a uma fase de consolidação da comunidade participante, marcada,
naturalmente, pelas entradas e saídas de muitos membros, mas pela continuação,
desde o início, de outros, a quem se deve a sobrevivência e os moldes actuais do
8
Será oportuno referir que projecto. 8
vários estavam também
fortemente envolvidos no
movimento Es.Col.A.

Fig. 52 e 53 - A Ilha do Pa-


deiro antes e depois das ac-
ções de limpeza dos mem-
bros do Espaço Musas.

98
8. A ocupação da encosta e as hortas
Fig. 54 - Uma participante
da Quinta Musas da Fon-
tinha trabalha na horta co-
lectiva da Casa da Horta.

8.1 A organização e gestão

A organização e a gestão da Quinta Musas da Fontinha e do Espaço Musas


que, por razões de afinidade já esclarecidas, se denomina enquanto a unidade por
que é conhecida popularmente, Musas, reparte-se em dois aspectos. Um primeiro
relaciona-se com a ocupação, manutenção e transformação dos espaços físicos.
Um outro refere-se à dinamização cultural, recreativa e formativa do Musas.
Tendo em conta que, para se tornar hortelão na quinta, é necessário ser as-
sociado do Sport Musas e Benfica, de quem o Espaço Musas depende institucional-
mente, a massa associativa destas estruturas praticamente não se distingue. Como
resultado, também as acções desenvolvidas por esta massa recaem sob a bandei-
ra unitária do Musas. Logicamente, actividades relacionadas às práticas agrícolas
serão mais oportunas na quinta. Outras, como o Xadrez, requerente de material
próprio, acontecerão na sede. No entanto, as actividades desenvolvidas, quer por
uma quer por outra estrutura, não têm necessariamente de se limitar ao seu próprio
espaço. A comunicação pública é feita de forma centralizada, através do Espaço
Musas. A comunicação interna, oficialmente por email, divide-se de facto em listas
separadas, mas a informação que corre é sobretudo cruzada. Por isso, a realida-
de do Musas contraria a diferença que os estatutos burocráticos e institucionais
aparentam introduzir num projecto que parece absolutamente integral, produzido
por uma colectividade única que partilha dos mesmos valores e não se concebe em
partes dissociáveis, pelo menos hoje em dia.

99
Em relação a ambos os pontos, o grande dispositivo com poder de decisão
é a assembleia geral. Contudo, nem tudo tem de passar por assembleia, pelo que
não se pode corresponder a este dispositivo todos os mecanismos de decisão pos-
síveis. De forma geral, a assembleia funciona como em qualquer outra associação.
Está aberta a todos os associados e é por isso o lugar primordial para discussões
mais profundas, que ponham em causa transformações importantes aos espaços,
a realização ou envolvimento de certas actividades ou iniciativas, ou a gestão dos
recursos. Contudo, da participação directa nestas sessões, relativamente pouco
participadas e ocasionais, revelaram-se algumas falhas deste modelo para as di-
nâmicas próprias do projecto Musas, que vive muito do contacto directo entre as
pessoas e da iniciativa pessoal capaz de mobilizar os outros para trabalhos colec-
tivos.
Passo a reproduzir as notas pessoais escritas depois de uma destas ses-
sões, em Novembro de 2018, que dão notícia do desagrado para com a inconse-
quência do modelo de assembleia e esboçam algumas possibilidades de operação:

1) Trabalhar em pequenos núcleos de associação livre (independentes), que po-


dem ter relativa autonomia para desenvolver o que forem achando que é mais per-
tinente, reinando o bom senso enquanto critério para uma coexistência pacífica. O
consenso não deve ser o exclusivo ponto de partida porque dessa forma facilmente
se torna constrangimento inultrapassável, assim se tem visto. O consenso deve
resultar de uma mediação que ocorre no trabalho de campo. Esta é uma estraté-
gia para o curto-prazo, de forma a agitar uma ocupação mais iminente. Depois,
aproveitar os círculos emergidos para uma coordenação mais global, cooperativa,
orientada.
2) A participação no design das intervenções é tão importante quanto a parti-
cipação na construção das intervenções, e deve de facto existir mas no próprio es-
paço de actuação, enquanto forma de lidar com o confronto directo dos problemas
concretos, seja do processo construtivo, do material (in)existente ou das preocu-
pações de cada um. Por isso, continuar a fazer uso das assembleias para tomar de-
cisões em relação aos modos de ocupação do espaço, mas remeter as discussões
formais, materiais e construtivas para o espaço social e físico do acto de construir.
3) O Musas é extenso e largamente desocupado. Há espaço para todos e seus
diferentes tipos de experimentação. O que falta é gente para o ocupar de forma
concreta. Por isso mesmo, àqueles que já estão devem ser reduzidas as expressões
de censura/bloqueio às suas iniciativas.
4) Quer-se fugir ao sistema de assembleias que por experiência do grupo já se
revelou não funcionar porque não resulta em actuação. Referem-se os problemas
de compatibilização de horários, a rigidez de ter de anunciar momentos de traba-
lho em grupo ou as preocupações em incluir todos mesmo que tal se tenha provado
extremamente difícil.

100
PS: vontade de fazer sobre a vontade de discutir, dando privilégio àquele que
atua sobre aquele que propõe. Incentivar mais processos de convívio para estreitar
relações e produzir dinâmicas autónomas.

Deste relato fica claro que, ainda que insubstituível, o modelo de assem-
bleia oferece alguns constrangimentos dos quais o grupo se pretende libertar. Em-
bora se sublinhe a importância de fazer passar as intenções de transformação por
discussão em assembleia e atingir o consenso, procura-se um processo mais fluído
que prioriza o contacto directo com o espaço e as realidades do trabalho de campo.
Esta questão da inconsequência da assembleia parece-me associar-se, por sua vez,
a um problema de parca participação, o que não só dificulta a eficiência das acções
de grupo (que paradoxalmente se deparam com a dificuldade em conseguir reunir
os poucos participantes num momento único) como a emergência de formas mais
livres de acção (os tais grupos operativos relativamente independentes, constituí-
dos por interesses comuns), que à partida estão dependentes de um contacto mais
sistemático e casual entre participantes.
A conclusão a que se chega é que os processos participativos têm de se
libertar da discussão formal uma vez definida a intenção desses processos, para se
tornarem numa mediação em campo com aqueles que investem o seu tempo para
os levar a cabo.
Já no que diz respeito à dinamização cultural, recreativa e formativa, a as-
sembleia passa para um segundo plano, cabendo-lhe apenas questões de partici-
pação em iniciativas externas ou a organização de actividades que requeiram um
apoio mais coordenado, como foram os festejos dos 75 anos ou a participação no

Fig. 55 - A terra das crian-


ças durante o concerto de
José Pinhal Post-mortem
Experience nos festejos de
São João, em 2019.

101
campo de férias escolar do Porto Lazer, por exemplo.
De forma geral, as iniciativas partem antes da motivação pessoal dos vá-
rios membros, que contam com a ajuda daqueles que se disponibilizam, e aconte-
cem sem ser necessário um consenso formalizado. Raramente existem problemas
visto que o contacto directo vai agilizando as questões de produção e calendari-
zação. Ainda assim, todas as iniciativas partem de pressupostos comuns anterior-
mente definidos em assembleia, que se consideram ainda assim sempre abertos a
discussão para cada caso em particular.
Fig. 56 - Nona sessão dos
Recitais Ociosos Musas -
Poesia (ROMP), com o poeta
Sérgio Pereira, a 30 de Maio
de 2019.

Estes pressupostos têm a ver com os aspectos mais práticos da realização


das actividades e vão de encontro a questões transversais a quase todas elas. Aca-
bam por reflectir alguns dos valores do grupo, como a sustentabilidade, a inclusi-
vidade ou a oposição à mercantilização. Em primeiro lugar está a condição de en-
trada livre nos eventos para garantir o acesso a todos. Outro ponto prende-se com
a não remuneração dos envolvidos, salvo despesas, de forma a não mercantilizar o
espaço do Musas. Finalmente, está a conservação e limpeza das instalações, que
deve ser sempre assegurada. Concorde-se ou não com estas regras, que de alguma
forma moram eternas discussões no grupo, é evidente a sua importância para que
esteja garantido um relativo pacifismo, à priori, em relação ao que ali acontece.
O contacto presencial é um aspecto fundamental para um projecto como
o Musas, que é constituído por pessoas com diferentes ocupações, lugares de resi-
dência e, por isso mesmo, grande incompatibilidade de horários que possibilitem a
convivência mais acidental. Por essa razão, a grande mais-valia destas iniciativas,
para além da produção cultural inerente, é a produção de uma ocupação social dos
espaços que garante ao projecto a sua sustentabilidade. Enquanto meio de partilha
e convivência, estas situações são capazes de induzir novas dinâmicas no espaço
social do Musas (que inclui todos aqueles que participam nelas) e estimular o pro-
cesso de autogestão sobre o qual tudo se sustenta.

102
Só com uma operação saudável nestas duas esferas se pode falar no su-
cesso de uma situação de autogestão. É interessante verificar como as duas faces
da organização e gestão do projecto se relacionam, na sua essência, com a questão
da ocupação dos espaços. Por um lado, de uma forma estrutural, decidindo as pos-
sibilidades para cada lugar, e por outro lado de uma forma casual, activando essas
mesmas possibilidades e descobrindo-lhes novas.

Fig. 57 - A festa de celebra-


ção dos 75 anos da asso-
ciação, num convívio que
contou com jantar comu-
nitário e concerto na terra
das crianças

Fig. 58 - (à esquerda) Ofici-


na de cianotipia para crian-
ças, orientado pelo artista
gráfico Celestino Monteiro,
na sede da associação.

Fig. 59 - (à direita) Torneio


de xadrez na sede da asso-
ciação.

103
8.2. A solução das questões de propriedade

O funcionamento do projecto Quinta Musas da Fontinha só é possível gra-


ças ao engenho de uma solução invulgar, quase de manta-de-retalhos, no que diz
respeito aos títulos de propriedade dos terrenos de que faz uso. Esta solução, em-
bora sirva, coloca o projecto numa situação de fragilidade enorme: a qualquer mo-
mento, pelas mais variadas razões, a quinta pode perder o acesso a algumas das
suas fracções.

Fig. 60 - Planta da quinta


com indicação dos títulos
de propriedade das várias
partes que a compõem.

104
A área divide-se em três tipos de situações: uma porção está alugada pela
própria Câmara Municipal; uma outra pelo senhorio do imóvel onde funciona a sede
da associação; uma terceira reparte-se pela parte que pertence à Vitalina, ao cen-
tro, vizinha contígua do nº1002 que, embora não tenha entregado o seu quintal à
gestão da quinta (porque dele faz uso próprio), sempre acompanhou de perto e
participou activamente nas actividades da associação, pelo que a coexistência é
pacífica; os outros dois talhões que são de outros vizinhos mas que, ao contrário da
situação anterior, permitiram o usufruto e gestão dos seus terrenos porque deles
não faziam qualquer uso. Cada uma destas situações apresenta ameaças diferen-
tes.
Embora a iminência de perigo faça do proveito destes terrenos uma activi-
dade algo precária, onde a possibilidade de perder o direito à utilização acaba sem-
pre por inibir um esforço mais extraordinário, a verdade é que as coisas assim têm
funcionado há já oito anos, sem que isso tenha, aparentemente, demovido alguém
de participar.
Mas não se pode dizer que tenha sido um processo fácil. Em 2013, já com a
quinta em funcionamento, a associação é levada a tribunal numa acção de despejo
que se baseava na alegada ocupação ilegal desses terrenos. O processo acaba por
dar razão ao Musas, que a partir daí, com uma subida de renda, passa a contar com
um contracto de cinco anos para os terrenos do logradouro do imóvel da sede.
No que diz respeito aos terrenos cedidos na boa vontade dos vizinhos a
situação é relativamente pacífica enquanto preservadas as boas relações entre as
duas partes. No entanto, o cenário muda se os terrenos são vendidos. Assim acon-
teceu no fim de 2018 no número 1016. Parte do seu quintal estava a ser usado pela
quinta, como assim permitiu o vizinho, mas o novo dono informou da sua intenção
de usufruto do espaço, pelo que os hortelões que aí tinham as hortas foram força-
dos a encontrar um novo lugar.
Quanto ao terreno da Câmara Municipal, está cedido por um contracto de
arrendamento com a duração de um ano, que é renovado anualmente, embora não
exista qualquer garantia de que tal aconteça. No caso de se avançar com o projecto
de parque urbano previsto no Plano de Pormenor, estes terrenos serão atravessa-
dos por uma nova via.
Como se calcula, esta solução nem é perfeita nem perpétua. No entanto,
é de louvar a capacidade inventiva do grupo, que conseguiu resolver um problema
até então aparentemente irresolúvel: como aproveitar os terrenos de extremidade
destes pátios góticos, demasiado isolados e parcelados. Com a proposta de co-
lectivização destes espaços, que se apoiou nos laços sociais de proximidade, con-
seguiram-se libertar estes terrenos do silvado e entulho para lhes propor um novo
alento, algo que até então o poder civil nunca tinha sido capaz de fazer (ou talvez não
lhe interessasse).

105
8.3. As estratégias da ocupação e seus indícios

Estes terrenos ocupam uma área considerável, num total aproximado de


2500m2. Têm um acesso bastante dificultado, sendo só alcançáveis através de uma
série de escadas que sobem entre 10 a 17 metros, a partir do nível da Rua do Bon-
jardim. Para além disso, estendem-se por um terreno muito acidentado, com cons-
tantes subidas e descidas de cota, dificultado ainda o movimento por entre as dife-
rentes partes. Deixada fruir sem regra durante largos anos, a vegetação é densa e o
arvoredo de grande porte. Um pouco por todo o lado acham-se ainda resíduos dos
tempos em que estes eram habitados, não só entulho como telhas e cerâmicas que
foram sendo absorvidos pela terra, como outros mais difíceis de remover, como as
pedras de grandes dimensões que pertenciam às paredes dos casarios ou muros
de divisão, impossíveis de mover sem o recurso a maquinaria. Todos estes aspectos
dificultam os trabalhos de limpeza, que são feitos na medida e possibilidade dos
voluntários. Tendo em conta que hoje o grupo e os seus níveis de participação são
consideravelmente mais reduzidos do que aqueles que se contavam no início do
projecto, é apenas natural que parte dos planos se encontre ainda por realizar, e
algumas zonas estejam efectivamente subutilizadas.

O mapeamento
Como foi referido anteriormente, o projecto é gerido através de um siste-
ma de assembleia com poder de decisão. Como tal, as intenções definidas para o
uso do espaço comprometem-se com uma condição de mutabilidade constante,
podendo ser activada tanto por vontade do grupo (é sempre valorizada a iniciativa
pessoal e, caso esta não se sobreponha ao interesse comum, incentivada) quanto
por condições externas que exijam repensar a organização da quinta. A análise
deste processo de transformação desvenda um nível de conhecimento de campo
profundo, consequente do contacto directo e persistente dos utilizadores com os
diferentes espaços e as suas características próprias, que os tornam mais propí-
cios a um ou outro fim. Como tal, fazer uma análise comparativa entre as plantas de
2011 e de 2016, concebidas enquanto ferramenta de trabalho para expor os desíg-
nios colectivos em diferentes momentos, será importante para melhor conhecer a
situação presente.
Na planta de 2011 observa-se imediatamente que a maior parte da área
estaria dedicada às hortas, num regime de parcelas com cerca de 25m2, atribuídos
a pequenos grupos ou de forma individual. Para além das hortas, alguns espaços
estão reservados às plantas aromáticas (que todos podem colher), normalmente
associadas a um lugar de usufruto colectivo, como é o caso do miradouro. O se-
gundo grande uso está afecto aos animais, estando apontada a existência de um
galinheiro, contíguo a um outro grande lote, apenas referido como “espaço para
animais”. Nesta zona o solo não é dado à agricultura, pelo que a denominação algo
vaga talvez denuncie uma certa incerteza sobre o que fazer ao espaço, visto que

106
Fig. 61 - Planta da quinta em
Fevereiro de 2011.

107
não há memória de alguma vez ali terem estado animais que não nos galinheiros.
Seguem-se duas zonas de “armazém e lenha”, uma delas compartilhada com a vi-
zinha Vitalina, onde estariam as ferramentas e outros utensílios de trabalho. Ime-
diatamente ao lado está o poço, infra-estrutura antecedente ao projecto da quin-
ta, que é aproveitado para desenvolver um charco com a colaboração do projecto
Charcos com Vida da U.P. Há ainda notícia de uma estufa na ruína mais próxima da
cozinha, que facilitaria a serventia para as refeições comunitárias.
Na planta de 2016, a área aumenta consideravelmente. Aparece um novo
lote a norte, em frente ao “quintal do serralheiro”, que se parcela de forma sistemá-
tica em hortas. Surge também, a balizar os terrenos a este, a agrofloresta, fruto de
um acordo de exploração desses terrenos com a Câmara Municipal. Este lote é mui-
to declivado e a vegetação extremamente densa e enraizada, pelo que os trabalhos
de limpeza continuam ainda hoje. Embora em grande parte a organização geral se
mantenha no sistema parcelar para cultivo, dá-se já conta de algumas alterações.
Em relação às hortas, para além da proliferação, observa-se a mudança dos seus
encarregados, bem como uma variação nas dimensões de algumas delas. O anti-
go espaço para animais é agora assinalado enquanto terra das crianças, sofrendo
uma ampliação. É aqui que acontecem a maior parte das actividades pedagógicas
e recreativas, dadas as características do espaço: plano, largo, sombreado e de
mais fácil acesso. Aparece também um novo núcleo, composto pelo Jardim Eleva-
do, Ruínas CMP e uma área sem nome, revelando a falta de um plano mais concreto
para este conjunto. Lá em baixo, junto da sede, à ideia de construir uma estufa,
junta-se a do viveiro, e em frente planeia-se instalar um estaleiro.
A leitura destes documentos aponta alguns princípios estruturantes para
a ocupação dos espaços. Em primeiro lugar, que a maior parte da área onde é pos-
sível cultivar, desde que assim o permita o solo, é dividida em talhões para ex-
ploração agrícola à escala individual. Logicamente, algumas hortas terão melhor
exposição solar ou mais facilidade no acesso à água de rega. Como não se pretende
uma produção que ultrapasse aquela que é suficiente ao consumo próprio, à medi-
da que alguns talhões vão sendo largados, prontamente outros associados os po-
derão ocupar e assim tomar um espaço mais favorável. Estas hortas implantam-se
com uma lógica bastante pragmática, sobretudo encostadas aos muros de limite
dos logradouros, de forma a reduzir a área de circulação necessária, que se faz a
eixo, e proteger a área de cultivo de alguma forma.
Em segundo lugar, os espaços que não apresentam garantias de produ-
tividade agrícola ou que participam de características excepcionais são reivindi-
cados para um uso colectivo. Assim se vêem implantar os galinheiros, explorados
em grupo mediante responsabilidade individual ou partilhada, normalmente com
menos interessados e por isso em lotes adequados à sua menor dimensão. Outras
infra-estruturas colectivas, como espaços de armazenamento, oficinas, arrumos
ou depósitos de água, inserem-se em posições mais estratégicas, numa lógica de
proximidade, centralidade e facilidade de acesso às hortas. Finalmente, o grande
espaço colectivo capaz de reunir grupos grandes, a terra das crianças, é mantido

108
Fig. 62 - Planta da quinta
em Agosto de 2016.

109
desocupado de forma a se poder adaptar a qualquer tipo de actividade que aí se
queira realizar, mesmo que esse vazio dificulte, de certa forma, uma utilização mais
diária e capacitada (a excepção que o confirma é o dispositivo com tela para a pro-
jecção de filmes, cuja inexistência tornaria impraticáveis as sessões de cinema).
Um terceiro princípio tem a ver com a flutuação de outros tipos de progra-
ma mais excepcionais. São por norma apontados para lugares que embora demos-
trem grande potencial, um talvez até evidente para desígnios específicos, acabam
por nunca se concretizar. Esta situação é especialmente perceptível na ruína jun-
to da sede, que foi inicialmente pensada para estufa, depois viveiro, e finalmente
forno, sem que nenhuma das hipóteses se tenha efectivado, talvez pelo esforço
extraordinário que requereriam.

As pistas de campo
Mas tão importante quanto a análise dos mapeamentos estratégicos que
reflectem a visão, as intenções e até os desejos mais utopistas dos participantes, é
a observação de campo que, quando feita de forma persistente, desvenda certas
pistas de uso quotidiano que elucidam sobre a forma concreta como estes espaços
estão a ser utilizados. Enquanto a análise do primeiro recurso permite compreen-
der a visão global e as aspirações espaciais, esta permitirá compreender a natureza
do uso empírico, que confirma o primeiro, o contraria, ou expressa até as suas dua-
lidades.
Quando aconteceu a primeira aproximação, em Setembro de 2018, a orga-
nização espacial da quinta não era muito diferente daquela que se apontava já em
2016. Tirando dois casos que acontecem poucos meses depois, um onde algumas
hortas em terreno do vizinho desaparecem devido à mudança de dono do imóvel;
e outro em que os galinheiros são atacados por cães, o que leva ao abandono da
prática; as coisas encontram-se mais ou menos pensadas da mesma forma.
Contudo, a realidade desmentia de alguma forma a aparente vitalidade
destas plantas. Em boa verdade, várias hortas estavam sem dono ou quase aban-
donadas; espaços que apareciam etiquetados achavam-se em verdade vazios; cer-
tas infra-estruturas encontravam-se em mau-estado, por vezes já em situação de
ruína; etc. De forma geral, observavam-se sintomas de um parco envolvimento
da comunidade, especialmente para tarefas de melhoria dos espaços colectivos,
limitando-se à limpeza relativamente sistemática das plantas daninhas e à manu-
tenção dos caminhos.
A utilização do espaço conhece fundamentalmente dois cenários. O pri-
meiro tem um ritmo quotidiano, que se reparte por sua vez num modo laborioso
e noutro recreativo. Por um lado, marca-se por tarefas sistemáticas como a rega,
a limpeza, o semear e o plantar, etc. São feitas no próprio espaço de que cada um
é responsável, e mais frequentemente de forma solitária. Por outro lado, vêm-se
aproveitar as qualidades únicas destes espaços no contexto urbano (a serenidade,
a vista, etc) para um uso ocioso do tempo livre, quando o tempo assim o permite. O

110
outro cenário tem a ver com usos mais esporádicos, quando se organizam activida-
des formativas ou recreativas que fazem aí juntar-se muita gente ao mesmo tempo,
implicando com isso outro tipo de tarefas que são por norma partilhadas. Coisas
como refeições comunitárias, concertos, visitas de escolas, oficinas formativas,
etc. Por vezes, existem também as ocasionais reuniões administrativas para tomar
decisões relativas à quinta, que progressivamente se foram libertando do espaço
da sede em preterência da posição de campo, mais próxima das situações em de-
bate, mas que devido à sua frequência marginal não enquadram aqui um cenário
próprio.
Alguns destes usos, ainda que elusivos, vão deixando rasto. Ler o terreno a
partir destas pistas põe a nu as operações no espaço a que os usos estão associa-
dos, tornando-se bastante evidente aquilo que pode ser melhorado. Desta forma,
há quatro aspectos facilmente identificáveis.
Uma primeira pista , que se repete um pouco por todo o lado, é a presença
de pequenos bidões, utilizados para o transporte de água desde os tanques princi-
pais até às várias hortas. São tantos que evidenciam as falhas da infra-estrutura de
água e a dificuldade que isso causa ao seu transporte.
Uma segunda pista aponta para a falta de espaços cobertos para arrumo
e armazenamento de vários recursos. Próximo da sede são deixados materiais de
construção, sobretudo madeiras, sem protecção da acção da chuva e do sol, o que
os deteriora desnecessariamente. Nos espaços das hortas acham-se ferramentas
na mesma situação. Também na terra das crianças o mobiliário vai apodrecendo
sem um espaço de arrumo.
A terceira pista é consequência dos problemas causados pelas constantes
mudanças de cota. Por um lado o carro-de-mão, muito utilizado para mover as pe-
dras que estão por todo o lado, tem um alcance limitado, mas que em qualquer si-
tuação seria preferível aos baldes carregados à mão que, devido ao peso, dificultam
as tarefas de limpeza. Por outro lado, os dez metros que separam a quinta do nível
da rua dificultam o transporte de materiais, fazendo com que estes se acumulem à
entrada à espera que alguém mais capaz os consiga carregar.
Finalmente, uma quarta pista observa-se quando existem actividades na
terra das crianças que requerem electricidade. É necessário trazê-la desde a sede,
ou dos imóveis a ela contíguos (cedida pelos vizinhos), obrigando a montar um sis-
tema de cabos e extensões a atravessar as hortas, tendo depois de ser desmontado,
para cada ocasião.

111
síntese

113
9. Questões de intervenção

9.1 O plano de pormenor

O Plano de Pormenor do Alto da Fontinha/Carvalheiras, apresentado em


1997 pela equipa liderada pelo Arq. Rui Mealha, foi o grande estudo promovido pela
autarquia para este quarteirão, até hoje. O plano divide-se em três sectores de ac-
tuação e para cada um deles identifica questões diferentes: o sector das Carvalhei-
ras, mais a sul, propõem a consolidação das frentes de rua e a criação de novo es-
paço público; o sector da Fontinha foca-se sobretudo na construção e reabilitação
para habitação; o sector do Alto da Fontinha, onde se insere a área de intervenção
do presente projecto, estrutura áreas verdes pontuadas por alguns equipamentos
colectivos.
O plano faz a leitura da condição intersticial deste último sector e tenta
romper com a sua intransitabilidade. Para isso, estrutura um sistema viário mais
complexo, prolongando a Rua do Alto da Fontinha até à Rua de João de Oliveira Ra-
mos e abrindo ligações perpendiculares com a Rua do Bonjardim e a Rua de Santa
Catarina. À face deste novo sistema de circulação formula novas áreas de constru-
ção, desmultiplicando o quarteirão em blocos mais reduzidos. Na zona onde hoje
actua o Musas, é proposto um parque verde de lazer, rematado a este pelas ruinas
da Ilha do Padeiro que se preservam no corpo mais extenso, sendo que a peça
transversal é atravessada pela nova via.
Estas transformações alteram profundamente a condição intersticial,
evocando uma escala e intensidade de urbanização muito mais próxima do tecido
envolvente. Esta é uma atitude que, embora estimule o desenvolvimento do miolo
do quarteirão, tem como resultado a destruição da sua especificidade, até hoje
preservada. Quando pensado na escala da cidade, este quarteirão pode servir um
propósito muito mais interessante se se procurar manter, até certa medida, o seu
retraimento.
É certo que este plano foi desenvolvido num período muito diferente do
actual. Quando se transporta esta proposta para os dias de hoje, torna-se evidente
que as grandes áreas de construção previstas fomentarão um ímpeto muito forte
para a especulação em torno desta zona, terminando com qualquer possibilidade
de se alcançar aqui algo diferente.

114
Fig. 63 - Planta de apresen-
tação do Plano de Porme-
nor do Alto da Fontinha/
Carvalheiras, Arq. Rui Mea-
lha, 1997.

115
9.2 A delimitação da intervenção

Definindo um perímetro no contacto com vias de circulação públicas, o


quarteirão em causa tem 70 000m2. Destes, cerca de trinta mil são áreas verdes.
Na maior parte dos casos, uma utilização habitual destas áreas contêm-se a uma
faixa de até dez metros de afastamento do casario, restando uma larga extensão
desocupada em direcção ao miolo do quarteirão.
Este projecto integra a área hoje pertencente à Quinta Musas da Fontinha
mas estende-se por um território muito mais abrangente. Para definir os seus li-
mites aplica-se um critério relacionado com o estado de (des)ocupação, circuns-
tância que levou inicialmente ao começo da quinta. Neste caso, contudo, põem-se
de parte as contingências de meios e recursos de uma comunidade relativamente
pequena, permitindo assim galgar o quarteirão pelas áreas predispostas a uso.
O projecto é motivado por algumas questões-chave. Por um lado, a procu-
ra de uma solução para a patologia de abandono do miolo de um quarteirão con-
solidado com qualidades geográficas irrepetíveis. Por outro, a confirmação dada
pela experiência do Musas de que é possível uma solução baseada na colectiviza-
ção dos espaços, mesmo que de diferentes tipos de propriedade. Enfim está uma
sensibilidade para com os problemas que se se sentem hoje no Porto em relação
às questões do acesso e usufruto do espaço urbano. O que aqui se aborda é hoje
um pedaço de cidade abandonado num lugar de onde as pessoas estão a ser expul-
sas, e qualquer dia é também a especulação que lhe pega. Mesmo que este tipo de
projecto não impeça os processos em marcha (e de forma perversa poderia até ser
um agente desse mesmo processo especulativo), tendo em conta a velocidade de
transformação actual, parece urgente reivindicar estes espaços para o reino públi-
co enquanto ainda é possível.
Assim, aplicando este critério ao território, o projecto avança para lá dos
terrenos da quinta e fica definido com os seguintes limites: a norte contra uma zona
consolidada, onde os pátios estão ocupados até ao topo da encosta, numa situação
especialmente interessante para assistir às qualidades espaciais que se podem
tirar desta geografia; para oeste no encontro específico com a primeira ou segun-
da plataforma a seguir a cada edifício (hoje com uso habitual), sendo que num ou
noutro caso o aproveitamento actual é mais profundo e a sua natureza privativa é
respeitada; para este pelo eixo que assinala o alto das encostas, marcado pela Rua
do Alto da Fontinha, continuado pela Ilha do Padeiro, e presente nos sucessivos
parcelamentos até atingir o topo norte, dividindo o quarteirão em duas encostas
intransponíveis; para sul, serve-se do alinhamento de um lote vazio à face da rua,
cuja integração num projecto que acontece quase sem visibilidade é especialmen-
te pertinente, gerando a oportunidade para um ponto de contacto forte com a via
pública. Esta zona mostra sinais de ter em tempos sido habitada, observando-se
em ruína os limites das várias casas. Para além da área em intervenção ser já sufi-
ciente para o programa que se lhe adequa, os sinais de pré-existência de habitação
desta zona parecem-me apontar muito mais para um projecto com essas funções
em vista.

116
Desta forma evitam-se todas as situações de eventuais demolições de estrutu-
ras ainda ocupadas ou a expropriação de terrenos privados com uso efectivo, que
dada a extensão de área abandonada seriam acções totalmente escusadas.

Fig. 64 - Planta de delimi-


tação da intervenção e suas
condicionantes.

Com um uso
consolidado
Eixo d
o alto
ária
tia di

a enco d
erven

s ta
s de s
Pátio

Ruínas de
habitação

117
9.3 A preservação do meio

Esquecida por tantos anos, a encosta é na sua essência uma grande zona
verde deixada fruir livremente. Sobre um terreno conformado ao homem, é certo,
mas ainda assim de forma relativamente pouco controlada dada a força da impo-
sição geográfica. A enorme elevação, a vegetação selvagem, a biodiversidade de
fauna e flora e a serenidade presentes constroem um escape muito forte ao meio
urbano, quase fazendo esquecer a centralidade do lugar, não fosse a vista sobre a
cidade até ao mar. Este ambiente, muito evocado nos grandes parques que refu-
giam da confusão da cidade e oferecem um contacto mais forte com a natureza, tem
no entanto aqui a particularidade de estar numa situação intersticial em que esta
ambiência se desenvolveu naturalmente.
O esqueleto morfológico é feito por plataformas de dimensões e cotagens
muito diferentes que oferecem grande variedade no tipo de espaços que se podem
encontrar. Enquanto uns serão sombrios e cobertos por árvores, outros serão en-
solarados e abertos sobre a paisagem. Enquanto nalgumas zonas as plataformas se
interligam facilmente num percurso por pequenos nichos, noutras um relativo iso-
lamento altimétrico impõe outras formas de chegar. Por vezes este esqueleto, mais
imposto pela lógica de propriedade do que por razão morfológica, é um obstáculo
a um aproveitamento mais eficiente da constância das cotas, algo relativamente
pouco ocorrente. Nestes casos, parece oportuno derrubar estes limites e ampliar
os espaços. Contudo, na maioria dos casos as diferenças de cota entre as platafor-
mas são consideráveis, e as memórias do parcelamento (muros de limite, escadas
unidireccionais) podem perfeitamente ser mantidas em coexistência pacífica com
as novas formas de ocupação. Também desta forma se evitam, para lá de algumas
situações incontornáveis, alterações no terreno demasiado profundas para a medi-
da e possibilidade dos usuários, que se quererem no centro do processo interventi-
vo.

9.4 O utilizador construtor

Um aspecto fundamental na formulação deste estudo prévio é a ideia de


que quando incentivada a apropriação dos espaços por parte daqueles que lhes
participam se consegue uma ocupação mais vivaz e duradoura. Tendo em conta
o relativo isolamento na malha urbana, a forte personalidade do tecido social da
zona, a natureza criativa e proactiva do programa já testado pelo Musas e o con-
texto de luta pelo direito à cidade, esta talvez seja, no Porto, uma oportunidade
irrepetível para construir um lugar à medida dos seus habitantes.
A estética muito própria de espaços colectivos semelhantes ao Musas ad-
vém dessa liberdade para transformar. Absorvendo o improviso individual e o pla-
neamento conjunto, oscilando entre a cooperação e o conflito, surpreendendo pela
originalidade ou simples desembaraço, estes espaços são organismos adaptáveis
e reinventam-se facilmente conforme as necessidades dos usos que os reclamam.

118
Por isso é fundamental uma proposta que prepare o terreno para essa capacidade,
esboçando um plano muito mais estrutural do que activo. No limite, até o programa
pode ser pensado enquanto dispositivo de inventar programa, desde que também
sejam fornecidas as ferramentas e equipamentos necessários para o despoletar
dessa criatividade.
Para além desta dimensão física, uma outra, tão importante, diz respeito
a um utilizador construtor no espaço social. A proposta para a organização desta
rede de espaços deve também acompanhar e facilitar uma tendência reivindicativa
dos usuários sobre o espaço social (no sentido que lhe dá Lefebvre), própria dos sis-
temas em autogestão. Viabilizar a presença de uma grande diversidade de actores
oriundos de diferentes práticas e contextos e estimular o seu cruzamento é decisi-
vo. Isso faz-se, muito arcaicamente, possibilitando os encontros, a partilha e coe-
xistência nos equipamentos, a democratização dos acessos ou o enquadramento
de espaços adequados às suas iniciativas. Utilizadores investidos nas dinâmicas
socioculturais são determinantes para a progressiva concepção de uma identidade
própria e a resiliência da ocupação.
Neste plano, outras considerações poderiam ser tidas em conta, como
uma eventual rotatividade no encargo de diferentes espaços, ou um projecto de
curadoria dos tipos de grupos envolvidos. Considerações sobre a gestão e funcio-
namento do projecto podem reflectir-se no desenho de arquitectura. Contudo, tal
abordagem seria contraditória à filosofia deste esboço prévio, que se move ainda
num plano muito abstracto, pelo que a experiência deste interstício será muito
mais interessante quanto mais específico e orgânico lhe for permitido ser no seu
crescimento.

9.5 O desafio da circulação

O grande desafio está em estabelecer um sistema de circulação por dentro


do quarteirão porque cerca de 20 metros de altura separam o topo da encosta do
nível da Rua do Bonjardim.
Devido aos parcelamentos que traçaram lotes muito compridos e estrei-
tos, a solução encontrada até hoje para vencer as diferentes cotas foram as plata-
formas interligadas por escadas unidireccionais. Como as variações entre si são
muito grandes, as escadas resultam muito extensas, íngremes e irregulares, me-
tidas entre os muros altos de divisão dos lotes. Esta solução dificulta o acesso às
partes mais altas e é um dos grandes responsáveis pela sua inutilização.
A melhor forma de tornar os percursos mais acessíveis é, quando possível,
criar movimentos transversais à direcção dominante de subida da encosta. Em vá-
rias situações as plataformas aproximam-se mais nesta direcção, possibilitando
uma ascensão mais pausada e controlada. Contudo, para que tal seja possível,
é necessário ultrapassar os constrangimentos da delimitação das propriedades,
propondo a junção destes terrenos. Assim será possível ampliar as áreas das pla-
taformas à mesma cota, criar percursos mais extensos com menor variação alti-

119
métrica e derrubar os obstáculos visuais entre as diferentes partes, unificando o
conjunto.
Em algumas situações as escadas que já existem podem ser mantidas ou
restruturadas para criar diferentes lances. Procurou-se preservar estas pré-exis-
tências quando já satisfazem o objectivo. Noutras situações, as escadas são de tal
maneira íngremes e/ou extensas que são desconsideradas e substituídas, sobretu-
do, por movimentos transversais.
Porque cada lote tem um sistema de circulação próprio, é frequente a re-
petição sucessiva das soluções de ascensão para cotas similares. Na ligação entre
os pátios das casas e as cotas intermédias, mantiveram-se todos os acessos que
continuarão a dar acesso directo dos vizinhos aos terrenos do quarteirão. Esta re-
dundância torna-se, no entanto, especialmente importante às cotas mais altas,
multiplicando os movimentos possíveis. Integrando estas pré-existências no novo
sistema consegue-se fazer a ida de um ponto A a um ponto B por rotas que atraves-
sam diferentes partes do quarteirão.
De forma geral, procurou-se respeitar as cotas originais e reduzir a pro-
fundidade da intervenção neste domínio ao estritamente necessário. Existe, no en-
tanto, uma excepção incontornável. Era essencial abrir uma via que penetrasse no
miolo do quarteirão, não para que o automóvel circule livremente pelo interior, mas
para satisfazer as cargas e descargas de que alguns equipamentos chave depen-
dem, como a oficina ou o armazém. Esta infra-estrutura viária obriga a uma altera-
ção mais profunda da morfologia do terreno ao longo do seu traçado, mesmo que se
procure adoçar à situação actual. Através dela consegue-se também o acesso por
mobilidade reduzida a alguns espaços determinantes.

9.6 A relação com a gentrificação

A acompanhar o desenvolvimento deste projecto está uma consciência


muito forte do papel que ele pode, impremeditadamente, representar no contexto
actual de transformação urbana. A máquina especulativa é hoje de tal forma po-
derosa que projectos de renovação como este são facilmente absorvidos na lógica
mercantilista e acabam por servir de motor aos processos do capital, mesmo que
ideologicamente se oponham a estes.
Outras vezes, é a própria máquina que se dissimula em iniciativas deste
género. Ainda está fresca a memória daquilo que representou a dinamização do
edifício AXA nos Aliados, que depois de receber a atenção mediática por acolher a
produção cultural de vários agentes locais foi, por fim, vendido para se transformar
num hotel. Infelizmente, muito facilmente aquilo que se anuncia à disposição da
vida urbana e das suas aspirações revela-se a primeira fase de um projecto especu-
lativo.
Quando as iniciativas incidem mais directamente sobre questões de base
do direito à cidade a situação é ainda mais perversa. A instrumentalização de pro-
jectos que propõem revitalizar zonas pobres ou abandonadas leva-nos a uma situa-

120
Fig. 65 - Intervenção nas
paredes da sala à tutela da
Favela Discos, na Festa de
encerramento do edifício
AXA, em 2015.

ção algo paradoxal na cidade contemporânea. Se por um lado parece importante


reivindicar e aplaudir esse tipo de acções, por outro a quase inevitável usurpação
do seu novo dinamismo pelo mercado destrói as esperanças de que podemos ainda
caminhar para uma cidade mais à nossa imagem.
Este estudo situa-se nesse paradoxo. Uma proposta que abre caminho
para um programa cultural e recreativo com estas dimensões e centralidade con-
duzirá inevitavelmente a uma atenção redobrada pela zona, acelerando aquilo a
que já se assiste hoje: a subida dos preços de arrendamento, a substituição do
comércio e do tecido social original, etc. Assim que traduzida para valor acrescido,
o mercado saberá fazer uso desta proposta para multiplicar a rentabilidade da
Fontinha. Isto leva-nos a uma situação aterradora: enquanto nos debatemos pela
questão do direito à cidade aceleramos a sua destruição.
A natureza e o programa deste estudo procuram talvez escapar à atrac-
tividade própria dos empreendimentos urbanos mais correntes. Evidentemente,
uma proposta visando o lucro não pensaria certamente numa rede de espaços au-
toconstruídos. A escala dos equipamentos seria muito maior, e os próprios muito
mais especializados para actividades de consumo. O acesso e a infra-estrutura
automóvel estariam muito mais presentes. A construção de nova habitação seria
muito provavelmente uma fatia importante do projecto. Embora não seja só atra-
vés do programa que se evitam as consequências mais desastrosas, partir de um
pressuposto de não mercantilização do espaço através dele parece-me ser um fac-
tor importante a ter em conta.
Infelizmente, das instituições de quem esperaríamos uma atitude mais
proteccionista nada mais vemos do que a continuação e até o serviço da mesma
estratégia. No Porto, os Fundos Europeus Estruturais participam a construção de-
senfreada de hotéis, a promoção de habitação acessível dissimula o investimento
imobiliário (Monte Pardal), os equipamentos públicos são privatizados (Pavilhão
Rosa Mota) e o estrelato profissional usa-se para contornar contingências incómo-
das (Matadouro de Campanhã e TimeOut São Bento).

121
Fig. 66 - Planta de Interven-
ção no quarteirão do Alto
da Fontinha.
Fig. 67 - Axonometria do
projecto de intervenção.
10. O Programa

A dimensão da área de intervenção (10 000 m2) e as constantes variações


altimétricas obrigam a pensar numa estrutura e distribuição do programa pelo ter-
ritório que torne o acesso aos equipamentos o mais fácil e imediato possível. A
experiência do Musas revelou a importância desta proximidade para as actividades
agrícolas, por exemplo, que requerem uma movimentação constante de materiais e
ferramentas. É também o caso dos espaços de convívio mais informal, cuja presen-
ça pontual é importante para os tempos recreativos e o contacto com outros parti-
cipantes. Revelou também a importância de manter um controlo apurado sobre as
áreas que a associação gere, que no caso de ultrapassarem aquilo que é adequado
ao seu tamanho social resulta numa subexploração.
Para se atingir esta adequação das áreas às capacidades da comunidade
responsável e conseguir o conforto operativo, pensou-se num sistema composto
por núcleos dominantes e por órgãos independentes. Os primeiros serão os equi-
pamentos mais significativos e de maiores dimensões, implantados de forma a po-
larizarem o terreno e pontuar o sistema de circulação. Este grupo tem como ob-
jectivo servir o universo total dos usuários e proporcionar o contacto directo entre
as diferentes estruturas organizativas internas. Servirão os grandes eventos e os
trabalhos colectivos, reflectindo a actividade conjunta. Os outros órgãos são repe-
tições independentes de alguns dos mesmos aspectos programáticos, associados
aos espaços recreativos e de labor das diferentes unidades agrícolas. Estes serão
equipamentos e espaços de proximidade dimensionados conforme o agregado que
servem regularmente. Nestes casos existirá maior controlo e uma mais fácil adap-
tação às necessidades específicas de cada grupo responsável. Serão os lugares das
dinâmicas de trabalho e convívio quotidiano.
Uma terceira esfera deste sistema engloba estruturas singulares (assina-
ladas na figura com um *) que têm em comum desempenhar um papel importante
de contacto com o exterior. Implantam-se próximos dos pontos de acesso da via
pública e actuam enquanto introdutores para o restante projecto.
O programa distribui-se em cinco grandes grupos temáticos em contacto:
agrícola, construtivo, cultural, serviços e parque. Grande parte decorre das expe-
riências actuais do Musas, outros reflectem aspirações do grupo e outros surgem
de programa novo que procura colmatar algumas deficiências actuais e as necessi-
dades da nova escala do projecto.

126
Fig. 68 - Hierarquia e orga-
nograma do programa de
intervenção.

127
Agricultura

O grupo agrícola, pela sua extensão e variações altimétricas entre os vários


espaços, reparte-se em quatro agrupamentos. Cada um destes compõem-se, por
sua vez, por três zonas.
A porção principal está afecta às hortas e outras práticas agrícolas. Esco-
lheu-se não parcelar estas áreas para que haja a liberdade para utilizar diferentes
regimes e dimensionamentos variáveis, desde o individual ao comunitário. Para
além das hortas, estas áreas podem contar com estufas, minhocários, agroflo-
resta, galinheiros, entre tantas outras especialidades relacionadas às actividades
ecológicas. Existe também um tanque de recolha de águas pluviais, ora localizado
perto de coberturas de edificado ora às cotas mais elevadas, para apoiar na rega
que pode servir, ao mesmo tempo, para aquacultura, e estimular a biodiversidade.
No apoio às áreas agrícolas estão dois espaços multifuncionais, embora
direccionados para necessidades diferentes:
(R): O espaço de recreação estará mais preparado para acolher actividades
formativas/lúdicas (workshops, tertúlias, concertos, cinema, etc.), equipado com
mobiliário, cozinha, churrasco, zona coberta, instalação sanitária e outros disposi-
tivos a ser desenvolvidos pelo grupo conforme as suas pretensões de uso (poderá
existir um palco, um parque infantil, uma zona de repouso, etc.).
(L): O espaço de labor fará o apoio aos trabalhos nas hortas, com armazém
para materiais, espaço de arrumo de ferramentas, uma pequena oficina, entre ou-
Fig. 69 - Uma pequena estu- tras possibilidades (um banco de sementes, um centro de compostagem, etc).
fa improvisada com recurso
Outra importante parte é a quinta pedagógica, com fácil acesso das esco-
a materiais resgatados, nas
hortas do Tempelhof em las do Alto da Fontinha. No seguimento do trabalho que já acontece hoje no Musas,
Berlim. estas hortas podem ser visitadas pelas escolas para actividades pedagógicas re-
lacionadas com a agricultura e natureza. Da mesma forma, também o tanque de
água pode funcionar nos moldes do projecto Charcos com Vida 1da Universidade do
Porto.
1 Finalmente, propõem-se a reabilitação de quatro ruínas no arranque da
“(...) a inventariação,
adopção, construção e Rua do Alto da Fontinha, para aí se instalarem as sedes destes agrupamentos, com
manutenção de charcos e
condições que facilitarão a logística dos projectos e possibilitarão outro tipo de
pequenas massas de água
para o desenvolvimento de
actividades em espaço interior (biblioteca, centro informático, reuniões, etc). Por
actividades de exploração cima de uma destas ruínas, à cota da entrada pelo Alto da Fontinha, cria-se uma
científica e pedagógica e de varanda-pátio lançada sobre o resto do quarteirão.
observação da biodiversi-
dade, bem como contribuir
para a sensibilização sobre
a importância destes habi-
tats e da sua conservação.”
disponível em http://char-
coscomvida.ciimar.up.pt/
quem-somos/sobre-nos,
acesso em jun.2019

128
C

C
Fig. 70 - Planta das unidades agrícolas do projecto de intervenção.

Fig. 71 - Corte atravessando as sedes e uma das unidades agrícolas.

Fig.72 - O edifício de arrumos de material agrícola e ferramentas construído Fig.73 - Pequena estrutura de compostagem do projecto STEK, também fa-
com recurso a janelas e portas recuperadas de demolições em Dr. Struycken zendo uso da criatividade para a reutilização de materiais desperdiçados
District, no âmbito do projecto STEK (um espaço colectivo equipado com pe- localmente.
quenas infraestruturas construídas pela comunidade) em Breda, Holanda.

129
Construção

O grupo construtivo está orientado para o desenho, a experimentação e a


construção de estruturas e peças de apoio à ocupação generalizada do quarteirão.
É composto por três equipamentos: o armazém, o laboratório de reciclagem e a ofi-
cina. Porque estes só funcionam em coordenação e em cooperação, implantam-se
ao longo do eixo viário principal que facilita a mobilidade e o transporte de mate-
riais entre partes.
O armazém (A) é o primeiro ponto de paragem deste circuito, com acesso
pela Rua do Alto da Fontinha. Será necessariamente um espaço amplo coberto,
organizado por zonas para diferentes tipos de materiais e objectos, recolhidos pe-
los próprios usuários ou pelas empresas de tratamento de resíduos urbanos. Aqui
serão guardadas, catalogadas e separadas todas os peças que posteriormente
serão requeridas pelas diferentes estruturas (as pequenas oficinas das unidades
agrícolas, por exemplo) ou que prosseguirão para os restantes módulos do grupo
Fig. 74 - Vista do interior construtivo.
do Architecture Salvage
Warehouse, em Galveston
County, Texas, onde são
armazenadas peças res-
gatadas de obras de de-
molições, desde portas e
janelas a vigas e pranchas,
ferragens ou mobiliário, e
postas à disposição da co-
munidade para lhes dar um
novo uso.

Segue-se o laboratório de reciclagem (L) que, um pouco à semelhança de


um FabLab, é um espaço equipado com ferramentas próprias e suas zonas de tra-
balho, afectas a diferentes processos de reciclagem e experimentação. Aqui serão
tratados os materiais que necessitam de algum tipo de manipulação antes da sua
utilização final, desde as tarefas mais simples de reaproveitamento de ferragens
ao processamento integral de materiais que têm de ser decompostos, como os
plásticos, que são um bom exemplo do potêncial de um espaço de reciclagem des-
te género num projecto que se alimenta muito da autoconstrução. Assim, serão
possíveis desde experiências direccionadas para a construção ecológica, à repa-
ração e manipulação de equipamentos mecânicos e electrónicos (circuitbending),
ao design e teste de novas peças de mobiliário ou apoio às actividades das quintas
e estúdios.

130
D

Fig. 75 - Planta dos equipamentos do grupo de construção do projecto de intervenção.

Fig. 76 - Corte pela via de circulação principal, desde o acesso pela Rua do Alto da Fontinha até à plataforma onde se instala a oficina principal.
Fig. 77 - Máquinas de reci-
clagem de plásticos desen-
volvidas por Dave Hakkens,
que disponibiliza os planos
para a sua construção em
regime open-source, de
forma a que qualquer um
as possa reproduzir. Da
esquerda para a direita: tri-
turadora (reduz o plástico a
pequenos grãos); máquina
de extrusão (derrete em
filamentos para impressão
3D); máquina de injecção
(permite moldagem e pro-
dução em série).

Fig. 78 - Sessão de trabalho


no âmbito da NØ ASSOCIA-
TION, em França: uma pla-
taforma de investigação de
estudantes, artistas, desig-
ners e hackers que promove
a interação e manipulação
de desperdícios electróni-
cos para a construção de
novos dispositivos, desde
as telecomunicações DIY ao
circuitbending ou às artes
audiovisuais.

131
Fig. 79 e 80 - Sistema desenvolvido no RecycLab do R-Urban para a irrigação inteligente, que utiliza sensores de humidade para calibrar a rega das plantas.

Fig. 81 - Sistema de aquecimento para espaços interiores que faz uso da Fig. 82 - Esquema para a construção de instalações sanitárias secas que permi-
energia térmica produzida durante o processo de compostagem, tam- tem aproveitar o desperdício humano para a compostagem na AgroCité, tam-
bém desenvolvido no RecycLab. bém do projecto R-Urban.

132
A fechar o circuito está a oficina (O), implantada numa grande plataforma
com um espaço de trabalho e montagem vasto em seu redor. Deverá ser equipada
com ferramentas e maquinaria de forma a permitir aqui a construção das estrutu-
ras, mobiliário e outros dispositivos a utilizar no quarteirão. Esta é possívelmente a
unidade mais importante para aplicar a estratégia do utilizador construtor, possi-
biltando que qualquer participante e colectivo possa aqui levar a cabo os seus pro-
jectos e ajudar na melhoria dos vários espaços. Só garantindo os meios de produção
se consegue uma apropriação em constante reinvenção.

Fig. 83, 84 e 85 - (à esquerda) Mobiliário urbano para parque infantil de-


senvolvido no projecto MAD’o3 , em Madrid, com a coordenação do arqui-
tecto Santiago Cirugeda.

Fig. 86 e 87 - (a cima) Oficina comunitária do projecto STEK, anteriormen-


te referido, que incentiva à construção do mobiliario e outras estruturas
necessárias ao projecto pelos próprios participantes.

133
Cultura

O grupo cultural tem a capacidade de estabelecer um polo movimentado


e dinâmico, com uma ocupação residente atractiva para um público exterior, ac-
tuando enquanto forte motor de produção e animação cultural do projecto. Para
implantar este grupo propõem-se a reabilitação da Ilha do Padeiro, hoje em estado
de ruína. O antigo complexo habitacional de apoio à fábrica implanta-se em forma
de T no topo da encosta, com as casas dispostas costas com costas e os acessos
a serem feitos por dois corredores laterais. As casas correspondentes ao corre-
dor oeste são as que se encontram em pior estado de conservação, muitas vezes
retendo apenas as paredes de meação. Já no corredor virado a este, as unidades
mantém ainda as quatro paredes levantadas, faltando a cobertura e o piso.
Devido às pequenas dimensões destas casas (por vezes menos de 20 me-
tros quadrados), propõem-se que se façam módulos compostos por duas unida-
des. Estes funcionariam enquanto espaços de trabalho, ateliers ou estúdios de
artistas ou sedes de associações com produção cultural. Criam-se então acessos
directos destes módulos às casas correspondentes do lado este, funcionando es-
tas como pátios abertos expositivos ou de lazer a eles associados. Pretende-se que
estes espaços possam ser apropriados em conformidade com as intenções de cada
ocupante, resultando este corredor numa sucessão de diferentes abordagens e
experimentações espaciais, organizadas em galeria a céu aberto.
Este núcleo implanta-se em proximidade com o café e o principal espaço
recreativo do quarteirão, a ser utilizado recorrentemente para os eventos organi-
zados pelos participantes do grupo cultural. Por essa razão, os espaços da ilha que
pertencem ao corpo trasnversal às galerias são reservados para usos colectivos
(à excepção dos pisos superiores dos dois primeiros módulos), como exposições e
eventos, em vez de ficarem designado para um colectivo específico.
Fig. 88 - Vista das ruínas
do lado oeste da Ilha do
Padeiro, onde se propõem
instalar, em sucessão, as
galerias-pátio respectivas
a cada estúdio.

134
A
A
Fig. 89 - Planta de transformação da Ilha do Padeiro para instalar os estúdios e galerias do grupo cultural do projecto de intervenção.

Fig. 90 - Corte transversal pelos estúdios e galerias. Os módulos em azul claro reservam-se como espaços de
exposição ou actividades colectivas, dada a próximidade ao café e anfiteatro.

Fig. 91 e 92 - Estado actual da Ilha do Padeiro.

Fig. 93 - La Miroiterie, uma squat com 12 anos em Paris numa antiga fábrica hoje Fig. 94 - Um antigo espaço de armazém em Zurich, conhecido como Binz
reabilitada para eventos culturais, desde performances, a concertos ou exposi- Squat, hoje um intenso centro de produção cultural.
ções.

135
Serviços

O grupo de serviços reúne todos os espaços e equipamentos de apoio aos


grupos anteriores. No coração do quarteirão e com uma vista privilegiada sobre a
paisagem implanta-se o café/bar/refeitório (C), associado a um recinto com palco
para eventos, próximo de outros grandes equipamentos como a oficina (O) ou os
estúdios (E).
À face da rua, quando possível, estabelecem-se pontos de contacto im-
portantes: a praça com o pavilhão e a biblioteca de coisas. A primeira faz uso de
um lote hoje vazio que pode colmatar a falta de um espaço público neste troço da
Rua do Bonjardim, adequado, por exemplo, a um parque infantil, ou a pequnas ins-
talações rotativas que dinamizem novas formas de experienciar o espaço público.
Existe também a possibilidade de aqui instalar um pavilhão multifuncional, aberto
para a praça, que pode servir diferentes tipos de usos, desde loja de produtos das
quintas, a sala de conferências ou exposições, a zona coberta para outras activida-
des.
A biblioteca de coisas é um equipamento hoje raro no contexto ocidental,
embora ainda seja muito comum em países da America Latina, mais próximos da
cultura da autoconstrução. Nos anos 80 eram especialmente populares nos Esta-
dos Unidos. Esta biblioteca, em muito semelhante às bibliotecas correntes, serve
no entanto para a requisição de objectos a baixo custo. Ao localizar-se na via pú-
blica, estará disponível não só para os utilizadores do interior do quarteirão como
para toda a zona envolvente da Fontinha. Será um equipamento de partilha que
tornará mais acessível a ocupação do quarteirão.

Parque

O grupo do parque (P) inspira-se na proposta do Plano de Pormenor para


a zona e propõem uma extensa área verde para os tempos de lazer, a prática de
desporto e o fruir da biodiversidade de fauna e flora já presentes. Não é pensado
nos moldes de um parque municipal corrente, com as suas regras de utilização
apertadas e a inibição da apropriação dos espaços. Imagina-se um parque sem um
excessivo desenho paisagístico e habitado por diferentes dispositivos instalados
pelos usuários (baloiços, mobiliário, camas de rede, campos de jogos, etc.).
É composto por várias plataformas a diferentes alturas, fazendo a ligação
entre o acesso pela fonte na Rua do Bonjardim e as cotas mais altas da oficina e
café. Para além dos nichos mais pequenos, que enquanto se recolhem se abrem
sobre a paisagem como pequenos miradouros, derrubam-se os muros de limitação
de alguns lotes com cotas semelhantes e consegue-se uma área principal apta a
actividades desportivas.

136
Fig. 95 - Corte pela entrada do largo da fonte na Rua do Bonjardim, atravessando as plataformas do parque (P), da oficina (O), do café (C) e dos estúdios (E).

Fig. 96 - Intervenção temporária numa praça de Marselha pelo Colectivo Fig. 97 - Biblioteca de Coisas em Crystal Palace, Londres, uma “organização
Etc. À semelhança desta, a praça do projecto de intervenção pode ser inter- que quer ajudar as pessoas a reduzir o desperdício, ter acesso a produtos ca-
vida com pequenas instalações temporárias. ros a baixo custo e ir para além do paradigma consumista.”

Fig. 98 e 99 - Os Wikitankers, desenvolvidos pelo colectivo Straddle3, de Barcelona. Tratam-se de vários dispositivos móveis especialzados para diferentes
funções, fazendo uso de caixotes do lixo. À esquerda, o MediaTanker, com um sistema de som e cabine de DJ. À direita o GastroTanker, equipado com fogão e
espaço para cozinhar. Também outros dispositos móveis poderiam ser desenvolvidos na oficina ou laboratório, populando o parque.

137
anexo

139
11. Operação
134 Depois de um período inicial de integração pelo contacto com as pessoas
Nas palavras do ar-
quitecto Patrick Bouchain, e os modos de funcionamento da quinta, começou a emergir uma clara inclinação
cujo processo de trabaho
pessoal para experimentar as transformações dos espaços. Esta inclinação advi-
assenta antes de mais na
comunicação e interacção
nha de vários factores. Por um lado, do evidente potencial do lugar que, mesmo
profunda com a comuni- estando a ser continuamente intervencionado, poderia, com pequenos esforços
dade cultural, social e po- cirúrgicos, muito avançar. Por outro lado, pela estrutura social já montada, orien-
lítica dos territórios onde
tada por princípios de colaboração e participação, onde estavam presentes pes-
intervem, ”(...) produire
une architecture chargée
soas com qualidades excepcionais e sempre inspiradoras. Finalmente, pelo desejo
de sens et non de normes, íntimo de experimentar a arquitectura sob outras formas, despindo-a talvez de
et raconte comment on gestos maiores, muito fáceis no plano abstracto, e reencontrando-a numa escala
peut expérimenter d’au-
muito mais imediata, despretensiosa e humilde, mas ainda assim fundamental na
tres façons de construire
un jardin, un abri, un lieu
vivência dos espaços 134. Este posicionamento levar-me-ia num percurso de proxi-
de rencontre… Car, c’est midade à actividade construtiva, à experimentação com os materiais e as estrutu-
en s’attachant au «petit», ras, sem fugir aos desafios de colocar as coisas em prática.
au «micro», a l’individu,
Significa isto que comecei muito cedo a pensar e experiênciar a quinta com
que l’on peut comprendre
et agir sur l’ensemble, le
um olhar, chame-se-lhe assim, de arquitecto. O muito tempo que passei a percor-
«macro», la collectivité.” rer os espaços interiores do quarteirão e a descobrir as personalidades muito pró-
BOUCHAIN, Patrick - Cons- prias de cada nicho, plataforma e ruína despoletaram-me a vontade de os cuidar e
truire Autrement. Com-
reabilitar 135 (o que se virá a reflectir no projecto para o quarteirão anteriormente
ment Faire?, em Prefácio,
Actes Sud, Arles, 2006
apresentado). Como é natural, esta era uma vontade transversal a vários membros
do Musas e, como tal, o primeiro passo para instigar alguma agitação nesse sen-
135
Teve uma grande in- tido pareceu-me ser recolher as sugestões dos vários participantes no que dizia
fluência nestas jornadas
respeito às melhorias dos espaços, não importando se estas tinham sido expostas
as ideas dos Situacionis-
tas, em particular a dérive
em assembleia, evoluindo nesses casos para propostas, ou em simples conversas
como forma de conhecer o informais, reflectindo desejos menos consequentes. A intenção era representá-las
território: “One of the ba- em conjunto, num mapa físico, de forma a facilitar uma discussão conjunta sobre a
sic situationist practices
melhor forma de as implantar e materializar 136. Este mapa abriria um caminho im-
is the dérive, a technique
of rapid passage through
portante, não tanto para produzir soluções já arquitectonicamente apuradas, que
varied ambiences. Dérives de acordo com a filosofia do grupo pertenceriam a uma discussão em campo, mas
involve playful-construc- em primeiro lugar para agruparmos estas ideias de acordo com a melhor forma de
tive behavior and aware-
as efectivar.
ness of psychogeographi-
cal effects, and are thus
De certa forma, seria um mapa para organizar os processos de implemen-
quite different from the tação: algumas intervenções poderiam ser mais facilmente conseguidas por meio
classic notions of journey de grupos de trabalho dedicados, compostos por pessoas com interesses mútuos;
or stroll. In a dérive one
outras adequavam-se mais aos moldes de projectos com a sua autonomia própria;
or more persons (…) let
themselves be drawn by
algumas até através de iniciativas singulares e a elas dedicadas, como workshops
the attractions of the ter- ou jornadas de trabalho comunitário. Outras até dependeriam de se conseguir o
rain and the encounters acesso a determinada ferramenta específica, e por isso mereceriam ser implemen-
they find there.” DEBORD,
tadas numa estratégia de conjunto. 137
Guy - Théorie de la dérive,
Internationale Situation-
Algumas sugestões surgiam de forma mais recorrente e demonstravam
niste #2, Paris, 1958 por isso lidar com aspirações colectivas e não-marginais. Pensou-se montar um

140
136
sistema de recolha de águas pluviais para reduzir os custos associados à rega, que “The discursive realm,
colocavam uma grande pressão no plano financeiro. Esta questão levantou sempre allows the development of
knowledge away from the
alguns problemas. Por um lado, recolher a água do telhado da sede implicaria de-
immediate demands of the
pois um esforço grande para a conduzir para a quinta, que fica vários metros acima everyday; mutual knowle-
da cota do edifício. Por outro, construir um tanque à cota alta implicava trabalhos dge is about the practical
intensos de movimento de terras que não parecia na altura estar ao alcance do deployment of knowledge
within the everyday. Each
grupo. Por outro, construir pequenos dispositivos de recolha da chuva, à escala da
needs the other. Without
horta individual, dificilmente teria o impacto necessário para reduzir o consumo the realism of mutual
de água da rede que se pretendia. Outra sugestão lembrava da urgência de refa- knowledge, discursive
zer alguns muros de contenção, a cada dia mais perigosos, especialmente para as consciousness floats free
into spheres of impossible
crianças, por risco de cederem completamente. Surgia também frequentemente a
purity. Without the dis-
proposta de reabilitar o pequeno lago junto do poço, não só para usufruir das águas cursive, mutual knowle-
subterrâneas, mas para começar uma pequena experiência com a aquacultura. Fi- dge will lose any sense of
nalmente, várias sugestões envolviam uma componente construtiva, como termi- distance and vision as it is
ground down by the par-
nar a casa de banho seca junto das hortas (da qual existia ainda apenas a estrutura),
ticular demands of each
especialmente em falta nos dias de festas, construir um forno exterior para as refei- condition.” WAN, Nishat;
ções de grupo, montar uma cozinha/bar de apoio e renovar o mobiliário na terra das SCHNEIDER, Tatjana; TILL,
crianças. Jeremy - Spatial Agency,
Other ways of doing archi-
Ao mesmo tempo que se trabalhava este banco de ideias, era importan-
tecture. Routledge, 2011,
te formar estruturas que possibilitassem a operação: um banco de materiais para p.58
resolver o problema de recursos, um banco de ferramentas que possibilitasse a 137
“(...) mapping differs
construção em conjunto, um banco de contactos à escala do bairro (desde ofici- from ‘planning’ in that it
nas, a carpintarias, a drogarias, etc.) para levantar sinergias, até mesmo um banco entails searching, finding
de voluntários externos que abrisse a experiência a outros círculos e habilitações and unfolding complex
and latent forces in the
(pensou-se na hipótese de incluir neste processo alunos da FAUP, que aqui pode-
existing milieu rather than
riam ter um contacto directo com a construção e o desenho participado). imposing a more-or-Iess
Estas diferentes partes serviriam, em conjunto, para montar uma estrutura idealized project from on
às intervenções futuras, visando uma activação mais permanente e persistente dos high. Moreover, the synop-
tic imposition of the ‘plan’
espaços da quinta, sem depender para isso de um comando de operações central
implies a consumption (or
que recorrentemente tem de resolver, para cada caso, contingências que são de extinguishing) of contex-
forma geral transversais a todas e que sem ela implicam a multiplicação dos es- tual potential, wherein all
forços. Assim se apuraria o já em marcha processo autogerido de intervenção na that is available is subsu-
med into the making of the
quinta, informado na experimentação e no erro, e por isso sempre reflectivo das
project. Mapping, by con-
aspirações e frustrações dos participantes. trast, discloses, stages
Contudo, os desenvolvimentos no processo de despejo e venda do imóvel and even adds potential
alteraram as prioridades, tanto da associação, que se via agora em preparos para a for later acts and events
to unfold. Whereas the
sua defesa pelo espaço, como para este processo de intervenção, que adquiria uma
plan leads to an end, the
nova consciência da fragilidade em que trabalhava. Com a ameaça de se perder a map provides a genera-
quinta, pareceu importante pensar uma proposta mais estrutural antes da total tive means, a suggestive
perda da oportunidade do quarteirão. Ainda assim, não se deixou passar a oportu- vehicle that ‘points’ but
does not overly deter-
nidade para experimentar algumas coisas.
mine.” CORNER, James
- The Agency of Mapping:
Speculation, Critique and
Invention, em Mappings,
ed. Denis Cosgrove, Reak-
ton Books, Londres, 1999,
p. 228

141
11.1. Os recursos e as ideias

Por detrás das pequenas experiências que aqui foram feitas estavam algu-
mas intenções relacionadas com o projecto de reabilitação do quarteirão. Tanto de
confirmar a viabilidade daquilo que era defendido, como a reciclagem de materiais
em novas estruturas como o palco, como em adquirir um contacto directo com o
desenho colaborativo e a autoconstrução, como foi a experiência de montagem
do bar, como em testar a dinamização cultural dos espaços menos convencionais,
como foi com a intervenção artística nas ruinas.
As primeiras ideias depararam-se imediatamente com o problema de falta
de recursos necessários às intervenções. De um ponto de vista financeiro, a ine-
xistência de apoios inviabilizava qualquer pretensão que pudesse sobrecarregar
as capacidades da própria associação. Por isso, parecia imperativo iniciar uma re-
colha de forma a constituir um catálogo de materiais que pudesse informar as já
existentes intenções das verdadeiras contingências materiais.
Este revelou-se um aspecto essencial a ter em conta na forma de pensar
as intervenções. O processo convencional de fazer projecto, começando pelo de-
senho para se proceder à sua construção, teria de ser repensado. Esta forma de
projectar levaria a um beco sem saída por falta de meios para a sua execução. Ao
invés, deveria partir-se para o projecto já com uma catalogação feita dos materiais
que estariam disponíveis.
Este deveria ser um catálogo diversificado, mesmo que por vezes até apa-
rentemente inútil, de forma a ampliar as possibilidades. Embora sofrendo de fortes
contingências, caberia ao exercício de projecto encontrar forma de resolver as in-

Fig. 100 - Alguns dos ma-


teriais recolhidos durante
uma sessão de resgate de
uma obra de reabilitação
na Rua do Bonjardim, antes
de serem carregados para o
local de armazenamento

142
Fig. 101 - Reunião para le-
vantamento e discussão da
proposta de cobertura do
espaço de armazenamento
de materiais.

tervenções com aquilo que já existia, reduzindo a aquisição de material àquilo que
fosse imprescindível. Este contexto de crise acaba por ser o grande responsável
pela estética muito própria com que resultam este tipo de operações.
Dada a proximidade à Rua do Bonjardim, escolheu-se a ruína para onde
antes tinha sido pensada uma estufa para fazer este armazenamento. O primeiro
passo foi a limpeza do espaço, que se encontrava ao abandono. A partir daí foram
sendo depositados materiais recolhidos em outros pontos da cidade, mas sobre-
tudo de obras de reabilitação de edifícios desta zona, dada a inexistência de carro
para o transporte. Conseguiram-se vigas de piso, barrotes, pranchas de cofragem
e paletes.
Contudo, não estavam resolvidos os problemas de preservação destes
materiais. Isso levou a que se fizesse um levantamento da ruína e se pensassem
algumas propostas de diferentes coberturas que possibilitassem também, dada a
proximidade à sede, um uso da ruína como espaço de trabalho/oficina.
No entanto, há um dia em que surge o início de um forno no mesmo local.
Sabendo já que esta era uma ideia antiga, era uma possibilidade aparentemente
sem desenvolvimentos recentes, tendo ficado perdida nas vontades que morrem
com o passar do tempo, como assim tinha sido com a estufa. Não descartando estas
sugestões, julguei que o forno poderia ser construído noutro local, talvez mais pró-
ximo aos espaços de lazer da quinta. Também a estufa, tendo em conta que o local
é muito sombreado pelo edificado, caberia melhor algures à cota alta, inserido no
sistema das hortas e sua infra-estrutura de rega. Daí que se tenha apontado para
a ruína hospedar funções de trabalho e armazenamento, dada a proximidade à rua

143
(para descargas) e às fontes de electricidade da sede. É por isso muito curioso que,
pouco depois de o espaço voltar a estar limpo, tenha havido um ímpeto espontâneo
para intervir. Era um óptimo sinal de vivacidade e de vontade. Depois deste episó-
dio a ideia de cobrir o espaço cai por terra.

Fig. 102 - Acção de limpeza


conjunta do espaço onde
iria nascer o banco de ma-
teriais.

Fig. 103 - Início da estrutura


do forno, que surge no mes-
mo local.

144
11.2. O palco

Começa-se então a planear a construção de uma plataforma elevada na


terra das crianças para servir de palco. Este espaço era já muito utilizado para fazer
festas, refeições ao ar livre, sessões de filmes e outras actividades, mas a falta de
alguma infra-estrutura mais resiliente dificultava a sua utilização. Por um lado, era
intenção da associação manter o espaço vazio, permitindo que ele se adaptasse
facilmente às diferentes actividades e ao mesmo tempo se preservasse o seu ca-
rácter natural. Contudo, a presença da estrutura da projecção de filmes, por exem-
plo, demonstrava como seria benéfico equipar o espaço de forma mais permanente
para facilitar o uso recorrente.
Depois de recolhido o material necessário houve um debate sobre ques-
tões de implantação. Das reuniões que se fizeram no local com alguns membros da
associação percebeu-se que não se atingiria facilmente um consenso. Por um lado,
defendia-se a colocação no topo sul, onde existia já uma zona mais elevada. Mas
porque era aqui que se faziam as sessões de cinema, porque era necessário cons-
truir um muro de contenção da elevação já existente e reabilitar o muro posterior
contíguo ao anexo da Vitalina, que estava a ceder, afastou-se esta hipótese. Por
outro lado, discutiu-se implantar no topo este, onde já aconteciam os concertos.
O muro alto posterior oferecia alguma protecção do vento, contudo nestes moldes
o palco ficaria virado na direcção da rua, o que poderia trazer problemas de ruído
para a vizinhança. Finalmente, a opção escolhida propunha ocupar o topo oeste
do espaço, separando a zona de hortas da zona recreativa, e voltando-se para o
interior, reduzindo o ruído que se ouvia na rua. Mesmo encontrada a solução de im-
plantação, ficou claro que a presença desta estrutura não inibiria que os concertos
pudessem acontecer noutro local. Por isso, entendia-se este dispositivo acima de
tudo como uma plataforma plana e levantada, disposta a qualquer uso diferente
daquele que tinha inicialmente pensado, desde a dança à sesta.
A plataforma, com 4x2,6 (m) foi inteiramente construída com materiais
reutilizados e com um custo zero. Estava proibido o uso de cimento neste local ou
qualquer tipo de instalação permanente. Por isso, procuraram-se soluções cons-
trutivas que permitissem facilmente desmontar a estrutura e reaver o estado de
pré-intervenção. A maioria das vigas disponíveis tinha 2,6 metros de comprimento.
Esta medida foi utilizada para criar a modulação da estrutura. Para as fundações
utilizaram-se blocos de cimento maciço, entretanto também recolhidos, sobre os
quais as vigas repousam sem fixação. Estes blocos são enterrados e cravados com
pedras, ficando imobilizados e nivelados. Assim, o estrado de madeira flutua sobre
os blocos, reagindo às cargas, podendo ser recolhido e os blocos reajustados caso
necessário. Finalmente, o piso da plataforma é uma mediação das medidas e es-
pessuras das madeiras disponíveis, procurando os melhores encaixes e tentando
reduzir ao máximo o desperdício.

145
Fig. 104 - Planta da estrutura do palco para a terra das crianças.

4
3
2

0 10 20 30 50cm

Fig. 105 - Corte da estrutura do palco. Legenda: 1-Bloco maciço de betão; 2- Viga longitudinal de madeira; 3 - Vigas transversais; 4 - Tábuas de madeira

0 10 20 30 50cm

146
Fig. 106 - O início da cons-
trução, com os apoios de
betão ja alinhados e nive-
lados.

Fig. 107 - (à esquerda) As


vigas que suportam as car-
gas secam depois do trata-
mento para a protecção da
madeira.

Fig. 108 - (à direita) Porme-


nor de fixação das funda-
ções no terreno.

147
Fig. 109 - Começam a ser
colocadas as vigas trans-
versais, sobre as longitu-
dinais, que por sua vez des-
cansam sobre os apoios de
betão.

Fig. 110 - Instalam-se as


pranchas de madeira en-
tretanto recolhidas de
outras obras, procurando
encaixes que reduzam o
desperdício e atenuem as
suas diferentes espessu-
ras.

148
Fig. 111 - A plataforma qua-
se terminada, restando
aparar os limites.

Fig. 112 - Tratamento final


de protecção da madeira
que também homogeniza a
coloração.

149
11.3. O bar

Depois do palco, as coisas ganharam um ímpeto próprio. Organizaram-se


sessões de trabalho abertas à participação e começou-se a trabalhar numa estru-
tura onde funcionaria o bar, desta vez com uma abordagem bastante diferente. En-
quanto que para a plataforma houve um trabalho prévio de estudo de implantação
e pré-dimensionamento da estrutura, para o bar o processo de desenho aconteceu
inteiramente no terreno, seguindo as ideias e soluções pensadas no próprio acto de
construção.
Para suportar o balcão utilizaram-se vigas semelhantes às que tinham sido
utilizadas no palco. A estrutura é composta por dois apoios verticais enterrados,
interligados por duas vigas horizontais, uma ao nível da bancada e outra ligeira-
mente levantada do chão. Sobre a superior coloca-se a bancada, feita com uma
porta antiga, que é também apoiada por duas vigas inclinadas que rematam na viga
horizontal inferior. Para a parede do balcão usou-se o casqueiro, um material so-
brante das serrações. Num dos topos do balcão está um pequeno arrumo em tijolo
que já ali existia que ajuda a trancar horizontalmente a estrutura. O outro topo é
rematado por uma palete, cortada à medida para dar também algum apoio.
As duas abordagens foram propositadamente muito diferentes. Enquanto
que no caso da plataforma o trabalho prévio de planeamento fez com que existisse
muita eficiência no uso dos materiais, quase sem desperdícios, no caso do bar o
improviso e a discussão tiveram muito espaço por nada estar ainda decidido, per-
mitindo que se experimentasse sem reservas.

150
Fig. 113 - Alçado da estrutura do bar.

Fig. 114 - Corte transversal.

0 10 20 30 50cm

0 10 20 30 50cm

151
Fig. 115 e 116 - Primeiros
testes de dimensionamen-
to da estrutura em vigas de
madeira, durante uma ses-
são de construção aberta à
participação.

152
Fig. 117 - Fixação das peças
de casqueiro que fazem a
parede do balcão, cobrindo
a estrutura.

Fig. 118 - O bar já terminado,


rematado em cima por uma
porta recuperada de obra
de demolição.

153
11.4. O mobiliário

Com o material que sobrou destas duas estruturas começou-se a fazer mo-
biliário de apoio, com uma dimensão de experimentação muito forte porque assim
o permitia a escala dos objectos produzidos. Fizeram-se dois armários em estante,
tentando um de planta quadrada e outro de planta triangular. Construíram-se pe-
quenas mesas com alturas variáveis para testar os diferentes níveis de conforto e
tipos de uso. Montaram-se bancos variando o número de apoios para perceber a
melhor forma de se utilizarem num terreno muito irregular. Cada uma destas ex-
periências envolveu pessoas diferentes, com níveis de experiência em construção
muito diversos. Contudo, as ferramentas necessárias tornaram este processo mui-
to inclusivo e pragmático: um serrote, um martelo e alguns pregos bastaram.

Fig. 119 - A plataforma a


servir de zona de trabalho
para desenvolver o mobi-
liário.

154
Fig. 120 - Estante de plan-
ta quadrada para servir de
apoio no bar. Utiliza peças
quadradas de madeira en-
contradas na rua, vigas
semelhantes às do palco e
as tábuas de casqueiro que
sobraram para travar a es-
trutura.

Fig. 121 - Experiência com


uma outra estante, desta
vez de planta triangular,
para servir de suporte às
colunas durante os concer-
tos.

155
Fig. 122 - Uma pequena
mesa e banco junto da fo-
gueira para os tempos de
convívio na terra das crian-
ças.

Fig. 123 - A estante triangu-


lar terminada.

156
Fig. 124 - Um pequeno ban-
co com um casqueiro inver-
tido e as sobras das vigas a
servirem de pés, colocados
em ângulos, para se adap-
tar ao terreno irregular da
terra das crianças.

Fig. 125 - Duas pequenas


mesas de diferentes altu-
ras.

157
11.5. A ruína

A última intervenção aconteceu mais recentemente nas ruínas imediata-


mente após o fim da Rua do Alto da Fontinha. Trata-se de um núcleo formado por
quatro casas hoje completamente degradadas, restando somente as paredes que
dão já sinais de desmoronamento. Até à altura estivam embrulhadas por silvas,
mas deixavam adivinhar um potencial muito grande.
Após um convite ao colectivo Bergado, um grupo de artistas e estudantes
da Faculdade de Belas-Artes, começou-se a limpar o espaço para montar uma ex-
posição colectiva. Este foi o teste real à possibilidade de utilizar a ruína como espa-
ço expositivo, como se propõem no projecto para o quarteirão, bem como utilizar
o tema da ruína para desenvolver um trabalho artístico específico, reflectindo nos
problemas do espaço urbano que hoje tomam o discurso cívico: a reabilitação, a
gentrificação, a subida de rendas, etc.
De forma a promover a exposição organizou-se um pequeno festival du-
rante o dia de inauguração. Contando já com o palco, o bar e parte da mobília fina-
lizada, fizeram-se quatro concertos na terra das crianças e uma performance nas
ruínas. A experiência colocou em evidência a importância de intervir nos espaços
de forma a desbloquear o seu potencial para uma dimensão social.

Fig. 126 - Alguns membros


do colectivo Bergado tra-
balham numa estrutura
para a exposição nas ruí-
nas, com vigas semelhan-
tes às do palco e madeira
proveniente de palettes
desmontadas.

158
Fig. 127 - Durante a prepa-
ração da exposição, quan-
do foi necessário fazer os
furos nas pedras para fixar
os quadros.

Fig. 128 - Montagem da ex-


posição colectiva.

159
Fig. 129 - Quase todas as
peças expostas foram de-
senvolvidas no local, nas-
cendo da oportunidade
criada pelo próprio espaço
da ruína.

Fig. 130 - A grande estru-


tura montada, evocando
as gruas que, de dentro da
ruína, se avistam por toda a
paisagem do Porto.

160
Fig. 131 - O interior de uma
das salas, construído so-
bretudo por materiais re-
ciclados e lixo encontrado
durante o processo de
montagem.

Fig. 132 - O Guilherme, um


dos membros do colectivo,
no dia da inauguração.

161
Fig. 133 - O interior de uma
das salas.

Fig. 134 - Performance rea-


lizada no dia da inaugura-
ção, onde são destruídas
pinhatas evocando ascasas
portuenses.

162
Fig. 135 - Algum público as-
siste à performance.

Fig. 136 - Durante a tarde


da inauguração acontecem
os vários concertos na terra
das crianças.

163
Fig. 137 e 138 - Convívio
e concertos na terra das
crianças, já com o palco e o
bar em funcionamento.

164
Fig. 139 - Concerto de Dies
Lexic.

Fig. 140 - Concerto de Ju-


lius Gabriel.

165
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fig.87 Nuno Oliveira (2017). Mobiliário da oficina comunitária do STEK. (Fotografia)
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tos/russellquinn/2882669199/in/photostream/. Acesso em Setembro de 2019
fig.95 Autoria própria (2019). Corte B do projecto de intervenção. (Desenho)
fig.96 Collectif ETC (2012). La place du refuge – Détour de France. (Fotografia). Disponível em
http://www.collectifetc.com/realisation/bons-plans-pour-le-refuge-panier/. Acesso em
Setembro de 2019
fig.97 Library of Things (2019). Biblioteca de coisas em Crystal Palace. (Fotografia). Disponível em
https://www.libraryofthings.co.uk/. Acesso em Setembro de 2019
fig.98 Straddle3 (2011). Wikitankers: MediaTanker. (Fotografia). Disponível em https://straddle3.
net/en/proyectos/wikitankers. Acesso em Setembro de 2019
fig.99 Straddle3 (2011). Wikitankers: GastroTanker. (Fotografia). Disponível em https://stradd-
le3.net/en/proyectos/wikitankers. Acesso em Setembro de 2019
fig.100 Autoria própria (2019). Materiais recolhidos. (Fotografia)
fig.101 Autoria própria (2019). Reunião de levantamento. (Fotografia)
fig.102 Autoria própria (2019). Acção de limpeza. (Fotografia)
fig.103 Autoria própria (2019). Estrutura de forno. (Fotografia)

174
fig.104 Autoria própria (2019). Planta do palco. (Desenho)
fig.105 Autoria própria (2019). Corte do palco. (Desenho)
fig.106 Autoria própria (2019). Montagem do palco. (Fotografia)
fig.107 idem
fig.108 idem
fig.109 idem
fig.110 Idem
fig.111 Idem
fig.112 Idem
fig.113 Autoria própria (2019). Alçado do bar. (Desenho)
fig.114 Autoria própria (2019). Corte transversal do bar. (Desenho)
fig.115 Autoria própria (2019). Montagem do bar. (Fotografia)
fig.116 Idem
fig.117 Idem
fig.118 Idem
fig.119 Autoria própria (2019). Montagem do mobiliário. (Fotografia)
fig.120 Idem
fig.121 Idem
fig.122 Autoria própria (2019). Banco e cadeira. (Fotografia)
fig.123 Autoria própria (2019). Estante de planta triangular. (Fotografia)
fig.124 Autoria própria (2019). Banco de pés em ângulo. (Fotografia)
fig.125 Autoria própria (2019). Mesas de altura variada. (Fotografia)
fig.126 Autoria própria (2019). Montagem da exposição nas ruínas. (Fotografia)
fig.127 Idem
fig.128 Idem
fig.129 Idem
fig.130 Idem
fig.131 Ursula Zangger (2019). Inauguração da exposição nas ruínas. (Fotografia)
fig.132 Idem
fig.133 Idem
fig.134 Autoria própria (2019). Performance nas ruínas. (Fotografia)
fig.135 Idem
fig.136 Autoria própria (2019). Concertos na inauguração da exposição. (Fotografia)
fig.137 Ursula Zangger (2019). Concertos na inauguração da exposição. (Fotografia)
fig.138 Alicia Fournier (2019). Concertos na inauguração da exposição. (Fotografia)
fig.139 Alicia Fournier (2019). Concerto de Dies Lexic. (Fotografia)
fig.140 Ursula Zangger (2019). Concerto de Julius Gabriel. (Fotografia)

175
Percurso fotográfico

1- Alicia Fournier (2019). Entrada do Espaço Musas. (Fotografia)


2- Autoria própria (2019). Corredor de entrada na quinta. (Fotografia)
3- Autoria própria (2019). Ruína junto da sede. (Fotografia)
4- Autoria própria (2019). Segunda ruína junto da sede. (Fotografia)
5- Autoria própria (2019). Casa do Arnaldo. (Fotografia)
6- Alicia Fournier (2019). Pátio do Arnaldo. (Fotografia)
7- Autoria própria (2019). Chegada à cota alta. (Fotografia)
8- Autoria própria (2019). Miradouros e hortas aromáticas. (Fotografia)
9- Alicia Fournier (2019). Vista do miradouro. (Fotografia)
10- Autoria própria (2019). Primeiro núcleo de hortas. (Fotografia)
11- Alicia Fournier (2019). Anexo da Vitalina. (Fotografia)
12- Ursula Zangger (2019). Terra das crianças. (Fotografia)
13- Autoria própria (2019). Acesso à terra das crianças. (Fotografia)
14- Autoria própria (2019). Passagem ao núcleo de hortas. (Fotografia)
15- Autoria própria (2019). Núcleo de hortas. (Fotografia)
16- Alicia Fournier (2019). Estrutura para projecção de filmes. (Fotografia)
17- Autoria própria (2019). Corredor norte da quinta. (Fotografia)
18- Autoria própria (2019). Armazém de ferramentas. (Fotografia)
19- Autoria própria (2019). Interior do armazém de ferramentas. (Fotografia)
20- Alicia Fournier (2019). Hortas abandonadas. (Fotografia)
21- Alicia Fournier (2019). Acesso à Agrofloresta. (Fotografia)
22- Alicia Fournier (2019). Núcleo de hortas junto da Agrofloresta. (Fotografia)
23- Alicia Fournier (2019). Vista sobre a Agrofloresta. (Fotografia)
24- Autoria própria (2019). Garagem com a Rua do Alto da Fontinha. (Fotografia)
25- Autoria própria (2019). Estrutura abandonada na garagem. (Fotografia)
26- Autoria própria (2019). Ruínas de quatro casas. (Fotografia)
27- Autoria própria (2019). Ruína e relação com paisagem. (Fotografia)
28- Alicia Fournier (2019). Núcleo de hortas sobre pré-existências. (Fotografia)
29- Alicia Fournier (2019). Término da quinta a sul. (Fotografia)
30- Autoria própria (2019). Núcleo com árvores de fruto. (Fotografia)
31- Autoria própria (2019). Galinheiros. (Fotografia)
32- Autoria própria (2019). Acesso ao lote do vizinho. (Fotografia)

176
Espaço Musas: licença para ocupar
João Miguel Silva
FACULDADE DE ARQUITETURA

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